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Universidade de Aveiro Departamento de Línguas e Culturas

2016

Universidade do Minho Instituto de Ciências Sociais


2016

SARA VIDAL MAIA RELAÇÕES DE PODER E IDENTIDADE(S) DE


GÉNERO: A sociedade “matriarcal” de Ílhavo na
década de 1950
Universidade de Aveiro Departamento de Línguas e Culturas
2016

Universidade do Minho Instituto de Ciências Sociais


2016

SARA VIDAL MAIA RELAÇÕES DE PODER E IDENTIDADE(S) DE


GÉNERO: A sociedade “matriarcal” de Ílhavo na
década de 1950

Tese apresentada à Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos


necessários à obtenção do grau de Doutor em Estudos Culturais, realizada sob
a orientação científica da Doutora Maria Manuel Rocha Teixeira Baptista,
Professora Auxiliar com Agregação do Departamento de Línguas e Culturas da
Universidade de Aveiro e a coorientação científica do Doutor Moisés de Lemos
Martins, Professor Catedrático do Departamento de Ciências da Comunicação
do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho.

Tese realizada no âmbito do protocolo Apoio financeiro da FCT/POPH/FSE


de colaboração estabelecido entre a SFRH/BD/81068/2011
Universidade de Aveiro (DLC) e a
Universidade do Minho (ICS).
À Andreia, que teria feito o mesmo.
o júri

presidente Doutor Fernando Manuel Bico Marques


Professor Catedrático, Departamento de Engenharia de Materiais e Cerâmica, Universidade de
Aveiro

Doutor Carlos Velázquez Rueda


Professor Titular, Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Brasil

Doutor Moisés Adão de Lemos Martins (coorientador)


Professor Catedrático, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho

Doutora Maria Aline Salgueiro de Seabra Ferreira


Professora Associada, Departamento de Línguas e Culturas, Universidade de Aveiro

Doutora Cecília Maria Gonçalves Barreira


Professora Auxiliar com Agregação, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade
Nova de Lisboa

Doutora Anabela Maria Gradim Alves


Professora Auxiliar com Agregação, Faculdade de Artes e Letras, Universidade da Beira Interior

Doutora Maria Manuel Rocha Teixeira Baptista (orientadora)


Professora Auxiliar com Agregação, Departamento de Línguas e Culturas, Universidade de Aveiro

Doutor Vania Baldi


Professor Auxiliar, Departamento de Comunicação e Arte, Universidade de Aveiro
agradecimentos Fazer um doutoramento é uma tarefa que exige paixão e dedicação. Paixão
pelo objeto e dedicação à investigação. Quando me propus embarcar neste
desafio apaixonei-me pelos Estudos Culturais e dediquei-me a fazer um fato à
medida. Neste processo, tive a honra e a satisfação de ter como companheira
de primeira instância a Professora Doutora Maria Manuel Baptista, orientadora,
mentora científica e conselheira. E tive igualmente o privilégio de sentir o
aguçar científico da coorientação do Professor Doutor Moisés de Lemos
Martins.

Institucionalmente, foco os meus agradecimentos na Fundação para Ciência e


a Tecnologia (FCT), que acreditou no meu “projeto” e me presenteou com o
melhor que uma doutoranda pode receber: uma bolsa. Ao Centro de Estudos
de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho (CECS) agradeço o
acolhimento científico e ao Departamento de Línguas e Culturas da
Universidade de Aveiro agradeço a hospitalidade. Reconheço ao Museu
Marítimo de Ílhavo toda a disponibilidade em me facultar os exemplares do
jornal O Ilhavense.

E como este é um Programa Doutoral, não posso deixar de frisar a importância


que os Professores e os Colegas do primeiro ano (2010/2011) tiveram na
minha formação enquanto doutoranda. Todos acabaram por dar o seu
contributo no meu crescimento enquanto aluna e investigadora. Mas, ao longo
desta etapa, tive a sorte de criar amizades que não só me estimularam
intelectualmente, como também me fizeram amadurecer enquanto pessoa: a
Jenny que preenche o meu coração; a Belmira que me desafia a alma; a
Joana que me faz retomar à arte; e o João Hespanhol que acredita em mim.

E como esta tese de doutoramento é um pedaço de mim, presente a cada


instante, tenho de agradecer à minha família: clã alargado, do qual fazem parte
muitas mulheres que inspiraram este estudo. Todavia, são os mais próximos –
e pelos quais me desdobro – que merecem o meu maior reconhecimento: ao
meu filho, João Afonso, agradeço-lhe ter nascido no final deste processo,
dando-me a oportunidade de me sentir completa; ao meu marido, João,
agradeço o amor, a boa disposição e a paciência; à minha irmã, Beatriz,
agradeço a cumplicidade e o companheirismo; e aos meus pais, João
Guilherme e Adelaide, reconheço tudo o que fizeram por mim e agradeço as
oportunidades que me deram na vida.
palavras-chave Estudos Culturais, relações de poder, representação discursiva, identidade,
identidade(s) de género, media, análise de conteúdo.

resumo Esta tese de doutoramento encontra-se dividida em duas partes, sendo que a
primeira é composta pelo enquadramento teórico e epistemológico, e a
segunda pelo estudo empírico. Na primeira parte discutem-se os conceitos de
poder, discurso e identidade (particularmente identidade(s) de género) no
âmbito dos Estudos Culturais, para depois se abordar os media como veículo
fundamental na construção, disseminação e interpretação das diferenças de
género. A segunda parte, que começa por introduzir a metodologia de
investigação, apresenta um estudo empírico que procura, através da análise
dos discursos (textuais e icónicos) de um jornal local – O Ilhavense –,
responder à seguinte questão de investigação: Era ou não Ílhavo (na década
de 1950) uma sociedade matriarcal?
keywords Cultural Studies, power relations, discursive representation, identity, gender
identity(ies), media, content analysis.

abstract This doctoral thesis is divided into two parts. The first one comprises the
theoretical and epistemological framework, and the second (consists on) the
empirical study. The first part discusses the concepts of power, discourse, and
identity (particularly gender identity(ies)) in the context of Cultural Studies and
then addresses the media as a key vehicle in the construction, dissemination,
and interpretation of gender differences. The second part, which begins by
introducing the research methodology, presents an empirical study that seeks,
through the analysis of (textual and iconic) discourses in a local newspaper – O
Ilhavense – to answer the following research question: Was Ílhavo a
matriarchal society (in the 1950s) or was it not?
Notas Prévias:
Esta tese de doutoramento segue o novo Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 1990.
Todas as citações presentes foram traduzidas para a língua portuguesa, sendo
feitas as devidas adaptações, mas respeitando o mais possível a pontuação e
a construção frásica originais.
As transcrições do jornal “O Ilhavense” foram adaptadas à escrita atual sempre
que se revelou necessária uma melhor compreensão textual, embora se tenha
procurado mantê-las o mais fiel possível ao original (o que implicou o respeito
pelas expressões locais e a não-aplicação do Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 1990).
Índice

Introdução………………………………………………………………………….... 1

PARTE I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO E EPISTEMOLÓGICO

Capítulo I – Estudos Culturais


1.1. Estudos Culturais, interdisciplinaridade e cultura……………………………….. 13
1.2. Historiografia dos Estudos Culturais……………………………………………. 20
1.2.1. Fase inicial………………………………………………………………….. 20
1.2.2. Fase da consolidação……………………………………………………….. 21
1.2.3. Fase da internacionalização……………………………………………….... 32

Capítulo II – Poder e Discurso


2.1. Interpretações de poder………………………………………………………….. 43
2.2. Michel Foucault e a teorização do poder………………………………………... 50
2.3. O estudo do discurso como método de análise das relações de poder…………... 64
2.3.1. Relações de poder e discurso……………………………………………….. 64
2.3.2. Os estudos do discurso……………………………………………………... 67
2.3.2.1. Os estudos do discurso em Michel Foucault………………………….. 71
2.3.3. O discurso da identidade de género………………………………………… 76
2.3.4. O discurso mediático……………………………………………………….. 80

Capítulo III – Identidade e Género


3.1. A construção da identidade na contemporaneidade……………………………... 85
3.1.1. Os Estudos Culturais e a discussão da teoria da identidade………………... 85
3.1.2. O declínio do conceito tradicional de identidade e o surgimento do
indivíduo fragmentado……………………………………………………………. 91
3.1.3. A construção da identidade por oposição e assimilação: a relação Eu-Outro 96
3.1.4. A identidade como produto do poder e do discurso………………………... 100
3.1.5. A identidade butleriana como lugar de desejo de reconhecimento, de
normatividade e de violência……………………………………………………… 105
3.2. A formação da identidade de género…………………………………………….. 108
3.2.1. Género, sexo e socialização………………………………………………… 108
3.2.1.1. Foucault: o poder da sexualidade e a identidade de género…………… 117
3.2.2. Diferenças de género e poder………………………………………………. 121
3.2.3. Identidade(s), performatividade e normatividade de género……………….. 129

Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género


4.1. Os media no âmbito dos Estudos Culturais……………………………………… 145
4.2. As representações e os estereótipos de género nos media………………………. 149
4.3. O papel dos media na formação da(s) identidade(s) de género…………………. 159
4.3.1. Estudos de género nos media……………………………………………. 165

PARTE II – METODOLOGIA E ESTUDO EMPÍRICO

Capítulo V – Metodologia de investigação


5.1. A prática de investigação nos Estudos Culturais………………………………... 179
5.2. Verificação do estudo empírico e opção pela metodologia qualitativa………….. 183
5.3. Técnica da análise de conteúdo………………………………………………….. 189
5.4. Contexto espácio-temporal: Ílhavo e O Ilhavense………………………………. 193
5.5. Construção do corpo da análise: apresentação geral dos dados…………………. 197

Capítulo VI – Estudo Empírico


6.1. Estudo de textos escritos por mulheres, n’O Ilhavense, na década de 1950…….. 209
6.1.1. Apresentação e análise dos dados relativos aos textos escritos por mulheres 209
6.1.2. Discussão dos dados relativos aos textos escritos por mulheres…………… 217
6.1.2.1. Discussão sobre a produção textual no feminino……………………... 217
6.1.2.2. Discussão sobre os perfis da mulher-autora n’O Ilhavense: “mulher-
prática” e “mulher-emotiva/fantasiosa”………………………………………... 229
6.1.2.3. Discussão sobre o perfil social de “não-identificação”: “não-
identidade”, “identificação por frequência” e “identificação mediada”……….. 233
6.2. Estudo de textos escritos sobre mulheres, n’O Ilhavense, na década de 1950…... 235
6.2.1. Apresentação e análise dos dados relativos aos textos escritos sobre
mulheres………………………………………………………………………....... 235
6.2.2. Discussão dos dados relativos aos textos escritos sobre mulheres…………. 242
6.2.2.1. Discussão sobre a produção textual do feminino……………………... 242
6.2.2.2. O perfil da mulher através do olhar do Outro: “autoidentificação” e
perfil social “sem identificação”……………………………………………….. 254
6.2.3. Discussão comparativa dos dados: produção no feminino versus produção
do feminino………………………………………………………………………... 257
6.3. Estudo das imagens, n’O Ilhavense, na década de 1950………………………… 261
6.3.1. Apresentação e análise das imagens………………………………………... 261
6.3.2. Política do corpo e semiótica das imagens…………………………………. 274
6.3.2.1. O regime das imagens d’O Ilhavense na década de 1950…………….. 274
6.3.2.2. Os perfis identitários das mulheres nas imagens d’O Ilhavense, na
década de 1950: “identidade sem identificação” e “identidade por empatia”…. 287
6.3.2.3. Os perfis identitários dos homens nas imagens d’O Ilhavense, na
década de 1950: “homem-social” e “homem-moral”………………………….. 290
6.3.2.4. Mulheres e homens como “cuidadores”………………………………. 292
6.3.2.5. Discursos visuais do género e poder “hegemónico”…………………... 292

Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”


7.1. Era ou não Ílhavo (na década de 1950) uma sociedade matriarcal?...................... 299
7.1.1. “Teorização do poder”: os regimes políticos de representação da mulher
n’O Ilhavense, na década de 1950………………………………………………… 301
7.1.1.1. Regime político do corpo: o sujeito incorporado……………………... 304
7.1.1.2. Política económica: a economia do corpo…………………………….. 309
7.1.1.3. Política de controlo social……………………………………………... 311
7.1.1.4. Política da intimidade: os perfis identitários………………………….. 317
7.1.1.5. Leitura “ortogonal” dos regimes políticos…………………………….. 325
7.1.2. A binariedade (“lógica do mesmo”) do modelo discursivo identitário
ilhavense e o potencial lugar da(s) resistência(s)…………………………………. 330

Uma cultura matriarcal em Ílhavo? – Contributos para a reavaliação de uma


representação persistente….……………………………………………………….. 341

Bibliografia………………………………………………………………………….. 355
Lista de figuras

Capítulo II – Poder e Discurso

Figura 1 | Pontos fulcrais da análise dos media……………………………………… 81

Capítulo VI – Estudo Empírico

Figura 2 | Anúncio de um salão de cabeleireiro……………………………………… 265

Figura 3 | Anúncio de uma pomada………………………………………………….. 265

Figura 4 | Anúncio de uma casa de fotografia………………………………………... 265


Figura 5 | Anúncio de uma empresa de seguros……………………………………… 265

Figura 6 | Anúncio de um estabelecimento de comércio de roupa…………………… 266

Figura 7 | Anúncio da venda de uma marca de motociclos…………………………... 266

Figura 8 | Ilustração de um conto…………………………………………………….. 266

Figura 9 | Mulheres em cortejo de angariação de fundos para a Misericórdia e o


Hospital de Ílhavo……………………………………………………………………. 266

Figura 10 | Retrato de um padre……………………………………………………… 270

Figura 11 | Procissão religiosa……………………………………………………….. 270

Figura 12 | Anúncio de uma bicicleta………………………………………………… 270

Figura 13 | Homens em cortejo de angariação de fundos para a Misericórdia e o


Hospital de Ílhavo……………………………………………………………………. 271

Figura 14 | Falecido Dr.º José Santos………………………………………………… 271


Lista de quadros

Capítulo V – Metodologia de investigação

Quadro 1 | Número de peças escritas por assunto, por ano…………………………... 200

Quadro 2 | Descrição sumária dos tipos de texto…………………………………….. 202

Quadro 3 | Descrição sumária dos tipos de tema…………………………………….. 204

Quadro 4 | Número de imagens por assunto, por ano………………………………... 207

Capítulo VI – Estudo Empírico

Quadro 5 | Peças escritas por mulheres na década de 1950………………………….. 210

Quadro 6 | Ocorrências da categoria “tipo de tema”, nos textos escritos por


mulheres, na década de 1950………………………………………………………… 211

Quadro 7 | Ocorrências da “área íntima”, da “área mista” e da “área social”, nos


textos escritos por mulheres, na década de 1950…………………………………….. 212

Quadro 8 | Ocorrências da categoria “tipo de texto”, nos textos escritos por


mulheres, na década de 1950………………………………………………………… 213

Quadro 9 | Ocorrências da categoria “sentido do discurso”, nos textos escritos por


mulheres, na década de 1950………………………………………………………… 214

Quadro 10 | Ocorrências da categoria “tipo de linguagem”, nos textos escritos por


mulheres, na década de 1950………………………………………………………… 215

Quadro 11 | Ocorrências da categoria “hierarquia”, nos textos escritos por mulheres,


na década de 1950……………………………………………………………………. 215

Quadro 12 | Ocorrências da categoria “mulher de Ílhavo”, nos textos escritos por


mulheres, na década de 1950………………………………………………………… 216

Quadro 13 | Peças escritas sobre mulheres na década de 1950………………………. 235


Quadro 14 | Ocorrências do “tipo de tema”, nos textos escritos sobre mulheres, na
década de 1950……………………………………………………………………….. 237

Quadro 15 | Ocorrências da “área íntima”, da “área mista” e da “área social”, nos


textos escritos sobre mulheres, na década de 1950…………………………………... 238

Quadro 16 | Ocorrências da categoria “tipo de texto”, nos textos escritos sobre


mulheres, na década de 1950………………………………………………………… 239

Quadro 17 | Ocorrências da categoria “sentido do discurso”, nos textos escritos


sobre mulheres, na década de 1950…………………………………………………... 240

Quadro 18 | Ocorrências da categoria “tipo de linguagem”, nos textos escritos sobre


mulheres, na década de 1950………………………………………………………… 241

Quadro 19 | Ocorrências da categoria “hierarquia”, nos textos escritos sobre


mulheres, na década de 1950………………………………………………………… 241

Quadro 20 | Ocorrências da categoria “mulher de Ílhavo”, nos textos escritos sobre


mulheres, na década de 1950………………………………………………………… 241

Quadro 21 | Número de peças escritas e de imagens na década de 1950…………….. 261

Quadro 22 | Imagens que incluem mulheres e imagens que incluem homens, na


década de 1950……………………………………………………………………….. 262

Quadro 23 | Ocorrências do “tipo de tema” das imagens que incluem mulheres, na


década de 1950……………………………………………………………………….. 264

Quadro 24 | O corpo no regime das imagens que incluem mulheres (jornal O


Ilhavense, na década de 1950)……………………………………………………….. 267

Quadro 25 | Ocorrências do “tipo de tema” das imagens que incluem homens, na


década de 1950……………………………………………………………………….. 269

Quadro 26 | O corpo no regime das imagens que incluem homens (jornal O


Ilhavense, na década de 1950)……………………………………………………….. 272

Quadro 27 | Regime político das imagens (jornal O Ilhavense, na década de 1950)… 273
Introdução

Quando se pensa sobre sujeitos, as suas relações com os outros e a sua vivência em
comunidade, existem várias opções epistemológicas, teóricas e disciplinares nas quais esse
pensamento se pode alicerçar. Porém, nenhuma delas é tão completa, transversal, flexível e
empiricamente tolerante como a que é apresentada pelos Estudos Culturais. Esta é a
principal razão pela qual o quadro teórico e epistemológico dos Estudos Culturais foi o
escolhido para sustentar esta investigação. De facto, quando várias temáticas sociológicas,
filosóficas e antropológicas exigem uma abordagem holística, os Estudos Culturais, pela
sua transdisciplinaridade, mostram-se o caminho teórico mais indicado a seguir.

Esta investigação procura reunir num só estudo várias discussões que envolvem o âmbito
das Ciências Sociais e Humanas, fazendo-as comunicar e incentivando uma visão
complementar, para que conceitos tão relevantes e complexos como o poder, o discurso, os
meios de comunicação, a identidade e o género possam dialogar académica, científica e
empiricamente. A artéria vital desta investigação reside, efetivamente, na valorização e na
inter-relação destas áreas de estudo, pois só com o seu conhecimento profundo, com a
interpretação de diferentes teorias e com as visões de diversos autores é possível
confecionar um “fato à medida”, cumprindo as exigências do estudo. Para além disso, esta
conjetura revela-se a mais indicada para criar uma boa estrutura de sustentação do estudo
empírico e das exigências da realidade prática. Portanto, mais do que uma opção pessoal, a
escolha dos Estudos Culturais mostrou-se a opção teórica e metodológica mais indicada
para a questão a tratar.

Um dos aspetos fundamentais deste estudo reside na valorização que é dada ao discurso,
particularmente o mediático, quer ao nível das relações de poder, quer ao nível da
identidade (nomeadamente da(s) identidade(s) de género). Isto porque este estudo incide
sobre fenómenos – e respetivos efeitos, causas e ações que são (re)produzidos socialmente
–, não procurando em nenhum momento medir ou contabilizar factos. Desta forma, e como
é conduta habitual dos Estudos Culturais, é indispensável entender que a verdadeira
natureza dos fenómenos reside na experiência, portanto, para além de se analisar normas
abstratas e conceitos teóricos, é fundamental sinalizar a prática e investigar aspetos
socioculturais, identificando problemáticas e apontando soluções. É neste sentido que
segue esta investigação, particularmente ao nível do estudo empírico.


Introdução

Importa clarificar que o objeto de estudo – o jornal O Ilhavense, da década de 1950 – se


apresenta como um bom exemplo prático da relação entre as temáticas teóricas abordadas
nesta investigação e vice-versa, pois a particular realidade sociológica de Ílhavo gritava
desesperadamente por um olhar académico e uma visão científica que interpretasse os
fenómenos decorrentes naquela época. De facto, Ílhavo era reconhecido socialmente como
uma sociedade “matriarcal”, visto que grande parte da população masculina se encontrava
ausente por longos períodos de tempo (sobretudo na década de 1950, graças ao impulso
dado às campanhas da pesca do bacalhau). Restava uma população maioritariamente
feminina, que, segundo se reproduzia socialmente, ocupava o “lugar” (prático e simbólico)
do masculino.

Desta forma, este estudo procura interpretar o fenómeno descrito no parágrafo anterior,
recorrendo à descodificação dos discursos reproduzidos na época, através da análise da
imprensa local, sendo selecionado para isso o jornal com maior tiragem e impacto – O
Ilhavense. Obviamente que a especificidade do contexto ilhavense – reconhecido
socialmente como “matriarcal” – e a escolha do jornal O Ilhavense como objeto de estudo,
serão minuciosamente descritos e justificados no capítulo V deste estudo, juntamente com
todas as opções metodológicas tomadas. Resta agora perceber como se desenha
estruturalmente esta investigação, aos níveis teórico, metodológico e empírico.

De forma a organizar a investigação e facilitar a leitura dos capítulos, este estudo encontra-
se dividido em duas partes fundamentais. A primeira parte, intitulada “Parte I –
Enquadramento teórico e epistemológico”, procura, como o próprio nome indica, fazer o
enquadramento teórico e epistemológico desta investigação no âmbito dos Estudos
Culturais. Nesta parte há lugar para a discussão teórica, a validação conceptual e a
confrontação entre autores, filósofos e investigadores dos Estudos Culturais nos diversos
ramos socioculturais que aqui são chamados a dialogar. A segunda parte, intitulada “Parte
II – Metodologia e Estudo Empírico”, faz a ponte entre a teoria e o estudo empírico desta
investigação. Esta segunda parte começa por contextualizar metodologicamente os Estudos
Culturais, passando depois a particularizar as opções metodológicas deste estudo,
apresentando: os métodos, o instrumento e a técnica de análise; o contexto espácio-
temporal; a questão e os objetivos da investigação; e os dados na sua generalidade. De
seguida, desenvolve-se o estudo empírico propriamente dito. Aqui são apresentados,


Introdução

analisados e discutidos os textos e as imagens que a investigação se propõe estudar e


discutir sob a lupa dos Estudos Culturais.

Na primeira parte (Parte I) desta investigação estão inseridos quatro capítulos teóricos
respetivamente intitulados: “Estudos Culturais”, “Poder e Discurso”, “Identidade e
Género” e “Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género”. Os parágrafos
seguintes procuram descrever sumariamente cada capítulo, de forma a introduzir as
temáticas abordadas por esta investigação.

No primeiro capítulo intitulado “Estudos Culturais”, procura-se apresentar o coração


teórico e epistemológico dos Estudos Culturais, anunciando esta área de estudos como
interdisciplinar. Aproximando as Ciências Sociais e as Humanas, e contando com o
contributo de grandes intelectuais e analistas – que a partir da segunda metade do século
XX procuraram fazer verdadeiras análises culturais do mundo contemporâneo –, os
Estudos Culturais foram capazes de aliar estudos teóricos e empíricos, ao intervirem na
sociedade sem com isso se desvincularem da academia.

Através deste capítulo é possível compreender o caráter dos Estudos Culturais, tanto ao
nível temático como metodológico, na medida em que estes se multiplicam de acordo com
o objeto de estudo e os próprios objetivos da investigação. É esta complexidade que
dificulta uma definição singular de “Estudos Culturais”, visto que estes tratam de poder,
identidade(s), comunicação, linguagem, discurso e diversas realidades sociais e culturais.
O que este capítulo propõe é uma apresentação dos Estudos Culturais como um campo de
estudos interdisciplinar e multifacetado.

Neste primeiro capítulo é também feito um percurso historiográfico dos Estudos Culturais,
com base nas três fases do seu desenvolvimento anunciadas por Escosteguy (1999): fase
inicial, fase da consolidação e fase da internacionalização. Para cada uma destas fases é
feita uma demarcação cronológica, são apresentadas as principais áreas temáticas e
tendências concetuais, e são ainda referenciados os principais teóricos e as suas
contribuições. Desta forma, com estes primeiros textos, pretende-se dar a conhecer o
âmbito dos Estudos Culturais, problematizando a sua conceção e valorizando o seu
contributo para o pensamento crítico sobre a “realidade” contemporânea.


Introdução

O segundo capítulo – “Poder e Discurso” – procura teorizar dois conceitos importantes


para o decurso desta investigação, expondo interpretações e visões de especialistas que
estudam tanto a teoria do poder como a do discurso, e ainda a sua interconexão. Este
capítulo não propõe uma definição exclusiva de “poder” e de “discurso”, mas antes
apresenta diversas perspetivas na interpretação de ambos os conceitos, aprofundando
aquelas que são de particular interesse para esta investigação.

Os primeiro e segundo pontos deste capítulo são dedicados à conceptualização do poder,


começando por ser definida a sua natureza epistemológica e a evolução do conceito dentro
dos Estudos Culturais, através da visão de vários autores, como, por exemplo, Talcott
Parsons, Michel Foucault, Pierre Bourdieu, Hannah Arendt, Kenneth Galbraith, Moisés
Martins e Annabelle Hoffs. Destes autores, destaca-se – no âmbito desta investigação – o
trabalho de Michel Foucault, por desenvolver uma reflexão em torno do conceito de poder
como exercício (e não como posse) organizado como uma rede de (micro)relações que
devem ser consideradas nas análises pessoais, sociais e culturais do mundo
contemporâneo. Esta visão diferencial conduz Foucault a repensar a relação do poder com
novas interpretações do conhecimento, do discurso, da disciplina, da vigilância, do Estado,
da resistência e da sexualidade, e a introduzir no diálogo académico novos conceitos como
biopoder, biopolítica, arqueologia e genealogia.

O terceiro ponto deste capítulo é dedicado ao estudo do discurso e à sua interligação com
os conceitos de poder, identidade de género e media. Numa primeira fase, é admitido o
pressuposto que os estudos do discurso se cruzam com o conceito de poder, pelo que são
convocados a dialogar alguns teóricos que defendem esta premissa, tais como Van Dijk e
Foucault. Em seguida, procura-se aprofundar os estudos do discurso – admitindo que estes
se encontram disseminados por praticamente todas as áreas de investigação das
Humanidades e das Ciências Sociais – introduzindo as opiniões de autores como Norman
Fairclough, Allan Bell, Gunther Kress, Theo Van Leeuwen e Judith Butler. Ainda neste
ponto há espaço para uma análise dos estudos do discurso em Michel Foucault e respetiva
crítica.

No que diz respeito à relação entre discurso e identidade de género, esta é apresentada
como uma forma de mediação cultural e identitária dos sujeitos, apesar de, muitas vezes,
estes não terem noção dessa influência. A discussão parte do paralelo que Michel Foucault


Introdução

faz entre discurso e sexualidade, para depois evoluir para a controvérsia da diferenciação
sexual, da(s) identidade(s) de género e das práticas discursivas, contando para isso com o
contributo de Judith Butler e das visões pós-estruturalista e pós-feminista.

Finalmente, o ponto três do segundo capítulo é encerrado com a temática do discurso


mediático. Aqui, à semelhança dos outros pontos, discute-se o conceito (na teoria e na
prática), inaugurando a temática com um esquema que pretende simplificar a circulação
dos discursos – e dos seus sentidos – entre os meios de comunicação e os contextos
produtor e recetor. Posteriormente, complexifica-se a questão, admitindo que através do
estudo dos media é possível fazer análises simbólicas do “real”, visto que os meios de
comunicação tanto absorvem como refletem a “realidade”.

O terceiro capítulo, intitulado “Identidade e Género”, distribui-se por duas partes, sendo
que a primeira integra a constituição e o desenvolvimento do conceito de identidade na
contemporaneidade, enquanto a segunda analisa a formação da identidade de género dentro
do contexto teórico, epistemológico e ontológico trazido à discussão por este estudo.

Na parte referente à construção da identidade, este estudo começa por legitimar a teoria da
identidade na conceptualização teórica dos Estudos Culturais. Autores como Stuart Hall,
Zigmunt Bauman, Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Moisés Martins, Jonathan Friedman,
Lawrence Grossberg e Kathryn Woordward (entre outros) são chamados a contribuir na
definição do conceito de identidade e na sua aplicação na contemporaneidade. De seguida,
é aprofundada a discussão de Stuart Hall sobre o declínio do conceito tradicional de
identidade e o surgimento do sujeito fragmentado, tão apreciado por outros autores das
Ciências Sociais e que abre portas para outras leituras do sujeito, enquanto indivíduo e
parte integrante de uma comunidade.

Ainda na linha de pensamento da identidade, este capítulo assume o diálogo entre o Eu e o


Outro como parte fundamental da construção da identidade por oposição e assimilação,
sublinhando a preocupação do Homem contemporâneo em avaliar a sua própria existência
e a forma como se reconhece em contexto relacional (ao olhar do Outro). Este ponto é
seguido de outro que teoriza o conceito de identidade na sua relação visceral com os
conceitos de poder e discurso. Finalmente, esta parte é encerrada com um ponto que
discute a identidade como lugar de desejo de reconhecimento, de normatividade e de


Introdução

violência, conceitos problematizados por diversos autores como, por exemplo, Lacan,
Hegel e Butler.

Na parte que se refere à formação da identidade de género, abre-se a discussão com a


confrontação e afinidade que os conceitos de género e sexo apresentam, enunciando o seu
lugar e o seu papel no processo de socialização dos sujeitos. De seguida, é apresentada a
visão foucaultiana sobre a sexualidade e o poder, e a sua envolvência na estruturação da
identidade de género. Esta primeira parte, que teoriza a relação entre género e sexo com
poder, socialização e identidade, é a ponte para a discussão que se segue sobre as
diferenças de género e o seu lugar nas relações de poder. Diferentes visões teóricas
(convergentes e divergentes) são levantadas, de forma a perceber como a masculinidade e a
feminilidade foram desenvolvidas, interpretadas e distribuídas ao longo do século XX e
também na primeira década do século XXI.

Este capítulo sobre identidade e género é fechado com um ponto que debate questões de
identidade, performatividade e normatividade de género. A primeira análise é dedicada à
obra pioneira do Feminismo contemporâneo intitulada Le Deuxième Sexe de Simone de
Beauvoir, que é responsável por abrir a discussão sobre o papel individual, social e
filosófico da mulher. A partir desta leitura, é teorizada a relação entre o absolutismo
masculino e a objetividade feminina, e aberta a porta para a libertação do sujeito
(particularmente do feminino) através da sua capacidade transformativa – o “tornar-se”
(conceito desenvolvido por autoras como Judith Butler e Rosi Braidotti).

É exatamente no caminho do “tornar-se” e da performatividade, através da visão


butleriana, que vai ser analisada a identidade de género e concluído este capítulo. Esta
visão pós-estruturalista coloca diversas questões sobre a normatividade de género, a forma
binária de construir o mundo e de pensar a sexualidade e o género, e as múltiplas
possibilidades que se abrem ao se aceitar uma alteração nas estruturas e normas impostas.

O quarto capítulo deste estudo – “Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de


Género” – é composto por três principais pontos que procuram analisar o papel e o
contributo dos media na edificação da identidade de género, e vice-versa. O primeiro ponto
começa por analisar o papel das Ciências da Comunicação no âmbito dos Estudos
Culturais, valorizando de seguida a função dos media como produtores e como projetores


Introdução

de contextos, confrontando-se teoricamente as duas vertentes e valorizando-as como


complementares. O segundo ponto deste capítulo procura mostrar a importância
representativa dos conteúdos mediáticos, embora não sejam afastadas as consequências
inerentes a essa função e que, por vezes, se fazem sentir através de realidades
estereotipadas (frequentemente negativas). Neste ponto são chamados à discussão autores
sobretudo da Psicologia Social e das Ciências da Comunicação, na medida em que são
introduzidos os conceitos de representação social e de estereótipo. Todavia, importa
perceber que, neste estudo, é sobretudo valorizado o conceito de discurso (ou de
representação discursiva), como sinónimo de representação textual e icónica veiculada
pelos media.

O ponto seguinte deste quarto capítulo é dedicado ao papel dos media na formação da(s)
identidade(s) de género, focando-se sobretudo nos aspetos dualistas imprimidos aos media
pelas normas de género. No seguimento deste ponto, fecha-se o capítulo com a
apresentação e a discussão de exemplos de estudos sobre o género nos media
contemporâneos, tanto ao nível textual como icónico.

Seguidamente, abre-se a segunda parte deste estudo intitulada “Parte II – Metodologia e


Estudo Empírico” e que contém três capítulos (capítulos V, VI e VII). O capítulo V
(dedicado à metodologia de investigação) serve de intermediário entre a parte teórica e a
parte empírica deste estudo, e encontra-se distribuído por cinco pontos que articulam a
prática metodológica nos Estudos Culturais e o método aplicado especificamente neste
estudo. No primeiro ponto deste capítulo é feita uma incursão teórica sobre a prática da
investigação nos Estudos Culturais, sendo apontadas metodologias e opções técnicas e
instrumentais nas análises de dados. Este ponto é depois seguido por outro que discute a
importância e a legitimidade do estudo empírico no âmbito dos Estudos Culturais (e desta
investigação em particular), e que analisa o valor da metodologia qualitativa (sem com isso
abdicar da metodologia quantitativa). O terceiro ponto do capítulo da metodologia refere-
se à escolha da técnica da análise de conteúdo como fundamental para analisar os
conceitos, os conteúdos e os sentidos latentes nos discursos (textos e imagens) em estudo.
É feita uma incursão teórico-contextual do conceito, bem como da sua aplicabilidade, e são
referidas algumas das características que a acompanham.


Introdução

Os pontos quatro e cinco deste capítulo referem-se especificamente ao processo


metodológico da parte empírica do estudo. O ponto quatro centra-se numa
contextualização espácio-temporal do estudo, apresentando Ílhavo e as suas
particularidades sociais, culturais e económicas, sobretudo na década de 1950. Depois é
anunciado o valor discursivo, representativo, sociocultural e político do jornal O Ilhavense,
de forma a legitimar este objeto de estudo no âmbito desta investigação.

Finalmente, o ponto cinco mostra-se fundamental no capítulo da metodologia de


investigação, pois apresenta o desenho metodológico adotado neste estudo, bem como a
questão de investigação e os objetivos propostos. Deste modo, para responder à questão de
investigação “Era ou não Ílhavo (na década de 1950) uma sociedade matriarcal? – Análise
de discursos de um jornal local”, o estudo propõe o cumprimento de nove objetivos, sendo
que a revisão bibliográfica teórica procura satisfizer cinco deles, enquanto a parte do
estudo empírico procura fazer cumprir os restantes quatro objetivos. É ainda neste quinto
ponto do capítulo metodológico que é feita uma apresentação geral dos dados, sendo
identificados o método, o instrumento e a técnica de análise utilizados, bem como a
construção da grelha de apresentação, análise e discussão dos dados.

O capítulo VI, intitulado “Estudo Empírico”, está reservado à apresentação, análise e


discussão dos dados que procuram responder à questão de investigação e cumprir os
objetivos propostos para a parte prática da investigação empírica. Desta forma, o capítulo
encontra-se dividido em três pontos, correspondendo cada um deles a uma parte da
análise/discussão efetuada e que se distribui por: estudo de textos escritos por mulheres,
estudo de textos escritos sobre mulheres e estudo das imagens. Todas estas
análises/discussões são elaboradas a partir do jornal O Ilhavense, e abarcam seis anos
previamente selecionados da década de 1950, de forma a garantir a representatividade, a
diversidade e a saturação da informação.

O primeiro ponto do estudo empírico começa por apresentar e analisar os dados relativos
aos textos escritos por mulheres (n’O Ilhavense, na década de 1950), seguindo-se depois o
momento da discussão. Esta discussão centra-se na produção textual no feminino e nos
perfis de mulher que foi possível identificar. O segundo ponto deste capítulo começa por
dedicar-se à apresentação e à análise dos textos escritos sobre mulheres (n’O Ilhavense, na
década de 1950), seguindo-se também um momento de discussão sobre a produção textual


Introdução

do feminino e a identificação dos perfis de mulher através do olhar do Outro. Este ponto é
finalizado com uma discussão que compara os dados relativos à produção no e do
feminino. Já o ponto três deste capítulo é dedicado ao estudo das imagens presentes no
jornal analisado. Este estudo começa por apresentar e analisar as imagens, para depois
partir para a discussão das mesmas. Esta discussão concentra-se no regime político do
corpo e na semiótica das imagens, particularmente nos perfis identitários de homens e
mulheres que se identificaram.

Finalmente, o capítulo VII – intitulado “Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”” –


procura dar resposta à questão de investigação “Era ou não Ílhavo (na década de 1950)
uma sociedade matriarcal? – Análise de discursos de um jornal local”. Apesar de cada
assunto analisado ter tido um profundo momento de discussão no capítulo do Estudo
Empírico, achou-se pertinente a realização de uma discussão final que reunisse e
interligasse os resultados da análise empírica e a teoria abordada na revisão de literatura da
especialidade, de forma a responder à questão central que estruturou este estudo. Deste
modo, esta discussão final analisa as dinâmicas de poder e os discursos de género no jornal
O Ilhavense, recorrendo a quatro regimes políticos de representação:  política do corpo,
política económica, política de controlo social e política da intimidade. Para finalizar este
capítulo, houve ainda espaço para a discussão sobre a binariedade do modelo discursivo
identitário ilhavense e o lugar da(s) resistência(s).

De forma a encerrar este estudo, o capítulo “Uma cultura matriarcal em Ílhavo? –


Contributos para a reavaliação de uma representação persistente” procurou reunir as
principais conclusões desta investigação, salientando os elementos concetuais centrais e as
conclusões do estudo empírico (que se envolvem na conformidade entre relações de poder,
representação discursiva e identidade(s) de género personificada(s) nos perfis identitários).
É também recuperada a questão de investigação e as conclusões que permitem dar-lhe
resposta, nomeadamente através da leitura dos regimes políticos de representação. São
ainda reforçados alguns princípios que legitimam a envolvência do discurso identitário
presente no jornal O Ilhavense com aquilo que foi identificado como “lógica do mesmo”. É
exatamente sobre este conceito que se abrem as portas para a discussão sobre o lugar da
(não)resistência.


 

 
PARTE I
ENQUADRAMENTO TEÓRICO E EPISTEMOLÓGICO

 
 
Capítulo I – Estudos Culturais

1.1. Estudos Culturais, interdisciplinaridade e cultura

“Os Estudos Culturais são, em si mesmo, um campo de tensão incessante e de contradição


contínua, que requerem uma reflexão constante do seu trabalho.”

Roberto Almanza-Hernández (2008:136)

Os Estudos Culturais surgiram em meados do século XX, em Inglaterra e França,


provocando uma grande reviravolta na teoria cultural, graças ao trabalho de analistas como
Raymond Williams, Richard Hoggart, Edward P. Thompson, Stuart Hall (Bounds, 1999;
Costa et al, 2003; Baptista, 2009; Martins, 2010), Lévi-Strauss e Roland Barthes (Hall,
1997c) e às contribuições intelectuais de importantes pensadores sociais como Louis
Althusser e Antonio Gramsi (Costa et al, 2003). Todos estes teóricos tiveram um forte
impacto na vida académica e intelectual, pois introduziram um novo campo interdisciplinar
de estudos organizados em torno da cultura como conceito geral (Hall, 1997c), que não
mais se apresentava como uma “mera superstrutura acessória de uma mentalidade
económica, determinada pela esfera da produção” (Sanches, 1999:195). As diretrizes
teóricas, inicialmente ligadas às motivações do movimento New Left1, procuravam
aproximar as Ciências Sociais e Humanas, o que permitiu alinhavar as primeiras análises
verdadeiramente culturais do mundo contemporâneo.

O percurso adotado pelos Estudos Culturais não é único nem monolítico, pelo que Johnson
(1999) aponta dois tipos de vertentes diferentes que podem ser seguidas. Uma estuda as
culturas como “um todo” no seu contexto material, dando primazia às recriações dos
movimentos culturais e das experiências sociais, utilizando como metodologia as
descrições etnográficas. Como exemplo, podemos destacar o trabalho de Edward
                                                            
1
O movimento New Left surgiu nos anos 1950, em Inglaterra. Tratava-se de um movimento que pretendia
criar um modelo mais democrático do socialismo e que ansiava obter reconhecimento pela cultura de classe
trabalhadora.

13 
Capítulo I – Estudos Culturais

Thompson. Uma segunda vertente reclama uma certa libertação das formas e dos meios
subjetivos de significação e, metodologicamente, antevê um estudo abstrato e formalista,
onde o significado é fabricado nos diversos sistemas de significação (ex.: narrativa,
linguagem, crítica literária, etc.).

Estas distintas vertentes amplificam o âmbito dos Estudos Culturais, sobretudo no que se
refere ao objeto de estudo. Desta forma, Johnson (1999) reconhece ainda três modelos
principais de pesquisa nos Estudos Culturais. O primeiro prevê os estudos baseados no
controlo ou na transformação dos meios de produção cultural; o segundo centra-se nos
estudos dos textos e na prática transformativa e crítica; e o terceiro assenta no estudo das
culturas vividas associadas aos domínios da representação, “apoiando as formas vividas
dos grupos sociais subordinados e criticando as formas públicas dominantes” (Johnson,
1999:104). A aplicação destes modelos conduzirá a questões metodológicas mais precisas,
que divergem de acordo com o objeto em estudo e com os objetivos que se pretendem
atingir em cada investigação.

As divergências em relação aos objetivos dos estudos nesta área tão abrangente são
inúmeras, pelo que, através de Agger (1992), podemos compilar três ligações fulcrais: os
Estudos Culturais ajudam a transformar a forma como os sujeitos experienciam a cultura
na sua vertente mais ampla; os Estudos Culturais encontram-se diretamente ligados com as
funções políticas da cultura popular, quebrando assim as experiências e práticas de
diferenciação institucional da atividade humana; e os Estudos Culturais procuram
aproximar um discurso técnico ao mais vernacular e público, sem abandonar a sua
fundamentação teórica.

Agger (1992) propõe-se ainda a anunciar um conjunto de considerações em relação aos


Estudos Culturais que entende preestabelecidas. Para o autor: os Estudos Culturais não
devem atribuir valores, tal como acontece na análise social, pois não existem princípios
predeterminados para avaliar umas práticas culturais como “melhores” ou “piores” que
outras; a cultura popular é reconhecida como um elemento estrutural e funcional das
sociedades contemporâneas, ao mesmo tempo que é tratada como entretenimento do
quotidiano que, simultaneamente, celebra; e a cultura popular deve ser analisada em
relação às suas mensagens políticas, mas também em termos de dinâmica interna de
(re)presentação e consumo. Contudo, o autor chama a atenção para o facto de que os

14 
Capítulo I – Estudos Culturais

Estudos Culturais positivistas possuem um “fetichismo” técnico diferente dos Estudos


Culturais pós-estruturalistas e pós-modernos, embora seja possível avaliar algumas das
questões centrais comuns.

Desde meados do século XX que os Estudos Culturais se apresentam como uma área
marcadamente interdisciplinar, pois os seus estudos abarcam temáticas e métodos de outras
disciplinas das Ciências Humanas – como, por exemplo, da História, da Linguística, da
Literatura, da Semiótica – e das Ciências Sociais – como, por exemplo, da Antropologia,
da Sociologia, da Psicologia, das Ciências Políticas (Bounds, 1999; Turner, 2005) e das
Ciências da Comunicação (Martins, 2015a). O próprio Stuart Hall (1980:7) afirma que “os
Estudos Culturais não configuram uma disciplina, mas uma área onde diferentes
disciplinas interagem, visando o estudo de aspetos culturais da sociedade”, convergindo e
discutindo problemáticas e métodos que permitem compreender ocorrências e relações que
não se encontram alcançáveis através das fronteiras impostas pelas disciplinas tradicionais.

A variedade de realidades culturais e simbólicas existente é de tal forma extensa, que


atualmente existe um sem fim de campos teóricos e temáticos que podem ser analisados
através dos Estudos Culturais, pois, tal como afirma Richard Johnson:

Os Estudos Culturais são agora um movimento ou uma rede. Têm os seus


próprios graus em diversas universidades e as suas próprias revistas e sentidos.
Exercitam a larga influencia nas disciplinas académicas, especialmente nos
Estudos Ingleses, na Sociologia, nos Media e Estudos da Comunicação, na
Linguística e na História (Johnson, 1986:38).

Este sentido multifacetado e transdisciplinar dos Estudos Culturais é, mais uma vez,
destacado em Costa et al (2003:57), particularmente no que diz respeito às questões
metodológicas e teóricas:

(…) os Estudos Culturais  em educação – aliás, de acordo com sua vocação


transdisciplinar e multifacetada – têm-se valido de contribuições metodológicas e
teóricas de outros campos, em especial daqueles com os quais mantêm maiores
afinidades, como os Estudos Culturais da Ciência, os Estudos de Género, a
abordagem pós-colonialista, a análise foucaultiana do discurso, a Semiótica e a
Análise Crítica do Discurso, os Estudos de Comunicação (…).

15 
Capítulo I – Estudos Culturais

No que diz respeito à temática, é fundamental destacar que, independentemente dos


objetivos em causa, nos Estudos Culturais o problema não reside no tema, mas na forma
como se “pega no tema”. Ou seja, a chave dos Estudos Culturais está na forma em como se
questionam as temáticas e, para isso, é indispensável aplicar o pensamento crítico, ou
aquilo de Judith Butler (2004) apelida de “teoria crítica”. O conceito de “teoria crítica”
(que advém da Filosofia) é complexo, na medida em que desenvolver este pensamento
crítico nos Estudos Culturais é como se a Filosofia se estilhaçasse e se evadisse em
diferentes direções que permitem analisar e compreender diversos fenómenos
socioculturais. A mesma complexidade se apresenta em relação à definição do conceito de
Estudos Culturais e alguns autores afirmam mesmo que é impossível defini-lo, pois o
objeto é demasiado complexo e até incoerente. De facto, esta complexidade faz recordar ao
investigador de Estudos Culturais que “um conceito nunca vem sozinho, ele arrasta
consigo uma série, um cardume” (Lima, 2014). Contudo, alguns teóricos arriscam uma
definição que usualmente varia de acordo com a matéria em análise ou a área de estudo.

Lawrence Grossberg (2009), no seu artigo “O coração dos Estudos Culturais”, destaca,
mais uma vez, o elevado grau de abrangência dos Estudos Culturais ao afirmar que este
não trata apenas da cultura, da textualidade, da interpretação, do poder e das realidades
sociais, da linguagem, da teoria, ou das culturas popular, de massas e subordinadas. Na sua
ótica, os Estudos Culturais têm algo a dizer sobre todos estes aspetos.

Se olharmos para os Estudos Culturais como uma forma de intervir na realidade sem se
desvincular da academia (Almanza-Hernández, 2008), percebemos como a relação entre a
teoria e a empiria se pode revelar fulcral nesta área de estudos. Esta é a forma de colocar
em prática aquilo que Hartley (2004:110) considera o objetivo dos Estudos Culturais: “(…)
compreender como é que a cultura (a produção social do sentido e da consciência) devia
ser especificada em si mesma e em relação à economia (produção) e à política (relações
sociais)”.

Segundo Johnson (1999) os Estudos Culturais podem ser definidos de acordo com os
seguintes pressupostos: em relação às disciplinas académicas ou aos paradigmas teóricos
que se encontram na base do seu objeto de estudo; em relação aos próprios objetos de
estudo; e em relação a uma tradição político-intelectual. Contudo, é necessário ter em
consideração que no âmago de toda esta discussão se encontra o conceito de cultura.

16 
Capítulo I – Estudos Culturais

De acordo com a maioria dos autores, o conceito “cultura” é basilar nos Estudos Culturais
(Williams, 1984; Agger, 1992; Johnson, 1999; Bounds, 1999; Hall, 1997c; Hall, 2007;
Kellner, 2003), e embora estes ajudem a expandir o conceito de cultura, conduzem
igualmente à descentralização da significação e práticas culturais (Agger, 1992). Segundo
Stuart Hall (1997c:11), os Estudos Culturais apresentam-se mesmo como “(…) um novo
campo interdisciplinar de estudo organizado em torno da cultura como conceito central”.

Produzir investigação na área dos Estudos Culturais implica identificar através de que
sentidos e valores a cultura se expressa (Bounds, 1999). Contudo, deve-se salientar que
existe hoje, nos Estudos Culturais, uma tendência para direcionar os estudos para a cultura
popular e de massas do “homem-comum” (Certeau, 1990), aproximando-a da cultura
pouco democrática ou cultura de elite. Pretende-se, portanto, abarcar “a pesquisa sobre
práticas e usos de bens diversos (produtos do mercado, mas também ideias, valores,
crenças, etc.), (…) ‘criações anónimas’ e ‘perecíveis’ que proliferam na vida quotidiana”
(Sousa Filho, 2002:132), dando-lhe a mesma importância que era dada às “altas” ciências
culturais. Foi neste sentido que autores como Michel de Certeau, Michel Foucault, Pierre
Bourdieu, Guy Debord, Henri Lefebvre e Michel Maffesoli trouxeram para o centro da
análise sociológica do quotidiano práticas subestimadas e até desprezadas por intelectuais e
teóricos puristas (Sousa Filho, 2002; Certeau, 1990).

À exceção do trabalho precursor do filósofo russo Mikhail Bakhtin (Canclini, 2003), foi
apenas nas três últimas décadas que surgiu uma preocupação científica com a temática da
cultura popular. Apesar de se tratar de um conceito de difícil definição, a cultura popular é
discutida por Denys Couche (1999) como sendo uma cultura que se (re)constrói numa
situação de dominação, apesar de se basear em valores originais que emergem de relações
entre os grupos sociais, na maioria da vezes, conflituosas – “afirmar que a cultura popular
é uma cultura dominada não significa dizer que ela é alienada, ou que está em posição de
dominação o tempo todo, é, antes, admitir que está em relação com outras culturas,
notadamente, a cultura dominante (…)” (Fressato, 2009:2).

Neste sentido, e tal como afirma Stuart Hall (2008), a cultura popular exige um movimento
de oscilação entre a contenção e a resistência, trabalho este que foi iniciado por Hoggart
(1976) que, usando métodos quantitativos, procura compreender o meio popular enquanto
local de negociação e não apenas de submissão. A cultura popular permite enveredar por

17 
Capítulo I – Estudos Culturais

uma perspetiva mais apropriada na transformação da vida e dos costumes diários, na


medida em que as pessoas não passam apenas ao lado da cultura, mas vivem nela e por
entre ela (Chambers, 2002).

Com os Estudos Culturais, a cultura popular deixa de marcar limites ou fronteiras nas
práticas culturais e passa a atravessá-las, deslizando por uma dinâmica de diálogo que
transita pelo popular e o não-popular, pela “alta” e a “baixa” prática, pelo restrito e o
massivo (Flores, 2008). Trata-se de práticas culturais quotidianas que representam um
vasto conjunto de procedimentos que proliferam através dos discursos sociais (que vão ao
encontro das teorias foucaultianas) e através de uma maneira de “fazer” e de uma maneira
de “pensar” (Certeau, 1990). Isto demonstra que o tradicional conceito de cultura popular
se pode revelar limitativo para descrever e analisar a realidade social atual, sobretudo num
mundo em que a cultura de massas se impõe fortemente.

Apesar da cultura ser considerada fundamental neste âmbito, esta não deve ser dissociada
de outros elementos intrínsecos à realidade social. De facto, os Estudos Culturais fornecem
as ferramentas necessárias para que possamos examinar, interpretar e criticar qualquer
texto, instituição ou prática cultural (Kellner, 2003), dentro do sistema relacional social
onde estes são produzidos, consumidos e reproduzidos. O estudo da cultura encontra-se,
assim, ligado ao estudo da sociedade, da economia e da política, e os Estudos Culturais
podem mostrar como estes valores/significações se articulam através, por exemplo, dos
estudos dos media.

É neste sentido que Philip Bounds (1999:14) afirma a presença de uma vertente política,
pois há uma focalização no relacionamento entre a atividade cultural e uma forma mais
ampla de organização social. Apesar dos Estudos Culturais não estarem ligados a qualquer
grupo partidário ou subordinarem o seu trabalho a doutrinas preestabelecidas, podem
relacionar-se com uma “política”. Segundo Stuart Hall (1992a), este aspeto “político” dos
Estudos Culturais prende-se com a sua capacidade de ser um projeto aberto, com vontade
de fazer conexões e escolhas, mas sem intenção de se tornar num meta-discurso que sirva
para todos.

Efetivamente, não se pode negar que existe uma certa dificuldade em definir os Estudos
Culturais, fruto da sua multidisciplinaridade e da possível exploração de infindáveis

18 
Capítulo I – Estudos Culturais

temáticas de estudo. Todavia, segundo Sardar & Van Loon (1998), não significa que
qualquer coisa possa ser Estudos Culturais, e que Estudos Culturais possam ser qualquer
coisa. De acordo com estes autores existem, pelo menos, quatro aspetos distintivos dos
Estudos Culturais: 1) mostrar as relações existentes entre as práticas culturais e o poder; 2)
identificar e analisar as práticas culturais dentro dos contextos sociais e políticos, pois a
cultura é sempre vista como objeto de estudo, e contexto da ação e da crítica; 3) expor e
reconciliar a divisão do conhecimento entre o Eu e o Outro; e 4) avaliar a moral social e
apontar linhas de ação.

Os aspetos supracitados identificam determinados conceitos fundamentais para a análise


nos Estudos Culturais, como é o caso do poder, da mediatização, da descoberta da
diferença e da formação da identidade. Certamente que todos estes fenómenos podem ser
analisados dentro das práticas culturais intrínsecas ao contexto social, pelo que a sua
relação com os Estudos Culturais será aqui explorada pormenorizadamente. Isto implica
que, com os Estudos Culturais, a teoria deixa de ser uma atividade restrita à academia,
sendo recuperada sempre que emerge uma disputa de valores, proximidades e linguagem,
ou que uma reflexão coletiva toma lugar (Butler, 2004).

De uma forma mais profunda, pode-se afirmar que os Estudos Culturais interrogam os
regimes de verdade. Isto implica que os Estudos Culturais estão aptos para atingir os
extremos da interrogação ao colocar questões como: O que transforma o mundo num
espaço em que é possível viver? Qual a inteligibilidade para a vida? Quem somos, o que
fazemos e para onde caminhamos? Qual o sentido da realidade e da própria vida? Deste
modo, os Estudos Culturais apresentam-se como uma forma de entendimento da realidade
e de compreensão do sentido do real, provocando uma verdadeira revolução no olhar.
Trata-se de criar pontes de entendimento entre as dimensões do simbólico, do real e do
imaginário (Lacan, 2004), compreendendo os fenómenos e os contextos socioculturais em
causa.

Tudo isto implica que os Estudos Culturais sejam capazes de dar resposta à prática,
desnaturalizando o real (ou colocando fim à naturalidade do real). Isto significa que, na
ótica dos Estudos Culturais, o natural é cultural, e se se constrói o natural de uma
determinada forma, também é possível desconstruí-lo ou construí-lo de outra forma. No
mesmo sentido, através dos Estudos Culturais é possível usar ferramentas de hoje para

19 
Capítulo I – Estudos Culturais

desnaturalizar o passado, reconhecendo a possibilidade de uma outra realidade exequível.


Ora, isto não implica que nos Estudos Culturais não exista lugar para elementos da
natureza. Existe, o discurso do natural é que deve ser problematizado e/ou questionado.

1.2. Historiografia dos Estudos Culturais

Desde a década de 1950 até aos dias atuais, os Estudos Culturais têm evoluído na
diversificação das suas abordagens temáticas, ao mesmo tempo que se deixam influenciar
por correntes sociológicas e teorias filosóficas de forte ressonância política e intelectual.
Neste sentido, é possível fazer uma incursão pelas diferentes décadas da segunda metade
do século XX e da primeira do século XXI, apontando as teorias e os conceitos que
predominam, e os trabalhos e autores que se destacam. De acordo com Escosteguy (1999)
é possível identificar três fases no desenvolvimento dos Estudos Culturais – a fase inicial,
a fase da consolidação e a fase da internacionalização – que facilitam a compreensão
teórica e empírica dos trabalhos, e as diversas abordagens que foram sendo feitas ao longo
do tempo2.

1.2.1. Fase inicial

Apesar da contribuição intelectual ser gratificantemente ampla, foram identificados três


textos basilares, dos finais da década de 1950, que constituem a primeira fase dos Estudos
Culturais, conhecida como fase inicial: The Uses of Literacy (publicado em 1957) de
Richard Hoggart, Culture and Society (publicado em 1958) de Raymond Williams e The
Making of the English Working Class (publicado em 1963) de Edward Thompson. O
trabalho destes teóricos tem origem no período do pós-segunda Guerra Mundial, o que
possibilita aos Estudos Culturais desenvolver uma forte relação com certas diligências
políticas, sobretudo de oposição à direita e de aproximação às questões sociais proletárias
em ascensão na Europa.

                                                            
2
Pronunciando-se sobre a fase da internacionalização, Moisés Martins refere, além da tradição anglo-
saxónica e da tradição francesa, “(…) o contributo específico da América Latina (…)” (Martins, 2010:276);
por outro lado, em 2015, faz a história dos Estudos Culturais, em Portugal (Martins, 2015ª).

20 
Capítulo I – Estudos Culturais

O primeiro texto é em parte autobiográfico e em parte historiográfico, pois apresenta uma


vertente da evolução cultural do século XX (Hoggart, 1973; Escosteguy, s.d.; Johnson,
1999), destacando a preocupação com a cultura popular e o estudo do impacto dos meios
de comunicação de massa britânicos. Stuart Hall (2007) afirma mesmo que sem Richard
Hoggart não existiria o Centro para os Estudos Culturais Contemporâneos (CCCS) e que
sem a sua obra The Uses of Literacy não existiriam sequer os Estudos Culturais.

O texto de Williams é construído em torno do conceito de cultura e das mudanças políticas


e sociais que este acarretou, associando a análise literária com a investigação social
(Escosteguy, s.d.). Williams discute os conceitos de “indústria”, “democracia”, “classe”,
“arte” e “cultura” numa moderna estrutura de significação (Williams, 1977) que
testemunha uma mudança na forma como o mundo passa a ser visto, sobretudo aos níveis
social, político e económico. Já Edward Thompson procurou reconstruir a História inglesa
do ponto de vista da classe trabalhadora, acrescentando um elemento humanista à história
social:

Tentei fazer a distinção entre as experiências de diferentes grupos – artesãos,


trabalhadores de exterior, e labutadores – e mostrar como eles atuavam,
pensavam, e sentiam, não nos antigos modos de deferência e isolamento
paroquial, mas no sentido de classe (Thompson, 1977:937).

Segundo o autor John Storey (1997:46), Hoggart, Williams e Thompson partilhavam uma
abordagem que admitia ser possível reconstruir comportamentos e ideias distribuídos numa
sociedade através da análise da cultura dessa mesma sociedade, sobretudo dos textos e das
práticas culturais que são aí produzidos e consumidos. Esta perspetiva destaca uma
vertente ativa e interventiva na sociedade, baseada na produção cultural, e rejeita os
consumos passivos. É neste sentido que surge uma preocupação em analisar as práticas
culturais simultaneamente como elementos materiais e simbólicos, o que estimula a criação
da dinâmica dos Estudos Culturais.

1.2.2. Fase da consolidação

A fase seguinte é identificada por Escosteguy (1999) como sendo a etapa da consolidação
dos Estudos Culturais, que reúne três importantes décadas – 1960, 1970 e início de 1980 –
de solidificação teórica.

21 
Capítulo I – Estudos Culturais

A década de 1960 destaca-se, primeiramente, pela instalação do CCCS e pela sua


tendência entusiasta pela importação teórica multiforme (Neveu et al, 2002). Esta foi
igualmente uma década marcada pela conotação com o movimento New Left, o que
atribuía uma ligação intelectual marcadamente de esquerda (que aliás teria sido herdada da
década anterior), apoiada nos trabalhos dos textos precursores.

O conceito de Estudos Culturais formaliza-se então nos anos 1960, quando Richard
Hoggart implementou o Centro de estudos na Universidade de Birmingham (em 1964).
Pouco tempo depois, o Centro passa para a direção de Stuart Hall (entre 1969 e 1979), que
embora não estivesse entre o trio fundador, viria a desempenhar um papel importantíssimo
no incentivo aos estudos etnográficos, aos meios de comunicação e às práticas de
resistência dentro das subculturas.

O Centro de Birmingham definiu uma abordagem particular aos Estudos Culturais que se
pode apresentar segundo duas determinantes (adaptado de Agger, 1992). A primeira prevê
a interdisciplinaridade dos seus estudos, na medida em que a Escola de Birmingham
selecionou diversas linhas teóricas e de análise das Ciências Sociais e Humanas (Hall,
1997c), para construir a matriz intelectual dos Estudos Culturais. É aqui que se percebe a
multiplicidade de disciplinas abordadas, que englobam a História Social, a Linguística, a
Literatura, a Comunicação, os Estudos de Género, entre outros. Na realidade, “os Estudos
Culturais  não constituem um conjunto articulado de ideias e pensamento; (…) eles são e
sempre foram um conjunto de formações instáveis e descentradas, [pois] há tantos
itinerários de pesquisa e tão diferentes posições teóricas que eles poderiam ser descritos
como um tumulto teórico” (Costa et al, 2003).

De facto, os Estudos Culturais permitiram a circulação por diversos universos teóricos que
oscilaram de acordo com as especificações dos fenómenos culturais em análise (Almanza-
Hernández, 2008). Contudo, a originalidade dos Estudos Culturais reside na capacidade
dos trabalhos interligarem a teoria e o contexto, de forma a que estes se constituam e
determinem mutuamente (Grossberg et al, 1992; Grossberg, 2009).

Em segundo lugar, destaca-se a necessidade dos Estudos Culturais sublinharem uma


definição ampla de cultura, que rejeita a distinção entre cultura de elite (“alta”) e cultura
popular (“baixa”), pois o Centro para os Estudos Culturais Contemporâneos (CCCS)

22 
Capítulo I – Estudos Culturais

incentivava que todas as expressões culturais tivessem um tratamento por igual. A


renovada noção de cultura aceite pelo CCCS baseava-se, especialmente, nos trabalhos de
Hoggart e Williams, que lançaram uma intrigante e complexa conceção de mudança
cultural.

Com a publicação de The Uses of Literacy, Hoggart contribuiu para uma nova forma de ver
a cultura como o objeto central dos Estudos Culturais. Para o autor, a experiência vivida
tinha de ser analisada dentro do seu contexto, para que a crítica das formas culturais tivesse
algum significado dentro da prática social (Hoggart, 1973; Hall, 2007). No caso de
Raymond Williams, este afirma que a noção de cultura é tão controversa quanto a de
Estudos Culturais (Bounds, 1999). Na sua obra The Long Revolution, Williams (1984)
reconhece à cultura três elementos fundamentais: um “elemento vivido” (diversos tipos de
comportamento que prevalecem em determinados grupos sociais); um “elemento
documentário” (diversas formas de comunicação que permitem às sociedades atribuir e
receber sentido – linguagem, media, arte, etc.); e um “elemento ideal” (refere-se à cultura
de elite e que é muitas vezes analisada cepticamente pelos Estudos Culturais).

Philip Bounds (1999) arrisca ainda a interpretar estes elementos de Williams acrescentando
que os Estudos Culturais conseguem, seguindo uma perspetiva política, analisar o valor e o
sentido cultural através da forma vivida, documental e ideal. Para este autor, quando
trabalhamos o fenómeno cultural, devemos ter em consideração as seguintes questões: A
atividade cultural pode ser um reforço para uma forma existente de organização social? A
atividade cultural pode ser entendida como uma diminuição para uma forma existente de
organização social? Quais as formas de atividade cultural que devem ser empreendidas
para assegurar uma mudança política? Nestas considerações de Bounds (1999) prevê-se
que o fenómeno cultural se encontre intimamente associado a um contexto social e até
político, que interfere com a significação e a interpretação desse mesmo fenómeno. Em
suma, todas estas leituras complexas do fenómeno cultural conduziram o grupo de
intelectuais do CCCS a considerar a cultura como prática e experiência, valorizando quer o
sentido teórico quer o empírico.

O movimento New Left, surgido nos finais das décadas de 1950, formalizou-se nos
princípios da década seguinte, tendo-se estendido no tempo (Bounds, 1999). Os
simpatizantes deste movimento eram sobretudo ativistas e pedagogos que ansiavam por

23 
Capítulo I – Estudos Culturais

reformas que revissem questões de justiça social. Daí que se tenham focado nas questões
da união laboral e das classes sociais (Escosteguy, 1999). Para consolidar estes ideais, que
se fundamentavam num texto – espécie de carta aberta do movimento – de Charles Mills
(Mills, 1960), é criada, em 1960, uma revista com conotação política intitulada New Left
Review. Esta revista revelar-se-ia a porta-voz do movimento que repensa o Marxismo e a
cultura popular, teorizando conceitos como o Humanismo, a ética e a comunidade, e
optando por uma atitude mais intervencionista, que aponta para os problemas imediatos da
política contemporânea. Em suma, e com base na opinião de Paula Saukko (2003), tanto o
movimento New Left como esta revista incutiram nos Estudos Culturais o interesse da
análise da relação entre a experiência vivida e textual, e o contexto social, político e
económico.

A evolução dos Estudos Culturais nas duas décadas seguintes fica a dever muito às teorias
incompletas que foram lançadas pelo texto The Uses of Literacy de Richard Hoggart (Hall,
2007). Na década de 1970, os trabalhos foram ao encontro das teorias marxistas e das
subculturas, ao mesmo tempo que davam continuidade ao estudo das sociedades
massificadas.

Os Estudos Culturais mantiveram, inicialmente, uma ligação bastante próxima com as


teorias marxistas, que se baseavam, por um lado, nas reflexões de Althusser (Marxismo
antagonista-estruturalista ou causal), e por outro, nas de Gramsi (Marxismo ocidental)
(Agger, 1992; Sanches, 1999). Na sua base, o Marxismo procura explicar como as
sociedades se desenvolveram ao longo da História, utilizando um método de análise do
papel cultural das sociedades modernas (Bounds, 1999), distinto da abordagem capitalista.
Desta forma, os Estudos Culturais associaram-se ao Marxismo de forma a interligar e a
interpretar os processos culturais com os desenvolvimentos económicos:

O Marxista tentará mostrar como a cultura é usada para legitimar o sistema


existente, ou ocasionalmente como pode ser usada para subverter e enfraquecê-lo
(Bounds, 1999:21).

Muitos autores afirmam que a relação entre os Estudos Culturais e o Marxismo era tensa,
sobretudo no que diz respeito à ligação entre a teoria e o concreto (Hall, 1992a; Costa et al,
2003; Almanza-Hernández, 2008). Contudo, Costa et al (2003) afirma que existem
inegáveis contribuições desta associação, e cita Johnson (1999) para justificar a sua

24 
Capítulo I – Estudos Culturais

afirmação. Segundo este último autor, os processos culturais encontram-se intimamente


vinculados com as relações sociais (sexuais, raciais, etárias e de classe), ao mesmo tempo
que envolvem relações de poder, num contexto de diferenças e de lutas sociais.

Baseados nas contribuições supracitadas, alguns teóricos do CCCS acreditavam que uma
nova sociedade seria construída através da luta de classes, defendendo que as subculturas
representavam uma resistência simbólica cultural às imposições capitalistas, sobretudo
personificada nos jovens da classe trabalhadora. O CCCS desenvolve assim, na década de
1970, uma teoria clássica das subculturas que defendia a ideia que grupos de jovens como
os skinheads ou os teddy boys podiam constituir uma espécie de resistência simbólica da
sua experiência de classe (Bouns, 1999). Desta forma, os Estudos Culturais caminhavam
para uma visão da cultura (popular) como o lado da resistência e oposição ao capitalismo.

Durante a década de 1970, “os Estudos Culturais preocupavam-se, em primeira mão, com
os problemas da cultura popular e dos mass media que expressavam os rumos da cultura
contemporânea” (Escosteguy, 1999:142). De acordo com esta afirmação, é percetível que
os efeitos dos media podem ter um sentido ideológico (Hall, 1982) e devem ser estudados
de forma a interpretar as mensagens por si emitidas. Estas mensagens permitem sustentar e
reproduzir o meio social e cultural, facilitando aos Estudos Culturais a compreensão dos
produtos culturais como agentes de reprodução social (Escosteguy, 1999).

Foi no sentido desta teorização que Raymond Williams focalizou os seus estudos,
principalmente na ideia de que a cultura da classe trabalhadora era considerada menos
avançada que a das elites, surgindo assim dois conceitos associados a esta ideia – o de
“massas” e o de “comunicação de massas” – que procuravam denegrir a imagem daquela
classe. Segundo Williams (1977), o conceito de “massas” está carregado de significado,
para o qual três tendências contribuíram: a concentração da população nos meios urbanos,
a concentração de trabalhadores industriais e, consequentemente, o desenvolvimento de
uma classe trabalhadora organizada. Os sujeitos da classe trabalhadora eram considerados
tão degradantes como as formas populares televisivas a que assistiam, mas Williams
contestou esta ideia, defendendo que a cultura popular contemporânea possui muito de
explorativo (Williams, 1966, 1977; Bounds, 1999). Meaghan Morris demonstra a mesma
preocupação ao reafirmar a complexidade das sociedades massificadas:

25 
Capítulo I – Estudos Culturais

As pessoas nas modernas sociedades mediatizadas são complexas e


contraditórias, os textos culturais massivos são complexos e contraditórios,
portanto ao usá-los as pessoas produzem cultura complexa e contraditória
(Morris, 1988:19).

Para Williams (1966, 1977), os media auxiliam na disseminação da informação, e a


emergência da uma “cultura comum” exige um processo de interpretação de comunicação
avançado. Esta conceptualização foi apoiada pela crescente vertente ideológica e política
desenvolvida nos anos 1970. A maior contribuição cultural na teoria dos media, neste
período, foi o modelo encoding/decoding de Stuart Hall (1980).

Tradicionalmente, a investigação da comunicação de massas era feita através de um


modelo linear – emissor, mensagem, recetor – centrado na produção e partilha da
mensagem, na mensagem em si, e na receção dessa mesma mensagem. Este modelo parece
um pouco limitativo quando se pensa na complexa estrutura relacional do processo de
comunicação, embora Stuart Hall (2006) aponte que era possível, através deste processo,
articular distintos momentos como a produção, a circulação, a distribuição/consumo e a
reprodução de informação.

Apesar de White (1998:60) apontar Raymond Williams como “um dos primeiros a não se
referir aos meios de comunicação como meras formas de transporte de informação, mas
como textos que revelam significados culturais criados num dado período histórico”, só
numa fase posterior, com o modelo encoding/decoding, desenvolvido no CCCS por Stuart
Hall e David Morley, se tornou possível determinar e analisar os processos pelos quais os
textos dos media eram produzidos e interpretados, determinando a função ideológica das
suas mensagens numa sociedade já apelidada de massificada. David Guantlett afirma que
este modelo sugeria que:

Um produtor de media pode ‘codificar’ um determinado sentido no seu texto, o


qual será baseado num determinado contexto e entendimento social, mas (…)
quando outra pessoa consome esse texto, a sua leitura (‘descodificação’) deste –
baseada no seu contexto social e pressupostos – é provável que seja algo
diferente (Guantlett, 2002: 26).

Este modelo pode parecer óbvio, mas implicou (na altura) ressaltar a importância de
compreender as interpretações e as significações de ambos os produtores e recetores

26 
Capítulo I – Estudos Culturais

mediáticos, bem como dos intermediários na distribuição dos produtos. Segundo Philip
Bounds (1999), este novo modelo implicava três formas pelas quais os textos dos media
poderiam ser descodificados: a) quando o público-alvo aceita a mensagem dominante do
texto e não interpreta perspetivas alternativas (leitura perfeita); b) quando o público-alvo
aceita a mensagem dominante do texto, mas reconhece que nalgumas circunstâncias ela
não se aplica (leitura negocial); e c) quando o público-alvo rejeita a mensagem dominante
do texto, optando por interpretá-la através de uma perspetiva completamente diferente
(leitura de oposição).

Morley e Hall mostravam que os jovens da classe trabalhadora, em vez de serem


simplesmente manipulados pelos mass media, desenvolveram uma capacidade
interpretativa do discurso mediático e até uma cultura de contrarresistência, mostrando que
os textos mediáticos eram muito mais abertos a interpretações do que se julgava (White,
1998). Este caminho teórico possibilitava ver a cultura popular como algo criativo e
progressivo, na forma como os sujeitos respondiam aos textos comerciais massificados e,
ocasionalmente, lhes faziam resistência (Bounds, 1999; Saukko, 2003). Os textos
mediáticos passam agora a ser entendidos como construção de significado e fonte de
processos interpretativos, pois como refere Grossberg (1996a:157): “práticas culturais são
práticas com significado”.

Nos finais da década de 1970, princípios da década de 1980, dá-se um progressivo


afastamento do Marxismo, na medida em que as sociedades se tornam mais individualistas,
as economias mais globais, as culturas mais diversificadas (Bounds, 1999) e os Estudos
Culturais começam-se a internacionalizar. Este afastamento das teorias marxistas vai ter
duas consequências: a aposta no interesse pela cultura popular, sobretudo com o trabalho
de John Fiske e Paul Willis (Bounds, 1999; Fiske, 1989ª, 1989b; Willis, 1990) e nos novos
movimentos sociais, como, por exemplo, o Feminismo, o antirracismo, a libertação
homossexual, etc.

Antes da teorização cultural dos Estudos Culturais surgir, a cultura era vista como um
produto das velhas classes ociosas, que insistiam em fazer resistência às novas. Todavia, o
trabalho de alguns autores nas décadas de 1950 e 1960 permitiram ultrapassar esta ideia e
mesmo ver a cultura como uma herança das novas classes “que contêm a humanidade do
futuro” (Williams, 1977:306).

27 
Capítulo I – Estudos Culturais

Com os Estudos Culturais, a noção de cultura alarga-se, abarcando todas as práticas


humanas: “(…) cultura é o sentido antropológico mais amplo em qualquer atividade
expressiva contribuindo para a aprendizagem social” (Agger, 1992:2). Já Clark et al (1976)
afirmam que a cultura se prende com a forma como as relações sociais de um grupo se
encontram estruturadas, mas também como essas relações são experienciadas, entendidas e
interpretadas. Para este autor, a cultura de um grupo ou classe engloba ainda sentidos,
valores, ideias, relações, crenças, costumes, objetos e vida material. Williams (1977:308)
acrescenta que “uma cultura nunca pode ser reduzida aos seus artefactos enquanto está a
ser vivida”.

A inovação cultural dos Estudos Culturais não passa somente pela valorização da cultura
popular em relação à cultura minoritária e elitista, mas passa também pela exploração da
questão cultural em articulação com a teoria e a ação políticas:

(…) Os Estudos Culturais são uma tradição seletiva que está interessada na fonte
cultural de poder, diferença e emancipação, intimamente ligada com os
movimentos sociais e a crítica cultural (Johnson et al, 2004:24).

A política dos Estudos Culturais começa então a centrar-se nos chamados novos
movimentos sociais, focando-se sobretudo no estudo da representação de género, racial e
de classe (Bounds, 1999; Kellner, 2003). Os Estudos Culturais desenvolvem assim um
programa multidisciplinar que procura analisar como os movimentos culturais podem
reproduzir certas formas de sexismo, racismo e subordinação, mas igualmente intervir, de
forma a marcar a diferença dentro de determinados grupos sociais.

O movimento feminista entrou em cena, aliado aos conceitos de “poder” e de “resistência”,


representando uma das ruturas teóricas mais decisivas dos Estudos Culturais no final da
década de 1970 (Hall, 1996ª). Stuart Hall destacou, na época, a evidência do “caráter
sexuado do poder” (Costa et al, 2003: 42), que terá sido apoiado pela ala masculina do
CCCS, sendo rapidamente adotada pelas mulheres, ansiosas por denunciar e combater os
abusos do poder patriarcal enraizado numa sociedade tradicionalmente machista. Esta
discussão feminista surgiu formalmente com a publicação de uma revista do grupo de
Birmingham intitulada Women Take Issue. Este número surge com o objetivo de
representar o sentimento de revolta feminino e a vontade de tomar uma posição que
implicaria uma mudança social (Costa et al, 2003).

28 
Capítulo I – Estudos Culturais

O movimento feminista reconhecia as diferenças de género que são atribuídas sobretudo


pelas distintas formas sociais e culturais (família, educação, religião), mas revela e critica
as representações femininas de subordinação ao sexo oposto. Importa aqui salientar que o
movimento feminista, apesar de abrir as portas para discussões mais profundas, se focava,
particularmente nesta época, na dualidade do sexo/género. Esta posição foi tomada porque
a imagem da mulher no domínio público, sobretudo ao nível dos media, continuava a ser
limitada a determinadas categorias estereotipadas (mulher como objeto sexual e doméstico,
representada como mãe, e como ser fraco e heterossexual), passando-se o mesmo com o
homem (o masculino como “medida”, sexo forte e heterossexual).

Segundo Crane (2003), as imagens femininas nos media eram facilmente construídas para
o “espectador” masculino e para as suas expectativas sobre a mulher, o que faz com que
esta seja representada como inferior ou subordinada aos homens, com papéis sociais
estereotipados. Já Giddens (1992) afirma que o domínio masculino na esfera pública e a
sua associação à razão se formaram às custas da exclusão da transformação da intimidade,
ou seja, da exclusão da comunicação emocional.

Particularmente até meados da década de 1970, a subordinação feminina ao poder


masculino era profundamente visível, não só ao nível das práticas e estruturas sociais,
como também ao nível institucional, e foi esta tomada de consciência que conduziu os
movimentos feministas a formar leituras resistentes:

Os géneros femininos, porque articulam as preocupações de um género cujos


interesses são negados pela ideologia dominante, devem, se for para serem
populares, ser abertos o suficiente para admitir uma variedade de leituras de
oposição, ou, pelo menos, de resistência (Morris, 1998:222).

No decorrer da segunda metade do século XX, as mudanças económicas e socioculturais


que se foram consolidando, começaram a modificar as condições femininas e masculinas, o
que incentivou o grupo de Birmingham a procurar diferentes compreensões sobre as
relações pessoais e familiares, baseadas nas diferenças de género:

A partir da compreensão, no âmbito dos estudos feministas, de que estudar a


condição da mulher implica, necessariamente, remeter-se à condição do homem,
estes estudos evoluíram no sentido de abordar as relações de género (Arilha et al,
1998:24).

29 
Capítulo I – Estudos Culturais

As teorias feministas procuraram analisar e influenciar formas quotidianas de


relacionamento, ao mesmo tempo que associavam categorias literárias e preocupações
estéticas a questões sociais (Johnson, 1999), desenvolvendo novas conceções do sujeito
moderno. Contudo, as discussões nos Estudos Culturais feministas transitam entre a
possibilidade de o Feminismo se apresentar como uma teoria cultural por si só, e a
possibilidade de ser tratar apenas de uma versão dos Estudos Culturais que não deve ser
separada de outras perspetivas culturais, sobretudo “em termos de uma divisão política e
crítica do trabalho” (Agger, 1992:114). Em relação às pesquisas sobre a masculinidade,
estas foram praticamente eclipsadas pelo domínio dos estudos feministas, mas ainda na
década de 1980 surgem estudos sobre a construção da masculinidade, beneficiados pela
discussão em torno do conceito de género (Hennigen & Guareschi, 2002).

Todas estas mudanças apanharam de surpresa muitos pensadores, mas hoje as análises
culturais de género compõem muitos dos discursos contemporâneos, ao mesmo tempo que
é repensada toda a estrutura social assente nos papéis feminino e masculino, bem como a
ligação que ambos possuem com as tomadas de decisão pessoais e familiares, e as relações
estruturais de poder.

Os Estudos Culturais permitiram que o estudo tradicional da cultura ligada à Antropologia


e à Sociologia fosse substituído por “uma especial atenção prestada ao quotidiano das
classes populares, à receção e ao consumo dos media, aos estilos de vida e à mudança
social” (Martins, 2011:33). Assim, à abordagem da cultura popular, e dos novos
movimentos sociais e das questões de género, junta-se a da introdução de novas
modalidades de análise dos meios de comunicação. Efetivamente, nos anos 1970 os
estudos dos media estavam voltados para os “efeitos produzidos pelas mensagens
veiculadas pelos meios de comunicação, enquanto enfocavam a seleção da programação de
acordo com seus usos e gratificações” (White, 1998:57). Na década seguinte, as pesquisas
passam a interessar-se mais pela forma como as audiências percecionam os significados
das mensagens mediáticas, pois há sempre a possibilidade de um público-alvo se
identificar com os sentidos alternativos que os textos contêm, mesmo que sejam contrários
à intenção dos meios de comunicação (Bounds, 1999).

O estudo das audiências permite reconstruir o significado mediático através da perspetiva


do sujeito que o perceciona. Estes precedentes foram abertos pelas teorias iniciais de

30 
Capítulo I – Estudos Culturais

Williams, Thompson e Hoggart, mas só por volta de finais da década de 1970 e na década
de 1980 é que os Estudos Culturais desenvolvem um forte e coerente conjunto de
explicações teóricas sobre o papel das audiências.

Morley foi o primeiro teórico a desafiar as explicações psicanalíticas sobre as definições


ideológicas de resposta das audiências desenvolvidas por Zacan e Althusser (White, 1998).
Segundo Robert White, Morley defendia uma tendência explícita que indicava que os
discursos e processos privados sofrem a influência dos discursos mediáticos, e vice-versa:

Na cultura de um sistema capitalista industrial os processos de socialização, que


se dão na família e na escola, desenvolvem os gostos e as perceções da audiência
e também estão na lógica dos filmes populares de massa e na programação de
televisão, portanto, são dois lados da mesma moeda (White, 1998:63).

Segundo Moisés Martins (2011:41), as Ciências da Comunicação têm assim a sua “génese,
destino e pujança associados ao incremento dos Cultural Studies”, o que acaba por dar a
esta área científica um novo sentido. Ao enveredar pelos estudos das audiências, do
consumo mediático, do quotidiano popular, das subculturas e da mudança social, as
Ciências da Comunicação são vistas por alguns teóricos como as “Novas Humanidades”.
Mais abrangente, Moisés Martins (2015a) entende que são os Estudos Culturais, no seu
conjunto, que constituem as “Novas Humanidades”.

Os anos 1980 desenvolveram então teorias de “despolitização” com o trabalho de teóricos


como Michel De Certeau, Michel Foucault e Pierre Bourdieu (Escosteguy, 1999), que se
focavam cada vez mais nas formas de resistência das subculturas, sobretudo as discursivas,
que se centram nos estudos que nos fazem perceber como as pessoas resistem ou
sucumbem aos discursos: “(…) Foucault não vê o poder dos discursos como monolíticos,
mas aponta que onde há poder, há resistência” (Saukko, 2003:76).

As questões de poder associadas às de resistência assumem uma posição importante na


análise ideológica, o que levou Kellner (2003:11) a afirmar: “para os Estudos Culturais, o
conceito de ideologia é de fulcral importância, pois as ideologias dominantes servem para
produzir relações sociais de domínio e subordinação”. De facto, a ideologia funciona como
um código ou um sistema de sinais (Heck, 1996), e a sua análise fornece informações
sobre a experiência vivida, os textos e os contextos que podem ser estudados no âmbito do
Estudos Culturais.

31 
Capítulo I – Estudos Culturais

1.2.3. Fase da internacionalização

Em meados da década 1980 surge a terceira fase dos Estudos Culturais – etapa da
internacionalização – que se estende até aos nossos dias. Durante esta longa etapa, todas as
questões anteriormente levantadas continuaram a ser investigadas, juntamente com outras
novas, como é o caso da Etnografia, das relações de poder-resistência-ideologia-
hegemonia-discurso, da identidade, da representação (Escosteguy, 1999), da mediatização
e do género.

Segundo Barker (2000), podem ser consideradas três abordagens metodológicas nos
Estudos Culturais: a etnográfica, a textual e os estudos de receção (ecléticos). De facto, os
Estudos Culturais utilizam-se destas abordagens para orientarem as suas pesquisas, mas na
década de 1980 e 1990 salienta-se o contributo da Etnografia – “a prática de representação
das culturas dos outros” (Johnson, 1999:96) – na medida em que permitiu a abertura de
novos caminhos de investigação e a focalização em novos objetos de estudo.

A vertente etnográfica não só alargou os estudos empíricos baseados na experiência vivida,


como serviu, mais tarde, de “método” utilizado para observar o comportamento das
audiências (Moores, 1993) e de “prática” para amplificar “a distância social” e construir
“relações de conhecimento-como-poder” (Johnson, 1999:96). Os estudos etnográficos
salientam a forma como os sujeitos definem as suas próprias condições sociais, revelando-
se de forte interesse para os Estudos Culturais, pelo que Escosteguy (1999:143) afirma que:

O ponto de partida [dos estudos etnográficos] é a atenção sobre as estruturas


sociais (de poder) e o contexto histórico enquanto fatores essenciais para a
compreensão da ação dos meios massivos, assim como o deslocamento do
sentido de cultura da sua tradição elitista para as práticas quotidianas.

No âmbito dos Estudos Culturais, o conceito de poder e o seu campo de ação são
igualmente centrais, pois o poder é entendido como um elemento que integra qualquer
nível de relações sociais. Tal como indica Barker (2000:10), “o poder não é simplesmente
a cola que une o social, ou a força coerciva que subordina um conjunto de pessoas a
outro”, mas é também algo mais complexo que auxilia na formação de processos que
geram e interrompem qualquer forma de ação social, movimento, ordem e relação. O poder
apresenta-se assim, na sociedade, como um elemento que limita e liberta simultaneamente
(Barker & Galanski, 2001).

32 
Capítulo I – Estudos Culturais

Com efeito, os Estudos Culturais começaram a abordar uma dinâmica, nas décadas de
1980 e 1990, que interrelaciona o social e o cultural com questões de poder. De facto, os
Estudos Culturais desenvolveram-se em torno da produção e organização de sentido em
relação a questões de poder, onde os processos culturais se revelam decisivos, pois é
através deles que se desenvolvem relações sociais poderosas (Johnson et al, 2004), tal
como afirma Johnson (1999:51):

Quer tomem como seu principal objetivo os conhecimentos públicos mais


abstratos e as suas lógicas e definições subjacentes, quer investiguem o domínio
privado da cultura, os Estudos Culturais estão necessária e profundamente
implicados em relações de poder.

Quando confrontado com a mesma questão, John Hartley (2004:110) tem a mesma posição
que Johnson (1999) ao afirmar que o objeto de estudo dos Estudos Culturais passa a ser o
poder e não a condição humana, assim que sejam criadas tentativas para explicar as
práticas culturais dentro da sociedade:

Os Estudos Culturais procuravam explicar as diferenças e práticas culturais, não


por referência a valores intrínsecos ou eternos (…), mas por referência ao mapa
global das relações sociais (…). O objeto dos Estudos Culturais já não era a
condição humana, mas o poder.

Segundo Barker & Galansinki (2001), os Estudos Culturais exploram diversas formas de
poder e a sua aplicação enraizada e disseminada em microestruturas sociais que incluem
género, raça, classe, crenças, entre outras. Os autores vêm os Estudos Culturais como uma
forma de identificar e explorar as ligações que existem entre estas formas de ação do poder
e o meio social, cultural e económico em que se inserem. Há aqui uma tentativa de
mudança, que, por vezes, dá voz às diferentes modalidades de resistência e ideologia. De
facto, para os Estudos Culturais, o conceito de ideologia é importante, pois é interessante
compreender como “as ideologias dominantes [de classe, género, étnicas] servem para
reproduzir relações sociais de dominação e subordinação” (Kellner, s.d.:11), e despertam
forças resistentes dos oprimidos.

Importa ainda aqui referir que é neste período, aliado aos conceitos de poder e de
ideologia, que se desenvolve e transforma o conceito de hegemonia. Inicialmente teorizado
por António Gramsci (1996, 2006) para designar a dominação ideológica de uma classe

33 
Capítulo I – Estudos Culturais

social sobre outra, o poder hegemónico ganha, dentro da prática dos Estudos Culturais,
uma nova articulação produtiva (não deixando para trás o seu carácter coercivo). Quer isto
dizer que a hegemonia passa a ser entendida não apenas como uma questão de repressão do
grupo dominador sobre outro dominado, pois é necessário ter em consideração os
interesses de ambos os grupos, para que se inicie uma relação de compromisso (embora
permaneça sempre um grupo que dirige). Isto implica que o grupo que exerce o domínio
reúna à sua volta um conjunto de elementos (morais, práticos, intelectuais,
propagandísticos e simbólicos) capazes de orientar o grupo dominado, não aplicando força
repressora e proibitiva diretas. Ora, este novo entendimento do poder hegemónico vai
auxiliar os Estudos Culturais numa outra leitura das práticas socioculturais atuais e do
passado, particularmente no caso dos estudos (pós)coloniais, de raça e de género3.

Para Johnson et al (2004:135), nos Estudos Culturais a formação cultural expressa,


representa e reproduz relações de poder, pois “a cultura é sempre uma configuração de e
para o poder, tal como o poder é uma configuração de e para a cultura”. De facto, para os
Estudos Culturais a relação que existe entre poder e cultura é de tal forma importante que é
crucial que o estudo do poder implique uma relação entre economia e cultura. Embora o
poder resida, tradicionalmente, nas relações económicas e de Estado, os Estudos Culturais
transformaram e adaptaram essa tendência, incluindo uma consciência sociocultural. Em
suma, Johnson et al (2004) indicam que este argumento envolve a utilização de um método
que conjugue os Estudos Culturais, a política económica e a teoria social.

Tradicionalmente, as Ciências Sociais tendem a identificar o poder com a política, mas é


cada vez mais clara a distinção entre estes dois conceitos, pois o poder aproxima-se das
relações sociais e culturais, pelo que “(…) é impossível abstrair a análise da cultura das
relações de poder e das estratégias de mudança social” (Escosteguy, s.d.:6-7). Segundo
Morley (1997), os Estudos Culturais tendem a fazer uma textualização das questões de
poder (e política), tratando-o como um assunto de linguagem ou discurso, o que parece ser
mais sensato nos dias atuais.

                                                            
3
Nos estudos pós-coloniais, Moisés Martins inscreveu os estudos lusófonos. Veja-se, neste contexto,
Lusofonia e Interculturalidade. Promessa e Travessia (Martins, 2015b).

34 
Capítulo I – Estudos Culturais

Os Estudos Culturais podem ser vistos “como uma formação discursiva no sentido
foucaultiano” (Costa et al, 2003:41), pois consideram as práticas culturais (ou discursivas)
como fundamentais na construção da realidade que habitamos; realidade esta que se
constrói e transforma através de formas discursivas e não-discursivas que se encontram
intimamente relacionadas (Grossberg, 2009). Pagano & Magalhães (2005) afirmam que,
nos Estudos Culturais, é a dimensão prática social que possibilita o diálogo da análise
crítica do discurso, embora esta abordagem discursiva pressuponha uma noção de
representação. Esta representação encontra-se presente em todas a formas e práticas
sociais: “(…) a representação está em todo o lado – na comunicação diária e no
autoconhecimento, tal como em formas publicitárias mediatizadas” (Johnson et al,
2004:140).

Michel Foucault foi um dos teóricos antiessencialistas e (pós)estruturalistas que


desenvolveu as teorias do poder associadas às formas discursivas que se preocupam com a
descrição e análise do discurso e dos seus efeitos. Para Foucault, os Estudos Culturais são
uma formação discursiva (Hall, 1996c), pois são os discursos que constroem, definem e
produzem os objetos de conhecimento (Barker, 2000).

Para Chris Barker (2000), Foucault assegura que os discursos regulam aquilo que pode ser
dito (e por quem) sob determinado contexto sociocultural, remetendo para questões de
poder. Este poder deve ser disperso (e não centralizado) pelos vários níveis sociais e
identidades: “(…) Foucault explora como, através da operação de poder na prática social,
os sentidos são temporariamente estabilizados e regulados num discurso” (Barker,
2000:78).

Para Foucault o conhecimento forma-se nas práticas de poder; poder este que é distribuído
pelas relações sociais e que prolifera nos discursos e instituições, e que não se trata apenas
de um mecanismo negativo de controlo dos sujeitos (Barker, 2000; Barker & Galansinki,
2001). Neste sentido, os media têm sido considerados “um lugar privilegiado de circulação
de discursos” (Hennigen & Guareschi, 2002:45) de representação da sociedade, e têm-se
mostrado importantes na construção identitária dos sujeitos. De facto, nos dias de hoje, as
questões de poder prendem-se com a identidade, sobretudo quando a identidade é vista
como uma problemática que é criada, individual ou coletivamente, sob pressões sociais
(Hall & Gay, 1996) e mediáticas.

35 
Capítulo I – Estudos Culturais

É ainda nas décadas de 1980 e 1990 que os pensadores dos Estudos Culturais começam a
aprofundar teorias sobre a construção da identidade individual e social, na medida em que
se forma a ideia de que o sujeito se afasta de uma identidade essencial para passar a possuir
“várias identidades (trans)formadas continuamente em relação ao modo como [o sujeito] é
representado ou interpelado pelos sistemas culturais ao redor (…)” (Hennigen &
Guareschi, 2002:49).

Nas sociedades tradicionais, a identidade individual era reconhecida como estável e


imóvel. Contudo, o advento da Modernidade conduziu a identidade por caminhos
autorreflexivos suscetíveis à mudança, à multiplicação e à inovação (Kellner, 1997),
levantando questões complexas sobre como a identidade individual e pessoal se pode
preservar (para o próprio sujeito e para os outros), apesar dos inúmeros estímulos.
Efetivamente, cai por terra a conceção de uma identidade unificada e surge uma espécie de
fragmentação identitária alimentada por inúmeros constituintes culturais. Com a Pós-
Modernidade, Kellner (1997) afirma que a identidade vai ficando cada vez mais instável e
frágil, resultado das novas conceções e interpretações antropológicas e sociológicas (fruto
de uma Era que se preocupa demasiadamente com a sua própria existência).

A identidade de um sujeito é apresentada, dentro dos Estudos Culturais, no âmbito da


cultura e sobretudo da partilha de objetos culturais, o que leva Hartley (2004:210) a
afirmar que a identidade assenta em “características partilhadas, que são mais culturais do
que naturais/biológicas”. Atualmente, vive-se em sociedades onde a identidade individual é
mais falada pelos outros do que pelo próprio sujeito (Couldry, 2000), pelo que Stuart Hall
(1992a) argumenta que as identidades passam a ser contraditórias ou deslocadas, pois
mudam consoante o sujeito se dirige aos outros ou os representa. Aqui a “identidade
dominada” entra em choque com a “identidade dominadora”, criando dinâmicas de
resistência e adaptação, inerentes às relações de poder social já atrás referenciadas.

Segundo Elspeth Probyn (1993), a identidade individual não deve ser vista como reflexo,
mas sim como representação, onde a própria cultura identitária é construída de acordo com
pressupostos maleáveis e contestáveis, assentes na representação de técnicas, narrativas e
ideologias complexas (Durham & Kellner, 2006). Stuart Hall reafirma esta teoria,
indicando que a identidade é constituída dentro da representação:

36 
Capítulo I – Estudos Culturais

[A identidade seria] constituída não fora mas dentro da representação…


não como um espelho usado erguido para refletir o que já existe, mas
como essa forma de representação que é capaz de nos constituir como
novos tipos de sujeitos (…) (Hall, 1990a:236-237).

Nas décadas de 1980 e 1990, uma boa parte dos Estudos Culturais centra-se nas questões
de representação, ou seja, como o mundo é construído socialmente e representado para e
por nós. Trata-se daquilo que Barker (2000:8) apelidou de “estudo da cultura como práticas
significantes de representação”.

Quando, neste período, as teorias da identidade começaram a ser encaradas segundo


perspetivas múltiplas, os teóricos dos Estudos Culturais perceberam não só a sua forte
conotação com as representações sociais, mas também a sua ligação direta com os
discursos presentes nos meios de comunicação. De acordo com Hennigen & Guareschi,
(2002:54-55), “como as identidades são construídas culturalmente (…)”, os media, “(…)
como lugar privilegiado de circulação de discursos (…)”, tornaram-se importantes “(…)
fontes de referências identitárias”.

De facto, os media são uma espécie de “janela” que reflete e cria as escolhas identitárias
pessoais e que servem como pontos de referência dessas mesmas identidades (White,
1998), pois “mais do que um veículo de exposição de modos de vida, [os media]
funcionam como um lugar decisivo no processo de construção de identidades” (Fischer,
2000:109). Ainda segundo Kellner (2003) percebemos que a cultura dos media é crucial na
formação de qualquer noção identitária, pois as imagens e os discursos reproduzidos pelos
meios de comunicação ajudam a criar modelos e valores de referência:

Rádio, televisão, cinema, e outros produtos da cultura dos media fornecem


materiais dos quais forjamos as nossas próprias identidades; o nosso sentido de
individualidade; a nossa noção do que significa ser masculino ou feminino; o
nosso sentido de classe, de etnicidade e de raça, de nacionalidade, de
sexualidade; e de “nós” e “eles”. As imagens dos media ajudam a moldar a nossa
visão do mundo e os nossos valores mais profundos: o que consideramos bom ou
mau, positivo ou negativo, moral ou perverso (Kellner, 2003:9).

Para a vertente teórica antiessencialista, as identidades chegam mesmo a não possuir


qualidades essenciais ou universais, pois fazem parte de uma construção discursiva, ou de
um produto formado pelas representações mediáticas (Barker, 2000).

37 
Capítulo I – Estudos Culturais

Ao caminhar para o fim da década de 1990, o CCCS começa a desafiar os paradigmas


dominantes dos estudos dos media e a redefinir as suas linhas de trabalho nesta área.
Segundo Stuart Hall (1996a), os estudos dos media quebraram com o modelo de influência
direta para abraçarem uma via ideológica, onde os meios de comunicação passam a ser
vistos como uma força vital no que respeita à forma como as relações sociais e os
problemas políticos se definem, e como as ideologias populares se formam e transformam
no caminho das audiências. Os textos mediáticos deixam de ser vistos como elementos
transparentes, pois é admitida a complexidade do seu sentido, ao mesmo tempo que se dá
uma importância fundamental ao estudo das audiências e aos momentos de codificação e
descodificação de mensagens mediáticas. Em suma, para Hall (1996a:118) atribui-se uma
sobrevalorização das questões ideológicas dos media, sobretudo no que diz respeito ao
papel que os meios de comunicação desempenham “na circulação e segurança das
definições e representações ideológicas dominantes”.

Neste sentido, o CCCS afastou os estudos dos media do entretenimento, transferindo-os


para a área da comunicação política, onde a cultura dos media produz representações
capazes de induzir concordância com determinadas posições políticas e ideológicas.
Todavia, a cultura dos media também articula um conjunto de mediações relacionadas com
a experiência social, os eventos, as práticas e os discursos (Kellner, 1997), que ajudam a
formar a identidade individual e social dos sujeitos.

Os estudos dos media passaram a ser conduzidos por um caminho de complexas relações
que envolvem poder, ideologia e representação identitária – “(…) a cultura dos media
fornece formas de domínio ideológico que ajudam a reproduzir as atuais relações de poder,
além de também fornecer recursos para a construção de identidades e de fortalecimento,
resistência e luta” (Kellner, 1997:2).

Atualmente, o objeto de investigação nos Estudos Culturais tem-se diversificado e


fragmentado até à exaustão. Todavia, a relação entre o estudo dos media e os Estudos
Culturais conflui para a reflexão “sobre o papel dos meios de comunicação na constituição
das identidades (…)” (Escosteguy, s.d.:11), e para a manutenção e reprodução das
sociedades contemporâneas (Durham & Kellner, 2006). Desta forma, Kellner (1997)
declara que os Estudos Culturais devem discutir como a cultura e os media se podem
transformar em instrumentos de mudança social. Em relação a este assunto, Paul du Gay

38 
Capítulo I – Estudos Culturais

destaca a importância da comunicação mediática global como essencial na organização das


vidas dos sujeitos e na construção das suas identidades:

O crescimento dos meios de comunicação, novos sistemas de informação e


fluxos globais e novas formas visuais de comunicação, tiveram – e continuam a
ter – um impacto profundo nas formas como as nossas vidas são organizadas e
nas formas em como nos compreendemos e relacionamos uns com os outros e a
nós próprios (Gay, 1997:1).

Os media fornecem histórias mitológicas e simbólicas através das quais os sujeitos


constroem (ou não) uma cultura comum, pelo que é necessário compreender, interpretar e
criticar os seus sentidos e a pedagogia contida nas suas mensagens (Kellner, 2003). Assim,
os Estudos Culturais são valiosíssimos, pois fornecem as ferramentas necessárias para
interpretar a cultura (mediática), e consequentemente, a realidade sociocultural.

Com o advento da década de 1980, os Estudos de Género passam a ser centrais para os
Estudos Culturais, tanto do ponto de vista científico e epistemológico, como do ponto de
vista académico (Baptista, 2014). Apesar de terem sido as teorias feministas, desenvolvidas
ao longo da década de 1970, que começaram a questionar as posições e relações
masculinas e femininas na sociedade – o que “contribuiu para destabilizar a representação
tradicional da masculinidade e da paternidade, possibilitando a circulação de novas
significações e incentivando a busca de novas compreensões” (Henninegn & Guareschi,
2002:45) –, com a década de 1980 o interesse feminista (no passado praticamente focado
na diferença social) começa a focalizar-se na posição da mulher numa rede social de
relações de poder, sobretudo no que diz respeito às diferenças de género. Neste âmbito, as
questões colocadas a partir dos Estudos de Género começam a passar pela investigação dos
sistemas de poder que, de alguma maneira, produzem o masculino e o feminino tal como
são reconhecidos. É neste período que se lança a discussão sobre os papéis sociais de
género, depois de se provar que as diferenças biológicas de sexo não são fixas:

Uma compreensão de como os discursos da diferença sexual biológica são


mobilizados, numa sociedade particular, num momento particular, é a primeira
etapa em intervir, de forma a iniciar a mudança (Weedon, 1987:135).

Inicia-se então uma Era mais focada no género e na sua divisão social de papéis, do que na
sexualidade biológica imposta. Trata-se agora de procurar entender homens e mulheres

39 
Capítulo I – Estudos Culturais

com base nos seus comportamentos, atitudes, costumes, valores, práticas e crenças
(Hartley, 2004), dentro de um esquema social complexo que auxilia na construção da
identidade individual dos sujeitos – “o género é sem dúvida a produção e reprodução social
mais elaborada, mais completa e rigidamente dicotómica das identidades e
comportamentos masculino e feminino (…)” (Sedgwick, 1993:250), embora essa “rigidez”
(social e simbólica) tenha vindo a ser diluída com o advento do século XXI, na medida em
que começa a ser questionada a verdadeira “natureza” do género.

Efetivamente, desde os primórdios do Centro de Birmingham que o trabalho desenvolvido


pelo grupo feminista se direcionava para contestar e expor a promoção masculina e o poder
patriarcal. Esta conduta formou parte significativa das análises nos Estudos Culturais,
interferindo no modo como as mulheres ocupam e reposicionam os espaços e as políticas
culturais (Costa et al, 2003:42), e lançando um novo olhar sobre a diferença sexual e o
género. Contudo, a diferença sexual não deve ser a premissa para construir um Feminismo,
mas antes algo para interrogar. Quer isto dizer que a base do Feminismo deve ser a
transformação social das relações de género e a sua interrogação.

As questões de género aliadas aos princípios de organização social, e agora associadas às


relações de poder, passaram a ser ainda mais discutidas no âmbito dos Estudos Culturais na
década de 1990 e com a entrada no século XXI. Estes estudos evoluíram para questões de
identidade e representação, pois a identidade sexual deixa de ser vista como uma reflexão
de um estado natural, para ser encarada como uma representação (Barker, 2000), uma
construção social e até como ideologia.

É neste contexto sociocultural que todo o trabalho desenvolvido pelo movimento feminista
nas décadas anteriores vai sofrer uma reestruturação epistemológica (auxiliada pelos
Estudos Culturais), dando lugar a uma nova leitura do género e da sexualidade, passando
estes conceitos a ser pensados a partir de um outro lugar que não a natureza. A autora que
mais se destaca nesta linha de pensamento é Judith Butler, por trazer à discussão a
possibilidade de pensar a realidade social e cultural de uma outra forma, onde género e
sexualidade deixam de ser definidos pela natureza e passam a ser interpretados como
“performatividade”. Butler (2004) vai implodir com a visão dualista até aqui imposta, e
assume que a diferença entre sexo e género não é mais o caminho a seguir. Para a autora, o
caminho passa pelo “respeito pelos corpos”, cuja liberdade depende de serem livres do

40 
Capítulo I – Estudos Culturais

discurso que os constitui (isto porque os corpos/sexos não são naturais, mas sim
discursivos).

Esta posição de Judith Butler em relação aos Estudos de Género passa a ser generalizada
dentro dos Estudos Culturais, evoluindo na linha do pensamento pós-estruturalista e dando
lugar àquilo que se entende por Pós-Feminismo. Hoje, apesar de ser reconhecer e legitimar
a importância do movimento feminista inicial (tanto nos campos epistemológico e
ontológico, como na prática política), torna-se fundamental valorizar um lugar onde o
sujeito é classificado como ser humano, antes de ser pensado como homem ou mulher.
Esta é a verdadeira essência do Pós-Feminismo. Contudo, é fundamental entender que,
para levar a cabo leituras e interpretações do mundo sociocultural (tanto ao nível do real,
como do simbólico e do imaginário), a investigação tem de se adaptar constantemente ao
contexto espácio-temporal, posicionando-se (sempre que necessário) entre o Feminismo, o
Antifeminismo e o Pós-Feminismo.

Ana Escosteguy (s.d.:11) destaca ainda os anos 1990 como o período em que “o leque de
investigações sobre a audiência procura ainda mais enfaticamente capturar a experiência,
(…) principalmente à luz das relações da identidade com o âmbito global, nacional, local e
individual”, pois com a aceleração dos sistemas de globalização, a construção das
identidade sociais passa a ser o foco central de atenção. Começa agora a surgir uma nova
perspetiva teórica baseada na metodologia etnográfica e na construção de significados pela
audiência. Esta corrente apercebe-se que a audiência é sempre ativa e que o conteúdo dos
media é sempre polissémico ou aberto a interpretação (Morley, 1997).

No final da década de 1990, os Estudos Culturais enveredaram por um percurso cultural


com ainda mais perspetivas da economia política, da análise textual e da receção de
audiências (Kellner, 2003). Assim, na passagem do século XX para o XXI, as áreas mais
abordadas pelos Estudos Culturais são as da identidade, da nacionalidade, do colonialismo
e do pós-colonialismo, do cosmopolitismo, do género e da sexualidade, da etnicidade, da
relação entre as subculturas e as culturas dominantes, da institucionalização, do poder, da
comunicação, do fim das barreiras disciplinares, entre outras (Miranda, 2006). Já Richard
Johnson (1999) indica que nos Estudos Culturais há, atualmente, uma proximidade com
problemas epistemológicos (empirismo, idealismo, realismo) e questões inerentes à teoria
da cultura (economia, materialismo, efeitos diretos da cultura, etc.).

41 
Capítulo I – Estudos Culturais

Desde os primeiros tempos que os Estudos Culturais se têm expandido, progressivamente,


no ensino e na investigação académica, não somente no Reino Unido, mas em todo o
mundo. Este sucesso deve-se sobretudo à capacidade dos Estudos Culturais em serem
incorporados pelas disciplinas mais tradicionais (atribuindo-lhes alguma liberdade no
percurso), mas também devido ao facto da crescente mudança cultural ter influenciado as
práticas académicas dominantes e o próprio caminho da Sociologia (Hall, 1997c).

Atualmente, os Estudos Culturais – com base na teoria, na participação e na transformação


– têm apostado na ação e na prática (que pode ser institucionalizada), de forma a intervir
no contexto social e político. No entendimento de Judith Butler (2004), deve-se mesmo
entender a norma – o que confere realidade ou inteligibilidade aos fenómenos – como
ação, como efeito dos atos, e só assim se torna possível questionar o real. É neste sentido
que os Estudos Culturais ganham credibilidade para interrogar o sujeito e a sua realidade,
criando novas possibilidades de pensamento dentro da teorização política. De qualquer
forma, o contexto da globalização tem acentuado a ideia de que a produção e a reprodução
da sociedade passam inevitavelmente pela conceção da “esfera da cultura como um lugar
de poder” (Ortiz, 2004:8).

42 
Capítulo II – Poder e Discurso

2.1. Interpretações de poder

“O homem entende o poder segundo a sua conceção e vivência da temporalidade.”

Morayma Hernández (2006:215)

De acordo com Jürgen Habermas, para a Filosofia da Consciência existem duas espécies de
relações que o sujeito adota perante o mundo dos objetos manipuláveis e representáveis: as
relações cognitivas e as relações práticas. As cognitivas são reguladas pela verdade dos
juízos e as práticas são reguladas pelo sucesso das ações; já “o poder é aquilo com que o
sujeito atua sobre objetos em ações bem-sucedidas” (Habermas, 2010:268). Esta afirmação
abre caminho a uma definição alargada do conceito de poder, explorada pelos Estudos
Culturais, que tanto engloba o âmbito pessoal – questões relacionadas com o sujeito e a
identidade, a sexualidade e o género, a etnicidade, etc. – como o âmbito social – questões
relacionadas com a representação, a ideologia e a resistência, a cultura mediática, etc.

Para os Estudos Culturais, o poder define a natureza das relações históricas, sociais,
culturais e políticas dos sujeitos. Portanto, quando nos referimos ao processo de
identificação, pesquisa e expansão das identidades e das relações sociais, a conformidade
entre cultura, identidade e poder é a matriz que ajuda a resolver os problemas e
dificuldades (Friedman, 1994), e a apresentar resoluções para os mesmos. Existem várias
formas de o fazer, mas os Estudos Culturais apresentam-se eficazes no fornecimento de
instrumentos e técnicas para que os elementos referidos comuniquem e se articulem.

Durante milénios, os seres humanos conceberam e desenvolveram componentes


socioculturais assentes na construção de significados atribuídos às relações de poder, pois
todas as práticas com significado produzem sentido e envolvem relações de poder,
incluindo o poder de determinar quem é incluído ou excluído dessas relações (Woodward,
1997). Neste contexto, iniciaram-se consecutivas lutas pelo poder que se têm tornado cada

43 
Capítulo II – Poder e Discurso

vez mais simbólicas e discursivas, e muitos destes combates, outrora físicos, são agora
dissimuladamente distribuídos por inúmeros canais. Segundo Stuart Hall (1997), os
discursos e medidas do poder podem diluir-se nas próprias políticas culturais que utilizam
os media como canais de distribuição e controlo.

De acordo com Grossberg (1988), há uma vontade de interpretar discursos individuais e


sociais de forma a assimilar e compreender comportamentos comunitários baseados nas
estruturas e dinâmicas do poder, que se encontram codificadas nos produtos e textos
culturais distribuídos pelas diligências políticas e pelos meios de comunicação social:

Os Estudos Culturais promovem uma política multiculturalista e uma pedagogia


dos media que procura tornar as pessoas sensíveis para como as relações de
poder e dominação que são ‘codificadas’ nos textos culturais (…) (Kellner,
2003:12).

No que diz respeito propriamente à definição do conceito de poder, o autor Raúl Cisneros
(2008) faz uma incursão teórica no seu artigo “O que é o poder?” no qual explicita as
posições de diversos teóricos, ao longo dos tempos. O autor começa por indicar dois
teóricos do século XVII, Thomas Hobbes e John Locke, que apresentam já uma ligação do
conceito de poder com as relações sociais. Para Hobber, o poder é identificado como o
elemento que permite ao sujeito estruturar interesses comuns, que são formalizados num
contrato social, enquanto a ideia central no pensamento de Locke é a de que o poder surge
de uma associação de indivíduos.

Raúl Cisneros (2008) faz depois uma passagem para o século XVIII, referindo que para
Rousseau o poder é um meio de realização dentro das relações sociais, que faz prevalecer
os interesses gerais dos sujeitos através de uma espécie de contrato social. Cisneros (2008)
demonstra que, com o passar do tempo, o conceito de poder vai-se tornando cada vez mais
abrangente, e com Friedrich Nietzsche o poder passa a ser o motor de todos os processos
da sociedade.

Para discutir o conceito de poder no século XX, Cisneros (2008) aponta o nome de vários
teóricos: Max Weber, Talcott Parsons, Michel Foucault, Hannah Arendt, Abraham
Zaleznik, Kenneth Galbraith e Annabelle Hoffs. Em relação ao primeiro teórico, Cisneros
(2008) indica que, apesar de Max Weber (2005) fazer a distinção entre poder legal, poder
tradicional e poder carismático, a sua posição parece centrar-se na ideia de que o poder é a

44 
Capítulo II – Poder e Discurso

imposição da vontade própria numa relação social do mesmo, enquanto Parsons (1979)
indica que o exercício do poder implica que uma unidade de um sistema social (recíproco)
imponha os seus interesses e aí exerça força.

Michel Foucault (1981, 2006, 2010a), que fez da teorização do poder uma das temáticas
mais abordada nas suas obras, afirma que o poder não é exclusivo do Estado, nem dos
governos e instituições, mas que implica a multiplicidade de relações sociais, pelo que
estas relações de poder devem ser entendidas como uma tecnologia ou mecanismo que
ultrapassa a esfera política e se ramifica em toda a realidade social. Isto conduz à
afirmação de que o indivíduo é uma criação do poder, ao mesmo tempo que o poder é
promotor de individualidade. Esta afirmação é apoiada pela reflexão de Hannah Arendt
(1974) que indica que o poder é a forma de atuar do ser humano, embora nunca seja sua
propriedade.

Segundo Cisneros (2008), os restantes teóricos – Zaleznik, Galbraith e Hoffs – apelam às


implicações que as relações de poder e as suas dinâmicas têm nos sujeitos. Para Zaleznik, o
poder implica imposição, submissão e domínio, pois trata-se da capacidade de controlar os
membros de uma organização social, enquanto para Galbraith implica a possibilidade de
impor a vontade própria dos outros. Hoffs (1986) entende que o poder procura afetar e
influenciar outros sujeitos, de forma a fazê-los cumprir as normas de uma organização
social.

Em suma, salienta-se o facto de parecer haver em todos os teóricos referidos por Cisneros
(2008) uma tendência para focar o poder no seio das relações sociais, ao mesmo tempo que
são discutidas ligações com os conceitos de dominação, de subordinação e de resistência.
Isto levou o autor a construir a sua própria conceptualização de poder:

O poder é: força, meio, valor, imposição, direito, capacidade, medida, ação,


relação ou condição de uma organização para atingir ou alcançar as
oportunidades oferecidas pela estrutura institucional em que se suportam os seus
interesses (alcançar metas, evitar obstáculos indesejáveis, impor respeito à
autoridade, controlar as possessões), neste sentido, o poder pode exercer
influência sobre os processos para normalizar e regular a convivência conjunta
entre os seus membros, de forma a evitar a desintegração dos seus componentes
e se desvirtue o sentido de oportunidade em que se fundamenta a razão de ser da
sua existência social (Cisneros, 2008:11-12).

45 
Capítulo II – Poder e Discurso

Em relação a esta definição e às leituras dos restantes autores, Cisneros (2008) indica que é
preciso ter em consideração um conjunto de aspetos que devem ser relacionados com o
entendimento do poder: 1) o poder tem uma origem racional, coexistindo nas sociedades,
que funcionam como grupos organizados, de forma positiva (divisão do trabalho e
organização dos sujeitos) e negativa (ato de dominação); 2) a principal função do poder
não é castigar ou punir, mas ligar os sujeitos numa espiral que implica um contrapoder; 3)
nas organizações sociais, o poder deve ser visto como o elemento vinculador, articulador e
repressor do comportamento humano; 4) o poder não é uma condição livre ou restrita ao
desejo individual do sujeito, pois encontra-se limitado a uma fronteira institucional ou a
uma estrutura que o exerce (sociedade, Estado, grupo, organização, classe); 5) o poder
nunca é propriedade de um sujeito, mas requer a presença simbólica do sujeito para
representar os interesses das relações sociais; e 6) para entender o exercício de poder nas
organizações é necessário compreender as instituições que determinam a estrutura das
próprias organizações.

Em rigor, o poder parece ser algo que não existe por si só; existem sim relações ou práticas
de poder que se constroem e exercem na base das relações dinâmicas entre indivíduos e/ou
grupos de sujeitos. Efetivamente, o poder está relacionado com capital, status e
conhecimento, mas implica sobretudo relações assimétricas entre um sujeito (ou grupo)
que consegue dominar as ações de outro(s) e interferir com a sua liberdade. É esta rede
energética que o Eu cria e impõe ao Outro, e que leva Coco Fusco (1990:77) a afirmar que
“a questão do Outro é uma questão de poder”.

Todavia, é necessário perceber que, da mesma forma que a influência social se produz nos
dois sentidos (do subordinador para o subordinado e vice-versa), também as relações de
poder assim se podem produzir, sobretudo entre dois sujeitos ou elementos (Costa, 1999).
Esta interpretação pode levar muitos a considerarem as relações de poder como limitações
que determinam, à partida, o ser humano, embora para outros o poder seja conotado com o
conceito de liberdade. Trata-se somente de uma questão de perspetiva, pois esta dicotomia
pode ser compreendida de acordo com a distribuição e filosofia do poder, o que não
implica que quem exerce mais poder, conquiste mais liberdade, pois como diz a velha
máxima: “quanto maior for o poder, maior a responsabilidade”. É no sentido desta
dinâmica relacional que “a criação e utilização do poder constituem um dos imperativos

46 
Capítulo II – Poder e Discurso

funcionais fundamentais em qualquer sistema social” (Parsons, 1981:105 in Costa,


1999:11).

O poder torna-se então omnipresente no imaginário coletivo, fazendo com que qualquer
pessoa ou grupo social seja afetado pelas relações de poder. Antonieta Costa apresenta o
conceito de poder nas sociedades da seguinte forma:

A afirmação de que o poder (qualquer forma de poder, do coercivo ao


persuasivo, do autoritário ao democrático) é considerado essencial à organização
social e sua manutenção, apresenta-se como uma crença indiscutível, instalada
no pensamento social e atravessando civilizações, ao longo dos tempos (Costa,
1999:11).

A teoria do poder social nos Estudos Culturais tem assumido assim a diretiva que os
sujeitos não podem escapar às relações de poder, embora as possam modificar e interferir
nelas, na medida em que o poder implica o estabelecimento de uma relação bilateral que é
gerida pelas questões ideológicas e pelas formas de resistência que são aplicadas – “não há
relações de poder sem resistência [e] é essa mesma resistência que ajuda a intensificar o
jogo do poder” (Hernández, 2006:216). Isto implica que, nem o Estado nem os aparelhos
de controlo institucional são suficientes para controlar ou desvanecer as redes de poder que
imperam numa sociedade.

Efetivamente, o conceito de poder é bastante complexo e pode ter consequências negativas


em determinados elementos. Contudo, numa visão otimista é fácil perceber que o poder
não se pode totalizar para sempre, pois segundo Grossberg (2009) existem sempre pontos
de fuga ativos que se podem transformar em linhas de ação e resistência, que combatem os
excessos, sobretudo aqueles que estão presentes nas organizações e estruturas sociais.

De facto, “deter” o poder não implica empregar força. Apesar de existirem hierarquias de
poder que fomentam o domínio de certas organizações culturais, sociais e políticas sobre
outras, através de tecnologias punitivas, não se pode limitar este conceito a um uso de
poder de forma repressora e abusadora. Embora as relações de poder impliquem também
estas dimensões, nas Ciências Sociais estas relações estão sobretudo ligadas ao poder que
intervém de forma produtiva e construtiva nos sujeitos e na sua vida quotidiana, e que lhes
permite criar estratégias de contrapoder:

47 
Capítulo II – Poder e Discurso

Em vez de subscrever a ordem de um poder soberano, evidente, físico, capaz de


reprimir e daí retirar a sua força, a participação [nas sociedades atuais] submete-
se agora à ordem de um poder suave, doce, que em vez de reprimir e impedir tem
uma lógica positiva de indução, uma lógica de produção, uma lógica que nos
exalta como sujeitos. Sob a capa de verdade, o poder que nos intima à
participação é um poder mentiroso. Deixou de ser exercido de uma forma bruta –
pelo uso do chicote, da tortura e do suplício –, e passa a exercer-se através da
interiorização do normal, do racional (…) (Martins & Neves, 2000:56).

Uma apreciação do poder exige uma análise e uma compreensão da sua natureza enquanto
força de equilíbrio nas relações sociais. De facto, o poder opera nas instituições, nas
organizações e no Estado, mas também no quotidiano dos sujeitos, onde eles vivem e
revivem a sua realidade social. É neste tipo de relações que os Estudos Culturais possuem
um interesse permanente, sobretudo na forma como o poder se infiltra, contamina, delimita
e posiciona (Grossberg, 2009) nas atividades dos sujeitos (uns com os outros) e com o
meio onde coabitam.

Segundo Teun Van Dijk (1995, 1996), o poder social poder ser definido como as relações
sociais que se estabelecem entre grupos ou instituições, envolvendo o controlo de um
grupo ou instituição mais poderoso (e os seus membros) sobre um grupo ou instituição (e
seus membros) menos poderoso – “tal poder geralmente pressupõe acesso privilegiado a
recursos sociais valiosos, tais como força, saúde, lucro, conhecimento ou status” (Van
Dijk, 1995:10). O mesmo autor, no seu artigo “Princípios de análise crítica do discurso”
(1993) refere que ao se focar o assunto no poder social deveria ser ignorado o poder
pessoal, a não ser que se trate de uma realização individual do poder do grupo. Contudo, é
necessário ter em consideração todas as vertentes do micro-poder quando se discute o
poder social, pelo que, no contexto deste trabalho, serão consideradas as dinâmicas de
poder entre todas as relações do tecido social que se encontrem presentes nos diversos
contextos, géneros e formas de discurso e comunicação.

Teun Van Dijk (1996) teoriza ainda o conceito de poder, afirmando que se trata de algo
“distribuído” pelos grupos ou instituições, e que é específico de um determinado domínio,
tal como a política, a educação, a lei, os media, os negócios, entre outros. Isto permite que
o poder, por vezes, seja de acesso privilegiado, podendo conduzir a formas de domínio ou
abuso de poder, que podem ir ao encontro de mais ou menos resistência (ou contrapoder).

48 
Capítulo II – Poder e Discurso

Esta visão, que tende a excluir as micro-redes de poder, que também se estabelecem entre
os sujeitos, conduz o autor a uma conceção mais generalista de poder, em que um “grupo
A” exerce poder e controle sobre um “grupo B”, e não vice-versa (Van Dijk, 1989b).

No caso de António Gramsci (2006), em vez de uma teoria do poder, o autor desenvolve
uma teoria da hegemonia, que procura analisar as forças de domínio e as formas como
determinadas forças atingem autoridade hegemónica, ou como essas forças são
ultrapassadas ou derrubadas. Para o autor, o poder hegemónico refere-se, em primeiro
lugar, à dominação ideológica de uma classe social sobre outra. A hegemonia estabelece-se
através de uma relação que considera os interesses de ambas as partes, embora haja sempre
um grupo que domina. No entanto, este domínio não implica forçosamente uma
subordinação repressiva, na medida em que o grupo dominador exerce o poder
hegemónico através de um aparato ideológico moral e até intelectual (ideais e valores que
são produzidos e mantidos através de meios mediáticos, propagandísticos e simbólicos). É
este aparato que dirige o grupo dominado.

Esta leitura de classes apresentada por Gramsci pode ser aplicada a vários grupos e níveis
sociais, o que é salientado por Lull (2003:61) quando afirma que “a hegemonia é o poder
ou domínio que um grupo social detém sobre outros”, e que representa, mais do que uma
forma de poder social, uma forma de ganhar e manter poder através de uma influência
particularmente ideológica.

Já na obra A anatomia do poder de John Kenneth Galbraith (1984), outra conceptualização


de poder surge distribuída por três tipos – poder condigno, poder compensatório e poder
condicionado – e três fontes – personalidade, propriedade e organização. Para este autor,
poder é submissão, seja ela punitiva (poder condigno), compensativa (poder
compensatório) ou persuasiva (poder condicionado), e está limitado ao que somos, ao que
possuímos e como estamos organizados, não contemplando as dinâmicas relacionais do
poder, nem as características construtivas das mesmas. Já Thompson (1959) vê as questões
culturais como questões de poder político e Bourdieu (2000) atribui um caráter simbólico
ao conceito. Para este autor, “o poder simbólico é um poder de construção da realidade
(…)” (Bourdieu, 2000:66-69) que se encontra subordinado a outras formas de poder.

49 
Capítulo II – Poder e Discurso

Bourdieu (2000) parte de uma teoria que interpreta o poder como “campos de força” que se
estabelecem nas relações entre os sujeitos. Nestes “campos de força” – campo social,
campo científico, campo pedagógico, campo artístico, etc. – os sujeitos desempenham
diferentes estatutos (ou lugares sociais) que se vão personificar em papéis sociais. Desta
forma, desenvolvem-se relações que implicam dinâmicas de poder assimétricas e
circunstanciais que se exercem entre dominadores e dominados, através de um aparato
simbólico e normativo demasiado enraizado na sociedade. É este aparato (muitas vezes
presente nos discursos hegemónicos que não se dão como tal) que é responsável por
legitimar ou censurar os sujeitos, os seus comportamentos, as suas atitudes e os seus
corpos.

A leitura bourdieusiana do poder encontra-se no mesmo caminho da de Foucault, que adota


o conceito de “estados de poder” (Foucault, 1984a, 2010a, 2010c) para designar as relações
de força entre os sujeitos. Ambos os autores acreditam que o poder se encontra a todos os
níveis da sociedade e que é impossível viver fora das relações de poder, visto que são elas
que auxiliam na construção do sujeito e da sua individualidade (identidade).

Efetivamente, o conceito de poder pode ser discutido e analisado através de inúmeras


perspetivas (repressivas ou produtivas): culturais, políticas, negociais, governamentais,
institucionais, organizacionais, sexuais, étnicas, individuais, sociais, etc. Todas estas
perspetivas são desenvolvidas de acordo com o objeto de estudo e os interesses dos
analistas ou teóricos. No caso específico desta investigação, interessa sobretudo analisar a
conceptualização do poder e dos seus sistemas de distribuição social teorizados
particularmente por Michel Foucault, na segunda metade do século XX, na medida em que
serão analisadas as relações e dinâmicas de poder que atravessam os sujeitos, em
determinado contexto social.

2.2. Michel Foucault e a teorização do poder

Michel Foucault é um dos mais relevantes pensadores da segunda metade do século XX,
que desenvolveu o seu trabalho à volta do saber filosófico, da Literatura, da crítica social e
da análise do discurso. Contudo, o poder, independentemente da temática (sexualidade,
governamentalidade, individualidade, identidade), e as relações de poder entre elementos

50 
Capítulo II – Poder e Discurso

(sujeitos ou grupos de sujeitos) sempre foram uma constante no trabalho do filósofo.


Assim, Foucault constrói toda uma reflexão em torno do poder ou dos “estados de poder”
(Foucault, 1984a, 2010a, 2010c) – religião, arte, ciência, política, etc. –, defendendo um
conjunto de premissas e núcleos teóricos entre os quais se destaca: biopoder e biopolítica,
poder como não-pertença do Estado, poder-produtividade, poder-resistência, poder-
conhecimento, poder-disciplina e poder-sexualidade.

Tradicionalmente, o poder era visto como um princípio jurídico-político exercendo-se


através de mecanismos de proibição e de sanção. Foucault evita esta aceção e analisa os
processos de poder (ou “estados de poder”) não pelo direito, mas pela técnica, não pela
punição, mas pelo controlo, não pela lei, mas pela normalização (Foucault, 1984a),
apontando o seu exercício para domínios que ultrapassam o Estado e a sua
institucionalização. Para Foucault, são as relações sociais as principais fontes de poder.

Obras originais como Arqueologia do Saber (publicado em 1969), Vigiar e Punir


(publicado em 1975) e A Vontade de Saber (primeiro volume da coleção História da
Sexualidade, completa em 1984) foram fundamentais na introdução das análises da questão
do poder como instrumento capaz de explicar a produção histórica dos saberes e das
relações sociais. O poder deixa assim de ser visto como algo global ou unitário, e passa a
ser interpretado através de formas heterogéneas e em constante mutação, pois as relações
de poder não são algo natural, mas sim uma prática construída contextual ou
historicamente (Foucault, 2010a).

A conceção foucaultiana de poder encontra-se diretamente ligada ao exercício e não à


posse, ou seja, o poder não é algo que alguém detém, mas algo que se exerce em
determinada direção, e que se encontra organizado como uma rede enérgica. Isto leva
mesmo Foucault (2010a:248) a afirmar que “o poder não existe”, pelo menos na conceção
tradicional do conceito. Para o filósofo, são as relações de poder que devem ser
consideradas nas análises pessoais e sociais do mundo contemporâneo:

(…) A ideia de que existe, num determinado lugar, ou emanando de um


determinado ponto, algo que é um poder, parece-me baseada numa análise
enganosa e que, em todo caso, não dá conta de um número considerável de
fenómenos. Na realidade, o poder é um feixe de relações mais ou menos

51 
Capítulo II – Poder e Discurso

organizado, mais ou menos piramidal, mais ou menos coordenado (Foucault,


2010a:248).

A mesma ideia está presente nas palavras de Francisco Ávila-Fuenmayor (2007) que
afirma que, para Foucault:

(…) O poder não é algo que representa a classe dominante; não é uma
propriedade, mas uma estratégia. Neste sentido, o poder não é possuído, exerce-
se e os seus efeitos não são atribuíveis a uma apropriação, mas a certos
dispositivos que lhe permitem funcionar plenamente. Além disso, postula que o
Estado não é o lugar privilegiado do poder, mas que é um efeito de conjunto (…)
(Ávila-Fuenmayor, 2007:15).

Clare O’Farrell apresenta igualmente uma visão do conceito de poder a partir do estudo de
Foucault, concentrando, uma vez mais, o foco nas relações de poder e nos seus limites. A
autora declara que o poder não é uma “coisa” detida pelo Estado, pelas classes sociais ou
por sujeitos, mas antes “uma relação entre diferentes indivíduos e grupos, e apenas existe
quando é exercitada” (O’Farrell, 2005:99). Organizações, instituições ou governos apenas
sustentam as complexas relações de poder ao nível social. Isto implica que todo o corpo
social está contaminado pelas relações de poder e nada nem ninguém está livre delas. A
resistência existe onde o poder é exercido (O’Farrell, 2005) e apenas a resistência serve de
elemento de contrapoder.

De forma a analisar as relações de poder, Foucault propõe um método genealógico que


procura colocar questões e compará-las com a “verdade/realidade”, para aí encontrar a
verdadeira origem do fenómeno (Cisneros, 2008). Em contrapartida, é apenas através do
poder e das suas dinâmicas que um determinado discurso pode ser considerado verdadeiro
ou se instaura como real. O mesmo se aplica em relação ao saber, pois o pensamento
foucaultiano renuncia às conceções do passado – que admitiam que a sabedoria só era
atingida quando se libertava dos efeitos do poder – e abraça a teoria do poder-saber:

Seria talvez preciso renunciar a crer que o poder enlouquece e que em


compensação a renúncia ao poder é uma das condições para que se possa tornar
sábio. Temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente
favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber
estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição

52 
Capítulo II – Poder e Discurso

correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao
mesmo tempo relações de poder (Foucault, 2010c:30).

Neste sentido, Judith Butler – que parte da conceptualização foucaultiana para desenvolver
grande parte do seu trabalho teórico – afirma que poder e conhecimento estão intimamente
relacionados na busca daquilo (ou de quem) é considerado real ou verdadeiro. A autora
afirma mesmo que “conhecimento e poder não são finalmente inseparáveis, mas trabalham
juntos para estabelecer um conjunto de critérios subtis e explícitos para pensar o mundo
(…)” (Butler, 2004:27), onde o poder surge disfarçado de ontologia.

Para Hartley (2004:206), “o poder foi teorizado de duas formas concorrentes pelo
Marxismo e por Foucault, e ambas são influentes nos Estudos Culturais e nos media”. O
Marxismo herdou a abordagem da economia política, vendo o poder como um recurso
escasso que era fruto das forças produtivas (capital e trabalho). O poder era assim algo que
alguém (uma classe) detinha, dominando e reprimindo os outros (outra classe) através do
medo, e utilizando outras estratégias intermédias. Ao contrário das teorias marxistas, que
se baseiam nas relações de poder assentes nas redes económicas e na luta, as teorias
foucaultianas veem o poder dentro de todas as relações sociais, independentemente da sua
natureza. No centro destas relações encontra-se o conhecimento que interpreta o mundo,
legitima os discursos e pode ser usado para controlar os sujeitos (Taylor, 1997) em
determinados momentos históricos – “as estratégias de poder produzem conhecimento”
(Kritzman, 1990:106).

Para Foucault, a verdade (ou o conhecimento válido) reflete-se nas relações de poder na
sociedade e é apanhada nas lutas de poder (apesar de ser produzida fora delas), ao mesmo
tempo que ajuda a conceber os sujeitos como indivíduos. A isto Foucault chamou de
hipótese repressiva do poder: o poder domina os “indivíduos”, mas o conhecimento ou a
verdade liberta-os. Todavia, além de assentar no conhecimento e na verdade, a teoria
foucaultiana do poder centra-se no discurso, na identidade, na sexualidade e na
governamentalidade como lugares de poder.

Ainda no campo das relações sociais, Marshall (1996), baseando-se na teoria de Foucault,
acrescenta que a análise das relações de poder deve ser conduzida de acordo com cinco
pontos principais: 1) os sistemas de diferenciação estabelecidos por leis, tradições,
condições económicas, etc., e que dão primazia a determinadas relações de poder; 2) os

53 
Capítulo II – Poder e Discurso

tipos de objetivos que aqueles que agem sobre os outros pretendem atingir; 3) a forma de
trazer para a ação as relações de poder, seja através da força, do respeito, do
consentimento, da recompensa económica, etc.; 4) as formas de institucionalização (pode
haver uma mistura entre estruturas hierárquicas tradicionais como a família, a
militarização, etc.); e 5) o grau de racionalização que, dependendo da situação, elabora e
legitima processos para o exercício do poder.

Foucault inicia mesmo os seus estudos baseando-se no efeito do poder ou do discurso, pois
ele reconhece que as relações de poder permeiam toda a sociedade. Segundo Woodward
(1997:254) “Foucault vê o poder em toda a parte”, pois ninguém pode estar fora do
exercício do poder, que opera dissimuladamente através de distintos e diversos ângulos. De
acordo com Foucault, a ideia do poder que vem “de cima para baixo” é substituída pela
ideia de que os discursos estão envoltos em relações de poder que o podem legitimar ou
limitar, positiva ou negativamente: “para Foucault, o discurso é visto como o poder de que
nos queremos apoderar” (Martins, 2002:75). Neste sentido, os sujeitos são entendidos
como construções discursivas e produtos de poder, simultaneamente.

Nas suas obras, Foucault estuda como os sujeitos reprimem outros sujeitos, mas também
como se reprimem a si próprios através da norma. A norma ou regra encontra-se dentro das
artes de julgar e tem relação com o poder, e embora não se dê pelo uso da “força”,
acontece por meio de uma lógica quase invisível. Obviamente que a definição de
“normatividade” depende do tipo de teoria social em questão, mas as normas são, por um
lado, um sinal de regulação da normalização da funcionalidade do poder e, por outro, o que
liga os sujeitos e forma as suas bases éticas e políticas (Butler, 2004).

Ao operar dentro das práticas sociais, a norma – como suporte do processo de


“normalização” – é produzida para ter um determinado efeito (é poder). Assim, a norma é
eficaz na produção de sujeitos na prática e, na ótica de Foucault (e de outros teóricos
estruturalistas como Lévi-Strauss e Lacan), a norma pode ou não ser decisiva para os
sujeitos, pois estes são colocados binariamente dentro ou fora dela: “(…) a norma apenas
persiste como uma norma na medida em que é encenada na prática social (…)” (Butler,
2004:48).

54 
Capítulo II – Poder e Discurso

Esta proximidade entre norma e poder, que é identificada por Foucault, limita o sujeito
ontologicamente. O filósofo afirma ainda que a única forma de combater a norma é através
do discurso crítico. No entanto, este discurso crítico encontra-se também ele dentro da
norma regulatória, o que exige uma outra opção epistemológica – que vê a norma e a sua
reintegração como ação – e que ainda será explorada dentro deste capítulo.

Neste sentido, insiste-se neste ponto numa abordagem teórica e interpretativa do poder
como prática social particularmente ao nível micro, pois como indica Sarup (1996:75),
Michel Foucault não se foca na “(…) determinação das estruturas sociais, mas nas micro
operações de poder”. Segundo o ponto de vista de Foucault (1981, 2010a, 2010b, 2010c), as
relações de poder que se reproduzem na sociedade devem ser analisadas numa
microescala, admitindo que o poder é algo que se exerce mais do que se possui. Esta
perspetiva não entende o poder como uma propriedade, mas sim como uma estratégia ou
uma tática que está em constante atividade na dinâmica relacional dos sujeitos em
sociedade:

(…) A microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como
uma propriedade, mas como uma estratégia; que os seus efeitos de dominação
não sejam atribuídos a uma ‘apropriação’, mas a disposições, a manobras, a
táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de
relações sempre tensas, sempre em atividade (…) (Foucault, 2010c:29).

Trata-se, sobretudo, de um poder que intervém nos sujeitos e na sua vida quotidiana, ao
nível “micro”, mas que não é necessariamente possuído por ninguém. Estas estratégias de
poder, presentes nas microrrelações, não condenam os sujeitos, mas antes produzem efeitos
de retorno sobre todos os domínios da sua vida social. Todavia, não é possível omitir que
apesar de tudo “as relações de poder são uma relação desigual e relativamente estabilizada
de forças” (Foucault, 2010a:250).

Neste processo deve-se perceber o que Foucault quer dizer com microníveis de relações de
poder. Trata-se de todas as dinâmicas relacionais que são estabelecidas pelos sujeitos e que
se encontram ao nível da comunicação, da linguagem e dos discursos (Van Dijk, 2003). De
facto, questões relacionadas com o domínio, a desigualdade e o poder entre grupos sociais
são atribuídas ao nível macro das relações sociais. Porém, Foucault interessa-se igualmente
pelos elementos que estão na base destas relações, observando os sujeitos, as suas ações, o

55 
Capítulo II – Poder e Discurso

seu contexto e a sua cognição pessoal e social, pormenorizadamente. Danaher et al


(2000:xiii) declaram mesmo que o micropoder “explica como os discursos definem o
corpo, ou moldam as maneiras pelas quais os corpos são entendidos e funcionam”,
reafirmando a importância dos discursos individuais e sociais na formação dos sujeitos, e
na construção e manutenção das suas relações de poder.

Tudo isto implica que não se pode nunca estar fora do exercício do poder, pois ele é
extensivo a todo o corpo social, na medida em que as relações de poder se comportam
como verdadeiros “estados de poder” e são intrínsecas a outros tipos de relação –
familiares, sexuais, de produção –, onde, de acordo com Hernández (2006), há um
equilíbrio entre condicionante e condicionado. Este equilíbrio afasta a forma única de
poder associada a mecanismos de punição e proibição, e abre as portas a formas múltiplas
de aplicação e contemplação das relações de poder (Foucault, 1981, 2006), que estão
sempre sujeitas a formas de resistência ou de contrapoder.

Para Foucault, a análise do poder exige que se determine quais os seus mecanismos, as
suas implicações, as suas relações e os dispositivos que são utilizados nos distintos níveis
da sociedade. Seguindo esta perspetiva e, ao desenvolver a teorização do poder, Michel
Foucault abordou conceitos como disciplina, vigilância, controlo, punição e repressão,
começando por explorar, primeiramente, comportamentos e atitudes sociais no que respeita
a instituições hospitalares e criminais.

O poder e a sociedade disciplinares são fundamentais no trabalho de Foucault, sobretudo


no que diz respeito ao processo de normalização e à organização do espaço, das atividades
e do comportamento. Para Foucault (2010c) a disciplina não se deve identificar com uma
instituição, pois é um tipo de poder e uma forma de o exercer – uma tecnologia – que
compreende um conjunto de técnicas, procedimentos e instrumentos. Para Foucault as
tecnologias do poder funcionam de acordo com dois mecanismos: um que implica as
formas como as sociedades dominam e regulam os sujeitos, e outro – tecnologias do Eu –
que permite aos sujeitos moldar os seus próprios comportamentos e pensamentos (Danaher
et al, 2000).

Para além de um instrumento de controlo do poder, pode-se considerar a disciplina como


um tipo de organização do espaço e uma forma de controlo de tempo, que implica um

56 
Capítulo II – Poder e Discurso

registo contínuo de conhecimento. Contudo, é necessário ver o poder disciplinar como algo
que constrói o indivíduo e não como algo que o destrói, pois as técnicas disciplinares são
técnicas de individualização das quais o indivíduo é um efeito (Foucault, 2010a). Em suma,
o poder vigilante ou disciplinar funciona como uma máquina, onde a disciplina faz
funcionar um poder relacional autossustentável.

Uma das formas mais rigorosas de disciplina, e onde o poder se manifesta


impressionantemente, é o encarceramento: “a prisão é o único lugar onde o poder pode
manifestar-se na sua nudez e nas suas dimensões mais excessivas, e justificar-se como
poder moral” (Foucault, 1981:11). De facto, é nestes espaços limitados que os sujeitos são
privados de alguns benefícios pessoais e das suas liberdades sociais. O mesmo acontece
com outras formas de repressão social como no caso do ensino, da militarização, do
trabalho fabril e da repressão contra as minorias (jovens, mulheres, imigrantes, etc.).

Para Foucault, os novos discursos médicos deram origem a novas formas de poder e
controlo (Foucault, 2010c). Deste modo, a partir do século XVIII as regras médicas que
assentavam no conceito de “normalidade” sexual criaram estruturas de controlo e
vigilância, de forma a examinarem e curarem os pacientes através da punição (Foucault,
2006). Este conceito evolui no século XIX para a prisão como forma de punição para
sujeitos com comportamentos desviantes (Foucault, 2010c). Paul Taylor destaca ainda que
os castigos físicos foram substituídos pela vigilância permanente quando afirma que:

De acordo com Foucault o poder sobre os criminosos condenados deixou de ser


exercido através de castigos físicos do corpo, (…) moldando o prisioneiro (…)
através de um regime de disciplina e vigilância constante (Taylor, 1997:78).

Os instrumentos e técnicas do poder instituídos nos hospitais e prisões funcionam aqui


como uma representação da sociedade, pois todos os indivíduos estão constantemente
sujeitos às forças do poder que se encontram acima de si. Taylor (1997:79) demonstrou
que, para Foucault, “(…) o poder  disciplinador não é exercido por um grupo ou classe
sobre outro, envolve todos nós”, pelo que existem inúmeras formas de o colocar em
prática, como, por exemplo, a própria arquitetura dos espaços sociais.

Nas sociedades atuais, o poder encontra-se nos próprios sujeitos, vigiando-os em todo o
lado, através de dois dispositivos principais: o panótico e a confissão. Para Martins &
Neves (2000), Foucault considera que o dispositivo pan-ótico dá seguimento àquilo que

57 
Capítulo II – Poder e Discurso

começou por ser uma forma arquitetural das prisões por volta do século XVII e se
transformou num mecanismo subtil de dominação – os sujeitos são os melhores vigilantes,
pois são capazes de orientar o seu comportamento e o dos outros. Quanto à confissão, que
começou por ser extensivamente utilizada pela Igreja Católica noutros tempos, passa agora
a ser explorada pelo Estado, pelas organizações modernas e pelas Ciências Sociais,
particularmente pela Sociologia e pela Psicanálise. Para Michel Foucault, a Psicanálise é
descrita como descendente histórica da confessional e está na base operativa do poder
político moderno, que acaba por manter uma relação com as instituições cristãs e que
desemboca naquilo que Foucault apelidou de “poder pastoral”. A confissão pode assim ser
vista como uma hipótese repressiva, na medida em que o autossacrifício é compelido pelo
poder. Mas pode também ser uma força performativa de expressão falada, ou seja, em vez
de ser uma forma de expor a sua verdade e os seus desejos publicamente, é uma forma de
constituir a verdade própria através do ato de verbalização em si (Butler, 2004).

De facto, Michel Foucault teoriza a arte de punir e de vigiar no regime do poder


disciplinar, mas não se deve examinar este caminho numa vertente exclusivamente
repressiva, na medida em que os efeitos do poder nem sempre devem ser descritos em
termos negativos (Foucault, 2010c). Apesar do poder excluir, reprimir, censurar e
mascarar, ele também produz a verdade/realidade, investindo nos sujeitos e aprofundando-
se nas relações sociais (ajuda a produzir a identidade dos sujeitos, o que eles podem fazer e
como se veem no mundo).

Para Foucault o poder circula numa espécie de rede e não é totalmente monopolizado por
um centro, pelo que, ao operar em todos os níveis da vida social, nem sempre se revela
opressivo. O poder também é produtivo (Foucault, 2010c; Hall, 2001a). Neste caso,
Foucault e Gramsci partilham a mesma conceção de poder: “o poder não pode ser
capturado por pensar exclusivamente em termos de força ou de coerção: o poder também
seduz, solicita, induz, ganha consentimento” (Hall, 2001b:339). Nas palavras de O’Farrell
(2005) o poder é produtivo porque: a) é múltiplo e pode envolver várias relações; b)
produz determinados tipos de comportamento através da regulação; e c) exercer o poder dá
prazer a alguns, enquanto outros têm prazer em resistir-lhe.

Foucault realça, na sua obra Microfísica do Poder (2010a), este caráter versátil do poder,
sobretudo quando é considerado produtivo dentro de uma rede de relações sociais:

58 
Capítulo II – Poder e Discurso

O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceite é simplesmente que ele
não pesa só como uma força que diz não, mas que de facto ele premeia, produz
coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo
como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que
uma instância negativa que tem por função reprimir (Foucault, 2010a:8).

Michel Foucault foi o autor dos conceitos de biopoder e biopolítica que surgiram,
originalmente, no primeiro volume da obra História da Sexualidade (Cascais, 2010). A
biopolítica refere-se “às tecnologias, conhecimentos, discursos, políticas e práticas usadas
para puxar o assunto da produção e gestão de recursos humanos de um Estado” (Danaher
et al, 2000:ix). Com a teorização do conceito de biopolítica, Foucault foca-se no âmbito
duma economia política, “que incluía a vontade de saber sobre a carne e o corpo, a
socialização dos comportamentos procriadores do casal, a pedagogização da sexualidade
infantil, a psiquiatrização do prazer perverso, a histerização do corpo da mulher, o governo
da população e das raças” (Cascais, 2010:39), entre outros assuntos. Já o biopoder, ou
poder sobre a vida como o apelidou Foucault (2006), “analisa, regula, controla, explica e
define o sujeito humano, o seu corpo e comportamento” (Danaher et al, 2000:ix).

A ideia de biopoder veio completar as reflexões sobre as práticas disciplinares (técnicas de


exercício de poder), sobretudo a partir dos séculos XVIII e XIX (Trindade, 2008). Para
Foucault, o poder disciplinar foca-se na criação e no controlo dos sujeitos, utilizando
métodos e técnicas comportamentais e de pedagogia corporal. O biopoder fixa-se na vida,
na morte e na saúde populacional, transformando práticas de higiene, de saúde pública e
sexuais em objetos de grande interesse institucional e administrativo. Neste percurso, a
sexualidade apresenta-se como um fator-chave, pois para além de ser o meio pelo qual os
sujeitos se reproduzem, é também o meio pelo qual eram disciplinados moral e
medicamente (O’Farrell, 2005).

Para Foucault, a disciplina age sobre os sujeitos enquanto o biopoder age sobre a espécie
humana, pois permite a gestão da vida dos sujeitos através de técnicas de poder sobre o ser
biológico (Trindade, 2008). Este processo explora ao máximo as tecnologias do poder,
trazendo para o centro da discussão as formas de resistência contra esse poder. De facto, a
organização do poder na sociedade começa por ser disciplinar para depois seguir a via do
controlo. Se as sociedades disciplinares se restringem a espaços delimitados como prisões,
hospitais e fábricas, as sociedades de controlo encontram-se distribuídas por todo o tecido

59 
Capítulo II – Poder e Discurso

social (Trindade, 2008). Neste caso, o poder evolui de modelo a seguir para elemento
flexível e que se aperfeiçoa com o tempo.

No desenvolvimento da sua teoria, Foucault substitui a visão disciplinar por outra a que
apelidou de governamentalidade. Segundo O’Farrell (2005), o poder governamental não
restringe a liberdade (como acontecia com a disciplina), consentindo antes que esta seja
incorporada em mecanismos que servem de guia para os comportamentos dos sujeitos na
sociedade:

(…) O poder não pode em caso algum ser considerado um princípio em si nem
um valor explicativo que funciona de antemão. O próprio ‘poder’ mais não faz
do que designar um domínio de relações que se devem analisar inteiramente, e
aquilo a que propus chamar governamentalidade mais não é do que uma proposta
de grelha de análise para essas relações de poder (Foucault, 2010b:240).

Em relação a esta questão, Danaher et al (2000) confirmam que a governamentalidade


funciona como uma espécie de política corporal:

Para Foucault a governamentalidade é quanto muito uma questão de ‘política do


corpo’ – as formas de nos conduzirmos, a relação que temos com os nossos
próprios corpos e os outros corpos que constituem a sociedade – como se fosse
uma questão de política convencional (partidos políticos, eleições) (Danaher et
al, 2000:83).

Há uma constante evolução na teorização do conceito de poder em Foucault, que se vai


tornando cada vez mais abstrato. Segundo Jürgen Habermas, Foucault foi entendendo
poder como “interação de partidos beligerantes, como rede descentrada de confrontações
corpóreas e, enfim, como penetração produtiva e submissão subjetivante de um confronto
corpóreo” (Habermas, 2010:250). Esta evolução inverte a dependência da verdade
relativamente ao poder numa dependência do poder em relação à verdade, pelo que “o
poder fundador já não precisa de estar ligado às competências dos sujeitos atuantes e
julgadores – o poder deixa de ter sujeito” (Habermas, 2010:269).

O poder apresenta-se assim heterogéneo e multifacetado, porque se encontra incorporado


em diversas tarefas e inúmeras práticas, e não ligado aos interesses estruturais. É neste
sentido que Michel Foucault começa a desenvolver teorias do poder associadas à
construção da identidade, e com aplicação na sexualidade dos sujeitos.

60 
Capítulo II – Poder e Discurso

Foucault é cético em relação a muitas teorias da sociedade, principalmente no que diz


respeito ao papel do poder na formação do sujeito, pelo que cria as suas próprias
conjeturas. Para Foucault, o sujeito não possui uma identidade adquirida à partida (baseada
no exercício do poder), mas sim uma identidade que é produto das relações de poder
exercidas sobre si e o seu corpo (Sarup, 1996). Quer isto dizer que não existe uma fonte
essencial de identidade e que o Eu se vai construindo, ao longo do tempo, de acordo com
as ideias e os discursos existentes na sociedade. Foucault cria assim o conceito de
genealogia (Taylor, 1997), procurando justificar o conhecimento e as ideias que se aplicam
nas relações de poder dos sujeitos através de exemplos retirados da História.

O que marca e transforma os sujeitos é, segundo a ótica de Michel Foucault, um conjunto


de apreciações que os caracteriza e avalia, e que permite, posteriormente, a hierarquização
de posições dentro da sociedade. Contudo, esta estrutura dinâmica de poderes necessita de
ser regulada por um conjunto de normas que disciplinam os sujeitos (Foucault, 2010c). A
disciplina liga assim cada sujeito a uma identidade, através das relações de subjugação que
são impostas ao seu corpo e que ajudam a fabricar o indivíduo na ordem social (Sarup,
1996; Foucault, 2006; Foucault, 2010ª, 2010b, 2010c). Deste modo, a identidade individual
vai-se constituindo à medida que os conflitos entre discursos e controlo se vão dando.

Segundo Sarup (1996), a linha de pensamento de Foucault, em relação à formação da


identidade, vai-se alterando. Inicialmente, o filósofo considera que a identidade se forma
através das instituições e das suas práticas; depois através dos discursos e as suas práticas;
e depois através do papel que a disciplina exerce sobre o corpo. Todavia, é consensual que
os sujeitos se constroem à custa das relações que estabelecem com os outros, mesmo
quando isso implica a sua exclusão, pois o Eu e o Outro estão implicados um dentro do
outro. A repressão, o controlo, a disciplina e o castigo que os sujeitos aplicam aos outros e
a si próprios ajudam, assim, a estabelecer e desenvolver uma identidade individual que se
reflete nos comportamentos e atitudes sociais. A identidade de cada um está, deste modo,
determinada pelo cunho das diferentes redes de poder que são estabelecidas pelos sujeitos.
Estas relações são “normalizadas” através daquilo a que se chama código moral. Para
Foucault, é através da ética que o Eu se relaciona consigo próprio e reconhece as suas
obrigações morais (Sarup, 1993).

61 
Capítulo II – Poder e Discurso

Todas estas problemáticas levam, muitas vezes, os sujeitos a forjar a sua própria identidade
(em vez de a revelarem), o que conduz Foucault a afirmar que é necessário tomar conta do
Eu através de práticas que o vão alimentando, construindo e controlando. Estas práticas
podem ser funcionais, políticas ou sexuais (Probyn, 1993).

Nas duas últimas décadas do século XX, os teóricos da Sociologia, da Antropologia e dos
Estudos Culturais começaram a revelar interesse na aproximação das teorias do poder às
abordagens socioculturais sexuais e de género. As questões relacionadas com as diferenças
de género, as atitudes sexistas, o domínio e a subordinação (entre homens e mulheres)
começaram a ser analisados, de forma a explicitar muitas das construções sociais
contemporâneas. No caso de Michel Foucault, a análise do poder/saber versus sexualidade
penetra no poder patriarcal, na instituição do casamento e da maternidade, no corpo, na
heterossexualidade imposta e na homossexualidade presente. O modelo marxista que
assentava o poder na luta de classes começa então a ser substituído pelo dos grupos
oprimidos, como,  por exemplo: as mulheres, os grupos étnicos fragilizados, os sujeitos
identificados pela idade, pela preferência sexual e pela identidade.

Michel Foucault rompe com a tradição intelectual modernizando o conceito de poder,


identificando-o com as verdadeiras mudanças trazidas pela força produtiva do capital e da
industrialização. Assim, e apesar de Costa (1997) afirmar que Michel Foucault era um
pessimista no que diz respeito às relações humanas, o filósofo parece ter em consideração a
construção das identidades sexuais em função da evolução do sujeito enquanto indivíduo
sociocultural (bem como as suas relações de poder). Para Foucault, o comportamento
sexual é apresentado como um discurso de verdade, muitas vezes reconhecido pela
sociedade como tal, mas mesmo assim reprimido. Assim, os discursos sobre a sexualidade
e as relações de poder são construídos segundo as teorias contraditórias da “normalidade” e
da “perversão” ou “desvio”. Segundo os autores Dinis & Cavalcanti, para Michel Foucault
a sexualidade é retratada como um:

(…) Dispositivo histórico de poder da modernidade, construído por práticas


discursivas e não discursivas, que produzem uma conceção do indivíduo como
sujeito de uma sexualidade, ou seja, saberes e poderes que buscam normatizar,
controlar e estabelecer verdades acerca do sujeito na sua relação com o corpo e
com os prazeres (Dinis & Cavalcanti, 2008:100).

62 
Capítulo II – Poder e Discurso

Na generalidade, Foucault procurou abranger o mais possível o conceito de poder. Mas, o


facto de se referir que Foucault desenvolveu uma teoria do poder não é assim tão unânime,
inclusive para o próprio filósofo. Foucault (2010a) afirma que não é possível construir uma
teoria do poder, na medida em que isso implicaria considerar que o poder surgiu num
determinado ponto e contexto:

Se o objetivo for construir uma teoria do poder, haverá sempre a necessidade de


considerá-lo como algo que surgiu num determinado ponto, num determinado
momento, de que se deverá fazer a génese e depois a dedução. Mas se o poder na
realidade é um feixe aberto, mais ou menos coordenado (e sem dúvida mal
coordenado) de relações, então o único problema é munir-se de princípios de
análise que permitam uma analítica das relações de poder (Foucault, 2010a:248).

Martins & Neves (2000) são da mesma opinião, afirmando que Foucault não tinha a
intenção de criar uma teoria geral do poder. Contudo, assumem que o filósofo conseguiu
recusar um conjunto de postulados intimamente ligados com esta questão. Para os autores,
Foucault recusa os postulados da propriedade, da localização, da subordinação, do modo
de ação e da legalidade. Em relação ao postulado da propriedade, fica claro que o poder
não é propriedade de ninguém, muito menos de uma classe dominante. Quanto ao
postulado da localização, entende-se que o poder não se cinge ao Estado ou outras
instituições, embora estas sejam lugar privilegiado do seu exercício.

O poder é agora considerado como um conjunto de relações que não obedece a uma
estrutura piramidal, mas sim que atravessa todos os segmentos sociais, recusando o
postulado da subordinação (verdadeiros “estados de poder”). O postulado do modo de
ação, que via o poder atuar por meio de mecanismos de repressão e ocultação da realidade,
é agora substituído por uma imagem também positiva que vê o poder como algo produtivo
através da técnica da normalização. Finalmente, o postulado da legalidade, que legitimava
o exercício do poder através da lei, é agora refutado por Foucault que mostra que existem
outros mecanismos de verificação do poder que não se limitam apenas à legalidade. Em
suma, e nas palavras de Michel Foucault, o poder é concebido como:

(…) Um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de
possibilidades onde vem inscrever-se o comportamento dos sujeitos atuantes:
incita, induz, contorna, facilita ou torna mais difícil, alarga ou limita, torna mais
ou menos provável; no limite, constrange ou impede completamente; mas é

63 
Capítulo II – Poder e Discurso

sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos atuantes, na medida em


que agem ou em que são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações (Foucault,
1984e: 313).

2.3. O estudo do discurso como método de análise das relações de poder

2.3.1. Relações de poder e discurso

Apesar do poder ser exercitado através de outras interações sociais, as estruturas


discursivas expressam e legitimam muitos tipos de poder. A aprovação, a persuasão, o
controlo e a submissão são, muitas vezes, obtidos com base na linguagem e na
argumentação, transformando o discurso em dimensão comunicativa essencial do poder:

Através do discurso, as pessoas ‘aprendem’ como adquirir, manter ou aceitar o


poder, e ainda mais crucial, através do discurso elas desenvolvem e comunicam
as cognições sociais ideologicamente enquadradas que legitimam o poder (Van
Dijk, 1988).

Os estudos do discurso cruzam-se com o conceito de poder, na medida em que se podem


analisar as estratégias de poder mediante uma produção oral, escrita ou icónica. Segundo
Van Dijk (1989b), existem quatro formas pelas quais os discursos se relacionam com o
poder social: 1) o controlo direto de ações é conseguido através de discursos; 2) os tipos de
discurso persuasivo (ex.: propaganda, anúncios) influenciam as ações dos indivíduos
recetores; 3) as ações futuras também podem ser influenciadas por descrições de eventos,
ações ou situações futuras ou possíveis; e 4) os vários tipos de narrativas de influência (ex.:
filmes) podem descrever o desejo (ou não) de ações futuras e podem recorrer a retóricas de
apelos dramáticos ou emocionais.

Por sua vez, Van Dijk (1989b) afirma que existem algumas dimensões do poder que têm
um impacto nos discursos e nas suas estruturas. Estas dimensões encontram-se ao nível
interno das estruturas de poder das instituições, ao nível das relações de poder entre
diferentes grupos sociais e ao nível do exercício do poder pelos membros dessas
instituições ou grupos. Em relação a este assunto, o autor afirma que as formas diretas ou
indiretas de poder são reproduzidas nos e pelos discursos, pois “o poder discursivo envolve
o controlo sobre o próprio discurso” (Van Dijk, 1989b:49).

64 
Capítulo II – Poder e Discurso

Van Dijk (1993) especifica também que o acesso a formas particulares de discurso (ex.:
media, ciência, política) é considerado uma fonte de poder. De facto, quem influencia os
pensamentos, conhecimentos e opiniões dos outros consegue controlar as suas ações
(através da persuasão e da manipulação). Em suma, isto implica que quem detiver mais
influência discursiva tem mais hipótese de controlar os outros. Contudo, as estruturas
discursivas não são manipulativas, exceto em algumas situações comunicativas específicas
e ainda em determinadas modalidades interpretativas (Van Dijk, 2006).

Na sua obra Linguagem e Poder (1989), Fairclough defende que o poder no discurso está
relacionado com participantes poderosos que controlam as contribuições de outros
participantes não-poderosos. Todavia, o autor sublinha que é preciso ter em consideração
três tipos de constrangimentos ou efeitos estruturais presentes na relação entre poder e
discurso: 1) efeitos dos conteúdos (o que é dito ou feito); 2) efeitos das relações (relações
sociais que são colocadas no discurso); e 3) efeitos do sujeito (posições de sujeito ou
identitárias ocupadas pelos sujeitos). Assim, percebe-se que todas as relações sociais de
poder são exercidas nas formações discursivas. O discurso revela-se então aquilo pelo qual
e com o qual se luta, o poder do qual nos queremos “apoderar” (Foucault, 1997).

Uma das consequências associadas a esta problemática é o abuso de poder exercido por um
sujeito (ou grupo) sobre outro(s). Este abuso é, muitas vezes, personificado em formas de
discriminação, na medida em que o poder do discurso facilita a criação de categorizações
que criam fronteiras relacionais. O poder discursivo tem, assim, capacidade de eleger
determinadas ações e comportamentos como líderes: “o poder das palavras é apenas o
poder delegado do porta-voz” (Bourdieu, 1982:105).

Para Teun Van Dijk (1988) os sujeitos necessitam da comunicação e dos discursos para
aprender qual a estrutura social em que coabitam e se relacionam, bem como a sua posição
nessa mesma estrutura social. Os discursos auxiliam os sujeitos a perceber qual o seu lugar
na sociedade, mas também a interpretar as posições de poder. Este procedimento exige
uma mediação cognitiva, pois o poder não tem acesso direto ao discurso e é, na maioria das
vezes, um processo de representação. Em forma de conclusão, Van Dijk afirma que as
relações entre poder social e discurso são complexas, pois:

(…) A todos os níveis de produção e estrutura o discurso mostrará não apenas a


posição poderosa (ou impotente) do orador ou do ouvinte, mas também, através

65 
Capítulo II – Poder e Discurso

do acesso ou representação, as estruturas de poder da sociedade. (…) Este


processo é mediado por cognições sociais e por situações ou modelos de
comunicação que derivam delas. A interpretação, reconhecimento e legitimação
do poder não é uma propriedade imediata do poder, mas é mediada
ideologicamente (Van Dijk, 1988:154).

Michel Foucault também desenvolveu um interesse específico pela relação entre poder,
conhecimento e discurso. Para o autor, o conhecimento associado ao poder assume a
autoridade da verdade e tem o poder de se tornar verdade (Wetherell et al, 2001), criando
assim uma formação discursiva que sustenta o regime do conhecimento. Hartley (2004)
afirma que o poder do conhecimento se encontra distribuído por forças produtivas e
institucionais, manifestando-se pela organização e administração, e não pela força. Ora, o
autor refere-se aos discursos que têm o intuito de orientar os sujeitos. Todavia, muitas
vezes são os discursos do controlo e da disciplina que encaminham os sujeitos, pois “uma
condição importante para o exercício do controlo social por meio do discurso é o controlo
do discurso e da produção do discurso em si” (Van Dijk, 1989b:21).

O tipo de análise que Foucault pratica centra-se, particularmente, na análise das diferentes
formas pelas quais o discurso desempenha um papel importante num sistema de poder.
Neste caso, o poder não é a fonte do discurso, nem a sua origem, “o poder é alguma coisa
que opera através do discurso, já que o próprio discurso é um elemento num dispositivo
estratégico de relações de poder” (Foucault, 2006:253). Para Michel Foucault o poder atua
nos discursos, e os discursos constituem apenas “uma série de elementos que operam no
interior do mecanismo geral do poder” (Foucault, 2006:254). Barker (2000:79) afirma
mesmo que, para Foucault, “os discursos regulam não apenas o que pode ser dito sob
determinadas condições sociais e culturais, mas quem pode falar, quando e onde”.

Uma das formas principais de interpretar a relação entre o poder social e o discurso é
através da análise de discursos. Esta técnica serve, sobretudo, para explicitar e descrever
como o abuso de poder se legitima através do texto e da “fala” dos grupos/instituições
dominantes, e para auxiliar na compreensão sobre o modo como o discurso contribui para a
reprodução desse próprio abuso de poder. Nas sociedades atuais, o poder é cada vez mais
cognitivo, derivando da dissimulação, manipulação e persuasão, de forma a exercer
diversas forças no pensamento e comportamento dos outros. É neste ponto que a análise de
discurso se mostra fundamental. Este tipo de análise não examina apenas o poder que se

66 
Capítulo II – Poder e Discurso

exerce abruptamente, mas revela um especial interesse nas formas de abuso de poder que
influenciam ou controlam as ações dos sujeitos, através da linguagem. Contudo, as
relações de poder veiculadas pelos discursos podem também ser analisadas através de
outras técnicas como, por exemplo, a análise de conteúdo. Pela análise de conteúdo não só
é possível identificar e avaliar os discursos e as formas linguísticas que legitimam as
relações de poder aí presentes, como também é possível analisar o conteúdo desses
mesmos discursos, alcançando o sentido por trás daquilo que é expresso.

No âmbito desta investigação revela-se importante identificar, interpretar e analisar


formações discursivas presentes num jornal local de Ílhavo, através da análise de conteúdo.
Nestes discursos, o principal objetivo prende-se com interpretar relações de poder entre
homens e mulheres ilhavenses, pelo que é indispensável teorizar e relacionar os conceitos
de discurso, poder, identidade(s) de género e media.

2.3.2. Os estudos do discurso

A relação entre poder e discurso mostra-se fundamental no âmbito desta investigação, na


medida em que serão identificados e analisados discursos escritos e icónicos (presentes na
imprensa local) representativos de dinâmicas de poder entre o masculino e o feminino.
Desta forma, o estudo das formações discursivas é uma necessidade, pois elas representam,
transformam e legitimam práticas sociais (Fairclough, 1992; Machin & Van Leeuwen,
2007).

Os estudos do discurso não se limitam à análise de textos, eles encontram-se


tradicionalmente inseridos, desde a década de 1960, em praticamente todas as áreas de
investigação das Humanidades e das Ciências Sociais (Antropologia, Filosofia,
Linguística, Gramática, Pragmática, Semiótica, Análise da Conversação, Sociolinguística e
Psicologia). De acordo com Bell & Garrett (1998), existem vários teóricos que
contribuíram para o estudo da análise do discurso, utilizando distintas áreas de abordagem,
dos quais se destacam: Teun Van Dijk (estudo da interdisciplinaridade da análise de
discurso e de texto no contexto social), Norman Fairclough (estudo da língua, do discurso e
do poder na sociedade), Michel Foucault (análise do papel do discurso num sistema de
poderes), David Greatbatch (análise da conversação), Allan Bell (estudo da linguagem dos
media), Stuart Hall (estudo dos media e sociedade nas suas vertentes crítica e pós-

67 
Capítulo II – Poder e Discurso

moderna), Paddy Scannell (estudo de como a linguagem opera nos media), Gunther Kress
e Theo Van Leeuwen (ambos analisam a dimensão visual de textos impressos), e Judith
Butler (estudo do sujeito constituído por atos discursivos).

No caso específico da presente investigação, as teorias de Van Dijk, de Fairclough, de


Foucault, de Kress & Van Leeuwen e de Butler parecem ser as mais indicadas, na medida
em que, conjuntamente, conseguem criar as condições necessárias para o tipo de análise
requisitada. Os autores revelam capacidade de entender o discurso no âmbito dos Estudos
Culturais, ao identificarem a sua vertente multidisciplinar e ao perceberem o seu caráter
representativo, na medida em que se trata de manobrar conhecimento socialmente
construído da realidade (Kress & Van Leeuwen, 2001), usando a linguagem escrita, oral ou
expressiva como forma de prática social. Paula Saukko afirma mesmo que:

Combinar metodologias é necessário se quisermos continuar a tradição dos


Estudos Culturais de estudar a interação entre a experiência vivida, os discursos
e textos, e o contexto histórico, social e político (Saukko, 2003:23).

No que diz respeito à relação entre discurso e poder, Fairclough, Foucault e Van Dijk
mostram que os conceitos são indissociáveis, independentemente do contexto social em
que se inserem. Para Grossberg (1988) esta relação é o âmago dos Estudos Culturais:

Os Estudos Culturais preocupam-se em descrever e intervir nas formas como os


discursos são produzidos dentro, inseridos e operam nas relações entre as vidas
quotidianas das pessoas e as estruturas da formação social, de modo a produzir,
resistir e transformar as estruturas de poder existentes (Grossberg, 1988:22).

De acordo com Kress & Van Leeuwen (2001) os discursos são formas sociais de
conhecimento ou aspetos reais. Para os autores, este conhecimento da realidade implica um
conjunto de interpretações e legitimações, ao mesmo tempo que é preciso ter em
consideração quem está envolvido, o que está envolvido e onde. Independentemente de
qualquer realização material, é preciso ter em consideração que o discurso existe na
linguagem, e que este é alternativo, pois muda de acordo com a sua necessidade em cada
situação comunicativa. Contudo, os autores supracitados relembram que, apesar do
discurso decorrer num nível de abstração que lhe é próprio, ele é o espelho da experiência
(que não é abstrata).

68 
Capítulo II – Poder e Discurso

Para alguns teóricos, o discurso é uma forma de linguagem e deve ser analisado de acordo
com modelos da linguística. Contudo “o discurso (…) não é apenas um objeto verbal, mas
essencialmente uma forma de interação social” (Van Dijk, 1985b:2), o que implica que se
atribui às formações discursivas um papel nos modelos de cognição. Os discursos são
construídos com base nas condições sociais, e têm capacidade para restaurar, justificar e
perpetuar realidades sociais e políticas.

Atualmente, cresce o interesse científico em determinar modelos de produção e


compreensão nos discursos sociais, sobretudo ao nível das representações presentes nas
memórias, nos conhecimentos e nas crenças dos sujeitos, e que podem ser investigados
através de análises empíricas.

O discurso é mais do que palavras escritas ou faladas, pois, subjacente a estas, existem
conceitos, ideias e problematizações de escala diferenciada. Para Van Dijk (1985c) o
discurso desempenha um papel fulcral na formulação ideológica de conceitos como: poder,
conhecimento, racismo, sexismo, diferença de classes, desigualdades. Para o autor, o
discurso atua nas decisões políticas e sociais, na gestão institucional e na representação das
problemáticas citadas.

Entender o discurso implica analisar e interpretar representações da realidade, e produzir


discurso implica formular modelos comunicativos com base em conhecimento social
partilhado (Van Dijk, 1988), pois o discurso é uma formação histórica ou uma prática do
quotidiano, presente nas singularidades empíricas, embora seja quase invisível. Neste
sentido, Hennigen & Guareschi (2002), na linha de Foucault, vêem os indivíduos como
efeito dos discursos e não como causa, enfatizando a necessidade da multiplicidade de
discursos de forma a interpelar sempre novos sujeitos. Contudo, nas palavras de Paul
Veyne, explicar um discurso ou uma prática discursiva consiste:

(…) Em interpretar o que as pessoas faziam ou diziam, em compreender aquilo


que supõem os seus gestos, palavras, instituições, coisas que fazemos a cada
minuto que passa (…) (Veyne, 2009:19).

Na obra Linguagem e poder (1982), Norman Fairclough sintetiza a relação do discurso


com as estruturas sociais, ao afirmar que: o discurso é linguagem como prática social,
determinada por estruturas sociais e por ordens de discurso socialmente construídas,

69 
Capítulo II – Poder e Discurso

associadas a instituições sociais; as ordens de discurso são formadas ideologicamente por


relações sociais; e os discursos têm efeitos nas estruturas sociais e são determinados por
elas, contribuindo para a continuidade e para a mudança social – assim, o discurso é texto,
interação e contexto. Stuart Hall (1997) diz que qualquer prática social tem condições
culturais ou discursivas de existência.

Já Moisés Martins (2002) vê o discurso como acontecimento, significação e originalidade.


Na opinião deste autor, o discurso “é compreendido por uma teoria da significação, uma
teoria que interroga o nível semântico não sígnico da enunciação, onde se jogam as
dimensões da prática discursiva” (Martins, 2002:25), o que implica que “é efetuado como
acontecimento e compreendido como significação” (Martins, 2002:66). Assim, o discurso
implica sentido e referência, e fala do mundo e do seu locutor, através de dois pontos de
vista: o locucionário (ato de dizer) e o ilocucionário (ato de fazer ao dizer). Van Dijk
(1983) acrescenta que o discurso necessita de ser funcional e de fazer sentido. No caso de
Haraway (1997) os discursos são vistos como “forças materiais-semióticas” que surgem de
um acontecimento histórico específico e que efetuam mudanças que são, simultaneamente,
simbólicas e concretas.

Em suma, parece que há uma tendência para distinguir o “real” do discursivo, em que este
último assume a posição de significado ou representação. Assim sendo, a definição de
discurso defendida por Hartley (2004) é uma das que se revela mais completa no âmbito
desta investigação. Para o autor, o conceito de discurso ultrapassa o de linguagem, pois
implica um ato, de um processo social de reproduzir sentidos:

Os sentidos potencialmente infinitos que qualquer sistema de linguagem é capaz


de produzir são sempre limitados e fixados pela estrutura das relações sociais
que prevalecem num dado tempo e lugar, e que é ela própria representada através
de vários discursos (Hartley, 2004:87).

Hartley (2004:88) defende ainda que “os discursos não são em si mesmos textuais”,
embora possam ser reconstituídos textualmente e postos a circular nos meios da sociedade.
Contudo, para o autor, é óbvio que os discursos são relações de poder, e que o sentido
social a que os indivíduos estão sujeitos (sobretudo nos media) é o resultado de combates
ideológicos entre discursos. Um bom exemplo disto é a luta entre o discurso patriarcal e o
discurso feminista.

70 
Capítulo II – Poder e Discurso

Por último, importa aqui apresentar outra visão fundamental para o decurso deste estudo e
que passa pela interpretação que a autora Judith Butler faz da relação sujeito-discurso-
poder. Em primeiro lugar, a autora reconhece que o que o sujeito é (e o que pode ser)
encontra-se dependente de um poder de regulação que vem das normas e das práticas
sociais. Esta visão leva Butler a procurar respostas para a questão do sujeito e da sua
normatização na área da prática discursiva. Desta forma, a autora vais trabalhar,
particularmente, o regime do discurso e não o regime dos factos ou das verbalizações, na
medida em que pensa o sujeito como elemento constituído, mediado e legitimado por
discursos (e pelas relações de poder que são legitimadas pelas normas sociais).

É a opção epistemológica supracitada que faz Butler não optar nem por uma vertente
construtivista, nem por uma vertente biológica, quando se refere à estruturação do género
no humano. Os estudos de Butler vão no sentido de pensar o humano como um ato
discursivo, corporal e performativo, onde o caminho a seguir deve ser o respeito pelos
corpos – cuja liberdade depende de serem livres dos discursos que os constituem – e não a
diferença entre sexo e/ou género. Assim, o corpo como efeito discursivo encontra um lugar
epistemológico, ontológico e político (Butler, 1993).

É esta visão pós-estruturalista que permite outras leituras sobre a relação sujeito-discurso-
poder, pois é possível questionar o discurso e o não-discurso (o “dito” e o “não-dito”), e os
seus efeitos nos sujeitos. Quer isto dizer que se abrem as portas para um olhar alternativo à
normatização social e aos discursos que a regulam. Deste modo, ter em consideração a
visão de Judith Butler na análise dos discursos que circulam na sociedade torna-se uma
necessidade visceral, especialmente no âmbito desta investigação.

2.3.2.1. Os estudos do discurso em Michel Foucault

Para Michel Foucault, o discurso está relacionado com a linguagem e a prática, e implica
uma produção regulada de conhecimento/verdade que, através da linguagem, atribui
sentido aos objetos materiais e às práticas sociais (Barker, 2000). Contudo, o filósofo
começa por afastar o conceito de linguagem, trabalhando o discurso como sistema de
representação, indo ao encontro daquilo que fazem os Estudos Culturais.

Segundo Wetherell et al (2001) o conceito de discurso está normalmente relacionado com


a linguística, significando passagens relacionadas de escrita ou fala; mas Foucault vai

71 
Capítulo II – Poder e Discurso

atribuir-lhe um sentido diferente. Para Foucault interessam as regras e práticas que


produzem sentido e discursos regulados em distintos períodos históricos. Em suma, trata-se
de juntar a linguagem, ou o que o sujeito diz, e a prática, ou o que o sujeito faz: “nos
escritos de Foucault, [o discurso] é utilizado para descrever atos individuais de linguagem,
ou ‘linguagem em ação’ – as ideias e declarações que nos permitem fazer sentido e ‘ver’ as
coisas” (Danaher et al, 2000:x).

Para Foucault o discurso define e constrói os objetos do conhecimento, influencia a forma


como as ideias são colocadas em prática e usadas para regular a conduta dos sujeitos, e
ainda limita atitudes e comportamentos. Desta forma, Stuart Hall indica que Michel
Foucault entende por discurso:

(…) Um grupo de declarações que fornecem uma linguagem para falar – uma
forma de representar o conhecimento – um tema específico num determinado
momento histórico. (…) O discurso é sobre a produção de conhecimento através
da linguagem. Mas (…) uma vez que todas as práticas sociais implicam
significado, e os significados dão forma e influenciam o que fazemos – a nossa
conduta – todas as práticas têm um aspeto discursivo (Hall, 1992b:291).

Na teoria foucaultiana é o discurso que produz conhecimento e não o sujeito, pelo que o
sujeito acaba por ser produzido dentro do próprio discurso. Segundo Wetherell et al
(2001), Foucault defende que os sujeitos podem produzir os textos, mas encontram-se a
operar dentro dos limites da episteme, da formação do discurso e do regime da verdade de
um determinado contexto histórico-cultural. Esta teoria difere da noção tradicional de
sujeito que pensa o indivíduo como consciente e como fonte de sentido. Para Foucault, o
sujeito é construído através do discurso – “figuras que personificam as formas particulares
de conhecimento que o discurso produz” (Wetherell et al, 2001:80) – e através do lugar
que o discurso constrói para seu significado, sujeitando o indivíduo ao seu poder e à sua
regulação:

“(…) Não podemos separar ou ignorar a relação entre poder e discurso. Relação
que Foucault aborda ao considerar como cada sociedade tem o seu regime de
verdade, a sua política geral de verdade: isto é, os tipos de discurso que acolhem
e fazem funcionar como verdadeiros ou falsos; a maneira como se punem uns
aos outros; as técnicas e procedimentos que são valorizados para a obtenção da

72 
Capítulo II – Poder e Discurso

verdade; o estatuto dos responsáveis em dizer o que funciona como verdadeiro”


(Hernández, 2006:217).

Foucault preocupa-se com a produção de conhecimento e de sentido (e as suas práticas)


dentro do discurso, pois embora existam coisas fora do discurso (existência “real” e
material), nada faz sentido fora do discurso (Foucault, 1972). Para o filósofo só podemos
ter conhecimento das coisas quando elas fazem sentido e é o discurso que produz esse
conhecimento, dentro de um determinado contexto histórico. Em suma, o discurso
contribui para a (re)produção de objetos e de sujeitos na vida social, pois o seu papel é
constituir o objeto de conhecimento, o sujeito pessoal (Eu) e social, as relações sociais e os
quadros conceptuais (Fairclough, 1992).

Foucault rejeita a ideia de um sujeito totalmente independente, pois existem caminhos


entre o sujeito e a experiência, tais como a linguagem ou os seus sistemas (discursos). Para
o teórico, os diversos discursos influenciam, regulam e controlam as ações dos sujeitos,
através de inúmeros campos e eventos, embora a sua unidade básica seja a declaração –
“para Foucault, os discursos são feitos de declarações que estabelecem relações com outras
declarações” (Danaher et al, 2000:35). Portanto, é preciso ter em consideração que o
entendimento dos próprios sujeitos passa sempre pelo filtro de outras ideias, discursos e
instituições presentes na sociedade.

De acordo com Danaher et al (2000) o trabalho de Foucault com os discursos tem


implicações no entendimento da funcionalidade das instituições, vendo estas como um
conjunto de relações relativamente estáveis entre diferentes sujeitos, e entre estes e outros
objetos. São estas instituições que preparam um lugar para o discurso na sociedade,
produzindo-o, mas, ao mesmo tempo, controlando-o, selecionando-o e organizando-o
através das relações de poder.

Nesta linha, Foucault (1997) aponta três tipos de procedimentos de delimitação e controlo
dos discursos: os internos, os externos e outros. Os procedimentos internos funcionam a
título de princípios de classificação, de ordenamento e de distribuição, tratando-se de
submeter outras dimensões do discurso: a do acaso e a do acontecimento – “(…) são os
discursos eles mesmos que exercem o seu próprio controlo (…)” (Foucault, 1997:18). Os
procedimentos externos funcionam como sistemas de exclusão; são procedimentos que
estão ligados à parte do discurso que põe em causa o poder e o desejo. Os restantes

73 
Capítulo II – Poder e Discurso

procedimentos não dominam o poder dos discursos, mas determinam as condições do seu
funcionamento.

O autor, o comentário e a disciplina apresentam-se como princípios de controlo da


produção do discurso, pois têm a capacidade de reatualizar constantemente as regras que
limitam os discursos. Contudo, Foucault (1997) apresenta ainda como grandes
procedimentos de sujeição do discurso a palavra, as apropriações sociais, os grupos
doutrinários e as “sociedades de discurso”4.

Michel Foucault (1997:39) apresenta ainda outros princípios do método de análise dos
discursos: o princípio de descontinuidade, onde “os discursos devem ser tratados como
práticas descontínuas, que se cruzam, que se justapõem por vezes, mas que também se
ignoram ou se excluem”; o princípio de especificidade, onde o discurso deve ser concebido
como “uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos”; o
princípio da regularidade (é na prática da imposição que os acontecimentos do discurso
encontram o princípio da sua regularidade); e o princípio da exterioridade, para “não passar
do discurso para o seu núcleo interior e oculto, (…) mas (…) passar às suas condições
externas de possibilidade, àquilo que (…) fixa as suas fronteiras”. Foucault (1997)
acrescenta ainda que as noções de acontecimento, de série, de regularidade e de série de
possibilidade devem servir de princípio regulador para a análise da limitação do discurso.

Foucault popularizou também a análise do discurso como método. Segundo Veyne (2009)
somos vulgarmente conduzidos a pensar através de estereótipos e de generalidades,
deixando passar despercebidos os discursos, pelo que é preciso um trabalho no domínio da
História para os fazer emergir. Este trabalho Foucault chamou-o de arqueologia e
genealogia.

De acordo com Fairclough (1992), com o conceito de arqueologia o discurso constitui os


objetos e os sujeitos sociais, e qualquer prática discursiva é definida pelas suas relações
com os outros. O conceito de genealogia diz que o poder possui uma natureza discursiva
(ex.: práticas e técnicas de confissão e examinação do biopoder), que o discurso tem uma

                                                            
4
Segundo Foucault (1997:31), a função das “sociedade de discurso” é “conservar ou produzir discursos, mas
para os fazer circular num espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras estritas, sem que os seus
detentores sejam desapossados por essa própria distribuição”.

74 
Capítulo II – Poder e Discurso

natureza política (o poder atua no e pelo poder), e que a mudança social tem uma natureza
discursiva. Em relação a este assunto, Habermas afirma que:

Enquanto a arqueologia do saber (análoga neste ponto à destruição da história da


metafísica) reconstrói a camada das regras que constituem o discurso, a
genealogia (…) explica a proveniência de formações discursivas de práticas de
poder que se entrelaçam ‘num jogo de azar pela denominação’ (Habermas,
2010:249-250).

Importa ainda referir que com a sua crítica genealógica Michel Foucault desenvolveu uma
nova forma de pensar o discurso da sexualidade, criticando as teorias lacanianas que
entendiam as formas culturalmente marginais da sexualidade como culturalmente
ininteligíveis. Ao assentar no pressuposto que o poder possui uma natureza discursiva e
política, a genealogia vai automaticamente entender que a mudança social e,
consequentemente, a sexualidade têm uma natureza discursiva. Este pensamento crítico vai
ser a base das teorias pós-feministas.

Nos seus últimos trabalhos, Foucault alterou a sua noção de discurso de disciplina para
tecnologia (Saukko, 2003), na medida em que ele entende que os sujeitos fazem uma
crítica do discurso que sustenta o seu próprio Eu. Em subsequentes desenvolvimentos do
seu trabalho, Foucault afirma que nem tudo pode ser reduzido ao discurso (ex.: a
exploração capitalista não precisou de um discurso teórico) e que os discursos não são a
única forma pela qual a cultura pode ser apresentada e interpretada (ex.: artes visuais). Já
Habermas declara que fica por esclarecer:

(…) O problema de como os discursos, científicos e outros, se comportam


perante as práticas – se uns regem os outros; se a sua relação devia ser pensada
como a que tem lugar entre base e estrutura ou antes pelo modelo da causalidade
circular ou ainda como um jogo correlativo da estrutura e do acontecimento
(Habermas, 2010:239).

Ainda nesta linha de pensamento, importa referir que Michel Foucault, em vários
momentos, declara a função normatizadora, reguladora e até disciplinar das práticas
discursivas. De facto, são os discursos que regulam a sociedade e constituem os sujeitos
com base numa norma que é produzia para ter um determinado efeito ou o seu contrário (o
que, neste caso, automaticamente exclui o sujeito da norma). É esta visão binária e abstrata
da norma que é partilhada pelos estruturalistas, como é o caso de Foucault, Lacan e Lévi-

75 
Capítulo II – Poder e Discurso

Strauss, e que não permite entender a norma como forma de ação. Mas, quer isto dizer que,
se, por um lado, a norma que naturaliza, torna comum e obriga o sujeito a encaixar numa
norma, por outro lado, ela também pode permitir a criação de outras possibilidades de
construção do sujeito. A abstração normativa não parece ser mais o caminho a seguir, mas
sim a interpretação e aplicação da norma como ação discursiva que permite a criação de
várias outras normas, de várias políticas de individualização reconhecidas (Butler, 2004), e
de diferentes leituras de acordo com o contexto em causa.

Da mesma forma que as normas não devem esgotar as possibilidades do que é possível e
inteligível para o sujeito, também os discursos devem abranger essa liberdade, permitindo
novas interpretações e ultrapassando aquilo que Foucault denominou de aparato de
regulação que conduz à normalidade. Ora, esta nova forma de entender a norma como
prática discursiva polivalente faz bastante sentido na discussão epistemológica e ontológica
do sujeito moderno e pós-moderno, sobretudo no que diz questão à leitura binária de
género que, segundo esta perspetiva, pode ser aberta a novas interpretações que não
limitam o sujeito à sua condição de masculino ou feminino.

2.3.3. O discurso da identidade de género

Na década de 1970 surgiram os primeiros trabalhos na área dos estudos da linguagem de


género que procuravam identificar os usos da linguagem de acordo com o género, mas
igualmente interpretar como as diferentes formas de linguagem (masculina e feminina)
poderiam ser uma ponte para a visão política, social e cultural das relações concretas de
género. Nesta área de estudos, segundo Kendall & Tannen (2003), destacam-se as
publicações originais de Robin Lakoff Linguagem e o lugar da mulher e de Mary Ritchie
Key Linguagem masculina/feminina: com uma bibliografia de compreensão, e a obra
editada por Barrie Thorne e Nancy Henley, intitulada Linguagem e sexo: diferença e
domínio, todas publicadas em 1975. Com estas obras os seus autores procuravam analisar
as relações entre discurso e género, revelando o potencial da função discursiva em criar e
gerir identidades.

Os teóricos do discurso de género começaram a compreender a complexidade das relações


entre estes dois conceitos, na medida em que estes se mostravam essenciais para interpretar
muitas das redes relacionais presentes na sociedade, e que se diferenciavam, claramente,

76 
Capítulo II – Poder e Discurso

entre homens e mulheres. Com o advento da década de 1990, a pesquisa do discurso de


género expandiu-se. Os estudos iniciais, que se focavam, maioritariamente, na linguagem
das mulheres, passam a incluir a dos homens e de outros grupos minoritários (Kendall &
Tannen, 2003).

O discurso de género é assim visto como uma forma de mediação cultural e identitária,
apesar de muitos sujeitos não terem a noção da influência do género na rede discursiva
social. De facto, este tipo de discursos fornece e representa caminhos identitários aos
homens e às mulheres, mostrando-se como uma base de identificação e, ao mesmo tempo,
um constrangimento social. De acordo com Hollway (2001) os discursos tradicionais são
diferenciados no género, pelo que homens e mulheres são posicionados de acordo com os
significados que determinado discurso viabiliza. Para este autor, a diferenciação de género
determina os significados, as práticas e os valores que auxiliam na construção da
identidade individual.

Segundo Kendall & Tannen (2003), não deve haver um foco apenas nos constrangimentos
dos discursos de género, pois existem nestes tendências que auxiliam na resolução das
constantes tensões sociais existentes entre homens e mulheres. Assim, nos discursos de
género percebe-se que nem sempre homens e mulheres se expressam de acordo com o seu
sexo, e ao mesmo tempo que recebem influência do sexo oposto também recebem
influências de outras categorias socialmente construídas como, por exemplo, a raça e a
classe social. Estas tendências ajudam a equilibrar os discursos de género, na medida em
que os sujeitos possuem múltiplas versões da masculinidade e da feminilidade. Deste
modo, a “pesquisa da linguagem e de género tornou-se progressivamente na pesquisa do
género e do discurso” (Kendall & Tannen, 2003:561), contribuindo fortemente para a
construção e desenvolvimento da identidade pessoal e social dos sujeitos.

A relação entre géneros, tratada como questão de identidade, pode ser vista como um
conjunto de dinâmicas entre o Eu e o Outro, pois, de acordo com Possenti (1995:46), “(…)
o discurso que produz [o sujeito] não é um produto exclusivo de um pretenso sujeito uno e
não submetido a condições exteriores”. Isto implica que nos discursos não está presente
apenas a vertente pessoal, do Eu, mas também a vertente social que sugere a influência do
Outro na formação de qualquer identidade individual. Segundo Robin (1977) existem
análises que demonstram a presença de outro discurso no discurso do locutor ou

77 
Capítulo II – Poder e Discurso

enunciador, pelo que quando se procura criar um discurso novo é necessário aplicar
inúmeras alterações no campo de saber que nunca têm origem num só sujeito. A influência
do Outro está sempre presente nas formações discursivas de género, o que faz com que,
muitas vezes, o Eu se dissimule, ou se faça passar por Outro, deixando a sua marca no
discurso do Outro. Desta forma, revela-se quase impossível o surgimento de um discurso
de género absolutamente original.

Em relação aos constrangimentos e, no que diz respeito às diferentes formas de


comunicação de género, Van Dijk (1989b) refere que existem estudos contemporâneos que
mostram a tendência dominante dos homens (por exemplo, dominam as formações
discursivas e têm tendência a interromper os discursos femininos). Roger Fowler (1991)
refere que o movimento feminista procurava, através da linguística, identificar e expor
observações e expressões que marcavam as diferenças de género acentuadamente
masculinizadas; destas, o autor destaca o uso: do pronome masculino para se referir ao
feminino num contexto genérico; de expressões marcadamente femininas, juvenis ou
diminutivas para se referir a mulheres; de títulos e formas de se referir ao estado civil da
mulher; de léxico feminino excessivamente associado a discursos negativos; e de discursos
femininos vulgarmente apresentados de forma mais educada, emotiva e expressiva que os
masculinos.

Estas afirmações de Van Dijk e de Fowler encontram-se no âmago da visão falocêntrica da


sociedade já discutida por Lacan e constantemente mencionada pelas teorias feministas.
Efetivamente, a realidade e as normas (abstratas e práticas) que a normatizam são criadas a
partir da visão de um “phallus” heterossexual (que não implica propriamente a presença de
um pénis, mas sim de um elemento simbólico masculino). Ora, a questão que se coloca
prende-se com o que acontecia se as práticas discursivas e o processo de individualização
se dessem por outro lado que não o da “violência falocêntrica” (ou do corte edipianos se se
preferir)? Será impossível viver fora de uma organização não-masculina? E se outro
modelo surgisse?

Olhando para esta discussão, o problema reside na regra, ou seja, no início do próprio
universo simbólico que regula a realidade de uma maneira e não de outra qualquer. De
acordo com Butler (1993), a diferença sexual é baseada no simbolismo e nas práticas
discursivas, regulando e produzindo os corpos ao serviço da heterossexualidade masculina.

78 
Capítulo II – Poder e Discurso

Contudo, esta construção discursiva encontra obstáculos, pois nem sempre os corpos estão
de acordo com as normas reguladoras. É neste momento que surge a oportunidade de
assumir uma performatividade de género, abolindo o discurso hegemónico que materializa
a diferença sexual ao serviço da solidificação do império falocêntrico. É exatamente neste
caminho que o Pós-Estruturalismo vai repensar o discurso do género, desconstruindo a
própria “realidade” de género e colocando em questão algumas diretivas lacanianas, lévi-
straussianas e foucaultianas.

Segundo Foucault (1997:49) seria difícil e abstrato empreender o estudo do discurso da


sexualidade (ou do género) “sem analisar ao mesmo tempo os conjuntos de discurso
literários, religiosos ou éticos, biológicos e médicos, jurídicos também, onde está em
questão a sexualidade, nos quais esta se acha nomeada, descrita, metaforizada, explicada,
julgada”, pois o sexo transformou-se num ideal regulador que produz os corpos que
governa. É precisamente por isto que as diferenças de género no discurso devem ser
estudadas através de outras perspetivas, sobretudo no que diz respeito às relações de poder,
pois, nas palavras de Morris (1988:85), a tendência para discursos femininos numa posição
de poder trata-se de uma “necessidade política”, mas simultaneamente de um “problema
patriarcal”. Esta ligação entre o discurso de género e o poder foi explorada pelo Feminismo
e por autores estruturalistas, na segunda metade do século XX, mas a verdadeira discussão
sobre as múltiplas possibilidades das práticas discursivas e do género são trazidas pelas
teorias pós-estruturalistas e, particularmente, pelo Pós-Feminismo.

De facto, é o movimento pós-estruturalista que coloca questões que se prendem com a


verdadeira inteligibilidade do sujeito, ou seja, quando este sai da subjugação das políticas
da verdade, quando este sai do discurso normatizado. Neste campo epistemológico e
ontológico há uma verdadeira urgência em interpretar a relação entre inteligibilidade e o
humano através das questões: O que é possível ser? O que é proibido ser? O que constitui a
vida, o humano? O que faz a vida do Outro suportável e inteligível? Ora, o discurso que
insiste na definição binária do género exerce uma operação regulatória de poder que
naturaliza a hegemonia desta forma de organizar o tecido social, dificultando o pensar de
outra forma e impedindo a implosão do próprio conceito de género (Butler, 2004).

Para Judith Butler (1990, 1993, 2004), não está em causa o discurso de género dirigir-se ao
ser-se homem ou mulher, mas o facto de reduzir os sujeitos a isso mesmo, ou seja, não se

79 
Capítulo II – Poder e Discurso

deve pensar o género apenas como uma forma discursiva de fazer o masculino e o
feminino. Mais uma vez, é necessário seguir o caminho do respeito pelos corpos, pela
diferença, pelo supostamente (in)concebível, libertando o sujeito de normas discursivas
que não respeitam a singularidade (sexual) do Outro.

Outra das dimensões a considerar no nosso estudo é a da representação mediática. De


facto, o discurso de género representa uma determinada prática social, presente num
determinado contexto, pelo que a análise de um discurso deste tipo deve ter em
consideração três aspetos particulares: representações e recontextualizações da prática
social; construções identitárias (aspetos individuais ou sociais da identidade, e papéis
identitários); e relação entre locutor/enunciador e leitor/interpretador (Fairclough, 1995).
Isto implica que qualquer discurso de género, sobretudo o presente nos meios de
comunicação, se encontra, simultaneamente, a recriar identidades e a representar diversos
tipos de relações. Em suma, e fazendo uso da palavras de Danaher et al, as coisas não são o
que parecem ser, pois:

(…) São transformadas no que são pelas normas e práticas sociais, pelas
instituições e discursos que regulam o nosso comportamento, e pela forma como
nos regulamos a nós próprios. E o que isto significa é que é sempre possível
regularmo-nos a nós próprios de diferentes maneiras, para viver de outra forma
(Danaher et al, 2000:136).

2.3.4. O discurso mediático

A linguagem nos meios de comunicação modernos deixou de ser vista em termos da


distinção linguística tradicional entre os conceitos de discurso e de texto. Hoje, os
discursos dos media são os que mais afetam o quotidiano dos sujeitos e quando se fala da
sua análise é necessário ter em consideração a diversidade de “textos” discursivos, tais
como: os escritos, os falados, os ouvidos, etc. De facto, os media são uma fonte riquíssima
de dados, que influenciam e representam os sujeitos, e podem dizer muito sobre
estereótipos e significados sociais: “os media refletem e influenciam a formação e
expansão da cultura, política e vida social” (Bell & Garrett, 1998:3).

Quando se procura fazer uma análise dos discursos dos media podem-se seguir duas
vertentes: uma textual, que procura identificar sistemas de significação, representação ou
relacionais; e uma sociocultural, onde se encontram as dinâmicas de poder e onde são

80 
Capítulo II – Poder e Discurso

discutidas as questões ideológicas (Montgomery, 1985). Se os “textos” discursivos são


criados pelos sujeitos e para os sujeitos, num determinado contexto, Arthur Berger (1997)
vê como pontos fulcrais da análise dos media, por um lado, os textos e seus criadores, e por
outro, a sociedade e a sua audiência, embora todos façam parte de um sistema aberto e
comunicante, como se pode observar com o esquema representado na figura 1.

Textos Sociedade

Media
(meio de comunicação)

Criadores Audiência

Figura 1 | Pontos fulcrais da análise dos media (adaptado de Berger, 1997:15)

De facto, esta é a base para a análise de qualquer discurso mediático, que depois pode
partir em qualquer direção, de acordo com aquilo que o analista pretende estudar, sejam
relações ou produções de poder, níveis de interesse ou autoridade, perceções ideológicas,
práticas de representação, entre outros.

Antes da década de 1970, a análise do discurso dos media era feita através de descrições
isoladas, estando limitada às áreas disciplinares da semiótica e da retórica (Van Dijk,
1985c). É também por esta altura que começa a ser utilizada a análise de conteúdo como
técnica de análise, pois cresce o interesse pelos princípios de descrição e pelas bases
estruturais de sentido presentes nestes discursos, sobretudo ao nível qualitativo. A partir da
década de 1970, a análise evolui para uma vertente mais global e unificadora, e os métodos
e princípios expandem-se.

De acordo com Hodkinson (2011), os estudos dos media possuem aproximações teóricas à
semiótica, à narrativa, ao género, à análise de discurso e à análise de conteúdo. Destas, as
técnicas de análise socioculturais mais recorrentes nos textos dos media são a análise
crítica do discurso e a análise de conteúdo, que permitem interpretar valores, normas e
produtos da cultura de uma determinada sociedade que representa ou é representada nos

81 
Capítulo II – Poder e Discurso

media. Contudo, é importante perceber que, independentemente da técnica utilizada, os


discursos mediáticos estão sujeitos a leituras variadas, pelo que dependem das perspetivas
e posições dos seus produtores e recetores. Assim, é fundamental que a análise de
discursos mediáticos utilize uma multiplicidade de perspetivas e de métodos, pois, como
afirmam Dines & Humez (2003:13), “o produto da cultura dos media requer leituras
textuais multidimensionais para analisar as suas várias formas de discurso, posições
ideológicas, estratégias narrativas, construção de imagens, e efeitos”.

Na década de 1980, o Centro Contemporâneo de Estudos Culturais (CCCS), sob a direção


de Stuart Hall, tomou uma posição em relação à análise dos media, abandonando a
tradicional análise quantitativa do estímulo-resposta, e optando por outra vertente mais
qualitativa e sociocultural:

[A nossa] abordagem define os media como a maior força cultural e ideológica,


ficando numa posição dominante em relação à forma como as relações sociais e
os problemas políticos e a produção e transformação de ideologias populares na
audiência visada [são definidos] (Hall, 1996a:118).

A partir deste momento, a análise de discursos presentes nos media começa a explorar as
relações existentes entre os discursos de poder que circulam nas narrativas dos espaços
públicos, e o que inclui as fantasias, os símbolos e os mitos pelos quais os sujeitos vivem a
sua vida em relação aos outros (Johnson et al, 2004). Os discursos que circulam nos media
complexificam-se, pois são fruto da cultura vivida pelos sujeitos, pelo que nunca podem
ser estudados isoladamente das práticas discursivas e socioculturais. Deste modo, juntando
os textos mediáticos aos contextos da sua produção e receção, pode-se compreender,
detalhadamente, como as relações sociais e os seus processos se realizam a um micro-
nível, através das práticas rotineiras, ou então pode-se perceber como as práticas
discursivas presentes nos media auxiliam na mudança sociocultural. Em suma, Teun Van
Dijk afirma, a este respeito, que:

O discurso não é mais uma ‘variável interventiva’ entre instituições mediáticas


ou jornalistas por um lado, e audiência por outro, (…) mas tem um produto
cultural e social central e manifesto pelo e através do qual os significados e as
ideologias são expressos ou (re)produzidos (Van Dijk, 1985c:5).

82 
Capítulo II – Poder e Discurso

Tudo isto implica que os discursos dos media podem influenciar o conhecimento dos
sujeitos e as suas representações. De facto, se os recetores não tiverem informação
alternativa que contra-argumente ou resista às estruturas mediáticas, estas podem ter um
efeito complexo e determinante sobre a cognição social dos sujeitos (Van Dijk, 1989a),
formando opiniões e ideias.

O poder presente nos discursos dos media expressa-se através da mediação e da


representação. Estes discursos, de índole pública, alcançam um leque variado de sujeitos e
permitem que o poder seja difundido, definido e legitimado. Assim, a análise deste tipo de
discursos permite também perceber como as relações de poder na sociedade se refletem a
partir da forma como os media retratam determinados assuntos. Esta análise pode recair
sobre duas vertentes: o texto escrito (ou falado) e o processo envolvido na produção do
texto. Contudo, o principal objetivo da análise do discurso mediático (quer ao nível
linguístico, quer ao nível sociológico) prende-se com o registo de componentes ideológicas
da linguagem, com a problematização das relações de poder na sociedade (Cotter, 2003) e
com o(s) sentido(s) do conteúdo. Interessante aqui é a natureza do poder, ou mais
propriamente das relações de poder, que nem sempre são claras para o recetor, mas que a
investigação procura compreender.

A informação presente nos media deve dar a impressão de que reproduz a realidade, mas
no caso específico da imprensa escrita o poder do discurso vai prevalecer na sua
capacidade em conseguir construir uma “ilusão” da realidade. Contudo, o poder do
discurso tende a dar lugar aos discursos do poder que recorrem aos media como veículo
para atingir os seus destinatários. Segundo Van Dijk (1989b), os textos mediáticos
impressos são os mais exemplificativos desta situação, pois representam um papel
fundamental na comunicação pública, mostrando-se superiores aos textos televisivos
(Jensen, 1986), e elevando a sua capacidade de influência e de representação.

83 
 

 
Capítulo III – Identidade e Género

3.1. A construção da identidade na contemporaneidade

“Pensa-se em identidade sempre que não se tem a certeza de onde se pertence (…).”
Zygmunt Bauman (1996:16)

3.1.1. Os Estudos Culturais e a discussão da teoria da identidade

O conceito de identidade está muito presente na sociedade atual, embora existam várias
vertentes na sua abordagem conceptual. Este destaque dado às questões identitárias é
assumido por Mercer (1990) como produto de um momento de crise sociopolítica mundial
pós-moderna. Contudo, o conceito de identidade é essencial para os sujeitos, como se pode
ver através das palavras de Weeks:

Identidade é uma questão de pertença, sobre o que temos em comum com


algumas pessoas e o que nos diferencia dos outros. Basicamente, dá-nos um
sentido de localização pessoal, o núcleo estável da nossa individualidade. Mas
[identidade] são também as nossas relações sociais e o nosso complexo
envolvimento com os outros, e, no mundo moderno, estes [conceitos] têm-se
tornado cada vez mais complexos e confusos (Weeks, 1990:88).

Nas últimas décadas, os Estudos Culturais têm direcionado o seu interesse para as questões
de identidade, procurando perceber como as relações de poder e os discursos culturais que
as instituem (especialmente os mediáticos) são determinantes na sua compreensão. Este
pensamento vai ao encontro das teorias de Bourdieu e de Foucault, que analisam a
articulação das práticas com as relações sociais e as relações de poder: “as práticas sociais
ocorrem no interior de uma estrutura com uma lógica social específica, onde se jogam (…)
relações sociais assimétricas, de mais ou menos poder, ocupando os indivíduos
determinadas posições de força” (Martins, 2011:64). São estas dinâmicas que, aliadas a
outras forças, permitem criar e desenvolver a(s) identidade(s).

85 
Capítulo III – Identidade e Género

Nogueira (1996) e Burr (1995) partilham a ideia da existência de uma multiplicidade de


discursos que se combinam para produzir a identidade de um sujeito, que se origina no
meio social. Para os autores, as identidades são adaptáveis e socialmente construídas
dentro do discurso: “as diferentes versões dos discursos disponíveis combinam-se entre si,
de forma a construírem a identidade” (Nogueira, 1996:118).

Ao confrontar o pensamento de Stuart Hall (1996d) com as afirmações de Bourdieu,


Foucault, Martins, Nogueira e Burr, percebe-se que há uma tendência para defender que as
identidades são construídas dentro de formações e práticas de discurso, e produzidas num
contexto histórico e institucional específico, ao mesmo tempo que emergem de
determinadas modalidades de poder. Esta posição é prevista e difundida pelos Estudos
Culturais.

De facto, os Estudos Culturais são reconhecidos pela sua capacidade crítica e multicultural,
no que diz respeito à discussão teórica do conceito de identidade, ao reconhecerem que
“(…) a cultura fornece material e fontes para as identidade e (…) os artefactos culturais
são apropriados e usados para produzir identidades individuais no dia a dia” (Kellner,
1997:96). Neste sentido, os Estudos Culturais permitem que a identidade individual seja
vista a partir de vários prismas, que são enumerados por David Abbott (1998): segundo os
estruturalistas, o nosso sentido de identidade é produto de fatores sociais; para os
interaccionistas  o indivíduo é socialmente construído através das interações que cria, e a
identidade é concebida em termos de classe, etnia e género, onde identidade, meio social e
cultura possuem uma relação próxima; e os pós-modernos criticam as teorias modernas que
limitam a classe, a etnia e o género aos constituintes da identidade do indivíduo.

Efetivamente, diferentes períodos civilizacionais conduzem os pensadores por caminhos


teóricos distintos no que diz respeito às conceções identitárias. Jonathan Friedman (1994)
distingue três estruturas da sociedade na definição e estabilização do conceito de
identidade: uma estrutura tradicional, uma moderna e uma pós-moderna. Assim, o autor
distingue: uma estrutura tradicional da identidade que é composta por uma cultura
estereotipada com valores fixos; uma estrutura moderna da identidade, composta por uma
cultura tradicional e racional; e uma estrutura pós-moderna da identidade composta por
uma cultura civilizacional elitista, racional, impessoal e moralista, que parte de uma
relação forte entre o Eu e o Outro.

86 
Capítulo III – Identidade e Género

Segundo Lawrence Grossberg (1996b) o conceito de identidade é fundamental para o


desenvolvimento da Modernidade, sobretudo nos discursos teórico-políticos. Para o autor,
a identidade como problemática moderna assenta numa lógica tripla – a da diferença, a da
individualidade e a da temporalidade – que foi adotada pelos Estudos Culturais, sobretudo
na década de 1990. Contudo, para que os discursos da identidade estejam implicados nas
formações de poder, Grossberg (1996b) propõe uma alternativa que se centra na lógica do
“Outro”, de forma a entender como o indivíduo lida com a diferença (ou o Outro), num
determinado contexto espácio-temporal, e quais os discursos que resultam destas
dinâmicas sociais de poder.

As mudanças estruturais que transformaram as sociedades modernas no final do século XX


colocaram em questão velhas teorias da identidade. A estabilidade social e a unificação
identitária são substituídas pela fragmentação do sujeito (Hall, 2001c), enfraquecendo as
tradicionais conceções do sujeito fixo. As palavras de ordem são agora fragmentação,
incorporação, diversidade, multiculturalidade. É neste sentido que Hall (1996d) afirma que
as identidades deixam de ser entendidas como algo unificado e singular, pois são
fragmentadas, múltiplas, intersetáveis e em constante processo de mutação:

(…) As identidades nunca são unidas e, no final dos tempos modernos, cada vez
mais fragmentadas e fraturadas; nunca singulares mas construídas multiplamente
através de diferentes, mas regularmente intersetáveis e antagónicos discursos,
práticas e posições. Elas estão sujeitas a uma historicização radical, e estão
constantemente em processo de mudança e transformação (Hall, 1996d:4).

Stuart Hall (1990a) propõe dois modelos de produção de identidades: o primeiro assume
que qualquer identidade possui conteúdo essencial e intrínseco que é definido por uma
origem ou uma experiência comuns5; o segundo modelo destaca que não é possível a
existência de uma identidade totalmente constituída ou distinta, recusando a existência de
uma identidade fechada, na medida em que a identidade é um processo incompleto.

Lawrence Grossberg (1996b) acrescenta que a identidade é definida através das relações
que provocam efeitos de diferença, destacando o facto de as identidades serem múltiplas e
diferentes, à medida que vão articulando fragmentos dispersos. Esta é uma visão pós-
estruturalista que analisa a identidade e a unidade estrutural como algo desconstruído,
                                                            
5
Entenda-se aqui uma história e uma cultura partilhadas socialmente pelos indivíduos.

87 
Capítulo III – Identidade e Género

complexo, contraditório e fragmentado, baseado na diferença e nas relações de poder. Em


suma, “a conceção de uma identidade unificada, que estabilizava o mundo social, ruiu; as
suas paisagens culturais de classe, género, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade estão
fragmentadas (…)” (Hennigen & Guareschi, 2002:49), e é cada vez mais difícil encontrar
uma definição singular que reúna o consenso das diversas propostas teóricas.

De facto, uma das reflexões mais importantes do pós-modernismo é “a negação da procura


da verdade universal e absoluta” (Nogueira, 1996:237). Aqui reside a conceção plural e
fracionada da identidade que vê o modelo de conhecimento e verdade dependente das
relações sociais que se estabelecem entre os sujeitos, que tanto levam em conta dimensões
racionais como emocionais. Assim, a Pós-Modernidade abriu as portas à multiplicação de
caminhos teóricos sobre a identidade, os quais se ancoram nos estudos sobre representação
(aqui bastante associados à cultura mediática) de género, de sentido, do simbólico, de
contexto, da experiência, da psicanálise, das formas discursivas, das relações de poder,
etc., e que dependem da visão dos diversos teóricos que trabalham nestas áreas.

Para Bourdieu (1980), a identidade é representação e vontade: representação porque a


identidade existe pelo reconhecimento dos outros; vontade porque é reconhecida e
objetivada pelo próprio sujeito; é um ato de adesão pessoal6. Todavia, é preciso ponderar
que a representação também é autorrepresentação e que a vontade também é a vontade do
Outro. Assim, identidade é representação e vontade, porque é, simultaneamente, um ato da
razão (representação) e das emoções e afetos (vontade).

Moisés Martins (1996) ultrapassa o conceito de representação e reconhece que a identidade


é organizada pela dimensão simbólica, pois os significados da identidade são simbólicos e
nunca simplesmente indicadores objetivos ou subjetivos. Já Manuel Castells (1997) define
identidade como a fonte de sentido e experiência dos sujeitos, com base nos atributos
culturais:

Por identidade, referindo-se aos atores sociais, entendo o processo de construção


do significado na base de um atributo cultural, ou um conjunto relacionado de
atributos culturais, ao/s qual/quais é/são dada prioridade sobre outras fontes de
sentido. Para um determinado indivíduo, ou para um ator coletivo, podem existir
                                                            
6
Esta discussão foi iniciada por Arthur Schopenhauer (2005), no século XIX, na sua obra O Mundo como
vontade e representação (quatro volumes), que afirma que mundo como representação é a “objetividade” da
vontade.

88 
Capítulo III – Identidade e Género

uma pluralidade de identidades. Contudo, tal pluralidade é uma fonte de stresse e


contradição, tanto na autorrepresentação como na ação social (Castells, 1997:6-
7).

Na visão de Harvie Ferguson (2009), a definição de identidade está dependente das formas
de identidade que existem e que funcionam em pares de oposição (particular e categorial,
singular e plural, objeto e sujeito, etc.), através de uma visão estruturalista e pluralista do
conceito, que fica dependente da sua contextualização. Esta teoria vai ao encontro da de
Machin & Van Leeuwen (2007), que entendem que a identidade está dependente do
contexto, que, por sua vez, é adaptável e flexível ao longo da vida dos sujeitos.

No caso de Réne Kaës (2005) a noção de identidade constrói-se no campo da Psicanálise


entre duas vias conjuntas: através de representações e de declarações próprias dos sujeitos,
e através de representações que são reenviadas ao grupo exterior (ao Outro). Desta forma,
cada sujeito é estruturado por vários níveis de identidade, afastando-se assim das teorias da
identidade fixa e imutável (a que uma vertente da Psicanálise pode conduzir). Por seu
turno, já Freud entendia a identidade como um processo psíquico e simbólico do
inconsciente, acabando com a visão de uma identidade fixa e unificada que provém do
“Penso, logo existo”7 de Descartes.

Para Lívia Simão (2006) são as perspetivas contemporâneas da Psicologia (ou o chamado
“construtivismo semiótico-cultural”), que se focam no processo individual da identidade,
em que a relação Eu-Outro se forma e desdobra no espaço cultural. Todavia, para outros
autores como Stojkovic (2005), a identidade envolve ainda a inter-relação entre várias
outras áreas antropológicas, para além da Psicologia, como a Sociologia, a História, a
Linguística e a Arte, de forma a sustentar a autoconsciência pessoal e social.

Esta influência diversa que a identidade sofre, implica que o conceito de identidade seja
visto, muitas vezes, como contraditório e problemático. Trata-se portanto de um conceito
que se constrói com base na diferença, na fragmentação, no hibridismo e na dispersão (Isin
& Wood, 1990). Todos estes conceitos enfatizam a relação do Eu com outras identidades
externas. Contudo, é preciso não ignorar que os indivíduos também possuem disposições
duráveis e permanentes. Assim, a fluidez e a multiplicidade de uma identidade não deve
dispensar a solidez e a relativa permanência.
                                                            
7
Tradução nossa de Cogito, ergo sum.

89 
Capítulo III – Identidade e Género

Já Zigmunt Bauman (1996) possui uma teoria particular que admite a construção de uma
identidade em oposição a outras identidades, que são criadas mediante um código cultural.
Ora, esta teoria vem, mais uma vez, ao encontro da formação do Eu no cruzamento e
interação com o Outro. Todavia, é necessário ter em consideração que esta relação
identitária tanto pode ser pacífica como fluida ou então imposta, conduzindo a um abuso
do poder. Em ambos os casos há uma troca de elementos socioculturais que permite a
construção da identidade individual, embora os meios e os resultados sejam distintos.

Isin & Wood (1999) expõem a opinião de Stuart Hall que defende que a identidade é um
conceito político, pelo que é preferível empregar o conceito de identificação,
considerando-o um processo contínuo ao longo da vida do sujeito e que nunca se
estabiliza, se fixa ou se unifica. Contudo, é importante perceber que “as posições que
tomamos e com as quais nos identificamos constituem as nossas identidades” (Woodward,
1997:39).

Apesar da construção da identidade ser um processo que passa pelo sujeito, este processo
não deixa de possuir um contexto social e cultural, que prevê um relacionamento
(harmonioso ou conflituoso) com outras formas identitárias. Neste sentido, Sidiropoulou
(2005) afirma que a procura individual pela individualidade é um processo de
autodescoberta sempre realizado em relação à sua vida interna e à comunidade, ao seu
coletivo, e às suas identidades. Já Kathryn Woordward (1997) vê a identidade como algo
relacional onde a diferença é imposta pela marca simbólica em relação aos outros.

A discussão em torno do conceito de identidade apresentada por todos os autores referidos


demonstra o caráter complexo e pluridisciplinar da temática, onde a identidade é teorizada
dentro da representação, do simbolismo, do discurso, da relação de opostos, e da
contextualização espácio-temporal, que sofre mutações constantes. Deste modo, e tal como
ficou visível através da discussão teórica, o conceito de identidade pode ter diversas
definições e possuir distintos contornos, de acordo com os interesses, a formação e o
contexto de cada investigador. Todavia, os autores parecem apostar no sentido de uma
evolução conceptual.

Se inicialmente há uma tendência para o centralismo do sujeito (visão tradicional), onde a


identidade é estável e alheia a modificações externas, com o tempo as relações com o meio

90 
Capítulo III – Identidade e Género

e com o Outro vão abrindo as perspetivas teóricas que veem já a identidade como sinónimo
de transformação e mudança. Para esta visão moderna contribuíram os estudos no foro da
Psicanálise, da representação e da busca simbólica das relações entre os sujeitos. Em suma,
o conceito de identidade perde a sua natureza estável e imutável, pois “(…) os indivíduos
não estão petrificados numa identidade” (Singly, 2003:79).

As identidades são múltiplas e móveis graças a um processo de mudança que ocorre,


constantemente, nos indivíduos, e que possibilita a articulação de elementos que auxiliam
na construção da(s) sua(s) identidade(s). Cada um de nós possui uma identidade que se
constitui através de várias e se encontra sobre a influência de tantas outras: “(…) as
identidades (tal como a cultura) estão sempre a mudar” (Wintle, 1994:22). Esta posição é
auxiliada pelos avanços teóricos da Pós-Modernidade que vão dar uma visão de
multiplicidade e de fragmentação à(s) identidade(s). Há agora mais agilidade, flexibilidade,
adaptabilidade e performatividade identitárias, o que dificulta a centralização teórica do
seu conceito. Revela-se necessário procurar uma diversidade de visões teóricas e de
opiniões científicas, e conjugá-las de forma a cumprir com as exigências que são hoje
colocadas pela definição de identidade. É aqui que os Estudos Culturais se apresentam
como o caminho teórico mais indicado a seguir.

3.1.2. O declínio do conceito tradicional de identidade e o surgimento do indivíduo


fragmentado

Uma das obras que mais se destaca no âmbito da discussão e evolução sobre o conceito de
identidade intitula-se A identidade cultural na pós-modernidade (2001c) e é da autoria de
Stuart Hall. Com este livro, Hall procura avaliar a existência de uma crise identitária,
indagando em que consistiria exatamente essa crise e qual a direção em que ela seguiria,
tendo em consideração que o conceito tradicional de identidade entrou em declínio e que o
indivíduo moderno está a ser descentrado, deslocado e fragmentado. Efetivamente, as
sociedades modernas sofreram, no final do século XX, uma mudança estrutural que
fragmentou o panorama cultural (identidade social) e pessoal (identidade individual). Esta
falta de estabilidade provoca uma descentração dos indivíduos ao nível pessoal e social,
constituindo aquilo que Hall (2001c) apelidou de “crise de identidade”.

91 
Capítulo III – Identidade e Género

Stuart Hall (2001c) considera três conceções distintas no que se refere à definição do
conceito de identidade: o sujeito iluminado, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno.
O sujeito iluminado (que surge no século XVIII) baseia-se no indivíduo centrado,
unificado e racional, focado na individualidade do Eu. O sujeito sociológico, fruto da
complexidade da sociedade moderna, aceita que o núcleo identitário do sujeito é fundado
na relação com o Outro, que acaba por mediar os valores e os símbolos culturais do sujeito.
Este sujeito foca-se na interação entre o Eu e a sociedade: “o sujeito ainda tem um núcleo
(…), mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais
‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem” (Hall, 2001c: 11).

Com a Pós-Modernidade, o sujeito, que anteriormente possuía uma identidade estável,


fragmenta-se e o próprio processo de identificação passa a ser mais complexo e provisório.
A identidade do sujeito pós-moderno é (trans)formada continuamente e assume uma
multiplicidade variável historicista. Hall (2001c) afirma, nesta obra, que a identidade pós-
moderna implica descontinuidade, rompimento ou “deslocamento”, pois é possível assumir
e articular uma variedade de diferentes identidades para os indivíduos; e, apesar desta
conceção de identidade ser mais complexa e provisória que as duas anteriores, ela permite
a criação e produção de novas identidades e de novos sujeitos.

Nesta obra, Stuart Hall (2001c) reforça a ideia de que a conceção identitária é bastante
complexa, apresentando argumentos que justificam o nascimento e a morte do sujeito
moderno e a sua evolução para o “descentramento”. O autor começa por analisar o sujeito
moderno como uma figura pressuposta pelos discursos e processos da Modernidade, como
um sujeito individual8. Hall apresenta a visão de diferentes teóricos nesta matéria:
Raymond Williams via o sujeito individual como algo indivisível e singular; Descartes
como algo racional e pensante (“Penso, logo existo”); e John Locke como algo soberano.
Contudo, o sujeito moderno caminha igualmente para um conceito mais social, fruto de
dois importantes eventos: a conceção biológica de Darwin e o surgimento das novas
Ciências Sociais.

Efetivamente, as novas Ciências Sociais colocaram em prática novas transformações: o


indivíduo soberano passa a ser a figura central dos discursos sociais; o estudo do indivíduo

                                                            
8
Isto não implica que os sujeitos pré-modernos não fossem indivíduos; a individualidade era apenas
experienciada e conceptualizada de forma distinta – acreditava-se na estabilidade e na imutabilidade.

92 
Capítulo III – Identidade e Género

passa a ser objeto privilegiado da Psicologia; e o indivíduo passa a ser inserido nas normas
sociais e coletivas, fruto da nova Sociologia:

Essa ‘internalização’ do exterior no sujeito, e essa ‘externalização’ do interior,


através da ação no mundo social (…), constituem a descrição sociológica
primária do sujeito moderno e estão compreendidas na teoria da socialização
(Hall, 2001c:31).

Stuart Hall (2001c) afirma que as Ciências Sociais se assumem na primeira metade do
século XX, incentivando esta relação estável entre o interior do sujeito e o seu exterior
social. Todavia, Hall salienta que os movimentos intelectuais e estéticos do Modernismo
foram também capazes de fazer surgir o indivíduo alienado e isolado.

Hall continua a sua análise afirmando que a identidade do sujeito moderno foi desagregada
e deslocada graças a um conjunto de ruturas discursivas de que são exemplo cinco grandes
avanços ocorridos no pensamento social e humano, a partir da segunda metade do século
XX. O primeiro “descentramento” deve-se às tradições marxistas que afirmam que o
homem não pode ser agente da História por si só, embora seja reconhecida uma essência
universal do sujeito real.

A segunda descentração no pensamento ocidental do século XX foca-se na teoria do


inconsciente de Freud, que “arrasa com o conceito de sujeito cognoscente e racional
provido de uma identidade fixa e unificada (…)” (Hall, 2001:36). Freud (2001) discute a
ideia de que a imagem do Eu interior do sujeito como unificado é algo que a criança não
desenvolve naturalmente, mas que aprende e se forma, gradualmente, com os outros. Hall
sugere ainda a leitura de alguns teóricos que interpretaram o trabalho de Freud, como, por
exemplo, Jacques Lacan.

Jacques Lacan dedicou o seu trabalho a reformular a teoria de Freud na área da Psicanálise.
Isto conduziu Lacan à redefinição de algumas questões pré-estabelecidas pelas teorias do
inconsciente freudiano, cujos princípios não foram afastados, mas considerados limitados
ou ultrapassados pela falta de alguns conhecimentos ainda não disponíveis, temporal e
contextualmente, sobretudo no que diz respeito à condição do sujeito humano e à
identidade individual.

93 
Capítulo III – Identidade e Género

Para Lacan (1985, 1986), o sujeito não é uma entidade com uma identidade, pois esta é
apenas uma miragem resultante de uma imagem que o Eu constrói, ao identificar-se com a
perceção que os Outros possuem de si. Este processo constrói-se através da linguagem e do
“olhar” que servem de mediação para a internalização do Outro através da identificação,
pois é só em relação com o Outro que a criança cria as suas estruturas simbólicas e os seus
sistemas de representação. Esta teoria, apelidada de fase ou estádio do espelho, refere-se à
formulação do Eu como é experienciado na psicanálise (Lacan, 2004), reforçando a
conceção de que o Eu se constitui em relação com o Outro e é referente ao Outro. Estas
leituras inspiram a teoria do “espelho” presente no trabalho de Cooley e de Mead (Hall,
2001c; Taylor, 1997), que vê o sujeito como interativo, que faz uma aprendizagem de si e
dos outros conscientemente (ao contrário de Freud, que assenta o sujeito no processo do
inconsciente).

Em terceiro lugar, Hall (2001c) indica o trabalho do linguista Ferdinand de Saussure, que
argumentou que o sujeito não é autor dos significados que são expressos na linguagem,
pois a língua é considerada um sistema social e cultural pré-existente. A linguagem atribui
assim significado à identidade: o Eu conhece-se em relação com o Outro, constantemente,
de forma instável. Hall indica ainda um quarto “descentramento” da identidade que ocorre
no trabalho de Michel Foucault, baseado nas suas teorias da genealogia do sujeito moderno
e do poder disciplinar, e na consequente organização social e institucional que
individualizam e vigiam o sujeito.

O último “descentramento” apontado é o impacto do Feminismo que, apesar de apelar para


a identidade social (iniciando o que ficou conhecido como “política de identidade”),
também fragmentou o sujeito sociológico ao questionar o dualismo privado-público do
indivíduo, ao politizar a identidade e o processo de identificação, ao questionar a posição
social da mulher, e ao discutir a formação das identidades sexuais e de género.

Todos os “descentramentos” citados por Stuart Hall nesta sua obra mostram como a
identidade do sujeito cartesiano ou sociológico da Modernidade foi sendo, gradualmente,
fragmentada em outras simultaneamente abertas e contraditórias. No livro, o autor dedica
ainda algumas páginas à conceptualização da questão identitária cultural do sujeito
fragmentado, teorizando o conceito de identidade local, nacional e universal. Hall (2001c)
afirma que é difícil conservar as identidades culturais intactas fruto da diversidade que é

94 
Capítulo III – Identidade e Género

difundida à escala global pelos novos meios de comunicação e informação. Isto pode ter
um efeito homogeneizador, mas, ao mesmo tempo, contribuir para pluralizar mais as
identidades.

No caminho da Pós-Modernidade, a identidade pode ainda ser vista no campo da


representação, na medida em que se transforma de acordo com a representação (ou
representações) do sujeito. Segundo Stuart Hall a identidade pode constituir-se dentro da
representação:

(…) Não como um espelho em segunda mão que reflete o que já existe, mas
como aquela forma de representação que é capaz de nos constituir como novos
tipos de sujeitos, e assim permitir-nos descobrir lugares pelos quais falar (Stuart
Hall, 1990b:236-237).

A identidade deixa de ser vista como um conjunto de características essenciais, mas antes
como um aglomerado de características que uma pessoa ou grupo reconhecem possuir
(Wintle, 1994). Lidamos, assim, com a perceção ou representação de uma imagem da
realidade – que ajuda a construir e solidificar uma identidade – e não com realidades em si.

No que diz respeito particularmente às questões identitárias, a representação, como


processo cultural, procura dar resposta às seguintes questões: Quem sou eu? O que posso
ser? O que quero ser? A partir de que lugar posso falar? Neste sentido, há uma articulação
entre a produção de sentido e as identidades posicionadas nos sistemas de representação
(Woodward, 1997). O estudo das representações inclui sistemas simbólicos (linguagem,
imagens), pois os símbolos ajudam a entrar no desempenho de papéis onde o sujeito é
capaz de se colocar em situações imaginárias ou ver-se a partir do olhar do Outro (Taylor,
1997). Assim, segundo Kathryn Woodward (1997:14):

As representações incluem as práticas de significação e sistemas simbólicos


através dos quais os significados são produzidos e que nos posicionam como
sujeitos. As representações produzem significados através dos quais podemos
dar sentido à nossa experiência e ao que somos.

Para Barker & Galasinski (2001) as identidades não são fixas, ou universais, mas sim
culturais, discursivas e construídas dentro da representação. Nas sociedades modernas a

95 
Capítulo III – Identidade e Género

vida social é, efetivamente, uma representação (Singly, 2003), o que conduz muitos
sociólogos a adotarem o conceito de identidade em detrimento do conceito de papel social.

Quando nos referimos a um processo de socialização estamos perante uma identidade


social e são desenvolvidos papéis de acordo com as nossas relações com o Outro (Taylor,
1997). A identidade implica processos simultâneos de diferenciação e de pertença
manifestados pelos sujeitos, mas está particularmente associada à organização de
significados e à posição dos atores sociais que ajudam a contextualizar o Eu no mundo
social (Miranda, 2008). Em suma, percebe-se que a contemporaneidade, mas sobretudo a
Pós-Modernidade, trouxeram a multiplicação das discussões acerca da identidade como
produto resultante dos discursos e baseado nas relações de poder. Contudo, percebe-se que
as identidades são definidas tanto por oposição, como por semelhança, ao Outro, quase
sempre numa tentativa de, por um lado, o excluir e, por outro, o envolver.

3.1.3. A construção da identidade por oposição e assimilação: a relação Eu-Outro

“(…) O nosso ‘Eu’ não é mais do que uma interjeição do ‘Outro’.”

Boesch (2006:4)

Quando se aborda a questão da identidade depara-se, primeiramente, com a questão do Eu,


daquilo que faz do indivíduo o que ele é. Ora, a nossa identidade pessoal revela-se uma
entidade ativa e recetiva, fruto da experiência do dia a dia, o que faz dela um elemento
social, tanto ao nível pessoal como coletivo. Isto implica que qualquer identidade deva ser
vista como uma identidade social, pois o Eu estabelece-se através de uma rede de
afinidades e de diferenças (Ferguson, 2009).

A referida rede engloba uma fronteira entre o Eu de um sujeito e o Outro (e o Eu deste). De


facto, segundo Harré (2001), a perceção do próprio sujeito ou da forma como o mundo
deve ser interpretado através da perspetiva que ele tem de si envolve o seguinte processo:
1) identificar as categorias que incluem uns e excluem outros (ex.: masculino/feminino); 2)
participar das práticas discursivas pelas quais os sentidos são alocados a essas categorias;
3) posicionar o Eu nas categorias, como pertencendo a umas e não pertencendo a outras
(ex.: ser mulher e não homem); 4) reconhecer que o Eu entra em determinadas categorias
(e não em outras) cria um sentido de pertença e de desenvolvimento moral; e 5) entender-
se (até certo ponto) como algo historicamente unitário e contínuo.

96 
Capítulo III – Identidade e Género

A identidade individual é formada e guiada, até determinado momento, pelo próprio


indivíduo, mas deve ser tida em consideração como uma espécie de rede que é afetada por
estruturas políticas e por causas materiais e sociais. Assim, na sua busca pela
individualidade, o sujeito faz uma descoberta de si próprio, mas não se liberta nunca da sua
estrutura social, do Outro. Isto levou mesmo Jane Gallop (1988) a afirmar que, por vezes,
em vez de o sujeito colocar a questão “Quem sou eu?”, deve colocar a questão “Quem é o
Outro?”, pois, no Outro, o sujeito podem ver a imagem daquilo que pensa de si próprio e
de si em relação ao Outro: “os discursos sobre o Outro servem para nos procurarmos a nós
mesmos (…); não é o Outro ainda quem procuramos, mas o Eu do Outro (…)” (Baptista &
Dias, 2006:19).

A principal preocupação do Homem contemporâneo é a sua própria existência e a forma


como o seu Eu se reconhece em contexto relacional (Sidiropoulou, 2005). Qualquer sujeito
procura a autonomia e a liberdade pessoal, mas a sua própria constituição como indivíduo,
exige, simultaneamente, a interação com o(s) Outro(s). É esta ideia que levou o poeta John
Donne a afirmar “nenhum Homem é uma ilha”9, no sentido em que a identidade do sujeito
ou imagem de si próprio é formada a partir da diferença, a partir da interação com o Outro.
Pode-se até arriscar afirmar que o próprio conceito de identidade pode ser utilizado para
descrever a forma como o sujeito se vê em relação ao(s) Outro(s); a problemática reside
em saber quem é para este Eu o “Outro relevante”.

O conflito identitário de um indivíduo centra-se na relação entre o seu interior (Eu) e o seu
exterior (Outro). Apenas quando algum nível de articulação e estabilidade é atingido, o
sujeito consegue identificar-se e possuir um sentido de pertença, para que depois se possa
projetar na sociedade e ser reconhecido e identificado pelos Outros.

É no sentido da afirmação anterior que as políticas culturais das sociedades


contemporâneas devem ter em consideração a importância do reconhecimento do Eu e do
Outro como entidades profundamente interligadas e com potencial de ultrapassar as
dificuldades discriminatórias e a excessiva sujeição do Eu e do Outro (Rutherford, 1990).
Em suma, é através de um processo de identificação que o sujeito consegue produzir uma
transformação que antevê uma troca entre o Eu e a estrutura social. Porém, é necessário ter
em consideração que o processo de identificação é duplicado, pois, no momento em que o
                                                            
9
Tradução nossa de no man is an Island.

97 
Capítulo III – Identidade e Género

Eu procura relacionar-se com qualquer outro sujeito, esquece que ocupa o lugar do Outro
aos olhos desse sujeito. Assim, a reciprocidade é uma das características presentes na
construção da identidade individual, só possível através da imersão social.

Na realidade, a relação entre o Eu e o Outro é complexa, pois o Outro parece apenas existir
enquanto projeção da nossa própria imagem nele. Os sujeitos utilizam o Outro como um
espelho onde refletem as suas necessidades, preocupações e crenças, ao mesmo tempo que
absorvem as representações do Outro, inserindo-as na sua própria representação identitária:

Vermo-nos, descrevermo-nos e compreendermo-nos no espelho do Outro, no


espelho que o Outro constitui em nós (a começar pelas imagens, descrições e
representações do Outro que se encontram inscritas na nossa própria História e
cultura), talvez seja a possibilidade de nos iniciarmos num discurso sobre o
Outro (…) (Baptista, 2006:179).

Estas declarações vão ao encontro do “estado do espelho” de Lacan (1981) que, como já
foi referido, aceita que o Eu corresponde a uma internalização do Outro, através da
identificação. Esta relação é dual e objetiva, mas conduz a estados que flutuam entre o
desejo e a agressividade, colocando em conflito interesses de ambas as partes. Esta relação
é também inconstante e atravessa períodos de mutação, pois a perceção do Outro muda de
acordo com as experiências que se tem com ele, o que implica uma mudança de perspetiva
que se reflete igualmente na imagem que temos formada sobre o Outro. Nos momentos de
autoconsciência e autoidentificação emergem algumas problemáticas, pois, apesar de o
sujeito aceitar o seu Eu em relação com o Outro e reconhecer que se trata de uma relação
que tanto pode ser empática como, por vezes, instável, parece que o Eu nunca vê o Outro
como ele se vê a si mesmo, e o Outro nunca vê o Eu como ele se vê a si próprio (Boesch,
2006).

Para Guimarães & Simão (2006) o fabrico da relação cultural entre o Eu e o Outro é uma
ação simbólica, onde o Outro é experienciado pelo Eu como presente, ausente, real ou
imaginário. Esta ideia vai ao encontro da de Lacan (1981) que afirma que o simbólico, o
imaginário e o real coexistem e intersetam no sujeito, na sua relação com o Outro.
Guimarães & Simão (2006) acrescentam que a intersubjetividade existente na relação Eu-
Outro só acontece quando alguém resolve tomar o papel de outra pessoa e se descentra do
seu ego, marcando a sua experiência pessoal. Este comportamento surge quando o desejo

98 
Capítulo III – Identidade e Género

de poder e de reconhecimento emergem de uma necessidade de expansão e crescimento do


Eu. Todavia, esta posição parece ser de todo inexequível, pois não há necessidade de
“roubar” o papel do Outro para obter intersubjetividade. Em suma, o Outro é de tal forma
desejado pelo sujeito que acaba por fazer parte da sua formação enquanto indivíduo: “o
Outro é um ingrediente dinâmico da vida humana” (Cunha, 2006:379).

A relação entre o Eu e o Outro é igualmente teorizada por Sartre, que afirma que “(…) é
em face dos outros que escolhemos e nos escolhemos a nós” (Sartre, 1962:225). Ao
entender as relações humanas como uma oposição entre o Eu e o Outro, Sartre assume que
existe uma certa angústia e hostilidade no olhar do Outro quando toma consciência do seu
próprio ser-para-os-outros. O Outro é aqui uma espécie de intruso, de alienígena, que
revela, por vezes, dificuldade em se relacionar, provocando um certo incómodo. Contudo,
no momento em que o Eu toma consciência do Outro, e depois do impacto de ser
percebido no Outro, deixa de haver uma separação entre pares, e o Eu começa a existir
perante o Outro.

A conceção conflituosa e pouco otimista de Sartre em relação à dinâmica entre o Eu e o


Outro (que entende o Outro como o inferno do Eu) difere, por exemplo, da de Simone de
Beauvoir10, que apesar de ver o ser-para-os-outros como um confronto, o vê também como
um encorajamento para o Eu, porque lhe atribui uma tarefa de responsabilização e, logo,
uma sensação de satisfação. De facto, é inegável a presença do Outro na construção do Eu,
pelo que o conflito é uma realidade. Contudo, há uma cumplicidade e uma intimidade entre
ambos de tal maneira forte que é impossível não haver momentos de paz, de interceção e
de construção e transmutação identitária, marcada pela especificidade produtiva de tal
relacionamento.

De facto, para Sartre (1976) a existência do Outro revela ao Eu quem este é, através do
olhar, um pouco à maneira de Lacan e Hegel. A teoria assume, inicialmente, que o olhar do
Eu ordena o universo, mas a sua evolução conduz a uma perda da centralidade, a uma
constatação da existência do Outro, que permite um retorno a si próprio. Quer isto dizer
que há uma “consciência de si mesmo que descobre o Outro, como aquele que retorna a
verdade da minha imagem e afirma a minha existência” (Jacoby & Carlos, 2005:50). Este
estádio do espelho pode ser entendido como uma identificação, na medida em que há uma
                                                            
10
Simone de Beauvoir foi seguidora e crítica das teorias sartrianas.

99 
Capítulo III – Identidade e Género

transformação do sujeito quando este assume uma imagem de si no Outro e do Outro em


si.

Em relação ao conceito de identidade, Sartre (1976) entende ainda que existe um processo
que relaciona a nossa corporalidade com a do Outro, através do olhar, apontando três
modos ontológicos de apreensão dessa mesma corporalidade: o primeiro assume uma
centralidade do sujeito (ser-para-si); o segundo vê a perda da centralidade e a entrada do
Outro em cena (ser-para-outro); e o terceiro afirma a revelação que o Eu tem do seu
próprio corpo com base num feedback que o Outro faz e retribui (ser-aí-para-outro).
Assim, a identidade mostra-se, essencialmente, como resultado de uma construção do
próprio Eu (em relação com o Outro), que se desenvolve e se projeta como indivíduo.

Em todos estes momentos, Sartre (1976) afirma que há uma liberdade de escolha na
relação do Eu com o Outro que responsabiliza o ser humano na sua própria formação
identitária. Deve-se considerar cada sujeito como um ser racional (com os mesmos deveres
e direitos que atribuímos a nós próprios), com uma identidade, uma história e uma
formação emocional e afetiva concretas. Em última análise, é preciso que a relação Eu-
Outro se construa tendo em conta a aspiração e os objetivos dos sujeitos, que se vão
alterando à medida que a relação com o Outro evolui.

O pensamento pós-estruturalista de Rosi Braidotti (2002) abre caminho para uma


complexificação da análise da relação Eu-Outro/sociedade, apresentando um modelo que
engloba e transita entre as relações de poder (proibitivo/negativo e positivo/
empoderamento) e de resistência, e que inclui problemáticas como a sexualidade (diferença
sexual), a corporalidade, a memória, o imaginário, o desejo, e o sujeito ontológico (o ser e
o tornar-se). Para a autora é este modelo que faz o sujeito político, e estas questões serão
abordadas nos próximos pontos deste capítulo.

3.1.4. A identidade como produto do poder e do discurso

No século XX o conceito de identidade criou um impasse na construção do sujeito


centrado em opostos: Eu versus alteridade. Para Nelson Coelho (2006), a identidade é a
experiência e o sentir do Eu (consciente ou inconsciente), estabelecidos por sucessivas
identificações que o sujeito designa. Embora estas identificações não se mantenham
sempre as mesmas, estruturam a identidade do sujeito. Esta situação exige sempre a

100 
Capítulo III – Identidade e Género

correlação com o conceito de alteridade, que o autor vê como qualquer tipo de presença e
diferença, que exige uma resposta por parte do sujeito. Este percurso foi tomado por
Nandita Chaudhary (2006) que aceita a alteridade como parte integrante do Eu e vice-
versa, pois é o Eu que cria a ideia do Outro e é a existência do Outro que reconhece a
presença do Eu, sempre dentro de uma dinâmica de relações de poder.

A forte relação entre o Eu e o Outro implica, de facto, uma dinâmica de poder “(…) entre
aqueles que impõem alteridade a alguns e aqueles que são designados como o Outro”
(Fusco, 1990:77). É este relacionamento que permite medir forças e construir uma
identidade por comparação ou rutura, facilitando a construção de uma imagem do Eu em
relação ao Outro. Contudo, todo este processo se baseia na estruturação e controlo do Eu
que, segundo Freud (2001) e Lacan (1981, 2004), chega também a passar pelo domínio do
inconsciente.

O conflito de poder entre o Eu e o Outro teve uma grande influência na crise identitária e
relacional que se iniciou na primeira metade do século XX, e que conduziu à crise da
civilização ocidental, projetando-se particularmente no que diz respeito ao deterioramento
das relações interpessoais. É neste sentido que a obra do teórico Emmanuel Lévinas alerta
para a urgência de se refletir os caminhos da teoria filosófica, através de uma perspetiva
que parte do Eu em direção ao Outro. Lévinas (1999) vê o Outro como a alteridade, e não
como uma simples inversão da identidade, onde o “nós” não é o plural de “Eu”. Esta teoria
aceita o Outro como sinónimo de socialização, de experiência social, de sentido, de
contexto (Lévinas, 2000), e é diante do Outro que o sujeito dá conta que é um indivíduo
responsável.

Para Lévinas (1993), o facto de o Outro ser parte integrante das relações de poder, não
implica que possua mais poder do que o Eu, pois o seu poder consiste na sua própria
alteridade. Quer isto dizer que o Outro constitui-se na sua radical diferença:

A relação com o Outro não é nem uma relação de comunhão idílica e


harmoniosa, nem uma empatia pela qual nos colocamos no seu lugar:
reconhecemos o Outro como similar a nós e, ao mesmo tempo, exterior [a nós]; a
relação com o Outro é uma relação de mistério (Lévinas, 1993:116).

Segundo Coco Fusco (1990), as relações de poder entre o Eu e o Outro exigem que se
considerem várias perspetivas, pelo que se devem colocar questões relativas a quem impõe

101 
Capítulo III – Identidade e Género

o Outro ao Eu e quem é que é designado de “Outro”, como o Outro é falado, quem fala
sobre o Outro e porque é que o Outro foi identificado e falado num determinado contexto
histórico-cultural. A maior parte do processo de construção e maturação do Eu passa,
então, pelo entendimento do Outro, onde apenas há estabilização quando este é assimilado
pelo Eu (Sarup, 1996), reconhecendo-se como parte deste. Assim, Woodward (1997:315)
afirma que “(…) o Eu não pode mais ser entendido plausivelmente como uma entidade
unitária, mas (…) como um momento frágil no circuito dialógico que nos conecta com os
nossos outros”.

Todavia, as fronteiras entre estas dinâmicas são bastantes ténues, pois a partir do momento
em que se teoriza o Outro, a alteridade deste desaparece, tornando-se parte do mesmo. A
ameaça de dissolução do Eu hostiliza, frequentemente, a sua relação com o Outro na
tentativa de manter as fronteiras que distinguem o Eu do não-Eu (Rutherford, 1990),
desenvolvendo-se, muitas vezes, relações de conflito assentes numa filosofia do poder. De
facto, estas relações, por vezes, fragmentam demasiado o Eu, obrigando o sujeito a
redefinir, constantemente, as suas capacidades cognitivas e as suas estruturas de
significado pessoal e social, mantendo-se aberto à diferença, e ajustável à mudança.

Michel Foucault nega a existência de um fator essencial que determine ou limite a nossa
identidade. Isto significa que o Eu pode ser construído e trabalhado. O trabalho de Foucault
é descrito como pós-estruturalista, porque para ele a construção da identidade individual
não sofre influência de fatores biológicos nem de fatores sociais específicos. Contudo, o
filósofo reconhece que o sujeito é uma entidade política, que pertence a uma comunidade e
aos seus sistemas de governação, ao mesmo tempo que possui uma identidade que foi
atribuída pelo seu próprio Eu. Para Foucault, o sujeito não é algo natural, mas sim um
produto de discursos e de relações de poder, que adquire diferentes formas em diferentes
períodos históricos.

Esta ideia que Foucault desenvolve em torno da subjetivação, dos discursos e do poder é
uma constante no seu trabalho. Para o autor, o sujeito não é um ser autónomo, mas antes
algo que se encontra atravessado por um conjunto de significações (interiores e exteriores a
si), que podem ser orais, escritas, disciplinares, culturais, etc. Estas significações estão
interligadas com aquilo que Foucault (1984b) chamou de “mecanismo de subjetivação”. O
mecanismo de subjetivação é o processo pelo qual certos discursos e certas formas de saber

102 
Capítulo III – Identidade e Género

podem agir ao nível do desejo, de forma a constituir a subjetividade, afirmando que os


discursos constituem as identidades dos indivíduos. Esta teoria vê o sujeito como um efeito
do discurso e não como a causa deste. A relação entre sujeito e discurso envolve ainda
dinâmicas de poder que não têm de ser necessariamente opressivas, pois para Foucault o
que interessa na formação da identidade de um indivíduo é a sua relação com outros
indivíduos e a forma como os discursos de uns influenciam os discursos de outros.

No processo de construção da identidade esta vai-se revelando, emergindo o Eu. Para que
tal aconteça, Foucault reconhece algumas técnicas que são prática para tornar alguém
naquilo que esse indivíduo quer ser: primeiro destaca-se a produção, que permite ao
indivíduo originar, transformar e manipular as coisas, objetos ou sujeitos; depois o uso da
tecnologia do poder que limita a conduta dos sujeitos; de seguida a utilização de sistemas
de significação que permitem a aplicação de símbolos; e, por último, a aplicação das
tecnologias do Eu11 que permitem aos indivíduos a realização de um conjunto de operações
que os satisfaça (Foucault, 1984d, 1984e). A aplicação deste esquema facilita o surgimento
e imposição da individualidade e a sua transmutação ao longo da vida.

Michel Foucault criou, assim, o conceito de tecnologias do Eu, que se trata de mecanismos
que permitem aos indivíduos desenvolverem e trabalharem o seu Eu, regulando os seus
pensamentos, os seus corpos e os seus comportamentos. Se entendermos o Eu e a sua ética
interna como um conjunto de ideias que o sujeito tem ou regras que impõe a si próprio, as
tecnologias do Eu representam o que é realmente feito na prática para cumprir esses
requisitos. Em suma, as tecnologias do Eu são as formas como o Eu é exercido e policiado
na sociedade, incluindo as formas como os discursos encorajam (ou não) diversas práticas
do Eu (Foucault, 2010c).

De acordo com Danaher et al (2000), Foucault identifica três principais tecnologias do Eu:
a primeira, baseada em Séneca, refere uma série de técnicas que permitem ao sujeito
examinar os seus pensamentos ligados às regras da sociedade; a segunda, baseada na
hermenêutica Cristã, preocupa-se em compreender as relações entre os pensamentos dos
sujeitos e as suas impurezas interiores; e a terceira, baseada no modo cartesiano, examina
até que ponto os pensamentos do sujeito correspondem à realidade. Contudo, embora
possuam lógicas e finalidades distintas, estas três tecnologias do Eu afirmam que a forma
                                                            
11
Tradução nossa de techniques de soi.

103 
Capítulo III – Identidade e Género

de discutir e conhecer o Eu passa pelos discursos. Discursos estes que circulam no tecido
social e dos quais se destacam, neste estudo, os mediáticos.

Os discursos mediáticos são uma forma de demarcar a escolha e o poder do sujeito se


poder transformar a si próprio na busca identitária, revelando verdadeiras tecnologias do
Eu, pois lembram as obrigações éticas que o Eu deve ter (Probyn, 1993). Os discursos
mediáticos permitem igualmente a produção de representações do Eu, o que vai de
encontro com a teoria de Foucault que não vê o Eu como um reflexo, mas sim como a
articulação de problemáticas e práticas que fazem emergir certas modalidades do Eu em
determinados contextos históricos.

No geral, a teoria foucaultiana questiona a conceção clássica do sujeito livre e autónomo,


anterior ao processo discursivo e que se encontra fora das redes do poder. O filósofo adota
a perspetiva de que a subjetividade humana é, em si própria, uma construção discursiva da
sociedade. De facto, Michel Foucault entende a construção do sujeito identitário através de
formações discursivas e de relações de poder, ideia esta que vai ser retomada com o
trabalho de Stuart Hall.

Segundo Giuliano Andreoli (2003) a teoria identitária de Hall baseia-se em muito na de


Foucault. Tanto para um, como para o outro, são os discursos que vão produzindo a
subjetividade, e são os mecanismos de poder que arquitetam o Eu, delimitando o sujeito.
Assim, para Andreoli (2003), Hall afirma que a cultura atua na formação dos sujeitos
através de meios de vigilância e de regulação. Com este “governo da cultura” se entende
como os sujeitos possuem identidades múltiplas e não-fixas. Outra noção que Hall retira de
Foucault é a de que a identidade de um sujeito se constrói a partir do seu oposto, da sua
diferença, que é exterior a si próprio. Esta visão implica que a construção discursiva da
identidade envolva confrontação entre o Eu e o Outro, abrangendo redes de poder
(opressivas e produtivas). Ainda para Foucault, as relações de poder dentro das estruturas
discursivas constroem as subjetividades, mas também discursos alternativos ou de
resistência:

Em outras palavras, alguns indivíduos podem resistir à constituição da sua


subjetividade, desafiando convenções e normas, produzindo formas alternativas
de subjetividade, usando discursos alternativos. O poder pode-se voltar, em
suma, contra o próprio poder (Andreoli, 2003:24).

104 
Capítulo III – Identidade e Género

Esta afirmação prevê que, dentro das práticas sociais, algumas identidades exercem
hegemonia sobre outras, o que não é necessariamente negativo, pois implica também que
algumas identidades são resistentes a alguns tipos de relação de poder.

3.1.5. A identidade butleriana como lugar de desejo de reconhecimento, de


normatividade e de violência

Judith Butler na obra Undoing Gender (2004) faz uma leitura pós-estruturalista sobre a
identidade em torno de três conceitos fundamentais: reconhecimento, desejo e
normatividade. De uma forma particular, a autora indica que a problemática do desejo, do
reconhecimento e do Outro (identidade) são o ponto de partida para pensar politicamente a
exclusão e a subordinação, enquanto a viabilidade da identidade individual é fortemente
dependente das normas (sociais).

Bulter (2004) começa por afirmar que é o desejo de reconhecimento que conduz o sujeito a
procurar a sua reflexão no Outro. Este “desejo de reconhecimento” (que advém da teoria
hegeliana) – onde o reconhecimento é claramente um lugar de poder – origina separação e
partilha, pois, como indica a autora, “o reconhecimento implica que vejamos o Outro como
separado, mas psiquicamente estruturado em formas que são partilhadas” (Butler,
2004:131). Seguindo esta organização de pensamento, o reconhecimento transforma-se
numa norma que governa o Eu e a forma pela qual a comunicação se torna num processo
transformativo, sem com isso abandonar o seu caráter destrutivo. Quer isto dizer que o
reconhecimento toma lugar e é veiculado através da comunicação (no caminho teórico de
Habermas), transformando o sujeito, mas simultaneamente recordando-o que apesar de o
Outro não ser o Eu, estes dois elementos nunca se “livram” da sua relação, o que pode
conduzir a estados de negação e até de violência para o sujeito. É por isto que Butler
(2004) afirma que a construção do sujeito se dá de uma forma violenta, na medida em que
o desejo de reconhecimento do sujeito é recheado de complexidade.

Importa aqui salientar que a discussão da identidade, num contexto pós-estruturalista,


recorre frequentemente à questão da violência, pois tanto a descoberta do Eu (o assumir-se
como Eu), como a vivência em comunidade, implicam um ato violento. Questionar “Quem
sou eu?” e/ou “Quem é o Outro?” implica uma resposta violenta, mas não colocar estas
questões implica na mesma uma resposta violenta.

105 
Capítulo III – Identidade e Género

Na história do ser humano, a violência parece ser aquilo que há de mais profundo, pois
ninguém é ninguém sem sofrer uma violência para encaixar numa norma e ser inteligível.
Para Butler (2004), o aparato de conhecimento aplicado ao sujeito e ao seu corpo (ser-se
reconhecido como homem ou mulher) é uma violência implementada na norma e na
institucionalização do poder dessa implementação. Portanto, revela-se importante perceber
como o sujeito interioriza o discurso e as normas a que é submetido através do desejo do
reconhecimento do Outro e do seu próprio. Segundo Butler (2004:1345), para reduzir essa
violência é necessário “(…) aprender a viver e a abraçar a destruição e a rearticulação do
humano em nome de um mundo mais capaz e, finalmente, menos violento”.

Ainda em relação à teoria do desejo de reconhecimento, Hegel e Butler partilham da


opinião que o reconhecimento se transforma no lugar de poder pelo qual o sujeito/humano
é (re)produzido individualmente e em comunidade, sendo esse lugar mutável e articulado
socialmente. Isto implica uma valorização do tecido social e das normas que constituem
não só a identidade do sujeito, mas sobretudo a inteligibilidade – formalizada nas normas
sociais – daquilo que implica ser humano. Neste sentido, o sujeito é (des)feito pelos
Outros, numa dança relacional que implica que o que é o sujeito depende daquilo que ele
faz, e que, por sua vez, depende daquilo que lhe é feito – uma relação que no pensamento
de Judith Butler confronta unidade e comunidade na construção e na reconstrução do ser
humano. Nesta relação, a dificuldade está em tendencialmente não haver reconhecimento
para quem está fora da norma (o ser é inteligível se estiver dentro da norma), embora a
autora revolucione esta leitura sobre a identidade, esticando os limites da normatividade e
o que é inteligível fora dela.

Dentro do pensamento pós-estruturalista há espaço para pensar a questão da identidade


(como necessidade de reconhecimento) através da normatividade estabelecida, mas
igualmente através de uma outra perspetiva que implica uma outra construção normativa.
Por outras palavras, embora os sujeitos partilhem da sensação de que sem reconhecimento
não é possível viver, também é possível sentir que as condições (ou os termos) pelas quais
esses sujeitos são reconhecidos tornam a vida insuportável. Isto faz emergir as implicações
normativas, na medida em que as normas limitam o que significa ser humano. Todavia, a
solução não reside em evitar (todas) as normas sociais – visto que muitas são fundamentais
para a convivência moral, ética e legal entre comunidades –, mas sim atribuir novas

106 
Capítulo III – Identidade e Género

possibilidades às normas através daquilo que Butler apelidou de “fantasia corporal”. Deste
modo, alterar as normas que normatizam a morfologia humana atribui diferentes
“realidades” a diferentes tipos de humanos, concedendo-lhes impacto na vida política e
naquilo que conta como humano. Obviamente que o valor do ser humano deve estar (e
está) para além da sua condição física, pois o reconhecer-se como humano deveria bastar
para o sujeito. Contudo, esta é uma das possibilidades que Butler (2004) aponta – usando o
argumento de Hegel na direção do pensamento foucaultiano – para se olhar as normas de
reconhecimento como produtoras e desfazedoras da própria noção de humano.

Esta discussão implica que em vez de se ver as normas como algo estático/imutável e
recheado de estruturas binárias (o que é de uma forma implica que não seja de outra) é
possível entendê-las no seu potencial transformativo, postulando possibilidades que
ultrapassam as próprias normas impostas e abrindo-lhes um novo futuro. É este o trabalho
da “fantasia” que Butler (2004) defende como possibilidade do possível. No entanto, este é
um passo complexo, pois o sujeito é compelido a viver e (auto)reconhecer a sua condição
de humano dentro de uma normatividade inflexível que não depende de uma escolha
individual e que oprime/subjuga o sujeito no processo de reconhecimento ou
inteligibilidade como tal.

Entende-se, portanto, que o problema reside no humano que não é a norma nem a sua
diferença, e que ainda não tem espaço para o reconhecimento, ao se encontrar nos limites
da inteligibilidade. Apesar do sujeito ser constituído por um mundo social que não
escolheu, Butler (2004) afirma que é possível viver de uma forma que critica e transforma
a normatividade, legitimando outra inteligibilidade. Contudo, neste processo é preciso
salvaguarda para não se cair na tentação da universalidade desta nova forma de
inteligibilidade, acentuando sempre o culturalmente variável. Isto não quer dizer que não
possam existir referências universais, mas apenas que as condições para a sua articulação
nem sempre sejam as mesmas (Butler, 2004).

Toda esta discussão abre caminho para uma nova leitura da identidade e do que implica ser
humano também trazida por Jessica Benjamin e que é apoiada por Judith Butler. Segundo
Benjamin (1998), o reconhecimento não é apenas uma apresentação do Eu ao Outro, mas
sim um processo que surge quando estes se refletem um no outro e quando desta reflexão
não resulta o aniquilamento de um no outro. Benjamin ajuda a pensar as relações através

107 
Capítulo III – Identidade e Género

de uma visão tripla e não através da dualização edipiana frequentemente levantada pelo
estruturalismo lacaniano e lévi-straussiano, que, juntamente com as teorias freudianas,
enfatizam a figura paterna e o poder do “phallus” na constituição do desejo humano
(Braidotti, 2002). Este terceiro elemento é o Outro do Outro que, segundo Butler (2004),
motiva e excede a relação de desejo, ao mesmo tempo que a constitui. Esta conceção é
importante para pensar a relação entre o(s) género(s), porque afasta o pensamento
heterossexista dual. Butler (2004) afirma mesmo que Benjamin auxilia o pensamento
crítico na possibilidade de imaginar uma passagem psíquica em que o “phallus” não
controla o circuito dos efeitos psíquicos, abrindo o entendimento para outras possibilidades
normativas. São estes pontos teóricos que vão questionar qual o lugar do género dentro do
humano ou o que significa ser humano e ter um género: Será que o sujeito generificado se
reflete no outro género? Qual a legitimidade da dualidade de género no reconhecimento do
ser humano? Terá sido o feminino totalmente incorporado no humano (ou numa versão do
humano)? Estas e outras questões serão discutidas nos pontos seguintes.

3.2. A formação da identidade de género

“Não consigo pensar o Eu fora da imediatez de pertencer a um género.”


Elspeth Probyn (1993:2)

3.2.1. Género, sexo e socialização

O conceito de género refere-se às diferentes formas de viver a masculinidade e a


feminilidade dos sujeitos, e trata-se de um atributo cultural, social, discursivo e simbólico
que é construído e aprendido socialmente. De facto, os sujeitos não “fazem” o género
sozinhos, mas sim com (ou para) os outros, mesmo quando o Outro é imaginário, até
porque ser de um determinado género não implica que se deseje ser de uma determinada
maneira. De uma forma particular, os sujeitos acabam até por esperar e confiar que as
instituições sociais estabeleçam os limites corporais e de género que é possível terem e
manterem, num contexto que determina a viabilidade de certas normas de construção do
humano com base no seu género (e exclui outras). Desta forma, não só o género é regulado
pelo contexto social, mas também pelo simbólico que delimita as normas estabelecidas.

108 
Capítulo III – Identidade e Género

Apesar de, na segunda metade do século XX, se manifestar em vários caminhos teóricos da
Psicologia, da Sociologia e dos movimentos feministas, que o conceito de género difere do
de sexo, na verdade o género acaba por repetir o mesmo mecanismo de pensamento da
dualidade sexual. Quer isto dizer que o conceito de género não é tão claro e universal como
se pensa e que o verdadeiro conceito sociológico de género – entendido como “homem” e
“mulher” – não deve ser reduzido a diferença sexual. Obviamente que os dois conceitos
não devem ser confundidos, pois o sexo é frequentemente conotado com a diferença
biológica entre homem e mulher, enquanto o género se refere a um efeito construído e,
sobretudo, variável. Todavia, na visão de Judith Butler (1993, 1990, 2004), nenhuma
definição simples ou direta de género é suficiente, pois a importância do conceito reside na
capacidade que o sujeito possui de reconhecer a variação de género na cultura pública. O
género não deve ser apenas pensado como uma forma discursiva de construir o masculino
e o feminino, mas como um conjunto de características sexuais construídas
discursivamente e também como uma visão performativa que desloca e desvaloriza o
estatuto simbólico da diferença sexual (Butler, 1993, 2004).

Já a diferença sexual deve ser vista, segundo Irigaray (2005), como uma questão dos
nossos tempos (e não como um facto), como algo parcialmente dado e parcialmente
construído, que engloba a relação entre o biológico, o cultural e o social, tratando-se de um
conceito de “fronteira”. O sexo transforma-se assim numa construção que é materializada
no tempo, deixando de ser apenas uma construção estática do corpo, para passar a ser um
processo pelo qual normas regulatórias o materializam (Butler, 1993). Mas, segundo
Braidotti (1994) parece ser necessário manter o quadro estrutural de diferença sexual, pois
isso mantém autêntica a continuidade da realidade política e cultural da dominação
masculina (que dificulta frequentemente a alteração ao nível do simbólico,
independentemente das “permutações” de género).

Se num primeiro momento a diferença entre género e sexualidade foi importante e


inovadora – sendo o género conotado com diferença social/cultural e o sexo com diferença
estrutural e biológica –, rapidamente passou a ser “mais do mesmo”, onde o género é visto
como efeito da desigualdade sexual e da dualidade heteronormativa, e não como saída
conceptual. É esta relação entre os dois conceitos que conduz a socióloga Patrícia Miranda

109 
Capítulo III – Identidade e Género

a afirmar que é sobre o corpo ou um sexo biológico que são fixados os atributos sociais de
género:

Para compreender os processos que participam na construção do género, é de


realçar que ser “rapaz” ou “rapariga”, “homem” ou “mulher”, é agir de acordo
com o que as pessoas em sociedade acreditam ser masculino e feminino (…)
(Miranda, 2008:3).

Ainda segundo Miranda (2008), a identidade de género deve ser vista não como algo que
os sujeitos possuem, mas como algo que os sujeitos fazem, e que pode ser analisado de
acordo com diversas teorias. Para a autora existem seis importantes teorias na construção
do género: a teoria dos papéis, a teoria da socialização, o interaccionismo simbólico, a
teoria do desenvolvimento cognitivo, a teoria do esquema de género12 e a teoria
psicanalítica. Todas estas teorias estiveram no centro da discussão psicológica, sociológica,
antropológica e até cultural dos Estudos de Género, a partir da segunda metade do século
XX.

A teoria dos papéis auxilia na perceção do desempenho social do sujeito como resultado de
comportamentos e atitudes que este interiorizou no processo de socialização e em função
das expetativas do Outro. Com a teoria da socialização destacam-se os processos através
dos quais as crianças desenvolvem os comportamentos e as identidades de género. O
interaccionismo simbólico “enfatiza os processos de interação através dos quais se
produzem as diferenças de género no quotidiano” (Miranda, 2008:4), enquanto a teoria do
desenvolvimento cognitivo descreve a relação progressiva entre a criança e o meio na
construção da sua identidade de género. A teoria do esquema de género é, na opinião da
socióloga, a teoria que articula todas as anteriores:

Esta teoria parte do princípio que todas as crianças formam um conceito de


género que afeta as suas atitudes e comportamentos, mas, simultaneamente,
reconhece que o significado de género para uma criança depende da sua história
de aprendizagem social (Miranda, 2008:4).

Finalmente, a teoria psicanalítica aponta que são as diferenças sexuais (físicas) entre
rapazes e raparigas que incutem o desenvolvimento da identidade de género. Em jeito de
síntese, as duas primeiras centram-se na importância da influência da socialização na
                                                            
12
Tradução nossa de Gender Schema Theory.

110 
Capítulo III – Identidade e Género

construção da identidade de género, revelando uma certa passividade do sujeito nas suas
escolhas; a terceira e a quarta teorias demonstram como o sujeito (sobretudo a criança)
participa ativamente nas interações sociais que formam o seu género; e a teoria do esquema
de género articula todas as anteriores. A última distingue-se por destacar que as diferenças
físicas são cruciais na formação da identidade de género, afastando a influência social.

A realidade atual é que a rigidez ou a flexibilidade do conceito de género estão diretamente


ligadas com as estruturas discursivas presentes na sociedade que atribuem um significado
(masculino/feminino) a um corpo já sexualmente diferenciado (Butler, 1990). A partir do
momento em que esta distinção é feita, cria-se, automaticamente, uma relação em que o
estudo de um género implica, obrigatoriamente, o estudo do outro: “a masculinidade e a
feminilidade definem-se reciprocamente” (Andreoli, 2003:19).

Isto significa que, de uma forma geral, a sexualidade serve-se do género, no sentido em
que o género a que um determinado sujeito “pertence” determina o tipo de sexualidade que
ele “tem” ou irá “ter”. Todavia, Butler (2004:183) afirma que, como a regulação do género
é uma parte importante da normatividade heterossexual, “(…) insistir na separação radical
entre género e sexualidade é perder a oportunidade de analisar essa particular operação do
poder homofóbico”. Isto porque o facto de se ter um género não determina a sexualidade,
pois segundo a autora existem possibilidades sexuais que não são constrangidas pelo
género e existem possibilidades de género que não são determinadas por formas de
heterossexualidade hegemónica.

A discussão das relações sociais de género implica, obrigatoriamente, a referência aos


movimentos feministas. De acordo com Rocha (2007), estes movimentos organizados
surgiram no século XIX em todo o espaço ocidental e podem distribuir-se por duas vagas:
a primeira vaga feminista foi marcada pelas reivindicações de participação das mulheres na
sociedade civil, na esfera política e na legislativa, em meados do século XIX; e a segunda
vaga surge em 1960 e reivindica a necessidade de criar condições de igualdade de
oportunidades para os dois sexos13. É com a entrada da segunda vaga de Feminismo, mais
radical (Tavares, 2008), que começa a surgir a noção de androginia como algo que
combina atributos femininos e masculinos num só género, eliminando o seu suposto
                                                            
13
Esta fase distribui-se por outras, tais como: Feminismo Liberal, Feminismo Socialista (e Marxista),
Feminismo Radical, Feminismo Cultural; e evolui ainda para perspetivas feministas pós-estruturalistas e pós-
modernas, e para o Pós-Feminismo.

111 
Capítulo III – Identidade e Género

dualismo. Contudo, tanto a ciência como os meios de comunicação social foram


construindo um discurso poderoso em torno da ideia de diferença e de dualidade de género
(Nogueira, 1996), o que leva alguns teóricos a pensar na necessidade de uma terceira vaga
feminista (Tavares et al, 2004).

Com o culminar da Pós-Modernidade amplificam-se as possibilidades e negam-se os


significados rígidos estabelecidos, pelo que o género passa a ser entendido como um
processo que não se encontra preso a qualquer teoria científica. De facto, na atualidade, as
anteriores conceções de dominação masculina estão a ser colocadas em causa e encontram-
se dependentes do contexto a que os Estudos de Género se aplicam. Com efeito, deparamo-
nos no presente com uma multiplicidade de constituições de identidade de género que,
segundo Hollway (1994) apenas podem ser compreendidas num contexto de
conhecimento, poder e práticas sociais. Em relação a este assunto, Henrietta Moore diz não
existir apenas uma feminilidade ou masculinidade com que os sujeitos se identificam nos
seus contextos sociais, “mas sim uma variedade de feminilidades e masculinidades
possíveis fornecidas pelos discursos concorrentes e contraditórios que existem, e que
produzem e são reproduzidos por práticas e instituições sociais” (Moore, 2000:35).
Contudo, esta posição pós-moderna, que procura superar os dualismos de género, pode cair
no erro de tornar invisíveis os simbolismos que estão enraizados nos corpos, nas estruturas
e nas representações. Para Bourdieu (1999:89), estes dualismos “(…) não nasceram de um
simples feito de nomeação verbal e não podem ser abolidos por um ato de magia
performativa”.

Independentemente do período histórico ou do contexto espacial, a masculinidade e a


feminilidade são atributos que se relacionam mutuamente, de forma a marcar uma posição
na sociedade. Esta posição é marcada através de tradições, costumes, atitudes e
comportamentos que são classificados culturalmente como características de cada sexo,
criando mitos em torno destes. Estas classificações conduzem, frequentemente, a excessos
que são incutidos e disseminados de forma a negar “dependências” entre ambos os
géneros. É assim que surgem as primeiras versões do Machismo e do Feminismo.

A Industrialização criou diferenças entre as responsabilidades e o desempenho de tarefas


entre homens e mulheres no que diz respeito à vida doméstica. Durante muito tempo o
homem foi visto como o principal “provedor económico da família” (Lipovetsky,

112 
Capítulo III – Identidade e Género

2000:243), protetor e ditador das leis (Barker & Galasinski, 2001), enquanto a mulher se
submetia ao imperialismo da masculinidade e se centrava no bem-estar afetivo do lar
doméstico, sendo “boa” mãe e esposa dedicada. Embora esta fosse uma visão limitativa e
superficial das relações de género, foi, durante muito tempo, a realidade de muitas
sociedades do mundo ocidental. Contudo, a contextualização histórica, económica, social e
cultural, a autodeterminação feminina e a sua necessidade de emancipação conduziram as
mulheres à adoção de alguns papéis tradicionalmente masculinos que lhe permitiram tomar
a rédea de algumas decisões fora da gestão do lar:

As mulheres foram, durante muito tempo, deixadas na sombra da História. O


desenvolvimento da Antropologia e a ênfase dada à família, na afirmação da
História das ‘mentalidades’, mais atenta ao quotidiano, ao privado e ao
individual, contribuíram para as fazer sair dessa sombra (Duby & Perrot,
1991:7).

A família é o lugar privilegiado de reprodução social, onde se entrecruzam as diferenças


dos sexos e se fixam as alianças que representam (Duby & Perrot, 1991), a um nível micro,
as relações da sociedade. A família é o resultado de uma força geral, quase estatal, que
reforça a obrigação das mulheres à multiplicação de papéis e que facilita a interiorização
das normas sociais diferenciadas de sexo (ao nível micro e privado). Porém, quando as
mulheres se começam a aventurar num mundo profissional outrora masculino, começam a
conquistar a igualdade e o direito de se exprimirem livremente, embora nunca abrindo mão
das suas responsabilidades familiares e domésticas. Efetivamente, a feminização de muitas
partes do mercado de trabalho foi uma das mudanças mais notáveis da segunda metade do
século XX, o que conduziu às primeiras rejeições da discriminação sexual. Simplificando,
bastava a muitas mulheres transpor os seus princípios de organização doméstica para o
mundo profissional, pois qualquer um dos dois mundos pode ser visto como uma unidade
de produção (Foucault, 2010b).

Nesta linha de pensamento, alguns autores contemporâneos sublinham que esta mudança
socioprofissional só acentuou os comportamentos machistas e incentivou o Feminismo
radical, pois a prioridade que é universalmente reconhecida ao sexo masculino é afirmada
nas estruturas sociais, “(…) baseadas numa divisão sexual do trabalho de produção e de
reprodução biológica e social que confere ao homem a melhor parte (…)” (Bourdieu,
1999:29). Estando estas estruturas tão embrenhadas nas sociedades atuais, os esquemas de

113 
Capítulo III – Identidade e Género

violência simbólica complexificam-se, o que dificulta a superação de sistemas que estão


instaurados como naturais.

Estes discursos que se inserem na dualidade de género e na validação do domínio


masculino sobre o feminino têm, na opinião de Pierre Bourdieu (1999), fundamento
histórico e, sobretudo, simbólico. Para este pensador, a dominação masculina e a divisão
dos sexos assentam numa construção histórica baseada na sexualidade e numa construção
social dos corpos que, legitimadas por mecanismos e instituições socias (como a Escola, o
Estado, os Media e a Igreja) contribuem para a eternização de simbologias seculares.
Segundo esta visão, independentemente do sexo do indivíduo, qualquer elemento que seja
apreendido está sujeito a “estruturas históricas de ordem masculina” (Bourdieu, 1999:5)
incorporadas no inconsciente de perceção e de avaliação individual e social. Bourdieu
(1999:5) acrescenta ainda que “arriscamo-nos portanto a recorrer, para pensar a dominação
masculina, a modos de pensamento que são eles próprios produtos de dominação”.

Apesar de o século XX ter marcado a entrada das mulheres na História, ainda se sente,
hoje, o impacto da profunda mudança que abriu o mundo do trabalho e do poder às
mulheres, e que levou o homem pelo caminho da afetividade (Pedrosa, 2000). Este alcance
do poder pelas mulheres refere-se a posições que as mulheres adquirem, e que outrora
eram masculinas, e a atitudes e comportamentos que no passado eram recusados ao sexo
feminino. Efetivamente, o trabalho crítico do movimento feminista foi fundamental para
romper o círculo generalizado de posições (Vaquinhas, 2002), fazendo emergir “(…) o
facto de a dominação masculina já não se impor com a evidência do óbvio” (Bourdieu,
1999:77).

Esta conjuntura despertou sentimentos de receio, sobretudo nos homens, que já eram
visíveis nos primeiros mitos da cultura ocidental. Mas no final de toda esta jornada, que
teve até o apoio da mudança jurídica, a mentalidade de mulheres e homens ainda se
encontra presa a estereótipos sociais que parecem inerentes à sua condição sexual, como se
pode constatar neste exemplo de Dietrich Schwanitz:

Não há dúvida: se o nível de uma cultura for aferido pelo seu caráter pacífico,
pelo repúdio da crueldade e pela capacidade de comunicação, as mulheres são o
sexo mais civilizado (Schwanitz, 2007:397).

114 
Capítulo III – Identidade e Género

Em todo este processo de descoberta do género e de emancipação dos dominados, é


necessário ponderar algumas das considerações de Pierre Bourdieu (1999) que alerta para
as relações entre poder e resistência. Para o autor, apesar de existirem interpretações
antagónicas que brindam os dominados com uma oportunidade de resistência contra a
imposição simbólica, as dinâmicas das relações de poder são complexas e, por vezes,
legitimadas pelos próprios dominados:

Quando os dominados aplicam aos que os dominam esquemas que são o produto
da dominação, ou, noutros termos, quando os seus pensamentos e as suas
perceções se estruturam em conformidade com as próprias estruturas da relação
de dominação que lhes são impostas, o seus atos de conhecimento são,
inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão (Bourdieu, 1999:12).

Continuando na linha da distribuição e da avaliação dos papéis sociais, percebe-se que


grande parte dos padrões sociais existentes se baseia nos diferentes papéis sexuais (ou de
género), pois os comportamentos e as atitudes resultantes da interação humana são
frequentemente diferenciados quando se trata de homens e de mulheres. Associados a esta
ideia encontram-se os comportamentos, as emoções e a personalidade de cada sujeito, de
acordo com o seu sexo (Wilson & Boudreau, 1986), ao longo da sua vida. Em relação a
este assunto, Giuliano Andreoli (2003) procura associar os conceitos de identidade, de
género e de papéis sociais, afirmando que:

Tanto identidades quanto diferenças de género dizem respeito aos papéis que o
homem e a mulher assumem na sociedade. Género é, portanto, uma construção
histórica, produzida e reproduzida dentro da e através da cultura. Também é
importante ressaltar que género é uma construção política, produzida [através de]
classificações, ordenamentos, hierarquias e diferenciações (Andreoli, 2003:17).

Em suma, em termos biológicos, os sujeitos estão associados a um sexo, que faz deles
homens ou mulheres. Socialmente, as experiências de cada um conduzem à sua conotação
de género: feminino ou masculino. Quer isto dizer que “a socialização é o maior fator na
aquisição de papéis sexuais” (Boudreau, 1986:64). É então que surge a identidade de
género, baseada nos comportamentos e atitudes socialmente estabelecidos com base no
sexo.

No campo da Psicologia, existem, de acordo com Gauntlett (2002), duas posições


fundamentais no desenvolvimento de papéis de género: 1) as diferenças hormonais e de

115 
Capítulo III – Identidade e Género

cromossomas são a principal causa das diferenças entre o comportamento feminino e o


masculino; e 2) a socialização é mais importante, pois os papéis de género são aprendidos
durante o desenvolvimento e reforçados durante a vida quotidiana. Existe ainda outra
vertente que o autor chama de teoria do desenvolvimento cognitivo e que olha para os
papéis sociais como algo que se aprende, mas que vê a criança mais ativamente na criação
da sua identidade de género. Contudo, no fundo, a relação entre género e sexo é tão
intrínseca, que ambos são chamados e confundidos no momento da atribuição dos papéis
sociais de homens e mulheres.

A realidade social é construída de acordo com a internalização que os sujeitos tendem a


edificar, assente em regras, leis, normas, costumes. Desta forma, são frequentemente
criadas expectativas apropriadas para cada género: das mulheres espera-se um
comportamento dócil e doméstico (esposa, mãe, dona de casa) ou profissões estereotipadas
(enfermeiras, secretárias, professoras, costureiras); e dos homens espera-se masculinidade
e trabalho (o chefe de família e sustento da esposa e dos filhos dependentes). É esta
repartição social baseada no género que muitos autores chamam de “sexismo”, que, apesar
de não explicar o aparecimento da diferença de papéis sexuais ou uma estratificação social,
implica a sua manutenção. Segundo Wilson & Boudreau (1986:10-11) o sexismo consiste
principalmente:

(…) Nas crenças, normas e práticas que impedem os membros de uma categoria
de género da participação plena e igualitária em todos os aspetos da vida social, e
que impedem os membros dessa categoria de desenvolver os recursos
necessários para promover e proteger os seus interesses.

A estratificação sexual conduz a uma distribuição desigual do poder entre homens e


mulheres, principalmente no que respeita ao controlo do espaço pessoal e familiar: os
homens tomam decisões de maior importância, a prevalência da opinião masculina é
apoiada pela lei e pela religião em muitas culturas, o poder físico é exercido sobretudo
pelos homens, e é atribuído mais valor e prestígio ao trabalho masculino. Em síntese, “(…)
recusamos às mulheres, mais do que aos homens, o acesso aos recursos necessários para
promover e proteger os seus próprios interesses (…)” (Wilson & Boudreau, 1986:20).

Já quando nos referimos à dimensão comportamental dos sujeitos, alguns teóricos afirmam
existir diferenças significativas entre homens e mulheres. A maior parte das vezes, as

116 
Capítulo III – Identidade e Género

mulheres são apresentadas como possuindo comportamentos mais subtis, gentis e


emocionais, enquanto os homens são apresentados como mais fortes, agressivos e
racionais. Para esta divisão, muito contribuíram os estereótipos sociais que são difundidos
e adquiridos pelos sujeitos no processo de socialização, ao ponto de determinarem a
formação moral e a atitude ética de homens e mulheres. Para a autora Carol Gilligan
existem diferenças no juízo moral de ambos os sexos, pois as mulheres centram-se mais no
cuidado e na resposta aos que as rodeiam do que no critério masculino de justiça universal
(Ferreira et al, 2003). Contudo, esta opinião não é de todo consensual, pois outros autores
consideram o processo de desenvolvimento moral idêntico nos sujeitos de ambos os sexos.

No que respeita às relações familiares, as mulheres ainda são, muitas vezes, subordinadas à
tomada de decisão masculina, pois a própria construção social assente na convencional
família nuclear e patriarcal dificulta o acesso à igualdade de exercício de poder para os
dois sexos, apresentando-se como uma barreira ao potencial da mulher (Heiss, 1986). Estes
padrões ainda hoje continuam a ser difundidos, segundo Costa et al (2003) graças a dois
principais meios: o curriculum cultural e a pedagogia dos media. No primeiro caso são as
representações da sociedade que fazem circular o saber produzido, enquanto o segundo
aspeto se refere à prática dos meios de comunicação em divulgar informações que
produzem barreiras sociais (de género, de classe, educacionais, étnicas, etc.). Todavia, não
basta mudar as normas para alterar as conceções de identidade de género; é necessário
estudar e conhecer para poder intervir na mentalidade subjacente aos papéis de género que
criam e sustentam essas mesmas normas.

3.2.1.1. Foucault: o poder da sexualidade e a identidade de género

O trabalho de Michel Foucault ajudou a preparar o caminho pós-moderno das teorias


sociológicas do desvio, da saúde e da sexualidade. Nos seus estudos, o filósofo optou
também pela via dos comportamentos e das diferenças sexuais, e as suas valências no que
respeita às relações de poder entre os sujeitos, de acordo com o seu género. Segundo
Foucault, os discursos sobre o sexo proliferam nas sociedades e continua-se a produzir um
saber sobre o prazer e a experimentar um prazer de saber (Louro, 2008; Foucault, 1984b).
De facto, no pensamento de Michel Foucault, a sexualidade permite aos sujeitos interpretar
as suas vivências e até estimular outras:

117 
Capítulo III – Identidade e Género

Para Foucault a ‘sexualidade’ é sinónimo de uma formação de discurso e de


poder que valida a exigência inocente de veracidade face aos estímulos, pulsões
intuitivas e vivências aos quais os indivíduos tem acesso privilegiado e que, por
outro lado, alimenta uma estimulação secreta dos corpos, uma intensificação dos
prazeres e uma formação das energias anímicas (Habermas, 2010:281).

Foucault reclama assim que a sexualidade e o poder são coextensivos, e que uma
sexualidade subversiva ou emancipatória dificilmente se liberta da lei ou da norma
estabelecidas, ao contrário do que é o pensamento de outros autores pós-estruturalistas,
como Butler ou Braidotti, que permite pensar e “(…) constituir sujeitos dentro de uma
heterossexualidade hegemónica e consequentemente sobrenormativa” (Oliveira, 2013:69).
Todavia, parece haver consenso entre estes autores quando se pensa a sexualidade como
algo “(…) construído dentro dos termos do discurso e do poder, onde o poder é
parcialmente entendido em termos de heterossexualidade e convenções culturais fálicas”
(Butler, 1990:30).

É preciso esclarecer que as análises de Foucault são sobretudo correspondentes à noção de


prazer, pois só assim “os sujeitos se podem reinventar, sem o uso de identidades criadas
pelo sistema de nomeação cheio de preconceitos” (Costa, 1997:77). Mais do que teorizar a
sexualidade, Michel Foucault repensa o discurso do desejo, contrapondo a sexualidade
normal (heterossexualidade reprodutiva) e a sexualidade desviante, através da crítica
filosófica, e recorrendo à História para justificar as suas abordagens. Para Foucault a
sexualidade deve ser pensada dentro das dinâmicas relacionais e de poder que se
estabelecem entre os sujeitos e a sociedade. Nesse sentido, afirma que:

o poder não opera num único lugar, mas em lugares múltiplos: a família, a vida
sexual, (…) a exclusão dos homossexuais, as relações entre os homens e as
mulheres. Só podemos mudar a sociedade sob a condição de mudar essas
relações (Foucault, 2006:262).

O interesse de Michel Foucault pela sexualidade humana conduziu-o à produção da obra


distribuída por três volumes intitulada História da Sexualidade (publicada em 1984). Nesta
obra o autor procura apresentar e discutir aquilo a que denominou “hipótese repressiva”, a
qual, na sua perspetiva, é inteiramente reconhecida pela sociedade contemporânea.
Foucault descreve a sociedade (desde o século XVIII) como sexualmente reprimida, o que
se reflete igualmente nas relações de poder entre os sujeitos. O autor argumenta que novas

118 
Capítulo III – Identidade e Género

formas de classificação do comportamento sexual começaram a desenvolver-se no século


XVIII, na medida em que os governos procuravam regulamentar o comportamento sexual
dos sujeitos e controlar o crescimento populacional. Foucault refere as medidas e
instituições que controlavam o comportamento sexual das pessoas, ao mesmo tempo que
aqueles que apresentavam comportamentos desviantes eram fechados em instituições
fortemente controladas e “tratados” com terapias psicanalíticas (Foucault, 2010b).

A sexualidade é assim identificada como sendo essencial para os novos mecanismos de


controlo e regulação social, que operam nos discursos e instituições modernos, os quais,
depois de três séculos, se multiplicaram e trouxeram consigo interdições e proibições, pois
existe uma ciência sexual que se recusa a falar do sexo em si, subordinando o discurso da
sexualidade aos seus “aspetos negativos”, tais como patologias, perversões e aberrações
(Foucault, 1984c). A sexualidade transforma-se, portanto, num meio de regulação social
que liga um determinado corpo a um determinado comportamento e atitude. As relações
entre conhecimento e poder ajudam a compreender o espaço da sexualidade na sociedade
(Woodward, 1997), considerando que se trata de uma construção histórica e não de um
dado da natureza (Foucault, 1984ª).

O facto de a sexualidade (ou a diferença sexual) ser severamente regulada pela sociedade
torna-a num belíssimo exemplo de como os mecanismos de poder atuam. A sociedade
criou uma espécie de guiões sexuais que indicam como os sujeitos se devem comportar nas
suas relações, vendo, por exemplo, o comportamento não-heterossexual como desviante.
Estes guiões são, normalmente, expressivos do ideal passivo e dependente do sexo
feminino, e da assertividade e do domínio do sexo masculino, o que não implica que os
homens sejam predadores sexuais e as mulheres meras presas (Woodward, 1997). Foucault
anuncia na sua obra História da Sexualidade que o Cristianismo foi o principal regulador
do pensamento e da conduta sexual, pois criou normas sociais assentes na monogamia do
casal e na subserviência da mulher.

Ao compreender o sujeito como algo feito pelo discurso e que envolve relações de poder, o
pensamento foucaultiano explica como se dá a construção da(s) identidade(s) de género.
Efetivamente, a forma como o “governo da cultura” atua nas identidades múltiplas dos
sujeitos encontra-se dependente das instituições e práticas sociais que são atravessadas por
questões de género ou, como afirma Andreoli (2003), que se encontram “generificadas”.

119 
Capítulo III – Identidade e Género

Isto implica que, nas suas relações sociais, os sujeitos sejam representados por símbolos,
práticas, discursos, representações e relações que os vão constituindo como masculinos ou
femininos.

A discussão de Foucault sobre questões de género ou de identidade de género foi


substituída pela sua visão sobre a teoria da sexualidade. Na sua obra História da
Sexualidade, Foucault teoriza o conceito de sexualidade aproximando-se da ideia de que a
sexualidade e as diferenças sexuais são construídas dentro das discussões que participam
na formação da identidade. Esta formulação de Foucault, ao centrar-se no conceito de
sexualidade, abre caminho para a teorização relacional da identidade, do poder, dos
discursos e daquilo que se consideram as diferenças de género, pois os sujeitos
desenvolvem o seu Eu nos, e através dos, discursos disponíveis (Burr, 1995; Shotter,
1989), incluindo os discursos de género.

Quando se analisa a questão da construção da identidade de género nos estudos de


Foucault percebe-se que o filósofo parte da ideia de que não existe uma base biológica ou
uma naturalização psicanalítica que determine as diferenças de identidade entre homens e
mulheres, mas sim um processo discursivo que determina o género e que é visto como algo
que nunca está inteiramente finalizado. Quer isto dizer que Foucault não faz uma distinção
de género nos seus discursos, quer sobre o desejo, quer sobre o poder. Giuliano Andreoli
(2003:21) acrescenta ainda que os estudos foucaultianos procuram investigar como os
conhecimentos, as instituições e as normas da sociedade se constroem e “são atravessadas
por representações e por pressupostos de feminino e de masculino, ao mesmo tempo que os
expressam e reproduzem”.

Em suma, Foucault prevê que é possível atribuir uma função arqueológica e outra
genealógica aos estudos de género. Ao se aceitar uma polaridade de género, isso implica
questionar e analisar arqueologicamente quais os meios, as condições e os processos
usados para construir estes discursos da polaridade. A partir do momento em que são
questionadas posições e efeitos de poder na construção discursiva, adivinha-se uma tarefa
genealógica. Na realidade, é difícil separar estes dois conceitos, pois a arqueologia é
também uma genealogia.

120 
Capítulo III – Identidade e Género

O contributo teórico de Foucault em relação à sexualidade centra-se na apresentação de


uma visão oposta à construção do sexo como algo causal e unívoco. Para o filósofo, o sexo
pode ser apresentado como um efeito, propondo a sexualidade como “(…) um sistema
histórico aberto e complexo de discurso e poder que produz o termo impróprio de ‘sexo’
como parte de uma estratégia para esconder e, portanto, para perpetuar relações de poder”
(Butler, 1990:95).

3.2.2. Diferenças de género e poder

A relação que se estabelece entre os sujeitos e a sociedade cria dinâmicas de poder que se
diferenciam de acordo com o seu sexo/corpo ou, mais especificamente, com o género que
lhes está associado. Assim, segundo Isin & Wood (1999:72) “as ideologias e práticas
sexuais são tão antigas como qualquer mito em que a civilização ocidental repousa”, tendo
sido apenas com o capitalismo moderno que os papéis feminino e masculino se
institucionalizaram, espacial e economicamente. Deste modo, o simbolismo do corpo, a
sexualidade, a política, o trabalho remunerado e a organização da sociedade atribuíram
poder ao homem de uma forma desmesurada.

Neste sentido, durante séculos foi criada uma ideologia que afastava o feminino dos
sistemas de poder através da construção de ambientes privados para as mulheres e de
ambiente públicos para os homens (Bathla, 1998); isto confinava as mulheres à esfera
privada da família e afastava a vida doméstica da discussão pública. Estas afirmações
levam Stockard & Johnson (1992) a declarar que a dominação masculina tem sido bastante
documentada, na medida em que se refere a convicções e a significados culturais que
existem no sistema de símbolos culturais, nas interações do dia a dia e nas instituições
sociais, e que consentem mais importância e prestígio à masculinidade em detrimento da
feminilidade: “os papéis domésticos para as mulheres e os papéis públicos para os homens
são enfatizados em todas as sociedades” (Stockard & Johnson, 1992:245).

A este separatismo baseado no género, Jill Matthews (1984) chamou de ordenação de


género14, que reconhece que as sociedades distinguem o masculino e o feminino, embora
aceitem variações, pois as ordens de género não são, obrigatoriamente, opressivas e
hierárquicas. Em relação ao conceito de ordenação de género, Pilcher & Whelehan (2008)

                                                            
14
Tradução nossa de gender order.

121 
Capítulo III – Identidade e Género

afirmam que se trata da forma pela qual as relações de poder entre homens e mulheres
tomam sentido, pois é através das ordenações de género que são criados códigos de
feminilidade e de masculinidade, e organizadas relações. Esta abordagem não é uma mera
representação da sociedade patriarcal, pois reconhece o papel ativo dos sujeitos na
re(criação) das relações de género, permitindo que haja mudança social baseada nas
relações de poder e resistência.

Independentemente de se utilizarem os conceitos de papéis de género, de identidade de


género ou de ordem de género, é percetível que as relações entre homens e mulheres
passam sobretudo por relações de poder, que podem ser entendidas e analisadas de acordo
com diferentes perspetivas teóricas. Segundo Sonia Bathla (1998) existem algumas
tendências feministas que explicam a subordinação das mulheres, das quais se destacam
três: o Feminismo radical, o Feminismo marxista e a teoria da hegemonia de Gramsi. O
Feminismo radical defende que existem forças biológicas ou sexuais com base no domínio
masculino, enquanto o Feminismo marxista aponta várias formas de produção capitalista
onde a estrutura familiar e o trabalho doméstico são uma parte integral do poder
masculino. Em relação à teoria da hegemonia de Gramsi, o poder é visto como algo que se
exerce em várias instituições na sociedade que são controladas por pessoas, neste caso
maioritariamente homens.

Maria Rocha (2007) acrescenta ainda outra tendência, a do Feminismo liberal, onde o
poder é visto enquanto manifestação jurídica na qual é necessário entrar de forma a
alcançar direitos de igualdade. As teorias feministas mencionadas por estas duas autoras
são distintas entre si, mas:

(…) Abordam essencialmente a questão de como se mantêm e reproduzem as


relações assimétricas de poder entre os homens e as mulheres, engendradas pelas
forças racionalizadoras dos sistemas jurídicos, económicos e biológicos e que
raramente se preocupam em assinalar como tais relações assimétricas podem ser
alteradas (Rocha, 2007:219).

Apesar da variedade de movimentos feministas que se focam nas teorias das relações de
género e poder, percebe-se que o objetivo da segunda vaga de Feminismo era,
essencialmente, entender o poder como autodefinição e como fim do domínio masculino,
de forma a abrir as portas da igualdade para as mulheres. Isto conduziu alguns feministas

122 
Capítulo III – Identidade e Género

pelo caminho teórico de Foucault, que se afastava das conceções tradicionais do poder
opressivo e se centrava nas relações de poder que atravessavam todos os domínios da
sociedade. Este modelo procura acabar com a noção do “poder masculino” e traz à
discussão as dinâmicas que, inseridas nos discursos sociais, constituem os sujeitos como
relações de poder.

A experiência da identidade encontra-se presa à prática do poder e os desafios do seu


exercício são entendidos como intimações à identidade, e vice-versa, pelo que os desafios e
as ameaças dirigidos à identidade de género podem ser percebidos como ameaças a
determinadas posições de poder há muito impostas. O género torna-se, assim, numa
primeira forma de significar relações de poder e esta questão é fundamental para
compreender as próprias relações entre os sexos (Cova, 1999).

De facto, a sociedade moderna tem sido caracterizada como patriarcal, encontrando-se as


identidades dos sujeitos num meio em que as relações de poder devem ser geridas pelos
homens, embora as mulheres nunca tenham sido abstrações e sempre tenham sido
encaradas nas suas relações com os homens (Silva, 1999). Muitas vezes, os papéis sociais
entre homens e mulheres são distintos, sendo os primeiros vistos como elemento forte e as
segundas conotadas com fraqueza física. Estes conflitos conduziram a que o Eu masculino
fosse conotado com “separação”, e o Eu feminino com “interdependência” (Probyn, 1993).
Quer isto dizer que a maioria dos sujeitos do sexo masculino se preocupa em diferenciar as
suas capacidades, e os seus atributos e comportamentos em relação aos elementos do sexo
feminino, enquanto as mulheres se encontram numa busca incessante por se libertarem
desta rede de dependências há muito imposta.

Como já foi referido, a Revolução Industrial trouxe mutações na conjuntura social das
mulheres, pois permitiu criar condições de acesso à atividade profissional, iniciando toda
uma alteração à estrutura de desigualdade e inferioridade feminina. Isto conduziu a
transformações na própria estrutura familiar, pois a mulher começa a adquirir
responsabilidades outrora masculinas. No século XIX, a mulher encontrava-se subordinada
à vontade masculina devido à invenção do casamento monogâmico como meio de
assegurar a herança da propriedade privada (Taylor, 1997); esta necessidade de
transmissão da propriedade privada não permitia que a relação entre homens e mulheres se
baseasse no amor romântico.

123 
Capítulo III – Identidade e Género

Segundo Bourdieu (1999:37), a perpetuação das diferenças entre os dois sexos, na


sociedade em geral, assenta numa “lógica da economia das trocas simbólicas”, onde a
construção social das relações de parentesco e de casamento fixam as mulheres ao:

(…) Seu estatuto social de objetos de troca definidos em conformidade com os


interesses masculinos e votados a contribuir assim para a reprodução do capital
simbólico dos homens, (…) do primado concedido à masculinidade nas
taxinomias culturais.

Contudo, esta dinâmica, que permite que a dominação masculina se perpetue na sociedade
para além das metamorfoses nas formas de produção económica, foi parcialmente
interrompida pela entrada da mulher no mundo do trabalho remunerado. Esta mudança
permitiu que a mulher adquirisse um papel social mais ativo, afastando-a do seu único
papel (até então) que se limitava à produção de herdeiros. Esta mudança trouxe alterações
visíveis na estrutura familiar e nas relações de poder no casamento, que se traduziram em
mudanças nos papéis sociais feminino e masculino (Torres, 2001, 2002).

Todavia, Judith Bulter (2004) considera que ainda hoje o casamento (seja heterossexual ou
homossexual) se apresenta como a única forma de sancionar ou legitimar a sexualidade ou
as normas sexuais, e a parentalidade ou relação de parentesco, o que representa uma visão
inaceitavelmente conservadora da sociedade. Desta forma, o Estado personalizado no
poder do casamento apresenta-se como o detentor do desejo de legitimação pessoal e
social, quer ao nível do desejo e da sexualidade, quer ao nível da identidade:

O Estado torna-se no meio pelo qual uma fantasia se torna literarizada: desejo e
sexualidade são retificados, justificados, conhecidos, instalados publicamente,
imaginados como permanentes, duráveis. E, no preciso momento, desejo e
sexualidade são desapropriados e deslocados, então o que nós “somos”, e o que a
nossa relação “é”, deixam de ser assuntos privados. De facto, ironicamente,
podemos dizer que pelo casamento os desejos pessoais adquirem um certo
anonimato, (…) mediados publicamente (…) (Butler, 2004:111).

Até à segunda metade do século XX, os papéis masculino e feminino eram natural,
inevitável e funcionalmente diferentes, principalmente na vida familiar, em que o homem
assumia um papel “instrumental” e de suporte familiar, enquanto a mulher desempenhava
“atividades expressivas”, como, por exemplo, educar os filhos e acompanhar o marido
(Taylor, 1997). Esta dinâmica estava construída em torno da ideia de manter afastada a

124 
Capítulo III – Identidade e Género

mulher das posições de competitividade masculina. Ora, este aparente domínio masculino
num nível micro (familiar) é uma amostra daquilo que se passa a nível macro (sociedade):
as mulheres são constantemente afastadas das ocupações masculinas no mundo do trabalho
de forma a não competirem diretamente com o sexo oposto.

Esta distribuição baseada no sexo/corpo criou aquilo que Isin & Wood (1999)
identificaram como espaço de identidade de género. A ocupação deste espaço estabelece-se
em casa, familiarmente, e isso reflete-se na sociedade, e vice-versa. As noções de espaço
de género estão fortemente ligadas às diferenças hierárquicas entre mulheres e homens e às
atividades diferenciadas que normalmente lhes são atribuídas e que foram alicerçadas nos
modelos das famílias burguesas. Este modelo familiar assentou na reformulação do
conceito de sociedade patriarcal desenvolvido por Kate Millett (1989) na década de 1970.
Este conceito, que representava as estruturas familiares dominadas pelos homens mais
velhos, foi ampliado por esta feminista americana para a representação das estruturas de
domínio masculino que existiam a todos os níveis sociais. Esta ideia de construção familiar
baseada no poder masculino conduziu Heiss a afirmar que:

Tem sido dito muitas vezes que o lugar da mulher é em casa, mas raramente tem
sido sugerido que a casa é o lugar da mulher (...). Não é simplesmente que os
homens tenham tendência a dominar em mais áreas do que as mulheres (...) [mas
sim] que os maridos tenham mais probabilidade de exercer poder nas áreas
femininas do que as esposas em áreas dominadas por homens (Heiss, 1986:89-
90).

Este autor baseia a sua posição num estudo sobre a distribuição de papéis familiares
conduzido nos Estados Unidos na década de 1980, onde foi possível identificar quais as
condições em que se desenvolvem as relações de poder entre o casal. Assim, determinou-
se que os homens exercem mais poder nas decisões familiares que as mulheres, mas que
este depende e varia de acordo com alguns fatores, como, por exemplo, a natureza das
decisões a tomar, o poder económico do sujeito, a capacidade de negociação e a condição
sociocultural da mulher – as mulheres com mais poder nas tomadas de decisão familiares
são, por exemplo, as que têm educação mais elevada que os maridos e as que estão
empregadas. Estas diferenças na distribuição do poder variam de acordo com o tempo e o
espaço em que se inserem, mas é facilmente percetível que as mulheres se encontram em

125 
Capítulo III – Identidade e Género

desvantagem em termos de competitividade pelo poder, pois o homem, a família, a


sociedade e a própria ideologia estão, muitas vezes, contra elas, mostrando-se como um
obstáculo difícil de superar (Heiss, 1986).

Em grande parte dos estudos de género, as relações sociais entre o sexo masculino e o
feminino têm sido analisadas enquanto relações de poder, como forma de perceber,
interpretar e ultrapassar diferenças. Este dinamismo entre relações de género e poder
prevalece nos discursos sociais, sobretudo naqueles difundidos pelos movimentos
femininas. Trata-se de discursos que analisam as tensões entre homens e mulheres, de
acordo com o contexto em que são utilizados e interpretados. Os discursos de género são
elementos poderosos, pois produzem homens e mulheres socialmente marcados pelo
género, ou seja, marcados pela diferença.

A diferença de género referida resulta dos discursos de significação que, quando


praticados, “fazem surgir os efeitos discursivos que produzem as próprias diferenças de
género, assim como categorizações de género” (Moore, 2000:17). Quer isto dizer, por
exemplo, que tanto os discursos feministas como os machistas salientam as diferenças
entre homens e mulheres, embora o objetivo que pretendem atingir seja diferente. Estes
discursos podem ainda ser públicos ou privados, e podem ter várias conotações ou
objetivos que vão desde o foro económico ao filosófico. Isto implica que a natureza destes
discursos seja diversificada. Segundo Moore (2000:28) os “discursos de género variam
entre culturas”, trabalhando, por um lado, o conceito de “oposição”, e, por outro, o de
“multiplicidade”.

De acordo com a divisão referida, os discursos de “oposição” de género centram-se nas


diferenças criadas pela dualidade homem-mulher e, a maior parte das vezes, estes discursos
são dominantes, estrutural e hierarquicamente, transformando a diferença num lugar
primordial de produção de relações de poder. Em relação à “multiplicidade” desses
discursos de género, Moore (2000:28) aceita a possibilidade de existirem discursos de
natureza mais “processual, mutável e temporária” na atribuição do género, que não se
centram apenas na divisão homem-mulher, aceitando outras categorizações. O autor remata
este assunto afirmando que a opção pela diferença de género entre ou dentro das múltiplas
masculinidades e feminilidades é uma opção particular, mas, acrescente-se, trata-se de uma

126 
Capítulo III – Identidade e Género

opção fortemente influenciada pelos discursos e práticas sociais que um determinado


contexto oferece.

Atualmente, a conceção de poder revela-se mais complexa, ultrapassando as fronteiras da


dicotomia dominação-submissão. Com a introdução das noções foucaultiana e
bourdieusiana de poder, que vê este como algo que flutua entre os grupos dominantes e os
dominados, os homens (até aqui vistos como grupo dominante) não são os únicos
“detentores” de poder. A identidade feminina deixa de ser vista como uma construção
imposta pela masculinidade, estando apenas dependente das estruturas discursivas e das
relações de poder sociais (que são tendencialmente falocêntricas).

Ainda no âmbito do debate que articula poder e género destaca-se a obra Anatomia do
poder feminino15 (1990), da autoria de Chinweizu16. O autor, que aponta críticas às
atuações dos movimentos feministas, afirma que se o poder feminino existisse seria algo
possuído pelas mulheres através da autoridade pública, criando aquilo que se conhece
como “matriarcado”. Todavia, para o autor, apesar de uma sociedade totalmente matriarcal
não existir, isso não implica que não exista poder feminino: trata-se de uma espécie de
“poder sem autoridade”.

Embora Chinweizu (1990) reconheça que as mulheres não se encontram bem representadas
nas estruturas públicas e institucionais, ele assume que existem muitas outras fontes de
poder (educação, propaganda, castigo, reconhecimento, etc.) que estão nas mãos femininas.
Quer isto dizer que na sociedade há espaço para ambos os géneros e que apesar de,
aparentemente, as sociedades parecerem falocêntricas e patriarcais existe, nos bastidores,
uma versão feminina das mesmas. Trata-se de uma hierarquia pouco clara das relações de
poder entre homens e mulheres:

Porque cada homem tem como chefe a sua própria esposa, ou a sua mãe, ou
qualquer outra mulher na sua vida, os homens podem governar o mundo, mas as
mulheres governam os homens que governam o mundo (Chinweizu, 1990:12).

Chinweizu (1990) afirma que o poder feminino existe sobre o masculino e que é visível
através de cinco pilares principais: 1) o controlo feminino sobre o ventre; 2) o controlo
feminino sobre a cozinha; 3) o controlo feminino sobre o berço; 4) a imaturidade
                                                            
15
Título completo da obra: Anatomy of female power. A masculinist dissection of matriarchy.
16
Chinweizu é um investigador nigeriano que fez a sua formação superior nos E.U.A.

127 
Capítulo III – Identidade e Género

psicológica dos homens em relação às mulheres; e 5) a tendência do homem a ser


perturbado pela excitação física. Destes pilares, Chinweizu destaca o poder do ventre
feminino, pois a mulher possui a excecionalidade de dar à luz o ser humano. O autor
mostra também que estes cinco pilares podem ser condensados em apenas três fases: o
poder da mãe, o poder da namorada e o poder da esposa17. Chinweizu (1990) caracteriza
ainda ambos os sexos, atribuindo força, confronto, agressividade e comando ao sexo
masculino e calma, passividade, emoção e capacidade de manipulação ao sexo feminino.
Estas atribuições não passam de imagens que são reproduzidas na sociedade (que este
autor facilmente vulgariza) e que, automaticamente, dão visibilidade ao poder masculino e
atribuem inferioridade ao poder feminino.

Para o autor, este matriarcado escondido é uma opção consciente das mulheres, pois estas
preferem não ter de lidar com as obrigações a que a exposição do seu poder lhes poderia
trazer. As mulheres preferem posições com pouca pressão e baixo risco, liderando por trás
do trono do patriarcado: “sob este acordo, uma mulher tem tudo a ganhar e nada a perder,
exceto pequenas vaidades” (Chinweizu, 1990:75). Aos olhos da teoria foucaultiana, poder-
se-ia entender esta posição das mulheres como o “poder de resistência” ao poder
masculino. Toda esta visão leva Chinweizu (1990) a colocar uma questão: porque é que os
homens não se revoltam com esta situação e impõem um verdadeiro patriarcado? Para ele,
a resposta é simples: porque esta é uma fachada que alimenta o ego masculino o suficiente,
e, para além disso, as mulheres não o iriam permitir.

Ao contrário do que muitos teóricos (modernos, pós-modernos, estruturalistas, pós-


estruturalistas, feministas e pós-feministas) defendem, Chinweizu (1990) afirma que o
poder feminino existe e que opera sobretudo no casamento18, mas não em larga escala
institucional, porque não sente necessidade: “o poder feminino não precisa dessas
estruturas elaboradas de autoridade formal que evoluíram para controlar os grandes
agregados de pessoas exigidas pelas atividades especializadas do domínio masculino”
(Chinweizu, 1990:111).

A teoria de Chinweizu (1990) revela-se antifeminista e arrojada ao tentar afastar-se da


tradicional conceção da submissão “incontrolável” do sexo feminino ao masculino.
                                                            
17
Tradução nossa de motherpower, bridepower e wifepower.
18
O casamento e o controlo da família são uma espécie de “organização do ninho” (tradução nossa de nest
organization). 

128 
Capítulo III – Identidade e Género

Contudo, é importante fazer-se outra leitura desta teoria, na medida em que, apesar de o
autor destacar constantemente que a posição de “poder por trás do trono” é uma posição
perfeitamente consciente das mulheres, esta pode ser apenas a única forma de “poder” que
lhes é permitida. Embora o discurso do autor pretenda caminhar no sentido da libertação
das mulheres (focada na consciência da sua própria situação), por vezes, as suas palavras
salientam o conformismo e não preveem a capacidade das mulheres irem mais além nos
seus modelos de resistência ao poder masculino. No âmbito de algumas teorias feministas,
esta pode revelar-se como uma das formas machistas de dar um falso sentido de liberdade
e de poder às mulheres. Chinweizu apenas parece dar continuidade ao simbolismo
lacaniano que sedimenta práticas sociais que perpetuam a heteronormatividade cultural
através da estrutura familiar edipiana (falocêntrica). Esta visão afasta-se completamente da
pós-estruturalista que prevê um queerismo da psique, da diferença sexual e do género, e
que repensa toda a estrutura social de poder.

O problema do autor reside, logo à partida, na sua definição de poder como “posse” e não
como exercício: “se a essência do poder é a habilidade de conseguir o que queremos, então
as mulheres estão longe de ser impotentes” (Chinweizu, 1990:11). De facto, esta definição
afasta-se da conceção foucaultiana de poder distribuído e entrelaçado nas relações do
tecido social, o que, automaticamente, se revela desatualizado no contexto teórico pós-
moderno. O poder não é o que queremos ou possuímos, mas sim o que é exercido e circula
no feixe de relações organizadas, piramidal e coordenadamente (Foucault, 2010a).

3.2.3. Identidade(s), performatividade e normatividade de género

“A identidade de género é construída e vivida.”


(Moore, 2000:15)

Segundo Boudreau (1986:64) a socialização é um processo bastante complexo “pelo qual


os indivíduos aprendem hábitos, crenças e standards para julgar e que os tornam membros
identificáveis de um grupo ou sociedade”, tal como acontece com a distinção baseada no
sexo (feminino ou masculino). Contudo, é apenas o processo cultural da socialização que
atribui um sentido e um papel social a cada sexo, nascendo assim a(s) identidade(s) de
género dos sujeitos.

129 
Capítulo III – Identidade e Género

Não são o desenvolvimento e a maturação físicos que atribuem uma identidade de género a
um sujeito, mas sim a sua inserção e o seu reconhecimento no meio social, enquanto
mulher ou enquanto homem (e, em algumas culturas, enquanto terceiro género). Este
sentido de si é atribuído pelos papéis sociais que estão inevitavelmente ligados ao sujeito,
mas também são construídos papéis que se vão desenvolvendo ao longo da vida do sujeito
de acordo com o reconhecimento do seu género pela sociedade. O sexo, o corpo e a idade
são aspetos que normalmente remetem para a biologia e para a sociobiologia, mas é
importante perceber que são as normas e os valores culturais que aprendemos sobre estes
aspetos que nos ajudam a formar a nossa identidade individual como homens e mulheres
(Abbott, 1998).

Até à segunda metade do século XX, a identidade de género não era uma problemática, na
perspetiva antropológica, porque era associada a aceitação e a imposição sociocultural. A
identidade já era vista como uma construção complexa, e o género era apenas uma parte do
Eu de cada sujeito. Contudo, o facto de se perceber que não existe um modelo cultural
único de género, mas uma multiplicidade de discursos sobre o género (Moore, 2000),
despertou o interesse de investigadores, pois o modelo do sujeito tradicionalmente unitário,
racional e masculino começava a ser colocado em questão.

Na opinião de Louro (1997), não se deve confundir a noção de construção de identidade de


género com a construção de papéis de género. Por papéis de género entende-se as regras
que uma sociedade estabelece para os sujeitos, definindo os seus comportamentos e
atitudes, enquanto por identidade de género se entende algo que atua profundamente na
construção da própria subjetividade do indivíduo. Trata-se de compreender o que as
diferenças estruturais existentes entre homens e mulheres significam cultural, social e
historicamente, e como são interpretadas e representadas discursivamente. Porém, pode-se
afirmar que a construção da identidade de género implica a construção de papéis de
género, e vice-versa.

Conjuntamente com as teorias da sexualidade e da discriminação sexual surgem, nas


décadas de 1960 e 1970, as discussões sobre as diferenças de género, sobretudo através do
Movimento das Mulheres19 no Ocidente. Emergem então, segundo Morwenna Griffiths
(1995), duas formas de atuar na identidade, ambas dependentes de desejos e necessidades,
                                                            
19
Tradução nossa de Women’s Movement.

130 
Capítulo III – Identidade e Género

mas distintas, porque uma é essencialmente feminista e a outra andrógina. A vertente


feminista apoiava a condução de políticas de identidade separatistas e radicais que viam o
Eu dividido pelo género (masculino e feminino):

Nesta versão, as políticas de identidade reivindicavam que as necessidades e


interesses de cada mulher são determinados pela sua identidade como mulher, e
que aquelas mulheres que reivindicavam necessidades e interesses diferentes
estão num estado de falsa consciência (Griffiths, 1995:77).

A forma andrógina de atuar é mais liberal e representa um Feminismo reformista que


aceita que as necessidades e os desejos são praticamente semelhantes em ambos os sexos,
pelo que o Eu não possui género: trata-se de pessoas e não de homens e de mulheres, pelo
que não há necessidade de uma política de identidade (Griffiths, 1995). Mas, terá sido o
aparecimento desta crítica contemporânea feminista que também iniciou o interesse pelo
sentido e pelo significado da diferença e da identidade de género. Algumas destas críticas,
baseadas no trabalho de Lacan e Foucault, argumentam que “a identidade de género (…) é
constituída através de sistemas simbólicos sociais ou instituições de poder” (Weir, 1996:6).

A crítica feminista permitiu uma revolução no conhecimento e na maneira de abordar o


estudo sobre a História das mulheres, que, na prática, foi bastante útil para influenciar a
conceção de estratégias determinadas a modificar o estado atual da relação material e
simbólica entre o masculino e o feminino. Todavia, certos discursos do Feminismo foram
preponderantes em focar o princípio da perpetuação da relação de dominação masculina no
interior das unidades domésticas, desconsiderando, por vezes, instâncias como o Estado e a
Escola, “(…) lugares de elaboração e de imposição de princípios de dominação que se
exercem no interior do universo mais privado (…)” (Bourdieu, 1999:4).

A discussão pioneira em torno da identidade e do género encontra-se na obra Le Deuxième


20
Sexe , da escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir. A problemática do Outro
experienciada por Simone de Beauvoir encontra-se em sintonia com o trabalho de Sartre,
embora, para a autora, o problema do Outro seja multifacetado e exigente na medida em
que é necessário saber lidar com a ameaça da representação da imagem de si próprio
através do olhar do Outro. Quer isto dizer que é fundamental manter o sentido de

                                                            
20
Le Deuxième Sexe (publicado em 1949 e distribuído por dois volumes) fica conhecido como o ensaio
filosófico que analisa profundamente o papel das mulheres na sociedade.

131 
Capítulo III – Identidade e Género

autonomia individual, ao mesmo tempo que se deseja a relação com o Outro (que pode ser
conflituosa e/ou estimulante). Mais do que discutir a relação entre o Eu e o Outro,
Beauvoir disseca as relações entre os sexos masculino e feminino, e analisa o papel social
da mulher.

No primeiro volume da obra referida, Simone de Beauvoir conceptualiza a relação entre o


masculino e o feminino, utilizando a dualidade ontológica sartriana (ex.: Eu/Outro,
Sujeito/Objeto). Para a autora, esta relação é definida pela luta, e é, muitas vezes,
comparada à relação mestre-escravo21, em que o Eu e o Outro são necessários um ao outro.
É esta dualidade que leva Beauvoir (1977a:16) a afirmar que “(…) a alteridade é uma
categoria fundamental do pensamento humano”, e que, acrescente-se, deve ser discutida no
âmbito da oposição de géneros.

Segundo Beauvoir, a humanidade é “masculina”, e é esta masculinidade (normalidade) que


define a mulher (diferença). De facto, a autora afirma que o homem se vê como um ser
humano absoluto e um sujeito que define, enquanto a mulher é o Outro: “ele é o Sujeito,
ele é Absoluto: ela é o Outro” (Beauvoir, 1977a:16). Nesta dialética, o homem nega-se a
ser o Outro, e a autora afirma que, embora a tendência seja para que o Outro reaja com o
mesmo comportamento, as mulheres afastam-se da reclamação da sua liberdade. Esta
realidade deve-se, no pensamento de Bourdieu (1999), a uma construção social dos corpos
e a uma incorporação da dominação que as mulheres foram adquirindo fruto de imposições
simbólicas; a mulher aceita-se como ser-percebido, vendo a masculinidade como posição
nobre e verdadeira doxa.

Efetivamente, a mulher assume o lugar do Outro puro ou absoluto22, e encontra-se,


histórica e socialmente, na posição de objeto, o que dificulta a sua libertação. Em relação a
isto, a autora entende que a mulher não se reivindica como sujeito, porque: 1) não possui
os meios concretos para o fazer; 2) o vínculo ao homem não exige reciprocidade; e 3)
porque lhe convêm divertir-se no papel do Outro: “recusar ser o Outro, recusar a
cumplicidade com o homem, isso seria para elas renunciar a todas as vantagens que a
aliança com a casta superior lhes pode conferir” (Beauvoir, 1977a:23). Para a autora as
mulheres são, com toda a certeza, moralmente responsáveis pela sua opressão, uma vez
                                                            
21
Salienta-se que Beauvoir compara a relação homem-mulher à relação mestre-escravo, embora ressalve que
é um erro falar da mulher como “escrava”, uma vez que muitas já se consideram “livres”.
22
L’alterité puré ou l’Autre absolute nas palavras de Beauvoir (1977a). 

132 
Capítulo III – Identidade e Género

que lhes é oferecida alternativa. Beauvoir acrescenta que uma das vantagens da mulher ser
o Outro é a capacidade dela evitar a angústia de ter responsabilidade pela vida; no fundo de
ter a responsabilidade de uma existência autêntica. Contudo, aqui é preciso salientar que
Beauvoir não considerou o facto de que nem sempre há uma alternativa para o sexo
feminino, e que nem sempre a mulher se satisfaz com as “vantagens” de ser o Outro.

Em resposta à problemática supracitada, Beauvoir procurou discutir a liberdade da mulher


em ambos os volumes da obra referida. Para a autora, “não se nasce mulher: torna-se uma”
(Beauvoir, 1977ª:285), o que revela uma opção individual feita num contexto social.
Assim, a mulher pode expandir as suas escolhas atingindo a sua libertação através do
“desmantelamento da construção masculina da mulher como o Outro” (Simons, 1999:158).
Esta atitude mostra Beauvoir como uma construcionista social que acredita na capacidade
da mulher romper com a tradição e emergir na esfera pública, transformando-a.

Para Beauvoir (1977a), os rapazes são, desde cedo, encorajados a verem-se como sujeitos,
enquanto as raparigas são preparadas para serem o objeto, e, embora olhem para si
naturalmente como sujeito, à medida que entram na idade adulta tomam consciência de que
são o Outro. De facto, para o homem parece não existir um conflito na forma como se vê e
como é visto pelo Outro, enquanto nas mulheres existe um conflito entre a sua existência e
o ser o Outro: “(…) a feminilidade significa ser um objeto. Ser um sujeito e uma mulher
não é tarefa fácil” (Lundgren-Gothlin, 1996:182). Esta pressão é feita sobretudo pelos
homens que querem possuir um Outro que os legitime e, em certa medida, os julgue (o
olhar de um homem para outro homem é diferente do olhar de uma mulher para um
homem).

Ao estar condenada a exercer o papel do Outro, a mulher exerce um poder precário que é
reforçado pela teoria da transcendência e da imanência23, explorada tanto por Sartre (1962)
como por Beauvoir (1977a). Para a pensadora, existe uma esfera de transcendência própria
à masculinidade que engloba criação, criatividade e existência, e que é apelidada de esfera
pública. Esta esfera entra em contraste com a feminina, a chamada esfera privada ou da
imanência, e que é caracterizada pela repetição, continuidade e manutenção (Lundgren-

                                                            
23
Simone de Beauvoir (1977a) regressa às raízes filosóficas do Marxismo quando este adota a distinção de
Hegel entre imanência e transcendência.

133 
Capítulo III – Identidade e Género

Gothlin, 1996). A luta de muitas mulheres reside na vontade de atingir a transcendência,


ultrapassando a sua própria imanência.

Em Le Deuxième Sexe, Beauvoir critica ainda o papel do socialismo de Marx e de Engles,


acusando-os de negar a experiência feminina. Na realidade, a ideologia socialista não prevê
nenhuma categoria humana como objeto, pelo que Marx afirmava não existir, numa
sociedade autenticamente democrática, lugar para a diferença. Engles corroborava esta
afirmação dizendo que quando o Socialismo se realizasse, deixaria de existir a dualidade
homem-mulher e passaria a existir uma categoria: trabalhadores iguais. A própria
constituição da antiga URSS, na década de 1930, atribuía igualdade social entre homens e
mulheres, tanto na lei como na prática. Mas, seria isto uma realidade prática? Beauvoir
tinha as suas dúvidas, pois:

Uma ética verdadeiramente socialista, isto é, que procura a justiça sem suprimir a
liberdade, que impõe aos indivíduos encargos, mas sem abolir a individualidade,
se encontrará muito envergonhada pelos problemas que coloca à condição das
mulheres (Beauvoir, 1977a:75).

A pensadora acusava ainda Engles de reduzir a situação das mulheres à produção


económica, pelo que a experiência da maternidade e da sexualidade femininas eram vistas
como danos individuais que desafiavam o Estado. No mesmo sentido segue a crítica de
Beauvoir à Psicanálise que, tal como o Marxismo, silenciava as mulheres, reduzindo a sua
experiência àquela dos homens. No que diz respeito à identidade de género, tanto Freud
como Lacan são acusados de produzir teorias falocêntricas, de tentar impor um modelo
masculino para a experiência feminina, em que o homem é considerado a regra e a mulher
o elemento de diferença. Tal como afirmou Simone de Beauvoir (1977a:53), “Freud não
está muito preocupado com o destino da mulher”, pois aceita que a libido feminina surge
apenas como um desvio complexo da libido humana em geral e supõe que a mulher se
sente um “homem mutilado”.

Segundo Simons (1999), a intenção de Beauvoir não é simplesmente negar as diferenças de


género como as mulheres as experienciam, mas sim desmistificá-las, tanto que o subtítulo
do segundo volume de Le Deuxième Sexe se intitula L’experiénce vécue24. Neste segundo

                                                            
24
A experiência vivida.

134 
Capítulo III – Identidade e Género

volume, a autora tenta mover-se fora do contexto das construções dos homens que veem a
mulher como o Outro, desafiando a dualidade objetivo/subjetivo.

No segundo volume da obra, Simone de Beauvoir (1977b) exemplifica a experiência


feminina utilizando referências que vão desde a infância das mulheres até à sua condição
de esposa, mãe, prostituta, elemento social, entre outras. No fundo, a autora assegura que a
mulher parece reconhecer que o universo é masculino (Beauvoir, 1977b), o que conduz à
imagem social de que a mulher deve ser protegida como uma criança ou um ser indefeso.
Todavia, a autora não deixa de afirmar que a mulher permanece sempre um sujeito, por
mais renegada que possa ser, pelo que as comparações que se esforçam por definir se a
mulher é inferior, superior ou igual ao homem se revelam inúteis, visto que as situações
são sempre diferentes (Beauvoir, 1977b).

Beauvoir (1977a) procura demonstrar que o conflito Eu-Outro não é solipsista, mas sim
intersubjetivo, onde a identidade do Eu é sustentada e ameaçada pelo Outro, pela
identificação com o Outro. Para a autora, enquanto o homem se reconhece e é reconhecido
pelo que faz, à mulher é travada a sua subjetividade, deixando-a afastada da forma
autêntica de elaborar uma identidade. Para a autora, a liberdade feminina deve passar pela
independência económica e deve ser uma tomada de posição coletiva, que incentive o
afastamento dos laços financeiros, emocionais e sociais que prendem as mulheres aos pais
e aos maridos. Na realidade, Beauvoir defende um Feminismo ativista, pois, para si, o
único recurso para a libertação das mulheres é a luta coletiva.

O trabalho de Simone de Beauvoir abriu o caminho para a discussão da identidade de


género, sobretudo no seio das teorias feministas. Jessica Benjamin, no seu livro The Bonds
of Love: Psychoanalysis, Feminism, and the Problem of Dominations (1988) inspira-se na
teoria de Beauvoir e procura perceber a pertinência psicológica dos papéis de género em
identificar o homem como o sujeito (Eu) e a mulher como o objeto (Outro). Weir (1996)
segue igualmente este caminho ao interpretar a identidade como oposição e conflito, dentro
da dinâmica das relações de poder, também muito à maneira de Foucault. Neste caminho
teórico, Allison Weir (1996) sugere ainda outras autoras como Nancy Chodorow, Luce
Irigaray, Judith Gardiner e Judith Butler, às quais se acrescenta Rosi Braidotti.

135 
Capítulo III – Identidade e Género

Para Chodorow (1978), as identidades de género associadas ao domínio masculino e à


subordinação feminina são produzidas e incentivadas pela instituição social da
maternidade. Já para Irigaray (1978) a identidade feminina deve afirmar-se em face de uma
rejeição da identidade como construção falocêntrica. Judith Gardiner (1981) apresenta uma
visão mais otimista da identidade feminina, ao afirmar que esta é, tipicamente, menos fixa,
menos unitária e mais flexível que a individualidade masculina. Judith Butler (1990)
entende que a Sociologia e o Feminismo têm de aceitar que existe um modelo fortemente
marcado na sociedade, ao qual ela chama de “matriz heterossexual”, onde o sexo do sujeito
é visto como um atributo biológico binário atribuído à nascença (masculino ou feminino), e
o género é um componente cultural que é socializado no indivíduo ao longo da sua
existência. Para além disso, Butler vai-se basear na máxima de Beauvoir – “não se nasce
mulher: torna-se uma” – para repensar toda a conceção identitária.

Ainda no seio da discussão, David Gauntlett (2002) defende que, apesar de muitos sujeitos
verem o género como um atributo que é culturalmente fixo e permanente no Eu de cada
um, o género deveria ser visto como uma variável fluida que pode mudar de acordo com
diferentes contextos e tempos, deixando de ser um atributo e passando a ser uma
performance (uma forma de estar, de se ver, de se mostrar aos outros, e que se pode
modificar repetidamente).

Este caráter performativo do género é largamente discutido nas obras de Judith Butler,
englobando não apenas atos de fala, mas também atos corporais, pois as significações
corporais (a forma como o sujeito age mesmo no ato da fala) podem ser diferentes do
sentido (aquilo que o sujeito pretende dizer). Claramente, como corpo o sujeito é algo mais
do que ele próprio, na medida em que, ao ser constituído social e politicamente, o seu
corpo tem, indiscutivelmente, uma dimensão pública: “(…) constituído como um
fenómeno social na esfera pública, o meu corpo é e não é meu” (Butler, 2004:21). Na
realidade, os sujeitos vivem e recebem, constantemente, noções de realidade (e implicações
ontológicas) que lhes dizem que tipos de sexualidade e de corpos são considerados
aceitáveis, verdadeiros e reais, e que tipos não o são.

Neste contexto teórico, convém esclarecer que dizer que o género é uma performance
implica que o sujeito atua e representa um papel de género a que pertence, apresentando-o
ao mundo. Já dizer que o género é performativo trata-se de algo diferente, pois implica que

136 
Capítulo III – Identidade e Género

o género produza um conjunto de efeitos, ou seja, o sujeito fala, anda e comporta-se de


formas que consolidam a impressão de ser um homem ou uma mulher. No fundo, os
sujeitos atuam como se fosse algo intrínseco a eles, mas efetivamente é algo que é
(re)produzido ao longo do tempo. Portanto, dizer que o género é performativo é dizer que
ninguém é, de facto, de um género desde o início (Butler, 1997, 2004).

A noção de performatividade de género apresenta-se como uma solução para mudar a


forma da sociedade olhar para o género. Imagine-se, por exemplo, a dificuldade que uma
“maria-rapaz” ou um “rapaz-feminino” têm em se integrarem socialmente sem sofrerem
represálias das instituições formais e informais que insistem em colocá-los num dos
géneros. A noção de performatividade de género agiliza o processo de adaptação dos
sujeitos em “novas” formas de género – que não são propriamente novas, mas como as
normas que governam a realidade não as admitem é necessário considerá-las como “novas”
formas de género.

Segundo Judith Butler (2004) é necessário criar espaço para estas “novas” formas de
género, discutindo-as e desenvolvendo-as na lei, na psiquiatria, na teoria social e literária, e
na complexidade lexical. Tudo isto implica uma política centrada na questão da
sobrevivência, visto que o mundo terá de entender os sujeitos com estes “novos” géneros e
o seu desejo de não-normatividade sem o encarar com violência. Os próprios sujeitos têm
de viver sem se entenderem como irreais. Portanto, dentro da política teórica deverá haver
espaço para o pensamento do possível, pois “o pensamento de uma vida possível é apenas
uma indulgência para aqueles que já se conhecem ser possíveis; para aqueles que ainda
estão à procura de se tornarem possíveis, a possibilidade é uma necessidade” (Butler,
2004:219).

Esta renovada visão de género afetaria, com certeza, a forma como os sujeitos vivem e as
necessidades e espectativas das comunidades em que se inserem, e, obviamente, de toda a
humanidade:

Dizer, contudo, que o género é performativo não é simplesmente insistir num


direito de produzir um espetáculo prazível e subversivo, mas alegorizar o
espetacular e formas consequenciais pelas quais a realidade é reproduzida e
contestada (Butler, 2004:30).

137 
Capítulo III – Identidade e Género

A performatividade de género abre então as portas para novas formas de realidade através
da incorporação. Segundo Butler (1993, 2004), o corpo é um processo de transformação
que excede e (re)trabalha a norma e que mostra que a realidade existente não é fixa. Mas,
se imagens de outras possibilidades não são apresentadas isso significa que não há espaço
para desfazer a norma e abrir a porta para o imaginário de outras “normalidades” humanas.
Este assunto abre caminho para toda uma discussão sobre a legitimidade das normas de
género que são (re)produzidas na sociedade.

O problema da sociedade reside precisamente no facto de pensar em termos de sexualidade


(e da “guerra dos sexos”). Logo, a sexualidade do sujeito é pensada de e para o Outro,
antes de ser construída de e para si, acontecendo o mesmo em relação ao seu género. Aliás,
quando o próprio sujeito se reivindica acaba por ser reclamado pelo Outro. Obviamente
que isto não limita a liberdade e reivindicação dos sujeitos, mas significa que estes devem
ter a consciência que se constroem como o Outro. Claro que, apesar dos constrangimentos
normativos que limitam a sexualidade e a construção do género, estes mesmos
constrangimentos são mobilizadores e incitadores de outra(s) sexualidade(s) e de outras
construções de género.

É neste sentido que segue o trabalho teórico de Judith Butler, que procura desfazer
conceções restritivas da normatividade social e simbólica, a vários níveis, mas sobretudo
ao nível da sexualidade e do género. Se, por um lado, as normas são aquilo que orientam os
sujeitos e os guiam no contacto e interação com o Outro, por outro lado, elas são também a
forma pelo qual o sujeito é reconhecido como humano, codificando nesse processo
complexas operações de poder:

(…) A normatividade refere-se ao processo de normalização, a forma pela qual


certas normas, ideias e ideais prevalecem sobre a vida incorporada,
providenciando critérios coercivos para o ‘homem’ e a ‘mulher’ normais. E (…)
vemos que as normas são o que governam a vida ‘inteligível’, homens ‘reais’ e
mulheres ‘reais’ (Butler, 2004:206).

O sujeito é assim constituído por normas que não são feitas por ele, mas que existem a
priori e que representam uma forma de poder social (que não implica propiamente uma lei)
que produz o campo inteligível da humanidade e um aparato pelo qual a binariedade de
género é instituída. De facto, existem normas e discursos de género em curso, impostos

138 
Capítulo III – Identidade e Género

externamente, pelos quais os sujeitos se descrevem. Assim, a auto-observação não difere


da forma como o sujeito é visto, na medida em que o olhar do Outro é interiorizado.

Esta visão complexifica-se quando se passa a perceber que o género não é mais do que
uma regra regulatória reproduzida, invocada e incitada por normas linguísticas e corporais.
Deste modo, para que o sujeito faça parte da cultura imposta, é necessário que respeite os
tabus da heterossexualidade normativa. Mas, se se reconhece que são as regras que formam
e produzem o género, não seria possível pensar o que aconteceria se o género estivesse a
priori da regulação? Como seria a humanidade se o género não fosse uma norma
regulatória simbolicamente imposta?

Para Judith Butler, se o género é culturalmente formado, isso implica que seja também um
domínio de liberdade. Torna-se importante resistir à violência que é imposta pelas normas
de género ideais, especialmente para com aqueles que não encaixam nelas ou se mostram
inconformados com a apresentação do género. Desta forma, a autora afirma a necessidade
de “desfazer” a norma para “desfazer” o género, utilizando para isso uma formação de
pensamento complexa que tem início no conceito “tornar-se”.

Com a obra Undoing Gender (2004), Judith Butler desenvolve toda uma estrutura de
pensamento que se baseia particularmente na afirmação de Simone de Beauvoir
(1977ª:285) “não se nasce mulher: torna-se uma”. Desta forma, Butler acredita que o
“tornar-se” é o veículo para o próprio género, que se encontra em constante processo de
transformação e de construção. Para a autora, fazer-se justiça ao próprio sujeito é percebê-
lo como humano antes do seu género e vê-lo para lá da sua sexualidade, da sua genitália.

Já para Rosi Braidotti (2002) que entende que para se pensar a identidade, o sujeito ou
qualquer perfil identitário, isso implica, frequentemente, uma diferenciação sexual, ou seja,
é difícil pensar as questões supracitadas sem sexualizar o sujeito. A solução está em
desconstruir isto através do “desejo” de “tornar-se”, de criar/recriar o sujeito: “tornar-se é a
realização do encontro imanente entre sujeitos, entidades e forças que estão aptos
mutuamente a afetar e trocar partes uns dos outros de uma forma criativa e não-individual”
(Braidotti, 2002:68).

Recuando um pouco na teoria identitária e sexual de Braidotti (2002), percebe-se que a


autora é defensora do sujeito que pensa em processos e não propriamente em conceitos,

139 
Capítulo III – Identidade e Género

sobretudo se o mundo caminha freneticamente para a mudança. Desta forma, é a


transformação que é pensada e não os pontos de partida/chegada do sujeito. Obviamente
que no caminho deste processo se encontram pontos de encruzilhada importantes, mas que
não são estanques e atribuem produtividade ao processo, descentrando-o, complexificando-
o, relativizando-o e criticando-o. É neste ponto que o trabalho de Braidotti se diferencia do
de Butler, apesar das duas autoras pós-estruturalistas fazerem novas e inovadoras leituras
do que implica ser homem e ser mulher, ou melhor, ser um sujeito.

Como já foi discutido, Butler faz a leitura do género através do conceito de


performatividade: ser homem ou ser mulher implica um processo de performatividade e
não uma diferenciação sexual. Para Braidotti (2002), existem claramente dois sexos – o
masculino e o feminino – sendo que as performatividades se encontram entre estes dois
pólos e permitem a criação de “novas figurações” e de novos “lugares sociais”. Estas
figurações não são imagens pensadas, mas mapas concretos, materiais e reais (posições
incorporadas e absorvidas numa materialidade) que ajudam a cartografar o mapa das
relações de poder e a identificar lugares de resistência. Nas palavras da autora, esta “(…)
cartografia é uma leitura teoricamente enraizada e politicamente informada do presente”
(Braidotti, 2002:2).

Apesar de Butler e Braidotti identificarem ambas a presença de uma estrutura real, social e
normativa em que o feminino é constantemente um Outro do Eu masculino (aquilo que
Braidotti apelidou de “lógica do mesmo”), a resolução de cada uma para o problema difere.
Para Butler a solução está na aniquilação do pensamento binário masculino-feminino e da
diferença sexual, sendo esta normatização substituída pela performatividade de género.
Para Braidotti é a diferença sexual e o que está entre o masculino e o feminino que
permitem pontos de fuga para outras performatividades/leituras capazes de apresentar
novas formas de resistência. Este ponto de vista interessa particularmente a esta
investigação, na medida em que também se procuram as possibilidade, os pontos, os
lugares e/ou os perfis resistentes.

Uma leitura aberta do caminho teórico destas duas autoras deixa adivinhar que o género
não deve determinar a existência dos sujeitos na sua individualidade e que a sociedade
deve deixar espaço para que o sujeito possa escolher como quer ser reconhecido. Quer isto
dizer que, apesar do género ser um aparato que produz e normaliza o masculino e o

140 
Capítulo III – Identidade e Género

feminino, este “(…) pode bem ser o aparato pelo qual esses termos são desconstruídos e
desnaturalizados” (Butler, 2004:42), contribuindo, tanto de uma forma como de outra, para
a construção da identidade dos sujeitos.

Se no capítulo anterior deste estudo se percebe o caráter mutável e em contínuo


desenvolvimento atribuído à identidade, neste entende-se a influência que a normatividade
de género exerce sobre esse processo. Os indivíduos estão sujeitos a normas de género
abstratas e validadas socialmente, que “fazem” e “desfazem” as suas vidas e que, muitas
vezes, são exercidas coercivamente provocando uma espécie de ansiedade ou pânico
profundo nos sujeitos. Estas normas procuram validar, julgar e analisar, constantemente, o
que é “normal” e o que não está dentro dessa normalidade. O problema reside em que, de
acordo com o pensamento butleriano, essa normalidade nunca é alcançada. Logo, o
“problema de género” (e da sexualidade) é uma questão permanente, com respostas
constantes.

Esta realidade desperta algumas questões sobre a identidade, pois se os indivíduos estão
sujeitos a estas normas, que tipo de pessoas estão a ser “feitas”? Que tipos de homem estão
a ser validados? Que tipos de mulheres são aceites? E qual o lugar dos sujeitos que vivem
entre a binariedade de género? Se se pensar nas duas formas comumente aceitáveis para
pensar o sujeito e o género – meio ou genética – estas questões ficam, à partida, reduzidas
a estruturas simbólicas e normativas falocêntricas, que frequentemente são causadoras de
“crises” identitárias, pois é a presença ou a ausência do “phallus” a medida das coisas e a
forma como se determinam os sujeitos.

O pensamento butleriano e, mais especificamente, o pensamento pós-feminista


reconhecem que os limites supra apontados são positivos, pois isso expõe a humanidade e
eleva os limites da inteligibilidade. Em suma, a(s) identidade(s) (de género) deve(m) ser
reconhecida(s) fora da norma e não a partir do Outro (Bulter, 2004). Isto não implica que a
relação com o Outro não seja fundamental na (des)construção identitária. Segundo Butler
(1990), são as normas que constituem o género e “fazem” e “desfazem” os sujeitos,
sobretudo através do desafio lançado pela relação com o Outro (é o Outro que faz, desfaz,
questiona e reconhece o Eu; logo se reconhece e valida um Eu, também pode reconhecer e
validar um outro Eu).

141 
Capítulo III – Identidade e Género

Estas questões levantadas por Butler demonstram que a identidade de género deixou de ser
uma questão do “ser” (ontológica) para passar a ser uma questão do “tronar-se”, o que
conduz a várias “direções” identitárias. Mesmo quando o sujeito tem a sua identidade de
género e a atua, no futuro é possível perdê-la, reconstruí-la, validá-la de outra forma,
transformando a própria questão de género numa pergunta constante e nunca numa
resposta definitiva. Desta forma, o género é visto como um “falhanço” e, no pensamento
butleriano, o que deve ser valorizado é o desejo e o reconhecimento de cada um. Já
Braidotti (2002) afirma que a discussão das teorias da diferença sexual (sobretudo a
feminista) deve enfatizar a importância política do desejo em oposição à vontade, bem
como o seu papel na construção do sujeito, colocando este desejo de ser e de se tornar
debaixo da mesma capa teórica da ontologia.

Toda esta discussão, que se apoiou fundamentalmente nos argumentos de Butler, reforça a
ideia de que tanto a questão da diferença sexual como a da identidade de género devem ser
constantemente problematizadas e abertas a discussão, em vez de fechadas numa definição,
pois isso fará com que o sujeito se transforme em algo “estranho” e que atua de acordo
com o socialmente estabelecido (mesmo que não “encaixe” nas construções sociais dos
conceitos). Esta visão entende que o futuro simbólico abrirá múltiplas possibilidades, tanto
para mulheres como para homens, libertando-os da obrigatoriedade de permanecer uma
coisa ou agir de acordo com uma determinada forma (dividida no sentido falocêntrico
heteronormativo). Resta questionar: Será que a estrutura para pensar a diferença sexual e o
género tem de ser binária para que se possa emergir a multiplicidade do feminino e do
masculino? Butler (1993, 2004) lança o desafio teórico de se pensar antes: Porque não
pode ser esta estrutura sexual ela própria transformada do binário para a multiplicidade?

Butler (1990) continua a apontar neste sentido, ao afirmar que o comportamento de cada
sujeito não é o seu sexo ou o seu género, mas sim tudo o que o seu sexo ou o seu género
são (os conceitos deixam de ser universais e imutáveis). Isto não implica que a troca ou
substituição da identidade de género seja um procedimento simples, pois a identidade (de
qualquer tipo) é uma construção social, que constitui um sujeito dentro das relações de
poder e das identificações psicológicas, sociológicas, culturais e até físicas de cada um.

Atualmente, é visível a complexidade da identidade de género que, ao se afastar da sua


condição de atributo e se aproximar da sua categorização de performatividade abre as

142 
Capítulo III – Identidade e Género

portas para a multiplicidade. Cada vez mais se desafiam as perspetivas tradicionais de


masculinidade, de feminilidade e de sexualidade, aceitando que as pessoas e as suas
escolhas podem mudar, mudando consigo a(s) sua(s) identidade(s) de género. A tendência
será sempre para caminhar na direção da pluralidade, onde nada é fixo numa identidade de
género (visto que a identidade individual é um conjunto de elementos sociais e culturais
que são expressos pelos sujeitos ou que são ditos sobre o sujeito):

Este novo campo de análise, que paulatinamente se tem alastrado a todos os


campos das Ciências Sociais e Humanas, oferece um tremendo potencial de
subversão das normas estabelecidas no que elas têm de mais opressivo e
limitador, radicalizando o discurso sobre o género e sobre as identidades e
práticas sexuais (Gomes, 2011:10).

Hoje, a conceção do homem como sujeito absoluto começa a ser substituída por uma
multiplicidade de interpretações. Dá-se uma dissolução de papéis masculinos e femininos,
e as novas gerações vão-se desenvolvendo em sociedades cada vez mais abertas a novos
sistemas de comparação, que se afastam das conceções tradicionais chauvinistas. As
mulheres pensam mais em si, nas suas necessidades, nas suas capacidades e na sua
centralidade, apoderando-se da sua identidade, que, embora também seja desenvolvida por
comparação a outros, é mais vivida como um Eu e não simplesmente como um Outro
masculino. Contudo, existem ainda fortes influências desse pensamento tradicional que vê
o homem como o Eu e a mulher como o Outro, que, de tão enraizado que se encontra,
dificulta os processos de mudança. Muitas dessas influências encontram-se presentes nos
discursos, nos hábitos quotidianos, na linguagem, nas representações mediáticas, nas
práticas religiosas e nas atividades sociais.

O facto de os homens ainda beneficiarem de alguma valorização social e de um estatuto


que os discrimina positivamente em termos económicos, limita muitas mulheres a uma
existência definida pela masculinidade. Apesar de tudo isto, é hoje reconhecida uma maior
e melhor capacidade de resistência às tradicionais tendências, sobretudo pelas mulheres
que estão em processo de destronar muitos mitos de género, ao afirmarem, lentamente, a
sua liberdade e a sua independência (Beauvoir, 1977a). Se durante a infância a rapariga
pode ser socialmente “mutilada”, com o seu crescimento e as transformações (do seu corpo
e da sua psique) que daí advêm, a mulher ocidental pode resistir às estruturas e exercer um
contrapoder fora das entranhadas dinâmicas do falocentrismo.

143 
 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

4.1. Os media no âmbito dos Estudos Culturais

“O mundo moderno está repleto de veículos mediáticos.”


Maria Ghilardi-Lucena (2005:1018)

A investigação em Estudos Culturais centra-se, particularmente, nas temáticas da cultura


popular, da etnografia, da(s) identidade(s) (de género, de classe, étnicas, geracionais, etc.),
das relações de poder, dos discursos e da representação, e de outras questões
antropológicas e sociológicas que se podem (e devem) complementar com os estudos dos
meios de comunicação. Com efeito, “não existem, pois Cultural Studies sem estudos dos
media, sem Sociologia e sem Antropologia, porque os Cultural Studies são ‘ciência social’
” (Martins, 2011:31).

Na sua obra Crise no Castelo da Cultura (publicado em 2011)25, Moisés Martins procura
legitimar a importância das Ciências da Comunicação e dos estudos dos media na
sociedade atual, mostrando como estas áreas de estudo instauram um paradigma
historicista, através do qual é possível atingir o conhecimento da realidade. O autor fala de
uma escolha que valoriza a temporalidade, a situação, a linguagem e a interpretação: “quer
isto dizer que as Ciências da Comunicação vão insistir no atual e no contemporâneo e vão
fixar-se no presente e no quotidiano” (Martins, 2011:41), enveredando pelos novos
caminhos da investigação das Ciências Humanas e Sociais, parceiras dos Estudos
Culturais.

Moisés Martins (2011) afirma ainda que as Ciências da Comunicação se afastam das
conceções de análise da Sociologia clássica que se centram na classe social, para a
substituir por outras unidades como o género, a idade, a etnia, etc. É dada agora mais

                                                            
25
Título completo da obra: Crise no Castelo da Cultura. Das Estrelas para os Ecrãs.

145 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

atenção às questões de poder26 e, sobretudo, às relações que se estabelecem individual e


socialmente27.

As Ciências da Comunicação, em associação com os Estudos Culturais, têm procurado


entender o papel dos media e a sua relação com a sociedade. Segundo Margaret Gallagher
(1992), os Estudos Culturais focam-se na construção de sentidos como parte de um
conjunto de relações sociais e de poder, que se encontra em constante transformação, e que
nunca é estático. Isto significa que se deve trespassar o texto e alcançar o contexto, onde o
público, a audiência, enfim, os sujeitos, são uma parte ativa na produção de sentido. Esta
posição valoriza, sem dúvida, o papel dos media como produtores de textos e como
projetores e criadores de contextos. Mas valoriza, igualmente, os públicos e as audiências
como produtores de sentido. Os discursos dos media são, de facto, uma forma de
enquadramento dos contextos ocidentais, sobretudo os discursos contidos nos media
regionais e locais, que conseguem ser menos constrangidos, e mais exclusivos e localistas,
envolvendo os leitores e os analistas nas narrativas que representam as comunidades,
espacial e temporalmente.

Uma das questões mais discutidas neste âmbito centra-se na preocupação em perceber se
são os media os criadores dos processos culturais ou apenas o espelho desses mesmos
processos. Ambas as funções lhes podem ser atribuídas, embora não de uma forma tão
simplista. Se, por um lado, os media produzem e disseminam mensagens para a sociedade,
assumindo um papel essencial na formação sociocultural dos sujeitos, por outro refletem
comportamentos já enraizados. Contudo, importa realçar que os media não se reduzem a
meros espelhos da realidade, pois são polissémicos, assumem diversos sentidos (tal como
as audiências), e funcionam como mediadores entre significantes, significados e leitores.
Isto possibilita a conjugação de diferentes identidades e experiências no processo de leitura
dos seus textos.

Os media não se limitam, portanto, a transmitir um significado já existente, mas têm sim
um trabalho ativo de seleção, estruturação e apresentação desses mesmos significados
                                                            
26
Segundo o autor, no âmbito das Ciências da Comunicação, os estudos das relações de poder e de
dominação concentram-se “primeiro num entendimento gramsciano de hegemonia, depois na conceção
foucaultiana dos ‘estados de poder’, e ainda, na caracterização bourdieusiana das ‘relações de força’, num
campo social específico” (Martins, 2011:42).
27
Este caminho teórico foi tomado pelo Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) e pelo Glasgow
Media Group (GUMG), sobretudo nas décadas de 1970 e 1980. 

146 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

(Hall, 1982), auxiliando na formação e transformação de crenças sobre a autovalorização,


o corpo, as relações e as ocupações dos sujeitos (Smith & Granados, 2011). Isto implica
que existe sempre um processo de reconstrução do acontecimento (Cerqueira et al, 2009),
quer ao nível da realidade, quer ao nível da representação.

Esta responsabilização dos media leva Norman Fairclough (1995) a referir que a análise
dos textos mediáticos, de forma a entender a relação dos processos de comunicação nos
ambientes socioculturais, deve englobar três áreas: representação, identidade e relação. O
autor afirma mesmo que qualquer texto é sempre simultaneamente constitutivo de
identidades sociais, relações sociais e sistemas de conhecimento e crença. Para este teórico,
quando é feita uma análise dos textos dos media é fundamental ter presente as seguintes
questões: 1) Como é representado o mundo? (relações, eventos, acontecimentos, etc.); 2)
Quais as identidades dos envolvidos no contexto? (jornalistas, audiências, entrevistado); e
3) Que relações são estabelecidas entre os envolvidos? A resposta a estas questões obriga a
que os significados codificados nos textos mediáticos sejam descodificados através da
análise dos mesmos (Hall, 2006), oferecendo leituras e sentidos renovados28. Deve-se,
portanto, salientar a importância do papel dos discursos mediáticos como veículo de
descrição e de compreensão do sujeito, da sua identidade, do seu comportamento, das suas
representações em relação ao Outro, em relação ao mundo social.

Existem estudos que se preocupam em analisar como alguns sujeitos ou grupos (mulheres,
jovens, minorias étnicas, etc.) são representados nos media e como a criação de certas
“imagens” desses sujeitos ou grupos ajuda a moldar a sua conceção identitária e a sua
projeção social. Frequentemente, as “imagens” que os media divulgam sobre determinado
grupo e que refletem uma suposta realidade, irão, posteriormente, refletir-se na vida real
desse grupo. A maior parte das vezes, os meios de comunicação mostram o ponto de vista
do(s) Outro(s) (Gauntlett, 2002); e isto afeta a forma dos sujeitos verem o mundo e de se
formarem a si próprios como indivíduos. É neste sentido que segue o trabalho de Stuart
Hall sobre os media, que se centra nas questões de produção e de representação,
especificamente no âmbito identitário. Hall (1997a) sugere mesmo que podemos teorizar a
identidade dentro da representação mediática.

                                                            
28
O mesmo pode ser aplicado à leitura e à análise de imagens mediáticas.

147 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

Outra das áreas de interesse para os Estudos Culturais prende-se com pesquisas sobre
como os media contribuem para a manutenção e distribuição das relações de poder. De
facto, o exercício do poder necessita de um “espaço” de articulação e os meios de
comunicação permitem que estas dinâmicas se desenvolvam na sociedade, por vezes de
forma completamente transparente. Isto permite que os media sejam estudados, antes de
tudo mais, como uma indústria que dá poder a alguns indivíduos ou grupos sobre outros,
“em termos de acesso, controlo institucional, retorno financeiro e na seleção e
enquadramento de mensagens” (Johnson et al, 2004:138).

A própria natureza da função dos media, uma função social e cívica, pode criar situações
confusas entre estes e a sociedade, na medida em que os media alcançaram grande
autonomia e a sociedade atinge mais consciência dessa emancipação e desse poder
(McQuail, 1997). Todavia, a atual tomada de consciência da sociedade sobre o poder dos
media conduz a uma diminuição deste sobre aquela. Esta controvérsia entre poder e media
ter-se-á transformado, com o tempo, numa das dinâmicas simbólicas mais exploradas dos
estudos contemporâneos dos meios de comunicação. Neste sentido, os Estudos Culturais
procuram sensibilizar os sujeitos para as relações de poder que se encontram codificadas
nas mensagens culturais mediáticas, ao mesmo tempo que os encorajam a resistir aos
domínios que lhes são impostos e a criarem a sua leitura crítica e alternativa:

Os Estudos Culturais podem mostrar como a cultura dos media nos manipula e
doutrina, e então podem dar poder aos indivíduos para resistirem aos sentidos
dominantes nos produtos culturais mediáticos e produzir os seus próprios
sentidos (Kellner, s.d.:12).

Logo no início dos seus trabalhos, Williams, Thompson e Hoggart definiram uma questão
central para a teoria dos estudos críticos dos media ao problematizarem como as classes
subalternas podem contestar, transformar e libertar-se das leituras dominantes,
descodificadas a partir dos textos mediáticos. Isto implica que os investigadores devem
olhar para os media como uma forma de poder social e de sistema de combate político.
Anos mais tarde, David Morley acrescentou que só é possível compreender a hegemonia e
a liberdade nos meios de comunicação se colocarmos frente a frente um conjunto de
fatores opostos que se relacionam:

148 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

(…) A função política, as forças comerciais de mercado, os textos e as tradições


culturais das quais fazem parte as tecnologias, as audiências e o seu prazer, o
nível microssocial do lar e o macrossocial do sistema social, bem como outros
fatores num conjunto de inter-relações, todos revelando simultaneamente
resistência e submissão, oposição e cumplicidade (White, 1998:61).

Atualmente, nos estudos dos media, coloca-se uma questão fundamental: Terão os media
mais poder sobre a audiência ou será a audiência a ter mais poder sobre os media? Alguns
autores consideram os conteúdos dos media como “formadores” de opinião, pois o
conteúdo que distribuem tem o poder de influenciar os sujeitos e de afetar o meio social. 
Outros autores mostram que os conteúdos dos media não são “formadores” de opinião,
porque apenas refletem comportamentos, identidades, valores e relações sociais que já
existem na sociedade. Se, por um lado, Horkheimer & Adorno (1979) acreditam no poder
dos media sobre a população e nos seus efeitos negativos, por outro, Fiske (1989a, 1989b)
defende que é a audiência que domina e não os meios de comunicação. Contudo, no
entender desta investigação, estas aceções são demasiado rígidas, pois ambas as hipóteses
podem e devem ser consideradas. O desafio será ver esta relação através de um prisma
“circular”, dependente da situação contextual e envolvendo elementos dos dois processos.

De acordo com Van Dijk (1995), o poder dos media é simbólico e persuasivo, controlando,
potencialmente, uma parte da mente dos recetores, mas não as suas atitudes e os seus
comportamentos. Aliás, existe sempre um mínimo garantido de autonomia e de liberdade
por parte da audiência, o que lhe confere um papel ativo e uma capacidade de resistência às
mensagens que o poder incute. O autor afirma ainda que a noção de “acesso” é
fundamental na análise do poder dos media, pois o poder centra-se em quem possui acesso
a recursos valorizados, como, por exemplo, quem controla os meios de comunicação.

4.2. As representações e os estereótipos de género nos media

No âmbito da discussão do poder dos media e das representações identitárias, é importante


referir – no espaço desta investigação – que se atua ao nível dos discursos29 percecionados,
sobretudo, como formas de representar a realidade (realidade esta que se encontra sempre
codificada, embrenhada e fabricada nos e pelos discursos do mundo social). Assim sendo,
                                                            
29
Discursos que, no contexto desta investigação, devem ser entendidos como textos e imagens mediáticos.

149 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

os discursos mediáticos possuem a capacidade de adquirir e distribuir representações


passíveis de (de)marcar identidades.

Retomando a problemática do poder dos media enquanto produtores e/ou refletores dos
processos culturais, Ghilardi-Lucena (2005) transpõe a questão para o âmbito das
representações, como sugerem as suas palavras:

As representações veiculadas pelos media, ao mesmo tempo em que derivam das


atitudes dos indivíduos e dos valores que cada segmento social considera,
também reforçam tendências de comportamento ou propiciam a instauração de
novos valores, dando uma espécie de aval para que determinadas modificações
comportamentais se solidifiquem (Ghilardi-Lucena, 2005:1020).

Para a autora, são os meios de comunicação que arquitetam as representações a partir do


mundo real, enquanto este mundo se transforma e evolui, em grande medida, com base nas
representações que os próprios media veiculam. Todo este processo exige um trabalho de
seleção, estruturação e apresentação das “coisas”, para que elas tenham algum significado
e não se limitem a espelhar a realidade.

Ghilardi-Lucena (2005) continua o seu raciocínio, declarando que este mundo real (ou
social) tem conduzido os sujeitos ao encontro de novas identidades (fragmentadas), pelo
que a construção da identidade está intimamente relacionada com o processo de
representação. Esta teorização vai ao encontro da linha francesa que deposita no discurso a
responsabilização no auxílio da edificação identitária dos sujeitos; discurso este envolvido,
em grande medida, nos e pelos meios de comunicação. Em suma, o conteúdo das
representações mediáticas mostra-se indispensável, pois os media podem ser um poderoso
e educativo instrumento de (re)socialização (Damme, 2011).

Stuart Hall (1986) vê as representações como práticas discursivas que são capazes de
descrever e construir factos sociais, pelo que esta posição nos leva a partir do princípio que
as representações (quer as textuais, quer as icónicas), vinculadas pelos media, podem servir
como pontos de identificação para a formação de identidades sociais (Pedro & Santos,
2009). Acrescenta-se a eventualidade de outras possibilidades de identificação, dada a
natureza ilocucionária das representações sociais, que enquanto práticas discursivas tornam
admissíveis outras delimitações de fronteiras identitárias:

150 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

A constituição das subjetividades depende da negociação entre diferentes


representações que coexistem e, muitas vezes, competem entre si. Contudo,
algumas pessoas podem não se identificar com nenhuma das representações
disponíveis, o que, em determinadas circunstâncias, pode levar à definição de um
novo foco de identificação, alternativo aos anteriormente estabelecidos (Pedro &
Santos, 2009:182).

Esta posição demonstra que, apesar das relações quotidianas e dos media participarem na
elaboração das representações sociais, “por meio de processos de influencia social”, nem
todos os sujeitos são ativos na construção das suas representações, pois “a estrutura social
determina que nem todos têm igual margem de liberdade no processo de negociação das
representações” (Cabecinhas, 2009:54). É aqui que se incluem as representações
mediáticas de género, que, na maioria das vezes, não são expressivas da realidade
identitária, dificultando o processo de identificação por parte dos sujeitos.

Efetivamente, os media nem sempre cumprem o requisito da veracidade, tal como é


possível verificar num estudo de Tuchman et al (1978), que mostra a realidade feminina na
América do Norte e a forma como essa realidade é distorcida pelos media. Segundo os
autores, as mulheres eram, na década de 1970, uma parte significativa da força de trabalho,
mas, no entanto, os meios de comunicação representavam-nas apenas nos papéis
domésticos. Esta aniquilação simbólica das mulheres por parte dos media afetava também
as gerações mais jovens que eram mal preparadas para o futuro, pois era fornecida uma
noção inteiramente distorcida daquilo que a sociedade esperava delas quando crescessem.
Assim, ao contrário do período da Segunda Guerra Mundial, em que as mulheres eram
aliciadas a entrar no mundo do trabalho e representadas como força produtiva em muitos
países, o período pós-guerra “convidava” as mulheres a voltarem à esfera privada e à vida
doméstica. Fazia-se, particularmente em Portugal, a apologia do “regresso ao lar”, da
exaltação da maternidade e de um modelo tradicional de família (Vaquinhas, 2009;
Barreira, s.d.; Tavares, 2008).

Durante séculos de História, “foram construídas representações sociais baseadas no


homem branco heterossexual” (Louro, 2008:20), enquanto a mulher foi conotada com um
papel estereotipado: ser mãe e esposa. Todavia, esta tendência tem vindo a sofrer
alterações, na medida em que estes estereótipos se encontram dependentes de outros
fatores como a geração, a classe social e a etnia. Com o tempo, as mulheres têm tido a

151 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

oportunidade de negociar a sua própria vida, mas, apesar desta evolução, a forma como as
mulheres se veem é irrefutavelmente moldada pelas imagens de si, que são geralmente
construídas e mostradas à sociedade. Estas imagens vão reforçar ideologias dominantes de
diferenças de género, transformando a representação numa problemática política. Quer isto
dizer que, através da representação, as mulheres podem perder o seu próprio poder de
decisão, ficando sujeitas, tal como qualquer outro grupo, ao poder de decisão do Outro
(Robinson & Richardson, 1997).

O movimento feminista europeu terá trazido uma perspetiva reformista na abordagem das
questões de género, onde as representações sociais tiveram um papel importante. Para
Lígia Amâncio (1993), os quadros teóricos da Psicologia Social, especificamente no que
diz respeito às representações sociais, ajudaram a solidificar muitas questões relacionadas
com a(s) identidade(s) de género. Mesmo Moscovici (1981) salientou a assimetria das
representações sobre homens e mulheres, bem como o seu papel regulador nas posições e
nas relações sociais dos sujeitos. Através desta visão, Lígia Amâncio assume que:

Os saberes comuns sobre os homens e as mulheres constituem representações


sociais que se alimentam dos valores, crenças e ideologias dominantes e que
adquirem sentido através da objetivação das diferenças entre sexos (Amâncio,
1993:129).

Trata-se de valorizar a diferenciação e a assimetria entre o masculino e o feminino, que


depois vai regular o universo do simbólico no mundo social. Para Amâncio (1993), as
representações sociais também naturalizam modos de ser, pelo que não deve haver
opressores e oprimidos na diferenciação assimétrica do masculino e do feminino. A autora
vê uma tendência para uma conceção dominante do sujeito que, em muitos momentos,
exclui as mulheres, tal como acontece com outras categorias sociais.

Os discursos representados que circulam na sociedade organizam e regulam as relações


simbólicas entre homens e mulheres, auxiliando na construção dos saberes comuns sobre o
masculino e o feminino. Visto que estas representações se alimentam de crenças e valores
sociais e são reproduzidas através de inúmeros meios, destaca-se a sua capacidade de
influenciar a formação de identidades individuais e coletivas. Stuart Hall (1990b) reforça
esta ideia afirmando que a identidade é constituída dentro de uma forma de representação
que permite aos sujeitos constituírem-se como novos sujeitos.

152 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

O estudo das representações deve, segundo Vala (2006), considerar a análise das relações
entre as identidades sociais e as representações sociais. Esta análise pode ser elaborada sob
duas perspetivas: ver como as representações sociais (enquanto variável dependente) são
criadas no interior de categorias ou grupos sociais; ou ver como as representações da
estrutura social (enquanto variável independente) criam formas de categorização social ou
grupos sociais, neste caso específico, categorizações de género.

Os primeiros estudos feministas assumiram que a representação de género era uma


expressão direta da realidade social e, nalguns casos, uma distorção estereotipada dessa
mesma realidade. Quer isto dizer que, naquela perspetiva, nem sempre as representações
das mulheres têm sido conotadas com imagens positivas, o que implica um esforço para
alterar esta tendência, tendo em consideração que as representações sociais se articulam
com o poder cultural. As categorias “masculino” e “feminino”, e as diferenças a elas
subjacentes, estão relacionadas com os estereótipos, os discursos sociais e as
autorrepresentações de homens e mulheres. Isto indica que os discursos sociais de género
marcam as construções dos sujeitos, ao mesmo tempo que as autorrepresentações de
género subjetivas afetam a construção do mundo social (Moore, 2000), construindo-se uma
rede de relações em constante interação.

Quando se fala, particularmente, em estereótipos de género é preciso ter em consideração


que se trata, sobretudo, de crenças cognitivas de caráter popular (Williams & Best, 1990).
Para Patrícia Miranda (2008:4) os estereótipos de género são “crenças partilhadas sobre
determinadas qualidades que se reconhecem como características de indivíduos, em função
da sua inclusão num dos grupos de género, portanto, feminino ou masculino”. Este
processo acaba por auxiliar na categorização e na organização subjetivas da realidade
social, desempenhando mesmo um papel fundamental na racionalização da ordem social
existente, contribuindo para aquilo que Miranda (2008:4) chama de “naturalização das
formas de ser homem e de ser mulher”.

A obra Gender: Stereotypes and Roles (1992) da autoria de Susan Basow destaca-se na
discussão dos estereótipos de género, pois gira em torno do conceito de género e dos
aspetos sociais que rotulam o masculino e o feminino. A autora começa por afirmar que a
diferenciação de género é feita através de papéis comportamentais, ocupações,
características físicas e traços de personalidade, o que conduz a estereótipos. Tudo isto

153 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

fortifica a oposição entre os dois sexos e a sua categorização social. Contudo, a autora
indica que os sujeitos não podem ser constantemente entendidos como um conjunto de
características consistentes e opositoras baseadas no sexo, pois os atributos que são vistos
como distintivos de cada sexo podem existir em ambos.

Para Susan Basow (1992) existem duas teorias básicas que se encontram na origem dos
estereótipos de género: a teoria do núcleo da verdade30 e a teoria do papel social31. A
primeira pressupõe que os estereótipos de género possuem alguma legitimidade empírica,
aceitando que existem diferenças comportamentais reais entre o sexo masculino e o
feminino, e que os estereótipos apenas o exageram. A segunda teoria pressupõe que os
estereótipos de género surgem dos diferentes papéis sociais tipicamente ocupados por
homens e mulheres. De qualquer forma, os estereótipos de género são uma espada de dois
gumes, pois, para além de refletirem diferenças comportamentais baseadas no sexo, dão
também origem a outros estereótipos: “se os estereótipos funcionam como parte das
expetativas do papel sexual, então as pessoas vão aprendê-los e ser influenciadas por eles”
(Basow, 1992:11). A análise dos estereótipos de género levanta questões de controlo social
e de relações de poder que se focam principalmente na norma masculina e no “desvio”
feminino. De facto, os homens, e todas as coisas vistas como masculinas, são socialmente
representados, na sua maioria, como tendo mais poder e estatuto do que as do sexo oposto,
na medida em que os próprios homens promovem comportamentos dominantes que são
incutidos ao nível pessoal e institucional.

Para Susan Basow (1992), na área das interações de poder, os homens são estereotipados
como mais proficientes, na medida em que dominam os campos da agressividade, da
assertividade, da competição, da realização pessoal e da não-conformidade, enquanto as
mulheres são rotuladas com o domínio da complacência. Muitos dos estereótipos de género
e poder encontram-se relacionados com as tarefas que homens e mulheres possuem na
sociedade e que dependem de três fatores: a base da subsistência da sociedade, a base da
oferta e da procura do trabalho; e a base da compatibilidade das tarefas com o sustento dos
filhos. Em todas estas vertentes, a tendência fora, durante muitos séculos, para a
subordinação da mulher em relação ao homem. Hoje, estes fatores continuam a ser aceites,

                                                            
30
Tradução nossa de kernel of thruth theory.
31
Tradução nossa de social-role theory. 

154 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

mas tendem a afastar-se desta distribuição sexista, visto que as condições


socioprofissionais se alteraram, quase por completo, na realidade ocidental.

Em suma, a própria socialização de género conduz a estereótipos de género. Apesar da


autora considerar que ao nível profissional os estereótipos influenciam o decorrer da
atividade – na medida em que as mulheres são, efetivamente, mal pagas, discriminadas e
subempregadas –, ao nível familiar muitos dos estereótipos não têm fundamento. Por
exemplo, Basow (1992) indica que ainda subsiste o ideal cultural que destaca o tipo
tradicional de casamento em que o marido é o provedor do lar doméstico, embora esta
situação seja pouco comum, pois o homem começou a abandonar esse papel por volta da
década de 1950.

Há, portanto, uma crescente necessidade académica em conduzir uma abordagem


semiótica e compreensiva que procura identificar como homens e mulheres são
representados nos media, de forma a perceber e a justificar muitos dos comportamentos
sociais atuais. Contudo, deve haver uma advertência na forma como são feitas as análises
dos discursos mediáticos, porque o que é considerado satisfatório ou desprezível por uns
indivíduos ou grupos pode não ser assim considerado por outros (Hartley, 2004), afetando
as próprias relações sociais, pois a forma “como somos vistos determina em parte a forma
como somos tratados; o modo como tratamos os outros baseia-se no modo como os vemos
[e] essa visão vem da representação” (Dyer, 1993:1).

De facto, a publicação de conteúdos pelos media (sejam eles de género, étnicos ou de


classe) atribui um caráter social às representações (Farr, 1984). Tal como indicou
Sidiropoulou (2005:14), a “comunicação assume, muitas vezes, várias representações da
realidade”, que se diversificam de acordo com o ambiente e o registo discursivo que
integra a identidade cultural. Esta multiplicidade de representações permite que sejam
selecionados os aspetos do real a serem publicados e difundidos, enquanto outros se
mantêm no esquecimento. Mais do que uma forma de difundir representações da realidade,
os meios de comunicação são uma forma de selecionar quais as representações que podem
ou devem ser disseminadas. Mas, independentemente do poder ideológico de determinados
discursos mediáticos, no final, é cada sujeito que escolhe com que texto ou imagem se
identifica, ou se quer identificar.

155 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

Os marxistas e os feministas veem os media como o maior instrumento de domínio


ideológico. Contudo, o domínio ideológico não permite conceptualizar formas de
resistência, pelo que Gramsci (1996) reformulou este conceito, sugerindo o de hegemonia,
permitindo repensar o real e a representação de forma a evitar a realidade fixa ou formas
fixas de a representar. Gledhill (1997) indica, neste contexto, que as formas e
representações mediáticas são sítios de conflito e de negociação, que se preocupam em
definir o que deve ser tomado como “real” e ter o apoio de determinados valores culturais e
identitários sobre outros, criando muitos estereótipos pelo percurso.

Apesar dos media procurarem afastar-se da fantasia na tentativa ser serem objetivos na
construção de imagens reais, é impensável esperar que excluam os estereótipos como parte
integrante das suas representações, pois, de acordo com a teoria dos Estudos Culturais,
associada aos estudos dos media, o estereótipo deve ser visto como um tipo de
representação dominante e não como algo prejudicial na análise social.

Susan Basow (1992) indica que os meios de comunicação, de todas as fontes de


estereótipos de género, são os mais difusivos e poderosos, e, por vezes, até os menos
subtis. Na opinião da autora, a maioria dos artigos dos media impressos são sobre homens,
conotados como profissionais ou atléticos, enquanto às mulheres se destinam menções à
sua aparência, ao seu estado civil e ao seu papel de esposa e de mãe. Pilcher & Whelehan
(2008:167), no geral, são da mesma opinião ao afirmar que “a investigação dos
estereótipos de género nos media sugere que a feminilidade é rotineiramente associada
com domesticidade e sexualidade”. Contudo, devem-se entender estas conclusões como
resultado das realidades específicas estudadas por estes autores, tendo em consideração
que, neste tipo de observações que reduz a mulher a objeto sexual e de prazer, não existe
lugar para a exaltação, a sedução e a sublimação do Outro, correndo-se o rico de se cair em
desequilíbrios demasiadamente radicais.

Segundo Christine Gledhill (1997), para os feministas a provisão de um espaço cultural


para as mulheres é uma das incongruências dos media (uma página da mulher, revistas de
mulheres, filmes para mulheres, etc.), pois um espaço para os homens dificilmente é
criado. Para os feministas isto acontece porque, nas sociedades ocidentais, a norma
humana é fornecida pelo masculino e apenas o feminino necessita de ser diferenciado. A
autora afirma ainda que as abordagens feministas aos estudos dos media preocupavam-se

156 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

em denunciar o papel dominante das imagens refletivas ou “miméticas” que circulavam e


se mantinham como crenças femininas e masculinas, e dos papéis representados por
mulheres e homens. Os feministas atacavam estas “imagens” por serem estereótipos que
não correspondiam à realidade. De facto, a noção de que a representação deve refletir a
“mulher real” lança várias questões: Que realidade? A realidade de quem? Em oposição a
esta visão “mimética”, Stuart Hall (1997b) apresenta uma visão construtivista, que vê os
conceitos de mulher e de homem como significantes culturais que constroem identidades
de género em vez de as refletirem.

A partir da segunda metade do século XX, os estudos feministas vão assim insistir em
destacar o predomínio do chauvinismo masculino nos media, apesar da influência feminina
na produção e na reprodução de conteúdos. A posição das mulheres nos media continua a
ser conotada com o conceito de “minoria”, pois, como afirma Van Dijk (1995), no mundo
das notícias: a maior parte dos jornalistas são homens; as mulheres não têm a mesma
igualdade de ascender a elevadas posições editoriais; as fontes femininas são, muitas vezes,
desvalorizadas; e o papel atuante das mulheres é de menor importância. Van Dijk afirma
mesmo que a maioria das notícias é orientada para os homens e que os assuntos de género,
o sexismo, os movimentos feministas e as contribuições femininas são, muitas vezes,
ignorados ou atirados para segundo plano:

Assim, o conteúdo e estilo das notícias continua a contribuir para atitudes


estereotipadas sobre mulheres. O próprio Feminismo é ignorado,
problematizado, ou marginalizado. É pressuposto os leitores serem geralmente
masculinos (Van Dijk, 1995:25).

Estas propriedades das notícias discutidas por Van Dijk (1995) e pelos autores supracitados
podem ser alargadas a outras vertente dos media, como, por exemplo, a publicidade, os
anúncios, as séries de entretenimento, os filmes, etc., que mostram que os media não
desafiam totalmente o poder da elite masculina, dificultando, por vezes, a potencial
resistência feminina. Há, de facto, uma tendência para ligar a feminilidade ao consumo e à
leitura, e a masculinidade à produção e à escrita (Modleski, 1986). Simplesmente, as
mulheres vivem rodeadas de imagens que tendem a fixar-se, mas que, por se inserirem no
mundo “real”, levam Elspeth Probyn (1993) a afirmar que estas imagens podem e devem
ser alvo de contestação.

157 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

O Feminismo tem tido um forte impacto nos estudos dos media, partilhando uma visão em
que as sociedades são caracterizadas pelo domínio masculino (patriarcado) sobre as
mulheres. Os feministas colocam assim uma questão: Porque não se revoltam as mulheres
contra esta situação? Tal como os marxistas (que procuravam explicar o falhanço da
revolta da classe trabalhadora), os feministas recorrem ao conceito de ideologia: “a
ideologia patriarcal trabalha para representar papéis de género, com a divisão entre o
homem como provedor económico e a mulher como provedor emocional no lar, como
‘natural’ e inevitável, em vez de um produto do poder masculino” (Dutton, 1997:67). Esta
ideologia patriarcal nos media é referida em muitos estudos e uma das formas frequentes
de o fazer é representar as mulheres como objeto de desejo dos homens. Muitas análises de
conteúdo mostram ainda que as mulheres são sub-representadas na maior parte dos meios
de comunicação, e quando aparecem é de forma marginalizada ou inferiorizada (Dutton,
1997).

Deste modo, nota-se que, até à década de 1970, os media representavam as mulheres em
papéis tradicionais ou simplesmente as excluíam física e simbolicamente. As mulheres não
eram vistas em posições de poder e a sua “imagem” era trivializada, limitando-se aos
papéis domésticos ou à sua condição sexual. Esta invisibilidade das mulheres revia-se
numa aniquilação simbólica do sexo feminino (Taylor, 1997). Contudo, depois da década
de 1970, a ausência ou banalização feminina nos media foi substituída por representações
mais positivas e por formas de resistência, que reforçam uma mudança no conhecimento e
na representação dos desejos femininos (e na sua sexualidade).

Todas estas problemáticas, que são transformadas em mensagens, são absorvidas pelas
audiências que vão dar impulso à oposição de género, pois, como afirma Crawford (1995),
muito do que se apresenta como sendo diferenças naturais dos sexos, são sim
representações ou construções da interação social, mas às quais é conferida “realidade”. Os
media refletem e auxiliam na perceção que os sujeitos possuem dos papéis apropriados
para o homem e para a mulher, bem como dos estereótipos de determinados grupos. Em
suma, os media refletem e formam opiniões.

158 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

4.3. O papel dos media na formação da(s) identidade(s) de género

“As imagens mediáticas nunca morrem; circulam incessantemente.”


Rosi Braidotti (2002:18)

As Ciências das Comunicação, articuladas com os Estudos Culturais, têm procurado


descentralizar os territórios culturais, abrindo as fronteiras dos estudos sobre os media e a
sociedade, sobretudo as que dizem respeito às minorias étnicas e às questões de género.
Esta última baseia-se na tendência evolutiva das Ciências da Comunicação em
“desessencializar (…) os supostos códigos naturais da masculinidade e da feminilidade”
(Martins, 2011:41).

Na obra Media, Gender and Identity: An Introduction (2002), David Gauntlett coloca uma
questão fundamental: Porquê explorar a relação entre media, identidade e género? Para o
autor, os media e a comunicação são elementos centrais da vida moderna, enquanto o
género (e a sexualidade) continuam a ser fundamentais para a forma como pensamos uma
identidade:

Com os media contendo tantas imagens de mulheres e de homens, e


mensagens sobre homens, mulheres e sexualidade hoje, é altamente
improvável que essas ideias não tenham impacto sobre o nosso próprio
sentido de identidade (Gauntlett, 2002:1).

Através dos meios de comunicação é possível detetar como as identidades de género são
construídas no meio social, pois os textos e as imagens são a representação de uma prática
ou realidade sociocultural. É neste sentido que, mais do que determinar quais os papéis de
género estereotipados que os media reproduzem, é necessário analisar o simbolismo
contido nas mensagens divulgadas. A maior parte das vezes, estas representações oferecem
modelos tradicionais de identidade, mas já é possível detetar algumas mudanças na
sociabilização de género (Taylor, 1997).

Apesar da realidade pós-moderna aceitar um deslocamento e uma desagregação do


conceito de identidade de género tradicional (Foucault, 1984d, 1997; Hall, 2001c), a
tendência é para pensar os textos mediáticos dentro do género como uma categorização
social que separa homens e mulheres. De facto, trata-se de uma construção cultural

159 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

fortemente enraizada no contexto social e, como qualquer construção cultural, o género


deve ser aprendido (Hartley, 2004). Esta aprendizagem, com base em comportamentos,
atitudes, valores e crenças sociais, passa, em grande parte, pelos media, que se revelam
importantíssimos agentes de práticas e representações que definem o género. Segundo
Carla Cerqueira (2008a, 2012), as imagens e os textos dos media auxiliam na organização e
na compreensão das relações de género, o que suscita a questão: Como é que as mulheres
são representadas nos discursos da atualidade? Carla Cerqueira (2008a) responde,
utilizando as palavras de Robin Lakoff (1982:45): “a marginalidade e a falta de poder das
mulheres reflete-se não só nos modos como se espera que as mulheres falem, mas também
nos modos como se fala das mulheres”.

Apesar de todas estas mudanças, muitos meios de comunicação continuam a abordar as


questões de género através de uma “imagem” tradicional e estereotipada, onde os homens
são apresentados como maioria e as mulheres como minoria, quer em termos numéricos,
quer ao nível das relações (sobretudo de poder e de status). Esta maioria é apresentada,
inúmeras vezes, como modelo, normalidade e igualdade, enquanto a minoria é conotada
com a diferença. Analisando as relações sociais no contexto dos media, Baudrillard (1995)
identifica, assim, dois modelos diferenciados: o masculino e o feminino, onde os homens
brincam aos “soldadinhos” e as mulheres servem de “bonecas”. Trata-se, simplesmente, de
construções sociais simbólicas que se focam na energia e na virtude masculinas e no prazer
feminino (Corrêa et al, 2007). Júlia Wood (1994) afirma, neste contexto, que os media são
uma das formas mais poderosas e persuasivas na influência como vemos os homens e as
mulheres, o que pode, muitas vezes, conduzir a conceções erradas, estereotipadas e
distorcidas nas formas como os sujeito se veem a si próprios e na forma como percebem o
normal e o desejável, tanto para homens como para mulheres.

Como era de esperar, as críticas feministas, a partir da segunda metade do século XX,
iniciaram a discussão sobre as representações mediáticas das mulheres e os estereótipos
dos papéis sexuais. O facto de o Feminismo reconhecer que o “ser mulher” implica um
processo que começa à nascença (e até antes dela) e requer uma intensiva socialização, vai
alterar as normas de género e as conceções da mulher intacta e perfeita. Alguns trabalhos
começam mesmo a sugerir a possibilidade dos conceitos “homem” e “mulher” possuírem

160 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

uma identidade comum, pelo que o género pode ser (des)construído com base na
representação (Hartley, 2004), no discurso e até na experiência vivida.

Muitos dos textos e das imagens mediáticos são produzidos e distribuídos quase sempre
num contexto de dominação masculina, tanto nos princípios de representação, como nas
instituições, o que significa que as mulheres são apresentadas e definidas por aqueles a
quem estão subordinadas (Mota-Ribeiro & Pinto-Coelho, 2005). Efetivamente, quando um
grupo social é representado por outro com mais poder, os seus interesses têm tendência a
não serem servidos. Contudo, isto não implica que se houvesse um maior número de
mulheres a produzir conteúdos mediáticos isso imediatamente significaria o afastamento da
masculinidade. Haveria necessidade de uma adaptação social que passaria não só pela
produção de conteúdos mediáticos, mas também pelas audiências.

Uma das correntes que é apontada como uma forma de fugir a esta tendência demasiado
masculina do discurso mediático é a literatura, mais precisamente a “literatura light”, que é
habitualmente escrita por e para mulheres, e que é algo também conhecido, no mundo
anglo-saxónico, por chick-lit32. De acordo com Pereira (2006), a “literatura light” transfere
o “real” para o texto, criando-se uma empatia com o leitor, que acaba por se rever nas
personagens. Este tipo de literatura, segundo a opinião da autora, permite a partilha de
afetos, emoções, experiências e intimidades, e pode incentivar uma “relação” em que a
mulher-leitora se revê na mulher-autora, um pouco à maneira do “estado do espelho” de
Lacan (1981) que determina que o Eu corresponde a uma internalização do Outro, através
da identificação.

A “literatura light” pode ser vista como um refúgio de mulheres e para mulheres, como um
espaço dedicado quase exclusivamente ao género feminino. É através deste tipo de
literatura que se podem fazer leituras de conteúdo simbólico ao nível identitário, na medida
em que se trata de um facilitador de compreensão de determinados perfis habitualmente
diferenciados pelo género. Todavia, esta corrente pode também servir de apoio a muitas
conceções estereotipadas sobre o feminino, sobre o que as mulheres escrevem e,
consequentemente, sobre a construção identitária dos géneros.

                                                            
32
Literatura escrita por e para mulheres.

161 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

Segundo Ghilardi-Lucena (2010), na atualidade, as representações de género nos media


geram reflexões sobre a identidade do sujeito, transformando os meios de comunicação
num lugar de implosão de identidade. Damean (2006) afirma ainda que os media oferecem
aos sujeitos “identidades prontas”33 com as quais eles se podem identificar. Estas imagens
desempenham um importante papel na educação social dos sujeitos, sobretudo no que diz
respeito aos seus comportamentos de género. De facto, a formação do Eu está, cada vez
mais, dependente do acesso aos meios de comunicação e da forma como os discursos
mediáticos são interpretados. Assim, os media desempenham um papel fundamental “na
produção e na circulação dos sentidos que determinam o modo como os géneros –
feminino e masculino – são vistos pelos indivíduos” (Ghilardi-Lucena, 2010:6).

Admitindo a teoria de que o sujeito constrói a sua identidade com base na relação com o
Outro, é preciso reconhecer que a “imagem” do homem se vincula, sem dúvida, à da
mulher, e vice-versa. No caso de determinados meios de comunicação, Damean (2006)
assegura que esta relação assenta em oposições binárias – sujeito/objeto,
essência/aparência, cultura/natureza, razão/paixão, atividade/passividade, espírito/matéria
– em que a mulher se encontra frequentemente na segunda posição. Em suma, há uma
tendência para os media assegurarem a produção e a transmissão de discursos patriarcais
nas sociedades contemporâneas. Contudo, esta posição é um pouco redutora, na medida em
que não prevê a complexidade simbólica das relações identitárias e não permite uma
generalização científica. Se existem, de facto, exemplos desta realidade dualista,
fortemente masculinizada, existem também outros representativos de realidades
feminizadas, assexuadas e/ou transexuais.

Tem-se desenvolvido, nos estudos do género e dos media, uma tendência para monitorizar
a representação da mulher e encontrar estratégias que desafiem os estereótipos de género.
Isto porque os media são centrais no processo de representação de género, e o género é
uma construção social discursiva na qual os media desempenham um importante papel
(Bamburac & Isanovic, 2006). De facto, os media desempenham um papel primordial na
construção do discurso e da(s) identidade(s) de género, pelo que podem ser vistos como
“tecnologias (sociais) de género”, segundo as palavras de Liesbet van Zoonen (2002:57),
ou seja, “locais centrais onde a negociação discursiva em relação ao género acontece”.

                                                            
33
Tradução nossa de ready-made identities.

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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

O entendimento da(s) identidade(s) de género é um processo que está em constante


transformação no mundo cultural e, por consequência, nos meios de comunicação. Os
media não refletem somente os valores e crenças sociais, mas contribuem para a
construção da posição da mulher na sociedade, definindo e espelhando papéis sociais
femininos. Embora muitos dos discursos mediáticos não sejam criados, literalmente, por
homens, eles são originados numa cultura tradicionalmente masculina, que nos oferece
representações clássicas de género, onde a mulher é, na maioria das vezes, fragmentada em
blocos de “imagens” sociais: a mulher como esposa, a mulher como mãe, a mulher como
amante. Esta é uma das polémicas mais discutidas no contexto dos meios de comunicação,
pois, muitas vezes, associa-se a sub-representação das mulheres à limitação feminina no
mundo das organizações mediáticas. Quer isto dizer que, se houvesse mais mulheres em
posições de autoridade dentro dos media isso conduziria a uma mudança na representação
discursiva e, posteriormente, na construção da identidade de género?

Quando esta questão é colocada, a sua resposta parece óbvia. Contudo, este otimismo é
afastado quando se analisa o estado da arte da realidade mediática e se percebe que as
políticas institucionais, os valores profissionais, e as exigências sociais se encontram
enraizados numa cultura de domínio masculino (Gallagher, 1992), o que dificulta o
trabalho das mulheres no mundo dos meios de comunicação e influência, claramente, o
conteúdo dos mesmos. Carla Cerqueira (2008a:141) afirma que “o discurso jornalístico
continua, assim, a difundir mensagens estereotipadas e pouco representativas das mulheres
na sociedade”, tanto que existe a necessidade de construir imagens diversificadas para que
os sujeitos tenham a perceção dos novos papéis sociais que estão a ser praticados pelas
mulheres.

Um dos pressupostos da cultura ocidental contemporânea centra-se na ideia que homens e


mulheres vivem em esferas separadas, e isso reflete-se nos meios de comunicação.
Segundo Diana Damean (2006) os media representam as mulheres sobretudo de acordo
com três blocos: a imagem (padrão da beleza), a carreira (como ela é competente no seu
trabalho) e a vida privada (o seu papel de esposa, mãe e dona de casa). Isto implica uma
tendência para representar a mulher dentro de grupos identitários e não pelas suas
características individuais. Todavia, Damean (2006:92) afirma que há uma tendência para
que os media ofereçam representações não só tradicionais, como também “emancipadas”

163 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

das mulheres, o que lhes permite a escolha por entre um vasto conjunto de papéis socias
que tanto podem ser efetuados dentro da esfera privada, como da pública, mas que não são
“radicalmente diferentes dos tradicionais”. Para Damean (2006:92), os media oferecem
modelos tradicionais, aos quais foram acrescentados alguns elementos liberais, ou seja,
“para além de bonitas e mães, as mulheres femininas também surgem como profissionais,
bem-sucedidas na esfera pública”. Trata-se de um acréscimo de papéis, e não de uma
evolução ou uma troca dos mesmos, o que pode implicar, na visão desta autora, uma
distorção do modelo de emancipação feminina.

Naturalmente, as mulheres deveriam ter a liberdade de optar (ou se identificar) por vários
modelos sociais que fossem distribuídos pelos media, e que auxiliassem na formação da
sua “imagem” e na construção dos seus papéis sociais. Contudo, em muitos casos, as suas
opções estão limitadas e são induzidas pelo discurso mediático. Em suma, embora se
reconheça que “as representações mediáticas da feminilidade têm um forte impacto nas
mulheres e na formação das suas identidades” (Damean, 2006:93), o problema reside em
que essas representações, muitas vezes, não correspondem à realidade, e as mulheres têm,
cada vez mais, consciência disso.

O truísmo de Damean (2006) em relação ao papel masculinizado e “masculinizador” dos


media não deixa espaço para a discussão da representação dos homens. Coloca-se aqui a
necessidade de pensar como o homem é apresentado pelos meios de comunicação. Não
será ele, tanto como a mulher, também representado dentro de grupos identitários – alguém
do PSD ou do PS, da Igreja, da banda filarmónica, da equipa de futebol – e pelas suas
caraterísticas individuais – é vaidoso, bonito, bem-parecido? Não estarão aqui também as
opções dos homens limitadas e induzidas pelo discurso mediático?

Facto é que, historicamente, as dinâmicas de poder social se centram, maioritariamente, no


domínio da esfera masculina (a norma) sobre a feminina. Contudo, Ghilardi-Lucena (2005)
afirma que a figura feminina tem conquistado espaço no mundo social, pelo que os textos
mediáticos começam a mostrar algumas modificações no espaço masculino. Esta mudança
estrutural comprova que a construção das identidades masculina e feminina se revela no
discurso sobre práticas sociais, e o interesse dos estudos mediáticos que, até 1990, se
focava nas mulheres, passa a focar-se no género. Porém Ghilardi-Lucena (2010) ressalva
que os media possuem a capacidade de expor as contradições das relações de género ao

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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

revelarem um paradoxo: por um lado incentivam a inovação – homens que zelam pelo
espaço doméstico, cuidam dos filhos, cozinham e limpam –, mas, por outro, insistem no
statu quo – homens provedores do lar e da família, que frequentam espaços e atividades
naturalmente masculinos. Para Linda Kerber (1988), deve ser ultrapassado o problema da
visão dualista que separa homens e mulheres, e que vê o mundo feminino como algo à
parte da vida social. Assim, são urgentes as análises que se revelam capazes de superar esta
tendência, olhando para a sociedade como uma construção que engloba relações dinâmicas
de género. Todavia, Hermes (2007:206) entende que esta não será uma tarefa fácil, pois
compara as representações de género nos media com a lógica de tocar acordeão: “tão
facilmente como ele se desenrola, irá dobrar novamente ao som das ideologias
dominantes”.

Para Joke Hermes (2007:206), “as representações mediáticas de género consistem num
complexo sistema de códigos, convenções e regras” que, em conjunto, “produzem uma
versão do que são as sociedades”, pelo que existem dois argumentos fundamentais que
devem preocupar os investigadores dos estudos da representação da(s) identidade(s) de
género nos media: um prende-se com a complexidade das regras, dos ideais e das
distinções patentes no conceito de género, impostas por exigências culturais extensas, e
que são transmitidas pelos media; outro que afirma que, independentemente das mudanças
sociais trazidas pela segunda vaga do Feminismo, existe ainda uma sistematização das
diferenças entre masculinidade e feminilidade que estão incorporadas nas representações
mediáticas. O autor finaliza ainda o seu raciocínio afirmando que a representação feminina
assenta muito no sexo, enquanto a representação masculina assenta no poder.

Se muitos dos estudos iniciais atribuíam aos media apenas o papel de refletir os valores e
as posições das mulheres na sociedade, investigações recentes sugerem que os meios de
comunicação determinam como são as mulheres e que estas devem ter um olhar mais
atento à forma como os media condicionam e manipulam as suas atitudes.

4.3.1. Estudos de género nos media

Quando se pensa no poder que os media possuem na formação da(s) identidade(s) de


género, deve-se ter em consideração o contexto em que se inserem, pois nem todos os
meios de comunicação infligem o mesmo tipo de efeitos em todos os locais e em todas as

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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

épocas. Neste sentido, aquilo que pode ser relevante para os dias de hoje, pode não ter sido
há uma, duas ou três décadas atrás, porque os sujeitos e os próprios media sofrem
mudanças profundas com o passar do tempo.

Neste sentido, na década de 1970, surgiram os primeiros estudos sobre a representação das
mulheres nos media, centrados naquilo que eram considerados os assuntos e os tópicos
femininos. Para Robinson (1978), os assuntos de interesse para a mulher eram: eventos nos
quais as mulheres participavam como criadoras de notícias; alguns assuntos de particular
interesse para a audiência feminina; e eventos reportados por elementos do sexo feminino.
Já Doris Graber (1978) aponta como tópicos femininos: a família, a saúde, a educação, a
violação e o abuso de crianças.

O interesse por estes estudos avança, destacando-se, por exemplo, na década de 1990, o
trabalho de Gina Bailey. Bailey (1993) destaca que para as mulheres uma história tem
interesse quando é centrada em mulheres, trata sobre problemas ou assuntos femininos
e/ou inclui fotos de mulheres. Para o seu estudo, a autora definiu como tópicos de interesse
qualquer item que, por exemplo: reflita a perspetiva feminina em qualquer área ou
atividade; represente problemáticas que as mulheres enfrentam socialmente; tenha o nome
de uma mulher ou de uma organização feminina; e fale sobre os estatutos de igualdade,
emancipação e libertação ou sobre movimentos femininos.

Já na década seguinte, Anne Cronin (2000), nos seus estudos sobre o consumo, olha para
os media como marcadores da “imagem” feminina que, frequentemente, sugerem que a
mulher possui uma obrigatoriedade ética de monitorizar a sua aparência física, o que a
impede de se individualizar realmente. Esta posição realça a vertente sexual da mulher,
centrada, sobretudo, no corpo feminino e nos ideais de beleza e juventude.

Facto é que, a tendência para a dualização tradicional do conceito de género (apesar de


todos os argumentos trazidos pela discussão pós-moderna) é uma realidade no mundo
mediático, e é frequente olhar pelo ponto de vista masculino ou pelo ponto de vista
feminino. No caso do ponto de vista feminino, esta realidade pode ser analisada através de
dois caminhos: a forma como os media projetam a “imagem” da mulher, e a participação
efetiva da mulher na produção das mensagens que os media difundem (Ceulemans &
Fauconnier, 1979). Em ambos os casos, é preciso ter sempre em consideração o contexto

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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

espácio-temporal em discussão, tanto ao nível socioeconómico, como político e cultural.


Neste sentido, são enumerados de seguida alguns estudos que podem servir de exemplo.

De acordo com um estudo publicado em 1979 por Mieke Ceulemans e Guido Fauconnier,
investigadores do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Católica de
Louvain, foi possível analisar a forma como a mulher era representada nos media, e como
se encontrava a sua situação profissional na área. Este estudo engloba vários difusores
mediáticos (imprensa, televisão, rádio, cinema), sobretudo nos E.U.A., na América Latina
e na Europa, durante a década de 1970. Para esta investigação, revela-se de particular
interesse a parte do estudo em que os autores discutem a forma como é tratada a “imagem”
feminina nos jornais europeus naquele período, a análise das rubricas femininas, e a
relação entre a imprensa e o movimento feminista.

Segundo Ceulemans & Fauconnier (1979:41), as mulheres surgem frequentemente como


uma espécie de “vítimas de catástrofes naturais ou artificiais”, onde o papel de mãe/esposa
é sobrevalorizado, em detrimento do profissional. Os media insistem também em valorizar
o aspeto físico da mulher ou apenas excluí-la, implícita e explicitamente (sobretudo através
das formas linguísticas). A mulher é vista como um “ser à parte” e o homem deve ser
tomado como a norma (esta posição é reforçada pelo facto das jornalistas estarem sub-
representadas e possuírem os mesmos preconceitos que os seus colegas homens).

Em relação aos jornais europeus, a tendência é para a delimitação de espaços masculinos e


femininos, onde no primeiro se concentram as temáticas políticas, profissionais e
desportivas, e no segundo a vida conjugal, familiar e doméstica. Para os autores, as
mulheres só serão autorizadas a entrar no mundo masculino da política e do desporto se
acentuarem a sua feminilidade (baseada em critérios tradicionais). No caso específico dos
jornais britânicos “amor, casamento e família são muitas vezes colocados num contexto de
sonho, onde o papel de amante, de esposa e de mãe se torna no ideal último”, e “as leitoras
são encorajadas a identificar-se com essas imagens e a comparar-se a elas” (Ceulemans &
Fauconnier, 1979:42).

Para Ceulemans & Fauconnier (1979) há uma dúvida que paira sobre a análise da
imprensa: Estarão os jornais a refletir a posição das mulheres na sociedade, ou a contribuir

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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

para essa mesma influência? Na opinião dos autores, há uma inclinação para a segunda
hipótese:

Se um jornal tem como primeiro dever apresentar o mundo como ele é, os


investigadores questionam-se, com razão, se algumas referências às mulheres
que encontramos na maior parte dos jornais refletem efetivamente a contribuição
limitada das mulheres na vida social, cultural e política, ou se jornais e
jornalistas passam simplesmente em silêncio a sua contribuição real. O uso de
linguagem discriminatória tende a militar em favor da segunda hipótese
(Ceulemans & Fauconnier, 1979:42).

Contudo, existem algumas exceções. Determinados jornais, depois de referirem o nome


completo da mulher, passam a referir-se a ela pelo nome de família, prática que estava
reservada apenas aos homens (ex.: Newsweek). Outros jornais, como o Le Monde, o Times
e o Daily Mirror começam a ter informação sobre mulheres e desporto, e a mostrar
imagens menos sexistas sobre o mundo feminino.

Em relação às rubricas femininas, os autores afirmam que nos jornais britânicos os temas
são tradicionais e estão relacionados com a alimentação, a moda e a casa, pelo que
apresentam como solução a necessidade de mais jornalistas mulheres, de forma a dispersar
as temáticas e chegar a mais leitores/leitoras: “precisamos de mais jornalistas mulheres
para humanizar informação e melhor servir os interesses dos leitores e das leitoras”
(Ceulemans & Fauconnier, 1979:43), sobretudo através das rubricas.

Como a maioria dos artigos de jornal e rubricas confinavam a mulher ao seu papel
doméstico e sexual, o movimento feminista começa a intervir vigorosamente na imprensa,
questionando o papel da mulher na sociedade. Como forma de resposta, muitos jornais
utilizavam representações estereotipadas das feministas, normalmente em posições de
revolta ou tumulto, o que nunca auxiliou na criação de uma “imagem” positiva deste
movimento.

Na finalização do estudo, Ceulemans & Fauconnier (1979) sugerem a necessidade da


realização de investigações sobre os sistemas de comunicação, o conteúdo dos media e o
papel das mulheres, em simultâneo com estudos sobre o público, sobre os efeitos dos
meios de comunicação e sobre os sujeitos que esta indústria emprega. Só assim é possível

168 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

acompanhar a evolução dos tempos na relação dos media com a representação das
mulheres.

Em 1994, Julia Wood publicou um artigo que procurou analisar a influência dos media na
maneira como o género era visto, particularmente quando este é representado de forma
irrealista, estereotipada e limitadamente. Neste seguimento, Wood (1994) indica três temas
principais que descrevem a forma como os media representam o género: 1) as mulheres
estão sub-representadas; 2) os homens e as mulheres são representados de forma
estereotipada; e 3) as representações de relações de género enfatizam os papéis tradicionais
e normalizam a violência contra a mulher.

Em relação ao primeiro ponto, Wood (1994) indica que, ao sub-representar as mulheres, os


media distorcem a realidade, pois isso implica, falsamente, que existem mais homens que
mulheres, e que o homem é considerado o modelo cultural, enquanto a mulher passa a ser o
elemento invisível. Em segundo lugar, os homens e as mulheres são representados de
acordo com estereótipos que refletem e sustentam falsas “imagens” de género na
sociedade: “(…) os media continuam a apresentar mulheres e homens de formas
estereotipadas que limitam a nossa perceção das possibilidades humanas” (Wood,
1994:232). Para a autora, os media criaram apenas duas “imagens” da mulher que são
frequentemente confrontadas: a mulher “má” e a mulher “boa”. Esta “imagem” da “mulher
diabólica” em oposição à “mulher anjo” é regularmente explorada na televisão e no
cinema. Também na literatura esta “imagem” estereotipada da mulher é frequentemente
utilizada, onde em contraste com uma mulher diabólica existe sempre uma mulher com
uma conduta angelical, uma espécie de “Joaninha garrettiana” (Barreira, 1986).

Em terceiro lugar, Wood (1994) acredita que as relações entre homem e mulher são
representadas nos media de forma a reforçar os estereótipos e os papéis tradicionais. Para a
autora, os media representam as relações de género através do confronto, particularmente
de acordo com quatro formas: a) independência masculina versus dependência feminina; b)
autoridade masculina versus incompetência feminina; c) homem como chefe de família
versus mulher como cuidadora do lar; e d) homens como agressores versus mulheres como
vítimas e objetos sexuais. Este último ponto desperta na autora a questão da violência
contra as mulheres. Para Julia Wood (1994), os media retratam de forma positiva a
agressão masculina e a passividade feminina, pelo que é necessário entender se estas

169 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

mensagens mediáticas vão, ou não, contribuir para a violência contra as mulheres. No


entender da autora, a exposição à violência sexual dos media conduziu à tolerância para
com os atos violentos, pelo que a proteção das mulheres pode estar em risco.

Um trabalho publicado por Nirman Bamburac & Tarik Isanovic (2006) sobre a
representação das mulheres, nos media impressos, na Europa de Leste, procurou interpretar
mensagens “codificadas” nos textos mediáticos, de forma a analisar relações, crenças e
questões identitárias. Usando oito seções (primeira página, atualidade/política, mundo,
economia e negócios, notícias de crimes/acidentes, entretenimento, cultura e arte, e
desporto) de jornais diários da Bósnia, Croácia e Sérvia, os autores partiram com a
hipótese de que as identidades, relações e crenças se refletem e são construídas através da
forma como e onde o género é (re)apresentado e posicionado nos jornais. Assim, os autores
focaram a análise de acordo com seis formas e técnicas de posicionamento e tratamento de
género nos jornais selecionados: presença/ausência; temas; vozes/fontes; ocupações;
representações visuais (fotografias); e linguagem de género “sensível”.

Em relação à questão da presença/ausência, os autores justificam a utilização deste critério


com a afirmação de que os media tanto produzem “presenças” (os que são visíveis), como
“ausências” (o que são excluídos), mas que ambos são importantes na representação das
relações de poder sociais. A análise por temas é outra opção fundamental, pois a forma
como determinados temas (desporto, política, maternidade, etc.) são abordados nos jornais
diz muito sobre determinados papéis sociais. No que diz respeito às vozes/fontes, destaca-
se a importância de quem fala (e de quem é silenciado) como indicador das relações,
papéis e crenças sociais, mas, sobretudo, como revelador de quem tem acesso aos media
para se expressar, e quem é considerado relevante, competente e de confiança.

Os autores referem ainda que utilizaram o critério das ocupações na análise das relações
sociais, pois “a ocupação é um dos marcadores essenciais da identidade de uma pessoa e
do seu estatuto numa sociedade, e por isso é frequentemente alvo de representações
estereotipadas” (Bamburac & Isanovic, 2006: 56). A quinta técnica utilizada é a da análise
de fotografias, pois a imagem oferece informação adicional ao texto, revelando-se também
uma fonte de marketing. Por último, os autores consideram o uso de determinado tipo de
linguagem como representativo de determinadas relações sociais. Quer isto dizer que o uso

170 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

(ou o não-uso) de linguagem sensível ao género por parte dos jornalistas é um indicador da
prática e da posição do jornal em relação aos papéis, às relações e às crenças de género.

Num estudo relativo à perspetiva de género na imprensa portuguesa, Carla Cerqueira


(2008a) procura perceber como é que as mulheres são representadas pelo discurso
jornalístico português no Dia Internacional da Mulher (8 de março). Para tal, a autora
colocou duas hipóteses de investigação: “a imprensa diária portuguesa dá destaque à
efeméride, mas as mulheres continuam a ser apresentadas de forma pouco diversificada; e
as notícias que aparecem fora do contexto da efeméride reduzem as mulheres a aspetos
estéticos e emocionais” (Cerqueira, 2008a:143-144). Este estudo caiu sobre os quatro
jornais diários generalistas mais lidos em Portugal, em 2006 – Jornal de Notícias, Correio
da Manhã, Público e Diário de Notícias –, e foi definida uma amostra composta pelas
peças jornalísticas, com a respetiva fotografia, de todas as secções referentes ao dia 8 de
março de 2006, que falam das mulheres ou de temas relacionados com o sexo feminino.

Carla Cerqueira (2008a) procedeu à análise de conteúdo dos textos/imagens dos jornais de
acordo com as seguintes variáveis: jornal; número de notícias; tipo de texto (entrevista,
reportagem, notícia, breve, estatística, outro); espaço ocupado (1 ou 2 parágrafos, 1/8
página, ¼ página, ½ página, ¾ páginas, 1 página, etc.); tipo de tema (política, economia,
educação, saúde, justiça/tribunais, assuntos militares, religião, manifestações
culturais/artes, ciência/inovação, desporto, media, História/efemérides, questões de género,
trabalho, problemas sociais, jet set, moda/beleza, histórias de vida, etc.); valência (positiva,
negativa, neutra, mista); imagem (com imagem, sem imagem, gráfico); tipo de fotografia
(mulheres em grupo, mulher individual, mulher em ambiente familiar, mulher em trabalho,
outro); número de fontes (com citação, sem citação); estatuto da fonte (oficial, não
identificado, anónimo, cidadão comum, celebridade, documental, meios de comunicação
social, blogues/sites, outro); e autoria (homem, mulher, não identificado).

Com esta análise, Cerqueira (2008a:160) conclui que “o discurso mediático representa as
mulheres de forma muito reduzida, ou seja, o sexo feminino continua a ter pouca
visibilidade (falta de diversidade de papéis e posições)”. No caso específico do Dia
Internacional da Mulher, as mulheres aparecem, maioritariamente, em notícias de
informação geral ou estatística, carreira e vida profissional, e assuntos ligados à violência

171 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

de género. Fora do contexto do Dia Internacional da Mulher, a mulher é representada,


sobretudo, esteticamente, como “objeto/corpo/vedeta”. A autora acrescenta ainda que:

(…) Esta análise mostra-nos que, embora a maioria das notícias seja assinada por
mulheres, a imagem que é veiculada não apresenta grandes alterações em relação
ao que tem sido estudado por vários autores que se dedicam à relação entre os
media e o género. Pode dizer-se que o discurso jornalístico reproduz atitudes e
ideologias que legitimam a dominação, bem patente nos atores sociais que são
ouvidos e naqueles que ficam na penumbra (Cerqueira, 2008a:161).

Uma das autoras que também se debruça sobre a análise de género nos media, no contexto
nacional, é Cláudia Álvares (2005, 2011). A autora, num artigo sobre Feminismo e
representação discursiva do feminino (publicado em 2005), afirma que a definição de
poder feminino na imprensa portuguesa está relacionada com duas esferas – a pública e a
privada –, e que este tipo de poder pode ser definido a partir da sua incorporação nos
domínios da produção e da reprodução. A autora prevê ainda que estas linhas podem ser
estudadas, utilizando a análise de conteúdo, sob as seguintes vertentes: as atitudes; os
objetivos; o grau de credibilidade dos agentes; os meios utilizados para os agentes
atingirem objetivos; as coordenadas espácio-temporais das ações; a causa de conflitos nas
ações; e o resultado desses conflitos.

No panorama português, destaca-se ainda o estudo realizado por Carla Cerqueira, Luísa
Teresa Ribeiro e Rosa Cabecinhas (2009) sobre a presença feminina na imprensa regional,
apresentado no X Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Segundo as
autoras, estudos nacionais e internacionais comprovam que o discurso jornalístico é
desigual em relação à distribuição de género. As vozes femininas e os seus pontos de vista,
especialmente nas hard news (onde são abordados assuntos como a política e a economia)
são praticamente inexistentes, pois os homens apoderam-se da palavra. As autoras dão
alguns exemplos baseando-se nos estudos de Pedro Sousa (1998)34 e de Carla Cerqueira
(2008b)35, que comprovam que as citações masculinas em jornais portugueses são
predominantes e mais relevantes em relação às citações femininas.

                                                            
34
Artigo intitulado “Diários portugueses: que espaço para o cidadão comum?”.
35
Artigo intitulado “A imprensa e a perspetiva de género: As vozes femininas nas notícias de primeira página
do Público e do Correio da Manhã”.

172 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

Cerqueira et al (2009) salientam ainda a importância de entender quem produz os


conteúdos mediáticos. Segundo as autoras, e com base num estudo internacional (que
inclui Portugal) realizado em fevereiro de 2005, a maioria dos cargos de direção no mundo
mediático pertence aos homens (cerca de 80%), apenas 29% dos textos de imprensa são
produzidos por mulheres, e apenas 10% das notícias têm como protagonistas mulheres (na
maioria das vezes possuindo o estatuto de vítima). As autoras ressalvam que “a única
diferença verificada no contexto nacional refere-se aos produtores do discurso jornalístico,
em que 57% das notícias difundidas foram produzidas por mulheres” (Cerqueira et al,
2009:212), mas, na sua maioria, elas são representadas e identificadas com o seu papel de
mães e de esposas, o que reforça estereótipos tradicionais de género.

No artigo, Cerqueira et al (2009) destacam ainda a importância de analisar texto e imagem


mediáticos em conjunto, de forma a abranger sempre discursos verbais e visuais
fundamentais para perceber mensagens sociais vinculadas e divulgadas nos media. De
facto, nos estudos dos media, o conceito de “texto” implica algo que contém informação ou
uma mensagem, pelo que se deve incluir o material escrito e o visual.

Em muitos momentos, os textos são ultrapassados pelas imagens no que diz respeito à
comunicação contemporânea, daí a premência em compreender como a imagem comunica
e difunde as suas mensagens. Segundo Martine Joly (2012), é através da Semiótica que as
categorias funcionais da imagem e as suas especificidades complexas podem ser
ultrapassadas, visto que a imagem passa a ser analisada sob o ponto de vista da
significação. Desde meados do século XX que o conceito de Semiologia da Imagem tem
vindo a ser aprofundado36, pelo que “material ou imaterial, visual ou não, natural ou
fabricada, uma imagem é antes de mais algo que se assemelha a qualquer outra coisa”
(Joly, 2012:42) – isto coloca a imagem na categoria das representações, o que implica que
a imagem seja entendida como signo analógico.

Vendo a imagem como um meio de comunicação ou uma mensagem para o Outro, esta
deve ser entendida e analisada com base nos princípios da comunicação: emissor –
mensagem – recetor. Desta forma, devem entrançar-se as normas da análise verbal e da
virtual para que, conjuntamente com as expetativas e os contextos de receção, possa ser
feita uma completa e meticulosa interpretação do(s) significado(s) da imagem. Assim, por
                                                            
36
Particularmente no âmbito dos estudos das imagens publicitárias.

173 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

exemplo, ao estudar representações imagéticas de mulheres na imprensa local, para além


de analisar o tema ou o assunto, o comportamento associado, o estatuto e a ocupação
atribuídas, e os níveis de individualização/personalização contidos (Ribeiro & Cerqueira,
2009), devem-se ter em consideração dois critérios fundamentais de análise de imagens: a
forma e o conteúdo.

Para Nick Lacey (1998), a forma implica como a imagem foi criada e abarca elementos
como as dimensões, o formato dos frames, os ângulos, a altura, o nível, a distância, a
profundidade, etc. Em relação ao conteúdo, este autor indica que é necessário ter em
consideração o que se encontra na imagem, nomeadamente o sujeito, o contexto e a
iluminação. Mota-Ribeiro & Pinto-Coelho (2005) apontam alguns critérios específicos de
análise de imagens de mulheres nos jornais, que devem, à partida, incluir imagens com
mulheres (sem homens) e imagens sem mulheres (imagem de um ou mais homens e/ou
imagens sem motivos humanos ou sexo não-identificado). Para as autoras, pode-se
enumerar e interpretar o número de imagens de mulheres por secções ou temas de acordo
com os seguintes tópicos: destaque, sociedade, nacional/política, mundo/internacional,
economia/negócios, desporto, opinião/espaço público, artes/entretenimento, local.

No artigo de Pedro & Santos (2009), que aborda o estudo das representações da dona de
casa moderna numa revista direcionada para o público feminino, deteta-se, uma vez mais,
uma cadeia discursiva e reguladora que naturaliza os limites impostos na dualização de
género. Neste estudo foram analisadas, particularmente, imagens de acordo com os passos
de Joly (2012): 1) identificar os tipos de significantes plásticos, icónicos e linguísticos da
imagem; 2) fazer com que a eles correspondam os significados considerados habituais; 3)
observar o cruzamento dos diferentes tipos de signos e os significados que daí emergem; e
4) relacionar os significados e formular uma versão plausível da mensagem implícita
vinculada à imagem.

Fundamentando-se nos passos referidos, Pedro & Santos (2009) estabeleceram a sua
análise com base em dois critérios principais: análise dos aspetos técnicos (luz, posição,
ângulo, etc.); e análise dos significados plásticos (cores, formas, linhas, texturas e a própria
composição interna da imagem), icónicos (figuras que se reconhecem através da
semelhança visual com o que representam) e linguísticos (linguagem verbal contida nos
textos que acompanham). Com este estudo concluiu-se que as imagens publicadas na

174 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

revista consistiam “em discursos que difundiam expectativas sociais capazes de influenciar
julgamentos e escolhas”, e que, em conjunto com outros dispositivos, participaram da
“constituição de subjetividades, definindo relações de género plenas de hierarquias, onde
ser uma ‘verdadeira mulher’ significava dedicar-se às atividades domésticas” (Pedro &
Santos, 2009:181-182).

É neste sentido que a análise conjunta de texto e imagem se revela fundamental nos
estudos dos media e deve ser aplicada na análise dos discursos representativos das
mulheres na imprensa local e regional que, de acordo com Cerqueira et al (2009), se
encontram pouco estudados. Efetivamente, estas publicações são importantes, pois
permitem que sejam formulados, divulgados e difundidos modelos socioculturais,
permitindo que sejam criados e mantidos traços identitários comunitários (Cerqueira et al,
2009), na medida em que as fontes e os recetores de informação são “pessoas”.

Apesar de alguns autores, fundamentalmente os da vertente feminista, acusarem as


instituições e os meios sociais de continuarem a produzir conteúdos que tendencialmente
diminuem as mulheres e não corresponderem aos factos reais, Pierre Bourdieu (1999)
sublinha que um olhar atento da relação entre homem e mulher no espaço social (familiar,
escolar, profissional, mediático, etc.) desfaz completamente o ideal de um “eterno
feminino”, que dificilmente se instaurará por razões simbólicas.

Mota-Ribeiro & Pinto-Coelho (2005:9) na sua análise “de imagens fotográficas do


feminino na imprensa diária portuguesa de referência” seguem no sentido da afirmação do
parágrafo anterior ao concluírem que, para além destas imagens serem diminuidoras face
às mulheres, são, principalmente, irrealistas. Isto implica, pois, o reflexo e a criação de
desigualdades entre homens e mulheres, baseados na tradicional divisão dos papéis
sexuais.

No Relatório sobre a imagem das mulheres nos media, as autoras Michèle Reiser &
Brigitte Gresy (2008:80) concluem que “os homens são os atores principais, responsáveis
pelo programa do mundo”. Já as mulheres ficam em segundo plano, pois os media
remetem-nas para papéis que escondem a verdade e, sobretudo, as suas necessidades. A
intensidade de estudos como este reside, precisamente, na tentativa de tentar expor as
diferenciações que os media fazem entre homens e mulheres. No fundo, fica registado que

175 
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género

é recorrente a construção social do género assente em esferas e modelos binários, pois os


media acabam por refletir a naturalização social do género, ou aquilo que Connell (2002)
chamou de “ordem de género”37. Contudo, “(…) os significados sobre as identidades
masculinas e femininas não podem ser encarados como estados cimentados pela natureza,
ou tampouco, como um resultado de processos de normalização social” (Soares & Jesuíno,
2011:104).

Neste sentido, existem já algumas tentativas para mostrar que homens e mulheres não
devem ser mecanicamente comparados, pelo que alguns estudos falam mesmo da
desconstrução social do género. De facto, ao pensar a teoria do poder e dos micropoderes
de Michel Foucault (2006, 2010a, 2010c), percebe-se que o filósofo afasta qualquer
tipologia desse poder, bem como qualquer diferenciação hierárquica entre os micropoderes
masculinos e femininos.

Com o advento da Pós-Modernidade e das teorias queer e performativa começam a ser


colocadas em questão as imposições tradicionais de género e de sexualidade, na medida em
que os conceitos de “feminino”, “masculino”, “normal” e “desviante” se tornam ambíguos.
O modelo binário vai perdendo a sua força e os papéis sociais invertem-se, transformam-se
e evoluem, surgindo novas formas de pensar os discursos e a(s) identidade(s) de género.
Estas mudanças são ainda levadas ao extremo quando inseridas no contexto das recentes
teorias pós e transumanas, que distorcem as conceções sociais e culturais até aqui
valorizadas.

                                                            
37
Por “ordem de género” entende-se os significados e as práticas das relações de género presentes no mundo
social, que contribuem assim para a manutenção de esquemas identitários tradicionais (Connell, 2002).

176 
PARTE II
METODOLOGIA E ESTUDO EMPÍRICO

 
 
Capítulo V – Metodologia de Investigação

5.1. A prática de investigação nos Estudos Culturais

Atualmente, “o conhecimento, a ciência, a investigação e a formação transformaram-se na


força primordial de criação e progresso nos países desenvolvidos, pelo que se revelam
ferramentas de produção a dominar” (Maia, 2010). É neste sentido que a investigação
científica, como processo dinâmico e sistemático que é, se apresenta como um meio
fundamental para adquirir, analisar e apresentar informação essencial, na tentativa de
resolver problemas, ou seja, de obter respostas para questões que se adivinham complexas.
Quanto mais e melhor domínio as sociedades contemporâneas tiverem sobre os métodos e
práticas científicos, mais possibilidades têm de se poderem apresentar na comunidade
mundial como potências intelectuais e competitivas nas cadeias e dinâmicas dos poderes
vigentes (Costa, 1999).

A investigação científica assenta em propostas metodológicas que legitimam o seu


procedimento. Mais do que um mero conceito, a metodologia de investigação é um
procedimento que orienta a pesquisa e que, cumprindo um sistema normativo, apura e
relaciona técnicas, de forma a atingir os objetivos propostos, para que se possa desenvolver
o processo de confirmação científica. Deste modo, em qualquer procedimento científico, a
explicitação do processo de escolha é fundamental e indispensável. No caso da
investigação em Estudos Culturais, o conceito de “metodologia” pode ser entendido como
“prática de investigação” (Johnson et al, 2004), por privilegiar alguns dos procedimentos
normalmente omitidos pela metodologia, como, por exemplo, a escolha do tema e o
processo criativo da construção do estudo.

Nesta investigação, a metodologia compreende toda uma “prática de investigação”, na


medida em que discute não só os procedimentos metodológicos, como também as opções
do investigador (questões e objetivos), bem como a política e a ética na pesquisa, o que
implica questões de poder, responsabilização e construção subjetiva. Em suma, neste
contexto científico, entende-se a metodologia como o “discurso do método” (Johnson et al,
2004:3), que dificilmente é apenas e só “objetivo”, pois, no âmbito dos Estudos Culturais a
pesquisa metodológica é alocada a (e formada por) posições sociais e momentos históricos

179 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

particulares, locupletando-se de “subjetividade” científica. É, de facto, importante ter a


perceção que as formações culturais e sociopolíticas em estudo fazem parte de um contexto
social, espacial e temporal, o que se enquadra num verdadeiro sentido pós-estruturalista.
Revela-se necessário fazer perguntas não apenas sobre teorias, objetivos e métodos, mas
também sobre limitações, posições e potencialidades políticas. É neste sentido que Johnson
et al afirmam que:

Tal como qualquer projeto tem que encontrar o seu método, também todos os
investigadores têm que encontrar um percurso que funcione não apenas para o
seu assunto, mas também nas condições das suas vidas (Johnson et al, 2004:84).

A particularidade dos Estudos Culturais em relação à pesquisa metodológica prende-se


com a aceitação (e até necessidade, por vezes) de uma multiplicidade de métodos, porque
nenhum método pode ser considerado superior ou inferior a outros, ou funciona melhor ou
pior que outros, independentemente dos objetivos e das temáticas de investigação.
Segundo Johnson et al (2004), as opções metodológicas variam de acordo com a
exploração de diferentes aspetos culturais de um mesmo processo. Contudo, os autores
supracitados admitem que todos os métodos possuem limites. Esta posição em relação à
multiplicidade metodológica é o resultado de uma postura crítica dos Estudos Culturais em
relação às limitações da investigação dentro das academias. Todavia, os Estudos Culturais
procuram também desenvolver as possibilidades oferecidas pela academia, estando atentos
aos estudos transdisciplinares. Nas palavras de Manuela Sanches (1999:194), os Estudos
Culturais “(…) não se definem por um método exclusivo, um objeto de estudo próprio,
mas pela diversidade das abordagens e dos temas”.

Outra das particularidades dos Estudos Culturais é o seu interesse por questões
socioculturais e teóricas que reúnem a abstração sociológica e a prática histórica, não só
através da construção de “textos”, mas igualmente através de uma dinâmica que permite
uma intervenção in loco, pois “como investigadores [dos Estudos Culturais], (…) a nossa
própria leitura deve (…) ser uma leitura próxima e não uma leitura fechada” (Johnson et al,
2004:169).

Por outro lado, os Estudos Culturais são um campo epistemológico onde a teoria tem um
papel crucial. Segundo Stuart Hall (1997c), os Estudos Culturais apoiam-se em diferentes
discursos teóricos que advêm da tradição da análise textual, da crítica literária, da História,

180 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

dos Estudos de Género, da Linguística e de outras áreas oriundas das Ciências Sociais e
das Humanidades. Esta legitimação teórica permite aos Estudos Culturais praticar um certo
hibridismo metodológico, circulando essencialmente através de três métodos a que
McRobbie (1997) apelidou dos três “E’s”: Empírico, Etnográfico e Experimental. Já Paula
Saukko (2003) afirma que a verdadeira imagem de marca dos Estudos Culturais é a sua
abordagem à pesquisa empírica, que procura interligar experiência vivida, textos (ou
discursos) e contexto social. Esta abordagem permite que sejam selecionados caminhos
metodológicos que melhor se adaptem ao objeto de estudo. Desta posição nasce uma teoria
metodológica multifacetada ou prismática que acaba por se afastar da teoria metodológica
positivista.

Esta versatilidade metodológica deve, contudo, ter sempre presente que os Estudos
Culturais exigem também que se investigue, constantemente, os modos pelos quais o
sentido é produzido nos diversos discursos e contextos culturais e sociais. Se, por um lado,
os Estudos Culturais privilegiam a investigação sobre o texto, os modos comunicativos e o
sentido, por outro lado também privilegiam a investigação sobre o contexto. Na opinião de
Raquel Miranda (2006:234), o que interliga esta pluralidade de opções teórico-
metodológicas dos Estudos Culturais – que, por vezes, chega a ser até contraditória – “(…)
é a conceção da investigação como atividade crítica (…)”, e, acrescente-se, como atividade
que possui um contexto.

É por todas estas caraterísticas que os Estudos Culturais se apresentam como o modelo que
melhor responde àquilo que hoje é pensado como “cultura”, o que levou Couldry
(2000:143) a afirmar que são os Estudos Culturais que melhor compreendem a interligação
das análises, dos valores, da metodologia e da política, pelo que “(…) estão melhor
colocados para agir em relação ao campo da cultura”. Esta ação pode ilustrar-se no campo
da análise dos textos ou discursos que circulam nos canais sociais.

Segundo John Hartley (2004:261) “(…) a vida contemporânea é promiscuamente textual”,


pois a realidade cultural encontra-se inundada de textos, especialmente de textos
mediáticos. É neste sentido que, a partir da segunda metade do século XX, começam a
ganhar relevância os estudos relativos à produção e à receção dos meios de comunicação.
Os media passam a ser entendidos não apenas como meros veículos de informação, mas
também como espaço de circulação de significados culturais representativos de

181 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

determinados contextos sociais. Começam então a multiplicar-se os estudos de


interpretação textual que tentam compreender: “(…) o significado de um texto no que se
refere aos contextos sociocultural e histórico” (White, 1998:60), tanto do lado do produtor
dos textos, como do recetor; os estudos sobre a capacidade da audiência entender o
significado do texto de acordo com o seu contexto; e os estudos relativos às problemáticas
das relações de poder e de contrapoder (ou resistência). Em relação à análise de
resistências, é fundamental uma abordagem textualista (e otimista) que legitima a presença
da resistência simbólica, capaz de transformar a cultura e ter um efeito multiplicador, tal
como afirma Paula Saukko (2003).

Uma das formas de compreender a realidade (simbólica) que os media representam é


através da análise dos textos que estes difundem. A análise textual é um método analítico e
empírico que se revela fundamental para o desenvolvimento teórico e epistemológico dos
Estudos Culturais e dos estudos dos media. Ainda segundo Hartley, a análise textual:

(…) Envolve o exame das características internas formais e a localização


contextual de um texto para descobrir que leituras ou significados podem ser
obtidos a partir dele. Não é uma ferramenta para encontrar a interpretação correta
de um texto, é antes usada para compreender quais as interpretações possíveis. A
análise textual está interessada nas implicações culturais e políticas das
representações, e não apenas na forma como o significado é construído”
(Hartley, 2004:261).

A análise dos textos (e das imagens) dos media (aqui entendidos como discursos) são, de
facto, uma área de estudos que merece toda a atenção por parte dos Estudos Culturais, na
medida em que implicam, não apenas a análise dos procedimentos de produção e de
receção, mas também a crítica de processos socioculturais. De acordo com Van Dijk
(1985d), grande parte da pesquisa dos media é sobre as dimensões sociais do processo de
comunicação, pelo que se devem privilegiar os estudos dos sistemas mediáticos, sobretudo
a um nível micro. Olhando para o estudo dos media como uma prática contextualizada
social e textualmente, Suter (1993) entende que existem quatro áreas que devem delinear a
análise do discurso em causa: contexto situacional, função, conteúdo e forma. Assim,
ultrapassa-se o campo meramente descritivo, para atingir o interpretativo.

Os estudos dos media podem, de acordo com Chris Barker (2000), seguir uma abordagem
textual desconstrutivista, narrativa e/ou semiótica. No primeiro caso, o investigador

182 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

desmantela os discursos mediáticos em oposições hierárquicas conceptuais, de forma a


analisar binários, como, por exemplo, natureza/cultura, homem/mulher, real/aparente,
atingindo a “verdade” pela exclusão. A segunda abordagem vê os textos como histórias,
pois as narrativas permitem perceber como a ordem social é construída ao dar explicações
sobre o mundo social. A abordagem semiótica vê os textos como signos, onde as imagens
criadas são uma representação da realidade: “a semiótica explora como os significados
gerados por textos foram alcançados através de um arranjo particular de sinais e da
implantação de códigos culturais” (Barker, 2000:30). Na prática, a análise textual pode
fazer-se representar, por exemplo, através das técnicas da análise de discurso, da análise
crítica de discurso e da análise de conteúdo, sendo que nesta investigação optou-se pela
última técnica referida, de forma a analisar textos e imagens.

5.2. Verificação do estudo empírico e opção pela metodologia qualitativa

De forma a cumprir os objetivos deste estudo, adotou-se um desenho de investigação que


implicou um conjunto de escolhas teóricas, conceptuais e metodológicas. Neste sentido,
procura-se, nesta investigação, uma proximidade com as normas de uma metodologia
“mista”, pois só esta permite, com as premissas formuladas (com base na articulação entre
teoria e estudo empírico), encontrar quadros conceptuais de interpretação do material
estudado. Quanto aos métodos utilizados, caracterizam-se por tentar estabelecer um
equilíbrio entre os processos indutivo e dedutivo, por incentivar a racionalização de
conceitos teóricos fundamentais, e por procurar, com o auxílio do estudo empírico,
encontrar resposta para os objetivos da investigação.

Olhando para o objeto em estudo e para as leituras feitas no processo de contextualização


teórica, foi possível criar um modelo de análise que traz legitimidade empírica a esta
investigação. É, de facto, alicerçado no modelo pós-estruturalista (que reconhece a
importância fundamental da contextualização histórica e temporal dos acontecimentos, e
que é particularmente inspirado nas obras de Butler e Foucault) que este estudo valoriza o
estudo empírico.

Relativamente ao assunto supracitado, Nixon (1997) indica existirem cinco pontos


basilares para uma estratégia de análise num estudo empírico, que se apoiam na conceção

183 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

foucaultiana de discurso, e os quais foram valorizados neste estudo. Estes cinco pontos
são: formações discursivas; especificidade discursiva; operação do poder por meio de
regimes discursivos; dimensão institucional dos discursos; e produção discursiva da
subjetividade.

Em relação às formações discursivas38, a argumentação foucaultiana convida a perceber as


regularidades que interligam diversas manifestações e não à centralidade em uma ou duas
imagens dos objetos em estudo; já em relação à especificidade discursiva, destaca-se a
“(…) necessidade de estar atento aos códigos discursivos e convenções específicas (…)”
(Nixon, 1997:303), pois o objeto de estudo é significado dentro do material recolhido. Em
seguida, é importante perceber as operações do poder dentro dos regimes discursivos, de
forma a analisar as microrelações de poder existentes no contexto social em questão, ao
mesmo tempo que se considera que os discursos em análise possuem uma dimensão
institucional (discursos capazes de representar e de rotular determinadas práticas).
Finalmente, é necessário ter em consideração a produção discursiva da subjetividade, tanto
na observação e análise, como na produção do objeto do estudo empírico. Assim sendo, e
de forma a cumprir o caminho científico que se pretende, na primeira parte desta
investigação está presente uma exaustiva revisão de literatura que permite teorizar
conceitos fundamentais para o estudo, enquanto na segunda parte se realiza o estudo
empírico, que conta com a recolha, a apresentação, a análise e a discussão de dados.

Nos estudos dos media têm sido utilizadas várias metodologias que procuram técnicas para
medir os fenómenos sociais. Contudo, atualmente, os investigadores sociais e das
humanidades reconhecem o valor interpretativo dos métodos, pelo que dão preferência às
metodologias qualitativas, que “(…) são projetadas para explorar e avaliar coisas que não
podem ser facilmente resumidas numericamente” (Priest, 1996:5), sobretudo quando se
trata de uma investigação empírica.

Quando Max Weber (1992) faz da atividade social a base do interesse sociológico, as
metodologias compreensivas ganham destaque. Estas metodologias compreensivas ou
indutivas focam-se no mundo social, nas representações sociais, nas práticas dos atores,

                                                            
38
“(…) Foucault usa discursos ou formações discursivas para se referir a grupos de declarações que
fornecem uma maneira de representar um tópico, uma preocupação ou um objeto particulares” (Nixon,
1997:302).

184 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

nos símbolos e até nos investigadores, afastando-se um pouco das conceções lógico-
dedutivas ou cartesianas – metodologias que se socorrem de quadros de interpretação
sistémicos ou funcionalistas (Guerra, 2010). Contudo, segundo a publicação Pesquisa
qualitativa e análise de conteúdo39 (2010) de Isabel Guerra, apesar de existir uma clara
rutura epistemológica, teórica e metodológica entre as metodologias indutiva e lógico-
dedutiva, estas duas vertentes não devem ser consideradas, hoje, como opostas, na medida
em que se influenciam e podem ser utilizadas em conjunto:

Hoje assumimos que as perspetivas sistémicas e compreensivas não são, por


natureza, opostas, na medida em que se influenciam reciprocamente, sendo
mesmo complementares. A perspetiva sistémica é particularmente pertinente
para a análise de longos períodos de estabilidade quando as regularidades
provocam efeitos de sistema, situação em que a análise deve consistir
expressamente na procura de regulações ou formas estruturais que produzem e
reproduzem o sistema. A perspetiva compreensiva torna-se mais pertinente para
explicar os períodos de crise, particularmente aqueles em que se assiste a
transformações culturais com profundas mudanças ao nível das práticas sociais
(Guerra, 2010:8).

Ainda segundo Guerra (2010:9), as metodologias compreensivas são orientadas “(…) para
a identificação das práticas quotidianas e [para a] emergência de novos fenómenos
sociais”, que vão clarificar e transformar as dinâmicas sociais. Ao denominar-se estas
metodologias de “qualitativas”, percebe-se a sua fluidez e legitimidade teórica,
epistemológica e política, ao mesmo tempo que se aceita o seu enquadramento em práticas
de pesquisa e de tratamento muito diversificadas.

Quando se trabalha com uma metodologia que privilegia a análise das experiências e o
significado da atividade social, é possível a utilização de formas de recolha, de tratamento
e de análise de material muito diversas. Todavia, tal como qualquer outra ciência, que se
socorre da lógica, do rigor e da coerência, a metodologia qualitativa atinge estas três
características através da legitimação (interna e externa) e da fiabilidade das suas
abordagens. A legitimação interna prevê a exatidão dos resultados que são alcançados
através da discussão teórica e da inclusão do sentido crítico e da empatia do investigador:

                                                            
39
Título completo da obra: Pesquisa qualitativa e análise de conteúdo. Sentidos e formas de uso.

185 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

(…) A experiência ensina-nos que não há olhares ingénuos e que os


investigadores só veem aquilo que estão preparados para ver. Ao mesmo tempo,
sabemos que a literatura científica pode ser extraordinariamente cega face a
objetos evidentes, pelo que se aconselha a simultaneidade entre as leituras
informativas e os contactos do terreno. Assim, é preciso passar em revista a
literatura mais significativa sobre o assunto ao mesmo tempo que se conhece o
meio, se faz uma primeira descrição do sistema de ação e se realizam contactos
exploratórios (Guerra, 2010:36).

A legitimação externa da investigação qualitativa é atingida quando é exequível perceber


se é possível ou não “generalizar” resultados, ou seja, se existe, por exemplo, algum tipo
de representatividade sócio-simbólica ou se esta se encontra limitada de alguma forma. No
que diz respeito à fiabilidade, os investigadores qualitativos admitem apenas uma noção
restrita do conceito, ou seja, substitui-se a preferência pela estabilidade dos resultados, por
uma preferência à aplicabilidade extensiva (espácio-temporal) das ferramentas conceptuais
utilizadas numa dada investigação.

Ainda de acordo com Isabel Guerra (2010), existem três etapas fundamentais na realização
de uma investigação qualitativa indutiva que podem ser discutidas e utilizadas neste
estudo: 1) construção inicial do objeto; 2) segunda construção do objeto e papel da teoria; e
3) hipóteses. A definição do objeto é uma problemática que não fica selada à partida e se
prolonga no tempo: “(…) constrói-se progressivamente em contacto com o terreno a partir
da interação com a recolha dos dados e a análise, não estando previsto um quadro teórico e
um quadro de hipóteses estabelecidos a priori” (Guerra, 2010:37). É nesta fase inicial que
é elaborado um projeto que vai conter o primeiro modelo de abordagem empírica ao objeto
de estudo, mas igualmente as primeiras leituras necessárias à sua interpretação teórica e
epistemológica. De seguida, o objeto passa a ser construído já com o auxílio da
contextualização teórica, surgindo a primeira formalização do problema, da questão e dos
objetivos de investigação.

Em relação às hipóteses, Guerra (2010:39) deixa bem claro que “para alguns autores, elas
são dispensáveis e até contraditórias com a lógica da análise compreensiva; mas, para
outros, isso só acontece na fase exploratória da pesquisa”. De facto, é perfeitamente
aceitável que as hipóteses de investigação sejam substituídas por premissas ou objetivos

186 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

(tal como acontece particularmente na presente investigação), de acordo com as


especificidades do objeto de estudo e das opções do investigador.

No que diz respeito à utilização de “variáveis”, alguns autores preveem a sua categorização
e nivelação, como é o caso de Priest na obra Doing Media Research: An Introduction
(1996), enquanto outros não as consideram por as acharem parte integrante dos métodos
quantitativos. Contudo, no caso particular deste estudo, foram adotados os conceitos de
“categoria” e “níveis de categoria”, em vez de “variável”, e de “ocorrência” em vez de
“contabilização”, por se mostrarem mais de acordo com o material recolhido, o tipo de
análise realizada e os próprios objetivos da investigação.

Outro dos aspetos fundamentais a discutir na construção de um modelo qualitativo é o


conceito de “amostragem”, visto que não se procura uma representatividade estatística.
Assim, Guerra (2010) salienta que no lugar da “amostragem” devem ser considerados dois
conceitos que vão garantir a “representatividade” e a “generalização” da análise: os
conceitos de “diversidade” e de “saturação”.

Segundo a autora supracitada, a “diversidade” (que pode ser externa ou interna) implica a
garantia de que a utilização do material para análise se faz tendo em consideração a
heterogeneidade dos fenómenos que estão a ser estudados. A diversidade externa atinge-se
com a multiplicidade de sujeitos ou de situações no contexto social ou, no caso deste
estudo, com a escolha de jornais variados para que a “amostra” seja constituída a partir de
uma diversificação de elementos. A diversidade interna tem um intuito teórico diferente e
aplica-se quando o investigador procura “(…) explorar a diversidade de um conjunto
homogéneo de sujeitos ou situações” (Guerra, 2010:41), pelo que é necessário garantir a
variedade interna de um determinado grupo ou situação.

Em relação ao conceito de “saturação”, percebe-se que quanto maior é a diversidade de


elementos presentes num estudo, mais complicado se torna atingir o ponto de saturação do
mesmo, o que significa que os conceitos de “diversidade” e de “saturação” são
contrastantes. A função da saturação é a de indicar ao investigador quando deve parar a
recolha de dados, ao mesmo tempo que permite generalizar os resultados da pesquisa ao
universo analisado. Deste modo, os conceitos de “diversidade” e de “saturação” auxiliam

187 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

na definição da “amostra” que fará parte do estudo; “amostra” esta que, nesta investigação
específica, foi denominada de “amostra teórica”40.

Isabel Guerra (2010) faz ainda uma incursão pelos diferentes tipos de “amostragem” que
podem ser utilizados nos estudos qualitativos, nomeando e diferenciando cada um deles.
Contudo, e tal como se verifica nesta investigação, as decisões sobre a quantidade e a
variabilidade de material que se deve recolher e analisar numa investigação qualitativa
dependem de inúmeros fatores, dos quais se destacam: o tipo de objeto de estudo; os
objetivos da investigação; as limitações do estudo; os recursos disponíveis; e as próprias
opções do investigador. Os dados que se recolhem num estudo qualitativo não são
somados, mas interpretados: “não se procura nem a representatividade estatística, nem as
regularidades, mas antes uma representatividade social e a diversidade dos fenómenos”
(Guerra, 2010:48). Assim, todas as opções metodológicas são válidas desde que as
escolhas sejam bem fundamentadas (teórica e empiricamente), e que se respeite o rigor, a
coerência e a lógica exigidas a um estudo científico.

É por todas estas razões que a metodologia qualitativa se revela de crucial aplicabilidade
nos Estudos Culturais e nos estudos dos media, visto que o âmbito de análise se envolve
com os significados e as interpretações do mundo social. As abordagens qualitativas
permitem investigar como as audiências entendem os discursos dos media ou, no caso
particular deste estudos, como os media representam os sujeitos e o contexto sociocultural
em que se inserem. Importa ainda salientar que no âmbito dos Estudos Culturais e,
especialmente, dos estudos dos media, torna-se cada vez mais difícil não incluir modelos
quantitativos nas análises qualitativas. Apesar de se revelar crucial a utilização de
metodologias qualitativas, que se baseiam no estudo dos significados e das representações,
é muito frequente complementar estes estudos com abordagens quantitativas, o que foi
cumprido nesta investigação.

                                                            
40
O conceito de “amostra teórica” contrasta com o de “amostra aleatória”, regularmente adotada pelos
estudos quantitativos.

188 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

5.3. Técnica da análise de conteúdo

Este estudo visa recolher e analisar discursos (de género) contidos no jornal O Ilhavense,
de forma a compreender como estes são constitutivos e representativos da realidade social.
Nesta afirmação encontra-se a premissa de que as práticas discursivas são práticas
socioculturais, (re)produzidas através de relações de poder, num determinado contexto
espácio-temporal. Portanto, esta investigação procura identificar que tipo de ações estão
relacionadas com as relações discursivas presentes neste jornal, quais os objetivos que
estão na base destes textos e imagens, que tipo de relações de poder circulam entre os
géneros e quais as formas de resistência que se verificam. Para colocar em prática estas
premissas, tomou-se como opção o uso da técnica qualitativa da análise de conteúdo, que
se releva a forma mais indicada para o estudo destes textos mediáticos:

Um tipo extremamente importante de pesquisa em estudos de comunicação de


massa é a análise de conteúdo, a descrição sistemática do conteúdo de uma parte
dos mass media. (…) Embora seja realmente o método (ou conjunto de métodos)
que mais claramente “pertence” exclusivamente para a pesquisa de comunicação
de massa, é baseado em conceitos originalmente desenvolvidos nas outras
Ciências Sociais (Priest, 1996:66).

A técnica da análise de conteúdo desenvolveu-se a partir de meados do século XX,


sobretudo nos E.U.A., como uma técnica quantitativa. Nessa época, a análise de conteúdo
pretendia ser uma técnica objetiva e sistemática para a análise da comunicação e era,
essencialmente, utilizada para avaliar o material jornalístico. Durante a década de 1970, a
análise de conteúdo, apesar de não perder a sua conotação quantitativa, começa a ser
utilizada pelos investigadores para retirar conclusões sobre mensagens sistematizadas. Foi
só com a aproximação do final do século XX que, segundo Guerra (2010), a dimensão
quantitativa e descritiva da análise de conteúdo é ultrapassada, sequencialmente, por uma
técnica que passa a definir-se a partir das inferências válidas e replicáveis que se consegue
fazer do contexto social.

É neste período que a conotação quantitativa atribuída inicialmente à análise de conteúdo,


e que via a informação como “frequência”, começa, gradualmente, a aceitar como fulcral a
presença ou ausência de determinadas características da comunicação. Ao objetivo
descritivo da análise de conteúdo é acrescentada a necessidade de inferência que, surgindo

189 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

com o auxílio da frequência de ocorrências, vai começar a utilizar indicadores combinados,


tomando-se “(…) consciência de que, a partir dos resultados da análise, se pode regressar
às causas, ou até descer aos efeitos das características das comunicações” (Bardin,
1991:21). Hoje, as duas vertentes – quantitativa e qualitativa – podem ser utilizadas em
conjunto e de forma intercalar.

Assim, e segundo Bardin (1991), a análise de conteúdo é constituída por três fases
fundamentais: a fase da “descrição” (enumeração das características dos textos); a fase da
“interpretação” (significados concedidos às características dos textos); e a fase da
“inferência” (procedimento intermediário que permite a transição da primeira fase para a
segunda). São as inferências (ou deduções lógicas) que permitem identificar as causas e as
consequências de um determinado conteúdo discursivo.

Segundo Laurence Bardin (1991), apesar da análise de conteúdo ter surgido no seio da
hermenêutica, da retórica e da lógica, o seu grande salto metodológico deve muito ao
estudo das comunicações e à semiótica. A análise de conteúdo revela-se um instrumento
bastante eficaz para a análise das comunicações ou dos discursos, pois permite alcançar,
através de várias formas e métodos, os sentidos latentes das mensagens, em diversos
domínios (escrito, oral e icónico). É esta posição que leva Bardin (1991:9) a afirmar que,
atualmente, a análise de conteúdo é “um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez
mais subtis, em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a «discursos» (…)
extremamente diversificados”.

Efetivamente, a análise de conteúdo não deve significar “contar” ou “medir”, mas sim
interpretar e compreender práticas e experiências, através da construção de significados. A
análise de conteúdo permite auxiliar na descodificação das mensagens e das condições de
produção de discursos, alcançando uma leitura simbólica do mundo:

(…) A análise de conteúdo tem uma dimensão descritiva que visa dar conta do
que nos foi narrado e uma dimensão interpretativa que decorre das interrogações
do analista face a um objeto de estudo, com recurso a um sistema de conceitos
teórico-analíticos cuja articulação permite formular as regras de inferência
(Guerra, 2010:62).

Em suma, a autora considera que é possível designar-se, de um modo geral, o conceito de


análise de conteúdo como um misto de técnicas de análise das comunicações: “não se trata

190 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

de um instrumento, mas de um leque de apetrechos; ou, com maior rigor, será um único
instrumento, mas marcado por uma grande disparidade de formas e adaptável a um campo
de aplicação muito vasto: as comunicações” (Bardin, 1991: 42).

A diversidade de abordagens inerentes à técnica da análise de conteúdo atribui liberdade de


escolha científica ao investigador. O tratamento dos dados e, naturalmente, do conteúdo da
informação, varia de acordo com a pesquisa, com o material recolhido, com os objetivos
do estudo e com as necessidades ou limitações do investigador. Contudo, existem algumas
linhas gerais que podem ser utilizadas no decurso de uma análise deste tipo.

A interpretação do que representa a análise de conteúdo e a sua estruturação metodológica


encontram-se bem esquematizadas nos trabalhos de Bardin (1991) e de Guerra (2010), pelo
que estes servem de inspiração para esta investigação. Segundo as autoras, existem várias
fases e diferentes tipos de análise de conteúdo que auxiliam na aplicação desta técnica e
que são igualmente consideradas neste estudo.

Nesta investigação particular, o uso da análise de conteúdo respeitou quatro etapas


essenciais: 1) análise prévia; 2) exploração dos dados; 3) tratamento e interpretação dos
dados; e 4) discussão e divulgação dos dados. Na fase da análise prévia, foram organizados
os primeiros esquemas teórico-práticos de incursão pelo estudo empírico e sistematizadas
as primeiras ideias com base na questão e nos objetivos de investigação. Nesta fase deu-se
o primeiro contacto com o material, tendo sido fotografados todos os exemplares
impressos que se pretendia incluir no estudo. Esta primeira abordagem permitiu selecionar
os textos e as imagens a serem submetidos à análise, bem como a projetar o desenho das
unidades, dos indicadores e das categorias que seriam considerados. Foi nesta fase que
ficou delineado o recorte da amostra teórica com base em quatro normas que são sugeridas
por Bardin (1991): exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência.

Numa segunda fase, o material recolhido foi explorado de forma minuciosa, o que se
revelou essencial para delimitar a estrutura de análise, que surgiu exatamente antes do
processo de interpretação e inferência dos dados. Este foi o momento em que ficaram
delimitadas estratégias e foram reajustados objetivos (processos apenas permitidos depois
de um contacto mais delicado com os dados). Foi também nesta fase que se excluíram
alguns dos procedimentos e foram incluídos outros. As primeira e segunda fases

191 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

condensaram e organizaram a informação, e serviram, claramente, de suporte para a


terceira fase – de tratamento e de interpretação de dados.

Na terceira fase da análise de conteúdo realizada neste estudo, os dados foram tratados e
legitimados de forma analítica. Este foi o momento em que a investigadora começou a
interrogar-se sobre os fenómenos culturais, inferindo e interpretando o sentido social
latente do material. Nesta fase do processo é preciso ter sempre em consideração que o
material empírico e a teoria interrelacionam-se e comunicam constantemente. É neste
momento que, segundo apresenta Gunter (2000), existem diversas abordagens qualitativas
da análise de conteúdo que podem ser conduzidas, tais como, por exemplo: análise
estruturalista-semiótica; análise do discurso; análise retórica; análise narrativa; e análise
interpretativa. Contudo, é importante perceber que a maior vantagem da análise de
conteúdo reside na sua capacidade de adaptabilidade ao objeto de estudo, o que incute um
elevado grau de liberdade nas escolhas do investigador. Nesta investigação, não se optou
por discriminar estes diferentes tipos de análise de conteúdo, por se achar que esta técnica
implica já uma articulação de abordagens que são selecionadas e utilizadas à medida que a
análise do material assim o exige.

Nesta terceira fase, o papel e as opções da investigadora foram cruciais, pois é ela quem
delimita o objeto, as categorias, as codificações e as interpretações, daí o caráter de
subjetividade que se pode atribuir à técnica da análise de conteúdo. Contudo, nesta
investigação, tal como se revela necessário em qualquer pesquisa qualitativa, procurou-se
obedecer a alguns pressupostos que permitissem refletir sobre a legitimidade e a fidelidade
do estudo: procurou-se executar uma pesquisa exaustiva, pertinente e homogénea que
atingisse uma consistência argumentativa interna. Em suma, a análise de conteúdo
demostra uma vertente objetiva e outra subjetiva que se complementam:

Enquanto esforço de interpretação, a análise de conteúdo oscila entre os dois


polos do rigor da objetividade e da fecundidade da subjetividade. Absolve e
cauciona o investigador por esta atração pelo escondido, o latente, o não
aparente, o potencial de inédito (do não-dito), retido por qualquer mensagem
(Bardin, 1991:9).

Cumprido todo o processo de análise, este estudo garantiu a diversidade (externa e interna)
e saturou a informação, pelo que os riscos de generalização são semelhantes aos de

192 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

qualquer outra investigação. Todavia, é necessário ter em consideração que “(…) qualquer
pesquisa é sempre parcelar e provisória, (…) porque as dinâmicas sociais mudam no
espaço e no tempo (…)” (Guerra, 2010:86).

Ao finalizar o processo de análise de conteúdo, esta investigação procura discutir, teórica e


empiricamente, todos os resultados, apresentando conclusões e dando orientações para
novos caminhos de análise. Esta quarta e última fase do processo de análise de conteúdo
encerra-se com a divulgação dos resultados de investigação, contribuindo assim para o
aumento da capacidade de compreensão dos fenómenos estudados.

5.4. Contexto espácio-temporal: Ílhavo e O Ilhavense

O concelho de Ílhavo, constituído por quatro freguesias41, localiza-se na região litoral


centro-norte do país, região esta consolidada como centro industrial a partir de meados da
década de 1970 (Peralta, 2010) e conhecida pela sua forte ligação com as culturas marítima
e agropecuária.

A seleção de Ílhavo para este estudo prende-se com o facto de esta vila possuir uma
composição social peculiar, marcada por fortes segmentações de género. Esta situação é
fruto de uma herança histórica, marcada pela ausência de grande parte da população
masculina, que embarcava, por longos períodos de tempo, nas campanhas da pesca do
bacalhau. Segundo Elsa Peralta (2008:166), Ílhavo é recorrentemente identificada como
“terra do matriarcado”, pelos ilhavenses e pelas localidades próximas, o que assinala “(…)
a predominância do papel da mulher na comunidade”.

As viagens marítimas dos portugueses à Terra Nova, em busca do bacalhau, tiveram início
por volta do século XVI (Fonseca, 2007), mas é só no século XIX que esta atividade
económica começa a ganhar expressão no contexto nacional. É a partir deste período que a
constituição de empresas de construção naval e de transformação pesqueira começam a
florescer, sobretudo em Ílhavo – local reconhecido pelas “capacidades marítimas” dos seus
homens. Agora, estes homens, habituados às lides do mar alto, olham para a pesca do
bacalhau como uma atividade profissional que permite o sustento das suas famílias.
                                                            
41
As quatro freguesias são: Gafanha da Nazaré, Gafanha da Encarnação, Gafanha do Carmo e São Salvador
(sendo esta última sede do concelho, elevado à categoria de cidade em 1990).

193 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

O século XX ficou marcado pela evolução técnica e comercial da pesca do bacalhau, bem
como também pelo seu declínio. Até à década de 1930, as condições de trabalho e a falta
de organização do ramo dificultavam muito a ascensão da atividade, dos empregadores e
dos pescadores. Contudo, a partir de 1934 o Estado Novo impõe um conjunto de medidas
protecionistas que procuravam apoiar a indústria da pesca do bacalhau, por razões de
regulamentação do abastecimento público. Assim, “com a criação da Comissão Reguladora
do Comércio do Bacalhau, a reorganização da pesca longínqua, o surgimento das leis
protecionistas desta atividade e a organização corporativa das pescas” (Costa, 2008:7), os
homens de Ílhavo veem as suas condições de trabalho melhoradas, juntamente com a
possibilidade de um ordenado fixo, pelo que ganham confiança numa profissão que,
rapidamente, passa a ser o sustento de gerações: “Ílhavo pode orgulhar-se de grande parte
dos seus filhos ter embarcado como pescadores, marinheiros e oficiais na maioria dos
navios bacalhoeiros” (Parracho, 1997:102). Segundo Nuno Costa, a partir de 1937:

(…) A pesca do bacalhau tornou-se numa fonte de criação de emprego, de


possibilidade de autonomia para os jovens em relação aos pais, trabalho
garantido durante seis meses, relativamente bem remunerado e sem despesas
(Costa, 2008:44).

Durante o período do Estado Novo, o litoral norte liderou as regiões de recrutamento de


mão de obra, sobretudo nas zonas de Ílhavo, Figueira da Foz e Viana do Castelo. Segundo
Inês Amorim (2001), entre 1935 e 1967, num total de 23400 homens embarcados,
destacam-se os dos concelhos de Ílhavo e da Figueira da Foz, com 14,7% e 8,9% de
volume de mão de obra, respetivamente. Estes dados são posteriormente consolidados com
um estudo de Álvaro Garrido (2001), mais alargado, que analisa o período compreendido
entre 1934 e 1970. Apesar do crescimento da atividade e da frota bacalhoeira serem
constantes entre 1934 e meados da década de 1960, o auge da “Campanha do Bacalhau”
dá-se por volta da década de 1950 (Garrido, 2001, 2010), pelo que foi esta a década
selecionada para balizar este estudo.

Nuno Costa (2008) mostra o peso desta atividade ao nível do concelho de Ílhavo,
utilizando, como exemplo, as contagens correspondentes à campanha de 1960: existiam 73
embarcações (22 navios arrastões e 51 navios à linha), com capacidade máxima de
tripulações de 5563 homens. Em relação ao contexto nacional, o investigador indica que
Ílhavo contribuiu com 21,7% dos tripulantes, o que corresponde a 1209 homens. Contudo,

194 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

a partir de 1960 o número de pescadores começou a reduzir, fruto do peso dos arrastões
que ultrapassavam o volume de pescado dos veleiros e que apenas necessitavam de um
terço do número total de mão de obra (Garrido, 2001, 2010).

Em 1967 termina a intervenção do Estado que regulava esta indústria e abrem-se as portas
para a liberalização económica da atividade. No ano seguinte começam a ser visíveis os
impactos negativos desta decisão, sobretudo no que diz respeito às más condições de
trabalho dos pescadores que são forçados a seguir outras direções: emigração e pesca
costeira (Amorim, 2001).

De facto, foi a pesca do bacalhau (a par com o desenvolvimento da Marinha Mercante e da


construção naval) que dinamizou a região e permitiu construir uma realidade cultural
assente no imaginário da vida marítima, que extrapolou fronteiras espácio-temporais: “a
tradição que tanto hoje como na segunda década do século XX urgia preservar é,
sobretudo, a tradição do mar, como essencialmente definidora do caráter distintivo da
localidade” (Peralta, 2008:159).

Toda esta conjetura conduzia à ausência prolongada dos homens, que raramente era
inferior a 5/6 meses, o que afetava as vivências sociais de Ílhavo. Logo, segundo Nuno
Costa (2008:78) “cabia às mulheres a responsabilidade pela estabilidade familiar, pela
educação dos filhos e pelo controlo do orçamento familiar”. Para o investigador, este papel
regulador e controlador do lar e da gestão familiar podia ser assumido plenamente pela
mulher, que excluía totalmente o marido das decisões ou apenas partilhava com ele o rumo
das mesmas:

(…) A grande maioria das mulheres revela que a sua autonomia de decisão se
devia à legitimação que os maridos lhes davam, através da confiança que
depositavam nelas, uma vez que as mulheres os informavam de todas as decisões
que tomassem, mesmo que fosse apenas nas chegadas das viagens (Costa,
2008:88)

Destaca-se ainda que estas mulheres, que viviam uma vida maioritariamente solitária, junto
dos filhos e na esfera do lar, tinham o costume de trabalhar na agricultura, na criação de
gado ou na costura, de forma a equilibrar o orçamento familiar. Todavia, o trabalho fora de
casa, dependente de outrem, não era bem-visto socialmente, nem aceite pelos maridos.

195 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

Assim, “as mulheres têm uma presença bastante discreta, (…) não pública, mas um poder
decisivo”, segundo Moreirinhas (1998:160).

A marcada divisão sexual do trabalho, o papel fulcral da mulher na gestão económica da


família e a sua função na reprodução de valores sociais conduziu, de acordo com Peralta
(2008), a um discurso comunitário de diferenciação de género que romantizou as
qualidades físicas e morais das mulheres ilhavenses. Esta autora afirma mesmo que esta
(dis)posição da mulher ilhavense representava um contexto mais alargado da esfera pública
que procurava fazer da feminilidade um ideal romântico, doméstico e maternal, “(…)
convertendo-as em instrumentos culturais ao serviço do exercício de uma influência
civilizadora no universo masculino” (Peralta, 2008:166). Para além disso, circulava,
naquela época, a crença que Ílhavo era uma sociedade matriarcal, apresentando-se esta
localidade como uma exceção à regra nacional.

Vários relatos sobre a gestão do orçamento doméstico, a vida familiar, a educação dos
filhos e as práticas de lazer são apresentados, analisados e discutidos por Nuno Costa
(2008), na sua dissertação de mestrado – Mulheres de bacalhoeiros: sazonalidade e género
(1950-1974). Neste estudo são apresentados dados procedentes de relatos no feminino que
evidenciam que, apesar das mulheres tomarem decisões sozinhas relativamente à família e
à gestão do lar, nalgum momento elas admitem que informam os maridos, e que estes,
antes de partirem, deixam a sua “autorização” para que elas decidam em nome deles. São
estas imagens de homens como principais provedores e decisores do lar e de mulheres
como educadoras e gestoras da vida familiar que levam a colocar as seguintes questões:
Quem dominava o panorama social da vila? Que poder tinham as mulheres? Era Ílhavo, de
facto, uma sociedade matriarcal na época em que a pesca do bacalhau estava no seu auge?

Toda esta discussão questiona a posição que as mulheres ilhavenses tomavam tanto no
contexto privado, como no público. Uma forma de encontrar resposta para as questões
acima colocadas é proceder à análise dos discursos sociais que proliferavam na época,
particularmente no que diz respeito às representações do e no feminino. Deste modo,
revela-se fundamental o estudo da representação (aqui entendida como representação
discursiva) presente nos meios de comunicação mais relevantes, influentes e abrangestes
da época: os jornais – testemunhos de uma vivência, vozes da “realidade” e
(des)construtores de discursos.

196 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

A escolha do jornal O Ilhavense como fonte de informação prende-se com duas questões
fundamentais: em primeiro lugar, os jornais são detentores e distribuidores de discursos
que circulam na sociedade; em segundo lugar, este jornal específico é particularmente
representativo da sociedade em estudo, de tal forma que Elsa Peralta (2010:451)
considerou O Ilhavense “(…) a voz pública mais ativa ao serviço da construção da tradição
local (…)”.

Desde 1921 que O Ilhavense procura informar (através de uma edição com três números
por mês e com base no lema “Por Ílhavo”), todos os que se interessam pela vida local e
pelas tradições e valores daquela sociedade em particular, tal como se pode verificar nas
palavras contidas no “Estatuto Editorial do Jornal O Ilhavense”, publicadas por Elsa
Peralta:

Publicação de caráter regional ou regionalista (….). Sempre foi o espelho da vida


local, quer noticiando os principais fatores ilhavenses, quer traduzindo os
legítimos anseios dos seus autóctones e íncolas, quer pugnando pela solução de
todos os problemas que pudessem interessar à vida local, quer revelando os
nomes e a obra dos filhos mais ilustres desta terra ribeirinha (Peralta, 2008:159).

De uma forma geral, os jornais são, efetivamente, repositórios de grande quantidade de


dados, o que leva muitos investigadores a usarem-nos como objeto de estudo ou fonte de
informação. Os discursos da imprensa (tal como todos os discursos) reportam à sua
condição institucional, económica e política, pelo que se revelam “tendenciosos”. Com
efeito, a imprensa é uma forma de “mediação do mundo” (Fowler, 1991:120), que usa
canais visuais, linguísticos e escritos (Fairclough, 1995) para exprimir e construir a
realidade através de diversos ângulos. Mais do que meios de informação, os jornais são um
repositório de discursos, onde proliferam expressões de vários tipos de relações, em grande
medida assimétricas, pelo que o seu estudo se revela crucial nos Estudos Culturais e,
consequentemente, no Estudos de Género.

5.5. Construção do corpo da análise: apresentação geral dos dados

Esta investigação procura pensar ao nível do discurso (mediático) e dos efeitos, causas e
ações que são reproduzidos e que isso reproduz, pois, mais do que reconhecer a existência

197 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

de normas abstratas que norteiam os sujeitos e a sociedade, é importante entender que a sua
verdadeira natureza reside na prática, onde elas têm o verdadeiro valor. Desta forma, este
estudo começa por procurar responder a uma questão central: Era ou não Ílhavo (na década
de 1950) uma sociedade matriarcal? – Análise de discursos de um jornal local. O período
escolhido representa o expoente da pesca do bacalhau, que obrigava a longos períodos de
ausência masculina (que podiam ascender aos 12 meses), naturalmente substituídos pela
assinalada presença feminina. Assim, para identificar e analisar os discursos e dinâmicas
de poder nas relações de género em Ílhavo (na década de 1950) e, consequentemente, para
responder à questão de investigação, estabeleceu-se um conjunto de objetivos específicos.

Os objetivos específicos desta investigação foram bipartidos de forma a abrangerem a parte


teórica do estudo e a parte empírica. Neste sentido, com a revisão bibliográfica do estudo,
procura-se cumprir cinco finalidades:

1) Reconhecer a importância dos Estudos de Género nos Estudos Culturais e o


respetivo impacto na compreensão de algumas das dinâmicas da sociedade
moderna e pós-moderna;

2) Discutir conceitos, significados e teorias que relacionem os Estudos de Género e os


discursos de poder nos circuitos académicos dos Estudos Culturais;

3) Valorizar o estudo dos discursos na compreensão das relações de poder;

4) Reconhecer a importância da identidade de género na compreensão das dinâmicas


sociais;

5) Valorizar os estudos dos meios de comunicação social no âmbito dos Estudos


Culturais.

Na parte do estudo empírico foram levantados e analisados dados de forma a cumprir


outros quatro objetivos que aqui se destacam:

1) Identificar, analisar e discutir os principais discursos de género (textuais e icónicos)


presentes no jornal O Ilhavense, na década de 1950;

2) Interpretar as dinâmicas de poder, simbólica e politicamente, por assunto, dimensão


e problemática, no jornal O Ilhavense, na década de 1950;

198 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

3) Identificar o perfil da mulher ilhavense através dos discursos textuais e das


representações icónicas presentes no jornal O Ilhavense, na década de 1950;

4) Analisar e discutir os resultados da investigação empírica (com base na revisão


bibliográfica) com vista à elaboração de conclusões e propostas de futura
investigação.

De forma a perceber como uma atividade específica42 altera uma determinada sociedade
(num período de tempo particular) e influencia as representações de género e as dinâmicas
de poder, procedeu-se à recolha de informação através da pesquisa da imprensa local,
particularmente do jornal O Ilhavense. Os dados foram recolhidos de acordo com critérios
previamente estabelecidos, identificados através da revisão bibliográfica, e que respeitam
as necessidades do estudo. Posteriormente, os dados foram meticulosamente distribuídos
em grelhas e analisados através da técnica da análise de conteúdo, para poderem ser
discutidos os resultados, de forma a legitimar os objetivos propostos. Neste sentido,
pretende-se perceber se a sociedade ilhavense da década de 1950 é representada ou não
como matriarcal, sendo para isso avaliados os discursos (textuais e icónicos) de género
presentes nos jornais locais, bem como as dinâmicas de poder estabelecidas entre homens e
mulheres.

Para este estudo, foram especificamente analisados os números do jornal O Ilhavense


correspondentes à década de 1950, sem recurso a programas informáticos de análise de
dados. Os números dos jornais foram selecionados alternadamente – 1950, 1951, 1954,
1955, 1958 e 1959 – de forma a garantir a representatividade, a diversidade e a saturação
da informação. Este levantamento reuniu e analisou todos os textos, num total de 10104
peças escritas (como se pode observar no quadro 1). As peças recolhidas são
representativas de quatro assuntos maiores do estudo: “textos escritos por mulheres”43,
“textos escritos para mulheres”, “textos sobre mulheres”44 e “textos que fazem referência a

                                                            
42
Nomeadamente a pesca do bacalhau e outras atividades marítimas que conduzem à ausência dos elementos
do sexo masculino, de Ílhavo, por longas temporadas.
43
Destaca-se que, quando um texto é escrito por uma mulher, esta dimensão terá prioridade sobre as outras,
identificando-a como primordial.
44
São excluídos textos referentes a santas, visto que não são relevantes para este estudo. Já no levantamento
e análise dos ícones, as imagens de santas são consideradas “imagens com mulheres”, na medida em que são
frequentemente humanizadas.

199 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

mulheres”45. Há ainda um quinto assunto, o qual se apelidou de “outros” e para o qual são
remetidas todas as referências que não se incluam nos assuntos anteriormente referidos46.
No quadro que se segue, apresenta-se uma síntese do volume de peças escritas n’O
Ilhavense, em todos os anos selecionados da década de 1950, e por assunto.

Quadro 1 | Número de peças escritas por assunto, por ano

Peças Peças Peças Peças escritas


Outras Total de
escritas escritas escritas que fazem
Ano peças peças
por sobre para referência a
escritas escritas
mulheres mulheres mulheres mulheres
1950 29 81 23 225 1133 1491
1951 29 102 12 245 1123 1511
1954 44 135 56 215 1442 1892
1955 24 125 41 225 1296 1711
1958 28 132 58 236 1245 1699
1959 28 141 83 244 1304 1800
Total 182 716 273 1390 7543 10104

O quadro 1 permite esquematizar as ocorrências de peças escritas, por ano, e por assunto,
revelando a extensão do levantamento do material, que culmina nas 10104 peças escritas.
Importa referir que, como é possível verificar com o quadro 1, da esquerda para a direita, o
material levantado segue uma espiral ascendente que se inicia com os “textos escritos por
mulheres” (num total de 182 textos), passando pelos “textos escritos sobre mulheres” (num
total de 716 textos), pelos “textos escritos para mulheres” (num total de 273 textos) e
“pelos textos que fazem referência a mulheres” (num total de 1390 textos), culminando nas
ocorrências dos textos que não cabem em nenhum dos outros assuntos (num total de 7543
textos).

Para cada um dos assuntos anteriormente referidos, foi criada uma grelha de análise que
identifica, em primeiro lugar, o número do jornal, seguindo-se a identificação e descrição
do texto em análise. Esta grelha foi depois completada com as categorias e correspondentes
problemáticas, fazendo-se estas últimas acompanhar, sempre que se revelou necessário e
                                                            
45
Importa aqui distinguir as duas dimensões “textos sobre mulheres” e “textos que fazem referência a
mulheres”. Por exemplo, se numa peça existir referência a várias pessoas – homens e mulheres – opta-se por
“texto com referência a mulheres”; se numa peça existir apenas referência a mulheres, opta-se por “texto
sobre mulheres”.
46
Aqui se inserem todos os textos que não se refiram, de qualquer forma, a mulheres.

200 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

esclarecedor, de excertos exemplificantes. Este material foi organizado em quadros iniciais


que foram sendo afunilados de acordo com as necessidades do estudo e o desenrolar da
análise.

Neste processo de análise foram consideradas diferentes categorias e níveis de categoria,


adaptados ao estudo, e que ajudaram a descrever, distribuir, esquematizar e interpretar o
material e, consequentemente, os sentidos dos discursos. São estas categorias que auxiliam
na construção mental daquilo que Guerra (2010:85) apelidou de “ideais-tipo” e que são
“(…) organizações simplificadas resultantes da observação sistemática do real”, ou
construções discursivas da realidade. Estas categorias, criadas com base nos textos em
análise, são também (re)validadas na teoria pela revisão de literatura. Assim, foram
recolhidos todos os textos do jornal O Ilhavense (em seis anos da década de 1950) e
analisados segundo as categorias: “página”, “dimensão”, “relevância”, “tipo de texto”,
“autoria”, “recurso a referências”, “tipo de tema”, “sentido do discurso”, “hierarquia”,
“tipo de linguagem” e “mulher de Ílhavo”.

Nas categorias “página”, “dimensão” e “relevância” foram anotados aspetos relativos à


estrutura do texto em análise, ou seja, em que página se encontra, qual a dimensão que
possui (ex.: ½ página; uma página inteira, etc.) e qual o espaço que ocupa na página (ex.:
se o texto se encontra ao centro da página ou no topo, etc.).

De seguida, o texto foi identificado de acordo com o seu “tipo” e que pode ser:
“agradecimento”, “anúncio”, “carta”, “conto”, “crónica poética”, “denúncia”,
“entretenimento/quebra-cabeças”, “entrevista”, “estatística”, “informação pública/aviso”,
“nota breve”, “notícia”, “oráculo”, “poema”, “reportagem” ou “outro” (ver descrição no
quadro 2). Os diferentes tipos de texto foram previamente estabelecidos. Todavia, durante
o processo de levantamento e análise dos dados, alguns tipos de texto foram excluídos,
enquanto outros foram acrescentados à lista inicial. No quadro 2 descreve-se sumariamente
cada um dos tipos de texto supra indicados.

201 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

Quadro 2 | Descrição sumária dos tipos de texto

Tipo de texto Descrição sumária


Peças publicadas por leitores com a intenção de agradecer a
Agradecimento
alguém.
Anúncio Mensagens que publicitam alguma coisa.
Escritos que se dirigem a alguém (e são identificados como
Carta
tal).
Narrativas breves e fictícias, em que a ação geralmente se
Conto
concentra sobre um único tema ou episódio.
Crónica poética Narrativas destinadas a um assunto ou um tema particular, de
caráter poético.
Denúncia Peças com ato ou efeito de denunciar.
Entretenimento/quebra-
Qualquer adivinha ou jogo que sirva para distrair os leitores.
cabeças
Conversa em que um (ou mais) dos interlocutores (ex.:
Entrevista
jornalista) faz perguntas a outro.
Peças que fazem uma avaliação numérica de certa categoria
Estatística
de objetos ou de factos.
Comunicações ou informações abertas ou acessíveis a todos
Informação pública/aviso
os leitores.
Nota breve Observações concisas de pequena extensão.
Notícia Exposição de um tema ou de uma ocorrência.
Oráculo Peças com informações sobre signos.
Poema Peças em verso.
Notícias desenvolvidas no jornal, onde se pretende cobrir os
Reportagem
acontecimentos com pormenor.
Todas as peças que não se incluam nos temas anteriormente
Outro
referidos.

Regressando à descrição das categorias, com “autoria” pretendia-se identificar o autor do


texto, mediante assinatura. Sempre que o texto é assinado identifica-se o género e o nome
do/a autor/a; quando o texto não está assinado assume-se a responsabilidade do jornal, pelo
que são considerados textos escritos por homens47. Uma sexta categoria – “recurso a
referências” – pretende registar quando é identificada a referência a mulheres, descrevendo
essa mesma referência. Este é o momento que prevê uma descrição mais pormenorizada do
texto, completada por excertos, que depois facilitam o processo de análise.

                                                            
47
O jornal O Ilhavense era, na época, dirigido e editado por um homem – José Pereira Teles. Este facto,
juntamente com o marcado olhar masculino habitualmente incutido na imprensa da época (e particularmente
neste jornal), levam à conclusão de que os textos não-assinados são considerados textos escritos no
masculino.

202 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

O “tipo de tema” refere-se, como o próprio nome indica, ao tema que envolve o texto em
análise. Neste estudo foram identificados vinte e seis “tipos de tema”:
“aniversários/acontecimentos de relevo”, “artes e espetáculos”, “assistência aos outros”,
“associativismo”, “casamento/família”, “desporto”, “emigração”, “estudos/educação”,
“história local”, “infância”, “justiça/tribunais”, “lazer/tempos livres”, “textos de criação
literária”, “morte/luto”, “negócios/comércio”48, “política/economia”, “religião”,
“saúde/beleza”, “sexualidade”, “terceira idade”, “trabalho/profissional”, “vida doméstica”,
“vida marítima”, “vida militar”, “violência/vitimização” e “outro” (ver descrição no quadro
3).

Os diferentes tipos de tema foram previamente estabelecidos. Contudo, tal como acontece
com os tipos de texto, durante o processo de levantamento e análise dos dados, alguns tipos
de tema foram excluídos, enquanto outros foram acrescentados à lista inicial. Ressalta-se
que, em alguns momentos, foram detetados no mesmo texto mais do que um tema. Nestes
casos, optou-se por considerar o tema mais preponderante para a interpretação do respetivo
texto. No quadro 3 descreve-se sumariamente cada um dos tipos de tema supra indicados.

                                                            
48
O tipo de tema “negócios/comércio”, transversal a todas as análises, deve ser entendido, na análise das
imagens, no âmbito da publicidade (na medida em que as imagens representam anúncios a produtos e a
estabelecimentos comerciais).

203 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

Quadro 3 | Descrição sumária dos tipos de tema

Tipo de tema Descrição sumária


Peças que se referem a aniversários ou outros
Aniversários/acontecimentos acontecimentos que se destacam pelo seu caráter
de relevo positivo e satisfatório, como, por exemplo, pequenas
cerimónias familiares ou religiosas.
Peças relativas a espetáculos e outros movimentos
Artes e espetáculos
artísticos (teatro, cinema, espetáculos musicais, etc.).
Peças que descrevam atividades em que os sujeitos se
Assistência aos outros
dedicam a ajudar terceiros.
Associativismo Peças sobre associações culturais e/ou desportivas.
Casamento/família Peças que descrevem situações familiares ou relativas
ao casamento e à vida do casal.
Desporto Peças desportivas.
Emigração Peças sobre ilhavenses que informam que irão emigrar.
Peças que informam sobre as escolas, os professores, os
Estudos/educação alunos (nomeadamente alunos que se formam) ou as
atividades escolares.
História local Peças que falam sobre a História de Ílhavo.
Peças que falam sobre crianças ou sobre a infância de
Infância
indivíduos.
Peças que descrevem casos de tribunal, assaltos,
Justiça/tribunais
mandatos de prisão e casos policiais.
Peças que são representativas de atividades de lazer
Lazer/tempos livres
e/ou tempos livres dos indivíduos.
Textos de criação literária Peças literárias, que falam sobre autores ou livros.
Morte/luto Peças com informações sobre crepes.
Peças com informações sobre estabelecimentos
Negócios/comércio
comerciais e outros tipos de negócio.
Peças que informam sobre a política e a economia
Política/economia locais, nacionais e estrangeiras (o que implica peças
relativas a atos eleitorais).
Peças que se destacam por temas religiosos (missas,
Religião
procissões, festas, informações da Igreja, etc.).
Peças que dão dicas de beleza ou informam sobre
Saúde/beleza
questões de saúde.
Peças que abordem questões relativas ao
Sexualidade
comportamento sexual de homens e de mulheres.
Terceira idade Peças sobre a terceira idade.
Trabalho/profissional Peças sobre atividades profissionais dos indivíduos.
Peças sobre as atividades domésticas (dicas de
Vida doméstica
culinária, limpeza, etc.).
Vida marítima Peças sobre a vida no mar e a atividade pesqueira.
Vida militar Peças sobre a tropa e/ou a guerra.
Peças que informam sobre atos de violência ou vítimas
Violência/vitimização
de violência.

204 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

Todas as peças que não se incluam nos temas


Outro
anteriormente referidos.

A análise previa também a identificação do “sentido do discurso” presente nos textos


selecionados e que podia ser “crítico”, “laudatório”, “neutro” e “misto” (neste último caso,
quando implica um texto representativo, simultaneamente, dos dois primeiros sentidos
indicados). Aqui importa salientar que se trata de uma visão global do sentido do discurso
presente no texto, e não apenas das partes que se referem especificamente à mulher.

No caso da “hierarquia”, identificou-se a visibilidade, através da leitura dos textos, de


qualquer tipo direto de hierarquia social (se há ou não uma clara estratificação de classe
social nos textos) ou de género (se há ou não uma clara estratificação, tanto do género
masculino como do feminino, nos textos). O “tipo de linguagem” é outra das dimensões
consideradas, na medida em que a linguagem identificada nos textos pode ser “conotativa”
ou “denotativa”. Finalmente, com a dimensão “mulher de Ílhavo”, procurou-se questionar
qual a origem das autoras dos textos e/ou das mulheres referidas nos textos49.

Importa neste momento ressaltar que, embora tenham sido levantados dados
representativos dos “textos escritos por mulheres”, dos “textos sobre mulheres”, dos
“textos escritos para mulheres”, dos “textos que fazem referência a mulheres” e ainda de
outros textos (como se pode verificar no quadro 1), neste estudo foram analisados e
discutidos apenas dois assuntos: “textos escritos por mulheres” e “textos sobre mulheres”.
De facto, estes dois assuntos, por representarem as mulheres-autoras e também aquilo que
era escrito sobre o feminino, apresentavam-se como fundamentais para dar resposta à
questão de investigação. Para além disso, a limitação de tempo não permitiria a análise de
todos os assuntos levantados.

As análises (a apresentar nos capítulos seguintes) permitiram, em primeiro lugar, uma


abordagem quantitativa, pois foram contabilizados textos e discutidos dados tendo em
consideração os anos em estudo (havendo lugar para a disponibilização dos dados em
termos de percentagem). Numa segunda fase, os dados foram analisados através de uma

                                                            
49
Para este efeito lugares como as Gafanhas não são considerados como Ílhavo, na medida em que são
apresentados no jornal como diferentes da realidade ilhavense.

205 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

abordagem qualitativa, que permitiu reagrupar categorias50 e apresentar discussões (de


poder, identidade e género) sobre os resultados obtidos. Especificamente, no caso dos
textos escritos por mulheres, a discussão centrou-se na produção textual no feminino e nos
perfis de mulheres identificados através da análise dos dados. Nos textos escritos sobre
mulheres, a discussão centrou-se não só na produção textual do feminino e nos perfis de
mulheres, como também na discussão comparativa entre produção no feminino e produção
do feminino.

Houve ainda a preocupação em levantar e identificar todas as imagens presentes n’O


Ilhavense – com mulheres, com homens, mistas51 e outras52 (como se pode verificar no
quadro 4) –, nos anos em estudo, na medida em que é valorizada a importância dos
discursos visuais na descodificação da(s) identidade(s) de género e na análise
compreensiva das relações de poder. Dito isto, tal como refere a autora Silvana Mota-
Ribeiro:

Assumem-se aqui as imagens enquanto espelho do mundo, com a capacidade de


refletir e de ser resultado desse mundo, mas também enquanto irradiadoras de
representações e comportamentos sociais, ou seja, como capazes de engendrar
identidades ao dar a ver um mundo do qual elas próprias resultam (Mota-Ribeiro,
2005:69).

Como é possível observar no quadro 4, foram levantadas 712 imagens, das quais 131 são
de mulheres, 110 são de homens, 29 são mistas e 442 não se incluem em nenhum destes
assuntos. Em cada imagem deste estudo é identificada a página em que esta se insere, a
dimensão da mesma, a relevância (local da página em que a imagem se insere), o tema53
que representa, a legenda e uma breve descrição da imagem (com a preocupação de
identificar se se encontram representações icónicas de mulheres). As representações
visuais são objeto de estudo por si só, mas servem também como complementos dos textos,
                                                            
50
A análise dos dados revelou a necessidade das categorias serem reorganizadas e reunidas em outras novas
categorias, permitindo leituras alternativas.
51
Imagens que contêm figuras femininas e figuras masculinas.
52
Para “outras” são remitidas as imagens com paisagens, animais e elementos construtivos, que não incluam
figuras humanas.
53
Os temas das imagens são os mesmos já indicados para os temas dos textos. Contudo, por necessidade de
cumprir as exigências de algumas imagens, foi acrescentado um outro tema: “animação”. Já os temas “saúde”
e “beleza” foram, no caso das imagens, reunidos numa só temática “saúde/beleza”. Destaca-se ainda que os
temas das imagens estão diretamente relacionados com os temas dos textos. Por exemplo, se surgir a
fotografia de uma mulher num anúncio da venda de uma bicicleta, o tema da imagem será
“negócios/comércio”.

206 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

pelo que são abordadas na análise de forma independente e ainda sempre que se ache
pertinente um olhar mais atento à relação entre discurso textual e ícone.

Quadro 4 | Número de imagens por assunto, por ano

Nº de Nº de Nº de imagens que Nº de
Nº total de
Ano imagens de imagens de incluem mulheres e outras
imagens
mulheres homens homens (mistas) imagens
1950 21 14 5 83 123
1951 4 9 3 59 75
1954 7 30 1 109 147
1955 32 28 6 96 162
1958 40 13 12 48 113
1959 27 16 2 47 92
Total 131 110 29 442 712
 

A análise das imagens permitiu, primeiramente, uma abordagem quantitativa, pois foram
contabilizadas todas as imagens (no total e por assunto, como se observa no quadro 4),
tendo-se posteriormente optado por uma análise e uma discussão mais profundas das
imagens de mulheres, das imagens de homens e das imagens que incluem mulheres e
homens (mistas), tendo sido estes três assuntos reformulados em apenas dois: “imagens
que incluem mulheres”54 e “imagens que incluem homens”55.

Aqui foram feitas comparações tendo em consideração os anos em estudo e houve o


cuidado de apresentar uma estimativa em percentagem do espaço ocupado pelas imagens.
Seguidamente, os dados foram tratados segundo uma abordagem qualitativa, o que
permitiu uma reorganização das categorias56 e uma discussão (de poder, identidade e
género) acerca do conteúdo simbólico das imagens. Esta discussão centrou-se na política
do corpo e na semiótica das imagens, abordando temáticas como o regime das imagens e
os perfis identitários das mulheres e dos homens, e encerrando com a discussão entre as
representações visuais do género e o poder hegemónico.

                                                            
54
Nas imagens que incluem mulheres, são contabilizadas e analisadas as imagens onde aparecem só
mulheres e as imagens onde aparecem mulheres e homens, perfazendo um total de 160 imagens.
55
Nas imagens que incluem homens, são contabilizadas e analisadas as imagens onde aparecem só homens e
as imagens onde aparecem mulheres e homens, perfazendo um total de 139 imagens.
56
À semelhança do que ocorreu na análise dos textos, a análise dos dados icónicos revelou a necessidade das
categorias serem reorganizadas e reunidas em outras novas categorias, permitindo leituras alternativas.

207 
Capítulo V – Metodologia de Investigação 

Reforça-se que a seleção de assuntos, de dimensões e de categorias se realizou de acordo


com critérios identificados através da revisão bibliográfica e que emergiram no confronto
do manuseamento do material, pelo que respeitam as necessidades do estudo. Na fase da
análise, os dados foram distribuídos em grelhas e analisados através da técnica da análise
de conteúdo, construída com base nas abordagens de Guerra (2010) e Bardin (1991). No
próximo capítulo, dedicado ao estudo empírico, é possível observar os resultados da
análise dos discursos textuais e visuais, e respetivas discussões.

208 
Capítulo VI – Estudo Empírico

6.1. Estudo de textos escritos por mulheres, n’O Ilhavense, na década de 1950

6.1.1. Apresentação e análise dos dados relativos aos textos escritos por mulheres

Para este estudo foram analisados os números do jornal O Ilhavense correspondentes à


década de 1950, sem recurso a programas informáticos de análise de dados. Os números
dos jornais foram selecionados alternadamente – 1950, 1951, 1954, 1955, 1958 e 1959 – de
forma a garantirem a representatividade, a diversidade e a saturação da informação. Este
levantamento reuniu e analisou todos os textos, num total de 10104 peças escritas,
representativas de quatro grandes assuntos do estudo: “textos escritos por mulheres”,
“textos escritos para mulheres”, “textos sobre mulheres” e “textos que fazem referência a
mulheres” (há ainda um quinto assunto, o qual se designou de “outros” e para o qual são
remetidas todas as referências que não se incluam nos quatro assuntos anteriormente
referidos). Todavia, tal como já foi referido no capítulo da metodologia, esta investigação
debruça-se apenas sobre os “textos escritos por mulheres” e os “textos escritos sobre
mulheres”.

Numa primeira fase selecionou-se apenas, do conjunto de peças recolhidas, aquelas que
foram escritas por mulheres, conduzindo-se a análise sem recurso a programas
informáticos de análise de dados. No geral, observa-se que existem percentagens
demasiado baixas de autoria feminina nestes exemplares, visto que das 10104 peças que
constituem o universo da investigação, apenas 182 foram escritas por mulheres, o que
corresponde a 1,8% do total, como se pode ver no quadro 5. Em todos os anos analisados,
as percentagens de peças escritas por mulheres mantem-se abaixo dos 2,3%, o que revela
uma presença reduzida da produção escrita feminina no jornal O Ilhavense.

209 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Quadro 5 | Peças escritas por mulheres na década de 1950

Percentagem de
Nº de peças escritas
Ano Nº de peças escritas peças escritas
por mulheres
por mulheres
1950 (ano 39) 1491 29 1,9%
1951 (ano 40) 1511 29 1,9%
1954 (ano43) 1892 44 2,3%
1955 (ano 44) 1711 24 1,4%
1958 (ano 48) 1699 28 1,6%
1959 (ano 49) 1800 28 1,6%
Total 10104 182 1,8%

Numa fase posterior, foi possível analisar o material, fazendo emergir as categorias
identificadas como fundamentais para esta investigação. Assim, para cada peça escrita por
uma mulher, em cada número de jornal (no universo dos seis anos estudados), foram
levantados e analisados dados referentes a seis dimensões fundamentais desses textos:
“tipo de tema”, “tipo de texto”, “sentido do discurso”, “tipo de linguagem”, “hierarquia” e
“mulher de Ílhavo”57.

Como se pode observar no quadro 6, os temas mais abordados pelas autoras das peças são
a “criação literária” e a “morte/luto”, com 78 ocorrências (39% do total) e 38 ocorrências
(19% do total), respetivamente. Seguem-se, ainda com alguma expressão, os temas
“emigração” (10,5%) e “casamento/família” (9,5%), enquanto os restantes – “religião”,
“saúde”, “estudos/educação”, “vida marítima”, “assistência aos outros”, “artes e
espetáculos”, “trabalho/profissional”, “lazer/tempos livres”, “justiça/tribunais”, “vida
doméstica”, “mar/vida marítima”, “política/economia”, “infância”, “negócios/comércio”,
“beleza” e “terceira idade” – não possuem destaque significativo.

                                                            
57
Elementos já explicitados no capítulo da metodologia, no ponto reservado à apresentação geral dos dados.

210 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Quadro 6 | Ocorrências da categoria “tipo de tema”, nos textos escritos por mulheres, na
década de 1950

Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Criação
10 15 27 11 9 6 78 39%
literária
Morte/ luto 4 5 5 3 6 15 38 19%
Emigração 2 3 2 5 6 3 21 10,5%
Casamento/
3 2 2 2 7 3 19 9,5%
família
Religião 2 0 1 2 1 2 8 4%
Saúde 1 2 0 1 0 1 5 2,5%
Mar/ vida
1 0 0 1 2 1 5 2,5%
marítima
Estudos/
1 0 2 0 1 0 4 2%
educação
Assistência aos
2 0 0 0 0 1 3 1,5%
outros
Artes e
Tipo de 0 0 0 0 2 0 2 1%
espetáculos
tema
Trabalho/
1 0 1 0 0 0 2 1%
profissional
Lazer/ tempos
2 0 0 0 0 0 2 1%
livres
Justiça/
1 0 0 0 0 0 1 0,5%
tribunais
Vida doméstica 1 0 0 0 0 0 1 0,5%
Política/
0 0 1 0 0 0 1 0,5%
economia
Infância 0 0 0 1 0 0 1 0,5%
Negócios/
0 0 0 0 0 1 1 0,5%
comércio
Beleza 0 0 0 0 0 1 1 0,5%
Terceira idade 0 0 0 0 0 1 1 0,5%
Outros 1 2 3 0 0 0 6 3%
Total 32 29 44 26 34 35 200 100%

Uma análise mais atenta dos níveis de categoria que constituem o “tipo de tema” (ver
quadro 6) permitiu um reagrupamento do material, que resulta numa nova forma de
organizar e apresentar os dados, agora com novas categorias, como se pode observar no
quadro 7.

211 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Quadro 7 | Ocorrências da “área íntima”, da “área mista” e da “área social”, nos textos
escritos por mulheres, na década de 1950

Área Categoria Níveis da categoria Total Total %


Morte/luto 38
Emigração 21
Casamento/família 19
Área íntima

Saúde 5
Mar/vida marítima 5
Família 47%
Assistência aos outros 3
Vida doméstica 1
Infância 1
Terceira idade 1
Total 94
Criação literária 78
Área mista

Artes e espetáculos 2
Arte e
Lazer/tempos livres 2 41,5%
curiosidade
Beleza 1
Total 83
Religião 8
Estudos/educação 4
Área social

Trabalho/profissional 2
Intervenção
Justiça/tribunais 1 8,5%
pública
Política/economia 1
Negócios/comércio 1
Total 17
Outros Total 6 3%
Total 200 100%

A primeira categoria a emergir é “família”, o resultado da junção dos níveis de categoria


que se reúnem numa área de intimidade: “morte/luto”, “emigração”, “casamento/família”,
“saúde”, “mar/vida marítima”, “assistência aos outros”, “vida doméstica”, “infância” e
“terceira idade”. Estes níveis apelam para um sentido íntimo nas temáticas abordadas pelos
textos escritos por mulheres, reunindo 94 ocorrências, que equivalem a 47% do total.

De seguida, com 83 ocorrências (ou 41,5% do total), surge a categoria “arte e curiosidade”,
uma categoria que abarca os tipos de tema relacionados com assuntos que invocavam um
sentido artístico: “criação literária”, “artes e espetáculos”, “lazer/tempos livres” e “beleza”.
Esta nova categoria insere-se numa “área mista”, que transita entre as esferas da intimidade
e da exposição social.

212 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Os restantes níveis – “religião”, “estudos/educação”, “trabalho/profissional”,


“justiça/tribunais”, “política/economia” e “negócios/comércio” – foram reunidos numa
nova categoria denominada “intervenção pública” ou “área social”. Esta área é a que se
mostra menos discutida nos textos escritos por mulheres, pois o seu impacto de 8,5% do
total contrasta com os 41,5% correspondentes à “área mista” e com os 47%
correspondentes à “área íntima”. No quadro 7 é possível ainda identificar a ocorrência de
outras temáticas, identificadas como “outros”, e que correspondem a 3% do total, com
apenas 6 ocorrências. Neste ponto, salienta-se o facto de os dois níveis de categoria mais
discutidos pelas autoras – “criação literária” e “morte/luto” – fazerem parte de dois grupos
distintos de temáticas que deram origem a duas novas categorias: “arte e curiosidade” e
“família”.

Na análise da categoria “tipo de texto”, foram considerados onze níveis diferentes que se
encontram presentes no quadro 8.

Quadro 8 | Ocorrências da categoria “tipo de texto”, nos textos escritos por mulheres, na
década de 1950

Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Nota breve 7 5 9 10 11 4 46 25,3%
Poema 4 13 21 5 1 1 45 24,7%
Agradecime
3 6 5 4 4 17 39 21,4%
nto
Conto 5 2 0 3 4 4 18 9,9%
Crónica
0 0 5 2 3 1 11 6,1%
poética
Tipo de Informação
texto pública/ 6 1 0 0 1 0 8 4,4%
aviso
Carta 1 1 1 0 1 0 4 2,2%
Reportagem 3 0 1 0 0 0 4 2,2%
Anúncio 0 0 0 0 1 1 2 1,1%
Entrevista 0 0 0 0 1 0 1 0,5%
Notícia 0 0 0 0 1 0 1 0,5%
Outros 0 1 2 0 0 0 3 1,6%
Total 29 29 44 24 28 28 182 100%

213 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

No quadro 8 verifica-se que as mulheres escrevem sobretudo textos que se inserem nos
níveis de categoria “nota breve” (46 ocorrências ou 25,3% do total), “poema” (45
ocorrências ou 24,7% do total) e “agradecimento” (39 ocorrências ou 21,4% do total). Os
restantes temas – “conto”, “crónica poética”, “informação pública/aviso”, “carta”,
“reportagem”, “anúncio”, “entrevista”, “notícia” e “outros” – encontram-se entre os 0,5% e
os 9,9% do total de ocorrências.

A análise dos textos revela ainda que as “notas breves” são pequenas notas que
correspondem sobretudo a informações publicadas por mulheres sobre a temática
“emigração”. Já os níveis de categoria “poema” e “agradecimento” (bastante utilizados)
estão relacionados com os níveis de categoria “criação literária” e “morte/luto”,
respetivamente.

Já em relação ao “sentido do discurso”, a maioria das autoras das peças apresenta um


discurso neutro (77 ocorrências ou 42,3% do total), tal como é apresentado no quadro 9.

Quadro 9 | Ocorrências da categoria “sentido do discurso”, nos textos escritos por


mulheres, na década de 1950

Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Neutro 11 16 11 8 13 18 77 42,3%
Sentido do Crítico 8 5 25 5 8 2 53 29,1%
discurso Laudatório 10 4 6 8 4 6 38 20,9%
Misto 0 4 2 3 3 2 14 7,7%
Total 29 29 44 24 28 28 182 100%

O discurso no feminino é, sobretudo, curto e informativo, especialmente quando se trata de


agradecimentos e de notas breves. A mesma neutralidade se verifica na “criação literária”,
que apesar de ter um cunho imaginativo e emotivo, não revela, por exemplo, a intenção de
intervenção social crítica nem mesmo uma dimensão autoral própria.

No quadro 10 apresentam-se os dados referentes ao “tipo de linguagem”, que pode ser


“conotativo” ou “denotativo”. Aqui, apesar de haver uma pequena diferença precedente
dos dois tipos de linguagem, apura-se que é mais utilizada a linguagem conotativa pelas
mulheres que escrevem neste jornal (103 ocorrências ou 56,6% do total), o que está de
acordo com o facto de estas desenvolverem sobretudo “criação literária”.

214 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Quadro 10 | Ocorrências da categoria “tipo de linguagem”, nos textos escritos por


mulheres, na década de 1950

Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Tipo de Conotativo 14 17 35 14 14 9 103 56,6%
linguagem Denotativo 15 12 9 10 14 19 79 43,4%
Total 29 29 44 24 28 28 182 100%

Trata-se de autoras com tendência para utilizar, na descrição dos factos, uma linguagem
sensível, emotiva e com conteúdos pouco latentes, o que as leva, em vários casos, a utilizar
uma linguagem conotativa, mesmo em notas meramente informativas. Apesar dos seus
discursos serem maioritariamente neutros, a sua linguagem remete para diferentes sentidos,
articulados com valores afetivos e sociais.

No que diz respeito à identificação de hierarquias de género e/ou social, verifica-se que, na
esmagadora maioria dos casos, não é identificada qualquer tipo de hierarquia (89,6 % do
total). As autoras não deixam transparecer facilmente relações de hierarquia social ou de
género, e raramente tomam posições críticas, tal como se pode verificar com os dados
presentes no quadro 11.

Quadro 11 | Ocorrências da categoria “hierarquia”, nos textos escritos por mulheres, na


década de 1950

Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Não se deteta 22 26 41 22 26 26 163 89,6%
Hierarquia de
género 3 2 0 2 1 2 10 5,5%
(masculino)
Hierarquia Hierarquia de
género 3 1 3 0 0 0 7 3,8%
(feminino)
Hierarquia
1 0 0 0 1 0 2 1,1%
social
Total 29 28 44 24 28 28 182 100%

A última categoria de análise é a que pretende identificar a origem das autoras das peças.
Como se pode ver no quadro 12, a maior parte das mulheres que escreve no jornal é de

215 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Ílhavo (47,3% do total), embora exista uma percentagem significativa de autoras que não é.
As autoras ilhavenses estão particularmente associadas à temática da “morte/luto”, pois são
as que escrevem os agradecimentos lutuosos.

Quadro 12 | Ocorrências da categoria “mulher de Ílhavo”, nos textos escritos por mulheres,
na década de 1950

Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Sim 12 10 15 13 17 19 86 47,3%
Mulher de Não 12 13 15 6 6 6 58 31,9%
Ílhavo Não
5 6 14 5 5 3 38 20,9%
identificado
Total 29 29 44 24 28 28 182 100%

Uma análise mais pormenorizada permite identificar que, no que diz respeito à temática da
“criação literária”, a autoras são, sobretudo, mulheres brasileiras que estão presentes no
jornal O Ilhavense através do espaço que é reservado para a rubrica “Falemos do Brasil”.
Esta rubrica, dirigida por Jorge Ramos, encontra-se recheada de peças escritas por
autores/as brasileiro/as58.

Ainda sob a temática da “criação literária”, destaca-se também a rubrica “Gente moça”,
dirigida por Campos Leal (Jodi), de Abrantes, que recebe peças de todos o país, que depois
publica numa página d’O Ilhavense. Nesta rubrica, há espaço para alguns contos e poemas
de mulheres portuguesas, particularmente mulheres jovens, visto que o intuito da rubrica é
publicar trabalhos juvenis. Evidencia-se ainda uma outra autora (sobretudo de contos) da
capital, que no final do ano de 1959 passa a ter a sua própria rubrica intitulada
“Miscelânea” – onde há espaço para alguma publicação no feminino. Finalmente, neste
jornal, estão presentes alguns textos escritos por autoras reconhecidas nacionalmente pela
sua produção literária, como é o caso da poetisa Florbela Espanca (um modelo de
sentimentalidade).

Em suma, e recorrendo a uma análise global de todos os dados, é possível realçar a


“criação literária” como o “tipo de tema” que é mais desenvolvido nos textos escritos por
                                                            
58
Pelo que se apurou junto da direção do Jornal O Ilhavense, estes autores/ras brasileiro/as não possuíam
relação com Ílhavo. Os textos eram escolhidos pelo diretor da rubrica, esse sim com ligação profissional,
naquela época, à direção do Jornal O Ilhavense.

216 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

mulheres, no jornal O Ilhavense. Efetivamente, a “criação literária” domina em todos os


anos analisados da década de 1950, exceto no ano de 1959, em que é ultrapassada pela
temática da “morte/luto”.

Uma leitura atenta dos dados reconhece que, sob a temática da “criação literária”, as
autoras publicam, sobretudo, “poemas”, havendo também espaço para os “contos”
(particularmente nos anos de 1950 e de 1958). No geral, a produção literária destas autoras
não está associada a nenhum tipo específico de discurso, na medida em que transita entre o
“laudatório”, o “crítico”, o “neutro” e o “misto”, de acordo com o “tipo de texto” e o ano
em análise. Todavia, destaca-se o facto de a produção poética estar associada a uma
linguagem conotativa, que trabalha com o sentido figurativo das palavras. Salienta-se
também o facto de, em toda a produção literária, não se detetar à superfície dos textos
qualquer referência hierárquica, quer ao nível do género, quer ao nível social. E no que diz
respeito à origem das autoras de “criação literária”, destaca-se a particularidade da maioria
ser do Brasil (autoras introduzidas pela rubrica “Falemos do Brasil”).

No ano de 1959, a temática “morte/luto” sobrepõe-se à da “criação literária”,


particularmente sob a forma de “agradecimento”. Estes textos são, sobretudo,
agradecimentos lutuosos de mulheres ilhavenses, publicados de forma simples, através do
emprego de uma linguagem com caráter denotativo. Não estão presentes grandes ligações
hierárquicas nestes textos e o tipo de discurso é “neutro”, validando uma naturalidade
adquirida acerca do assunto “morte/luto”.

6.1.2. Discussão dos dados relativos aos textos escritos por mulheres

6.1.2.1. Discussão sobre a produção textual no feminino

Com base nos dados apresentados relativamente à categoria “hierarquia” (como se pode
ver no quadro 11), os discursos destas mulheres não refletem diretamente relações
hierárquicas. Todavia, uma leitura atenta dos dados indica que essas relações de poder
existem, mas não se encontram à superfície dos textos. Ora, o objetivo desta análise vai ao
encontro de um dos papéis fundamentais dos Estudos Culturais, que é procurar desvendar e
explicitar as relações que existem entre as práticas socioculturais e o poder (Foucault,
2006). No caso dos textos que foram escritos por mulheres no jornal O Ilhavense, estas

217 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

relações de poder sobressaem através da análise do conteúdo discursivo e na tentativa de


analisar se estes textos são excluídos (ou se excluem) da representação mediática.

No âmbito dos Estudos Culturais, é importante perceber quem é incluído ou excluído das
relações de poder, ou quem se inclui ou exclui dessas mesmas relações, o que implica
entender a complexidade do feixe das relações entre o Eu e o Outro, neste caso entre o
género masculino e o género feminino. Na realidade, o poder não opera somente nas
instituições, nas organizações ou no Estado, mas sobretudo nos sujeitos, que evoluem e se
situam socialmente através das microrrelações que estabelecem com outros sujeitos. No
caso particular da análise dos textos escritos por mulheres, interessa investigar a perspetiva
simbólica das relações de poder compreendidas nos discursos no feminino.

Começando pela quantidade de textos produzidos por mulheres, percebe-se que a sua
intervenção social é quase nula quando comparada com a produção masculina. De facto,
em 10104 peças escritas n’O Ilhavense, apenas 182 foram escritas por mulheres, o que
corresponde a 1,8% da produção escrita (ver quadro 5). Estes dados são fundamentais para
perceber a representação mediática da dinâmica de género, na década de 1950, que
tendencialmente maximiza o masculino, enquanto menoriza o feminino. E, para além da
produção reduzida (espelho de uma representação feminina limitadíssima), importa
identificar e analisar em que circunstâncias as mulheres escrevem e quais as áreas em que
se encontram efetivamente envolvidas.

Em relação às circunstâncias em que estas mulheres publicam, importa ressalvar que a


maioria dos textos escritos por mulheres n’O Ilhavense é duplamente condicionada, pois as
peças são selecionadas e publicadas em páginas dirigidas e orientadas por homens59, e
posteriormente passam ainda pelas mãos da censura (procedimento comum na época), que
era composta igualmente por homens. De facto, os textos destas autoras, sobretudo os de
“criação literária”, não são publicados livremente nas páginas do jornal, estando
submetidos ao espaço físico e simbólico deixado para rubricas específicas, como se pode
interpretar pelas palavras do diretor da rubrica “Falemos do Brasil” – Jorge Ramos –, na
página 2 do jornal de 10 de setembro de 1951: “toda a colaboração de «Falemos dos
Brasil» é inédita e solicitada”. Assim sendo, estas autoras têm que responder aos requisitos
de cada rubrica, cumprindo com as exigências dos seus diretores.
                                                            
59
Com a exceção da rubrica “Miscelânea”, que surge em 1959, e que é orientada por Maria José Sacramento.

218 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Este processo implica que o nível de autonomia na produção escrita no feminino seja
limitado. No caso dos agradecimentos lutuosos, é permitida uma maior liberdade na
expressão escrita, mas relembre-se que estes pequenos textos passam também pela revisão
do diretor do jornal – José Pereira Teles – e pelo carimbo da comissão de censura (Barros,
2005). Estas restrições colocadas na seleção dos textos e das temáticas são uma das formas
socialmente institucionalizadas para regular comportamentos e atitudes socialmente
espectáveis, sobretudo para o género. Os homens, como maioria, como Ser Absoluto – nas
palavras de Beauvoir (1977ª) – criam mecanismos diluídos de normatização para a
minoria, o Outro, ou seja, o género feminino.

Em relação às áreas em que as mulheres estão envolvidas, o espaço real, racional e


político, considerado de verdadeira intervenção social, está afastado da produção
discursiva feminina nestes jornais (como se pode ver pelos quadros 6 e 7). Repare-se que,
embora as áreas “religião” e “estudos/educação” (em que as mulheres entram, mas numa
dinâmica secundária) tenham algumas ocorrências, as restantes áreas de forte intervenção
social como, por exemplo, “justiça/tribunais”, “trabalho/profissional”,
“negócios/comércio” e “política/economia” são quase nulas. De facto, a área social
encontra-se afastada da produção feminina no jornal O Ilhavense, o que demonstra que as
autoras parecerem encontrar obstáculos na abordagem de determinados temas e/ou também
elas próprias se distanciam desses assuntos.

Este panorama não implica que as mulheres tenham mais ou menos poder que os homens
nestas áreas sociais específicas (até porque o poder não é aqui admitido como algo que se
possui), mas apresenta uma realidade onde as mulheres são excluídas do exercício do
poder, por regulação da sociedade e por adoção de um mecanismo pelo qual as mulheres
ajustam os seus próprios discursos àquela mesma realidade. Estas tecnologias normativas
(Foucault, 2010c), que se encontram infiltradas na sociedade, podem, consciente ou
inconscientemente, seccionar as áreas de intervenção dos sujeitos de acordo com o seu
género, algo que acontece neste jornal.

Uma visão global permite, portanto, detetar que as áreas do mundo privado são as mais
representadas pelas mulheres (cerca de 47% das ocorrências, como se pode verificar com o
quadro 7), mais especificamente as temáticas relacionadas com a família. Esta conclusão
vai ao encontro da revisão de literatura da especialidade, que afirma que, na maior parte

219 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

dos casos, as mulheres publicam (ou são publicadas) numa envolvência privada ou
sexualizada. Mais especificamente, a revisão bibliográfica destaca como tradicionalmente
femininos os tópicos da família, das crianças, da assistência aos outros, da educação e da
vitimização sexual. A esta limitação de “temáticas femininas” junta-se, no período pós-
guerra, o apelo da sociedade para que as mulheres voltem à esfera privada e à vida
doméstica, incentivando a diminuição da sua participação social, sobretudo em atividades
decisivas e com forte impacto civil.

Neste estudo, o destaque vai para uma área que não é habitualmente referida na literatura
da especialidade, nem nos estudos de caso, embora alguns dos tópicos que a compõem
sejam frequentemente referenciados. Trata-se da área artística e de curiosidade,
considerada aqui uma “área mista” (por envolver o mundo privado e o íntimo) e que tem
também bastante projeção na produção feminina, com 41,5% das ocorrências (ver quadro
7). Esta área, que engloba as temáticas da “criação literária”, das “artes e espetáculos”, do
“lazer/tempos livres” e da “beleza”, permite às autoras circularem entre a esfera privada e a
pública, sobretudo no caso da “criação literária” que surge com um número esmagador de
ocorrências.

Em suma, a análise efetuada permite perceber que o feminino, no jornal O Ilhavense, na


década de 1950, se expressa através da produção literária e do discurso sobre a morte e/ou
o luto, temáticas que se afastam das áreas de verdadeira intervenção social. Esta afirmação
vai ao encontro de uma realidade que revela os estudos das relações de poder (relações
aparentemente invisíveis na dimensão explícita dos textos analisados), que se revela
negativamente para a mulheres (Beauvoir, 1977b) e deixa todo um campo de intervenção
social para os homens, pois nos jornais analisados, os homens seguem vários caminhos,
penetrando em variadas áreas da vida política e sociocultural de Ílhavo, através de distintos
tipos de texto, inclusive os de índole literária. Já as mulheres parecem caminhar num
sentido mais limitado, demonstrando ter uma espécie de identidade monocromática,
imposta e, ao mesmo tempo, aceite por elas, que as remete sistematicamente para as
esferas privada e mista (“arte e curiosidade”).

Segundo Simone de Beauvoir (1977a), é a masculinidade (conotada com a normalidade ou


a regra) que define a mulher (vista como a diferença ou o Outro). Nesta lógica, o homem
nega-se consecutivamente a ser o Outro, e, embora a tendência seja para que o Outro

220 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

resista e reaja com o mesmo comportamento, as mulheres afastam-se do seu direito de


reivindicação pela libertação destas redes relacionais. Para Bourdieu (1999, 2000), esta
realidade deve-se a uma incorporação da construção social da dominação masculina que as
mulheres foram adquirindo, e que resulta de imposições simbólicas históricas. Esta posição
teórica permite compreender as razões pelas quais as autoras aqui estudadas são em tão
reduzido número e limitadas a determinadas áreas de produção discursiva, sem
aparentemente expressarem resistência ou fazerem sobre o facto qualquer observação
crítica.

Com efeito, os homens têm, neste jornal, várias possibilidades de atuação, e até vários
papéis a adotar de acordo com as circunstâncias ou as temáticas que trazem à discussão; já
as vozes ou os perfis das mulheres são limitados e até monótonos. Esta é uma das formas
de circulação do poder. De facto, apesar de não existirem hierarquias “visíveis” ou diretas
nos discursos das mulheres, é possível entender os significados que estão por trás dos
dados. Quando, num universo de 10104 textos, apenas 1,8% foram escritos por mulheres, e
quando destes apenas algumas áreas lhes estão circunscritas, emerge a ideia de que o
mundo em que vivem possui dinâmicas “generificadas”, onde determinados temas estão
simplesmente fora do alcance expositivo feminino.

A afirmação anterior vai ao encontro das posições de Bourdieu (1999) e de Mota-Ribeiro


& Pinto-Coelho (2005), que assinalam a limitação do género feminino em relação à
dominação histórica e simbólica do género masculino. Contudo, tendo em conta a linha de
pensamento teórico aqui seguida, não parece razoável afirmar que se houvesse, por
exemplo, um maior número de mulheres a produzir conteúdos neste jornal, isso significaria
a disseminação do género feminino em outros tipos de tema ou de texto e, paralelamente,
em outros assuntos representativos da sociedade em questão. Quer isto dizer que se
existissem mais autoras neste jornal, isso não implicaria necessariamente que escrevessem
mais sobre outros temas fora das áreas íntima e mista.

Regressando aos resultados da análise dos dados, o cruzamento das dimensões (dos anos
da década de 1950) permite perceber que quando as mulheres escrevem textos, a “criação
literária” é a temática que se evidencia, enquanto os tipos de texto relacionados, são,
maioritariamente, o “poema” e o “conto”. A leitura destes poemas e contos deixa

221 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

subentender que as escritoras destas peças revelam discursos fortemente fantasiosos e


emocionais, muito à maneira do que hoje se designaria por “literatura light”.

Segundo Pereira (2006:169), a “literatura light” insere-se naquilo a que se apelida de


“cultura light”: “(…) uma cultura destinada às massas e que se baseia no consumismo
galopante e momentaneamente satisfatório”. De facto, estas são caraterísticas que se
encontram nos poemas e nos contos escritos pelas mulheres nestes jornais, na medida em
que representam um estilo que permite a partilha de afetos, emoções e experiências íntimas
num registo muito leve e superficial, até algo infantilizado. Pode dar-se como exemplo o
texto de Mari Carmen Flores, publicado n’O Ilhavense de 20 de agosto de 1950, que
descreve a vida penosa do pescador e deixa trespassar uma forte carga descritiva e emotiva
que é caraterística da “literatura light”:

Pobre pescador que, confiante, largaste no teu frágil barquinho para, no alto mar,
lançar a rede, e regressar a casa com os canastros cheios de peixe! (…) Pobre
pescador, teu corpo destroçado aparecerá entre as rochas, sobre a areia ou não
mais ninguém o verá porque foste pasto dos peixes. (…) Pobre pescador (…) que
não pudeste pedir, com o último beijo e o último abraço, as orações da tua
esposa, a companheira dedicada de toda a tua vida e que, agora, terá de lutar
sozinha!”
(O Ilhavense, 20 de agosto de 1950, p.2)

Ainda de acordo com Pereira (2006), a “literatura light” transfere o real para o texto. Este
tipo de literatura, segundo a opinião da autora, é normalmente escrito por e para mulheres,
podendo mesmo criar-se uma “relação” em que a mulher-leitora se revê na mulher-autora,
numa forma muito simples e imediata de identificação. Pode-se dar como exemplo outro
conto de Mari Carmen Flores – “Tia Matilde a solteirona” – publicado n’O Ilhavense de 20
de setembro de 1950. Este texto conta a história de uma “solteirona” – Matilde – que
descreve o seu amor tardio por um jovem que depois se apaixona e casa com a sua
sobrinha Maria Júlia. Trata-se de um conto que procura criar empatia com as leitoras,
sobretudo na carga fortemente emotiva e negativa que é atribuída ao conceito “solteirona”:

Nesta tarde enevoada, enquanto, por detrás das janelas, vejo o morrer de mais
um dia em minha existência triste e amargurada de solteirona, sinto uma angústia
que me oprime a garganta e uma infinita tristeza em meu coração.
(O Ilhavense, 20 de setembro de 1950, p.2)

222 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Esta “solteirona” representa aqui toda a mulher sem homem, ou seja, toda a mulher sem
regra ou orientação, à qual falta algo. De facto, naquela época, a necessidade de atribuir a
cada mulher um homem não mais é do que uma forma (in)visível de poder ou até mesmo
uma tecnologia de controlo que Foucault tão bem referenciou.

Trata-se, portanto, de contos e poemas que primam pela ausência de uma reflexão ou teoria
literária, optando até pela partilha de descrições afetuosas ou meramente descritivas. É com
este tipo de literatura que as autoras destes jornais se vão demarcar do discurso masculino,
embora as narrativas incidam, particularmente, “(…) na descrição de um mundo (ainda)
patriarcal” (Pereira, 2006:173) e socialmente construído de acordo com as normas
masculinas.

Em relação aos poemas, vários são os exemplos no jornal O Ilhavense que se encontram
vazios de sentido, com capacidade para ir além da superficialidade ou atinjir a dimensão
crítica, e que são aqui representativos da produção literária no feminino. Destes destaca-se,
por exemplo, o poema “Cancioneiro”, de Lilinha Fernandes, na rubrica “Falemos do
Brasil”:

Podem subir os felizes.


Agarro-me ao solo, em festa.
Se não fossem as raízes
que seria da floresta?
Do nosso amor acabado
não pode esquecer-se a gente.
Porque a saudade é o passado
que nunca sai do presente.
(O Ilhavense, 1 de outubro de 1954, p.2)

Em relação ao sentido do discurso da temática da “criação literária”, percebe-se que este


transita entre o “laudatório”, o “crítico”, o “neutro” e até o “misto”. Os distintos sentidos
dos discursos das autoras revelam que a posição destas mulheres, face às representações do
mundo (sobretudo emotivas), é diversa, encontrando-se estes sentidos dependentes do tipo
de texto e do conteúdo que é desenvolvido. Denota-se, portanto, uma espécie de
“neutralidade” no tratamento do social.

223 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Em relação à linguagem utilizada, no caso da temática da “criação literária”, deteta-se que


é fortemente conotativa. As autoras usam uma estratégia literária tendencialmente
conotativa, na medida em que as suas palavras têm, muitas vezes, um sentido figurativo
estereotipado, sobretudo quando se trata de poemas. Ressalta-se apenas que, na maior parte
dos casos, os sentidos figurados são utilizados com uma forma expressiva vazia, e não com
um sentido moral ou simbólico. Trata-se, portanto, de um sentido particularmente
conotativo que as autoras utilizam para descrever a realidade, como se pode ver com o
poema que se segue (sem título), de Neusa Carmem, na rubrica “Falemos do Brasil”:

Além já vem surgindo a madrugada


e eu penso, em ti, figura amada
Horas que vêm e vão, horas tardias
e eu sempre, sempre lendo-te as poesias
quando a minh’alma sinto que anda triste
esta saudade assim, teima e persiste
A saudade de tudo o que escrevias
com esse carinho que tu só sabias…
(O Ilhavense, 10 de outubro de 1951, p.2)

Neste ponto é fundamental perceber que, mais do que uma área de atuação ou de
representação, que permite às autoras expressar a sua visão da realidade, a “criação
literária” parece ser o registo no qual as mulheres se sentem mais à-vontade. De facto, a
“criação literária” não é uma “coisa” feminina, visto que outros textos analisados nesta
categoria de produção literária estão repletos de autores masculinos, mas é através da
“criação literária” que o feminino se expressa. Nestes textos, as autoras partilham um
imaginário lírico, que lhes permite uma espécie de refúgio para um mundo alternativo,
onde produzem maioritariamente narrativas descritivas, afastando-se da produção de
intervenção social e moral, e das discussões de cunho teórico ou político. Exemplo deste
tipo de produção, entre muitos outros, é o texto de Mari Carmen Flores, intitulado
“Quando Sevilha dorme”, publicado na rubrica “Gente Moça”, em 20 de novembro de
1950:

Sevilha, capital da Andaluzia, rainha e flor das cidades alegres, cheia de graça e
de cor, de rapazes apaixonados e de lindas raparigas, dorme nas noites suaves;
um céu azul-escuro manchado de pequenas e rutilantes estrelinhas a cobri-la e
parece que a envolvê-la do aroma perfumado dos seus jardins cheios de sonho

224 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

aonde a alma se sente poeta, parece ainda que a arrulha o manso vaivém das
águas do Guadalquivir.
A Giralda ergue-se silenciosa; a Torre do Ouro faz uma sombra pitoresca; e o
bairro de Santa Cruz queda-se partido na silenciosa paz da noite. (…)
(O Ilhavense, 20 de novembro de 1950, p.5)

Outro facto interessante prende-se com a origem destas autoras que, na sua maioria, não
são de Ílhavo, mas encontram aqui um espaço para exporem a sua identidade imaginária,
fantasiosa e marcadamente emotiva. Tal como já foi referido aquando da análise dos
dados, as autoras são sobretudo brasileiras (que publicam através da rubrica “Falemos do
Brasil”) ou nacionais (as que publicam através das rubricas “Gente moça” e “Miscelânea”).
Na verdade, a diversidade e a internacionalização das autoras demonstra que, apesar d’O
Ilhavense ser considerado um jornal regional, a sua projeção ultrapassa fronteiras locais e
nacionais. Por outro lado, esta realidade permite questionar o papel da projeção social da
mulher ilhavense e o seu lugar na esfera pública, uma vez que não há grande espaço para a
sua produção textual no jornal de maior importância de Ílhavo.

Efetivamente, a comunidade ilhavense encontrava-se, à década, espalhada pelo país


(particularmente por Lisboa e pelo Porto) e ainda pelas Américas (E.U.A., Canadá, Brasil e
Venezuela), pelo que O Ilhavense era enviado para os associados aí radicados,
amplificando o seu impacto além-fronteiras e, consequentemente, despertando o interesse
de diversos/as autores/as. Como exemplo do que se esperava com a publicação das rubricas
oriundas desses espaços, transcreve-se, de seguida, a nota de redação da primeira
publicação da rubrica “Miscelânea”, a 20 de novembro de 1959, onde é apresentada a
diretora da rubrica e o seu propósito:

Começa hoje a dirigir esta página a nossa conhecida colaboradora e conterrânea


Maria José Sacramento, residente em Lisboa. (…) Cremos bem que Maria José
Carrancho Sacramento – a Zézinha como carinhosamente é tratada por todos –
vai seguir as pegadas dos seus antecessores, dispensando a este jornal o melhor
do seu entusiasmo e da sua inteligência.
Zézinha escolheu para esta página o nome de «Miscelânea». E escolheu esse
nome porque nela tenciona tratar uma miscelânea de assuntos: poesia, contos,
biografia, ensaio histórico, entrevista, pensamentos, curiosidades, problemas de
ordem económica, recreativa e científica, críticas, etc…

225 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Tudo promete e tudo procurará tratar com a boa vontade que põe em todas as
coisas que respeitem à Ciência, às Letras e às Artes, se lhe não faltar a ajuda de
todos os outros a quem se abre, mais uma vez, esta porta, para os seus estudos e
primeiros voos. (…)
(O Ilhavense, 20 de novembro de 1959, p.5)

O Ilhavense transforma-se assim num espaço para a publicação de contos, poemas,


informações públicas e informações de índole privada60, isto é, um espaço multifuncional,
mas que, no caso da produção no feminino, revela uma identidade recheada de fantasia
hiper-romântica e assinaladamente emotiva. Os textos escritos por mulheres são, por
consequência, representativos de uma existência que ignora a realidade socioeconómica,
mas que é focada na esfera familiar e artística, esta última centrada particularmente na
produção textual de implosão emotiva. O conto “Naufrágio” de Maria José Sacramento,
publicado no jornal de 20 de maio de 1958, na rubrica “Gente Moça”, ocupa cerca de meia
página e trata-se de um exemplo de produção literária trágico-romântica explorada quase
ao limite, como se pode ver pela seguinte passagem:

Novamente a luz iluminou o mar. Longínquos, chegavam à praia gemidos


angustiosos, gritos de almas em aflição e que se sobrepunham ao barulho das
ondas e do vento. E eles além, quase perto de terra e incapazes de avançar!
Espavoridas, as mulheres mergulhavam nas águas, queriam elas atirar-se às
ondas e salvar os seus homens. Os gritos vindos do mar chocavam-se no espaço
com os idos de terra.
Outro facho de luz. O barco desaparecera. Espetáculo infernal. Lágrimas. Mãos
crispadas esgatanhavam os rostos. Corpos gelados rebolavam sobre a areia
húmida. Soluços de mistura com padre-nossos e ave-marias.
(O Ilhavense, de 20 de maio de 1958, p.2)

No que diz respeito ao tema da “morte/luto” (o segundo “tipo de tema” com mais
ocorrências), repare-se que, apesar de ser referido ao longo dos anos analisados, apenas
ganha destaque no ano de 1959 (ver quadro 6), onde consegue ultrapassar (por mais do
dobro) o número de ocorrências do tema “criação literária”. Associado ao tema da
“morte/luto” está o “tipo de texto” que se apelidou de “agradecimento”. Trata-se aqui de
textos em que as mulheres são “autoras” de inúmeros agradecimentos lutuosos pela morte
de familiares, como se pode verificar pelo exemplo que se segue:

                                                            
60
Repare-se que aqui o espaço íntimo (ou privado) invade, sucessivamente, o espaço público.

226 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

A esposa e filho de António Álvaro de Jesus Rocha vêm patentear o seu


indelével reconhecimento a todas as pessoas que acompanharam à última jazida
seu marido e pai, bem como a todas aquelas que tiveram a amabilidade de lhe
oferecer coroas e ramos de flores com as legendas que a sua amizade ditou e que
traduzem bem o sentimento que tiveram pelo desaparecimento.
Agradecem igualmente a quantas têm tomado parte no seu grande desgosto.
Ílhavo, 30 de dezembro de 1958.
Maria Piedade Lopes da Silva e filho
(O Ilhavense, de 1 de janeiro de 1959, p.4)

Estas notas informativas lutuosas, assinadas por mulheres, revelam que um lado prático,
mas simultaneamente umbrático, não deixa de pairar sobre o seu imaginário de mães,
esposas e filhas. A necessidade de cuidar da família, de informar os outros e de não deixar
passar em silêncio um ato tão violento (e simultaneamente tão natural) como é a morte,
facultam um caráter “neutro” aos seus discursos e uma simplicidade “denotativa” à sua
linguagem, como se pode verificar com os exemplos que se seguem:

A esposa, filha e genro e toda a demais família do falecido José Marques, vêm,
por este meio, agradecer a todas as pessoas que o acompanharam no seu funeral
e lhe enviaram sentidos pêsames.
Ílhavo, 15 de junho de 1959.
Maria da Silva Marques e Família
(O Ilhavense, de 20 de junho de 1959, p.4)

Os abaixo assinados, irmãos e cunhados do falecido Manuel Resende vêm, por


este meio, agradecer, muito penhorados, a todas as pessoas que o acompanharam
à última jazida e aos que lhes apresentaram a expressão dos seus sentimentos.
Ílhavo, 30 de julho de 1959.
Henriqueta Resende da Silva
António Marques da Silva
António Resende e Esposa (ausentes)
(O Ilhavense, de 1 de agosto de 1959, p.4)

Embora estes textos sejam assinados por mulheres (sobretudo por mulheres que são de
Ílhavo), restam muitas dúvidas sobre a legitimidade da sua autoria. Quer isto dizer que, na
maioria dos casos, parece existir um modelo de escrita fornecido pelo jornal, que depois é
apenas assinado pelas mulheres em luto; e apesar de não parecer haver espaço para

227 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

hierarquias visíveis, é certo que se notam diferentes tipos de modelo de escrita lutuosa que
são escolhidos e publicados de acordo com a importância social da família.

Apesar destes textos não possuírem uma função poética ou moralizante, deteta-se uma
carga simbólica associada, embora de forma sombria. Efetivamente, Ílhavo é um espaço
social onde os homens são vítimas do mar, por vezes demasiado cedo, pelo que as
mulheres parecem especializar-se, por força das circunstâncias, em lidar com a morte e o
luto, afastando-se de uma apropriação lírica deste (como acontecia com a temática da
“criação literária”), e optando por uma via mais realista e sóbria. Esta visão tão pragmática
da mulher de Ílhavo (e talvez de todas aquelas que vivem em comunidades piscatórias
deste género) surge da necessidade de lidar tão abruptamente com duas condições
extremas: a vida e a morte. As subscritoras destas notas lutuosas parecem demonstrar todas
estas características, exaltando uma espécie de endurance identitária, muito sofrida por
conta das circunstâncias, mas sobretudo muito naturalizada e pouco evasiva, como
exemplifica o agradecimento lutuoso que se segue:

Eduardo Fernandes Bagão


Sua esposa, irmã e mais família vêm por este meio agradecer reconhecidamente
a todas as pessoas que se dignaram acompanhá-lo à sua última morada, bem
como a todos que lhes têm apresentado condolências, e compartilharam da sua
dor em tão doloroso desgosto.
Mercedes Pereira Bagão
Cândida Craveiro Bagão Senos e mais família
(O Ilhavense, de 10 de novembro de 1951, p.4)

Pode-se também referir que o tema “emigração” (que corresponde a 10,5% do total, como
se vê no quadro 6) está representado nos textos escritos por mulheres, na medida em que
estas, em conjunto com os maridos, escreviam notas de despedida aos amigos e familiares
quando se ausentavam do país. Existem também alguns exemplos de mulheres que iam ao
encontro dos maridos que já viviam além-fronteiras, sobretudo no Brasil, em África e nos
E.U.A., e de mulheres que vieram de férias a Ílhavo e que se despedem, pois regressam aos
lugares onde estão emigradas. Todas estas notas eram breves e pouco descritivas, contendo
apenas a informação relativa ao nome dos emigrantes, ao local para onde se deslocavam e
à data de partida, como se pode observar nos exemplos que se seguem:

228 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Francisco Fonseca e sua esposa Rosa Tourega Fonseca, tendo retirado para
Gloucester Mass. (América do Norte) e não lhes sendo possível despedirem-se
de todas as pessoas da sua amizade e relações, fazem-no por este meio, a todas
oferecendo os seus préstimos naquela cidade.
Francisco Fonseca
Rosa Tourega Fonseca
(O Ilhavense, de 10 de novembro de 1951, p.4)

Maria Solange Guerra Coelho de Moura, tendo de retirar com seu filhinho para
Moçambique onde vai juntar-se a seu marido, Máximo António Coelho de
Moura, e não tendo tempo de se despedir pessoalmente de todas as pessoas de
sua amizade e relações, vem fazê-lo por este meio, a todos oferecendo, naquelas
paragens, o seu limitado préstimo.
Ílhavo, 6 de fevereiro de 1958.
Maria Solange Guerra Coelho de Moura
(O Ilhavense, de 10 de fevereiro de 1958, p.3)

Isilda Maria da Silva tendo de regressar à América do Norte despede-se, por este
meio, de todas as pessoas da sua amizade e relações a quem não pode dizer
adeus pessoalmente e oferece a todos os seus limitados préstimos naquela grande
Nação.
Ílhavo, 10 de Outubro de 1958.
Isilda Maria da Silva
(O Ilhavense, de 20 de outubro de 1958, p.4)

De facto, estas informações relativas à temática da “emigração” estão associadas,


maioritariamente, ao “tipo de texto” apelidado de “notas breves”. Segundo os dados do
quadro 8, as “notas breves” correspondem a 25,3% da totalidade das ocorrências do “tipo
de texto”. Se a este fenómeno se juntar o facto de a maioria dos discursos ter um sentido
informativo, tudo parece apontar para uma espécie de pragmatismo nos discursos sobre a
emigração. Pragmatismo que, no geral, é também adotado pelas autoras em sofrimento
lutuoso.

6.1.2.2. Discussão sobre os perfis da mulher-autora n’O Ilhavense: “mulher-prática” e


“mulher-emotiva/fantasiosa”

Até este momento, a discussão centrou-se na forma como as mulheres se representam


mediaticamente através da autoria textual e nas relações que se estabelecem entre os
envolvidos: homens e mulheres. Esta discussão baseia-se em dois pontos fundamentais a

229 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

ter em conta na análise dos textos mediáticos e que estão de acordo com a teoria de
Norman Fairclough (1995): como é representada a realidade específica em estudo e quais
as relações que se estabelecem com os envolvidos. Contudo, segundo Fairclough (1995) é
necessário identificar e interpretar quais as identidades dos envolvidos no contexto
mediático, que, no caso específico deste estudo, se personifica nos perfis que as autoras
relevam através da publicação dos seus textos.

As identidades são construídas através de formações e práticas discursivas e são


produzidas num contexto específico, ao mesmo tempo que advêm de determinadas
modalidades de poder. Quer isto dizer que, os meios de comunicação, ao constituírem
representações da realidade – realidade que se modifica com base nas representações
discursivas que os próprios meios de comunicação disseminam –, influenciam a formação
das próprias identidades. Esta afirmação vai ao encontro das palavras de Ghilardi-Lucena
(2010) que vê os media como um lugar de implosão de identidade(s), e, acrescente-se, de
explosão de distintos e diversos perfis que podem ser reconhecidos e admitidos pelo(s)
público(s). No caso deste estudo, mais do que reconhecer identidades, papéis ou
comportamentos, interessa perceber quais os perfis identitários que se descobrem a partir
dos textos escritos por estas mulheres.

Estes perfis testemunham o caráter complexo e transdisciplinar do conceito de identidade,


que é aqui definido enquanto representação simbólica, tendo em conta as relações de
opostos e a contextualização espácio-temporal. Assim, os perfis destas autoras não devem
ser vistos como um conjunto de características essenciais, tomadas à partida, mas antes
como um aglomerado de características que lhes são reconhecidas, através da interpretação
do conteúdo da sua produção discursiva e tendo em consideração indicadores simbólicos
recolhidos na literatura da especialidade.

Neste estudo, embora o tema “família” seja objeto de uma produção textual significativa, a
identidade da mulher-autora não revela um perfil esperado de mãe, esposa ou educadora.
Porém, a análise dos textos produzidos por estas mulheres conduziu a dois modos muito
estereotipados de se apresentarem: “mulher-emotiva/fantasiosa” e/ou “mulher-prática”.

A “mulher-emotiva/fantasiosa” é aquela que trabalha um espaço literário de implosão das


emoções, onde transparecem os seus sentimentos através de diversos sentidos discursivos,

230 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

como se pode verificar no texto “Pobre pescador!” de Mari Carmen Flores (publicado n’O
Ilhavense de 20 de agosto de 1950, e já exemplificado atrás), ou no conto “Noite de
Tempestade”, de Maria José Sacramento, publicado na rubrica “Gente Moça”:

Acordei sobressaltada. Tinha sonhado. Esse sonho pesava em mim com tanta
violência que, maquinalmente, levei as mãos aos olhos.
Na escuridão imensa do quarto pareceu-me ver ainda o quadro de miséria com o
qual acabara de sonhar. O silêncio era profundo e, no entanto, pareceu-me ouvir
gemidos. Acendi a luz. Tudo estava calmo. Estremeci, contudo. Os meus
pensamentos baralhavam-se. Num pequeno bibelot que estava em cima do
toucador vi a criança pálida do sonho. Os móveis pareciam mover-se e
transformarem-se em seres vivos.
Ergui-me. Sufocava. Lá fora a chuva caía, batendo com força nas vidraças. Senti
a cabeça pesada. Doía-me mesmo. (…)
(O Ilhavense, 20 de janeiro de 1958, p.2)

Pelo contrário, a “mulher-prática” é aquela que discursa acerca da morte com uma
simplicidade natural e um caráter meramente informativo e socialmente codificado. A nota
de agradecimento lutoso que segue em baixo é um dos exemplos de “mulher-prática” que
tem de resolver os assuntos de vida e de morte:

Leonor Branco Marques, filhos, genro e família na falta involuntária do


agradecimento feito pelo falecimento de seu marido e pai, vêm por este meio
ressalvá-lo.
(O Ilhavense, 1 de junho de 1959, p.4)

Estes perfis surgem como uma espécie de “identidades prontas”61, que desempenham um
papel fundamental na educação social dos sujeitos, principalmente no que diz respeito aos
seus comportamentos de género. Efetivamente é, em grande parte, através dos meios de
comunicação que as identidades de género são construídas no meio social, pelo que é
necessário analisar o simbolismo envolvido nas mensagens divulgadas, que, na grande
maioria das vezes, oferece modelos estereotipados e socialmente consolidados de
identidade, baseados em discursos que já estão em curso e saturados de normas.

A imagem emotiva/fantasiosa que as autoras deixam transparecer através dos seus


discursos, contribui para um acentuar da dualização tradicional do conceito de género, que

                                                            
61
Tradução nossa de ready-made identities (Damean, 2006).

231 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

se reflete na estereotipia do perfil feminino. Neste caso, é acentuada a exposição identitária


no binómio homem/mulher-objetivo/subjetiva-racional/emotiva que tantas vezes é
apresentada pelos meios de comunicação, sobretudo em meados do século XX. Tal como
já foi referido (e aqui se deteta), esta dualização muito demarcada é fruto de uma
interiorização histórica dos sujeitos, a partir de uma organização sociocultural masculina
do universo que, na maior parte dos casos, é assumida pelas mulheres, apoderando-se da
sua construção identitária. Todavia, detetam-se alguns casos que parecem querer fugir a
estas estruturações identitárias tradicionais.

O facto de se identificar um perfil de “mulher-prática” demonstra que O Ilhavense era um


palco onde parecem ser representadas algumas mudanças na sociabilização de género, por
razões muito particulares da vida em Ílhavo. Usualmente conotado com o emotivo, o
género feminino foge, neste caso, desse papel e assume uma relação prática com a morte.
Pretende-se aqui interpretar este perfil como uma espécie de subtil representação de
resistência, pois estas mulheres procuram lidar com a dor da morte, mas evitando o
sentimentalismo com que usualmente são conotadas, surgindo antes uma sobriedade e
solenidade textual que a gravidade da morte impõe. Mais uma vez, isto não implica que
esta forma de resistência tenha sido uma escolha consciente, pois estas mulheres podem ter
sido apenas orientadas para assinar textos pré-fabricados pelo jornal, como já foi
anteriormente referido. Todavia, as vivências destas mulheres, centradas no universo
“família”, onde a maior parte das vezes são obrigadas a tomar decisões sozinhas, criam
nelas uma forma naturalmente sóbria e grave de lidar com a perda.

Este perfil de “mulher-prática” não deve ser analisado como contraposição antagónica do
perfil de “mulher-emotiva/fantasiosa”, como uma primeira leitura pode deixar supor. Em
primeiro lugar, trata-se de autoras com origens diferentes e, logo, com contextos
socioculturais divergentes: as mulheres de Ílhavo que relatam as mortes dos seus maridos
parecem revelar um perfil prático, que decorre da naturalização da sua experiência com a
morte, fruto do particular contexto piscatório no qual se encontram envolvidas; enquanto
as autoras de produção literária, e que revelam um perfil emotivo/imaginativo, não são
apenas ilhavenses, mas também mulheres oriundas de outros lugares do país e ainda do
Brasil (contextos muitos distintos do de Ílhavo).

232 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

6.1.2.3. Discussão sobre o perfil social de “não-identificação”: “não-identidade”,


“identificação por frequência” e “identificação mediada”

Curiosamente, e em qualquer dos casos – “mulher-prática” ou “mulher-emotiva/fantasiosa”


–, apesar das autoras representarem universos distintos, a grande maioria participa, de uma
certa forma, de uma espécie de processo de “não-identificação”, pois não deixa uma marca
pessoal identitária nos seus textos. Estas mulheres, cujos discursos – quer os emotivos,
quer os práticos – se afastam da teorização crítica e da intervenção social, parecem
entender também que a vida quotidiana em geral (e as suas em particular) não tem
interesse público, despersonalizando-se e criando um perfil social de “não-identificação”.
Dentro desta dinâmica detetam-se três graus de “não-identificação”: “não-identidade”,
“identificação por frequência” e “identificação mediada”.

Os casos de “não-identidade” são relativos à maioria das autoras que se retiram da sua
identidade escrevendo textos estereotipados ou socialmente codificados. Aqui entra a
maior parte dos poemas e dos agradecimentos lutuosos. Todavia, a análise permite concluir
que existe uma minoria de autoras que abre espaço para uma assinatura62, deixando
sobressair aquilo a que se chamou, neste estudo, de “identificação por frequência” e de
“identificação mediada”.

Nos textos analisados, foi encontrada uma autora – Mari Carmen Flores – que deixou a sua
marca na memória do leitor através do número de ocorrências e de uma certa fidelização
estilística. Esta autora consegue, portanto, vincar a sua identidade através de uma
“identificação por frequência”. Há ainda o exemplo de uma outra mulher que evoluiu
hierarquicamente no jornal, começando como simples poetisa e autora de pequenos contos,
vindo a ascender a editora de página. Esta autora – Maria José Sacramento –, que se
escreve através dos discursos dos “outros”, possui o que se pode designar por um grau
mínimo do discurso de identidade, ao promover uma “identificação mediada”.

Na verdade, os discursos do feminino contidos n’O Ilhavense – quer se tratem de mulheres


ilhavenses, quer se tratem de mulheres oriundas de outros contextos socioculturais –
presentes na esfera pública, através da publicação na imprensa, não deixavam transparecer
uma identidade própria, singular e em oposição ao socialmente instituído, na medida em
                                                            
62
Embora esta posição assumida por algumas mulheres não seja suficiente para as afastar de um grau de
“não-identificação”.

233 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

que o Eu feminino nunca retoma a si livre do Outro masculino. Assim sendo, e nesta fase,
importa trazer para a discussão a pergunta que orienta esta investigação: Era ou não Ílhavo
(na década de 1950) uma sociedade matriarcal?

No que diz respeito à produção escrita no feminino, Ílhavo não era representado como uma
sociedade matriarcal. Antes pelo contrário, Ílhavo era representado na imprensa local como
uma sociedade marcadamente masculina, onde as mulheres têm pouquíssima voz, estão
sujeitas a restrições no espaço de publicação e circunscritas a um conjunto de temáticas
que se limitam à envolvência com a família e com as artes. Todas as restantes atividades
críticas ou cívicas, de verdadeira mediação ou intervenção social, estão afastadas do seu
universo. Para além disso, estas mulheres adotaram uma identidade assumidamente
estereotipada, e que, na grande maioria dos casos, oferece pouca resistência à imposição
das estruturas de poder masculinas. A única forma aparente de resistência a estas estruturas
é visível apenas quando as mulheres ilhavenses falam sobre a morte e expressam o seu luto
de uma forma sóbria, o que contrasta com uma reação emotiva que se poderia esperar
nestes casos.

Neste estudo surge uma outra questão pertinente: Entrará esta mulher representada como
emotiva e fantasiosa, e também prática e racional, em contraste com um homem lógico,
crítico e político? Para responder a esta questão seria necessária uma análise meticulosa
aos textos escritos por homens, algo que este estudo não abrange. Todavia, esta
investigação deixa transparecer, no que diz respeito à temática da morte/luto, que tanto
homens como mulheres estão num nível de igualdade visível na codificação dos textos –
homens e mulheres apresentam uma linha textual lógica e pouco emotiva. Ou seja, a reação
socialmente esperada de maior frieza dos homens em lidar com a morte é também
partilhada pelas mulheres (o que aqui pode reabrir a discussão da verdadeira autoria dos
textos lutosos).

Quando se compara os textos, dentro da mesma temática, escritos por homens e por
mulheres, no que diz respeito à “criação literária”, a mulher é mais evasiva, enquanto o
homem consegue ter uma forma de expressão mais crítica, deixando transparecer, por
exemplo, um caráter moralizador nos contos e uma maior profundidade poética nos
poemas. Fundamental é perceber que, apesar desta dualidade na identidade de género, os
discursos destas autoras representam diferentes consciências que lhes permitem atuar ou

234 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

desempenhar as distintas performances identitárias apontadas. Quer isto dizer que,


independentemente das representações da realidade que O Ilhavense difunde (ou opta por
difundir), no final, é cada sujeito (produtor ou leitor) que escolhe com que discurso se
identifica, ou se quer identificar.

6.2. Estudo de textos escritos sobre mulheres, n’O Ilhavense, na década de 1950

6.2.1. Apresentação e análise dos dados relativos aos textos escritos sobre mulheres

À semelhança da análise de textos escritos por mulheres, para o estudo de textos escritos
sobre mulheres foram selecionados alternadamente os números do jornal O Ilhavense –
1950, 1951, 1954, 1955, 1958 e 1959 – de forma a garantir a representatividade, a
diversidade e a saturação da informação. De um conjunto de 10104 peças escritas, foram
selecionadas para este estudo aquelas que são sobre mulheres, sendo conduzida uma
análise sem recurso a programas informáticos de análise de dados.

Em primeiro lugar foram contabilizados os textos escritos sobre mulheres, como se pode
observar no quadro 13. Num universo de 10104 peças, existem apenas 716 escritas sobre
mulheres, o que corresponde a 7,1% do total. Apesar de se notar uma subida ao longo da
década, assinala-se que estes continuam a ser números baixos no que diz respeito à
presença feminina no jornal O Ilhavense.

Quadro 13 | Peças escritas sobre mulheres na década de 1950

Percentagem de
Nº de peças escritas
Ano Nº de peças escritas peças escritas
sobre mulheres
sobre mulheres
1950 (ano 39) 1491 81 5,4%
1951 (ano 40) 1511 102 6,8%
1954 (ano 43) 1892 135 7,1%
1955 (ano 44) 1711 125 7,3%
1958 (ano 48) 1699 132 7,8%
1959 (ano 49) 1800 141 7,8%
Total 10104 716 7,1%

Tal como foi efetuado no estudo dos textos escritos por mulheres, em cada peça escrita
sobre uma mulher (em cada número de jornal) foram levantados e analisados dados

235 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

referentes a seis dimensões fundamentais desses textos: “tipo de tema”, “tipo de texto”,
“sentido do discurso”, “tipo de linguagem”, “hierarquia” e “mulher de Ílhavo”63.

A primeira análise centra-se nos temas em que o feminino é abordado. O quadro 14


permite visualizar que os temas a que as mulheres são mais associadas são a “criação
literária”, a “religião” e a “morte/luto”, com 147 ocorrências (20,5% do total), 129
ocorrências (18% do total) e 97 ocorrências (13,6%), respetivamente. O tema “criação
literária” segue uma espiral ascendente no início da década, sendo ultrapassado pelo tema
“religião” apenas nos anos de 1958 e 1959. Já o tema “morte/luto”, que começa com
ocorrências elevadas nos primeiros anos da década de 1950, decai nos últimos três anos
analisados – 1955, 1958 e 1959.

Ainda no quadro 14 observam-se, com menos ocorrências, os temas “saúde/beleza”,


“estudos/educação”, “casamento/família”, “negócios/comércio”, “assistência aos outros”,
“trabalho/profissional”, “aniversários/acontecimentos de relevo”, “justiça/tribunais”,
“política/economia”, “artes e espetáculos”, “emigração”, “sexualidade”, “história local”,
“lazer/tempos livres”, “infância” e ainda “outros”, todos com uma expressão inferior a 9%
(ou seja, menos de 61 ocorrências).

                                                            
63
Elementos já explicitados no capítulo da metodologia, no ponto reservado à apresentação geral dos dados.

236 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Quadro 14 | Ocorrências do “tipo de tema”, nos textos escritos sobre mulheres, na década
de 1950

Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Criação
14 24 34 39 22 14 147 20,5%
literária
Religião 4 2 2 3 48 70 129 18%
Morte/ luto 17 17 22 14 17 10 97 13,6%
Saúde/ beleza 1 1 21 31 5 1 60 8,4%
Estudos/
11 10 7 6 6 6 46 6,4%
educação
Casamento/
8 8 14 8 4 4 46 6,4%
família
Negócios/
12 14 10 3 1 0 40 5,6%
comércio
Assistência
1 3 2 6 7 3 22 3,1%
aos outros
Trabalho/
0 2 1 1 8 10 22 3,1%
Tipo de profissional
tema Aniversários/
aconteciment 4 4 1 2 4 6 21 2,9%
os de relevo
Justiça/
4 0 9 3 0 5 21 2,9%
tribunais
Política/
2 4 0 2 0 1 9 1,3%
economia
Artes e
0 1 0 1 4 2 8 1,1%
espetáculos
Emigração 0 0 2 1 4 1 8 1,1%
Sexualidade 2 2 1 0 0 0 5 0,7%
História local 0 0 0 0 0 4 4 0,6%
Lazer/
1 1 1 0 0 0 3 0,4%
tempos livres
Infância 0 0 1 0 0 0 1 0,1%
Outros 0 9 7 5 2 4 27 3,8%
Total 81 102 135 125 132 141 716 100%
 

Posteriormente, foi possível o reagrupamento do material correspondente aos níveis de


categoria que constituem o “tipo de tema” o que conduziu à emergência de novas
categorias, como se pode ver no quadro 15.

237 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Quadro 15 | Ocorrências da “área íntima”, da “área mista” e da “área social”, nos textos
escritos sobre mulheres, na década de 1950

Área Categoria Níveis da categoria Total Total %


Religião 129
Estudos/educação 46
Negócios/comércio 40
Área social

Trabalho/profissional 22
Intervenção
Assistência aos outros 22 40,9%
pública
Justiça/tribunais 21
Política/economia 9
História local 4
Total 293
Criação literária 147
Área mista

Saúde/beleza 60
Arte e
Artes e espetáculos 8 30,5%
curiosidade
Lazer/tempos livres 3
Total 218
Morte/luto 97
Casamento/família 46
Área íntima

Aniversários/acontecimentos
21
de relevo
Família 24,9%
Emigração 8
Sexualidade 5
Infância/maternidade 1
Total 178
Outros Total 27 3,8%
Total 716  100%
 

A primeira categoria a emergir é “intervenção pública”, como consequência da junção dos


níveis de categoria que se reúnem numa área social: “religião”, “estudos/educação”,
“negócios/comércio”, “trabalho/profissional”, “assistência aos outros”, “justiça/tribunais”,
“política/economia” e “história local”. Estes níveis apelam para a intervenção social das
mulheres nas temáticas abordadas pelos textos escritos sobre mulheres, reunindo 293
ocorrências, que equivalem a 40,9% do total.

A segunda nova categoria a emergir, com 218 ocorrências (30,5% do total), é “arte e
curiosidade” e corresponde a uma área mista, que reúne em seu torno os seguintes níveis
de categoria: “criação literária”, “saúde/beleza”, “artes e espetáculos” e “lazer/tempos
livres”. Finalmente, é possível reunir os restantes níveis de categoria – “morte/luto”,
“casamento/família”, “aniversários/acontecimentos de relevo”, “emigração”, “sexualidade”

238 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

e “infância/maternidade” – numa categoria intitulada “família”. Esta categoria insere-se


numa esfera íntima de atuação da mulher, com 179 ocorrências (o equivalente a 24,9% do
total).

Note-se agora que da primeira categoria (“intervenção pública”) para a segunda (“arte e
curiosidade”) há apenas uma diferença de 7,3 pontos percentuais; e desta para a terceira
(“família”) há ainda uma menor diferença de apenas 2,6 pontos percentuais. Estes dados
traduzem a proximidade que existe entre as novas categorias criadas.

Passando para a análise da categoria “tipo de texto” escrito sobre mulheres, foram
examinados onze níveis diferentes que se encontram presentes no quadro 16.

Quadro 16 | Ocorrências da categoria “tipo de texto”, nos textos escritos sobre mulheres,
na década de 1950

Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Nota breve 4 22 17 19 59 76 197 27,5%
Notícia 26 22 32 19 25 30 154 21,5%
Anúncio 15 14 29 31 8 10 107 14,9%
Conto 6 10 22 28 6 5 77 10,8%
Poema 5 10 9 5 15 5 49 6,8%
Agradecime
6 5 13 9 10 6 49 6,8%
nto
Tipo de Informação
texto pública/ 12 8 6 6 3 4 39 5,5%
aviso
Reportagem 3 5 2 3 3 1 17 2,4%
Entretenime
nto/ quebra- 2 2 0 0 0 0 4 0,6%
cabeças
Entrevista 0 0 0 1 0 0 1 0,1%
Outros 2 4 5 4 3 4 22 3,1%
Total 81 102 135 125 132 141 716 100%

Os dados presentes no quadro 16 revelam que a “nota breve” e a “notícia” são os tipos de
texto que se destacam, com 197 ocorrências (27,5%) e 154 ocorrências (21,5%),
respetivamente. Os dados relativos a notas breves são elevados, na maioria dos anos
analisados, exceto nos anos de 1950 e 1954, onde são ultrapassados numericamente pelos
dados relativos às notícias. De seguida, com percentagens inferiores a 15%, apresentam-se

239 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

os tipos de texto: “anúncio”, “conto”, “poema”, “agradecimento”, “informação


pública/aviso”, “reportagem”, “entretenimento/quebra-cabeças”, “entrevista” e “outros”.

Com o quadro 17 é possível verificar o “sentido do discurso” dos textos escritos sobre
mulheres nos jornais correspondentes aos anos analisados. O primeiro destaque vai para a
neutralidade de cerca de 40% dos textos (289 ocorrências). Todavia, salienta-se o facto de
nos anos de 1958 e 1959 o sentido laudatório nos discursos sobre mulheres superar o
neutro.

Quadro 17 | Ocorrências da categoria “sentido do discurso”, dos textos escritos sobre


mulheres, na década de 1950

Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Neutro 40 46 70 60 40 33 289 40,4%
Sentido do Laudatório 16 33 21 30 70 86 256 35,8%
discurso Crítico 24 21 26 32 18 22 143 19,9%
Misto 1 2 18 3 4 0 28 3,9%
Total 81 102 135 125 132 141 716 100%
 

Segundo o quadro 17, é ainda possível apurar que 35,8% (256 ocorrências) dos textos
escritos sobre mulheres são laudatórios, enquanto 19,9% (143 ocorrências) dos textos são
críticos. Há ainda uma pequena percentagem (3,9%) dos textos escritos sobre mulheres que
são mistos (28 ocorrências).

Já em relação ao “tipo de linguagem” (quadro 18) existe uma diferença bastante ligeira
entre os dados, pois 50,6% (362 ocorrências) dos textos escritos sobre mulheres são
conotativos e 49,4% (354 ocorrências) são denotativos. Todavia, até 1958 o tipo de
linguagem em relação aos textos escritos sobre mulheres é particularmente denotativo,
mudando esta realidade nos anos de 1958 e 1959. Mais uma vez, importa referir que as
diferenças numéricas entre a linguagem conotativa e a denotativa, por cada ano em análise,
são ligeiras.

240 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Quadro 18 | Ocorrências da categoria “tipo de linguagem”, nos textos escritos sobre


mulheres, na década de 1950

Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Tipo de Conotativo 32 49 54 52 80 95 362 50,6%
linguagem Denotativo 49 53 81 73 52 46 354 49,4%
Total 81 102 135 125 132 141 716 100%

O quadro 19 mostra os dados relativos à categoria “hierarquia”, onde 87,2% (624


ocorrências) dos textos escritos sobre mulheres não revela, aparentemente, qualquer
hierarquia, tanto ao nível social como ao nível do género (particularmente no ano de 1959).
Todavia, existem 54 ocorrências de hierarquia social (7,5% do total), 30 ocorrências de
hierarquia masculina (4,2% do total) – ou seja, textos que reforçam o exercício do poder
masculino em detrimento do feminino – e apenas 8 ocorrências de hierarquia feminina
(1,1% do total) – ou seja, textos que reforçam o exercício do poder feminino em
detrimento do masculino.

Quadro 19 | Ocorrências da categoria “hierarquia”, nos textos escritos sobre mulheres, na


década de 1950

Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Não se deteta 62 87 120 110 114 131 624 87,2%
Hierarquia
9 10 9 9 11 6 54 7,5%
social
Hierarquia de
Hierarquia género 6 5 6 4 5 4 30 4,2%
(masculino)
Hierarquia de
género 4 0 0 2 2 0 8 1,1%
(feminino)
Total 81 102 135 125 132 141 716 100%

Finalmente, expõem-se no quadro 20 os dados relativos à última categoria de análise –


“mulher de Ílhavo” – no qual se pretende identificar a origem das mulheres que inspiram a
produção dos discursos textuais.

241 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Quadro 20 | Ocorrências da categoria “mulher de Ílhavo”, nos textos escritos sobre


mulheres, na década de 1950

Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Sim 39 38 70 69 86 106 408 57%
Mulher de Não 24 35 45 49 29 29 211 29,5%
Ílhavo Não
18 29 20 7 17 6 97 13,5%
identificado
Total 81 102 135 125 132 141 716 100%

Na sua maioria (408 ocorrências que equivalem a 57% do total, e que têm maior expressão
nos dois últimos anos analisados), os textos escritos são sobre mulheres ilhavenses,
enquanto apenas 29,5% dos textos são sobre outras mulheres (211 ocorrências). Todavia,
em 97 textos (13,5% do total) não foi possível localizar as mulheres referidas.

6.2.2. Discussão dos dados relativos aos textos escritos sobre mulheres

6.2.2.1. Discussão sobre a produção textual do feminino

A análise dos dados demostra que 1958 e 1959 são anos de viragem, responsáveis por
algumas das conclusões chegadas. Em primeiro lugar, cada um destes anos apresenta 7,8%
de textos escritos sobre mulheres (em relação ao total de textos escritos por ano), o que é
superior à média total (7,1%), como se pode observar no quadro 13.

No que diz respeito ao “tipo de tema”, apesar da “criação literária” ter mais ocorrências no
total, a sua contabilização decai nos anos de 1958 e 1959, emergindo a “religião”, o que
provoca uma mudança no tipo de produção escrita sobre o feminino, visto que a imagem
da mulher passa a ser objeto de maior atenção no campo da intervenção pública, sobretudo
na organização de atividades religiosas, do que na mera produção de contos e poemas.
Obviamente que, como as “notas breves” estão associadas ao tema “religião”, também
estas vão sofrer uma subida no final da década de 1950. Estes dados acabam igualmente
por estar relacionados com o sentido do discurso, que em 1958 e 1959 passa a ser
maioritariamente laudatório, ultrapassando todos os outros, particularmente o neutro, que
liderava as ocorrências. Tudo indica que, as mulheres, ao envolverem-se em atividades de
caráter religioso, são progressivamente alvo de crítica tendencialmente laudatória.

242 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

No final da década de 1950 aumentam também as ocorrências relativas ao sentido


conotativo da linguagem, e diminuem os textos com questões hierárquicas emergentes
(particularmente em 1959). Neste período aumenta vigorosamente o número de textos
sobre mulheres ilhavenses, o que atribui simultaneamente significado e importância à
mulher de Ílhavo.

Partindo agora para uma análise mais detalhada dos dados, começa-se por salientar o facto
de apenas 7,1% dos textos produzidos n’O Ilhavense serem sobre mulheres e, embora
estejam presentes várias temáticas, importa focar este estudo na “criação literária”, na
“religião” e na “morte/luto”, por serem estas as que possuem maior ocorrência.

No que diz respeito à “criação literária”, a imagem da mulher é sobretudo utilizada para
preencher o imaginário criativo da literatura poética deste jornal, na medida em que a
produção de poemas e de contos se centra, na maior parte dos casos, na figura feminina. A
mulher é o objeto do imaginário masculino que é utilizado como inspiração simbólica na
produção textual.

Neste contexto, muitos contos incluem a figura feminina, como, por exemplo, os de
Manuel Adra, Silva Peixe, C.E.R. (autor desconhecido), José Geitoeira e Observador
(autor desconhecido). Como exemplos, destacam-se pequenas passagens dos contos dos
autores nomeados:

- Manuel Adra escreve sobre o casamento de Cristina – mulher não muito bonita, mas que
arranja marido e irradia felicidade (“até parece mais bonita”);

A Cristina parecia outra. Estava mais alegre, mais exuberante, o olhar com mais
luz. Quase me pareceu bonita, apesar do buço castanho e dos dentes saídos.
(…)
- Andas a tratar do enxoval?
Andava mesmo! Ele queria casar depressa, ia para uma viagem de 8 meses,
andava num panamaiano…
- Gostas dele? – quis saber.
- Gosto – respondeu corando mais ainda – ele é muito meu amigo…
Esta é a história da Cristina a quem o Menino Jesus pôs um marido no sapatinho.
(O Ilhavense, 1 de janeiro de 1951, p.1)

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Capítulo VI – Estudo Empírico 

- Silva Peixe escreve sobre a desgraça em que cai uma mulher grávida fora do casamento e
que é abandonada pela traição do apaixonado;

Conhecia-a no campo, quando ela era pura e linda como a luz deste alvor que
acabo de contemplar.
(…)
Sorrimos os dois, e após um galanteio trocámos algumas palavras de amor, desse
amor tão puro como a pureza da alma dessa mulher.
(…)
Certo dia, entrei [no moinho]: Sim, entrei, mas antes o moinho tivesse ruído,
para matar peçonha deste grande pecador. Dessa entrevista, nasceu o fruto do
pecado; uma filha - «a flor do campo».
(…)
Depressa me esqueci dessa linda camponesa que se deixou morrer vendo no seu
sedutor o maior dos traidores. Outra mulher veio ocupar no seu coração, o lugar
daquela que tinha ficado no moinho, acariciando o fruto do seu puro amor, e
duma vil traição. Alguns meses depois, recebo uma carta de Maria, dizendo:
São estas as últimas linhas que te escrevo, sinto que a morte se aproxima a
passos gigantescos! (…) Não quero partir (…) sem te pedir que não vejas a
minha filha, a filha duma qualquer. Por mim estás perdoado de todo o mal que
me fizeste, mas peço-te que veles pela nossa filha, que lhe dês um nome digno
dela, e que sejas melhor para ela que foste para mim: vela por essa inocente, que
eu morro confiando no meu pedido.”
(O Ilhavense, 20 de março de 1951, p.4)

- C.E.R. escreve sobre as mulheres da rua do Espigueiro que, de tão bonitas que eram,
“enfeitiçavam” os rapazes, e por isso eram consideradas bruxas;

Ílhavo foi sempre terra de lindas mulheres.


Para esta justa fama, muito tem contribuído a rua de Espinheiro, (…) alfobre das
beldades da nossa terra.
(…)
A rua do Espinheiro tem a alcunha de «Rua do caço e bola». Este «caço» e esta
«bola» não são mais do que a vazilha e o ingrediente nela contido e preparado,
que tem o condão de atrair a mocidade para o casamento com as moças de
Espinheiro. No términus daquela via, como todos sabem, existe a «Fonte dos
amores».
(…)

244 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Descrita desta maneira a rua do Caço, é natural que ela constituísse a


preocupação das mães dos rapazes casadoiros, e que o povo, com a sua tendência
para a superstição, atribuísse bruxedo aos encantos naturais das moças do Arnal.
(…)
A comadre então retorquia: - Atão tu num te alembras cando eu fui cortar as
linhas que coziam os olhos dum sapo? As de Espinheiro são umas bruxas.
(…)
Durante uma época, fez furor a notícia que as bruxas se transformavam em patas
e toda a noite grasnavam sem cessar.
(O Ilhavense, 20 de abril de 1950, p.5)

- José Geitoeira escreve sobre três mulheres que estão no intervalo de um espetáculo e
criticam uma outra que se masculinizou, e escreve ainda sobre como uma mulher pode ser
mentirosa (mulher que mente por ter vergonha de ser a esposa de um ferroviário);

Indubitavelmente, a mulher actual – salvo honrosas excepções – perdeu a graça


que fazia dela um motivo de adoração.
Masculinizou-se, recalou o pudor, despedaçou o véu de candura que a tornava
objecto dos nossos sonhos (…).
(O Ilhavense, 20 de fevereiro de 1958, p.1)

Na verdade, há mulheres para quem certas mentiras constituem um delicioso


prazer, colocando-se em pedestais arquitectados pela sua exuberante fantasia
(…).
(O Ilhavense, 1 setembro de 1959, p.2)

- Observador escreve sobre um casal em que ela exige tudo e ele não tem dinheiro.

O certo é que ela primeiro quis vestidos, fatos, sapatos, meias, malas!...
Absolutamente lógico. Todas as mulheres querem isso. E eu, com grandes
sacrifícios, aguentei o barco. Depois quis um rádio. Realmente, até parecia mal
não termos um rádio. Tinha razão. Comprei-lhe a telefonia. Depois, parece-me
que por esta ordem, quis um filho. Absolutamente lógico! Toda a mulher quer ter
filhos… é a vida e principal missão delas. Aliás (é uma mulher cheia de sorte!) já
antes quisera um marido, e o certo é que o teve. E, graças a Deus!... Já temos um
filho que é um amorzinho.
(…)
Mas estas coisas são artes do diabo. Habituou-se, e cheguei à conclusão que a
única coisa que ela não queria… era ter dinheiro em casa.
(O Ilhavense, 10 de dezembro de 1958, p.4)

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Capítulo VI – Estudo Empírico 

De uma forma geral, grande parte dos textos literários sobre mulheres, presentes n’O
Ilhavense, expõem uma mulher que se define através da sua relação com o homem,
particularmente se se trata de uma mulher casada ou não. Portanto, na maioria dos contos e
dos poemas – onde a mulher tende a ser a protagonista da história – deteta-se, facilmente,
um caráter moralizador, que denuncia os comportamentos da mulher (de acordo com a sua
condição de casada ou solteira) através de exemplos.

Desta forma, é aqui visível que o poder do casamento é o que detém o desejo de
legitimação destas mulheres enquanto seres humanos (Butler, 2004). A Religião associada
ao Estado torna-se o meio pelo qual o feminino é medido, valorizado e legitimado,
tendencialmente excluindo as mulheres que vivem fora desta situação – as mulheres
solteiras. Importa aqui questionar: O que significa incluir as mulheres que vivem dentro do
casamento? E as que vivem fora desta legitimação social? Como as apelidar?

Esta produção literária sobre mulheres vai ao encontro do que foi discutido na revisão de
literatura e nas restantes análises, de que os media, tendencialmente, criam apenas duas
imagens da mulher (Wood, 1994) – uma angelical e outra diabólica. Esta dicotomia surge
da forte influência da metáfora religiosa que apresenta a mulher de acordo com duas óticas:
Eva (pecadora e que leva Adão a pecar) e Maria (mãe de Cristo e modelo de castidade,
devoção e santidade). Obviamente que se trata de dois protótipos de mulher – que não
existem – que se encontram nas pontas de dois extremos do comportamento social, mas
que, contudo, são frequentemente produzidos, utilizados e reforçados na produção
mediática.

Esta influência secular da simbologia católica acarreta vincadas funções sociológicas que
determinam o que implica ser/estar no feminino, e os textos em análise são mais um desses
exemplos. Efetivamente, os autores do jornal O Ilhavense atrás citados apresentam,
constantemente, uma mulher “má” ou “bruxa”, com um comportamento condenável e
manipulador (que procura um homem, “forçando-o” a casar através de contornos
maquiavélicos), deixando subentender o contraste com uma mulher “boa” e exemplar,
modelo para toda a mulher ilhavense (mulher “abençoada” pelo casamento). Ou seja, os
textos expõem (utilizando a ficção), os comportamentos e as atitudes a evitar pelo sexo
feminino, ao mesmo tempo que descrevem os socialmente aceites. A mulher é

246 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

frequentemente representada nestes textos como dependente (emocional e


economicamente) do homem, como ser sexualizado/erotizado e como “criatura matreira”.

No caso da referida “dependência”, basta fazer emergir a tendência sexista da época que
pretendia afastar a mulher do trabalho remunerado, aumentando o seu grau de dependência
do marido. Simultaneamente, as pressões sociais para empurrar a mulher para a estrutura
matrimonial também aqui se fazem sentir. A mulher é incentivada a casar e a depender
económica e socialmente do marido, forçando a manutenção de um ciclo de complexas
relações de poder, onde “ela” é sempre o elemento dominado, embora nem sempre
conformado.

Outra das imagens aqui presentes é a da mulher erotizada. De facto, salienta-se a


componente corporal da mulher e a sobrevalorização da sua beleza. Segundo os autores, a
mulher deve ser bonita, cuidada e feminina, para que consiga atrair e agradar o sexo
oposto. Isto só reforça a ideia de que a beleza é uma das formas de pensar a mulher, em
termos do que ela é e do que deve ser, inclusivamente em relação ao seu caráter, até porque
o belo é constantemente associado ao bom (Mota-Ribeiro, 2005). Outra das formas de
elaborar, pensar e refletir o feminino prende-se com a forma como a mulher é representada
como “traiçoeira”, pois nos textos em análise, a mulher pode ser adultera, matreira e
charlatã, até em relação a outras mulheres.

Em suma, estes textos literários, escritos na sua maioria por homens, protagonizam a
mulher, apresentando-a numa dicotomia do (in)desejável. Estes discursos aparecem assim
como mais um mecanismo de vigilância do ideal moralizante do feminino, ou seja, do que
implicava ser mulher, em Ílhavo, naquela época.

Em relação ao tema “religião”, este está presente na medida em que é reconhecido um


papel religioso à mulher ilhavense. A maior parte das referências prende-se com breves
notas de pedidos de “graças” ou agradecimentos que as mulheres fazem, ou seja,
solicitações de intervenção divina na resolução dos seus problemas. Estas notas proliferam
no jornal, particularmente nos anos de 1958 e 1959, chegando a duplicar o número de
ocorrências em comparação com os inícios e os meados da década. Vejam-se alguns
exemplos destas notas que, normalmente, eram publicados nas últimas páginas do jornal:

247 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Maria Rosa Praia Marnoto agradece uma graça recebida por intercessão de Santa
Filomena.
(O Ilhavense, 1 de janeiro de 1958, p.2)

Lídia São Marcos torna públicas, como prometeu, algumas graças alcançadas por
intercessão do bondoso padre Cruz.
(O Ilhavense, 1 de janeiro de 1958, p.5)

Maria Fernanda Neves de Oliveira torna pública uma graça recebida através do
Padre Cruz.
(O Ilhavense, 10 de janeiro de 1958, p.6)

Cabe aqui fazer uma pequena anotação em relação à referência ao “bondoso padre Cruz”.
De facto, muitos destes pedidos de graças e agradecimentos incluem o nome deste padre,
sobretudo no final da década, o que pode estar relacionado com a procura de aprovação
(comportamental, atitudinal e, em última instância, social), por parte destas mulheres,
através da religião.

Importa aqui perceber se é a religião uma forma de dar voz à mulher, ou apenas uma lente
que projeta o comportamento feminino, ao mesmo tempo que o disciplina. Se, por um lado,
não é através da religião que o feminino se expressa (como foi possível observar na análise
dos textos escritos por mulheres), por outro, é através dela que ele é expressado. Quer isto
dizer que o feminino é frequentemente encurralado no espaço religioso, sobretudo em
contextos que não exigem muito destaque social e em que a mulher possa surgir de forma
discreta. Falta ainda referir que a mulher é vista como um ser frágil, que está
constantemente dependente da intervenção divina ou masculina (aqui representada pelo
padre da paróquia), e, ao mesmo tempo que por ela é vigiada, também por ela é punida (se
assim se revelar necessário).

Esta posição traz à discussão a possibilidade da necessidade da mulher em ver o seu


comportamento “aprovado” pela autoridade assexuada do padre, representante interposto
de um poder masculinizado, numa época em que a presença masculina escasseava no
panorama social de Ílhavo. Trata-se aqui de identificar este poder masculino como algo
fortemente enraizado e hierarquizado, à luz do que Michel Foucault apelidou de máquina
organizada e em contínuo funcionamento, como se pode ver no parágrafo seguinte:

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Capítulo VI – Estudo Empírico 

O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma


coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina. E
se é verdade que a sua organização piramidal lhe dá um ‘chefe’, é o aparelho
inteiro que produz ‘poder’ e distribui os indivíduos nesse campo permanente e
contínuo (Foucault, 2010c:170).

Quer isto dizer que a mulher aplica aqui mecanismos de (auto)vigilância numa escala
comportamental, e que estes se materializam na sua ligação com o divino (o padre) e na
forma como ele lhes concede graças. Claramente se lida ainda aqui com normas que
vigiam e disciplinam (repressiva e produtivamente), e que estabelecem o “certo” e o
“errado”, pois segundo a tradição moralizante da Igreja Católica, só os bons são
recompensados. Por outras palavras, ao dar visibilidade a determinadas mulheres (visto
que os seus nomes são referidos), o jornal está a presenteá-las socialmente e a utilizá-las
como exemplo a seguir por outras mulheres. Estes breves anúncios têm, portanto, uma
dimensão prescritiva.

O ato discursivo destas mulheres apresenta-se aqui como um ato de confissão. Confissão
que se procura libertar através da linguagem e do corpo, na medida em que as palavras são
performativas ou ofertas corporais (Butler, 2004). Trata-se de uma espécie de “confissão
psicanalítica” pela qual, (in)voluntariamente, estas mulheres se expõem, verbalizando
aquilo que consideram verdadeiro. Contudo, importa ressalvar que a legitimação que estas
mulheres procuram foi identificada por Michel Foucault como “poder pastoral”, ou seja, o
poder do padre ou a voz da verdade. Pode-se olhar para esta confissão como uma
necessidade de legitimar a psique, procurando para isso a autoridade do Outro (masculino)
e moralizador (religião): “(…) o padre tem uma autoridade discursiva da verdade” (Butler,
2004:161).

Há ainda espaço para informações sobre batizados e outras comemorações religiosas,


particularmente notícias religiosas sobre mulheres que têm um papel de relevo na
organização de festas/quermesses para angariação de fundos. Nestas notícias existe uma
tendência para elogiar o caráter destas mulheres (e meninas) e agraciar a sua presença em
eventos tão valiosos para a sociedade ilhavense, como se pode observar nos exemplos que
se seguem:

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Capítulo VI – Estudo Empírico 

Às raparigas católicas de ílhavo, sempre dedicadas e generosas, uma palavra que


bem merecem. Foram sempre a legenda heroica de trabalho, sacrifício e
dedicação pela nossa Igreja.
(O Ilhavense, 1 de janeiro de 1955, p.1 e 2)

(…) [Terminaram] os trabalhos do festival que um grupo de senhoras da nossa


terra e gentis meninas, resolveu realizar, devendo, em breve, saber-se qual o seu
resultado.
(O Ilhavense, 20 abril de 1950, p.5)

Este tipo de notícias são uma forma ainda mais apurada de dar destaque às mulheres cujo
comportamento é socialmente conformado e “bem visto”. Mais do que “publicitar” o
comportamento expectável da mulher, estes textos vigiam-no e incentivam a sua
multiplicação. Isto vai ao encontro do regime do poder disciplinar teorizado por Michel
Foucault (2010c:170) que afirma que “a disciplina faz ‘funcionar’ um poder relacional que
se autossustenta pelos seus próprios mecanismos (…)”, afastando a arte de punir da
repressão e aproximando-a de um conjunto de atos, comportamentos e normas que
diferenciam por comparação e apresentam uma regra a seguir. No caso particular destes
textos, as mulheres são incluídas numa norma que as envolve num contexto
comportamental socialmente aceitável e expectável, automaticamente excluindo e
distinguindo as “outras” que não se incluem neste conjunto.

Há ainda no jornal algumas referências a mulheres que fazem donativos para a igreja de
Ílhavo. Muitas destas mulheres, emigrantes nos E.U.A e no Canadá, são brevemente
distinguidas no jornal como exemplos a seguir. Nestas notas é, normalmente, indicado o
nome da mulher que faz o donativo, o local onde se encontra radicada, o fim do donativo e
a quantia doada, como se pode observar nestes exemplos:

A sr.ª D. Joana Santos Fonseca, actualmente em Islenton (Califórnia) enviou,


com um importante donativo, (…) a quantia a 1.000$00 para as obras da nossa
Igreja.
(O Ilhavense, 20 de abril de 1950, p.5)

A comissão encarregada de adquirir uma nova imagem de S. Brás, recebeu da


sr.ª D. Maria Guerra Grilo, ausente na América, dois dólares que renderam
57$20, em moeda portuguesa. A Comissão agradece.
(O Ilhavense, 20 de abril de 1955, p.3)

250 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Estas notas são outras das formas que conotam a mulher com o “bem”, mas implicam
ainda uma outra complexa relação entre o feminino e a sociedade, pelo que importa
perguntar: Não estarão as mulheres a procurar visibilidade social através da sua capacidade
económica? Estarão elas a pagar, literalmente, o seu lugar de destaque na sociedade? Ou
será apenas a mulher emigrante a procurar manter viva a sua presença e o seu valor no
contexto social ilhavense?

De facto, ao fazerem estes donativos à Igreja Católica, não só as mulheres ganham


destaque no jornal e, consequentemente, no panorama social, como também o conseguem
fazer dentro da uma área que é socialmente conotada com o feminino. Assim, a mulher
luta, ironicamente, para ser “rainha dentro do seu (suposto) reino”, num jogo que se
alimenta da representação mediática.

Importa ainda fazer referência à organização das comissões de festas, visto que na época
eram formas de representação do estatuto social (e de género) das localidades. Na maioria
das vezes, os lugares de destaque destas comissões eram atribuídos aos homens. Contudo,
visto que Ílhavo carecia de elementos do género masculino (por longos períodos de
tempo), um dos aspetos que se esperava encontrar relativamente às mulheres no contexto
religioso em Ílhavo era o seu papel preponderante na constituição das comissões de festas,
assumindo aí lugares de destaque. Todavia, no jornal O Ilhavense não se encontrou essa
projeção social, podendo apenas dar-se como exemplo uma referência que corresponde à
comissão de organização da festa da Senhora da Saúde na Gafanha da Encarnação (mas
mesmo assim onde é o homem a dar o lugar à mulher, visto que quem nomeia as
organizadoras é o reverendo pároco):

Senhora da Saúde. Comissão das festas para 1956.


Pelo reverendo pároco da Gafanha da Encarnação foram nomeadas para fazer
parte da Comissão das Festas em honra da Senhora da Saúde, no ano de 1956, as
senhoras:
D. Palmira Bastos
D. Octávia Bastos
D. Maria Labrincha
(…)
e o sr. Carlos Júlio Almeida Paulo.
(O Ilhavense, 1 novembro de 1955, p.3)

251 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Um olhar atento identifica, neste ponto, uma rutura em relação ao que já foi referido sobre
o tema “religião”. Se, com os pedidos de graças, as notícias sobre comemorações religiosas
(e outras festas) e os donativos, as mulheres ganham alguma visibilidade social em Ílhavo,
no caso das comissões de festas essa visibilidade é drasticamente reduzida. Será esta uma
representação da falta de visibilidade da mulher nos lugares de destaque social? Pois, se, de
facto, são elas quem organiza as festas e quermesses, e interpelam pelas graças divinas,
porque não lhes atribuir lugares de destaque nas comissões, sobretudo num contexto em
que escasseiam os homens? Ou, colocando a questão de outra forma, se as mulheres
tinham lugar no contexto religioso do concelho, porque não eram produzidos conteúdos
discursivos sobre isso no jornal O Ilhavense?

De acordo com esta investigação, a resposta às questões anteriores está diretamente


relacionada com a dificuldade que uma sociedade estruturada num contexto patriarcal
sente em evidenciar o Outro não-masculino. A mulher é representada como elemento
fundamental na vida religiosa de Ílhavo, mas destaca-se a sua exclusão de papéis
socialmente atribuídos ao topo da pirâmide relacional e de atuação, compostos pelo
masculino. Trata-se, mais uma vez, de perceber como circulam as complexas relações de
poder entre o género e de como estas são vigiadas, mantidas e incentivadas, tanto por
homens como por mulheres.

No que diz respeito ao tema da “morte/luto”, trata-se sobretudo de notícias sobre a morte
de mulheres, nomeadamente as pertencentes a uma camada elevada da sociedade, as que
morrem fruto de acidentes ou outras causas chocantes, ou simplesmente as que, por serem
conhecidas dos ilhavenses ou a pedido da família, merecem destaque em notícia lutuosa.
Existem ainda variadíssimas notas de agradecimento dos familiares de mulheres falecidas,
à semelhança do que acontecia com os textos escritos por mulheres.

Um dos casos que mais se destaca, pela sua dimensão e atenção dispensada, é a notícia do
falecimento de D. Nair Figueira de Moura (uma não-ilhavense), informação de primeira
página, com exposição da fotografia da falecida a preto e branco:

(…) Faleceu na vila de Vagos, com 36 anos, a ex.ma sr.ª D. Nair Figueira de
Moura, esposa do ex.mo sr. dr. Frederico de Moura, sub-delegado de saúde e
médico muito distinto naquela vila.
(…)

252 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

A morte desta senhora deu motivo a uma grande manifestação de pesar, não só
pelas qualidades da ilustre extinta, mas também pela alta consideração em que é
tido em todos os meios sociais o sr. dr. Frederico de Moura.
Em Ílhavo era o pronto-socorro que conduzia a urna, aguardado à porta do
Hospital, pelas individualidades de maior representação nesta vila, alunos do
Externato, Bombeiros Voluntários, Guarda Republicana, direção do Hospital e
muitos amigos doridos.
(O Ilhavense, 20 fevereiro de 1951, p.1)

Na realidade, este tipo de modelo noticioso não é tão frequente quando se trata do
falecimento de uma mulher, ao contrário do que acontece quando se trata do falecimento
de um homem. Normalmente, as notícias de falecimento de mulheres são breves e
particularmente informativas, sem recurso a fotografia. Apenas quando se trata de esposas
ou filhas de alguém (masculino) com um estatuto social elevado é que lhes é dedicado
espaço e visibilidade no jornal, tal como se pode verificar com o caso acima exposto de D.
Nair Figueira de Moura, que até na morte é definida através do masculino (ex.: “esposa do
ex.mo sr. dr. Frederico de Moura”). Em outras notícias é ainda possível ter acesso à
descrição pormenorizada dos cortejos fúnebres e das pessoas presentes nos velórios,
embora respeitando as normas referidas em cima (em relação ao estatuto social). Quer isto
dizer que, quanto mais influente for a pessoa falecida, maior, mais descritiva e mais
ilustrada será a notícia, sendo colocada no topo da pirâmide a morte de homens influentes.

As temáticas “criação literária”, “religião” e “morte/luto” são então as que se destacam e


encaixam o feminino no tecido social e íntimo, pois cada uma é representativa das três
vertentes em que se reorganiza este estudo: “social”, “íntima” e “mista”. Todavia, o
aprimoramento dos níveis de categoria – que unifica as temáticas – contextualiza os textos
escritos sobre mulheres particularmente na categoria “intervenção pública”, com 40,9%
das ocorrências. Quer isto dizer que a produção do feminino se insere numa área social,
sobretudo graças ao número de ocorrências envolvidas com o tema “religião”. De facto,
como já se observou anteriormente, n’O Ilhavense as mulheres são incorporadas nos temas
religiosos, o que, associado a outras temáticas de intervenção pública (como
“estudos/educação” e “negócios/comércio”) dá alguma visibilidade ao feminino. Todavia,
estes números ainda se encontram muito distantes daqueles representativos da
sociabilidade masculina.

253 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

A área mista, que reagrupa temas ligados às artes e curiosidades, apresenta-se em segundo
lugar, muito por causa dos temas “criação literária” e “saúde/beleza”. Não muito afastado,
em termos percentuais (como se pode ver no quadro 15), encontra-se o conjunto de temas
correspondente à “área íntima”.

Importa referir, nesta fase, que as três áreas indicadas, apesar de apresentarem
percentagens diferentes (o que as separa hierarquicamente), não são muito díspares. Isto
acontece muito por força da distribuição dos níveis de categoria com mais ocorrência por
cada uma das áreas. Curioso é perceber que, apesar dos limites nas áreas e nas formas de
representação, é na produção sobre o feminino que as mulheres ganham alguma
intervenção social.

Quanto ao “tipo de texto”, a investigação releva a “nota breve” e a “notícia” como os mais
referenciados. Um cruzamento entre o “tipo de texto” e o “tipo de tema” revela ainda que
as “notas breves” são pequenas notas que discursam particularmente sobre a temática
“religião”, enquanto a maior parte das notícias são sobre “morte/luto”. Portanto, há aqui
uma ligação entre alguns dos temas e dos tipos de texto mais frequentes. Todavia, salienta-
se o facto de o “tipo de tema” mais referido ser também aquele que é exposto de forma
mais concisa (através de notas breves). Já o segundo tema – “morte/luto” – é o que merece
uma produção noticiosa um pouco mais cuidada e extensa, talvez fruto da natureza
descritiva que envolve o tema, como já foi referido.

Em termos de “tipo de discurso” é visível o tom neutro, passando-se o mesmo ao nível da


“hierarquia” que, de uma forma geral, não se revela (excetuando casos de morte/luto como
já foi referido, ou casos pontuais onde é também possível identificar hierarquia social em
eventos religiosos). Em relação ao “tipo de linguagem” utilizado, importa indicar que
flutua entre o conotativo e o denotativo. Finalmente, em relação ao grau de análise “mulher
de Ílhavo”, mais de metade dos textos são sobre mulheres ilhavenses, o que reforça a
legitimidade da análise que aqui é feita em relação às mulheres de Ílhavo.

6.2.2.2. O perfil da mulher através do olhar do Outro: “autoidentificação” e perfil


social “sem identificação”

Tal como foi possível identificar na análise dos textos escritos por mulheres, também aqui
é possível apontar perfis sociais da mulher ilhavense. Numa primeira etapa sobressaem

254 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

dois tipos de perfis: um de “autoidentificação” e um “sem identificação” (ou de “não-


individualização”).

No primeiro caso (“autoidentificação”), mas de forma distinta, podemos incluir os


discursos construídos no jornal que envolvem as temáticas “religião” e “morte/luto”. Em
primeiro lugar, importa compreender que é através da religião que o feminino é
expressado, na medida em que a mulher é apresentada como um ser delicado,
frequentemente dependente da intercessão divina ou masculina. Em suma, a mulher é
apresentada como ser moralizado, em contraste com o homem moralizante.

Moisés Martins (1990:86), na sua obra O olho de Deus no discurso salazarista, fala da
moral católica enquanto dispositivo tático, que funciona como “instância disciplinar
perfeita”. Ora, esta ideia de moralizar a mulher encaixa nesta súplica religiosa de caráter
normativo e controlador. Ainda segundo o mesmo autor, há nesta moral cristã uma vontade
de amestrar as mulheres, de reconhecer “(…) o sujeito obediente, o indivíduo submetido a
regras, a ordens e hábitos, o indivíduo submetido a uma autoridade (a autoridade da
Igreja), que em si deve funcionar automaticamente” (Martins, 1990:47). Logo, a religião
não só releva a capacidade de estruturar o feminino individualmente (e a sua relação com a
comunidade), como de organizar a vida coletiva das mulheres ilhavenses.

As relações de poder são tão complexas que, nestes discursos sobre o feminino, as
mulheres necessitam da religião para se normatizarem socialmente, pelo que fazem
donativos, organizam festas e encomendam rezas: ou porque procuram a aprovação do
pároco, ou porque procuram a aprovação da sociedade ilhavense. A forma como os
discursos são apresentados deixa transparecer um perfil social de (auto)identificação por
parte das mulheres em relação à sua condição de “mulher-moralizada”. O seu papel na
igreja católica parece satisfazê-las, respondendo às suas necessidades de reconhecimento
social.

No caso do tema da morte/luto, a mulher parece igualmente identificar-se com os discursos


apresentados. Neste contexto, onde as notícias do falecimento de mulheres são
normalmente breves e informativas (exceto no caso de se tratar de uma mulher influente ou
casada com um homem importante), existe um elevado grau de individualização, que
facilita a identificação do e no feminino.

255 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Relativamente à temática da criação literária, sobressai um perfil social feminino “sem


identificação”. Nos discursos que envolvem este tema, a mulher é usada, sobretudo, para
satisfazer o imaginário “poético” masculino do jornal, na medida em que é utilizada como
inspiração na produção textual masculina. Estes discursos possuem, particularmente, um
caráter moralizador, que distingue a “mulher boa” da “mulher má”, apresentando exemplos
de conduta socialmente aceitável ou reprovável, embora todos passem pela mensuração da
distância ao cânone fálico. Há neste textos, obviamente, um simbolismo ético, que
pretende normatizar o comportamento da mulher, apresentando-a, por um lado, como
mulher ideal (quando casada) e “bem comportada” e, por outro, como mulher traiçoeira e
bruxa (quando solteira), quando erotizada.

Tal como já foi referido, estes discursos sobre o feminino surgem como mecanismos de
vigilância do comportamento das mulheres ilhavenses, que não apresentam indícios de
identificação por parte das mesmas. Estes mecanismos são maioritariamente criados pelo
Outro masculino, e procuram encaixar a mulher em apenas dois blocos opostos – “mulher
boa” e “mulher má” – o que afasta a conceção da mulher como ser individualizado com
uma identidade própria, autónoma em relação ao cânone masculino, e, por sua vez, afasta a
identificação do feminino com este perfil social. Logo, isto implica que são produzidos
parâmetros de personalidade ou de identidade de acordo com normas abstratas,
estruturalmente fálicas, e que condicionam e “fazem” alguns tipos de mulher.

Importa ainda perceber que, apesar da mulher não se identificar com este perfil social não-
individualizado, não surgem, no jornal, indícios de reação feminina. Ou seja, a mulher
ilhavense pode não se identificar com este perfil, mas parece interiorizá-lo, não mostrando
resistência à sua proliferação, pelo menos no jornal analisado. Isto vai ao encontro do
modelo hegemónico masculino, que se impõe no meio social ilhavense, e que prolifera nas
redes relacionais, tanto masculinas como femininas.

Mais do que simples palavras articuladas, estes discursos são formas de pensar e viver
socialmente a feminilidade, tanto pelos homens como pelas próprias mulheres. Os
discursos textuais (e iconográficos), que proliferam neste jornal, têm consequências para as
mulheres ilhavenses, que os interiorizam (quer se comportem ou não de acordo com eles),
solidificando representações e perfis identitários sedimentados por estruturas hegemónicas
masculinas, que, em nenhum momento – e respondendo à questão de investigação proposta

256 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

– deixam adivinhar a possibilidade da representação (e até da existência) de uma sociedade


matriarcal.

6.2.3. Discussão comparativa dos dados: produção no feminino versus produção do


feminino

Mais do que fazer uma discussão sobre os dados relativos aos textos escritos sobre
mulheres, importa compará-los com os dados referentes aos textos escritos por mulheres,
de forma a encontrar elementos comunicantes ou eventualmente díspares, ou seja,
procurando outras formas de ver/expressar o feminino no jornal O Ilhavense.

A primeira nota vai para a contabilização efetiva do número de textos.  Nos textos escritos
por mulheres, num universo de 10104 peças, 182 foram escritas por mulheres, o que
corresponde apenas a 1,8% do total (ver quadro 5). Tal como já foi referido anteriormente,
este número é irrisório comparado com a produção textual atribuída ao homem, o que
afasta o feminino da realização discursiva da época. No caso dos textos escritos sobre
mulheres a percentagem sobe um pouco, pois, num universo de 10104 peças, existem 716
escritas sobre mulheres (equivalentes a 7,1% do total, como se pode observar no quadro
13). Apesar de o número de textos escritos sobre mulheres ser superior ao de textos
escritos por mulheres, continua-se a lidar com números baixíssimos, o que é representativo
da condição feminina da época: as mulheres não produziam textos, nem eram matéria
textual no jornal O Ilhavense, o que, mais uma vez, se afasta da premissa da sociedade
ilhavense ser representada dentro de um contexto matriarcal, na década de 1950. Neste
sentido, O Ilhavense é a voz de uma cultura, de um olhar e de um nome masculinos.

Apesar de a presença feminina, em termos numéricos, ser reduzida, é um facto que ela
existe, embora relacionada com temáticas específicas. Nos textos escritos por mulheres
sobressaem os temas “criação literária” (39%) e “morte/luto” (19%), por serem os que têm
mais referências, e nos textos escritos sobre mulheres os tipos de tema que se destacam,
são “criação literária” (20,5%), “religião” (18%), e ainda “morte/luto” (13,6%) – ver
quadro 6 e quadro 14, respetivamente. Estes dados representam as temáticas que mais
rodeavam o universo feminino, e um enfoque apenas nestes temas reforça – à semelhança
do que vai acontecer com a análise das imagens de mulheres – o caráter apolítico do
feminino. As mulheres estão sub-representadas no jornal O Ilhavense, e continuam a ser

257 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

infantilizadas, diminuídas e vigiadas através de um pulso moralizante masculino, que deixa


bem clara a sua marca na forma como “educa” comportamentos, atitudes e papéis sociais
femininos, ao mesmo tempo que reafirma os masculinos – robustecendo a organização
estrutural masculina dominante que Bourdieu (1999) reclama e que neste estudo se
identifica.

Como se pode verificar, nos textos escritos por mulheres e nos escritos sobre mulheres não
são detetadas grandes diferenças ao nível das temáticas. Existem contudo alguns tipos de
temas encontrados nos textos no feminino que não foram encontrados na produção sobre o
feminino, embora não sejam relevantes em termos numéricos. Por exemplo, nos textos
escritos sobre mulheres os temas “sexualidade” e “aniversários/acontecimentos de relevo”
(ver quadro 14) são referidos, não existindo nos textos escritos por mulheres. No sentido
contrário, os temas “vida doméstica”, “terceira idade” e “mar/vida marítima” (ver quadro
6), que surgem nos textos escritos por mulheres, são omissos na produção discursiva sobre
o feminino, o que significa que não se encontra no imaginário da produção masculina
aquilo que é considerado pelo imaginário próprio do feminino. Como é natural, o
imaginário sobre a mulher é mais estereotipado (embora seja o mais prevalecente em
termos percentuais) do que o da própria, que é autêntico. Logo, também isto contribui para
a construção de um olhar estereotipado da mulher que reforça o lugar hegemónico da
produção de sentido do homem.

Tal como já foi referido anteriormente, é possível um reagrupamento dos tipos de tema que
permite organizar os dados em diferentes áreas, de forma a facilitar a sua interpretação. No
caso dos textos escritos por mulheres, em primeiro lugar, encontra-se a área íntima
(família) e, em último lugar, a área social (intervenção pública), como se pode verificar no
quadro 7. Quer isto dizer que as mulheres não se projetavam a si próprias socialmente em
áreas relacionadas com o trabalho, os estudos, a religião, a política ou os negócios, mas
sim contemplando sobretudo o lugar do feminino dentro da esfera privada e íntima da
família. Todavia, no caso dos textos escritos sobre mulheres esta questão inverte-se,
ficando a área social com 40,9% das ocorrências (como se pode observar no quadro 15).

O espaço feminino é agora projetado socialmente com produção textual que se insere
nomeadamente nas áreas da religião (festas religiosas), da finalização dos estudos e dos
negócios. Contudo, apesar do feminino ter ganho espaço social nos textos escritos sobre

258 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

mulheres, isso não implica que esses lugares sejam de destaque. No primeiro caso, já foi
discutido que apesar de as mulheres serem chamadas para o panorama social religioso, as
suas atividades são de “bastidores”, não assumindo estas qualquer liderança ou tomada de
decisão no caso das festas ou quermesses. O seu papel é meramente prestável e de
execução. No caso dos estudos, são de facto visíveis as referências ao número de mulheres
que terminam os seus estudos, embora não seja claro qual o seu papel na vida profissional
depois dos estudos terminados (tudo apontando para mulheres formadas que esperam um
“bom” casamento). Relativamente ao campo dos negócios, existem algumas ocorrências,
embora a maioria seja referente à mesma mulher que possui um estabelecimento em
Ílhavo. Ou seja, o número de ocorrências é significativo, mas não a sua diversidade.

No caso do “tipo de texto”, tanto nos textos escritos por mulheres como nos escritos sobre
mulheres, os tipos de tema e os tipos de texto com mais ocorrências entrecruzam-se. Por
exemplo: na produção no feminino analisa-se a “nota breve”, o “poema” e o
“agradecimento”, que acabam por estar relacionados com os tipos de tema “criação
literária” e “morte/luto” (ver quadros 6 e 8); na produção do feminino sobressaem a “nota
breve” relacionada com a temática “religião” e a “notícia” relacionada com a temática
“morte/luto” (ver quadros 14 e 16).

Quanto ao tipo de discurso e de hierarquia, em ambas as produções discursivas se destaca a


neutralidade. No tipo de discurso, nos dois casos, deteta-se uma intensão maioritariamente
informativa, sem grandes juízos de valor. Contudo, é de diferenciar que, quando existem
esses juízos de valor, no caso dos textos escritos por mulheres a tendência é para um
discurso crítico, enquanto no caso dos textos escritos sobre mulheres a tendência é para um
discurso laudatório. Já em relação à hierarquia, nos poucos casos em que se regista nos
textos escritos por mulheres ela é sobre género, particularmente ocorrência de hierarquia
masculina, enquanto nos textos escritos sobre mulheres a hierarquia é do foro social.

Em relação ao tipo de linguagem, tanto nos textos escritos por mulheres como nos escritos
sobre mulheres este é maioritariamente conotativo, embora no segundo caso a diferença
para o denotativo seja residual, como se pode ver no quadro 18. Resta referir que em
ambas as situações é a mulher de Ílhavo a que se encontra em maior destaque.

259 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

De uma forma geral, os textos escritos por mulheres e os textos escritos sobre mulheres
parecem estruturalmente idênticos, embora a ordem de importância temática esteja
invertida. Curioso é o modo como estes dados se encontram relacionados com a forma
como a mulher se vê a si própria e como é vista pelo Outro, ou seja, pelo homem.
Aparentemente, quando se fala em “textos escritos por mulheres” isto implica que a análise
seja entendida a partir do olhar da mulher sobre si própria, como esta se identifica com o
que escreve, como se autorrepresenta e qual o lugar a que entende pertencer na sociedade
ilhavense. Na mesma linha de pensamento, quando se fala em “textos escritos sobre
mulheres” isto implica que a análise seja entendida através do olhar exterior, do Outro
masculino que pensa, avalia e representa a mulher. Nestes textos, a mulher parece ser
tendencialmente apresentada a partir de um ponto de vista social (de visibilidade exterior),
o que é coerente com a quase certa autoria masculina destes textos.

Todavia, há uma relação de interdependência entre a forma como a mulher se vê a si


própria e a forma como é vista pelo homem, na medida em que o olhar do Outro
(masculino) sobre a mulher está devidamente interiorizado por ela. Esta interiorização é
feita através da política discursiva dos textos e das imagens presentes n’O Ilhavense que,
de forma subtil nuns casos e quase abruta noutros, apresenta um caráter disciplinador, de
(auto)controlo comportamental, atitudinal e até corporal, uma espécie de “polícia do
politizado”. Quer isto dizer que não só esta construção do feminino é feita sobre o olhar
atento do homem, como também é mantida pelo olhar interno, vigilante e autopoliciado da
mulher.

Este estudo deixa adivinhar um pensamento hegemónico que envolve as relações entre
homens e mulheres, neste contexto específico. As identidades de género não parecem ter
aqui um problema de definição ou afirmação, nem há lugar para colocar a questão da
resistência feminina. De facto, dá-se a imposição de um modelo masculino, que organiza e
define o feminino, e que aparentemente não encontra resistência. Um olhar atento dos
perfis identificados demonstra exatamente isso.

Apesar de se identificar, nos textos escritos por mulheres, uma mulher que não revela o
perfil esperado de mãe, esposa ou educadora, e de se reconhecer uma “mulher-prática” que
deixa transparecer algumas mudanças na sociabilização de género em Ílhavo, certo é que
os restantes perfis encontrados (tantos nos textos escritos no feminino como nos escritos

260 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

sobre o feminino) acentuam as afirmações supracitadas: mulheres emotivas, moralizadas,


disciplinadas e policiadas que, se, por um lado, não se identificam totalmente com as
imagens criadas sobre si, por outro, interiorizam as suas dimensões e não resistem ao facto
de elas existirem e proliferarem.

Tudo isto implica que a sociedade ilhavense desta época, apesar das particularidades
sociais que apresenta, está de acordo em relação às questões de género e à respetiva
distribuição de papéis vigentes na época e de tão difícil libertação: o feminino definido por
um imaginário estereotipado pelo sistema organizacional e estrutural masculino, e vigiado
e mantido por uma política interna de autodisciplina.

6.3. Estudo das imagens, n’O Ilhavense, na década de 1950

6.3.1. Apresentação e análise das imagens

Apesar de os jornais, correspondentes aos anos selecionados da década de 1950, possuírem


uma composição maioritariamente textual, eles são igualmente compostos por imagens. No
que diz respeito à análise icónica64, destaca-se o facto de, num total de 210 jornais
analisados (em que a maioria possui quatro páginas por jornal), serem contabilizadas
10104 peças escritas e apenas 712 imagens (ver quadro 21).

Quadro 21 | Número de peças escritas e de imagens na década de 1950

Nº de peças Nº de Estimativa de espaço


Ano
escritas imagens ocupado pelas imagens (%)
1950 (ano 39) 1491 123 8,2%
1951 (ano 40) 1511 75 5%
1954 (ano 43) 1892 147 7,8%
1955 (ano 44) 1711 162 9,5%
1958 (ano 48) 1699 113 6,7%
1959 (ano 49) 1800 92 5,1%
Total 10104 712 7%

                                                            
64
Realizada sem recurso a programas informáticos de análise de dados.

261 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Estas imagens, entre desenhos e fotografias (a preto e branco) ocupam sensivelmente cerca
de 7% do espaço de exposição destes jornais (ver quadro 21)65. Uma análise geral dos
dados permite concluir que, das 712 imagens que se encontram nestes jornais, 22,5%
incluem mulheres (160 imagens)66, como se pode observar no quadro 22.

Quadro 22 | Imagens que incluem mulheres e imagens que incluem homens, na década de
1950

Nº de imagens % de imagens Nº de imagens % de imagens


Nº de
Ano que incluem que incluem que incluem que incluem
imagens
mulheres mulheres homens homens
1950 123 26 21,1% 19 15,4%
1951 75 7 9,3% 12 16%
1954 147 8 5,4% 31 21,1%
1955 162 38 23,5% 34 21%
1958 111 52 46,8% 25 22,5%
1959 92 29 31,5% 18 19,6%
Total 712 160 22,5% 139 19,5%

Dos anos analisados destaca-se o de 1958 por possuir um número mais elevado de imagens
que incluem mulheres (52 imagens, que correspondem a 46,8% do total de imagens
publicadas nesse ano), enquanto o ano de 1954 é o que revela uma percentagem mais
reduzida de imagens que apresentam mulheres (5,4% do total de imagens publicadas nesse
ano), como se pode verificar no quadro 22.

Em relação ao ano de 1954, destaca-se o facto de este ser uns dos que possui mais
imagens, o que não corresponde proporcionalmente ao número de imagens que incluem
mulheres. Em relação ao ano de 1958 destaca-se o facto de não se tratar de um dos anos
com maior número de exemplares, nem de imagens, embora sejam abundantes os ícones
com a presença feminina.

Quando se analisam as ocorrências icónicas relativas ao sexo masculino, uma análise geral
dos dados permite concluir que, das 712 imagens, apenas 19,5% incluem homens (139

                                                            
65
Tendo em consideração a dimensão de cada página de jornal, o número de peças escritas e o número de
imagens, é possível calcular uma estimativa do espaço ocupado pelas imagens, apesentado em percentagem
(%).
66
Nas imagens que incluem mulheres, são contabilizadas as imagens onde aparecem só mulheres e as
imagens onde aparecem mulheres e homens.

262 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

imagens)67, como se pode verificar no quadro 22. De todos os anos analisados destaca-se o
de 1958 por possuir a percentagem mais elevada de imagens que incluem homens (22,5%
do total de imagens publicadas nesse ano), enquanto o ano de 1950 é o que revela a
percentagem mais reduzida de imagens que incluem homens (15,4% do total de imagens
publicadas nesse ano), como se pode observar no quadro 22. A presença icónica dos
homens segue uma espiral ascendente entre 1951 e 1955, decaindo nos anos de 1958 e
1959.

O ano de 1950, apesar de possuir um número relativamente elevado de imagens, acaba por
limitar numericamente as imagens que incluem homens. Já o ano de 1958, que não é um
dos anos com maior número de imagens, destaca-se por ser o ano com maior número de
imagens onde figuram homens.

Note-se também que a soma das imagens que incluem mulheres (160 imagens) e das
imagens que incluem homens (139 imagens) perfaz um total de 299 imagens (que
correspondem a 42% do total das imagens publicadas, como se poder observar no quadro
22). Este número corresponde a menos de metade das imagens publicadas (712 imagens),
pelo que importa indicar que as restantes imagens se inserem na categoria “outras”, que
correspondem a imagens que não incluem homens nem mulheres.

A análise das imagens foca-se, sobretudo, no número de ocorrências temáticas e na


discussão desse conteúdo. Assim sendo, começa-se por apresentar os níveis de categoria
correspondentes ao “tipo de tema”, à semelhança do que foi feito com a análise de texto. A
análise da categoria “tipo de tema” revelou que as imagens do jornal O Ilhavense, que
incluem mulheres, podem ser distribuídas por doze níveis diferentes, como se pode
verificar através do quadro 23, dos quais se destacam: “saúde/beleza” (54 ocorrências ou
33,8% do total), “negócios/comércio” (31 ocorrências ou 19,4% do total), “criação
literária” (26 ocorrências ou 16,3% do total) e “assistência aos outros” (18 ocorrências ou
11,3% do total).

                                                            
67
Nas imagens que incluem homens, são contabilizadas as imagens onde aparecem só homens e as imagens
onde aparecem mulheres e homens.

263 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Quadro 23 | Ocorrências do “tipo de tema” das imagens que incluem mulheres, na década
de 1950

Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Saúde/ beleza 0 0 0 3 27 24 54 33,8%
Negócios/
18 0 5 7 1 0 31 19,4%
comércio68
Criação
0 0 0 24 1 1 26 16,3%
literária69
Assistência
4 0 0 0 14 0 18 11,3%
aos outros
Morte/ luto 2 2 2 1 0 0 7 4,4%
Religião 0 5 0 1 0 0 6 3,8%
Artes e
Tipo de 0 0 1 0 2 2 5 3,1%
espetáculos
tema Estudos/
0 0 0 0 4 1 5 3,1%
educação
Lazer/
2 0 0 0 1 0 3 1,9%
tempos livres
Casamento/
0 0 0 0 1 1 2 1,3%
família
Aniversários/
aconteciment 0 0 0 1 1 0 2 1,3%
os de relevo
Política/
0 0 0 1 0 0 1 0,6%
economia
Total 26 7 8 38 52 29 160 100%

O tema “saúde/beleza” é frequentemente utilizado em anúncios relacionados com salões de


cabeleireiro (ver exemplo da figura 2) e com produtos para a pele (ver exemplo da figura
3), enquanto o tema “negócios/comércio” foca-se sobretudo em quatro tipos de anúncio
que utilizam a imagem/corpo da mulher: anúncio de uma casa de fotografia com a
utilização da imagem de duas mulheres sentadas num sofá (ver exemplo da figura 4);
anúncio de uma empresa de seguros com utilização da imagem de duas crianças vestidas
com roupas femininas (ver exemplo da figura 5); anúncio de um estabelecimento de
comércio de roupa com utilização da imagem de uma tricana vestida a rigor (ver exemplo
                                                            
68
O nível de categoria “negócios/comércio”, transversal às restantes análises, deve ser entendido no âmbito
da publicidade, na medida em que as imagens representam anúncios a determinados produtos e a
estabelecimentos comerciais.
69
Associado ao nível de categoria “criação literária” estão imagens que ilustram os poemas e contos
literários.

264 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

da figura 6); e anúncio da venda de uma marca de motociclos com utilização da imagem de
uma mota conduzida por uma mulher (ver exemplo da figura 7).

Figura 2 | Anúncio de um salão de cabeleireiro. O Figura 3 | Anúncio de uma pomada. O


Ilhavense, 10 de agosto de 1958, p.3 Ilhavense, 20 de janeiro de 1955, p.3

Figura 4 | Anúncio de uma casa de Figura 5 | Anúncio de uma empresa de


fotografia. O Ilhavense, 1 de janeiro de seguros. O Ilhavense, 1 de novembro de
1950, p.4 1954, p.6

265 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Figura 6 | Anúncio de estabelecimento de Figura 7 | Anúncio da venda de uma marca


comércio de roupa. O Ilhavense, 10 de de motociclos. O Ilhavense, 20 de setembro
julho de 1950, p.3 de 1955, p.4

Em relação às imagens de mulheres em torno do tema “criação literária”, destacam-se as


ilustrações de contos (ver exemplo da figura 8). Já no que diz respeito às imagens sob a
temática “assistência aos outros”, destacam-se eventos de ajuda à misericórdia e ao
hospital de Ílhavo, nomeadamente fotografias de eventos específicos de angariação de
fundos (ver exemplo da figura 9).

Figura 8 | Ilustração de um conto. O Ilhavense, 10 de Figura 9 | Mulheres em cortejo de angariação


janeiro de 1955, p.4 de fundos para a misericórdia e o hospital de
Ílhavo. O Ilhavense, 1 de janeiro de 1958,
p.1

266 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Tal como acontece com o tratamento dos dados no assunto “textos escritos por mulheres”,
onde os níveis de categoria do “tipo de tema” foram reagrupados em novas categorias,
também na leitura de imagens que incluem mulheres foi possível realizar o mesmo
processo (tal como se pode verificar com o quadro 24).

Quadro 24 | O corpo no regime das imagens que incluem mulheres (jornal O Ilhavense, na
década de 1950)

Modos de figuração Categorias Total Total %


imagética
Saúde/beleza 54
Negócios/comércio 31
Criação literária 26
Estética/Beleza 74,4%
Artes e espetáculos 5
Lazer/tempos livres 3
Total 119
Assistência aos outros 18
Morte/luto 7
Assexualidade Casamento/família 2 18,1%
Aniversários/acontecimentos de relevo 2
Total 29
Religião 6
Autoridade Estudos/educação 5
7,5%
Política/economia 1
Total 12
Total 160 100%

No quadro 24 foi possível reunir os níveis de categoria em três novas categorias mais latas
no que respeita à compreensão de utilização da imagem de mulher, e que se centram no
regime corporal das imagens: “estética/beleza”, “assexualidade” e “autoridade”. Estas
novas categorias ou modos de figuração imagética procuram colocar em destaque as mais
importantes dimensões da imagem corporal feminina que a sua representação suscita no
material estudado.

No caso da análise de imagens que incluem mulheres, o primeiro modo de figuração


imagética que emerge é “estética/beleza”, que resulta da junção de cinco níveis de
categoria: “saúde/beleza” (trata-se sobretudo de indicações de cortes de cabelo e de
cuidados com a pele), “negócios/comércio”, “criação literária”, “artes e espetáculos” e
“lazer/tempos livres”. Estes níveis representam mais de metade das imagens publicadas

267 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

(119 ocorrências, que correspondem a 74,4% do total). Quer isto dizer que, nestas imagens,
a mulher é tendencialmente representada como “bela” e cuidadora da sua aparência.

De seguida, surge o modo de figuração imagética “assexualidade” (que corresponde a


18,1% do total com um total de 29 ocorrências) que reúne os níveis de categoria
“assistência aos outros”, “morte/luto”, “casamento/família” e “aniversários/acontecimentos
de relevo”. Finalmente, emerge o modo de figuração imagética “autoridade”, com uma
representação de apenas 7,5% (12 ocorrências). Nesta categoria encontram-se agrupados os
níveis “religião”, “estudos/educação” e “política/economia”. Isto implica que a imagem da
mulher é exposta para ser olhada pelo Outro (masculino ou feminino), de uma forma
despolitizada, sendo-lhe retirada uma consciência social, em virtude de uma consciência
individualizada, centrada em si, no seu corpo e na sua aparência.

Passando agora para a análise das imagens masculinas, a categoria “tipo de tema” (ver
quadro 25) revelou que as imagens do jornal O Ilhavense, que incluem homens, podem ser
distribuídas por dezasseis níveis diferentes, dos quais se destacam: “negócios/comércio”
(35 ocorrências ou 25,2% do total), “religião” (20 ocorrências ou 14,4% do total),
“assistência aos outros” (15 ocorrências ou 10,8% do total) e “morte/luto” (15 ocorrências
ou 10,8% do total).

268 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Quadro 25 | Ocorrências do “tipo de tema” das imagens que incluem homens, na década de
1950

Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Negócios/
0 0 19 16 0 0 35 25,2%
comércio70
Religião 2 7 3 4 1 3 20 14,4%
Assistência
4 0 0 0 10 1 15 10,8%
aos outros
Morte/ luto 2 1 2 2 4 4 15 10,8%
Política/
2 3 1 2 1 3 12 8,6%
economia
Estudos/
1 1 0 3 2 0 7 5%
educação
Aniversários/
aconteciment 4 0 0 0 1 1 6 4,3%
os de relevo
Tipo de
Artes e
tema 0 0 4 0 0 1 5 3,6%
espetáculos
Desporto 0 0 0 2 3 0 5 3,6%
Mar/ vida
1 0 0 1 0 2 4 2,9%
marítima
Trabalho/
1 0 0 1 0 2 4 2,9%
profissional
Criação
0 0 1 2 1 0 4 2,9%
literária71
Lazer/
2 0 0 0 1 0 3 2,2%
tempos livres
Casamento/
0 0 0 0 1 1 2 1,4%
família
Animação 0 0 0 1 0 0 1 0,7%
Vida militar 0 0 1 0 0 0 1 0,7%
Total 19 12 31 34 25 18 139 100%

As imagens de homens, quando associadas ao tema “religião” são, sobretudo, retratos de


padres ou bispos ilhavenses ou que passaram por Ílhavo em visita (ver exemplo da figura
10). Existem ainda algumas fotografias de procissões onde se destaca a figura masculina
(ver exemplo da figura 11). Em relação à temática “negócios/comércio”, a imagem
                                                            
70
O nível de categoria “negócios/comércio”, transversal às restantes análises, deve ser entendido no âmbito
da publicidade, na medida em que as imagens representam anúncios a determinados produtos e a
estabelecimentos comerciais.
71
Associado ao nível de categoria “criação literária” estão imagens que ilustram os poemas e contos
literários.

269 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

masculina é particularmente difundida para publicidade a bicicletas ou a motas (ver


exemplo da figura 12).

Figura 10 | Retrato de um padre. Figura 11 | Procissão religiosa. O


O Ilhavense, 10 de março de Ilhavense, 20 de outubro de 1950,
1951, p.1 p.1

Figura 12 | Anúncio de uma


bicicleta. O Ilhavense, 1 de fevereiro
de 1954, p.4

270 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

As imagens sob a temática “assistência aos outros” vão ao encontro do que foi referido no
ponto reservado à análise das imagens que incluem mulheres. Trata-se de eventos de ajuda
à misericórdia e ao hospital de Ílhavo, nomeadamente fotografias de eventos específicos de
angariação de fundos (ver exemplo da figura 13).

Já em relação à temática “morte/luto”, salienta-se o facto de n’O Ilhavense ser usual dar-se
destaque ao falecimento de figuras importantes, quer ao nível local, quer ao nível nacional,
sendo estas informações lutosas frequentemente acompanhadas de fotografia a preto e
branco (ver exemplo da figura 14). Este tipo de peças é, normalmente, sobre homens,
embora também se registe a mesma prática quando se trata de mulheres socialmente bem
posicionadas, mas em menor quantidade72.

Figura 13 | Homens em cortejo de angariação de fundos Figura 14 | Fotografia do falecido


para a misericórdia e o hospital de Ílhavo. O Ilhavense, 1 de Dr.º José Santos. O Ilhavense, 10
janeiro de 1958, p.3 de fevereiro de 1959, p.1

Na leitura de imagens que incluem homens, foi ainda possível realizar o mesmo processo
de reestruturação de categorias (tal como se pode verificar no quadro 26), à semelhança do
que foi feito com a leitura das imagens que incluem mulheres. No caso das imagens
masculinas, o modo de figuração imagética que se destaca é a “autoridade”, que incorpora
os níveis “negócios/comércio”, “religião”, “política/economia”, “estudos/educação”,

                                                            
72
Note-se que, como se pode observar comparando os quadros 23 e 25, as fotografias lutuosas de mulheres
são menos de metade das fotografias lutuosas de homens.

271 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

“desporto”, “trabalho/profissional” e “vida militar”. Este aglomerado corresponde a 60,4%


do total, com 84 ocorrências.

Quadro 26 | O corpo no regime das imagens que incluem homens (jornal O Ilhavense, na
década de 1950)

Modos de figuração Categorias Total Total %


imagética
Negócios/comércio 35
Religião 20
Política/economia 12
Estudos/educação 7
Autoridade 60,4%
Desporto 5
Trabalho/profissional 4
Vida militar 1
Total 84
Assistência aos outros 15
Morte/luto 15
Aniversários/acontecimentos de relevo 6
Assexualidade 30,2%
Mar/vida marítima 4
Casamento/família 2
Total 42
Artes e espetáculos 5
Criação literária 4
Estética/Beleza Lazer/tempos livres 3 9,4%
Animação 1
Total 13
Total 139 100%

O modo de figuração imagética “assexualidade” surge com 42 ocorrências, o que


corresponde a 30,2% do total. Aqui estão agrupados os níveis: “assistência aos outros”,
“morte/luto”, “aniversários/acontecimentos de relevo”, “mar/vida marítima” e
“casamento/família”. Em terceiro lugar emerge o modo de figuração imagética
“estética/beleza”, que reúne quatro níveis de categoria que possuem um caráter artístico:
“artes e espetáculos”, “criação literária”, “lazer/tempos livres” e “animação”. Esta
categoria corresponde apenas a 9,4% do total (13 ocorrências).

O reagrupamento dos níveis de categoria em novos modos de figuração imagética –


“estética/beleza”, “autoridade” e “assexualidade” –, tanto nas imagens que contêm
mulheres, como nas que contêm homens, permite um novo olhar sobre os dados,

272 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

organizados agora no quadro 27. Neste quadro repensam-se as categorias através de um


regime político das imagens, que compara imagens que retratam mulheres e imagens que
retratam homens. De facto, um olhar atendo dos dados permitiu depreender a necessidade
de análise sob uma perspetiva política (ou aquilo que Foucault apelidou de “política do
corpo”) e a forma como homens e mulheres, através das imagens, ocupam os seus lugares
na sociedade e se relacionam como se se tratasse de um assunto de política convencional,
suscetível à normatização.

Quadro 27 | Regime político das imagens (jornal O Ilhavense, na década de 1950)

Sexo
Mulher Homem
Regime político das imagens
Política do corpo Corpo que se trata

(estética/beleza) Corpo que vende
Mãe de família, esposa e
Política da intimidade (imagem crente
Cuidador da família
assexuada) Cidadã empenhada em
causas sociais
Autoridade social
monitorizada pela
Política de visibilidade social
– religião
(autoridade)
Cidadão empenhado em
causas sociais
Uso erótico das imagens
Uso da imagem corporal
Política económica do corpo de forma
masculina em contexto
descontextualizada

Em primeiro lugar, destaca-se o uso icónico que é dado ao corpo no feminino. A imagem
do corpo da mulher tem uma presença forte nas páginas do jornal O Ilhavense, sobretudo
como corpo que pode/deve ser tratado, conservado e embelezado, e ainda como corpo que
vende. Exemplo disto é o excesso de imagens corporais de mulheres associadas à venda de
produtos masculinos. Com efeito, a análise efetuada indica este jornal como reprodutor de
imagens que vendem o corpo feminino como belo, atribuindo-lhe um uso erótico de forma
descontextualizada (venda de produtos para o público masculino).

O corpo masculino é também usado, mas fora de uma política da beleza ou do erótico. A
imagem masculina está centrada numa política económica, na medida em que é usada para
estabelecer a ligação entre produtos masculinos e público masculino. Aqui pretende-se

273 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

explorar uma vertente económica do uso do corpo masculino, perfeitamente


contextualizada, ao contrário do que acontece com o uso da imagem do corpo feminino.

A análise das imagens permite entender ainda o uso da imagem do corpo mediante uma
política de intimidade. No que diz respeito ao uso da imagem feminina, percebe-se que esta
pode ser diversas vezes conotada com o perfil de mãe de família, esposa e crente.
Reproduz-se a imagem de uma mulher preocupada com a sua família, e protetora do seu
lar, que possui uma posição de subserviência em relação à religião (mulher que reza e pede
graças, mas a quem não é dado espaço de atuação). Esta mulher é apresentada ainda como
cidadã empenhada em causas sociais, embora sem lhe ser dado qualquer destaque de
autoridade ou liderança nos movimentos sociais, ao contrário do homem. O homem é, num
regime das imagens que apontam para a dimensão de intimidade, aquele que cuida da
família (“homem de família”).

Onde a mulher parece não se destacar é na dimensão social. Os lugares de liderança são
concedidos ao homem e isso está representado no que designamos por política de
visibilidade social das imagens praticada n’O Ilhavense. O homem é representado como
cidadão empenhado em causas sociais (surgindo nos lugares de comando) e como
autoridade social, que monitoriza sobretudo usando a religião.

6.3.2. Política do corpo e semiótica das imagens

“A imagem é penetrada por completo pelo sistema de sentido, exatamente da mesma


maneira que um homem é articulado nas profundezas do seu ser em línguas distintas.”

Roland Barthes (1964:48)

6.3.2.1. O regime das imagens d’O Ilhavense na década de 1950

Neste estudo, onde se revela fulcral identificar e interpretar as significações dos discursos
textuais, revela-se igualmente importante analisar as imagens, pois, como afirma Christian
Metz:

As imagens – como as palavras, como todo o resto – não poderiam deixar de ser
‘consideradas’ nos jogos do sentido, nos mil movimentos que vêm regular a
significação no seio das sociedades. A partir do momento em que a cultura se
apodera do texto icónico – e a cultura já está presente no espírito do criador de

274 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

imagens –, ele, como todos os outros textos, é oferecido à impressão da figura e


do discurso (Metz, 1974:10).

Esta visão demonstra a autonomia do estudo das imagens, que pode ou não estar anexado
ao estudo da mensagem textual (ou linguística), na senda do que Roland Barthes (1982:21)
apelidou de uma “inversão histórica importante”. Para este autor, a imagem ganhou um
papel que em muitos casos superioriza o da palavra, o que o leva a afirmar convictamente
que a palavra se tornou “parasita” da imagem, na medida em que esta deixou de ilustrar a
palavra:

(…) Antigamente, a imagem ilustrava o texto (tornava-o mais claro); hoje, o


texto subcarrega a imagem, confere-lhe uma cultura, uma moral, uma
imaginação; antigamente, havia a redução do texto à imagem, hoje há
amplificação da imagem ao texto (Barthes, 1982:21).

Já Martine Joly, que revaloriza a importância semiótica da imagem, elogia a relação


palavra-imagem, afirmando que:

Queiramo-lo ou não, as palavras e as imagens estão ligadas, interagem,


complementam-se, iluminam-se com uma energia vivificante. Longe de se
excluírem, as palavras e as imagens alimentam-se e exaltam-se mutuamente.
Correndo o risco de parecer paradoxal, poderíamos dizer que quanto mais
trabalhamos sobre as imagens mais amamos as palavras (Joly, 2012:154).

As perspetivas apresentadas por estes autores enriquecem o estudo da imprensa, na medida


em que incentivam e valorizam a análise textual e icónica conjunta, com o objetivo de
melhor compreender as mensagens que este meio de comunicação em particular procura
transmitir ou representar. Se os discursos (textuais e visuais) representam algo sobre o
contexto social onde foram produzidos, também é verdade que os mesmos discursos
originam comportamentos e imagens sociais (Mota-Ribeiro, 2005).

Todavia, a análise de uma imagem, seja ela uma fotografia ou um desenho, esteja ela
ligada ou não à publicidade, implica sempre um processo complexo de identificação, de
interpretação e de elucidação dos elementos discursivos, culturais, semióticos e sociais que
englobam o objeto icónico. A respeito deste assunto, Roland Barthes escreveu um texto
bastante esclarecedor intitulado Retórica da Imagem (1964) e que procura dar aos leitores
uma visão sobre o processo de análise e interpretação de uma imagem através do conjunto

275 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

de mensagens que ela pode transmitir. Partindo-se do princípio geral que,


etimologicamente, a palavra “imagem” está ligada à raiz “imitação”, Roland Barthes
começa por questionar se será possível esta “cópia” produzir verdadeiros sistemas de
signos. Normalmente, as pessoas e os próprios linguistas pensam que a imagem é fraca em
termos de sentido, pelo que Barthes discute o processo de significação através de um
processo que submete a imagem a uma análise espectral da mensagem que aquela contém.

O texto começa por usar um exemplo de uma publicidade da marca Panzini para identificar
três tipologias de mensagem que, habitualmente, uma imagem possui: mensagem
linguística, mensagem icónica codificada e mensagem icónica não-codificada. Barthes
(1964:43) começa por explicitar que, apesar de algumas imagens não se fazerem
acompanhar de discurso textual – o que lhes confere uma espécie de “intenção enigmática”
–, a relação texto-imagem é muito importante, pelo que não se deve falar de uma
“civilização da imagem”.

Passo a passo, resta explicitar qual a função de cada tipologia de mensagem que Barthes
(1964:44) identificou, tendo sempre presente que, para o autor, “(…) todas as imagens são
polissémicas”, o que coloca sempre uma questão de sentido. Em relação à mensagem
linguística é importante perceber que esta possui uma função elucidativa de ancoragem e
de retransmissão em relação à mensagem icónica. Por um lado, a ancoragem tem uma
função de elucidação aplicada a certos signos (é seletiva): o texto ajuda a identificar
denotativamente a imagem e a interpretar simbolicamente (ou conotativamente) a imagem;
por outo lado, a retransmissão – rara na imagem fixa e mais usada em cartoons e cinema –
tem uma função diferente de elucidação, pois avança com o significado que não é possível
encontrar na mensagem em si (ex.: legendas nos filmes).

A mensagem icónica codificada, também entendida como mensagem simbólica, conotativa


ou cultural (que tem e nasce de um código cultural) é aquela que permite ao “leitor” fazer
uma leitura ou interpretação simbólica da imagem. Barthes (1964) começa por indicar que
o número de “leituras” simbólicas de uma imagem varia de acordo com o “leitor”, mas a
variedade de “leituras” ou interpretações simbólicas não é anárquica. As várias “leituras”
dependem de diferentes constrangimentos (práticos, culturais, estéticos, nacionais, etc.)
que são investidos na imagem e que podem ser tipologicamente classificados. Deste modo,
cada signo corresponde a uma atitude, a uma “leitura” ou a um léxico diferentes, tendo em

276 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

consideração que, por exemplo, um mesmo “leitor” possui uma pluralidade de léxicos: “a
imagem, na sua conotação, é então constituída por uma arquitetura de signos desenhados a
partir de uma profundidade variável de léxicos [codificados]” (Barthes, 1964:48). Tudo
isto significa que numa imagem se encontram significantes que são conotativos, sendo o
seu conjunto aquilo que conhecemos como retórica, o que acaba por surgir como aspeto
significante da ideologia. Contudo, há sempre um certo grau de denotatividade na
mensagem retórica, porque senão o discurso não era possível: (...) o mundo do significado
total é dilacerado internamente (estruturalmente) entre o sistema como cultura e o sintagma
como natureza” (Barthes, 1964:51).

A mensagem icónica não-codificada, também apelidada de mensagem literal ou denotativa,


reverte para a existência de objetos (significados) reais em cena numa imagem. Roland
Barthes (1964) afirma que é impossível encontrar uma mensagem literal num “estado
puro”, visto que cada imagem possui sempre uma mensagem simbólica. Logo, a relação
entre mensagem literal e mensagem simbólica é meramente operacional. É neste ponto que
o autor faz a distinção entre fotografia e desenho, considerando que a primeira possui uma
mensagem sem um código, ou seja, que, na fotografia, a relação entre significante e
significado se dá ao nível da “gravação” (com uma certa “naturalidade”), enquanto no
desenho essa relação se dá ao nível da “transformação” (implica o desenrolar de um código
cultural). É então que a fotografia é apresentada como um bom exemplo de imagem
denotativa na mensagem icónica.

Em suma, para além da mensagem linguística ou textual que acompanha a imagem em si, a
imagem providencia sinais descontínuos, mas que podem e devem ser assimilados e
decifrados em conjunto, tais como, por exemplo: a existência de um significado e de um
significante, a presença de “objetos” que transmitem uma ideia ou que até fazem o “leitor”
retomar ao mercado e a evocação de uma memória que envia o “leitor” para um
significado (a)estético que depende de um conhecimento cultural. Tudo isto faz com que a
imagem transmita uma mensagem através de signos que funcionam como um todo
coerente, que requerem um conhecimento cultural geral e que se referem a significados
globais (todavia, se se excluir a mensagem linguística e a simbólica, resta sempre uma
mensagem icónica que possui uma certa informação desprovida de todo o conhecimento).

277 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

No caso específico desta investigação, revela-se essencial a realização de uma “leitura” das
imagens presentes n’O Ilhavense, que não só complemente a análise textual, como deixe a
descoberto uma outra possibilidade que os textos não parecerem anunciar. Em suma, os
textos parecem revelar uma realidade que as imagens expõem, e é aqui (nas imagens) que
aparecem, de forma mais clara, mecanismos de poder que escapam às censuras mais
politicamente corretas e que condicionam mais fortemente a produção textual.

A primeira evidência vai para uma interpretação geral dos dados, destacando-se o facto
d’O Ilhavense possuir mais produção textual do que icónica. De facto, observando o
quadro 21 é possível perceber que o jornal está recheado de textos (10104 peças), enquanto
apenas se contabilizam 712 imagens. No entanto, tal não implica que os sentidos das
imagens sejam menos relevantes. De facto, quando se faz uma análise comparativa entre a
totalidade da produção de textos e da produção de imagens percebe-se que, enquanto no
primeiro caso o número de textos produzidos por mulheres é significativamente baixo (182
peças num total de 10104, o que corresponde a 1,8%, como se pode observar no quadro 5),
no que diz respeito à presença feminina em imagens as ocorrências são bastante mais
elevadas (160 imagens num total de 712, o que corresponde a 22,5%, como se pode
observar no quadro 22). Logo, é através das imagens que se anuncia uma lógica mais
reveladora das relações de género que condicionam a produção textual e imagética d’O
Ilhavense, mostrando-se o “regime do olhar” mais denunciador e até mais arrojado do que
o do texto (que a análise até agora efetuada permite considerá-lo mais “policiado”).

Segundo autores como Ceulemans & Fauconnier (1979), Gallagher (1992), Damean
(2006), Cerqueira (2008a) e Mota-Ribeiro (2005), no estudo das representações mediáticas
as imagens são fundamentais para perceber quais os perfis de género criados e difundidos
pelos media. A publicação de certas imagens (estando ou não agregadas a textos) auxilia
na formação de conceções identitárias dos sujeitos, que, posteriormente, têm projeção
social. Na verdade, as imagens que os meios de comunicação divulgam sobre determinado
sujeito, grupo ou até género, e que designam/mostram uma suposta realidade, podem
depois refletir-se na vida real desse mesmo sujeito, grupo ou género. Quer isto dizer que as
mulheres representadas n’O Ilhavense (e mesmo as leitoras) podem ser entendidas como
um produto identitário criado pelas imagens construídas e apresentadas à sociedade pelo
jornal, o que reforça ideologias dominantes de diferenciação de género.

278 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Isto vai ao encontro dos primeiros estudos feministas que acusam os media de não
transmitirem imagens que são a expressão direta da realidade, mas sim representações
distorcidas e estereotipadas dessa mesma realidade. Contudo, no âmbito dos Estudos
Culturais não se deve excluir o estudo dos estereótipos como parte integrante das
representações mediáticas, na medida em que eles existem nos contextos sociais. Mas é
preciso ter em atenção que não só os estereótipos condicionam a realidade, como também
partem da própria realidade (mas não de uma forma direta). Ainda neste contexto, Silvana
Mota-Ribeiro (2005) destaca a importância dos estereótipos como operação ideológica, na
medida em que estão carregados de potencial hegemónico. Quer isto dizer que os
estereótipos simplificam o mundo e legitimam a ideologia dominante, justificando as
diferenças sociais entre os grupos (neste caso entre o masculino e o feminino).

Para além disso, importa ressalvar que “(…) toda a imagem é polissémica, implicando
subjacente aos seus significantes uma «cadeia flutuante» de significados, dos quais o leitor
[e o investigador] pode[m] escolher uns e ignorar outros” (Barthes, 1982:32). De certa
forma, isto é o mesmo que afirmar que existe na imagem um sentido óbvio e um sentido
obtuso (Barthes, 1982), com os quais, por um lado, os sujeitos se podem (ou não)
identificar, e que, por outro lado, podem/devem ser trazidos para a discussão de acordo
com as necessidades que o estudo apresentar. Quer isto dizer que o sentido simbólico das
imagens é de extrema importância, na medida em que “o simbólico define valores, e estes
são estados de poder, estabelecidos ou produzidos incessantemente no solo móvel das
relações (…)” (Martins, 1992:195).

É pelas várias razões apontadas (numéricas, teóricas e simbólicas), que a análise e


discussão das imagens publicadas n’O Ilhavense se revelam fundamentais para este estudo.
Importa agora, com base nas teorias supracitadas, perceber quais os sentidos destas
imagens? Em que contextos foram publicadas? Que olhares diferenciados sobre homens e
mulheres nos revelam elas?

Quando se observa o quadro 22 (imagens que incluem mulheres e imagens que incluem
homens na década de 1950), a primeira reação prende-se com o número de ocorrências,
pois num total de 712 imagens, 160 incluem mulheres e apenas 139 incluem homens. A
diferença não é muito significativa, mas mostra que a imagem feminina, nos jornais
analisados, é mais utilizada do que a masculina, em grande medida por responsabilidade da

279 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

constante utilização do corpo da mulher e do seu erotismo/beleza para dar visibilidade


publicitária aos produtos. Contudo, apesar de haver uma maior visibilidade das mulheres
neste jornal, isso não implica que seja considerado o seu papel de produtoras ou recetoras
dos conteúdos.

A análise revelou ainda que a partir do ano de 1954 a presença icónica no feminino vai
seguir uma espiral ascendente (exceto no ano de 1959). Uma relação entre os dados do
quadro 22 e os do quadro 23 identifica que, de uma forma geral, a imagem da mulher é
utilizada, crescentemente, de forma erotizada e até sexualizada, pois serve sobretudo para
ilustrar textos, sejam eles literários ou publicitários. Destaca-se mesmo a temática
“saúde/beleza” que possui o maior número de ocorrências no feminino e que não é
referenciada no masculino. Resta aqui indicar que, embora a presença feminina n’O
Ilhavense seja fisicamente visível, esta é socialmente invisível, pois como afirma Mota-
Ribeiro (2005): a mulher é feita para ser vista e ver-se, através de uma visibilidade
autoconsciente, baseada na beleza e no corpo, e crucialmente construída de acordo com o
olhar do Outro (do masculino).

Quando se passa para a discussão das temáticas que englobam as imagens femininas,
deteta-se que o supracitado nível “saúde/beleza” é o mais referenciado, seguindo-se os
níveis “negócios/comércio” e “criação literária”. Em relação à “saúde/beleza” –
publicitação de cabeleireiros e de tratamentos de pele –, reforça-se a ideia de que a imagem
da mulher é, constantemente, convocada a uma obrigatoriedade em monitorizar a sua
aparência física, o que, segundo Anne Cronin (2000), a impede de se individualizar
realmente. Os media apresentavam-se, à época (e ainda hoje), como fortes marcadores da
imagem feminina, realçando uma vertente sexual centrada no corpo e nos ideais de
juventude e de beleza, que não são alheios ao jornal O Ilhavense. De facto, as expetativas
face ao feminino são construídas em torno da sua aparência (o que não acontece com o
masculino), proliferando o culto e o “mito do belo”, transformando a mulher naquilo que
Mota-Ribeiro (2005) apelida de “belo sexo”.

Estes dados vão ao encontro da revisão de literatura sobre a temática, na medida em que,
até à década de 1970, a imagem da mulher limitava-se, sobretudo, aos papéis domésticos, à
sexualidade/erotismo e à sua condição reprodutora. Manifestava-se uma espécie de
invisibilidade das mulheres que Taylor (1997) apelidou de “aniquilação simbólica do

280 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

feminino”. Só depois, com as décadas seguintes, os media começaram a ser palco de outras
modalidades de representação e de novas formas de resistência. Contudo, a aliança da
imagem feminina à indústria da beleza e da moda – enquanto utilizadora e vendedora de
produtos de beleza – foi (e é) uma prática comum nos meios de comunicação, agravada
pelo mito histórico que associa o homem à produção e a mulher ao consumo (Friedan,
1963).

Até este momento da análise detetam-se três elementos, associados à imagem feminina,
que se revelam fundamentais para a discussão: corpo, idade/saúde e moda. Há, de facto,
uma exposição física/corporal da figura feminina, associada a um ideal de juventude e a
um cuidado com a imagem pública, que seguem exemplos modelares e que se centram
sobretudo nas imagens de cortes de cabelo da moda (na publicidade a salões de
cabeleireiro) e na publicidade que apresenta um modelo de mulher, com vestuário
recomendável. Entende-se aqui que o uso da imagem corporal, associada à moda, tem uma
função de representação social, mas, acima de tudo, sexual. De acordo com Barthes (1981),
a forma como a sexualização dos corpos é representada através do vestuário/moda vai
depois influenciar a representação ou a imagem social que os sujeitos têm. O autor afirma
ainda que mais complexa é a relação moda/vestuário com a saúde e a idade, pois é a
moda/vestuário que atribui significação ao corpo, assegurando ou adulterando a passagem
do tempo.

Barthes (1981) continua afirmando que a moda é responsável pela passagem do corpo
abstrato para o real e que o faz através de três formas que são detetáveis na análise das
imagens presentes neste estudo: 1) a moda propõe um ideal encarnado; 2) o vestuário
decide qual o corpo que está “na moda”; e 3) a moda acomoda o vestuário para que este
transforme o corpo real e faça com que ele signifique o corpo ideal. Acrescenta-se aqui
que, ao desempenhar um papel fundamental naquilo que significa ser mulher, o corpo e a
aparência ideal “prendem” as mulheres a um conjunto de práticas disciplinares
(maquilhagem, depilação, cuidados com o cabelo e com a pele, etc.) que funcionam como
sucessivos mecanismos de regulação e correção comportamental, preparados para envolver
o feminino num aparato de (auto)vigilância que vai ao encontro da conceção de poder que
Michel Foucault (2010c) desenvolveu – em que as redes de poder se sustentam, vindas a
partir de todos os ângulos, onde os que vigiam são constantemente vigiados. Na opinião de

281 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Silvana Mota-Ribeiro (2005), a crítica feminista acredita mesmo que o mito de beleza
feminina se revela uma poderosa arma política contra os avanços do feminino, visto que
consegue ser mais coercivo que os mitos da maternidade, da castidade, da passividade e da
domesticidade.

A imagem da mulher utilizada em temáticas como “negócios/comércio” e “criação


literária” vai ao encontro do que tem vindo a ser dito. Trata-se, no primeiro caso, do uso da
imagem feminina para publicitar anúncios direcionados sobretudo para o público
masculino, e, no segundo caso, do uso da figura feminina para ilustrar textos, o que limita
o perfil da mulher a estas funções. Um olhar atento sobre o quadro 24 vem ainda reforçar a
ideia de que a imagem da mulher é baseada no ideal de beleza e de dedicação ao Outro
(aqui de forma “assexuada”), sendo-lhe negado qualquer reconhecimento ou autoridade no
social. Isto vai ao encontro do que se acredita ser uma propensão dos media, que, por
diversas vezes, despolitizam a mulher, ao incentivar uma subordinação da consciência
social a uma consciência individual, centrada no corpo, na aparência, na beleza (Mota-
Ribeiro, 2005). Tendencialmente, esta visão rotula a mulher como “aparência” e o homem
como “essência” (ou espírito).

É relevante destacar que a imagem feminina usada para ilustrar este jornal é uma opção
demarcada do género masculino, pois, tal como acontece com a produção textual, as
imagens publicadas no jornal O Ilhavense são produzidas e distribuídas quase
exclusivamente num contexto de produção masculina. A própria década estudada está,
efetivamente, sob a alçada de estruturas de dominância masculina que veem reproduzidos
estereótipos demarcados da mulher, sobretudo quando a figura feminina é usada junto aos
textos publicitários da venda de produtos tendencialmente masculinos, como as
motorizadas73. Trata-se aqui de perceber que esta é uma das formas de operação da própria
construção e diferenciação de género, que é colocada em prática através de meios de
exclusão (Butler, 1993). Ou seja, a necessidade de clarificar as linhas de género/sexo numa
sociedade heterossexual exige um controlo masculino e patriarcal da sociedade e das suas

                                                            
73
Este aproveitamento da imagem feminina ainda hoje é visível, pois muitos objetos conotados com o sexo
masculino, como, por exemplo, os da indústria automóvel, são publicitados juntamente com a imagem
sexualizada da mulher.

282 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

representações. Logo, o que está em jogo é o poder das imagens para (re)produzir o
feminino sem que as próprias mulheres executem um papel preponderante no processo,
embora participem dele.

Pode-se aqui olhar para esta realidade através do conceito “homossocial”, trazido à
discussão por Judith Butler (2004) e baseado em teorias de Lacan, Lévi-Strauss e Eve
Sedgwick. Em Lacan, a visão homossocial prende-se com a ideia do sujeito querer ser livre
para desejar quem lhe é proibido, afastando o Outro do Outro e ficando com o desejo do
Outro. Lévi-Strauss fala da teoria das trocas de mulheres, onde clãs masculinos trocam
mulheres para estabelecerem relações simbólicas com outros membros de outros clãs, pelo
que as mulheres são desejadas precisamente por pertencerem ao Outro. Já Sedgwick
discute a relação de um homem que deseja uma mulher como um laço homossocial entre
dois homens (laço este que é articulado pela heterossexualidade). Esta visão homossocial
determina uma espécie de apoderamento ou possessão do feminino pelo masculino, que vê
a mulher como sua ou como do Outro homem a quem ele permitir, desenvolvendo
complexas relações sociais (homossociais) que acabam por emergir psíquica, identitária e
comunitariamente em ambos os géneros.

Esta sobre-exposição dos ícones femininos vai ao encontro do que já foi discutido em
relação aos media como marcadores da imagem feminina (Cronin, 2000), em que a mulher
é representada esteticamente como “objeto/corpo/vedeta” (Cerqueira, 2008a). Em suma,
nestes jornais, a imagem da mulher é (re)produzida pelo homem sob um imaginário que
pensa o ideal figurativo de beleza e de juventude femininas.

Foi tendo em conta estas reflexões que se construiu o quadro 27, que apresenta o regime
político das imagens d’O Ilhavense, na década de 1950. De facto, de acordo com a análise
efetuada, a imagem da mulher é fabricada em torno de uma específica política do corpo, de
forma descontextualizada e erotizada. O corpo da mulher é aquele que deve ser cuidado e
embelezado para que possa vender (alimentando uma política económica); um corpo que é
exposto para ser olhado e espelhado de acordo com a norma masculina. Já o corpo
masculino é o símbolo da autoridade social, monitorizada sobretudo pela religião, e é
usado como regulador de comportamentos morais. Juntamente com esta posição
autoritária, o uso em contexto do corpo do homem favorece uma posição política da figura
masculina, atribuindo-lhe o domínio do panorama social.

283 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

É neste momento que é necessário inserir uma discussão sobre as relações de poder que a
análise destas imagens deixa vislumbrar. Segundo Michel Foucault (2010ª), as
microrrelações de poder são fundamentais nas estruturas identitárias dos sujeitos. Estas
relações são construídas e mantidas numa base discursiva (textual ou icónica) que define a
forma como os sujeitos se expressam ou são entendidos. Uma das formas de atuação destes
discursos é através da sexualidade ou dos corpos, algo que se deteta pela leitura simbólica
da imagens destes jornais. O poder deixa de ser exercido através do castigo dos corpos e
passa a ser exercido através de um regime de monitorização e vigilância constantes
(Foucault, 2010c; Butler, 1993), que passam, neste caso, pela utilização do feminino como
elemento sexualizado e diminuído (por ambos os géneros) em oposição ao masculino,
como antes já foi referido nesta discussão.

De facto, a maioria das imagens das mulheres publicadas n’O Ilhavense revela que o poder
não precisa de ser opressivo (no verdadeiro sentido da palavra), quando pode ser
“produtivo”: o poder produz discursos através de uma rede que atravessa o corpo social,
criando e formando opinião. Na verdade, as imagens em análise regulam e controlam a
exposição e a representação do feminino, auxiliando na definição da sua imagem, do seu
comportamento e, mais especificamente, da sua identidade.

A visão supracitada vai ao encontro da opinião de O’Farrell (2005), na medida em que o


corpo e a sexualidade são os meios pelos quais os sujeitos são disciplinados moralmente, o
que faz todo o sentido nesta análise. Para além do corpo e da sexualidade, a teoria de
Foucault indica também o poder patriarcal e as instituições do casamento e da maternidade
como elementos fundamentais para analisar a relação poder-género, o que também se
apura neste estudo.

Verifica-se, portanto, que n’O Ilhavense estão incorporados mecanismos que servem de
guia para o comportamento das mulheres, ou até mesmo de espelho para o entendimento
da posição que se espera destas mulheres na sociedade, mais concretamente o que se
espera delas e que papéis lhes são admitidos. Este guia comportamental foca-se
particularmente na forma como o corpo, associado à beleza e ao vestuário, é representado.
Particularmente, é o vestuário (e a forma como este é pensado e trabalhado), ou a sua
ausência, que legitima a significação do corpo. É esta afirmação que leva Roland Barthes
(1981) a entender a moda (e todos os elementos que a envolvem) como a componente

284 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

capaz de atribuir uma dupla categorização ao sujeito humano: a individualização e a


multiplicidade.

Entende-se portanto, no seguimento do parágrafo anterior, que a relação corpo-moda-


idade-saúde-beleza é responsável por disponibilizar à mulher um duplo sentido daquilo que
Barthes (1981:282) apelidou de “sonho de identidade”. Por um lado, disponibiliza à mulher
o sonho de ser ela própria (e ser reconhecida pelo Outro como tal), a afirmação de um
“nome” que é atribuído a qualquer anónima74; mas, por outro lado, isto implica um “sonho
de alteridade” (ser ela própria e um Outro). Isto implica a multiplicação do individuo num
único ser, mas sem risco desta pessoa se perder num índice de poder, transformando a
exposição do corpo associado à moda num elemento “exorcizante” que permite o sonho e a
multiplicação, mas que é “bastante estável para nunca se perder” (Barthes, 1981:284). Em
suma, e reunindo o que tem vindo a ser referido nos parágrafos anteriores, a imagem da
mulher, nestes jornais, é significada por uma retórica corporal, associada a uma imagem da
moda “(…) imperativamente feminina, absolutamente jovem, dotada (…) de uma
personalidade contraditória” (Barthes, 1981:288).

A discussão anterior permite identificar, nestes discursos icónicos, a presença de uma


espécie de poder moral e disciplinador (e até certo ponto produtivo). Todavia, o caráter
repressor do poder encontra também aqui toda a sua expressão, visto que a limitação do
feminino a determinadas temáticas/áreas, ou a sua obrigatória presença noutras, dificulta a
libertação das mulheres destas relações de poder. Para além disso, formas de resistência
mais demarcadas são difíceis de detetar por força das circunstâncias sociais,
tradicionalmente masculinas, que se expressam particularmente na censura e na produção e
direção masculinas a que o próprio jornal está submetido.

Na realidade, a forma como os corpos e a sexualidade das mulheres são representados no


jornal O Ilhavense caminha no sentido daquilo que Foucault apelidou de “política do
corpo”, em que os sujeitos veem e se relacionam com os corpos dos outros e com os seus
próprios corpos como se fosse uma questão de política convencional. O facto de o corpo
ser entendido através de um lugar político implica que este possa ser passível de
legitimação, mas, simultaneamente, de normatização.
                                                            
74
Para Barthes (1981), este sentido é um ato compensatório da despersonalização trazida pela cultura de
massas.

285 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Quer isto dizer que, como corpos, os sujeitos são mais do que eles próprios, são
constituídos como campos de vulnerabilidade, de desejo e de reconhecimento, ou seja, são
constituídos politicamente (Butler, 2004). Deste modo, invariavelmente, o corpo tem uma
dimensão pública e é instituído como um fenómeno social, pois incorpora a norma.
Todavia, é possível tirar proveito desta forma de ver a corporalidade, na medida em que é
possível criar novas formas de realidade através da incorporação: se o corpo é um processo
de transformação, é possível retrabalhar e exceder a normatividade e abrir caminho a novas
possibilidades identitárias. Em relação a este assunto, Judith Butler afirma que:

Se sou reclamado pelos outros quando faço a minha reivindicação, se o género é


para e de Outro antes se ser meu, se a sexualidade contém uma certa
despossessão do ‘Eu’, isto não dita o fim para as minhas revindicações políticas.
Apenas significa que quando fazemos essas reivindicações, fazemo-las para mais
do que para nós próprios (Butler, 2004:16)

Nesta fase da discussão, pode-se introduzir a questão da resistência de outra forma: Como
é que as mulheres aceitavam esta representação da sua imagem corporal/sexual? Por um
lado, porque elas estavam submetidas a estruturas masculinas dominantes (Bourdieu, 1999)
e, por outro, porque elas se encontravam envolvidas naquilo que Foucault (2010c) chamou
de “tecnologias do Eu”, o que implica uma autorregulação do sujeito (neste caso das
próprias mulheres) e que é reforçada pelas diversas formas como os discursos (textuais e
icónicos) encorajam (ou não) práticas e perfis identitários específicos no feminino. Estas
redes relacionais são demasiado complexas, pois os discursos são legitimados por
mecanismos e por instituições sociais como o Estado, a Escola, a Igreja e até os Media, que
se encontram submetidos a “estruturas históricas de ordem masculina” (Bourdieu, 1999:5).

No caso específico deste estudo, a Igreja é o mecanismo mais eficaz da estrutura social, na
medida em que se encontra fisicamente presente n’O Ilhavense, regulando
comportamentos e moralizando o feminino – “ela [a Igreja] é o instrumento de uma
vigilância permanente, exaustiva, omnipresente, capaz de tornar tudo visível (…), um
grande olho cravado em toda a parte, uma atenção móvel e sempre atenta (…)” (Martins,
1990:88). E quem é esta “Igreja”? Certamente, o grupo masculino. É por isto que o homem
é identificado como autoridade social que normatiza através da moral religiosa.

286 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Neste sentido, torna-se cada vez mais evidente que o verdadeiro caminho a considerar
deveria ser o respeito pelos corpos, cuja autonomia depende de serem livres dos discursos
que os constroem, o que se refletiria na verdadeira escolha identitária ou na liberdade de
identificação do sujeito, não o obrigando a depender da construção sobre si pelo Outro. Tal
como indica Butler (1990, 1993), o corpo responde a um comportamento performativo por
ter uma história de ser afetado pela diferença sexual e não escapar dos efeitos do sexismo,
pelo que a verdadeira autonomia do sujeito sobre si mesmo é algo difícil de alcançar.

Importa agora referir que a imagem masculina é também utilizada sob a temática
“negócios/comércio”, quando se trata de publicidade a produtos para o público masculino.
Fugindo-se, por vezes, da utilização da imagem sexualizada da mulher, opta-se pelo uso da
imagem identificativa do homem, na medida em que se procura vender produtos
tradicionalmente masculinos, no entender do jornal. Quer isto dizer que, obviamente, a
imagem do homem não é usada da mesma forma que a imagem da mulher quando se trata
de publicidade (neste caso a bicicletas e a motas), embora o caráter simbólico disciplinador
esteja fortemente presente, como se pode ver pela publicidade que associa a figura
masculina e o texto “deixe-se conduzir pela mão da experiência” (ver figura 12).

Concluindo esta parte da discussão, para Foucault (1984e) o sujeito constrói uma
identidade que é produto das relações de poder que se exercem sobre si e o seu corpo.
Assim, a identidade do sujeito vai-se estruturando à medida que se vão dando conflitos
entre discurso, controlo e disciplina. Trata-se de entender o conceito de identidade como
um processo que relaciona a nossa corporalidade com a do Outro (Sartre, 1976) e que na
prática, neste estudo icónico, se explica pela presença de um Eu-masculino-dominador em
oposição a um Outro-feminino-dominado.

6.3.2.2. Os perfis identitários das mulheres nas imagens d’O Ilhavense, na década de
1950: “identidade sem identificação” e “identidade por empatia”

O poder está incorporado em diversas práticas que limitam e simultaneamente produzem a


identidade dos sujeitos, sobretudo a sua identidade de género. É através desta dinâmica que
são criados (espontânea e condicionalmente) diferentes perfis identitários com os quais os
sujeitos se identificam ou são identificados. É neste sentido que segue a afirmação de

287 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Gauntlett (2002) que prevê que as imagens de homens e mulheres, divulgadas pelos media,
têm impacto sobre o próprio sentido de identidade dos sujeitos.

Segundo Damean (2006), os media oferecem “identidades prontas”75 com as quais os


sujeitos se podem identificar ou podem ser identificados. Tendencionalmente, estes perfis
são apresentados pelos media segundo blocos identitários, sobretudo no caso das mulheres,
como já se verificou, por exemplo, na análise dos textos escritos por mulheres (“mulher-
prática”, “mulher-emotiva/fantasiosa” e perfis sociais de “não-identificação”). Isto implica
que esta disposição em blocos vai representar a mulher segundo um conjunto de
características identitárias socialmente cristalizadas e não pelas suas características
individuais. Damean (2006) indica mesmo que a mulher é habitualmente apresentada nos
meios de comunicação de acordo com três blocos: imagem/padrão de beleza (sexualidade),
carreira, e vida privada (esposa, mãe e dona de casa). Já para Wood (1994), os media só
criam duas imagens da mulher: a mulher “má” (diabólica) e a mulher “boa” (angelical), o
que corresponde, respetivamente, à mulher-amante (irascível) e à mulher-esposa/mãe
(exemplar). No caso específico deste estudo importa questionar: Existe um bloco de
imagens em que as mulheres são apresentadas?

De um modo geral, a análise das imagens de mulheres presentes n’O Ilhavense remete, tal
como acontece com a análise dos textos de autoria feminina, para modalidades identitárias
desprovidas de bastiões de identificação ou de individualização. Reconhece-se uma
(re)utilização da imagem feminina como ícone corporal de beleza, que sexualiza
demasiado o ideal iconográfico, o que evidencia um olhar masculino, que se apodera da
identidade imagética feminina.

Olhando as representações visuais das mulheres ilhavenses, estas evidenciam uma espécie
de perfil de “identidade sem identificação”, quer dizer de “não-individualização”, mas este
agora um pouco diferente do que é reportado na análise dos textos escritos por mulheres.
No caso dos textos escritos por mulheres, as autoras despersonalizam-se, pois entendem
que as suas vidas privadas não têm interesse público. No caso das imagens (sobretudo nas
temáticas “negócios/comércio” e “criação literária”), as mulheres parecem também não
participar do processo de individualização, pois as suas imagens são utilizadas sobretudo

                                                            
75
 Tradução nossa de ready-made identities. 

288 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

para a publicitação de produtos masculinos – imagens utilizadas pelo sexo oposto e para o
sexo oposto. Neste perfil, as mulheres são excluídas da construção da sua própria imagem
e todos os indicativos da individualidade feminina são apagados, pois as mulheres são
representadas através de uma imagem erotizada ou num padrão de beleza estereotipado.

Todavia, esta mulher, embora erotizada, não entra no bloco da mulher-amante-diabólica-


irascível, pois não revela um comportamento descontrolado ou em oposição à regra. Antes
pelo contrário, é dada à mulher uma imagem dirigida e vigiada pelo homem (sobretudo
pela normatização religiosa), que parece respeitar aquela que era considerada a sua função
estética.

Com efeito, o perfil social de “identidade sem identificação” remete para o facto de as
mulheres estarem diretamente excluídas da construção da sua própria imagem, embora
permitam que tal processo prolifere. De facto, tal como já foi referido na discussão da
relação corpo-moda trazida por Barthes (1981), o uso do corpo associado a um vestuário é
capaz de atribuir significado identitário, no qual as mulheres se sentem individualizadas e,
ao mesmo tempo, multiplicadas em vários perfis. Ora, esta condição que é deixada para a
mulher confunde a construção da sua verdadeira identidade, impondo-se uma certa
liberdade “condicionada”: a mulher poder escolher, mas não pode participar na construção
da sua imagem. Falta apenas reforçar a ideia de que a grande maioria das imagens
femininas destes jornais é apresentada em contexto publicitário, o que agrava a
representação identitária da mulher, pois, tal como afirma Durand (1974:19), “a
publicidade apresenta-se (…) como artifício, exagero voluntário, esquematismo rígido”.
Para além disto, importa destacar que as próprias mulheres se encontram submetidas a
estruturas de poder hegemónico masculino, o que valida o facto de não apresentarem,
aparentemente, qualquer resistência à forma como a sua imagem é trabalhada.

Contudo, no que diz respeito à análise de imagens que remetem para a temática
“saúde/beleza”, parece haver um outro grau de identidade, onde se deteta algum nível de
identificação. A temática “saúde/beleza” reporta para a publicitação de cabeleireiros e de
tratamentos de pele, dirigindo-se ao público feminino, onde se procura que as mulheres se
identifiquem com as mensagens que as imagens lhes transmitem. Este grau de identidade
pode-se apelidar de perfil de “identidade por empatia”. Aqui, mais uma vez, a mulher é
conduzida à regulação do seu aspeto físico, emergindo uma forma subtil de vigilância e

289 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

controlo através da sua imagem perante a sociedade. Espera-se que esta mulher cumpra os
padrões de beleza de forma a satisfazer a espectativa social que a vê como (futura) esposa,
mãe e dona de casa.

Na literatura sobre a temática, é geralmente aceite que os media reforçam os estereótipos e


os papéis tradicionais de género, incentivando a construção de identidades por oposição,
em que o homem se apresenta como a norma e a mulher como o Outro. Esta visão
identifica o homem com independência, autoridade, chefia da família e agressividade,
enquanto expõe a mulher como dependente, incompetente, cuidadora do lar, e
vítima/objeto sexual. Assim, revela-se necessário neste momento questionar: Em que
temáticas/áreas surge a imagem do homem? A imagem do homem surge em oposição à da
mulher? Que perfis masculinos são apresentados?

6.3.2.3. Os perfis identitários dos homens nas imagens d’O Ilhavense, na década de
1950: “homem-social” e “homem-moral”

No caso das imagens no masculino é interessante verificar que ao longo dos anos
analisados a sua presença é crescente, fruto da sua distribuição por diversas temáticas,
algumas delas que não chegam a entrar no campo feminino, como é o caso da “vida
militar”, do “trabalho/profissional”, do “desporto”, da “animação” e do “mar/vida
marítima” (comparar quadros 23 e 25). Interessante é perceber que as três primeiras
temáticas se incluem na área social, ambiente do qual as mulheres são frequentemente
afastadas, tanto na produção escrita como na icónica.

Todavia, o verdadeiro destaque vai para a temática “religião”, onde, surpreendentemente,


as 20 ocorrências de imagens que incluem homens (ver quadro 25) contrastam com as 6
ocorrências de imagens que incluem mulheres (ver quadro 23). Isto deve-se ao facto de a
imagem da mulher ilhavense não possuir visibilidade nos eventos religiosos, apesar das
mulheres terem uma presença relativamente importante na vida religiosa local76. De facto,
a imagem masculina parece estar em evidência nas peças sobre atos religiosos, na medida
em que os lugares hierárquicos ou de destaque (aqueles que merecem ser fotografados)
pertencem a homens. A dominância masculina a este nível remete a identidade feminina
para segundo plano. O mesmo se passa com as temáticas “assistência aos outros” e

                                                            
76
Como é possível verificar pela leitura do jornal e pelas ocorrências dos textos que falam sobre mulheres.

290 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

“morte/luto” que, juntamente com o tema “religião”, dão projeção social à imagem do
homem.

Uma análise mais profunda desta temática deixa transparecer questões políticas e sociais
ocultas à primeira vista. De facto, a religião em que o homem mergulha (e em que é
representado) é sinónimo de poder, neste caso espiritual e moral. Isto significa que um
espaço social como Ílhavo, com uma presença física masculina muito limitada, exige um
rosto que regule moralmente a sociedade. Este símbolo de poder, aparentemente
assexuado, é a expressão masculina mais forte em Ílhavo e, como tal, a que merece
destaque na imprensa local. Em suma, o homem-religioso transforma-se no elemento que
gere o feixe de relações de poder, exercendo influência sobre os comportamentos
normativos na sociedade.

No caso da identidade no masculino deteta-se não só a capacidade de se apoderar da


identidade feminina (visto que a projeta e controla a sua estruturação), mas também a
aptidão para se identificar por blocos, construindo, conscientemente, os seus perfis de
“homem-social” e de “homem-moral” (que normatiza através da religião). Ao contrário do
que acontece com a imagem das mulheres, em que não lhes é permitida uma verdadeira
individualização, os homens apresentam-se como indivíduos. Exemplos desta
individualização masculina estão presentes na projeção da imagem masculina nas
temáticas “religião” e “morte/luto”, onde a imagem do homem surge quase exclusivamente
no formato de retrato e associada a textos no singular.

A utilização da imagem no masculino (por exemplo em áreas como “negócios/comércio” e


“assistência aos outros”) segue um caminho diferente da da mulher, uma vez que as
mulheres aparecem vulgarmente sem nome ou outra identidade, enquanto com os homens
acontece tendencialmente o inverso. Aqui os homens optam por aparecer associados aos
temas, identificando-se claramente quer com os objetos publicitados, quer com as
atividades fotografadas. Mais especificamente, neste estudo encontra-se um homem-social-
moral que representa a regra (a lei, a norma) e que se opõe a uma mulher-assexuada (como
que infantilizada, emotiva e fútil) e ao mesmo tempo uma mulher-bela/sexualizada (que
cumpre um padrão social expectável).

291 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

6.3.2.4. Mulheres e homens como “cuidadores”

Curiosos são os resultados relativamente à temática da família, pois seria esperada uma
sobrevalorização da imagem feminina de cuidadora do lar (mãe e esposa), o que não
acontece. Esta imagem de mulher “boa” surge, mas apenas com 18,1% das ocorrências
(ver quadro 24) e ao mesmo nível da imagem masculina. Identifica-se portanto um outro
perfil imagético que engloba quer homens quer mulheres, o de “cuidadores”: homens e
mulheres surgem no seu papel de beneméritos sociais e cuidadores do bem comum,
embora, no caso das mulheres surja uma outra dimensão de cuidadora também do lar, no
seu papel de mãe e esposa (o que talvez se possa explicar pela ausência de muitos homens
de Ílhavo nesta década, acabando as mulheres por assumir também este papel).

Quer isto dizer que, embora existam referências a um homem-patrístico, símbolo da


autoridade religiosa e moral, não existem referências que justifiquem a presença destacada
de um homem-chefe de família. No caso específico do contexto familiar, tanto homens
como mulheres apresentam um certo nível de identificação, uma espécie de “perfil
cuidador”, na medida em que abundam as referências às temáticas “assistência aos outros”,
“morte/luto”, “casamento/família” e “acontecimentos de relevo” relativamente aos dois
géneros.

Estes dados revelam que pode ser no contexto familiar que as relações de poder
tradicionais, baseadas nas estruturas de dominância masculina, se desviem da sua norma.
Os homens não são representados dentro do bloco independência-autoridade-chefe de
família, mas sim como intervenientes e cuidadores. Todavia, a própria especificidade de
Ílhavo, marcada pela ausência masculina por conta das campanhas do bacalhau, pode
justificar esta representação social, pelo que se torna difícil admitir que este seja o caminho
que representa uma possível forma de resistência feminina.

6.3.2.5. Discursos visuais do género e poder “hegemónico”

Com esta análise se assinala, mais uma vez, a tendência para a estrutura masculina se
apoderar da condição feminina, deixando para as mulheres aquilo que é conhecido como o
espaço simbólico da objetivação. Naturalmente, esta situação mostra a existência de
relações de poder presentes nas decisões (in)conscientes do uso da linguagem icónica, não

292 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

deixando espaço para uma verdadeira identificação ou individualização da mulher e


confirmando a sua imagem com estereótipos e perfis muito específicos.

Resta colocar algumas questões que podem auxiliar o entendimento dos dados analisados
no jornal: Será que, à semelhança do que determinou o estudo de Pedro & Santos (2009)77,
é possível concluir que as imagens publicadas no jornal O Ilhavense implicam discursos
capazes de influenciar escolhas identitárias? O que representa o feminino? E o que é o
corpo masculino e qual a sua importância na representação imagética do homem?

Quanto à primeira questão, no caso particular das imagens publicadas n’O Ilhavense, mais
do que influenciarem escolhas identitárias, estas legitimam os perfis sociais (que foram
identificados através desta investigação). Quer isto dizer que, estas imagens, como
representação dos perfis de género existentes em Ílhavo consolidam e fortalecem
comportamentos, papéis e funções. Por um lado, estas imagens espelham a forma como os
homens se apresentam socialmente e como as mulheres são apresentadas, e, por outro lado,
como ambos são valorizados dentro do contexto familiar, individual e sociocultural.

De seguida, importa perceber que, nas imagens d’O Ilhavense, o feminino é “corpo”,
aparência, beleza e erotismo. Ser mulher implica ser para o Outro e para si mesma a partir
de um olhar exterior. Este olhar exterior é aquele que normatiza e cria uma rede estrutural
daquilo que representa ser mulher, qual a sua função e qual o seu papel numa sociedade
que, apesar de ser maioritariamente composta por mulheres, continua sujeita a uma forma
masculina de ver e organizar as “coisas”.

Em contraste com este corpo feminino, encarcerado no “mito do belo”, é representado um


corpo masculino como símbolo de autoridade. Trata-se de um discurso visual que fortalece
o homem como sujeito regulador e omnipresente, sobretudo através do poder religioso que
apenas compete ao masculino. Todavia, como já foi referido, tanto mulheres como homens
estão presentes como “cuidadores”, protetores do Outro, representados através de um
corpo “assexuado”.

A investigação foca-se agora nas diferenças entre representação do feminino e do


masculino, pelo que importa perguntar: Será que neste jornal se deteta uma tendência para
                                                            
77
Estudo citado na revisão bibliográfica desta investigação, que analisa as representações da dona de casa
moderna numa revista direcionada para o público feminino e que deteta uma cadeia discursiva e reguladora
que naturaliza os limites impostos na dualização de género.

293 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

a publicação de imagens que restringem as mulheres a determinados papéis? Serão estas


imagens representativas de um “lugar” do feminino? Será isto um reflexo da criação de
desigualdades de género baseadas nas estruturas tradicionais de dominância masculina? Ou
melhor, estarão estes discursos visuais do feminino sob alçada de uma estrutura
hegemónica?

Estas questões são, de alguma forma, complementares, pois há de facto uma tendência
limitativa do perfil feminino nestas imagens, seja ela social, sexual ou identitária. No geral,
é possível entender que estas imagens se baseiam numa visão ideológica quase
exclusivamente masculina, o que restringe a exposição, tanto de mulheres como dos
próprios homens.

Com efeito, tudo aponta para que as desigualdades de género representadas nestas imagens
se encontrarem baseadas nas estruturas tradicionais de dominância masculina. Quando se
discute um contexto discursivo que é construído e difundido por redes sobretudo
masculinas, é impossível não pensar na influência que tal situação terá no tecido social. As
próprias mulheres, envolvidas nestas redes, irão apresentar uma propensão para se
identificarem com a ordem estabelecida. Todavia, o arquiteto do discurso dificilmente
pode exercer controlo completo sobre a interpretação de um recetor desse mesmo discurso,
o que pode permitir percursos resistentes a esta realidade. No caso específico das imagens
d’O Ilhavense não se detetam indícios de resistências femininas, mas antes algumas
alterações no perfil familiar masculino (onde o homem é também entendido como cuidador
do lar), instituído e projetado pelos próprios homens. Esta realidade pode explicar-se
através de um prisma que entende que o feminino se encontra sob alçada de um sistema
hegemónico masculino, capaz de estruturar toda uma sociedade.

O conceito de hegemonia, inicialmente formulado por António Gramsci (1996) para


descrever a dominação ideológica de uma classe social sobre outra, é visível neste estudo
ao entendê-lo como dominação ideológica que um grupo (masculino) exerce sobre outro
(feminino), utilizando para isso um conjunto de mecanismos (sobretudo culturais) que
legitimam o poder hegemónico, articulando coerção e consenso de forma produtiva.
Importa agora questionar como pode esse poder hegemónico ser produtivo?

294 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

Segundo Gramsci (2006), a supremacia de um determinado grupo manifesta-se através de


duas formas: dominação e liderança intelectual/moral. Não se trata propriamente de ver a
hegemonia como uma questão de subordinação repressiva do grupo hegemónico, ou, no
caso desta investigação, de ver a mulher como forçadamente (no verdadeiro sentido do
conceito de força ou violência física) sujeita ao poder masculino. Segundo o autor, é
necessário que se levem em conta os interessentes de ambos os grupos sobre os quais é
exercido o poder hegemónico, para que se estabeleça uma relação de compromisso,
embora exista sempre um grupo dirigente. No que diz respeito à liderança
intelectual/moral, Ana Alves (2010:85) afirma que esta “(…) pressupõe o
compartilhamento de ideias e valores (…) e é a base da formação de uma vontade coletiva
que, através da ideologia, passa a ser o cimento orgânico unificador do bloco histórico”.
Por outras palavras, o grupo que exerce o domínio, reúne à sua volta um conjunto de
elementos capazes de dirigir e orientar o grupo dominado, sem com isso aplicar força
repressora.

A forma que o grupo dominante encontra de manter o monopólio intelectual e moral sobre
o grupo dominado prende-se com a construção do que Gramsci apelidou de “bloco
ideológico” (1996)78. Trata-se de reconhecer o poder ideológico que instituições como a
Escola, a Família, a Igreja ou até os meios de comunicação (particularmente a imprensa),
os eventos culturais, os partidos políticos e simples estereótipos exercem na construção e
manutenção do poder hegemónico. De facto, é possível perceber que dificilmente um
grupo consegue exercer poder sem ao mesmo tempo exercer a sua hegemonia através de
um aparato ideológico (Althusser, 2006), e isto é válido, em primeiro lugar, no que às
diferenças de género diz respeito.

Naturalmente, que a hegemonia vai contribuir para a edificação e subsistência da(s)


identidade(s) de género porque, tal como indica Bourdieu (1980:67), se admite que “(…)
todo o discurso sobre a identidade (…) revela o campo de uma luta simbólica, onde o que
se decide é quem tem o poder de definir a identidade e o poder de fazer conhecer e
reconhecer a identidade definida”. Isto implica o mesmo que dizer que “nos símbolos há
sempre, embora transfigurada e eufemizada, a voz de quem domina” (Martins, 1996:107),

                                                            
78
Ou o que Althusser (2006) apelidou de “aparato ideológico do Estado”, num contexto mais específico.

295 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

pelo que é importante entender, no caso dos discursos visuais d’O Ilhavense, onde e como
atua o poder hegemónico.

Em primeiro lugar, e como já foi repetidas vezes enunciado neste estudo, as imagens de
mulheres são construídas num contexto de dominação masculina: a produção e a
distribuição do jornal são masculinas, os perfis masculinos detetados são sinónimo de
autoridade (social e moral), e a imagem da mulher está essencialmente conotada com
aparência e erotismo. Todavia, as mulheres revelam-se também “opressoras” de si
próprias, ao desencadearem um conjunto de mecanismos contínuos de regulação, correção
e atuação dos seus comportamentos, próprios de uma sociedade ideologicamente patriarcal.
Desta forma, a leitura do poder hegemónico pode ser reestruturada através das teorias
foucaultiana e bourdieusiana de poder. De facto, pode-se olhar a relação entre homens e
mulheres – representada nas imagens d’O Ilhavense – através de um prisma hegemónico
que legitima o poder que é exercido pelo grupo dominante (masculino) sobre o grupo
dominado (feminino). Porém, as relações entre ambos os grupos são de tal modo
complexas – implicando resultados tanto coercivos como produtivos – que se torna mais
claro pensá-las através de uma leitura dos “estados de poder” de Foucault (1984ª, 2010b,
2010c) ou dos “campos de força social” de Bourdieu (2000).

No primeiro caso, são consideradas as relações de poder como fluxos constantes entre os
sujeitos e validadas tanto pelas normas como pelos discursos sociais. No caso dos “campos
de força social”, a relação entre dominadores e dominados é vista como assimétrica,
variando de acordo com as circunstâncias. Logo, apesar do olhar masculino ser
evidenciado nos discursos visuais d’O Ilhavense, torna-se necessário compreender qual o
lugar/papel do feminino nesta construção simbólica, utilizando o quadro teórico (pós-
)estruturalista. Só desta forma é possível compreender e interpretar as relações de poder
entre homens e mulheres, compreendendo o(s) lugar(es) a partir dos quais se produzem
determinados perfis, ultrapassando o próprio conceito de hegemonia.

Através da análise das imagens d’O Ilhavense é possível apurar que a representação visual
do feminino se baseia num olhar marcadamente masculino. Isto envolve um sistema de
vigilância apertado do Outro (masculino), mas igualmente do próprio Eu (feminino), o que
complexifica as relações de poder entre ambos. No caso particular desta investigação, as
imagens das mulheres são um bom exemplo de como existe uma envolvência hegemónica

296 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

constantemente vigiada. Mas, quem é, na prática, o vigilante? E como se aplica essa


vigilância? Tanto quanto foi possível apurar, o homem é o principal criador da imagem
feminina, com a devida atribuição dos seus papéis e até estereótipos, embora a mulher
participe neste processo fruto de uma cultura (hegemónica) vigente. Assim, vigilante e
vigiado transformam-se num só bloco capaz de naturalizar papéis e comportamentos de
género.

No caso desta investigação, demonstrou-se mais uma vez que ser mulher significa beleza e
corporalidade, o que revalida o “mito do belo”, prendendo a mulher a uma vigilância
constante da sua aparência, com fortes consequências na (auto)perceção do feminino. Isto
apenas reforça a ideia de que a vigilância (dos corpos) valida o poder da estrutura social
predominantemente masculina. A imagem como lugar de definição do feminino traz
algumas controvérsias, porque, apesar de fugir muitas vezes à realidade do que é ser
mulher, e prender o feminino a ideais corporais e de aparência (por vezes perigosos para a
saúde da mulher), muitas mulheres identificam-se com estas medidas. Para além disso, não
parece haver tendência para a construção de resistência feminina, graças a um olhar
masculino (hegemónico) que abarca e subverte o próprio olhar feminino sobre si.

Resta agora encerrar a discussão afirmando que, num contexto como o de Ílhavo, em que a
presença física feminina é extraordinariamente visível, fruto da ausência masculina em
grande escala, por longos períodos de tempo, esperar-se-ia que a mulher fosse representada
de uma outra forma. Contudo, a mulher de Ílhavo continua a ser representada mediante
papéis tradicionais, com ligeiro impacto na vida social e sem nenhuma forma aparente de
resistência. Portanto, quando se coloca a questão “Era ou não Ílhavo (na década de 1950)
uma sociedade matriarcal?”, mediante a análise das imagens publicadas n’O Ilhavense,
esta sociedade dita “matriarcal” parece não o ser, e ainda usa o corpo da mulher de uma
forma sexualizada (“mito do belo”), apresentando-a como uma figura sem grande
profundidade, e retirando-lhe qualquer carácter de subjetivação e individuação.

Em suma, esta análise permitiu identificar que a lógica das imagens é mais reveladora que
a dos textos, na medida em que a lógica dos textos esconde e naturaliza o que as imagens
revelam com maior clareza, tanto denotativa como conotativamente. As hierarquias que se
encontravam, por vezes, camufladas na produção textual explícita são agora reveladas pelo
poder da imagem: o discurso visual é mais claro, denunciador e regulador, e deixa-se

297 
Capítulo VI – Estudo Empírico 

atravessar por um conjunto de elementos que o discurso textual controlava e disciplinava


de forma mais rigorosa. São, de facto, as representações discursivas visuais que levantam o
véu que esconde complexas redes de poder.

298 
 

Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”

7.1. Era ou não Ílhavo (na década de 1950) uma sociedade matriarcal?

“A minha paixão política reside nas metamorfoses positivas, daquelas que destabilizam
relações de poder dominantes, desterritoralizam identidades baseadas na maioria e
valorizam e causam um feliz sentido de empoderamento nos sujeitos empenhados em
tornar-se.”

Rosi Braidotti (2002:265)

Este estudo estruturou-se em torno da questão de investigação “Era ou não Ílhavo (na
década de 1950) uma sociedade matriarcal? – Análise de discursos de um jornal local”.
Esta questão impôs-se em resultado de um conjunto de circunstâncias históricas,
contextuais e teóricas que afirmavam a excecionalidade social de Ílhavo, apresentando-o
como uma sociedade matriarcal. Esta categorização remonta ao século XIX, altura em que
a sociedade ilhavense começa a moldar-se em torno de uma estrutura presencial
praticamente feminina, visto que a maioria dos homens se encontrava ausente (por longos
períodos de tempo) na pesca de alto mar (nomeadamente na pesca do bacalhau). Tal como
já foi referido no capítulo dedicado à metodologia de investigação, foi no século XX que
esta conjuntura assumiu proporções mais profundas, sobretudo na década de 1950, altura
em que a pesca do bacalhau atingiu o seu expoente máximo (Garrido, 2004; Amorim,
2001).

A atividade da pesca sujeitava a população masculina a ausências que raramente eram


inferiores a 5/6 meses ininterruptos, o que contribuía para acentuar a presença feminina em
Ílhavo. Assim, muitas das tarefas frequentemente atribuídas aos homens ficavam entregues
às mulheres ilhavenses, o que contribuiu para vulgarizar a crença de que Ílhavo seria o
verdadeiro oásis do feminino. Autores como Maria Moreirinhas (1998) e Nuno Costa
(2008) assumem mesmo que a mulher ilhavense tinha um papel perentório nas decisões da

299 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

vida privada e social, empoderando a sua presença e influência. Foi esta conjetura que
possibilitou levantar a hipótese teórica da exceção, num contexto nacional em que a mulher
estava ainda demasiado dependente do masculino.

Todavia, resistia sempre a possibilidade de, no fundo, a sociedade matriarcal de Ílhavo não
passar de um mito que procurava transformar a mulher ilhavense num ideal romântico,
doméstico e maternal, e que era validado por uma esfera pública que convertia estas
mulheres “(…) em instrumentos culturais ao serviço do exercício de uma influência
civilizadora no universo masculino” (Peralta, 2008:166). Foi neste contexto que surgiu a
oportunidade de questionar a possibilidade de Ílhavo ser ou não uma sociedade matriarcal,
através do estudo das representações/discursos no e do feminino. Para levar a bom termo
esta tarefa, foi utilizada a imprensa local – jornal O Ilhavense – como fonte de informação
e de recolha de dados, pois, segundo Martins (2011), os media clássicos (imprensa e meios
de comunicação literários e editoriais) são comunicação pública. Os resultados da análise
destes dados foram posteriormente discutidos com o intuito de responder à questão
colocada.

Assim, a questão de investigação “Era ou não Ílhavo (na década de 1950) uma sociedade
matriarcal? – Análise de discursos de um jornal local” possibilitou gerar um nível de
discussão que permitiu determinar não apenas qual o verdadeiro lugar de representação das
mulheres ilhavenses daquela época, mas também quais os possíveis espaços de
desconformidade/resistência. Desta forma, e em primeiro lugar, a análise levada a cabo
neste estudo permitiu concluir que Ílhavo (na década de 1950) não era representado –
particularmente nos discursos d’O Ilhavense – como uma sociedade matriarcal. Ou seja,
este estudo aponta para o facto de Ílhavo não ser uma exceção no panorama nacional, e,
antes pelo contrário, que a sociedade ilhavense manifestava uma rígida estrutura normativa
masculina, que controlava e “policiava” o feminino através de um emaranhado de relações
de poder que envolviam um complexo aparato regulativo. Este complexo sistema de
relações de poder possibilitou identificar diferentes regimes políticos de representação,
através dos quais foi possível iniciar uma discussão final sobre a representação do lugar do
feminino e da(s) identidade(s) de género em Ílhavo.

300 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

7.1.1. “Teorização do poder”: os regimes políticos de representação da mulher n’O


Ilhavense, na década de 1950

Até um determinado momento, na história dos sujeitos, as relações de poder foram


consideradas e examinadas dentro de um sistema hierárquico que se baseava numa política
administrativa, onde no topo da pirâmide se encontrava sempre um elemento sobreano que
possuía o controlo dos seus súbditos através de leis (mais ou menos socialmente
estabelecidas). Contudo, o reconhecimento de que as relações entre os sujeitos são sempre
relações de força/poder, estabelecidas no âmbito do simbólico e do discurso (linguagem),
obrigou a uma reestruturação da teoria do poder, que passou primeiro pelo sentido
gramsciano de hegemonia e depois pelas aprimoradas teorias de Michel Foucault e Pierre
Bourdieu.

A contribuição de Gramsci (1996, 2006) prende-se com o desenvolvimento de uma teoria


da hegemonia – no lugar de uma teoria do poder – que procura analisar as forças de
domínio. Para o autor, a hegemonia estabelece-se através de uma relação que considera os
interesses de dominadores e dominados, embora haja sempre um grupo que domina. Este
domínio não implica necessariamente uma subordinação repressiva, pois o poder
hegemónico é exercido através de um aparato ideológico moral e até intelectual. Esta ideia
de considerar a distribuição das relações de poder por ambas as partes é revalidada pela
teoria foucaultiana que introduz o conceito de “estados de poder” (Foucault, 1984a, 2010a,
2010c). Estes “estados de poder” – religião, arte, ciência, política, etc. – implicam
dinâmicas de dominação entre os sujeitos, que se estabelecem a todos os níveis das suas
relações sociais, e que são legitimadas pelo simbólico (normas) e pela linguagem
(discurso). Para Foucault (1997, 2010c), são os dispositivos que estão dentro dos discursos
que excluem, vigiam e controlam os sujeitos, como se se tratasse de uma questão de
política convencional, passível de legitimação e, ao mesmo tempo, de normatização.

Bourdieu (2000), que reconhece que a relação dominador-dominado é assimétrica e varia


de acordo com as circunstâncias, desenvolve a teoria do poder através de “campos de
força”. Para o autor, existem vários campos – social, científico, pedagógico, etc. – onde os
sujeitos possuem diferentes estatutos e papéis. Estes estatutos são lugares sociais (por
exemplo, ser homem ou ser mulher) e correspondem a um conjunto de comportamentos
esperados que se vão personificar nos papéis sociais desempenhados pelos sujeitos. E, se

301 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

por um lado, estes campos de força exigem relações de produtividade, por outro lado, são
limitados por aquilo que o autor chamou de “censuras do campo”. Estas censuras estão
presentes nos discursos que legitimam os sujeitos e que são frequentemente reconhecidos
como discursos hegemónicos que não se dão como tal. No caso das relações de género,
Bourdieu (1999:5) afirma ainda que o domínio masculino sobre o feminino tem um
fundamento histórico e simbólico que submete os sujeitos a “estruturas históricas de ordem
masculina”. Para o autor, a dominação masculina e a divisão dos sexos são sustentadas
numa construção histórica baseada na sexualidade e numa construção social dos corpos
que, validadas por mecanismos e instituições socias (Escola, Estado, Igreja, Media),
legitimam a eternização de simbologias seculares.

De facto, é na base da legitimação das relações de poder que se baseia a teoria


bourdieusiana. Para o autor, a legitimidade funciona como uma espécie de transfiguração
das relações de força, na medida em que o dominador não se apresenta segundo formas que
o indicam como dominador, e o dominado não se apresenta segundo formas que o indicam
como dominado. Desta forma, o poder encontra-se em todas as dinâmicas sociais, ou,
segundo as teorias foucaultiana e bourdieusiana, a todos os níveis há relações de força.

A contribuição teórica destes autores é imprescindível na leitura daquilo que, neste estudo,
são as relações ou dinâmicas de poder. Quer isto dizer que se considera que as práticas
sociais e culturais ocorrem dentro de um sistema que se rege por relações assimétricas de
poder. De acordo com o que foi possível apurar na profunda discussão bibliográfica deste
estudo, estas relações de poder assentam em mecanismos regulativos que devem ser
entendidos como regras ou normas. Estas normas – que como reforça Foucault (1981,
2006, 2010c) tanto podem ser produtivas como coercivas – são autênticos estados de poder
que regularizam e (des)equilibram a vida dos sujeitos através de tecnologias de controlo
que são, muitas vezes, verdadeiros mecanismos dissimulados nas práticas sociais.

Seguindo a lógica acabada de descrever, é possível determinar que o poder se exerce,


sistematicamente, pela imposição e/ou interiorização da normatividade, que é regulada
pelas dinâmicas sociais através de tecnologias ou mecanismos de (auto)vigilância, o que
leva Michel Foucault (2010c:170) a afirmar que “o poder (…) funciona como uma
máquina”. Esta “máquina” certifica-se que as relações de poder se validam sistemática e
automaticamente através das dinâmicas sociais e, mais precisamente, das microrrelações

302 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

que se estabelecem entre os sujeitos. Esta leitura do exercício do poder incute-lhe uma
elevada carga simbólica, na medida em que implica um aparato normativo, de controlo e
de vigilância que se autorrecria com a frequência do óbvio: “o simbólico define valores, e
estes são estados de poder, estabelecidos ou produzidos incessantemente no solo móvel das
relações de força” (Martins, 1992:195).

Desta forma, a complexidade das relações de poder e a carga simbólica a elas associada
dificultam a construção de uma teoria do poder ou até mesmo de uma análise do poder em
si. Assim sendo, Foucault (2010c) defende que é necessário reunir princípios de análise das
relações de poder quando se revela essencial examiná-lo. Esta prática pode basear-se em
regimes (políticos) de atuação (que se instalam em verdadeiros “estados de poder” ou
“campos de força” que interpretam os sujeitos à luz das suas relações de poder), centrados
na sociedade (pela autoridade normativa que exercem e pela política económica que
legitimam) e/ou no próprio sujeito (pelo seu corpo, pelo seu íntimo). Trata-se de
verdadeiros regimes de “verdade” que, aos olhos da teoria foucaultiana, implicam
dispositivos delicados e extremamente eficazes, capazes de regularizar a forma como os
sujeitos atuam e se constituem como indivíduos. Portanto, olhar o poder através de regimes
políticos implica olhar o poder através de instrumentos simbólicos que legitimam e
orientam as relações entre os sujeitos (a um micro-nível), ao mesmo tempo que auxiliam
na construção das suas identidades (individuais ou coletivas).

Em suma, se o poder não pode ser analisado e/ou explicado por si só, e apenas faz sentido
dentro do feixe de relações em que atua, revela-se fundamental olhar as representações ou
os discursos (textuais e icónicos) que atravessam o seu exercício. Esta leitura discursiva,
que respeita uma estrutura simbólica, implica uma interpretação à luz de uma razão
política, que, no caso deste estudo, pode abranger vários regimes. Neste sentido, para
determinar se Ílhavo era representado como uma sociedade matriarcal na década de 1950,
foi necessário analisar a dinâmica das relações de poder entre homens e mulheres. Neste
processo, emergiu uma grelha organizada em quatro regimes políticos de representação:
política do corpo, política económica, política de controlo social e política da intimidade.

Os quatro regimes políticos, que sustentam a discussão das relações de poder e das
dinâmicas de género em Ílhavo, foram identificados com base na revisão bibliográfica da
especialidade, em articulação com a própria leitura dos dados recolhidos/analisados no

303 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

estudo empírico. Numa primeira fase, estes regimes emergiram da análise das imagens do
jornal O Ilhavense e foram discutidos particularmente naquele contexto. Contudo, ao se
determinar que as imagens evidenciavam um regime do olhar mais denunciador e arrojado
que o textual, e ao se compreender que os regimes políticos identificados estavam em
contexto com a restante análise, revelou-se imprescindível centrar a discussão final dos
dados nesta grelha.

7.1.1.1. Regime político do corpo: o sujeito incorporado

O estudo da microfísica do poder supõe que este seja exercido segundo uma estratégia de
dominação que não implique posse ou propriedade, mas sim estratégias e técnicas de
funcionamento e de manutenção que renovam, automaticamente, as relações de poder entre
os sujeitos. Isto implica que o aparato que valida e dá continuidade às dinâmicas de poder
seja constantemente vigiado por um aparelho disciplinar que reside na sociedade e nos
próprios sujeitos. Segundo Michel Foucault (2010a, 2010c), é esta disciplina que faz
funcionar o poder relacional que se autossustenta através dos seus próprios mecanismos.
Ou seja, é através destes mecanismos que se impõem as normas e que se legitimam os
processos de regulamentação social, que, segundo Foucault (1984a, 2010a, 2010b, 2010c),
Bourdieu (1999) e Butler (1990, 1993), se aplicam a todas as coisas, mas, primeiramente,
ao próprio corpo. Desta forma, o corpo deve ser pensado como um sistema, passível de
(des)codificação.

O corpo revela-se assim um meio pelo qual se faz aplicar a norma que regulariza a
sociedade (seja ela, por exemplo, baseada na binariedade sexual ou na atribuição do
género). Assim, nunca o corpo se encerra numa forma privada, pois é-lhe atribuída uma
legitimação pública e, logo, uma dimensão política: “o corpo tem a sua invariável
dimensão pública; constituído como um fenómeno social na esfera pública, o meu corpo é
e não é meu” (Butler, 2004:21). Neste sentido, o corpo, como objeto simbólico, deve ser
entendido como um efeito discursivo que, na opinião de Butler (2004), deve ser olhado
através de um lugar epistemológico (o corpo torna-se inteligível), ontológico (o corpo
torna-se regulável) e político (o corpo torna-se passível de legitimação e normatização). É
então que o corpo passa a ser reconhecido como um lugar suscetível à legitimação, à
regulação e ao controle, que tanto pode ser “vítima” de repressão, como meio para
reconstruir e exceder a norma.

304 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

À luz desta contextualização teórica, quando se olha para os dados recolhidos do jornal O
Ilhavense, independentemente da dimensão analisada, é percetível a implicação política do
corpo que, neste caso particular, legitima uma dinâmica relacional entre os sujeitos, que é
marcada por uma clara divisão entre o género feminino e o género masculino (e,
consequentemente, o seu sexo/corpo). Esta construção não permite ao sujeito uma
verdadeira libertação do seu corpo (Butler, 1993, 1997) e remete-o sempre para as
limitações da categorização do Outro. É o sujeito externo, o Outro, que olha, identifica e
categoriza os corpos, o que não permite colocar em prática as verdadeiras teorias da
identidade performativa que Butler (1990, 2004) apresenta e que fazem sentido quando se
pensa o sujeito como realmente livre.

Isto é o que se passa quando se olha para o assunto “textos escritos sobre as mulheres”,
independentemente dos autores serem homens ou mulheres, pois tanto uns como outros se
encontram sob a alçada daquilo que Pierre Bourdieu (1999:5) apelidou de “estruturas
históricas de ordem masculina”. De facto, os discursos sobre o feminino estão submetidos
a estruturas discursivas que legitimam o que representa ser mulher ou homem, que estão de
tal forma enraizadas na sociedade (tanto na época em estudo, como ainda na atualidade)
que se torna difícil pensar um lugar para o sujeito se criar a si mesmo longe da sua
corporalidade. Acrescente-se que estas estruturas conduzem os sujeitos a interpretar a
humanidade como masculina, sendo esta corporalidade masculina vista como a
“normalidade” que define a mulher (Beauvoir, 1977a, 1977b).

O mesmo acontece nos textos escritos por mulheres que apresentam um discurso
tendencialmente estereotipado baseado naquilo que deve ser a sua incorporação feminina.
As práticas de género d’O Ilhavense – neste caso o acesso à produção textual e a restrição
temática – estão em conformidade com a visão da sociedade que incorpora o binómio de
género. Retomando as teorias das autoras Simone de Beauvoir (1977a, 1977b), Judith
Butler (1990, 1993, 1997, 2004) e Rosi Braidotti (1994, 2002), que interpretam a sociedade
como tendencialmente dividida por opostos, verifica-se que no caso de Ílhavo essa
oposição é representada com base no género e nos usos do corpo, em que o masculino é a
medida e o feminino é o Outro. Esta divisão estrutural suporta-se em estereótipos e
conceções tradicionais que organizam o mundo e os espaços consentidos a cada sujeito, de
acordo com o seu género e, particularmente, com base no seu corpo. O corpo tornou-se,

305 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

com frequência, numa medida de categorização dos sujeitos, prendendo-os àquilo que se
espera que sejam os comportamentos e as atitudes espectáveis de cada sexo e, logo, de
cada género. Esta posição normativa, que não aceita perfis alternativos ou outras
performatividades (e que dificulta lugares de resistência), legitima a imagem do feminino
(e do masculino) com base no uso do corpo, e no que implica ser mulher (e ser homem).

Um dos exemplos flagrantes desta divisão do género reside no perfil “sem identificação”,
no assunto “textos escritos sobre mulheres”. Este perfil retrata as mulheres que são
utilizadas para satisfazer o imaginário literário deste jornal, particularmente o imaginário
masculino. Apesar destas mulheres não validarem este perfil, pois não contribuem
diretamente para a sua configuração (o que não permite assegurar nenhuma
individualização) os textos que o legitimam possuem um caráter moralizador que
exemplifica quais os comportamentos socialmente (in)aceitáveis da mulher ilhavense.
Desta forma, é valorizado um sentido ético que procura normatizar a mulher, apresentando
os dois pólos comportamentais do feminino: a mulher ideal (casada) e a mulher traiçoeira e
erotizada (solteira). Esta conjuntura reforça aquilo que Wood (1994) acredita serem as
representações das relações de género nos media: formas de reforçar os estereótipos e os
papéis tradicionais.

Neste estudo, a política do corpo ganha ainda mais visibilidade no campo das imagens, na
medida em que a relação entre as dinâmicas de poder e os discursos de género são
consolidados pela quantidade e pela contextualização das imagens analisadas, e ainda pelos
usos do corpo feminino. Em relação ao primeiro aspeto, salienta-se o facto de as imagens
revelarem, de forma mais clara, uma realidade que já os textos expunham, pois os
mecanismos de poder que condicionavam a produção textual parecem aqui escapar às
censuras politicamente corretas. Apesar de existir neste jornal mais produção textual do
que icónica, em termos percentuais o número de imagens que representam mulheres é mais
abundante e representativo do que na produção textual no e do feminino (tal como já foi
indicado e avaliado anteriormente neste capítulo). Esta realidade demonstra um regime do
olhar mais denunciador e arrojado que o textual, revelador das relações de género
centradas nos usos do corpo. É através do sentido simbólico destas imagens que é possível
determinar as ideologias dominantes da diferenciação de género e detetar a exposição
estereotipada do feminino, através da evidência que é dada ao corpo e à beleza da mulher.

306 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

Efetivamente, a imagem feminina é mais utilizada do que a masculina, com base em


conceitos corporais de erotismo, beleza e sexualização. A mulher é constantemente
“convidada” a monitorizar a sua aparência e a prolongar o “mito da beleza”, associando o
cuidado do corpo à idade, à saúde e ao vestuário/moda. De acordo com Barthes (1992), o
uso da imagem corporal associada ao vestuário/moda contribui para a sexualização dos
corpos e para a posterior leitura/representação social dos sujeitos. Assim, o cuidado com a
imagem pública prende a mulher a um conjunto de práticas disciplinares e de mecanismos
de regulação e de correção comportamentais, que legitimam o ideal de beleza, e que são
reforçados pela autovigilância das próprias mulheres.

No geral, a imagem da mulher é identificada como produto fabricado em torno de uma


política do corpo descontextualizada e erotizada, ao contrário do corpo masculino que
surge em contexto e como símbolo de autoridade. A mulher é representada através da
erotização do seu corpo, um corpo que se trata (com produtos de beleza e cuidados de
saúde) e que é usado no contexto publicitário. De facto, a imagem do corpo feminino é
usada em conjunto com os anúncios publicitários – tanto na venda de produtos femininos,
como de produtos masculinos – o que auxilia na leitura da informação que o anúncio
pretende transmitir, mas também fortalece a estereotipia de género e reforça o lugar
acessório do feminino.

No caso das imagens, não só o poder masculino reprime o feminino, como também produz
relações que levam o feminino a reprimir-se a si próprio, utilizando a corporalidade como
veículo para impor um poder moral e disciplinador. Esta leitura reforça a conceção de que
os corpos femininos e masculinos veem-se e relacionam-se como se se tratasse de uma
questão de política convencional, socialmente legitimada. Estas declarações, que estão de
acordo com as afirmações de Butler (1990, 1993, 2004), de Foucault (1984a, 1984b, 1984c),
de Irigaray (2005) e de Braidotti (2002), julgam a importância da diferença sexual e a sua
estruturação corporal, capazes de preservarem o binómio de género (simbólica e
socialmente):

O corpo é então uma interface, um limiar, um campo material de interseção e


forças simbólicas; é uma superfície onde múltiplos códigos (raça, sexo, classe,
idade, etc.) estão inscritos; é uma construção cultural que capitaliza sobre as
energias de natureza heterogénea, descontínua e inconsciente. (…) Na realidade
[o corpo] é agora visto como um Eu situado, como um posicionamento

307 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

incorporado do Eu. Este sentido renovado de complexidade visa estimular


novamente uma revisão e uma redefinição da subjetividade contemporânea
(Braidotti, 2002:25).

Em relação a este assunto, Braidotti (2002) atesta que o corpo, como construção social e
força simbólica, ainda se mantém no centro da discussão contemporânea, e o seu binómio
vai reforçando as relações de poder e as exclusões estruturais. A autora afirma mesmo que
os sujeitos “incorporados” (especialmente os femininos) são colocados na interseção de
importantes mediações de poder: visibilidade e representações mediáticas (consumo de
imagens corporais). Apesar desta “realidade”, Braidotti (2002) reconhece que, num
determinado contexto mediático, é natural que haja uma reação do Outro ao seu uso
corporal, embora nem sempre isso aconteça.

Em suma, a mulher ilhavense continua a ser representada como corpo que vende, que é
sexualizado e que necessita ser embelezado para ser valorizado. A imagem da mulher
sexualizada (“mito do belo”), apresenta-a como uma figura com pouca profundidade e
retira-lhe qualquer individualidade, o que limita a atuação do feminino e dificulta outras
formas de se ser mulher. A mulher é representada tendo em conta um aparato regulativo
que passa pelo corpo e que não manifesta sinais de implosão ou de resistência.

Obviamente que esta representação corporal do feminino (particularmente nos discursos


visuais) influencia a forma como a mulher se reconhece enquanto sujeito, o que
possibilitou identificar pelo menos dois perfis identitários: perfil de “identidade sem
identificação” (uso do corpo para publicitação de produtos masculinos) e perfil de
“identidade por empatia” (uso do corpo para a publicitação de cuidados de beleza e de
saúde). Em cada um destes perfis a imagem da mulher é reconhecida como ícone corporal
de beleza/sexualização, o que evidencia o olhar masculino. Para além disso, nenhum destes
perfis deixa adivinhar uma mulher autónoma e capaz de construir a sua identidade livre de
normas que se baseiam no simbolismo da diferença sexual.

De facto, é possível verificar que o regime das imagens demonstra de forma mais visível
como é representado o lugar da mulher na sociedade ilhavense. A imagem corporal da
mulher reforça estereótipos e auxilia na conceção de uma sociedade que diminui e
sexualiza o feminino. Mais uma vez se dá conta de um aparato normativo que conduz a
sociedade a uma estrutura fálica, independentemente da presença masculina em Ílhavo ser

308 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

reduzida, fruto das ausências perlongadas a que as campanhas da pesca obrigavam.


Portanto, apesar da presença física das mulheres ser abundante naquela época, não há
indícios de Ílhavo ser uma sociedade matriarcal, pois as representações do feminino
estavam limitadas pelos usos do seu corpo e eram controladas por aparatos (sociais e
simbólicos) fortemente dirigidos pela “mão” masculina.

7.1.1.2. Política económica: a economia do corpo

Segundo Michel Foucault (2010b), a economia, normalmente, implica a maneira de gerir os


sujeitos, os seus bens e as suas riquezas no interior da família, e pode ser impulsionada e
sustentada tanto pelos próprios sujeitos como pelas instituições da sociedade,
nomeadamente o Estado. No caso específico deste estudo, os dados analisados permitem
uma leitura económica que se centra, particularmente, na corporalidade do sujeito.

Em relação aos textos escritos por mulheres, é percetível a falta de “valor económico”
atribuído tanto à produção textual como à contextualização temática. Por um lado, as
autoras-mulheres estão consideravelmente em menor número em relação aos homens-
autores, o que reduz a sua importância económica na produção discursiva do jornal; por
outro lado, os temas abordados por elas afastam-se completamente da política económica.
De facto, níveis de categoria como “trabalho/profissional”, “política/economia” ou
“negócios/comércio” quase não possuem ocorrências (como se pode verificar no quadro 6),
o que justifica o afastamento das mulheres da produção discursiva dentro do âmbito da
política económica. Pelo contrário, o discurso masculino é muito mais abrangente e
valorizado dentro deste campo. Um cenário semelhante é visível no assunto “textos
escritos sobre mulheres”, visto que a “imagem” da mulher é sobretudo associada a
temáticas como, por exemplo, “criação literária”, “religião” e “morte/luto”, que não se
enquadram na política económica do sujeito.

Efetivamente, é no circuito das imagens d’O Ilhavense que a política económica se revela
mais profícua, sobretudo quando interpretada à luz dos usos do corpo no campo da
publicidade. De facto, a significação da imagem publicitária é claramente intencional,
porque “se a imagem contém signos, é pois certo que em publicidade esses signos são
plenos, formados em vista da melhor leitura (…)” (Barthes, 1992:27), pelo que, neste
contexto, é possível afirmar que o corpo adquire eficácia económica através dos anúncios

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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

publicitários. Quer isto dizer que é na produção de imagens publicitárias a produtos (tanto
de uso feminino, como de uso masculino) que a política económica se envolve no território
da corporalidade, particularmente no corpo como representação da binariedade sexual e
mecanismo disciplinado.

Tal como já foi referido na discussão sobre o regime político do corpo, as imagens d’O
Ilhavense expõem o corpo feminino como corpo que vende e corpo que se cuida. No caso
do corpo que vende, encontram-se envolvidas as imagens femininas para publicitação de
produtos masculinos. Estas imagens deixam adivinhar uma mulher que não parece
participar do processo de estruturação das mesmas, embora permita que tal processo
prolifere. Estas mulheres são aquelas que apresentam um perfil de “identidade sem
identificação”, ou seja, de não-individualização. Importa ainda referir que, nestas imagens,
o feminino é erotizado ou utilizado num padrão de beleza estereotipado, dirigido e vigiado
pelo masculino, pelo que todos os indicativos da individualidade feminina são apagados,
sendo as mulheres excluídas da estruturação da sua própria imagem.

Destacam-se ainda as imagens que valorizam o corpo feminino para a publicitação de


cuidados de beleza e de saúde. Em relação a estas imagens, as mulheres possuem algum
nível de identificação com a representação de si próprias, o que permite atribuir-lhes um
perfil de “identidade por empatia”. Apesar de nestas imagens as mulheres serem
conduzidas a regular o seu aspeto físico, parece haver uma preocupação em cumprir os
padrões de beleza, satisfazendo a espectativa social de esposas, mães e donas de casa (com
a qual se parecem identificar), mas que em nenhum momento revela indícios de as
valorizar socialmente, dando um falso sentido de identidade que Barthes (1981) associa à
relação corpo-moda.

Em ambos os perfis identificados, os usos erotizantes/sexualizantes do corpo e a


monitorização da beleza acabam por constituir as mulheres como objetos simbólicos que
existem, antes de mais, para serem olhados pelos outros (Bourdieu, 1999), através de um
ponto de vista exterior. Este mecanismo acaba por colocar as mulheres numa luta
constante, baseada na insegurança corporal, que limita a livre construção da sua
subjetividade. Quer isto dizer que as mulheres sentem a pressão de se apresentarem belas,
jovens e saudáveis (portanto, imaculadas) perante o julgamento do Outro (que tanto pode
ser feminino como masculino).

310 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

A mulher, cuja imagem “física” é potencialmente valorizada dentro do mercado dos bens
simbólicos e económicos, entra em contraste com o homem. N’O Ilhavense, o corpo
masculino é também usado, mas fora de uma política da beleza ou de uma lógica
erotizante. A imagem do homem é usada para estabelecer a ligação entre os produtos
masculinos e o público masculino, explorando uma vertente económica do uso do corpo
masculino perfeitamente contextualizada (ao contrário do que acontece com o uso da
imagem do corpo feminino). Acrescenta-se ainda que, naquela época, dentro do propósito
económico, a imagem “embelezada” do homem tendia a diminuí-lo, apagando o seu lugar
de destaque social, pelo que era raro o uso sexualizado ou embelezado do corpo masculino.

7.1.1.3. Política de controlo social

Neste estudo, a relação entre as dinâmicas de poder e os discursos de género pode também
ser analisada tendo em consideração uma vertente política de controlo social. De facto,
quer se pense nas relações entre os sujeitos através de uma dinâmica de “estados de poder”
(Foucault, 1984a, 2010a, 2010c) ou de “campos de força” (Bourdieu, 2000), é certo que a
sociedade é estruturada com base em relações assimétricas (ou “lutas”) cujo objetivo
último (ou aquilo pelo qual se “luta”) é o poder. Assim sendo, é no campo social que os
discursos d’O Ilhavense apresentam alguns dos instrumentos mais eficazes, capazes de
legitimar, controlar, excluir e/ou vigiar os estatutos, os papéis e os comportamentos dos
sujeitos sexualizados.

Tal como já foi largamente discutido, o jornal O Ilhavense não só legitima uma divisão
sexual dos corpos (e todos os preconceitos/estereótipos que isso acarreta), como valida
formas de perpetuar a dominação masculina sobre o feminino. À partida, duas das formas
de o fazer prendem-se com a mínima participação efetiva do feminino e a limitação do seu
campo de ação. De facto, segundo a revisão de literatura sobre os estudos dos media e as
relações de poder-género, não só é importante verificar as áreas em que o mundo feminino
se insere (ou é inserido) e é projetado pelos media, mas também a participação efetiva na
produção de conteúdos (Ceulemans & Fauconnier, 1979; Wood, 1994; Bamburac &
Isanovic, 2006; Cerqueira, 2008a; Cerqueira et al, 2009). Neste sentido, um dos aspetos
que se deteta no jornal O Ilhavense, tanto nos discursos no feminino como nos discursos
sobre o feminino, é que se continua a lidar com números baixíssimos, o que é
representativo da condição feminina da época: as mulheres não produziam textos, nem

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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

eram matéria textual neste jornal. Ílhavo caracterizava-se por ser, na época em questão,
uma sociedade com uma forte representação mediática masculina, onde a voz do feminino
era reduzida e limitada, pois as mulheres estavam sujeitas a restrições no espaço de
publicação e circunscritas a um conjunto de temáticas com pouca implicação/intervenção
social. O Ilhavense, efetivamente, era a voz de uma cultura, de um olhar e de um nome
masculinos.

No caso da produção textual das próprias mulheres é importante verificar, primeiramente, a


perspetiva simbólica das relações de poder através da escassa quantidade da produção
textual feminina e da sobreprodução masculina. De facto, verifica-se que a quantidade de
textos produzidos por mulheres é ínfima quando comparada com a produção no masculino:
em 10104 peças, apenas 182 (1,8%) foram escritas por mulheres (como se pode ver no
quadro 5). A autoria masculina sobrepõe-se à feminina não só em quantidade como
também em variedade temática, visto que os temas sobre os quais os homens escrevem são
mais alargados e com evidência social, económica e política. Desta forma, é mais fácil aos
homens assumirem o controlo do panorama social, ao mesmo tempo que auxiliam na
construção de uma sociedade que se autorrecria sempre com base nos princípios de
dominação masculina.

À limitadíssima produção textual feminina juntam-se as circunstâncias em que esta é


publicada, o que remete para a “censura”. Num primeiro momento, as peças eram
selecionadas e publicadas por uma equipa composta por homens, o que reforça o olhar
masculino, não só naquilo que era produzido por homens, mas sobretudo naquilo que era
produzido por mulheres. Esta realidade não difere muito do panorama nacional do século
XXI, pois, tal como salientam Cerqueira et al (2009) num estudo internacional realizado
em fevereiro de 2005, a maioria dos cargos de direção nos media pertence aos homens
(cerca de 80%), apenas 29% dos textos de imprensa são produzidos por mulheres, e
somente 10% das notícias têm como protagonistas mulheres.

As condições de publicação n’O Ilhavense, que submetem os textos das autoras ao olhar
masculino e a condições de “censura” indiscutivelmente controladas por homens, afastam-
se da premissa que valorizava a imagem de Ílhavo como uma sociedade matriarcal. A estas
condições junta-se ainda a censura política (“lápis azul”), pelo que é necessário ter em
consideração os filtros (morais, políticos, sociais, masculinos, etc.) pelos quais passavam

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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

os textos escritos por mulheres. Efetivamente, na década de 1950, a Censura era um dos
meios pelos quais era legitimado o simbolismo salazarista (Martins, 1992), que pretendia
limitar as ideias vanguardistas, e, neste caso concreto, as reflexões do feminino. O aparato
simbólico salazarista valorizava uma mulher limitada às valências da família, da crença e
da submissão ao Estado (que incorporava o ideal autoritário fálico), o que limitava a
atuação do feminino e a produção sobre o feminino no jornal O Ilhavense.

À censura – masculina e política – acrescenta-se ainda uma forma de regulação que é


socialmente incutida, muitas vezes tão naturalmente quanto possível. Trata-se das
chamadas “tecnologias” de controlo (Foucault, 1981, 2006, 2010c), envolvidas nas
estruturas de dominância masculina (Bourdieu, 1999; Butler, 2004; Braidotti, 2002), que
estão socialmente institucionalizadas, regulando atitudes e comportamentos que são
espectáveis para o sujeito de acordo com o seu género. Segundo as análises efetuadas  em
relação às temáticas sobre as quais as mulheres escrevem, o espaço político e de
intervenção social das mulheres está afastado da produção discursiva feminina: as
mulheres escrevem principalmente sobre o mundo privado (família) e sobre artes e
curiosidades. Quer isto dizer que as mulheres são afastadas e/ou se afastam das temáticas
que implicam o verdadeiro exercício do poder político e social. O poder de decisão, de
opinião e de interesse social está fora do alcance destas mulheres, e a forma de elas
circularem entre a esfera privada e a esfera pública centra-se apenas na criação literária,
mas que surge como uma espécie de imaginário estereotipado.

O mesmo se passa com o discurso sobre a morte/luto (segunda temática mais abordada
neste jornal pelas mulheres) que, em conjunto com a produção literária, se afasta das áreas
de verdadeira decisão e intervenção social. Esta evasão do mundo social parece estar
interiorizada nas mulheres ilhavenses, onde não há espaço para lugares relevantes de
existência nem de resistência. Apresenta-se assim uma realidade onde as mulheres são
constantemente excluídas do exercício do poder através de um aparato regulativo da
sociedade (Foucault, 2010C), ao qual as mulheres ajustam os seus próprios discursos.

Deste modo, a limitação das autoras d’O Ilhavense, tanto em quantidade textual como em
variedade temática traduz uma interiorização de esquemas estruturais de dominância
masculina que depois se refletem na sua produção textual: por um lado, são poucas as que
se aventuram na produção discursiva mediática, visto tratar-se de um “mundo”

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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

maioritariamente masculino; por outro lado, elas restringem-se às áreas que são
tradicionalmente destinadas ao feminino, não ousando (ou não lhes sendo permitido)
escrever sobre temáticas de verdadeira intercessão política e/ou social. Logo, a valorização
que era vulgarmente atribuída ao feminino na sociedade ilhavense – proclamando-a
matriarcal – não se verifica ao nível dos textos produzidos por mulheres.

No caso dos textos escritos sobre mulheres (com autoria maioritariamente masculina) a
política de controlo social é visível particularmente a dois níveis: a reduzida quantidade de
textos produzidos sobre mulheres e as temáticas em que estes se inserem (espaços
atribuídos ao feminino). Em relação à quantidade de textos produzidos sobre mulheres é
importante perceber que apenas 7,1% dos textos produzidos n’O Ilhavense (na década
analisada) são sobre mulheres (como se pode verificar no quadro 13), o que demonstra a
reduzida importância que a produção sobre o feminino tinha naquele contexto. Apesar das
mulheres constituírem uma parte significativa da sociedade ilhavense, parece haver pouco
a escrever sobre elas, os seus feitos e as suas atividades, tanto no aspeto quotidiano como
ao nível de outras atividades de maior destaque social.

No caso das temáticas em que o feminino é inserido destacam-se a “criação literária”, a


“religião” e a “morte/luto”. Na “criação literária” a mulher é usada para preencher o
imaginário criativo da literatura poética do jornal, especialmente o imaginário masculino.
De facto, esta é uma realidade que tanto as teorias feministas como outros avanços teóricos
dos Estudos Culturais procuram denunciar. Autores como, por exemplo, Lipovetsky
(2000), Barker & Galasinski (2001), Beauvoir (1977a, 1977b), Foucault (1984a, 1984b,
1984c), Benjamin (1988), Weir (1996), Chodorow (1978), Irigaray (1985, 2005), Gardiner
(2002), Butler (1990, 1993, 1997, 2004) e Braidotti (1994, 2002) procuram, através dos
seus estudos e publicações, trazer à discussão assuntos sobre as relações de género e de
poder, particularmente denunciando a forma como os géneros são expostos a estereótipos e
limitados a imagens que a sociedade constrói e difunde constantemente. Isto refere-se em
particular a costumes, a atitudes e a comportamentos que são classificados culturalmente
como características de cada género, criando mitos em torno do que implica ser homem e
do que implica ser mulher. Trata-se de construções sociais simbólicas que, aos olhos de
Baudrillard (1995), remetem frequentemente as relações entre os géneros a dois modelos

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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

diferenciados: o masculino e o feminino, onde os homens brincam aos “soldadinhos” e as


mulheres servem de “bonecas”.

Ainda no âmbito das temáticas às quais é associada a mulher, o segundo destaque vai para
a “religião”, particularmente em contexto social e onde a “fragilidade” feminina está
constantemente dependente da intervenção divina e masculina, figurada no padre da
paróquia. Aqui a mulher é frequentemente vigiada pelo poder assexuado deste homem, ao
mesmo tempo que é encorajada a autovigiar-se ou a autodisciplinar-se. A norma do
comportamento social da mulher ilhavense é estruturada pelo domínio masculino e é
controlada por um dos mecanismos mais bem organizados da sociedade: a Igreja. Este
panorama vai ao encontro do que já foi referido neste estudo relativamente à necessidade
que a sociedade sente em monitorizar o comportamento de género, que neste caso passa
por uma instituição social (a Igreja), mas também pelas próprias mulheres, que exercem
tecnologias de controlo sobre si (e sobre as outras mulheres).

De facto, quando política (independentemente do regime) e religião se fundem naquilo que


se conhece por convicção, crença ou fé, aumenta exponencialmente o desejo de submissão
que é controlado tanto pela Igreja (como instituição social), como pelos próprios sujeitos-
crentes. O poder da religião não exprime somente a vontade de Deus, mas também a
necessidade de subordinar os sujeitos a uma “docilidade automática” ou à “sujeição a uma
coação imediata” (Martins, 1990:47). Assim, restaura-se o sujeito regulado e submetido a
uma autoridade que pode operar de forma (in)voluntária na sociedade.

No caso de Ílhavo, o poder da religião, personificado na Igreja e na autoridade do padre, é


responsável por monitorizar o comportamento dócil e manipulável da mulher, enquanto os
homens se encontram ausentes no mar. As mulheres, não sofrendo repressão direta dos
homens (principalmente os familiares), são controladas e vigiadas pela autoridade
(in)visível da Igreja. Os comportamentos e as atitudes do feminino são orientados por uma
estrutura omnipresente e, sobretudo, socialmente validada, que vai ao encontro daquilo que
Moisés Martins (1990:88) declarou ser o poder da religião:

(…) Instrumento de uma vigilância permanente, exaustiva, omnipresente, capaz


de tornar tudo visível, permanecendo ele mesmo invisível (…), [como] um
grande olho cravado em toda a parte, uma atenção móvel e sempre atenta, uma
longa rede de dependências hierárquicas.

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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

No que diz respeito à temática “morte/luto”, nos textos escritos sobre mulheres, destaca-se
o facto de, quando se trata do falecimento de uma mulher, a construção discursiva ser
breve e particularmente informativa (sem recurso a fotografia). Apenas as mulheres
relacionadas com homens influentes têm destaque, o que, mais uma vez, legitima o
relacionamento do seu grau de exposição social e de importância com o seu grau de
ligação a um homem. Se, por um lado, a identidade da mulher se apaga no momento da sua
morte, por outro lado, ela pode ganhar destaque se associada a um homem influente. O seu
“nome” ganha importância quando, na verdade, não é o seu “nome”.

No geral, a produção discursiva sobre o feminino encaixa as mulheres no tecido social e


íntimo, particularmente na categoria “intervenção pública”, graças ao número de
ocorrências do tema “religião” que, combinada com outras temáticas, engrossa esta
categoria. Contudo, trata-se de uma “visibilidade invisível”, na medida em que estas
mulheres não assumem lugares sociais de destaque, ao contrário dos homens. Juntamente
com a temática “religião”, tanto a “criação literária” como a “morte/luto” concorrem para a
criação da “imagem” de uma mulher que não tem liberdade para se construir a si própria.
De facto, nos textos escritos sobre mulheres, parece circular uma construção da mulher
como o Outro, através de um discurso mediático que limita o feminino a determinadas
conceções estereotipadas, que são legitimadas tanto por homens como pelas próprias
mulheres. A imposição real e simbólica sobre o que se espera do género feminino é de tal
forma rígida, e as dinâmicas socias das relações de poder são tão complexas, que acabam
por ser dificultadas formas de resistência, o que desmistifica a ideia de que Ílhavo seria, na
época, uma sociedade matriarcal.

Acrescente-se ainda que, nas imagens que projetam os modelos do masculino, é possível
identificar dois perfis que têm fortes implicações sociais e que comprovam o que até aqui
foi sugerido: perfil de “homem-social” e perfil de “homem-moral”. Em qualquer um dos
casos, os homens apresentam um elevado nível de identificação e de individualização,
participando e validando a imagem que este jornal expressa de si próprios. Esta imagem do
masculino apresenta um homem socialmente visível e moralmente responsável e entra em
contraste com a imagem de mulher dependente, sexualizada e moralizada. O “homem-
social” é aquele que é representado através de imagens que englobam temáticas que
conferem autoridade e projeção social ao masculino (e que são a maioria). A imagem

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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

masculina está afastada do mundo doméstico e do imaginário “poético”, e a sua


corporalidade não é sexualizada. Antes pelo contrário, o homem é símbolo de autoridade
social, é um elemento político e é, ainda, um cidadão empenhado em causas sociais. Já o
“homem-moral” é aquele cuja imagem regulariza e é regularizada pela religião. Ao
contrário das mulheres, que não possuem qualquer destaque na hierarquia religiosa, os
homens ilhavenses ocupam lugares hierárquicos e de evidência, o que, por sua vez, dá
projeção social ao masculino. Este “homem-moral”, aparentemente assexuado, é sinónimo
de poder espiritual, moral e normativo, que dirige todo um aparato simbólico que tanto
legitima como censura (Bourdieu, 2000) o que representa ser mulher em Ílhavo.

Portanto, outra grande conclusão a que a presente análise chegou é que n’O Ilhavense
existem diversas possibilidades de atuação e até vários papéis a adotar pelos homens
ilhavenses, bem como lhes é atribuído um lugar de evidência no campo social e moral. Por
outro lado, os perfis das mulheres ilhavenses são mais limitados, insípidos e
estereotipados, havendo apenas alguns casos que parecem querer afastar-se deste panorama
(como se poderá ver no ponto seguinte). Contudo, tendo em conta que os media são uma
das formas mais poderosas e persuasivas na influência como são vistos os homens e as
mulheres, isto pode conduzir a caracterizações erradas, estereotipadas e distorcidas nas
formas como os sujeitos se veem a si próprios (Wood, 1994) e como são olhados pelo
Outro. E são estas caracterizações que vão marcar vincadamente a(s) identidade(s) de
género dos sujeitos. Resta agora recordar os diferentes perfis que foi possível identificar na
análise dos dados dos diferentes assuntos e dimensões estudados, introduzindo uma
discussão em torno da política da intimidade.

7.1.1.4. Política da intimidade: os perfis identitários

Numa tentativa de continuar a dar resposta à questão de investigação, foi possível


reinterpretar a informação analisada através de um último regime político – política da
intimidade. Este regime centra-se, em primeiro lugar, na forma como os sujeitos se veem a
si próprios, mas também na forma como são vistos pelo Outro, o que remete,
impreterivelmente, para questões de identidade. Se se entender o poder como um exercício
que não opera apenas no Estado e nas instituições socais, mas também como algo que
atravessa os sujeitos, é possível perceber como esta dimensão (e os discursos que articula)
não pode deixar de exercer influência na construção identitária dos sujeitos

317 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

(particularmente na sua identidade de género). Neste sentido, é importante compreender


qual o lugar dos sujeitos no contexto sociocultural em que se inserem, quais as relações de
poder que os envolvem e como isso se reflete na edificação da sua identidade que, como
foi assumido por Stuart Hall (1990a, 1992a, 1996d), com o advento da Pós-Modernidade,
tem tendência a tornar-se cada vez mais fluída e infinita.

Como já foi anunciado nesta investigação, a identidade dos sujeitos é reconhecida através
da conjugação de três dinâmicas: a institucional (instituições sociais como o Estado, os
Media, a Igreja, a Escola, etc.), a individual (que remete para uma escolha do próprio
sujeito) e a simbólica (que implica a incorporação de um conjunto de normas que circulam
(in)voluntariamente na sociedade). Estas três dinâmicas auxiliam na categorização da
identidade, não só como um ato de adesão pessoal, mas também como representação
(Bourdieu, 1980; Martins, 1996). Quer isto dizer que a(s) identidade(s) dos sujeitos estão
dependentes de uma espécie de vontade pessoal, mas também dos discursos sobre si (logo,
do reconhecimento do Outro).

Portanto, a(s) identidade(s) dos sujeitos não depende(m) só da sua própria construção ou
daquilo que ele identifica como sendo o seu perfil, mas igualmente do reconhecimento do
Outro. Logo, é necessário assumir definitivamente que a identidade é também uma
construção discursiva (portanto, social), que emerge de um sistema simbólico de forças,
pois, tal como indica Bourdieu (1980:67): “todo o discurso sobre a identidade (…) revela o
campo de uma luta simbólica, onde o que se decide é quem tem o poder de definir a
identidade e o poder de fazer reconhecer a identidade definida”.

No caso específico deste estudo, aquilo que as mulheres escrevem, aquilo que é escrito
sobre elas e as imagens que as caracterizam permitiram criar representações do feminino
que, apesar de exigirem o reconhecimento ou a legitimação do Outro, encontram-se
tendencialmente inseridas na esfera privada (da intimidade), do que propriamente na esfera
pública (social). De facto, no jornal O Ilhavense, o conjunto de características atribuídas ao
feminino, por meio da interpretação do conteúdo da sua produção discursiva ou da
produção discursiva do Outro sobre o feminino, permitiram identificar perfis identitários
que não revelam grande intervenção social, política e/ou económica por parte destas
mulheres. Estes perfis são o espelho identitário das mulheres ilhavenses, visíveis no
contexto da imprensa local, e representam uma realidade que expõe o espaço simbólico

318 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

que lhes é deixado. Mais do que individualizações identitárias, a maioria dos perfis
identificados surge como uma espécie de “identidades prontas” (Damean, 2006), capazes
de oferecer modelos identitários particularmente estereotipados e socialmente codificados,
apoiados em representações discursivas saturadas de normas.

Em relação aos textos escritos por mulheres, encontram-se dois tipos de mulher-autora: por
um lado, uma “mulher-emotiva/fantasiosa”, que se associa à produção literária, e, por
outro, uma “mulher-prática” ligada ao hábito informativo da morte/luto. A “mulher-
emotiva/fantasiosa” é a autora que trabalha o espaço literário de implosão emotiva, onde
sobressaem os seus sentimentos, particularmente através dos poemas e contos produzidos.
Esta “criação literária” é representativa de um discurso fortemente fantasioso e emotivo, e
que hoje se designaria por “literatura light”. A “literatura light” transfere o real para o
texto, dando-se uma forma simples e imediata de identificação entre a mulher-leitora e a
mulher-autora, em que a primeira se revê na segunda (Pereira, 2006).

Efetivamente, os poemas e os contos produzidos por estas mulheres são, na sua maioria,
estereotipados (nos temas e nas abordagens) e sem expressividade, o que demonstra a
ausência de uma teoria ou reflexão literária, que é substituída pelo excesso de descrições
afetuosas e superficiais. Para além disso, um dos objetivos destes textos parece ser o de
atribuir um homem a cada mulher – especialmente através do casamento –, utilizando um
registo no qual as mulheres parecem sentir-se mais à vontade, pois é o espaço onde
expõem a sua identidade imaginária, fantasiosa e emotiva. Esta valorização da “mulher-
casada” vai ao encontro da teoria de Pierre Bourdieu (1999:11), que admite o casamento (e
as relações de parentesco) como uma forma de fixar as mulheres a um “(…) estatuto social
de objetos de troca definidos em conformidade com os interesses masculinos, e votado a
contribuir assim para a reprodução do capital simbólico dos homens (…)”. O casamento dá
continuidade às trocas simbólicas que legitimam as diferenças e limitam a autonomia do
feminino.

Olhando atentamente para o perfil de “mulher-emotiva/fantasiosa” foi possível ainda


detetar três graus distintos de “não-identificação”: “não-identidade”, “identificação por
frequência” e “identificação mediada”. Nos casos de “não-identidade” inscreve-se a
maioria das autoras que escrevem textos estereotipados ou socialmente codificados (ex.:
nos poemas e nos agradecimentos lutuosos) e nos quais não imprimem uma identidade

319 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

própria. Contudo, uma minoria das autoras abre espaço para uma espécie de marca ou
assinatura, deixando transparecer casos de “identificação por frequência” e de
“identificação mediada”. No que diz respeito à “identificação por frequência” encontra-se a
autora Mari Carmen Flores que deixou uma marca nos leitores fruto do número de
ocorrências discursivas produzidas e de uma certa fidelização estilística. Já Maria José
Sacramento, que evolui hierarquicamente no jornal, apresenta-se como uma autora que se
escreve através dos discursos do Outro, possuindo um grau mínimo de identidade a que se
apelida de “identificação mediada”. Estes graus de “não-identificação” só vêm reforçar a
ideia de que, exceto alguns relatos de duas autoras que mostram um grau mínimo de
identificação por parte das mesmas, na sua esmagadora maioria trata-se de discursos que
apresentam um contexto em que a mulher ilhavense parece não ser valorizada (nem se
valoriza) na sua individualidade subjetiva.

Em suma, neste jornal, o feminino expressa-se através de uma produção literária que
reflete um imaginário romântico e emotivo, que funciona como fuga para uma realidade
alternativa, mas que não oferece qualquer resistência à estrutura existente, nem procura
alcançar a produção teórica, interventiva e até poética. Em contraste com este “tipo” de
mulher, surge um homem crítico, moralizador e poeticamente mais profundo, cujo discurso
é mais valorizado social e politicamente. O perfil de “mulher-emotiva/fantasiosa” parece
legitimar a dualização do conceito de género que acentua a exposição identitária do
homem-sujeito/objetivo/racional em oposição à mulher-objeto/subjetiva/emotiva que a
literatura da especialidade evoca.

No caso da temática “morte/luto”, as mulheres escrevem diversos agradecimentos lutuosos


pela morte de familiares, o que revela o testemunho de um lado prático e umbrático destas
mulheres, que é expressado através de um discurso despido de emotividade, neutro,
simples, sóbrio, prático, natural e pouco evasivo. Comunicar a morte (que é um ato tão
natural, quanto violento) é feito por estas mulheres de um modo neutro e através de uma
simplicidade denotativa. Logo, o perfil de “mulher-prática” espelha a autora que discursa
sobre a morte de forma simples, natural e através de um caráter informativo e socialmente
codificado. Esta é uma mulher que expõe o seu imaginário de mãe, esposa e filha de forma
sóbria e pouco evasiva, desencontrando-se do caráter emotivo que um ato tão violento
quanto a morte poderia deixar adivinhar.

320 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

Importa também referir que não há uma apropriação lírica da morte, sendo a produção
escrita mais realista e sólida, o que parece conferir uma espécie de endurance identitária a
estas mulheres habituadas a vivenciar a morte dos pescadores da família (frequente numa
realidade como Ílhavo, onde grande parte da população masculina se dedicava a uma
atividade de risco). É neste preciso momento que, na produção discursiva no feminino,
parece dar-se uma fuga do caráter emotivo e do imaginário lírico que se atribui à produção
literária. É na temática da morte/luto que tanto mulheres como homens se aproximam,
apresentando um mesmo tipo de lógica textual e de diminuído grau de emoção, embora
não o suficiente para valorizar uma representação do feminino com substancial destaque
(pessoal, político ou social). Contudo, este perfil de “mulher-prática”, por apresentar uma
mulher com uma identidade que se aproxima das características vulgarmente atribuídas ao
homem, pode apresentar-se como um perfil alternativo dentro da produção escrita no
feminino. Ou seja, este perfil pode anunciar-se como uma identidade de resistência, pois
quando as mulheres ilhavenses falam sobre a morte e expressam o seu luto de uma forma
prática e sóbria acabam por contradizer uma reação emotiva que se poderia esperar nestes
casos, tal como é indicado na literatura da especialidade e nos estudos realizados por
Ceulemans & Fauconnier (1979), Marzlof (1993), Bailey (1994) e Graber (1978).

Poder-se-ia assumir, portanto, que o discurso desta “mulher-prática” se anuncia no campo


da micro-resistência à dinâmica social que diminui o feminino em detrimento do
masculino. Contudo, tendo em conta o panorama em que estas mulheres são representadas
n’O Ilhavense, também é possível afirmar que, apesar de muitas das notas lutuosas terem a
assinatura gráfica de mulheres, é provável que tenham sido escritas e publicadas pelo
próprio jornal. Quer isto dizer que, ao se detetar uma linha textual semelhante na grande
maioria dos textos, é possível que existissem modelos textuais que fossem usados com
frequência, sendo apenas mudados os dados pessoais dos defuntos e das mulheres que os
“publicavam”. Assim sendo, a escrita sobre a morte/luto pode ter sido disciplinada tanto
pelo masculino, como pelas próprias mulheres que “escrevem” sobre a morte/luto, pois, tal
como afirma Foucault (2010c), o poder disciplinador está organizado de forma complexa.

É ainda possível ter uma leitura socioestratificada da sociedade ilhavense através da


produção escrita sobre a morte/luto, na medida em que o discurso desta “mulher-prática”
varia de acordo com a sua posição social. Embora a grande maioria dos textos seja simples,

321 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

natural e prática, foi possível identificar alguns exemplos mais complexos, tanto ao nível
gramatical como emotivo. Estes textos, mais longos e descritivos por natureza, ganhavam
destaque no jornal de acordo com a posição social do defunto e, por consequência, da
mulher que o “assinava”. Também nos textos escritos sobre mulheres, a identidade
feminina é apagada no momento da morte, exceto quando a defunta é associada a um
homem de elevado estrato social. Estes testemunhos são a prova que o feminino não só se
encontrava limitado no género, como também na classe, o que dificultava a libertação das
mulheres das dinâmicas que as censuravam, vigiavam e controlavam.

Retomando o que foi dito no início, estes perfis de “mulher-emotiva/fantasiosa” e de


“mulher-prática” não revelam interesse público. Efetivamente, a esmagadora maioria
destas mulheres participa de uma espécie de “não-identificação” identitária, na medida em
que não deixa uma marca pessoal na sua produção textual, parecendo não haver particular
interesse público nas suas vidas quotidianas/privadas. Para além disso, estas mulheres
afastam-se frequentemente de qualquer teorização ou intervenção social, reforçando a ideia
de que não existem grandes perfis femininos de resistência a declarar.

Portanto, a esmagadora maioria dos textos escritos por mulheres não deixa manifestar uma
identidade feminina própria, singular e em oposição ao socialmente instituído, pois o Eu
feminino nunca retoma a si livre do Outro masculino. O feminino escreve-se,
frequentemente, através de caracterizações estereotipadas que se encontram presas a
“imagens miméticas” que circulavam e se mantinham como crenças baseadas naquilo que
se conhece como os papéis sociais representados por mulheres e homens. Quer isto dizer
que, apesar das teorias modernas e pós-modernas reconhecerem que o conceito de
identidade de género tradicional sofreu um deslocamento e uma desagregação (Foucault,
1984d, 1997; Hall, 2001c; Butler, 1990, 2004; Braidotti, 1994; Weir, 1996), no caso do
jornal O Ilhavense (particularmente na década de 1950) as autoras produziam textos
mediáticos que refletiam uma categorização de género binária e pouco individualizada.
Embora se assuma, nesta investigação, que o poder dos media é simbólico e persuasivo,
capaz de controlar potencialmente uma parte da mente dos recetores (Van Dijk, 1995) e até
dos produtores de discurso, é sempre possível contar com alguma capacidade de
autonomia, liberdade e até resistência. Contudo, no caso do jornal O Ilhavense, as
mulheres produtoras de textos elegeram uma identidade assumidamente estereotipada, e

322 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

que, na grande maioria dos casos, oferece pouca resistência à imposição das estruturas de
poder masculino.

Retomando agora o assunto “textos escritos sobre mulheres”, é possível reconhecer dois
perfis de mulheres: perfil “sem identificação” (ou de “não-individualização”) e perfil de
“autoidentificação”. O perfil “sem identificação”, tal como já foi referido no regime de
controlo social, representa as mulheres que são usadas para satisfazer o imaginário literário
do jornal. Estes discursos, com um forte cunho moralizador, são exemplificativos do “tipo”
de mulher que é aceitável, censurando aquelas que não entram neste espectro. No plano da
“autoidentificação” encontram-se as mulheres que são envolvidas nas temáticas “religião”
e “morte/luto”. Em relação ao primeiro caso, este perfil é representativo de um tipo de
mulher apresentado como um ser delicado, moralizado e frágil, regularmente dependente
da interceção divina e masculina (homem moralizador). É através da religião que o
feminino é estruturado, tanto individual como coletivamente, e isto parece satisfazer as
mulheres ilhavenses. De forma alguma o papel religioso que é atribuído a estas mulheres
parece corresponder às suas necessidades de reconhecimento social, mas é como se
precisassem da religião para se “normalizarem” e encaixarem no tecido social (daí
organizarem festas, encomendarem rezas e fazerem donativos à Igreja). No caso da
temática “morte/luto”, os discursos sobre o feminino são, normalmente, notas breves e
informativas de falecimento de mulheres, que vão ganhando destaque de acordo com o seu
grau de associação familiar a um homem (e à sua posição na sociedade). Contudo, parece
não haver indícios de reação feminina a este grau mínimo de individualização.

Estes discursos sobre o feminino (criados principalmente pelo masculino) apresentam-se


como mecanismos de vigilância do comportamento (Foucault, 2010a) destas mulheres.
Trata-se, portanto, de uma construção identitária estruturalmente fálica, construída de
acordo com normas que condicionam as mulheres. Todavia, não existem igualmente
indícios de resistência feminina, o que parece apontar para uma espécie de interiorização
do modelo hegemónico masculino (Bourdieu, 1999) que prolifera na representação das
redes relacionais ilhavenses.

Segundo Bourdieu (1999), estas estruturas complexificam os esquemas de violência


simbólica, o que dificulta a superação de sistemas que estão instaurados como naturais.
Assim, os discursos legitimam a dualidade de género, e o domínio masculino sobre o

323 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

feminino tem, na opinião do autor, fundamento histórico e, sobretudo, simbólico. Portanto,


se a produção literária sobre mulheres no jornal O Ilhavense é interpretada à luz destas
teorias, é necessário considerar que a “imagem” de mulher transmitida, ou melhor, o
discurso sobre o feminino, está repleto de características que não são, necessariamente, as
“reais”, mas as “ideais”. N´O Ilhavense, os textos literários sobre o feminino expõem uma
mulher-objeto, que se define pela sua relação com o homem, especificamente pela sua
condição de casada ou de solteira. Aqui, o casamento (controlado pela relação Igreja-
Estado) é apontado como medidor e legitimador da mulher como sujeito. Mais ainda,
muitos destes textos apresentam uma mulher dependente (do homem) e erotizada (através
do corpo e da beleza) que protagonizam a teoria do (in)desejável.

Importa ainda referir que tanto nos discursos das autoras como nos textos sobre o feminino
há uma relação de interdependência interiorizada por estas mulheres que apresenta um
caráter politicamente policiado, tanto a nível comportamental e atitudinal, como a nível
corporal (Foucault, 2010c). Esta construção do feminino deixa, novamente, adivinhar uma
estrutura fálica interiorizada, vigiada e autopoliciada pelas próprias mulheres, e que não
lhes permite identificarem-se com uma identidade livre da normatividade de género que
subjuga o feminino ao masculino.

No caso das imagens que contém mulheres, e cujos perfis já foram discutidos no âmbito do
regime político do corpo e da política económica, reforça-se a ideia de que a identidade
feminina é legitimada e/ou censurada praticamente de acordo com os usos e a exposição do
seu corpo. É sobre este corpo que são fixados os atributos sociais de género (Miranda,
2008), que socialmente reconhecem o sujeito como “homem” ou “mulher”. Butler (2004)
acrescenta que o aparato de conhecimento aplicado ao corpo (como ser-se reconhecido
como mulher ou homem) implica uma violência (simbólica) implementada na norma e na
institucionalização do poder dessa implementação.

Os dois perfis de mulheres identificados nas imagens – “identidade sem identificação” e


“identidade por empatia” – são fruto de uma construção sexualizada/erotizada da mulher, o
que evidencia o olhar masculino. Logo, cada um destes perfis surge num contexto
iconográfico que remete para modalidades identitárias desprovidas de individualização.
Para o perfil de “identidade sem identificação” foram remetidas as imagens de mulheres
que servem como publicidade a produtos masculinos e que dão um sentido de identidade

324 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

adulterado a estas mulheres que não se identificam com o propósito económico e


publicitário que é dada à sua corporalidade. Para o perfil de “identidade por empatia”
foram encaminhadas as imagens de mulheres usadas para publicitação de cabeleireiros e
tratamentos de pele. Apesar destas imagens refletirem uma mulher vigiada pelo seu aspeto
físico e instigada a cumprir padrões de beleza que satisfazem a espectativa social, as
mulheres atribuem algum nível de identificação a representação de si próprias. Todavia,
em qualquer um dos casos, as mulheres são fruto daquilo que Bourdieu (1999:7) chamou
de “construção social dos corpos”. Esta construção social da corporalidade feminina
processa-se com base na aceitação de normas simbólicas/sociais que prendem as mulheres
a uma doxa de dominação masculina.

Ainda na linha da análise das imagens foi encontrado um outro perfil que é partilhado tanto
por homens como por mulheres: o perfil de “cuidadores”. Neste perfil estão incluídas as
imagens que representam ambos os géneros como beneméritos sociais e cuidadores do
Outro (especialmente da família), embora nas mulheres surja também o cenário de
cuidadoras do lar. De facto, no contexto privado-familiar, tanto homens como mulheres
parecem identificar-se com um perfil de “cuidadores” não havendo referências que
indiquem a existência de um esperado homem-chefe de família/autoritário. Este perfil não
liberta as mulheres do estereótipo de mãe de família, esposa e crente, não lhes atribuí
qualquer liberdade de personificação e não se apresenta como lugar de resistência, mas
demonstra uma posição que normalmente não é representada como pertencente ao mundo
masculino. Este perfil masculino serve, por si só, como elemento de diferença, mas não é
suficiente para representar Ílhavo como uma sociedade com características matriarcais.

7.1.1.5. Leitura “ortogonal” dos regimes políticos

Os regimes políticos identificados – que se instalam em estados ou campos de força/tensão


– comprovam, em primeiro lugar, que não é possível estar fora das relações de poder. De
facto, como afirmou Michel Foucault (1981), o poder é extensivo ao corpo social, é
intrínseco a todo o tipo de relações e tem múltiplas formas que validam dinâmicas de
dominação. Porém, como foi possível verificar através deste estudo, este poder, que tem
efeitos negativos/coercivos – ele exclui, reprime, censura, recalca –, tem também efeitos
positivos/produtivos – ele produz realidade, objetos, verdade, discursos, e os sujeitos e o
seu conhecimento podem ter origem nesta produção (Foucault, 2010c).

325 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

Olhando agora estes regimes através de um esquema ortogonal pelo qual se distribui
política corporal, política económica, política social e política da intimidade no campo de
ação das esferas pública e privada, é possível verificar em que aspetos eles se fundem e em
que aspetos se distanciam. A primeira grande conclusão retirada deste estudo é que na
esfera pública – que reúne os campos social, político e económico – as mulheres têm pouca
visibilidade e poucos perfis a apresentar. O feminino não ocupa lugares de destaque social
e é constantemente regulado pela autoridade masculina e legitimado pelas próprias
mulheres. Esta vigilância é feita com base naquilo que Foucault (2010c) chama de poder
disciplinador. Este poder disciplinador organiza-se de forma complexa, na medida em que
se revela anónimo e automático. Quer isto dizer que, a vigilância que incorre sobre os
sujeitos, numa relação de dominação, é exercida através de um feixe de relações
dinâmicas, em que ao mesmo tempo que o sujeito vigia o Outro, ele próprio também é
vigiado.

O campo da intimidade (que se deveria organizar praticamente em torno de uma esfera


privada) remete para questões de identidade, o que automaticamente implica um
cruzamento com o social/público. De acordo com Hall (2001), uma espécie de política da
identidade – que inscreve a identidade também no campo do social – fragmentou o sujeito
sociológico ao questionar o dualismo privado-público do indivíduo e ao politizar o
processo de identificação. É através deste processo que se começa a discutir a formação
das identidades sexuais e de género, e que é questionada a posição social da mulher. Então,
neste ponto, importa perguntar: Em que medida o social interfere no campo da intimidade?
E que mecanismos são utilizados nesse processo?

O facto da esfera pública não dar espaço para a criação de perfis femininos que se
destaquem social, política e/ou economicamente é figurativo de uma sociedade que
simbólica e discursivamente remete as mulheres para um lugar de não-representatividade.
Deste modo, é no campo da intimidade que sobressaem os perfis do feminino, que são
legitimados pela sociedade e, na sua maioria, pelas próprias mulheres. Estes perfis
funcionam como uma espécie de mecanismos de controlo, na medida em que comunicam
às mulheres o que podem ou não fazer e como se devem ou não comportar, sob pena de
serem excluídas socialmente (por exemplo, se as mulheres são solteiras devem procurar
unir-se rapidamente ao homem através do matrimónio).

326 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

Os perfis identificados apresentam a mulher como elemento dominado (numa relação de


dominação), como ser frágil e dependente, preso à sua corporalidade e demasiado
sexualizado/erotizado. Estes perfis são os possíveis para o contexto estudado, e assentam
sobretudo em estereótipos e/ou convicções que se estabelecem com base em regimes de
censura para quem sai desses perfis. Portanto, embora se reconheça que “(…) não existem
relações de poder sem resistências” (Foucault, 1981:82), no caso específico deste estudo
essa resistência ou contrapoder quase não se evidencia: por um lado, porque o feminino é
regulado por um aparato hegemónico masculino que faz valer o seu domínio através de
normas simbólicas e socialmente vincadas; por outro lado, porque as mulheres são elas o
seu próprio “inimigo”, pois regem-se por referências falocêntricas que as fazem interiorizar
essas normas tradicionais.

No jornal O Ilhavense, homens e mulheres são representados de acordo com diferenças


substanciais, maioritariamente de acordo com características estereotipadas e tradicionais.
O masculino é representado como medida social, moral e política, que faz cumprir o
aparato estrutural fálico em que a sociedade ilhavense parece emergida, submetendo o
feminino ao lugar do Outro. A afirmação anterior reforça aquilo que Anne Cronin (2000)
afirma sobre os media serem marcadores da “imagem” feminina que, repetidamente,
sugerem que a mulher tem a obrigatoriedade ética de monitorizar a sua aparência física
(vertente sexual da mulher centrada no corpo e nos ideais de beleza e juventude), o que
limita a sua verdadeira individualização. Mais ainda, no caso específico deste estudo,
destaca-se um conjunto de definições, requerimentos e espectativas culturais sobre as
mulheres e a identidade feminina que estão codificados socialmente, que funcionam como
“tatuagens corporais” nos sujeitos e que fazem parte de uma poderosa operação normativa.
Desta forma, não é possível admitir que a sociedade ilhavense seria sequer
tendencialmente matriarcal, pelo menos tanto quanto deixam observar as representações
estudadas n’O Ilhavense.

Em relação à corporalidade feminina, que também deveria situar-se na esfera do privado, é


ainda mais visível esta relação com os campos social, político e económico. De facto, O
Ilhavense deixa transparecer que é através do corpo que os sujeitos são avaliados,
classificados e expostos pelo Outro, antes de terem a oportunidade de se estruturarem a si
próprios. Mais, é no corpo humano que se foca a disciplina, com o objetivo de construir

327 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

uma relação que torne o sujeito obediente, sendo que este controlo é exercido primeiro ao
nível pessoal/íntimo, para depois ser disseminado na sociedade ao nível educacional, moral
e até económico. Exemplo disto é a forma como os discursos textuais e icónicos
divulgados pel’O Ilhavense são responsáveis por representar uma mulher com perfis
limitados e segundo uma imagem sexualizada, focada no mito da beleza.

Um olhar atento sobre os diferentes regimes políticos discutidos permite identificar os usos
do corpo como elemento comum. Efetivamente, o corpo deixa o seu lugar íntimo para
ingressar na esfera pública, atravessando quase todos os campos sociais: política,
economia, religião, família, media, educação, etc. É sobretudo através do corpo que são
aplicados os mecanismos sociais de vigilância e de controlo do feminino, tanto pelos
homens como pelas próprias mulheres. Ao nível da política económica, o uso sexual do
corpo ou até a divisão sexual do sujeito envolvem-se em discursos de regulamentação que
procuram resolver problemas económicos. A mulher não se evidencia na sociedade
ilhavense, mas o seu corpo é explorado social e, sobretudo economicamente, como corpo
que vende e que deve ser cuidado, de forma a preencher o imaginário literário e
iconográfico do Outro. Já o corpo masculino é aquele que se impõe como autoridade civil e
moral. Deste modo, no jornal O Ilhavense, os usos do corpo funcionam como mecanismos
responsáveis pela manutenção das estruturas de divisão sexual dentro dos regimes políticos
identificados. E, ao se reforçar o ideal de divisão sexual, perpetuam-se as diferenças
simbólicas tradicionais e estereotipadas que existem entre o feminino e o masculino.

Segundo Bourdieu (1999), a divisão sexual está objetivada nas coisas e incorporada nos
corpos que legitimam, como naturais, as diferenças entre o sexo masculino e o sexo
feminino. Esta divisão funciona graças a uma estrutura simbólica que confirma a
dominação masculina em vários campos sociais e que se verifica, primeiramente, ao nível
do corpo. Para o autor, as diferenças biológicas parecem fundamentar as diferenças socias,
contribuindo para justificar muitas das atribuições simbólicas que são conotadas com o que
implica ser mulher e ser homem:

A diferença biológica entre os sexos, quer dizer entre os corpos masculino e


feminino, e, muito em particular, a diferença anatómica entre os órgãos sexuais,
pode assim surgir como a justificação natural da diferença socialmente
construída entre os géneros (…) (Bourdieu, 1999:9).

328 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

Bourdieu (1999:21) acrescenta que as mulheres e os homens se constituem com base


naquilo que chamou de “corpo socialmente diferenciado”, pelo que tanto a identidade
feminina como a identidade masculina se estabelecem nas formas de expor o corpo e nas
formas antagónicas como os seus corpos são expostos pelo Outro. Todavia, a leitura dos
corpos continua a ser legitimada pela visão androcêntrica do mundo, sendo que o (corpo)
masculino continua a ser apresentado como a medida nas relações socias. Importa aqui
salientar que a teoria da legitimação sexual dos corpos é também salvaguardada por Rosi
Braidotti, embora seja fortemente refutada por Judith Butler. Para Butler (1993, 1997),
apesar de se reconhecer a divisão sexual como a forma pela qual os corpos são
frequentemente construídos socialmente, existem outras maneiras de os reconhecer, graças
à sua “habilidade” performativa.

Para além disto, tal como foi possível verificar neste estudo, as próprias mulheres não
contestam esta realidade, visto que estão envolvidas em relações de poder que, de acordo
com Bourdieu (1999), estão submedidas a esquemas de pensamento que são o produto da
incorporação dessas mesmas relações de poder. Logo, as oposições e classificações com
base no corpo e, consequentemente no género, acabam por possuir legitimação simbólica,
histórica, social e sistemática. Na maior parte dos casos, esta incorporação é produto de
uma fortíssima violência simbólica, que acentua estereótipos e limita as reações dos
sujeitos dominados (neste caso, as mulheres).

O facto de as mulheres não reclamarem a sua corporalidade ou de não apresentarem perfis


alternativos/resistentes é fruto dos atos de reconhecimento das estruturas masculinas
dominantes, pois, como afirma Bourdieu (1999:34), “o poder simbólico não pode exercer-
se sem a contribuição dos que o sofrem e que só sofrem porque o constroem como tal”. Da
mesma forma que as mulheres são vítimas do sistema normativo que as submete àquelas
estruturas, também os homem vão acabar por se envolver (in)voluntariamente na
representação dominante. Normalmente, esta representação do homem é feita com base na
virilidade, na masculinização do corpo (em oposição à feminidade) e na figuração da
autoridade social e moral.

Uma forma de ultrapassar esta relação de poder entre os géneros diferenciados


sexualmente baseia-se na teoria pós-estruturalista de Rosi Braidotti (2002) que afirma que
é preciso abandonar a tendência para a definição do sujeito com base em características de

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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

dualidade (ex.: homem-mulher, branco-preto, etc.). O sujeito deve ser entendido como uma
entidade dinâmica e em constante mudança, através de uma visão descentrada e
multifacetada, desafiando os modelos estabelecidos de representação. Atualmente, esta
teoria ganha mais força, graças ao constante processo de transição, hibridização,
nomadização (Braidotti, 2002) e performatividade (Butler, 2004) em que os sujeitos vivem,
e que faz com que a dualidade comparativa que é utilizada para os definir (e estabelecer a
sua identidade) deixe de fazer sentido.

7.1.2. A binariedade (“lógica do mesmo”) do modelo discursivo identitário ilhavense e


o potencial lugar da(s) resistência(s)

A discussão dos diferentes regimes políticos de representação que predominam no jornal O


Ilhavense deixam antever as complexas redes relacionais de género que existiam em
Ílhavo, na década de 1950. Estas relações não são apenas sinónimo dos sistemas de
dominação que se estabeleciam entre homens e mulheres, mas também têm implicação na
construção da(s) identidade(s) (de género) dos sujeitos. Estas identidades, como já foi
referido, baseiam-se principalmente na divisão sexual dos sujeitos, que se expressa numa
construção social dos corpos. Desta forma, os textos e as imagens d’O Ilhavense deixam
adivinhar um modelo discursivo identitário binário, que é vitalmente trespassado por um
conjunto de complexas relações de poder. A este modelo Connell (2002) chamou de
“ordem de género”, ou seja, os significados e as práticas das relações de género presentes
no mundo social que contribuem para a manutenção de esquemas identitários tradicionais.

Quer isto dizer que, tendo em conta os dados trabalhados nesta investigação e a discussão
promovida pela literatura da especialidade, é possível determinar a existência de um
modelo discursivo identitário binário, em que num dos lados se encontra o masculino e no
outro oposto o feminino. Todavia, apesar de serem representados como antagónicos, física
e socialmente, importa referir que se trata de géneros construídos com base na oposição um
do outro – o que um é o outro não é. Se, por um lado, O Ilhavense oferece a imagem de um
homem socialmente interventivo, racional, moralizador e cuidador, por outro, é
apresentada uma mulher-objeto, dependente, moral e socialmente vigiada, erotizada
(corpo/beleza), cuidadora dos outros e da família, e sem qualquer autoridade ou lugar de
destaque nas áreas de intervenção social. É este modelo que comprova que O Ilhavense (na
década de 1950) segue aquilo que Rosi Braidotti (2002) apelidou de “lógica do mesmo”.

330 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

Com base na referência a Braidotti (2002), e seguindo a linha de pensamento da literatura


da especialidade amplamente anunciada e discutida nesta investigação, a “lógica do
mesmo” apresenta-se aqui como uma estrutura identitária de género que apenas reconhece
a binariedade, em que o masculino é exposto como o Eu da relação de poder (“A”), e o
feminino como o Outro dessa mesma relação (“B”). Trata-se de dois pólos de uma relação
(“A” e “B”), que se constroem e veem um a partir do outro, mas em que o homem é
claramente o arquétipo (modelo já identificado – mas seguindo outros critérios – por
Beauvoir, Lacan, Butler, Bourdieu, entre outros pensadores contemporâneos). Identificada
a problemática – O Ilhavense, na década de 1950, segue a “lógica do mesmo” ao nível do
discurso identitário de género – importa agora perceber, com base nos dados do estudo
empírico e na revisão teórica, a possibilidade da existência de caminhos alternativos.

Rosi Braidotti (1994, 2002) aborda este assunto, afirmando que apesar da diferença sexual
ser importante na estruturação do sujeito como Eu – e no seu relacionamento com o
Outro/sociedade –, ela é fundamental na sua desconstrução. É a diferença sexual que
permite ao sujeito construir-se de outra forma, ser de outra maneira, tornar-se naquilo que
anseia sem as limitações do dualismo de género. Isto é possível através do reconhecimento
dos mapeamentos e das figurações alternativas que se encontram entre o espectro do
masculino e do feminino. É neste caminho que seguem as teorias pós-estruturalistas da
diferença sexual que procuram desconstruir o modelo dialético de representação do género
através do binário masculino-feminino. Por exemplo, ao continuar a ser vista como o Outro
de uma relação de oposições, a mulher fica desprovida de um conjunto de atributos
fundamentais para a sua construção como sujeito, reduzindo-se a um lugar de sub-
representação por falta, excesso ou deslocamento. É isto que é necessário desconstruir,
desnormatizar.

Para Judith Butler (1990, 2004), esta desconstrução/desnormatização apresenta-se na


supressão da binariedade de género do sujeito, passando a vê-lo apenas e somente – e antes
de qualquer normatividade – como ser humano. Ao se pensar o sujeito desta forma, anula-
se qualquer dificuldade em avaliar o feminino e o masculino como opostos identitários e
com base em pólos (“A” e “B”), o que facilita os processos de aceitação social da
diversidade e elimina as variantes de discriminação, fazendo fluir as relações de poder de
forma mais igualitária e legitimando a performatividade de género.

331 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

Tendo em consideração que O Ilhavense segue a “lógica do mesmo” já apontada – que ela
é uma realidade e que é com base nela que a estrutura social ilhavense é binariamente
representada na década em causa – há necessidade de encontrar soluções com base nos
esquemas de pensamento referidos. Retomando Braidotti (2002), esta apresenta uma
solução para a problemática da diferenciação de género, mais concretamente, para a
questão da “lógica do mesmo”. Este esquema reside, fundamentalmente, em reconhecer
que existe um tecido normativo e social que valida a diferença sexual, estabelecida em dois
pólos, em que “A” é o masculino e “B” é o feminino, embora no caminho entre “A” e “B”
seja possível seguir percursos alternativos, que dão acesso a outros percursos alternativos,
e assim sucessivamente. Braidotti (2002) afirma mesmo que o desafio dos sujeitos reside
assim em pensar sobre processos (mais do que sobre conceitos), de forma a considerarem
no que se querem converter, ressurgindo a teoria do “tornar-se” também teorizada por
Butler (2004). O esquema da “lógica do mesmo” apresenta-se como uma “realidade” no
conteúdo discursivo presente n’O Ilhavense, mas que parece querer aceitar – embora
superficialmente – possibilidades, lugares e figurações/perfis alternativos (já referidos) e
em mudança, capazes de cartografar relações de poder e de identificar estratégias de
resistência.

Assim, a resolução da questão da “lógica do mesmo” pode ser encontrada nas formas de
resistência ou micro-resistência, pelo que importa perceber: Quais as possibilidades de
resistência que o feminino usa n’O Ilhavense? Que representações ou figurações
divergentes se detetam? Que fluxos/transformações se oferecem ou podem oferecer? Só
analisando as possibilidades, os lugares e os perfis ou as figurações de resistência é
possível perceber e interpretar os caminhos alternativos que são deixados para as mulheres
ilhavenses e que estão representados nos discursos textuais e icónicos da imprensa local.

Começando pela possibilidade de resistência que as mulheres apresentam n’O Ilhavense na


década de 1950, importa referir que aquelas se centram exclusivamente no regime da
intimidade, nos perfis identitários identificados. Em primeiro lugar, toda e qualquer
representação identitária do feminino neste jornal concorre para o cumprimento e a
manutenção das estruturas de dominância masculina (Bourdieu, 1999), que são
automaticamente validadas, reforçadas e suportadas por um aparato hegemónico de
(auto)vigilância (Gramsci, 2006). Portanto, como já foi apontado, as mulheres encontram-

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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

se limitadas a um conjunto de temáticas e expressões que as viabilizam numa relação em


que o homem é a medida ou o “Ser Absoluto”, como indica Simone de Beauvoir (1977b).
A prova deste sistema de relações de género que legitima a “lógica do mesmo” (Braidotti,
2002) está precisamente nos perfis identitários que se encontram neste estudo. Logo, se
houver alguma indicação de resistência a estas estruturas também ela passará pelos perfis
do feminino. De facto, a maioria dos perfis detetados, sejam eles de “(auto)identificação”
ou de “não-identificação”, não se revelam grandes opositores do estado “natural” das
coisas. Contudo, e tal como já foi referido, existem casos pontuais que enfraquecem –
embora pouco – esta realidade, chegando mesmo a detetar-se um perfil que se poderia
apresentar como a única forma aparente de resistência a estas estruturas hegemónicas
masculinas: o perfil de “mulher-prática”.

A “mulher-prática” é aquela que escreve sobre a morte e o luto de forma prática, simples e
natural, através de um caráter informativo. Neste contexto discursivo, tanto homens como
mulheres se apresentam num nível aproximado de igualdade na lógica textual e no
diminuído grau de emoção quando discursam sobre a morte e o luto, fazendo-o de forma
pouco evasiva e pouco emotiva. Todavia, importa referir que a “mulher-prática” participa
de uma espécie de “não-identificação” identitária, pois não há uma marca pessoal na sua
produção textual. Ou seja, embora este tipo de produção discursiva se apresente como uma
possível forma de resistência à maneira como o feminino se anuncia e é representado n’O
Ilhavense, tal como já foi anunciado anteriormente nesta discussão é possível que a
mulher-autora não tenha “voz” na escolha dos anúncios lutuosos. Recorde-se que, dado o
caráter simples e pouco emotivo destes textos, é possível que as censuras masculinas
controlassem a produção feminina sobre a morte/luto, dando apenas espaço para a mulher
assinar textos previamente validados pela direção do jornal. Portanto, a existência deste
perfil não é suficiente para demonstrar a presença de uma mulher independente,
interventiva e subjetivada, tanto ao nível pessoal como social. Importa apenas perceber que
esta é a temática pela qual o feminino foge à normatividade estabelecida e no qual se
poderiam encontrar possibilidade transformativas.

Quanto aos casos pontuais referidos, que não são, no fundo, lugares de resistência, é
possível indicar o perfil de “mulher-emotiva/fantasiosa” (no assunto “textos escritos por
mulheres”) como potencial lugar de mudança. No perfil de “mulher-emotiva/fantasiosa”

333 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

(associado à produção literária), apesar de haver uma espécie de “não-identificação”


identitária, destacam-se os casos de duas autoras que se diferenciam pelos seus perfis: Mari
Carmen Flores que deixa uma marca nos leitores resultado do número de ocorrências
discursivas que produz e de uma certa fidelização estilística (“identificação por
frequência”); e Maria José Sacramento que se escreve através do discurso do Outro, mas
evolui hierarquicamente no jornal, sendo reconhecida pelos leitores (“identificação
mediada”). Obviamente isto não é suficiente para indicar estes perfis como marcas fortes
de resistência, até porque as mulheres ilhavenses continuam a incorporar a simbologia
normativa hegemónica do “phallus” (já Bourdieu e Butler referiam este tipo de realidade
simbólica).

Contudo, se, por um lado, a resolução teórica de Braidotti passa por encontrar
caminhos/perfis alternativos entre o binarismo (“A” e “B”), já a de Butler ultrapassa esta
estruturação e prevê uma outra construção do sujeito. Para Butler não devem existir pólos
opostos (“A-B”), nem os lugares entre “A” e “B”, mas sim uma forma completamente
diferente de pensar o sujeito. Trata-se de aceitar o sujeito como um ser humano com
capacidade performativa. Butler acredita que há espaço para uma reapropriação do
“phallus” (Lei/norma/ordem) ou até para uma reestruturação normativa/simbólica de
“outra coisa”. Isto pode significar um caminho para a subversão do género e até para o fim
da diferença sexual. Trata-se da “apropriação” ou implosão simbólica da norma fálica
através de uma estratégia performativa que implica conhecimento, desejo, relações de
poder, ação/política e conceção teórico-prática.

Em suma, Judith Butler (1990, 1993, 1997, 2004) ultrapassa o conceito de diferença sexual
e foca-se na necessidade de se abraçar a performatividade de género como condição para
compreender, aceitar e interpretar o sujeito e o seu lugar na sociedade. Esta visão comporta
grandes mudanças na forma de olhar e compreender o Outro, ao mesmo tempo que admite
novas formas de aceitar a diferença, novas performatividades, novos perfis, e, por
consequência, novos sujeitos. Esta teoria abre caminho para o desejo de “se tornar
algo/alguém” (e não apenas “ser algo/alguém”) e deixa lugar para a(s) resistência(s).

Neste sentido teórico, uma das formas de reação/resistência das mulheres pode passar pela
implosão e/ou desconstrução normativa/simbólica, através de um processo de
transformação ou de “tornar-se”; uma espécie de “fuga do falocêntrico” que Deleuze

334 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

apelidou de “fiasco da alma” (Braidotti, 2002:68). Mas então como efetuar esta mudança e
contrariar estes perfis pouco individualizadores e antissubversivos? Dando visibilidade à
produção discursiva do feminino. Mas como? Havendo a oportunidade de mais mulheres
produzirem conteúdo discursivo individual, com o qual se identifiquem e que formalizem a
sua presença e visibilidade no jornal. E, muito importante, em conjunto com o aumento da
produção feminina, e no que diz respeito ao assunto “textos escritos por mulheres”,
oferecer outros fluxos resistentes capazes de alterar o panorama estrutural das
representações do feminino, como, por exemplo, estimular a produção de textos com maior
variedade temática, que fujam à validação da censura (particularmente da masculina) e que
sejam representativos da individualidade e da verdadeira subjetividade da mulher
ilhavense.

No assunto “textos escritos sobre mulheres” não há espaço para a resistência, até porque o
feminino é trabalhado e representado pelo masculino, de acordo com uma visão
estereotipada, limitada e até erotizada. Uma das possibilidades de ultrapassar este
panorama pode estar no aumento da produção escrita sobre mulheres ao mesmo tempo que
se variam as temáticas em que o feminino é inscrito, dando alguma projeção social e
reconhecendo outros lugares e outras figurações femininas no contexto ilhavense. O estar
mais próximo da realidade seria dar espaço para que o feminino se apresentasse de acordo
com outros perfis, mais adequados a uma realidade social que era visivelmente feminina.

No caso dos discursos visuais também não se detetam lugares de resistência, embora exista
um perfil – “identidade por empatia” – com o qual as mulheres ilhavenses possuem um
determinado nível de identificação com a imagem que é apresentada de si próprias
(publicidade de cabeleireiros e tratamentos de pele). Em relação à representatividade
icónica, seria importante que a quantidade e a realidade das imagens com mulheres fosse
outra, sendo valorizadas as atividades de destaque social, político, religioso e educativo
(entre outras) em que as mulheres se envolviam. Conjuntamente com isto era importante
dar outra visibilidade à imagem do feminino que não a sexualização corporal e a
manutenção do “mito da beleza” que satisfaz o imaginário masculino.

Os dados indicados nos parágrafos anteriores vão ao encontro da opinião teórica de Rosi
Braidotti (2002), particularmente no que diz respeito à questão da denúncia à sexualização
do feminino e da exigência de um despertar político das mulheres. Para a autora, a mulher,

335 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

apesar de ser um sujeito identitário complexo, diversificado e empenhado em afirmar a


diversidade do seu caráter, é frequentemente reduzida à sua sexualidade. Entendendo que a
sexualidade se apresenta como uma instituição simbólica e social que localiza as relações
de poder, Braidotti (2002) recorda que a sexualidade acaba por forçar a alocação social da
identidade que, associada ao género, vai sofrer a influência de estruturas de poder que
reforçam a dualidade entre feminino e masculino. Para fugir a esta realidade, Braidotti
(2002) sugere que a mulher deve incorporar o desejo de um despertar político (uma
vontade de transformação), ou assegurar um fluxo metamorfoseado que acabe com a ilusão
de um único caminho identitário ou de apenas um centro de resistência.

Neste contexto, o caminho deve ser a singularidade em vez de uma posição identitária
global que sirva a todas as mulheres. O segredo (a resistência) está no desejo de “se tornar”
mulher e construir uma imagem que esteja de acordo com o que realmente implica ser
mulher (em Ílhavo ou fora dele), ou melhor, o que deveria implicar. E o segredo está
também na vontade política e na determinação em encontrar uma representação mais
adequada da realidade corporal feminina. As mulheres precisam de se pensar e de se
representar nos seus próprios termos, através de um modo ativo de ser e de “se tornar”,
para que, física e simbolicamente, ganhem um lugar com voz que afaste o materialismo
corporal e o simbolismo feminino das idealizações masculinas.

Braidotti (2002) apresenta, então, um caminho para sair da construção falocêntrica da


definição de “mulher” que assenta numa estratégia de desconstrução da imagem do sujeito
feminino: trabalhar as imagens e os discursos que os sujeitos criaram da mulher como
Outro, através da estratégia de “mimeses” (ou representação), embora isto apenas faça
sentido se não houver uma separação do mundo discursivo/simbólico do mundo
material/histórico/empírico. Para tal, torna-se central a tarefa política e conceptual de criar,
legitimar e representar um sujeito feminino diferenciado internamente, sem cair em
excessos ou relativismos. Mas, se é indiscutível que a materialidade corporal é central na
constituição do sujeito, esta também pode ser um local de implosão e/ou de resistência.
Aqui, a distinção entre desejo e vontade torna-se fundamental e a mudança política do
sujeito está na resistência. Todavia, Braidotti (2002) salienta que não é possível esquecer
que as práticas discursivas, as identificações imaginárias e as crenças ideológicas estão
fortemente incorporadas e constituem os corpos dos sujeitos, pelo que uma mudança exige

336 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

um cuidado extra e profundo: não basta mudar alguns itens que constituem a
sociedade/humanidade, mas sim mudar a sociedade/humanidade em si. Trata-se de
perceber que a própria noção de “identidade” está desajustada e que é necessário adotar
uma posição horizontal e vertical que repense todas as relações de género, tanto no espaço
como no tempo, no intervalo entre o binómio de género, evitando a polarização normativa.

Braidotti (2002) segue assegurando que devem ser as diferenças múltiplas (que não são
homogéneas nem harmoniosas, mas antes diferenciadas internamente) o cerne da
estruturação do sujeito. Estas diferenças podem e devem ser analisadas em termos de
relações de poder, onde o papel do homem reside em denunciar a exclusividade de uma
sexualidade fálica (redefinindo os seus desejos), e o objetivo de agir politicamente
(sobretudo para as mulheres) deve ser o de situar cada sujeito feminino no topo das
contradições sociais e simbólicas, para depois destabilizar este sistema sociossimbólico e
as relações de poder que o sustentam. Mas, importa não esquecer que, qualquer que seja a
opção política ou o caminho a seguir, devem ser considerados o contexto e o tempo –
atuais e genealógicos.

Num determinado momento, Braidotti (2002) coloca uma questão fulcral: Como pode o
sujeito feminino redefinir-se ou expressar-se de forma “diferente”, liberto da estrutura
hegemónica da oposição binária de pensamento em que a filosofia ocidental o confinou? A
autora automaticamente responde que o ponto de partida está no “tornar-se” mulher de
uma forma “pós-edipiana” ou “a-edipiana” (Braidotti, 2002:81), o que, na perspetiva (pós-
)feminista, se centra na ativação de agentes políticos e epistemológicos (desconstrução das
representações falocêntricas do feminino e potencial transformação das mulheres da vida-
real/quotidiano), capazes de dar definições alternativas do sujeito feminino. Braidotti
(2002) reconhece que, obviamente, todo este processo é dificultado pela teoria lacaniana
que valoriza a inevitabilidade histórica e psíquica do sistema falocêntrico centrado no
significante fálico, mas aponta duas soluções teóricas para esta problemática: segundo
Irigaray pode-se substituir isto por um simbólico feminino, expresso num imaginário que
deixa de ser mediado pelo “phallus”; e segundo Deleuze pode-se repensar a subjetividade
sem fazer referência ao sistema simbólico de ninguém. De qualquer forma, uma nova
construção do sujeito feminino implica uma revisão do próprio conceito de subjetividade
humana no geral, pois o “tornar-se” mulher não deve ser algo que se oponha à

337 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

masculinidade, mas algo diferente, reinventado, transformador, complexo, relacional e


nómada, que vá “além da lógica da reversibilidade” (Braidotti, 2002:85).

Em jeito de síntese, até este momento foi possível perceber que questões como o género, a
diferença sexual, a corporalidade, a performatividade e o desejo (de reconhecimento),
amparadas pelas teorias discursivas do poder, são fundamentais na compreensão das
dinâmicas sociais. Foi possível interpretar a influência da socialização na construção da
identidade de género “tradicional”, na medida em que a sociedade potencia a atribuição de
papéis sexuais e de perfis identitários com base no sexo (Foucault, 1984ª, 1984b, 1984c;
Boudreau, 1986; Bourdieu, 1999; Braidotti, 2002; Butler, 2004). De facto, reconhece-se a
sexualidade como fulcral na constituição do sujeito e das relações de poder que ele
acarreta, graças à importância económica, cultural e simbólica que ganhou na cultura
ocidental. Logo, é esta normatividade social e simbólica que legitima e suporta as
estruturas de dominância falocêntrica (a supremacia modelar do homem, branco,
heterossexual e proprietário), dificultando outras formas de pensar e construir o sujeito
(sobretudo o feminino) e a sua forma de viver em sociedade. Mas, quando se fala de um
processo de transformação que implique alterar estas estruturas, é preciso ter consciência
que dissolvê-las (ou à diferença sexual) acarreta fortes consequências sociais e até
psíquicas.

De facto, quando se fala em diferença sexual/de género (binária) isso é consequência de


uma rede de relações de poder que inclui um conjunto vastíssimo de outras variáveis, que
levam a pensar que a sociedade funciona respeitando apenas normas coercivas. Segundo
Braidotti (2002) e Butler (2004), estas relações de poder centram-se numa matriz
heterossexual (falocêntrica) que atribui uma hierarquia identitária binária sexualizada, ou
seja, no fundo, a problemática da sociedade reside na diferença sexual/género – a matriz do
pensamento normativo/simbólico. A solução residiria na diversidade e na complexidade de
possibilidades subjetivas, ou seja, nas múltiplas diferenças dos sujeitos – que não são
homogéneas nem harmoniosas, mas antes diferenciadas interna e externamente. Estas
diferenças podem e devem ser analisadas em termos de relações de poder: “o sujeito é um
processo, feito de constantes trocas e negociações entre diferentes níveis de poder e desejo,
constantemente deslocando-se entre escolha intencional e impulsos inconscientes”
(Braidotti, 2002:75-76).

338 
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal” 

Em suma, Braidotti (2002) sugere dois caminhos para resolver os problemas conservadores
e a diferença sexual da sociedade contemporânea. Em primeiro lugar, deve-se usar uma
crítica baseada nas teorias do “tornar-se” ou “transforma-se” num sujeito diferente,
renovado e “desterritorializado” (que reconheça novas figurações simbólicas e
normativas). Esta posição está também de acordo com a teoria performativa já apontada
por Butler (2004) e amplamente discutida nesta investigação. Em segundo lugar, devem-se
valorizar as reivindicações feministas e reconhecer a diferença sexual de forma a
possibilitar a crítica às relações de poder que essas assimetrias acarretam:

(…) As firmes intervenções feministas são necessárias dentro no nomadismo


filosófico para reinscrever as políticas de locação e de diferença sexual no
sentido de uma dissimetria entre os sexos para que se possa permitir uma crítica
dos diferenciais de poder que estão inseridos nessas diferenças (Braidotti, 2002:
213).

Neste caso, apesar de valorizar e defender as lutas feministas, a teoria butleriana segue um
caminho diferente, como já foi apontado, na medida em que pretende superar o conceito de
diferença sexual e vê o sujeito como ser humano capaz de ultrapassar as barreiras da
sexualidade. Este é o verdadeiro espírito do Pós-Feminismo. Contudo, apesar de
teoricamente diferentes, as posições destas duas teóricas (que se posicionam sempre que
necessário entre o Feminismo, o Antifeminismo e o Pós-Feminismo) concorrem para
implodir os sentidos, os valores e os símbolos identitários. Isto permite uma mudança no
imaginário social contemporâneo que culmina no colapso ontológico da Pós-Modernidade,
onde o(s) Outro(s) (femininos ou não) se renova(m) – sexual, corporal, material, subjetiva
e até tecnologicamente (Ferreira, 2015) –, elaborando novos quadros concetuais e abrindo
a possibilidade de novas ansiedades ou de novos posicionamentos da subjetividade.

339 
 

 
 

Uma cultura matriarcal em Ílhavo? – Contributos para a reavaliação de uma


representação persistente

A principal conclusão a que esta investigação chegou é que o género – e a prática


discursiva que o acompanha e constrói – se apresenta como sistema de poder e
performatividade identitária, o que se encontra de acordo com as principais e mais recentes
investigações de género na área dos Estudos Culturais. De facto, foi possível chegar a esta
conclusão depois de terem sido analisados e discutidos os conceitos de poder, discurso e
identidade(s) (de género) no âmbito dos Estudos Culturais (à luz das teorias modernas e
pós-modernas que foram introduzidas no capítulo I e desenvolvidas nos restantes
capítulos) e a partir dos quais se estudou o contexto ilhavense (utilizando para isso o jornal
com maior tiragem no concelho – O Ilhavense).

De acordo com o senso comum, Ílhavo seria uma sociedade dominada pelas mulheres. Foi
no sentido desta afirmação – perpetuada naquela região por muitas décadas e até ao
presente – que se estruturou esta investigação, sobretudo com o objetivo primordial de
responder à seguinte questão de investigação: “Era ou não Ílhavo (na década de 1950) uma
sociedade matriarcal? – Análise de discursos de um jornal local”. Colocada a questão de
investigação, cedo se reconheceu que seria fundamental desenvolver o estudo empírico
numa base teórica transdisciplinar e num sistema metodológico multifacetado que só os
Estudos Culturais oferecem. Isto porque, por um lado, seria necessário definir, interpretar e
relacionar vários conceitos, oriundos de diferentes áreas disciplinares, como, por exemplo,
os conceitos de poder, de discurso, de identidade e de género; e, por outro lado, porque os
Estudos Culturais exigem a valorização dos sujeitos e das suas práticas, fornecendo as
ferramentas necessárias para que se possa examinar, interpretar e criticar qualquer texto,
instituição ou prática cultural dentro do sistema de relações onde estes são criados,
consumidos e (re)produzidos.

Seguindo a linha teórica e epistemológica dos Estudos Cultural, e segundo o estudo


empírico elaborado – que consistiu em analisar a representação discursiva do jornal O
Ilhavense –, Ílhavo (na década de 1950) não era realmente uma sociedade matriarcal. Quer
isto dizer que, apesar da presença física feminina ser particularmente forte em Ílhavo
naquela época (fruto das condições sociais e económicas específicas que se viviam e que
obrigavam à ausência prolongada dos homens nas atividades de pesca longínqua), esta

341 
Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente

sociedade não surge representada, no mais importante jornal da época, como matriarcal.
Pelo contrário, a voz do feminino era reduzida e limitada, a sua condição não era matéria
de destaque e a sua imagem era sobretudo sexualizada.

Um olhar sobre a produção textual no feminino no jornal O Ilhavense mostra que as


mulheres produtoras de textos estão limitadas na produção, no espaço de publicação e nas
temáticas, que têm pouquíssima importância social ou política. Assim, resta às autoras d’O
Ilhavense escreverem sobre o mundo privado (família) e sobre artes e curiosidades, sendo-
lhes negado o espaço político e de participação social. Trata-se de uma regulação que é
socialmente incutida e mantida pelas “tecnologias” de (auto)controlo, que se encontram
envolvidas em estruturas de dominância masculina. Quer isto dizer que estas mulheres
produzem textos que representam o seu “lugar” de Outro, numa sociedade que se rege por
normas tradicionais que distribuem os papéis masculinos e femininos – dando primazia
social, política e moral ao homem –, não apresentando aqueles, no jornal estudado,
qualquer tipo de resistência a este estado de coisas.

À luz da teoria do poder hegemónico, desenvolvida primeiramente por Gramsci (1996,


2006), poder-se-ia dizer que estas autoras revelam a existência de uma complexa relação
hegemónica entre o grupo dominador (masculino) e o grupo dominado (feminino),
validada por um conjunto de elementos morais, práticos, intelectuais, propagandísticos e
simbólicos, capazes de orientar o grupo dominado (que se personifica nas próprias
mulheres-autoras). Não se trata necessariamente de ver a hegemonia como uma questão de
subordinação repressiva do grupo hegemónico, ou, no caso do género, de ver, por exemplo,
a mulher como forçadamente (no verdadeiro sentido do conceito de força ou violência
física) sujeita ao poder masculino. Para Gramsci (2006), é imprescindível que se tenham
em consideração os interesses de ambos os grupos sobre os quais é exercido o poder
hegemónico, embora haja sempre um grupo que reúne um conjunto de elementos
destinados a dirigir e a orientar o grupo dominado.

À forma como o grupo dominante mantem o monopólio intelectual e moral sobre o grupo
dominado, Gramsci apelidou de “bloco ideológico”. Este “bloco ideológico” é um
reconhecimento do poder ideológico que instituições como a Família, a Escola, a Igreja, os
Media, os eventos culturais, os partidos políticos e ainda simples estereótipos exercem na
estruturação e conservação do poder hegemónico, e isto aplica-se com precisão a partir do

342 
Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente

ponto de vista do género. Neste sentido, as mulheres que produzem textos n’O Ilhavense
não questionam o campo estreito de publicação e limitam-se às temáticas pouco profundas
e insípidas que desenvolvem, sendo vigiadas, sobretudo, pela Igreja e pela imprensa local,
que validam os comportamentos moral e socialmente aceites.

Como foi possível averiguar no capítulo destinado ao estudo empírico, as mulheres


destacam-se através da produção literária pouco profunda (uma espécie de “literatura
light”) e do discurso sobre a morte/luto (realista, sólido e assertivo), não havendo grande
espaço para resistências efetivas. Portanto, na generalidade, as mulheres são excluídas (e
excluem-se) do exercício do poder através de um aparato normativo imposto pela
sociedade e que, aparentemente – e tanto quanto é possível constatar pela análise do
material levantado –, elas próprias validam. Isto deixa transparecer dinâmicas de
dominação entre os sujeitos que atravessam todas as suas relações sociais – no
entendimento do micropoder de Foucault (2010a) – e que são legitimadas pelas normas
simbólicas e pelos discursos (linguagem). Portanto, no que diz respeito aos textos que são
escritos por mulheres, não existem evidências de que Ílhavo fosse uma sociedade
matriarcal, mas antes um lugar em que o feminino era fortemente vigiado e limitado nos
campos da produção discursiva e da atuação social.

No caso da produção textual sobre o feminino, as mulheres não têm lugar na construção da
sua imagem ou representação, satisfazendo um imaginário repleto de estereótipos e
conotações tradicionalistas. Apesar das mulheres formarem parte significativa da sociedade
ilhavense, a quantidade de textos produzidos sobre elas é baixa, para além de que o espaço
atribuído ao feminino é limitado e inclui, sobretudo, três temáticas: “religião”, “morte/luto”
e “criação literária”. A “religião” apresenta a mulher como sujeito frágil e dependente do
masculino, encorajando-a a autodisciplinar-se. No caso da “morte/luto”, as mulheres são
desvalorizadas no anúncio da sua morte, sendo apenas destacadas quando associadas a um
homem. Já na “criação literária”, a mulher é usada como elemento necessário para
preencher o imaginário “poético” do jornal.

É a postura acima indicada que, no entendimento foucaultiano, complexifica as relações


entre os sujeitos e permite fazer uma leitura do poder como um assunto de linguagem ou
discurso. Desta forma, e segundo a análise dos textos escritos sobre mulheres, é possível
perceber como são intensificados os estereótipos e os mitos em torno do que implica ser

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Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente

mulher (e ser homem), o que acaba por ter impactos nas classificações ao género. Logo, os
sujeitos acabam por ser construídos com base no seu sexo/género e sempre em relação a
categorizações heteronormativas (a partir do Outro). Isto porque o feminino (o grupo
dominado, à luz da teoria do poder hegemónico de Gramsci) é construído sobretudo com
base nas conceções masculinas (o grupo que domina). Por outras palavras, o poder
hegemónico auxilia na construção e na subsistência dos discursos estruturantes da(s)
identidade(s) de género, pois o grupo dominante “tem” o poder de determinar a identidade
e o poder de fazer reconhecer a identidade determinada.

Como foi largamente discutido no capítulo II desta investigação, para Foucault, as


dinâmicas relacionais entre os sujeitos são legitimadas pelos dispositivos que se encontram
dentro dos discursos e que excluem, vigiam e controlam os sujeitos. Estes discursos
obedecem a normas sociais que reconhecem e legitimam os sujeitos, e que estão presentes
nos próprios sujeitos (que acabam por se autopoliciar). Desta forma, o sujeito constrói-se e
é vigiado com base numa estrutura que se renova automaticamente, atribuindo ao poder um
caráter tanto produtivo quanto repressivo. É também na base da legitimação das relações
de poder que se alicerça a teoria de Bourdieu. Para o autor, o dominador não se mostra
segundo formas que o anunciam como dominador, e o dominado não se mostra segundo
formas que o anunciam como dominado. Deste modo, o poder encontra-se em todas as
dinâmicas sociais, legitimando as relações de força entre os sujeitos.

Em suma, o exercício do poder encontra-se distribuído pelas relações sociais e multiplica-


se nos discursos e instituições, não se tratando apenas de um mecanismo negativo de
controlo dos sujeitos, na medida em que tanto pode assumir contornos repressivos como
produtivos. Assim, os sujeitos constroem-se com base nas microrrelações de poder que
estabelecem com o Outro e que são sustentadas por instituições sociais. Estas instituições –
como o Estado, a Escola, a Família, a Igreja e os Media – potenciam a circulação de
discursos de poder e de representação da sociedade, e têm-se apresentado como
fundamentais na construção identitária dos sujeitos, particularmente ao nível da
estruturação da(s) sua(s) identidade(s) de género. De facto, as questões de poder e de
discurso prendem-se com as questões de identidade, sobretudo quando a identidade é vista
como um problema criado sob pressões culturais.

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Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente

Ao apresentar o feminino como género dependente e corporalmente erotizado, o jornal O


Ilhavense legitima simbolicamente o domínio da masculinidade, dificultando a
estruturação primordial do sujeito. Como foi referido nesta investigação, e particularmente
no capítulo III, o sujeito – que é tradicionalmente representado com base em categorias de
dualidade – deveria orientar-se para a liberdade que lhe permite criar lugares de resistência
e/ou construir-se a si próprio a partir de outros e diversos lugares, tal como anunciam as
teorias da identidade performativa defendidas por Butler (1990, 2004). Contudo, O
Ilhavense mostra um sujeito feminino que se cria e recria dentro da dualidade de género,
apresentando papéis e perfis identitários socialmente validados e policiados tanto pelos
homens como pelas próprias mulheres.

No que diz respeito à análise das imagens presentes n’O Ilhavense, estas apresentam um
regime do olhar mais denunciador que o textual. Em primeiro lugar, e apesar da quantidade
de imagens de mulheres ser superior à quantidade de imagens de homens – ao contrário do
que acontece com o número de textos produzidos por sujeitos de ambos os sexos – O
Ilhavense mostra, de forma mais evidente, como é vista socialmente a mulher e quais as
suas atribuições corporais. As mulheres são representadas através do “mito do belo”, com
pouca profundidade e mediante papéis tradicionais com pouco impacto na vida social. A
imagem da mulher é sobretudo associada ao corpo/beleza, o que reforça as práticas de
(auto)vigilância de forma a remeter o feminino para um lugar de erotismo e sexualização.
Neste caso, o corpo feminino é reprimido pelo corpo masculino (que surge nas imagens
d’O Ilhavense como lugar de autoridade social, moral e disciplinadora). Estas
características articulam-se com as estruturas hegemónicas masculinas, que validam
construções sociais simbólicas baseadas no binarismo tradicional de género, em que o
homem é a “medida” e a mulher é o Outro.

Portanto, se Ílhavo se assumia como uma sociedade matriarcal, esperar-se-ia que o


feminino fosse representado mediaticamente numa estrutura social visível e com um
caráter intensivo e empoderador. Todavia, isso não acontece, não havendo mesmo lugares
de manifesta resistência feminina, pois as mulheres assumem uma imagem estereotipada
submetida às estruturas de poder masculinas. Logo, o carácter repressor do poder encontra
aqui toda a sua expressão, na medida em que a limitação do feminino a determinadas
“imagens” dificulta a própria libertação das mulheres deste tipo de normas rígidas e

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Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente

tradicionais. De facto, a forma como a mulher e o seu corpo são representados n’O
Ilhavense segue no sentido daquilo que Foucault intitulou de “política do corpo”, em que
os sujeitos se veem e se relacionam com os seus corpos e com os corpos dos outros através
de convenções e mecanismos de poder socialmente ratificados.

Ao ser entendido como lugar político, o corpo fica suscetível à normatização, e os sujeitos
acabam por ser construídos como campos de desejo e de reconhecimento, ao mesmo tempo
que se tornam vulneráveis. Ao concorrer para que o corpo feminino tenha uma dimensão
pública e seja instituído como fenómeno social, O Ilhavense perpetua um ideal de mulher
estereotipado e tradicional, que concorre, juntamente com os discursos textuais, para criar
uma identidade feminina, que é fruto das relações de poder que se exercem sobre si e o seu
corpo.

Neste sentido, e reconhecendo que o poder está incorporado em diversas práticas que
limitam e simultaneamente produzem a identidade dos sujeitos (particularmente a(s) sua(s)
identidade(s) de género), esta investigação discutiu igualmente este tema, em particular nos
capítulos III e IV. De facto, na década de 1980, os Estudos Culturais aprofundaram as
teorias sobre a construção da identidade, concentradas agora na ideia de que o sujeito passa
a ter várias identidades que se (trans)formam constantemente, evoluindo para aquilo que
Stuart Hall (2001c) considera o indivíduo fragmentado. A primeira parte do terceiro
capítulo desta dissertação discute, a partir dos Estudos Culturais, a identidade como um
lugar de partilha cultural, absorvendo da Modernidade a ideia de que a identidade segue
por trilhos autorreflexivos suscetíveis à mudança, à multiplicação e à inovação, e retirando
da Pós-Modernidade a ideia de que a identidade vai ficando cada vez mais instável,
fragmentada e até frágil. Ao discutir a identidade a partir da cultura, os Estudos Culturais
valorizam as relações que os sujeitos estabelecem entre si, e a forma como se dirigem ao
Outro ou como se – auto e hétero – representam, criando sistemas de força, de adaptação e
de resistência.

A identidade é, assim, construída dentro dos discursos, que incluem representações que
circulam na sociedade e que provêm das relações que os sujeitos estabelecem entre si. Isto
pode significar, por um lado, uma pluralidade de identidades disponibilizadas pelo
contexto cultural, mas, por outro, uma prisão estereotipada em modelos identitários “pré-
fabricados” e prontos para serem aplicados de acordo com determinadas características dos

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Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente

sujeitos. Esta realidade estereotipada é frequentemente aplicada em relação ao género,


onde “identidades prontas”, culturalmente disponíveis, principalmente nos media, são
oferecidas para serem aplicadas de acordo com os comportamentos, as atitudes e os hábitos
(femininos ou masculinos) dos sujeitos.

De facto, o capítulo IV deste estudo parte da premissa de que através dos meios de
comunicação é possível detetar como a(s) identidade(s) de género são construídas e
expostas no meio social, pois os textos e as imagens são apresentados como uma prática ou
realidade sociocultural. Deste modo, mais do que determinar quais os papéis de género
estereotipados que os media multiplicam, é necessário analisar as cristalizações simbólicas
contidas nas suas práticas discursivas, que, muitas vezes, oferecem modelos tradicionais de
identidade de género, onde os homens são apresentados como o modelo, a normalidade e a
igualdade e as mulheres como a diferença. Assim, os media apresentam-se como uma das
instituições mais influentes na forma como vemos o género masculino e o género
feminino, o que pode conduzir a conceções estereotipadas e culturalmente condicionadas
na forma como os sujeitos se veem a si próprios e como percebem o normal e o desejável.

Desta forma, nesta investigação a discussão também se centrou nos perfis identitários que
emergiram da análise do estudo empírico, com base nos discursos textuais e visuais do
jornal O Ilhavense, e tendo em conta diversos indicadores simbólicos e identitários
recolhidos na revisão bibliográfica. Em suma, ao contrário do homem, que se apresenta
através de várias possibilidades de atuação e de diferentes papéis, o perfil feminino é, na
generalidade, mais limitado, insípido, estereotipado e moralizado, e mesmo direcionado
para satisfazer um certo imaginário literário pretensamente “poético”. São frequentes os
casos de “não-identificação” e de “não-individualização” identitária das autoras (quer
porque não se distinguem umas das outras quer porque a sua presença não chega, na
generalidade, a ser constante e suficientemente individualizada) e são débeis os exemplos
de resistência. Trata-se de mulheres que se autovigiam aos níveis do comportamento e que
legitimam a sua exposição corporal, deixando sobressair uma enraizada estrutura fálica
pela qual se orientam (e são orientadas).

A mulher é, portanto, direcionada para modelos identitários sem grande identificação ou


individualização, sendo apresentada como símbolo corporal, de beleza e de sexualização.
Já a imagem do homem, que apresenta um elevado nível de individualização e de

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Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente

identificação, permite a construção de dois perfis com projeção e poder


social/espiritual/moral/normativo: o “homem-social” (que tanto é valorizado nos negócios
e nas atividades de beneficência, como é celebrado na morte) e o “homem-moral” (símbolo
omnipresente, cumpridor dos costumes e policiador dos comportamentos sociais). Em
suma, trata-se de um homem-social-moral que representa a regra (a Lei, a norma) e que
entra em contraste com uma mulher infantilizada, emotiva e fútil, e, simultaneamente, vista
pela perspetiva quer da sua beleza quer do seu valor erótico ou sexual.

Resta apenas referir o perfil de “cuidadores” que é partilhado tanto por homens como por
mulheres, fugindo um pouco às evidências espetáveis e delineadas pela revisão
bibliográfica. De facto, homens e mulheres surgem como beneméritos sociais, apesar de,
no caso das mulheres, existir também uma dimensão de cuidadoras do lar. Contudo, não
existem referências que evidenciem a presença de um homem-chefe de família. No
contexto familiar, tanto homens como mulheres apresentam um certo nível de identificação
com uma espécie de “perfil cuidador”. Talvez isto se fique a dever ao facto de os homens
estarem ausentes por longos períodos de tempo, atribuindo-se um certo equilíbrio de papéis
no que diz respeito ao cuidado da família, fugindo-se daquilo que era considerado, à época,
como expectável (que, no clima salazarista que vigorava, implicava que o homem
assumisse o papel de chefe de família). No entanto, apesar desta dualidade, não existem
evidências de uma mulher-chefe de família, ou de qualquer outro destaque no feminino,
que permita considerar esta sociedade como matriarcal.

A análise realizada permitiu também olhar os perfis do feminino e do masculino através de


um regime político da imagem, que distingue os papéis corporal, íntimo, social e
económico do discurso de género. Por um lado, apresenta-se uma mulher erotizada
(frequentemente de forma descontextualizada), com um corpo que vende (e que precisa de
ser constantemente tratado) e que se legitima por ser uma mãe, uma esposa e uma crente;
por outro lado, apresenta-se um homem com visibilidade social e autoridade, mas que
também se implica na vida familiar (cuidador), e cuja imagem não demonstra indícios de
fins corporais sexualizados (sendo a sua representação corporal, normalmente, colocada de
forma contextualizada).

Ainda de forma a dar resposta à questão de investigação, este estudo procurou – através de
um último capítulo (Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”) –

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Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente

recuperar as principais conclusões retiradas da análise dos dados e dar-lhes uma nova
leitura com base nos regimes políticos já antes identificados no âmbito da discussão que as
imagens do jornal O Ilhavense suscitaram: política do corpo, política económica, política
de controlo social e política da intimidade. Estes regimes políticos de representação
permitiram fechar a discussão relativamente aos paradigmas de representação de género
presentes no jornal O Ilhavense, possibilitando uma complexificação das relações de poder
e da(s) identidade(s) de género que daí surgem.

Estes regimes demonstram que não é possível estar fora das relações de poder e que,
enquanto sujeitos, os seres humanos ocupam espaços que articulam esfera privada e esfera
pública. No caso dos discursos d’O Ilhavense, conclui-se, em primeiro lugar, que na esfera
pública – campo social, político e/ou económico – as mulheres têm pouca visibilidade e
poucos perfis disponíveis. As mulheres ilhavenses não são representadas em lugares de
destaque social e o seu comportamento é frequentemente regulado pelo homem (autoridade
masculina) e legitimado pelas próprias mulheres. Verifica-se igualmente que o campo
privado da intimidade remete para questões de identidade, pelo que se abre e funde com o
social, logo, com a esfera pública. Todavia, estes perfis são pouco profundos, insípidos e
limitados a um espaço de pouca visibilidade, o que, aliado ao que anteriormente foi dito,
concorre para pôr em causa a ideia de que Ílhavo era representado como uma sociedade
matriarcal.

Porém, uma das principais conclusões retiradas da análise dos regimes políticos – e,
consequentemente, desta investigação – prende-se com os usos do corpo, ou aquilo que se
interpreta como política corporal, tanto quando foi possível perceber da análise do jornal O
Ilhavense. De facto, nos discursos textuais e icónicos presentes n’O Ilhavense, os sujeitos –
particularmente as mulheres – são constituídos com base na sua corporalidade. Quer isto
dizer que a mulher e/ou o homem são pensados e expostos de acordo com o seu corpo
(independentemente do campo – social, económico, íntimo – pelo qual são examinados),
através de um aparato regulativo que assenta em normas simbólicas estereotipadas e
tradicionais. Se, por um lado, a mulher é sinónimo de corpo que vende e que deve ser
embelezado/sexualizado para ser olhado pelo Outro, por outro lado, o corpo do homem é
utilizado como símbolo de autoridade social. No jornal O Ilhavense, o corpo funciona
como mecanismo responsável pela manutenção de estruturas de divisão sexual,

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Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente

perpetuando-se, automaticamente, as diferenças simbólicas (tradicionais e estereotipadas)


entre homens e mulheres.

Ao vulgarizar uma estrutura discursiva (e simbólica) que legitima a divisão sexual


(baseada na corporalidade binária do sujeito), o jornal O Ilhavense concorre para manter
um modelo discursivo identitário binário. Trata-se de um modelo estrutural que apresenta
numa ponta o masculino e na outra ponta oposta o feminino, em que o primeiro se
apresenta como elemento racional, moralizador e interventivo, e o segundo como elemento
dependente, moralizado, (auto e hétero)vigiado e sexualizado. Esta disposição concorre
para aquilo que Braidotti apelidou de “lógica do mesmo” e que assenta numa relação de
dois pólos, que se constroem a partir um do outro, mas onde o homem é o arquétipo.

Foi através da identificação deste modelo binário e da persistência d’O Ilhavense na


“lógica do mesmo” que foi possível discutir, no final do último capítulo, possibilidades
alternativas. Estes novos caminhos, que encontram sustentação teórica na revisão
bibliográfica, apresentam-se, igualmente, como conclusões plausíveis para este estudo e
como oportunidades para futuras investigações, atingindo-se, assim, um dos objetivos
propostos para o estudo empírico.

De facto, a sociedade é frequentemente pensada em termos da “guerra dos sexos”, onde a


construção do género segue a “lógica do mesmo” e é feita de e para o outro (antes de ser
construída de e para si). Isto significa que os discursos de género estão repletos de
construções estereotipadas sobre os sexos e os seus corpos (normas, regras, leis), o que
indubitavelmente provoca relações de hegemonia entre sujeitos-dominadores e sujeitos-
dominados, criando complexas teias de poder que limitam fortemente a identidade dos
sujeitos. Bourdieu (1999) justifica esta situação indicando que todos os sujeitos estão
submetidos, historicamente, a estruturas de ordem masculina, pelo que recorrem – para
pensar a dominação do masculino – a modos de pensamento que são eles próprios produtos
dessa mesma dominação. Ora, os Estudos Culturais identificam e denunciam esta
normatividade, e preconizam formas de resistência.

Tendo em consideração que O Ilhavense, na década de 1950, expressa um discurso


identitário de género binário (manifestando a referida “lógica do mesmo”), foi possível
articular as reflexões de Rosi Braidotti (1994, 2002) e Judith Butler (1990, 2004) sobre esta

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– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente

matéria e concluir que a forma de ultrapassar esta realidade se centra na tentativa de


desconstruir a diferença sexual (ou seja, o binarismo masculino-feminino). Efetivamente,
segundo aquelas autoras – e apesar das perspetivas diferentes que apresentam sobre as
questões de género – é a desconstrução da diferença sexual que permite ao sujeito “tornar-
se algo” fora das limitações do dualismo de género, ou melhor, pensar-se (e ser pensado),
primeiramente, como sujeito e não como alguém que pertence ao sexo/género masculino
ou ao sexo/género feminino. De acordo com Braidotti, esta desconstrução passa pelas
figurações alternativas ou pelos caminhos que podem ser percorridos entre o masculino e o
feminino. Já para Butler é necessário suprimir completamente a diferença sexual ou de
género, olhando os sujeitos, em primeiro lugar e sobretudo, como seres humanos. A
performatividade de género pode ser uma das formas mais fortes de resistência a aplicar
neste contexto, ao abrir caminho para novas modalidades de realidade. Neste decurso, o
corpo deve ser pensado como um processo de transformação que transcende e reconstrói a
norma. Ou seja, este é o momento para refletir que se a realidade existe e é pensada de uma
determinada forma, é possível recriá-la e repensá-la de outra. Em suma, as teorias de
género que estas duas autoras apresentam são uma alternativa aos discursos binários que O
Ilhavense manifesta na época em estudo.

Na prática, estes esquemas de pensamento implicam mudanças estruturais na sociedade


(sobretudo ao nível das relações de micropoder), que se refletiriam nas representações
mediáticas. Estas “mudanças” podem também ser entendidas como modalidades ou
sistemas de resistência. Porém, no caso específico d’O Ilhavense tudo o que é possível
encontrar são algumas formas subtis de micro-resistência que se podem apresentar como
“figurações alternativas”, particularmente em alguns perfis identitários identificados. Por
um lado, a “mulher-prática” (que lida com a exposição da morte/luto de forma natural)
surge como um perfil alternativo, mas não o suficiente para representar uma mulher forte,
independente e socialmente interventiva; por outro lado, a “mulher emotiva/fantasiosa”
(que produz “criação literária”) apresenta dois casos individuais de mulheres (Mari
Carmen Flores e Maria José Sacramento) com perfis diferentes e distintivos, mas que não
demonstram marcas fortes de resistência, pois não são suficientemente arrojadas nas
temáticas e no tratamento dos assuntos. Portanto, com base nestas conclusões, não é
possível pensar Ílhavo como um lugar de exceção, onde as mulheres assumiam um papel
social de notoriedade, pelo que estava longe de ser uma sociedade matriarcal.

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– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente

Foi tendo em conta este panorama que, na discussão final presente no último capítulo, se
sugeriram algumas hipóteses alternativas de forma a produzir um olhar crítico sobre o
binarismo de género e a pseudotransparência identitária do feminino. Assim, o aumento da
produção discursiva feminina aliado à variedade temática (temas com maior intervenção
política e destaque social) e o fim da censura masculina parecem ser suficientes para dar
início a uma alteração do panorama discursivo. Para além disso, o aumento da produção
sobre o feminino também associado a outras temáticas mais interventivas e empoderadoras
poderiam concorrer para modificações estruturais na forma de representar a mulher. Outra
das alternativas apresentadas prende-se com o aumento da produção iconográfica com a
figura feminina, valorizada através de outros meios que não exclusivamente o sexual, visto
que se detetou um excesso de imagens focadas na erotização do corpo da mulher e no
“mito do belo” feminino.

Novos olhares poderiam contribuir – não apenas naquele contexto, mas ainda transpondo
para a atualidade – para desconstruir a “imagem” tradicional e estereotipada que
frequentemente representa o feminino. Tornar-se-ia mais fácil desfazer a diferença sexual,
denunciar a exclusividade masculina e a estrutura fálica em que assenta a sociedade (que é
repetidamente representada pelos media), e repensar a própria noção de identidade,
evitando a polarização normativa. Só desta forma seria possível iniciar um processo que
pensasse o sujeito como ser humano, o que implica pensar o mundo de outra forma.

Se até meados do século XX a complexidade da identidade de género não era questionada,


é sobretudo a partir da década de 1980 que os investigadores sociais começam a
reconhecer que não existe um modelo cultural único de género, mas antes uma
multiplicidade de discursos sobre o género. Reconhece-se agora que as diferenças
biológicas do sexo não são fixas nem contém em si normas reguladoras e abrem-se as
portas para a discussão sobre os papéis de género (e, consequentemente, sobre a(s)
identidade(s) de género numa rede social de relações de poder), particularmente nos
ensaios de Michel Foucault (1984a, 1984b, 1984c), Judith Butler (1990, 1993, 1997, 2004),
Rosi Braidotti (1994, 2002), Nancy Chodorow (1978), Luce Irigaray (1985, 2005) e Judith
Gardiner (2002). Neste sentido, as questões colocadas a partir dos Estudos Culturais
encaminham os Estudos de Género pela investigação dos sistemas de poder que produzem
o masculino e o feminino tal como são reconhecidos. É aqui que a “rigidez” social e

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– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente

simbólica do género começa a diluir-se, questionando-se a verdadeira “natureza” do


género. Agora as “identidades prontas” dão lugar a perfis identitários individuais e fluídos,
que podem apresentar fronteiras mais diluídas e capazes de aceitar a diferença (logo, mais
suscetíveis à resistência).

Os Estudos de Género encontram nos Estudos Culturais uma força teórico-prática


manifestamente vigorosa – tanto do ponto de vista científico, epistemológico e ontológico,
como do ponto de vista académico e prático – que procura analisar como os movimentos
socioculturais podem reproduzir certas formas de sexismo, racismo e subordinação, mas
como podem igualmente intervir, de forma a marcar a diferença dentro de determinados
grupos sociais. Neste sentido, a partir de 1980 (“fase de internacionalização” dos Estudos
Culturais), os Estudos de Género passam a ser uma área inserida no amplo âmbito
académico dos Estudos Culturais, que, em articulação com outras áreas disciplinares,
ganham dinamismo científico para intervir e melhor compreender as problemáticas da
cultura quotidianamente vivida. Exemplo disto são os estudos que associam o género às
Ciências da Comunicação ou à Literatura e Filosofia, bem como à História e às Artes, e
que têm desenvolvido estratégias que monitorizam as relações de género e que desafiam os
tradicionais estereótipos.

Com o advento do século XXI, as questões de género (associadas às relações de poder, às


práticas discursivas e à construção da identidade) passam a ser mais valorizadas no âmbito
dos Estudos Culturais, não apenas como representação, mas também como construção
social, discursiva e até ideológica. A partir deste momento, todo o trabalho desenvolvido
pelo movimento feminista nas décadas anteriores sofre uma reestruturação epistemológica,
dando lugar a uma nova leitura do género e da sexualidade, que passa a ser pensada a partir
de um outro lugar que não a “natureza”. Nesta linha de pensamento, Judith Butler (1990,
1993, 1997, 2004) é a autora que mais se destaca por introduzir a possibilidade de pensar a
realidade sociocultural como o lugar onde o género e a sexualidade passam a ser
interpretados como “performatividade”, afastando-se da premissa que valoriza o binarismo
de género – aqui reconhecido como “lógica do mesmo”.

A noção de performatividade de género afasta a rigidez das estruturas discursivas que


vinculam cada género a determinadas práticas comportamentais e atitudinais, e facilita o
processo de adaptação dos sujeitos a “novas” formas de género (que não são propriamente

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– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente

recentes, mas como as normas que dirigem a realidade não as admitem, é necessário
considerá-las como “novas”). Ou seja, para Butler (1993), o caminho do género passa pelo
“respeito pelos corpos”, que devem ser livres dos discursos que os constituem (isto porque
os corpos/sexos não são naturais, mas sim discursivos).

Esta posição de Judith Butler em relação aos Estudos de Género intensifica-se e


generaliza-se dentro dos Estudos Culturais – sendo apoiada por outros nomes como, por
exemplo, Allison Weir (1996), Luce Irigaray (1985, 2005) e Rosi Braidotti (1994, 2002) –,
evoluindo na linha do pensamento pós-estruturalista e dando lugar àquilo que se entende
hoje por Pós-Feminismo. Na atualidade, embora se admita a importância histórica e de
extrema relevância do movimento feminista inicial (tanto nos campos epistemológico e
ontológico, como na prática política), torna-se fundamental valorizar o sujeito como ser
humano, antes de pensá-lo com base na sua diferença de género (homem ou mulher) no
âmbito de um binarismo discursivo. Este é o verdadeiro desafio do Pós-Feminismo. Porém,
para produzir interpretações do mundo sociocultural (quer ao nível do real, quer simbólico
e/ou imaginário), e agir nele, os sujeitos têm de se adaptar constantemente ao contexto
espácio-temporal, posicionando-se (sempre que necessário) entre o Feminismo, o
Antifeminismo e o Pós-Feminismo.

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