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Nota prévia:
Esta é a sebenta de TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL, disponibilizada pela
Comissão de Curso dos alunos do 2º ano da licenciatura em Direito da Faculdade de
Direito da Universidade do Porto, para o mandato de 2022/2023.

Foram elaborados pela aluna Mariana Pereira, tendo por base as aulas teóricas e
documentos disponibilizados pela docente Inês Lopes.

Salienta-se que estes apontamentos são apenas complementos de estudo, não sendo
dispensada, por isso, a leitura das obras obrigatórias e a presença nas aulas.

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Índice:
Ficha de terminologia jurídica ………………………………………………………. 4

Coletânea de casos práticos ………………………………………………………….. 8

Casos do manual do Professor Doutor Orlando Carvalho ………………………. 31

Coletânea de casos práticos (continuação) …………………………………….…... 36

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Sites importantes:

 PGDL (para a consulta de legislação)


 DGSI (para a consulta de acórdãos)

O Código Civil (CC) português, de inspiração alemã, é composto por 5 livros,


sendo que o primeiro dedica-se à Parte Geral, o segundo ao Direito das Obrigações,
seguindo-se o Direito das Coisas, o Direito da Família e o Direito das Sucessões, nos
terceiro, quarto e quinto livros. Em Teoria Geral do Direito Civil (TGDC), estuda-se,
essencialmente, o primeiro livro. No entanto, haverá matérias da TGDC que se encontram
noutros livros.

Nota: da Parte Geral, os artigos mais importantes para o estudo da cadeira de TGDC serão
os art.º 66º e ss.

A existência da Parte Geral no CC, tem vantagens e inconvenientes. Uma das


vantagens é o facto de antecipar um conjunto de matérias que são aplicáveis a todo o
Direito Civil, evitando repetições. Esta vantagem traz consigo uma desvantagem: a de ter
de se compatibilizar o regime geral com regimes excecionais (ex.: Na Parte Geral,
estabelece-se que a maioridade aos 18 anos. No entanto, no livro do Direito da Família,
estabelece-se que um menor pode emancipar-se aos 16 anos, através do casamento. Outra
desvantagem é a grande heterogeneidade de matérias na Parte Geral. A abstração é outra
desvantagem da Parte Geral.

Ficha de terminologia jurídica

1. A invocou / arguiu a nulidade do negócio celebrado com B.

2. O tribunal declarou a nulidade do negócio concluído entre A e B.

Nota:

A invalidade divide-se em nulidade e anulabilidade:

→ Nulidade (art.º 286º + 289º CC): é o mais grave; invocável a todo o tempo, sendo
insanável; qualquer interessado pode invocar (e não qualquer pessoa, não
interessados não têm legitimidade); opera ipso iure / ope legis (ex.: um negócio

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celebrado em desrespeito da forma legal é nulo pelos termos da lei, nos termos do
art.º 220º); o tribunal limita-se a declarar a nulidade; é de conhecimento oficioso.
→ Anulabilidade (art.º 287º + 289º CC): tem um prazo para ser arguida, sendo
sanável pelo decurso do prazo ou por vontade da própria parte se esta confirmar
o negócio (art.º 288º CC); só as pessoas em cujo interesse a lei estabelece têm
legitimidade para invocar a anulabilidade; é necessária uma sentença constitutiva
que anule o negócio; depende de arguição.

Invalidade ≠ Ineficácia

3. A celebrou com B um contrato de compra e venda.

4. A e B, por acordo, revogaram o contrato que haviam celebrado no ano anterior.

Nota: a revogação é uma forma de cessação dos contratos por acordo bilateral. Se o
consenso é necessário para a sua celebração, o dissenso (revogação / distrate) é necessário
para a sua cessação (art.º 406º CC – o mútuo consenso de que se fala neste artigo é a
revogação).

5. A intentou uma ação de indemnização contra B.

6. A interpôs recurso da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância.

Nota: do tribunal de 1ª instância para o de 2ª instância.

7. A resolveu o contrato por incumprimento com B.

Nota: a resolução de um contrato tem um fundamento legal (art.º 801º CC), sendo esta
unilateral (por incumprimento, por alteração superveniente das circunstâncias, …).
Também pode ser designada por rescisão.

8. A declaração negocial de A encontra-se viciada / inquinada por erro.

Nota: ver art.º 240º e ss.

9. A disposição do artigo 410º, n.º 3, CC aplica-se ao contrato celebrado entre A e B.

10. O contrato é nulo porque as partes não outorgaram a necessária escritura pública.

Nota: neste caso, as partes chamam-se de outorgantes. Por regra, os contratos não exigem
uma forma legal para a sua celebração, são consensuais (ver art.º 219º CC sobre o

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princípio da consensualidade). Contrapõem-se os negócios formais. Uma exceção ao art.º
219º CC é a compra e venda de imóveis, que exige uma forma legal (art.º 875º CC).

11. A retificou o erro de cálculo na sua declaração negocial.

Nota: ver art.º 249º CC.

12. A ratificou o negócio que B havia celebrado em seu nome.

Nota: ver art.º 258º e ss. CC.

Representação – alguém atribui poderes representativos a outrem, permitindo que


este celebre, em nome do primeiro, negócios jurídicos. Se alguém sem poderes celebra
um negócio em nome de outro, este é ineficaz, a não ser que seja ratificado (art.º 268º
CC).

O caso desta alínea é um caso de representação voluntária, existindo ainda a


representação legal. Esta última decorre da lei em casos de incapacidade perante a mesma
(ex.: os menores que têm como seus representantes legais os progenitores ou um tutor).

13. A revogou a procuração a favor de B.

Nota: neste caso, a revogação é um negócio jurídico unilateral (art.º 265º/2 CC).

14. O procurador de A renunciou à procuração.

Nota: ver art.º 265º/1 CC.

15. A ilidiu a presunção de culpa que sobre ele recaía.

Nota: art.º 799º CC – prevê a presunção de culpa no caso de incumprimento contratual.


A responsabilidade civil contratual, prevê a favor do lesado a presunção de culpa do
devedor.

16. A sede social foi designada nos estatutos.

17. Os efeitos da nulidade produzem-se ex tunc.

Nota: Art.º 289º CC – produzir-se ex tunc = desde o princípio; retroativamente.

Contrário de ex tunc – ex nunc = desde x momento em diante.

18. A obrigação de indemnizar depende da verificação cumulativa dos pressupostos


previstos no artigo 483º CC.

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19. No contrato de compra e venda o vendedor está obrigado a entregar a coisa vendida.

Nota: a obrigação de entrega da coisa decorre do contrato compra e venda, segundo o art.º
879º/b CC.

20. No contrato entre si celebrado, A e B convencionaram uma cláusula penal.

Nota: convenção é, neste caso, sinónimo de cláusula. No caso da fixação de uma


indemnização toma o nome de cláusula penal ou pena convencional. A convenção é algo
que resulta da estipulação das partes.

21. O locador denunciou o contrato para o termo do prazo.

Nota: a denúncia é uma forma unilateral de cessar contratos com duração indeterminada
(ver art.º 1100º e 1101º CC).

22. A e B constituíram uma sociedade comercial.

23. A instituiu uma fundação.

Nota: A instituição de uma fundação é um negócio jurídico unilateral (ver art.º 185º CC).

24. A constituiu B seu procurador.

25. A assembleia geral da sociedade deliberou aumentar o capital social.

Nota: na expressão de vontade de um órgão colegial utiliza-se o termo “deliberar”.

26. Na ausência de B, A foi nomeado seu curador provisório.

27. A requereu ao tribunal que decretasse as providências previstas no n.º 2 do artigo 70º,
CC.

28. O juiz conheceu oficiosamente a nulidade do contrato

29. Na ação intentada por B, A excecionou com a prescrição do direito.

Nota: a defesa do reu pode ser feita por impugnação ou exceção. A impugnação traduz-
se no reu atacar ou contrariar os factos invocados pelo autor. Na exceção a defesa do reu
faz-se com a invocação de factos novos por parte do reu e estes podem ser impeditivos,
modificativos ou extintivos do direito do autor. A prescrição classifica-se como defesa
por exceção, sendo um facto extintivo. A vende a B determinado bem e B deve-lhe o
valor do bem. O B defende-se por impugnação se negar os factos alegados por A (diz que

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foi uma doação). Defende-se por exceção se disser que A vendeu o bem, mas o prazo já
passou.

30. A arguiu a anulabilidade do negócio por via de exceção

31. A autorizou acompanhamento.

Nota: a necessidade de autorização do acompanhado está prevista no art.º 141º CC.

32. O tribunal designa B acompanhante de A.

Nota: ver art.º 143º CC.

33. O tribunal decretou o internamento do maior acompanhado B.

Nota: art.º 148º CC – internamento por imposição judicial.

Sempre que se utiliza o verbo “decretar” refere-se apenas ao tribunal, as partes


não decretam.

34. A adquiriu o direito de propriedade sobre o terreno X.

35. O direito de propriedade de A está onerado com uma servidão de passagem.

36. A assumiu a dívida de B.

Nota: Traduz-se no facto de alguém assumir como sua a dívida de outrem (ver art.º 595º
CC).

37. A exigiu a B o cumprimento da obrigação.

Nota: Obrigações naturais e obrigações civis são ambas jurídicas, as naturais não são
exigidas judicialmente e as obrigações civis são.

Coletânea de casos práticos

Caso prático nº 1

A vendeu à Câmara Municipal de X um edifício de três andares de que era proprietário


no centro da localidade a fim de esta última aí instalar uma secção dos serviços camarários
de água e saneamento. No entanto, apesar de a Câmara Municipal ter acordado no
pagamento integral do preço uma semana após a celebração do contrato, não cumpriu
com o combinado sem dar qualquer justificação para o efeito. A, perante o sucedido,

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intentou uma ação no tribunal comum contra a Câmara Municipal, exigindo o pagamento
da quantia em causa, acrescida de juros de mora. A Câmara Municipal contestou a ação
invocando a incompetência absoluta do tribunal comum em razão da matéria, alegando
que a ação deveria ter sido intentada no tribunal administrativo. Terá razão na sua
argumentação?

No presente caso prático, o problema consiste em perceber se o Tribunal tem


competência para julgar. Melhor explicando, trata-se do seguinte problema jurídico: ação
teria de ser intentada num tribunal comum, ou teria, necessariamente, de ser
intentada num tribunal administrativo?

Efetivamente, a ação poderia ser intentada num tribunal comum, porque estamos
na presença de um contrato de compra e venda, onde a câmara age na qualidade de um
particular. Ou seja, a relação jurídica entre A e a Câmara caracteriza-se pela paridade e
não por uma relação de superordenação.

A câmara, aqui, age despida de ius imperium. Como se trata de um bem imóvel,
aplicam-se o art.º 874º e o art.º 875º do CC, sendo uma exceção à liberdade de forma. Os
efeitos, neste caso, estão previstos no art.º 879º CC. Seria diferente se, por exemplo, a
câmara expropriasse aquele edifício. Sendo assim, A receberia uma indemnização, no
entanto, nesta situação, o ente público agiria dotado de ius imperium e A teria de se
sujeitar à expropriação. O critério adotado neste caso é o das prerrogativas dos
sujeitos/qualidades dos sujeitos (critério mais fiável na distinção de direito públicos
e direito privado).

Para além deste, há outros critérios de distinção do Direito Público e Direito


Privado: o critério dos interesses (relação jurídica seria pública, se estivesse inerente o
interesse público. É um critério pouco fiável) e, ainda, o critério da natureza dos sujeitos.
Este último, consiste em perceber se as entidades são entes públicos ou privados. Neste
caso, a Câmara seria um ente público. Problema: há entes públicos que atuam como
privados.

Como temos um conflito entre tribunais comuns e tribunais administrativos


temos um problema jurisdicional. A LOSJ (Lei de Organização do Sistema Judiciário
- lei 62/2013) define a nossa organização judiciária.

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Se há um conflito entre tribunais da mesma jurisdição, temos um conflito de
competência, mas se a questão se prende com os tribunais comuns e os tribunais
administrativos é um problema de jurisdição.

Quem decide os conflitos de jurisdição é o tribunal de conflitos, que é um tribunal


ad hoc, cuja constituição é feita para resolver um litígio, ou seja, o conflito de jurisdição
vai ser composto por juízes de STJ e do STA. Este tribunal decide só quando não há
possibilidade de recurso.

Caso prático nº 2

Pronuncie-se quanto à validade destes contratos:

Hipótese A: A, desempregado, vende o carro da sua mãe a X a fim de conseguir


dinheiro para emigrar para a Austrália.

O contrato é inválido, dado que A não é titular do bem que está a ser vendido.
Segundo o disposto no art.º 892º CC, o negócio é nulo (remissão para o art.º 286º CC).
Os efeitos da declaração da nulidade, estão previstos no art.º 289º CC.

A venda de um bem alheio em sentido técnico-jurídico corresponde à venda de um


bem que, apesar de ser da titularidade de outrem, é vendido como pertencendo ao próprio.
Neste caso, não se tem informação suficiente que confirme esta hipótese e, portanto, deve
considerar-se nula esta venda.

Supondo que A diz a X que a mãe está em fase terminal (portanto, A seria, nesse caso,
em breve, herdeiro universal da mãe) e por isso vende o carro a X. Neste caso, a venda
não é nula pois a venda faz-se como sendo o carro um bem alheio, mas futuro (art.º 893º
CC com remissão para o art.º 880º CC). Imagine-se que A desempregado diz a X que a
mãe lhe doou o automóvel e ele o venderia a X – Contrato de promessa compra e venda
(obrigam-se a, no futuro, celebrar o contrato de compra e venda). Não se produz a
transmissão de titularidade do direito de propriedade. A venda de um bem alheio como
bem futuro é válida, porque as partes encaram como um bem futuro.

O que não aconteceria por exemplo, se A dissesse a X que a sua mãe lhe ia doar o
carro na semana que vem, por isso, na sexta-feira, vender-lhe-ia o carro no valor de 2000€.
Estaríamos perante um contrato de promessa de compra e venda, em que A promete

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vender o carro no futuro, ou seja, a diferença é que no contrato promessa, as partes
obrigam-se no futuro a celebrar o contrato prometido, mas na venda de bem alheio
como bem futuro, as partes já venderam não sendo, por isso, necessário emitir novas
declarações negociais.

Outra hipótese distinta seria se A dissesse a X que a sua mãe queria vender o carro e
pediu a A que o vendesse, sendo que A estipula 2000€ como preço. Seria, assim, um caso
de procuração, em que A age em representação da mãe. Os efeitos produzem-se na esfera
jurídica do representado, que nesta última hipótese, é a mãe.

Sobre a legitimidade para arguir a nulidade da venda de bem alheio, esta está prevista
no art.º 892º CC (parte final). A parte que está com dolo/má-fé não pode opor a nulidade
da venda à parte que está de boa-fé, isto é, trata-se de boa-fé em sentido subjetivo, que
significa o desconhecimento da ilegitimidade, ou seja, o vendedor sabe que o bem não
lhe pertence, mas o comprador não sabe, logo o vendedor não lhe pode opor a nulidade.

Hipótese B: B, proprietário de um stand de automóveis, vende uma carrinha em


segunda mão a C, técnico de vendas. A carrinha, no entanto, não era de B mas sim de D,
que a tinha colocado no stand com o objetivo de B a vender, facto que este último ocultou
ao comprador.

Estamos perante uma venda de bens alheios que, neste caso, é válida, nos termos do
art.º 467º do Código Comercial, dado que ambos intervenientes estão na qualidade de
comerciantes, nos termos do art.º 13º do Código Comercial. Este caso válido de venda de
bens alheios adquire um regime semelhante ao da venda de um bem alheio como bem
futuro.

O Direito Comercial tem duas importantes preocupações: a celeridade das


transações comerciais, o que favorece a validade dos negócios e o estabelecimento de
confiança nos comerciantes e no comércio. Quanto às suas soluções, diz-se que estas
são favor negotii.

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Caso prático nº 3

I. A, engenheiro químico, obriga-se contratualmente perante a indústria


farmacêutica sua empregadora a não divulgar os segredos decorrentes da sua
atividade profissional.

Obrigação de non facere, de sigilo profissional, juridicamente válido. Na celebração


de contratos, tendo em conta o art.º 762º/2 CC, as partes devem “proceder de boa-fé”. A
boa-fé é requerida, não só na celebração do contrato, como numa fase pré-contratual,
segundo o art.º 227º/1 CC. Assim, as partes têm o dever de agir em boa-fé, tanto na fase
pré-contratual, como na celebração de contratos.

II. B celebra com C um contrato pelo qual se obriga a professar durante cinco anos
uma religião evangélica, mediante o pagamento de uma determinada quantia em
dinheiro.

Este contrato seria nulo dada a violação da ordem pública. Neste caso, é violado o
princípio constitucional da liberdade religiosa consagrado no art.º 41º da CRP. Todo o
negócio jurídico contrário à ordem publica ou ofensivo dos bons costumes é nulo,
segundo o art.º 280º/2 CC. A ordem pública, compreende os princípios jurídicos do nosso
ordenamento, ou seja, a ordem jurídica como um todo (tanto o ordenamento jurídico civil
como o ordenamento jurídico constitucional). Já os bons costumes, apelam à moral social
de uma comunidade. É possível, por exemplo, que um ato seja contrário aos bons
costumes e conforme à ordem pública, simultaneamente.

III. D doa a E, seu sobrinho, todo o seu património imobiliário na condição de este
casar com F.

Neste contrato, a doação é válida, no entanto, a condição de casar é nula, não podendo
haver obrigação de casar. Se esta condição não estivesse especificamente regulada no
Código Civil, poderíamos argumentar que estaríamos perante um negócio jurídico
contrário à ordem pública. Porém, o art.º 2233º CC regula esta situação, limitando a
liberdade contratual ao proibir a obrigação de contrair casamento. Por força do art.º 967º
CC, que diz respeito às doações, remete para as condições proibidas das disposições
testamentárias (art.º 2231º e ss. CC). Neste caso, aplica-se o art.º 2233º CC ex vi (“por
força”) do art.º 967º CC.

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IV. G é impedido de entrar numa discoteca pelo facto de ser indiano.

Neste caso, é o violado o princípio constitucional da igualdade e da não discriminação


(art.º 13º CRP). Do ponto de vista legal, pode aplicar-se a esta situação a lei nº 93/2017
de 23 de agosto, um regime jurídico de prevenção e combate à discriminação. No art.º 3º
deste diploma define-se o que é discriminação, distinguindo dois tipos de discriminação:
a direta e a indireta. O art.º 4º/d da Lei considera discriminatório o ato de recusa de acesso
a local público por motivações de cariz racial.

V. H, pai de I e de J, faz um testamento no sentido de deixar toda a quota disponível


do seu património ao primeiro. E se o faz por J ser negro?

Quando alguém falece tem de se verificar se há herdeiros legitimários. Havendo, a


sucessão legitimária é imperativa não podendo ser afastada pelo de cuius, exceto através
da deserdação ou em casos de indignidade sucessória. A lei reserva uma parte da herança
para os herdeiros legitimários, chamada de legítima ou quota indisponível (art.º 2156º
CC), sendo apenas uma percentagem da herança e não 100% dela. Geralmente, a quota
indisponível corresponde a 2/3 do total da herança (art.º 2159º/1 CC). A quota disponível,
pode ser deixada a quem se pretender, neste caso, H deixa a um filho e pode fazê-lo. Os
descendentes são herdeiros legitimários nos termos do art.º 2157º CC.

Porém, se H exclui J da sua quota disponível, deixando-a toda a I, pelo facto de J ser
negro, então, está posto em causa do princípio da igualdade e da não discriminação
consagrado no art.º 13º CRP. Se H, de facto, tem por motivação questões raciais, esse é
um ato contrário à ordem pública e, portanto, esta disposição testamentária é considerada
nula, nos termos do art.º 2186º CC e no art.º 2230/2º CC.

VI. L, proprietário de um imóvel, tendo recebido de M uma oferta para a sua compra
no valor de 100.000 euros, decidiu vendê-lo a N que por ele ofereceu 50.000 euros

O contrato de compra e venda é um contrato com eficácia real e com efeito


translativo da propriedade, ou seja, a propriedade transmite-se por mero efeito do
contrato (art.º 408º CC e 879º/a CC). Em caso extremos, poderia haveria responsabilidade
civil pré contratual nos termos do art.º 227º CC, quando há uma rutura injustificada das
negociações entre as partes. Para que haja responsabilidade civil por rutura, é necessário
que haja um comportamento atentatório da boa-fé. Isto é para casos excecionais, o que
impera é a liberdade contratual. Neste caso, o contrato é válido.

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Caso prático nº 4

i. Um médico, numa situação de urgência, nega-se a tratar um seu inimigo pessoal.

Há um dever de contratar. Neste caso, está em causa um contrato de prestação de


serviços médicos. Um médico não se pode negar a tratar de um paciente com base em
querelas pessoais. No entanto, só há a obrigação de contratar por ser uma urgência, se
assim não fosse, já não se poderia invocar a obrigação de contratar.

ii. A, avô de B e de C, vende a este último uma joia de família sem consentimento
de B.

No disposto no art.º 877º/1/2 do CC, o contrato é anulável, a partir do momento em


que B toma conhecimento do negócio jurídico. É exigido o consentimento de filhos e
netos, um dos limites à liberdade contratual. O consentimento é exigido para salvaguarda
das regras sucessórias, isto porque, o legislador desconfia que estas vendas não fossem
verdadeiras vendas, mas sim, doações. As partes teriam interesse em fazer uma venda
dissimulada, porque, fazendo uma venda o património mantém-se igual. Os netos, sendo
herdeiros legitimários estão sujeitos a colação. Como na venda o património mantém-se
igual, a colação não se aplica a vendas. Assim, a venda dissimulada pode ser uma tentativa
de fugir à colação, beneficiando algum dos herdeiros.

Houve casos onde se procurou contornar a exigência de consentimento (ex.: vender à


nora em vez de vender ao filho, estando eles casados em comunhão de bens). Assim,
estando o/a filho/a casado/a em comunhão de bens, para se vender algo ao genro ou à
nora, também é necessário consentimentos dos herdeiros legitimários.

Nota: a colação implica que no falecimento de alguém, se houve doações em vida aos
herdeiros, estes têm de restituir à herança aquilo que receberam ou então ser-lhes-á
descontada na sua parte da herança aquilo que receberam. Para que haja igualdade nas
partilhas.

iii. D, casado com E no regime de comunhão de bens, aliena um prédio urbano sem
consentimento do cônjuge.

Nos termos do art.º 1682º CC, é necessário o consentimento do cônjuge, sendo que,
apenas se exige consentimento, se o casamento for em comunhão de bens. No entanto, se
for a casa de morada de família é necessário consentimento seja qual for o regime dos
bens do casal (art.º 1682º/3/a). Neste caso, não havendo consentimento, a consequência é
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a anulabilidade, nos termos do art.º 1687º CC. A anulabilidade é sanável perante
confirmação, consagrada no art.º 288º CC.

iv. F celebra com G um contrato-promessa de compra e venda. Mais tarde recusa-se


a celebrar o contrato.

Não pode recusar-se nos termos do art.º 410º e ss. CC. Através do contrato promessa
as partes exerceram a liberdade contratual, no entanto, limitaram a liberdade contratual
futura.

A consequência do incumprimento é a responsabilidade civil


obrigacional/contratual (art.º 798º e ss. CC), ficando obrigado a indemnizar os danos
que causa. Sendo um contrato promessa além da responsabilidade civil e indemnização
pelos danos, este tipo de contrato tem uma consequência particular: a execução específica
(art.º 827º e ss. CCº, sendo o mais relevante o art.º 830º CC).

Nem todos os contratos promessa estão sujeitos a execução específica porque, por
vezes, em determinadas situações o contrato não se compatibiliza com a execução
específica (ex.: quando se exigem especiais qualidades científicas/artísticas do obrigado,
pelo que daí se condena o devedor inadimplente ao pagamento de uma quantia pecuniária
pelo incumprimento). As partes podem afastar a execução específica (salvo certos casos
excecionais), se as partes assim o convencionarem.

v. Uma empresa celebra com H e I um contrato individual de trabalho para as


mesmas funções, prevendo, no entanto, remunerações diferentes para cada um
deles.

Está-se na modalidade do Direito do Trabalho. Um dos princípios deste ramo do


Direito é: para trabalho igual, salário igual. Neste caso, esse princípio está a ser violado,
dado que existem dois trabalhadores com as mesmas funções, mas a serem remunerados
de modo desigual. Este princípio constitui uma limitação à liberdade contratual,
disposta no art.º 405º CC.

Caso prático nº 5

C é titular de um cartão de crédito emitido pelo Banco B, de que é cliente. Recém-chegado


do Brasil, é surpreendido pelo extracto que o banco lhe envia relativo a aquisições

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efectuadas com o cartão no qual constam taxas elevadíssimas e comissões relativas à
realização de operações no estrangeiro. C diz desconhecer tais tarifários mas o Banco
contrapõe-lhe as “Condições gerais de utilização do cartão”, onde se lê:

“As anuidades, preços de operações no estrangeiro e de descobertos, taxas de juros,


comissões e demais encargos relativos à utilização do cartão encontram-se disponíveis ao
balcão de qualquer agência do Banco mediante prévia solicitação do titular”.

Aprecie a validade da cláusula transcrita.

Este é um contrato de adesão, porque o cliente sujeita-se a um clausulado prévio


e unilateralmente determinado, sendo imodificável. Este tipo de contratos constituem
uma limitação fática à liberdade de modelação do conteúdo do contrato, existindo
apenas liberdade de celebração. Se este clausulado for dirigido a uma generalidade de
pessoas, está-se perante cláusulas contratuais gerais. Pode existir um contrato de adesão
individualizado, aplicando-se o DL 446/95 (art.º 1º/2). No âmbito subjetivo, este diploma
apenas se aplica em relações com consumidores finais e em relações entre empresários e
entidades equiparadas.

Esta situação cabe no âmbito do diploma, já que esta é uma relação entre o banco
e o consumidor final. Predisponente é aquele que apresenta as cláusulas, neste caso, o
banco. Contraposto ao predisponente está o aderente. A lei impõe algumas obrigações ao
predisponente. Em primeiro lugar, preocupa-se com a inclusão de certas cláusulas e
depois com o conteúdo delas. Neste caso prático, o problema prende-se com a inclusão já
que se fala em desconhecimento de uma certa cláusula. Não é cumprido o ónus de
comunicar (art.º 5º do DL). Além da comunicação é previsto o ónus de informar (art.º
6º do DL) que visa a compreensão das cláusulas. É o predisponente que tem de provar
que comunicou (art.º 5º/3 do DL). A consequência do não cumprimento do ónus de
comunicar é a exclusão da cláusula que não foi comunicada, nos termos do art.º 8º do DL.

É necessário distinguir no diploma dois tipos de controlos: o controlo abstrato e


o controlo concreto. Neste caso, está-se perante um controlo concreto, porque se levanta
a questão da inclusão e da validade das cláusulas num litígio concreto e a decisão do
Tribunal só terá efeitos neste caso em particular, ao contrário do que aconteceria no
âmbito do controlo abstrato cuja ação inibitória com força geral e abstrata o Tribunal pode
proibir a utilização de determinadas cláusulas. As ações inibitórias encontram-se
publicadas na DGSI.

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O tribunal aprecia a validade das cláusulas no caso concreto e enquanto litígio
destas partes. No caso de controlo abstrato, o Tribunal pode considerar proibidas
determinadas cláusulas, proibindo o predisponente a utilizá-las, através de ação inibitória
(art.º 25º e ss. CC). Têm legitimidade ativa o ministério público (art.º 26º CC). No caso
de controlo concreto, há apenas um efeito inter-partes. Neste caso, o consumidor já tem
legitimidade ativa.

Concluindo, a alegação do Banco não é fundamentada, dado que este detém o


ónus da comunicação ao aderente, nos termos do art.º 5º/3 do DL. Como se trata de uma
questão meramente formal, a cláusula em questão é excluída do contrato nos termos do
art.º 8º do disposto decreto.

Caso prático nº 6

B, comerciante de automóveis em segunda mão, vendeu a C um veículo da marca Toyota


com matrícula de 2010. Das “condições gerais do contrato” entre ambos celebrado
constava uma cláusula pela qual C se comprometia a renunciar ao recurso às vias judiciais
para qualquer questão emergente do contrato bem como a não reivindicar quaisquer
pretensões indemnizatórias em caso de defeitos de funcionamento apresentados pelo
automóvel.

a) C, no entanto, pretende agora recorrer aos tribunais para exigir de B a redução do preço
pago uma vez que o veículo não se encontrava nas condições asseguradas por este último
aquando da celebração do contrato. Poderá fazê-lo?

Este é um contrato compra e venda de um bem móvel e, excecionalmente, este


está sujeito a registo (os bens imóveis estão todos sujeitos a registo, enquanto os móveis
não, há exceção de automóveis e aeronaves). Este é um contrato de adesão porque:
apenas existe apenas liberdade de celebração e não de modelação (art.º 405º CC); é prévia
e unilateralmente determinado e não há margem para modificação; recorre-se a cláusulas
contratuais gerais, destinando-se a um conjunto indeterminado de pessoas. Sendo um
contrato de adesão, aplica-se o DL 446/85.

Quanto ao âmbito subjetivo de aplicação do diploma, este aplica-se a relações com


consumidores finais ou relações entre empresários e entidades equiparadas. Neste caso,
existe uma relação com o consumidor final, sendo C o consumidor final.

17
O decreto-lei suprarreferido estabelece algumas regras para o predisponente, tais
como, o ónus de comunicação e dever de informação. Neste caso em particular, não há
dados relevantes sobre o cumprimento ou incumprimento destes deveres. C não alega, em
momento algum, que desconhecia as cláusulas em questão. Portanto, o cerne da questão
não é o controlo da inclusão.

Neste caso, o problema prende-se com o controlo de conteúdo das cláusulas (art.º
17º e ss. DL). C compromete-se numa delas a renunciar às vias judiciais e noutra a não
reivindicar quaisquer pretensões indemnizatórias em caso de defeitos. Quanto ao
conteúdo destas cláusulas a segunda é absolutamente proibida, segundo o art.º 21º/d DL,
assim como a primeira (art.º 21º/h DL). O art.º 21º e 22º DL são exemplificativos e não
taxativas o que significa que pode haver mais casos proibidos. Determina-se que uma
cláusula é proibida se for contrária à boa-fé (art.º 15º DL).

Por fim, sim, C pode recorrer aos tribunais, considerando que estas cláusulas são
nulas nos termos do art.º 12º DL em conjugação com o art.º 21º/d/h DL.

Caso prático nº 7

A contratou com B, operadora de comunicações móveis, um serviço de telemóvel pelo


qual paga, há já vários anos, a quantia fixa de vinte e cinco euros mensais. Depois de uma
recente viagem ao estrangeiro, durante a qual utilizou o seu telemóvel, recebeu uma conta
de “comunicações extra” no valor de quinhentos e cinquenta euros, facturadas, de acordo
com B, “nos termos previstos na cláusula 28º do contrato subscrito por A”. A, no entanto,
recusa-se a pagar alegando que desconhece o clausulado que B invoca, e que este é, em
consequência, nulo. B contrapõe que a invocação da nulidade por A configura um
comportamento abusivo, uma vez que este sempre cumpriu com o previsto no contrato.

a) Aprecie os argumentos apresentados por A e B no conflito que os separa.

Sabe-se que este é um contrato de adesão, dado que se trata de uma operadora
de comunicações. Portanto, utiliza-se o DL 446/85.

É uma relação com o consumidor final e o problema prende-se com a inclusão de


uma cláusula que supostamente seria desconhecida, existindo incumprimento do ónus da
comunicação e da informação. Cabe ao predisponente o ónus da prova da comunicação e
da informação (art.º 5º/3 DL). A consequência será a exclusão da cláusula, nos termos do
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art.º 8º DL. Sendo a cláusula excluída, significa que não há a obrigação de pagar as
comunicações de acordo com o valor que se apresenta.

Nos termos do art.º 9º DL, os contratos mantêm-se em vigor sendo apenas


excluídas as cláusulas que não tenham sido comunicadas. A falta das cláusulas excluídas
é suprida pelas normas supletivas (se existirem) e pelas regras de integração de negócios
jurídicos (art.º 292º e 293º CC).

B declara que a invocação da nulidade por parte de A é abusiva. Porém, não se


está perante abuso de direito (consagrado no art.º 334º CC). O abuso de direito aplica-
se ao exercício abusivo de qualquer direito subjetivo e é um instituto subsidiário, ou seja,
no caso de não haver mais nada para alegar, porque esta é uma cláusula de segurança e
só existe em condições excecionais.

Quando, no art.º 334º CC, se invoca o conceito de boa-fé é no sentido objetivo,


já que é enquanto regra de conduta. Se há um exercício abusivo de um direito, primeiro
tem de se concluir que a pessoa tem o direito. Quando B invoca o comportamento abusivo
implica que A seja titular desse direito. B não tem razão na medida em que não constitui
um abuso de direito a invocação da exclusão da cláusula. É de notar que A invoca a
nulidade, porém, fá-lo erradamente e o dever do juiz seria reconduzir para a exclusão.

b) Aprecie, também, a validade de uma cláusula inserida no contrato que prevê a


prescrição do direito ao recebimento das mensalidades contratadas no prazo de doze
meses.

Nos termos do art.º 10º da Lei 23/96 de 26 de julho, o direito ao recebimento do


preço prescreve no prazo de 6 meses. O art.º 13º da Lei vem completar o anterior,
estabelecendo que é nula qualquer disposição que prejudique o utente, que é o caso. É
prejudicial que o prazo de prescrição seja mais longo.

Esta é uma nulidade que é atípica quanto à legitimidade, já que apenas pode
ser invocada pelo utente (art.º 13º/ 2 da Lei), quando o regime geral da nulidade prevê
que esta possa ser invocada por qualquer pessoa. A consequência da nulidade é a
exclusão da cláusula. Com a exclusão, passa a aplicar-se o regime do art.º 10º da Lei
(uma norma supletiva) que indica os 6 meses.

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Caso prático nº 8

A e B, sócios de clubes de futebol rivais, assistem juntos a um jogo do campeonato em


que as duas equipas se defrontam. Em consequência de uma jogada duvidosa A reclama
a marcação de um penalty, insultando os jogadores da equipa adversária. B, discordando
da opinião de A e descontente com a actuação da sua equipa, agride-o violentamente
causando-lhe ferimentos tais que, durante uma semana, este fica impossibilitado de
trabalhar. A pede a B uma indemnização pelos danos materiais e morais causados pela
agressão. A sua pretensão terá êxito?

Este é um caso de responsabilidade civil extracontratual/extraobrigacional


que é diferente da responsabilidade civil contratual/obrigacional. Nesta última, viola-se
um direito de crédito (direitos que se impõem interpartes). No caso da extracontratual há
violação de um direito absoluto (direitos que se impõem erga omnes; corresponde à
parte passiva um dever de respeito). A responsabilidade civil encontra-se prevista no art.º
483º CC e prevê a obrigação de indemnizar. Esta obrigação de indemnizar requer ainda
que haja um nexo de causalidade entre o ato e o dano, nos termos do art.º 563º CC.

Nos termos do art.º suprarreferido, devem ver-se preenchidos os seguintes


requisitos: o facto tem de ser voluntário, ilícito, o ato tem de ser culposo, sendo que a
culpa pode ser dolosa ou negligente (neste caso, a culpa é dolosa) e tem de haver lugar
a dano.

Quanto ao dano, há dois tipos: morais e patrimoniais. Os danos morais não são
indemnizáveis, mas sim, compensáveis (art.º 496º CC). Já os danos patrimoniais, estes
sim, são indemnizáveis, nos termos do art.º 564º CC e este tipo de danos divide-se em:
danos emergentes e lucros cessantes. Os danos podem ainda classificar-se como presentes
ou futuros, sendo que, sendo futuros, só são indemnizáveis se forem previsíveis. Os danos
futuros previsíveis dividem-se ainda em determinados e indeterminados. Recentemente,
existem danos biológicos (lesão na integridade psicofísica da pessoa, ou seja, é um dano
da própria saúde daquela pessoa e geralmente a doutrina reconduz aos danos
patrimoniais). Outra categoria de danos que, ultimamente, tem ganhado relevância são os
danos de perda de chance (para ser indemnizável tem de ser uma chance séria e
justificada).

Ainda sobre o dano, quando este existe, a regra geral chama-se por: causa sentit
dominus (quem sofre um prejuízo tem de suportá-lo). Só assim não será, se a lei permitir

20
que se possa importar a outra pessoa esse prejuízo, porém, só assim se encontram reunidos
os pressupostos da responsabilidade civil.

Ainda sobre a responsabilidade civil, esta pode ser: subjetiva ou por factos ilícitos
com culpa; objetiva ou pelo risco, o que significa que o sujeito responde ainda que sem
culpa associada; ou por factos lícitos, quando a prática de um facto lícito, por causar
danos, dá origem a obrigação de indemnizar.

Neste caso prático está-se perante o direito absoluto, a integridade física, sendo
este um direito de personalidade (todos os direitos de personalidade são todos direitos
absolutos). No âmbito de um contrato é o direito de crédito. A responsabilidade civil
obrigacional traduz-se na violação de uma obrigação. Há várias fontes de obrigações (art.º
405º e ss. CC), sendo uma delas o contrato (não é a única).

Caso prático nº 9

C, proprietário de um snack-bar, comprou um “plasma” no hipermercado D a fim de


substituir o seu velho aparelho de televisão. Ficou acordado que D entregaria o “plasma”
no estabelecimento de C até à quarta-feira seguinte, dia em que a televisão transmitia um
importante desafio de futebol, pretendendo C o aparelho para que os seus clientes
pudessem assistir ao jogo. No entanto, o funcionário de D encarregado de distribuir as
várias entregas esqueceu-se de incluir o “plasma” de C na distribuição dessa semana,
procedendo à sua entrega uma semana mais tarde. Assim, C vem exigir o pagamento de
uma indemnização em virtude da quebra de movimento que teve nessa quarta-feira, uma
vez que os seus clientes foram todos ver o jogo de futebol para um café concorrente. Quid
iuris?

Este é um caso de responsabilidade civil obrigacional, pelo facto de haver um


incumprimento contratual, neste caso, do contrato de compra e venda, consagrado no
art.º 874º e ss. CC. A obrigação de entregar a coisa (art.º 879º/b CC) é que não foi
cumprida. Havendo incumprimento, há lugar a responsabilidade civil, nos termos do art.º
798º CC.

Note-se que havia um prazo estipulado para a entrega do “plasma” e, não


cumprido esse prazo, há incumprimento definitivo. Nos termos do art.º 805º/2/a CC,
21
havendo prazo certo para a entrega da coisa (como é o caso), o devedor entra em mora
independentemente de interpelação judicial ou extrajudicial.

Segundo o art.º 804º/1 CC o devedor é responsável, nesta situação, por indemnizar


o credor por danos moratórios. A indemnização está consagrada no art.º 562º e ss. CC.

Caso prático nº 10

E é motorista e proprietário de um táxi. Ao transportar um cliente, andando um pouco


distraído, não repara que um peão atravessa uma passadeira à sua frente. Apesar de uma
travagem violenta, já não consegue evitar que o peão seja colhido pelo seu táxi, causando-
lhe ferimentos. Ao mesmo tempo, o cliente transportado sofre contusões quando é
lançado contra as costas do assento da frente. O próprio táxi é danificado, apresentando
amolgadelas no para-choques dianteiro. Quid iuris?

Os lesados são o peão, o cliente e o próprio motorista. O motorista vai responder


perante o peão pelos danos que causa à sua integridade física, porque, sendo este um
direito absoluto, há lugar a responsabilidade extracontratual. Neste caso, há a culpa e, por
isso, está-se perante responsabilidade civil extracontratual subjetiva. Se não houvesse
culpa ele também respondia e seria nesse caso responsabilidade civil extracontratual
objetiva (artigo 503º CC). No caso, ele responde com culpa nos termos do art.º 483º do
CC.

Há também uma ofensa à integridade física do passageiro, que é uma violação de


um direito absoluto e, portanto, há responsabilidade civil extracontratual. Entre o
motorista e o cliente também foi celebrado um contrato de transporte e, portanto, quando
se dá um acidente durante a celebração do contrato, há responsabilidade obrigacional,
pois há a violação de um dever de crédito que, não sendo um dever principal, é um
dever acessório de conduta. Relativamente ao passageiro, o mesmo facto permite
subsumir quer a responsabilidade civil extracontratual, quer a obrigacional.

Por fim o próprio motorista, também ele sofria danos, tendo ele próprio de
suportar os danos, estando em causa a regra causa sentit dominus, quando alguém sofre
um dano em princípio sendo ele mesmo a cobrar o dano, no caso não há fundamento para
o imputar a outrem. Como se trata de automóveis sabe-se que há um seguro obrigatório
no âmbito da responsabilidade civil automóvel. A única possibilidade de E era se ele

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tivesse um seguro que cobrasse danos próprios, ele iria transferir essa responsabilidade e
cobrança desses danos para a seguradora. O seguro que é obrigatório é unicamente o
seguro que cobre danos a terceiros, não é probatório o seguro de danos próprios. A
seguradora responderá exatamente nos mesmos termos que o motorista, é só uma questão
de transferir a responsabilidade. Um contrato de seguro seria um contrato de adesão.

NOTA:

Tese do não cúmulo – defendida pelo Professor Almeida Costa que entende que a
responsabilidade civil obrigacional prevalece sobre a responsabilidade extraobrigacional.
Esta tese não é maioritária.

Teorias de cúmulo:

 A teoria do professor Vaz Serra é a teoria da combinação ou da ação híbrida,


ou seja, defende o professor que o lesado poderia escolher as normas do regime
de acordo com a sai vontade, de acordo como tivesse maior vantagem no caso
concreto. Esta não é maioritária nem seguida

 Teoria da dupla indemnização: defende que haveria lugar a indemnização pelas


duas responsabilidades, mas esta não defendida porque se traduz na existência de
uma indemnização punitiva, e porque se traduz no enriquecimento injusto pelo
lesado. A questão punitiva não é uma questão do direito penal e não do direito
civil, por isso não faria sentido, o objetivo é só eliminar o dano

 Teoria da Opção (mais seguida): Antunes varela e professor Carneiro da frada,


traduz-se na possibilidade do lesado optar por um destes fundamentos, mas
optando tem de seguir todo o seu regime, quer as suas vantagens quer os seus
inconvenientes. A opção será realizada no caso concreto conforme aquilo que for
mais vantajoso.

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Responsabilidade civil contratual VS. Responsabilidade civil extracontratual:

 Em relação a prazos, no caso das extraobrigacional, o prazo encontra-se


estipulado no art.º 498º CC, enquanto para a obrigacional deve ter-se em conta o
art.º 309º CC.

 Para a extraobrigacional objetiva, aplica-se o artigo 500º CC, nas obrigacionais é


o artigo 800º CC.

 Enquanto limitação de responsabilidade de mera culpa só se aplica à


responsabilidade civil extraobrigacional (artigo 494º CC).

 No caso de responsabilidade civil obrigacional há uma presunção de culpa,


enquanto na extraobrigacional, é o lesado que terá de provar a culpa (art.º 799º
CC).

Voltando ao caso prático, aparentemente, não houve qualquer culpa do peão, só há


culpa do motorista. Mas imagine-se que o peão tinha passado fora da passadeira e que o
condutor ia demasiado rápido. Neste caso, havia uma concorrência de culpas e, em
situações como esta a indemnização poderia ser limitada ou mesmo excluída (art.º 570º
CC).

Suponha-se que o condutor ia a uma velocidade normal e o peão passa fora da


passadeira e é atropelado, o primeiro iria responder por responsabilidade civil objetiva,
(artigo 503º CC), respondendo pelos seus danos independentemente de culpa. No entanto,
num caso como este, também há culpa do lesado. O incidente poderia ser imputável ao
próprio lesado e o condutor responde sem culpa (haveria uma exclusão da
responsabilidade). A doutrina sempre interpretou como não sendo de aplicar o art.º 570º
CC (interpretação ab-rogante). Atualmente, por imposição da jurisprudência do TJUE,
em matéria de seguros, o TJ foi chamado a apreciar a conformidade do art.º 505º CC com
o DUE e entendeu que seria conforme o DUE se a exclusão não fosse automática, no
entanto, é de ter em conta o caso concreto.

Exemplo onde não houve exclusão, mas apenas limitação: o veículo era silencioso e o
peão saiu de um autocarro e atravessou a estrada num lugar indevido, e foi atropelado.
Neste caso, o condutor também respondia.

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Caso prático nº 11

A é proprietário de uma vivenda que se encontra arrendada a B que nela habita há já


muitos anos. Quando B, há cinco anos atrás, solicitou verbalmente a A a instalação de
uma loja de artigos desportivos no rés-do-chão da moradia, A acedeu imediatamente na
medida em que vislumbrou nesse facto uma oportunidade para despejar o arrendatário.
Assim, instalado B no seu negócio, A vem agora intentar uma acção de resolução do
contrato de arrendamento contra B com fundamento na utilização do arrendado para fim
distinto do previsto no contrato (fim habitacional). Quid iuris?

Se a cláusula for válida, o fim do local é não habitacional e, nesse caso, não há
direito a resolução. Por outro lado, poderia considerar-se que a cláusula não seria válida,
por ter sido alterada verbalmente e, dessa forma o fim seria habitacional, que era o que
havia ficado acordado por escrito. Neste caso, já haveria direito a resolver, dado que a
alteração do fim deveria ter seguido a forma escrita.

Tendo em conta o art.º 1069º CC, esta cláusula não seria válida por não seguir a
forma legal (a solicitação não deveria ter sido feita verbalmente, mas sim por escrito).
Assim, a declaração negocial que determina a alteração do fim, seria nula nos termos do
art.º 220º CC. Nesta segunda opção, tendo direito a resolver, pode falar-se em abuso de
direito (art.º 334º CC). Para se fundamentar a existência de abuso de direito, dir-se-ia que
houve má-fé na aceitação verbal com o fim de, no futuro, resolver o contrato de
arrendamento. Caso haja efetivamente abuso de direito ou se impede o exercício do
direito ou existe responsabilidade civil, depende do caso particular.

Há várias modalidades típicas de abuso de direito, sendo elas:

 venire contra factum proprium, que se traduz na existência de um primeiro


comportamento (factum proprium) e um segundo (venire), sendo ambos lícitos e,
ao mesmo tempo, contraditórios (porém, por vezes, assiste-se à aplicação desta
modalidade em casos nos quais os comportamentos não são ambos lícitos);

 inalegabilidades formais, quando alguém dá causa à inobservância da forma


legalmente exigida e depois vem invocar essa falta de forma, sendo esta uma
submodalidade do venire;

Apesar de, neste caso particular, se verificar inobservância da forma legalmente


prevista, não se aplica esta modalidade, dado que, não é invocado por nenhum dos sujeitos

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a questão da inobservância. Na verdade, a modalidade que se segue é aquela que melhor
se aplica ao caso em questão, sendo ela:

 tu quoque (que significa “tu também”), serve para aqueles casos em que alguém
pratica um ato ilícito e depois quer prevalecer-se das consequências desse ato.
Para além deste caso prático, outro exemplo de tu quoque: imagine-se um
condómino de propriedade horizontal. Esse condómino não paga a sua quota, o
que faz com que o condómino não tenha património suficiente patra fazer face a
todas as despesas. Por força da lei, o condomínio estava obrigado a fazer obras e
não o fez precisamente por não ter património suficiente. O condómino
mencionado supra abre uma ação em tribunal para ser indemnizado pelos danos
causados pela falta de obras. O tribunal declara abuso de direito, já que o
condómino não pagou a sua parte e esse comportamento fez com que o
condomínio não tivesse património que cobrisse a realização das obras;

 atos emulativos, aplicado a situações onde alguém exerce o direito apenas com o
intuito de prejudicar outrem. É de notar que os atos emulativos são de utilização
excecional, não esquecendo que o próprio abuso de direito já é por si só um
instituto excecional. Esta modalidade só deve ser utilizada em situações de
extrema injustiça;

 supressio/neutralização, para situações em que alguém tem uma expectativa


jurídica fundada, que decorre da passagem do tempo e vê essa expectativa
frustrada por outrem, neste caso, esta segunda pessoa decorre de abuso de direito
na modalidade de supressio. Nos termos do art.º 1083º CC, o direito de resolução
é um direito potestativo, o que significa que ao inquilino corresponde um estado
de sujeição. Sendo considerado abusivo o exercício, o tribunal impõe que se
proíba o exercício.

Caso prático nº12

A, agente imobiliário, acordou com B a conclusão de um contrato de compra e venda de


um terreno que tinha herdado de sua mãe e que confinava com um campo que o segundo
cultivava. A convenceu B que o contrato podia ser celebrado numa folha de papel azul,
selada e assinada por ambos, e que assim se evitavam as despesas notariais. Cinco anos

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mais tarde, A intenta uma ação judicial com vista à declaração da invalidade formal do
negócio celebrado com B, pretendendo assim obter o terreno de volta, uma vez que a zona
onde este se situava tinha passado a ser "zona urbanizável", com a aprovação do novo
Plano Director Municipal da região, o que levou a uma subida "em flecha" dos preços.
Deverá o tribunal atender à sua pretensão? (Cfr. Acórdão do STJ de 17.01.2002 (Miranda
Gusmão), CJ — Acórdãos do STJ, I, 2002, pp. 48-50 e Acórdão da Relação de Coimbra
de 14.12.1993 (Moreira Camilo), CJ, V, 1993, pp. 48-50).

A invoca a nulidade do contrato, nos termos do art.º 220º CC, que constitui uma
exceção à liberdade contratual (ver também, art.º 875º CC). De facto, A tem direito a
invocar a nulidade, pois o contrato não respeita a forma legal. Note-se que se pode
considerar o comportamento de A contrário à boa-fé. Sendo este agente imobiliário,
saberia qual era a forma exigida pela lei para o contrato e, ao mesmo tempo, é ele quem
convence B a não obedecer a essa forma legal. Assim, A age em abuso de direito ao
invocar a nulidade.

O regime da nulidade está presente no art.º 286º CC. Esta é insanável, pode ser
invocada por qualquer interessado a todo o tempo e o Tribunal pode reconhecê-la
oficiosamente (não precisa de ser invocada). Os efeitos da declaração da nulidade estão
contemplados no art.º 289º CC. A declaração pelo Tribunal tem efeitos retroativos pelo
que deve ser restituído tudo aquilo que foi prestado (A devolve o preço, B o imóvel).

Considerem-se dois cenários possíveis para esta situação: ou o Tribunal considera


que A não pode invocar a nulidade, o que significa admitir a existência e a validade no
ordenamento jurídico de um contrato que deveria ser nulo, segundo os termos da lei,
ultrapassando-se o art.º 875º CC. No entanto, este último artigo protege tanto interesses
privados como interesses públicos. Para além de proteger as partes de um negócio
precipitado que envolve bens de valor avultado, este artigo visa a proteção deste tipo de
negócios jurídicos.

Havendo, então, interesse público protegido neste artigo a jurisprudência


determina que, apesar do exercício abusivo do direito por parte de A, o contrato é
declarado nulo pelo tribunal. No caso de haver danos, a consequência seria a
indemnização.

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NOTA: O Professor Batista Machado entendia que só em casos muito excecionais de
muita confiança e investimento nessa confiança, podia o tribunal ultrapassar o art.º 875º
CC e não declarar a nulidade do contrato.

Caso prático nº13

A é proprietário de um automóvel que lhe foi furtado por B. Um dia A vê C a entrar no


automóvel furtado. A dá um murro a C e tira-lhe a chave impedindo este de arrancar com
o carro. Aprecie a conduta de A.

A ação direta, presente neste caso, é uma forma de autotutela, sendo esta de uso
excecional. Esta está consagrada no art.º 336º CC. A foi apenas furtado, não tendo
deixado de ser proprietário. Há uma inutilização prática do direito de propriedade de A.
A ação direta só é possível para a defesa de um direito próprio, não podendo ser
utilizada para a defesa de terceiros. Também é de notar a proporcionalidade da ação
direta que está presente nos números 1 (parte final) e 3 do artigo mencionado supra. Neste
caso, essa proporcionalidade não se verifica. Por um lado, tem-se o direito de C à
integridade física e, por outro, o interesse patrimonial de A. O número 2 limita aquilo em
que se pode traduzir a ação direta. Em abstrato, o interesse de A é inferior ao direito de
C, logo, conclui-se que, neste caso, a ação direta é ilícita. Para além disso, é de ter em
conta que o furto foi da autoria de B e não de C, o que significa que C poderia nem ter
conhecimento que o automóvel havia sido furtado e estar de boa-fé. Suponha-se que A
acreditava que os pressupostos da ação direta estavam consagrados no seu caso, reconduz-
se para o art.º 338º CC. De acordo com o disposto, se o erro for desculpável, não há lugar
a indemnização. Por outro lado, se não for desculpável, o ato é ilícito e há lugar a
indemnização. Sendo ilícito, há lugar a responsabilidade civil extraobrigacional,
consagrada no art.º 483º CC (tem-se um facto voluntário ilícito, causa dano, há nexo de
causalidade e é culposo). Como se trata de um direito de personalidade adiciona-se à
indemnização as consequências previstas no art.º 70º/2 CC.

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Caso prático nº14

F é abordado à noite por um indivíduo empunhando uma faca exigindo a sua carteira. 1ª
hipótese: F dá-lhe um pontapé e o indivíduo cai na rua. 2ª hipótese: F, que andava sempre
armado, dá um tiro ao indivíduo.

A 1ª hipótese consagra a legítima defesa (art.º 337º CC), dado que os pressupostos
deste instituto se encontram preenchidos: há uma agressão atual e ilícita que ocorra
contra a pessoa ou contra o seu património, podendo haver legítima defesa de direito
próprio ou de um terceiro, não sendo possível recorrer aos meios coercitivos normais
e tendo de se verificar proporcionalidade. Note-se que o dano causado em legítima
defesa pode ser superior, não pode ser manifestamente superior.

Já em relação à 2ª hipótese, neste caso, já não há lugar a legítima defesa. Nesta


situação há um excesso na defesa (art.º 337º/2 CC) e, portanto, o ato não está justificado.
Assim, há lugar a responsabilidade civil e consequente indemnização.

Pressupostos do 339º CC:

O estado de necessidade é para as situações de perigo e este tem de ser atual, o


que não existe na ação direta que não exige esta atualidade. Neste instituto é permitida a
destruição ou danificação de coisa alheia. O dano que se visa evitar tem de ser
manifestamente superior ao dano efetivamente causado. Pode haver estado de
necessidade de tutela do próprio ou de terceiro. Apesar do ato ser lícito, agindo em estado
de necessidade, há lugar a indemnização pelos danos, se foram provocados por sua culpa
exclusiva. Não tendo sido culpa exclusiva, a indemnização é equitativamente fixada,
sendo distribuída tanto pelo agente como por aqueles que foram beneficiados pelo estado
de necessidade.

Princípio do Nemu Plus Iuris

Nas aquisições originárias a aquisição depende apenas do facto ou do título


aquisitivo. Já nas aquisições derivadas, a aquisição depende não só do conteúdo do facto
aquisitivo, como também da amplitude do direito do transmitente. Assim, o direito do
adquirente não pode, por regra, ser maior do que o direito do transmitente – Nemu

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Plus Iuris as alium transfere potest quam ipse habet (que significa: ninguém pode
transmitir mais direitos do que aqueles que detém).

Sendo aquela a regra geral das aquisições derivadas, é de notar que há exceções nas
quais o adquirente obtém um direito que não pertencia ao transmitente, ou então, o
direito do transmitente é ampliado para o adquirente. Assim, as exceções são no caso de:

1- Funcionamento do Registo

Ex.: Importante: Em 2020, A transmite a B um prédio e B não o regista. Em 2021, A


transmite a C que passa a ser titular do bem, adquirindo-o por efeitos de registo. Poderia
dizer-se que B adquiria o bem por efeito de contrato, mas esta é uma presunção ilidível.

Legislação importante para este tópico: art.º 1º e art.º 34º DL 224/84 (sendo que o art.º
34º consagra o princípio do trato sucessivo, o qual dita que o adquirente só consegue
registar se o transmitente também o fez). Ainda o art.º 5º e 6º do mesmo D. (importa ter
em conta que os terceiros para efeitos de registo se encontra consagrado no art.º 5º/4 do
DL).

2- Proteção de terceiros de boa-fé: há determinadas situações, em que se entende


que faz sentido proteger-se a boa-fé do adquirente. Normalmente, isto verifica-se
quando há lugar a simulações de negócios jurídicos. Imagine-se que A e B
celebram um contrato de compra e venda nulo (segundo os termos dos artigos
875º e 220º CC). Após esse negócio B transmite o bem que supostamente adquiriu
a C. No entanto, o primeiro negócio é nulo e, portanto, B não possui
verdadeiramente o bem e, portanto, também não o deveria poder transmitir a C.
Porém, C, de boa-fé, não fazia ideia de que B não tinha legitimidade para lhe
transmitir o bem. Entende-se que C, neste caso, deve ser protegido. Para casos
como este, têm-se dois artigos do CC que podem ser utilizados: o art.º 291º CC e
o art.º 243º CC. Porém, cada um deles apresenta certos requisitos para a sua
aplicação, sendo estes:

→ Requisitos do art.º 291º CC: tem de haver um terceiro afetado por uma
invalidade anterior; tem de se tratar de um bem imóvel ou então um bem
móvel sujeito a registo; tem de haver uma aquisição de terceiro que é
onerosa; tem de haver registo; o terceiro tem de estar de boa-fé sem culpa
(o nº 3 deste artigo diz que boa-fé sem culpa significa que o terceiro não

30
saberia do vício do negócio anterior. Aqui a boa-fé é no sentido objetivo,
no sentido de desconhecimento, de ignorância. Esta boa-fé é aferida no
momento da aquisição); e têm de passar 3 anos sem que seja proposta uma
ação de invalidade do negócio inválido (o negócio que afeta o terceiro).

→ Requisitos do art.º 243º CC: necessário que haja um terceiro, afetado por
uma simulação anterior, que tem de estar de boa-fé com ou sem culpa
(boa-fé no sentido objetivo).

Casos do manual do Professor Doutor Orlando Carvalho

NOTA: para referência, os enunciados encontram-se no PowerPoint publicado no Sigarra.

1.

O negócio simulado, consagrado no art.º 240º CC, é nulo, segundo o nº 2 desse


mesmo artigo. Num negócio deste tipo as partes declaram uma vontade que não
corresponde à vontade real. Há dois tipos de simulação: a simulação absoluta e a
simulação relativa. Na absoluta as partes declaram celebrar um negócio, mas não
celebram nenhum. Quanto à simulação relativa, prevista no art.º 241º CC, as partes
declaram celebrar o negócio, mas celebram um diferente. Nos casos de simulação relativa
tem-se um negócio simulado e um dissimulado (o negócio dissimulado corresponde
àquele que na verdade foi realizado. Negócios dissimulados são válidos e apenas se
colocam na questão da simulação relativa).

Neste caso, aplica-se o art.º 243º CC, afastando-se logo o art.º 291º CC, dado que,
os requisitos para a aplicação deste último artigo não estão cumpridos. Um dos
pressupostos requerido para a aplicação do art.º 291º CC prende-se com a qualidade do
bem, sendo que o bem em causa tem de ser um bem imóvel, ou então, um bem móvel
sujeito a registo. Neste caso, o bem é um bem móvel que não está sujeito a registo. Assim,
C adquire o colar por força do art.º 243º CC, quando estão preenchidos todos os requisitos.

31
2.

Neste caso, há uma invalidade que é a simulação, prevista no art.º 240º CC. O art.º
291º CC é afastado, dado que dado que não há registo e não há boa-fé sem culpa e,
portanto, não estão cumpridos todos os requisitos necessários à aplicação deste artigo.
Assim, aplica-se o art.º 243º CC. C adquire o bem por força do art.º 243º CC, em 1984,
sem necessidade de registo.

3.

Note-se que a simulação entre A e B é nula nos termos do nº 2 do art.º 240º CC.
Nesta situação, não é possível a aplicação do art.º 291º CC, pois os requisitos não estão
cumpridos na sua totalidade. A boa-fé sem culpa requerida para a aplicação deste artigo,
não se verifica, já que se sabe que C ignora a simulação com culpa. Assim sendo, aplica-
se o art.º 243º CC, visto que, para este artigo, os requisitos encontram-se cumpridos.

4.

Primeiramente, é de notar que há uma simulação (art.º 240º CC), que é nula, nos
termos do art.º 240º/2 CC.

A doação afasta a aplicação do art.º 291º CC. Um dos pressupostos requeridos


para a aplicação deste artigo é que haja lugar a uma aquisição onerosa por parte do
terceiro. Ora, a doação não pode ser considerada uma aquisição onerosa. C adquire o bem
gratuitamente. Por este motivo, aplica-se, então, o art.º 243º CC

5.

A compra e venda realizada entre A e B é um negócio nulo devido à falta de forma,


nos termos dos artigos 875º CC e 220º CC. Verificados todos os requisitos necessários,
aplica-se o art.º 291º CC. Note-se que é só em 1985 que se verificam todos os
pressupostos, quando C regista.

32
6.

Em primeiro lugar, importa saber que o comodato, previsto no art.º 1129º CC e


ss. é um contrato gratuito e, portanto, B não era titular de um direito de propriedade já
que tinha a obrigação de restituir o bem. Consequentemente, o negócio entre B e C é nulo
porque se trata da venda de um bem alheio, nos termos do art.º 892º CC. Verificados
todos os requisitos, aplica-se a esta situação o art.º 291º CC.

7.

Entre A e B, há um negócio nulo, nos termos dos art.º 220º e 875º CC, dado que
a forma exigida para a compra e venda não é respeitada pelos sujeitos. A doação
absolutamente simulada entre B e C é nula, nos termos do art.º 240º CC. Seguidamente,
D adquire quando regista, em 1986, havendo, neste caso, proteção do art.º 291º CC, visto
que se verificam todos os requisitos necessários.

8.

Em primeiro lugar, importa salientar a aplicação dos artigos 220º e 875º CC, pela
falta de forma, relativamente ao negócio entre A e B. Em seguida, no que se refere à
doação simulada entre B e C, esta é nula, nos termos do art.º 240º/2 CC.

Neste caso, aplicam-se ambos os artigos, o 243º e o 291º CC, pois a situação
requer proteção de ambos. D age sem culpa quanto ao negócio nulo entre A e B (o que
justifica a aplicação do art.º 291º CC), porém, age com culpa no que se refere à simulação
(agindo com culpa não se pode aplicar o art.º 291º CC, podendo aplicar-se o art.º 243º
CC).

9.

Entre A e B há lugar a um negócio nulo já que a forma exigida pela lei para o
contrato de compra e venda não foi pelos sujeitos cumprida. Assim, o negócio é
considerado nulo, nos termos dos artigos 220º e 875º CC. Entre B e C, tem-se uma doação

33
simulada, sendo esta nula, segundo o art.º 240º/2 CC. Para esta situação, devem aplicar-
se, tanto o art.º 243º CC, como o art.º 291º CC.

10.

Há um negócio nulo entre A e B, nos termos dos artigos 220º e 875º CC, dado que
a forma exigida pela lei para este tipo de contrato não é cumprida pelas partes. Entre B e
C, dá-se uma simulação, prevista no art.º 240º CC, que é nula, segundo o nº 2 desse artigo.

Nos termos do art.º 6º do Código do Registo Predial, D tem prioridade já que


regista primeiro, aplicando-se o efeito central do registo. Para além destes, aplicam-se
ambos os artigos 243º e 291º CC.

11.

Neste caso, verificados todos os requisitos necessários, é aplicável o art.º 291º CC.
O negócio entre A e B é nulo, dada a falta forma apresentada pelo contrato de compra e
venda entre as partes (art.º 220º e 875º CC) Sendo nulo, B não tem direito de propriedade
e, portanto, segundo o princípio do nemo plus iuris, B não pode transmitir o direito de
propriedade a ninguém, já que ele próprio não possui esse direito, dada a invalidade do
negócio que celebrou com A.

Assim, considera-se que C e D são os terceiros, neste caso, pois são aqueles que
se veem afetados por uma invalidade anterior. Tendo em conta o efeito central de registo,
D é quem detém o direito de propriedade já que é o primeiro a registar, obtendo esse
mesmo direito no preciso ano em que procede ao registo.

12.

Este caso merece a aplicação do art.º 291º CC, já que se verificam todos os
pressupostos exigidos.

Relativamente à simulação entre A e B, esta é nula, nos termos do art.º 240º/2 CC.
Note-se que, nesta situação, C pode considerar-se um terceiro afetado por um vício

34
anterior (a compra e venda nula entre A e B) e que E e F devem ser tidos em conta como
terceiros para efeitos de registo.

Pelo facto de E não proceder ao registo, não pode opor o seu direito, segundo o
disposto no art.º 5º do Código do Registo Predial. Já F, faz o registo e, portanto, adquire
o direito de propriedade plena ao mesmo tempo que o direito de E se extingue por
decadência, por força do efeito central do registo de F. Deste modo, em 1986, tinha-se o
direito de D com usufruto de E e, em 1987, tem-se o direito de propriedade de F sem
reservas.

Suponha-se que D ignorava os vícios com culpa, nesse caso, já não se aplicaria o
art.º 291º CC e, portanto, D não adquiria nada e já não se aplicava o efeito central do
registo daí em diante, sendo a propriedade de A.

13.

Entre A e B há uma simulação, prevista no art.º 240º CC que, segundo o nº 2 desse


artigo, é nula. Regra geral, o negócio simulado é nulo e o negócio dissimulado é válido.
Neste caso, considera-se que o negócio dissimulado é a doação. Porém, B mantém
relações adulterinas com A e, portanto, a doação é nula, nos termos do art.º 2196º CC ex
vi art.º 953º CC. Para proteger C quanto à simulação entre A e B, aplica-se o 243º CC.

14.

Entre A e B há uma simulação, prevista no art.º 240º CC que, segundo o nº 2 desse


artigo, é nula. Regra geral, o negócio simulado é nulo e o negócio dissimulado é válido.
Neste caso, considera-se que o negócio dissimulado é a doação. Porém, B mantém
relações adulterinas com A e, portanto, a doação é nula, nos termos do art.º 2196º CC ex
vi art.º 953º CC. Para proteger C quanto à simulação entre A e B e quanto à nulidade do
negócio dissimulado, recorre-se ao art.º 291º CC. C adquire em 1984, quando regista.

35
15.

Entre A e B, há lugar a uma simulação que é nula, nos termos do art.º 240º/2 CC.
Porém, o negócio dissimulado é válido, segundo o art.º 241º CC. Neste caso, não se aplica
nem o art.º 291º CC nem o art.º 243º CC. Não se pode falar em boa-fé em sentido objetivo,
nesta situação, já que a simulação é conhecida. Sendo a doação válida, tal como referido
supra, assiste-se a um caso de desnecessidade de tutela. A doa a B e B pode proceder à
venda.

Coletânea de casos práticos (continuação)

Caso prático nº 15

A celebrou com B um contrato de compra e venda de um terreno de que era proprietário,


com data de 20/10/2014. O contrato foi celebrado mediante escrito particular. Seis meses
mais tarde, B vende o terreno a C (mediante escritura pública), que regista a sua aquisição.
Entretanto A morre e o seu filho D, seu único e universal herdeiro, vem intentar uma
acção com vista à declaração da nulidade do contrato celebrado entre A e B. C
desconhecia a invalidade do contrato anterior. Será a sua aquisição protegida por lei? 1ª
hipótese: A acção foi proposta em Fevereiro de 2016. 2ª hipótese: A acção foi proposta
em Janeiro de 2018.

Neste caso, C é o terceiro, dado que é afetado por uma invalidade anterior. O
negócio entre A e B é nulo, nos termos do art.º 220º CC, pois não foi respeitada a forma
legal (art.º 875º CC).

No que diz respeito à 1ª hipótese, esta não está protegida pelo art.º 291º CC, por
ainda não se terem passado os 3 anos requeridos para a aplicação desse artigo. Quanto à
2ª hipótese, recorre-se ao art.º 291º CC, visto que os pressupostos para a aplicação deste
artigo estão verificados.

Caso prático nº 16

E, comerciante, receosa de uma acção judicial com vista à declaração da sua insolvência
em virtude das avultadas dívidas acumuladas nos últimos anos, e pretendendo
salvaguardar os seus bens, forjou com F, sua empregada, um contrato de compra e venda

36
de um valioso colar de pérolas, recebendo um preço simbólico a título de pagamento.
Mais tarde, F doa o mesmo colar a G, sua filha, que, embora estranhando que a sua mãe
tivesse uma jóia tão valiosa, desconhecia o acordo entre E e F. Que direitos assistem a G?

Afasta-se o art.º 291º CC, visto que os pressupostos necessários à sua aplicação
não estão cumpridos. Não há um negócio oneroso, não há boa-fé sem culpa e o bem em
causa, é um bem móvel que não está sujeito a registo. Aplica-se, então o art.º 243º CC.

Assim, a nulidade do negócio simulado (art.º 240/2º CC) não pode ser oponível a
G, o terceiro, neste caso.

NOTA: se há o registo de uma ação de simulação anterior à aquisição do direito, o terceiro


vai sempre presumir-se de má-fé. Esta é uma presunção inilidível.

Caso prático nº 17

M, viúvo, decidiu doar a sua casa sita na Av. da Boavista, ao seu único filho N, residente
em França, instalando-se num "Lar de Terceira Idade". N não regista a sua aquisição.
Entretanto, tendo-se M apercebido que o filho pretendia arrendar a casa a uma empresa,
o que implicava o "despejo" de uma empregada antiga (O) que ainda lá habitava, decidiu
constituir a favor de esta um usufruto até à sua morte, por via contratual. Ambos os
contratos foram celebrados mediante escritura pública. N, quando preparava os
documentos para arrendar a casa é confrontado com o registo do direito de usufruto a
favor de O, incompatível com a possibilidade de arrendamento. Quid iuris?

Primeiramente, importa saber que efeitos reais se traduzem na constituição ou


transmissão de direitos reais (sobre bens) por contraposição a efeitos obrigacionais. N é
proprietário por mero efeito do contrato, nos termos do art.º 408º CC. Assim, o
contrato celebrado entre M e O é inválido por força do princípio do nemo plus iuris
(não sendo o proprietário, não pode transmitir o direito de propriedade a O). Já o usufruto,
está previsto no art.º 1439º e ss. CC.

N e O são terceiros para efeitos de registo e têm direitos parcialmente


incompatíveis. Por força do efeito central do registo, O ao registar consegue opor o seu

37
direito (art.º 5º Códido de Registo Predial) e vai ter prioridade no registo (art.º 6º Código
de Registo Predial). N não consegue opor o seu direito dado que não regista.

Caso prático nº 18

A vende a B a sua casa de praia em Janeiro de 2012. B, no entanto, não registou a sua
aquisição. Posteriormente, verificando A que a casa ainda se encontrava registada em seu
nome, decide doá-la a um seu sobrinho C, que muito o havia ajudado na sua velhice. C,
tendo conhecimento, antes da aceitação da doação, do anterior negócio realizado pelo tio,
sossegou-o dizendo que "o proprietário é aquele que aparece mencionado como tal no
registo", e como tal o tio estava no seu pleno direito ao fazer a doação. Quid iuris?

Por força do contrato, B adquire o direito de propriedade, em 2012. Note-se que


B e C são terceiros para efeitos de registo. B não regista, não conseguindo opor o seu
direito de propriedade (art.º 5º Código do Registo Predial). C consegue registar (porque
B não registou – princípio do trato sucessivo) e vai poder opor o seu direito. Quando C
fizer o registo, o direito de propriedade passará a ser seu por força central do registo.

Caso prático nº 19

Suponha que numa determinada Conservatória de Registo Predial se encontram


registados relativamente a um imóvel, composto de um edifício destinado a habitação e
respectivo logradouro, os seguintes factos: (...) - aquisição por C, mediante contrato de
compra e venda celebrado por escritura pública, em 1960; - aquisição por D, em 1995,
por usucapião; - aquisição por E, em 2015, em virtude de contrato de doação celebrado
entre D e E por escrito particular; - usufruto constituído onerosamente por E a favor de F,
em 2018, formalmente válido; - uma acção judicial com vista à declaração da nulidade da
doação realizada a favor de E, intentada por D em 2019 (e registada no mesmo ano).
Tendo em conta os dados referidos, qualifique todos os fenómenos de aquisição de
direitos aqui em causa e diga que direitos incidem actualmente sobre o prédio em questão
e quais os respectivos titulares.

Considere-se F o terceiro, pois é o afetado por uma invalidade anterior. Neste


caso, a invalidade que afeta o terceiro é uma doação que não respeita a forma legal, nos
termis dos artigos 947º e 220º CC. Como se verificam todos os requisitos necessários à
38
aplicação do art.º 291º CC, recorre-se a este artigo. F adquire o direito de usufruto em
2018. A propriedade é a favor de D (pela nulidade de D-E) e o usufruto é a favor de F,
protegido pelo art.º 291º CC.

Qualificação dos fenómenos de aquisição dos efeitos que ocorreram:

 Compra e venda – aquisição derivada translativa.

 Usucapião – aquisição originaria de direitos.

 Doação – aquisição derivada translativa.

 Usufruto – aquisição derivada constitutiva.

Caso prático nº 20

Num dia de mar revolto, A foi pescar num pequeno barco para a barra de Viana do
Castelo. Perante o olhar impotente de alguns transeuntes, a embarcação voltou-se, foi
arrastada para o alto mar pela corrente, e nunca mais se viu A. Diga se um credor de
Braga, interessado na conservação dos bens de A para garantia de vultuosos créditos,
pode ser nomeado seu curador provisório nos termos dos artigos 89º e segs., e, sobretudo,
92º do Código Civil.

Os art.º 89º e ss. dispõem sobre o instituto da ausência na qual se integram a


curadoria definitiva, a curadoria provisória e a morte presumida. A necessidade da
administração de bens e o desconhecimento do paradeiro de alguém são dois
pressupostos que têm de estar verificados para que se faça uso do instituto da ausência.

No entanto, esta questão integra-se antes no desaparecimento (art.º 68º/3 CC) e


não na ausência. Dá-se o sujeito A por falecido. Considera-se, então, uma morte real,
que está prevista nos art.º 207º e 208º do Código de Registo Civil (não confundir com
morte presumida). Assim, não faz sentido que haja um curador. A lei não prevê uma
possibilidade de regresso nos termos do art.º 68º CC. Por esse motivo, a doutrina entende
que se aplica analogicamente o art.º 119º CC (art.º que prevê o regresso para o caso de
morte presumida).

As modalidades de ausência são independentes entre si, ou seja, verificados os


pressupostos de uma, pode avançar-se para a aplicação desta. A lei entende que quanto

39
mais tempo passa menor a possibilidade de regresso, assim, à medida que o tempo passa
aproximamo-nos dos efeitos da morte real. A morte tem um efeito principal que é o da
extinção da personalidade jurídica (art.º 68º/1 CC). Neste caso, com o instituto de morte
real, a personalidade jurídica de A cessa. Por fim, a herança de A responde pelas dívidas
do sujeito ao credor de Braga.

Caso prático nº 21

A e B, dois irmãos de 20 e 25 anos de idade, respectivamente, emigraram para o Brasil


em 1982. Na sua aldeia natal permaneceu um outro irmão C, o parente mais próximo e o
procurador de A e B. Em Janeiro de 2014 morreu C, deixando em testamento os seus bens
ao seu filho D e ao irmão A. Acontece que a partir de 2010 A não deu notícias, ignorando-
se o seu paradeiro. Quanto a B, desde 2003 nada se sabe. a) Como, quando e por quem
podem ser requeridas medidas para prover à administração dos bens de A e B? b) Supondo
que A regressou em 2018, provando que B falecera em 2015 que direito(s) lhe assiste(m)?

Para A, que não dá notícias desde 2010, pode ser requerida curadoria definitiva
(art.º 99º e ss. CC) a seu favor em 2015. Não há lugar a curadoria provisória (prevista nos
art.º 89º e ss. CC) porque até 2014 havia um procurador. A curadoria definitiva requer
5 anos desde as últimas notícias, no caso de não haver procurador. Note-se que são
requeridos 5 anos sem notícias e não 5 anos sem procurador. A morte presumida podia
ser decretada após 10 anos das últimas notícias, nos termos do art.º 114º do CC (morte
presumida em 2020, no caso de A). Quanto a B, a morte presumida poderia ser decretada
em 2013 e a curadoria definitiva em 2008.

No entanto, A regressa em 2018 e prova que B falece em 2015. Deste modo, a


curadoria definitiva cessa com o regresso de A (art.º 112º CC), verificando-se os efeitos
do art.º 113º CC. Relativamente a B, com a sua morte provada em 2015, é necessário
perceber qual a data do falecimento e é necessário perceber quais os efeitos sucessórios.
Nos termos do art.º 68º/1 CC há lugar à cessação da personalidade jurídica. Além disso,
a morte do ausente também tem como efeito a cessação da morte presumida. A morte
presumida (art.º 115º CC) tem os mesmos efeitos da morte real, salvando apenas o
casamento.

40
Caso prático nº 81

No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7.04.2022 (António Moreira), in


www.dgsi.pt, foram tidos em conta os seguintes factos dados como provados pela 1.ª
instância:

“1. A A., nascida a 20/3/1955, é filha de João C. e de Isabel V.

2. O R. nasceu em 3/1/1985, na freguesia de São Sebastião da Pedreira, concelho de


Lisboa, sendo filho de Martinho C. e Anabela M., e neto paterno de João C. e Isabel V.
(...)

4. Com 4 anos de idade, órfão de pai, Anabela M. saiu da casa onde residia com o filho e
mudou-se.

5. Não foi dado conhecimento à A. do local para onde o R. se mudava nem da nomeação
de representante ou procurador.

6. O R. solicitou a emissão do cartão de cidadão nacional, que foi emitido a 27/5/2004,


com data de validade a 27/6/2009, tendo indicado a seguinte morada estrangeira: 71 (…),
Estados Unidos da América.

7. A 14/9/2017 a A., através de advogado, remeteu uma carta ao R. dirigida à morada


referida em 6., que veio devolvida com a indicação “Not at this adress, Not Known” e
com o seguinte teor: 32 “Ex.mo Senhor. Os melhores cumprimentos, Tem a presente o
objecto de, em representação da minha constituinte Antónia M., dar o conhecimento o
seguinte: Por óbito da mãe da minha constituinte foi aberta a herança hereditária. Do
acervo hereditário é herdeiro entre outros o Senhor (...). Assim sendo e uma vez que os
restantes herdeiros estão de acordo em realizar a partilha, solicito que me informe qual é
a sua posição perante a partilha da herança indivisa por óbito de João C. e Isabel V..
Aguardo resposta breve”.

8. O paradeiro do R. é desconhecido na Direcção Geral dos Serviços Consulares, não


tendo localizada a sua inscrição na base de dados nacional da Segurança Social e das
Finanças.

9. A A. nunca foi contactada pelo R. e desconhece o seu paradeiro, não tendo mais notícias
do mesmo”.

41
Aprecie criticamente os factos transcritos tendo em conta que a pretensão de A., de ser
declarada a morte presumida do R., foi negada pela 1ª instância com fundamento na não
verificação dos requisitos legais (nomeadamente temporais) para o efeito.

Em resumo: João é casado com Isabel. O casal teve 2 filhos, a autora e Martinho.
Este último casou-se com Anabela M. e tiveram um filho, o réu. João, Isabel e Martinho
falecem. A autora e o réu são ambos herdeiros das heranças em questão.

A autora tem legitimidade para requerer medidas, segundo o art.º 100º CC ex vi


do art.º 114º/1 CC. As últimas notícias do réu datam de 27 de maio de 2004. O Tribunal
da Relação tem razão pois estavam previstos todos os pressupostos em 2014, quando se
completam 10 anos desde a data das últimas notícias. A partir desse ano, assume-se a
morte presumida que tem os mesmos efeitos da morte real, excetuando a dissolução do
casamento.

NOTA: Direito de acrescer – instituto subsidiário; aplicando a este caso, a autora tem o
direito de ficar com a parte da herança que se destinaria ao réu, já que se presume a morte
deste.

Caso prático nº 22

F, grávida de 4 meses, é atropelada por G ao atravessar a rua com toda a atenção, numa
passadeira para peões. Conduzida de imediato ao hospital, é submetida a uma intervenção
cirúrgica de urgência. Supondo que o filho de F veio a nascer com uma grave deformação
física em resultado de traumatismos sofridos devido ao acidente, diga se existe
responsabilidade civil de G e, em caso afirmativo, quem tem direito a indemnização e
quais os danos indemnizáveis. Poderá F accionar judicialmente o hospital, pedindo uma
indemnização pelo facto de ter sido operada sem o seu consentimento?

Há lugar à responsabilidade civil extracontratual de G, uma vez que está em


causa um direito de personalidade que é um direito absoluto. A responsabilidade civil
extracontratual está prevista no art.º 483º CC e os pressupostos são: facto humano
voluntário, nexo de causalidade entre o facto e o dano, a culpa, ilicitude. Quanto à culpa,
neste caso, presume-se que será negligente. F tem direito à indemnização, uma vez que
é lesada e a sua integridade física foi violada. F sofre de danos morais e patrimoniais. Os
danos morais nem sempre são compensáveis, sendo apenas compensáveis aqueles que

42
pela sua gravidade merecem tutela, nos termos do art.º 496º CC. Neste caso, merecem
tutela (art.º 496º/1 CC). É de notar que constitui um dano de F ter tido um filho com
deformação devido ao acidente que sofreu.

Quanto ao filho, este considera-se nasciturno, porque já houve concessão, mas


não houve nascimento completo e com vida, sendo este relevante porque marca o início
da personalidade jurídica. Esta é inadiável (assim que há pessoa, há personalidade) e a
lei entendeu que é neste momento que se deve fixar: no nascimento completo e com vida.
O filho de F nasceu com lesões, mas deu-se o nascimento. Nascendo, já poderia ter direito
a indemnização, nos termos do art.º 66º/2 CC. A contrario, caso não tivesse chegado a
nascer com vida, haveria certeza de que o filho não teria direito a indemnização, porque
de um ponto de vista positivista, não havendo nascimento, não há personalidade jurídica.

Acrescente-se que, parte da doutrina, sobretudo a escola de lisboa, defende uma


outra perspetiva que diz que o nasciturno já tem personalidade jurídica. Segundo esta
perspetiva, o art.º 66º/1 CC não se refere a personalidade, mas a capacidade jurídica.
Deste ponto de vista, a capacidade é que se adquire com nascimento completo e com vida.

Voltando ao caso concreto, não há dúvidas que o feto tem direito a indemnização
uma vez que há personalidade jurídica após o seu nascimento completo e com vida. Há
danos patrimoniais e morais compensáveis, nos termos do art.º 496º CC.

Defensores da existência de personalidade jurídica do nasciturno: Carneiro da Frada,


Diogo Leite Campos, Maria Clara Sottomayor, Mário Bigodes Chorão, Menezes
Cordeiro, Oliveira Ascensão, Paulo Otero e Pedro Pais Vasconcelos.

Defensores da existência de personalidade jurídica apenas com o nascimento completo e


com vida (doutrina maioritária): Cabral de Moncada, Carlos Mota Pinto, Carlos
Fernandes, Castro Mendes, Dias Marques, Diogo Lorena de Brito, Horster, Inocêncio
Galvão Telles, Cura Mariano, Pires Lima, Antunes Varela, Rita Lobo Xavier, Raquel
Guimarães.

Caso prático nº 24

Ao chegar a casa do seu amigo A, B depara com a porta da entrada aberta e com um
bilhete colado numa parede dizendo “Não me salves!”, compreendendo então que A

43
decidira cometer suicídio. Com efeito, A encontrava-se dentro da banheira esvaído em
sangue mas ainda com vida. Deverá B tentar salvar A?

Estava em causa o direito à vida de A, sendo este um direito absoluto, mais


precisamente, um direito de personalidade. Os direitos absolutos são oponíveis erga
omnes. Assim, o lado passivo tem uma obrigação passiva, de não interferência, de não
atentar contra o direito de personalidade de outrem. No âmbito do direito a vida, para
além disso, há também um dever de auxílio, o que fundamentava a necessidade e o dever
jurídico de B salvar A. A vida tem-se como um direito indisponível (não é passível de
limitação; nem todos os direitos de personalidade o são; ex.: a integridade física. Quando
se corta o cabelo, de certo modo, abdica-se do direito à integridade física) e é
irrenunciável (tal como todos os direitos de personalidade). Assim, B deve tentar salvar
A.

Além disto, quando A pede para não ser salvo, não se poder interpretar o seu
pedido como um consentimento válido, primeiramente, pelo facto de a vida não é um
direito que possa ser limitado. A ao escrever o bilhete não estava a consentir ser salvo,
aliás, estava precisamente a negar ser salvo. Porém, só é possível o consentimento na
limitação de direitos de personalidade que são disponíveis, que não é o caso do direito
à vida. A somar a isto, é necessário ter em conta que o consentimento tem como limite
a ordem pública (princípios jurídicos vigentes no nosso ordenamento, nomeadamente
no Direito Constitucional) e os bons costumes ou proibição legal (art.º 340/2º e 280º
CC). O consentimento deste tipo violaria a ordem pública. B tem o dever jurídico de
salvar A, já que o bilhete não tem qualquer valor. Aliás, B ao não salvar A comete um
ato ilícito.

Na hipótese de não se verificar o salvamento ou a tentativa, haveria lugar a


responsabilidade civil extraobrigacional, pois está em causa um direito absoluto, mais
precisamente, um direito de personalidade, o direito à vida. Está a imputar-se uma
responsabilidade por omissão. Assim, nos termos do art.º 486º CC, só há lugar a
responsabilidade civil por omissão se a lei impuser o dever de agir e, neste caso, haveria,
de facto, o dever de agir. Em conjugação com este último artigo mencionado pode ser
ainda invocada a doutrina dos deveres do tráfego. Segundo esta, se alguém cria um perigo,
está obrigado a removê-lo, porque se não o fizer e causar com isso danos, responderá por
essa omissão.

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Caso prático nº 25

E pretende acionar a “Phonemarketing Norte, S.A.”, empresa que se dedica à realização


de campanhas publicitárias através de telefone, exigindo-lhe o pagamento da quantia de
vinte mil euros por danos sofridos, com o argumento de que o seu descanso tem vindo a
ser perturbado há já mais de nove meses com várias chamadas telefónicas diárias para o
telefone de sua casa, no período compreendido entre as 20.30h e as 22.30h, com vista à
publicitação de serviços de comunicações e bancários. E tem uma actividade profissional
muito intensa e sente-se perturbado por nunca conseguir relaxar ao fim de um dia de
trabalho. Apesar de ter alterado o seu número de telefone fixo e, durante algum tempo, as
chamadas pararem, logo foram reatadas para o seu novo número, não obstante os
constantes protestos de E. Por outro lado, E não quer abdicar do seu telefone de rede fixa
uma vez que com ele vivem os seus pais, já de idade avançada, para quem este é o único
meio de telecomunicação que sabem utilizar. Perante os factos apresentados, diga se E
será bem sucedido na sua pretensão e, em caso afirmativo, em que termos será a ré
chamada a responder pelos danos causados.

Nos termos do art.º 13º/a da Lei 41/2004, é necessário consentimento prévio e


expresso no caso de pessoa singular para o envio de comunicações de marketing. Esta
norma consagra o princípio da autonomia da publicidade. Assim, sem consentimento
a empresa não poderia perturbar E.

É de notar que este ato viola direitos de personalidade, como o direito à reserva
da vida privada (está-se a perturbar a esfera privada do E com as chamadas sucessivas).
Viola-se o direito à solidão e ainda, o direito à integridade física e psíquica, já que as
chamadas consecutivas da empresa não permitem que E descanse devidamente. Está
também em causa ainda o direito à proteção de dados, cujo tratamento tem de ter um
fundamento de licitude. O RGPD prevê vários fundamentos, como o consentimento (art.º
6º/a e o art.º 9º/2 para dados sensíveis), que aqui não ocorreu.

Assim, conclui-se que o ato praticado pela empresa constitui um ato ilícito. A ré
responde por responsabilidade civil extraobrigacional (art.º 483º CC), verificados
todos os pressupostos para tal: há um facto ilícito, há culpa dolosa (poderia ser
negligente), há nexo de causalidade e há dano. Os danos morais, neste caso, são
compensáveis, nos termos do art.º 496º CC. A pessoa coletiva responde enquanto
comitente pelos atos dos seus comissários (art.º 500º CC). Segundo o art.º 500º CC, quem

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encarrega outro de uma comissão é apelidado de comitente. Este último responde pelos
danos do comissário independentemente de culpa (responsabilidade objetiva), desde que
sobre o comissário também recaia a obrigação de indemnizar. Quem responde em
primeira linha é o comitente e depois se condenado a indemnizar, vai ter direito de
regresso sobre o comissário.

Caso prático nº 26

Na sua edição de 3/5/09, uma revista espanhola publicou um escrito onde se podia ler:
“Os irmãos A e B passam droga através da fronteira portuguesa. Uma vez foram
surpreendidos a assaltar uma joalharia. Um deles fugiu para o Brasil e, no seu regresso, a
polícia deteve-o num hotel de Vigo, mas o outro, B, nunca o apanharam e vive agora em
Portugal, onde continua o seu tráfico ilegal, em estreito contacto com o fadista português
C, que é ele mesmo um capo da droga em Portugal”. Em 16/5/09, D, agência noticiosa,
enviou às redacções dos principais orgãos de comunicação social portugueses um
telegrama de cujo teor constava: “A revista espanhola cita ainda outros portugueses
implicados na rede de tráfico de droga, entre eles, o fadista C, o qual é classificado pela
fonte citada pela revista como um dos cabecilhas da droga em Portugal”. Assim, alguns
orgãos de comunicação social portugueses deram grande relevo à matéria constante do
telegrama, com títulos de primeira página e caixa alta ou com transcrições repetidas. C,
de cujo certificado de registo criminal nada consta, viu cancelados vários espectáculos,
após a divulgação do telegrama, e deixou de auferir uma quantia não inferior a esc.
100.400 euros. C sente-se lesado e pretende reagir. Quid iuris? (Cfr. Acórdão da Relação
de Lisboa (secção cível) de 22.01.1998, CJ, I, 1998, pp. 83-87).

Estão em causa direitos de personalidade, nomeadamente, o direito ao bom


nome, que se enquadra na esfera do direito à honra. Também está em causa o direito à
verdade pessoal, que só está em causa quando são revelados factos falsos. No direito à
honra não importa se o facto é falso ou verdadeiro, ou seja, neste direito não vigora a
exceptio veritatis.

Hoje entende-se que um caso como estes não é um caso de colisão de direitos (art.º
335º CC), apesar de, anteriormente, se resolver desse modo. Hoje, a jurisprudência
entende que a resolução do problema está a montante. Haveria colisão de direitos se A e
B tivessem ambos direitos e esses colidissem e, nesse caso, tem de se chegar a uma

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solução prática para conjugar os dois. Hoje entende-se que se um sujeito A tem direito à
honra, então um sujeito B não tem liberdade de expressão e vice-versa. As pretensões
limitam-se reciprocamente, segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos
do Homem. Entre o direito à honra e a liberdade de expressão tem prevalecido a liberdade
de expressão.

Se C quisesse reagir iria alegar a violação dos seus direitos de personalidade,


fundamentando a pretensão com base na responsabilidade civil extraobrigacional (art.º
483º CC) por estarem em causa direitos absolutos. Se se estivesse a defender a revista,
invocava-se a liberdade de expressão na perspetiva de este direito se sobrepor ao direito
à honra. A favor de C e de modo a tentar rebater o argumento da liberdade de expressão
que poderia eventualmente ser invocado pela revista, pode ainda entender-se que esta
notícia não cabe na liberdade de expressão. Além da possível responsabilidade civil, C
poderia ainda pedir providências do art.º 70º/2 CC (o art.º 70º CC tutela a personalidade
de forma ampla). Como exemplos destas providências tem-se: retratação (retirada da
notícia e publicamente explicar que ela era incorreta); um pedido público de desculpas,
associado à retratação.

Caso prático nº 27

A, doente renal crónico, contratou com o seu irmão B – que se encontrava em má situação
económica – a cedência de um rim deste para lhe ser transplantado, entregando-lhe, como
contrapartida, a quantia de 50.000 euros. Na véspera do dia marcado para a operação, B,
após ter recebido o dinheiro e gasto parte dele, arrependeu-se e comunicou a A que não
consentiria na extracção. Em face da atitude do seu irmão, A pretende agir judicialmente
contra este, requerendo, nomeadamente, a condenação de B numa sanção pecuniária
compulsória com vista a obrigá-lo a cumprir o contrato. Quid juris?

Este contrato pode ser qualificado como uma compra e venda, já que se reúnem
todos os elementos essenciais, sendo, no entanto, uma compra e venda nula, dado que o
objeto do contrato (o rim) é uma coisa fora do comércio, nos termos do art.º 202º/2 CC
e do art.º 5º da lei 12/93 que consagra o princípio da gratuitidade. Assim, como já dito,
este contrato seria nulo, nos termos do art.º 280º CC, por ser contrário à ordem pública,
dado que o objeto do contrato é legalmente impossível. Esta compra e venda é contrária
à ordem pública pois viola um princípio jurídico do nosso ordenamento, o da

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gratuitidade. Também segundo o art.º 294º CC, os negócios realizados contra a lei são
nulos.

A nulidade, consagrada no art.º 286º CC, é invocável a todo o tempo, por


qualquer interessado e pode ser declarada ex officio. Se o Tribunal declara a nulidade,
os efeitos encontram-se no art.º 289º CC (restitui-se tudo o que foi prestado, há efeito
retroativo). O negócio nasce nulo e não produz quaisquer efeitos jurídicos, ao contrário
da anulabilidade que inicialmente produz efeitos jurídicos (que podem vir a ser anulados).

Por força deste contrato, B vai ceder o rim ao irmão A, logo, este é um
consentimento que visa a limitação de direitos de personalidade, neste caso, o direito
à integridade física. Foi prestado um consentimento vinculante (por via negocial, A e B
vincularam-se a esta prestação jurídica). Neste caso, dado que o rim não pode ser objeto
do contrato, então o consentimento é nulo. No entanto, o consentimento não seria nulo
se fosse prestado fora do contrato. Deveria, pois, havido um consentimento autorizante
(só atribui um poder fático de agressão). Neste tipo de consentimento, B prestaria um
consentimento autorizante e A prestaria um consentimento tolerante (porque não
atribui um poder de mera agressão, mas abdicaria da sua integridade física em seu
benefício).

Na hipótese de se verificarem consentimentos autorizante e vinculante, nesse caso,


seria válido. O direito de personalidade da integridade física é disponível, nesta
situação, desde logo, porque se trata de uma lesão grave e irreversível quanto a B, mas é
realizada com uma motivação justificável (salvar A). Se não houvesse motivação, o
consentimento já não seria válido, mas seria contrário à ordem pública.

O consentimento num caso como estes, consagrado no art.º 8º da lei 12/93, tem
de ser prestado por escrito e, no caso do rim, sendo este um órgão não regenerável, deve
haver parecer de entidade competente. É ainda necessário que o médico que autoriza
o transplante seja diferente daquele que vai realizar o transplante.

O arrependimento de B é legítimo devido à revogabilidade do consentimento


(art.º 81º/2 CC e art.º 8º/6 da lei 12/93). O art.º 81º CC declara que apesar da
revogabilidade deve haver lugar a indemnização e, portanto, quando muito B poderia ter
de indemnizar as legítimas expectativas da contraparte (ex.: Para a realização do
transplante, que seria feito no estrangeiro, A faz uma viagem. No caso de haver
revogação, B poderia ter de indemnizar A pelos custos que teve com a viagem). Não se

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deve alargar muito a esfera da indemnização, nestes casos, sob pena de se estar a dificultar
ou impossibilitar a revogação.

Para concluir, A não teria razão na pretensão porque o contrato não era válido
e, mesmo sendo válido, à lugar à livre revogação, não havendo sanção pecuniária
compulsória.

NOTA: Art.º 340º CC – quanto ao consentimento; se o consentimento for válido, um ato


realizado o abrigo do consentimento, é lícito (só para direitos disponíveis).

Caso prático nº 29

Há alguns anos foi introduzido na televisão portuguesa um concurso com grandes


audiências no qual os vários concorrentes se obrigam a viver numa mesma casa, sem
qualquer contacto com o mundo exterior e durante um determinado período de tempo,
sendo todas as suas atividades filmadas e transmitidas, quer através da televisão, quer
através da Internet, durante as 24 horas do dia. Dos contratos assinados pelos referidos
concorrentes e pela cadeia televisiva promotora constavam, nomeadamente, as seguintes
cláusulas: - “O concorrente dá a sua expressa, incondicional e irrevogável autorização
para a transmissão e quaisquer outras publicações ou reproduções [...] de todos os seus
registos [da estadia na casa]; - O concorrente tem conhecimento e autoriza que detalhes
pessoais e outras informações adicionais, incluindo imagens em directo da casa, estejam
à disponibilidade do público 24 horas por dia na Internet”. Comente as cláusulas
transcritas à luz do Direito Civil vigente.

Nesta situação, há direitos de personalidade a serem limitados, tais como o


direito à imagem (pois estava-se a autorizar a transmissão e a filmagem), o direito à
reserva da vida privada (porque estavam a ser filmados 24h por dia, sendo as imagens
transmitidas para o público), o direito à palavra (porque estavam a ser captadas conversas
quotidianas), o direito à proteção de dados pessoais (já que autorizam o processamento
de dados pessoais, inclusive dados sensíveis), o direito à liberdade de circulação (pelo
facto de ficarem fechados na casa), o direito à honra (neste caso, a honra propriamente
dita porque, com a captação das imagens do quotidiano, eles estão a expor a sua vida de
forma a poder afetar a sua reputação e bom nome social) e o decoro.

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Este consentimento é do tipo vinculante, pois foi num âmbito de contrato. Este
é um contrato de adesão, pois foi prévia e unilateralmente fixado e a contraparte não
pode negociar o conteúdo do mesmo. O consentimento é livremente revogável (art.º
81º/2 CC), por isso, a cláusula que impõe a irrevogabilidade não é valida (o consentimento
que limita direitos de personalidade é sempre livremente revogável). Apenas esta cláusula
não seria válida, podendo considerar válido o resto do contrato.

Se se quisesse argumentar que todo contrato é inválido: podia dizer-se que o direito à
honra é indisponível. É uma limitação tão intensa e violenta que quase já se poderia dizer
que se cai na renúncia dos direitos e não numa mera limitação. Ora, estes direitos são
irrenunciáveis, portanto, não seria lícito o consentimento. Mais violento se torna, pois, os
direitos são limitados através de contrato de adesão, o qual não é negociável (ou se aceita
na totalidade ou se rejeita na totalidade).

O ato que agride o direito de personalidade ao abrigo do consentimento é um


ato lícito (art.º 340 CC). Se se concluir que o consentimento não é legal, aí o ato já será
ilícito. No caso de o consentimento ser válido, este é livremente revogável e pode dar
lugar a indemnização por forjar as legítimas expectativas da contraparte (art.º 81º/2
CC).

Entende o Professor Oliveira Ascensão que, para haver revogação do


consentimento, tem de haver um fundamento ético (razão que seja atinente à pessoa que
o revogou).

O Professor Pedro Pais Vasconcelos critica a tripartição estudada sobre o


consentimento porque entende que não deve ser adotada esta perspetiva de mercantilizar
os direitos de personalidade (critica principalmente o consentimento vinculante).

NOTA:

→ Vasconcelos, Pedro Pais de, Direito de Personalidade, Coimbra, Almedina, 2017,


pp. 155 e ss.;
→ Ascensão, José Oliveira, Direito civil – Teoria geral, Introdução, as pessoas e os
bens, I, 2ª edição, Coimbra, Coimbra editora, 2000, p. 99.

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Caso prático nº 40

C, com 17 anos de idade, comprou uma mota Harley Davidson por €40.000, gastando
todo o dinheiro que a sua avó lhe havia deixado em testamento, e escondeu-a na garagem
de um amigo até ao dia em que completou 18 anos, por saber que os seus pais jamais
concordariam com a compra. No dia 3 de junho de 2018, dia do seu aniversário, C
apareceu em casa com a sua mota nova, informando os pais tratar-se de uma prenda que
decidiu oferecer antecipadamente a si próprio. Tendo os pais ameaçado retirar-lhe a
mesada se este não devolvesse a mota, C pretende reagir contra o negócio. Poderá a sua
pretensão ser atendida?

O negócio em causa é uma compra e venda de um bem móvel, sujeita ao regime


do art.º 874 e ss. CC, ou seja, vai ter como efeitos a transmissão da propriedade da coisa
por mero efeito do contrato, a obrigação da entrega da coisa e a obrigação de pagar o
preço.

Nesta compra e venda uma das partes era incapaz pois era menor, nos termos
do art.º 122º CC. A menoridade traduz-se numa incapacidade de exercício (art.º 123º
CC) e esta incapacidade supre-se através da representação legal. No caso da menoridade
os representantes legais, serão, à partida, os pais ou, subsidiariamente, um tutor, ou seja,
aqueles que exercem as responsabilidades parentais (art.º 124º CC). Há exceções acerca
da incapacidade na menoridade (consagradas no art.º 127º CC). No entanto, este caso não
cabe nestas exceções e, portanto, o negócio seria anulável, nos termos do art.º 125º CC.
Segundo este último artigo, os pais não teriam legitimidade para arguir a anulabilidade,
porque C, entretanto, atinge a maioridade. A alínea b do nº 1 dita a legitimidade de C, que
tem até 2 de junho de 2019 para arguir a anulabilidade (1 ano após atingir a maioridade).
Assim, sim, a pretensão pode ser atendida. Se quisesse, por outro lado manter a mota,
poderia confirmar o negócio segundo os artigos 125º/2 e 288º CC, sanando-se a
anulabilidade.

NOTA: é de extrema importância ter em conta a ressalva feita no art.º 125º/1 ao art.º 287º
CC.

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Caso prático nº 63

A, nascido em 1956, sofre de uma condição neurológica que, além de outras


manifestações, lhe afeta gravemente a memória e a perceção da realidade. Por alturas do
Natal, encontrando-se perdido num centro comercial, dirigiu-se ao supermercado onde
adquiriu duas garrafas de bebidas alcoólicas por 120 euros, tendo ainda comprado um
ingresso para o cinema, por 6 euros, feito um donativo de 60 euros numa máquina ATM
para uma campanha solidária e doado o seu relógio a um segurança do centro que o ajudou
a encontrar transporte de regresso a casa. O relógio tinha um valor comercial de 5000
euros. B, mulher de A, ao tomar conhecimento dos atos praticados por este pretende
invalidá-los. Poderá fazê-lo?

Nesta situação, há lugar a uma compra e venda (a compra das garrafas de bebidas
alcoólicas), uma prestação de serviço (a compra do bilhete do cinema) e duas doações
(donativo na máquina de ATM e a doação do relógio).

Supondo que se é advogado de A, aconselha-se o acompanhamento (art.º 138º


CC). Quanto ao acompanhamento, vigora o princípio de subsidiariedade – só há lugar
ao acompanhamento se os deveres gerais de assistência (que decorrem do casamento, por
exemplo) não forem suficientes. Nos termos do art.º 141º CC, a esposa tem legitimidade
para requerer as medidas, mas tem de haver autorização por parte de A. Se A não der
consentimento, a falta de autorização pode supri-la o Tribunal (art.º 141º/2 CC). No
entanto, o acompanhamento só evitaria problemas futuros. Segundo o art.º 154º CC, são
anuláveis os atos posteriores ao registo do acompanhamento e os atos praticados depois
de anunciado o início do processo, mas apenas após a decisão final se mostrem
prejudiciais ao acompanhado.

Paulo Mota Pinto Mafalda Miranda Barbosa, dizem que a prejudicialidade do ato
se afere na data de celebração (para o negócio ser anulável tem de ser prejudicial na data
em que foi celebrado, para proteger a contraparte), sendo que as doações são sempre
consideradas prejudiciais. Neste caso, os atos foram anteriores ao início do processo e,
segundo o art.º 154/3 CC é aplicável o regime da incapacidade acidental (art.º 257º CC).
Os atos só são anuláveis se alguém estiver acidentalmente incapacitado de entender o
sentido da declaração negocial ou não tinha o livre exercício da sua vontade desde que
este facto seja notório (se uma pessoa com normal diligência se tivesse apercebido dele)
ou conhecido da contraparte. Assim, a incapacidade apenas se pode aplicar à doação do

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relógio e não à doação feita por ATM já que, nesta última doação não há uma contraparte
que conheça ou possa identificar a incapacidade do autor.

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