ÓRGÃO OFICIAL PAN-AFRICANO DEDICADO AOS POVOS PRETOS DO MUNDO INTEIRO

Ano I - Nº 01cccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccc ,, cccccccccccccccccccccccccc 25 de maio de 2020

Devaneios da democracia hipotecada

raquellima
A democracia é uma ideia transformada em bem ou serviço,
Comprada com as poupanças, comprada por quase nada.
Comprada a acreditar que era uma transacção sem juros
Fidedigna, irreversível e de garantia ilimitada.

Afinal era um empréstimo, a crédito, ao capitalismo,

Temporário, inflacionável e com juros até ao abismo.

O capital gerava lucro acumulado e reinvestido,

Enquanto as massas confiantes na segurança social:
Contribuíam, tributavam, contribuíam, tributavam,
E tinham direitos humanos mas duma forma maquinal.

O sistema democrático era o mais justo e coerente.

Criou-se todo um circo jurídico com essa bandeira içada
E nós, seguíamos confiantes face à solução encontrada,
Sem sonhar que a democracia fosse mais tarde hipotecada.

A casa grande foi montada com diversas prateleiras

Dos direitos, economias, letras, artes e asneiras
Humanidades, sociologias, ciências, educação
E em todas garantem que existe liberdade de expressão.

Negros no campo, gritam há tempos, que não há democracia

Não são tidos como humanos mas recursos e mercadoria
Então na casa acharam por bem fazer mais umas prateleiras:
biologias, recursos humanos e antropologias na dianteira

Mas vender democracia era um grande investimento

Vender-nos a ilusão de auto-controle a todo momento
E ao mesmo tempo abolir a ideia da emancipação
Então bancos, fronteiras e igrejas serviram como salvação

Porque a casa da repressão era ao pé da casa do fascismo

E ambas serviam a grande mansão já montada do capitalismo
Hipotecar a democracia foi só pintar com quatro de mão,
Mudar portas, fechaduras e encafuar gavetas no sótão.

A empreitada da fachada foi a mais difícil de pintar

Até vieram republicanos e democráticos para ajudar!
Mas como as belas fatiotas davam sempre nas vistas
Foram entre esquerda e direita para entreter-nos com listas.

Enquanto isso as casas cresciam tão democraticamente

Que poucos sentiram o cheiro a podre no ambiente
Cheirava a genocidio judaico, indígena, negro e cigano
Mas lá na casa dançavam com fado, flamenco e tango

A democracia… uma ideia transformada em bem ou serviço,

Comprada com as poupanças, comprada por quase nada.
Comprada a acreditar que era uma transacção sem juros
Fidedigna, irreversível e com garantia ilimitada.

Afinal era um empréstimo, a crédito, ao capitalismo,

Temporário, inflacionável e com juros até ao abismo.

E toda a gente já sabia que a Ganância e a Ostentação

Eram só as irmãs mais novas da Dona Colonização
Ainda assim continuavam a comprar democracia
Por ingenuidade, inocência, ignorância ou teimosia.

E se alguém ousasse falar sobre aquecimento global

“Mas ora essa, que tolice, isso faz parte, é natural”
Cheira a dióxido de carbono, gases e efeitos de estufa
Queimadas de combustíveis fósseis e da floresta tropical
Mulher africana da Costa do Marfim, 1970.
Anos de vozes caladas: anos de democracia

É PRECISO REPUDIAR E COMBATER O

Anos de vidas ceifadas: anos de democracia
Anos de mulheres estupradas, refugiadas, escravizadas:
anos de democracia

Anos de espionagem sobre os rebeldes da libertação

Cheirava a guerrilhas, a denúncias e teorias da revolução RACISMO CONTRA OS IMIGRANTES
AFRICANOS NA CHINA
E quando a clandestinidade deu buraco orçamental
Então um génio megalómano inventou a rede social

Porque num mundo democrático vamos poder partilhar

A nossa vida realizada, ou sobre o que estamos a sonhar
Ideologias, partidos políticos, bem como o destino de férias
Artes, carros, estilos de vida e tudo o que queremos comprar
Nada como sermos nós próprios a oferecer de bandeja
O que as massas reflectem e o que o povo almeja
Cereja no topo do bolo sem grande consternação:
As redes agora ditam o que é verdade, história ou ficção
A democracia… uma ideia transformada em vírus,
Comprada com as poupanças, comprada por quase nada
Comprada a acreditar que era uma transacção genial
Mas os juros?… eram a terceira guerra mundial.
Diante da discriminação e ataques que africanos tem sofrido em algumas regiões da China, nós pretos e
pretas da diáspora e do continente africano nos pronunciamos para expressar nossa indignação. Iremos
nos utilizar de todas as formas para combater essas violências, seja por meio de boicotes, denúncias,
retaliação, xingamentos, danos materiais. Utilizaremos de todos os meios disponíveis. Os governos, os
empresários e a sociedade civil precisa dar uma resposta e se retratar diante dessa situação inaceitável.
Se a China possui alguma questão contra os pretos, então deveria imediatamente abandonar o solo
africano. É importante que se fale que nem todos os pretos têm uma postura individual, egoísta e se
sentam para negociar com inimigos. Por meio desse manifesto nos colocamos a disposição de todos os ir-
mãos africanos que sofreram essa terrível situação, para prestar todo o tipo de apoio necessário. Pág. 03
Página 2 – Editorial e Opinião,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,25 de maio de 2020 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, Yanda PanAfrikanu

EDITORIAL
Esta primeira edição do jornal Yanda PanAfrikanu,
nasce da vontade comum de manter vivas as rotas
ancestrais de comunicação e solidariedade entre a Áfri-
ca e a sua Diáspora, assim como do compromisso de
construir as condições necessárias para o Renascimen-
to Africano, que levou um conjunto de pessoas e orga-
nizações pretas, de partes distintas da África e da Diás-
pora Africana, a se reunirem pela primeira vez em São
Paulo, em outubro de 2019, para formar uma rede. A
Yanda PanAfrikanu é, assim, esta rede que retoma os
caminhos já antes percorridos na busca do reconheci-
mento de pistas para formar novas rotas de fuga, de li-
bertação e de aquilombamento.
É durante o contexto da pandemia do Covid-19, cuja
mandíbula política não cessa de nos dilacerar, que a
Yanda toma forma, com duas propostas concretas: criar
um conjunto de debates regulares sobre diversas temá-
ticas e intervenientes pan-africanos; criar um jornal
que toma o nome da própria rede e que segue o percur-
so do anterior Filhos da África, jornal criado no final
da década de 1990, por Alaru Jagunjagun, e que foi
uma das instituições que deu origem a União dos Co-
letivos Pan-Africanistas (UCPA), em agosto do ano
2000, no Brasil.
O objetivo deste jornal é resgatar, produzir e partilhar
conhecimentos sobre as nossas realidades e visões de
mundo, no sentido de divulgarmos referências funda-
mentais para a continuidade de uma formação política
comum, desde o reconhecimento das nossas diversas
situações político-sociais, e fortalecendo a solidarieda-
de para com a grande família africana espalhada entre
territórios distintos.
Se esta primeira edição surge na língua portuguesa, no
que respeita aos textos publicados, este é um espaço de
partilha aberto a todas as pessoas e organizações pan-
africanas de outros contextos linguísticos afrodiaspóri-
cos, como se pode constatar pelo próprio nome dado
ao jornal. As várias línguas nacionais africanas como
Kimbundu, Umbundu, Forro, Kabuverdianu, Yorubá, EXPLICANDO O CONCEITO DE YANDA
Fon, Swahili, entre outras, têm aqui um espaço de
imaginação e formulação a partir das suas próprias
matrizes e raízes.
O jornal terá uma periodicidade bimestral e será trans-
disciplinar no que diz respeito às temáticas que irão
desde políticas, ciências, espiritualidades, filosofias,
tecnologias, línguas e artes, em suma, culturas e cos-
movisões que permeiam a dimensão pan-africana.
Neste número em particular, encontrarão entrevistas,
análises políticas sobre os principais acontecimentos
da atualidade, divulgação de eventos, informações so-
bre jogos, poemas, informações sobre livros, entre ou-
tros assuntos.
“Quando poderemos falar de um renascimento afri-
cano?”, perguntava Cheikh Anta Diop num texto da-
tado de 1948, publicado pela Presence Africaine. O
lançamento deste jornal acontece no dia em que se YANDA quer dizer REDE em kimbundu,
comemora os 57 anos da fundação da Organização da língua bantu concentrada no noroeste de
Unidade Africana e questão levantada por Diop man- Angola, nomeadamente nas províncias de
tém-se ainda atual. Pensado numa futuridade que é
Luanda, Bengo, Malanje e Kwanza Norte, e
calcada na nossa ancestralidade, a Yanda PanAfrikanu
se propõe como um espaço para pensar e visibilizar as falada pelo povo Ambundu. A ideia para o
várias formas possíveis de imaginar essa renascença nome YANDA PANAFRIKANU partiu de
africana, e de existir renascendo em África. Respon- diferentes imagens de rede, tanto pela nossa
dendo ao desafio deixado por Fanon, esta é uma das missão de uma construção política em rede,
formas da nossa geração cumprir a sua missão. entre filhos e filhas no continente africano e
A linguagem buscada é a objetiva, sendo a mais trans- na sua diáspora, para fortalecermos diálogos
lúcida com o nosso povo, por isso se elenca aqui as e ações, como também na perspectiva de
organizações políticas que sustentam essa publicação: uma rede que é lançada ao mar, buscando a
autonomia para pescarmos as nossas ideias,
União dos Coletivos Pan-Africanistas – Brasil.
Papyrus PanAfrikanu – Cabo Verde, Angola e Portu- identidades, culturas e alimentos. YANDA é
gal. simultaneamente trabalho colectivo e traba-
Muxima na Diáspora – Angola e Brasil. lho autônomo numa luta comum da negritude.
Kilombo Favela Rua – Brasil.

Organização e Ideologia
Alaru Jagunjagun Oniluap*

A realidade fornece os pontos para um
pensamento, dessa forma surge uma
constatação, e o sentimento de não estar
satisfeito com a situação.
Somente no momento que fizermos nos-
so próprio estudo, veremos as coisas
com nossos próprios olhos, perseguindo
leituras e ideias. Nesse sentido, o resul-
tado é o ideal que é o conjunto das situa-
ções citadas.
A organização é fruto disso, com o obje-
tivo de se tornar um gigante, porém para
isso devemos ter pessoas competentes
do nosso lado. Ou seja, a organização
preci-sa dar exemplo, precisa apresentar
resul-tados, e mostrar que é competente.
E aqueles membros da comunidade, que
observam isso, e que possuem uma sen-
sibilidade capaz de perceber a importân-
cia e o valor dessa organização estarão
dispostos a fazer um pacto de compro-
metimento com a mesma, e consecutiva-
mente estarão ligados a uma causa tão
sagrada e nobre.
Em vez de cruzar os braços e chorar, te-
mos que trabalhar, devemos organizar o
que temos, e com competência usar da
melhor forma a benefício de nossa co-
munidade.
Não devemos nos preocuparmos, se em
casa os nossos pais, irmãos ou cônjuges
nos colocam como o subversivo, deve-
mos sim assumir o papel de revolucio-
nários.
A relação, entre pessoas competentes,
resulta no crescimento, e alcance de res-
ultados satisfatórios.
Nosso exercício será pela transformação
e realização. proteger a “elite”, proteger os herdeiros
Ao contrário da ordem e progresso, pro- dos escravocratas, manter a paz dos
posta pela bandeira brasileira, a organi- brancos.
zação que propõem mudanças, propõem Nossa ideologia busca a nossa união,
a desordem, para estabelecer a derruba- nosso amor por nós mesmos e nossa
da do velho e a manutenção de nossa co- paz.
munidade. E nós, temos uma cultura au-
tossuficiente para essa manutenção. Salve a Amada Mãe África, Salve a Sa-
Com o grupo fortalecido através da grada e Gloriosa Mãe África.
competência, a comunidade dará passos
firmes para uma imponência e sobera-
nia.
O Estado utiliza livros e aparelhos re-
pressivos para propagar sua ideologia.
Pegar a avenida Paulista e transformar
em cartão-postal é manipular os fatos,
para uma realidade inexistente.
Na prática, o Estado com sua ideologia *Ativista pan-africanista e fundador da UCPA,
luta para manter a “ordem”, ou melhor, falecido em 20 de dezembro de 2019.

Lembrar o genocídio negro na era da Covid-19

Alexssandro Robalo*

Emmett Till. Mississippi, 1955. No mês
de agosto completará sessenta e cinco
anos do brutal assassinato de um rapaz
negro de catorze anos, no Estado de
Mississippi, nos EUA. Emmett Till, de-
pois de acusado por uma mulher branca,
seria sequestrado, barbaramente tortura-
do, assassinado e lançado ao rio Tallaht-
chie. Três dias depois, seria encontrado
neste rio num estado praticamente irre-
conhecível.
A catorze de fevereiro do ano passado,
um jovem negro de dezenove anos foi
brutalmente assassinado, depois de ser
asfixiado por um segurança no super-
mercado Extra, no Rio de Janeiro, Bra-
sil. Pedro Gonzaga, acompanhado pela
mãe, foi abordado agressivamente por
um segurança, que lhe aplicou um “ma-
ta-leão”, por alguns minutos, enquanto
ia perdendo a capacidade de respirar.
No último dia do ano passado morreu
um jovem negro de vinte e um anos, na
cidade do Porto, em Portugal. Giovani
Rodrigues, juntamente com mais três
amigos, todos cabo-verdianos, foram
atacados violentamente por um grupo
armado de quinze pessoas. Giovani, de-
vido ao ataque que sofreu, acabou por
morrer, depois de ter resistido duramen-
te por um período de dez dias.
Estes três casos possuem vários elemen-
tos comuns. O modo como foram ceifa-
das estas três vidas diz-nos muito sobre
a supremacia branca e a sua profunda li-
gação ao projeto genocida. As três his-
tórias demonstram, também, a fragilida-
de das nossas vidas no contexto de do-
minação branca. Estados Unidos para
Till. Brasil para Gonzaga. Portugal para
Rodrigues. Fundamentos continuam os
mesmos, não obstante a diferença do
tempo e do espaço. Portanto, o genocí-
dio continua em curso…
A questão da vida e da morte parece
estar na ordem do dia, considerando a
rápida propagação e os estragos causa-
dos pela Covid-19. Muita gente vem fa-
lando da necessidade de as vidas serem
protegidas e defendidas. Contudo, não
podemos esquecer, de modo algum, que
as nossas vidas sempre estiveram amea-
çadas, independente de qualquer situa-
ção epidemiológica que o mundo estiver
enfrentando, uma vez que a máquina ge-
nocida sempre nos viu como o alvo
principal. Numa situação de pandemia,
o que acontece é que as nossas vidas, já
fragilizadas pelo sistema de supremacia
branca e as suas instituições de controle,
continuam sendo as mais afetadas. Basta
pensar nos números de pessoas infecta-
das e mortas pela Covid-19 no Brasil,
nos Estados Unidos, assim como a for-
ma como temos sido tratados na China.
*Pan-Africanista de orientação cabralista, edu-
cador anticolonial e pesquisador independente.
Yanda PanAfrikanu ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,25 de maio de 2020 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,Página 3

MANIFESTO CONTRA O IMPERIALISMO CHINÊS NA ÁFRICA E CONTRA O RACISMO ANTI-AFRICANO NA CHINA

Diante da discriminação e ataques
que africanos tem sofrido em algu-
mas regiões da China, nós pretos e
pretas da diáspora e do continente
africano nos pronunciamos para
expressar nossa indignação. Ire-
mos nos utilizar de todas as formas
para combater essas violências, se-
ja por meio de boicotes, denúncias,
retaliação, xingamentos, danos ma-
teriais. Utilizaremos de todos os
meios disponíveis. Os governos, os
empresários e a sociedade civil pre-
cisa dar uma resposta e se retratar
diante dessa situação inaceitável.
Se a China possui alguma questão
contra os pretos, então deveria
imediatamente abandonar o solo
africano. É importante que se fale
que nem todos os pretos têm uma
postura individual, egoísta e se
sentam para negociar com inimi-
gos. Por meio desse manifesto nos
colocamos a disposição de todos os
irmãos africanos que sofreram essa
terrível situação, para prestar todo
o tipo de apoio necessário.
25 de maio de 1963. Dia da África.
Um dia determinado por trinta e dois
chefes de estados Africanos indepen-
dentes como um marco temporal em
direção à união futura do nosso povo,
tomando como objetivo irredutível a
libertação do nosso continente e do
nosso povo que sofria com a experiên-
cia da dominação colonial.
O tempo passou. A Organização da
Unidade Africana, outrora composta
em grande medida por líderes revolu-
cionários, foi sendo carcomida por
golpes de estado orientados por forças
internas e externas. Aos poucos as li-
deranças honestas e irredutíveis foram
sendo mortas, depostas ou detidas, e
grande parte daqueles que não tiveram
tal destino mostraram uma face per-
versa e despótica em seus governos,
semelhante ao colonizador europeu
que substituíram, mas agora distantes
da massa Africana silenciada e aterro-
rizada. O tempo passou, e a OUA, já
desviada de seu sentido original, muda
seu nome para União Africana em
2002. Uma mudança que, embora tar-
dia quando observamos a história de
relações degradantes entre lideranças e
as potências do mundo branco no pas-
sado, eliminou talvez para sempre
qualquer esperança popular em lide-
ranças oriundas dos processos eletivos
dos estados neocoloniais modernos,
pois até então a chefia de estados Afri-
canos ainda estava relacionada ao que
era compreendido por revolução, cora-
gem e independência popular – mas
tornou-se, a partir daí, sinônimo para
prostituição moral, medo e servidão.
Evidência cabal dessa realidade é a re-
lação Africano-chinesa do nosso tem-
po, que, sob o pretexto de estabelecer
relações comerciais bilaterais de co-
mum benefício, carrega consigo gra-
ves contradições e problemas nessas
relações superficialmente harmonio-
sas.
Sem medo, apontamos o caráter neo-
colonial da relação sino-Africana.
Osagyefo Dr. Kwame Nkrumah, hoje
ancestral, nos ensina em Neo-colonia-
lism, the Last Stage of Imperialism
(1965): “O resultado do neo-colonia-
lismo é que o capital estrangeiro é
usado para a exploração em vez de
desenvolver as partes menos desen-
volvidas do mundo. Investimentos, sob
o neo-colonialismo, aumentam mais
do que diminuem o abismo entre as
nações ricas e pobres do mundo […]
O neo-colonialismo é ainda a pior for-
ma de imperialismo. Para quem o
pratica significa poder sem responsa-
bilidade, e para quem sofre, significa
exploração sem contrapartida. No
tempo do velho colonialismo, o poder
imperial tinha, pelo menos, que expli-
car e justificar em casa as ações que
estava realizando no exterior. Na co-
lônia, aqueles que serviram ao poder
imperial dominante podiam pelo me-
nos se precaver para sua proteção
contra qualquer movimento violento
de seus oponentes. Nada disso ocorre
no neo-colonialismo […] O neo-colo-
nialismo é baseado no princípio de di-
vidir antigos grandes territórios colo-
niais unidos em vários pequenos esta-
dos inviáveis, incapazes de desenvol-
vimento independente e que devem
contar com o antigo poder imperial
para defesa e até segurança interna”.
À luz dos fatos, as palavras de Nkru-
mah desenham com exatidão o cenário
das nossas relações modernas.
O primeiro trecho desmascara a falsa
afirmativa de que a china é a principal
parceira comercial do continente em
volume tanto quanto em relações sa-
dias de mútuo benefício, quando a re-
lação comercial entre china e África
obedece ao modelo neo-colonial orto-
doxo de importação da matéria-prima
a preço de banana em troca de alguns
presentes a setores do poder político
Africano, e exportação de manufatura-
dos desses insumos a preços exorbi-
tantes para essas mesmas nações. Ou-
tro dado, provavelmente o mais alar-
mante, é a contração de dívidas impa-
gáveis de nações Africanas com a chi-
na. A pobre e pequena Zâmbia, por
exemplo, detentora de indicadores so-
ciais terríveis, possui uma dívida ex-
terna que em 2018 era de 8.7 bilhões,
dos quais 7.4 bilhões eram oriundos da
relação “fraterna” entre Zâmbia e chi-
na. Agora, com a china despejando ca-
da vez mais dinheiro na Zâmbia, essa
dívida externa saltou para 11.6 bilhões
em 2020.
O segundo trecho também encontra
sua imagem refletida nas relações en-
tre china e a África. A invasão chinesa
do continente possui três grandes pro-
blemas nesse sentido: o primeiro é a
demolição da ainda minúscula capaci-
dade industrial Africana, agora total-
mente incapaz de competir ou desen-
volver-se adequadamente diante das
empresas locais ou multinacionais que
a china atracou no nosso continente; o
segundo é a relação degradante entre
as empresas chinesas e os trabalhado-
res Africanos, páreo à ética laboral dos
tempos da escravidão e colonialismo
euro-semita. São vários os relatos de
condições de trabalho desumanas, tra-
tamento humilhante com castigos físi-
cos inclusos e remuneração muito
abaixo daquela paga ao chinês comum
para o desempenho da mesma função;
o terceiro é a degradação do meio-am-
biente, sobretudo em locais próximos
à “indústria da poluição” (mineração,
vidros, cimento, curtume, carvoarias),
e além disso, com o descarte de lixo
tóxico no litoral e nos rios, prática imi-
tada dos nossos inimigos europeus e
árabes, tornando a vida dos Africanos
vizinhos de suas instalações cada vez
mais difícil e mesmo insustentável.
O terceiro trecho culmina na união dos
dois anteriores, mas com um elemento
à parte que deve ser considerado: o in-
vestimento chinês na África é específi-
co, metódico e visa o lucro. Portanto,
os portos, hotéis, aeroportos, represas,
indústrias de processamento de metais
e rodovias que a china financia e tam-
bém constrói no continente não pos-
suem nenhum propósito altruísta ou
vinculado ao projeto nacional de de-
senvolvimento específico de cada na-
ção Africana, mas sim pautado na faci-
litação de suas próprias necessidades
comerciais para a importação e expor-
tação das riquezas adquiridas e extraí-
das quase de graça. Na teoria, essas
obras permanecerão para os países
Africanos e serão de pleno uso do po-
vo. Na prática, essas obras serão tão
“úteis” a nós quanto as capitais de ar-
quitetura europeia são úteis aos nossos
irmãos e irmãs que vivem nas favelas
ao redor. A fragmentação da soberania
e o mergulho na dependência, previs-
tos por Nkrumah, se dá nessa batuta:
se uma dívida é contraída sem qual-
quer previsão de retorno financeiro
que a justifique, é lógico, esperado e
inevitável que essa nação em breve
não terá nenhuma condição de honrá-
la e, com isso, terá de ceder cada vez
mais o conteúdo de sua soberania ins-
titucional, como no caso da Zâmbia,
que está em vias de ceder sua compa-
nhia elétrica estatal para a china a fim
de abater uma parcela de seu débito
monstruoso.
Outro evento que escancara o signifi-
cado prostituído da relação suposta-
mente bilateral Africano-chinesa, e
que hoje volta para assombrá-los, é o
episódio ocorrido em 2019, onde 17
estadistas Africanos endossaram publi-
camente a postura chinesa de enclau-
surar e torturar a minoria étnica
uyghur em campos de concentração
em xinjiang. Diante de relações tão
degradantes e da completa falta de
dignidade dos estadistas Africanos
frente aos seus mestres imperialistas
por tantos anos, sendo a china apenas
mais um entre tantos, o racismo anti-
Africano em sua face xenofóbica que
vimos em guangzhou não deveria es-
pantar ninguém, já que essas parcerias
comerciais patéticas são de conheci-
mento público.
Contudo, isso não significa nem de
longe que devemos permitir ou aceitar
bovinamente que tais abusos sejam co-
metidos contra o nosso povo de forma
tão covarde e vil, seja por parte da chi-
na, dos estados unidos da américa ou
da europa. Este entendimento dos pro-
cessos, em sua plenitude, serve para
demonstrar de forma inequívoca que
nosso povo foi traído por suas lideran-
ças, e cada aspecto de sua condição
decadente, inclusive os episódios re-
centes no território chinês, é um refle-
xo direto dessa traição. Uma maioria
de jovens estudantes que, pra começar,
precisam buscar o conhecimento no
exterior porque os governos Africanos
não investiram satisfatoriamente no
desenvolvimento educacional do povo,
não merecem sofrer ainda mais com as
humilhações que os chineses estão im-
pondo.
A nós cabe a conscientização, a pre-
venção e a retaliação.
É necessário identificarmos as nossas
possibilidades de ação, assim como é
necessário o entendimento de que ape-
lar aos chefes de estado protozoários
de nossa terra não é uma delas. Estes,
se dignos, deveriam ter rescindido
imediatamente o acesso chinês aos
seus interesses no nosso continente no
primeiro linchamento noticiado. Não o
fizeram e não o farão, e todos nós sa-
bemos a razão. Estes párias devem ser
derrubados.
A prevenção se dá no bojo das ações
coletivas para abrigar, resgatar e ali-
mentar nossos irmãos presos no impé-
rio chinês. Aguardar as autoridades
Africanas ou a boa-fé chinesa é con-
dená-los à miséria, discriminação, se-
gregação e, eventualmente, a morte.
Só temos a nós mesmos e isso terá que
bastar.
A retaliação deve ocorrer em todo o
mundo. Os formatos são variados: boi-
cote ao comércio chinês; execração
que atinja a mídia de massa, alterna-
tiva e informal; constrangimento aos
seus parceiros comerciais e boicote a
estes; danos materiais e humanos aos
interesses chineses.
Racistas sádicos e assassinos não têm
qualificação alguma para arbitrar so-
bre nossas decisões e medidas de reta-
liação aos seus atos demoníacos. O
que vocês podem fazer, se é que vossa
moral de esgoto é capaz de aceitar
uma sugestão de decisão inteligente a
ser tomada, é que deixem nosso povo
quieto e procurem outro bode expia-
tório para seus problemas, ou devol-
vam nossos irmãos para a nossa terra,
e neste caso, aproveitem também para
retirarem-se de nossa terra e nunca
mais colocar as suas patas sujas em
nosso solo.
O dia é 25 de maio. O dia da nossa
Sagrada Mãe-África. Este dia testemu-
nha seus filhos e filhas em todo o
mundo determinados à retomada da
nossa terra, à reunião do nosso povo
sob o propósito superior de nosso Re-
nascimento, e que ninguém, de pele
preta, será abandonado à tirania de
monstros em seus covis.
Salve a Amada Mãe África, Salve a
Sagrada e Gloriosa Mãe África.
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Jogos africanos de tabuleiro: Patrimônio milenar e recurso educacional

Kwesi Ta Fari*

A prática dos jogos de tabuleiro é uma revela-se como um sinal de desafricani-

tradição milenar africana, que pode ser
facilmente observada em vilas, praças,
esquinas, mercados e roças agrícolas
das cinco regiões geográficas do conti-
nente. No tempo e no espaço histórico
africano, esses jogos tradicionais com-
partilham um mesmo universo de signi-
ficados míticos, utilização jurídica e
funcionalidade matemática. A ocasião
de uma partida é capaz de envolver uma
comunidade inteira! Existe uma contí-
nua e diversificada prática cultural que
imprime nos jogos de tabuleiro um cará-
ter genuíno de patrimônio material da
unidade africana.
A arqueologia no continente africano
identificou jogos de tabuleiro em grava-
ções rochosas no Sudão, inscrições hie-
roglíficas (Medu Neter) oriundas do an-
tigo Egito (Kemet), afrescos Malgaxe
na ilha de Madagascar, esculturas ini-
ciáticas na Nigéria e em ruínas do Reino
de Mutapa.
Nas cidades africanas contemporâneas,
é muito comum adquirir jogos tradicio-
nais em feiras de artesanato, existe um
mercado desses artefatos sendo abaste-
cido por fabricantes de Moçambique,
Etiópia, Gana, Nigéria, Senegal, Tanzâ-
nia, Guiné-Bissau e outros países. Estu-
dos realizados pelas universidades de
Putra (Malaysia), Pensilvânia (EUA),
Pedagógica (Moçambique) e Ulm (Ale-
manha) demonstram que a prática dos
jogos de tabuleiro é um recurso eficaz
para o ensino de línguas, matemáticas e
Presidente Julius Neyrere da Tanzânia (segundo da direita para a esquerda, entre o casal) durante uma
partida de Bao, jogo de tabuleiro tradicional do país. A Tanzânia foi um dos centros do movimento Pan-
Africanista na África das décadas de 1960-1970. Segundo a história oral, Julius Neyrere desenvolveu
estratégias políticas anticoloniais praticando o Bao.
ganhado destaque, conforme observado
em Moçambique, Nigéria, Brasil e Ja-
maica.
Em Moçambique, a Associação Provin-
cial dos Jogos Tradicionais promove in-
vestigações, intercâmbios e torneios
voltados à preservação patrimonial dos
jogos de tabuleiro. Na Nigéria, a em-
presa KayCee Games organiza encon-
tros internacionais sobre jogos (The
African Boardgame Convention) e in-
veste na criação de protótipos inovado-
res, como o do extraordinário Ukubuwa.
No Brasil, professores engajados no
Movimento Negro inseriram jogos afri-
Tournament, um campeonato de jogos
que objetiva incentivar a arte educacio-
nal africana em consonância ao ensino
de habilidades matemáticas dentro e fo-
ra da sala de aula.
Entretanto, no sentido geral do mundo
africano, os jogos tradicionais de tabu-
leiro ainda são subestimados no campo
da investigação e das práticas educacio-
nais. Essa situação problemática gerou
equívocos que se tornaram normas, a
exemplo da utilização do termo árabe
Mancala como categoria para todos os
jogos africanos de tabuleiro. Uma vez
que existe uma variedade de nomes para
zação patrimonial. Bao é o nome de um
jogo tradicional de tabuleiro na Tanzâ-
nia e uma expressão popular em Kiswa-
hili para jogos desse gênero. O Kiswa-
hili é uma língua africana de origem
Bantu falada por mais de 50 milhões de
pessoas no território continental, pensa-
mos que “Bao” poderia ser um termo
comum empregado para a família dos
jogos africanos de tabuleiro.
O uso pedagógico dos jogos africanos
de tabuleiro deve receber uma atenção
especial dos programas educacionais
autônomos, especialmente os de proce-
der Pan-Africanista. Por esse ângulo, é
importante que os investigadores desses
jogos sejam os fabricantes, que os fabri-
cantes sejam os investigadores e que a
comunidade consuma essas produções,
possibilitando a formação de uma uni-
dade econômica local. Os jogos tradi-
cionais de tabuleiro são um bem maior
na composição dos esforços pela restau-
ração da nossa consciência histórica no
continente africano e na diáspora.
Referências:
CUNHA Jr., Henrique; PEREIRA, Rinaldo
Pevidor. Mancala: o jogo africano no ensino da
matemática. Curitiba: Apris, 2016.
CUNHA Jr., Henrique; FARI, Kwesi Ta. SE-
NET: Introdução ao jogo ancestral africano.
Praia: Addis Fetha, 2019.
https://theconversation.com/why-african-board-games-
should-be-introduced-into-the-classroom-88139
http://jamaica-
gleaner.com/gleaner/20121117/news/news7.html
Foto: https://mancala.fandom.com/wiki/Bao_la_Kiswahili 9

até para o tratamento do mal de Alzhei- canos de tabuleiro em programas de ma- esses jogos, como Omweso (Uganda),
mer, grave doença neurodegenerativa. temática nos estados do Espírito Santo, Oril (Cabo Verde), Morabara (Botswa- *Kwesi Ta Fari – Historiador membro de inicia-
Em alguns países africanos e da diás- São Paulo, Bahia e Ceará. Na Jamaica na), Oware (Gana), Ntxuva (Moçambi- tivas Pan-Africanistas e do Movimento Rasta-
pora, a popularidade desses jogos tem está em curso o St. Elizabeth Oware que) e Ayo (Nigéria), o termo Mancala fari.

O candomblé e o retorno à África

Juliana Olatunji*

A O candomblé no Brasil pode ser considerado um dos
Agô às minhas mais velhas…
Agô aos meus mais velhos…
Laroyê Exu!
Epa Babá, meu pai Oxalá!
Axé, Mãe Aninha! Axé, Mãe Menininha!
“No chão, vejo muitas folhas, são folhas verdes e
de cores vibrantes. Na atmosfera, sinto o cheiro da
comida que é feita com energia, dedicação e amor,
e que alimentam a cabeça, o corpo, o espírito e a
alma. Com os olhos fechados, silenciosamente
chorando, em uma comunhão repleta de amor,
mesmo imersa numa espécie de transe poético,
pude ver a minha avó, mãe, irmãs, tias e primas…
todas ali, diante de mim… e nas minhas sensa-
ções, todas elas giravam… e todas estavam vestin-
do roupas brancas, ostentavam turbantes na cabe-
ça e alguidares nas mãos… todas elas dançavam,
giravam e sorriam lindamente. Mesmo sabendo
que elas estavam longe dali, ao menos em maté-
ria… a sensação causada pelos cânticos, tambo-
res, danças e a alegria de todos, fez a energia de-
las quase que se materializar dentro daquele ter-
reiro de candomblé. E aquela foi a primeira vez
que eu estive diante dos deuses africanos”.
caminhos para a reconstrução das famílias pretas, e das
próprias comunidades africanas, que foram completa-
mente esfaceladas pelo processo de escravização e pelo
racismo contemporâneo. O fenômeno de irmãos e ir-
mãs de diversas etnias reunidos fez ressurgir o panteão
dos orixás nagôs (iorubás), agora, concentrados em um
único espaço geográfico.
Do início do século XVI até meados do século XIX,
foram trazidos para o Brasil milhões de irmãos e irmãs
de origens africanas, e com eles vieram os seus deuses
e as suas visões do sagrado. Os nossos irmãos escravi-
zados vieram de diversas regiões do continente africa-
no e pertenciam a muitas etnias distintas. Contudo, os
grupos que foram as principais vítimas do tráfico ne-
greiro foram os bantos, os iorubás (aqui no Brasil cha-
mados de nagôs) e os jejes.
Os nagôs que foram levados para as regiões do Nor-
deste, principalmente para Salvador e Recôncavo Baia-
no, criaram, apesar de toda a violência física e psíquica
que sofreram, formas e espaços próprios para cultua-
rem os seus deuses, cantarem as suas músicas, dança-
rem as suas danças, tocarem os seus instrumentos,
cozinharem as suas comidas, vestirem as suas roupas,
falarem as suas línguas e assim sentir como se ainda
estivessem na terra dos seus ancestrais. Assim foi
criado o candomblé, um pedaço da África no Brasil.
Para os nagôs, os orixás são as forças vivas da natureza
e é por meio das pessoas pretas e desses elementos na-
turais que eles se manifestam; expressando o domínio
sobre a cabeça dos seus filhos, eles oferecem força,
amor, cuidado e poder de realização em diversas esfe-
ras da existência humana. E segundo a tradição dos ori-
xás, a criação do mundo deu-se da relação entre Olodu-
maré e os orixás, e assim foram criados os elementos
da natureza: o ar, a terra, a água, o fogo, as florestas e
tudo que habitam nelas. E cada orixá passou a ser as-
sociado a um destes elementos, por exemplo: Obatalá
ao ar, Xangô ao fogo, Oxum e Iemanjá as águas, Omo-
lu e Oduduwa a terra, Nanã aos pântanos, Oiá as tem-
pestades, Oxumarê as chuvas, Oxóssi e Ogum as matas
etc. Portanto, os orixás e os elementos da natureza es-
tão intrinsecamente ligados e só se pode entender as
forças que criaram e mantêm o mundo (orixás) com-
preendendo a sua relação com os quatro elementos da
natureza.
Do equilíbrio entre os quatro elementos é que surgiram
os seres humanos. Não há dúvida de que cada ser guar-
da em sua essência uma parcela de água e outra de
terra, uma de fogo e outra de ar; além do desejo de es-
tar em meio à natureza, em meio as florestas. A fusão
entre a água e a terra formou o barro, com o qual
Obatalá moldou os corpos das mulheres e dos homens,
o fogo serviu para assar esses corpos, dando a eles ri-
gidez e cor… depois, o sopro de Olodumaré infundiu-
lhes o ar da vida.
Nós precisamos entender que a nossa convivência com
a natureza relaciona-se com a nossa vivência plena, por
exemplo, não devemos matar um animal se não formos
nos alimentar dele ou oferecer ele em sacrifício a uma
divindade, buscando o equilíbrio espiritual, psíquico e
um bem maior. Não devemos arrancar as folhas das ár-
vores sem necessidade, não devemos abrir caminhos
nas florestas por onde jamais passaremos etc. Devemos
entender que a destruição da natureza é a nossa própria
destruição, pois nossa essência é a natureza… dela vie-
mos e para ela retornaremos.
Para além de nos levar de volta para casa, a África, e
nos apresentar a necessidade de equilíbrio com a natu-
reza, o candomblé representa um refúgio de sentimento
e saudade, também de memória. Portanto, no terreiro,
na roça ou no ilê, é onde temos a possibilidade de nos
reconectarmos com a nossa ancestralidade divinizada e
ter o privilégio de sentir, tocar e abraçar energias trans-
cendentais e atemporais; e com essas energias e por
elas a gente dança, sorri, canta, chora e comunga den-
tro destas pequenas (porém grandes) Áfricas, que são
os candomblés no Brasil.
*Pedagoga, arte-educadora, pan-africanista e membro da UCPA.
Yanda PanAfrikanu ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,25 de maio de 2020,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,Página 5

Representações de África em tempos de pandemia

Entre discursos paternalistas e vaticínios “malthusianistas”, “a biblioteca colonial do coronavírus”
Apolo de Carvalho*
A COVID19, após devastar o Estado de Wuhan na Chi-
na, propagou-se de forma galopante por todos os conti-
nentes levando a OMS a decretar o novo coronavírus
como uma pandemia. O epicentro do contágio deslo-
cou-se da China para a Europa onde o número de mor-
tos ultrapassa as outras regiões do mundo. Em África a
“chegada” do coronavírus foi recebida com uma série
de médias governamentais drásticas como o fechamen-
to das fronteiras e o confinamento obrigatório em vá-
rios países. Junto com a Oceânia, o continente regista
um número de casos menor comparado com as outras
regiões do mundo. Se o futuro desta pandemia é incer-
to, a verdade é que, com um longo e duro histórico de
epidemias mortais, os países africanos têm à disposição
todo um arsenal próprio, forjado nas lutas contra doen-
ças como o Ébola, para fazer face a esta a pandemia.
Contudo, parece que para uma parte do mundo, o oci-
dente particularmente, as experiências de África não
contam e deste “lugar-problema” só se pode esperar o
falhanço total e nunca soluções a partilhar.
Desde o primeiro momento desta pandemia, várias são
as vozes de “especialistas” (instituições internacionais,
mídias, centros de estudo, gabinetes diplomáticos, inte-
lectuais, acadêmicos etc.) que vem se pronunciando so-
bre o continente, vaticinando uma catástrofe iminente
que estaria prestes a devorar os seus 55 países. O cená-
rio de catástrofe é compulsivamente desenhado por vá-
rios jornais que, quais arautos da desgraça, não poupam
caracteres para nos informar das várias vulnerabilida-
des do continente africano. Vulnerabilidades estas que
o transformariam num incubador de doenças. “Catás-
trofe, Desastre, Crise, Bomba relógio” são alguns dos
termos que aparecem nos títulos de vários artigos que
por aí pululam, sugerindo que face a esta pandemia,
“l’Afrique (noire) est mal partie” (África ainda tratada
como se fosse um país ou uma entidade homogênea).
É o “retorno” de um afropessimismo marcado pela in-
confundível condescendência ocidental. Condescendên-
cia e também paternalismo que estruturam discursos
como os do Alto-Representante para a Política Externa
da UE, Josep Borrell, para quem a “África é motivo de
particular preocupação”. O líder da diplomacia euro-
peia com particular benevolência afirma, que é do inte-
resse da UE “ajudar África”, porque o vírus “pode re-
gressar à Europa”. Não deixa de ser interessante esta
preocupação quando se sabe que os casos de contágio
que se espalharam por África foram em grande medida,
importados de países europeus. Por outro lado, a funda-
mentação deste “imperativo” de ajudar o “desgraçado”
continente revela a forte securitização das políticas da
UE no que respeita as suas relações com África.
A própria OMS em várias declarações tem avisado os
países africanos a “prepararem-se para o pior” uma
vez que, estes podem vir a ser o “novo epicentro da
pandemia”. Todos esperam por uma vaga de destruição
anunciada, que teima em não chegar. O que explicaria
esta anomalia? Perguntam-se tecendo todo o tipo de ar-
gumentos onde as linhas de continuidade colonial, não
cessam de se recompor e robustecer.
No início de Abril passado por exemplo, o Centro de
Estratégia (CAPS) do ministério das relações externas
da França produziu uma polêmica nota de conjuntura
intitulada “L’effet pangolin: la tempête qui vient en
Afrique?”. O documento foi redigido pelo especialista
do famoso “reseau Foccart” e da Françafrique o histo-
riador Jean-Pierre Bat. Em quatro páginas afirma-se
que a crise do COVID19 mostraria a “Incapacidade
dos Estados a proteger os seus próprios cidadãos” lev-
ando a “desestabilização e fim dos regimes frágeis, ao
descrédito das instituições estatais face as suas popu-
lações, as crises políticas, econômicas e securitárias”.
Face a tal cenário o CAPS recomenda que: “Antecipar
o descrédito das autoridades políticas significa acom-
panhar com urgência o surgimento de outras formas de
autoridades africanas credíveis para se dirigir ao po-
vo, a fim de enfrentar as responsabilidades da crise po-
lítica que surgirá do choque provocado pelo Covid-19
na África”.
Ainda em relação a França e passando de uma autorida-
de estatal para “autoridades médicas”, as continuida-
des são cada vez mais notórias e nos relembram a me-
dicina colonial. Igualmente em abril, fomos surpreendi-
dos com um alucinante diálogo entre dois médicos
franceses no canal LCI, onde propunham com toda a
naturalidade, usar os africanos como cobaias para testar
uma vacina, a BCG que poderia ser eficaz contra a Co-
vid19. Assumindo a “provocação” os dois profissio-
nais da saúde, explicam que, “não havendo máscaras,
nem tratamentos ou possibilidade de reanimação”, o
continente seria um laboratório ideal para experimentar
uma vacina. A elegibilidade dos africanos e de África
enquanto cobaias e laboratório, é ainda justificada por-
que na verdade “é a prática corrente como se faz nos
estudos com doentes do SIDA ou com as prostitutas,
uma vez que, estão mais expostos às doenças e não se
protegeriam”.
Esta histórica associação do continente e das pessoas
negras às doenças é algo que se tem verificado desde o
início da pandemia e bem antes do registo dos primei-
ros casos no continente. Veja-se por exemplo as várias
fakenews que circularam nas redes sociais, a dizer que
a pele negra era imune ao vírus. Fanon nos lembra que
o racismo daquele que abomina negro é tão racista co-
mo daquele que o deifica. É sem muita surpresa que de
“naturalmente” imunes, os africanos passaram a ser
vistos como portadores do vírus e logo ameaças à se-
gurança pública. É o que se verifica hoje, por exemplo,
na China, particularmente em Guangzhou, onde vários
casos de negrofobia têm sido denunciados, levando a
União Africana a convocar o embaixador Chinês em
Adis Abeba. Embora esses casos de negrofobia não se-
jam recentes nem esporádicos, têm-se acelerado nos
últimos meses agravando as nossas vulnerabilidades
várias por todo o mundo. Na verdade, quer estejam ou
não infetados, as pessoas negras africanas parecem ser
as mais afetadas por esta pandemia devido uma série de
fatores que antecedem este vírus e que têm a ver com a
própria estrutura política, econômica e social que orga-
nizam o mundo em que vivemos. A colonialidade de
um vírus prende-se a isso. A sua letalidade está numa
capacidade de desdobrar a omnipresença. Ele mata até
o corpo que não toca.
É nestes momentos de crise, em que o sistema capita-
lista, racista patriarcal e colonialista se articula para
acelerar a nossa morte, que urge operacionalizar o vasto
legado de luta que possuímos e agir com consequência.
Importa registar que desde o início desta pandemia, em
vários lugares, diversos movimentos de cariz pan-afri-
cano, pese embora as restrições às suas ações têm esta-
do na linha da frente para garantir a sobrevivência das
nossas gentes.
Numa carta aberta dirigida às líderes do continente, cer-
ca de 100 intelectuais africanos assinalaram a impor-
tância de envolver a sociedade civil africana na luta
contra a pandemia, apelaram ao rompimento com as
dependências externas, à ação concreta, a mudar radi-
calmente de direção, e tomar em mãos o nosso destino.
As vozes são múltiplas e cada vez mais sonoras, são lu-
tas que continuam e não fazem quarentena. O momento
é de continuar a construir esta África ainda vindoura.
Superar as representações coloniais sobre o continente
passa pelo compromisso com esta missão e, pela plena
consciencialização das nossas potencialidades enquanto
africanos que têm papéis a desempenhar no futuro deste
mundo também nosso.
1. Segundo os dados da European Centre for Disease Pre-vention
and Control à data.
(*Estudante na grande universidade da palavra ensinada à som-
bra dos Baobás.)

Morre mais um Filho da África: Elhadj Momo Bangoura memória de luta

Mutuh Nyaneka*

Elhadj Momo Bangoura, companhei-
ro do falecido Ahmed Sékou Touré no
PDG-RDA, morreu na segunda-feira
04/05/2020, aos 84 anos de idade, em
Conakry, no hospital Ignace Deen, ví-
tima de doença não relacionada a Co-
vid-19, segundo a fonte. Foi um líder
político histórico. Um grande lutador
de resistência, enfrentou não apenas o
colonialismo francês, mas também o
neocolonialismo.
Elhadj Momo Bangoura Presidente Ho-
norário do PDG-RDA, o reitor, compa-
nheiro fiel de luta do falecido presidente
Ahmed Sekou Touré, com quem lutou
pela independência da Guiné Conakry,
aos 22 anos de idade teve o prazer de
ouvir o “Apelo aos Africanos” de Fanon
e com toda convicção votou NÃO ao re-
ferendo de De Gaulle de 1958, tornando
assim a Guiné Conakry uma Nação au-
tônoma, livre e independente para cami-
nhar com seus próprios passos mesmo
sob várias ameaças de destruição, ao la-
do de seu eterno líder, gritou: “Preferi-
mos a liberdade na pobreza à opulência
na escravidão”.
Dizer que Fanon se sentiu honrado e
contemplado uma vez que depois de fa-
zer o apelo, lançou a seguinte profecia:
“Para dar início à libertação nacional
da África Negra era preciso de uma coi-
sa: que, pelo menos, um território dis-
sesse não à constituição de De Gaulle.
A Guiné, conduzida por Sekou Touré
tornou-se independente. […] E virou
ponta de lança da liberdade”.
Numa entrevista do ano passado, conce-
dida para o site Africanguinee, sempre
com o entusiasmo que lhe caracterizava,
Elhadj Momo Bangoura lembrava da-
queles dias gloriosos, com satisfação, e
contava incansavelmente as armadilhas
que a França preparava para destruição
daquela nação, e, mesmo assim, a Guiné
aparentemente frágil ainda servia de
quartel-general das tropas de elite para
libertação do continente, como soldados
irreverentes conseguiram desferir golpes
a ponto de derrubar mais dois coloniza-
dores, a Alemanha Federal pelo simples
facto da Guiné reconhecer as duas Ale-
manhas na época e Portugal pelo facto
do PAIGC fazer da sua base aquele país-
irmão. Nessa entrevista, com muita tris-
teza abriu o seu coração pela situação
política do país, apelando pela união dos
filhos da Guiné: “O que eu quero é a
união dos filhos da Guiné”, e concluiu
dizendo: “Devemos, por exemplo, evitar
criar uma formação política com cono-
tação étnica. Se houver um partido polí-
tico, ele deve ser representativo de todos
os componentes da nação guineense”.
É com essa lógica que, dos Estados Uni-
dos, o filho do presidente Sékou Touré e
secretário-geral do PDG-RDA, Moha-
med Touré, enviou suas condolências à
família do falecido em sua página do Fa-
cebook aos 05 de maio de 2020. Qua-
lifica além de que “homem de convic-
ção, humanista e revolucionário na al-
ma é um homem do paraíso”. E conti-
nua com os elogios, dizendo: “Elhadj
Momo Bangoura, um homem de Deus
porque um homem do Povo […]”.
“Para lembrar a história da luta de
libertação dos povos colonizados da
África, a Guiné teve a glória de ter sido
o portador da tocha.
De fato, a votação de 28 de setembro de
1958 resultou no deslocamento do
império colonial francês. A Guiné
causou mais danos à França do que o
Vietnã e a Argélia.”
Elhadj Momo Bangoura
*Pan-Africanista e membro do Colectivo Mu-
xima na Diáspora e da UCPA.
Página 6 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,25 de maio de 2020 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, Yanda PanAfrikanu
Estamos passando por tempos difíceis.
Lamentavelmente essa afirmação não soa
como novidade para pretos em parte algu-
ma do mundo, já que os tempos difíceis
são uma constante infeliz para nós desde
muito tempo, de modo que somente os
livros de história podem contar quando e
como era a vida do nosso povo nos tem-
pos de paz, prosperidade e relativa segu-
rança. Apesar desse passado longínquo re-
gistrado nos livros ter sido real e glorioso,
se faz necessário prestar maior atenção ao
período contínuo dos eventos que demoli-
ram nosso modo de vida, nos privaram da
nossa terra e reduziram nosso corpo e
existência a uma simples extensão mecâ-
nica de enxadas, pás, marretas, fogões,
vassouras, alavancas e afins.
A história reza que Mansa Musa I, do Im-
pério do Mali, foi o homem mais rico de
todos os tempos, representado na carto-
grafia de sua época como um grande ho-
mem preto no centro do mapa da África
segurando um grande pedaço de ouro em
uma das mãos. Hoje, no entanto, há uma
legião sem fim de descendentes seus que
dependem de doações ou “garimpos” em
aterros sanitários para vestirem-se mini-
mamente, e que passam muitos dias sem
ter uma única refeição. Do mesmo modo,
produzimos as melhores mentes militares
da história. Amílcar, Asdrú-Baal, Haní-
Baal, Amanirenas, Dahia al-Kahina, Sha-
ka, Ramsés II, Ahmose I, Taharka, Nzum-
bi, Dessalines, entre outros grandes co-
mandantes, organizadores, criadores de
estratégias e movimentos estudados pelas
escolas de guerra de todas as grandes po-
tências militares do mundo até hoje. Po-
rém, como todos vocês devem saber por
experiência própria, nosso povo utiliza o
pouco poder de fogo que possui na atua-
lidade para fragmentar-se em facções ca-
da vez mais fechadas em si mesmas, ater-
rorizando quem permanece sob sua in-
fluência nefasta e matando seus rivais
pretos nessa contenda do terror presente
em todo o mundo particularmente preto.
Soma-se a essas discrepâncias a nossa frá-
gil capacidade atual de cuidados para a
saúde e bem-estar geral do nosso corpo e
mente, quando no passado figurávamos
como detentores de um vasto repositório
de métodos de prevenção e cura de enfer-
midades e necessidades médicas de toda
ordem.
Hoje nós testemunhamos o mundo ajoe-
lhado diante da pandemia causada pelo
COVID-19. Esta mazela foi declarada
pandemia no dia 11 do mês de março pela
OMS. Desde então, as mortes chegaram a
centenas de milhares, e até o momento os
curados são pouco mais de um milhão,
enquanto os casos de infectados ainda ati-
vos somam mais de dois milhões. Núme-
ros que, infelizmente, já estarão larga-
mente defasados quando este jornal esti-
ver em suas mãos. No momento o mundo
não conta com um tratamento eficaz para
reverter o quadro de síndrome respiratória
aguda grave que o coronavírus causa,
tampouco desenvolveu uma vacina capaz
de eliminar o vírus em qualquer dos está-
gios do contágio. Tudo o que todos têm
são medidas preventivas resumidas na
restrição de atividade social, higienização
constante das mãos e objetos, a utilização
de máscaras protetoras das mucosas da
boca e nariz e protetores para as mucosas
dos olhos.
Se você não atropelou simplesmente as
palavras até aqui, deve estar se questio-
nando sobre como um povo sem organi-
zação social e política, sem poder econô-
mico e distante de ser uma referência por
sua capacidade de prevenção e tratamento
de doenças enfrentará mais esse desafio
que se apresenta. A restrição da atividade
social requer uma independência finan-
ceira para sustentar o confinamento por
semanas, e nós não temos isso enquanto
povo; a prevenção com o uso de álcool
gel, máscaras N95 e proteção para os
olhos demandam dinheiro ou capacidade
produtiva autônoma, e nós não temos isso
enquanto povo; o tratamento que ameniza
os efeitos devastadores da síndrome respi-
ratória aguda grave utiliza respiradores, e
comprá-los, ou produzi-los e operá-los,
requer recursos monetários, infraestrutura
e recursos humanos capacitados, e nós
não temos isso enquanto povo.
O quadro é sério. No entanto, perceber
essa condição não responde ao questiona-
mento. Não há nenhuma razão para acre-
ditar em destino selado e na total impo-
tência de um povo inteiro diante dos
acontecimentos históricos, por mais im-
previsíveis e duros que sejam. Como o
aniversariante Martin Delany nos ensina:
“Todo povo deve ser o criador de seus
próprios projetos, o realizador de seus
próprios projetos e criador dos eventos
que conduzem ao seu destino – a consu-
mação de seus desejos” (Delany, 1852).
Essa é uma verdade que a história susten-
ta repetidas vezes na experiência de povos
que já sofreram em demasia, mas que,
relutantes em aceitar a derrota, encontra-
ram um meio de se reerguer. Esse vírus
dará um golpe poderoso em todos os po-
vos do mundo, mas nós, assim como ou-
tros, teremos sido terminantemente derro-
tados somente quando permitirmos que
tudo permaneça como está, e que novas
hecatombes se sobreponham as já exis-
tentes, aumentando a bola de neve da nos-
sa desgraça. É preciso coragem para reco-
nhecer que cada fel que experimentamos
agora é resultado direto de uma derrota
específica que aceitamos no passado, e é
sob estes termos que construiremos um
legado para os que estão por vir. Teremos
de escolher entre o enfrentamento do nos-
so desafio e a rendição vergonhosa, e essa
escolha ressoará pelo tempo não como
narrativa, mas em condições de sobrevi-
vência favoráveis ou não para as próximas
gerações.
Há cento e dois anos atrás, W. E. B. Du
Bois publicava um editorial no jornal pre-
to The Crisis entitulado “Close Ranks”
Cerrar Fileiras
Ammit Garvey*
Saudações, meu amado povo!
Inicialmente, gostaria de registrar aqui os respeitos
devidos a um grande Ancestral e mentor político,
cujo nascimento completa exatos 208 anos neste dia
em que escrevo. Mukuiu, Major-Doutor Martin Ro-
bison Delany! Homem Preto Orgulhoso, considera-
do o pai do Nacionalismo Preto por ter sintetizado
nossas urgências e necessidades em um programa
político soberano para a nossa gente.
(Cerras Fileiras). Diferente deste, que neutralidade da base de adesão entre as
instava os pretos dos estados unidos de partículas da matéria” (Delany, 1870).
seu tempo a “abandonar suas questões
particulares” – como linchamento, as leis *Intelectual e ativista pan-africanista,
de Jim Crow e cidadania de segunda clas- membro da UCPA.
se – para cerrar fileiras com o caipira ra-
cista do sul e europeus colonialistas na lu-
ta contra os impérios centrais na primeira
guerra europeia, o que pode ter ajudado a
vencer a guerra europeia, mas manteve os
pretos de lá na desgraça total por mais al-
gumas décadas, tenho como proposta um
procedimento bem diferente: cerremos fi-
leiras entre nós, apesar das nossas dife-
renças e particularidades internas! Pense-
mos em como resolver os nossos proble-
mas acima de qualquer coisa.
Uma concepção simples, mas que muda
tudo. Somos pouco competitivos indivi-
dualmente na concorrência para obter
itens de primeira necessidade higiênica,
mas uma comunidade preta organizada
pode pleitear a compra desses itens junto
aos fornecedores a um preço considera-
velmente reduzido. Uma família de traba-
lhadores sozinha pode não conseguir sus-
tentar as necessidades alimentares de uma
família vizinha com adultos desemprega-
dos, mas uma comunidade organizada po-
de alimentar essa família diariamente a
partir da partilha. Uma família sozinha
pode não ter condições de bancar a inter-
nação de um familiar com sintomas gra-
ves oriundos do coronavírus, mas uma co-
munidade organizada pode se reunir e
sustentar total ou parcialmente os custos Martin Robison Delany (EUA, 1812-
médicos. Há campanhas de arrecadação e 1885) foi um intelectual, abolicionista,
distribuição de itens de necessidade higiê- jornalista, médico, soldado e escritor en-
nica e alimentar que podemos somar, e gajado e profícuo; além de estudioso das
criar outras frentes aonde elas não exis- questões pretas na América e da história
tem. e cultura africana; como defensor do po-
Não será fácil conceber respostas adequa- vo preto, Delany é considerado o pai do
das e menos ainda proceder a elas, mas nacionalismo preto, pois ele defendia, já
aos dignos não resta outra escolha. Para no século XIX e durante o regime escra-
estes, dedico as palavras inspiradoras de vagista norte-americano, a ideia de que
Delany: “Então, para sermos bem-suce- os pretos jamais seriam livres dentro dos
didos, nossa atenção deve estar voltada EUA e, portanto, deveriam construir uma
em direção àqueles lugares onde o ho- nação fora dos limites geográficos dos
mem preto e de cor se compõem, por po- EUA, possivelmente na América Central,
pulação, e constituem por necessidade de Caribé ou América do Sul. Em muitos es-
números, o elemento dominante do corpo
tudos, Martin Delany é considerado um
político. E onde, quando a ocasião exigir,
o assunto poderá ser realizado e mantido pan-negrista, pois defendia ele a unidade
por esta base. Onde o nosso centro polí- das pessoas pretas de várias partes do
tico e a edificação nacional poderão ser mundo, principalmente da diáspora afri-
criados, estabelecidos, murados, e orgu- cana. Dentre as suas obras, destacam-se
lhosamente defendidos neste grande prin- seguintes: The Condition, Elevation,
cípio elementar de identidade original. Emigration and Destiny of the Colored
Sobre esta base sólida descansa o tecido People of the United States (1852), The
de cada substancial estrutura política no Origins and Objects of Ancient Freema-
mundo, e que não poderiam existir sem sonry: Its Introduction into the United
ela; e tão cedo quanto as pessoas ou na- States and Legitimacy among Colored
ções perderem suas identidades originais, Men (1853), Political Destiny of the Co-
tão cedo essas nações ou essas pessoas lored Race on the American Continent
serão extintas. Por mais poderosos que (1854), Principia of Ethnology: The Ori-
possam ter sido, eles devem cair. Porque gin of Races and Color, with an Archaeo-
o núcleo que até então os mantinha uni- logical Compendium of Ethiopian and
dos, tornando-se extinto, já não sendo Egyptian Civilization (1879) e Political
mais um centro de atração ou base para Destiny of the Colored Race on the Ame-
a união das partes, deve resultar natural-
rican Continent (1854).
mente na dissolução, como resultado da
Yanda PanAfrikanu ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,25 de maio de 2020,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,Página 7
Pandemia, racismo e necessidade de dados étnico-raciais em Portugal
À medida que nos fomos aproximando
da declaração do estado de emergên-
cia, decretado em Portugal no dia 18
de Março de 2020, com o confinamen-
to social como estratégia central, fo-
ram muitas as contradições e inquieta-
ções que surgiram imediatamente, ao
pensarmos nas especificidades de de-
terminados contextos de vulnerabilida-
de de comunidades racializadas.
• Como é que são possíveis medidas de
higiene para pessoas que vivem em
acampamentos sem acesso garantido a
sabão, água, máscaras, luvas, álcool
gel, e uma série de outros produtos re-
comendados?
• Como é possível garantir o distancia-
mento social entre pessoas que vivem
em bairros e apartamentos sobrelota-
dos. Como sabemos de casos de famí-
lias da comunidade cigana de 15 pes-
soas a viver em apartamentos T3?
• Como é que as pessoas podem ficar
em casa e os seus movimentos serem
monitorizados, se vivem daquilo que
conseguem ganhar estando na rua? Não
tendo poupanças, não tendo acesso a
substituições de renda, e arriscando
perder as suas fontes de rendimento du-
rante este processo?
• Mesmo que o estado introduza a
substituição salarial e subvenções de
apoio via segurança social, como é que
isso irá funcionar para pessoas que
exercem trabalho informal não declara-
do?
• Se o confinamento está conectado
com uma estratégia de isolamento, tes-
tes e tratamento, o que significa o con-
finamento onde não existe uma estraté-
gia desta natureza? Estou a pensar con-
cretamente em acampamentos de ciga-
nos no Alentejo com 100 pessoas em
que 33 já estavam infectadas em Abril.
• Também se levantam questões de au-
toritarismo: será possível que militares
e polícia cumpram de facto o seu papel
de segurança e protecção pública num
contexto em que corpos pobres, negros
e ciganos foram historicamente desu-
manizados e violados pelo estado e o
capital?
• Por um lado, o coronavírus recentra-
lizou o Estado como um actor impor-
tante, mas por outro lado, será que ele
consegue realmente realizar essa fun-
ção de forma imediata para os grupos
Mais um inimigo que o povo preto tem que encarar
Cledja Silva*
O mundo está passando por um momen-
to muito delicado, e nações estão em
alerta contínuo, depois da chegada do
novo coronavírus (COVID-19). Vários
países agiram com arrogância diante
dessa doença, que antes estava somente
no seu país de origem: a China. A Euro-
pa, em especial a Itália e Espanha, tive-
ram um grande destaque perante essa
Pandemia, mas não um destaque positi-
vo, pois eles passaram por um momento
muito delicado e com muitas mortes; o
sistema de saúde entrou em colapso,
com hospitais superlotados; idosos, devi-
do a sua situação mais delicada, foram
um dos grupos de risco que mais chega-
ram a óbito.
Não tínhamos dúvidas de que no mo-
mento em que essa doença chegasse ao
continente Africano e na América do
Raquel Lima*
sociais racializados? E não conseguin-
do, o que podemos nós fazer sobre o
assunto?
Têm sido várias as campanhas de soli-
dariedade, de apoio popular e imediato
pelo país, porque é preocupante a não-
existência de uma estratégia a longo-
prazo de redistribuição de bens e re-
cursos considerando as desigualdades
sociais e raciais em Portugal, e consi-
derando que o distanciamento social é
realmente uma opção para os mais pri-
vilegiados, e que vai rapidamente pro-
var ser economicamente insustentável
e politicamente inviável para uma série
de pessoas, principalmente estas pes-
soas que têm que escolher entre morrer
de fome ou morrer do vírus.
É urgente obter dados comparáveis da
situação das comunidades racializadas
no contexto da pandemia do Covid-19
em Portugal, para que as políticas pú-
blicas sejam ajustadas às realidades e
contextos específicos das nossas co-
munidades.
Ainda mais pertinente, na área da saú-
de, se considerarmos a possibilidade
do número de trabalhadores e trabalha-
doras de baixa qualificação infectadxs
(ou seja, assistentes de enfermagem,
profissionais de limpeza, encarregadxs
de transporte de doentes etc.) ultrapas-
sar o número de médicxs e enfermeirxs
infectadxs, nos hospitais e nos lares
portugueses.
Se observarmos o staff dos hospitais na
região de Lisboa, compreendemos que
grande percentagem de trabalhadorxs
hospitalares é oriunda de comunidades
cujas condições de vida e de doença
costumam a ser omitidas nas cons-
truções estatísticas generalizadas para
contornar a realidade numa sociedade
dividida também numa linha racial,
além da classe.
Nos Estados Unidos da América, no
Brasil e no Reino Unido, recentes evi-
dências de cidades e estados já mos-
tram que os negros são desproporcio-
nalmente afetados pelo vírus de manei-
ras devastadoras. Conforme o relatório
ProPublica, no Condado de Milwau-
kee, Wisconsin, 81% das mortes eram
de negros. Os negros representam ape-
Sul, o resultado não seria diferente, com
muitas mortes, hospitais superlotados e
um crescente número de pessoas infecta-
das e vindo ao óbito; com isso, a preocu-
pação e o medo haveriam de se instalar.
No Brasil, onde a maioria da população
é negra (pretos e pardos), já imagináva-
mos que o caos seria ainda maior no in-
terior de nossa comunidade. No dia 30
de abril, os dados do boletim epidemio-
lógico da Prefeitura de São Paulo apon-
taram que o risco de morte de negros por
COVID-19 é de 62% maior em relação
aos brancos, e que entre os pardos o ris-
co é 23% maior.¹
O coronavírus (COVID-19) não faz dis-
tinção de etnia, raça, gênero ou classe
social. Contudo, não podemos deixar de
dizer que no mundo os negros são os
mais oprimidos e, por serem vítimas do
nas 26% deste município. Quanto a
Chicago, o WBEZ informou que “70%
das mortes de Covid-19 são negras” e
apontou sobre o Condado de Cook:
“Enquanto os residentes negros repre-
sentam apenas 23% da população do
condado, eles representam 58% dos as
mortes de Covid-19.” O Detroit News
informou: “Pelo menos 40% dos mor-
tos pelo novo coronavírus em Michi-
gan até agora são negros, uma per-
centagem que excede em muito a pro-
porção de afro-americanos na região
e no estado de Detroit. Os negros tam-
bém representam 41% das 274 mortes
relacionadas ao coronavírus de Illi-
nois, em comparação com 106 ou qua-
se 39% dos brancos que morreram
após testes positivos para o vírus”.[1]
Em duas semanas, a quantidade de
pessoas negras que morrem por Covid-
19 no Brasil cresceu cinco vezes mais.
De 11 a 26 de abril, mortes de pacien-
tes negros confirmadas pelo Governo
Federal foram de pouco mais de 180
para mais de 930. Além disso, a quan-
tidade de brasileiros negros hospitali-
zados por Síndrome Respiratória Agu-
da Grave (SRAG) causada por corona-
vírus aumentou para 5,5 vezes. Já o au-
mento de mortes de pacientes brancos
foi bem menor: nas mesmas duas se-
manas, o número chegou a pouco mais
que o triplo. E o número de brasileiros
brancos hospitalizados aumentou em
proporção parecida.[2]
No Reino Unido tem vindo a ser discu-
tida a necessidade dos funcionários ne-
gros, asiáticos e de outras “etnias mi-
noritárias” do Serviço Nacional de
Saúde do Reino Unido serem afastados
da linha de frente nos planos para re-
duzir a taxa de mortalidade despropor-
cionalmente alta do Covid-19. O The
Guardian revelou na semana passada
que os grupos minoritários estavam su-
per-representados em até 27% no nú-
mero total de mortos em Covid-19.
Além disso, 63% dos 106 primeiros
funcionários de saúde e assistência so-
cial que morreram devido ao vírus
eram negros ou asiáticos, de acordo
com o Health Service Journal. Dife-
rentes repórteres têm analisado os nú-
racismo, enfrentam desigualdades que os
matam tanto física quanto psicologica-
mente. Não é necessário ser nenhum
cientista para saber que somos os mais
afetados e vulneráveis a todos os tipos
de doenças, isso devido às condições
precárias que o nosso povo vive nas
periferias, com saneamento básico pre-
cário, má alimentação, grande dificulda-
de para ter acesso à saúde e piores con-
dições de trabalho. Sofremos com um
governo neoliberal que nos descrimina
meros para explicar por que as pessoas
negras, asiáticas e das “minorias étni-
cas” (BAME – Black, Asian, Minority
Ethnic) podem estar mais em risco.[3]
Em Portugal, como numa série de ou-
tros países, é cada vez mais necessário
analisar as disparidades gerais nos re-
sultados de saúde através de um recor-
te racial, para garantir que as nossas
comunidades possam ter acesso aos
cuidados de que precisam e garantir
que os recursos sejam direcionados pa-
ra onde são mais necessários.
Além disso, a pandemia permitiu-nos
reflectir em potenciais soluções a lon-
go prazo com vista a minimizarmos os
impactos desiguais em situações de
emergência e calamidade como a que
se apresenta hoje, nomeadamente a ur-
gência de um sistema de saúde uni-
versal, a necessidade de repensar mo-
delos de soberania alimentar, o reco-
nhecimento e compreensão do trabalho
informal dentro dos sistemas laborais
e, finalmente, a necessidade de cons-
truir movimentos radicais transnacio-
nais e interseccionais (seja através de
organizações mulheristas, feministas,
anti-racistas, anti-capitalistas, para a
habitação, ambientalistas, entre ou-
tras), com o principal objectivo de evi-
tar genocídios históricos, como o ge-
nocídio negro, o genocídio cigano e o
genocídio indígena. Este contexto re-
lembra-nos também que a criação e o
fortalecimento de redes pan-africanis-
tas são caminhos emancipadores no
sentido de uma autonomia real da Áfri-
ca e das suas diásporas, porque as vi-
das, amargamente traduzidas em nú-
meros, têm vindo a comprovar que a
pandemia do coronavírus é parte de
uma crise multifacetada do capitalismo
racial.
[1] Dados de várias fontes consultados em
Abril de 2020.
[2] Notícia consultada em Maré de Notícias
Online, a 7 de Maio de 2020.
[3] Notícia consultada em Guardian News, a 1
de Maio de 2020.
*Raquel Lima é poeta, arte-educadora, inves-
tigadora de estudos pós-coloniais e integrante
do Núcleo Antirracista de Coimbra.
diariamente; para dificultar mais as coi-
sas, o Brasil sofre com a presença de um
presidente que está mais preocupado
com a economia, do que em seguir as
recomendações da OMS (Organização
Mundial da Saúde). Um governo racista
que pouco se importa com a nossa saú-
de, afinal o número maior de mortes pe-
lo COVID-19 é da população negra; o
que para eles deve ser um alívio, já que
estão tentando nos exterminar há mais
de 300 anos.
 Página 8 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,25 de maio de 2020 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, Yanda PanAfrikanu

Muitos dos nossos irmãos não têm con-
dições para seguirem com as orientações
e medidas de proteção e prevenção que a
OMS orienta, mesmo aquela mais sim-
ples, que é lavar as mãos com água e sa-
bão – medida esta fundamental na luta
contra o novo coronavírus. Isso porque
milhões de pessoas no mundo não tem
acesso à água potável, muito menos um
local adequado para lavar as mãos e fa-
zer a higiene básica.
De acordo com a UNICEF, somente três
em cada cinco pessoas em todo o mundo
tem instalações básicas para lavar as
mãos e 40% da população mundial, ou 3
bilhões de pessoas, não tem lavatório
com água e sabão em casa. Quase três
quartos das pessoas nos países menos
desenvolvidos não têm instalações bási-
cas para lavar as mãos em casa. Esses
dados nos mostra que essas pessoas es-
tão especialmente em eminente risco de
contaminação. Ainda de acordo com a
UNICEF, na África subsaariana, 63% da
população nas áreas urbanas, ou 258 mi-
lhões de pessoas, não tem acesso à la-
vagem das mãos. Cerca de 47% dos sul-
africanos que vivem em regiões urbanas
(cerca de 18 milhões de pessoas) care-
cem de instalações básicas para lavar as
mãos em casa, tendo os moradores urba-
nos, por exemplo, 12 vezes menos chan-
ces de ter acesso as instalações para la-
varem as mãos. Esses dados só nos mos-
tram o quanto o povo preto é negligen-
ciado pelos governos e devido à falta de
estrutura, seja econômica ou social, ele é
automaticamente o alvo mais fácil para
vir a óbito.
Outra preocupação que damos atenção é
a questão do isolamento social, que no
momento é essencial na luta contra esse
novo inimigo: o COVID-19. Mas se por
um lado temos que nos proteger ficando
em casa, por outro lado precisamos ir
para o trabalho para ganhar o sustento de
nossas famílias. Para os trabalhadores
informais a situação está ainda mais difí-
cil, e a única opção é a de contar com
um pequeno auxílio do governo, o que
não é o suficiente. As mulheres que mui-
tas das vezes são o sustento da família,
tem que ir para o trabalho doméstico,
onde correm risco de contaminação pe-
gando condução. De acordo com a revis-
ta Exame, no Brasil em 2018 6,2 mi-
lhões de pessoas tinham como ocupação
os serviços domésticos remunerados, is-
so assumindo variadas formas (diaristas,
babás, jardineiros e cuidadores). No to-
tal, 92% (5,7 milhões) eram mulheres,
das quais 3,9 milhões eram negras
(Agência Brasil/Revista Exame). Ou se-
ja, ficamos de mãos atadas, porque pre-
cisamos nos proteger, mas também pre-
cisamos alimentar nossas famílias, e, em
meio a esta decisão, muitos dos nossos
irmãos arriscam as suas vidas indo ao
trabalho.
Em meio a toda essa Pandemia, o povo
preto é quem paga o maior preço, pri-
meiro por estar sempre nos grupos de
risco, e um dos motivos é o pouco aces-
so à saúde, o saneamento básico precá-
rio, as condições sociais e econômicas
quase que escassa, além da má alimen-
tação e do descaso do governo.
Não só no Brasil, mas em todo o mundo,
o povo preto é quem mais sofre perante
as crises que surgem, seja uma crise na
saúde, como a que estamos enfrentando
agora, como se já não tivéssemos outras
coisas para nos preocupar, seja uma crise
econômica, onde a primeira opção do
Governo é a de cortar ou reduzir os in-
vestimentos com as minorias, temos aí
mais um inimigo para combater: o CO-
VID-19. Neste sentido, precisamos nos
unir e ajudar os nossos, praticando mais
a filosofia do UBUNTU.
1. Informações extraídas do jornal Estadão.
*Professora de história, intelectual pan-afri-
canista e ativista da UCPA.

TRABALHADORES DA SAÚDE PRETOS EM TEMPOS DE COVID-19

Nesta edição o Jornal YANDA PANAFRIKANU entrevistou a

Dra. Lucinda Pedro, fisioterapeuta hospitalar, que atua em Uni-
dade de Terapia Intensiva (UTI), de nacionalidade Angolana, re-
side no Brasil, na cidade de São Paulo, desde 2013.
Ao nos responder sobre questão racial entre os trabalhadores
pretos na área da saúde em tempos de Covid-19, ela afirma que:
“[…] nessa fase de Covid, eles só querem mãos de obra, nem estão
se importando com quem você é…”, talvez isso nos faz entender a
dimensão do estrago que esta pandemia está a fazer neste país,
onde todo projeto de construção de nação, deu-se na base estru-
tural de racismo.
Jornal Yanda PanAfrikanu: Na qualidade de mulher, estrangeira, africana,
considerando todo histórico de preconceito e racismo que existe neste país, teve
alguma dificuldade em conseguir emprego? Acha que o Covid-19 foi um fator
importante para tal?
Dra. Lucinda Pedro: No meu caso em particular, acho que a Covid-19 não foi
um fator para conseguir o emprego, pois quando comecei ele ainda não tinha se
espalhado pelo mundo e nem tinha casos aqui no Brasil. Consegui por in-
dicação de uma colega que fiz enquanto fazia a pós-graduação, então fica di-
fícil ter certeza ou saber, até porque não cheguei a procurar. Mas nessa fase de
Covid eles só querem mão de obra, nem estão se importando com quem você é.
JYP: Dentre as diferentes equipes que compõe o grupo de trabalho, desde a
limpeza, enfermeiros, fisioterapeutas, médicos etc., quais, a teu ver, estão mais
propensos ao contato com o vírus e qual o percentual quanto as raças? Lucinda Pedro, Angolana e Fisioterapeuta.
Dra. L. P.: Dentre os citados, a meu ver, são os técnicos de enfermagem, não
saberia dizer ao certo a porcentagem, mas de olhos e de longe sem sombras de
dúvida a maior parte são pretos. JYP: Segundo o COFEN (Conselho Federal de Enfermagem), o Brasil chegou
JYP: Segundo dados oficiais, nos Estados Unidos, os afro-americanos e latinos a 98 profissionais da saúde mortos, vítimas dessa pandemia, na última quarta
são os mais atingidos em relação aos brancos, no Brasil, principalmente no teu feira (07/05), superando a marca de mortos dos Estados Unidos, que hoje é
local de trabalho, o que tem visto? considerado o epicentro, sendo 1/3 do total de mortos do mundo. Uma vez que
Dra. L. P.: No Brasil é aquilo que as notícias falam, e tudo indica que os pretos trabalha em estreita colaboração com as fisioterapeutas, nos diga qual a tensão
são os mais acometidos, por vários motivos que já conhecemos. Nos meus lo- e a carga psicológica em seu ambiente de trabalho?
cais de trabalho, num, sou contratada e noutro plantonista, ambos hospitais par- Dra. L. P.: É muita cobrança, seja moral ou mesmo profissional, tem gente
ticulares, o índice de pessoas pobres é muito baixo, porém conforme o status adoecendo por conta disso, alguns se afastando do trabalho, outros só estão se
social do hospital dá pra saber entre os atingidos qual grupo mais perde a vida, arrastando pelo dever que tem.
exemplo, onde sou contratada é um hospital em que os convênios médicos são Estou com fé que quando tudo isso acabar seremos fortes candidatos a fazer
mais acessíveis, sendo assim já vi uma preta que até agora foi dado como terapia.
suspeita de corona morrer, suspeita porque até agora não tivemos acesso ao JYP: Conhece algum colega de trabalho infectado? Fala um pouco sobre
resultado dos seus exames, pois foi bem no início do surto e vi outro preto mor- cuidado, tratamento, assistência, como fica depois do afastamento, qual a raça
rer, já este foi testado positivo, fiquei sabendo de mais alguém que foi vítima, mais afetada?
mas como não atendi, não fiquei sabendo de qual origem étnica era. Dra. L. P.: Num dos hospitais em que trabalho, conheci uma fisioterapeuta que
Já no outro hospital onde faço plantão é de alto padrão, onde o número de leitos testou positivo, e felizmente se recuperou, ela é preta, tal como eu, noutro, co-
são três vezes maior em relação ao primeiro e a taxa de ocupação bem mais alta nheço um casal de fisioterapeutas que testaram positivo e que também estão
em termos de proporção entre infectados e mortos foi bem menor o de morte, bem. Fiquei sabendo ainda de um médico de origem asiática contaminado e ele
até onde eu me apercebi, foram cinco, como os diagnósticos são mais rápido, a foi a óbito. Estes três últimos citados, no hospital de alto padrão.
velocidade do tratamento também é e, entre os pacientes, não me lembro de ter Algo a salientar nesse trecho é que a preta trabalha, mas não tem convênio mé-
visto um único preto. dico, quando se recuperou foi procurar trabalho em outro local de trabalho, pois
JYP: Quais as condições de trabalho, falando precisamente de segurança e durante o tempo de afastamento os empregadores não deram a mínima pra ela,
equi-amentos de proteção? já no outro, o casal têm convênio, inclusive o hospital em que trabalham cobre,
Dra. L. P.: Depende do hospital. Os com mais recursos estão disponibilizando falando nisso, um deles já está de volta. O médico que foi a óbito foi atendido
mais EPI’s e mais respiradores mecânicos. no mesmo hospital, nenhum preto.
Yanda PanAfrikanu ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,25 de maio de 2020,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,Página 9
Foi pela violência, ausência de escrúpu-
los e de qualquer respeito a tradições
milenares, que os brancos nos apresen-
taram suas visões de mundo. Nos envol-
veram em conflitos a partir de suas ideo-
logias e dos seus conceitos morais, os
quais eles mesmos não vivenciavam ou
sequer acreditavam. Tudo isso resultou
no maior dano a um povo que é o de ne-
gar suas tradições.
A perpetuação dos nossos inimigos no
poder, difundindo e renovando seus va-
lores, potencializou esse estrago, até que
a maioria do nosso povo não fosse capaz
de se desvincular de suas lógicas até
mesmo para tentar combatê-los.
Mas sempre houve aqueles que foram
além, que estavam dispostos a tirar suas
próprias vidas para não servir aos seus
Invista no trabalho de pessoas pretas e fortaleça a economia da comunidade africana
“Mensagem para o Povo Preto”
O texto que é entregue e circula de mãos em mãos
Jomo Akanni*
inimigos, que os envenenavam, que se
recusavam a ajoelhar para seus deuses
brancos, ou que criavam suas estratégias
e formas de luta nas mais remotas con-
dições.
É preciso que isso seja levado a todos
nossos irmãos para que ao menos sai-
bam e queiram descobrir mais sobre es-
se incrível legado. A partir desse objeti-
vo, e movidos por esse mesmo senti-
mento de outrora, a U.C.P.A elabora um
pequeno texto com o objetivo de que a
partir de um registro o mais simples e
agradável possível, possa haver um des-
pertar de um sentimento de rebeldia e ao
mesmo tempo de libertação.
O texto ocupa a metade de uma folha
padrão A4, e se trata de uma reflexão
sobre o passado/presente, propondo que
a partir da organização e da luta coletiva
do povo preto é possível alterar o estado
em que nos encontramos.
A reprodução do texto é feita por meio
de impressões ou xerox, de acordo com
a capacidade de cada irmã ou irmão da
organização, e assim nos dirigimos as
vielas, aos becos, aos terminais de ôni-
bus, as escolas de samba ou quaisquer
outros locais que nosso povo esteja reu-
nido. Os textos são distribuídos a famí-
lias, idosos e jovens pretos, de mãos em
mãos, olhando nos olhos e com o esfor-
ço e preocupação que possam atingir sua
atenção.
Dessa maneira acreditamos que estamos
contribuindo para aquilo que julgamos
ser um dos aspectos mais importantes
para uma organização Preta – Dialogar e
estar nos espaços em que nosso povo se
encontra.
Por vezes somos criticados e incom-
preendidos por alguns irmãos quando
percebem que o texto é dirigido exclu-
sivamente a eles, pois se sentem inco-
modados por aquilo que acreditam ser
“uma discriminação a pessoas bran-
cas”, ou até mesmos corremos riscos,
em determinados territórios, quando
questionamos o uso das drogas e as
armadilhas que a criminalidade oferece.
Ainda assim todos os meses realizamos
essa ação, com recursos limitados e as
vezes contando com 10, 5 ou 2 irmãos.
De qualquer maneira sempre pautados
pela nossa autonomia e com o mais puro
sentimento de irmandade, e com a con-
fiança de que aquelas folhas serão lidas,
guardadas, repassadas e possam servir
como um convite para trilhar esse ideal
de luta e emancipação do nosso povo.
“Mensagem para o Povo Preto”
“Nós pretos chegamos ao Brasil por
volta do ano de 1530, fomos retirados
do continente Africano e forçados a tra-
balhar aqui por mais de 350 anos sem
receber qualquer quantia. Trouxemos
muitos conhecimentos da África e nosso
trabalho foi responsável pelo enriqueci-
mento de muitas famílias brancas e até
pelo desenvolvimento da economia de
outros países.
Apesar de toda a importância dos pre-
tos o estado brasileiro sempre nos per-
seguiu, criando leis e outras formas de
atacar nossas tradições, nossa religião
e tudo que está relacionado ao nosso
povo. Foram criadas até teorias dizen-
do que os pretos eram inferiores e que o
Brasil precisava clarear sua população.
Nosso povo travou muitas lutas e por
isso conseguimos chegar até os dias de
hoje, mas o racismo e a perseguição
continuam. Porém nosso pior problema
é que assimilamos muitas das ideias ra-
cistas que foram criadas para nos des-
truir e nos manter numa situação de
submissão e confusão mental.
Fizeram-nos acreditar que tudo que
vem do preto é ruim e muito dos nossos
problemas atuais vem de um sentimento
de ódio que temos contra nós mesmos.
Não precisamos odiar nossa cultura e
valores africanos, ter vergonha dos nos-
sos traços, da nossa aparência. Não de-
vemos imitar e querer se parecer com
aqueles que são racistas, não precisa-
mos buscar sua aceitação. Não precisa-
mos arriscar nossas vidas e nossa liber-
dade para ter produtos e artigos caros
que trazem uma falsa sensação de feli-
cidade, não precisamos nos tornar vi-
ciados ingerindo drogas e outros vene-
nos, em busca de prazer e alívio.
É possível mudar nossa atual situação,
é possível nos organizarmos sem objeti-
vos partidários e pessoais, é possível
nos unirmos enquanto povo, cuidar uns
dos outros, resgatarmos nossos valores
e não permitir que nenhuma crença ou
ideologia seja mais importante que nos-
sa origem africana – esses são os fun-
damentos do PAN-AFRICANISMO –,
tivemos muitos líderes que praticaram
esses ideais de libertação, pesquise so-
bre ASSOCIAÇÃO UNIVERSAL PARA
O PROGRESSO DO NEGRO (U.N.I.A),
MARCUS GARVEY, BEATRIZ NASCI-
MENTO, ASSATA SHAKUR, LELIA
GONZALEZ, MALCOLM X, EUGENIA
ANNA DOS SANTOS, STEVE BIKO,
PARTIDO DOS PANTERAS PRETAS,
LUIZ GAMA, THEREZA SANTOS.”
*Ativista pan-africanista e integrante da UCPA
(União dos Coletivos Pan-Africanistas).
Página 10 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,25 de maio de 2020 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, Yanda PanAfrikanu
No dia 10 de julho de
1994, há exatamente
24 anos, Lélia Gonzalez
partia para o Orun e
nos deixava. Lélia foi
uma intelectual, antro-
póloga e militante do
movimento negro brasi-
leiro, com uma impor-
tante trajetória marcada
por compromisso, amor
e ousadia na luta an-
tirracista. Além disso,
teorizou e desenvolveu
um pensamento próprio
para analisar a realida-
de social brasileira, es-
pecialmente a cultura,
as relações raciais e de
gênero. Formulou con-
ceitos centrados nas ex-
periências pretas nas
Américas como a ame-
fricanidade e o preto-
guês.
Para manter viva suas
contribuições e fazer
circular seu pensamen-
to, a UCPA – União dos
Coletivos Pan-Africanis-
tas – tem a honra de
lançar o livro: Prima-
vera para as rosas ne-
gras: Lélia Gonzalez,
em primeira pessoa… O
livro reúne de forma
inédita a obra textual
de Lélia Gonzalez, con-
tendo seus principais
textos, entrevistas e de-
poimentos. Trata-se de
uma edição pioneira,
uma vez que não há, no
mercado editorial brasi-
leiro, nenhum livro com
suas publicações.
Este livro é uma impor-
tante contribuição para
o maior conhecimento
do pensamento de inte-
lectuais pretas/os, com-
batendo o que sabemos
ser uma das facetas da
dominação racial: a co-
lonização do pensamen-
to e o apagamento da
história preta no Brasil.
Raquel Barreto
[Julho de 2018]
____________________
O lançamento do livro
ocorreu no dia 22 de
julho de 2018 às 17hs
na Biblioteca Mário de
Andrade em São Paulo.
O evento contou com
presença da Doutoran-
da em história, pesqui-
sadora e especialista em
Lélia Gonzalez, Raquel
Barreto, autora do estu-
do que traçou um com-
parativo das trajetórias
políticas e intelectuais
entre Angela Y. Davis
(1944) e Lélia Gonzalez
(1935-1994).
GONZALEZ, Lélia.
Primavera para as rosas
negras: Lélia Gonzalez
em primeira pessoa…
Diáspora Africana:
Editora Filhos da África,
2018. 476 páginas. 1ª
Edição.
Contatos para venda:
Instagram:
@territorioafrikano
Facebook:
@territorioafrikano
Whatsapp:
+55 11 98608-0247
E-mail:
ucparbg@gmail.com
Você conhece a KWANZAA?
Kenyatta Mugo*
Kwanzaa não é Natal Africano, mas sim uma celebração pensada e baseada em princípios Africanos, organizada e celebrada pelas comunidades pretas em qualquer lugar do mundo.
O nome “Kwanzaa” deriva da expressão querda, três velas verdes à direita, e uma (honrar os ancestrais, as tradições e celebrar
“matunda ya kwanza”, que significa “primei- vela preta ao centro representando os se- os triunfos do passado sobre as adversidades).
ros frutos” em Swahili, a língua africana mais guintes princípios: É importante que se diga que a celebração da
falada entre as centenas que existem no Con- 1º Dia – Umoja: significando união (estar Kwanzaa não é Natal Africano, mas sim uma
tinente Africano. A ideia de criar uma cele- unido como família, comunidade e raça); 2º celebração pensada e baseada em princípios
bração pan-africanista para celebrar as primí- Dia – Kujichagulia: significando autodeter- Africanos, organizada e celebrada pelas co-
cias, ou primeiros frutos, é atribuída ao profes- minação (responsabilidade em relação a seu munidades pretas em qualquer lugar do mun-
sor de estudos africanos Maulana Karenga. A próprio futuro); 3º Dia – Ujima: signifi- do. Se você é uma pessoa preta, celebre a
Kwanzaa foi celebrada pela primeira vez na cando trabalho coletivo e responsabilidade Kwanzaa em sua comunidade com uma mesa
Diáspora Africana (Estados Unidos da Améri- (construir juntos a comunidade e resolver farta de alimentos saudáveis, em gratidão aos
ca) de 26 de dezembro de 1966 a 1 de janeiro quaisquer problemas como um grupo); 4º frutos colhidos durante o ciclo, ano que se en-
de 1967, sendo que em cada dia foi celebrado Dia – Ujamaa: significando economia coo- cerra e ano que se inicia, e sem a intervenção
um princípio. Posteriormente à celebração foi perativa (a construção e os ganhos da comu- ou participação de pessoas brancas, essa cele-
levada para outras regiões da Diáspora Afri- nidade através de suas próprias atividades); bração é nossa. Furaha Kwanzaa e que o
cana como Caribe, Canadá, Inglaterra e Brasil, 5º Dia – Nia: significando propósito (o ob- Nguzo Saba repouse sobre a vida de cada
nosso objetivo com este pequeno texto é que a jetivo de trabalho em grupo para construir a pessoa preta!
Kwanzaa também seja conhecida e amplamen- comunidade e expandir as culturas africa-
te celebrada tanto na Diáspora Africana como nas); 6º Dia – Kuumba: significando cria-
*Um preto em Diáspora Africana militando na
Continente Africano. Os sete princípios da tividade (usar novas ideias para criar uma UCPA (União dos Coletivos Pan-Africanistas) pe-
Kwanzaa, conhecidos como Nguzo Saba, são comunidade mais bonita e mais bem-suce- la emancipação econômica, política e cultural das
representados por três velas vermelhas à es- dida); 7º Dia – Imani: significando fé pessoas pretas em qualquer lugar do mundo
Um clássico da nossa contemporaneidade
Abisṣogun Oṣlátúnjí Odùduwà*
Várias são as definições para um clás- feita por Cuti a José Correia Leite; se- com a própria história de luta dos afri-
sico. Aqui, vamos nos ater aquela que leção dos principais artigos do Jornal canos neste país durante o século XX.
diz que as características de um livro O Clarim d’Alvorada e do Jornal Al- Um dos fundadores da Frente Negra
clássico são: a sua condição universal vorada e uma novela inacabada escrita Brasileira, Correia Leite, que era auto-
e atemporal; uma fonte inesgotável de por José Correia Leite, intitulada de O didata, se destacou como fundador,
ensinamentos e prazer, a sua capacida- alvorecer de uma ideologia. Apesar de editor, repórter, redator, gráfico e colu-
de de transformar os leitores e mudar a o livro ter sido lançado no início da nista dos seguintes jornais: O Clarim,
cultura de uma comunidade, nação etc. década de 1990, os depoimentos (es- rebatizado como O Clarim d'Alvorada
A produção de um clássico não é mo- pecificamente entre março de 1983 a (1924-1932), A Chibata (1932-1937) e
nopólio deste ou daquele povo, mas fevereiro de 1984) e sua organização Alvorada (1945-1948). Além disso, foi
uma condição universal do ser huma- deram-se durante a década de 1980. fundador e ativista do Clube Negro de
no. Assim, a comunidade africana Cuti é um dos principais intelectuais, Cultura Social e colaborador da As-
mundial deve compreender que tam- poetas, contistas, críticos literários e sociação dos Negros Brasileiros. Em
bém possui os seus clássicos, não ape- conferencistas que a comunidade preta 1956, Correia Leite foi um dos prin-
nas na literatura, mas essencialmente produziu no Brasil. Além de Doutor cipais idealizadores e fundadores da
nela, como: Autobiografia de Malcolm em Letras pela UNICAMP, Cuti é au- Associação Cultural do Negro. Em
X, de Malcolm X e Alex Haley, Es- tor de mais de duas dezenas de livros 1960, ajudou na elaboração da revista
crevo o que eu quero, de Steve Biko, publicados, que incluem produções na Niger. Pela sua atuação dentro do mo-
Um defeito de cor, de Ana Maria Gon- área acadêmica, poética, ficcional e vimento negro, Correia Leite foi cons-
çalves, Triste Fim de Policarpo Qua- dramaturgia, além de contos, ensaios e tantemente consultado por pesquisado-
resma, de Lima Barreto, Homem invi- biografias. Segundo o autor, a ideia e o res, acadêmicos brasileiros e estran-
sível, de Ralph Ellison, Filho Nativo, objetivo de recolher os depoimentos, e geiros, cineastas, artistas e ativistas do
de Richard Wright, A cor púrpura, de depois ter organizado e lançado o li- movimento negro.
Alice Walker, Amada, de Toni Morri- vro, E disse o velho militante, esteve Correia Leite viveu 89 anos, destes
son, Um fuzil na mão, um poema no relacionado a “necessidade de preser- anos, quase 70 foram dedicados à ten-
bolso, de Emmanuel Dongala, Zenzele, varmos a nossa memória”. Ainda sobe tativa de preparo e elevação da raça
de J. Nozipo Maraire, Primavera para a importância do livro, Cuti relata: preta. Isso, por si só, já é suficiente pa-
as rosas negras, de Lélia Gonzalez, “Senti que alguém como José Correia ra fazer de sua história de vida um
Beatriz Nascimento: Possibilidade nos Leite, tendo escrito tanto na Imprensa clássico da narrativa universal.
dias da destruição, de Beatriz Nasci- Negra e lutado para elevação de seu Concluiremos dizendo ser impossível
mento, Quarto de despejo, de Carolina povo, deveria ter o seu discurso regis- conhecer a história de luta dos pretos
Maria de Jesus, Abutre, de Gil Scott- trado num trânsito livre como flui a no Brasil, sem antes ter explorado as
Heron; etc. Porém, neste momento, conversa. Liguei o gravador e come- páginas da obra E disse o velho mili-
vamos discorrer sobre um clássico au- cei a fazer perguntas. Não eram ne- tante; assim como é mais do que im-
tobiográfico da nossa contemporanei- cessárias muitas. Eu estava diante de possível conhecer a história de luta
dade, E disse o velho militante José uma pessoa interessada em contar o dos pretos nos EUA, sem antes ter per-
Correia Leite, de José Correia Leite e que se passou, comprometida com a corrido as páginas da Autobiografia de
Cuti, que, a nosso ver, preenche todos sua função de depositária de um co- Malcolm X. Além das semelhanças em
os requisitos. nhecimento prático, vivido, mas tam- contextos, concepções e significados,
…E disse o velho militante foi lançado bém fundamentado em leituras contí- esses dois livros são essenciais tam-
pela primeira vez na cidade de São nuas e variadas”. bém em conteúdo, informação, capital
Paulo, em 1992. O livro possui 301 Mas quem foi José Correia Leite? Cor- cultural e sentimentos de amor e uni-
páginas e estrutura-se da seguinte ma- reia Leite (1900-1989) foi sem dúvida dade aos africanos de todo o mundo.
neira: apresentação do editor; prefácio nenhuma o militante mais emblemáti-
do colaborador e um dos autores do co, determinado, íntegro e perseveran-
livro, Cuti; depoimentos autobiográfi- te que atuou no movimento negro bra- *Pan-africanista por essência e membro da
cos de José Correia Leite; entrevista sileiro e a sua história de vida funde-se UCPA.