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Prolegómenos
O Direito é, face às restantes dimensões da prática, um projeto autónomo
de procura de um certo homem, o homo humanus, que é responsável e chamado a
participar comunitariamente (pólo do commune) e, simultaneamente, livre e
autónomo (pólo do suum), sendo que o ideal é que nenhum destes pólos seja
hipertrofiado. Deste modo, o Direito é uma ordem de validade que está associada
a estas características do homo humanus, tendo como aspiração fundamental
institucionalizar uma comunidade de pessoas. Assim, esta ordem é sustentada no
reconhecimento da dignidade da pessoa humana que, ainda assim, não pode ser
pensada de modo acrítico, já que, p.e., também a moral, a ética e a religião a têm
como referente.
De acordo com esta conceção, uma das dimensões-eixos do discurso
jurídico com vista à construção do juízo decisório é a da sua validade, que
permite recuperar um certo horizonte de comunidade, embora de modo distinto
do contexto pré-moderno, centrada na referência a intenções e compromissos
práticos que vão sofrendo uma construção humana, não sendo, por isso,
universais, mas surgindo associados a experiências histórica e culturalmente
situadas e constituindo a base da praxis comunitária. Só podemos falar de direito
vigente se a supra referida validade comunitária se verificar na prática, pelo que a
outra dimensão-eixo do discurso jurídico é a da controvérsia prática
juridicamente relevante, que permite identificar problemas jurídicos.
Deste modo, a resposta do julgador para cada caso tem de ser compatível
com as exigências de sentido da comunidade de sujeitos, tarefa que enfrenta
algumas dificuldades já que as significações e exigências dos valores
comunitários variam de acordo com os períodos históricos e de comunidade para
comunidade, sendo complexa a sua compreensão. Assim, é necessária a criação
de condições institucionais que permitam precipitar normativamente e estabilizar
a validade comunitária, de modo a que o julgador possa reconhecer um conjunto
de fundamentos e critérios vigentes e suscetíveis de serem mobilizados na
prática. É esta estabilização que corresponde ao sistema jurídico que, neste
sentido, é uma mediação dogmática da validade comunitária. Ainda assim, não se
trata de uma dogmática fechada ou absoluta, já que o sistema está em permanente
reconstituição, i.e., é aberto e dinâmico, já que os problemas que constantemente
o interpelam o tornam revisível. Cada problema é único e irrepetível e é essa
especificidade que leva a alterações no sistema. Assim, há uma dialética
O Sistema Jurídico
Deste modo, o sistema jurídico é condição da tercialidade permitindo uma
compreensão objetiva ou transsubjetiva da mesma, já que o terceiro imparcial
compara as posições juridicamente relevantes dos sujeitos da controvérsia
tratando-os como homo humanus e atribuindo a cada um o que é juridicamente
seu, não tendo em conta as suas convicções pessoais ou os interesses de um
grupo que possa integrar, mas pressupondo e experimentando os fundamentos e
critérios no caso-problema de acordo com a supra mencionada dialética
sistema/problema. Assim, uma vez que é construída racionalmente através dos
elementos estabilizados no sistema, a resposta do julgador às controvérsias
jurídicas não se trata de uma mera decisão, mas de uma decisão judicativa ou um
juízo decisório.
A sentença tem sempre duas dimensões:
Manifesta uma voluntas sustentada numa autoridade-potestas;
É um juízo que realiza o sistema adequadamente compreendido
(enquanto conjunto de fundamentos e critérios) e, portanto, os compromissos
comunitários que este estabiliza.
A Distinção Fundamentos/Critérios
Os critérios são modelos imediatamente operativos de esquemas de
solução que o julgador tem à sua disposição para solucionar as controvérsias
juridicamente relevantes, como as normas, os precedentes ou a maior parte dos
modelos dogmáticos. No entanto, o julgador não os utiliza de modo acrítico,
aplicando-os lógico-dedutivamente, já que não pode ignorar os fundamentos, i.e.,
as exigências de sentido comunitariamente partilhados que justificam a resposta
ao problema único e singular, garantindo que esta é justa porque juridicamente
adequada, i.e., por realizar os referidos valores comunitariamente relevantes.
Assim, os fundamentos são racionalizações justificativas mas não dão uma
resposta para o problema. P.e., os princípios normativos são fundamentos.
Para tornar mais clara esta distinção, Drucilla Cornell e Adela Cortina
mobilizam várias imagens construindo uma metáfora. O problema jurídico, único
e irrepetível pelas suas especificidades, identifica-se com um território
desconhecido por percorrer que o jurista tem de atravessar (resolver, alcançando
a decisão-juízo). Para tal, é orientado pelas práticas de estabilização e realização
do sistema jurídico levadas a cabo por caminhantes anteriores (legisladores,
juízes…), designadamente os fundamentos, comparados a uma bússola ou à luz
de um farol, já que, sem preverem os problemas que o caminhante irá enfrentar
(tal como a luz do farol não antecipa armadilhas, p.e.), lhe proporcionam uma
orientação fundamental, garantindo que, ao longo do percurso, realiza e não se
afasta de certas exigências.
No entanto, mesmo com a orientação fornecida pelos fundamentos, o
jurista necessita de critérios (modelos imediatamente operativos), comparados a
mapas ou itinerários, já que o auxiliam no caminho a seguir, prevendo (no caso
das normas legais), exemplificando (no caso dos precedentes judiciais) ou
reconstruindo reflexivamente (no caso da dogmática doutrinal) situações-
problemas. Assim, propõem soluções para o problema em questão, ainda que não
se confundam com o caminho a percorrer e, portanto, não substituam o esforço
do caminhante.
A Experiência do Sistema
O primeiro estrato do sistema jurídico é o dos princípios, que traduzem
objetivamente a imediata projeção da validade comunitária. São, então,
exigências de sentido já assumidas normativamente. No entanto, não se tratam de
intenções imutáveis e ahistóricas, mas correspondem a um contexto comunitário,
pelo que o seu conteúdo vai evoluindo com a experiência que, na prática, se vai
fazendo dos princípios e dos problemas. Deste modo, tratam-se de aspirações
historicamente construídas, embora em cada ciclo histórico tenham uma vocação
de estabilidade, não se prejudicando o seu núcleo essencial de identidade. Assim,
compreendem uma dimensão axiológica, mas também uma dimensão dogmática
estabilizadora que converte os princípios em fundamentos.
P.e., com vista à juridicização e limitação do poder, surgiu, no final do
século XVIII, o princípio da legalidade criminal, de acordo com o qual todos os
pressupostos da incriminação e da punição devem estar objetivados numa lei
anterior ao ato praticado. Tendo surgido no contexto da conceção iluminista da
juridicidade-legalidade, atualmente este princípio transpositivo do direito penal
impõe-se com exigências distintas daquelas que tal época poderia compreender.
Por outro lado, as normas podem ser relacionadas de acordo com a sua
especialidade material:
Normas gerais/comuns: estabelecem um regime-regra, i.e., uma
solução dominante para um certo tipo de situações (art. 219.º do CC);
Normas Especiais: regulam relações com determinadas
especificidades, pelo que o regime-regra, ainda que não seja posto em causa, é
adaptado. Assim, para tornar possível a resposta à especificidade do problema,
consagram uma disciplina nova para círculos mais restritos de pessoas, coisas ou
relações;
Normas excecionais: consagram um ius singulare, i.e.,
contrariam o regime-regra num setor restrito de modo a solucionar problemas
específicos que se afirmam como excecionais (o art. 875.º do CC é uma norma
excecional relativamente ao regime-regra estabelecido no art. 219.º do CC).
Relativamente às normas excecionais, o art. 11.º do CC procura distinguir
interpretação extensiva de aplicação analógica, no entanto trata-se de uma
diferenciação problemática e até considerada impossível por alguns juristas.
A Realidade Jurídica
A realidade jurídica em que as controvérsias se manifestam e o direito se
realiza é o último estrato do sistema jurídico, não se tratando de um mero campo
de aplicação do direito, mas de um contexto histórico social que interage com o
sistema, sendo que existem problemas práticos que não se encontram
solucionados pelos critérios. Por outro lado, a realidade jurídica evolui mais
A Dialética Sistema/Problema
O sistema jurídico não compreende um conjunto de significações
fechadas, já que é dinâmico e aberto, caracterizando-se por uma evolução
constante. Pensa-se em dialética com os problemas jurídicos, estando os seus
diferentes estratos a ser constantemente mobilizados para a resolução das
controvérsias, cujas especificidades levam, por sua vez, à recompreensão do
sistema.
Assim, esta índole dinâmica é regressiva (“de hoje para ontem”) e a
posteriori, já que assenta na reconstituição analógica do discurso prático. Depois
de resolvido através de uma decisão judicativa por parte do julgador, o problema
jurídico passa a integrar o sistema. P.e., a autonomização do critério normativo
do abuso do direito impôs a reconstituição da compreensão da autonomia da
O momento constituinte
Ora, há três tipos puros ou ideais, bem como históricos, de constituição do
Direito: experiências constituintes consuetudinária, legislativa e jurisdicional.
A importância da legislação
A legislação tem funções político-sociais e funções jurídicas.
As primeiras estão associadas à nova compreensão da legalidade, agora a
poder consagrar programas estratégicos de fins, permitida pelo surgimento do
Estado Providência. Assim, acentuam a face imperativo da legislação, i.e., a sua
ratio legis, e são:
Função de ordenação político-social e reformadora:
estabelecendo um programa para o futuro, só a lei pode intervir juridicamente num
sentido estrutural e transformador das práticas políticas e sociais;
Função instituinte e planificadora regulamentar: só a lei tem
capacidade de institucionalização e organização de modo a criar órgãos e definir
as suas competências, bem como a planificar a atividade regulamentar do Estado.