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01/08/2021 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Acórdãos TRP Acórdão do Tribunal da Relação do Porto


Processo: 79/12.2ZRPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VÍTOR MORGADO
Descritores: CRIME DE AUXÍLIO À EMIGRAÇÃO ILEGAL
CRIME DE FALSIDADE INFORMÁTICA
BUSCAS
ESCRITÓRIO DE ADVOGADO
REQUISITOS
NECESSIDADE E PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RP2018050979/12.2ZRPRT-A.P1
Data do Acordão: 09-05-2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 22/2018, FLS 249-263)
Área Temática: .
Sumário: I - As buscas mostram-se necessárias,
- muito embora alguns dos crimes se encontrem já suficientemente indiciados face ao
confronto entre a prova decorrente das próprias manifestações de interesse inseridas nas
bases de dados e a prova testemunhal (e mesmo alguma documental), pois que é sabido
que a prova testemunhal é mutável, influenciável e genericamente falível;
- por outro lado, o objectivo expresso das buscas não é apenas (ou nem é sobretudo) o
da apreensão de dados informáticos ou documentos em suporte digital, mas também, a
apreensão de documentos em arquivo físico (analógico) ou de papel, que não é possível
(ou viável) efectuar por ouro meio.
II - As buscas mostram-se proporcionais,
para o que há que atentar ao conflito de direitos/deveres constitucional e legalmente
consagrados- mormente o dever de exercício da acção penal por parte do MP e o dever
de sigilo profissional dos advogados e imunidade de que goza a advogada visada - cujo
sacrifício, de qualquer modo, deve ser limitado, na medida do possível, nos termos
conjugados dos artigos 135.º, 177.º/5, 179.º e 180.º C P Penal e 75.º a 77.º do EOA.
III - Nem se pode invocar para justificar a não autorização das buscas, para que ao
interesse da investigação e punição fosse sacrificado o dever de sigilo profissional
inerente à função social e jurídica do patrocínio forense, a falta de ressonância ética ou
da suficiente gravidade dos crimes em causa, que apesar de se inserirem no chamado
direito penal secundário, têm molduras penais abstractas de prisão de 1 a 5 anos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 79/12.2ZRPRT-A.P1
Origem: Comarca do Porto, Matosinhos – Juízo Inst. Criminal – Juiz 1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

I – Nos autos de inquérito de que o presente recurso foi extraído, requereu o Ministério
Público – renovando, aliás, despachos/promoções que já anteriormente deduzira e
invocando, para tanto, o teor da investigação do SEF apensa aos mesmos autos – a
realização de buscas a dois escritórios de advocacia da Dr.ª B..., situados,
respetivamente, em Lisboa e em Cascais, “com busca, pesquisa e apreensão de dados
informáticos nos computadores e demais aparelhos eletrónicos aí existentes para recolha
de elementos e documentação relevante”, com vista a “apreender todos os documentos
em arquivo físico ou digital associados às manifestações de interesse na regularização
extraordinária que verte do nº 2 do artigo 88° [da Lei 23/2007, de 4 de julho] em nome de
imigrantes ilegais não enquadráveis nesse mecanismo legal”.
Sobre tal promoção, incidiu o seguinte despacho do Ex.mo Juiz de Instrução Criminal
(transcrição):
«O Digno Magistrado do Ministério Público veio mais uma vez promover a realização de
buscas a dois escritórios de advocacia, em Lisboa e em Cascais, “com busca, pesquisa e
apreensão de dados informáticos nos computadores e demais aparelhos eletrónicos aí
existentes para recolha de elementos e documentação relevante», com o intuito de
«apreender todos os documentos em arquivo físico ou digital associados às
manifestações de interesse na regularização extraordinária que verte do nº 2 do artigo
88° [da Lei 23/2007, de 4 de julho] em nome de imigrantes ilegais não enquadráveis
nesse mecanismo legal”.
O requerente especifica, como documentos com interesse para a prova, “cópias de
documentos de viagem, notas referentes às circunstâncias migratórias individuais,
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documentos comprovativos da entrada em território nacional e documentos decorrentes


das subordinações laborais declaradas”.
Pretende o Ministério Público, com essas diligências, “dimensionar de forma concreta o
número de cidadãos estrangeiros que usufruíram desta conduta ilícita, apurar o respetivo
‘modus operandi’ e acautelar a apreensão de demais provas relevantes”. Alegadamente,
“estes documentos poderão estabelecer cabalmente nos autos que a advogada (...) tinha
conhecimento das circunstâncias específicas reais de cada imigrante ilegal – a exata
data de entrada em território português, o real país de origem e a existência ou
inexistência, de prova da entrada legal – e que, por sua iniciativa, promoveu registos
"criativos" que iludiram a plataforma informática e evitaram os pareceres negativos
automáticos e as consequentes determinações para abandono de território português”.
Pretende ainda o Ministério Público apreender «anotações que permitam inferir um
eventual agrupamento de imigrantes ilegais por entidade patronal e registos
contabilísticos informais decorrentes dos serviços prestados. A existirem, estes
documentos permitirão definir o papel da advogada no recrutamento destes
trabalhadores estrangeiros e dimensionar as vantagens ilícitas auferidas”.
Segundo o requerente, “Renova assim o Ministério Público os despachos/promoções de
fls. 116 a 118, 164, 200 e 235, quanto às aí promovidas buscas e pesquisas informáticas
nos escritórios de advocacia da Drª B...”.
Invoca, para fundamentar o seu pedido de buscas aos dois escritórios, o teor da
investigação do SEF apensa por linha aos presentes autos e constante de dois volumes
com 629 páginas.
Cumpre-nos apreciar:
Este é o terceiro pedido de buscas aos escritórios de advocacia identificados nos autos,
subsequente aos nossos despachos, datados de 2/05/2017 e 2/06/2017, a fls. 230, 231 e
238, que indeferiram os dois primeiros pedidos de busca.
Com todo o respeito por diferente entendimento, o Ministério Público continua a não
fundamentar, à luz de critérios de adequação e proporcionalidade, a necessidade das
buscas aos dois escritórios de advocacia.
Nos termos do artigo 178º, nº 1, do Código de Processo Penal, “são apreendidos os
objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os
que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os
objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros
suscetíveis de servir a prova”.
O Ministério Público pretende apreender elementos de prova relativos aos crimes de
“auxílio à imigração ilegal, previsto no artigo 183º da Lei nº 23/2007, de 4 de julho, revista
e republicada pela Lei nº 29/2012, de 9 de agosto, e de falsidade informática, previsto e
punido no artigo 3º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro”.
De acordo com o disposto no artigo 174º, nº 2, do Código de Processo Penal, a busca só
deve ser ordenada quando houver indícios de que os objetos relacionados com um crime
ou que possam servir de prova se encontrem em local reservado ou não livremente
acessível ao público.
O artigo 183° da Lei nº 23/2007, de 4 de julho, tipifica o crime de auxílio à emigração
ilegal do seguinte modo:
“1 - Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada ou o trânsito ilegal de
cidadão estrangeiro em território nacional é punido com pena de prisão até três anos.
2 - Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou o
trânsito ilegal de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa, é
punido com pena de prisão de um a cinco anos.
3 - Se os factos forem praticados mediante transporte ou manutenção do cidadão
estrangeiro em condições desumanas ou degradantes ou pondo em perigo a sua vida ou
causando-lhe ofensa grave à integridade física ou a morte, o agente é punido com pena
de prisão de dois a oito anos.
4 - A tentativa é punível.”
Manifestamente, não existem indícios da prática, pela advogada visada, dos factos
aludidos supra nos nºs 1 ou 3, assim como não há indícios de que a mesma tenha
favorecido a entrada ou o trânsito ilegal de cidadãos estrangeiros em Portugal.
O Ministério Público pretende perseguir criminalmente a advogada por favorecer ou
facilitar a permanência daqueles estrangeiros com intenção lucrativa, sugerindo que a
visada teria conseguido evitar “pareceres negativos automáticos” e as consequentes
“determinações para abandono de território português”, ao apresentar no portal do SEF
as manifestações de interesse nos termos do artigo 88°, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4 de
julho.
Em suporte a essa sua pretensão, o Ministério Público invoca o teor do auto informativo
de fls. 500 a 505, que não tem valor normativo e não vincula o tribunal criminal se não se
mostrar devida e legalmente fundamentado.
De facto, afigura-se-nos extremamente difícil a demonstração de que a simples
apresentação, no portal do SEF, de uma "manifestação de interesse" em nome e
representação de um estrangeiro, nos termos do artigo 88°, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4

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de julho, possa constituir o seu apresentante em responsabilidade penal pela prática de


um crime de auxílio à imigração ilegal, considerando nomeadamente o direito de petição
consagrado no artigo 52°, nº 1, da Constituição da República.
Representativo daquela dificuldade é um entendimento possível, relativamente aos
efeitos jurídicos do registo daquela manifestação de interesse, expresso no parecer
apresentado pelo Ministério Público no processo 242/12.6BEBRG e reproduzido a fls. 12
a 16 do Apenso A: “O requerimento apresentado (…) face ao regime legal plasmado no
nº 2 [do artigo 88°] da Lei 23/07, de 4 de julho, só pode ser entendido como uma simples
manifestação de interesse e não como um requerimento que tem a virtualidade de dar
início ao procedimento, que é oficioso, e, portanto, não depende da iniciativa de quem
não tem legitimidade para o iniciar no âmbito do citado artigo 88°, nº 2.
(…) Assim, os atos praticados e aqui em causa, não configuram uma verdadeira decisão
de indeferimento, que tivesse sido proferida no âmbito de um qualquer procedimento
administrativo, o qual, reforça-se, nem sequer teve início. Antes configurando-se, tão-
somente, como uma mera informação ao interessado, prestada na sequência da
exposição por ele apresentada, de natureza e em âmbito pré procedimental, a dar-lhe
conta de que, após análise da sua exposição, a situação nela relatada não pode ser
submetida naquele regime excecional, não sendo objeto de apreciação, de acordo com o
previsto no nº 2 do artigo 88° da Lei 23/07, de 4 de julho. Assim, o ato impugnado pelo
Recorrente não pode ser qualificado como ato administrativo, enquanto ato decisório,
para efeitos do artigo 120° do C.P.T.A, e, concomitantemente, do nº 1 do artigo 51° do
C.P.T.A., não sendo assim judicialmente sindicável. Com efeito, a informação prestada
não consubstancia um verdadeiro ato administrativo, enquanto ato decisório proferido ao
abrigo de normas de direito público e juridicamente conformador de uma situação
individual e concreta suscetível de ter eficácia externa e de lesar direitos ou interesses
legalmente protegidos e de ser suscetível de impugnação.
O mesmo se diga relativamente à notificação para abandono voluntário de território
nacional, efetuada por referência ao disposto no artigo 138° da Lei 23/2007, de 4 de
julho, que não constitui igualmente ato administrativo. Com efeito, a notificação proferida
nos termos do artigo 138° da Lei 23/2007, de 4 de julho, constitui um mero convite para
abandonar voluntariamente o país e, assim, se evitar a instauração de um processo de
expulsão administrativa, sendo, nestes casos, tal notificação (...) autónoma e
independentemente de qualquer processo. E o incumprimento (não abandono voluntário)
pelo notificado não é suscetível de determinar qualquer forma de execução,
precisamente porque não consubstancia uma decisão/estatuição autoritária com eficácia
externa. Trata-se de um ato pré-procedimental que poderá conduzir, ou não, à
instauração de um procedimento para eventual expulsão.”
Tendo o Ministério Público esta posição num processo judicial administrativo, afigura-se-
nos inaceitável a defesa de um entendimento diametralmente oposto para o efeito de
perseguir criminalmente a representante dos estrangeiros que apresentem
manifestações de interesse nos termos do citado artigo 88°, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4
de julho, atendendo nomeadamente a princípios fundamentais da administração e da
justiça penal, como os princípios da boa fé, da confiança, da lealdade e da presunção de
inocência.
No contexto que a prova documental do apenso A indicia e em face da citada norma
constitucional e dos princípios da confiança e da presunção de inocência, afigura-se-nos
temerária a afirmação de que o registo de uma manifestação de interesse possa
configurar um crime de auxílio à imigração ilegal, nem mesmo na forma de tentativa.
Assim, não existem quaisquer indícios que justifiquem, segundo critérios de idoneidade,
necessidade, adequação e proporcionalidade, a realização de uma busca para
apreensão de documentos relativos às circunstâncias específicas reais dos referidos
emigrantes, tanto mais que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras dispõe das
informações e dos meios materiais e humanos necessários e adequados ao apuramento
da real situação dos referidos emigrantes.
A este respeito, atente-se no teor da cota de fls. 28 do "apenso inquérito do SEF": “Por
relevante à abordagem destes autos, junto das bases de dados ao dispor do Serviço de
Estrangeiros e Fronteiras, procedi ao levantamento do percurso laboral e migratório dos
empresários e trabalhadores estrangeiros referenciados com a entidade patronal C...,
Lda.”. Da informação dessa cota e das setenta e cinco folhas que se lhe seguem, e
nomeadamente de fls. 5, 10, 15, 22, 41, 42 a 44, 47 a 64, 70, 71, 73, 74, 77, 78, 80 a 88,
93 a 95, 99 a 103, 125, 413 a 469 e 515 do referido apenso, resulta que o SEF já
recolheu, por via administrativa, documentos que o Ministério Público alega pretender
obter na requerida busca aos escritórios de advocacia visados, não se mostrando
necessária aquela busca para apreensão de documentos similares relativos a outros
trabalhadores estrangeiros referidos na investigação.
Dos autos não resulta qualquer indício de qualquer intervenção da advogada no
recrutamento destes trabalhadores estrangeiros, designadamente no auxílio à sua
entrada no território nacional.
A questão que se colocará a seguir é a de saber se há indícios do crime de falsidade

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informática, previsto e punível pelo artigo 3°, nº 1, da Lei nº 109/2009, de 15 de


setembro. Conforme resulta do respetivo preâmbulo, esta Lei visou transpor para a
ordem jurídica interna a Decisão Quadro nº 2005/222/JAI, do Conselho Europeu, de 24
de fevereiro, relativa a ataques contra sistemas de informação, e adapta o direito interno
à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa, de 23 de novembro de 2001,
aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 88/2009, de 15 de setembro.
Nos termos e para os efeitos previstos no artigo 2°, alínea b), da Lei nº 109/2009, de 15
de setembro, considera-se ‘dados informáticos’, “qualquer representação de factos,
informações ou conceitos sob uma forma suscetível de processamento num sistema
informático, incluindo os programas aptos a fazerem um sistema informático executar
uma função”, definição praticamente coincidente com a definição prevista no artigo 1.º al.
b) da aludida Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa.
No relatório justificativo da referida Convenção (versão portuguesa), e explicando aquela
definição “Dados Informatizados”, pode ler-se o seguinte:
“A definição de dados informatizados assenta na definição de dados, de acordo com a
norma ISO. Esta definição contém os termos ‘adequado para tratamento’. Isto significa
que os dados são colocados de tal forma que podem ser diretamente processados pelo
sistema informático. De modo a tomar claro que o termo ‘dados’, ao abrigo da
Convenção, deverá ser entendido como referindo-se a dados sob a forma eletrónica ou
outra forma diretamente processável, foi introduzida a noção de ‘dados informatizados’.
Os dados informatizados que são automaticamente processados poderão constituir o
alvo de uma das infrações penais definidas na presente Convenção, bem como o objeto
de aplicação de uma das medidas de investigação definidas pela presente Convenção.”
O artigo 3°, nº 1, da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro, prevê e pune, como crime de
falsidade informática, a conduta de "quem, com intenção de provocar engano nas
relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por
qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados
ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou
utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem".
Tal corresponde à transposição do artigo 7° da Convenção, com a epígrafe ‘Falsificação
informática’, com o seguinte teor: “Cada Parte deverá adotar as medidas legislativas e
outras que se revelem necessárias para classificar como infrações penais nos termos do
seu direito interno, quando praticadas intencional e ilicitamente, a introdução, a alteração,
o apagamento ou a supressão de dados informáticos dos quais resultem dados não
autênticos, com o intuito de que esses dados sejam considerados ou utilizados para fins
legais como se fossem autênticos, quer sejam ou não diretamente legíveis e inteligíveis.
Qualquer uma das Partes pode exigir que para existir responsabilidade criminal tem de
haver intenção fraudulenta ou outra intenção criminosa semelhante.”
Na explicação do artigo 7° da Convenção, o relatório justificativo da Convenção sobre o
Cibercrime (versão portuguesa) refere: “81. O objetivo deste artigo é o de instituir uma
infração paralela à falsificação de documentos tangíveis, isto é, em suporte de papel. A
sua finalidade é a de colmatar as lacunas existentes ao nível do direito penal
relativamente à clássica falsificação, a qual exige uma legibilidade visual das declarações
contidas num documento e não se aplica aos dados armazenados eletronicamente. As
manipulações de tais dados com valor probatório poderão acarretar as mesmas
consequências graves que os tradicionais atos de falsificação, caso se verifique a
indução em erro de terceiros. A falsificação relacionada com computadores consiste na
criação ou alteração não autorizada de dados armazenados, de forma a que os mesmos
se revistam de um valor probatório diferente e que as transações legais, baseadas na
autenticidade da informação veiculada por esses dados, sejam objeto de dolo. Neste
caso, o interesse jurídico protegido será o da segurança e credibilidade dos dados
eletrónicos que poderão ter consequências ao nível das relações jurídicas.
82. Deverá ser salientado o facto de que os conceitos nacionais de falsificação poderão
variar significativamente. Um dos conceitos assenta na autenticidade de acordo com o
autor do documento, enquanto outros se baseiam na veracidade da declaração contida
no documento (...).
83. A presente disposição aplica-se a dados que equivalem a um documento público ou
privado que produz os seus efeitos em termos jurídicos. A ‘introdução’ não autorizada de
dados corretos ou incorretos dá origem a uma situação que corresponde à elaboração de
um documento falso. As alterações subsequentes (modificações, variações, mudanças
parciais), eliminações (remoção de dados de um suporte de dados) e supressão
(retenção e ocultação de dados), correspondem, de um modo geral, à falsificação de um
documento autêntico.”
No entanto, as aludidas manifestações de interesse não são documentos na definição
ínsita no artigo 255°, nº 1, alínea a), do Código Penal, uma vez que as declarações
inverídicas nas mesmas inscritas não são idóneas para provar facto juridicamente
relevante, não alteram dados armazenados nem devem ser consideradas ou utilizadas
para a produção de efeitos jurídicos no sentido previsto pelo citado artigo 7° da
Convenção.

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Em anotação ao referido artigo 3°, nº 1, da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro, Pedro


Dias Venâncio considera que “na sua formulação atual (...) parece exigir-se que a
atuação do agente se consubstancie na produção (...) de dados ou documentos não
genuínos” [‘produzindo’] e não apenas com os atos de ‘introduzir, modificar, apagar ou
suprimir dados ou programas informáticos ou, por qualquer outra forma, interferir num
tratamento informático de dados’.” (Lei do Cibercrime - Anotada e Comentada, Coimbra
Editora, p. 39).
No entanto, os indícios são omissos relativamente à alegação de que a arguida tenha
efetivamente produzido dados informáticos adequados a interferir num tratamento
informático de dados, sendo no mínimo duvidoso que a inscrição de uma data de entrada
em território nacional desconforme com a realidade, no ato de preenchimento de um
formulário eletrónico semelhante ao formulário em papel documentado a fls. 26 do
apenso A, deva ser criminalmente punida com fundamento num suposto sistema
automático de pré-agendamento (SAPA), atendendo nomeadamente ao princípio da
decisão previsto no artigo 13° do CPA e às regras aplicáveis ao correspondente processo
administrativo.
Como se infere dos artigos 54° e seguintes do Código de Procedimento Administrativo,
aplicável nos termos previstos no artigo 54°, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4 de julho, as
referidas normas permitem o uso de meios eletrónicos na instrução dos processos
administrativos.
Assim, o artigo 61° do CPA estabelece:
“1 - Salvo disposição legal em contrário, na instrução dos procedimentos devem ser
preferencialmente utilizados meios eletrónicos, tendo em vista:
a) Facilitar o exercício de direitos e o cumprimento de deveres através de sistemas que,
de forma segura, fácil, célere e compreensível, sejam acessíveis a todos os interessados;
b) Tomar mais simples e rápido o acesso dos interessados ao procedimento e à
informação;
c) Simplificar, e reduzir a duração dos procedimentos, promovendo a rapidez das
decisões, com as devidas garantias legais.
2 - Quando na instrução do procedimento se utilizem meios eletrónicos, as aplicações e
sistemas informáticos utilizados devem indicar o responsável pela direção do
procedimento e o órgão competente para a decisão, assim como garantir o controlo dos
prazos, a tramitação ordenada e a simplificação e a publicidade do procedimento.
3 - Para efeitos do disposto do número anterior, os interessados têm direito:
a) A conhecer por meios eletrónicos o estado da tramitação dos procedimentos que lhes
digam diretamente respeito;
b) A obter os instrumentos necessários à comunicação por Via eletrónica com os serviços
da Administração, designadamente nome de utilizador e palavra-passe para acesso a
plataformas eletrónicas simples e, quando legalmente previsto, conta de correio
eletrónico e assinatura digital certificada.”
No entanto, a lei não permite que o órgão competente para a decisão se faça substituir
na decisão por um órgão ou programa decisor eletrónico; a decisão humana não deve
ser substituída por uma decisão produzida por um sistema automatizado, como resulta
implicitamente admitido nos despachos da Diretora Nacional do SEF, com os nºs
42/DN/20 16 e 50/DN/20 16, datados de 4 e 16 de julho de 2016, documentados a fls. 24
e 25 do apenso A. (Sobre o tema das decisões eletrónicas, vide "A Decisão
Administrativa Eletrónica Emergência da Regulação do Procedimento Administrativo
Eletrónico", tese de mestrado de Cristina Maria da Silva Lopes e Navarro Machado).
Logo, não vislumbramos que a busca pretendida pelo Ministério Público tenha suporte
bastante em indícios da prática de um qualquer crime de "falsidade informática", por
existirem fundadas dúvidas sobre a verificação dos respetivos elementos constitutivos,
objetivos e subjetivos, nomeadamente no que respeita aos efeitos juridicamente
relevantes pretendidos. Referimo-nos, mais uma vez, ao entendimento defendido pelo
Ministério Público nos tribunais administrativos acima transcrito e documentado a fls. 12
a 16 do apenso A.
Mas mesmo que, por hipótese de raciocínio, se aceitasse o pressuposto da existência de
indícios desse crime, à luz de princípios de adequação, proporcionalidade, e da
intervenção mínima do direito penal e do direito processual penal, o Ministério Público
devia especificar que dados informáticos devem ser apreendidos e por que razão os
mesmos devem ser procurados nos escritórios de advocacia visados e não no sistema
informático do SEF onde foram introduzidos, ou no sistema informático do fornecedor de
serviços de internet.
Alegando o Ministério Público que a advogada visada introduziu os dados na plataforma
online do SEF, é nessa plataforma que o Ministério Público deverá procurar o corpo de
delito relativo à produção de dados pela arguida no SAPA do SEF, nomeadamente os
elementos de prova relativos ao seu tratamento informático e ao procedimento que
automatizou os pareceres, negativos ou positivos, relativos a essas manifestações de
interesse.
Se o Ministério Público pretende obter outro tipo de dados informáticos, nomeadamente

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dados de tráfego, dispõe dos meios legais que permitem a sua preservação e revelação,
nomeadamente os previstos nos artigos 13° e 14° da Lei nº 109/2009, de 15 de
setembro. Nesse sentido, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, por acórdão de
22/04/2013, que "a obtenção de um concreto endereço IP que esteve na origem de uma
determinada comunicação efetuada é da competência do Ministério Público e não do
juiz."
Como refere a Professora Catedrática Teresa Armenta Deu, nas suas “Lecciones de
Derecho Procesal Penal”, o princípio da proporcionalidade compreende três
subprincípios, nomeadamente o da idoneidade, o da necessidade e o da
proporcionalidade stricto sensu:
«1) A idoneidade refere-se à adequação objetiva e subjetiva de causalidade da medida
limitativa em relação aos seus fins, de modo a que as ingerências sejam adequadas
qualitativa, quantitativamente e no seu âmbito subjetivo de aplicação.» (...) «2) A
"necessidade" ou "alternativa menos gravosa" ou "intervenção mínima" implica a
manifestação externa e comparativa da proporcionalidade. Compara-se a medida
restritiva que se pretende adotar com outras possíveis, devendo acolher-se a menos
lesiva para os direitos dos cidadãos. (...)
3) A proporcionalidade "stricto sensu" refere-se à necessidade de ponderar os interesses
em conflito na hora de limitar o exercício do direito fundamental de que se trate, de
maneira a ponderar os interesses individuais (...) com o interesse estatal que se pretende
salvaguardar com a limitação.» (Ob. cit., p. 70 e 71).
Também Manuel Monteiro Guedes Valente se refere ao princípio da proporcionalidade,
que relaciona com o princípio do respeito dos direitos e interesses legalmente protegidos
dos cidadãos:
“O respeito por este princípio pela Polícia emerge, desde logo, do nº 1 do artigo 272° da
CRP (...). A proteção dos direitos dos cidadãos - todos os direitos e os fundamentais por
excelência - apresenta-se como uma obrigação do Estado, quer em uma vertente
positiva - defendendo-os e garantindo-os face à ameaça de outrem - quer em uma
vertente negativa - não atuar de modo que os ofenda e sacrifique arbitrária e
desmesuradamente - i. e., os direitos e interesses do cidadão são, por um lado,
fundamento da atuação da polícia -um fim em si mesmo - e, por outro, um limite
imanente da atividade administrativa em geral e, em especial, da atividade policial, muito
em especial no âmbito do direito administrativo sancionatório e criminal.” (Manuel
Monteiro Guedes Valente, «Teoria Geral do Direito Policial», Tomo I, ed. Almedina,
outubro 2005, p. 98-99).
Efetivamente, não se nos afigura justificada, à luz dos referidos princípios de
necessidade, intervenção mínima, proporcionalidade e adequação, buscar, pesquisar e
apreender documentos e dados informáticos de dois escritórios de advocacia que
seguramente contêm inúmeros documentos e outros dados cobertos pelo sigilo
profissional sem qualquer interesse para os presentes autos, com a consequente
devassa e perturbação da atividade ali exercida.
Nos termos do artigo 208.º da Constituição da República, «a lei assegura aos advogados
as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como
elemento essencial à administração da justiça.»
Em anotação ao citado normativo constitucional, Jorge Miranda e Rui Medeiros
sublinham: «I - A Constituição não ignora o papel fundamental que os advogados são
chamados a desempenhar, seja na perspetiva da plena efetivação do direito fundamental
de acesso ao direito e aos tribunais para defesa de direitos e interesses legalmente
protegidos, seja na ótica da própria administração da justiça. (...)
III - O artigo 208° tem unicamente em vista a atividade dos advogados no exercício do
mandato e o patrocínio forense enquanto elemento essencial à administração da justiça.
O legislador constitucional, ao salvaguardar as imunidades dos advogados e ao
reconhecer o interesse público do patrocínio forense, não se limita a remeter para a lei
ordinária a tarefa da definição dos atos próprios dos advogados que beneficiam da
proteção qualificada prevista no artigo 208°.
(...) A relevância que a Lei Fundamental confere à advocacia, neste preceito, inserido
num título respeitante aos tribunais, tem subjacente o reconhecimento da função social
dos advogados na administração da justiça (…).
A alusão genérica ao mandato tem um alcance expansivo, não se esgotando
necessariamente no mandato (forense) conferido para ser exercido perante um órgão
jurisdicional (...). A abertura da formulação constitucional permite, nomeadamente,
abranger o mandato para a defesa dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos
particulares através da apresentação à Administração Pública de requerimentos,
reclamações ou recursos administrativos. (...)
IV - O artigo 208° refere que a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias
ao exercício do mandato. (...) As imunidades existem para defender os advogados de
ações ou intromissões provindas do exterior e, em última análise, para preservar a
independência dos advogados no exercício do mandato» ("Constituição Portuguesa
Anotada", Coimbra Editora, 2007, Tomo III, p. 98 a 103).

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Também a Lei de Organização do Sistema Judiciário preceitua, no seu artigo 13°, nº 2,


sob a epígrafe "Imunidade do mandato conferido a advogados":
“Para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, a lei
assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz,
designadamente:
a) O direito à proteção do segredo profissional;
b) O direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de atos
conformes ao estatuto da profissão;
c) O direito à especial proteção das comunicações com o cliente e à preservação do
sigilo da documentação relativa ao exercício da defesa;
d) O direito a regimes específicos de imposição de selos, arrolamentos e buscas em
escritórios de advogados, bem como de apreensão de documentos.”
E, relativamente a buscas e apreensões em escritórios ou sociedades de advogados,
cumpre considerar o disposto nos artigos 75° a 77º do Estatuto da Ordem dos
Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de setembro, com especial destaque
para o preceituado no artigo 76°, sob a epígrafe: “Apreensão de documentos”:
“1 - Não pode ser apreendida a correspondência, seja qual for o suporte utilizado, que
respeite ao exercício da profissão.
2 - A proibição estende-se à correspondência trocada entre o advogado e aquele que lhe
tenha cometido ou pretendido cometer mandato e lhe haja solicitado parecer, embora
ainda não dado ou já recusado.
3 - Compreendem-se na correspondência as instruções e informações escritas sobre o
assunto da nomeação ou mandato ou do parecer solicitado.
4 - Excetua-se o caso de a correspondência respeitar a facto criminoso relativamente ao
qual o advogado tenha sido constituído arguido.”
Este nº 4 prevê um requisito cumulativo ao aludido no artigo 180º nº 2, do Código de
Processo Penal. Não só não é permitida, sob pena de nulidade, a apreensão de
documentos abrangidos pelo segredo profissional, salvo se eles mesmos constituírem
objeto ou elemento do crime, como também é necessário que o advogado com domicílio
profissional naquele escritório tenha sido constituído arguido.
No caso que nos é apresentado, o Ministério Público pretende obter busca em escritório
de advocacia sem ter constituído arguida a advogada visada.
Como resulta da nossa apreciação dos indícios que devem ser fundamento de uma
autorização de busca, não está demonstrado em que medida os documentos que o
Ministério Público pretende apreender são elemento constitutivo ou objeto da prática de
algum crime imputável à mesma advogada.
Referimo-nos particularmente aos documentos destacados a fls. 278: cópias de
documentos de viagem, notas referentes às circunstâncias migratórias individuais,
documentos comprovativos da entrada em território nacional e documentos decorrentes
das subordinações laborais declaradas, ou mesmo as supostas anotações que permitam
inferir um eventual agrupamento de imigrantes ilegais por entidade patronal ou supostos
registos contabilísticos informais decorrentes de serviços prestados.
Todos esses documentos, a existirem efetivamente em algum dos escritórios da
advogada visada, não constituem objeto ou elemento dos crimes que o Ministério Público
parece pretender imputar à referida advogada, que não foi constituída arguida pela
prática de qualquer crime.
Como afirmou o Presidente do Conselho de Deontologia de Lisboa da Ordem dos
Advogados, num recente artigo publicado no jornal Público, «o advogado serve o direito.
E por isso, a relação profissional que estabelece com quem procura os seus serviços
repousa na confiança e lealdade recíprocas, garantidas pelo sigilo profissional. (…) O
sigilo profissional não se reconduz, porém, a um privilégio do advogado. Serve a
cidadania livre. Constitui uma garantia desta. Só a proteção do conteúdo da relação
estabelecida entre o advogado e constituinte permite ao cidadão/constituinte agir em
sociedade, exercendo cabal e plenamente os direitos e legítimos interesses de que seja
portador de forma inteiramente livre e esclarecida, nos limites da lei e do direito. (…)
Porque o sigilo profissional dos advogados não é privilégio destes. É direito fundamental
dos cidadãos.»
Por tudo o exposto, e considerando as normas e princípios constitucionais diretamente
aplicáveis, nos termos previstos nos artigos 1º, 12°, 13°, 16°, 18° nº 1 e nº 2, 20°, nº 2,
32°, nº 2, e 52° da Constituição, indeferem-se, mais uma vez, as requeridas buscas aos
dois escritórios de advocacia.
Notifique o Ministério Público e devolva.»
*
Inconformado com o assim decidido, veio o Ministério Público interpor o presente
recurso, com subida imediata e em separado, sintetizando as suas razões nas seguintes
conclusões:
«1. Das diligências levadas a cabo no inquérito nº 79/12.2ZRPRT, resulta indiciado que a
advogada B..., visando fins lucrativos, promoveu manifestações de interesse inserindo
dados falsos nas mesmas, para obtenção de autorizações de residência a imigrantes que

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entraram/permaneceram ilegalmente em território nacional, designadamente por não


possuírem visto de entrada (cfr. artigo 10º da Lei nº 23/2007), ocultando com essa
conduta factos que, se fossem conhecidos pelo SEF, obstariam à concessão do visto de
residência (cfr. artigo 77º, nº 1, alínea b), da Lei nº 23/2007).
2. Contrariamente ao entendimento constante da decisão recorrida, encontra-se indiciada
a prática, pela advogada B... dos crimes de auxílio à imigração ilegal, previsto no artigo
183º, nº 2, da Lei 23/2007, de 4 de julho, na redação dada pela Lei nº 29/2012, de 9 de
agosto, e de falsidade informática, previsto e punido no artigo 3º, nº 1, da Lei 109/2009,
de 15 de setembro, mediante a utilização abusiva e ilegal do regime excecional previsto
pelo artigo 88º nº 2, da citada Lei nº 23/2007, de 4 de julho, através da inserção no portal
"SAPA" de dados falsos nas manifestações de interesse apresentadas.
3. Dada a abrangência (“por qualquer forma”) do tipo legal de auxílio a imigração ilegal,
previsto e punido pelo nº 2 do artigo 183º da Lei nº 23/2007, o preenchimento de dados
falsos numa “manifestação de interesses”, nos termos previstos no artigo 88º, nº 2, do
mesmo diploma legal, inseridos com vista à obtenção de autorizações de residência para
imigrantes em situação de permanência ilegal no território nacional, corresponde,
manifestamente, a uma conduta que preenche os elementos típicos do ilícito criminal em
causa.
4. A noção de documento prevista no regime geral (artigo 255º, alínea a), do Código
Penal), não se aplica, nos exatos termos previstos nessa norma, ao crime de falsidade
informática, pelas especificidades do regime especial previsto na Lei do Cibercrime.
5. A inserção de manifestações de interesse no portal “SAPA” pela advogada B..., ao
abrigo do disposto no artigo 88º, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4 de julho, contendo,
indiciariamente, dados falsos, constitui uma adulteração ilícita de dados informáticos,
para os efeitos previstos no artigo 3°, nº 1, da Lei do Cibercrime, uma vez que esses
dados falsos visam a criação de documentos não genuínos, para finalidades
juridicamente relevantes, atendendo ao facto de terem a aptidão de ludibriar o SEF nos
pareceres de atribuição de autorização de residência, visando, de forma manifesta,
causar engano nas relações jurídicas.
6. Como meio de obtenção de provas que é, a busca não pode depender da prévia
existência das provas que visa, precisamente, obter. Sob pena de se retirar qualquer
efeito útil relevante ao referido meio ou instrumento de obtenção de prova.
7. O que se pretende com a busca é precisamente a recolha de elementos de prova que
confirmem ou infirmem os factos participados. Para ser ordenada a busca e a apreensão
não é necessário, pois, que os indícios da prática do crime sejam suficientes ou fortes.
8. A decisão recorrida faz assentar a realização daquele meio de obtenção de provas na
existência das mesmas provas.
9. O interesse do Estado na investigação criminal e na expulsão de estrangeiros que
permaneçam irregularmente em território nacional encontra-se expressamente previsto
no artigo 27°, nº 3, alínea c), e 33°, nº 2, da nossa Lei Fundamental, e fundamenta a
restrição de direitos fundamentais implicada com a realização das buscas, tal como
expressamente previsto no artigo 18°, nº 2, e 34°, nº 2, da Constituição da República
Portuguesa e no artigo 174°, nº 2, do Código de Processo Penal.
10. As buscas promovidas, a realizar nos escritórios de advocacia da Dr.ª B..., com
busca, pesquisa e apreensão de dados informáticos (devidamente especificados na
promoção do Ministério Público) nos computadores e demais aparelhos eletrónicos aí
existentes, são necessárias, adequadas e proporcionais aos fins de investigação visados,
não existindo qualquer afronta ao artigo 18°, nº 2, da Constituição da República
Portuguesa.
11. Os documentos que se visam apreender na busca, e exaustivamente elencados na
promoção do Ministério Público, apesar de poderem estar cobertos por segredo
profissional, estão diretamente relacionados com a indiciada atividade delituosa levada a
cabo pela suspeita.
12. A definição do objeto da busca, quando esta incida em escritório de advogado ou em
local onde este faça arquivo, impõe um maior cuidado, mas não implica que,
encontrando-se assente em pressupostos que redundem na sua adequação e
proporcionalidade, tenha de revestir forma diferente de outra qualquer. Pese embora o
objeto da busca tenha de estar minimamente concretizado, incluindo as razões para a
mesma, não se impõe que, previamente à diligência, se dê o mesmo a conhecer ao
advogado ou ao representante da Ordem dos Advogados, limitando intoleravelmente a
sua utilidade e eficácia.
13. Nada invalida que a constituição como arguida da advogada visada pela busca opere
em momento imediatamente anterior à realização das mesmas; não pode é pretender-se
que essa constituição ocorra antes, com a inerente perda de eficácia da diligência.
14. Além do mais, sempre se dirá que o artigo 76º, nº 4, não tem aplicação quando as
buscas em escritórios de advogados visam apreender objetos ou elementos de um crime,
nos termos e para os efeitos previstos na parte final do artigo 180º, nº 2, do Código de
Processo Penal.
15. Ora, a apreensão de documentos visada pelas buscas promovidas pelo Ministério

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Público diz respeito a objetos ou elementos de um crime, não se limitando à mera


recolha de prova que sustente indícios da prática do mesmo.
16. O artigo 16º, nº 5, da Lei do Cibercrime refere as formalidades relativas às
apreensões relativas a sistemas informáticos utilizados para o exercício da advocacia,
procedendo a uma remissão apenas para o Código de Processo Penal, e não para o
Estatuto da Ordem dos Advogados, enquanto que, no caso dos jornalistas, se remete
expressamente, na mesma norma, para o Estatuto dos Jornalistas, o que sustenta a
interpretação de que, no caso especial de apreensão de dados informáticos, o artigo 76º,
nº 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados, não terá aplicação.
17. As diligências requeridas na promoção do Ministério Público revelavam-se (e
revelam-se) de grande interesse para a descoberta da verdade material, bem como para
as necessidades de obtenção de prova.
18. Encontravam-se (cabalmente) preenchidas as condições formais e materiais de que
dependia a sua autorização.
19. Pelo que deveriam ter sido deferidas as diligências requeridas.
20. Ao indeferir a promoção do Ministério Público, o Mmº. Juiz de Instrução Criminal
procedeu a uma errónea interpretação dos artigos 88º, nº 2, e 183º, nº 2, da Lei nº
23/2007, de 4 de julho, dos artigos 3º, nº 1, e 16º, nº 4, da Lei do Cibercrime (Lei nº
109/2009, de 15 de setembro), dos artigos 174°, nº 2, e 180°, nº 2, do Código de
Processo Penal, do artigo 76°, nº 4, da Lei nº 145/2015, de 9 de setembro (Estatuto da
Ordem dos Advogados) e artigo 18°, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.»
Finalizou o Ministério Público o seu recurso pedindo a revogação da decisão recorrida e
a sua substituição por outra que determine a busca promovida, direcionada aos
escritórios de advocacia da Dr.ª B... (sitos na Av. ..., nº ..., ..° Esquerdo, em Lisboa e na
Av. ..., nº ..., ..., ..º Esquerdo, em Cascais), com busca, pesquisa e apreensão de
documentos em suporte papel e de dados informáticos nos computadores e demais
aparelhos eletrónicos aí existentes, tudo nos termos previstos nos artigos 174°, nº 2,
176°, 177°, nºs 1 e 5, 179°, nº 3, 180°, todos do Código de Processo Penal, e artigos 15°
a 17° da Lei do Cibercrime (…)».
*
Já nesta 2ª instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu “visto”.
*
Cumpre decidir.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva
motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de
apreciar [1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Assim, levando em conta a argumentação expendida no acima transcrito despacho
recorrido e face às conclusões do recurso, as principais questões a decidir consistem em
saber:
- se a factualidade indicada como fundamentadora das pretendidas buscas em escritórios
de advocacia é suscetível de preencher algum tipo de ilícito criminal;
- se, ainda que se considere existir matéria com relevância criminal, as buscas não
devem ser autorizadas por serem desnecessárias e redundantes, face à existência de
outros meios de prova, e/ou por se verificar desproporção entre o interesse para a
descoberta da verdade (que visam alcançar), por um lado, e a necessária quebra das
imunidades constitucionalmente reconhecidas ao exercício da advocacia (que,
necessariamente, comprimem), por outro.
*
Previamente à análise das identificadas questões, importa conhecer os fundamentos da
indeferida pretensão do Ministério Público, que a seguir passam a especificar-se:
Indícios de práticas criminais da visada alegados como motivação das buscas
Para obter a autorização das buscas nos escritórios da advogada Dr.ª B..., o Ministério
Público invocou a existência dos seguintes indícios prévios:
«(1)- O inquérito n.º 79/12.2ZRPRT teve início a 06-12-2012, com base nas informações
de serviço do SEF (de fls. 3-28), nas quais se refere, em síntese, que na sequência de
uma operação de fiscalização no restaurante "D...", sito no "E...", foram identificados seis
trabalhadores que se encontravam em permanência ilegal no território nacional.
(2)- A fiscalização "supra" referida foi motivada pelas suspeitas da prática de crime,
decorrentes da análise das "Manifestações de Interesses" dos cidadãos de nacionalidade
brasileira F..., G..., H... e I..., as quais tinham diversos elementos em comum,
designadamente a data de inserção no portal "SAPA", o vínculo laboral assumido com a
empresa "C..., Lda." (NIF .........), propriedade de J... e K..., o desempenho de funções
laborais no restaurante "D...", sito no "E...", em Matosinhos, a residência na Rua ..., n° .,
em Matosinhos, e o contacto telefónico ..........
(3)- Além do mais, apurou-se que os cidadãos supra referidos tentaram regularizar a sua
permanência em território português através do procedimento extraordinário previsto no
artigo 88.°, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, e que nas respetivas manifestações

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de interesse foram comunicadas datas de entrada em Portugal anteriores à emissão dos


respetivos passaportes, o que levantou a suspeita, posteriormente confirmada pelas
declarações prestadas pelos próprios e pela verificação dos carimbos de entrada no
Espaço Schengen apostos nos passaportes dos mesmos, de que as datas de entrada
em Território Nacional haviam sido deturpadas aquando da inserção das manifestações
de interesse, com vista a induzir em erro e viciar a decisão do SEF, que atribui parecer
negativo automático às manifestações de interesse sempre que a diferença entre a data
de chegada a Território Nacional e a data de inserção de Manifestação de Interesse seja
inferior a 180 dias (cf. Auto Informativo de fls. 500 a 505).
(4)- No decurso da investigação apurou-se que, entre 2007 e 2016, pelo menos 190
cidadãos estrangeiros, que se encontravam a trabalhar por todo o Território Nacional,
indicaram como entidade patronal uma das empresas associadas a J... e K..., na
manifestação de interesse apresentada no âmbito do procedimento extraordinário
previsto no artigo 88.°, n.º 2, da Lei 23/2007, de 4 de Julho (cfr. listagem constante nas
fls. 393 a 399), que todos esses registos no portal "SAPA" tinham como contacto
telefónico o número ......... e que pelo menos 19 cidadãos declaravam, nesse registo, ter
chegado a Portugal em datas anteriores à emissão dos seus passaportes.
(5)- Quando inquiridas, as testemunhas G..., M..., N... e I..., para além de confirmarem
que entraram em Portugal em datas posteriores às indicadas nas respetivas
manifestações de interesse, referiram que, por indicação de O... ou de funcionários das
respetivas empresas, a fim de regularizar a sua situação em Território Nacional,
contactaram a advogada B..., através do n° ........., que acordaram com a mesma a
regularização do respetivo processo de legalização em Portugal mediante o pagamento
de montantes que variavam entre os 150€ e 500€, enviando-lhe para o email
B1...@gmail.com ou entregando-lhe em mão, para esse efeito, a documentação
solicitada pela mesma (contrato de trabalho, número de contribuinte, passaporte e dados
da Segurança Social). Relativamente à data de entrada em Portugal por todas as
testemunhas foi referido que a aposição de data anterior à data de entrada em Portugal
foi realizada pela advogada, sem o respetivo conhecimento. A testemunha N... referiu
que, para dar entrada do pedido inicial de legalização se encontrou presencialmente com
a advogada B... no respetivo escritório em Cascais, tendo, para esse efeito, aí entregue
cópia do passaporte, número de contribuinte, contrato de trabalho e número da
segurança social.
(6)- Realizadas pesquisas no portal "SAPA", foram detetadas cerca de 270
"Manifestações de Interesses" de cidadãos cujas nacionalidades variam entre a Tunisina,
Paquistanesa, Nepalesa, Indiana e Filipina, entre outras, igualmente associadas ao
número de telefone ........., nas quais é declarada a nacionalidade Brasileira, não obstante
no campo observações ser revelada a verdadeira nacionalidade e referido que o cidadão
em causa não era titular de visto de entrada, logrando-se desta forma protelar um
eventual procedimento do SEF quanto ao seu afastamento coercivo de Território
Nacional e impedindo a instauração de contraordenações à respetiva entidade patronal.
(7)- No dia 12/01/2017, o SEF procedeu a ação de fiscalização ao restaurante "D...", sito
no "E...", em Matosinhos, estabelecimento explorado pela sociedade "C..., Lda.", tendo
sido detetados mais dois funcionários em situação irregular em Portugal, sendo que um
deles, P..., referiu de forma informal que a responsabilidade a nível contraordenacional da
sociedade referida é transferida, pela mesma, para o trabalhador,
(8)- No decurso da investigação, a cargo do SEF, apurou-se, ainda, através de pesquisa
efetuada ao site da Ordem dos Advogados, que o número de telefone ......... se encontra
associado à advogada B..., com escritório na Avenida ..., ..., .° Esquerdo, ....-... Lisboa e
na Avenida ..., ..., ..., .° Esquerdo, ....-... Cascais.»
*
A) A tipicidade das condutas sob investigação
Na alargada argumentação expendida no acima transcrito despacho recorrido, deteta-se,
como primeira e basilar linha de força, a que vai no sentido de negar tipicidade criminal
às condutas invocadas pelo Ministério Público.
Assim, no que tange ao invocado crime de auxílio à imigração ilegal do nº 2 do artigo
188º da Lei nº 23/2007, de 4/7 [2], o entendimento do M.mº JIC pode considerar-se
sintetizado na seguinte passagem do seu despacho: “De facto, afigura-se-nos
extremamente difícil a demonstração de que a simples apresentação, no portal do SEF,
de uma ‘manifestação de interesse’ em nome e representação de um estrangeiro, nos
termos do artigo 88°, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4 de julho, possa constituir o seu
apresentante em responsabilidade penal pela prática de um crime de auxílio à imigração
ilegal, considerando nomeadamente o direito de petição consagrado no artigo 52°, nº 1,
da Constituição da República.”
Já quanto ao alegado crime de falsidade informática do nº 1 do artigo 3º da Lei 109/2009,
de 15/9 [3], entende o Tribunal recorrido, mormente, que “(…) os indícios são omissos
relativamente à alegação de que a arguida tenha efetivamente produzido dados
informáticos adequados a interferir num tratamento informático de dados, sendo no
mínimo duvidoso que a inscrição de uma data de entrada em território nacional

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desconforme com a realidade, no ato de preenchimento de um formulário eletrónico


semelhante ao formulário em papel documentado a fls. 26 do apenso A, deva ser
criminalmente punida com fundamento num suposto sistema automático de pré-
agendamento (SAPA), atendendo nomeadamente ao princípio da decisão previsto no
artigo 13° do CPA e às regras aplicáveis ao correspondente processo administrativo.”
Pois bem.
Não obstante o assinalável esforço argumentativo desenvolvido pelo Tribunal recorrido
na sustentação da sua tese de que os factos indicados pelo Ministério Público – e, em
boa medida, indiciados pela investigação prévia do SEF – não preencherão os requisitos
dos dois tipos legais de crime apontados na promoção indeferida, afigura-se-nos que tal
interpretação não é a mais correta.
Com efeito, não sendo postos verdadeiramente em causa os indícios de que a Ex.ma
Advogada visada introduziu no “sítio do SEF na Internet” (designado por SAPA), em
nome dos seus clientes e com intuito lucrativo, – pelo menos nos casos expressamente
mencionados na investigação – dados sobre as respetivas datas de entrada no território
nacional e até sobre a sua nacionalidade que, consabidamente, não correspondiam aos
reais, como meio de não verem as suas declarações de interesse automaticamente
indeferidas, não vemos como se não mostrem preenchidos os requisitos típicos do crime
de auxílio à emigração ilegal do nº 2 do artigo 188º da Lei nº 23/2007, de 2/7.
É certo que dos autos não resultam indícios de qualquer intervenção da advogada no
recrutamento destes trabalhadores estrangeiros, designadamente no auxílio à sua
entrada ou mesmo à sua circulação no território nacional.
Porém, é também insofismável que o âmbito de abrangência do tipo de ilícito ora em
causa não se limita a tais comportamentos de maior visibilidade ou de maior
proatividade, estendendo-se também ao auxílio, “por qualquer meio”, à “permanência”
ilegal de imigrantes.
Nem se diga que – como o faz o Tribunal recorrido – uma conduta de auxílio (neste caso,
jurídico) só seria tipicamente relevante se se destinasse diretamente à produção de um
ato administrativo e já não a efeitos alegadamente pré-decisórios, automáticos, não
definitivos.
Na verdade, o âmbito de atuação da visada encontra o seu enquadramento e explicação
no contexto do alegado pelo recorrente e que aqui se reproduz:
«Segundo a Informação de Serviço n.º 64/GJ/09 do Gabinete Jurídico do SEF – Direção
Regional do Norte (cfr. fls. 9 a 11 do Apenso A), foi determinado que o “SAPA” passasse
a emitir parecer negativo automático quando constata uma manifestação de interesse
apresentada por cidadão estrangeiro cuja entrada em território nacional tenha ocorrido
entre 1-180 dias antes daquela apresentação.
Acontece que parte relevante destes imigrantes ilegais não reunia, à data do
recrutamento, as condições para se regularizar em território nacional, designadamente
porque apresentavam períodos de permanência em território português inferiores a cento
e oitenta dias, constrangimentos objetivos que, indiciariamente, eram do conhecimento
da advogada (cfr. auto informativo de fls. 500 a 505).
Existem fortes indícios de que estamos perante um procedimento consciente e sub-
reptício: para contornar um dos requisitos previstos para a aceitação das manifestações
de interesse no mecanismo de regularização extraordinária que verte do n.º 2, do artigo
88.º da Lei 23/2007, terão sido propositadamente alteradas, pela advogada B..., as datas
de entrada de cidadãos estrangeiros inseridas no Portal "SAPA". Assim, ludibriada
quanto ao real período de permanência em território português, a Administração emitiu
pareceres positivos nestas manifestações de interesse quando, se fosse conhecida a
verdadeira data de entrada, o parecer teria sido automático e negativo (cfr. auto
informativo de fls. 411).
Após consulta aos registos no Portal "SAPA" promovidos pela advogada B... (tendo como
critério de entrada o respetivo telemóvel ........., o contacto declarado - foram sinalizados
cerca de duzentos e setenta pedidos associados a imigrantes, na sua maioria de
aparente origem indostânica cuja nacionalidade carreada na plataforma online foi a
brasileira (cfr. listagem de fls. 506 a 513).
A título de exemplo, note-se o procedimento adotado pela advogada no registo
promovido em nome do imigrante ilegal Q...: no campo “nacionalidade do interessado” foi
carreada a nacionalidade brasileira, mas no campo destinado às observações fez-se
constar: "o CE (cidadão estrangeiro) é nacional do Bangladesh, mas, por não possuir
visto de entrada, inseriu a sua nacionalidade como brasileiro, de forma a ser apresentada
esta mi (manifestação de interesse) – requerendo desde já a retificação da sua
nacionalidade" - (cfr. registo de fls. 515). Ao inserir no Portal "SAPA" um registo incorreto
associado a uma nacionalidade isenta de visto – a brasileira – em detrimento da
autêntica – a do Bangladesh – é contornada a obrigatoriedade da especificação do visto
de entrada que pende sobre os cidadãos de origem indostânica. Este logro permitiu ao
imigrante ilegal Q... permanecer no que se poderá chamar de "limbo documental", já que,
sendo inviável a emissão de qualquer título de residência, com a inserção de uma
manifestação de interesse no Portal "SAPA", este cidadão estrangeiro protelou o provável

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procedimento tendente ao afastamento coercivo de território nacional e impediu a


instauração à respetiva entidade patronal da consequente contraordenação por emprego
de mão-de-obra ilegal. Um subterfúgio que se mostrou eficiente e assegurou o prolongar
desta estada irregular em Portugal.
Resulta, assim, indiciado que a advogada B..., com intenção lucrativa, não obstante a
consciência jurídica inerente à profissão, não se coibiu de promover manifestações de
interesse que sabia inviáveis e adotou procedimentos sub-reptícios que permitiram a um
conjunto relevante de imigrantes ilegais contornarem os pareceres automáticos emitidos
pela plataforma ‘on line’ por incumprimento dos requisitos prévios basilares: prova de
entrada legal em território nacional e/ou período de permanência em Portugal superior a
cento e oitenta dias.».
A invocação (a nosso ver descontextualizada e inócua) do parecer administrativo referido
no despacho recorrido – proferido no âmbito de outros autos e a propósito de uma
questão diversa – não modifica ou afeta, de modo algum, a tipicidade da conduta
indiciada, como crime de auxílio à imigração ilegal.
Encontra-se, desta forma, suficientemente indiciada a prática, pela advogada B..., do
crime de auxílio à imigração ilegal, previsto no artigo 183°, n.º 2, da Lei 23/2007, de 4 de
julho, na redação dada pela Lei n.º 29/2012, de 9 de agosto.
*
Quanto ao crime de falsidade informática delineado pelo artigo 3°, nº 1, da Lei nº
109/2009, de 15 de setembro – onde se prevê e pune a conduta de “quem, com intenção
de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir
dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de
dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes
sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o
fossem” – também o Tribunal recorrido põe em causa a respetiva verificação, por
entender que existem “fundadas dúvidas sobre a verificação dos respetivos elementos
constitutivos, objetivos e subjetivos, nomeadamente no que respeita aos efeitos
juridicamente relevantes pretendidos”.
O tipo de argumentação aqui invocada pelo Tribunal recorrido mostra-se, em boa
medida, semelhante à usada para o crime de auxílio à emigração ilegal: porque se
estaria perante um procedimento prévio e, por isso, não diretamente destinado ao
proferimento de um ato definitivo e executório da administração, o tipo de declaração
ínsita numa “manifestação de interesse” não seria apta a produzir ou introduzir ‘dados’ ou
‘documentos’ juridicamente relevantes, para os efeitos incriminatórios agora previstos.
Porém, por razões idênticas às já anteriormente adiantadas, não sufragamos o
argumentário subjacente a esta especiosa interpretação do preceito em causa, pelo que
entendemos que se encontram também presentes – na factualidade indiciada – os
pressupostos típicos do crime de falsidade informática, previsto e punido no artigo 3°, n.º
1, da Lei 109/2009, de 15 de setembro.
Procede, assim, na vertente da verificação da tipicidade da factualidade investigada, o
recurso interposto.
*
B) Os requisitos das buscas em escritório de advocacia
Entendeu-se, subsidiariamente, no despacho recorrido que, em todo o caso, o Ministério
Público não terá especificado, como devia, que dados informáticos deveriam ser
apreendidos e por que razão os mesmos deveriam ser procurados nos escritórios de
advocacia visados e não no sistema informático do SEF onde foram introduzidos, ou no
sistema informático do fornecedor de serviços de internet.
Assim, explícita ou implicitamente, aí se esboça a posição de que, tendo o SEF acedido
às informações ou dados supostamente viciados através do seu próprio sistema
informático, nele encontraria também, necessariamente, todos os elementos de prova
suficientes para fundamentar uma eventual acusação. Seria, por isso, desnecessário
efetuar buscas nos escritórios da Ex.ma Advogada visada, pelo que as diligências
promovidas seriam ilegais e inconstitucionais, por desrespeitarem os pressupostos de
tais meios de obtenção de prova, designadamente os exigidos pelos princípios da
necessidade e da proporcionalidade, por sua vez moldados pelo princípio da intervenção
mínima do direito penal e do direito processual penal.
Vejamos.
Constituem pressupostos gerais de admissibilidade dos meios de obtenção de prova,
nomeadamente, a sua permissão constitucional, a sua legalidade ‘stricto sensu’
(existência de lei habilitante), a sua concreta necessidade (insubstituibilidade) para a
salvaguarda de um direito constitucionalmente protegido e a sua proporcionalidade para
o efeito pretendido [4].
Como requisitos específicos da busca, aponta-se ainda a necessidade da existência de
indícios do crime e de que o arguido, outra pessoa que deva ser detida, quaisquer
objetos relacionados com o crime ou que possam servir de prova se encontram em lugar
reservado ou não livremente acessível ao público [5].
Acrescem, finalmente, como requisitos especialíssimos da busca em escritório de

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advogado, os decorrentes do disposto nos artigos 180º e 177º, nº 5, do Código de


Processo Penal e 75º a 77º do atual Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei nº 145/2015,
de 9/9).
Voltando aos requisitos considerados em falta pelo despacho recorrido, há, desde logo,
que assinalar que, contrariamente ao ali expendido, as buscas promovidas se mostram
claramente necessárias para a prova cabal dos crimes em investigação.
Com efeito, embora alguns dos vários crimes se encontrem já suficientemente indiciados
face ao confronto entre a prova decorrente das próprias ‘manifestações de interesse’
inseridas nas bases de dados oficiais e a prova testemunhal e mesmo alguma
documental existentes nos autos, é sabido que a prova testemunhal é mutável,
influenciável e genericamente falível. Por outro lado, o objetivo expresso das buscas não
é apenas (ou nem é sobretudo) o da apreensão de ‘dados informáticos’, ou de
documentos em suporte digital, mas também o da apreensão de documentos em arquivo
físico (analógico) ou de papel, que não é possível (ou viável) efetuar por outro meio.
As buscas mostram-se, assim, incontestavelmente, necessárias.
Já quanto à respetiva proporcionalidade, há que atender ao conflito de direitos/deveres
constitucional e legalmente protegidos – mormente o dever de exercício da ação penal
por parte do Ministério Público e o dever de sigilo profissional dos advogados, por parte
da causídica visada com as promovidas buscas (cfr., respetivamente, os artigos 221º, nº
1, e 208º da CRP).
Cremos que também subjaz (pelo menos implicitamente) ao despacho recorrido a
consideração de que, no caso concreto, o tipo de crimes eventualmente cometidos
careceria de suficiente gravidade ou até de ressonância ética para que ao interesse da
sua investigação e punição fosse sacrificado o dever de sigilo profissional inerente à
função social e jurídica do patrocínio forense.
Quanto à alegada carência de ressonância ética dos crimes em causa, embora
reconheçamos estar – designadamente quanto ao crime de auxílio à imigração ilegal –
face a exemplos do chamado ‘direito penal secundário’, não podemos deixar de entender
que a respetiva gravidade se deve aferir em função das penas que o legislador estatuiu
para a sua punição [6]. Ora, ambos os tipos legais de crime em investigação preveem
punições com penas de 1 a 5 anos de prisão, não podendo ser, de modo algum,
considerados bagatelas penais.
Não se nos afigura, assim, que a autorização das promovidas buscas/apreensões possa
ser considerada, no âmbito da ponderação de direitos constitucional e legalmente
protegidos, como desproporcionada face ao sacrifício das imunidades de que goza a
Ex.ma Advogada visada. De resto, tal sacrifício, na medida do possível, deverá ser
limitado, nos termos conjugados dos artigos 177º, nº 5, 180º, 179º e 135º do Código de
Processo Penal e 75º a 77º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
*
III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do
Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e,
consequentemente, em revogar a decisão recorrida e, em substituição, autorizar e
determinar a busca promovida, direcionada aos escritórios de advocacia da Dr.ª B...
(sitos na Av. ..., nº ..., ..° Esquerdo, em Lisboa, e na Av. ..., nº ..., ..., ..º Esquerdo, em
Cascais), com busca, pesquisa e apreensão de documentos em suporte papel e de
dados informáticos nos computadores e demais aparelhos eletrónicos aí existentes,
associados às ‘manifestações de interesse’ na regularização extraordinária prevista no nº
2 do artigo 88° da Lei 23/2007, de 4 de julho, em nome de imigrantes ilegais não
enquadráveis nesse mecanismo legal, tudo nos termos previstos nos artigos 174°, nº 2,
176°, 177°, nºs 1 e 5, 179°, nº 3, 180°, todos do Código de Processo Penal, e artigos 15°
a 17° da Lei do Cibercrime.
*
Sem custas.
*
Porto, 9 de maio de 2018
Vítor Morgado
Alexandra Pelayo
____________
[1] Tal decorre, desde logo, de uma interpretação conjugada do disposto no nº 1 do artigo
412º e nos nºs 3 e 4 do artigo 417º. Ver também, nomeadamente, Germano Marques da
Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência
uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos. do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de
1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[2] Onde se prevê que “Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a
permanência ou o trânsito ilegal de cidadão estrangeiro em território nacional, com
intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos”.
[3] Dispositivo da também chamada “Lei do Cibercrime”, onde, relembre-se, se prescreve
que “Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir,

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modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir
num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos,
com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades
juridicamente relevantes como se o fossem".
[4] Sobre os requisitos gerais dos meios de obtenção de prova, ver Francisco Marcolino
de Jesus, ‘Os Meios de Obtenção de Prova em Processo Penal’, Almedina, 2011,
páginas 139-140.
[5] Ver também Francisco Marcolino de Jesus, obra citada, páginas 180-181.
[6] Para obviar a situações possivelmente chocantes, vem entendendo alguma doutrina
que, no juízo de ponderação, deverá sempre ter-se presente o tipo de crime, em
confronto com a danosidade social da medida, por forma a que se possa evitar a
realização da busca em casos bagatelares (neste sentido, cfr., ainda Francisco
Marcolino, obra citada, nota 499, na página 181.

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