Você está na página 1de 42

Introdução ao Direito II

A experiência do sistema jurídico enquanto conversão da validade transsubjetiva


numa dogmática estabilizada

Prolegómenos
O Direito é, face às restantes dimensões da prática, um projeto autónomo
de procura de um certo homem, o homo humanus, que é responsável e chamado a
participar comunitariamente (pólo do commune) e, simultaneamente, livre e
autónomo (pólo do suum), sendo que o ideal é que nenhum destes pólos seja
hipertrofiado. Deste modo, o Direito é uma ordem de validade que está associada
a estas características do homo humanus, tendo como aspiração fundamental
institucionalizar uma comunidade de pessoas. Assim, esta ordem é sustentada no
reconhecimento da dignidade da pessoa humana que, ainda assim, não pode ser
pensada de modo acrítico, já que, p.e., também a moral, a ética e a religião a têm
como referente.
De acordo com esta conceção, uma das dimensões-eixos do discurso
jurídico com vista à construção do juízo decisório é a da sua validade, que
permite recuperar um certo horizonte de comunidade, embora de modo distinto
do contexto pré-moderno, centrada na referência a intenções e compromissos
práticos que vão sofrendo uma construção humana, não sendo, por isso,
universais, mas surgindo associados a experiências histórica e culturalmente
situadas e constituindo a base da praxis comunitária. Só podemos falar de direito
vigente se a supra referida validade comunitária se verificar na prática, pelo que a
outra dimensão-eixo do discurso jurídico é a da controvérsia prática
juridicamente relevante, que permite identificar problemas jurídicos.
Deste modo, a resposta do julgador para cada caso tem de ser compatível
com as exigências de sentido da comunidade de sujeitos, tarefa que enfrenta
algumas dificuldades já que as significações e exigências dos valores
comunitários variam de acordo com os períodos históricos e de comunidade para
comunidade, sendo complexa a sua compreensão. Assim, é necessária a criação
de condições institucionais que permitam precipitar normativamente e estabilizar
a validade comunitária, de modo a que o julgador possa reconhecer um conjunto
de fundamentos e critérios vigentes e suscetíveis de serem mobilizados na
prática. É esta estabilização que corresponde ao sistema jurídico que, neste
sentido, é uma mediação dogmática da validade comunitária. Ainda assim, não se
trata de uma dogmática fechada ou absoluta, já que o sistema está em permanente
reconstituição, i.e., é aberto e dinâmico, já que os problemas que constantemente
o interpelam o tornam revisível. Cada problema é único e irrepetível e é essa
especificidade que leva a alterações no sistema. Assim, há uma dialética

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 1 de 20


permanente entre sistema e problema: procura-se resolver o problema jurídico
através do sistema, mas a experiência e as especificidades do primeiro
determinam a reconstituição e enriquecimento do segundo.

O Sistema Jurídico
Deste modo, o sistema jurídico é condição da tercialidade permitindo uma
compreensão objetiva ou transsubjetiva da mesma, já que o terceiro imparcial
compara as posições juridicamente relevantes dos sujeitos da controvérsia
tratando-os como homo humanus e atribuindo a cada um o que é juridicamente
seu, não tendo em conta as suas convicções pessoais ou os interesses de um
grupo que possa integrar, mas pressupondo e experimentando os fundamentos e
critérios no caso-problema de acordo com a supra mencionada dialética
sistema/problema. Assim, uma vez que é construída racionalmente através dos
elementos estabilizados no sistema, a resposta do julgador às controvérsias
jurídicas não se trata de uma mera decisão, mas de uma decisão judicativa ou um
juízo decisório.
A sentença tem sempre duas dimensões:
 Manifesta uma voluntas sustentada numa autoridade-potestas;
 É um juízo que realiza o sistema adequadamente compreendido
(enquanto conjunto de fundamentos e critérios) e, portanto, os compromissos
comunitários que este estabiliza.

A Compreensão Normativista do Sistema Jurídico


O positivismo normativista legalista do século XIX considerava que o
sistema jurídico era fechado e unidimensional, i.e., que o Direito se identificava
apenas com a lei com as características de norma (geral, abstrata, formal e com a
estrutura de um programa hipotético-condicional), independentemente da sua
realização concreta. Pensava-se que o jurista conhecia etimologicamente tais
normas, autoritária e prescritivamente criadas pelo poder político, aplicando-as
lógico-dedutivamente à prática.

O Sistema Jurídico Como Sistema Pluridimensional


Atualmente, considera-se que o sistema é aberto e pluridimensional, i.e.,
compreende vários estratos, todos eles direito vigente e, portanto, vinculantes.
Trata-se de uma vinculação em sentido amplo e não no sentido prescritivo-
autoritário político-constitucionalmente institucionalizado e apenas associado às
normas legais. Assim, o julgador deve mobilizar o sistema jurídico na sua
plenitude (pluridimensionalidade), tendo em conta que os vários estratos vigoram
e vinculam em termos distintos uns dos outros (têm distintas presunções de

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 2 de 20


vigência) e devendo o juízo-julgamento ser construído atendendo a tais
diferenças.
Os estratos compreendidos pelo sistema jurídico são:
 Princípios normativos;
 Normas legais;
 Critérios de jurisprudência judicial;
 Critérios de jurisprudência dogmática;
 Realidade jurídica.

A Distinção Fundamentos/Critérios
Os critérios são modelos imediatamente operativos de esquemas de
solução que o julgador tem à sua disposição para solucionar as controvérsias
juridicamente relevantes, como as normas, os precedentes ou a maior parte dos
modelos dogmáticos. No entanto, o julgador não os utiliza de modo acrítico,
aplicando-os lógico-dedutivamente, já que não pode ignorar os fundamentos, i.e.,
as exigências de sentido comunitariamente partilhados que justificam a resposta
ao problema único e singular, garantindo que esta é justa porque juridicamente
adequada, i.e., por realizar os referidos valores comunitariamente relevantes.
Assim, os fundamentos são racionalizações justificativas mas não dão uma
resposta para o problema. P.e., os princípios normativos são fundamentos.
Para tornar mais clara esta distinção, Drucilla Cornell e Adela Cortina
mobilizam várias imagens construindo uma metáfora. O problema jurídico, único
e irrepetível pelas suas especificidades, identifica-se com um território
desconhecido por percorrer que o jurista tem de atravessar (resolver, alcançando
a decisão-juízo). Para tal, é orientado pelas práticas de estabilização e realização
do sistema jurídico levadas a cabo por caminhantes anteriores (legisladores,
juízes…), designadamente os fundamentos, comparados a uma bússola ou à luz
de um farol, já que, sem preverem os problemas que o caminhante irá enfrentar
(tal como a luz do farol não antecipa armadilhas, p.e.), lhe proporcionam uma
orientação fundamental, garantindo que, ao longo do percurso, realiza e não se
afasta de certas exigências.
No entanto, mesmo com a orientação fornecida pelos fundamentos, o
jurista necessita de critérios (modelos imediatamente operativos), comparados a
mapas ou itinerários, já que o auxiliam no caminho a seguir, prevendo (no caso
das normas legais), exemplificando (no caso dos precedentes judiciais) ou
reconstruindo reflexivamente (no caso da dogmática doutrinal) situações-
problemas. Assim, propõem soluções para o problema em questão, ainda que não
se confundam com o caminho a percorrer e, portanto, não substituam o esforço
do caminhante.

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 3 de 20


Esta analogia traduz ainda a ideia de o julgador partir do problema
(território desconhecido) e não da norma posteriormente subsumida como ocorria
anteriormente. Acresce que a travessia deve submeter-se a duas exigências
fundamentais:
 O julgador deve tratar metodologicamente os fundamentos eos
critérios de modo distinto, exigido pelas diferenças entre ambos, designadamente
pelo facto de, ao contrário dos critérios, os fundamentos não anteciparem
problemas nem fornecerem soluções para eles;
 O julgador não deve desconsiderar os fundamentos ao procurar
solucionar o problema jurídico. O seu primeiro passo deve ser procurar critérios
que permitam solucioná-lo e, se os tiver à sua disposição, experimentá-los tendo
em conta a controvérsia em causa, mobilizando-os de modo a que a resposta por
eles prescrita respeite as exigências dos fundamentos e, portanto, não fruste a
validade comunitária. Assim, o julgador não deve caminhar em sentido oposto ao
indicado pela luz do farol, mesmo que o mapa assim o proponha.

Nos sistemas de common law, a atitude mais natural do jurista é a procura


de critérios de base jurisprudencial. Já nos modelos de civil law o julgador
procura primeiramente um critério legal para solucionar o problema jurídico em
causa. Ainda assim, dado que o sistema jurídico é pluridimensional, não vigora a
exclusividade, sendo que, em ambos os sistemas, o jurista tem também em conta
os restantes critérios, assim como os fundamentos.

A Experiência do Sistema
O primeiro estrato do sistema jurídico é o dos princípios, que traduzem
objetivamente a imediata projeção da validade comunitária. São, então,
exigências de sentido já assumidas normativamente. No entanto, não se tratam de
intenções imutáveis e ahistóricas, mas correspondem a um contexto comunitário,
pelo que o seu conteúdo vai evoluindo com a experiência que, na prática, se vai
fazendo dos princípios e dos problemas. Deste modo, tratam-se de aspirações
historicamente construídas, embora em cada ciclo histórico tenham uma vocação
de estabilidade, não se prejudicando o seu núcleo essencial de identidade. Assim,
compreendem uma dimensão axiológica, mas também uma dimensão dogmática
estabilizadora que converte os princípios em fundamentos.
P.e., com vista à juridicização e limitação do poder, surgiu, no final do
século XVIII, o princípio da legalidade criminal, de acordo com o qual todos os
pressupostos da incriminação e da punição devem estar objetivados numa lei
anterior ao ato praticado. Tendo surgido no contexto da conceção iluminista da
juridicidade-legalidade, atualmente este princípio transpositivo do direito penal
impõe-se com exigências distintas daquelas que tal época poderia compreender.

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 4 de 20


Assim, este princípio pauta por uma dinâmica histórico-cultural, ainda que o seu
núcleo essencial se mantenha irrenunciável.

Os Princípios Como Direito Vigente


A invocação dos princípios não tem sempre os mesmos resultados. Há
vários entendimentos da índole e do papel por eles desempenhado: como ratio,
como intentio e como jus. Não se trata de uma classificação, mas de três modos
de compreender os princípios.

Os Princípios Como Ratio (os Chamados Princípios Gerais de Direito)


Esta visão dos princípios surge associada aos princípios gerais de direito e
tem origem no normativismo do século XIX, especialmente no positivismo
conceitual, durante o qual se falava num direito posto (por via da lei) e imposto
(através do costume). Ora, o contexto histórico-político da época levou a que
fossem muitos e muito dispersos os materiais jurídicos, admitindo-se que a
jurisprudência inferior deveria proceder à análise, concentração e interpretação
dos mesmos, reduzindo a complexidade do Direito.
Assim, de acordo com Jhering, os jurisprudentes devem, após a sua
análise das normas, realizar um exercício de concentração lógica, sintetizando,
por indução, o conteúdo das diversas normas relativas à mesma matéria numa só
norma, mais geral e mais abstrata do que as restantes, reproduzindo de modo
concentrado os seus significantes. Estas normas são os PGD que,
consubstanciando apenas pressupostos de inteligibilidade das normas e das
relações entre elas, não são direito vigente e não introduzem novas soluções
prático-normativas, não podendo haver um confronto entre elas e o princípio.
Assim, o sistema jurídico não deixa de se considerar unidimensional,
compreendendo apenas normas legais. Por vezes, a controvérsia jurídica não era
subsumível nas normas, mas era nos princípios, em virtude da sua maior
generalidade e abstração.
Segundo Jhering, a jurisprudência inferior chega, deste modo, a um direito
objetivo, que é pressuposto para a atuação da jurisprudência superior. Por sua
vez, esta deve construir um sistema de corpos jurídicos, compreendido por
institutos e conceitos. Deste modo, cria-se um direito dogma essencial para a
posterior atividade de resolução das controvérsias juridicamente relevantes.

Os Princípios Como Intenções (Intentio)


De acordo com esta compreensão dos princípios, que é uma herança neo-
kantiana de Stammler, estes são exigências de sentido comunitariamente
partilhadas que têm uma origem pré-jurídica. Assim, são, inicialmente, princípios
morais com uma intenção regulativa que traduzem as expectativas e
compromissos de uma determinada comunidade. Só passam a consubstanciar

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 5 de 20


princípios jurídicos (adquirindo, por isso, uma intenção constitutiva) quando são
objetivados por uma autoridade legislativa ou judicial, i.e., quando são
transformados em normas legais por um órgão institucional com legitimidade no
plano político-constitucional ou quando estão presentes de forma clara nas
decisões jurídicas, que são formalmente vinculantes (o que ocorre
frequentemente nos sistemas de common law).
Antes de se tornarem jurídicos, estes princípios podem ser compreendidos
como:
 Intenções regulativas orientadoras na produção
de critérios
jurídicos, i.e., na constituição do direito positivo. Assim, uma vez que
correspondem a exigências de sentido comunitariamente partilhadas o legislador
deve ter os princípios em atenção ao pensar o conteúdo de novas leis, de modo a
que haja coerência entre as leis e os valores que regem a comunidade. Ainda
assim, é importante não esquecer que estes princípios não têm, ainda, caráter
constitutivo.
 Intenções regulativas com um caráter metodológico que, não
constituindo direito vigente, podem ser mobilizadas como apoios que orientam o
juiz na resposta às controvérsias jurídicas. Assim, são compreendidos como
apoios-arrimos que permitem ao jurista vencer indeterminações das normas
legais e dos critérios jurisprudenciais e enfrentar problemas de integração de
lacunas, evitando que se os designados “casos omissos” permaneçam sem uma
solução.

Os Princípios Como Direito-Jus (Um Autêntico Direito Vigente)


De acordo com esta conceção, os princípios normativos são
constitutivamente jurídicos, i.e., são autêntico direito independentemente da sua
assimilação por uma norma legal ou por um precedente vinculante (são direito
em si e por si). Uma vez que expressam a validade comunitária a propósito de
controvérsias jurídicas com estrutura de bilateralidade atributiva, valem e
vinculam por si próprios, além de consubstanciarem limites de validade às
prescrições constitucionais.
Os princípios beneficiam, então, de uma presunção de validade (material),
i.e., a sua força vinculante provém deles próprios e da sua vigência no sistema,
sem necessidade de objetivação por parte de uma autoridade, pelo que só nesta
perspetiva os princípios podem verdadeiramente constituir fundamentos. As suas
significações são, em grande parte, determinadas pelo modo como os estes são
experimentados em concreto, já que, só no contexto de um problema jurídico
podemos compreender plenamente quais as exigências daquele compromisso
comunitário.

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 6 de 20


A explicação supra apresentada refere-se à perspetiva dos princípios como
jus no seu sentido forte, que leva ao problema da realização do direito sem a
mediação de um critério-norma e a que os princípios sejam, simultaneamente,
direito vigente e intenções regulativas e de validade para a criação de novo
direito (trata-se do modelo da comunidade e princípios, teorizado por Dworkin).
Por outro lado, existe uma compreensão dos princípios como jus, mas com um
caráter subsidiário e, portanto, apenas convocados na ausência de critérios que
possam solucionar o problema jurídico em causa.

O Excesso Normativo dos Princípios e a Sua Consonância Prática


Os princípios normativos são marcados por um “excesso normativo”, o
que leva a que o seu sentido não se esgote na sua normatividade, i.e., em
qualquer tentativa dogmática, por parte de legisladores, juízes ou da doutrina, de
os objetivar, especificar ou estabilizar. Estas explicitações constituem apenas
leituras históricas dos sentidos dos princípios, não impedindo a atribuição, ao
longo da História, de novos sentidos aos mesmos. P.e., o sentido do princípio
suprapositivo da igualdade tem vindo a desenvolver-se e alterar-se ao longo do
tempo, o que é visível desde logo através da comparação entre as Constituições
Portuguesas de 1933 e de 1976 – na primeira, admitia-se um tratamento
diferenciado com base em determinados critérios como o sexo; atualmente,
qualquer diferenciação deve ser fundamentada de modo a não ser considerada
discriminatória. Assim, este princípio foi sofrendo alterações condizentes com os
diferentes contextos históricos e com a evolução das exigências comunitárias.
Ainda assim, não deixa de se procurar assegurar a consonância prática
entre os princípios e o conteúdo das normas que os procuram realizar.

Algumas Classificações Possíveis dos Princípios Como Jus


Partindo da compreensão dos princípios como jus, este podem ser
classificados de dois modos distintos:
 De acordo com a posição que ocupam na consciência
jurídica geral,que, de acordo com Castanheira Neves, corresponde ao conjunto de
valores que dão sentido ao direito numa comunidade. Assim, esta classificação
tem em atenção a maior ou menor contingência histórica dos princípios
normativos, i.e., a sua suscetibilidade para serem afetados pelas alterações
políticas, económicas, culturais, entre outras, que se registem. Assim, os
princípios dividem-se em 3 degraus:
 Princípios mais contingentes ou vulneráveis, que correspondem
ao primeiro nível da consciência jurídica geral e só têm sentido no contexto
historicamente circunscrito do seu surgimento e, portanto, são mais sensíveis às
alterações políticas-jurídicas ou ético-sociais. Assim, verifica-se um consensus

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 7 de 20


omnium, já que a realidade histórico-social informa e é assimilada pela
normatividade jurídica. Se o Direito não assimilasse tais princípios, o Homem
não se reveria no mesmo enquanto ordem de validade.
 Princípios jurídicos fundamentais, que, historicamente, pautam
pela universalidade, estando associados a aquisições culturais irrenunciáveis.
 Princípios que que exprimem diretamente a intenção
axiologicamente última do direito sendo, por isso, fundamentais à existência de
uma verdadeira ordem de direito.
Ainda assim, nenhum princípio normativo é incontingente, sendo que
todos estão, embora em graus distintos, sujeitos à erosão do tempo.

 De acordo com a posição que ocupam no sistema: trata-se de


umaclassificação num plano mais metodológico, que distingue:
 Princípios positivos: não se tratam apenas de princípios
consagrados legislativamente, já que isso seria frustrar a própria conceção dos
princípios como jus. Tratam-se, então, de princípios que o direito vigente se vê
constrangido a objetivar para afastar orientações alternativas igualmente
plausíveis, i.e., perante tais alternativas, o direito vigente esclarece qual é o
princípio que vale e vincula. P.e., o princípio da consensualidade (art. 219.º do
CC), o da livre apreciação de prova (arts. 389.º, 391.º e 396.º do CC), da
acusação ou da estrutura acusatória (art. 32.º/5 da CRP). Outro exemplo,
consagrado no art. 1306.º/1 do CC, é o do princípio da tipicidade, taxatividade ou
números clausus, relativo aos direitos reais: o CC de 1966 prevê modelos de
figuras reais, afastando a possibilidade de os sujeitos jurídicos, na sua
autodeterminação, criarem novas figuras (ao contrário do que ocorre no direito
das obrigações, prevendo-se a possibilidade da celebração de contratos
inominados). Assim, de acordo com o art. supra referido, os vínculos criados
resultantes de um negócio jurídico têm apenas eficácia obrigacional (não afetam
a coisa corpórea em causa, mas apenas as partes do negócio jurídico.

 Princípios transpositivos: são condições sine qua non de uma


determinada área dogmática, i.e., sem eles esta não é pensável (normativamente
realizável), independentemente de estarem ou não consagrados no direito
vigente. P.e., os princípios da legalidade criminal e da culpa são transpositivos do
direito penal, os princípios da separação dos poderes e da proteção da confiança
(DC), o princípio da autonomia privada (D. Privado).

 Princípios suprapositivos: sem eles, o próprio direito não é


pensável, sendo transversais a todas as áreas dogmáticas. Dirigem-se à
institucionalização de uma comunidade, pelo que estão diretamente ligados aos

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 8 de 20


pólos que caracterizam o homo humanus, cuja procura é a intenção última do
Direito. São eles os pólos do suum e do commune.
O primeiro compreende as exigências da liberdade-autonomia e da
igualdade entre os sujeitos de uma controvérsia jurídica. Tais exigências
convertem-se no princípio da autonomia, que compreende as dimensões negativa
e positiva, a primeira a exigir que os sujeitos jurídicos sejam protegidos da
prepotência dos restantes sujeitos, assim como da comunidade e da sociedade em
geral, e a segunda, associada ao princípio da participação, a possibilitar que os
sujeitos mobilizem os seus direitos subjetivos para se interrelacionarem uns com
os outros.
O segundo está associado à exigência de responsabilidade comunitária,
que pode ser comutativa, i.e., resultar de relações voluntárias, sendo que o sujeito
jurídico é responsável pelo incumprimento das prestações a que se vinculou, bem
como pela reposição do equilíbrio posto em causa ao produzir danos no
património ou na integridade física de outro sujeito. Pode também tratar-se da
corresponsabilidade que os sujeitos jurídicos assumem, enquanto membros de
uma comunidade, de preservação de bens como a paz ou a honra. Por outro lado,
pode estar em causa a responsabilidade por solidariedade, que corresponde a
determinados sacrifícios levados a cabo pelos sujeitos com vista ao benefício da
comunidade como um todo.
No entanto, ao contrário do que ocorre a nível moral, do ponto de vista
jurídico a responsabilidade comunitária não pode ser infinita, pelo que é
necessário impor limites substanciais e procedimentais aos próprios limites à
nossa liberdade-autonomia, o que ocorre através dos:

 Princípio do mínimo: trata-se de um limite quod substantiam à


responsabilidade, que determina que só são legítimos os limites à liberdade-
autonomia do sujeito jurídico que sejam indispensáveis à coexistência do
desenvolvimento e da realização pessoal de cada um em comunidade. Assim,
impõe-se um equilíbrio entre os efeitos jurídicos que se pretendem alcançar para
a comunidade e os limites ou exigências impostos ao sujeito para tal (dialética
suum-commune).

 Princípio da formalização: é um limite quod modum à


responsabilidade comunitária, que exige um esquema objetivo de limitação
formal das responsabilidades dos sujeitos jurídicos, de modo a que estes possam
ou tenham recursos para determinar onde estas começam e terminam. Se assim
não fosse, os membros da comunidade não teriam conhecimento das
consequências dos seus atos, podendo ser, injustamente, responsabilizados por
excesso ou por defeito.

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 9 de 20


Os princípios suprapositivos são, depois, projetados e objetivados nos
diferentes domínios dogmáticos do direito: p.e., o princípio transpositivo da
proporcionalidade é uma objetivação do princípio suprapositivo do mínimo; o
princípio suprapositivo da formalização projetado no direito penal consubstancia-
se no princípio transpositivo da legalidade criminal.
O princípio da formalização está associado a uma exigência de conferir
segurança aos sujeitos jurídicos. No entanto, a justiça não pode ser sacrificada
em nome de tal segurança, pelo que o Direito é sensível à passagem do tempo,
estabelecendo-se a dialética estabilização-superação. O não exercício de um
direito por parte do seu titular pode gerar incertezas nas esferas dos sujeitos
titulares dos deveres correspondentes, pelo que, de modo a romper este
continuum de responsabilidade, muitos direitos subjetivos estão sujeitos à
extinção pela passagem do tempo, através dos institutos da prescrição, da
caducidade ou da usucapião1, que são projecções do supraprincípio em causa.
No contexto do Código de Seabra, distinguiam-se a prescrição extintiva ou
negativa da prescrição aquisitiva ou positiva, sendo que atualmente a segunda foi
substituída pela usucapião, que corresponde à aquisição de um direito real
resultante da posse não contestada exercida durante um certo lapso de tempo.
Assim, a prescrição negativa consiste na extinção de um direito que não é
exercido durante um certo lapso de tempo. O não uso refere-se especificamente à
extinção de direitos reais pela falta do seu exercício sobre a coisa durante um
determinado período temporal, do direito sobre a coisa. Ainda assim, há direitos
que, por serem exigências fundamentais à dialética suum-commune, são
imprescritíveis, como os de personalidade, familiares ou de conteúdo não
patrimonial. Já a caducidade consiste na extinção de um direito datado logo
desde a sua constituição.
Por outro lado, o princípio transpositivo do caso julgado, correspondente
ao direito processual, é também uma objetivação do supraprincípio da
formalização. Segundo o mesmo, esgotado o percurso processual, as decisões
judiciais tornam-se definitivas, i.e., insuscetíveis de serem alteradas por recursos
ordinários, de modo a que as partes da controvérsia jurídica não permaneçam
num clima de incerteza, ainda que, em situações extraordinárias, haja algumas
possibilidades de revisão normativo-legalmente determinadas. Ainda assim, pode
surgir o problema de o respeito por este princípio levar à extrema violação dos
princípios axiologicamente constitutivos da ideia de Direito, casos em que deverá
ser convocada a mediação dogmática assegurada pelo sistema jurídico.
Destarte, a segurança e justiça não são antinómicas como a conceção do
século XIX defendia.
1
Prescrição: arts. 298.º/1, 300.º e ss., 310.º, 1476.º/1/c), 1569.º/1/b) e 1570.º do CC.
Caducidade: arts. 298.º/2, 328.º e ss., 1051.º e 1569.º/1/e) do CC.
Usucapião: arts. 1287.º e ss., 1569.º/1/c) do CC.

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 10 de 20


O Problema da Juridicidade dos Princípios
Consiste em questionar o que nos permite dizer que os princípios são
princípios de direito e princípios do direito.
Os princípios de direito têm de manifestar uma consonância de
fundamentação, i.e., ser a expressão de exigências regulativas compatíveis com o
sentido último do Direito, e uma consonância de função, ou seja, tais exigências
devem responder, no sentido material, a um problema de fruição intersubjetiva
do mundo, a um problema inconfundivelmente jurídico, marcado pela
bilateralidade atributiva e pela comparabilidade.
Já os princípios do direito são exigências axiológicas regulativas
assimiladas, no plano prático-cultural, pela comunidade em causa, ou seja, são
vigentes, sendo que a vigência corresponde a uma síntese de validade (respeito
pelas exigências últimas do Direito) e eficácia (correspondência a uma exigência
de sentido assimilada pela comunidade). No que toca aos princípios positivos, a
evidência de que são do direito é quase empírica. Já os princípios transpositivos
são do direito quando garantem a unidade do domínio dogmático em causa, bem
como a sua concordância prática. Por último, os princípios suprapositivos são do
direito quando é possível identificar neles um equilíbrio entre as exigências
correspondentes aos pólos suum-commune, o que se averigua através da
experimentação dos próprios fundamentos da juridicidade.

O Problema da Relação Normativa e da Validade Entre os Princípios e as


Normas Legais
Os princípios normativos beneficiam de uma presunção de validade,
vinculando-nos exatamente enquanto validade e não pela sua consagração legal.
Assim, impõem limites normativos de validade aos critérios do sistema jurídico,
surgindo o problema das relações entre os princípios e as normas legais. O
sentido de um princípio positivo e contingente não pode ser alterado de forma
autoritário-prescritiva sem que se respeitem as consonâncias de fundamentação e
função. Já quando a norma se opõe ao fundamento normativo de um princípio
transpositivo, impõe-se, pelo menos num primeiro momento, a invalidade da
mesma como um problema de coerência entre ela e o domínio dogmático do
direito em causa. No caso de uma norma contrariar os fundamentos normativos
de um princípio suprapositivo, é inválida já que contrapõe os fundamentos
últimos que dão sentido ao direito.
Os supra referidos limites normativos e, portanto, a invalidade das
normas, são apurados em concreto, experimentando-se o sentido dos critérios
legais e dos problemas jurídicos que os convocam como solução. Assim, tal
invalidade, apurada em concreto, não se confunde com o problema da lei injusta,

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 11 de 20


que decorre do confronto, em abstrato, entre a lei e o sentido transsistemático do
direito, i.e., que está relacionado com uma ordem político-social que não pode
ser considerada como verdadeira ordem de direito.
Por fim, os princípios pautam por uma concordância prática entre eles,
ainda que por vezes estejam associados, em abstrato, a exigências contrárias.
P.e., entre os princípios da perigosidade e da culpa deve privilegiar-se o primeiro,
não deixando de considerar e admitir o segundo.

As Normas Legais Como Critérios


O estrato das normas legais do sistema jurídico compreende as normas no
sentido rigoroso, i.e., gerais, abstratas e com a estrutura de um programa
hipotético-condicional, bem como as prescrições concretas e singulares que
surgiram com o Estado Providência, ou seja, as leis-medida.
As normas legais compreendem ainda duas dimensões:
 Por um lado são um imperativo que tipifica um problema e nos
fornece um esquema de solução para ele, correspondendo à manifestação e
imposição da decisão de um poder legitimado, o que lhe confere um caráter
autoritário. Assim, as prescrições normativas acabam estar também associadas a
uma dimensão política. Esta face das normas permite identificar os fins que estas
visam prosseguir, os meios a mobilizar para tal e as alternativas de decisão que
permitem.
 Por outro lado, as normas legais são também critérios
compreendidos pelo sistema jurídico, que respeitam os limites de validade
impostos pelos princípios normativos. Assim, estabelecem soluções para
problemas normativo-jurídicos, devendo ser entendidas na perspetiva de cada
problema e, portanto, vistas como soluções-resultado e não como premissas de
um silogismo subsuntivo como ocorria no século XIX.

Destarte, as normas devem ser experimentadas através do contraponto


entre a ratio legis e a ratio iuris. A primeira consiste em entender a prescrição
legislativa tendo em conta a finalidade político-social e teleológico-estratégica
que esta prossegue, i.e., em tratá-la como programa final, de modo a averiguar se
esta é ou não politicamente oportuna, adequada, entre outros. Já a ratio iuris
confronta a teologia programática da norma com os fundamentos normativos do
sistema jurídico de modo a saber se a primeira corresponde às exigências dos
segundos. Desta problematização pode-se concluir que a norma cumpre os
limites de validade impostos pelos princípios ou, pelo contrário, que a sua
mobilização para o caso concreto frustra as intenções dos mesmos.
Por vezes, do contraponto da ratio legis com a ratio iuris compreende-se
que o legislador prescreveu a norma legal sem intenção de frustrar qualquer

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 12 de 20


princípio do sistema jurídico (ao contrário do que ocorre com as designadas leis
injustas, que são um “não direito”, já que o legislador prescinde deliberadamente
das exigências de um princípio em nome de um programa ideológico-político).
Neste caso, a solução consagrada pela norma não parece, em abstrato, violar
qualquer princípio e, mobilizada na prática, confere uma resposta adequada e
justa à maioria das controvérsias, no entanto, revela-se desadequada na
perspetiva de um problema concreto. Para resolver este problema, o julgador
deve convocar uma solução sistemática e metodológica, através da correção da
norma, atribuindo-lhe significações condizentes com os princípios. Quando é
totalmente impossível compatibilizar a norma legal com a exigência dos
princípios, aquela deve ser preterida, o que revela a exigência de dar preferência
à ratio iuris face à ratio legis. Outra hipótese metodológica é a da superação,
sempre que se considera que o princípio em causa foi superado pela erosão do
tempo, pelo que a norma que o assimila permanece formalmente vigente mas
perde a sua validade material pela caducidade.
Deste modo, ao contrário dos princípios como ius, as normas legais
beneficiam de uma presunção de autoridade político-constitucional (auctoritas
potestas), vinculando os sujeitos jurídicos enquanto tal.

Classificação das Normas – Perspetiva da Estrutura ou do “Módulo Lógico”


Esta perspetiva, relacionada com a completude da norma enquanto
critério, distingue normas autónomas (estrutural e intencionalmente) de normas
não autónomas. As primeiras consistem num enunciado com a estrutura de um
programa hipotético-condicional (hipótese e estatuição), pelo que apresentam
uma solução completa. i.e., não é necessário recorrer a outras normas. Já as
segundas não pautam por tal completude, remetendo para outra(s) norma(s). Por
sua vez as normas não autónomas podem ser remissivas explícitas, quando
indicam quais os enunciados legislativos que devemos ler para completar o seu
sentido (p.e. o art. 953.º do CC), ou de remissão implícita, não remetendo
expressamente para outra norma, mas estabelecendo que a situação a regular se
considera igual ao facto disciplinado por outra norma para a qual remete, então,
implicitamente.
As proposições normativas não autónomas remissivas implícitas podem
ser:
 Ficções jurídicas: estando em causa duas situações com igual
relevância jurídica, i.e., para as quais o Direito responde do mesmo modo,
pressupõe-se a ocorrência de uma delas quando na realidade ocorreu a outra, de
modo a que se possam introduzir certos efeitos jurídicos. Assim, a resposta do
direito ficciona uma situação que não existiu, como ocorre, p.e., no art. 805.º/2/c)
do CC.

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 13 de 20


 Presunções jurídicas: um facto desconhecido torna-se
verosímil porestar relacionado com outro facto conhecido e provado. Assim, trata-se
de uma ilação que a lei ou o julgador tiram do facto conhecido para firmar o facto
desconhecido, podendo tratar-se de uma presunção iuris tantum ou iuris et jure.
A primeira pode ser refutada mediante prova em contrário e a segunda é
absoluta, não admitindo refutação (arts. 1260, n.º 2 e n.º3, respetivamente).
Existem ainda proposições não normativas, i.e., que não determinam
diretamente um comportamento, não apresentando a estrutura de um programa
hipotético-condicional. Estas podem ser definições, definindo uma figura jurídica
de modo a evitar incertezas (art. 2003.º do CC), classificações (art. 203.º do CC)
ou regras meramente qualificativas (art. 1722.º do CC).

Classificações das Normas – Perspetiva da Articulação ou da Coerência


Sistémica
Esta perspetiva exige que relacionemos as normas entre si, de modo a que
as possamos classificar de acordo com as relações de especialidade territorial:
 Normas universais;
 Normas globais/nacionais: aplicam-se em todo o território
estadual,consistindo, geralmente, em leis e decretos-leis;
 Normas regionais: aplicam-se apenas a uma determinada região,
correspondendo a decretos legislativos regionais;
 Normas locais: aplicam-se apenas no território de uma
autarquialocal, p.e. estruturas regulamentares.

Por outro lado, as normas podem ser relacionadas de acordo com a sua
especialidade material:
 Normas gerais/comuns: estabelecem um regime-regra, i.e., uma
solução dominante para um certo tipo de situações (art. 219.º do CC);
 Normas Especiais: regulam relações com determinadas
especificidades, pelo que o regime-regra, ainda que não seja posto em causa, é
adaptado. Assim, para tornar possível a resposta à especificidade do problema,
consagram uma disciplina nova para círculos mais restritos de pessoas, coisas ou
relações;
 Normas excecionais: consagram um ius singulare, i.e.,
contrariam o regime-regra num setor restrito de modo a solucionar problemas
específicos que se afirmam como excecionais (o art. 875.º do CC é uma norma
excecional relativamente ao regime-regra estabelecido no art. 219.º do CC).
Relativamente às normas excecionais, o art. 11.º do CC procura distinguir
interpretação extensiva de aplicação analógica, no entanto trata-se de uma
diferenciação problemática e até considerada impossível por alguns juristas.

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 14 de 20


Classificação das Normas - Perspetiva do Vínculo Lógico Com a Ação
Combinada Com a Perspetiva da Autonomia Privada
Trata-se de uma classificação consoante a aplicação das normas jurídicas
seja ou não dependente da manifestação da vontade dos sujeitos a que estas se
dirigem:
 Normas imperativas/injuntivas/cogenses: a sua aplicação não
depende da manifestação da vontade dos sujeitos a que se dirigem, sendo-lhes
impostas e podendo tratar-se de normas percetivas, que exigem um
comportamento positivo (um facere), ou proibitivas, que proíbem uma conduta
(exigem um non facere) de modo a que se preservem bens jurídicos com
relevância comunitária.

 Normas permissivas/dispositivas: permitem ou autorizam certos


comportamentos, sendo que a sua aplicação e produção de efeitos depende da
manifestação da vontade dos sujeitos a que se dirigem. Podem ser:
 Facultativas/concessivas/atributivas: permitem certos
compor-tamentos, reconhecendo determinados poderes ou faculdades;
 Interpretativas strictu sensu: determinam o alcance e o
sentidode certas expressões ou declarações negociais suscetíveis de dúvida;
 Supletivas: consagram soluções para determinados
problemas jurídicos que só são vinculantes se o sujeito destinatário não manifestar
uma vontade contrária (p.e., o art. 1717.º do CC).

Classificação das Normas – Perspetiva da Sanção


 Leges plus quam perfectae: determinam a invalidade dos atos
queaviolam, aplicando uma pena aos infratores;
 Leges perfectae: determinam a invalidade dos atos contrários
a elas,não prevendo qualquer pena;
 Leges minus quam perfectae: não estabelecem a invalidade
dos atoscontrários a elas, mas determinam, nesse caso, que não produzirão todos os
efeitos.
 Leges imperfectae: aparentemente não estabelecem qualquer
sançãoem caso de incumprimento.

Os Critérios da Jurisprudência Judicial


Trata-se do direito judicial, ou seja, dos juízos decisórios decretados pelos
tribunais relativamente a controvérsias juridicamente relevantes. Estas decisões
são suscetíveis de serem mobilizadas como critérios, oferecendo soluções

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 15 de 20


exemplares para casos concretos posteriores a elas e análogos às controvérsias a
que elas deram resposta. O juízo-julgamento consubstancia-se, então, num pré-
juízo (precedente), já que, sendo resultado da realização do Direito e, portanto,
da experimentação dos fundamentos e critérios do sistema jurídico, assimila e
estabiliza compromissos prático-comunitários.
Pode discutir-se se o critério jurisdicional corresponde à sentença-decisão,
ou à sua fundamentação, i.e., à ratio decidendi. Devemos concluir que o que
caracteriza o critério da jurisprudência judicial não é a decisão em si, mas o
juízo, ou seja o modo como o julgador mobilizou o sistema jurídico para
responder à controvérsia em causa.
Assim, os juízos decisórios beneficiam, no plano metodológico-
argumentativo, de uma presunção de vinculação. No século XIX, Kent defendia
que esta correspondia a uma presunção de correção, considerando-se adequada a
decisão que tivesse por base o sistema jurídico. Mais recentemente, Kriele
defendeu tratar-se de uma presunção de justeza enquanto adequação da sentença
não só ao sistema jurídico, mas também às exigências do caso concreto (dialética
sistema-problema). Esta presunção de justeza é mais forte no caso das decisões
de tribunais superiores, já que estas são pensadas tendo em conta todas as
anteriores sentenças decretadas pelos tribunais inferiores. Para além disso, nos
sistemas de common law, os pré-juízos dos tribunais superiores beneficiam de
uma vinculação formal, i.e., são precedentes vinculantes e, portanto, estão
sujeitos a um vínculo autoritário formal.
No entanto esta ideia de vinculatividade absoluta nos sistemas de common
law teve o seu apogeu no século XIX e tem vindo a perder rigor, levando a uma
aproximação entre os dois sistemas, devido às técnicas do distinguishing e do
overruling. De acordo com a primeira, o juiz deve comparar os casos anteriores e
presentes, realçando as semelhanças e diferenças, de modo a averiguar se as
últimas são suficientes para afastar os precedentes. Já a segunda dita que, caso o
precedente (mesmo que seja vinculante) conduza a resultados injustos, o juiz
pode afastá-lo. Estas técnicas permitem ao julgador superar precedentes
irrazoáveis, mas também aqueles que se encontram consolidados, pelo que é
necessário estabelecer um compromisso entre as exigências da certeza e
continuidade do direito e as da justeza da solução de cada caso e da
adaptabilidade do direito à mudança. Independentemente das suas diferenças,
ambos os sistemas são obrigados a consolidar e inserir no sistema as suas
decisões.
Deste modo, a supra referida presunção de justeza é ilidível (não
absoluta), vigorando o princípio da inércia, teorizado por Perelman, de acordo
com o qual, caso um precedente judicial seja evocável a favor ou contra uma
decisão, tal deve ocorrer sem que o julgador tenha de o justificar prático-

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 16 de 20


normativamente, em virtude da supra referida presunção de justeza,
considerando-se que o recurso a uma praxis estabilizadora não necessita de
qualquer fundamentação (vinculação no sentido positivo). No entanto, esta
presunção é refutável, já que, se o pré-juízo for suficientemente diferente da
controvérsia jurídica em causa, o julgador pode afastá-lo, assumindo o ónus da
contra-argumentação, que é agravado caso se pretenda afastar o juízo decisório
de um tribunal superior. Para esta fundamentação, o juiz deve mobilizar todos os
estratos do sistema jurídico (vinculação no sentido negativo). A exigência de
fundamentação é tanto maior quanto mais forte for a corrente jurisprudencial
estabilizada.
Concluindo, o direito da jurisprudência judicial é vinculante por beneficiar
de uma presunção de justeza, levando a uma realização prático-concretamente
adequada do direito. Uma vez que o julgador tem o dever de justificar o
afastamento do pré juízo, trata-se de uma vinculação presuntiva, mas não formal.

A Dogmática ou Jurisprudência Doutrinal


No século XIX, compreendia-se que a dogmática era meramente
reprodutiva. No entanto, a conceção atual é a de que esta é indissociável da
jurisprudência judicial, conjugando uma tarefa de hermenêutica sistemática
(esclarecendo conceitos e usos linguísticos e explicitando constitutivamente os
fundamentos), com uma intenção prático-prudencial (propondo modelos-critérios
e descrevendo reconstitutivamente o direito vigente). Estas tarefas convergem
numa intenção global, com vista a uma racionalidade prática sujeito/sujeito e não
sujeito/caso concreto.
A doutrina desenvolve-se através das manifestações de diversos juristas
(comentários analíticos, lições, tratados, entre outros), que vão criando correntes
doutrinárias, maioritárias quando diversos autores defendem ideias idênticas
relativamente a uma possível controvérsia, ou marginais ou minoritárias, sendo
que estas podem vir a tornar-se dominantes. Assim, trata-se de uma reflexão
autónoma acerca do direito, à qual é reconhecida auctoritas, não no sentido de
potestas, mas por estas formulações provirem de autores ou juristas com um
certo relevo. Há, então, uma presunção de legitimidade histórico-cultural, que se
converte numa presunção de racionalidade, sendo que o julgador pode
fundamentar as suas decisões invocando teses doutrinais amplamente aceites
naquele momento da História.
A doutrina tem, então, uma função heurística, já que introduz
antecipadamente novos esquemas de solução para problemas reconstituídos
racionalmente porque suscetíveis de surgirem no contexto cultural em causa. Por
outro lado, ao refletir acerca destes problemas jurídicos, a dogmática reflete
também acerca do sistema e, portanto, dos seus princípios e fundamentos,

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 17 de 20


influenciando o modo como a comunidade jurídica os compreende. A sua
reflexão acerca das exigências do sistema jurídico leva a novas perguntas e estas
por sua vez, a novas respostas, e assim sucessivamente.
Do mesmo modo, a dogmática tem uma tarefa de reelaboração
reconstitutiva do sistema, já que descreve e reconstrói as normas, relacionando-as
com os princípios e esclarecendo o modo como estas encerram a estabilização da
casuística e da prática judicativa. Tal ocorre não na perspetiva de um caso
concreto, como ocorre com a jurisprudência judicial, mas com um certo
distanciamento.
Por fim, a doutrina tem ainda uma tarefa desoneradora da jurisprudência,
já que o juiz deve responder às controvérsias jurídicas com relativa urgência, mas
à dogmática é permitido refletir sem urgência numa decisão, podendo depois
propor modelos de solução já reflectidos e trabalhados e, por isso, aceites pela
jurisprudência. Assim, a doutrina fornece esquemas de solução e controla o papel
da jurisprudência. Conclui-se, então, que permanece um diálogo entre os dois
estratos do sistema aludidos.
Concluindo, os modelos normativo-dogmáticos podem ser critérios-mapas
(esquemas de solução) mais abstratos do que os precedentes jurídicos e menos
concentrados e abstratos do que as normas, permitindo discutir um variado
espectro de possibilidades de realização. Podem também explicitar e constituir
princípios-fundamentos, levando por vezes ao surgimento de novos “faróis”.
Uma vez que a doutrina é refletida através do diálogo entre diversos
autores, beneficia da já referida presunção de racionalidade, aplicando-se, tal
como ocorre com a jurisprudência judicial, o princípio da inércia: o critério não
tem que se justificar a si próprio, pelo que o julgador não tem de fundamentar a
convocação de uma posição seguida por autores reconhecidos, defendida pela
doutrina dominante. Por outro lado, o juiz pode considerar que o caso concreto
merece uma resposta distinta daquela que a corrente doutrinária dominante
propõe, recaindo sobre ele o ónus da argumentação a favor de tal posição
(portanto da contra-argumentação), com base nos restantes estratos do sistema
jurídico, não só relativamente à solução em causa, mas também de modo a
justificar o rompimento com a tradição. Assim, a presunção de racionalidade da
dogmática é ilidível.

A Realidade Jurídica
A realidade jurídica em que as controvérsias se manifestam e o direito se
realiza é o último estrato do sistema jurídico, não se tratando de um mero campo
de aplicação do direito, mas de um contexto histórico social que interage com o
sistema, sendo que existem problemas práticos que não se encontram
solucionados pelos critérios. Por outro lado, a realidade jurídica evolui mais

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 18 de 20


rapidamente que as prescrições, decisões e textos autoritários, acabando por ser
assimilada pelos restantes estratos do sistema.
A realidade jurídica compreende duas dimensões fundamentais:
 Dimensão institucional, já que as realidades económica,
política ecultural se manifestam através da autonomização de certos institutos, não
no sentido de se tratarem de individualidades lógicas conformadas
normativamente pelos princípios e critérios (conceção do positivismo cientifico
do século XIX), mas no sentido de uma law in action resultante da
interpenetração entre intenções normativas e experiências práticas sociais
estabilizadas e, por isso, reconhecidas como realidades.
Esta dimensão compreende ainda os cânones correspondentes às práticas
profissionais das comunidades de juristas, que precipitam experiências coletivas
inconfundíveis, submetendo-nos a uma pluralidade de linguagens resultante das
diferentes abordagens (ainda que suscetíveis de serem conciliadas) face à
experiência do sistema jurídico in action em cada contexto histórico e, portanto,
da multiplicação de regras procedimentais, materiais canónicos, entre outros.
Assim, o direito densifica-se por referência à realidade histórica.
Ainda no plano institucional, consideram-se os modos de organização e
associação, que conjugam as realidades jurídica e social e que correspondem ao
exercício da autonomia privada ou à realização prática de um estatuto
convencionalmente objectivado e, portanto, a uma realidade normativo-social.

 Dimensão dinâmica: refere-se ao tratamento das controvérsias


práticas através de juízos decisórios que, por via da tarefa prática levada a cabo
pelas jurisprudências judicial e doutrinal, se estabilizam como critérios vigentes
no corpus iuris. Em cada caso, convergem a perspetiva imposta pela
normatividade jurídica e a ação prática social que a primeira assimila.

A Dialética Sistema/Problema
O sistema jurídico não compreende um conjunto de significações
fechadas, já que é dinâmico e aberto, caracterizando-se por uma evolução
constante. Pensa-se em dialética com os problemas jurídicos, estando os seus
diferentes estratos a ser constantemente mobilizados para a resolução das
controvérsias, cujas especificidades levam, por sua vez, à recompreensão do
sistema.
Assim, esta índole dinâmica é regressiva (“de hoje para ontem”) e a
posteriori, já que assenta na reconstituição analógica do discurso prático. Depois
de resolvido através de uma decisão judicativa por parte do julgador, o problema
jurídico passa a integrar o sistema. P.e., a autonomização do critério normativo
do abuso do direito impôs a reconstituição da compreensão da autonomia da

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 19 de 20


vontade, abandonando-se o seu entendimento tradicional. Destarte, a novidade
introduzida por cada caso concreto influencia o pré-disponível, levando a
alterações no sistema jurídico.
Deste modo, preservam-se simultaneamente a unidade e dinâmica do
corpus juris, permanecendo a dialéticasistema/problema e, portanto,
sistema/historicidade.

A pergunta pelas fontes do direito a dirigir-se ao processo-iter que constitui e


objetiva o direito como normatividade vigente numa determinada comunidade

O Problema das fontes do Direito


Corresponde ao problema do modo ou modos de constituição e
manifestação do Direito vigente, i.e., do direito válido porque respeita as suas
exigências últimas e eficaz porque corresponde a uma exigência de sentido
assimilada pela comunidade, dando resposta a problemas práticos juridicamente
relevantes. Assim, a vigência, afirmada num determinado âmbito espacial e
temporal, é uma síntese de validade e eficácia, acrescentando à validade a
existência histórico-social e traduzindo o Direito num “dever ser que é”.
No entanto, não se trata de uma eficácia resultante da vontade-poder que
impõe a normatividade, já que, se assim fosse, a sua violação determinaria o fim
da sua vigência. Ora, a frustração do direito anula a sua eficácia, mas não a sua
vigência e validade, i.e., o direito vigente admite preterições.
Deste modo, a validade refere-se a uma existência ideal e a eficácia a uma
existência real, traduzindo, respetivamente, os planos axiológico e sociológico da
vigência e, portanto, a sua nuclear bipolaridade.

Compreensões a superar acerca das fontes do direito


De acordo com Castanheira Neves, as fontes de direito podem ser
consideradas partindo-se das seguintes perspetivas:
 Fontes de validade: procurando-se os valores que
fundamentao
direito;
 Fontes genéticas: determinando-se os fatores que estiveram na
origem do direito e que explicam o seu conteúdo;
 Fontes de conhecimento: procurando-se saber os locais ondeo
direito se encontra e manifesta autenticamente;
 Fontes de juridicidade: estudando-se os constituintes do
direito, i.e.,o que permite que a normatividade seja jurídica.

Ora, para o nosso curso é relevante a última conceção enunciada, já que as


restantes não permitem determinar como e porque razão a normatividade jurídica
Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 1 de 22
se torna vigente, ou seja, como é que o Direito se torna Direito. Assim, torna-se
necessário superar duas compreensões do problema das fontes do direito, marcadas
pelo positivismo:
 Perspetiva técnico-jurídica/hermenêutico-positiva: reduz o
problemaenunciado ao problema das fontes de conhecimento do direito, procurando

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 2 de 22


respostas através da hermenêutica de normas secundárias correspondentes à
questão em causa (arts. 1.º a 4.º do CC).

 Perspetiva político-constitucional: responde ao problema da


constituição da juridicidade afirmando que esta resulta da autoridade-potestas
político-constitucionalmente legitimada e da voluntas que a determina. Assim, esta
perspetiva, defendida por Hans Kelsen, reduz o Direito, confundindo-o com
autoridade.

No entanto, o positivismo reduz o Direito à lei, admitindo-a como fonte


exclusiva do mesmo. Ora, não podemos partir de uma objetivação do direito
positivo (lei) para solucionar o problema do processo de formação do direito
positivo. Assim, devemos adotar uma perspetiva fenomenológico-normativa,
compreendendo o direito como um fenómeno de modo a identificar o modo ou
modos de constituição e manifestação da normatividade jurídica vigente enquanto
tal, pensando-se no problema das fontes da juridicidade, e não de conhecimento
ou genéticas. Assim, devemos apreender todos os fatores (políticos, económicos,
culturais…) relacionados com a experiência de constituição do direito, já que este
só será vigente se a realidade prático-cultural que o convoca estiver submetida aos
fundamentos que condicionam a sua validade, de modo a que o Direito seja
assimilado por ela e, depois, objetivado no corpus iuris.

Os momentos da experiência jurídica


De acordo com a perspetiva fenomenológico-normativa, é possível
identificar quatro momentos da experiência jurídica:
 Momento material: consiste na realidade histórico-social que
solicitaproblematicamente respostas de direito.
 Momento de validade: esse campo da realidade social é
submetido às exigências de sentido presentes nos princípios normativos, permitindo
distinguir o válido do inválido. Assim, este momento reflete o direito enquanto
projeto de procura de um certo homo humanus livre, autónomo e responsável;
 Momento constituinte: como o direito positivo não pode
apenas serválido, segue-se o momento constituinte, que corresponde aos modos de
instituição ou de auctoritas constituinte que sustentam a positivação do direito
como direito;
 Momento da objetivação: integração no corpus iuris, o que nos
autoriza a falar de um direito vigente.

O momento constituinte
Ora, há três tipos puros ou ideais, bem como históricos, de constituição do
Direito: experiências constituintes consuetudinária, legislativa e jurisdicional.

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 3 de 22


 Experiência constituinte consuetudinária: o Direito constitui-se
emanifesta-se enquanto se cumpre, falando-se em costume em sentido jurídico,
i.e., em práticas de origem indeterminada (e, portanto, não atribuídas a uma
decisão- voluntas) e repetidas ao longo do tempo, cuja dimensão de aceitação
leva a que se estabilizem comunitariamente, adquirindo um significado jurídico.
Deste modo, trata-se de um comportamento que adquire relevância jurídica sem
uma prescrição prévia. Não é possível definir os momentos da estabilização e de
atribuição de relevância jurídica à prática, pelo que a experiência constituinte
consuetudinária não é racionalmente determinada, mas é apenas sedimentada
prático- culturalmente, estando portanto associada ao passado.
Deste modo, os membros da comunidade são simultaneamente criadores e
destinatários do costume e, portanto responsáveis pela sua constituição e
subsistência. Trata-se, então, de uma experiência de índole tradicional que reflete
uma autonomia normativa e na qual o comportamento e a juridicidade são
simultâneos e indivisíveis.

 Experiência constituinte legislativa: o direito constitui-se


emanifesta-se enquanto se proclama-escreve, i.e., quando a norma legal é escrita,
podendo tratar-se de um programa condicional ou final, de uma lei medida ou de
uma norma tout court. Em todas as situações trata-se de um programa racional e
orientado para o futuro, pelo que está em causa uma experiência de índole
programática, estabelecendo-se regras de conduta a serem cumpridas futuramente.
A referida racionalidade pode ser axiomático-abstrata quando se verifica uma
regulamentação coerente e unitária evidenciada através da codificação; ou
teleológico-estratégica ou instrumental-programática associada à revisibilidade da
intervenção regulativa. Esta experiência constituinte tem sempre por base a
expressão da voluntas de um poder com competência legislativa, havendo a
possibilidade de inovação e até de rutura radical de acordo com as opções políticas
e ideológicas. Assim, os titulares do poder legislativo distinguem-se dos
destinatários das prescrições (ainda que aqueles também sejam destinatários,
verificando-se uma heteronomia normativa.
Deste modo, o próprio texto é constitutivo e imposto de forma autêntica,
constituindo um instrumento de intervenção política planificada e, portanto, tendo
uma índole estatal.
Esta experiência constitutiva é polarizadora nos sistemas de civil law, ainda
que a experiência constituinte jurisdicional assuma crescente importância.

 Experiência constituinte jurisdicional: o direito constitui-se e


manifesta-se enquanto se realiza, i.e., através da resposta do juiz a uma
controvérsia jurídica singular e concreta. Estas respostas correspondem a juízos

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 4 de 22


decisórios, já que resultam da dialética sistema-problema e realizam o sistema
jurídico, sendo obtidas através de uma racionalidade prático-prudencial e
fundamentando-se na validade comunitária e no sistema jurídico vigente.
A decisão judicativa é, então, emanada por um poder-autoridade marcado
pela tercialidade e é um critério-exemplum expresso num texto marcado por uma
ratio decidendi. Assim, esta experiência constituinte de índole comunitária-
prudencial garante a mediação normativa entre os sujeitos partes e entre o sistema
jurídico e a sua realização completa, pelo que corresponde a um modo privilegiado
de manifestação do jurídico na sua especificidade, estando associada ao presente.
Nos sistemas de common law, esta experiência constitutiva é polarizadora,
ainda que a experiência constitutiva legislativa assuma uma importância crescente.

Estas experiências dirigem-se ao direito de modo distinto. Para a


consuetudinária este é social, para a legislativa é observado num plano de regra de
conduta e para a jurisprudencial identifica-se com a generalidade do sistema
jurídico, funcionando como ordem de validade.

Algumas especificidades do nosso sistema de legislação


No nosso sistema de legislação, as fontes formais prescritivas encontram-
se hierarquizadas de acordo com o seu poder prescritivo, ainda que todas
beneficiem de uma presunção de autoridade: poder constituinte; poder legislativo
propriamente dito; poder regulamentar; poder autárquico.
Para além disso, até 1966, vigorou em Portugal o instituto dos assentos que,
em confronto com os precedentes vinculantes do common law, visavam a
estabilização e uniformização jurisprudencial, a certeza e uma visão normativista
do Direito. Assim, estando perante duas decisões jurisprudenciais acerca da mesma
questão fundamental do direito e no âmbito da mesma legislação, mas com
soluções distintas, o STJ a funcionar em pleno era constrangido a extrair dessa
nova decisão uma norma geral e abstrata (e não um critério jurisprudencial) com
força obrigatória geral para os casos futuros. Apesar de ter sido construída através
da experiência de um caso concreto, a norma legal em causa, designada assento,
considerava-se autónoma e independente. É de notar que, por via do instituto do
caso julgado, não se admitia recurso da primeira das duas decisões judicativas em
causa.
No entanto, como foi supra referido, este instituto acabou por ser revogado
devido a numerosas críticas, nomeadamente o facto de ser o poder judicial (e não
o poder legislativo) a criar normas legais, violando-se o princípio da separação dos
poderes. As normas criadas por ambos vinculam da mesma forma, mas, ao criá-
las, o poder legislativo pode informar-se previamente de inúmeras formas,
enquanto o poder judicial tem apenas por base um caso concreto.

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 5 de 22


O referido instituto confronta-se com o julgamento de fixação de
jurisprudência em processo penal (arts. 437.º/1 e ss. e 445.º/3 do CPP) e o
julgamento ampliado de revista em processo civil (arts. 671.º e ss., 686.º e ss., 688.º
a 695.º, 721.º-A/1 e 732.º-A/1/2 do CPC), vigentes no nosso ordenamento jurídico.
Estes também visam estabilizar a jurisprudência judicial, não através de uma
vinculação formal, mas mediante a possibilidade de reconhecimento do ónus da
contra-argumentação.

O problema da experiência legislativa – a sua importância e os seus limites


O momento constituinte caracteriza-se pela dialética entre a validade
comunitária (momento de validade) e a realidade histórico-social (momento
material) e revela os modos de positivação aos quais a comunidade reconhece
auctoritas.

A importância da legislação
A legislação tem funções político-sociais e funções jurídicas.
As primeiras estão associadas à nova compreensão da legalidade, agora a
poder consagrar programas estratégicos de fins, permitida pelo surgimento do
Estado Providência. Assim, acentuam a face imperativo da legislação, i.e., a sua
ratio legis, e são:
 Função de ordenação político-social e reformadora:
estabelecendo um programa para o futuro, só a lei pode intervir juridicamente num
sentido estrutural e transformador das práticas políticas e sociais;
 Função instituinte e planificadora regulamentar: só a lei tem
capacidade de institucionalização e organização de modo a criar órgãos e definir
as suas competências, bem como a planificar a atividade regulamentar do Estado.

Já as funções jurídicas são:


 Função jurídica de garantia: garante a autonomia dos sujeitos
jurídicos e, no quadro da relação entre os sistemas jurídico e político, a autonomia
dos cidadãos. Isto porque impõe limites que impedem um continuum de
responsabilidade, determinando onde esta começa e termina para cada indivíduo.
Tal é visível através das projeções do princípio suprapositivo da formalização nos
diferentes domínios dogmáticos, nomeadamente no direito penal através do
princípio transpositivo da legalidade criminal;
 Função jurídica de integração: face ao pluralismo social e à
fragmentação das sociedades associados à erosão de referentes integradores e da
validade comunitária correspondente, a lei impõe uma solução jurídica geral e
parificadora ao pluralismo social e cultural. Ora, só a lei o pode fazer

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 6 de 22


objetivamente, já que as diferenças no plano da ética levam a que nem todos os
membros de uma comunidade reconheçam os mesmos valores como seus.
Os limites funcionais e normativos da lei
No entanto, a lei também tem alguns limites funcionais e normativos, sendo
que os segundos se traduzem em problemas metodológicos, i.e., relacionados com
o método de realização do direito em concreto:
 Limites objetivos: ausência de uma norma legal no sistema que
assimile a relevância da controvérsia jurídica em causa. No séc. XIX, o
normativismo designou este limite como problema da integração das lacunas, que
devia ser solucionado através da conceção dos princípios como ratio (normas mais
gerais e mais abstratas que, por isso, abrangiam um campo mais variado de
problemas juridicamente relevantes). No entanto, a atual visão pluridimensional
do sistema leva a que este limite se traduza na realização do direito sem a mediação
do estrato das normas, mas apenas de outros critérios ou até de fundamentos e do
dinamismo histórico.

 Limites de validade: surgem sempre que, ao mobilizar uma


normacomo critério para a solução de uma controvérsia jurídica concreta, o julgador
frustra as exigências de um PGD, i.e., os limites de validade da norma legal
convocada (que, em abstrato, não desrespeita qualquer princípio). Ora, ao
mobilizar critérios do sistema jurídico, ou seja, modelos imediatamente operativos
de esquemas de solução, o julgador nunca pode afastar-se da orientação fornecida
pelos fundamentos, de modo a que a realização do direito não se afaste da validade
comunitária. Assim, estes limites exigem uma compreensão dos princípios como
jus e da relação entre os princípios normativos (que beneficiam de uma presunção
de validade) e as normas legais (a beneficiar de uma presunção de validade).

 Limites temporais: surgem do confronto das normas legais com


odinamismo histórico da realidade jurídica e da compreensão dos princípios e
levam às normas obsoletas ou à superação por caducidade.
 Norma obsoleta: é formalmente vigente mas ineficaz,
já quea passagem do tempo levou à alteração dos pressupostos verificados no
momento da sua elaboração e, portanto, à sua desadequação à realidade jurídica e
social.
 Superação por caducidade: surge pela desadequação
da norma legal formalmente vigente face às atuais exigências dos princípios
normativos que a fundamentavam, provocada pela erosão do tempo. Assim, a
norma é superada por caducidade material, perdendo a sua validade. Assim
ocorreu, p.e., com o princípio da autonomia privada, que foi superada por
caducidade quando se alterou a compreensão do princípio da autonomia da
vontade.

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 7 de 22


 Limites intencionais: resultam da índole programática das
normas legais e surgem pelo confronto entre elas e as especificidades do caso
concreto. Assim, a resposta para o mesmo exige um juízo-julgamento autónomo,
mobilizando-se todos os estratos do sistema e, deste modo, vencendo-se as suas
indeterminações.

A especificidade do momento constitutivo e a sua relação com o momento da


objetivação
Para além do legislador, outras instâncias participam no momento
constitutivo da normatividade jurídica, como a jurisprudência judicial, cujos juízos
decisórios constituem precedentes, i.e., são suscetíveis de serem mobilizados como
critérios, oferecendo soluções exemplares para casos concretos posteriores a eles
e análogos às controvérsias a que eles deram resposta, beneficiando de uma
presunção de justeza. Também a jurisprudência dogmática, que beneficia de uma
presunção de racionalidade, contribui autonomamente para o momento
constitutivo, já que introduz antecipadamente novos esquemas de solução para
problemas reconstituídos racionalmente porque suscetíveis de surgirem no
contexto cultural em causa, além de explicitar e constituir fundamentos.

A teoria tradicional da interpretação reconstituída a partir da herança do “Método


Jurídico”
O método jurídico foi pensado no séc. XIX e é uma reflexão acerca do
modus operandi do juiz. Expressão do positivismo normativista e legalista do seu
tempo, procurou racionalizar teoreticamente a prática, tornando o pensamento
jurídico numa ciência dogmática do direito, que reconstituía analiticamente o
sistema de normas legais e as relações entre elas. Assim, autonomizou-se,
afastando-se da história, sociologia, filosofia, entre outras.
O objetivo do método jurídico normativista era, então, prescrever a priori e
autonomamente o modelo a aplicar à prática de resolução de controvérsias
jurídicas, de modo a que esta seja racional e objetiva. Deste modo, a ciência
dogmática do direito assumia como tarefas essenciais:
 Simplificação quantitativa (diminuição do seu volume) e
qualitativa (garantindo-se a unidade do Direito-objeto) dos materiais em estudo,
objetivando- os, o que permitiria o seu domínio cognitivo-espiritual. Tal ocorria
através da análise jurídica, da concentração lógica e da construção jurídica;
 Tratamento dessas objetivações, de modo que a resolução de
controvérsias juridicamente relevantes concretas seja racional e realize
formalmente as normas legais.

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 8 de 22


Ao realizar estas tarefas, o pensamento jurídico compreende o Direito como
um sistema horizontal e unidimensional de normas, formalmente pré-determinado
em abstrato e, portanto, abstraindo o conteúdo político-socialmente contingente
das prescrições legais. Ao sistematizar os conceitos jurídicos presentes nas normas,
a ciência dogmática do direito garante a unidade horizontal por coerência
categorial-estática.

As duas grandes escolas e a síntese em que culminaram


Para a formação deste método jurídico contribuíram a Escola da Exegese
ou do Legalismo Francês e a Escola Alemã, que tem origem na Escola Histórica.
 A Escola de Exegese: surgiu com Delvincourt, Duranton,
Demolombe e Bugnet e conjugava o jusracionalismo moderno-iluminista com o
legalismo demoliberal e a codificação pós-revolucionária. Assim, o Direito-objeto
consistia nas normas gerais e abstratas criadas apenas pelo legislador e sub species
codicis. Deste modo, a lei era a única fonte de direito e cada Código regulava
totalmente um setor da vida social, destacando-se o Código de Napoleão.
De acordo com esta Escola, que combina o normativismo e o legalismo, o
método jurídico iniciava-se com a interpretação (à qual se dava primazia),
seguindo-se a integração, depois a construção e por fim a aplicação. Assim, os
juristas procediam à exegese dos textos codificados, aplicando depois lógico-
dedutivamente a lei escrita.

 Da Escola Histórica ao Positivismo Conceitual: a EH foi um


movimento global que abrangeu todos os planos do pensamento e da cultura, tendo
sido representada ao nível do Direito por Savigny e Puchta. Surgiu para combater
o positivismo exegético (o primeiro Código Civil Alemão só foi publicado em
1900), defendendo que o Direito não resultava da racionalização da vontade geral,
mas sim da manifestação do “espírito do povo” ao longo dos tempos, que o
legislador deveria interpretar. Ora, sendo a história cultural diferente de povo para
povo, o Direito não poderia resultar meramente da racionalidade universal.
No entanto, a EH acabou por degenerar no positivismo conceitual,
compreendendo o Direito como uma realidade objetiva oferecida pela história e
que o jurista apreendia através da racionalidade. Assim, começou a procurar-se
reconstruir os materiais jurídicos dispersos (leis, costume e o CIC), tratando-os
cientificamente e convertendo-os em normas gerais e abstratas, ou seja,
assumindo-se uma conceção normativista.
Na Escola do Positivismo Conceitual destacaram-se Jhering e Windsheid e
procurou-se conciliar o historicismo constitutivo com o idealismo conceitual, bem
como o cientismo positivista com o racionalismo normativista. Como supra
referido, o Direito-objeto correspondia, por influência da EH, às experiências

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 9 de 22


consuetudinária e legislativa e aos textos dos direitos romano e comum. Nesta
altura, a lei começou a assumir uma importância crescente, enquanto direito
constituído por força da história.
O método utilizado compreendia os momentos hermenêutico, científico e
da aplicação, privilegiando-se o segundo, durante o qual se procedia à análise,
concentração e sistematização dos materiais jurídicos.

A síntese dos dois positivismos projetada na delimitação dos momentos-operações


do método
Os positivismos exegético e conceitual convergem no plano do método
jurídico, que compreende os momentos científico e hermenêutico e, já
exteriormente, da aplicação lógico-dedutiva.
 Momento científico: tem origem na sistematização exemplar
proposta por Jhering.
Num momento inicial, a jurisprudência inferior procede à análise jurídica
que consiste na “química do Direito”, i.e., em separar o que é contingente e
irrepetível do que é racional, formal, geral e abstrato, obtendo-se proposições
jurídicas com hipótese e estatuição, que tornam o direito cognoscível.
Posteriormente, como os materiais jurídicos eram muitos e muito dispersos,
procedia-se à atividade de concentração lógica, na qual se procurava o centro
lógico das diversas normas relativas ao mesmo instituto, sintetizando-se por
indução o seu conteúdo numa só norma, mais geral e mais abstrata do que as
restantes por reproduzir de modo concentrado os seus significantes. Tratava-se de
um PDG (compreensão dos princípios como ratio), que consistia numa condição
epistemológica do próprio Direito. Após estas tarefas, o Direito-objetivo
convertia-se no Direito objetivo porque tratado cientificamente.
Por sua vez, a jurisprudência superior procede à construção-sistematização
conceitual, i.e., partindo dos materiais jurídicos já tratados, reconstitui-se
adequadamente a unidade do sistema, pensado de modo horizontal, como se as
normas estabelecessem uma relação de vizinhança, já que pressupõem uma rede
de conceitos aos quais se atribuem as mesmas significações. Ora, a grande tarefa
da jurisprudência superior é esclarecer e tais significações da forma mais rigorosa
possível, criando um sistema de corpos jurídicos compreendido por institutos
(emancipados da sua historicidade e contingência) e conceitos.
Já Puchta defende que o sistema de conceitos pressupõe uma estrutura
piramidal. Assim, devia construir-se, segundo as regras da lógica formal, uma
pirâmide conceitual transparente e composta por vários estratos, que estreita da
base para o topo. A largura corresponde à compreensão do conceito e a altura à a
sua extensão, i.e., o seu âmbito de aplicação. Atinge-se o ideal do sistema lógico

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 10 de 22


quando o vértice da pirâmide corresponde ao conceito mais geral possível,
subsumindo-se nele os restantes.
Desta forma, chega-se ao Direito dogma, passando-se para o segundo
momento do método jurídico.

 Momento hermenêutico: é indispensável para a determinação


dosentido da norma, tratando-se de um momento epistemologicamente heurístico e
metódico estanque, em simultâneo.
Interpretar é atribuir um único sentido à norma, integrando-a no sistema-
pirâmide, de modo a vencer as indeterminações linguísticas do texto em causa.
Assim, considera-se que não há direito antes do texto, assumindo-se que este é
constitutivo.
Concluindo, neste momento do método jurídico a norma em causa é inserida
no sistema de institutos e conceitos disponibilizado pela jurisprudência superior,
de modo a que se lhe possa atribuir, em abstrato, um só sentido. Assim, no
momento da aplicação (já exterior ao método), a norma já interpretada servirá de
premissa maior de um silogismo subsuntivo.

 Momento da aplicação: é já um momento exterior ao método


jurídico, no qual se soluciona a controvérsia jurídica através de um silogismo
subsuntivo, cuja premissa maior (a norma legal) foi já interpretada em abstrato.
Trata-se do paradigma da aplicação, no qual o julgador é visto como a “mera boca
que pronuncia as palavras da lei”, pronunciando em concreto as palavras que a
norma prescreve em abstrato.

Críticas ao método jurídico


 Crítica empírica: na realidade, o juízo do julgador era mais
prático-valorativo do que lógico-axiomático;
 Crítica metodológica: começaram a surgir correntes que
denunciaram o facto de as normas legais serem apenas compreendidas como um
pressuposto do direito judicativamente realizado.
 O fundamental no Direito é a discussão acerca dos problemas
e estmétodo jurídico centra-se na simplificação e sistematização de conceitos.

A teoria tradicional da interpretação da lei


A teoria tradicional da interpretação consiste numa conceção do problema
da interpretação que, embora tenha partido do método jurídico do séc. XIX, lhe
sobreviveu. Interpretar consiste em extrair das normas legais um certo sentido, no
entanto, surgem questões quanto ao objeto, objetivo, elementos e resultado da
interpretação.

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 11 de 22


O objeto da interpretação
A experiência iluminista da racionalidade levou a que, para a teoria
tradicional, o objeto da interpretação fosse o texto da norma, compreendido
constitutiva (compreensio legis) e globalmente (extensio legis).
O texto é constitutivo porque estamos perante um critério jurídico se se
tratar de uma norma geral, abstrata e formal, ou seja, são as suas estrutura e
características que conferem a juridicidade ao critério.
A compreensão global designa o conjunto das significações imanentes à
norma legal enquanto prescrição autossubsistente. Savigny defende que há
significações intrínsecas ao texto (elementos gramatical, histórico e sistemático e
lógico) e outras extra-textuais (elemento racional ou teleológico):
 Elemento gramatical: letra da lei, i.e., o texto na sua relevância
filológico-gramatical, tendo-se em conta as leis da linguagem e os usos linguísticos
com e sem sentido técnico-jurídico. Os restantes elementos intra-textuais não
correspondem à letra da lei, mas ao seu espírito;
 Elemento histórico: compreende as circunstâncias históricas e
jurídico-sociais do surgimento e elaboração da norma (occasio legis – art. 9.º/1),
os trabalhos preparatórios, os projetos, os precedentes normativos, entre outros;
 Elementos sistemático e lógico: o primeiro é referente à inserção
dogmática da norma no sistema jurídico e na pirâmide dos conceitos, pelo que o
intérprete deve ter em conta o contexto da lei, invocando normas inseridas em
lugares contíguos (no mesmo instituto que a lei a considerar), mas também em
lugares paralelos. O segundo relaciona-se com a estrutura hipotético-condicional
da norma, i.e., com a sua racionalidade. Estes dois elementos acabaram por se
fundir num só, designado lógico-sistemático ou meramente sistemático.

 Elemento racional ou teleológico: por ser extra-textual (por


imputar ao texto elementos que dele não fazem parte), este elemento, que está
relacionado com o motivo ou fim da norma, era visto como perigoso porque
suscetível de criar incertezas na interpretação e, portanto, comprometer a
objetividade do processo hermenêutico.
Assim, inicialmente, Savigny defendeu a sua exclusão, já que o julgador
devia apenas atender ao preceituado na lei, sendo que apenas o legislador a podia
aperfeiçoar. Mais tarde, o jurista defendeu a atribuição, a este elemento, de uma
relevância secundária e excecional, podendo ser convocado com grande precaução
no caso de a norma se encontrar defeituosa ou imperfeita, ainda que não deixasse
de se considerar o elemento racional como exterior à lei. Deste modo, passou a
fazer-se a distinção:

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 12 de 22


 Situação metodológica-regra: o texto da lei a
interpretar nos exprime claramente os seus objeto e fim, pelo que é possível
interpretá-la apenas recorrendo aos elementos intra-textuais;
 Situação metodológica excecional: o texto da norma é
imperfeito ou insuficiente, pelo que as suas indeterminações não permitem a
atribuição de um sentido sem que se mobilize o elemento extratextual.

A relevância do elemento gramatical


Ainda que o texto não se esgote no elemento gramatical, a letra da lei
desempenha, de acordo com a teoria tradicional da interpretação, uma função
autónoma inconfundível com as dos restantes elementos intra-textuais. Assim,
impõem-se como analítica e cronologicamente prioritário, já que a sua força
prescritiva condiciona o processo interpretativo. Trata-se de assumir a relevância
negativa da letra da lei, ou seja, que a letra é fronteira da interpretação (Larenz),
pelo que o intérprete deve excluir quaisquer sentidos não admitidos por ela. Assim,
o que se cumpre fora do campo dos sentidos admitidos pela letra da lei não
corresponde a interpretação, mas ao desenvolvimento judicial do Direito.
Por outro lado, a relevância negativa da lei pode referir-se à teoria da alusão
de Engisch, de acordo com a qual tem que haver uma correspondência verbal
mínima entre a relevância gramatical da lei o sentido que lhe é atribuído na sua
interpretação. Assim, deve privilegiar-se o teor verbal da lei, pelo que, se esta não
for clara, só são admissíveis os resultados da interpretação que encontrem alguma
expressão na letra (art. 9.º/2 do CC). Trata-se, então, de excluir todos os sentidos
incompatíveis com a relevância linguística da norma, fixando prescritivamente as
fronteiras da interpretação. Destarte, determinam-se os sentidos a excluir,
designados candidatos negativos por Jellinek, e, do mesmo modo, os candidatos
positivos, que correspondem aos sentidos possíveis mais naturais por
corresponderem aos usos mais habituais das palavras em causa. Numa função de
seleção, determinam-se ainda os candidatos neutros, i.e., os sentidos situados no
âmbito da dúvida possível por ainda serem permitidos pela letra mas serem mas
menos habituais. Ao contrário da relevância negativa do elemento gramatical, a
relevância positiva não é autónoma, já que esta função é desempenhada em
conjunto com os elementos histórico e lógico-sistemático, e não tem um caráter
prescritivo-normativo, podendo ser contrariada pelas funções dos restantes
elementos.

 Exemplo: Para determinarmos o sentido da norma “é nulo o


negóciojurídico celebrado pelo representante consigo mesmo”, devemos averiguar o
significado de cada um dos seus termos. Começando pela relevância negativa do
elemento gramatical, a nulidade exclui a validade (candidato negativo). Já no

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 13 de 22


campo da relevância positiva, o sentido mais natural da nulidade é a nulidade
absoluta, pelo que este é um candidato positivo. Ainda assim, a nulidade relativa
não é excluída pela letra da lei, tratando-se de um candidato neutro e, deste modo,
podendo a mobilização dos restantes elementos levar a que se opte por este
significado.

Após a determinação dos candidatos negativos, positivos e neutros, o


intérprete deve, então, chegar a um único sentido através da convocação dos
restantes elementos interpretativos em conjunto.

O objetivo da interpretação e a polémica subjetivismo (dogmático)/objetivismo


(dogmático)
Determinar o objetivo da interpretação é relevante para se saber o peso a
atribuir aos elementos histórico e sistemático de modo a chegar-se a um único
sentido da norma legal em causa. Na teoria tradicional da interpretação,
distinguem-se duas linhas fundamentais:
 Subjetivismo: surgiu no início do séc. XIX e, de acordo com esat
posição, o objetivo é reconstituir a intentio auctoris, i.e., a voluntas (vontade
histórico-psicológica) ou mens legislatoris (pensamento real) do legislador
historicamente autor da norma, já que, sendo ele o representante legítimo da
comunidade, tal conferirá maior segurança aos destinatários do Direito. Há
subjetivistas mais radicais, que defendem a reconstituição absoluta de tal vontade
(sem que se ponha em causa a relevância negativa da letra), e outros que procuram
compatibilizá-la com o texto da norma (trata-se da compreensão subjetivista da
teoria da alusão). Ainda assim, ambas privilegiam o elemento histórico face ao
lógico-sistemático.

 Objetivismo: surgiu na segunda metade do século XIX e, de


acordo com esta compreensão, o objetivo é a procura da intenção normativa da
própria lei (intentio operis, dita mens legis) autonomamente, não se tendo em
conta a mente do legislador real. Assim, privilegia-se o elemento sistemático
porque se presume que o legislador é razoável porque consagrou as melhores
soluções (razoabilidade quanto ao conteúdo ou mérito material), porque soube
exprimir com correção o seu pensamento (razoabilidade no plano formal-
expressivo) e ainda porque imprimiu à lei uma flexibilidade que lhe permite
refletir a evolução que se vai registando (razoabilidade no plano evolutivo-
atualista). No entanto, existem diversos entendimentos acerca do objetivismo:
 Objetivismo histórico/historicista (art. 9.º/3): o
intérpreteprocura reconstituir o sentido do texto no momento da promulgação. Neste
caso,

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 14 de 22


apenas se defendem a razoabilidade nos planos material e formal-expressivo do
legislador;
 Objetivismo atualista (art. 9.º/1): defende-se também a
razoabilidade no plano evolutivo-atualista do legislador, pelo que se atribuir à
norma o seu sentido correspondente ao atual contexto histórico. Esta conceção
começou a ganhar cada vez mais importância e defensores, aproximando-se já da
teleologia.

Ainda assim, os argumentos que sustentam o subjetivismo e o objetivismo


são reversíveis, i.e., o mesmo argumento é invocado por ambas, pelo que a
polémica entre os dois se torna estéril. Por exemplo, os objetivistas criticam os
subjetivistas, defendendo não ser possível reconstituir a vontade do legislador,
correndo-se o risco de o intérprete o fazer de acordo com a sua vontade. Por sua
vez, os subjetivistas argumentam não ser possível determinar-se o sentido
autónomo da lei, alertando para o mesmo perigo.
Não obstante, ambas levam a sério a relevância negativa da letra,
defendendo a interpretação em abstrato e a inserção do texto no sistema de normas
e conceitos, pelo que se fala num subjetivismo dogmático e num objetivismo
dogmático.
Já no séc. XIX surgiram as teorias mistas, que procuraram conjugar os
melhores argumentos do objetivismo e do subjetivismo. Tal é visível através do
art. 9.º do CC português, que refere a reconstituição do “pensamento legislativo”
(procura do sentido atribuído à lei pelo seu legislador histórico) e, portanto uma
característica do subjetivismo, mas também o recurso aos restantes elementos
(objetivismo), referindo as “circunstâncias em que a lei foi elaborada”
(objetivismo histórico) e as “condições específicas do tempo em que é aplicada”
(objetivismo atualista). O n.º 2 consagra ainda a teoria da alusão e o n.º3 a
presunção do legislador razoável nos planos material e formal-expressivo
(objetivismo histórico).

O problema dos resultados da interpretação


No término da tarefa da interpretação, admitem-se vários resultados:
 Interpretação declarativa: dentro do círculo de sentidos
permitidos pelo texto da lei, o intérprete optou pelo candidato positivo, havendo
naturalmente uma consonância perfeita entre a letra e o espírito. Assim, trata-se
do resultado ideal;
 Interpretação extensiva: o intérprete optou por um sentido
possível mais amplo do que aquele que se considera mais natural, i.e., por um
candidato neutro, alargando a letra da lei para a fazer corresponder com o
espírito;

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 15 de 22


 Interpretação restritiva: o intérprete optou por um sentido
possível mais restrito do que aquele que se considera mais natural, i.e., por um
candidato neutro, extraindo da norma um significado mais rigoroso e particular.
Assim, restringe-se naturalmente o sentido textual da lei para o fazer
corresponder com o espírito;
 Interpretação enunciativa: o intérprete optou por um candidato
neutro logicamente implícito na letra da lei. Assim, chega a ele mobilizando um
argumento lógico como a maiori ad minus (a lei que permite o mais também
permite o menos), a minori ad maius (a lei que proíbe o menos também proíbe o
mais), a contrario sensu (se a lei permite A é porque o seu oposto é proibido),
entre outros.
 Interpretação revogatória/ab-rogante: verifica-se uma antinomia
insuperável entre a letra e o espírito.

As formulações da teoria tradicional são pouco felizes ao considerarem que


a letra vai além do espírito do legislador na interpretação restritiva e que a letra
fica aquém do espírito na interpretação extensiva, já que não se trata de alargar ou
restringir a letra para a fazer corresponder com o espírito, mas de optar, em
abstrato, por um sentido que é ainda permitido pela primeira embora seja menos
natural.
O “jogo” entre os diversos elementos/fatores da interpretação foi-se
tornando progressivamente mais dinâmico, refletindo a crescente importância do
elemento racional.

A superação da teoria tradicional da interpretação reconhecida no (ou a partir do)


contributo decisivo da jurisprudência dos interesses
Ainda no final do séc. XIX, começaram a ser visíveis alguns sinais da
superação da teoria tradicional da interpretação, nomeadamente através da obra “O
Fim do Direito”, na qual Jhering propôs que o Direito deveria estar ao serviço das
expectativas sociais e adequar-se às exigências do seu tempo, denunciando já a
importância que em breve se passaria a atribuir ao elemento teleológico.
Nesta altura, surgiu o Movimento do Direito Livre, que se destacou pelas
duras críticas ao método jurídico do séc. XIX, defendendo que o sistema jurídico
tinha “tantas lacunas como palavras”, que não era possível obedecer ao silogismo
subsuntivo já que se estabelecia uma fronteira estanque entre a interpretação em
abstrato e a aplicação ao caso concreto, e ainda que deviam ser admitidas decisões
contra legem porque condizentes com o sentido de justiça do julgador.
No entanto, apesar de ter sido um importante movimento de provocação,
este não apresentou qualquer alternativa, surgindo, por isso, a jurisprudência dos
interesses, na qual se destacou Heck e que visava superar a jurisprudência dos

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 16 de 22


conceitos sem cair nos excessos do Movimento do Direito Livre. Assim, Heck
defendeu que a jurisprudência teleológica já referida por Jhering não era suficiente,
defendendo a teoria dos conflitos, de acordo com a qual as normas são soluções
valorativas de um conflito de interesses, i.e., ao elaborar a lei, o legislador optou
por um dos interesses em confronto em detrimento do outro. Deste modo, não
deixava de se considerar a importância do legislador enquanto legítimo
representante da comunidade. Ainda assim, em matéria de validade, apesar de ter
tratado de forma exemplar a norma no plano da ratio legis, Heck desconsiderou a
ratio iuris, compreendendo os interesses num mesmo plano, sem qualquer
hierarquização.

Postulados metódicos da jurisprudência dos interesses


Deste modo, a jurisprudência dos interesses pressupõe uma visão
sociológica e teleológica do Direito, mas também o princípio da obediência à lei,
ainda que o juiz não deva fazê-lo cegamente, mas de modo pensante, atuando como
colaborador do legislador. Assim, reconhecem-se limites normativos à lei, ainda
que não se defenda a mobilização juridicamente autónoma dos princípios.
Destarte, reconheceu-se ao pensamento jurídico uma intenção prática e não de
satisfação do desejo de conhecimento.
Assim, passaram a distinguir-se problemas normativos de problemas de
formulação, sendo que os primeiros são questões jurídicas por consistirem num
conflito de interesses a ser prático-teleologicamente solucionado e os segundos são
meros problemas de expressão de conceitos. Acresce a diferenciação entre sistema
interno, i.e., um nexo objetivo entre as soluções dos problemas, e sistema externo,
que é o conjunto dos conceitos e expressões ordenadoras.

O método da interpretação da jurisprudência dos interesses enquanto superação


decisiva do equilíbrio (e dos “compartimentos”) da perspetiva tradicional
A conceção da norma legal como uma “solução valoradora de conflitos de
interesses”
Com o método da interpretação da jurisprudência dos interesses, estes
passaram a ser compreendidos como fatores sociais extratextuais constitutivos da
juridicidade, compreendendo, portanto, um largo espetro de apetências. No
entanto, este espetro é submetido a um filtro empírico que permite distinguir entre
os interesses:
 Disposições de apetência para os bens da vida;
 Motivos-fins de eficácia socialmente mobilizante;
 Conteúdos de apetências individuais ou coletivas socialmente
verificadas;

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 17 de 22


 Factos psicológico-sociais a operarem numa causalidade também
sociológica.

A relação da norma legal com os interesses


Apesar de se defender a determinação social do Direito, recusava-se um
determinismo social, i.e., a ideia de que o direito surge imediatamente dos factos
sociais sem a mediação do legislador. Assim, surgiu a teoria genética dos
interesses, de acordo com a qual as normas legais visam limitar os interesses,
prevendo, com base num ideal social, soluções para conflitos de interesses
tipificados. No entanto, a mesma teoria determina que as prescrições legais são
também o produto de interesses, já que surgem como consequência da disputa
entre os interesses da comunidade pelo seu reconhecimento. Assim, os interesses
são objeto e causa das leis e do juízo de valor nelas presente.
Destarte, todos devem obediência à lei, que já não é vista como comando
voluntariamente imposto pelo legislador, mas como a expressão autónoma dos
interesses da comunidade jurídica por ele representada. Assim, é necessário ter em
conta duas faces da norma legal:
 Gebotseite: dimensão estrutural ou anatómica do comando-
imperativo. A norma legal é imperativa porque traduz a opção do legislador,
enquanto representante legítimo da comunidade, por um dos interesses em conflito
em detrimento do outro;
 Interessenseite: dimensão material ou fisiológica dos
interesses edasolução valoradora, i.e., corresponde à parte da norma que consagra a
solução do legislador.

Deve verificar-se um continuum de determinação sociológica entre os


interesses em geral (aqueles que são o objeto da norma por estarem em conflito) e
os interesses da decisão (aqueles que são critério da decisão legislativa). Por isso,
na sua conceção de interesse, Heck não distinguiu os interesses concorrentes dos
juízos de valor normativamente prescritos.

As insuficiências desta conceção do direito


 Considerou apenas os interesses em conflito, esquecendo
aquelesque são convergentes;
 Como não distinguiu o objeto do critério da valoração,
permaneceuo problema das lacunas;
 Não expressa a pluralidade de estratos do sistema jurídico;
 O finalismo da jurisprudência dos interesses tinha origem num
positivismo fático-social, já que não se tinham em conta quaisquer ideais (a menos
que estes se manifestassem como factos sociais).

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 18 de 22


O método da interpretação
O método da interpretação proposto por Heck traduz um subjetivismo
teleológico, não se procurando a vontade real do legislador historicamente autor
da norma (subjetivismo tradicional), mas a vontade normativa. Assim, o jurista
propõe que consideremos uma série de imagens intermediárias que permitem uma
aproximação progressiva à imagem definitiva (a vontade normativa):
 1.ª imagem – imagem do comando ou imperativo (gebotsbild):
determinação do conteúdo expresso no texto da lei através do jogo entre os
diversos elementos da interpretação. Assim, apesar de o elemento gramatical ser
decisivo, deixa de ser metodologicamente autónomo e limitador da interpretação
e, portanto, normativo-prescritivo, passando a ser meramente heurístico.
 2.ª imagem – imagem dos motivos (motivbild): procura a
vontadereal histórico-psicologicamente reconstruída, de modo a que se possa depois
determinar a 3.ª imagem;
 3.ª imagem – imagem dos interesses causais (interessenbild):
reconstituição dos interesses em conflito e compreensão da ponderação que lhe
corresponde;
 Imagem definitiva – vontade normativa: juízo de valor que
exprimea preferência por um dos interesses em conflito. Assim, como se trata de ter
em conta os fins da norma e o juízo valorador de interesses e dado que se atribui
ao direito a função de tutela e realização dos interesses sociais, o elemento
teleológico não só deixa de ser considerado perigoso como passa a ser o mais
relevante, falando-se numa interpretação teleológica.

A perspetiva do caso a superar a divisão estanque interpretação (em


abstrato)/aplicação
O direito realiza-se na decisão-juízo do julgador, pelo que a tarefa da
interpretação não pode estar desligada da consideração das circunstâncias do caso
concreto, já que só assim é possível repetir o juízo de valor tipificado pelo
legislador no conflito de interesses em causa. Trata-se do juízo prático de analogia,
que impõe uma obediência pensante à prescrição do legislador no contexto do caso
concreto, repetindo-se a ponderação teleológica presente na norma legal.
O juízo de valoração do legislador não pode ser discutido, já que a
jurisprudência dos interesses não interferia no plano da ratio iuris, mas apenas da
ratio legis.

A recompreensão do problema dos resultados aberta pela consagração da


interpretação corretiva
A jurisprudência dos interesses não desconsiderou os resultados da
interpretação consagrados pela teoria tradicional, mas acrescentou o da

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 19 de 22


interpretação corretiva, na qual se atribui à norma, na sua experimentação em
concreto, um sentido que seria excluído pela relevância negativa do elemento
gramatical. No entanto, tal só é admitido se se verificarem cumulativamente os
seguintes pressupostos:
 Estar perante um problema jurídico assimilável pela norma
legal, i.e.,uma situação real de interesses do mesmo tipo da que é regulada pelo
legislador, de modo a que seja possível formular o juízo prático de analogia;
 Ainda assim, o problema deve apresentar especificidades que
nãosão assimiladas pela norma legal, ou seja, o julgador deve estar perante uma
situação atípica;
 Tal atipicidade deve revelar uma incongruência no interior da
norma,i.e., a obediência ao comando deve levar à frustração do elemento teleológico e
da vontade normativa, sendo, portanto, necessário mobilizar um candidato
negativo. Deste modo, dá-se preferência à interessenseite face à gebotseite.

Teoria tradicional vs. jurisprudência dos interesses - exemplo


Norma: é nulo o negócio jurídico celebrado pelo representante consigo
mesmo.
Caso: A, tutor de B, pretende doar-lhe uma biblioteca, pelo que terá de
realizar um negócio jurídico no qual será, simultaneamente, o representante e o
representado.

 Teoria tradicional da interpretação: de acordo com a relevância


negativa do elemento gramatical, exclui-se a validade do negócio por este sentido
ser incompatível com a letra da lei (candidato negativo). Assim, considera-se a
doação nula.
 Jurisprudência dos interesses: verifica-se a possibilidade de
um juízoprático de analogia (1.º pressuposto), mas também uma situação atípica (2.º
pressuposto). Também está presente a incongruência entre os elementos gramatical
e teleológico: o objetivo da norma legal é a proteção dos interesses do
representado. Ora, os interesses de B (representado) não serão postos em causa
pela doação (pelo contrário), pelo que se deve chegar a uma interpretação
corretiva, mobilizando-se um candidato negativo (validade) para se respeitar a
intenção normativa.

Redução teleológica e extensão teleológica


Para além da correção, a teleologia da ratio legis pode levar a outros
resultados:
 Redução teleológica: exclui-se do âmbito da norma casos que
estaabrangeria à luz do elemento gramatical, já que, se tal não ocorresse, o
elemento

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 20 de 22


teleológico seria frustrado. P.e., o caso da doação de A a B pode ser resolvido
através de uma interpretação corretiva, mas também de uma redução teleológica.
 Extensão teleológica: inclui-se no âmbito da norma um caso
concretoque, à luz do elemento gramatical, seria um candidato negativo, já que este é
assimilado pela vontade normativa. P.e., se uma norma determina que é proibida a
entrada de cães no comboio e A pretende lá entrar com um urso, a resposta do
julgador será a extensão teleológica.

Nota: a extensão e redução teleológicas não se confundem com a


interpretação restritiva e extensiva, já que nas primeiras se desenvolve a
interpretação a partir da experiência do caso concreto e nas segundas a
interpretação é efetuada em abstrato, procurando-se a adequação da letra ao
espírito.

Para além da jurisprudência dos interesses


A jurisprudência dos interesses tinha apenas em conta os interesses,
desconsiderando os princípios e, portanto, os limites de validade. Assim, a partir
da segunda metade do séc. XIX, surgiu a jurisprudência dos princípios ou
jurisprudencialismo e, com ela, novas possibilidades de resultados da interpretação
para os casos em que a teleologia da norma frustra as exigências dos princípios.
Deste modo, passou a ter-se em conta não só a ratio legis, mas também a ratio
iuris. Os novos resultados são:
 Correção conforme aos princípios: permite que se atribua à
normaum sentido que era excluído pela relevância negativa do elemento gramatical e
que não era o mais natural de acordo com o elemento teleológico, sempre que a
obediência à letra da lei frustre os princípios que a fundamentam;
 Preterição conforme aos princípios (limites de validade): caso o
confronto entre a norma legal e os princípios seja insuperável, deve-se optar pelos
segundos em detrimento da primeira.
 Superação conforme aos princípios (limites temporais): o
julgadorsupera a norma por esta estar ferida de caducidade. Tal ocorre sempre que,
por força da erosão do tempo, os princípios desaparecem ou se alteram, pelo que
a norma deixa de ser a perfeita objetivação dos mesmos.

Deste modo, trata-se de convocar novos elementos extratextuais, de modo


a que o elemento teleológico corresponda às faces da ratio legis e da ratio iuris da
norma. Estes elementos podem ser:
 Ontológicos: apelo à natureza das coisas;
 Sociais: interesses relevantes para a sociedade;

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 21 de 22


 Normativos em sentido estrito: critérios ético-jurídicos,
precedentesda casuística jurisprudencial, entre outros.

O problema da realização do direito sem a mediação da norma


Pode acontecer que o legislador não encontre qualquer norma que assimile
a relevância do problema que, assim, se trata de um caso omisso. Inicialmente,
considerava-se que o sistema jurídico era unidimensional e autossuficiente, pelo
que um caso omisso correspondia a uma falha ou lacuna do mesmo. Mais tarde, o
positivismo normativista-legalista reconhecia as lacunas, mas considerava que o
sistema era capaz de as superar através da auto-integração, que podia ocorrer
através de dois processos:
 Analogia legis (art. 10.º/1): procura-se uma norma que, na sua
hipótese, prevê um tipo de caso análogo ao problema em causa, com base num
critério de analogia que permita compará-los (logico-estruturalmente ou pelos seus
conceitos e categorias). Assim, trata-se de um processo de indução local porque
apoiado numa única norma legal, seguindo-se a dedução (subsunção do caso na
norma que assim se obteve).
 Analogia iuris: se o caso concreto de revelar categorialmente
inteligível por não se encontrar uma norma que tipifique um caso análogo ao
problema em causa, recorre-se aos PGD (obtidos pela ciência do direito através de
uma operação de concentração lógica a partir de outras normas) que, sendo mais
gerais e mais abstratos que as restantes normas legais, são menos exigentes na sua
hipótese e, portanto, permitem a subsunção de um maior número de casos.
Procede-se, então, a uma indução universal seguida de uma dedução (subsunção
do caso no PGD).

Ainda assim, estas soluções de auto-integração são falsas analogias, já que


não se especificam as semelhanças e diferenças entre os dois casos em causa e não
há qualquer fundamento material e teleológico. Para além disso, um verdadeiro
juízo de analogia é efetuado no mesmo nível e neste caso tal não ocorre, já que se
compara um caso concreto com uma norma ou um PDG.
Assim, a jurisprudência dos interesses assumiu uma conceção teleológico-
valoradora da analogia jurídica, o que se reflete no art. 10.º/2 do CC.
Numa compreensão já para além da jurisprudência dos interesses,
fundamenta-se a analogia jurídica com a dialética sistema-problema, de modo a
avaliar até que ponto os casos em causa são juridicamente semelhantes e até que
ponto a decisão judicativa adequada para um o é também para o outro.

Nota: Não é possível distinguir metodologicamente interpretação extensiva


e analogia, já que esta só seria válida de se reconhecesse a relevância negativa

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 22 de 22


autónoma e normativo-prescritiva do elemento gramatical, pelo que a formulação
do art. 11.º do CC é pouco feliz. Assim, importa antes distinguir:
 Analogias imediatas/próximas: realização do direito através da
mediação de uma norma enquanto critério, estabelecendo-se um juízo analógico
que permite a interpretação;
 Analogias mediatas/distantes: realização do direito sem a
mediaçãode uma norma, convocando-se o critério da analogia. No caso da ausência
de uma norma legal que assimile a relevância da controvérsia jurídica em causa,
importa lembrar que o sistema é pluridimensional, pelo que é possível mobilizar
critérios doutrinais ou jurisprudenciais ou, na ausência deles, fundamentos.

O cânone do julgador como se fosse o legislador


O cânone do julgador como se fosse o legislador foi assumido por
Aristóteles e recuperado por Gény no positivismo exegético, estando consagrado
no art. 10.º/3 do CC. Este admite três sentidos, ainda que todos reconheçam o
legislador como protagonista paradigmático:
 Sentido jurídico tradicional: o julgador deve-se abstrair do caso
concreto, criando uma norma geral e abstrata autossubsistente e só depois aplicada
à controvérsia jurídica. Este sentido encontra justificação no normativismo;
 Sentido político ou político-social: o julgador orienta-se pelas
opçõesestratégicas do legislador ou assume-se como estratega que conhece a teoria
científica da legislação. Este sentido fundamenta-se no funcionalismo material,
político ou tecnológico;
 Sentido jurídico capaz de assumir uma realização do direito com
autonomia: considera-se que o legislador apenas disponibiliza um exemplo de
criação de direito submetido às exigências de um sistema pluridimensional, e não
um modus normativo formalmente determinado. Esta posição fundamenta-se no
jurisprudencialismo e é a posição do curso.

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 23 de 22

Você também pode gostar