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Uma cicatriz, numa pessoa, conta uma história. O que aconteceu aqui? Ah, foi um acidente, foi
isso, foi aquilo... Muita gente se esforça para camuflar cicatrizes, e é claro que algumas são
desagradáveis de ver. Mas uma cicatriz pode ser transformada em elemento estético, numa
tatuagem, por exemplo. Kintsugi.
Philip K. Dick tem um curioso livro de FC, Galactic Pot-Healer (1969), um dos menos
comentados pelos críticos, mas que me parece um dos mais encantadores. Não é um livro que
pudesse ser filmado por Steven Spielberg ou por Ridley Scott, mas eu gostaria de vê-lo adaptado
pelos Estúdios Ghibli.
É um livro quase intraduzível, aliás, porque no mundo futuro que ele descreve as pessoas
participam de um jogo (“The Game”) todo baseado em trocadilhos e naquilo que a gente
chamada de “charadas infames”, charadas absurdas que só fazem sentido (ou um arremedo
dele) na língua original.
Lembrei desse livro durante a leitura do quinto romance da série “Earthsea”, de Ursula LeGuin,
The Other Wind (2001). Nele reaparece o mago Ged, conhecido como Sparrowhawk. Ele é o
protagonista da série, que o acompanha desde o seu nascimento e o despertar da magia (A
Wizard of Earthsea, 1968), uma aventura de sua entrada na vida adulta (The Tombs of Atuan,
1971), sua grande batalha na maturidade (The Farthest Shore, 1972), o surgimento de uma
protagonista feminina (Tehanu, 1990) e finalmente sua velhice neste quinto livro.
Nele, Sparrowhawk, já com setenta anos, recebe no começo do livro a visita de Alder, um mago
jovem, que está passando por um período atribulado e vem se consultar com ele. Aqui não
interessa tocar no enredo central do livro, mas na figura de Alder. Ele é apresentado como um
“consertador” (=”mender”), alguém com o talento especial de consertar coisas com o uso da
magia.
Alder era um consertador. Ele era capaz de recompor. De tornar algo inteiro de
novo. Uma ferramenta partida, uma lâmina de faca ou de machado que trincou, um
pote de barro despedaçado: ele podia juntar de novo os fragmentos sem deixar fendas
ou junturas ou pontos fracos. Seu mestre o mandou sair em busca das várias fórmulas
de encantamento para consertar coisas, e ele as encontrou quase todas entre as bruxas
da sua ilha, e começou a trabalhar com elas até aprender a consertar.
É inevitável que sua fantasia seja descrita como “feminina”, porque ela volta conscientemente
sua atenção para o universo feminino, sua cultura, suas atividades. Num dos ensaios de
Dancing at the Edge of the World, ela questiona com bom humor a visão masculina (ilustrada
em 2001, uma Odisséia no Espaço) de que o primeiro instrumento usado pelos antropóides que
deram origem ao homem tenha sido o bastão, a clava, o instrumento de bater e de matar. “Por
que não teria sido alguma coisa côncava?”, pergunta ela. “Para guardar água, para guardar
sementes?...”
A discussão pode ser ociosa para antropólogos ou historiadores, mas para ficcionistas, capazes
de impor suas próprias regras, desde que sua ficção as sustente, é essencial.
E nessa de ter potes para água e sementes eu acho que não teria passado despercebido a LeGuin
um título como o do livro de Philip K. Dick: O Consertador de Potes da Galáxia. Ela admirava
demais Dick, a quem chamou “o nosso Jorge Luís Borges, cria de casa”. E o personagem de
Alder em The Other Wind é uma versão mágica do Joe Fernwright do autor californiano.
Em certo momento, Sparrowhawk, que está hospedando Alder em sua choupana (é um Mago
humilde, estóico) pede-lhe que conserte um vaso de barro que pertenceu a sua esposa.
Pouco tempo atrás ele lhe escapara das mãos, ao tirá-lo da prateleira. Ele
recolheu os dois pedaços maiores e todos os fragmentos miúdos, com a intenção de
colá-los de volta para que o vaso pudesse pelo menos ser visto de novo, mesmo que
ficasse sem uso. Cada vez que olhava os cacos guardados num cesto ele se irritava com
sua própria falta de jeito.
Agora, fascinado, ele observou as mãos de Alder. Esguias, fortes, hábeis, sem
pressa, elas rodeavam a forma do vaso, alisando, ajeitando, encaixando os pedacinhos
de barro, instigando e acariciando, os polegares forçando e dirigindo os pedaços
menores até o ponto certo, rejuntando todos, tranquilizando-os.
É uma magia simpática, empática, que trata os objetos insensíveis como se fossem sentientes,
que junta os cacos de um vaso como se fosse a patinha de um cão. Para mim o “pot-mender” de
LeGuin foi inspirado, salvo melhor idéia, pelo “pot-healer” de P. K. Dick.
A magia literária fascina os leitores por causa desse substrato humano, que aliás muitas
tradições da magia ritual clássica enfatizam. A necessidade da convivência longa e profunda
com os materiais do rito (basta lembrar dos milhares de operações longas, enfadonhas, dos
alquimistas com seus fornos e retortas). A familiaridade também – a antiga recomendação de
que o recinto de práticas mágicas seja construído pelo próprio Mago, suas mãos abrindo o solo,
misturando o cimento, assentando os tijolos.
A magia pode não funcionar no mundo real, concordo, mas para que funcione na literatura
precisa de argumentos em que o leitor perceba um peso humano. Não basta um abracadabra,
um abre-te-sésamo.
Lord Darcy é um mago-detetive criado por Randall Garret, com interessantes histórias de um
universo paralelo onde a magia funciona. Numa dessas histórias, o mago é capaz de recuperar
um documento manuscrito com pena e tinta, sobre o qual alguém derramou por acidente o
tinteiro. Ele pega aquela folha de pergaminho ensopada de tinta preta, e com uma fórmula
pacientemente repetida retira dela toda a tinta indesejada, e deixa apenas o documento redigido
e assinado, como era antes.
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