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Mercado Estado e democracia – reflexões em torno da teoria política do

monetarismo

O pensamento de Milton Friedman se constituiu em um dos pontos de referência


necessários cm qualquer debate acerca da natureza da atual crise capitalista e suas diversas
estratégias de recomposição. Sua palavra, desmerecidamente enaltecida diante dos olhos da
opinião pública pela outorga do Prêmio Nobel de Economia em 1976, é unanimemente
reconhecida como a do porta-voz mais autorizado da corrente monetarista. Durante os últimos
anos essa tendência realizou alguns avanços significativos no que se refere à sua aplicação
prática e se transformou na inspiradora e racionalizadora da política econômica adotada por vários
países. Como é bem conhecido, essa orientação predominou nos governos que acederam ao
poder com a intenção de empreender uma cruzada contra os desequilíbrios democráticos e a
hipertrofia estatal, culpáveis, segundo seus porta-vozes, pela asfixia progressiva das
potencialidades criadoras e libertárias do mercado. O monetarismo se viu assim favorecido pelas
tendências estagnacionistas originadas a partir da crise do petróleo, o que lhe permitiu aumentar a
sua gravitação social tanto nas potências metropolitanas como nas sociedades capitalistas
periféricas. Dado que a atual depressão desacreditou enormemente o keynesianismo — insultado
agora como “estatizante”, “coletivista” e “demagógico” —, o monetarismo aparece como uma
tentativa plausível de articular ideologicamente um amplo conjunto de recomendações
econômicas que levam implícitas uma teoria política não somente falsa como também
profundamente antidemocrática. Essa ofensiva ideológica instalou diversas vertentes do
neoliberalismo em um lugar preponderante no pensamento e na práxis econômica de nossos dias,
deslocando o keynesianismo do lugar privilegiado que gozava desde os anos do segundo pós-
guerra, quando se converteu no “senso comum” da época mais luminosa em toda a história do
capital.
As teses de Friedman representam então algo que vai muito além do estritamente
acadêmico. Sua trabalhosa exegese do pensamento de Adam Smith, sua reivindicação do
liberalismo econômico de final do século XVIII e sua firme adesão ao pensamento mágico daquela
época — evidenciada na crença animista de que uma “mão invisível” regula as ações dos homens
e exerce uma influência reguladora sobre o mercado — são revalorizadas ao projetar-se sobre a
cena política dos estados capitalistas. Se não fosse por isso ninguém prestaria demasiada
atenção a suas idéias econômicas, incorporadas já há mais de um século à pré-história da ciência
econômica. Portanto, o que instala o pensamento de Fricdman no centro do debate
contemporâneo é sua influência prática como ideologia burguesa em uma situação de crise e de
recomposição autoritária e conservadora do capitalismo. Sua atualidade provém então do fato de
que seus preceitos fundamentais — império do mercado, desmantelamento do Estado de bem-
estar e contenção dos avanços democráticos — foram os princípios racionalizadores de
conhecidas tentativas conservadoras que, com maior ou menor grau de violência, foram
ensaiadas nas mais diversas latitudes.
Neste trabalho nos propomos explorar as concepções do Estado e da democracia — que se
encontram quase sempre em “estado prático” na obra de Friedman — e identificar seus
argumentos principais, O eixo orientador de seu discurso e ponto de partida de toda sua reflexão
econômico-política é a noção de mercado, desde cujo paradigma se deduz um papel
rigorosamente limitado para o Estado e se inferem, sibilinamente, as possibilidades e limites da
democracia burguesa. A supremacia atribuída ao mercado e a concepção teórica que se deriva
dessa “tomada de partido” desembocam numa postura teórica e prática que converte o
friedmanismo — e, com ele, a todo o dogma neoliberal — na ideologia apologética da involução
autoritária do Estado capitalista. O liberalismo clássico, que havia nascido como um projeto
burguês dirigido a recortar os poderes abusivos do Estado absolutista e a estabelecer um certo
grau de participação democrática entre as elites, culmina deploravelmente sua trajetória
amarrando-se ao discurso e à prática neo— conservadora. Uma vez desmontada sua retórica
pseudolibertária, sua proposta atual se esgota na legitimação do crescente despotismo estatizante
que reivindica a imposição coercitiva das leis do mercado.

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