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DIREITO PENAL

Regência: Professora Maria Fernanda Palma

Índice

CONCEITO MATERIAL DE CRIME .................................................................................................. 9


FINS DAS PENAS ......................................................................................................................... 22
O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE .................................................................................................... 37
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO ........................................................................................ 51
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO ESPAÇO ....................................................................................... 62

1. Definição formal de Direito Penal


Maria Fernanda Palma: conjunto de normas que se autonomizam no Ordenamento Jurídico por
atribuírem a certos factos descritos pormenorizadamente- os crimes- consequências jurídicas
profundamente graves- as penas e medidas de segurança

Previsão- CRIMES
Normas penais
Estatuição- PENAS / MEDIDAS DE
SEGURANÇA
Em sentido amplo
“Se for cometido um crime” (previsão)- norma criminal em sentido estrito: está
implícita uma norma de conduta primária- o facto previsto é o facto violador da norma,
se houver tipicidade (comportamento que se encaixa no facto descrito) então deve haver
punição
“Então dever-se-á aplicar uma pena” (estatuição)- norma penal em sentido estrito: é
uma norma sancionatória dirigida ao juiz, sendo que as pessoas não vão ser
automaticamente sancionadas, surge um dever dirigido ao juiz, é atribuído o poder
punitivo ao Estado

Figueiredo Dias: conjunto das normas jurídicas que ligam a certos comportamentos humanos, os
crimes, específicas consequências jurídicas privativas deste ramo de direito
Distingue entre:
§ Direito Penal Objetivo (ius poenale)- expressão do poder punitivo do Estado
§ Direito Penal Subjetivo (ius puniendi)- poder punitivo do Estado resultante da
sua soberana competência para considerar como crimes certos comportamentos
humanos e ligar-lhes sanções específicas

Teresa Beleza: definir o Direito Penal como um conjunto de normas que têm uma previsão que
é o crime, e uma estatuição que é a pena, é dar uma definição puramente formal/estrutural, o que
não resolve os problemas da sua delimitação rigorosa
® A estrutura de uma previsão que define um crime e de uma estatuição que define
uma pena é particularmente óbvia em relação aos artigos da parte especial; mas o
mesmo não ocorre quanto à parte geral

1.1 Penas e Medidas de Segurança


Os elementos identificadores das normas penais são o crime, a pena e a medida de segurança,
sendo que o que distingue é o seu fundamento:
— a mais importante é a pena, só aplicável quando o agente tenha atuado com culpa—o seu
fundamento é o crime
— medidas de segurança, que não supõe a culpa do agente, mas sim a sua perigosidade,
apresentando, sobretudo, caráter preventivo

1.2 Problemas no Direito Penal- fenómenos inversos


1) problema de um legislador vir atribuir arbitrariamente o caráter de direito penal a matérias
que não merecem—expansionismo penal (a natureza não depende da autoridade que fixa a
sanção—há algo intrínseco)
2) desvalorização/descaracterização de normas—fuga para o direito administrativo para não
atribuir as garantias do processo penal;

Maria Fernanda Palma: não podemos reconhecer uma norma como penal apenas porque o
legislador designou os factos que previu como crimes e as sanções que estatui como penas. O
crime e a pena têm um conteúdo pré-legislativo indisponível1, não podemos reconhecer uma
norma como penal apenas porque o legislador designou os factos que previu como crime e as
sanções que estatuiu como penal
¿ há uma certa vinculação entre a noção de “crime” dos diversos grupos sociais e a
definição legislativa, isto é, as representações sociais sobre o crime pontos de referência
do legislador penal na definição jurídica de crime;
¿ Regente: não é correto afirmar que uma conduta é criminosa porque é punida, dado que
tal deriva de uma convicção errónea de que o Direito cria absolutamente o seu objeto—
só é criminoso o comportamento que mereça uma pena, sendo que a Teoria do Direito
Penal terá de encontrar o sentido jurídico último do crime e da pena enquanto
manifestações de ilícito e de sanção.

2. História e Filósofos que inspiraram constitucionalmente o Direito Penal


(MFP)
Legitimidade do poder punitivo do Estado
Filósofos do contrato social
Em direito penal o contrato social irá refletir-se na legitimidade do poder punitivo do Estado,
o contrato social será assim o fundamento e o limite de como o Estado irá punir os seus cidadãos.
O próprio contrato social é o que fundamenta o poder punitivo do estado, já que através deste é
que se ira justificar a legitimidade de poder tirar liberdade aos cidadãos no caso deste não ser
cumprido.

1
Indisponibilidade que revela já uma relação entre a definição material de Direito Penal
e a temática da legitimidade constitucional

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


® A tradição liberal individualista de LOCKE
¿ Teoria segunda a qual o individuo quando nasce tem um leque de direitos e cede uma
parte desses direitos ao Estado, porque acredita que este está em melhores condições
de garantir o pleno exercício desses seus direitos. Assim, o fundamento do poder do
Estado é a própria proteção dos direitos naturais, mediante consentimento.
¿ O mais importante são os direitos individuais, pelo que caso haja um conflito entre
um bem jurídico individual e um bem jurídico coletivo, prevalece o bem jurídico
individual.
¿ No Estado de natureza (situação hipotética onde não existe sociedade política), os
homens seriam dotados de três princípios: liberdade, igualdade e independência.
¿ O crime é uma ofensa a direitos que justifica, pela sua gravidade, a restrição dos
direitos fundamentais.
® A tradição democrática de ROUSSEAU
¿ A vivência dos direitos só é possível num Estado. A associação dos indivíduos no
Estado permite o seu desenvolvimento pelo desenvolvimento da vontade coletiva, a
realização da igualdade. O coletivo é condição de realização dos indivíduos. As
pessoas cedem a sua liberdade, uma vez que aquilo que cedem é aquilo que recebem.
¿ O mais importante são os bens jurídicos coletivos, pelo que havendo um conflito entre
estes e bens jurídicos individuais, prevalecem os primeiros.
¿ Um aspeto importante em ROUSSEAU é que o contrato social não leva à perda dos
direitos individuais, pelo contrário; através do Estado, os indivíduos podem
desenvolver as suas qualidades individuais. O crime é uma ofensa à vontade coletiva
da qual depende a igualdade dos direitos e o desenvolvimento individual.
® KANT e o Contrato Social
¿ Autor “universalista” e “racionalista”
¿ Nascemos dotados de uma razão universal, oferecida a todos como se fosse um
presente, que nos diz que é preciso limitar as condições de subsistência para que
consigamos viver num mundo caracterizado por essa razão universal. Essa limitação
nunca se baseia na realização de interesses individuais ou na produção de felicidade.
¿ Aquele que rouba, acaba por se roubar a si mesmo, uma vez que viola a propriedade
alheia, mas quando furtou quis ser proprietário do furtado, portanto tem interesse que
as leis da propriedade sejam respeitadas, daí que o mais racional será não roubar –
quem pratica um crime está a agir contra o seu próprio interesse.
® A teoria liberalista de RAWLS
¿ Cada pessoa, na posição original, coberto por um véu de ignorância, escolhe os
princípios de justiça, liberdade e da distribuição de desigualdades.
¿ A justificação da subordinação prende-se com a escolha racional que foi feita pelos
próprios dos princípios de justiça.
¿ A legitimidade do poder punitivo do Estado decorre da necessidade de assegurar a
liberdade individual e a autonomia de cada cidadão.
¿ A tese de RAWLS relaciona-se com o Direito Penal, na medida em que as penas nunca
podem invadir a esfera das liberdades individuais. Para além disto, as penas são
justificadas na dimensão do dano social, e sofrer uma pena tem que ser algo que
redunde no proveito da sociedade, da vítima (em alguns casos), mas sobretudo do
próprio criminoso.
® Teoria das capacidades de MARTHA NUSSBAUM
¿ Autora contratualista

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¿ Baseia-se no conceito de dignidade humana, sendo o que objetivo é garantir uma vida
digna para todos.
¿ O critério para uma escolha justa são as capacidades humanas. Todos nascemos com
um determinado número de capacidades que podem vir a ser desenvolvidas. O que se
quer é, na realidade, um Direito penal que assegure e proteja as capacidades de cada
um. O cumprimento de uma pena deve servir para garantir aos restantes cidadãos
espaço para desenvolver as suas capacidades e, ao mesmo tempo, permitir ao agente
que cometeu o crime que este possa vir a ser reintegrado na sociedade.
¿ As capacidades humanas são apresentadas como a fonte dos princípios políticos numa
sociedade liberal pluralista, em que ninguém seria meio ou instrumento de outros.
¿ A restrição de direitos através das penas deve ancorar na realização de interesses tidos
como fundamentais, não através do preço do contrato, mas da escolha racional dos
princípios de justiça que regem uma sociedade.
¿ Só há uma restrição racional de direitos se a contrapartida for o florescimento das
capacidades de cada ser humano de forma a viver a vida dignamente.
¿ Os factos que justificam as penas devem ser especialmente atentatórios dos princípios
de justiça

Porque interessa saber qual é o poder punitivo do Estado?


® Sabendo qual é o fundamento, sabemos quando é o Estado está a atuar fora daquela que é a
sua legitimidade.
® Garantia do princípio da separação de poderes (órgão que cria as penas não é o mesmo órgão
que aplica as penas).
® Garantir que não existe criminalização de condutas que não deviam ser criminalizadas.
® Saber quais os limites, onde pode entrar o Direito Penal e onde não pode.

3. Fundamento do Direito Penal numa Teoria da Justiça (MFP)


O Direito Penal está mais no cerne do poder do Estado que outros ramos de Direito Público, sendo
que há uma base mais explicita no Direito Penal do que no restante Direito:
® Fusão do interesse pessoal e do interesse geral—direitos e interesses pessoais convergem
com interesse geral. Não é apenas pelo interesse público, mas sim porque o que determina
este interesse são os bens e interesses individuais de cada um. Não é apenas pelo interesse
da vítima, dado que há interesse geral na proteção de valores/bens.

As necessidades humanas são diversas porque estão associadas a interesses de cada um, contudo,
há necessidades comuns que permitem desenvolvimento da pessoa e vida humana digna. A base
é a justiça em que leis, normas e restrições de direito se justificam pelo interesse e necessidade
de desenvolver capacidades
Gravidade do facto não se define apenas pela tradição ou moral dominante ou pela vontade da
maioria, sendo que há uma necessária relação com fins do Estado e princípios de justiça
Os critérios de necessidade e de utilidade só são aceitáveis na medida em que se articulem com
os princípios de justiça.
® O Direito Penal que serve a proteção das capacidades não é um Direito Penal
retributivo, mas reintegrativo, justificado pelo melhor desenvolvimento tanto das
possibilidades das potenciais vítimas como dos próprios agentes.

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


A afirmação de que um comportamento constitui um crime porque é punido deve ser substituída
pelo reconhecimento de que só é criminoso o comportamento que mereça uma pena. Este
reconhecimento apela à legitimação constitucional do Direito Penal.

4. O problema da definição pré-jurídica do crime: a Criminologia e a sua


importância para o Direito Penal (MFP)

Criminologia: consiste em estudos científicos não jurídicos sobre o crime enquanto fenómeno
social. Tradicionalmente, é entendido como uma ciência de base descritiva e não normativa,
ou seja, não pretende demonstrar o que deve ser crime nem como se deve responder ao crime,
antes pretende compreendê-lo e explicá-lo.
Conceções de identificação do crime:
® Uma deficiência do indivíduo.
® Uma deficiência da socialização.
® Uma deficiência da sociedade.
® Um produto de construção social.
Três perspetivas metodológicas:
® Crime como acontecimento individual que reúne as conceções biopsicológicas
tradicionais (realidade objetivamente identificável).
® Crime é visto como alteração de um padrão de comportamento que é tido como
normal.
® Crime como acontecimento social, baseado em padrões sociais de ação (realidade
objetivamente identificável).
® Crime é visto como alteração de um padrão de comportamento que é tido como
normal.
® Crime como fenómeno significativo e comunicacional (depende da definição de conceitos
pelo próprio sujeito).

A. Deficiência do indivíduo
Conceção das teses biologistas:
Discussão desloca-se para a pessoa que comete os crimes e o determinismo biológico e/ou
psicológico que leva tal pessoa a cometer o crime.
Lombroso (finais século XIX):
® Deficiência do indivíduo devido a fatores biológicos.
® Criminosos seriam delinquentes natos, próximos dos primitivos que, independentemente do
meio social, não poderiam deixar de cometer crimes.
® O crime depende da constituição biológica do delinquente (traços biológicos: tamanho e
forma do crânio, assimetrias faciais, orelhas grandes, lábios e caninos salientes; traços sociais
e psicológicos: resistência à dor, tatuagens, cretinismo moral).
® Críticas:
® Comparação dos crânios que permitia chegar a tais conclusões não incluía o estudo
de não criminosos.
® Conexões entre o funcionamento do cérebro e o comportamento humano não
permitem concluir, pela sua complexidade, que haja uma causalidade linear entre
fenómenos registados no cérebro e determinados comportamentos.
® Numa primeira fase não considerava uma série de fatores que estariam subjacentes à
prática de crimes, embora posteriormente viesse a considerar o papel da educação na
prevenção da criminalidade.
® Repercutia os preconceitos existentes na sociedade na época (Exemplo: prostitutas).

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® No entendimento atual, se a pessoa está programada para praticar crimes, à partida
não posso julgá-la nem sancioná-la por isso, o Direito Penal só atua quando
praticamos um crime porque escolhemos uma conduta que é proibida e que podíamos
ter escolhido não praticar.
® Aplicação de penas incapacitantes de modo a tentar limitar a possibilidade destes
indivíduos voltarem ao meio social, uma vez que se encontram determinadas pelas
suas condições biológicas.
Antropologia Criminal:

® Fundada por Lombroso.


® A Escola positiva e a antropologia criminal identificam o crime com a
doença/perturbação do agente e despolitizam a fundamentação da pena.
® Pena passa a ser vista como proteção da sociedade e como tratamento e já não se
funda no poder do Estado e sim na ciência.

Conceções biopsicológicas que ligam genética e crime:


Discussão desloca-se para as características genéticas que explicam o comportamento dos
criminosos.
Síndrome da Hipermasculinidade:
® Deficiência do indivíduo devido à duplicação do cromossoma y.
® Ideia de que os homens com cromossomas xyy cometiam crimes graves/violentos contra as
pessoas.
® Críticas:
® Estudo posteriormente rejeitado porque não incluiu como objeto de estudo pessoas
que tivessem cometido crimes graves/violentos.
® Conceção que põe em causa a exclusão da responsabilidade civil.
® No entendimento atual, se a pessoa está programada para praticar crimes, à partida
não posso julgá-la nem sancioná-la por isso, o Direito Penal só atua quando
praticamos um crime porque escolhemos uma conduta que é proibida e que podíamos
ter escolhido não praticar.
® Aplicação de penas incapacitantes de modo a tentar limitar a possibilidade destes
indivíduos voltarem ao meio social, uma vez que se encontram determinadas pelas
suas condições genéticas.

Conceções biopsicológicas da neurociência:


Discussão desloca-se para a relação entre o crime e algumas características neurológicas dos
indivíduos.
® Neurociência vem colocar a questão da mente humana numa base naturalista, rejeitando o
dualismo alma-corpo. É errado confundir mente e cérebro, embora um não exista sem o outro.
® Crítica: procura de traços no cérebro de realidades que são conceitos cultural e socialmente
significativos, como o de violência ou de mentira.
® A neurociência pode ajudar a compreender como são tomadas as decisões que levam ao
crime.
Damásio:
® Associa problemas e anomalias cerebrais à prática de crimes, entendendo que a certas
anomalias se associam determinados comportamentos.
® Exemplo: certas lesões pré-frontais que se concentram no setor ventromedial afetam a
solução de dilemas morais.

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Falácia mereológica: consiste em atribuir uma capacidade e função a uma parte que é somente
atribuível ao todo que essa parte pertence.

Conceções psicologia contemporânea:


Teorias Psicodinâmicas:
® Deficiência do indivíduo devido a problemas na infância e fraqueza do ego.
® Sentimento de culpa é o motivo do crime, sendo que a condenação exterior é aliviadora da
autocondenação interior.
® Staub: necessidade de ser punido é a consequência do medo inconsciente da consciência.
® Eysenck: herança genética condicionaria diferenças no funcionamento do sistema nervoso
cortical e autonómico que interfeririam com a capacidade de aprender com os estímulos
exteriores, sendo que o comportamento antissocial estaria relacionado com a combinação de
extroversão, neurotismo e psicotismo que produziria pouca condicionalidade dos
indivíduos aos estímulos sociais e menor controlo do seu comportamento.
Teorias Cognitivas:
® Kohlberg: comportamentos antissociais estariam relacionados com a incapacidade de
atingir os estádios superiores dos níveis de desenvolvimento moral da personalidade, pelo
que o crime estaria associado aos indivíduos que ainda não passaram na primeira fase desses
mesmo níveis.
® Gillian (feminista): critica a construção de Kohlberg por ser uma conceção
masculina, orientada para a justiça para resolver dilemas morais, contrapondo com
uma ética de cuidado.
® Gottfredson: o crime estaria relacionado com a impulsividade e falta de controlo, sendo
que o prazer imediato seria mais valorizado que as consequências dos atos a longo prazo.
® Gibbs: existência de distorções cognitivas que proporcionam a distorção do
reconhecimento da autoria ou a desvalorização da responsabilidade pelo próprio
comportamento.
® Fanagy: crime surge associado à falta de controlo de si mesmo, sendo que o segredo para
esse controlo pressupõe a capacidade de representações mentais próprias e dos outros.
Teorias da Personalidade:
® Deficiência do indivíduo no processamento da informação social.
® Indivíduos agressivos desenvolvem perceções limitadas das situações e das soluções para os
problemas que lhe são colocados nos conflitos interpessoais, não conseguindo alcançar
técnicas alternativas à violência para resolver tais conflitos.
Teorias Focadas na Inteligência:
® Crime aparece enquanto escolha racional, sendo o benefício pessoal a motivação
determinante do criminoso.

B. Deficiência da socialização
Durkheim:
® Deficiência da socialização.
® Crime seria uma expressão do funcionamento normal de todas as sociedades.
® Fenómenos de indiferença às normas e consequente teoria da anomia, seguindo o
entendimento de que o indivíduo é impermeável à existência de regras, suscitados pela
organização das sociedades, nomeadamente pela divisão do trabalho social.
® Acentuou a raiz dos comportamentos antissociais na natureza das estruturas sociais.

Mead (inícios século XX):

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® Deficiência da socialização.
® Os comportamentos sociais correspondem ao resultado de interação entre a sociedade e o
individuo, em que a sociedade determina a construção das conceções de si mesmo e a
construção de significados.
® Teorias de aprendizagem dos comportamentos criminosos.
® Construção do indivíduo e da sua personalidade delinquente.
Sutherland:
® Deficiência da socialização.
® Crime pressupõe fenómenos de aprendizagem por contacto, através da chamada
associação diferencial com padrões de comportamento criminosos e anti-criminosos. Ou
seja, o crime surge como fenómeno associativo e aprende-se, sendo que todos podem
aprender a ser criminosos.
® Crime explica-se pela intensidade, frequência e precocidade de certos contactos sociais.
® Comportamento antissocial aparece associado a padrões comportamentais desenvolvidos
pelos grupos sociais.
® Teoria da determinação do comportamento criminoso em 9 aspetos:
1. Comportamento criminoso é aprendido.
2. Comportamento criminoso é aprendido por interação com outras pessoas num
processo de comunicação.
3. Aprendizagem faz-se por contacto dentro de grupos íntimos e sociais.
4. Aprendizagem inclui técnicas, motivos e atitudes.
5. Orientação específica dos motivos depende dos códigos legais como favoráveis ou
desfavoráveis à infração.
6. Uma pessoa torna-se delinquente em consequência do prevalecimento das posições
favoráveis às infrações.
7. Associações diferenciais podem variar em frequência, duração, prioridade e
intensidade, sendo mais decisivas as mais precoces.
8. Comportamento criminoso envolve todos os elementos de uma aprendizagem, não
sendo uma mera imitação.
9. Ainda que o comportamento criminoso seja uma expressão de necessidades e valores
gerais, não é explicado por eles, porque tais necessidades e valores gerais presidem a
todo o comportamento social, criminoso e não criminoso.
Cohen:
® Criminalidade surge de fenómenos de conflito de valores culturais e de substituição dos
valores dominantes por outros valores e pautas normativas, que originariam as subculturas
delinquentes.

C. Deficiência da estrutura social


Uma vez que a explicação do comportamento criminoso reside na deficiência da estrutura
social, o agente criminoso seria vítima da estrutura sociocultural.
Merton:
® Paradigma de capitalismo e do ideal americano.
® Explica o crime pelo desfasamento entre as metas sociais gerais e as vias para as alcançar
– desfasamento entre a promoção de valores como a ascensão social e a efetiva escassez de
meios legítimos para a atingir.
® Identifica um mecanismo de interação social que não leva à prática de crimes, a
conformação.
Produto de uma construção social

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Conceção do labeling approach:
® O crime e a criminalidade como factos sociológicos seriam o resultado de um processo de
seleção social.
® Instâncias formais de controlo (Exemplo: legislador, polícia, tribunais) elegeriam algumas
condutas e não outras como criminosas e certas pessoas como delinquentes e instâncias
não formais de controlo (grupos sociais, Exemplo: família, vizinhos, colegas)
etiquetariam/rotulariam certas pessoas como potenciais ou efetivas autoras de crimes.
® Condutas a serem criminalizadas podem nem estar criminalizadas em lei penal.

Conceito material de crime

1. Definição material de Direito Penal (MFP)


Que factos podem ser considerados crimes?
a) Todos os objetos que são sanção criminal – não é suficiente e acaba por ser circular,
pois não caracteriza os factos que uma norma deve caracterizar como crimes;
§ Maria Fernanda Palma defende que seria mais correto afirmar que só é criminoso
o comportamento que mereça uma pena;
b) Todos os que tem uma certa gravidade moral – não podemos definir por orientações
morais, pois não há uma fusão entre direito e moral, sendo que esta resposta pressupõe
que a moral é um critério do Direito ou que se confunde com o Direito
§ A moral não tutela a sociedade, tutela o indivíduo na sua dignidade pessoal—a
regente evidencia que a moral e o direito são duas esferas diferentes
c) Todos os que relevam perigosidade do agente –desloca a caracterização do facto para
a personalidade ou qualidades do agente. Há factos irrelevantes que podem revelar
perigosidade e factos habitualmente considerados crimes que não revelam perigosidade
por serem esporádicos ou revelarem uma situação-limite vivida pelo agente
d) Todos os que são danosos numa certa medida para a sociedade (princípio do dano
ou da ofensividade) – não é suficiente, pois requer que haja uma densificação do conceito
de dano, para além de que há muitos factos danosos que são acidentais, na medida em
que mesmo com os deveres especiais de cuidado o agente não teria conseguido impedir
o resultado daquele facto.
Individualmente estas respostas não conseguem dar resposta a pergunta acima, estas iriam falhar
em definir o que é direito penal. Não obstante em conjunto é possível construir um conceito que
vá determinar o que é materialmente crime.

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


O que é então necessário para definir crime de modo satisfatório?
1. Uma fundamentação normativa aceitável pelo Direito da seleção de factos e não uma
mera descrição formal, isto é, uma razão universalizável pelo menos no âmbito so
sistema jurídico;
2. Uma razão normativa que abarque o plano objetivo e o plano subjetivo do facto;
3. Um método:
¿ Perceber quais são os factos que de acordo com os critérios do sistema jurídico
podem justificar as sanções criminais;
¿ Atender ao princípio da necessidade de pena do art.18º/2 CRP, que, de uma
perspetiva liberal, se preocupa com o fundamento da pena, isto é, aquilo que é
justificadamente crime, afastando a ideia de incriminações obrigatórias. Esta
busca de fundamentação deve encontrar uma razão universalizável no âmbito do
sistema jurídico. Assim, as liberdades só poderão ser restringidas pelo Estado
quando estiverem em causa outras liberdades ou bens essenciais para a
preservação da sociedade.

Portanto, é na ideia o princípio da necessidade da pena que vamos encontrar uma razão
universalizável no âmbito do conceito material de crime.
® Esta razão universalizável ira se dividir em dois planos num plano subjetivo e num plano
objetivo.
§ No plano objetivo pode existir, um dado facto à luz do 18º/2 que justificasse a
incriminação, mas que subjetivamente o controlo do agente sobre o dano não é
reconhecido, não tendo agente assim controlo sobre o resultado, o direito penal
não pode intervir. O direito penal não pode limitar a liberdade do agente
quando este não tem culpa.
§ O plano subjetivo traduz-se na responsabilidade do agente, já que retirar a
liberdade ao agente é algo gravíssimo, que tem de estar proporcionalmente ligada
a pena em si. É necessário assim criar uma metodologia, com base nas
características específicas nas sanções criminais.

Quais são os factos jurídicos que podem impor as sanções criminais?


Para além da razão universalizável do princípio da necessidade da pena, são todos os direitos
constitucionalmente reconhecidos. Não pode o direito penal intervir, mesmo que prejudique
terceiros, nos casos de objeção de consciência, como o não serviço militar ou de recusa de
intervenção medica em casos de aborto. Em suma, apenas pode haver intervenção penal em
conformidade com o princípio da necessidade da pena e com valores constitucionais
previstos.

Podemos assim concluir que a definição de crime passa pelo princípio da necessidade de
pena, sendo assim uma questão de valores constitucionais e da relação entre o Estado e os
cidadãos.

2. O conceito material de crime (Figueiredo Dias)

Conceito Formal de Crime

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


O crime seria definido segundo um critério formal para especificar quando existe crime à luz da
vontade do legislador, isto é:
— Crime seria tudo e só aquilo que o legislador considerar como tal; basta que o facto que
institui a proibição criminal siga as regras procedimentais e seja emitido pelo órgão
competente (procedimento legislativo da CRP- art. 167º, art. 168º, art. 136º, art. 165º/1,
c), art. 198º/1, b)
— Críticas: não dá resposta à questão de saber qual a fonte de onde promana a legitimidade
para considerar certos comportamentos humanos como crimes e aplicação de sanções—
não permite saber qual a legitimação material do direito penal.
— Não podemos adotar uma perspetiva formal/positivista- “o que o legislador definir como
crime” é uma explicação circular (o que é crime é crime) —é sempre necessário o crime
estar previsto na lei, não podemos fundamentar a validade do Direito em algo que não está
na lei- princípio da legalidade (art. 1º CP; art. 29º/1 CRP), sendo que o que se discute é se
isso é suficiente ou não2

Conceito material de Crime


— Quando se pergunta pelo conceito material de crime procura-se resposta à questão da
legitimação material do direito penal, isto é, saber qual a fonte de onde promana a
legitimidade para considerar certos comportamentos humanos como crimes e aplicar aos
infratores sanções de espécie particular
— Validade material- tendo em conta o conteúdo da proibição criminal, que tem de estar de
acordo com um determinado parâmetro exterior ao Código Penal, que determina o que é
crime (o que pertence ao domínio criminal) e as normas que são normas criminais.

Seguindo a perspetiva material, qual a fonte de validade das normas criminais?


® Perspetiva legalista – seria considerado materialmente crime tudo aquilo que o
legislador considerar como tal.
® Críticas:
¿ O CMC viria a corresponder afinal ao CFM;
¿ Tal conceção é inaceitável e inútil – quando de pergunta pelo CMC procura-
se uma resposta, antes de tudo, à questão da legitimação material do direito
penal, isto é, à questão de saber qual a fonte de onde promana a legitimidade
para considerar certos comportamentos humanos como crimes e aplicar aos
infratores sanções de espécie particular;
¿ A conceção atribuída ao CMC não permite obter a função e limites do direito
penal.
® Perspetiva sociológica – o sentimento da comunidade? uma norma criminal é válida
se estiver de acordo com os sentimentos comunitários acerca dos comportamentos que
merecem a qualificação de “criminoso” – princípio da ofensividade (harm principle): o
que lesar a sociedade (ofender ou prejudicar a vida em sociedade) é um ilícito jurídico.
¿ Críticas: i) há falta de consenso na sociedade, sendo que não conseguimos
orientar as nossas condutas pelo sentimento do povo; ii) os sentimentos
jurídicos são moldados por normas e respetivos parâmetros de validade
material (são efeito e não a causa); iii) violação do princípio da legalidade
(art. 29º CRP); iv) MFP + FIGUEIREDO DIAS dizem que a noção de
“lesividade social” é insuficiente para dar conta de conteúdos tipicamente

2
Um formalista dirá que é necessário e suficiente

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criminais – FIGUEIREDO DIAS diz que é preciso algo mais: a dignidade
penal;
® Perspetiva moral/ética e social – a moral fundamental? Welzel entende que a tarefa
central do direito penal residiria em assegurar a validade dos valores ético-sociais
positivos de ação, sendo essa a tarefa primária do direito penal. Também para Jescheck
cabe ao direito penal tutelar os valores fundamentos da ordem social.
¿ Críticas: a função do direito penal não é, nem primária nem secundária,
tutelar a virtude ou a moral – o direito penal nem tem legitimidade para tal,
já que tem que respeitar a liberdade de consciência de cada um (art. 41º CRP)
¿ MFP: não faz sentido que um sistema normativo constitua parâmetro de
validade de outro sistema normativo;
¿ FIGUEIREDO DIAS: não se consegue encontrar uma moral, dado que as
sociedades modernas são pluralistas: não há um único conteúdo criminal.
® Perspetiva racional – os bens jurídicos? uma norma só é válida se tutelar um bem
jurídico.

Crime: ofensa a (conduta ofensiva de) um bem jurídico, cuja incriminação (consagração legal)
se afigura como adequada, necessária e proporcional”

Bem jurídico- as normas criminais têm por função ou finalidade tutelar/proteger bens jurídicos
(proibindo a conduta ofensiva de bens jurídicos)
— Figueiredo Dias: “expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na
manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente
relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso” —2 elementos
fundamentais: referência aos valores jurídicos (não morais) e ao que seja
juridicamente reconhecido
— Maria Fernanda Palma: “condições essenciais de liberdade da pessoa e de
funcionamento do Estado de direito democrático”
— Ricardo Tavares da Silva: “bem jurídico” é um valor jurídico- o que é juridicamente
relevante- sendo um apelo a valores estritamente jurídicos, não valores morais—o
Direito Penal tem carga ética, mas no sentido de valioso e não de moral
— Claus Roxin: “condições e finalidades necessárias ao livre desenvolvimento do
indivíduo, à realização dos seus direitos fundamentais e ao funcionamento de um sistema
estatal construído em torno dessa finalidade”

Podemos dizer que o CMC resulta da função atribuída ao direito penal de tutela subsidiária
de bens jurídicos dotados de dignidade penal. Daqui podemos retirar dois pressupostos:

® dignidade de tutela penal, o bem jurídico tutelado tem que ter dignidade penal, ou seja,
só pode haver incriminação se pretendemos tutelar o bem;
® necessidade da pena, a incriminação só é legítima se não houver outros meios, menos
gravosos do que o direito penal e que tutelem de forma eficaz o bem.
® Artigo 18º/2 CRP
® A violação de um bem jurídico penal não basta por si para desencadear a
intervenção, já que se requer que esta seja absolutamente indispensável à livre
realização da personalidade de cada um na comunidade – neste caso a
intervenção do direito penal é de natureza definitivamente subsidiária.

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


® O direito penal usa os meios mais onerosos para os direitos e liberdades e apenas
intervém se outros meios se mostrarem insuficientes e inadequados, caso
contrário a intervenção penal será contrária ao princípio da proporcionalidade,
sob a forma de violação do princípio da subsidiariedade e da proibição do
excesso.

3. Considerações sobre a noção de bem jurídico (Ricardo Tavares da Silva)


i. Bem jurídico e valores
Uma boa maneira de interpretar a noção de bem jurídico será a de a identificar com o conceito
de valor jurídico—vai ao encontro da descoberta do movimento da Filosofia dos Valores3: a de
que as normas (obrigações e proibições) se encontram fundadas em (pretendem tutelar) valores.
® P.ex. proibição de homicídio—tem valor negativo: o desvalor não está propriamente na
ação (p.ex. disparar uma arma), mas no resultado (a morte da pessoa)—afeta o valor da
vida humana; proibição de furtar—a própria ação é desvaliosa, porque ofende (ou lesa)
um valor: o do património/propriedade privada

Os comportamentos proibidos são juridicamente desvaliosos (em si mesmos ou pelo resultado)


e são-no porque ofendem bens jurídicos—se não há ofensa de um bem jurídico, a suposta norma
não se encontra justificada (não tem razão de ser), ficando invalidada (invalidade material).
ii. Bens jurídicos e princípio da ofensividade
O princípio da ofensividade (harm principle) dar-nos-á o que é característico do ilícito jurídico:
o que lesar a sociedade (ofender ou prejudicar a vida em sociedade)—“bem jurídico” trata-se
do que é socialmente valioso, no sentido do que há de valioso na vida em sociedade.
® A noção de “ofensa a um bem jurídico” deve ser interpretada de acordo com este
princípio
® Figueiredo Dias— “crime é a ofensa ao que de mais valioso há na vida em sociedade”

Há uma discussão em torno do caráter individualista ou coletivista da noção de bem jurídico4:


há quem defenda que os valores tutelados pelo DP são individuais, não coletivos—a Professora
Regente defende uma conceção mista/híbrida: as normas penais protegem os “interesses”
individuais protegendo o interesse coletivo e protege o “interesse” coletivo protegendo os
interesses individuais;

Contudo, mesmo o individualismo irá defender que o ilícito jurídico implica danosidade das
relações sociais dado que estas são uma mera colaboração entre indivíduos; já o ilícito moral
(imoralidade) será uma pura ofensa ao valor individual, realizada fora de qualquer contexto de
relacionamento com outrem—o individualista acerca da sociedade não a está a reduzir ao
indivíduo e, do mesmo modo, o individualista acerca do DP não o está a reduzir à moral. Assim,
o individualista acerca dos bens jurídicos não os está a reduzir aos bens morais.

iii. Bens jurídicos e princípio liberal


Pensando no exemplo do suicídio: sendo a vida humana valiosa e recorrendo ao princípio da
ofensividade, teríamos a ofensa a um bem jurídico—enquanto membro da sociedade, o próprio
indivíduo está a prejudicá-la objetivamente.

3
Lotze, Windelband, Rickert, Radbruch, Scheler, Hartmann, etc
4
Dado que não se fala em “bens jurídicos individuais” e em “bens jurídicos coletivos”

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


® O princípio liberal vem impedir que haja uma verdadeira ofensa em casos como este: o
bem jurídico não está realmente a ser lesado porque tal só pode acontecer num contexto
concreto de interação social—quando o espaço de liberdade de um interfere com o de
outrem (o que acontece no homicídio, mas não no suicídio);
® Auto-lesões não contam como ofensas a bens jurídicos, só hétero-lesões (p.ex.
homicídio, ofensa à integridade física de outrem, tráfico, dano de coisa alheia, etc)

iv. Bens jurídicos e Constituição


Podemos densificar o conceito material de crime com recurso à noção de “bem jurídico”, mas
sempre se pode perguntar onde estes estão—o professor Ricardo Silva segue a perspetiva
positivista de que o princípio da legalidade não só exige que as normas penais estejam
consagradas em lei (ordinária: princípio da legalidade estrito) como também exige que os
próprios valores que condicionam a validade das normas penais estejam consagrados em lei
(fundamental: princípio da legalidade amplo)
® Os bens jurídicos a tutelar pelas normas penais devem ser encontrados na Constituição,
não em qualquer outro lugar.

4. Bem jurídico (Figueiredo Dias)

Evolução da noção de bem jurídico


- Conceito individualista: inicialmente, a noção de bem jurídico assumiu um conteúdo
individualista, identificador do bem jurídico com os interesses primordiais do individuo,
nomeadamente da sua vida, o seu corpo, a sua liberdade e ao seu património.
- Conceito metodológico: posteriormente, surgiu um conceito metodológico de raiz
normativista, que fazia do conceito de bem jurídico meras fórmulas interpretativas dos
tipos legais de crime. Esta formulação acabou por ser rejeitada porque o conceito de bem
jurídico deixava de poder ser visto como padrão crítico de aferição da legitimidade da
criminalização.
- Conceito teleológico: o conceito de bem jurídico deve obedecer a uma série de
condições, devendo traduzir uma certa corporização, não bastando uma técnica de
interpretação ou aplicação do direito – deve servir como padrão crítico de normas
constituídas ou a constituir, porque só assim é possível arvorar um critério legitimador
do processo de criminalização e de descriminalização, e deve ser político, ou seja,
criminalmente orientado.

A questão da legitimação do direito de punir estatal provém da exigência, já claramente inscrita


no paradigma do “contrato social”, de que o Estado só deve tomar de cada pessoa o mínimo
dos seus direitos e liberdades, que se revele indispensável ao funcionamento da comunidade.
® Regra do Estado de Direito democrático: o Estado só deve intervir nos direitos e
liberdades fundamentais na medida em que isso se torne imprescindível ao
asseguramento dos direitos e liberdades fundamentais dos outros ou da comunidade
enquanto tal;

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


® Caráter pluralista e laico do Estado de Direito: vincula que este só utilize os seus meios
punitivos próprios para tutela de bens de relevante importância da pessoa e da
comunidade;
® Art. 18º/2 CRP—dispõe que as restrições de direitos, liberdades e garantias devem
“limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos”

Para Figueiredo Dias

Um bem jurídico político – criminalmente tutelável existe onde se encontre refletido num valor
jurídico – constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social total e que, deste modo
se pode afirmar que “preexiste” ao ordenamento jurídico–constitucional e a ordem legal– jurídico-
penal – dos bens jurídicos tem por força de verificar-se uma qualquer relação de mútua referência.

Relação que não será de “identidade”, ou mesmo só de “recíproca cobertura”, mas de analogia
material, fundada numa essencial correspondência de sentido e – do ponto de vista da sua tutela
– de fins. Correspondência que deriva, ainda ela, de a ordem jurídico – constitucional constituir
o quadro obrigatório de referência e, ao mesmo tempo, o critério regulativo da atividade
punitiva do Estado. É nesta aceção que os bens jurídicos protegidos pelo direito penal devem
considerar-se concretizadores dos valores constitucionais expressa ou implicitamente
ligados aos direitos e deveres fundamentais e à ordenação social, política e económica. É por
esta via que os bens jurídicos se “transformam” em bens jurídicos dignos de tutela penal ou com
dignidade jurídico-penal, em bens jurídico-penais.

Não constituindo um conceito fechado, o bem jurídico é discutido pela doutrina em questões
relativas à sua concreta verificação, como a de saber se protegem autênticos bens jurídicos
incriminações como a interrupção voluntária da gravidez ou a plantação para consumo de drogas.
Consequências desta orientação:
× Puras violações morais não conformam como tais a lesão de um autêntico bem jurídico e
não podem, por isso, integrar o conceito material de crime. O Professor Figueiredo Dias
dá o exemplo do art.169º/1, onde o legislador criminalizou puras situações tidas como
imorais, considerando o preceito materialmente inconstitucional, pois o bem jurídico
‘’liberdade e autodeterminação sexual’’ da prostituta não está em causa.
× Do mesmo modo não conformam autênticos bens jurídicos proposições (ou imposições
de fins) meramente ideológicos. O Professor Figueiredo Dias defende que situações como
o consumo de drogas ou apologia de uma qualquer doutrina religiosa, política ou cultural
não podem constituir objeto de criminalização.
× Objeto de criminalização não deve ainda constituir, por igual motivo, a violação de
valores de mera ordenação, subordinados a uma certa política estatal e por isso de entono
claramente jurídico – administrativo.

Bens jurídicos e a Constituição

Diz-se que tem de existir entre a ordem constitucional e a ordem legal de bens jurídicos uma
relação de implicação, no sentido em que todo o bem jurídico penalmente relevante tem de
encontrar uma referência, expressa ou implícita, na ordem constitucional dos direitos e
deveres fundamentais.

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


® Onde o legislador constitucional aponte expressamente a necessidade de intervenção
penal para a tutela de bens jurídicos determinados, tem o legislador ordinário de seguir
esta injunção e criminalizar os comportamentos respetivos, sob pena de
inconstitucionalidade por omissão;
® Onde, porém, não existam tais injunções constitucionais expressas, da existência de um
valor jurídico –constitucionalmente reconhecido como integrante de um direito ou de um
dever fundamental, não é legítimo deduzir sem mais a exigência de criminalização dos
comportamentos que o violam, pois não pode ser ultrapassado o inevitável entreposto
constituído pelo critério da necessidade ou da carência da pena, que na maior parte das
vezes, esse critério é aferido pelo legislador ordinário.

× A finalidade de dirimir o crime, bem como os meios empregues têm de estar consagrados
na CRP—respeitando o princípio da legalidade (para existir previsibilidade) e o
princípio da constitucionalidade (dignidade ou relevância especial);
× O catálogo dos direitos fundamentais (art.24º a 79º) dá a finalidade de combate ao
crime—o Estado está vinculado à “realização” destes;
× Art. 18º/2 da CRP disciplina os meios a que se pode recorrer: “A lei só pode restringir
os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição,
devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos” – princípio da proporcionalidade em
sentido amplo, que abrange o princípio da adequação, o princípio da necessidade e o
princípio da proporcionalidade em sentido estrito.

5. A jurisprudência do TC5
O nosso TC tem aderido ao princípio do direito penal do bem jurídico, aos seus fundamentos e à
suas consequências, elevando-o à categoria de princípio jurídico-constitucional material
implícito, por referência ao art. 18º/2 da CRP.
— “o que justifica a inclusão de certas situações no direito penal é a subordinação a uma
lógica de estrita necessidade das restrições de direitos e interesses que decorrem da
aplicação de penas públicas (art. 18º/2 CRP). E é também ainda a censurabilidade
imanente de certas condutas (...). Em suma é, desse logo, a existência de dignidade
punitiva prévia das condutas enquanto expressão de uma elevada gravidade ética e
merecimento de culpa que se exprime no princípio constitucional de necessidade das
penas” (Ac. Do TC 211/95)
— (Ac. 377/2015): o “princípio da necessidade de pena” está sediado no art. 18º/2 CRP.
A decisão de política legislativa que se traduz na previsão de um novo tipo criminal só
será conforme ao previsto no art. 18º/2 da CRP se o bem jurídico por esse novo tipo
protegido se mostrar digno de tutela penal; a mesma decisão de política legislativa só
passará o crivo da legitimação constitucional se o bem jurídico protegido pelo novo
tipo incriminador se relar carente de tutela penal;

6. O critério da “necessidade” (“carência”) de tutela penal

5
ver acórdãos das aulas práticas

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


O conceito material de crime é constituído:
i. Pela noção de bem jurídico dotado de dignidade penal;
ii. Por um critério de necessidade (carência) de tutela penal (art. 18º/2 CRP)

A violação de um bem jurídico-penal não basta por si para desencadear a


intervenção—esta tem de ser indispensável à livre realização da personalidade de cada
um na comunidade—o direito penal constitui a última ratio da política social e a sua
intervenção é de natureza subsidiária;

Só vale a pena, só tem sentido tornar certos atos crime quando não forem
suficientes um outro tipo de medidas que podem ser, por exemplo, medidas civis,
administrativas, de política social... A intervenção penal está limitada pelo princípio da
proporcionalidade em sentido amplo: o DP só pode intervir nos casos em que todos os
outros meios da política jurídica não penal, se revelem insuficientes ou inadequados, sob
pena de violação dos princípios da subsidiariedade e da proibição de excesso.

Há então uma tutela subsidiária (de ultima ratio) de bens jurídico penais

7. O princípio da não intervenção moderada


A restrição da função do DP à tutela de bens jurídico-penais e o caráter subsidiário desta tutela
em sintonia com o princípio da necessidade conduzem à justificação de uma proposição político-
criminal fundamental: o Estado e o seu aparelho de controlo de crime devem intervir o menos
possível e só na precisa medida requerida pelo asseguramento das condições essenciais de
funcionamento da sociedade
® Princípio da intervenção mínima: o Direito Penal só deverá funcionar, intervir,
criminalizar e punir crimes quando isso seja absolutamente essencial à sobrevivência da
comunidade.

8. O conceito material de crime no pensamento jurídico e o impacto nas ciências


sociais (MFP)
O pensamento jurídico tem procurado definir materialmente o crime, diferentemente da
Criminologia, que aceita uma definição genérica de crime que abrange a violação de regras
morais6.

A divergência teórica do CMC que mais se repercute é em relação ao objeto da infração


criminal7:
i. Objeto da infração criminal como violação de certos direitos subjetivos
(FEUERBACH) – trata-se da estrutura liberal-contratualista, que justifica a
intervenção penal onde os direitos humanos básicos que o contrato social visa assegurar
foram violados.
§ Dissolve a infração criminal na proteção da liberdade individual.

6
como é explícito em Becker que acentua que nada define o crime como uma categoria
específica de comportamentos antes de alguém ser estigmatizado num processo de
interação social como delinquente.
7
A diferença entre as teorias está relacionada com o elemento a que se refere a
legitimação do Direito Penal

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


ii. Objeto da infração criminal como violação de determinados bens jurídicos
(BIRNBAUM) – a referência legitimadora do Direito penal é uma estrutura estatal, não
liberal, a comunidade e os seus valores.
§ Define a infração criminal pela lesão objetiva de valores da comunidade.
§ Segundo Birnbaum, o Direito vincula-se a elementos objetivos, mas
simultaneamente pré-positivos ou de direito natural. Apesar de acentuar a
objetividade, Birnbaum não deixa de procurar uma fundamentação da proteção
jurídica que merecem certos bens nos fins do Estado.

Quanto à definição de bem jurídico:


® BINDING – reduz o bem jurídico aos valores ou condições de vida da comunidade jurídica,
tal como são definidos pelo legislador, numa perspetiva de puro positivismo legalista.
® VON LISZT – o bem jurídico é um interesse humano vital, expressão das condições básicas
da vida em comunidade—é um conceito legitimador do Direito penal (e do Direito em
geral), descomprometido com a norma legal. Para este, o conceito de bem jurídico tem
ainda, no entanto, um conteúdo individualista liberal.
® À perspetiva de Von Liszt vai contrapor-se outra, baseada também numa delimitação
objetivista do fundamento da infração criminal, considera que os valores da personalidade
e do indivíduo estão necessariamente ao serviço dos valores coletivos. Os bens jurídicos
são protegidos pelo interesse que representam para a comunidade, sendo que os bens
individuais adquirem valor em função do coletivo e não o inverso.

MFP acredita que só num plano jurídico-político é que é possível chegar a uma decisão sobre
que natureza o bem jurídico deve assumir, sendo que realça que existe a preocupação de apoiar
numa perspetiva não meramente de preferência normativa, mas científica, o conceito de bem
jurídico, procurando-se geralmente situar na estrutura social os critérios que tornam
necessária a incriminação de determinadas condutas e a proteção de certos bens
® Por isso, o conceito de bem jurídico, enquanto elemento natural, pré-jurídico, de
validade absoluta, tende a ser absorvido pelos fins concretos que cada sociedade deverá
realizar, sendo os sistemas sociais auto-referentes, construindo a sua legitimidade;

Impacto do funcionalismo sistémico na definição de crime


O funcionalismo no pensamento penal partiu das conceções de LUHMANN sobre a análise das
sociedades humanas como sistemas sociais.

A teoria dos sistemas diz que a sociedade não é um fenómeno pura e simplesmente político: a
sociedade é antes um sistema social, isto é, a sociedade desempenha determinadas funções, cuja
análise permite caracterizá-la como um sistema.
® Essas funções consistem na institucionalização da redução de complexidade: o conjunto
das relações sociais organiza-se em diversos níveis autónomos, de acordo com as
respetivas funções, progressivamente diferenciadas, como por exemplo as relações
sexuais, as familiares, as ligadas à escola e à política. Todos esses níveis (subsistemas) se
interrelacionam, gerando uma grande complexidade nas relações sociais.
® A sociedade seria a última função social concebível, da qual resultaria que a enorme
complexidade da interrelação dos agentes sociais – proveniente de as condutas humanas

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


se processarem em diversos níveis – fosse reduzida, assegurando-se assim a própria
interação social.

Nas sociedades modernas, as formas de interajuda dos seus membros para a satisfação das
respetivas necessidades são substituídas pelo crédito financeiro, assegurado juridicamente,
através do qual novas espécies de combinações com riscos e vantagens mais elevados são
possíveis.
® A função de auxílio social desvincula-se da interajuda familiar ou da vizinhança, passando
a existir um sistema diferenciado para cumprir essa função, sendo que com esta
diferenciação de funções, tornam-se mais complexas as relações sociais e mais difícil a
previsão pelos agentes dos comportamentos dos outros agentes. É então necessário reduzir
esta complexidade, institucionalizando condutas que podem ser geralmente aceites e
assegurando juridicamente a sua prática, garantindo-se a interação social.
® O Direito é a estrutura da sociedade que regula e assegura a institucionalização de relações
de sentido constantes entre ações—assim, a partir de uma nova conceção de sociedade,
chega-se a uma nova definição de Direito – o Direito não é um “dever moral” ou um
“imperativo político”, mas apenas a institucionalização de expectativas de ação.
® Em face disto, toda a conduta desviada em relação à norma surge como uma frustração das
expectativas de comportamento asseguradas juridicamente.
Esta conceção da função do Direito conduz à função simbólica da pena e do Direito Penal de
JAKOBS: o ponto de vista de que o DP visa proteger bens jurídicos é substituída—a função do
DP é manter padrões de ação que organizam as expectativas sociais sobre o comportamento
alheio, ou seja, o DP não protege bens jurídicos, mas sim a vigência da norma.
® A aplicação da pena é vista como a oportunidade de controlar a interação social. Assim, o
funcionalismo, a versão de JAKOBS, destrói a legitimação do Direito penal num conceito
material de crime, porque refere os bens jurídicos aos fins definidos pelo sistema e porque
atribui ao Direito penal uma função ideal ou simbólica de controlo social.

MFP: a visão funcionalista não anula absolutamente a função crítica interna ao sistema do
conceito material de crime, pela referência de toda a legitimidade da proteção jurídico-penal aos
fins sociais—e dado que a definição destes fins surge apenas como efeito objetivo da ação dos
indivíduos, o funcionalismo não exclui a discussão sobre o objeto da infração criminal, apenas
reduz a fundamentação da validade a uma adequação das decisões legislativas a uma ideia de
funcionalidade sistémica.

Visões opostas à perspetiva funcionalista sistémica


Quanto à preocupação fundamental da legitimação das normas incriminadoras, surgem outras
visões que a partir da teoria da sociedade criticam a perspetiva funcionalista sistémica, bem como
as que criticam o sistema de justiça criminal, propugnando a substituição do crime como objeto
científico primordial, por outras categorias como o processo de definição e seleção social de
criminalidade:
® O ponto de partida é a ideia de que a ação social é necessariamente uma ação comunicativa.
Além disso, as razões e opções normativas, embora histórica e culturalmente produzidas,
não deixam de, em si, conter uma abordagem crítica destes padrões de racionalidade—a
compreensão da natureza da ação social como ação comunicativa permite sustentar critérios
sobre as melhores opções normativas;
® Outro aspecto é o reconhecimento crítico de uma distorção desta racionalidade;

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


Nesta linha, os limites do DP, nomeadamente da criminalização, podem estar referidos a desvios
da ação e da racionalidade comunicativa. HASSEMER defende que a necessidade social de
proteger penalmente certos bens jurídicos pode ser analisada criticamente em função da
demonstração empírica sobre o significado e efeitos da criminalização. Existiria também uma
suscetibilidade de encontrar valores imanentes à racionalidade comunicativa construtiva da
sociedade que mereceriam ser especialmente protegidos pelo DP. Por fim, a ideia de que as
decisões de criminalizar e os critérios de responsabilização são questionáveis na sua validade
torna verificável a ultrapassem dos limites de legitimidade do conceito material de crime.

ESQUEMA DE RESOLUÇÃO DOS CASOS SOBRE CONCEITO MATERIAL DE


CRIME

® ASSISTENTE RICARDO SILVA:


1. Identificar o bem jurídico tutelado pela norma criminal
2. Aferir se a conduta proibida ofende o bem jurídico identificado
3. Aferir se a incriminação é adequada para “realizar” o direito fundamental em questão
4. Aferir se a incriminação é necessária para “realizar” o direito fundamental em questão
5. Aferir se há proporcionalidade no recurso à incriminação

® ASSISTENTE MAFALDA MELIM:

1. REFERÊNCIA AO CMC
Podemos dizer que o CMC resulta da função atribuída ao direito penal de tutela subsidiária de
bens jurídicos dotados de dignidade penal.

2. DEFINIÇÃO DE BEM JURÍDICO


Expressão de um interesse, da pessoa ou comunidade, socialmente relevante e por isso
juridicamente reconhecido como valioso.

É necessário recorrer-se a três degraus da proteção de bens jurídicos:


1) Atender ao que deve ser protegido (há bem jurídico?)
2) A quem deve proteger-se (o bem jurídico dessa pessoa está a ser posto em perigo?)
3) Contra o que deve ser protegido (havendo bem jurídico, contra quem estamos a
proteger?)
Apenas após esta análise se pode concluir quanto à capacidade de uma conduta incriminadora pôr
em causa o livre desenvolvimento do indivíduo ou as condições necessárias a esse
desenvolvimento.

3. TUTELA DO BEM JURÍDICO

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


Temos de averiguar se há alguma norma que tutele o bem jurídico, para além do direito penal,
visto que o direito penal tem apenas um caráter subsidiário. Não havendo norma subsidiária,
temos de recorrer ao direito penal. Havendo norma penal que tutele o bem jurídico, aplicamos
o direito penal – art.18º/2 CRP.
Falar da dignidade penal e da necessidade de pena.
Estamos a utilizar o CMC a priori ou a posteriori? Ou seja, se estamos a utilizar o CMC antes de
existir uma norma incriminadora ou após.

4. CONFORMIDADE CONSTITUCIONAL
Averiguar se a norma penal está constitucionalmente conforme – só a AR pode aprovar a
norma incriminadora, ou o Governo mediante autorização legislativa, sob pena de
inconstitucionalidade orgânica – art.165º/1/c).
Indicar os bens jurídicos que estão em causa na norma.

5. ARGUMENTOS
A concretização do bem jurídico deve atender a certas diretrizes, isto é, com base nos argumentos
apresentados pelo Tribunal e Ministério Público ao longo dos acórdãos podemos ver que há uma
linha de raciocínio que se repete, que tem por base o seguinte:
1. Leis penais arbitrárias, fundadas em fins ideológicos ou contrárias a direitos
fundamentais, não protegem quaisquer bens jurídicos;
2. Comportamentos imorais ou reprováveis não fundamentam, por si só a lesão de um bem
jurídico;
3. Proteção de sentimentos apenas pode corresponder à proteção de um bem jurídico quando
pressuponha uma ameaça real;
4. Autolesão consciente e responsável bem como o auxílio que lhe seja prestado, não põe
em causa qualquer bem jurídico de outrem;
5. Penas simbólicas não desempenham a função de proteção de bens jurídicos;
6. Crenças e tabus não são bens jurídicos;
7. Objetos de tutela abstratos que sejam de difícil apreensão não poder ser tidos como bens
jurídicos – devem ser construídos;
8. Bem jurídico coletivo não pode ser objeto de tutela de determinada norma incriminadora,
sempre que tal implique simultaneamente a lesão de um bem jurídico individual.

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


Fins das penas

O problema dos fins das penas é uma questão histórica que no fundo está na base de toda a teoria
penal que se discute e nas questões fulcrais da legitimação e fundamentação da intervenção do
Estado no direito penal. Ao longo do tempo, podemos identificar duas teorias relativas ao
problema do fim das penas:
® Teorias absolutas (ligadas às doutrinas de retribuição e expiação)
® Teorias relativas (ligadas às doutrinas de prevenção geral, especial e individual)

Breve evolução histórica:


à Na Antiga Grécia, os filósofos e pensadores políticos também se questionaram acerca
do fim com que se pune alguém que cometeu uma infração criminal. E enquanto uns
atribuíram à pena uma função ou finalidade preventiva – ou seja, a pena tinha por
finalidade prevenir a prática de atos criminosos, olhando para o futuro – outros imputaram
à pena uma finalidade retributiva – ou seja, a pena tinha por finalidade retribuir o mal
do crime com o mal da pena, olhava ao passado, era expiatório.
à Passada a Alta Idade Média, verifica-se que a pena assumiu a finalidade acentuadamente
retributiva, demonstrada através da figura da ‘’composição corporal’’ – A provocou a B
um corte de 5cm então B vai sofrer um corte de 5cm também.
à Na Baixa Idade Média e na Idade Moderna a tónica do fim das penas intensificou-se,
o que provocou grandes humilhações públicas ao condenado.
à Após a queda do absolutismo e a sua substituição pelo Estado de Direito Liberal, a
perspetiva sobre os fins das penas foi alterada – a fundamentação e legitimação do direito
penal passa a radicar na necessidade social de garantir os direitos individuais e a vida em
sociedade e a pena passa a ser vista como um mal, cuja finalidade é a prevenção geral de
intimidação ou dissuasão da prática do crime, mas devendo estar a sua aplicação
subordinada aos princípios da legalidade e da proporcionalidade.

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


Teorias Absolutas
Para este grupo de teorias a essência da pena criminal reside na retribuição, expiação, reparação
ou compensação do mal do crime e nesta essência se esgota. Trata-se da justa paga do mal que
com o crime se realizou, ou seja, a correspondência entre a pena e o facto.
® Kant – defende uma teoria ético-retributiva da pena, ou seja, a pena tinha por
finalidade a retribuição ética do crime praticado e, portanto, a gravidade da pena devia
corresponder por imperativo categórico, à gravidade do facto ilícito praticado e à
gravidade da culpa do respetivo agente.
® Hegel – defende uma retribuição jurídica da pena, concebendo ao direito penal uma
ordenação perfeita da vida em sociedade, como se o crime fosse uma negação da ordem
de liberdade e, por isso, atribuiu à pena a função de negação dessa negação (que é o
crime). Assim, a pena visava repor a vigência da norma jurídica violada, ou seja, a
reafirmação da intangibilidade do Direito.
Esta teoria reflete-se hoje no princípio da culpa, uma máxima do direito penal – ‘’ não pode haver
pena sem culpa e a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa’’.
Nem sempre se exige a correspetividade entre pena e culpa – toda a pena supõe a culpa, mas nem
toda a culpa supõe a pena, mas só aquela culpa que simultaneamente acarrete a necessidade ou
carência de pena. Um exemplo disto é a dispensa da pena no direito penal português. Isto significa
que a culpa é pressuposto e limite, mas não fundamento da pena.
Críticas às teorias absolutas:
® Não pode ser considerada uma teoria dos fins da pena, já que ela considera a pena como
Figueiredo Dias

uma entidade independente de fins;


® Deve ser recusada pela sua inadequação à legitimação, à fundamentação e ao sentido da
intervenção penal – esta teoria justificaria que o Estado restringisse direitos, liberdades e
garantias indispensáveis, sendo a compensação do mal do crime um meio inidóneo e
ilegítimo;
® É uma doutrina social-negativa, na medida em que é um entrave a qualquer tentativa de
socialização do delinquente e da restauração da paz jurídica da comunidade afetada pelo
crime. É inimiga, portanto, de qualquer atuação preventiva.

® A teoria retributiva deriva da indemonstrabilidade dos seus pressupostos, já que parte de


Maria Fernanda

uma ideia de responsabilidade individual, difícil de comprovar;


® A retribuição tem como pressuposto a culpa ética, surgindo como sua consequência
necessária – o problema coloca-se porque a intervenção do Estado investido do seu poder
punitivo não pode sancionar automaticamente a culpa. Além disso, a pena só é aplicada
Palma

quando necessária para a preservação da sociedade (princípio da necessidade de pena do


art.18º da CRP), pelo que a pena não pode operar automaticamente sempre que haja culpa.

Teorias relativas
Entendem que os fins das penas já não se dirigem para o passado, mas sim, para os efeitos que
estas vão ter no futuro. São sempre teses preventivas, na medida em que querem prevenir algo,
tendo por base uma finalidade construtiva da sociedade. A diferença irá residir naquilo que
querem prevenir – doutrinas da prevenção.
¿ Aquilo que as teses da prevenção têm em comum é o objetivo de atuar psiquicamente
sobre a generalidade dos membros da sociedade, afastando-os da prática dos crimes

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


através da ameaça penal estatuída por lei, da realidade da sua aplicação e da
efetividade da sua execução.

A prevenção geral justifica a pena Considera que o fim das penas é


pela intimidação dos cidadãos na a intervenção sobre o cidadão
sua generalidade relativamente à delinquente, através da coação
violação da lei penal. Ou seja, a pena psicológica, inibindo-o da
seria um instrumento político- prática de crimes ou eliminando
criminal, destinado a afastar os nele a disposição para delinquir.
Prevenção cidadãos da prática de crimes Prevenção Neste sentido, deve falar-se de
geral através da ameaça penal estatuída especial uma finalidade de prevenção da
pela lei, da realidade da sua reincidência (FIGUEIREDO
aplicação e da efetividade da sua DIAS).
execução. Segundo o autor
FEUERBACH, a pena serviria para
impedir (psicologicamente) quem
tivesse tendências contrárias ao
Direito de se determinar por elas.
A pena é concebida como forma A prevenção especial só poderá
estatalmente acolhida de dirigir-se à intimidação
Prevenção intimidação das outras pessoas Prevenção individual do delinquente, uma
geral negativa através do sofrimento que com ela se especial vez que a sua “correção” é uma
(intimidação) inflige ao delinquente e cujo receio negativa utopia. O que se pretende é a
as conduzirá a não cometerem factos neutralização do agente infrator.
puníveis.
A pena é concebida como forma de Pretende dar à prevenção
que o Estado se sirva para manter e individual a finalidade de
Prevenção reforçar a confiança da comunidade Prevenção alcançar a reforma interior
geral positiva na validade e na força de vigência especial (moral) do delinquente ou de
(integração) das suas normas de tutela de bens positiva ou tratamento das tendências
jurídicos e, assim, no ordenamento socialização individuais que conduzem ao
jurídico-penal. Trata-se, em suma, crime, exatamente no mesmo
da resolução do conflito social plano em que se trata um doente.
suscitado pelo crime, integrando
verdadeiramente o delinquente.

Críticas à prevenção geral:


® Professor Figueiredo Dias:
® Invoca que o ponto de partida da prevenção geral é admissível, já que ao contrário
do que sucede nas teorias de retribuição, esta liga-se direta e imediatamente à
função do direito penal de tutela subsidiária de bens jurídicos. Não obstante, há
um grande argumento contra a prevenção geral – o argumento de que elas fazem
da pena um instrumento que viola, de forma inadmissível, a eminente dignidade
da pessoa humana à qual se aplica, quando esta tem por vista o seu cariz negativa
de intimidação. Isto porque para além de não ser possível determinar
empiricamente o quantum de pena necessário para alcançar tal efeito, pode

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cair no efeito de penas mais severas e desumanas, fazendo o direito penal
descambar.
® Quando ao cariz positiva da prevenção geral, o Professor Figueiredo Dias já
não considera essas argumentos supra válidos, visto que a prevenção de
integração tem por vista a tutela de confiança geral na validade e vigência das
normas do ordenamento jurídico, ligada à proteção dos bens jurídicos e visando
a restauração da paz jurídica. Este critério, para o Professor, permite que se
encontre uma pena justa e adequada à culpa.
® Professora Maria Fernanda Palma
® Invoca que o interesse público não pode justificar que se inflija ao agente
qualquer pena – seria até contra a dignidade da pessoa (art.1º CRP); além disso,
este pensamento não consegue justificar a pena como consequência do crime.
Críticas à prevenção especial:
® Professor Figueiredo Dias
® Considera as teorias de prevenção especial tanto prezáveis como indispensáveis,
já que estabelecem uma tutela subsidiária de bens jurídicos, no sentido em que a
pena visa atuar sobre o delinquente no sentido de prevenção da reincidência,
devendo o Estado ser um auxílio fornecendo os meios necessários à sua
reinserção social.
® O Professor reconhece que há, contudo, dificuldades a ultrapassar: não é
possível aceitar nos dias de hoje uma prevenção especial na aceção de correção
ou emenda moral do delinquente, e nem tão pouco o paradigma clínico, sempre
que esteja em causa um tratamento coativo das inclinações e tendências do
delinquente para o crime, já que se assim fosse, o Estado estaria a violar a
liberdade de autodeterminação da pessoa do delinquente, e
consequentemente os princípios constitucionais da preservação da dignidade
pessoal.
® Pode haver vezes em que a socialização seja desnecessária.
® Professora Maria Fernanda Palma
® Considera que a prevenção especial pode conduzir a consequências difíceis de
aceitar – crimes muito graves podiam ficar impunes se não existisse perigo de
reincidência e crimes menos graves poderiam justificar a prisão perpétua ou a
morte;
® A investigação empírica não permite apoiar em dados absolutamente seguros a
prognose sobre a delinquência futura;
® A prevenção especial menospreza o princípio da necessidade de pena (art.18º/2
CRP).

Teorias mistas
As teorias mistas tendem a combinar a ideia retributiva e as ideias preventivas. Algumas, acolhem
mesmo a ideia de retribuição, dizendo que o fim das penas está na pena retributiva atribuída
consoante os pontos de vista da prevenção geral e especial, ou então, a ideia de uma pena
preventiva através da justa retribuição. Ou seja, aqui temos presente uma ideia de retribuição de
culpa como um instrumento subsidiário da intimidação da generalidade e na medida do possível,
de ressocialização do agente. Já outras, designadas como teorias diacrónicas (defendida por
Roxin), acolhem o entendimento de que no momento da ameaça abstrata da pena estaríamos

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perante um instrumento de prevenção geral, ao passo que no momento da sua aplicação ela
manifestar-se-ia retributiva, e por fim, na sua execução efetiva, o fim seria de prevenção especial.

Críticas:
Professor Figueiredo Dias:
® Critica estas teorias mistas ou unificadoras, na medida em que recorda que a retribuição
ou compensação da culpa não é nem pode constituir uma finalidade da pena;
® As doutrinas absolutas e relativas são irremediavelmente diversas e provêm de conceções
básicas diferentes, pelo que não é possível conciliá-las;
® Quanto às teorias diacrónicas, a pena é uma instituição unitária, deve ser perspetivada da
mesma forma nos vários momentos;
® A unificação das finalidades da pena apenas pode ser feita a nível da prevenção geral e
especial, excluindo qualquer ressonância retributiva, mas ainda assim, teorias de
prevenção integral devem ser rejeitadas, já que permitiria manipular a ideia de culpa e
a intervenção penal perderia o seu pressuposto.

I. Finalidades e limites das penas criminais (Figueiredo Dias)


1. A natureza exclusivamente preventiva das finalidades da pena
O professor Figueiredo Dias defende que a pena só pode ter caráter preventivo, isto porque o
direito penal e o seu exercício pelo Estado fundamentam-se na necessidade estatal de subtrair à
disponibilidade de cada pessoa o mínimo dos seus direitos, liberdades e garantias indispensáveis
ao funcionamento da sociedade, à preservação dos bens jurídicos essenciais e à realização
mais livre possível da personalidade de cada um enquanto indivíduo e membro da
comunidade.

2. As exigências da prevenção geral positiva ou de integração


A finalidade visada pela pena é primordialmente a tutela dos bens jurídico-penais no caso
concreto, isto com um significado prospetivo, traduzido pela necessidade de tutela da confiança
e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada.
® Jakobs: a finalidade primária da pena reside na estabilização das expectativas
comunitárias na validade da norma violada—esta função estabilizadora seria diferente da
função de proteção de bens jurídicos;

Há uma medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena
se deve propor alcançar, sendo que esta não pode ser excedida (princípio da necessidade). Existe
também um limiar mínimo—defesa do ordenamento jurídico— abaixo do qual já não é
comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a sua função de tutelar bens
jurídicos. É a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de prevenção dentro de
cujos limites devem atuar considerações de prevenção especial, e não a culpa.
® Assim, para Figueiredo Dias há um primeiro momento: o de prevenção geral positiva
ou de integração, cujo fundamento é a tutela necessária nos bens jurídico penais no caso
concreto (garantia do princípio da necessidade da pena- art. 18º/2 CRP) e um segundo
momento de prevenção especial positiva/de socialização;

3. As exigências da prevenção social, nomeadamente da prevenção especial positiva/de


socialização

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Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração devem atuar pontos
de vista de prevenção especial, que vão determinar, em última instância, a medida da pena:
releva neste contexto qualquer uma das funções que o pensamento de prevenção especial realiza,
seja a função positiva de socialização, seja uma das funções negativas subordinadas de
advertência individual ou de segurança. A medida da necessidade de socialização do agente é
o critério decisivo das exigências de prevenção especial, só entrando em jogo se o agente se
revelar carente de socialização.

4. A culpa como pressuposto e limite da pena


A função da culpa no sistema punitivo reside numa incondicional proibição de excesso—a culpa
não é fundamento da pena, mas constitui o seu pressuposto necessário e o seu limite
inultrapassável.
® A função da culpa é a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as
exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento
da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático.
® Roxin: as razões de diminuição da culpa são, em princípio, comunitariamente
compreensíveis e aceitáveis e determinam que as exigências de tutela dos bens jurídicos
e de estabilização das normas sejam menores;
A legitimação da pena repousa substancialmente num duplo fundamento: o da prevenção e o
da culpa. A pena só seria legítima quando é necessária de um ponto de vista preventivo e é justa.
Toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida
da culpa é uma pena justa.
Conclusão
1. Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial;
2. A pena concreta é limitada pela medida da culpa;
3. Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção
geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela de bens
jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do
ordenamento jurídico;
4. A medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra
positiva ou de socialização, excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança
individuais;

II. Fundamento, sentido e finalidades da medida de segurança criminal


Vários níveis em que se sente a indispensabilidade das medidas de segurança:
® Tratamento jurídico a dispensar aos agentes inimputáveis: quem comete um facto ilícito-
típico mas é inimputável não pode ser sancionado com uma pena; todavia, se o facto
praticado e a personalidade do agente revelarem a existência de uma grave perigosidade
o sistema sancionatório criminal não pode deixar de intervir.
® Há a ideia de complementar a aplicação da pena, limitada pela culpa, com a
aplicação de uma medida de segurança dirigida à especial perigosidade do agente,
isto caso os princípios que presidem à culpa e ao limite máximo da medida de pena se
revelem insuficientes;

1. O problema das finalidades


a) Finalidade prevalente: a prevenção especial em função de um facto ilícito-típico

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As medidas de segurança são orientadas por uma finalidade de prevenção especial ou individual
da repetição da prática de factos ilícitos-típicos, sendo que visam obstar, no interesse da
segurança da vida comunitária, à prática de factos ilícitos-típicos futuros através de uma
atuação especial-preventiva sobre o agente perigoso.
® Dupla função: função de segurança e função de socialização;

A primazia concedida à função socializadora sobre a de segurança não deve induzir a pensar que
é aquela função como tal que justifica, por si mesma, a aplicação de uma medida—o que justifica
é a necessidade de prevenção da prática futura de factos ilícitos-típicos. É indispensável a
verificação da perigosidade do agente, mas não é suficiente: a tentativa de operar uma socialização
encontra-se ainda na dependência da prática, pelo agente, de um facto qualificado pela lei
como ilícito-típico.
® Figueiredo Dias: o fundamento da aplicação de qualquer medida de segurança criminal
não é em exclusivo a perigosidade do agente, mas sim, em nome da função de
prevenção especial de índole criminal da medida de segurança, aquela perigosidade
apenas se e quando revelada através da prática pelo agente de um facto ilícito-típico;
® Também o facto do inimputável para efeito de comprovação da inimputabilidade e para
indagação da perigosidade do agente e de eventual aplicação de uma medida de segurança
é eventualmente acrescido dos supostos adicionais de punibilidade que ao facto se
refiram: facto ilícito-típico + perigosidade—dois fundamento autónomos da medida
de segurança criminal8.

b) Finalidade secundária: a prevenção geral


A exigência da prática pelo agente de um facto ilícito-típico como pressuposto da aplicação de
uma medida de segurança suscita uma questão importante: o papel que a finalidade de
prevenção gera.
® A resposta largamente dominante é a de que uma tal finalidade não possui qualquer
autonomia no âmbito da medida de segurança: ela só pode ser conseguida de uma forma
reflexa e dependente, na medida em que a privação ou restrição de direitos em que a
aplicação e execução da medida de segurança se traduz possa servir para afastar a
generalidade das pessoas da prática de factos ilícito-típicos.
® Figueiredo Dias: parece incontestável que, relativamente a certas medidas de segurança,
o legislador terá tido de forma autónoma em vista, ao criá-las, também o seu efeito de
prevenção geral, mesmo sob forma da prevenção geral negativa.

Se a aplicação da medida de segurança se liga não apenas à perigosidade, mas sempre também
à prática de um facto ilícito-típico, então isso só pode acontecer porque ele participa ainda da
função de proteção de bens jurídicos e de consequente tutela das expetativas comunitárias. O
pressuposto da aplicação de uma medida de segurança não deve ser a prática de um qualquer
facto ilícito-típico, mas só de um facto ilícito- típico grave.
® Também no âmbito das medidas de segurança a finalidade de prevenção geral positiva
cumpre a sua função e, na verdade, uma função autónoma, se bem que no momento da
aplicação se exija incondicionalmente a sua associação à perigosidade.

8
FIGUEIREDO DIAS: a alternativa seria considerar, em definitivo, que o direito
penal não deve continuar a intervir na contenção social da perigosidade dos
inimputáveis

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III. O problema da legitimação
A diferença essencial entre pena e medida de segurança deriva de a aplicação da primeira supor
sempre a culpa e da segunda a perigosidade, sendo que isto vem a ganhar reflexo primordial na
questão da legitimação da medida de segurança.
® Esta legitimação decorre da sua finalidade global de defesa social: prevenção de ilícitos-
típicos futuros pelo agente perigoso que cometeu um ilícito-típico grave;
® Existem exigências jurídico constitucionais de que a aplicação de medidas de segurança
seja monopólio do poder judicial (art. 205º/1 CRP) e de que a sua aplicação fique na
dependência dos princípios da necessidade, subsidiariedade e da proporcionalidade
(art. 18º/2 CRP)—assim, a medida de segurança só pode ser aplicada para a defesa
de um interesse comunitário preponderante e que não se revele desproporcional à
gravidade do ilícito-típico e à perigosidade do agente;

Assim, o professor Figueiredo Dias considera que o princípio da defesa social assume a sua
função legitimadora quando conjugado com o princípio da ponderação de bens
conflituantes—a liberdade da pessoa só pode ser limitada “quando o seu uso conduza, com alta
probabilidade, a prejuízo de outras pessoas que, na sua globalidade, pesa mais do que as
limitações que o causador do perigo deve sofrer com a medida de segurança” (ROXIN).

IV. Fins das penas e princípios constitucionais do Direito Penal (MFP)


Segundo a regente o problema do fundamento da legitimidade das penas estatais deve ser
recolocado em face da legitimidade do poder punitivo do Estado e não como uma mera
escolha de modelos ideologicamente suportamentos ou puros modelos normativos assentes em
construções gerais sobre os fins dos seres humanos.

Tanto a retribuição como a prevenção articulam-se com os princípios constitucionais: da culpa,


que deriva essencialmente da dignidade da pessoa humana (art. 1º da CRP), e o da necessidade
da pena (art. 18º/2 CRP):
® A retribuição ancora-se na necessidade social em dois planos: i) nível do controlo das
emoções geradas pelo crime (pacificação social); ii) ao nível da proteção perante o
delinquente – a pena retributiva só é legítima se for necessária preventivamente;
® Quer a prevenção geral, quer a prevenção especial apenas se legitimam através da pena
da culpa, que funciona como fundamento e limite

Assim, há um primeiro momento – princípio da culpa – onde a moldura concreta da pena é


definida em função da culpa, sendo que em caso desta estipular uma desnecessidade de punição,
as razões de prevenção não justificam a aplicação da pena. E um segundo momento – medida
concreta da culpa, que é definida em função das necessidades de prevenção geral e de prevenção
especial.

V. Primeira etapa nas conclusões sobre o sentido, a função e legitimação do


Direito Penal: a discussão sobre o conceito e função do bem jurídico

Maria Fernanda Palma: o conceito de bem jurídico tem vários significados para a delimitação
do conceito material de crime e para a função e legitimação do Direito Penal:

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a) a ideia de bem jurídico tem expressado uma relação do objeto de proteção da norma com
um interesse individual ou com um interesse coletivo assumido pelo Estado de Direito
como condição essencial da incriminação;
b) sugere uma necessidade intersubjetiva que carece de ser protegida;
c) convoca a ideia de lesão e de dano objetivamente representado e não uma função
meramente simbólica de um interesse protegido pelas normas;
d) apela a uma lógica de eficácia direta na proteção e prevenção;
e) questiona normas incriminadoras que apenas preveem violações de deveres de
comportamento sem uma real conexão com eventuais danos;

O modelo argumentativo proposto não se baseia exclusivamente na proteção de bens jurídicos,


entendidos como interesses substanciais concretos, associados a condições existenciais
individuais e coletivas, mas apela a uma relação com o Estado democrático, a uma lógica de
preservação da subjetividade e do reconhecimento dos interesses essenciais dos outros.
® Maria Fernanda Palma: é cada vez mais pertinente utilizar o conceito de bem jurídico
como conceito exploratório de critérios limitadores das normas incriminadoras que
permitirá reconhecer algumas características de que depende a legitimidade das mesmas;

VI. Segunda etapa conclusiva: o papel dos princípios no Direito Penal na


legitimação das normas incriminadoras

1. Princípio da legalidade

Segundo este princípio, os tribunais estão vinculados a não aplicar sanções penais sem lei
anterior que as preveja e a não aplicar as sanções penais previstas sem que se realizem
determinados pressupostos, igualmente descritos na lei: a perpetuação de uma determinada
conduta considerada crime ou, no caso das medidas de segurança, reveladora de perigosidade
criminal – trata-se neste caso da máxima nullum crimen sine lege (art.29/1 e 3CRP e 1oCP). A
solução do caso concreto está totalmente vinculada a um modelo legal.
® Assim, o principio da legalidade não é apenas uma exigência de utilização de padrões
legais para a qualificação de um facto como merecedor de sanção e para a aplicação
de sanção, mas também a exigência de vinculação total do ato de aplicação de uma
sanção, no caso concreto, a uma decisão já tomada previamente, com um certo grau de
concretização, pelo legislador.

A função de controlo da aplicação da lei desempenhada pelo princípio da legalidade pressupõe,


sobretudo, que a aplicação da lei resulte de um processo lógico identificável à descoberta do
sentido da lei (isto é, à delimitação dos valores positivos e negativos que explicam a incriminação
de um determinado comportamento). E, conclusão essencial, é que essa função de controle do
intérprete requer uma certa configuração descritiva, factual e precisa das normas
incriminadoras.
Trata-se, segundo o sentido do artigo 29º/1CRP, da punição de ações ou omissões com
identidade reconhecível pelo intérprete e em geral pelos destinatários da norma incriminadora.

2. Princípio da culpa

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Ao nível da Constituição, ele é deduzido da essencial dignidade da pessoa humana e do direito à
liberdade (art.1º e 27º CRP). No CP, só é expressamente indicado como fator de determinação
da medida da pena (art.40º/2, 71º e 72º).
Atualmente, o principio da culpa costuma assumir um tríplice significado:
i) Como fundamento da pena;
ii) Como fator de determinação da medida da pena;
iii) Como principio da responsabilidade subjetiva.

O principio da culpa não é hoje unanimemente aceite como fundamento da pena: o


argumento principal que se opõe a uma tal função resulta do principio da culpa pressupor uma
ideia de responsabilidade penal alheia aos fins do Estado de Direito Democrático e social, sendo
que não é racional atribuir à culpa, como desvalor ético-social derivado da prática de certo
comportamento, a função de legitimar a realização de fins do Estado, como a proteção de bens
jurídicos ou a efetivação de prestações sociais.

Mas este plano de justificação racional do Direito Penal não esgota toda a questão da sua
legitimação—o Direito Penal é legítimo porque os seus comandos e proibições, assim como
o processo que conduz à sua aplicação, realizam ideias culturais de justiça que enformam
as expetativas dominantes na sociedade: é nesta segunda dimensão que o principio da culpa
encontra o seu lugar como fundamento do Direito Penal, apesar de parecer inadequado a vários
padrões de racionalidade jurídica.
® A afirmação de que o princípio da culpa só pode ser fundamento da pena no pressuposto
da realização de um principio de justiça implica, no entanto, a questão da relação do
principio da culpa com a ideia de justiça.

A resposta parece orientar-se em duas direções: a mera censurabilidade ético-pessoal não torna
a pessoa instrumento da sociedade ou do poder (dignidade da pessoa humana) e só a
censurabilidade ético-pessoal permite a discussão do acusado com o poder.
® A primeira ideia corresponde à máxima kantiana de que cada pessoa tem de ser tomada
como um fim em si mesma. A segunda assenta na conceção da realização da justiça
através de um processo em que a sociedade e o acusado se defrontam como partes de um
conflito.

Segundo este entendimento, o principio da culpa passa a assumir uma função de segurança
jurídica, delimitadora da intervenção penal baseada em fins utilitários do Estado – torna-se um
principio restritivo. No entanto, a relação entre o principio da culpa e a ideia de justiça
ultrapassa o papel restritivo, se considerarmos a perspetiva de que a democracia exige igual
consideração pelos interesses e a subjetividade de cada um.
® O principio da culpa é dominantemente aceite como critério de determinação da medida
da culpa. Essencial para a legitimação das normas incriminadoras é, consequentemente,
que os comportamentos incriminados tenham uma configuração que os torne aptos a que
no processo de atribuição de responsabilidade sejam cumpridas estas funções do
principio da culpa.

3. Princípio da necessidade da pena

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


Este principio traduziu historicamente a ideia de que a utilização pelo Estado de meios penais
deve ser limitada, ou mesmo excecional, só se justificando pela proteção de direitos
fundamentais. Na sua origem ideológica, o principio da necessidade da pena pretendeu ser um
limite substancial do Direito Penal, relacionado com a ideia de contrato social, segundo a qual
só se justificaria a restrição da liberdade quando, de alguma forma, as liberdades estivessem em
causa.
® No entanto, o conteúdo do contrato social alterado com a evolução da realidade e das
ideologias politicas da sociedade democrática, sendo que da ideia primitiva de contrato
social, aquilo que parece restar é a aceitação de que o poder politico se justifica pelo
serviço aos membros da sociedade – a subordinação racional dos abstratos fins políticos
à realização da pessoa em sociedade.

O principio da necessidade da pena não é, por consequência, um argumento de qualquer


pensamento individualista, mas, pelo contrário, assume quase sempre uma perspetiva social do
Direito Penal, estando associado ao pensamento sobre os fins do Estado. No entanto, uma
conceção absolutamente supra-individualista destes fins é alheia a uma Constituição baseada na
igual dignidade da pessoa humana. O alcance do principio da necessidade da pena revela-se
não só na discussão da legitimidade da incriminação mas também em problemas de
determinação da responsabilidade penal.
® Na discussão sobre a legitimidade da incriminação, o apelo ao principio da necessidade
surge na discussão sobre a carência de proteção penal do bem jurídico, sobre a falta de
alternativas à penalização da conduta e sobre a eficácia concreta da incriminação.
® Quanto à intervenção do princípio da necessidade da pena na determinação da
responsabilidade penal, dois aspetos são assinaláveis: a conformação do conteúdo de
certos conceitos valorativos ou critérios dos quais depende a responsabilização penal e
a influência na medida da pena.

4. Princípio da igualdade penal

A igualdade, consagrada no artigo 13º CRP, além de afastar a discriminação entre pessoas, é a
igualdade que subjaz à ideia de proporcionalidade entre a gravidade do ilícito e da pena e é a
igualdade que sustenta a mediação da pena pela culpa.
® Implica que os factos de menor danosidade social sejam sancionados, necessariamente,
com penas mais leves. Da proporcionalidade não se deverá extrair, porém, qualquer
exigência automática de parificação das penas, onde os princípios da culpa ou da
necessidade da pena recomendarem que certo facto seja punido menos gravemente
apesar de a sua danosidade ser idêntica à de outros mais severamente punidos.
® A proporcionalidade é expressão da garantia constitucional de que ninguém pode ser
punido mais severamente do que outrem por um facto menos grave. Já o principio
inverso – o de que ninguém pode ser punido menos severamente do que outrem por
factos idênticos ou mais graves – não se deduz, rigorosamente, da garantia
constitucional da igualdade. A igualdade só se expressa na igualdade de direitos ou na
igualdade de deveres se esta última for necessária à satisfação de direitos alheios. Ora,
não é concebível um direito a que outrem seja mais gravemente punido como expressão
do principio da igualdade.

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A proporcionalidade é, aliás, um principio formal, cujo conteúdo é preenchido pelos outros
princípios constitucionais de Direito Penal, como a culpa e a necessidade da pena:
— idêntica necessidade de punir e idêntica culpa justificarão idênticas penas – ou, pelo menos
o direito a que não se seja mais gravemente punido.
— diferenciação entre as penas dos crimes contra as pessoas e dos crimes contro outros bens
jurídicos é também uma manifestação do principio da proporcionalidade, na medida em
que a máxima danosidade social se articula com a máxima gravidade ética – a lesão dos
bens da pessoa do outro.

Para além das manifestações da igualdade através do principio da proporcionalidade, a


igualdade justifica a seleção de novos bens jurídico-penais, que poderíamos designar como bens
da igualdade.
Assim, no que se refere ao conceito material de crime, o principio da igualdade tem relevância
na delimitação negativa das incriminações e legitima em certos casos o conteúdo de normas
incriminadoras, mas não prevalece sobre o principio da necessidade da pena.

5. Outros princípios: Humanidade do Direito Penal e das Sanções Criminais

A doutrina refere-se ao princípio da humanidade como expressão da ideia de responsabilidade


social pela delinquência e disposição de respeitar e recuperar a pessoa do delinquente, tal
princípio justificaria a rejeição de sanções atentatórias do respeito pela pessoa humana como a
pena de morte, a prisão perpétua, a tortura e as penas cruéis e degradantes (art.24º/2, 25º/2 e
30º/1, 4 e 5 CRP).

Apela-se ao principio da socialidade numa perspetiva de orientação do sistema penal não


contemplada pelos fins tradicionais da politica criminal e que explicará que a lógica impediosa
e vertical do sistema punitivo ceda a soluções que a flexibilizam por causa da noção de uma
supremacia social de certos interesses individuais aos quais outros interesses se deveriam
sacrificar.
® É um tal principio que justificará, por exemplo, causas de exclusão da ilicitude como o
direito de necessidade (art.34ºCP) e uma orientação geral sobre as penas que inclua a
solidariedade social com a vitima (reparadora dos danos do crime) e com o criminoso,
reinserindo-o socialmente.

Os princípios da humanidade e da socialidade condicionam inevitavelmente a legitimação das


normas incriminadoras em termos de proporcionalidade e adequação das penas e, como se
referiu, através de causas excludentes da responsabilidade. Por outro lado, interferem na
legitimação de normas incriminadoras em que estejam em causa padrões mínimos de
consideração pelos outros.

6. Terceira etapa conclusiva: os princípios do Direito Penal e o argumento


criminológico. Novo quadro de fundamentação do Direito Penal

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


O principio da necessidade da pena, na medida em que requer a carência de proteção, remete
criticamente para dados empíricos, que justifiquem novas incriminações ou a re-criminalização
de comportamentos eticamente controversos. O seu significado contrafático é de uma verdadeira
crítica, de base empírica, das opções normativas do legislador.
® Daqui decorre logo a pergunta sobre se terá pertinência que se formule um corolário da
necessidade da pena com referência criminológica. A pergunta pressupõe que, de algum
modo, o conteúdo do principio valorativo da necessidade da pena possa ser determinado
por factos e explicações de uma ciência de base empírica, por um tipo de análise sobre
a relação entre fenómenos que seja diversa da análise jurídica.

No centro do Direito Penal, está uma lógica de justiça que não se reduz à mera eficácia. As
sociedades requerem as suas soluções de justiça como meio de satisfação de exigências
culturais, históricas e existenciais. O recurso a linhas de validação extra-sistemáticas, a
referência a mundos lógicos e científicos que incidem sobre o mesmo objeto numa outra
dimensão, permitem colocar o problema da justiça da incriminação numa perspetiva mais
profunda, evitando-se a construção de um intra-mundo jurídico que seja completamente
incompatível e não dialogante com o das outras ciências.
® Poder-se-ia, nesta linha de análise, falar da construção de um modo de fundamentar a
legitimidade das opções criminalizadoras a partir de uma análise mais vasta da
realidade social do crime - uma argumentação com recurso à criminologia, como
conhecimento do crime na sua modelação socio-psicológica e bio-psicológica (modelo
criminológico)

Duas perspetivas podem ser consideradas na utilização do argumento criminológico:


i. A confirmação empírica de conceções valorativas sobre a necessidade da pena e a
adequação da politica criminal do Estado (argumento criminológico dependente ou
enfraquecido);
ii. A interferência efetiva das ciências empíricas do crime e do comportamento humano na
compreensão e configuração jurídica do crime (argumento criminológico em sentido
restrito)

Quanto a este último:


¿ Considerando a labeling approach, ou, em geral, as abordagens da Criminologia, que se
inserem na Escola de Chicago, em que o ponto de partida é a definição interacionista da
realidade, o argumento criminológico poderá levar a concluir que certas configurações
legais das condutas criminosas podem ser criminógena ou introduzirem distorções no
sistema abstrato e geral de valores adequado a uma interpretação social de certas
pessoas ou grupos de pessoas.
¿ A argumentação criminológica pode interpelar o sistema penal, na medida em que permite
avaliar a construção da realidade em que se baseia o sistema penal e clarificar as opções
normativas inerentes, sendo que suscita a questão prévia do conhecimento crítico da
explicação do crime com que o sistema penal elabora os seus critérios.

Em conclusão:
— Se tomarmos em conta o argumento criminológico, estabelecendo a relação entre a
informação sobre o crime e os fundamentos de legitimidade do Direito Penal, teremos
dado um passo para a densificação da fórmula do principio da necessidade da pena e

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para um novo recurso de argumentação a partir de análises cientificas menos
subjetivistas da teoria da sociedade e das teorias criminológicas.
— A argumentação criminológica inserida no discurso jurídico consistiria na procura dos
modos de realização empírica ilustradores dos valores penais, na procura da
explicação criminológica da realidade que o Direito utiliza como referência e na
adequação entre o plano lógico-valorativo e os processos de geração ou definição
social do crime.

7. Quarta etapa conclusiva: fundamentos da punição no sistema penal


português. Interpretação do art. 40º do Código Penal

Maria Fernanda Palma: a norma mais exemplar da organização do sistema é o artigo 40ºCP
que estabelece as finalidade da punição. Tal preceito prosseguia o desígnio de estabelecer que o
fundamento da punição seria a prevenção geral na dimensão da proteção de bens jurídicos
(coadjuvada pela prevenção especial) e que a culpa-retribuição apenas conteria uma função
restritiva, como resulta do artigo 40º/2.

® A lógica deste sistema, no âmbito das penas, seria fazer depender o se da punição da
necessidade preventiva, entendida nos termos da prevenção geral positiva, a que
acresceria a prevenção especial, e remeter as razões de censurabilidade pessoal do
agente com a motivação pelo cumprimento do dever medianamente exigível para o papel
acessório de limite formal da medida da pena.

Deste modo, logo na própria seleção legislativa dos comportamentos puníveis não pode caber
apenas uma perspetiva de satisfação do interesse geral, dos sentimentos da comunidade ou
mesmo de uma necessidade objetiva de proteger bens, mas caberá também a consideração de
um certo nível de desvalor da ação e de uma exigibilidade média de um outro comportamento
a quem viola a norma.
® A exigibilidade ética de certos comportamentos não é algo posterior às decisões
legislativas de incriminação, mas a própria consideração da atribuibilidade de uma
censura pessoal é condição de legitimidade constitucional da incriminação de certos
comportamentos, ou da sua negação, num plano abstrato-normativo.

Os reflexos desta análise do artigo 40º implicam que sejam existam diferentes modelos de relação
entre o nº1 e o nº2 do artigo – da relação entre a prevenção geral positiva, a prevenção especial
e a função da culpabilidade do agente na fundamentação judicial da punição:
® no primeiro modelo, a culpabilidade é um principio restritivo funcionado no quadro da
prevenção, fixando o máximo atingível pela prevenção; no segundo modelo, a prevenção
é um principio restritivo funcionando no quadro dos limites máximo e mínimo da
culpabilidade que o comportamento justifica. No entanto, a culpa não é alheia à
prevenção.
® Mesmo que o resultado seja muitas vezes o mesmo não deixa de ser verdade que o valor
prático e funcional atribuído à culpabilidade é diverso, tendendo a ser muito formal no
primeiro modelo, apelando necessariamente para ideias de culpa que não obstem a
lógicas preventivas.

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A perspetiva defendida por FIGUEIREDO DIAS de que uma caracterização da lógica do artigo
40º como uma dupla fundamentação seria dispensável não exprime a solução sistemática e
constitucionalmente adequada, na medida em que a culpa condiciona de certo modo a
necessidade num Estado de Direito Democrático. A necessidade da pena não pode ser conhecida
como uma eficácia de meios em que o destinatário seja visto como objeto de ação, mas
diversamente como um fim em si mesmo, podendo falar- se de uma necessidade justa.

8. Problema da delimitação do Direito Penal


O Direito Penal separa-se dos outros ramos do Direito devido ao seu processo de legitimação
peculiar, necessário tendo em conta a gravidade das suas sanções, o que faz com que exija uma
legitimação constitucional específica - uma legitimação de tipo material, para além da
processual ou formal.
® Esta legitimação material faz com que haja um controlo do sistema de fontes,
interpretação e integração de lacunas no Direito Penal (princípio da legalidade).
® O próprio conteúdo das normas penais e dos fins procurados com a aplicação destas
também está sujeito a grande escrutínio devido às verificadas exigências materiais
(conceito material de crime e fins das penas).

O objeto do Direito Penal é a relação jurídica punitiva, pela qual os indivíduos que praticam
certos factos ficam sujeitos à aplicação de uma pena pelo Estado. A especificidade da função
punitiva do Direito Penal implica a atribuição de garantias especiais aos destinatários das normas
penais (como, por exemplo, o artigo 32º da Constituição).

O Direito Penal Secundário


O Direito Penal secundário surgiu com o alargamento do núcleo dos bens essenciais criado
por novas realidades do relacionamento interpessoal em sociedade. O seu caráter secundário
justifica-se pela classificação dos bens que tutela e os comportamentos que proíbe que se afastam
dos regulados pelo Direito Penal clássico.

Algumas características que identificam o Direito Penal Secundário são as seguintes:


- A sua inserção em legislação avulsa;
- A sua relação com a atividade económica e financeira que o Estado protege;
- O caráter, fundamentalmente, social dos bens que tutela;
- A natureza técnica, não materialmente lesiva dos bens, das condutas incriminadas, que
são necessariamente concebidas a partir da lesão de deveres jurídicos ou de ordens;
- A aptidão das pessoas coletivas para, enquanto tais, praticarem estas condutas;
- A necessidade de sanções penais específicas adequadas à eficaz intervenção na área
económica e financeira (proibição de atividades ou extinção das pessoas coletivas);

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O Princípio da legalidade
|Figueiredo Dias|

Para evitar a possibilidade de uma intervenção estadual arbitrária ou excessiva, a prevenção


do crime só se torna eficaz se se restringir a intervenção estadual a certos limites estritos. A
intervenção penal é submetida ao princípio da legalidade.

Princípio da legalidade: não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia,
escrita, estrita e certa

Para além da ideia geral que em princípio os poderes constituídos estão sujeitos à lei até ela ser
alterada no direito penal, o princípio da legalidade assume vários sentidos característicos de
limitação, a vários níveis, do poder de punir.

O princípio da legalidade da intervenção penal possui uma pluralidade de fundamentos:


1. Fundamentos externos (ligados à conceção fundamental de Estado)
® Princípio liberal: toda a atividade intervencionista do Estado na esfera dos direitos,
liberdades e garantias das pessoas tem de ligar-se à existência de uma lei—Figueiredo
Dias refere que esta lei deve ser geral, abstrata e anterior (art. 18º/2/3);
® Princípios democrático e da separação de poderes: para a intervenção penal só se
encontra legitimada a instância que represente o Povo como titular último de ius
puniendi—lei formal emanada do Parlamento ou por ele competentemente autorizada
(art. 165º/1, c) CRP);

2. Fundamentos internos (natureza especificamente jurídico-penal)


® Prevenção geral: não pode esperar-se que a norma cumpra a sua função motivadora do
comportamento da generalidade dos cidadãos se aqueles não puderem saber, através de
lei anterior, estrita e certa, por onde passa a fronteira que separa os comportamentos
criminalmente puníveis dos não puníveis;

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A prevenção especial positiva ou de ressocialização confirma a exigência do
princípio da legalidade: o comportamento que indica a perigosidade tem de ser co-
fundamento e limite da intervenção penal;
® Princípio da culpa: não há pena sem culpa e a medida da pena não pode exceder em caso
algum a medida da culpa—a culpa não é fundamento da pena, mas constitui o seu
pressuposto necessário e o seu limite inultrapassável;

Fundamento e âmbito de aplicação


A conformação constitucional mais explícita do Direito Penal deriva do princípio da legalidade.
Este princípio, que a expressão latina nullum crimen, nulla poena sine lege plasmou
doutrinalmente (introduzido por Feuerbach em 1801), é a base mínima e essencial da adequação
do Direito Penal ao Estado de Direito democrático – não pode haver crime nem penal que não
resultem de lei prévia, escrita, estrita e certa

® Nullum crimen sine lege – princípio segundo o qual não há crime sem lei anterior que
como tal preveja uma certa conduta como crime; mesmo que uma determinada conduta
seja socialmente reprovável, o legislador tem de a considerar crime (descrevendo-a e
impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal) para que possa como tal
ser punida. Isto significa que esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou
de redação funcionam sempre contra o legislador e a favor da liberdade, ainda que da
finalidade da norma se retire a possibilidade de abranger outros certo tipo de
comportamentos.
® Alguns autores consideraram este princípio de certa forma perigoso, visto que
podia deixar impune o agente mais hábil, dotado de maior competência de ação.
® Exemplo: no CP de 1886, antes da reforma, o art.451º relativo ao crime de burla,
apenas considerava como desfraudação a favor do próprio agente que a praticava,
não se referindo à desfraudação a favor de terceiro. Tratava-se de uma lacuna
clara na lei, que tornava tal conduta impunível; outro exemplo foi um cidadão
filipino que difundiu um vírus informático ‘’I love you’’ com danos irreparáveis
no mundo inteiro e não foi punido dada a inexistência de qualquer tipo legal de
crime na sua ordem jurídica.
® Nulla poena sine lege – da mesma forma que não há crime sem lei, também não há pena
(leia-se sanção criminal, pena ou medida de segurança) sem lei; este segmento do
princípio tem expressa consagração jurídico-constitucional e legal.

Do art.29º da CRP e do art.3º do CP podemos retirar cinco instâncias de criação e aplicação


do direito penal:
a) Em primeiro lugar, só a lei pode, a partida, ser fonte de direito penal, prevendo-se a
reserva relativa de competência da AR no art.165º/1 c) da CRP;
b) Em segundo lugar, o próprio conteúdo das normas penais terá de revelar um elevado
grau de determinação, na descrição das condutas incriminadas e das suas consequências
(art.29º/1 e 3 CRP);
c) Em terceiro lugar, há um condicionamento do intérprete da lei penal a quem está vedada
a analogia e, eventualmente, a própria interpretação extensiva de normas incriminadoras
(art.29º/1 e 3 CRP e art.1º/3 CP);
d) Em quarto lugar, está consagrada a proibição de retroatividade das normas penais
(art.29º/1 e 3 CRP e art.1º/1 CP);
e) Em quinto lugar, consagra-se o princípio da retroatividade das leis penais de conteúdo
mais favorável ao arguido (art.29º/4 CRP e art.1º/2 e 4 CP).

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Art.29º/3 da CRP: ‘’não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam
expressamente cominadas em lei anterior’’

Relativamente às penas, a existência de lex previa corresponde à doutrina internacional


dominante; já relativamente às medidas de segurança a questão é mais controversa,
porque houve quem pensasse que, devido ao seu fundamento de prevenção especial, se
devesse aplicar a medida de segurança vigente ao tempo da aplicação porque tal se
afigurava mais favorável ao agente – esta conceção foi recusada pela CRP e pelo CP
no seu art.2º, em detrimento da ideia de que cabia ao legislador definir. Veio a
legislação constitucional e ordinária dar prevalência à proteção dos direitos, liberdades e
garantias e estender o princípio da legalidade às medidas de segurança com âmbito
análogo ao que assumem as penas.

Consequências do princípio da legalidade:

® Plano do âmbito de aplicação


O princípio da legalidade não abrange toda a matéria penal, cobre toda a matéria relativa
ao tipo de ilícito ou ao tipo de culpa, ou seja, a matéria que se traduza em fundamentar
ou agravar a responsabilidade do agente. Não abrange as causas de justificação ou as
causas de exclusão da culpa.
® Plano da fonte
Este plano diz respeito à exigência de lei formal: só uma lei da AR ou por ela
completamente autorizada pode definir o regime dos crimes, das penas e das medidas de
segurança e seus pressupostos.
Problemas:
® o conteúdo de sentido do princípio da legalidade só deveria cobrir a
atividade de criminalização ou de agravação, não a de descriminalização ou
de atenuação, o que levaria a considerar que o governo possui competência
concorrente com a da AR para descriminalizar ou atenuar a responsabilidade
criminal. O TC respondeu negativamente, interpretando a definição de crimes,
penas e medidas de segurança e respetivos pressupostos no sentido de abranger
tanto a função de criminalização como a de descriminalização.
® saber se a legalidade deve abranger só a lei penal stricto sensu ou também a
lei extra-penal, na medida em que esta venha a ser chamada pela lei penal à
fundamentação ou à agravação da responsabilidade criminal – problema das
normas penais em branco.
® Plano da determinabilidade
Importa a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa
em concreto uma punição – os comportamentos proibidos e sancionados devem ser
objetivamente determináveis. A principal implicação do princípio da determinabilidade
é a tipicidade na determinação da responsabilidade penal. Assim, nenhum
comportamento humano pode ser considerado criminosos se não corresponder a um
tipo legal de crime, descrito com precisão por um preceito legal. A tipicidade é
exatamente essa exigência de adequação do facto a um tipo legal de crime
® Plano da proibição da analogia
É proibida a analogia legis (aplicação de uma regra jurídica a um caso concreto não
regulado pela lei através de um argumento de semelhança substancial com os casos
regulados) – art.1º/3 do CP.
® Plano da proibição da retroatividade
Pode suceder que após a prática de um facto, que ao tempo não constituía crime, uma lei
nova venha criminalizá-lo. Ou sendo o facto já crime ao tempo da sua prática, uma lei

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nova venha prever uma pena mais grave. Este problema de aplicação da lei no tempo é
resolvido através do direito inter-temporal, que proíbe a retroatividade, sendo apenas
punido o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior no momento da
prática do facto.
® Pressuposto da atuação do princípio da irretroatividade – tempus dilicti, ou seja,
momento da prática do facto. A conduta e o resultado podem tem lugar em
momento temporalmente distintos, veio o art.3º estabelecer que ‘’o facto
considera-se praticado no momento em que o agente atuou ou, no caso de
omissão, deveria ter atuado, independentemente do momento em que o resultado
típico se tenha produzido’’. Assim, o momento decisivo para a prática do ato é a
conduta, e não o resultado.
¿ Isto justifica-se à luz da função e sentido do princípio da legalidade – é
no momento em que o agente atua que releva a função tutelar dos
direitos, liberdades e garantias da pessoa que constitui razão de ser
daquele princípio.

Reserva de lei e tipicidade (associado ao âmbito da fonte e ao princípio da determinabilidade)


O princípio geral é o de que só a lei pode ser fonte de Direito Penal, estabelecendo-se uma reserva
relativa de competência da AR no artigo 165º/1/c) CRP.
® Só a AR ou o Governo munido de autorização legislativa, sob pena de
inconstitucionalidade orgânica dos Decretos-Lei que aprovar, têm competência em
matéria penal.
® Este princípio só é afastado pelo artigo 29º/2 CRP, que admite a legitimidade da punição,
nos limites da lei interna, das ações e omissões que no momento da sua prática sejam
consideradas criminosas segundo os princípios gerais do Direito Internacional
comummente reconhecidos.
Professor Figueiredo Dias: o art.29º/2 CRP confere jurisdição aos tribunais portugueses para
conhecerem de certos crimes contra o direito internacional (crimina iuris gentium), mesmo que
as condutas visadas não sejam puníveis à luz da lei positiva interna. Necessário é que se trate de
crimes à luz dos ‘’princípios gerais de direito internacional comummente reconhecidos’’ – art.8º/1
CRP – e a punição só pode ter lugar ‘’nos limites da lei interna’’, ou seja, a responsabilidade por
crimes contra o direito internacional não se encontra sujeita ao princípio da legalidade previsto
no art.29º/1, válido apenas para a lei estadual. O princípio nullum crimen sine lege constitui um
princípio geral de direito internacional, embora o seu ‘’modo’’ seja diverso, já que no termo lege
se inclui também direito internacional costumeiro – problemas graves quanto à exigência de
determinabilidade.

QUESTÃO - o art.165º/1/c) CRP refere-se apenas aos crimes, penas e medidas se segurança,
incluir-se-á no preceito as circunstâncias agravantes (norma penal positiva) ou as circunstâncias
atenuantes (norma penal negativa)?
® Quanto às circunstâncias agravantes, estas definem o concreto facto criminoso,
sendo abrangidas pela previsão do art.165º/1/c), trata-se essencialmente das razões
justificativas da reserva de lei (segurança jurídica e princípio democrático) que
favorecem a aplicação do artigo 165º/1 CRP a todas as circunstâncias agravantes.
® Quanto às circunstâncias atenuantes, à partida poderia dizer-se que não estão
submetidas à reserva de lei por não afetarem as expectativas de segurança e a liberdade
individual dos destinatários das normas penais; numa outra perspetiva, podem alterar a
delimitação dos direitos dos cidadãos em si, na medida em que a liberdade criada pela
permissão de certas condutas diminuirá a liberdade de todos os que pretenderem opor
às mesmas. A atenuante geral resulta do art.72º CP. Para a Professor Maria Fernanda
Palma a reserva de lei é desnecessária às atenuantes. O legislador ou julgador não pode
criar atenuantes arbitrariamente em função de quaisquer razões não comportáveis pelo

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princípio da culpa e se o fizer, violando o princípio da culpa, aí sim justifica-se o
controle da reserva de lei para validação constitucional dos conteúdos.

Normas Penais em Branco


Todos os pressupostos da incriminação e da responsabilidade penal têm de estar descritos na lei,
não sendo admitidas as leis penas em branco. Uma NPB é uma norma que remete para uma norma
extrapenal. A questão coloca-se desde logo devido ao princípio da determinação das normas
penais que implica o máximo preenchimento das figuras, e ao princípio da tipicidade, que
implica a adequação do facto ocorrido a um tipo legal de crime.
® A violação destes princípios não se dá mal que o legislador utilize conceitos menos
precisos, mas sim quando a possibilidade de compreensão e controlo do desvalor
expresso no tipo legal de crime deixa de existir.

Definições:
® Professor Figueiredo Dias: normas penais em branco são aquelas que cominam uma
pena para comportamentos que não descrevem, mas se alcançam através de uma remissão
da norma penal para leis, regulamentos ou inclusivamente atos administrativos.
® Professora MFP: normas que estabelecem o conteúdo da sua previsão ou da sua
estatuição por remissão para outras normas constantes de leis hierarquicamente
inferiores. Como acontecerá nos casos de leis penais que remetam para regulamentos (ou
leis do Governo sem autorização legislativa) a definição de elementos de que resulte o
comportamento incriminado ou a pena aplicável.
Em que medida é que uma norma penal que não define todo o seu conteúdo remetendo para
uma outra viola o princípio da reserva de lei? A remissão de uma norma para outras não é, em
si mesma, obstáculo ao respeito pelo princípio da legalidade. O que pode desrespeitar este
princípio é o esvaziamento de conteúdo precetivo e a atribuição da competência para definir o
comportamento proibido a leis hierarquicamente inferiores ou até aos atos administrativos.

Assim são proibidas:


® Situações em que o núcleo do comportamento proibido pela norma depende
totalmente da norma para qual se remete, não sendo previsível para os destinatários
sem essa norma o que deles se espera; Ex: remissão de uma norma que incrimina o
tráfico de estupefacientes para um regulamento que qualifique como estupefaciente uma
certa substância. Sem o conhecimento da natureza legalmente atribuída de droga proibida
a essa substância não é previsível que a venda da mesma possa ser tráfico.
São inconstitucionais pois violam o princípio da legalidade (na aceção da reserva de lei)
e conflituam com a separação de poderes.
® Situações em que a remissão é puramente para um critério técnico, não estando o
objeto da norma remissiva, o interesse fundamental protegido, dependente do
conteúdo concreto deste critério – efeito de regulação da norma incriminadora, que não
depende do conteúdo da norma para a qual se remete.
A distinção entre normas remissivas que violam a reserva de lei e as que são com ela
compatíveis depende de saber se a função da norma penal é estabelecer direta e
materialmente a fronteira entre o proibido e o permitido ou apenas sinalizar que um certo
efeito material dependente da obediência à regulação legal devido à natureza ou grau de
risco da atividade é o conteúdo fundamental da proibição.
A norma penal em branco será compatível com o princípio da legalidade se os critérios essenciais
de ilicitude estiverem na norma penal em branco e não na norma complementar. Aquilo que é a
essência do desvalor tem de estar na norma penal, de tal forma que a norma complementadora
não venha criar nenhum critério de ilicitude, vem apenas concretizar o critério que já

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constava da norma penal em branco. Assim, para a norma penal em branco não ser
inconstitucional, têm de estar verificados três requisitos:
® Tem de estar claro qual é o bem jurídico protegido;
® Tem de estar claro qual é o desvalor da ação, ou seja, qual o comportamento que se
pretende proibir;
® Tem de estar claro qual é o desvalor do resultado, isto é, qual o resultado que se pretende
evitar.
Se isto resultar da norma penal então temos uma norma penal em branco constitucional.
Art. 277º CP é considerado, por alguns autores, como norma penal em branco e, devido a
tal, inconstitucional.
® Professora MFP: não entende assim. Pode ser norma formalmente penal em branco por
ser remissiva, mas, o que se pretende com este tipo de normas é que certas atividades
perigosas devem ver respeitadas as normas técnicas vigentes. O cerne do proibido é o
cumprimento de certas normas técnicas. São apenas normas remissivas que não são
inconstitucionais.
® Art. 277º CP não é norma penal em branco pois o proibido está explícito, que é a violação
da norma técnica. Não sendo a norma técnica que tem o conteúdo do proibido.
® TC: há casos em que a remissão não interfere com a previsibilidade e com a segurança
jurídicas, mas apenas cumpre o papel de orientar o intérprete segundo critérios objetivos
quanto à verificação do comportamento proibido.

Interpretação da Lei Penal—Proibição da Analogia


Art.1º/3 CP – proíbe expressamente a analogia quanto às normas de que resulta a qualificação
do facto como crime, a definição de um estado de perigosidade e a determinação da pena ou
medida de segurança correspondentes.
O fundamento da proibição da analogia reside na exclusividade da competência
da AR ou do Governo com autorização legislativa na formulação de normas
incriminadoras.
A proibição da analogia não deve ser confundida com a proibição de raciocínios análogos na
aplicação da lei penal. Esta questão surge a propósito das fronteiras que se traçam entre a
interpretação extensiva e a analogia.
i) O que distingue a interpretação extensiva da analogia?
A interpretação extensiva 9 baseia-se na possibilidade de referir um certo caso não
expressamente considerado na letra da lei ao seu pensamento – diferencia-se da analogia, pois
neste o caso real é meramente semelhante aos casos considerados na lei. Assim, quando o
legislador tenha apenas exprimido imperfeitamente a intenção de regular o caso haverá
interpretação extensiva.
¿ Professor Figueiredo Dias: o critério de distinção teleológica e imposto pelo princípio
da legalidade é o legislador penal estar obrigado a exprimir-se por palavras, palavras
essas que nem sempre possuem um único sentido, daí o texto ser carente de
interpretação, oferecendo as palavras que o compõem, segundo o seu sentido comum
e literal, um quadro de significados dentro do qual o aplicador da lei pode mover-
se e optar sem ultrapassar os limites legítimos de interpretação. Fora deste quadro

9
Por exemplo: quando o legislador se refere ao “veneno” como meio de perpetração do homicídio
(art.132/2/i) do CP) pretende abranger não só as substâncias designadas como tal mas também aquelas que,
em concreto, produzam os efeitos tóxicos próprios do veneno, como a ingerência dolosa de açúcar num
diabético;

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o aplicador encontra-se no âmbito da analogia proibida. O quadro é um limite à
interpretação admissível no direito penal e não um critério.

Quando se descobre a razão de ser da proibição da analogia (segurança jurídica e controlo


democrático da aplicação da lei penal) torna-se difícil traçar uma fronteira de distinção entre
a interpretação e a analogia. A interpretação extensiva por si só pode causa um conflito entre
os elementos de interpretação (literal, lógico, sistemático e histórico), não sendo rigorosa o
suficiente para resolver o problema da fronteira da interpretação permitida. Por essa razão, a
doutrina tem optado por desligar-se destas categorias tradicionais e procurado um critério fundado
na proibição da analogia, de modo a perceber até que ponto estamos perante a interpretação ou
analogia.

Modelos de interpretação—MFP

a) Pensamento Antipositivista – desvincula totalmente a interpretação permitida do tipo


legal, orientando e controlando a interpretação jurídica por critérios extraliterais
reveladores do significado fundamental da norma no sistema jurídico (Heidegger e
Gadamer)
b) Pensamento Positivista – os limites da interpretação permitida são controlados
fundamentalmente por critérios de índice linguística: o limite (de modo a cumprir o
princípio da legalidade) é o sentido possível das palavras – procura-se aqui o sentido
possível do texto no seu todo e não das palavras isoladamente: é o sentido
comunicacional do texto, sustentado pela linguagem social.

ii) A interpretação extensiva é proibida?

Temos de dividir as normas penais em dois grupos:

® Normas incriminadoras: deve entender-se por normas incriminadoras aquelas que


criam ou agravam a responsabilidade jurídico-penal do agente. São aquelas normas que
de alguma forma contêm a criação de crimes, ou que contêm agravamentos dos
pressupostos de punibilidade ou de punição;
® Normas favoráveis: aquelas normas que visam diminuir a responsabilidade jurídico-
penal do agente, ou atenuá-la, tornando mais suaves os pressupostos de punibilidade ou
da punição;

Normas penais incriminadoras:


® A interpretação extensiva em normas incriminadoras não é possível. Só é possível,
no âmbito de normas incriminadoras uma interpretação declarativa lata.
® Tudo aquilo que a exceda e que vise harmonizar a letra da lei à sua razão de ser, à
sua “ratio”, se ultrapassar este sentido literal máximo possível já se está a fazer
interpretação extensiva. Esta não deve ser admitida em Direito Penal, porque se entende
que por força do princípio da legalidade, na sua vertente garantia, se exige que a lei penal
seja uma lei penal expressa.

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® Assim a norma deve dizer expressamente quais são as condutas, ativas ou omissivas
que, a serem ou não adotadas, constituem objeto de incriminação em sede de Direito
Penal.
® No entanto admite-se a interpretação restritiva.
® Afirma-se rotundamente que não é possível integrar lacunas por analogia. Isto é,
perante um caso omisso que o legislador penal ano tipificou, não classificou como crime,
o juiz não pode, ao contrário de que acontece no domínio do direito civil regular esse caso
omisso, nem recorrendo à analogia legis, nem à analogia iuris, nem tão pouco criar a
norma de harmonia com o espírito do sistema. O juiz pura e simplesmente julga,
absolvendo.

Normas penais favoráveis:


® Proíbe-se a interpretação restritiva de normas penais favoráveis, isto porque, a ser
possível, diminuir-se-ia o campo de aplicabilidade destas normas favoráveis, o que
significa aumentar o campo de punibilidade.; admite-se a interpretação extensiva;
relativamente ao problema da analogia:
® Quanto à analogia, parte da doutrina admite por princípio a integração de lacunas por
analogia no âmbito de normas penais favoráveis, desde que essa analogia não se venha a
traduzir num agravamento da posição de terceiros, por ele ter de suportar na sua esfera
jurídica efeitos lesivos ou por ter auto-limitado o seu direito de defesa.

Distinção entre normas positivas e normas negativas:

® Positivas: aquelas que definem pela positiva os pressupostos da responsabilidade


criminal, estabelecendo pressupostos positivos (p.ex. as da parte especial do código)
— permite-se a interpretação extensiva
— proíbe-se a analogia
® Negativas: preveem causas de exclusão da responsabilidade criminal, situações em que
ou não há crime ou que o mesmo é atenuado (ex. estado de necessidade, legítima defesa,
ação direta)
— permite-se a analogia;
— proíbe-se a interpretação e a integração de lacunas;

De modo geral:
® O art.1º/3 CP não proíbe expressamente a interpretação extensiva, diferentemente do
art.18º do CC de 1852/86;
® Não se poderá inferir da proibição da analogia in malam partem do art.1º/3 CP a
permissão da interpretação extensiva através de um raciocínio a contrario sensu – tal
raciocínio implicaria apenas a analogia in bonam partem;
® Aplicando os critérios tradicionais de interpretação jurídica, a proibição da interpretação
extensiva só pode ser integrada no art.1º/3 CP por analogia com a proibição da própria
analogia – este fundamento não é sistematicamente admissível para justificar uma
conclusão por analogia com a própria proibição da analogia;
® A norma que proíbe a analogia no Direito Penal circunscreve excecionalmente, no
conjunto da Ordem Jurídica, a atividade interpretativa: a analogia só é proibida, em geral,
quanto às normas excecionais, que podem, no entanto, ser objeto de interpretação
extensiva (11º CC). Uma limitação da atividade interpretativa mais ampla do que a do

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art.11º do CC só se justificaria na medida requerida pela legalidade e pela reserva de lei.
Ora, a interpretação extensiva, tal como é definida tradicionalmente, como expressão do
pensamento da lei revelado pelos elementos não literais da interpretação, não disputa,
necessariamente, com estes princípios – não se poderia, por conseguinte, considerar
proibida toda e qualquer interpretação extensiva, no Direito Penal, apenas porque
é difícil praticamente delimitá-la da analogia à luz dos critérios tradicionais da
interpretação.

Daqui resulta que a interpretação extensiva não é necessariamente proibida ou permitida em


Direito Penal, tudo dependendo da enunciação de outros critérios, derivados diretamente da ideia
de segurança jurídica inerente ao princípio da legalidade e reconduzíveis, em última instância, ao
princípio do Estado de Direito democrático.
¿ Professor Sousa Brito: entende que a interpretação extensiva é inconstitucional,
porque sustenta que entre o sentido possível das palavras e o mínimo de
correspondência verbal há ainda um espaço a ser percorrido, incompatível com o
fundamento da segurança jurídica e do princípio da legalidade.

Existem dois modelos de abordagem do problema da fronteira de distinção entre a interpretação


extensiva e a analogia:
1) Pensamento antipositivista, valorativo, teleológico e pragmático
A resolução do problema da proibição da analogia e do cumprimento do princípio da
legalidade orientando e controlando a interpretação jurídico por critérios extraliterais
reveladores do significado fundamental da norma do sistema jurídico.
2) Pensamento positivista, menos pragmático
Os limites da interpretação permitida são controlados por critérios do significado
linguístico, até ao ponto em que não se ultrapasse o sentido das palavras.

iii) Quais os critérios gerais que delimitam o proibido e o permitido?

O Professor Castanheira Neves propõe 4 condições de validade como critério distintivo entre a
interpretação proibida e a permitida em direito penal:
1. Condição legal – o juízo incriminatório tem de ter fundamento efetivo numa norma penal
positiva;
2. Determinação dogmática dos fins – necessidade de os tipos legais serem construídos
pelo legislador de modo que se perceba o núcleo fundamental, com relevo para o bem
jurídico tutelado;
3. Adequação sistemática – não pode haver incoerência sistemática, de modo que a
interpretação adotada para o caso possa ser generalizada relativamente a outros casos sem
prejuízo para a coerência do sistema;
4. Garantia do cumprimento do nullum crimen – garantia institucional, ou seja, uma
garantia jurisprudencial da unidade do direito, que de acordo com este Professor deve
caber ao STJ.

Assim, se estiverem verificadas estas 4 condições, a interpretação será permitida.


Críticas da Professora Maria Fernanda Palma à tese do Professor Castanheira Neves:

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


® A perspetiva adotada pelo Professor Castanheira Neves converte o controlo da reserva de
lei num controlo institucional jurisprudencial da lei penal, ultrapassando a racionalidade
democrática que está na origem da proibição da analogia;
® A adequação sistemática de que o Professor fala não é propriamente um problema de
conhecimento dos valores estáticos do sistema, mas depende de redefinições atualistas
que só estão ao alcance das instâncias de discussão pública e parlamentar – isto é
discutível, ou seja, é discutível que a máxima segurança não dependa diretamente do
modelo de consenso democrático, mas sim do consenso institucionalmente formado;
® A garantia da unidade de direito que o Professor atribui ao STJ é questionável na medida
em que se trata de uma tarefa que só é realizável através do controlo de
constitucionalidade, e esse controlo é da competência do TC;
® Com a tese do Professor, os momentos tradicionais de investigação hermenêutica são
relativizados, postos de lado, e a interpretação passa a assumir-se exclusivamente como
decisão dos casos pela aplicação de critérios jurídicos emanados da norma e do sistema
em que esta se insere.

Para a Professora Fernanda Palma, deve atender-se ao sentido possível do texto no seu todo
(não das palavras isoladamente) – o sentido possível do texto como limite da interpretação
permitida é o sentido comunicacional percetível do mesmo, e não qualquer sentido lógico não
sustentável pela linguagem social. O sentido possível do texto delimita-se ainda pela adequação
do texto à essência do proibido de acordo com a valoração do sistema que a norma diretamente
exprime ou pretende exprimir.

Proibição da Redução Teleológica


A redução teleológica exclui do âmbito da lei casos que a sua letra abrangeria, por tais casos
não deverem ser abrangidos pelos fins essenciais que a lei prossegue. A redução teleológica
será incriminadora quando essa exclusão de casos se referir a normas que delimitam
negativamente a tipicidade.
¿ A vinculação ao texto jurídico como fator pré-determinante da interpretação, conduzirá
a uma rejeição da redução teleológica incriminadora, pois também corresponde ao
sentido possível das palavras e engloba todas as possibilidades de entendimento.

Não proibição de analogia e de redução teleológica das normas permissivas

® Quanto às normas permissivas, não é proibida necessariamente a analogia, na medida


em que tais normas não são descrições típicas das condutas permitidas, mas um mero
afloramento dos princípios ou critérios gerais de solução de conflitos de interesses ou
direitos. Nelas, o texto jurídico não é predeterminante como nas normas incriminadoras.
® O recurso à analogia, quando justificado pela necessidade de concretizações diferentes
das legalmente previstas, é permitido, mesmo que se ultrapasse o sentido possível das
palavras
¿ MFP: a analogia com a legítima defesa meramente preventiva não é aceitável
já que a intervenção gravíssima na esfera jurídica do agressor que o art. 32º
deve ter como contrapartida pressupostos bem delimitados relevadores de uma
gravidade típica de agressão atual e ilícita. Contudo, pode-se admitir um

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


fundamento justificador para a chamada legítima defesa preventiva com base no
mesmo princípio geral de defesa manifestado no art. 32º do CP;

® Redução teleológica de normas permissivas: existe um efeito incriminador mediato


derivado da redução teleológica de uma norma permissiva, mas esse efeito não está
necessariamente subordinado às garantias que justificam a proibição da analogia de
normas incriminadoras.

SÍNTESE EXEMPLIFICATIVA DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE


‘’Princípio de que não há crime nem pena sem lei’’
Corolários do princípio da legalidade:
A lei que define crime tem que ser uma lei precisa – princípio da tipicidade e da
determinabilidade.
Neste plano, o princípio conduz ao facto de importar que a descrição da matéria
proibida, e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição,
CERTA seja levada até um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os
comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne
objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos – ligação entre o
principio da legalidade e a prevenção geral - os cidadãos apenas podem motivar
a sua conduta a uma não realização de crimes, se souberem quais são as exatas
condutas que constituem um crime.
Este corolário de lei certa é dirigido ao legislador.
É neste corolário que falamos das NPB
Reserva de lei formal da AR: art.165º/1/c) da CRP
ESCRITA Proíbe-se a integração de lacunas por analogia – art.29º/3 CRP + art.1º/3 CP
Neste corolário também falamos das NPB (ou seja, num caso sobre NPB devemos
mencionar que estamos no âmbito do corolário da lei certa e escrita)
Proíbe-se a interpretação extensiva das normas incriminadoras e a analogia –
art.29º/3 CRP + art.1º/1 CP + art.1º/3 CP.
Só é crime o que se encontra previsto na lei – dirigido ao aplicador.
O conceito de analogia que se visa proibir é aquele em que, se aplica uma regra
jurídica a um caso concreto não regulado pela lei, por esta regular uma situação
semelhante – analogia legis, não a analogia Iuris.
ESTRITA Esta proibição é perfeitamente justificável por tudo o que já vimos: ora, se o
cidadão deve ter acesso a uma lei que seja certa e determinada para motivar os seus
comportamentos – se existissem situações de analogia, o cidadão nunca saberia o
que é que poderia ou não fazer, uma vez que a analogia não é algo certo, não se
encontra expresso, violando assim o princípio da legalidade. Alem disso, a analogia
acabaria sempre por funcionar contra o agente, ou seja, tudo o que vai contra o
princípio da legalidade que, à partida, funciona sempre a favor do agente.
Neste corolário falamos da interpretação, assim num caso de interpretação
devemos mencionar que nos encontramos no âmbito do corolário da lei escrita
Proíbe-se a retroatividade da lei penal – art.29º/1 CRP + art.1º/1 e art.2º/1 CP
Este é o corolário do princípio da legalidade que gera mais problemas – a proibição
da retroatividade contra o agente.
Pode acontecer que, após a prática de um facto – que no momento em que foi
praticado não constituía crime, uma nova lei venha a criminalizá-lo. Ou até
PRÉVIA situações em que, esse facto praticado já constituía um crime, mas uma nova lei
veio agravar a sua pena – ou qualitativamente (era pena de multa e passou a pena
de prisão) ou quantitativamente (em termos de anos).

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Através deste princípio satisfaz-se a exigência de que só seja punido o agente
quando o facto esteja descrito e declarado passível de pena por lei ANTERIOR
ao momento da prática do facto
Neste corolário falamos da aplicação da lei no tempo, devendo-o referir nos casos
sobre lei no tempo

ESQUEMA DE RESOLUÇÃO DOS CASOS DE NORMAS PENAIS EM BRANCO

® ASSISTENTE RICARDO SILVA:

1) Identificar se a norma remissiva é ou não organicamente constitucional: se não o é,


ficamos logo por aqui;
2) Se a norma remissiva é organicamente constitucional, identificar se a remissão é
normativa (se a proibição vai estar na disposição legal para a qual se remete, não se
encontrando na previsão da norma remissiva) ou meramente técnica (se a proibição já
está na previsão da norma remissiva—neste caso não há problema);
3) Se a remissão é normativa, identificar se a norma penal para a qual se remete é ou
não organicamente constitucional: se o for, então a norma remissiva é materialmente
inconstitucional por indeterminação do conteúdo da proibição (lacuna de previsão,
violação do princípio da tipicidade), problema de lei penal em branco;

® ASSISTENTE MAFALDA MELIM:

1º definição
NPB é uma norma que remete do seu conteúdo para outra norma extrapenal
- Sentido amplo
- Sentido restrito: só é NPB se for um instrumento normativo hierarquicamente inferior
Nesta situação estamos perante uma NPB perante as duas definições.

2º concretização
Dizer que em concreto o art.25º/4 da Lei x remete a noção de transporte turístico e aluguer para a
Portaria y – ou seja, dizer no que consiste no caso a remissão.
3º potenciais problemas de constitucionalidade
- Orgânica – art.165º/1 c)
- Formal – art.165º/1 c)
- Material – legalidade penal – lei certa
O que nos interessa é a constitucionalidade material. Podemos ver do que deriva a orgânica e
formal, para termos bónus, mas o que é realmente importante é a material.
a) Dizemos que está relacionado com o problema da legalidade penal, no corolário da lei
certa
b) Explicar o que é a lei certa (conteúdo e determinabilidade) e onde está previsto – art.29º/1
e 3 CRP

Agora sim, vamos ver se pode haver a remissão ou não. O TC estabeleceu um critério:
1. Bem jurídico (Ex.: no caso do homicídio seria o direito à vida)
2. Desvalor ação (a conduta incriminadora em si, ou seja, a valoração que o Tribunal faz
do agente ter adotado aquela conduta. Ex.: no homicídio seria o disparar)

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3. Desvalor resultado (juízo negativo à circunstância do agente ter adotado aquele
resultado – não é a pena, mas sim o resultado da conduta. Ex.: o valor de resultado do
homicídio é a morte)
Qual é a norma que tem que ter estes critérios? A Lei penal, não a remissiva, porque se assim for
a lei para a qual remete não há de acrescentar nada.

Problema: nem todos os crimes são de resultado (vamos ter que saber os tipos legais
incriminadores)
A norma remissiva não pode ter um critério autónomo de ilicitude. Apenas pode concretizar
o critério legal através do conhecimento técnico. Ou seja, tem que ter valor pericial técnico.
- Não haver um critério autónomo de ilicitude
- Valor pericial
- Técnico

CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES


1. Crimes de dano e crimes de perigo:
O critério de distinção entre crimes de dano e crimes de perigo é a forma como o bem jurídico é
posto em causa pela atuação do agente, ou seja, como é que o bem jurídico, como valor ou
interesse considerado essencial para o desenvolvimento da pessoa, é afetado.

Crimes de dano:
Nos crimes de dano a realização do tipo incriminador tem como consequência uma lesão
efetiva do bem jurídico é o que ocorre no crime de homicídio (art.131º CP) e no crime de
violação sexual (art.164º CP).

Crimes de perigo:
- Nos crimes de perigo a realização do tipo incriminador não pressupõe a lesão do bem
jurídico, mas antes se basta com uma mera colocação do bem jurídico em perigo.
- Os crimes de perigo dividem-se em crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstrato.
- Em relação aos crimes de perigo concreto, o perigo faz parte do tipo incriminador, ou seja,
o tipo incriminador só é preenchido quando o bem jurídico tenha efetivamente sido
posto em perigo, por exemplo, art.291º CP e art.138º CP (neste caso, só haverá crime de
exposição ou abandono quando se comprove que o bem jurídico, vida, foi realmente posto
em perigo).
- Nos crimes de perigo abstrato o perigo não é elemento do tipo incriminador, mas
apenas motivo da proibição. Deste modo, há uma presunção inelidível de perigo e, por
isso, a conduta do agente é punida independentemente de ter criado ou não um perigo efetivo
para o bem jurídico, por exemplo, art.292º CP (o condutor é punido pelo facto de o estado
em que se encontra constituir um perigo potencial para a segurança rodoviária).
- No entanto, tem sido questionada a constitucionalidade destes crimes pelo facto de
poderem constituir uma tutela demasiado avançada de um bem jurídico, pondo em
risco o princípio da legalidade e o princípio da culpa. Apesar disto, a posição da
doutrina maioritária e o Tribunal Constitucional pronunciaram-se pela não
inconstitucionalidade quando estes crimes visarem a proteção de bens jurídicos de
grande importância, quando for preciso identificar claramente o bem jurídico
tutelado e a conduta típica for descrita de uma forma tanto quando possível precisa
e minuciosa.
- No âmbito da discussão sobre a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato,
surgiram posições que preconizam a não punição de condutas que que configurem
este tipo de crime quando se comprove que na realidade não existiu, de forma
absoluta, perigo para o bem jurídico, ou que o agente tomou todas as medidas
necessárias para evitar que o bem jurídico fosse colocado em perigo. A este
propósito começou a falar-se na doutrina de crimes de perigo abstrato- concreto.

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


- Nos crimes de perigo abstrato- concreto, o perigo abstrato não é só critério
interpretativo e de aplicação, mas deve também ser momento referencial da culpa
e, por isso, admitem a possibilidade de a perigosidade ser objeto de um juízo
negativo. Do ponto de vista formal esta categoria cabe ainda na dos crimes de perigo
abstrato, porque a verificação do perigo não é essencial ao preenchimento do tipo
incriminador.
- Do ponto de vista substancial, os crimes de perigo abstrato- concreto são
crimes de aptidão ou também designados de conduta concretamente
perigosa, no sentido de que só devem relevar tipicamente as condutas aptas
a desencadear o perigo proibido no caso de espécie.
- Assim, nos crimes de aptidão o perigo converte-se em parte integrante do
tipo incriminador e não num mero motivo de incriminação, como sucede nos
autênticos crimes de perigo abstrato.
- Por outro lado, a realização típica destes crimes não exige a efetiva produção
de um resultado de perigo concreto.

2. Crimes de resultado e crimes de mera atividade:


Estes tipos de crimes referem-se ao âmbito da conduta do agente, ou seja, importa distinguir entre
tipos incriminadores cuja consumação pressupõe a produção de um resultado e tipos
incriminadores em que para a consumação é suficiente a mera ação.

Crimes de resultado:
Os crimes de resultado pressupõem a produção de um evento como consequência da atividade do
agente. Assim, só se dá a consumação quando se verifica uma alteração externa espácio-
temporalmente distinta da conduta, por exemplo, o crime de homicídio (art.131º CP) é um crime
de resultado, uma vez que a sua consumação só se verifica com a morte da pessoa.

Crimes de mera atividade:


Nos crimes de mera atividade o tipo incriminador preenche-se através da mera execução de um
determinado comportamento. É o caso da violação do domicílio prevista no disposto art. 190 º
CP, ou seja, basta que alguém entre no domicílio de outrem para que já esteja a cometer um crime.

3. As dicotomias- crimes de mera atividade e de resultado e crimes de perigo e de dano:


Na verdade, é possível verificar-se quatro combinações:
1. Existem crimes de mera atividade que são crimes de dano, por exemplo, art.164º e 190º CP
2. Existem crimes de resultado que são crimes de dano, por exemplo, art.131º e 143º CP;
3. Existem crimes de mera atividade que são crimes de perigo, por exemplo, art.292º e 359º
CP;
4. Existem crimes de resultado que são crimes de perigo, por exemplo, art.272º e 138º CP.
4. Critério que justifica a existência destas quatro combinações:
Relativamente aos crimes de resultado e crimes de mera atividade, estes referem-se ao objeto da
ação, ou seja, referem-se à realidade que se projeta a partir da ideia genérica e que é ameaçada ou
lesada pela prática de uma conduta típica.
No que se refere aos crimes de perigo e aos crimes de dano, este tem como referência a forma
como o bem jurídico é afetado.
Assim, quando se avalia a conduta de um individuo deve-se atender ao objeto da ação e à forma
como o bem jurídico é afetado. Deste modo, pode estar em causa uma das quatro combinações
possíveis.

ESQUEMA DE RESOLUÇÃO DOS CASOS DE INTERPRETAÇÃO DA LEI


PENAL

® ASSISTENTE MAFALDA MELIM:

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


1º Qual o problema que está em causa
- Dizer que estamos perante um problema de interpretação da lei penal, tendo que ver
com o princípio da legalidade, no corolário da lei estrita – art.29º/1 e 3º CRP;
2º Saber se o que está em causa cabe ou não na letra da lei
- Atenção que só pode ser considerado conduta criminosa o que cabe na norma
incriminadora – art.1º/3 CP;
- A norma incriminadora tem que ser clara e determinada, de tal modo que não deixe
margem de dúvidas de que o agente ao praticar a conduta será incriminado;
- Para sabermos se a conduta em causa cabe ou não na previsão da norma temos de
atender aos limites, isto é, se estamos no âmbito da interpretação permita ou da
interpretação proibida.
3º Critérios para apurar se estamos no âmbito da interpretação permitia ou proibida
- Divergência doutrinária entre a Professora Maria Fernanda Palma e o Professor
Castanheira Neves:
- MFP – atende a dois critérios:
1) sentido possível previsível – o sentido das palavras deve ser obtido pela
essência do texto;
2) essência do proibido – se a conduta corresponde à essência da proibição
legal, ou seja, averiguar as condutas que o legislador visava punir com a norma;
- CNeves – atende à intencionalidade normativa da lei, estabelecendo para isso, 4
critérios:
1) Condição legal
2) Condição dogmática
3) Condição sistemática
4) Condição institucional
4º Concretizar os critérios
- Concretizar as posições da Professora MFP e do Professor CNeves, aplicando os
respetivos critérios ao caso em concreto.
5º Tomada de posição

Aplicação da lei penal no tempo

Retroatividade
Com fundamento no princípio da culpa e na segurança jurídica, há a proibição constitucional de
retroatividade das normas penais que criem ou agravem a responsabilidade penal. A
possibilidade de uma conduta ser retroativamente incriminada contradiria uma responsabilidade
penal fundamentada na livre determinação do agente pela norma jurídica – culpa jurídica – e
destruiria a garantia das expectativas dos cidadãos quanto ao que é proibido – segurança jurídica.
¿ A proibição da retroatividade corresponde assim, à garantia de que o exercício do
poder punitivo seja exercido de acordo com critérios e limites conhecidos
antecipadamente e não alteráveis por força de um interesse particular ou para
resolver um caso concreto antes não previsto.
¿ Figueiredo Dias: o problema da aplicação da lei no tempo é resolvido pelas normas
de direito inter-temporal, que se reduz ao princípio da proibição de retroatividade em

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tudo quanto funcione contra reum ou in malem partem (contra o agente)—isto satisfaz
a exigência constitucional e legal de que só seja punido o facto descrito e declarado
passível de pena por lei anterior ao momento da prática do facto;

São contempladas com a proibição da retroatividade:


a) As incriminações;
b) As agravações da responsabilidade criminal;
c) As penas;
d) Os pressupostos das medidas de segurança;
e) As medidas de segurança;
f) Todas as normas processuais que afetem diretamente direitos, liberdades e garantias.

Só há retroatividade se o regime previsto numa lei se referir a um determinado tipo de situação


anterior à sua vigência – momento da prática do facto. O art.3º do CP fala do momento da
efetiva prática da ação criminosa ou ao momento em que se produziria a ação que evitaria o
resultado típico. Assim, se a lei em causa for anterior à produção do resultado típico, mas
posterior à prática da ação prevista já haverá retroatividade10.
® Art. 3º CP: decisivo para determinação do momento da prática do facto é a conduta,
não o resultado - é no momento em que o agente atua (ou que deveria ter atuado) que
releva a função de tutelar dos direitos, liberdades e garantias da pessoa que constitui a
razão de ser daquele princípio;
® Além disso, isto vale para todos os comparticipantes no facto criminoso (autores ou
cúmplices—art. 26º/27º)

Torna-se complicado em determinadas situações determinar o momento da prática do crime:


® Caso dos crimes de consumação duradoura ou permanente, nos quais a ação perdura
no tempo, iniciando-se a consumação a partir do início da ação e a consumação perdura
até ao último ato, de modo que uma alteração da lei penal ainda que agravante ocorra
enquanto a consumação ainda não se esgotou (ou seja, uma parte do crime ocorreu no
domínio da lei antiga e outro no domínio da lei nova) – nestes casos, parece aplicar-se a
lei nova pois o agente manteve a realização do comportamento após a entrada em vigor
da nova lei, não sendo surpreendido pela sua aplicação. Ex.: crimes como o sequestro,
uma nova lei ainda que mais grave viria sempre abranger o comportamento cuja
consumação se iniciou anteriormente, mas ainda persista no momento da entrada em
vigor da lei nova11.
® Caso dos crimes habituais, aos quais se aplica a mesma lógica que nos casos dos crimes
de consumação duradoura, ou seja, segue-se o critério de referência do tempo da comissão
do delito a todo o período de consumação da ação. Ex.: violência doméstica.
® Caso dos crimes continuados, isto é, casos em que o direito trata vários crimes como se
fossem apenas um, porque existe um quadro de solicitação externa que diminui
sensivelmente a culpa do agente (art.30º/2 e 3 e art.79º CP). Todos foram praticados no
mesmo contexto em que o agente estava a vivenciar uma situação em que havia qualquer

10
Só há homicídio quando há morte. O homicídio consuma-se quando há morto. Até lá
só há tentativa de homicídio. Mas em que momento se verificou o momento da prática
do facto? Foi quando A deu o tiro a B, porque o que interessa é a atuação, nunca é o
resultado.
11
Taipa Carvalho: qualquer agravação da lei ocorrida antes do término da
consumação só pode valer para aqueles elementos típicos do comportamento
verificados após o momento da modificação legislativa

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


coisa na realidade externa que o puxava para a prática do crime, que diminuía as suas
resistências à prática do crime. Mas não é um quadro qualquer que o chama para o crime:
é um tal que qualquer pessoa olhasse para ele e dissesse que diminuía a culpa do agente.
® Professora Maria Fernanda Palma: esta unificação jurídica de
comportamentos autónomos justifica a aplicação da lei nova, ainda que mais
gravosa, a todo o período da continuação criminosa.
® Doutrina italiana: o tempus delicti pode ser determinado relativamente a cada
um dos crimes, determinando-se a pena de cada crime segundo a lei vigente no
momento da sua prática e correspondentemente a pena do crime mais grave.

Só que sendo no direito português o crime continuado uma figura


atenuante, pressupõe-se uma unificação jurídica de todas as ações da
continuação. Assim, poderia aplicar-se o critério dos crimes
permanentes, aplicando-se a última lei do período de continuação.
Mesmo sendo a lei nova mais gravosa seria possível, pois nesse caso
ainda se estaria a aplicar uma pena relativa a um único crime por uma
lei que antecederia o termo da ação continuada. A aplicação da lei
anterior menos grave seria paradoxalmente uma atenuação da pena de
uma série de crimes (incluindo o crime já praticado na vigência da lei
nova) relativamente à prática de um único crime sob a vigência da lei
nova agravante. Isto só não se resolveria assim no caso de uma lei nova
incriminadora que não se pudesse aplicar retroativamente ou no caso
extremo em que a punição segundo lei posterior pudesse ser mais
gravosa do que resultaria do concurso efetivo dos crimes (art.30º/1 e
art.77º CPC).
Uma questão interessante é saber se, sujeita a esta proibição de retroatividade, está, alem
da lei, também a jurisprudência? Ou seja, será que uma corrente jurisprudencial, definida
e estabilizada, pode ser alterada contra o agente, mesmo que a lei não tenha sido alterada?
A aplicação de uma nova corrente jurisprudencial não viola o princípio da legalidade, porem não
deixa de colocar em causa valores que lhe estão associados – existe uma frustração de expetativas
por parte dos cidadãos, uma vez que achavam que a conduta não tinha relevância penal, de acordo
com uma interpretação judicial publicada no Diário da República.
Assim sendo, devem os tribunais ser extremamente cuidadosos no que toca à aplicação de uma
nova corrente jurisprudencial contra o agente, sendo aqui ainda mais exigente o respeito pelo
‘quadro’ de significados em que se traduz o texto da lei.
Ainda assim, o cidadão que atuou com base em expetativas fundadas numa corrente
jurisprudencial primitiva, não se encontra completamente desprotegido, uma vez que pode
amparar-se numa falta de consciência do ilícito, não censurável, que determinará a exclusão da
culpa e, consequentemente, da sua punição – artigo 17º/1. Tal como sabemos a culpa é um limite
do direito penal – se não há culpa, não se aplica a pena.

Retroatividade Das Medidas De Segurança

Art.29º/1 e 3 CRP e art.2º CP – afasta a retroatividade das medidas de segurança, o fundamento


desta proibição não é essencialmente a culpa, mas sim a segurança dos destinatários do Direito
própria de um Estado de Direito democrático – a retroatividade das medidas de segurança iria
permitir uma intervenção sem controlo do poder punitivo na liberdade dos cidadãos.

A tese defendida na doutrina portuguesa por Maria João Antunes e apoiada pelo Professor
Figueiredo Dias, segundo a qual a proibição da retroatividade nas medidas de segurança seria
excetuada no momento da formulação pelo Tribunal do juízo de perigosidade, aplicando-se

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


a lei vigente no momento da formulação do juízo de perigosidade é uma redução teleológica do
art.2º/1 CP, contra o arguido.

® Com efeito, a chamada tese diferenciadora excluiria, na prática, da proibição de


retroatividade os factos reveladores da perigosidade que justificam a medida de
segurança, com o argumento de que os referidos pressupostos são essenciais para escolher
a medida adequada à perigosidade do agente no momento em que é condenado –
proibição da retroatividade apenas referente à medida em si e não aos pressupostos.
® Crítica: quebrar-se-ia a conexão dos indícios de perigosidade como pressuposto que é a
prática de um facto típico e ilícito, admitindo-se, desse modo, uma medida de segurança
para uma perigosidade desligada do facto típico e ilícito.

Retroatividade e Processo Penal

Art.5º/1 CPP – aplicabilidade imediata da nova lei processual penal.


¿ O nº2 deste artigo limita a aplicabilidade imediata relativamente aos processos
iniciados anteriormente à sua vigência, nos casos de agravamento sensível da
situação processual do arguido e de quebra de harmonia e unidade de vários atos
do processo.
¿ Há assim limites à aplicabilidade imediata resultantes diretamente do princípio
constitucional da proibição da retroatividade e do próprio subprincípio contido no
art.5º/2 CPP.

O primeiro tipo de limites exclui a aplicabilidade imediata de todas as normas de Processo


Penal que não se possam caracterizar como puras normas processuais, mas que sejam de
natureza substantiva penal.

Aplicabilidade imediata justifica-se, apenas, relativamente a normas que regulem o


modo de proceder dos tribunais na definição concreta do Direito Penal e não já
relativamente a normas que se refiram às condições de procedibilidade ou causas de
extinção do procedimento criminal, como acontece com as normas que regulam os prazos
prescricionais, na medida em que estas delimitem direta e exclusivamente a relação
jurídica punitiva.

Normas que aumentam prazo de procedimento prescricional


Prescrição – extinção da responsabilidade criminal pelo decurso do tempo, a contar desde o
momento da prática do facto. A partir do momento da prática do facto, começa a correr o prazo
da prescrição. Findo esse prazo, a responsabilidade extingue-se, e o arguido já não pode ser
punido criminalmente. Enquanto não haja transito em julgado, a questão da prescrição é sempre
relevante.
A extensão do prazo prescricional não afeta realmente um direito subjetivo dos autores dos
crimes, mas revelam uma alteração da necessidade de punir e uma intensificação da dignidade
punitiva comparativamente com a vigente no momento da prática do crime. Mas a aplicação
imediata do prazo prescricional revelaria a punição de um crime praticado no passado, o que
enfraqueceria a limitação que o direito outrora criou, não assegurando a autolimitação própria do
Estado de Direito – e o Estado tem de vincular o direito ao princípio da confiança, daí que se
proíba a retroatividade.

® O Estado altera os prazos prescricionais que se aplicariam aos processos pendentes.


Também aqui não há como ultrapassar o argumento de que o Estado tem de se vincular
ao direito que cria e não pode interferir em casos já conhecidos criando legislação que se
vai aplicar para compensar os efeitos de alguma inércia. Não é aceitável, para a

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Professora Fernanda Palma, por razões de confiança e segurança. Estas leis estão
sujeitas à proibição da retroatividade.

Normalmente, entende-se que a prescrição é processual-material. Tem relevância material,


relevância substantiva, penal, porque influi diretamente na situação de responsabilidade do
agente, logo, à questão da prescrição podem aplicar-se as regras gerais do 29º/4 CRP e 1º e 2º CP
– uma lei posterior não pode ter como efeito o ressuscitar de uma responsabilidade penal
que já se extingui.

Entendimento do TEDH – diz que a pessoa não tem o direito à prescrição, ou seja, não tem a
expectativa do seu crime prescrever. Esta pessoa não pode ser protegida face a uma lei
posterior desfavorável – as leis prescricionais posteriores desfavoráveis aplicam-se desde que,
entretanto, o prazo prescricional ainda não tenha decorrido. Se entrar em vigor durante o
decurso do prazo, aplica-se a lei nova. Entende que esta solução não viola a Carta dos Direitos
Humanos.

® Críticas Professora Maria Fernanda Palma:


® Quem trata dos prazos de prescrição é o CP e o CPP, tem, portanto, uma natureza
substantiva e não processual;
® Manipulação da prescrição através da lei, o que permitiria ao Estado utilizar este
instituto para os seus próprios interesses.

Crimes públicos, semi-públicos e particulares


® Crimes públicos – competência do MP para iniciar a ação penal. Ex.: homicídio;
® Crimes semi-públicos – competência do MP para iniciativa de ação penal depende de
uma queixa do ofendido. Ex.: crimes sexuais;
® Crimes particulares – além da queixa, tem de haver uma atuação particular. Quem tem
a iniciativa e dirige a ação penal é o ofendido. Ex.: crimes menos graves e associados à
privacidade do próprio ofendido.

De semi-público a público
Rejeita-se a aplicação imediata da lei que transforma um crime particular ou semi-público em
público, de modo que o facto criminoso cometido no passado, contra o qual não foi deduzida a
queixa, não pode vir a ser objeto de processo penal
De público a semi-público
Como antes era crime público, toda e qualquer iniciativa estava nas mãos do Ministério Público
não havia necessidade de queixa – com a conversão passa a haver necessidade de queixa. O
princípio do Estado de Direito – como regra de objetividade, previsibilidade e segurança jurídica
geral – que impõe, neste caso, que as expectativas do titular do direito de queixa não sejam
defraudadas, dando-se-lhe a oportunidade processual de exercer o seu direito após a entrada
em vigor da lei nova.

Aplicação retroativa da lei penal mais favorável


Art.29º/4 CRP e Art.2º/4 CP

É admissível a aplicação da lei penal mais favorável – o fundamento da retroatividade in melius


é simultaneamente a igualdade e a necessidade da pena. A retroatividade in melius surge como
um princípio e não apenas como uma exceção à proibição da retroatividade – se a lei penal
posterior suprimir uma norma incriminadora, será injusto que agentes de factos idênticos recebam
tratamentos radicalmente diferente.

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Problemática do art.29º/4 CRP: parece sugerir a aplicação retroativa da lei penal mais
favorável mesmo nos casos que já tenham transitado em julgado, na medida em que refere as
‘’leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido’’. Contudo, o trânsito em julgado não
parece adequar-se ao fundamento do princípio da retroatividade in milius – a referência a
arguido não é sinónimo de ‘’caso julgado’’.

O art.2º/4 CP partindo do princípio geral da aplicabilidade da lei mais favorável, prevê a cessação
da condenação e de todos os seus efeitos, logo que a ‘’parte da pena que se encontrar cumprida
atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior’’. A aplicação retroativa da lei penal
de conteúdo mais favorável impõem que se determine em concreto o regime mais favorável
para o arguido, isto é, que se considere qual seria a medida da pena mais favorável, em face de
todas as causas de justificação, desculpa, atenuação, agravação e procedibilidade de uma
determinada lei.

Delimitação da sucessão de leis no tempo


A retroatividade in milus pressupõe uma verdadeira sucessão de leis no tempo, ou seja, as normas
penais sucessivas têm de fundamentar a decisão dos mesmos casos, ainda que de modo diverso.
Por isso, não haverá verdadeira sucessão de leis se o comportamento que é objeto de juízo
de ilicitude for parcialmente reproduzido na lei posterior – a sucessão de leis depende de o
comportamento anteriormente contemplado não implicar necessariamente a verificação da
conduta prevista na lei posterior.

O problema que se coloca é o de saber se nesses casos houve uma alteração do regime punitivo
(art.2º/4 CP) ou antes um fenómeno de desincriminação, com as consequências do art.2º/2 CP.
® Na segunda solução, a conversão de um crime numa contraordenação implicaria a
extinção de qualquer responsabilidade jurídica de facto passado. Esta substituição de uma
responsabilidade mais gravosa que existia anteriormente, a responsabilidade penal, por
uma responsabilidade menos grave seria traduzida, também, numa substituição da pena
por uma sanção menos grave, a coima.
® Maria Fernanda Palma: é incorreto defender uma total extinção da responsabilidade
jurídica do agente nestas situações, devendo existir sempre uma transformação do seu
comportamento ao novo regime aplicável, de forma que, nos casos em que haja uma
verdadeira extinção da responsabilidade do agente quanto aos factos passados, esta
extinção seja fundada numa vontade explícita e concreta do legislador.

A retroatividade in milus pressupõe uma verdadeira sucessão de leis no tempo, ou seja, as normas
penais sucessivas têm de fundamentar a decisão dos mesmos casos, ainda que de modo diverso.
Por isso, não haverá verdadeira sucessão de leis se o comportamento que é objeto de juízo
de ilicitude for parcialmente reproduzido na lei posterior – a sucessão de leis depende de o
comportamento anteriormente contemplado não implicar necessariamente a verificação da
conduta prevista na lei posterior.
O problema que se coloca é o de saber se nesses casos houve uma alteração do regime punitivo
(art.2º/4 CP) ou antes um fenómeno de desincriminação, com as consequências do art.2º/2 CP.
1. Conversão de crimes em contraordenações
A conversão de crimes em contraordenações implicaria a extinção pura e simples de
qualquer responsabilidade jurídica, de modo que o desaparecimento da incriminação
corresponderia a uma extinção de toda e qualquer responsabilidade pelo facto passado.

A contraordenação é uma infração de natureza administrativa, logo,


distinta, na sua natureza e fins, da infração penal: constitui um cenário de
despenalização da respetiva conduta, que tem eficácia retroativa (artigo
29º/4/2ª parte CRP; art.2º/2 do Código Penal). Conclusão: a partir da

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entrada em vigor da lei que alterou a qualificação não poderá aplicar-se a
L2; se a sentença tiver já transitado em julgado, cessam a execução da
pena e os efeitos penais da condenação.
Para o Professor Figueiredo Dias: a fixação constitucional do princípio da aplicação da lei mais
favorável, isto é o princípio segundo o qual a proibição da retroatividade só vale contra o agente,
não a favor dele (art. 29º/4, 2º parte CRP) trouxe problemas 12 nas hipóteses de
descriminalização (uma lei posterior à prática do facto deixe de considerar este como crime),
nomeadamente nestes casos em que determinada conduta deixa de ser crime e passa a constituir
uma contraordenação: para o professor, a proteção dos cidadãos perante o poder punitivo
estadual e a tutela das suas expectativas não são postas em causa pela punição contra ordenacional
nestas circunstâncias, isto porque no momento da prática do facto não existiam razões para que o
agente pudesse esperar ficar impune: é aplicada a sanção contra ordenacional (beneficia de um
regime que é concretamente mais favorável)

2. Conversão de contraordenações em crimes


É uma lei penalizadora, visto que passa a qualificar como infração penal uma conduta que,
anteriormente, consistir em ilícito de mera ordenação social.
Professor Taipa de Carvalho: para que se aplique a lei contra-ordenacional, ou seja, a lei
anterior, é preciso que a lei que procede à conversão preveja um regime transitório; não o fazendo,
o agente não é punido.

3. Conversão de um crime de perigo abstrato em crime de perigo concreto


No caso da Lei 1 dispensar a prova efetiva do perigo para bens jurídicos e a Lei 2 requerer uma
tal prova. Como tal, se na lei 1 se dispensava esta prova, abrangendo-se mais factos, na lei 2 há
uma restrição que abrange ainda assim factos causadores de perigo. Por exemplo, se o crime de
incêndio for um crime de perigo abstrato e passar a concreto, os incêndios reveladores de perigo
para pessoas, praticados ao abrigo da lei 1, não deixariam de ser puníveis pela lei 2, que tenha
vindo a excluir o mero perigo presumido, exigindo uma efetivação do perigo.

4. Conversão de um crime de perigo concreto em crime de perigo abstrato


Envolve uma ampliação da responsabilidade, mas os comportamentos de perigo concreto são
incluídos no novo conjunto de factos por maioria de razão.
Questão: a sucessão de leis que origina a conversão do crime público em semi-público é uma
verdadeira sucessão de leis penais para efeitos da aplicação do art.2º/2 e 4 do CP?
A pergunta justifica-se por se entender que tal violaria uma não aplicação retroativa da lei penal
posterior a factos que foram cometidos antes da sua vigência, sendo esta última mais favorável.
Acontece que isto pode alterar o direito de queixa, questão que não é estritamente penal no sentido
dos arts.2º/4 CP e 29º/4 CRP.
Sendo justificada a retroatividade in melius pela igualdade e necessidade de pena, a exigência do
exercício do direito de queixa para o desencadeamento do processo penal não significa
diretamente a diminuição da necessidade de punir nem pretende necessariamente favorecer
a posição do autor do crime, embora esses efeitos possam ser reflexamente produzidos. Com
efeito, a despublicização de crimes pode ter um fim de mera proteção da vítima ou então
revelar um desinteresse do Estado pela iniciativa processual, devido a razões de política
criminal. Nesses casos, a fundamentação normativa do direito de queixa seria negada com uma

12 Outro ponto que o professor Figueiredo Dias indica que foi problemático ocorre nas
Hipóteses de atenuação da consequência jurídica: casos em que a nova lei atenua as consequências
jurídicas que ao facto se ligam—de acordo com o art. 2º/4 “cessam a execução e os seus efeitos penais
logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei
posterior”—há um limite à execução da pena concreta aplicada na condenação transitada em julgado, mas
o “condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime (art. 371º-
A CPP)

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aplicação retroativa da lei posterior que levasse a um automático arquivamento dos processos e à
total impossibilidade do exercício do mesmo direito.

Nesse sentido, nunca se poderia dizer que tais casos se submeteriam exclusivamente ao
art.29º/4 CRP. Onde não haja qualquer sentido desincriminador (isto é, relacionável com a
necessidade de punir da despublicização), o art.29º/4 da CRP tem difícil aplicação na sua
plenitude lógica. Já nos casos em que a despublicização revele uma menor intensidade do
direito de punir, seria mais compreensível uma decisão segundo o art.29º/4 CRP, sem que,
no entanto, essa aplicação pudesse ser absolutamente limitativa dos direitos do ofendido. Assim,
tanto nos últimos casos como nos primeiros (em que o art.29º/4 CRP não estaria em causa), a
solução jurídica mais harmoniosa será a da atribuição ao ofendido da oportunidade processual
para o exercício do direito de queixa.
® Nos casos de despublicização para proteção da vítima (que não se submetem
plenamente à ratio dos arts.29º/4 CRP e 2º/4 CP), a ultratividade da lei anterior (crime
público) levaria a uma desigualdade entre os arguidos pelos mesmos crimes antes e depois
da despublicização, se não se viesse a exigir o exercício do direito de queixa.
® Nos outros casos, em que se divisa um sentido relativamente descriminalizador (uma
menor necessidade de punir), a aplicação retroativa da lei que despubliciza implicaria
uma desproteção dos titulares do direito de queixa que o art.29º/4 não pode em rigor
produzir, impondo-se uma contenção do seu alcance pelo princípio do Estado de Direito
democrático (art.2º CRP).

Por todas estas razões se impõe uma única solução jurídica para estes casos: a atribuição de
oportunidade de exercício do direito de queixa. O seu fundamento não decorre direta e
exclusivamente do art.29º/4 CRP, mas sim dos princípios jurídicos que a este subjazem (igualdade
e necessidade da pena), articuladamente com a proteção da confiança emanada do Estado de
Direito democrático. Justifica-se, simultaneamente, a aplicação imediata da lei nova e a proteção
do exercício do direito de queixa.

Leis temporárias e de emergência


Professor Taipa de Carvalho: A lei penal temporária é a lei penal que, visando prevenir a prática
de determinadas condutas numa situação de emergência ou de anormalidade social, se destina a
vigorar apenas durante essa situação de emergência, pré-determinando ela própria a data de
cessação da sua vigência.
A especialidade do regime da lei temporária reside no facto da sua aplicabilidade a todas as
condutas nela previstas e praticadas durante a sua vigência, independentemente de, no
momento do julgamento, a lei temporária já não estar em vigor
A retroatividade da lei penal de conteúdo mais favorável não abrange as leis temporárias e
de emergência – art.2º/3 CP ‘’quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua
a ser punível o facto praticado durante esse período’’. Contudo, o conteúdo normativo deste
preceito não pretende referir-se a uma sucessão de leis penais em sentido próprio. A doutrina a
que o preceito se refere considera que a lei posterior que descriminaliza a conduta (ou que lhe
atribui uma pena menos grave) não inclui entre os seus elementos típicos a situação de crise ou
excecional, havendo uma alteração essencial no ilícito típico, entre as duas leis temporalmente
sucessivas, mas não sucessivas segundo critérios jurídicos13.

13
Faz-se uma lei penal para casos de emergência (ex: incêndios, catástrofes e etc.) em
que se incorpora a
própria situação de emergência (é elemento específico do tipo incriminador).
Passando a crise de emergência ela caduca, pois o elemento da factualidade que ela prevê
já não se verifica pois não tem nenhuma justificação numa situação fáctica.

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Professor Maria Fernanda Palma: uma tal doutrina explica melhor a solução legal para as leis
de emergência do que para as leis temporárias. É, na verdade, discutível que a intenção
manifestada pelo legislador quanto à vigência temporária de uma lei baste para legitimar a ultra-
atividade da lei e a não aplicação do princípio da retroatividade in melius. O tempo seria, no caso
de tais leis, um elemento típico essencialmente constitutivo do ilícito penal que orientaria as
expectativas dos destinatários para a ultra-atividade antecipadamente.
A exceção ao princípio da retroatividade in melius determinada pelo caráter temporário das leis
não é, todavia, uma restrição, constitucionalmente indiscutível, em face do art.29º/4 CRP. O
caráter temporário que não esteja associado a uma excecionalidade historicamente objetiva
da situação típica prevista pelo legislador não se subtrai pela sua própria natureza aos
princípios da necessidade da pena e da igualdade, que delimitam o conteúdo do art.29º/4 CRP.
O art.2º/3 CP não pode ultrapassar aqueles princípios constitucionais apenas apoiado na
prevalência da intenção legislativa quanto ao caráter temporário de uma lei.
Assim como o legislador ordinário não pode legitimamente decretar que a retroatividade in melius
não se aplica quando descriminaliza, também a atribuição de caráter temporário a uma lei, em
situações em que subsista uma verdadeira sucessão de leis, tem de ser disciplinada pelos
princípios da igualdade e da necessidade da pena.
Por outro lado, em situações de sucessão de leis de emergência, a aplicação retroativa da lei
mais favorável deve impor-se sempre que persista como elemento constante do tipo
incriminador a mesma situação de excecionalidade. Fora desses casos, porém, a sucessão de
leis de emergência cabe na previsão do art.2º/3 CP.
No caso das leis temporárias, a valoração jurídico-penal das condutas, praticadas durante a
vigência da lei temporária, mantém-se e, por isso, se compreende, político-criminalmente e
jurídico-constitucionalmente, que, apesar de a lei já não estar em vigor (porque o facto deixou,
por força da normalização da situação social, de revestir o perigo que tinha para os respetivos
bens jurídico-penais), que a conduta, praticada durante a vigência da lei temporária, deve e
continue a ser punível.

Lei penal inconstitucional e problema da sucessão de leis no tempo


Outro problema que se coloca sobre a aplicação da lei penal no momento é a sucessão de leis em
que a lei mais favorável, que deveria ser aplicável, venha a ser declarada inconstitucional. Ou
seja, pode uma lei inconstitucional ser ainda assim aplicável por ser mais favorável, de
acordo com o art.29º/4 CRP ou outra norma constitucional?

A doutrina diverge:
Segundo a primeira posição (RUI PEREIRA), a lei penal inconstitucional é inválida e, por
isso, não pode produzir quaisquer efeitos.
® Tal como indica o art.282º CRP a declaração de inconstitucionalidade (ou de ilegalidade)
produz efeitos desde a entrada em vigor de norma declarada inconstitucional (ou
ilegal) e determina a repristinação das normas que ela haja revogado. Assim, deixará
de existir qualquer sucessão de leis no tempo e, no caso de a lei inconstitucional ser a lei
posterior mais favorável, não se estaria sequer perante a situação prevista no art.29º/4
CRP;
® A repristinação da norma revogada, embora menos favorável, torna-se inevitável;
® Como nestes casos pode ter havido um erro sobre a ilicitude do facto, se o agente agiu
durante a vigência da norma inconstitucional, esse erro excluirá em princípio a
culpabilidade do agente ao abrigo do art.17º CP. Aplica-se também a parte geral do CP;

E se só depois de caducada a lei é que se julga o arguido? As leis são diferentes. Não há
sucessão de leis.
A lei que caducou ainda está em vigor para o passado, ela é ultra-ativa. Ela tem de ser
aplicada.

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® Se já tiver sido aplicado a lei mais favorável, nos termos do art.282º/1 CRP,
preserva-se o caso julgado. A única exceção a esta preservação do caso julgado está
prevista no nº3, precisamente para situações diferentes das que se analisam em que a lei
penal inconstitucional aplicável for menos favorável, situação em que se levantará o caso
julgado para repristinar a lei penal revogada mais favorável, de acordo com a regra geral
estabelecida no art.282º/1 CRP.
A posição contrária (JORGE MIRANDA) defende que não se poderá interpretar rigidamente
o art.282º em conjugação com outros critérios constitucionais como o do art.29º/4 CRP, ou
do princípio do Estado de Direito assente na confiança.
® Defende, então, que, neste caso difícil, a lei penal posterior inconstitucional deve ser
aplicada, porque foi ela que orientou o comportamento do agente e o Estado
vinculou através dela o comportamento dos destinatários.
® O fundamento para esta solução é:
® Por um lado, uma prevalência do princípio da igualdade subjacente ao art.29º/4
CRP ou, como parece preferível, do princípio do Estado de Direito, como
expressão de vinculação do Estado ao Direito que cria perante os destinatários. E
ainda a prevalência do valor constitucional do princípio do Estado de Direito e
da sua expressão de confiança perante os destinatários das normas penais;
® Por outro, sempre se poderá argumentar que existe, no art.282º CRP, uma lacuna,
na medida em que, configurando a não salvaguarda do caso julgado nos casos de
lei penal inconstitucional menos favorável, dando prevalência ao princípio da lei
mais favorável, não tem em conta a situação inversa, de lei inconstitucional mais
favorável.

Professora Maria Fernanda Palma: a segunda solução parece preferível, porque não recorre a
uma verificação fictícia de erro sobre a ilicitude e a um mero expediente de recurso ao art.17º CP
para deixar de punir o agente pela lei mais severa. No caso de o art.17º CP não ser aplicável,
restaria apenas atenuar a pena de acordo com a medida da lei inconstitucional mais favorável.
Invoca o princípio da autovinculação do Estado ao Direito que produz, atendendo ao princípio do
Estado de Direito democrático.
Por outro lado, para além dos inconvenientes de uma ficção na solução destes casos, também não
se tem em conta que o problema colocado se situa nas fendas de duas normas constitucionais e
de vários princípios e que, dada a importância da aplicação da lei mais favorável em termos de
direitos, igualdade, e de restrição mínima da liberdade, haverá uma lacuna a ser integrada pela
articulação dos princípios.
Com efeito, se no art.282º CRP a proteção do caso julgado prevalece sobre as consequências da
declaração de inconstitucionalidade, em geral, e essa prevalência só é afastada devido à exceção
prevista no nº3 de a lei penal ser menos favorável, verifica-se uma prevalência do princípio da
aplicabilidade da lei mais favorável que tem um papel de revogação do próprio caso julgado.
Ora tal supremacia do referido princípio mostra bem que uma articulação semelhante se deverá
fazer na situação não contemplada no art.282º, do qual deveria constar uma norma que para além
das situações de caso julgado por lei penal menos favorável, que caberão sempre no art.282º/1
CRP, salvaguardaria, ainda, por razões de igualdade, de necessidade da lei penal e da confiança
inerente ao Estado de Direito, a aplicação da lei penal inconstitucional mais favorável.

ESQUEMA DE RESOLUÇÃO DOS CASOS DE APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO


TEMPO

® ASSISTENTE RICARDO SILVA:

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1º PASSO: ir ao art. 2.º/1 do CP (e 29º/1 e 3 da CRP; e 29º/4, primeira parte, da CRP) na sua
interpretação literal, que contém o princípio geral, pela positiva, de acordo com o qual ao facto
aplica-se a lei (o regime) vigente no momento da prática do facto (fundamento no princípio da
legalidade, vertente lei prévia)

2º PASSO: ir ao art. 3.º do CP para identificar o momento da prática do facto (critério unilateral,
especialmente relevante nos crimes de resultado) e, deste modo, saber qual é a lei (o regime)
aplicável (à partida)

3º PASSO: identificar se há ou não uma alteração legislativa (que envolva a lei aplicável à
partida)
— se não existir qualquer alteração legislativa, já acabámos
— mas, se existir uma alteração legislativa, voltamos ao art. 2º/1 (e 29º/1 e 3 da CRP; e
29º/4, primeira parte, da CRP), desta feita interpretado a contrario, que contém ainda o
princípio geral, agora pela negativa, de não-aplicação da lei nova (proibição da
retroatividade do regime posterior)

4º PASSO: ver se o regime novo se consubstancia numa descriminalização (é revogada a norma


incriminadora; ou é acrescentada uma norma permissiva e o caso cabe nela) ou se numa sucessão
de normas penais (mantém-se a permissão, muda a estatuição), pois origina- se uma exceção ao
princípio geral, o princípio da obrigação de aplicação retroativa do regime penal mais favorável
(fundamento no princípio da igualdade e no princípio da desnecessidade da pena)
— se tiver havido uma descriminalização, aplicar o art. 2º/2 do CP (e 29º/4, segunda parte,
da CRP)
— se tiver havido uma sucessão de normas, aplicar o art. 2º/4 do CP (e 29º/4, segunda parte,
da CRP)

5º PASSO: dar a solução para o caso concreto

® ASSISTENTE MAFALDA MELIM

PASSO 1
Identificar o problema: lei no tempo, associado ao princípio da legalidade, no
corolário da lei prévia que diz que é necessário que haja uma lei anterior à prática do
facto que preveja a conduta como crime, que é o que resulta do art.29º/1 e 3 CRP e
art.1º/1 CP.
PASSO 2
Aplicar a lei em vigor no momento da prática do facto (art.29º/1 e 3 CRP + art.2º/1 e 3
CP).
PASSO 3
Identificar o momento da prática do facto (critério unilateral de conduta) – art.3º CP.
Fundamentos deste critério: razões de segurança e culpa, de modo a garantir que o
agente tem as condições necessárias para decidir praticar o facto ou não.
PASSO 4
Comparar a solução da lei 1 e da lei 2, porque só se a lei 2 for mais favorável é que a
vamos aplicar ao agente – temos mesmo que dizer qual é a pena respetiva que seria
aplicada.
PASSO 5
Se a lei 2 for mais favorável aplica-se retroativamente, se for menos favorável aplica-se
a lei 1.
PASSO 6

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Explicar as consequências da aplicação da lei que aplicarmos.

Aplicação da lei penal no espaço

Universalidade da lei penal


A necessidade de coexistência espacial de diversas ordens jurídicas é uma limitação natural a
um desenvolvimento absoluto dos princípios, sendo que no Direito Penal de um Estado a
territorialidade tende a ser o critério básico da validade especial da lei penal.
® Contudo, num âmbito que aumenta progressivamente, o Direito Penal de um Estado
protege valores universais para além dos limites do território e dos vínculos
nacionais, cooperando com outras ordens jurídicas e intervindo onde os critérios de
validade espacial de outras ordens não permitam uma tutela eficaz de certos bens
jurídicos.
® Direito Penal Internacional: corresponde ao âmbito de validade especial do Direito
Penal Português fora do território do Estado.

A. O princípio da territorialidade da aplicação da lei penal portuguesa (art. 4º do CP)

A aplicação da lei penal portuguesa por força da territorialidade depende do que se entenda por
território português e o que se considere por praticar um facto no território português
® Território Português: espaço definido como tal pela Constituição (art. 5º/1 e 2 CRP) e
pela lei, incluindo o espaço terreste, marítimo e aéreo. Além disso, incluem-se neste
âmbito os navios e as aeronaves portuguesas (princípio do pavilhão—art. 4º/b), bem
como os crimes cometidos em aeronaves estrangeiras nos termos do Decreto nº 254/2003
(em decorrência da extensão da competência territorial)
® Praticar um facto em território português- art. 7º CP: “ter atuado (total ou
parcialmente, e sob qualquer forma de compartição), deve ter atuado (no caso de
omissão) ou ter sido produzido o resultado típico em território português”.
× Teoria da ubiquidade: basta que um dos dois elementos essenciais do tipo
objetivo (ação e resultado) se tenha verificado em território português para que
a lei penal portuguesa se possa aplicar—este critério é diverso do que se
estabelece para o momento da prática do facto (art. 3º), orientado pelo princípio
da legalidade (art. 29º/1 CRP), sendo que estes critérios se aplicam
independentemente do princípio da ubiquidade que apenas pretende estabelecer
o âmbito de validade espacial da lei penal portuguesa14.

A aplicabilidade dos artigos 4º e 7º do CP tem de observar todos os princípios a que a lei penal
se subordina (aplicação no tempo, proibição da analogia, etc). Além disso, o art. 7º basta-se com

14
Exemplo: sucessão de leis no tempo em que o resultado seja produzido em território
português num momento em que passou a vigorar uma lei que vem punir o facto,
quando no momento em que o facto foi praticado, no estrangeiro, não era punido em
Portugalà art. 7º determina a aplicabilidade ao facto da lei penal portuguesa;
contudo, nos termos do art. 2º/1 CP e do art. 29º/1 CRP o facto não pode ser punido

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a tentativa inacabada, mas não já com a prática de atos preparatórios não puníveis15 (art. 21º e
22º CP) para a definição da prática do facto.

Quanto às situações de mera possibilidade de ocorrência do dano a lei estipula que no caso de
tentativa, o facto considera-se igualmente praticado no lugar em que de acordo com a
representação do agente, o resultado se deveria ter produzido.
® Por outro lado, ainda subsiste a questão de saber se a mera ocorrência de dano (lesão
do bem jurídico) sem que o resultado típico se verifique em Portugal permite considerar
praticado em território português o facto – MFP: apesar de bastar para a definição do
local da prática do crime a realização do resultado típico, esse primeiro momento não
afasta a conexão com a ordem jurídica portuguesa, quando apenas se relacione com ela
a perduração do mesmo resultado. Assim, naqueles tipos legais de crimes em que a
tipicidade se consuma com um resultado anterior à lesão efetiva do bem jurídico, a
produção do dano é elemento de conexão especial com a lei penal portuguesa,
pressupondo uma intensificação ou um desenvolvimento do evento típico.

B. Princípio da defesa dos interesses nacionais (art. 5º/1, alínea a)

A territorialidade da lei penal não permite estabelecer exaustivamente uma conexão entre o
poder punitivo e a defesa de bens jurídicos essenciais à preservação de certas condições
essenciais da organização e da segurança da sociedade, sempre que ocorram lesões de bens
exteriores ao território português, mas que façam perigar as condições referidas—art. 5º/1,
alínea a): burla informática- art. 221º; crimes de falsificação de moeda, título crédito e valor
selado por cunhos, pesos e objetos análogos- art. 262º a 271º; crimes contra a segurança do
Estado e contra a realização do Estado de Direito- art. 308º a 321º, 325º a 345º;
® MFP: defende que a realidade de novos espaços extraterritoriais de titularidade de
interesses nacionais é especialmente notória em matéria ambiental, em que a ação e o
resultado podem ser extraterritoriais, mas em que o perigo para os bens jurídicos
nacionais justificaria imediata intervenção penal;

C. Princípio da universalidade da aplicação da lei penal portuguesa (art. 5º/1, alínea c)

A validade espacial da lei penal portuguesa delimita-se pela necessidade de cooperação do


Estado português na proteção penal de bens da humanidade de valor universal—a alínea c) do
art. 5º refere-se a alguns crimes especialmente suscetíveis de não vinculação espacial:
— Contra a liberdade em várias dimensões, incluindo as físicas e corporais e a
autodeterminação sexual (art. 144º-A, crime de mutilação genital feminina; art. 154º- B,
crime de casamento forçado; art. 159º, crime de escravidão; art. 160º, crime de tráfico
de pessoas; art. 161º, rapto; art. 171º a 176º , crimes contra. autodeterminação secual
contra crianças e menores);
— Crimes ambientais
— Crimes contra a humanidade que, apesar de não integrarem a previsão do artigo, seguem
um critério universalista (art. 5º da Lei nº 31/2004);

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Com exceção de atos preparatórios realizados num contexto de comparticipação
criminosa, como sucede p.ex na cumplicidade

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


O Direito Penal português aplica-se a tais crimes praticados tanto em Portugal como no
estrangeiro “desde que o agente seja encontrado em território nacional e não possa ser
extraditado ou entregue em execução de mandado de detenção europeu ou de outro
instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português”

Assim, a universalidade de certas infrações pressupõe uma transnacionalidade das instâncias


punitivas, ou pelo menos uma cooperação convencionada entre os Estados na repressão de tais
formas de infração.

Questão: até onde pode e deve ir a validade espacial das leis internas sem que o princípio da
cooperação entre as ordens jurídicas inerente se deturpe, potenciando a conflitualidade entre
Estados?
® O princípio geral será o de uma soberania justificada pela própria função internacional
humanista e humanitária do Estado de Direito Democrático, no sentido cooperativo com
os outros Estados que se orientem pelos mesmos desígnios;

Art. 5º/1, alínea d)16:


Surge como extensão deste princípio, no qual a lei penal portuguesa se aplica ainda a crimes
graves praticados fora do território português contra menores, tais como as ofensas corporais
(art. 144º), os crimes contra a autodeterminação sexual, coação sexual (art. 163º) e violação
(art. 164º), reproduzindo as mesmas condições de punibilidade da alínea c).

A professora MFP ainda destaca outra importante manifestação deste princípio da


universalidade nos casos da legislação sobre os crimes de terrorismo: Lei nº 52º/2013, que no
seu artigo 8º estabelece que a lei penal portuguesa se aplica sem quaisquer restrições aos crimes
de organização terrorista e de terrorismo previstos nos artigos 2º e 4º.

D. O princípio da nacionalidade (art. 5º/1, alínea e)

A lei penal portuguesa aplica-se a factos praticados fora do território nacional por portugueses
(princípio da nacionalidade ativa) ou por estrangeiros contra portugueses (princípio da
nacionalidade passiva), desde que certos requisitos se verifiquem (art. 5º/1, alínea e), i), ii) e
iii)).

Em geral este princípio justifica-se pelo vínculo dos cidadãos portugueses à soberania punitiva
do seu próprio Estado (nacionalidade ativa) e pelo dever de o Estado português conceder
proteção aos bens jurídicos de que os cidadãos portugueses sejam titulares, ainda que no
estrangeiro (nacionalidade passiva).
® O princípio da nacionalidade ativa dá expressão ao princípio da não extradição de
nacionais consagrado no art. 33º/1 CRP, que tem como contrapartida o dever de o
Estado português assegurar a perseguição penal ou o julgamento dos factos criminosos
praticados pelos cidadãos portugueses no estrangeiro;

Requisitos cumulativos do art. 5º/1, alínea e):


— Os agentes serem encontrados em Portugal;

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Extensão do âmbito da lei penal portuguesa introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de
setembro, justificada pela política internacional em que Portugal participa destinada a
conceder uma especial proteção aos menores em face da criminalidade internacional.

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— Os factos serem também puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido
praticados, salvo quando nesse lugar não se exercer poder punitivo;
— Os factos constituírem crimes que admitam extradição e esta não possa ser concedida ou
seja decidida a não entrega do agente em execução de mandado de detenção europeu ou
de outro instrumento de cooperação que vincule o Estado Português;

Há então um duplo fundamento de limitação do âmbito de influência do poder punitivo do


Estado Português:
1) A aplicação da lei penal portuguesa pressupõe um mínimo de respeito pelas
expectativas dos agentes envolvidos e pelo sentido de desvalor (de ilícito) das suas
condutas no estrangeiro, bem como pela igualdade entre aqueles agentes e os
estrangeiros que a lei penal portuguesa não possa abranger—assim, os agentes terão de
ser puníveis pela legislação do lugar em que os factos foram praticados;
2) Os agentes terão de ser encontrados em território português e não poderão ser
extraditados ou entregues a outro título incluindo os casos em que essa situação dependa
de uma decisão do Estado português, ou seja, deve estar-se perante uma situação em que
este possa punir aqueles agentes, por razões materiais e jurídico-constitucionais.
× O Estado português terá a possibilidade de os punir (presença no território),
como também, por força dos princípios constitucionais (art. 33º/1/2/3), estará
colocado numa posição em que só ele pode punir ou em que existe a
possibilidade legal de ser o Estado a punir e assim seja decidido;

Art. 5º/1, alínea b)


Representa uma manifestação do princípio da nacionalidade, reportando-se às situações em que
os agentes praticam os factos no estrangeiro para se subtraírem propositalmente ao poder
punitivo do Estado português, sem que, no entanto, estejam determinados pela irrelevância
penal das suas condutas, não tendo cabimento assegurar expectativas ou proteger a igualdade
na proteção jurídica entre esses agentes e os estrangeiros.
® Nestes casos as condições do art. 5º/1, e) não são exigidas, porque há verdadeiramente
um interesse em aplicar ao agente a lei penal portuguesa e não apenas suprir lacunas de
punibilidade;

Problemas levantados pela interpretação do art. 5º/1, e)


Poderá questionar-se quais os contornos concetuais e o âmbito da exigência de punição no lugar
em que os factos tiverem sido praticados. Será exigida uma punibilidade em abstrato (as meras
tipicidade e ilicitude) ou em concreto a inexistência de causas de exclusão da culpa ou da
punibilidade reportadas à pessoa do agente?
® MFP: a lógica imanente ao princípio da nacionalidade bastar-se-ia, em rigor, com a
tipicidade e a ilicitude dos factos no território estrangeiro, isto é, com a sua
contrariedade objetiva à ordem jurídica estrangeira, pois só estas categorias
fundamentariam expectativas quanto à irrelevância do facto (não desvalor).

Contudo, uma aplicação da lei penal de que decorresse uma punibilidade de factos não
puníveis em concreto no estrangeiro redundaria numa violação do princípio da
aplicação da lei penal estrangeira mais favorável (art. 6º/2 CP)

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


Assim, a professora regente defende que a melhor interpretação do art. 5º/1, e), ii)
impõe que a lei penal portuguesa seja aplicável, por força do princípio da nacionalidade
conjugado com o da aplicação da lei penal estrangeira mais favorável apenas nos casos
em que o facto concreto seja punível no país estrangeiro
— A circunstância do art. 6º/1 impor a aplicação da lei penal estrangeira mais
favorável impõe, por maioria de razão, que onde o agente nem pudesse ter sido
julgado no estrangeiro (por condição objetiva ou subjetividade de punibilidade,
ou por uma condição de procedibilidade) ou em que, se fosse julgado nunca
poderia ter sido condenado (p.ex. por causa de exclusão de culpa), nem sequer
deva ser submetido à aplicabilidade da lei penal portuguesa

Levanta-se outra questão quando à interpretação do art. 5º/1, b), quando ao que se deve entender
por crime contra portugueses
® Historicamente o preceito tinha como objetivo contemplar crimes como a bigamia e o
aborto.

Atualmente, apesar de o aborto consentido proibido ter como objeto da ação típica o próprio feto
e o bem jurídico protegido ser a vida intra-uterina, são ainda os interesses da sociedade
portuguesa como um todo que são afetados: a vida intra uterina de “futuro cidadão português”
é um bem cuja tutela penal se tem que justificar por um interesse objetivo da sociedade.

Por outro lado, em inúmeras outras infrações há uma mera titularidade coletiva do bem jurídico
a justificar a incriminação, como acontece nos crimes contra a vida em sociedade ou contra o
Estado (art. 247º a 307º e 308º a 385º do CP)

Segundo esta argumentação não estaríamos perante qualquer analogia proibida

Contudo, sendo a norma sistematicamente mais próxima o art. 5º/1, e), referida à direta proteção
pessoal dos portugueses, na perspetiva da nacionalidade passiva, e não aos interesses coletivos
dos portugueses e sendo simultaneamente a alínea b) moldada pelo sentido da alínea e) o
elemento sistemático da interpretação de uma norma que consagra um alargamento excecional
ao princípio da nacionalidade não poderá integrar interesses gerais e coletivos dos portugueses
sem ultrapassar o sentido possível das palavras.

Por fim, o art. 5º/1, g) veio estender o princípio da nacionalidade (ativa e passiva) às pessoas
coletivas com sede em território português—esta norma tem de ser articulada com o art. 11º do
CP que estabelece os casos e pressupostos da responsabilidade penal das pessoas coletivas.

Isabel Moniz FDUL 2021/20221


ESQUEMA DE RESOLUÇÃO DOS CASOS SOBRE APLICAÇÃO DA LEI PENAL
NO ESPAÇO

® ASSISTENTE RICARDO SILVA:

1) aferir se o facto foi praticado em território português, no sentido amplo do termo permitido
pela legislação (nos termos do art. 7º do CP: se foi o lugar da ação/omissão ou o lugar do
resultado)

a) se sim, aplica-se a lei portuguesa (princípio da territorialidade, art. 4º)

2) se não:
a) ver se se aplica a lei portuguesa pelos princípios complementares (nomeadamente):
® a1) princípio da defesa dos interesses nacionais (art. 5º/a)) e da nacionalidade passiva
(5º/1, e), 2ª parte) a2) princípio da universalidade (5º/1, c)) a3) princípio da nacionalidade
ativa (5º/1, e), 1ª parte) e respetiva extensão (5º/1, b))

b) ver se há exceções:
® b1) não se aplica a lei portuguesa se o agente não tiver sido julgado no país onde praticou
o facto ou se tiver subtraído ao cumprimento da pena (art. 6º/1)
® b2) o agente é julgado pela lei do país do facto se esta for concretamente mais favorável
(art. 6.º/2)

c) ver se há exceção à exceção: a aplicação da lei estrangeira mais favorável é afastada (aplica-se
a lei portuguesa) se caso do princípio da proteção dos interesses nacionais – art. 5.º/1, a) – ou da
extensão do princípio da nacionalidade – art. 5.º/1, b) – (art. 6.º/3)

3) consequências concretas para o agente

Isabel Moniz FDUL 2021/20221

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