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Fractal: Revista de Psicologia, v. 30, n. 2, p. 204-213, maio-ago. 2018. doi: https://doi.org/10.

22409/1984-0292/v30i2/5527
Artigos

A devolutiva como exercício ético-político do pesquisar


Ueberson Ribeiro Almeida,Orcid, H Janaína Mariano César,Orcid
Luzimar dos Santos Luciano,Orcid Pedro Henrique CarvalhoOrcid
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
Resumo
Apresenta a problemática da devolutiva em uma pesquisa realizada com professores(as) de uma escola da Rede Pública. Experi-
menta a devolutiva como exercício que inclui a todos no processo de produção do conhecimento sobre o trabalho escolar e não
apenas como mera devolução de dados ao final da investigação. Trabalha metodologicamente com a produção de um quadro-dis-
positivo construído na escola. Problematiza a devolutiva como questão ética e modo de se relacionar com a produção do conhe-
cimento em pesquisa-intervenção. Produz deslocamentos dos “lugares” tradicionalmente ocupados na relação “pesquisador-pes-
quisado”, forjando inflexões no modelo dualista de fazer pesquisa e de “devolver dados” ao campo.
Palavras-chave: devolutiva; pesquisa-intervenção; escola.

The feedback as an ethical-political practice of the reseacher


Abstract
This work presents the issue of feedback in a research carried out with teachers of a Public School. It experiences feedback as an
exercise that includes everyone in the process of producing knowledge about the school work and not just as mere data feedback at
the end of the investigation. It works methodologically with the production of a device-board built in the school. It problematizes
the feedback as an ethical question and a way of relating to the production of knowledge in intervention research. It produces shifts
from traditionally occupied “places” in the “researcher-researched” relationship, forging inflections in the dualistic model of
making research and “returning data” to the field.
Keywords: feedback; intervention research; school.

Introdução investigados, bem como pesquisadores e participantes do


O presente texto apresenta como problemática central processo de pesquisa restam como entidades separadas e
a experiência da devolutiva em uma pesquisa1 realiza- substancializadas. Na postulação binarista, com relação
da com professores(as) de uma escola pública munici- ao que se problematiza, parece haver uma verdade obje-
pal de Serra/ES. Nesta, o exercício da devolutiva é de tiva passível de ser encontrada e restituída ao final de um
sua experimentação como processo, como um plano de processo de investigação, quanto aos sujeitos vinculados à
produção de análises com todos os sujeitos participantes pesquisa que acabam na posição de espectadores, alijados
em um movimento de “mão dupla”, o que gerou repo- daquilo que eles mesmos possibilitaram. Apontamos, no
sicionamentos relativos tanto à pesquisa quanto à ativi- entanto, a devolutiva menos como essa destinação locali-
dade de trabalho investigada. A questão da devolutiva zada dos dados coletados que se realiza dos pesquisadores
foi trabalhada na direção de que os sujeitos da escola e aos pesquisados e mais como cultivo de um processo que
os(as) pesquisadores(as) se colocassem em exercício de potencializa a entrada participativa de todos os envolvi-
deslocamento dos “lugares” tradicionalmente ocupados dos na pesquisa, que transforma modos de pesquisar-in-
na relação “pesquisador-pesquisado”,forjando assim, tervir, abrindo novos cursos éticos por onde a vida pode
uma inflexão no modelo hegemônico e dualista de fazer se movimentar e transformar-se.
pesquisa. Nesse sentido, o objetivo desse artigo é o de Conforme anunciado, a devolutiva se constituiu
apresentar os dilemas e impasses éticos do processo de como ingrediente problemático na pesquisa que desen-
devolutiva, traçando possibilidades para a produção do volvemos. Problemático porque se atualiza como o que
conhecimento na pesquisa-intervenção. força a pensar sobre este lugar de pesquisador e objeto
Tradicionalmente, a devolutiva constitui-se na pesqui- de pesquisa, sobre o processo de produção de conheci-
sa como um momento estanque e pontual no qual, ao final mento, sobre como efetivamente intervém em nosso vi-
do estudo, os pesquisadores “devolvem” ou creem “re- ver. Buscamos romper com uma lógica de produção do
tornar” ao campo investigado um conjunto de resultados conhecimento unilateral e de base representacional, a
obtidos. Nessa perspectiva, sujeitos e objetos (problemas) qual considera o pesquisador como aquele que acumu-
H
Endereço para correspondência: Universidade Federal do Espírito Santo, Centro
la e detém os resultados da pesquisa. Questionamos os
de Educação Física e Desportos. Av. Fernando Ferrari – LESEF – Goiabeiras – resultados como propriedade constituída por informa-
Vitoria, ES – Brasil. CEP: 29075-810 – Email: uebersonribeiro@hotmail.com,
jhanainacesar@gmail.com, luzimarluciano@gmail.com, pedrohenriquecarva-
ção acabada, forçando a pensar que, na correlação com
lho88@gmail.com a pesquisa, determinados mundos são produzidos. Nessa
1
Faz parte de uma pesquisa mais ampla intitulada “Processos de trabalho nas es-
colas da Serra: análise dos modos de fazer e de viver”, realizada pelo Programa
direção, os dados não são coletados em uma realidade já
de Formação e Investigação em Saúde e Trabalho (PFIST), vinculado ao Núcleo posta; são produzidos no percurso da pesquisa.
de Estudos e Pesquisas em Subjetividade e Políticas (Nepesp) da Universidade
Federal do Espírito Santo. Esse programa de pesquisa e formação é composto Afirmamos, portanto, a devolutiva na sua dimensão
por professores universitários, graduandos, pós-graduandos, técnicos e profis- processual, no sentido de que não se restringe apenas a um
sionais voluntários, advindos de diferentes áreas de formação: Administração,
Comunicação Social, Educação Física, Enfermagem, Letras, Psicologia, etc. momento, qualquer que seja ele, ou apenas a um “retorno

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A devolutiva como exercício ético-político do pesquisar

ao campo”. É antes um exercício transversal que move e Ao identificarmos a presença dessa discussão em al-
produz as direções do pesquisar. Assim, há devolutiva du- guns livros de metodologia de pesquisa utilizados como
rante todo o percurso da investigação, na interferência nos referência no campo da educação, percebemos que, em
pontos de vista, nas posturas, no surgir de sujeitos e mun- manuais de técnicas de elaboração de projetos de pesqui-
dos. Constitui-se, portanto, como mais que um momento sa, como Lakatos e Marconi (1991) e Gil (1991, 2002),
do trabalho, como o cultivo de um modo de fazer pesquisa a questão do “devolver” e como “devolver” os saberes
que afirmamos como pesquisa-intervenção.2 produzidos na pesquisa apresenta diversos sentidos e nu-
Discutir a inseparabilidade entre conhecer e fazer, anças. No primeiro autor, encontramos tópicos específi-
pesquisar e intervir não assegura, mas põe em curso o cos que aconselham os iniciantes em pesquisa sobre a
necessário exercício ético de acompanhar os efeitos in- importância da “apresentação das conclusões”, contudo a
terventivos produzidos no pesquisar. E a intervenção é preocupação é com a produção de relatórios técnicos que
o próprio plano em que se realiza um “[...] mergulho na possam ser apresentados ao final da pesquisa e em espa-
experiência que agencia sujeitos, objetos, teoria e prática ços estritamente acadêmicos. A pesquisa-ação que apare-
num plano de produção denominado plano de coerme- ce como um “tipo de pesquisa” retratada nesses manuais
gência” (PASSOS; BARROS, 2009, p. 17). traz como característica uma “análise e interpretação
compartilhada dos dados”, que se constitui como etapa
Com isso, acolhemos os desafios de se tomar, como
metodológica precedente à elaboração do plano de ação
orientação do pesquisar, menos as hipóteses ou verdades
a ser aplicado com o objetivo unilateral de transformar o
pressupostas acerca da realidade e mais um saber que
contexto diagnosticado.
emerge do fazer e que, ao mesmo tempo, modifica esse
fazer no sentido de “transformar para conhecer” (LOU- Autores como Becker (1997), Richardson et al.
RAU, 2004). Ainda que, em um momento ou outro essa (1999), Laville e Dionne (1999), Alami, Desjeux e Ga-
direção se confunda e percamos de vista essa dimensão rabuau-Moussaoui (2010) e, ainda, Moroz e Gianfaldoni
processual, ainda que pesquisador e sujeito de pesquisa (2006), sinalizam a necessidade de “comunicação dos
sejam sentidos de modos separados e sólidos, ainda que resultados da pesquisa” para além do círculo acadêmi-
vez ou outra o conhecer se desvincule do transformar – co, tornando o conhecimento uma instância de domínio
e isso não constitui demérito, pois é possível acontecer público e, portanto, também acessível àqueles que parti-
– a devolutiva nos auxilia, exatamente, na retomada da ciparam da investigação como fonte de dados. Ou seja,
direção, na reafirmação de um ethos, na avaliação dos trata-se da recepção de uma informação, de um resultado
processos, no cultivo da experiência. que vai depender da posição dos receptores e do que eles
poderão fazer com isso. De acordo com Alami, Desjeux
Na pesquisa realizada, pudemos analisar o quanto a
e Garabuau-Moussaoui (2010), os resultados das pesqui-
devolutiva possibilitou esse exercício de avaliação de nos-
sas necessitam ser traduzidos para transformar as infor-
sas práticas, pesquisadores e trabalhadores(as), dos instru-
mações em conhecimentos que possam ser apropriados
mentos utilizados, das implicações com a própria pesquisa.
pelos atores em suas ações.
Essa experimentação nos leva também a indagar: como a
problemática da devolutiva faz sentido e tem sido tratada Em linhas gerais, guardadas suas diferenças metodo-
no âmbito das metodologias de pesquisa em educação? lógicas e epistemológicas, na bibliografia supracitada, o
desafio e o papel político do pesquisador que investiga
Sem a pretensão de realizar um estado da arte sobre o as-
grupos ou indivíduos é o de fazer com que a comuni-
sunto, o que seria digno de um extenso trabalho de pesquisa,
cação do estudo realizado deixe de ser mera formalida-
nossa intenção é abrir o diálogo com algumas obras3 (livros,
de acadêmica e transforme-se em matéria que afirme o
textos e manuais) de metodologia e técnicas de pesquisa uti-
compromisso social assumido pelo investigador com o
lizadas comumente nas pesquisas em educação.
contexto ou instituição pesquisada. Ressaltamos que há,
Notas sobre a devolutiva em metodologias de nesses modos de conceber a devolutiva, a ideia de que os
pesquisa em educação pesquisadores, por ocuparem um lugar do saber científi-
Em um estudo sobre a produção do conhecimento co, verdadeiro (acadêmico), são os responsáveis por ela-
e as diferentes metodologias, Minayo (2008) conclui borar os conceitos e as prescrições que deverão “voltar”
que há diversidade de posturas na relação objeto-sujei- ao mundo vivido para orientar e conduzir uma existência
to. Também afirma que as concepções de devolutiva nas “ideal” dos grupos pesquisados.
pesquisas, no âmbito das ciências humanas, derivam da Pesquisas com vieses positivistas concebem de forma
organização teórica, de filiações e atravessamentos ins- dicotômica a relação sujeito cognoscente e objeto cog-
titucionais que constituem as balizas dos pesquisadores. noscível, apoiadas na crença de que há uma realidade
2
A pesquisa-intervenção foi formulada pela Análise Institucional Socioanalítica,
dada que, em condições adequadas pode ser decifrada,
desenvolvida na França durante as décadas de 60 e 70 (LOURAU, 2004). Faz-se o que traz ao menos duas consequências: a) procedimen-
como uma postura ético-política que busca romper com a concepção de produ-
ção de conhecimento como ação de um sujeito sobre um objeto, do pesquisador
tos e instrumentos de pesquisa, além das questões me-
sobre um campo de pesquisa. Com o intuito de dissolver relações dicotômicas todológicas, tornam-se um a priori da pesquisa, em que
estabelecidas entre professor/aluno, professor/pesquisador, gestor/trabalhador,
esse modo de pesquisa aponta o desmantelamento de posições dualísticas e afir-
o que se conhece não porta relações com o modo como
ma sua relação de inseparabilidade. se conhece e os envolvidos no processo de produção de
3
Embora algumas obras não sejam específicas de autores do campo da educação, conhecimento. Porém, como lembra Furlan (2008, p. 25),
são importantes referências metodológicas estudadas nos Cursos de Formação
Inicial de Professores. “[...] um microscópio pressupõe aceitação de uma teoria

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Ueberson Ribeiro Almeida; Janaína Mariano César; Luzimar Dos Sandos Luciano; Pedro Henrique Carvalho

óptica, uma balança pressupõe aceitação de uma teoria não apenas para os ditos pesquisadores, mas, sobretudo,
gravitacional e uma mecânica de seus elementos, etc.” também para os envolvidos nela, abre-se a possibilidade
Todas as teorias e seus instrumentos surgem de um mun- para que estes últimos possam participar, de fato, e se
do também em constante construção; b) o entendimento apropriar dos efeitos disparados.
de que os problemas de pesquisa diriam respeito apenas A devolutiva em seu sentido ampliado
aos pesquisadores, e por isso “eleitos” por estes, quan-
do o que se anula é o interesse dos grupos e sujeitos en- A noção, portanto, de devolutiva como retorno de
volvidos e a possibilidade de que o que se pesquisa lhes algo que foi formulado no processo de pesquisa e por
seja pertinente. “Como poderemos esperar constituir um isso pode então ser devolvido a um campo ou a alguém
saber interessante se não podemos encontrar a maneira comparece como o sentido forte, etimologicamente, da
como essas questões podem – ou não – interessar aqueles palavra “devolver”. Em italiano devòlvere, restituire,
a que nos dirigimos?” (DESPRET, 2011, p. 23). ação de restituir (SPINELLI; CASASANTA, 1962). Do
latim, restituō, pôr no primitivo lugar ou estado, resta-
Operando a produção do conhecimento de forma posi-
belecer (FERREIRA, 1983). Mas outro sentido também
tivista e dualista, o “restituído” não interessa diretamente
a acompanha, apontando-nos possíveis composições: do
às comunidades pesquisadas, mas serve apenas às próprias
latim dēvolvere, dēvolvō, (dē+ volvō), rolar, fazer dar
conclusões que o pesquisador pôde elaborar do trabalho
voltas, revolver (FERREIRA, 1983). Volvere, em italia-
realizado, no qual o interesse do pesquisador em si foi o
no, girare, ritornare, que acompanha o sentido de torcer
objetivo inicial, o meio e o fim. O retorno se constitui aí
e girar (MEA, 2000). O segundo sentido encontrado em
como mera formalidade, uma “obrigação” burocrático-mo-
dēvolvere e vólvere parece nos indicar movimento, “ro-
ral, que cumpre apenas os protocolos academicistas. Parece-
dar”, “girar”, mudança de posição.
-nos, entretanto, fundamental que as pesquisas não tomem
“o outro” como mero objeto, mas também o veja como um A devolutiva pode, portanto, fazer-se em pelo menos
produtor de saber com quem é imprescindível compartilhar dois sentidos. O primeiro deles, mais previsível, aponta o
a atividade de pesquisa, ainda que isso não implique homo- devolver como retorno, restituir ao lugar de origem algo
geneização de funções, mas uma reciprocidade capaz tanto que já existia, pôr onde estava. As pesquisas de cunho
de colocar em questão os modos de produção do conheci- positivista tomam a devolutiva, exatamente, nesse senti-
mento, quanto de abrir, juntos, no cotidiano, o que funciona do e fazem do processo de devolução de dados e análises
como problema interessante a todos. um momento de retorno do que já estava lá, talvez ainda
não sabido, mas que, no processo de investigação, ao ser
Percebemos também que algumas perspectivas me-
encontrado, pode retornar ao lugar de origem, ou seja, ao
todológicas dirigidas à pesquisa no cotidiano escolar e à
campo de pesquisa. Esse sentido, como vimos, também
formação continuada de professores apresentam nuanças
está presente em algumas perspectivas metodológicas no
importantes no sentido de buscar superar a relação de do-
campo da educação. Este não é, porém, aquele que gos-
mínio do pesquisador sobre os participantes e sobre o obje-
taríamos de tomar para o trabalho realizado na escola
to de pesquisa. Estas afirmam a importância da cooperação
municipal de Serra/ES, por entendermos que uma pesqui-
mútua entre os envolvidos na pesquisa, bem como a dis-
sa-intervenção está sempre a fazer devolutiva, está sempre
cussão coletiva das análises produzidas. Nessa linhagem,
a se fazer “na” devolutiva, por preocupar-se com a análise
podemos citar os estudos sobre a abordagem da “etnogra-
dos processos que fazem a pesquisa e nos quais estamos
fia da prática escolar” (ANDRË, 2003), a “pesquisa-ação”
todos, pesquisadores e educadores, sendo inventados.
(CONTRERAS DOMINGO, 1994; LATORRE, 2003) e
a perspectiva da “pesquisa-formação” (MACEDO, 2000). Acompanhamos a devolutiva, desse modo, em seu
segundo sentido: mudança de posição, torcer, girar. Fa-
A partir desse breve levantamento e, mesmo encon-
zendo uma inflexão nesse sentido etimológico, podemos
trando uma diversidade de sentidos para a devolutiva na
pensar a devolutiva como exercício de mudança. É uma
pesquisa em educação, parte significativa das metodolo-
mudança de posição ou, mais ainda, exercício de dissolu-
gias já consolidadas neste campo não apresenta preocu-
ção de uma posição, a do pesquisador (que realiza a pes-
pação com essa questão. Em síntese, identificamos que,
quisa), a do objeto (realidade dada de forma apriorística),
nesses estudos, a “devolutiva do que se estuda” aparece
a dos grupos e sujeitos participantes (como “meras” fon-
como mera formalidade, obrigação ao final da pesquisa,
tes de dados). Assim, a devolutiva é o próprio processo
levando alguns autores a entenderem, em alguns momen-
de construção coletiva, determinante para definir a cada
tos, que as comunidades ou os “objetos de pesquisa” não
momento os caminhos da pesquisa. É produzir uma tor-
teriam interesse pelos resultados ou, ainda, não conse-
ção nisso, que é direção já estabelecida, experimentando
guiriam alcançar os sentidos deste, necessitando de uma
possibilidades que o próprio caminhar nos traz.
tradução para que possam se apropriar do conhecimento
alcançado. É uma visão, portanto, em que há uma pre- Por isso, por mais que, em alguns momentos, a devo-
ocupação com um retorno de informações, lembrando lutiva se atualize como uma forma, um procedimento me-
que a produção de conhecimento se faz pelo pesquisador todológico: um instrumento de devolutiva, um encontro/
sobre um determinado campo, mas este, o campo, não reunião, um grupo avaliativo, e isso é plenamente pos-
é, de fato, considerado participante ativo na produção sível e necessário, o que queremos afirmar é que a “de-
dos saberes no processo de pesquisa. Porém, como nos volutiva é o processo de inclusão” dos diferentes atores
aponta Despret (2011), quando a pesquisa é interessante, envolvidos (trabalhadores(as), gestores, pesquisadores);

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dos diferentes analisadores (tensões, conflitos, parcerias, Buscamos com os docentes saídas para o que se co-
encontros e desencontros). É trazer para a pesquisa aqui- locava como impedimento. Logo emergiu fala que de-
lo que, por vezes, insistimos em expurgar, devolvendo os notavam o cansaço, o excesso de tarefas, de demandas,
saberes ao seu plano de constituição e problematização. de carga horária. Os docentes experimentavam essas
A aposta na inclusão altera o sentido tradicional de questões como sofrimento, pois muitos trabalhavam em
método. Passos e Barros (2009) apontam que, tradicio- dois turnos de aula e não, exatamente, nessa mesma es-
nalmente, o método de pesquisa define a metá (alvo) cola. Por isso diziam que a possibilidade de participar
como sendo anterior a hódos (caminho), sendo assim da pesquisa era durante o horário das aulas. De fato o
previamente determinado. Isso quer dizer que os obje- espaço da análise coletiva do trabalho deve ser susten-
tivos, alvos de estudo e procedimentos já estão traçados, tado como algo efetivamente do trabalho e por isso en-
inclusive a hipótese de resultado levantada no início da contrar modos de fazê-lo em sua carga horária era um
pesquisa. A mudança apontada por esses autores reside desafio interessante para todos. Mas essa mudança trazia
na possibilidade da construção coletiva das metas, que desdobramentos: como proceder com os alunos... Seriam
são traçadas ao longo do trabalho, na medida em que este dispensados? Ficariam sem aula naquele período? Os(as)
se faz, o que afirma a experiência de um hódos-metá, a professores(as) afirmavam que gostariam de participar da
excelência da experimentação do caminho. pesquisa, mas que, ao mesmo tempo, os alunos não pode-
riam ser dispensados.
A direção metodológica aponta que os procedimentos
construídos devem, pois, permitir aos sujeitos, aos cole- As mudanças dos encontros quanto a seu modo de
tivos de trabalho, transformar sua experiência vivida, não realização mobilizaram todos de maneira diferente. Os
sendo, portanto, propriedade apenas dos pesquisadores, pesquisadores se redistribuíram entre as atividades com
dos experts, mas meio de intervenção para todos os ato- o grupo de docentes e outras com os próprios alunos.
res envolvidos no processo. Os(as) professores(as) se reposicionaram no modo de en-
trada e participação nos encontros. E o que parecia mais
Experimentamos, ao longo da experiência em ques-
um procedimento para garantir o espaço de análise do
tão, esse hódos-metá, ou essas torções e giros que a
trabalho mostrou-se também um rico processo.4
invenção de um caminho de pesquisa nos possibilita,
quando as experiências nos solicitavam redobrada aten- Ocupar o lugar dos(das) professores(as) produziu
ção, redirecionamento, mudança de instrumentos, reposi- uma intervenção importante nos pesquisadores e nos pró-
cionamento nas relações, ou seja, avaliação permanente. prios modos de analisar a atividade de trabalho na escola.
Estar na “pele” do professor fez emergir inúmeras reper-
Encontros na escola, a devolutiva como exercício cussões em um trabalho que pareceu quase impossível
Quando afirmamos a devolutiva como processo, esta- para muitos de nós, em que muitos sofreram de uma qua-
mos, de fato, diante de um grande desafio, que, por mais se inabilidade na relação com os alunos na sala de aula, o
que nos pareça extremamente interessante, nem por isso que afirmava os saberes legítimos dos docentes. Aquele
é simples, pois o que faz é colocar em questão nossas que realiza o trabalho é também o que possui autoridade
vaidades, expectativas, conhecimentos e verdades. Expe- e expertise para falar sobre este.
rimentamos tal processo, quando, no início dos encontros Vemos nessa experiência um exercício de devolutiva,
na escola, propomos, por exemplo, desenvolver a pesqui- torção e reposicionamento, que produziu mudanças no
sa com os professores após o horário das aulas, em um curso das ações. Isso porque a base de tal processo foi a
tempo que, por Lei, eles deveriam nesta permanecer para prática de inclusão dos sujeitos da pesquisa como parti-
cumprir a jornada de trabalho. Iniciamos, dessa forma, o cipantes efetivos e também das problemáticas e conflitos
trabalho de oficinas de fotos da pesquisa nos turnos matu- presentes. A devolutiva é esse processo de avaliação do
tino e vespertino, mas sentimos que o envolvimento com que se passa em nós e conosco e que exercita sempre a
o trabalho foi perdendo sua potência, até que os docentes relação entre a pesquisa e um plano mais amplo de sua
sinalizaram com um “Não é mais possível, nesse horário produção, dimensão coletiva, que perturba, atrapalha e
não dá” (PROFESSORA – diário de campo, 2009). problematiza as lógicas de separação e exclusão e abre
Parecia, então, que algo estava acontecendo... Sentí- também para outras composições.
amos um desinteresse no grupo. Os docentes pareciam Devolutiva de quê? Para quê? Para quem?
cansados. Nas reuniões ocorridas após as 17h30min, a
exaustão era perceptível. Além disso, havia uma presen- Outro ponto importante de avaliação foi um desen-
ça pouco investida no encontro por estarem, muitas ve- contro vivido entre a finalização do ano de 2009 e reiní-
zes, preocupados com a família, com a volta dos filhos cio das atividades tanto da escola quanto da pesquisa em
da escola etc., além de um cansaço do próprio dia de tra- 2010. Três meses se passaram entre o último encontro,
balho. Claro que não se tratava apenas de realizar uma em novembro de 2009, e o contato para retorno dos traba-
mudança de horários, mas também de olhar para a rela- lhos no outro ano. Isso porque tomamos o calendário aca-
ção que estávamos a construir entre nós e com a própria dêmico como referência temporal. No retorno à escola,
pesquisa. Como os(as) professores(as) experimentavam houve uma surpresa por parte do grupo PFIST/NEPESP,
esses encontros? Como se incluíam ou se sentiam inclu- primeiramente, porque, com a mudança do ano, o qua-
ídos? Como participavam do planejamento e decisões
4
Tal experiência é discutida com detalhes em trabalho destinado à análise das
sobre como e quando estes se dariam? oficinas realizadas com os alunos.

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Ueberson Ribeiro Almeida; Janaína Mariano César; Luzimar Dos Sandos Luciano; Pedro Henrique Carvalho

dro de funcionários foi rearranjado. Havia muitas pesso- avaliar de forma mais ampliada os caminhos que, ao lon-
as recém-chegadas e outras com as quais trabalhávamos go dos anos, foram produzindo este grupo de pesquisa, as
realocadas em outras escolas. Ocorreu não somente uma mudanças experimentadas, as afirmações e intervenções.
mudança com relação aos trabalhadores, mas algo de dife- Pois bem, o estranhamento e a mobilização gerados no
rente na relação entre a escola e o grupo de pesquisa. Isso encontro e retorno à escola pediram-nos que não apenas
era sentido na dificuldade de estabelecer uma agenda para analisássemos a nós separadamente. Sentíamos necessida-
um encontro com todos, nos desencontros com a diretoria de de fazer isso junto com os trabalhadores para avançar e
da escola e na sensação de não sermos mais bem-vindos. evitar cair no ressentimento e na pessoalização/individuali-
Todo esse estranhamento e dificuldades do retorno zação das atividades. Não havia um “nós” UFES culpado
movimentou o grupo de pesquisa na Universidade Fede- ou ressentido; não havia “um eles” Escola, vítima ou res-
ral do Espírito Santo (UFES) a avaliar as ações e relações sentida. O que se passava acontecia entre nós, produzido por
construídas. Enquanto fazíamos tais análises de forma todos. Cabia, então, que pudéssemos cuidar disso juntos.
separada no ambiente institucional da universidade, Ressaltamos que a cada vez que se avaliou a direção
continuávamos a tentar um encontro na escola. Este foi do trabalho com todos os envolvidos, que se sentiu neces-
possível após nossa insistência e realizado sob esse es- sidade de experimentar mudanças de métodos e técnicas,
tranhamento. Os trabalhadores nos diziam que não mais bem como avaliar expectativas, era o processo de devolu-
queriam o trabalho de pesquisa, que estavam com muitas tiva que estava em curso. Devolutiva como? Devolutiva de
atividades extras, além de cansados e necessitando reali- quê? Devolutiva para quem? Devolutiva como inclusão da
zar tarefas mais pontuais, por exemplo, a formulação do pesquisa no seu plano problemático de constituição. Então
projeto político-pedagógico. aqui não se devolvem dados analisados para os sujeitos
Com a continuada tentativa de conversa com os docen- pesquisados em um certo momento. O que se faz é res-
tes, percebemos o quanto, nós, da universidade, funcioná- tituir/devolver ao problema bem feito sua complexidade
vamos em outro tempo. Eles apontavam que o NEPESP/ que, nesse movimento, ao invés de esclarecê-lo continua a
PFIST retornava à escola aquela altura do ano, contudo, as complicá-lo, a afirmá-lo na riqueza de possibilidades.
atividades escolares haviam sido retomadas há mais tem- O quadro como dispositivo na devolutiva
po, o que fez com que eles montassem outros planos de
trabalho. Havia ainda novas dificuldades na relação com a Ainda que a devolutiva seja um processo que acesse o
diretoria da escola, que parecia ressentida. plano da experiência, é necessário construir dispositivos.6
Um dispositivo pode se fazer de muitos modos, mas o que
Afetados por tudo isso, e na dificuldade de realizar
o torna tão interessante é que nos possibilita trabalhar com
uma conversa mais ampliada com os docentes, perce-
as linhas de saber, linhas de poder e linhas de subjetiva-
bemos que muitas questões circulavam no programa de
ção7 presentes na pesquisa. O dispositivo possibilita tanto
pesquisa. Teria faltado cuidado maior de nossa parte na
a análise dos arranjos provisórios entre essas linhas quanto
relação com a escola? Será que construímos uma proxi-
a possibilidade de neles intervir na construção de outros.
midade de fato com esse cotidiano escolar? Não sabía-
mos ao certo o que estava a se passar. Apesar de haver a Além disso, sua montagem acompanha o hódos-metá,
questão de uma demora no retorno às atividades, o que fazendo-se junto ao que atravessa o caminho de pesqui-
poderia ter se configurado como uma espécie de abando- sa. Tendo essa direção em vista, traremos neste ponto a
no e quebra de pactos firmados, ao mesmo tempo, não experiência de construção de um quadro de produção de
parecia ser o suficiente para tamanho desencontro insta- dados, que funcionou como dispositivo diante da finali-
lado. E, de fato, todas essas pontuações traziam um afeto zação do trabalho na escola e a tentativa de analisar jun-
triste de ressentimento, quase frustração. Sentimos isso tos o que produzimos e o que se passava entre nós.
quando começamos a ouvir, já nesse momento, que toda O dispositivo-quadro foi montado no sentido de que
essa pesquisa tão trabalhosa, com a realização de ofici- pudesse permitir que o desencontro do qual sofríamos
nas, vídeos, imagens, ou seja, uma intensa produção, não naquele momento pudesse viver uma torção, ao invés de
estaria se destinando, de fato, a mudanças necessárias funcionar como evento separado de todos os outros mo-
na escola. Deparamo-nos, então, com o que se colocava 6
Dispositivo aqui entendido como agenciamento concreto que atualiza os jogos
como problemático: o que se esperava da pesquisa? Da de forças e as relações de saber-poder, um disparador de produção de diferença
capaz de alterar posições subjetivas. Um quadro-dispositivo que, constituído por
universidade? Que mudanças se aguardavam? relações de poder-saber, é também atravessado por produção de subjetividade,
Podemos dizer que essa experiência funcionou como um caldeirão de debate e produção de valores, desvios e novas formas de exis-
tência (FOUCAULT, 1987; DELEUZE; GUATTARI, 1991, 1996).
um analisador5 de nossas práticas, mobilizando o grupo 7
Deleuze (1996), a partir do modo como Foucault faz filosofia, coloca a questão
NEPESP/PFIST em meses de discussão, atenção redobra- “O que é um dispositivo?” e, para trabalhá-la, afirmará o dispositivo como uma
meada, um conjunto multilinear, com composição de linhas de natureza dife-
da quanto aos métodos, às expectativas, ao cuidado com rente: linhas de poder, de saber e subjetivação ou, como também diria Foucault
as relações construídas. Essa mobilização guarda seus (2010, p. 5), “[...] formas de um saber possível, matrizes normativas de com-
portamento, modos de existência virtuais para sujeitos possíveis”. Guardemos,
efeitos ainda hoje, quando estamos nos dedicando a um então, que as linhas trabalham juntas produzindo, a cada formação histórica,
estudo metodológico mais aprofundado e ainda podendo modos de ver e falar, campos de visibilidade e enunciação, que produzem in-
clusive teorias, procedimentos e objetos de pesquisa. O que faz a ligação entre
5
O conceito de analisador foi formulado por Guattari, no contexto da Psicoterapia o que é visto e o que é dito são as linhas de forças, de poder-saber, móveis e em
Institucional, vindo a ser incorporado pela Análise Institucional Socioanalítica luta, que fazem desmanchar as objetivações, tornando provisório o que parece
(LOURAU, 2004). Os analisadores constituem-se como acontecimentos, dis- permanente. Emaranhadas a essas linhas, vemos ainda aquelas de subjetivação,
positivos, práticas, aquilo que catalisa fluxos de forças, que produz análises e de invenção de modos de existir. É, pois, no imbricamento das linhas que sujeitos
rupturas em modos naturalizados de se lidar com o viver. e mundos se produzem de forma inseparável.

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A devolutiva como exercício ético-político do pesquisar

mentos em que juntos estivemos e das muitas coisas que Dispositivo em movimento
foram possíveis. Não nos podíamos perder do plano pro- Para que o quadro guardasse a vida e a atividade dos
blemático que, inclusive, possibilitava o surgimento dos encontros e de acordo com os princípios ético-políticos já
bons problemas que vivíamos. São bons porque nos per- aqui colocados, entendemos que a operação a ser realiza-
mitem mudar. Era necessário devolver a esse plano, muito da para a imersão no plano problemático seria retornar à
mais amplo e, principalmente, coletivo, as questões que escola e produzir junto esse instrumento de análise.
apareciam individualizadas como problemas relacionais.
Para isso, o grupo NEPESP/PFIST debruçou-se sobre
Contatamos, portanto, a direção da escola e solicitamos todo o material registrado até então, fruto dos encontros
um agendamento para uma aproximação. Nessa ocasião, na escola. A partir da multiplicidade deste, mapeamos
houve a possibilidade de esclarecer questões e dúvidas so- questões que, ao longo da pesquisa, funcionaram como
bre a validação dos dados produzidos na pesquisa e sua analisadoras da atividade de trabalho, buscando também
importância para a análise coletiva dos processos de tra- os efeitos disparados. O quadro é montado a partir do
balho. Um encontro foi agendado no sentido de validar o que salta neste material, do que vibra como um índice
processo vivido, de análise e possíveis encaminhamentos. sensível da experiência.
Nesse momento da pesquisa, dispúnhamos de diários Compunha-se de quatro eixos, temas geradores que
de campo, anotações de conversas, transcrições das ofici- funcionaram como analisadores: Processos Grupais,
nas de fotos e vídeos com os docentes. O dispositivo-qua- Saúde do(a) Trabalhador(a), Gestão e Formação. Era
dro trazia o exercício de dar visibilidade às discussões e importante que os temas fossem amplos e guardassem a
análises produzidas na primeira etapa da pesquisa. Agre- complexidade das análises. Os temas geradores surgiam,
gou os dados produzidos em eixos analíticos, o que pa- portanto, a partir de falas analisadoras nos grupos e ofi-
recia facilitar a inclusão dos professores que não haviam cinas, que então lhes davam corpo e força, como uma
participado da pesquisa em 2009. Além disso, guardava espécie de indicadores de processo, e compunham a se-
espaços em branco, como um convite para comentários e gunda coluna. A terceira coluna do quadro guardava a co-
encaminhamentos escritos dos docentes. nexão com todas as anteriores e era por elas atravessada.
Nesse dispositivo não interessava enquadrar, encerrar, Perguntávamos nela: “O que nos mostra que isso é uma
nem quadricular a realidade. Buscamos construir um qua- questão?”. A pergunta pedia que voltássemos ao plano de
dro a exemplo do mapa rizomático, que permite acompa- constituição dos temas geradores e falas apontadas, para
nhar movimentos por ser aberto, “[...] conectável em todas trazer o que, de fato, funcionava como questão. Nessa am-
as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível pliação, buscávamos o que se mostrava como facilitador
de receber modificações constantemente” (DELEUZE; e/ou dificultador postos em funcionamento pelo modo de
GUATTARI, 1995, p. 22). Deleuze e Guattari (1995, p. organização do trabalho na escola. Na quarta coluna, bus-
22) esclarecem que o mapa se distingue do decalque: “[...] camos indicadores de efeitos dos encontros. Trata-se de
se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente reflexões e problematizações elaboradas pelos(as) traba-
voltado para uma experimentação ancorada no real”. lhadores(as) sobre a atividade que desenvolvem. Indicam,
Construir um mapa, que é sempre de múltiplas entra- portanto, reposicionamentos e possíveis mudanças em
das, é ampliar a análise, acolhendo o plano intensivo das curso. A última coluna se constitui como um convite para
transformações que estavam em curso. Já o decalque apon- a produção coletiva de encaminhamentos. Espaço aberto,
ta um recorte que produz uma certa realidade separada de em branco, que poderia funcionar como disparador para
seu plano de produção, de seu plano intensivo. Fechada a discussão do que havia sido produzido e também dos
em si, essa realidade contém sua própria inteligibilidade, pontos ressaltados nas outras colunas do quadro. Embora
voltando sempre “ao mesmo”. É como uma foto que cria este espaço não comporte o instrumento em sua totalida-
a ilusão de uma separação, isolando e organizando algo. de, para facilitar a sua visualização recortamos dois eixos
Deleuze e Guattari (1995) apontam também a importância analíticos do Quadro-Dispositivo (Eixo - Saúde do Tra-
e perigo do decalque, dizendo que, para o trabalho com ele balhador e Eixo - Formação) e o apresentamos a seguir:
é preciso atentar para o fato de que o decalque sempre se
projeta sobre o mapa, é um meio artificial de organizar o
mapa. Por isso os autores apontam a importância de sem-
pre religar o decalque ao mapa que o gerou.
No dispositivo construído, o quadro funciona tanto
como decalque quanto como mapa, já que pudemos obser-
var a inseparabilidade entre eles. Como decalque na medi-
da em que nos auxilia, como método artificial a organizar
os inúmeros indicadores de mudança e de análise experi-
mentados na pesquisa. De certo modo, é um recorte. Mas
é, sobretudo, mapa, porque guarda não só relação com a
multiplicidade do processo como também com a maneira
como é produzido. De forma coletiva, continua a afirmar o
plano intensivo e problemático, que é o próprio mapa aqui.

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Ueberson Ribeiro Almeida; Janaína Mariano César; Luzimar Dos Sandos Luciano; Pedro Henrique Carvalho

Quadro 1 – Instrumento de pesquisa

Quadro-Dispositivo

Tema Indicadores de
Gerador Falas dos trabalhadores da O que nos mostra efeitos dos Encaminhamentos –
(Eixo escola (disparadores) que isso é uma encontros construção de
Analítico) (Indicadores de Processo) questão? (Análises dispositivos
coletivas dos
trabalhadores)
“Uma colega está tomando tarja preta, Relatos de uso de “Acho que o .
é aquilo que você falou... ‘Você não medicamentos problema não é a
S pode se culpar pela doença, mas psicotrópicos escada, é que não 1) Planejamento
A acabava se culpando’. Eu também tem banheiro e nem coletivo para o retorno
Ú cheguei à conclusão que estou doente. Estratégias bebedouro lá em da pesquisa para a
D Aí eu procurei um psiquiatra. Quero individuais de cima. Então tem que secretaria.
E licença??? – Não, não quero!! Prefiro o enfrentamento descer para tudo
remédio. Então estou tomando (professora F)
D remédio, tô dançando como está Espaço físico
O tocando, então estou acomodando, não inadequado “E quem trabalha 2) Entender junto ao
estou fazendo nada e ninguém está em dois horários, setor da perícia médica,
T fazendo nada” (Professora F). Salários baixos tem que subir e no âmbito municipal, a
R “Cheguei em casa e pensei comigo ------------------------ descer toda hora. E questão do nexo-causal
A mesma: Eu sou capaz, eu vou Dificultadores não bebe água. relativo a doenças
B conseguir. Aí comecei a colocar Deus Resseca a garganta relacionadas com o
A na minha vida. Na sala de aula, em vez 1) fragilidade da rede e segura a urina o trabalho.
L de passar a leitura, eu passava música interna tempo todo”
H de Evangelho para os alunos e de 2) culpabilização (Professor B)
A repente a turma mudou e meu recorrente
D problema todo acabou. Não tomei 3) planejamento “Mas, afinal, o
O nenhum tipo de remédio para dormir. individual lamento não é uma 3) Viabilização de
R A gente tem que acreditar que a gente é 4) estrutura física expressão de alterações no espaço
capaz” (Professora G). inadequada e mal- potência? Como físico.
“Em todas as escolas que eu trabalho, e distribuída trabalhar com essa
já trabalhei em várias escolas, tem um 5) questão salarial questão?”
ou dois professores que estão 6) espaço para análise (Pesquisador)
enlouquecendo com o ambiente coletiva dos
escolar. É um acúmulo de coisas, é o processos de trabalho “Se a organização 4) Produção de um
barulho, é o aluno, é a violência, é a não acontece, Fórum para o debate e
própria dinâmica escolar. Isso tudo, Facilitadores interfere na sua viabilidade de
para o profissional que não tem saúde. E se eu tenho implementação de
estrutura, é uma avalanche”(Professor 1) cooperação entre um piripaque aqui Comissão de Saúde do
J.) professores quando dentro? É acidente Trabalhador da
“Vamos melhorar o salário. Eu algum professor de trabalho” Educação (COSATE)
trabalho o dia inteiro porque meu precisa se ausentar da (Professora M). nas escolas
salário é baixo” (Professora A). sala
“Acho que o problema não é a escada, 2) relações entre “Tem professor que
é que não tem banheiro e nem professores e entre já fica lá em cima e
bebedouro lá em cima. Então tem que estes e o gestor não desce na hora
descer para tudo. (Professor H) 3) relação entre do recreio para não
“E quem trabalha em dois horários, alunos e professores ter que subir de
tem que subir e descer toda hora. E não 4) professores volta. Isso tem
bebe água. Resseca a garganta e segura trabalhando dois prejuízo para saúde.
a urina o tempo todo”. turnos na mesma Não vai ao
“Todas as salas deveriam ser bem escola banheiro. Não bebe
arejadas e localizadas no andar de cima água suficiente”
que não tem barulho. Sala próxima ao (professora E).
refeitório é horrível, devido ao barulho
(Professora M).

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A devolutiva como exercício ético-político do pesquisar

(Continua)

O dispositivo-quadro funcionou como instrumento ensejo desse instrumento propunha era a entrada dos do-
importante tanto para dar visibilidade às questões, quanto centes na elaboração e refinamento do quadro, disparando
para que pudéssemos avaliar nossos caminhos juntos. So- o exercício de devolutiva e validação do processo.
bretudo, foi um bom artifício não para afunilar e construir Tanto os docentes do turno do matutino quanto os do
uma realidade/retrato do que foi o processo de pesquisa- turno vespertino consideraram importante realizar esse
-intervenção, mas para abrir e habitar o plano múltiplo e último encontro a partir da elaboração coletiva do quadro
problemático, o plano de composições do trabalho. analítico. Estivemos na escola, portanto, por algumas se-
Assim, com parte do quadro alinhavado por meio do manas, acompanhando o dispositivo em movimento e, ao
material/dados que possuíamos, voltamos ao cotidiano mesmo tempo, experimentando estar nesse cotidiano sem
escolar com cópias para os(as) trabalhadores(as) do que a pressa ou horário marcado habituais, apenas disponíveis
havíamos conseguido produzir e cartazes8 para afixar nos conversando nos períodos possíveis para cada educador,
murais coletivos, a fim de que os(as) educadores(as), cada entre uma aula e outra, no horário de planejamento, no
um a seu tempo, pudessem amadurecer as questões pro- sentido de aquecer e de dar vida ao quadro em processo.
postas, ver também se continuavam importantes, já que a Esse momento constituiu-se como importante e ne-
maior parte delas, eles mesmos haviam apontado. O que o cessário à produção de laços de confiança, condição
necessária à inclusão dos trabalhadores na produção de
saberes que movimentam o plano problemático ao ali-
8
Os cartazes traziam, entre outras informações, um convite aos(às) educado-
res(as) no qual estabelecia a data e o horário do encontro de avaliação coletiva
da pesquisa e do quadro montado.

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Ueberson Ribeiro Almeida; Janaína Mariano César; Luzimar Dos Sandos Luciano; Pedro Henrique Carvalho

mentá-lo com diferenças. O dispositivo-quadro como caminhamos e os encaminhamentos a serem feitos. Um


oportunidade já nos possibilitava entrar na escola, con- deles, inclusive, além da reunião com a Secretaria Muni-
versar, estar lado a lado. cipal de Educação, é colocado por um dos docentes que
Essa presença na escola e o fortalecimento do víncu- aponta a necessidade de construir na escola os espaços
lo com os(as) trabalhadores(as) promovem uma aproxi- coletivos de discussão.
mação novamente que marca a preparação para o novo A qualidade da disponibilidade e cuidado experimenta-
encontro com uma disposição muito festiva, de con- dos nessas últimas semanas nos apontam ainda a potência
fraternização, em que se pode planejar e compartilhar dos encontros não formais, do que se passa entre tomar um
coletivamente os afazeres para o dia, música, comida, café, conversar no intervalo das aulas, fazer festa, ouvir
bebidas, pauta do encontro etc. música, confraternizar-se, estar junto. A prática interventi-
No encontro-confraternização estavam presentes co- va também se faz nesses momentos e o plano da atividade
ordenadores, supervisores, pedagogos, professores, tra- da pesquisa deve também neles fazer sua morada.
balhadores do laboratório de informática da escola, além Os processos de devolutiva produziram avaliações e
dos alunos e professores vinculados à UFES. Comemora- intervenções importantes em nossos modos de pesquisar
va-se, nesse dia, a finalização do primeiro semestre esco- e operar com os instrumentos. Sinalizaram para a neces-
lar e também o percurso realizado na pesquisa. sidade do cuidado das relações com os participantes da
Além do quadro-dispositivo, outro dispositivo foi pesquisa, das relações entre todos, como princípio indis-
construído. Tratava-se de um vídeo9 com imagens, fotos pensável para o acesso e construção de uma dimensão
e áudio dos encontros até aquele momento. Foi exibido coletiva. É nessa dimensão que a devolutiva mergulha
nesse dia e atentamente acompanhado de risadas, sorri- construindo uma outra política de conhecimento, não as-
sos, aproximações em que um toca o outro, abraçam-se, séptica, mas que acolhe os problemas, aproveitando-os
dizem algo ao ouvido. O vídeo parece trazer um reen- como exercício de se viver e trabalhar juntos.
contro com os processos do pesquisar e afetos de alegria Referências
visivelmente circulam, dando sentidos à experiência.
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O quadro é então retomado e há um incômodo à ma- Os métodos qualitativos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
neira como está disposto. Os docentes estranham o re-
ANDRÉ, M. E. D. A. Etnografia da prática escolar. 9. ed.
corte que produz da experiência, este não diz de tudo o
Campinas, SP: Papirus, 2003.
que se viveu. Encontram-se nas falas transcritas e preo-
cupam-se com o modo como podem ser entendidas, ou BECKER, H. S. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São
com os mal-entendidos que podem produzir. Retomam Paulo: Hucitec, 1997.
as discussões sobre os processos de gestão, de saúde, a CONTRERAS DOMINGO, J. La investigación en la acción:
inclusão escolar, a questão da merenda e o impedimento Qué és? Cuadernos de Pedagogía, n. 224, p. 8-12, 1994.
aos professores de dela usufruir. DELEUZE, G; GUATTARI, F. Foucault, historiador do
As discussões são acaloradas. Uma professora, por presente. In: ESCOBAR, C. E. (Org.). Dossier Deleuze. Rio de
exemplo, ao não se sentir compreendida pelos demais em Janeiro: Hólon, 1991.
questionamentos que faz no quadro, retoma, muitas ve- DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e
zes, sua fala para recolocar a questão. E, a cada vez que esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995.
faz isso, as questões se ampliam um pouco mais.
DELEUZE, G; GUATTARI, F. O que é um dispositivo? O
As questões ampliam-se, por exemplo, quando afir- mistério de Ariana. Lisboa: Vega-Passagens, 1996.
mam que o “problema” da merenda não é uma dependên-
DESPRET, V. Leitura etnopsicológica do segredo. Fractal:
cia dessa alimentação, no sentido de que não pudessem
Revista de Psicologia, Niterói, v. 23, n. 1, p. 5-28, jan./abr.
comprá-la, mas a maneira como, atualmente, a carga 2011. CrossRef.
horária está disposta e, além disso, o ritmo intenso de
trabalho em mais de um turno de aulas impossibilita, FERREIRA, G. A. Dicionário de latim-português. Lisboa:
muitas vezes, que os docentes tenham um horário reser- Porto, 1983.
vado para refeição, tornando-se necessário para alguns FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão.
alimentarem-se no local de trabalho. Não se trata, por- Petrópolis, RJ: Vozes, 1987.
tanto, de um problema individual do(a) professor(a), e FURLAN, R. A questão do método na psicologia. Psicologia
sim de questões que tocam à organização do trabalho, os em Estudo, Maringá, v. 13, n. 1, p. 25-33, jan./mar. 2008.
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intensa jornada de trabalho. A merenda se desdobra como
Atlas, 1991.
questão que diz respeito a todos nós.
GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São
O encontro se faz nessa qualidade de afeto, avaliando
Paulo: Atlas, 2002.
o que pudemos fazer juntos, mapeando a partir do quadro
e do vídeo nossos deslocamentos e mudanças, as postu- LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. de A. Fundamentos de
ras enrijecidas que ainda necessitam de cuidado, o quanto metodologia científica. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1991.
9
O vídeo foi produzido pelo professor de Educação Física e as fotos por ou-
tros(as) professores(as). A edição dos pesquisadores da UFES lhe acrescentou
trechos temáticos das questões que foram debatidas nesse encontro.

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