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Notas sobre a supremacia branca

Ensaiando um relato arquetípico sobre eventos históricos


James Hillman

Tradução: Daniel Françoli Yago

O argumento que defenderei nestas páginas é bastante simples, mas precisaremos percorrer
um caminho estreito e sinuoso. Mesmo que nos apressemos, necessitaremos de tempo. Para
que saibamos aonde estamos indo, farei um sumário antes de partirmos.
Nossa cultura, termo pelo qual me refiro a imaginação, crenças, sanções e valores
coletiva e inconscientemente compartilhados por europeus e americanos do Norte, é
supremacista branca. Incontornavelmente supremacista branca, cuja superioridade é afirmada
por nossos grandes textos e é fundamental para as nossas raízes linguísticas e, portanto, para as
nossas estruturas perceptivas. Nós tendemos a ver o branco como o primeiro, como o melhor,
como o mais completo, e tendemos a defini-lo em termos de superioridade.
Ademais, horrible dictu, apresentarei evidências demonstrando uma supremacia ao
branco similar às crenças da África negra, sanções e valores que sugerem que os dilemas
atribuídos à intolerância étnica em nossa sociedade têm fontes fundamentalmente difíceis de
modificar. “Fundamentalmente difíceis”, porque a fantasia da supremacia, espero demonstrar,
é arquetipicamente inerente à própria ideia de branquitude. Se assim pudermos demonstrar,
também estaria oferecendo exemplos paradigmáticos da prioridade do arquetípico nos dramas
humanos. Isso implica que os dramas humanos podem ser afetados por uma psicologização
arquetípica que é também uma terapia, nesse caso, uma terapia do racismo no que diz respeito
às suas raízes estruturais. De maneira que o propósito imediato destes argumentos consiste em
diferenciar essa estrutura arquetípica – isto é, geograficamente distribuída, temporalmente
contínua e emocionalmente investida – inescapavelmente intrínseca da branquitude, e indicar
um modo psicológico de atenuar o curso arquetípico dessa supremacia para além das medidas
sociais usuais e necessárias.

O status dos termos de cor


Em 1969, Brent Berlin & Paul Kay1, do Departamento de Antropologia de Berkeley, publicaram
uma escala universal de termos de cor que sustenta haver uma evolução diferenciada que
começa com o par branco e preto, que então evolui para o vermelho, segue para o
verde/amarelo ou o amarelo/verde, depois para o azul, passando do marrom ao púrpura, e por
fim terminando na cor-de-rosa, na cor de laranja e no cinza – onze ao todo. Tal hipótese é dupla.
Em primeiro lugar, todas as linguagens seguiriam essa escala, isto é, se elas possuem apenas
quatro termos, estes serão branco, preto, vermelho e verde-ou-amarelo, e se houver uma
quinta e sexta cor, elas seguirão um esquema universal, por exemplo, com amarelo (ou verde)
como quinta cor e com azul como sexta cor. Em segundo lugar, essas escalas projetam uma
evolução acerca da linguística da cor que se inicia com alguns termos primitivos para cores e se
desdobra em outros termos mais sofisticados. Sua pesquisa com 98 linguagens afirma existir
universais semânticos estáveis, ou arquetípicos, para os termos de cor.
Desde 1969, antropólogos e linguistas atacam essa tese. Há contraexemplos2 vindos das
culturas samoanas, uto-astecas, hopis, vietnamitas, etc, a respeito da ordem dos termos de cor
nessa escala. Contudo, que preto/branco sempre venham em primeiro lugar é um dado que está
sempre presente e não é controvertido.
Berlim & Kay apresentam branco/preto como opostos. Que o postulado do branco e do
preto como opostos não tenha sido contestado indica algo de importante acerca da
universalidade inconsciente da antropologia “branca” acerca de uma perspectiva que, quando
vê o branco e o preto, os vê como opostos. Mais adiante, examinaremos a relação entre o
pensamento oposicional e a branquitude. Por ora, nossa preocupação é somente situar o branco
nessa perspectiva mundial: que ele é primordial, praticamente universal (todas as linguagens
possuem um termo para ele) e que está pareado com o negro.

Três sentidos para o branco

A raiz indo-europeia da palavra branco significa “brilhar”, e o brilho como o que é iluminado,
lustroso, dá conta de abarcar muitos dos sentidos reportados a respeito do branco no estudo de

1 Brent Berlin & Paul Kay, Basic color terms: their universality and their evolution (Berkeley and Los
Angeles: University of California Press, 1969).
2 Contraexemplos podem ser vistos em D. L. Snow, “Samoan color terminology”. Anthropological
linguistics 3/18 (1971): 389. Cf. os artigos da mesma revista: R. W. Wescott. “Bini color terms” 19/9 (1970):
349-60. J. A. Frisch, “Mohawk: color terms”, 14/8 (1972): 306-10. H. B. Broch “A note on the Hare Indian
color terms”, 16/5 (174): 192-96.
Berlim & Kay. Por exemplo, na primeira definição do Oxford English Dictionary para o branco se
lê:

Da cor da neve ou do leite; cor que é produzida pela reflexão, transmissão, ou emissão
de todos os tipos de luz na proporção que existem no espectro completamente visível,
sem absorção sensível, sendo, portanto, completamente luminoso e desprovido de
qualquer matiz distintivo.

O branco, entretanto, também significa ausente, pálido, vindo das cinzas, desprovido de cor. A
palavra grego leukos descreve neve, prata, prata/ouro, poeira cinzenta, amarelo pálido, cabelo
branco, pele clara, sol, luz, éter, brilho de água vítrea, voz clara, dia feliz3. O latim distingue
candidus (o nosso cândido, candidato), “um branco cintilante, deslumbrante”, de albus, “o
branco morto, que não brilha”4.
De forma a escapar dos ardis filológicos e etimológicos de um suposto sentido “radical”
e “verdadeiro”, nos valemos de uma aproximação arquetípica, distinguindo três principais
constelações em nossa tradição cultural, como se cada perspectiva fosse governada por um
arquétipo. O pressuposto aqui é de como o branco é visto e adereçado expressa fundamentos
da nossa psique.

A. O primeiro desses sentidos é a brancura do paraíso ou o branco percebido pela


perspectiva arquetípica do celestial, do pai espiritual, familiar a todos nós, principalmente em
contextos cristãos.
Essa convenção “celestial” já estava estabelecida na antiga Grécia: Príamo sacrifica um
carneiro branco para o sol. Hera usa um adorno em sua cabeça que é branco como o sol, e nas
tragédias encontramos frases sobre pássaros de penas brancas como a aurora e dias radiantes
como um cavalo branco5. A frase comum grega leuke ‘eméra, “um bom dia”, significa um dia
literalmente iluminado, feliz, branco 6. Estes são os dias no alto do Olimpo, onde os deuses
habitam (Odisseia, 6: 4445). Platão diz, “o branco é a cor mais apropriada aos deuses” (As leis,
12: 956a). Um sacerdote, em um fragmento de Eurípedes, diz (fragmento 472: 16-19): “Ao usar

3 Eleanor Irwin, Colour terms in Greek poetry (Toronto: Hakkert, 1974); Liddell & Scott, A Greek-English
lexicon (Oxford, Oxford University Press).
4 C. T. Lewis & Ch. Short, A Latin dictionary (Oxford, 1894).
5 Irwin, Colour terms, pp. 163-65.
6 Ibid., p. 166 (cf. Plutarch, Pericles 27)
vestes brancas/Eu evito a geração dos mortais/e ao não tocar um caixão/eu me abstive de comer
a carne dos animais”. O branco significa pureza ritual e santidade espiritual, não admitindo nem
o negror da morte nem a vermelhidão da carne. Para Aristóteles (791a), o ar, quando puro, é
leukos. O ar adquire cor somente quando maculado pela matéria. A constelação no pensamento
de Aristóteles sobre o branco, o ar e a pureza, de um lado, e a matéria como negativo, mero
potencial e local da decadência, do outro, sustenta a definição narcísica de Deus que assombra
os séculos do Ocidente como um fantasma branco – Deus cuja atividade é a imortalidade (286a),
que não pode ser ferido ou caluniado (109b), que é melhor que os humanos (116b),
absolutamente autossuficiente (1245b, 1249b), não necessitando de amizade alguma (1244b,
1159a), o actus purus pelo qual Deus é definido também em São Tomás de Aquino e Leibniz,
como sendo “plenamente luminoso e distinto de qualquer matiz”, como o dicionário descreve
o branco.
Textos cristãos dão continuidade a esse sentido de branco, podendo inclusive achá-lo
em Daniel, 11 - “purgar e embranquecer” – e no salmo 51 - “lava-me, e ficarei mais branco que
a neve“. O apogeu dessa imagem está nas Revelações do Apocalipse, um livro atravessado pelo
branco, capítulo a capítulo – nuvens, cavalos, anjos, anciões, tronos –, que igualmente
corresponde a um Jesus transfigurado em branco nos Evangelhos (o que suscitaria espanto
pensar a cor que ele poderia ter tido em sua forma cotidiana). Como branco e trigo são cognatos,
comunga-se a hóstia com o corpo embranquecido de Deus.
O sentido celestial do branco se estende para além das nossas convenções ocidentais,
gregas, judaicas, cristãs, do Norte. Dominique Zahan, um grande especialista que escreve em
francês sobre as pessoas da África Central e do Oeste, afirma que o branco para África negra –
os bambara, os hausa, os baranga, entre outros – se refere ao além-mundo. Seres humanos
descendem dos céus onde todas as coisas são brancas; fato esse que lastreia a ideia de que
bebês negros são supostamente brancos por alguns segundos após o nascimento. De acordo
com Zahan, um albino na África negra é alguém abençoado pelo trovão celestial, enquanto que
iniciados são besuntados de branco indicando sua união com o divino e criaturas anormais são
embranquecidas em água fervente para serem preparadas ao retorno aos céus. Paz, ordem,
alegria, abundância, ancestralidade, lar – tudo isso é característico do branco7.

7 Dominique Zahan, Spirituality, religion and thought of traditional Africa (Chicago, University of Chicago
Press, 1979); “White, red and black: colour symbolism in black Africa” in Colour symbolism: six excerpts
from the Eranos Yearbook 1972 (Dallas, Spring publications, 1977), pp. 55-80.
Victor Turner lista 23 sentidos para o branco entre os ndembu. Incluem-se: bondade,
força, pureza; livramento de infortúnio, de morte, de tristeza, de ridículo; ancestrais; risada;
fertilidade; limpeza, lavagem; tornar visível ou revelar 8.

… O branco, mais que qualquer outra cor, representa a divindade como essência e fonte,
assim como sustentação. O branco como luz emanada da divindade tem, no sentido que
aqui consideramos, uma qualidade de confiança e de veracidade… O branco também é
imaculado e impoluto... Por trás do sentido do simbolismo do branco, portanto, residem
noções de harmonia, continuidade, pureza, o manifesto, o público, o apropriado e o
legítimo9.

“Um sacerdote ashanti irá… Vestir-se de branco como se a morte não o tocasse”10. Entre os
mandari do Nilo, “o branco é a cor do benefício, usado para expressar qualidades morais ou
intelectuais preferíveis, para representar alto status…“11.
Que a África negra seja convertida pelo Cristo branco, que aceite a salvação através do
branco Redentor – que aceite a própria ideia da necessidade de salvação da escuridão
pecaminosa pela luz eterna – parece quase que dado tanto pela supremacia do branco quanto
pela superioridade suposta por essa doutrina teológica. A conversão, podemos dizer, foi
arquetipicamente preparada. Para os cherokee, o branco representa “a paz, felicidade e o sul”12;
para os navarro “a bondade natural”13; em Madagáscar “branco: luz, esperança, felicidade,
pureza”14, na península malaia “o branco é geralmente uma cor auspiciosa“15. No antigo sistema
mágico-religioso incorporado pela filosofia hindu, os três gunas que entram em todas as coisas
são o negro (tamas), o vermelho (rajas) e o branco (sattva), que é a energia mais sutil e mais
primal advinda da respiração (prana), a mente ou a consciência, assim como “a paz”, “pureza”,
“claridade serena”, “repouso iluminado, o benigno e a compreensão“16.

8 Victor Turner, The forest of symbols (Ithaca, Cornell University Press, 1967, paperback 1970), pp. 69-70.
9 Ibid., pp. 76-77.
10 Geoffrey Parrinder, West African religion (London, Epworth Press, 1949), p. 119.
11 Jean Buxton, Religion and healing in Mandari (Oxford, Clarendon Press, 1973), p. 385.
12 V. Turner, The forest of symbols, p. 84 (Cherokee).
13 Gladys A. Reichard, Navaho religion, Bollinger Series (New York: Pantheon, 1950). 1: 189.
14 V. Turner, The forest of symbols, p. 82 (Madagascar).
15 Ibid., p. 83 (Malay peninsula)
16 Heinrich Zimmer, Philosophies of India, Bollinger Series (New York: Pantheon, 1951). Pp. 229-31 & n.
Noções como essas podem ter afetado a percepção dos povos indígenas de todo o
mundo quando, por exemplo, foi reportado a Montezuma: “Nosso senhor e rei, é verdade que
povos estranhos têm vindo das praias do grande mar… Eles têm pele muito clara, muito mais
clara que a nossa”. Frederick Turner afirma que, possivelmente, Montezuma “pensava que
talvez esses estranhos seres brancos do Leste fossem o deus Quetzacoatl que retornava…”17. O
que houve com a obscura suspeita animal, que pertence ao encontro com qualquer coisa
estranha? A branquitude suprimiria a consciência instintual, banindo da consciência a própria
possibilidade do dano pela paz branca, amor branco e inconsciente branco, como os navarro
que usavam argila branca para banir espíritos inimigos? “Nas costas do Atlântico da África, a nau
europeia não encontrou nem resistência, nem controle”18.

Eles viram um grande navio aparecer no amplo oceano. Este navio tinha asas brancas
que brilhavam como facas. Homens brancos vieram da água e falaram palavras que
ninguém podia compreender19.

Tal particular chegada foi recebida com medo e “chuva de flechas”, pois o branco significava o
outro mundo do além e seus pavorosos fantasmas.
Se a conversão estava arquetipicamente preparada20, as conquistas do México e do
Peru, a colonização da Índia e das Índias por um punhado de homens “brancos” (isto é, europeus
cristãos), o colapso das sociedades nativas americanas e de tantos povos de tão diferentes cores,

17 Cf. Frederick Turner, Beyond Geography (New Brunswick: Rutgers University Press, 1983), p. 160.
18 Ferdinand Braudel, The perspective of the world, 3. vols (New York, Harper & Row, 1984) 3: 434.
19 Ibid.
20 Contra tal descrição arquetípica, a antropologia estrutural argumenta que nenhuma cor, como o
branco, tem um sentido intrínseco: o sentido é frequentemente reversível a depender do contexto e de
outros fatores. A verdadeira bipolaridade da cor em sentidos opostos não é branco x preto, ou branco x
vermelho, etc, mas a presença x ”ausência de cor ou a existência de dois cromatismos de distintos tons
[um tom mais destacado, outro menos destacado]. Essas observações tornam possível prescindir de uma
teoria que faça uso de concepções como ‘arquétipo’ ou um ‘inconsciente coletivo’. São apenas formas, e
não conteúdos, que podem ser comuns” (C. Lévi-Strauss, The savage mind [Chicago: the University of
Chicago Press, 1966], p. 65) A oposição entre conteúdo e forma na teoria do pensamento de Lévi-Strauss,
assim como no seu monoteísmo – isto é, a ideia básica e única da oposição binária em que o sentido dos
polos pode ser revertido sem alterar o significado de suas estruturas – levanta a questão se a “oposição
binária” é puramente formal ou se ela mesma também não é um conteúdo, com um sentido denotativo
intrínseco à mente de qualquer povo, sendo assim, portanto, “arquetípica”.
nos culto a cargo do século 20, essas catástrofes genocidas e culturais exemplificam, então, não
somente a vitória da história linear sobre o mito cíclico, da tecnologia sobre o ritual, da ordem
abstrata monoteísta sobre a vida concreta politeísta, do capitalismo sobre a permuta, da crença
na transcendência impalpável sobre a imanência animista estética, do álcool sobre a botânica,
do superego sobre o id – em acréscimo a todas essas razões para a ruína, devemos também
supor uma linha subjacente arquetípica que colore a todos os outros do mesmo, a supremacia
a priorística da branquitude.

B. O segundo grupo de sentidos conota inocência. Abandonamos o pai arquetípico do


céu pela criança arquetípica: desamparada, simplória, desprovida de poluição, corrupção,
mácula ou mal. O branco como o cordeiro; inofensivo como uma pequena mentira branca; puro
como a neve; branco como o lírio; o menino ingênuo e o filho branco que são os melhores, os
favoritos.
No jargão psicológico contemporâneo, esse sentido de supremacia branca aparece
como a inocente incolumidade do “narcisismo primário”, a condição que imagina a cura como
uma imitatio Christi: ferindo, sangrando, decaindo o curso inevitável do tratamento, o amargo
suspiro analítico, o soldado com sua lança agora tornado analista, apontando, penetrando
insights.
A supremacia aqui conota o começo do céu ou de outro lugar, imaculado, anterior à
Queda, anterior ao nascimento pelo sangue da terra, a supremacia da perfeição do
resplandecente Jardim, Filho de Deus, conhecedor de todas as coisas, exceto de sua própria
nudez.
A alquimia dá nomes brancos para materia prima ou para a condição primeva. Selecionei
alguns termos dos mais de 100 que encontrei para a definição de materia prima no dicionário
de Ruland de 1612: umidade branca, fumaça branca, magnésio branco. Latão, no que diz
respeito a sua brancura. Noiva ou Eva. Leite de virgem; virgem pura, não contaminada. Céu, pois
é luz e claridade. Lixívia, pois ela lava e limpa metais. Urina de cordeiro branco. Mármore, cristal,
vidro – tudo que é claro e inteligível. Primavera. Lua. Jardim. Prata. Brancura. O Cordeiro.
Estas imagens aparecem no começo das operações que sofisticam a alma, operações
que maceram, apodrecem e dissolvem a inocência primária. O branco nada mais é que uma
página ignorante, em branco, a estupidez condicional do início.
Se a brancura celestial sustenta sua supremacia ao incluir todas as nuances, unificando-
as sobre uma translucidez idêntica a si mesmo (o branco é a totalidade do espectro visível
indiferenciado em seus graus sensíveis – OED), esse segundo tipo de supremacia sustenta a
pureza pela exclusão. A inocência exclui: “inocente” literalmente denota ausência de
nocividade; desprovimento de machucados ou feridas – uma noção privativa de supremacia.
Seus confins, como os da criança, são pequenos demais para as diferenças que, então, devem
vir de algum outro lugar, ser de responsabilidade de outros, como Herodes, os romanos e os
judeus, como se seu tipo de supremacia convidasse ao ataque destruidor. Para essa perspectiva,
branco e preto não constituem meramente um par, mas um par de opostos contraditórios. O
branco se torna necessário para a branquitude enquanto seu correlativo, aquilo por meio do
qual o branco assume uma definição defensiva, exclusiva, como i-maculado, im-poluto, i-
nocente. Porque sua pureza necessariamente constela aquilo que ela não pode incluir, ele não
pode se deslocar a menos que decaia. Tanto perfeição quanto precariedade, o branco necessita
de auxílio para defender sua supremacia, vítima da sua própria exclusividade experienciada
como presa na mão de outros inferiores.
Esse tipo de supremacia branca aparece nas teorias contemporâneas analíticas que
divinizam uma criança imaculada que é guiada por outros até sua queda na sexualidade;
seduzida, usada, pervertida, abandonada. Aqui penso no arquétipo da criança inocente e na sua
supremacia branca que ganha forma em teorias como as de Alice Miller e Jeffrey Mason; aqui
penso na idealização infantil e na supremacia branca disfarçada de seus seguidores, seduzida
pela inocência e pervertida pelos caminhos sombrios da psicologia profunda ao abandonar a
criança polimorfa e multicolorida por uma criança que é inócua e narcisicamente branca.
Porque é um efeito do branco, seja por pigmentação, luz ou palavra, unificar as
diferenças, tanto o primeiro conjunto de sentidos – céu, divino, espírito – como o segundo
perdem sua distinção. As noções de branco derivadas da criança se tornam espiritualizadas; a
ignorância infantil recebe autoridade espiritual, a criança protegida pelo pai, inocência de
submeter-se nos assuntos do pai como se fossem seus, inocência agora tornada uma forma de
superioridade, e não um frágil começo ou uma cegueira narcísica. Ademais, e ainda pior, o
espírito se torna absoluto, isto é, absolvido das feridas da dúvida, da culpa, do pecado, da
vergonha, da autoconsciência. (A autorreferência raramente promove autoconsciência. Por isso
que Jung definia individuação como diferenciação, e não unificação).
A espiritualização adamantina da inocência, junto com arrogância do espírito de sua
própria ignorância – essa duplicação de duas supremacias gera uma consciência anestesiada de
sua própria luz. Ela não consegue perceber que a pureza pode ser assassina. “O assassinato de
inocentes” também significa por inocentes, por aqueles que são supremamente inocentes de
sua própria capacidade de assassinar. “White Massacre” [massacre branco] e “White terror”
[terror branco], como foram chamados21. O que tal consciência branca não sabe ou sente ou vê
não pode feri-la, por isso ela persevera pela repressão e através de projeções idealizadas.
Aqui geram-se os enigmas do mal na teologia ocidental (uma vez que não há espaço
para o não-branco seja no céu, seja na criança), a intolerância racial na sociedade e a negação
da Geistenkrankheit na psiquiatria (o espírito não pode adoecer, argumentava-se, somente a
mente humana ou a alma). E aqui gera-se o elenco do inconsciente, a própria definição de
inconsciente à qual deveremos voltar posteriormente. Inclusive, essa supremacia branca é
reforçada, e até mesmo promulgada, em nossa cultura como a natureza essencial de Deus pela
união do pai com o filho. Por isso, obviamente, nossa cultura sofre de “amor branco”: amor
como um comando patriarcal e como uma inocência infantil, um amor brando de compromissos
cândidos, sempre surpreso e sujeito a incursões da cólera amarela, engano e inveja, as
Inflamações escarlates e as profundezas negras do inferno.

C. A terceira convenção localiza o branco no contexto da anima. A Deusa Branca de


Robert Graves é a amplificação mais clássica desse tema. Junguianos estão familiarizados com
as associações simbólicas do branco com a anima a partir dos escritos alquímicos de Jung sobre
Luna e o albedo (CW 14), um tópico que já tratei em dois longos ensaios22. Em resumo, essa
convenção equaciona o branco (leukos, leuki) com a beleza feminina, afável, vulnerável. Ela
aparece na Grécia homérica e clássica, e até mesmo nas pinturas egípcias nas quais era
costumeiro retratar a carne feminina em branco. Em Ecclesiazousae [Assembleia de mulheres]
de Aristófanes, as mulheres tomam a cidade; uma heroína toma sol todo o dia para adquirir uma
aparência masculina (bronzeada) promovendo a perda do “branco” de sua pele.
A Penélope de Homero é clara, os braços de Hera são brancos, os de Afrodite também
e as Mênades têm braços, pernas e pés brancos. Helena, Arete, Andrômaca e Nausícaa têm
braços brancos e, para Sófocles, Antígona é branca. Para Eurípedes, o pescoço de Medeia, o
pescoço de Efigênia, o pescoço de Fedra, a carne de Alceste, os pés e o pescoço de Glauce –
todos são claros, pálidos, brancos23. (As personagens shakespearianas Julieta, Rosalinda,
Marina, Helen, Helena, Hermione e Rosalinda têm mãos brancas, e Ofélia tem busto branco).

21 Cf. James Hersh, “From etnos to polis”, Spring 1985: 60. [N.d.T. porque tais termos não existem na língua
portuguesa portando o sentido referido de inocência, optou-se por deixá-las no original com a tradução
aproximada em colchetes].
22 Cf. James Hillman, “Silver and the white Earth (parts I and II)” in Spring 1980-81.
23 Cf. Irwin, Colour terms, pp. 112-35, sobre “mulher branca” como uma convenção literária grega.
Até Dionísio nas Bacantes (1457) – enfatizando sua suavidade e vulnerabilidade – tem pele clara
(leukos) que, para Penteu, significava efeminação.
Leukos como efeminação aparece também no termo “white-livered” (ou “lily-livered”),
que significa pusilânime, maricas, covarde24. Para os gregos, tais termos também significavam
ter emoções simplórias, bobas, tolas (isto é, ingênuas), uma vez que o fígado [liver] é tanto o
trono das paixões sanguíneas quanto o da bile negra da fisiologia imaginativa grega. Em
acréscimo à metáfora, uma pessoa pusilânime, de “fígado branco”, não teria estômago para
lutar (apresentaria uma bandeira branca, uma pena branca, jogaria a toalha), não teria coragem
[guts], nem colhões, sugerindo, portanto, que efeminação ou predominância de anima
correspondem a uma ingenuidade infantil em relação às paixões mais escuras (negras, azuis e
vermelhas); ou paixão alguma pela escuridão.
À despeito dos sentidos da anima para a beleza como tendo carne clara, pele luminosa
e radiante, o branco aqui não mais implica supremacia inocente e infantil. O branco aqui não
mais significa o divino imaculado, desprovido de machucados ou de vermelhidão. Retém-se a
inferioridade, ela não é deixada de lado, porque o sentido anímico do branco é o do
autoenfraquecimento. Seja ela é chamada de efeminação, suavidade ou vulnerabilidade, essa
noção de branco admite uma inferioridade mortal em si mesma. O local branco e suave (Ilíada
22: 321-25) na garganta de Heitor é onde Aquiles mira para desferir seu golpe mortal. O branco
da anima recorda a doença e a morte.
Essa vulnerabilidade do branco tem paralelos com o embranquecimento na alquimia. O
albedo é duro como a prata e suave como uma descida: um endurecimento firme patente da
mente reflexiva, a mente como um espelho objetivo polido e desprovido do raio de luz de suas
próprias intenções, que é acompanhado por um rápido aquecimento que gentilmente engendra
a vulnerabilidade na alma.
A supremacia – mesmo quando partidária do sentido espiritual e celestial, referente ao
tópico A, ou do sentido da infantilidade e da inocência, referente ao tópico B – pode, entretanto,
estar implicada no branco da anima, referente ao tópico C. Pois a experiência do
embranquecimento da psique geralmente traz uma facilidade confortável, um alívio do oneroso
nigredo de onde tudo eclodiu. Quando do nigredo, a psique sente-se puxada para baixo, para o
seu peso, uma retração ao seu passado pela recordação de seus traumas. Nós experienciamos
memórias traumaticamente: explicamo-nos a partir de relatos redutivos, materializados, e

24 Ibid. p. 151 [N.d.T. – estes são outros termos que não possuem tradução para o português que preserve
a associação ao branco]
definimos a realidade depressivamente como dura, desprovida de imaginação e degradada.
Reflexões feitas através de um espelho opaco.
O albedo ameniza o humor, como quem usa o branco ao redor de pequenas áreas de
cor em uma tela para atenuá-las, embranquecendo sua intensidade. Agora o conteúdo descansa
na lua, suprema na lustrada distância psicológica, Luna a Rainha, todos os matizes conflituosos
esvanecidos na equanimidade do branco, a psique tão bela, tudo é metafórico, tão aparente,
tão ressonante. A supremacia presunçosa, suave da fusão com a anima. Leucoteia, a deusa
branca, protege das tensões no mar25; “a associação do branco com deidades que trazem calma
está relacionada a brancura da calma em si mesma”26. A própria essência do branco, a forma do
átomo que o compõe, de acordo com a teoria atomista de Demócrito, é “suave”, “sem nuances”
e “translúcida”27. “Aquela sua pele mais branca que a da neve, tão suave quanto alabastro
monumental”, disse o negro Otelo (V, 2, 4) abertamente a respeito de Desdêmona, mas que
também descreve uma anima idolatrada cuja suavidade apresenta nenhuma falha obscura,
nenhuma aresta.
“… O albedo, que para muitos alquimistas era o clímax do trabalho“ (CW 14, parágrafo
388), acrescenta mais uma noção para a suave e branca ideia de totalização em que, como disse,
“tudo se torna um” (ibid.). A sombra do branco primário, cujas condições diminutas, leitosas,
infantis, se tornam imperceptivelmente misturadas no seio da confortável unidade lunar.
Quando se acredita ter alcançado a opus, volta-se de novo para o princípio ignorante da matéria
prima. Delírios induzidos pela supremacia. Para prevenção do encantamento onírico da alma
pelo seu próprio potencial lunático, um desatino não experienciado como loucura, mas como
colinas brancas à luz do luar, tão variadas, tão bonitas, tão novas, a alquimia recomenda
aumentar o calor para que venham o amarelo e o vermelho. Circulatio: mover-se de maneira
circular e descendente. Iteratio: repetir, tanto quanto for possível. Pois o verdadeiro branco
alquímico carrega o negror em si, o azul da memória e do arrependimento28, na medida em que
ele intenciona chegar ao amanhecer, a um despertar de si mesmo através do amarelecimento.
Não é mais o branco caiado, o mero branco, de fato não há mais branco puro.
Um branco amarelado é um tanto mais complexo que o branco puro, é manchado e,
portanto, capaz de manchar, de “tingir” como dizem os alquimistas, ao invés de meramente
refletir, um branco contagioso que ultrapassa a si próprio, que se espalha, e constitui um quarto

25 Ibid., p. 185.
26 Ibid., p. 186.
27 Theophrastus, On the senses, ed. G. M. Stratton (Amsterdam, Bonset, 1964), parágrafo 73.
28 Cf. J. Hillman, “Alchemical blue and unio mentalis”, Sulfur 1 (1981) pp. 33-50.
conjunto de sentidos: o branco como doença. Me refiro especificamente aqui ao termo judaico
bíblico laban, exemplificado pela descrições da lepra no Levítico, evocado por Coleridge em A
Rima do Antigo Marinheiro: “Seus lábios eram vermelhos, seus olhares livres,/Seus cachos eram
amarelos como ouro,/ Sua pele branca com uma lepra”. Também me refiro ao humor fleumático
na medicina antiga – frio, úmido, inerte – que ainda segue conosco, hoje em dia, no medo dos
laticínios e do muco excessivo, e também na linguagem médica: leucemia; “the whites”; cândida;
a tuberculose que já foi chamada de “praga branca”; e o espectro da velhice, através da pele
pálida, do comportamento arrogante [white-boned], do cabelo grisalho, da saliva branca.
Parecemos agora ter percorrido um longo caminho da supremacia do branco desde que
começamos este ensaio. Mas as conclusões ainda estão por vir.

Uma conclusão moral

É precisamente esse aspecto pálido e leproso que nos conduz à moral dessas notas. “Moral”
porque as questões da sombra necessitam de um estilo moral de retórica. (Uma forma precisa
de reconhecer a emergência da sombra em uma sala é quando o discurso assume um tom
moralizante. A palavra “dever” não somente aciona o superego: ela também anuncia o medo da
sombra). A moral dessas notas conclui que o branco lança sua própria sombra branca, que
possui sua própria doença que, como o branco, é indiscernível, e especialmente indiscernível,
da consciência definida em termos de luz.
Uma vez que a fase do albedo é essencial, senão equivalente, a unio mentalis, nela
sentimos nossa mente unificar-se, a dissolução de dúvidas assustadoras, de suspensões
escurecidas e de dissensões internas. Nos sentimos purificados da sombra pela supremacia
branca. Em razão disso, alguns alquimistas acreditavam que o trabalho findava aí.
No entanto, assim como a argila branca dos navarro afasta inimigos fantasmas, “o
aspecto moral do embranquecimento”29 pode de fato consistir da autoenganação de que os
fantasmas são expulsos quando são mesclados, formulados pela filosofia como a “identidade
dos indiscerníveis”. Ainda que as diferenças entre o branco e a sua sombra não sejam
perceptíveis (por exemplo, não conseguimos ver a sombra de nossas ideias brilhantes, boas
ações, crenças verdadeiras, motivos honestos, belos sentimentos ou qualquer tipo de virtude
cristã que enobreça as conquistas, as glórias, os triunfos e os espólios da missão cristã), elas não
deixam de estar lá. Cristo e César indiscerníveis. Como Leibniz argumentou, diferenças

29 M-L. von Franz, Aurora Consurgens (London: Routledge, 1966), p. 243.


intrínsecas, mesmo quando indiscerníveis, não cessam de existir30. A sombra do branco pode
ser branca, mas ainda assim é sombria. Agora, a tarefa moral não é mais fazer o bem e ser
verdadeiro, harmonizar e integrar, mas diakrisis. “Discernir ou perecer”31.
O discernimento concebido por uma fantasia pouco sofisticada de “diferenciação de
opostos” desloca as sombras do branco para o negro do outro lado do espectro de extremos.
Como um junguiano, eu sempre imagino que os extremos se tocam, porque essa fora uma das
máximas favoritas de Jung. Mais do que se tocar: elas se misturam, se entrelaçam, se associam,
de maneira que todos os muitos anjos brancos são igualmente demônios brancos, o pharmakon
curativo do amor branco que também é um veneno, a magia branca ou o menadismo branco (E.
R. Dodds) que não são menos mágicos ou menádicos porque são brancos. Definamos o mal não
pela ausência do bom (privativo boni), mas pela própria presença do bom, de todas as formas e
para sempre intrinsecamente coincidentes. “Não pode haver consciência sem a percepção das
diferenças”, diz Jung (CW 14, parágrafo 603). Para que mereça esse nome, a consciência não
deve fugir da compreensão de sua propensão à cegueira intrínseca de cada evento particular,
tampouco escapar por meio da esquiva dos opostos, que permite um lado estar certo e ser
branco e, portanto, ser também imoral e inconsciente. A consciência é, de uma só vez,
fundamentalmente clarificante e autoenganadora. Portanto, quando o branco aparece em
sonhos, ou em pensamento, ou na vida, seja grato, mas esteja atento.
Todos os momentos de lustrosidade da prática terapêutica, seja pelo brilhantismo, pela
suavização ou clarificação de problemas ou as transfigurações salvacionistas do insight, sofrem
do lisonjeio [snow job] delirante da supremacia branca que transforma forçosamente distinções
em oposições, cindindo o branco e o preto; “…esquizofrênicos mostram uma alta preferência
pelo branco” no teste das pirâmides coloridas, e “a incidência do branco com o sinal
patognomônico da esquizofrenia já foi relatado” por outros investigadores 32.
As diferenças não competem entre si, nem se contradizem, tampouco se opõem. Ser
diferente como noite e dia não requer uma oposição entre noite e dia. “Branco e preto”, diz
Jean Buxton sobre os mandari, “são usados [meu itálico] em situações de conflito ou onde a
oposição é constatada”33. Eles se opõem pragmaticamente por um propósito funcional ou

30 “Pois nunca há duas coisas na natureza que sejam exatamente iguais e das quais não se possa inferir
uma diferença interna...” (Leibniz, Monadology, 9). Cf. “Identity” in The Encyclopedia of Phylosophy (New
York and London: Macmillian, 1967), 4: 122 a & b.
31 F. Nietzsche, The dawn of day, 460.
32 K. W. Schaie, “The color pyramid test”, Psychol. Bull. 60/6 (1963): 540-41.
33 J. Buxton, Religion and healing in Mandari, p. 389.
estético, como ao pintar uma camada de tinta negra sobre um campo branco para causar uma
forte impressão. Entretanto, esse uso pragmático do destaque para um conflito não enseja uma
oposição necessariamente ôntica, na qual, em sua natureza, o negro e branco seriam opostos.
Berlim & Kay postulam o branco e o preto como termos de linguagem que sempre aparecem
juntos. Mas é Berlim & Kay que os afirmam como opostos, aplicando sua (in)consciência branca
ao material linguístico. Essa separação, esse apartheid, conceitua distinções inerentes da
sombra dentro de cada um dos elementos como extrínsecas, o branco perdendo sua sombra no
negror.
O negro, como podemos notar, não apresenta tal inclinação a uma supremacia. Nós
vemos que na África negra, como relatado por Zahan, é o branco que carrega os sentidos de
especial, céu, bom, divino, na medida em que o negro, como reportado por Victor Turner,
conota doença, feitiçaria, má sorte, sofrimento, trabalho e morte – assim como a nossa peste
negra, magia negra, desmaio [blacking out], baile negro e lista negra. (O objeto dessas notas
seria a expansão e a posterior diferenciação dos sentidos “inferiores” do negro atribuído às
pessoas lidas como negras34. Do mesmo modo, na linguagem da pintura, “sombreamento”35 se
distinguiria de matiz, tonalidade, intensidade e valor ao implicar uma mistura com negro; aqui
também o negro acolhe um sentido de sombra. Também reconheço que o vernáculo das
populações negras da América do Norte está repleto de sombreamentos para as chamadas
pessoas de cor: amarelas, marrons, morena, da cor do café, negro azulado e até mesmo rosa.
Podemos falar em estilo literário das compleições brancas como coradas, peroladas,
bronzeadas, apessegadas ou pálidas e, ainda assim, o branco recai em uma única categoria. Os
tons de branco não são vernacularmente agrupados em subconjuntos complacentes. O apelido
“vermelho” se refere ao cabelo ruivo e a sardas). Meu ponto é de que somente o branco ostenta
interiormente uma supremacia que aniquila seus sombreamentos.

34 F. Braudel, Perspective of the world, 3: 440, 435, levanta a questão da escravidão Africana já existir em
monstruosas proporções (“900.000 no século 16, 3.750.000 no século 17, entre 7 e 8 milhões no século
18” enviados para o Novo Mundo). Entretanto, “A África já havia desenvolvido esse péssimo hábito há
muito antes da chegada dos europeus, mandando escravizados para o Islã, para o Mediterrâneo e para o
oceano índico. A escravidão era endêmica na África, parte da estrutura da vida cotidiana...” Poderíamos
substituir a palavra sociológica “endêmica” pela palavra psicológica “arquetípica”? Teria sido essa terrível
possibilidade da escravidão dada não somente pelas estruturas sociais e econômicas das vilas tribais, mas
também pelos sentidos arquetípicos “inferiores” do preto empregado pelos próprios africanos?
35 Calvin Harlan, Vision and invention (Eaglewood, New Jersey: Prentice Hall, 1986), p. 84: “…
sombreamentos (misturas de maiores ou menores quantidades de cores com o preto)”.
Que a branquitude não admita sombra, que sua supremacia rejeite distinções e perceba
qualquer tintura como embotamento, mancha, sujeira ou obscuridade, já foi
extraordinariamente descrito pelo pequeno livro de Tanizaki, Em louvor da sombras. O novelista
japonês apresenta as falhas e a destrutiva ausência de alma de nossos brancos tecidos e
guardanapos, de nossos aparelhos brilhantes e prateados de jantar que esterilizam a experiência
da alimentação; a eletrificação luminescente que endurece e enrijece os nossos interiores; as
privadas de porcelana branca em cubículos de ladrilho branco que fazem nossos escuros
excrementos parecerem ainda mais malcheirosos, estrangeiros e repulsivos; as páginas
alvejadas de nossos livros que não mais convidam a uma paz meditativa; nossos hospitais
brancos nos quais a doença humana se tornou obscena.
Por “distinções inerentes da sombra” dentro do branco, eu me refiro a uma
diferenciação da inocência, por exemplo, em tonalidades – a demivierge, ignorante da
sexualidade biológica, mas dotada de um charme corrupto; o jovem inocente, desprovido de
intenções obscuras, mas repleto de mentiras brancas; o bom inocente, puro como a neve, mas
frio como gelo; ou a plenitude de qualidades [the milk of human kindness] que também pode
ser infantil e insossa [a mouth full of pap]. Penso aqui na necessidade que o cordeiro branco tem
do lobo, na deusa branca que também é um demônio da morte, no ruído branco da Casa Branca.
E também penso nos nossos pós brancos, pílulas brancas, papéis brancos, sprays brancos, a
“poeira” branca, a fumaça branca e as paredes brancas que aparecem em sonhos para erradicar
insetos, anestesiar sentimentos, eliminar ou histerizar sensações, justificar erros e estabelecer
os perímetros de nossas defensividade interior. Eu também me refiro a uma diferenciação do
celestial. Há milhões de estrelas, cada corpo celestial no seu devido lugar e com sua gradação
de luz, assim como no pensamento antigo havia um número incontável de arcontes, anjos,
espíritos, cada um caracterizado por sua própria translucidez. Por que haveria de existir tantos
anjos, alguns tão pequenos que poderiam dançar na cabeça de um alfinete, senão para propiciar
uma intensa e concentrada impressão da diferença individual? Nenhum igual ao outro,
diferenças que são perdidas quando alvejamos eventos com palavras simplórias e pálidas, como
bom, espírito, amor, criança, consciente, anima, todo, cura, ajuda – palavras que levam adiante
a missão branca da psicologia. Anjos, cada um com nome, rosto e voz, são cruciais para distinguir
as variedades do branco. Sem as distinções angélicas, a consciência branca se torna
inconsciência, isto é, insanidade. A perda dos anjos brancos constitui a queda na raça branca.
“Discernir ou perecer” – se a consciência é diferenciação, como diz Jung, então cada
branco deve ser diferenciado pela imagem que apresenta. Qual é o tipo desse branco neste
sonho, neste comportamento: o branco da morte? O branco da noiva? O branco do cordeiro? O
branco do leite? Qual é a tonalidade do branco: cegante? Acinzentado? Prateado? Quando,
onde e como ele aparece: em uma página em branco, em um remédio para dor, no cabo de uma
tesoura de corte, o longo vestido de uma mulher morta? Cada tipo de branco carrega
conjuntamente seu trunfo específico e sua ameaça específica; ou seja, cada tipo de branco
oferece uma modalidade de supremacia junto com uma sombra específica a essa supremacia.

Uma excursão psico-histórica

“O branco lança a sua própria sombra”. Essa conclusão pode ser aprofundada quando
afirmarmos: “o branco vê sua própria sombra no negro”, não porque sejam inerentemente
opostos, mas porque são arquetipicamente dados pela imaginação dos opostos da branquitude.
Afirmemos novamente: a supremacia do branco depende de um imaginário oposicional.
Quando a percepção do branco aqui enseja percepções simultâneas do negro lá, tem-se
o que comumente é chamado de projeção. Todavia, a projeção funciona de maneira dupla. A
recíproca também é verdadeira: a percepção do negro lá resulta em uma identificação do branco
aqui. Esta regra psicológica tornou-se um caso histórico. A identidade “branca” dos homens
cristãos do norte do Ocidente começa (no caso dos ingleses) somente após a sua chegada na
costa do oeste africano, em meados do século 16.

A característica mais marcante dos africanos recentemente descobertos era sua cor. Os
viajantes raramente deixavam de comentar sobre tal elemento. E, de fato, quando
descrevendo negros eles frequentemente começavam com sua compleição, então
seguiam para a roupa (ou falta dela) e, em seguida, para as maneiras… Os homens
ingleses de fato descreviam negros como pretos – um termo exagerado que, em si
mesmo, sugeria que a compleição do negro tinha forte impacto sobre suas percepções.
Até mesmo as pessoas do norte da África pareciam tão escuras que os homens ingleses
tendiam a chamá-los de “pretos”, deixando posteriores refinamentos de lado. 36

O primeiro uso do termo “branco” para caracterizar um grupo étnico ocorreu em 1604
(OED), após a percepção dos africanos como negros. Em 1680, diz Jordan, “tomando as colônias
(americanas) como um todo, um novo termo apareceu – branco” (p.95). Mesmo que
escravizados negros fossem batizados e negros se juntassem à igreja como membros plenos
(Massachusetts) tão logo como 1641, o termo mais comum que os colonizadores usavam para

36 Winthrop D. Jordan, White over black: American attitudes towards the Negro, 1550-1812 (New Tork,
Norton, 1977), p. 4.
designar eles mesmos durante o século 17 era “cristãos”. “O cristianismo tinha, de algum modo,
se vinculado íntima e explicitamente com a ‘compleição’”.

Então, desde o início o vis-à-vis com negro, o conceito presente no termo cristão parecia
compreender muito mais que a ideia e o sentimento de um nós contra um eles: ser
cristão significava ser civilizado ao invés de bárbaro, inglês ou invés de africano, branco
ao invés de negro. (p. 94)

“Desde o início”, o pensamento oposicional, como disse Jordan. Pensar em branco-e-preto.


Pessoas identificadas pela cor se tornam identificadas com a cor; africanos que não se
percebiam como “negros” se tornam “negros”, uma descoberta da consciência branca. A
escravidão do oeste africano começa psicologicamente não nas estruturas da sociedade negra,
como indicado por Braudel37, nem mesmo na supremacia inerente à branquitude acima descrita
(tópico A e B), mas no próprio seio do pensamento oposicional. Mesmo que intitular-se negro
reclame o orgulho da linhagem africana em sua história de sofrimento, ainda se permanece
dentro da mesma estrutura arquetípica da branquitude presente na mentalidade dos primeiros
escravocratas. O “negro” pode ser belo, mas é um termo branco. Gregos, hebreus, romanos,
cruzados, venezianos, portugueses, espanhóis – nenhum deles se intitulavam “brancos”,
nenhum possibilitou uma invasão do mundo humano das pessoas pelo reino arquetípico da cor,
inflando e depreciando humanos com valores transhumanos – um modo discursivo que se inicia
com a consciência moderna e alcança seu apogeu no colonialismo do século 19: indianos
“vermelhos” como selvagens, o perigo “amarelo”, o fardo do homem “branco”. Liberdade da
escravatura, aqui, significa liberdade não meramente do senhor branco e do jogo da
branquitude; ela também significa vencer a mente oposicional que coloca o branco contra
qualquer tipo de cor, o espectro de cores, o constituinte essencial da branquitude.
O embranquecimento do Ocidente seguiu concorrentemente ao enegrecimento do
resto do mundo. Esse crescimento foi mantido dentro do termo negro muito antes de qualquer
pessoa anglófona chegasse à costa do oeste africano.

Como descrito pelo OED, o sentido do negro antes do século 16 incluía, “profundamente
manchado de terra, solo, sujeira, imundície… Propósitos obscuros ou mortais,
malignidade; pertencente ou envolvendo a morte, mortal; Pernicioso, desastroso,

37 Braudel, ver nota 34 acima.


sinistro… Faltoso, iníquo, atroz, horrível, perverso… Indicativo de desgraça, censura,
obstáculo a punição, etc” 38

A lógica de opostos preserva o branco dessas tão perversas noções. O branco não possuiria
propósitos mortíferos, não poderia ser inimigo ou maligno ou passível de punição. O povo
branco é puro e livre de censura39, como se a identidade étnica branca fosse, em si mesma, uma
fonte batismal que assegurasse salvação, como se a linguagem do branco, só pela virtude de
suas ressonâncias arquetípicas, pudesse restaurar a pureza, eliminar o pecado, a culpa e a
vergonha, como se a mistura do sangue em relações de mestiçagem fosse a pior de todas as
traições identitárias do grupo branco40, porque ela empiricamente destrói a lógica de oposições
que declara que onde o branco está nenhuma mistura de cor pode ser admitida, a lógica da
exclusão que rege a vida social. De que outra forma explicar a inconsciência moral, a incrível
autossatisfação e as justificativas brandas que acompanham os massacres perpetrados por
cristãos brancos (à despeito das escrituras e da jurisprudência ética), no holocausto prolongado
por séculos, que nossos livros de história chamam de eras de descoberta, expansão e primazia
ocidental?
A predileção branca, à medida que a mentalidade do norte do Ocidente descobria os
povos do Oeste africano nos períodos de 1550-1700, não foi sua única descoberta; ao mesmo
tempo, também se fez descobertas na ótica moderna. Huygens, Kepler, Galileu, Descartes,
Grimaldi, culminando no livro Opticks de Newton (de 1704 – mas que foi apresentado em
escritos e palestras 30 anos antes), que finalmente reduziu o espectro de matizes a partes
fraturadas da luz branca.
A alquimia também floresceu durante esses mesmos 150 anos, embora esse
florescimento fosse melhor descrito como uma última colheita antes do outono: uma grande
variedade de literatura, compêndios abundantes, disseminação (o dicionário de Rowland é de
1612 e os 18 volumes de Agnolo della Casa [1592-1618], cada um com 900 páginas, ou a
bibliografia de Borel de 1654 com 4000 verbetes). A própria alquimia se engajava na
multiplicatio, o último estado do processo por ela descrido, e alcançou a exaltatio influenciando
cortes e reis. Isso se deveu ao retorno a uma condição basilar da prima materia, o estado ao

38 Jordan, White over black, p. 7.


39 Para uma pesquisa detalhada sobre paródia nas atitudes da população branca, ver Martin Mull & Allen
Rucker, The history of white people in America (New York, Putnam/Petigree, 1985)
40 F. Turner, Beyond geography, que no capítulo “Possession” apresenta exemplos de brancos que
escolheram o outro lado e a fúria advinda dessa “traição” da identidade étnica.
qual subsequentemente decaiu (até ser reavivada por Jung), rejeitada como fraudulenta, inútil
ou como “as primícias” do nascimento de novas ciências.
As novas óticas incorporavas outras fantasias acerca do mundo sensível, deslocando a
importância alquímica das cores para revelações de uma natureza essencial com propriedades
psicológicas inerentes, a própria manifestação do divino, o arco-íris de Deus, garantindo Sua
presença na roupagem das coisas. As cores alquímicas estão no mundo, são do mundo e falam
sobre o mundo. Depois de Newton e Locke (1690, primeiramente rascunhado em 1672), cores
se tornaram refrações da luz, não sinal de mistério, tampouco uma virtude essencial, mas o
efeito secundário produzido pelo conhecimento humano das leis abstratas. As qualidades
subjetivas da cor foram realocadas para o sujeito literalizado. Não mais as cores do mundo lá
fora, somente agora a mecânica da luz. Com Newton, o branco assume um status supremo, o
equivalente da luz, primário – incolor.

Salve, ó luz, primogênita do Empíreo,


Ou coeterno fulgor do eterno Nume!
Como te hei de nomear sem que te ofenda?
É Deus a luz, – e, em luz inacessível
(Paraíso Perdido, III, 1666)

A coroação do branco pelo paradigma científico o removeu da escala cromática da alquimia. Isso
implicou parcialmente a retirada de valor de seu lugar dentro do processo; do paradigma
científico retirou-se muitas descrições inferiores, vulneráveis e tangíveis, como vimos para os
nomes brancos da prima matéria. A branquitude “eterna“ e “sem culpa” descreve um branco
extremo e supremo, Deus e criança indiscerníveis, ausência de autorreflexão. O branco, elevado
à condição de Deus das cores, transforma-se em uma transcendência invisível, uma fantasia
mais bem acolhida pelo deísmo contemporâneo na religião e pelo emergente iluminismo na
filosofia41. A coroação do branco também sugere uma equação fácil: negro = privação de luz
(ótica) = privatio boni (teologia) = ausência da luz da razão (filosofia). Esta equação na história
social promoveu missões de conversão aos tenebrosos nativos, a justificativa moral da
escravidão, a identificação das pessoas de pele escura com a natureza bruta bestial, estúpida,
desprovida de inteligência (para as quais termos modernos são ainda tomados de empréstimo
para estes tópicos: “brilhante” e “rápido”).

41 Cf. Gilbert Durand, “Psyche’s view”, Spring 1981: 2-5 sobre o século 17 em “Apollonianism’.
A relação entre cores de luz tem um paralelo mítico com texto de Plutarco Sobre Ísis e
Osíris (provavelmente escrito em Delfos, 120 a.C.):

As vestes de Isis são variegadas em cores… As vestes de Osíris, no entanto, não possuem
nada de escuro ou variegado, são de uma única simples cor, a cor da luz; pois a origem
das coisas é inadulterada e o elemento primal que é espiritualmente inteligível é puro.
(Parágrafo 77)

A redução da iridescência à luz branca se traduz miticamente na subjugação da Senhora Ísis ao


Senhor Osíris, as coisas visíveis à lei invisível, a variedade politeísta à monotonia. O brilhantismo
da realização de Newton com o prisma demonstra a natureza da luz às custas da luz na natureza,
tanto a claridade do Iluminismo quanto a sua ilusão inerente.

O inconsciente branco

A convenção que dá forma às descobertas geográficas e a expansão da consciência branca sobre


a África é também a convenção que dá forma à geografia psíquica. A linguagem topológica usada
por Freud para “o inconsciente” como lugar baixo, diferente, atemporal, primordial, libidinal e
apartado da consciência recapitula o que exploradores brancos séculos antes falaram sobre o
Oeste da África. Do Coração das Trevas de Conrad à Aventura ao interior de van der Post, a África
e o inconsciente alegorizam o outro lugar. (A psicologia convenientemente imagina homens
brancos projetando o seu inconsciente na África, mas a projeção funciona numa via de mão
dupla; a geografia da África emerge como inconsciente da psicologia).“Só não permaneça por
muito tempo nas colônias tropicais; você deve reinar em casa”, escreve Freud42 em 1911 para
Jung a respeito de uma jornada que ele mesmo faria para África 14 anos depois, descrevendo as
vastas terras e as populações negras que encontrou numa linguagem que ele também aplica à
psique imemorial inconsciente. Imagens oníricas como florestas e selvas, cavernas e
profundidades oceânicas, porões e pântanos – qualquer lugar desprovido de luz, não mapeado
e desprovido de caminhos (sem methodos), pode ser casualmente postulado por psicólogos
“profundos” como símbolos do inconsciente. Parte do mito da psicologia é de que o inconsciente

42 The Freud/Jung letters, ed. Win McGuire (Princeton: Princeton university press, 1974), 255F, 12 May
1911.
foi “descoberto“43, assim como seus conteúdos foram “explorados”. Até mesmo a noção de
mundo das trevas [underworld] como negro, ao invés de cinzento, enevoado ou invisível deixa
transparecer uma supremacia branca.
Ademais, a “descoberta” de um inconsciente apartado da consciência, como um
continente negro separado de sua branca penetração, mantém a própria inconsciência dentro
do branco que a inventa para feri-la. Pois a ideia de inconsciente deriva da ideia de recalcamento
que Freud pensou ser a mais importante (e até mesmo a causa) do inconsciente. “O
inconsciente” é, acima de tudo, uma ideia pragmática, uma ideia moral, que objetivava a
correção do recalque, isto é, o inconsciente da mente ocidental e do Norte acerca dos limites de
sua própria percepção.
Ao invés de imaginarmos o inconsciente como uma região negra descoberta por Freud,
o intrépido aventureiro, consideremos ele um moralista social, que apresentou uma ideia
punitiva na linguagem de um novo lugar, uma ideia que se tornou moralmente necessária – e
abominável – para a supremacia branca, uma vez que ela limita a sua liberdade (como
Grenzbegriff), corrige seu cristianismo (como Freud e Jung, de maneiras distintas, insistiam),
expande o seu etnocentrismo aos universais coletivos e, ao colorir sobre branquitude com
variedade, desafia sua superioridade e mancha sua inocência. E a consciência branca
inconsciente que é o objeto próprio da psicologia profunda, a profundidade encontrando seu lar
ao aninhar-se fora da África; profundidade no sentido de Freud, de uma fantasia onipotente, e
no sentido de Jung, de uma sombra: sempre presente e sempre minha, o verdadeiro eu que eu
sou agora, imaginando-me eterno e desprovido de culpa. Do mesmo modo que essas notas
reafirmam a insistência de Jung sobre a sombra e seu ódio moral sobre a missão africana de
Albert Schweitzer. Não lá, mas aqui.
Ainda assim, a noção de sombra de Jung, como a de inconsciente, emerge do topos
branco que descrevemos. Mesmo que sirvam ao objetivo de autocorreção, as ideias de sombra
inconsciente estão sustentadas pela teoria dos opostos e localizam a consciência na luz, no dia,
na luminosidade, na atividade, etc. Do mesmo modo, a totalidade dos esforços da psicologia
moderna para produzir consciência, com seu ego formulado para representar esse esforço, é
mais uma manifestação da branquitude, que perpetua a própria falha que deseja sanar. Seu
projeto nunca pode obter êxito visto que, assim, o inconsciente redimiria as mentiras existentes
no instrumento de sua própria iniciativa, no olho de sua luz.

43 Ver, por exemplo, o importante clássico de Hellen F. Ellenberger, The discovery of unconscious (New
York: Basic books, 1970).
A psicologia assume que a repressão, a projeção e o inconsciente são as pedras
angulares das leis da mente. Contudo, elas só são fundamentais para o topos de suas origens –
o norte branco, o Ocidente cristão, a história moderna. Que essas noções sejam um a priori da
alma ocidental do Norte é algo verdadeiramente descritivo da alma: ela reprime, ela projeta, ela
é imensamente inconsciente. É assim que a alma se identifica com sua consciência, a defende e
sobrevive. Enquanto a consciência branca se mantiver dentro das metáforas óticas (claridade
máxima e foco centralizado) e dos símbolos de agudeza (a faca da discriminação), onde poderão
os outros animados e excluídos emergir senão dentro desse outro lugar como “projeções”,
animismos, milagres, sincronicidades? O inconsciente se torna o vasto excluído da psicanálise,
um imenso iceberg submerso, e a consciência sua pequena cabeça branca.
Se há uma história da consciência, então há também uma história da mudança dos
mecanismos de defesa dos quais a consciência depende. Como Bailey demonstra (abaixo), a
projeção de fato tem sua história nas lanternas mágicas; e a noção de projeção na alquimia em
nada corresponde às nossas ideias modernas sobre a psique inconsciente do operador. A
alquimia confinou a projeção na totalidade da opus: o despojamento ou efusão de uma
substância na outra, efetuando, portanto, sua transmutação. Essas noções mais antigas foram
“internalizadas“ pelas fantasias do sujeito da psicologia moderna, que deitou véus emocionais
sobre seus objetos. Agora, no fim do século, reconhecemos a experiência pós-moderna do
mesmo termo. A projeção não está mais confinada na atividade psíquica subjetiva que
externaliza as fantasias incompatíveis com sua assim chamada consciência. Ela não é mais
meramente uma questão da mente branca atribuindo seus atributos obscuros às pessoas
negras.
Nós hoje experienciamos a projeção como a própria ciência de nossa alta civilização; a
fantasia da supremacia branca permanece latente em seus impulsos ascendentes, em seu wurf
ou dejeto. A projeção de cada projeto, programa, problema, prognóstico, produção, profissão.
O que não é projeção, afinal? Por meio de qual critério discernimos a ação da atuação [acting
out]? O que o olho branco vê no horizonte senão a candência [white heat] de sua própria
extinção projetada? A projeção agora não é reprimida; ela se refere ao que é de fato vivido em
nossos projetos mais deliberados. O que nós chamamos de consciência hoje é simplesmente a
projeção. Até mesmo aquela consciência cujo projeto é o recolhimento das projeções, de sua
integração a um todo maior, é um “ponto de vista” abraçado pelo mesmo topos projetivo, a
imagem na caverna. As sombras que dançam na parede não podem ser medidas pela atenção
centrada de uma luz melhor focada, assumidas como minhas; elas podem ser capturadas
somente por um olhar de esgueire, periférico, um instante de soslaio que respeite sua
independência como uma cintilância da rocha que é dada pela rocha. Pois não mais desejamos
separar o dançarino da dança, ou sermos os invasores da caverna tentando tão sinceramente
não projetar mais. Perguntar pelo “ponto de vista” é afirmar o que é consciente, o que é
projeção, ou se a parede da caverna é mais inconsciente do que o que vemos. Eu viro minha
face para a parede; a parede é o que eu tenho 44.
A articulação posterior de Jung sobre o “inconsciente” vindo da alquimia começa na
parede rochosa, na natureza, e não na mente humana. Esse “inconsciente” é um campo escuro
de pequenas percepções (Leibniz), de fagulhas vivas, olhos de peixe cintilantes – lumen naturae,
a luz da natureza como ilhas da consciência. Esse “inconsciente” oferta uma mudança radical de
metáforas com implicações étnicas. Uma vez que há essencialmente a uma sombra na luz, então
há sempre e essencialmente uma luz na sombra. Nada pode ser literalmente só “consciente” ou
só “ inconsciente”; de fato, “discernir ou perecer” se tornou impossível uma vez que o meio pelo
qual discernimos requer discernimento. Não há um ponto de partida que não seja inconsciente.
Não há uma luz totalmente branca, nenhuma percepção imaculada. Somos todos mestiços na
mente.
E todas as coisas, das bestas aos prédios, fosforescências, luminosidades na escuridão;
todas as coisas que ostentam negrores, seja moral, racial ou geograficamente imaginadas,
possuem olhos de peixe; a luminosidade transmitida mais de perto do que no firmamento dos
céus, luz agora aproximada, pan-luminosamente, nos galhos e pedras que partem ossos
brancos. “O inconsciente” torna-se novamente uma autodestruição requerida para a
autorregulação, até mesmo autopreservação, limitando a brancura não pelos arredores negros
da oposição, mas pela inquietação ocasionada por luzes alternativas. Peixes por todos os lados,
tudo é duvidoso [fishy]. Não mais a África topológica da mente inferior; mas opacidade, suspeita,
ironia, complexidade, densidade e alguma pacífica alegria ao se aliviar do peso do homem
branco da claridade.

Alquimia e sociedade

A apreciação alquímica da cor reconhece a sombra dentro de cada matiz. O rubedo,


avermelhamento, por exemplo, pode dizer respeito a uma imagem da meta, equivalente ao
ouro, ao elixir, à tintura ou à Pedra Filosofal. Mas o vermelho também pode ser violentamente
sulfúrico, ou representar uma fase mercurial, ou a crua terra primal de Adão. Isto é, o vermelho
pode descrever condições que requerem sofisticação e transmutação. O vermelho também

44 Cf. Theodore Roethke, “In a dark time”, Collected poems (1966).


pode ser fugidio ou muito célere, bem como estar representado em outras imagens de zelo, que
evitem o desvirtuamento do trabalho. Mesmo que cada um dos principais matizes possa ser
interpretado simbolicamente, deve-se recordar que são qualificados esteticamente, percebidos
no contexto imagístico, como as cores que, em uma pintura, derivam seus valores das relações
com as outras cores. Josef Albers diz:

Nós podemos ouvir um único tom.


Mas quase nunca conseguimos (isto é, sem nenhum aparelho especial)
ver uma única cor
não conectada e não relacionada a outras cores.
As cores se apresentam no fluxo contínuo,
constantemente relacionado
à vizinhança e condições mutáveis45.

No espectro, um panteão: “nunca um Deus aparece sozinho”, diz Schiller. Policromia, não
monotonia. (Os gregos pintavam suas estátuas de mármore. Em espanto reverente, nós
andamos por entre os seus restos brancos, apaziguados por sua pureza; os originais teriam sido
chamativos demais.) O que Albers chama de “fluxo contínuo, constantemente relacionado” de
cores também serve para as cores alquímicas enquanto campo de metáforas poéticas da
transformação da alma e da natureza, nas quais, como imagens animadas, demonstram sua
vivacidade e inteligibilidade.
O retorno de Jung a alquimia (tornado público nas Eranos Lectures de 1935 e 1936,
quando e onde completou 60 anos) foi um retorno a uma alma colorida e a um mundo colorido.
Também representou um retorno àquela bifurcação da história psicológica exemplificada no
século 17 quando o branco assumiu sua supremacia na ciência, na geografia, na antropologia e
na filosofia moral, e também quando o colonialismo, a escravatura negra, o Iluminismo e o
monoteísmo protestante emergiram como dominantes na consciência ocidental do Norte. Pois
somente no século 17 nos tornamos verdadeiramente “brancos”. (“Depois de
aproximadamente 1680, assumindo as colônias [americanas] como um todo, um novo termo
apareceu – branco”)46 O movimento de Jung para a alquimia reabre essas questões sociais,
ofertando tanto penetração a suas profundidades arquetípicas quanto a possibilidade de sua
transmutação.

45 Josef Albers, Interaction of color (New Haven: Yale University Press, 1963; 1975 edition), p. 5.
46 Jordan, White over black, p. 95.
Considero curioso que Jung atribua o início de sua pesquisa alquímica a um de seus
sonhos italianos47, no qual uma imagem diz para o ego onírico: “agora fomos pegos pelo século
17”48. Aquele século testemunhou uma leitura particularmente cristã e escatológica da
alquimia49 – uma leitura branca – e disso surgiu Psicologia e Alquimia de Jung. E, do mesmo
bojo, os estudos de Edinger50. Mas não precisamos compreender a alquimia como apenas a
receita moral de um processo de redenção à moda cristã. Podemos nos voltar para o trabalho
alquímico de Jung visando uma reversão da história, talvez para redirecionar o seu curso51. Pois
é na alquimia que encontramos uma autocorreção das atitudes que eu estive elaborando nessas
notas – repressão e projeção, o pensamento oposicional ou a cisão, superioridade,
invulnerabilidade, o autocegamento da idealização, o louvor da ignorância, a segurança celestial
– atitudes que são arquetipicamente dadas pela supremacia do branco.
A alquimia fornece uma visão muito diferente da supremacia do branco. Porque seu
trabalho é chamado de opus contra naturam, ela vê (e ouve) através do que nos ocorre
naturalmente, primeiramente, facilmente. O branco celestial, o branco inocente e a calmaria da

47 Sobre os sonhos italianos de Jung e o “complexo italiano”, ver meu Loose ends (Dallas, Spring
Publications, 1975), pp. 160-61 com notas.
48 C. G. Jung/ A. Jaffé, Memories, dreams, reflections (London: Collins/ Routledge, 1963), p. 195.
49 Cf. Stanton J. Linden, “Alchemy and eschatology in seventeenth century poetry”, Ambix 31/3 (1984),
pp. 102-24.
50 Edward F. Edinger, Anatomy of the psyche: alchemical symbolism in psychotherapy (La Salle, Ill. Open
Court, 1986).
51 A noção de que a história é aberta e pode ser redirecionada é essencial para a abordagem psicológica
uma vez que todos os “fatos passados” estão sempre sujeitos a uma revisão psicológica. Reconstrução,
interpretação, integração biográfica – tais elementos essenciais de qualquer psicanálise dependem da
noção de que a história, como insistia Henri Corbin, está em nós, e não nós na história. A reversão de
Corbin da visão usual ocidental de história como uma reunião implacável de forças e fatos exteriores na
determinação da vida se compara à reversão da visão usual ocidental da psique de Jung da psique como
uma subjetividade privada dentro da pele humana. Ao contrário, afirma Jung, não se trata da psique em
nós, mas nós dentro da psique. Juntos, Corbin e Jung nos permitem virar a psico-história do avesso. A
psique abraça a história; a história é uma atividade que ocorre dentro da psique. Do mesmo modo que o
individual trabalha a alma, ele também reemerge na história redirecionando o seu curso, um processo
que podemos testemunhar no percurso de qualquer caso de análise mais prolongada. Corbin e Jung
apontam para o caminho além do eterno retorno de Nietzsche, pois somente retorna a história que não
foi submetida às operações alquímicas e aos deslocamentos na psique. Do contrário, como diz Santayana
(e Freud), somos obrigados a repetir porque a história tornou-se literalizada. Porque ela ainda permanece
como exterior e como um fato traumatizado.
anima são muito simplórios. A opus contra naturam sofistica seus próprios fundamentos – seus
elementos, seus metais e calor. (Não a água ordinária ou o mercúrio comum ou o fogo direto –
mas sempre imagens metafóricas, imaginadas, reflexivas, complicadas.) Nada que seja
naturalístico; tudo é sempre psicológico. Portanto, o segundo branco do albedo sofistica o
primeiro branco e requer, ainda assim, mais transmutação.
Ademais, como o grande trabalho de Jung demonstra, a opus mira na solução do
problema dos opostos – o demônio branco que perseguimos ao longo dessas notas. Dessa
forma, a alquimia é um trabalho contra a branquitude, mesmo quando ela se esforça para
produzir algum branco. Sua forma de resolver o pensamento oposicional não se dá por meio do
balanceamento de ambos os polos, e não se dá pelo estabelecimento de um elo dourado entre
eles, e também não se dá na criação de um terceiro transcendente para além deles; ela ocorre
ao dessubstanciar o próprio princípio da oposição: o problema é solucionado porque ele
simplesmente não mais emerge como tal. Se a supremacia é inerente ao branco, e se essa
supremacia se mantém pela negação da sombra, então é “apenas natural” que a consciência
branca pense e sinta através de oposições, que as assuma como ontologicamente fundamentais,
ou seja, como literais. A fantasia ontológica da realidade como consistente de pares de opostos
é, ela mesma, uma manifestação da mente branca, assim como nossa afinidade pela fantasia de
defesas narcisistas da mente contra o ferimento da autoconsciência. No abandono dos opostos,
pode-se atravessar a supremacia branca.
Ao clamar pela prioridade arquetípica da cor, não sigo apenas Jung e os alquimistas, mas
também Victor Turner. Após pesquisar o papel das cores em contextos arcaicos, antigos e
antropológicos, ele arrisca a hipótese de que o preto, o branco e o vermelho não meramente
compõem linguisticamente a tríade básica da cor (cf. Berlim & Kay), ou que isso só seja
verdadeiro para o caso da África (Zahan), ele vai além: “entre os símbolos mais antigos
produzidos pelo homem estão as três cores” (Turner, p. 88). “Elas também oferecem um tipo de
classificação primordial da realidade”. “Uma vez que as experiências representadas pelas três
cores são comuns a toda humanidade, não devemos aqui invocar um processo de difusão para
explicar sua distribuição” (p. 90). “O ponto que sustento aqui é de que essas três cores, branco-
vermelho-preto, não são para as sociedades simples meramente diferenças de percepção visual
das partes de um espectro: eles são pontes ou condensações de reinos completos da experiência
psicobiológica… “ (p. 91). “Ao representar essas ‘forças’ ou ‘formas de vida’ como símbolos de
cor no contexto ritual, os homens podem ter sentido que poderiam domesticar ou controlar
essas forças para fins sociais, embora as forças e os símbolos sejam biológica, psicológica e
logicamente anteriores às classificações sociais por metades, clãs, totens sexuais, e todo o resto”
(p. 91).
Impressionantes constatações! A força das cores antes das ordens sociais, antes dos
totens sexuais! A transmutação alquímica das cores é um importante ritual, que continua
inserido na psicanálise quando concebida alquimicamente52. Uma vez que a domesticação (a
sofisticação) das cores é uma transmutação dos próprios modos de vida, dos dominantes
psicobiológicos da vida, a psicologia alquímica oferece um modelo de sofisticação das aflições
brancas que aqui concebo serem arquetipicamente endêmicas de nossa civilização.
Mas essas notas permanecerão meramente um diagnóstico da aflição, ao invés de um
remédio, a menos que reconheçamos que o branco, o preto e o vermelho, como forças
arquetípicas determinantes da mente, podem ser revisadas por elas mesmas. Uma mente
branca pode estar em uma pele negra, em uma pele vermelha, dentro de qualquer pele
biológica. E por mais que não possamos nos despojar de nossas peles, nós podemos sair de
nossas mentalidades. A alquimia descreve essa ruptura da mente branca como o nigredo
anterior e inerente a qualquer branco.
O segundo branco, o albedo, resulta do nigredo; o branco cândido agora
psicologicamente maculado e sombreado. Este branco recorda seus ancestrais, a gota de sangue
negro, de sangue azul. Sua branquitude é a presença completa de todos os matizes, e não sua
ausência, o que igualmente inclui todas os matizes ainda por nascer. É uma complexidade de
valores e tintas, dependentes de componentes como chumbo, zinco, latão, antimônio e prata,
de relações e localizações e temperaturas, que demandam o mais impressionante
discernimento de qualquer olhar que deseje ver através da primeira vista. Como o albedo (de
albus, “branco morto, que não brilha”) é inerentemente matizado, ele também é provido de
muitos olhos, como uma cauda do pavão (calda pavonis polioftámica). O segundo branco não
pode ser percebido por uma única visão, pelo olho branco da mente que precisa dividir em
partes, como o nigredo. A supremacia psíquica do brando é inseparável de sua psicopatologia.
“Supremo”, aqui, assume um sentido psicológico – como a luz do dia invisível em si
mesma, ou como o eco ou o espelhamento vazios em si, mas, ao mesmo tempo, dependentes

52 “... Caldeus costumavam produzir imagens que tinham efeito ‘antipático’ aos ‘fluxos de Heimarmene’
[destino]; ou seja, aos demônios subservientes a Hécate, que eram considerados agentes do
adoecimento. Para esse fim, os caldeus empregavam três cores de terra... as estatuetas de Hécate feitas
pelos magos eram de cera branca, preta e vermelha... Hécate, a senhora dos três elementos: o poderoso
éter, o radiante ar branco e a terra negra... É provável que as três cores das estatuetas feitas pelos caldeus
representassem igualmente os três elementos do mundo (e talvez os três ciclos caldeus do mundo: o
empíreo, e etéreo e o hílico)” (Hans Lewy, Chaldean oracles and theurgy [Paris: Études Augustieniennes,
1978]).
do outro para a reflexão, a dependência peculiar, secundária e inferior necessária ao insight –,
a reflexão suprema sobre todas as outras: o espelhamento de si mesmo como meramente
branco e não vermelho, luna e não sol, prata e não ouro, fase e nunca o fim; uma reflexão mortal
para os estados inferiores ao albedo, um cavaleiro pálido, uma fúria descorporificada, uma clara
reflexão ao invés de uma piscina de líquido espesso, não importando quão amável, quanto
amorosa, seja a testemunha imaterial; e essa supremacia do inalcançado, do enfraquecido, do
dependente, que é de o tipo próprio e inferior da psicologia da supremacia às vezes chamada
de “consciência psíquica”.
Mas a consciência psíquica já se mudou do século 17. Contudo, ainda temos lido a
alquimia como se tivéssemos no sonho de Jung, como se a alquimia se referisse exclusivamente
à nossa escatologia privada, à salvação da alma, ao processo de individuação. Alquimia – apenas
outra denominação cristã. A lição principal da alquimia reside na materialidade da psique e no
fato de que o opus não pode ser alcançado na solidão da pessoa individual. É sempre o material
que transmuta suas cores, a matéria que as sofistica; minha subjetividade não pode mais ser
distinguida daquilo que está fora dela. A psicologia alquímica retira a alma do âmbito pessoal e
a lança na alma das coisas, na sua interioridade e nos seus traços, nos seus gostos e desgostos,
ao que as coisas fazem e como elas fazem. Anima mundi. Eu me encontro em suas reflexões,
nela acho minha fortuna ou acidente, encontro o tempo, como o dia realmente é. Este é o
embranquecimento do dia, leuke ‘eméra, um bom dia, um dia branco, que sustenta sua
supremacia, a psique por todos os lados e eu mesmo colorido por suas condições. A opus
alquímica está situada in vivo assim como in vitro. O receptáculo do mundo que também é o da
psique. Que também tem seus olhos.
Posso sentir muito vividamente à noite a sensação de estar sendo visto, e vigiado,
quando o mundo diurno dorme. Não me refiro somente aos sonhos e aos encontros da alma
com as intenções dos outros, tampouco me refiro exclusivamente às companhias e terrores
noturnos das crianças. Eu me refiro à experiência africana descrita por Buxton: “Pois a noite e a
escuridão dos mandari têm forte tonalidades emocionais… A escuridão não é perturbadora
simplesmente porque algo pode espreitar do escuro, mas porque a própria escuridão nos
espreita – nos ‘observa’”53. E ao canto navarro: “ Me envergonho diante terra;/eu me
envergonho diante dos céus;/eu me envergonho diante do amanhecer… Elas sempre me
espreitam/ nunca estou fora de sua visão”54.

53 Buxton, Religion and healing in Mandari, p. 387.


54 Citação completa em P. Berry, Echo’s subtle body (Dallas, Spring publications, 1982), p. 5.
A sustentação de uma materialidade sempre prenhe de imagens do mundo é como hoje
eu definiria a “consciência psíquica”. O mundo não precisa de um missionário; ele já está
convertido, iluminado por sua própria opalescência. Não se trata mais da matéria escura
aristotélica, ou cartesiana, ou cristã, que é concebida de antemão como uma informação cega
aos poderes formativos das intenções conscientes criativas, seja enquanto objeto da física
experimental, enquanto pessoas escravizadas dos colonos, o material inconsciente que deve se
tornar consciente. Hoje podemos afirmar que a consciência psíquica não é criativa, mas criada,
e nós as criaturas do mundo. Tudo que precisamos é abrir nossos olhos para os seus próprios
olhos.

Coda con brio (arremate sem linha)

O século 17 já passou e o século 20 está para decolar. Estilos de reflexão refletem estilos dos
séculos. Ainda que se possa sustentar a fórmula de Jung, de que reflexão é igual a consciência
(CW 11, parágrafo 235, nota 9; CW 8, parágrafos 241-43), podemos imaginar a reflexão
diferentemente. “Pós-modernidade”, como se chama. Deixar o século 20 significa deixar o modo
moderno de reflexão, definido como um afastamento do objeto rumo a uma subjetividade
interior onde imagens são formadas como ‘referentes’, de uma forma ou de outra, de objetos.
Entretanto, afastar-se das deliberações e interpretações da mente implica igualmente a retirada
do outro, o próprio princípio do qual a reflexão depende. Então como poderíamos saber se o
que acontece em nossa reflexão se refere ao que está fora dela?
Em face ao isolamento paradoxal de suas reflexões, a consciência moderna inventou o
referente, insistiu que suas observações de fato se tratavam do outro, que suas reflexões
verdadeiramente refletiam algo literal, opaco, exterior a si mesma – o referente. Mas o
modernismo não poderia escapar do branco de seus próprios olhos: ser consciente significava
estar apartado e totalmente imaculado de qualquer coisa que não si mesmo. Aqui reside o
paradoxo concernente ao método científico, que sempre busca refinar sua objetividade para
ultrapassar o solipsismo intrínseco ao seu estilo de reflexão. Pois a branquitude é
supremamente solipsista, como uma criança perfeita ou um Deus de Aristóteles que não precisa
de amigos, como a anima calma e suave, autossatisfeita, com suas ilusões autoconsistentes,
repousando em um campo unificado forjado por uma teoria coerente da verdade. Extroversão,
materialismo, utilitarismo, positivismo, a própria ideia de projeção – cada um desses termos
demonstra a agonia obsessiva-compulsiva da mente branca tentando sair de si própria,
desesperadamente buscando o obscuro objeto de seu desejo. Uma história solipsista repetindo
o mesmo shibboleth moralista: ame o teu próximo; faça o melhor para os outros; conecte-se,
somente conecte-se; relacione-se, relacione-se…
Diante do reconhecimento de sua dupla ilusão – de que sua consciência reflexiva não
requer o outro e de que sua consciência de fato usa o outro como referente –, a psicologia
moderna precisou cindir sua mente. Ela precisou inventar o inconsciente para recordar a
consciência de que ela nunca poderia ser tão branca quanto desejou. A “descoberta” do
“inconsciente” chega somente no estágio avançado do modernismo, apontando para o seu
declínio ao voltar suas raízes projetivas de volta a ele mesmo. Sua “descoberta”, na realidade,
era uma autodescoberta, uma recepção sarcástica da própria base delirante da consciência
reflexiva, voltando seu delírio para a ironia e a troça, um jeito de esnobar, de refletir sobre sua
própria queda, de se tornar “pós” ela mesma. Isso forçou a saída da consciência branca de
supremacia, ensejando frases como: “você não pode saber do que fala” ou perguntas como “ao
que você se refere?”. E ainda que o pós-modernismo ame negar o referente, esse movimento
não pode negar o que está lá fora. O que ele nega é que a primazia da consciência como meio
de alcançá-lo. A consciência moderna enquanto consciência branca não pode suceder, o que ela
encontra está sempre morto. Tendo se enfiado em uma prisão, agora ela culpa suas paredes. (E
como ela se atenta para os seus sinais, sempre buscando por vida em algum lugar!)
Negar o referente é meramente constatar que o que está fora não é inteligível como
referente ou que sequer possa ser referido como referente – preso à minha consciência em
razão de seu significado, como se cada coisa do mundo fosse uma tola superfície,
irremediavelmente inconsciente, que nada significasse. Ao contrário, negar o referente afirma
a coisa. Trata-se primeiramente de uma ação privilegiada an sich, a coisa se fingindo de morta
para promover projeções; algo faiscante, cintilante, dotado de seus próprios direitos, exercendo
sua liberdade mercurial ao escapar de todo enquadramento de referência, acolhido por seus
amigos, as outras coisas do mundo, junto às quais vive sua vida e dentro de cuja companhia sou
admitido como mais uma coisa entre outras adormecidas na parede.
Inicialmente, a reflexão desejava situar um evento contra um plano de fundo –
esquemas sistemáticos, sentidos simbólicos, topos míticos. A reflexão pós-moderna desloca,
destrói o prisma confidente, o sentido desprendido de suas referências, desalojado de seus
planos de fundo e estruturas, permitindo novas quedas, quedas livres. Caindo do céu da certeza
branca nos braços da oposição. Através do espelho rumo as imagens. “Consciência emergente”
que agora requer um abaissement du niveau mental; Lúcifer, a estrela do outrora, agora conduz
a epistrophé porque o caminho para baixo é o caminho para cima. O conhecedor se tornar
conhecido através das constatações de seu saber. Agora não mais o observador da pilha de
madeira, mas a pilha de madeira. Não a projeção, mas a subjetivação/sujeição [subjection]. Eles
me olham; eu sou o seu referente, seu texto. O “eu” saiu da minha mente, do século 20, nenhum
outro lugar para se esconder, mas todo lugar para se ir. Uma errância sem meta, sem projeto,
“inconsciente”, cujo término não se pode precisar. A queda pode ser contínua, mas não é
abismal, não é infinita, terrível bocarra, a viagem não é labiríntica; ao contrário: pode ser um
amável percurso, sempre portador de uma parede com faces. Tal poderia ser a consciência em
estilo psíquico pós-moderno. A óptica pós-moderna – o estudo da escotomia, da cegueira, dos
modos pelos quais o olho não pode ver a si próprio. A epistemologia – o estudo de como eu sou
visto e conhecido pelos incansáveis olhos de Argos recordando minha mente de outras mentes,
de sua constante concepção.
A própria consciência branca já se sente caduca, sombreada, vigiada, envenenada,
explorada, violada e abusada. O retorno do escravizado, o retorno do nativo. Uma consciência
da vítima emerge à medida que o século decola. Se permanecermos no velho modernismo, nós
interpretaremos a identificação com a vítima de maneira personalista, tentaremos curá-la,
ajudá-la a reaver sua supremacia. Mas há outra leitura a ser feita: a consciência branca forçada
na psique pós-moderna, em um reconhecimento animista das sombras por todos os lados, até
mesmo nos dias mais iluminados e no amor mais íntimo. O melanoma sob a pele branca. No
próprio branco espreitam doenças invisíveis, terror incontrolável, estupro impessoal, espiões
que se infiltram na subjetividade mais íntima. Não se pode mais erigir um escudo defensivo
impenetrável, o sistema imunológico das células brancas não é mais confiável. A consciência
moderna agora padece pelo seu próprio princípio de incerteza, pressionada a reconhecer que
todas as suas reflexões não se estendem para além do prisma, das paredes de sua própria
inconsciência, não importando quão grande o universo, ou quão sedutora a lua, possa ser.
Não há mais outro lugar para o inconsciente senão no ato de reflexão, de forma que a
consciência psíquica nessa etapa do colapso pode somente ser definida ironicamente como
autorreflexiva, em que a reflexão se refere aos muitos olhares com que cada ato de consciência
é supremamente múltiplo e, portanto, supremamente autolimitante, inevitável e
humilhantemente projetivo, indiscutivelmente destrutivo, ou (poderíamos dizer)
supremamente inconsciente.

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