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CONTEÚDO

Prefácio, 5

1. DUAS VISÕES DA ETERNIDADE DIVINA, 8


I. A Natureza do Tempo
II. Os dados bíblicos sobre a eternidade divina
III. A importância de articular uma teoria da eternidade divina

2. ATEMPORALIDADE DIVINA, 23
I. Simplicidade e Imutabilidade Divinas
II. Teoria da Relatividade
III. A incompletude da vida temporal

3. TEMPORALIDADE DIVINA, 69
I. A impossibilidade da personalidade atemporal
II. Relações Divinas com o Mundo
III. Conhecimento Divino de Fatos Temporais

4. A CONCEPÇÃO DINÂMICA DO TEMPO, 105


I. Argumentos para uma concepção dinâmica
1. A ineliminabilidade do tempo verbal
2. Nossa experiência de Tempo
II. Argumentos contra uma concepção dinâmica
1. Paradoxo de McTaggart
2. O Mito da Passagem

5. A CONCEPÇÃO ESTÁTICA DO TEMPO, 155


I. Argumentos para uma concepção estática
1. Teoria da Relatividade
2. A dependência mental do vir-a-ser
II. Argumentos contra uma concepção estática
1. Tempo “espacializando”
2. A Ilusão do Devir
3. O problema da mudança intrínseca
4. Criatio ex Nihilo

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6. DEUS, TEMPO E CRIAÇÃO, 204
I. O tempo começou?
1. Argumentos para a infinidade do passado
2. Argumentos para a Finitude do Passado
II. Deus e o começo dos tempos
1. Tempo Amorfo
2. Atemporalidade sem Criação

7. CONCLUSÃO, 225

APÊNDICE: Eternidade Divina e o Conhecimento de Deus sobre o Futuro,


229

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PREFÁCIO

OS FRANCÊS TÊM um nome impressionante para Deus, que, na Bíblia


francesa, muitas vezes substitui nossa palavra “Senhor”: l’Eternel – o Eterno,
ou o Eterno. Por exemplo, o Salmo 106:48 diz:

Bendito seja o Eterno, o Deus de Israel,


De eternidade em eternidade!
Que todo o povo diga: “Amém!”
Louvado seja o Eterno!

Para os cristãos de língua francesa, o nome l'Eternel serve como um lembrete


constante da centralidade do atributo divino da eternidade. Tornou-se o pró-
prio nome de Deus.
O presente livro foi escrito para cristãos que desejam lidar seriamente com
o conceito da eternidade de Deus. Ao contrário de alguns outros escritores
sobre os atributos de Deus, estou convencido de que a melhor ferramenta que
temos para realmente entender o que significa a afirmação de que Deus é
eterno não é poesia ou piedade, mas filosofia analítica.
Alguns leitores de meu estudo sobre a onisciência divina, The Only Wise
God, expressaram surpresa com minha observação de que alguém que deseja
aprender mais sobre o atributo de onisciência de Deus seria melhor aconse-
lhado a ler as obras de filósofos cristãos do que de teólogos cristãos. 1 Não
apenas essa observação era verdadeira, mas o mesmo vale para a eternidade
divina. Na Idade Média, os estudantes não tinham permissão para estudar teo-
logia até que tivessem dominado todas as outras disciplinas da universidade,
mas, infelizmente, os teólogos de hoje geralmente não têm quase nenhum
treinamento em filosofia e ciência e, portanto, estão mal equipados para abor-
dar de maneira substantiva a questão. questões complexas levantadas pela
eternidade de Deus.
Como veremos, a eternidade divina provavelmente não pode ser adequa-
damente compreendida sem uma exploração da natureza do próprio tempo -
uma perspectiva assustadora! Pois além da ideia de Deus, não conheço ne-
nhum conceito tão profundo e desconcertante quanto o do tempo. Tentar uma

1. William Lane Craig, The Only Wise God (Grand Rapids, Mich.: Baker, 1987; rep. ed.: Eugene,
Ore.: Wipf & Stock, 2000), 11.
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integração desses dois conceitos, portanto, estende nossas mentes até os limi-
tes de nossa compreensão. Mas tal exercício será saudável para nós, tornando-
nos pessoas mais ponderadas e aprofundando nosso temor e adoração a Deus,
o Eterno.
Tentei evitar o jargão especializado e definir claramente conceitos que po-
dem ser desconhecidos para a maioria dos leitores. No entanto, não tenho ilu-
sões de que este livro será acessível a qualquer leitor interessado. Ao escrever
O Único Deus Sábio, descobri que alguns conceitos são tão difíceis que a ten-
tativa de simplificar só pode ir tão longe e que algumas coisas sempre perma-
necerão difíceis de entender. Por exemplo, por mais que se tente, é simples-
mente impossível tornar a Teoria Especial da Relatividade, tão central nas
discussões sobre o tempo, fácil de entender. Mas tentei expor as questões da
maneira mais clara e simples possível, sem sacrificar a precisão.
O presente trabalho é uma popularização de quatro trabalhos acadêmicos
que são eles próprios o produto de mais de uma dúzia de anos de estudo do
problema de Deus e do tempo. Um eminente filósofo observou que “o pro-
blema do tempo” é virtualmente incomparável “na medida em que inexora-
velmente põe em jogo todas as principais preocupações da filosofia”.2 Com-
bine o problema do tempo com “o problema de Deus”, como requer o estudo
da eternidade divina, e você terá um assunto que esgotaria uma vida inteira de
estudo. Os leitores interessados em explorar mais profundamente a natureza
do tempo podem consultar meus livros complementares The Tensed Theory of
Time: A Critical Examination e The Tenseless Theory of Time: A Critical
Examination, ambos parte da série Synthèse Library publicada pela Kluwer
Academic Publishers of Os Países Baixos. Aqueles que desejam uma explo-
ração mais profunda da Teoria da Relatividade de uma perspectiva teísta po-
dem consultar meu Time and the Metaphysics of Relativity, também disponí-
vel em Kluwer. Finalmente, minha exposição mais completa da eternidade
divina à luz das conclusões dessas outras obras pode ser encontrada em God,
Time, and Eternity, publicado também por Kluwer.
Sou grato a Deus pela oportunidade, disponível para tão poucos, de ter in-
vestido tanto estudo no esforço de resolver a eternidade divina. E sou grato a
minha esposa, Jan, por seu apoio incansável e assistência prática na execução
deste projeto.

William Lane Craig


Atlanta, Georgia

2 Wilfrid Sellars, “Time and the World Order,” Minnesota Studies in the Philosophy of Science 8
(1962): 527.

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DUAS VISÕES DA ETERNIDADE DIVINA

I. A Natureza do Tempo

O tempo, já foi dito, é o que impede que tudo aconteça ao mesmo tempo.3
Quando você pensa sobre isso, esta definição é provavelmente tão boa quanto
qualquer outra. Pois é notoriamente difícil fornecer qualquer análise do tempo
que não esteja na circular final. Se dissermos, por exemplo, que o tempo é a
duração, então queremos saber o que é a duração. E a duração acaba por ser
algum intervalo de tempo. Então o tempo é um intervalo de tempo – não mui-
to esclarecedor! Ou se dissermos que o tempo é uma dimensão do mundo, cu-
jos pontos ou habitantes são ordenados pelas relações anteriores e posteriores
a, podemos pedir uma análise dessas relações de modo a distingui-las, por
exemplo, de relações semelhantes. relações como atrás e na frente ou menor
que é maior que, apenas para descobrir que antes e depois, sob pena de circu-
laridade, são geralmente considerados termos primitivos ou não analisáveis.
Talvez possamos definir antes e depois em termos das noções de passado,
presente e futuro; mas então esta tríade é de caráter irredutivelmente tempo-
ral. Mesmo que consigamos definir passado e futuro em relação ao presente,
o que é o presente senão o tempo que existe (onde “existe” está no presente)?
Ainda assim, não surpreende que o tempo não possa ser analisado em ter-
mos de conceitos não temporais, e as análises apresentadas não carecem de
mérito, pois servem para destacar algumas das características essenciais do
tempo. Por exemplo, a maioria dos filósofos do tempo concordaria que as re-
lações anteriores/posteriores são essenciais para o tempo. É verdade que, em
certas teorias físicas de alto nível, às vezes se fala em “tempo imaginário” ou
“tempo físico quântico”, que não são ordenados por essas relações; mas seria
muito menos enganoso simplesmente negar que as estruturas geométricas
postuladas pelas teorias relevantes realmente são tempo. Alguns filósofos do

3 Eu vi essa definição pela primeira vez em um livro de piadas. Mas descobri mais tarde que o
eminente físico John Wheeler, em uma carta pessoal ao cosmólogo russo Igor Novikov, havia pro-
posto exatamente a mesma definição de sua análise estudada do que é o tempo! (Igor D. Novikov,
The River of Time [Cambridge: Cambridge University Press, 1998], 199).
8
tempo que negam que o passado e o futuro sejam reais ou existentes também
negaram que eventos ou coisas estejam relacionados entre si como anteriores
ou posteriores; mas tais pensadores afirmam a realidade do presente como
uma característica irredutível do tempo. Essas características do tempo são
comuns à nossa experiência como seres temporais, mesmo que, em última
análise, não possam ser analisadas.
O tempo, então, por mais misterioso que seja, permanece “o estranho fa-
miliar”.4 Esta é a importância do famoso aviso de Santo Agostinho: “O que,
então, é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; mas se eu quiser explicá-
lo a alguém que pergunte, eu não sei”.5

2. Os dados bíblicos sobre a eternidade divina

A questão diante de nós diz respeito à relação de Deus com o tempo. A Bíblia
ensina claramente que Deus é eterno. Isaías proclama Deus como “o Alto e o
Sublime que habita na eternidade” (Isaías 57:15). Em contraste com as divin-
dades pagãs dos vizinhos de Israel, o Senhor nunca veio à existência nem
deixará de existir. Como o Criador do universo, Ele estava lá no começo e es-
tará lá no fim. “Eu, o Senhor, o primeiro e com o último; eu sou ele” (Isaías
41:4). O escritor do Novo Testamento aos Hebreus resumiu magnificamente o
ensino do Antigo Testamento sobre a eternidade de Deus:

“Tu, Senhor, no princípio fundaste a terra,


e os céus são obra das tuas mãos;
eles perecerão, mas tu permaneces;
todos eles envelhecerão como um vestido,
como um manto os enrolarás,
e eles serão mudados.
Mas tu és o mesmo,
e os teus anos não acabarão” (Hb 1:10-12).

Minimamente, então, pode-se dizer que o fato de Deus ser eterno significa
que Deus existe sem começo nem fim. Ele nunca entra ou sai da existência;
ao contrário, sua existência é permanente.6 Tal relato minimalista da eternida-
de divina é incontroverso.

4 Uma expressão empregada por J. T. Fraser, Time: The Familiar Stranger (Amherst: University
of Massachusetts Press, 1987).
5 Agostinho, Confissões 11.14.
6 Para uma análise do que significa ser permanente, veja Brian Leftow, Time and Eternity, Cornell
Studies in the Philosophy of Religion (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1991), 133; cf.
Quentin Smith, “Uma Nova Tipologia de Permanência Temporal e Atemporal,” Noûs 23 (1989):
307-330. De acordo com Leftow, uma entidade é permanente se e somente se existir e não tiver
primeiro ou último período finito de existência, e não houver momentos antes ou depois de existir.
9
Mas aí termina o acordo. Pois a questão é a natureza da eternidade divina.
Especificamente, Deus é temporal ou atemporal? Deus é temporal se e so-
mente se Ele existe no tempo, isto é, se e somente se Sua vida tem fases que
se relacionam entre si como anteriores e posteriores. Nesse caso, Deus, como
um ser pessoal, tem experiencialmente um passado, um presente e um futuro.
Dada a Sua existência permanente, sem começo e sem fim, Deus deve ser
onitemporal; isto é, Ele existe em cada momento do tempo que existe. Não
quero dizer que Ele existe a todo momento ao mesmo tempo, o que é uma
afirmação incoerente. Quero dizer que se Deus é onitemporal, Ele existiu em
todos os momentos passados, Ele existe no momento presente e existirá em
todos os momentos futuros. Não importa em que momento você escolha, a
afirmação “Deus existe agora” seria literalmente verdadeira naquele momen-
to.
Em contraste, Deus é atemporal se e somente se Ele não é temporal. Essa
definição torna evidente que temporalidade e atemporalidade são contraditó-
rias: uma entidade deve existir de uma forma ou de outra e não pode existir
das duas formas ao mesmo tempo. Freqüentemente, leigos, ansiosos por afir-
mar tanto a transcendência de Deus (Sua existência além do mundo) quanto
Sua imanência (Sua presença no mundo), afirmam que Deus é atemporal e
temporal. Mas, na ausência de algum tipo de modelo ou explicação de como
isso pode acontecer, essa afirmação é totalmente autocontraditória e, portanto,
não pode ser verdadeira. Se, então, Deus existe atemporalmente, Ele não exis-
te em nenhum momento do tempo. Ele transcende o tempo; isto é, Ele existe,
mas não existe no tempo. Ele não tem passado, presente e futuro. Em qual-
quer momento no tempo em que existimos, podemos verdadeiramente afirmar
que “Deus existe” no sentido atemporal da existência, mas não que “Deus
existe agora”.
Agora a questão é, o ensino bíblico sobre a eternidade divina favorece
qualquer um desses pontos de vista? A pergunta acaba sendo surpreendente-
mente difícil de responder. Por um lado, é indiscutível que os escritores bíbli-
cos tipicamente retratam Deus como envolvido em atividades temporais, in-
cluindo presciência do futuro e lembrança do passado; e quando eles falam
diretamente da existência eterna de Deus, eles o fazem em termos de duração
temporal sem começo e sem fim: “Antes que os montes nascessem, ou que tu
formasses a terra e o mundo, de eternidade a eternidade tu és Deus” (Sl. .
90:2). “'Santo, santo, santo é o Senhor Deus Todo-Poderoso, que era, que é e
que há de vir!'” (Ap 4:8b). Depois de examinar os dados bíblicos sobre a
eternidade divina, Alan Padgett conclui: “A Bíblia não conhece nada sobre
uma eternidade divina atemporal no sentido tradicional”.7
Os defensores da atemporalidade divina podem sugerir que os autores bí-
blicos careciam das categorias conceituais para enunciar uma doutrina da

7 Alan G. Padgett, God, Eternity, and the Nature of Time (Nova York: St. Martin's, 1992), 33.
10
atemporalidade divina, de modo que suas descrições temporais de Deus não
precisam ser tomadas literalmente. Mas Padgett cita a obra extrabíblica do
primeiro século 2 Enoque 65:6-7 como evidência de que a concepção da exis-
tência atemporal não estava além do alcance dos escritores bíblicos:

E então toda a criação, visível e invisível, que o Senhor criou, chegará ao fim,
então cada pessoa irá para o grande julgamento do Senhor. E então todo o tem-
po perecerá, e depois não haverá nem anos, nem meses, nem dias, nem horas.
Eles serão dissipados e depois disso não serão contados (2 Enoque 65:6-7).

Tal passagem nos dá motivos para pensar que os autores bíblicos, se quises-
sem, poderiam ter formulado uma doutrina da atemporalidade divina.
Paul Helm levanta uma objeção mais sutil à inferência de que os autores
das Escrituras, ao descrever Deus em termos temporais, pretendiam ensinar
que Deus é temporal.8 Ele afirma que os escritores bíblicos careciam do “con-
texto reflexivo” para formular uma doutrina da eternidade divina. Isso quer
dizer que a questão (como a questão do geocentrismo, por exemplo) nunca
havia surgido para consideração explícita ou simplesmente estava fora de
seus interesses. Considere o caso paralelo do relacionamento de Deus com o
espaço: assim como os escritores bíblicos descrevem Deus em termos tempo-
rais, eles também O descrevem em termos espaciais:

“Sou eu um Deus próximo, diz o Senhor, e não um Deus distante? Pode um


homem se esconder em lugares secretos para que eu não possa vê-lo? diz o Se-
nhor. Não encho eu o céu e a terra? diz o Senhor” (Jeremias 23:23-24).

Para onde irei do teu Espírito?


Ou para onde fugirei da tua presença?
Se eu subir ao céu, tu estás lá!
Se eu arrumo minha cama no Sheol, tu estás lá!
Se eu tomar as asas da manhã
e habitar nos confins do mar,
até ali a tua mão me guiará,
e a tua destra me susterá (Sl 139:7-10).

Deus é descrito como existindo em todo lugar no espaço. No entanto, a maio-


ria dos teólogos não usaria as Escrituras para ensinar que Deus é literalmente
um ser espacial. Os autores das Escrituras não estavam preocupados em ela-
borar uma doutrina metafísica da relação de Deus com o espaço; e a paridade
exigiria que disséssemos o mesmo sobre o tempo. Padgett considera o argu-
mento de Helm bem aceito: “Os autores bíblicos não estavam interessados em
especulações filosóficas sobre a eternidade e, portanto, o contexto intelectual

8 Paul Helm, Eternal God (Oxford: Clarendon, 1988), 5-11.


11
para discutir esse assunto pode simplesmente não existir naquela época”.9
Assim, as descrições bíblicas de Deus como temporal podem não ser deter-
minantes para uma doutrina da eternidade divina.
Além disso, deve-se dizer que os dados bíblicos não são tão unilaterais
quanto Padgett quer que acreditemos. Johannes Schmidt, cujo Ewigkeitsbe-
griff im alten Testament Padgett chama de “o livro mais longo e completo so-
bre o conceito de eternidade no AT”,10 defende uma doutrina bíblica da atem-
poralidade divina com base em textos da criação, como Gênesis 1:1 e Provér-
bios 8:22-23.11 Padgett afasta a alegação de Schmidt com o comentário: “Ne-
nhum desses textos ensina ou implica que o tempo começou com a criação,
ou de fato diz [sic] qualquer coisa sobre o tempo ou a eternidade”.12 Esta dis-
pensa sumária é muito rápida. Gênesis 1:1, que não é uma cláusula subordi-
nada nem um título resumido,13 afirma: “No princípio criou Deus os céus e a
terra”. De acordo com James Barr, esse começo absoluto, tomado em conjun-
to com a expressão “E houve tarde e manhã, um dia” (v. 5), indicando o pri-
meiro dia, pode muito bem ter a intenção de ensinar que o começo não foi
simplesmente o começo do universo físico, mas o começo do próprio tempo,
e que, consequentemente, Deus pode ser pensado como atemporal. 14 Esta
conclusão torna-se ainda mais plausível quando o relato da criação em Gêne-
sis é lido no contexto da antiga cosmogonia egípcia.15 A cosmogonia egípcia
inclui a ideia de que a criação ocorreu “na primeira vez” (sp tpy). John Currid
considera as cosmogonias egípcia e hebraica como envolvendo a noção de
que o momento da criação é o começo dos tempos.16
Certos autores do Novo Testamento podem ser levados a interpretar Gêne-
sis 1:1 como referindo-se ao início dos tempos. A reflexão mais impressio-
nante do Novo Testamento sobre Gênesis 1:1 é, claro, João 1:1-3: “No prin-
cípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava
no princípio com Deus; todas as coisas foram feitas por meio dele, e sem ele
nada do que foi feito se fez”. Aqui o Verbo incriado (logos), a fonte de todas
as coisas criadas, já estava com Deus e era Deus no momento da criação. Não
é difícil interpretar esta passagem em termos da unidade atemporal da Palavra

9 Padgett, God, Eternity, and the Nature of Time, 36.


10 Ibid., 24.
11 Johannes Schmidt, O conceito de eternidade no Antigo Testamento, tratados do Antigo Testa-
mento 13/5 (Münster in Westphalia: Verlag des Aschendorffscher Verlagsbuchhandlung, 1940),
31-32.
12 Padgett, God, Eternity, and the Nature of Time, 25.
13 Veja a exegese de Claus Westermann, Genesis 1–11, trad. John Scullion (Minneapolis: Augs-
burg, 1984), 97; John Sailhamer, Genesis, Expositor’s Bible Commentary 2 (Grand Rapids, Michi-
gan: Zondervan, 1990), 21-22.
14 James Barr, Biblical Words for Time (London: SCM Press, 1962), 145-147.
15 Ver John D. Currid, “An Examination of the Egyptian Background of the Genesis Cosmogony,”
Biblische Zeitschrift 35 (1991): 18-40.
16 Ibid., 30.
12
com Deus - nem seria anacrônico fazê-lo, dada a doutrina do filósofo judeu
do primeiro século Filo sobre o divino Logos (Palavra) e a afirmação de Filo
de que o tempo começa com criação.17
Quanto a Provérbios 8:22-23, esta passagem certamente pode ser lida em
termos de um começo de tempo. A doutrina da criação era uma peça central
da literatura de sabedoria judaica e visava mostrar a soberania de Deus sobre
tudo. Aqui a Sabedoria, personificada como mulher, fala

“O Senhor me possuiu no início de Seu caminho,


Antes de Suas obras antigas.
Desde a eternidade eu fui estabelecido,
Desde o princípio, desde os primeiros tempos da terra” (nasb).

A passagem, que sem dúvida remonta a Gênesis 1:1, está repleta de expres-
sões temporais para um começo. Comentários de R. N. Whybray,

É de notar como o escritor... foi tão insistente em pressionar para casa o facto
da inimaginável antiguidade de Wisdom que amontoou todos os sinónimos
disponíveis num dilúvio de tautologias: re'sit, início, qedem, o primeiro,
me'az, de outrora, me'olam, há séculos atrás, mero's, em primeiro lugar ou
'desde o início'. (comparar Isa. 40.21; 41.4, 26), miqqqad'me'ares, antes do
início da terra: a ênfase não é tanto no modo de Sabedoria que está a surgir...
mas no facto da sua antiguidade.18

As expressões enfatizam, no entanto, não a mera antiguidade da Sabedoria,


mas que houve um começo, um ponto de partida, no ou antes do qual a Sabe-
doria existia. Este foi um ponto de partida não apenas para a terra, mas para o
tempo e as eras; foi simplesmente o começo. Ploger comenta que por meio da
obra criativa de Deus "a possibilidade de falar de 'tempo' foi dada pela pri-
meira vez; portanto, antes desse tempo, logo no início, a Sabedoria passou a
existir por meio de Yahweh [o SENHOR]."19 A passagem foi assim compre-
endida por outros escritores antigos. A tradução grega da Septuaginta do An-
tigo Testamento traduz me 'olam em Provérbios 8:23 como pro tou aionios

17 Sobre o início dos tempos com a criação, ver Philo de Alexandria, On the Creation of the Cos-
mos segundo Moisés, trad. com uma introdução e comentários de David T. Runia, Philo of Ale-
xandria Commentary Series 1 (Leiden: E. J. Brill, no prelo); cf. Richard Sorabji, Time, Creation
and the Continuum (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1983), 203-209. Para uma discussão
sobre as semelhanças entre o prólogo de João e o De opificio 16-19 de Philo, no qual sua doutrina
logos da criação é descrita, veja C. H. Dodd, The Interpretation of the Fourth Gospel (Cambridge:
Cambridge University Press, 1953), 66-73 , 276-277.
18 R. N. Whybray, Proverbs, New Century Bible Commentary (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans,
1994), 131-132.
19 Otto Plöger, Ditos de Salomão, Comentário Bíblico sobre o Antigo Testamento 17 (Neukir-
chen-Vluyn: Neukirchner Verlag, 1984), 92. Cf. Comentário de Meinhold: "Seu início [do tempo]
é definido no primeiro ato da criação" (Arndt Meinhold, Die Sprüche, vol. 1, Zürcher Biblecom-
mentary [Zürich: Theologischer Verlag Zürich, 1991], 144).
13
(antes do tempo), e Sirach 24:9 tem a Sabedoria dizendo: "Antes dos séculos,
no princípio, ele me criou, e por todas as eras não deixarei de existir” (cf.
16:26; 23:20).
Significativamente, certas passagens do Novo Testamento também pare-
cem afirmar o início dos tempos. Isso implicaria exatamente o mesmo tipo de
atemporalidade "antes" da criação do mundo que Padgett vê em 2 Enoch "de-
pois" do fim do mundo. Por exemplo, lemos em Judas 25, "ao único Deus,
nosso Salvador por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor, seja glória, majesta-
de, domínio e autoridade, antes de todos os tempos, agora e para sempre"
(pro pantos tau aionos kai nun kai eis pantas taus aionas) (ênfase adiciona-
da). A passagem contempla uma duração futura eterna, mas afirma um come-
ço para o tempo passado e implica a existência de Deus, usando um quase
inevitável façon de parler, "antes" do tempo começar. Expressões semelhan-
tes são encontradas em duas passagens intrigantes das Epístolas Pastorais. Em
Tito 1:2-3, em uma passagem carregada de linguagem temporal, lemos sobre
os escolhidos de Deus "na esperança da vida eterna [zoes aioniou] que Deus,
que nunca mente, prometeu antes dos séculos [pro cronon aionion] mas ma-
nifestou-se no devido tempo [kairois idiois]" (tradução do autor). E em 2 Ti-
móteo 1:9 lemos sobre o "propósito e a graça de Deus, que nos foram dados
em Cristo Jesus antes dos tempos eternos [pro cronon aionion], mas agora
[nun] manifestados pela manifestação de nosso Salvador Cristo Jesus" (tradu-
ção do autor). Arndt e Gingrich traduzem pro cronon aionion como "antes do
tempo começar".20 Da mesma forma, em 1 Coríntios 2: 7, Paulo fala de uma
sabedoria secreta e oculta de Deus, "que Deus decretou antes dos séculos [pro
ton aionon] para nossa glorificação". Tais expressões estão de acordo com a
Septuaginta, que descreve Deus como "aquele que existe antes dos séculos
[ho hyparchon pro ton aionon]" (LXX Sl 54:20 [Sl 55:19]). Expressões como
ek tou aionos orapo tonaionon podem significar apenas "desde os tempos an-
tigos" ou "desde a eternidade". Mas isso não deve ser confundido com ex-
pressões profissionais. Que tais pro construções devem ser levadas a sério e
não apenas como expressões idiomáticas que conotam "por longos séculos"
(cf. Rom. 16:25: chronois aioniois) é confirmado por muitas expressões se-
melhantes a respeito de Deus e Seus decretos "antes da fundação do mundo"
(pro kataboles kosmou) (João 17:24; Efésios 1:4; 1 Pedro 1:20; cf. Apoc.
13:8). Evidentemente, era um entendimento comum da criação descrita em
Gênesis 1:1 que o começo do mundo coincidiu com o começo dos tempos ou
das eras; mas como Deus não começou a existir no momento da criação, se-
gue-se que Ele existia "antes" do início dos tempos. Deus, pelo menos "antes"
da criação, deve, portanto, ser atemporal.

20 Walter Bauer, A Greek-English Lexicon of the New Testament, trad. e ed. W. F. Arndt e F. W.
Gingrich, s.v. “aionios.”
14
Assim, embora os autores das escrituras falem de Deus como temporal e
eterno, há pelo menos alguma evidência de que, quando Deus é considerado
em relação à criação, Ele deve ser pensado como o Criador transcendente do
tempo e das eras e, portanto, como existindo além do tempo. Pode ser que, no
contexto da doutrina da criação, os escritores bíblicos tenham sido levados a
refletir sobre a relação de Deus com o tempo e tenham escolhido afirmar Sua
transcendência. Ainda assim, a evidência não é clara, e parecemos forçados a
concluir com Barr que “se algo como uma doutrina cristã do tempo deve ser
desenvolvido, o trabalho de discuti-la e desenvolvê-la deve pertencer não à
teologia bíblica, mas à teologia filosófica."21

II. A importância de articular uma teoria da


eternidade divina

Se os dados bíblicos concernentes à relação de Deus com o tempo são inde-


terminados, então por que, pode-se perguntar, simplesmente não descansar
com a afirmação bíblica da existência sem começo e sem fim de Deus, em
vez de entrar nos reinos especulativos da metafísica em uma tentativa de arti-
cular uma doutrina de Deus e o tempo? Pelo menos duas respostas podem ser
dadas a esta pergunta. Primeiro, a concepção bíblica de Deus foi atacada
precisamente com base no fato de que nenhuma doutrina coerente da eterni-
dade divina pode ser formulada. Dois exemplos vêm imediatamente à mente.
Em seu God and the New Physics, Paul Davies, um distinto físico que rece-
beu o Prêmio Templeton de um milhão de dólares para o progresso na reli-
gião por seus muitos livros populares relacionados à ciência e à religião, ar-
gumenta que Deus, como tradicionalmente entendido, não pode ser nem
atemporal nem temporal. Por um lado, Deus não pode ser atemporal porque
tal ser “não pode ser um Deus pessoal que pensa, conversa, sente, planeja e
assim por diante, pois todas essas são atividades temporais”.22 Tal Deus não
poderia agir no tempo, nem poderia ser considerado um eu e, portanto, uma
pessoa. Davies acrescenta: “A dificuldade é particularmente aguda para os
cristãos, que acreditam que em algum momento específico da história huma-
na, Deus encarnou e começou a salvar o homem”.23 Por outro lado, de acordo
com Davies, Deus não pode ser um ser temporal porque estaria sujeito às leis
da Teoria da Relatividade que regem o espaço e o tempo e, portanto, não po-
deria ser onipotente; nem poderia ser o Criador do universo, pois para criar o
tempo e o espaço, Deus deve transcender o tempo e o espaço. Davies insiste,

21 Barr, Biblical Words for Time, 149.


22 Paul Davies, God and the New Physics (Nova York: Simon and Schuster, 1983), 133-134; cf.
38-39.
23 Transcrição não publicada de uma palestra cortesia de Paul Davies.
15
Deus, o Criador, por sua própria natureza, deve transcender o espaço e o tem-
po. . . . o surgimento do universo físico envolveu o surgimento do espaço e do
tempo, bem como da matéria. Não posso enfatizar isso com muita força e, por-
tanto, se desejamos ter um Deus que seja de alguma forma responsável pela
origem do universo ou pelo universo, esse Deus deve estar fora do espaço e do
tempo que está sendo criado.24

A conclusão lógica do dilema de Davies é que Deus como a Bíblia o retrata


não existe. A importância desse dilema cresceu no pensamento de Davies ao
longo dos anos; ele escreveu recentemente: “Nenhuma tentativa de explicar o
mundo, seja científica ou teologicamente, pode ser considerada bem-sucedida
até que explique a conjunção paradoxal do temporal e do atemporal, do ser e
do tornar-se”.25
Um segundo exemplo de tal ataque à concepção bíblica de Deus é a crítica
de Deus como Criador apresentada por Stephen Hawking, um dos físicos ma-
temáticos mais celebrados do século XX, em seu best-seller A Brief History of
Time. Hawking acredita que no contexto da cosmologia padrão do Big Bang
faz sentido apelar para Deus como o Criador do universo espaço-tempo, já
que de acordo com essa teoria o espaço-tempo teve um ponto inicial, chama-
do de singularidade inicial, no qual o universo originou.26 Ao introduzir nú-
meros imaginários (múltiplos de √-1) para a variável de tempo nas equações
que descrevem o início do universo, Hawking elimina a singularidade “arre-
dondando”, por assim dizer, o início do espaço-tempo. Em vez de ter um pon-
to inicial semelhante ao ápice de um cone, o espaço-tempo em seu estado ini-
cial na teoria de Hawking é como a ponta arredondada de um passarinho de
badminton. Como a superfície de uma esfera, ela não tem borda na qual você
deve parar. Hawking não reluta em tirar conclusões teológicas de seu modelo:

Não haveria singularidades nas quais as leis da ciência fossem quebradas e ne-
nhuma borda do espaço-tempo na qual alguém teria que apelar para Deus ou
alguma nova lei para estabelecer as condições de fronteira para o espaço-
tempo. . . . O universo seria completamente independente e não seria afetado
por nada fora de si mesmo. Não seria criado nem destruído. Seria apenas SER.
...
A idéia de que o espaço e o tempo podem formar uma superfície fechada
sem limites. . . tem profundas implicações para o papel de Deus nos assuntos
do universo. . . . Enquanto o universo teve um começo, podemos supor que te-
ve um criador. Mas se o universo for realmente autocontido, sem limite ou
borda, não teria começo nem fim. Que lugar, então, para um criador?27

24 Ibid.
25 Paul Davies, The Mind of God (New York: Simon and Schuster, 1992), 38.
26 O espaço-tempo é simplesmente aquele continuum quadridimensional composto pelas três di-
mensões espaciais familiares — comprimento, largura e altura — mais a dimensão do tempo.
27 Stephen Hawking, Uma Breve História do Tempo (Nova York: Bantam Books, 1988), 136,
140-141.
16
O sucesso da jogada de Hawking para eliminar o Criador do universo depen-
de crucialmente da legitimidade de seu conceito de “tempo imaginário”. Uma
vez que, na visão de Hawking, o tempo imaginário é indistinguível de uma
dimensão espacial, desprovido de devir temporal e anterior/posterior às rela-
ções, o mundo quadridimensional do espaço-tempo apenas subsiste e não há
nada para um Criador fazer.
Os escritos de Davies e Hawking foram extremamente influentes na cultu-
ra popular, bem como no pensamento científico. Uma resposta adequada aos
desafios que eles colocam ao teísmo bíblico requer uma teoria coerente da
eternidade divina e da relação de Deus com o tempo.
A segunda razão pela qual cabe ao teólogo filosófico articular uma doutri-
na de Deus e do tempo é que muitos escritos descuidados já foram feitos so-
bre esse tópico. A questão não é se os crentes ortodoxos abordarão o assunto,
mas se o abordarão com responsabilidade. É inevitável que, quando os cris-
tãos pensam sobre a eternidade de Deus ou sobre o conhecimento do futuro
ou sobre “estaremos com o Senhor na eternidade”, eles formem concepções
de como Deus se relaciona com o tempo. Estes são geralmente confusos e
mal pensados, uma situação muitas vezes exacerbada por pronunciamentos do
púlpito sobre a eternidade divina. Infelizmente, os autores populares freqüen-
temente agravam o problema em seus tratamentos de Deus e do tempo.
Novamente, dois exemplos serão suficientes. Philip Yancey é um autor
cristão extremamente popular. Em seu premiado livro Decepção com Deus,
Yancey tenta lidar com o mal aparentemente gratuito permitido por Deus no
mundo. A peça central de sua solução para o problema é sua compreensão da
relação de Deus com o tempo.28 Infelizmente, a visão de Yancey é uma com-
binação autocontraditória de duas posições diferentes baseadas em um par de
analogias confusas. Por um lado, apelando para a Teoria da Relatividade Res-
trita, Yancey quer afirmar que um ser coextensivo ao universo saberia o que
está acontecendo da perspectiva de qualquer observador espacialmente limi-
tado no universo. Mas, ao contrário de Yancey, o fato de os observadores lo-
cais terem perspectivas variadas não tem nada a ver com a relatividade, mas
sim com a velocidade finita da luz. Observadores localizados só podem for-
mar o que os cosmólogos chamam de “imagem de mundo” do universo: ao
olharem para o espaço, estão vendo eventos astronômicos, não como se esti-
vessem ocorrendo simultaneamente com eventos locais, mas como eram no
passado. Observadores locais em lugares distantes do universo terão, portan-
to, diferentes imagens do mundo. O que eles não podem formar é um “mapa-
múndi”, isto é, uma imagem do que está acontecendo no universo simultane-
amente com os eventos em sua vizinhança. Um observador cósmico como
Yancey imagina seria, no entanto, capaz de formar um mapa-múndi precisa-

28 Philip Yancey, Decepção com Deus (Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1988), 194-199.
17
mente porque não está localizado espacialmente. Tal observador cósmico ex-
perimentaria o lapso do tempo cósmico mundial e seria capaz de saber o que
está acontecendo agora em qualquer lugar do universo. Se negarmos a ele tal
perspectiva cósmica e concedermos a ele apenas uma combinação de perspec-
tivas locais, então ele se tornará um lamentável esquizofrênico, carecendo de
toda unidade de consciência e possuindo apenas um arranjo infinitamente fra-
gmentado de consciências locais – dificilmente uma analogia adequada para
Deus! De qualquer forma, o ponto importante é que tal ser seria temporal e
experimentaria o fluxo do tempo. Tal entendimento é inconsistente com a se-
gunda analogia de Yancey sobre a relação entre o tempo de um autor e o tem-
po dos personagens de seu livro ou filme. “Vemos a história como uma se-
quência de quadros estáticos, um após o outro, como em um rolo de filme;
mas Deus vê o filme inteiro de uma vez, em um flash.”29 A analogia é pro-
blemática, uma vez que os personagens em romances e filmes não existem re-
almente, e assim também não existem seus “tempos”. Portanto, simplesmente
não há relação entre, digamos, a época de Shakespeare e a época de Hamlet.
Mas, novamente, o ponto importante é que essa analogia aponta para uma di-
reção oposta à primeira, para uma compreensão do tempo como estático, co-
mo um filme na lata ou um romance na prateleira, com um Deus atemporal
existindo fora da dimensão temporal. As duas analogias de Yancey, portanto,
resultam em uma visão autocontraditória da eternidade divina - a menos, tal-
vez, que ele faça o movimento extravagante de interpretar a eternidade como
uma espécie de hiper-tempo, uma dimensão de tempo de segunda ordem su-
perior na qual nossa dimensão temporal está inserida - e assim não fornece
solução adequada para o problema do desapontamento com Deus.30
Nosso segundo exemplo é o escritor de ciência popular Hugh Ross, que
aparentemente se atreve a afirmar que Deus existe e opera no hiper-tempo.
Rejeitando explicitamente a doutrina agostiniano-tomista da atemporalidade
divina, Ross afirma que “as capacidades do Criador incluem pelo menos duas,
talvez mais, dimensões de tempo”.31 Na tentativa de resolver o problema do
tempo de criação de Deus (levantado por Davies acima), Ross afirma que
Deus existe em uma espécie de hiper-tempo, no qual Ele criou nosso universo
de espaço-tempo. Infelizmente, Ross não representa com precisão essa noção.
Um hiper-tempo divino seria uma dimensão em cada um dos momentos em
que toda a nossa dimensão de tempo existe ou não. Em um diagrama, seria

29 Ibid., 197.
30 Para outro mau uso popular da Teoria da Relatividade a serviço da teologia, veja Anthony
Campolo, A Reasonable Faith (Waco, Tex.: Word, 1983), 128-134. Campolo espera resolver os
problemas da predestinação e do estado intermediário dos mortos apelando para a relatividade da
simultaneidade – como se Deus fosse um objeto físico em um referencial inercial movendo-se à
velocidade da luz!
31 Hugh Ross, Além do Cosmos (Colorado Springs: NavPress, 1966), 24.
18
representado por uma linha perpendicular à linha que representa nossa dimen-
são (Fig. 1.1):

Fig. 1.1: Em momentos sucessivos do hiper-tempo T, toda a nossa


série temporal t existe.

Mas Ross interpreta mal a natureza do hipertempo, representando o tempo de


Deus em seu diagrama por uma linha paralela, em vez de perpendicular, à li-
nha que representa nossa dimensão temporal.32 A Fig. 1.2 reproduz a Fig. 7.1
de Ross:

32 Ibid., 62.
19
Fig. 1.2: B representa a linha do tempo infinita de Deus, enquanto C representa
nossa linha do tempo finita. A retrata erroneamente outras supostas linhas do
tempo.

O que o diagrama de Ross sugere é que a dimensão temporal de Deus é na


verdade a mesma que a nossa, mas que Ele preexiste por um tempo infinito
antes da criação do universo. Esta é, de fato, uma visão clássica newtoniana
de Deus e do tempo. Newton acreditava que Deus existia desde a eternidade
passada em tempo absoluto e em algum momento criou o universo físico. A
distinção adequada a ser traçada em tal visão não é entre duas dimensões de
tempo, mas sim, como Newton colocou, entre o tempo absoluto e nossas me-
didas físicas relativas de tempo. Ao afirmar a pré-existência infinita de Deus,
Ross deve enfrentar a velha questão que perseguia os newtonianos: por que
Deus retardaria por um tempo infinito a criação do universo?
Em dois lugares, Ross sugere que as duas dimensões do tempo podem ter a
geometria da superfície de um hemisfério, sendo nosso tempo representado
pelo equador e o tempo de Deus pelas linhas longitudinais (Fig. 1.3).33

Fig. 1.3: UE representa a dimensão temporal do universo. G representa Deus.


GU, GB, etc., devem então representar linhas de tempo separadas nas quais
Deus existe.

Um modelo tão ousado é, no entanto, mal concebido. Pois então é o nosso


tempo que é o hiper-tempo no qual a dimensão temporal de Deus está inseri-
da, pois há uma linha representando o nosso tempo, mas muitas linhas para o

33 Ibid., 57, 151.


20
de Deus. Além disso, é incorreto situar Deus no pólo do hemisfério, como faz
Ross, pois isso seria tratar Seu tempo como o hiper-tempo incorporado; na
verdade, Ele deve existir em todos os pontos em cada uma de Suas linhas de
tempo longitudinais. Uma vez que essas linhas de tempo divinas perduram
por momentos sucessivos de nosso hiper-tempo, elas não podem representar
linhas de influência causal divina, como pensa Ross. Por fim, tal visão torna
nosso tempo circular, o que contraria a concepção judaico-cristã de tempo.
Essa conclusão indesejável só poderia ser evitada tornando nosso tempo finito
em extensão, o que contradiz a doutrina cristã da imortalidade. Em suma, as
opiniões de Ross, embora engenhosas, não são nem coerentes nem consisten-
tes com a teologia ortodoxa. O que torna essa conclusão perturbadora é a
afirmação repetida de Ross de que as doutrinas cristãs, como a Trindade e a
encarnação, não são logicamente coerentes, a menos que sejam formuladas
em mais de quatro dimensões. Suspeito que, para Ross, falar sobre a extradi-
mensionalidade de Deus seja apenas um façon de parler para Deus transcen-
der o espaço e o tempo - mas então ele se expressou da maneira mais engano-
sa, o que está fadado a criar confusão e ainda nos deixa sem compreensão cla-
ra da relação de Deus com o tempo.
Os exemplos poderiam ser multiplicados para mostrar como as exposições
populares da eternidade divina têm promovido erro ou confusão. O filósofo
Max Black certa vez observou que “uma medida aproximada da importância
filosófica de um conceito é a quantidade de bobagens escritas sobre ele. A
julgar por este teste, o conceito de tempo está um pouco à frente do conceito
de espaço e atrás do conceito de divindade”.34 Combine tempo e divindade e
você realmente tem algo importante e difícil de escrever! Se quisermos ir
além do absurdo, é necessário um pensamento claro e rigoroso - não silêncio -
sobre essa questão.
Portanto, temos boas razões para recorrer à teologia filosófica para uma ar-
ticulação de uma doutrina da eternidade divina. Quando o fizermos, como nos
lembram as discussões acima, teremos que manter um olho na ciência tanto
quanto na filosofia. É claro que, para o cristão, a teoria da eternidade divina
será mantida provisoriamente, como nosso melhor esforço para entender co-
mo Deus se relaciona com o tempo, em vez de dogmaticamente, como se fos-
se o ensino das Escrituras. A Escritura ensina que Deus existe sem começo e
sem fim; agora cabe a nós descobrir o que isso implica.

34 Max Black, revisão de The Natural Philosophy of Time, por G. J. Whitrow, em Scientific Ame-
rican 206 (abril de 1962), 179.
21
22
2

ATEMPORALIDADE DIVINA
“O QUE quer que inclua e possua toda a plenitude da vida interminável ao
mesmo tempo e seja tal que nada futuro esteja ausente dela e nada passado
tenha fluído, isso é corretamente julgado como eterno”, escreveu o teólogo
medieval Boécio.35 Em tal compreensão da eternidade divina, Deus transcen-
de o tempo completamente. Mas que razões podem ser dadas para adotar tal
entendimento da eternidade de Deus? Nos próximos dois capítulos examina-
remos o que considero serem os argumentos mais importantes em favor da
atemporalidade divina e da temporalidade divina. Neste capítulo, veremos o
que considero os argumentos mais importantes em favor da visão de que
Deus é atemporal.

I. Simplicidade e Imutabilidade Divinas

EXPOSIÇÃO
Tradicionalmente, teólogos cristãos como Tomás de Aquino defendiam a in-
temporalidade de Deus com base em Sua absoluta simplicidade e imutabili-
dade. O argumento pode ser facilmente formulado. Como primeira premissa,
assumimos ou

1. Deus é simples

ou

1'. Deus é imutável.

Então nós adicionamos

2. Se Deus é simples ou imutável, então Ele não é temporal, do qual podemos


deduzir logicamente

3. Portanto, Deus não é temporal

35 Boécio, Consolação da Filosofia 5. pr. 6. 25-31.


23
Uma vez que temporalidade e atemporalidade são, como vimos, contraditó-
rias, segue-se que

4. Portanto, Deus é atemporal.

Uma vez que este é um argumento logicamente válido, a única questão a con-
siderar é se as premissas do argumento são verdadeiras.

CRÍTICA
Considere a premissa (2) acima. A doutrina da simplicidade divina afirma que
Deus não tem absolutamente nenhuma composição em Sua natureza ou ser.
Assim, a noção de simplicidade operativa aqui é o oposto polar da complexi-
dade. Diz-se que Deus é uma unidade absolutamente indiferenciada. Essa
doutrina medieval não é popular entre os teólogos hoje, e mesmo quando os
cristãos a defendem da boca para fora, eles geralmente não apreciam o quão
verdadeiramente radical é a doutrina. Implica não apenas que Deus não tem
partes, mas que Ele não possui nem mesmo atributos distintos. De alguma
forma misteriosa, sua onipotência é Sua bondade, por exemplo. Ele não man-
tém nenhuma relação. Assim, Ele literalmente não ama, conhece ou causa
Suas criaturas. Ele não é realmente composto de três pessoas distintas, uma
afirmação notoriamente difícil de conciliar com a doutrina da Trindade. Sua
natureza ou essência nem mesmo é distinta de Sua existência, uma afirmação
que levou à difícil doutrina de que a essência de Deus é apenas a existência;
Ele é, nos diz Tomás de Aquino, o puro ato de existir.
Ora, se Deus é simples da maneira descrita, segue-se obviamente que Ele
não pode ser temporal, pois um ser temporal está relacionado com os vários
tempos em que existe: existe em t1 e em t2, por exemplo. Mas um ser simples
não está em nenhuma relação real, como vimos. Além disso, um ser temporal
tem fases de sua vida que não são idênticas, mas estão relacionadas entre si
como anteriores e posteriores. Mas um ser absolutamente simples não poderia
estar em tais relações e assim deve ter sua vida, como disse Boécio, “de uma
só vez” (totum simul).
Da mesma forma, se Deus é imutável, mesmo que Ele não seja simples,
Ele ainda não pode ser temporal. Como a simplicidade, a imutabilidade afir-
mada pelos teólogos medievais é um conceito radical: imobilidade total. Deus
não pode mudar em nenhum aspecto. Ele nunca tem pensamentos sucessivos,
Ele nunca realiza ações sucessivas, Ele nunca sofre nem mesmo a alteração
mais trivial. Deus não só não pode passar por mudanças intrínsecas, como
também não pode mudar extrinsecamente por estar relacionado a coisas mu-
táveis.36 Mas, obviamente, um ser temporal sofre pelo menos uma mudança

36 Uma mudança intrínseca é uma mudança não relacional, envolvendo apenas o sujeito. Por
exemplo, uma maçã muda de verde para vermelho. Uma mudança extrínseca é uma mudança rela-
24
extrínseca na medida em que existe em diferentes momentos do tempo e, da-
da a realidade do mundo temporal, coexiste com diferentes conjuntos de seres
temporais conforme eles passam por mudanças intrínsecas. Mesmo se rela-
xarmos a definição de “imutável” para significar “incapaz de mudança intrín-
seca”, ou o conceito ainda mais fraco “intrinsecamente imutável”, um Deus
imutável não pode ser temporal. Pois se Deus é temporal, Ele pelo menos
muda no sentido de que está constantemente envelhecendo - não fisicamente,
é claro, mas no sentido puramente temporal de constantemente acrescentar
mais anos à Sua vida. Além disso, Deus estaria constantemente mudando em
Seu conhecimento, sabendo primeiro que “Agora é t1” e depois que “Agora é
t2”. A presciência e a memória de Deus também devem estar constantemente
mudando, à medida que eventos antecipados transpiram e se tornam passados.
Deus estaria constantemente realizando novas ações, em t1 causando os even-
tos em t1 e em t2 causando os eventos em t2. Assim, um Deus temporal não
pode ser imutável. Segue-se, então, que se Deus é imutável, Ele é atemporal.
Assim, a atemporalidade de Deus pode ser deduzida tanto de Sua simplici-
dade quanto de Sua imutabilidade. Essa é uma boa razão para pensar que
Deus é atemporal? Tudo depende se temos alguma boa razão para pensar que
Deus é simples ou imutável. Aqui nos deparamos com sérias dificuldades.
Pois as doutrinas da simplicidade e imutabilidade divinas são ainda mais con-
troversas do que a doutrina da eternidade divina. Tentar provar a atemporali-
dade divina por meio da simplicidade ou imutabilidade divina, portanto, as-
sume o ar de tentar provar o óbvio por meio do menos óbvio. Mais especifi-
camente, as doutrinas da simplicidade e imutabilidade divinas explicadas
acima não encontram absolutamente nenhum apoio nas Escrituras, que no
máximo falam da imutabilidade de Deus em termos de Sua fidelidade e cará-
ter imutável (Mal. 3:6; Tia. 1:17). Filosoficamente, parece não haver boas ra-
zões para abraçar essas doutrinas radicais, e pesadas objeções foram apresen-
tadas contra elas.37 Estes não precisam ser discutidos aqui; o ponto é que as

cional, envolvendo algo mais em relação ao qual o sujeito muda. Por exemplo, fico mais baixo que
meu filho, não por sofrer uma mudança intrínseca em minha altura, mas por me relacionar com ele
conforme ele passa por uma mudança intrínseca em sua altura. Eu mudo extrinsecamente de ser
mais alto que John para ser mais baixo que John porque ele está crescendo.
37 O famoso argumento de Tomás de Aquino para Deus a partir de seres contingentes (seres cuja
essência é distinta de sua existência) leva, na melhor das hipóteses, penso eu, a um ser cuja essên-
cia é tal que é necessariamente instanciado, um ser metafisicamente necessário. Mas dizer que
Deus não tem propriedades distintas parece patentemente falso: onipotência não é a mesma propri-
edade que bondade, pois um ser pode ter uma e não a outra. Responder que essas propriedades di-
ferem apenas em nossa concepção, como manifestações de uma única propriedade divina, assim
como, digamos, “a estrela da manhã” e “a estrela da tarde” têm sentidos diferentes, mas ambos se
referem à mesma realidade (Vênus), é inadequado. Pois ser a estrela da manhã e ser a estrela da
tarde são propriedades distintas ambas possuídas por Vênus; da mesma forma, ser onipotente e ser
bom não são sentidos diferentes para a mesma propriedade (como, digamos, ser par e ser divisível
por dois), mas são propriedades claramente distintas. Dizer que Deus é a Sua essência parece fazer
de Deus uma propriedade, o que é incompatível com o fato de Ele ser um ser vivo e concreto.
25
premissas (1) e (1') acima são ainda menos plausíveis e mais difíceis de pro-
var do que (4), de modo que não constituem bons motivos para acreditar (4).
Assim, embora possamos admitir livremente que um Deus simples ou imutá-
vel deve ser atemporal, temos ainda menos motivos para pensar que Deus é
simples ou imutável do que para pensar que Ele é atemporal e, portanto, difi-
cilmente podemos inferir que Ele é atemporal com base nessas doutrinas.

II. Teoria da Relatividade

EXPOSIÇÃO
O ramo da física mais diretamente relacionado com a análise da natureza do
tempo e do espaço é a Teoria da Relatividade, criação de Albert Einstein.
Existem duas teorias da relatividade, a Teoria da Relatividade Restrita ou Es-
pecial (STR), formulada por Einstein em 1905, e a Teoria da Relatividade
Geral (GTR), concluída em 1915. Segundo o físico Hermann Bondi, “talvez
haja nenhuma outra parte da física foi verificada, testada e verificada tanto
quanto a Teoria da Relatividade.”38 As previsões de STR e GTR foram verifi-
cadas com um fantástico grau de precisão. Qualquer teoria adequada da rela-
ção de Deus com o tempo deve, portanto, levar em conta o que essas teorias
têm a dizer sobre a natureza do tempo. Quando exploramos o que STR tem a
dizer sobre a natureza do tempo e particularmente sobre a simultaneidade, no
entanto, surge uma objeção significativa à temporalidade divina.
Para entender essa objeção, precisamos ter algum entendimento de STR.
Embora a matemática do STR não seja altamente sofisticada, os conceitos de
tempo e espaço definidos pela teoria são tão estranhos e contra-intuitivos que
a maioria das pessoas, arrisco dizer, os considera quase inconcebíveis. Des-
Além disso, se Deus não é distinto de Sua essência, então Deus não pode saber ou fazer nada dife-
rente do que Ele sabe e faz, caso em que tudo se torna necessário. Responder que Deus é perfeita-
mente semelhante em todos os mundos logicamente possíveis que podemos imaginar, mas que a
contingência é real porque Deus não mantém nenhuma relação real com as coisas é tornar a exis-
tência ou não existência de criaturas em vários mundos possíveis independentes de Deus e total-
mente independentes de Deus. misterioso. Dizer que a essência de Deus é apenas Sua existência
parece totalmente obscuro, já que então não há nenhuma entidade que exista no caso de Deus; há
apenas o próprio existir sem nenhum sujeito. Para mais críticas, ver Christopher Hughes, On a
Complex Theory of a Simple God, Cornell Studies in the Philosophy of Religion (Ithaca, N.Y.:
Cornell University Press, 1989); Thomas V. Morris, Anselmian Explorations (Notre Dame, India-
na: University of Notre Dame Press, 1987), 98-123.
A imutabilidade divina às vezes é considerada um correlato necessário da perfeição divina.
Mas isso parece claramente incorreto. Um ser perfeito não precisa mudar “verticalmente”, por as-
sim dizer, na escala da perfeição e, portanto, para pior, mas pode mudar “horizontalmente”, per-
manecendo igualmente perfeito em ambos os estados. Por exemplo, para Deus mudar de saber
“Agora é t1” para saber “Agora é t2” não é uma mudança para pior em Deus; pelo contrário, é um
sinal de Sua perfeição que Ele sempre saiba que horas são. Também não está claro que a imutabili-
dade divina (em oposição à mera imutabilidade) seja compatível com a liberdade divina — supo-
nha que Deus quisesse mudar?
38 Hermann Bondi, Relativity and Common Sense (Nova York: Dover, 1964), 168.
26
temido, tentarei explicar da maneira mais simples possível o que a teoria de
Einstein sustenta em relação à natureza do tempo e do espaço, para que pos-
samos entender o impacto que isso tem em nossa concepção da eternidade di-
vina.

Isaac Newton
“E tanto a respeito de Deus; ao discur-
so de quem, a partir das aparências das
coisas, certamente pertence à Filosofia
Natural”.

Comecemos por uma retrospectiva histórica. A física que prevaleceu até a re-
cepção da Teoria da Relatividade foi a física newtoniana, cujos fundamentos
foram lançados por Isaac Newton, talvez o maior cientista de todos os tem-
pos, em seu epocal Philosophiae naturalis principia mathematica (1687). No
Scholium para seu conjunto de Definições que conduzem aos Principia, New-
ton explica seus conceitos de tempo e espaço. Para esclarecer esses conceitos,
Newton faz uma distinção entre tempo e espaço absolutos e tempo e espaço
relativos:

I. Absoluto. . . o tempo, por si mesmo e por sua própria natureza, flui unifor-
memente sem relação com nada externo, e por outro nome é chamado de dura-
ção: relativa. . . tempo, é alguma medida sensível e externa (seja precisa ou de-
sigual) de duração por meio do movimento, que é comumente usada em vez do
tempo verdadeiro; como uma hora, um dia, um mês, um ano.

II. O espaço absoluto, por sua própria natureza, sem relação com nada externo,
permanece sempre semelhante e imóvel. O espaço relativo é alguma dimensão
móvel ou medida dos espaços absolutos; que nossos sentidos determinam por
sua posição em relação aos corpos; e que é comumente tomado por espaço
imóvel; tal é a dimensão de um espaço subterrâneo, aéreo ou celeste, determi-
nada por sua posição em relação à terra.39

39 Isaac Newton, “Princípios Matemáticos da Filosofia Natural” de Sir Isaac Newton e seu “Sis-
tema do Mundo”, trad. André Motte, rev. com apêndice de Florian Cajori, 2 vols. (Los Angeles:
University of California Press, 1966), 1:6.
27
Fundamentalmente, Newton está aqui distinguindo entre o próprio tempo e
espaço e nossas medidas de tempo e espaço. Tempo relativo é o tempo de-
terminado ou registrado por relógios e calendários de vários tipos; espaço re-
lativo é o comprimento, área ou volume determinado por instrumentos como
réguas ou copos medidores. Como diz Newton, essas quantidades relativas
podem ser medidas mais ou menos precisas de tempo e espaço. O próprio
tempo e espaço são absolutos no sentido de que são apenas as próprias quan-
tidades que estamos tentando medir com nossos instrumentos físicos.
Há, no entanto, outro sentido em que Newton considerou o tempo e o es-
paço como absolutos. Eles são absolutos no sentido de que são únicos. Existe
um tempo universal no qual todos os eventos ocorrem com duração determi-
nada e em uma sequência determinada, e um espaço universal no qual todos
os objetos físicos existem com formas determinadas e em um arranjo deter-
minado. Assim, Newton diz que o tempo absoluto “por si mesmo, e de sua
própria natureza, flui igualmente sem relação com nada externo”, e o espaço
absoluto “em sua própria natureza, sem relação com nada externo, permanece
sempre semelhante e imóvel”. Os tempos e espaços relativos são muitos e va-
riáveis, mas não o tempo e o espaço em si.
Com base em suas definições de tempo e espaço, Newton passou a definir
lugar e movimento absoluto versus relativo:

III. Lugar é uma parte do espaço que um corpo ocupa, e é de acordo com o es-
paço, absoluto ou relativo. . . .

IV. O movimento absoluto é a translação de um corpo de um lugar absoluto


para outro; e movimento relativo, a translação de um lugar relativo para ou-
tro.40

Por “translação” Newton significa “transporte” ou “deslocamento”. Lugar ab-


soluto é o volume de espaço absoluto ocupado por um objeto, e movimento
absoluto é o deslocamento de um corpo de um lugar absoluto para outro. Um
objeto pode estar em repouso relativo e ainda em movimento absoluto. New-
ton dá o exemplo de um pedaço de um navio, digamos, o mastro. Se o mastro
estiver bem fixo, então está em repouso em relação ao navio; mas o mastro
está em movimento absoluto se o navio estiver se movendo no espaço absolu-
to enquanto navega. Assim, dois objetos podem estar em repouso um em re-
lação ao outro, mas ambos se movendo em conjunto através do espaço abso-
luto (e, portanto, movendo-se absolutamente). Da mesma forma, dois objetos
- digamos, dois asteróides - podem estar em movimento um em relação ao ou-
tro e, ainda assim, um deles em repouso no espaço absoluto.

40 Ibid., 1:6-7.
28
Na física newtoniana já existe uma espécie de relatividade. Um corpo que
está em movimento uniforme (isto é, sem acelerações ou desacelerações) ser-
ve para definir um referencial inercial, que é apenas um espaço relativo no
qual um corpo em repouso permanece em repouso e um corpo em movimento
permanece em movimento com a mesma velocidade e direção. O navio de
Newton navegando uniformemente definiria um referencial inercial. Embora
Newton postulasse a existência de um referencial inercial absoluto, ou seja, o
referencial do espaço absoluto, era impossível para observadores em referen-
ciais inerciais que se moviam no espaço absoluto determinar experimental-
mente que eles estavam de fato se movendo. Se o espaço relativo de alguém
estivesse se movendo uniformemente através do espaço absoluto, essa pessoa
não poderia dizer se estava em repouso absoluto ou em movimento absoluto.
Da mesma forma, se seu espaço relativo estivesse em repouso no espaço ab-
soluto, ele não poderia saber que estava em repouso absoluto e não em mo-
vimento absoluto. Ele poderia saber que seu referencial inercial estava em
movimento em relação ao referencial inercial de algum outro observador (di-
gamos, outro navio passando), mas não poderia saber se algum deles estava
em repouso absoluto ou em movimento absoluto. Assim, dentro da física
newtoniana, um observador poderia medir apenas o movimento relativo de
seu sistema inercial, não seu movimento absoluto.
Esse tipo de relatividade era conhecido muito antes de Newton. Galileu,
por exemplo, entendeu e forneceu uma ilustração encantadora:

Para uma indicação final da nulidade dos experimentos realizados, este me pa-
rece o lugar para mostrar a você uma maneira de testá-los todos com muita fa-
cilidade. Feche-se com algum amigo na cabine principal abaixo do convés de
algum navio grande e tenha com você algumas moscas, borboletas e outros pe-
quenos animais voadores. Tenha uma tigela grande de água com alguns peixes;
pendure uma garrafa que se esvazia gota a gota em um recipiente largo abaixo
dela. Com o navio parado, observe atentamente como os bichinhos voam com
igual velocidade para todos os lados da cabine. Os peixes nadam indiferente-
mente em todas as direções; as gotas caem no vaso abaixo; e, ao jogar algo pa-
ra seu amigo, você não precisa jogá-lo com mais força em uma direção do que
em outra, as distâncias sendo iguais; pulando com os pés juntos, você passa por
espaços iguais em todas as direções. Depois de observar cuidadosamente todas
essas coisas (embora não haja dúvida de que quando o navio está parado tudo
deve acontecer dessa maneira), faça o navio avançar com a velocidade que de-
sejar, desde que o movimento seja uniforme e não flutuante. maneira e isso.
Você descobrirá a menor mudança em todos os efeitos mencionados, nem po-
derá dizer a partir de nenhum deles se o navio estava em movimento ou para-
do. Ao saltar, você passará no chão os mesmos espaços que antes, nem dará
saltos maiores para a popa do que para a proa, mesmo que o navio esteja se
movendo bastante rápido, apesar do fato de que durante o tempo em que você
está no areje o chão sob você estará indo na direção oposta ao seu salto. Ao jo-
gar algo para seu companheiro, você não precisará de mais força para fazê-lo
chegar até ele, esteja ele na direção da proa ou da popa, estando você situado
29
do lado oposto. As gotas cairão como antes no navio abaixo, sem cair em dire-
ção à popa, embora enquanto as gotas estiverem no ar, o navio corre muitos
vãos. O peixe em sua água nadará em direção à frente de sua tigela sem mais
esforço do que para trás e irá com a mesma facilidade para a isca colocada em
qualquer lugar nas bordas da tigela. Por fim, as borboletas e as moscas conti-
nuarão seus vôos indiferentes para todos os lados, nem nunca se concentrarão
na popa, como se estivessem cansadas de acompanhar o rumo do navio, do
qual terão se separado durante longos intervalos mantendo-se no ar. E se a fu-
maça for feita queimando algum incenso, ela será vista subindo na forma de
uma pequena nuvem, permanecendo imóvel e se movendo não mais para um
lado do que para o outro. A causa de todas essas correspondências de efeitos é
o fato de que o movimento do navio é comum a todas as coisas contidas nele, e
também ao ar.41

Nesse caso, enquanto o navio continuar em movimento uniforme, o espaço


relativo ocupado pela cabine do navio define um referencial inercial que pode
ou não estar em repouso absoluto e em relação ao qual borboletas, peixes e
fumaça se movem como se fossem em repouso absoluto. Não há como saber.
Em homenagem a Galileu, esse tipo de relatividade é geralmente chamado de
Relatividade Galileana.
Embora a Relatividade de Galileu tenha sido enunciada há mais de 400
anos, a maioria dos leigos ainda não a absorveu (para desespero dos professo-
res de ciências!). As pessoas ainda se perguntam se poderiam salvar-se de se-
rem esmagadas até a morte em um elevador em queda livre saltando no ar
pouco antes de atingir o solo - esquecendo-se de que, mesmo que invertessem
seu movimento em relação ao referencial inercial do elevador, estariam ainda
mergulhando para baixo em relação ao referencial inercial do solo!
A física newtoniana prevaleceu até o final do século XIX. Os dois grandes
domínios da física clássica do século XIX eram a mecânica de Newton (o es-
tudo do movimento dos corpos) e a eletrodinâmica de James Clerk Maxwell
(o estudo da radiação eletromagnética, incluindo a luz). A busca da física no
final do século XIX era formular teorias mutuamente consistentes desses dois
domínios. O problema era que, embora a mecânica de Newton fosse caracte-
rizada, como vimos, pela relatividade, a eletrodinâmica de Maxwell não o era.
Era amplamente aceito que a luz (e outras formas de radiação eletromagnéti-
ca) consistia em ondas e, como as ondas tinham que ser ondas de alguma coi-
sa (por exemplo, ondas sonoras são ondas do ar; ondas do mar são ondas da
água), a luz as ondas tinham que ser ondas de uma substância invisível e per-
meável apelidada de “o éter”. À medida que o século XIX avançava, o éter
foi despojado cada vez mais de suas propriedades, até que se tornou virtual-
mente sem caráter, servindo apenas como meio de propagação da luz. Como a
velocidade da luz havia sido medida e como a luz consistia em ondas no éter,

41 Galileu Galilei, Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo — Ptolemaico e Copérni-
co, trad. Stillman Drake (Berkeley: University of California Press, 1962), 186-188.
30
a velocidade da luz era absoluta; isto é, ao contrário dos corpos em movimen-
to, a velocidade da luz era determinável em relação a um referencial absoluto,
o referencial do éter. Certamente, no esquema newtoniano das coisas, os cor-
pos em movimento possuíam velocidades absolutas relativas a esse referenci-
al, mas dentro de um referencial inercial não havia como medir o que era. Em
contraste, como as ondas se movem através de seu meio a uma velocidade
constante, independentemente de quão rápido o objeto que as causou esteja se
movendo, a luz tinha uma velocidade fixa e determinável. Portanto, a eletro-
dinâmica, ao contrário da mecânica, não era caracterizada pela relatividade.
Mas agora parecia que alguém poderia usar a eletrodinâmica para eliminar
a Relatividade de Galileu. Como a luz se movia a uma taxa fixa através do
éter, era possível, medindo a velocidade da luz em diferentes direções, desco-
brir a própria velocidade em relação ao éter. Pois se alguém estivesse se mo-
vendo através do éter em direção à fonte de luz, a velocidade da luz deveria
ser medida como sendo mais rápida do que se estivesse em repouso (assim
como as ondas da água passariam por você mais rapidamente se você estives-
se nadando em direção à fonte das ondas do que se você estivesse flutuando
imóvel na água); Considerando que, se alguém estivesse se movendo através
do éter para longe da fonte de luz, a velocidade da luz seria medida como
sendo mais lenta do que se estivesse em repouso (assim como as ondas da
água passariam por você menos rapidamente se você estivesse nadando para
longe da fonte de luz). nas ondas do que se estivesse flutuando). Assim, seria
possível determinar experimentalmente dentro de um referencial inercial se
alguém está em repouso no éter ou quão rápido alguém está se movendo atra-
vés dele.
Imagine, então, a consternação quando experimentos, como o experimento
de Michelson-Morley em 1887, falharam em detectar qualquer movimento da
Terra através do éter! Apesar do fato de a Terra estar orbitando o Sol, a velo-
cidade da luz medida era idêntica, não importando a direção apontada pelo
dispositivo de medição. Alguns cientistas levantaram a hipótese de que talvez
a Terra arrastasse o éter consigo, como uma atmosfera, de modo que o éter
parecia estar em repouso ao redor da Terra em movimento. Mas essa explica-
ção foi descartada por um fenômeno bem estabelecido chamado aberração da
luz das estrelas, que era incompatível com o arrasto do éter.
É preciso sublinhar o quão estranha era a situação. As ondas viajam a uma
velocidade constante, independentemente do movimento de sua fonte e, nesse
sentido, são diferentes de projéteis, que viajam a uma velocidade que é uma
combinação da velocidade de sua fonte mais sua velocidade relativa à fonte.
Por exemplo, uma bala disparada à frente de um carro de polícia em alta ve-
locidade viaja a uma velocidade combinada da velocidade do carro mais a ve-
locidade normal da bala, em contraste com as ondas sonoras emitidas pela si-
rene do carro, que viajam pelo ar na mesma velocidade se o carro está parado
31
ou em movimento. Conseqüentemente, um observador que se move na mes-
ma direção de uma onda sonora a observará passando por ele a uma velocida-
de menor do que se estivesse em repouso. Se ele for rápido o suficiente, pode
pegar a onda e quebrar a barreira do som. Mas as ondas de luz são diferentes.
A velocidade medida da luz é a mesma em todos os referenciais inerciais, pa-
ra todos os observadores. Isso implica, por exemplo, que se um observador
em um foguete indo a 90% da velocidade da luz enviasse um feixe de luz à
sua frente, tanto ele quanto o receptor do feixe mediriam a velocidade do fei-
xe como sendo a mesma, e isso se o destinatário estava parado ou se movendo
em direção à fonte de luz ou se afastando a 90% da velocidade da luz.
Desesperados por uma solução, o físico irlandês George FitzGerald e o
grande físico holandês Hendrick A. Lorentz propuseram a notável hipótese de
que os dispositivos de medição encolhem ou contraem na direção do movi-
mento através do éter, de modo que a luz parece percorrer distâncias idênticas
em tempos idênticos., quando na verdade as distâncias variam com a veloci-
dade. Quanto mais rápido alguém se move, mais seus dispositivos se contra-
em, de modo que a velocidade medida da luz permanece constante. Portanto,
em todos os referenciais inerciais, a velocidade da luz parece a mesma. Com a
ajuda do cientista britânico Joseph Larmor, Lorentz também chegou à hipóte-
se de que os relógios desaceleram quando em movimento em relação ao refe-
rencial do éter. Assim, chegamos à relatividade lorentziana: existe movimento
absoluto, comprimento absoluto e tempo absoluto, mas não há como discerni-
los experimentalmente, pois o movimento através do éter afeta os instrumen-
tos de medição. Lorentz desenvolveu uma série de equações chamadas trans-
formações de Lorentz, que mostram como transformar as próprias medições
das coordenadas espaciais e temporais nas quais um evento ocorre nas medi-
ções que seriam feitas por alguém em outro referencial inercial. Essas equa-
ções de transformação permanecem hoje o núcleo matemático do STR, embo-
ra a interpretação física de Lorentz do STR fosse diferente da interpretação
mais comumente aceita hoje.

32
Hendrick A. Lorentz
“Um 'Espírito do Mundo' que, não estando
preso a um lugar específico, permeou todo o
sistema em consideração e 'em quem' este
sistema existiu e que poderia 'sentir' imedia-
tamente todos os eventos naturalmente dis-
tinguiria imediatamente um dos sistemas U,
U', etc., acima dos outros.”

Em 1905, Albert Einstein, então um obscuro funcionário de um escritório de


patentes em Berna, na Suíça, publicou sua própria versão da relatividade.
Nessa época de sua jovem carreira, Einstein ainda era discípulo do grande fí-
sico alemão Ernst Mach. Mach era um empirista fervoroso, que detestava
qualquer coisa que cheirasse a metafísica e que assim buscava reduzir afirma-
ções sobre entidades como tempo e espaço a afirmações sobre percepções
sensoriais e as conexões entre elas. O jovem Einstein tomou o que chamou de
seu “credo epistemológico” de Mach, sustentando que o conhecimento é
constituído pela totalidade das experiências sensoriais e pela totalidade dos
conceitos e proposições, que estão relacionados da seguinte maneira: “Os
conceitos e proposições obtêm ' significado', isto é, 'conteúdo', apenas por
meio de sua conexão com a experiência sensorial.42 Qualquer proposição não
tão conectada era, de acordo com Einstein, literalmente sem conteúdo, sem
sentido. Dado tal critério verificacionista de significado, o tempo, o espaço e
o movimento absolutos de Lorentz eram noções “metafísicas” e, portanto,
sem sentido.
O artigo de Einstein de 1905 no Annalen der Physik foi chamado de “o ar-
tigo mais profundamente revolucionário da história da física”.43 Ele abre seu
artigo descartando o éter como supérfluo, pois, diz ele, não será necessário
para os propósitos de seu artigo. Para falar sobre movimento de uma maneira
fisicamente significativa, afirma Einstein, devemos ser claros sobre o que
queremos dizer com “tempo”. Uma vez que todos os julgamentos sobre o
tempo dizem respeito a eventos simultâneos, o que precisamos é de uma ma-
neira de determinar empiricamente a simultaneidade de eventos distantes.

42 Albert Einstein, “Notas Autobiográficas,” em Albert Einstein: Philosopher-Scientist, Library of


Living Philosophers 7 (LaSalle, Illinois: Open Court, 1949), 13.
43 James T. Cushing, Philosophical Concepts in Physics (Cambridge: Cambridge University Press,
1998), 232.
33
Einstein passa então a oferecer um método para determinar, ou melhor, defi-
nir a simultaneidade para dois relógios espacialmente separados, mas relati-
vamente estacionários, ou seja, dois relógios distantes compartilhando o
mesmo referencial inercial. Este procedimento, por sua vez, servirá de base
para a definição do tempo de um evento. Ele nos pede para supor que o tempo
necessário para a luz viajar do ponto A ao ponto B é o mesmo que o tempo
necessário para a luz viajar de B para A. Teoricamente, a luz poderia viajar
mais lentamente de A para B e mais rapidamente de B para A, embora a velo-
cidade de ida e volta fosse sempre constante. Mas Einstein diz que devemos
assumir que a velocidade unidirecional da luz é constante. Tendo feito essa
suposição, ele propõe sincronizar os relógios em A e B por meio de sinais lu-
minosos de um para o outro. Suponha que A envie um sinal para B que, por
sua vez, é refletido de volta de B para A. Se A sabe que horas eram quando ele
enviou o sinal para B e que horas eram quando ele recebeu o sinal de volta de
B, então ele sabe que a leitura do relógio de B quando o sinal de A chegou es-
tava exatamente a meio caminho entre o momento em que A enviou o sinal e
o momento em que A recebeu o sinal de retorno. Desta forma, A e B podem
sincronizar seus relógios. Os eventos são declarados simultâneos se ocorre-
rem nos mesmos horários em relógios sincronizados. Utilizando relógios as-
sim sincronizados, Einstein define o tempo de um evento como “a leitura si-
multânea ao evento de um relógio em repouso e localizado na posição do
evento, sendo este relógio síncrono . . . com um relógio especificado em re-
pouso.”44 Até agora, o uso da luz como sinal não desempenha nenhum papel
especial; alguém poderia ter usado balas para sincronizar relógios distantes,
desde que as balas viajassem com uma velocidade uniforme.
Tudo isso pode parecer bastante inquestionável e até monótono. Mas se
você pensa assim, então você foi enganado. Os próprios fundamentos do
mundo acabaram de se mover! É com razão que Banesh Hoffmann aconselha,

Observe atentamente. Valerá a pena o esforço. Mas esteja avisado. Ao seguir-


mos a essência do argumento de Einstein, nos encontraremos concordando
com a cabeça e, mais tarde, quase dormindo, tão óbvio e sem importância pa-
recerá. Chegará um estágio em que mal seremos capazes de abafar um bocejo.
Cuidado. A essa altura já teremos nos comprometido e será tarde demais para
evitar o solavanco; pois a beleza do argumento de Einstein reside em sua apa-
rente inocência.45

44 Albert Einstein, “Sobre a eletrodinâmica dos corpos em movimento”, trad. Arthur Miller em
Arthur I. Miller, Teoria Especial da Relatividade de Albert Einstein (Reading, Mass.: Addison-
Wesley, 1981), 394.
45 Banesh Hoffmann, citado em Miller, Einstein’s Special Theory of Relativity, 192.
34
Albert Einstein
“Eu me deixo enganar como físico (e, claro,
o mesmo se aplica se eu não for físico)
quando imagino que sou capaz de atribuir
um significado à afirmação da simultanei-
dade.”

Sua aparente inocência! Pois sob o eufemismo de desconsiderar o éter como


desnecessário, Einstein abandonou não apenas o éter, mas, mais fundamen-
talmente, o referencial do éter, ou espaço absoluto. Sem espaço absoluto não
pode haver movimento absoluto ou repouso absoluto. Os corpos estão em
movimento ou em repouso apenas em relação uns aos outros, e seria sem sen-
tido perguntar se um corpo isolado está parado ou em movimento uniforme
per se.
Agora, suponha que temos referenciais inerciais que se movem um em re-
lação ao outro, por exemplo, um foguete passando perto da Terra a caminho
de um planeta distante. Suponha que, quando o foguete estiver perto da Terra,
seu relógio coincida com o relógio de um observador da Terra. Nesse mo-
mento, o observador na Terra envia um sinal de luz ao planeta, e um observa-
dor a bordo do foguete faz o mesmo. Aqui, o fato de que a luz é o sinal de-
sempenha um papel crucial. Pois, como a luz viaja na mesma velocidade em
relação a todos os referenciais inerciais, o sinal da nave não viaja mais rápido
que o sinal da Terra, mas os dois sinais viajam em conjunto e refletem de vol-
ta do planeta juntos. Mas, enquanto isso, o foguete se aproximou do planeta e,
portanto, recebe o sinal de retorno primeiro. Como a velocidade da luz é a
mesma para todos os referenciais inerciais, o observador no foguete não pode
detectar sua própria velocidade ao receber o sinal. O mesmo é verdade para o
observador da Terra quando seu sinal é então recebido. Mas quando o foguete
e os observadores terrestres dividem os tempos de viagem dos sinais de luz
pela metade, eles obterão tempos diferentes para quando os sinais atingirem o
planeta. Pode-se protestar que as medições do foguete estão distorcidas por-
que ele estava se movendo em direção ao planeta. Mas a relatividade exige
35
que o foguete possa ser considerado com igual justiça como em repouso, com
o planeta se aproximando dele e a Terra se afastando! Lembre-se, na teoria de
Einstein não há espaço absoluto e, portanto, não há descanso absoluto. Por-
tanto, dada a definição de simultaneidade de Einstein, diferentes eventos são
calculados para serem simultâneos em diferentes referenciais inerciais, e ne-
nhum deles é o referencial preferido para fornecer o tempo correto. Todas as
várias medições em vários quadros estão corretas para cada quadro respecti-
vo.
Agora vemos por que Einstein intitulou seu artigo “Sobre a eletrodinâmica
dos corpos em movimento”. Dada a constância da velocidade da luz em todos
os referenciais inerciais, os corpos em movimento estarão relacionados entre
si eletrodinamicamente de tal forma que o uso de sinais eletromagnéticos para
estabelecer relações de sincronia entre eles causará estragos com o que nor-
malmente entendemos por “simultaneidade”. O que acontece é que a simulta-
neidade se torna relativa. Einstein escreve: “Assim, vemos que não podemos
atribuir nenhum significado absoluto ao conceito de simultaneidade, mas que
dois eventos que, examinados de um sistema de coordenadas, são simultâ-
neos, não podem mais ser interpretados como eventos simultâneos quando
examinados de um sistema que é em movimento relativamente a esse siste-
ma”.46 O que isto significa é que eventos que são simultâneos calculados a
partir de um referencial inercial não serão simultâneos calculados a partir de
outro. Um evento que está no futuro de A pode já estar presente ou passado
para B! De fato, eventos que não estão conectados causalmente podem até ser
medidos para ocorrer em uma ordem temporal diferente em diferentes refe-
renciais inerciais!
O tempo e o espaço einsteinianos têm muitas outras propriedades estra-
nhas, como a dilatação do tempo, segundo a qual os relógios em movimento
(e todos os processos físicos) funcionam cada vez mais devagar à medida que
sua velocidade aumenta; e a contração do comprimento, segundo a qual os
corpos em movimento se contraem na direção do movimento. Isso também
era característico da teoria de Lorentz, lembre-se; mas a principal diferença
com a teoria de Einstein é que, uma vez que ele nega um referencial de éter,
esses fenômenos são recíprocos: para dois foguetes idênticos A e B relativa-
mente em movimento, B é mais curto que A e seu relógio funciona mais de-
vagar que o de A em relação ao referencial inercial de A; mas A é mais curto
que B e seu relógio funciona mais devagar que o de B em relação ao referen-
cial inercial de B. Como nenhum referencial inercial é preferido, não há com-
primento verdadeiro ou tempo verdadeiro per se, apenas comprimentos e
tempos relativos a diferentes referenciais.
Agora, como eu disse, o mundo einsteiniano é extraordinariamente difícil
de conceber. Pensamos intuitivamente que existe um tempo único e universal

46 Einstein, “Sobre a eletrodinâmica dos corpos em movimento”, 396.


36
no qual todos os eventos, por mais distantes que sejam, ocorrem, e um espaço
único e universal no qual existem todos os objetos físicos. Mas a teoria de
Einstein nos diz para substituir o espaço absoluto por um número infinito de
espaços diferentes, cada um associado a um referencial inercial diferente, e o
tempo absoluto por um número infinito de tempos diferentes, cada um associ-
ado a um referencial inercial diferente. A realidade, portanto, é radicalmente
fragmentada na visão de Einstein. Apenas observadores que compartilham o
mesmo referencial inercial (isto é, em repouso relativo) têm o mesmo tempo e
espaço. Observadores em outros referenciais inerciais (isto é, em movimento
relativo) vivem em um tempo e espaço diferentes. Acho que não é exagero
dizer que, segundo a teoria de Einstein, observadores em movimento relativo
habitam literalmente mundos diferentes que podem se cruzar apenas em um
ponto. Não é à toa que o artigo de Einstein é considerado revolucionário!
Que impacto o STR tem na natureza da eternidade divina? Bem, se Deus
está no tempo, então a pergunta óbvia levantada pelo STR é: em que tempo
Ele está? Pois, de acordo com Einstein, não existe um tempo universal único
e, portanto, nenhum “agora” único e mundial. Uma vez que nenhum dos infi-
nitos referenciais inerciais é privilegiado ou preferido, nenhum observador
hipotético pode alegar justificadamente que seu “agora” é o “agora” real ou
verdadeiro. Cada referencial inercial tem seu próprio tempo e seu próprio
momento presente, e não existe um tempo absoluto abrangente no qual todos
esses tempos diversos estejam integrados em um. Então a questão é: qual é o
“agora” de Deus?
O defensor da atemporalidade divina afirma que não há resposta aceitável
para essa pergunta. Não podemos escolher plausivelmente algum referencial
inercial e identificar seu tempo como o tempo de Deus porque Deus não é um
objeto físico em movimento uniforme e, portanto, a escolha de qualquer refe-
rencial seria totalmente arbitrária. Além disso, é difícil ver como Deus, confi-
nado ao tempo de um referencial inercial, poderia sustentar causalmente
eventos que são reais em relação a outros referenciais inerciais, mas são futu-
ros ou passados em relação ao referencial de Deus. Da mesma forma, o co-
nhecimento de Deus sobre o que está acontecendo agora seria restrito à pers-
pectiva temporal de um único quadro, deixando-O ignorante do que realmente
está acontecendo em outros quadros. De qualquer forma, se Deus fosse asso-
ciado a um referencial inercial particular, certamente, como o tempo de Deus,
o tempo desse referencial seria privilegiado. Seria o equivalente à estrutura
clássica do éter. Mas então estamos de volta à relatividade lorentziana, não à
relatividade einsteiniana. Enquanto mantivermos, com Einstein, que nenhum
referencial é privilegiado, não poderemos identificar o tempo de qualquer re-
ferencial inercial como o tempo de Deus.
Também não podemos dizer que Deus existe no “agora” associado ao
tempo de cada referencial inercial, pois isso obliteraria a unidade da consci-
37
ência de Deus. Nas palavras de um filósofo da ciência, “Deus teria uma per-
sonalidade infinitamente dividida, cada subpersonalidade evoluindo em um
isolamento semelhante a uma mônada das outras” – uma hipótese na qual ele
detecta o “fraco cheiro de politeísmo”.47 A fim de preservar a consciência de
Deus como a consciência de um ser, não devemos permitir que ela seja que-
brada e espalhada entre os referenciais inerciais do universo.
Mas se o tempo de Deus não pode ser identificado com o tempo de um
único quadro ou de uma pluralidade de quadros, então Deus não deve estar no
tempo de forma alguma; ou seja, Ele existe atemporalmente. Podemos resu-
mir esse raciocínio da seguinte forma:

1. STR está correto em sua descrição do tempo.

2. Se STR estiver correto em sua descrição do tempo, então se Deus for tempo-
ral, Ele existe tanto no tempo associado a um único referencial inercial quanto
nos tempos associados a uma pluralidade de referenciais inerciais.

3. Portanto, se Deus é temporal, Ele existe tanto no tempo associado a um úni-


co referencial inercial quanto nos tempos associados a uma pluralidade de refe-
renciais inerciais.

4. Deus não existe nem no tempo associado a um único referencial inercial


nem nos tempos associados a uma pluralidade de referenciais inerciais.

5. Portanto, Deus não é temporal.

CRÍTICA
O que pode ser dito em resposta a esse argumento? Embora possa ser um
choque para muitos, parece-me que a premissa mais duvidosa do raciocínio
acima é a premissa (1). Para entender por que digo isso, vamos recorrer à dis-
tinção de Newton entre tempo absoluto e relativo. Embora seja fácil encontrar
declarações de físicos e filósofos proeminentes no sentido de que STR destru-
iu o conceito de tempo absoluto e assim nos obriga a abandonar o conceito
clássico de tempo, tais veredictos são quase invariavelmente baseados em
uma compreensão superficial dos fundamentos metafísicos do tempo. A dou-
trina de Newton do tempo absoluto (e espaço).
Já vimos que o tempo newtoniano é absoluto tanto no sentido de que o
próprio tempo é distinto de nossas medidas de tempo quanto no sentido de
que existe um tempo único e abrangente. Mas, como é bem sabido, Newton
também concebeu o tempo como absoluto em um terceiro sentido, mais pro-
fundo, a saber, ele sustentou que o tempo existe independentemente de quais-
quer objetos físicos. Normalmente, isso é interpretado como significando que

47 Paul Fitzgerald, “Relativity Physics and the God of Process Philosophy,” Process Studies 2
(1972): 259, 260.
38
o tempo existiria mesmo se nada mais existisse, que podemos conceber um
mundo logicamente possível que é completamente vazio, exceto pelo recipi-
ente do espaço absoluto e pelo fluxo do tempo absoluto.
Mas aqui devemos ter muito cuidado. Os estudiosos seculares modernos
tendem frequentemente a esquecer o quão fervoroso era um teísta Newton e o
papel central que esse teísmo desempenhou em sua perspectiva metafísica.
Observando que Newton considerava Deus temporal e, portanto, o tempo
eterno, David Griffin observa que: “A maioria dos comentaristas ignorou a
teologia heterodoxa de Newton, e sua conversa sobre 'tempo absoluto' foi ge-
ralmente mal interpretada para significar que o tempo não é, em nenhum sen-
tido, uma relação e, portanto, pode existir à parte de eventos reais”.48 De fato,
Newton deixa bem claro no General Scholium aos Principia, que ele acres-
centou em 1713, que o tempo e o espaço absolutos são constituídos pelos
atributos divinos de eternidade e onipresença. Ele escreve,

Ele é eterno e infinito. . . ; isto é, sua duração vai de eternidade a eternidade;


sua presença do infinito ao infinito. . . . Ele não é eternidade e infinito, mas
eterno e infinito; ele não é duração nem espaço, mas perdura e está presente.
Ele permanece para sempre e está presente em todos os lugares; e, existindo
sempre e em toda parte, ele constitui a duração e o espaço. Uma vez que cada
partícula de espaço está sempre, e cada momento indivisível de duração está
em toda parte, certamente o Criador e Senhor de todas as coisas não pode estar
nunca e em nenhum lugar.49

Porque Deus é eterno, existe uma duração eterna, e porque Ele é onipresente,
existe um espaço infinito. O tempo e o espaço absolutos são, portanto, relaci-
onais na medida em que dependem da existência de Deus.
Em seu tratado anterior, “Sobre a gravidade e o equilíbrio dos fluidos”,
Newton argumentou que o espaço (e por implicação o tempo) não é nem uma
substância, nem uma propriedade, nem absolutamente nada. Não pode ser na-
da porque tem propriedades, como infinito e uniformidade em todas as dire-
ções. Não pode ser uma propriedade porque pode existir sem corpos. Tam-
pouco é uma substância: “Não é uma substância . . . porque não é absoluto em
si mesmo, mas é como se fosse um efeito emanante de Deus, ou uma disposi-
ção de todo ser. . . .”50 Ao contrário do entendimento convencional, Newton
aqui declara explicitamente que o espaço não é em si absoluto e, portanto, não
é uma substância. Ao contrário, é um efeito emanente — ou emanativo — de

48 David Ray Griffin, “Introduction: Time and the Fallacy of Misplaced Concreteness,” em
Physics and the Ultimate Significance of Time, ed. David R. Griffin (Albany, N.Y.: State Univer-
sity of New York Press, 1986), 6-7.
49 Newton, Princípios de Filosofia Natural, 2:545.
50 Isaac Newton, “On the Gravity and Equilibrium of Fluids,” [De gravitatione et aequipondio flu-
idorum], em Unpublished Scientific Papers of Isaac Newton, ed. A. Rupert Hall e Marie Boas Hall
(Cambridge: Cambridge University Press, 1962), 132.
39
Deus. Com essa noção, Newton quis dizer que o tempo e o espaço eram a
consequência imediata do próprio ser de Deus. O ser infinito de Deus tem
como consequência tempo e espaço infinitos, que representam a quantidade
de sua duração e presença. Newton não concebe o espaço ou o tempo como
atributos do próprio Deus, mas sim, como ele diz, efeitos concomitantes de
Deus.
Na visão de Newton, o “agora” de Deus é, portanto, o momento presente
do tempo absoluto. Uma vez que Deus não é “um deus-anão” localizado em
um determinado lugar no espaço,51 mas é onipresente, há um momento mun-
dial que está absolutamente presente. O teísmo temporal de Newton fornece,
assim, o fundamento para a simultaneidade absoluta. O presente absoluto e a
simultaneidade absoluta são características, antes de tudo, do tempo de Deus,
tempo absoluto e, derivativamente, do tempo medido ou relativo.
Assim, o conceito clássico newtoniano de tempo está firmemente enraiza-
do em uma cosmovisão teísta. O que Newton não percebeu, nem poderia ter
suspeitado, é que o tempo físico não é apenas relativo, mas também relativis-
ta, que a aproximação do tempo físico ao tempo absoluto depende não apenas
da regularidade do relógio de alguém, mas também de seu movimento. A me-
nos que um relógio estivesse em repouso absoluto, ele não registraria com
precisão a passagem do tempo absoluto. Os relógios em movimento funcio-
nam lentamente. Essa verdade, desconhecida de Newton, foi finalmente com-
preendida pelos cientistas apenas com o advento da Teoria da Relatividade.
Onde Newton falhou, então, não foi em sua análise do tempo absoluto ou
metafísico - ele tinha fundamentos teológicos para postular tal tempo - mas
em sua compreensão incompleta do tempo relativo ou físico. Ele presumiu
muito prontamente que um relógio ideal daria uma medida precisa do tempo
independentemente de seu movimento. Se confrontado com evidências relati-
vísticas, Newton sem dúvida teria recebido bem essa correção e visto nela ne-
nhuma ameaça à sua doutrina do tempo absoluto.52 Resumindo, a relatividade
corrige o conceito de tempo físico de Newton, não seu conceito de tempo ab-
soluto.
É claro que nem é preciso dizer que há muita antipatia na física moderna e
na filosofia da ciência em relação a realidades metafísicas como o espaço e o
tempo newtonianos, principalmente porque não são fisicamente detectáveis.
Mas Newton teria ficado singularmente impressionado com essa equação ve-
rificacionista entre indetectabilidade física e inexistência. Os fundamentos do

51 Isaac Newton, “Place, Time, and God,” em J. E. McGuire, “Newton on Place, Time, and God:
An Unpublished Source,” British Journal for the History of Science 11 (1978): 123.
52 John Lucas enfatiza: “A relatividade que Newton rejeitou não é a relatividade que Einstein pro-
pôs; e embora a Teoria Especial da Relatividade tenha mostrado que Newton estava errado em al-
guns aspectos, . . . não demonstrou que o tempo é relativo no sentido de Newton, e apenas uma
medida numérica do processo” (J. R. Lucas, A Treatise on Time and Space [Londres: Methuen,
1973], 90).
40
espaço e do tempo metafísicos não eram físicos, mas filosóficos ou, mais pre-
cisamente, teológicos. As objeções epistemológicas falham em preocupar
Newton porque, como o filósofo de Oxford, John Lucas, diz muito bem: “Ele
está pensando em uma Deidade onisciente e onipresente cuja relação caracte-
rística com as coisas e com o espaço é expressa no modo imperativo”.53 As
teorias físicas modernas nada dizem contra a existência de tal Deus ou contra
o tempo metafísico constituído, no pensamento de Newton, por Sua eternida-
de. O que a teoria da relatividade fez, com efeito, foi simplesmente remover
Deus do quadro e substituí-lo por um observador finito. “Assim”, de acordo
com o historiador da ciência Gerald Holton, “a RT [Teoria da Relatividade]
apenas mudou o foco do espaço-tempo do sensorium do Deus de Newton pa-
ra o sensorium do Gedankenexperimenter abstrato de Einstein – por assim di-
zer, a secularização final da física.”54 Mas para um homem como Newton, tal
perspectiva secular impede ao invés de avançar nossa compreensão da natu-
reza da realidade.
O que Einstein fez, na verdade, foi eliminar o tempo e o espaço absolutos
de Newton e, junto com eles, o éter, deixando para trás apenas suas medidas
empíricas. Como estes são relativizados a referenciais inerciais, chega-se à re-
latividade da simultaneidade e do comprimento. Que justificativa Einstein ti-
nha para um movimento tão radical? Como ele sabia que o tempo e o espaço
absolutos não existem? A resposta, em uma palavra, é o verificacionismo. De
acordo com o verificacionismo, afirmações que não podem ser em princípio
verificadas empiricamente não têm sentido. Os historiadores da ciência de-
monstraram de forma convincente que nas raízes filosóficas da teoria de Eins-
tein reside uma epistemologia verificacionista, mediada ao jovem Einstein
principalmente pela influência de Ernst Mach, que se expressa na análise de
Einstein dos conceitos de tempo e espaço.55
As seções introdutórias do artigo de Einstein de 1905 baseiam-se direta-
mente em suposições verificacionistas. Estes aparecem mais claramente em

53 Ibid., 143.
54 Gerald Holton, “On the Origins of the Special Theory of Relativity,” em Gerald Holton, Thema-
tic Origins of Scientific Thought: Kepler to Einstein (Cambridge, Mass.: Harvard University Press,
1973), 171. O sensorium foi concebido para ser aquele aspecto da mente em que as imagens men-
tais de objetos físicos são formadas. Newton disse que, como os objetos físicos existem no espaço
e Deus é onipresente, eles existem literalmente em Deus e, portanto, estão imediatamente presentes
para Ele. O espaço absoluto é, por assim dizer, o sensório de Deus no sentido de que Ele não preci-
sa de imagens mentais das coisas, uma vez que as próprias coisas estão presentes para Ele. O Ge-
dankenexperimenter (experimentador de pensamento) de Einstein é o observador hipotético associ-
ado a qualquer referencial inercial, para quem o tempo e o espaço são quantidades puramente rela-
tivas.
55 Ver especialmente Gerald J. Holton, “Mach, Einstein and the Search for Reality,” em Ernst
Mach: Physicist and Philosopher, Boston Studies in the Philosophy of Science 6 (Dordrecht: D.
Reidel, 1970), 165-199; idem, “Onde Está a Realidade? As Respostas de Einstein,” em Ciência e
Síntese, ed. UNESCO (Berlim: Springer-Verlag, 1971), 45-69; e os ensaios reunidos in idem, Ori-
gens Temáticas do Pensamento Científico.
41
sua redefinição operacionalista de conceitos-chave. Einstein propõe definir
conceitos como tempo e simultaneidade em termos de operações empirica-
mente verificáveis. O significado de “tempo” depende do significado de “si-
multaneidade”, que é definido localmente em termos de ocorrência na mesma
leitura do relógio local. Para definir um tempo comum para relógios espaci-
almente separados, adotamos a convenção de que o tempo que a luz leva para
viajar de A a B é igual ao tempo que leva para viajar de B a A – uma definição
que pressupõe que o espaço absoluto não existe. Pois se A e B estão em re-
pouso relativo, mas se movendo em tandem através do espaço absoluto, então
não é o caso de um feixe de luz viajar de A para B na mesma quantidade de
tempo que leva para viajar de B para A, uma vez que o as distâncias percorri-
das não serão as mesmas (Fig. 2.1).

Fig. 2.1: Sincronização de relógios relativamente estacionários em movimento


absoluto. Um sinal de luz é primeiro enviado de A para B. No momento em que
o sinal atinge B, ambos A e B terão se movido juntos a alguma distância do
ponto onde A liberou o sinal pela primeira vez. Finalmente, quando o sinal re-
fletido de B atingir A novamente, A e B terão se movido ainda mais longe do
ponto de liberação. Como o sinal viajou mais longe de A para B do que de B de
volta para A, o tempo que levou para viajar de A para B é maior que o tempo
que levou para viajar de B para A.

É por isso que a teoria de Einstein, longe de refutar a existência do espaço


absoluto, na verdade pressupõe sua inexistência. Tudo isso é feito por mera
estipulação. A realidade é reduzida ao que nossas medições indicam; O tempo
e o espaço metafísicos de Newton, que transcendem as definições operacio-
nais, são considerados meras invenções de nossa imaginação.
Como, então, devemos avaliar a alegação de que o STR eliminou o tempo
e o espaço absolutos? A primeira coisa a ser dita é que o verificacionismo que
caracterizou a formulação original de STR de Einstein pertence essencialmen-
te aos fundamentos filosóficos da teoria. Toda a teoria se baseia na redefini-
ção de simultaneidade de Einstein em termos de sincronização do relógio por

42
sinais de luz. Mas essa redefinição pressupõe necessariamente que o tempo
que a luz leva para viajar entre dois observadores relativamente estacionários
A e B é o mesmo de A para B e de B para A em uma viagem de ida e volta.
Essa suposição pressupõe que A e B não estão ambos em movimento absolu-
to, ou em outras palavras, que não existe espaço absoluto nem referencial
inercial privilegiado. A única justificativa para essa suposição é que é empiri-
camente impossível distinguir o movimento uniforme do repouso em relação
a tal referencial, e se o espaço absoluto e o movimento ou repouso absolutos
são indetectáveis empiricamente, eles não existem (e pode até ser considerado
sem sentido).
Em uma análise perspicaz dos fundamentos epistemológicos do STR, o fi-
lósofo da ciência da Universidade de Michigan, Lawrence Sklar, destaca o
papel essencial desempenhado por esse verificacionismo:

Certamente os argumentos originais em favor do ponto de vista relativista es-


tavam repletos de pressuposições verificacionistas sobre o significado etc. t ve-
rificacionista em essência.56

Seria desejável fazê-lo, pondera Sklar, mas “o que não sei é. . . como formu-
lar uma base coerente para a relatividade que não seja verificacionista. . . .”57
Mas se o verificacionismo pertence essencialmente aos fundamentos do
STR, a próxima coisa a ser dita é que o verificacionismo provou ser comple-
tamente insustentável e agora está ultrapassado. A insustentabilidade do veri-
ficacionismo é tão universalmente reconhecida que não será necessário ensai-
ar aqui as objeções contra ele.58 Richard Healey observa que o verificacio-
nismo “tem sofrido um ataque tão contínuo que a oposição a ele se tornou
quase ortodoxa na filosofia da ciência”.59 O verificacionismo não fornece jus-
tificativa para pensar que Newton errou, por exemplo, ao sustentar que Deus
existe em um tempo que existe independentemente de nossas medidas físicas
dele e que pode ou não ser registrado com precisão por eles. Não importa se

56 Lawrence Sklar, “Tempo, Realidade e Relatividade,” em Redução, Tempo e Realidade, ed. Ri-
chard Healey (Cambridge: Cambridge University Press, 1981), 141.
57 Ibid.
58 Veja a excelente pesquisa em Frederick Suppe, “The Search for Philosophical Understanding of
Scientific Theories,” em The Structure of Scientific Theories, 2ª ed., ed. F. Suppe (Urbana, Illinois:
University of Illinois Press, 1977), 3-118. O verificacionismo era uma teoria do significado muito
restritiva para ser plausível, pois nos forçaria a descartar como sem sentido vastas extensões do
discurso humano, incluindo não apenas declarações metafísicas e teológicas, mas também declara-
ções estéticas e éticas, bem como muitas declarações científicas (p. , o postulado da constância da
velocidade unidirecional da luz, uma suposição improvável que está no cerne do STR). Pior ainda,
o verificacionismo acabou se auto-refutando. Pois a afirmação “Apenas as sentenças que podem,
em princípio, ser verificadas empiricamente são significativas” não é em si uma sentença empiri-
camente verificável e, portanto, por seu próprio padrão, não tem sentido!
59 Richard Healey, "Introdução", em Healey, ed., Redução, Tempo e Realidade, vii.
43
nós, criaturas finitas, sabemos que horas são no tempo absoluto de Deus;
Deus sabe, e isso basta.
A física contemporânea, de qualquer forma, ignorou as restrições do veri-
ficacionismo. Quando o estudante contemporâneo de física lê as polêmicas
antimetafísicas da geração passada, ele deve se sentir como se estivesse pers-
crutando um mundo diferente! George Gale, ao examinar algumas das “per-
plexidades metafísicas abundantes na física de hoje”, afirma, “. . . estamos en-
trando em uma fase de atividade científica durante a qual o físico ultrapassou
seu campo de base filosófico e, encontrando-se cortado de suprimentos con-
ceituais, está pronto e esperando por algum alívio de seus camaradas de armas
filosóficos. 60 Em vários campos, como a mecânica quântica, a cosmologia
clássica e a cosmologia quântica, os debates se intensificam sobre questões
que são abertamente de caráter metafísico. Veja a mecânica quântica, por
exemplo. Um especialista recente disse: “Em um esforço para entender o
mundo quântico, somos levados além da física, certamente para a filosofia e
talvez até para a cosmologia, psicologia e teologia”.61 A cosmologia tornou-se
grandiosamente metafísica. “A cosmologia, mesmo praticada hoje”, diz Gale,
“é a ciência feita no limite: no limite de nossos conceitos, de nossos métodos
matemáticos, de nossos instrumentos, de fato, de nossa própria imaginação. . .
. é claro que a metafísica continua a desempenhar um papel honroso na cos-
mologia. E, na medida em que é um papel honroso, não é uma desonra usar a
metafísica na sua cosmologização.”62 Observando que nos últimos anos tais
“enigmas metafísicos” como creatio ex nihilo “entraram no mainstream das
discussões científicas”, John Barrow observa, “dogmas tradicionais quanto a
quais critérios devem ser atendidos por um corpo de ideias para que ele se
qualifique como uma 'ciência' agora parecem curiosamente inapropriados di-
ante de problemas e estudos muito distantes do empreendimento humano.63 A
visão verificacionista e antimetafísica da física que dominou os primeiros
dois terços do século XX está simplesmente ultrapassada à luz da física teóri-
ca contemporânea.
É difícil, portanto, entender quantos filósofos e físicos contemporâneos
ainda podem falar do STR nos “forçando” a abandonar os conceitos clássicos
de espaço e tempo ou da “destruição” do STR do tempo absoluto newtoniano.
Lawrence Sklar conclui,

60 George Gale, “Some Metaphysical Perplexities in Contemporary Physics”, artigo apresentado


na 36ª Reunião Anual da Metaphysical Society of America, Vanderbilt University, 14-16 de março
de 1985.
61 Euan Squires, O Mistério do Mundo Quântico (Bristol: Adam Hilger, 1986), 4.
62 George Gale, “Cosmos and Conflict,” paper apresentado na conferência “The Origin of the
Universe,” Colorado State University, Ft. Collins, Colorado, 22 a 25 de setembro de 1988.
63 John Barrow, O mundo dentro do mundo (Oxford: Clarendon, 1988), 2, vii-viii.
44
Os artigos originais de Einstein sobre a relatividade especial são baseados, co-
mo é bem sabido, em uma crítica verificacionista de teorias anteriores. . . .
Agora pode-se argumentar que o verificacionismo de Einstein foi um infortú-
nio, a ser enfrentado não com uma rejeição da relatividade especial, mas com
uma aceitação da teoria agora a ser compreendida em melhores bases episte-
mológicas. . . .
Mas não acho que uma posição desse tipo funcionará no presente caso. Não
vejo como rejeitar as velhas teorias compensatórias do éter, originalmente in-
vocadas para explicar os resultados de Michelson-Morley, sem invocar uma
crítica verificacionista de algum tipo ou outro.64

Com o desaparecimento do verificacionismo, os fundamentos filosóficos do


STR entraram em colapso. Em suma, não há razão para pensar que essa pre-
missa

1. STR fornece a descrição correta do tempo

é verdade.

Agora, deixe-me esclarecer que não estou aqui endossando a visão de Newton
sobre a eternidade divina; mas estou dizendo que o teólogo que, como New-
ton, acredita que Deus é temporal não precisa se sentir ameaçado pelo STR,
porque a afirmação do STR de que o tempo absoluto não existe é fundada es-
sencialmente em uma epistemologia extinta e insustentável.
Se supusermos que Deus está no tempo, como então devemos entender
STR? Henri Poincaré, o grande matemático francês e precursor do STR, aju-
dou a apontar o caminho. Em uma passagem fascinante de seu ensaio “A me-
dida do tempo”, Poincaré considera brevemente a hipótese de “uma inteligên-
cia infinita” e considera as implicações de tal hipótese. Poincaré está refletin-
do sobre o problema de como podemos aplicar uma e a mesma medida de
tempo a eventos espacialmente distantes. O que significa, por exemplo, dizer
que dois pensamentos na mente de duas pessoas ocorrem simultaneamente?
Ou o que significa dizer que uma supernova ocorreu antes que Colombo visse
o Novo Mundo? Como um bom verificacionista, Poincaré diz: “Todas essas
afirmações não têm sentido por si mesmas”.65 Então ele comenta,

Devemos primeiro nos perguntar como alguém pode ter tido a idéia de colocar
no mesmo quadro tantos mundos impenetráveis entre si. Gostaríamos de repre-
sentar para nós mesmos o universo externo e só assim poderíamos sentir que o
compreendemos. Sabemos que nunca poderemos atingir essa representação:
nossa fraqueza é muito grande. Mas ao menos desejamos a capacidade de con-
ceber uma inteligência infinita para a qual essa representação seja possível,

64 Sklar, “Time, Reality and Relativity,” 132.


65 Henri Poincaré, “A Medida do Tempo”, em The Foundations of Science, trad. G. B. Halstead
(Science Press: 1913; rep. ed.: Washington, DC: University Press of America, 1982), 228.
45
uma espécie de grande consciência que tudo veja e tudo classifique a seu tem-
po, como nós classificamos, em nosso tempo, o pouco que ver.
Essa hipótese é realmente tosca e incompleta, porque essa inteligência su-
prema seria apenas um semideus; infinito em um sentido, seria limitado em ou-
tro, pois teria apenas uma lembrança imperfeita do passado; não poderia ter ou-
tro, pois de outra forma todas as lembranças estariam igualmente presentes a
ele e para ele não haveria tempo. E, no entanto, quando falamos de tempo, para
tudo o que acontece fora de nós, não adotamos inconscientemente essa hipóte-
se; não nos colocamos no lugar desse Deus imperfeito; e nem mesmo os ateus
se colocam no lugar onde Deus estaria se existisse?
O que acabei de dizer nos mostra, talvez, por que tentamos colocar todos os
fenômenos físicos no mesmo quadro. Mas isso não pode passar por uma defi-
nição de simultaneidade, pois essa inteligência hipotética, mesmo que existis-
se, seria para nós impenetrável. É necessário, portanto, buscar outra coisa.66

Poincaré aqui sugere que, ao considerar a noção de simultaneidade, nós ins-


tintivamente nos colocamos no lugar de Deus e classificamos os eventos co-
mo passados, presentes ou futuros de acordo com o Seu tempo. Poincaré não
nega que do ponto de vista de Deus existiriam relações de absoluta simulta-
neidade. Mas ele rejeita a hipótese por fornecer uma definição de simultanei-
dade porque não poderíamos conhecer tais relações; tal conhecimento perma-
neceria como propriedade exclusiva do próprio Deus.
Claramente, as dúvidas de Poincaré são relevantes para uma definição de
simultaneidade apenas se alguém estiver pressupondo algum tipo de teoria
verificacionista do significado, como ele sem dúvida estava. O fato é que
Deus conhece a simultaneidade absoluta dos eventos, mesmo que tateemos na
escuridão total. Também não precisamos nos preocupar com o argumento de
Poincaré de que tal inteligência infinita seria um mero semideus, já que não
há razão para pensar que um ser temporal não possa ter uma lembrança per-
feita do passado. Não há dificuldade conceitual na ideia de um ser que conhe-
ce todas as verdades do passado. Seu conhecimento estaria em constante mu-
dança, à medida que mais e mais eventos se tornassem passados. Mas em ca-
da momento sucessivo ele poderia conhecer todas as verdades do passado que
existem naquele momento. Portanto, não se segue que, se Deus é temporal,
Ele não pode ter uma lembrança perfeita do passado.
A hipótese de Poincaré sugere, portanto, que se Deus é temporal, seu pre-
sente é constitutivo de relações de absoluta simultaneidade.67 Nesta visão, o

66 Ibid., 228-229.
67 Cfr. A ilustração de Lorentz em uma carta a Einstein em janeiro de 1915 em resposta ao artigo
deste último “The Formal Foundations of the General Theory of Relativity”. Em uma passagem
que lembra o General Scholium and Opticks de Newton, Lorentz abordou considerações pelas
quais “eu cruzo a fronteira da física”:

“Um 'Espírito do Mundo' que, não estando preso a um lugar específico, permeou todo
o sistema em consideração ou 'em quem' este sistema existiu e que poderia 'sentir'
46
filósofo J. M. Findlay estava errado quando disse: “a influência que harmoni-
za e conecta todas as linhas do mundo não é Deus, nem qualquer meio inerte
e sem características, mas aquele intercâmbio vivo e ativo chamado . . . Luz,
primogênito do Céu.”68 Pelo contrário, o uso de sinais de luz para estabelecer
a sincronia do relógio seria uma convenção que criaturas finitas e ignorantes
foram obrigadas a adotar, mas o Deus vivo e ativo, que tudo sabe, não seria
tão dependente. Convidando-nos a "imaginar um observador sobre-humano -
um deus - que não está limitado pelas limitações da velocidade máxima da
luz", observa Milton K. Munitz,

Tal observador poderia inspecionar em um único instante todo o domínio das


galáxias que já existem. Sua pesquisa não teria que depender da velocidade fi-
nita da luz. Não trairia qualquer restrição de informação do tipo que resulta do
tempo de atraso que leva para trazer informações sobre o domínio das galáxias
a um observador humano comum situado no universo e que, portanto, está vin-
culado aos mecanismos e processos de transmissão de sinal. Todo o domínio
das galáxias seria visto instantaneamente por esse privilegiado observador so-
bre-humano. Sua pesquisa observacional de todas as galáxias produziria o que
Milne chama de “mapa do mundo”.69

Na experiência temporal de Deus, haveria um momento que estaria presente


no tempo absoluto, registrado ou não por qualquer hora do relógio. Ele sabe-
ria, sem qualquer dependência de procedimentos de sincronização de relógio
ou quaisquer operações físicas, quais eventos estavam presentes simultanea-
mente em tempo absoluto. Ele saberia disso simplesmente em virtude de co-
nhecer em cada momento o conjunto único de verdades do tempo presente
naquele momento, sem qualquer necessidade de observação física do univer-
so.
Então, o que seria do STR se Deus estivesse no tempo? Pelo que foi dito, a
existência de Deus no tempo implicaria que Lorentz, e não Einstein, tivesse a
interpretação correta da Teoria da Relatividade. Ou seja, o procedimento de
sincronização do relógio de Einstein seria válido apenas no referencial (abso-
luto) preferido, e as hastes de medição se contraíriam e os relógios desacele-

imediatamente todos os eventos naturalmente distinguiria de uma só vez um dos sis-


temas U, U', etc. acima dos outros” (H. A. Lorentz para A. Einstein, janeiro de 1915,
Museu Boerhaave, citado em Jozsef Illy, “Einstein Teaches Lorentz, Lorentz Teaches
Einstein. Their Collaboration in General Relativity, 1913–1920,” Archive para His-
tory of Exact Sciences 39 [1989]: 274).

Tal ser, diz Lorentz, poderia “verificar diretamente a simultaneidade”.


6868 J. M. Findlay, “Time and Eternity,” Review of Metaphysics 32 (1978–1979): 6-7.
69 Milton K. Munitz, Cosmic Understanding (Princeton: Princeton University Press, 1986), 157.
Kanitscheider conclui que apenas um observador cósmico onipresente que vê o mundo sub specie
aeternitatis (da perspectiva da eternidade) pode estar em posição de elaborar um mapa-múndi
(Bernulf Kanitscheider, Kosmologie [Stuttgart: Philipp Reclam, junho, 1984], 193).
47
rariam da maneira relativística especial usual quando em movimento em rela-
ção ao referencial preferido. Tal interpretação estaria implícita na temporali-
dade divina, pois Deus no “agora” do tempo absoluto saberia quais eventos
no universo estão sendo agora criados por Ele e, portanto, são absolutamente
simultâneos entre si e com Seu “agora”. Essa conclusão surpreendente mostra
que a hipótese teísta de Newton não é uma especulação ociosa, mas tem im-
plicações importantes para nossa compreensão de como o mundo é e para a
avaliação de teorias científicas rivais.
A relatividade lorentziana é admitida por todos como empiricamente equi-
valente à relatividade einsteiniana, e há até mesmo indicações na vanguarda
da ciência hoje de que uma visão lorentziana pode ser preferível à luz de des-
cobertas recentes. De fato, devido aos desenvolvimentos na física quântica (a
física do reino subatômico), houve o que um participante do debate chamou
de “mudança radical” na atitude da comunidade física em relação à relativi-
dade lorentziana.70
Por exemplo, a melhor explicação da evidência experimental sobre o que é
chamado de Teorema de Bell parece ser que existem relações de simultanei-
dade absoluta. Primeiro, um pouco do histórico: entre 1927 e 1935, Einstein
manteve uma discussão contínua com o físico dinamarquês Niels Bohr, o pai
da física quântica. Bohr acreditava que as partículas elementares não têm
propriedades intrínsecas e determinadas, como momento e localização. Tais
propriedades são possuídas apenas em relação a alguns aparelhos de medição.
Retrucando que “Deus não joga dados”, Einstein repetidamente tentou inven-
tar experimentos mentais que mostrassem que, ao contrário de Bohr, o mundo
subatômico não é caracterizado pela indeterminação. O mais célebre deles foi
um experimento mental proposto em conjunto com Boris Podolsky e Nathan
Rosen em 1935, que passou a ser conhecido como experimento EPR. 71 A
ideia era dividir um feixe de luz em duas partículas viajando em direções
opostas. Se medirmos a velocidade de uma das partículas, a física quântica
exige que a outra partícula assuma instantaneamente um valor semelhante.
Como nenhuma influência causal pode viajar mais rápido do que a velocidade
da luz, não há como a medição de uma partícula influenciar a outra. Assim, as
partículas devem possuir uma velocidade intrínseca e determinada mesmo an-
tes de serem medidas - em contradição com a afirmação de Bohr. Em 1964,

70 John Kennedy em um documento entregue à American Philosophical Association, Reunião da


Divisão Central, Pittsburgh, Pa., 23-26 de abril de 1997. Compare a observação passageira de Ba-
lashov, “a ideia de restaurar a simultaneidade absoluta não tem mais um caráter distintivamente
pseudocientífico sabor que teve até muito recentemente” (Yuri Balashov, “Enduring and Perduring
Objects in Minkowski Space-Time,” Philosophical Studies 99 (2000): 159).
71 A. Einstein, B. Podolsky e N. Rosen, “A descrição mecânica quântica da realidade física pode
ser considerada completa?” reimpresso em Quantum Theory and Measurement, ed. John Archibald
Wheeler e Wojciech Hubert Zurek, Princeton Series in Physics (Princeton: Princeton University
Press, 1983), 138.
48
John Bell mostrou que, se Einstein estivesse certo, tal experimento teria con-
sequências testáveis que discordam das previsões feitas pela teoria quântica.72
Os testes foram executados e, eis que as previsões da física quântica foram to-
talmente confirmadas.
As implicações foram enormes. Para explicar os resultados, deve-se postu-
lar influências causais mais rápidas que a luz entre as partículas ou sustentar
que as partículas são de alguma forma não causalmente correlacionadas, de
modo que ambas as partículas assumem instantaneamente certas propriedades
determinadas. Em ambos os casos, a relatividade da simultaneidade postulada
por STR terá de ser abandonada. O próprio Bell, ponderando as implicações
dos dados experimentais, refletiu,

Acho que é um dilema profundo, e a resolução dele não será trivial; exigirá
uma mudança substancial na maneira como vemos as coisas. Mas eu diria que
a resolução mais barata é algo como voltar à relatividade como era antes de
Einstein, quando pessoas como Lorentz e Poincaré pensavam que havia um
éter – um referencial preferido – mas que nossos instrumentos de medição
eram distorcidos pelo movimento em de tal forma que não poderíamos detectar
movimento através do éter. . . . essa é certamente a solução mais barata. Por
trás da aparente invariância de Lorentz dos fenômenos, há um nível mais pro-
fundo que não é invariante de Lorentz. . . . o que não é suficientemente enfati-
zado nos livros didáticos, na minha opinião, é que a posição pré-Einstein de
Lorentz e Poincaré, Larmor e Fitzgerald era perfeitamente coerente e não in-
consistente com a teoria da relatividade. A ideia de que existe um éter, e essas
contrações de Fitzgerald e dilatações de Larmor ocorrem e, como resultado, os
instrumentos não detectam movimento através do éter - esse é um ponto de vis-
ta perfeitamente coerente. . . . A razão pela qual quero voltar à ideia de um éter
aqui é porque nesses experimentos EPR há a sugestão de que nos bastidores
algo está indo mais rápido que a luz. Agora, se todos os quadros de Lorentz são
equivalentes, isso também significa que as coisas podem voltar no tempo. . . .
[Isso] introduz grandes problemas, paradoxos de causalidade e assim por dian-
te. E é precisamente para evitá-los que quero dizer que existe uma sequência
causal real que se define no éter.73

À luz do exposto, não é de admirar que o grande filósofo da ciência, Karl Po-
pper, tenha considerado os experimentos executados no Teorema de Bell co-
mo os primeiros experimentos cruciais entre as interpretações da relatividade
de Lorentz e Einstein. Ele comenta,

72 J. S. Bell, “On the Einstein Podolsky Rosen Paradox”, reimpresso em Quantum Theory and
Measurement, 403-408.
73 “John Bell,” entrevista em P. C. W. Davies e J. R. Brown, The Ghost in the Atom (Cambridge:
Cambridge University Press, 1986), 45-47. Mesmo que alguém não postule influências causais
mais rápidas que a luz, permanece o fato de que a indeterminação em cada partícula colapsa instan-
tânea e simultaneamente, o que não pode ser explicado dentro de uma interpretação einsteiniana de
STR, como é lucidamente explicado por Tim Maudlin, Quantum Non -Localidade e Relatividade,
Sociedade Aristotélica Série 13 (Oxford: Blackwell, 1994).
49
A razão para esta afirmação é que a mera existência de uma velocidade infinita
acarreta a de uma simultaneidade absoluta e, portanto, de um espaço absoluto.
Se uma velocidade infinita pode ou não ser alcançada na transmissão de sinais
é irrelevante para este argumento: o único sistema inercial para o qual a simul-
taneidade einsteiniana coincide com a simultaneidade absoluta. . . seria o sis-
tema em repouso absoluto - quer este sistema em repouso absoluto possa ou
não ser identificado experimentalmente.74

Se houver ação à distância, aconselha Popper, “isso significaria que temos


que desistir da interpretação de Einstein da relatividade especial e retornar à
interpretação de Lorentz e com ela ao espaço e tempo absolutos de New-
ton”.75 Popper continua a observar que nenhum formalismo matemático do
STR precisa ser abandonado, mas apenas a interpretação de Einstein dele. “Se
agora temos razões teóricas da teoria quântica para introduzir a simultaneida-
de absoluta, então teríamos que voltar à interpretação de Lorentz.”76
Além disso, em um desenvolvimento verdadeiramente surpreendente na
cosmologia do século XX, podemos até ter uma boa ideia de qual é o referen-
cial preferido. Pois a radiação cósmica de fundo em micro-ondas inicialmente
prevista por George Gamow e depois descoberta em 1965 por A. A. Penzias e
R. W. Wilson está em repouso em relação ao espaço em expansão da cosmo-
logia do Big Bang. É, portanto, uma espécie de éter, servindo para distinguir
um quadro de descanso universal.77 Testes recentes detectaram até mesmo o
movimento da Terra em relação a essa radiação de fundo, realizando assim o
sonho da física do século XIX de medir o vento do éter!78 O que a física do
século XIX não conseguiu detectar usando radiação de luz visível, a física do
século XX descobriu usando radiação de micro-ondas. O filósofo da ciência
James Cushing conecta o referencial universal preferido definido pela radia-
ção de fundo de micro-ondas com o referencial único em que a simultaneida-
de absoluta é exigida pelos resultados experimentais do Teorema de Bell,

74 Karl Popper, “A Critical Note on the Greatest Days of Quantum Theory”, em Quantum, Space
and Time—The Quest Continues, ed. Asim O. Barut, Alwyn van der Merwe e Jean-Pierre Vigier,
Cambridge Monographs on Physics (Cambridge: Cambridge University Press, 1984), 54.
75 Karl Popper, Teoria Quântica e o Cisma na Física, ed. W. W. Bartley III (Totowa, N.J.: Row-
man e Littlefield, 1982), 29.
76 Ibid., 30.
77 Michael Heller, Zbigniew Klimek e Konrad Rudnicki, “Fundamentos Observacionais para Su-
posições em Cosmologia”, em Confrontação de Teorias Cosmológicas com Dados Observacio-
nais, ed. M. S. Longair (Dordrecht: D. Reidel, 1974), 4. Kanitscheider observa: “A radiação cós-
mica de fundo, portanto, fornece um quadro de referência, em relação ao qual é significativo falar
de um movimento absoluto” (Kanitscheider, Kosmologie, 256).
78 G. F. Smoot, M. Y. Gorenstein e R. A. Muller, “Detecção de anisotropia na radiação cósmica
do corpo negro”, Physical Review Letters 39 (1977): 899.
50
proclamando: “Hoje. . . o éter ressurgiu através de fenômenos quânticos!”79
Só podemos especular se, se esses fatos fossem conhecidos em 1905, Einstein
teria sugerido que o espaço e o tempo absolutos não existem.
Novamente, nada disso prova que Newton estava certo ao pensar que Deus
está no tempo; mas enfraquece a alegação de que STR provou que Newton
estava errado. O defensor da temporalidade divina pode rejeitar plausivel-
mente a primeira premissa do argumento da atemporalidade divina baseado
na Teoria Especial da Relatividade.
Mas e a segunda premissa?

2. Se STR estiver correto em sua descrição do tempo, então se Deus for tempo-
ral, Ele existe tanto no tempo associado a um único referencial inercial quanto
nos tempos associados a uma pluralidade de referenciais inerciais.

Essa premissa é verdadeira? A dificuldade com essa premissa é que ela não
leva em conta o fato de que STR é uma teoria da relatividade restrita e, por-
tanto, é correta apenas dentro de limites prescritos. É uma teoria que trata
apenas do movimento uniforme. A análise de movimentos não uniformes,
como aceleração e rotação, é fornecida pela Teoria da Relatividade Geral
(GTR). Portanto, não se pode esperar que STR nos dê a palavra final sobre a
natureza do tempo e do espaço; de fato, no contexto do GTR surge uma nova
e importante concepção de tempo.
Vamos, portanto, oferecer uma breve explicação do GTR. Como na física
newtoniana, também no STR o movimento acelerado ou rotacional não é rela-
tivo, mas absoluto. Se um quadro de referência estiver acelerando, em vez de
se mover uniformemente, haverá efeitos discerníveis dentro do quadro. Por
exemplo, um viajante espacial sente-se pressionado contra seu assento en-
quanto seu foguete acelera; da mesma forma, a desaceleração faz com que ele
caia para a frente em seu assento. Preocupado com a não equivalência de re-
ferenciais inerciais e não inerciais, Einstein esforçou-se em seu GTR para
enunciar um Princípio Geral da Relatividade que serviria para tornar fisica-
mente equivalentes todos os referenciais inerciais e não inerciais. Em seu ar-
tigo “The Foundations of General Relativity Theory” (1915), ele se gabou de
que sua teoria “tira do espaço e do tempo o último resquício de objetividade
física”.80 Com efeito, pretendia ser a destruição final do espaço e tempo abso-
lutos de Newton.
O que Einstein viu foi que os efeitos da aceleração eram exatamente equi-
valentes aos efeitos da gravitação. Um viajante espacial em uma cápsula re-

79 James T. Cushing, “Que problema de medição?” em Perspectives on Quantum Reality, ed. Rob
Clifton, University of Western Ontario Series in Philosophy of Science 57 (Dordrecht: Kluwer
Academic Publishers, 1996), 75. Assim também Popper, Quantum Theory, 30.
80 A. Einstein, “The Foundations of General Relativity Theory”, em General Theory of Relativity,
ed.C. W. Kilminster, Selected Readings in Physics (Oxford: Pergamon Press, 1973), 148.
51
pentinamente pressionado contra seu assento não saberia a diferença entre a
aceleração de seu foguete ou um aumento na força da gravidade atrás dele.
(Portanto, hoje falamos frequentemente de um astronauta sentindo uma força
de vários Gs [várias vezes a força normal da gravidade] quando seu foguete
decola.) Talvez, então, a gravidade e a aceleração possam ser consideradas
equivalentes.
Para realizar essa ideia, Einstein propôs que a gravidade fosse analisada
não como uma força que de alguma forma afeta objetos à distância, mas sim
como a aceleração dos objetos no espaço-tempo. Um objeto físico dobra ou
distorce o espaço-tempo, assim como uma bola pesada em repouso sobre uma
almofada distorce a almofada, de modo que os objetos que parecem estar sob
a influência gravitacional de outro objeto não estão de fato sendo puxados em
direção ao objeto maior, mas sim, para colocá-lo grosseiramente, descendo a
colina em direção a ele. Uma analogia bidimensional seria uma folha de bor-
racha esticada com bolas de várias massas colocadas na folha, causando de-
pressões em torno delas de várias profundidades. Se um rolamento de esferas
fosse rolado pela folha e atingisse uma depressão, ele seria desviado de seu
caminho e talvez até “puxado” para o objeto que está causando a depressão.
Embora o análogo tridimensional disso não seja visível, Einstein elaborou
uma teoria matemática incrivelmente complexa para isso, que veio substituir
a teoria da gravitação de Newton.
Na verdade, porém, Einstein foi apenas parcialmente bem-sucedido em
atingir seus objetivos. Ele não conseguiu enunciar um Princípio Geral da Re-
latividade defensável, nem foi capaz de mostrar a equivalência física de todos
os referenciais.81 A aceleração e a rotação ainda são distinguíveis do movi-
mento uniforme no contexto do GTR. Ele conseguiu esboçar uma teoria revo-
lucionária e complexa da gravitação, que tem sido amplamente aclamada co-
mo sua maior conquista intelectual. A chamada Teoria Geral da Relatividade
é, portanto, um nome impróprio: é realmente uma teoria da gravitação e não
uma extensão da Teoria Especial da Relatividade de referenciais inerciais pa-
ra todos os referenciais.
Pode parecer, portanto, que GTR nada mais tem a contribuir para nossa
compreensão do tempo do que STR. As duas teorias parecem diferir sim-
plesmente sobre se o espaço-tempo é curvo; se adicionarmos uma condição
de planicidade do espaço-tempo ao GTR, o resultado será STR. Tal conclusão
seria equivocada, no entanto. Pois o GTR serve para introduzir na Teoria da
Relatividade uma perspectiva cósmica, permitindo-nos elaborar modelos
cosmológicos do universo regidos pelas equações do campo gravitacional do

81 Ver Michael Friedman, Foundations of Space-Time Theories (Princeton: Princeton University


Press, 1983), 204-215; também Hermann Bondi, "A 'relatividade geral' é necessária para a teoria da
gravitação de Einstein?" em Relatividade, Quanta e Cosmologia no Desenvolvimento do Pensa-
mento Científico de Albert Einstein, ed. Francesco De Finis, 2 vols. (Nova York: Johnson Reprint
Corp., 1979), 179-186.
52
GTR. No contexto de tais modelos cosmológicos, a questão do tempo ressur-
ge dramaticamente.
O próprio Einstein propôs o primeiro modelo cosmológico baseado em
GTR em seu artigo, "Considerações cosmológicas sobre a teoria geral da rela-
tividade", em 1917.82 O modelo descreve um universo cuja dimensão tempo-
ral é infinita, mas cujas dimensões espaciais são finitas e invariáveis. Assim,
o espaço-tempo quadridimensional tem a forma de um cilindro, o tempo re-
presentado pelo comprimento do cilindro e o espaço por suas seções transver-
sais. O filósofo da ciência alemão Bernulf Kanitscheider chama nossa atenção
para a coordenada de tempo que aparece no modelo de Einstein:

Representa em certo sentido a restauração do tempo universal que foi destruído


pelo STR. No mundo estático existe um referencial global, em relação ao qual
toda a matéria cósmica se encontra em repouso. Todos os parâmetros cosmo-
lógicos são independentes do tempo. No quadro restante da matéria cósmica, o
espaço e o tempo estão separados. Para observadores fundamentais em repou-
so, todos os relógios podem ser sincronizados e uma simultaneidade mundial
pode ser definida neste quadro cósmico.83

Assim, considerações cosmológicas levam à concepção de um tempo cósmico


que mede a duração do universo como um todo.
Esse tempo cósmico também não está limitado ao modelo de universo es-
tático de Einstein. Modelos de um universo em expansão, cuja origem remon-
ta ao modelo de Willem de Sitter de 1917, 84 também podem envolver um
tempo cósmico. Todos os modelos de expansão contemporâneos derivam do
modelo de 1922 do físico russo Alexander Friedman de um universo material
em expansão caracterizado por homogeneidade e uniformidade ideais.85 Vá-
rias características do tempo cósmico nos modelos de Friedman merecem
comentários. Primeiro, embora se possa dividir o espaço-tempo em várias se-
ções transversais espaciais de forma totalmente arbitrária, certos espaços-
tempos têm simetrias naturais que orientam a construção do tempo cósmico.86
O próprio GTR não exige nenhuma fórmula para como dividir o espaço-
tempo; não tem “camadas” inerentes. Teoricamente, então, pode-se cortá-lo à
vontade. No entanto, certos modelos de espaço-tempo, como o modelo de

82 Albert Einstein, “Cosmological Considerations on the General Theory of Relativity”, em The


Principle of Relativity, de Albert Einstein, et al., com notas de A. Sommerfeld, trad. W. Perrett e J.
B. Jeffery (reimpressão, Nova York: Dover Publications, 1952), 177-188.
83 Kanitscheider, Cosmology, 155. Veja também G. J. Whitrow, The Natural Philosophy of Time,
2d ed. (Oxford: Clarendon, 1980), 283-284.
84 Willem de Sitter, “On the Relativity of Inertia,” na Royal Netherlands Academy of Arts and Sci-
ences Division Wis. e Ciências Físicas, Proceedings of the Section of Science 19 (1917): 1217-
1225.
85 A. Friedman, “Über die Krümmung des Raumes,” Zeitschrift für Physik 10 (1922): 377-386.
86 Ver Charles W. Misner, Kip S. Thorne e John Archibald Wheeler, Gravitation (San Francisco:
W. H. Freeman, 1973), 713-714; Kanitscheider, Kosmologie, 182-197.
53
Friedman, têm uma geometria espacial dinâmica e evolutiva e, para garantir
um desenvolvimento suave dessa geometria, será necessário construir um pa-
râmetro de tempo baseado em uma divisão preferencial do espaço -tempo.
Tomando emprestada uma ilustração de Sir Arthur Eddington, podemos
pensar no espaço-tempo na analogia de uma pilha de papel ou de um bloco
sólido de papel. O bloco sólido poderia, teoricamente, ser cortado de qualquer
maneira em uma série de folhas. Mas suponha que em cada página da pilha de
papel seja desenhada uma figura de desenho animado, de modo que, folhean-
do as páginas sucessivamente, veja-se a figura tal que, folheando as páginas
sucessivamente, veja-se a figura animada em ação. Qualquer outro corte do
bloco resultaria apenas em uma série embaralhada de marcas de tinta. Nesse
caso, seria fantasioso pensar que qualquer folheação arbitrária é tão boa quan-
to aquela que trata o bloco como uma pilha de páginas (Fig. 2.2). Analoga-
mente, a evolução da geometria do espaço ao longo do tempo nos modelos de
Friedman revela a foliação natural do espaço-tempo em tal universo. A geo-
metria dinâmica e em evolução do espaço, como a figura do desenho anima-
do, seria destruída por qualquer divisão arbitrária do espaço-tempo (Fig. 2.3).
Em um universo de Friedman, então, há uma divisão preferencial do espaço-
tempo ao longo de um parâmetro de tempo cósmico de acordo com certas si-
metrias naturais.
Agora, como parâmetro, o tempo cósmico mede a duração do universo
como um todo de maneira independente do observador; isto é, o lapso de
tempo cósmico é o mesmo para todos os observadores. No entanto, o tempo
cósmico está relacionado com os horários locais de um grupo especial de ob-
servadores chamados “observadores fundamentais”. Estes são observadores
hipotéticos que estão em repouso em relação à expansão do próprio espaço. É
importante perceber que, apesar de expressões potencialmente enganosas co-
mo “o Big Bang”, a expansão do universo não deve ser pensada como a ex-
plosão de material em um espaço vazio previamente existente. Em vez disso,
nos modelos de Friedman, é o próprio espaço que está se expandindo, e as ga-
láxias são fixadas no espaço e estão simplesmente “cavalgando” com o espa-
ço em expansão. A maneira mais fácil de visualizar isso é imaginar um balão
com botões colados em sua superfície. Conforme você enche o balão, os bo-
tões, embora presos no lugar, se afastam um do outro porque o próprio balão
está se expandindo. A superfície do balão é o análogo bidimensional do espa-
ço, e os botões são como as galáxias. À medida que o espaço se expande, as
galáxias se afastam umas das outras, mesmo estando fixas no espaço. Agora,
os observadores fundamentais são observadores hipotéticos associados às ga-
láxias. À medida que o tempo passa e a expansão do espaço prossegue, cada
observador fundamental permanece no mesmo lugar, embora sua separação
espacial de outros observadores fundamentais aumente. O tempo cósmico re-
laciona-se com esses observadores no sentido de que todos os seus horários
54
locais coincidem com o tempo cósmico em sua vizinhança. Por causa de sua
recessão mútua, a classe dos observadores fundamentais não serve para defi-
nir um referencial inercial global, tecnicamente falando, mesmo que todos es-
tejam em repouso. Mas como cada observador fundamental está em repouso
em relação ao espaço, os eventos que ele calcula serem simultâneos coincidi-
rão localmente com os eventos que são simultâneos no tempo cósmico. O que
isso implica é que, ao contrário da premissa (2), não se segue da correção de
STR que se Deus está no tempo, então Ele está no tempo de um ou mais refe-
renciais inerciais.87 Pois se Deus existe no tempo cósmico, não há um refe-
rencial inercial universal com o qual Ele possa ser associado.

Fig. 2.2: Corte arbitrário de um bloco de papel sólido em contraste com uma
pilha de folhas de papel.

87 No sentido de que Deus existe no tempo do referencial inercial de cada observador fundamen-
tal, não há objeção, pois todos os seus tempos locais se fundem em um tempo cósmico.
55
Fig. 2.3: Corte preferencial do espaço-tempo conforme divulgado pelas sime-
trias geométricas naturais no modelo de Friedman. A geometria do espaço
(d𝜎2) evolui ao longo do tempo (-dt + R2[t]).

Assim, em uma escala cósmica, parece que temos aquela universalidade de


tempo e absoluta simultaneidade de eventos que a Teoria Especial havia ne-
gado. G. J. Whitrow, do Imperial College of Science and Technology de
Londres, afirma: “em um universo caracterizado pela existência de um tempo
cósmico, a relatividade é reduzida a um fenômeno local, já que esse tempo é
mundial e independente do observador”. 88 Com base em uma perspectiva
cosmológica e não local, o tempo cósmico serve para restaurar para nós nos-
sas noções intuitivas de tempo universal e simultaneidade absoluta que STR
negou.
A questão, então, torna-se empírica: o tempo cósmico existe? Vivemos em
um universo de Friedman? A evidência sugere fortemente que sim. De acordo
com o astrônomo real britânico Martin Rees, “o resultado mais notável de 50
anos de cosmologia observacional foi a percepção de que o universo é mais
isotrópico e uniforme do que os teóricos pioneiros da década de 1920 jamais
teriam suspeitado”.89 As descobertas recentes do satélite COBE, que mediu a
uniformidade da radiação cósmica de fundo para uma parte em 100.000, enfa-
tizaram dramaticamente esta conclusão. “Temos fortes evidências de que o
universo como um todo é predominantemente homogêneo e isotrópico”,
afirma Whitrow, “e esta conclusão . . . é um forte argumento para a existência
do tempo cósmico.”90 Portanto, longe de “tirar do espaço e do tempo o último
resquício de objetividade física”, como Einstein pensou a princípio, o GTR,
por meio de suas aplicações cosmológicas, parece devolver o que o STR ha-
via removido.
O defensor da temporalidade divina pode, portanto, sustentar que Deus
existe no tempo cósmico. Já em 1920, com base nos modelos cosmológicos
de Einstein e de Sitter, Eddington sugeriu uma interpretação teológica do
tempo cósmico:

Em primeiro lugar, o espaço e o tempo absolutos são restaurados para fenôme-


nos em escala cósmica. . . . O mundo tomado como um todo tem uma direção
na qual não é curvo; essa direção dá uma espécie de tempo absoluto distinto do
espaço. A relatividade é reduzida a um fenômeno local; e embora isso seja bas-
tante suficiente para a teoria até aqui descrita, estamos inclinados a olhar para a
limitação de má vontade. Mas já enfatizamos que a teoria da relatividade não

88 Whitrow, Filosofia Natural do Tempo, 371; cf. 302.


8989 Martin J. Rees, “The Size and Shape of the Universe”, em Some Strangeness in the Propor-
tion, ed. Harry Woolf (Reading, Mass.: Addison-Wesley, 1980), 293. Isotropia é a propriedade de
ser o mesmo em todas as direções.
90 Whitrow, Natural Philosophy of Time, 307.
56
está preocupada em negar a possibilidade de um tempo absoluto, mas em negar
que esteja relacionada a qualquer conhecimento experimental já encontrado; e
não precisamos nos perturbar se a concepção de tempo absoluto aparecer em
uma nova forma em uma teoria de fenômenos em escala cósmica, sobre a qual
nenhum conhecimento experimental ainda está disponível. Assim como cada
observador limitado tem sua própria separação particular de espaço e tempo,
um ser coextensivo ao mundo pode muito bem ter uma separação especial de
espaço e tempo natural para ele. É o tempo desse ser aqui dignificado pelo títu-
lo de “absoluto”.91

Observe que Eddington está bastante disposto a chamar o tempo cósmico de


“absoluto” em vista de sua independência do espaço, ou seja, seu status de pa-
râmetro. O tempo relativista é apenas um tempo local, enquanto o tempo
cósmico, sendo não local, é o tempo verdadeiro. Embora em 1920 não hou-
vesse nenhuma evidência empírica para o tempo cósmico, em poucos anos as
evidências astronômicas confirmaram a previsão do modelo de Friedman de
uma expansão universal e, portanto, do tempo cósmico. Esse tempo cósmico
seria, diz Eddington, o tempo de um ser onipresente. O tempo cósmico não é
meramente a “fusão” de todos os tempos locais registrados pelos observado-
res fundamentais separados, mas, ainda mais fundamentalmente, é o tempo
que mede a duração do universo. Como a medida do tempo próprio do uni-
verso, o tempo cósmico também mede a duração e o lapso de tempo de um
ser temporal coextensivo ao mundo. Para Eddington, é o tempo desse ser que
merece ser chamado de “absoluto”.
Tal afirmação será tipicamente recebida com desmentidos apaixonados.
Qualquer equivalência do tempo cósmico com o tempo absoluto de Newton
costuma ser vigorosamente repudiada pelos cientistas relativistas. Mas aqui
não se deve confundir os vários sentidos de “absoluto”. Eddington não está
afirmando que o tempo cósmico é metafisicamente necessário ou independen-
te de medidas físicas. Em vez disso, ele está dizendo que o tempo cósmico
não está vinculado a referenciais inerciais e, portanto, é privilegiado. Uma das
indicações mais intrigantes de que o tempo cósmico representa o equivalente
físico do tempo absoluto de Newton é a surpreendente demonstração de E. A.
Milne e W. H. McCrea de que todos os resultados da cosmologia de Friedman
baseada em GTR podem ser recuperados pela física newtoniana e de uma
forma que é mais simples do que a complicada matemática de Einstein! Milne
e McCrea foram capazes de reproduzir todos os resultados da cosmologia do
Big Bang por meio de um universo material se expandindo no espaço clássico
vazio através do tempo clássico.92 Comparando a cosmologia relativística e

91 Arthur Eddington, Space, Time and Gravitation, Cambridge Science Classics (Cambridge:
Cambridge University Press, 1920; rep. ed.: 1987), 168.
92 E. A. Milne, Relativity, Gravitation and World Structure (Oxford: Clarendon, 1935); idem, “A
Newtonian Expanding Universe,” Quarterly Journal of Mathematics 5 (1934): 64-72; W. H.
57
newtoniana, Kerszberg observa, “no que diz respeito à previsão da história
geral do universo, a equivalência parece ser total”.93 Isso implica, nas pala-
vras de Bondi, que GTR "não pode ser esperado para explicar quaisquer ca-
racterísticas principais de qualquer maneira diferente ou melhor do que a teo-
ria newtoniana".94 Em particular, o conceito de tempo cósmico em modelos
baseados em GTR corresponde ao tempo absoluto no modelo newtoniano.
Schücking aponta que o principal trunfo da formulação de Milne-McCrea era
que ela fornecia exatamente as mesmas equações para o desenvolvimento
temporal do universo que a teoria de Friedman e ainda permitia uma deriva-
ção muito mais simples.95 Isso não é para sugerir que a teoria newtoniana es-
teja correta afinal; já vimos como Lorentz foi forçado a modificar a física
newtoniana no nível local. Mas a equivalência da cosmologia newtoniana de
Milne-McCrea com a cosmologia Friedman baseada em GTR é uma demons-
tração convincente de que o tempo cósmico é, de fato, o equivalente físico do
tempo absoluto newtoniano. Assim, Bondi compara o tempo cósmico com o
tempo uniforme, onipresente e uniforme de Newton, que permite a todos os
observadores sincronizar seus relógios em um único horário. 96 Kerszberg
conclui: “No geral, a equivalência entre a cosmologia newtoniana e a cosmo-
logia relativista apenas reforça a convicção de que o tempo cósmico é de fato
um ingrediente necessário na formalização de uma cosmologia relativista,
embora estranha à relatividade geral e compatível com a teoria de Newton, a
noção de sincronização universal pode parecer.”97
Agora, neste ponto, o defensor da atemporalidade divina pode pensar que
acabou de receber inadvertidamente o trunfo. Pois o tempo cósmico teve um
começo; o evento do Big Bang representa não apenas a origem de toda a ma-
téria e energia do universo, mas a origem do próprio espaço-tempo. Não há
momento “antes” do Big Bang, pois o tempo se originou no Big Bang. Por-
tanto, se Deus é temporal e o tempo teve um começo, Deus deve ter tido um
começo. Mas, obviamente, Deus não veio à existência com o Big Bang, ou
em qualquer outro momento, pois Sua existência não tem começo nem fim.
Deus deve, portanto, transcender o tempo e, portanto, é atemporal.
O newtoniano não se incomodará com essa objeção, entretanto, pois ele
pode construir plausivelmente o tempo cósmico como apenas uma medida
empírica do tempo de Deus desde o momento da criação. O próprio Newton
sugere tal interpretação quando escreve:

McCrea, “On the Significance of Newtonian Cosmology,” Astronomical Journal 60 (1955): 271-
274.
93 Pierre Kerszberg, “Sobre a alegada equivalência entre cosmologia newtoniana e relativística”,
British Journal for the Philosophy of Science 38 (1987): 349.
94 Hermann Bondi, Cosmology (Cambridge: Cambridge University Press, 1952), 70-71.
95 E. L. Schücking, “Newtonian Cosmology,” Texas Quarterly 10 (1967): 274.
96 Bondi, Cosmology, 70-71.
97 Kerszberg, “Equivalence,” 376.
58
O tempo absoluto, em astronomia, distingue-se do relativo [tempo], pela equa-
ção ou correção do tempo aparente. Pois os dias naturais são verdadeiramente
desiguais, embora sejam comumente considerados iguais e usados para uma
medida de tempo; os astrônomos corrigem essa desigualdade para que possam
medir os movimentos celestes por um tempo mais preciso. Pode ser que não
exista um movimento uniforme, pelo qual o tempo possa ser medido com pre-
cisão. Todos os movimentos podem ser acelerados e retardados, mas o fluir do
tempo absoluto não está sujeito a nenhuma mudança. A duração ou perseve-
rança da existência das coisas permanece a mesma, sejam os movimentos rápi-
dos ou lentos, ou nenhum: e, portanto, essa duração deve ser distinguida do
que são apenas medidas sensíveis dela; e do qual a deduzimos, por meio da
equação astronômica.98

O tempo cósmico fornece uma medida aproximada do tempo absoluto de


Deus e de Sua coexistência com o universo desde o momento da criação.
Embora essa medida empírica do tempo tenha começado no Big Bang, o pró-
prio tempo não. Assim, Deus existia literalmente antes do evento do Big
Bang em tempo absoluto. Newton acreditava que o “fluxo” do tempo absolu-
to existiria mesmo na total ausência de eventos – como ele diz, “sejam os
movimentos rápidos ou lentos, ou nenhum”. Pois o tempo, a seu ver, é o efei-
to imediato da mera existência de Deus. Assim, mesmo que não houvesse
eventos anteriores à criação, o tempo ainda existiria como a duração do ser de
Deus.
Deve-se notar, no entanto, que a visão de que o tempo existia antes da cri-
ação não depende da adoção da crença de Newton de que o tempo pode exis-
tir na ausência de eventos. O polímata alemão do século XVII, Gottfried Wil-
helm Leibniz, se opôs a Newton a esse respeito, sustentando que o tempo é
uma relação entre eventos e, portanto, não poderia existir se não houvesse
eventos. Leibniz, portanto, sustentou que o tempo começou no momento da
criação com a ocorrência do primeiro evento. Mas mesmo com uma visão re-
lacional leibniziana do tempo, ainda pode fazer sentido falar sobre o tempo
antes da criação. Pois os eventos que servem para gerar o tempo não precisam
ser eventos físicos; uma sequência de eventos mentais seria suficiente. Supo-
nha, por exemplo, que Deus estivesse em contagem regressiva para o momen-
to da criação: “ . . . três . . . dois . . . um . . . Que haja luz!" Nesse caso, os
eventos mentais de contagem gerariam uma sucessão temporal de momentos.
Ou Deus poderia ter criado seres angélicos antes do Big Bang que estavam
passando por uma sucessão de estados mentais. Assim, quer se adote uma vi-
são newtoniana (substantiva) ou leibniziana (relacional) do tempo, faz sentido
falar sobre o tempo anterior ao início do tempo físico e cósmico, que é apenas
uma medida empírica do próprio tempo. De fato, considero a coerência desse

98 Newton, Principles of Natural Philosophy, 1:7-8.


59
experimento mental como um argumento definitivo de que STR, ou qualquer
outra teoria científica, não fornece uma descrição correta do próprio tempo.
Na melhor das hipóteses, os relatos científicos descrevem nossas medidas de
tempo, mas não o próprio tempo.
Em conclusão, a Teoria da Relatividade não fornece boas bases para pen-
sar que Deus é atemporal. A interpretação einsteiniana de STR baseia-se es-
sencialmente no fato de que Deus é atemporal. A interpretação einsteiniana
do STR é baseada essencialmente em uma epistemologia verificacionista in-
sustentável e obsoleta e, portanto, não pode forçar o abandono do conceito
clássico de tempo. Além disso, GTR em sua aplicação cosmológica nos for-
nece um parâmetro de tempo cósmico que pode ser interpretado de forma
plausível como a medida apropriada do tempo de Deus desde o momento da
criação. A finitude passada do tempo cósmico não implica a finitude do tem-
po de Deus, pois quer se adote uma visão substantiva ou relacional do tempo,
é coerente falar da existência temporal de Deus antes da criação do universo e
do início do tempo cósmico.

1. A incompletude da vida temporal

EXPOSIÇÃO
Um importante argumento a favor da atemporalidade divina repousa na afir-
mação de que a natureza fugaz da vida temporal é incompatível com a vida de
um ser mais perfeito como Deus. Por exemplo, em seu estudo do tempo e da
eternidade, o filósofo da Universidade de Fordham, Brian Leftow, baseia-se
na caracterização de Boethius da eternidade como a posse completa de uma
só vez da vida interminável, a fim de defender a imperfeição da existência
temporal.99 Leftow aponta que um ser temporal é incapaz de aproveitar o que
é passado ou futuro para ele. O passado se foi para sempre, e o futuro ainda
está por vir. A passagem do tempo, portanto, torna impossível para qualquer
ser temporal possuir toda a sua vida de uma só vez. Mesmo Deus, se Ele é
temporal, não pode reclamar o passado. Leftow enfatiza que mesmo a memó-
ria perfeita não pode substituir a realidade: “o próprio passado está perdido, e
nenhuma memória, por mais completa que seja, pode substituí-lo - para con-
firmação, pergunte a um viúvo se sua dor diminuiria se a memória de sua es-
posa fosse aprimorada em vivacidade e detalhes”.100 Por outro lado, um Deus
atemporal vive toda a Sua vida de uma só vez porque Ele literalmente não
tem passado ou futuro e, portanto, não sofre perdas. Portanto, visto que Deus
é o ser mais perfeito, Ele é atemporal.
Podemos formular esse argumento da seguinte forma:

99 Brian Leftow, Time and Eternity, Cornell Studies in Philosophy of Religion (Ithaca, N.Y.: Cor-
nell University Press, 1991), 278.
100 Ibid.
60
1. Deus é o ser mais perfeito.

2. O ser mais perfeito tem o modo de existência mais perfeito.

3. A existência temporal é um modo de existência menos perfeito do que a


existência atemporal.

4. Portanto, Deus tem o modo de existência mais perfeito.

5. Portanto, Deus tem um modo de existência atemporal.

CRÍTICA
Aqui eu acho que temos um argumento para a atemporalidade divina que é
realmente promissor. As premissas do argumento repousam em intuições
muito poderosas sobre a perda irreparável que surge através da experiência da
passagem temporal, perda esta que intuitivamente não deveria caracterizar a
experiência de um ser perfeitíssimo. A natureza fugaz da vida temporal tor-
nou-se clara para mim de forma inesperada e poderosa quando li em voz alta
para nossos filhos o relato de Laura Ingalls Wilder sobre a vida no Meio-
Oeste americano durante o final do século XIX em sua Pequena Casa na
Grande Floresta. Aqui estão os parágrafos finais desse livro:

As longas noites de inverno à luz do fogo e da música voltaram. . . . A voz for-


te e doce de Pa cantava baixinho:

“O velho conhecido será esquecido,


E nunca trouxe à mente?
O velho conhecimento será esquecido,
E os dias de auld lang syne?
E os dias de auld lang syne, meu amigo,
E os dias de auld lang syne,
O velho conhecimento será esquecido,
E os dias de velho lang syne?

Quando o violino parou de cantar, Laura gritou baixinho: "O que são os dias de
auld lang syne, pai?"
“São dias de muito tempo atrás, Laura”, disse Pa. "VA dormir agora."
Mas Laura ficou acordada um pouco, ouvindo o violino do pai tocar sua-
vemente e o som solitário do vento na Floresta Grande. Ela olhou para o pai
sentado no banco perto da lareira, a luz do fogo brilhando em seu cabelo e bar-
ba castanhos e brilhando no violino marrom. Ela olhou para Ma, balançando e
tricotando suavemente.
Ela pensou consigo mesma: “Isto é agora.

61
Ela estava feliz porque a casa aconchegante, o pai e a mãe, a luz do fogo e
a música estavam agora. Eles não poderiam ser esquecidos, ela pensou, porque
agora é agora. Nunca pode ser há muito tempo.101

O que torna essa passagem tão comovente é que, ao lê-la hoje, percebemos
que o tempo que para Laura Ingalls era tão real, que era “agora”, não é mais
agora, mas se foi para sempre. Papai e mamãe se foram, a fronteira americana
que eles lutaram para vencer se foi, os anos que Laura Ingalls chamou de
“aqueles dias dourados felizes” se foram, se foram para sempre, para nunca
mais serem recuperados. O tempo tem uma maneira selvagem de roer a vida,
deixando-a transitória e incompleta, de modo que a vida em sua plenitude
nunca pode ser desfrutada por nenhum ser temporal.
A força dessas considerações é tamanha que Stump e Kretzmann, cujo ar-
tigo de 1981 “Eternity” no Journal of Philosophy provocou um renascimento
do interesse na doutrina da atemporalidade divina, basearam sua defesa da
atemporalidade de Deus apenas nos ombros desse argumento. Eles comen-
tam,

Sem vida. . . que é imperfeito em seu ser possuído com a incompletude radical
acarretada pela existência temporal poderia ser o modo de existência de um ser
absolutamente perfeito. Uma vida perfeitamente possuída deve ser desprovida
de qualquer passado, que não seria mais possuído, e de qualquer futuro, que
ainda não seria possuído. A existência de um ser absolutamente perfeito deve
ser uma atualidade indivisivelmente persistente.102

A afirmação deles de que a vida de um ser mais perfeito deve ser uma reali-
dade indivisível tem, penso eu, bastante plausibilidade.
Alguns filósofos do tempo podem tentar evitar a força desse argumento
adotando uma visão do tempo - sobre a qual falaremos mais adiante - segundo
a qual as coisas e os eventos de fato não surgem ou desaparecem. De acordo
com essa visão do tempo, muitas vezes chamada de visão “sem tensão” ou
“estática”, o passado e o futuro são tão reais quanto o presente. A diferença
entre passado, presente e futuro é geralmente explicada como apenas uma ilu-
são subjetiva da consciência humana. Para as pessoas localizadas em 1868,
por exemplo, os eventos de 1868 são presentes e nós somos futuros; da mes-
ma forma, para as pessoas que vivem em 2050, são os eventos de 2050 que
estão presentes e nós, passados. O tempo é semelhante a uma linha espacial e
todos os pontos da linha são igualmente reais. De acordo com essa visão do
tempo, se algo tem um tempo de vida finito, não surge em um determinado

101101 Laura Ingalls Wilder, Little House in the Big Woods (Nova York: Harper & Row, 1932),
237-238.
102 Eleonore Stump e Norman Kretzmann, “Prophecy, Past Truth, and Eternity,” Philosophical
Perspectives 5 (1991): 395; cf. idem, “Eternity, Awareness, and Action,” Faith and Philosophy 9
(1992): 463.
62
ponto e deixa de existir em um ponto posterior. Em vez disso, existe apenas
nesses dois pontos e em todos os pontos intermediários. Quanto maior a ex-
tensão temporal de uma coisa, maior sua vida útil. Se as extensões temporais
de duas pessoas se sobrepuserem, elas se considerarão ambas presentes du-
rante esse período de sobreposição. Se um tiver uma linha de tempo mais
longa que a outra, então a pessoa com a linha de tempo mais longa considera-
rá a outra como em algum ponto não mais presente; mas, dizem os filósofos
que sustentam essa visão, se essa pessoa for filosoficamente informada, ela
não considerará seu semelhante como inexistente. Albert Einstein, que adotou
essa visão do tempo, levou essa ideia tão a sério que, quando seu amigo de
toda a vida, Michael Besso, morreu, ele tentou confortar o filho e a irmã so-
breviventes de Besso escrevendo: “Isso não significa nada. Para nós, físicos
crentes, a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão,
mesmo que teimosa.”103 Nesta visão do tempo, nenhum ser temporal realmen-
te perde seu passado ou ainda não adquiriu seu futuro. Assim como as coisas
se estendem no espaço, também se estendem no tempo. Um ser temporal não
tem nada a perder e nada a ganhar; ele apenas existe sem tensão em suas loca-
lizações temporais. Assim, um Deus temporal existiria em todas as localiza-
ções temporais sem começo ou fim para Sua extensão temporal. Nesta visão
do tempo, Deus não perde ou adquire porções de Sua vida.
O problema com essa rota de fuga é que ela falha em avaliar que o argu-
mento é baseado na experiência da passagem temporal, e não na realidade ob-
jetiva da própria passagem temporal. O fluxo do tempo é uma parte inerradi-
cável da experiência de um ser temporal. Mesmo que o futuro nunca se torne
e o passado nunca seja realmente perdido, permanece o fato de que, para um
ser temporal, o passado está perdido para ele e o futuro não é acessível a ele.
Cinzas. O célebre Viajante do Tempo de G. Wells, que acreditava que o tem-
po era uma quarta dimensão do espaço, observou: “Nossas existências men-
tais, que são imateriais e não têm dimensões, estão passando pela Dimensão
do Tempo com uma velocidade uniforme do berço ao túmulo. .”104 Mesmo
que o berço e a sepultura sejam tão reais quanto o presente, ainda nos encon-
tramos experiencialmente em algum ponto intermediário, e eventos que são
localizados em momentos anteriores a esse ponto são irremediavelmente per-
didos para nós, e eventos posteriores a esse ponto só pode ser antecipado. Por
esta razão, uma teoria atemporal ou estática do tempo nada faz para aliviar a
perda ocasionada por nossa experiência de devir temporal. Ouso dizer que os
enlutados encontram pouco conforto no pensamento de que um ente querido
falecido existe sem tensão em coordenadas temporais anteriores àquelas que

103 Carta de Albert Einstein, 21 de março de 1955, citada em Albert Einstein: Creator and Rebel,
Banesh Hoffmann with Helen Dukas (Londres: Hart-Davis, MacGibbon, 1972), 258.
104 H. G. Wells, The Time Machine (Nova York: Berkeley, 1957), 10. Claro, o “passar adiante”
deve ter referência à nossa experiência do fluxo do tempo; ao contrário de Wells, o tempo psicoló-
gico passa em vários ritmos.
63
eles ocupam. O dente do tempo rói nossa experiência de vida, independente-
mente da existência tensa de todos os eventos que compõem a vida de al-
guém. Por esta razão, seria inútil tentar iludir a força deste argumento postu-
lando uma divindade temporal em um tempo atemporal.
Outros filósofos, observando que esse argumento diz respeito não à pró-
pria passagem temporal, mas à nossa experiência de passagem temporal, su-
geriram uma maneira diferente de contornar o argumento. A fugacidade de
nossa experiência deriva dos limites do que os psicólogos chamam de nosso
“presente especioso”, ou seja, nossa consciência subjetiva do que é “agora”.
A consciência do agora da pessoa média é apenas uma fração de segundo.
Mas quanto mais longo for o presente ilusório, menos fugaz será a experiên-
cia de vida de alguém. Se pudéssemos imaginar alguém que experimentasse
um presente especioso que tivesse a mesma duração de toda a sua vida, essa
pessoa experimentaria sua vida de uma só vez. Essas considerações levaram
William Alston, um notável filósofo cristão da Universidade de Syracuse, a
afirmar que o especioso presente de Deus tem a mesma extensão temporal
que todo o tempo, de modo que Deus tem, de fato, pelo menos experimental-
mente, posse completa de uma só vez. de vida interminável. Ele escreve,

Apenas expanda o presente ilusório para cobrir todo o tempo e você terá um
modelo para a consciência de Deus sobre o mundo. . . . um ser com um presen-
te ilusório infinito não estaria, de modo algum, no que diz respeito à sua cons-
ciência, sujeito à sucessão temporal. Não haveria mais consciência para suce-
der a consciência em questão. Tudo seria apreendido em uma consciência tem-
poralmente não estendida.105

Tal modelo nos permitiria sustentar que Deus é temporal e, ainda assim, ex-
perimentar toda a Sua vida de uma só vez como um todo.
No entanto, um pouco de reflexão revela que este modelo cobra um preço
muito alto pelos benefícios que oferece. (i) A razão pela qual nós, seres hu-
manos, temos um presente especioso é devido às nossas limitações físicas,
particularmente a velocidade finita da transmissão de sinais ao longo do nosso
sistema nervoso. Como não temos transmissão instantânea de tais sinais, há
um limite mínimo do presente psicológico, de modo que eventos que ocorrem
muito rapidamente não podem ser experimentados por nós como presentes
consecutivos. Mas Deus, como Mente incorpórea possuindo excelência cog-
nitiva máxima, não deveria possuir nenhum presente psicológico mínimo e
finito, muito menos um presente infinitamente estendido. Ele não depende de

105 William P. Alston, “Hartshorne and Aquinas: A Via Media,” em Existence and Actuality, ed.
John B. Cobb, Jr. e Franklin I. Gamwell (Chicago: University of Chicago Press, 1984), 91. Para ser
justo com Alston, deve-se admitir que ele está usando o presente ilusório como “um modelo inteli-
gível para uma conhecimento de um mundo temporal” (p. 90, grifo do autor). Para uma afirmação
literal de que Deus tem um presente ilusório eterno, veja Grace M. Jantzen, God’s World, God’s
Body, com prefácio de John MacQuarrie (Londres: Darton, Longman e Todd, 1984), 65.
64
processos neurais de velocidade finita que retardariam Sua apreensão dos
eventos presentes. E sendo maximamente excelente cognitivamente, devemos
esperar que Ele seja capaz, em vez de incapaz, de distinguir eventos discretos
e consecutivos como presentes. Como observou um comentarista, um Deus
com um presente ilusório eterno seria infinitamente lento na compreensão!106
Em um sentido literal, Ele seria retardado mental. (ii) O presente especioso
reúne em uma consciência do agora um período de tempo até o momento pre-
sente. Assim, se Deus tivesse um presente especioso cobrindo todo o tempo,
Ele não experimentaria Seu presente especioso até que tivesse perdurado até o
fim dos tempos. Mas então, embora Deus naquele instante tome conhecimen-
to da sucessão de todos os eventos, é tarde demais para Ele fazer algo a res-
peito deles, pois eles já passaram nesse ponto. Assim, Deus não poderia res-
ponder a eventos individuais no tempo. A providência de Deus é, portanto,
obliterada por tal modelo. Pior ainda, Deus não poderia nem mesmo saber o
que Ele mesmo havia feito ao longo da história até que ela terminasse. Como
Ele poderia agir na história sem qualquer consciência do que estava aconte-
cendo no momento em que os eventos ocorreram permanece um mistério.
Uma espécie de causação retrógrada parece ser necessária para explicar os
atos de Deus no tempo. Todas essas conseqüências indesejáveis resultam se o
tempo de fato tiver um fim. Mas se o tempo não tem fim, como ensina a dou-
trina cristã da vida após a morte, então Deus nunca se torna consciente. Não
há ponto em que todas as suas cognições de eventos individuais possam ser
reunidas em um presente especioso, pois sempre haverá tempo depois disso.
Assim, o modelo torna-se autocontraditório, pois, para ter um presente espe-
cioso que abrange todo o tempo sem fim, a consciência de Deus é adiada in-
definidamente, de modo que Ele nunca tenha um presente especioso. (iii) Po-
de-se sugerir que abandonemos o modelo de sua base física na neurologia e
interpretemos o presente ilusório de Deus meramente pela analogia de nosso
presente ilusório. Deus simplesmente tem em cada ponto no tempo um pre-
sente especioso que abrange todo o tempo. Mas, como mostraram estudos re-
centes na filosofia da linguagem, a capacidade de apreender tempos verbais,
ou seja, a capacidade de saber o que está acontecendo agora, é essencial para
a ação oportuna. Se Deus tem o mesmo presente especioso em cada momento
do tempo, então Ele não tem nem memória, nem presciência, nem mudanças
no agora. Assim, Ele fica totalmente impotente para agir em tempo hábil, pois
nunca sabe que horas são. Em vez de uma variedade de consciências do agora
em momentos diferentes, Ele tem a cada momento a mesma consciência do
agora. Portanto, Ele está incapacitado para efetuar algo no momento em que

106 Fitzgerald, “Relativity Physics and the God of Process Philosophy”, 267. Fitzgerald continua
dizendo: “Isso faz com que Deus seja uma espécie de observador infinitamente lento da cena que
passa. . . . Ao contrário do que parece à primeira vista, é um defeito e não um mérito ter um presen-
te especioso que inclui tudo.”
65
está localizado. Em suma, parece-me que a teoria de Deus ter um presente es-
pecioso eterno é totalmente ineficaz e, portanto, não permite escapar do pre-
sente argumento.
Talvez, no entanto, a percepção de que o argumento da atemporalidade di-
vina da incompletude da vida temporal seja essencialmente de caráter expe-
rimental abra a porta para uma alternativa temporalista. Quando lembramos
que Deus é perfeitamente onisciente e, portanto, não esquece absolutamente
nada do passado e sabe tudo sobre o futuro, então o dente do tempo fica con-
sideravelmente cego para Ele. Suas experiências passadas não desaparecem
como as nossas, e Ele se lembra perfeitamente do que passou. Certamente, o
próprio passado se foi (dada uma visão tensa ou dinâmica do tempo), mas Sua
experiência do passado permanece tão vívida como sempre. Uma falha fatal
na análise de Leftow é sua suposição de que Deus, como o viúvo, na verdade
perdeu as pessoas que ama e das quais se lembra. Mas de acordo com o teís-
mo cristão, essa suposição é falsa. Aqueles que perecem fisicamente vivem na
vida após a morte, onde continuam a ser reais e presentes a Deus. Na pior das
hipóteses, o que é passado são as experiências que Deus desfrutou dessas pes-
soas, por exemplo, a chegada de Jones às experiências que Deus desfrutou
dessas pessoas, por exemplo, a chegada de Jones à fé em Cristo. Mas na vida
após a morte Jones vive com Deus, e Deus pode recordar como se estivesse
presente Sua experiência da conversão de Jones. Portanto, está longe de ser
óbvio que a experiência da passagem temporal seja uma questão tão melancó-
lica para um Deus onisciente quanto para nós.
Além disso, é preciso ter em mente que a vida de uma pessoa perfeita pode
ter que ser caracterizada pela incompletude que em outros contextos seria
considerada uma imperfeição. Há alguma evidência de que a consciência do
fluxo do tempo pode realmente ser uma experiência enriquecedora.107 R. W.
Hepburn adverte contra subestimar a importância do fluxo de consciência na
consciência da música, por exemplo. A apreciação musical não é apenas uma
questão de apreensão tensa da sucessão de sons. Citando Charles Rosen no
sentido de que “o movimento do passado para o futuro é mais significativo na
música do que o movimento da esquerda para a direita em uma imagem”,
Hepburn acredita que o fenômeno da música questiona qualquer afirmação de
que um modo perfeito de consciência seria exclusivamente atemporal. Tudo
isso vai colocar em questão a premissa

3. A existência temporal é um modo de existência menos perfeito do que a


existência atemporal

107 Veja o artigo muito interessante de R. W. Hepburn, “Time-Transcendence and Some Related
Phenomena in the Arts”, em Contemporary British Philosophy, 4ª série, ed. H. D. Lewis, Muirhead
Library of Philosophy (Londres: George Allen & Unwin, 1976), 152-173.
66
do argumento da atemporalidade divina da incompletude da vida temporal. A
vida atemporal pode não ser o modo de existência mais perfeito de uma pes-
soa perfeita.
Ainda assim, acho que devemos admitir que o argumento tem alguma for-
ça e poderia justificar justificadamente uma doutrina da atemporalidade divi-
na na ausência de argumentos contrários. A questão, então, será se as razões
para afirmar a temporalidade divina não superam esse argumento da atempo-
ralidade divina.

Conclusão

Em resumo, vimos que os argumentos a favor da atemporalidade divina são


inconclusivos. Embora a atemporalidade de Deus decorra da simplicidade ou
imutabilidade divina, essas doutrinas são ainda mais controversas do que a
doutrina da atemporalidade divina e, portanto, não fornecem base para a ado-
ção da visão de que Deus é atemporal. O apelo à Teoria Especial da Relativi-
dade para fundamentar a crença na atemporalidade de Deus não é persuasivo,
uma vez que o defensor da temporalidade de Deus pode justificadamente de-
safiar os fundamentos epistemológicos verificacionistas da teoria e, assim,
distinguir entre o próprio tempo e nossas medidas físicas dele. Nossa incapa-
cidade de detectar empiricamente relações de simultaneidade absoluta não é
motivo para pensar que tais relações não existam. De fato, tais relações po-
dem ser plausivelmente fundamentadas em um quadro de referência preferen-
cial associado ao “agora” de Deus no tempo absoluto. Finalmente, o argu-
mento baseado na incompletude da vida temporal é essencialmente um argu-
mento experiencial, cuja força é mitigada no caso de Deus. Ainda assim, este
último argumento tem alguma força e, portanto, precisa ser pesado contra
quaisquer argumentos que possam ser oferecidos em nome da temporalidade
divina.

67
68
3

TEMPORALIDADE DIVINA
TOMÁS DE AQUINAS AFIRMOU que Deus é atemporal e, portanto, vê to-
do o tempo do começo ao fim, assim como um homem em uma torre de vigia
vê toda a extensão de uma caravana passando na estrada abaixo. Assim, todo
o tempo está presente na eternidade. Reagindo à afirmação de Thomas, o teó-
logo escocês medieval John Duns Scotus protestou:

A eternidade não estará, em razão de sua infinitude, presente a nenhum tempo


inexistente. . . . Se (assumindo o impossível) todo o tempo existisse simultane-
amente, o todo estaria simultaneamente presente na eternidade. . . . Pois o
“agora” da eternidade é formalmente infinito e, portanto, excede formalmente
o “agora” do tempo. No entanto, não coexiste com outro “agora”.108

Na compreensão de tempo e eternidade de Scotus, Deus coexiste apenas com


o momento presente ou “agora”. Ele é eterno no sentido de que permanece
para sempre.
Mais uma vez, queremos perguntar que razões podem ser dadas para ado-
tar esse entendimento temporalista da eternidade divina. Dos vários argumen-
tos em favor da temporalidade divina, três se destacam como especialmente
significativos.

1. A impossibilidade da personalidade atemporal

EXPOSIÇÃO
Vimos que Isaac Newton baseou sua crença na existência do tempo absoluto
na duração temporal infinita de Deus. Mas, tanto quanto posso dizer, Newton
nunca ofereceu nenhum argumento para pensar que Deus é temporal - ele
apenas o afirmou. Ele considerava a temporalidade e a espacialidade como
disposições inerentes ao ser; isto é, qualquer coisa que existe deve existir no
tempo e no espaço. Mas essa suposição está longe de ser óbvia. Na verdade,
muito pelo contrário, parece fácil conceber Deus como transcendendo o espa-
ço, uma vez que Ele é incorpóreo. Além disso, os filósofos frequentemente
consideram entidades abstratas, como números ou conjuntos, como não exis-
tindo nem no tempo nem no espaço. Então, por que Deus não poderia existir

108 John Duns Scotus, Ordinatio 1. 38-39. 9-10.


69
atemporalmente? Não existe um mundo logicamente concebível em que Deus
exista e o tempo não?
De acordo com a doutrina cristã da criação, a decisão de Deus de criar um
universo foi uma decisão de livre arbítrio da qual Deus poderia ter se abstido.
Podemos conceber, então, um mundo possível no qual Deus se abstém da cri-
ação, um mundo vazio exceto por Deus. O tempo existiria em tal mundo?
Certamente seria se Deus estivesse mudando, experimentando um fluxo de
consciência. Como vimos, mesmo uma sucessão nos conteúdos da consciên-
cia é suficiente para gerar uma série temporal.
Mas suponha que Deus fosse totalmente imutável. Suponha que Ele não
experimentou uma sucessão de pensamentos, mas captou toda a verdade em
uma única e imutável intuição. O tempo existiria? Um relacionalista como
Leibniz diria que não, pois não há eventos para gerar uma relação anterior ou
posterior a. Existe apenas um único estado atemporal.
É verdade que, nos últimos anos, muito se escreveu sobre a possibilidade
do tempo sem mudança, e a maioria dos relacionalistas contemporâneos adota
uma visão que permite a existência de períodos imutáveis de tempo intercala-
dos entre períodos de mudança.109 Mas não conheço nenhum relato relacional
que permitiria que um mundo totalmente imutável como o que estamos ima-
ginando seja temporal. Tal mundo, de fato, parece ser apenas um único estado
atemporal.
Newton teria discordado, é claro. Para ele, a existência atemporal era uma
impossibilidade lógica. Mas o que quero dizer é que nenhuma razão foi apre-
sentada para que devêssemos ficar do lado de Newton nessa questão, e não de
Leibniz, cuja visão parece extremamente plausível.
Se a existência atemporal como tal não é comprovadamente impossível,
então, por que deveríamos pensar que Deus não poderia existir atemporal-
mente? Vamos nos ater ao nosso mundo vazio imaginado, no qual somente
Deus existe. Por que Deus não poderia existir atemporalmente em tal mundo?
Porque Deus é pessoal!” é a resposta dada por certos defensores da tempo-
ralidade divina. Eles afirmam que a ideia de uma pessoa atemporal é incoe-
rente e, portanto, Deus deve ser temporal. Eles argumentam que, para ser uma
pessoa, é preciso possuir certas propriedades que envolvem inerentemente o
tempo. Uma vez que Deus é essencialmente pessoal, Ele, portanto, não pode
ser atemporal.
Podemos formular esse argumento da seguinte maneira (usando x, y, z pa-
ra representar certas propriedades a serem especificadas posteriormente):

1. Necessariamente, se Deus é atemporal, Ele não tem as propriedades x, y, z.

109 Veja o artigo seminal de Sidney Shoemaker, “Time without Change,” Journal of Philosophy
66 (1969): 363-381.
70
2. Necessariamente, se Deus não tem as propriedades x, y, z, então Deus não é
pessoal.

3. Necessariamente, Deus é pessoal.

4. Portanto, necessariamente, Deus não é atemporal.

O argumento, se bem-sucedido, mostra que atemporalidade e personalidade


são incompatíveis e, uma vez que Deus é essencialmente pessoal, é a atempo-
ralidade que deve ser descartada.

CRÍTICA
O defensor da atemporalidade divina pode tentar reverter esse argumento de-
safiando a alegação de que as propriedades em questão são condições neces-
sárias da personalidade ou mostrando que um Deus atemporal poderia possuir
as propriedades relevantes afinal. Então, quais são as propriedades x, y, z de
que o advogado da temporalidade divina está falando?
Em seu artigo “Conditions of Personhood”,110 Daniel Dennett, um filósofo
especializado em filosofia da mente, delineia seis diferentes concepções de
personalidade, cada uma das quais estabelece uma condição necessária para
que qualquer P seja uma pessoa:

P é uma pessoa somente se:

i. P é um ser racional.
ii. P é um ser ao qual podem ser atribuídos estados de consciência.
iii. Outros consideram (ou podem considerar) P como um ser ao qual
podem ser atribuídos estados de consciência.
iv. P é capaz de considerar os outros como seres aos quais podem ser
atribuídos estados de consciência.
v. P é capaz de comunicação verbal.
vi. P é autoconsciente; ou seja, P é capaz de se considerar como sujeito
de estados de consciência.

Todos esses critérios dependem de alguma forma de P ter ou ser dito ter
consciência. Assim, como passo inicial na avaliação do presente argumento,
podemos perguntar se o conceito de um ser consciente e atemporal é possível.
John Lucas é um daqueles filósofos que afirma que isso não é possível. Ele
escreve,

110 Daniel Dennett, “Conditions of Personhood”, em The Identities of Persons, ed. Amelie Oksen-
berg Rorty (Berkeley: University of California Press, 1976), 175-196. Os critérios de Dennett fo-
ram usados pela primeira vez em defesa da pessoalidade divina e atemporal por William E. Mann,
“Simplicity and Immutability in God,” International Philosophical Quarterly 23 (1983 ): 267-276.
71
O tempo não é uma coisa que Deus pode ou não criar, mas uma categoria, um
concomitante necessário da existência de um ser pessoal, embora não de uma
entidade matemática. Isso não quer dizer que o tempo seja uma categoria inde-
pendente, existindo independentemente de Deus. Existe por causa de Deus:
não por causa de algum ato de vontade de Sua parte, mas por causa de Sua na-
tureza: se a realidade última é pessoal, segue-se que o tempo deve existir. Deus
não criou o tempo, mas o tempo vem de Deus.111

Na visão de Lucas, mesmo em um mundo vazio, o tempo existiria se um


Deus pessoal existisse. Infelizmente, Lucas nunca explica por que a consciên-
cia pessoal não poderia ser imutável e, portanto, plausivelmente, atemporal.
Por que o conteúdo da consciência de Deus em tal mundo não poderia ser
composto exclusivamente por crenças verdadeiras e imutáveis como “Não
existe nenhum ser humano”, “7+5=12”, “Qualquer coisa que tenha uma for-
ma tem um tamanho”, “Se eu fossem criar um mundo de criaturas livres, elas
cairiam em pecado,” e assim por diante? Se Deus nunca adquire novas cren-
ças e nunca perde nenhuma crença, por que uma consciência tão imutável da
verdade não poderia ser considerada plausivelmente como atemporal? Por
que pensar que uma consciência tão imutável e atemporal é impossível? Aqui
Lucas não tem nada a dizer. Ele confessa: “Minha reivindicação. . . que o
tempo é um concomitante da consciência, é claro que é apenas uma afirma-
ção, e eu fui incapaz de argumentar a favor disso, exceto citando poesia. . . .
argumentos seriam melhores.”112
De fato, eles o fariam! Então, que argumentos existem contra a possibili-
dade de uma consciência atemporal? Richard Gale, um conhecido filósofo do
tempo, resolveria rapidamente a questão: “a maneira mais rápida e direta de
mostrar o absurdo de uma mente atemporal é a seguinte: uma mente é consci-
ente e a consciência é um processo temporalmente alongado.”113 A dificulda-
de com o raciocínio de Gale, no entanto, é que ele falha em mostrar que ser
estendido temporalmente é uma propriedade essencial da consciência, ao in-
vés de apenas uma propriedade comum da consciência. Os defensores da
atemporalidade divina frequentemente apontaram que o ato de conhecer algo
não precisa levar tempo algum.114 Faz sentido, por exemplo, dizer que um ser
atemporal conhece a tabuada. Então, por que um conhecimento atemporal e
consciente da verdade imutável é impossível?

111 J. R. Lucas, The Future: An Essay on God, Temporality, and Truth (Oxford: Basil Blackwell,
1989), 213; cf. 212.
112 Ibid., 175.
113 Richard M. Gale, On the Nature and Existence of God (Cambridge: Cambridge University
Press, 1991), 52.
114 Nelson Pike, God and Timelessness, Studies in Ethics and the Philosophy of Religion (Nova
York: Schocken, 1970), 124; Mann, "Simplicidade e Imutabilidade", 270; Paul Helm, Eternal God
(Oxford: Clarendon, 1988), 64-65; John C. Yates, The Timelessness of God (Lanham, Md.: Uni-
versity Press of America, 1990), 173-174; Brian Leftow, Time and Eternity, Cornell Studies in the
Philosophy of Religion (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1991), 285-290.
72
Gale responde que qualquer um que conheça alguma verdade particular
deve ter uma disposição para se envolver em certas atividades temporais. Mas
a afirmação de Gale é claramente falsa. Não há razão para pensar que Deus
não pode conhecer 2+2=4 sem ter uma disposição para se envolver em ativi-
dades temporais. E lembre-se, na visão cristã, Deus é livre para abster-se to-
talmente da criação, caso em que não vejo razão para pensar que Ele deve es-
tar disposto a se envolver em atividades temporais.
Não tenho conhecimento de nenhum outro argumento na literatura que vi-
se mostrar que uma consciência atemporal é impossível. Consequentemente,
podemos concluir que nenhuma boa razão foi dada para pensar que Deus não
poderia satisfazer a condição (ii) acima. Da mesma forma, a condição (iii) é
satisfeita, pois com base em nossa investigação até agora, eu (e, acredito, o
leitor) posso considerar Deus, existindo atemporalmente, como um ser a
quem um estado de consciência pode ser atribuído. Novamente, mesmo em
nosso mundo imaginado vazio e atemporal, Deus é pelo menos capaz de con-
siderar os outros como conscientes - mesmo que, se Ele criasse tais seres, Ele
não seria atemporal. (Podemos deixar essa hipótese como uma questão em
aberto neste ponto.) Assim, Deus poderia satisfazer a condição (iv). E a con-
dição (v)? Deus no mundo vazio é mais uma vez pelo menos capaz de comu-
nicação verbal, pois Ele poderia criar usuários de linguagem como nós e se
comunicar com eles por meio de profetas inspiradores ou até mesmo causan-
do ondas sonoras no ar rarefeito. Assim, (v) é atendido.
Poderia um Deus atemporal ser autoconsciente, como (vi) estipula? Para
ser autoconsciente, um ser deve ter crenças sobre si mesmo não apenas da
perspectiva da terceira pessoa, como, no caso de Deus, “Deus é onipotente”
ou “Deus acredita que 2+2=4”, mas também de a perspectiva da primeira pes-
soa, como “eu sou onipotente” ou “acredito que 2+2=4”. 115 Mas não leva
mais tempo para acreditar verdadeiramente que “não tenho companhia huma-
na”, por exemplo, do que para acreditar que “não existe nenhum ser humano”.
Para qualquer verdade que Deus conhece do ponto de vista da terceira pessoa,
podemos formular uma crença correspondente da perspectiva da primeira
pessoa. Portanto, se Deus pode ser atemporalmente consciente, não há razão
para que Ele não possa ser atemporalmente autoconsciente. Portanto, o crité-
rio (vi) também é atendido.
Isso deixa o critério (i), que Deus deve ser racional para ser pessoal. Sem
entrar no debate sobre o que significa ser racional, podemos dizer com bas-
tante confiança que o fato de Deus ser atemporal não prejudica nem a estrutu-
ra noética de Deus (seu sistema de crenças) nem sua capacidade de cumprir
quaisquer deveres intelectuais que se possa pensar que ele tenha. Visto que
Ele é onisciente, é muito tolo pensar que Deus poderia ser indiciado por irra-

115 Os filósofos distinguem entre o conhecimento de re, que é o conhecimento não perspectivo de
uma coisa, e o conhecimento de se, que é o autoconhecimento.
73
cionalidade! Nem, como vimos, a atemporalidade inibiria Seu conhecimento
de toda a verdade em um mundo atemporal como o que estamos contemplan-
do.
Assim, um Deus atemporal poderia preencher todas as várias condições
necessárias estabelecidas para ser pessoal. Mais do que isso, devo dizer que
ser autoconsciente não é apenas uma condição necessária, mas também sufi-
ciente para a personalidade. Nosso experimento mental de Deus existir atem-
poralmente sozinho sugere que é bem possível que Deus seja tanto atemporal
quanto autoconsciente em tal estado e, portanto, pessoal.
Agora, alguns filósofos negaram que um Deus atemporal possa ser um ser
autoconsciente e racional, porque Ele não poderia exibir certas formas de
consciência que normalmente associamos a seres pessoais (a saber, nós mes-
mos). O metafísico Robert Coburn escreveu,

Certamente é uma condição necessária para qualquer coisa ser uma pessoa que
seja capaz (logicamente) de, entre outras coisas, fazer pelo menos algumas das
seguintes coisas: lembrar, antecipar, refletir, deliberar, decidir, intencionar e
agir intencionalmente. Para ver que isso é assim, basta perguntar a si mesmo se
qualquer coisa que necessariamente carecesse de todas as capacidades obser-
vadas, sob quaisquer circunstâncias concebíveis, contaria como uma pessoa.
Mas agora um ser eterno careceria necessariamente de todas essas capacidades,
na medida em que seu exercício por um ser exige claramente que o ser exista
no tempo. Afinal, reflexão e deliberação levam tempo, a decisão normalmente
ocorre em algum momento – e, de qualquer forma, sempre faz sentido pergun-
tar: “Quando você (ele, eles, etc.) decidiu?”; lembrar é impossível a menos que
o ser que faz a lembrança tenha um passado; e assim por diante. Portanto, ne-
nhum ser eterno, ao que parece, poderia ser uma pessoa.116

Agora, mesmo que Coburn estivesse certo de que um ser pessoal deve ser ca-
paz de exibir as formas de consciência que ele lista, não se segue que um
Deus atemporal não possa ser pessoal. Pois Deus poderia ser capaz de exibir
tais formas de consciência, mas ser atemporal apenas no caso (isto é, “se e
somente se”) Ele de fato não exibe nenhuma delas. Em outras palavras, a su-
posição oculta por trás do raciocínio de Coburn é que Deus ser atemporal ou
temporal é uma propriedade essencial de Deus, ou Deus é necessariamente
atemporal ou Ele é necessariamente temporal. Mas essa suposição me parece
duvidosa. Suponha, para fins de argumentação, que Deus é de fato temporal.
É logicamente impossível que Deus pudesse ser atemporal? Uma vez que a
decisão de Deus de criar é livre, podemos conceber mundos possíveis nos
quais somente Deus existe. Se Ele é imutável em tal mundo, então, em qual-
quer visão relacional do tempo, Deus seria atemporal, como vimos. Em tal
mundo atemporal, faltariam a Deus certas propriedades que supomos que Ele

116 Robert C. Coburn, “Professor Malcolm on God”, Australasian Journal of Philosophy 41


(1963): 155.
74
tivesse no mundo real - por exemplo, a propriedade de saber que horas são ou
a propriedade de coexistir com criaturas temporais - e Ele teria outras propri-
edades que falta a Ele no mundo real — por exemplo, a propriedade de estar
sozinho ou de saber que Ele está sozinho — mas nenhuma dessas diferenças
parece significativa o suficiente para negar que Deus possa ser atemporal ou
temporal e ainda ser o mesmo ser. Assim como minha altura é uma proprie-
dade minha contingente e não essencial, o status temporal de Deus é plausi-
velmente uma propriedade contingente e não essencial dele. Portanto, além
das reivindicações altamente controversas em nome da simplicidade ou imu-
tabilidade divina, não vejo razão para pensar que Deus seja essencialmente
temporal ou essencialmente atemporal.
Portanto, se a atemporalidade é uma propriedade meramente contingente
de Deus, Ele poderia ser inteiramente capaz de lembrar, antecipar, refletir e
assim por diante; somente se Ele o fizesse, então Ele não seria atemporal. En-
quanto Ele se abstém livremente de tais atividades, Ele é atemporal, embora
tenha a capacidade de se envolver nessas atividades. Assim, pelas próprias lu-
zes de Coburn, Deus deve ser considerado pessoal.
Em um nível mais fundamental, de qualquer forma, é amplamente reco-
nhecido que a maioria das formas de consciência mencionadas por Coburn
não são essenciais para a personalidade - na verdade, nem mesmo a capacida-
de para elas é essencial para a personalidade. Veja a lembrança, por exemplo.
Qualquer indivíduo temporal que não tivesse memória seria um doente men-
tal ou um mero animal. Mas se um indivíduo existe atemporalmente, então
ele não tem passado para lembrar. Assim, ele nunca se esquece de nada! Dada
a onisciência de Deus, simplesmente não há razão para pensar que Sua perso-
nalidade requer memória. Da mesma forma com relação à antecipação: uma
vez que um Deus atemporal não tem futuro, simplesmente não há nada para
antecipar. Somente uma pessoa temporal precisa ter crenças sobre o passado
ou o futuro.
Quanto a refletir e deliberar, estes são descartados não tanto pela atempo-
ralidade de Deus quanto por Sua onisciência. Um ser onisciente não pode re-
fletir e deliberar porque já conhece as conclusões a que chegará! Mesmo que
Deus esteja no tempo, Ele não se envolve em reflexão e deliberação. Mas Ele
certamente não é impessoal como resultado.
E quanto a decidir, pretender e agir intencionalmente? Devo dizer que to-
das essas formas de consciência são exibidas por um Deus atemporal. Com
relação à decisão, novamente, a onisciência sozinha impede a decisão de
Deus no sentido de se decidir após um período de indecisão. Mesmo um Deus
temporal não decide nesse sentido. Mas Deus decide no sentido de que Sua
vontade visa uma alternativa em vez de outra e o faz livremente. Cabe a Deus
o que Ele faz; Ele poderia ter desejado o contrário. Este é o sentido mais forte
de liberdade da vontade libertária. No caso de Deus, porque Ele é onisciente,
75
Suas decisões livres são eternas ou atemporais, em vez de precedidas por um
período de ignorância e indecisão.
Quanto a intencionar ou agir intencionalmente, não há razão para pensar
que as intenções sejam necessariamente direcionadas para o futuro. Pode-se
direcionar as intenções de alguém em seu estado atual. Deus, como o Bem,
pode desejar e querer eternamente Sua própria bondade infinita. Tal intenção
imutável pode ser tão atemporal quanto o fato de Deus conhecer Sua própria
essência. Além disso, no mundo vazio que imaginamos, Deus pode querer e
pretender, atemporalmente, abster-se de criar um universo. A vontade de
Deus de abster-se da criação não deve ser confundida com a mera ausência da
intenção de criar. Uma pedra é caracterizada pela ausência de qualquer von-
tade de criar, mas não se pode dizer que deseja abster-se de criar. Em um
mundo em que Deus livremente se abstém de criar, Sua abstenção de criar é
resultado de um livre ato de vontade de Sua parte. Portanto, parece-me que
Deus pode intencionar, desejar e escolher atemporalmente o que Ele faz.
Agora, alguns teólogos se opuseram ao quadro que pintei de uma divinda-
de atemporal e solitária, pois tal ser carece de todos os relacionamentos inter-
pessoais, e esses relacionamentos, eles acreditam, são essenciais para a perso-
nalidade. Se Deus deve ser pessoal, Ele deve estar envolvido em relaciona-
mentos com outras pessoas. Mas o dar e receber das relações pessoais envol-
ve inerentemente a temporalidade.
Em resposta a essa objeção, acho que seria extraordinariamente difícil
provar que o envolvimento em relacionamentos pessoais, em oposição à ca-
pacidade de se envolver em relacionamentos pessoais, é essencial para a per-
sonalidade. Um Deus atemporal poderia ter a capacidade para tais relaciona-
mentos mesmo se, se Ele se envolvesse neles, Ele fosse, nesse caso, temporal.
Mas deixe isso passar. A suposição mais importante subjacente a essa objeção
é a suposição de que as pessoas com quem Deus está relacionado devem ser
pessoas humanas. Pois na concepção cristã de Deus, essa suposição é falsa.
Dentro da própria plenitude da Divindade, as pessoas do Pai, do Filho e do
Espírito Santo desfrutam das relações interpessoais proporcionadas pela Trin-
dade que Deus é. Como uma Trindade, Deus é eternamente completo sem ne-
cessidade de comunhão com pessoas finitas. É uma maravilha da graça e do
amor de Deus que Ele livremente crie pessoas finitas e as convide a comparti-
lhar o amor e a alegria da vida trinitária interior de Deus.
Mas a existência dessas inter-relações trinitárias exigiria que Deus fosse
temporal? Não vejo razão para pensar que as pessoas da Trindade não possam
ser afetadas, motivadas ou receptivas umas às outras de maneira imutável e,
portanto, atemporal. Para usar um exemplo mundano, pense em limalhas de
ferro agarradas a um ímã. O ímã e as limalhas não precisam mudar suas posi-
ções de forma alguma para que as limalhas fiquem presas ao ímã porque o
ímã os está afetando e eles estão respondendo à força do ímã. Claro, em um
76
nível mais profundo, a mudança está acontecendo constantemente neste caso
porque a influência causal do ímã é mediada pela radiação eletromagnética de
velocidade finita. No entanto, o exemplo é instrutivo porque ilustra como, em
um nível macroscópico, a ação e a resposta podem ser simultâneas e, portan-
to, não envolvem nem mudança nem separação temporal. Quanto mais isso
acontece quando consideramos o relacionamento de amor entre os membros
da Trindade! Visto que as relações intratrinitárias não se baseiam em influên-
cias físicas nem se enraízam em nenhum substrato material, mas são pura-
mente mentais, a resposta do Filho ao amor do Pai não implica mudança nem
separação temporal. Assim como falamos metaforicamente de dois amantes
que se sentam, sem dizer uma palavra, olhando nos olhos um do outro como
"perdidos naquele momento atemporal", podemos falar literalmente do amor
mútuo atemporal do Pai, Filho e Espírito por um outro.
A antiga doutrina da pericorese, defendida pelos Padres da Igreja Grega,
expressa a interação atemporal das pessoas da Divindade.117 De acordo com
essa doutrina, há uma completa interpenetração das pessoas da Trindade, de
modo que cada uma está intimamente ligada às atividades da outra. Assim, o
que o Pai quiser, o Filho e o Espírito também o farão; o que o Filho ama, o
Pai e o Espírito também amam, e assim por diante. Cada pessoa é completa-
mente transparente para os outros. Não há nada de novo que o Filho, por
exemplo, possa comunicar ao Espírito, visto que isso já foi comunicado. Exis-
te uma troca completa e perfeita do amor e conhecimento divinos, de modo
que nada fica por fazer que precise ser completado. Nesta perfeita interpene-
tração do amor divino e da vida, nenhuma mudança precisa ocorrer, de modo
que Deus existindo sozinho na auto-suficiência de Seu ser seria, em uma vi-
são relacional do tempo, atemporal.
Assim, penso que é evidente que Deus pode desfrutar de relações interpes-
soais e, ainda assim, ser atemporal. Portanto, mesmo que admitamos que
Deus é essencialmente atemporal e que as relações interpessoais são essenci-
ais para a personalidade, ainda não é verdade que, se Deus é atemporal, Ele
não pode permanecer nas relações interpessoais.
Em conclusão, então, o argumento da temporalidade divina baseado na
personalidade de Deus não pode ser considerado um sucesso. Os defensores
de um Deus temporal não foram capazes de demonstrar que Deus não pode
possuir atemporalmente as propriedades essenciais à personalidade. Pelo con-
trário, vimos que pode-se dizer plausivelmente que um Deus atemporal pre-
enche as condições necessárias e suficientes para ser uma pessoa. Uma pessoa
divina e atemporal pode ser um indivíduo racional e autoconsciente, dotado
de liberdade de vontade e engajado em relações interpessoais.

117 Veja São João Damasceno, Uma Exposição Exata da Fé Ortodoxa 2.1 (São João de Damasco,
Escritos [Nova York: Padres da Igreja, 1958], 204).
77
Tudo isso foi dito, no entanto, em abstração da realidade de um universo
temporal. Dado que tal universo existe, resta saber se Deus pode permanecer
intocado por sua temporalidade.

2. Relações Divinas com o Mundo

EXPOSIÇÃO
Na seção anterior, abstraímos da existência real do mundo temporal e consi-
deramos Deus existindo sozinho sem criação e perguntamos se Ele poderia
existir atemporalmente. Vimos que Ele podia. Mas, é claro, o mundo tempo-
ral existe. A questão, portanto, surge se Deus pode estar em relação a um
mundo temporal e, ainda assim, permanecer atemporal.
É muito difícil ver como Ele pode. Imagine mais uma vez Deus existindo
imutável sozinho sem criação, mas com uma determinação imutável de Sua
vontade de criar um mundo temporal com um começo. Visto que Deus é oni-
potente, Sua vontade é feita e um mundo temporal passa a existir. Agora, isso
nos apresenta um dilema: ou Deus existia antes da criação ou não. Suponha
que Ele o fez. Nesse caso, Deus é temporal, não atemporal, pois existir antes
de algum evento é estar no tempo. Suponha, então, que Deus não existisse an-
tes da criação. Nesse caso, sem criação, Ele existe atemporalmente, pois ob-
viamente não surgiu junto com o mundo no momento da criação.
Esta segunda alternativa nos apresenta um novo dilema: uma vez que o
tempo começa no momento da criação, ou Deus se torna temporal em virtude
de Sua relação real com o mundo temporal ou então Ele existe tão atempo-
ralmente com a criação quanto sem ela. Se escolhermos a primeira alternati-
va, então, mais uma vez, Deus é temporal. Mas e a segunda alternativa? Deus
pode permanecer intocado pela temporalidade do mundo? Parece que não.
Pois no primeiro momento, Deus está em uma nova relação na qual Ele não
estava antes (já que não havia “antes”). Mesmo que ao criar o mundo Deus
não sofra nenhuma mudança intrínseca, Ele pelo menos sofre uma mudança
extrínseca.118 Pois no momento da criação, Deus entra na relação de sustentar
o universo ou, no mínimo, de coexistir com o universo, relações nas quais Ele
não estava antes. Uma vez que Ele é livre para abster-se da criação, Deus
nunca poderia ter estado nessas relações, se assim o desejasse. Mas em virtu-
de de Sua criação de um mundo temporal, Deus entra em relação com esse
mundo no momento em que surge. Assim, mesmo que Deus não seja tempo-
ral antes de criar o mundo, ele sofre uma mudança extrínseca no momento da

118 Lembre-se da distinção feita no capítulo 2, nota 2, entre mudança intrínseca e extrínseca. É
discutido entre os filósofos da religião se a criação do mundo envolve alguma mudança intrínseca
da parte de Deus (por exemplo, um exercício de poder). Meu argumento não pressupõe uma mu-
dança intrínseca em Deus, mas se baseia na inevitabilidade de uma mera mudança extrínseca da
parte de Deus.
78
criação que o arrasta para o tempo em virtude de sua relação real com o mun-
do. Portanto, mesmo que Deus seja atemporal sem criação, Sua livre decisão
de criar um mundo temporal também constitui uma livre decisão de Sua parte
de existir temporalmente.
O argumento do defensor da temporalidade divina pode ser assim resumi-
do:

1. Deus é criativamente ativo no mundo temporal.

2. Se Deus está criativamente ativo no mundo temporal, Deus está realmente


relacionado com o mundo temporal.

3. Se Deus está realmente relacionado com o mundo temporal, Deus é tempo-


ral.

4. Portanto, Deus é temporal.

Este argumento, se bem-sucedido, não prova que Deus é essencialmente tem-


poral, mas que se Ele é o Criador de um mundo temporal – como Ele de fato
é – então Ele é temporal.

CRÍTICA
Uma maneira de escapar desse argumento é negar a premissa (2). Isso pode
não parecer uma estratégia muito promissora, pois parece óbvio que Deus es-
tá relacionado com Suas criaturas na medida em que as sustenta, as conhece e
as ama. Notavelmente, no entanto, foi precisamente essa premissa que os teó-
logos medievais, como Tomás de Aquino, negaram.
Thomas concorda com a premissa (3). Em sua opinião, as relações entre
Deus e as criaturas, como o fato de Deus ser o Senhor do mundo, começam a
existir no momento em que as criaturas passam a existir. Portanto, se Deus es-
tá em relações reais com Suas criaturas, Ele adquire essas relações novas no
momento da criação e, assim, passa por uma mudança extrínseca. E tudo o
que muda, mesmo que extrinsecamente, deve ser no tempo.
Thomas escapa da conclusão de que Deus é, portanto, temporal, negando
que Deus esteja em qualquer relação real com o mundo. Uma vez que Deus é
absolutamente simples, Ele não se relaciona com nada, pois as relações intro-
duziriam complexidade no ser de Deus. Aquino sustenta, paradoxalmente,
que enquanto as criaturas estão realmente relacionadas a Deus, Deus não está
realmente relacionado às criaturas. A relação de Deus com as criaturas está
apenas em nossas mentes, não na realidade.
Para dar uma ilustração: suponha que Joe tenha ciúmes de John. Nesse ca-
so, Joe é parente de John pelo relacionamento de inveja e John é parente de
Joe pelo relacionamento de inveja. Mas Aquino diria que apenas a relação de
Joe com John é real: ele realmente tem inveja de John. Mas a relação de John
79
com Joe está apenas em nossas cabeças: quer Joe exista ou não, John é o
mesmo; o fato de ser invejado por Joe não faz nenhuma diferença real para
ele.
Da mesma forma, diz Tomás de Aquino, as criaturas são realmente susten-
tadas, conhecidas e amadas por Deus, mas Deus seria o mesmo, quer as cria-
turas existissem ou não. Ele, portanto, não mantém relações reais de sustento,
conhecimento ou amor por Suas criaturas. Na visão de Aquino, então, Deus
não sofre nenhuma mudança extrínseca ao criar o mundo. Ele simplesmente
existe, e a criação é a criação de criaturas com uma relação real com Deus de
serem causadas por Deus.
Esta é certamente uma doutrina extraordinária. Totalmente à parte de sua
confiança na simplicidade divina, a doutrina da ausência de relações reais é
muito problemática. A sustentação do mundo por Deus é uma relação causal
enraizada no poder ativo e nas propriedades intrínsecas de Deus como Causa
Primeira. Portanto, não é nada análogo à relação passiva pela qual é invejado.
Assim, dizer que o mundo está realmente relacionado com Deus pela relação
que o sustenta, mas que Deus não está realmente relacionado com o mundo
pela relação que o sustenta, parece ininteligível. É dizer que se pode ter efei-
tos reais sem uma causa real – o que parece autocontraditório ou incompreen-
sível.
Além disso, Deus certamente está realmente relacionado com Suas criatu-
ras no seguinte sentido: em diferentes mundos logicamente possíveis que po-
demos imaginar, a vontade, o conhecimento e o amor de Deus seriam diferen-
tes do que realmente são. Por exemplo, se Deus não tivesse escolhido criar
um universo, Ele certamente teria uma vontade diferente daquela que Ele tem
(pois Ele não desejaria criar o universo); Ele conheceria verdades diferentes
das que Ele conhece (por exemplo, Ele não saberia que o universo existe, pois
isso seria falso naquele mundo); Ele não amaria as mesmas criaturas que re-
almente ama (já que nenhuma criatura existiria). Incrivelmente, no entanto,
Tomás de Aquino nega isso. É a implicação de sua visão que Deus é perfei-
tamente semelhante em todos os mundos possíveis que podemos conceber:
Ele nunca deseja de forma diferente, Ele nunca age de forma diferente, Ele
nunca sabe de forma diferente, Ele nunca ama de forma diferente. Se o mun-
do está vazio ou repleto de criaturas de todos os tipos, não há diferença em
Deus. Mas então torna-se ininteligível por que este universo ou qualquer uni-
verso existe em vez de apenas nada. A razão não pode estar em Deus, pois
Ele é perfeitamente semelhante em todos os mundos possíveis. A razão tam-
bém não pode estar nas criaturas, pois estamos pedindo alguma explicação
para sua existência. Assim, na visão de Thomas, simplesmente não há razão
para que este universo ou qualquer universo exista.

80
Portanto, a tentativa de Thomas de fugir do presente argumento negando a
premissa (2) simplesmente não é plausível. O defensor da atemporalidade di-
vina deve buscar alguma outra forma de fuga.
Defensores recentes da eternidade atemporal viraram suas armas para a
premissa (3) em vez disso. Eles tentaram elaborar teorias da eternidade divina
que permitiriam que Deus estivesse realmente relacionado ao mundo tempo-
ral e ainda existisse atemporalmente.
Por exemplo, Eleonore Stump e o falecido Norman Kretzmann, que rea-
cenderam a discussão contemporânea da atemporalidade divina, tentaram cri-
ar uma nova relação de simultaneidade, que eles acreditavam que permitiria
que um Deus atemporal se relacionasse com Sua criação.119 Eles entendem a
relação genérica de simultaneidade como existência ao mesmo tempo (ou jun-
tos). A simultaneidade temporal é um tipo de simultaneidade que indica exis-
tência ao mesmo tempo. Simultaneidade eterna (que ocorreria entre entidades
atemporais, digamos, Deus e números) é a existência em um e o mesmo pre-
sente eterno. Agora, o problema de relacionar uma entidade atemporal a uma
entidade temporal é que não há um único modo de existência que permita de-
finir a simultaneidade Eterno-Temporal como existência em um e o mesmo
_____. Não há nada para preencher o espaço em branco. Então, como alguém
pode relacionar dois modos de existência tão díspares como a atemporalidade
e a temporalidade?
Para elaborar uma definição desse novo tipo de simultaneidade (que eles
abreviam como ET-simultaneidade), Stump e Kretzmann apelam para a ana-
logia da Teoria Especial da Relatividade (STR). Lá, como vimos, a simulta-
neidade é relativa a referenciais inerciais. Simultaneidade temporal significa
existência em um e ao mesmo tempo dentro do quadro de referência de um
determinado observador. Stump e Kretzmann propõem tratar modos de exis-
tência como análogos a quadros de referência e construir uma definição de
ET-simultaneidade em termos de dois quadros de referência (atemporalidade
e temporalidade) e dois observadores (um na eternidade e outro no tempo).
Sua definição é muito complicada em sua redação, mas a ideia básica é a
seguinte. Pegue algum ser eterno x e algum ser temporal y. Esses dois são ET
simultâneos apenas no caso, em relação a algum observador hipotético no re-
ferencial eterno, x está eternamente presente e y é observado como presente
temporalmente, e em relação a algum observador hipotético em qualquer refe-
rencial temporal, y está temporalmente presente e x é observado como eter-
namente presente.
Uma palavra de esclarecimento: por “eterno” Stump e Kretzmann signifi-
cam “atemporal” e por “quadro de referência temporal” eles significam “mo-
mento do tempo”. Também vale a pena notar que esta definição não é real-
mente análoga à simultaneidade em STR. Uma analogia melhor seria dizer

119 Eleonore Stump e Norman Kretzmann, “Eternity,” Journal of Philosophy 78 (1981): 429-458.
81
que x e y são ET-simultâneos apenas no caso de ambos existirem no mesmo
eterno presente relativo ao referencial eterno e ambos existirem no mesmo
momento relativo ao referencial temporal. Mas então Deus seria temporal em
relação ao nosso modo de existência, o que Stump e Kretzmann não querem
dizer.
Com base em sua definição de ET-simultaneidade, Stump e Kretzmann
acreditam ter resolvido o problema de como um ser atemporal pode estar re-
almente relacionado a um mundo temporal. Pois, em relação ao referencial
eterno, qualquer entidade temporal que exista a qualquer momento é observa-
da como presente, e em relação a qualquer momento do tempo, Deus é obser-
vado como presente. A relatividade metafísica postulada pela simultaneidade
ET implica que todos os eventos estão presentes para Deus na eternidade e,
portanto, abertos à Sua influência causal atemporal. Cada ação de Deus é ET-
simultânea com seu efeito temporal.
Agora, o relato de Stump-Kretzmann é um verdadeiro ninho de égua de di-
ficuldades filosóficas. Mas, no interesse da brevidade, vamos passar por eles
e ir direto ao cerne da questão: sua definição de simultaneidade ET é explica-
tivamente vazia. Como muitos críticos apontaram, a linguagem de observação
empregada na definição é totalmente obscura.120 No STR, um conteúdo físico
muito específico é dado à noção de observação por meio das definições ope-
racionais de simultaneidade distante de Einstein. Mas na definição de ET-
simultaneidade, nenhuma dica é dada sobre o que se entende, por exemplo,
por x ser observado como eternamente presente em relação a algum momento
do tempo. Na ausência de qualquer procedimento para determinar a simulta-
neidade ET, a definição se reduz à afirmação de que, em relação ao quadro de
referência da eternidade, x está eternamente presente e y está presente tempo-
ralmente, e em relação a algum quadro de referência temporal, y está presente
temporalmente e x está eternamente presente - o que é apenas uma reafirma-
ção do problema! Pior ainda, se y está temporalmente presente para Deus, en-
tão Deus e y não são ET-simultâneos, mas sim temporalmente simultâneos.
Assim, Deus seria temporalmente simultâneo a todo evento temporal, o que é
sacrificar a atemporalidade divina.
Paul Helm, da Universidade de Londres, ele próprio um defensor da atem-
poralidade divina, não está sendo impiedoso quando reclama que a “'solução'
de Stump e Kretzmann para o problema é encontrada simplesmente reformu-
lando o problema com a ajuda do dispositivo de ET-simultaneidade . A simul-

120 Stephen T. Davis, Logic and the Nature of God (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983),
20; Delmas Lewis, “Eternity Again: A Reply to Stump and Kretzmann,” International Journal for
Philosophy of Religion 15 (1984): 74-76; Helm, Deus Eterno, 32-33; William Hasker, God, Time,
and Knowledge (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1989), 164-166; Yates, Atemporalidade de
Deus, 128-30; Leftow, Time and Eternity, 170-172.
82
taneidade ET não tem mérito ou uso independente, nada é iluminado ou ex-
plicado por ela.”121
Para seu crédito, Stump e Kretzmann posteriormente revisaram sua defini-
ção de ET-simultaneidade para liberá-la da linguagem de observação.122 Basi-
camente, sua nova conta tenta definir ET-simultaneidade em termos de rela-
ções causais. Na nova definição, x e y são ET-simultâneos apenas no caso, em
relação a um observador no referencial eterno, x está eternamente presente e y
está temporalmente presente, e o observador pode entrar em relações causais
diretas com x e y; e em relação a um observador em qualquer referencial tem-
poral, x está eternamente presente e y está ao mesmo tempo que o observador,
e o observador pode entrar em relações causais diretas com x e y.
Novamente, há muitas dificuldades com essa nova definição que podemos
ignorar. O problema fundamental com esta nova explicação da simultaneida-
de ET é que ela é viciosamente circular. Pois a simultaneidade ET foi origi-
nalmente invocada para explicar como um Deus atemporal poderia ser cau-
salmente ativo no tempo; mas agora a simultaneidade ET é definida em ter-
mos da capacidade de um ser atemporal de ser causalmente ativo no tempo.
Nosso problema original era explicar como Deus poderia ser atemporal e, ao
mesmo tempo, criativamente ativo no mundo. Isso dificilmente é explicado
dizendo que um Deus atemporal é ET-simultâneo com Seus efeitos no tempo
e, em seguida, definindo ET-simultaneidade em termos da capacidade de um
ser atemporal ser causalmente relacionado a efeitos temporais. Isso equivale a
dizer que Deus pode ser causalmente ativo no tempo porque Ele pode ser cau-
salmente ativo no tempo! Brian Leftow, que escreveu extensivamente sobre
Deus e o tempo, conclui,

qualquer definição de ET-simultaneidade que invoque qualquer forma de ET-


causalidade. . . é implicitamente circular. Para explicar completamente como a
causação ET pode ocorrer, devemos introduzir o conceito de simultaneidade
ET. Se o fizermos, não podemos então definir a ET-simultaneidade invocando
a ET-causação, pois então o conceito a ser definido de fato se repete na defini-
ção.123

Uma vez que sua primeira definição era explicativamente vazia e sua segunda
definição viciosamente circular, Stump e Kretzmann devem ser julgados co-
mo tendo falhado em sua tentativa de minar a premissa (3) do argumento em
discussão e, assim, evitar sua conclusão.

121 Helm, Eternal God, 33.


122 Eleonore Stump e Norman Kretzmann, “Eternidade, Consciência e Ação,” Faith and Philoso-
phy 9 (1992): 477-478.
123 Leftow, Time and Eternity, 173.
83
O próprio Leftow ofereceu outro relato diferente da eternidade divina para
refutar a premissa (3). 124 Deve ser lembrado que no modelo Stump-
Kretzmann, não há um quadro de referência comum ou modo de existência
compartilhado por seres atemporais e temporais. Como resultado, Stump e
Kretzmann foram incapazes de explicar como tais seres poderiam ser relacio-
nados causalmente. A essência da proposta de Leftow é remediar esse defeito
sustentando que os seres temporais existem na eternidade; eles compartilham
o modo de existência de Deus e, portanto, podem ser causalmente relaciona-
dos a Deus. Mas, ele insiste, isso não implica que o tempo ou a existência
temporal sejam ilusórios, pois os seres temporais também têm um modo tem-
poral de existência.
Como pode ser demonstrado que os seres temporais existem na eternidade
atemporal? O argumento de Leftow é baseado em três teses:

I. A distância entre Deus e todas as coisas no espaço é zero.

II. As coisas espaciais não mudam de forma alguma, a menos que haja uma
mudança de lugar (um movimento envolvendo uma coisa material).

III. Se algo está no tempo, também está no espaço.

Com base nessas teses, Leftow argumenta o seguinte: Não pode haver mu-
dança de lugar em relação a Deus porque a distância entre Deus e tudo no es-
paço é zero. Mas se não há mudança de lugar em relação a Deus, não pode
haver mudança de qualquer espécie por parte das coisas espaciais em relação
a Deus. Além disso, como tudo o que é temporal também é espacial, segue-se
que não existem seres temporais e não espaciais. Os únicos seres temporais
que existem no espaço, e nenhuma dessas mudanças em relação a Deus. As-
sumindo, então, alguma visão relacional do tempo, segundo a qual o tempo
não pode existir sem mudança, segue-se que todos os seres temporais existem
atemporalmente em relação a Deus. Assim, em relação a Deus, todas as coi-
sas estão presentes atemporalmente e, portanto, podem ser causalmente rela-
cionadas a Deus.
O problema com esse raciocínio é que todas as três teses fundamentais pa-
recem falsas, algumas obviamente. Tome (I), por exemplo. Esta tese baseia-se
obviamente em um erro de categoria. Quando dizemos que não há distância
entre Deus e as criaturas, não queremos dizer que há distância e sua medida é
zero. Em vez disso, queremos dizer que a categoria de distância nem mesmo
se aplica às relações entre um ser não espacial como Deus e as coisas no es-
paço.

124 Brian Leftow, “Eternity and Simultaneity,” Faith and Philosophy 8 (1991): 148-179; cf. idem,
Tempo e Eternidade, capítulo 10.
84
Há uma ilustração útil desse ponto na história da Teoria da Relatividade.
Ao defender a existência de um éter, H. A. Lorentz despojou o éter de prati-
camente todas as propriedades físicas, exceto a propriedade de ser imóvel; o
éter como ele o concebia era virtualmente equivalente ao referencial inercial
do espaço absoluto. Certa vez, Einstein brincou dizendo que tudo o que ele
fez foi despojar o éter da última propriedade física que Lorentz havia deixa-
do: seu estado de movimento.125 Einstein disse que estava disposto a admitir a
existência de um éter contanto que nenhum estado de movimento fosse atri-
buído a ele. Agora, ao negar que o éter tem um estado de movimento, Eins-
tein claramente não estava dizendo que o movimento do éter era zero. Essa
era a posição de Lorentz: o éter está em repouso; tem um estado de movimen-
to e sua medida é zero. O que Einstein estava dizendo é que a categoria de
movimento nem mesmo se aplica ao éter: ele não está em movimento nem em
repouso. Pensar que sim é um erro de categoria.
Mas vamos continuar. E a tese (II)? Novamente, esta tese é falsa se o tem-
po for dinâmico ou “tenso”.126 Nesta visão do tempo, a diferença entre passa-
do, presente e futuro não está apenas em nossas mentes, e o devir temporal é
real. Se os tempos temporais são reais, as coisas espaciais podem mudar
mesmo que não haja movimento espacial pela mudança em suas propriedades
temporais. Por exemplo, algum objeto espacial pode mudar tendo um ano de
idade e depois tornando-se dois anos, mesmo que nenhuma mudança de lugar
tenha ocorrido. (Deve ser lembrado que até mesmo a maioria dos relacionalis-
tas está hoje disposta a admitir que o tempo pode continuar durante períodos
de imutabilidade espacial.127) O significado da falsidade de (II) é que, mesmo
se todo o universo estivesse congelado na imobilidade, ainda haveria mudan-
ça em relação a Deus, ou seja, mudança de propriedades temporais. Portanto,
as coisas não seriam imutáveis e, portanto, atemporais em relação a Deus, o
que enfraquece a afirmação de Leftow de que os seres temporais existem na
eternidade. Assim, se o tempo é dinâmico - e Leftow permite que seja - então
sua teoria é anulada.
Finalmente, considere a tese (III). Leftow precisa dessa tese, para que nin-
guém diga que existem seres não-espaciais e temporais, como os anjos, que
estão mudando em relação a Deus. Tais seres teriam (na análise de Leftow)
uma distância zero de Deus e ainda assim não seriam imutáveis em relação a
Deus. Assim, eles não existiriam na eternidade. Portanto, para sustentar sua
afirmação de que os seres temporais existem na eternidade, Leftow precisa se
livrar de tais seres. Ele o faz por meio da tese reducionista (III), que diz que
se algo existe no tempo, também existe no espaço.

125 A. Einstein, Éter e Teoria da Relatividade (Berlim: Julius Springer Verlag, 1920), 7-9.
126 Tal visão está em contraste com a visão estática ou atemporal do tempo mencionada no capítu-
lo 2, páginas 69-70.
127 Ver nota 2 acima.
85
Agora já vimos boas razões para rejeitar essa tese radical.128 Mesmo na au-
sência de um universo físico, Deus poderia escolher entre entreter uma suces-
são de pensamentos ou criar um ser angélico ou uma alma incorpórea que ex-
perimenta um fluxo de consciência, e tal série de eventos mentais por si só é
suficiente para tal entidades estando no tempo. Com base em que, então,
Leftow adota (III)?
Leftow apela para a representação geométrica do espaço-tempo na física
contemporânea como justificativa para (III).129 Em tal apresentação geométri-
ca, três dimensões da geometria representam comprimento, largura e altura, e
a quarta representa o tempo. Se algo tem uma coordenada em uma dimensão
dessa estrutura quadridimensional, então também tem outras três coordena-
das. Assim, se algo está no tempo, deve estar também no espaço.
Há um enorme pressuposto metafísico subjacente a esse raciocínio, porém,
um verdadeiro iceberg filosófico do qual Leftow parece não ter consciência: o
pressuposto do realismo espaço-temporal. Ou seja, seu raciocínio pressupõe
que a representação geométrica do espaço-tempo é mais do que apenas uma
forma gráfica de apresentar STR ou GTR – que retrata a estrutura real do
mundo. É supor que o devir temporal é irreal; que as coisas localizadas em
qualquer localização espaço-temporal são igualmente reais ou existentes. Em
outras palavras, o realismo do espaço-tempo envolve a visão estática ou “sem
tensão” do tempo mencionada anteriormente.130 Teremos muito a dizer sobre
isso mais tarde; mas por enquanto é suficiente notar que tal suposição metafí-
sica requer alguma justificativa.
Nem o STR nem o GTR requerem realismo espaço-temporal, pois no arti-
go STR original de 1905, Einstein tratou o tempo como um parâmetro, não
como uma coordenada; ou seja, ele não assumiu uma visão quadridimensional
do mundo, visão que veio a adotar somente mais tarde, sob a influência do
matemático Hermann Minkowski. Da mesma forma, em modelos cosmológi-
cos baseados em GTR, o tempo cósmico é um parâmetro, não uma coordena-
da.
Muitos filósofos da ciência pensam na representação geométrica quadri-
dimensional do espaço-tempo, não realisticamente, mas instrumentalmente,
isto é, como uma maneira elegante e prática de apresentar STR ou GTR e de
pensar sobre problemas de tempo e espaço; mas eles não investem tais ima-
gens com realidade. Por exemplo, o físico francês Henri Arzeliès escreve: “O
contínuo de Minkowski é um espaço abstrato de quatro dimensões, cujo único
papel é interpretar em linguagem geométrica declarações feitas em forma al-
gébrica ou tensorial. . . . O continuum quadridimensional deve, portanto, ser

128 Consulte o capítulo 2.


129 Para saber mais sobre a representação geométrica do espaço-tempo, consulte o capítulo 5, pá-
ginas 167-180.
130 Consulte o capítulo 2.
86
considerado uma ferramenta útil e não uma ‘realidade’ física.”131 Da mesma
forma, o filósofo Max Black reclama, “esta imagem de um 'universo de blo-
cos', composto de uma teia atemporal de 'linhas do mundo', em um espaço
quadridimensional, embora fortemente sugerido pela teoria da relatividade, é
uma peça de metafísica gratuita”.132 Alguma razão é necessária, portanto, se
quisermos rejeitar uma visão instrumentalista do espaço-tempo em favor de
uma interpretação realista. E esse Leftow não deu.
Agora, pode-se dizer que, mesmo em uma visão dinâmica do tempo, se-
gundo a qual apenas o presente existe, ainda assim, se as coisas estão no tem-
po, elas devem estar no espaço. Mas mesmo deixando de lado a distinção en-
tre tempo parâmetro e tempo coordenado, o que devemos ter em mente é que
tal afirmação pressupõe que Newton errou ao distinguir entre o próprio tempo
e nossas medidas de tempo. Mesmo que nossas medidas de tempo e espaço
estejam ligadas, não há razão para pensar que o tempo e o espaço não possam
existir independentemente. Pelo contrário, vimos boas razões para pensar que
podem, uma vez que os eventos mentais sozinhos são uma condição suficien-
te de uma série temporal. Assim, as coisas podem existir temporalmente sem
existir espacialmente.
Em suma, a tese de Leftow (III) assume tanto o realismo do espaço-tempo
quanto a identidade do tempo e do espaço com nossas medidas físicas deles –
enormes suposições das quais temos boas razões para duvidar.
Assim, todas as teses-chave de Leftow são no mínimo duvidosas, se não
claramente falsas. Temos pouca escolha a não ser concluir que ele não deu
nenhuma boa base para pensar que os seres temporais existem na eternidade
atemporal.
Além disso, devemos perguntar, a teoria de Leftow é coerente? Se todos os
eventos existem atemporalmente no referencial eterno de Deus, então nenhum
deles pode existir antes, simultaneamente ou depois de outro evento, pois es-
sas são relações temporais. Assim, no quadro de referência de Deus, tudo com
o que Ele é confrontado é um caos de eventos pontuais, todos temporalmente
não relacionados entre si. Isso não apenas parece incompatível com a onisci-
ência e a providência divina, mas também contradiz as próprias declarações
de Leftow de que na eternidade Deus discerne a sequência na qual os eventos
ocorrem.
Finalmente, se todas as coisas realmente existem atemporalmente na eter-
nidade, o tempo e a existência temporal não são, em última análise, ilusórios?
Leftow nega isso porque em STR a realidade, assim como a simultaneidade, é
relativa a referenciais inerciais. Assim, as coisas podem ser reais em relação

131 Henri Arzeliès, Cinemática Relativística, rev. ed. (Oxford: Pergamon Press, 1966), 258. A ma-
temática de STR é a álgebra; a matemática do GTR é chamada de cálculo tensorial.
132 Max Black, revisão de The Natural Philosophy of Time, por G. J. Whitrow, Scientific Ameri-
can 206 (abril de 1962), 181.
87
ao quadro de referência de Deus, mas ainda não reais ou não mais reais em
relação ao quadro de referência temporal.
Vale a pena notar duas coisas sobre esse apelo ao STR. Primeiro, enquanto
alguém pode relativizar a realidade para referenciais inerciais ou pontos de
espaço-tempo em STR, fazer isso tem consequências extremamente implausí-
veis (das quais falaremos mais tarde133). Isso pode nos levar a preferir uma in-
terpretação lorentziana de STR. Nesse caso, todos os quadros não são relati-
vos, como exige a teoria de Leftow. Em segundo lugar, em relações de simul-
taneidade STR não são relativas para eventos conectados causalmente. Para
eventos causalmente conectados, as relações anteriores, simultâneas e poste-
riores são absolutas. Uma vez que Deus está causalmente relacionado a todos
os eventos, Sua relação atemporal com eles deve ser absoluta, não relativa.
Na medida em que Leftow deve negar isso, sua teoria não é análoga à STR.
Em qualquer caso, sérias objeções podem ser feitas contra a relatividade
metafísica de Leftow. (1) O quadro de referência de Deus é certamente privi-
legiado. Como o Criador do universo, o modo de existência atemporal de
Deus, no qual Ele sustenta todos os eventos, deve ser reconhecido como o en-
quadramento preferido. Nesse caso, a teoria de Leftow implica que o tempo e
o devir temporal são ilusões de criaturas finitas, que são, em última análise,
atemporais em seu ser. (2) Se negarmos o status preferencial da estrutura de
Deus e insistirmos em uma democracia de estruturas, então, em relação à es-
trutura de referência temporal, Deus deveria estar no tempo, assim como em
relação à estrutura eterna, as criaturas são atemporais. Pois no quadro tempo-
ral de referência, Deus passa por mudanças extrínsecas em virtude das mu-
danças intrínsecas nas criaturas com as quais Ele está relacionado. (3) De
qualquer forma, a metáfora do quadro de referência de Deus é vazia, sendo
baseada na suposição espúria (I) acima. Deus, como um objeto não espacial,
simplesmente não está relacionado espacialmente com as criaturas e, portan-
to, não possui um “quadro de referência” como tal. Se alguém quer dizer com
esta metáfora simplesmente Seu modo de existência atemporal, então não pa-
rece logicamente coerente falar de seres temporais compartilhando um modo
de existência atemporal. Como se pode dizer coerentemente que as criaturas
existem tanto atemporal quanto temporalmente? Não explica nada apelar para
metáforas de quadros de referência em relação aos quais as criaturas são
atemporais ou temporais, pois esses quadros de referência são apenas os dois
modos de existência, atemporalidade e temporalidade, e apenas reafirma o
problema ao dizer que as criaturas existem de ambas as maneiras. Assim, a
teoria de Leftow não é mais bem-sucedida do que a de Stump e Kretzmann
em explicar como Deus pode ser atemporal e, ainda assim, causalmente rela-
cionado ao mundo.

133 Consulte o capítulo 5.


88
Em resumo, parece-me que temos aqui um argumento poderoso para a
temporalidade divina. Tentativas clássicas, como a de Tomás de Aquino, de
negar que Deus esteja realmente relacionado com o mundo, e tentativas con-
temporâneas, como as de Stump, Kretzmann e Leftow, de negar que a relação
real de Deus com o mundo o envolva no tempo, todas parecem no final ser
menos plausível do que as premissas do próprio argumento. Parece que, ao se
relacionar com o mundo, Deus deve passar por uma mudança extrínseca e,
portanto, ser temporal.

III. Conhecimento Divino de Fatos Temporais

EXPOSIÇÃO
Vimos que a relação real de Deus com o mundo temporal nos dá boas bases
para concluir que Deus é temporal em vista da mudança extrínseca que Ele
sofre por meio de Suas relações mutáveis com o mundo. Mas a existência de
um mundo temporal também parece acarretar uma mudança intrínseca em
Deus em vista de Seu conhecimento do que está acontecendo no mundo tem-
poral. Pois, uma vez que o que está acontecendo no mundo está em fluxo
constante, também o conhecimento de Deus sobre o que está acontecendo de-
ve estar em fluxo constante. Os defensores da temporalidade divina argumen-
taram que um Deus atemporal não pode conhecer certos fatos temporais sobre
o mundo — por exemplo, o que está acontecendo agora — e, portanto, visto
que Deus é onisciente, Ele deve ser temporal.
Com esse argumento, saímos da filosofia da ciência e entramos na filoso-
fia da linguagem. A noção-chave a ser compreendida aqui é a ideia de “fatos
tensos”.
Primeiro, vamos dizer uma palavra sobre o que queremos dizer com “fa-
to”. Um fato pode ser definido como o estado de coisas descrito por uma sen-
tença declarativa verdadeira. 134 Assim, por exemplo, enquanto “a neve é
branca” e “Der Schnee ist weiß” são duas frases diferentes, ambas descrevem
o mesmo fato, ou seja, a neve é branca.
Em segundo lugar, vamos definir o que queremos dizer com um "fato ten-
so". Estamos todos familiarizados com o tempo, pois ele desempenha um pa-
pel na linguagem. Em inglês, normalmente expressamos o tempo verbal fle-
xionando o verbo de uma frase de modo a expressar o passado, presente ou
futuro, ou compondo verbos para expressar tempos mais complexos, como o
passado perfeito ou o futuro perfeito. Embora a maior parte de nossa lingua-
gem comum esteja tensa, há ocasiões em que empregamos frases que estão
gramaticalmente no tempo presente para expressar o que são verdades real-

134 O que estou chamando de fato pode ser tratado como uma proposição verdadeira. Assim, o que
chamo de “conteúdo factual” é o mesmo que “conteúdo proposicional”. Estou tentando o meu me-
lhor para evitar o jargão técnico.
89
mente tensas. Por exemplo, dizemos coisas como "Lady Macbeth comete sui-
cídio no Ato V. cena v", "O vidro quebra facilmente", "A área de um círculo é
πr2" e "Centauros têm o corpo de um cavalo e o tronco de um homem". Que
os verbos nas frases acima são de fato sem tensão é evidente pelo fato de que
seria equivocado substituído-los pelo equivalente no tempo presente de "é +
(particípio presente)", por exemplo, "está se comprometendo", "está quebran-
do" e assim por diante. Tal substituição tornaria algumas dessas sentenças
verdadeiras claramente falsas.
A função do tempo é localizar algo em relação ao presente. Isso pode ser
feito não apenas por meio de verbos, mas também por meio de expressões in-
dexicais temporais. Uma expressão indexical é uma palavra ou frase que mu-
da sistematicamente seu referente (a coisa a que se refere) à medida que o
contexto de sua expressão muda. Por exemplo, se eu disser a alguém em 1º de
junho: “John chega amanhã”, a palavra indexical “amanhã” se refere a 2 de
junho. Mas no dia seguinte, se eu disser “John chega amanhã”, o mesmo A
palavra se referiria, não a 2 de junho, mas a 3 de junho. Para me referir a 2 de
junho, eu teria que empregar uma palavra indexical diferente, “hoje”, para
expressar a chegada de João naquele dia. A razão pela qual essas expressões
mudam sistematicamente seus referentes é devido ao fato de serem expres-
sões tensas. Eles localizam algo em relação ao presente, que está em constan-
te mudança, e assim o que eles se referem também muda.
As expressões indexicais temporais incluem locuções adverbiais (como
“hoje”, “agora”, “três dias atrás”), adjetivos (como “passado”, “presente” e
“futuro”), locuções preposicionais (como “no próximo sábado”, “no momen-
to”, “daqui a dois dias”) e até substantivos (como em “Hoje é quarta-feira”).
Essas expressões temporais diferem radicalmente das expressões que usam
horas ou datas, que não têm tempo. “3 de janeiro de 1812” refere-se invaria-
velmente ao mesmo dia, seja passado, presente ou futuro; ao passo que ex-
pressões indexicais temporais como “ontem”, “hoje” ou “amanhã” dependem
do contexto de sua expressão para o dia a que se referem. As datas podem,
portanto, ser empregadas em conjunto com verbos sem tempo para localizar
coisas sem tempo no tempo. Por exemplo, podemos afirmar: “Em 1960, John
Kennedy promete enviar um homem à lua antes do final da década” (o itálico
é uma convenção estilística para mostrar que o verbo não tem tempo verbal).
Esta frase expressa um fato sem tempo e, portanto, é sempre verdadeira. Ob-
serve que, mesmo que alguém soubesse dessa verdade, não saberia se Ken-
nedy emitiu sua promessa, a menos que também soubesse se 1960 foi passado
ou futuro. Por outro lado, se substituíssemos o verbo sem tempo pelo verbo
no passado “prometido”, saberíamos que o evento referido aconteceu. Essa
frase temporal, no entanto, nem sempre seria verdadeira: antes de 1960, seria
falsa. Antes de 1960, o verbo tenso teria que ser o tempo futuro “vai prome-
ter” se a sentença for verdadeira. Em contraste com as sentenças sem tempo,
90
as sentenças com tempo servem para localizar coisas no tempo em relação ao
presente e, portanto, podem mudar seu valor de verdade.
O ponto saliente de tudo isso é que, além dos fatos sem tempo, também
parecem haver fatos com tempo. A informação transmitida por uma sentença
temporal refere-se não apenas a fatos sem tempo verbal, mas também a fatos
temporais, fatos sobre o quão longe algo está do presente. Assim, o que é fato
em um momento pode não ser em outro momento. Agora é fato que estou es-
crevendo esta frase; em um momento não será mais um fato. Assim, o corpo
de fatos tensos está em constante mudança.
O resultado é que um ser que conhece apenas todos os fatos sem tempo
sobre o mundo, incluindo quais eventos ocorrem em qualquer data e hora,
ainda estaria completamente no escuro sobre os fatos com tempo. Ele não te-
ria nenhuma ideia do que está acontecendo agora no universo, de quais even-
tos são passados e quais são futuros. Por outro lado, qualquer ser que conheça
fatos temporais não pode ser atemporal, pois seu conhecimento deve estar em
constante fluxo, conforme mudam os fatos temporais conhecidos por ele.
Assim, podemos formular o seguinte argumento para a temporalidade di-
vina:

1. Existe um mundo temporal.

2. Deus é onisciente.

3. Se existe um mundo temporal, então se Deus é onisciente, Deus conhece os


fatos temporais.

4. Se Deus é atemporal, Ele não conhece fatos temporais.

5. Portanto, Deus não é atemporal.

Novamente, este argumento não prova que Deus é essencialmente atemporal,


mas, se bem-sucedido, mostra que, se existe um mundo temporal, então Deus
não é atemporal.

CRÍTICA
Os defensores da atemporalidade divina tentaram refutar esse argumento ar-
gumentando que um Deus atemporal pode conhecer fatos temporais ou revi-
sando a definição de onisciência, de modo que Deus ainda pode se qualificar
como onisciente mesmo que seja ignorante de fatos temporais.
Vejamos primeiro a plausibilidade de negar a premissa (4). Pode um Deus
atemporal conhecer fatos temporais? Jonathan Kvanvig, um pensador filosó-

91
fico perspicaz da Texas A & M, afirma que Ele pode.135 A defesa de Kvanvig
desse ponto é baseada em sua análise de crenças em termos de uma atitude
pessoal, o conteúdo factual de uma crença e uma maneira particular de aces-
sar ou apreender esse conteúdo factual. Considere uma frase como “Hoje é 1º
de junho de 1999”. Kvanvig afirma que o mesmo conteúdo factual é expresso
pela frase “Hoje é 1º de junho de 1999”, quando essa frase é usada em 1º de
junho de 1999, assim como é expresso pela frase “Ontem foi 1º de junho de
1999”, quando essa frase é proferida em 2 de junho de 1999. Em sua visão, as
palavras indexicais temporais expressam a essência individual do momento a
que se referem (uma essência sendo um conjunto de propriedades que desig-
nam uma coisa de forma única). Neste exemplo, as palavras “hoje” e “on-
tem”, por expressarem a essência do momento referido, marcam o mesmo
tempo. Uma pessoa apreenderá esse conteúdo factual diretamente apenas se o
apreender no momento referido (caso em que formará uma crença no tempo
presente), e uma pessoa apreenderá o mesmo conteúdo indiretamente se não o
fizer naquele momento. (caso em que uma pessoa temporal formará crenças
envolvendo outros tempos).
No caso de Deus, então, se Ele é atemporal, Ele apreende o conteúdo fac-
tual de sentenças temporais indiretamente e, portanto, não forma crenças
temporais como nós, que apreendemos algum conteúdo factual diretamente.
Portanto, conclui Kvanvig, “pode-se afirmar as doutrinas da atemporalidade,
imutabilidade e onisciência afirmando que Deus apreende indiretamente cada
momento temporal e não apreende diretamente nenhum deles”.136
A teoria de Kvanvig consegue dar conta de como um Deus atemporal pode
conhecer fatos temporais? Parece que não. Pois na análise de Kvanvig as es-
sências dos tempos escolhidos por palavras indexicais temporais não incluem
o tempo desses tempos (ou seja, se eles são passados, presentes ou futuros).
Caso contrário, um tempo seria, digamos, essencialmente passado, caso em
que é impossível que esse tempo tenha sido presente ou futuro, o que é absur-
do. Palavras como “hoje” e “ontem” não poderiam referir-se ao mesmo dia,
pois, sendo diferentes no tempo, expressariam essências diferentes. E Deus
não poderia apreender atemporalmente o conteúdo factual envolvendo tais es-
sências, pois se Ele apreendesse um momento essencialmente presente, Ele
existiria no momento desse momento. Assim, fica evidente que o conteúdo
fático expresso por sentenças temporais é, na análise de Kvanvig, atemporal.
O tempo é apenas uma característica do nosso estado mental, o subproduto de
como apreendemos o conteúdo factual sem tempo das sentenças temporais.
Kvanvig nega explicitamente que haja qualquer elemento temporal expresso
por sentenças temporais que não faça parte de seu conteúdo factual. Assim,

135 Jonathan L. Kvanvig, The Possibility of an All-Knowing God (Nova York: St. Martin's, 1986),
150-165.
136 Ibid., 159.
92
na visão de Kvanvig, o tempo é meramente linguístico: não há fatos tempo-
rais.
Assim, o tiro sai pela culatra de Kvanvig. Longe de explicar como um
Deus atemporal pode conhecer fatos temporais, em sua análise não há fatos
temporais a serem conhecidos. O conteúdo factual expresso pela sentença
“Kvanvig agora ensina na Texas A & M” é algo como Kvanvig ensina (sem
tempo) na Texas A & M no tempo t. Deus, captando esse conteúdo factual in-
diretamente, não tem ideia de onde Kvanvig está ensinando agora ou se ele
nasceu ou está morto e enterrado há muito tempo.
Um relato um tanto semelhante, mas crucialmente modificado, do conhe-
cimento de Deus dos fatos temporais foi oferecido por Edward Wierenga em
sua análise filosófica dos principais atributos divinos.137 Na visão de Wieren-
ga, o conteúdo factual de uma frase no tempo presente inclui o tempo expres-
so na frase. Como Kvanvig, ele acredita que os momentos do tempo possuem
essências individuais. Ao contrário de Kvanvig, no entanto, Wierenga parece
acreditar que a essência individual de um momento envolve de alguma forma
o tempo presente. Se o conteúdo factual de uma sentença incluir a essência
individual de um momento, então esse conteúdo envolverá presentidade.
Qualquer pessoa que apreender esse conteúdo no momento referido formará
uma crença no tempo presente sobre o que é “agora” o caso.
Wierenga afirma que um Deus atemporal é capaz de compreender o conte-
údo factual de uma sentença temporal, mas sem formar uma crença no tempo
presente como nós. Pois alguém só forma uma crença no tempo presente se
existir no momento referido no conteúdo factual de uma frase e apreender es-
se conteúdo naquele momento. Deus apreende esse conteúdo factual atempo-
ralmente e, portanto, não forma nenhuma crença no tempo presente sobre o
que está acontecendo “agora”. Assim, Deus conhece fatos temporais sem ter
crenças temporais.
O relato de Wierenga sobre o conhecimento de Deus dos fatos temporais
se sai melhor do que a análise de Kvanvig? A diferença crucial entre eles é
que Wierenga torna a presença uma característica da essência individual de
cada momento do tempo. À primeira vista, isso pode parecer irremediavel-
mente incoerente. Se a essência de cada momento do tempo envolvesse pre-
sentidade, então cada momento do tempo seria presente e nenhum momento
jamais seria futuro ou passado, o que torna o tempo sem sentido. Wierenga
poderia escapar desse absurdo, no entanto, defendendo uma visão do tempo
chamada presentismo, segundo a qual o único tempo que existe é o tempo
presente. De acordo com o presentismo, os tempos futuros ainda não existem
e os tempos passados não existem mais. Portanto, literalmente não há tempos
que tenham as propriedades de passado ou futuro. Quando um tempo se torna

137 Edward R. Wierenga, The Nature of God: An Inquiry into Divine Attributes, Cornell Studies in
Philosophy of Religion (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1989), 179-185.
93
passado, ele não troca a propriedade de presentidade pela propriedade de pas-
sado; em vez disso, simplesmente deixa de existir completamente. Assim, as
essências individuais de todos os momentos do tempo poderiam envolver a
presentidade. Isso não implica que todos os momentos do tempo estejam de
alguma forma permanentemente presentes. Em vez disso, implica que os
tempos estão presentes quando e somente quando eles existem. Eles vêm à
existência sucessivamente e estão presentes enquanto existem. Não existe
tempo que não esteja presente, mas isso não implica que todos os tempos es-
tejam presentes juntos.
Se a essência individual de cada momento do tempo de alguma forma en-
volve presentidade, então a questão é se um Deus atemporal pode compreen-
der o conteúdo factual envolvendo tal essência. Permanece extraordinaria-
mente difícil entender, no relato de Wierenga, como Deus pode captar a es-
sência de um tempo sem que esse tempo esteja presente para Ele. Considere a
analogia (à qual o próprio Wierenga apela) de palavras indexicais de primeira
pessoa como “eu”. Se minha essência individual é, como diz Wierenga, a
propriedade de ser apenas eu, então como Deus pode apreender o conteúdo
factual de uma sentença que inclui essa essência? Se eu disser: “Sinto-me mi-
serável”, então Deus poderia entender o fato de que William Craig se sente
miserável; mas se o conteúdo factual desta frase inclui minha essência indivi-
dual de ser eu, expressa pela palavra "eu", então uma placa de "Acesso Priva-
do Apenas" é colocada antes da rota para este conteúdo factual, que está aber-
to apenas para mim. Nem mesmo Deus poderia compreender este conteúdo,
já que Ele e eu não somos a mesma pessoa.
Analogamente, se a essência individual de um tempo envolve presentida-
de, então, para apreender o conteúdo factual de uma sentença envolvendo tal
essência, seria necessário estar presente. Se eu disser “João saiu três horas
atrás”, então não há problema em um Deus atemporal compreender o conteú-
do factual envolvendo o tempo t e a propriedade sendo tal que João sai três
horas antes disso, o que é atribuído a t – sem problemas , isto é, desde que t
seja uma data ou hora sem tempo. Mas se t envolve presentidade, então Deus,
ao apreender t como presente, deve estar no presente, ou seja, deve ser tempo-
ral. Mais tarde, em t', será verdade que "João partiu há quatro horas", e Deus
não mais captará a essência de t, mas de t', pois t não está mais presente. É
sempre verdade que John sai três horas antes de t, e Deus sabe disso imuta-
velmente. Mas se Ele deve conhecer fatos temporais, Ele deve saber que t está
presente. Assim, Seu conhecimento factual deve estar em constante mudança,
caso em que Deus deve estar no tempo. Assim, ao tornar a presentidade parte
da essência individual de cada tempo, Wierenga só consegue temporalizar
Deus.

94
Por fim, consideremos o relato de Brian Leftow sobre o conhecimento
atemporal de Deus sobre os fatos temporais.138 Deve ser lembrado que, na vi-
são de Leftow, todos os eventos existem na eternidade, onde são eternamente
atuais, mesmo que no tempo esses mesmos eventos sejam passados, presentes
ou futuros. Assim, em relação ao quadro de referência de Deus, parece que
não há fatos temporais a serem conhecidos. Em relação à eternidade, nenhum
evento é conhecido como temporalmente passado, presente ou futuro, pois
todos os eventos são atemporalmente presentes para Deus.
Mas Leftow sustenta que Deus também conhece os eventos como eles
existem em relação a vários quadros temporais de referência. Leftow diz que
Deus conhece “todos os fatos da simultaneidade” em relação a qualquer qua-
dro de referência temporal.139 Assim, Deus saberia que em relação ao quadro
temporal R1, os eventos e1 e e2 são simultâneos, enquanto em relação a R2, e1
é anterior a e2. Mas claramente tal conhecimento não constitui conhecimento
de fatos temporais, como Leftow acredita. É apenas o conhecimento das clas-
ses de eventos simultâneos em qualquer momento em relação a qualquer refe-
rencial. Uma vez que a simultaneidade é uma relação puramente atemporal,
ela não produzirá conhecimento do que é passado, presente ou futuro em rela-
ção a qualquer quadro. Deus poderia, na melhor das hipóteses, conhecer em
relação a qualquer quadro a localização sem tempo de qualquer evento (sua
data e hora) e sua relação sem tempo com qualquer outro evento (seja anteri-
or, simultâneo ou posterior). Mas Ele não saberia, mesmo em relação a um
quadro de referência temporal, quais eventos são passados, presentes ou futu-
ros. (Se Ele o fizesse, Seu conhecimento a respeito desse quadro estaria em
constante mudança e, portanto, Ele existiria no tempo desse quadro.)
De fato, a explicação de Leftow sobre o que ele chama de “onisciência
factual” torna evidente que, em sua visão, o conhecimento de Deus é atempo-
ral. Pois ele afirma que o mesmo fato torna verdadeiro agora são 3:00 e então
são 3:00 em seus respectivos horários. O fato que torna essas afirmações ver-
dadeiras pode ser compreendido independentemente dos momentos em que
elas são verdadeiras. Assim, ele conclui, Deus pode ser factualmente onisci-
ente mesmo que não possa compreender verdades temporais.
Essa explicação revela que, na visão de Leftow, realmente não há fatos
temporais. Pois um fato tenso como agora ser 3:00 só pode ser compreendido
às 3:00. Pode-se entender atemporalmente que é 3:00 às 3:00 ou que é 3:00
antes das 4:00, mas tal conhecimento deixa a pessoa completamente no escu-
ro se 3:00 é passado, presente ou futuro. Visto que, segundo a explicação de
Leftow, Deus conhece todos os fatos, e os únicos fatos temporais conhecidos
por Deus são fatos sem tempo, segue-se que não há fatos com tempo. Assim,

138 Leftow, Time and Eternity, 312-337.


139 Ibid., 334.
95
o relato de Leftow sobre o conhecimento de Deus falha em fornecer a Ele co-
nhecimento de fatos temporais.
Os relatos de Kvanvig, Wierenga e Leftow são as tentativas mais sofisti-
cadas de explicar como Deus pode ser atemporal e, ainda assim, conhecer fa-
tos tensos, mas todos falham. Assim, a premissa (4) do argumento para a
temporalidade divina do conhecimento de Deus dos fatos temporais parece
segura.
O defensor da atemporalidade divina não tem outro recurso, então, senão
negar a premissa (3). Ele deve negar que a onisciência implica um conheci-
mento de fatos temporais. Ele pode fazer isso revisando a definição tradicio-
nal de onisciência ou mantendo que o tempo, enquanto uma característica ob-
jetiva do tempo, não pertence estritamente ao conteúdo factual expresso por
sentenças temporais. Vamos examinar cada estratégia por sua vez.
O problema geral com a estratégia de revisar a definição tradicional de
onisciência é que qualquer definição adequada de um conceito deve estar de
acordo com nossa compreensão intuitiva desse conceito. Não somos livres
simplesmente para “cozinhar” a definição arbitrariamente apenas para resol-
ver algum problema em discussão. Segundo a definição tradicional, uma pes-
soa é onisciente se e somente se, para cada fato, ela conhece esse fato e não
acredita em seu contraditório. Em tal definição, se há fatos temporais, uma
pessoa onisciente deve conhecê-los. Que definição alternativa plausível de
onisciência o defensor da atemporalidade divina poderia oferecer?
Wierenga, como uma espécie de segunda linha de defesa, oferece um rela-
to revisado da onisciência que não exigiria que Deus conhecesse fatos tempo-
rais.140 Alguns fatos, diz ele, são fatos apenas de uma perspectiva particular.
Eles devem ser conhecidos por um ser onisciente apenas se ele compartilhar
essa perspectiva particular. Assim, uma pessoa é onisciente se e somente se,
para todo fato e toda perspectiva, se algo é um fato de uma certa perspectiva,
então essa pessoa deve saber que é um fato dessa perspectiva, e se essa pessoa
compartilhar essa perspectiva, então ele deve conhecer o fato em questão.
Wierenga trata os momentos do tempo como perspectivas relativas às quais
existem fatos tensos. Assim, enquanto uma pessoa temporal existente em 8 de
dezembro de 1941 deve (se for onisciente) saber o fato de Ontem os japone-
ses atacaram Pearl Harbor, uma pessoa atemporal deve saber apenas que, da
perspectiva de 8 de dezembro de 1941, é um fato que Ontem os japoneses
atacaram Pearl Harbor. Nesta definição, a onisciência de Deus não exige que
Ele conheça o fato temporal, mas apenas o fato atemporal de que, de uma cer-
ta perspectiva, existe um certo fato temporal.
A definição revisada de onisciência de Wierenga me parece inaceitavel-
mente “cozida”. Ele não está negando que existam fatos tensos. Pode ser ten-
tador entender sua definição como um esforço para eliminar fatos temporais

140 Wierenga, Nature of God, 189.


96
em favor de fatos exclusivamente atemporais. Por exemplo, dizer “O ataque
japonês já passou em relação a 8 de dezembro de 1941” pode soar apenas
como um circunlóquio para dizer que o ataque ocorreu antes de 8 de dezem-
bro de 1941, o que é um fato sem tempo verbal. Dizer que algo é passado,
presente ou futuro em relação a um tempo é apenas uma maneira enganosa de
dizer que é anterior, simultâneo ou posterior a esse tempo. Não se está decla-
rando um fato temporal. Se esse fosse o significado de Wierenga, ele estaria
simplesmente negando que existam fatos tensos e não haveria necessidade de
revisar a definição de onisciência.
Em vez disso, Wierenga quer permitir que realmente existam fatos tensos,
mas sustentar que um ser onisciente não precisa conhecê-los. Esta afirmação
parece bastante implausível. Na visão de Wierenga, pessoas temporais como
você e eu conhecem uma multidão incalculável de fatos que Deus ignora.
Pessoas temporais sabem que o ataque japonês a Pearl Harbor acabou; Deus
não tem ideia se isso ocorreu ou não. Ele sabe apenas que para as pessoas em
8 de dezembro de 1941 e depois disso, é um fato que o ataque acabou. Visto
que Ele não sabe que horas realmente são, Ele não conhece nenhum fato tem-
poral. Este é um campo de conhecimento inaceitavelmente limitado para se
qualificar como onisciência.
Leftow também considera a ideia de revisar a definição de onisciência de
tal forma que a onisciência não implique o conhecimento de todas as verda-
des.141 A estratégia de Leftow aqui é estranhamente derrotista. Ele argumenta,
com efeito, que existem muitos tipos de verdades que Deus não pode conhe-
cer, então não há mal em admitir mais uma classe de verdades (ou seja, ver-
dades temporais) das quais Deus é ignorante. Eu deveria ter pensado ao con-
trário que, como teólogos cristãos, devemos interpretar o conhecimento de
Deus da maneira mais robusta possível. Se acontecer que existem verdades
que Deus não pode saber, não há razão para corroer ainda mais a extensão de
Seu conhecimento negando-Lhe o conhecimento de verdades temporais! O
problema é que Leftow está tão profundamente comprometido com a atempo-
ralidade divina que está preparado para restringir ou mesmo descartar a onis-
ciência de Deus a fim de preservar Sua atemporalidade. Isso me parece um
conjunto estranho de prioridades teológicas: abandonar uma doutrina central
que goza de considerável apoio bíblico para manter uma doutrina controversa,
na melhor das hipóteses, insinuada nas Escrituras.
Em todo caso, Leftow consegue mostrar que existem verdades que Deus
não pode conhecer? Eu acho que não. Seus exemplos de coisas que Deus não
pode saber incluem como é ser um fracassado ou um pecador. Mas Leftow
confundiu saber como com saber disso. Os filósofos reconhecem que o saber
como não tem por objeto as verdades. Deus pode conhecer verdades como
Ser um pecador é péssimo, Ser um pecador é deprimente, Os pecadores se

141 Leftow, Time and Eternity, 321-323.


97
sentem culpados e sem esperança, e assim por diante. Esses são os fatos sobre
como é ser um pecador, e Deus conhece essas verdades. Quando falamos de
onisciência, estamos falando de conhecimento no sentido de saber isso, onde
“saber isso” é seguido por alguma verdade. O fato de Deus não saber como é
ser Ele mesmo um pecador não é um exemplo de uma verdade que Ele não
conhece e, portanto, não constitui uma restrição à Sua onisciência. Leftow
não fornece nenhum exemplo de qualquer verdade que possa ser combinada
com “sabe que” de forma que não possamos dizer “Deus sabe que ____”, on-
de o espaço em branco é preenchido pela verdade em questão. Portanto, ele
não motivou adequadamente nossa negação de que o conhecimento das ver-
dades temporais pertence propriamente à onisciência.
Parece-me, portanto, que nenhuma base adequada foi dada para pensar que
alguém poderia ser onisciente e ainda assim não conhecer verdades tempo-
rais. A definição tradicional de onisciência exige isso, e não temos fundamen-
tos que não envolvam um apelo especial para revisar a definição usual.
Então, e quanto à segunda estratégia para negar a premissa (3), ou seja,
manter que o tempo não pertence, estritamente falando, ao conteúdo factual
expresso por sentenças temporais, mesmo que o tempo seja uma característica
objetiva do mundo? Essa alternativa nos leva a questões muito sutis da filoso-
fia da linguagem. Embora muitos filósofos pensem que o conteúdo factual
expresso por sentenças temporais inclui tempo, outros interpretam o conteúdo
factual sem tempo. Os últimos sustentam que quaisquer expressões indexicais
em uma frase devem ser eliminadas, juntamente com o tempo do verbo, ao
fornecer o conteúdo factual expresso pela frase. Por exemplo, em um deter-
minado contexto de enunciado, a frase “Eu vim aqui ontem” expressa o fato
de Albert Wesselink passar pelo Muro dos Reformadores em Genebra, Suíça,
em 8 de agosto de 1991. Em um contexto diferente, a mesma frase pode ex-
pressar um fato totalmente diferente. O tempo pode ser analisado como uma
característica do modo no qual o conteúdo factual é apresentado a alguém que
expressa esse conteúdo, ou do modo como uma pessoa apreende o conteúdo
factual, ou do contexto de alguém acreditando no conteúdo factual. Alternati-
vamente, o tempo verbal pode ser entendido em termos de uma pessoa atribu-
ir a si mesma, no tempo presente, a propriedade de ser tal como o conteúdo
factual expresso pela sentença especifica. Em tais análises, um ser onisciente
poderia ser atemporal porque o tempo não faz parte do conteúdo factual das
sentenças temporais. O tempo é real, tudo bem, mas como não pertence ao
conteúdo factual de uma frase, um ser que conhecesse apenas fatos sem tem-
po seria, na definição tradicional, considerado onisciente.
Felizmente, não acho que uma discussão dessas teorias semânticas recôn-
ditas seja necessária aqui, pois, embora eu ache essas análises plausíveis e
atraentes, não acho que sirvam para salvar o dia do defensor da atemporalida-
de divina. Pois, de acordo com o teísmo cristão, Deus não é apenas factual-
98
mente onisciente, mas também extremamente excelente cognitivamente. Por
exemplo, nas teorias em discussão, um Deus factualmente onisciente saberia
coisas como Deus é onipotente, Deus ama Suas criaturas, Deus criou o uni-
verso e assim por diante. Mas Ele não teria que possuir nenhuma crença em
primeira pessoa, como “eu sou onipotente”, “eu amo minhas criaturas”, “eu
criei o universo” e assim por diante. Deus nem precisaria saber que Ele é
Deus! Uma máquina poderia ser considerada onisciente sob tais análises. Mas
tal Deus ou máquina claramente não teria excelência cognitiva máxima. A
fim de se qualificar como maximamente excelente cognitivamente, Deus teria
que considerar todas e apenas as crenças apropriadas e verdadeiras em pri-
meira pessoa sobre Si mesmo. Isso forneceria a Ele o que os filósofos cha-
mam de conhecimento de se (autoconhecimento em primeira pessoa), além do
mero conhecimento de re (conhecimento de uma coisa de uma perspectiva de
terceira pessoa). Observe que, para ser cognitivamente excelente ao máximo,
Deus não teria que possuir todo o conhecimento de se no mundo, mas apenas
o conhecimento de se que é apropriado para Ele mesmo. Seria um defeito
cognitivo, não uma perfeição, Deus ter a crença “Eu sou Napoleão”, embora
para Napoleão tal crença fosse uma perfeição. A questão é: a onisciência
(nessas teorias) não é suficiente; Deus deve ser maximamente excelente cog-
nitivamente.
Agora, da mesma forma, é uma perfeição cognitiva saber que horas são, o
que realmente está acontecendo no universo. Um ser cujo conhecimento é
composto exclusivamente de fatos atemporais é menos excelente cognitiva-
mente do que um ser que também sabe o que ocorreu, o que está ocorrendo e
o que ocorrerá no mundo. Esta última pessoa sabe infinitamente mais do que
a primeira e não está envolvida em nenhum defeito cognitivo em assim saber.
Na analogia do conhecimento de se, podemos nos referir a tal conhecimento
como conhecimento de praesenti (conhecimento do presente). Um ser que ca-
rece de tal conhecimento é mais ignorante e menos excelente cognitivamente
do que um ser que o possui. Consequentemente, se adotarmos pontos de vista
segundo os quais o tempo verbal é estranho ao conteúdo factual expresso por
uma sentença temporal, devemos simplesmente revisar a premissa (3) para ler

3'. Se existe um mundo temporal, então se Deus é maximamente excelente


cognitivamente, então Deus tem conhecimento de praesenti

e, com as revisões apropriadas, o argumento continua como antes.


Em resposta à afirmação de que Deus, sendo excelente cognitivamente,
deve ter conhecimento de praesenti, Kvanvig oferece duas alternativas. 142
Uma alternativa seria sustentar que Deus apreende todos os momentos do
tempo diretamente. Mas essa alternativa não faz sentido, pois então todos os

142 Kvanvig, All-Knowing God, 159-160.


99
momentos do tempo seriam apreendidos por Deus como presentes, não no
sentido metafórico do eterno “presente”, mas como temporalmente presentes.
Isso anularia todas as relações temporais anteriores/posteriores entre os even-
tos e deixaria Deus ignorante de qual momento realmente está presente. A ou-
tra alternativa é simplesmente desistir da doutrina da atemporalidade divina.
Na opinião de Kvanvig, os argumentos para essa doutrina não são convincen-
tes, de modo que, se for incompatível com a onisciência ou a excelência cog-
nitiva de Deus, ela pode ser abandonada. Esta é a conclusão a que o presente
argumento parece estar nos conduzindo.
Tal conclusão é difícil para Leftow, no entanto. 143 Em sua opinião, se
atemporalidade e onisciência são incompatíveis, então devemos desistir da
doutrina da onisciência. Pois ele afirma que um Deus atemporal que ignora os
fatos temporais é mais perfeito no todo do que um Deus onisciente que é
temporal.
Como devemos avaliar tal comparação? Já examinamos a afirmação de
Leftow de que a vida de um ser temporal é inferior à vida de um ser atempo-
ral devido à incompletude do primeiro.144 Embora o argumento tenha alguma
plausibilidade, descobrimos que sua força diminuiu, curiosamente, devido ao
poder onisciente de um Deus temporal de recordar ou antecipar eventos pas-
sados e futuros. Por outro lado, descobrimos que a superioridade da existência
temporal sobre a atemporal reside na capacidade concedida exclusivamente
pela existência temporal a Deus de se relacionar causalmente com um mundo
temporal. A encarnação da segunda pessoa da Trindade é uma pedra no sapa-
to dos defensores da atemporalidade divina. Leftow também tenta minimizar
a importância do atributo da onisciência, argumentando que não é essencial
para o conhecimento perfeito. Ele observa corretamente que a perfeição cog-
nitiva envolve muitas outras qualidades além da amplitude do conhecimento
de alguém. Com certeza; mas isso não é razão para duvidar que a perfeição
cognitiva não deva abranger o conhecimento de fatos temporais. Leftow tam-
bém argumenta que a onisciência é impossível, já que Deus não poderia co-
nhecer o conteúdo factual expresso por sentenças contendo palavras indexi-
cais pessoais como “estou acima do peso”. Mas já vimos como tal conheci-
mento de se pode ser manejado sem recorrer a fatos privados, de primeira
pessoa. E, de qualquer modo, colocar uma restrição no conhecimento de Deus
dificilmente torna indiferente se forem propostas outras abreviações. Ter o
maior conhecimento possível é uma perfeição importante que engrandece a
grandeza de Deus. Assim, parece-me um péssimo negócio, de fato, leiloar a
onisciência para comprar a atemporalidade.
A tentativa de negar a premissa (3) do presente argumento parece, portan-
to, não se sair melhor do que o esforço de refutar a premissa (4). Se Deus é

143 Leftow, Time and Eternity, 323-326.


144 Consulte o capítulo 2, páginas 67-74.
100
onisciente, então dada a existência de um mundo temporal, Ele não pode ig-
norar os fatos temporais.
Das premissas do argumento, segue-se que Deus não é atemporal, ou seja,
Ele é temporal. Assim, além do argumento da relação real de Deus com o
mundo, agora temos uma segunda razão poderosa baseada no conhecimento
mutável de Deus dos fatos temporais para pensar que Deus está no tempo.

Conclusão

Com base em nossa discussão anterior, vimos bases comparativamente fracas


para afirmar a atemporalidade divina, mas dois argumentos poderosos em fa-
vor da temporalidade divina. Parece, então, que devemos concluir que Deus é
temporal.
Mas tal conclusão seria prematura. Pois resta um caminho de fuga ainda
aberto para os defensores da atemporalidade divina. O argumento baseado na
relação real de Deus com o mundo assumiu a realidade objetiva do devir tem-
poral, e o argumento baseado no conhecimento de Deus sobre o mundo tem-
poral assumiu a realidade objetiva dos fatos temporais. Se alguém nega a rea-
lidade objetiva do devir temporal e dos fatos temporais, então os argumentos
são minados. Pois, nesse caso, nada com o qual Deus está relacionado jamais
surge ou deixa de existir, e todos os fatos existem sem tempo, de modo que
Deus não sofre nem mudança extrínseca nem intrínseca. Ele pode ser o Sus-
tentador e Conhecedor imutável e onisciente de todas as coisas e, portanto,
existir atemporalmente.
Em resumo, o defensor da atemporalidade divina pode escapar dos argu-
mentos deste capítulo adotando a teoria estática (ou atemporal) do tempo.145
De acordo com essa teoria do tempo, todas as coisas e eventos no tempo são
igualmente existentes. Os eventos no tempo são relacionados pelas relações
sem tempo de antes, simultaneamente e depois de. Mas a distinção entre pas-
sado, presente e futuro não é uma distinção objetiva, sendo apenas uma carac-
terística subjetiva da consciência. Se não houvesse mentes, não haveria pas-
sado, presente ou futuro. Haveria apenas o universo quadridimensional do es-
paço-tempo existindo em bloco.

145 Lembre-se da distinção feita no capítulo 2 (páginas 69-70) entre as duas teorias do tempo.
101
Fig. 3.1. Uma imagem de um universo de espaço-tempo existente sem tensão.
A dimensão vertical t representa o tempo, que começa no Big Bang e termina
no Big Crunch. As dimensões x, y representam o espaço tridimensional, uma
dimensão da qual não pode ser retratada no diagrama porque seu lugar é assu-
mido pela dimensão t.

O leitor que olha para a Fig. 3.1 representa Deus, que transcende o espaço e o
tempo (claro, o leitor deve imaginar a si mesmo como imutável). O universo
espaço-tempo é intrinsecamente temporal na medida em que possui uma di-
mensão interna que, em virtude de suas relações de ordenamento (anteri-
or/posterior a), é o tempo. Mas o universo do espaço-tempo é extrinsecamen-
te atemporal no sentido de que não está embutido em alguma dimensão supe-
rior (um hiper-espaço-tempo), mas coexiste atemporalmente com Deus.
Dada essa visão estática do tempo, é fácil ver por que Deus nunca experi-
menta mudanças extrínsecas em relação a eventos temporais. Pois não há de-
vir temporal. Nada no bloco de espaço-tempo jamais surge ou deixa de exis-
tir, nem o bloco de espaço-tempo como um todo surge ou desaparece. Ele
simplesmente existe atemporalmente junto com Deus. Deus é o Criador do
universo no sentido de que todo o bloco e tudo nele depende de Deus para sua
existência. Deus por um único ato atemporal o faz existir. Pelo mesmo ato Ele
faz com que todos os eventos aconteçam e as coisas existam em suas locali-
zações temporais sem tempo. Assim, Deus nunca adquire ou perde nenhum
de Seus parentes. Deus não entra na relação do Criador com o Big Bang em t0
e deixa de estar nesta relação em um momento posterior t1. Em vez disso, Ele
permanece atemporalmente no Criador em relação a todos os eventos em seus
respectivos tempos. Assim, ao negar a realidade do devir temporal, o defensor
da atemporalidade divina pode minar a premissa (2) do argumento da tempo-

102
ralidade divina baseado na relação real de Deus com o mundo. Deus está re-
almente relacionado com o mundo, mas Ele não é temporal.
Da mesma forma, na teoria estática do tempo realmente não há fatos tem-
porais. O conteúdo factual de sentenças contendo verbos temporais e indexi-
cais temporais inclui apenas datas atemporais e relações atemporais de even-
tos. O tempo linguístico é uma característica egocêntrica dos usuários da lín-
gua. Serve apenas para expressar a perspectiva subjetiva do usuário. Assim,
realmente não há fatos temporais para Deus saber. Não há nenhuma verdade
objetiva sobre o que está acontecendo agora no universo, pois “agora” serve
apenas para significar o tempo relativo ao qual o julgamento temporal é feito.
Cada pessoa em cada momento no universo do espaço-tempo considera seu
tempo como “agora” e os outros como “passado” ou “futuro”. Mas na reali-
dade objetiva não existe “agora” no mundo. Tudo simplesmente existe sem
tensão. Deus, conhecendo os tempos sem tempo em que os eventos ocorrem e
as relações temporais sem tempo entre eles, conhece todos os fatos objetivos
que existem. Assim, a premissa (3) do argumento da temporalidade divina ba-
seada no conhecimento de Deus sobre o mundo temporal é prejudicada. Ao
conhecer todos os fatos atemporais, Deus é verdadeira e atemporalmente
onisciente.
O defensor da atemporalidade divina, portanto, tem uma saída: ele pode
adotar uma teoria estática do tempo e negar a realidade dos fatos tensos e do
devir temporal. É digno de nota, no entanto, que quase nenhum defensor da
atemporalidade divina seguiu esse caminho. Praticamente o único proponente
da eternidade atemporal a fazê-lo é Paul Helm. Em sua opinião, não há dife-
rença na realidade do passado, presente e futuro: “Os tempos que são futuros
para nós existem ou não?” ele pergunta. “Resposta: eles existem para Deus . .
. e eles existem para aquelas criaturas contemporâneas daquele momento fu-
turo, pois aquele momento está presente para elas, mas não está agora presen-
te para nós.”146 Da mesma forma, “o evento passado . . . pertence a seu pró-
prio tempo e, portanto, é real, pertencente à série ordenada de tempos que
compreendem a criação e que são . . . eternamente presente a Deus”.147 As-
sim, afirma Helm, “na criação, Deus traz à existência (atemporalmente) toda
a matriz temporal” e “Deus conhece de relance toda a sua criação temporal-
mente ordenada. . . .”148 Da mesma forma, tempo é apenas uma característica
efêmera da linguagem; as condições de verdade das sentenças temporais são
dadas por fatos sem tempo, fatos que são conhecidos por Deus.149 Helm, por-
tanto, parece ser um dos poucos defensores da atemporalidade divina que viu
e escolheu a saída.

146 Paul Helm, “Eternal Creation: The Doctrine of the Two Standpoints”, em The Doctrine of
Creation, ed. Colin Gunton (Edimburgo: T. & T. Clark, 1997), 42.
147 Ibid., 43.
148 Helm, Eternal God, 27, 26.
149 Ibid., 25, 44, 47, 52, 79.
103
Se nossa discussão sobre a natureza da eternidade divina não terminar nes-
te ponto, não temos outra opção a não ser explorar a viabilidade dessa rota de
fuga. A teoria atemporal do tempo é tão confiável quanto a teoria temporal do
tempo? Ao levantar essa questão, entramos no próprio cerne da filosofia do
tempo e do espaço. Este é um território difícil e misterioso. Um eminente me-
tafísico chamou a natureza do tempo de “a característica mais intrigante e pa-
radoxal do mundo”.150 Mas não temos escolha: se quisermos entender a eter-
nidade, devemos primeiro entender o tempo.

150 E. J. Lowe, The Possibility of Metaphysics (Oxford: Clarendon, 1998), 84


104
4

A CONCEPÇÃO DINÂMICA DO TEMPO


ENTRAMOS AGORA no que um proeminente filósofo recentemente cha-
mou de “a questão mais fundamental na filosofia do tempo”: “Se uma con-
cepção estática ou dinâmica do mundo é correta”.151 Esta questão não é ape-
nas fundamental para a filosofia do tempo, mas também, como vimos, fun-
damental para nossa concepção da eternidade divina. Pois se a concepção di-
nâmica do tempo estiver correta, Deus é mais plausivelmente entendido como
temporal. Que argumentos, então, existem a favor e contra a concepção di-
nâmica do tempo?

I. Argumentos para uma concepção dinâmica

1. A ineliminabilidade do tempo verbal

EXPOSIÇÃO
Já tivemos a oportunidade de mencionar o tempo como ele desempenha um
papel na linguagem. Embora existam línguas que não expressam tempos por
meio de verbos flexionados, não há língua sem tempo no mundo.152 Isso se
deve, sem dúvida, ao fato de que a linguagem reflete nossa experiência do
mundo como tensa, como tendo passado, presente e futuro. Alguns filósofos,
no entanto, veem um significado ainda mais profundo no tempo linguístico.153
Eles argumentam que o tempo linguístico é, por assim dizer, uma janela para
o mundo: Nossa linguagem é tensa porque a realidade é tensa. Ou seja, real-
mente existem fatos temporais que são características objetivas do mundo.
Por exemplo, é fato que Napoleão perdeu a Batalha de Waterloo e que Bill
Clinton não será eleito presidente em 2008. O tempo linguístico apenas exibe
o tempo que é uma característica do próprio tempo.

151 Michael Tooley, Time, Tense, and Causation (Oxford: Clarendon, 1997), 13.
152 De acordo com Gorman e Wessman, “todas as cerca de quatro mil línguas conhecidas permi-
tem que seus falantes designem relações temporais e distingam entre eventos passados, presentes e
futuros – embora com vários graus de dificuldade” (Bernard S. Gorman e Alden E. Wessman ,
“The Emergence of Human Awareness and Concepts of Time”, em The Personal Experience of
Time, ed. Bernard S. Gorman e Alden E. Wessman [Nova York: Plenum Press, 1977], 44-45).
153 Ver especialmente Richard M. Gale, The Language of Time, Biblioteca Internacional de Filo-
sofia e Método Científico (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1968); e Quentin Smith, Language
and Time (Nova York: Oxford University Press, 1993).
105
Como isso pode ser mostrado? Os defensores de uma concepção dinâmica
do tempo argumentam que a ineliminabilidade do tempo verbal da linguagem
e sua indispensabilidade para a vida humana tornam plausível que o tempo
verbal seja uma característica não apenas da linguagem, mas também do
mundo. Contra esse argumento, os defensores de uma visão estática do tempo
têm buscado duas estratégias: ou tentam mostrar que o tempo verbal pode ser
eliminado da linguagem sem qualquer perda de significado, ou então admitem
que o tempo verbal não pode ser eliminado da linguagem, mas negam que is-
so tenha qualquer influência. significado, uma vez que tudo o que se precisa
para tornar as sentenças temporais verdadeiras ou falsas são fatos sem tempo
verbal. Consequentemente, o defensor da visão dinâmica precisa frustrar am-
bas as estratégias para que seu argumento seja bem-sucedido.
Podemos formular o argumento linguístico para fatos temporais da seguin-
te forma:

1. Frases temporais aparentemente expressam fatos temporais.

2. A expressão aparente de fatos temporais por sentenças temporais deve ser


aceita como correta, a menos que

i. sentenças tensas são traduzidas em sentenças tensas sem qualquer perda


de significado

ou

ii. fatos temporais são mostrados como desnecessários para a verdade de


sentenças temporais.

3. Frases com tempo verbal não demonstraram ser traduzíveis em frases sem
tempo sem qualquer perda de significado.

4. Os fatos temporais não se mostraram desnecessários para a verdade de sen-


tenças temporais.

5. Portanto, a expressão aparente de fatos temporais por sentenças temporais


deve ser aceita como correta.

O argumento pretende mostrar que existem fatos tensos sobre o mundo e que,
portanto, a concepção dinâmica do tempo está correta.

CRÍTICA
A premissa (1) do argumento é obviamente verdadeira. Por meio de nossas
frases tensas, tentamos transmitir fatos sobre o mundo. Por exemplo, quando
dizemos: “Churchill foi o primeiro-ministro britânico durante a Segunda
Guerra Mundial”, pretendemos transmitir algum fato sobre o mundo. A pre-
106
missa (2) é baseada na convicção de que, a menos que tenhamos alguma boa
razão para duvidar dessa expressão de fatos temporais, devemos aceitá-la. Tal
convicção parece bastante razoável. Uma visão de correspondência da verda-
de sustenta que, se uma frase ou declaração temporal é verdadeira, então ela
corresponde à realidade. Portanto, se quaisquer sentenças temporais forem
verdadeiras, então a realidade deve ser tensa. Existem apenas duas maneiras
conhecidas de escapar dessa conclusão, que são especificadas nas cláusulas
(i) e (ii). As premissas cruciais do argumento são, portanto, (3) e (4), que ten-
tam barrar essas rotas. A rota mencionada em (3) foi chamada de “A Velha
Teoria da Linguagem Atemporal” e a rota mencionada em (4) “A Nova Teo-
ria Atemporal da Linguagem”. Vamos examinar cada um por sua vez.

A velha teoria atemporal da linguagem

A Old Tenseless Theory parece ter se originado com Bertrand Russell durante
a primeira década do século XX. Depois disso, por cerca de três quartos de
século, a resposta padrão dos defensores do tempo estático ao argumento lin-
guístico foi que o tempo é uma característica supérflua e até irritante da lin-
guagem comum que as mentes filosoficamente e cientificamente treinadas fi-
cam muito felizes em descartar.
Os detensores, como às vezes são chamados, sustentavam que qualquer
frase com tempo verbal pode ser traduzida sem perda de significado para uma
forma padrão sem tempo. Isso foi feito de duas maneiras. Primeiro, pode-se
substituir expressões com tempo verbal por verbos sem tempo e datas/horas.
Por exemplo, a frase tensa “Sra. Brown não estava em casa” poderia ser tra-
duzido na frase sem tempo verbal “Sra. Brown não está em casa em 8 de
maio de 1906” (os itálicos indicam que o “é” não tem tempo verbal).
Em segundo lugar, alternativamente, pode-se substituir expressões tempo-
rais por verbos atemporais e o que é chamado de expressões “token-
reflexivas”.154 Por exemplo, “Sra. Brown não estava em casa” poderia ser tra-
duzido na frase sem tempo, reflexiva e simbólica, “Sra. Brown não está em
casa antes desta declaração”. De-tensers afirmaram que essas traduções sem
tempo têm o mesmo significado que suas contrapartes temporais. Uma vez
que tais traduções expressam apenas fatos sem tempo, segue-se que o tempo é
uma característica supérflua da linguagem comum que não nos dá nenhuma
visão sobre a natureza do mundo.

154 No presente contexto, um “token” é um exemplo particular de um tipo de coisa. Um token de


sentença é, portanto, um enunciado ou inscrição particular de uma sentença. Por exemplo, quando
duas pessoas dizem: “Sra. Brown não está em casa”, há dois indícios da sentença. Existe um tipo
de frase e, nesse sentido, eles proferem a mesma frase; mas há dois sinais desse tipo de frase, um
falado pelo primeiro indivíduo e o outro pelo segundo. Uma sentença é token-reflexiva se um to-
ken dessa sentença se referir a si mesma, por exemplo, “Esta sentença tem cinco palavras”.
107
Como o leitor pode supor a partir de seu nome, a Antiga Teoria da Lin-
guagem Sem Tempo é agora amplamente reconhecida como um projeto fra-
cassado. Trabalhos recentes na filosofia da linguagem tornaram bastante evi-
dente que as supostas traduções sem tempo não têm o mesmo significado que
suas contrapartes com tempo. Três amplas considerações sustentam este jul-
gamento.
Primeiro, as sentenças com tempo verbal são informativas de uma forma
que suas supostas traduções sem tempo não são. O pensamento e a ação hu-
manos ficariam paralisados se o conteúdo de nossas crenças fosse de caráter
exclusivamente atemporal. A obra do filósofo de Stanford, John Perry, serviu
especialmente para enfatizar esse ponto.155 Perry nos convida a imaginar um
professor que mantém a crença atemporal: “A reunião do corpo docente co-
meça ao meio-dia”. Durante toda a manhã, o professor manteve essa crença e,
portanto, essa crença não pode ser a explicação de por que ao meio-dia ele se
levanta e vai para a reunião. O que explica a mudança em seu comportamento
é que ele passou a manter a crença tensa: “A reunião está começando agora”.
Como observa Perry, “Esses indexicais são essenciais, pois a substituição de-
les por outros termos destrói a força da explicação. . . .”156 As contrapartes
sem tempo de sentenças temporais não podem motivar pensamento e ação
oportunos porque não nos dão conhecimento de praesenti (conhecimento do
que é agora o caso).
Este ponto é sublinhado pela inépcia de algumas das supostas traduções
sem tempo de sentenças com tempo. Tomemos, por exemplo, a frase tensa
“Agora são 4:30”. Podemos imaginar situações em que a vida de uma pessoa
dependeria de tal crença. Mas a contraparte sem tempo desta sentença é “São
4:30 às 4:30”, que é uma mera tautologia, ou “São 4:30 simultâneas com esta
declaração”, que é inútil a menos que também saibamos que “Esta a expres-
são está ocorrendo agora”, que é uma crença tensa. Em ambos os casos, as
versões sem tempo são insuficientes para motivar uma ação oportuna porque
não nos informam se realmente são 4:30.
O fato de que as crenças temporais podem motivar o comportamento opor-
tuno de uma maneira que as contrapartes atemporais dessas crenças não po-
dem é uma demonstração convincente de que as sentenças atemporais não
têm o mesmo significado que as sentenças atemporais supostamente traduzi-
das por elas.
Em segundo lugar, sentenças de data sem tempo são informativas de uma
forma que suas contrapartes com tempo não são. Posso ter uma crença tensa,
por exemplo, de que “Sra. Brown não estava em casa” sem saber ou acreditar
que ela não estava em casa em 8 de maio de 1906, conforme afirmado na ver-

155 John Perry, “The Problem of the Essential Indexical,” Noûs 13 (1979): 3-29; idem, “Frege on
Demonstratives,” Philosophical Review 86 (1977): 474-477.
156 Perry, “Indicial Essencial”, 4.
108
são sem tempo verbal da sentença. Perry também aponta que, se alguém per-
deu a noção do tempo, pode racionalmente acreditar que “A reunião começa
ao meio-dia, 16 de setembro de 1976” e ainda assim negar naquele momento
que “A reunião está começando agora”. Isso mostra que essas duas sentenças
não podem ter o mesmo significado, como afirma a Old Tenseless Theory.
Como as sentenças de data sem tempo contêm informações que suas contra-
partes com tempo não contêm, é evidente que elas não têm o mesmo signifi-
cado.
Em terceiro lugar, sentenças temporais não implicam a existência de to-
kens de sentença como fazem suas contrapartes token-reflexivas. Considere a
frase “Não existem tokens de sentença”. Esta frase é falsa, mas parece possí-
vel que seja verdadeira (por exemplo, durante o período jurássico). Mas sua
tradução sem tempo é “Nenhum símbolo de sentença existe simultaneamente
com este enunciado”, o que é uma autocontradição e, portanto, nem mesmo
possivelmente verdadeiro. Portanto, essas frases não podem ter o mesmo sig-
nificado. Em geral, qualquer pessoa com domínio do inglês entende que fra-
ses verbais não implicam a existência de tokens dessas frases. Não faz parte
do significado de uma frase temporal que ela se refira a si mesma.
Por todas essas razões, a velha teoria da linguagem sem tempo foi univer-
salmente abandonada pelos defensores da visão estática do tempo. O tempo
linguístico é ineliminável. A premissa (3) do argumento, portanto, não é mais
contestada pelos teóricos do tempo estático.

A nova teoria atemporal da linguagem

Tendo recuado da reivindicação de traduzibilidade, os detensores recentemen-


te se reagruparam atrás da Nova Teoria da Linguagem Sem Tempo, que foi
brilhantemente formulada e defendida pelo filósofo de Cambridge D. H. Mel-
lor.157 Mellor é bastante insistente no fato de que sentenças tensas não podem
ser traduzidas em sentenças sem tempo. Mas ele pensa que sentenças tempo-
rais podem receber condições de verdade sem tempo. Dar as condições de
verdade de uma sentença é enunciar as condições sob as quais a sentença é
verdadeira. Mellor sustenta que um token de sentença no tempo presente é
verdadeiro se e somente se esse token ocorrer no momento do evento que
descreve; um token de sentença no passado é verdadeiro se e somente se esse
token ocorrer em um tempo especificado depois do evento descrito; e um to-
ken de tempo futuro é verdadeiro se e somente se o token ocorrer em um ho-
rário especificado antes do evento relevante. Então, por exemplo, pegue a
sentença “agora é 1980” e chame algum símbolo desta sentença de “S”. S é
verdadeiro se e somente se S ocorre em 1980. “Agora é 1980” obviamente
não significa “S ocorre em 1980”. No entanto, “S ocorre em 1980” declara as

157 D. H. Mellor, Real Time (Cambridge: Cambridge University Press, 1981).


109
condições de verdade sem tempo para S. Ou seja, um token da sentença “ago-
ra é 1980” é verdadeiro apenas no caso de esse token ser pronunciado em
1980. Em qualquer outro momento, ele seria falso. Mas se ocorrer em 1980,
esse token é verdadeiro.
Agora, Mellor considera as condições de verdade sem tempo como o que
torna verdadeiras as frases com tempo. Como essas condições são atemporais,
nenhum fato temporal é necessário para tornar verdadeiras as sentenças tem-
porais. Tudo o que é necessário são fatos atemporais.
Agora, tudo isso ainda não serve para mostrar que os fatos temporais são
dispensáveis, como o teórico do tempo estático deve mostrar se quiser minar
a premissa (4). Mellor reconhece isso e continua argumentando que as sen-
tenças sem tempo verbal que declaram as condições de verdade das sentenças
com tempo verbal também nos fornecem as regras que governam quando de-
vemos usar esses tokens com tempo verbal. Por exemplo, qualquer pessoa
que conheça as condições de verdade de “Agora é 1980” saberá quando usar
um símbolo dessa sentença, ou seja, somente durante 1980. Mas como, po-
demos nos perguntar, podemos saber quando usar tal símbolo, a menos que
podemos compreender o fato tenso de que agora é 1980? Todos nós temos
uma certa consciência do agora, que Mellor chama de presença (ou melhor,
presentidade) da experiência, que deve ser conjugada a quaisquer regras para
o uso de tokens de sentenças temporais se quisermos usá-los com sucesso. De
fato, Mellor reconhece que “esse fenômeno curioso, a presença temporal ex-
perimentada da experiência, é o cerne da visão tensa do tempo, e o campo
sem tensão deve de alguma forma explicá-lo. . . . Sem uma explicação atem-
poral disso, as condições de verdade atemporais por conta própria nunca dis-
porão de fatos temporais”.158 Mellor, portanto, argumenta que, embora obser-
vemos que nossa experiência está presente, na verdade não está.
Para não morder mais do que podemos mastigar, vamos deixar de lado por
enquanto a negação de Mellor da presentidade da experiência e nos concen-
trar em sua afirmação de que apenas fatos sem tempo verbal são necessários
para tornar verdadeiras as sentenças com tempo verbal.159 Há uma série de ra-
zões para pensar que a Nova Teoria da Linguagem Atemporal de Mellor não
é mais bem-sucedida do que a Antiga Teoria Atemporal em tornar supérfluos
os fatos temporais.
Primeiro, a Nova Teoria Atemporal viola as leis da lógica. Como Mellor
está oferecendo condições de verdade para tokens de sentença, não tipos, dois
tokens diferentes do mesmo tipo de sentença devem ter diferentes condições
de verdade. Por exemplo, imagine duas pessoas dizendo simultaneamente:

158 Ibid., 6, 50.


159 Voltaremos à presentidade da experiência na próxima seção.
110
“Agora é 1980”. Chame um token desta sentença de R e o outro de S. Na aná-
lise de Mellor, as condições de verdade de R e S são as seguintes:160

(R) “É agora 1980” ≡ R ocorre em 1980

(S) “É agora 1980” ≡ S ocorre em 1980

O problema com essa análise é que, embora R implique necessariamente S,


“R ocorre em 1980” não implica necessariamente “S ocorre em 1980” — e,
ainda assim, diz-se que R é logicamente equivalente a “R ocorre em 1980” e
S logicamente equivalente para “S ocorre em 1980”! Pior ainda, se R é logi-
camente equivalente a S e S é logicamente equivalente a “S ocorre em 1980”,
então R deveria ser logicamente equivalente a “S ocorre em 1980”, o que ob-
viamente não é. Além disso, se os únicos fatos declarados por R e S são os fa-
tos atemporais que constituem suas respectivas condições de verdade, então,
como essas condições de verdade não são o mesmo fato, R e S não enunciam
o mesmo fato, o que é absurdo. Assim, a explicação de Mellor das condições
de verdade das sentenças temporais é logicamente incoerente.
Tudo isso implica que Mellor falhou em declarar adequadamente as condi-
ções de verdade das sentenças temporais. Em vez disso, o que ele nos deu é
uma regra sem tempo para quando um token pode ser verdadeiramente pro-
nunciado:

R é verdadeiramente pronunciado ≡ R ocorre em 1980


S é verdadeiramente pronunciado ≡ S ocorre em 1980

Tal regra de uso sem tempo não é problemática; mas não faz nada para suge-
rir que os próprios R ou S tenham condições de verdade sem tempo.
O defensor da teoria dinâmica do tempo pode oferecer, em vez disso, con-
dições de verdade temporal de sentenças temporais. Para fazer isso, deve-se
desafiar a suposição de que, quando se diz: “R é verdadeiro se e somente se . .
.” o “é” não tem tempo. Se o “é” estiver no tempo presente, então teremos
condições de verdade para R ser presentemente verdadeiro ou verdadeiro ago-
ra. Quando enunciamos condições de verdade temporal, descobrimos que es-
tamos empregando o esquema padrão para a verdade Tp ≡ p.161 Assim, “A
Batalha de Waterloo ocorreu em 1815” é (atualmente) verdadeira se e somen-
te se a Batalha de Waterloo ocorreu em 1815. Isso é apenas uma visão da
verdade como correspondência com a realidade. O que tudo isso implica é

160 O símbolo “≡” significa “se e somente se”. Isso significa a equivalência lógica das declarações
conectadas pelo símbolo; isto é, as declarações implicam-se mutuamente.
161 Isso é chamado de esquema de Tarski para a verdade, em homenagem ao lógico Alfred Tarski.
Isso significa que uma afirmação é verdadeira se e somente se o que essa afirmação diz é o caso.
Assim, é verdade que “a neve é branca” se e somente se a neve for branca.
111
que existem estados de coisas temporais que são reais agora, ou, em outras
palavras, que existem fatos temporais.
Em segundo lugar, a Nova Teoria Atemporal não oferece nenhum relato
coerente de sentenças temporais que nunca são evocadas. Este problema é
um resquício da Antiga Teoria Sem Tempo. Que condições de verdade devem
ser dadas para a sentença “Não há marcas de sentença”? Na análise de Mel-
lor, tal sentença não pode ser verdadeira; mas parece óbvio que todos poderi-
am ficar em silêncio por um minuto!
O colega de Mellor, Jeremy Butterfield, tem uma consciência aguda do
problema que isso representa para a Nova Teoria Sem Tempo. 162 Ele fica
constrangido pelo fato de que, em tal análise, algo não falado durante sua
existência nunca está presente, uma vez que não há verdades no tempo pre-
sente sobre isso. Igualmente estranho é o fato de que essa coisa pode ser futu-
ra ou passada, se as pessoas previram ou recordaram sua existência, mesmo
que nunca esteja presente. Algo mais sobre o qual se falou durante sua exis-
tência, mas foi imprevisto e imediatamente esquecido, está presente enquanto
existe, mas nunca futuro ou passado. Butterfield tenta remediar esse defeito
permitindo que sentenças não tocadas sejam verdadeiras ou expressem verda-
des. Mas ele não admitirá fatos tensos. Sua visão parece ser que sentenças
temporais são verdadeiras em alguns momentos e falsas em outros e que con-
dições de verdade sem tempo podem ser dadas para uma sentença que declara
em que momentos uma sentença temporal é verdadeira. Para alguma sentença
temporal S, podemos formular uma sentença temporal T declarando precisa-
mente quando S é verdadeiro. Assim, o relato de Butterfield apenas nos dá
condições de verdade para sentenças sem tempo verbal, como “S é verdadeiro
no período jurássico”, mas não condições de verdade para o próprio S. Se o
próprio S é verdadeiro, embora não marcado, apenas durante o período Jurás-
sico, então S declara um fato temporal, e Butterfield falhou em fornecer con-
dições de verdade sem tempo para isso. Assim, na tentativa de remediar a
análise token-reflexiva defeituosa da Nova Teoria, Butterfield inadvertida-
mente se apoiou na afirmação da realidade dos fatos temporais.
Em terceiro lugar, a Nova Teoria Atemporal confunde condições de ver-
dade com criadores de verdade de sentenças temporais. Protagonistas da No-
va Teoria Atemporal da Linguagem consideram consistentemente que o fato
declarado pelas condições de verdade atemporais de uma sentença temporal é
o que torna a sentença temporal verdadeira. Mas tal suposição é baseada em
uma confusão. A declaração de condições de verdade é um exercício semân-
tico que visa especificar as condições sob as quais uma sentença tem um de-
terminado valor de verdade. Mas não há razão para pensar que o que serve
como condição de verdade de uma sentença é também o que torna a sentença

162 Jeremy Butterfield, “Indexicals and Tense”, em Exercises in Analysis, ed. Ian Hacking (Cam-
bridge: Cambridge University Press, 1985), 69-87.
112
verdadeira. Pode-se estabelecer condições de verdade adequadas para qual-
quer sentença temporal S afirmando, por exemplo, que S é verdadeiro se e
somente se Deus acredita no que S afirma. Mas o fato de Deus acreditar no
que S afirma não é o que torna S verdadeiro; na verdade, muito pelo contrário:
Deus acredita no que S afirma porque S é verdadeiro.
Agora Mellor pode responder argumentando que as condições de verdade
que também fornecem uma regra para o uso de sentenças temporais nos for-
necem os fatos que tornam essas sentenças verdadeiras. Mas acho que há
bons contra-exemplos para essa afirmação. Considere, por exemplo, as condi-
ções de verdade normalmente dadas para sentenças modais – sentenças sobre
o que é necessário ou possível. De acordo com a explicação usual, uma afir-
mação é necessariamente verdadeira se e somente se for verdadeira em todos
os mundos logicamente possíveis, e uma afirmação é possivelmente verdadei-
ra se e somente se for verdadeira em algum mundo possível. Dadas essas
condições de verdade, também entendo como usar essas sentenças modais.
Mas a semântica dos mundos possíveis não me diz nada sobre o que torna as
sentenças modais verdadeiras. Como explica Alvin Plantinga, cujo livro The
Nature of Necessity se tornou um clássico nessa área,

não podemos explicar sensatamente a necessidade como verdade em todos os


mundos possíveis; nem podemos dizer que o fato de p ser verdadeiro em todos
os mundos possíveis é o que torna p necessário. Ainda pode ser extremamente
útil observar que a equivalência de p é necessária e p é verdadeira em todos os
mundos possíveis: é útil da mesma forma que diagramas e definições são em
matemática; permite-nos ver conexões, considerar proposições e resolver ques-
tões que de outra forma poderiam ser vistas, consideradas e resolvidas apenas
com a maior dificuldade, se é que o seriam.163

Assim, a semântica dos mundos possíveis constitui um contra-exemplo claro


para a suposição da Nova Teoria Atemporal de que as condições de verdade
que fornecem uma regra para o uso de sentenças temporais nos fornecem os
fatos que tornam essas sentenças verdadeiras.
Considere também a semântica para sentenças contrafactuais sobre o que
seria ou poderia ser o caso, se outra coisa fosse o caso. De acordo com a aná-
lise usual, uma sentença sobre o que seria o caso é verdadeira se e somente se
em todos os mundos possíveis mais semelhantes ao mundo real em que a
cláusula antecedente da sentença contrafactual é verdadeira, a cláusula conse-
quente também é verdadeira. Assim, a frase “Se Buchanan tivesse ganhado a
indicação republicana em 1992, ele teria perdido a eleição” é verdadeira se e
somente se em todos os mundos possíveis mais semelhantes ao mundo real
em que Buchanan ganha a indicação, ele perde a eleição. Uma sentença sobre

163 Alvin Plantinga, “Reply to Robert Adams,” em Alvin Plantinga, ed. James Tomberlin e Peter
van Inwagen, Profiles 5 (Dordrecht: D. Reidel, 1985), 378.
113
o que pode ser o caso é verdadeira se e somente se a cláusula consequente for
verdadeira em alguns dos mundos mais semelhantes nos quais o antecedente é
verdadeiro. Essas condições de verdade também nos fornecem a regra de co-
mo usar tais afirmações contrafactuais. Mas, mais uma vez, eles não fazem
nada para explicar o que torna a afirmação contrafactual verdadeira. Plantinga
observa,

. . . não podemos olhar para a similaridade, entre mundos possíveis, como ex-
plicando a contrafactualidade, ou como fundando ou fundamentando-a. (De
fato, qualquer fundação ou fundamentação na vizinhança vai na direção opos-
ta.) Não podemos dizer que a verdade de A 'C é explicada pelas declarações re-
levantes sobre mundos possíveis, ou que a relação de similaridade relevante é o
que a torna verdadeira.164

Totalmente à parte desses contra-exemplos, a questão filosófica mais profun-


da aqui é a diferença entre condições e fundamentos. As condições de verda-
de são condições puramente lógicas e não pretendem constituir fundamentos
para outra coisa. Por exemplo, “Sócrates morreu” e “Xantipa [esposa de Só-
crates] ficou viúva” são logicamente equivalentes, mas seria completamente
equivocado dizer que o primeiro se torna verdadeiro pelo último ou que o úl-
timo é o fundamento da antigo. Assim, afirmar as condições de verdade não é
a mesma coisa que afirmar os fundamentos da verdade. Mesmo que a Nova
Teoria da Linguagem Atemporal estivesse correta em sua declaração das
condições de verdade das sentenças temporais, não vejo razão para pensar
que elas nos revelam os fatos que tornam as sentenças verdadeiras. Pelo con-
trário, se sentenças temporais têm criadores de verdade, parece plausível que
sejam os fatos expressos por sentenças temporais que os tornam verdadeiros,
independentemente de quais condições de verdade possam ser oferecidas para
eles.
Notavelmente, na versão recentemente revisada de seu livro, o próprio
Mellor abandona a Nova Teoria da Linguagem Sem Tempo sob a força de ob-
jeções como as acima.165 Mas Mellor não está pronto para admitir a existência
de fatos tensos; em vez disso, ele propõe outra teoria, que ele chama de Teo-
ria Indígena Sem Tempo, para substituir a insustentável Nova Teoria Sem
Tempo. Ao propor essa nova teoria, Mellor deixa claro que seu interesse não
está tanto nas condições de verdade das sentenças temporais quanto nos seus
geradores de verdade. Mellor está realmente preparado para admitir que exis-
tem fatos tensos correspondentes ao que as sentenças verbais relatam. Por
exemplo, correspondendo à sentença temporal “Jim corre amanhã” é o fato
temporal de que Jim corre amanhã.166 Esta é uma concessão impressionante

164 Ibid.
165 D. H. Mellor, Real Time II (London: Routledge, 1998), xi, 32.
166 Ibid., 25.
114
da parte de Mellor, pois, pelo valor de face, concede precisamente o que os
defensores da teoria tensa do tempo têm dito. Mas Mellor sustenta que a con-
cessão é meramente aparente, pois ele insiste que esses fatos não são o que
torna as sentenças temporais verdadeiras. O que os torna verdadeiros são fa-
tos exclusivamente atemporais e, portanto, o argumento para uma teoria tem-
poral do tempo falha.
O calcanhar de Aquiles da Nova Teoria Sem Tempo foi sua confiança em
sentenças simbólicas como portadoras da verdade. Então, o que Mellor subs-
tituirá em seu lugar como portadores da verdade em sua Teoria Indexical? A
resposta não é clara, mas parece que os tipos de sentenças, e não os tokens de
sentenças, são os principais portadores da verdade. Isso contorna o problema
de como pode haver verdades como “Não há fichas de sentença”. Pois mesmo
que nunca exista nenhum símbolo de um tipo de sentença, o próprio tipo de
sentença é um tipo de entidade abstrata que existe independentemente. Então,
o que torna verdadeiros os tipos de sentenças temporais se não são os fatos
verbais que eles relatam?
Mellor afirma que qualquer sentença temporal do tipo S sobre um evento E
torna-se verdadeira a qualquer momento t pelo fato de que t precede (ou se-
gue) E pela mesma quantidade de tempo que S diz que o presente precede (ou
segue) E.167 Assim, por exemplo, se S = Jim correrá amanhã, então o que tor-
na S verdadeiro em, digamos, 1º de junho de 1999, é o fato de que 1º de junho
de 1999 é um dia antes da corrida de Jim. Mas esse fato - 1º de junho de 1999
é um dia antes da corrida de Jim - é um fato sem tempo. Assim, fatos tempo-
rais não são necessários para tornar verdadeiras as sentenças temporais. As-
sim, a ineliminabilidade do tempo verbal da linguagem não requer a existên-
cia de fatos temporais no sentido robusto de criadores de verdade.
A teoria de Mellor apenas assume que sentenças temporais têm criadores
de verdade, o que é uma suposição controversa. 168 Mas deixe isso passar.
Mesmo aceitando essa suposição, a teoria de Mellor não faz nada para mos-
trar que as sentenças temporais não têm verídicos temporais, bem como cria-
dores de verdade atemporais. Os teóricos criadores de verdades reconhecem
universalmente que não há correspondência um-para-um entre verdades e cri-
adores de verdades – algumas verdades podem ter vários criadores de verda-
des. Portanto, a questão é se os fatos tensos que Mellor agora admite existi-
rem podem não ser criadores de verdade. A fim de derrotar o argumento da
ineliminabilidade do tempo verbal, Mellor deve mostrar que os fatos verbais
não são criadores de verdade. Pois mesmo a demonstração de que fatos atem-

167 Ibid., 34.


168 Uma visão da verdade como correspondência não implica a existência de criadores de verdade,
e apenas uma minoria de filósofos endossa explicitamente a ideia de que existem tais entidades
como criadores de verdade. Além disso, mesmo entre os teóricos dos criadores da verdade, alguns
sustentam que sentenças verdadeiras no passado e no futuro não têm criadores de verdade - ao con-
trário, as contrapartes de tais sentenças no tempo presente tiveram ou terão criadores de verdade.
115
porais são criadores de verdade de sentenças temporais não prova que fatos
atemporais também não são seus criadores de verdade. Se existem fatos tem-
porais, então é muito difícil ver por que as sentenças correspondentes a eles
não seriam verdadeiras em virtude de tais fatos. Uma vez que ele agora admi-
te a existência de fatos temporais, Mellor deve mostrar que eles são tão inefi-
cazes que sentenças temporais não são, por assim dizer, sobredeterminadas
pelos fatos, tornadas verdadeiras tanto por fatos temporais quanto por fatos
atemporais. Isso ele não fez.
Mas a teoria revisada de Mellor tem problemas ainda mais profundos do
que isso. A força da Nova Teoria Sem Tempo é que ela afirmava declarar as
condições de verdade – e até mesmo, na mente de Mellor, os criadores da
verdade – de qualquer sentença temporal, ponto final. Mas a teoria revisada
de Mellor não tenta fazer nenhum dos dois. Ficamos imaginando se as condi-
ções de verdade do relato revisado de S. Mellor não podem ser interpretadas
em termos de condição de verdade, pois então deveríamos ter:

S é verdadeiro em t ≡ t precede (ou segue) E pela mesma quantidade de tempo


que S diz que o presente precede (ou segue) E

Aqui temos condições de verdade, não para S, mas para “S é verdadeiro em


t”. Estas são condições de verdade de uma sentença sem tempo, não de uma
sentença com tempo! Considerada como dando-nos o criador da verdade de S,
a conta indexada novamente falha em nos dizer o que torna S verdadeiro - ela
apenas nos diz o que supostamente torna S verdadeiro em t. Mas, como vimos
em nossa discussão sobre condições de verdade temporal, queremos saber o
que torna (tempo presente) S verdadeiro, ponto final. Queremos saber, não o
que torna as corridas de Jim amanhã verdadeiras em 1º de junho, mas o que
torna verdade que Jim corre amanhã ou que Jim está competindo. Se os tipos
de sentenças temporais precisam de criadores de verdade, então são os fatos
temporais que são os criadores de verdade de tais tipos de sentenças tempo-
rais. Pois se não há criadores de verdade temporais, então é inexplicável por
que S é verdadeiro - não verdadeiro em t, lembre-se, mas simplesmente ver-
dadeiro.
Os defensores da visão atemporal do tempo, portanto, parecem ter falhado
em sua tentativa de minar a realidade dos fatos temporais. Nem a velha teoria
da linguagem sem tempo, nem a nova teoria sem tempo, nem a mais recente
teoria indicial sem tempo de Mellor conseguem descartar a realidade dos fa-
tos temporais. Pelo contrário, parece plausível que um tratamento adequado
das condições de verdade ou dos criadores de verdade das sentenças tempo-
rais requeira a realidade dos fatos temporais.
Mas o defensor do tempo estático tem uma última carta a jogar: os de-
tensores freqüentemente afirmam que um argumento paralelo para a realidade
dos “tempos” espaciais pode ser construído e que, uma vez que “tempos” es-
116
paciais obviamente não existem, o argumento que leva a tal uma conclusão
deve ser falaciosa. Uma vez que os argumentos são inteiramente paralelos, os
detensores concluem que é falacioso inferir que os tempos temporais ou espa-
ciais são objetivos.
Os detensores observam que o indexical espacial “aqui” é inteiramente pa-
ralelo ao indexical temporal “agora”. As localizações espaciais relativas a
“aqui”, como dez milhas ao norte daqui ou dez milhas ao sul daqui, são aná-
logas aos tempos futuros e passados. Além disso, alguns dos exemplos mais
memoráveis de “o indicial essencial” dizem respeito a indexicais espaciais
que servem para localizar a pessoa. Por exemplo, alguém perdido nas estantes
da biblioteca da Universidade de Stanford sabe que está “aqui”, mas quer sa-
ber onde fica “aqui”. Da mesma forma, alguém olhando para um mapa da bi-
blioteca pode saber que o balcão de circulação fica no segundo andar, mas
não tentará verificar seus livros, a menos que acredite que o balcão de circu-
lação esteja “aqui”. Assim, os indexicais espaciais são tão inelimináveis e in-
dispensáveis quanto os indexicais temporais. No entanto, ninguém acredita
que os “tempos” espaciais sejam reais, que exista um “aqui” objetivo no
mundo independente de seres conscientes. “Aqui” é apenas uma perspectiva
subjetiva de um mundo que existe no espaço independentemente de tais pers-
pectivas. O mesmo se aplica ao “agora” e aos tempos temporais.
Esta é uma réplica poderosa, mas me parece que o teórico do tempo dinâ-
mico tem recursos para enfrentá-la. Uma das falhas desta réplica é que ela diz
respeito apenas a palavras indexicais. Mas, como vimos, o tempo verbal na
linguagem está longe de ser limitado apenas a palavras indexicais. O teórico
do tempo dinâmico poderia admitir livremente que as palavras indexicais ex-
pressam perspectivas egocêntricas. Assim como não consideraríamos verda-
deiro em algum momento t durante o período jurássico em algum local l no
continente norte-americano que “Um tracódon está pondo seus ovos aqui”,
também não consideraríamos verdadeiro que “Um trachodon agora está colo-
cando seus ovos.” “Agora” como “aqui” expressa o ponto de vista de um su-
jeito consciente. Mas isso não implica que o tempo seja subjetivo. Pois era
verdade em t, l que “Um trachodon está pondo seus ovos”, não apenas que
“Um trachodon põe seus ovos em t, l”. O fato de os indexicais serem egocên-
tricos não implica que o tempo presente seja irreal.
Em segundo lugar, o teórico do tempo dinâmico pode eliminar os “tem-
pos” espaciais, fornecendo uma análise redutiva deles. As primeiras insinua-
ções de como eliminar fatos espacialmente perspectivos podem ser encontra-
das nas reflexões de Bertrand Russell sobre o “isto” da experiência.169 “Isto”
e “aquilo” são palavras indexicais chamadas demonstrativos, que usamos para
designar uma coisa em vez de outra. Russell observou que, em vez de consi-

169 Bertrand Russell, An Inquiry into Meaning and Truth (Londres: George Allen & Unwin,
1940), 108-110.
117
derar “isto” como fundamental, poderíamos analisá-lo em termos de “eu-
agora”. Por exemplo, “isso” é o que estou designando agora. Neste caso o
“eu-agora” torna-se fundamental e irredutível. O defensor do tempo dinâmico
pode utilizar esse mesmo insight para analisar redutivamente o “aqui” em
termos da localização do “eu-agora”. “Aqui” é onde agora estou localizado.
Podemos até trocar o “agora” pelo presente simples: “Aqui” é onde estou lo-
calizado. Nessa análise, localizações espaciais dadas por coordenadas (como
longitude e latitude) são objetivas, mas perspectivas espaciais como “aqui” e
“lá” não são. Como o “eu-agora” é irredutível, essa análise implica a existên-
cia objetiva do eu e do presente. Embora tal análise possa não ser adequada
para materialistas redutivos, que querem se livrar do eu, é uma análise total-
mente de acordo com o teísmo cristão, que considera os eus como agentes
genuínos, sendo o próprio Deus o exemplo paradigmático.
Essa análise, no entanto, levanta uma dificuldade adicional. Parece impli-
car que existem verdades privadas em primeira pessoa acessíveis apenas a eus
individuais, por exemplo, que eu sou Napoleão Bonaparte. A única pessoa
que poderia compreender essa verdade particular era o próprio Napoleão.
Embora alguns filósofos sustentem que existem tais verdades, a maioria não.
Parece bizarro pensar que, quando alguém me diz: “Diga a Jan que estou che-
gando às 15h”, não consigo realmente entender ou comunicar esse fato, mas
posso apenas contar a Jan algum outro fato bem diferente - por exemplo, que
Elaine vem às 3:00. Além disso, se existem tais verdades privadas, então
Deus não é onisciente, pois Ele não sabe, por exemplo, que Ele mesmo é Na-
poleão. É, portanto, desejável encontrar uma explicação do eu e do presente
que não nos comprometa com a existência de verdades privadas.
Uma alternativa seria sustentar que o conteúdo factual de sentenças con-
tendo palavras indexicais é livre de indexicais, “eu” servindo para expressar a
essência individual do falante e “agora” o tempo presente.170 Assim, o conte-
údo factual da frase “Agora estou almoçando”, quando proferida em um con-
texto específico, seria algo como Jonathan Kvanvig está almoçando (deixan-
do o nome próprio substituir a essência individual de Kvanvig). Quando
Kvanvig capta esse conteúdo, ele o expressa com o “eu” na primeira pessoa
porque ele é Kvanvig. Mas quando apreendemos esse conteúdo, nós o expres-
samos de maneira diferente. Assim, conhecemos a mesma verdade, mas como
existem eus reais e distintos, esses eus compreendem essa verdade de maneira
diferente. Poderíamos até mesmo eliminar completamente o tempo verbal do
conteúdo factual expresso por uma sentença temporal, insistindo, porém, que
porque o tempo é real e existimos no presente, apreendemos diretamente ver-
dades referentes ao tempo que é presente e indiretamente verdades referentes
a outros tempos. O eu e o presente são, portanto, reais mesmo que não sejam,
como tal, parte do conteúdo factual expresso por uma frase.

170 Compare o relato de Kvanvig discutido no capítulo 3, páginas 100-101.


118
Uma segunda alternativa seria interpretar o conteúdo factual em termos de
uma pessoa atribuir propriedades a si mesma.171 Correspondendo ao conteúdo
factual expresso por uma frase, pode-se conceber uma propriedade de estar
em um mundo desse tipo, que se atribui a si mesmo. Por exemplo, em vez de
sustentar que acredito em certo fato expresso pela frase “David Lewis leciona
em Princeton”, podemos sustentar que atribuo a mim mesmo a propriedade de
habitar um mundo no qual David Lewis leciona em Princeton. Mas quando
David Lewis afirma: “Eu ensino em Princeton”, ele atribui a si mesmo a pro-
priedade de ensinar em Princeton. Da mesma forma, quando alguém atribui a
si mesmo propriedades envolvendo referência ao tempo presente, expressa is-
so no tempo presente ou com indexicais como “agora”. Não é preciso susten-
tar que todas as sentenças devem ser analisadas em termos de autoatribuição
de propriedades; mas pode-se sustentar que no caso do conhecimento de se e
de praesenti, pelo menos, o que se está fazendo é atribuir propriedades apro-
priadas a si mesmo no tempo presente, não acessando fatos privados.
Qualquer um desses relatos parece viável e, sem dúvida, outros também
poderiam ser formulados, portanto não precisamos endossar nenhum deles. A
presença de tais relatos viáveis sugere que o compromisso de alguém com a
realidade de si mesmo e com o presente não implica compromisso com fatos
de acesso privado. Portanto, a última objeção por parte dos destensores à rea-
lidade dos fatos temporais desmorona.
Em conclusão, parece-me que o argumento linguístico para a realidade ob-
jetiva do tempo é bom. Sentenças temporais parecem expressar fatos tempo-
rais, e nem o Velho, nem o Novo, nem a Teoria da Linguagem Indexical
Temporal foram capazes de dispensá-los. Ao postular a realidade objetiva do
eu e do presente, o partidário do tempo dinâmico pode fornecer uma análise
redutiva dos índices espaciais que não o compromete com fatos privados. Se-
gue-se, portanto, que, a menos que melhores argumentos possam ser organi-
zados em apoio à visão estática do tempo, a realidade dos fatos temporais e,
consequentemente, a teoria dinâmica do tempo deve ser aceita.

2. Nossa experiência de Tempo

EXPOSIÇÃO
Vimos que o tempo verbal na linguagem é plausivelmente considerado um re-
flexo do tempo no mundo. Mas totalmente à parte da linguagem, experimen-
tamos a realidade do tempo de várias maneiras tão evidentes e tão difundidas
que a crença na realidade objetiva do passado, presente e futuro é uma carac-

171 Ver David Lewis, “Attitudes de dicto and de se,” Philosophical Review 88 (1979): 513-543;
Roderick Chisholm, The First Person (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1981); idem,
“Por que proposições singulares?” em Temas de Kaplan, ed. Joseph Almog, John Perry e Howard
Wettstein (Oxford: Oxford University Press, 1989), 145-150.
119
terística universal da experiência humana. Aqui passamos da filosofia da lin-
guagem para o campo da fenomenologia, que busca fornecer uma descrição
da experiência humana.
As análises fenomenológicas da consciência temporal enfatizaram a cen-
tralidade do passado, presente e futuro em nossa experiência do tempo. Em
sua análise clássica da consciência temporal, o grande fenomenólogo Edmund
Husserl descreveu nossa experiência do tempo em termos de lembrar o passa-
do e antecipar o futuro, ambos ancorados na consciência do “agora”. A trans-
formação de uma consciência do “agora” em uma consciência do passado e
sua substituição por uma nova consciência do “agora”, diz Husserl, “faz parte
da essência da consciência do tempo”.172
Da mesma forma, o psicólogo William Friedman, que fez carreira no estu-
do de nossa consciência do tempo, relata que “a divisão entre passado, pre-
sente e futuro permeia tão profundamente nossa experiência que é difícil ima-
ginar sua ausência”.173 Ele diz que temos “uma tendência irresistível a acredi-
tar em um presente. A maioria de nós acha bastante surpreendente a afirma-
ção de alguns físicos e filósofos de que o presente não tem um status especial
no mundo físico, que existe apenas uma sequência de tempos, que o passado,
o presente e o futuro só podem ser distinguidos na consciência humana.174
Consequentemente, praticamente todos os filósofos do tempo e do espaço,
mesmo aqueles que defendem uma visão estática do tempo, admitem que a
visão do homem comum é que o tempo envolve uma distinção real entre pas-
sado, presente e futuro. Um defensor da visão estática resmunga que a com-
preensão dinâmica do tempo está tão profundamente arraigada em nós que
parece “programada pelo pecado original”!175 O defensor da visão dinâmica
do tempo pode argumentar plausivelmente que nossa experiência do tempo
deve ser aceita como verídica ou confiável, a menos que nos seja dada algu-
ma razão mais poderosa para negá-la.
O teórico do tempo dinâmico pode formular um argumento no sentido de
que a realidade objetiva do tempo é a melhor explicação de nossa experiência
do tempo. Mas parece-me que nossa crença na realidade do tempo é muito
mais fundamental do que tal argumento sugere. Não adotamos a crença em
uma diferença objetiva entre passado, presente e futuro na tentativa de expli-
car nossa experiência do mundo temporal. Em vez disso, nossa crença neste

172 Edmund Husserl, The Phenomenology of Internal Time-Consciousness, ed. Martin Heidegger,
trad. James Churchill, com introdução de Calvin O. Schrag (Bloomington, Indiana: Indiana Uni-
versity Press, 1964), 86.
173 William Friedman, About Time (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1990), 92.
174 Ibid., 2.
175 J. J. C. Smart, “Spacetime and Individuals,” em Logic and Art, ed. Richard Rudner e Israel
Scheffler (Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1972), 19-20.
120
caso é o que os epistemólogos chamam de “uma crença propriamente bási-
ca”.176
Uma crença básica é uma crença que não é acreditada com base em algu-
ma crença subjacente, mas sim uma crença fundamental que simplesmente
formamos em certas situações. Por exemplo, quando olho pela janela e for-
mulo a crença “Existe uma árvore”, definitivamente não estou raciocinando,
“estou recebendo certos estímulos sensoriais de modo que uma árvore está
aparecendo para mim. A melhor explicação para esse fenômeno sensorial é
que realmente existe uma árvore e que, portanto, estou tendo essa experiên-
cia.” Em vez disso, em tal situação, eu automaticamente e imediatamente
formo a crença “Existe uma árvore”.
Agora, quase qualquer crença pode ser mantida de maneira básica por al-
guém, mas isso não significa que qualquer crença possa ser apropriadamente
básica. Para ser adequadamente básica, uma crença deve ser fundamentada
nas circunstâncias apropriadas. Caso contrário, a crença é irracional. Por
exemplo, se eu olhar para a parede do meu escritório e formar a crença “Exis-
te uma árvore”, então tal crença não é propriamente básica para mim, uma
vez que não é fundamentada em circunstâncias apropriadas. Mas se estou nas
circunstâncias de olhar para uma árvore, então tal crença é apropriadamente
básica para mim.
Um pouco de reflexão revela que a grande maioria de nossas crenças são
propriamente crenças básicas. Crenças perceptivas, crenças de memória e
crenças baseadas em testemunhos são apenas algumas das classes de crenças
às quais nos apegamos de maneira apropriadamente básica. Crenças apropria-
damente básicas podem diferir umas das outras com respeito a quão profun-
damente arraigadas estão e quão fortemente são mantidas. Uma crença pro-
fundamente arraigada é aquela que, se abandonada, nos forçaria a mudar tam-
bém muitas outras crenças. Uma crença fortemente sustentada é aquela que
eu mantenho com muita tenacidade, não estando disposto a abandoná-la levi-
anamente.
É importante entender que as crenças propriamente básicas são anuláveis,
ou seja, podem se mostrar falsas. Por exemplo, ao visitar a Disney World,
posso formar a crença “Existe uma árvore”, que seria uma crença apropria-
damente básica para mim nessas circunstâncias, até descobrir, após uma ins-
peção minuciosa, que a “árvore” é uma mera simulação. Nesse caso, dizemos
que minha crença foi derrotada. Se devo permanecer racional, devo agora
abandonar a crença original de que vi uma árvore.
O fato de uma crença ser apropriadamente básica implica, portanto, que
estou justificado em manter essa crença, a menos e até que ela seja derrotada.

176 Para um relato dessa noção, veja Alvin Plantinga, “Reason and Belief in God”, em Faith and
Rationality, ed. Alvin Plantinga e Nicholas Wolterstorff (Notre Dame, Indiana: University of Notre
Dame Press, 1983), 47-63.
121
Podemos dizer que tal crença é justificada pelo valor de face (prima facie).
Por exemplo, considere a crença de que “O mundo externo é real”. É possível
que você seja realmente um cérebro em um tanque de produtos químicos,
sendo estimulado com eletrodos por algum cientista maluco para acreditar
que você está sentado lendo este livro. De fato, não há como provar que essa
hipótese está errada. Mas isso não significa que sua crença na realidade do
mundo externo seja injustificada. Pelo contrário, é uma crença propriamente
básica fundamentada em sua experiência e, como tal, justificada até que apa-
reça algum invalidador. Essa crença não é derrotada pela mera possibilidade
de você ser um cérebro em uma cuba. Pois não há justificativa para pensar
que você é, de fato, um cérebro em uma cuba. De fato, nossa crença na reali-
dade do mundo externo está tão profundamente arraigada e fortemente sus-
tentada que qualquer derrotador bem-sucedido dessa crença teria que possuir
enorme garantia. Na ausência de qualquer anulador bem-sucedido, você está
perfeitamente justificado em considerar verídica sua experiência do mundo
externo.
Agora, o defensor de uma visão dinâmica do tempo pode argumentar de
forma semelhante a respeito de nossa crença no passado, presente e futuro. A
crença na realidade objetiva do tempo é uma crença propriamente básica que
é universal entre a humanidade. Segue-se, portanto, que qualquer um que ne-
gue essa crença (e que esteja ciente de que não tem bons defensores dessa
crença) é irracional, pois tal pessoa falha em se apegar a uma crença que é pa-
ra ela propriamente básica.
Às vezes, os defensores de uma visão atemporal do tempo afirmam que
nossa experiência de passado, presente e futuro não precisa ser tomada como
verídica, pois podemos imaginar um universo exatamente como este, que é
um universo de blocos quadridimensionais contendo indivíduos cujos estados
mentais correspondem exatamente aos nossos estados mentais neste mundo.
“Mas então certamente nossas cópias no universo de blocos teriam as mesmas
experiências que nós – caso em que elas não são distintivas de um universo
dinâmico, afinal. As coisas pareceriam assim, mesmo se nós mesmos fôsse-
mos elementos de um universo de blocos.”177 Mas isso é como argumentar
que, como um cérebro em uma cuba teria as mesmas experiências do mundo
externo que nós, portanto, não temos mais motivos para considerar nossas ex-
periências como verídicas! Na ausência de algum tipo de invalidador de cren-
ças fundamentadas por tais experiências, essas experiências fornecem garan-
tia para essas crenças.
Podemos formular esse argumento da seguinte forma:

177 Huw Price, Time's Arrow and Archimedes' Point (Nova York: Oxford University Press, 1996),
15.
122
1. A crença na realidade objetiva da distinção entre passado, presente e futuro é
propriamente básica.

2. Se nossa crença na realidade objetiva da distinção entre passado, presente e


futuro é propriamente básica, então estamos prima facie justificados em manter
essa crença.

3. Portanto, estamos prima facie justificados em manter nossa crença na reali-


dade objetiva da distinção entre passado, presente e futuro.

Visto que a premissa (2) é verdadeira por definição de “crença propriamente


básica”, a única premissa discutível é (1).

CRÍTICA

A presentidade da experiência

Examinemos mais de perto nossa experiência do tempo para avaliar a premis-


sa (1). Para começar pelo mais óbvio, experimentamos os eventos como pre-
sentes. Nossa crença de que os eventos estão acontecendo no presente não é
realmente diferente de nossa crença de que eles estão acontecendo — e esta
última crença é uma crença básica fundamentada em nossa experiência per-
ceptiva.
D. H. Mellor, como proponente da visão estática do tempo, não acredita
que realmente exista um presente. Portanto, diz ele, não podemos, apesar das
aparências, experimentá-lo. Mellor, portanto, não mede esforços para explicar
nossa experiência do presente.
Primeiro, ele argumenta que não observamos realmente o tempo dos even-
tos.178 Ele dá uma ilustração da observação de eventos astronômicos através
de um telescópio. Quando olho para as estrelas, parece que estou observando
os eventos que estão acontecendo no momento; mas sabemos que eles real-
mente ocorreram há milhões de anos. Assim, o que vejo é a ordem em que os
eventos ocorreram, mas minhas observações não me dizem o tempo dos even-
tos. Portanto, quando pensamos que estamos observando qualquer evento pre-
sente, ficamos simplesmente confusos. Não observamos a presença do evento
em si; em vez disso, observamos nossa experiência do evento para estarmos
presentes.
Agora, parece-me que a objeção de Mellor é ineficaz contra o argumento
como o formulamos. Pois claramente não formo uma crença como “O telefo-
ne está tocando” inferindo-a de uma crença mais fundamental, como “Minha
experiência com o toque do telefone está presente”. Normalmente, eu não te-
nho nenhuma crença como a última. Minhas crenças sobre o tempo dos even-

178 Mellor, Real Time, 26.


123
tos não são inferidas, mas básicas. Quanto à ilustração de eventos vistos atra-
vés de um telescópio, tudo o que prova é que minhas crenças sobre o tempo
dos eventos são revogáveis e às vezes erradas. Pode-se também argumentar
que as crenças perceptivas não são propriamente básicas porque as coisas vis-
tas através de um microscópio são observadas como maiores do que são! Só
porque nossas percepções sensoriais às vezes são equivocadas, não há razão
para pensar que não percebemos as coisas. Da mesma forma, observações er-
rôneas da presença de certos eventos não provam que não fazemos tais obser-
vações.179 Na maioria dos casos, os eventos que observamos caem dentro dos
limites do presente ilusório, de modo que nossas observações de eventos co-
mo presentes são verídicas e nossos julgamentos nesse sentido são propria-
mente básicos.
De qualquer forma, Mellor admite que observamos nossas experiências
como estando presentes. Esta é a chamada presentidade da experiência. Mes-
mo que eu possa estar enganado sobre a presença de uma supernova observa-
da através de um telescópio, não posso estar enganado sobre a presença de
minha experiência de observar a supernova. Se observo que minhas experiên-
cias estão presentes, não estou observando o tempo desses eventos mentais?
Não, diz Mellor, pois “embora observemos que nossa experiência está pre-
sente, ela realmente não está”. 180 Esta é uma afirmação paradoxal. Mellor
admite que, quando julgo que minha experiência está presente, não posso es-
tar enganado. Ele escreve,

Portanto, julgar minha experiência como presente é muito semelhante a julgá-


la indolor. Por um lado, o julgamento não é um que eu tenha que fazer. . . .
Mas, por outro lado, se eu conseguir, estou fadado a estar certo, assim como
quando julgo que minha experiência é indolor. A presença da experiência. . . é
algo de que a consciência de alguém é infalível.
. . . Não importa quem eu seja ou quando julgo que minha experiência está
presente, esse julgamento será verdadeiro.181

Mas se minha observação da presentidade de minha experiência é análoga


à minha observação de se minhas experiências são dolorosas, se estou fadado
a estar certo ao julgar que minha experiência está presente, se minha consci-
ência da presentidade de minha experiência é infalível, se meu julgamento de
que minha experiência está presente será sempre verdadeiro, então como pode

179 Se o argumento de Mellor fosse bem-sucedido, também implicaria que nem mesmo observa-
mos eventos anteriores ou posteriores uns aos outros. Pois um problema comum em astronomia é
que uma galáxia mais distante que outra pode parecer estar à mesma distância de nós porque a
mais distante é maior e, portanto, tem o mesmo brilho. Alguém que não conhecesse essa diferença
de distância pensaria que os eventos galácticos que observa em ambas são simultâneos, quando na
verdade os eventos na galáxia mais distante ocorreram antes dos eventos observados na outra.
180 Mellor, Real Time, 26.
181 Ibid., 53.
124
ser que, como diz Mellor, “realmente não é”? Se minha crença de que “minha
experiência de observar a supernova está presente” é invencível, como Mellor
admite, então como essa experiência pode não estar presente, mesmo que a
própria supernova não esteja?
A resposta de Mellor é que, embora a crença de que a experiência de al-
guém esteja presente possa ter um significado cognitivo importante, o conte-
údo factual dessa crença é uma tautologia e, portanto, trivial.182 Ele está pen-
sando aqui em seu relato das condições de verdade sem tempo de sentenças
com tempo. Mellor sustenta que a crença

A. As experiências que estou tendo agora possuem a propriedade de estarem


presentes

é verdadeiro por definição na Nova Teoria da Linguagem Atemporal. Pois as


condições de verdade de (A) são dadas por

B. As experiências que tenho no momento do sinal de (A) possuem a proprie-


dade de existir no momento do sinal de (A).

Mas (B) é trivialmente verdadeiro, diz Mellor, uma mera tautologia. Portanto,
embora (A) seja verdadeira, seu conteúdo fático, conforme revelado por (B),
não implica a realidade objetiva da presentidade.
Esta resposta de Mellor é multiplamente falha. Primeiro, a tautologia de
Mellor é autoconstruída, pois ele estipula que são as experiências que estou
tendo agora que são consideradas presentes. Mas não há razão para descrever
as experiências de alguém como aquelas que estamos tendo agora. As crenças
em questão não são como (A); em vez disso, eles são como

A'. Minha experiência de ver a supernova está presente,

que não é tautológico.


Em segundo lugar, mesmo (A) pode ser lido de uma forma que não é tau-
tológica. Deixe a frase “a experiência que estou tendo agora” escolher uma
experiência específica e única, como observar a supernova. Nesse caso, a
atribuição de presença àquela experiência particular de todas as experiências
que alguém já teve não é trivial ou verdadeira por definição.
Em terceiro lugar, mesmo que (A) seja trivial, isso não implica que a pre-
sentidade da experiência seja trivial. Pode ser trivial afirmar que “Minhas ex-
periências presentes estão presentes” ou que “Minhas experiências presentes
são experiências”. Mas isso não faz nada para explicar o fato de que alguém

182 Ibid., 54; veja também seu relato revisado em D. H. Mellor, “MacBeath’s Soluble Aspirin,”
Ratio 25 (1983): 92.
125
tem experiências presentes ou para derrotar a crença na presença de suas ex-
periências.
Quarto, declarar condições de verdade atemporais para a crença de alguém
na presentidade de sua experiência não constitui nem mesmo um invalidador
prima facie dessa crença. Tais condições de verdade são apenas irrelevantes
para a basicidade adequada dessa crença. Pois o objeto da crença de alguém
não é o fato que é declarado como as condições de verdade atemporais daqui-
lo em que se acredita. Para que seja esse o caso, a declaração das condições
de verdade teria que ter o mesmo significado que a declaração da crença tem-
poral, que deve recair na Velha Teoria da Linguagem Sem Tempo. Como não
são sinônimos, a trivialidade do enunciado das condições de verdade não im-
plica a trivialidade da crença temporal. Tampouco há qualquer razão para
pensar que o conteúdo factual da crença temporal é dado exaustivamente nas
condições de verdade atemporal.
Finalmente, quinto, já vimos (na seção anterior) as deficiências da Nova
Teoria da Linguagem Atemporal de Mellor. Uma vez que seu relato da pre-
sentidade da experiência é baseado na Nova Teoria Sem Tempo, o fim dessa
teoria também prejudica o relato de Mellor sobre a presentidade da experiên-
cia.
Portanto, parece-me que Mellor não forneceu um invalidador bem-
sucedido de nossa crença de que nossas experiências estão presentes. Tal
crença não apenas parece ser apropriadamente básica, mas também parece ser
indefensavelmente verdadeira.

Nossas atitudes diferenciais em relação ao passado e ao futuro

Uma segunda maneira pela qual experimentamos a realidade do tempo é exi-


bida por nossas atitudes em relação ao passado e ao futuro. Recordamos acon-
tecimentos passados com nostalgia ou remorso, dependendo de serem lem-
brados como agradáveis ou desagradáveis, ao passo que aguardamos aconte-
cimentos futuros com pavor ou antecipação. As crenças que essas atitudes
expressam são crenças tensas. Como o falecido lógico de Oxford, A. N. Prior,
observou certa vez, quando dizemos: “Graças a Deus acabou!” certamente
não queremos dizer "Graças a Deus a data da conclusão dessa coisa é 15 de
junho de 1954!" ou “Graças a Deus a conclusão dessa coisa é simultânea com
esta expressão!” — pois por que alguém deveria agradecer a Deus por isso?183
O ponto de Prior é que tais atitudes não podem se referir a fatos sem tempo,
mas são sobre fatos com tempo. O outro ponto é que é inteiramente racional
ter tais atitudes. Portanto, as crenças tensas evidenciadas por essas atitudes
devem ser também racionais. Se é racional para mim ficar aliviado por minha

183 A. N. Prior, “Thank Goodness That’s Over,” Philosophy 34 (1959): 17.


126
visita ao dentista ter passado, então minha crença de que minha visita já pas-
sou também é racional.
Na teoria estática do tempo, os sentimentos de alívio e antecipação devem
ser considerados irracionais, uma vez que os eventos realmente não são pas-
sados ou futuros. No entanto, pode-se dizer com segurança que nenhum teóri-
co do tempo estático jamais conseguiu se livrar de tais sentimentos. De fato,
qualquer um que conseguisse se livrar de tais sentimentos e das crenças ten-
sas que eles expressam deixaria de ser humano.
Em resposta a Prior, Mellor e MacBeath admitem que tais atitudes expres-
sam crenças tensas; mas eles novamente recorrem à Nova Teoria da Lingua-
gem Sem Tempo para despojar essas crenças de qualquer conteúdo factual
temporal. Mellor escreve: “Portanto, agradeço a Deus que minha dor de cabe-
ça acabou, não porque acabou, mas porque acredito que acabou: e o conteúdo
dessa crença é fixado por suas condições de verdade reflexivas simbólicas. . .
.”184 Assim, minha verdadeira crença de que minha dor de cabeça acabou não
implica que minha dor de cabeça tenha passado objetivamente.
Ora, certamente Mellor e MacBeath estão corretos quanto ao que minhas
atitudes expressam imediatamente são crenças temporais, não fatos tempo-
rais. Pois o temido evento pode ser evitado e, assim, nunca acontecer. Ou
posso ficar aliviado com algo devido a um relatório falso. Tudo isso prova
que as crenças tensas de uma pessoa são revogáveis. Mas muitas vezes mi-
nhas crenças tensas estão corretas. Na verdade, às vezes eles são indefensa-
velmente corretos, como quando acredito que a dor que senti acabou. E, como
vimos, ao contrário de Mellor e MacBeath, nem o conteúdo factual nem a
verdade de minhas crenças temporais são fixados pelos fatos atemporais que
são declarados como suas condições de verdade de acordo com a Nova Teoria
Atemporal. Em outras palavras, a questão se reduz mais uma vez à presenti-
dade da experiência. Quando sinto alívio, o que me deixa aliviado pode ser
analisado como um fato complexo envolvendo as crenças de que (i) minha
experiência está presente e (ii) algum evento é anterior ao presente. Posso es-
tar enganado sobre (ii), mas não posso estar enganado sobre (i), e assim a ob-
jetividade do tempo permanece.
Há uma outra característica de nossas atitudes em relação ao passado e ao
futuro que merece ser destacada, a saber, a diferença em como encaramos um
evento dependendo de seu passado ou futuro. Uma experiência desagradável
que ocorre no futuro causa sentimentos de pavor; mas essa mesma experiên-
cia, uma vez passada, evoca sentimentos de alívio. Em uma teoria dinâmica
do tempo, essas diferentes atitudes são fundamentadas na realidade do devir
temporal. Um evento futuro ainda não existe e estará presente; mas um evento
passado não existe mais e estava presente. Portanto, é racional ter sentimentos

184 Mellor, "Aspirina de MacBeath", 91; ver também Murray MacBeath, "Mellor's Emeritus Hea-
dache", Ratio 25 (1983): 86-87.
127
diferentes sobre esses eventos. Mas em uma teoria estática do tempo, essa di-
ferença de atitude em relação ao passado e ao futuro é infundada e, portanto,
irracional. Como o filósofo do tempo George Schlesinger aponta, na teoria es-
tática do tempo não há mais diferença entre um evento ser localizado uma ho-
ra depois e uma hora mais cedo do que agora, do que há em um evento ser lo-
calizado uma milha à direita versus um milha à esquerda daqui, pois nem o
“agora” nem o “aqui” são objetivos. 185 Seja passado ou futuro, ambos os
eventos são igualmente reais; não há devir temporal; nem estou me movendo
em direção a um evento e me afastando do outro; e a distinção entre passado e
futuro é puramente subjetiva. Portanto, simplesmente não faz sentido olhar
para esses eventos de maneira diferente. E, no entanto, como observa Schle-
singer, essa preocupação diferencial é uma experiência humana universal.
Pense, por exemplo, na diferença de atitude de alguém em relação ao nas-
cimento e à morte. Na teoria estática do tempo, o período de inexistência pes-
soal que ocorre após a morte de alguém não é mais significativo do que o pe-
ríodo de inexistência pessoal que ocorre antes do nascimento de alguém. E,
no entanto, comemoramos aniversários enquanto normalmente tememos a
morte, um medo tão profundo que a morte de alguém, totalmente em contras-
te com o nascimento, parece colocar um ponto de interrogação por trás do va-
lor da própria vida. Muitos filósofos existencialistas disseram que a vida se
torna absurda à luz da “minha morte”; mas ninguém disse isso com relação ao
“meu nascimento”.
Os defensores do tempo estático naturalmente relutam em descartar como
irracionais nossas atitudes divergentes em relação a eventos passados e futu-
ros e, em vez disso, tentam encontrar alguma base para essa diferença na teo-
ria estática. Por exemplo, Nathan Oaklander, um ardente defensor do tempo
estático, insiste que tal diferença é racional porque na teoria estática o tempo
é assimétrico, isto é, tem uma direção determinada pela ordenação dos even-
tos de acordo com as relações anteriores que/depois de.186 Oaklander acha
que faz toda a diferença no mundo se um evento é posterior à localização de
alguém no tempo ou anterior à localização de alguém no tempo.
Mas é evidente, penso eu, que em uma teoria estática do tempo a mera as-
simetria do tempo não é um substituto adequado para o devir temporal. Des-
pojadas de todos os tempos, as relações de antes/depois de com relação a al-
gum evento não justificam atitudes diferentes de minha parte mais do que as
relações à direita de/à esquerda de. De fato, na teoria estática do tempo, exis-
tem realmente duas direções para o tempo: uma, a direção “mais cedo que” e
a outra, a direção “mais tarde que”. Na ausência do devir temporal, é total-
mente arbitrário como essas direções são colocadas na série de eventos. As

185 George Schlesinger, Aspects of Time (Indianapolis: Hackett, 1980), 35.


186 L. Nathan Oaklander, Temporal Relations and Temporal Becoming (Lanham, Md.: University
Press of America, 1984), 146.
128
duas setas do tempo poderiam ser giradas 180 graus sem nenhuma inconsis-
tência com os fatos. Embora alguns cientistas tentem apelar para as leis da
termodinâmica ou outros processos físicos para estabelecer “a” única seta do
tempo, o filósofo da ciência Lawrence Sklar aponta que todas essas tentativas
pressupõem uma escolha prévia de direção – por exemplo, que a direção de
aumento de entropia é a direção “mais tarde que”.187 Na ausência de trans-
formação temporal, tal escolha é totalmente arbitrária. Poderíamos ter chama-
do a direção do aumento da entropia de “anterior a” se quiséssemos. Assim,
“mais cedo” e “mais tarde” simplesmente não têm o significado em uma teo-
ria estática do tempo que têm em uma teoria dinâmica.
Nossas atitudes divergentes em relação a eventos passados e futuros ser-
vem para sublinhar quão profundamente arraigadas e quão fortemente manti-
das são nossas crenças tensas. Se a teoria estática do tempo estiver correta,
sentimentos de alívio, nostalgia, pavor e antecipação são todos irracionais.
Uma vez que tais sentimentos são inerradicáveis, a teoria estática condenaria
todos nós à irracionalidade. Na ausência de qualquer invalidador para nossa
crença na distinção objetiva entre passado, presente e futuro, tal crença per-
manece propriamente básica e os sentimentos que evocam inteiramente apro-
priados.

A experiência do devir temporal

Uma terceira e última característica de nossa experiência temporal que mere-


ce menção é nossa experiência de devir temporal. O fato do devir temporal é
tão óbvio quanto a existência do mundo externo. Pois experimentamos esse
mundo como um fluxo contínuo. Assim, nossa experiência do mundo externo
é uma experiência de transformação temporal. Mas a realidade do devir tem-
poral é ainda mais evidente para nós do que a realidade do mundo externo.
Pois na vida interior da mente experimentamos uma mudança contínua dos
conteúdos da consciência, e esse fluxo de consciência, mesmo na ausência de
qualquer apreensão do mundo externo, torna evidente para nós a realidade do
devir temporal. No fluxo da experiência há um devir constante e inelutável.
Portanto, é difícil imaginar algo mais óbvio para nós do que a realidade do
devir temporal.
A crença no devir temporal se expressa em certas experiências que são
comuns aos seres humanos. Por exemplo, quem de nós não desejou que fosse
em outra época? Uma criança antecipando a manhã de Natal pode exclamar:
“Oh, eu gostaria que fosse Natal!” Ou alguém passando por tempos difíceis
pode pensar em tempos melhores e dizer: “Gostaria que fosse 1968!” Como
Schlesinger aponta, embora não haja chance de tal desejo ser realizado, não

187 Lawrence Sklar, Space, Time, and Space-Time (Berkeley: University of California Press,
1976), seção F do capítulo 5.
129
há falta de clareza quanto ao que está sendo desejado: “Qualquer pessoa fami-
liarizada com minha situação iria simpatizar plenamente comigo e compreen-
der infalivelmente que característica do universo eu gostaria de ser diferente
do que é: ao invés do AGORA estar em t1, eu gostaria que estivesse em t0.”188
Em tais experiências, desejamos que algum outro momento no tempo esteja
presente, em vez daquele que é. Assim, pressupomos a realidade do devir
temporal, pois nosso desejo expressa nossa crença em um presente objetivo e
mutável.
Uma vez que na teoria estática do tempo não há presente objetivo, qual-
quer pessoa informada (incluindo o teórico do tempo estático) que expressa
tais desejos é irracional. O melhor que o defensor do tempo atemporal pode
fazer para dar sentido a tais experiências é oferecer substitutos atemporais pa-
ra esses desejos, como “Gostaria que o Natal fosse celebrado em 1º de de-
zembro em vez de 25 de dezembro” ou “Gostaria que os eventos do mundo
foram reconstituídos para que o mundo parecesse ser como era em 1968”.
Mas essas coisas obviamente não são o que desejamos! O teórico do tempo
atemporal parece, portanto, obrigado a dizer que nossos desejos reais, que
provavelmente são experiências universais da humanidade, são simplesmente
irracionais.
Não é assim, retruca Oaklander. Ele reconhece que “tais desejos são signi-
ficativos” e admite que se o defensor da visão estática do tempo está com-
prometido em considerar tais desejos como desprovidos de significado, então
há “algo errado” com a visão estática do tempo.189 Oaklander concede que a
visão atemporal do tempo não pode explicar o significado de um desejo de
que o “agora” esteja localizado em outro lugar do que é. Mas, ele insiste, esse
não é o significado do meu desejo quando digo: “Gostaria que fosse 1968”.
Então, qual é o significado do meu desejo? Oaklander responde: “Eu gostaria
de poder perceber e não apenas lembrar essas coisas que percebi dez anos
atrás. . . . Isto é, eu gostaria de estar percebendo agora eventos que são bem
diferentes daqueles que de fato estou percebendo agora.”190
Mas parece bastante óbvio que a reconstrução de Oaklander do meu desejo
não é de forma alguma o que eu espero. Pois meu desejo não tem nada a ver
com minhas percepções - se eu quisesse ter percepções diferentes, poderia ir a
um hipnotizador! Quero que seja 1968, não apenas que pareça ser 1968. Sch-
lesinger parece ter entendido corretamente meu desejo como o desejo de que
algum outro tempo esteja presente. E Oaklander admite que não pode acomo-
dar tal desejo.
Mas Oaklander ainda não terminou. Pois ele distingue o significado de
meus desejos das condições sob as quais meu desejo seria realizado. Ele diz:

188 Schlesinger, Aspects of Time, 39.


189 Oaklander, Temporal Relations, 159.
190 Ibid., 160.
130
“meu desejo de que fosse t0 seria satisfeito se e somente se o pensamento que
é o desejo correspondesse ao fato de que esse pensamento é simultâneo com .
. . o tempo t0.”191 O leitor agora reconhecerá isso como mais uma aparição da
Nova Teoria da Linguagem Atemporal: Seria 1968 se e somente se um sinal
desse desejo ocorresse em 1968. Não apenas todas as nossas objeções anterio-
res servem para conduzir isso pobre jogador do palco, mas sua aparência nes-
te ponto não faz sentido de qualquer maneira. Pois meu desejo não significa o
que é declarado como suas condições de verdade sem tempo e, portanto, é ir-
racional na teoria estática que eu deseje o que desejo em vez de desejar o fato
sem tempo expresso em suas condições de verdade.
Além disso, o recurso de Oaklander à Nova Teoria Atemporal na verdade
serve para expor uma outra fraqueza dessa teoria, a saber, essa teoria não po-
de de fato nos dizer sob quais condições meu desejo seria verdadeiro. As
condições não podem ser que um sinal do meu desejo ocorra em 1968, pois se
fosse 1968, então eu não teria tal desejo e, portanto, não haveria sinal! Isso é
ainda mais óbvio se alguém desejasse: “Gostaria que fosse o período Cretá-
ceo”. Pois se fosse o período Cretáceo, não haveria ninguém por perto para
fazer o desejo! Assim, Oaklander está preso a um desejo significativo, que
pode ser racionalmente atendido, para o qual ele não pode fornecer condições
sob as quais seria realizado. Em contraste, o defensor de uma teoria dinâmica
do tempo pode oferecer a explicação direta de que meu desejo seria realizado
se e somente se fosse agora 1968, ou seja, se fosse verdade que “1968 está
presente”.
Outra experiência humana universal que pressupõe a realidade do devir
temporal é a experiência da espera. Quando esperamos que algo aconteça, es-
tamos vivenciando o lapso de tempo na antecipação de algum acontecimento.
Não experimentamos apenas a extensão sem tensão do intervalo temporal en-
tre nossa localização e a localização do evento posterior. Nem é suficiente
simplesmente ocupar todas as localizações temporais entre a localização de
alguém e a localização do evento posterior (até mesmo um objeto inanimado
faz isso!) Em vez disso, deve haver a experiência da passagem do tempo. Na
experiência da espera, apreendemos o devir temporal, à medida que as coisas
surgem e desaparecem até que o evento antecipado ocorra. Se a visão estática
do tempo estivesse correta, seria irracional esperar por qualquer coisa, já que
não há devir temporal. Mas tal experiência é inevitável.
Quase tudo o que o defensor do tempo estático poderia fazer neste ponto é
oferecer condições de verdade reflexivas e sem tempo para as crenças pressu-
postas pela experiência da espera - uma resposta que vimos ser irrelevante e
inútil.
Em resumo, então, uma análise fenomenológica de nossa experiência tem-
poral revela que experimentamos eventos como acontecendo no presente, que

191 Ibid., 161.


131
temos atitudes peculiares em relação a um evento, dependendo de ser passado
ou futuro, e que experimentamos o devir temporal. Sem dúvida, existem mui-
tos outros exemplos de como nossa crença na realidade objetiva do tempo
verbal se manifesta em nossa experiência. Mas esses exemplos servem bem
para mostrar quão básica, profundamente arraigada, fortemente mantida e
universal é nossa crença na realidade do devir temporal e tenso. Em uma teo-
ria estática do tempo, todos nós estamos irremediavelmente atolados na irra-
cionalidade, prisioneiros de uma ilusão da qual somos impotentes para nos li-
bertar. Em contraste, se uma teoria dinâmica do tempo estiver correta, nossas
experiências e crenças são inteiramente racionais e apropriadas. Assim, na
medida em que pensamos que tais experiências são justificadas, devemos
abraçar uma teoria dinâmica do tempo.
Segue-se do argumento acima que estamos prima facie justificados em
sustentar nossa crença na realidade objetiva da distinção entre passado, pre-
sente e futuro. Longe de ser controversa, tal conclusão poderia ser aceita até
mesmo por um proponente de uma visão atemporal do tempo. Pois ainda te-
mos que considerar argumentos contra uma teoria dinâmica do tempo, que
pode servir para remover a justificação prima facie concedida a nossas cren-
ças temporais pela experiência e, assim, derrotar o argumento atual. Mellor,
por exemplo, apesar de todas as suas objeções, admite francamente: “O tempo
é um aspecto tão marcante da realidade que apenas o argumento mais convin-
cente justifica negá-lo: ou seja, que a visão tensa do tempo é autocontraditória
e, portanto, não pode ser verdadeira.” 192 É por isso que o Paradoxo de
McTaggart – a ser considerado na próxima seção – constitui, nas palavras do
próprio Mellor, “o eixo central do meu livro”.193 Se o Paradoxo de McTaggart
falha em derrotar a crença na realidade objetiva do tempo, então Mellor admi-
te que estamos justificados em manter nossas crenças no tempo.
Consideraremos o paradoxo de McTaggart abaixo, mas antes de concluir
esta seção vale a pena parar um momento para refletir sobre a força do argu-
mento até agora e sobre o que seria necessário para derrotá-lo. Derrotadores
são crenças que são incompatíveis com alguma crença que mantemos e que
têm mais garantia do que nossa crença atual. Se quisermos ser racionais dian-
te de um suposto invalidador, devemos abandonar nossa crença original ou
derrotar o próprio invalidador. Uma maneira de derrotar um suposto invalida-
dor é encontrar alguma terceira crença que seja compatível com nossa crença
original, mas incompatível com o alegado invalidador, e que tenha ainda mais
garantia do que o alegado invalidador. Esta terceira crença seria um anulador
extrínseco. Mas também existe algo como um invalidador-invalidador intrín-
seco. Nesse caso, a própria crença original é vista como tendo mais garantia
do que os invalidadores trazidos contra ela e, portanto, ela simplesmente su-

192 Mellor, Real Time, 4-5.


193 Ibid., 3.
132
pera seus supostos invalidadores. Por exemplo, suponha que você foi acusado
de um crime que sabia não ter cometido, embora todas as evidências estives-
sem contra você. Você seria racionalmente obrigado em tal caso a abandonar
a crença em sua inocência e aceitar as evidências e acreditar que é culpado?
Claro que não! Sua crença de que você não cometeu o crime tem muito mais
fundamento para você do que a crença de que você é culpado, apesar das evi-
dências que sustentam essa acusação. Sua crença intrinsecamente derrota seu
suposto invalidador.
Agora, merece ser perguntado neste ponto se nossa crença na realidade do
devir temporal e tenso não é tão poderosamente garantida que se torna um in-
validador intrínseco dos invalidadores trazidos contra ela. Com base em nossa
fenomenologia da consciência temporal, é difícil ver como qualquer crença
poderia ser mais garantida para nós do que, digamos, nossa crença na presen-
tidade da experiência. Que argumento para a irrealidade do tempo verbal po-
deria ser baseado em premissas mais evidentes do que essa crença básica? Pa-
radoxo de McTaggart? Dificilmente! Diante de nossa crença básica na reali-
dade do devir tenso e temporal, esse paradoxo - mesmo na ausência de uma
resolução - assume o ar dos argumentos de Zenão para a impossibilidade do
movimento: um quebra-cabeças envolvente e recalcitrante cuja conclusão não
alguém realmente leva a sério. Suspeito que nos encontraremos muito mais
certos da realidade do tempo do que da força do argumento de McTaggart.
Temos, portanto, dois argumentos muito poderosos, o argumento linguísti-
co e o argumento fenomenológico, a favor da teoria temporal do tempo. Ago-
ra resta saber quais argumentos podem ser apresentados contra essa teoria.

II. Argumentos contra uma concepção dinâmica

1. Paradoxo de McTaggart

EXPOSIÇÃO
Em 1908, o idealista de Cambridge, John Ellis McTaggart, publicou um arti-
go notável na revista Mind intitulado “The Unreality of Time”.194 McTaggart
não estava brincando: ele acreditava firmemente que havia apresentado um
argumento que prova que o tempo não existe, e esse argumento foi o principal
legado que ele legou à filosofia do século XX. O filósofo do tempo Richard
Gale observou: “Se alguém olhar cuidadosamente para os numerosos escritos
sobre o tempo por analistas, pode-se detectar um problema subjacente co-

194 J. Ellis McTaggart, “A irrealidade do tempo”, Mind 17 (1908): 457-474. O argumento é de-
fendido contra objeções em The Nature of Existence, de McTaggart, 2 vols., ed. C. D. Broad
(Cambridge: Cambridge University Press, 1927; rep. ed.: 1968), capítulo 33.
133
mum, sendo que quase todos eles estavam tentando responder ao paradoxo de
McTaggart”.195
O que é o Paradoxo de McTaggart? O argumento consiste em duas partes.
Na primeira parte, McTaggart argumenta que o tempo é essencialmente tenso.
Na segunda parte, ele argumenta que o tempo tenso é autocontraditório. Se-
gue-se, portanto, que o tempo é irreal.
O primeiro a distinguir claramente entre visões de tempo tenso e sem tem-
po, McTaggart, portanto, tem algo para todos. Os tensores adoram a primeira
parte de seu argumento, de que o tempo é essencialmente tenso, mas discor-
dam da segunda parte, de que o tempo tenso é autocontraditório. Os destenso-
res adoram a segunda parte de seu argumento porque mostra que a visão tensa
do tempo não pode ser verdadeira, mas rejeitam a primeira parte porque pen-
sam que o tempo é de fato atemporal. Praticamente ninguém concorda com o
próprio McTaggart que o tempo é irreal; em vez disso, a questão tornou-se a
natureza do tempo: ele é tenso ou não?
Como nossa preocupação é com argumentos contra uma teoria temporal
ou dinâmica do tempo, vamos nos concentrar na segunda metade da prova de
McTaggart. Seu argumento aqui tende a parecer desconcertante, a menos que
primeiro entendamos suas pressuposições metafísicas. A chave para entender
a contradição que McTaggart vê em uma visão dinâmica do tempo é sua pres-
suposição de que eventos passados, presentes e futuros são todos igualmente
reais ou existentes e que o devir temporal consiste no movimento do presente
ao longo dessa série.196 McTaggart pensa na série de eventos temporais como
uma série de lâmpadas que são momentaneamente iluminadas em sucessão,
de modo que a luz é vista se movendo através da série de lâmpadas. Da mes-
ma forma, a presentidade se move através da série de eventos. Uma vez que
todos os eventos são igualmente existentes, o único aspecto em que eles mu-
dam é a mudança de tempo que eles sofrem. Primeiro são futuros, depois são
presentes, depois são passados. Em todos os outros aspectos, eles simples-
mente são. Obviamente, então, para McTaggart, tornar-se presente não im-
plica tornar-se existente.
McTaggart observa que o passado, o presente e o futuro são mutuamente
incompatíveis: Nenhum evento pode ter todos os três. Mas, dada a série de
eventos temporais existentes sem tensão de McTaggart, todo evento tem to-
dos os três! Considere um evento localizado intensamente em t1. Em t1 esse
evento está obviamente presente. Mas porque todos os eventos são igualmen-
te reais, esse mesmo evento também tem pretérito e futuro porque em t2 é
passado e em t0 é futuro. O momento t1 não é mais real ou privilegiado do que
t0 ou t2 e, portanto, o evento em questão deve ser caracterizado pelos tempos

195 Gale, Language of Time, 6.


196 Veja, por exemplo, suas declarações em McTaggart, “Unreality of Time”, 463; idem, Natureza
da Existência, 2:11.
134
que possui em todos esses momentos, o que é impossível. Podemos visualizar
o problema imaginando as pessoas existentes em cada um desses três momen-
tos. Para as pessoas em t1, t1 está presente. Como nem t1 nem essas pessoas
falecem, ainda é o caso quando é t2 que, para as pessoas em t1, o momento t1
está presente. Mas para as pessoas em t2, o momento t1 já passou. O momento
t1 nunca abandona o presentness e assume o pastness – basta perguntar às
pessoas em t1! Mas t1 também nunca troca seu pretérito por qualquer outro
tempo, como as pessoas em t2 lhe dirão. Assim, t1 é imutável tanto presente
quanto passado, o que é impossível. Se alguém disser: “Mas t1 está presente
em relação a t1 e passado em relação a t2, o que não é contraditório”, o defen-
sor do tempo atemporal dirá que tais propriedades relacionais reduzidas a re-
lações atemporais são simultâneas e anteriores a, o que vindica a teoria
atemporal.
Talvez outra maneira de chegar à dificuldade que McTaggart vê seja per-
guntar quando t1 tem presença. A resposta só pode ser: em t1. Mas t1 sempre
tem presença em t1 – isso é intensamente verdadeiro! Portanto, t1 nunca muda
seu tempo se dissermos que t1 tem presentidade em t1 (e passado em t2 e futu-
ridade em t0, pois essas afirmações são todas verdadeiras sem tempo). Mas se
os eventos nunca mudam de tempo, então ou o tempo não existe (conclusão
de McTaggart) ou a teoria estática do tempo está correta (conclusão do de-
tenser).
McTaggart observa que alguém responderá que t1 não apenas tem presença
em t1, mas apenas presença, ponto final. Quando t1 está absolutamente presen-
te, então não é passado nem futuro também, de forma que nenhuma contradi-
ção surge. Mas McTaggart rejeita essa resposta porque ela leva a uma regres-
são infinita viciosa de hipertempos, conforme ilustrado na Figura 4.1. No hi-
per-tempo, a presentidade se move ao longo da série de momentos do tempo.
Dessa forma, pode-se entender, digamos, que t1 não está apenas presente em
t1, mas também absolutamente presente. Pois este presente absoluto é o pre-
sente do hiper-tempo, no qual estão inseridos todos os momentos do tempo.
Agora, a postulação de um hiper-tempo incorporado pode em si parecer
tão metafisicamente extravagante que a realidade do tempo deve ser rejeitada.
Mas a objeção de McTaggart é ainda mais fundamental: a postulação de um
hiper-tempo não resolve nada. Pois como o hiper-tempo também é tenso, a
mesma contradição surge novamente no hiper-nível. Os momentos do hiper-
tempo devem ser todos igualmente reais e, portanto, cada um deve ser passa-
do, presente e futuro, o que é impossível. A única maneira de escapar dessa
contradição é postular um hiper-hiper-tempo de terceiro nível no qual os mo-
mentos do hiper-tempo tornam-se sucessivamente presentes (Fig. 4.2).

135
Fig. 4.1: Em momentos sucessivos do hiper-tempo T, momentos sucessivos do
tempo t tornam-se presentes. Assim, por exemplo, t2 torna-se presente em T2.

Fig. 4.2: O hiper-tempo T deve estar inserido em um hiper-hiper-tempo T no


qual os momentos de T tornam-se sucessivamente presentes.

Mas, obviamente, o mesmo problema se repetirá neste terceiro nível e, por-


tanto, deve-se postular outro nível para resolvê-lo, até o infinito. Esse tipo de
regressão infinita é o que os filósofos chamam de regressão infinita “viciosa”,
porque em todos os níveis o problema permanece sem solução. Assim, sim-
plesmente não adianta tentar escapar do paradoxo de McTaggart afirmando
que os momentos do tempo são sucessivamente futuros, depois presentes e
depois passados.

136
Podemos formular o Paradoxo de McTaggart da seguinte forma:

1. Se uma visão tensa do tempo estiver correta, os eventos são passados, pre-
sentes e futuros.

2. Os eventos não podem ser passados, presentes e futuros, a menos que

i. eventos são passados, presentes e futuros apenas em relação a outros


eventos,

ou

ii. os eventos são passados, presentes e futuros no hiper-tempo.

3. Se uma visão tensa do tempo estiver correta, então os eventos não podem ser
passados, presentes e futuros apenas em relação a outros eventos.

4. Se uma visão tensa do tempo estiver correta, então os eventos não podem ser
passados, presentes e futuros no hipertempo.

5. Portanto, se uma visão tensa do tempo estiver correta, os eventos não podem
ser passados, presentes e futuros.

6. Portanto, se uma visão tensa do tempo estiver correta, os eventos são passa-
dos, presentes e futuros, e os eventos não podem ser passados, presentes e futu-
ros.

7. Portanto, uma visão tensa do tempo não é correta.

CRÍTICA
Alguns filósofos tentaram evitar o Paradoxo de McTaggart negando a premis-
sa (1). Eles afirmam que é uma petição de princípio afirmar que os eventos
são (intensamente) passado, presente e futuro. Em vez disso, devemos flexio-
nar o verbo e dizer que os eventos estão presentes, foram futuros e serão pas-
sados. Então não há contradição. Agora, embora eu ache que esses filósofos
estão no caminho certo para algo importante, tal resposta não é relevante para
o argumento que formulei. Pois a contradição deduzida na premissa (6) não é
que os eventos são passados, presentes e futuros, mas sim que ambos são e
não são passados, presentes e futuros. A linguagem sem tempo empregada em
(1) é apenas um inofensivo façon de parler. Apenas expressa a verdade de
que, em uma visão tensa do tempo, os eventos mudam com relação ao seu
tempo. A verdadeira questão é como eles podem fazer isso, o que é abordado
na premissa (2). Agora, McTaggart me parece estar bastante correto de que as
alternativas (i) e (ii) não funcionarão para a teoria temporal do tempo e, por-
tanto, as premissas (3) e (4) são verdadeiras. Se McTaggart errou, então, foi

137
omitindo alguma alternativa da premissa (2) e nos deixando com um falso di-
lema.
Parece-me que foi exatamente isso que aconteceu. Todo o argumento de
McTaggart é baseado em uma tentativa equivocada de casar uma teoria dinâ-
mica do devir temporal com uma série estática de eventos. Não é de admirar
que a teoria dinâmico-estática do tempo com a qual ele acaba se mostre auto-
contraditória! Críticos perspicazes de McTaggart, como C. D. Broad e A. N.
Prior, insistiram quase desde o início que uma teoria dinâmica ou tensa do
tempo implica um compromisso com o presentismo, a doutrina de que as úni-
cas entidades temporais que existem são entidades presentes. 197 De acordo
com o presentismo, entidades passadas e futuras não existem. Assim, real-
mente não há eventos passados ou futuros, exceto no sentido de que houve
certos eventos e haverá outros; os únicos eventos reais são eventos presentes.
Assim, não pode haver a questão de um evento trocar futuridade por presenti-
dade ou trocar presentidade por passado. O devir temporal não é a troca de
tempo por parte de eventos existentes sem tensão, mas a entrada e saída da
existência das próprias entidades. Os eventos não mudam de tempos, assim
como não trocam as propriedades de inexistência e existência! O paradoxo de
McTaggart surge, portanto, não de uma teoria dinâmica do tempo, mas de
uma união equivocada das teorias dinâmica e estática do tempo.
Que o presentismo evita o paradoxo de McTaggart é evidente a partir de
discussões filosóficas recentes sobre mudança intrínseca.198 O problema colo-
cado pela mudança intrínseca é basicamente este: como algo pode possuir
propriedades diferentes em momentos diferentes e ainda assim ser a mesma
coisa idêntica? Necessariamente, se “duas” coisas são idênticas, então elas
têm todas as mesmas propriedades (afinal, são a mesma coisa!). Mas então
como algo que existe em t1 pode ser idêntico a algo que existia em t0 a menos
que tenham todas as mesmas propriedades? Como é possível a mudança ao
longo do tempo ou, colocando a questão de outra forma, como é possível a
identidade ao longo do tempo?
Agora, o Paradoxo de McTaggart é, na verdade, uma instância peculiar
desse problema de mudança intrínseca. Pois ele pergunta como algum evento
E pode ser o mesmo evento se em t1 ele tem presentidade enquanto em t2 ele
tem passado. Ou, para colocar de outra forma, se E como percebido em t1 é o
mesmo evento idêntico que é lembrado em t2, então como E pode possuir di-
ferentes propriedades ou tempos em t1 e t2? Se alguém disser que o tempo de
E mudou de t1 para t2, então não é de E que se lembra afinal, mas de algum

197 C. D. Broad, An Examination of McTaggart's Philosophy, 2 vols. (Cambridge: Cambridge


University Press, 1938; rep. ed.: New York: Octagon Books, 1976), 2:280-302; A. N. Prior, “The
Notion of the Present,” Studium Generale 23 (1970): 245-248.
198 Ver David Lewis, On the Plurality of Worlds (Oxford: Basil Blackwell, 1986), 203-204; Tren-
ton Merricks, "Endurance and Indiscernibility", Journal of Philosophy 91 (1994): 165-184.
138
evento diferente. Assim, o argumento de McTaggart é que mudanças intrínse-
cas no tempo dos eventos são impossíveis.
O presentista evita o problema da mudança intrínseca sustentando que as
únicas propriedades que uma coisa possui são aquelas que possui atualmente.
Assim, se uma coisa era vermelha em t0 e é azul em t1, ela não possui (tempo
presente) propriedades incompatíveis. Pois ele só tem as propriedades que
tem atualmente, inclusive o azul. Teve vermelhidão uma vez, mas não mais.
Assim, a coisa que existia em t0 tem (tempo presente) todas as mesmas pro-
priedades que tem (tempo presente) em t1. Portanto, não há contradição na
mudança intrínseca.
Da mesma forma, um evento possui apenas o tempo que tem presentemen-
te, ou seja, presentidade. Nenhum evento possui passado ou futuro, pois even-
tos não presentes não existem. Assim, não pode haver dúvida de que qualquer
evento possui determinações de tempo incompatíveis. Este é o germe da ver-
dade na negação da premissa (1) por alguns filósofos. Os eventos só têm pre-
sença; mas pode-se dizer que eles são passados ou futuros no sentido de que é
(atualmente) verdade que eles já estiveram presentes ou estarão presentes.
Assim, o Paradoxo de McTaggart é ineficaz contra o presentista.
Portanto, é instrutivo observar que os proponentes contemporâneos do Pa-
radoxo de McTaggart, apesar de suas variadas formulações do problema,
pressupõem uma teoria dinâmica-estática híbrida do tempo, assim como
McTaggart fez. Por exemplo, Mellor afirma: “O futuro, a presença temporal e
o passado são todos considerados propriedades não relacionais reais que tudo
no tempo possui sucessivamente, mudando objetivamente à medida que troca
cada uma dessas propriedades pela próxima”.199 Da mesma forma, o ex-aluno
e colaborador de Mellor, R. Le Poidevin insiste que mesmo aqueles que ne-
gam que o futuro seja real implicam por essa mesma negação que o passado,
pelo menos, é real: “embora os dinossauros (por exemplo) estejam extintos,
eles ainda são reais na medida em que são eles e suas propriedades que tor-
nam verdadeiras as afirmações sobre os dinossauros. . . . Para entender que o
passado é real e o futuro não, temos que falar em ser real simpliciter, não ser
real uma vez ou estar prestes a ser real.200 Oaklander não poderia ser mais cla-
ro ao interpretar erroneamente a teoria tensa do tempo como uma união das
teorias dinâmica e estática:

No tempo tradicional. . . teoria do tempo, o AGORA é um particular ou pro-


priedade que se move ao longo de uma ordenada, mas ainda não-temporal, . . .
Series. Os termos do . . . as séries existem (sem tensão) em relações imutáveis
umas com as outras, e essas relações imutáveis tornam-se relações temporais à
medida que o AGORA se move através delas. . . .201

199 Mellor, Real Time, 4.


200 Robin Le Poidevin, “Lowe on McTaggart”, Mind 102 (1993): 168.
201 L. Nathan Oaklander, “Zeilicovici on Temporal Becoming,” Philosophia 21 (1991): 329.
139
O que nossa discussão revela, então, é que o Paradoxo de McTaggart não é
realmente um argumento contra uma teoria dinâmica do tempo. Em vez disso,
visa (e efetivamente, eu acho) um híbrido teratológico, a teoria dinâmico-
estática do tempo.
Assim, se adotarmos o presentismo em consonância com uma teoria dinâ-
mica pura do tempo, evitamos o paradoxo de McTaggart. Significativamente,
Le Poidevin, pelo menos, admite isso: o presentismo “representa o único
meio de bloquear a prova de McTaggart da irrealidade do tempo consistente-
mente com a suposição de um passado, presente e futuro não relacionais”.202
O presentismo nos permite revisar a premissa (2) de modo a admitir uma ter-
ceira alternativa:

2'. Os eventos não podem ser passados, presentes e futuros, a menos que

i. eventos são passados, presentes e futuros apenas em relação a outros


eventos,

ou

ii. os eventos são passados, presentes e futuros no hiper-tempo,

ou

iii. apenas os eventos presentes existem, e os eventos são passados ou futu-


ros apenas no sentido de que foram ou serão presentes.

O proponente do Paradoxo de McTaggart, para que seu argumento seja bem-


sucedido, deve agora refutar a alternativa presentista (iii). Então, o que há de
errado com o presentismo?
O presentismo é frequentemente rejeitado porque se pensa que implica, em
conjunto com a Teoria da Relatividade Restrita, uma espécie de solipsismo (a
visão de que só eu existo), no qual nenhuma pessoa sã pode acreditar. 203 Essa
consequência indesejável se deve à ausência de tempo e espaço absolutos no
contexto do STR, o que torna impossível definir qualquer relação de coexis-
tência plausível entre si mesmo e outras coisas.204 Embora tenhamos mais a
dizer sobre esse assunto posteriormente,205 qualquer pessoa que tenha seguido

202 Robin Le Poidevin, Change, Cause, and Contradiction: A Defense of the Tenseless Theory of
Time (Londres: Macmillan, 1991), 36.
203 Veja, por exemplo, D. H. Mellor, “Special Relativity and Present Truth,” Analysis 34 (1973–
1974): 75-76.
204 Yuri Balashov, “Resistindo e Perdurando Objetos no Espaço-Tempo de Minkowski,” Philoso-
phical Studies 99 (2000): 129-166.
205 Consulte o capítulo 5, páginas 169-170.
140
nosso argumento no capítulo 2 perceberá que essa objeção ao presentismo é
fácil de responder. A objeção é baseada em uma interpretação einsteiniana de
STR que o defensor da temporalidade divina deveria rejeitar em bases total-
mente independentes em favor de uma interpretação lorentziana. Uma com-
preensão lorentziana da relatividade, deve-se lembrar,206 preserva relações de
simultaneidade absoluta e, portanto, não enfrenta nenhum desafio relativo às
relações de coexistência entre seres temporais. O presentista que aceita a rela-
tividade lorentziana não é, portanto, ameaçado pelo espectro do solipsismo.
Le Poidevin também acusa que o presentismo implica “solipsismo tempo-
ral”, mas por esse epíteto ele significa uma série de doutrinas filosóficas téc-
nicas que considera questionáveis.207 Embora eu concorde com Le Poidevin
que essas doutrinas são implausíveis, seu argumento de que elas estão implí-
citas no presentismo não é muito convincente. Por exemplo, ele afirma que,
se o presentismo for verdadeiro, não podemos fazer declarações de existência
verdadeiras sobre o passado, como “Alguns franceses caíram em Waterloo”.
Isso ocorre porque a forma lógica de tal declaração é entendida como existe
algum indivíduo x tal que x era um francês e x caiu em Waterloo. Observe
que, de acordo com a forma lógica dessa afirmação, existe algum x individu-
al. Le Poidevin usa isso para mostrar que a lógica nos compromete com a rea-
lidade de todos os indivíduos, sejam eles passados, presentes ou futuros.
Esse argumento, no entanto, me parece bastante artificial. A linguagem da
lógica é uma linguagem artificial, sem tempo, que simplesmente ignora as
distinções de tempo na linguagem comum. O presentista concorda que, no
universo atemporal do discurso da lógica clássica, podemos verdadeiramente
dizer que existem (atensamente) indivíduos passados e futuros, ou seja, a ló-
gica abrange todos os indivíduos no mundo real, abstraindo se eles são passa-
do, presente ou futuro. Simplesmente não há significado metafísico neste dis-
curso artificial sem tempo. Agora, se quisermos investir a forma lógica com
significado metafísico, então o presentista pode propor qualquer uma das duas
reformas: (i) podemos tomar as afirmações de existência como sendo, não
sem tempo, mas com tempo múltiplo; por exemplo, houve, há ou haverá al-
gum indivíduo x tal que x era um francês e x caiu em Waterloo; ou então (ii)
podemos complementar a lógica clássica com a chamada lógica de tempo,
prefixando declarações de existência com indicadores de tempo; por exemplo,
foi o caso de existir algum indivíduo x . . . ou será o caso de existir algum x
individual. . . Por meio de qualquer uma dessas alternativas, o presentista po-
de deixar claro que as declarações de existência sobre indivíduos passados e
futuros não implicam que esses indivíduos sejam tão reais quanto os indiví-
duos presentes. Mas essas complicações são indubitavelmente desnecessárias,

206 Consulte o capítulo 3, páginas 54-57.


207 Le Poidevin, Mudança, Causa e Contradição, capítulo 3.
141
já que simplesmente não há razão para considerar a linguagem artificial da
lógica clássica repleta de significado metafísico.
Mais uma vez, Le Poidevin objeta que, se o presentismo é verdadeiro, en-
tão não pode haver relações entre coisas que não existem ao mesmo tempo,
uma vez que pelo menos uma delas não existe. Mas obviamente tais relações
existem; por exemplo, a Batalha de Hastings foi anterior à Batalha de Water-
loo, Kennedy foi invejado por Nixon, Aquino foi mais inteligente que Átila e
assim por diante. Há alguns problemas com essa objeção. Primeiro, apenas
assume que as relações transtemporais não podem existir. Se existem coisas
como relações, então por que ambos os membros de uma relação precisam
existir ao mesmo tempo? Em segundo lugar, a objeção prova demais. Se fosse
correto, então não poderia haver relações entre indivíduos em diferentes
mundos logicamente possíveis. Não poderia haver relação de identidade
transmundial, por exemplo. Assim, não poderíamos dizer que em algum
mundo possível eu peso um quilo a mais do que realmente peso, o que impli-
ca a conclusão absurda de que tenho todas as minhas propriedades essencial-
mente. Qualquer reconstrução filosófica de tais relações transmundanas desti-
nadas a substituí-las por noções mais aceitáveis pode ser acompanhada por
uma reconstrução semelhante de relações transtemporais. Eles ficam de pé ou
caem juntos. Finalmente, terceiro, em muitos casos provavelmente podería-
mos dispensar as relações transtemporais. Por exemplo, poderíamos simples-
mente dizer que Nixon tinha a propriedade de invejar Kennedy. Nenhuma ou-
tra relação é necessária. (De fato, podemos imaginar casos em que alguém
pode ter inveja de, digamos, uma pessoa totalmente fictícia, caso em que não
há relação alguma com um indivíduo.) Ou, novamente, poderíamos dizer que
Átila tinha um certo QI e Aquino tinha um certo QI, e um número é maior
que o outro. Mesmo as relações anteriores/posteriores podem ser plausivel-
mente analisadas em termos não relacionais, como veremos.208 Assim, a se-
gunda objeção de Le Poidevin não é convincente.
Le Poidevin apresenta outras dificuldades, mas estas não parecem mais
persuasivas do que as anteriores, de modo que o leitor pode ser deixado para
prosseguir na discussão mais técnica dessas questões, caso deseje.209
Até agora não vimos razões convincentes para rejeitar a perspectiva pre-
sentista. De fato, as considerações decorrentes de uma discussão do paradoxo
de McTaggart sugerem uma razão positiva para aceitar o presentismo. Pois
existe uma espécie de Paradoxo de McTaggart modal, que é paralelo ao Para-
doxo de McTaggart temporal, cuja solução é análoga ao presentismo.210 É as-
sim: algo não pode ser real e meramente possível. Mas tudo o que existe é

208 Consulte o capítulo 5, páginas 190-192.


209 Veja meu “McTaggart’s Paradox and Temporal Solipsism,” Australasian Journal of Philoso-
phy 79 (2001): 32-44.
210 Ver M. J. Cresswell, “Modality and Mellor’s McTaggart,” Studia Logica 49 (1990): 163-170.
142
ambos: é real no mundo real e meramente possível em algum outro mundo
possível no qual não existe. Alguém dirá que não é inconsistente ser real em
relação ao mundo real e meramente possível em relação a algum outro mun-
do. Mas isso leva a uma regressão infinita. Pois, uma vez que o mundo real é
real em relação a si mesmo e algum mundo meramente possível é real em re-
lação a si mesmo, devemos postular algum mundo hiper-real no qual apenas
um desses dois mundos é real. Mas então o mesmo problema surge para o
mundo hiper-real, e assim por diante até o infinito.
A resposta usual a esse problema modal é adotar a doutrina do atualismo, a
visão de que apenas o mundo real é real. Mundos possíveis são meramente
formas abstratas que o mundo poderia ter sido. Assim, realmente não existem
mundos paralelos concretos que tenham realidade como o mundo real. Ora, o
atualismo é precisamente paralelo ao presentismo. Como Le Poidevin admite:
“A doutrina de que apenas o mundo real é real evita o paradoxo modal, assim
como a doutrina de que apenas o presente é real evita o paradoxo de McTag-
gart”.211 Como esses dois problemas e suas soluções são paralelos, a consis-
tência exige que eles sejam aceitos ou rejeitados juntos. Ou aceite tanto o atu-
alismo quanto o presentismo ou então sustente que, assim como todos os
momentos do tempo são igualmente reais, todos os mundos possíveis são
igualmente reais. O mesmo tipo de objeções que Le Poidevin apresenta contra
o “solipsismo temporal” pode ser apresentado analogamente contra o “solip-
sismo modal”; e o mesmo tipo de movimento que o atualista pode fazer para
escapar disso também pode ser feito pelo presentista. Assim, pensadores co-
mo Le Poidevin, que querem abraçar o atualismo e ainda assim rejeitar o pre-
sentismo, encontram-se em uma tensão real.
Só precisa ser acrescentado que o pequeno punhado de filósofos que acre-
ditam consistentemente na realidade concreta de todos os mundos possíveis e
todos os momentos do tempo encontram-se sobrecarregados com uma visão
de mundo metafísica que a grande maioria dos filósofos considera bastante
estranha.212
Assim, a chave para evitar o Paradoxo de McTaggart é o presentismo. O
erro central de McTaggart, como apontou o distinto filósofo britânico Micha-
el Dummett, é que ele assumiu que deve existir uma descrição única e com-
pleta da realidade.213 Mas se levarmos o tempo a sério, tal descrição não pode
existir. Há sim uma descrição diferente da realidade que se mantém em cada
momento que está presente. McTaggart quer descrever o mundo, como os
teólogos medievais colocam, sub specie aeternitatis (do ponto de vista da

211 Le Poidevin, Mudança, Causa e Contradição, 35.


212 Para uma crítica, veja Peter van Inwagen, “Indexicality and Actuality,” Philosophical Review
89 (1980): 415-417.
213 Michael Dummett, "A Defense of McTaggart's Proof of the Unreality of Time", Philosophical
Review 69 (1960): 503; idem, “A Realidade do Passado,” Proceedings of the Aristotelian Society
69 (1968–1969): 252-253.
143
eternidade), e ainda incluir o tempo nessa descrição. Você não pode fazer as
duas coisas. Uma visão atemporal da realidade exclui o tempo, e é por isso
que a realidade do devir tenso e temporal implica que Deus, como Aquele que
está realmente relacionado e conhece o mundo, é temporal. Dificilmente se
pode, então, objetar à realidade do tempo, como faz McTaggart, alegando que
um mundo tenso não pode ser capturado em uma descrição única e atemporal.

2. O Mito da Passagem

EXPOSIÇÃO
A ideia de que o tempo flui ou passa é uma ideia comum na filosofia ociden-
tal, pelo menos tão antiga quanto o antigo filósofo grego Heráclito. Isaac
Newton, deve-se lembrar, sustentou que o tempo absoluto “flui uniformemen-
te sem relação com qualquer coisa externa”.214 McTaggart interpretou essa
linguagem literalmente. Ele afirma: “O movimento do tempo consiste no fato
de que termos posteriores e posteriores passam para o presente, ou – o que é o
mesmo fato expresso de outra maneira – que a presentidade passa para termos
posteriores e posteriores”.215
A passagem do tempo é uma característica indiscutível do tempo psicoló-
gico. Durante os surtos de atividade, o tempo parece passar rapidamente e
tendemos a exclamar: “Como o tempo voa!” Por outro lado, quando estamos
definhando, o tempo passa terrivelmente devagar e reclamamos: “O tempo
continua se arrastando”. A questão é se essa característica do tempo psicoló-
gico é também uma característica do próprio tempo.
Vários proponentes da visão estática do tempo acusaram que a ideia de
uma passagem literal do tempo é absurda e que, portanto, uma teoria dinâmi-
ca do tempo não pode estar correta. 216 Visto que a visão dinâmica do tempo
está comprometida com a realidade objetiva do devir temporal, ela implica a
realidade da passagem do tempo. Como a passagem do tempo é puramente
psicológica, a teoria dinâmica não nos dá a verdade sobre o tempo.
A passagem do tempo deve ser um mito, argumenta-se, porque, de outra
forma, surgem questões sem resposta. Por exemplo, quão rápido o tempo
flui? Em casos de movimento literal, medimos a distância percorrida por uni-
dade de tempo; por exemplo, sessenta milhas por hora. Mas no caso da passa-
gem do tempo, estamos medindo a quantidade de tempo percorrido por – o
quê? Que sentido há em falar sobre a rapidez com que um minuto passa? Um

214 Isaac Newton, “Princípios Matemáticos da Filosofia Natural” de Sir Isaac Newton e seu “Sis-
tema do Mundo”, trad. André Motte, rev. com apêndice de Florian Cajori, 2 vols. (Los Angeles:
University of California Press, 1966), 1:6.
215 McTaggart, Nature of Existence, 2:10.
216 Donald C. Williams, “O Mito da Passagem”, Journal of Philosophy 48 (1951): 457-472; J. J.
C. Smart, “The River of Time”, Mind 58 (1949): 483-494; idem, “The Temporal Asymmetry of the
World,” Analysis 14 (1953–1954): 79-83.
144
minuto passa em um minuto - uma mera tautologia! Assim, nenhum conteúdo
não trivial pode ser dado à afirmação de que o tempo passa. Em segundo lu-
gar, um evento ocorrendo em um único instante teria uma espécie de história
se o tempo passasse: primeiro seria futuro, depois seria presente, depois seria
passado. Mas como só existe num instante, não pode ter uma história no tem-
po comum. Portanto, a passagem do tempo deve ocorrer em relação a um hi-
per-tempo. Em tantas unidades de hipertempo, a presentidade se move por
tantas unidades de tempo comum. Mas então temos que perguntar sobre o
fluxo do hiper-tempo e partimos para uma regressão infinita viciosa. Um flu-
xo literal de tempo é, portanto, incoerente.
Podemos formular a objeção à passagem do tempo da seguinte maneira:

1. Se o tempo é dinâmico, a passagem do tempo é uma realidade independente


da mente.

2. A passagem do tempo não pode ser uma realidade independente da mente.

3. Portanto, o tempo não é dinâmico.

CRÍTICA
É uma curiosidade da discussão filosófica desta questão que a verdade da
premissa (2), tão alardeada por certos teóricos do tempo estático, seja aceita
pela grande maioria dos defensores do tempo dinâmico. Isso também não re-
presenta uma concessão de sua parte aos proponentes do tempo estático. Em
vez disso, as objeções a um fluxo literal de tempo foram emprestadas por crí-
ticos como D. C. Williams e J. J. C. Smart da crítica de C. D. Broad a
McTaggart. Broad, um filosófico convertido a uma teoria temporal pura do
tempo, viu claramente os problemas inerentes à teoria dinâmica-estática hí-
brida de McTaggart.217 O devir temporal, insistiu Broad, não deve ser pensa-
do como o movimento literal da presença ao longo de uma série de eventos
existentes sem tensão. Caso contrário, cairemos precisamente nos enigmas
explicados acima. O devir temporal, na visão de Broad, não é uma mudança
qualitativa em um evento. Tornar-se real não é como, digamos, engordar, pois
no devir temporal não há sujeito duradouro que se mova do futuro para o pre-
sente ou da inexistência para a existência. Em vez disso, o devir temporal é o
devir absoluto – não se tornando isto ou aquilo, mas simplesmente vindo a
ser. Um evento é simplesmente algo que está passando a existir.
O presentismo de Broad o levou a negar a premissa (1), de que uma visão
dinâmica do tempo implica uma passagem literal do tempo. É irônico (e tal-
vez indicativo do desleixo de sua argumentação) que os teóricos do tempo es-
tático se apropriaram indevidamente das objeções de Broad à passagem do
tempo para argumentar contra a própria teoria dinâmica. A maioria dos teóri-

217 Broad, Examination of McTaggart’s Philosophy, 2:277-280.


145
cos dinâmicos concordaria com A. N. Prior quando ele disse que o fluxo ou a
passagem do tempo “é apenas uma metáfora” – embora importante. 218 De
acordo com Prior, o fluxo do tempo é metafórico porque aquilo a que se refe-
re não é um movimento genuíno nem uma mudança genuína; mas a força da
metáfora pode ser explicada pela objetividade dos fatos temporais. Essa é a
realidade por trás da metáfora.
Mais recentemente, Smart reconheceu que os teóricos do tempo dinâmico
consideram a passagem do tempo uma metáfora para o devir temporal objeti-
vo.219 Mas ele questiona se o devir temporal objetivo faz mais sentido do que
a ideia da passagem do tempo. Normalmente, falamos que algo está se tor-
nando isso ou aquilo; mas o devir temporal é concebido como absoluto. “No
puro devir de um evento”, pergunta Smart, “o que o evento se torna?”220
A pergunta de Smart é estranhamente equivocada, no entanto, pois ele
mesmo enfatizou repetidamente o argumento de Broad de que são coisas, não
eventos, que acontecem; um evento é apenas o surgimento de alguma coisa
ou coisas.221 Se pode-se dizer que uma coisa se torna qualquer coisa, ela se
torna atual ou real. Mas isso não é a aquisição de uma nova propriedade no
lugar de uma (pseudo) propriedade de não-atualidade ou irrealidade. É apenas
o existir da coisa com todas as suas propriedades. Smart reconhece que faz
sentido dizer que, no devir temporal, um evento se torna presente. Mas ele
acha essa explicação inútil, já que todo evento se torna presente em algum
momento ou outro. Smart voltou a pensar em todos os eventos da série tem-
poral como igualmente reais e igualmente presentes em seus respectivos mo-
mentos. Mas, na visão presentista, a presença é absoluta, não apenas relativa a
um tempo e, portanto, os únicos eventos que realmente têm presença são os
eventos que estão acontecendo no momento. As objeções de Smart podem ter
peso contra uma visão híbrida McTaggartiana do tempo, mas são irrelevantes
para uma teoria dinâmica pura do devir temporal.
Uma dificuldade muito mais séria confronta o defensor do devir temporal
objetivo, no entanto, um enigma sobre o tempo que é pelo menos tão antigo
quanto Aristóteles.222 Este é o problema da extensão do presente. Se apenas o
presente existe e o passado e o futuro são irreais, então a realidade parece ser
reduzida a um instante literal. Um instante tem, por definição, duração zero.

218 Arthur N. Prior, “Changes in Events and Changes in Things,” em Papers on Time and Tense
(Oxford: Clarendon, 1968), 1.
219 J. J. C. Smart, “Time and Becoming,” in Time and Cause, ed. Peter van Inwagen, Philosophi-
cal Studies Series in Philosophy (Dordrecht: D. Reidel, 1980), 4.
220 Ibid., 5.
221 Ver Smart, “River of Time”, 486; idem, “Assimetria Temporal,” 81; Enciclopédia de Filosofia
(1967), s.v. “Tempo”, de J. J. C. Smart.
222 Ver Aristóteles, Física 4. 10. 217b33-218a9. Para uma discussão maravilhosa sobre o início da
história desse enigma, veja Richard Sorabji, Time, Creation, and the Continuum (Ithaca, N.Y.:
Cornell University Press, 1983), 7-63. Agostinho, em particular, agonizou com esse problema em
suas Confissões 9.15-28.
146
Mas se as coisas existem literalmente por um período de tempo zero, como
isso é diferente de não existir? A alegação de que só existem coisas presentes
parece autodestrutiva. Este problema impressionou tanto Broad que, no final
da vida, ele próprio realmente abraçou a existência de um hiper-tempo no
qual os eventos que são instantâneos no tempo comum perduram.223
Poderia o presente ser um mero instante? Muitos filósofos não veem ne-
nhum problema nessa ideia. O presente seria como uma fatia instantânea do
espaço-tempo. Um instante seria o que se chama de intervalo degenerado, ou
seja, um intervalo de duração zero. Uma fatia instantânea do espaço-tempo
seria, por exemplo, tudo o que existe precisamente no instante que marcamos
às 15 horas. HUSA. Tal estado instantâneo de realidade física seria descrito
por todas as declarações verdadeiras naquele instante.
Embora um estado instantâneo pareça fazer sentido, no entanto, não está
claro como tal concepção da realidade deve ser unida ao devir temporal. Co-
locado da forma mais simples possível, o problema é que, como os instantes
não têm sucessores imediatos (entre quaisquer dois instantes há sempre uma
infinidade de instantes intermediários), é difícil ver como o tempo pode de-
correr instante a instante, um a um, consecutivamente. Além disso, como po-
deria decorrer qualquer intervalo de tempo diferente de zero, já que a adição
de instantes sem duração nunca pode resultar em um intervalo diferente de
zero? Essas dificuldades, que perturbaram profundamente uma grande mente
como Alfred North Whitehead, são resolvidas pelo eminente filósofo do es-
paço e tempo Adolf Grünbaum apenas à custa da negação da realidade do de-
vir temporal e da adoção de uma teoria estática do tempo.224
Whitehead preferiu negar que o devir temporal é um processo contínuo
envolvendo instantes, defendendo, em vez disso, a existência de “átomos”
mínimos e discretos de tempo, frequentemente chamados de “cronons”. Em
uma visão atomística, embora o tempo seja infinitamente divisível no pensa-
mento, na realidade existem intervalos de tempo finitos e indivisíveis que
compõem o tempo. Chronons podem ou não ser concebidos para ter pontos de
fronteira precisos; em vez de pensar nelas como bolas de gude alinhadas, tal-
vez devêssemos pensar nelas como borradas, sombreadas umas nas outras. Na
visão atomista, apenas o cronon presente existe, estando totalmente presente,
e o devir temporal ocorre um cronon de cada vez.

223 C. D. Broad, “A Reply to My Critics”, em The Philosophy of C. D. Broad, ed. P. A. Schilpp,


Library of Living Philosophers (Nova York: Tudor, 1959), 769-772.
224 Ver Alfred North Whitehead, Process and Reality, corr. ed., ed. David Ray Griffin e Donald
W. Sherburne (Nova York: Free Press, 1978), 68; idem Science and the Modern World (Nova
York: Macmillan, 1925), 125-127; Adolf Grünbaum, “Relativity and the Atomicity of Becoming,”
Review of Metaphysics 4 (1950–1951): 143-186; idem, “Uma Concepção Consistente do Conti-
nuum Linear Estendido como um Agregado de Elementos Não Estendidos,” Philosophy of Science
19 (1952): 288-306.
147
Uma característica perturbadora de tal compreensão do devir temporal é
que o devir é “espantável” em vez de suave. A realidade se desenrola como os
quadros sucessivos de um filme de cinema projetados na tela – os quadros
passam rápido demais para que as descontinuidades sejam percebidas, mas
mesmo assim há “saltos” entre eles. Não que haja algo que aconteça entre os
cronons que deixamos de ver, pois não há meio-termo. Nessa visão, a mudan-
ça é descontínua.
Isso pode levar a alguns resultados bizarros. Considere, por exemplo, o Pa-
radoxo do Estádio do antigo filósofo grego Zenão. Ele nos convida a imaginar
duas fileiras de átomos espaciais movendo-se em direções opostas ao longo
de uma fileira de átomos em repouso à taxa de um átomo por cronon (Fig.
4.3).

Fig 4.3: Paradoxo do estádio de Zenão

No cronon 1, A1 e B1 estão alinhados, depois no cronon 2, A3 e B1 estão ali-


nhados. Mas isso parece loucura porque implica que nunca houve nenhum
evento de alinhamento de A2 com B1. Mas, para passar de alinhado com A1 pa-
ra alinhado com A3, B1 deve ter passado por A2 em algum momento. Se dis-
sermos que tal alinhamento ocorreu, deve ter ocorrido entre cronons, o que é
impossível. Portanto, não temos escolha a não ser dizer que a realidade saltou
descontinuamente de um estado para outro. Se pudermos encontrar alguma
maneira de evitar esse tipo de estranheza, certamente seria preferível fazê-lo!
Vamos, portanto, explorar uma compreensão diferente da extensão do pre-
sente. Podemos sustentar que “o presente” não é um conceito métrico e, por-
tanto, não se refere a nenhum intervalo medido específico. Essa alternativa
parece ter sido sugerida pelo filósofo francês Henri Bergson.225 Na visão de
Bergson, a duração real não é composta de instantes ou átomos de tempo, mas
é anterior na realidade à nossa matematização dela. Todos os conceitos métri-
cos de tempo são construções secundárias. O filósofo britânico Rom Harre
afirma assim que a questão sobre a extensão do presente

225 Henri Bergson, Duração e Simultaneidade, trad. Leon Jacobson, com uma introdução de Her-
bert Dingle, Library of Liberal Arts (Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1965), capítulo 3. Ver também
Andros Loizou, The Reality of Time (Brookfield, Vt.: Gower, 1986), 44-45 .
148
só faz sentido se já aceitamos um certo modelo matemático para a representa-
ção formal do discurso temporal e, então, tomamos esse modelo como descriti-
vo em todos os seus aspectos de alguma realidade temporal básica.
O modelo é um ponto múltiplo contínuo e linear no qual as expressões que
ocorrem na fala temporal devem ser mapeadas. . . . Por exemplo, as expressões
“passado”, “presente” e “futuro” são traduzidas em características matemáticas
da variedade.226

Rejeite esse modelo, como faz Bergson, e a pergunta “Quantos pontos da va-
riedade o ‘agora’ encerra?” não é mais uma questão sobre a realidade.
Nessa visão, perguntar: “Qual é a extensão do presente?” é uma pergunta
malformada. Para que a pergunta seja significativa, é preciso estipular do que
estamos falando: a vibração atual de um relógio atômico, a atual sessão do
Congresso, a guerra atual ou o que você tem? Não existe um intervalo métri-
co como “o presente”, período; devemos falar do “presente _____”, onde o
espaço em branco é preenchido por uma referência a algum evento ou coisa.
Se escolhermos falar do próprio tempo, então nossa pergunta se torna trivial:
“Qual é a duração do minuto presente?” "Um minuto!"
Se um atomista exigisse qual é a duração temporal mínima, poderíamos
responder coerentemente que não há duração mínima. O tempo não deve ser
pensado como composto de um número infinito de instantes; mas qualquer in-
tervalo de tempo pode ser conceitualmente infinitamente divisível. Ou seja, a
divisão pode ir até o infinito como um limite ao qual nunca se chega. Assim,
qualquer intervalo considerado presente, digamos, o minuto presente, pode
ser subdividido em fases, que serão passado, presente e futuro, respectiva-
mente. O presente será qualquer intervalo escolhido arbitrariamente centrado
em um instante presente. Porque o tempo não é composto de instantes, o devir
temporal não procede por instantes; ao contrário, a duração é conceitualmente
anterior a qualquer tipo de divisão que fazemos nela.
Tal visão é reconhecidamente estranha porque implica que não existe algo
como o tempo presente. Em vez disso, o que está presente depende do univer-
so do discurso: estamos falando de segundos, ou minutos, ou horas, ou o quê?
E mesmo esses intervalos podem ser analisados em subintervalos, nem todos
presentes. Sentimos instintivamente que deve haver algum intervalo métrico
único que está absolutamente presente, e Deus o está sustentando em sua
existência. Mas tal sentimento pode ser resultado de nossa matematização do
tempo, pensando o tempo a partir do modelo de uma linha geométrica com-
posta de pontos. Mas é precisamente esse modelo que tal visão rejeita.
Nenhuma das alternativas para compreender a extensão do presente nos
deixa inteiramente à vontade. Mas desconforto não é incoerência. Pode ser

226 Rom Harre, “Não há tempo como o presente”, em Logic and Reality, ed. B. J. Copeland (Ox-
ford: Clarendon, 1996), 406.
149
um reflexo de como o tempo é profundamente difícil de entender. Não mostra
que o devir temporal é irreal.
De fato, neste ponto, o defensor do devir temporal pode tentar virar a mesa
sobre o teórico do tempo estático, argumentando que apenas a visão dinâmi-
ca, comprometida como está com a realidade do devir temporal, nos permite
entender a assimetria do tempo. A assimetria do tempo consiste em duas ca-
racterísticas do tempo distintas, mas freqüentemente confundidas: (i) a aniso-
tropia do tempo e (ii) a direção do tempo. Isotropia é a propriedade de ser o
mesmo em todas as direções. Por exemplo, o espaço é isotrópico. Não há “em
cima” ou “em baixo” no espaço sideral; é totalmente arbitrário, por exemplo,
que os globos e mapas mundiais da Terra sempre situem o Pólo Norte no topo
e o Pólo Sul na parte inferior. (Uma mentalidade politicamente correta pode
ver isso como indicativo da arrogância dos povos do hemisfério norte, sempre
querendo estar no topo e dominando os povos do hemisfério sul!) Mas, em
contraste com o espaço, o tempo não é isotrópico. Tem duas direções distin-
guíveis: “mais cedo” e “mais tarde”. Existe uma diferença objetiva entre ser
anterior a algum evento e posterior a esse evento. É quase universalmente
aceito que o tempo é essencialmente ordenado pelas relações antes e depois
de; qualquer dimensão que não possua as direções “anterior” e “posterior”
não é uma dimensão temporal. Por outro lado, a direção do tempo tem a ver
com o tempo sendo orientado em uma direção. Por outro lado, a escala de
temperatura em um termômetro é anisotrópica (há uma diferença entre “mais
frio” e “mais quente”), mas não tem direção inerente. A temperatura pode se
mover em qualquer direção. O tempo, por outro lado, parece ter uma direção:
do passado para o futuro. Se um evento escolhido arbitrariamente ocorrer e
nos perguntarem qual evento ocorrerá em seguida, apontaremos sem hesita-
ção para o evento depois dele, não para o evento anterior. É a direcionalidade
do tempo que dá origem à sensação de irrecuperabilidade do passado, que se
expressa em provérbios como: “Não adianta chorar pelo leite derramado” ou
“Isso já passou da ponte”.
Agora, claramente, se o tempo tem uma direção, então o tempo deve ser
anisotrópico. O teórico do tempo dinâmico encontra na realidade objetiva do
devir temporal uma base para afirmar a direcionalidade do tempo e, portanto,
também sua anisotropia. A assimetria do tempo é assim objetivamente fun-
damentada no devir temporal. A teoria estática, por outro lado, não parece ter
nenhuma base para afirmar a assimetria do tempo, de modo que seus propo-
nentes devem simplesmente assumir a assimetria do tempo ou negá-la.
O teórico do tempo dinâmico fundamenta a direção do tempo na impossi-
bilidade de um lapso de tempo para trás. O absurdo de um lapso de tempo pa-
ra trás pode ser visto contemplando a ideia de continuar para trás.227 A conti-
nuidade ou resistência temporal não é simplesmente a extensão temporal e

227 Ver Sarah Waterlow, “Backwards Causation and Continuing”, Mind 83 (1974): 372-387.
150
sem tensão de algum objeto. Em uma teoria dinâmica do tempo, os momentos
sucessivos da duração de um objeto não existem sem tensão; ao contrário,
eles surgem e desaparecem. Se um objeto existe no momento presente, então,
para que continue a existir, outro momento deve surgir. Mas esse momento
adicional só pode vir a existir depois do momento presente. Parece comple-
tamente ininteligível dizer que esse momento adicional pode ocorrer antes do
momento presente. Se o momento existisse antes do momento presente, então
diríamos que este era um caso de duração do objeto do momento passado para
o momento presente. Do ponto de vista presentista, simplesmente não faz sen-
tido dizer que um objeto continuou a existir desde o momento presente até o
momento passado. Mesmo se imaginarmos eventos ocorrendo na ordem in-
versa, como quando um filme é rodado ao contrário, os eventos da sequência
reversa ocorrerão um após o outro. O que é impossível de conceber é que os
próprios momentos do tempo ocorram na ordem inversa. Assim, em uma teo-
ria dinâmica, o tempo deve ser investido com uma direção.
Em uma teoria dinâmica do tempo, então, a anisotropia do tempo e a dire-
cionalidade do tempo tornam-se evidentes, fundamentadas na natureza do de-
vir temporal.
Em contraste, a teoria estática do tempo parece carecer de recursos para
tornar a assimetria do tempo algo mais do que uma suposição infundada.
Muita tinta foi derramada na tentativa de fundamentar a assimetria do tempo
em vários processos físicos, como o aumento da entropia, a expansão do uni-
verso e assim por diante. De uma perspectiva teísta, no entanto, todas essas
tentativas parecem equivocadas. Pois pode-se facilmente conceber um mundo
possível no qual Deus cria um universo sem nenhuma das típicas setas termo-
dinâmicas, cosmológicas ou outras setas do tempo, e ainda assim Ele experi-
menta os estados sucessivos do universo de acordo com o lapso de Seu tempo
absoluto. Parece não haver uma boa razão para pensar nos processos físicos
como algo mais do que medidas empíricas ou indicadores do lapso de tempo,
em vez de constitutivos da própria natureza do tempo.
Além disso, mesmo considerados por seu próprio mérito, tais processos fí-
sicos são simplesmente irrelevantes para uma definição de assimetria tempo-
ral. Pois por que deveríamos considerar uma direção do processo físico como
a direção “anterior” em vez da direção “posterior”? Se essa decisão não for
totalmente arbitrária, deve haver alguma característica não física do tempo
que sirva para diferenciar a direção “anterior” da direção “posterior”. Sklar
observa que não queremos dizer com “anterior a” algo como “ter entropia in-
ferior a”; em vez disso, a associação de estados de baixa entropia com tempos
anteriores de um processo físico é uma descoberta empírica que fazemos so-
bre o mundo, uma descoberta que podemos então usar para determinar em ou-
tros casos quais estágios de um processo físico são anteriores.228 De acordo

228 Sklar, Space, Time, and Space-Time, 403-404.


151
com Sklar, “sabemos, independentemente de nosso conhecimento do compor-
tamento regular dos processos físicos no tempo, qual é realmente a ordem
temporal real dos eventos. Somente esse conhecimento ‘independente’ da or-
dem temporal nos permitiria decidir qual das descrições legiformes é, de fato,
a verdadeira descrição legiforme do mundo”.229 Ele faz a importante observa-
ção de que na vida interior da mente eu experimento diretamente a sucessão
temporal de experiências, e acho que a mesma relação posterior também pa-
rece caracterizar eventos no mundo externo. Se eu também descobrir que
eventos externos estão relacionados de forma semelhante por alguma relação
física, tal descoberta mostraria, na melhor das hipóteses, uma correlação, mas
não uma identidade das relações físicas e temporais. Nesse sentido, conclui
Sklar, realmente não há necessidade de uma “teoria da direção do tempo” –
“podemos supor que pelo menos algumas relações de prioridade temporal
também estão entre as características diretamente inspecionáveis dos even-
tos”.230
Então, se as relações de assimetria temporal existem e são conhecidas in-
dependentemente dos processos físicos, qual é o fundamento, na teoria estáti-
ca, da assimetria do tempo? O teórico do tempo estático parece obrigado a
tratar a assimetria do tempo apenas como um “dado”. Mas essa suposição se
encaixa mal com uma teoria estática do tempo, pois dada a existência atempo-
ral de todos os eventos, o tempo parece ser isotrópico e sem direção. De fato,
alguns teóricos do tempo estático, como Paul Horwich e Huw Price, afirma-
ram corajosamente que o tempo é totalmente simétrico.231 Tal posição é con-
sistente com a teoria estática, mas parece fantástica à luz de nossa experiência
anterior e posterior. Para ter uma teoria crível do tempo, o teórico do tempo
estático deve simplesmente assumir a existência de anisotropia temporal. Mas
essa suposição parece ad hoc e falha em se encaixar naturalmente com sua
compreensão tensa do tempo. Assim, ironicamente, o chamado mito da pas-
sagem, uma vez devidamente analisado, longe de solapar a teoria dinâmica,
na verdade redunda em seu crédito e serve para destacar uma de suas vanta-
gens sobre a teoria do tempo atemporal: ele fornece uma base para a existên-
cia de assimetria temporal.
Concluindo esta seção, podemos dizer que nem o Paradoxo de McTaggart
nem o Mito da Passagem fornecem boas bases para rejeitar uma teoria dinâ-
mica do tempo, uma vez que essas objeções são, na verdade, direcionadas a
uma teoria híbrida, dinâmico-estática do tempo. Assim dirigidas, são objeções
convincentes. Mas o teórico do tempo dinâmico puro, ou presentista, não é
ameaçado por esses inimigos. Em vez disso, a séria dificuldade que ele deve

229 Ibid., 402.


230 Ibid., 410-411.
231 Paul Horwich, Asymmetries in Time (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1987), 54-57; Preço, Fle-
cha do Tempo e Ponto de Arquimedes.
152
enfrentar é o problema clássico da extensão do presente. Nenhuma das opções
aqui é sem suas desvantagens. A questão é se essa dificuldade é tão grande
que contrabalança os argumentos em favor de uma teoria dinâmica do tempo.
Neste capítulo, vimos dois argumentos poderosos em favor de uma teoria
temporal ou dinâmica do tempo: o argumento da ineliminabilidade do tempo
verbal e o argumento da nossa experiência com o tempo. Parece-me que os
argumentos baseados na irredutibilidade dos fatos tensos e na inegável pre-
sentidade da experiência são suficientemente fortes para superar quaisquer
quebra-cabeças relacionados à extensão do presente. A questão que resta, en-
tão, é se uma consideração de argumentos a favor e contra uma teoria estática
do tempo irá reforçar ou subverter esta conclusão.

153
154
5

A CONCEPÇÃO ESTÁTICA DO TEMPO


TENDO EXAMINADO OS principais argumentos a favor e contra uma visão
dinâmica do tempo, passamos agora a um exame semelhante da concepção
estática. Embora possa parecer estranho para o homem comum, a compreen-
são estática do tempo é aceita quase sem questionamento por muitos físicos e
também por muitos filósofos reflexivos.

I. Argumentos para uma concepção estática

1. Teoria da Relatividade

EXPOSIÇÃO
Sem dúvida, a consideração primordial que leva as pessoas a adotar uma con-
cepção estática do tempo é a Teoria da Relatividade. Será lembrado de nossa
discussão anterior232 que quando Albert Einstein originalmente formulou sua
Teoria Especial da Relatividade em 1905, ele pressupunha uma concepção
dinâmica do tempo. O espaço e o tempo foram concebidos como realidades
separadas — o espaço tridimensional perdurando através da dimensão única
do tempo. Mas em 1908 um matemático alemão de nome Hermann Min-
kowski propôs que STR fosse entendido em termos de uma estrutura geomé-
trica quadridimensional chamada espaço-tempo. O nome “espaço-tempo” de-
riva do fato de que três dimensões dessa estrutura geométrica são tomadas pa-
ra representar o espaço e a quarta dimensão representa o tempo. As quatro
dimensões do espaço-tempo não diferem estruturalmente, exceto que o qua-
drado das distâncias ao longo de uma das dimensões, geralmente considerado
como representando o tempo, é negativo, enquanto o quadrado das distâncias
ao longo das outras três é positivo. Isso se deve ao fato de que a geometria
quadridimensional não é euclidiana. Como somos seres tridimensionais (ou
pelo menos apreendemos apenas três dimensões), não podemos visualizar
como é um objeto quadridimensional. Mas os geômetras podem descrever tal
objeto matematicamente, mesmo que não possam imaginá-lo. Ao tratar o es-
paço e o tempo como uma estrutura quadridimensional, os matemáticos po-
dem exibir com grande clareza as equações matemáticas no centro do STR.

232 Consulte o capítulo 2, páginas 32-66.


155
Tal representação revela que, enquanto as medidas de espaço e as medidas de
tempo, quando tomadas separadamente, são relativas, as medidas de espaço-
tempo são absolutas. A posição dos eventos no espaço-tempo e o intervalo no
espaço-tempo entre eles são os mesmos para todos os observadores e nunca
mudam.
Pode parecer estranho conceber o espaço e o tempo unidos no espaço-
tempo. Afinal, são tão diferentes que tentar combiná-los pode parecer como
misturar óleo com água. Podemos estar inclinados a pensar no espaço-tempo
de forma não realista, como uma ficção matemática que é útil da mesma for-
ma que diagramas e gráficos são - não como representações realistas do mun-
do, mas como auxílios conceituais. Mas Minkowski era metafísico, além de
matemático, e interpretou seu espaço-tempo de forma realista. O espaço-
tempo não era apenas uma representação do mundo do espaço e do tempo; era
o mundo. Minkowski chamou os pontos do espaço-tempo designados por três
coordenadas espaciais e uma coordenada temporal de “pontos do mundo” e a
coleção de todos esses pontos ele batizou de “o mundo”.233 Ele anunciou uma
“metamorfose de nosso conceito de natureza” e concluiu com as famosas pa-
lavras: “Doravante, o espaço por si mesmo e o tempo por si estão fadados a
desaparecer em meras sombras, e apenas uma espécie de união de os dois
preservarão uma realidade independente”.234
As palavras de Minkowski provaram ser proféticas. Sua abordagem espa-
ço-temporal da relatividade, especialmente após a formulação de Einstein de
sua Teoria Geral da Relatividade (GTR), tornou-se o modo dominante de
apresentação da relatividade. O próprio Einstein tornou-se um ardente realista
do espaço-tempo. Ele observou: “Mesmo na teoria da relatividade, ainda po-
demos usar a imagem dinâmica, se preferirmos. Mas devemos lembrar que
essa divisão em tempo e espaço não tem significado objetivo, pois o tempo
não é mais ‘absoluto’.”235 Assim, a Teoria da Relatividade era “distintamente
a favor da imagem estática e encontrou nesta representação do movimento
como algo existente no tempo-espaço uma imagem mais conveniente e mais
objetiva da realidade”.236 Abandonando sua visão original, Einstein concluiu:
“Parece, portanto, mais natural pensar na realidade física como uma existên-
cia quadridimensional, em vez de, como até agora, a evolução de uma exis-
tência tridimensional”.237

233 H. Minkowski, “Space and Time”, em The Principle of Relativity, de A. Einstein, et al., trad.
W. Perrett e G. B. Jeffery (Nova York: Dover Publications, 1952), 76.
234 Ibid., 75, 76.
235 Albert Einstein e Leopold Infeld, The Evolution of Physics (Nova York: Simon & Schuster,
1938), 220.
236 Ibid., 217.
237 Albert Einstein, Relativity: The Special and the General Theory, 15ª ed. (Nova York: Crown,
1961), 150.
156
Construir o espaço-tempo de forma realista implica, como indicam as pa-
lavras de Einstein, uma concepção estática do tempo. Pois o próprio espaço-
tempo nunca muda. A mudança ocorre no tempo, ou seja, ao longo da dimen-
são da estrutura que representa o tempo. Mas não há mudança da estrutura
como um todo. As mudanças no tempo são como as mudanças no cenário de
leste a oeste. Cada evento no tempo é permanentemente fixado em sua locali-
zação. De fato, pode-se dizer que, embora o espaço-tempo seja intrinseca-
mente temporal (isto é, uma de suas dimensões é o tempo), ele é extrinseca-
mente atemporal (isto é, não existe em algum hipertempo incorporado). O es-
paço-tempo não muda nem se torna; apenas é (sem tensão).
Assim, temos diante de nós duas interpretações radicalmente diferentes da
Teoria da Relatividade, uma compatível com uma visão dinâmica do tempo (a
interpretação original de Einstein) e outra que implica uma visão estática do
tempo (a interpretação de Minkowski). Graham Nerlich, um proeminente fi-
lósofo australiano do espaço e do tempo, chamou isso de “interpretação da re-
latividade” e “interpretação do espaço-tempo”, respectivamente.238 Esses dois
entendimentos da Teoria da Relatividade são muitas vezes confundidos, mas
é crucial para nossos propósitos que sejam mantidos distintos. Se a interpreta-
ção espaço-temporal de Minkowski for adotada, então o devir tenso e tempo-
ral é espremido para fora do mundo como realidades objetivas. Por outro la-
do, embora a interpretação original da relatividade de Einstein exija que rela-
tivizemos o devir temporal e temporal para referenciais inerciais (mais plau-
sivelmente tomando a relação de simultaneidade padrão definida em STR239
para selecionar todos os eventos presentes naquele momento em relação
àquele quadro), tal interpretação é, no entanto, compatível com uma teoria di-
nâmica do tempo. A questão é: existem boas razões para preferir uma dessas
interpretações à outra?
Parece que existem. A interpretação do espaço-tempo é indiscutivelmente
superior à interpretação da relatividade por três razões. Primeiro, nenhuma re-
lação plausível de coexistência pode ser definida no contexto da interpretação
da relatividade de Einstein.240 Para quaisquer dois objetos coexistentes A e B,
A existe com B se e somente se B existe com A. Isso é apenas parte do signifi-
cado de coexistência. Agora, dada a realidade do tempo, dois objetos são coe-
xistentes se e somente se eles são co-presentes. Isso ocorre porque as entida-
des presentes são as únicas entidades temporais que existem, dada uma teoria
temporal do tempo. Mas então como devemos entender a coexistência dentro
do contexto da interpretação da relatividade?

238 Graham Nerlich, What Spacetime Explains (Cambridge: Cambridge University Press, 1994),
33.
239 Lembre-se de nosso relato no capítulo 2, páginas 39-40.
240 Veja Yuri Balashov, “Enduring and Perduring Objects in Minkowski Space-Time,” Philoso-
phical Studies 99 (2000): 129-166.
157
Suponhamos que A e B estejam separados por uma certa distância e em
movimento relativo, e imaginemos que um evento ocorre no local de A (cha-
me esse evento de Ae) e outro evento ocorra no local de B (chame-o de Be).
Devido à relatividade da simultaneidade, no referencial inercial de A, Be pode
ser simultâneo a Ae e, portanto, presente para A no momento de Ae. Mas no
referencial inercial de B, Ae não será simultâneo com Be e, portanto, será pas-
sado ou futuro para B no momento de Be. Assim, Ae e Be não podem ser co-
presentes. B está presente para A, mas A não está presente para B. Mas se A e
B não podem estar co-presentes, também não podem ser coexistentes. Supo-
nha que tentamos remediar esse defeito estipulando que, para que A e B coe-
xistam, os eventos nas vidas de A e B devem estar co-presentes no sentido de
que se Be está presente para Ae, então Ae deve estar presente para Be. A e B
estariam então co-presentes e, portanto, coexistentes. O único problema é
que, nesta definição, nenhum objeto coexiste com um objeto em movimento!
Os únicos objetos que coexistem são objetos em repouso em relação um ao
outro. Mas isso parece loucura, já que praticamente tudo está em movimento
em relação a mim, de modo que quase nada coexiste comigo.
Em contraste, na interpretação do espaço-tempo de Minkowski, a relação
de coexistência pode ser definida de forma plausível porque não está conecta-
da à relação de copresença fictícia. Uma vez que todos os eventos no espaço-
tempo são igualmente reais, pode-se dizer que dois objetos A e B coexistem
apenas no caso de haver eventos na vida de A e B que estejam suficientemen-
te distantes entre si para que não possam ser conectados por um sinal de luz.
Se esses eventos não podem ser conectados por um sinal de luz (ou seja, um
sinal de luz saindo de A no momento de Ae não pode chegar a B até que Be
ocorra), então isso implica que em algum referencial inercial Ae e Be são con-
siderados simultâneos. Então eventos coexistentes serão aqueles que podem
ser simultâneos em algum referencial inercial. E A e B coexistem apenas no
caso de suas histórias de vida incluírem tais eventos. Essa explicação da coe-
xistência não pode funcionar para a interpretação da relatividade porque ape-
nas eventos presentes existem em uma teoria temporal do tempo.
Em segundo lugar, a interpretação da relatividade resulta em uma fantásti-
ca fragmentação da realidade. Na interpretação da relatividade, não existe um
mundo unificado e comum habitado por todos os observadores, mas sim uma
pluralidade de espaços e tempos, cada um associado a um referencial inercial
diferente. O STR exige que, mesmo que estejamos apenas passando um pelo
outro em automóveis, nossas classes de eventos simultâneos não coincidam e,
a distâncias suficientes, vários eventos ocorram e existam coisas em relação a
mim que podem ser futuras e, portanto, literalmente irreais para você. Mas se
desaceleramos e chegamos a um repouso relativo, passamos a compartilhar a
mesma realidade; eventos e coisas que antes eram presentes e reais para mim
agora são futuros e irreais. A realidade é relativa a quadros de referência. Al-
158
guém pode mudar sua realidade apenas mudando seu movimento relativo. Se
o movimento relativo entre dois eventos é grande, a distância entre os eventos
não precisa ser grande para que a fragmentação da realidade fique evidente.
Por exemplo, qualquer evento no planeta Netuno dentro de um espaço de cer-
ca de oito horas pode ser considerado de acordo com o STR como ocorrendo
agora por algum observador da Terra. Para um Netuno terráqueo poderia ter
sido completamente destruído em uma colisão cósmica, enquanto para outro
Netuno terrestre relativamente em movimento poderia existir perfeitamente
bem. Para outros observadores, os eventos na superfície de Netuno ocorrem
literalmente na ordem inversa. Mesmo à distância do diâmetro da Terra, qual-
quer coisa que ocorra em cerca de um décimo de segundo pode ser real para
nós neste momento. Para observadores relativamente em movimento, o presi-
dente chinês Jiang Zemin pode estar literalmente vivo ou morto, dependendo
do movimento dos observadores. Esta não é uma mera questão de quais even-
tos são calculados para estarem presentes em relação a um referencial inerci-
al. Em vez disso, a realidade literalmente desmorona, e não há uma maneira
única de o mundo ser.
Em contraste, na interpretação do espaço-tempo, todos os eventos no espa-
ço-tempo são igualmente reais, e as coisas não surgem ou desaparecem con-
forme eu mudo os quadros de referência. Quando determino que uma certa
classe de eventos é simultânea a mim - agora, estou simplesmente designando
uma certa fatia ou seção transversal do espaço-tempo. Um observador em
movimento relativamente usando o método do STR para determinar eventos
simultâneos cortará o espaço-tempo em um ângulo diferente e, assim, chegará
a uma classe diferente de eventos simultâneos do que eu. Existe um mundo
objetivo e unificado que é o mesmo para todos os observadores, ou seja, o
próprio espaço-tempo quadridimensional. Como a realidade não está ligada à
simultaneidade, a relatividade da simultaneidade não implica que a realidade
seja relativa, ao contrário da interpretação da relatividade.
Em terceiro lugar, a interpretação da relatividade é explicativamente defi-
ciente em relação aos fenômenos relativísticos. Na interpretação da relativi-
dade, os objetos físicos são entidades tridimensionais que perduram no tem-
po. No entanto, dizem que não têm propriedades intrínsecas, como compri-
mento, forma, massa e duração. Dizem que são propriedades meramente rela-
cionais - por exemplo, ter um certo comprimento em relação a um determina-
do referencial inercial. Mas não há nenhuma explicação ou fundamento para
isso. É preciso considerar que, na interpretação da relatividade, os fenômenos
relativísticos, como o encolhimento de um objeto em movimento ou a desace-
leração de um relógio em movimento, são efeitos físicos tão reais quanto sob
a teoria de Lorentz.241 Isso parece incrível, uma vez que tais efeitos são recí-

241 Ver John A. Winnie, "The Twin-Rod Thought Experiment", American Journal of Physics 40
(1972): 1091-1094; M. F. Podlaha, "Contração do comprimento e dilatação do tempo na teoria es-
159
procos: para dois relógios A e B que se movem relativamente, A anda devagar
em relação a B e B anda devagar em relação a A. Mas Einstein entendeu des-
de o início que tais fenômenos relativísticos não eram uma questão de mera
aparência, mas eram efeitos literais e mensuráveis. 242 Isso é especialmente
evidente no conhecido Paradoxo dos Gêmeos, segundo o qual efeitos absolu-
tos, como envelhecimento diferencial, ocorrem como resultado de movimento
meramente relativo.243
Mas a interpretação da relatividade não fornece nem permite qualquer ex-
plicação causal dessas distorções físicas reais de objetos tridimensionais. Es-
ses fenômenos seguem simplesmente como deduções dos postulados de STR.
Como observou um comentarista, “O princípio da relatividade de . . . Lorentz
e Poincaré resultaram de um estudo cuidadoso de um grande número de expe-
rimentos, e foi com base em uma teoria na qual os dados empíricos poderiam
ser explicados como tendo sido causados por elétrons interagindo com um
éter. O princípio da relatividade de Einstein excluiu o éter da teoria eletro-
magnética e não explicou nada.”244 STR não permite explicações causais de
fenômenos relativísticos porque estes resultam de movimento meramente re-
lativo e, portanto, não há espaço para forças causais intrínsecas.
Em contraste, na interpretação do espaço-tempo, objetos tridimensionais
não encolhem ou desaceleram pela simples razão de que objetos tridimensio-
nais não existem! A realidade é quadridimensional, e a suposta distorção de
objetos físicos é apenas uma questão de olhar para objetos quadridimensio-
nais de diferentes ângulos.245 Assim como um objeto tridimensional parece
encurtado quando olhamos ao longo de seu comprimento na direção da visão,
os objetos quadridimensionais são calculados para ter formas diferentes, de-
pendendo de como são vistos no espaço-tempo. A contração do comprimento
é apenas o resultado da aplicação de diferentes medidas de coordenadas ao
mesmo objeto quadridimensional imutável. Os relógios não desaceleram lite-
ralmente; em vez disso, os mesmos intervalos espaço-temporais são medidos
com diferentes sistemas de coordenadas. Além disso, no espaço-tempo de
Minkowski, um caminho curvo através do espaço-tempo é realmente o mais
pecial da relatividade — fenômenos reais ou aparentes?" Indian Journal of Theoretical Physics 25
(1975): 74-75; Dieter Lorenz, "Sobre a realidade da contração de FitzGerald-Lorentz", Journal of
General Theory of Science 13/2 (1982): 308-312.
242242 A. Einstein, "Paradoxos de Zum Ehrenfest," Physical Journal 12 (1911): 509-510.
243 No Paradoxo dos Gêmeos, um gêmeo fica em casa na Terra enquanto seu irmão faz uma via-
gem em alta velocidade para o espaço sideral e volta. Quando eles se encontrarem novamente, a
teoria da relatividade prevê que o gêmeo viajante terá vivido menos tempo e, portanto, será mais
jovem do que seu irmão que fica em casa. Embora a história assim contada envolva o movimento
absoluto do gêmeo viajante, ela pode ser reformulada em termos de três irmãos, envolvendo apenas
o movimento relativo.
244 Arthur I. Miller, “On Some Other Approaches to Electrodynamics in 1905,” em Some Stran-
geness in the Proportion, ed. Harry Woolf (Reading, Mass.: Addison-Wesley, 1980), 85.
245 Veja o relato feito por Edwin F. Taylor e John Archibald Wheeler, Spacetime Physics (San
Francisco: W. H. Freeman, 1966), 1-4.
160
curto, de modo que o relógio de um observador seguindo esse caminho regis-
trará menos tempo do que um relógio seguindo um caminho reto. Assim, por
exemplo, no Paradoxo dos Gêmeos, o caminho do gêmeo que viaja pelo es-
paço-tempo é na verdade mais curto do que o caminho do espaço-tempo do
gêmeo que fica em casa. Assim, não é surpreendente que o gêmeo viajante
registre menos tempo e, portanto, seja mais jovem quando ele e seu irmão se
reencontram. Na interpretação do espaço-tempo, então, os fenômenos relati-
vísticos não são fatos brutos e inexplicáveis, mas têm um fundamento perspi-
caz.
Por essas três razões, a interpretação espaço-temporal de STR é superior à
interpretação da relatividade. Mas se for esse o caso, então, como Einstein
passou a acreditar, o devir tenso e temporal são ilusões da consciência huma-
na. A realidade é tensa e a teoria estática do tempo está correta.
Podemos formular esse argumento em favor de uma teoria estática do
tempo da seguinte maneira:

1. Tanto a interpretação einsteiniana da relatividade quanto a interpretação


minkowskiana do espaço-tempo de STR estão corretas.

2. Se a interpretação minkowskiana do espaço-tempo de STR estiver correta,


então uma teoria estática do tempo está correta.

3. A interpretação da relatividade einsteiniana de STR não está correta.

4. Portanto, uma teoria estática do tempo está correta.

CRÍTICA
Estou convencido de que os argumentos apresentados acima contra a interpre-
tação da relatividade são convincentes e que, portanto, a premissa (3) é ver-
dadeira. Mas o leitor que acompanhou nosso argumento até aqui perceberá
que considero a premissa (1) falsa. Pois essa premissa nos apresenta um falso
dilema. Há uma terceira interpretação da relatividade, geralmente negligenci-
ada em discussões desse tipo, que é empiricamente equivalente às interpreta-
ções einsteiniana e minkowskiana e é totalmente compatível com uma teoria
dinâmica do tempo, a saber, a relatividade lorentziana.
Em uma visão lorentziana, existe simultaneidade absoluta e comprimento
absoluto, e a contração do comprimento e o retardo do relógio são os efeitos
causais do movimento absoluto. Tal interpretação é imune aos problemas que
afligem a interpretação da relatividade. Primeiro, a coexistência e a copresen-
ça são definidas em termos da simultaneidade absoluta de eventos que ocor-
rem no quadro de referência privilegiado. Tudo o que existe ao mesmo tempo
nesse quadro é real. Em segundo lugar, porque existem relações de simulta-
neidade absoluta, as coisas não surgem ou desaparecem quando alguém muda
161
de referencial inercial. Observadores em movimento que usam o procedimen-
to de Einstein para sincronizar relógios calcularão diferentes eventos distantes
como simultâneos a eles mesmos, mas a discrepância existe apenas em suas
medições, não na realidade. Em terceiro lugar, os fenômenos relativísticos
têm causas reais e intrínsecas, pois resultam do movimento de um objeto em
relação ao referencial privilegiado. Os relógios em movimento em relação ao
quadro privilegiado ficam lentos e as hastes de medição em movimento enco-
lhem.
Uma teoria lorentziana da relatividade é totalmente compatível com a rea-
lidade do devir tenso e temporal, uma vez que essas são características do
tempo absoluto. Observadores hipotéticos usando as convenções de Einstein
para sincronizar relógios podem calcular que algum evento distante está pre-
sente, passado ou futuro, dependendo de seu movimento relativo, mas esses
julgamentos não devem ser tomados literalmente, uma vez que os dispositivos
de medição usados por tais observadores são distorcidos em virtude de seu
movimento em relação ao referencial privilegiado e, portanto, seus julgamen-
tos são distorcidos. Somente um observador em repouso no referencial privi-
legiado pode usar o procedimento de Einstein para sincronizar relógios a fim
de determinar quais eventos estão realmente presentes.
Contanto que uma interpretação lorentziana da relatividade seja tão plausí-
vel quanto a interpretação do espaço-tempo, o defensor de uma teoria dinâmi-
ca do tempo não precisa ficar nem um pouco perturbado pelas deficiências na
interpretação da relatividade. Pelo contrário, ele provavelmente verá essas de-
ficiências como bastante debilitantes para a interpretação da relatividade.
De fato, o lorentziano pode ver sua visão como superior à interpretação
espaço-temporal justamente em vista dessas mesmas considerações. Primeiro,
na visão lorentziana, eventos absolutamente simultâneos constituem, a qual-
quer momento, uma classe única de eventos que são co-presentes e coexisten-
tes. Mas a relação de coexistência definida na interpretação do espaço-tempo
é implausível. Isso nos obriga a dizer que dois eventos que não podem ser co-
nectados por um sinal de luz são coexistentes para algum observador, mesmo
que, em relação a esse observador, um evento esteja no futuro e o outro no
passado! Lembre-se, não estamos falando de coexistência no sentido atempo-
ral em que todos os eventos (mesmo que conectáveis por um sinal de luz)
possam existir na interpretação do espaço-tempo. Estamos tentando delinear
uma classe especial de eventos que estão em uma relação de coexistência.
Mas é apenas um mau uso das palavras dizer que, por exemplo, eu convivo
com a decadência de uma estrela distante que só acontecerá daqui a 3 bilhões
de anos. Em segundo lugar, na visão lorentziana, as coisas não passam a exis-
tir ou deixam de existir à medida que alguém muda de referencial inercial,
uma vez que as coisas existem ou não existem em tempo absoluto. A interpre-
tação do espaço-tempo evita essa conseqüência indesejável da interpretação
162
da relatividade apenas negando que as coisas venham a existir ou desapare-
çam. Essa extraordinária hipótese metafísica não apenas contradiz a experiên-
cia, mas também está sujeita a outras objeções que serão examinadas a se-
guir.246 Em terceiro lugar, em uma interpretação lorentziana, os objetos tridi-
mensionais são distorcidos devido ao seu movimento absoluto. A explicação
espaço-temporal da contração do comprimento e do retardo do relógio exige
que sustentemos que o que parecem ser objetos tridimensionais são, na reali-
dade, apenas partes de objetos quadridimensionais, uma visão que está aberta
a poderosas objeções.247 Assim, os mesmos aspectos em que a interpretação
do espaço-tempo é superior à interpretação da relatividade são também aque-
les em que a interpretação lorentziana é superior à interpretação do espaço-
tempo.
Se o teórico do tempo estático pretende provar com base em STR que uma
teoria atemporal do tempo é verdadeira, então ele deve mostrar que a interpre-
tação do espaço-tempo de STR é superior a uma perspectiva lorentziana. En-
tão a questão é: por que deveríamos preferir uma interpretação espaço-
temporal a uma interpretação lorentziana?
Costuma-se dizer que a relatividade lorentziana é menos simples que a re-
latividade einsteiniana ou minkowskiana e, portanto, a última deve ser prefe-
rida. Mas, como se sabe, não se pode fazer uma equação ingênua entre a sim-
plicidade de uma teoria e sua verdade. Este é especialmente o caso se a sim-
plicidade for comprada a um preço muito alto (por exemplo, sacrificando o
poder explicativo ou assumindo compromissos metafísicos extraordinários,
como o realismo sobre o espaço-tempo). De qualquer forma, é simplesmente
falso que a teoria lorentziana seja menos simples. Embora a teoria original de
Lorentz fosse mais complicada que a de Einstein, o famoso físico H. E. Ives
foi capaz de derivar as equações lorentzianas (que constituem o núcleo mate-
mático do STR) das leis de conservação de energia e momento e das leis de
transmissão de energia radiante. Ives, que era lorentziano, concluiu: “Os con-
ceitos de espaço e tempo de Newton e Maxwell são mantidos sem alteração. .
. . São as dimensões dos instrumentos materiais para medir o espaço e o tem-
po que mudam, não o espaço e o tempo que são distorcidos.”248 Sobre a reali-
zação de Ives, Martin Ruderfer observa que Ives fez o mesmo número de su-
posições básicas que Einstein, de modo que sua teoria tem a mesma “beleza”,
elevando assim a teoria de Lorentz ao mesmo nível da de Einstein.249 Portan-
to, é incorreto dizer que a simplicidade favorece a relatividade einsteiniana-
minkowskiana em detrimento da relatividade lorentziana.

246 Consulte as páginas 188-215.


247 Consulte as páginas 203-209.
248 Herbert E. Ives, “Derivação das Transformações de Lorentz,” Philosophical Magazine 36
(1945): 392-401; reimpresso em Speculations in Science and Technology 2 (1979): 247, 255.
249 Martin Ruderfer, “Introduction to Ives’ ‘Derivation of the Lorentz Transformations’,” Specu-
lations in Science and Technology 2 (1979): 243.
163
Suspeito que na raiz da aversão de muitos físicos à relatividade lorentziana
esteja a convicção que se expressa no aforismo de Einstein: “Sutil é o Senhor,
mas malicioso Ele não é”.250 Ou seja, se existe na natureza uma assimetria
fundamental, então a natureza não conspirará para escondê-la de nós. Mas a
relatividade lorentziana exige que acreditemos que, embora existam simulta-
neidade e comprimento absolutos no mundo, a natureza os esconde de nós ao
desacelerar nossos relógios e encolher nossas réguas de medição quando ten-
tamos detectá-los. D'Abro expressa sua objeção a tal conspiração da natureza:

Se a natureza era cega, por que coincidência maravilhosa todas as coisas foram
ajustadas para ocultar uma velocidade através do éter? E se a Natureza fosse
sábia, ela certamente teria outras coisas para atender, mais dignas de sua consi-
deração, e dificilmente estaria interessada em dificultar nossas débeis tentativas
de filosofar. Na teoria de Lorentz, a Natureza, quando lemos em seu sistema
todos esses ajustes extraordinários ad hoc, parece perniciosa; era extremamente
difícil conciliar-se com o fato de encontrar tais traços humanos no plano uni-
versal.251

Deve-se primeiro dizer que d'Abro exagera muito a extensão da suposta


conspiração. Afinal, STR é uma teoria restrita: é apenas o movimento uni-
forme relativo ao referencial privilegiado que está oculto de nós. Mas acele-
ração e rotação são movimentos absolutos que a natureza nada faz para es-
conder. Além disso, como vimos, existem equivalentes modernos do éter
clássico e servem para escolher um quadro de referência privilegiado; e expe-
rimentos recentes sobre o Teorema de Bell requerem plausivelmente a exis-
tência de relações de simultaneidade absoluta.252 Quando os não-Lorentzianos
reclamam que a natureza está conspirando para esconder de nós uma moldura
privilegiada e uma simultaneidade absoluta, alguém se pergunta que evidên-
cia seria necessária para convencê-los. Quanto mais difícil for para a natureza
fornecer tais evidências, menos convincente será a acusação de que ela está
conspirando para esconder a verdade de nós.
Mas, mesmo fora dessas considerações, deve-se certamente questionar o
pressuposto de que, se existem assimetrias fundamentais, a natureza deve no-
las revelar. Como escreve Martin Carrier,

A ciência seria uma questão fácil se os estados fundamentais da natureza se


expressassem com franqueza e franqueza na experiência. Nesse caso, podería-
mos simplesmente coletar as verdades que estão prontas diante de nossos

250 Uma observação de Albert Einstein durante uma visita a Princeton, ao ser informado de que D.
C. Miller afirmou ter detectado o movimento da Terra através do éter (citado em Abraham Pais,
“Subtle Is the Lord...”: The Science and Life of Albert Einstein [Oxford: Oxford University Press,
1982], 113-114).
251 A. d'Abro, The Evolution of Scientific Thought, 2d rev. ed. (1927; rep. ed.: n.p.: Dover Publi-
cations, 1950), 138.
252 Consulte o capítulo 2, páginas 54-57.
164
olhos. Na verdade, porém, a natureza é mais reservada e tímida, e seus estados
fundamentais muitas vezes aparecem disfarçados. Em termos menos metafóri-
cos, não há uma correspondência um-para-um direta entre um estado teórico e
um empírico. Uma das razões para a falta de uma conexão tão estreita é que
distorções podem entrar na relação entre teoria e evidência, e essas distorções
podem alterar a manifestação empírica de um estado teórico. Como resultado,
geralmente não é uma tarefa trivial escavar o estado subjacente a partir de evi-
dências distorcidas.253

Cada frase da declaração de Carrier merece ponderação. O que ele diz sobre a
distorção de um estado teórico em sua manifestação empírica é literalmente
verdadeiro no caso da relatividade lorentziana. Se, em geral, é difícil escavar
o estado subjacente da natureza a partir de evidências distorcidas, se os esta-
dos fundamentais da natureza muitas vezes aparecem disfarçados, então por
que a explicação lorentziana dos fenômenos relativísticos é inaceitável? Tim
Maudlin, um filósofo da ciência que se especializou nas implicações do Teo-
rema de Bell, após examinar todas as tentativas de integrar os resultados do
EPR com a Teoria da Relatividade, conclui: “De uma forma ou de outra,
Deus nos pregou uma peça desagradável”.254 Ele sustenta que a solução loren-
tziana não pode ser rejeitada sob a alegação de que seria enganosa da nature-
za, pois os partidários de todas as soluções dizem o mesmo sobre as outras.
No final, ele reflete, “o verdadeiro desafio recai sobre os teólogos da física,
que devem justificar os caminhos de uma Divindade que é, se não má, pelo
menos extremamente travessa”.255
Quanto à reclamação de d'Abro sobre encontrar “traços humanos no plano
universal”, o lorentziano poderia, em resposta, apelar para o chamado Princí-
pio Antrópico.256 De acordo com esse princípio, as características do universo
podem ser vistas na perspectiva correta apenas se tivermos em mente que cer-
tas características do universo são necessárias para que observadores como
nós existam. Se o universo não tivesse essas características, não estaríamos
aqui para observar as que ele tem. Ora, nossa própria existência depende da
manutenção de certos estados de equilíbrio dentro de nós. Mas a contração do
comprimento e o retardo do relógio são, na visão lorentziana, o resultado pre-
cisamente dos sistemas materiais que mantêm seus estados de equilíbrio en-

253 Martin Carrier, “Força Física ou Curvatura Geométrica?” em Problemas filosóficos dos mun-
dos interno e externo, ed. John Earman, Allen I. Janis, Gerald J. Massey e Nicholas Rescher (Pitts-
burgh: University of Pittsburgh Press, 1993), 3.
254 Tim Maudlin, Quantum Non-Locality and Relativity, Aristotelian Society Series 13 (Oxford:
Blackwell, 1994), 241.
255 Ibid., 242.
256 Devo esse insight a Robin Collins. Para uma breve explicação do Princípio Antrópico, veja
The History of Science and Religion in the Western Tradition: An Encyclopedia, ed. G. B. Fern-
gren, E. J. Larson e D. W. Amundsen (Nova York: Garland, 2000), s.v. “Princípio Antrópico”, de
William Lane Craig.
165
quanto estão em movimento.257 Assim, se a natureza não tivesse esse compor-
tamento compensador, não estaríamos aqui para observar o fato! Dado que
não poderíamos existir sem ela, por que deveríamos nos surpreender ao ob-
servar a “conspiração” da natureza?
Mas por que a natureza é estruturada dessa maneira? Dada a perspectiva
teísta a partir da qual abordamos essas questões, dificilmente deveríamos nos
surpreender ao descobrir que o universo é projetado de forma a sustentar nos-
sa existência. Devemos esperar que Deus tenha escolhido leis da natureza que
manterão os estados de equilíbrio essenciais à nossa existência. Mesmo que,
como diz d'Abro, a natureza seja cega, Deus não é; e se a Natureza não é sá-
bia, Deus é. Não é a Natureza, então, que se preocupa com nossos fracos eus,
que nos considera assuntos dignos de atenção, mas o Criador e Sustentador do
universo que se preocupa com o homem (Sl 8:3-8). Sutil é o Senhor, miseri-
cordioso Ele também é.
Uma vantagem ostensiva final da interpretação do espaço-tempo vem da
Teoria Geral da Relatividade. No GTR, a gravidade não é entendida como
uma força, mas em termos da curvatura do espaço-tempo. A matéria é conce-
bida para distorcer o espaço-tempo, assim como um objeto pesado colocado
sobre uma folha de borracha esticada causa uma depressão na folha. Se um
rolamento de esferas rolar pela folha, seu caminho será desviado pela depres-
são, talvez o suficiente para que o rolamento de esferas circule ao redor do
objeto e finalmente colida com ele. De maneira semelhante, um planeta que
orbita o sol é concebido para fazê-lo não por causa de qualquer atração gravi-
tacional que o sol esteja exercendo sobre o planeta, mas porque o planeta está,
por assim dizer, “descendo a colina” no espaço-tempo curvo distorcido. pela
massa do sol.
Agora, a questão levantada por essa abordagem geométrica da gravitação
no GTR é se ela deve ser entendida de forma realista ou meramente instru-
mental (isto é, como uma ferramenta conveniente sem implicações para a rea-
lidade). Pelo que vale a pena, a maioria dos físicos aparentemente se contenta
em tomar a teoria instrumentalmente. O espaço-tempo curvo é apenas um
modelo geométrico da força da gravidade. De acordo com o notável filósofo
da ciência Arthur Fine, poucos cientistas ativos e conhecedores dão crédito à
interpretação realista do GTR. Em vez disso, o GTR é visto como “uma fer-
ramenta de organização magnífica” para lidar com problemas gravitacionais:
“a maioria dos que realmente o usam pensa na teoria como um instrumento
poderoso, em vez de expressar uma ‘grande verdade’”.258 Pode-se dizer com
segurança que nenhuma desvantagem científica surge de tratar a abordagem
geométrica da gravidade como meramente instrumental.

257 S. J. Prokhovnik, Light in Einstein’s Universe (Dordrecht, Holanda: D. Reidel, 1985), 84-85.
258 Arthur Fine, The Shaky Game: Einstein, Realism and the Quantum Theory (Chicago: Univer-
sity of Chicago Press, 1986), 123.
166
De fato, pelo contrário, pode-se argumentar que uma compreensão realista
do espaço-tempo na verdade obscurece nossa compreensão da natureza ao
substituir a geometria por uma força gravitacional física, impedindo assim o
progresso em conectar a teoria da gravidade à teoria das partículas. Em seu
Gravitation and Cosmology, o físico ganhador do Prêmio Nobel Steven
Weinberg reflete,

Ao aprender a relatividade geral e depois ensiná-la às aulas em Berkeley e no


M.I.T., fiquei insatisfeito com o que parecia ser a abordagem usual do assunto.
Descobri que na maioria dos livros didáticos as ideias geométricas recebiam
um papel principal. . . .
Claro, esse era o ponto de vista de Einstein, e seu gênio preeminente neces-
sariamente molda nossa compreensão da teoria que ele criou. No entanto, acre-
dito que a abordagem geométrica criou uma barreira entre a relatividade geral
e a teoria das partículas elementares. Enquanto se podia esperar, como espera-
va Einstein, que a matéria fosse eventualmente compreendida em termos geo-
métricos, fazia sentido atribuir à geometria riemanniana um papel primordial
na descrição da teoria da gravitação. Mas agora a passagem do tempo nos en-
sinou a não esperar que as interações fortes, fracas e eletromagnéticas possam
ser compreendidas em termos geométricos, e uma ênfase muito grande na ge-
ometria só pode obscurecer as conexões profundas entre a gravitação e o resto
da física.259

Weinberg afirma que considerar a gravidade uma força real é “um elo cruci-
al” entre o GTR e a física de partículas, uma vez que deve haver uma partícu-
la de radiação gravitacional, o chamado gráviton.260 Toda a busca por uma te-
oria unificada das forças da natureza, tal como é buscada na chamada teoria
das supercordas e na teoria-M, pressupõe tal ligação. A abordagem geométri-
ca do realismo do espaço-tempo é, portanto, um impedimento positivo para
obtermos uma compreensão mais integrada da física. O espaço-tempo geomé-
trico, na visão de Weinberg, deve ser entendido “apenas como uma ferramen-
ta matemática” e “não como uma base fundamental para a teoria da gravita-
ção”.261
Em resumo, embora a interpretação espaço-temporal de STR seja em al-
guns aspectos superior à interpretação da relatividade, não parece haver ra-
zões comparativamente boas para preferi-la a uma abordagem lorentziana da
Teoria da Relatividade. Pelo contrário, se nossos argumentos para a tempora-
lidade divina estiverem corretos, então uma teoria lorentziana da relatividade
deve ser verdadeira, uma vez que o quadro coincidente com o “agora” de
Deus será privilegiado.

259 Steven Weinberg, Gravitação e Cosmologia: Princípios e Explicações da Teoria Geral da Re-
latividade (Nova York: John Wiley & Sons, 1972), vii; cf. 147. A geometria riemanniana é a geo-
metria de uma superfície positivamente curvada, como a superfície de uma esfera.
260 Ibid., 251.
261 Ibid., viii.
167
De fato, com base no que já descobrimos,262 penso que temos razões muito
substanciais para rejeitar o realismo do espaço-tempo. Pois inerente ao con-
ceito de espaço-tempo está a unificação indissolúvel de espaço e tempo em
um continuum quadridimensional. Mas vimos que o tempo pode existir inde-
pendentemente do espaço. Pois se Deus, existindo sozinho sem criação, expe-
rimentasse uma sequência de eventos mentais nos conteúdos da consciência,
o tempo existiria totalmente na ausência de espaço. Considero esta simples
consideração um argumento decisivo contra a visão de que tempo e espaço
estão indissoluvelmente unidos no espaço-tempo. Assim, simpatizo com o fí-
sico francês Henri Arzeliès quando ele afirma: “O continuum quadridimensi-
onal deve, portanto, ser considerado uma ferramenta útil e não uma ‘realida-
de’ física”.263
Em conclusão, a superioridade da interpretação minkowskiana do espaço-
tempo em relação à interpretação original da relatividade einsteiniana de STR
não serve para justificar a teoria estática do tempo, pois isso ignora uma
abordagem lorentziana da teoria da relatividade, uma abordagem que é pelo
menos empiricamente equivalente a as visões rivais, não é menos plausível do
que a interpretação do espaço-tempo e, no entanto, é compatível com uma te-
oria dinâmica do tempo. Reagindo à alegação de que uma abordagem espaço-
temporal da Teoria da Relatividade mostra que o devir tenso e temporal é ir-
real, o filósofo da ciência Max Black é direto:

Esta imagem de um “universo em bloco”, composto por uma teia atemporal de


“linhas de mundo” em um espaço quadridimensional, embora fortemente suge-
rido pela teoria da relatividade, é um pedaço de metafísica gratuita. . . . Aqui,
como tantas vezes na filosofia da ciência, uma limitação útil na forma de re-
presentação é confundida com uma deficiência no universo.264

Enquanto uma abordagem lorentziana da Teoria da Relatividade não for me-


nos plausível do que suas concorrentes, o presente argumento para a teoria es-
tática do tempo não terá sucesso.

2. A dependência mental do vir-a-ser

EXPOSIÇÃO
Além do suporte supostamente dado à concepção estática do tempo pe-
la Teoria da Relatividade, existem poucos argumentos preciosos de natureza
positiva para uma teoria estática do tempo. Mas em seu caso frequentemente
reimpresso para a dependência mental do devir temporal, o filósofo da ciência

262 Consulte o capítulo 2, página 66.


263 Henri Arzeliès, Cinemática Relativística, rev. ed. (Oxford: Pergamon Press, 1966), 258.
264 Max Black, revisão de The Natural Philosophy of Time por G. J. Whitrow, Scientific Ameri-
can 206 (abril de 1962), 181-182.
168
Adolf Grünbaum apresenta brevemente três desses argumentos. Eles podem
nos servir como ponto focal para esta seção.
Na visão de Grünbaum, ser experimentado é essencial para que qualquer
evento ocorra agora e, portanto, para o devir temporal. Ele afirma, “indepen-
dentemente de serem percebidos, os próprios eventos físicos não se qualifi-
cam em nenhum momento como ocorrendo agora e, portanto, como tal, não
se tornam”.265 “Tornar-se”, diz ele, “é dependente da mente porque não é um
atributo de eventos físicos per se, mas requer a ocorrência de estados de cons-
ciência conceituada”.266
Que razões existem para pensar que o devir temporal não caracteriza os
eventos em si, mas é um fenômeno subjetivo? É neste ponto que Grünbaum
apresenta seus três argumentos.
1. A trivialidade do agora objetivo. Grünbaum nos convida a considerar
uma afirmação como “Já são 15h”. Tal declaração é claramente informativa.
Mas se a palavra “agora” não se refere ao conteúdo de alguma consciência
subjetiva, então parece não haver nada para ela se referir além das 3 da tarde.
em si. Assim, a declaração informativa “São 15h00 agora.” torna-se a decla-
ração trivial “São 3 da tarde. às 15h”, o que é evidentemente equivocado.
Se o defensor do tempo tenso diz que “agora” se refere a uma propriedade
primitiva de agora ou presentidade, Grünbaum não se convence: “Estou to-
talmente perdido ao ver que qualquer coisa não trivial pode ser afirmada pela
alegação de que às 3 da tarde. agora (presentness) é inerente aos eventos das
15h. Pois tudo o que consigo discernir aqui é que os eventos das 15h. são de
fato os das 15h. no dia em questão!”267
O argumento de Grünbaum pode ser formulado da seguinte maneira:

1. “Agora são 15h.” é uma declaração informativa.

2. Se a presença não depende da mente, então “São 3 da tarde agora”. não é


uma declaração informativa.

3. Portanto, a presença é dependente da mente.

E, claro, se a presença depende da mente, então não é uma característica obje-


tiva da realidade, como afirmam os partidários do tempo tenso.
2. A ausência de vir-a-ser do tempo físico. Grünbaum considera este seu
argumento mais importante. A física nada sabe sobre o devir temporal. Mas
se o devir fosse uma característica objetiva do mundo, então as teorias físicas
não poderiam se dar ao luxo de ignorá-lo sem prejudicar seu sucesso explica-

265 Adolf Grünbaum, “The Status of Temporal Becoming”, em Modern Science and Zeno’s Para-
doxes (Middleton, Connecticut: Wesleyan University Press, 1967), 19.
266 Ibid., 8.
267 Ibid., 20.
169
tivo. Uma vez que tais teorias são bastante bem-sucedidas, o devir temporal
deve ser puramente subjetivo.
Podemos formular esse argumento da seguinte forma:

1. As teorias atuais da física não levam em conta o devir temporal.

2. Se o devir temporal é uma característica objetiva do mundo, então, se as teo-


rias atuais da física são explicativamente bem-sucedidas, elas devem tomar co-
nhecimento do devir temporal.

3. As teorias atuais da física são explicativamente bem-sucedidas.

4. Portanto, o devir temporal não é uma característica objetiva do mundo.

Mas se não houver um devir temporal objetivo, então uma teoria estática do
tempo está correta.
3. Por que agora? O terceiro argumento de Grünbaum é que uma teoria
atemporal do tempo não envolve uma perplexidade importante que persegue a
teoria temporal do tempo, ou seja, por que os eventos que estão acontecendo
agora em 2001 tornam-se presentes em 2001 e não em algum outro momen-
to? Essa não é, enfatiza Grünbaum, a mesma questão de por que os eventos
aconteceram em 2001. Pode-se fornecer uma história causal que levou aos
eventos para explicar por que os eventos ocorreram em 2001. Mas o que
Grünbaum quer saber é por que os eventos do ano de 2001 tornam-se presen-
tes no ano de 2001, e não mais cedo ou mais tarde. Em sua opinião, eles estão
agora em 2001 porque há alguma consciência subjetiva no ano de 2001 que
está apreendendo a ocorrência desses eventos ao mesmo tempo que a própria
consciência. Mas o defensor do tempo tenso não tem uma resposta não trivial
para a questão.
O argumento parece ser o seguinte:

1. Se o agora é uma característica objetiva dos eventos, então deve haver expli-
cações distintas para por que um evento ocorre no ano de 2001 e por que os
eventos do ano de 2001 têm agora em 2001.

2. Não podem existir explicações distintas para estes factos.

3. Portanto, o agora não é uma característica objetiva dos eventos.

Com base nesses três argumentos, Grünbaum acredita ter provado que o devir
temporal depende da mente e, portanto, que a teoria estática do tempo está
correta.

CRÍTICA
Vamos considerar cada um dos argumentos de Grünbaum por sua vez.
170
1. A trivialidade do agora objetivo. O defensor do tempo tenso desejará
sustentar que a presentidade não depende da mente e que, portanto, a segunda
premissa do primeiro argumento de Grünbaum é falsa. “Agora são 3 da tar-
de.” é uma declaração informativa sobre uma teoria tensa do tempo. De fato,
será lembrado que foi o trabalho de John Perry sobre “o indicial essencial”
que convenceu os filósofos de que tal afirmação não tem o mesmo significado
que uma afirmação sem tempo.268 Na opinião de Grünbaum, esta frase signi-
fica algo como: “São 3 da tarde. simultânea com uma certa consciência con-
ceituada”. Mas, como Perry mostrou, essa é uma verdade sem tempo que não
vai me informar se devo sair para a reunião que começa às 15h. Assim, é a in-
terpretação do “agora” de Grünbaum que é crucialmente não informativa.
Por outro lado, ao nos dizer que as 15h são agora ou têm presentidade,
como afirma a teoria dos tensos, a afirmação é vitalmente informativa. O erro
de Grünbaum foi que ele confundiu estar presente com estar presente às 15h.
Dizer que as 15h estão presentes às 15h é trivial, mas dizer que as 15h estão
presentes é informativo. Dizer que agora são 15h é dizer que, de todos os ho-
rários possíveis, apenas 15h tem atualidade.
Assim, o primeiro argumento de Grünbaum é baseado em uma confusão e
foi superado por desenvolvimentos subsequentes na filosofia da linguagem.
2. A ausência de vir-a-ser do tempo físico. Vários pensadores desafiaram a
primeira premissa do argumento de Grünbaum, de que as teorias atuais da fí-
sica não levam em conta o devir temporal. Certamente é verdade que o agora
desempenha um papel vital em certas ciências, como a meteorologia ou a
geologia. Por exemplo, ao prever o clima ou erupções vulcânicas, os cientis-
tas não querem saber simplesmente a probabilidade de um furacão atingir
Galveston ou Montserrat explodir em uma determinada hora e data. Eles que-
rem saber se tais eventos ocorrerão na próxima semana. Em outras palavras,
eles querem saber fatos tensos sobre esses eventos, o que parece contradizer a
primeira premissa de Grünbaum.
Mas talvez Grünbaum diria que tais preocupações pertencem à ciência
aplicada, não às próprias teorias da física. Se o devir temporal é real, deve
aparecer na teoria física, o que não acontece. Se esta é a sua afirmação, então
é irônico que os defensores mais recentes do tempo atemporal tenham critica-
do a física contemporânea precisamente porque ela está tão completamente
infectada com a presunção do devir temporal. Em seu livro Time's Arrow and
Archimedes' Point, Huw Price faz um apelo para uma reforma total da teoria
física para torná-la verdadeiramente sem tensão, alcançando o que ele chama
de perspectiva arquimediana. De acordo com Price, “a perspectiva temporal
comum é tão familiar e tão profundamente enraizada que precisamos suspei-

268 Consulte o capítulo 4, página 118.


171
tar de muitos dos conceitos usados na física contemporânea”.269 Mesmo nossa
consideração do Big Bang como o começo, ao invés do fim, do universo é
trair a suposição de uma perspectiva tensa. Ainda mais fundamentalmente,
Price reclama: “O aparato conceitual da física parece estar carregado com a
temporalidade assimétrica da visão de mundo comum. Noções como grau de
liberdade, potencial e até a própria disposição, por exemplo, parecem incor-
porar a concepção de um futuro aberto, para o qual os sistemas presentes são
preparados de diversas maneiras”.270 Na opinião de Price, apenas começamos
a imaginar como seria a física se fosse completamente destensificada. Grün-
baum pode protestar que a preocupação de Price não é com o devir temporal
(o que Grünbaum nega), mas com a anisotropia temporal (que Grünbaum
afirma). Mas o ponto de Price é que, além da realidade do devir temporal,
torna-se simplesmente gratuito afirmar a anisotropia do tempo, como faz a fí-
sica contemporânea. Na medida em que a teoria física pressupõe anisotropia
temporal – que de acordo com Price é “muito, muito longe”271 – ela também
pressupõe a objetividade do devir temporal.
Em qualquer caso, devemos certamente questionar a premissa (2). As teo-
rias não aplicadas não precisam tomar conhecimento do tempo para serem
explicativamente bem-sucedidas. De fato, como explica Max Black, é preci-
samente o caráter universal das afirmações científicas que deveria nos levar a
esperar que elas fossem formuladas em termos não indexicais e atemporais:

É fácil entender por que a física teórica deveria expressar seus resultados for-
mais em uma linguagem independente do contexto, usando fórmulas ou frases,
das quais as palavras de ocasião estão ausentes. Este procedimento tem a gran-
de vantagem de nenhuma reconstrução do contexto original ser exigida por
parte de qualquer leitor. . . . Se um cientista dissesse: “Eu então vi um flash
verde na borda do disco solar”, qualquer um que estivesse ausente no momento
da observação original precisaria saber quem falou, onde e quando, a fim de
obter as informações pretendidas. Nenhuma informação suplementar é neces-
sária para entender a lei de Boyle ou qualquer outra declaração científica li-
vremente repetível.272

Essa característica universalizante das teorias científicas, sua abstração do


aqui e agora, milita contra a captura da presentidade em uma teoria científica.
Mas, ao tornar as teorias científicas inflexíveis, não é necessário minar sua
adequação explicativa; pelo contrário, torna-se aplicável a todos os tempos.

269 Huw Price, Time's Arrow and Archimedes' Point (Nova York: Oxford University Press, 1996),
234.
270 Ibid., 260.
271 Ibid., 259.
272 Black, revisão de Natural Philosophy of Time, 181. Por “palavras de ocasião” Black significa
termos indexicais.
172
O enfraquecimento das teorias científicas tem, no entanto, uma implicação
importante. Serve para sublinhar a distinção de Newton entre o próprio tempo
e nossas medidas empíricas dele. O tempo na física é uma abstração do que é
indiscutivelmente uma realidade metafísica mais rica. Por essa razão, todas as
visões reducionistas do tempo, que igualam o tempo ao tempo físico, são ina-
dequadas. Pela mesma razão, os filósofos e especialmente os teólogos não
podem contar com os cientistas sobre a natureza do tempo, muito menos so-
bre a eternidade divina, uma vez que a física nem mesmo trabalha com uma
concepção completa do tempo. Como advertiu a filósofa Mary Cleugh,

O “t” da física é chamado indevidamente de tempo. . . . É uma abstração do


tempo vivido e, no processo, tudo o que é distintamente temporal foi elimina-
do. Passado, presente e futuro se foram: em seu lugar resta apenas a relação ló-
gica de antes e depois, expressa em termos de números. . . .273

Além disso, como t representa um número, podem ser realizadas operações


matemáticas sobre ele que não fazem sentido em relação ao próprio tempo.
Por exemplo, podem ser atribuídos valores negativos ou até mesmo imaginá-
rios a t! Como Cleugh diz: “O que é o mais louco absurdo dos sonhos é me-
ramente alterar o sinal para o físico”.274 Se o metafísico não puder encontrar
nenhuma interpretação inteligível de tais operações, ele as considerará justifi-
cadamente como meros truques matemáticos sem nenhuma implicação para a
realidade. Em uma revisão fascinante do conceito de tempo apenas em vários
campos da física, Carlo Rovelli enfatizou como os conceitos de tempo físico
são diferentes da noção intuitiva de tempo e como são diversos quando com-
parados entre si. 275 Ele lista oito características comumente associadas ao
tempo:

1. Unidimensional: O tempo pode ser pensado como uma coleção de instantes


que podem ser arranjados em uma linha unidimensional.

2. Métrica: Intervalos de tempo podem ser medidos de forma que dois interva-
los possam ser considerados de igual duração.

3. Temporalmente global: A variável real t que usamos para denotar a medida


de tempo passa por todos os valores reais de –infinito a +infinito.

4. Espacialmente global: A variável de tempo t pode ser definida exclusiva-


mente em todos os pontos do espaço.

273 Mary F. Cleugh, Time and Its Importance in Modern Thought, com prefácio de L. Susan Steb-
bing (Londres: Methuen, 1937), 46-47.
274 Ibid., 46.
275 Carlo Rovelli, “O que a Física dos dias atuais [sic] nos diz sobre o tempo e o espaço?” Palestra
apresentada na Série Anual de Palestras do Centro de Filosofia da Ciência da Universidade de
Pittsburgh, 17 de setembro de 1993.
173
5. Externo: O fluxo do tempo é independente da dinâmica específica dos obje-
tos que se movem no tempo.

6. Único: Não há muitas vezes, mas apenas o tempo.

7. Direcional: É possível distinguir o passado da direção futura da linha do


tempo.

8. Presente: Sempre existe um instante de tempo preferido, o Agora.

Rovelli então fornece o seguinte gráfico para ilustrar a diversidade do concei-


to de tempo físico (Fig. 5.1). Mesmo que alguém esteja disposto a contestar
alguns dos detalhes, penso que não há como contestar o argumento de Rovelli
de que o tempo físico é muito diferente de nossa noção comum de tempo e,
além disso, porque o tempo é definido de maneira diferente em diferentes
campos da física, não há noção unitária de tempo físico. É difícil resistir à
conclusão de que todos esses “tempos” definidos operacionalmente não são
realmente tempo, mas apenas várias medidas de tempo adequadas para seus
respectivos campos de investigação. Sklar protestou que

Se o que queremos dizer com “tempo” quando falamos da ordem temporal dos
eventos do mundo físico não tem nada a ver com o significado de “tempo”
quando falamos sobre ordem no tempo de nossas experiências, por que chamá-
lo de tempo em todos? Por que não dar um nome absurdo, escolhido delibera-
damente para não ter sentido (como “estranheza”) e assim evitar o erro de pen-
sar que sabemos do que estamos falando quando falamos sobre a ordem tem-
poral dos eventos no mundo físico?276

A lacuna entre a concepção comum de tempo e o “t” dos físicos é tão grande
que Black de fato aconselhou os cientistas a pararem de falar sobre “tempo” e
se referirem ao seu próprio conceito simplesmente como “t”!277 Sem dúvida,
isso é pedir demais; mas certamente não é pedir demais aos cientistas - e tam-
bém aos filósofos - que parem de tirar conclusões metafísicas baseadas na pá-
lida abstração do tempo que desempenha um papel na física.

276 Lawrence Sklar, “Tempo na experiência e na descrição teórica do mundo,” em Time’s Arrow
Today, ed. Steven S. Savitt (Cambridge: Cambridge University Press, 1995), 226.
277 Black, revisão de Natural Philosophy of Time, 182.
174
A noção de tempo tem propriedades:
usada em:
Linguagem comum 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8
Termodinâmica 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
Mecânica Newtonia- 1, 2, 3, 4, 5, 6
na
STR 1, 2, 3, 4, 5
Cosmologia 1, 2, 3, 4
GTR-tempo adequa- 1, 2, 3, 5
do
GTR-tempo de coor- 1, 3, 4
denada
GTR-horas do relógio 1, 2
Gravidade Quântica Nenhum

Fig. 5.1: O conceito de tempo em vários campos da física em comparação com


o conceito usual.

3. Por que é “agora”? Grünbaum quer saber por que um evento que se
torna presente em 2001 se torna presente em 2001 e não em outra data. Mas
isso parece estar perguntando por que uma tautologia é verdadeira. Talvez
possamos interpretar Grünbaum como perguntando sobre algum evento por
que ele se tornou presente em 2001, ponto final – o que não é uma questão
trivial. Mas então por que pensar que a explicação de por que o evento se tor-
na presente em 2001 deve ser diferente da explicação de por que o evento
ocorre sem tempo em 2001? Se a história causal que leva a um evento é sufi-
ciente para explicar por que o evento ocorre em 2001, então a mesma história
causal parece explicar por que ele se torna presente em 2001. Afinal, em uma
visão tensa do tempo, se um evento ocorre em t, então deve ter presença em t.
Quando mais poderia ter presença?
Grünbaum pensa que banaliza a independência da mente de vir a ser dizer
que “por definição, um evento que ocorre em um determinado horário t tem o
atributo não analisável de agora no momento t”.278 Mas o defensor do tempo
tenso não está dizendo que isso é uma questão de definição. Ele está afirman-
do que, necessariamente, um evento tem presença apenas quando esse evento
ocorre. Mas se isso for verdade - e como poderia não ser verdade? - então
qualquer explicação de por que um evento ocorre em um determinado mo-
mento explicará também por que ele se torna presente naquele momento. As-
sim, a pergunta de Grünbaum é em si uma questão trivial. Qualquer explica-
ção de por que um evento ocorre em t também será suficiente para explicar
por que esse evento está presente em t.

278 Grünbaum, “Status of Temporal Becoming,” 27.


175
Em suma, os argumentos de Grünbaum para a dependência da mente do
vir-a-ser não são convincentes. Dado também o fracasso do apelo ao STR,
não vimos nenhuma boa razão para pensar que uma concepção estática de
tempo é correta.

II. Argumentos contra uma concepção estática

Agora voltamos nossa atenção para os argumentos contra uma concepção es-
tática do tempo. Quatro objeções se destacam como particularmente significa-
tivas.

1. Tempo “espacializando”

EXPOSIÇÃO
Os defensores de uma teoria dinâmica do tempo há muito acusam os teóricos
do tempo estático de “espacializar” o tempo. Milic Capek, por exemplo, re-
clama que “De Zeno a Russell e algumas interpretações errôneas contempo-
râneas da relatividade, a falácia da ‘espacialização do tempo’ é uma das ca-
racterísticas mais persistentes de nossa tradição intelectual”. 279 Agora, esta
alegação não deve ser entendida como a acusação de que a teoria estática do
tempo literalmente transforma o tempo em uma quarta dimensão do espaço.
Afinal, os teóricos do tempo estático afirmam que o tempo é ordenado pelas
relações de antes e depois de, que são exclusivamente relações temporais. Em
vez disso, a acusação de “espacializar” o tempo é uma forma metafórica de
alegar que a concepção estática do tempo, ao detensibilizá-lo, roubou essen-
cialmente da dimensão temporal o que o torna tempo, de modo que não há
justificativa para chamar suas relações de ordenamento de “antes de” e “de-
pois de”, com o resultado de que essa dimensão atemporal não pode mais ser
justificadamente chamada de “tempo”. O filósofo da ciência holandês Peter
Kroes expõe a objeção claramente: “não está nada claro que a ocorrência de
eventos no sentido atemporal possa gerar uma ordenação temporal real. Essa
ocorrência sem tempo de eventos apenas leva a uma relação formal de orde-
nação entre os eventos físicos, não a uma ordenação temporal”.280
Com efeito, então, o defensor do tempo dinâmico está acusando a teoria
estática do tempo de ser incoerente. Pois, por um lado, afirma a realidade do
tempo e das relações temporais, mas, por outro lado, nega a realidade do tem-
po, que é fundamental para o tempo e as relações temporais. Podemos formu-
lar a objeção:

279 Milic Capek, Os conceitos de espaço e tempo, Boston Studies in the Philosophy of Science 22
(Dordrecht: D. Reidel, 1976), XXVI.
280 Peter Kroes, Time: Its Structure and Role in Physical Theories, Synthese Library 179 (Dor-
drecht:D. Reidel, 1985), 210.
176
1. Se o tempo não é objetivamente real, as relações temporais não são objeti-
vamente reais.

2. Se as relações temporais não são objetivamente reais, o tempo não é objeti-


vamente real.

3. O tempo é objetivamente real.

4. Portanto, o tempo é objetivamente real.

Todas as partes concordam na premissa (3). A questão depende de qual justi-


ficativa o teórico do tempo dinâmico pode dar para as premissas (1) e (2).

CRÍTICA
Alguns teóricos do tempo sem tempo, como Horwich e Price, contestariam a
veracidade da premissa (2). Na visão deles, os eventos no espaço-tempo não
são ordenados por relações de antes e depois de. Mas, como vimos, essa di-
mensão chamada “tempo” em suas teorias é tão diferente da concepção co-
mum de tempo que certamente temos motivos para duvidar que o tempo re-
almente exista em suas teorias. A maioria dos filósofos, seja no campo atem-
poral ou no campo tenso, concorda que as relações antes/depois de são essen-
ciais para a natureza do tempo.
Portanto, tudo se resume à premissa (1). O desafio em justificar a premissa
(1) é superar a visão do teórico do tempo estático de que as relações tempo-
rais são apenas dados não analisáveis. Toda teoria tem seus pressupostos da-
dos. Então, por que o defensor do tempo estático não tem o direito de sim-
plesmente assumir que as relações temporais são reais?
Para enfrentar esse desafio, o teórico do tempo dinâmico deve mostrar
como uma análise redutiva das relações temporais pode ser dada em termos
de uma teoria temporal do tempo. A questão remonta a McTaggart. Ele sus-
tentou que a relação temporal anterior a é analisável em termos de tempos:
“O termo P é anterior ao termo Q, se é passado enquanto Q está presente ou
presente enquanto Q é futuro”.281 Notavelmente, o teórico do tempo estático
D. H. Mellor parece concordar.282 Na verdade, Mellor oferece três maneiras
diferentes de definir “mais cedo que” e “mais tarde que” em termos de tempo
tenso:

281 J. M. E. McTaggart, The Nature of Existence, 2 vols., ed. CD Broad (Cambridge: Cambridge
University Press, 1927; rep. ed.: 1968), 2:271.
282 D. H. Mellor, Real Time (Cambridge: Cambridge University Press, 1981), 140.
177
Definição 1: ser anterior a = ser mais passado ou menos
def. futuro do que
ser posterior a = def. ser mais futuro ou menos
passado do que

Definição 2: e é anterior a e* quando e está presente e* é


= def. futuro, e quando e* está pre-
sente e é passado; e quando e
está presente e* não é passa-
do, e quando e é futuro e*
não está presente
e é posterior a e* = def. quando e* está presente e é
futuro, e quando e está pre-
sente e* é passado; e quando
e* está presente e não é pas-
sado, e quando e* é futuro e
não está presente.
Definição 3: e é anterior a e* e deixa de ser futuro e se tor-
= def. na presente primeiro, e e*
deixa de ser futuro e se torna
presente em segundo lugar; e
e deixa de estar presente e se
torna passado primeiro, e e*
deixa de estar presente e se
torna passado segundo
e é posterior a e* = def. e* deixa de ser futuro e se
torna presente primeiro, e e
deixa de ser futuro e se torna
presente em segundo lugar; e
e* deixa de estar presente e
se torna passado primeiro, e e
deixa de estar presente e se
torna passado segundo

Michael Tooley, embora seja ele mesmo um defensor do tempo dinâmico,


afirma que todas essas tentativas de analisar as relações temporais em termos
de conceitos temporais são cruelmente circulares e, portanto, falham.283 Por-
tanto, precisamos examinar as três definições de Mellor mais de perto.
A Definição 1 parece fornecer uma análise maravilhosamente simples e di-
reta das relações anteriores e posteriores a termos de conceitos temporais. No
entanto, Richard Gale se opôs a uma análise redutiva em termos de
mais/menos passado e mais/menos futuro porque esses não são tempos “pu-
ros”.284 As dúvidas de Gale parecem bastante infundadas, no entanto. Pois o

283 Michael Tooley, Time, Tense, and Causation (Oxford: Clarendon, 1997), capítulo 6.
284 Richard M. Gale, The Language of Time, Biblioteca Internacional de Filosofia e Método Cien-
tífico (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1968), 93.
178
tempo tenso não consiste simplesmente em passado, presente e futuro. Exis-
tem todos os tipos de outros tempos também, como o mais que perfeito e o
futuro perfeito. E qualquer localização temporal relativa ao presente é um
tempo tenso, como “dois anos atrás”, “próximo sábado”, “nos últimos quaren-
ta anos” e assim por diante. Contanto que predicados como “mais passado”
sejam atribuídos a um evento absolutamente, em vez de relativos a uma data
sem tempo, eles são tempos puros.
Tooley também se opõe a qualquer análise em termos de mais passado ou
mais futuro.285 Ele afirma que estes não podem ser tomados como conceitos
primitivos (ou indefinidos) de uma teoria temporal do tempo. Mas qualquer
tentativa de analisá-los, continua ele, envolverá as relações antes/depois de,
de modo que a análise acaba se tornando circular.
Mas por que, podemos perguntar, o defensor do tempo tenso não pode
considerar tempos verbais como mais passado como termos não analisáveis
em sua teoria? A única razão que Tooley dá é que mais passado é análogo a
mais futuro, e o conceito de mais futuro não pode ser um conceito primitivo
porque o conceito de futuro não é primitivo. Mas por que pensar que o con-
ceito temporal simples de futuro não pode ser tomado como um conceito pri-
mitivo? As razões de Tooley para negar que o futuro pode ser um conceito
primitivo são baseadas em suposições empiristas que ele nem mesmo tenta
justificar. Negar essas suposições, como penso que devemos, e não há razão
para que o teórico do tempo tenso não tome mais futuro e mais passado como
conceitos primitivos de sua teoria.
Mas suponha que Tooley estivesse certo, que mais passado e mais futuro
não podem ser conceitos primitivos. Por que não podemos analisá-los em
termos de outros conceitos temporais? Por exemplo, mais passado poderia ser
analisado como mais distante, e mais futuro poderia ser analisado mais adian-
te. Ou podemos analisá-los em termos do presente, uma escala de distância e
a orientação do tempo. Algo é mais futuro, por exemplo, se estiver a uma dis-
tância maior do presente na direção do tempo. Assim, nossa análise de mais
passado e mais futuro não precisa apelar para relações de antes/depois de e,
portanto, não é circular.
Em suma, a Definição 1 de Mellor fornece uma admirável análise redutiva
das relações temporais anteriores e posteriores em termos temporais.
E a Definição 2? Esta definição não atribui tempos a eventos de forma ab-
soluta, mas relativa a um tempo. O evento e* é futuro quando e está presente,
e assim por diante. Tanto Gale quanto Tooley objetaram que essa análise é
viciosamente circular.286 Pois dizer que e* é futuro em t ou que e é passado
em t significa apenas que e* é posterior a t ou e é anterior a t. Assim, está-se
definindo antes de/depois de em termos de antes de/depois de.

285 Tooley, Time, Tense, and Causation, 163, 179-180; cf. 98-99.
286 Gale, Language of Time, 90-91; Tooley, Time, Tense, and Causation, 161.
179
Agora Gale e Tooley estão corretos que todas as declarações na Definição
2 são declarações sem tempo. Mas isso não implica automaticamente que eles
não atribuam tempos reais aos eventos. Para tornar essas atribuições claras,
podemos simplesmente substituir diferentes expressões que afirmam clara-
mente a realidade do tempo. Por exemplo:

Definição 2’: e é anteri- existe algum tempo t tal


or a e* = def. que em t é um fato obje-
tivo que e tem atualida-
de e que e* é futuro
e é posterior a e* = def. existe algum tempo t tal
que em t é um fato ob-
jetivo que e tem presen-
tidade e que e* é passa-
do

A Definição 2' ainda consiste em declarações sem tempo e fornece uma análi-
se relativa a um tempo, mas claramente atribui tempos para eventos. O erro
de Gale e Tooley pode ter sido a suposição errônea de que declarações verda-
deiras sem tempo não podem ser usadas para atribuir tempos verbais. Tanto
quanto posso ver, então, a segunda definição de Mellor também consegue
mostrar como uma análise redutiva das relações temporais pode ser fornecida
pelo defensor do tempo tenso.
A definição 3 difere das outras duas ao analisar as relações temporais em
termos de devir temporal. Parece-me que pode ser consideravelmente simpli-
ficado:

Definição 3’: e é e torna-se presente


anterior a e* = def. primeiro e e* torna-se
presente em segundo
lugar
e é posterior a e* = e* torna-se presente
def. primeiro e e torna-se
presente segundo
Alguém pode suspeitar que os termos “primeiro” e “segundo” são sinônimos
de “anterior” e “depois”, de modo que a análise é viciosamente circular. Mas
um momento de reflexão mostra que não é bem assim. “Primeiro” e “segun-
do” são números ordinais que podem ser atribuídos a pontos espaciais ou
mesmo objetos abstratos como números e, portanto, não são inerentemente
temporais. Dada a ordem em que os eventos se tornam presentes, segue-se
necessariamente a ordenação temporal dos eventos como anteriores e posteri-
ores.
Assim, parece que Mellor está certo de que, se a teoria temporal do tempo
for verdadeira, então pode-se encontrar relações temporais na realidade do
devir temporal ou temporal.
180
Até agora tudo bem! A questão que agora se coloca é: por que pensar que
ainda existirão relações temporais entre eventos uma vez que a dimensão
temporal foi despojada de todos os tempos? É universalmente admitido que
nenhuma análise redutiva reversa de tempos em termos de relações temporais
sem tempo pode ser dada. Então, por que pensar que tais relações existiriam
independentemente do tempo? Mais uma vez, o ponto é de McTaggart. Ele
sustentou que uma vez que a série temporal de eventos é despojada de todos
os tempos, ela ainda existiria como uma série, mas não como uma série tem-
poral. Seria uma série atemporal, como a série dos números naturais ou das
letras do alfabeto. Ele escreveu,

não se segue que, se subtrairmos as determinações [tensas] do tempo, não te-


remos mais nenhuma série. Há uma série – uma série de relações permanentes
umas com as outras daquelas realidades que no tempo são acontecimentos – e é
a combinação dessa série com as determinações [tensas] que dá o tempo. Mas
esta outra série . . . não é temporal, pois não envolve mudança, mas apenas
uma ordem. Os eventos têm uma ordem. Eles estão, digamos, na ordem M, N,
O, P. E, portanto, não estão na ordem M, O, N, P, ou O, N, M, P, ou em qual-
quer outra ordem possível. Mas o fato de terem essa ordem não implica que ha-
ja qualquer mudança, assim como a ordem das letras do alfabeto, ou dos Pares
na lista do Parlamento, não implica qualquer mudança. . . . É somente quando a
mudança e o tempo entram que as relações deste. . . séries tornam-se relações
de antes e depois, e assim se torna uma série [temporal].287

Esta série atemporal incluirá todas as entidades que são membros da série
temporal, e todos os membros estarão na mesma ordem em que estão na série
temporal. Qual é, então, a diferença entre eles? Apenas isto: as relações de
ordenação da série temporal são anteriores e posteriores a, enquanto as rela-
ções de ordenação da série atemporal não são. Que relações ordenam a série
atemporal? McTaggart não pensou nelas como relações espaciais. Em vez
disso, ele fez a sugestão engenhosa:

São as relações “incluído em” e “incluído de”. De quaisquer dois termos na sé-
rie [temporal], um é anterior ao outro, que é posterior ao primeiro, e por meio
dessas relações todos os termos podem ser arranjados em uma ordem definida.
E de quaisquer dois termos na série [atemporal], um está incluído no outro, que
inclui o primeiro, e por meio dessas relações todos os termos podem ser arran-
jados em uma ordem definida. E me parece possível. . . que são as relações de
“incluído em” e “inclusivo de” que aparecem como as relações de “antes de” e
“depois de”. . . .288

287 J. Ellis McTaggart, “A irrealidade do tempo”, Mind 17 (1908): 461-462. McTaggart chamou a
série de tempos tensos de série A, a série de datas sem tempo de série B e a série atemporal e tensa
de série C. Eu substituí as palavras entre colchetes por uma questão de clareza.
288 McTaggart, Nature of Existence, 2:240.
181
Na visão de McTaggart, tal série atemporal quando infundida com tempo
produz uma série temporal; mas remova o tempo do tempo e o que sobra não
é uma série temporal.
Agora, neste ponto, podemos imaginar o protagonista de uma teoria tensa
do tempo voltando-se para o defensor do tempo estático e dizendo: “Tenho
uma base em minha visão do tempo para afirmar a existência das relações
temporais anteriores e posteriores a. Mas o que lhe dá o direito, tendo despo-
jado o tempo de todo tempo, de supor que o que resta é realmente o tempo?
Por que devemos considerar as relações existentes entre os membros de sua
série atemporal como anteriores e posteriores, em vez de algumas relações
atemporais semelhantes às relações de ordenação menores que/maiores que
existem entre os membros da série de números naturais? De fato, por que
pensar que tais relações existem? Na minha teoria, o tempo implica a existên-
cia de relações temporais e as relações temporais implicam a existência de
tempo. Então, por que, se realmente não há passado, presente e futuro, como
você afirma, deveríamos pensar que antes e depois ainda existem?
Agora, o que o destensor deve dizer neste momento? Uma resposta típica é
negar veementemente que haja algum problema aqui. Assim, Oaklander per-
gunta,

O que distingue maior do que entre os números de posterior do que entre os


eventos? . . . a resposta não pode ser encontrada em nada além da própria rela-
ção. A relação temporal de sucessão é uma relação simples e não analisável. . .
. Podemos entender a diferença entre mais tarde que no tempo e “mais tarde
que” (ou maior que) em uma série numérica porque podemos perceber a dife-
rença entre as duas relações. Não há mais fundamento para a diferença. . . .289

Agora Oaklander certamente está certo de que entendemos a diferença entre


essas duas relações. Mas isso não ajuda em nada a responder à questão de por
que deveríamos pensar que, na ausência de tempo, haveria alguma relação an-
terior entre os eventos. Oaklander tem pouco mais a dizer do que: "É assim
que as coisas são!" Mas tal resposta seria aceitável apenas se o teórico do
tempo tenso não pudesse fornecer uma análise redutiva das relações tempo-
rais em termos de conceitos temporais, ou então o teórico do tempo estático
pudesse fornecer uma análise redutiva de conceitos tensos em termos de rela-
ções temporais atemporais. Mas a situação não é simétrica. O teórico do tem-
po tenso pode analisar as relações temporais em termos de tempo, e é univer-
salmente reconhecido que o inverso não é possível para o teórico do tempo
sem tempo. Assim, a suposição dos defensores do tempo atemporal de que
antes e depois podem existir sem tempo parece ser gratuita. Como diz Mellor,

289 Nathan Oaklander, Temporal Relations and Temporal Becoming (Lanham, Md.: University
Press of America, 1984), 17.
182
“seus universos de ‘blocos’ não têm mais tempo real do que o de McTaggart
– a diferença é que McTaggart vê isso e eles, em geral, não”.290
O próprio Mellor tenta diferenciar entre o anterior e o posterior com base
na percepção e na causalidade. Ele pensa que percebemos antes e depois entre
os eventos apenas porque nossas próprias percepções são ordenadas como an-
tes e depois. Tenho uma percepção após a outra; portanto, percebo que um
evento segue outro. Mellor acredita que esta regra vale para “não apenas os
sentidos humanos, mas qualquer sentido capaz de perceber a precedência
[temporal]”. 291 O que determina a ordem na qual percebemos os eventos?
Mellor responde que é a ordem causal entre minhas percepções. Ele então
afirma que qualquer par de eventos causalmente conectados pode ser percebi-
do como estando em uma relação de antes e depois. Assim, a direção do tem-
po é a direção da causalidade.
A explicação de Mellor das relações temporais, no entanto, é inadequada.
Considere sua afirmação básica de que não se pode perceber a ordem tempo-
ral dos eventos a menos que as percepções de alguém sejam ordenadas de
forma semelhante. Se uma teoria estática do tempo está correta, como susten-
ta Mellor, e Deus é atemporal, então Ele percebe a ordem temporal entre os
eventos sem ter percepções que também são ordenadas temporalmente. Claro,
a percepção de eventos de Deus não é baseada em sinais físicos (como feixes
de luz), mas o próprio Mellor diz que

qualquer tipo de evento pode ser uma percepção. Não é ser de algum tipo espe-
cial - e.g. elétrico, químico ou orgânico – que transforma um evento em uma
percepção. A percepção é simplesmente um processo causal de aquisição de
crença, um processo do qual nenhum tipo de evento pode ser excluído a priori.
. . . Não estou interessado apenas na percepção humana. Minha proposta é
aplicar a todas as percepções de precedência, por todos os percebedores conce-
bíveis, entre todos os tipos de eventos, coisas e datas, e deve ser defensável
como tal. 292

Deus não pode, portanto, ser excluído como um percebedor de relações de


precedência temporal. No entanto, obviamente, um Deus atemporal não teria
uma série temporalmente ordenada de percepções. Como Paul Helm coloca,
Deus “conhece (atemporalmente) toda a série temporal da mesma maneira
que para nós certas coisas são conhecidas à primeira vista”.293 Este contra-
exemplo enfraquece todo o relato de Mellor, pois mostra que as relações de
antes e depois não têm conexão inerente com a ordem temporal das percep-
ções.

290 D. H. Mellor, “McTaggart, Fixity, and Coming True,” em Reduction, Time, and Reality, ed.
Richard Healey (Cambridge: Cambridge University Press, 1981), 80.
291 Mellor, Real Time, 145.
292 Ibid., 153.
293 Paul Helm, Eternal God (Oxford: Clarendon, 1988), 26.
183
Além disso, está longe de ser óbvio que, mesmo para as criaturas tempo-
rais, a percepção da ordem temporal tem a ver com a ordem de suas percep-
ções. Em uma teoria estática do tempo, segundo a qual todos os eventos no
tempo são igualmente reais, parece não haver razão para que as influências
causais não possam proceder tanto para trás quanto para frente no tempo.
Deus pode saber que nossa percepção do evento e1 precede nossa percepção
do evento e2. Mas se nossa percepção de e2 tem uma influência causal retró-
grada em nossa percepção de e1, então, segundo a explicação de Mellor, nossa
percepção de e2 é temporalmente anterior à nossa percepção de e1 – o que,
como Deus sabe, não é o caso.
Finalmente, mesmo se concordarmos que todas as influências causais pro-
cedem na mesma direção, a explicação de Mellor é insuficiente. Pois ele ain-
da enfrenta o mesmo problema daqueles que tentam basear a seta do tempo
em processos físicos: é totalmente arbitrário qual direção se chama “anterior”
e qual “posterior”. Quem pode dizer que, na teoria estática do tempo, a dire-
ção da causação não é do posterior para o anterior? Ainda mais fundamental-
mente, por que pensar que, em uma teoria estática do tempo, antes e depois
existam? O fato de todas as causas correrem na mesma direção não é razão
para pensar que isso funda uma relação temporal. É difícil ver como Mellor
nos dá algo mais do que uma ordem atemporal de causalidade desprovida de
qualquer tempo real.
Em conclusão, não conheço nenhuma tentativa bem-sucedida de provar
que, uma vez que o tempo tenha sido destensificado, relações temporais genu-
ínas de antes/depois de ainda existiriam. A maioria dos defensores do tempo
atemporal parece contentar-se apenas em estipular que existem relações tem-
porais em sua teoria. Mas tal estipulação é questionada pela redução bem-
sucedida das relações temporais do teórico do tempo dinâmico a fatos tensos.
Dado que existem muitas outras relações atemporais que são análogas às rela-
ções anteriores/posteriores, parece dever do defensor do tempo estático for-
necer alguma justificativa para pensar que as relações que ele estabelece entre
os eventos são relações verdadeiramente temporais. Na ausência de tal justifi-
cativa, o teórico do tempo atemporal parece ser condenado por “espacializar”
o tempo.

2. A Ilusão do Devir

Já vimos que os argumentos do teórico do tempo estático de que o devir tem-


poral é meramente subjetivo ou dependente da mente não são sólidos.294 Ago-
ra, podemos levar nossa investigação um pouco mais longe, perguntando se a
afirmação de que o devir temporal é dependente da mente é mesmo coerente.

294 Veja acima, 180-188.


184
EXPOSIÇÃO
Quando o defensor de uma concepção estática do tempo diz que o devir tem-
poral é “dependente da mente”, não está totalmente claro exatamente o que
ele quer dizer. Mas uma coisa é clara: tal afirmação implica que, na ausência
de seres conscientes, não haveria algo como devir temporal. Se não houvesse
mentes, não haveria passado, presente e futuro, as coisas não entrariam e sai-
riam da existência, todo o continuum espaço-tempo existiria apenas como um
bloco quadridimensional e a mudança seria reduzida a coisas possuindo in-
tensamente diferentes propriedades em diferentes localizações do espaço-
tempo. Isso está claro. O que permanece obscuro, no entanto, é como a pre-
sença de mentes conscientes serve para introduzir o devir temporal nessa
imagem estática.
Devemos entender que realmente existe no reino mental um devir tempo-
ral que está ausente no reino físico? Existe um devir temporal real dos conte-
údos da consciência? Ou devemos entender que o devir temporal é tão irreal
no reino mental quanto no reino físico? Os eventos mentais existem tão sem
tensão quanto os eventos físicos?
Os defensores do tempo estático não foram muito diretos ao abordar tais
questões. Mas o defensor do tempo dinâmico pode argumentar que, seja qual
for a interpretação que você escolher, a doutrina da dependência mental do
vir-a-ser acaba sendo incoerente. Seu argumento é mais ou menos assim:

1. O devir temporal dos eventos mentais depende da mente ou não.

2. Se não for, então o devir temporal é objetivo.

3. Se for, então o tornar-se temporal é objetivo.

4. Portanto, o devir temporal é objetivo.

A premissa (1) pressupõe que experimentamos o devir temporal dos conteú-


dos da consciência. Este é um dado da fenomenologia da consciência tempo-
ral, como vimos.295 Assim surge a questão: o devir temporal de nossas experi-
ências, como o devir temporal de eventos físicos, é dependente da mente ou
não? Agora, em certo sentido, o devir temporal dos eventos mentais é obvia-
mente dependente da mente: ou seja, sem mentes não haveria nenhum evento
mental! Isso não é controverso. Mas estamos perguntando se o devir dos
eventos mentais é dependente da mente no sentido de “não-objetivo” ou “ilu-
sório”. O teórico do tempo dinâmico argumenta que, seja qual for a resposta,
o devir temporal se tornará objetivo.

CRÍTICA

295 Consulte o capítulo 4, páginas 129-143.


185
Considere a primeira premissa (2). Suponha que o teórico do tempo estático
diga que o devir temporal de nossas experiências mentais não depende da
mente. Segue-se imediatamente que o devir temporal é objetivo. Para eventos
mentais, pelo menos, surgem e desaparecem.
Talvez o defensor do tempo estático tente salvar o dia adotando uma visão
híbrida: que não há devir no mundo físico, mas que há um devir real no reino
mental da experiência. Eventos mentais se tornam, mas eventos físicos não.
É fácil mostrar, no entanto, que tal visão leva ao que Milic Capek chama
de “dualismo absurdo” de “dois reinos totalmente díspares cuja correlação se
torna completamente ininteligível”.296 Por exemplo, por que tenho a “consci-
ência do agora” do tempo t1 em vez de t2? Todos os estados físicos do cérebro
em t1 e t2 nunca mudam, mas minha consciência do agora muda e está locali-
zada de maneira única. Por que existe uma consciência privilegiada do agora?
O defensor do tempo dinâmico tem uma resposta pronta: porque apenas os es-
tados físicos em t1 realmente existem. Mas para o teórico do tempo estático é
inexplicável por que existe uma consciência do agora. Depois, há o problema
da ordem temporal. Em uma visão estática do tempo, não há razão para que a
consciência do agora ocorra em uma ordem específica. Não há razão para que
minha consciência do agora não deva pular a esmo entre todos os momentos
em que existo. Ou considere o problema da direção do tempo. Por que o devir
temporal no reino mental ocorre apenas em uma direção, em vez de na dire-
ção oposta ou em ambas? Ou o problema da intersubjetividade: por que todos
nós experimentamos a série de eventos físicos na mesma ordem e direção? De
fato, por que compartilhamos o mesmo agora? Todas essas questões tornam-
se irrespondíveis na visão de que os eventos mentais se tornam, enquanto os
eventos físicos não. Mas essas perguntas desaparecem (ou são facilmente res-
pondidas) se os eventos mentais e físicos se juntam.
Em todo caso, de nada servirá ao defensor da atemporalidade divina adotar
tal visão híbrida. Pois ainda haverá fatos tensos e devir temporal com respeito
ao reino mental, e assim os argumentos para a temporalidade divina baseados
na realidade de fatos temporais e devir temporal passam com sucesso.297
Então agora considere a premissa (3). Suponha que o teórico do tempo es-
tático diga que o próprio vir-a-ser dos eventos mentais é dependente da men-
te. Nesta visão, os próprios eventos mentais são encadeados em uma série
temporal e são todos igualmente reais. Minha consciência agora de ontem e
amanhã é tão real quanto minha consciência agora de hoje. A experiência do
devir sucessivo das experiências é ilusória. As experiências realmente não
vêm a ser e passam.

296296 Capek, Conceitos de Espaço e Tempo, XLVII. As objeções mal direcionadas de Frederick
Ferré, “Grünbaum on Temporal Becoming: A Critique,” International Philosophical Quarterly 12
(1972): 426-445, tornam-se sólidas quando dirigidas contra essa visão dualista.
297 Consulte o capítulo 3, páginas 88-109.
186
Um problema dessa visão é que ela vai contra a fenomenologia da consci-
ência do tempo. Nega que experimentamos o devir de nossas experiências.
Pois se tivermos tal experiência, devemos perguntar novamente se essa expe-
riência é dependente da mente ou não, e assim por diante. Para interromper
uma regressão infinita viciosa, o teórico do tempo estático deve negar que ex-
perimentamos o devir das experiências. Mas tal fenomenologia é patentemen-
te imprecisa. Como vimos,298 a chamada presentidade da experiência é um
dado fundamental que o defensor do tempo estático deve explicar.
Ainda mais fundamentalmente, no entanto, a posição de que o devir men-
tal é ilusório é incoerente. Sem rodeios, mesmo a ilusão de vir a ser implica
em vir a ser. O devir não pode ser mera ilusão ou aparência porque uma ilu-
são ou aparência de devir envolve o devir. Um filósofo idealista pode consis-
tentemente sustentar que o espaço é ilusório, pois uma ilusão de espaço não é
em si espacial. Mas uma ilusão de tempo é em si uma experiência temporal.
Uma pessoa que tem uma experiência supostamente ilusória de vir-a-ser está
experimentando o vir-a-ser de suas experiências, e essa experiência é em si
um fluxo de experiência. A mudança não pode ser totalmente ilusória, pois a
ilusão da mudança é uma ilusão mutável. Assim, a ideia de que o devir tem-
poral é totalmente ilusório e irreal é auto-refutável.
A concepção estática do tempo requer a dependência mental do vir a ser, a
fim de explicar nossa experiência do tempo como passado, presente e futuro e
como continuamente vir a ser. Uma vez que a própria realidade física não se
torna nem é tensa em tal visão, o devir e o tempo devem ser puramente subje-
tivos. Eles não existem independentemente das mentes. Mas a tese da depen-
dência mental do vir-a-ser é agora vista como profundamente incoerente, uma
vez que nossas vidas mentais envolvem o vir-a-ser nos conteúdos da consci-
ência. Esse devir no reino mental deve ser considerado totalmente ilusório pe-
lo defensor do tempo estático, para que ele não admita a realidade objetiva do
tempo e do devir e se veja sobrecarregado com um dualismo insustentável.
Mas a posição de que o devir é totalmente ilusório é auto-refutável, uma vez
que tal ilusão em si envolve o devir. Assim, a concepção estática do tempo
deve ser fatalmente falha.

3. O problema da mudança intrínseca

EXPOSIÇÃO
Em nossa discussão sobre o Paradoxo de McTaggart, tocamos brevemente no
problema da mudança intrínseca.299 O problema colocado pela mudança in-
trínseca, será lembrado, é como algo pode permanecer auto-idêntico se tiver
propriedades diferentes em momentos diferentes.

298 Consulte o capítulo 4, páginas 133-136.


299 Ver capítulo 4, páginas 148-149; cf. página 87.
187
A solução do proponente do tempo dinâmico é levar o tempo a sério e ne-
gar que qualquer objeto tenha (tempo presente) propriedades diferentes em
momentos diferentes. Uma vez que existe apenas o tempo presente, um objeto
possui apenas as propriedades que possui atualmente, e pode-se sempre tornar
o tempo referido por “o tempo presente” curto o suficiente para que o objeto
não experimente nenhuma mudança de propriedades intrínsecas durante esse
tempo. Na visão presentista, as coisas existem totalmente em um tempo e
perduram através do tempo até tempos posteriores. Essa solução para o pro-
blema da mudança intrínseca é conhecida como endurantismo.
A solução do defensor do tempo estático é tipicamente negar que as coisas
existem totalmente em um tempo e afirmar, em vez disso, que os objetos tri-
dimensionais que aparecem para nós são, na realidade, objetos quadridimen-
sionais estendidos no tempo e no espaço. O objeto tridimensional que vemos
é apenas uma fatia ou parte de um objeto quadridimensional maior. As coisas,
portanto, têm partes espaço-temporais tridimensionais. Por exemplo, o Jimmy
Carter que vemos é apenas uma parte do Jimmy Carter quadridimensional. A
mudança intrínseca é entendida como um objeto quadridimensional com par-
tes tridimensionais com propriedades diferentes. Assim, Jimmy Carter hoje
não é o mesmo homem que já foi presidente. Pois ambos são partes do Carter
quadridimensional e obviamente não são a mesma parte. Assim, as partes es-
paço-temporais de um objeto quadridimensional não são idênticas, pois são
partes diferentes e, portanto, podem ter propriedades diferentes. Mas o objeto
quadridimensional geral nunca sofre mudança intrínseca. Apenas tem partes
com propriedades diferentes. Assim como um objeto tridimensional pode ser
redondo em uma extremidade e plano na outra, um objeto quadridimensional
pode ter partes que diferem em suas propriedades. Assim, nem os objetos
quadridimensionais nem suas partes perduram no tempo, pois o tempo é uma
de suas dimensões. A fim de caracterizar a maneira como os objetos quadri-
dimensionais são estendidos no tempo, os filósofos disseram que tais objetos
“perduram”. Conseqüentemente, essa solução para a mudança intrínseca é
chamada de perdurantismo.
O perdurantismo obviamente pressupõe uma visão estática do tempo. Mas
um defensor do tempo estático deve ser um perdurantista? Ele poderia abraçar
o realismo do espaço-tempo e ainda conceber objetos como duradouros atra-
vés do tempo, tendo partes espaciais, mas não espaço-temporais?
Parece que o endurantismo não é uma opção para o teórico do tempo está-
tico.300 Pois se ele abraçar o endurantismo, ele ficará sem nenhuma solução
viável para o problema da mudança intrínseca. Ele não pode mais sustentar
que a mudança intrínseca são as diferentes partes espaço-temporais de um ob-
jeto possuindo diferentes propriedades, pois o endurantismo nega que os obje-

300 Para uma boa discussão, veja William R. Carter e Scott Hestevold, “On Passage and Persisten-
ce,” American Philosophical Quarterly 31 (1994): 269-283.
188
tos tenham partes espaço-temporais. Um objeto existente em t1 e t2 é o mesmo
objeto, não duas partes de um superobjeto maior e estendido. Mas como pode
ser o mesmo objeto em t1 e t2 se tem propriedades diferentes em t1 e t2? Para
que dois objetos sejam idênticos, eles devem ter todas as mesmas proprieda-
des. O teórico do tempo dinâmico escapa do problema porque ele nega que t1
e t2 existam. Se t1 estiver presente, então o único objeto que existe é o objeto
em t1. Mas o teórico do tempo estático está preso à realidade igual de t1 e t2 e,
portanto, com os objetos existentes nesses momentos. Visto que os objetos
nesses respectivos tempos não são idênticos, segue-se que as coisas não du-
ram afinal, mas apenas existem por um instante; a mudança é uma ilusão. As-
sim, o teórico do tempo estático, se quiser afirmar a realidade da mudança in-
trínseca, deve abraçar o perdurantismo.301
O perdurantismo é, no entanto, uma doutrina controversa cercada de difi-
culdades. Assim, o teórico do tempo dinâmico pode argumentar

1. Se uma concepção estática do tempo está correta, então a doutrina do perdu-


rantismo é verdadeira.

2. A doutrina do perdurantismo não é verdadeira.

3. Portanto, a concepção estática do tempo não é correta.

Já vimos a justificativa para a premissa (1). Resta saber quais objeções podem
ser levantadas à doutrina do perdurantismo.

CRÍTICA
Alguns filósofos duvidam que a doutrina do perdurantismo possa ser formu-
lada de forma coerente. Existe um perigo real de circularidade: um objeto du-
radouro é definido como uma coleção de partes espaço-temporais; mas uma
parte espaço-temporal é então definida como um pedaço de um objeto dura-
douro. Como essas definições são circulares, elas não nos dão nenhuma com-
preensão do que realmente é um objeto duradouro ou uma parte espaço-
temporal. Este problema tem levado alguns perdurantistas a extremos deses-
perados. Mark Heller, um proeminente perdurantista que leciona na Southern
Methodist University, por exemplo, define um objeto físico simplesmente
como o conteúdo material de uma região do espaço-tempo.302 Mas esta é uma
visão bizarra de objetos físicos, pois implica que o conteúdo material da regi-
ão do espaço-tempo ocupada por parte do meu braço esquerdo e manga da

301 Alguns teóricos do tempo estático tentaram encontrar uma alternativa no que é chamado de
adverbialismo. Para uma crítica efetiva dessa doutrina, veja Trenton Merricks, “Endurance and In-
discernibility,” Journal of Philosophy 91 (1994): 165-184.
302 Mark Heller, “Partes Temporais de Objetos de Quatro Dimensões,” Estudos Filosóficos 46
(1984): 325.
189
camisa, parte da minha mesa e uma quantidade do ar adjacente constitui um
objeto físico! Se dissermos que os limites de um objeto quadridimensional
são fixados pelos limites espaciais de suas partes tridimensionais, então nos
deparamos com a difícil questão de saber quais objetos tridimensionais com-
põem o todo quadridimensional. Lembre-se que, no perdurantismo, não esta-
mos lidando com o mesmo objeto tridimensional que perdura no tempo; em
vez disso, estamos reunindo em um todo quadridimensional objetos inteira-
mente distintos e diversos - mas então como sabemos quais se combinam para
formar um todo duradouro? Como todos os objetos tridimensionais são não
idênticos, parece se tornar arbitrário. Essa situação levou alguns perdurantis-
tas, como Michael Jubien, a defender a doutrina ainda mais radical do con-
vencionalismo de objetos: a visão de que nenhum objeto físico existe objeti-
vamente. De acordo com Jubien, realmente não há coisas - há apenas “coisas”
espalhadas no espaço-tempo, e nós as dividimos de acordo com as conven-
ções humanas em diferentes objetos. 303 Heller também passou a abraçar o
convencionalismo, chegando a afirmar que os objetos que chamamos de “pes-
soas” são meramente convencionais.304
O convencionalismo é um preço extraordinariamente alto a pagar pelo
perdurantismo. O próprio Heller confessa ficar um tanto envergonhado com
as “piadas que as pessoas não conseguem evitar quando se deparam com al-
guém que afirma que não há pessoas”.305 Pior ainda, o convencionalismo pa-
rece ser incoerente. Pois, de acordo com Heller, o convencionalismo afirma
que (i) as convenções são feitas por pessoas, (ii) as próprias pessoas são con-
vencionais e (iii) os objetos convencionais realmente não existem!306 Heller
tenta escapar dessa incoerência admitindo que muitas de suas próprias decla-
rações são, estritamente falando, falsas; mas ele não faz nada, até onde posso
ver, para modificar as afirmações (i)-(iii) ou para remover a incoerência. As-
sim, o convencionalismo parece um conselho de desespero.
Talvez esses problemas de formulação de uma doutrina coerente do perdu-
rantismo possam ser superados. Podemos deixar essa tarefa para os perduran-
tistas. Pois o perdurantismo enfrenta formidáveis objeções em bases total-
mente diferentes.
1. A explicação do perdurantismo para a mudança intrínseca é implausí-
vel. O perdurantismo é a solução do teórico do tempo estático para o proble-
ma da mudança intrínseca. Mas é evidente que de acordo com o perdurantis-
mo simplesmente não há mudança intrínseca. As partes espaço-temporais de
um objeto nunca mudam, nem o próprio hiperobjeto muda. A mudança é ape-

303 Michael Jubien, Ontologia, Modalidade e a Falácia da Referência (Cambridge: Cambridge


University Press, 1993), 1.
304 Mark Heller, The Ontology of Physical Objects: Four-Dimensional Hunks of Matter (Cam-
bridge: Cambridge University Press, 1990), 23.
305 Ibid., 111.
306 Ibid., 66.
190
nas partes diferentes com propriedades diferentes. Como essas partes são ob-
jetos distintos, nada muda. Assim, a mudança é realmente uma ilusão.
Esta é uma doutrina estranha, para dizer o mínimo. Isso implica que,
quando um objeto parece mudar, o que realmente vemos é uma sucessão de
objetos bastante distintos e diferentes um após o outro. Um crítico reagiu a is-
so dizendo:

isso me parece uma metafísica maluca. . . . se eu tive exatamente um pedaço de


giz na minha mão na última hora, então há algo na minha mão. . . que não es-
tava em minhas mãos três minutos atrás e, de fato, [é] tal que nenhuma parte
dele estava em minhas mãos três minutos atrás. Enquanto seguro o pedaço de
giz em minha mão, coisas novas, giz novo continuam constantemente surgindo
ex nihilo. Isso me parece obviamente falso.307

Heller tenta mitigar a aparente loucura do perdurantismo negando que o novo


giz venha a existir ex nihilo (do nada).308 Na visão de Heller, toda a região do
espaço-tempo ocupada pelo giz existe, e nós apenas experimentamos porções
dela sucessivamente. Essa resposta ajuda, penso eu, a aliviar a acusação de
criação ex nihilo. Mas não contribui em nada para qualificar a conclusão de
que o que tenho em minhas mãos é um objeto totalmente diferente do que es-
tava segurando um segundo atrás. O pedaço de giz mais curto que agora segu-
ro não é o resto de um pedaço mais longo que segurei antes; eles são objetos
totalmente distintos. Isso certamente parece implausível.
Heller também tenta virar o jogo contra o endurantista. Ele toma como
trampolim a crítica do filósofo de Notre Dame, Peter van Inwagen, à chamada
Doutrina das Partes Independentes Arbitrárias.309 Esta doutrina afirma que se
uma região do espaço é ocupada por um objeto material, então o conteúdo
material de qualquer sub-região desse espaço também constitui um objeto
material. Essa doutrina implicaria que a matéria que compreende meu dedão
do pé, meu lado direito e uma faixa intermediária é um objeto material (exa-
tamente o que Heller pensa, como vimos!). Van Inwagen apresenta um argu-
mento engenhoso contra a Doutrina das Partes Independentes Arbitrárias. Ele
diz que a doutrina deve ser falsa porque implica necessariamente que é im-
possível para qualquer objeto material perder uma de suas partes, o que obvi-
amente é falso. Ele argumenta da seguinte forma: Imagine algum objeto que
tenha uma parte não vital para sua existência continuada (por exemplo, eu e
um de meus rins). De acordo com a Doutrina das Partes Independentes Arbi-
trárias, existe neste caso outro objeto além de mim que é composto por mim

307 Judith Jarvis Thomsen, “Parthood and Identity over Time,” Journal of Philosophy 80 (1983):
213.
308 Heller, “Temporal Parts,” 332.
309 Ver Peter van Inwagen, “The Doctrine of Arbitrary Undetached Parts,” Pacific Philosophical
Quarterly 62 (1981): 123-126.
191
menos meu rim. Ora, o objeto todo obviamente não é idêntico ao suposto ob-
jeto que é o objeto todo menos a parte. Pois o objeto inteiro e esse objeto di-
minuído sem a parte não têm exatamente o mesmo tamanho ou constituintes.
Suponha, então, que todo o objeto realmente perca a parte (eu doo um rim pa-
ra transplante). Uma vez que a parte não é essencial para a continuação da
existência do objeto, o objeto ainda existe depois de perder a parte (eu sobre-
vivo à operação). Agora o objeto original é idêntico ao objeto diminuído. Mas
este cenário viola o Princípio da Transitividade da Identidade: Se x=y=z, en-
tão x=z. A melhor maneira de sair dessa confusão, aconselha van Inwagen, é
negar a Doutrina das Partes Arbitrárias Independentes. Antes que o objeto
perca sua parte, simplesmente não existe tal objeto como o objeto diminuído.
Existe o objeto inteiro, e o alegado objeto diminuído é uma invenção da ima-
ginação.
Heller acha que a solução de van Inwagen para o problema é implausível.
Em vez disso, ele afirma que uma vez que um objeto perdeu sua parte, ele não
é mais idêntico ao objeto original. Existem dois objetos - o objeto inteiro e o
objeto diminuído - e o objeto inteiro simplesmente deixa de existir. A solução
de Heller é apenas uma rejeição da resistência. Na opinião dele, não sobrevivi
à operação de transplante de rim. Não há mudança intrínseca de objetos. Vis-
to que ele considera implausível a negação endurantista da Doutrina das Par-
tes Independentes Arbitrárias, ele toma isso como evidência para o perduran-
tismo.
Mas o raciocínio de Heller é certamente perverso! Parece muito mais ób-
vio que alguém pode (e sobrevive) a uma operação de transplante de rim do
que a existência de partes arbitrárias não destacadas. O perdurantismo de Hel-
ler envolve a Doutrina das Partes Independentes Arbitrárias. Tal visão não
apenas nega a realidade da mudança intrínseca, mas também resulta na exis-
tência de todos os tipos de pseudo-objetos, como vimos. Assim, em minha
opinião, longe de tornar o perdurantismo mais plausível, a garantia de tais
pseudo-objetos o torna ainda mais incrível. No mínimo, a negação endurantis-
ta da Doutrina das Partes Independentes Arbitrárias dificilmente conta contra
o endurantismo, como pensa Heller.
Assim, parece-me que ao negar a realidade da mudança intrínseca, o per-
durantismo nos apresenta uma visão implausível da mudança.
2. O perdurantismo vai contra a fenomenologia da consciência pessoal.
Uma das características mais estranhas do perdurantismo é seu relato de pes-
soas e identidade pessoal. Na visão perdurantista, as pessoas não são o que
normalmente pensamos que sejam: indivíduos autoconscientes que agem e
reagem com outras coisas no espaço e no tempo. Tais indivíduos são, na visão
perdurantista, apenas partes espaço-temporais ou estágios de pessoas, que são
realmente objetos quadridimensionais. Como tal, as pessoas não são auto-
conscientes e não têm inteligência, volição, emoções, interações, agência,
192
responsabilidade moral, apreciação estética, na verdade, praticamente ne-
nhuma das propriedades que normalmente associamos às pessoas. As pessoas,
nessa visão, são objetos quadridimensionais que são entidades imutáveis e
não conscientes.
Mas certamente tal visão é absurda. Não consigo imaginar nenhum indiví-
duo são que diria, se questionado, que ele ou ela não é uma pessoa. No fenô-
meno da autoconsciência, imediatamente nos conhecemos como pessoas. Por
que alguém iria querer abraçar uma solução tão bizarra para o problema da
mudança intrínseca como aquela que me obriga a negar que eu, como um in-
divíduo autoconsciente, sou uma pessoa?
Agora, talvez o perdurantista possa revisar sua visão de modo que sejamos
de fato pessoas, e o objeto quadridimensional seja uma hiperpessoa ou uma
metapessoa ou o que quer que seja. Mas tal revisão causaria problemas intra-
táveis para a identidade pessoal. Uma vez que as partes espaço-temporais são
elas próprias objetos distintos, segue-se que uma meta-pessoa é composta de
uma série de pessoas distintas! Mas devo seriamente acreditar que neste se-
gundo não sou a mesma pessoa que estava aqui um segundo atrás, que minhas
memórias estão realmente lembrando as experiências de outra pessoa, que
minha consciência da continuidade pessoal de um momento para o outro é
uma ilusão? Parece loucura acreditar nessas coisas.
Considere mais uma vez o problema da mudança intrínseca. O perduran-
tismo nega que qualquer objeto passe por uma mudança intrínseca. Mas tenho
todas as razões para acreditar que há pelo menos uma coisa que perdura por
meio da mudança intrínseca, ou seja, eu mesmo. Eu existia há um segundo e,
apesar das inúmeras mudanças que ocorreram em mim, ainda existo agora. O
endurantismo, ao levar o tempo a sério, permite a preservação da identidade
pessoal ao longo do tempo. Mas o perdurantismo nos obriga a dizer que não
existi um segundo atrás, nem perdurarei por mais um momento.
3. O perdurantismo é incompatível com responsabilidade moral, louvor e
censura. Uma vez que uma pessoa é concebida como um objeto quadridimen-
sional inconsciente, torna-se absurdo tratar tal objeto como um agente moral.
O perdurantista pode tentar evitar essa conclusão indesejável insistindo em
que as partes ou estágios espaço-temporais das pessoas são agentes morais.
Mas então torna-se impossível responsabilizar um estágio de pessoa pelo que
outro estágio de pessoa fez. Como pode um estágio de pessoa ser culpado e
punido pelo que um estágio de pessoa totalmente distinto e diferente fez? Por
que eu deveria ser punido por seus crimes? Da mesma forma, como pode um
elogio moral ser dado a um estágio de pessoa pelo que algum outro estágio de
pessoa não mais existente fez? Por que eu, que nada fiz, deveria receber o
crédito pelo heroísmo de algum outro estágio de pessoa?
Visto que a responsabilidade moral é incompatível com o perdurantismo e
temos mais razão para afirmar a primeira do que a segunda, devemos rejeitar
193
o perdurantismo. Este argumento deve ter um peso especial para o teísta, pois
ele afirma não apenas que as pessoas são agentes morais responsáveis, mas
também que Deus é justo ao responsabilizá-los e é Ele mesmo um agente vir-
tuoso que deve ser louvado por Seus atos graciosos.
4. O perdurantismo implica uma visão implausível das propriedades es-
senciais. Mais uma vez, o engenhoso Van Inwagen desenvolveu um poderoso
argumento contra o perdurantismo, que é análogo à sua objeção à Doutrina
das Partes Independentes Arbitrárias.310 Ele nos convida a considerar o filóso-
fo francês Descartes como um objeto quadridimensional que durou de 1596 a
1650. A extensão temporal de Descartes não é essencial para ele: ele pode ter
morrido mais jovem ou vivido mais. Nesse caso, Descartes teria sido compos-
to de um conjunto diferente de partes temporais, um conjunto formado pela
subtração ou adição de algumas partes do ou ao conjunto de partes que ele ti-
nha. Chamemos a parte temporal de Descartes, que é toda ele, exceto o último
ano de sua vida, “Descartes diminuído”. Na visão perdurantista, Descartes e
Descartes-diminuído não são idênticos. Afinal, eles têm diferentes extensões
temporais e diferentes partes espaço-temporais. Ora, Descartes poderia ter
morrido um ano antes do que ele e, portanto, poderia não ter a parte temporal
que é o último ano de sua vida. Mas se Descartes tivesse morrido um ano an-
tes dele, então Descartes e Descartes-diminuído teriam sido idênticos. Mas se
Descartes e Descartes-diminuído pudessem ser idênticos, então existem duas
coisas não idênticas que poderiam ser a mesma coisa. Mas isso viola tanto o
Princípio da Transitividade da Identidade quanto o Princípio da Necessidade
da Identidade (se x=y, então necessariamente x=y). Portanto, Descartes não é
um objeto duradouro composto de partes temporais.
Uma maneira mais simples de provar o mesmo ponto é considerar a maior
parte temporal de Descartes, que é apenas todo o objeto quadridimensional
chamado Descartes. As partes temporais têm suas extensões essencialmente
(uma hora, por exemplo, não pode ser mais curta ou mais longa e ainda ser
uma hora). Assim, Descartes teve sua extensão temporal essencialmente. Mas
isso implica que Descartes não poderia ter vivido mais ou menos do que vi-
veu — o que obviamente é falso.
O que o perdurantista pode dizer em resposta a esse argumento? A reação
de Heller foi inconsistente. A princípio, ele mordeu a bala e afirmou que, co-
mo os objetos espaço-temporais têm seus limites essencialmente, Descartes
não poderia ter morrido um ano antes dele.311 Isso parece totalmente implau-
sível, mas Heller insiste que não temos escolha, já que o endurantismo é
comprovadamente errado. Seu argumento contra o endurantismo é que ele é
especialmente vulnerável aos antigos paradoxos gregos conhecidos como so-
rites. Eram quebra-cabeças tipicamente lidando com relações entre um todo e

310 Ibid., 133-137; idem, “Four-Dimensional Objects,” Noûs 24 (1990): 252-254.


311 Heller, Ontology of Physical Objects, 28.
194
suas partes. Por exemplo, quantos bits de um objeto podem ser removidos an-
tes que ele deixe de ser aquele objeto? Heller sustenta que o endurantismo
não pode dar uma boa resposta a tais paradoxos sorites.
O problema com esta resposta de Heller é que os mesmos paradoxos sori-
tes podem ser aplicados a um objeto quadridimensional como a um objeto tri-
dimensional. Quantos bits espaço-temporais poderiam ser removidos de um
objeto quadridimensional antes que ele deixasse de ser esse objeto? A manei-
ra como Heller evita esse problema é afirmando que os objetos quadridimen-
sionais têm essencialmente seus limites espaço-temporais. Mas o tridimensio-
nalista poderia com igual justificação dizer que os objetos tridimensionais
têm seus limites espaciais essencialmente. Assim, não é o perdurantismo que
faz o trabalho de Heller para evitar os paradoxos sorites, mas uma doutrina
bastante distinta que é independente do número e tipo de dimensões que uma
coisa tem.312 Em qualquer caso, também existem soluções endurantistas me-
nos radicais disponíveis para os paradoxos sorites.313
Em uma resposta posterior, Heller nega que, de acordo com o perduran-
tismo, uma coisa tenha essencialmente seus limites espaço-temporais.314 Ele
agora sustenta que a identidade de uma coisa pode ser fixada, não por seus
limites, mas por algum princípio individualizador de unidade. Assim, uma
coisa poderia ter diferentes limites espaço-temporais e permanecer a mesma
coisa. A ideia é que Descartes poderia ter tido uma extensão temporal diferen-
te da que tem e ainda assim ser Descartes.
Nessa visão revisada, uma parte temporal não é identificada por sua exten-
são, mas por algum outro princípio. Por exemplo, se Philip estava bêbado, en-
tão podemos falar de sua parte espaço-temporal embriagada. Se ele tivesse
bebido menos, sua parte bêbada teria sido mais curta. Isso não significa que
as horas durante as quais ele estava bêbado teriam diminuído para, digamos,
apenas trinta minutos cada. Em vez disso, significa, na visão de Heller, que a
parte espaço-temporal embriagada de Philip poderia ter sido mais curta por-
que sua identidade é determinada por sua embriaguez, não por sua extensão.
O problema para a visão de Heller torna-se evidente quando consideramos
uma declaração como: “Se Philip tivesse bebido menos, então sua parte bêba-
da não teria sido bêbada”. Esta afirmação parece ser verdadeira. A parte espa-
ço-temporal de Philip que está bêbada não poderia estar bêbada. Mas, na vi-
são de Heller, essa afirmação deve ser falsa, pois a embriaguez é uma das
condições de identidade da parte bêbada de Philip e, portanto, essencial para
ela. Então Heller tem que dizer que se Philip tivesse bebido menos, sua parte

312 O nome dessa doutrina é essencialismo mereológico.


313 Ver David S. Oderberg, The Metaphysics of Identity over Time (Nova York: St. Martin's Press,
1993), 166-173; Peter van Inwagen, Material Beings (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press,
1990), 91-105, 228-229.
314 Mark Heller, "Variedades de Four-Dimensionalism", Australasian Journal of Philosophy 71
(1993): 50-51.
195
bêbada não teria existido. Mas isso parece bizarro. Não é mais plausível que
sua parte bêbada fosse sóbria? Compare uma analogia espacial. Suponha que
digamos: “Se Philip tivesse usado um chapéu, seu rosto queimado de sol não
teria sido queimado de sol”. Naturalmente, entendemos que isso significa que
sua parte queimada pelo sol pode não ter a propriedade de ser queimada pelo
sol. Mas parece loucura dizer que isso significa que, se ele usasse um chapéu,
Philip não teria uma de suas partes espaciais, ou seja, seu rosto. Isso seria
afirmar que o rosto de Philip não pode estar pálido nem queimado de sol. Es-
tar pálido ou queimado de sol é sem dúvida uma propriedade acidental, não
essencial, do rosto de Philip. Da mesma forma, a embriaguez não é uma pro-
priedade essencial das partes espaço-temporais de Philip e, portanto, não per-
tence às suas condições de identidade, mas é uma propriedade acidental delas.
Em suma, as partes temporais devem ser identificadas por suas extensões, que
fixam seus limites. Mas então ficamos presos à visão implausível de que Des-
cartes não poderia ter vivido mais ou menos do que viveu.
A resposta de Jubien a van Inwagen é ainda mais desesperada. Como um
convencionalista de objetos, ele escaparia do argumento negando que exista
tal coisa referida pelo nome “Descartes”.315 Na visão de Jubien, dizer que al-
go é Descartes não é fazer uma afirmação de identidade. Em vez disso, é
afirmar que algumas “coisas” em uma certa região do espaço-tempo têm a
propriedade de ser Descartes. O fato de que Descartes poderia ter vivido mais
ou menos é interpretado como significando que outras quantidades de coisas
poderiam ter tido a propriedade de ser Descartes. Assim, não há nenhum ob-
jeto denotado por “Descartes”; há apenas algumas coisas com a propriedade
sendo Descartes, e alguma outra quantidade de coisas poderia ter tido essa
propriedade em seu lugar.
Tal visão de referência e identidade dificilmente se recomendará à maioria
dos filósofos como mais plausível do que as premissas do argumento de van
Inwagen. Exige que digamos que Descartes como tal não existe. Nem mesmo
o pedaço de matéria quadridimensional que tem a propriedade de ser Descar-
tes é Descartes. Mas isso parece loucura. Como algo poderia ter a propriedade
de ser Descartes sem ser Descartes? Além disso, essa visão exige que susten-
temos que as declarações de identidade são, na verdade, atribuições disfarça-
das de propriedades. Mas as declarações de identidade são necessárias, en-
quanto as atribuições de propriedade de Jubien não são. Além disso, exige
que digamos que qualquer coisa poderia ter a propriedade de ser Descartes.
Mas isso é possível? Eu poderia realmente ter sido Descartes? Meu gato po-
deria Muff? Como alguém poderia possuir a propriedade de ser Descartes a
menos que ele seja Descartes? Mas então tais atribuições de propriedade pres-
supõem declarações de identidade.

315 Jubien, Ontology, 35-36.


196
O fato de que os perdurantistas são levados a tais expedientes desespera-
dos para evitar o argumento de van Inwagen apenas atesta sua solidez e a
plausibilidade de sua conclusão. Objetos não perduram.
Por todas essas razões, o perdurantismo é uma doutrina extremamente im-
plausível - certamente, pelo menos, menos plausível do que seu concorrente,
o endurantismo. Mas como uma teoria estática do tempo implica a doutrina
do perdurantismo, a concepção estática do tempo é, portanto, igualmente im-
plausível, totalmente à parte de seus outros problemas.

4. Creatio ex Nihilo

EXPOSIÇÃO
Os pensadores cristãos devem avaliar qualquer posição não apenas filosófica
e cientificamente, mas também teologicamente. Uma posição que é filosofi-
camente e cientificamente defensável, mas que é teologicamente incompatível
com a doutrina cristã é assim exposta como falsa. Assim, as objeções teológi-
cas às cosmovisões metafísicas devem ser levadas muito a sério.
A concepção estática do tempo parece ser teologicamente problemática
porque compromete significativamente a doutrina bíblica da creatio ex nihilo
(criação do nada). Assim, o proponente de uma concepção dinâmica do tempo
pode argumentar:

1. Se a concepção estática do tempo estiver correta, uma doutrina robusta da


creatio ex nihilo não é verdadeira.

2. Uma doutrina robusta de creatio ex nihilo é verdadeira.

3. Portanto, a concepção estática do tempo não é correta.

CRÍTICA
O teísta cristão está comprometido com uma doutrina robusta de creatio ex
nihilo e, portanto, aceita a premissa (2). A Bíblia começa com as palavras:
"No princípio criou Deus os céus e a terra" (Gn 1:1). Assim, com majestosa
simplicidade, o autor do capítulo inicial do Gênesis diferenciou seu ponto de
vista não apenas daquele dos antigos mitos da criação dos vizinhos de Israel,
mas também efetivamente do panteísmo, panenteísmo e politeísmo. Para o
autor de Gênesis 1, nenhum material preexistente parece ser presumido, ne-
nhum deus guerreiro ou dragão primordial está presente - apenas Deus, de
quem se diz "criar" (bani', uma palavra usada apenas com Deus como sujeito
e que não pressupõe um substrato material) "os céus e a terra" (et hassamayim
we et ha ares, expressão hebraica para a totalidade do mundo ou, mais sim-
plesmente, o universo). Além disso, esse ato de criação ocorreu "no princí-
pio" (bere sit, usado aqui como em Isaías 46:10 para indicar um começo ab-
197
soluto). O autor, assim, nos dá a entender que o universo teve uma origem
temporal e, portanto, implica creatio ex nihilo no sentido temporal de que
Deus trouxe o universo à existência sem uma causa material em algum ponto
do passado finito.316
Autores bíblicos posteriores entenderam o relato da criação em Gênesis.317
A doutrina da creatio ex nihilo também está implícita em vários lugares na li-
teratura judaica extrabíblica primitiva.318 E os Padres da Igreja, embora for-
temente influenciados pelo pensamento grego, cravaram seus calcanhares no
que diz respeito à doutrina da criação, insistindo firmemente, com poucas ex-
ceções, na criação temporal do universo ex nihilo em oposição à eternidade da
matéria.319 Uma tradição de argumentação robusta contra a eternidade passa-
da do mundo e a favor da creatio ex nihilo, proveniente do teólogo cristão
alexandrino João Filopono, continuou por séculos no pensamento islâmico,
judeu e cristão.320 Em 1215, a Igreja Católica promulgou a creatio temporal
ex nihilo como doutrina oficial da igreja no Quarto Concílio de Latrão, decla-
rando que Deus é “Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis, . . . que,
por Seu poder onipotente, desde o início dos tempos criou ambas as ordens da
mesma maneira a partir do nada.” Esta declaração notável não apenas afirma
que Deus criou tudo extra se sem nenhuma causa material, mas até mesmo
que o próprio tempo teve um começo. A doutrina da criação está, portanto,
inerentemente ligada a considerações temporais e implica que Deus trouxe o
universo à existência em algum ponto do passado sem qualquer causa materi-
al antecedente ou contemporânea.

316 Sobre Gênesis 1:1 como uma cláusula independente que não é um mero título de capítulo, veja
Claus Westermann, Genesis 1–11, trans. John Scullion (Minneapolis: Augsburg, 1984), 97; John
Sailhamer, Genesis, Expositor’s Bible Commentary 2, ed. Frank Gaebelein (Grand Rapids, Michi-
gan: Zondervan, 1990), 21.
317 Veja, por exemplo, Prov. 8:27-29; cf. Obs. 104:5-9; também Is. 44:24; 45:18, 24; Obs. 33:9;
90:2; João 1:1-3; ROM. 4:17; 11:36; 1 Cor. 8:6; Colossenses 1:16, 17; hebr. 1:2-3; 11:3; Apocalip-
se 4:11.
318 Por exemplo, 2 Macabeus 7:28; 1QS 3:15; José e Aseneth 12:1-3; 2 Enoque 25:1ss; 26:1;
Odes de Salomão 16:18-19; 2 Baruque 21:4. Para discussão, veja Paul Copan, “Is Creatio ex nihilo
a Post-biblical Invention?: An Examination of Gerhard May’s Proposal,” Trinity Journal 17
(1996): 77-93.
319 A creatio ex nihilo é afirmada no Pastor de Hermas 1.6; 26.1 e as Constituições Apostólicas
8.12.6, 8; e por Tatian Oratio ad Graecos 5.3; cf.4.1ff; 12.1; Theophilus Ad Autolycum 1.4; 2.4, 10,
13; e Irineu Adversus haeresis 3.10.3. Para discussão, veja Gerhard May, Creatio ex nihilo: The
Doctrine of “Creation Out of Nothing” in Early Christian Thought, trad. A. S. Worrall (Edimbur-
go: T. & T. Clark, 1994); cf. Artigo de revisão do Copan na nota 87, acima.
320 Ver Richard Sorabji, Time, Creation and the Continuum (Ithaca, N.Y.: Cornell University
Press, 1983), 193-252; H. A. Wolfson, “Patristic Arguments against the Eternity of the World,”
Harvard Theological Review 59 (1966): 354-367; idem, The Philosophy of the Kalam (Cambridge,
Mass.: Harvard University Press, 1976); H. A. Davidson, Proofs for Eternity, Creation, and the
Existence of God in Medieval Islamic and Jewish Philosophy (Nova York: Oxford University
Press, 1987); Richard C. Dales, Medieval Discussions of the Eternity of the World, Studies in Intel-
lectual History 18 (Leiden: E. J. Brill, 1990).
198
Infelizmente, muitos teólogos contemporâneos demonstram um temor in-
decoroso em relação à afirmação bíblica da creatio ex nihilo. Afirmando que
“a criação está preocupada com a origem ontológica, não com o início tempo-
ral,”321 John Polkinghorne afirma, “A doutrina da criação não é uma afirma-
ção sobre o que Deus fez no passado para colocar as coisas em andamento; é
uma afirmação do que ele está fazendo no presente para manter o universo em
existência.322 Na verdade, no entanto, quase o oposto é o caso, biblicamente
falando. A criação na Bíblia quase sempre envolve a noção de um começo
temporal (como é evidente simplesmente pelos onipresentes verbos no passa-
do, em vez de no presente, com respeito à criação de Deus), e será preciso
procurar muito por passagens que apoiem a noção da contínua dependência
ontológica do universo da vontade sustentadora de Deus. Essas passagens es-
tão lá para serem encontradas (Hb 1:3); mas em toda parte somos confronta-
dos com a ideia de que em algum momento do passado Deus criou o mundo.
Depois de examinar os dados, George Hendry conclui que “Criação na lin-
guagem da Bíblia conota inquestionavelmente a origem . . . , trazer à existên-
cia algo que não existia anteriormente”.323 Uma doutrina robusta da criação,
portanto, envolve tanto a afirmação de que Deus trouxe o universo a partir do
nada em algum momento no passado finito quanto a afirmação de que Ele
posteriormente o sustenta existindo momento a momento.324
Agora, o teórico do tempo estático pode ingenuamente fazer apenas a se-
gunda afirmação. Para ele, creatio ex nihilo significa apenas que o mundo de-

321 John Polkinghorne, nota crítica do Cosmos como Criação, ed. Ted Peters, Expository Times
101 (1990): 317. De acordo com Polkinghorne, “Falar de Deus como Criador não é tentar respon-
der à pergunta Quem acendeu o papel azul do Big Bang? Falar dessa maneira pertence ao deísmo e
não à teologia cristã” (John Polkinghorne, “Cosmology and Creation”, discurso no Trinity Hall,
Cambridge, fotocópia sem data). “Há um consenso geral de que o Big Bang não é nada especial do
ponto de vista teológico. . . . A ideia de creatio ex nihilo afirma a total dependência do universo da
vontade sustentadora de seu Criador” (Polkinghorne, nota crítica do Cosmos como Criação, 317).
Se o Big Bang representa o momento da criação é, entretanto, irrelevante para o conteúdo concei-
tual da doutrina da creatio ex nihilo. A doutrina bíblica, como o deísmo, afirma um início temporal
do universo; além disso, os deístas não negavam de fato a conservação do mundo por Deus, mas
sim Sua ação sobrenatural no mundo.
322 Polkinghorne, “Cosmologia e Criação”. Assim também Langdon Gilkey, Criador do Céu e da
Terra (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1959); Ian Barbour, Questões em Ciência e Religião (Nova
York: Harper & Row, 1971), 384; Arthur Peacocke, Creation and the World of Science (Oxford:
Clarendon, 1979), 78-79. Essa doutrina diluída da criação é o legado do pai da teologia moderna F.
D. E. Schleiermacher. Veja seu The Christian Faith, 2d ed., ed. H. R. Mackintosh e J. S. Stewart
(Edimburgo: T. & T. Clark, 1928), sec. 36-41. Embora reconhecendo que a concepção bíblica da
criação envolve um começo temporal (seção 36.2), Schleiermacher sustentou que esse componente
da doutrina poderia ser suprimido com segurança em favor da dependência absoluta da criação de
Deus (seção 41). Ver comentários de Nelson Pike, God and Timelessness, Studies in Ethics and the
Philosophy of Religion (Nova York: Schocken, 1970), 107-110.
323 George S. Hendry, “Eclipse of Creation,” Theology Today 28 (1972): 420. Assim também Co-
pan, “Is Creatio ex nihilo a Post-biblical Invention?” 77-93.
324 Para saber mais sobre essa distinção, consulte William Lane Craig, “Creation and Conserva-
tion Once More,” Religious Studies 34 (1998): 177-188.
199
pende imediatamente de Deus para sua existência a cada momento. A afirma-
ção do teórico do tempo estático de que Deus criou o universo a partir do na-
da em algum momento no passado finito pode, na melhor das hipóteses, sig-
nificar que existe (sem tensão) um momento separado de qualquer outro mo-
mento por um intervalo finito de tempo e antes do qual não existe nenhum
momento de duração comparável e que tudo o que existe em qualquer mo-
mento, incluindo os próprios momentos, é sustentado sem tensão em ser ime-
diatamente por Deus. Tudo o que acrescenta à doutrina da dependência onto-
lógica é que o universo de blocos existente sem tensão tem uma borda frontal.
Tem um começo apenas no sentido de que uma medida tem um começo. Não
há no mundo real nenhum estado de coisas de Deus existindo sozinho sem o
universo espaço-tempo. Deus nunca realmente traz o universo à existência;
como um todo, coexiste intemporalmente com Ele.
Leftow, cuja teoria da eternidade divina envolve uma teoria estática do
tempo, admite isso. Ele escreve,

Portanto, se Deus é atemporal e existe um mundo ou tempo, não há fase de Sua


vida durante a qual Ele esteja sem mundo ou tempo ou ainda não tenha decidi-
do criá-los, mesmo que o mundo ou o tempo tenham um começo.
. . . Deus não precisa começar a fazer nada, então, para criar um mundo
com um começo. Essa ação que de perspectivas temporais é o tempo inicial de
Deus e o universo é na eternidade apenas a obtenção atemporal de uma depen-
dência causal ou relação de sustentação entre Deus e um mundo cujo tempo
tem um primeiro momento.
. . . na eternidade, Deus é imutável o Senhor: Ele coexiste intemporalmente
com Suas criaturas.325

Leftow nunca aborda a objeção teológica de que tal doutrina emasculada da


creatio ex nihilo não faz justiça aos dados bíblicos, que nos dão claramente a
entender que Deus e o universo não coexistem atemporalmente, mas que o
mundo real inclui um estado de coisas que é a existência de Deus sozinho
sem o universo. Normalmente, tal estado é descrito na linguagem comum dos
autores bíblicos como sendo obtido “antes” do início do mundo (João 17:24;
Efésios 1:4; 1 Pedro 1:20; cf. Mateus 13:35; 24 :21; 25:34; Lucas 11:50; Heb.
9:26; Apoc. 13:8; 17:8). Para citar novamente as palavras do salmista: “Antes
que os montes nascessem, ou que tu formasses a terra e o mundo, de eterni-
dade a eternidade, tu és Deus” (Salmos 90:2, KJV). A doxologia de Judas é
especialmente interessante: “ao único Deus . . . seja glória, majestade, domí-

325 Brian Leftow, Time and Eternity, Cornell Studies in Philosophy of Religion (Ithaca, N.Y.:
Cornell University Press, 1991), 290-291, 310, cf. 322, onde afirma que Deus está eternamente en-
carnado em Cristo. Cf. também 239, onde ele afirma que na eternidade os eventos são “congela-
dos” em uma série de posições temporais sem tempo. Veja também o capítulo de Yates sobre a cri-
ação atemporal em John C. Yates, The Timelessness of God (Lanham, Md.: University Press of
America, 1990), 131-163.
200
nio e autoridade, antes de todos os tempos, agora e para sempre” (Judas 25,
ênfase adicionada). Como essas expressões da linguagem comum devem ser
formuladas filosoficamente — a Bíblia não é, como Paul Helm nos lembra,
um livro de filosofia do qual uma doutrina da eternidade divina pode sim-
plesmente ser lida na superfície — será abordado no capítulo 6; mas sua in-
tenção é clara e devem ser levados a sério.326 A noção de que Deus e o uni-
verso coexistem atemporalmente em uma relação assimétrica de dependência
ontológica não é apenas estranha, mas realmente incompatível com a concep-
ção dos escritores bíblicos de creatio ex nihilo, de Deus existindo sozinho e
trazendo o mundo à existência a partir de nada.
Não apenas isso, mas a ideia de que Deus e a criação coexistem sem ten-
são parece negar o triunfo de Deus sobre o mal. Na teoria estática do tempo, o
mal nunca é realmente eliminado do mundo: ele existe tão firmemente como
sempre em seus vários locais no espaço-tempo, mesmo que esses locais sejam
todos anteriores a algum ponto no tempo cósmico (por exemplo, Julgamento
Dia). A criação nunca é realmente purgada do mal nesta visão; no máximo
pode-se dizer que o mal só infecta aquelas partes da criação que são anterio-
res a certos outros eventos. Mas a mancha é indelével. O que isso implica em
eventos como a crucificação e ressurreição de Cristo é muito preocupante.
Em certo sentido, Cristo está pendurado permanentemente na cruz, pelos ter-
ríveis eventos de a.d. 30 nunca desaparecem ou transpiram. A vitória da res-
surreição torna-se um triunfo vazio, pois as partes espaço-temporais de Jesus
que foram crucificadas e sepultadas permanecem moribundas e mortas e nun-
ca são ressuscitadas para uma nova vida. Não está claro como podemos dizer
com Paulo: “Tragada foi a morte pela vitória!” (1 Cor. 15:54) quando, em
uma teoria estática do tempo, a morte nunca é realmente eliminada.
Uma doutrina robusta da criação, então, envolve mais do que apenas a de-
pendência ontológica atemporal do mundo em relação a Deus. Envolve a
afirmação de que Deus faz com que o mundo venha a existir em algum mo-
mento t. Algo surge em um momento t se e somente se as três condições a se-
guir forem atendidas: (i) A coisa existe em t, (ii) t é a primeira vez em que a
coisa existe e (iii) a coisa existe em t é um fato tenso.327 O teórico do tempo
estático não pode afirmar que o mundo surgiu no primeiro momento de sua
existência e, portanto, não pode afirmar que Deus criou o mundo no sentido

326 A consideração da creatio ex nihilo levanta um ninho de questões intrigantes e difíceis: Deus
existia no tempo antes da criação do universo? A creatio ex nihilo implica a criação do próprio
tempo? A prioridade de Deus em relação ao tempo pode ser entendida de outra forma que não seja
cronológica? Tentarei abordar essas questões no próximo capítulo. Por enquanto, basta perceber
que as expressões dos escritores bíblicos sobre a existência e o planejamento de Deus “antes” da
criação significam claramente afirmar que, em certo sentido, Deus estava sozinho e então trouxe o
mundo à existência a partir do nada.
327 Se Deus pode recriar coisas, então teríamos que adicionar à condição (ii) “ou t é precedido por
um tempo no qual a coisa não existia”.
201
pleno da palavra “criar”. Parece-me, portanto, que uma concepção estática do
tempo é teologicamente inaceitável. Uma doutrina robusta da criação requer
uma teoria dinâmica do tempo.
Em conclusão, a concepção estática do tempo tem pouco a recomendá-la,
baseando-se principalmente em uma interpretação minkowskiana do espaço-
tempo da Teoria da Relatividade, uma interpretação que não temos nenhuma
obrigação de adotar. Por outro lado, a concepção estática do tempo enfrenta
dificuldades filosóficas e teológicas verdadeiramente formidáveis: “espaciali-
za” o tempo; dá uma explicação incoerente da experiência de vir a ser; sua
análise da mudança intrínseca implica a doutrina bizarra e multiplamente fa-
lha do perdurantismo; e emascula a doutrina bíblica da creatio ex nihilo.
Pesando os argumentos a favor e contra a concepção dinâmica ou estática
do tempo, respectivamente, parece que temos boas bases para acreditar no
que as pessoas intuitivamente sempre acreditaram: que o tempo é tenso e o
devir temporal é real. A concepção dinâmica do tempo está correta.

202
203
6

DEUS, TEMPO E CRIAÇÃO


NOSSO ESTUDO DE DEUS e o tempo estão quase completos. Examinamos
concepções rivais de tempo, o dinâmico versus o estático, e concluímos que o
tempo é dinâmico: fatos tensos e devires temporais são reais. Mas então de-
corre da atividade criativa e onisciência de Deus que, dada a existência de um
mundo temporal, Deus também é temporal. Deus literalmente existe agora.
Visto que Deus nunca começa a existir nem deixa de existir, segue-se que
Deus é onitemporal. Ele existe em todo tempo que existe; isto é, Ele perma-
nece por toda a eternidade. Isso pode parecer implicar que Deus existiu por
um tempo infinito no passado e existirá por um tempo infinito no futuro. Mas
e se o mundo temporal nem sempre existiu? De acordo com a doutrina cristã
da criação, o mundo não é infinito no passado, mas surgiu do nada há um
tempo finito. O próprio tempo também teve um começo? Deus existia lite-
ralmente antes da criação ou Ele é atemporal sem o mundo?

I. O tempo começou?

De acordo com a teoria cosmológica atual, o tempo e o espaço surgiram com


o Big Bang. O modelo padrão do universo em expansão prevê que no passado
o universo era mais denso do que é hoje. Isso tem implicações para a finitude
do tempo passado. Como explica o físico britânico P. C. W. Davies,

Se extrapolarmos essa previsão ao extremo, chegaremos a um ponto em que


todas as distâncias do universo se reduziram a zero. Uma singularidade cosmo-
lógica inicial, portanto, forma uma extremidade temporal passada para o uni-
verso. Não podemos continuar o raciocínio físico ou mesmo o conceito de es-
paço-tempo por meio de tal extremidade. Por esta razão, a maioria dos cosmó-
logos pensa na singularidade inicial como o começo do universo. Nessa visão,
o big bang representa o evento da criação, a criação não apenas de toda a maté-
ria e energia do universo, mas também do próprio espaço-tempo.328

Com tal compreensão, o universo não surgiu em um ponto em um espaço va-


zio previamente existente. Em vez disso, o próprio espaço e tempo surgiram
junto com o universo, o que implica a criação de absolutamente nada. Assim,

P. C. W. Davies, “Spacetime Singularities in Cosmology and Black Hole Evaporations”, em


328

The Study of Time III, ed. J. T. Fraser, N. Lawrence e D. Park (Berlin: Springer, 1978), 78-79.
204
Barrow e Tipler afirmam: “Nesta singularidade, o espaço e o tempo passaram
a existir; literalmente nada existia antes da singularidade, então, se o Universo
se originou em tal singularidade, teríamos verdadeiramente uma criação ex
nihilo.”329
Esta característica do modelo padrão do Big Bang pareceu especialmente
desconcertante para os cosmólogos de mentalidade filosófica, particularmente
aqueles com uma inclinação ateísta. Por exemplo, o astrofísico russo Andrei
Linde reconhece francamente o problema que o modelo padrão representa pa-
ra ele: “O aspecto mais difícil desse problema não é a existência da singulari-
dade em si, mas a questão do que existia antes da singularidade. . . . Esse pro-
blema está em algum lugar na fronteira entre a física e a metafísica”.330 A fim
de evitar esta questão, Linde, portanto, propôs um modelo inflacionário eter-
no do universo, segundo o qual nosso universo observável nasceu de um uni-
verso anterior, que nasceu de um universo ainda anterior, e assim por diante
ad infinitum. Mas em 1994 dois outros cosmólogos, Arvind Borde e Alexan-
der Vilenkin, mostraram que cenários inflacionários como o de Linde não po-
dem evitar uma singularidade inicial. Eles concluem: “Um espaço-tempo fisi-
camente razoável que está eternamente inflando para o futuro deve possuir
uma singularidade inicial. . . . O fato de os espaços-tempos inflacionários te-
rem passado de incompletos obriga a abordar a questão do que, se é que al-
guma coisa, veio antes?”331
Outros cosmólogos tentaram eliminar a singularidade inicial do espaço-
tempo introduzindo especulações sobre a gravidade quântica, como na famo-
sa teoria de Stephen Hawking. Nesses modelos, números imaginários são
atribuídos à variável tempo nas equações, o que tem o efeito de suprimir o
ponto singular. Mas, como o próprio Hawking reconhece, tais modelos no
“tempo imaginário” não são descrições realistas do universo, mas têm mero
valor instrumental.332 “Quando se volta ao tempo real em que vivemos”, ad-
mite Hawking, “ainda parece haver singularidades”. 333 De qualquer forma,
como enfatiza Barrow, tais modelos ainda envolvem um passado meramente
finito e, portanto, implicam o início do espaço e do tempo: “Esse tipo de uni-
verso quântico nem sempre existiu; ela surge exatamente como as cosmologi-
as clássicas poderiam, mas não começa em um Big Bang onde as quantidades
físicas são infinitas. . . .”334 Assim, o início dos tempos não é evitado.
329
John Barrow e Frank Tipler, The Anthropic Cosmological Principle (Oxford: Oxford University
Press, 1986), 442.
330
Andrei Linde, “The Inflationary Universe,” Reports on Progress in Physics 47 (1984): 976.
331
Arvind Borde e Alexander Vilenkin, “Eternal Inflation and the Initial Singularity,” Physical Re-
view Letters 72 (1994): 3305, 3307.
332
Stephen Hawking e Roger Penrose, The Nature of Space and Time (Princeton: Princeton Uni-
versity Press, 1996), 3-4, 121; cf. 53-55.
333
Stephen Hawking, Uma Breve História do Tempo: Do Big Bang aos Buracos Negros, com uma
introdução de Carl Sagan (Nova York: Bantam Books, 1988), 139.
334
John Barrow, Theories of Everything (Oxford: Clarendon, 1991), 68.
205
Então, hoje, nas palavras de Hawking, “quase todo mundo agora acredita
que o universo e o próprio tempo tiveram um começo no big bang”.335 Esse
consenso parece dar forte apoio à visão de que nem os eventos nem o tempo
existiam antes da criação. Como diz o físico David Park: “É enganosamente
fácil imaginar eventos antes do big bang. . . , mas na física não há como dar
sentido a essas imaginações.”336
A mosca na pomada, no entanto, é a frase de Park "em física". Pois costu-
mamos enfatizar ao longo deste estudo que o tempo, conforme desempenha
um papel na física, é, na melhor das hipóteses, uma medida de tempo, não o
próprio tempo. É perfeitamente coerente imaginar eventos não físicos anterio-
res ao Big Bang, sejam eventos mentais no fluxo de consciência de Deus ou
eventos em reinos angélicos criados por Deus antes do universo físico. No
máximo, então, a evidência física prova que o tempo físico teve um começo
no Big Bang, não que o próprio tempo começou assim. Para explorar essa
questão, teremos que recorrer a argumentos metafísicos, em vez de físicos.

1. Argumentos para a infinidade do passado

Que razões, então, podem ser dadas para pensar que o tempo passado é infini-
to? Vimos que Newton acreditava que o espaço e o tempo eram infinitos por-
que eram efeitos de um Deus onipresente e eterno.337 Newton assumiu que
Deus não pode existir atemporal e atemporalmente. Mas ele não deu nenhum
argumento para essa pressuposição. Vimos, ao contrário, que não há razão pa-
ra pensar que um ser pessoal não possa existir atemporalmente na ausência de
qualquer universo físico.338 Enquanto Deus existir imutavelmente, Ele pode,
na ausência de um mundo temporal, existir atemporalmente.
Existe, então, alguma razão não teológica para pensar que o tempo é infi-
nito? Richard Swinburne, da Universidade de Oxford, pensa assim.339 Ele ar-
gumenta que a cada instante é verdade que “Havia cisnes ou não havia cis-
nes”. Necessariamente, uma dessas alternativas é verdadeira. Mas qualquer
que seja a alternativa verdadeira, deve haver um passado naquele instante, já
que a afirmação está no passado. Assim, não pode haver um instante de tem-
po absolutamente primeiro. O tempo é ilimitado e, portanto, infinito.
Este argumento, no entanto, é multiplamente falho. Em primeiro lugar, na
melhor das hipóteses, tudo o que o argumento prova é que todo instante de
tempo é precedido por outro instante e que, portanto, não há primeiro instante
de tempo. Mas não haver um primeiro instante de tempo é perfeitamente
335
Hawking e Penrose, Nature of Space and Time, 20.
336
David Park, “The Beginning and End of Time in Physical Cosmology”, em The Study of Time
IV, ed. J. T. Fraser, N. Lawrence e D. Park (Berlin: Springer, 1981), 112-113.
337
Consulte o capítulo 2, páginas 45-46.
338
Consulte o capítulo 3, páginas 77-86.
339
Richard Swinburne, Espaço e Tempo, 2ª ed. (Nova York: St. Martin's Press, 1981), 172.
206
compatível com a finitude do passado. Compare a série de frações que con-
vergem para zero como um limite: . . . 1/8, 1/4, 1/2. Para qualquer fração que
você escolher, sempre haverá uma fração antes dela. Não há primeira fração
em tal série. No entanto, a distância percorrida por todas as frações ainda é fi-
nita. Se deixarmos cada fração representar um instante, podemos ver que, di-
gamos, no primeiro meio minuto, qualquer instante que você escolher é pre-
cedido por outro instante, mas o passado não é tão infinito - pelo contrário,
tem apenas trinta segundos de duração. Em suma, para que o tempo tenha um
começo, ele não precisa ter um ponto de partida. O tempo começa a existir
apenas no caso de haver algum intervalo finito de tempo que não seja prece-
dido por um intervalo de igual comprimento. Assim, se o tempo tivesse um
começo, haveria uma primeira hora, ou um primeiro minuto, ou um primeiro
segundo, mas não precisaria haver um primeiro instante.
Em segundo lugar, o argumento falha em qualquer caso em mostrar que
não pode haver um primeiro instante de tempo. Swinburne argumenta que a
verdade das declarações de tempo passado requer que haja um passado. Mas
especialistas em lógica de sentenças temporais mostraram que isso não é cor-
reto. Uma afirmação como “Havia cisnes” pode ser analisada logicamente
como afirmando: “É verdade que existem cisnes”. Tal afirmação implica um
passado. Mas uma afirmação negativa como “Não havia cisnes”, quando
afirmada no primeiro instante do tempo, não deve ser analisada como afir-
mando “Era o caso de não haver cisnes”, mas sim como afirmando “Não foi o
caso de haver cisnes.” Tal afirmação não implica um passado, pois nega que
tenha existido cisnes. Portanto, tal afirmação pode ser verdadeira em um pri-
meiro instante de tempo.
Assim, não vimos nenhuma boa razão para pensar que o passado é ou deve
ser infinito.

2. Argumentos para a Finitude do Passado

Existem boas razões para pensar que o passado é finito? Há uma longa tradi-
ção na filosofia ocidental de argumentos para a finitude do passado e, embora
a maioria dos filósofos hoje seja cética em relação a tais provas, parece-me
que alguns desses argumentos, pelo menos, são bastante plausíveis e que as
refutações padrão deles falham.340

A IMPOSSIBILIDADE DE UM INFINITO REAL

340
Ver William Lane Craig, The Kalam Cosmological Argument, Library of Philosophy and Reli-
gion (Londres: Macmillan, 1979); William Lane Craig e Quentin Smith, Teísmo, Ateísmo e Cosmo-
logia do Big Bang (Oxford: Clarendon, 1993).
207
Considere, por exemplo, o argumento baseado na impossibilidade da existên-
cia de um infinito real. Este argumento pode ser formulado da seguinte forma:

1. Um infinito real não pode existir.

2. Uma série sem começo de intervalos de tempo passados iguais é um infinito


real.

3. Portanto, uma série sem começo de intervalos de tempo passados iguais não
pode existir.

Mas se não pode haver uma série sem começo de intervalos de tempo passa-
dos iguais, então o tempo deve ter começado a existir.
Para entender esse argumento, vamos examinar cada passo individualmen-
te.
1. Um número realmente infinito de coisas não pode existir. Para entender
esse primeiro passo, precisamos entender o que é um infinito real. Há uma di-
ferença entre um infinito potencial e um infinito real. Um infinito potencial é
uma coleção que está aumentando em direção ao infinito como um limite,
mas nunca chega lá. Tal coleção é realmente indefinida, não infinita. Por
exemplo, qualquer distância finita pode ser subdividida em partes potencial-
mente infinitas. Você pode simplesmente continuar dividindo as partes ao
meio para sempre, mas nunca chegará a uma divisão “infinita” real ou chega-
rá a um número realmente infinito de partes. Em contraste, um infinito real é
uma coleção na qual o número de membros é realmente infinito. A coleção
não está crescendo em direção ao infinito; é infinito, é “completo”. Esse tipo
de infinito é usado na teoria dos conjuntos para designar conjuntos que pos-
suem um número infinito de membros, como {1, 2, 3 . . . }. Agora o argu-
mento é, não que um número potencialmente infinito de coisas não pode exis-
tir, mas que um número realmente infinito de coisas não pode existir. Pois se
um número realmente infinito de coisas pudesse existir, isso geraria todos os
tipos de absurdos.
Talvez a melhor maneira de trazer isso para casa seja por meio de uma
ilustração. Deixe-me usar um dos meus favoritos, Hilbert's Hotel, um produto
da mente do grande matemático alemão David Hilbert.341 Imaginemos primei-
ro um hotel com um número finito de quartos. Suponha, além disso, que to-
dos os quartos estejam cheios. Quando um novo hóspede chega pedindo um
quarto, o proprietário pede desculpas: “Desculpe, todos os quartos estão chei-
os”, e o novo hóspede é rejeitado. Mas agora imaginemos um hotel com um
número infinito de quartos e suponhamos mais uma vez que todos os quartos
estão ocupados. Não há um único quarto vago em todo o hotel infinito. Agora

341
A ilustração do Hilbert's Hotel é relatada em George Gamow, One, Two, Three, Infinity (Lon-
dres: Macmillan, 1946), 17
208
suponha que um novo hóspede apareça, pedindo um quarto. "Mas é claro!"
diz o proprietário, e ele imediatamente transfere a pessoa do quarto nº 1 para
o quarto nº 2, a pessoa do quarto nº 2 para o quarto nº 3, a pessoa do quarto nº
3 para o quarto nº 4 e assim por diante, até o infinito. Como resultado dessas
mudanças de quarto, o quarto nº 1 agora fica vago e o novo hóspede faz o
check-in com gratidão. Mas lembre-se: antes de ele chegar, todos os quartos
estavam cheios!
Igualmente curioso, segundo os matemáticos, agora não há mais pessoas
no hotel do que antes: o número é simplesmente infinito. Mas como pode ser
isso? O proprietário acabou de adicionar o nome do novo hóspede ao registro
e deu-lhe as chaves - como pode não haver mais uma pessoa no hotel do que
antes?
Mas a situação se torna ainda mais estranha. Pois suponha que uma infini-
dade de novos hóspedes apareça na recepção, pedindo quartos. "É claro é cla-
ro!" diz o proprietário, e passa a mudar a pessoa do quarto nº 1 para o quarto
nº 2, a pessoa do quarto nº 2 para o quarto nº 4, a pessoa do quarto nº 3 para o
quarto nº 6 e assim por diante até o infinito, sempre colocando cada ex-
ocupante no número do quarto duas vezes o seu. Como qualquer número na-
tural multiplicado por dois sempre é igual a um número par, todos os convi-
dados acabam em quartos de números pares. Como resultado, todos os quar-
tos ímpares ficam vagos e a infinidade de novos hóspedes é facilmente aco-
modada. E, no entanto, antes de eles chegarem, todos os quartos estavam
cheios! E novamente, estranhamente, o número de hóspedes no hotel é o
mesmo após a infinidade de novos hóspedes como antes, embora houvesse
tantos novos hóspedes quanto antigos hóspedes. Na verdade, o proprietário
poderia repetir esse processo infinitas vezes e, no entanto, nunca haveria uma
única pessoa a mais no hotel do que antes.
Mas o Hilbert's Hotel é ainda mais estranho do que o matemático alemão
fez parecer. Pois suponha que alguns dos convidados comecem a fazer check-
out. Suponha que o hóspede do quarto nº 1 saia. Não há agora uma pessoa a
menos no hotel? Não de acordo com os matemáticos - mas pergunte ao Hou-
sekeeping! Suponha que os hóspedes nos quartos #1, 3, 5 . . . Confira. Nesse
caso, um número infinito de pessoas deixou o hotel, mas, segundo os mate-
máticos, não há menos gente no hotel — mas não fale com o Housekeeping!
Na verdade, poderíamos ter todos os outros hóspedes saindo do hotel e repe-
tindo esse processo infinitas vezes, mas nunca haveria menos pessoas no ho-
tel.
Agora suponha que o proprietário não goste de ter um hotel meio vazio
(isso parece ruim para os negócios). Não importa! Ao mudar os ocupantes
como antes, mas na ordem inversa, ele transforma seu hotel meio vago em um
que está atolado até as guelras. Você pode pensar que, por meio dessas mano-
bras, o proprietário sempre poderia manter esse estranho hotel totalmente
209
ocupado. Mas você estaria errado. Pois suponha que as pessoas nos quartos
#4, 5, 6 . . . check-out. De uma só vez, o hotel ficaria virtualmente vazio, o
registro de hóspedes seria reduzido a três nomes e o infinito seria convertido
em finitude. E, no entanto, permaneceria verdadeiro que o mesmo número de
hóspedes fez check-out desta vez e quando os hóspedes dos quartos nº 1, 3, 5.
. . check-out! Alguém pode acreditar que tal hotel poderia existir na realida-
de?
Hilbert's Hotel é um absurdo. Como observou uma pessoa, se o Hilbert's
Hotel pudesse existir, teria que ter uma placa afixada do lado de fora: não há
vaga - hóspedes são bem-vindos. Os tipos de absurdos acima mostram que é
impossível que um número realmente infinito de coisas exista. Simplesmente
não há como evitar esses absurdos uma vez que admitimos a possibilidade da
existência de um infinito real. Os alunos às vezes reagem a absurdos como o
Hilbert's Hotel dizendo que realmente não entendemos a natureza do infinito
e, portanto, esses absurdos resultam. Mas essa atitude é simplesmente equivo-
cada. A teoria dos conjuntos infinitos é um ramo altamente desenvolvido e
bem compreendido da matemática, de modo que esses absurdos resultam pre-
cisamente porque entendemos a noção de uma coleção com um número real-
mente infinito de membros.
Os críticos levantaram várias objeções à premissa (1). Por exemplo, o filó-
sofo Wallace Matson objeta que (1) deve significar que um infinito real é lo-
gicamente impossível; mas é fácil mostrar que tal coleção é logicamente pos-
sível. Por exemplo, o conjunto de números negativos { . . . , -3, -2, -1} é uma
coleção realmente infinita sem primeiro membro.342 Da mesma forma, o filó-
sofo australiano Graham Oppy insiste que, porque a teoria dos conjuntos infi-
nitos é um sistema logicamente consistente, deve ser possível que um infinito
real exista.343
O erro desses pensadores está em não distinguir entre o que os filósofos
chamam de “possibilidade lógica estrita” e “possibilidade lógica ampla”. Al-
go é estritamente logicamente possível se não envolve uma contradição. Algo
pode ser estritamente logicamente possível, porém, sem ser capaz de existir
na realidade. Por exemplo, não há contradição lógica em afirmar: “Algo tem
uma forma, mas não um tamanho”, “Um evento ocorre antes de si mesmo” ou
“Algo surgiu sem uma causa”, mas todas essas afirmações são amplamente
plausíveis. logicamente impossível. A ampla possibilidade lógica é, portanto,
geralmente identificada com a possibilidade metafísica, isto é, com o que é
possível na realidade. Agora, a teoria dos conjuntos infinitos é estritamente

342
Wallace Matson, The Existence of God (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1965), 58-60.
Para discussão, veja William Lane Craig, “Wallace Matson and the Crude Cosmological Argu-
ment,” Australasian Journal of Philosophy 57 (1979): 167-170.
343
Graham Oppy, "Craig, Mackie e o argumento cosmológico Kalam", Estudos Religiosos 27
(1991): 193-195. Para discussão, veja William Lane Craig, “Graham Oppy on the Kalam Cosmo-
logical Argument,” Sophia 32 (1993): 1-11.
210
logicamente consistente, com seus axiomas e regras, mas isso não faz nada
para provar que tal sistema pode existir no mundo real. Este fato é especial-
mente evidente quando se trata de operações matemáticas como subtração e
divisão, que a aritmética transfinita deve proibir para manter a consistência
lógica. Embora possamos dar um tapa na mão do matemático que tenta tais
operações com números infinitos, não podemos, na realidade, impedir que as
pessoas façam o check-out de um Hilbert's Hotel com todos os absurdos que
o acompanham.
Deve-se observar também que mesmo a existência matemática do infinito
real não pode ser considerada um dado adquirido. Para a pequena, mas bri-
lhante, escola de matemáticos intuicionistas nega até mesmo infinidades ma-
temáticas. Na visão deles, a série de números é apenas potencialmente infini-
ta, não realmente infinita. Enquanto o intuicionismo permanecer uma posição
viável na filosofia da matemática, não se pode justificar os infinitos matemá-
ticos como contra-exemplos à premissa (1).
Alguns críticos afirmaram que mesmo a existência de um infinito poten-
cial implica a existência de um infinito real. Por exemplo, Rucker afirma que,
para que o intuicionista considere a série numérica como potencialmente infi-
nita por meio da operação de contagem, deve existir uma “classe definida de
possibilidades” que é realmente infinita.344 Da mesma forma, Sorabji pensa
que o fato de uma linha ser potencialmente infinitamente divisível implica
que existe um número realmente infinito de posições onde a linha pode ser
dividida.345
Mas essas inferências estão erradas. A divisibilidade infinita não implica
um número infinito de pontos pré-existentes, a menos que se pressuponha que
uma linha já é composta por um número infinito de pontos. Mas se uma ex-
tensão é logicamente anterior a quaisquer pontos especificados nela, a divisi-
bilidade infinita potencial não implica a existência de pontos. Da verdade de
que “possivelmente há algum ponto em que uma linha é dividida”, não se se-
gue que “há algum ponto em que a linha é possivelmente dividida”. O mesmo
é o caso de números e contagem.346
O falecido filósofo da Universidade de Oxford J. L. Mackie contestou a
premissa (1) porque os chamados absurdos da existência de um verdadeiro in-
finito são resolvidos quando compreendemos que para grupos infinitos o axi-

344
Rudolf v. B. Rucker, “The Actual Infinite,” Speculations in Science and Technology 3 (1980):
66. Para uma discussão ver William Lane Craig, “Time and Infinity,” International Philosophical
Quarterly 31 (1991): 387-401 .
345
Richard Sorabji, Time, Creation, and the Continuum (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press,
1983), 210-213, 322-324.
346
A questão mais profunda aqui é se entidades abstratas como pontos, números e conjuntos real-
mente existem de maneira independente da mente. Para uma breve discussão, veja William Lane
Craig, “A Swift and Simple Refutation of the Kalam Cosmological Argument?” Estudos Religio-
sos 35 (1999): 57-72.
211
oma de Euclides "O todo é maior do que a sua parte" não se mantém como
para grupos finitos.347 Do mesmo modo, Quentin Smith comenta que uma vez
que compreendemos que um conjunto infinito tem um subconjunto próprio
que tem o mesmo número de membros que o próprio conjunto, então as situa-
ções supostamente absurdas tornam-se "perfeitamente credíveis".348 Mas lon-
ge de ser a solução, este é precisamente o problema. Porque na teoria do con-
junto infinito este axioma é negado, acaba-se com todo o tipo de absurdos
como o Hotel Hilbert's quando se tenta traduzir essa teoria em realidade. A
questão não é se estas consequências resultariam se existisse um infinito real;
concordamos que resultariam. A questão é saber se tais consequências são
metafisicamente possíveis. Essa questão não se resolve reiterando que elas se-
riam possíveis se um infinito real pudesse existir. Além disso, nem todos os
absurdos resultam de uma negação do axioma de Euclides: os absurdos ilus-
trados pelos hóspedes que saem do Hotel Hilbert resultam da subtracção de
quantidades infinitas, o que estabelece uma teoria que deve proibir a manu-
tenção da coerência lógica.
O próprio Hilbert, que declarou que a teoria dos conjuntos infinitos de
Cantor é “uma das realizações supremas da atividade humana puramente inte-
lectual” e que “Ninguém nos expulsará do paraíso que Cantor criou para
nós”349, no entanto, também acreditava que esse paraíso existe apenas no rei-
no do intelecto: “o infinito não pode ser encontrado em lugar algum na reali-
dade. Não existe na natureza nem fornece uma base legítima para o pensa-
mento racional. . . . O papel que resta ao infinito desempenhar é apenas o de
uma ideia. . . .”350 O grande filósofo Ludwig Wittgenstein concordou - embo-
ra com consideravelmente menos entusiasmo pelo paraíso de Cantor. Reagin-
do à observação de Hilbert sobre o paraíso cantoriano, Wittgenstein brincou:
“Eu diria: 'Nunca sonharia em tentar expulsar ninguém deste paraíso'. um pa-
raíso - para que você saia por conta própria. Eu diria: 'Você é bem-vindo a is-
so; apenas olhe ao seu redor.'”351 Uma vez que demos uma olhada sóbria ao
nosso redor para as consequências absurdas de tal mundo, não nos arrepende-
remos de deixá-lo existir apenas na imaginação.
A premissa (2) parece bastante óbvia. Se o tempo nunca teve um começo,
então se alguém somasse todos os intervalos temporais de alguma extensão

347
J. L. Mackie, The Miracle of Theism (Oxford: Clarendon, 1982), 93. Para discussão, ver Willi-
am Lane Craig, “Prof. Mackie and the Kalam Cosmological Argument,” Religious Studies 20
(1985): 367-375.
348
Quentin Smith, “Infinito e o Passado,” Filosofia da Ciência 54 (1987): 69.
349
David Hilbert, “On the Infinite,” em Philosophy of Mathematics, ed. com uma introdução de
Paul Benacerraf e Hilary Putnam (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1964), 139, 141.
350
Ibid., 151
351
Ludwig Wittgenstein, Palestras sobre os Fundamentos da Matemática, ed. Cora Diamond (Sus-
sex: Harvester Press, 1976), 103.
212
finita, digamos, segundos, então teria existido um número realmente infinito
de segundos antes do segundo atual.
Como eu disse, isso parece bastante óbvio. No entanto, alguns críticos do
argumento negaram a premissa (2), alegando que o passado é apenas um po-
tencial infinito. Swinburne, por exemplo, admite que faz pouco sentido pensar
que o passado pode ter um fim, mas não um começo, mas ele aconselha que
evitemos esse quebra-cabeça numerando os eventos do passado começando
no presente e procedendo à contagem regressiva em tempo.352 Desta forma, o
passado é convertido de uma série sem começo, mas um fim, em uma série
com um começo, mas sem fim, o que é inquestionável.
Parece-me que esta solução é claramente equivocada. Para que o passado
fosse um mero infinito potencial, ele teria que ser finito, mas crescendo ao
contrário. Isso contradiz a natureza do tempo e do devir. Swinburne confunde
a regressão mental da contagem com o progresso real do próprio tempo. A
própria direção do tempo é do passado para o futuro, de modo que, se a série
de segundos passados não tem começo, então um número realmente infinito
de segundos se passou.
Assim, parece-me que as objeções apresentadas contra as premissas do ar-
gumento são menos plausíveis do que as próprias premissas. Dada a verdade
das duas premissas, segue-se que uma série sem começo de intervalos de
tempo passados iguais não pode existir. Assim, o tempo deve ter tido um co-
meço.

A IMPOSSIBILIDADE DA FORMAÇÃO DE UM INFINITO REAL

Mas suponha que o que foi dito acima esteja completamente errado. Suponha
que um infinito real possa existir. Isso ainda não implica que o passado possa
ser realmente infinito. Pois agora devemos considerar como um infinito real
pode vir a existir. E aqui enfrentamos o argumento da finitude do passado ba-
seado na impossibilidade da formação de um infinito atual por adição suces-
siva. Este argumento é o seguinte:

1. Uma coleção formada por adição sucessiva não pode ser realmente infinita.

2. A série de intervalos de tempo passados iguais é uma coleção formada por


somas sucessivas.

3. Portanto, a série de intervalos de tempo passados iguais não pode ser real-
mente infinita.

Mais uma vez, se a série de intervalos temporais passados iguais não é real-
mente infinita, então o passado deve ser finito.
352
Swinburne, Space and Time, 298-299.
213
A premissa (1) é o passo crucial neste argumento. Não se pode formar uma
coleção realmente infinita de coisas adicionando sucessivamente um membro
após o outro. Como sempre se pode adicionar mais um antes de chegar ao in-
finito, é impossível atingir o infinito real. Às vezes, isso é chamado de impos-
sibilidade de “contar até o infinito” ou “atravessar o infinito”. É importante
entender que essa impossibilidade não tem nada a ver com a quantidade de
tempo disponível: pertence à natureza do infinito não poder ser assim forma-
do.
Agora, alguém pode dizer que, embora uma coleção infinita não possa ser
formada começando em um ponto e adicionando membros, no entanto, uma
coleção infinita pode ser formada nunca começando, mas terminando em um
ponto, ou seja, terminando em um ponto depois de adicionar um membro
após o outro desde a eternidade. Mas esse método parece ainda mais inacredi-
tável do que o primeiro método. Se não se pode contar até o infinito, como se
pode contar a partir do infinito? Se alguém não pode atravessar o infinito mo-
vendo-se em uma direção, como pode atravessá-lo simplesmente movendo-se
na direção oposta?
De fato, a ideia de uma série sem começo terminando no presente parece
absurda. Para dar apenas uma ilustração: suponha que encontremos um ho-
mem que afirma ter contado desde a eternidade e agora está terminando: . . . ,
-3, -2, -1, 0. Poderíamos perguntar, por que ele não terminou de contar ontem
ou anteontem ou no ano anterior? A essa altura, um tempo infinito já havia se
passado, de modo que ele já deveria ter terminado. De fato, em nenhum ponto
do passado infinito poderíamos encontrar o homem terminando sua contagem
regressiva, pois a qualquer momento ele já teria terminado! Na verdade, não
importa o quanto voltemos ao passado, nunca poderemos encontrar o homem
contando, pois em qualquer ponto que chegarmos ele já terá terminado. Mas
se em nenhum momento do passado o encontramos contando, isso contradiz a
hipótese de que ele conta desde a eternidade. Isso ilustra o fato de que a for-
mação de um infinito real por adição sucessiva é igualmente impossível se al-
guém procede para ou do infinito.
Sorabji objetou que, embora seja verdade que em qualquer ponto no pas-
sado alguém contando a partir do infinito terá contado uma infinidade de nú-
meros negativos, não há razão para pensar que ele terá contado todos os nú-
meros negativos.353 David Conway também afirma que não há nenhuma boa
razão para pensar que se alguém tivesse contado um número infinito de nú-
meros até ontem, então ele teria terminado sua contagem regressiva de todos
os números até ontem.354 Mas essas objeções não compreendem o argumento.
353
Sorabji, Time, Creation, and the Continuum, 219-222. Para discussão, veja William Lane Craig,
nota crítica de Time, Creation, and the Continuum, International Philosophical Quarterly 25
(1985): 319-326.
354
David A. Conway, “‘Isso já teria acontecido’: On One Argument for a First Cause,” Analysis 44
(1984): 159-166.
214
Em qualquer número que termine a contagem regressiva dos números negati-
vos — digamos, -17 ou -3 —, um infinito real terá sido completado por eta-
pas sucessivas, e podemos perguntar por que essa tarefa não foi realizada até
ontem. A alegação central do argumento não é que se alguém tivesse contado
um número infinito de números até ontem, então ele teria terminado de contar
todos os números até ontem, mas sim que se alguém tivesse terminado sua
contagem regressiva dos números negativos até hoje, então ele já teria termi-
nado essa mesma contagem regressiva ontem. O defensor do passado infinito
afirma que a tarefa aparentemente impossível de contar todos os números ne-
gativos é possível porque, para cada número negativo a ser contado, há um
momento correspondente do tempo passado para contá-lo. Mas isso é verdade
em cada momento do passado infinito! Assim, se a tarefa pôde ser concluída
hoje, torna-se inexplicável por que ela não foi concluída ontem, ou anteon-
tem, ad infinitum. Na posição de Sorabji e Conway, torna-se inexplicável por
que o contador deve terminar em qualquer número que ele faça.
Além disso, agora surge um absurdo mais profundo: suponha que temos
dois contadores, um homem contando um número negativo a cada segundo e
o outro contando um número negativo a cada hora. Como o número de se-
gundos passados e o número de horas passadas são idênticos (se o passado for
infinito), os dois homens completam sua contagem regressiva ao mesmo tem-
po. Mas isso é um absurdo, já que um homem está contando os números
3.600 vezes mais rápido que o outro!
Os críticos normalmente alegam que a premissa (1) assume ilicitamente
um ponto de partida infinitamente distante no passado e então declara impos-
sível viajar desse ponto até hoje.355 Se levarmos a noção de infinito “a sério”,
diz Mackie, então devemos dizer que no passado infinito não haveria qual-
quer ponto de partida, nem mesmo um infinitamente distante. No entanto, a
partir de qualquer ponto no passado, há apenas uma distância finita para o
presente.
Mas parece-me que a alegação de Mackie de que o argumento pressupõe
um ponto de partida infinitamente distante no passado é totalmente infundada.
Como expliquei, o argumento diz respeito à possibilidade de completar uma
tarefa como a contagem regressiva de todos os números negativos sucessiva-
mente, uma série que não tem começo. De fato, o fato de o passado não ter
nenhum começo, nem mesmo um infinitamente distante, torna ainda mais
desconcertante como o passado poderia ter sido formado por adição sucessi-
va. É como tentar pular de um poço sem fundo! E a observação de Mackie de
que de qualquer ponto no passado a distância até o presente é finita é bastante
correta, mas simplesmente irrelevante para a discussão. Pois a questão é como
todo o passado infinito pode ser formado por adição sucessiva, não apenas
uma porção finita dele. Mackie pensa que, porque cada segmento finito do
355
Mackie, Miracle of Theism, 93.
215
passado pode ser formado por adição sucessiva, todo o passado infinito pode
ser formado por adição sucessiva? Isso é tão logicamente falacioso quanto di-
zer que, como cada parte de um elefante é leve, o elefante todo é leve.
Parece-me, portanto, que a premissa (1), apesar das objeções de seus detra-
tores, é mais plausível do que sua negação.
Quanto à premissa (2), as únicas pessoas que negam esta etapa do argu-
mento são os proponentes de uma concepção estática do tempo. Como eles
rejeitam a realidade do devir temporal, eles negam que o passado tenha sido
formado por adição sucessiva. Todos os tempos existem sem tensão e não há
lapso de tempo. Mas nossa longa investigação sobre a natureza do tempo nos
capítulos 4 e 5 nos levou à conclusão de que a concepção estática do tempo
está errada. O tempo é dinâmico e, portanto, o passado foi formado sequenci-
almente, um momento após o outro. Se o passado é infinito, então Deus viveu
através de um número infinito de intervalos temporais passados, um de cada
vez, para chegar ao hoje. Mas tal travessia do passado infinito, como vimos,
parece absurda.
Das duas premissas do argumento segue-se novamente que a série de in-
tervalos de tempo passados iguais não pode ser realmente infinita.
Temos, portanto, o que me parecem ser dois argumentos bastante plausí-
veis e independentes para a finitude do tempo. As objeções dos críticos do ar-
gumento não me parecem convincentes, de modo que as premissas do argu-
mento permanecem mais plausíveis do que suas negações.

POR QUE DEUS NÃO CRIOU O MUNDO ANTES?

Além disso, há um terceiro argumento peculiarmente teológico para a finitude


do tempo passado que atormenta os proponentes da eternidade newtoniana,
ou seja, por que Deus não criou o mundo antes? Leibniz insistiu nessa ques-
tão em sua famosa correspondência com o seguidor de Newton, Samuel Clar-
ke.356 Na visão relacional do tempo de Leibniz, o tempo não existe na ausên-
cia de eventos. Portanto, o tempo começa no momento da criação, e é sim-
plesmente desajeitado perguntar por que Deus não criou o mundo antes, já
que não há “mais cedo” antes do momento da criação. O tempo passa a existir
com o universo e, portanto, não faz sentido perguntar por que não surgiu em
um momento anterior. Mas, na visão de Newton, Deus suportou um período
infinito de ociosidade criativa até o momento da criação. Por que Ele esperou
tanto tempo?
Este problema pode ser formulado da seguinte forma (permitindo que t re-
presente qualquer tempo antes da criação e n represente uma quantidade finita
de tempo):

G. W. Leibniz, “Sr. Leibniz’s Third Paper,” em The Leibniz-Clarke Correspondence, ed. com
356

uma introdução e notas de H. G. Alexander (Manchester: Manchester University Press, 1956), 42.
216
1. Se o passado é infinito, então em t Deus atrasou a criação até t + n.

2. Se em t Deus atrasou a criação até t + n, então Ele deve ter tido uma boa ra-
zão para fazê-lo.

3. Se o passado é infinito, Deus não pode ter tido uma boa razão para atrasar a
criação de t até t + n.

4. Portanto, se o passado é infinito, Deus deve ter tido uma boa razão para atra-
sar em t, e Deus não pode ter tido uma boa razão para atrasar em t.

5. Portanto, o passado não é infinito.

A premissa (1) é obviamente verdadeira, dada uma visão dinâmica do tempo.


Em t Deus poderia ter criado o mundo. Mas ele não fez. Ele deliberadamente
esperou até mais tarde. Ele conscientemente se absteve de criar em t e atrasou
Sua ação até t + n.
A premissa (2) parece plausivelmente verdadeira. Não depende, para sua
verdade, da validade de algum Princípio de Razão Suficiente mais amplo (um
princípio controverso defendido por Leibniz no sentido de que tudo tem uma
razão para ser do jeito que é). Em vez disso, afirma apenas que, neste caso
específico, Deus, ao decidir adiar a criação do mundo para algum momento
posterior, deve ter tido algum bom motivo para fazê-lo. Observe também que
a premissa (2) não pressupõe nem a finitude nem a infinitude do passado. Ela
apenas afirma que, se em algum momento antes da criação, Deus deliberada-
mente adiou a criação para um momento posterior, então Ele deve ter tido um
motivo para fazê-lo. Uma pessoa perfeitamente racional não adia uma ação
que deseja empreender, a menos que tenha uma boa razão para fazê-lo. Uma
vez que Deus é um ser supremamente racional, a premissa (2) me parece
eminentemente plausível.
Isso nos leva à premissa (3), que novamente parece obviamente verdadei-
ra. Como Leftow aponta em sua interessante análise desse problema, 357 se
Deus adquire em algum momento uma razão para criar o mundo, essa razão
deve ser devida a alguma mudança em Deus ou no mundo. A única mudança
que ocorre fora de Deus é o lapso do próprio tempo absoluto. Mas como to-
dos os momentos do tempo são iguais, não há nada de especial no momento
da criação que faria Deus atrasar a criação em t até que t + n chegasse. Afi-
nal, em t Deus já esperou um tempo infinito para criar o mundo, então por
que esperar mais? Não há nada sobre t + n que o torne um momento mais
apropriado para criar do que t. Quanto ao próprio Deus, Ele tem sido desde
tempos imemoriais perfeitamente bom, onisciente e onipotente, de modo que

Brian Leftow, “Por que Deus não criou o mundo antes?” Estudos Religiosos 27 (1991): 157-
357

172.
217
parece não haver nenhuma mudança que pudesse ocorrer Nele que O levasse
a criar em algum momento e não antes. Assim, parece impossível que Deus
adquira alguma razão para criar que nem sempre teve; nem, da mesma forma,
parece possível que Ele sempre tenha tido uma razão para destacar t + n co-
mo o momento em que criar.
Leftow tenta escapar desse raciocínio sugerindo que a razão de Deus para
atrasar a criação é a alegria da antecipação da criação. Assim como encon-
tramos alegria na expectativa de algum grande bem, Deus também pode des-
frutar da expectativa da criação.
Mas por que Deus demoraria a criar por um tempo infinito? Tendo já em t
antecipado por tempo infinito Sua criação do mundo, por que Ele ainda de-
moraria ainda mais até t + n? Por que Ele parou de antecipar em t + n em vez
de mais cedo ou mais tarde? Leftow responde que chega um ponto em que a
alegria de antecipar começa a desaparecer. Então Deus não vai querer atrasar
a criação além desse ponto. Ele sabe desde toda a eternidade precisamente
quando Sua expectativa atinge o pico e, portanto, não demorará além desse
ponto. Leftow imagina uma espécie de curva de prazer mapeando a antecipa-
ção da criação ascendente e descendente de Deus (Fig. 6.1).

Fig. 6.1: O prazer antecipatório de Deus sobe de um valor baixo em t = –∞ pa-


ra um valor de pico antes de cair em direção a um baixo em t = +∞.

Deus criará o mundo no momento em que Seu prazer antecipado atingir o pi-
co.
Podemos ser céticos em relação a tal retrato do prazer antecipatório de
Deus como grosseiramente antropomórfico; mas não importa. O problema
mais sério é que o esquema de Leftow não explica nada. Pois ainda podemos
perguntar: “Por que o prazer antecipatório de Deus atinge o pico em t + n em
vez de em t?” Leftow responde que, como a curva exibida na Fig. 6.1 se es-
tende infinitamente no passado e no futuro, ela não pode ser “deslocada” em

218
nenhuma direção. É fixo no tempo e, portanto, deve atingir o pico quando is-
so acontecer.
Esta resposta falha em apreciar a natureza paradoxal do infinito real. As-
sim como o Hilbert's Hotel pode acomodar um número infinito de novos hós-
pedes simplesmente colocando cada hóspede em um quarto com um número
duas vezes o seu, a curva de prazer de Deus, embora infinitamente estendida,
pode ser deslocada para trás no tempo simplesmente dividindo cada valor da
coordenada x por dois. Uma vez que o passado é suposto ser realmente infini-
to, não há perigo de “comprimir” a inclinação anterior da curva por tal deslo-
camento para trás. Se tal mudança parece impossível, isso apenas põe em
questão mais uma vez a infinitude do passado. Mas se o passado é infinito,
não há problema. Portanto, Leftow não forneceu uma boa razão para Deus em
t atrasar a criação até t + n. Afinal, até Deus já teve a eternidade para anteci-
par a criação do mundo.
Mas se as premissas (1)-(3) forem verdadeiras, então (4) e (5) seguem-se
logicamente. Consequentemente, parece-me que Leibniz estava bastante cor-
reto ao opor Newton em relação à infinidade do passado de Deus.
Assim, parecemos ter três bons argumentos para negar a infinitude do pas-
sado e defender o início do tempo: a impossibilidade da existência de um in-
finito real; a impossibilidade da formação de um infinito atual por adição su-
cessiva; e a impossibilidade de atrasar a criação de Deus desde a eternidade.
Por todas essas razões é plausível acreditar que o tempo começou a existir e
que, portanto, Deus não existe há tempo infinito.

II. Deus e o começo dos tempos

Mas agora estamos diante de uma situação extremamente bizarra. Deus existe
no tempo. O tempo teve um começo. Deus não teve um começo. Como essas
três afirmações podem ser conciliadas? Se o tempo começou a existir - diga-
mos, para simplificar, no Big Bang - então, em algum sentido difícil de arti-
cular, Deus deve existir além do Big Bang, sozinho sem o universo. Ele deve
ser imutável em tal estado; caso contrário, o tempo existiria. E, no entanto,
esse estado, estritamente falando, não pode existir antes do Big Bang em um
sentido temporal, pois o tempo teve um começo. Deus deve existir causal-
mente, mas não temporalmente, antes do Big Bang. Com a criação do univer-
so, o tempo começou, e Deus entrou no tempo no momento da criação em
virtude de Suas relações reais com a ordem criada. Segue-se que Deus deve,
portanto, ser atemporal sem o universo e temporal com o universo.
Agora, esta conclusão é surpreendente e não um pouco estranha. Pois em
tal visão, parece haver duas fases da vida de Deus, uma fase atemporal e uma
fase temporal, e a fase atemporal parece ter existido antes da fase temporal.

219
Mas isso é logicamente incoerente, já que estar em uma relação anterior a é,
segundo todos os relatos, temporal.358

1. Tempo Amorfo

Como escapar dessa aparente antinomia? Uma possibilidade é sugerida por


um reexame dos três argumentos que apresentamos para a finitude do passa-
do. Estritamente falando, nenhum desses argumentos chegou à conclusão:
“Portanto, o tempo começou a existir”. Em vez disso, o que eles provaram é
que não pode ter havido um número infinito de intervalos temporais iguais no
passado. Mas se podemos conceber um tempo que não é divisível em interva-
los, uma espécie de tempo indiferenciado, então os argumentos são compatí-
veis com a existência desse tipo de tempo antes da criação. Deus existindo
sozinho sem o universo existiria em um tempo amorfo antes do início do
tempo divisível como o conhecemos. Vários filósofos associados à Universi-
dade de Oxford defenderam essa visão da eternidade divina, de modo que se
poderia falar apropriadamente da escola de Oxford sobre esse assunto.359
Os membros da escola de Oxford tendem a abraçar a doutrina do conven-
cionalismo métrico em relação ao tempo. A métrica do tempo tem a ver com
a medida do tempo - se dois intervalos separados de tempo podem ser consi-
derados iguais ou desiguais em extensão. Convencionalismo é a visão de que
não há fato objetivo sobre este assunto. Não há nenhum fato objetivo de que
dois intervalos temporais separados sejam iguais; tudo depende das medidas
que usamos. Na ausência de quaisquer medidas, não há fato objetivo de que
um intervalo seja mais longo ou mais curto que outro intervalo distinto. As-
sim, antes da criação, é impossível diferenciar entre um décimo de segundo e
dez trilhões de anos. Não há momento uma hora, digamos, antes da criação. O
tempo literalmente carece de qualquer métrica intrínseca.
Tal compreensão do tempo de Deus antes da criação parece bastante atra-
ente. Ela nos permite falar literalmente da existência de Deus antes da cria-
ção. E, no entanto, parecemos evitar a afirmação problemática de que Deus
perdurou por um tempo infinito antes de criar o universo.
No entanto, uma inspeção mais detalhada da visão revela dificuldades. O
convencionalismo métrico é a visão de que não há nenhum fato objetivo so-
bre o assunto relativo aos comprimentos comparativos de intervalos tempo-
rais separados. Mas o convencionalismo métrico não sustenta que realmente

358
Veja a declaração de Leftow sobre a objeção em A Companion to Philosophy of Religion, ed.
Philip L. Quinn e Charles Taliaferro, Blackwell’s Companions to Philosophy 8 (Oxford:
Blackwell, 1997), s.v. “Eternidade”, de Brian Leftow.
359
John Lucas, A Treatise on Time and Space (Londres: Methuen, 1973), 311-312; Alan G. Pad-
gett, God, Eternity, and the Nature of Time (Nova York: St. Martin's, 1992), 122-146; Richard
Swinburne, “Deus e o Tempo”, em Reasoned Faith, ed. Eleonore Stump (Ithaca, N.Y.: Cornell
University Press, 1993), 204-222.
220
não haja intervalos de tempo ou que nenhum intervalo possa ser objetivamen-
te comparado com relação ao comprimento. Assim, mesmo em um tempo me-
tricamente amorfo, existem diferenças factuais objetivas de comprimento para
certos intervalos temporais (Fig. 6.2).

Fig. 6.2: Intervalos em um tempo metricamente amorfo anterior ao momento


de criação t=0.

De acordo com o convencionalismo métrico, não há nenhum fato a respeito


dos comprimentos comparativos dc e cb ou db e ca. Mas há uma diferença
objetiva de comprimento entre da e ca ou cb e ca, ou seja, da > ca e cb < ca.
Pois no caso de intervalos que são partes próprias de outros intervalos, as par-
tes próprias são factualmente mais curtas do que as partes envolventes.
Mas isso implica que, antes da criação, Deus suportou uma série sem co-
meço de intervalos cada vez mais longos. Na verdade, podemos até dizer que
tal tempo deve ser infinito. Pois o passado é finito se e somente se houver um
primeiro intervalo de tempo. (Um intervalo é primeiro se não existe nenhum
intervalo anterior a ele, ou se não existe nenhum intervalo maior que ele, mas
tendo o mesmo ponto final.) O passado metricamente amorfo claramente não
é finito. Mas é infinito? O passado é infinito se e somente se não há primeiro
intervalo de tempo e o tempo não é circular. Assim, o tempo amorfo anterior
à criação seria infinito, embora não possamos comparar os comprimentos de
intervalos separados dentro dele. Assim, todas as dificuldades de um passado
infinito voltam a nos assombrar.
A deficiência da escola de Oxford é que ela não foi suficientemente radi-
cal. Propõe dispensar a métrica do tempo, mantendo a geometria do tempo
como uma linha. Uma vez que numa linha geométrica os intervalos podem
ser distinguidos objetivamente e, quando incluídos uns nos outros, compara-
dos em extensão, o tempo não é suficientemente indiferenciado para evitar os
problemas de um passado infinito. O que deve ser feito é dissolver a estrutura
geométrica do tempo como uma linha. Deve-se sustentar que antes da criação
literalmente não há intervalos de tempo. Em tal tempo, não haveria antes e
depois, não haveria duração através de intervalos sucessivos e, portanto, não
haveria espera, não haveria devir temporal, nada além do eterno “agora”. Este
estado passaria como um todo, não sucessivamente, no momento da criação,
quando o tempo começa. Seria um “antes” indiferenciado, seguido de um
“depois” diferenciado.
O problema é que tal estado imutável e indiferenciado parece suspeitosa-
mente com um estado de atemporalidade! Parece ter a topologia de um ponto,
a representação tradicional da eternidade atemporal. O único sentido em que
221
tal estado pode ser considerado temporal é que ele existe literalmente antes da
criação do mundo por Deus e do início do tempo diferenciado.

2. Atemporalidade sem Criação

Talvez essa percepção deva nos levar a reconsiderar a alternativa de que Deus
é simplesmente atemporal sem criação e temporal após a criação. Os detrato-
res dessa posição simplesmente assumem que, se a vida de Deus carece de
partes anteriores e posteriores, ela não possui fases. Mas por que não poderia
haver duas fases da vida de Deus, uma atemporal e outra temporal, que não
estão relacionadas entre si como antes e depois? Os críticos talvez tenham
presumido muito rapidamente que, se qualquer fase da vida de Deus é atem-
poral, o todo deve ser atemporal.
Já vimos que um estado de tempo indiferenciado se parece muito com a
atemporalidade. Essa impressão é reforçada ao relembrar a teoria dinâmica do
tempo. Em uma teoria estática do tempo, é muito tentador retratar as duas fa-
ses da vida de Deus como igualmente existentes, limitadas pelo momento da
criação, uma anterior e outra posterior. Mas dada uma teoria dinâmica do
tempo, esta imagem é uma deturpação. Na realidade, Deus existindo sem a
criação é imutável sozinho, e nenhum evento perturba esta completa tranqui-
lidade. Não há antes, nem depois, nem passagem temporal, nem fase futura de
Sua vida. Existe apenas Deus.
Afirmar que o tempo existiria sem o universo em virtude do começo do
mundo parece postular uma espécie de causação retrógrada: a ocorrência do
primeiro evento faz com que o tempo exista não apenas com o evento, mas
também antes dele. Mas em uma teoria temporal do tempo, tal retrocausação
é metafisicamente impossível, pois equivale a algo sendo causado por nada, já
que no momento do efeito a retrocausa não existe em nenhum sentido.360
A impressão de que Deus sem a criação é atemporal pode ser reforçada por
um experimento mental. Imagine Deus existindo imutavelmente sozinho em
um mundo possível no qual Ele se abstém da criação. Em tal mundo, Deus é
razoavelmente concebido para ser atemporal. Mas Deus, realmente existindo
sozinho sem criação, não é diferente do que Ele seria em tal mundo possível,
embora no mundo real Ele se torne temporal ao criar. Além da causação re-
trógrada, parece não haver nada que produza um tempo anterior ao momento
da criação.
Talvez uma analogia do tempo físico seja esclarecedora. A singularidade
inicial do Big Bang não é considerada parte do tempo, mas constitui um limi-
te para o tempo. No entanto, está causalmente ligado ao universo. De forma
análoga, talvez possamos dizer que a eternidade atemporal de Deus é, por as-

360
Para discussão, veja William Lane Craig, Divine Foreknowledge and Human Freedom, Brill’s
Studies in Intellectual History 19 (Leiden: E. J. Brill, 1991), 150-156.
222
sim dizer, um limite de tempo que é causalmente, mas não temporalmente,
anterior à origem do universo.
Parece-me, portanto, que não é apenas coerente, mas também plausível
que Deus, existindo imutavelmente sozinho sem a criação, seja atemporal e
que Ele entre no tempo no momento da criação em virtude de Sua relação real
com o universo temporal. A imagem de Deus existindo ociosamente antes da
criação é apenas isso: uma invenção da imaginação. Dado que o tempo come-
çou a existir, a visão mais plausível da relação de Deus com o tempo é que
Ele é atemporal sem criação e temporal após a criação.

223
224
7

CONCLUSÃO
CHEGAMOS ao fim de nossa longa e árdua trilha, e agora é hora de resumir
nosso argumento. A eternidade divina é um daqueles atributos de Deus que é
subdeterminado com relação aos dados bíblicos. Uma leitura literal dos textos
bíblicos dá a impressão predominante de que Deus é eterno no sentido de
existir em todos os tempos, não no sentido de ser atemporal. Mas há passa-
gens que apontam em outra direção, especialmente aquelas que sugerem que
o tempo teve um começo. Mais importante ainda, o fato de que os autores bí-
blicos não escreveram como filósofos deve nos deixar cautelosos ao colocar
suas descrições de Deus em categorias que podem não ser pertinentes a seus
propósitos. O cristão que deseja entender mais profundamente a natureza da
eternidade divina e a relação de Deus com o tempo não tem outro recurso se-
não refletir filosoficamente sobre essas questões se quiser chegar a algumas
visões bem fundamentadas sobre essas questões.
Em nosso primeiro capítulo, examinamos os principais argumentos para
Deus ser atemporal e descobrimos que a maioria deles é infundada ou incon-
clusiva. Embora a atemporalidade divina possa ser deduzida da simplicidade
ou imutabilidade divina, essas doutrinas são muito controversas para servir
como uma base sólida para considerar a eternidade divina como atemporali-
dade. Embora alguns proponentes da atemporalidade divina tenham apelado
para a Teoria da Relatividade em apoio à sua doutrina, essa teoria pode ser in-
terpretada de acordo com as linhas defendidas por H. A. Lorentz como uma
teoria sobre o comportamento de relógios e hastes em movimento, caso em
que é totalmente compatível com a existência de um tempo divino privilegia-
do, tal como Isaac Newton acreditava. O único argumento para a antempora-
lidade divina que teve alguma força é o argumento baseado na deficiência
inerente da vida temporal, cuja natureza fugaz parece incompatível com a vi-
da de um ser mais perfeito. Um teórico do tempo atemporal que sustenta que
Deus está no tempo poderia evitar esse argumento, uma vez que ele nega a
realidade do devir temporal — a menos que o argumento seja entendido expe-
rimentalmente. Pois mesmo em uma teoria atemporal do tempo, uma divin-
dade temporal ainda experimentará a natureza fugaz de Sua vida como vivida,
embora nada dela realmente passe ou venha a existir. Se o argumento for
construído experimentalmente, no entanto, não é tão óbvio que um Deus
onisciente, que poderia trazer à mente experiências passadas e futuras com
uma nitidez comparável à das experiências presentes, deveria considerar a
225
passagem temporal um assunto tão melancólico. Concluímos que o argumen-
to da incompletude da vida temporal poderia justificadamente motivar uma
doutrina da atemporalidade divina se não houvesse argumentos compensató-
rios para a temporalidade divina.
A conclusão deste estudo é que existem, de fato, tais argumentos. Não que
a própria ideia de um Deus atemporal seja incoerente – examinamos e descar-
tamos argumentos de que atemporalidade e personalidade são logicamente in-
compatíveis. Os críticos da personalidade atemporal falharam em mostrar
que, para ser pessoal, Deus tem que possuir propriedades inconsistentes com
a atemporalidade, ou que um Deus atemporal não pode possuir as proprieda-
des que são essenciais à personalidade. Pelo contrário, vimos que é bastante
plausível que um ser atemporal possa exemplificar propriedades suficientes
para a personalidade. Portanto, não é verdade que um Deus atemporal não
possa ser pessoal.
Em vez disso, argumentei que, dada a verdade de uma teoria dinâmica ou
tensa do tempo, Deus não pode ser atemporal se existir um mundo temporal.
Pois se uma teoria temporal do tempo estiver correta, existem fatos temporais
e devires temporais. Nesse caso, Deus, em virtude de Sua onisciência e ativi-
dade criativa, deve conhecer os fatos temporais e ser a causa do surgimento
das coisas. Mas ao fazer essas coisas, Deus muda tanto extrínseca quanto in-
trinsecamente e, portanto, deve ser temporal.
A suposição crucial aqui é que uma teoria dinâmica do tempo é verdadeira.
Portanto, dedicamos dois capítulos à exploração dos argumentos a favor e
contra as teorias dinâmica e estática do tempo. A favor de uma teoria dinâmi-
ca do tempo estão os fatos de que experimentamos o devir temporal e tempo-
ral de várias maneiras e que parece haver fatos temporais, conforme revelado
pela ineliminabilidade do tempo verbal da linguagem. As objeções tipicamen-
te apresentadas contra uma teoria dinâmica do tempo são realmente dirigidas
a um espantalho, uma espécie de teoria híbrida segundo a qual todos os even-
tos no tempo são igualmente reais e a “apresentação” se move ao longo da sé-
rie de eventos. Por outro lado, os principais argumentos a favor de uma teoria
estática do tempo a partir da Teoria da Relatividade e a chamada dependência
da mente de se tornar são baseados em uma compreensão fundamentalmente
falha do tempo que colapsa o tempo em nossas medidas físicas de tempo - um
reducionismo que os teístas têm todos os motivos para rejeitar. Além disso,
poderosas objeções filosóficas e teológicas se opõem à teoria estática do tem-
po. A visão mais plausível da natureza do tempo, então, é que o tempo envol-
ve uma distinção objetiva entre passado, presente e futuro, e que o devir tem-
poral é uma característica do mundo real e independente da mente.
Segue-se, portanto, de nossos argumentos que Deus é (tempo presente) no
tempo. Ele existe agora. Mas na doutrina cristã da criação, o mundo teve um
começo, embora Deus não. O tempo existia antes do momento da criação?
226
Deus, existindo sozinho sem criação, é atemporal ou temporal em tal estado?
Apresentei três argumentos para mostrar que o tempo (métrico) é finito no
passado, de modo que Deus existindo sem o mundo deve existir em um tem-
po amorfo ou, mais plausivelmente, atemporalmente. Em resumo, dada a rea-
lidade do devir temporal e tenso, a interpretação mais plausível da eternidade
divina é que Deus é atemporal sem criação e temporal desde a criação.
Esta notável conclusão merece a nossa reflexão. Como a encarnação, a cri-
ação do mundo é um ato de condescendência da parte de Deus para o bem de
Suas criaturas. Sozinho na autossuficiência de Seu próprio ser, desfrutando da
plenitude atemporal dos relacionamentos amorosos intratrinitários, Deus não
precisou da criação de pessoas finitas. Sua decisão atemporal e livre de criar
um mundo temporal com um começo é uma decisão da parte de Deus de
abandonar a atemporalidade e assumir um modo temporal de existência. Ele
fez isso, não por qualquer deficiência em Si mesmo ou em Seu modo de exis-
tência, mas para que as criaturas temporais finitas pudessem compartilhar a
alegria e a bem-aventurança da vida interior de Deus. Ele se rebaixou para as-
sumir um modo de existência não essencial ao Seu ser ou felicidade, a fim de
que pudéssemos existir e encontrar a suprema felicidade nele. O fato de ele
assumir uma natureza humana em união íntima consigo mesmo na encarna-
ção do Logos, a segunda pessoa da Trindade, não era, portanto, o que o filó-
sofo dinamarquês Kierkegaard considerava “o Absurdo”, a união da eternida-
de com o tempo, pois Deus já era temporal no momento da encarnação e des-
de o início da criação. Mas, na encarnação, Deus desceu ainda mais para as-
sumir não apenas nosso modo de existência, nossa temporalidade, mas nossa
própria natureza.
Como resultado da criação e entrada no tempo de Deus, Ele agora está lite-
ralmente conosco a cada momento enquanto vivemos e respiramos, comparti-
lhando cada segundo nosso. Ele está e estará sempre conosco. Ele se lembra
de tudo o que aconteceu, sabe de tudo o que está acontecendo e prevê tudo o
que está por vir, não apenas em nossas vidas individuais, mas em todo o uni-
verso. Livre da velocidade finita da luz e dos procedimentos de sincronização
do relógio, Ele é, como disse Newton, o Senhor Deus de domínio em todo o
universo. Bem exclamou São Judas: “Ao único Deus, nosso Salvador, por
meio de Jesus Cristo, nosso Senhor, seja glória, majestade, domínio e autori-
dade, antes de todos os tempos, agora e para sempre! Amém!

227
228
APÊNDICE

Eternidade Divina e o Conhecimen-


to de Deus sobre o Futuro

Introdução

No presente trabalho, argumentei que a eternidade divina é mais plausivel-


mente interpretada em termos da atemporalidade de Deus sem criação e Sua
temporalidade desde o momento da criação. Agora, essa visão levanta todos
os tipos de questões interessantes sobre a onisciência divina. Isso implica que,
desde o momento da criação, Deus possui presciência literal, em vez de co-
nhecimento atemporal, de eventos que acontecerão no futuro. De fato, será
lembrado que o conhecimento de Deus dos fatos temporais forneceu uma das
principais razões para pensar que Deus é temporal em vez de atemporal.361
Como um ser onisciente, Deus não pode ignorar os fatos do tempo futuro. Por
exemplo, antes de 7 de dezembro de 1941, Ele sabia do fato tenso Os japone-
ses atacariam Pearl Harbor em 7 de dezembro de 1941, assim como depois
dessa data Ele sabia do fato tenso Os japoneses atacaram Pearl Harbor em 7
de dezembro de 1941. Em virtude de conhecer todos os fatos do tempo futuro,
bem como todos os fatos do tempo presente e passado, Deus tem presciência
literal do futuro.
A doutrina da presciência divina tem sido contestada principalmente por
dois motivos: (1) Alega-se que se Deus prevê eventos futuros, então esses
eventos necessariamente ocorrerão, o que exclui a liberdade humana; e (2)
alega-se que, se os eventos ocorrerem de forma contingente, tais eventos não
podem ser conhecidos com antecedência. Costuma-se dizer que Deus, portan-
to, não sabe quais eventos contingentes futuros ocorrerão e que Ele é, portan-
to, um Deus que “corre riscos”. Às vezes, afirma-se que tal concepção de
Deus é fiel ao ensino bíblico.
Lidei com esses dois desafios à presciência divina em meu livro The Only
Wise God, onde tento mostrar que não há incompatibilidade entre a presciên-
cia de Deus e a liberdade humana e que a presciência de um futuro contingen-
te é possível.362 Esse livro foi, no entanto, um pouco à frente da curva, e des-

361
Consulte o capítulo 3, páginas 97-109.
362
William Lane Craig, The Only Wise God (Grand Rapids, Mich.: Baker, 1987; rep. ed.: Eugene,
Ore.: Wipf & Stock, 2000).
229
de a sua publicação o debate sobre a presciência divina tornou-se quente entre
os teólogos cristãos. Portanto, acho apropriado voltar a abordar a questão nes-
te local.

A Doutrina Bíblica da Presciência Divina

A sugestão de que o Deus descrito na tradição bíblica ignora os contingentes


futuros é, à primeira vista, uma afirmação extraordinária. Pois as Escrituras
não apenas estão repletas de exemplos precisamente de tal conhecimento da
parte de Deus, mas também ensinam explicitamente que Deus tem presciência
de eventos futuros, empregando até mesmo um vocabulário especializado pa-
ra denominar tal conhecimento. O Novo Testamento apresenta toda uma fa-
mília de palavras associadas ao conhecimento de Deus sobre o futuro, como
“pré-conhecimento” (proginosko), “pré-conhecimento” (prognosis), “previ-
são” (proorao), “pré-ordenado” (proorizo) e “predizer” (promarturomai,
prokatangello). Assim, a alegação de que o conceito bíblico de onisciência
não abrange o conhecimento do futuro parece frívola.
A afirmação do conhecimento de Deus sobre o futuro é importante em
dois aspectos. Primeiro, esse aspecto da onisciência divina fundamenta o es-
quema bíblico da história. Pois a concepção bíblica da história não é a de uma
sequência imprevisível de eventos que se desenrolam ao acaso, sem propósito
ou direção; ao contrário, Deus conhece o futuro e dirige o curso da história do
mundo para Seus fins previstos:

Eu sou Deus, e não há nenhum como eu.


Desde o início faço conhecido o fim,
desde tempos remotos, o que ainda virá.
Digo: Meu propósito ficará de pé,
e farei tudo o que me agrada (Isaías 46:9-10).

A história bíblica é uma história de salvação, e Cristo é o começo, a peça cen-


tral e a culminação dessa história. O plano salvífico de Deus não foi uma re-
flexão tardia necessária por uma circunstância imprevista. Paulo fala do “de-
sígnio do mistério oculto desde os séculos em Deus, que criou todas as coi-
sas”, “um plano para a plenitude dos tempos” de acordo com “o eterno propó-
sito que ele realizou em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Efésios 3: 9; 1:10; 3:11;
cf. 2 Tim. 1:9-10). Da mesma forma, Pedro afirma que Cristo “foi destinado
antes da fundação do mundo, mas foi manifestado no fim dos tempos por
amor de vocês” (1 Pedro 1:20). O conhecimento de Deus sobre o curso da
história mundial e Seu controle sobre ela para alcançar Seus propósitos são
fundamentais para a concepção bíblica da história e são uma fonte de confor-
to e segurança para o crente em tempos de angústia.

230
Em segundo lugar, o conhecimento de Deus sobre o futuro parece essenci-
al para o padrão profético subjacente ao esquema bíblico da história. O teste
do verdadeiro profeta era o sucesso em predizer o futuro: “Quando um profe-
ta fala em nome do Senhor, se a palavra não se cumprir ou se cumprir, essa é
uma palavra que o Senhor não falou” (Deut. 18:22). A história de Israel foi
pontuada por profetas que predisseram eventos no futuro imediato e distante,
e os escritores do Novo Testamento tinham convicção de que a vinda e a obra
de Jesus haviam sido profetizadas.
O elemento profético, porém, não se limita ao cumprimento das predições
do Antigo Testamento. O próprio Jesus é caracterizado como profeta e prediz
a destruição de Jerusalém, os sinais do fim do mundo e seu próprio retorno
como Senhor de todas as nações (Mateus 24; Marcos 13; Lucas 21). Também
na igreja primitiva havia profetas que contavam sobre os eventos futuros
(Atos 11:27-28; 21:10-11; veja também 13:1; 15:32; 21:9; 1 Coríntios 12:28 -
29; 14:29, 37; Efésios 4:11). O Apocalipse a João é uma poderosa visão do
fim da história humana: “. . . o Senhor, o Deus dos espíritos dos profetas, en-
viou o seu anjo para mostrar aos seus servos o que em breve deve acontecer”
(Ap 22:6). O padrão profético revela, assim, uma unidade subjacente, não
apenas entre os dois Testamentos, mas sob todo o curso da história humana.
A visão bíblica da história e da profecia, portanto, parece necessitar de um
Deus que conhece não apenas o presente e o passado, mas também o futuro.
De fato, o conhecimento de Deus sobre o futuro é tão essencial que Isaías tor-
na o conhecimento do futuro o teste decisivo para distinguir o verdadeiro
Deus dos falsos deuses. O profeta lança este desafio aos dentes de todos os
pretendentes à divindade:

"Exponham a sua causa", diz o Senhor.


"Apresentem as suas provas", diz o rei de Jacó.
"Tragam os seus ídolos para nos dizerem
o que vai acontecer.
Que eles nos contem como eram as coisas anteriores,
para que as consideremos
e saibamos o seu resultado final;
ou que nos declarem as coisas vindouras,
revelem-nos o futuro,
para que saibamos que vocês são deuses.
Façam alguma coisa, boa ou má,
para que nos rendamos, cheios de temor.
Mas vejam só! Vocês não são nada,
e as suas obras são totalmente nulas;
detestável é aquele que os escolhe! (Isaías 41:21-24)

Stephen Charnock em seu clássico Existência e Atributos de Deus comenta


esta passagem:

231
Tal presciência das coisas futuras é aqui atribuída a Deus pelo próprio Deus,
como uma distinção dele de todos os falsos deuses. Tal conhecimento que, se
alguém pudesse provar que eles eram possuidores, ele os reconheceria como
deuses, assim como a si mesmo: “para que possamos saber que vocês são deu-
ses”. Ele coloca sua Deidade para se levantar ou cair por conta disso, e este de-
ve ser o ponto que deve decidir a controvérsia se ele ou os ídolos pagãos eram
o verdadeiro Deus. A disputa é gerida por este meio: quem sabe o que está por
vir é Deus; Eu sei o que está por vir, logo eu sou Deus: os ídolos não sabem o
que está por vir, portanto não são deuses. Deus submete o ser de sua Divindade
a este julgamento. Se Deus conhecesse as coisas que viriam não mais do que os
ídolos pagãos, que eram demônios ou homens, ele seria, em sua própria conta,
não mais Deus do que demônios ou homens. . . . Não se pode entender as coi-
sas futuras em suas causas, quando os efeitos necessariamente surgem de tais
causas, como a luz do sol e o calor do fogo. Muitos desses homens sabem;
mais deles, anjos e demônios sabem; se Deus, portanto, não tivesse um conhe-
cimento mais alto e mais amplo do que este, ele não provaria ser Deus, assim
como os anjos e demônios, que conhecem os efeitos necessários em suas cau-
sas. Os demônios, de fato, predisseram algumas coisas nos oráculos pagãos,
mas Deus é diferente deles aqui. . . em poder prever coisas futuras que eles não
sabiam, ou coisas em suas particularidades, coisas que dependiam da liberdade
da vontade do homem, das quais os demônios não podiam reivindicar um certo
conhecimento. Se fosse apenas um conhecimento conjectural que se refere
aqui, os demônios poderiam responder que eles podem conjecturar e, portanto,
sua divindade era tão boa quanto a de Deus. . . . Deus afirma seu conhecimento
das coisas futuras como uma evidência manifesta de sua Divindade; os que ne-
gam, portanto, o argumento que o prova, negam também a conclusão; pois isso
necessariamente se seguirá, que se ele é Deus porque conhece as coisas futu-
ras, então aquele que não conhece as coisas futuras não é Deus; e se Deus não
conhece as coisas futuras, mas apenas por conjecturas, então não há Deus, por-
que um certo conhecimento, de modo a predizer infalivelmente as coisas futu-
ras, é uma perfeição inseparável da Divindade.363

Como observa Charnock, o conhecimento de Deus parece abranger contin-


gências futuras. Assim como Deus conhece os pensamentos que os humanos
têm, ele também conhece de antemão os próprios pensamentos que eles terão.
O salmista declara,

Senhor, tu me sondas e me conheces.


Sabes quando me sento e quando me levanto;
de longe percebes os meus pensamentos.
Sabes muito bem quando trabalho e quando descanso;
todos os meus caminhos te são bem conhecidos.
Antes mesmo que a palavra me chegue à língua,
tu já a conheces inteiramente, Senhor.

363
Stephen Charnock, The Existence and Attributes of God (1682; reimpressão, Grand Rapids,
Mich.: Baker, 1979), vol. 1, 431-432.
232
Tu me cercas, por trás e pela frente,
e pões a tua mão sobre mim.
Tal conhecimento é maravilhoso demais e está além do meu alcance,
é tão elevado que não o posso atingir (Salmos 139:1-6).

Aqui o salmista se vê cercado pelo conhecimento de Deus. Deus sabe tudo


sobre ele, até mesmo seus pensamentos. "De longe" (merahoq) pode ser usa-
do para indicar a distância temporal - Deus conhece os pensamentos do sal-
mista muito antes de ele os pensar. Da mesma forma, mesmo antes de falar
uma palavra, Deus sabe o que ele vai dizer. Não é de admirar que tal conhe-
cimento esteja além do alcance do entendimento do salmista! Mas tal é o co-
nhecimento do Deus de Israel em contraste com todos os falsos deuses de
seus vizinhos. O Deus de Israel foi concebido para possuir conhecimento do
futuro, uma propriedade que o distinguia de todos os falsos deuses.
À luz das claras afirmações bíblicas da presciência divina, pode parecer
notável que alguns teólogos conservadores neguem que a Bíblia ensina que
Deus conhece eventos futuros. Eles argumentam que Deus só pode fazer con-
jecturas inteligentes sobre o que as criaturas livres farão. Como resultado,
Deus ignora vastos trechos da história humana, pois mesmo uma única esco-
lha livre poderia desviar a história de seu curso atual, e os eventos subseqüen-
tes, com o passar do tempo, afastar-se-iam cada vez mais da atual trajetória da
história. Na melhor das hipóteses, pode-se dizer que Deus tem uma boa ideia
do que acontecerá apenas em um futuro muito próximo.
A interpretação mais plausível de tais passagens é que essas profecias não
eram simples vislumbres do futuro, mas imagens do que aconteceria a menos
que . . .364 As profecias continham a condição implícita de “todas as coisas
permanecerem iguais”. Certas profecias, portanto, são previsões ou avisos do
que vai acontecer se todas as coisas permanecerem como estão. Tais eventos
às vezes são referidos como contingentes futuros condicionais, e o conheci-
mento de Deus de tais eventos é ainda mais notável do que o simples conhe-
cimento prévio, uma vez que envolve conhecimento do que aconteceria se
existissem outras circunstâncias além daquelas que acontecerão. Entretanto,
nem todas as profecias do Antigo e do Novo Testamento são advertências.
Profecias de eventos que não são causados por Deus, mas por seres humanos
e que não podem ser inferidos de causas presentes não podem ser interpreta-
das como avisos prévios, mas devem ser consideradas como expressão de
simples presciência da parte de Deus.
Como os detratores da presciência explicam as passagens bíblicas que ilus-
tram o conhecimento de Deus sobre o futuro? Normalmente, eles tentam des-
cartar cada exemplo de presciência divina como sendo um dos seguintes: (1)
uma declaração de Deus sobre o que Ele mesmo pretende realizar, (2) uma in-
364
Witherington chama essas profecias condicionais (Ben Witherington III, Jesus the Seer (Peabo-
dy, Mass.: Hendrickson, 1999), 3; cf. 134.
233
ferência do que vai acontecer com base nas causas presentes, (3) uma previ-
são condicional do que acontecerá se algo mais acontecer.
Tal conta parece inadequada, no entanto. No que diz respeito a (3), as pre-
visões condicionais, se não se reduzem a (1) ou (2), devem ser expressões do
que os teólogos chamam de conhecimento médio divino, que é ainda mais no-
tável do que a presciência divina e, de fato, pode fornecem a base para a pres-
ciência divina.365 Portanto, tentar explicar a presciência divina por meio de
(3) é contraproducente.
Quanto a (2), embora se possa afirmar, digamos, que Jesus previu a traição
de Judas ou a negação de Pedro apenas com base em seu caráter e nas cir-
cunstâncias circundantes, não pode haver dúvida de que os próprios escritores
do Evangelho não entenderam tais previsões. Tentar explicar as profecias bí-
blicas como meras inferências dos atuais estados de coisas as desnuda de
qualquer significado teológico. Os escritores das Escrituras claramente viram
a profecia não como uma conjectura fundamentada de Deus sobre o que acon-
tecerá, mas como uma manifestação de Seu conhecimento infinito, abrangen-
do até mesmo as coisas que ainda estão por vir.
Quanto a (1), é verdade que muitas profecias nas Escrituras são claramente
baseadas na intenção irrevogável de Deus de realizar certos eventos futuros
por conta própria. Nesses casos, a profecia serve para manifestar não tanto a
onisciência de Deus quanto Sua onipotência, Sua capacidade de realizar tudo
o que Ele pretende. Mas o problema com (1) é que simplesmente não pode ser
estendido para cobrir todos os casos. A presciência divina das ações humanas
livres não pode ser explicada por (1), uma vez que nega a liberdade humana.
A explicação (1) é útil apenas para explicar o conhecimento de Deus sobre os
eventos que Ele mesmo realizará. Mas a Escritura fornece muitos exemplos
de presciência divina de eventos que Deus não causa diretamente, eventos
que são o resultado de escolhas humanas livres.
Finalmente, nenhuma das três explicações entra em conflito com o ensino
doutrinário das Escrituras a respeito da presciência de Deus. Essas explica-
ções tentam dar conta apenas de exemplos de profecia na Bíblia e não dizem
nada sobre as passagens que ensinam explicitamente que Deus conhece o fu-
turo de antemão. Assim, temos forte garantia bíblica para a doutrina de que a
onisciência de Deus abrange o conhecimento de contingentes futuros.

Fundamentos Filosóficos para Afirmar a Presciência Divina

365
O conhecimento médio envolve o conhecimento de condicionais subjuntivos, como Se Goldwa-
ter tivesse sido eleito em 1964, ele teria vencido a Guerra do Vietnã. Veja meu artigo “Middle
Knowledge”, em Four Views on Divine Knowledge, ed. James Beilby e Paul Eddy (Downer's Gro-
ve, Illinois: InterVarsity, no prelo).
234
Não só existem fundamentos bíblicos para afirmar a presciência de Deus so-
bre os contingentes futuros, mas há boas razões filosóficas para pensar que
Deus conhece de antemão o futuro. Como Santo Anselmo viu, o conceito de
Deus é o conceito de um ser perfeito, o que Anselmo chamou de o maior ser
concebível. (Basta perguntar se qualquer ser que seja menos do que perfeito
seria digno de adoração.) Agora, o maior ser concebível, um ser perfeito, de-
ve ser onisciente ou onisciente. Pois a ignorância é uma imperfeição; sendo
todas as coisas iguais, é maior ou melhor ser conhecedor do que ignorante.
Portanto, se há verdades sobre contingentes futuros, Deus, como um ser onis-
ciente, deve conhecer essas verdades. Uma vez que existem tais verdades so-
bre o futuro, isto é, uma vez que as declarações sobre contingentes futuros são
verdadeiras ou falsas, e nem todas são falsas, Deus deve, portanto, conhecer
todas as verdades sobre o futuro, o que significa dizer que Ele conhece fatos
futuros; Ele sabe o que vai acontecer.
Pode-se tentar escapar da força desse raciocínio argumentando que as de-
clarações de tempo futuro não são nem verdadeiras nem falsas, de modo que
não há fatos sobre o futuro.366 Tal visão não pode, no entanto, ser mantida de
forma plausível. Aqui vários pontos merecem menção:
Primeiro, não há nenhuma boa razão para negar que as declarações de
tempo futuro sejam verdadeiras ou falsas. Por que deveríamos aceitar a visão
de que declarações de tempo futuro sobre atos livres, declarações que faze-
mos o tempo todo em conversas comuns, não são de fato nem verdadeiras
nem falsas? Que prova existe de que tais declarações não são nem verdadeiras
nem falsas?
A única resposta de qualquer substância já dada a esta pergunta é mais ou
menos assim: Eventos futuros, ao contrário dos eventos presentes, não exis-
tem. Ora, uma afirmação é verdadeira se e somente se corresponder ao que
existe, e falsa se e somente se não corresponder ao que existe. Uma vez que o
futuro não existe, não há nada para as declarações de tempo futuro correspon-
derem ou deixarem de corresponder. Portanto, declarações de tempo futuro
não podem ser verdadeiras ou falsas.
Uma vez que aceito a visão de tempo que esta resposta proposta pressupõe
(ou seja, a teoria dinâmica do tempo), a questão é se, dada tal visão, a ideia de
verdade como correspondência exige que neguemos que declarações de tem-
366
É muito importante aqui que percebamos que por “declaração” não quero dizer um símbolo de
sentença (lembre-se da distinção entre símbolos de sentença e tipos feita no capítulo 4, nota 4). Ca-
so contrário, deveríamos dizer que durante a Era Jurássica, quando não havia seres humanos, não
havia declarações no futuro (e, portanto, nenhum fato sobre o futuro), mas agora há! Em vez disso,
por “declaração” quero dizer algo mais como um tipo de frase, que pode ou não ser proferida ou
escrita. Assim, por exemplo, mesmo que o símbolo da sentença “Não existem sentenças” nunca
possa ser verdadeiro, claramente a afirmação de que Não existem sentenças pode ser e muitas ve-
zes foi verdadeira. A questão diante de nós não diz respeito à existência de sentenças verdadeiras
no tempo futuro, sejam elas proferidas ou escritas, mas se existem verdades sobre o futuro, e por
isso uso o termo “declaração” para fazer essa pergunta.
235
po futuro sejam verdadeiras ou falso. Aqueles que pensam que sim parecem
entender mal o conceito de verdade como correspondência, que sustenta ape-
nas que uma afirmação é verdadeira se e somente se o que ela afirma ser o ca-
so realmente for o caso. Por exemplo, a afirmação “Está nevando” é verdadei-
ra se e somente se estiver nevando. Embora isso possa parecer óbvio demais
para valer a pena afirmar, às vezes é mal compreendido. A verdade como cor-
respondência não significa que as coisas ou eventos de que trata uma afirma-
ção verdadeira devam existir. De fato, é apenas no caso de declarações verda-
deiras no tempo presente que as coisas ou eventos referidos devem existir. Pa-
ra que uma declaração no passado seja verdadeira, não é necessário que o que
ela descreve exista, mas apenas que tenha existido. Para que uma declaração
de tempo futuro seja verdadeira, não é necessário que o que ela descreve exis-
ta, mas que existirá. Para que uma afirmação no tempo futuro seja verdadeira,
tudo o que é necessário é que, quando chegar o momento descrito, a versão
no tempo presente da afirmação seja verdadeira naquele momento. A ideia de
que o conceito de verdade como correspondência exige que as coisas ou
eventos descritos pela afirmação devam existir no momento em que a afirma-
ção é verdadeira é um completo mal-entendido.
Dizer que uma afirmação no tempo futuro agora é verdadeira não é, é cla-
ro, dizer que agora podemos saber se ela é verdadeira ou dizer que as coisas
estão agora tão determinadas que ela é verdadeira. É apenas para dizer que
quando chegar a hora, as coisas acontecerão como a declaração prevê. Uma
declaração de tempo futuro é verdadeira se as coisas acontecerem como a de-
claração prediz, e falsa se as coisas não acontecerem como a declaração pre-
diz - isso é tudo que a noção de verdade como correspondência exige. Portan-
to, não há nenhuma boa razão para negar que declarações de tempo futuro se-
jam verdadeiras ou falsas.
Em segundo lugar, há boas razões para sustentar que as declarações de
tempo futuro são verdadeiras ou falsas.
(i) Os mesmos fatos que garantem a verdade ou falsidade de declarações
no tempo presente e passado também garantem a verdade ou falsidade de de-
clarações no tempo futuro. Nicholas Rescher explica,

Dificuldades sobre a presciência divina bem à parte, é difícil justificar a con-


cessão a
1. “Vai chover amanhã” (afirmado em 12 de abril) um status de verdade di-
ferente do de
2. “Choveu ontem” (afirmado em 14 de abril) porque ambos fazem (de
perspectivas temporalmente distintas) precisamente a mesma afirmação sobre
os fatos, a saber, chuva em 13 de abril.367

367
Nicholas Rescher, Many-Valued Logic (Nova York: McGraw-Hill, 1969), 2-3.
236
Pense nisso por um momento. Se “hoje está chovendo” agora é verdade, co-
mo poderia “chover amanhã” não ter sido verdade ontem? Os mesmos fatos
garantem que uma declaração de tempo futuro afirmada anteriormente, uma
declaração de tempo presente afirmada simultaneamente e uma declaração de
tempo passado afirmada posteriormente são todas verdadeiras.
(ii) Se as declarações de tempo futuro não são verdadeiras, então as decla-
rações de tempo passado também não são verdadeiras. Se as declarações no
tempo futuro não podem ser verdadeiras porque as realidades que descrevem
ainda não existem, então, da mesma forma, as declarações no tempo passado
não podem ser verdadeiras porque as realidades que descrevem não existem
mais. Mas sustentar que declarações no passado não podem ser verdadeiras
seria ridículo. Uma vez que os dois casos são paralelos, deve-se negar a ver-
dade ou falsidade de ambas as declarações no tempo passado e futuro ou
afirmar a verdade ou falsidade de ambas.
(iii) Declarações sem tempo são sempre verdadeiras ou falsas. Lembre-se
de que é possível eliminar o tempo do verbo em uma afirmação e especificar
o momento em que a afirmação deve ser verdadeira.368 Por exemplo, a decla-
ração “Os Aliados invadiram a Normandia” pode ficar sem tempo verbal es-
pecificando a hora: “Em 6 de junho de 1944, os Aliados invadem a Norman-
dia”, o itálico indicando que o verbo não tem tempo verbal. Se a versão tem-
poral for verdadeira, então a versão sem tempo verbal também será.369 Portan-
to, correlacionada com qualquer declaração verdadeira no tempo passado ou
presente está uma versão verdadeira sem tempo dessa declaração. Além disso,
uma declaração sem tempo, se for verdadeira, é sempre verdadeira. Isso ocor-
re precisamente porque a instrução é atemporal. Se “Em 6 de junho de 1944,
os Aliados invadem a Normandia” é verdade, então é sempre verdade. Portan-
to, esta afirmação é verdadeira antes de 6 de junho de 1944. Mas, nesse caso,
é verdade antes de 6 de junho de 1944, que os Aliados naquela data invadirão
a Normandia, o que é o mesmo que dizer que a versão futura da afirmação é
verdadeira. Além disso, uma vez que Deus é onisciente, Ele deve sempre sa-
ber a verdade da declaração sem tempo, o que implica que Ele conhece o fu-
turo de antemão. Em terceiro lugar, a negação da verdade ou falsidade de de-
clarações de tempo futuro tem consequências absurdas. Por exemplo, se de-
clarações de tempo futuro não forem nem verdadeiras nem falsas, a declara-
ção feita em 1998 “George W. Bush vencerá ou não vencerá a eleição presi-
dencial em 2000” não seria verdadeira. Pois esta declaração é um composto
de duas sentenças simples no tempo futuro - “George W. Bush vencerá a elei-
ção presidencial em 2000” e “George W. Bush não vencerá a eleição presi-
dencial em 2000”. E se nenhuma dessas declarações individuais for verdadei-

368
Consulte o capítulo 3, página 99.
369
Para uma boa discussão, veja Thomas Bradley Talbott, “Fatalism and the Timelessness of
Truth” (diss. de doutorado, Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, 1974), 153-154.
237
ra ou falsa, a declaração composta que as combina também não é nem verda-
deira nem falsa. Mas como pode ser isso? Ou Bush vencerá ou não — não há
outra alternativa. Mas a visão de que declarações de tempo futuro não são
nem verdadeiras nem falsas exigiria que disséssemos que essa declaração
composta não é nem verdadeira nem falsa, o que parece absurdo.
Igualmente absurdo, não poderíamos dizer que uma declaração como
“Bush vencerá e não vencerá a eleição presidencial em 2000” é falsa. Pois es-
ta é uma declaração composta que consiste em duas declarações simples de
tempo futuro, nenhuma das quais deve ser verdadeira ou falsa. Portanto, a de-
claração composta também não pode ser verdadeira ou falsa. Mas certamente
esta afirmação é falsa, pois é uma autocontradição: Bush não pode vencer e
não vencer a eleição!
Devemos concluir que, sem nenhuma boa razão a favor dela, razões persu-
asivas contra ela e consequências absurdas decorrentes dela, a visão de que
declarações no tempo futuro sobre atos livres não são nem verdadeiras nem
falsas é insustentável. A visão de que a onisciência de Deus não abrange a
presciência é, portanto, vista como insustentável, uma vez que, como um ser
onisciente, Ele deve conhecer todas as declarações verdadeiras, incluindo to-
das as declarações verdadeiras no futuro.
Os detratores da presciência divina muitas vezes tentam escapar dessa
conclusão redefinindo o conceito de onisciência de tal forma que ser onisci-
ente não implica conhecer todas as verdades. Assim, eles devem rejeitar a de-
finição usual de onisciência:

O. Para qualquer agente x, x é onisciente = def. Para cada afirmação s, se s for


verdadeiro, então x sabe que s e não acredita que não-s.

O que (O) requer é que uma pessoa seja onisciente se e somente se ela conhe-
cer todas as verdades e não acreditar em falsidades. Esta é a definição padrão
de onisciência. Isso implica que, se existem verdades no tempo futuro, um ser
onisciente deve conhecê-las.
Para não negar a onisciência de Deus, os oponentes da presciência divina
sugeriram definições revisionais de onisciência para poderem afirmar que
Deus é onisciente, mesmo quando negam Seu conhecimento de contingentes
futuros.370 A definição revisionista de William Hasker é típica:

O'. Deus é onisciente = def. Deus conhece todas as declarações que são tais que
Deus as conhece é logicamente possível.

370
Para a definição a seguir, consulte William Hasker, “A Philosophical Perspective”, em Clark
Pinnock, Richard Rice, John Sanders, William Hasker e David Basinger, The Openness of God: A
Biblical Challenge to the Traditional Understanding of God (Downer's Grove, Ill : InterVarsity,
1994), 136.
238
Os revisionistas então afirmam que é logicamente impossível saber declara-
ções sobre contingentes futuros e, portanto, Deus pode ser considerado onis-
ciente, apesar de Sua ignorância de um número infinito de declarações verda-
deiras.
Tal como está, no entanto, (O') é drasticamente falho, pois não exclui que
Deus acredite em declarações falsas tanto quanto nas verdadeiras. Pior, (O')
na verdade exige que Deus conheça declarações falsas, o que é incoerente e
teologicamente inaceitável. Pois (O') exige que, se for logicamente possível
para Deus conhecer algumas afirmações s, então Deus conhece s. Mas se s é
uma afirmação contingentemente falsa, digamos, existem oito planetas no sis-
tema solar do sol, então existem mundos logicamente possíveis nos quais s é
verdadeiro e, portanto, conhecido por Deus. Portanto, uma vez que é logica-
mente possível para Deus conhecer s, Ele deve de acordo com (O') realmente
conhecer s, o que é absurdo.
O que o revisionista realmente quer dizer é algo como

O''. Deus é onisciente = def. Deus conhece apenas e todas as declarações verda-
deiras que são tais que é logicamente possível para Deus conhecê-las.

Ao contrário de (O'), (O'') limita o conhecimento de Deus a um certo subcon-


junto de todas as declarações verdadeiras.
O problema fundamental com todas as definições revisionárias de onisci-
ência como (O'') é que, como vimos 371, qualquer definição adequada de um
conceito deve estar de acordo com nossa compreensão intuitiva do conceito.
Não temos a liberdade de “cozinhar” a definição de alguma forma desejada
sem, com isso, tornar a definição inaceitavelmente artificial. (O'') é culpado
de ser "cozido" dessa maneira. Pois, intuitivamente, a onisciência envolve co-
nhecer todas as verdades, mas de acordo com (O'') Deus poderia ser ignorante
de reinos infinitos de verdades e ainda assim contar como onisciente. A única
razão pela qual alguém preferiria (O'') a (O) é devido a uma motivação ulteri-
or de salvar o atributo da onisciência para uma divindade cognitivamente li-
mitada, em vez de negar abertamente que Deus é onisciente. (O'') é, portanto,
inaceitavelmente artificial.
Um segundo problema com (O'') é que ele interpreta a onisciência em ter-
mos modais, falando, não de conhecer toda a verdade, mas de conhecer toda a
verdade que é cognoscível. Mas a onisciência, ao contrário da onipotência,
não é uma noção modal. Grosso modo, a onipotência é a capacidade de atua-
lizar qualquer estado de coisas logicamente possível. Mas a onisciência não é
meramente a capacidade de conhecer apenas e todas as verdades; é conhecer
apenas e todas as verdades. Tampouco onisciência significa conhecer apenas

371
Consulte o capítulo 3, página 104.
239
e todas as verdades conhecíveis, mas conhecer apenas e todas as verdades,
ponto final. É uma noção categórica, não modal.
Em terceiro lugar, a superioridade de (O'') sobre (O) depende de haver
uma diferença entre uma verdade e uma verdade que é logicamente possível
saber. Se não houver diferença, então (O'') cai de volta para (O), e o revisio-
nista não ganhou nada. Mas está longe de ser evidente que haja alguma dife-
rença. Pois qual é uma condição suficiente para que uma afirmação seja logi-
camente cognoscível? Tanto quanto posso ver, a única condição é que a afir-
mação seja verdadeira. O que mais é necessário? Se o revisionista pensa que
algo mais é necessário, então podemos pedir-lhe um exemplo de uma decla-
ração que pode ser verdadeira, mas logicamente impossível de saber. Uma
afirmação como “Nada existe” ou “Todos os agentes deixaram de existir”
vem à mente; mas no teísmo tradicional essas afirmações possivelmente não
são verdadeiras, já que Deus é um agente cuja inexistência é impossível. A
menos que o revisionista possa nos dar algum motivo para pensar que uma
afirmação pode ser verdadeira, mas incognoscível, não temos motivos para
adotar (O''). Parece que a única propriedade intrínseca que uma afirmação de-
ve possuir para ser logicamente cognoscível é a verdade.
O revisionista alegará neste ponto que declarações contingentes futuras são
logicamente impossíveis para Deus saber, pois se Ele as conhece, então elas
não são contingentes.372 Examinaremos o argumento do revisionista para esta
última afirmação abaixo; mas aqui podemos notar que, mesmo se admitirmos
que seu argumento é sólido, ainda não se segue que declarações contingentes
futuras sejam logicamente impossíveis de serem conhecidas por Deus. O revi-
sionista raciocina que para qualquer declaração de tempo futuro é impossível
que Deus saiba s e que s seja contingente; portanto, se s é contingente, não é
possível que Deus conheça s. Mas tal raciocínio é logicamente falacioso. De

1. Não possivelmente (Deus conhece s, e s é contingente)

2. s é contingente

não segue logicamente que

3. Não possivelmente (Deus sabe s)

mas meramente

3'. Não (Deus sabe s).

372
Hasker, “Philosophical Perspective,” 147-148.
240
Em outras palavras, o que se segue de (1) e (2) é meramente que Deus não
conhece s, não que seja impossível que Deus conheça s. Assim, mesmo con-
cedida a premissa do revisionista de que é impossível que Deus saiba que s e
s são contingentes, não se segue da contingência de s que s é tal que é logi-
camente impossível para Deus conhecer s. Portanto, mesmo na definição de-
feituosa (O'') proposta pelo revisionista, o Deus do revisionista acaba por não
ser onisciente, uma vez que s é uma afirmação verdadeira que, tanto quanto
podemos ver, é logicamente possível para Deus saber, e, no entanto, Deus não
sabe s. Assim, o revisionista deve negar a onisciência divina e, portanto, rejei-
tar a perfeição de Deus – uma consequência teológica muito séria, de fato.373

Objeções filosóficas à presciência divina

Como mencionei, os oponentes da presciência divina geralmente levantam


duas objeções a essa doutrina: (1) a presciência divina implica fatalismo e (2)
não há base na qual Deus possa conhecer contingentes futuros. Vamos explo-
rar cada uma dessas questões por sua vez.

A compatibilidade da presciência divina e dos contingentes futuros

A primeira objeção levanta a questão do fatalismo, a doutrina de que tudo o


que fazemos, fazemos necessariamente e que, portanto, a liberdade humana é
uma ilusão. Alega-se que se Deus prevê o futuro, então o fatalismo é verda-
deiro. Visto que o fatalismo não é verdadeiro, segue-se que Deus não deve
prever o futuro.
Qual é o argumento que supostamente demonstra a conexão entre a presci-
ência divina e o fatalismo? Substituindo “x” por qualquer evento, a forma bá-
sica do argumento é a seguinte:

1. Necessariamente, se Deus preconhece x, então x acontecerá.

2. Deus pré-conhece x.

373
Observe também que a posição do revisionista é, em última instância, logicamente incoerente.
Pois, por sua própria luz, é logicamente possível conhecer qualquer afirmação verdadeira no tempo
presente. Mas se as declarações no tempo futuro forem verdadeiras ou falsas, então haverá declara-
ções no tempo presente, como “a declaração s no tempo futuro é atualmente verdadeira” que deve
ser conhecida por Deus. Não se pode razoavelmente negar que Deus deva conhecer tais declara-
ções no tempo presente, pois Deus sabe quais propriedades presentemente são inerentes às coisas
existentes. Mas então Ele deve saber que “a verdade atualmente é inerente às declarações no tempo
futuro”. Portanto, o detrator da presciência divina não pode afirmar coerentemente que existem de-
clarações verdadeiras no futuro e ainda assim negar que Deus conhece tais declarações - ele deve
negar a verdade ou falsidade das declarações no futuro, uma posição radical.
241
3. Portanto, x acontecerá necessariamente.

Como x acontece necessariamente, não é um evento contingente. Em virtude


da presciência de Deus, tudo está fadado a acontecer.
O problema com a forma de argumento acima é que ela é apenas logica-
mente falaciosa. O que está validamente implícito nas premissas (1) e (2) não
é (3), mas

3'. Portanto, x acontecerá.

O fatalista confunde tudo aqui. É correto que em um argumento dedutivo vá-


lido as premissas implicam necessariamente a conclusão. A conclusão decor-
re necessariamente das premissas; isto é, é impossível que as premissas sejam
verdadeiras e a conclusão falsa. Mas a conclusão em si não precisa ser neces-
sária. O fatalista transfere ilicitamente a necessidade da inferência para a pró-
pria conclusão. O que decorre necessariamente de (1) e (2) é apenas (3'). Mas
o fatalista em sua confusão pensa que a própria conclusão é necessariamente
verdadeira e assim termina com (3). Ao fazer isso, ele simplesmente comete
uma falácia lógica comum.
A conclusão correta (3’) não é de forma alguma incompatível com a liber-
dade humana. Do conhecimento de Deus de que farei x, não se segue que de-
vo fazer x, mas apenas que farei x. Isso não é de forma alguma incompatível
com o fato de eu fazer x livremente.
Sem dúvida, uma das principais fontes de confusão do fatalista é sua mis-
tura de certeza com necessidade. Frequentemente encontramos nos escritos
de fatalistas teológicos contemporâneos declarações que deslizam da afirma-
ção de que algo é certamente verdadeiro para a afirmação de que é necessari-
amente verdadeiro. Isso é pura confusão. A certeza é uma propriedade das
pessoas e não tem nada a ver com a verdade, como é evidente pelo fato de
que podemos estar absolutamente certos sobre algo que se revela falso. (As
pessoas dogmáticas costumam ter esse problema.) Em contraste, a necessida-
de é uma propriedade das declarações, indicando que uma declaração não po-
de ser falsa. Podemos estar totalmente incertos sobre declarações que são,
sem o nosso conhecimento, necessariamente verdadeiras (imagine alguma
equação ou teorema matemático complexo). Assim, quando dizemos que al-
guma afirmação é “certamente verdadeira”, isso é apenas uma maneira de fa-
lar indicando que temos certeza de que a afirmação é verdadeira. As pessoas
têm certeza; declarações são necessárias.
Ao confundir certeza e necessidade, o fatalista torna seu argumento logi-
camente falacioso enganosamente atraente. Pois é correto que a partir das
premissas (1) e (2) podemos estar absolutamente certos de que x acontecerá.
Mas é confuso pensar que, porque x certamente acontecerá, x necessariamente
acontecerá. Podemos ter certeza, dada a presciência de Deus, que x não deixa-
242
rá de acontecer, embora seja inteiramente possível que x deixe de acontecer.
X poderia deixar de ocorrer, mas Deus sabe que isso não acontecerá. Portanto,
podemos ter certeza de que isso acontecerá – e acontecerá de forma contin-
gente.
Os fatalistas teológicos contemporâneos reconhecem a falácia da forma de
argumento acima e, portanto, tentam remediar o defeito tornando a premissa
(2) também necessariamente verdadeira:

1. Necessariamente, se Deus preconhece x, então x acontecerá.

2'. Necessariamente, Deus pré-conhece x.

3. Portanto, x acontecerá necessariamente.

Assim formulado, o argumento não é mais logicamente falacioso e, portanto,


a questão passa a ser se as premissas são verdadeiras.
A premissa (1) é claramente verdadeira. Talvez valha a pena notar que este
é o caso, não por causa da onisciência ou inerrância essencial de Deus, mas
simplesmente em virtude da definição de “conhecimento”. Uma vez que co-
nhecimento envolve crença verdadeira, qualquer um saber que x acontecerá
implica necessariamente que x acontecerá. Assim, poderíamos substituir (1) e
(2') por

1.* Necessariamente, se Smith realmente acredita que x acontecerá, então x


acontecerá.

2.* Necessariamente, Smith realmente acredita que x acontecerá.

E (3) seguirá como antes. Portanto, se qualquer pessoa alguma vez tiver cren-
ças verdadeiras sobre o futuro (e certamente temos, como lembramos presun-
çosamente aos outros quando dizemos: “Eu avisei!”), então, dada a verdade
da premissa (2*), segue-se o fatalismo de crenças meramente humanas, uma
conclusão curiosa!
De fato, como os antigos fatalistas gregos perceberam, a presença de qual-
quer agente é realmente supérflua para o argumento. Tudo o que se precisa é
de uma declaração verdadeira, no tempo futuro, para iniciar o argumento. As-
sim, poderíamos substituir (1) e (2') por

1.** Necessariamente, se for verdade que x acontecerá, então x acontecerá.

2.** Necessariamente, é verdade que x acontecerá.

E obteremos (3) como nossa conclusão. Assim, a filósofa Susan Haack corre-
tamente chama o argumento do fatalismo teológico de “uma versão desneces-
243
sariamente (e confusa) elaborada” do fatalismo grego; a adição de um Deus
onisciente ao argumento constitui um “desvio gratuito” em torno da questão
real, que é a verdade ou falsidade de declarações de tempo futuro.374
A fim de evitar a generalização acima de seu argumento para todas as pes-
soas e para meras declarações sobre o futuro, os fatalistas teológicos negarão
que a segunda premissa seja verdadeira com relação aos humanos ou meras
declarações, como é para Deus. Eles dirão que o fato de Smith ter uma crença
verdadeira ou que alguma afirmação no futuro seja verdadeira não é necessá-
rio da mesma forma que Deus tem uma crença.
Isso levanta a questão de saber se a premissa (2') é verdadeira. Agora, pelo
valor de face, a premissa (2') é obviamente falsa. A teologia cristã sempre
sustentou que a criação do mundo por Deus é um ato livre, que Deus poderia
ter criado um mundo diferente, no qual x não ocorre, ou mesmo nenhum
mundo. Dizer que Deus necessariamente conhece qualquer evento x implica
que este é o único mundo que Deus poderia ter criado e, portanto, nega a li-
berdade divina.
Mas os fatalistas teológicos têm um tipo diferente de necessidade em men-
te quando dizem que a presciência de Deus é necessária. Eles estão falando
sobre a necessidade temporal, ou a necessidade do passado. Freqüentemente,
isso é expresso dizendo que o passado é inevitável ou imutável. Se algum
evento está no passado, agora é tarde demais para fazer qualquer coisa para
afetá-lo. É necessário nesse sentido. Uma vez que a presciência de Deus sobre
eventos futuros agora faz parte do passado, ela agora é fixa e inalterável. Por-
tanto, diz-se, a premissa (2') é verdadeira.
Mas se a premissa (2') é verdadeira nesse sentido, então por que (2*) e
(2**) também não são verdadeiras? O fatalista teológico responderá que a
crença de Smith ser verdadeira ou uma afirmação no futuro não são fatos ou
eventos do passado, como é o fato de Deus manter uma crença.
Mas tal compreensão do que constitui um fato ou evento parece bastante
contraintuitiva. Se Smith acreditava em 1997 que “Bill Clinton sofrerá impe-
achment”, não era um fato que sua crença era verdadeira? Se Smith tivesse
essa mesma crença hoje, não seria um fato que sua crença não é mais verda-
deira (já que Clinton não ocupa mais o cargo)? Se a crença de Smith mudou
de verdadeira para falsa, então certamente era um fato que era verdadeira e é
um fato que agora é falsa. Obviamente, o mesmo vale para a mera declaração
“Bill Clinton sofrerá impeachment”. Esta afirmação já teve a propriedade de
ser verdadeira e agora tem a propriedade de ser falsa. Em qualquer sentido ra-
zoável de “fato”, esses são fatos passados e presentes.
De fato, o fato de uma afirmação ter um valor de verdade também é um
evento plausível. Isso é mais óbvio com relação a afirmações como “o voo

Susan Haack, “On a Theological Argument for Fatalism,” Philosophical Quarterly 24 (1974):
374

158.
244
4750 para Paris partirá em cinco minutos”. Essa afirmação é falsa até cinco
minutos antes da partida, torna-se verdadeira cinco minutos antes e torna-se
falsa novamente imediatamente depois disso. O fato de outras declarações se-
rem verdadeiras pode ser eventos mais duradouros, como “o voo 4750 para
Paris partirá na próxima hora”. O fato de tais declarações serem verdadeiras
são claramente eventos em qualquer interpretação razoável do que constitui
um evento.
Nenhum fatalista teológico que eu li sequer começou a abordar a questão
da natureza dos fatos ou eventos que tornariam plausível que o fato de Smith
realmente acreditar em uma declaração no futuro e que uma declaração no fu-
turo seja verdadeira não conta como fatos passados ou eventos. Mas então
vemos que o fatalismo teológico não é inerentemente teológico; se o raciocí-
nio do fatalista teológico estiver correto, ele pode ser generalizado para mos-
trar que toda vez que mantemos uma crença verdadeira sobre o futuro ou
mesmo toda vez que uma afirmação sobre o futuro é verdadeira, então o futu-
ro está fadado a ocorrer - certamente uma inferência incrível!
Além disso, temos as melhores razões para pensar que a premissa (2') é de-
feituosa de alguma forma, ou seja, o fatalismo impõe uma restrição à liberda-
de humana que é ininteligível. Pois o fatalista admite que os eventos pré-
conhecidos por Deus podem ser causalmente indeterminados; na verdade, te-
oricamente, eles poderiam ser eventos espontâneos completamente incausa-
dos. No entanto, tais eventos são considerados de alguma forma limitados.
Mas por quê? Por destino? O que é isso senão um mero nome? Se minha ação
é causalmente livre, como pode ser restringida pelo mero fato de Deus saber
sobre ela?
Às vezes, os fatalistas dizem que a presciência de Deus impõe uma espécie
de restrição lógica à minha ação. Mesmo que eu seja causalmente livre para
abster-me de minha ação, há algum tipo de restrição lógica sobre mim, tor-
nando impossível para mim abster-me. Mas até onde podemos entender as
restrições lógicas, elas não são análogas ao tipo de necessidade imaginada pe-
lo fatalista teológico. Por exemplo, dado que já joguei basquete pelo menos
uma vez na vida, agora é impossível para mim jogar basquete pela primeira
vez. Portanto, não estou livre para sair e jogar basquete pela primeira vez.
Mas esse tipo de restrição não é nada análogo ao fatalismo teológico. Pois no
caso que estamos imaginando, está ao meu alcance jogar basquete ou não.
Quer eu tenha jogado antes ou não, posso executar livremente as ações de jo-
gar basquete. Só que se eu já joguei antes, minhas ações não contarão como
jogar pela primeira vez. Em contraste, o fatalista imagina que, se Deus sabe
que não devo jogar basquete, mesmo que eu seja causalmente livre, minhas
ações são misteriosamente limitadas de modo que sou literalmente incapaz de
entrar na quadra, driblar e chutar. Mas esse determinismo não causal é total-
mente opaco e ininteligível.
245
O argumento para o fatalismo, portanto, deve ser infundado. Uma vez que
a premissa (1) é claramente verdadeira, o problema deve residir na premissa
(2'). E a premissa (2') é notoriamente problemática, pois a noção de necessi-
dade temporal invocada pelo fatalista é um conceito tão obscuro que (2') se
torna um verdadeiro ninho de égua de dificuldades filosóficas. Por exemplo,
uma vez que a necessidade da premissa (1) é uma necessidade lógica e a ne-
cessidade da premissa (2') é uma necessidade temporal, por que pensar que
essa mistura de diferentes tipos de modalidade é válida? Se o fatalista respon-
de que a necessidade lógica acarreta uma necessidade temporal, de modo que
a premissa (1) pode ser interpretada meramente em termos de necessidade
temporal, então como sabemos que tal necessidade é transmitida das premis-
sas para a conclusão, da maneira que a lógica necessidade é? De fato, uma
vez que x é suposto ser um evento futuro, como poderia ser temporalmente
necessário? Uma vez que x não é nem presente nem passado, mas ainda não
ocorreu, não poderia ser caracterizado pela necessidade temporal que se su-
põe ser inerente aos eventos uma vez que tenham ocorrido. Assim, temos to-
dos os motivos para pensar que a necessidade temporal não é transitiva.
E mesmo que esse tipo peculiar de necessidade fosse transitivo e, portanto,
x fosse temporalmente necessário, como sabemos que esse tipo de necessida-
de é incompatível com o fato de uma ação ser livre? É plausível que, desde
que a escolha de uma pessoa seja causalmente indeterminada, seja uma esco-
lha livre, mesmo que ela seja incapaz de escolher o oposto dessa escolha.375
Imagine um homem com eletrodos secretamente implantados em seu cérebro
que é apresentado com a escolha de fazer A ou B. Os eletrodos ficam inativos
enquanto o homem escolhe A; mas se ele fosse escolher B, então os eletrodos
seriam ligados e o forçariam a escolher A. Se os eletrodos dispararem, fazen-
do com que ele escolha A, sua escolha de A claramente não é uma escolha li-
vre. Mas suponha que o homem realmente queira fazer A e escolha por sua
própria vontade. Nesse caso, sua escolha de A é totalmente livre, mesmo que
o homem seja literalmente incapaz de escolher B, uma vez que os eletrodos
não funcionam de forma alguma e, portanto, não têm efeito sobre sua escolha
de A. O que torna sua escolha livre é a ausência de qualquer fatores causal-
mente determinantes de sua escolha A. Esta concepção de liberdade libertária
tem a vantagem de explicar como é que a escolha de Deus para fazer o bem é
livre, embora seja impossível para Deus escolher o pecado, ou seja, Sua esco-
lha é indeterminada por restrições causais. Assim, a liberdade da vontade li-
bertária não requer a capacidade de escolher diferente do que se escolhe. Por-
tanto, mesmo que x fosse temporalmente necessário, de modo que não-x não

375
Ver Harry Frankfurt, “Possibilidades Alternativas e Responsabilidade Moral”, Journal of Philo-
sophy 66 (1969): 829-839; Thomas V. Morris, The Logic of God Incarnate (Ithaca, N.Y.: Cornell
University Press, 1986), 151-152. Para uma aplicação ao fatalismo teológico, veja David P. Hunt,
“On Augustine’s Way Out,” Faith and Philosophy 16 (1999): 3-26.
246
pudesse ocorrer, está longe de ser óbvio que x não seria executado ou esco-
lhido livremente.
Todos os problemas acima surgem mesmo se admitirmos que (2') é verda-
deiro. Mas por que pensar que essa premissa é verdadeira? Afinal, o que é ne-
cessidade temporal e por que pensar que as crenças passadas de Deus agora
são temporalmente necessárias? Os fatalistas teológicos nunca forneceram um
relato adequado dessa modalidade peculiar. Ainda estou para ver uma expli-
cação da necessidade temporal, segundo a qual as crenças passadas de Deus
são temporalmente necessárias, o que não se reduz nem à inalterabilidade
nem ao fechamento causal do passado.
Mas interpretar a necessidade do passado como sua inalterabilidade (ou
imutabilidade ou impossibilidade de prevenção) é claramente inadequado,
uma vez que o futuro, por definição, é tão inalterável quanto o passado. Por
definição, o futuro é o que acontecerá e o passado é o que ocorreu. Mudar o
futuro seria fazer com que um evento que irá ocorrer não ocorra, o que é au-
tocontraditório. É puramente uma questão de definição que o passado e o fu-
turo não podem ser mudados, e nenhuma conclusão fatalista decorre dessa
verdade. Não precisamos ser capazes de mudar o futuro para determinar o fu-
turo. Se nossas ações são executadas livremente, está em nosso poder deter-
minar causalmente qual será o curso dos eventos futuros, mesmo que não te-
nhamos o poder de mudar o futuro.
O fatalista insistirá que o passado é necessário no sentido de que não te-
mos uma capacidade semelhante para determinar causalmente o passado. O
não-fatalista pode concordar alegremente com o ponto: a causação retrógrada
é impossível. Mas o fechamento causal do passado não implica fatalismo,
pois a liberdade de abster-se de fazer o que Deus sabe que alguém fará não
envolve causação retrógrada.
Pode-se admitir alegremente que não há nada que eu possa fazer agora pa-
ra causar ou provocar o passado. Assim, não posso fazer com que Deus tenha
tido no passado uma certa crença sobre minhas ações futuras. Mas pode muito
bem estar dentro do meu poder realizar livremente alguma ação A, e se A
ocorresse, então o passado teria sido diferente do que de fato é. Suponha, por
exemplo, que Deus sempre acreditou que no ano de 2001 eu aceitaria um
convite para falar na Universidade de Regensburg. Suponhamos que até che-
gar a hora eu tenha a possibilidade de aceitar ou recusar o convite. Se eu re-
cusasse o convite, então Deus teria uma crença diferente daquela que Ele re-
almente tinha. Pois se eu recusasse o convite, então diferentes declarações de
tempo futuro seriam verdadeiras, e Deus, sendo onisciente, saberia disso. As-
sim, Ele teria uma presciência diferente daquela que Ele de fato tem. Nem a
relação entre minha ação e uma declaração de tempo futuro correspondente
sobre ela, nem a relação entre uma declaração de tempo futuro verdadeira e
Deus acreditando nela, é uma relação causal. Assim, o fechamento causal do
247
passado é irrelevante. Se a necessidade temporal é apenas o fechamento cau-
sal do passado, então é insuficiente para sustentar o fatalismo.
Nenhum fatalista, como eu disse, explicou, que eu saiba, uma concepção
de necessidade temporal que não corresponda nem à inalterabilidade nem ao
fechamento causal do passado. Normalmente, eles apenas apelam gratuita-
mente para algum tipo de “princípio do passado fixo” no sentido de que não
está dentro do meu poder agir de tal maneira que, se eu o fizesse, o passado
teria sido diferente - o que implora a questão. Em análises de necessidade
temporal que não são redutíveis nem à inalterabilidade nem ao fechamento
causal do passado, as crenças passadas de Deus sempre acabam não sendo
temporalmente necessárias.376 É interessante que, como tentei mostrar em ou-
tro lugar377, conclusões precisamente paralelas seguem com relação à neces-
sidade temporal de eventos passados em casos de viagem no tempo, causação
retrógrada, precognição e a Teoria Especial da Relatividade, que fornecem
analogias intrigantes para o cenário teológico das crenças mantidas por Deus
sobre contingentes futuros.
Assim, o argumento para o fatalismo teológico é infundado. Não fornece
nenhuma base convincente para negar a doutrina bíblica da presciência divi-
na.

A Base da Presciência Divina dos Contingentes Futuros

O que dizer, então, da segunda questão levantada pela presciência divina, ou


seja, a base do conhecimento de Deus sobre os contingentes futuros? Os de-
tratores da presciência divina às vezes afirmam que, como os eventos futuros
não existem, eles não podem ser conhecidos por Deus. O raciocínio parece
ser o seguinte:

1. Somente eventos que realmente existem podem ser conhecidos por Deus.

2. Eventos futuros não existem.

3. Portanto, eventos futuros não podem ser conhecidos por Deus.

Agora, a premissa (2) não é incontroversa. Muitos físicos e filósofos do tem-


po e do espaço argumentam que os eventos futuros existem. Eles afirmam que
a diferença entre passado, presente e futuro é meramente uma questão subje-
tiva da consciência humana. Para as pessoas no ano de 2015, os eventos da-
quele ano são tão reais quanto os eventos do nosso presente são para nós, e
para essas pessoas, somos nós que falecemos e somos irreais. Em tal visão,
376
Veja, por exemplo, Alfred J. Freddoso, “Accidental Necessity and Logical Determinism,” Jour-
nal of Philosophy 80 (1983): 257-278.
377
Craig, The Only Wise God.
248
Deus transcende o continuum espaço-tempo quadridimensional e, portanto,
todos os eventos estão eternamente presentes para Ele. É fácil, com essa vi-
são, entender como Deus poderia, portanto, conhecer eventos que para nós
são futuros.
No entanto, argumentei que tal visão quadridimensional da realidade en-
frenta objeções filosóficas e teológicas insuperáveis.378 Portanto, estou incli-
nado a concordar com a premissa (2) do argumento acima. Portanto, a ques-
tão é se há uma boa razão para pensar que a premissa (1) é verdadeira.
Ao avaliar a questão de como Deus sabe quais eventos ocorrerão, é útil
distinguir dois modelos de cognição divina: o modelo perceptualista e o mo-
delo conceitualista. O modelo perceptualista constrói o conhecimento divino
na analogia da percepção sensorial. Deus olha e vê o que está lá. Tal modelo é
assumido implicitamente quando as pessoas falam de Deus "prever" o futuro
ou ter "previsão" de eventos futuros. O modelo perceptualista da cognição di-
vina enfrenta problemas reais quando se trata do conhecimento de Deus sobre
o futuro, pois, uma vez que eventos futuros não existem, não há nada ali para
ser percebido.379
Em contraste, em um modelo conceitualista de conhecimento divino, Deus
não adquire Seu conhecimento do mundo por nada parecido com a percepção.
Seu conhecimento do futuro não se baseia em “olhar” para frente e “ver” o
que está por vir (uma noção terrivelmente antropomórfica, em todo caso). Em
vez disso, o conhecimento de Deus é autocontido; é mais como o conheci-
mento da mente sobre ideias inatas. Como um ser onisciente, Deus tem es-
sencialmente a propriedade de conhecer todas as verdades; existem verdades
sobre eventos futuros; ergo, Deus conhece todas as verdades sobre eventos
futuros.
Enquanto não formos seduzidos a pensar na presciência divina segundo o
modelo da percepção, não é mais evidente por que o conhecimento de eventos
futuros seria impossível. Um modelo conceitualista fornece uma base clara
para o conhecimento de Deus sobre os contingentes futuros.
Assim, nem o problema do fatalismo teológico nem a questão da base da
presciência divina fornecem fundamentos adequados para negar o testemunho
tanto da Escritura quanto da razão quanto à verdade da doutrina da onisciên-
cia divina e, em particular, o conhecimento de Deus sobre os contingentes fu-
turos.

Conclusão
378
Lembre-se dos capítulos 4 e 5.
379
Observe, no entanto, que se pensarmos em declarações ou fatos como dentro do alcance de
Deus, mesmo em um modelo perceptualista, Deus pode conhecer o futuro, pois Ele percebe quais
declarações de tempo futuro têm a propriedade de verdade inerente a elas ou quais declarações de
futuro fatos tensos existem atualmente. Assim, por meio de Sua percepção das realidades existen-
tes no presente, Ele conhece a verdade sobre o futuro. Cf. Nota 13, acima.
249
Apesar da impressão transmitida por certos teólogos, o conhecimento divino
do que acontecerá no futuro não é um pacote com a atemporalidade divina. É
perfeitamente coerente sustentar que Deus é, pelo menos desde o momento da
criação, temporal e também que a onisciência de Deus se estende a contingen-
tes futuros. De fato, é precisamente em virtude de Sua onisciência que Deus
deve possuir presciência de tais eventos. Pois se existem verdades no tempo
futuro, estas devem ser conhecidas por Deus. Mas isso implica tanto na tem-
poralidade de Deus quanto em Seu conhecimento das coisas por vir. Juntas,
essas características de Deus implicam a presciência divina. Tal presciência é
totalmente compatível com a contingência e, em particular, com a liberdade
humana e é melhor compreendida em termos de um modelo conceitualista de
cognição divina, segundo o qual Deus simplesmente possui conhecimento es-
sencial de toda a verdade, incluindo verdades sobre contingentes futuros.

250

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