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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

ANO LECTIVO 2017/2018


DIREITO PENAL II – SUBTURMA 15

Resolução de Casos Práticos – Proposta(1)

O comportamento penalmente relevante como pressuposto e limite da responsabilidade

Num belo dia de Verão, A e B encontravam-se a conversar à beira da piscina, quando, subitamente,
uma vespa picou A num braço.
A sacudiu bruscamente o braço, empurrando B.
Esta (B) caiu na água em cima de um banhista (C), causando-lhe uma lesão na coluna que o deixou
paralítico (v. artigos 144.º e 148.º do CP).
B praticou um comportamento jurídico-penalmente relevante? E A?

De maneira a determinar se A e B realizaram comportamentos penalmente relevantes, importa


desde logo indagar se as actuações de ambos consubstanciam uma acção juridicamente valorada. Como
sabemos, reconduz-se a noção de acção a um comportamento humano voluntário, exigindo-se a sua real
projecção no exterior, no mundo fáctico. Tal exteriorização deverá resultar de um comportamento
humano, tendo em conta que só as pessoas se orientam pelas normas e, como tal, só as pessoas são
sujeitos de direito. Para além disso, afigura-se necessária a voluntariedade do comportamento, requisito
que se compreende facilmente quando articulado com o princípio da culpa. Neste sentido, assentando o
nosso sistema na ideia de direito penal do facto, balizado pelo princípio da necessidade da pena (artigo
18.º, número 2 da Constituição da República Portuguesa), analisaremos se as atitudes de A e B revelam
o substrato mínimo da responsabilidade penal, traduzido no conceito de acção.
Em relação à situação de B, verifica-se que o agente é empurrado pelo braço de A, acabando por
cair em cima de C, que vem a sofrer uma lesão grave à respectiva integridade física. Significa isto que B
não teve qualquer controlo sobre a sua actuação, já que se encontra numa situação de coacção absoluta.
Podemos, de certo modo, afirmar que todo o processo que desembocou na sua queda lhe foi
completamente alheio. Por essa razão, dir-se-á em falta a voluntariedade exigida para a afirmação de uma

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O presente documento apresenta meras propostas de resolução dos casos práticos tratados nas aulas práticas, e não dispensa
a frequência às aulas teóricas e a consulta dos manuais de referência.

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acção. Como vimos, em momento algum B teve domínio do processo causal que resultou no facto lesivo,
pelo que não poderá ter realizado um comportamento penalmente relevante.
No que concerne a A, afigura-se este cenário menos nítido, desde logo porque releva caracterizar a
sua reacção como um acto reflexo ou um automatismo. Em princípio, os actos reflexos não constituem
qualquer acção, no sentido anteriormente referido, enquanto os automatismos podem ou não assumir-se
como comportamentos penalmente relevantes.
Neste caso, A foi picado por uma abelha; nessa sequência, sacudiu o braço e, finalmente, empurrou
B contra C. Relativamente a este primeiro problema, importa recordar as linhas de distinção entre actos
reflexos e automatismos, que se traduzem fundamentalmente na circunstância de os actos reflexos
constituírem uma reacção endógena, característica do ser humano e, como tal, comum a todas as pessoas.
Configura um acto reflexo a situação em que se levanta a perna na decorrência do estímulo, pelo médico,
com um martelo na rótula. Os automatismos, por seu turno, representam formas de reacção a
circunstâncias externas, que variam de acordo com a própria personalidade do agente. Assim, o padrão
de reacção não é universal, divergindo de acordo com as características específicas do indivíduo.
A hipótese descrita parece aproximar-se à figura dos automatismos, uma vez que nem todos
sacudimos o braço quando somos picados por uma abelha. Ainda assim, dentro da categoria dos
automatismos vale a pena destrinçar os automatismos rotineiros (por exemplo, conduzir) e os
automatismos instintivos (tipicamente, reacções defensivas instintivas). De qualquer modo, importará
indagar da relevância dos automatismos enquanto comportamento penalmente relevante, o que nos
obriga a considerar diferentes perspectivas doutrinárias.
Na opinião de ROXIN, constitui acção todo o comportamento que traduza uma manifestação da
personalidade do agente, assentando tal manifestação no carácter voluntário da conduta. De acordo com
tal concepção, serão voluntárias aquelas acções que emanem do sistema nervoso central, quer dizer, em
que haja um efectivo domínio neurológico (volitivo) do comportamento. No caso dos automatismos, é
possível aferir tal domínio pelo facto de a reacção concreta de cada um depender da sua própria estrutura
pessoal. Assim, ao contrário do que ocorre nos actos reflexos, nos automatismos o processo volitivo que
desemboca na acção ultrapassa a esfera do sistema nervoso periférico, e atinge o sistema nervoso central.
Equivale isto a constatar, através das asserções anteriormente proferidas, que os automatismos serão

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sempre, para ROXIN, comportamentos relevantes, uma vez que configuram – pela sua própria definição
– manifestações da personalidade. Em síntese, diremos que para ROXIN, A teria praticado um
comportamento penalmente significativo.
De acordo com MARIA FERNANDA PALMA, o critério a empregar para aferir da existência de acção
no caso dos automatismos prende-se com a própria previsibilidade do estímulo externo que provoca a
reacção. Com efeito, para esta autora, estaremos perante uma acção quando o comportamento em causa
se coadunar com a própria capacidade de o agente prever o estímulo externo, configurando assim o acto
automático como elemento integrado de um comportamento complexo. Neste sentido, importa pensar se
será previsível que, “num belo dia de Verão”, surja uma abelha à beira da piscina. E, efectivamente, não
surge tal possibilidade como inverosímil, à maioria das concepções. Assim sendo, poder-se-á afirmar que
A teria praticado um comportamento penalmente relevante.
Igualmente interessante será considerar o critério de JAKOBS, traduzido pela ideia de eficácia
previsível das normas. Para este autor, seria necessário que a produção do resultado fosse evitável
individualmente para que se pudesse afirmar que haveria acção. Por outras palavras, seria imprescindível
que o agente tivesse tido o tempo necessário para reconhecer o perigo e adaptar o seu comportamento à
norma. De forma sintética, diremos que teria que se verificar a possibilidade de um controlo do
automatismo pela consciência, no sentido de o agente se conseguir motivar pela norma. A aplicação do
presente critério à situação em análise não se assume muito linear. Na verdade, apesar de, como vimos,
ter havido um controlo do automatismo pela consciência, não parece poder afirmar-se que o agente tenha
tido tempo para se motivar pelas incriminações correspondentes às ofensas à integridade física. Deste
modo, não se revela impensável conceber duas soluções distintas à luz desta proposta: por um lado, a
produção do resultado seria, até certo ponto, evitável individualmente – de facto, o automatismo integrou
a consciência do agente; no entanto, parece forçoso afirmar que A tenha tido tempo para se motivar pela
norma, isto é, que tenha havido efectiva oportunidade para intervenção da consciência, de maneira a
evitar a realização dessa acção. Como se compreende, trata-se sobretudo de um problema de prova, que
poderá conduzir à negação deste comportamento como penalmente relevante.

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A tipicidade
Desvalor e tipificação da omissão

C e D, amigos de curta data, combinaram ir praticar montanhismo para a Arrábida. Antes de


iniciarem uma escalada livre, C inalou uma dose considerável de cocaína; por isso, ficou num
estado extremo de entusiasmo e começou a escalada em grande velocidade, apesar dos protestos de
D, que não conseguia acompanhá-lo. A certa altura da escalada, D deu um passo em falso, perdeu
o equilíbrio e caiu numa ravina, sofrendo, em consequência disso, ferimentos graves que lhe
provocaram uma intensa hemorragia. C, que já ia bastante mais acima, apercebeu-se da queda de
D mas, no seu estado de euforia, decidiu prosseguir a escalada e acudir à amiga apenas quando
descesse. Quando, no regresso, se aproximou de D, era já tarde demais: D morrera em
consequência da hemorragia.
Pode C ser responsabilizado penalmente? Por que crime?

Indagar da responsabilidade penal de C obriga-nos, desde logo, a determinar se o seu


comportamento consubstancia uma acção ou uma omissão. De facto, e de acordo com os dados da
hipótese, C não socorreu D, quando ambos praticavam montanhismo na Arrábida, o que parece remeter-
nos para a figura da omissão. Preocupação cimeira será então a de distinguir a acção da omissão.
Com esse intuito, começou a doutrina por enunciar critérios naturalísticos que, na formulação de
ENGISCH, se traduziam no facto de a acção implicar um dispêndio de energia num certo sentido,
nomeadamente o de evitar o resultado. Simetricamente, a omissão consistiria na não aplicação de energia
com o intuito de impedir a produção desse mesmo resultado. Como se compreende, apesar de ser um
critério pertinente, tal orientação não resolve alguns casos. Pense-se, por exemplo, nas situações em que
o agente atropela a vítima. Em abstracto, e atendendo a este critério, este cenário tanto poderá ser
encarado como uma acção – o agente atropela a vítima por empregar energia ao acelerar –, como
reconduzido à noção de omissão – o agente atropela a vítima por não despender energia para travar. Neste

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contexto, não parece justificar-se uma tão acentuada distinção entre acção e omissão, especialmente em
termos de exigência para a punibilidade.
Em alternativa, formulou-se o critério da censurabilidade jurídico-penal, que pretende fazer
distinguir a acção da omissão consoante tal juízo de censura se refira a um comportamento activo ou
omissivo. Apesar de assumir uma natureza normativa, esta opção possui a dificuldade de não ser
facilmente demonstrável, e de exigir uma indagação profunda acerca do juízo subjacente à incriminação.
Por isso, surgiram critérios que reconduzem esta problemática à do concurso de normas
(KAUFMANN), prevendo que uma omissão só será relevante quando o comportamento em causa não puder
ser configurado como uma acção. Noutro sentido, sugeriu ROXIN que, em algumas situações, possa
prevalecer o crime omissivo(2).
Corrida toda esta tinta, o critério que se impôs, por surgir como o mais razoável, foi o critério da
ilicitude típica e de imputação objectiva. Esta proposta assenta num juízo acerca da forma de criação do
perigo para o bem jurídico protegido pela incriminação, e identifica a acção como a criação/aumento de
um risco para o bem jurídico – ou bem assim, quando o comportamento piora a situação do bem jurídico
–, e a omissão como a não diminuição de um risco pré-existente – ou, paralelamente, quando não se
melhora a situação (previamente má) de risco para o bem jurídico.
Desta forma, haverá que considerar se o comportamento de C criou ou aumentou o risco que se
concretizou na morte de D ou se, ao invés, a atitude de C traduz a não diminuição desse risco. Como
sugerem os dados da hipótese, o que parece ter ocorrido é uma não diminuição do risco que já tinha sido
autonomamente criado pelo contexto. Nesta medida, diremos que a actuação de C consubstancia uma
omissão.
Tendo já determinado o carácter omissivo da conduta de C, importa antes de mais analisar se existia
capacidade humana de agir. Significa isto perguntar se no caso concreto, C teria possibilidade de evitar
o resultado, tal como o teria qualquer outro ser humano, colocado na situação.

(2)
Pensamos aqui nos casos de comparticipação activa em crime omissivo, omissão livre na causa, tentativa interrompida de
salvamento (quando o processo salvador ainda não atingiu a esfera jurídica da vítima, há omissão; caso contrário, haverá
acção, aplicando o critério do risco), e interrupção técnica de tratamento.

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É nesta sede que a circunstância de C ter inalado cocaína poderá ter relevância, já que poderia
levar-nos a concluir que C não tinha capacidade para agir. Contudo, resulta do enunciado da hipótese que
o agente se colocou voluntariamente na situação, o que nos legitimará a equacionar um paralelismo entre
a figura da actio libera in causa e a omissio libera in causa. De facto, a colocação neste estado configura
uma omissão ilícita na causa, pelo que não podemos afirmar que haveria uma incapacidade humana de
agir. Eventualmente, poderia discernir-se uma incapacidade individual de agir que, como vimos, não
seria relevante para afastar a responsabilidade penal, já que o agente se tinha colocado voluntariamente
em tal situação.
Chegados à conclusão de que não se verificava qualquer circunstância que obstasse à afirmação da
capacidade humana de agir, importa averiguar se nos encontramos perante uma omissão pura (p.e., artigo
200.º do Código Penal) ou impura (artigo 10.º do Código Penal, conjugado com o correspondente
preceito da parte especial).
Como se sabe, as omissões puras encontram uma previsão de tipicidade directa, reconduzível a um
concreto preceito da parte especial (p.e., artigo 200.º do Código Penal), e referem-se, na maioria dos
casos, a crimes formais. Aqui, ao agente impõe-se um mero dever de agir, sem vinculação a evitar o
resultado. Diferentemente, as omissões impuras conhecem um processo de tipificação indirecta (artigo
10.º do Código Penal, conjugado com a norma da parte especial), reflectindo os crimes materiais ou de
resultado. Nestes casos, sobre o agente recai o dever de evitar o resultado típico, na decorrência de
assumir uma posição de garante sobre o bem jurídico em causa. Deste modo, estabelece-se entre os dois
tipos de omissão uma relação de subsidiariedade, prevalecendo, porque mais grave, o regime da omissão
impura.
Importa então verificar se estamos perante uma omissão impura. Para tal, revela-se conveniente
identificar os crimes em causa. Tendo em atenção que da queda resultou a morte de C, poderemos estar
perante um homicídio por omissão (artigos 131.º e 10.º do Código Penal) ou, simplesmente, tratando-se
de uma omissão pura, perante a violação do dever de auxílio configurado pelo artigo 200.º do Código
Penal. Verifiquemos, então, se C detinha alguma posição de garante em relação a D, de forma a
determinar a que título poderá ser punido.

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A este respeito, inicialmente propugnava-se a chamada tese formal das fontes de posição de
garante, de acordo com a qual se configuravam como fontes apenas a lei, o contrato e a ingerência. Tal
concepção preocupava-se sobretudo com a imposição de certeza decorrente do princípio da legalidade,
esquecendo algumas situações em que materialmente se justificava a afirmação de uma posição de
garante. Mesmo no que respeita à lei enquanto fonte de posição de garante, obstava-se a tal concepção
afirmando que o Código Civil – de onde se retiravam os deveres de garante no seio familiar – não se
assume como lei penal, sendo tal responsabilidade meramente civil. Em relação ao contrato, compreende-
se a respectiva configuração enquanto fonte de posição de garante, já que tal assunção de protecção de
bens jurídicos resultaria de um consenso entre as partes, manifestação da vontade daqueles que se
vinculavam. No entanto, se interpretada rigidamente, tal perspectiva sustentaria soluções inexplicáveis:
pense-se no caso da baby sitter contratada para vigiar a criança entre as 9h e as 12h, e que não evita que
a criança caia da janela porque o acidente ocorreu às 12h30. No que concerne à ingerência, tal figura
permaneceu nas agora chamadas teorias materiais, já que assenta na ideia de que quem cria um perigo
para um bem jurídico, deve ficar vinculado a evitar posteriores agravações do perigo criado. Deste modo,
faz sentido que quem tenha interferido ilegitimamente na esfera de liberdade de outrem se assuma
responsável pelas consequências de tal intervenção.
Como se disse, tal concepção esquecia a vinculação pessoal e a materialidade inerente a cada
situação, conduzindo a resultados insatisfatórios. Por esse motivo, surge a chamada teoria das funções,
que considera que os deveres de garantia se distinguem em duas funções: função de guarda de um bem
jurídico concreto, gerando deveres de protecção e de assistência – enquadrando-se neste grupo as
situações de protecção familiar ou análogas; comunidade de risco e o próprio contrato, de uma forma
imaterializada –; e a função de vigilância de uma fonte de perigo, gerando deveres de segurança e de
controlo – enquadrando-se aqui as situações de garantia face à actuação de terceiros, a ingerência e o
dever de fiscalização de fontes de perigo no âmbito de domínio próprio.
No caso em estudo, releva apenas considerar a comunidade de risco, já que C e D se propuseram
a encetar o que à partida se apresenta como uma actividade arriscada. O fundamento desta figura como
fonte de posição de garante reconduz-se às relações de confiança e dependência mútuas que se
estabelecem entre os participantes, e ao próprio carácter perigoso do empreendimento conjuntamente

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reconhecido e aceite, que funda em cada um dos intervenientes um dever de garantia face a todos os
restantes. De acordo com FIGUEIREDO DIAS, só se verificará uma posição de garante nas situações em
que se completem estes três pressupostos: a) relações estreitas e efectivas, diferentes daquelas que seriam
fundadas por um mero código social ou moral; b) ocorrência, de facto, da comunidade de perigos; e c) o
perigo tem que atingir o bem jurídico concreto, representando um perigo real para a potencial vítima,
devendo o agente actuar no sentido de o evitar ou diminuir.
A hipótese em estudo poderá não respeitar todos os requisitos, desde logo porque C e D são
“amigos de curta data”. Isto significa que, muito provavelmente, ainda não haverá uma relação de
amizade forte o suficiente para justificar a expectativa de D quanto ao dever de salvamento que recairia
sobre C. Como se referiu, o fundamento desta figura – mais do que a própria partilha de perigo –
reconduz-se à confiança e dependência mútuas que se estabelecem entre os participantes. Deste modo,
parece duvidoso poder afirmar, sem mais, que C detinha uma posição de garante face a D, nos termos da
comunidade de risco.
No entanto, seria ainda possível equacionar tal posição de garante com recurso à figura do
monopólio, o que nos obriga a escrutinar os casos em que se poderá admitir que o monopólio é fonte de
posição de garante.
O monopólio caracteriza-se pelo facto de, numa dada situação, apenas uma pessoa dispor das
condições necessárias para afastar o perigo que ameaça um determinado bem jurídico. Por esse motivo,
FIGUEIREDO DIAS inclui o monopólio nos casos de domínio de uma fonte de perigo, acrescentando,
contudo, que só em algumas hipóteses surgirá o monopólio como fonte de posição de garante. Segundo
tal orientação, seria indispensável que se verificasse um domínio fáctico absoluto da fonte de perigo – o
que implica que, no momento em que o perigo se manifesta, o agente fosse a única pessoa com
capacidade e meios para o afastar; esse perigo teria que ser agudo e iminente para o bem jurídico em
causa – significando tal afirmação que o perigo deverá ser actual e assumir dimensões consideráveis, não
se podendo tratar apenas de um perigo eventual; podendo o agente levar a cabo uma acção de salvamento
sem ter que incorrer numa situação danosa para si mesmo – o que requer uma análise de
proporcionalidade entre o bem jurídico em perigo e o esforço exigido para o competente salvamento.

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Olhando à situação de C e D, diremos que, em princípio, todos os requisitos se verificam, já que


o perigo que se concretizou no resultado era iminente e gravoso, não exigindo a acção de salvamento a
empreender qualquer esforço potencialmente arriscado para C. Segundo a posição de FIGUEIREDO DIAS,
encontravam-se preenchidos os requisitos do monopólio enquanto fonte de posição de garante, o que
implica que C poderia ser punido por homicídio por omissão, nos termos dos artigos 131.ºe 10.º do
Código Penal.
No entanto, releva olhar a uma outra orientação doutrinária respeitante à configuração das fontes
de posição de garante, em geral, mas que assume especial pertinência nos casos de monopólio. Para
MARIA FERNANDA PALMA, afirmam-se princípios unificadores das posições de garante, que nos
permitiriam compreender o fundamento de tais deveres, e que se devem verificar em todas as situações
em que se afirme que o omitente detinha uma posição de garante sobre a vítima. Desde logo, importa
que se observe um equilíbrio entre uma ideia de presunção legítima da aceitação da responsabilidade
pela protecção de bens jurídicos – que fundaria os chamados deveres de protecção – e a responsabilidade
inerente à função de conformação do mundo (JAKOBS) – que fundaria os deveres de vigilância e
legitimaria a punibilidade das situações de ingerência. Assim, esta ideia de JAKOBS corresponderia aos
âmbitos que se inserem na esfera de organização, liberdade de conformação e competência (geral) do
agente, pelos quais ele deverá ser responsável. Todavia, uma restrição se impõe quando estes deveres de
protecção decorrem de uma competência ou responsabilidade específicas.
Consequentemente, a legítima atribuição desta aceitação residiria na determinação da auto-
vinculação do agente, implícita na relação social. Neste sentido, nos casos de monopólio não se poderá
ficcionar, sem mais, uma qualquer aceitação ou auto-vinculação do agente, sobretudo nas hipóteses de
monopólio acidental. Impõe-se demonstrar, com recurso aos dados disponíveis, que ao decidir tomar
parte naquela concreta relação social, o agente assumiu, ainda que implicitamente, a responsabilidade
pela protecção do bem jurídico. Especificando, importa perguntar se será justificado entender que, ao
aceitar ir fazer montanhismo para a Arrábida com D, C aceitou implicitamente a responsabilidade de
evitar a morte do seu companheiro, vinculando-se a tal dever. Como se compreende, tal conclusão
afigura-se excessiva, desde já porque C e D eram amigos recentes. Para além disso, afirmar que alguém
se vincula a evitar a morte de quem com ele faz montanhismo equivale a impor, sem substrato fáctico

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bastante, e de forma implícita, uma excessiva oneração a quem apenas se dispôs a fazer montanhismo.
Por este motivo, dir-se-á que para MARIA FERNANDA PALMA não haveria uma posição de garante e, como
tal, C só seria punido por omissão de auxílio, nos termos do artigo 200.º do Código Penal.
Questão ainda a considerar neste caso prende-se com o problema da tipicidade, nomeadamente a
possibilidade de imputar objectivamente a C o resultado morte de D.
Como se sabe, à imputação objectiva preside uma concepção normativa de causalidade, que na
omissão se traduz na circunstância de o comportamento esperado (mas omitido) ser dotado de uma força
causal potencial ou hipotética, que consiste no facto de tal conduta ser idónea a evitar resultado. Em
articulação com esta noção, importa recorrer à teoria do risco e avaliar a conexão de risco entre a omissão
e o resultado que se verifica. Neste sentido, o que importa analisar é se a acção devida teria evitado a
produção do resultado típico. Ou seja, e no nosso caso, haverá que ponderar se a actuação de C teria
evitado a morte de D.
A este respeito, cumpre assinalar uma divergência de entendimentos verificada a propósito do
critério de imputação objectiva nas situações de omissão. Segundo ROXIN e FIGUEIREDO DIAS, esta
questão deverá ser encarada como um problema normativo, apoiada no fim preventivo do direito penal.
Assim, não se deverá exigir, para afirmar a imputação objectiva de um resultado à omissão de um
determinado agente, uma probabilidade próxima da certeza. Com efeito, basta que o comportamento
(omitido) pudesse ter diminuído o risco de ocorrência do resultado.
Na nossa hipótese, ainda que não seja possível afirmá-lo com toda a certeza, parece provável que
se C tivesse encetado as devidas medidas de salvamento, as hipóteses de D morrer seriam bastante mais
reduzidas. Haveria, por isso, uma probabilidade consistente de diminuição do risco pela acção, que
bastaria para afirmar o nexo de imputação objectiva.
De acordo com HELENA MORÃO, em linha com a orientação de MARIA FERNANDA PALMA, impõe-
se demonstrar, para além de qualquer dúvida razoável, que a conduta omitida teria evitado a produção
do resultado típico. Assim, afigurando-se certo que a actuação do agente não teria impedido tal evento,
fica prejudicada a afirmação da sua capacidade de influenciar o curso dos acontecimentos e, como tal,
haverá que excluir a imputação objectiva. Aplicando este critério à hipótese que nos ocupa, diríamos que
apenas se poderia afirmar a imputação objectiva da morte de D à conduta de C no caso de se lograr

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comprovar, para além de qualquer dúvida razoável, que a sua actuação teria evitado a produção do
resultado típico.

A tipicidade
A imputação objectiva do facto
O desvalor objectivo da acção e a imputação objectiva do resultado
I
Criação de um risco proibido

1. A, convencido da eficácia mortal das aspirinas, deita, com intenção de matar, um aspegic no
café de B, que vem a morrer por padecer de uma rara alergia ao acetilsalicilato de lisina que A
desconhecia.
A morte de B é objectivamente imputável a A?

Questionar se a morte de B é objectivamente imputável à conduta de A equivale a perguntar se


podemos atribuir o resultado morte à conduta de A. Para isso, teremos que confrontar a situação
descrita com as diferentes teorias que ao longo do tempo procuraram dar resposta a este problema.
A primeira teoria, chamada teoria das condições equivalentes, baseia-se numa ideia de causalidade
reconduzível à formulação da conditio sine qua non. Assim, importaria verificar, através de um juízo
de supressão mental da conduta do agente, se o resultado típico continuaria a ocorrer. A partir daqui,
dir-se-ia que, se removendo tal evento o resultado não mais ocorresse, a conduta de A seria a causa
da morte de B. Nestes termos, impõe-se perguntar, em concreto: se A não tivesse colocado o aspegic
no copo de B, teria B morrido? A este respeito, concluiríamos que, tendo a morte de B sido causada
pela reacção alérgica a um componente do aspegic, caso A não tivesse actuado, B não teria morrido.
Assim, A teria causado a morte de B.
Contudo, e como facilmente se intui, a formulação pura da teoria da conditio sine qua non conduz
necessariamente a resultados pouco razoáveis. De facto, para tal construção, seriam igualmente causa
deste resultado a venda da aspirina a A e o próprio fabrico do medicamento. Por esse motivo,

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introduziu-se uma restrição à teoria das condições equivalentes, conhecida como teoria da
causalidade conforme às leis da natureza, que determina que apenas à luz de um juízo científico /
natural / pericial se poderá estabelecer a necessária relação de causalidade entre a conduta do agente
e o resultado produzido. Entende-se igualmente que, não ficando por esta via demonstrado o nexo
entre a acção e o resultado, se deverá fazer valer o princípio constitucional in dubio pro reo, não
imputando objectivamente o resultado à actuação do agente.
Apesar de tal restrição, esta teoria continua a abarcar soluções intoleráveis no que respeita à
imputação objectiva. De facto, nesta concepção, os casos de interrupção do nexo causal – ou, nas
palavras de ROXIN, de interrupção do nexo de imputação objectiva –, seriam ainda considerados como
objectivamente imputáveis ao comportamento do agente inicial.
Nesta sequência, surge a teoria da causalidade adequada, que se propõe, de certo modo, a filtrar
as causas relevantes para a produção do resultado, através de um juízo de previsibilidade. Tal
previsibilidade seria aferida a partir de um juízo de prognose póstuma, que consiste na necessidade
de o juiz se colocar na situação do agente, no momento da acção, e indagar da previsibilidade de
produção do resultado, a partir daquela acção. Nesta situação, teríamos então que perguntar se
qualquer homem médio, colocado na posição do agente, consideraria previsível, ex ante, que se viesse
a produzir a morte de B em consequência da ingestão de um aspegic. Como facilmente se
compreende, as potencialidades fatais de uma aspegic são inexistentes para a maioria dos seres
humanos, o que significa que não seria previsível que B falecesse na sequência daquele
comportamento.
Outra questão que ainda se colocou no seio desta discussão prende-se com a problemática dos
conhecimentos especiais do agente, e da sua relevância para o referido juízo de prognose póstuma
e para a configuração da questão da imputação objectiva. Na situação que nos foi apresentada,
justificar-se-ia analisar a problemática dos conhecimentos especiais do agente se A conhecesse a
alergia de B. A este respeito, doutrina se afirmava no sentido de considerar que o facto de se introduzir
os dados específicos que o concreto agente possuía à data da prática do facto precludiria o carácter
objectivo do juízo pretendido. Para esta concepção, tal juízo deveria ser despido de quaisquer

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elementos que o agente possuísse na sua tomada de decisão, mas que não estivessem, tipicamente,
na posse do homem médio.
No entanto, tal orientação foi prontamente rebatida pela argumentação de que os especiais
conhecimentos do agente interferem objectivamente na realidade, e constituem elemento
fundamental no processo de motivação criminosa. Em rigor, a necessidade de ponderação de
conhecimentos especiais não é tanto subjectiva, mas individualizadora. De facto, a circunstância de,
por exemplo, A saber que B era alérgico a aspegic deve poder constar do juízo de prognose póstuma
que caberá ao juiz levar a cabo, já que tal circunstância terá sido efectivamente considerada por A.
Ou seja, tal dado integrou objectivamente a realidade, não obstando de forma alguma ao carácter
objectivo do juízo a empreender.
Até agora vimos que, segundo a teoria das condições equivalentes, a morte de B teria sido causada
por A, enquanto para a teoria da causalidade adequada, na formulação originária, haveria que concluir
em sentido contrário. Porém, a teoria actualmente aceite nesta sede é, de facto, uma teoria da
imputação objectiva, que se desprende da ideia central de causalidade entre acção e resultado.
Assim, a teoria do risco coloca o seu enfoque em três pontos fundamentais: a) criação ou
aumento de um risco para o bem jurídico; b) o risco criado deverá constituir um risco proibido; e c)
o risco criado ou aumentado deverá ter concretização no resultado típico. Neste sentido, costuma
afirmar-se que a teoria do risco parte da função de protecção dos bens jurídicos pelas normas,
prevendo que a conduta concreta tenha que corresponder ao comportamento que a norma pretende
evitar.
Na situação em causa, o segundo pressuposto não se encontra verificado, já que dar aspegic a
pessoas não constitui um risco proibido. Por outras palavras, diremos que, tipicamente, a acção de
colocar aspegics na bebida das pessoas não representa a criação de um perigo proibido para bens
jurídicos, o que nos impede de imputar objectivamente o resultado morte à conduta de A.

2. C empurra D de forma a que uma pedra que foi violentamente arremessada contra a cabeça
deste apenas lhe acerte num braço.
A ofensa à integridade física de D é objectivamente imputável a C?

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DIREITO PENAL II – SUBTURMA 15

A hipótese descrita retrata um caso típico de diminuição do risco, em que apesar de se verificar,
de facto, uma lesão para um bem jurídico, tal lesão constitui um mal menor relativamente àquela que
teria ocorrido, não fosse a intervenção do agente. Significa isto que o agente diminuiu um risco para
um bem jurídico, sem que contudo tivesse conseguido eliminar completamente o risco criado pela
situação.
Tanto a teoria das condições equivalentes como a teoria da causalidade adequada afirmariam a
imputação da ofensa à integridade física de D à conduta de C. Como se intui, suprimindo a actuação
de C – o empurrão – a pedra não teria atingido o braço de D, pelo que aquela concreta lesão da
integridade física não se teria produzido. Paralelamente, poderia afirmar-se previsível, à luz de um
juízo de prognose póstuma, e atendendo às circunstâncias do caso, que a pedra arremessada atingisse
o braço de D na sequência do empurrão.
Neste âmbito, compreende-se a específica formulação do primeiro pressuposto da teoria do risco:
criação ou aumento de um risco para o bem jurídico. Assim, nas hipóteses de diminuição / atenuação
desse risco, o resultado não será objectivamente imputável ao agente e, como tal, não se indagará da
respectiva responsabilidade penal. Segundo ROXIN, nas hipóteses de diminuição do risco não fará
sequer sentido afirmar que a acção é típica, isto é, que reclama o juízo de desvalor associado à ideia
de ilícito típico. Assim, a ofensa à integridade física de D não será objectivamente imputável à
conduta de C, pelo facto de C ter, efectivamente, diminuído o risco anteriormente criado.
No entanto, o autor sublinha a relevância da distinção entre os casos de diminuição e substituição
de riscos, explicitando que naquelas hipóteses o agente diminui um risco que está em curso, revelando
um comportamento conforme à tutela do bem jurídico inicialmente ameaçado.
Para HELENA MORÃO, as situações tipicamente reconduzidas aos casos de diminuição do risco
reflectem hipóteses de menor gravidade da lesão, discernível apenas ex post. Assim, afirma-se o
desvalor objectivo da conduta, remetendo a ponderação entre a lesão ocorrida e a lesão potencial para
a análise da justificação(3).

(3)
A propósito dos casos de diminuição do risco, ver PAULO SOUSA MENDES, Sobre a Capacidade de Rendimento da Ideia de
Diminuição do Risco – Contributo para uma crítica à moderna teoria da imputação objectiva em Direito Penal, Lisboa, 2007.

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3. E, observando todas as regras de trânsito aplicáveis, conduz numa zona propícia a acidentes,
quando F, que corre para apanhar o autocarro, se atravessa na sua frente e é atropelado,
acabando por não resistir aos ferimentos.
A morte de F é objectivamente imputável a E?

Com o intuito de verificarmos se a morte de F é objectivamente imputável à conduta de E


poderemos socorrer-nos, uma vez mais, da teoria das condições equivalentes e da teoria da
causalidade adequada. No entanto, a aplicação de tais propostas à situação descrita não se fará sem
algumas dificuldades. Desde logo, e no que respeita ao juízo de supressão mental sugerido pela teoria
da conditio sine qua non, impõe-se determinar a concreta conduta a suprimir. Isto é, deveremos
perguntar o que ocorreria se E não tivesse, de todo, conduzido, ou mais especificamente, o que teria
acontecido se E não tivesse conduzido numa zona propícia a acidentes? De qualquer forma, a resposta
sempre seria que F não teria sido atropelado, pelo que a morte seria objectivamente imputável a E.
Paralelamente, impõe-se determinar sobre que evento deveria recair o juízo de prognose póstuma
característico da teoria da causalidade adequada. Explicitando: deveremos indagar da previsibilidade
de atropelar uma pessoa numa zona propícia a acidentes? Ou da previsibilidade de F se atravessar À
frente de E? Conforme se adivinha, as soluções poderão ser bastante distintas, consoante a questão
formulada.
Aqui, a circunstância de E conduzir com observância de todas as regras de trânsito constitui
elemento relevante da hipótese, já que o primeiro pressuposto da imputação objectiva, segundo a
teoria do risco, se reconduz à criação ou aumento de um risco proibido. Deste modo, seria necessário
que E tivesse criado um risco ilícito para a vida de F – o que não foi o caso – já que o risco de
atropelar alguém quando se conduz dentro da velocidade permitida constitui um risco permitido,
tolerado pela ordem jurídica.
Corresponde isto a afirmar que E não poderá ser jurídico-penalmente responsável pela morte de
F, já que o resultado que se verificou não emerge da criação de um risco proibido, por actuação de
E. Não haverá, por isso, imputação objectiva do resultado morte a E.

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II
Concretização do risco proibido
a) Causalidade

4. G mata H a tiro no aeroporto, antes de este poder entrar num avião que veio a explodir 30
minutos mais tarde devido a um ataque de um bombista-suicida.
Quid juris?

A possibilidade de considerar objectivamente imputável o resultado ao comportamento de G


poderia encontrar-se inquinada pela circunstância de, a posteriori, H vir a falecer, já que o avião em
que planeava entrar explodiria na sequência de um ataque. Importa aqui atender à relevância desta
causa virtual, no sentido de determinar se a responsabilidade jurídico-penal de G poderá ser afastada
por essa via.
Para isso, urge sujeitar este caso aos pressupostos da teoria do risco, e indagar da criação de um
risco para o bem jurídico, do carácter proibido do risco criado, e da respectiva concretização no
resultado. Especificando: quanto ao primeiro requisito, não haverá dúvida que G criou um risco para
a vida de H, tratando-se de um risco proibido que, a final, se concretizou no resultado. De facto, foi
o tiro disparado por G que matou H, e não o dito avião que viria a explodir. Como se intui, a tutela
dos bens jurídicos não pode ser diferente em função de um qualquer “prazo” que tais interesses
possam ter, isso impõe o princípio da igualdade. O Direito Penal não abandona bens jurídicos à sua
sorte. Se assim fosse a vida não valeria nada, porque um dia vamos todos acabar por morrer. Para
além disso, se quisermos dissuadir a comunidade da prática de crimes, importará demonstrar que o
agente não se furta à responsabilidade penal pela circunstância – que não domina – de um bem
jurídico estar irremediavelmente perdido.
Em casos como o descrito, não se poderá atribui qualquer relevância à causa virtual para afastar
a imputação objectiva do resultado, já que se verifica tanto o desvalor da acção, quanto o do resultado.
Nestes termos, a morte de H é objectivamente imputável a G.

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5. I atropela mortalmente J, que vem a morrer num incêndio que deflagra nas urgências para
onde teve de ser imediatamente transportado.
Quid juris?

A hipótese descrita demonstra nitidamente a melhor adequação da teoria do risco para a resolução
dos problemas de imputação objectiva, quando confrontada com a proposta da teoria da conditio sine
qua non. De facto, de acordo com a teoria das condições equivalentes, num caso como este haveria
causalidade, já que se I não tivesse atropelado J este não teria dado entrada nas urgências e, não seria,
com toda a probabilidade, vítima do incêndio.
Contudo, urge sublinhar que o risco proibido criado por I, no atropelamento, não é aquele que se
revela como causa da morte de J. Com efeito, J vem a falecer do risco criado pelo incêndio,
observando-se uma interrupção do nexo de imputação objectiva entre o atropelamento – da
responsabilidade de I – e o incêndio.
Nestes cenários, e até com a valoração exigida pela causalidade científico-natural, tende a afastar-
se a imputação objectiva do resultado à conduta do agente, visto que esse resultado surge por força
de um evento alheio ao seu comportamento. Efectivamente, só é legítimo atribuir resultados a agentes
quando estes possam controlar o processo causal que conduziu a esses resultados.
A morte de J não seria, por isso, objectivamente imputável a I.

6. L e M, sem conhecimento um do outro, deitam, cada um, uma dose de veneno mortal e de
eficácia rápida no chá de N, que, ao bebê-lo, tem morte instantânea. Quid juris?

O caso descrito constitui uma das hipóteses de cumulação de causas que, na concreta situação, se
apresentam como alternativas. Com efeito, qualquer uma das causas que concorreram para a
produção do resultado surgem, ab initio, como idóneas a produzi-lo. Isto é, a acção tanto de L, como
de M, seria suficiente, por si só, para produzir o resultado morte de N, o que significa que mesmo que
apenas um deles tivesse actuado, N morreria pela actuação do outro.

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Assim, poderemos afirmar que em relação a ambos os comportamentos se verificou um


aumento/criação de um risco para um bem jurídico, sendo esse risco proibido. Conforme vimos, L e
M colocaram em risco a vida de N. Ulteriormente, este risco proibido ter-se-á concretizado no
resultado, visto que N bebeu o chá que continha as duas doses. Observou-se, assim, uma
“sobreintensificação” do risco: se a vítima tivesse duas vidas, teria morrido duas vezes.
Por esse motivo, concluiremos pela imputação objectiva do resultado morte a ambos os agentes,
recordando que se trata de um cenário de causas paralelas.

Imagine agora que L e M, escondidos atrás de arbustos e sem conhecimento um do outro,


disparam simultaneamente sobre N. No decurso da autópsia, apenas uma das balas é
encontrada no coração de N, e a perícia balística às armas de L e M é inconclusiva. Quid juris?

A situação descrita nesta hipótese não é inteiramente coincidente com a atrás considerada, uma
vez que neste cenário não se consegue determinar qual das balas produziu a morte de N. Desta
maneira, ainda que não se duvide que L e M criaram um risco para a vida de N – traduzido na
circunstância de ambos terem disparado sobre N –, sendo esse risco inequivocamente proibido, terá
que se negar a existência de uma conexão de risco entre a conduta e o resultado. Na verdade, trata-se
de um problema de prova de não de causalidade.
Conforme se indicou, subsiste a dúvida acerca da proveniência da bala que, em concreto,
provocou o resultado típico. Nestes casos, impõe-se considerar o princípio constitucional in dubio
pro reo, o que implica que se valore a dúvida persistente a favor do arguido. Isto é, concluindo pela
não imputação do resultado à conduta. Em consequência, afirma-se a punibilidade a título de tentativa
(possível).

Noutra hipótese, L e M, sem conhecimento um do outro e convencidos da eficácia letal dos seus
actos, deitam, cada um, uma dose não mortal de veneno no chá de N, que, ao bebê-lo, vem a
morrer apenas pela conjugação das duas doses. Quid juris?

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Na situação de causas cumulativas propriamente ditas, observa-se que, individualmente


consideradas, as condutas dos agentes são insuficientes para produzir o resultado típico.
Consequentemente, a verificação deste resultado fica a dever-se à conjugação dos comportamentos.
Nestas circunstâncias, poderíamos eventualmente ser levados a pensar que há, de facto, uma
concretização do risco criado no resultado típico. Na verdade, e como já se disse, se pelo menos um
dos agentes tivesse omitido a sua conduta, o resultado não se verificaria. Equivale tal a afirmar que,
pelo menos, a quota-parte em que cada um participou se concretizou no resultado, causando aqui a
morte de N.
No entanto, importa não esquecer que nenhum deles criou um risco idóneo a provocar a morte,
ainda que disso estivessem ambos convencidos. Por essa razão, poderá desde logo obstar à afirmação
da imputação objectiva do resultado, nestes casos, o facto de nem se ter aumentado o risco, já que
apesar de ambos o terem criado, o risco criado por um era equivalente ao risco criado pelo outro.
Parece, nesta sede, conveniente fazer alusão ao juízo de prognose póstuma veiculado pela teoria
da causalidade adequada, no sentido de indagar se seria previsível, por exemplo, que outra pessoa
tivesse colocado veneno no chá de N. Não sendo essa a situação, impõe-se a decisão pela não
imputação do resultado morte às condutas de L e M, já que o risco por eles criado, na exacta medida
em que o criaram, acaba por só de concretizar com o auxílio de um elemento externo, fora das suas
esferas de acção.
Não haveria, assim, imputação objectiva do resultado morte de N nem a L nem a M. Os dois
agentes serão punidos por tentativa impossível, nos termos do artigo 23.º do Código Penal
(inidoneidade relativa do meio).

b) Esfera de protecção da norma

7. O conduz o automóvel pelo lado esquerdo de uma estrada ladeada de árvores, quando P, que
andava aos ninhos, cai de cima de uma das árvores, é atropelado por O e morre.
Quid juris?

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A hipótese retratada parece referir-se, em sede de imputação objectiva, ao problema da esfera de


protecção da norma de cuidado. Tal questão é suscitada com relevância pela teoria do risco,
exactamente porque tal teoria parte da função de protecção de bens jurídicos atribuída ao direito
penal. Como sabemos, tal função protectora de bens jurídicos é concretizada pelo espectro de
projecções em que a norma se manifesta, visando abarcar um certo número de casos, que se referem
a bens jurídicos identificados e identificáveis.
No nosso caso, tal problema deverá ser discutido visto que a norma que impõe a circulação pela
direita (artigo 13.º, número 3 do Código da Estrada(4)) prossegue o objectivo de evitar colisões entre
os veículos e não e o de garantir que não se verificam atropelamentos de pessoas que caem das
árvores. Equivale isto a afirmar que a norma em causa não está pensada para evitar tais situações,
pelo que imputar o resultado num caso como este redundaria, de certo modo, em ampliar a esfera de
protecção da norma de forma desfavorável.
No que concerne à própria verificação dos pressupostos da teoria do risco, houve efectivamente
a criação de um risco, afirmando-se esse risco como proibido – a conduta do agente revelou-se
perigosa para a vida/integridade física dos demais condutores e transeuntes. Contudo, o risco
concretizado na morte de O não corresponde ao risco que aquela concreta incriminação visa acautelar.
Em suma, dir-se-á que o risco que se produziu, ex post, não corresponde ao risco que se visava
proteger, ex ante. Assim, não haverá imputação objectiva do resultado morte à conduta de O, na
sequência do dito atropelamento.

(4)
1 - A posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou
passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.
2 - Quando necessário, pode ser utilizado o lado esquerdo da faixa de rodagem para ultrapassar ou mudar de direcção.
3 - Sempre que, no mesmo sentido, existam duas ou mais vias de trânsito, este deve fazer-se pela via mais à direita, podendo,
no entanto, utilizar-se outra se não houver lugar naquela e, bem assim, para ultrapassar ou mudar de direcção.
4 - Quem infringir o disposto nos n.os 1 e 3 é sancionado com coima de (euro) 60 a (euro) 300, salvo o disposto no número
seguinte.
5 - Quem circular em sentido oposto ao estabelecido é sancionado com coima de (euro) 250 a (euro) 1250.

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8. Q circulava à noite, embriagado, conduzindo o seu automóvel, quando atropelou R que se


encontrava no passeio à beira de uma curva que Q não conseguiu fazer. R foi transportado ao
hospital, onde veio a morrer por não ter sido assistido por S, médico de serviço.
A quem é objectivamente imputável a morte de R?

A imputação objectiva da morte de R a Q ou a S dependerá de saber se a actuação de S, médico,


constitui uma verdadeira interrupção do nexo de imputação objectiva iniciado pelo atropelamento.
Em caso afirmativo, deverá excluir-se a responsabilidade do agente inicial; em caso negativo,
afirmar-se-á que o risco concretizado no resultado será ainda imputável à conduta do primeiro agente.
Estamos, assim, perante um caso em que se impõe discutir o concreto alcance do tipo, quer dizer, o
fim da proibição, em virtude da possível imputação a um âmbito de responsabilidade alheio.
O cenário relatado obriga-nos a considerar os critérios sugeridos por ROXIN a propósito dos
tratamentos médicos pós-acidente, distinguindo as situações de acção e omissão. No que se refere à
acção médica, importa desde logo considerar o critério de substituição dos riscos. Neste caso, se a
conduta médica substitui o perigo criado pelo agente inicial, criando um novo risco originário, deverá
o médico responder pela produção do resultado típico. Ao invés, quando a conduta médica não evita
a concretização do risco inicialmente criado, o risco deve correr pelo agente originário. Quando esteja
em causa uma omissão médica, releva diferenciar as hipóteses de negligência grosseira do médico –
que conduzirá à exclusão da imputação do primeiro agente –, e os casos de negligência leve ou média
– em que não se pode concluir, sem mais, pela imputação exclusiva à esfera de responsabilidade do
médico, devendo equacionar-se a possibilidade de punir os dois agentes a título negligente.
Retomando os factos descritos, poderá defender-se que S não diminuiu o risco anteriormente
criado para o bem jurídico, pelo que a sua conduta será configurável como uma omissão. Isto dito,
importará discernir o carácter lícito ou ilícito da omissão identificada. Com efeito, se S não atendeu
R porque não teve meios para tal, observa-se uma situação de incapacidade de agir. Nesse
pressuposto, o resultado seria objectivamente imputável a Q, uma vez que a omissão de S não seria
ilícita. Diferentemente, se S não prestou cuidados a R porque mera incompetência ou falta de
profissionalismo, haverá que determinar se estamos perante uma omissão pura ou impura. À partida,

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e com os elementos que o enunciado nos fornece, seria possível afirmar que S detinha uma posição
de garante face a R, atendendo desde logo aos deveres que lhe são legalmente impostos. Assim,
apenas se excluiria a punição de S a título de homicídio por omissão (artigo 131.º e 10.º, número 2
do Código Penal) se se entendesse inviável a afirmação de um nexo de imputação objectiva entre a
respectiva omissão e a produção do resultado típico.
Aqui, releva novamente questionar se a acção omitida teria que ter evitado a morte de R, ou se
bastava que tivesse diminuído o risco de verificação desse resultado. Concluindo-se pela existência
de uma conexão de risco entre a omissão de S e a morte de R, punir-se-ia o médico por homicídio por
omissão, excluindo a responsabilidade de Q. Com efeito, o agente que tem um comportamento
arriscado para o bem jurídico não pode contar com o comportamento ilícito de terceiros, e muito
menos por ele ser responsabilizado. Defendendo-se que a intervenção do médico se limitou a não ter
impedido a materialização do primeiro curso causal e, por esse motivo, negando a imputação
objectiva, sempre haveria que considerar as previsões dos artigos 200.º e 284.º do Código Penal,
consagrando omissões puras.
.
c) Comportamento lícito alternativo

9. T, vítima de um acidente rodoviário, foi transportado para o hospital mais próximo, onde os
médicos rapidamente constataram a necessidade de o submeter a uma cirurgia de carácter
urgente. U, médico anestesista, com a pressa e sem se aperceber, trocou o frasco da anestesia
por um outro similar que continha uma substância venenosa e ministrou-a a T, que veio, por
isso, a morrer, ainda antes de dar entrada na sala de operações.
Todavia, T padecia de uma rara alergia ao excipiente anestésico ministrado naquele
estabelecimento de saúde que nunca poderia ter sido detectada em tempo útil, pelo que este
teria morrido de qualquer forma, ainda que U não se tivesse enganado.
Quid juris?

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O problema suscitado pela hipótese reconduz-se às situações de comportamento lícito alternativo,


em que, no caso, mesmo que o agente tivesse observado o dever de motivação pela norma, o resultado
típico verificar-se-ia inevitavelmente. De facto, no cenário descrito, a circunstância de T ser alérgico
à anestesia, leva a crer que mesmo que U não se tivesse enganado, T acabaria sempre por morrer. É
neste sentido que se afirma que nas situações de comportamento lícito alternativo o resultado é
inevitável para o próprio agente, pelo que concluir pela imputação objectiva nestes casos equivaleria
a impor um dever cuja observância seria, de certo modo, inútil, atendendo a que o resultado acabaria,
de qualquer modo, por se produzir.
Com base nesta construção, tem entendido a doutrina que, nos casos de comportamento lícito
alternativo, não haverá lugar, em regra, à imputação objectiva do resultado. Efectivamente, afirmar a
imputação corresponderia a impor o cumprimento de um dever que não evitaria, em concreto, aquele
resultado. Não implica isto que o próprio conteúdo da norma seja totalmente inútil, visto que será
operativo, sem qualquer dúvida, nas situações em que o dever de evitar o resultado surja como
perfeitamente exigível e possível.
A este propósito, cumpre notar que o problema colocado nas situações de comportamento lícito
alternativo se assemelha à questão da imputação objectiva na omissão. De facto, em ambos os casos
haverá que recorrer um juízo de causalidade hipotética: na omissão, indagamos da relevância da
acção omitida, aqui, perguntamos se o comportamento lícito alternativo teria evitado a produção do
resultado. Por essa razão, revela-se pertinente recordar que, para ROXIN e FIGUEIREDO DIAS, basta
demonstrar que o agente aumentou o risco de verificação do resultado para que esse resultado seja
objectivamente imputável ao agente. Dito de outra forma, a imputação só será excluída quando se
demonstre, com certeza, que o comportamento lícito alternativo não evitaria o resultado típico.
Diferentemente, MARIA FERNANDA PALMA considera que estamos perante um problema
probatório, invocando o princípio in dubio pro reo. Em consequência, entende a autora que, havendo
dúvida razoável sobre se o cumprimento do dever evitaria a produção do resultado, impõe-se excluir
a imputação. Assim, esta segunda perspectiva exige que se demonstre, para além de qualquer dúvida
razoável, que o comportamento lícito alternativo teria evitado o resultado.

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10. V monta uma emboscada a X para o matar. Perante a aproximação da vítima, V dispara,
abatendo-a.
Em seguida, V foge do local e alguns quilómetros adiante ultrapassa um ciclista a uma distância
muito curta. O ciclista, que conduzia embriagado e de forma oscilante, tombou quando o
automóvel passava por ele, vindo a ser esmagado por uma roda traseira e sofrendo morte
imediata.
Determine a imputação objectiva da morte de X e do ciclista aos comportamentos de V, tendo
em conta que:

a) A poucos metros do local onde X foi abatido, Z aguardava, emboscado, a sua passagem
para o matar.

A hipótese descrita configura uma situação de causalidade virtual, considerando que, em


concreto, o resultado se teria produzido em tempo e condições semelhantes, por acção de
terceiro. De facto, mesmo que V não tivesse disparado e provocado a morte de X, Z tê-lo-ia
feito, pelo que X viria sempre a falecer.
Estas situações não se podem equiparar aos casos de comportamento lícito alternativo,
uma vez que tal equiparação equivaleria a negar a imputação objectiva à conduta de V,
valorando o putativo comportamento ilícito de Z, para entender que o bem jurídico estaria,
em qualquer caso, perdido.
Como já se viu, as situações de causalidade hipotéticas não poderão legitimar estas
conclusões pelo simples facto de os bens jurídicos serem protegidos independentemente da
sua esperança de vida, em observância do princípio da igualdade. A vida de X não deixa de
merecer tutela penal pelo facto de se encontrar “duplamente” em risco. Nestes termos, e
recorrendo à formulação da teoria do risco, diremos que V criou um risco para a vida de Z,
tratando-se, inequivocamente, de um risco proibido, tendo esse risco conhecido concretização
no resultado observado. Consequentemente, poderá afirmar-se a imputação do resultado
morte de X ao comportamento de Z.

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b) Medições feitas no local do acidente indicam que mesmo que V tivesse mantido uma
distância prudente na ultrapassagem, o ciclista dificilmente evitaria ter sido apanhado
pela roda do automóvel na queda.

Por seu turno, esta segunda hipótese configura um caso de comportamento lícito
alternativo. Segundo o descrito, mesmo que o agente tivesse observado as imposições
normativas, não conseguiria evitar a produção daquele concreto resultado. Questão
complicada nesta sede será então a de discernir a solução para os casos em que não existe
certeza que o comportamento lícito evitaria o resultado. É neste contexto que ROXIN
desenvolve a teoria do aumento do risco, sugerindo que a constatação destas dúvidas indica,
pelo menos, um aumento ou potenciação do risco e que, portanto, o resultado deverá ser
objectivamente imputável à actuação do agente.
Tem-se entendido, no entanto, que esta posição enferma de duas dificuldades,
reconduzíveis, por um lado, à circunstância de propor que se resolva normativamente um
problema que, em boa verdade, se refere à prova (porque respeitante a dúvidas na matéria de
facto); e por outro, ao facto de se estar a valorar a dúvida contra o arguido, o que choca com
o princípio constitucional in dubio pro reo.
De facto, nas situações de comportamento lícito alternativo observa-se, tipicamente, uma
impossibilidade de controlo da produção do resultado. Isto é, para o concreto agente não
existe maneira de não provocar esse resultado, o que preclude, desde logo, a liberdade para
decidir nesse sentido. Assim sendo, afigura-se mais sensato negar o nexo de imputação
objectiva em casos como este, em que nem o comportamento conforme à ordem jurídica teria
sido idóneo a evitar a produção do resultado típico. Como propõe MARIA FERNANDA PALMA,
havendo dúvida razoável sobre se o cumprimento do dever evitaria a produção do resultado,
impõe-se excluir a imputação.

Mafalda Moura Melim – Abril 2018.

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