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ATUALIDADE

DIÁLOGOS BRASIL-EUROPA

O novo tipo de golpe de estado: um seriado em três


temporadas
O capitalismo financeirizado tenta destruir todas as conquistas democráticas e republicanas, dissolver
seu imaginário e erradicar da cena seus protagonistas

SUELY ROLNIK

12 MAI 2018 - 23:15 CEST

Uma paisagem sinistra instaurou-se no planeta com a tomada de poder mundial


pelo regime capitalista em sua nova dobra – financeirizada e neoliberal –, poder
que leva seu projeto colonial às últimas consequências, sua realização
globalitária. Junto com este fenômeno, um outro, simultâneo, também contribui
para o ar tóxico da presente paisagem: a ascensão ao poder de forças
conservadoras por toda parte, cujo teor de violência e barbárie nos lembra os
anos 1930 que antecederam a segunda guerra mundial e os anos mais recentes
das ditaduras que persistiram até os anos 1980. Como se tais forças jamais
houvessem desaparecido de fato, mas apenas tivessem feito um recuo
estratégico temporário à espreita de condições favoráveis para sua volta triunfal.

Neoliberalismo e neoconservadorismo são sintomas de


MAIS INFORMAÇÕES
forças reativas radicalmente distintos, originados em
distintos tempos históricos e que coexistem em nossa
contemporaneidade. À primeira vista, a simultaneidade
entre eles nos parece paradoxal, o que turva nossa
compreensão: o alto grau de complexidade, flexibilidade, Bancada da Bala, Boi
sofisticação e refinamento perverso próprio do modo de e Bíblia impõe ano
de retrocesso para
existência neoliberal e suas estratégias de poder está a mulheres e indígenas
anos luz do arcaísmo tacanho e da rigidez das forças
abrutalhadas deste neoconservadorismo – que só merece
o prefixo “neo” por articular-se com condições sócio-
político-econômicas distintas daquelas em que havia
estado no poder na história recente. Porém, passada a
perplexidade inicial, torna-se evidente que o capitalismo O discurso de ódio
que está
financeirizado precisa destas subjetividades rudes no envenenando o
poder. São como capangas que se incumbirão do trabalho Brasil

sujo: destruir todas as conquistas democráticas e


republicanas, dissolver seu imaginário e erradicar da cena
seus protagonistas – o que inclui as esquerdas em todos
seus matizes, mas não só elas.
Noam Chomsky: “As
pessoas já não
A aliança entre neoconservadores e neoliberais é facilitada acreditam nos fatos”
pela coincidência de seus interesses em relação a este
objetivo específico. Tal interesse por parte dos
neoconservadores, acrescido do fato de que sua torpe subjetividade seja
arraigadamente classista e racista, os leva a cumprir o papel de capangas sem
qualquer barreira ética e numa velocidade estonteante. Quando nem bem nos
damos conta de uma de suas tacadas, uma outra já está em vias de acontecer,
geralmente decidida pelo congresso na calada da noite. O exercício desta tarefa
lhes proporciona um gozo narcísico perverso, a tal ponto inescrupuloso, que
chega a ser obsceno. Com o trabalho sujo destes capangas do neoliberalismo,
prepara-se o terreno para o livre fluxo do capital transnacional. É neste cenário
que se dá o novo tipo de golpe, criado pela atual versão do capitalismo: um
seriado que se desenrola em três temporadas.

Na primeira temporada, se estabelece uma aliança entre, de um lado, os poderes


Legislativo, Judiciário e Policial e, de outro, os grupos que detém o poder da
mídia. Sustentados por esta aliança, os capangas do capitalismo financeirizado
dão o golpe que expulsa do governo seus líderes mais à esquerda. Mas o golpe
não se encerra por aqui: uma vez concluído este primeiro trabalho sujo, tem
início sua segunda temporada. Trata-se agora do desmonte da constituição,
sobretudo das leis que garantem direitos aos mais desfavorecidos, bem como a
privatização dos bens e empresas estatais mais rentáveis. E o Estado vai sendo
assim rapidamente reduzido ao mínimo para, ao final do seriado, passar a
cumprir a mera função de facilitador de investimentos do capital transnacional.

Enquanto se desenrola esta operação, os próprios capangas do capitalismo


globalitário serão os novos alvos das denúncias de corrupção, preparando-se o
terreno para sua ejeção tão logo sua tarefa esteja concluída. No final da última
temporada do seriado do golpe, o novo regime os jogará no lixo da história, sem o
menor constrangimento. Paralelamente, ainda nesta segunda temporada, o
mesmo se faz com o empresariado nacional, cuja permanência em cena
interessa ao neoliberalismo apenas enquanto precise de sua cumplicidade para
as privatizações e para o extermínio de tais leis (principalmente as trabalhistas, o
que no Brasil não se limitará à precarização mas chegará ao cúmulo de legalizar
o trabalho escravo). E em pleno processo de seu desmonte pelo congresso, o
empresariado já começa a tornar-se também ele alvo de denúncias de
corrupção, cujo objetivo é tirá-lo do comando das obras públicas, assim que as
privatizações estiverem consumadas.

Com esta dupla ejeção e já tendo se instaurado no país uma grave crise
institucional e econômica, intensificada pela paralisia das obras públicas após as
condenações do empresariado nacional, o terreno estará totalmente pronto para
a chegada dos investimentos sem entraves do capital transnacional. Nesta
segunda temporada do seriado do golpe, são particularmente importantes as
cenas do ringue entre distintas máfias de políticos sórdidos, assim como entre
eles e as máfias do empresariado. “Premiados” por suas delações, eles se
destroem mutuamente diante da sociedade que, noite após noite, assiste
perplexa ao espetáculo grotesco da derrocada de ambos nas telas da TV –
espetáculo ao qual se tem acesso igualmente pelas redes sociais que se pode
buscar a qualquer hora, assim como pelos jornais, que parte das classes médias
e altas leem ao despertar. São imagens e mensagens, escritas ou faladas, de
negociações de falcatruas econômicas e políticas, clandestinamente captadas
em telefonemas, e-mails e gravações, bem como em documentos entregues
pelos delatores ou encontrados pela polícia nas devassas de suas casas e
escritórios. É um verdadeiro show de psicopatia, que nos lembra os mais hilários
filmes de série B e seus canastrões. A triste diferença é que, neste caso, a
narrativa ficcional é baseada em elementos da realidade, cuja edição visa
provocar efeitos micropolíticos nas subjetividades: a propagação da insegurança
e do medo de colapso.

Isto não é novo: o poder no regime colonial-capitalístico atua na esfera


micropolítica desde sua fundação no século XV. Sua matriz nesta esfera é o
abuso da vida enquanto força de criação e transmutação – sua essência e
também condição para sua persistência, na qual reside seu destino ético. Isto
inclui a potência vital em todas suas manifestações e não apenas como força de
trabalho, como se pensava no marxismo. O intuito do abuso é desviá-la de seu
destino, convertendo a força de “criação” de novos modos de existência, toda
vez que a vida assim o exige, em força de “criatividade” investida na composição
de novos cenários para o consumo e a acumulação de capital (econômico,
político, cultural e narcísico) e que reproduz e reacomoda a cartografia
estabelecida. No entanto, na nova dobra do regime, a intervenção nesta esfera
refina-se e se intensifica. Isto pode ser constatado não só nas tecnologias de
manipulação das subjetividades acima descritas, mas também no último
trabalho sujo destes patéticos capangas do neoliberalismo, roteiro do final da
segunda temporada do seriado do golpe, no qual o golpe incide mais direta e
veementemente na esfera micropolítica.

Trata-se da irrupção do surto conservador mencionado no início. Apelando à


moral religiosa, toma-se como como alvo a cultura, em seu sentido amplo que vai
das produções artísticas aos modos de existência – o que inclui todos aqueles
que não se encaixam nas categorias machistas, homofóbicas, transfóbicas,
racistas e xenofóbicas de sua alma capitalista-colonial-escravocrata. Com ampla
divulgação pela mídia, certos tipos de práticas passam a ser associadas ao
demônio, como o eram nos séculos da Inquisição (e não só) as práticas de
mulheres chamadas pejorativamente de bruxas, o que autorizava sua prisão,
tortura e morte.
Fiquemos apenas em três exemplos. O primeiro é a arte: certas práticas
artísticas passam a ser desqualificadas e criminalizadas. Nesta operação, busca-
se destruir a dignidade ética de sua pulsão criadora, para neutralizar sua
potência micropolítica: tornar sensíveis as demandas da vida quando esta se vê
sufocada nas formas vigentes de existência individual e coletiva. Materializadas
em obras, tais demandas teriam o poder de contágio dos públicos que a elas tem
acesso, o que tenderia a mobilizar a força coletiva de transfiguração das formas
da realidade e de transvaloração de seus valores. Ao atacar a arte, pretende-se
desmobilizar a possibilidade de irrupção social de tal força. O segundo exemplo
são os movimentos em torno das mutações das subjetividades, especialmente
nos âmbitos da sexualidade e das relações de gênero (movimentos feministas,
LGBTQ, etc). Mobiliza-se a volta aos valores da heterossexualidade monogâmica
da família nuclear patriarcal como forma absoluta de erotismo e de laço social,
visando interromper o processo pulsional de criação de novas formas,
desencadeado pela urgência da vida em livrar-se do sufoco em que se encontra
nas formas dominantes nestes terrenos.

O terceiro exemplo são as tradições culturais africanas e indígenas, fortemente


presentes em todas as ex-colônias: estas são sistematicamente perseguidas e
humilhadas. No Brasil, opera-se uma destruição em série de terreiros de
Candomblé e a expulsão dos indígenas de suas terras, ao que se soma a abolição
das leis que as haviam demarcado, fruto de uma árdua luta das décadas
anteriores – isto, quando os indígenas não são literalmente exterminados num
despudorado genocídio. Se no último exemplo o objetivo destas operações do
poder é mais obviamente macropolítico (o roubo dos terrenos do Candomblé e
das terras indígenas), basta colocá-lo lado a lado com os dois exemplos
anteriores, para nos darmos conta de que há também nesta operação um
objetivo mais sutil, micropolítico. Nesta esfera, a meta é a neutralização da
alteridade e a desmobilização da potência de transfiguração da realidade coletiva
de que a oportunidade de habitar a trama relacional tecida entre esses distintos
modos de existência seria portadora.

À operação macropolítica de desmonte do Estado e da economia, soma-se a


operação micropolítica de produção de subjetividades. A fragilização resultante
do medo inculcado pelo tom apocalíptico da mídia em sua narrativa sobre a crise
intensifica-se com o humilhante ataque à dignidade dos modos de existência
acima mencionados. Isto faz com as subjetividades tendam a agarrar-se a
qualquer promessa de estabilidade e segurança, do que faz parte a projeção da
causa de sua fragilidade nas figuras de bode expiatório construídas em tais
narrativas. Nestas estratégias defensivas, sua pulsão vital entrega-se ao abuso
colonial-capitalístico por seu próprio desejo. Com esta dupla operação
indissociável, macro e micropolítica, prepara-se a sociedade para a terceira e
última temporada: a tomada do poder político e econômico pelo capitalismo
globalitário. Ela estará enfim pronta para recebê-lo como o salvador “civilizado”
que saneará a economia de sua falência e restabelecerá a dignidade da vida
pública, devolvendo ao país seu prestígio perdido e a serenidade a seus cidadãos.
Fim do seriado. Golpe concluído.

O novo tipo de golpe de Estado oculta-se, assim, sob a máscara de legalidade


democrática, sem fazer uso da força militar, nem expor seus verdadeiros
agentes. A composição da máscara é sutil e astuta. A segunda temporada do
seriado do golpe começa a ser veiculada pela mídia imediatamente após o final
da primeira. Os scripts são idênticos, só mudam os personagens que
desempenham o papel de réus acusados de corrupção: os líderes progressistas
da primeira temporada são agora substituídos pelos elementos mais
inescrupulosos da classe política e seus cúmplices da classe empresarial. havido
um golpe de estado, já que não só os políticos de esquerda foram punidos. Se na
primeira temporada, parcelas significativas da população ainda viam claramente
que se tratava de um golpe, cujo objetivo era aniquilar a imagem dos políticos
progressistas e tirá-los do poder, com a a substituição dos personagens na
segunda temporada, vence na maioria a ideia de que a expulsão dos governantes
progressistas havia sido, de fato, uma ação imparcial e digna, visando a
necessária moralização da vida pública. Tal ideia é inclusive assumida por
aqueles que tem menos acesso aos direitos – parcela majoritária da população –
e que haviam sido favorecidos pelos governos progressistas.

Em suma, o novo tipo de golpe, próprio do capitalismo globalitário, consiste num


complexo conjunto de operações micro e macropolíticas, no qual mata-se vários
coelhos numa cajadada só (todos os coelhos cuja existência estorva o livre fluxo
de capital transnacional): os líderes de esquerda e o imaginário progressista a
eles associado (o que facilita o desmantelamento da Constituição, as
privatizações e a entrega do país ao capital privado transnacional), os políticos
de alma escravocrata e pré-republicana, os líderes do empresariado nacional e,
por fim e não menos importante, a própria potência coletiva de ação pensante
criadora que se mobilizaria diante do intolerável. E o capitalismo transnacional
globalitário sai vitorioso e de mãos aparentemente limpas. Esta será,
provavelmente, a apoteótica cena final do seriado do golpe.

O que não estava previsto no script deste seriado é que passados os primeiros
capítulos da segunda temporada , na qual se conseguiu instaurar a ilusão de que
não se tratou de golpe, seus capítulos seguintes – onde se vê a destruição das
conquistas democráticas e a penalização da criação cultural – não terão o
mesmo êxito. Por colocarem a vida manifestamente em risco, diante de tais
operações o véu da ilusão tende a cair: instaura-se nas subjetividades um estado
de urgência que faz com que o desejo consiga deslocar-se de sua entrega ao
abuso e passe a agir de modo a transfigurar o presente, impedindo que prossiga
a carnificina. Uma resistência micropolítica começa então a surgir por toda parte,
de modo a enfrentar a nova modalidade de golpe, na qual ficou mais explícito o
fato de que sua estratégia não é apenas macropolítica.

Insurgir-se também nesta esfera é o avanço que nos trazem os movimentos que
vem desestabilizando aqui e acolá o poder mundial do capitalismo financeirizado
– movimentos que se intensificaram após o tsunami dos golpes de estado
provocado pelo novo regime por toda parte. Este avanço nos ajuda a ver que o
horizonte do modo tradicional de resistência das esquerdas reduz-se à esfera
macropolítica e que esta redução seria uma das causas de sua impotência frente
ao atual estado de coisas. Tal entendimento tem o poder de nos tirar da paralisia
melancólica fatalista na qual nos faria soçobrar a sombria paisagem que nos
rodeia e tende, inclusive, a fortalecer a resistência na esfera macropolítica.

As próximas temporadas do seriado do capitalismo globalitário – que começa


bem antes dos recentes golpes e certamente seguirá após os mesmos –, serão
delineadas coletivamente nos embates entre as forças reativas que promovem o
abuso da vida em sua potência pulsional de criação e as forças ativas que
promovem sua afirmação transfiguradora. Impossível prever o desfecho (sempre
provisório) deste embate. Mas há um alento no ar que cria condições favoráveis
para liberarmos a pulsão das sequelas de seu abuso abuso colonial-capitalista,
de modo a imaginarmos novos cenários e agirmos em sua direção. O alento nos
vem da crença de que é possível despoluir o ar ambiente de sua poeira tóxica e
que isto depende de agregarmos às estratégias de resistência este trabalho
coletivo de descolonização na esfera micropolítica.

O artigo da filósofa brasileira Suely Rolnik faz parte da série Diálogos Brasil-Europa, uma iniciativa
da EUNIC -European Union National Institutes for Culture in São Paulo- para que intelectuais dos
dois continentes debatam sobre o tema "Populismo e Cultura"

ARQUIVADO EM:

Capitalismo · Extrema direita · Neoliberalismo · Opinião · Política econômica · Brasil · Ideologias


· América do Sul · América Latina · América · Política · Economia

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