Você está na página 1de 114

LIÇÕES DE

DIREITO PENAL:
PARTE ESPECIAL
Parte Especial

RUI SANHÁ

FDB | Complexo Escolar 14 de Novembro


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

LIÇÕES DE
DIREITO PENAL:
Parte Especial

PARTE ESPECIAL
Parte Especial
Sumários desenvolvidos das aulas do Direito Penal II,
Ministradas ao 5.º Ano tronco Comum do ano Letivo de
2020/2021

RUI SANHÁ

FDB | Complexo Escolar 14 de Novembro

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Lista dos acrónimos

AAFDL — Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa


Ac.; Acs. — Acórdão, Acórdãos
Al., als — alínea; alíneas
Apud — Citado por, na citação de; citação indireta
BMJ — Boletim do Ministério da Justiça
C. O. P — Condição - 2 -bjectiva de punibilidade
CC — Código Civil
Cfr.; Cf. V. — Confrontar, ver
Cit. — Citado/a
Comentário — Comentário conimbricense de Código Penal [Dirigido por
Figueiredo Dias] I (131-201), II (p. 202-307) e III (308-
,386), Coimbra: Coimbra Editora, 1999, 1999 e 2001.
CP — Código Penal
CP/P — Código Penal Português
CPAGB — Código Penal Anotado da Guiné-Bissau, editado pela
Ordem dos Advogados da Guiné-Bissau e TIPS/USAID,
Bissau: Nova gráfica LTDA, 1997.
CPGB — Código Penal da Guiné-Bissau
CPP — Código de Processo Penal
Ex.; exs. — Exemplo, exemplos
i. e — isto é
IBCCRIM — Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
Ibidem/ibid. — do mesmo autor, no mesmo local/página acabados de citar
Idem/id. — do mesmo autor, na página diferente
n. n. o. — negrito (ou negritado) no original
Núm.; n.º, n.ºs — número, números
OAGB — Ordem dos Advogados da Guiné-Bissau
Östgb — Código Penal Austríaco
P. Ex. — por exemplo
P.; pp. — página, páginas
PE — Parte Especial
PG — Parte Geral
S. N. — sublinhado é nosso (meu); plural de modéstia
s. n. o — sublinhado no original
S.; ss. — seguinte ou seguintes
Stgb — Código Penal Alemão
V.g.; — Verbi gracia, exempli gracia (exemplo)

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Índice

LISTA DOS ACRÓNIMOS ..................................................................................................... - 2 -

1.1 AS RELAÇÕES ENTRE A PARTE GERAL (PG) E A PARTE ESPECIAL (PE) DO DIREITO
PENAL (DP) E A ESTRUTURA SISTEMÁTICA DA PARTE ESPECIAL ..................................... - 9 -
1.1.1 CONEXÃO ENTRE A PARTE GERAL E A PARTE ESPECIAL. A «FUNÇÃO DE
PARÊNTESIS» («KLAMMERFUNKTION») DA PARTE GERAL: A FORMAÇÃO DO TIPO
SISTEMÁTICO E DO TIPO DE GARANTIA. .................................................................................- 9 -
1.2 A ORGANIZAÇÃO SISTEMÁTICA DA PARTE ESPECIAL ............................................ - 10 -
1.2.1 OS CRITÉRIOS DE ORDENAÇÃO DOS TIPOS DE CRIME ..................................................- 10 -
1.2.1.1 Os critérios internos e externos de ordenação dos tipos .................................... - 10 -
1.2.1.1.1 Critérios gerais ou externos de sistematização ................................................ - 10 -
A) Críticas ......................................................................................................................... - 11 -
1.2.1.1.2 Critérios internos ou específicos de sistematização ......................................... - 12 -
1.2.1.2 A insuficiência do bem jurídico como critério de sistematização e de
interpretação dos tipos de crime ......................................................................................... - 13 -
1.2.1.2.1 Outros critérios de ordenação: exemplificação. .............................................. - 13 -

CAPITULO II DOS CRIMES CONTRA AS PESSOAS. ........................................... - 14 -

1. OS CRIMES CONTRA A VIDA. ............................................................................ - 14 -

1.1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... - 14 -


1.1.1 A DETERMINAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS FUNDAMENTAIS: A FUNÇÃO DO BEM
JURÍDICO IMANENTE AO SISTEMA. ........................................................................................- 14 -
1.1.2 BEM JURÍDICO PROTEGIDO/TUTELADO NOS CRIMES CONTRA A VIDA: A
DELIMITAÇÃO TEMPORAL DO BEM JURÍDICO E A SUA NECESSIDADE PARA O DIREITO PENAL
- 16 -
1.1.2.1 O início da vida para o DP ................................................................................... - 16 -
1.1.2.2 O termo da vida para o DP .................................................................................. - 18 -
1.2 OUTRAS SITUAÇÕES COM RELEVÂNCIA PENAL RELATIVAMENTE AOS CRIMES CONTRA A VIDA ........ - 19 -
1.2.1 A EUTANÁSIA..................................................................................................................- 19 -
1.2.2 EUTANÁSIA E DISTANÁSIA: CONCEITOS E CARATERIZAÇÃO ....................................................- 21 -
1.2.2.1 Breve relance histórico .......................................................................................... - 23 -
1.2.3 MODELOS DE CONSTRUÇÃO DO TIPO SISTEMÁTICO DO CRIME CONTRA A VIDA:
DUALISTA E MONISTA ............................................................................................................- 24 -

CAPÍTULO III DAS TÉCNICAS E SENTIDO DA QUALIFICAÇÃO E DO PRIVILEGIAMENTO BEM A


PROBLEMÁTICA DA TENTATIVA NOS CRIMES QUALIFICADOS E PRIVILEGIADOS, ERRO SOBRE
AS CIRCUNSTÂNCIAS QUALIFICANTES E PRIVILEGIANTES, E CONCURSO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
- 26 -

1. AS TÉCNICAS DE QUALIFICAÇÃO E DO PRIVILEGIAMENTO, E A PROBLEMÁTICA DA


TENTATIVA NOS CRIMES QUALIFICADOS ......................................................................... - 26 -

1.1 TÉCNICAS DE QUALIFICAÇÃO E DE PRIVILEGIAMENTO: TIPOS DE ILICITUDE, TIPOS DE CULPA E TIPOS


MISTOS .............................................................................................................................. - 26 -

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

1.2 OS ELEMENTOS ESPECIAIS QUALIFICANTES E O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE, NAS VERTENTES DA


TIPICIDADE E DA PROIBIÇÃO DE ANALOGIA ................................................................................. - 27 -
1.3 A TENTATIVA NOS CRIMES QUALIFICADOS E PRIVILEGIADOS .................................................. - 28 -
1.4 O ERRO SOBRE CIRCUNSTÂNCIAS QUALIFICANTES E PRIVILEGIANTES ........................................ - 30 -
1.5 COMPARTICIPAÇÃO E COMUNICAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS ................................................... - 32 -
1.6 CONCURSO DE CIRCUNSTÂNCIAS ..................................................................................... - 34 -

CAPÍTULO IV DO HOMICÍDIO ........................................................................................ - 35 -

1. A ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA .......................................................................... - 35 -

1.1. ETIMOLOGIA ............................................................................................................. - 35 -


1.2. VARIAÇÕES OU ESPÉCIES .............................................................................................. - 35 -
1.3. EVOLUÇÃO ............................................................................................................... - 36 -
1.4. O TIPO BASE OU FUNDAMENTAL DO HOMICÍDIO (ART.º 107.º, CPGB/1993 E ART.º 147.º DO
PROJETO DO NOVO CP) ........................................................................................................ - 37 -
1.5. GENERALIDADES ................................................................................................... - 37 -
1.6. RELANCE AO CRITÉRIO DA CONDUTA LESIVA CENTRAL........................................ - 37 -
1.7. O TIPO OBJETIVO .................................................................................................. - 38 -
1.8. O TIPO SUBJETIVO ................................................................................................. - 39 -
1.9. O OBJETO DA AÇÃO ............................................................................................... - 39 -
1.10. O BEM JURÍDICO PROTEGIDO ...................................................................................... - 39 -
1.11. JUSTIFICAÇÃO ..................................................................................................... - 39 -
1.11.1. POR CONSENTIMENTO ..............................................................................................- 39 -
1.11.2. POR LEGÍTIMA DEFESA .............................................................................................- 40 -
1.12. O HOMICÍDIO AGRAVADO.................................................................................... - 40 -
1.12.1. ELEMENTOS AGRAVANTES: BREVE PANORAMA DA CPLP ...................................- 41 -
1.13. OS HOMICÍDIOS PRIVILEGIADOS NO DIREITO PENAL GUINEENSE: ART.º 110.º (INFANTICÍDIO) .... - 44 -
1.13.1. RELANCE AO DIREITO COMPARADO ................................................................................- 44 -
1.13.2. QUADRO COMPARATIVO LEGISLATIVO A NÍVEL DA CPLP ..................................- 44 -
1.13.3. PORTUGAL..................................................................................................................- 45 -
1.14 O HOMICÍDIO PRIVILEGIADO E O HOMICÍDIO A PEDIDO DA VÍTIMA ........................................ - 45 -
1.14.1 O HOMICÍDIO PRIVILEGIADO ............................................................................................- 45 -
1.14.1.1 Conceito ............................................................................................................... - 45 -
1.14.1.2 O fundamento do privilegiamento ...................................................................... - 45 -
1.14.2 HOMICÍDIO A PEDIDO DA VÍTIMA (ART.º 134.º CP PORTUGUÊS) ..........................................- 46 -
1.14.2.1 Conceito ............................................................................................................... - 46 -
1.14.2.2 Fundamento do privilegiamento ......................................................................... - 46 -
1.14.2.3 Problemática da comissão por omissão .............................................................. - 46 -
1.15 O INFANTICÍDIO ........................................................................................................ - 47 -
1.15.1 GENERALIDADES ...........................................................................................................- 47 -
1.15.1.1 Enquadramento da abordagem conjunta: art.º 136.º e 110.º dos códigos
português e guineense respetivamente ............................................................................... - 48 -
1.15.1.2 Enquadramento do objeto .................................................................................. - 48 -
1.15.2 INFANTICÍDIO COSTUMEIRO E PUERPERAL .........................................................................- 48 -

CAPÍTULO V DOS CRIMES CONTRA A VIDA (CONTINUAÇÃO): HOMICÍDIO


NEGLIGENTE (ART.º 111.º) ........................................................................................ - 52 -

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

1. RAZÕES DE POLÍTICA CRIMINAL E A CARÊNCIA DA PENA COMO FUNDAMENTOS DA


RESPONSABILIZAÇÃO PENAL NOS CRIMES NEGLIGENTES ................................................. - 52 -

2. OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO TIPO DE ILÍCITO ............................ - 52 -

2.1 O TIPO SUBJETIVO .................................................................................................. - 52 -


2.2 O TIPO INCRIMINADOR: OS CRITÉRIOS DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA E A SUA
CONCRETIZAÇÃO — DOUTRINAS .................................................................................... - 53 -
2.2.1 CASOS ESPECIAIS DE IMPUTAÇÃO COM BASE NA MEDIDA DE CUIDADO EXIGIDO: O
CHAMADO PRINCÍPIO DE CONFIANÇA ...................................................................................- 53 -
2.2.2 CUIDADOS EM DOMÍNIOS ALTAMENTE ESPECIALIZADOS (NEGLIGÊNCIA NA
ASSUNÇÃO OU ACEITAÇÃO DE RESPONSABILIDADES) ..........................................................- 55 -
2.2.3 RESPONSABILIDADE NOS TRABALHOS EM EQUIPA ..................................................- 55 -
2.3 JUSTIFICAÇÃO DO FACTO ....................................................................................... - 56 -

CAPÍTULO VI OS CRIMES CONTRA A VIDA (CONTINUAÇÃO): INCITAMENTO


(OU AJUDA) AO SUICÍDIO (ART.º 109.º) ................................................................... - 57 -

1. CONCEITO E O FUNDAMENTO DA ATIPICIDADE DO SUICÍDIO.................................... - 57 -

2 O TIPO DE ILÍCITO ............................................................................................... - 58 -

3 ESTRUTURA DA INCRIMINAÇÃO ...................................................................... - 58 -

3.1 AS CONDUTAS TÍPICAS ........................................................................................... - 59 -


3.2 RESULTADO TÍPICO OU CONDIÇÃO DE PUNIBILIDADE? .......................................... - 60 -
3.2.1 TESES DOUTRINÁRIAS ...............................................................................................- 60 -
3.2.1.1 Crítica à tese do resultado típico defendida por corrente maioritária ............. - 60 -
3.3 PROBLEMÁTICA DA DELIMITAÇÃO DA FRONTEIRA ENTRE O SUICÍDIO E O HOMICÍDIO .-
61 -
3.3.1 A TEORIA DAS FRONTEIRAS ......................................................................................- 61 -
3.3.2 A TEORIA OU SOLUÇÃO DA CULPA (OU DA EXCULPAÇÃO) E A TEORIA OU SOLUÇÃO
DO CONSENTIMENTO..............................................................................................................- 62 -
3.3.2.1 Teoria da culpa ....................................................................................................... - 62 -
3.3.2.2 Teoria do consentimento ...................................................................................... - 62 -
3.3.3 DISTINÇÃO ENTRE HOMICÍDIO A PEDIDO DA VÍTIMA E O INCITAMENTO OU AUXÍLIO
AO SUICÍDIO............................................................................................................................- 64 -

CAPÍTULO VII EXPOSIÇÃO OU ABANDONO (ART.º 113.º) ............................... - 64 -

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................................ - 65 -

2. O TIPO OBJETIVO................................................................................................ - 65 -

3. O TIPO SUBJETIVO .............................................................................................. - 66 -

4. JUSTIFICAÇÃO E EXCLUSÃO DE CULPA........................................................ - 66 -

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

5. TENTATIVA, COMPARTICIPAÇÃO E CONCURSO......................................... - 67 -

6. AS AGRAVAÇÕES ................................................................................................ - 67 -

CAPÍTULO VIII A) CRIME DE ABORTO ............................................................... - 67 -

1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DA ACÇÃO E DO BEM JURÍDICO................... - 68 -

2. CONCURSO ........................................................................................................... - 68 -

2.1 COM CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA ....................................................... - 68 -


2.2 COM HOMICÍDIO .................................................................................................... - 68 -
2.3 PLURALIDADE DE ABORTOS ................................................................................... - 69 -
2.4 A AGRAVAÇÃO PELO RESULTADO .......................................................................... - 69 -

B) INTERRUPÇÃO ILEGAL DE GRAVIDEZ NO CP GUINEENSE DE 1993 (ART.º


112.º) E NO PROJETO DE NOVO CP DE 2021 (ART.º 155.º) ..................................... - 70 -

CAPÍTULO IX DOS CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA (ART.º 114.º E


SS) - 72 -

1. ENQUADRAMENTO ............................................................................................. - 72 -

1.1 BEM JURÍDICO TUTELADO: CONCEITO E DELIMITAÇÃO ......................................... - 72 -


1.2 O AFASTAMENTO DA TIPICIDADE: AS AÇÕES SOCIALMENTE ADEQUADAS .............. - 72 -
1.2.1 AS SITUAÇÕES DE RISCO PERMITIDO OU DE RISCO JURIDICAMENTE IRRELEVANTE .. -
73 -
1.2.2 AS AÇÕES DE PEQUENA GRAVIDADE SOCIALMENTE TOLERÁVEIS..........................- 73 -
1.2.3 CASOS DE RISCO PERMITIDO.....................................................................................- 73 -
1.2.3.1 Intervenções e outros tratamentos médicos feitos por pessoa profissionalmente
habilitada .............................................................................................................................. - 73 -
1.2.3.2 Requisitos da validade das intervenções e tratamentos médicos ...................... - 75 -
1.2.4 AS OFENSAS CORPORAIS CONSENTIDAS ...................................................................- 76 -
1.2.4.1 Os problemas especiais do consentimento: estudo panorâmico nos artigos 112.º,
114.º, 133.º 139.º e 140.º141.º e 142.º ................................................................................... - 76 -
1.2.4.2 O consentimento .................................................................................................... - 76 -
1.2.4.2.1 Considerações gerais .......................................................................................... - 76 -
1.2.4.2.2 Causas de justificação ou de exclusão da tipicidade? ..................................... - 76 -
1.2.4.2.2.1 Teses distintivas............................................................................................... - 77 -
1.2.4.2.2.2 O consentimento como causa de justificação ................................................ - 79 -
1.2.4.2.2.2.1 Natureza de bens jurídicos. ............................................................................ - 79 -
1.2.4.2.2.2.2 Limites de relevância do consentimento do ofendido .................................... - 80 -
1.2.4.2.2.3 O consentimento presumido: ......................................................................... - 82 -
1.3 AS AUTOMUTILAÇÕES ............................................................................................ - 85 -
1.4 AS OFENSAS CORPORAIS AGRAVADAS (ART.º115.º) ................................................. - 85 -
1.5 A AGRAVAÇÃO PELO RESULTADO .......................................................................... - 87 -
1.6 A PROBLEMÁTICA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E MAUS-TRATOS ............................ - 89 -

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

1.7 CONCURSO ENTRE CRIMES CONTRA A VIDA E CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA-
89 -

CAPÍTULO X DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE......................................... - 90 -

1. CRIME CONTRA A LIBERDADE PESSOAL — AMEAÇA (ART.º 122.º) ......... - 90 -

1.1 GENERALIDADES .................................................................................................... - 90 -


1.2 ESTRUTURA E DELIMITAÇÃO DOS TIPOS ................................................................ - 90 -
1.2.1 DIMENSÃO DA TUTELA PENAL DA LIBERDADE .........................................................- 91 -
1.2.2 GESTÃO DA RELAÇÃO DE TENSÃO ENTRE INTERESSES CONTRAPOSTOS NA
PROTEÇÃO DA LIBERDADE DE DECISÃO E DE ACÇÃO...........................................................- 91 -
1.2.2.1 Configuração e motivação da ameaça ................................................................. - 92 -
1.2.2.1.1 Configuração da ameaça ................................................................................... - 92 -
1.2.2.1.2 Motivação da ameaça ........................................................................................ - 92 -
1.3 O BEM JURÍDICO .................................................................................................... - 92 -
1.4 O TIPO OBJETIVO DE ILÍCITO ................................................................................. - 93 -
1.4.1 AS CARACTERÍSTICAS INTEGRANTES DO CONCEITO DE AMEAÇA ..........................- 93 -
1.4.2 CRITÉRIO PARA A AFERIÇÃO DA EFICÁCIA OU DA ADEQUAÇÃO DA AMEAÇA ........- 94 -
1.4.3 AMEAÇA COM PRÁTICA DE UM CRIME .....................................................................- 95 -
1.4.3.1 As formas da prática da ameaça e as modalidades da prática do crime objeto do
crime de ameaça ................................................................................................................... - 96 -
1.4.4 CONCURSO .................................................................................................................- 96 -

2. CRIMES CONTRA A LIBERDADE PESSOAL— COAÇÃO (ART.º 123.º) ........ - 96 -

2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...................................................................................... - 96 -


2.2 O BEM JURÍDICO PROTEGIDO NO CRIME DE COAÇÃO ............................................ - 97 -
2.3 O TIPO OBJETIVO DE ILÍCITO ................................................................................. - 98 -

3. CRIMES CONTRA A LIBERDADE PESSOAL — SEQUESTRO (ART.º 124.º) E


RAPTO (ART.º 125.º) .................................................................................................... - 98 -

3.1 RELANCE GLOBAL.................................................................................................. - 98 -


3.1.1 DISTINÇÃO ENTRE SEQUESTRO (ART.º 124.º), RAPTO (ART.º 125) E TOMADA DE
REVÉNS ...................................................................................................................................- 98 -

4. CRIME CONTRA A LIBERDADE PESSOAL — RAPTO (ART.º 125.º) ............. - 99 -

5. CRIMES CONTRA A LIBERDADE E A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL


(ARTIGO 133.º E SEGUINTES).................................................................................... - 99 -

5.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...................................................................................... - 99 -


5.2 VIOLAÇÃO — (ART.º 133.º) ................................................................................... - 100 -
5.2.1 CONCEITO ................................................................................................................- 100 -
5.2.2 CONTEÚDO DA AÇÃO ...............................................................................................- 100 -
5.2.3 CONCEITO DE COAÇÃO SEXUAL .............................................................................- 101 -
5.2.4 O TIPO OBJETIVO .....................................................................................................- 101 -

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

5.2.4.1 O agente e a vítima: ............................................................................................ - 102 -


5.2.4.2 Atos sexuais significativos (ou atos sexuais de relevo): .................................... - 102 -
5.2.4.3 As modalidades da acção .................................................................................... - 103 -

CAPÍTULO XI CRIMES CONTRA A HONRA ...................................................... - 104 -

1 NÓTULA INICIAL ................................................................................................ - 104 -

2 CONCEITO — TEORIAS ..................................................................................... - 104 -

2.1 CONCEPÇÃO FÁCTICA DE HONRA ......................................................................... - 104 -


2.1.1 CRÍTICAS: ..................................................................................................................- 105 -
2.1.1.1 Quanto à honra subjectiva: ................................................................................ - 105 -
2.1.1.2 Quanto à honra objetiva ..................................................................................... - 106 -
2.2 CONCEPÇÃO NORMATIVA DE HONRA ................................................................... - 106 -
2.2.1 CRÍTICAS: .................................................................................................................- 107 -

CAPITULO XII CRIMES CONTRA A VIDA PRIVADA (ART.º 139 E SEGUINTES) ..-
109 -

I. CONCEITO ............................................................................................................... - 109 -

CAPÍTULO XIII DOS CRIMES CONTRA O PATRIMÓNIO (ART.º 145 E


SEGUINTES) - 109 -

I. PATRIMÓNIO E PROPRIEDADE ................................................................................. - 110 -

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................ - 111 -

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Capítulo I Introdução a Parte Especial

Sumário: 1. - Da dogmática da Parte Especial (PE); 1.1 - As relações entre a Parte geral (PG) e a Parte Especial (PE)
do Direito Penal (DP) e a estrutura sistemática da PE; 1.1.1 - a Conexão entre a PG e a PE: a «Função de
parêntesis» («Klammerfunktion» da PG: a Formação do tipo sistemático e do tipo de garantia; 1.2 – A
organização sistemática da PE; 1.2.1 – Os critérios da ordenação dos tipos de crime; 1.2.1.1 – Os critérios
internos e externos da ordenação dos tipos; 1.2.1.1.1 - Os critérios gerais ou externos de sistematização; a)
- Críticas; 1.2.1.1.2 - Critérios ou específicos de sistematização; 1.2.1.2 - A insuficiência do bem jurídico
como critério de sistematização e de interpretação dos tipos de crime; 1.2.1.3 - Outros critérios de
ordenação: exemplificação.

1. Da dogmática da Parte Especial

1.1 As relações entre a Parte Geral (PG) e a Parte Especial (PE) do Direito
Penal (DP) e a Estrutura sistemática da Parte Especial

1.1.1 Conexão entre a parte geral e a parte especial. A «função de parêntesis»


(«Klammerfunktion») da parte geral: a formação do tipo sistemático e
do tipo de garantia.

A PG do direito penal contém os princípios gerais fundamentais que se aplicam à PE.


Por este motivo, através da função de parêntesis da PG, temos a ligação entre as duas
partes do direito penal, que permite termos explicação dalguns tipos penais (os crimes ou
tipos de ilícito) que se encontram na PE, cuja compreensão seria difícil sem se abrir
parêntesis para acolher explicação da sua razão de ser da PG. É esta hermenêutica que se
denomina de Função de Parênteses da Parte Especial. Por exemplo, para se entender o
por que de no n.º 2 do art.º 145.º o legislador dizer que a tentativa é punível neste preceito
e não o dizer no art.º 107.º, torna-se imprescindível ter em conta que o art.º 28.º/2
estabelece que a tentativa é punível nos crimes dolosos a cuja consumação corresponde
uma moldura penal que ultrapassa os três anos de prisão e nos casos em que a lei o dizer
expressamente. Ou seja: para que haja punibilidade da tentativa, há que se preencher
necessária os três requisitos seguintes, dos quais dois primeiros cumulativos e o terceiro
alternativo:

i) o crime doloso;
ii) a moldura penal superior a três anos; ou, em alternativa
iii) a lei o dizer expressamente.

Assim se o crime é negligente, não há punibilidade da tentativa. É o que aconteceria,


por exemplo, com o art.º 111.º (homicídio negligente), mesmo que a pena de prisão
prevista para esse crime fosse superior a três anos. Uma vez que o crime aqui é negligente,
dispensa-se saber da moldura penal se é ou não superior a três. Mesmo que a pena
correspondente à sua consumação fosse superior a três anos de prisão, a tentativa não

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

seria punível porque se trata de um crime negligente; salvo se o próprio art.º 111.º o
dissesse expressamente.

Diz-se que “a cuja consumação corresponde pena superior a 3 anos” porque a tentativa é uma
forma especial de crime e à ela corresponde a pena de consumação especialmente
atenuada. O tipo do art.º 145.º é um crime doloso. Logo, admite-se, em princípio, a
hipótese de a tentativa ser punível, por estar preenchido o primeiro requisito que é de o
crime ser doloso; por não se encontrar solucionado o passe seguinte, que é do
preenchimento do segundo requisito que é de a moldura penal ultrapassar os três anos,
não poderia haver a punibilidade da tentativa salvo se a lei o dissesse expressamente que
a tentativa é punível como o fez no nº 2 do mesmo preceito.

1.2 A organização sistemática da Parte Especial

1.2.1 Os critérios de ordenação dos tipos de crime

1.2.1.1 Os critérios internos e externos de ordenação dos tipos

Antes de entrarmos concretamente no estudo dos crimes em espécie e que o objeto de


estudo da nossa cadeira, torna-se necessário dar uma olhadela à forma como os tipos estão
ordenados no CP. No CP português, ficou aprovado na Comissão Revisora a proposta de
ordenação dos tipos na PE (Actas, 1979, p. 9 e ss.) e que transitou do CP português de
1982 para o nosso CP de 1993. Os tipos estão elencados no CP de duas formas a saber:
forma externa e forma interna. Isto é, o plano de arrumação feita pelo legislador obedece
aos critérios gerais ou de ordem interna (gerais porque dizem respeito ao aspeto geral de
arrumação dos crimes no CP; e externos porque a arrumação feita por eles tem a ver com
o aspeto externo, sem se ver cada tipo de forma específica) e de ordem interna, específica
ligada a cada tipo de ilícito em espécie (por isso mesmo critério interno ou especifico de
arrumação ou ordenação).

1.2.1.1.1 Critérios gerais ou externos de sistematização

a) Dos critérios gerais ou externos de sistematização, a doutrina costuma


falar, nomeadamente, dos critérios de:
b) Gravidade das penas (que foi utilizado no código penal de Baviera de
1910);
c) Meios utilizados no cometimento de crimes;
d) Motivos do cometimento de crimes1;
e) Bem jurídico tutelado.

Segundo o critério do bem jurídico tutelado, os tipos de crimes devem (e são)


agrupados em conformidade com o bem jurídico que está em causa. Assim, se eu quero
encontrar o crime de homicídio, basta ir para o capítulo onde estão os crimes contra as
pessoas, e concretamente na secção dos crimes contra o bem jurídico-vida. Se eu quiser

1
Que justifica aqui uma abordagem especial por não ser fácil entender a sua colocação e formulação,
é aquele segundo o qual, os tipos de ilícito devem ser ordenados em função dos motivos ou segundo a sua
objetividade.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

encontrar o crime de roubo, devo ir para o capítulo respeitante aos crimes contra o bem
jurídico património, e assim por diante.

O critério do bem jurídico tutelado assenta no primado do bem jurídico como critério
de sistematização dos tipos incriminadores da parte especial de um código penal
moderno. Segundo a formulação de SILVA DIAS (2007, p. p. 11.)2, o bem jurídico e a
ofensa ao bem jurídico constituem critérios fundamentais de merecimento de pena e,
consequentemente, de seleção dos comportamentos puníveis

Para o critério da gravidade das penas, os tipos devem ser agrupados em


conformidade com a gravidade das penas. Assim, se quiser encontrar um crime, devo
dirigir-me ao capítulo dos crimes cuja moldura penal respeita. Por exemplo, os crimes
punidos com penas maiores (mais de três anos de prisão), com penas médias (até três) ou
com penas menores (menos de três anos).

Para o critério dos meios utilizados, os tipos são arrumados consoante os meios que
forem empregues na sua realização. Por exemplo: os crimes cometidos mediante
violência (roubo, homicídio, etc., estariam no mesmo capítulo); os crimes cometidos
mediante fraude (por exemplo burla, fraude sexual – que existe no Direito português –
estariam no mesmo capítulo.

Segundo o critério dos motivos do crimes, os tipos de ilícitos devem ser ordenados
em razão dos motivos da sua realização. NELSON HUNGRIA (2018, p. 3 e ss.) cita
Lombardi para asseverar que

os crimes deviam ser divididos em cinco grupos: crimes


culposos (que, aliás, de lege ferenda, deviam ser excluídos dos códigos
penais, passando à categoria de simples [infrações] civis), crimes
originados do instinto de conservação ou da paixão instintiva, da ira
ou da ebriedade produzida pelo álcool ou substância estupefaciente,
crimes sexuais (produzidos pelo instinto da libido), crimes oriundos da
vaidade, da ambição, da inveja, do fanatismo, do mórbido desejo de
notoriedade e, final- mente, crimes provocados pela cobiça e avareza.

Partindo desta classificação de crimes, poíamos concluir, no âmbito dos critérios de


sistematização que os motivos dos crimes seriam (para os efeitos dos critérios da
sistematização):

- o instinto de conservação ou da paixão instintiva, da ira ou da ebriedade


produzida pelo álcool ou substância estupefaciente (o instinto da libido);
- vaidade, a ambição, a inveja, o;
- o fanatismo, o mórbido desejo de notoriedade e, finalmente, a cobiça e avareza.

A) Críticas

O critério de sistematização da gravidade das penas não é praticável na medida em


que, adotando-o, teríamos crimes de mais variada natureza no mesmo local sistemático;

2 AUGUSTO SILVA DIAS, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, em Materiais para o
Estudo da Parte Especial do Direito Penal 5, 2.ª edição, revista e atualizada, Lisboa: AAFDL, 2007.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

por exemplo: podíamos ter crimes contra a vida e os crimes contra o património no
mesmo capítulo bastando para isso que o legislador decida punir estes últimos com a
moldura penal igual ou próxima da dos primeiros.

O critério dos meios utilizados também padece da mesma insuficiência apontada ao


primeiro porque leva a mesma confusão de posicionamento sistemático dos crimes de
diferentes naturezas. Por exemplo: o homicídio agravado cometido por meios insidiosos
estaria colocado no mesmo plano sistemático com o crime de burla, uma vez que aqui (a
burla) o meio também é a insídia ou embuste (provocar erro ou engano na vítima ou
mantê-la em erro em que se encontra para lhe determinar à prática de atos conducentes a
causar-lhe ou a outra pessoa prejuízo patrimonial).

O critério dos motivos do cometimento de crimes é imperfeito, e conduz, igualmente,


à confusão e dificuldade uma vez que, e segundo a crítica de Florian3, este

“critério do motivo é imperfeito e conduz à perplexidade.


[uma vez que] O mesmo movens (por exemplo, o intuito de lucro) pode
inspirar crimes de natureza diversíssima, e, reciprocamente, crimes da
mesma índole, como, verbi gratia, os homicídios podem ser
determinados pelos mais variados motivos. Além disso, é muitas vezes
difícil, senão impossível, na prática, descobrir-se ou fixar-se, de modo
inequívoco, o móvel do crime”.

Como se pode constatar, o critério mais lógico e por isso mais utilizado, é o do bem
jurídico tutelado porque é um critério que facilita a localização como tem correta lógica
de arrumação.

1.2.1.1.2 Critérios internos ou específicos de sistematização

Os critérios internos de sistematização ou ordenação dizem respeito à forma como os


tipos de delitos estão organizados ou arrumados internamente. Isto é, respeitam à
modalidade de arrumação dos tipos singularmente considerados (não na sua relação com
os outros tipos). O critério adotado pelo nosso legislador penal de 1993, à semelhança
dos outros legisladores (do Direito comparado) é o critério da conduta lesiva central. Por
exemplo, para o homicídio a figura central é o “tirar a vida a outra pessoa” (art.º 107.º).
Basta atingir a vida de outra pessoa para estarmos perante o homicídio,
independentemente de ser preenchida a figura do homicídio agravado (art.º 108.º) ou de
qualquer outra modalidade de homicídio (por exemplo o homicídio privilegiado, art.º
110.º). Para os crimes contra a integridade física, basta “ofender o corpo ou a saúde de
outra pessoa” (art.º 114.º) para se realizar crime de ofensas corporais.
Independentemente de ser preenchida qualquer outra figura de crimes contra a integridade
física (por exemplo, ofensas corporais agravadas – art.º 115.º -; ou privilegiadas – art.º
117.º cuja configuração suscita dificuldade de compreensão por não respeitar a
modalidade de configuração do tipo de ofensas corporais privilegiadas do Direito
comparado. Recorde-se que este art.º 117.º foi derrogado pela Lei n.º 14/2011, “que visa
prevenir, combater e reprimir a excisão feminina em todo o território nacional”, segundo
a sua formulação). Para os crimes contra a propriedade, basta o “subtrair a coisa alheia

3
Ibid.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

móvel4 com intenção de apropriação para si ou para outrem” (a figura do art.º 145.º)
para se preencher o tipo destes crimes. Etc.

O critério da conduta lesiva central tem, pois, a ver com o preenchimento do tipo base
ou fundamental do crime; o preenchimento do tipo sui generis5.

1.2.1.2 A insuficiência do bem jurídico como critério de sistematização e de


interpretação dos tipos de crime

1.2.1.2.1 Outros critérios de ordenação: exemplificação.

Por não se revelar suficiente o critério do bem jurídico como critério de ordenação e
de interpretação dos tipos, o legislador muitas das vezes recorre a outros critérios
complementares para completar o processo de ordenação realizada na parte especial do
código penal (CP). É o que o nosso legislador penal fez lançando mão de outros critérios,
nomeadamente os critérios da qualidade do agente nos crimes funcionais [art.º
247.º(corrupção), art.º 249 (peculato), 232.º (prevaricação) e 233.º (prevaricação de
advogado ou solicitador)], dos meios utilizados no cometimento do crime nos crimes de
perigo (art.ºs 211.º e 212.º: crimes de atentado contra os meios de transporte e de
condução perigosa respetivamente) e do bem jurídico finalmente protegido/tutelado nos
crimes complexos [art.º151.º, (crime de roubo) etc.].

II

Os crimes funcionais são aqueles em que a qualidade do agente releva para o seu
cometimento.

Crimes de perigo são aqueles em que há uma antecipação da tutela penal. Crimes
deste tipo são cada vez mais frequentes nas sociedades atuais, caracterizadas pelo risco.

Modalidades de perigo: perigo pode ser abstrato (ex.: art.ºs 203.º/1, 206.º, 207.º,
208.º, n.º1; 210.º, etc.), concreto (ex., 113.º/1, 212.º/1, etc.) e abstrato concreto (ex., art.ºs
209.º/1, 211.º/1, etc.).

Os crimes complexos são aqueles em que o agente preenche vários atos com a sua
conduta onde alguns atos constituem crimes meios para atingir o crime fim.

4 O s.n.

5 Quanto à distinção entre os crimes sui generis e os derivados, temos como exemplos, os seguintes (e
respeitam a classificação dos crimes segundo o momento da sua formação):

Os crimes “sui generis” ou autónomos [art.º 114.º (ofensas corporais simples), art.º107.º (homicídio
simples)] ou derivados [art.º115.º (ofensas corporais graves), art.º108.º (homicídio agravado)]. Os
derivados são crimes construídos a partir de um crime base.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Capitulo II Dos Crimes contra as pessoas.

Sumário: 1 - Dos crimes contra as pessoas; 1.1 – Crimes contra a vida; 1.1.1 – Introdução; 1.1.1.1 - A determinação
dos bens jurídicos fundamentais: a função do bem jurídico imanente ao sistema; 1.1.1.2 – O bem jurídico
protegido/tutelado nos crimes contra a vida: a delimitação temporal do bem jurídico e a sua necessidade
para o Direito Penal; 1.1.1.2.1 – O início da vida para o DP; 1.1.1.2.2 – O termo da vida para o DP; 1.2 -
Outras situações com relevância penal relativamente aos crimes contra a vida; 1.2.1 – A eutanásia; 1.2.2 -
Eutanásia e Distanásia: Conceitos e Caraterização; 1.2.2.1 – Breve relance histórico; 1.2.3 - Modelos de
construção do tipo sistemático do crime contra a vida: dualista e monista.

1. Os crimes contra a vida.

1.1 Introdução

1.1.1 A determinação dos bens jurídicos fundamentais: a função do bem


jurídico imanente ao sistema.

Cada sociedade estabelece a ordem constitucional dos valores que orientam


superiormente o ordenamento jurídico estatuído. Assim, em conformidade com os valores
constitucionais da sociedade o direito penal vai ordenar a sistematização dos bens
jurídicos.

Nos tempos passados, direito penal positivo dos estados tinha a ordem de prioridade
diferente nos catálogos dos tipos de ilícitos. Como exemplo, podemos tomar as partes
especiais dos códigos penais de 1852 e de 1886 que vigorou na Guiné-Bissau, por força
da lei n.º 1/1974, até a entrada em vigor, em 1993, do novo CP. Assim como também em
Portugal até a entrada em vigor do CP de 1982, cuja versão originária foi a fonte principal
do CP guineense de 1993.

II. Nesse código penal de 1886 (PORTUGAL: Código Penal, 1886)6, o legislador
adotou uma ordenação sistemática que, no Livro II,— que trata da Parte Especial,
composta de seis Títulos sobre os crimes e um (o sétimo) sobre contravenções de
polícia— colocou em primeiro plano os valores constitucionais que atinem ao
Estado, à pessoa do rei, tratando dos crimes contra a instituição do rei, o seu
império, a sua religião (a religião católica, apostólica romana, etc.); ocupando os
três primeiros longos primeiros Títulos para só depois, no Título IV, vier a falar
dos crimes contra as pessoas. Com efeito, o CP a parte especial do código de 1886
apresentava a seguinte arrumação sistemática:

a) Título I, Dos crimes contra a religião e cometidos por abuso de funções


religiosas;
b) Título II, Dos crimes contra a segurança do Estado;

6 Código Penal de 1886, decretado através do Decreto de 16 de Setembro de 1886, e publicado no


Diário do Governo de 20 de Setembro do mesmo Ano, e publicado pela Imprensa da Universidade em
1919, em 7.ª Edição.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

c) Título II, Dos crimes contra a ordem e tranquilidade públicas;


d) Título IV, Dos crimes contra as pessoas;
e) Título V, Dos crimes contra a propriedade;
f) Título VI, Da provocação pública ao crime;
g) Título VII, Das contravenções de polícia.

Portanto, é obvio, nesta ordenação, a proeminência dos bens do Estado


relativamente aos bens da pessoa, destacando-se, dentre os bens que cabem ao Estado
administrar a religião.

O facto prende-se com a importância que tal instituição tinha na ordem


constitucional do então.

Com a mudança do paradigma, e à semelhança dos códigos penais dos Estados do


direito democrático, o código penal guineense de 1993 adotou um sistema de
sistematização que colocou em primeiro plano a tutela primacial de outros valores
encimando a sistematização da sua PE com os crimes contra a paz, a humanidade e a
liberdade onde podemos dizer que o legislador deu passo rumo à priorização da proteção
da pessoa pondo no catálogo dos crimes os crimes contra a paz, a humanidade e a
liberdade como fatores afligem gravemente as sociedades humanas, muito embora não
falasse concretamente da proteção prioritária da pessoa humana enquanto individuo
concreto. Sabemos que direitos e garantias de cada indivíduo constituem o núcleo duro
dos direitos e liberdades fundamentais. Mas paralelamente a isso, a importância da ordem
internacional como dos valores não deixa de ganhar cada dia o terreno moldando
profundamente o direito a nível planetário, onde as garantias individuais tendem a ser
drasticamente restringidas em prol da proteção das nações e da humanidade. Referimo-
nos às modalidades de perseguição dos crimes transnacionais e dos seus autores onde as
normas internacionais tem permitido a utilização dos métodos que outrora podiam ser
censurados. Tais são por exemplo a restrição da privacidade dos indivíduos mediante a
permissão de seguimento por meios de gravação e outros meios que permitem o individuo
seja tratado na sua privacidade com menos garantias do que no direito tradicional (direito
estabelecido nos tempos antes da evolução da criminalidade transnacionais.

Mas tal situação não deixa a pessoa humana enquanto individuo à descoberta da
proteção penal. Os códigos penais continuam a testemunhar isso ao colocar os crimes
contra a vida em primeiro lugar na sistematização.

É com base na ideia da importância do bem jurídico-vida humana -— e não por


desprezo do bem jurídico-paz e da segurança da humanidade e da sua segurança que não
deixam de consumar-se ou concluir-se na proteção dos bens jurídicos atinentes ao
indivíduo - que não vamos começar o estudo da parte geral do nosso código penal com
os crimes contra a paz, a humanidade e a liberdade, mas sim com os crimes contra as
pessoas, concretamente os crimes contra a vida da pessoa humana, seguidos dos crimes
contra a integridade física da pessoa, contra a liberdade pessoal, contra a honra da pessoa,
contra a liberdade sexual da pessoa (por fazerem parte dos crimes contra a liberdade de
autodeterminação sexual, ao contrário do que sucedia nos tempos da excessiva influencia
da moral nesta natureza de crimes); contra a vida privada ou privacidade da pessoa, contra
o património da, para depois falarmos dos crimes referentes ao capítulo dos “crimes
contra a paz, a humanidade e a liberdade”. E mais adiante retomar outos crimes do
catálogo (CP).

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

1.1.2 Bem jurídico protegido/tutelado nos crimes contra a vida: a delimitação


temporal do bem jurídico e a sua necessidade para o Direito Penal

1.1.2.1 O início da vida para o DP

Uma vez que o bem jurídico tutelado no crime de homicídio é a “vida humana”, a
doutrina “penal” costuma iniciar o estudo deste crime com a delimitação do que seja a
vida humana, o seu início e o seu termo.

A vida humana corresponde ao ser humano que tem a sua existência desde a nidação
que é a fixação do óvulo fecundado no útero da mulher. Este facto ocorre cerca de 14 dias
desde o encontro ou cruzamento do espermatozoide com o óvulo.

Há dissensão doutrinária sobre a conceção da vida, do seu início, entendendo alguns


(as correntes doutrinárias) de que a vida começa com conceção que corresponde ao
momento da fecundação, o momento em que o espermatozoide cruza com o óvulo e o
“fertiliza”.

Mas o momento marcante para o efeito do direito penal e que vamos adotar, como é
de costume em tratamento penal desta matéria, é o da nidação e que é a tal fixação do
óvulo fecundado no útero da mulher.

A partir desse período até ao nascimento, temos aquele hiato a que se denomina
período de gravidez. Tudo que ocorre durante esse lapso de tempo no sentido de
eliminação do produto da conceção e que é o feto, é enquadrado como aborto, e tudo que
ocorre depois desse transcurso, é homicídio. A vida do feto é a vida intrauterina. Por isso,
muitos códigos penais falam do bem jurídico vida-intrauterina relativamente ao aborto,
de “vida humana” extrauterina como bem jurídico tutelado no homicídio.

Esta conceção assenta no bem jurídico “vida-humana” não é isenta de dissensão


doutrinária na medida em que tanto a vida intrauterina quanto a extrauterina ou a vida
depois do nascimento, não deixam de ser a mesma vida humana, mas apenas com
momentos diferentes de existência. Por isso a tendência doutrinária moderna procura
estabelecer marco distintivo apenas no objeto da ação e que no aborto é o “feto” e no
homicídio, o “corpo” de outra pessoa.

E quando é que começa a “vida” para os efeitos de homicídio? Quando é que podemos
dizer que estamos perante a “vida humana” para os efeitos do homicídio?

A respeito desta matéria, há também querelas doutrinárias.

A doutrina tradicional (antiga) ou critério tradicional entende que a vida começa


para o efeito de homicídio com o nascimento completo e com vida. É o critério civilístico
constante no art.º 66.º/1, CC (código civil) para o qual a personalidade jurídica se adquire
com o nascimento completo e com vida.

E como é que se provava que a pessoa nasceu completo e com vida?

Através de vários métodos um dos quais e o mais utilizado foi docimasias que é uma
técnica de imersão de pulmões do recém-nascido defunto na água para obter ou não

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

bolhas do ar nessa água. Se sair bolhas na água, concluía-se que nasceu com vida porque
chegou de respirar ar. Caso contrário, concluía-se pelo não nascimento com vida por não
ter chegado a respirar ar no momento do nascimento completo.

Quanto à completação ou completude do nascimento, aqui não há dificuldade porque


significa tão só o facto da expulsão do feto para fora do útero da mulher.

Este critério tradicional do nascimento completo com vida é hoje bastante minoritário
na medida em que, em virtude da larga autonomia científica do direito penal já há muito
tempo, tem-se baseado o direito penal em considerações de natureza probatória científica
que mostra que o respirar ar por exemplo é falível como método porque, no processo do
nascimento, antes de o feto se separar completamente do corpo da mãe – a tal expulsão
para fora do corpo da mãe completamente, ou a desligação do nascituro do corpo
incluindo do seu umbigo – pode o nascituro engolir porção de ar, o que pode levar ao
engano de que tenha nascido com vida naquele momento.

Por isso, surgiu a teoria ou critério dos trabalhos do parto para o qual a vida
começa para o efeito do homicídio com os trabalhos do parto. Trabalhos do parto é o
ato do nascimento. E o inicio dos trabalhos do parto corresponde exatamente ao inicio do
ato do nascimento E em relação a este assunto, assume papel de relevância os
conhecimentos médicos.

Quando é que ocorrem tais trabalhos do parto?

Depende: no parto normal, ou natural, segundo os melhores conhecimentos


médicos já referidos, os trabalhos do parto começam, não com o próprio “processo de
dilatação” (contrações de dilatação do útero), conforme LUTTGER (1984, p. p. 67 e ss. e
83.)7, mas sim com as contrações ritmadas, intensas e frequentes que previsivelmente
conduzirão à expulsão do feto (contrações de expulsão do feto para fora do útero) (DIAS
F. , 1999, pp. anot. art.º 131.º, § 10.) 8 . É indiferente que tais contrações surjam
naturalmente ou sejam artificialmente provocadas (nomeadamente por meios
medicamentosos, por exemplo “injeção de malagueta”).

No parto por “cesariana” ou processo cirúrgico, onde tais reações ou contrações


com as referidas características não se verificam, o momento marcante como o início dos
trabalhos do parto será o momento inicial do processo cirúrgico (por exemplo, o processo
de anestesia).

Se a intervenção cirúrgica visar concomitantemente fins diferentes do parto, uma


corrente doutrinária [defendida por, entre outros, ESER (S / S / ESER 13, antes do §211)]

7
Cfr. Hans Luttger, Medicina y Derecho Penal, Edersa, 1984.
8 FIGEUIREDO DIAS Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra: Almedina,
1999, comentário ao art.º 131.º, § 10; também, seguindo o critério civilístico, GONÇALVES, Manuel Maia.
Código Penal Português anotado e comentado e legislação complementar. 12.º edição. Vol. 1. Coimbra:
Almedina, 1998; ANTÓNIO CARVALHO MARTINS, Bioética e Diagnóstico Pré-Natal, Coimbra:
Coimbra Editora, 1996; do mesmo autor ainda: O Aborto e o Problema Criminal, Coimbra: Coimbra
Editora, 1985; RUI CARLOS PEREIRA, O Crime de Aborto e a Reforma Penal, AAFDL, Lisboa, 1995;
LESSEPS DOS REYS e RUI PEREIRA, Introdução ao Estudo da Medicina Legal, vol. I, Lisboa:
AAFDL, 1990.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

entende que o momento inicial deve ser a incisão no útero da mulher grávida. Também
Jorge de Figueiredo Dias entende que se o fim da intervenção cirúrgica for outro que não
o parto (por exemplo a extração do mioma conservando lá o feto), deve ser o da anestesia.

Nesses dois últimos casos, quer-nos parecer que se aplica a mesma regra - o momento
inicial dos trabalhos do parto deve ser o da anestesia.

Quanto às condutas medicas pré-natais que produzem depois resultados danosos no


momento do nascimento, para o seu enquadramento como homicídio ou aborto, é
determinante o momento em que a atuação começa a produzir efeitos. Se esse momento
se inscreve no período em que o nascimento já começou (por exemplo, a conduta pré-
natal conduziu a uma infeção bacteriana da mãe declarada antes do ato de nascimento
iniciar, mas posteriormente transferida para a criança e veio a conduzir à sua morte),
estamos perante o preenchimento do tipo objetivo do ilícito do homicídio. Se, pelo
contrário, se esse momento de produção dos efeitos se situar no período antes do ato do
nascimento (por exemplo, através de uma intervenção médica provoca-se um nascimento
prematuro que conduz à morte do feto), o tipo objetivo de ilícito preenchido é o do aborto.

A vida humana para o efeito de homicídio, mesmo quando não há capacidade de


viver autonomamente, fora do útero. Portanto, não releva a incapacidade de viver
autonomamente ou fora de útero.

1.1.2.2 O termo da vida para o DP

Outra grande questão relativa à delimitação da vida para o efeito de homicídio, é a


determinação do momento da morte, do momento a partir do qual cessa a tutela
jurídico-penal dispensada por à pessoa humana. A qualidade de pessoa para efeito do tipo
de ilícito objetivo do homicídio termina com a morte: o cadáver não é mais pessoa para
este efeito.

Aqui, tal como para a determinação do início da vida, há a chamada teoria ou critério
tradicional ou da síndrome cardiorrespiratória, segundo o qual a pessoa já morreu, ou a
vida já não existe quando o coração e a respiração deixam de funcionar.

A ciência médica e a doutrina jurídico-penal foram progressivamente convergindo na


necessidade de substituir este critério pelo critério da morte cerebral. Isto porque o
critério tradicional ficou ultrapassado com o avanço da ciência médica que descobriu as
técnicas de reanimação artificial que pode permitir o coração e a respiração
artificialmente a funcionar, apesar de ter-se ocorrido a morte da pessoa porque o cérebro
já morreu ou não está mais a funcionar (LUTTGER, 1984, p. p. 95.)9.

9 Cf. PAULA FARIA Aspectos Jurídico-Penais dos Transplante, p. 77 e ss; também FARIA COSTA,
BFD, 1993, 201 — O Valor do Silêncio do Legislador Penal e o Problema das Transplantações;
FIGUEIREDO DIAS, O Problema da Ortotanásia: Introdução à sua Consideração Jurídica, em As
Modernas Técnicas de Reanimação; conceito de Morte; Aspectos Médicos, Teológico-Morais e
Jurídicos, 1973, p. 29 e ss. Sobre o tema, também VICTOR DE SÁ PEREIRA e ALEXANDRE
LAFAYETTE, Código Penal Anotado e Comentado, Legislação conexa e complementar, 2ª Edição,
Lisboa: QUID JURIS, Sociedade Editora, 2014; também, Teresa QUINTELA DE BRITO, Direito Penal

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

A necessidade de se provar o fim da vida tem a ver com a imperativa necessidade de


não se preencher com a conduta o tipo objetivo de homicídio nos transplantes dos órgãos
na medida em que se a pessoa ainda não morrer comprovadamente, a conduta de extração
de órgãos para efeitos de um transplante preencheria o tipo objetivo de homicídio e, pelo
contrário, se se provar que a pessoa morreu, esta conduta é lícita uma vez que já não se
está perante pessoa, mas sim perante um cadáver.

O método utilizado para provar a morte cerebral é o exame clínico-neurológico


(síndroma clínico-neurológica) complementado com critério das Linhas isoelétricas do
electro-encefalograma (EEG) (sempre que este se revele possível e não seja para o caso
formalmente desaconselhado (Comentário I, 1999, pp. p. 11, § 18.)10.

A ciência médica tem se inclinado pela opção de que o exame clínico-neurológico


deve, em todos os casos, substituir o critério das linhas isoelétricas do EEG, enquanto
uma parte específica da doutrina jurídico-penal parece continuar a pronunciar-se pela
solução referida atrás: a da complementaridade. A solução jurídico-penal mais razoável
é a de exigir, em todos os casos, o exame clínico-neurológico, complementando-o pelo
critério das linhas isoelétricas do EEG, sempre que possível; apesar de haver
contestação por parte dos médicos da opinião da doutrina jurídico-penal defensora desta
solução, que assenta no fundamento de que a opinião médica é influenciada pelo
propósito de lograr condições ótimas de transplantação a partir do cadáver.

Para concluir, se o fim da vida se verifica com a morte cerebral, então, podemos
definir a morte, com FIGUEIREDO DIAS (1999, pp. 10, §16), como sendo a “destruição
anatómica estrutural do cérebro na sua totalidade” que, para o autor, nunca pode ser “uma
mera lesão cerebral (por mais grave que seja) ou mesmo a chamada «morte» neocortical”.
Tendo que ser aprovado de acordo com critérios objetivos (que posso chamar de método
que durante algum tempo vinha sendo considerado “como pouco menos que infalível o
das linhas iseoeléctricas do Electro-encefalograma (EEG) já visto, “critério (ou método)
esse que hoje, segundo o autor

“cientificamente limitado na sua «infalibilidade»,


nomeadamente em certos casos de morte por barbitúricos ou de
interferência de ondas elétricas no resultado do EEG, produzidas
sobretudo pela parafernália existente nas salas de reanimação. Por
isso já ninguém discute hoje a necessidade de critérios complementares
do EEG iseoeléctrico, derivados do exame clínico-neorológico”.

1.2 Outras situações com relevância penal relativamente aos crimes contra a vida

1.2.1 A eutanásia
Também não releva a condição de se encontrar já em fase terminal (DIAS F. , 1999,
pp. p. 11-15)11. Por isso, mesmo que a pessoa esteja numa situação de não poder mais

— Parte Especial, 2007; JOSÉ DE FARIA COSTA, O fim da vida e o Direito Penal, em BIBER
DISCIPULORUM para Figueiredo Dias, Coimbra: Coumbra Editora, 2003.

10 Neste sentido, também, VIVES ANTÓN / CARBONELL MATEU / GONZÁLEZ CUSSAC 705:
O art.º 10.º do Real Decreto Espanhol de 22-2-80., apud FIGUEIREDO DIAS ibid.

11 Sobre este assunto, também LAURA FERREIRA DOS SANTOS, Ajudas-me a morrer? A morte
assistida na cultura ocidental do século XXI, Sextante Editora, 2009; sobre assunto de morte (fim de

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

sobreviver, se alguém ajudar esse individuo a por termo a vida, fazer com que ele morra,
estamos perante homicídio; uma vez que o legislador guineense não adotou eutanásia.
Portanto, mesmo o morituros — mesmo que em sofrimento e sem esperança —, constitui
objeto possível do crime de homicídio.

Não tem relevância, igualmente, matar alguém porque ele padece de uma
enfermidade que não tem cura. Porque aqui estaremos sempre perante a antecipação da
morte. O processo de morte é sempre condição inerente à vida humana: todos nós
morremos um dia. É um processo a que nenhum ser humano pode escapar-se. Por isso,

vida), ANTÓNIO CARVALHO, MARTINS, A Colheita de Órgãos e Tecidos nos Cadáveres, Coimbra:
Coimbra Editora, 1986; sobre a eutanásia; v., ainda, CLAUS ROXIN, A Apreciação Jurídico-Penal da
Eutanásia, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, IBCCIM, Editora Revista dos Tribunais, Ano N.º
32, São Paulo, 2000, p. 19; Homicídio a Petición y Participación e el Suicídio — Derecho Vigente y
Propuestas de Reforma, in Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, TomoLXVI, MMXIII,
Ministerio de Justicia, Madrid 2014, p. 19, BGHSt 32, p. 370 e ss; GÜNTHER JAKOBS, Suicídio,
Eutanásia e Direito Penal, Vol. 10, Tradução de Maurício António Ribeiro Lopes, Manole, São Paulo,
2003, p. 17 e s., onde o autor expressa que:

“Num desejo idóneo de suicídio conclusão negativa a deixar


de prestar ajuda deve ser respeitada enquanto durar essa vontade. Isso
não tem nada a ver com eutanásia por omissão de um tratamento, mas
o desenvolvimento do direito do que não quer viver mais, a decisão
sobre si mesmo, trata-se de um suicídio direto ou —no caso da negativa
a deixar de tratar de uma enfermidade — de um suicídio indireto.
Também a contribuição ao suicídio indireto fica livre de pena. Assim,
por exemplo, não pode ser punido quem impede que alguém cansado
de viver seja salvo contra a sua vontade, ou que desconecta os
aparelhos médicos que eficazmente mantêm com vida, contra a sua
vontade, ao que não quer mais viver.”

Também, no sentido idêntico, MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito


Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 440 e ss., e 445; onde se expressa que:

“[…] O que fica exposto permitiu identificar, nos seus traços


essenciais, um modelo doutrinal relativo à autodeterminação pessoal
como bem jurídico digno de tutela, à sua estrutura, compreensão e
extensão normativas e às suas relações e às suas relações face a bens
jurídicos conflituantes como a integridade física ou a vida. Um modelo
cujo amadurecimento parecia legitimar a expectativa de uma solução
tao linear quanto consensual dos problemas da eutanásia passiva.
Desta convicção se fez expressamente eco Engisch (1967): «O desejo
do paciente de morrer em paz terá, em princípio, de ser respeitado.
Nesta medida pode considerar-se resolvido o problema da eutanásia
passiva»”.

Igualmente, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, A “Ajuda Médica à Morte”: uma Consideração


Jurídico-Penal, in, Revista Brasileira de Ciências Criminais, IBCCIM, Editora Revista dos Tribunais, Ano
21, Vol. 100, São Paulo, 2013, p. 24 e ss., 25. Por todos, ALFREDO JOSÉ ANDRADE SANTOS, Os
problemas Penais da Eutanásia e Suicídio Assistido, in https://www.repositório.ual.pt, consultado no dia
27 de Out. 2019-10-27, às 21:00H; ÁLVARO LOPES CARDOSO, O Direito de Morrer — Suicídio e
Eutanásia, Círculo de Leitores, 1993, p. 11; INÊS FERNANDES GODINHO, Eutanásia, Homicídio a
Pedido da Vítima e os Problemas de Comparticipação em Direito Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1015,
p. 245 e ss; MANUEL SUBTIL LOPES RIJO e ANTÓNIO JOSÉ DOS SANTOS LOPES DE BRITO,
Estudo Jurídico da Eutanásia em Portugal, Direito sobre a vida ou Direito de viver, Coimbra: Almedina,
2000, p. 39, sobre a definição da Eutanásia.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

qualquer ato de pôr termo a vida humana é sempre a antecipação desse processo natural,
inerente ao ser humano.

Por isso, nos países como o nosso em que não se admite a eutanásia, quem puser
termo a vida de outrem em qualquer se seja o momento ou circunstancia, preenche o tipo
objetivo de homicídio.

1.2.2 Eutanásia e Distanásia: Conceitos e Caraterização


A palavra Eutanásia é de origem grega eu + thanatos (eu = “Bom”, “Boa”; Thanatos =
“morte”) e que significa boa morte; morte tranquila, morte sem sofrimento. Algo
contrário da Distanásia que, segundo SANTOS LOPES DE BRITO e MANUEL LOPES
RIJO (2000, p. p. 33 e ss.)12, na citação de ANDRADE SANTOS (2017, p. p. 19.)13,
deriva do grego Dis = Algo Mal Feito +Thanatos = Morte “considerada como Má Morte, ou morte
dolorosa”, na medida em que, ao contrário da Eutanásia,

“consiste no prolongamento da agonia de um doente em


estado terminal, através de suportes de manutenção da vida que são
supérfluos ou desnecessários, uma vez que, não existe sequer a mínima
perspetiva de cura ou melhoras da sua condição: «O médico não deve,
portanto, utilizar meios extraordinários ou “milagrosos” para
prolongar a vida do doente para além do período natural, a menos que
tal lhe tenha sido explicitamente pedido pelo mesmo»”.

O conceito de eutanásia foi utilizado pela primeira vez por ROGER BACON (1214-
1294). E a este conceito vieram a ser enxertadas doutrinariamente, sobretudo na
Alemanha nacional-socialista, as situações que ficaram conhecidas como das “vidas
indignas de ser vividas” com a pretensão ilegítima de buscar para estas situações da
parte da opinião pública, uma compreensão que, desde sempre, acompanhou a prática da
verdadeira eutanásia.

O conceito da verdadeira eutanásia ou eutanásia “autêntica” é, segundo


FIGUEIREDO DIAS, o seguinte:

“auxílio médico à morte de um paciente já incurso num


processo de sofrimento cruel e que, segundo o estado dos
conhecimentos da medicina e um fundado juízo de prognose médica,
conduzirá inevitavelmente à morte; auxílio médico que previsivelmente
determinará um encurtamento do período de vida do moribundo”
(DIAS F. , 1999, p. p. 12.)14.

E se classifica, segundo FIGUEIREDO DIAS, precipuamente, em “eutanásia


“passiva” aquela que ocorre quando o médico renuncia as medidas suscetíveis de
conservar ou de prolongar a vida”, seja em “tratamento medicamentoso ou cirúrgico,
oxigenação, reanimação de doentes em estado de desespero (moribundos, pessoas em
coma profundo e irreversível ou estados análogos). Este comportamento pode recair sobre

12
Estudo Jurídico da Euttanásia, 2000, p. 33 e ss.)
13
Os Problemas Penais da Eutanásia 2017, p. 19.)
14 Ver também CRISTINA SOFIA DE OLIVEIRA PARDAL, Eutanásia — Representações Sociais:
Coimbra, Fevereiro de 2016, Instituto Superior Bissaya Barreto, disponível em https://comum.rcaap.pt, e
consultado no dia 25 de Out. de 2019-10-25, às 00H29.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

o desligamento de aparelho de reanimação no momento em que a morte cerebral ainda


não se verifica. Discute-se na doutrina se se for o caso de um terceiro a desligar a máquina
e não o médico, qual seria a situação. O médico, sendo um profissional que jurou defender
a vida por todos os meios de que ele dispõe para tal, não deve ser ele a interromper a vida,
antecipar a morte. Segundo SILVA DIAS (2007, p. p. 43.)15, citando HELENA MORÃO (15
(2005), p. p. 83.)16, não constituirá homicídio por omissão quando realizada com o
consentimento da vítima. Quando realizada sem o consentimento (ou a pedido) da vitima,
“exclui a hipótese de se aplicar ao homicídio a pedido.” Nada impedindo, porém, que,
neste caso, seja responsabilizado por homicídio privilegiado, por omissão, por exemplo,
“o médico que, profundamente tocado pelo sofrimento de um paciente em coma prolongado, cujas funções
vitais são mantidas por um aparelho de reanimação, deixa de lhe ministrar os medicamentos que lhe
prolongava a vida” (BRITO T. Q., Ano 15 (2005), p. 555 s.)17e

O entendimento maioritário na doutrina é de “negar-se a tipicidade no sentido de


homicídio, da omissão de prosseguir o tratamento, salvo se houver razões seguras para
presumir que esta seria a vontade do moribundo” (DIAS F. , 1999, p. p. 13.). Quanto à
vontade do paciente, seja efetiva ou presumida, entende FIGUEIREDO DIAS (Comentário I,
1999, p. 13) citando GEILEN (Euthanasie, 1975, p. 8 e ss.) e ROXIN (Engisch, 1969, p.
398) que “[…] esta solução conduz a consideração não de um qualquer “direito de
médico” à interrupção” do tratamento ou de tentativa de salvar a vida humana naquelas
circunstâncias, mas da ausência de sentido pessoal ou social de um tal “tratamento18”/19
e do verdadeiro atentado à dignidade humana do moribundo que, segundo FIGUEIREDO
DIAS, citando Stratenwerth (Engisch, 1969, p. 534) em muitos casos a intervenção médica
representa.

Nesta situação, entende FIGUEIREDO DIAS que apesar de ser “convicção generalizada
quer na população, quer na própria classe médica de que ali é decisiva a vontade dos
parentes ou das pessoas próximas do paciente”, esta vontade é infundada; é “juridicamente
irrelevante, salvo na medida em que possa servir como elemento para determinar a
vontade presumida do paciente”.

Afirma o mesmo autor citando Hirsch que é este valor indiciário é de atribuir aos hoje
frequentes “testamentos” (documentos anteriores em a pessoa deixa indicações para o
caso de ser atingido por uma doença incurável e se não encontrar em condições de decidir
sobre o seu tratamento e sobre os limites em que (e o ponto até ao qual) este deverá ter
lugar” (DIAS F. , 1999, p. p. 14.).

15
Crimes contra a vida, p.43.
16 HELENA MORÃO, Eutanásia Passiva e Dever Médico de agir ou omitir em face do Exercício da
Autonomia Ética do Paciente, in RPCC, Ano 15, p. 83.

17 TERESA QUINTELA, Interrupção de alimentação e hidratação artificiais de pessoa em estado


vegetativo persistente, in RPCC, Ano 15, p. 555 e ss.; também em Direito Penal, PE: Lições, Estudos e
Casos, Coimbra: Coimbra Editora, 2007. P. 122 e ss.

18 s. n.

19 Igualmente, Pius XII Sagt, 1958, 63 e s, no seu discurso aos médicos anestesistas de 1957 (Pius XII
Sagt 1959, 63 e s.) apud J. FIGUEIREDO DIAS, comentário cit., p. 13.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Além da eutanásia passiva acabada de ser citada, há eutanásia ativa que é subdividida
em eutanásia ativa direta e eutanásia ativa indireta (também designada de
ortotanásia).

A eutanásia ativa direta, consiste, segundo FIGUEIREDO DIAS (Comentário I, 1999,


p. p. 14), em “um intencional ou necessário [ou, para alguns autores onde se inclui
Stratenwerth20] encurtamento ativo do período de vida do paciente”. É o que se chama
de “injeção letal”. Aqui o autor entende que, em termos de iure constituto, pode ser
resolvido pela dispensa da pena em “situações extremas de doentes terminais sujeitos a
sofrimentos cruelmente insuportáveis”.

Ao contrário da Alemanha onde tanto a jurisprudência quanto a doutrina entende ser


alcançada tal solução de lege ferenda ou, então, lançando mão da figura de um estado de
necessidade desculpante.

Já a eutanásia ativa indireta (também denominada de orto-tanásia) consiste,


segundo o mesmo autor, na utilização de meios destinados a poupar o moribundo a dores
e a sofrimentos, mesmo que estes meios conduzam ou não o paciente a um estado de
inconsciência, devendo ser previsível, mas não muito sensível, um encurtamento eventual
do período de vida do paciente, como consequência lateral indesejada, embora em razão da
administração dos meios em causa. Neste tipo de eutanásia, entende Professor
FIGUEIREDO DIAS ser caso de ser justificada a conduta, com fundamento de, entre outras
razões, e fundamentalmente, de risco permitido.

1.2.2.1 Breve relance histórico

O problema de Eutanásia é antigo, tendo acompanhado a história da humanidade:

a) Fase da morte branca. Algumas tribos antigas denominavam por morte branca a
obrigação "sagrada" que o filho tinha para com o pai velho e doente, de fazer-lhe
"adormecer suave e definitivamente". Entre os camponeses da América do Sul, era
prática, durante longo período dos tempos bastante recuados, imprimir, com emprego de
arma branca, a morte aos velhos e doentes graves, em situação extrema naquilo que
denominavam por aliviar a morte desses;
b) Idade Média. Na Idade Média, chamou-se misericórdia matar os feridos e mutilados de
guerra;
c) Homicídio caritativo. Durante algum tempo, na Europa e nos Estados Unidos, passou-se
a denominar homicídio caritativo a prática da eliminar a vida em certas situações.

Morte libertadora, morte benéfica, l'uccisione pietosa, el homicídio por altruismo o


compasion, homicídio piedoso, homicídio-suicídio, foram e ainda são, nalguns casos, variantes
da «eutanásia» e, sobretudo, «orto-tanásia»; naquilo que é entendido, segundo NÉLSON HUNGRIA

20 Apud FIGUEIREDO DIAS, Comentário cit., 14.; sobre a Eutanásia Ativa Direta, v., também, TERESA
QUINTELA DE BRITO, Eutanásia Activa Directa e Auxílio ao Suicídio: não punibilidade? In Direito Penal,
PE: Lições, Estudos e Casos, Coimbra: Coimbra Editora, 2007.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

(1955, p. 125)21, como sendo acto de abreviar piedosamente o irremediável sofrimento


da vítima e a pedido ou com consentimento desta.

Na Guiné-Bissau, a prática de eutanásia, por não gozar do aparo legal, é homicídio


punido como tal, com eventuais atenuações

1.2.3 Modelos de construção do tipo sistemático do crime contra a vida:


dualista e monista

Historicamente tratou-se da construção dos crimes contra a vida na perspetiva


dualista, tradição essa consolidada hoje nalgumas legislações, conforme observada
FIGUEIREDO DIAS (1999, pp. 3, § 2.). conta, entra outras, a alemã onde, segundo o autor,
o código define o homicídio da seguinte forma:

[§212 (Homicídio)]:

“Quem matar uma pessoa, sem ser assassino, será punido


como homicida com pena de...”

Na tradução feita da “Teoria da Acção Social” de Schmidt, Eberhard (Soziale


Handlungslehre, 1969, pp. pp. 339, ss.), JORGE DE CASTILO PIMENTEL (1999, p. pp.
203.)22, apresenta-nos a seguinte tradução do artigo 212.º do Código Penal Alemão [§212
(Homicídio)]:

1. “Todo aquele que, sem ser assassino, matar dolosamente um ser


humano, será punido como homicida, com pena de prisão não inferior
a cinco anos
2. em casos especialmente graves deve-se aplicar prisão perpétua”.

Já a responsabilidade criminal do assassino e os tipos de crimes por ele cometidos são


caracterizados — segundo o mesmo autor — no art.º 211.º do mesmo Código Penal
Alemão da seguinte forma — §211 (Assassínio):

1. Todo o assassino será punido com prisão perpétua.


2. É assassino todo aquele que mata um ser humano:
a) Por instinto sanguinário, para satisfação do instinto sexual,
por cobiça ou, de algum modo, por motivos baixos;
b) Com perfídia ou crueldade, por meios que expressem perigo
comum; ou
c) Para conseguir ou encobrir outra infração penal.”

Algumas destas legislações que adotam o tratamento dualista chegam, segundo


FIGUEIREDO DIAS, ao ponto de “[…] fazer corresponder aos dois tipos fundamentais de
ilícito fundamentais, dois tipos normativos de agente diversos: o «homicida», por um lado, o
«assassino», por outro”, como se vê da definição do CP penal alemão acabado de citar.

21
Nélson HUNGRIA, Comentários ao Código Penal, 3. ed., Forense, 1955, v. p. 125).

22
JORGE DE CASTILO PIMENTEL, Teoria da acção Social, pp. 203

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Esta teoria dualista não é hoje defensável tanto do ponto de vista político-criminal
quanto do ponto de vista dogmático conveniente como argumenta FIGUEIREDO DIAS em
desaprovação da mesma, da seguinte forma23:

O “assassino” não é nem de ponto de vista racional, nem de


um ponto de vista teleológico algo de qualificativamente diferente,
segundo o seu conteúdo de ilícito, do homicídio: ele é apenas um
homicídio qualificado por certos elementos e, na verdade, por
elementos da mais diversa índole, que todavia não contendem, ao
menos em último termo, com o núcleo do tipo objectivo24 de ilícito; do
mesmo modo que o homicídio privilegiado, nas várias formas típicas
que pode assumir, não é senão um homicídio atenuado […]. Além de
que não é hoje possível, de acordo com os pressupostos do Estado de
direito democrático, reeditar por qualquer forma uma doutrina como
a do tipo normativo de agente.”
(CORREIA, A Teoria do tipo normativo de agentes, 1943, p. p. 11.)25]”.

E continua, o mesmo autor, para concluir que:

A tudo isto acresce, com importância decisiva, que a


construção dos crimes contra a vida a partir de um duplo fundamento
dá origem às maiores dificuldades dogmáticas e pode constituir raiz de
soluções de problemas concretos incorrectas26 e inadequadas. Daí
que a generalidade da própria doutrina e da jurisprudência alemãs
(apesar do respeito que democraticamente exemplar nutrem pela lei
positiva) afirma hoje, com razão, que a menção no tipo das expressões
«sem ser assassino» e «como homicida» não possui qualquer
significado material e revela-se suscetível27 de conduzir a erros […].

23 Citando, no mesmo sentido, S / S / ESER § 212 1; M / S / MAIWALD I § 2 1 ss., 6.

24 Grafia sem acordo ortográfico de 1990.

25 EDUARDO HENRIQUES DA SILVA CORREIA, A Teoria do Tipo Normativo de Agente, FDUC 19, 1943,
p. 11-25; disponível também (o endereço) em https://www.uc.pt, e consultado em 22 de Out. de 2019-10-
24; também Direito Criminal I, Coimbra: Livraria Almedina, 1971, p. 197-198, no sentido de se ter, como
ponto de partida, o facto para a intervenção penal e não apenas tipos legais de agentes; embora aqueles
tenham sempre, ou por vezes, o tipo legal de agentes “mas não já em atenção a uma certa conformação da
personalidade como tal, mas a uma certa personalidade que se exprime num determinado facto ou série de
factos, isto é, na expressão de GALLAS, a «tipos de autores referidos a factos»”. A referência a GALLAS,
aqui diz respeito a pena e sentença do infrator — Tatstrafe u. Täter Strafe, em ZStW, 60º (1941) 380”; LUIZ
ALBERTO MACHADO, Tipo: Evolução Histórica, 1974 [falando do tipo, seus elementos (negativos, p. 188),
as suas formas, as suas funções, a sua classificação (o tipo de facto e o tipo de autor, etc., p. 194 e ss.)],
disponível em https://revistas.ufpr.br e consultado em 24 de Out. de 2019-10-24: 20h19.

26 Grafia sem acordo ortográfico de 1990.

27 Grafia sem acordo ortográfico de 1990.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

CAPÍTULO III Das Técnicas e sentido da qualificação e do Privilegiamento bem a


problemática da tentativa nos crimes qualificados e privilegiados,
erro sobre as circunstâncias qualificantes e privilegiantes, e
concurso das circunstâncias
Sumário: 1 - As Técnicas e o sentido de qualificação e do privilegiamento, a problemática da tentativa nos crimes
qualificados e privilegiados, erro sobre as circunstâncias qualificantes e privilegiantes, e concurso das
circunstâncias; 1.1 - Técnicas de qualificação e de privilegiamento: tipos de ilicitude, tipos de culpa e tipos
mistos; 1.3 - Os elementos especiais qualificantes e o princípio da necessidade da pena, nas vertentes da
ofensividade e da exigência de um Direito Penal do facto; 1.4 - Os elementos especiais qualificantes e o
princípio da legalidade, nas vertentes da tipicidade e da proibição de analogia; 1.5 - A tentativa nos crimes
qualificados e privilegiados; 1.6 – O erro sobre as circunstâncias qualificantes e privilegiantes; 1.7 –
comparticipação e comunicação das Circunstâncias, e Concurso das circunstâncias.

1. as Técnicas de qualificação e do Privilegiamento, e a problemática da tentativa


nos crimes qualificados

1.1 Técnicas de qualificação e de privilegiamento: tipos de ilicitude, tipos de culpa e


tipos mistos
A técnica utilizada na qualificação do homicídio, no nosso CP, à semelhança do CP
português que lhe serviu de fonte próxima, consiste numa cláusula geral de agravação
que é a “especial censurabilidade ou perversidade”. Mas ao contrário do CP português
que, no número 1 do seu art.º 132.º, contempla tal cláusula geral de agravação, no n.º 2
veio a consagrar alguns exemplos-padrão, ou exemplos regra ou típicos que procuram
tornar mais compreensível e obviar o sentido e alcance da cláusula geral, fazendo com
que a qualificação em causa resulte de “(..) uma conexão hermenêutica entre ambos os
aspetos” (DIAS A. S., 2007, p. p. 24.), o legislador guineense optou adotar apenas
cláusulas gerais e conceitos indeterminados sem qualquer restrição do seu alcance. Os
elementos especiais qualificantes e o princípio da necessidade da pena, nas vertentes da
ofensividade e da exigência de um Direito Penal do facto

As circunstâncias qualificantes poderiam levar a considerar a possibilidade da sua


inconstitucionalidade, não fossem analisadas no prisma da sua concretização no fato, da
verificação prática da ofensa ao bem jurídico ou na possibilidade da ofensa efetiva ao
bem jurídico, e não numa perigosidade abstrata. Assim sendo, não contrastam com o
princípio da ofensividade (ou da lesividade, para alguns). Seguindo a lição de Prof. SILVA
DIAS (2007, pp. p. 33-34.), “os exemplos-padrão traduzem o emprego de uma técnica de
tipos abertos num duplo sentido que pode ser expressa na fórmula «não só, nem sempre».
Uma vez que, a existência de um exemplo-padrão do n.2 do art.º 132.º do Código Penal
português que os consagra não significa sempre a existência ou o preenchimento de um
homicídio qualificado porque “apenas indicia a presença de um caso de especial
censurabilidade ou perversidade”; tendo, apenas, efeito indiciador de tal existência. Tal
“indício tem que ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias
do fato e pela atitude do agente nelas expressa”28. E não uma ponderação baseada nos

28 O Negrito é nosso.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

tipos normativos do agente. Mas com base no Direito Penal do fato e, por outro lado, a
expressão «entre outras» consagrada no corpo do número 2 do artigo em causa revela
outro verso da moeda indiciando que não estamos perante técnica de tipos fechados, que
estamos perante a existência de outras circunstancias agravantes não contempladas neste
mesmo preceito, que não estamos perante uma previsão taxativa, como é claro pela
expressão em referência.

Comprovado ex post que houve violação do ou agressão ao bem jurídico, há que se ter
em conta, como etapas para ver se se verificou especial censurabilidade ou perversidade por
parte do agente, o que implica ex ante que, para a comunidade, ou a olho de um seu
representante, que sabe o mesmo que o autor, a conduta do agente tenha tido aparência de
o mesmo agente ter agido com expressão de uma especial censurabilidade ou
perversidade e que, depois, terá que ser comprovado. Este preenchimento de
circunstâncias de mera ilicitude, pois (uma, de ilicitude: a verificação do fato típico; e
outra, de aparência, mera aparência de culpa que, assim, ainda carece de comprovação a
posteriori), exige, para a sua efetiva ocorrência, a prova da sua verificação, através da
comprovação de que a ação em causa preencheu especial censurabilidade ou perversidade
por parte do agente, o que se lhe é assacado em função da sua personalidade expressa no
fato.

1.2 Os elementos especiais qualificantes e o princípio da legalidade, nas vertentes


da tipicidade e da proibição de analogia
A ausência dos exemplos-padrão coloca-nos, não plenamente perante tipos abertos,
em que não há qualquer tipo de ligação com qualquer critério limitador das atividades do
aplicador da lei, ou seja, perante uma plena arbitrariedade do juiz, por exemplo; mas
perante situações em que o juiz pode, com base na tendência inata ao ser humano,
extravasar do campo da sua tarefa e interferir com princípios constitucionalmente
admissíveis violando, também, o princípio da necessidade da pena e que deve ser criada
pelo povo, através dos seus representantes —, nas sociedades atuais onde não é factível
a reunião das assembleias para a decisão de assuntos de maior relevância, salvo aqueles
casos em que é aconselhável, ou legal, convocar o povo mediante referendo). Uma vez
que o crime resulta do consenso mais amplo da sociedade sobre a necessidade de proteger
determinados bens jurídicos que, para a sociedade, dada a sua importância, devem ser
cercados de garantias ao mais alto nível legal (e o Direito Penal uma intervenção de
“peso”, uma intervenção mais gravosa, sendo ultima ratio) acionando o direito penal para
a sua proteção face `as violações que não podem ser acauteladas por outros meios menos
gravosos. Por isso, como disse Prof. SILVA DIAS (2007, p. p. 24.) “a ideia é a de considerar
como homicídio qualificado, merecedor de pena máxima, somente casos particularmente
chocantes” conciliando-se, porém, de forma acertada, “esta finalidade com as exigências
de segurança e de certeza decorrentes do princípio da legalidade” expressa pelo aforismo
latino nulla pæna, nullum crimen sine lege. Um princípio do Direito Penal constitucional, ou
princípio constitucional com incidência penal, um princípio do Direito Penal com assento
constitucional. Uma vez que a abertura da interpretação ou integração que admite maior
abrangência do alcance da disposição escrita da lei penal, viola o princípio da legalidade
na vertente da tipicidade; porque não há lei escrita — nulla pæna sine lege escrita — que
determina a punição a título de homicídio qualificado. Os elementos especiais agravantes
e o princípio da legalidade, nas vertentes da tipicidade e da proibição de analogia

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

O exemplos-padrão, apesar de não afastarem completamente outras situações ou


circunstâncias que podem levar a agravação do homicídio, como aliás o próprio
dispositivo do número 2 do art.º 132.º do Código Penal Português que o adota deixa
patente com a expressão “entre outras”, visam, como diz Prof. SILVA DIAS (2007, p. 25)
explicitar “o sentido da cláusula agravante e esta, por sua vez, funciona como corretivo
normativo da objetividade daqueles”. Deixam menos nebulosa a possibilidade de o
aplicador da lei se transformar em legislador por poder meter, dentro do funil da cláusula
geral ou de um conceito indeterminado, várias situações que não devem lá entrar,
ampliando a possibilidade de punição para além do que se pretende; o que choca
frontalmente com o princípio da legalidade na vertente da proibição da analogia in mala
partem expressa, igualmente, no brocardo latino nulla pæna, nullum crimen sine lege certa; um
princípio do Direito Penal constitucional, ou princípio constitucional com incidência
penal, ensejando, para alguns, a possibilidade de se levantar a questão da sua
inconstitucionalidade. Por este motivo e entendendo que a abertura possibilitada pela
cláusula “entre outras” deve ser compatibilizada com o princípio da legalidade por via de
uma interpretação que não conduza à dissolução do vínculo do juiz à lei. Uma vez que —
para o autor — a vinculação do juiz à lei

“é totalmente diluída através de uma interpretação «entre


outras» no sentido de o juiz poder criar novos exemplos-padrão, isto é,
que estão fora do elenco das várias alíneas do n.º 2. uma vez que
confere ao juiz o poder de criar novas situações que, em seu entender,
indiciam uma especial censurabilidade ou perversidade do homicida,
tal interpretação equipara o aplicador ao legislador ao mesmo tempo
que reduz os exemplos-padrão a meros exemplos, contrariando, desse
modo, o princípio da legalidade29.”

Por isso, prossegue o mesmo SILVA DIAS (2007, p. 26) dizendo, expressamente, que

“[…] a compatibilização da abertura possibilitada pela


expressão «entre outras» com o princípio da legalidade só é
assegurada se ela não conduzir à dissolução do vínculo do juiz à lei
[…] e se os exemplos das diversas alíneas [do número 2 do art.º 132.º
do CP português] puderem servir como padrão ou regra e não como
exemplificação avulsa. Para que isso suceda, ao juiz apenas é
concedido integrar nas alíneas do n.º 2 circunstâncias que, embora não
estejam aí expressamente previstas, correspondem à estrutura de
sentido e conteúdo de desvalor de cada exemplo-padrão. Nestes
termos, é absolutamente vedado o recurso ao chamado «homicídio
qualificado atípico», isto é, à qualificação do homicídio sem passar por
nenhum dos exemplos-padrão do n.º 2.”30

1.3 A tentativa nos crimes qualificados e privilegiados


Quanto à questão da tentativa nos crimes qualificados e privilegiados, as posições
doutrinárias divergem havendo uma corrente – a defendida por Prof. SILVA DIAS (2007,
pp. p. 32-34.) — segundo a qual, havendo especial censurabilidade ou perversidade por parte
do agente comprovada no fato, independentemente da verificação da circunstância
qualificadora, desde que haja existência do meio inidóneo ou a inexistência do objeto essencial à
consumação, comprovadas ex post. Isto é, segundo as palavras do autor, “o que carateriza a
tentativas impossível é, precisamente, a comprovação ex post de que não foi utilizado um

29
AUGUSTO SILVA DIAS, Crimes contra a vida, cit., p. 25
30
Ibid., p. 26

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

meio idóneo ou de que falta o objeto essencial à consumação”. Bastando apenas, como
segundo momento, para a sua punibilidade que, “ex ante, aos olhos da comunidade ou de
um representante desta, que sabe o mesmo que o autor, a ação cria a aparência de
verificação da circunstância qualificante e assim do indício de especial censurabilidade
ou perversidade”. Após a comprovação da punibilidade da tentativa impossível através
de tais critérios que, para o mesmo autor, são critérios de ilicitude, é necessário, como
terceiro momento, testar a existência da especial censurabilidade ou perversidade do agente em
concreto, a prova de tal aparência que se apresentou no segundo momento, (o que era
uma mera aparência, deixa de sê-lo, dissipou-se a ideia aparente de existência da especial
censurabilidade ou perversidade pela prova de que existiu realmente).

O autor, deu um exemplo de escola de duas situações que para ele, enquadra melhor a
situação de tentativa impossível no homicídio qualificado, e qua são as seguintes:

A. Abel quer e pensa que está a matar o próprio pai. Dispara e atinge outra pessoa
que confundiu com o referido pai. Neste caso, não estando manifesta a inexistência do
objeto e sendo comprovada a especial censurabilidade ou perversidade de Abel, este,
segundo o autor, será punido pela tentativa impossível de homicídio qualificado; e não
pelo homicídio simples consumado, que, neste caso, funcionaria como solução atenuante.
Solução que o autor afasta.

Comparado este caso com o de erro sobre a factualidade típica, entende o autor ser

“Hipótese inversa à do erro sobre o fato típico (sobre o objeto)


que ocorreria se Abel, querendo matar alguém acabasse por matar o
próprio pai, por errar sobre a identificação da vítima. Este erro
afastaria o dolo de homicídio qualificado, mas não o dolo de homicídio
simples, pois Abel quer matar uma pessoa.”
(DIAS A. S., 2007, p. p. 32.).

B. O segundo caso apresentado é que o Abel, ao invés da situação anterior, pensa que
esta a utilizar veneno para matar, nas pelo contrário, está na verdade a utilizar sais de
fruto sem disso se dar conta, ou pensa que as pontas de fogo que aplica à vítima servem
para infligir a esta fortes dores quando o agente, pelo contrário, esta inconsciente sem que
o agente se apercebesse disso.

Estas últimas situações enquadram-se na tentativa inidónea cuja punibilidade


apresenta contorno dogmático difícil de ser ultrapassada tendo em conta que a
punibilidade do homicídio qualificado prevista nos termos dos exemplos-padrão e o
indicio da especial censurabilidade ou perversidade, tal com está desenhada no art.º 132.º
do Código Penal português, visa acautelar a violação mais grave do bem jurídico vida
humana, que não se compagina com, sobre tudo, uma tentativa inidónea. Fica sem ser
compreendida a punição de uma tentativa inidónea com uma pena mais severa de que o
homicídio simples, conforme os argumentos da tese contrária defendida por Professora
teresa serra (1995, p. p. 83 e ss.)31. Uma coisa é tirar a vida (homicídio simples) e outra

31 TERESA SERRA, Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e Medida de Pena, Coimbra: Livraria
Almedina, Contributo para o Estudo da Técnica dos Exemplos Padrão no art.º 132.º do Código Penal
1995.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

é tentar tirar a vida, mas resultando disso, por utilização de um meio inidóneo, que, como
tal, não permitiu o desiderato, isto é, a lesão de um bem jurídico vida.

Quanto à primeira hipótese (a de Abel querer matar o pai), ao disparar o Abel sobre
outra pessoa na suposição de se tratar do seu pai que queria atingir, matando aquela ao
invés do pai, a situação não deixa de levantar a mesma dúvida quanto à correção
porquanto punir Abel, neste caso, por tentativa de homicídio qualificado deixa patente a
mesma preocupação levantada quanto à aplicação de pena de homicídio qualificado
tentado porque, apesar de ter matado uma pessoa, o Abel não queria um homicídio
qualificado relativamente a esta pessoa que não em relação ao seu pai. Por isso, ficamos
com dúvida sobre a justeza de aplicação de uma pena mais grave de que a pena de
homicídio simples.

O preenchimento de especial censurabilidade ou perversidade do agente neste caso


não se revelou, nem sequer aparentemente, muito menos se comprovará efetivamente —
pelo motivo da sua inexistência — a vítima que veio a atingir. Sendo de se pensá-lo
apenas em relação ao pai que não conseguiu ser atingido pela investido do Abel. Fica
assim difícil compreender o porquê ou a adequação da solução apontada relativamente à
situação relativa à punição do seu comportamento a título de homicídio qualificado
tentado. Parecia ser adequado a punição do Abel por homicídio simples. Não fere, aqui,
a sensibilidade o fato de o enquadramento ser de homicídio simples porque, apesar de ter
se investimento contra o pai, em relação a quem pode se realizar o elemento qualificante
especial censurabilidade e o seu indício, não houve a concretização na pessoa de quem
tais elemento e indício teriam reflexo e a verificação de maior perversidade que justifica
a ultrapassagem de fortes contra-motivações próprias que, naturalmente, inibem a atuação
de quem se encontra numa situação de especial relação com a vítima levar a cabo uma
investida do que aconteceu.

É verdade que, habitualmente, regista-se uma relação de conflitualidade e de


constante animosidade entre os familiares próximos. Conflitos que levam até à ocorrência
de casos dramáticos de crimes de sangue com contornos nebulosos e muitas das vezes
com base em questões de heranças. Mas tais situações não são de senso comum em se
transformarem em concreto num problema de, em situação de “normalidade e sanidade”,
do nível de elevada gravidade que levem à ódio profundo fatalidade como às vezes
acontece e tem sido noticiado pelas mass media, sobretudo de atualidade da humanidade.

1.4 O erro sobre circunstâncias qualificantes e privilegiantes


O erro sobre os elementos qualificantes afasta o preenchimento destes mesmos
elementos. Por exemplo, não age com especial censurabilidade ou perversidade quem
desconhece o tipo de relação existente entre ele e a vítima. Não sabe, por exemplo, que a
vítima é seu pai, ou seu irmão, ou seu filho e quer matá-la. Ou, quanto ao modo de
execução, não sabe que está a infligir à vítima um sofrimento atroz e quer infligir-lho ou,
quanto ao modo de preparação, insídia, etc., não sabe que a vítima está incauta, que a
mesma está totalmente indefesa e quer aproveitar-se, precisamente, de tal circunstância e
de confiança para cometer o homicídio. Ou que o motivo é torpe ou fútil e quer utilizar
este motivo para cometer o crime; ou que sabe que a finalidade é para encobrir outro
crime que tenha cometido e age com este objetivo.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Nestes casos, como disse Prof.ª Teresa SERRA (1995, p. p. 79.) — falando de
exemplos-padrão do Código Penal português —, a falta de representação ou a deficiente
representação dos pressupostos de uma circunstância qualificante pelo agente determina
a não aplicação da moldura penal agravada, porque, nesta situação, não se pode considerar
que tenha sido indiciada a especial censurabilidade ou perversidade do agente.

Quanto ao erro sobre o tipo de relação existente entre o agente e a vítima, há duas
teses: uma que entende que existindo uma relação de sangue entre a vítima e o agente,
esta circunstância só por si é suficiente para preencher a circunstância especial
censurabilidade ou perversidade do agente para efeito de qualificação do homicídio. Entende
esta tese que o vínculo de sangue entre as pessoas é mais for de qualquer outro vínculo,
que não precisa de qualquer outra relação para justificar a agravação no homicídio. Outra
tese exige, para além de relação consanguínea, a existência de uma relação especial entre a
vítima e o agente para o efeito do preenchimento da circunstância da agravação ou
preenchimento do exemplo padrão do n.º 2, als. a) e b) do art.º 132.º do CP português.
Esta segunda tese (e a que adiro) foi defendida por Prof. Silva dias nas aulas que proferiu,
na Faculdade de Direito de Bissau, em Curso Prático do Direito e Processual Penal destinado
aos Magistrados e Inspetores da Polícia Judiciária, destinado ao efeito de preparação
destes operadores, por ocasião do advento da entrada em vigor do Código Penal e Código
de Processo penal guineenses de 1993 com os quais irão começar a trabalhar.

A validade da segunda tese se justifica pela forte influência no agente e consequente


grau mais vincada de contramotivações verificadas em casos de especial relação nele
existentes de que em caso de simples relação familiar de sangue (por exemplo: pai-filho,
mãe-filho, irmãos, etc.) com a vítima. Exemplo: A, de 20 anos de idade e irmão do B, de
40 anos e que vive nos Estados Unidos de América há cerca de 30 anos, por B ter chegado
dos EUA recentemente, e pensando que este trouxe dali muito dinheiro, combinou com
C e D e dirigiram-se ao local onde este se encontrava a morar para efeito de o assaltar
tendo resultado disso a morte do B por dois tiros de arma de fogo disparado contra ele
pelo A. Neste caso, tendo em conta o princípio — ou exigências — de relações especiais
entre a vítima e o agente, não cabe agravação do homicídio pela circunstância tipo de
relação existente entre A e B. e, consequentemente, nem A, nem C e D podem ser punidos por
homicídio qualificado pela inexistência do preenchimento de um homicídio qualificado
que justificaria a punição do A, que — apesar de ter conhecimento de que se tratava do
seu irmão a vítima —, pela comunicabilidade das qualidades e circunstâncias inerentes a
A, se comunicariam aos demais comparsas (C e D), — também conhecedores de tais
qualidades — nos termos do art.º 108.º, al. a)32, por força do preceituado no art.º 1933.º,

32 Diz o art.º 108.º (Homicídio agravado):

“Se no caso concreto, a morte for:

a) Relativa a alguém cuja função social ou o tipo de relação existente


entre a vítima e o agente acentuam de forma especial altamente
significativa o desvalor da ação”. (sublinhado é nosso).

33 Diz o art.º 19.º (Ilicitude na comparticipação):

“A ilicitude ou grau de ilicitude do fato, quando depender de


certas qualidades ou relações especiais do agente, reflete-se na
responsabilidade criminal dos demais agentes que tenham

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

ambos do CP guineense; tal como ocorreria no caso do CP português, art.º 132.º, n.º 2,
als. a) e b) do CP português34, por força do disposto no art.º 28.º, n.º135 deste mesmo
diploma legal.

Quanto às circunstâncias privilegiantes, uma solução é de afastar, desde logo e que


tem a ver com erro ignorância e que tem a ver com a falta da representação por parte do
agente de que o pedido é sério, ou que é um pedido insistente. Neste caso a conduta do
agente preenche, pura e simplesmente, o tipo de homicídio simples.

A solução que aparenta ser séria é a do sentido inverso e que é de o autor achar,
quando não é, que o pedido é sério, ou que é insistente e age pensando estar a agir em
função dessa natureza do pedido, este tipo de ação também não releva para efeito do tipo
do pedido com base no homicídio privilegiado por não terem importância as
circunstâncias erroneamente representadas pelo agente. Neste caso, a responsabilidade do
agente continua a ser lhe assacada sem ter em conta as circunstâncias que, erroneamente
representou e que, na verdade, não existem. Ou seja, não beneficia de qualquer privilégio
concernente a elementos privilegiantes.

1.5 Comparticipação e comunicação de circunstâncias


Normalmente as circunstâncias que dizem respeito a cada um dos partícipes não se
comunicam na comparticipação conforme o art.º 19.º do Código Penal guineense
(ilicitude na comparticipação).

conhecimento de que essas qualidades ou relações especiais se


verificam num dos comparticipantes”.

34 Diz o art.º 132.º (Homicídio qualificado):

1. “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial


censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com a pena de
prisão de doze a vinte e cinco anos.
2. É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a
que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o
agente:

a) Ser descendente ou ascendente, adotado ou adotante, da vítima;


b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou mesmo
sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação
análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra
progenitor de descendente comum em relação de 1.º grau...

(negrito é nosso).

35 Diz o art.º 28.º (Ilicitude na comparticipação):

1. “Se a ilicitude ou grau de ilicitude do facto dependerem de


certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar
aplicável a todos os comparticipantes a pena respetiva, que essas
qualidades ou relações se verifiquem em qualquer delas, exceto se
outra for a intenção da norma incriminadora”.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Cada um dos comparticipantes responde na medida da sua culpa conforme o disposto


no art.º 18.º do Código Penal guineense que reza que

Cada comparticipante é punido segundo a sua culpa,


independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros
comparticipantes.

Só se comunicam aos demais comparsas quando, sendo circunstâncias especiais


atinente a um comparticipante, são conhecidos pelos comparsas e estes decidam agir em
conformidade com as mesmas circunstâncias em conformidade com o art.º 19.º do Código
Penal guineense que diz que

A ilicitude ou grau de ilicitude do facto, quando depender de certas


qualidades ou relações especiais do agente, reflete-se na
responsabilidade criminal dos demais agentes que tenham
conhecimento de que essas qualidades ou relações especiais se
verificam num dos comparticipantes.

Ou seja, quando o agente conhecedor das qualidades ou relações especiais de outem


e mesmo assim, decidem agir concertadamente, ou utilizar este outro no cometimento de
crime sabendo que este outro é possuidor de qualidades ou relações especiais com a
vítima responde criminalmente com base nessas qualidades especiais, juntamente com
aquele que as possui.

Assim, se A sabe de relações especiais existentes entre B e C, por B ser filho de C,


combina com B para matar C, responde pelo homicídio qualificado pela morte de C,
juntamente com B que possui tais qualidades ou relações especiais do ipo de relação
existente entre ele B e C e que é a relação de pai e filho, circunstância que cabe na previsão
do art.º108.º, al. c) do CP da guineense 36, e 132, n.º 2, al. a) do CP português. Se A não
conhecesse a existência das qualidades ou relações especiais existentes entre B e C, B
responderia pelo homicídio qualificado e A pelo homicídio simples.

E quando o extraneus37/38 (aquele que não possui qualidades ou relações especiais)


não é um partícipe, nem é autor intelectual (aquele que planeia o crime) ou homem de
trás? Ou seja, quando é um autor mediato?

O autor intelectual é, segundo a teoria restritiva, aquele que participa no cometimento


do crime, nomeadamente planeando a atuação ou o cometimento do crime. Enquanto a

36 O Código Penal de 1993, aprovado pelo Decreto Lei n.º 4/1993, em 15 de Setembro de 1993,
promulgado em 6 de Outubro de 1993, e publicado no Suplemento ao Boletim Oficial n.º 41, de 13 de
Outubro de 1993, com alterações introduzidas pela Lei n.º 2/2002, publicada no Boletim Oficial n.º 21, de
27 de Maio de 2002 (que alterou o art.º 146.º — furto qualificado — e introduziu o art.º 146 —A), e pelo
art.º 13 da Lei n.º 7/97, de 2 de Dezembro, publicada no Suplemento ao Boletim Oficial n.º 48, de 2 de
Dezembro de 1997 ( que introduziu a contrafação e falsificação da moeda — franco da comunidade
financeira africana, FCFA).

37 Plural “intranei”.

38 O intraneus (plural “intranei”) é, ao contrário, aquele que possui qualidades ou relações


especiais.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

autoria mediata é daquela em que se utiliza de pessoas sem condições de discernimento


(menor, louco) ou sob coação moral irresistível para o cometimento do crime. Neste caso,
o executor do crime não é autor do mesmo, mas sim um instrumento para o seu
cometimento. Tal como um animal irracional, um mero instrumento como se fosse uma
arma, ou um pau, ou uma faca ou terçado. Neste caso (é e) responde o autor mediato
como autor material do crime; e não como partícipe.

1.6 Concurso de circunstâncias


Quanto à matéria de concurso entre as circunstâncias qualificantes e as privilegiantes,
temos que encarar o problema em duas situações a saber: a) situação em que há unidade
de agente e b) a situação em que há pluralidade de agentes.

No caso de unidade de agente, seguindo a tese seguida por Prof. SILVA DIAS (Crimes
Contra a Vida, 2007, pp. p. 65-66.), STRATENWERTH (STRATENWERTH,
Schweizerisches Strafrecht, BT, I, p. p. 32.) e COSTA PINTO (PINTO, 8 (1998)), ambos
por ele citados, não é possível haver o concurso entre ambas as circunstancias
(qualificantes e privilegiantes); porque um fato não pode ser, concomitantemente,
qualificado e privilegiado, porque uma circunstancia não pode ser qualificante, dando
origem a um fato (fato, pois, típico, elícito, culposo e, possivelmente punível) qualificado,
e, ao mesmo, privilegiante, originando um fato (típico, ilícito, culposo e, eventualmente
punível) privilegiado; assim como, não é possível uma circunstância ser torpe sendo
repugnante do ponto de vista social e, paradoxalmente, de relevante valor moral, ou de
relevante valor social, portanto aprovado, aceite como compreensível e aprovado pela
mesma sociedade. Disse Prof. SILVA DIAS, citando os autores suprarreferidos, que:

A construção dos homicídios dolosos com base em especiais


tipos de culpa retira sentido à aplicação pura e simples a este
domínio das regras do concurso aparente. Com efeito, se as
circunstâncias qualificantes são expressão indiciária de uma atitude
especialmente censurável ou perversa e se as circunstâncias
privilegiantes são expressão de uma atitude especialmente
compreensível, então elas repelem-se no plano dos efeitos sobre a
culpa. Plano esse que, como sabemos, é decisivo para a aplicação
quer do homicídio qualificado, quer do homicídio privilegiado, do
infanticídio e do homicídio a pedido. Na verdade, o fato não pode ser
ao mesmo tempo revelador de uma atitude perversa e de uma atitude
humanamente compreensível. (DIAS A. S., 2007, p. p. 65.)

Mas quando — reconhece Prof. SILVA DIAS (2007, p. p. 66.) — no mesmo homicídio
circunstâncias de ambas as espécies, não é comprovável o tipo de culpa do art.º 132.º do
CP português. neste caso, a circunstância privilegiante poderá relevar, levando o caso
para o âmbito dos homicídios privilegiados lato sensu verificando-se, deste modo
sensivelmente a culpa do agente correspondente ao tipo de culpa em causa. Ou, então, em
caso de a circunstância privilegiante não produzir tal efeito, poderá, então homicídio
simples eventualmente atenuado, nos termos do art.º 72.º do Código Penal português
[Atenuação especial da pena] e art.º 71.º do Código Penal guineense. Foi com base nesta
última solução (a de homicídio atenuado) que se posicionou e resolveu, o stj português,
os casos dos Acórdãos de 5 de Fevereiro de 1986 e de 26 de Novembro de 1986.

No caso de pluralidade de agente, tendo em conta o princípio de que cada


comparticipante responde na medida da sua culpa na comparticipação, conforme o art.º

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

29.º do Código Penal português (DIAS A. S., 2013)39, art.º 18.º do Código Penal
guineense, não há exclusão entre as circunstâncias qualificantes e privilegiantes no que
diz respeito à sua relação. Neste caso, um cúmplice pode ser punido por homicídio
privilegiado e o autor, por homicídio qualificado ou agravado.

CAPÍTULO IV Do Homicídio
Sumário: Homicídio — 1 – A Origem e Evolução histórica; 1.1 – Etimologia; 1.2 – Variações ou espécies; 1.3 –
Evolução; 1.4 – O tipo base ou fundamental do homicídio (art.º 107.º, CP/1993 e 144 do Projeto do Novo
CP); 1.5 – Generalidades; 1.6 – Relance ao critério da conduta lesiva central; 1.7 – O tipo objetivo; 1.8 –
O tipo subjetivo; 1.9 – O objeto da ação; 1.10 – O bem jurídico protegido; 1.11 – Justificação; 1.11.1 – Por
consentimento; 1.11.2 – Por legítima defesa; 1.12 – O homicídio agravado; 1.12.1 - Elementos agravantes;
1.13 Homicídios privilegiados no direito penal guineense (art.º 110, Infanticídio); 1.13.1 – Relance ao
direito comparado; 1.13.2 – Quadro comparativo legislativo a nível da CPLP; 1.13.3 – Portugal; 1.14 - O
homicídio privilegiado e o homicídio a pedido da vítima; 1.14.1 – O homicídio privilegiado; 1.14.1.1 – O
conceito; 1.14.1.2 - O fundamento do privilegiamento; 1.14.2 – O homicídio a pedido da vítima; 1.14.2.1
– Conceito; 1.14.2.2 – O fundamento do privilegiamento; 1.14.2.3 – Problemática da comissão por omissão.

1. A origem e evolução histórica

1.1. Etimologia
O Homicídio, do Latim Homo (“homem”, que provêm de húmus40, terra, país ou do
sânscrito bhuman) + o sufixo cídio que vem do Latim cædere (“matar”, “imolar”,
“derrubar”, “destruir”)41, significando matar o homem, ou a “morte de um ser humano
causada por outra pessoa”42. Para alguns também minis excidium (o ato de uma pessoa
matar a outra).

1.2. Variações ou espécies


O homicídio pode ser subdividido em diferentes subcategorias: infanticídio,
homicídio simples, eutanásia, pena de morte, legitima defesa (quando esta se consuma
em tirar a vida do agressor em circunstâncias que a lei admite), homicídio qualificado ou
agravado, homicídio a pedido da vítima, etc. sendo tratados estes homicídios
diferentemente entre as sociedades, sendo, nalguns casos admitidos, como, por exemplo,
em caso da legítima defesa, da eutanásia (em que não há punição); e da pena de morte em
que é o próprio Estado que (oficialmente) mata e até é incentivada esta prática, como
forma de combater determinados crimes. É o crime mais grave do ponto de vista da moral
social, por ferir mais intensivamente a consciência e a moral humana sobre a importância
e a sacralidade da vida humana.

39 AUGUSTO SILVA DIAS (dir.), Código Penal e Legislação Complementar. Edição Universitária,
2.º Edição, Lisboa: AAFDL, 2013.

40 Sublinhando o carater da contingência de ser humano, composto de corpo que à imagem bíblica
de criação faz referência à “lama”, barro.

41 Conceito disponível em https://origemdapalavra.com.br e consultado a 4 de nov. de 19, às 21H00.

42 Conceito disponível em https://conceito.de homicídio, e consultado em 4 de nov. de 19.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

1.3. Evolução
O homicídio sempre acompanhou a humanidade ao longo das suas civilizações. O
primeiro homicídio relatado pela Bíblia foi de Abel, morto pelo seu irmão Caim em
virtude de inveja, por Deus ter recusado a oferta deste (Gn. 4). O homicídio sempre foi
considerado como crime ao longo da história da humanidade, relatando antunes josé
(JOSÉ, 2016)43 que todas as civilizações antigas consideravam o homicídio como crime
punido de forma mais severa numas e, noutras, de forma mais branda44.

43 V. José ANTUNES — Jus Brasil, Homicídio: dos primórdios aos dias atuais, disponível em
https://joseaop1984.jusbrasil.com.br, consultado no dia 15.11.2019, às 21:00H.

44 V. Antunes josé, Homicídio cit. ibid. a evolução conforme as diferentes civilizações desde o Código
de Hamurabi, que para alguns estudiosos teria tido origem nas leis sumérias onde vigorava a vingança “de
olho por olho, dente por dente”, ou seja, o sistema do Talião. Outros historiadores, a maioria, teria surgido
este Código de Hamurabi na região de Babilónia onde, em regra, os crimes de homicídio eram punidos com
pena de morte, indiferentemente de serem dolosos ou negligentes; salvo se se dissesse respeito ao fato de a
vítima ser escravo, altura em que se substituía a referida vítima por outro escravo. Vigorando, assim, a
admissão por parte do mesmo código, a violação do princípio de igualdade, apanágio da época. Basta,
também, ver que o homicídio era punido com empalação, isto é, com a morte que consistia no ato de ser o
corpo encravado (empalado) numa grande estaca. Passando pelo:

√ Código Assírio, escrito cerca de 1.400 a.C., com as suas leis ainda mais rigorosas do que o Código
Hamurabi, onde o homicida era entregue ao familiar mais próximo da vítima, que, com o seu livre
arbítrio, poderia impor ao meso homicida ou a pena de morte, ou tomar os seus bens;
√ Leis Criminais Hititas, que, segundo o mesmo autor, teriam tido origem nos crimes de homicídio,
tendo em conta a frequência da existência, naquele império, de fratricídio e parricídio como forma
de alcançar o trono pela sucessão. Mas tratava de homicídio de forma mais branda de que o Código
de Hamurabi;
√ A legislação hebraica, diretamente ligadas a Moisés, sendo, por isso mesmo, chamadas, por
alguns, de “legislação mosaica”, tinha como princípio os dez mandamentos ditos por Deus a
Moisés no Monte Sinai a caminho da Terra Santa (êxodo). Quanto ao homicídio, tinha duas regras:
uma geral e uma regra específica. A regra geral dizia “não matarás” (o quinto mandamento); e a
regra específica estabelecia os pormenores sobre o homicídio negligente e as cidades asilos que,
no Direito Canónico, segundo mário curtis giardoni (ob. cit., p. 39), citado por antunes José, “[…]
O homicídio involuntário era castigado com pena capital” que era aplicada apenas “depois de um
processo em que houvesse o depoimento de pelo menos duas testemunhas. O homicídio
involuntário não era punido com a morte: o acusado podia buscar refúgio em cidades escolhidas
especialmente como asilos”;
√ Legislação grega onde existia diferença entre as leis das principais Cidades-Estados, não havendo
punição de homicídio em Esparta, cidade caraterizada pela existência de poucas regras e onde era
normal que os jovens emboscassem a matassem os escravos (ilotas) por estes não serem
considerados nem cidadãos, nem homens livres. Era um ato de treinamento uma vez que a cidade
era importante na criação de “«homens-máquinas» para servir a todo o tempo em guerras”. Ao
passo que, em Atenas a legislação punia o crime de homicídio. Havia um desenvolvimento
legislativo, com a adoção inclusive de graus de penas. Segundo itagiba (ob. cit., p. 34),, citado por
antunes josé (JOSÉ, 2016), aqui o “réu” podia ser temporariamente. Ou, em caso de reincidência,
condenado à morte, ou desterrado perpetuamente com perda de bens;
√ Direitos romano, germânico e canónico, segundo magalhães noronha (ob. cit., p. 13), citado por
antunes josé (JOSÉ, 2016), “ foi o homicídio contemplado pelos três direitos que mais influencia
teve nas legislações dos povos civilizados: o romano, o germânico e o canónico”. Em Roma o
homicídio era crime público e punido pelas leis de Numa Pompílio e a Lex Cornelia de sicariis,
distinguindo-se, naquelas épocas dos outros crimes. Mas era aplicada a pena de forma censitária
aplicando-se a pena de deportação e a perda de bens àqueles que tinham condições, e aos pobres,
a pena de morte. Naquela época, segundo antunes josé (JOSÉ, 2016), citando LUIZ regis prado
(ob. cit., p. 62) na citação que este fez de Mommsen, o parricídio e o homicídio eram expressões
sinónimas no Direito Romano. “paricidium originalmente como a morte de um cidadão sui júris

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

1.4. O tipo base ou fundamental do Homicídio (art.º 107.º, CPGB/1993 e art.º 147.º
do Projeto do Novo CP)
De acordo com o critério de arrumação ou organização interna dos crimes, adotado
pelo legislador de 1993, o art.º 107.º, o tipo base ou fundamental do crime de homicídio.
Preenche-se com o matar ou — a expressão preferida pelo legislador pátrio — o tirar a
vida da outra pessoa. Desde logo o homicídio significa tirar a vida, mas a vida de um ser
humano (fragmentaridade de 1º grau) de outra pessoa (fragmentaridade de 2.º grau).

Tendo o Direito Penal caráter fragmentário, porque a sua intervenção é em último


caso (é ultimo ratio), não intervindo senão em caso de violação de bens jurídicos
importantes e para cujo acautelamento não há outro instrumento adequado, como diz
CEZAR ROBERTO BITENCOURT (2012, p. 19)45

“Uma das principais características do moderno Direito


Penal é o seu carácter fragmentário, no sentido de que representa a
última ratio do sistema para a proteção daqueles bens e interesses de
maior importância para o indivíduo e a sociedade à qual pertence.
Além disso, o Direito Penal se caracteriza pela forma e finalidade com
que exercita dita proteção”.

1.5. Generalidades

Homicídio é considerado (em todas as fórmulas etimológicas já vistas supra e que


reconduzem a uma única formulação de) como sendo ato de matar outra pessoa, ou, como
prefere o nosso legislador de 1993, tirar a vida de outra pessoa.

Matar significa, pois, tirar a vida, destruir o homem; mas a vida de outra pessoa, ou
de “homem” alheio (e não a própria pessoa detentora da sua vida). Em relação a vida
própria, estamos perante uma esfera livre de direito, não constituindo o suicídio — e que
é “pôr termo” a própria vida —, um crime. Por esta razão é que se pune o auxiliador ou
instigador já por ter se intrometido na vida alheia, por ter se interferido na vida alheia. Só
temos a notícia da punibilidade de suicídio — mas já a título de tentativa —, no direito
penal inglês de 1961. E a título de tentativa porque não é possível punir quem já é extinto,
o cadáver, salvo nos casos dos tempos da inquisição em que era possível punir tanto os
animais, por se entender que os animais se encarnavam nos seres humanos e que, havendo
“infrator”, era necessário puni-lo, ou o espírito maligno que se encontrava no “ser
infrator”. E o cadáver, por se entender que, de acordo com a teoria retributiva das penas,
a pena deve ser aplicada, mesmo ao morto, para que o seu sangue não caia sobre os
sobreviventes da coletividade.

1.6. Relance ao critério da conduta lesiva central

Deixado que ficou a matéria dos critérios gerais de sistematização adotados pela
Comissão Revisora do Código Penal português a proposta de ordenação dos tipos na PE

(paris cœdes ou paris excidium) — e não necessariamente a morte dada ao ascendente (patris
occidium) era severamente punido”.

45 CEZAR ROBERTO BITENCOURT, Tratado de Direito Penal. Parte Geral, volume 1, 17.ª
edição ampliada e atualizada, São Paulo: Saraiva, 2012.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

(Actas, 1979, p. 9 e ss.); e feito, de forma geral, tratamento dos critérios internos, agora
vamos, em termos de recordação, para entrar na PE, relativamente ao homicídio:
art.º107.º do CP guineense começa o capítulo i, do título ii da Parte Especial, com o
homicídio como modo básico e paradigmático de lesão do bem jurídico vida, para depois
incriminar as formas agravadas (art.º 108.º) e as formas privilegiadas (art.º 110.º) e menos
graves como o homicídio negligente (art.º 111.º) e o abandono ou exposição (art.º 113.º).

Este é o critério de codificação (critério interno de sistematização) seguido pelo


legislador penal guineense do CP de 1993, isto é, o critério da conduta lesiva central, por
referência ao critério do bem jurídico tutelado (critério externo de sistematização), ou
seja, organização dos capítulos de acordo com os bens jurídicos perfilhados, os quais, por
sua vez, presidem à arrumação das condutas incriminadas.
Por exemplo:
√ A vida formada (homicídio, infanticídio, homicídio negligente);
√ A vida em formação(aborto);
√ A integridade física (ofensas corporais);
√ A liberdade pessoal (ameaças, coação, sequestro, rapto);
√ etc.

1.7. O tipo objetivo

O bem jurídico protegido com a incriminação do homicídio é, pois,

a vida humana formada de outra pessoa;

O agente pode ser qualquer pessoa (crime comum).

A vítima ou sujeito passivo é qualquer ser humano (observando-se que a doutrina


considera que a vida de um ser como pessoa para os efeitos de homicídio começa com o
início dos trabalhos do parto, com as primeiras contrações dilatórias, bastando que o
sujeito passivo esteja vivo; sendo que, antes dos trabalhos do parto, a conduta do agente
preencherá o aborto e não o homicídio);

A conduta típica: o homicídio é um crime de forma livre, podendo, assim, ser


cometido por qualquer meio de execução adequado a produzir o resultado (por exemplo:
asfixia com gás, tiro de revólver, enforcamento, uma facada, uma paulada, suplício, etc.).
Tanto pode realizar-se por ação, como por omissão 46; (neste caso, desde que sobre o
agente recaia um dever especial de agir fundado numa posição de garante — vide art.º 20.º
e as respetivas anotações — (ISASCA, 1997, pp. 32-34) e as nossas anotações ao art.º
107.º do CP (SANHÁ, 1997, p. 121 e ss.)

A consumação tem lugar quando sobrevém a morte, que ocorre no momento em


cessam as funções do cérebro no seu conjunto.

46 V. sobre este último caso, FREDERICO ISASCA, in Código Penal Anotado, Ordem de Advogados
da Guiné-Bissau e TIPS/USAID, 1997, p. 32-33, onde o autor entende que só se verifica o crime de
homicídio doloso quando recaia sobre o agente um dever especial de agir fundado numa posição de garante.
Esta posição acompanhámos nas nossas anotações sobre o homicídio (at.º 107.º), in Código Penal Anotado,
Ordem de Advogados da Guiné-Bissau e TIPS/USAID, 1997, p.122.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

1.8. O tipo subjetivo

O dolo de matar alguém. O dolo pode ser aqui direto (art.º 22.º, n.º 1, exemplo:
esfaquear mortalmente a vítima), necessário (art.º 22.º, n.º 2; v.g., tramar o afundamento
do barco com passageiros para receber o seguro o mesmo), ou eventual (art.º 22.º, n.º 3;
v.g., avançar com uma viatura sobre crianças a brincar na estrada, prevendo a
possibilidade de as atropelar e não se importando com isso, assumindo a possibilidade de
produzir o resultado atropelamento).

1.9. O objeto da ação

O objeto da ação no crime de homicídio, como o próprio significado etimológico da


palavra mostra (“homo + cædere”, destruir o homem), é o corpo humano alheio.

1.10. O bem jurídico protegido


O bem jurídico perfilhado no crime de homicídio é a vida humana. A partir daqui,
não faltou desencontros na doutrina relativamente a se o bem jurídico protegido no
homicídio é o mesmo que é protegido no aborto. Esta querela é travada, segundo
figueiredo dias (Comentário 1999 I, 4), com contornos profundos, nos campos
“ideológicos, teológicos e mesmo confessionais — sobre se a vida intrauterina e é a
mesma vida que o crime de homicídio protege”. Mas como afirma figueiredo dias (Ibid.,
4-5):

“[…] a distinção entre homicídio e aborto se não pode fazer ao


nível do bem jurídico, mas só deve fazer-se ao nível do objeto do facto:
este seria, no crime de homicídio a pessoa já nascida, no crime de
aborto a pessoa ainda não nascida (o nascituro, o embrião, o feto, o
produto de concepção ou como quer que se repute preferível exprimir-
nos a este respeito)”.

1.11. Justificação

1.11.1. Por consentimento

Em relação ao homicídio, a doutrina geral das causa de justificação tem que ser vista
de forma mais exigente acentuando a questão de, em relação a consentimento, seja ele
efetivo ou presumido, não deva excluir, em caso algum, a ilicitude. Apesar de discussões
que se possa travar sobre a questão, entendemos que a questão deve ser reservada, ao
invés da constelação do consentimento (muito embora pareça poder ser: a menos que não
seja na vertente da cláusula dos bons costumes), a outras constelações, quais sejam “as
práticas socialmente adequadas” e “casos de risco permitido”. Exemplos: casos de
homicídios ocorridos em cede de práticas desportivas, intervenções médico-cirúrgicas,
práticas de circuncisão masculina (prática universalmente aceite e reconhecida, ao
contrário da excisão clitoridiana em volta da qual há tempestade de celeuma) e um sem
número de outros casos em que por razoes culturais ou outras, as pessoas se veem
entregues de corpo e alma ou por devaneio, sem contar com riscos ou por não acreditarem
na sua ocorrência, ou por os admitir na eventualidade, mas obterem por aquilo que
entendem ligados às vicissitudes da vida. Não obstante existir tendência minoritária em
admitir a justificação, por consentimento, nos casos homicídio negligente: nomeadamente

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

nos casos de morte resultante de auto ou heterocolocação em perigo. Veremos esta


questão ali.

1.11.2. Por legítima defesa

Relativamente à legítima defesa, a causa de justificação mais frequente e mais


importante em matéria de homicídio, é o instituto da legítima defesa. Mas tem se
registado tendência (representada em Portugal por Fernanda PALMA (1990, p. p. 441 e
ss.) 47 que rejeita a admissão da legitima defesa em caso de ofensas a bens jurídicos
diferentes da vida ou (eventualmente também) da integridade física “essencial”.
FIGUEIREDO DIAS, e defesa da tese da admissibilidade, sem limitações defendida por
FERNANDA PALMA (pp. Ibid., p. 385 e ss.) e TAIPA DE CARVALHO (1994, p. 311 e 414 e
s.)48 — que entendem que a legitima defesa não deve operar nos casos de agressões a
bens jurídicos de valor insignificantes; e a de que, “em certos casos onde falte algum dos
pressupostos da legitima defesa, deverá porventura aceitar-se a existência de uma causa
supralegal de justificação do tipo das chamadas «situações de quase-legítima defesa» ou
do «estado de necessidade defensivo»”, como defende TAIPA DE CARVALHO (1994, pp.
403 ss., 431 ss., 463 s.) — afirma o seguinte:

“Esta doutrina não parece dever merecer acolhimento, por isso


que uma tal limitação se não conjuga com o fundamento legitimador
da justificação por legitima defesa. O que tem particular relevo
relativamente à realização do tipo de ilícito de homicídio são ideias
comuns a todo o instituto (e cabidas na epigrafe, hoje generalizada,
das «limitações ético-sociais a legítima defesa»”49.

1.12. O homicídio agravado

Em relação às controvérsia estabelecida, designadamente na Europa (particularmente


na Alemanha e Espanha) entre os que entendem ser o Homicídio qualificado o tipo base
dos crimes dolosos contra a vida, de que o Homicídio simples constituiria uma forma
atenuada (como no Direito alemão); e os que entendem ser ambos tipos legais autónomos,
cada qual com o seu conteúdo autónomo de ilícito, o legislador português — com aplauso
da doutrina, estando entre autores, designadamente FERNANDA PALMA (1983) 50 ,
sufragada pela autoridade de Figueiredo DIAS — fez tradição em considerar o homicídio
qualificado como uma forma agravada do homicídio simples do art.º 107.º. É nesta
afirmação aparentemente “trivial” que repousa todo o alicerce da arquitetura relacional
entre o homicídio simples (art.º 107.º) e o homicídio agravado (ou qualificado, para
alguns sistemas). A partir desta afirmação, segundo FIGUEIREDO DIAS (1999, p. 25.) fica
balizada a posição

47
A Justificação por Legitima Defesa como Problema de Delimitação de Direitos, p. 41 ss.
48

49 v., por todos, FIGUEIREDO DIAS, “Legítima Defesa”, Polis III; criticamente FERNANDA PALMA,
Legitima Defesa cit. 385 ss. e TAIPA DE CAIRVALHO, A Legítima Defesa, 1994 251 ss., 311 ss. e 414
s.

50 Estando, neste sentido, designadamente Fernanda PALMA, Direito Penal Especial. Crimes Contra
as Pessoas 1983 40 s. e TERESA SERRA, Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e Medida da Pena 1990
49).

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

“No sentido de se recusar logo a partida quer que o homicídio


qualificado constitua o tipo legal básico dos crimes dolosos contra a
vida, de que o homicídio simples constituiria apenas uma forma
atenuada (assim todavia, para o direito alemão), eb. Schmidt, DRZ
1949 272 ss .); quer que homicídio simples e homicídio qualificado
constituam tipos legais autónomos, com autónomos «conteúdos de
ilícito», se bem que protetores do mesmo bem jurídico assim todavia,
como nota teresa serra, Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e
Medida da Pena, 1990 50, a doutrina espanhola dominante, pela qual
pode ver-se agora muñoz conde 43 s.; e, para o direito alemão, o BGH,
JZ 1952 85 ss .).”

A distinção revela-se fundamental, como justifica FIGUEIREDO DIAS (ibid.), do


ponto de vista político-criminal, sobretudo em relação às consequências originadas por
cada um das conceções em controvérsia, sobretudo em matéria de comparticipação e
consequentes regimes de comunicabilidade e incomunicabilidade das circunstâncias
qualificadoras, nos termos dos artigos 28.º e 29.º, ambos do CP português,
correspondentes aos artigos 19.º e 18.º do CP guineense, respetivamente.

1.12.1. Elementos agravantes: breve panorama da CPLP

A guisa de uma notícia sucinta, a técnica de qualificação utilizada no art.º 132.º, n.º 2
do CP/P, e que também foi seguida pelo CP de Macau no art.º 129.º; e at.º 130.º do CP
Sã-tomense, é diferente da que foi utilizada no art.º 1886, no seu art.º 351.º em que
constava uma descrição taxativa das circunstâncias conducentes a qualificação do
homicídio, ao que acrescia a existência dos tipos autónomos do envenenamento (art.º
353.º) e do parricídio (art.º 355.º) que, na vigência do CP/P de 1982, foi seguida,
praticamente, em unanimidade pela jurisprudência portuguesa; representando o exemplo
disso os Acs. do STJ português de 26-11-86 e de 12-7-89, BMJ 361" 283 e 389" 310. Em
relação aos restantes países da Língua portuguesa em África, a situação em Angola, Cabo
Verde e Guiné-Bissau, é de:

a) Cabo Verde: o CP consagra a agravação de três ordens de natureza:


i) A agravação em razão dos meios (art.º 123.º, alínea a) e b));
ii) A agravação em razão dos motivos (art.º 123.º, alíneas c), d) e e)); e
iii) A agravação em razão da qualidade da vítima (124.º)

E que, na explicação de Jorge Carlos da FONSECA (1996, p. 397 ss.)51 citado por
FIGUEIREDO DIAS (1999, p. 25), são divididos em dois grupo:

a) o primeiro, de funcionamento automático; e


b) o segundo, condicionado a verificação de que as circunstancias que o integram
revelam «um acentuado grau de ilicitude ou de culpa do agente».
a) Angola: o código penal aprovado por Lei n.º 38/2020, de 11 de Novembro,
contempla a agravação de três ordens de natureza52:

51
O Anteprojecto do Novo Código Penal de Cabo Verde: uma leitura, em jeito de apresentação,
1996.
52 Diz o mesmo diploma legal:
ARTIGO 148.º

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

i) A agravação por meios (art.º 148.º);


j) A agravação em razão dos motivos (art.º 149.º); e
ii) A agravação em razão da qualidade da vítima (art.º 150.º);

(Homicídio qualificado em razão dos meios)

1. É punido com pena de prisão de 20 a 25 anos o homicídio cometido com recurso aos seguintes
meios:
a) Veneno ou outro meio insidioso;
b) Dissimulação ou outro meio que torne difícil ou impossível a defesa por parte da vítima;
c) Actos de crueldade ou tortura;
d) Por experiencias medico-medicamentosas ou outros meios tecnológicos afins sem o
consentimento do paciente.
2. O homicídio é punido com a mesma pena quando o facto for praticado:
a) Por duas ou mais pessoas;
b) Com grave abuso de autoridade, sendo o agente funcionário público.

ARTIGO 149.º

(Homicídio qualificado em razão dos motivos)

É punido com pena de prisão de 20 a 25 anos o homicídio cometido em razão dos seguintes motivos:

a) Avidez, prazer de matar, excitação ou satisfação do instinto sexual;


b) Pagamento, recompensa, promessa ou qualquer motivo fútil ou torpe;
c) Ódio racial, religioso, político, étnico-linguístico ou regional;
d) Para preparar, executar ou encobrir um outro crime;
e) Para facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente do crime;
f) Actuando o agente com frieza de ânimo ou reflexão ponderada sobre os motivos e contra-
motivos ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas.

ARTIGO 150.o

(Homicídio qualificado em razão da qualidade da vítima)

É punido com pena de prisão de 20 a 25 anos o homicídio em que a vítima for:

a) Ascendente ou descendente, adoptante ou adoptado ou parente até ao terceiro grau da linha


colateral do agente do crime;
b) Cônjuge ou pessoa com quem o agente viva em situação análoga à dos cônjuges;
c) Pessoa particularmente indefesa em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez;
d) Presidente da República e Titulares dos seus Órgãos Auxiliares, membros de Órgão de
Soberania, Provedor de Justiça, Magistrado do Ministério Público, Governador Provincial,
Advogado, Oficial de Justiça, funcionário ou qualquer pessoa encarregada de um serviço
público, agente de força ou serviço de segurança, desde que o facto seja praticado no
exercício ou por causa do exercício das funções da vítima;
e) Testemunha, declarante, perito, assistente ou ofendido, se o crime for cometido com a
finalidade de impedir o depoimento ou a denúncia dos factos ou por causa da sua
intervenção no processo;
f) Docente, examinador, ministro de culto religioso no exercício ou por causa do exercício
das suas funções.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

O homicídio agravado tem, no Código penal guineense, elementos agravantes de


duas ordens de natureza:

a) uma maior ilicitude material como lesão ou autocolocação em perigo dos


bens jurídicos protegidos pela norma: alíneas a) e b);
b) Uma maior culpa, como censurabilidade social da conduta violadora da
norma: alínea c).

Para mais desenvolvimento, v. a nossa anotação ao art.º 108 (SANHÁ, 1997, p. p.


122 e s.).

O Projeto do Novo Código Penal guineense traz uma formulação mais criativa e
mais desenvolvida no seu artigo 149.º e que é a seguinte:

1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou


perversidade, em razão:

a) Da função social da vítima ou de relações existentes entre o agente e a vítima, e que


acentuam de forma especial e altamente significativa o desvalor da ação;
b) De um modo de preparação e de execução do ato ou dos meios utilizados que revelam um
especial e elevado grau de ilicitude;
c) Da qualidade de vítima ou do agente que revelam um especial e elevado grau de ilicitude;
d) Dos motivos ou finalidade que pateiam um especial aumento da culpa do agente, dos
métodos e dos meios utilizados e da qualidade do agente;

Este é punido com pena de prisão de doze a vinte e anos.

2. É susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância da função social


da vítima referidas na alínea a) do número anterior o facto de o agente ter praticado o ato contra
membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado,
Provedor de Justiça, governador civil, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou
organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha,
advogado, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de
conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente
de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de
comunidade escolar, ou ministro de culto religioso, juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das
federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas.
3. É susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância do tipo de
relação existente entre a vítima e o agente referida na alínea a) do n.º 1, o facto de o agente:

a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;


b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o
agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga a dos cônjuges, ainda que sem
coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau;

4. São susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade as circunstâncias de modo


de preparação ou de execução do acto ou de meios utilizados referidas na alínea b) do n.º 1, o
facto de o agente:

a) Ter agido com premeditação e insídia, utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;
b) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na
intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;
c) Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima;
d) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio
particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

5. Revela especial censurabilidade ou perversidade a qualidade do agente ou da vítima referida na


alínea c) do n.º 1, nomeadamente:

a) Ter praticado o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade,


deficiência, doença ou gravidez; ou
b) Ser o agente funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade

6. Revelam especial censurabilidade ou perversidade os motivos e as finalidades referidas na alínea


d) do n.º 1, o facto de o agente:

a) Ter sido determinado por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica
ou nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual da vítima;
b) Ter sido determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para
excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer outro motivo torpe ou fútil;
c) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou
assegurar a impunidade do agente de um crime.

1.13. Os homicídios privilegiados no direito penal guineense: art.º 110.º


(infanticídio)

1.13.1. Relance ao Direito Comparado

1.13.2. Quadro comparativo legislativo a nível da CPLP

Antes de procedermos à análise do que é homicídio privilegiado no sistema penal


guineense, faz-se míster fazer uma olhadela ao que é entendido como homicídio com base
no Direito Comprado, designadamente o sistema português e, como reflexo, os códigos
penais da CPLP, nomeadamente Angola, Brasil, Cabo Verde, Moçambique e Timor leste,
estes cinco últimos, em termos apenas da resenha legislativa principal (os Códigos);
reservando — por agora — a abordagem (ainda que de forma resumida) ao sistema
português, por o ambiente e a natureza da nossa abordagem não comportarem a
abordagem da natureza mais desenvolvida e abrangente (e em termos de a análise
abranger mais sistemas). Enfoque comparativo visa dar, aos alunos, um panorama do que
é a matéria do homicídio privilegiado, que não se cinge ao artigo que se refere ao
homicídio privilégio: uma abordagem restritiva do homicídio privilegiado.

Vamos, pois, em termos do enquadramento, plasmar uma visão alargado do


homicídio privilegiado, compreendendo outros tipos de homicídio que integram o quadro
doutrinário dos homicídios privilegiados, partindo dos pressupostos de homicídio e os
demais elementos que caraterizam a essência do homicídio privilegiado (nomeadamente
os fundamentos do privilegiamento).

Assim, em termos de passagem comparativa, vamos referir que, no âmbito da CPLP


[palops + Brasil + Timor-Loro Sae (de tétum: Timor Sol Nascente) incluindo Portugal,
que terá uma abordagem analítica e Guiné-Bissau, anfitrião do estudo que receberá o
mesmo tipo de abordagem analítica, na medida da sua dimensão doutrinária], o quadro
se apresenta com:

a) Países com o sistema restritivo:


i) Angola: artigos 151.º, infanticídio;
ii) Cabo Verde: art.º 125.º, (Homicídio a pedido da vítima);
iii) Guiné-Bissau: art.º 110.º, (Infanticídio);

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

iv) Moçambique: art.º 165.º (Infanticídio); e


v) Timor: art.º 142.º (Infanticídio); e
b) Países com sistema alargado:
i) Brasil: Homicídio privilegiado (art.º 121.º, § 1) e Infanticídio (art.º 125.º);
ii) Portugal: artigos 133.º 134.º e 136.º, Homicídio privilegiado, Homicídio a
pedido da vítima e Infanticídio, respetivamente;
iii) São Tomé e Príncipe: artigos 131.º, 132.º e 135.º, respetivamente: homicídio
privilegiado, homicídio a pedido da vítima e Infanticídio privilegiado.

1.13.3. Portugal
I

No direito português, existem seguintes homicídios privilegiados: primeiramente


homicídio privilegiado e Homicídio a pedido da vítima; aos quais se acresce o
Infanticídio.

1.14 O homicídio privilegiado e o homicídio a pedido da vítima

1.14.1 O homicídio privilegiado

1.14.1.1 Conceito
O homicídio privilegiado é aquele em que o agente mata outra pessoa, movido por
situação de a vítima se encontrar perante um sofrimento atroz e comovente que impele o
agente a agir para pôr termo à vida da vítima.

1.14.1.2 O fundamento do privilegiamento


Os fundamentos do privilegiamento residem no fator compreensível diminuição
da culpa: que se encontre numa situação de o agente se encontrar dominado por
compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor
social ou moral, e que crie no agente, segundo JORGE DE FIGUEIREDO DIAS
(Comentário I, 1999, p. p. 47.) “um hoje dogmaticamente chamado, em geral, estado
de afecto” a que — na expressão de Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette “a
culpa cede” (Código Penal, 2014 , p. p. 380.). Porque, neste caso, a exigibilidade é de
reduzido grau que conduz à diminuição sensível da culpa, que dá origem ao privilégio.
Ou, noutras palavras de FIGUEIREDO DIAS (1999, p. p. 48.), o efeito diminuidor da
culpa —, à semelhança do que acontece, em geral, “com a ideia da exigibilidade como
componente da culpa-jurídico-penal — “ficar-se-á a dever ao reconhecimento de que,
naquela situação (endógena e exógena), também o agente, mormente «fiel ao direito»
(«conformando com a ordem jurídico-penal» teria sido sensível ao conflito espiritual
que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, no sentido de lhe ter sido
estorvado o normal cumprimento das suas intenções” (1969, pp. p. 191, 318, 434 e
ss.)53. Para alguns, seguindo alguma doutrina alemã, — baseada no preceito (embora
não muito correspondente) do Código Penal alemão: o § 213 — agrupam as
circunstâncias privilegiantes em dois: a compreensível emoção violenta, a compaixão
e o desespero, por um lado, e, por outro, os motivos de relevante valor social ou moral.

53 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, 1969, p.


191, 318, 434 e seguintes; e RPCC, 1992, 27 e ss; e do mesmo autor, Comentário conimbricense I, p. 48.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Ou como entende FERNANDA PALMA (1983, p. p.82.) 54 , os fundamentos do


privilegiamento teriam dois sentidos: num, a diminuição da capacidade psicológica
do agente; e noutro, o princípio da exigibilidade as mesmas circunstâncias seria
diferentes num e noutro sentido. Entende FIGUEIREDO DIAS (1999, p. ibid.) que,
ambos os fundamentos (a compreensível emoção violenta, a compaixão e o desespero
por um lado e, por outro, o motivo de relevante valor social ou moral) são “elementos
exclusivamente atinentes à culpa”, ou ao tipo de culpa do agente. Porque, dizer-se que
os primeiros (a compreensível emoção violenta, a compaixão e o desespero) afetam a
capacidade ou poder de resistência do agente à pulsão interior ou “o indiferenciado
«poder de agir de outra maneira”, não é bem assim. Mas somente quando diminuem
sensivelmente a exigibilidade de outro comportamento, tal como acontece com o
segundo (o motivo de relevante valor social ou moral).

1.14.2 Homicídio a pedido da vítima (art.º 134.º CP português)

1.14.2.1 Conceito
Quanto ao homicídio a pedido da vítima é aquele homicídio que ocorre quando
alguém cansado de viver se dirige a outrem um pedido expresso, sério e instante para que
este lhe ponha termo a vida.

1.14.2.2 Fundamento do privilegiamento


Decorre da previsão do homicídio a pedido da vítima que a vida não é disponível para
terceiro, por isso o consentimento da vítima não é causa de justificação para o facto;
decorrendo disso, apenas quando o consentimento em causa for prestado de forma livre
e consciente, a diminuição da ilicitude; ou uma redução acentuada quando se apresenta
sob a forma de um pedido sério: que produz um consentimento qualificado: não a simples
adesão da vítima à proposta do agente, mas a tomada da iniciativa pela própria vítima. E
também numa diminuição (autónoma) do conteúdo da culpa resultante da determinação
do agente pelo pedido: o motivo primordial da acção, segundo, silva dias, deve ser “o
respeito pela vontade seriamente expressa

1.14.2.3 Problemática da comissão por omissão


Normalmente é praticado por acção, mas entende uma parte da doutrina poder ser
também cometido por omissão. Tendo este tipo de punição maior ressonância, nesta
modalidade, quando alguém cansado de viver pede a outra pessoa ou a um médico que
lhe deixe morrer, e este cumpre o pedido deixando que o mesmo indivíduo (vítima) morra.
Designadamente nos casos relatados por COSTA ANDRADE (1999, pp. 66-67) (caso
Wittig) e FERNANDO BRONZE (A Metodologia, 1994, p. 201 e 225) (caso Hackethal),
ambos da Jurisprudência alemã, sobretudo do Tribunal Federal alemão (BGH) —
“alguém investido numa posição de garante (v. g., familiar, médico, enfermeiro) e
correspondendo ao pedido instante e sério de um doente ou suicida, deixa de levar a cabo
as ações ou tratamentos que poderiam impedir a morte da vítima” — casos extensíveis ao
suicídio e que com este contendem, sendo por isso controversas as posições sobre a sua
punição a título de Homicídio a pedido da vítima.
SILVA DIAS (entre outros) afasta esta posição por entender, e bem, que:

54
FERNANDA PALMA, Direito penal: Parte Especial, Crimes Contra as Pessoas, edição policopiada., DFL
– PBX, 1983.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

a) Em primeiro lugar, em ambos os casos estamos perante suicídio cometido


na presença de um terceiro (médico) e não de um Homicídio a pedido da vítima,
porque:
i) nem o suicídio, nem a tentativa do suicídio são factos ilícitos ou
contrários à ordem jurídica;
ii) a pessoa casada de vida não faz ao médico presente um pedido de
morte, mas um pedido de o deixar morrer: o Direito — numa
sociedade de matriz liberal, carregado de carga de alteridade ou
intersubjetividade como característica intrínseca da juridicidade
liberal — “não se ocupa das relações do individuo consigo próprio;
por isso, os bens pessoais e patrimoniais são disponíveis para o
próprio titular, desde que lhe seja socialmente reconhecida a
competência para os administrar. Assim sendo, o ato suicida se
localiza no chamado «espaço isento ou livre de Direito»
(Rechtfreieraum);
b) Em segundo, os médicos Wittig e Hackethal não estavam investidos de
posição de garante perante os pacientes suicidas porque:
i) A posição de garante do médico tem fundamento na especial
protecção dos bens jurídicos do paciente, que as relações sociais
lhe impõem sendo instrumental para tal; assim
ii) Cessa a posição de garante do médico quando é o paciente que
“recusa livre e conscientemente um tratamento ou uma
intervenção, ainda que com riscos graves para a sua vida ou
saúde”. Para o autor, o entendimento de que esta posição se
mantém viola o princípio da unidade da ordem jurídica, enquanto
o princípio de não contradição prático-normativa, por levar a
médico continue vinculado a um dever especial de agir para evitar
a morte do paciente, o significando isso, na prática, a imposição,
por parte do médico de um tratamento ou de uma intervenção
proibidos pela própria lei (art.º 156.º do CP português); e,
derradeiramente
c) Em último, por fim, e ligado ao que acabou de ser referido, é a própria ordem
jurídica que proíbe ao médico o tratamento ou intervenção sem consentimento
(livre e consciente) antes e depois da perda de consciência), deixando de estar em
conflito de dever de salvar ou tratar por força da proibição expressa art.º 156.º do
CP português, associada à autonomia ética da pessoa subjacente a esta previsão
normativa incriminadora da vítima” e que, nesse sentido, “representa uma
motivação socialmente respeitável” desde que esta vontade subsista no momento
em o agente é determinado por ela. Ou, como afirma Roxin — na citação de COSTA
ANDRADE (1999, p. p. 66.), — falando do art.º 216.º do CP alemão, paralelo ao art.º
134.º do CP português, “a luz do pensamento básico subjacente ao art.º 216.º, o que
é decisivo é apenas saber que a vítima exprime inequivocamente — seja qual for a
forma — o seu pedido de ajuda na (produção da) morte e que esta vontade ainda
exista no momento decisivo em que o agente é determinado por ela”.

1.15 O infanticídio
I

1.15.1 Generalidades

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

1.15.1.1 Enquadramento da abordagem conjunta: art.º 136.º e 110.º dos códigos


português e guineense respetivamente
Dado à proximidade doutrinária, decidimos fazer uma abordagem conjunta resumida
dos dois artigos dos sistemas português e guineense, sublinhando-se, obviamente, as
nuances divisórias onde se registam, o que se depreenderá pela leitura da posição
discursiva. Nomeadamente a abordagem, depois do enquadramento geral, propenderá
para o infanticídio costumeiro guineense.

1.15.1.2 Enquadramento do objeto


O infanticídio constituiu, durante muito tempo, uma figura controversa que ora se
traduzia numa subespécie de homicídio qualificado, pelo carácter indefeso e vulnerável
da vítima, ora em uma subespécie de homicídio privilegiado: o exemplo típico do que
acabei de mencionar a incriminação do art.º 356 do CP de 1886.º em que, no seu n.º 1 se
punia com pena maior de 20 a 24 anos aquele que matasse “voluntariamente um infante
no ato do seu nascimento, ou dentro em 8 dias, depois do seu nascimento” ; e, no seu §
único, atenuar para prisão maior de 2 a 8 anos a pena da mãe que cometesse infanticídio
“para ocultar a sua desonra, ou pelos avós maternos para ocultar a desonra da mãe”
(posição, esta última, ainda subsistente no essencial em outras ordens jurídicas, v. g., no
art.º 217.º do CP alemão).

O CP português de 1982, não mais contou com a consideração do infanticídio como


homicídio qualificado com fundamento anteriormente considerado, passando configurá-
lo, não como um tipo autónomo de homicídio qualificado, mas como uma espécie de
homicídio privilegiado tout-court, mantendo, a nível da tipicidade o infanticídio
privilegiado ao dizer: “mãe que matar o filho durante ou logo após o parto, estando ainda
sob a sua influência perturbadora ou para ocultar a sua desonra”.

A revisão de 1995 veio suprimir a referência à circunstância ocultação da “desonra”


como causa de privilegiamento por se entender que tal circunstância não conta mais hoje
em dia como motivo para referido privilegiamento. Posição essa que teve como prócer
figueiredo dias — como veremos infra — para quem ter filho não deve ser hoje
considerado com uma vergonha para ninguém, e que, tal circunstância pode ser ponderada
na medida da pena.

1.15.2 Infanticídio costumeiro e puerperal


II

No sistema penal guineense nascido do CP de 1993, apenas existe um crime


privilegiado e que é o tipo do artigo 110.º55 cujo ilícito típico é moldado no sentido do

55 Diz o artigo 110.º o seguinte:

1. “a mãe, o pai ou os avós que, durante o primeiro mês de vida


do filho ou do neto, lhe tirarem a vida por este ter nascido com
manifesta deficiência física ou doença, ou compreensivelmente
influenciados por usos e costumes que vigorarem no grupo étnico a que
pertençam, são punidos com pena de prisão de dois a oito anos, se tais
circunstâncias revelarem uma diminuição acentuada da culpa.
2. A mãe que tirar a vida ao filho durante o parto, ou logo após
este e ainda sob a influencia perturbadora, é punida com pena de

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

cometimento de um facto em circunstâncias que fragiliza a sanção penal por a culpa se


revelar especialmente enfraquecida por situações que deixam o agente particularmente
atingido pela força, ou situação que não lhe é exigível comportamento alternativo.
Designadamente situação de doença (infanticídio eugénico), influência dos usos e
costumes dos grupos étnicos (infanticídio cultural) ligados à crença e hábitos ou
costumes, por exemplo, de eliminar um recém-nascido porque nasceu de determinada
forma que, para o grupo étnico dos progenitores, consubstancie um perigo para eles ou
para a comunidade e que, pela sua natureza, pode acarretar perigo do ponto de vista social
porque podem ser alvo de perseguição ou de malefício por ter nascido um ser que ameaça
— com a sua presença naquela comunidade — os membros da coletividade. Quando a
prática de eliminação física não consistir em qualquer ritual que acompanhe o ato, está-
se perante o infanticídio costumeiro; quando acompanhada de um ritual que leve à sua
realização, está-se perante o infanticídio ritual.

Sendo um tipo doloso, a realização compadece-se com a acção deliberada de pôr


termo a vida de um recém nascido, até o primeiro mês (n.º 1 do art.º 110.º) de vida desse
neonato ou durante o período que compreende os trabalhos do parto e o logo após que,
estando a mulher, ao mesmo tempo, dominada pelo puerpério (n.º 2), cuja ocorrência
carece de prova. Mas havendo dúvida insanável sobre se durante a sua verificação, a
mulher se encontrava sob a influência desse estado anormal, estado de perturbação pós
parto, é de se aplicar o princípio in dúbio pro reo, conforme defende — e bem — Figueiredo
DIAS (1999, p. 103). Porque a lei não determina um período e parece-me razoável que
assim seja, na medida em que as circunstâncias que desencadeiam essa situação de
perturbação não são iguais para todas as pessoas e natureza de cada pessoa. As suas causas
— tanto de natureza endógena quanto exógena —, dependerão da natureza e do contexto
em que cada uma se encontra. Para obviar as vicissitudes ínsitas à natureza desse “fator
influência perturbadora do parto”, continuamos a pugnar pela ideia daquilo que nós (sem
desprimor) chamaríamos teoria da unidade temporal — conforme afirmámos na nossa
anotação a este mesmo preceito — segundo a qual, no que se refere “ao infanticídio para
ocultar a desonra ou vergonha social, como esta motivação está temporalmente
dependente do conceito de «logo após», dado que as duas circunstâncias são cumulativas,
isso implica que têm de ocorrer as duas no mesmo lapso de tempo” (SANHÁ, 1997, p. p.
131.).

A modalidade do n.º 2, designada de infanticídio puerperal e, na formulação do nosso


legislador, causa honoris [infanticídio puerperal e causa honoris] — por juntar,
anomalamente, as duas circunstâncias, conforme já acabada de referir —, é um crime de
mão própria porque tem que ser praticado pela própria mãe que tem que estar nas duas
situações acabadas de referir: estar sob puerpério e agir para encobrir a desonra ou
vergonha social. Preenchendo, com a sua conduta, apenas uma delas, não poderá ser
punida.

A circunstância “encobrimento” da vergonha social (causa honoris), deixou de ser


considerada como fundamento bastante para o privilegiamento típico [Cf. Maia
Gonçalves (1998, pp. art.º 136.º, 1 e 2; e o Ac. do STJ portugês de 21-2-93), LEAL-
HENRIQUES/SIMAS SANTOS (Código Penal II, 1997?, p. 103) e DAMIÃO DA CUNHA

prisão de um a quatro anos, se o fizer como forma de encobrir a


desonra ou vergonha social.”

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

(Aborto, 1999, p. 146)]. E como tal (por deixar de fundamentar, autonomamente o tipo
privilegiado) a ocultação da vergonha social passou a poder ser “sempre” apreciada na
aplicação da pena — na medida concreta da pena — (GONÇALVES, 1998, pp. art.º 136,
3) e mesmo, em circunstâncias especiais ou excecionais, para o efeito de homicídio
privilegiado do art.º 133.º do Código Penal português, ou, pelo contrário — mas não
indiferentemente, para não violar o princípio da proibição da dupla valoração do mesmo bem
jurídico (ne bis in idem) —, para efeito de atenuação especial, consoante o juiz encontre
razões mais fortes para o privilegiamento, ou as que justificam simplesmente a atenuação
especial56.

No normativo do nº 1 do art.º 110.º do Código penal guineense, prevê-se o infanticídio


na modalidade de infanticídio eugênico — o cometido em razão de a criança ter nascido
com manifesta deficiência física ou doença e que — e neste caso estaremos já na segunda
modalidade: a do infanticídio cultural ou costumeiro —, segundo a crença arreigada no
grupo a que pertencem os pais ou avós, não deve continuar a viver sob pena de os
progenitores virem cair sobre si o infortúnio caraterizada por mais varadas índole de
desgraça e de diversas origens, designadamente de origem sobrenatural, pelo que, a
comunidade e ou a família não tem outra solução que não seja a de procurar livrar-se de
tais pragas ou realizando o ritual do afastamento do aparente criança que outra coisa não
é que não um ser estranho que, por ironia da natureza, veio tomar corpo humano e habitar,
por fatalidade, no ventre humano, ou simplesmente praticar o seu afastamento (quando
tal prática não exige a realização de qualquer ritual). Na primeira modalidade, estamos
perante aquilo que é considerado de infanticídio ritual… por a prática do afastamento do ser
nascido, indevidamente, no vente humano — segundo as crença—, ter sido feito mediante
a prática de ritual concernente para o efeito; na segunda modalidade, estamos perante o
infanticídio costumeiro ou, simplesmente, cultural, designação que vale também para ambas
as modalidades.

A crítica que se dirige à formulação do n.º 2 do mesmo artigo, é a de conter uma


duplicidade de situações entre si inconciliáveis: por um lado diz-se que a mãe, ao praticar
o facto de matar a criança logo após o parto, deve fazê-lo estando sob influência
perturbadora do parto, tecnicamente chamado puerpério (uma situação de anormalidade
que ataca algumas mulheres logo depois do parto, caracterizada por alterações de natureza
psicossomática e que lhe leva a ter comportamento por ela descontrolável, e que lhe pode
levar matar o seu próprio recém-nascido); por outro, exige-se que ela esteja, naquela
altura, dominada pela emoção devida a desonra ou vergonha social, agindo para encobrir
essa desonra ou vergonha social: “[…] se o fizer como forma de encobrir a desonra ou vergonha
social”. Se o puerpério equivale a uma doença mental, a pessoa sob a sua influência padece
de uma incapacidade de controlar as suas emoções e reações, como pode lhe ser exigível
uma acção consciente e livre para praticar uma juridicamente relevante ou valorável como
infração criminal? O indivíduo, neste caso, é, ao mesmo tempo — e

56 Por todos, FIGUEIREDO DIAS, Comentário I, pp. 48 a 50, § 4; e 100-101; também Em sentido
contrário, justificando o afastamento do tipo de homicídio privilegiado no Código Penal cabo-verdiano,
JORGE CARLOS DA FONSECA, RPCC, 1996, p. 399 e seguintes; no sentido próximo — mas não coincidente
— de a cláusula da reprovabilidade social para o efeito de aborto não ter mais cabimento de referência
autónoma para efeito atenuativo especial, mas como integrante de circunstância de atenuação geral (j-m-
DAMIÃO DA CUNHA, Comentário conimbricense I, p. 146.)

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

incompreensivelmente —, incapaz e capaz de ação, ou inimputável e imputável, do ponto


de vista do direito penal.

A “influência perturbadora do parto” é o tipo especial de culpa do artigo 110.º e que


leva a diminuição sensível dessa mesma culpa.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

CAPÍTULO V Dos Crimes contra a Vida (continuação): Homicídio negligente


(art.º 111.º)

Sumário: 1 – Razões de política criminal e a carência da pena como fundamento da responsabilização penal nos
crimes negligentes; 2 – Os elementos constitutivos tipo de ilícito; 2.1 – O tipo subjetivo; 2.2 - O Tipo
incriminador: os critérios da imputação objetiva e a sua concretização — doutrinas; 2.2.1 - 2.2.1 - Casos
especiais de imputação com base na medida de cuidado exigido: o chamado princípio de confiança;
2.2.2 - Cuidados em domínios altamente especializados (negligência na assunção ou aceitação de
responsabilidades); 2.2.3 - Responsabilidade nos trabalhos em equipa; 2.2.3 - Responsabilidade nos
trabalhos em equipa.

1. Razões de política criminal e a carência da pena como fundamentos da


responsabilização penal nos crimes negligentes
As legislações têm punição para homicídio negligente, partindo de duas ordens de
natureza ou de ponto de vista: do ponto de vista da dignidade penal em virtude de
estar em causa a tutela de um bem jurídico vida humana, um bem jurídico mais
importante do catálogo dos bens jurídicos reconhecidos pelo Direito, por um lado; e por
outro, está a carência da pena, uma vez que, ao contrário do homicídio doloso cuja
frequência é (felizmente) pouca, o homicídio por negligencia é de elevado índice de
frequência: basta atentar a um sem conta de número de fontes de perigo na atual
“sociedade de risco” (pense-se só, v. g., na circulação rodoviária, na adulteração de
produtos alimentares e análogos, na propagação de doenças contagiosas graves, nas
intervenções médico-cirúrgicas). A sociedade humana, sobretudo dos dias que correm, é
caracterizada como por comportamentos que põem em causa a vida humana em cada dia
que passa.

2. Os Elementos constitutivos do tipo de ilícito

Os elementos constitutivos do tipo de ilícito do homicídio negligente, não há


basicamente nada de relevância que não tenha sido visto no tipo de ilícito de homicídio
doloso. De modo que, remete-se aqui para aquela banda relativamente ao tipo objetivo
de ilícito e à conduta: ela pode ser tanto por acção quanto por imissão (omissão impura).

O objeto de facto (ou da acção) é outra pessoa, tal como em relação ao homicídio
doloso, mas apenas com peso acrescido porquanto cá se pune o homicídio negligente ,
não se pune o aborto negligente (no nosso sistema e no sistema português e de muitos
outros países, salvo a notícia da punição do aborto a título de negligencia no Código penal
espanhol de 1995).

2.1 O tipo subjetivo

Em relação ao tipo subjetivo, nasce contenda quanto à questão da individualização de


um tipo ou elemento subjetivo de ilícito nos crimes negligentes, seja onde há negligência
consciente ou inconsciente (representada por Roxin), por uma banda e, por outra, tese
que não admite a individualização nos crimes negligentes em que há negligência

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

consciente não nos em que há negligencia inconsciente (posição assumida por Figueiredo
DIAS), e, derradeiramente a tese que perfilha a admissão de individualização de um tipo
subjetivo de ilícito sem reserva (amparada por Struensee). Parece-nos de sufragar esta
última tese: sempre perguntamos sobre o tipo subjetivo nos crimes, ao que respondemos
ou com o dolo, ou com a negligência.

2.2 O Tipo incriminador: os critérios da imputação objetiva e a sua concretização


— doutrinas

No problema do tipo incriminador nos crimes negligentes, temos divergências


doutrinárias, mas que, a meu ver, acaba por desaguar no mesmo sentido: a violação de
um dever objetivo de cuidado (Figueiredo DIAS) e criação de um risco não permitido
(roxin) — por falta de observância de um dever objetivo de cuidado, cria-se um risco não
permitido. (2001, pp. 355-359)57.

O primeiro e mais importante elemento concretizador, para figueiredo dias, vem das
normas de comportamento; sejam elas gerais e abstratas, contidas em leis ou
regulamentos, sejam individuais, contidas em ordens ou prescrições da autoridade
competente. Para ele, a violação de normas desta natureza constitui indício por excelência
de uma contrariedade ao cuidado objetivamente devido; mas não pode em caso algum
fundamentá-la definitivamente: “quando o perigo típico de um comportamento
pressuposto pela norma jurídica falte excecionalmente, em virtude da especial
configuração do caso concreto, não pode um tal comportamento ser considerado como
contrário ao cuidado objetivamente devido (Temas cit., p.359). “O que in abstrato é
perigoso, pode deixar de o ser no caso concreto”; se, por exemplo, um condutor “fura” a
luz vermelha de um cruzamento em condições de plena visibilidade e quando as vias estão
com movimento quase nulo, não preenche o tipo de ilícito das ofensas à integridade física
ou de homicídio se alguém se atira subitamente para baixo do automóvel e, em
consequência, fica ferido ou vem a falecer”( cf. Roxin, AT, § 24, n.º m. 16; Figueiredo
DIAS (1999, pp. 108, § 5); Paula FARIA (1999, pp. 261-262, § 7); assim como pode haver
plena observância de todas as prescrições legais e regulamentares, e mesmo assim haver
violação de dever objetivo de cuidado quando as circunstâncias exigem ou aconselham à
observância de um cuidado acrescido — por haver suspeita fundada de um perigo atípico
—, podendo fundamentar-se o tipo de ilícito negligente
3.1 As normas de tráfego constituem outra fonte de aferição de deveres objetivos de
cuidado. São as normas correntes em certos domínios de atividade: normas escritas (não
jurídicas) de comportamento, fixadas ou aceites por certos círculos profissionais e
análogos e destinadas a conformar as atividades respetivas dentro de padrões de
qualidade, nomeadamente a evitar a concretização de perigos para os bens jurídicos que
de tais atividades pode resultar. É o sucede com, por exemplo, normas profissionais e
análogos (nomeadamente com as de carácter técnico, as chamadas leges artis) referentes
à atividade de médicos, dentistas, enfermeiros, engenheiros, arquitetos, caçadores,
desportistas, soldados, hoteleiros, etc.

2.2.1 Casos especiais de imputação com base na medida de cuidado exigido:


o chamado princípio de confiança

57
FIGUEIREDO DIAS, Temas Básicos da Doutrina Penal. Sobre os Fundamentos da Doutrina Penal.
Sobre a Doutrina Geral do Crime, 2001.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

O princípio de confiança funciona nos crimes negligentes onde cada membro de uma
equipa de intervenção médico-cirúrgica confia que cada colega cumprirá as suas tarefas
conforme as regras deontológicas da profissão. Igualmente tem relevância nas regras da
circulação rodoviária onde cada motorista confia que os outros que circulam cuidam
igualmente do cumprimento das regras da sua prioridade não tendo que se preocupar com
os incumprimentos dos outros: quem circula na sua área de prioridade não é obrigado a
preocupar-se com as imprudências e imperícias dos outros, isto é, deve poder contar com
o cumprimento das regras, tal como ele, por parte dos outros.

Exemplo:

Dois condutores se cruzam no cruzamento, um deles vem da esquerda e


outro da direita; não há sinais que alteram a regra geral da prioridade, que é
de ceder a passagem à direita. O que vem pela esquerda passa “disparado”
pelo cruzamento e não para o que vem da direita também não para, e os dois
carros chocam.

Neste caso, o que vem da direita tinha obrigação de prever que o outro podia não
parar, devendo, por isso abrandar no cruzamento para evitar o acidente?

A resposta será, evidentemente, a negativa. A não ser que outra fosse a circunstância
que o levasse a presumir que o que vem pela esquerda não pararia. Supunha, por exemplo,
que era uma ambulância, ou um carro transportando feridos ou outros carros que gozam
de prioridade segundo as normas do Código da Estrada e vinha de tal forma que para
qualquer pessoa colocada na situação do condutor em causa era normal e previsível que
não ia parar. É que quem se apresenta pela direita num cruzamento tem direito de partir
do princípio de que quem se lhe apresenta pela esquerda lhe vai ceder a prioridade porque
assim mandam as regras do transito rodoviário. É o que se chama princípio da confiança.
Este princípio funciona em vários aspectos da vida real e aqui (no caso de transito)
qualquer pessoa colocada na situação do condutor que vem da direita teria que prever,
normalmente (com base no juízo de prognose póstuma), que o que vinha da esquerda ia
parar.

O mesmo aconteceria se se cruzassem numa situação de A circular na estrada


prioritária e o B na estrada secundária. Neste caso o que vem pela estrada secundária tem
obrigação de ceder prioridade a que vem pela estrada principal.

Outras situações:

a) Numa operação cirúrgica, médico recebe da enfermeira um


bisturi não desinfetado e o utiliza causando infeção ao paciente
levando-o a morte;
b) Numa operação cirúrgica um médico procede à operação
num paciente em que o anestesista não aplicou a anestesia
convenientemente. Tal facto levou o paciente a reagir ao primeiro
ato levando o médico a falhar causando a morte do paciente.

Nestes dois exemplos, à semelhança dos anteriores, o médico não é responsabilizado


pelo resultado morte porque age ao abrigo do princípio da confiança. O resultado morte
é imputado à enfermeira e ao anestesista, conforme o caso.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

O princípio da confiança manda que numa situação geral, quem age correctamente
dentro da sua esfera de responsabilidade deve esperar dos outros a mesma actuação, não
sendo responsável pelo resultado que se concretizou por risco criado ou incrementado por
outros. Nos exemplos dados, riscos criados não foram daqueles condutores que gozavam
da presunção de que outros iam respeitar as regras de trânsito e não causar o perigo que
ocorreu. Bem como, no caso das operações cirúrgicas, o médico não responde pelos
resultados que se verificaram porque se deveram aos riscos criados pela enfermeira e pelo
anestesista.

A situação já não será assim se, na Av. Combatentes da Liberdade da Pátria o


motorista vê um individuo de idade avançada que tem dificuldades de movimento a
atravessar a estrada, apesar de o sinal vermelho. Ou se, apesar do sinal vermelho, vir
crianças a brincar à beira da estrada. Neste caso é normal e previsível alguma dessas
crianças atravesse a estrada a correr mesmo que o sinal para os peões esteja vermelho.

Assim, o princípio de confiança vai até aonde a normalidade da vida nos permite:
cessa quando nos encontramos perante facto que a experiência da vida nos mostra que
não é normal confiar naquela situação concreta. Neste caso é exigível ao agente um
comportamento conforme com as regras de vida, sendo-lhe imputável o resultado que ele
não soube evitar, seja a título de negligência ou de dolo (conforme o caso).

A concretização de normas de cuidado objetivo torna-se mais difícil quando faltam


por completo disposições escritas, jurídicas ou não, reguladoras de uma determinada
atividade. Nestes casos, torna-se indispensável apelo aos costumes profissionais comuns
ao profissional prudente, ao profissional-padrão, e, na sua falta (como, por exemplo, em
atividades como as de trabalho doméstico, de baby-sitting, etc), é imperioso o recurso ao
cuidado objetivamente imposto pelo concreto comportamento socialmente adequado – o
recurso direto “a personificação da ordem jurídica na concreta situação” (Armin
kaufmann), ou “o modelo-padrão (Massfigur)” cabido ao caso (Brgstaller). O que serve
de critério neste caso é a não correspondência do comportamento àquele que , em idêntica
situação, teria um homem fiel aos valores protegidos, prudente e cuidadoso.

2.2.2 Cuidados em domínios altamente especializados (negligência na assunção


ou aceitação de responsabilidades)

Em domínios altamente especializados há exigência especial: o agente não deve atuar


antes de se ter convenientemente informado ou esclarecido sobre os especiais riscos da
sua conduta, sempre que se não encontre em posição de os avaliar correctamente: “Quem
não conhece uma certa coisa deve informar-se; quem não pode alguma coisa deve
abandoná-la”. (Roxin). Vale dizer que, em domínios especializados, não vigora o
princípio de curiosidade e do amadorismo.

2.2.3 Responsabilidade nos trabalhos em equipa

Nos trabalhos em equipa (por exemplo: intervenções médico-cirúrgicas), enquanto os


maior especialista (por exemplo: chefe da equipa médica que procede à intervenção
cirúrgica) tem a sua responsabilidade regida pelo chamado critério individualizador,
por ser portador de qualificação (perícia) que só ele, naquela circunstância tem; os demais
membros da mesma equipa, agindo com base no principio da confiança (por se
encontrarem sob controlo do maior especialista em quem confiam, por este ser detentor

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

de maior perícia), têm a sua a sua responsabilidade baseada no chamado critério


generalizador.

2.3 Justificação do facto

Neste sentido, diz-nos figueiredo dias que, apesar de existir hoje uma tendência
minoritária de autores a defender a admissão de eficácia do consentimento qua tale para a
justificação de certos casos de morte, dada a hoje em dia de frequência crescente de um
sem número de produções de mortes -—devidas, vária ordem de fatores relacionados com
condutas negligentes da hoje denominada sociedade de risco, designadamente às
intervenções médico-cirúrgicas, ao tráfico rodoviário, à prática de desportos perigosos
em que se não suscita sequer razoavelmente a questão de uma eventual responsabilização
dos seus autores por homicídio negligente, apesar de poder pôr-se com alguma
consistência a hipótese de ter sido violado um dever objetivo de cuidado; e de, nestes
casos, a vítima ter dado o seu assentimento ao risco de produção do resultado mortal. A
corrente maioritária, continua na posição de inflexibilidade na recusa da sua eficácia: ora
(e por regra) com base na indisponibilidade do bem jurídico vida, ora em nome da cláusula
dos bons costumes, como, aliás, assevera FIGUEIREDO DIAS (1975, p. 179) 58 ; ambas as
variantes da corrente maioritária preferem que o problema seja equacionado no âmbito
“mais geral e anterior da heterocolocação em perigo consentida; caso em, segundo o mesmo
autor (Comentário I, 1999, p. 111) que serão então outras constelações dogmáticas, que não a
do consentimento, a poderem emprestar a justificação do facto em certas situações, v. g.,
as do risco permitido e da adequação social”. Para o autor, “O problema ganha deste modo a
sua verdadeira sede que é o tratamento da PG do direito penal e a sua discussão não deve
por isso ser aqui levada mais longe.” Assim, inclinamo-nos a considerar que, os
argumentos do autor acautelam a maior ponderação para evitar uma decisão isolada sobre
a matéria que, pela sua natureza, apesar de ocorrerem casos de maior gravidade material,
que à luz dos princípios da indisponibilidade do bem jurídico ou da violação dos bons
costumes, poderiam ter seu tratamento, não há terreno melhor para a ponderação sobre a
solução em sede da doutrina geral de risco permitido e da adequação social, sendo de remeter
o assunto para o tratamento da PG.

58
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal: Sumários, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1975, p. 179.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

CAPÍTULO VI Os crimes contra a vida (continuação): Incitamento (ou ajuda)


ao suicídio (art.º 109.º)

Sumário: 1 – Conceito e fundamento da tipicidade do suicídio; 2 – O tipo de ilícito; 3 - A estrutura da incriminação;


3.1 – As condutas típicas; 3.2 - Resultado típico ou condição de punibilidade?; 3.2.1 - Teses
doutrinárias; 3.2.1.1 - Crítica à tese do resultado típico defendida por corrente maioritária; 3.3 -
Problemática da delimitação da fronteira entre o suicídio e o homicídio; 3.3.1 - A teoria das fronteiras;
3.3.2 - A teoria ou solução da culpa (ou da exculpação) e a teoria ou solução do consentimento; 3.3.2.1
- Teoria da culpa; 3.3.2.2 - Teoria do consentimento; 3.3.3 - Distinção entre homicídio a pedido da
vítima e o incitamento ou auxílio ao suicídio.

1. Conceito e o fundamento da atipicidade do suicídio


O suicídio é um ato de alguém cansado de viver pôr termo à própria vida. É um facto
que não é típico. Porque a vida humana é disponível para o próprio; ou seja: é uma área
livre de direito. Quem põe termo à própria vida, não comete qualquer crime. E a razão
pela qual não há punição do suicídio, além de ter em conta uma área livre de direito, ou,
para alguns uma zona neutra do direito (o direito não aprova, nem aplaude: por isso é
punível quem colabora na sua realização), constituiria uma forma de exasperação do
sofrimento e desespero da vítima caso se tentar o suicídio, mas este fruste e vier a mesma
vítima a sofrer uma punição. Não seria uma contribuição da sociedade para a recuperação
da pessoa que, pelo contrário, devia merecer um acompanhamento e tratamento
psiquiátrico para se poder libertar da situação aflitiva que lhe leve a procurar refúgio na
morte.

A) O suicídio é um ato praticado por mão própria (decisão e intervenção corporal do


próprio sobre si mesmo), com “intentio occisiva”.

O CP guineense, tendo como fonte próximo o CP português na versão originária de


1982, consagra a punição expressa e autónoma do incitamento ao suicídio. Ao contrário
da Alemanha e da Bélgica (entre outros países) que não dispõem de uma incriminação
autónoma dessa figura de incitamento ao suicídio.

Discute-se se a incriminação expressa corresponde ao combate ao suicido ou não.


Constata-se que não há correspondência entre a incriminação expressa e a punição ou
combate ao suicídio. Exemplo paradigmático é o caso da Alemanha que não dispõe de tal
incriminação; mas, apesar da divisão que se verifica na doutrina, a jurisprudência tem
registado casos avultados de condenações, algumas a título de homicídio em autoria mediata,
outras a título de homicídio a pedido da vítima por omissão do garante e outras ainda mesmo
por violação do dever de auxílio (art.º 323.º-c)) por parte de omitentes não investidos em
posição de garante. Este facto leva Schmidäuser a falar de “um número espantoso de
casos”. Ao contrário da Áustria onde há escassez de casos de aplicação do art.º78.º do CP
austríaco. Por este motivo observa Simson de que o art.º 78 (§78) do código penal
austríaco não passa de um mero “preceito penal de papel” e de que “a história do Direito
penal do suicídio é a história do seu falhanço”, referindo-se, seguramente quanto a esta
última observação, aos ordenamentos que incriminam o incitamento ou auxílio ao

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

suicídio que, apesar de a sua pertinência ser irrecusável, não logram sucesso no sentido
de combater o incitamento ou auxilio ao suicídio.

Na Alemanha avulta a discussão doutrinária quanto à punibilidade do incitamento ao


suicídio como mostraremos resumidamente:

Para Schmidäuser, o suicídio é um facto típico (de Homicídio), ilícito, mas não
culposo. Por isso mesmo, à luz do princípio da acessorialidade limitada, dá suporte à
punibilidade do cúmplice. Para este autor, e partindo da incriminação do homicídio no
sistema alemão (at.º 212.º do CP): “Quem matar uma pessoa”, no tipo de ilícito, quer se
mate ou se produza a morte de outra pessoa ou da própria vítima, estamos sempre perante
a morte de uma pessoa. E a ilicitude radica “no dever, para com a comunidade, de
continuar a viver”. Mas na formulação típica do Incitamento ou ajuda ao suicídio, no nosso
casso e no caso português, não tem enquadramento o conceito de homicídio por
inexistência de ligação com a figura de Homicídio (art.º 107.º, CPGB) que tem a ver com o
Tirar a vida a outra pessoa: o objeto de acção aqui ser o corpo de outra pessoa
(fragmentaridade de 2.º grau). Apesar de em ambas as figuras estar em causa a vida
humana.

2 O tipo de ilícito

O essencial no suicídio é o elemento suicídio. Isto é, a infração tem a medida e os


limites do suicídio: não há incitamento ou ajuda ao suicídio sem suicídio. E há suicídio
quando uma pessoa, com domínio do facto, cause “dolosamente” a sua própria morte.
Como consequência:

a) Uma corrente doutrinária entende que só há suicídio quando uma pessoa, cansada
de viver, quer morrer e é ela a decidir do “se” da própria morte. Assim sendo, não há
suicídio quando alguém produz a sua morte de forma negligente ou imprudente. De
acordo com esta tese defendida por MANUEL DA COSTA ANDRADE, não se pode falar de
suicídio para o efeito da infração se uma pessoa que não quer morrer decide apenas levar
a cabo uma “Tentativa” de suicídio para chamar a atenção sobre si ou obter a satisfação
de uma pretensão. Salvo se a vítima representa a ocorrência da morte como possível e
com ela se conforma. A tese defendida por SILVA DIAS (a que adiro) entende que é
irrelevante a existência de dolo ou de negligência;
b) Quando alguém atingido por doença grave e terminal desiste de lutar contra o
inevitável, não há suicídio e, consequentemente, a infração para os que lhe prestam o
apoio físico ou psíquico;
c) Não há suicídio na recusa de tratamento por parte de um doente, mesmo quando
a recusa pode provocar a morte do paciente, não cometendo a infração o médico que,
respeitando a vontade do paciente, não intervém para o salvar;
d) Já há homicídio para quem não presta auxílio a partir do momento em que a vítima
desiste do seu propósito, sobretudo quando toma esta mudança de sentido claramente
através, por exemplo, de pedido de socorro ou de quaisquer outros sinais;

3 Estrutura da incriminação

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

3.1 As condutas típicas

A semelhança da generalidade das codificações que dispõem da incriminação, o CP


guineense (art.º109.º) prevê e incrimina duas modalidades de conduta: o incitamento e a
ajuda ao suicídio. Trata-se de condutas de sentido e compreensão idênticas às da
instigação e cumplicidade, com a diferença de o suicídio não ser um facto criminalmente
típico e ilícito (neste sentido, Stratenwerth 36; Kienapfel 1 24); Trechsel 367).

Não podem valer como típicas as condutas que correspondem ao exercício de um


direito ou ao cumprimento de um dever. Assim, não comete a infração membro de um
júri que reprova correctamente um candidato que ameaçava suicidar-se. Assim como não
comete a mesma infração um professor que reprova correctamente um aluno, nem A que
rompe relação afetiva com B, mesmo sabendo que este ameaçava suicidar-se se tal
acontecesse.

Incitar significa determinar outrem à prática do suicídio. É desencadear um processo


causal; influenciar psiquicamente outrem a tomar a decisão de pôr termo a própria vida.
Se a decisão já estava tomada, estamos perante ajuda e não incitamento.

O incitamento pode ocorrer por qualquer meio, desde que idóneo para provocar a
prática do suicídio: conselho, exortação, sugestão, promessa, recompensa, dando uma
notícia, induzindo em erro, infligindo maus tratos, etc.

Entende a doutrina que o incitamento só é um ato pessoal, individualizado excluindo-


se a possibilidade de um incitamento colectivo.

Ajudar é cooperar, de qualquer forma, que não constitua o incitamento; desde que
causal em relação à conduta do suicida na sua conformação concreta. Pode ser moral
(aconselhar, reconfortar a vítima e reforçá-la na decisão tomada convencendo-a a vencer
hesitações) ou material (fornecer a pistola, dar a corda ou mesmo facultar a casa para a
prática do ato, dar informações sobre a técnica de praticar o facto). Se a ajuda assentar
num acordo entre o agente e a vítima e aquele atuar com “excesso de auxílio”, responde
por homicídio. Por exemplo se o acordo era de entregar à vítima um produto que lhe
provocaria a morte lenta e o agente lhe facultar um que lhe provoque a morte imediata, o
agente responde por homicídio e não por ajuda ao suicídio.

Também tem que haver causalidade entre a ajuda e o suicídio. Por exemplo se A
empresta a B um veneno para este se suicidar e esta vier a morrer por se ter enforcado ou
por qualquer outro meio, A não responde pela ajuda ao suicídio.

Quanto a estrutura, podemos sintetizar com silva dias a relação analógica do suicídio
com a instigação e a cumplicidade:

a) a nível do tipo objetivo, há analogia estrutural com as formas de participação


(remissão);
b) a nível do tipo subjetivo, há limites à analogia: não é exigido algo semelhante ao
duplo dolo do instigador ou do cúmplice. Porque:

i) O instigador e o cúmplice têm de querer não só instigar e auxiliar, mas


também o facto ilícito do autor. Isto porque o facto cometido pelo autor além

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

de ser ilícito, é de todos, por isso que tem também de ser abrangido pelo
dolo dos participantes (sob pena de violação do principio da culpa na
respetiva punibilidade);
ii) O suicido é um facto que, pelas mesmas razões por que não é ilícito, não é
comunicável aos “participantes. Ele pertence apenas e só ao suicida; só nesta
precisa medida é juridicamente indiferente. Daí que
iii) O dolo consiste em representar e querer – em qualquer das modalidades do
art.º22.º — incitar ou ajudar outrem a suicidar-se, sendo já irrelevante que
o suicídio efetivamente se realize. Porque também faz parte de dolo típico
quem crie noutrem a vontade de se suicidar confia ou acredita que tal
suicídio não ocorrerá. Assim sendo, a posição do agente relativamente às
condições de realização do suicídio é indiferente para a comprovação e
atribuição do dolo importando apenas que o ele queira incitar e represente a
possibilidade desse incitamento se concretizar no ato suicida.

Quanto a conduta ainda, é possível a prática de suicídio por omissão, apesar da


divergência doutrinária quanto a isso. Por exemplo, perante um perigo iminente de morte,
a vítima, podendo evitá-lo, não o faz precisamente porque quer morrer. Neste caso, há
corrente doutrinária (e que adiro) que entende poder haver suicídio a permitir a punição
do terceiro, pelo menos na modalidade de incitamento.

3.2 Resultado típico ou condição de punibilidade?

3.2.1 Teses doutrinárias

Quanto a questão de se saber se a formulação típica “o suicídio vier a ser


efectivamente tentado ou a consumar-se”, há desencontro doutrinário com a maioria dos
autores a defender a tese de se tratar de resultado típico (entre os autores que perfilham
esta posição, contam FIGUEIREDO DIAS, MANUELA SILVEIRA e COSTA ANDRADE.) e uma
outra a defender tratar-se de mera condição de punibilidade (onde se filiam autores como
SILVA DIAS). Partindo de simpatia em relação à segunda tese, e sem entrar no âmago da
questão, quero aqui traçar, com SILVA DIAS, perfunctoriamente, linhas de
fundamentadoras da lógica distintiva de ambas as teses:

3.2.1.1 Crítica à tese do resultado típico defendida por corrente maioritária

Para SILVA DIAS (posição que adiro):

a) Resultado típico é a estrutura do ilícito típico e é, portanto, objeto de referência


do dolo enquanto o pressuposto ou condição de punibilidade está fora da estrutura do
ilícito típico e não tem de ser objeto de referência do dolo. Assim sendo
b) Faltando o resultado típico, o ilícito típico sofre uma transformação: o facto
permanece punível, mas a título tentado (se for doloso, claro). Isto porque é elemento
integrante do ilícito-típico. A ausência do resultado interfere na forma e no quantum da
punibilidade. Pelo contrário, quando falta o pressuposto da punibilidade, o facto
permanece consumado (inalterado, portanto), não sendo simplesmente punido por faltar
o «se» da punibilidade. “Ora
c) Quando falta o ato suicida, não passa a haver tentativa de incitamento ou ajuda ao
suicídio: qualquer destas condutas típicas está consumada; significando isto que aquele

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

ato está fora da estrutura do ilícito típico, não pertencendo à conduta típica do agente; a
sua realização está dependente da vontade de outra pessoa e por isso a sua falta nenhuma
interferência tem na configuração do tipo de delito (ilícito-típico de culpa): não é por
faltar o ato suicida que cada um dos comportamentos típicos deixa de ter sido
efetivamente realizado. Apenas não são punidos, porque, na ausência daquele ato, o
legislador considera que o comportamento ilícito e culposo não tem dignidade penal.
Assim,
d) Quer o suicídio seja tentado, quer seja consumado, em nada isto tem a ver com a
punibilidade de quem incita ou ajuda, o que reforça a ideia de que se trata de um
pressuposto da punibilidade.

Com isso, conclui-se que:

a) Não há tentativa de incitamento ou de ajuda ao suicídio quando falta o ato suicida;


b) Não se pode falar em incitamento ou ajuda por omissão porque o crime não é de
resultado;
c) Não há dever jurídico de impedir o suicídio contra a vontade ou à custa dos bens
jurídicos do suicida. Assim, defender o contrário, impondo, v. g., um dever de garante ao
médico para evitar o suposto resultado, seria uma violação do princípio do direito penal
de que a decisão livre, consciente e responsável de pôr termo à própria vida está
enquadrada no espaço livre do Direito (no nosso sistema penal onde não há previsão legal
de crime tratamentos arbitrários, ao contrário do art.º156.º do CP português, onde
significaria a violação do princípio da unidade da ordem jurídica);
d) É irrelevante a existência de dolo ou de negligência por parte do agente em relação
ao ato suicida.

3.3 Problemática da delimitação da fronteira entre o suicídio e o homicídio

3.3.1 A teoria das fronteiras

III

Em primeiro lugar, é de realçar que, relativamente ao homicídio em autoria imediata,


as águas se separam pelo critério domínio do facto, sendo que, quando o domínio do
facto pertence à vítima, estamos perante o suicídio, respondendo por incitamento ou ajuda
o participante; e quando o domínio do facto pertence ao terceiro, estamos perante o
homicídio em autoria imediato.

IV

Teorias de fronteiras: no que respeita ao homicídio em autoria mediata, a divisória


se estabelece através das duas linhas que ROXIN designa de fronteira externa e fronteira
interna.

A fronteira externa separa as águas entre o incitamento ou ajuda ao suicídio e o


homicídio em autoria mediata (homicídio mediato), concretamente o homicídio a pedido
da vítima, a partir da avaliação das contribuições da vítima e do terceiro, vistos na
perspectiva exterior. Se a verificação do facto resultou da preponderante influência
externa ou da contribuição do terceiro, estamos perante homicídio em autoria mediata,

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

com a vítima (o suicida) a servir de mero instrumento para a concretização do plano. Mas,
pelo contrário, se o facto se der devido, preponderantemente, à contribuição da própria
vítima (= a partir da situação psíquica ou espiritual da própria vítima), é porque estamos
perante suicídio, respondendo o participante pelo incitamento ou ajuda ao suicídio (e não
por homicídio a pedido da vítima).

Esta questão da definição das linhas separatórias tem importância tanto do ponto de
vista dogmático quanto do ponto de vista prático-jurídico: nos ordenamentos jurídicos
que dispõem da incriminação do incitamento ou ajuda ao suicídio, como é o caso do
nosso, do português e do austríaco, tal delimitação pode decidir do como da punição
(incitamento ou ajuda ao suicídio ou homicídio); nos que não dispõem de tal
incriminação, pode decidir, pura e simplesmente, do se da mesma punição. Isto porque,
quanto a estes últimos sistemas, e segundo ROXIN, “uma vez que a participação no suicídio não
é punível, só pode fundar-se a autoria por homicídio quando se puder negar a responsabilidade do suicida
pelo seu ato”.

3.3.2 A teoria ou solução da culpa (ou da exculpação) e a teoria ou solução do


consentimento

Em relação a esta problemática, os autores têm-se dividido entre as duas grandes


correntes: doutrina da culpa ou da exculpação e a doutrina do consentimento.

3.3.2.1 Teoria da culpa


Para a teoria (ou solução ou doutrina) da culpa, não há suicídio quando a vítima se
encontra numa situação que, segundo as regras correntes do Direito penal, excluiria a
culpa. Isto é, não há suicídio quando a vítima é inimputável. Quem se aproveita deste
estado ou desta situação para produzir a morte da vítima – utilizando-a como instrumento,
responde por homicídio.

3.3.2.2 Teoria do consentimento

Para a teoria ou doutrina (ou solução) do consentimento, não há suicídio quando a


vítima não satisfaz os critérios do consentimento, sobretudo do consentimento
“qualificado” subjacente ao homicídio ao pedido da vítima, que, como sabemos, não
existe no nosso código penal (casos desse tipo de homicídio são punidos como homicídio
simples especialmente atenuado nos termos do at.º 72.º, n.º2 – “forte solicitação da vítima”)
ou seja, há, aqui, critério claramente mais exigente de enquadramento de “suicídio livre”,
“consciente” a fundamentar a punição do participante a título de auxílio ou incitamento,
com pena mais branda do que aqueyla prevista para o homicídio simples no nosso caso,
onde não existe o homicídio a pedido da vítima. A distinção que existe entre o homicídio
a pedido da vítima e o incitamento ou ajuda ao suicídio consiste no facto de, na conduta
tipificada no art.º 109.º (incitamento ou ajuda ao suicídio) o agente não ter o domínio do
facto, que pertence à própria vítima, enquanto no homicídio a pedido da vítima (art.º 134.º
do CP português) a vítima pede apenas para ser morta, mas o domínio do facto está nas
mãos do agente.

A doutrina da culpa é o critério tradicional e que continua ainda a ser defendida por
um número considerável dos autores. A doutrina do consentimento foi inicialmente

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

lançada por Herzberg e Geilen e hoje é defendida por um número crescente de autores, e
exige critérios mais apertados.

Por exigir critérios mais apertados, a solução do consentimento alarga, obviamente, o


universo de casos de autoria mediata de homicídio, porque esta doutrina exige o
consentimento livre, esclarecido, reforçados sob a forma de pedido “sério, instante e
expresso” (art.º 134.º do CP português). Na formulação de Horn, só há suicídio (e
participação no suicídio) quando “o terceiro apenas atua depois de ter sido instado pela
pessoa cansada de viver pelo menos na forma prevista no art.º 216.º (§216”) —
(homicídio a pedido da vítima, no CP alemão).

A solução da culpa é assim batizada porque recorre a aplicação analógica das regras
ou princípios de exclusão da culpa, nomeadamente a inimputabilidade e o estado de
necessidade desculpante. Segundo ela, deverá afirmar-se a responsabilidade por
homicídio em autoria mediata do terceiro quando a vítima atua em circunstâncias tais
que, na hipótese de ela lesar bens jurídicos alheios, veria afastada a sua culpa.

Não nos é possível aqui fazer maior desenvolvimento sobre estas teorias por o carácter
destas notas não comportar tal tratamento, só simplificamos com silva dias, em jeito de
conclusão, que há homicídio em autoria mediata quando:

a) O agente induz a vítima em erro que afaste o dolo de autolesão. Por exemplo,
quando o agente leva a vítima ao erro sobre o carácter letal da acção (assim também costa
andrade, (Comentário I, 1999, p. 89 § 35). O erro sobre os motivos ou sentido concreto
da acção não afasta o enquadramento como incitamento ao suicídio (é o que aconteceu
com o caso “Sírius” da jurisprudência alemã e que está relatado no Comentário, I (p. p.
90 §37 e § 38) por COSTA ANDRADE);
b) a vítima não possua a capacidade natural mínima para compreender o sentido do
facto que pratica, nomeadamente se:

i) a vítima padece de uma anomalia psíquica grave que lhe retira a


capacidade de valoração ou determinação;
ii) a vítima é destituída daquela capacidade em razão da idade.

Para COSTA ANDRADE (1999, p. 85 § 25), há homicídio em autoria mediata se a vítima


tiver menos de 14 anos de idade. SILVA DIAS (2007, pp. 39-40) rejeita esta tese
entendendo que deve haver a comprovação em concreto daquela incapacidade.

Quanto aos casos de duplo suicídio em que um dos suicidas sobrevive, há seguinte
critério de solução (tendo em conta a confrontação do caso Gisele da jurisprudência alemã
com o caso que esteve na base da jurisprudência do STJ português de 8/1/1992):

a) quando a realização do suicídio conjunto se mantém dentro do plano traçado;


b) a execução da morte do outro se confunde com a execução da própria morte;
c) ambos detêm até ao fim a possibilidade de fazer gorar o plano (domínio negativo
do facto), ou seja, ambos mantêm até a perda da consciência o poder de decisão
sobre a vida e a morte;

Então, neste caso, a situação do sobrevivente deverá ser apreciada no quadro do


auxílio ao suicídio: as peripécias da execução são irrelevantes não importando o meio

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

escolhido, nem o maior ou menor protagonismo de um dos suicidas na realização do facto


(por exemplo se só um deles acelerou o motor, como no caso Gisele (2007, pp. 39-40).

Delimitação deste último tipo com casos de homicídio em autoria imediata (critério
de domínio de facto – se o domínio facto pertence à vítima, estamos perante o suicídio;
se a terceiro, estamos perante homicídio) e de homicídio em autoria mediata (em que a
vítima é executante do crime) onde existem as chamadas teorias (ou soluções) de culpa e
de consentimento.

3.3.3 Distinção entre homicídio a pedido da vítima e o incitamento ou auxílio ao


suicídio

Qual é a área de Homicídio a pedido da vítima e qual a do Incitamento ou ajuda ao suicídio?


E qual é a importância da destrinça entre as duas fronteiras?

A delimitação das fronteiras entre as duas realidades é bem clara: os casos de um e de


outro excluem-se mutuamente acabando —, segundo COSTA ANDRADE (1999, p. 60) —,
a “ área do facto punível a título de Homicídio a pedido da vítima […] quando a
cooperação na realização do desejo de morrer de alguém cansado de viver se converte,
de mera ajuda, em comportamento típico de autor”. E onde, para as legislações (como a
alemã) que não punem autonomamente o auxílio ao suicídio, “a distinção assinala a
fronteira entre o punível e o não punível.” E onde, portanto, põe-se problema a outros três
níveis: (i) da punibilidade da tentativa que, no âmbito do homicídio a pedido da vítima
(art.º 134.º do CP português) — sem paralelo no nosso sistema —, é punível e, no âmbito
do incitamento ou ajuda ao suicídio (art.º 135.º do mesmo diploma legal — semelhante
ao art.º 109.ºdo nosso CP) —, não é punível, por um lado; (ii); por outro, segundo costa
andrade (Comentário I cit., p. 60-61), “de aplicação da lei penal […]”; e, por último,
também “do ponto de vista do regime da “comparticipação, designadamente na perspetiva
do art.º 28.º” do CP português, semelhante ao nosso art.º19.º do CP, relativamente a
comunicabilidade das circunstâncias ou relações especiais entre os comparticipantes.

As formulações com interesse para a matéria da distinção entre as duas situações são
as que podemos emprestar dos autores59 como Azt/Weber (BT I, 1981, p. 85), para quem,
há Homicídio a pedido da vítima “quando o suicida potencial ultrapasse a resistência, a pôr a
mão sobre si mesmo, colocando nas mãos de outro”. Ou a de Charalambakis, para quem, no
Homicídio a pedido da vítima “o protagonista do acontecimento é o agente que produz a morte
de outra pessoa”; e, inversamente, no Auxílio ao suicídio, o protagonista do acontecimento
é o próprio suicida e o outro um mero auxiliar” (GA, 1986, p. 491). ou, ainda, a de Roxin,
para qual, presta auxílio “quem deixa a realização do ato libertador da morte à atuação
livre e responsável do próprio desejoso de morrer; já comete Homicídio a pedido da vítima
quem retira à pessoa cansada de viver a acção que decide da vida e da morte” (NStZ,
1987, p. 347).

CAPÍTULO VII Exposição ou abandono (art.º 113.º)

59 Apud costa Andrade, (Comentário I cit., p. 61).

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Sumário: 1- Considerações iniciais; 2 – O tipo objetivo; 3 – O tipo subjetivo; 4 – Justificação e exclusão de culpa;
5. - Tentativa, comparticipação e concurso; 6 – As agravações.

1. Considerações iniciais

No Código Penal Português de 1982, havia discussão sobre se o abandono, uma das
modalidades do preenchimento do tipo do antigo art.º 138.º era praticada por omissão:
porque a redação da alínea b) do n.º 1 do art.º138.º, que tinha “a referência típica ao fato
de o agente ter intencionalmente incapacitado a vítima [havendo necessidade de remover
o perigo criado] e ainda à omissão de auxílio (“não prestando auxílio...”)” [assim: J. M.
DAMIÃO DA CUNHA (comentário I, 1999, p. 117)]. O CP guineense de 1993, se fez eco
dessa querela tendo sido seguida, com algum descuido, por nós na anotação ao art.º 113.º
deste mesmo diploma tese que entende que a modalidade de “abandono” é cometida por
omissão. Apesar de a redação do art.º 113.º não ter correspondência com a redação do
antigo art.º 138.º do CP/P na parte da referencia que justificava a posição; tendo mais
semelhança com a redação do atual art.º 138.º nesta parte de omissão ou comissão por
omissão.

As alterações introduzidas pela revisão de 1995, suprimindo e acrescentando outros


elementos, alterações essas aprimoradas pela revisão de 1998, conforme nos noticiou j.
M. DAMIÃO DA CUNHA (comentário I, 1999, p. 116 ss.), delinearam alguns aspectos
importantes dando ao sistema conformação diferente daquilo que a figura da exposição e
abandono na redação primitiva do CP de 1982.

2. O tipo objetivo

As condutas típicas são: expor ou abandonar alguém sem em situação de perigo de


que não pode por si só, defender-se. Sendo necessário que o perigo de vida (porque o crime
é de perigo: perigo para a vida) se verifique em concreto (não bastando a sua verificação
em abstrato) para se preencher o tipo, à semelhança do que acontece com perigo para vida,
como uma das circunstancias agravantes de ofensa a integridade física (FARIA P. R.,
1999, pp. 231, § 21).

A primeira modalidade consiste (em primeiro lugar) no ato de colocar em perigo a


vida de uma pessoa e que o agente exponha a pessoa em lugar que a sujeite a uma situação
de que não possa, só por si, se defender. A exposição implica (CUNHA J. M., 1999, p.
119 § 7), que a vítima dava ser levada de um local (relativamente seguro) para um outro
menos seguro; significando isso, pois, que se tem de verificar uma qualquer (por mínima
que seja) deslocação espacial produzida pelo agente; resultando dessa deslocação “um
agravamento de riscos de tal ordem que a vítima fique numa situação em que seja incapaz
de, por si só, defender-se60 (face aos novos riscos criados pela exposição e que colocam
em perigo a sua vida)”.

Em segundo lugar (como segundo elemento diferenciador da primeira modalidade),


está o fato de, neste caso estar subjacente a ideia de perigosidade objetiva (a perigosidade do
lugar em que se expõe a vítima), conforme prevaleceu na Comissão Revisora (Actas e

60 n. n. o.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Projecto, 1993, p. 205), tendo em conta, também obviamente, as especiais características


da vítima, segundo Damião da cunha fundamentando com o elemento típico incapacidade
para se defender.

Hoje, apesar das querelas, é entendimento (de sufragar) de que a conduta do abandono
é ativa (positiva): o abandono é praticado por ação, podendo ser praticado também por
comissão por omissão (CUNHA J. M., 1999, p. 121). Assim, p. ex., o agente que tendo
abandonado, sem perigo para a vida da vítima, não regressa, atempadamente, colocando
assim a vítima em perigo, comete o crime de abandono; contra: SILVA DIAS (Crimes
Contra a Vida, 2007, p. 81). Parece-me (como referi) de sufragar a primeira posição.

Quanto a deslocação espacial do agente, a doutrina praticamente firmou (hoje)


entendimento (praticamente pacífico) no sentido de que tanto a exposição quanto o
abandono (este) são passíveis de serem praticados estando o agente tanto junto (ou na
presença) da vítima como afastado desta (deslocando-se espacialmente do local onde se
encontrava, como defendia a doutrina tradicional alemã): bastando apenas que o agente,
mesmo permanecendo no local junto da vítima, omita a realização dos deveres, no caso,
impostos [assim: eser, em relação ao art.º 221, n.º 7 do Código Penal alemão; DAMIÃO
DA CUNHA (comentário I, 1999, pp. 120, § 11)].

Quanto à vítima, esta tem que permanecer no local do abandono.

3. O tipo subjetivo

O tipo subjetivo é doloso: só se preenche o tipo legal com dolo, bastando o dolo
eventual. E dolo neste tipo legal deve abarcar a criação de perigo para a vida da vítima
como também a ausência de capacidade para se defender por parte da vítima.

4. Justificação e exclusão de culpa

Pode haver justificação nos casos de conflito de deveres (abandono para salvar outra
pessoa) e de direito de necessidade.

Haverá exclusão da tipicidade nas situações em que o agente age com o intuito de
salvar a vítima; p. ex.: deslocando-a com intenção de procurar apoio para ela, ou
abandonando-a com o mesmo propósito. Neste caso, a atuação do agente não teve por
escopo potenciar os riscos a que a vítima, está exposta, mas, pelo contrário, diminuí-los.

Em caso e abandono ou exposição resultante de uma situação fortemente diminuidora


ou mesmo excludente da culpa: p. ex., por força da perturbação puerperal, pode de excluir
a culpa ou mesmo afirmar-se a irresponsabilidade penal do agente. Resolve-se a situação
eficazmente (na minha perspetiva), quer pelas regaras gerais de atenuação da pena, quer
pela aplicação analógica do caso de infanticídio (art.º 110.º), desde que se comprove a
existência de dolo, por parte da mãe (n.º 2) ou de outros agentes previstos (n.º1) em
relação ao colocar em perigo de vida.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

5. Tentativa, comparticipação e concurso

A tentativa é punível neste tipo de crime, desde logo em virtude do critério formal
de ligação ou da função de parêntese da PG, que nos leva a aplicar as regras do n.º 2 do
art.º 28.º: “a tentativa é punível nos crimes dolosos a cuja consumação corresponde pena
superior a três […]”. Em segundo lugar, baseando no critério material, a tentativa é
punível (muito embora mais no caso de exposição: quando o agente não tenha chegado
ao local para que pretenda deslocar a vítima). A desistência pode ser relevante aqui, caso
o agente voluntariamente impedir a consumação do resultado não compreendido no tipo
(morte ou ofensa greva à integridade física). Ou seja já, o agente, tendo colocada em
perigo a vida da vítima, haverá, da sua parte, desistência relevante se procurar minimizar
o perigo (risco) ou evitar a produção do dano.

Quanto à comparticipação, esta se verifica em regras gerais (sobretudo na


exposição). No abandono, sendo crime específico próprio, as regras gerais não valerão
sem reserva: haverá que se observar regras atinentes a este tipo específico de
comparticipação (quanto à comunicabilidade das circunstâncias especiais).

Em relação ao concurso, e sendo crime de perigo concreto, havendo dolo de dano,


não poderá ser aplicado o concurso (em caso de infanticídio puerperal e causa honoris); e no
que respeita a realização do resultado por negligência, não se aplica o concurso (porque
o tipo é doloso). Já quanto omissão de auxílio (art.º 144.º), no concernente ao abandono,
os deveres de garante são pré-existentes à criação do risco enquanto que o crime de
omissão do dever de auxílio é, precisamente, consequência da situação de risco. Mas
entende-se ser possível haver omissão de dever de auxílio e exposição ou abandono: o
exemplo dado por Damião da cunha é o caso de a vítima se encontrar numa situação
descrita no art.º 144.º (200.º do CP/P) e “o agente, além de não prestar auxílio, deslocar
a vítima para outro local, criando ou agravando o perigo para a vida da vítima” (CUNHA
J. M., 1999, p. 123).

6. As agravações

Ao contrário do primitivo art.º138.º, CP/P que previa (n.ºs 2 e 3, respetivamente) as


circunstâncias agravantes ligadas ao resultado (morte), por um lado, e, por outro, à
qualidades pessoais da vítima (idade, doença ou fragilidade da vítima); e o art.º 138.º ,
na redação da Revisão de 1995 prever (n.º 2) as agravantes baseadas na qualidade do
agente (ser o agente ascendente ou descendente, adoptante ou adoptado da vítima), por
um lado e, por outro, ao resultado (ofensa à integridade física grave: al. a); e à morte: al. b), o
Código Penal guineense de 1993 (art.º 113.º-2) contempla apenas agravações com base
no resultado (ofensa grave para a integridade física: al. a); e morte: al. b)). Da mesma forma, o
nosso legislador de 1993 não previu a situação privilegiante do CP português (art.º 138.º-
4, da redação primitiva de 1982), referente ao fato de a mulher (mãe) praticar a exposição
ou abandono para ocultar a sua desonra e não tiver ocorrido a morte (uma diminuição
acentuada da pena) ou tiver resultado a morte (diminuição menos acentuada em relação
à primeira situação).

CAPÍTULO VIII A) Crime de aborto

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Sumário: 1 – Delimitação do objeto da ação e do bem jurídico; 2 – Concurso; 2.1 Com crimes contra a integridade
física; 2.2 – com homicídio; 2.3 – Pluralidade de abortos; 2.4 – A agravação pelo resultado; B) -
Interrupção ilegal de gravidez no CP guineense de 1993 (art.º 112.º) e no Projeto do Novo CP de 2021
(art.º 155.º);

1. Delimitação do objeto da acção e do bem jurídico

O crime de aborto tem, tradicionalmente, como bem jurídico a vida


intrauterina, ou seja, a vida em formação. Esta, como é hoje assento, no Direito
Penal com os trabalhos do parto, momento em que surge da pessoa para efeitos de
homicídio. A vida intrauterina começa com a nidação, que é a implantação do óvulo
no útero materno — o que tem lugar, mais ou menos, duas semanas após a
fecundação e termina com os trabalhos do parto. Com a fecundação ou conceção
(embora esta possa ocorrer muito antes da fecundação, segundo algumas culturais
ou religiosas), existe a vida, a chamada vida celular: quando as primeiras células do
feto se começam a formar — o aborto sucedido nessa altura chama-se aborto
celular, mas que não é considerado pelo Direito Penal. Por isso, o aborto — para
efeitos penais — acontece no interregno entre a nidação — altura em que o óvulo
fecundado se instala no útero e o ser se começa a desenvolver, naquele que vai ser
o seu habitat durante nove meses — e os trabalhos do parto a partir da ocasião em
que, aparecendo a destruição do produto de conceção, estamos perante o homicídio
e não mais perante o aborto.

Põe-se problema de saber da sorte das lesões ocorridas durante a gravidez — e não
no momento dos trabalhos do parto. Por exemplo, infeções ocorridas durante os trabalhos
de acompanhamento médico, nas consultas pré-natais. A tendência doutrinária é,
praticamente, unânime a considerar o momento da verificação do resultado: se depois do
nascimento, estamos perante homicídio; se antes, perante aborto.

2. Concurso

2.1 Com crimes contra a integridade física

O aborto pode concorrer com o crime de ofensas corporais negligentes quando, por
atos negligentes relativamente à gravida, acontecer a lesão à integridade física da grávida
– uma vez que tem íntima ligação a vida do feto com a vida da mulher grávida: não pode
haver, durante a fase da gravidez, lesão ao feto sem que tal lesão mexa com a vida da
grávida; tudo que acontece, durante essa fase, está intimamente ligado com a vida da
grávida. Por isso, tudo que atinge a vida do feto, atinge a ida e a integridade física da
mulher grávida. Sendo assim, se durante o processo de aborto houver lesão à integridade
física da grávida por negligência, esta ofensa física é imputada ao agente a título de
negligencia. Mas se a lesão for “intencional”, estaremos perante ofensa corporal dolosa.
Pode a ofensa causar incapacidade para a procriação. Neste caso estaremos perante ofensa
corporal grave incapacitante dando origem a responsabilização criminal nos termos do
art.º 115.º al. c) do n.º 1: por exemplo, o agente extrai útero da grávida por um processo
de infeção ao preparar o aborto.

2.2 Com homicídio

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Havendo dolo de causar a morte da grávida, o agente responde pelo crime de


homicídio doloso em concurso efetivo com o aborto. O dolo aqui é em todas as suas
modalidades: dolo direto, dolo eventual e dolo necessário. Se por negligência o agente
tirar a vida da grávida, estaremos perante homicídio negligente a concorrer efetivamente
com o aborto: é ocaso de o agente, por exemplo, aplicar, na prática do aborto, produtos
ou técnicas que, por negligência ou imperícia acabam por pôr termo à vida da grávida.

Em relação ao aborto sem consentimento, pode se colocar problema de complexidade


no concurso de crimes: pode estar em concurso efetivo com o aborto os crimes contra a
integridade física, contra liberdade (CUNHA J. D., 1999, p. 158) e (eventualmente
também) contra a vida naqueles casos em que admitimos concurso com o homicídio
negligente.

2.3 Pluralidade de abortos

Pode haver pluralidade de abortos, tendo em conta que o bem jurídico perfilhado no
aborto é pessoal. Neste caso, a pluralidade de abortos implicará, por regra, a pluralidade
de crimes (CUNHA J. D., 1999, p. ibidem.).

2.4 A agravação pelo resultado

Crime de aborto pode ser agravado pelo resultado, tal como acontece com o n.º 1 do
art.º 141.º do CP português. mas no caso guineense, não há preceito paralelo, pelo que se
apresenta discutível a aplicação da figura isoladamente ao aborto: só parecerá possível
naqueles casos em que o agente quer produzir resultado ofensa corporal (simples ou
grave) nos temos do art.º 116.º do CP, e vier, em virtude disso, a causar ofensa corporal
grave ou a morte da vítima: uma modalidade, segundo SILVA DIAS, (1961, p. 106)61 de
preterintencionalidade 62 . Mesmo assim, uma hipótese não muito clara de
admissibilidade. A não admissibilidade da figura de forma expressa leva à
impossibilidade de qualquer interpretação conducente à sua aplicabilidade porquanto a
agravação pelo resultado, por regra, tem que (como uma das suas características) estar
tipificada. Os crimes agravados pelo resultado são aqueles tipos de delito cuja pena
aplicável é agravada em função de um resultado que derivou da realização do tipo
fundamental. A qualificação (ou agravação) desta natureza não pode resultar da atividade
jurisprudencial, isto é, não deve ser uma criação jurisprudencial sob pena da violação do
princípio constitucional da legalidade do crime e da pena — nullum crimen, nulla pœna
sine lege —: tem de estar consagrado em um qualquer preceito da PE. Exemplo clássico
desta espécie de crime é da agravação das ofensas à integridade física e que no Direito
Penal guineense se consagra no art.º116.º do CP.

61
Responsabilidade pelo Resultado e Crimes Preterintencionais, polic. 1961. (Dissertação para exame
do Curso Complementar de Ciências Jurídicas), e Coimbra: Livraria almedina 1961

62 cf. FIGUEIREDO DIAS, Responsabilidade pelo Resultado e Crimes Preterintencionais, polic.


1961. (Dissertação para exame do Curso Complementar de Ciências Jurídicas), e Coimbra: Livraria
almedina 1961

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

B) Interrupção ilegal de gravidez no CP guineense de 1993 (art.º 112.º) e no


Projeto de Novo CP de 2021 (art.º 155.º)

A epígrafe sob a batuta de introdução ilegal de gravidez, na (nossa) perspectiva de


crime de perigo contra as pessoas, é a proposta que introduzimos no Anteprojeto de
Revisão do CP de 1993, no pressuposto de não ser punível o aborto na Guiné-Bissau; a
não ser nos casos em que o agente não respeitar nos requisitos previsto no art.º112.º do
CP. Uma solução bastante avançada do ponto de vista de procura de correspondência com
os caminhos trilhados pela dogmática jurídica no sentido da purificação do Direito:
procurar de afastar este ramo de Direito da Moral através de redução, na medida do
possível, das cargas da moral no Direito Penal. Esta preocupação acrescida às medidas
de política criminal (injustificada proibição, rectior, incriminação do aborto num contexto
onde a política social de informação não chega, se chegar é escassa, nas tabancas mais
longínquas do país) parece-me — conforme invocámos nas anotações ao artigo 112.º
(SANHÁ, 1997, pp. 133-134) e hoje, definitivamente, com firmeza — que, a punição do
aborto redundaria em clandestinidade da sua prática com consequências nefastas para as
mulheres que se sintam em necessidade de o praticar, do ponto de vista da ausência e
fraco controlo do acompanhamento da prática por pessoal sanitário. O argumento de
indicações, como justificativa de acautelamento da integridade pessoal da grávida, ou
quaisquer outras medidas a que se pretenda fazer recurso como plausível para
fundamentar a decisão de punir o aborto, sem ter em conta a liberalização aborto, no
nosso contexto, não deixaria de ser um fiasco, colocando em perigo a vida de mulher
vetada à clandestinidade: tais medidas teriam validade como meio de acautelar a
integridade pessoal (a vida e a integridade física) da mulher se pudessem ser controladas
pelo pessoal qualificada tecnicamente para o efeito. Até porque a questão da liberalização
do aborto muito debatida, noutras realidades sociais, no plano, entre outros, de direitos
humanos (nomeadamente da autodeterminação) das mulheres: de decidir ter ou não ter
filho. O legislador de 1993 decidiu resolver este problema num contexto em que a solução
por ele adoptada se apresenta ajustada; a partir dessa solução, não se pôs qualquer
problema: não obstante conceções meramente moralistas que possam subjazer à algumas
críticas sem expressão — embora não tenham aparecido até hoje, mas que poderão,
eventualmente, um dia extemporaneamente aparecer — num contexto da diversidade
religiosa e de opções de vida como o guineense.

Neste conspecto, o bem jurídico tutelado aqui é a integridade pessoal (e vida) e


determinação da mulher: o legislador exige tão-somente que o aborto seja realizado
com o consentimento da mulher (âmbito de liberdade de decisão e de ação), art.º 112.º-1,
mas também que seja realizado por um profissional habilitado para o efeito e dentro de
instalações clínicas apropriadas: equipadas com meios apropriados para se efetuar aborto
em condições de segurança da vida e saúde física e psíquica da mulher (incluindo os
meios técnicos de exames e demais meios complementares que permitem a realização
com sucesso e sem risco para a vida e integridade física da mulher), art.º 112.º-2. Salvo,
neste último caso, se a mulher consente na prática fora das condições clínicas adequadas
movido pela necessidade de ocultar a desonra ou vergonha social (causa honoris) e que
funciona aqui (à semelhança de no n.º 2 do art.º 110.º) como tipo especial de culpa que
enfraquece a culpa da mulher (art.º 112.º-3).

Assim, estando a prática do aborto descriminalizada no sistema penal guineense, não


se preocupou o legislador em criar situações em que o mesmo comportamento possa ser
afastado, porque todo o aborto, estando presente o consentimento da grávida e reunidas,

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

ao mesmo tempo as condições que assegurem a prática sem pôr em causa a vida da mesma
grávida, não há outro recurso a exigir para a sua realização: que haja o consentimento e
condições seguras para que tudo ocorra com maior segurança para a integridade pessoal
da mulher grávida, é permitida a realização do aborto. É um avanço registado pelo
legislador guineense numa matéria que tem suscitado infindáveis celeumas noutras
paradas.

O tipo objetivo é causar aborto em mulher grávida. O consentimento é aqui


elemento do típico que, estando presente, exclui o tipo: o fato deixa de ser típico

O tipo subjetivo é dolo (em qualquer das suas modalidade): o crime é doloso.

Os elementos aqui acabados de mencionar (os tipos objetivo e subjetivo) e demais


elementos não mencionados aqui, servem igualmente para o n.º A) deste capítulo.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

CAPÍTULO IX Dos Crimes contra a integridade física (art.º 114.º e ss)

Sumário: 1 – Enquadramento; 1.1 – Bem jurídico tutelado: conceito e delimitação; 1.2 – O afastamento da
tipicidade: as ações socialmente adequadas; 1.2.1 – As situações de risco permitido ou de risco
juridicamente irrelevante; 1.2.2 – As ações de pequena gravidade socialmente toleráveis; 1.2.3 – Casos
de risco permitido; 1.2.3.1 - Intervenções e outros tratamentos médicos feitos por pessoa
profissionalmente habilitada; 1.2.3.2 – Requisitos da validade das intervenções e tratamentos médicos;
1.2.4 – As ofensas corporais consentidas; 1.2.4.1 - 1.2.4.1 - Os problemas especiais do consentimento:
estudo panorâmico nos artigos 112.º, 114.º, 133.º 139.º e 140.º141.º e 142.º ; 1.2.4.2 - O consentimento;
1.2.4.2.1 – Considerações iniciais; 1.2.4.2.2 - Causas de justificação ou de exclusão da tipicidade?;
1.2.4.2.2.1 - Teses distintivas; 1.2.4.2.2.2 - O consentimento como causa de justificação; 1.2.4.2.2.3 -
O consentimento presumido; 1.3 As automutilações; 1.4 - As ofensas corporais agravadas (art.º115.º);
1.5 - A agravação pelo resultado; 1.6 - A problemática da violência doméstica e maus-tratos; 1.7 -
Concurso entre crimes contra a vida e crimes contra a integridade física.

1. Enquadramento

1.1 Bem jurídico tutelado: conceito e delimitação

O bem jurídico tutelado nos crimes contra a integridade física é a incolumidade ou


integridade física pessoal. A delimitação do bem jurídico integridade física — que inclui
o corpo e a saúde, afasta as ações que atingem bagatelas: bens jurídicos sem expressão de
dignidade ou seriedade entre as quais a vias de fatos, que entram na orbita das chamadas
injúrias reais. Por exemplo, cuspir sobre a cara pessoa (até mesmo uma acção que possa
ter uma seriedade na sua natureza, como por exemplo um tiro apenas com carácter jocoso,
como “dar um «tirinho» nas nádegas”, desde que de leve, de raspão).

É difícil separar lesão no corpo da lesão na saúde. porque uma ofensa no corpo acaba
por às vezes afetar saúde. Mas é fácil constatar lesão no corpo: contusão, incisão, cortar
cabelos a alguém, etc. Já perturbar um vizinho com barulho e música, que lhe deixam
sem dormir durante uma noite, causando-lhe mal-estar ou doença, é ofensa (lesão) na
saúde.

1.2 O afastamento da tipicidade: as ações socialmente adequadas

A ideia geral que se tem é de que as ações socialmente adequadas são as que a
sociedade tolera passando a fazer parte de comportamento aceite pela sociedade e, por
isso, não realizam nenhum tipo de ilícito, não são típicas. Uma vez não típicas, não se
trata, aqui, de afetação de nenhum dos elementos do tipo em particular, mas sim todo o
tipo. Daí se retiram duas consequências a saber: por um lado reafirma-se o princípio de
que os tipos não são valorativamente neutros, mas o reflexo de um determinado ilícito
culposo; por outro lado, a valoração errada de um comportamento típico como

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

socialmente adequado não constitui um erro de tipo, mas sim um erro sobre a ilicitude
uma vez que incide sobre o desvalor do sentido global do comportamento63.

Costumam dividir-se os casos da adequação social em dois grandes grupos seguintes:

1.2.1 As situações de risco permitido ou de risco juridicamente irrelevante

Estas situações englobam o trânsito rodoviário, a instalação de indústrias perigosas,


certas competições desportivas, as intervenções médico-cirúrgicas, etc. são casos em que
não é necessário o recurso à figura especial da adequação social para afastar a tipicidade,
pois ela já é afastada pela aplicação dos critérios de imputação objetiva, como já se viu
sobre a matéria.

1.2.2 As ações de pequena gravidade socialmente toleráveis

Fazem parte deste tipo, por exemplo: as gorjetas que se oferecem aos empregados dos
bares, restaurantes e hotéis; as afirmações objetivamente injuriosas proferidas entre os
indivíduos pertencentes a um determinado grupo, ou em determinadas cerimónias de
iniciação tradicional (fanados, por exemplo); as pancadas como alhos-porros; a receção
dos caloiros com pinturas com ovos nos seus rostos e cabeças ou mesmo com lama, etc.,
são situações socialmente toleradas e que, nesses contextos, não constituem qualquer tipo
de ilícito. O desvalor da ação nestas situações ou não existe ou é insignificante: nenhuma
das condutas lesa ou põe em perigo realmente um bem jurídico.

Para roxin e silva dias, a ação socialmente adequada mais não é, afinal, do que um
princípio de interpretação dos tipos: “sob esta designação genérica (ou desta fórmula
geral64 ) se abrigam os múltiplos critérios que retiram à ação aparentemente típica a sua
natureza desvaliosa e que urge descobrir por detrás do tipo em questão (DIAS A. S., 1992/93, p.
199)65.”

1.2.3 Casos de risco permitido

1.2.3.1 Intervenções e outros tratamentos médicos feitos por pessoa


profissionalmente habilitada

Fonte o art.º150.º, CP/P66 — sem correspondente no nosso CP, mas de sentido


próximo no concernente a intervenções e tratamentos médicos e que vamos utilizar aqui

63 NESTE SENTIDO, silva dias E Roxin, Responsabilidade pelo Resultado e Crimes


Preterintencionais, polic. 1961. (Dissertação para exame do Curso Complementar de Ciências Jurídicas),
e Coimbra: Livraria almedina 1961, p. 198-9.

64 O grifo é nosso.

65 A SILVA DIAS, Apontamentos, 1992/93, 199).

66 Diz o art.º 150.º CP/P:

“ (Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos)

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

para o tratamento da questão, relativamente ao tipo de requisitos para o preenchimento


do que seja tratamento médico, por ser de relevância para o sistema de saúde guineense
— estipula o seguinte:

O nosso artigo 115.º, n.º 2 diz:

As intervenções e outros tratamentos médicos feitos por quem se


encontrar profissionalmente habilitado não se consideram ofensas
corporais; porém, se da violação das legis artis resultar um perigo
para o corpo, a saúde ou a vida do paciente, o. agente será punido com
prisão de seis meses a três anos.”

O que será considerado como tratamento médico? A expressão “tratamento médico”


quer mostrar que se tratam de tratamentos feitos exclusivamente por médicos. Ainda
reforçada a ideia pela expressão “feitos por quem se encontrar profissionalmente
habilitado”. Fica, sem dúvida para a posição de se tratar apenas de tratamentos feitos
pelos médicos, ou profissionais habilitados com diplomas médicos (ou equiparados) em
termos da ciência médica convencional. Ficando de fora quaisquer outras práticas de
tratamentos, designadamente, o curandeirismo. A doutrina vem aceitando outros
tratamentos feitos por via de medicina alternativa, excluindo-se a medicina tradicional,
não obstante tanto tratamentos feitos por curandeiros, com conhecimentos milenares e
aceites por muita agente, mesmo os que vêm da fora do continente africano. Põe-se em
evidência a problemática dos tratamentos médicos para a cura do “novo coronavírus”,
que é doença ainda sem solução médica, mas que, segundo alguns, pode ter tratamento
via medicamentos tradicionais: plantas medicinais e mesmo alguns remédios feitos a
partir de plantas por alguns organismos( por exemplo Cáritas guineenses). Mas que não
têm aceitação oficial da OMS, ou da comunidade internacional por — segundo esses
organismos — faltarem-lhes a comprovação científica, ou pelo menos têm apresentado
“reticências” sobre tais medicamentos. O exemplo mais evidente são os medicamentos
— a base de plantas — feita pelo Madagáscar ditos serem capazes de curar o mesmo novo
coronavírus (Covid-19), e segundo as notícias radiodifundidas, a Guiné-Equatorial testou
em 10 dos seus pacientes da referida doença, nove dos quais ficaram sãos. Sabe-se, pela
imprensa, que as grandes indústrias farmacêuticas e algumas organizações internacionais
têm exigido que lhes fosse revelada a fórmula utilizada na produção de tais remédios,
como forma de poderem saber se na verdade têm validade para uso no tratamento da
doença em causa; ao que o Madagáscar tem rejeitado (pelo menos até aqui). As
resistências à admissão — como eficazes — dos medicamentos malgaxes, “Covid-
Organics”, e sobretudo aliadas à exigência da revelação da fórmula do fabrico por parte

1. As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos


conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados
e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico
ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir,
diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga
corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa a
integridade física.
2. As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das
finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos
violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida
ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas
com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se
pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal”.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

daquele país africano — que há cerca de 60 anos tem trabalhado e aplicado medicamentos
a base das plantas medicinais, sem depender dos critérios da OMS —, apesar das
possíveis boas intenções que acompanha as atitudes e exigências dos organismos
internacionais em causa, incluindo os restantes países africanos que têm ainda dúvidas
sobre a sua aplicação —, têm sido entendidas como recusa de reconhecer que seja um
país africano a descobrir tratamento para uma epidemia que o mundo considera ainda sem
cura, apesar de dizimar, praticamente, a humanidade. Com dados que não parem de subir
a cifrar milhões de mortes em todo o mundo, parou e colocou povos e nações na sua
globalidade em confinamento e quarentena.

1.2.3.2 Requisitos da validade das intervenções e tratamentos médicos

“Só pode falar-se de intervenção terapêutica nos casos em que se verifica, não apenas
a indicação médica objetiva e a execução segundo as legis artis, mas também a direção da
vontade do agente para a terapia — Engisch apud COSTA ANDRADE (1999, p. 303).

Para silva dias, as intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos do art.º 150.º, n.º1 do


CP português, têm como requisitos de relevância os seguintes:

a) a conformidade às leges artis (regras de perícia e


de deontologia médica);
b) finalidade curativa; e
c) a qualidade pessoal (que o autor seja médico ou
pessoa legalmente autorizada).

E defende o mesmo autor de que na descrição de “médico ou pessoa legalmente autorizada”,


cabem não só os médicos que praticam medicina oficial, mas também os praticantes de
medicinas alternativas, desde que legalmente reconhecidas e possuidoras de “leges artis”.
Mas nega esta qualidade aos restantes, nomeadamente feiticeiros e curandeiros. Quanto
a estes últimos, entendemos que a exclusão da responsabilidade pode ter lugar por via da
causa de justificação do consentimento, respeitando-se o limite dos bons costumes. Regra
geral para a validade das intervenções médicas. Inclinamo-nos a aceitar, sobretudo no
nosso contexto e da áfrica em geral, a posição dos autores Bertel e Kienapfel que admitem
a validade da cura feita mediante procedimento naturalista. Neste sentido afirma Bertel
que

[no âmbito do art.º110.º do Código Penal austríaco67] —


“[…] tratamento é toda a aplicação de um medicamento ou
preparado” e, por isso, “são também tratamentos no sentido da lei os
processos naturalistas mesmo quando a ciência médica os considera
sem valor.”

E Kienapfel assevera que

67 V. (WK § 110 4s do ÖStGB) — (Bertel apud Costa Andrade, Comentário Conimbricense I, p 303
Fonte especificada inválida.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

“Mesmo um tratamento realizado por um curandeiro ou por


um leigo cai na alçada do § 110” [art.º 110.º do Código penal
austríaco]68.

Normalmente os requisitos de leges artis são agrupados em requisitos de ordem


objetiva e requisitos de ordem subjetiva.

a) Os requisitos de ordem objetiva são:

i) indicativa médica; e
ii) realização segundo leges artis.

b) Os requisitos da ordem subjetiva:

(i) intenção curativa; e


(ii) qualidade pessoal de quem pratica o ato.

No crime de ofensas corporais simples, o tipo objetivo consiste em atingir o corpo


ou a saúde de outra pessoa. O seu tipo subjetivo consiste no dolo: o crime pode ser
cometido sob qualquer das modalidades do dolo [assim: FREDERICO ISASCA (Código
Penal, 1997, p. p. 36 e seguintes.)

1.2.4 As ofensas corporais consentidas

1.2.4.1 Os problemas especiais do consentimento: estudo panorâmico nos artigos


112.º, 114.º, 133.º 139.º e 140.º141.º e 142.º

1.2.4.2 O consentimento

1.2.4.2.1 Considerações gerais

Acerca do consentimento, a maioria dos códigos panais do mundo não consagram


o consentimento como causa de exclusão na parte geral. Para Portugal onde, a partir do
código penal de 1982, tem a sua consagração, no art.º 38, tem as causas de exclusão de
ilicitude na Parte Geral e de exclusão do tipo na Parte Especial. O nosso sistema jurídico-
penal, à semelhança da maioria dos países estrangeiros, só tem consentimento espalhados
no código penal, nomeadamente nos artigos 112.º 133.º, 139.º, 140.º, 141.º e 142.º, sendo,
precipuamente, causas de exclusão do tipo. A inexistência, porém, de uma consagração
expressa não significa qualquer problema de lacuna, embora a previsão legal seja melhor.
Países que não têm tal consagração na parte geral dos códigos penais têm-na na parte
especial. Por exemplo, no Código Penal alemão (stGB), encontra-se no art.º 228.º (§ 228),
no âmbito dos crimes contra a integridade física. As figuras de causas de exclusão de
ilicitude, dependem dos tipos em que se inserem como elementos intrínsecos, como é o
caso de ofensas corporais simples (art.º 114.º).

1.2.4.2.2 Causas de justificação ou de exclusão da tipicidade?

68 Ibidem. Defende tese contrária Kindhäuser (KINDHÄUSER 2009, p. 595 e s.), em Portugal,
Costa Andrade e Taipa de Carvalho, entre outros.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Quanto à velha discussão sobre se o consentimento é causa de justificação ou causa


de exclusão da tipicidade, como já ficou dito, nos sistemas onde existe a consagração
expressa na Parte Geral de Códigos Penais, como é o caso português, tal discussão deixou
de ter grande sentido, na justa medida em que, de acordo com o que ficou dito. Entendem
alguns, como FARIA COSTA (2012, p. 303)69, citando FIGUEIREDO DIAS (2007, p. 470 e
s.) ser causa de justificação por razão de se tratar, entre outros, “de uma prevalência da
autodeterminação sobre o interesse da comunidade de homens e mulheres na proteção
penal de bens jurídicos, reflete, de modo nítido, a existência da justificação: a ideia de um
interesse preponderante. Outros, como na doutrina alemã — por todos.

1.2.4.2.2.1 Teses distintivas

Quanto à discussão, há duas teses que digladiam tradicionalmente sobre o assunto,


apesar de referência universal do consentimento à autonomia pessoal. Trata-se das teses
unitarista (ou unitária) e dualista: a primeira propõe um tratamento global e unitário do
consentimento quer como causa de justificação, quer como circunstância que afasta a
tipicidade; a segunda — defendida originariamente por Geerds citado por SILVA DIAS, e
sufragada maioritariamente em Portugal pela mão de costa andrade — defende uma
diferenciação entre consentimento e acordo, justificando a distinção entre as duas
situações no fato de, segundo a mesma tese, existir duas espécies de bens jurídicos —: a
lesão do bem jurídico (integridade física, por exemplo, no crime de ofensas corporais) e
que se mantém — “se A autoriza que B lhe dê um murro, tal quer dizer que a integridade
física de A foi lesionada pelo murro de B —, sendo, todavia, segundo FARIA COSTA (2012,
pp. 301-302), esta lesão justificada”; o acordo, pelo contrário, além de não significar
qualquer lesão de um bem jurídico protegido, concorre para a sua fruição. Assim, e ao
contrário do exemplo acabado de dar, se X convida amigos Y e Z para jantar em sua casa,
logo abrindo-lhes a porta e os convidando a entrar, tal contribui para a sua realização
como pessoa. Nas palavras de SILVA DIAS (1992/93, p. 219) 70 , “Portanto, o acordo
consciente e livre, longe de se contrapor ao bem jurídico protegido, mediatiza, pelo
contrário, a sua realização”. Na mesma senda, que é de dizer que —, segundo silva dias,
citando em segunda mão Hiersch — “a postura subjetiva do autor do consentimento é
completamente diferente consoante a espécie de consentimento de que se trata. Se em
caso de consentimento de exclui o tipo lhe perguntarem qual a sua conceção de atuação
autorizada, ele responderá «os meus direitos não foram feridos». Porquê? Porque neste
caso, no plano distintivo considerado até aqui, não há violação de direito, não sendo, por
isso, o consentimento referido ao sacrifício de um direito pessoal. Por isso, “quem, por
exemplo, autoriza outrem a entrar em sua casa dificilmente representará que consentiu
uma lesão dos seus direitos”. O que não acontece no consentimento justificante onde há
conflito de interesses, mantendo-se o interesse violado, apesar do consentimento
(autonomia). Por isso, quem autoriza, por exemplo, o sacrifício da sua saúde “confrontado
com a mesma pergunta não deixará de responder: «estive de acordo com a lesão do meu
direito»” (1992/93, p. 219)71. Por isso esta atuação é, apenas, justificada.

Apesar, todavia, de haver razões para subscrever a tese dualista, não há


unanimidade sobre entendimento acerca da configuração dogmática das duas figuras

69
FARIA COSTA, Noções Fundamentais do Direito Penal, 3ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p.
301-302.
70
A. SILVA DIAS, Apontamentos, 1992/93, Lisboa: FDL, 219.
71
Idem.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

(consentimento e o acordo). Com efeito, Geerds — segundo SILVA DIAS (1992/93, p.


219) 72 —, inicialmente estabelecia a distinção entre as duas na normatividade e
facticidade; no caráter normativo do consentimento que exclui a ilicitude e no conteúdo
fáctico e naturalista do consentimento (acordo) que exclui o tipo: no acordo, a vontade
do ofendido tem relevância, independentemente da capacidade de quem consente, da
circunstância de estar ou não em erro, e do facto de ela ter sido ou não expressamente
declarada e levada ao conhecimento do destinatário; no consentimento, tais elementos
são necessários.

Para SILVA DIAS e costa andrade — por ele citado — alicerça a sua fundamentação
no “critério material-teleológico de distinção das duas figuras”, contrapondo “a uma
fundamentação policêntrica e imanente ao tipo de acordo («só no contexto e horizonte
hermenêutico demarcado pelos pertinentes tipos será referenciar o seu conteúdo material
e as exigências normativas»), uma fundamentação monométrica, transcendente ao tipo e
ancorada numa relação de descontinuidade entre a autonomia e o bem jurídico”.

É entendimento do que a configuração do acordo, tal como do consentimento,


depende estreitamente dos tipos legais em que se insere, apesar de serem ambos uma
construção normativa. É neste prisma que SILVA DIAS (1992/93, p. 220) mostra—,
citando Stratenwerth (Derecho penal, 1982, p. 129) — a natureza contingente do acordo,
exemplificando [com o caso de furto] que se uma conduta lesiva afeta uma relação de
domínio, o consentimento natural — por exemplo o consentimento de uma criança ou de
um doente mental — será suficiente. Também, por exemplo, num caso de dano (art.º 155.º
do nosso CP). O contrário será o caso de uma intervenção cirúrgica em que será
necessário o consentimento e compreensão da amplitude e significado do consentimento,
pelo que um consentimento natural não será suficiente.

Do mesmo ponto de vista expendido, COSTA ANDRADE (Consentimento e Acordo,


1990, p. 668) — segundo SILVA DIAS (1992/93, p. 220) —, alicerça a destrinça nos
regimes diferenciados e cláusula de bons costumes:

i) Em caso de erro (desconhecimento) sobre a concordância do titular do bem


jurídico, no acordo subsiste apenas o desvalor da ação. Porque, mesmo não
havendo desvalor do resultado— uma vez que, como diz e bem, FARIA COSTA
(2012, p. 306) 73 , o titular do bem jurídico tinha consentido — permanece o
desvalor da ação fundamentando a punibilidade a título de tentativa impossível
(se for caso disso); porque (como ficou referido) o acordo mediatiza a realização
do bem jurídico; no caso do consentimento, há desvalor da ação e desvalor do
resultado inerentes ao preenchimento do tipo, em virtude de que o bem jurídico e
as regras da tentativa previstas no art.º 38.º, n.º 4 do Código Penal Português que
diz que “Se o consentimento não for conhecido do agente, este é punível com a
pena aplicável à tentativa” só se explicam, aqui, por analogia.
ii) O acordo, ao contrário do consentimento (art.º 38.º 1 e 149.º , ambos do
Código Penal Português), não está sujeito à cláusula dos bons costumes, porque a

72
Idem.
73
FARIA COSTA, Noções Fundamentais cit., p. 306.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

lei não a prevê para estas situações, por um lado e, por outro, e segundo as palavras
de SILVA DIAS (1992/93, p. 220)74,

“porque, dando expressão à autonomia individual, o acordo


assegura ao mesmo tempo a realização do bem jurídico, não deixando
surgir as situações de autonomia e de conflito cuja superação é função
da cláusula dos bons costumes”.

iii) De acordo com o mesmo autor (1992/93) 75, também há disparidade entre
o consentimento e acordo inquinados por erro do titular do bem jurídico.

1.2.4.2.2.2 O consentimento como causa de justificação

1.2.4.2.2.2.1 Natureza de bens jurídicos.

Os bens jurídicos passíveis de consentimento só podem ser bens jurídicos


disponíveis (como é o caso de ofensas corporais simples — art.º114) e que não ofendem
a cláusula dos bons costumes. Os interesses (bens jurídicos) livremente disponíveis é que
podem ser objeto de consentimento; e estes são somente os bens jurídicos pessoais. Os
bens jurídicos supra-individuais não podem ser objeto de consentimento. E a razão
subjacente é a impossibilidade de sustentar a disponibilidade de bens jurídicos supra-
individuais ou mesmo comunitários, independentemente dos conceitos e conceções que
se tenha ao nível social, sobre a vida, porque, por um lado, estes não podem ser
identificados com um único titular que possa deles dispor; e, por outro, sendo o
fundamento do consentimento de ser considerado, como entende, também, FARIA COSTA,
(2012, p. 304) 76 “como causa de justificação — o direito à autodeterminação, —
dificilmente faria sentido conceder efeito justificante quanto aos bens supra-individuais”.

Os bens jurídicos indisponíveis são os interesses de relação de domínio, ou seja, os


interesses patrimoniais individuais (e mesmo a integridade física que não contende com
a cláusula dos bons costumes). Quanto à vida, que é unanimemente considerada
absolutamente indisponível, é indisponível perante lesões provenientes de terceiros; e não
perante aquelas provenientes do seu próprio titular: o suicídio não é típico por dizer
respeito à ação do próprio titular do direito à vida em concreto. Já perante ataque de
terceiros, o bem jurídico é indisponível. E a prova positiva da indisponibilidade da vida
é o fato de, segundo a teleologia (e o “sistema”) penal, constituir um ilícito típico matar
alguém, mesmo perante o seu consentimento e pedido sério, instante e expresso — eis a
razão de proibição de homicídio a pedido da vítima (DIAS A. S., 2007, p. 479)77 —,
porque neste caso o titular do bem jurídico vida não pôs termo à própria vida, caso que
seria de suicídio: tendo domínio do facto é o terceiro que não o suicida quem pôs termo
à própria vida, não se podendo falar de um consentimento eficaz do seu titular, tendo em
conta à indisponibilidade absoluta da vida — assim considerada pela doutrina maioritária,
e no entendimento de CAVALEIRO DE FERREIRA (1992, pp. 251-252) — perante lesões
provenientes de terceiros. Por isso, o auxílio prestado à suicida constitui um fato ilícito
típico de matar alguém (art.º 107.º).

74
Apontamentos cit., p. 220.
75
A. SILVA DIAS, ibid. idem.
76
Faria Costa, Noções Fundamentais de Direito Penal, cit., p. 304.
77
A. SILVA DIAS, Crimes Contra a Vida cit., p. 479.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Os bens jurídicos supra-individuais e comunitários como tais protegidos, mesmo as


pessoas em quem os mesmos se corporizem não podem invocar a sua vontade perante o
verdadeiro «titular» do bem jurídico, a sua vontade e o valor da sua autorrealização. Em
abono a esta tese, avulta jurisprudência portuguesa, conforme refere o Acórdão do S.T.J.
português de 12 de Maio de 2005 relatado por SIMAS SANTOS (2005, p. 238 e s.) que
admitiu que, em caso de o agente, com falsidade de depoimento, causar — em concreto
— prejuízo aos interesses particulares de determinada pessoa, esta tem direito de defender
este seu interesse — não obstante o interesse da realização da justiça — incluindo a
legitimidade para se constituir assistente; tendo este aresto largo seguimento
jurisprudencial. A boa doutrina que admite, como um interesse autónimo do titular
concretamente prejudicado com a lesão do bem jurídico que, nestes casos e doutros como
o relatado no Acórdão de fixação de jurisprudência, 3.ª secção do S.T.J. de 27-08-2011
(PORTUGAL, 2011), cuja fundamentação trouxe em si rica e exuberante jurisprudência
e doutrina com grande interesse, tanto no sentido da tese mais restritiva quanto,
sobretudo, da mais abrangente sobre conceito de tutela de bem jurídico: admitindo, por
fim, a legitimidade de defesa da queixa crime tanto ao proprietário ou pessoa a quem o
bem jurídico se corporiza quanto ao particular cujo interesse seja atingido com a lesão do
bem jurídico.

1.2.4.2.2.2.2 Limites de relevância do consentimento do ofendido

O consentimento do ofendido tem relevância apenas se respeitar a cláusula dos bons


costumes e que não tem a ver com a imoralidade do ato como, segundo costa andrade —
(Comentário I, p. 291 e consentimento, 543 e s.) citando Roxin (p. 475) e Hirsch (ibid.) —
“pequenas lesões causadas pelo propósito de satisfazer instintos masoquistas, a esterilização ou
uma tatuagem representando objectos obscenos”; mas sim com a gravidade da ofensa. Não são,
igualmente, contrárias aos bons costumes as ofensas corporais consentidas apenas em
virtude de serem preordenadas à prática de condutas ilícitas. Assim, por exemplo, não
é contrário aos bons costumes o acto do barbeiro que corta cabelo a um indivíduo que
estava a ser procurado pela polícia por ter cometido um crime, bem como um médico que
faz uma operação cosmética para permitir ao ofendido escapar-se à perseguição criminal.
Ou o médico que produz lesão ao indivíduo para que este consiga receber uma
indemnização indevida, comportamento este punível noutra sede (provavelmente no
contexto de Burla de seguros), mas nunca a título de Ofensas corporais. Neste sentido se
posiciona, COSTA ANDRADE no seu Consentimento ( (Consentimento e Acordo, 1990, p. p.
543 e seguintes.))78.

A) Referência dos bons costumes

A referência dos bons costumes — segundo COSTA ANDRADE (Comentário I, p.


290) citando autores como Roxin — é o facto e não o consentimento.

A cláusula dos bons costumes, entendida por alguns como resquício da ligação que
ainda existe entre o direito (penal) e a moral (COSTA, 2012, pp. p. 304-305), é (ou deve

78 E em comentário ao art.º 149.º do CP português (Comentário I, p. 291), citando Hirsch (LK §226
a, 9)) e Burgstaller (WK § 90, 84).

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

ser interpretada como) enquadrada nas ideias de gravidade e irreversibilidade da ofensa, como
afirma FIGUEIREDO DIAS, (2007, p. p. 481). E não como representando uma contrariedade
à moral. É uma cláusula indeterminada, imprecisa, o que leva uma parte considerável da
doutrina a pugnar pela sua inconstitucionalidade por violação do princípio da
determinação da lei penal. Por isso o Código Penal português, no seu art.º 149.º, n.º 2,
veio estabelecer — através de uma cláusula restritiva — e que se encontra, também, no
art.º340.º do Código Civil —, uma fórmula de enquadramento normativo da ideia
balizando, a título exemplificativo (DIAS A. S., 1992/93, p. 220), alguns critérios,
tópicos, para decidir se uma ofensa ao corpo ou à saúde é contrária aos (ou violadora dos)
bons costumes, entre os quais conta os motivos e os fins do agente e do ofendido, os
meios empregados e a amplitude previsível da ofensa —, nos precisos termos em que
expressou o legislador: “tomam-se em conta, nomeadamente, os motivos e os fins do
agente ou do ofendido, bem como os meios empregados e a amplitude previsível da
ofensa” (COSTA, 2012, p. ibid.).

Com esta consideração, fica afastada a identidade do conceito dos bons costumes
com o da moralidade devendo ser, assim, os aspetos decisivos a referência ao bem juridico
em jogo e outros interesses juridicamente relevantes. Os artigos 38.º, n.º 1 e 149.º, n.º 1
deixam evidente tal referência ao fato que constitui o seu objeto; e não ao consentimento
enquanto tal, ao referirem à lesão dos bons costumes. É deste modo que o caráter grave e
irreversível da ofensa constitui um critério operativo importante: uma lesão leve da
integridade física nunca é contrária aos bons costumes, sejam quais forem os motivos e
fins e da sua prática (DIAS A. S., 1992/93, p. 221). Autores há que, como Eduardo Correia
(Direito Criminal II, 1973, p. 27), incluem aos bons costumes os atos contra a natureza
(por exemplo, sadismo).

Os fins e motivos do agente e do ofendido — por exemplo: uma intervenção


cirúrgica cosmética com o fito de desfigurar um criminoso, para disfarçar a justiça penal
— constituem uma ofensa aos bons costumes, assim como o fato consentido que, por
atentar contra o interesse na realização da justiça constitui, constitui igualmente, ofensa
aos mesmos.

Da mesma forma, os meios empregados e o seu significado para o bem jurídico —


por exemplo: emprego de tortura, apagar cigarro na cara do ofendido, etc. —, constituem
a violação dos bons costumes por, a par da lesão em si, são contrários à dignidade da
pessoa humana.

Como requisitos de validade, o consentimento deve ser prestado, livremente e de


forma consciente (esclarecida), e sê-lo até a execução completa ou acaba do fato, depois
do que relevará apenas como perdão e não consentimento (art.º 38.º, n.º 2 do Código
Penal português). Acresce-se a estes requisitos acabados de referir, outros dois, nos
termos do art.º 38.º, n.º 3, e que são os seguintes:

√ a pessoa seja maior de 16 anos de idade; e que


√ tenha, no momento em que o presta, capacidade de discernimento necessário
para avaliar o seu sentido e alcance.

Deste modo — e ao contrário do que acontece nalguns casos de acordo, — mesmo


o consentimento prestado por um adulto que se encontra em situação de anomalia
psíquica grave, não tem eficácia justificante.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

1.2.4.2.2.3 O consentimento presumido:

O consentimento presumido é aquele que, tendo em conta a circunstância de, em


situação de se necessitar — urgentemente — de tomar uma medida, e não haja
possibilidade de obter o consentimento expresso, em temo útil, do titular do bem jurídico
(seja por qual for a razão) —, por exemplo: estado de inconsciência numa intervenção
cirúrgica ou em caso de um aborto; ausência no estrangeiro, etc. — e não haja uma
declaração expressa antecedente a rejeitar que, a seu favor, seja tomada uma decisão
daquela natureza —, por exemplo ser sujeito á uma intervenção cirúrgica — e dado às
circunstâncias do caso seja razoável presumir que, o mesmo titular do bem jurídico, se
estivesse em condições de prestar o consentimento, fá-lo-ia, naquela situação concreta,
sem problema; e toma-se a medida (decisão) em causa.

Assim, os seus elementos constitutivos são:

a) A urgência: a necessidade urgente de tomar uma decisão (por exemplo uma


secretária recebe carta da Santa Casa de Misericórdia ou de uma entidade de
concurso bilionário, com carimbo de urgente no envelope, destinada ao patrão,
empresário, em viagem de negócio no estrangeiro; receando que o patrão
ficasse prejudicado pela demora de saber o conteúdo, abre e lê a carta);
b) Impossibilidade de obter consentimento: O titular do bem jurídico não está em
condições de prestar o consentimento (porque, por exemplo, em caso do parto
em que a mulher grávida corre o risco de vida, e se põe o problema de eliminar
o nascituro para poder salvar a vida dela, mas encontra-se em situação de
inconsciência, não podendo prestar o consentimento para que isso aconteça:
asta situação assume particular relevância no aborto terapêutico, quando a
mulher grávida está inconsciente — art.º 141.º, n.º 2 do Código Penal
português — e nas intervenções cirúrgicas urgentes — art.º 158.º, n.º 2 als. a)
e b) do Código Penal português de 1982 (DIAS A. S., 1992/93, p. p. 222.));
c) Oportunidade da decisão: O agente comprometeria definitivamente o sucesso
da ação, por não poder obter, em tempo oportuno, um consentimento válido,
se o mesmo ficasse a aguardar a decisão do titular do bem juridico (por
exemplo A entra em casa do vizinho ausente para reparar uma rutura na
canalização que ameaça inundar toda a casa: caso que);
d) Razoabilidade: Segundo as circunstâncias do caso é razoável supor que o
titular do bem jurídico teria eficazmente consentido no fato, ou seja, que seria
esta a sua vontade se estivesse a manifestá-la, em caso de presença ou de poder
fazê-lo (por exemplo, caso de um doente em fase terminal, quanto à eutanásia
legalmente admitida, e livre e conscientemente consentida); ou porque
e) Habitualidade: É habitual o agente agir em substituição do titular do bem
juridico em casos semelhantes (por exemplo uma mulher ler cartas do marido
na ausência ou na presença do mesmo porque este lhe costumava permiti-lo.
Em todos os exemplos expostos, urge tomar uma decisão e não é possível obter
uma manifestação expressa da vontade do titular do bem jurídico, sendo razoável supôr
que o titular do bem teria consentido, por exemplo na violação da correspondência (1.º
e 4.º exemplos), intervenção médica arbitrária e no aborto ilegal (se for caso disso79),
(2.º exemplo), na violação do domicílio (3.º exemplo) e na realização da eutanásia (4.º

79 O Código Penal guineense de 1993, não tem previsão de intervenções médicas arbitrárias

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

exemplo). A suposição a que se refere tem a ver com a experiências anteriores do agente:
relações (íntimas e de confiança) entre o agente e o titular do bem, tomar habitualmente
conta da casa do vizinho na ausência deste, a secretária abre as cartas do patrão, assim
como o interesse esclarecido do titular do bem e também as declarações de vontade deste
em contrário. Valem aqui os requisitos da validade do consentimento como já ficou dito
supra.
Sendo caso da necessidade de tomar uma medida, é também — o consentimento
presumido, — um caso de estado de necessidade em sentido amplo.

Sendo assim, “o suporte da justificação não se encontra na vontade do titular do bem


jurídico enquanto tal — [como diz stratenwerth (Derecho penal, 1982, p. p. 136.)]80 —,
mas no estado de necessidade em que se toma a decisão”. Por isso, devido à força da
validade objetiva dos elementos do consentimento presumido, se o titular do interesse
juridicamente protegido manifesta, posteriormente, uma vontade contrária a que foi
presumida, nada altera no quadro justificador; i.e., o fato continua justificado pelo
consentimento presumido, desde que este consentimento seja eficaz por preencher os
requisitos da sua eficácia e que, nos termos do sistema português que, por determinação
do art.º 39.º, n.º181 são os seguintes previstos nos artigos 38.º, n.ºs 1e 382 e 149.º, n.º
183:

√ ser o ofendido maior de 16 anos de idade;


√ o bem jurídico seja livremente disponível;
√ que o consentimento seja prestado livre e esclarecidamente;
√ o ofendido tenha discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance
no momento.

Ficam foram da validade do consentimento os casos de vícios da vontade. Por


exemplo, não tem eficácia, lesões produzidas mediante o erro fraudulento ou
dolosamente induzido ou provocado. Por exemplo, quando estamos perante erro-
referido-ao-bem-jurídico, ou seja, “o erro referido ao se, à natureza e à medida da lesão ou à
gravidade da doença”. Designadamente — segundo costa andrade (Comentário I, 1999, p.
286), citando Arzt (segundo o qual só o erro desse tipo determina a invalidade do
consentimento e, consequentemente, a punição do agente a título de ofensas corporais)

80 citado por SILVA DIAS, ibid.

81 Diz o art.º 39.º, n.º 1 do Código Penal português o seguinte:

“Ao consentimento efetivo é equiparado o consentimento presumido”.


82 Diz o art.º 38.º, n.º 1 e 3 do Código Penal português o seguinte:

“Além dos casos especialmente previstos na lei, o consentimento exclui a ilicitude do facto quando
se referir a interesses jurídicos livremente disponíveis e o facto não ofender os bons costumes.
1. O consentimento só é eficaz se for prestado por quem tiver
mais de 16 anos e possuir o discernimento necessário para
avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o
presta”.
83 Diz o art.º 149.º, n.º 1 o seguinte:

1. “Para efeito de consentimento a integridade física


considera-se livremente disponível”.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

“quando A ministra a B uma injeção para dormir, ocultando que ela tem
efeitos nocivos para a saúde; ou quando C obtém de D consentimento para
lhe dar uma bofetada, ocultando que a sua mão esta armada, v. g., com uma
luva de boxe. Já não será assim se E, gerente de uma clínica, obtém de A
consentimento para doar sangue contra o pagamento de uma soma em
dinheiro, mas ocultando a insolvabilidade da clínica”.

Segundo arzt na citação de costa andrade (Comentário I, 1999, p. 286),

“[…] quem não conhece a dimensão da renúncia não realiza a


autonomia sobre a integridade física. ”

Costa andrade diverge-se de arzt na parte em que, rejeita generalizadamente os


demais casos em que o erro não se refere ao bem jurídico (apesar de dolosa e
fraudulentamente induzido). Como é o caso do erro sobre as contraprestações
pecuniárias que, segundo a tese do autor acabado de citar e a doutrina que o
acompanham, só teriam tutela no âmbito “das expectativas patrimoniais, inclusive o
recurso a Burla”.

Porque há casos em que, segundo o entendimento hoje generalizado, e


encabeçado por Roxin (noll, 1984, GS, 292), apesar de haver erro-não referido-ao-
bem-jurídico, não se pode considerar o consentimento dado nessas circunstâncias,
como sendo “expressão concreta da liberdade de acção do individuo no lidar com
os seus bens jurídicos”. Por isso, segundo roxin, posição sufragada por costa andrade
(1986, p. ibid. p. 287.), mesmo perante o erro-referido-ao-bem-jurídico, deve-se
“separar entre si os erros que excluem uma decisão autodeterminada do portador do
bem juridico e aqueles que, ainda segundo critérios jurídicos, deixam subsistir a
margem necessária para uma disposição livre por parte do autor do consentimento"
(Ibid. 281). Seguindo esta posição de roxin, costa andrade expressa:

deve ter-se como inválido e ineficaz o consentimento assente em


erro-não-referido-ao-bem-jurídico (e fraudulentamente induzido)
numa extensa casuística que tem em comum: a) tratar-se de erro sobre
uma finalidade altruística; ou, b) tratar-se de erro que coloca o autor
do consentimento numa situação análoga à do direito de necessidade”.

E ilustra o argumento os exemplos da casuística apresentadas, que divide em dois


grupos onde, no primeiro grupo (erro sobre a finalidade altruística) apresenta o
seguinte:

um oftalmologista (O) obtém de uma mulher (M) o consentimento


para a extracção de um globo ocular, fazendo-a acreditar que tal é
necessário para salvar a vista de um seu filho, na iminência de ficar
cego, quando a verdade e que O pretende apenas prejudicar M ou
beneficiar outro paciente; A aceita submeter-se a uma intervenção
porque o convenceram de que ia participar numa experiencia
fundamental para o avanço da ciência medica, quando a verdade e que
o autor da "experiencia" pretende apenas prejudicar A ; uma vedeta
(V) de cinema dispõe-se a doar sangue, convencida de estar a
participar num movimento de solidariedade com as vítimas de uma
catástrofe, quando a verdade é que o agente pretende obter o sangue
para o vender, como relíquia, aos admiradores de V. No segundo
(situação análoga a do direito de necessidade) incluem-se constelçõ6es

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

como: B, querendo colocar C numa situação de dificuldade, convence-


o que 6 portador de piolhos, para que C consinta que lhe rapem o
cabelo. (Com algumas diferenças, a nível, sobretudo, da
fundamentação, estas solug6es preconizadas por Roxin, outrossim
sustentadas por autores como Jescheck / Weigend, Lehrbuch 382 S.;
Jakom 246 ss.; Bloy, zstw 1984 717 ss .; Burgstaller, WK § 90 54 ss
. ; COSTA ANDRADF, Consentimento 583 ss. Para uma referência
crítica,

1.3 As automutilações

A questão das automutilações é um tema próximo do consentimento. Tal como ficou


dito acerca da vida, a integridade física é disponível para o próprio sem restrições. As
automutilações, neste sentido, permanecem impunes; bem como incitamento ou auxílio
à automutilação, em virtude de faltar, “no capítulo das ofensas corporais um tipo
incriminador sui generis semelhante ao do art.º135.º,” CP/P e 109.º, CPGB (o incitamento
ao suicídio); “e a punibilidade de comportamento dessa natureza não pode ter lugar
através de figuras gerais da participação” (DIAS A. S., Crimes Contra a Vida, 2007, p.
98).

1.4 As ofensas corporais agravadas (art.º115.º)

0s factos típicos enquadram-se em 4 grandes grupos de classificação a saber:

a) Ofensas no corpo (al. a)) e (al. b));


b) Ofensas funcionais (al. c));
c) Ofensas na saúde (al. d));
d) Perigo para a vida (al. d))

Às ofensas ou lesões no corpo correspondem as alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 115.º


CPGB (ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa com intenção de lhe privar de um
importante membro ou órgão) Entende-se por membro, “uma parte do corpo ligada ao
todo por articulações” p. ex.: braço, perna, mão. E por órgão “uma parte do corpo que
desempenha uma função especial final no conjunto do organismo” (DIAS A. S., Crimes
Contra a Vida, 2007, p. 101). Ou, na opinião de FREDERICO ISASCA, membro é
“qualquer parte de corpo ligada por uma outra por articulação”, como é o caso de braço,
perna, mão; e o órgão é “ um conjunto de células que trabalham unitariamente para uma
mesma função final especial (funções orgânicas são, nomeadamente: circulatória,
respiratória, digestiva, secretora, reprodutiva, sensitiva, locomotiva)” (ISASCA, 1997, p.
142).

Exige-se ainda que o membro ou o órgão de que se priva a vítima seja importante.

Sobre a aferição da importância de um órgão ou de um membro, a doutrina se diverge:


para uns, a importância de um órgão ou um membro se mede segundo os critérios
subjetivos atendendo à situação individual da vítima (Paula ribeiro de faria, (Cmentário
I, 1999, p. 224 §7); para outros, ao contrário, deve ser medida objetivamente, tendo
em conta as regras e funções gerais da vida de todos os dias (DIAS A. S., Crimes Contra
a Vida, 2007, pp. 101-102).

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Quanto à desfiguração, esta aferir-se-á por comparação da aparência externa da vítima


depois de produzida a lesão com a aparência anterior a ela.

E é uma desfiguração da figura, degradação da aparência, que pode ser rosto ou


qualquer outra parte do corpo. Exigindo-se que seja grave ou permanente.

E tal como em relação à importância do membro ou do órgão, a mesma dissensão


doutrinária, entendendo uma parte que a medição deve ser por critério subjetivo e outra,
que deve ser medida objetivamente não constituindo a situação individual da vítima ou
lesado (p. ex.: ser modelo profissional) critério para a determinação da gravidade ou
importância da desfiguração [assim, (ISASCA, 1997, p. 142)].

O risco ou ponto nevrálgico do critério objetivo da analise da desfiguração


(sobretudo) ou da importância do membro ou órgão assenta-se (na questão) em torno da
situação económica da vítima para se sujeitar a despesas complicadíssimas para se
recuperar ou fazer desaparecer o carácter permanente da lesão ou da desfiguração.
Responde, a este propósito, Professor SILVA DIAS (Crimes Contra a Vida, 2007, p. 103)
que este problema não se põe nos países que, como Portugal84, dispõem do sistema de
apoio às vítimas de crimes violentos de cujo elenco consta o de ofensas corporais graves.

A desfiguração será considerada permanente se no momento da decisão judicial e


em conformidade com os conhecimentos médicos contemporâneos não for possível
diagnosticar se e quando poderá ser eliminada, ou reduzida em grau tal que deixe de poder
ser vista como importante.

a) As ofensas funcionais a que se refere a al. c) do n.º 1 do art.º 115.º do CPGB


referem-se às lesões ou ofensas que afectam a capacidade ou função que actuam
por meio deles e não a quaisquer lesões em órgãos ou membros em concreto.
b) As ofensas na saúde descritas na alínea c) do 1 do art.º 115.º, são enfermidades
graves e incuráveis que se traduzem em uma alteração permanente da saúde,
ligada a uma debilidade geral do organismo (ISASCA, 1997, p. ibid.).
c) Criar perigo para a vida descrita na alínea e) do n.º do art.º 115.ºrevela ser crime
de perigo concreto contra a vida e que, para SILVA DIAS, se justifica “por duas
razões: à uma, porque o perigo surge no tio como um elemento objetivo espácio-
temporalmente separado da acção («...ofender o corpo ou a saúde...«. À outra,
porque o ilícito típico das ofensas corporais graves, em qualquer das modalidades,
funda-se, como vimos, num maior desvalor do resultado e a única espécie de
perigo que constitui um maior desvalor do resultado é perigo concreto” (2007, p.
106).

Para FREDERICO ISASCA (1997), o legislador penal guineense de 1993 tipificou apenas
uma tentativa de ofensas corporais graves que não existem: não há figura de ofensas
corporais graves no âmbito desse mesmo código penal porquanto com a formulação
“Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa com intenção de [n. n.]:” inserta no
n.º 1 do art.º 115.º, o legislador, inexplicavelmente, “autonomizou e criou, no n.º 1 do

84 Com a entrada em vigor do DL n.º 4423/91, de 30 de Outubro, com as alterações da Lei n.º 10/96,
de 23 de Março e da Lei n.º136/99, de 28 de Agosto, que prevê uma indemnização Pública às vítimas de
crimes violentos, entre os quais o de ofensas corporais graves.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

preceito, um regime especial para a punibilidade da tentativa do crime de ofensas


corporais graves, com dupla consequência negativa. Por um lado, esvazia, sem qualquer
necessidade, o conteúdo útil do art.º 28.º, n.º 1, criando, sem justificação, uma moldura
penal gravíssima para a tentativa de ofensas corporais (oito anos de pena máxima, quando
lhe deveria corresponder pouco mais de seis, de acordo com o regime-regra — arts. 28.º,
n.º 3 e 72.º, n.º 1 [...] Por outro lado, não prevê, expressamente, como exigem os princípios
da legalidade (art.º 2.º, n.º 1 do Código Penal e art.º 30.º da Constituição), o crime de
ofensas corporais graves, na sua forma consumada, visto que redigiu o n.º 1 do preceito
sem referir o resultado como elemento objetivo típico, mas antes e tão só a intenção de o
produzir”.

Na prática judiciária, as circunstâncias constantes nas alíneas sempre tem sido


consideradas como resultados típicos para efeito do preenchimento de agravação, embora
sem justificação dogmática aplausível. A recente Comissão da Revisão do CP e CPP,
introduziu alterações com o intuito de procurar corrigir a situação.

1.5 A agravação pelo resultado

O legislador guineense, rompendo, no art.º21.º, n.º3 do CP, com a doutrina defendida


atualmente pela maioria dos autores de o crime agravado pelo resultado poder ser uma
combinação dolo/dolo, dolo/negligência, negligência/negligência, adotou, claramente a
posição da doutrina tradicional de considerar os crimes agravados pelos resultados como
combinação dolo/negligência. Esta posição é contrária à adotada pelo legislador penal
português no arr.º18.º introduzido pelo CP de 1982 que diz (ipsis verbis):

“quando a pena aplicável a um facto for agravada em função da


produção de um resultado, a agravação é sempre condicionada pela
possibilidade de imputação desse resultado ao agente pelo menos a
título de negligência”.

O legislador guineense, ao contrário, diz (art.º n.º3 verbis):

“[…] Quando a pena aplicável a um facto for agravada em


função da produção de um resultado não intencional, a agravação
só é relevante se esse resultado puder ser imputado ao agente a título
de negligência pelo menos”.

Os crimes agravados pelo resultado são aqueles tipos de delito cuja pena aplicável é
agravada em função de um resultado que derivou da realização do tipo fundamental. A
qualificação (ou agravação) desta natureza não pode resultar da atividade jurisprudencial,
isto é, não deve ser uma criação jurisprudencial sob pena da violação do princípio
constitucional da legalidade do crime e da pena – nullum crimen, nulla pœna sine lege -: tem
de estar consagrado em um qualquer preceito da PE. Exemplo clássico desta espécie de
crime é de agravação das ofensas à integridade física e que no Direito Penal guineense se
consagra no art.º 116.º do CP.

O legislador penal guineense (art.º21.º, n.º3), ao contrário do legislador penal


português (art.º18.º), optou expressamente pelo modelo clássico e que vigorou até ao séc.
XIX sem grandes vicissitudes exigindo (expressamente) que o resultado agravante tem
que ser um resultado não intencional, apesar de, paradoxalmente, ter condicionado na

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

parte final a aplicação da pena ao agente que este actue pelo menos a título de negligência,
o que deixa entender que se admite aqui também a existência de um resultado agravante
doloso como veremos mais adiante.

Esta última formulação colhe unanimidade na doutrina como sendo requisito que —
ao contrário do princípio da responsabilidade objetiva que as ordens jurídicas primitivas,
mormente as da influência germânica — admite a compatibilização do instituto com o
princípio da culpa de que a ninguém seja aplicada uma pena criminal sem fundamento na culpa,
muito embora se continue a questionar se tal agravação não continuará a configurar uma
responsabilidade penal objetiva sendo, assim, uma violação do princípio da culpa que não
proíbe apenas a aplicação de uma pena sem culpa, mas também implica que “uma
agravação da pena tem de pressupor uma agravação da culpa”. Com efeito, apesar do
progresso operado pela influência do Direito Canónico medieval, através da figura do
chamado “versari in re illicita” (DIAS J. D., Direito Penal, 2007, p. 316), segundo o qual só
podiam ser imputados ao agente os resultados danosos derivados da sua acção desde que
esta fosse ilícita — e ao exigir-se que a acção fosse ilícita, já se avançou um pouco em direção
ao princípio da culpa ao recusar-se uma pura responsabilidade penal objetiva —,
continuou a verificar-se — segundo a doutrina consolidada até ao séc. XX – a
responsabilidade penal objetiva: na medida em que, nem se exigia que, no plano objetivo
do ilícito, o resultado fosse um efeito normal e previsível da acção — podendo mesmo
ser um resultado aleatório —, nem no plano subjetivo da culpa, a censurabilidade (a título
de negligencia) do agente relativamente ao resultado. Ou, como disse figueiredo dias, “o
resultado agravante não requeria a sua imputação a título de culpa, antes se exigia apenas
que entre ele e o comportamento típico fundamental pudesse estabelecer-se um nexo de
imputação objetiva, nomeadamente, sob a forma de uma relação de causalidade
adequada”.

Quanto ao alcance da expressão pelo menos a título de negligência tem suscitado


divergências a nível doutrinário entendendo alguns como silva dias que a mesma
expressão deve ser entendida como admitindo que a negligência seja pelo menos uma
negligencia simples, não havendo qualquer possibilidade de se admitir que a agravação
pelo resultado ocorra nos crimes dolosos.

Esta posição não colhe hoje unanimidade na doutrina decidindo a corrente maioritária
(à qual adiro) pela combinação dolo/negligência, negligência/negligência e dolo/dolo. A
combinação dolo/dolo pode verificar-se com o resultado agravante a título de dolo
eventual ou necessário. Por exemplo: A pratica cópula com B que tem 13 anos de idade.
Em razão de tal ato e dada a violência do mesmo, B sofreu ofensas graves à sua
integridade física aliada a traumas psicológicas vindo a falecer. A tinha consciência de
que, em razão de tal ato, e tendo em conta a pouca idade e a estrutura física de B, este
poderia sofrer tais consequências, circunstancia a que A se mostrou indiferente. Neste
caso, A responde nos termos do art.º 137.º, n.º1, al. c) do CP. Ou A priva B de liberdade
num local desconhecido para conseguir dos familiares deste um resgate. B padece de uma
enfermidade que lhe obriga a sujeitar-se a uso constante de um medicamento,
circunstância conhecida por A sem que se interesse pela possível ocorrência da morte
deste. Com a possibilidade de que, se os familiares não pagarem o resgate a tempo, B
pode morrer: o facto até pode servir de um meio de pressão para os familiares de B
relativamente ao rápido resgate de B. Tal resgate não é pago a tempo de B conseguir sair
do local onde esteve colocado por A com vida. A, neste último caso, não responde por
rapto agravado pelo resultado nos termos do art.º 125.º, 2, com referencia à alínea c) do

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

art.º124.º, n.º 2 ambos do CP, quando, na realidade, seria de admitir a agravação pelo
resultado no caso. É uma falha do legislador: podia se admitir a agravação pelo resultado
tanto em caso da negligência como em caso de dolo.

1.6 A problemática da violência doméstica85 e maus-tratos

1.7 Concurso entre crimes contra a vida e crimes contra a integridade física

Em relação ao concurso entre os crimes contra a vida e os crimes contra a integridade


física, digladiam três teorias ou teses a saber: a teoria ou tese de incompatibilidade ou
da oposição, a teoria ou tese da unidade ou do estádio intermédio e a teoria ou tese
eclética.

Para a primeira tese ou teoria, o dolo de ofensas corporais e o dolo de homicídio se


excluem reciprocamente, de modo que nem aquele se encontra contido nem os homicídios
absorvem o desvalor das ofensas corporais. Para a teoria da unidade ou do estádio
intermédio, sendo o homicídio necessariamente realizado através de ofensas corporais,
ou seja, não se podendo causar homicídio sem praticar ofensas corporais — nem que seja
por um segundo lógico, segundo a expressão de Hirsch referida por SILVA DIAS (Crimes
Contra a Vida, 2007, p. P. 131.) — o dolo de ofensas corporais é englobado pelo dolo de
homicídio, sendo que a realização do homicídio esgotará todo o conteúdo de desvalor de
ofensas corporais. A terceira tese (a eclética) toma uma parte de cada uma das anteriores
na medida em que admite a primeira das anteriores quanto aos pressupostos, mas não lhe
corresponde quanto à consequência: o dolo de ofensas corporais e o dolo de homicídio
mantem-se separados, mas aqui quanto à consequência, isto é: se de tentativa de
homicídio resultar ofensas corporais graves cujo resultado deixar, por exemplo, o
ofendido com graves sequelas (por exemplo: perda ou redução grave de visão), o agente
do crime não só responde pela tentativa de homicídio — a consumir ou absorver as
ofensas corporais — conforme advoga a segunda teoria, mas também pelo crime de
ofensa corporal; da a dignidade ou importância do bem jurídico atingido com a ofensa
corporal resultante. Tratando-se, porém, de ofensas corporais simples, ou mesmo graves,
mas cuja gravidade, pelo peso do bem jurídico atingido não justifica o grau de forte
intensidade, vale aqui, “por inteiro”, o critério defendido pela segunda teoria, ou seja: a
tentativa de homicídio consome as ofensas corporais.

85Art.ºs. 152 e 152-A respetivamente do CP/P. Ver, sobre o assunto, no nosso sistema penal, Lei n.º
6/2014, de 4 de Fevereiro — Lei que Criminaliza todos os Actos de Violência praticados no Âmbito das
Relações Domésticas e Familiares —, designadamente tipologia de penas (artigos 17.º e seguintes),
agravação das penas (artigo 20.º), atenuação das penas (artigo 21.º) e, principalmente, dos Crimes: violência
física simples (art.º22.º), violência física grave (art.º 23.º), violência psicológica (art.º 24.º), violência sexual
(art.º 25.º), crimes patrimoniais (art.º 26.º) e restrição da liberdade (art.º 27.º)

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

CAPÍTULO X Dos crimes contra a liberdade

Sumário: 1 – Crimes contra a liberdade pessoal; 1.1 Generalidade; 1.2 – Estrutura e delimitação
dos tipos; 1.2.1 Dimensão da tutela penal da liberdade; 1.2.2 - Gestão da relação de
tensão entre interesses contrapostos na proteção da liberdade de decisão e de acção;
1.2.2.1 – Configuração e motivação da ameaça; 1.2.2.1.1 - Configuração da ameaça;
1.2.2.1.2. – Motivação da ameaça; 1.3 – O bem jurídico;1.4 – O tipo objetivo de ilícito;
1.4.1 - As características integrantes do conceito de ameaça; 1.4.2 - Critério para a
aferição da eficácia ou da adequação da ameaça; 1.4.3 - Ameaça com prática de um
crime; 1.4.3.1 - As formas da prática do crime de ameaça e as modalidades da prática
do crime objeto do crime de ameaça; 1.4.4 – Concurso; 2. - Crimes contra a liberdade
pessoal— Coação (art.º 123.º); 2.1 Considerações iniciais; 2.2 - O Bem jurídico
protegido no crime de coação; 2.3 - O tipo objetivo de ilícito; 3. - Crimes contra a
liberdade pessoal — Sequestro (art.º 124.º) e rapto (art.º 125.º); 3.1 - Relance global;
3.1.1 - Distinção entre sequestro (art.º 124.º), rapto (art.º 125) e tomada de revéns; 4.
- Crime contra a liberdade pessoal — Rapto (art.º 125.º); 5. - Crimes contra a liberdade
e a autodeterminação sexual (artigo 133.º e seguintes); 5.1 - Considerações iniciais;
5.2 - Violação — (art.º 133.º); 5.2.1 -Conceito 5.2.2 - Conteúdo da ação; 5.2.3 -
Conceito de coação sexual; 5.2.4 - O tipo objetivo; 5.2.4.1 - O agente e a vítima;
5.2.4.2 - Atos sexuais significativos (ou atos sexuais de relevo); 5.2.4.3 - As
modalidades da acção;

1. Crime contra a liberdade pessoal — ameaça (art.º 122.º)

1.1 Generalidades

Neste capítulo estarão incluídos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual,


por ser extrato de crimes contra a liberdade pessoal ou individual. O Legislador português
da Reforma de 1995 optou por, definitivamente, deixar de considerar os crimes sexuais
como crimes contra os “sentimentos gerais de moralidade sexual” como acontecia com o
art.º 205.º-3 da redação anterior) ou contra os “fundamentos ético-sociais da vida social,”
conforme a sua localização sistemática apresentava (Capítulo I do Título III do Livro II
na redação do texto originário de 1982) passando a qualificá-los como autênticos (e
exclusivos) crimes contra pessoas na vertente de violação de valor estritamente individual
de liberdade de determinação sexual (DIAS J. D., 1999, pp. 1-2), fazendo rutura rumo a
purificação do Direito Penal positivo das cargas da moralidade inconciliável com a
natureza e função de um Direito Penal do estágio hodierno de desenvolvimento
dogmático, de autênticos bens jurídicos. Mas mesmo assim, a evolução encetada não
escapou as críticas: entende TAIPA DE CARVALHO (Comentário I, 1999, p. 340) que
parece terá tal evolução fletido peso da tradição ou pensado no fato de os crimes sexuais
revestirem características que os particularizam face a outros crimes contra a liberdade,
como o fato de os crimes sexuais, para além de, pela natureza do ato em si que é
atentatório da liberdade de autodeterminação sexual, estigmatizam, muitas vezes e
duradoiramente, a própria vítima.

1.2 Estrutura e delimitação dos tipos

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

1.2.1 Dimensão da tutela penal da liberdade

Segundo TAIPA DE CARVALHO (1999, p. ibid.), citando Eser e Carlo Fiore, EncG
Libertà 2.,

“O CP afasta-se da conceção abstrata e transocial da


liberdade — qual bem natural e absoluto, preexistente à própria
sociedade —, acolhendo a liberdade individual como um «bem jurídico
intrassocial86», o qual só na multiplicidade das formas de interação
social ganha o seu verdadeiro sentido”.

É uma tutela de liberdade em dupla ordem de dimensão (ou uma tutela


bidimensional): a primeira tem a ver com fato de ser uma tutela negativa por impedir as
ações de terceiros que afetem a liberdade de decisão e de acção individual; a segunda,
uma tutela pluridimensional, pelo facto de essa tutela abranger as diversas manifestações de
liberdade pessoal (liberdade de autodeterminação, de movimento, de acção, sexual) como
autónomos objetos de protecção penal.

1.2.2 Gestão da relação de tensão entre interesses contrapostos na


proteção da liberdade de decisão e de acção

Nos crimes contra a liberdade, nomeadamente nos crimes de ameaça e coação, estão
em causa simultaneamente o interesse na salvaguarda da liberdade de decisão e de acção
e interesse social em não limitar excessivamente a liberdade social de acção, isto é, a
liberdade de acção de terceiros; para cujo ponto razoável do equilíbrio o legislador
procura estabelecer balança entre as duas realidades: procurar que a tutela penal, ao
mesmo tempo que acautele as essenciais manifestações da liberdade individual, não caia
na excessiva criminalização das condutas que, se bem que infrinjam, em certa medida, a
liberdade individual, são socialmente inevitáveis. Esta procura do ponto de equilíbrio
patenteia-se (a) na oscilação legislativa entre o considerar bastante, no caso de crime de
ameaça, que o “mal ameaçado” seja um “mal importante” (CP de 1886) e exigir que o
“mal ameaçado” constitua crime (CP de 1982 e Revisão de 1995) — (Actas, 1993, p. 232
s.); formulação que o legislador do CP da Guiné-Bissau de 1993 preferiu seguir,
naturalmente por ter como fonte próxima o art.º 155, n.º 1 do CP português de 1982.

II

Também revela-se esta tensão na vacilação entre se deve exigir-se, no caso de crime
de coação, que o objeto de ameaça (enquanto meio para coação) seja a prática de um
crime ou, pelo menos, de um facto ilícito, ou se deve bastar a ameaça de “um mal
importante”. Eduardo correia (autor do Anteprojecto da Revisão do Código Penal de 1982
e presidente da mesma Comissão) fez-se eco desta preocupação de equilíbrio manifestada
na Comissão Revisora (Actas, 1979, p. 84), ponderando que o n.º 1 do art.º 170.º do
Anteprojecto (crime de coação) tem uma intenção restritiva relativamente à disposição
correspondente do Código Penal de 1886 (art.º 379.º § único), substituindo a fórmula “por
qualquer meio” ali constante por “outros factos também criminalmente ilícitos”. O

86N. o.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

motivo de tal substituição é, pois, restringir o teor da fórmula substituída, para o perigo
de tornar punível toda ou quase toda a atividade social do homem. Não obstante isso, a
cláusula da não censurabilidade da utilização do meio (ameaça com “mal importante”:
art.º 154.º após a Revisão) para a consecução do fim visado (art.º 154.º-3 a) é, segundo
taipa de carvalho, a manifestação da referida tensão sendo um apelo a procura doutrinal
e jurisprudencial da já (também referida) posição de equilíbrio entre o interesse da defesa
da liberdade individual de decisão e de acção e o interesse em salvaguardar a liberdade
social de acção de terceiros.

III

1.2.2.1 Configuração e motivação da ameaça

1.2.2.1.1 Configuração da ameaça

A ameaça é configurada no CP como crime autónomo (art.º 122.º: protecção da paz


individual) e como elemento integrante (meio) de cometimento de outros crimes (p. ex:
123.º — coação; proteção das demais manifestações da liberdade em geral, como
liberdade religiosa, liberdade política, liberdade laboral, etc.; 133.º — violação sexual;
151.º —roubo; 152.º; — violência após a subtração; 154.º-2 a) — dano qualificado pelo
modo d execução; 160.º — usurpação de coisa imóvel; 166.º — extorsão; 175.º —
perturbação de ato público; 186.º — obstrução à liberdade de escolha; 187.º-2 a) -
perturbação de ato eleitoral agravada.

1.2.2.1.2 Motivação da ameaça

Entende taipa de carvalho que a motivação da ameaça como crime autónomo —


embora tal motivação não seja relevante — situação, geralmente, no passado o agente
possa tornar a sua concretização dependente da ocorrência de um acontecimento futuro,
desde que este acontecimento não dependa (uma vez que se depender, haverá coação e
não ameaça) da vontade do ameaçado; ao passo que a motivação da ameaça enquanto
meio do crime de coação ( e dos cries desta derivados: por exemplo, extorsão) é futura
(p. ex.; dizer a alguém que se não me dar dinheiro no prazo de dez dias, ajustarei contas
contigo).

1.3 O bem jurídico

O bem jurídico protegido pelo art.º 122.º é a liberdade de decisão e de acção. Ou


seja, a paz jurídica individual. Porque é uma liberdade pessoal que vê, na paz individual,
uma condição da sua realização. Por isso, mesmo os códigos penais que não se referem
expressamente ao bem jurídico, não deixam de ter alusão implícita ao bem jurídico paz
jurídica individual. Porquanto, como diz TAIPA DE CARVALHO (Comentário I, 1999, p.
342) “As ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou
medo na pessoa do ameaçado, afectam, naturalmente, a paz individual que é condição de
uma verdadeira liberdade”. Assim, a doutrina considera que o bem jurídico protegido nos
Códigos Penais alemão (art.º 241.º), austríaco, italiano e francês, que não se referem ao
bem jurídico, é a paz individual. Porque “Há, na verdade, uma conexão íntima entre a paz
individual e a liberdade de decisão e de acção” (p. ibidem). Por isso as expressões
“provocar-lhe medo ou inquietação” e “prejudicar a sua liberdade de determinação
(n.º 1 do art.º 122.º, CPGB; e n.º 1 do CP/P).

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

1.4 O tipo objetivo de ilícito

A descrição objetiva típica traduz-se na ameaça; que significa: procurar intimidar,


prometer malefício. Os meios para a sua prática são, praticamente, todos (oral, escrita,
mímica e simbólica). O mal que se anuncia deve ser a prática de um crime. Predomina na
doutrina o entendimento de que a ameaça deve ser idónea e séria, pelo que não integra
aquele conceito a ameaça produzida sob o impulso da cólera, da revolta, da ira, em estado
de embriaguez e bem assim quando a própria vítima não lhe dá crédito. A ameaça deve
ser também concretizável, verossímil e não fantasmagórica ou impossível.

1.4.1 As características integrantes do conceito de ameaça

As características essenciais do conceito ameaça são as seguintes:

1) Mal futuro;
2) O mal tanto pode ser de natureza pessoal (p. ex., lesão da saúde ou da reputação
social) como patrimonial (p. ex., destruição de um automóvel ou danificação de
um imóvel).
3) Dependência da vontade do agente para a concretização do mal ameaçado.

O mal objeto de ameaça, tem de ser futuro. Vale dizer que o mal objeto de ameaça
não tem que ser iminente, uma vez que, neste caso estaremos perante a tentativa de
execução do ato violento ou do respetivo mal87. Esta característica temporal da ameaça é
um dos critérios de distinção, no âmbito do crime de coação, entre ameaça (de violência)
e a violência propriamente ditada. Ilustrando com exemplos de escola, temos que: há
ameaça quando alguém afirma “vou te matar”, sem precisar ou mostrar gesto ou atitude
de querer levar avante a realização do mal com carácter de iminência; coisa diferente é
quando afirma: “vou-te matar já”. Neste caso, estaremos perante violência (tentativa de
execução do mal objeto da ameaça). Na ameaça é necessário, pois, não haja iminência de
execução.

O mal ameaçado pode ser referenciado (ou projetado) diretamente à pessoa do


ameaçado, ou a terceiro com quem o ameaçado tenha relação existencial: no primeiro
caso, estamos perante uma situação da identidade entre a pessoa ameaçada e a pessoa
objeto do crime ameaçado (a vítima, o destinatário da prática futura) do crime que
dá corpo à ameaça); no segundo caso, encontramo-nos perante uma situação em que a
pessoa do amaçado não coincide com a pessoa objeto (destinatário) do crime ameaçado
[assim: figueiredo dias (Actas , 1993, p. 232); TAIPA DE CARVALHO (Comentário I, 1999,
p. 346)]. Bem como pode ser dirigido contra o património (propriedade) do visado
(destinatário ou vítima do crime objeto da ameaça) ou de terceiro (p. ex.; viatura do
cônjuge do visado). Destarte podemos dizer que a ameaça pode ser direta (consoante se
o mal ameaçado é referido à pessoa do ameaçado ou à sua propriedade; ou a terceiro.
Desde que este tenha uma relação de dependência com o ameaçado) que permita tanto a
pessoa ameaçada como o destinatário da ameaça sentirem inquietude e intranquilidade
sobre a ameaça: para que a ameaça surta meais efeito.

87 TAIPA DE CARVALHO, Anotação aos crimes contra a liberdade pessoal, in Comentário Conimbricense
do Código Penal, 1999, p. 343.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Por último, é necessário que a concretização futura do mal objeto da meaça dependa
(ou apareça depender) da vontade da vítima. Aqui reside a distinção entre a ameaça e a
advertência ou simples aviso: se a concretização do mal da ameaça depender da vontade
da vítima, é porque estamos perante advertência e não ameaça88. Assim “não há ameaça,
mas sim uma advertência ou aviso, quando A, visando que B lhe pague a importância do
cheque que não tinha provisão, afirma que o vai meter na prisão, ou quando C [médico]
diz ao doente D que este irá morrer em breve”89. Nesta última hipótese, poderá pôr-se o
problema de homicídio negligente, se na sequência do “aviso” D vier a morrer por colapso
cardíaco90.

1.4.2 Critério para a aferição da eficácia ou da adequação da


ameaça

O critério para afirmar ou negar o pressuposto do elemento “ameaçar”: critério


objetivo-individual segundo o qual, tem-se por meaça uma conduta que, do ponto de
vista de homem comum (homem médio: adulto normal), é merecedora de tal qualificação.

Mas chama a atenção TAIPA DE CARVALHO, citando Stratenwerth91, que, apesar de


ser este critério-base, não se pode descurar de ter em conta (como fator corretivo do
critério objetivo do “homem médio”) as características individuais da pessoa ameaçada:
“Assim, afirmações de ocorrência de males futuros poderão não ser consideradas ameaças
para um adulto normal (na medida em que seja manifesto que a verificação, ou não, do
mal anunciado não depende da vontade do “ameaçante”), mas já o serem, quando a pessoa
destinatária da ameaça é uma criança ou um débi1 mental (p. ex., dizer a uma criança que
vai a uma bruxa para que esta provoque uma doença grave na sue mãe), desde que esta
debilidade psicológico-intelectual seja conhecida ou cognoscível do agente. Em
conclusão: o crit6rio é o do homem comum, tendo em conta as características individuais
do ameaçado”92.

Concordo com o argumento, mas não acompanho sem reserva o exemplo, salvo
naquele caso em que, dada à debilidade mental, não foi possível valorar a ameaça como
não idónea para criar inquietação, medo, perturbação interior como seria com um
“homem médio” considerado como tal na perspetiva da sociedade em concreto: numa
sociedade onde é comum ou predominante a crença na bruxaria, não deixa de ser possível
ameaçar alguém com bruxaria ou irã. Exemplos há, na sociedade guineense (como é
possível noutras realidades africanas): houve, nos tempos passados, um caso (não
noticiado, mas que me foi confidenciado por um dos integrantes do coletivo do
julgamento) de a suspensão de um julgamento porque um suspeito ter aparecido no ato

88 Assim, p. ex., Palin, WK, §74, 20; Stratenweth I § 5, 8 bb); Larguier, 72 e s; citados por TAIPA
DE CARVALHO, Comentário I, 343.

89
TAIPA DE CARVALHO, Notações aos Crimes contra pessoas, in Comentário Conimbricense de Código
Penal I, 1999, p. 346.
90
Ibid.
91TAIPA DE CARVALHO, Anotações aos crimes contra as Pessoas, in Comentário Conimbricense de
Código Penal I, 1999, p. 343-344

92
Ibid.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

com pau coberto de pano vermelho, símbolo de baloba; outros dois casos (do meu
conhecimento) foram do encerramento da porta da instituição (CIPA) pela empregada de
limpeza daquela instituição, durante meses, em razão da dívida de salário; e do
encerramento da porta da casa onde funcionava o 4.º Juízo do Tribunal de Sector de
Bissau., no Bairro de Belém, pelo proprietário por falta do pagamento de renda por parte
do Estado. Bruxaria não deve ser considerada isoladamente como fato de somenos
importância para a configuração do crime de ameaça. Dependendo da fé ou crença da
pessoa. A acrescer a esta consideração está o fato de crime de ameaça ser um crime de
resultado (que se verifica com o medo ou inquietação da vítima) e semipúblico (
dependendo da queixa de quem se sente ameaçado: fato que, na nossa perspetiva, não
pode ser discutido...).

A provocação de medo ou inquietação e o prejuízo da liberdade de determinação


funcionam como resultado do crime. Desta forma, se alguém profere ameaça idónea e
séria e ela não provoca na vítima qualquer destes efeitos, o crime queda-se pela fase da
tentativa (neste caso não punível ex vi, art.º 28.º-2 do cpgb). Assim, nos precisos termos,
a nossa anotação (SANHÁ, 1997, p. 149).

II

No sistema português, com a revisão encetada pelo legislador no art.º 153.º do CP/p,
entende-se que o tipo passou a ser crime de perigo concreto (embora tenhamos dúvida se
não se trata de crime de aptidão, tendo em conta a formulação “… de forma adequada
a93 provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação
…”). Com isso deixa de pôr-se problema da querela sobre se a adequação ou seriedade
da ameaça depende da verificação do resultado como defendia uma corrente doutrinária
[assi: Eduardo Correia (Actas, 1979) e Leal-Henriques/Simas Santos, 1982, art.º 155.º];
uma vez que no CP de 1982 o crime de ameaça era um crime de resultado. Tal solução é
rejeitada por autores como TAIPA DE CARVALHO (Comentário I, 1999, p. 349) que entende
não fazer sentido hoje, porque a mesma solução “se já não passava de um círculo vicioso
e de uma inaceitável presunção da adequação da ameaça a partir do resultado, agora é,
mesmo formalmente, rejeitável, pois que após a Revisão de 1995, o crime de ameaça
deixou de ser um crime de resultado”. Agora exige-se apenas que a ameaça seja suscetível
de afectar, de lesar a paz individual ou liberdade de determinação, não sendo necessário
que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação, ou tenha afectado a liberdade
de determinação do ameaçado [assim, FIGUEIREDO DIAS (Actas, 1993, p. 500); TAIPA DE
CARVALHO (Comentário I, 1999, p. 348). No nosso CP de 1993, tal como no Código
Penal português de 1982, o crime de ameaça e crime de resultado. Mas a evolução
doutrinária não deixa de mostrar o melhor caminho: não seguir a tese de resultado como
critério para avaliar a adequação ou seriedade da ameaça.

1.4.3 Ameaça com prática de um crime

O mal ameaçado, i. e, o mal objeto da ameaça deve constituir em si mesmo


considerado, um fato ilícito típico. Não importa venha a ser praticado em estado de

93 S. n.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

inimputabilidade (p. ex., em estado de completa embriaguez)94. Não basta, pois, que
constitua “ um “mal importante”, como, p. ex., ameaça de despedimento [Assim:
Figueiredo Dias, posição dominante no sistema português, segundo Taipa de Carvalho
(pp. id., 344); contra: Manso Preto — (Actas, 1993, p. 232)].

1.4.3.1 As formas da prática da ameaça e as modalidades da prática


do crime objeto do crime de ameaça

A forma de prática do crime de meaça não importa, podendo ser oral (p. ex., direta
ou por telefone) ou escrita (assinada ou anónima)95. O crime objeto do crime de
ameaça pode ser por ação ou por omissão: o exemplo apontado desta última modalidade,
é de alguém ameaçar outra pessoa em relação à qual tem dever de lhe prestar assistência
e alimentos, de que lhe irá deixar de prestar assistência. Desde que crime objeto de ameaça
seja, no CP/P, com alteração introduzida pela Reforma de 1995, para a qual passa a ser
“crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e
autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor” (art.º 153.º-1).
Ao contrário do CP de 1886 e da redação primitiva do CP/P de 1982 e que está no nosso
art.º 122.º-1); e que se basta com a prática de qualquer crime. A restrição operada pela
Reforma portuguesa de 1995 parece-me seguir o princípio da legalidade e da intervenção
mínima e de fragmentaridade do Direito Penal.

1.4.4 Concurso

O crime de ameaça cede perante o crime de coação (art.º 123.º), crime de roubo art.º
151.º, crime de extorsão (art.º 166.º) bem como perante todos os crimes para cuja prática
a ameaça serve como meio. Salvo se para tal crime houver desistência relevante da
tentativa e o crime de ameaça se consuma [assim: TAIPA DE CARVALHO (Comentário I,
1999, p. 350)]-

Sendo bem jurídico protegido no crime de ameaça um bem jurídico eminentemente


pessoal (a paz e a liberdade individual) pode ocorrer concurso efetivo, se uma ameaça é
dirigida ao mesmo tempo contra várias pessoas (concurso ideal), ou se diferentes
ameaças são dirigidas contra diferentes pessoas ou contra uma mesma pessoa (concurso
real).

2. Crimes contra a liberdade pessoal— Coação (art.º 123.º)

2.1 Considerações iniciais

O crime de coação é o tipo base ou fundamental dos crimes contra liberdade de


decisão e de ação (art.º 122.º e 123.º); sequestro (art.º 124.º) é o tipo base ou
fundamental dos crimes contra a liberdade de movimento (liberdade de ir e vir). A

94 Assim, na citação de taipa de carvalho, eser, § 241, 5; shäfer, LK, § 241.

95 Ao contrário da exigência que constava no art.º379.º do CP de 1886 que dizia: “Aquele que, por
escrito assinado, ou anónimo, ou verbalmente, ameaçar outrem […]”, formula que caiu com a entrada em
vigor do CP de 1982.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

designação liberdade pessoal de decisão e de ação tem múltiplo alcance: Liberdade


religiosa, liberdade política, liberdade sindical, liberdade sexual, etc. algumas da
manifestações da liberdade pessoal tem, por opção do legislador, a sua disciplina
autónoma, de que o Código Penal português dispõe em abundância, através da criação de
singulares tipos de crime de coação: assim temos (naquele diploma legal), como figuras
de coação autónoma, a liberdade política de escolha de membros de órgãos
constitucionais tem a sua tutela no âmbito dos crimes eleitorais (coação de eleitor), etc.
no nosso Código Penal: a liberdade do exercício de funções jurisdicionais é tutelada pelo
art.º228.º (crime de coação sobre magistrado); a liberdade pessoal funcional dos membros
dos órgãos constitucionais é tutelada pelo art.º 12.º da Lei n.º 14/97, de 2 de Novembro
(coação contra órgãos constitucionais); etc.

O crime de coação previsto no art.º 123.º do Código Penal guineense (à semelhança


do art.º 154.º do Código Penal português) é um crime geral de coação e que funciona
numa relação de generalidade e, portanto, de subsidiariedade, aplicando-se só quando
a concreta liberdade de decisão ou de ação não se subsumir a um dos crimes de coação
tipicamente singularizados (em função da espécie de liberdade de ação lesada).

2.2 O Bem jurídico protegido no crime de coação

O bem jurídico protegido no crime de coação é a liberdade de (decisão e de) ação. As


ações de constrangimento em sentido estrito, como a tradicional ação de eliminação de
resistência, que não anula qualquer possibilidade de resistência (vis compulsiva); e mesmo
também as que anulam essa possibilidade (vis absoluta), bem como as ações que afectam
os pressupôs psicológico-mentais da liberdade de decisão, i. e: a própria capacidade para
decidir (p. ex., a coação mediante hipnose, ou intoxicação com produtos psicotrópicos,
álcool).

Já acabámos de referir que o tipo de art.º 123.º (coação) funciona numa relação de
subsidiariedade, só tendo aplicação quando não há a subsunção do fato a um dos crimes
de cação tipicamente singularizados (pela espécie de liberdade de ação lesada); assim,
não havendo uma previsão legal singularizada, em razão da espécie de liberdade de ação
posta em causa, como nos casos do impedimento da liberdade de circulação rodoviária
(ferroviária, etc.) através das chamadas cortes de estrada (como o que acontece nalgumas
manifestações), reconduz-se e subsume-se à figura geral e subsidiária de coação96. Nestes
casos de (ilegais) manifestações com bloqueios ou cortes de estradas (ou e vias
ferroviária), há coação consumada quando e relativamente aos automobilistas que se
viram obrigados (coagidos) a inverter a marcha, por se deparar com (e necessitar de se
livrar) ação de oposição ameaçadora para com os que tentassem furar a barreira ou
bloqueio. Desde que estes bloqueios ou cortes de estrada sejam suscetíveis de intimidar
os automobilistas, não importando que os agentes bloqueadores da estrada estejam
interiormente decididos a não usar da violência e a não proferir ameaças concretas. Exige-
se apenas os mesmo agentes tenham consciência da adequação da sua conduta à
intimidação dos automobilistas, por ser este o objetivo imediato da sua atuação, embora
o fim (o objetivo) último seja político ou social.

96
Taipa de Carvalho, Anotação aos crimes contra a liberdade pessoal, in Comentário Conimbricense
do Código Penal I, 1999, p. 353 3 66.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

2.3 O tipo objetivo de ilícito

O tipo objetivo de ilícito é constranger (obrigar, forçar, compelir, impelir) outra


pessoa a adotar um determinado comportamento, que pode ser: praticar uma ação,
omitir determinada ação, ou suporta uma ação. A conduta pode ser ativa (uma intervenção
(ou força) física: vis física (absoluta ou relativa ou compulsiva, consoante elimina ou não
qualquer possibilidade de resistência do coagido). A abrangência do conceito de
violência (usada na coação) desenvolvido pela doutrina e jurisprudência e que TAIPA DE
CARVALHO ( (1999, p. 355) chamou de fenómeno de “desmaterialização, espiritualização
ou sublimação do conceito de violência” é um conceito amplo de violência abrangendo a
violência psíquica ou mesmo condutas omissivas como, p. ex.: “não fornecer alimento ao
familiar paralítico enquanto este não praticar a conduta imposta pelo agente”. Ou não
comprar ao filho um telemóvel enquanto este não praticar a conduta imposta (p. ex., não
for a missa; não passar do ano) e uma infinidade de condutas, não precisando ser uma
conduta que tenha relevância jurídica ou sequer social, segundo Schwaighofer (WK § 105
12 s.) citado por TAIPA DE CARVALHO (1999, pp. 354-355).

3. Crimes contra a liberdade pessoal — Sequestro (art.º 124.º) e


rapto (art.º 125.º)

3.1 Relance global

Sequestro, tal como rapto (art.º 125.º) e tomada de reféns ( e que o nosso legislador
aptou afastar do capítulo de crimes contra a liberdade pessoal em que sistematicamente
se encontra os crimes de sequestro e de rapto), estando colocados no Título dos Crimes
Contra a Paz e a Ordem Pública [art.º 204.º, depois do art.´203.º (organização terrorista)
que é o primeiro artigo deste Título), tem proximi¬¬dade semântica com os crimes contra
liberdade onde estão os crimes de ameaça, coação, sequestro e rapto (artigos 122.º, 123.º,
124.º e 125.º respetivamente), e sobretudo com crimes de sequestro e rapto, cujas
características distintivas vão ser traçadas logo a seguir. A proximidade, e que justifica,
ao nosso ver, o tratamento dogmático próximo, é o seu elemento nuclear que é a privação
de liberdade de locomoção ou de movimento (presente em todos estes três tipos de ilícito);
e que permitiria, como enquadramento sistemático correcto, a sua localização no capítulo
dos crimes contra a liberdade pessoal.

3.1.1 Distinção entre sequestro (art.º 124.º), rapto (art.º 125) e


tomada de revéns

Apesar das afinidades aventadas imediatamente supra, há razões que militam


justificativamente a favor da destrinça entre o sequestro, o rapto e a tomada de revéns. e
o critérios ou elementos que servem para o estabelecimento da delimitação entre si são,
os meios de execução e as finalidades: enquanto no sequestro e no rapto os meios de
execução da conduta serem iguais, as finalidades da respetiva conduta de privação da
liberdade constituem o cerne do desencontro entre as duas figuras delitivas. No rapto, as
finalidades teriam que ser uma das referidas no n.º 1 do art.º 125.º do CPGB (no nosso
caso) e, no caso português, no n.º 1 do art.º 160.º do CP português. isto no plano subjetivo
(apesar de o rapto não exigir a concretização das intenções, mas tão-somente que sejam
tais as intenções ou objetivos)

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Apontam-se as diferenças também no plano objetivo entre o crime de sequestro e de


rapto, como, aliás, sugerem as alterações feitas, do ponto de vista da evolução histórica
de tratamento de rapto e de sequestro. Para TAIPA DE CARVALHO (1999, p. 402), além
das finalidades que especializam o rapto do sequestro, há outras diferenças baseadas nas
finalidades, provavelmente, também muito reprováveis que motivem o sequestro, e “Isto
leva a questionar se não haverá, já no plano do tipo objetivo, diferenças entre o crime de
sequestro e o crime de rapto”. Basta atentarmos na questão semântica sugerida pela
“Reforma Penal de 1995 [que] manteve a descrição típica do sequestro (cf. CP de 1982,
art.º 160"-1; CP de 1982 revisto, art.º 158°-1), já, diferentemente, alterou a descrição
típica do rapto, suprimindo a alternativa «ou privar da liberdade» (cf. CP de 1982, art.º
162°-1; CP de 1982 revisto, art.º 160.º-1). Para o mesmo autor, “terá tido alguma
motivação esta supressão? Significará que, mesmo no plano objetivo, não há coincidência
total entre as formas de sequestrar e as de raptar, tendo a palavra raptar um sentido, um
âmbito mais estreito que o de sequestrar, de modo que se possa afirmar que todo o rapto
é um sequestro (i. e, também pode ser qualificado como Sequestro), mas nem todo o
sequestro é um rapto (i. e, nem tudo o que pode ser considerado sequestro pode ser
qualificado como rapto)?”

4. Crime contra a liberdade pessoal — Rapto (art.º 125.º)

Continuaão...

5. Crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual (artigo


133.º e seguintes)

5.1 Considerações iniciais

Legislações há, como a francesa (CP francês de 1994, art.º222-23 em alteração ao


anterior CP pela Lei de 23-12-1980) onde a violação é toda e qualquer penetração de
natureza sexual operada, através da coação, por uma pessoa no corpo de outra.

Esta concepção procura responder as críticas feitas à necessidade da especialização


da figura da violação face à coação sexual.

No CP português de 1982, o carácter extramatrimonial da cópula foi afastado


mantendo-se, porém, o desenho tradicional de ser o crime cometido, através da coação,
contra outra pessoa para a realização da cópula.

A possibilidade da gravidez é o elemento fundamental da cópula na violação e que


leva à sua especialização tendo em vista que a esta se liga a liberdade de escolha sobre o
pai do seu filho por parte da mulher. Entendem ser fundamental tal elemento na cópula,
COSTA ANDRADE, Mourachesel (Suíça).

A gravidez, embora seja circunstância extramatrimonial do crime de violação, é


elemento que caracteriza o facto de ser, simultaneamente, crime de dano e crime de
perigo a violação (há nele a possibilidade de gravidez, como acontece com muitos crimes
de dano).

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

5.2 Violação — (art.º 133.º)

5.2.1 Conceito

Tendo em conta o sistema unitário ou monista do CP guineense, a violação é, pois, o


constranger outra pessoa a ter ou praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou
coito oral, por meio de violência, ameaça grave ou, depois de, para esse fim, a ter tornado
inconsciente ou a posto na impossibilidade de resistir.

A vítima e o agente podem ser qualquer pessoa, como já ficou dito.

5.2.2 Conteúdo da ação

O conteúdo de acção no crime de violação é a cópula. É preciso precisar que desde o


CP de 1886 (e também no português de 1982) se tem discutido se a cópula seria completa
ou incompleta, vaginal ou, também, vulvar (aquele ato sem penetração porque não
conseguiu haver a penetração: ou por impossibilidade devida à falta de desenvolvimento
“físico” da vítima, e que impossibilita a capacidade de penetração, por exemplo a vítima
ser um menor, sem desenvolvimento dos seus órgãos genitais, nomeadamente vaginal,
que permita a possibilidade de penetração). Ou mesmo vestibular consistente no ato de
a realização da penetração não se conseguir consumar porque efetivamente não se
consumou o ato de normal relações sexuais, ou porque verificou a emissão prematura de
sémen. Ou ainda se a cópula deve ser entendida como tendo tido lugar só com a emissão
de sémen (emissio seminis). No âmbito do seu emprego, estão a ser usados como sinónimos;
não interessando as especificações trazidas aqui apenas como sintética notícia, mas sim a
abordagem que se vai seguir.

Sobre a polémica — conforme a notícia sucinta com base na “voz” de FIGUEIREDO


DIAS (1999, p. 472) —, a cópula, segundo uma parte significativa da jurisprudência
portuguesa,

“seria […] (“normativamente”) tanto a introdução do pénis na


vagina, ainda que incompleta ou sem emissio, como o coito vulvar com
emissio (o que não deixava de ser significativo quanto ao considerar-
se assim o risco de uma gravidez como elemento integrante do bem
juridico): cf. por outros os Acs. do STJ de 8-3-67; 5-4-67; e 5-7-67,
BMJ 165°234, 166°269 e 169.°141.º”.

Para a segunda tese dominante na doutrina e jurisprudência alemães, e defendida em


Portugal (a propósito da norma do n.º1 do art.º 164.º do CP luso: partindo da sua
teleologia) por alguns autores (mouraz Lopes e maia Gonçalves, “deve considerar-se
[por] cópula a penetração da vagina pelo pénis97: a chamada cópula «vestibular» ou
«vulvar» não é pois ainda cópula para efeito do art.º 164.º-1”98.

97 n. o.

98
FIGUEIREDO DIAS, Comentário aos Crimes contra a liberdade de Autodeterminação Sexual, in
Comentário Conimbricense de Código Penal I, 1999, p. 472.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Está aqui, segundo este entendimento, não ser importante posição sustentada (p.
ibidem)99 a partir do conceito acabada de citar, como “poderia, até às alterações do CP
de 1998, invocar-se a circunstância — que de ponto de vista médico se considera hoje em
todo o caso improvável — de já o contacto vestibular com ejaculação poder conduzir à
gravidez”100 ; o que para o autor101, “para além de que isto significaria estender o âmbito
de protecção próprio da violação a casos que não são em geral adequados a lesara
especificidade de bem jurídico, uma tal interpretação não é compatível com o sentido
comum do teor literal do preceito (“cópula”) e portanto com o princípio nullum crimen sine
lege”.

A possibilidade de gravidez como fundamento subjacente à punição da violação não


é, na minha perspectiva, um fundamento que deve merecer (ainda que isoladamente)
aplauso; porque se assim fosse não faria sentido (e ficaria fora do alcance do normativo
do art.º164.º-1 do CP/P e 133.º-1 do CPGB) a violação relativamente às mulheres que se
encontram em situação, por exemplo, de menopausa ou infertilidade, de poderem ter
gravidez; e as relações entre as pessoas do mesmo sexo.

A delimitação dos tipos nos crimes contra a liberdade sexual reside no seguinte:
violação e coação sexual em sentido próprio (coação geral) (antigo atentado ao pudor) X
violação (coação específica: mais grave):

O Sistema no CP guineense é um sistema monista ou unitário = coação ou violação:


n.ºs 2 e 1 respetivamente) fundamento da responsabilidade criminal prevista no art.º134.º

5.2.3 Conceito de coação sexual

A coação sexual é o constrangimento de outra pessoa, por meio de violência, ameaça


grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou ter-lhe posto na
impossibilidade de resistir, a sofrer ou a praticar consigo ou com outrem, ato sexual de
relevo (do Direito português) ou significativo (CP guineense).

Os crimes de coação sexual e de violação ≠ auto conformação de vida e da prática


sexuais da pessoa.

Por esta concepção, entende figueiredo dias que o bem jurídico protegido nos crimes
sexuais é, simultaneamente (i) a liberdade sexual (negativa) perante atos sexuais e (ii) a
liberdade (positiva) para atos sexuais.

Observação: os crimes de coação sexual e de violação constituem uma unidade,


sendo, por isso, passíveis de tratamento unitário (como faz o nosso legislador penal de
1993.

5.2.4 O tipo objetivo

99 Citando, no mesmo sentido, D / Töndle § 173, 6.

100Neste sentido, Dreher / Tröndle, D / Trondle § 173 6 (em Português: Código penal e leis
secundárias), Deck, 1995 apud FFIGUEIREDO DIAS cit., p. 472.

101
Ibid.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

5.2.4.1 O agente e a vítima:

O agente pode ser qualquer pessoa:

i) Não é crime específico, ou de mão própria;


ii) Pode ser, por outro lado, homem ou mulher a assumir qualidade de autor ou
de participante, em qualquer das suas formas, ou a de vítima ou a de “terceiro”
— posição com maior tutela pelos defensores de igualdade de géneros, mas
que tem dificuldade de afirmação por razões da natureza da prática de violação
em que o homem se encontra numa situação difícil de ser violada, salvo se na
vertente de atos sexuais de relevo;
iii) É, igualmente, irrelevante o estado da pessoa, se casada ou solteira; ao
contrário do Direito Penal alemão vigente onde só se pune coação a atos
sexuais “extramatrimoniais”, não podendo, por conseguinte, ser o agente o
cônjuge da vítima;
iv) Igualmente não releva a fama sexual tanto do agente quanto da vítima
(figueiredo dias; contra, beleza dos santos), ao contrário do que se entendia
relativamente ao crime de atentado ao pudor onde se questionava se uma
prostituta podia ou não ser vítima de um tal crime.

5.2.4.2 Atos sexuais significativos (ou atos sexuais de relevo):

É todo aquele comportamento ativo, só muito excecionalmente omissivo (talvez, por


exemplo, em certas circunstâncias, “Permanecer nu”) que, de um ponto de vista
predominantemente objetivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado
directamente relacionados com a esfera da sexualidade (com a liberdade de determinação
sexual de quem o sofre ou pratica (figueiredo dias).

Há divergência doutrinária se à esta interpretação objetiva deve acrescer-se uma outra


subjetiva traduzida na intenção do agente de despertar ou satisfazer, em si ou em outrem,
a excitação sexual (intenção libidinosa).

Há, ao respeito, três posições:

a) A interpretação objetiva acima exposta (a doutrina alemã dominante. V., por


exemplo, tröndle);
b) Uma outra, mais restrita, que exige não só a constatação objetivista como também
a subjetivista do conceito (doutrina dominante em Portugal a propósito do
“atentado ao pudor” do Direito anterior: por todos, Eduardo correia e, agora, maia
Gonçalves; e na doutrina alemã, Lanckner);
c) Uma outra, ainda, menos exigente, defende ser o conceito integrado tanto pela
concepção objetivista, quanto a subjetivista (assim, p. ex., lancker, seguindo o que
refere ser a jurisprudência alemã dominante).

A interpretação objetivista deve ser prevalente, considerando irrelevante, por


consequência, o motivo da atuação do agente; tomando-se, porém, em conta outros
circunstancialismos para a determinação do conteúdo e significado do carácter sexual do
ato (circunstancialismos de lugar, de tempo, de condições que o rodeia e que o faça ser
reconhecível pela vítima como sexualmente significativo).

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Atos sexuais integrantes do tipo objetivo de ilícito do crime de coação sexual, são
apenas os relevantes (significativos). A apuração da relevância dos atos neste prisma é
atribuída à função negativa destinada a excluir do tipo os atos considerados
insignificantes ou bagatelares (figueiredo dias e doutrina alemã dominante), partindo-se
do princípio de que toda a hermenêutica típica deve, em Direito penal, subordinar-se à
chamada cláusula (ou princípio) da significância (fundamental PALIERO, “Minima non
curat prætor”, 1985)102. Mas, também, exige-se do intérprete a adoção de uma função
positiva para aferir, ao mesmo tempo, da relevância do ato na perspectiva do bem jurídico
tutelado (figueiredo dias).

5.2.4.3 As modalidades da acção

Constranger a vítima a praticar (sofrer) atos sexuais significativos com o agente ou


com outra pessoa.

Desde logo se destacam daqui as seguintes consequências:

v Sofrer (ter) ou praticar atos sexuais significativos se distinguem pelo facto de


aquele se referir a um comportamento, do ponto de vista sexual, prevalente
passivo da vítima e este, ao comportamento, do ponto de vista sexual activo da
vítima.

Daí resulta também as seguintes conclusões:

a) Não é punido como coação sexual, mas apenas como ato exibicionista
(art.º135.º) ou, eventualmente, como crime de coação (art.º123.º) o ato sexual
significativo praticado pelo agente ou por terceiro perante a vítima
(diferentemente do que acontecia com o conceito geral do “atentado ao
pudor”, constante no art.º CP/P de 1982, embora logo contrariado pelo n.º do
art.º, que apenas considerava típico o “praticar …contra outra pessoa” – beleza
dos santos), mas apenas o constrangimento a ato praticado na vítima
(figueiredo dias, reis alves);
b) Também releva o tocar na vítima, não sendo indispensável o mútuo contacto
corporal. Podem bastar toques com objeto ou ações como as de ejacular ou
urinar sobre a vítima (jurisprudência suprema alemã). Não é Necessário (ao
contrário do que pensava Mouraz Lopes) que o objeto tenha uma “natureza
sexual”, v.g., vibradores, pénis artificiais, etc.). a introdução violenta na
vagina ou no ânus de qualquer objeto, pode constituir um ato sexual
significativo (figueiredo dias).
c) O desnudar alguém para fotografar não integra, podendo ser coação geral do
art.º123.º
d) O coito anal ou oral não integram o n.º1 do art.º133.º, mas sim a coação sexual
geral do n.º2.

102 carlo enrico paliero, Minima non curat prætor. Ipertrofia del diritto penale descriminlizzazione
dei reati bagatellari, 1 de Janeiro de 1985

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

CAPÍTULO XI Crimes contra a honra

Sumário: 1 - Nótula inicial; 2 – Conceito; 2.1 – a) – Honra subjectiva ou interior; b) – Honra objetiva ou exterior;
2.1.1 – Críticas; 2.1.1.1 – Quanto à honra subjetiva; 2.1.1.2 – Quanto à honra objetiva; Conceção
fáctica de honra; 2.2 – Concepção normativa da honra; a) - Concepção (conceito) normativo-social
de honra; b) - Concepção (conceito) normativo-pessoal de honra; 2.2.1 Críticas; a) - Quanto à
concepção normativo-social de honra; b) - Quanto à concepção normativo-pessoal de honra; c) -
Concepção mista (conceito dual) de honra;3 – Os crimes de difamação e de injúria (artigos 126.º,
129.º, 130.º e 131.º); 3.1 – Conceitos de difamação e de injúria; 3.1.1 Estrutura e delimitação dos
tipos (tipos objetivo e subjetivo); 3.2 – Razões político criminais da punição; 3.3 – Qualificação
dos crimes de difamação e de injúria em função dos meios e da qualidade da vítima [art.º127.º, n.º1,
als. a) e b) respectivamente]; 3.4 - Estrutura e natureza do bem jurídico protegido no crime de
ofensa à memória de pessoa falecida (art.º131.º); 3.5 - Da consciência da falsidade da imputação:
3.6 - A causa de justificação especial do art.º 180º, nº 2 do CP/P: relevância e âmbito de aplicação
– posição adoptada: 3.7 - Casos de dispensa de pena (explicações da ofensa): direito comparado –
funcionamento do direito da resposta.

1 Nótula inicial

Nos tempos passados, a doutrina divergiu sobre a dignidade da punição dos factos
relacionados com a honra entendendo uma corrente que as condutas difamatórias não
deviam ser incriminadas por não merecer à dignidade penal. Hoje em dia a corrente que
colhe a dignidade penal dos factos relativos a dignidade e honra da pessoa faz
vencimento. Entende esta tese que se não se punir a difamação e a injúria, poderia surgir
conflitos sociais em virtude das vinganças que disso resultariam por causa de as pessoas
verem-se na necessidade de fazer justiças com as suas próprias mãos por terem
necessidade de acautelar as suas honras.

2 Conceito — teorias

Sobre o conceito da honra, digladia a doutrina resumindo-se a discussão em dois


conceitos fundamentais a saber: o conceito ou a concepção fáctica e conceito ou
concepção normativa:

2.1 Concepção fáctica de honra

No concernente à primeira concepção (a concepção fáctica de norma), a honra é um


facto empiricamente comprovável quer do ponto do vista psicológico, quer do ponto de
vista social ou exterior. Assim sendo, o critério da ofensa à honra é dado pela alteração
empiricamente comprovável de certos elementos de facto (quer de raiz psicológica, quer
de índole social ou exterior.

Esta forma de ver as coisas não deixa de suscitar outra divisão de cariz material qual
seja a de considerar a honra com base nos critérios subjectivístico ou interior e
objectivístico ou exterior como se segue:

a) A honra subjectiva ou interior, que consiste no juízo valorativo que cada pessoa
faz de si mesma — no fim de contas estamos, aqui, mergulhados no domínio de
"apreciação de cada um por si, na autoavaliação no sentido de não ser um valor negativo,
particularmente do ponto de vista moral" como considerava beleza dos santos (RLJ 92°

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

168) ou, se se quiser, "o homem coloca-se perante si mesmo como objeto de percepção e
de valoração, por força de um processo autónomo de objectivação, que constitui o
instrumento apto à configuração de um quadro da própria personalidade de conteúdo
variável, porquanto dependente da quantidade e do tipo da representação singular. Esta
representação, pode referir-se tanto às manifestações externas da vida do homem, quanto
aos seus hábitos, à sua posição na vida social, quer às suas qualidades espirituais ou
físicas, fundindo-se num quadro único, como consequência da percepção de si mesmo
(Selbswahrnehmung) feita pelo sujeito (Musco, Bene giuridico, . 11);
b) A honra objectiva ou exterior, que é equivalente à representação que os outros
têm sobre o valor de uma pessoa isto é, a consideração, o bom nome, a reputação de que
uma pessoa goza no contexto social envolvente.

2.1.1 Críticas:

Estes conceitos deixam sérias lacunas quando com eles se pretende medir a existência
ou não de ofensa:

2.1.1.1 Quanto à honra subjectiva:

a) Por a honra pertencer inteiramente a cada um, e, portanto, é intocável


(COSTA ANDRADE, Liberdade de Imprensa, 1996, 79);
b) Deixa fora da protecção penal as pessoas que, por qualquer razão (por
exemplo, idade, doença mental, embriaguez), não possuem a capacidade
para sentir a ofensa, ou pessoas que não se consideram a si mesmas dignas
de honra (v. SILVA DIAS, Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes
de difamação e injúria, 19; Musco, Bene giuridico13);

Dada a essas insuficiências, os defensores da tese subjectivista procuraram introduzir


dois correctores: um, em sede de interpretação e outro, em sede de classificação dos
crimes: quanto ao primeiro corrector, entendem que o critério subjectivístico da lesão
deve ser temperado com um parâmetro objectivo, reconduzível ao sentimento médio de
honra da comunidade. Neste sentido, argumentava beleza dos santos (RLJ, 167) que
ofensivo da honra e consideração é aquilo que razoavelmente, ou seja, segundo a sã
opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles
valores individuais e sociais. O segundo consiste na classificação dos crimes contra a
honra como crimes de perigo entendendo (BELEZA DOS SANTOS, RLJ, 164) que a lei
não exige, como elemento do tipo criminal, em nenhum dos casos um dano efectivo do
sentimento de honra ou da consideração. Basta, para a existência do crime, o perigo de que tal
dano possa verificar-se. Mas as conclusões não deixam de ser evidentes:

i) O primeiro desses corretores não deixa de revelar-se fraco na medida em


que o apelo a um tipo de sentimento ‘médio’ de honra acrescenta mais
uma arbitrariedade à arbitrariedade do critério subjetivo (a
durchschnittliche Empfindsamkeit), ligado às variáveis reações de cada
indivíduo singular. Esta nova arbitrariedade consiste na possibilidade de
recurso, pelo aplicador da lei, a uma hipotética ‘média’ das reacções à
ofensa por parte de todos os outros membros da sociedade (v. Musco, Bene
giuridico, 15);

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

ii) O segundo dos mesmos corretores revela igualmente a fragilidade


conceptual uma vez que expressão injuriosa, por exemplo, não tem que ser
adequada ou suscetível de ofender a honra, mas tem que ofender
efetivamente a honra de outrem. Assim, se, por exemplo, alguém impute
a outrem um facto com conteúdo objetivamente injurioso, mas o
destinatário não ouviu por ser surdo, ou porque ouviu, mas por não
dominar a língua do autor do facto ou por ser uma criança de tenra idade,
não entendeu o que o autor queria dizer, a punibilidade do autor da referida
expressão quedaria apenas na tentativa não punível, por força do n.º2 do
art.º28 do CP. E não assim na difamação ou injúria do art.º126.º por não
ter havido qualquer lesão do bem jurídico honra do destinatário, mas
apenas a sua colocação em perigo.

2.1.1.2 Quanto à honra objetiva

a) ao fazer depender do real juízo valorativo que os demais membros da


comunidade fazem dela, ou seja, à sua reputação ou boa-fama, nega não só a
valia interior (intrínseca) da pessoa, mas também a sua dignidade. Isto porque,
ficando a existência e a medida da honra vinculadas à imagem real do
indivíduo no contexto social que não é necessariamente uniforme por variar
em conformidade com os diversos espaços em que a pessoa se insere
(profissional, partidário, familiar, etc.), fica difícil determinar em qual das
imagens deve o intérprete situar-se, por um lado; e por outro, permite
reconhecer a existência de pessoas sem honra apenas pelo facto não terem
relações exteriores por, por exemplo, mudarem com frequência de residência,
ou viverem, assumidamente, de um modo solitário.

2.2 Concepção normativa de honra

A concepção normativa de honra arranca, segundo Musco (Bene giuridico 35) do


fundamento de ser a honra um momento de personalidade do indivíduo; um bem inerente
ao homem (pertencente ao homem pelo simples facto de nascer como ser humano). E não
uma realidade tangível, possível de ser descrito por meio dos critérios e medidas
empíricas. Segundo esta concepção, a honra é um bem que respeita a todo o homem pela
força da sua qualidade de pessoa: só pelo facto de ser pessoa se tem uma merecida
pretensão de respeito. Mas tal como concepção fáctica, a concepção normativa se orienta
segundo uma dupla diretriz, segundo se acentua uma dimensão social ou uma dimensão
pessoal (individual) ou moral do valor honra.

Assim, temos concepção normativo-social e concepção normativo-pessoal de honra:

a) Concepção (conceito) normativo-social de honra:

Nesta concepção, a determinação do bem jurídico se mostra possível numa dimensão


comunitária ou social. A honra, segundo ela, nasce, assim, da consideração do conjunto
de relações interpessoais, sendo expressão de uma merecida ou fundada interração social
em que a pessoa é chamada a viver (v. COSTA ANDRADE, Liberdade de Imprensa, 81).

b) Concepção (conceito) normativo-pessoal de honra:

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Para a tese que segue a diretriz de que o decisivo na delimitação de honra é uma
dimensão pessoal, a honra é um aspeto da personalidade de cada indivíduo, que lhe
pertence desde o nascimento apenas pelo facto de ser pessoa e radicada na sua inviolável
dignidade; sendo a comunidade em que cada um se insere apenas o lugar em que ela
(honra) se deve atualizar, não sendo fonte da honra. Assim sendo, a honra pertence por
igual a todos sendo indiferente ao valor social de cada. Neste sentido, enfatiza HIRSCH
(Ehre und Beleidigung, Grundfragen dês strafrechtlichen Ehrenschut 1967, 57, apud josé de faria
costa, Comentário conimbricense, 606): “a vida de uma monja dedicada a Deus e o espírito
de sacrifício de um homem excecionalmente caridoso não conferem qualquer plus de
honra em face de todos os outros”.

2.2.1 Críticas:

a) Quanto à concepção normativo-social de honra:

√ Como se acabou de ver, é verdade, segundo Dudolphi (SK 5, antes do § 185), que
“a pessoa só pode viver e desenvolver-se de forma adequada quando os outros membros
da comunidade lhe reconhecem a qualidade de pessoa, consistindo, assim, precisamente
a desonra em recusar à pessoa esse valor. Mas não é menos verdade que (JOSÉ DE
FARIA COSTA, Comentário conimbricense, 606) pretender ver na comunidade em que cada
indivíduo se insere o fundamento ou a fonte de onde brota a pretensão de respeito, é
aceitar a existência de diversidade de honra repartindo honra em conformidade com as
diversas franjas sociais que possam existir. Com efeito, conforme afirma com razão
FARIA COSTA (loc. cit.) seguindo o pensamento de SAUER, se cada comunidade de
pessoas, com interesses similares ou idênticos ou conceções recíprocas de valor, dá origem à honra,
temos, então, de aceitar a existência de uma honra de status: uma honra dos funcionários públicos, uma
honra dos comerciantes, uma honra dos artesãos, uma honra dos professores e assim por diante, o que
nos levaria a uma infinidade de honras, conforme divisões e subdivisões nas diferentes
categorias sociais.
√ É de enfatizar, assim, com FARIA COSTA (recordando que tal aconteceu durante
o período nacional-socialista na Alemanha) o perigo de tal concepção extremada poder
conduzir “à limitação do valor pessoal de cada indivíduo ao valor do seu status e, em
último termo, à negação de qualquer honra a todos os que não pertençam a uma
comunidade reconhecida como atributiva de honra”.

b) Quanto à concepção normativo-pessoal de honra:

√ Para esta concepção, honra representa um objeto ideal em que a lesão se dá apenas
no ataque à pretensão de respeito decorrente daquele valor, sendo essa pretensão o objeto
da acção dos crimes de difamação e injúria. E aqui reside, segundo FARIA COSTA
(Comentário conimbricense, I, 606-7), uma das fragilidades dessa concepção, por esvaziar o
bem jurídico honra que, dessa forma, fica demasiadamente identificado com a dignidade
pessoal (que pertence por igual a todas as pessoas) não criando nem permitindo, segundo
os críticos da mesma tese, “identificar as diferentes densidades normativas que sempre urge detetar
em qualquer bem jurídico”.

c) Concepção mista:

Em face dessas dificuldades quanto ao conceito da honra, a doutrina dominante


tempera a concepção normativa com uma dimensão fáctica – concepção dual: uma

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

dimensão fáctica (consideração ou reputação) + uma dimensão normativa (valor pessoal


ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade).

Resumindo: No sentido dessa última concepção (concepção dual), o Supremo


Tribunal Federal alemão segue a ideia de “… honra interior inerente à pessoa enquanto
portadora (Träger) de valores espirituais e morais e, para além disto, a valência (Geltung)
deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade. (…). Fundamento essencial
da interior e, desta forma, núcleo da capacidade da honra do indivíduo, é a irrenunciável
dignidade pessoal (Personenwürde) que lhe pertence desde o nascimento (…). Da honra
interior decorre a pretensão jurídica, criminalmente protegida, de cada um a que nem a
sua honra interior nem sua boa reputação exterior sejam minimizadas ou mesmo
totalmente desrespeitadas" (BGH, 18 – 11 – 1957, JZ 1958, 617).

Formulação no sistema penal português:

“Artigo 180"

(Difamação)

1. Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de


suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou
consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até
6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

2. A conduta não é punível quando:

a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e

b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para,


em boa fé, a reputar verdadeira.

3. Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n° 2 do artigo 31°, o disposto


no n6mero anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à
intimidade da vida privada e familiar.

4. A boa fé referida na alínea b) do n° 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido


o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da
imputação”.

Artigo 181"

“(Injúria)

1. Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita,
ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sue honra ou consideração, é punido com pena de
prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.

2. Tratando-se da imputação de factos, e correspondentemente aplicável o disposto


nos nºs 2, 3 e 4 do artigo anterior.”

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

“Artigo 183.º"

(Publicidade e calúnia)

1. Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180°, 181° e 182°:

a) A ofensa for praticada através de meios ou circunstancias que facilitem a sua


divulgação; ou

b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade


da imputação;

as penas da difamação ou da injuria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo
e máximo.

2. Se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido


com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias.”

(o grifo é meu nos números 1, alínea a) e 2 por a alínea b) corresponder à nota


seguinte).

“Artigo 184"

(Agravação)

As penas previstas nos artigos 180°, 181° e 183° são elevadas de metade nos seus
limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea j) do n.º 2
do artigo 132°, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for
funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade.”

Capitulo XII Crimes contra a vida privada (art.º 139 e seguintes)

Sumário: 1 - Conceito; 2 - Delimitação: vedação simbólica e vedação física(?) Posição adoptada; 3 - Domicílio
e lugar vedado ao público; |4 - O portador do bem jurídico; 5 - Violação de segredo e devassa da
vida privada (artigos. 142.º e 143.º); 5.1 - Conceitos; 6 - Teoria de vontade e teoria de interesse; 7
- Teoria de três graus ou três esferas (factos que integram a privacidade); 8 - Concepções sobre o
bem jurídico tutelado (valor pessoal individual e o bem jurídico supra-individual/ institucional ou
comunitário)

I. Conceito

CAPÍTULO XIII Dos crimes contra o património (art.º 145 e seguintes)

Sumário:1 - Património e propriedade; 2 - Crimes contra a economia nacional (art.º174.º e seguintes); 2.1 -
Problema do enquadramento dogmático — Direito Penal secundário e Direito Penal principal;

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL
2.1.1 – Conceitos; 3 - O bem jurídico protegido; 4 - Coisa objecto de furto; 5 - Delimitação:
furto, abuso de confiança, roubo, usurpação de imóvel, usurpação de funções públicas,
alteração de marcos, burla e extorsão; 6 - Problema da técnica de agravação do furto (apreciação
crítica do art.º146.º, n.º 2 e seg. comparativamente à dos art.ºs 148.º e 154.º); 7- Análise
sistemática e em espécie dos tipos (cada qual no momento próprio); 8- Apreciação crítica do
art.º146.º/A (introduzido pela Lei n.º2/2002, de 27 de Maio)“ 9 - Análise dos art.ºs 151.º (roubo)
e 152.º (violência após a subtracção); 9.1 - Natureza distintiva; 9.2 Delimitação dos tipos (tipo
subjetivo e subjetivo); 9.3Relação (de exclusão) com a extorsão.

I. Património e propriedade
O conceito de património tem, segundo NELSON HUNGRIA uma extensão temática
abrangendo coisas que, embora sem valor venal (ou vendível ou vendável), representam uma
utilidade, ainda que simplesmente moral (valor de afeição) para o seu proprietário.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Bibliografia
ANDRADE, M. d. (1990). Consentimento e Acordo em Direito Penal.
ANDRADE, M. d. (1999). Comentário aos crimes contra a vida: Homicidio a pedido da vítima
(art.º 134 do CP prtuguês). Em AA.VV, Comentário Conimbricense do Código Penal,
Tomo I, p. 131- 201. (p. 56 e s.). Coimbra: Coimbra Editora.
ANDRADE, M. d. (1999). Comentários ao CP português: Incitamento ou ajuda ao Suicídio. Em
AA.VV, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, artigos
131-201 (p. 75 e ss.). Coimbra: Coimbra Editora.
ANDRADE, M. d. (1999). Consentimento: comentário ao art.º 149.º do CP português. Em
AA.VV, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, artigos 131-201 (p. 276 e
ss.). Coimbra: Coimbra Editora.
BITENCOURT, C. R. (2012). Tratado de Direito Penal. Parte Geral (17.ª edição , amplia e
atualizada ed., Vol. 1). São Paulo: Saraiva.
BRITO, A. J., & RIJO, J. S. (2000). Estudo Jurídico da Eutanásia em Portugal, Direito sobre a vida
ou Direito de viver. Coimbra: Almedina.
BRITO, T. Q. (2007). Eutanásia Activa Directa e Auxílio ao Suicídio: não punibilidade? Em Direito
Penal, PE: Lições, Estudos e Casos. Coimbra: Coimbra Editora.
BRITO, T. Q. (Ano 15 (2005)). Interrupção de alimentação e hidratação artificiais de pessoa em
estado vegetativo persistente. RPCC, 557 e ss.
BRONZE, F. (1994). A Metodologia entre a semelhança e a diferença. Coimbra: Coimbra
Editora.
CARVALHO, A. A. (1994). A Legítima Defesa. Porto: Coimbra Editora.
CARVALHO, A. T. (1999). Anotação aos crimes contra a liberdade pessoal. Em AA.VV,
Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, páginas 131-201 (p. 340 e ss.).
Coimbra: Coimbra Editora.
CORREIA, E. (1943). A Teoria do Tipo Normativo de Agente. BFD, 19, pp. 11-25 .
CORREIA, E. (1973). Direito Criminal (Vol. II). Coimbra: Almedina.
COSTA, J. D. (2012). Noções Fundamentais de Direito Penal. Coimbra: Coimbra Editora (3.ª ed.).
CUNHA, J. D. (1999). Dos crimes contra a vida intra-uterina. Em AA.VV, Comentário
Conimbricense do Código Penal, Tomo I: 131-201; Tomo II: 202-307; Tomo III: 308-386
(p. 140 e ss.). Coimbra: Coimbra Editora.
CUNHA, J. M. (1999). Exposição ou abandono (coentários ao art.º 138.º. Em AA.VV,
Comentário Conimbricense do Código Penal Porguês, Tomo I (p. 116 ss). Coimbra:
Coimbra Editora.
DIAS, A. S. (1992/93). Apontamentos. Lisboa: FDUL.
DIAS, A. S. (2007). Crimes contra a vida. Em AA.VV, Materiais para o estudo da Parte Especial
n.º 5 (2.ª, revista e actualizada ed.). Lisboa: AAFDL.
DIAS, A. S. (2013). Código Penal e Legislação Complementar. Lisboa: AAFDL, 2.ª Edição (Edição
Universitária).
DIAS, F. (1973). O Problema da Ortotanásia: Introdução à sua Consideração Jurídica. Em As
Modernas Técnicas de Reanimação — conceito de Morte — Aspectos Médicos,
Teológico-Morais e Jurídicos (p. p. 29 e ss).
DIAS, F. (1999). Comentário aos crimes contra a vida: infanticídio (art.º136.º). Em AA.VV,
Comentário Conimbrecense do Código Penal, Tomo I: artigos131.º -201.º; Tomo II: 202-
307; Tomo III: 308-386. Coimbra: Coimbra Editora.
DIAS, J. D. (1961). Responsabilidade pelo Resultado e Crimes Preterintencionais (edição
policop. da univerisadade de Coimbra ( e Livraria Almedina) ed.). Coimbra: Livraria
Almedina.
DIAS, J. D. (1969). O Problema da Consciencia da Ilicitude em Direito Penal. Coimbra: Coimbra
Editora.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

DIAS, J. D. (1975). Direito Penal. Sumários (edição policop. de Sumários das Lições à 2.ª
Turmado 2.º Ano da Faculdade de Direito, com Indicações Bibliográficas e Textos de
Apoio; reimpr. (1.ª ed. - 1965) ed.). Coimbra: Universidade de Coimbra.
DIAS, J. D. (1999). Comentário ao art.º 131.º do P português: Nótula antes do art.º 131.º
(Homicídio). Em AA.VV, Comentário conimbricense do Código Penal, Tomo I, artigos
131-201 (p. 1 ss.). Coimbra: Coimbra Editora.
DIAS, J. D. (1999). Comentários aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual. Em
AA.VV, & J. D. DIAS (Ed.), Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 131-201.
Coimbra: Coimbra Editora.
DIAS, J. D. (1999). Comentários aos crimes contra as Pessoas: Homicídio por negligência. Em
AA.VV, Comentário Conimbricense do CP português, Tomo I, art.º 131-201 (p. 1 e ss.).
Coimbra: Coimbra Editora.
DIAS, J. D. (2001). Temas Básicos da Doutrina Penal. Sobre os Fundamentos da Doutrina Penal.
Sobre a Doutrina Geral do Crime. Coimbra: Coimbra Editora.
DIAS, J. D. (2007). Direito Penal— Parte Geral: Questões Fundamentais a Doutrina Geral do
Crime (Vol. t. I). Coimbra: Coimbra Editora.
FARIA, J. D. (2003.). O fim da vida e o Direito Penal. Em AAvv, BIBER DISCIPULORUM. Coimbra:
Coimbra Editora.
FARIA, P. R. (1993). Aspectos Jurídico-Penais dos Transplante — O Valor do Silêncio do
Legislador Penal e o Problema das Transplantações. Coimbra: BFD.
FARIA, P. R. (1999). Comentários aos crimes contra a integridade física: Ofensa a integridade
física grave (art.º 144.º do CP portugês). Em AA.VV, Comentário Conimbricense do
Código Penal, Tomo I: 131-201; Tomo II: 202-307; Tomo III: 308-386 (p. 143 e ss.).
Coimbra: Coimbra editora.
FERREIRA, M. C. (1992). Lições de Direito Penal:Parte Geral. Lisboa: Verbo (4.ª ed.).
FILHO, F. A. (maio de 2013). Dolo eventual e culpa consciente: uma busca de critérios precisos
de distinção. Obtido em Novembro de 2021, de jus.com.br: https://jus.com.br artigos
FONSECA, J. C. (1996). O anteprojecto do novo Código Penal de Cabo Verde: uma leitura, em
jeito de apresentação. RPCC, Fasc.3, Julho-Setembro, 365 e SS.
GEILEN. (1975). Euthanasie und Sellbstbestimmung.
GONÇALVES, M. M. (1998). Código Penal Português anotado e comentado e pegislação
complementar (12.ª ed. ed.). Coimbra: Almedina.
GUINÉ-BISSAU: Código Penal. (1997). Anotações ao art.º 22º do CP guineense por FREDERICO
ISASCA. Bissau: Nova Gráfica Ltda.
HUNGRIA, N. (1955). Comentários ao odigo Penal Brasileiro (3.ª ed., Vol. V). Rio de Janeiro:
Forense.
HUNGRIA, N. (2018). Introdução: Classificação dos crimes em espécie. Em AAvv, Comentários
ao Código Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: GZ Editora.
ISASCA, F. (1997). Anotações ao art.º 20.º do CP guineense por FREDERICO ISASCA. Em AA.VV,
& O. e. TIPS/USAID (Ed.), Código penal (pp. 32-34). Bissau: Novagráfica Ltda.
JOSÉ, A. (2016). Homicídio: dos primórdios aos dias atuais. Obtido em 15 de Novembro de
2019, de https://joseaop1984.jusbrasil.com.br.
LAFAYETTE, V. D. (s.d.). Código Penal Anotado e Comentado, Legislação conexa e
complementar (2.ª ed. ed.). VICTOR DE SÁ PEREIRA e ALEXANDRE LAFAYETTE, Código
Penal Anotado e Comentado, Legislação conexa e complementar, 2ª Edição.
LEAL-HENRIQUES, M., & SANTOS, M. S. (1997?). Código Penal Anotado (Vol. II). Lisboa: Rei dos
Livros.
LUTTGER, H. (1984). Medicina y Derecho Penal. Edersa.
MARTINS, A. C. (1985). O Aborto e o Problema Criminal . Coimbra: Coimbra Editora.
MARTINS, A. C. (1986). A Colheita de Órgãos e Tecidos nos Cadáveres. Coimbra: Coimbra
Editora.

RUI SANHÁ | FDB


RUI SANHÁ
LIÇÕES DE DIREITO PENAL: PARTE ESPECIAL

Martins, A. C. (1996). Bioética e Diagnóstico Pré-Natal. Coimbra: Coimbra Editora.


MARTINS, A. C. (1996). Bioética e Diagnóstico Pré-Natal. Coimbra: Coimbra Editora.
MORÃO, H. (15 (2005)). Eutanásia Passiva e Dever Médico de agir ou omitir em face do
Exercício da Autonomia Ética do Paciente. RPCC, Ano 15 (2005), p. 83.
PALMA, F. (1983). Direito Penal. Parte Especial, Crimes Contra as Pessoas. Lisboa: Edição
Policopiada FDL-PBX.
PALMA, F. (1990). A Justifrcação por Legitirnu Defesa comp Problema de Delimitapdo de
Direitos. Lisboa: AAFDL.
PEREIRA, L. D. (1990). Introdução ao Estudo da Medicina Legal. Lisboa: AAFDL.
PEREIRA, R. C. (1995). O Crime de Aborto e a Reforma Penal. Lisboa: AAFDL.
PEREIRA, V. D., & LAFAYETTE, A. (2014 ). Código Penal Anotado e Comentado, Legislação
conexa e complementar (2.ª ed. ed.). Lisboa: QUID JURIS SOCIEDADE EDITORA.
PIMENTEL, J. C. (1999). Teoria da Acção Social. Em AA.VV, Textos de Direito Penal (Vol. Tomo II,
pp. 185-203). Lisboa: AAFDL.
PINTO, C. (8 (1998)). RPCC, n.º 1, 293 e s.
PORTUGAL. (12 de Julho de 2005). Ac. RL, relatado por Simas Santos. Obtido em 26 de Janeiro
de 2020, de www.dgsi.pt: CJ/S.T.J. XIII, Tomo II, p. 238 e s.
PORTUGAL. (27 de 04 de 2011). Ac. S.T.J. — Fixação de Jurisprudência. Obtido em 26 de 01 de
2020, de www.dgsi.pt/jstjf.nsf: Ac. de fixação de jurisprudência — 3.ª secção do S.T.J.
— relatado por Henriques gaspar
Portugal: Comissão Revisora. (1979). Código Penal, Parte Especial. Em AA.VV, Boletim do
Ministério da Justiça, 291.ª. Lisboa: AAFDL.
PORTUGAL: Código Penal. (1886). Código penal português. Coimbra: Imprensa da
universidade.
PORTUGAL: Código Penal. (1993). Actas e Projecto da Comissão Revisora. Lisboa: Ministério da
Justiça.
PORTUGAL: Código Penal. (1993). Actas e Projecto da Comissão Revisora. Lisboa: Ministério da
Justiça.
PORTUGAL: Código Penal. (1993). Tabalhos de Reforma Penal. Actas da Comissão Revisora do
Código Penal — Parte Especial. Lisboa: AAFDL.
ROXIN, C. (1969). Engisch — FS.
ROXIN, C. (n.º 32 (2000)). A Apreciação Jurídico-criminal da Eutanásia. Revista Brasileirade
Ciências Criminais,, 19 e ss.
SANHÁ, R. (1997). Anotações aos crimes contra as pessoas, art.º 107.º e seguintes. Bissau:
TIPS/USAID.
SANTOS, A. J. (2017). Os problemas Penais da Eutanásia e Suicídio Assistido. (Disponível em
https://www.repositório.ual.pt) Obtido em 27 de Outubro de consultado em 2019, de
https://www.repositório.ual.pt.
SANTOS, L. F. (2009). Ajudas-me a morrer? A morte assistida na cultura ocidental do século XXI:
Sobre assunto de morte (fim de vida). sobre assunto de morte (fim d: Sextante Editora.
SCHMIDT, E. (1969). “Soziale Handlungslehre”,. (P. BOCKELMANN, A. CAUFMANN, & K. KLUG,
Edits.) Festschrift für Karl ENGISCH ZUM 70, pp. 339 e ss.
SERRA, T. (1995). Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e Medida de Pena, Contributo para o
Estudo da Técnica dos Exemplos-Padrão no art.º 132.º do Código Penal. Coimbra:
Livraria Almedina.
STRATENWERTH. (1969). Engisch — FS .
STRATENWERTH. (1978). RPS.
STRATENWERTH. (s.d.). Schweizerisches Strafrecht, BT, I.
STRATENWERTH, G. (1982). Derecho penal — Parte general I: el hecho punible. Madrid: Edersa
(2.ª edição).

RUI SANHÁ | FDB

Você também pode gostar