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Capítulo VII

Integridade no direito

Uma visão de conjunto

Neste capítulo iremos desenvolver a"\erceira concepção


do direito que apresentei no capítulo III. O direito como inte-
gridade nega que as manifestações do direito sejam relatos fac-
tuais do convencionalismo, voltados para o passado, ou pro-
gramas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o
futuro. Insiste e/n que as afirmações jurídicas são opiniões in-
terpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se
voltam tanto para o passado quanto para o futuro; interpretam a
prática jurídica contemporânea como uma política em proces-
so de desenvolvimento. Assim, o direito como inttgridade rejei-
ta, por considerar inútil, a questão de se os juízes descobrem
ou inventam o direito; sugere que só entendemos o raciocínio
jurídico tendo em vista que os juízes fazeih as duas coisas e ne-
nhuma delas.

Integridade e interpretação

O princípio judiciário de integridade instrui os juízes a


identificar direitos e deveres legais, até onde for possível, a
partir do pressuposto de que foram todos criados por um único
autor - a comunidade personificada - , expressando uma con-
272 O IMPÉRIO DO DIREITO

cepção coerente de justiça e eqüidade. Elaboramos nossa ter-


ceira concepção do direito, nossa terceira perspectiva sobre
quais são os direitos e deveres que decorrem de decisões poli-
ticas anteriores, ao reafirmarmos essa orientação como uma
tese sobre os fundamentos do direito. Segundo o direito como
integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras se cons-
tam, ou se derivam, dos princípios de justiça, eqüidade e devi-
do processo legal que oferecem a melhor interpretação cons-
trutiva da prática jurídica da comunidade. Decidir se o direito
vai assegurar à sra. McLoughlin uma indenização pelos prejuí-
zos sofridos, por exemplo, equivale a decidir se vemos a práti-
ca jurídica sob sua melhor luz a partir do momento em que
supomos que a comunidade aceitou o princípio de que as pes-
soas na situação dela têm direito a ser indenizadas.
O direito como integridade é, portanto, mais inflexivel-
mente interpretativo do que o convencionalismo ou o pragma-
tismo. Essas últimas teorias se oferecem como interpretações.
S l o concepções de direito que pretendem mostrar nossas práti-
cas jurídicas sob sua melhor luz, e recomendam, em suas con-
clusões pós-interpretativas, estilos ou programas diferentes de
deliberação judicial. Mas os programas que recomendam não
são, em si, programas de interpretação; não pedem aos juízes
encarregados da decisão de casos difíceis que façam novos
exames, essencialmente interpretativos, da doutrina jurídica. O
convencionalismo exige que os juízes estudem os repertórios
jurídicos e os registros parlamentares para descobrir que deci-
sões foram tomadas pelas instituições às quais convencional-
mente se atribui poder legislativo. É evidente que vão surgir
problemas interpretativos ao longo desse processo: por exem-
plo, pode ser necessário interpretar um texto para decidir que
lei nossas convenções jurídicas constroem a partir dele. Uma
vez, porém, que um juiz tenha aceito o convencionalismo como
guia, não terá novas ocasiões de interpretar o registro legislati-
vo como um todo, ao tomar decisões sobre casos específicos.
O pragmatismo exige que os juízes pensem de modo instru-
mental sobre as melhores regras para o futuro. Esse exercício
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pode pedir a interpretação de alguma coisa que extrapola a ma-


téria jurídica: um pragmático utilitarista talvez precise preocu-
par-se com a melhor maneira de entender a idéia de bem-estar
comunitário, por exemplo. Uma vez mais, porém, um juiz que
aceite o pragmatismo não mais poderá interpretar a prática
jurídica em sua totalidade.
O direito como integridade é diferente: é tanto o produto
da interpretação abrangente da prática jurídica quanto sua fon-
te de inspiração. O programa que apresenta aos juízes que de-
cidem casos difíceis é essencialmente, não apenas contingen-
temente, interpretativo; o direito como integridade pede-lhes
que continuem interpretando o mesmo material que ele pró-
prio afirma ter interpretado com sucesso. Qferece-se como a
continuidade - e como origem - das interpretações mais deta-
lhadas que recomenda. Agora, portanto, devemos retomar o es-
tudo geral da interpretação que iniciamos no capítulo II. De-
vemos dar continuidade à descrição que ali fizemos do que é a
interpretação e de quando se pode afirmar que ela foi bem feita,
mas com mais 'detalhes e com o espírito mais voltado para o
desafio interpretativo especial que se coloca perante os juízes
e as outras pessoas que devem dizer o que é o direito.
t
integridade e história

A história é importante no direito como integridade: mui-


to, mas apenas em certo sentido. A integridade não exige coe-
rência de princípio em todas as etapas históricas do direito de
uma comunidade; não exige que os juízes tentem entender as
leis que aplicam como uma continuidade de princípio com o
direito de um século antes, j á em desuso, ou mesmo de uma ge-
ração anterior. Exige uma coerência de princípio mais horizon-
tal do que vertical ao longo de toda a gama de normas jurídicas
que a comunidade agora faz vigorar. Insiste em que o direito -
os direitos e deveres que decorrem de decisões coletivas toma-
das no passado e que, por esse motivo, permitem ou exigem a
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coerção - contém não apenas o limitado conteúdo explícito


dessas decisões, mas também, num sentido mais vasto, o siste-
ma de princípios necessários a sua justificativa. A história é
importante porque esse sistema de princípios deve justificar
tanto o status quanto o conteúdo dessas decisões anteriores. Nos-
sa justificativa para considerar a Lei das Espécies Ameaçadas
como direito, a menos (e até que) seja revogada, inclui o fato
crucial de ter sido sancionada pelo Congresso, e qualquer jus-
tificativa que apresentemos para tratar esse fato como crucial
deve ela própria incluir o modo como tratamos outros eventos
de nosso passado político.
O direito como integridade, portanto, começa no presente
e só se voita para o passado na medida em que seu enfoque
contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar,
mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos
políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim, justificar o
que eles fizeram (às vezes incluindo, como veremos, o que dis-
seram) em uma história geral digna de ser contada aqui, uma
história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a
prática atual pode ser organizada e justificada por princípios
suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado. O
direito como integridade deplora o mecanismo do antigo ponto
de vista de que "lei é lei", bem como o cinismo do novo "rea-
lismo". Considera esses dois pontos de vista como enraizados
na mesma falsa dicotomia entre encontrar e inventar a lei. Quan-
do um juiz declara que um determinado princípio está imbuído
no direito, sua opinião não reflete uma afirmação ingênua so-
bre os motivos dos estadistas do passado, uma afirmação que
um bom cínico poderia refutar facilmente, mas sim uma pro-
posta interpretativa: o princípio se ajusta a alguma parte com-
plexa da prática jurídica e a justifica; oferece uma maneira
atraente de ver, na estrutura dessa prática, a coerência de prin-
cípio que a integridade requer. O otimismo do direito é, nesse
sentido, conceituai; as declarações do direito são permanente-
mente construtivas, em virtude de sua própria natureza. Esse
otimismo pode estar deslocado: a prática jurídica pode termi-
nar por não ceder a nada além de uma interpretação profunda-
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mente cética. Mas isso não é inevitável somente porque a his-


tória de uma comunidade é feita de grandes conflitos e trans-
formações. Uma interpretação imaginativa pode ser elaborada
sobre terreno moralmente complicado, ou mesmo ambíguo.

A cadeia do direito

O romance em cadeia

Afirmei, no capítulo II, que a interpretação criativa vai bus-


car sua estrutura formal na idéia de intenção, não (pelo menos
não necessariamente) porque pretenda descobrir os propósitos
de qualquer pessoa ou grupo histórico específico, mas porque
pretende impor um propósito ao texto, aos dados ou às tradi-
ções que está interpretando. Uma vez que toda interpretação
criativa compartilha essa característica, e tem, portanto, um
aspecto ou componente normativo, podemos tirar proveito de
uma comparação entre o direito e outras formas ou circunstân-
cias de interpretação. Podemos comparar o juiz que decide
sobre o que é o direito em alguma questão judicial, não apenas
com os cidadãos da comunidade hipotética que analisa a corte-
sia que decidem o que essa tradição exige, mas «om o critico
literário que destrinça as várias dimensões de valor em uma
peça ou um poema complexo.
Os juizes, porém, são igualmente autores e críticos. Um
juiz que decide o caso McLoughlin ou BrSwn introduz acrésci-
mos na tradição que interpreta; os futuros juízes deparam com
uma nova tradição que inclui o que foi feito por aquele. É claro
que a crítica literária contribui com as tradições artísticas em que
trabalham os autores; a natureza e a importância dessa contri-
buição configuram, em si mesmas, problemas de teoria crítica.
Mas a contribuição dos juízes é mais direta, e a distinção entre
autòr e intérprete é mais uma questão de diferentes aspectos do
mesmo processo. Portanto, podemos encontrar uma compara-
ção ainda mais fértil entre literatura e direito ao criarmos um
gênero literário artificial que podemos chamar de "romance em
cadeia".
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Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um ro-


mance em série; cada romancista da cadeia interpreta os capí-
tulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então
acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por
diante. Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da
melhor maneira possível o romance em elaboração, e a com-
plexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um
caso difícil de direito como integridade. O projeto literário fic-
tício é fantástico, mas não irreconhecível. Na verdade, alguns
romances foram escritos dessa maneira, ainda que com uma
finalidade espúria, e certos jogos de salão para os fins de sema-
na chuvosos nas casas de campo inglesas têm estrutura seme-
lhante. As séries de televisão repetem por décadas os mesmos
personagens e um mínimo de relação entre personagens e enre-
do, ainda que sejam escritas por diferentes grupos de autores e,
inclusive, em semanas diferentes. Em nosso exemplo, contudo,
espera-se que os romancistas levem mais a sério suas respon-
sabilidades de continuidade; devem criar em conjunto, até onde
for possível, um só romance unificado que seja da melhor qua-
lidade possível 1 .
Cada romancista pretende criar um só romance a partir do
material que recebeu, daquilo que ele próprio ihe acrescentou
e (até onde lhe seja possível controlar esse aspecto do projeto)
daquilo que seus sucessores vão querer ou ser capazes de acres-
centar. Deve tentar criar o melhor romance possível como se
fosse obra de um único autor, e não, como na verdade é o caso,
como produto de muitas mãos diferentes. Isso exige uma ava-

1. Essa p o d e ser uma tarefa impossível; talvez o projeto esteja condena-


d o a produzir não a p e n a s u m r o m a n c e incrivelmente ruim, m a s na verdade a
não produzir r o m a n c e algum, p o i s a m e l h o r teoria da arte exige u m único
criador ou, em c a s o d e mais d e u m , q u e c a d a qual exerça a l g u m controle so-
bre o todo. ( Q u e dizer, porém, d e lendas e piadas? E sobre o A n t i g o Testa-
mento o u , s e g u n d o certas teorias, a Ilíada!) N ã o preciso levar a questão mui-
to adiante, pois só estou interessado no fato de q u e a tarefa tem sentido, que
cada u m dos romancistas da c a d e i a p o d e ter a l g u m d o m í n i o daquilo que lhe
pediram para fazer, s e j a m quais f o r e m as suas d ú v i d a s sobre o valor ou a na-
tureza do que será então p r o d u z i d o .
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liação geral de sua parte, ou uma série de avaliações gerais à


medida que ele escreve e reescreve. Deve adotar um ponto de
vista sobre o romance que se vai formando aos poucos, alguma
teoria que lhe permita trabalhar elementos como personagens,
trama, gênero, tema e objetivo, para decidir o que considerar
como continuidade e não como um novo começo. Se for um
bom critico, seu modo de lidar com essas questões será com-
plicado e multifacetado, pois o valor de um bom romance não
pode ser apreendido a partir de uma única perspectiva. Vai ten-
tar encontrar níveis e correntes de sentido, em vez de um único
e exaustivo tema. Contudo, segundo a maneira que agora nos é
peculiar, podemos dar uma estrutura a qualquer interpretação
que ele venha a adotar, distinguindo duas dimensões a partir
das quais será necessário submetê-la à prova. A primeira é a
que até aqui chamamos de dimensão da adequação. Ele não
pode adotar nenhuma interpretação, por mais complexa que
seja, se acredita que nenhum autor que se põe a escrever um
romance com as diferentes leituras de personagem, trama, te-
ma e objetivo que essa interpretação descreve, poderia ter escri-
to, de maneira substancial, o texto que lhe foi entregue. Isso
não significa que sua interpretação deva se ajustar a cada seg-
mento do texto. Este não será desqualificado^simpiesmente
porque ele afirma que algumas linhas ou atgunsíropos são aci-
dentais, ou mesmo que alguns elementos da trama são erros,
pois atuam contra as ambições literárias que são afirmadas
pela interpretação. Ainda assim, a interpretação que adotar
deve fluir ao longo de todo o texto; deve possuir um poder ex-
plicativo gerai, e será ma! sucedida se deixar sem explicação
algum importante aspecto estrutural do texto, uma trama se-
cundária tratada como se tivesse grande importância dramáti-
ca, ou uma metáfora dominante ou recorrente. Se não se en-
contrar nenhuma interpretação que não possua tais falhas, o
romancista em cadeia não será capaz de cumprir plenamente
sua tarefa; terá de encontrar uma interpretação que apreenda a
maior parte do texto, admitindo que este não é plenamente
bem-sucedido. Talvez até mesmo esse sucesso parcial seja im-
possível; talvez cada interpretação que considere não seja com-
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patível com o material que lhe foi entregue. Nesse caso, deve
abandonar o projeto, pois a conseqüência de adotar a atitude in-
terpretativa com relação ao texto em questão será, então, uma
peça de ceticismo interno: nada pode ser considerado como
continuação do romance: é sempre um novo começo.
Ele pode achar não que nenhuma interpretação isolada se
ajusta ao conjunto do texto, mas que mais de uma o faz. A se-
gunda dimensão da interpretação vai exigir-lhe então que jul-
gue qua! dessas leituras possíveis se ajusta melhor à obra em
desenvolvimento, depois de considerados todos os aspectos da
questão. A esta altura, entram em jogo seus juízos estéticos
mais profundos sobre a importância, o discernimento, o realis-
mo ou a beleza das diferentes idéias que se poderia esperar que
o romance expressasse. Mas as considerações formais e estru-
turais que dominam a primeira dimensão também estão pre-
sentes na segunda, pois mesmo quando nenhuma das duas in-
terpretações é desqualificada por explicar muito pouco, pode-
se mostrar o texto sob uma melhor luz, pois se ajusta a uma
parte maior do texto ou permite uma integração mais interes-
sante de estilo e conteúdo. Assim, a distinção entre as duas di-
mensões é menos crucial ou profunda do que poderia parecer.
É um procedimento analítico útil que nos ajuda a dar estrutura
à teoria funcional ou ao estilo de qualquer intérprete. Ele per-
ceberá quando uma interpretação se ajusta tão mal que se torna
desnecessário levar em conta seu apelo essencial, pois sabe
que isso não poderá superar seus problemas de adequação ao
decidir se ela torna o romance melhor do que o fariam as ou-
tras interpretações, levando-se tudo em conta. Essa percepção
definirá, para ele, a primeira dimensão. Ainda assim, não pre-
cisará reduzir sua intuição a nenhuma fórmula precisa; ele ra-
ramente se veria na situação de decidir se alguma interpretação
sobrevive ou fracassa por pouco, pois um mero sobrevivente,
não importa quão ambicioso ou interessante considerasse o
texto, quase certamente fracassaria em uma comparação geral
com outras interpretações cuja adequação fosse evidente.
Podemos agora examinar a amplitude dos diversos tipos
de opiniões que estão misturadas nessa comparação geral. As
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opiniões sobre a coerência e a integridade textuais, refletindo


diferentes valores literários formais, estão interligadas a juízos
estéticos mais substanciais que, em si mesmos, pressupõem
objetivos literários de outra natureza. Contudo, esses vários
tipos de juízos de cada categoria geral permanecem distintos o
bastante para se anularem mutuamente em uma avaliação glo-
bal, e é esta possibilidade de disputa, particularmente entre
opiniões textuais e substantivas, que distingue a tarefa de um
romancista em cadeia de uma produção literária mais criativa e
independente. Também não podemos estabelecer uma distin-
ção muito nítida entre a etapa em que um romancista em
cadeia interpreta o texto que lhe foi entregue e a etapa em que
ele acrescenta seu próprio capítulo, guiadQ pela interpretação
pela qual optou. Ao começar a escrever, ele poderia descobrir
naquilo que escreveu uma interpretação diferente, talvez radi-
calmente diferente. Ou poderia achar impossível escrever de
acordo com o tom ou o tema que escolheu da primeira vez, o
que o levaria a reconsiderar outras interpretações que num pri-
meiro momento rejeitou. Em ambos os casos, ele volta ao texto
para reconsiderar as linhas que esta toma aceitáveis.

(
Scrooge *

Podemos ampliar essa descrição abstrata da opinião do


romancista em cadeia através de um exemplo. Suponha que
você é um romancista na parte inferior da cadeia. Suponha
que Dickens nunca escreveu Conto de Natal, e que o texto que
lhe dão, apesar de ter sido escrito por várias pessoas, é a pri-
meira parte desse conto. Considere estas duas interpretações
do personagem principal: Scrooge é inerente e irrecuperavel-
mente mau, uma encarnação da maldade consumada da natu-
reza humana livre dos disfarces da convenção que ele rejeita; ou
Scrooge é inerentemente bom, mas progressivamente corrom-
pido pelos valores falsos e pelas exigências perversas da so-
ciedade capitalista. É evidente que sua escolha de uma ou ou-
tra dessas interpretações fará uma enorme diferença na conti-

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