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2016
resumo Esta tese de doutoramento encontra-se dividida em duas partes, sendo que a
primeira é composta pelo enquadramento teórico e epistemológico, e a
segunda pelo estudo empírico. Na primeira parte discutem-se os conceitos de
poder, discurso e identidade (particularmente identidade(s) de género) no
âmbito dos Estudos Culturais, para depois se abordar os media como veículo
fundamental na construção, disseminação e interpretação das diferenças de
género. A segunda parte, que começa por introduzir a metodologia de
investigação, apresenta um estudo empírico que procura, através da análise
dos discursos (textuais e icónicos) de um jornal local – O Ilhavense –,
responder à seguinte questão de investigação: Era ou não Ílhavo (na década
de 1950) uma sociedade matriarcal?
keywords Cultural Studies, power relations, discursive representation, identity, gender
identity(ies), media, content analysis.
abstract This doctoral thesis is divided into two parts. The first one comprises the
theoretical and epistemological framework, and the second (consists on) the
empirical study. The first part discusses the concepts of power, discourse, and
identity (particularly gender identity(ies)) in the context of Cultural Studies and
then addresses the media as a key vehicle in the construction, dissemination,
and interpretation of gender differences. The second part, which begins by
introducing the research methodology, presents an empirical study that seeks,
through the analysis of (textual and iconic) discourses in a local newspaper – O
Ilhavense – to answer the following research question: Was Ílhavo a
matriarchal society (in the 1950s) or was it not?
Notas Prévias:
Esta tese de doutoramento segue o novo Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 1990.
Todas as citações presentes foram traduzidas para a língua portuguesa, sendo
feitas as devidas adaptações, mas respeitando o mais possível a pontuação e
a construção frásica originais.
As transcrições do jornal “O Ilhavense” foram adaptadas à escrita atual sempre
que se revelou necessária uma melhor compreensão textual, embora se tenha
procurado mantê-las o mais fiel possível ao original (o que implicou o respeito
pelas expressões locais e a não-aplicação do Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 1990).
Índice
Introdução………………………………………………………………………….... 1
Bibliografia………………………………………………………………………….. 355
Lista de figuras
Quadro 27 | Regime político das imagens (jornal O Ilhavense, na década de 1950)… 273
Introdução
Quando se pensa sobre sujeitos, as suas relações com os outros e a sua vivência em
comunidade, existem várias opções epistemológicas, teóricas e disciplinares nas quais esse
pensamento se pode alicerçar. Porém, nenhuma delas é tão completa, transversal, flexível e
empiricamente tolerante como a que é apresentada pelos Estudos Culturais. Esta é a
principal razão pela qual o quadro teórico e epistemológico dos Estudos Culturais foi o
escolhido para sustentar esta investigação. De facto, quando várias temáticas sociológicas,
filosóficas e antropológicas exigem uma abordagem holística, os Estudos Culturais, pela
sua transdisciplinaridade, mostram-se o caminho teórico mais indicado a seguir.
Esta investigação procura reunir num só estudo várias discussões que envolvem o âmbito
das Ciências Sociais e Humanas, fazendo-as comunicar e incentivando uma visão
complementar, para que conceitos tão relevantes e complexos como o poder, o discurso, os
meios de comunicação, a identidade e o género possam dialogar académica, científica e
empiricamente. A artéria vital desta investigação reside, efetivamente, na valorização e na
inter-relação destas áreas de estudo, pois só com o seu conhecimento profundo, com a
interpretação de diferentes teorias e com as visões de diversos autores é possível
confecionar um “fato à medida”, cumprindo as exigências do estudo. Para além disso, esta
conjetura revela-se a mais indicada para criar uma boa estrutura de sustentação do estudo
empírico e das exigências da realidade prática. Portanto, mais do que uma opção pessoal, a
escolha dos Estudos Culturais mostrou-se a opção teórica e metodológica mais indicada
para a questão a tratar.
Um dos aspetos fundamentais deste estudo reside na valorização que é dada ao discurso,
particularmente o mediático, quer ao nível das relações de poder, quer ao nível da
identidade (nomeadamente da(s) identidade(s) de género). Isto porque este estudo incide
sobre fenómenos – e respetivos efeitos, causas e ações que são (re)produzidos socialmente
–, não procurando em nenhum momento medir ou contabilizar factos. Desta forma, e como
é conduta habitual dos Estudos Culturais, é indispensável entender que a verdadeira
natureza dos fenómenos reside na experiência, portanto, para além de se analisar normas
abstratas e conceitos teóricos, é fundamental sinalizar a prática e investigar aspetos
socioculturais, identificando problemáticas e apontando soluções. É neste sentido que
segue esta investigação, particularmente ao nível do estudo empírico.
1
Introdução
Desta forma, este estudo procura interpretar o fenómeno descrito no parágrafo anterior,
recorrendo à descodificação dos discursos reproduzidos na época, através da análise da
imprensa local, sendo selecionado para isso o jornal com maior tiragem e impacto – O
Ilhavense. Obviamente que a especificidade do contexto ilhavense – reconhecido
socialmente como “matriarcal” – e a escolha do jornal O Ilhavense como objeto de estudo,
serão minuciosamente descritos e justificados no capítulo V deste estudo, juntamente com
todas as opções metodológicas tomadas. Resta agora perceber como se desenha
estruturalmente esta investigação, aos níveis teórico, metodológico e empírico.
De forma a organizar a investigação e facilitar a leitura dos capítulos, este estudo encontra-
se dividido em duas partes fundamentais. A primeira parte, intitulada “Parte I –
Enquadramento teórico e epistemológico”, procura, como o próprio nome indica, fazer o
enquadramento teórico e epistemológico desta investigação no âmbito dos Estudos
Culturais. Nesta parte há lugar para a discussão teórica, a validação conceptual e a
confrontação entre autores, filósofos e investigadores dos Estudos Culturais nos diversos
ramos socioculturais que aqui são chamados a dialogar. A segunda parte, intitulada “Parte
II – Metodologia e Estudo Empírico”, faz a ponte entre a teoria e o estudo empírico desta
investigação. Esta segunda parte começa por contextualizar metodologicamente os Estudos
Culturais, passando depois a particularizar as opções metodológicas deste estudo,
apresentando: os métodos, o instrumento e a técnica de análise; o contexto espácio-
temporal; a questão e os objetivos da investigação; e os dados na sua generalidade. De
seguida, desenvolve-se o estudo empírico propriamente dito. Aqui são apresentados,
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Introdução
Na primeira parte (Parte I) desta investigação estão inseridos quatro capítulos teóricos
respetivamente intitulados: “Estudos Culturais”, “Poder e Discurso”, “Identidade e
Género” e “Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género”. Os parágrafos
seguintes procuram descrever sumariamente cada capítulo, de forma a introduzir as
temáticas abordadas por esta investigação.
Através deste capítulo é possível compreender o caráter dos Estudos Culturais, tanto ao
nível temático como metodológico, na medida em que estes se multiplicam de acordo com
o objeto de estudo e os próprios objetivos da investigação. É esta complexidade que
dificulta uma definição singular de “Estudos Culturais”, visto que estes tratam de poder,
identidade(s), comunicação, linguagem, discurso e diversas realidades sociais e culturais.
O que este capítulo propõe é uma apresentação dos Estudos Culturais como um campo de
estudos interdisciplinar e multifacetado.
Neste primeiro capítulo é também feito um percurso historiográfico dos Estudos Culturais,
com base nas três fases do seu desenvolvimento anunciadas por Escosteguy (1999): fase
inicial, fase da consolidação e fase da internacionalização. Para cada uma destas fases é
feita uma demarcação cronológica, são apresentadas as principais áreas temáticas e
tendências concetuais, e são ainda referenciados os principais teóricos e as suas
contribuições. Desta forma, com estes primeiros textos, pretende-se dar a conhecer o
âmbito dos Estudos Culturais, problematizando a sua conceção e valorizando o seu
contributo para o pensamento crítico sobre a “realidade” contemporânea.
3
Introdução
O terceiro ponto deste capítulo é dedicado ao estudo do discurso e à sua interligação com
os conceitos de poder, identidade de género e media. Numa primeira fase, é admitido o
pressuposto que os estudos do discurso se cruzam com o conceito de poder, pelo que são
convocados a dialogar alguns teóricos que defendem esta premissa, tais como Van Dijk e
Foucault. Em seguida, procura-se aprofundar os estudos do discurso – admitindo que estes
se encontram disseminados por praticamente todas as áreas de investigação das
Humanidades e das Ciências Sociais – introduzindo as opiniões de autores como Norman
Fairclough, Allan Bell, Gunther Kress, Theo Van Leeuwen e Judith Butler. Ainda neste
ponto há espaço para uma análise dos estudos do discurso em Michel Foucault e respetiva
crítica.
No que diz respeito à relação entre discurso e identidade de género, esta é apresentada
como uma forma de mediação cultural e identitária dos sujeitos, apesar de, muitas vezes,
estes não terem noção dessa influência. A discussão parte do paralelo que Michel Foucault
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Introdução
faz entre discurso e sexualidade, para depois evoluir para a controvérsia da diferenciação
sexual, da(s) identidade(s) de género e das práticas discursivas, contando para isso com o
contributo de Judith Butler e das visões pós-estruturalista e pós-feminista.
O terceiro capítulo, intitulado “Identidade e Género”, distribui-se por duas partes, sendo
que a primeira integra a constituição e o desenvolvimento do conceito de identidade na
contemporaneidade, enquanto a segunda analisa a formação da identidade de género dentro
do contexto teórico, epistemológico e ontológico trazido à discussão por este estudo.
Na parte referente à construção da identidade, este estudo começa por legitimar a teoria da
identidade na conceptualização teórica dos Estudos Culturais. Autores como Stuart Hall,
Zigmunt Bauman, Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Moisés Martins, Jonathan Friedman,
Lawrence Grossberg e Kathryn Woordward (entre outros) são chamados a contribuir na
definição do conceito de identidade e na sua aplicação na contemporaneidade. De seguida,
é aprofundada a discussão de Stuart Hall sobre o declínio do conceito tradicional de
identidade e o surgimento do sujeito fragmentado, tão apreciado por outros autores das
Ciências Sociais e que abre portas para outras leituras do sujeito, enquanto indivíduo e
parte integrante de uma comunidade.
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Introdução
violência, conceitos problematizados por diversos autores como, por exemplo, Lacan,
Hegel e Butler.
Este capítulo sobre identidade e género é fechado com um ponto que debate questões de
identidade, performatividade e normatividade de género. A primeira análise é dedicada à
obra pioneira do Feminismo contemporâneo intitulada Le Deuxième Sexe de Simone de
Beauvoir, que é responsável por abrir a discussão sobre o papel individual, social e
filosófico da mulher. A partir desta leitura, é teorizada a relação entre o absolutismo
masculino e a objetividade feminina, e aberta a porta para a libertação do sujeito
(particularmente do feminino) através da sua capacidade transformativa – o “tornar-se”
(conceito desenvolvido por autoras como Judith Butler e Rosi Braidotti).
6
Introdução
O ponto seguinte deste quarto capítulo é dedicado ao papel dos media na formação da(s)
identidade(s) de género, focando-se sobretudo nos aspetos dualistas imprimidos aos media
pelas normas de género. No seguimento deste ponto, fecha-se o capítulo com a
apresentação e a discussão de exemplos de estudos sobre o género nos media
contemporâneos, tanto ao nível textual como icónico.
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Introdução
O primeiro ponto do estudo empírico começa por apresentar e analisar os dados relativos
aos textos escritos por mulheres (n’O Ilhavense, na década de 1950), seguindo-se depois o
momento da discussão. Esta discussão centra-se na produção textual no feminino e nos
perfis de mulher que foi possível identificar. O segundo ponto deste capítulo começa por
dedicar-se à apresentação e à análise dos textos escritos sobre mulheres (n’O Ilhavense, na
década de 1950), seguindo-se também um momento de discussão sobre a produção textual
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Introdução
do feminino e a identificação dos perfis de mulher através do olhar do Outro. Este ponto é
finalizado com uma discussão que compara os dados relativos à produção no e do
feminino. Já o ponto três deste capítulo é dedicado ao estudo das imagens presentes no
jornal analisado. Este estudo começa por apresentar e analisar as imagens, para depois
partir para a discussão das mesmas. Esta discussão concentra-se no regime político do
corpo e na semiótica das imagens, particularmente nos perfis identitários de homens e
mulheres que se identificaram.
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PARTE I
ENQUADRAMENTO TEÓRICO E EPISTEMOLÓGICO
Capítulo I – Estudos Culturais
O percurso adotado pelos Estudos Culturais não é único nem monolítico, pelo que Johnson
(1999) aponta dois tipos de vertentes diferentes que podem ser seguidas. Uma estuda as
culturas como “um todo” no seu contexto material, dando primazia às recriações dos
movimentos culturais e das experiências sociais, utilizando como metodologia as
descrições etnográficas. Como exemplo, podemos destacar o trabalho de Edward
1
O movimento New Left surgiu nos anos 1950, em Inglaterra. Tratava-se de um movimento que pretendia
criar um modelo mais democrático do socialismo e que ansiava obter reconhecimento pela cultura de classe
trabalhadora.
13
Capítulo I – Estudos Culturais
Thompson. Uma segunda vertente reclama uma certa libertação das formas e dos meios
subjetivos de significação e, metodologicamente, antevê um estudo abstrato e formalista,
onde o significado é fabricado nos diversos sistemas de significação (ex.: narrativa,
linguagem, crítica literária, etc.).
Estas distintas vertentes amplificam o âmbito dos Estudos Culturais, sobretudo no que se
refere ao objeto de estudo. Desta forma, Johnson (1999) reconhece ainda três modelos
principais de pesquisa nos Estudos Culturais. O primeiro prevê os estudos baseados no
controlo ou na transformação dos meios de produção cultural; o segundo centra-se nos
estudos dos textos e na prática transformativa e crítica; e o terceiro assenta no estudo das
culturas vividas associadas aos domínios da representação, “apoiando as formas vividas
dos grupos sociais subordinados e criticando as formas públicas dominantes” (Johnson,
1999:104). A aplicação destes modelos conduzirá a questões metodológicas mais precisas,
que divergem de acordo com o objeto em estudo e com os objetivos que se pretendem
atingir em cada investigação.
As divergências em relação aos objetivos dos estudos nesta área tão abrangente são
inúmeras, pelo que, através de Agger (1992), podemos compilar três ligações fulcrais: os
Estudos Culturais ajudam a transformar a forma como os sujeitos experienciam a cultura
na sua vertente mais ampla; os Estudos Culturais encontram-se diretamente ligados com as
funções políticas da cultura popular, quebrando assim as experiências e práticas de
diferenciação institucional da atividade humana; e os Estudos Culturais procuram
aproximar um discurso técnico ao mais vernacular e público, sem abandonar a sua
fundamentação teórica.
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Capítulo I – Estudos Culturais
Desde meados do século XX que os Estudos Culturais se apresentam como uma área
marcadamente interdisciplinar, pois os seus estudos abarcam temáticas e métodos de outras
disciplinas das Ciências Humanas – como, por exemplo, da História, da Linguística, da
Literatura, da Semiótica – e das Ciências Sociais – como, por exemplo, da Antropologia,
da Sociologia, da Psicologia, das Ciências Políticas (Bounds, 1999; Turner, 2005) e das
Ciências da Comunicação (Martins, 2015a). O próprio Stuart Hall (1980:7) afirma que “os
Estudos Culturais não configuram uma disciplina, mas uma área onde diferentes
disciplinas interagem, visando o estudo de aspetos culturais da sociedade”, convergindo e
discutindo problemáticas e métodos que permitem compreender ocorrências e relações que
não se encontram alcançáveis através das fronteiras impostas pelas disciplinas tradicionais.
Este sentido multifacetado e transdisciplinar dos Estudos Culturais é, mais uma vez,
destacado em Costa et al (2003:57), particularmente no que diz respeito às questões
metodológicas e teóricas:
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Capítulo I – Estudos Culturais
Lawrence Grossberg (2009), no seu artigo “O coração dos Estudos Culturais”, destaca,
mais uma vez, o elevado grau de abrangência dos Estudos Culturais ao afirmar que este
não trata apenas da cultura, da textualidade, da interpretação, do poder e das realidades
sociais, da linguagem, da teoria, ou das culturas popular, de massas e subordinadas. Na sua
ótica, os Estudos Culturais têm algo a dizer sobre todos estes aspetos.
Se olharmos para os Estudos Culturais como uma forma de intervir na realidade sem se
desvincular da academia (Almanza-Hernández, 2008), percebemos como a relação entre a
teoria e a empiria se pode revelar fulcral nesta área de estudos. Esta é a forma de colocar
em prática aquilo que Hartley (2004:110) considera o objetivo dos Estudos Culturais: “(…)
compreender como é que a cultura (a produção social do sentido e da consciência) devia
ser especificada em si mesma e em relação à economia (produção) e à política (relações
sociais)”.
Segundo Johnson (1999) os Estudos Culturais podem ser definidos de acordo com os
seguintes pressupostos: em relação às disciplinas académicas ou aos paradigmas teóricos
que se encontram na base do seu objeto de estudo; em relação aos próprios objetos de
estudo; e em relação a uma tradição político-intelectual. Contudo, é necessário ter em
consideração que no âmago de toda esta discussão se encontra o conceito de cultura.
16
Capítulo I – Estudos Culturais
De acordo com a maioria dos autores, o conceito “cultura” é basilar nos Estudos Culturais
(Williams, 1984; Agger, 1992; Johnson, 1999; Bounds, 1999; Hall, 1997c; Hall, 2007;
Kellner, 2003), e embora estes ajudem a expandir o conceito de cultura, conduzem
igualmente à descentralização da significação e práticas culturais (Agger, 1992). Segundo
Stuart Hall (1997c:11), os Estudos Culturais apresentam-se mesmo como “(…) um novo
campo interdisciplinar de estudo organizado em torno da cultura como conceito central”.
Produzir investigação na área dos Estudos Culturais implica identificar através de que
sentidos e valores a cultura se expressa (Bounds, 1999). Contudo, deve-se salientar que
existe hoje, nos Estudos Culturais, uma tendência para direcionar os estudos para a cultura
popular e de massas do “homem-comum” (Certeau, 1990), aproximando-a da cultura
pouco democrática ou cultura de elite. Pretende-se, portanto, abarcar “a pesquisa sobre
práticas e usos de bens diversos (produtos do mercado, mas também ideias, valores,
crenças, etc.), (…) ‘criações anónimas’ e ‘perecíveis’ que proliferam na vida quotidiana”
(Sousa Filho, 2002:132), dando-lhe a mesma importância que era dada às “altas” ciências
culturais. Foi neste sentido que autores como Michel de Certeau, Michel Foucault, Pierre
Bourdieu, Guy Debord, Henri Lefebvre e Michel Maffesoli trouxeram para o centro da
análise sociológica do quotidiano práticas subestimadas e até desprezadas por intelectuais e
teóricos puristas (Sousa Filho, 2002; Certeau, 1990).
À exceção do trabalho precursor do filósofo russo Mikhail Bakhtin (Canclini, 2003), foi
apenas nas três últimas décadas que surgiu uma preocupação científica com a temática da
cultura popular. Apesar de se tratar de um conceito de difícil definição, a cultura popular é
discutida por Denys Couche (1999) como sendo uma cultura que se (re)constrói numa
situação de dominação, apesar de se basear em valores originais que emergem de relações
entre os grupos sociais, na maioria da vezes, conflituosas – “afirmar que a cultura popular
é uma cultura dominada não significa dizer que ela é alienada, ou que está em posição de
dominação o tempo todo, é, antes, admitir que está em relação com outras culturas,
notadamente, a cultura dominante (…)” (Fressato, 2009:2).
Neste sentido, e tal como afirma Stuart Hall (2008), a cultura popular exige um movimento
de oscilação entre a contenção e a resistência, trabalho este que foi iniciado por Hoggart
(1976) que, usando métodos quantitativos, procura compreender o meio popular enquanto
local de negociação e não apenas de submissão. A cultura popular permite enveredar por
17
Capítulo I – Estudos Culturais
Com os Estudos Culturais, a cultura popular deixa de marcar limites ou fronteiras nas
práticas culturais e passa a atravessá-las, deslizando por uma dinâmica de diálogo que
transita pelo popular e o não-popular, pela “alta” e a “baixa” prática, pelo restrito e o
massivo (Flores, 2008). Trata-se de práticas culturais quotidianas que representam um
vasto conjunto de procedimentos que proliferam através dos discursos sociais (que vão ao
encontro das teorias foucaultianas) e através de uma maneira de “fazer” e de uma maneira
de “pensar” (Certeau, 1990). Isto demonstra que o tradicional conceito de cultura popular
se pode revelar limitativo para descrever e analisar a realidade social atual, sobretudo num
mundo em que a cultura de massas se impõe fortemente.
Apesar da cultura ser considerada fundamental neste âmbito, esta não deve ser dissociada
de outros elementos intrínsecos à realidade social. De facto, os Estudos Culturais fornecem
as ferramentas necessárias para que possamos examinar, interpretar e criticar qualquer
texto, instituição ou prática cultural (Kellner, 2003), dentro do sistema relacional social
onde estes são produzidos, consumidos e reproduzidos. O estudo da cultura encontra-se,
assim, ligado ao estudo da sociedade, da economia e da política, e os Estudos Culturais
podem mostrar como estes valores/significações se articulam através, por exemplo, dos
estudos dos media.
É neste sentido que Philip Bounds (1999:14) afirma a presença de uma vertente política,
pois há uma focalização no relacionamento entre a atividade cultural e uma forma mais
ampla de organização social. Apesar dos Estudos Culturais não estarem ligados a qualquer
grupo partidário ou subordinarem o seu trabalho a doutrinas preestabelecidas, podem
relacionar-se com uma “política”. Segundo Stuart Hall (1992a), este aspeto “político” dos
Estudos Culturais prende-se com a sua capacidade de ser um projeto aberto, com vontade
de fazer conexões e escolhas, mas sem intenção de se tornar num meta-discurso que sirva
para todos.
Efetivamente, não se pode negar que existe uma certa dificuldade em definir os Estudos
Culturais, fruto da sua multidisciplinaridade e da possível exploração de infindáveis
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Capítulo I – Estudos Culturais
temáticas de estudo. Todavia, segundo Sardar & Van Loon (1998), não significa que
qualquer coisa possa ser Estudos Culturais, e que Estudos Culturais possam ser qualquer
coisa. De acordo com estes autores existem, pelo menos, quatro aspetos distintivos dos
Estudos Culturais: 1) mostrar as relações existentes entre as práticas culturais e o poder; 2)
identificar e analisar as práticas culturais dentro dos contextos sociais e políticos, pois a
cultura é sempre vista como objeto de estudo, e contexto da ação e da crítica; 3) expor e
reconciliar a divisão do conhecimento entre o Eu e o Outro; e 4) avaliar a moral social e
apontar linhas de ação.
De uma forma mais profunda, pode-se afirmar que os Estudos Culturais interrogam os
regimes de verdade. Isto implica que os Estudos Culturais estão aptos para atingir os
extremos da interrogação ao colocar questões como: O que transforma o mundo num
espaço em que é possível viver? Qual a inteligibilidade para a vida? Quem somos, o que
fazemos e para onde caminhamos? Qual o sentido da realidade e da própria vida? Deste
modo, os Estudos Culturais apresentam-se como uma forma de entendimento da realidade
e de compreensão do sentido do real, provocando uma verdadeira revolução no olhar.
Trata-se de criar pontes de entendimento entre as dimensões do simbólico, do real e do
imaginário (Lacan, 2004), compreendendo os fenómenos e os contextos socioculturais em
causa.
Tudo isto implica que os Estudos Culturais sejam capazes de dar resposta à prática,
desnaturalizando o real (ou colocando fim à naturalidade do real). Isto significa que, na
ótica dos Estudos Culturais, o natural é cultural, e se se constrói o natural de uma
determinada forma, também é possível desconstruí-lo ou construí-lo de outra forma. No
mesmo sentido, através dos Estudos Culturais é possível usar ferramentas de hoje para
19
Capítulo I – Estudos Culturais
Desde a década de 1950 até aos dias atuais, os Estudos Culturais têm evoluído na
diversificação das suas abordagens temáticas, ao mesmo tempo que se deixam influenciar
por correntes sociológicas e teorias filosóficas de forte ressonância política e intelectual.
Neste sentido, é possível fazer uma incursão pelas diferentes décadas da segunda metade
do século XX e da primeira do século XXI, apontando as teorias e os conceitos que
predominam, e os trabalhos e autores que se destacam. De acordo com Escosteguy (1999)
é possível identificar três fases no desenvolvimento dos Estudos Culturais – a fase inicial,
a fase da consolidação e a fase da internacionalização – que facilitam a compreensão
teórica e empírica dos trabalhos, e as diversas abordagens que foram sendo feitas ao longo
do tempo2.
2
Pronunciando-se sobre a fase da internacionalização, Moisés Martins refere, além da tradição anglo-
saxónica e da tradição francesa, “(…) o contributo específico da América Latina (…)” (Martins, 2010:276);
por outro lado, em 2015, faz a história dos Estudos Culturais, em Portugal (Martins, 2015ª).
20
Capítulo I – Estudos Culturais
Segundo o autor John Storey (1997:46), Hoggart, Williams e Thompson partilhavam uma
abordagem que admitia ser possível reconstruir comportamentos e ideias distribuídos numa
sociedade através da análise da cultura dessa mesma sociedade, sobretudo dos textos e das
práticas culturais que são aí produzidos e consumidos. Esta perspetiva destaca uma
vertente ativa e interventiva na sociedade, baseada na produção cultural, e rejeita os
consumos passivos. É neste sentido que surge uma preocupação em analisar as práticas
culturais simultaneamente como elementos materiais e simbólicos, o que estimula a criação
da dinâmica dos Estudos Culturais.
A fase seguinte é identificada por Escosteguy (1999) como sendo a etapa da consolidação
dos Estudos Culturais, que reúne três importantes décadas – 1960, 1970 e início de 1980 –
de solidificação teórica.
21
Capítulo I – Estudos Culturais
O conceito de Estudos Culturais formaliza-se então nos anos 1960, quando Richard
Hoggart implementou o Centro de estudos na Universidade de Birmingham (em 1964).
Pouco tempo depois, o Centro passa para a direção de Stuart Hall (entre 1969 e 1979), que
embora não estivesse entre o trio fundador, viria a desempenhar um papel importantíssimo
no incentivo aos estudos etnográficos, aos meios de comunicação e às práticas de
resistência dentro das subculturas.
O Centro de Birmingham definiu uma abordagem particular aos Estudos Culturais que se
pode apresentar segundo duas determinantes (adaptado de Agger, 1992). A primeira prevê
a interdisciplinaridade dos seus estudos, na medida em que a Escola de Birmingham
selecionou diversas linhas teóricas e de análise das Ciências Sociais e Humanas (Hall,
1997c), para construir a matriz intelectual dos Estudos Culturais. É aqui que se percebe a
multiplicidade de disciplinas abordadas, que englobam a História Social, a Linguística, a
Literatura, a Comunicação, os Estudos de Género, entre outros. Na realidade, “os Estudos
Culturais não constituem um conjunto articulado de ideias e pensamento; (…) eles são e
sempre foram um conjunto de formações instáveis e descentradas, [pois] há tantos
itinerários de pesquisa e tão diferentes posições teóricas que eles poderiam ser descritos
como um tumulto teórico” (Costa et al, 2003).
De facto, os Estudos Culturais permitiram a circulação por diversos universos teóricos que
oscilaram de acordo com as especificações dos fenómenos culturais em análise (Almanza-
Hernández, 2008). Contudo, a originalidade dos Estudos Culturais reside na capacidade
dos trabalhos interligarem a teoria e o contexto, de forma a que estes se constituam e
determinem mutuamente (Grossberg et al, 1992; Grossberg, 2009).
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Capítulo I – Estudos Culturais
Com a publicação de The Uses of Literacy, Hoggart contribuiu para uma nova forma de ver
a cultura como o objeto central dos Estudos Culturais. Para o autor, a experiência vivida
tinha de ser analisada dentro do seu contexto, para que a crítica das formas culturais tivesse
algum significado dentro da prática social (Hoggart, 1973; Hall, 2007). No caso de
Raymond Williams, este afirma que a noção de cultura é tão controversa quanto a de
Estudos Culturais (Bounds, 1999). Na sua obra The Long Revolution, Williams (1984)
reconhece à cultura três elementos fundamentais: um “elemento vivido” (diversos tipos de
comportamento que prevalecem em determinados grupos sociais); um “elemento
documentário” (diversas formas de comunicação que permitem às sociedades atribuir e
receber sentido – linguagem, media, arte, etc.); e um “elemento ideal” (refere-se à cultura
de elite e que é muitas vezes analisada cepticamente pelos Estudos Culturais).
Philip Bounds (1999) arrisca ainda a interpretar estes elementos de Williams acrescentando
que os Estudos Culturais conseguem, seguindo uma perspetiva política, analisar o valor e o
sentido cultural através da forma vivida, documental e ideal. Para este autor, quando
trabalhamos o fenómeno cultural, devemos ter em consideração as seguintes questões: A
atividade cultural pode ser um reforço para uma forma existente de organização social? A
atividade cultural pode ser entendida como uma diminuição para uma forma existente de
organização social? Quais as formas de atividade cultural que devem ser empreendidas
para assegurar uma mudança política? Nestas considerações de Bounds (1999) prevê-se
que o fenómeno cultural se encontre intimamente associado a um contexto social e até
político, que interfere com a significação e a interpretação desse mesmo fenómeno. Em
suma, todas estas leituras complexas do fenómeno cultural conduziram o grupo de
intelectuais do CCCS a considerar a cultura como prática e experiência, valorizando quer o
sentido teórico quer o empírico.
O movimento New Left, surgido nos finais das décadas de 1950, formalizou-se nos
princípios da década seguinte, tendo-se estendido no tempo (Bounds, 1999). Os
simpatizantes deste movimento eram sobretudo ativistas e pedagogos que ansiavam por
23
Capítulo I – Estudos Culturais
reformas que revissem questões de justiça social. Daí que se tenham focado nas questões
da união laboral e das classes sociais (Escosteguy, 1999). Para consolidar estes ideais, que
se fundamentavam num texto – espécie de carta aberta do movimento – de Charles Mills
(Mills, 1960), é criada, em 1960, uma revista com conotação política intitulada New Left
Review. Esta revista revelar-se-ia a porta-voz do movimento que repensa o Marxismo e a
cultura popular, teorizando conceitos como o Humanismo, a ética e a comunidade, e
optando por uma atitude mais intervencionista, que aponta para os problemas imediatos da
política contemporânea. Em suma, e com base na opinião de Paula Saukko (2003), tanto o
movimento New Left como esta revista incutiram nos Estudos Culturais o interesse da
análise da relação entre a experiência vivida e textual, e o contexto social, político e
económico.
A evolução dos Estudos Culturais nas duas décadas seguintes fica a dever muito às teorias
incompletas que foram lançadas pelo texto The Uses of Literacy de Richard Hoggart (Hall,
2007). Na década de 1970, os trabalhos foram ao encontro das teorias marxistas e das
subculturas, ao mesmo tempo que davam continuidade ao estudo das sociedades
massificadas.
Muitos autores afirmam que a relação entre os Estudos Culturais e o Marxismo era tensa,
sobretudo no que diz respeito à ligação entre a teoria e o concreto (Hall, 1992a; Costa et al,
2003; Almanza-Hernández, 2008). Contudo, Costa et al (2003) afirma que existem
inegáveis contribuições desta associação, e cita Johnson (1999) para justificar a sua
24
Capítulo I – Estudos Culturais
Baseados nas contribuições supracitadas, alguns teóricos do CCCS acreditavam que uma
nova sociedade seria construída através da luta de classes, defendendo que as subculturas
representavam uma resistência simbólica cultural às imposições capitalistas, sobretudo
personificada nos jovens da classe trabalhadora. O CCCS desenvolve assim, na década de
1970, uma teoria clássica das subculturas que defendia a ideia que grupos de jovens como
os skinheads ou os teddy boys podiam constituir uma espécie de resistência simbólica da
sua experiência de classe (Bouns, 1999). Desta forma, os Estudos Culturais caminhavam
para uma visão da cultura (popular) como o lado da resistência e oposição ao capitalismo.
Durante a década de 1970, “os Estudos Culturais preocupavam-se, em primeira mão, com
os problemas da cultura popular e dos mass media que expressavam os rumos da cultura
contemporânea” (Escosteguy, 1999:142). De acordo com esta afirmação, é percetível que
os efeitos dos media podem ter um sentido ideológico (Hall, 1982) e devem ser estudados
de forma a interpretar as mensagens por si emitidas. Estas mensagens permitem sustentar e
reproduzir o meio social e cultural, facilitando aos Estudos Culturais a compreensão dos
produtos culturais como agentes de reprodução social (Escosteguy, 1999).
Foi no sentido desta teorização que Raymond Williams focalizou os seus estudos,
principalmente na ideia de que a cultura da classe trabalhadora era considerada menos
avançada que a das elites, surgindo assim dois conceitos associados a esta ideia – o de
“massas” e o de “comunicação de massas” – que procuravam denegrir a imagem daquela
classe. Segundo Williams (1977), o conceito de “massas” está carregado de significado,
para o qual três tendências contribuíram: a concentração da população nos meios urbanos,
a concentração de trabalhadores industriais e, consequentemente, o desenvolvimento de
uma classe trabalhadora organizada. Os sujeitos da classe trabalhadora eram considerados
tão degradantes como as formas populares televisivas a que assistiam, mas Williams
contestou esta ideia, defendendo que a cultura popular contemporânea possui muito de
explorativo (Williams, 1966, 1977; Bounds, 1999). Meaghan Morris demonstra a mesma
preocupação ao reafirmar a complexidade das sociedades massificadas:
25
Capítulo I – Estudos Culturais
Apesar de White (1998:60) apontar Raymond Williams como “um dos primeiros a não se
referir aos meios de comunicação como meras formas de transporte de informação, mas
como textos que revelam significados culturais criados num dado período histórico”, só
numa fase posterior, com o modelo encoding/decoding, desenvolvido no CCCS por Stuart
Hall e David Morley, se tornou possível determinar e analisar os processos pelos quais os
textos dos media eram produzidos e interpretados, determinando a função ideológica das
suas mensagens numa sociedade já apelidada de massificada. David Guantlett afirma que
este modelo sugeria que:
Este modelo pode parecer óbvio, mas implicou (na altura) ressaltar a importância de
compreender as interpretações e as significações de ambos os produtores e recetores
26
Capítulo I – Estudos Culturais
mediáticos, bem como dos intermediários na distribuição dos produtos. Segundo Philip
Bounds (1999), este novo modelo implicava três formas pelas quais os textos dos media
poderiam ser descodificados: a) quando o público-alvo aceita a mensagem dominante do
texto e não interpreta perspetivas alternativas (leitura perfeita); b) quando o público-alvo
aceita a mensagem dominante do texto, mas reconhece que nalgumas circunstâncias ela
não se aplica (leitura negocial); e c) quando o público-alvo rejeita a mensagem dominante
do texto, optando por interpretá-la através de uma perspetiva completamente diferente
(leitura de oposição).
Antes da teorização cultural dos Estudos Culturais surgir, a cultura era vista como um
produto das velhas classes ociosas, que insistiam em fazer resistência às novas. Todavia, o
trabalho de alguns autores nas décadas de 1950 e 1960 permitiram ultrapassar esta ideia e
mesmo ver a cultura como uma herança das novas classes “que contêm a humanidade do
futuro” (Williams, 1977:306).
27
Capítulo I – Estudos Culturais
A inovação cultural dos Estudos Culturais não passa somente pela valorização da cultura
popular em relação à cultura minoritária e elitista, mas passa também pela exploração da
questão cultural em articulação com a teoria e a ação políticas:
(…) Os Estudos Culturais são uma tradição seletiva que está interessada na fonte
cultural de poder, diferença e emancipação, intimamente ligada com os
movimentos sociais e a crítica cultural (Johnson et al, 2004:24).
A política dos Estudos Culturais começa então a centrar-se nos chamados novos
movimentos sociais, focando-se sobretudo no estudo da representação de género, racial e
de classe (Bounds, 1999; Kellner, 2003). Os Estudos Culturais desenvolvem assim um
programa multidisciplinar que procura analisar como os movimentos culturais podem
reproduzir certas formas de sexismo, racismo e subordinação, mas igualmente intervir, de
forma a marcar a diferença dentro de determinados grupos sociais.
28
Capítulo I – Estudos Culturais
Segundo Crane (2003), as imagens femininas nos media eram facilmente construídas para
o “espectador” masculino e para as suas expectativas sobre a mulher, o que faz com que
esta seja representada como inferior ou subordinada aos homens, com papéis sociais
estereotipados. Já Giddens (1992) afirma que o domínio masculino na esfera pública e a
sua associação à razão se formaram às custas da exclusão da transformação da intimidade,
ou seja, da exclusão da comunicação emocional.
29
Capítulo I – Estudos Culturais
Todas estas mudanças apanharam de surpresa muitos pensadores, mas hoje as análises
culturais de género compõem muitos dos discursos contemporâneos, ao mesmo tempo que
é repensada toda a estrutura social assente nos papéis feminino e masculino, bem como a
ligação que ambos possuem com as tomadas de decisão pessoais e familiares, e as relações
estruturais de poder.
30
Capítulo I – Estudos Culturais
Williams, Thompson e Hoggart, mas só por volta de finais da década de 1970 e na década
de 1980 é que os Estudos Culturais desenvolvem um forte e coerente conjunto de
explicações teóricas sobre o papel das audiências.
Segundo Moisés Martins (2011:41), as Ciências da Comunicação têm assim a sua “génese,
destino e pujança associados ao incremento dos Cultural Studies”, o que acaba por dar a
esta área científica um novo sentido. Ao enveredar pelos estudos das audiências, do
consumo mediático, do quotidiano popular, das subculturas e da mudança social, as
Ciências da Comunicação são vistas por alguns teóricos como as “Novas Humanidades”.
Mais abrangente, Moisés Martins (2015a) entende que são os Estudos Culturais, no seu
conjunto, que constituem as “Novas Humanidades”.
31
Capítulo I – Estudos Culturais
Em meados da década 1980 surge a terceira fase dos Estudos Culturais – etapa da
internacionalização – que se estende até aos nossos dias. Durante esta longa etapa, todas as
questões anteriormente levantadas continuaram a ser investigadas, juntamente com outras
novas, como é o caso da Etnografia, das relações de poder-resistência-ideologia-
hegemonia-discurso, da identidade, da representação (Escosteguy, 1999), da mediatização
e do género.
Segundo Barker (2000), podem ser consideradas três abordagens metodológicas nos
Estudos Culturais: a etnográfica, a textual e os estudos de receção (ecléticos). De facto, os
Estudos Culturais utilizam-se destas abordagens para orientarem as suas pesquisas, mas na
década de 1980 e 1990 salienta-se o contributo da Etnografia – “a prática de representação
das culturas dos outros” (Johnson, 1999:96) – na medida em que permitiu a abertura de
novos caminhos de investigação e a focalização em novos objetos de estudo.
No âmbito dos Estudos Culturais, o conceito de poder e o seu campo de ação são
igualmente centrais, pois o poder é entendido como um elemento que integra qualquer
nível de relações sociais. Tal como indica Barker (2000:10), “o poder não é simplesmente
a cola que une o social, ou a força coerciva que subordina um conjunto de pessoas a
outro”, mas é também algo mais complexo que auxilia na formação de processos que
geram e interrompem qualquer forma de ação social, movimento, ordem e relação. O poder
apresenta-se assim, na sociedade, como um elemento que limita e liberta simultaneamente
(Barker & Galanski, 2001).
32
Capítulo I – Estudos Culturais
Com efeito, os Estudos Culturais começaram a abordar uma dinâmica, nas décadas de
1980 e 1990, que interrelaciona o social e o cultural com questões de poder. De facto, os
Estudos Culturais desenvolveram-se em torno da produção e organização de sentido em
relação a questões de poder, onde os processos culturais se revelam decisivos, pois é
através deles que se desenvolvem relações sociais poderosas (Johnson et al, 2004), tal
como afirma Johnson (1999:51):
Quando confrontado com a mesma questão, John Hartley (2004:110) tem a mesma posição
que Johnson (1999) ao afirmar que o objeto de estudo dos Estudos Culturais passa a ser o
poder e não a condição humana, assim que sejam criadas tentativas para explicar as
práticas culturais dentro da sociedade:
Segundo Barker & Galansinki (2001), os Estudos Culturais exploram diversas formas de
poder e a sua aplicação enraizada e disseminada em microestruturas sociais que incluem
género, raça, classe, crenças, entre outras. Os autores vêm os Estudos Culturais como uma
forma de identificar e explorar as ligações que existem entre estas formas de ação do poder
e o meio social, cultural e económico em que se inserem. Há aqui uma tentativa de
mudança, que, por vezes, dá voz às diferentes modalidades de resistência e ideologia. De
facto, para os Estudos Culturais, o conceito de ideologia é importante, pois é interessante
compreender como “as ideologias dominantes [de classe, género, étnicas] servem para
reproduzir relações sociais de dominação e subordinação” (Kellner, s.d.:11), e despertam
forças resistentes dos oprimidos.
Importa ainda aqui referir que é neste período, aliado aos conceitos de poder e de
ideologia, que se desenvolve e transforma o conceito de hegemonia. Inicialmente teorizado
por António Gramsci (1996, 2006) para designar a dominação ideológica de uma classe
33
Capítulo I – Estudos Culturais
social sobre outra, o poder hegemónico ganha, dentro da prática dos Estudos Culturais,
uma nova articulação produtiva (não deixando para trás o seu carácter coercivo). Quer isto
dizer que a hegemonia passa a ser entendida não apenas como uma questão de repressão do
grupo dominador sobre outro dominado, pois é necessário ter em consideração os
interesses de ambos os grupos, para que se inicie uma relação de compromisso (embora
permaneça sempre um grupo que dirige). Isto implica que o grupo que exerce o domínio
reúna à sua volta um conjunto de elementos (morais, práticos, intelectuais,
propagandísticos e simbólicos) capazes de orientar o grupo dominado, não aplicando força
repressora e proibitiva diretas. Ora, este novo entendimento do poder hegemónico vai
auxiliar os Estudos Culturais numa outra leitura das práticas socioculturais atuais e do
passado, particularmente no caso dos estudos (pós)coloniais, de raça e de género3.
3
Nos estudos pós-coloniais, Moisés Martins inscreveu os estudos lusófonos. Veja-se, neste contexto,
Lusofonia e Interculturalidade. Promessa e Travessia (Martins, 2015b).
34
Capítulo I – Estudos Culturais
Os Estudos Culturais podem ser vistos “como uma formação discursiva no sentido
foucaultiano” (Costa et al, 2003:41), pois consideram as práticas culturais (ou discursivas)
como fundamentais na construção da realidade que habitamos; realidade esta que se
constrói e transforma através de formas discursivas e não-discursivas que se encontram
intimamente relacionadas (Grossberg, 2009). Pagano & Magalhães (2005) afirmam que,
nos Estudos Culturais, é a dimensão prática social que possibilita o diálogo da análise
crítica do discurso, embora esta abordagem discursiva pressuponha uma noção de
representação. Esta representação encontra-se presente em todas a formas e práticas
sociais: “(…) a representação está em todo o lado – na comunicação diária e no
autoconhecimento, tal como em formas publicitárias mediatizadas” (Johnson et al,
2004:140).
Para Chris Barker (2000), Foucault assegura que os discursos regulam aquilo que pode ser
dito (e por quem) sob determinado contexto sociocultural, remetendo para questões de
poder. Este poder deve ser disperso (e não centralizado) pelos vários níveis sociais e
identidades: “(…) Foucault explora como, através da operação de poder na prática social,
os sentidos são temporariamente estabilizados e regulados num discurso” (Barker,
2000:78).
Para Foucault o conhecimento forma-se nas práticas de poder; poder este que é distribuído
pelas relações sociais e que prolifera nos discursos e instituições, e que não se trata apenas
de um mecanismo negativo de controlo dos sujeitos (Barker, 2000; Barker & Galansinki,
2001). Neste sentido, os media têm sido considerados “um lugar privilegiado de circulação
de discursos” (Hennigen & Guareschi, 2002:45) de representação da sociedade, e têm-se
mostrado importantes na construção identitária dos sujeitos. De facto, nos dias de hoje, as
questões de poder prendem-se com a identidade, sobretudo quando a identidade é vista
como uma problemática que é criada, individual ou coletivamente, sob pressões sociais
(Hall & Gay, 1996) e mediáticas.
35
Capítulo I – Estudos Culturais
É ainda nas décadas de 1980 e 1990 que os pensadores dos Estudos Culturais começam a
aprofundar teorias sobre a construção da identidade individual e social, na medida em que
se forma a ideia de que o sujeito se afasta de uma identidade essencial para passar a possuir
“várias identidades (trans)formadas continuamente em relação ao modo como [o sujeito] é
representado ou interpelado pelos sistemas culturais ao redor (…)” (Hennigen &
Guareschi, 2002:49).
Segundo Elspeth Probyn (1993), a identidade individual não deve ser vista como reflexo,
mas sim como representação, onde a própria cultura identitária é construída de acordo com
pressupostos maleáveis e contestáveis, assentes na representação de técnicas, narrativas e
ideologias complexas (Durham & Kellner, 2006). Stuart Hall reafirma esta teoria,
indicando que a identidade é constituída dentro da representação:
36
Capítulo I – Estudos Culturais
Nas décadas de 1980 e 1990, uma boa parte dos Estudos Culturais centra-se nas questões
de representação, ou seja, como o mundo é construído socialmente e representado para e
por nós. Trata-se daquilo que Barker (2000:8) apelidou de “estudo da cultura como práticas
significantes de representação”.
De facto, os media são uma espécie de “janela” que reflete e cria as escolhas identitárias
pessoais e que servem como pontos de referência dessas mesmas identidades (White,
1998), pois “mais do que um veículo de exposição de modos de vida, [os media]
funcionam como um lugar decisivo no processo de construção de identidades” (Fischer,
2000:109). Ainda segundo Kellner (2003) percebemos que a cultura dos media é crucial na
formação de qualquer noção identitária, pois as imagens e os discursos reproduzidos pelos
meios de comunicação ajudam a criar modelos e valores de referência:
37
Capítulo I – Estudos Culturais
Os estudos dos media passaram a ser conduzidos por um caminho de complexas relações
que envolvem poder, ideologia e representação identitária – “(…) a cultura dos media
fornece formas de domínio ideológico que ajudam a reproduzir as atuais relações de poder,
além de também fornecer recursos para a construção de identidades e de fortalecimento,
resistência e luta” (Kellner, 1997:2).
38
Capítulo I – Estudos Culturais
Com o advento da década de 1980, os Estudos de Género passam a ser centrais para os
Estudos Culturais, tanto do ponto de vista científico e epistemológico, como do ponto de
vista académico (Baptista, 2014). Apesar de terem sido as teorias feministas, desenvolvidas
ao longo da década de 1970, que começaram a questionar as posições e relações
masculinas e femininas na sociedade – o que “contribuiu para destabilizar a representação
tradicional da masculinidade e da paternidade, possibilitando a circulação de novas
significações e incentivando a busca de novas compreensões” (Henninegn & Guareschi,
2002:45) –, com a década de 1980 o interesse feminista (no passado praticamente focado
na diferença social) começa a focalizar-se na posição da mulher numa rede social de
relações de poder, sobretudo no que diz respeito às diferenças de género. Neste âmbito, as
questões colocadas a partir dos Estudos de Género começam a passar pela investigação dos
sistemas de poder que, de alguma maneira, produzem o masculino e o feminino tal como
são reconhecidos. É neste período que se lança a discussão sobre os papéis sociais de
género, depois de se provar que as diferenças biológicas de sexo não são fixas:
Inicia-se então uma Era mais focada no género e na sua divisão social de papéis, do que na
sexualidade biológica imposta. Trata-se agora de procurar entender homens e mulheres
39
Capítulo I – Estudos Culturais
com base nos seus comportamentos, atitudes, costumes, valores, práticas e crenças
(Hartley, 2004), dentro de um esquema social complexo que auxilia na construção da
identidade individual dos sujeitos – “o género é sem dúvida a produção e reprodução social
mais elaborada, mais completa e rigidamente dicotómica das identidades e
comportamentos masculino e feminino (…)” (Sedgwick, 1993:250), embora essa “rigidez”
(social e simbólica) tenha vindo a ser diluída com o advento do século XXI, na medida em
que começa a ser questionada a verdadeira “natureza” do género.
É neste contexto sociocultural que todo o trabalho desenvolvido pelo movimento feminista
nas décadas anteriores vai sofrer uma reestruturação epistemológica (auxiliada pelos
Estudos Culturais), dando lugar a uma nova leitura do género e da sexualidade, passando
estes conceitos a ser pensados a partir de um outro lugar que não a natureza. A autora que
mais se destaca nesta linha de pensamento é Judith Butler, por trazer à discussão a
possibilidade de pensar a realidade social e cultural de uma outra forma, onde género e
sexualidade deixam de ser definidos pela natureza e passam a ser interpretados como
“performatividade”. Butler (2004) vai implodir com a visão dualista até aqui imposta, e
assume que a diferença entre sexo e género não é mais o caminho a seguir. Para a autora, o
caminho passa pelo “respeito pelos corpos”, cuja liberdade depende de serem livres do
40
Capítulo I – Estudos Culturais
discurso que os constitui (isto porque os corpos/sexos não são naturais, mas sim
discursivos).
Esta posição de Judith Butler em relação aos Estudos de Género passa a ser generalizada
dentro dos Estudos Culturais, evoluindo na linha do pensamento pós-estruturalista e dando
lugar àquilo que se entende por Pós-Feminismo. Hoje, apesar de ser reconhecer e legitimar
a importância do movimento feminista inicial (tanto nos campos epistemológico e
ontológico, como na prática política), torna-se fundamental valorizar um lugar onde o
sujeito é classificado como ser humano, antes de ser pensado como homem ou mulher.
Esta é a verdadeira essência do Pós-Feminismo. Contudo, é fundamental entender que,
para levar a cabo leituras e interpretações do mundo sociocultural (tanto ao nível do real,
como do simbólico e do imaginário), a investigação tem de se adaptar constantemente ao
contexto espácio-temporal, posicionando-se (sempre que necessário) entre o Feminismo, o
Antifeminismo e o Pós-Feminismo.
Ana Escosteguy (s.d.:11) destaca ainda os anos 1990 como o período em que “o leque de
investigações sobre a audiência procura ainda mais enfaticamente capturar a experiência,
(…) principalmente à luz das relações da identidade com o âmbito global, nacional, local e
individual”, pois com a aceleração dos sistemas de globalização, a construção das
identidade sociais passa a ser o foco central de atenção. Começa agora a surgir uma nova
perspetiva teórica baseada na metodologia etnográfica e na construção de significados pela
audiência. Esta corrente apercebe-se que a audiência é sempre ativa e que o conteúdo dos
media é sempre polissémico ou aberto a interpretação (Morley, 1997).
41
Capítulo I – Estudos Culturais
42
Capítulo II – Poder e Discurso
De acordo com Jürgen Habermas, para a Filosofia da Consciência existem duas espécies de
relações que o sujeito adota perante o mundo dos objetos manipuláveis e representáveis: as
relações cognitivas e as relações práticas. As cognitivas são reguladas pela verdade dos
juízos e as práticas são reguladas pelo sucesso das ações; já “o poder é aquilo com que o
sujeito atua sobre objetos em ações bem-sucedidas” (Habermas, 2010:268). Esta afirmação
abre caminho a uma definição alargada do conceito de poder, explorada pelos Estudos
Culturais, que tanto engloba o âmbito pessoal – questões relacionadas com o sujeito e a
identidade, a sexualidade e o género, a etnicidade, etc. – como o âmbito social – questões
relacionadas com a representação, a ideologia e a resistência, a cultura mediática, etc.
Para os Estudos Culturais, o poder define a natureza das relações históricas, sociais,
culturais e políticas dos sujeitos. Portanto, quando nos referimos ao processo de
identificação, pesquisa e expansão das identidades e das relações sociais, a conformidade
entre cultura, identidade e poder é a matriz que ajuda a resolver os problemas e
dificuldades (Friedman, 1994), e a apresentar resoluções para os mesmos. Existem várias
formas de o fazer, mas os Estudos Culturais apresentam-se eficazes no fornecimento de
instrumentos e técnicas para que os elementos referidos comuniquem e se articulem.
43
Capítulo II – Poder e Discurso
vez mais simbólicas e discursivas, e muitos destes combates, outrora físicos, são agora
dissimuladamente distribuídos por inúmeros canais. Segundo Stuart Hall (1997), os
discursos e medidas do poder podem diluir-se nas próprias políticas culturais que utilizam
os media como canais de distribuição e controlo.
No que diz respeito propriamente à definição do conceito de poder, o autor Raúl Cisneros
(2008) faz uma incursão teórica no seu artigo “O que é o poder?” no qual explicita as
posições de diversos teóricos, ao longo dos tempos. O autor começa por indicar dois
teóricos do século XVII, Thomas Hobbes e John Locke, que apresentam já uma ligação do
conceito de poder com as relações sociais. Para Hobber, o poder é identificado como o
elemento que permite ao sujeito estruturar interesses comuns, que são formalizados num
contrato social, enquanto a ideia central no pensamento de Locke é a de que o poder surge
de uma associação de indivíduos.
Raúl Cisneros (2008) faz depois uma passagem para o século XVIII, referindo que para
Rousseau o poder é um meio de realização dentro das relações sociais, que faz prevalecer
os interesses gerais dos sujeitos através de uma espécie de contrato social. Cisneros (2008)
demonstra que, com o passar do tempo, o conceito de poder vai-se tornando cada vez mais
abrangente, e com Friedrich Nietzsche o poder passa a ser o motor de todos os processos
da sociedade.
Para discutir o conceito de poder no século XX, Cisneros (2008) aponta o nome de vários
teóricos: Max Weber, Talcott Parsons, Michel Foucault, Hannah Arendt, Abraham
Zaleznik, Kenneth Galbraith e Annabelle Hoffs. Em relação ao primeiro teórico, Cisneros
(2008) indica que, apesar de Max Weber (2005) fazer a distinção entre poder legal, poder
tradicional e poder carismático, a sua posição parece centrar-se na ideia de que o poder é a
44
Capítulo II – Poder e Discurso
imposição da vontade própria numa relação social do mesmo, enquanto Parsons (1979)
indica que o exercício do poder implica que uma unidade de um sistema social (recíproco)
imponha os seus interesses e aí exerça força.
Michel Foucault (1981, 2006, 2010a), que fez da teorização do poder uma das temáticas
mais abordada nas suas obras, afirma que o poder não é exclusivo do Estado, nem dos
governos e instituições, mas que implica a multiplicidade de relações sociais, pelo que
estas relações de poder devem ser entendidas como uma tecnologia ou mecanismo que
ultrapassa a esfera política e se ramifica em toda a realidade social. Isto conduz à
afirmação de que o indivíduo é uma criação do poder, ao mesmo tempo que o poder é
promotor de individualidade. Esta afirmação é apoiada pela reflexão de Hannah Arendt
(1974) que indica que o poder é a forma de atuar do ser humano, embora nunca seja sua
propriedade.
Em suma, salienta-se o facto de parecer haver em todos os teóricos referidos por Cisneros
(2008) uma tendência para focar o poder no seio das relações sociais, ao mesmo tempo que
são discutidas ligações com os conceitos de dominação, de subordinação e de resistência.
Isto levou o autor a construir a sua própria conceptualização de poder:
45
Capítulo II – Poder e Discurso
Em relação a esta definição e às leituras dos restantes autores, Cisneros (2008) indica que é
preciso ter em consideração um conjunto de aspetos que devem ser relacionados com o
entendimento do poder: 1) o poder tem uma origem racional, coexistindo nas sociedades,
que funcionam como grupos organizados, de forma positiva (divisão do trabalho e
organização dos sujeitos) e negativa (ato de dominação); 2) a principal função do poder
não é castigar ou punir, mas ligar os sujeitos numa espiral que implica um contrapoder; 3)
nas organizações sociais, o poder deve ser visto como o elemento vinculador, articulador e
repressor do comportamento humano; 4) o poder não é uma condição livre ou restrita ao
desejo individual do sujeito, pois encontra-se limitado a uma fronteira institucional ou a
uma estrutura que o exerce (sociedade, Estado, grupo, organização, classe); 5) o poder
nunca é propriedade de um sujeito, mas requer a presença simbólica do sujeito para
representar os interesses das relações sociais; e 6) para entender o exercício de poder nas
organizações é necessário compreender as instituições que determinam a estrutura das
próprias organizações.
Em rigor, o poder parece ser algo que não existe por si só; existem sim relações ou práticas
de poder que se constroem e exercem na base das relações dinâmicas entre indivíduos e/ou
grupos de sujeitos. Efetivamente, o poder está relacionado com capital, status e
conhecimento, mas implica sobretudo relações assimétricas entre um sujeito (ou grupo)
que consegue dominar as ações de outro(s) e interferir com a sua liberdade. É esta rede
energética que o Eu cria e impõe ao Outro, e que leva Coco Fusco (1990:77) a afirmar que
“a questão do Outro é uma questão de poder”.
Todavia, é necessário perceber que, da mesma forma que a influência social se produz nos
dois sentidos (do subordinador para o subordinado e vice-versa), também as relações de
poder assim se podem produzir, sobretudo entre dois sujeitos ou elementos (Costa, 1999).
Esta interpretação pode levar muitos a considerarem as relações de poder como limitações
que determinam, à partida, o ser humano, embora para outros o poder seja conotado com o
conceito de liberdade. Trata-se somente de uma questão de perspetiva, pois esta dicotomia
pode ser compreendida de acordo com a distribuição e filosofia do poder, o que não
implica que quem exerce mais poder, conquiste mais liberdade, pois como diz a velha
máxima: “quanto maior for o poder, maior a responsabilidade”. É no sentido desta
dinâmica relacional que “a criação e utilização do poder constituem um dos imperativos
46
Capítulo II – Poder e Discurso
O poder torna-se então omnipresente no imaginário coletivo, fazendo com que qualquer
pessoa ou grupo social seja afetado pelas relações de poder. Antonieta Costa apresenta o
conceito de poder nas sociedades da seguinte forma:
A teoria do poder social nos Estudos Culturais tem assumido assim a diretiva que os
sujeitos não podem escapar às relações de poder, embora as possam modificar e interferir
nelas, na medida em que o poder implica o estabelecimento de uma relação bilateral que é
gerida pelas questões ideológicas e pelas formas de resistência que são aplicadas – “não há
relações de poder sem resistência [e] é essa mesma resistência que ajuda a intensificar o
jogo do poder” (Hernández, 2006:216). Isto implica que, nem o Estado nem os aparelhos
de controlo institucional são suficientes para controlar ou desvanecer as redes de poder que
imperam numa sociedade.
De facto, “deter” o poder não implica empregar força. Apesar de existirem hierarquias de
poder que fomentam o domínio de certas organizações culturais, sociais e políticas sobre
outras, através de tecnologias punitivas, não se pode limitar este conceito a um uso de
poder de forma repressora e abusadora. Embora as relações de poder impliquem também
estas dimensões, nas Ciências Sociais estas relações estão sobretudo ligadas ao poder que
intervém de forma produtiva e construtiva nos sujeitos e na sua vida quotidiana, e que lhes
permite criar estratégias de contrapoder:
47
Capítulo II – Poder e Discurso
Uma apreciação do poder exige uma análise e uma compreensão da sua natureza enquanto
força de equilíbrio nas relações sociais. De facto, o poder opera nas instituições, nas
organizações e no Estado, mas também no quotidiano dos sujeitos, onde eles vivem e
revivem a sua realidade social. É neste tipo de relações que os Estudos Culturais possuem
um interesse permanente, sobretudo na forma como o poder se infiltra, contamina, delimita
e posiciona (Grossberg, 2009) nas atividades dos sujeitos (uns com os outros) e com o
meio onde coabitam.
Segundo Teun Van Dijk (1995, 1996), o poder social poder ser definido como as relações
sociais que se estabelecem entre grupos ou instituições, envolvendo o controlo de um
grupo ou instituição mais poderoso (e os seus membros) sobre um grupo ou instituição (e
seus membros) menos poderoso – “tal poder geralmente pressupõe acesso privilegiado a
recursos sociais valiosos, tais como força, saúde, lucro, conhecimento ou status” (Van
Dijk, 1995:10). O mesmo autor, no seu artigo “Princípios de análise crítica do discurso”
(1993) refere que ao se focar o assunto no poder social deveria ser ignorado o poder
pessoal, a não ser que se trate de uma realização individual do poder do grupo. Contudo, é
necessário ter em consideração todas as vertentes do micro-poder quando se discute o
poder social, pelo que, no contexto deste trabalho, serão consideradas as dinâmicas de
poder entre todas as relações do tecido social que se encontrem presentes nos diversos
contextos, géneros e formas de discurso e comunicação.
Teun Van Dijk (1996) teoriza ainda o conceito de poder, afirmando que se trata de algo
“distribuído” pelos grupos ou instituições, e que é específico de um determinado domínio,
tal como a política, a educação, a lei, os media, os negócios, entre outros. Isto permite que
o poder, por vezes, seja de acesso privilegiado, podendo conduzir a formas de domínio ou
abuso de poder, que podem ir ao encontro de mais ou menos resistência (ou contrapoder).
48
Capítulo II – Poder e Discurso
Esta visão, que tende a excluir as micro-redes de poder, que também se estabelecem entre
os sujeitos, conduz o autor a uma conceção mais generalista de poder, em que um “grupo
A” exerce poder e controle sobre um “grupo B”, e não vice-versa (Van Dijk, 1989b).
No caso de António Gramsci (2006), em vez de uma teoria do poder, o autor desenvolve
uma teoria da hegemonia, que procura analisar as forças de domínio e as formas como
determinadas forças atingem autoridade hegemónica, ou como essas forças são
ultrapassadas ou derrubadas. Para o autor, o poder hegemónico refere-se, em primeiro
lugar, à dominação ideológica de uma classe social sobre outra. A hegemonia estabelece-se
através de uma relação que considera os interesses de ambas as partes, embora haja sempre
um grupo que domina. No entanto, este domínio não implica forçosamente uma
subordinação repressiva, na medida em que o grupo dominador exerce o poder
hegemónico através de um aparato ideológico moral e até intelectual (ideais e valores que
são produzidos e mantidos através de meios mediáticos, propagandísticos e simbólicos). É
este aparato que dirige o grupo dominado.
Esta leitura de classes apresentada por Gramsci pode ser aplicada a vários grupos e níveis
sociais, o que é salientado por Lull (2003:61) quando afirma que “a hegemonia é o poder
ou domínio que um grupo social detém sobre outros”, e que representa, mais do que uma
forma de poder social, uma forma de ganhar e manter poder através de uma influência
particularmente ideológica.
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Capítulo II – Poder e Discurso
Bourdieu (2000) parte de uma teoria que interpreta o poder como “campos de força” que se
estabelecem nas relações entre os sujeitos. Nestes “campos de força” – campo social,
campo científico, campo pedagógico, campo artístico, etc. – os sujeitos desempenham
diferentes estatutos (ou lugares sociais) que se vão personificar em papéis sociais. Desta
forma, desenvolvem-se relações que implicam dinâmicas de poder assimétricas e
circunstanciais que se exercem entre dominadores e dominados, através de um aparato
simbólico e normativo demasiado enraizado na sociedade. É este aparato (muitas vezes
presente nos discursos hegemónicos que não se dão como tal) que é responsável por
legitimar ou censurar os sujeitos, os seus comportamentos, as suas atitudes e os seus
corpos.
Michel Foucault é um dos mais relevantes pensadores da segunda metade do século XX,
que desenvolveu o seu trabalho à volta do saber filosófico, da Literatura, da crítica social e
da análise do discurso. Contudo, o poder, independentemente da temática (sexualidade,
governamentalidade, individualidade, identidade), e as relações de poder entre elementos
50
Capítulo II – Poder e Discurso
51
Capítulo II – Poder e Discurso
A mesma ideia está presente nas palavras de Francisco Ávila-Fuenmayor (2007) que
afirma que, para Foucault:
(…) O poder não é algo que representa a classe dominante; não é uma
propriedade, mas uma estratégia. Neste sentido, o poder não é possuído, exerce-
se e os seus efeitos não são atribuíveis a uma apropriação, mas a certos
dispositivos que lhe permitem funcionar plenamente. Além disso, postula que o
Estado não é o lugar privilegiado do poder, mas que é um efeito de conjunto (…)
(Ávila-Fuenmayor, 2007:15).
Clare O’Farrell apresenta igualmente uma visão do conceito de poder a partir do estudo de
Foucault, concentrando, uma vez mais, o foco nas relações de poder e nos seus limites. A
autora declara que o poder não é uma “coisa” detida pelo Estado, pelas classes sociais ou
por sujeitos, mas antes “uma relação entre diferentes indivíduos e grupos, e apenas existe
quando é exercitada” (O’Farrell, 2005:99). Organizações, instituições ou governos apenas
sustentam as complexas relações de poder ao nível social. Isto implica que todo o corpo
social está contaminado pelas relações de poder e nada nem ninguém está livre delas. A
resistência existe onde o poder é exercido (O’Farrell, 2005) e apenas a resistência serve de
elemento de contrapoder.
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Capítulo II – Poder e Discurso
correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao
mesmo tempo relações de poder (Foucault, 2010c:30).
Neste sentido, Judith Butler – que parte da conceptualização foucaultiana para desenvolver
grande parte do seu trabalho teórico – afirma que poder e conhecimento estão intimamente
relacionados na busca daquilo (ou de quem) é considerado real ou verdadeiro. A autora
afirma mesmo que “conhecimento e poder não são finalmente inseparáveis, mas trabalham
juntos para estabelecer um conjunto de critérios subtis e explícitos para pensar o mundo
(…)” (Butler, 2004:27), onde o poder surge disfarçado de ontologia.
Para Hartley (2004:206), “o poder foi teorizado de duas formas concorrentes pelo
Marxismo e por Foucault, e ambas são influentes nos Estudos Culturais e nos media”. O
Marxismo herdou a abordagem da economia política, vendo o poder como um recurso
escasso que era fruto das forças produtivas (capital e trabalho). O poder era assim algo que
alguém (uma classe) detinha, dominando e reprimindo os outros (outra classe) através do
medo, e utilizando outras estratégias intermédias. Ao contrário das teorias marxistas, que
se baseiam nas relações de poder assentes nas redes económicas e na luta, as teorias
foucaultianas veem o poder dentro de todas as relações sociais, independentemente da sua
natureza. No centro destas relações encontra-se o conhecimento que interpreta o mundo,
legitima os discursos e pode ser usado para controlar os sujeitos (Taylor, 1997) em
determinados momentos históricos – “as estratégias de poder produzem conhecimento”
(Kritzman, 1990:106).
Para Foucault, a verdade (ou o conhecimento válido) reflete-se nas relações de poder na
sociedade e é apanhada nas lutas de poder (apesar de ser produzida fora delas), ao mesmo
tempo que ajuda a conceber os sujeitos como indivíduos. A isto Foucault chamou de
hipótese repressiva do poder: o poder domina os “indivíduos”, mas o conhecimento ou a
verdade liberta-os. Todavia, além de assentar no conhecimento e na verdade, a teoria
foucaultiana do poder centra-se no discurso, na identidade, na sexualidade e na
governamentalidade como lugares de poder.
Ainda no campo das relações sociais, Marshall (1996), baseando-se na teoria de Foucault,
acrescenta que a análise das relações de poder deve ser conduzida de acordo com cinco
pontos principais: 1) os sistemas de diferenciação estabelecidos por leis, tradições,
condições económicas, etc., e que dão primazia a determinadas relações de poder; 2) os
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Capítulo II – Poder e Discurso
tipos de objetivos que aqueles que agem sobre os outros pretendem atingir; 3) a forma de
trazer para a ação as relações de poder, seja através da força, do respeito, do
consentimento, da recompensa económica, etc.; 4) as formas de institucionalização (pode
haver uma mistura entre estruturas hierárquicas tradicionais como a família, a
militarização, etc.); e 5) o grau de racionalização que, dependendo da situação, elabora e
legitima processos para o exercício do poder.
Foucault inicia mesmo os seus estudos baseando-se no efeito do poder ou do discurso, pois
ele reconhece que as relações de poder permeiam toda a sociedade. Segundo Woodward
(1997:254) “Foucault vê o poder em toda a parte”, pois ninguém pode estar fora do
exercício do poder, que opera dissimuladamente através de distintos e diversos ângulos. De
acordo com Foucault, a ideia do poder que vem “de cima para baixo” é substituída pela
ideia de que os discursos estão envoltos em relações de poder que o podem legitimar ou
limitar, positiva ou negativamente: “para Foucault, o discurso é visto como o poder de que
nos queremos apoderar” (Martins, 2002:75). Neste sentido, os sujeitos são entendidos
como construções discursivas e produtos de poder, simultaneamente.
Nas suas obras, Foucault estuda como os sujeitos reprimem outros sujeitos, mas também
como se reprimem a si próprios através da norma. A norma ou regra encontra-se dentro das
artes de julgar e tem relação com o poder, e embora não se dê pelo uso da “força”,
acontece por meio de uma lógica quase invisível. Obviamente que a definição de
“normatividade” depende do tipo de teoria social em questão, mas as normas são, por um
lado, um sinal de regulação da normalização da funcionalidade do poder e, por outro, o que
liga os sujeitos e forma as suas bases éticas e políticas (Butler, 2004).
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Capítulo II – Poder e Discurso
Esta proximidade entre norma e poder, que é identificada por Foucault, limita o sujeito
ontologicamente. O filósofo afirma ainda que a única forma de combater a norma é através
do discurso crítico. No entanto, este discurso crítico encontra-se também ele dentro da
norma regulatória, o que exige uma outra opção epistemológica – que vê a norma e a sua
reintegração como ação – e que ainda será explorada dentro deste capítulo.
Neste sentido, insiste-se neste ponto numa abordagem teórica e interpretativa do poder
como prática social particularmente ao nível micro, pois como indica Sarup (1996:75),
Michel Foucault não se foca na “(…) determinação das estruturas sociais, mas nas micro
operações de poder”. Segundo o ponto de vista de Foucault (1981, 2010a, 2010b, 2010c), as
relações de poder que se reproduzem na sociedade devem ser analisadas numa
microescala, admitindo que o poder é algo que se exerce mais do que se possui. Esta
perspetiva não entende o poder como uma propriedade, mas sim como uma estratégia ou
uma tática que está em constante atividade na dinâmica relacional dos sujeitos em
sociedade:
(…) A microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como
uma propriedade, mas como uma estratégia; que os seus efeitos de dominação
não sejam atribuídos a uma ‘apropriação’, mas a disposições, a manobras, a
táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de
relações sempre tensas, sempre em atividade (…) (Foucault, 2010c:29).
Trata-se, sobretudo, de um poder que intervém nos sujeitos e na sua vida quotidiana, ao
nível “micro”, mas que não é necessariamente possuído por ninguém. Estas estratégias de
poder, presentes nas microrrelações, não condenam os sujeitos, mas antes produzem efeitos
de retorno sobre todos os domínios da sua vida social. Todavia, não é possível omitir que
apesar de tudo “as relações de poder são uma relação desigual e relativamente estabilizada
de forças” (Foucault, 2010a:250).
Neste processo deve-se perceber o que Foucault quer dizer com microníveis de relações de
poder. Trata-se de todas as dinâmicas relacionais que são estabelecidas pelos sujeitos e que
se encontram ao nível da comunicação, da linguagem e dos discursos (Van Dijk, 2003). De
facto, questões relacionadas com o domínio, a desigualdade e o poder entre grupos sociais
são atribuídas ao nível macro das relações sociais. Porém, Foucault interessa-se igualmente
pelos elementos que estão na base destas relações, observando os sujeitos, as suas ações, o
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Capítulo II – Poder e Discurso
Tudo isto implica que não se pode nunca estar fora do exercício do poder, pois ele é
extensivo a todo o corpo social, na medida em que as relações de poder se comportam
como verdadeiros “estados de poder” e são intrínsecas a outros tipos de relação –
familiares, sexuais, de produção –, onde, de acordo com Hernández (2006), há um
equilíbrio entre condicionante e condicionado. Este equilíbrio afasta a forma única de
poder associada a mecanismos de punição e proibição, e abre as portas a formas múltiplas
de aplicação e contemplação das relações de poder (Foucault, 1981, 2006), que estão
sempre sujeitas a formas de resistência ou de contrapoder.
Para Foucault, a análise do poder exige que se determine quais os seus mecanismos, as
suas implicações, as suas relações e os dispositivos que são utilizados nos distintos níveis
da sociedade. Seguindo esta perspetiva e, ao desenvolver a teorização do poder, Michel
Foucault abordou conceitos como disciplina, vigilância, controlo, punição e repressão,
começando por explorar, primeiramente, comportamentos e atitudes sociais no que respeita
a instituições hospitalares e criminais.
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Capítulo II – Poder e Discurso
registo contínuo de conhecimento. Contudo, é necessário ver o poder disciplinar como algo
que constrói o indivíduo e não como algo que o destrói, pois as técnicas disciplinares são
técnicas de individualização das quais o indivíduo é um efeito (Foucault, 2010a). Em suma,
o poder vigilante ou disciplinar funciona como uma máquina, onde a disciplina faz
funcionar um poder relacional autossustentável.
Para Foucault, os novos discursos médicos deram origem a novas formas de poder e
controlo (Foucault, 2010c). Deste modo, a partir do século XVIII as regras médicas que
assentavam no conceito de “normalidade” sexual criaram estruturas de controlo e
vigilância, de forma a examinarem e curarem os pacientes através da punição (Foucault,
2006). Este conceito evolui no século XIX para a prisão como forma de punição para
sujeitos com comportamentos desviantes (Foucault, 2010c). Paul Taylor destaca ainda que
os castigos físicos foram substituídos pela vigilância permanente quando afirma que:
Nas sociedades atuais, o poder encontra-se nos próprios sujeitos, vigiando-os em todo o
lado, através de dois dispositivos principais: o panótico e a confissão. Para Martins &
Neves (2000), Foucault considera que o dispositivo pan-ótico dá seguimento àquilo que
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Capítulo II – Poder e Discurso
começou por ser uma forma arquitetural das prisões por volta do século XVII e se
transformou num mecanismo subtil de dominação – os sujeitos são os melhores vigilantes,
pois são capazes de orientar o seu comportamento e o dos outros. Quanto à confissão, que
começou por ser extensivamente utilizada pela Igreja Católica noutros tempos, passa agora
a ser explorada pelo Estado, pelas organizações modernas e pelas Ciências Sociais,
particularmente pela Sociologia e pela Psicanálise. Para Michel Foucault, a Psicanálise é
descrita como descendente histórica da confessional e está na base operativa do poder
político moderno, que acaba por manter uma relação com as instituições cristãs e que
desemboca naquilo que Foucault apelidou de “poder pastoral”. A confissão pode assim ser
vista como uma hipótese repressiva, na medida em que o autossacrifício é compelido pelo
poder. Mas pode também ser uma força performativa de expressão falada, ou seja, em vez
de ser uma forma de expor a sua verdade e os seus desejos publicamente, é uma forma de
constituir a verdade própria através do ato de verbalização em si (Butler, 2004).
Para Foucault o poder circula numa espécie de rede e não é totalmente monopolizado por
um centro, pelo que, ao operar em todos os níveis da vida social, nem sempre se revela
opressivo. O poder também é produtivo (Foucault, 2010c; Hall, 2001a). Neste caso,
Foucault e Gramsci partilham a mesma conceção de poder: “o poder não pode ser
capturado por pensar exclusivamente em termos de força ou de coerção: o poder também
seduz, solicita, induz, ganha consentimento” (Hall, 2001b:339). Nas palavras de O’Farrell
(2005) o poder é produtivo porque: a) é múltiplo e pode envolver várias relações; b)
produz determinados tipos de comportamento através da regulação; e c) exercer o poder dá
prazer a alguns, enquanto outros têm prazer em resistir-lhe.
Foucault realça, na sua obra Microfísica do Poder (2010a), este caráter versátil do poder,
sobretudo quando é considerado produtivo dentro de uma rede de relações sociais:
58
Capítulo II – Poder e Discurso
O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceite é simplesmente que ele
não pesa só como uma força que diz não, mas que de facto ele premeia, produz
coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo
como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que
uma instância negativa que tem por função reprimir (Foucault, 2010a:8).
Michel Foucault foi o autor dos conceitos de biopoder e biopolítica que surgiram,
originalmente, no primeiro volume da obra História da Sexualidade (Cascais, 2010). A
biopolítica refere-se “às tecnologias, conhecimentos, discursos, políticas e práticas usadas
para puxar o assunto da produção e gestão de recursos humanos de um Estado” (Danaher
et al, 2000:ix). Com a teorização do conceito de biopolítica, Foucault foca-se no âmbito
duma economia política, “que incluía a vontade de saber sobre a carne e o corpo, a
socialização dos comportamentos procriadores do casal, a pedagogização da sexualidade
infantil, a psiquiatrização do prazer perverso, a histerização do corpo da mulher, o governo
da população e das raças” (Cascais, 2010:39), entre outros assuntos. Já o biopoder, ou
poder sobre a vida como o apelidou Foucault (2006), “analisa, regula, controla, explica e
define o sujeito humano, o seu corpo e comportamento” (Danaher et al, 2000:ix).
Para Foucault, a disciplina age sobre os sujeitos enquanto o biopoder age sobre a espécie
humana, pois permite a gestão da vida dos sujeitos através de técnicas de poder sobre o ser
biológico (Trindade, 2008). Este processo explora ao máximo as tecnologias do poder,
trazendo para o centro da discussão as formas de resistência contra esse poder. De facto, a
organização do poder na sociedade começa por ser disciplinar para depois seguir a via do
controlo. Se as sociedades disciplinares se restringem a espaços delimitados como prisões,
hospitais e fábricas, as sociedades de controlo encontram-se distribuídas por todo o tecido
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Capítulo II – Poder e Discurso
social (Trindade, 2008). Neste caso, o poder evolui de modelo a seguir para elemento
flexível e que se aperfeiçoa com o tempo.
No desenvolvimento da sua teoria, Foucault substitui a visão disciplinar por outra a que
apelidou de governamentalidade. Segundo O’Farrell (2005), o poder governamental não
restringe a liberdade (como acontecia com a disciplina), consentindo antes que esta seja
incorporada em mecanismos que servem de guia para os comportamentos dos sujeitos na
sociedade:
(…) O poder não pode em caso algum ser considerado um princípio em si nem
um valor explicativo que funciona de antemão. O próprio ‘poder’ mais não faz
do que designar um domínio de relações que se devem analisar inteiramente, e
aquilo a que propus chamar governamentalidade mais não é do que uma proposta
de grelha de análise para essas relações de poder (Foucault, 2010b:240).
60
Capítulo II – Poder e Discurso
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Capítulo II – Poder e Discurso
Todas estas problemáticas levam, muitas vezes, os sujeitos a forjar a sua própria identidade
(em vez de a revelarem), o que conduz Foucault a afirmar que é necessário tomar conta do
Eu através de práticas que o vão alimentando, construindo e controlando. Estas práticas
podem ser funcionais, políticas ou sexuais (Probyn, 1993).
Nas duas últimas décadas do século XX, os teóricos da Sociologia, da Antropologia e dos
Estudos Culturais começaram a revelar interesse na aproximação das teorias do poder às
abordagens socioculturais sexuais e de género. As questões relacionadas com as diferenças
de género, as atitudes sexistas, o domínio e a subordinação (entre homens e mulheres)
começaram a ser analisados, de forma a explicitar muitas das construções sociais
contemporâneas. No caso de Michel Foucault, a análise do poder/saber versus sexualidade
penetra no poder patriarcal, na instituição do casamento e da maternidade, no corpo, na
heterossexualidade imposta e na homossexualidade presente. O modelo marxista que
assentava o poder na luta de classes começa então a ser substituído pelo dos grupos
oprimidos, como, por exemplo: as mulheres, os grupos étnicos fragilizados, os sujeitos
identificados pela idade, pela preferência sexual e pela identidade.
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Capítulo II – Poder e Discurso
Martins & Neves (2000) são da mesma opinião, afirmando que Foucault não tinha a
intenção de criar uma teoria geral do poder. Contudo, assumem que o filósofo conseguiu
recusar um conjunto de postulados intimamente ligados com esta questão. Para os autores,
Foucault recusa os postulados da propriedade, da localização, da subordinação, do modo
de ação e da legalidade. Em relação ao postulado da propriedade, fica claro que o poder
não é propriedade de ninguém, muito menos de uma classe dominante. Quanto ao
postulado da localização, entende-se que o poder não se cinge ao Estado ou outras
instituições, embora estas sejam lugar privilegiado do seu exercício.
O poder é agora considerado como um conjunto de relações que não obedece a uma
estrutura piramidal, mas sim que atravessa todos os segmentos sociais, recusando o
postulado da subordinação (verdadeiros “estados de poder”). O postulado do modo de
ação, que via o poder atuar por meio de mecanismos de repressão e ocultação da realidade,
é agora substituído por uma imagem também positiva que vê o poder como algo produtivo
através da técnica da normalização. Finalmente, o postulado da legalidade, que legitimava
o exercício do poder através da lei, é agora refutado por Foucault que mostra que existem
outros mecanismos de verificação do poder que não se limitam apenas à legalidade. Em
suma, e nas palavras de Michel Foucault, o poder é concebido como:
(…) Um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de
possibilidades onde vem inscrever-se o comportamento dos sujeitos atuantes:
incita, induz, contorna, facilita ou torna mais difícil, alarga ou limita, torna mais
ou menos provável; no limite, constrange ou impede completamente; mas é
63
Capítulo II – Poder e Discurso
Por sua vez, Van Dijk (1989b) afirma que existem algumas dimensões do poder que têm
um impacto nos discursos e nas suas estruturas. Estas dimensões encontram-se ao nível
interno das estruturas de poder das instituições, ao nível das relações de poder entre
diferentes grupos sociais e ao nível do exercício do poder pelos membros dessas
instituições ou grupos. Em relação a este assunto, o autor afirma que as formas diretas ou
indiretas de poder são reproduzidas nos e pelos discursos, pois “o poder discursivo envolve
o controlo sobre o próprio discurso” (Van Dijk, 1989b:49).
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Capítulo II – Poder e Discurso
Van Dijk (1993) especifica também que o acesso a formas particulares de discurso (ex.:
media, ciência, política) é considerado uma fonte de poder. De facto, quem influencia os
pensamentos, conhecimentos e opiniões dos outros consegue controlar as suas ações
(através da persuasão e da manipulação). Em suma, isto implica que quem detiver mais
influência discursiva tem mais hipótese de controlar os outros. Contudo, as estruturas
discursivas não são manipulativas, exceto em algumas situações comunicativas específicas
e ainda em determinadas modalidades interpretativas (Van Dijk, 2006).
Na sua obra Linguagem e Poder (1989), Fairclough defende que o poder no discurso está
relacionado com participantes poderosos que controlam as contribuições de outros
participantes não-poderosos. Todavia, o autor sublinha que é preciso ter em consideração
três tipos de constrangimentos ou efeitos estruturais presentes na relação entre poder e
discurso: 1) efeitos dos conteúdos (o que é dito ou feito); 2) efeitos das relações (relações
sociais que são colocadas no discurso); e 3) efeitos do sujeito (posições de sujeito ou
identitárias ocupadas pelos sujeitos). Assim, percebe-se que todas as relações sociais de
poder são exercidas nas formações discursivas. O discurso revela-se então aquilo pelo qual
e com o qual se luta, o poder do qual nos queremos “apoderar” (Foucault, 1997).
Uma das consequências associadas a esta problemática é o abuso de poder exercido por um
sujeito (ou grupo) sobre outro(s). Este abuso é, muitas vezes, personificado em formas de
discriminação, na medida em que o poder do discurso facilita a criação de categorizações
que criam fronteiras relacionais. O poder discursivo tem, assim, capacidade de eleger
determinadas ações e comportamentos como líderes: “o poder das palavras é apenas o
poder delegado do porta-voz” (Bourdieu, 1982:105).
Para Teun Van Dijk (1988) os sujeitos necessitam da comunicação e dos discursos para
aprender qual a estrutura social em que coabitam e se relacionam, bem como a sua posição
nessa mesma estrutura social. Os discursos auxiliam os sujeitos a perceber qual o seu lugar
na sociedade, mas também a interpretar as posições de poder. Este procedimento exige
uma mediação cognitiva, pois o poder não tem acesso direto ao discurso e é, na maioria das
vezes, um processo de representação. Em forma de conclusão, Van Dijk afirma que as
relações entre poder social e discurso são complexas, pois:
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Capítulo II – Poder e Discurso
Michel Foucault também desenvolveu um interesse específico pela relação entre poder,
conhecimento e discurso. Para o autor, o conhecimento associado ao poder assume a
autoridade da verdade e tem o poder de se tornar verdade (Wetherell et al, 2001), criando
assim uma formação discursiva que sustenta o regime do conhecimento. Hartley (2004)
afirma que o poder do conhecimento se encontra distribuído por forças produtivas e
institucionais, manifestando-se pela organização e administração, e não pela força. Ora, o
autor refere-se aos discursos que têm o intuito de orientar os sujeitos. Todavia, muitas
vezes são os discursos do controlo e da disciplina que encaminham os sujeitos, pois “uma
condição importante para o exercício do controlo social por meio do discurso é o controlo
do discurso e da produção do discurso em si” (Van Dijk, 1989b:21).
O tipo de análise que Foucault pratica centra-se, particularmente, na análise das diferentes
formas pelas quais o discurso desempenha um papel importante num sistema de poder.
Neste caso, o poder não é a fonte do discurso, nem a sua origem, “o poder é alguma coisa
que opera através do discurso, já que o próprio discurso é um elemento num dispositivo
estratégico de relações de poder” (Foucault, 2006:253). Para Michel Foucault o poder atua
nos discursos, e os discursos constituem apenas “uma série de elementos que operam no
interior do mecanismo geral do poder” (Foucault, 2006:254). Barker (2000:79) afirma
mesmo que, para Foucault, “os discursos regulam não apenas o que pode ser dito sob
determinadas condições sociais e culturais, mas quem pode falar, quando e onde”.
Uma das formas principais de interpretar a relação entre o poder social e o discurso é
através da análise de discursos. Esta técnica serve, sobretudo, para explicitar e descrever
como o abuso de poder se legitima através do texto e da “fala” dos grupos/instituições
dominantes, e para auxiliar na compreensão sobre o modo como o discurso contribui para a
reprodução desse próprio abuso de poder. Nas sociedades atuais, o poder é cada vez mais
cognitivo, derivando da dissimulação, manipulação e persuasão, de forma a exercer
diversas forças no pensamento e comportamento dos outros. É neste ponto que a análise de
discurso se mostra fundamental. Este tipo de análise não examina apenas o poder que se
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Capítulo II – Poder e Discurso
exerce abruptamente, mas revela um especial interesse nas formas de abuso de poder que
influenciam ou controlam as ações dos sujeitos, através da linguagem. Contudo, as
relações de poder veiculadas pelos discursos podem também ser analisadas através de
outras técnicas como, por exemplo, a análise de conteúdo. Pela análise de conteúdo não só
é possível identificar e avaliar os discursos e as formas linguísticas que legitimam as
relações de poder aí presentes, como também é possível analisar o conteúdo desses
mesmos discursos, alcançando o sentido por trás daquilo que é expresso.
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Capítulo II – Poder e Discurso
moderna), Paddy Scannell (estudo de como a linguagem opera nos media), Gunther Kress
e Theo Van Leeuwen (ambos analisam a dimensão visual de textos impressos), e Judith
Butler (estudo do sujeito constituído por atos discursivos).
No que diz respeito à relação entre discurso e poder, Fairclough, Foucault e Van Dijk
mostram que os conceitos são indissociáveis, independentemente do contexto social em
que se inserem. Para Grossberg (1988) esta relação é o âmago dos Estudos Culturais:
De acordo com Kress & Van Leeuwen (2001) os discursos são formas sociais de
conhecimento ou aspetos reais. Para os autores, este conhecimento da realidade implica um
conjunto de interpretações e legitimações, ao mesmo tempo que é preciso ter em
consideração quem está envolvido, o que está envolvido e onde. Independentemente de
qualquer realização material, é preciso ter em consideração que o discurso existe na
linguagem, e que este é alternativo, pois muda de acordo com a sua necessidade em cada
situação comunicativa. Contudo, os autores supracitados relembram que, apesar do
discurso decorrer num nível de abstração que lhe é próprio, ele é o espelho da experiência
(que não é abstrata).
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Capítulo II – Poder e Discurso
Para alguns teóricos, o discurso é uma forma de linguagem e deve ser analisado de acordo
com modelos da linguística. Contudo “o discurso (…) não é apenas um objeto verbal, mas
essencialmente uma forma de interação social” (Van Dijk, 1985b:2), o que implica que se
atribui às formações discursivas um papel nos modelos de cognição. Os discursos são
construídos com base nas condições sociais, e têm capacidade para restaurar, justificar e
perpetuar realidades sociais e políticas.
O discurso é mais do que palavras escritas ou faladas, pois, subjacente a estas, existem
conceitos, ideias e problematizações de escala diferenciada. Para Van Dijk (1985c) o
discurso desempenha um papel fulcral na formulação ideológica de conceitos como: poder,
conhecimento, racismo, sexismo, diferença de classes, desigualdades. Para o autor, o
discurso atua nas decisões políticas e sociais, na gestão institucional e na representação das
problemáticas citadas.
69
Capítulo II – Poder e Discurso
Em suma, parece que há uma tendência para distinguir o “real” do discursivo, em que este
último assume a posição de significado ou representação. Assim sendo, a definição de
discurso defendida por Hartley (2004) é uma das que se revela mais completa no âmbito
desta investigação. Para o autor, o conceito de discurso ultrapassa o de linguagem, pois
implica um ato, de um processo social de reproduzir sentidos:
Hartley (2004:88) defende ainda que “os discursos não são em si mesmos textuais”,
embora possam ser reconstituídos textualmente e postos a circular nos meios da sociedade.
Contudo, para o autor, é óbvio que os discursos são relações de poder, e que o sentido
social a que os indivíduos estão sujeitos (sobretudo nos media) é o resultado de combates
ideológicos entre discursos. Um bom exemplo disto é a luta entre o discurso patriarcal e o
discurso feminista.
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Capítulo II – Poder e Discurso
Por último, importa aqui apresentar outra visão fundamental para o decurso deste estudo e
que passa pela interpretação que a autora Judith Butler faz da relação sujeito-discurso-
poder. Em primeiro lugar, a autora reconhece que o que o sujeito é (e o que pode ser)
encontra-se dependente de um poder de regulação que vem das normas e das práticas
sociais. Esta visão leva Butler a procurar respostas para a questão do sujeito e da sua
normatização na área da prática discursiva. Desta forma, a autora vais trabalhar,
particularmente, o regime do discurso e não o regime dos factos ou das verbalizações, na
medida em que pensa o sujeito como elemento constituído, mediado e legitimado por
discursos (e pelas relações de poder que são legitimadas pelas normas sociais).
É a opção epistemológica supracitada que faz Butler não optar nem por uma vertente
construtivista, nem por uma vertente biológica, quando se refere à estruturação do género
no humano. Os estudos de Butler vão no sentido de pensar o humano como um ato
discursivo, corporal e performativo, onde o caminho a seguir deve ser o respeito pelos
corpos – cuja liberdade depende de serem livres dos discursos que os constituem – e não a
diferença entre sexo e/ou género. Assim, o corpo como efeito discursivo encontra um lugar
epistemológico, ontológico e político (Butler, 1993).
É esta visão pós-estruturalista que permite outras leituras sobre a relação sujeito-discurso-
poder, pois é possível questionar o discurso e o não-discurso (o “dito” e o “não-dito”), e os
seus efeitos nos sujeitos. Quer isto dizer que se abrem as portas para um olhar alternativo à
normatização social e aos discursos que a regulam. Deste modo, ter em consideração a
visão de Judith Butler na análise dos discursos que circulam na sociedade torna-se uma
necessidade visceral, especialmente no âmbito desta investigação.
Para Michel Foucault, o discurso está relacionado com a linguagem e a prática, e implica
uma produção regulada de conhecimento/verdade que, através da linguagem, atribui
sentido aos objetos materiais e às práticas sociais (Barker, 2000). Contudo, o filósofo
começa por afastar o conceito de linguagem, trabalhando o discurso como sistema de
representação, indo ao encontro daquilo que fazem os Estudos Culturais.
71
Capítulo II – Poder e Discurso
(…) Um grupo de declarações que fornecem uma linguagem para falar – uma
forma de representar o conhecimento – um tema específico num determinado
momento histórico. (…) O discurso é sobre a produção de conhecimento através
da linguagem. Mas (…) uma vez que todas as práticas sociais implicam
significado, e os significados dão forma e influenciam o que fazemos – a nossa
conduta – todas as práticas têm um aspeto discursivo (Hall, 1992b:291).
Na teoria foucaultiana é o discurso que produz conhecimento e não o sujeito, pelo que o
sujeito acaba por ser produzido dentro do próprio discurso. Segundo Wetherell et al
(2001), Foucault defende que os sujeitos podem produzir os textos, mas encontram-se a
operar dentro dos limites da episteme, da formação do discurso e do regime da verdade de
um determinado contexto histórico-cultural. Esta teoria difere da noção tradicional de
sujeito que pensa o indivíduo como consciente e como fonte de sentido. Para Foucault, o
sujeito é construído através do discurso – “figuras que personificam as formas particulares
de conhecimento que o discurso produz” (Wetherell et al, 2001:80) – e através do lugar
que o discurso constrói para seu significado, sujeitando o indivíduo ao seu poder e à sua
regulação:
“(…) Não podemos separar ou ignorar a relação entre poder e discurso. Relação
que Foucault aborda ao considerar como cada sociedade tem o seu regime de
verdade, a sua política geral de verdade: isto é, os tipos de discurso que acolhem
e fazem funcionar como verdadeiros ou falsos; a maneira como se punem uns
aos outros; as técnicas e procedimentos que são valorizados para a obtenção da
72
Capítulo II – Poder e Discurso
Nesta linha, Foucault (1997) aponta três tipos de procedimentos de delimitação e controlo
dos discursos: os internos, os externos e outros. Os procedimentos internos funcionam a
título de princípios de classificação, de ordenamento e de distribuição, tratando-se de
submeter outras dimensões do discurso: a do acaso e a do acontecimento – “(…) são os
discursos eles mesmos que exercem o seu próprio controlo (…)” (Foucault, 1997:18). Os
procedimentos externos funcionam como sistemas de exclusão; são procedimentos que
estão ligados à parte do discurso que põe em causa o poder e o desejo. Os restantes
73
Capítulo II – Poder e Discurso
procedimentos não dominam o poder dos discursos, mas determinam as condições do seu
funcionamento.
Michel Foucault (1997:39) apresenta ainda outros princípios do método de análise dos
discursos: o princípio de descontinuidade, onde “os discursos devem ser tratados como
práticas descontínuas, que se cruzam, que se justapõem por vezes, mas que também se
ignoram ou se excluem”; o princípio de especificidade, onde o discurso deve ser concebido
como “uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos”; o
princípio da regularidade (é na prática da imposição que os acontecimentos do discurso
encontram o princípio da sua regularidade); e o princípio da exterioridade, para “não passar
do discurso para o seu núcleo interior e oculto, (…) mas (…) passar às suas condições
externas de possibilidade, àquilo que (…) fixa as suas fronteiras”. Foucault (1997)
acrescenta ainda que as noções de acontecimento, de série, de regularidade e de série de
possibilidade devem servir de princípio regulador para a análise da limitação do discurso.
Foucault popularizou também a análise do discurso como método. Segundo Veyne (2009)
somos vulgarmente conduzidos a pensar através de estereótipos e de generalidades,
deixando passar despercebidos os discursos, pelo que é preciso um trabalho no domínio da
História para os fazer emergir. Este trabalho Foucault chamou-o de arqueologia e
genealogia.
4
Segundo Foucault (1997:31), a função das “sociedade de discurso” é “conservar ou produzir discursos, mas
para os fazer circular num espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras estritas, sem que os seus
detentores sejam desapossados por essa própria distribuição”.
74
Capítulo II – Poder e Discurso
natureza política (o poder atua no e pelo poder), e que a mudança social tem uma natureza
discursiva. Em relação a este assunto, Habermas afirma que:
Importa ainda referir que com a sua crítica genealógica Michel Foucault desenvolveu uma
nova forma de pensar o discurso da sexualidade, criticando as teorias lacanianas que
entendiam as formas culturalmente marginais da sexualidade como culturalmente
ininteligíveis. Ao assentar no pressuposto que o poder possui uma natureza discursiva e
política, a genealogia vai automaticamente entender que a mudança social e,
consequentemente, a sexualidade têm uma natureza discursiva. Este pensamento crítico vai
ser a base das teorias pós-feministas.
Nos seus últimos trabalhos, Foucault alterou a sua noção de discurso de disciplina para
tecnologia (Saukko, 2003), na medida em que ele entende que os sujeitos fazem uma
crítica do discurso que sustenta o seu próprio Eu. Em subsequentes desenvolvimentos do
seu trabalho, Foucault afirma que nem tudo pode ser reduzido ao discurso (ex.: a
exploração capitalista não precisou de um discurso teórico) e que os discursos não são a
única forma pela qual a cultura pode ser apresentada e interpretada (ex.: artes visuais). Já
Habermas declara que fica por esclarecer:
Ainda nesta linha de pensamento, importa referir que Michel Foucault, em vários
momentos, declara a função normatizadora, reguladora e até disciplinar das práticas
discursivas. De facto, são os discursos que regulam a sociedade e constituem os sujeitos
com base numa norma que é produzia para ter um determinado efeito ou o seu contrário (o
que, neste caso, automaticamente exclui o sujeito da norma). É esta visão binária e abstrata
da norma que é partilhada pelos estruturalistas, como é o caso de Foucault, Lacan e Lévi-
75
Capítulo II – Poder e Discurso
Strauss, e que não permite entender a norma como forma de ação. Mas, quer isto dizer que,
se, por um lado, a norma que naturaliza, torna comum e obriga o sujeito a encaixar numa
norma, por outro lado, ela também pode permitir a criação de outras possibilidades de
construção do sujeito. A abstração normativa não parece ser mais o caminho a seguir, mas
sim a interpretação e aplicação da norma como ação discursiva que permite a criação de
várias outras normas, de várias políticas de individualização reconhecidas (Butler, 2004), e
de diferentes leituras de acordo com o contexto em causa.
Da mesma forma que as normas não devem esgotar as possibilidades do que é possível e
inteligível para o sujeito, também os discursos devem abranger essa liberdade, permitindo
novas interpretações e ultrapassando aquilo que Foucault denominou de aparato de
regulação que conduz à normalidade. Ora, esta nova forma de entender a norma como
prática discursiva polivalente faz bastante sentido na discussão epistemológica e ontológica
do sujeito moderno e pós-moderno, sobretudo no que diz questão à leitura binária de
género que, segundo esta perspetiva, pode ser aberta a novas interpretações que não
limitam o sujeito à sua condição de masculino ou feminino.
76
Capítulo II – Poder e Discurso
O discurso de género é assim visto como uma forma de mediação cultural e identitária,
apesar de muitos sujeitos não terem a noção da influência do género na rede discursiva
social. De facto, este tipo de discursos fornece e representa caminhos identitários aos
homens e às mulheres, mostrando-se como uma base de identificação e, ao mesmo tempo,
um constrangimento social. De acordo com Hollway (2001) os discursos tradicionais são
diferenciados no género, pelo que homens e mulheres são posicionados de acordo com os
significados que determinado discurso viabiliza. Para este autor, a diferenciação de género
determina os significados, as práticas e os valores que auxiliam na construção da
identidade individual.
Segundo Kendall & Tannen (2003), não deve haver um foco apenas nos constrangimentos
dos discursos de género, pois existem nestes tendências que auxiliam na resolução das
constantes tensões sociais existentes entre homens e mulheres. Assim, nos discursos de
género percebe-se que nem sempre homens e mulheres se expressam de acordo com o seu
sexo, e ao mesmo tempo que recebem influência do sexo oposto também recebem
influências de outras categorias socialmente construídas como, por exemplo, a raça e a
classe social. Estas tendências ajudam a equilibrar os discursos de género, na medida em
que os sujeitos possuem múltiplas versões da masculinidade e da feminilidade. Deste
modo, a “pesquisa da linguagem e de género tornou-se progressivamente na pesquisa do
género e do discurso” (Kendall & Tannen, 2003:561), contribuindo fortemente para a
construção e desenvolvimento da identidade pessoal e social dos sujeitos.
A relação entre géneros, tratada como questão de identidade, pode ser vista como um
conjunto de dinâmicas entre o Eu e o Outro, pois, de acordo com Possenti (1995:46), “(…)
o discurso que produz [o sujeito] não é um produto exclusivo de um pretenso sujeito uno e
não submetido a condições exteriores”. Isto implica que nos discursos não está presente
apenas a vertente pessoal, do Eu, mas também a vertente social que sugere a influência do
Outro na formação de qualquer identidade individual. Segundo Robin (1977) existem
análises que demonstram a presença de outro discurso no discurso do locutor ou
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Capítulo II – Poder e Discurso
enunciador, pelo que quando se procura criar um discurso novo é necessário aplicar
inúmeras alterações no campo de saber que nunca têm origem num só sujeito. A influência
do Outro está sempre presente nas formações discursivas de género, o que faz com que,
muitas vezes, o Eu se dissimule, ou se faça passar por Outro, deixando a sua marca no
discurso do Outro. Desta forma, revela-se quase impossível o surgimento de um discurso
de género absolutamente original.
Olhando para esta discussão, o problema reside na regra, ou seja, no início do próprio
universo simbólico que regula a realidade de uma maneira e não de outra qualquer. De
acordo com Butler (1993), a diferença sexual é baseada no simbolismo e nas práticas
discursivas, regulando e produzindo os corpos ao serviço da heterossexualidade masculina.
78
Capítulo II – Poder e Discurso
Contudo, esta construção discursiva encontra obstáculos, pois nem sempre os corpos estão
de acordo com as normas reguladoras. É neste momento que surge a oportunidade de
assumir uma performatividade de género, abolindo o discurso hegemónico que materializa
a diferença sexual ao serviço da solidificação do império falocêntrico. É exatamente neste
caminho que o Pós-Estruturalismo vai repensar o discurso do género, desconstruindo a
própria “realidade” de género e colocando em questão algumas diretivas lacanianas, lévi-
straussianas e foucaultianas.
Para Judith Butler (1990, 1993, 2004), não está em causa o discurso de género dirigir-se ao
ser-se homem ou mulher, mas o facto de reduzir os sujeitos a isso mesmo, ou seja, não se
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Capítulo II – Poder e Discurso
deve pensar o género apenas como uma forma discursiva de fazer o masculino e o
feminino. Mais uma vez, é necessário seguir o caminho do respeito pelos corpos, pela
diferença, pelo supostamente (in)concebível, libertando o sujeito de normas discursivas
que não respeitam a singularidade (sexual) do Outro.
(…) São transformadas no que são pelas normas e práticas sociais, pelas
instituições e discursos que regulam o nosso comportamento, e pela forma como
nos regulamos a nós próprios. E o que isto significa é que é sempre possível
regularmo-nos a nós próprios de diferentes maneiras, para viver de outra forma
(Danaher et al, 2000:136).
Quando se procura fazer uma análise dos discursos dos media podem-se seguir duas
vertentes: uma textual, que procura identificar sistemas de significação, representação ou
relacionais; e uma sociocultural, onde se encontram as dinâmicas de poder e onde são
80
Capítulo II – Poder e Discurso
Textos Sociedade
Media
(meio de comunicação)
Criadores Audiência
De facto, esta é a base para a análise de qualquer discurso mediático, que depois pode
partir em qualquer direção, de acordo com aquilo que o analista pretende estudar, sejam
relações ou produções de poder, níveis de interesse ou autoridade, perceções ideológicas,
práticas de representação, entre outros.
Antes da década de 1970, a análise do discurso dos media era feita através de descrições
isoladas, estando limitada às áreas disciplinares da semiótica e da retórica (Van Dijk,
1985c). É também por esta altura que começa a ser utilizada a análise de conteúdo como
técnica de análise, pois cresce o interesse pelos princípios de descrição e pelas bases
estruturais de sentido presentes nestes discursos, sobretudo ao nível qualitativo. A partir da
década de 1970, a análise evolui para uma vertente mais global e unificadora, e os métodos
e princípios expandem-se.
De acordo com Hodkinson (2011), os estudos dos media possuem aproximações teóricas à
semiótica, à narrativa, ao género, à análise de discurso e à análise de conteúdo. Destas, as
técnicas de análise socioculturais mais recorrentes nos textos dos media são a análise
crítica do discurso e a análise de conteúdo, que permitem interpretar valores, normas e
produtos da cultura de uma determinada sociedade que representa ou é representada nos
81
Capítulo II – Poder e Discurso
A partir deste momento, a análise de discursos presentes nos media começa a explorar as
relações existentes entre os discursos de poder que circulam nas narrativas dos espaços
públicos, e o que inclui as fantasias, os símbolos e os mitos pelos quais os sujeitos vivem a
sua vida em relação aos outros (Johnson et al, 2004). Os discursos que circulam nos media
complexificam-se, pois são fruto da cultura vivida pelos sujeitos, pelo que nunca podem
ser estudados isoladamente das práticas discursivas e socioculturais. Deste modo, juntando
os textos mediáticos aos contextos da sua produção e receção, pode-se compreender,
detalhadamente, como as relações sociais e os seus processos se realizam a um micro-
nível, através das práticas rotineiras, ou então pode-se perceber como as práticas
discursivas presentes nos media auxiliam na mudança sociocultural. Em suma, Teun Van
Dijk afirma, a este respeito, que:
82
Capítulo II – Poder e Discurso
Tudo isto implica que os discursos dos media podem influenciar o conhecimento dos
sujeitos e as suas representações. De facto, se os recetores não tiverem informação
alternativa que contra-argumente ou resista às estruturas mediáticas, estas podem ter um
efeito complexo e determinante sobre a cognição social dos sujeitos (Van Dijk, 1989a),
formando opiniões e ideias.
A informação presente nos media deve dar a impressão de que reproduz a realidade, mas
no caso específico da imprensa escrita o poder do discurso vai prevalecer na sua
capacidade em conseguir construir uma “ilusão” da realidade. Contudo, o poder do
discurso tende a dar lugar aos discursos do poder que recorrem aos media como veículo
para atingir os seus destinatários. Segundo Van Dijk (1989b), os textos mediáticos
impressos são os mais exemplificativos desta situação, pois representam um papel
fundamental na comunicação pública, mostrando-se superiores aos textos televisivos
(Jensen, 1986), e elevando a sua capacidade de influência e de representação.
83
Capítulo III – Identidade e Género
“Pensa-se em identidade sempre que não se tem a certeza de onde se pertence (…).”
Zygmunt Bauman (1996:16)
O conceito de identidade está muito presente na sociedade atual, embora existam várias
vertentes na sua abordagem conceptual. Este destaque dado às questões identitárias é
assumido por Mercer (1990) como produto de um momento de crise sociopolítica mundial
pós-moderna. Contudo, o conceito de identidade é essencial para os sujeitos, como se pode
ver através das palavras de Weeks:
Nas últimas décadas, os Estudos Culturais têm direcionado o seu interesse para as questões
de identidade, procurando perceber como as relações de poder e os discursos culturais que
as instituem (especialmente os mediáticos) são determinantes na sua compreensão. Este
pensamento vai ao encontro das teorias de Bourdieu e de Foucault, que analisam a
articulação das práticas com as relações sociais e as relações de poder: “as práticas sociais
ocorrem no interior de uma estrutura com uma lógica social específica, onde se jogam (…)
relações sociais assimétricas, de mais ou menos poder, ocupando os indivíduos
determinadas posições de força” (Martins, 2011:64). São estas dinâmicas que, aliadas a
outras forças, permitem criar e desenvolver a(s) identidade(s).
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Capítulo III – Identidade e Género
De facto, os Estudos Culturais são reconhecidos pela sua capacidade crítica e multicultural,
no que diz respeito à discussão teórica do conceito de identidade, ao reconhecerem que
“(…) a cultura fornece material e fontes para as identidade e (…) os artefactos culturais
são apropriados e usados para produzir identidades individuais no dia a dia” (Kellner,
1997:96). Neste sentido, os Estudos Culturais permitem que a identidade individual seja
vista a partir de vários prismas, que são enumerados por David Abbott (1998): segundo os
estruturalistas, o nosso sentido de identidade é produto de fatores sociais; para os
interaccionistas o indivíduo é socialmente construído através das interações que cria, e a
identidade é concebida em termos de classe, etnia e género, onde identidade, meio social e
cultura possuem uma relação próxima; e os pós-modernos criticam as teorias modernas que
limitam a classe, a etnia e o género aos constituintes da identidade do indivíduo.
86
Capítulo III – Identidade e Género
(…) As identidades nunca são unidas e, no final dos tempos modernos, cada vez
mais fragmentadas e fraturadas; nunca singulares mas construídas multiplamente
através de diferentes, mas regularmente intersetáveis e antagónicos discursos,
práticas e posições. Elas estão sujeitas a uma historicização radical, e estão
constantemente em processo de mudança e transformação (Hall, 1996d:4).
Stuart Hall (1990a) propõe dois modelos de produção de identidades: o primeiro assume
que qualquer identidade possui conteúdo essencial e intrínseco que é definido por uma
origem ou uma experiência comuns5; o segundo modelo destaca que não é possível a
existência de uma identidade totalmente constituída ou distinta, recusando a existência de
uma identidade fechada, na medida em que a identidade é um processo incompleto.
Lawrence Grossberg (1996b) acrescenta que a identidade é definida através das relações
que provocam efeitos de diferença, destacando o facto de as identidades serem múltiplas e
diferentes, à medida que vão articulando fragmentos dispersos. Esta é uma visão pós-
estruturalista que analisa a identidade e a unidade estrutural como algo desconstruído,
5
Entenda-se aqui uma história e uma cultura partilhadas socialmente pelos indivíduos.
87
Capítulo III – Identidade e Género
88
Capítulo III – Identidade e Género
Na visão de Harvie Ferguson (2009), a definição de identidade está dependente das formas
de identidade que existem e que funcionam em pares de oposição (particular e categorial,
singular e plural, objeto e sujeito, etc.), através de uma visão estruturalista e pluralista do
conceito, que fica dependente da sua contextualização. Esta teoria vai ao encontro da de
Machin & Van Leeuwen (2007), que entendem que a identidade está dependente do
contexto, que, por sua vez, é adaptável e flexível ao longo da vida dos sujeitos.
Para Lívia Simão (2006) são as perspetivas contemporâneas da Psicologia (ou o chamado
“construtivismo semiótico-cultural”), que se focam no processo individual da identidade,
em que a relação Eu-Outro se forma e desdobra no espaço cultural. Todavia, para outros
autores como Stojkovic (2005), a identidade envolve ainda a inter-relação entre várias
outras áreas antropológicas, para além da Psicologia, como a Sociologia, a História, a
Linguística e a Arte, de forma a sustentar a autoconsciência pessoal e social.
Esta influência diversa que a identidade sofre, implica que o conceito de identidade seja
visto, muitas vezes, como contraditório e problemático. Trata-se portanto de um conceito
que se constrói com base na diferença, na fragmentação, no hibridismo e na dispersão (Isin
& Wood, 1990). Todos estes conceitos enfatizam a relação do Eu com outras identidades
externas. Contudo, é preciso não ignorar que os indivíduos também possuem disposições
duráveis e permanentes. Assim, a fluidez e a multiplicidade de uma identidade não deve
dispensar a solidez e a relativa permanência.
7
Tradução nossa de Cogito, ergo sum.
89
Capítulo III – Identidade e Género
Já Zigmunt Bauman (1996) possui uma teoria particular que admite a construção de uma
identidade em oposição a outras identidades, que são criadas mediante um código cultural.
Ora, esta teoria vem, mais uma vez, ao encontro da formação do Eu no cruzamento e
interação com o Outro. Todavia, é necessário ter em consideração que esta relação
identitária tanto pode ser pacífica como fluida ou então imposta, conduzindo a um abuso
do poder. Em ambos os casos há uma troca de elementos socioculturais que permite a
construção da identidade individual, embora os meios e os resultados sejam distintos.
Isin & Wood (1999) expõem a opinião de Stuart Hall que defende que a identidade é um
conceito político, pelo que é preferível empregar o conceito de identificação,
considerando-o um processo contínuo ao longo da vida do sujeito e que nunca se
estabiliza, se fixa ou se unifica. Contudo, é importante perceber que “as posições que
tomamos e com as quais nos identificamos constituem as nossas identidades” (Woodward,
1997:39).
Apesar da construção da identidade ser um processo que passa pelo sujeito, este processo
não deixa de possuir um contexto social e cultural, que prevê um relacionamento
(harmonioso ou conflituoso) com outras formas identitárias. Neste sentido, Sidiropoulou
(2005) afirma que a procura individual pela individualidade é um processo de
autodescoberta sempre realizado em relação à sua vida interna e à comunidade, ao seu
coletivo, e às suas identidades. Já Kathryn Woordward (1997) vê a identidade como algo
relacional onde a diferença é imposta pela marca simbólica em relação aos outros.
90
Capítulo III – Identidade e Género
e com o Outro vão abrindo as perspetivas teóricas que veem já a identidade como sinónimo
de transformação e mudança. Para esta visão moderna contribuíram os estudos no foro da
Psicanálise, da representação e da busca simbólica das relações entre os sujeitos. Em suma,
o conceito de identidade perde a sua natureza estável e imutável, pois “(…) os indivíduos
não estão petrificados numa identidade” (Singly, 2003:79).
Uma das obras que mais se destaca no âmbito da discussão e evolução sobre o conceito de
identidade intitula-se A identidade cultural na pós-modernidade (2001c) e é da autoria de
Stuart Hall. Com este livro, Hall procura avaliar a existência de uma crise identitária,
indagando em que consistiria exatamente essa crise e qual a direção em que ela seguiria,
tendo em consideração que o conceito tradicional de identidade entrou em declínio e que o
indivíduo moderno está a ser descentrado, deslocado e fragmentado. Efetivamente, as
sociedades modernas sofreram, no final do século XX, uma mudança estrutural que
fragmentou o panorama cultural (identidade social) e pessoal (identidade individual). Esta
falta de estabilidade provoca uma descentração dos indivíduos ao nível pessoal e social,
constituindo aquilo que Hall (2001c) apelidou de “crise de identidade”.
91
Capítulo III – Identidade e Género
Stuart Hall (2001c) considera três conceções distintas no que se refere à definição do
conceito de identidade: o sujeito iluminado, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno.
O sujeito iluminado (que surge no século XVIII) baseia-se no indivíduo centrado,
unificado e racional, focado na individualidade do Eu. O sujeito sociológico, fruto da
complexidade da sociedade moderna, aceita que o núcleo identitário do sujeito é fundado
na relação com o Outro, que acaba por mediar os valores e os símbolos culturais do sujeito.
Este sujeito foca-se na interação entre o Eu e a sociedade: “o sujeito ainda tem um núcleo
(…), mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais
‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem” (Hall, 2001c: 11).
Nesta obra, Stuart Hall (2001c) reforça a ideia de que a conceção identitária é bastante
complexa, apresentando argumentos que justificam o nascimento e a morte do sujeito
moderno e a sua evolução para o “descentramento”. O autor começa por analisar o sujeito
moderno como uma figura pressuposta pelos discursos e processos da Modernidade, como
um sujeito individual8. Hall apresenta a visão de diferentes teóricos nesta matéria:
Raymond Williams via o sujeito individual como algo indivisível e singular; Descartes
como algo racional e pensante (“Penso, logo existo”); e John Locke como algo soberano.
Contudo, o sujeito moderno caminha igualmente para um conceito mais social, fruto de
dois importantes eventos: a conceção biológica de Darwin e o surgimento das novas
Ciências Sociais.
8
Isto não implica que os sujeitos pré-modernos não fossem indivíduos; a individualidade era apenas
experienciada e conceptualizada de forma distinta – acreditava-se na estabilidade e na imutabilidade.
92
Capítulo III – Identidade e Género
passa a ser objeto privilegiado da Psicologia; e o indivíduo passa a ser inserido nas normas
sociais e coletivas, fruto da nova Sociologia:
Stuart Hall (2001c) afirma que as Ciências Sociais se assumem na primeira metade do
século XX, incentivando esta relação estável entre o interior do sujeito e o seu exterior
social. Todavia, Hall salienta que os movimentos intelectuais e estéticos do Modernismo
foram também capazes de fazer surgir o indivíduo alienado e isolado.
Hall continua a sua análise afirmando que a identidade do sujeito moderno foi desagregada
e deslocada graças a um conjunto de ruturas discursivas de que são exemplo cinco grandes
avanços ocorridos no pensamento social e humano, a partir da segunda metade do século
XX. O primeiro “descentramento” deve-se às tradições marxistas que afirmam que o
homem não pode ser agente da História por si só, embora seja reconhecida uma essência
universal do sujeito real.
Jacques Lacan dedicou o seu trabalho a reformular a teoria de Freud na área da Psicanálise.
Isto conduziu Lacan à redefinição de algumas questões pré-estabelecidas pelas teorias do
inconsciente freudiano, cujos princípios não foram afastados, mas considerados limitados
ou ultrapassados pela falta de alguns conhecimentos ainda não disponíveis, temporal e
contextualmente, sobretudo no que diz respeito à condição do sujeito humano e à
identidade individual.
93
Capítulo III – Identidade e Género
Para Lacan (1985, 1986), o sujeito não é uma entidade com uma identidade, pois esta é
apenas uma miragem resultante de uma imagem que o Eu constrói, ao identificar-se com a
perceção que os Outros possuem de si. Este processo constrói-se através da linguagem e do
“olhar” que servem de mediação para a internalização do Outro através da identificação,
pois é só em relação com o Outro que a criança cria as suas estruturas simbólicas e os seus
sistemas de representação. Esta teoria, apelidada de fase ou estádio do espelho, refere-se à
formulação do Eu como é experienciado na psicanálise (Lacan, 2004), reforçando a
conceção de que o Eu se constitui em relação com o Outro e é referente ao Outro. Estas
leituras inspiram a teoria do “espelho” presente no trabalho de Cooley e de Mead (Hall,
2001c; Taylor, 1997), que vê o sujeito como interativo, que faz uma aprendizagem de si e
dos outros conscientemente (ao contrário de Freud, que assenta o sujeito no processo do
inconsciente).
Em terceiro lugar, Hall (2001c) indica o trabalho do linguista Ferdinand de Saussure, que
argumentou que o sujeito não é autor dos significados que são expressos na linguagem,
pois a língua é considerada um sistema social e cultural pré-existente. A linguagem atribui
assim significado à identidade: o Eu conhece-se em relação com o Outro, constantemente,
de forma instável. Hall indica ainda um quarto “descentramento” da identidade que ocorre
no trabalho de Michel Foucault, baseado nas suas teorias da genealogia do sujeito moderno
e do poder disciplinar, e na consequente organização social e institucional que
individualizam e vigiam o sujeito.
Todos os “descentramentos” citados por Stuart Hall nesta sua obra mostram como a
identidade do sujeito cartesiano ou sociológico da Modernidade foi sendo, gradualmente,
fragmentada em outras simultaneamente abertas e contraditórias. No livro, o autor dedica
ainda algumas páginas à conceptualização da questão identitária cultural do sujeito
fragmentado, teorizando o conceito de identidade local, nacional e universal. Hall (2001c)
afirma que é difícil conservar as identidades culturais intactas fruto da diversidade que é
94
Capítulo III – Identidade e Género
difundida à escala global pelos novos meios de comunicação e informação. Isto pode ter
um efeito homogeneizador, mas, ao mesmo tempo, contribuir para pluralizar mais as
identidades.
(…) Não como um espelho em segunda mão que reflete o que já existe, mas
como aquela forma de representação que é capaz de nos constituir como novos
tipos de sujeitos, e assim permitir-nos descobrir lugares pelos quais falar (Stuart
Hall, 1990b:236-237).
A identidade deixa de ser vista como um conjunto de características essenciais, mas antes
como um aglomerado de características que uma pessoa ou grupo reconhecem possuir
(Wintle, 1994). Lidamos, assim, com a perceção ou representação de uma imagem da
realidade – que ajuda a construir e solidificar uma identidade – e não com realidades em si.
Para Barker & Galasinski (2001) as identidades não são fixas, ou universais, mas sim
culturais, discursivas e construídas dentro da representação. Nas sociedades modernas a
95
Capítulo III – Identidade e Género
vida social é, efetivamente, uma representação (Singly, 2003), o que conduz muitos
sociólogos a adotarem o conceito de identidade em detrimento do conceito de papel social.
Boesch (2006:4)
96
Capítulo III – Identidade e Género
O conflito identitário de um indivíduo centra-se na relação entre o seu interior (Eu) e o seu
exterior (Outro). Apenas quando algum nível de articulação e estabilidade é atingido, o
sujeito consegue identificar-se e possuir um sentido de pertença, para que depois se possa
projetar na sociedade e ser reconhecido e identificado pelos Outros.
97
Capítulo III – Identidade e Género
Eu procura relacionar-se com qualquer outro sujeito, esquece que ocupa o lugar do Outro
aos olhos desse sujeito. Assim, a reciprocidade é uma das características presentes na
construção da identidade individual, só possível através da imersão social.
Na realidade, a relação entre o Eu e o Outro é complexa, pois o Outro parece apenas existir
enquanto projeção da nossa própria imagem nele. Os sujeitos utilizam o Outro como um
espelho onde refletem as suas necessidades, preocupações e crenças, ao mesmo tempo que
absorvem as representações do Outro, inserindo-as na sua própria representação identitária:
Estas declarações vão ao encontro do “estado do espelho” de Lacan (1981) que, como já
foi referido, aceita que o Eu corresponde a uma internalização do Outro, através da
identificação. Esta relação é dual e objetiva, mas conduz a estados que flutuam entre o
desejo e a agressividade, colocando em conflito interesses de ambas as partes. Esta relação
é também inconstante e atravessa períodos de mutação, pois a perceção do Outro muda de
acordo com as experiências que se tem com ele, o que implica uma mudança de perspetiva
que se reflete igualmente na imagem que temos formada sobre o Outro. Nos momentos de
autoconsciência e autoidentificação emergem algumas problemáticas, pois, apesar de o
sujeito aceitar o seu Eu em relação com o Outro e reconhecer que se trata de uma relação
que tanto pode ser empática como, por vezes, instável, parece que o Eu nunca vê o Outro
como ele se vê a si mesmo, e o Outro nunca vê o Eu como ele se vê a si próprio (Boesch,
2006).
Para Guimarães & Simão (2006) o fabrico da relação cultural entre o Eu e o Outro é uma
ação simbólica, onde o Outro é experienciado pelo Eu como presente, ausente, real ou
imaginário. Esta ideia vai ao encontro da de Lacan (1981) que afirma que o simbólico, o
imaginário e o real coexistem e intersetam no sujeito, na sua relação com o Outro.
Guimarães & Simão (2006) acrescentam que a intersubjetividade existente na relação Eu-
Outro só acontece quando alguém resolve tomar o papel de outra pessoa e se descentra do
seu ego, marcando a sua experiência pessoal. Este comportamento surge quando o desejo
98
Capítulo III – Identidade e Género
A relação entre o Eu e o Outro é igualmente teorizada por Sartre, que afirma que “(…) é
em face dos outros que escolhemos e nos escolhemos a nós” (Sartre, 1962:225). Ao
entender as relações humanas como uma oposição entre o Eu e o Outro, Sartre assume que
existe uma certa angústia e hostilidade no olhar do Outro quando toma consciência do seu
próprio ser-para-os-outros. O Outro é aqui uma espécie de intruso, de alienígena, que
revela, por vezes, dificuldade em se relacionar, provocando um certo incómodo. Contudo,
no momento em que o Eu toma consciência do Outro, e depois do impacto de ser
percebido no Outro, deixa de haver uma separação entre pares, e o Eu começa a existir
perante o Outro.
De facto, para Sartre (1976) a existência do Outro revela ao Eu quem este é, através do
olhar, um pouco à maneira de Lacan e Hegel. A teoria assume, inicialmente, que o olhar do
Eu ordena o universo, mas a sua evolução conduz a uma perda da centralidade, a uma
constatação da existência do Outro, que permite um retorno a si próprio. Quer isto dizer
que há uma “consciência de si mesmo que descobre o Outro, como aquele que retorna a
verdade da minha imagem e afirma a minha existência” (Jacoby & Carlos, 2005:50). Este
estádio do espelho pode ser entendido como uma identificação, na medida em que há uma
10
Simone de Beauvoir foi seguidora e crítica das teorias sartrianas.
99
Capítulo III – Identidade e Género
Em relação ao conceito de identidade, Sartre (1976) entende ainda que existe um processo
que relaciona a nossa corporalidade com a do Outro, através do olhar, apontando três
modos ontológicos de apreensão dessa mesma corporalidade: o primeiro assume uma
centralidade do sujeito (ser-para-si); o segundo vê a perda da centralidade e a entrada do
Outro em cena (ser-para-outro); e o terceiro afirma a revelação que o Eu tem do seu
próprio corpo com base num feedback que o Outro faz e retribui (ser-aí-para-outro).
Assim, a identidade mostra-se, essencialmente, como resultado de uma construção do
próprio Eu (em relação com o Outro), que se desenvolve e se projeta como indivíduo.
Em todos estes momentos, Sartre (1976) afirma que há uma liberdade de escolha na
relação do Eu com o Outro que responsabiliza o ser humano na sua própria formação
identitária. Deve-se considerar cada sujeito como um ser racional (com os mesmos deveres
e direitos que atribuímos a nós próprios), com uma identidade, uma história e uma
formação emocional e afetiva concretas. Em última análise, é preciso que a relação Eu-
Outro se construa tendo em conta a aspiração e os objetivos dos sujeitos, que se vão
alterando à medida que a relação com o Outro evolui.
100
Capítulo III – Identidade e Género
correlação com o conceito de alteridade, que o autor vê como qualquer tipo de presença e
diferença, que exige uma resposta por parte do sujeito. Este percurso foi tomado por
Nandita Chaudhary (2006) que aceita a alteridade como parte integrante do Eu e vice-
versa, pois é o Eu que cria a ideia do Outro e é a existência do Outro que reconhece a
presença do Eu, sempre dentro de uma dinâmica de relações de poder.
A forte relação entre o Eu e o Outro implica, de facto, uma dinâmica de poder “(…) entre
aqueles que impõem alteridade a alguns e aqueles que são designados como o Outro”
(Fusco, 1990:77). É este relacionamento que permite medir forças e construir uma
identidade por comparação ou rutura, facilitando a construção de uma imagem do Eu em
relação ao Outro. Contudo, todo este processo se baseia na estruturação e controlo do Eu
que, segundo Freud (2001) e Lacan (1981, 2004), chega também a passar pelo domínio do
inconsciente.
O conflito de poder entre o Eu e o Outro teve uma grande influência na crise identitária e
relacional que se iniciou na primeira metade do século XX, e que conduziu à crise da
civilização ocidental, projetando-se particularmente no que diz respeito ao deterioramento
das relações interpessoais. É neste sentido que a obra do teórico Emmanuel Lévinas alerta
para a urgência de se refletir os caminhos da teoria filosófica, através de uma perspetiva
que parte do Eu em direção ao Outro. Lévinas (1999) vê o Outro como a alteridade, e não
como uma simples inversão da identidade, onde o “nós” não é o plural de “Eu”. Esta teoria
aceita o Outro como sinónimo de socialização, de experiência social, de sentido, de
contexto (Lévinas, 2000), e é diante do Outro que o sujeito dá conta que é um indivíduo
responsável.
Para Lévinas (1993), o facto de o Outro ser parte integrante das relações de poder, não
implica que possua mais poder do que o Eu, pois o seu poder consiste na sua própria
alteridade. Quer isto dizer que o Outro constitui-se na sua radical diferença:
Segundo Coco Fusco (1990), as relações de poder entre o Eu e o Outro exigem que se
considerem várias perspetivas, pelo que se devem colocar questões relativas a quem impõe
101
Capítulo III – Identidade e Género
o Outro ao Eu e quem é que é designado de “Outro”, como o Outro é falado, quem fala
sobre o Outro e porque é que o Outro foi identificado e falado num determinado contexto
histórico-cultural. A maior parte do processo de construção e maturação do Eu passa,
então, pelo entendimento do Outro, onde apenas há estabilização quando este é assimilado
pelo Eu (Sarup, 1996), reconhecendo-se como parte deste. Assim, Woodward (1997:315)
afirma que “(…) o Eu não pode mais ser entendido plausivelmente como uma entidade
unitária, mas (…) como um momento frágil no circuito dialógico que nos conecta com os
nossos outros”.
Todavia, as fronteiras entre estas dinâmicas são bastantes ténues, pois a partir do momento
em que se teoriza o Outro, a alteridade deste desaparece, tornando-se parte do mesmo. A
ameaça de dissolução do Eu hostiliza, frequentemente, a sua relação com o Outro na
tentativa de manter as fronteiras que distinguem o Eu do não-Eu (Rutherford, 1990),
desenvolvendo-se, muitas vezes, relações de conflito assentes numa filosofia do poder. De
facto, estas relações, por vezes, fragmentam demasiado o Eu, obrigando o sujeito a
redefinir, constantemente, as suas capacidades cognitivas e as suas estruturas de
significado pessoal e social, mantendo-se aberto à diferença, e ajustável à mudança.
Michel Foucault nega a existência de um fator essencial que determine ou limite a nossa
identidade. Isto significa que o Eu pode ser construído e trabalhado. O trabalho de Foucault
é descrito como pós-estruturalista, porque para ele a construção da identidade individual
não sofre influência de fatores biológicos nem de fatores sociais específicos. Contudo, o
filósofo reconhece que o sujeito é uma entidade política, que pertence a uma comunidade e
aos seus sistemas de governação, ao mesmo tempo que possui uma identidade que foi
atribuída pelo seu próprio Eu. Para Foucault, o sujeito não é algo natural, mas sim um
produto de discursos e de relações de poder, que adquire diferentes formas em diferentes
períodos históricos.
Esta ideia que Foucault desenvolve em torno da subjetivação, dos discursos e do poder é
uma constante no seu trabalho. Para o autor, o sujeito não é um ser autónomo, mas antes
algo que se encontra atravessado por um conjunto de significações (interiores e exteriores a
si), que podem ser orais, escritas, disciplinares, culturais, etc. Estas significações estão
interligadas com aquilo que Foucault (1984b) chamou de “mecanismo de subjetivação”. O
mecanismo de subjetivação é o processo pelo qual certos discursos e certas formas de saber
102
Capítulo III – Identidade e Género
No processo de construção da identidade esta vai-se revelando, emergindo o Eu. Para que
tal aconteça, Foucault reconhece algumas técnicas que são prática para tornar alguém
naquilo que esse indivíduo quer ser: primeiro destaca-se a produção, que permite ao
indivíduo originar, transformar e manipular as coisas, objetos ou sujeitos; depois o uso da
tecnologia do poder que limita a conduta dos sujeitos; de seguida a utilização de sistemas
de significação que permitem a aplicação de símbolos; e, por último, a aplicação das
tecnologias do Eu11 que permitem aos indivíduos a realização de um conjunto de operações
que os satisfaça (Foucault, 1984d, 1984e). A aplicação deste esquema facilita o surgimento
e imposição da individualidade e a sua transmutação ao longo da vida.
Michel Foucault criou, assim, o conceito de tecnologias do Eu, que se trata de mecanismos
que permitem aos indivíduos desenvolverem e trabalharem o seu Eu, regulando os seus
pensamentos, os seus corpos e os seus comportamentos. Se entendermos o Eu e a sua ética
interna como um conjunto de ideias que o sujeito tem ou regras que impõe a si próprio, as
tecnologias do Eu representam o que é realmente feito na prática para cumprir esses
requisitos. Em suma, as tecnologias do Eu são as formas como o Eu é exercido e policiado
na sociedade, incluindo as formas como os discursos encorajam (ou não) diversas práticas
do Eu (Foucault, 2010c).
De acordo com Danaher et al (2000), Foucault identifica três principais tecnologias do Eu:
a primeira, baseada em Séneca, refere uma série de técnicas que permitem ao sujeito
examinar os seus pensamentos ligados às regras da sociedade; a segunda, baseada na
hermenêutica Cristã, preocupa-se em compreender as relações entre os pensamentos dos
sujeitos e as suas impurezas interiores; e a terceira, baseada no modo cartesiano, examina
até que ponto os pensamentos do sujeito correspondem à realidade. Contudo, embora
possuam lógicas e finalidades distintas, estas três tecnologias do Eu afirmam que a forma
11
Tradução nossa de techniques de soi.
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Capítulo III – Identidade e Género
de discutir e conhecer o Eu passa pelos discursos. Discursos estes que circulam no tecido
social e dos quais se destacam, neste estudo, os mediáticos.
104
Capítulo III – Identidade e Género
Esta afirmação prevê que, dentro das práticas sociais, algumas identidades exercem
hegemonia sobre outras, o que não é necessariamente negativo, pois implica também que
algumas identidades são resistentes a alguns tipos de relação de poder.
Judith Butler na obra Undoing Gender (2004) faz uma leitura pós-estruturalista sobre a
identidade em torno de três conceitos fundamentais: reconhecimento, desejo e
normatividade. De uma forma particular, a autora indica que a problemática do desejo, do
reconhecimento e do Outro (identidade) são o ponto de partida para pensar politicamente a
exclusão e a subordinação, enquanto a viabilidade da identidade individual é fortemente
dependente das normas (sociais).
Bulter (2004) começa por afirmar que é o desejo de reconhecimento que conduz o sujeito a
procurar a sua reflexão no Outro. Este “desejo de reconhecimento” (que advém da teoria
hegeliana) – onde o reconhecimento é claramente um lugar de poder – origina separação e
partilha, pois, como indica a autora, “o reconhecimento implica que vejamos o Outro como
separado, mas psiquicamente estruturado em formas que são partilhadas” (Butler,
2004:131). Seguindo esta organização de pensamento, o reconhecimento transforma-se
numa norma que governa o Eu e a forma pela qual a comunicação se torna num processo
transformativo, sem com isso abandonar o seu caráter destrutivo. Quer isto dizer que o
reconhecimento toma lugar e é veiculado através da comunicação (no caminho teórico de
Habermas), transformando o sujeito, mas simultaneamente recordando-o que apesar de o
Outro não ser o Eu, estes dois elementos nunca se “livram” da sua relação, o que pode
conduzir a estados de negação e até de violência para o sujeito. É por isto que Butler
(2004) afirma que a construção do sujeito se dá de uma forma violenta, na medida em que
o desejo de reconhecimento do sujeito é recheado de complexidade.
105
Capítulo III – Identidade e Género
Na história do ser humano, a violência parece ser aquilo que há de mais profundo, pois
ninguém é ninguém sem sofrer uma violência para encaixar numa norma e ser inteligível.
Para Butler (2004), o aparato de conhecimento aplicado ao sujeito e ao seu corpo (ser-se
reconhecido como homem ou mulher) é uma violência implementada na norma e na
institucionalização do poder dessa implementação. Portanto, revela-se importante perceber
como o sujeito interioriza o discurso e as normas a que é submetido através do desejo do
reconhecimento do Outro e do seu próprio. Segundo Butler (2004:1345), para reduzir essa
violência é necessário “(…) aprender a viver e a abraçar a destruição e a rearticulação do
humano em nome de um mundo mais capaz e, finalmente, menos violento”.
106
Capítulo III – Identidade e Género
possibilidades às normas através daquilo que Butler apelidou de “fantasia corporal”. Deste
modo, alterar as normas que normatizam a morfologia humana atribui diferentes
“realidades” a diferentes tipos de humanos, concedendo-lhes impacto na vida política e
naquilo que conta como humano. Obviamente que o valor do ser humano deve estar (e
está) para além da sua condição física, pois o reconhecer-se como humano deveria bastar
para o sujeito. Contudo, esta é uma das possibilidades que Butler (2004) aponta – usando o
argumento de Hegel na direção do pensamento foucaultiano – para se olhar as normas de
reconhecimento como produtoras e desfazedoras da própria noção de humano.
Esta discussão implica que em vez de se ver as normas como algo estático/imutável e
recheado de estruturas binárias (o que é de uma forma implica que não seja de outra) é
possível entendê-las no seu potencial transformativo, postulando possibilidades que
ultrapassam as próprias normas impostas e abrindo-lhes um novo futuro. É este o trabalho
da “fantasia” que Butler (2004) defende como possibilidade do possível. No entanto, este é
um passo complexo, pois o sujeito é compelido a viver e (auto)reconhecer a sua condição
de humano dentro de uma normatividade inflexível que não depende de uma escolha
individual e que oprime/subjuga o sujeito no processo de reconhecimento ou
inteligibilidade como tal.
Entende-se, portanto, que o problema reside no humano que não é a norma nem a sua
diferença, e que ainda não tem espaço para o reconhecimento, ao se encontrar nos limites
da inteligibilidade. Apesar do sujeito ser constituído por um mundo social que não
escolheu, Butler (2004) afirma que é possível viver de uma forma que critica e transforma
a normatividade, legitimando outra inteligibilidade. Contudo, neste processo é preciso
salvaguarda para não se cair na tentação da universalidade desta nova forma de
inteligibilidade, acentuando sempre o culturalmente variável. Isto não quer dizer que não
possam existir referências universais, mas apenas que as condições para a sua articulação
nem sempre sejam as mesmas (Butler, 2004).
Toda esta discussão abre caminho para uma nova leitura da identidade e do que implica ser
humano também trazida por Jessica Benjamin e que é apoiada por Judith Butler. Segundo
Benjamin (1998), o reconhecimento não é apenas uma apresentação do Eu ao Outro, mas
sim um processo que surge quando estes se refletem um no outro e quando desta reflexão
não resulta o aniquilamento de um no outro. Benjamin ajuda a pensar as relações através
107
Capítulo III – Identidade e Género
de uma visão tripla e não através da dualização edipiana frequentemente levantada pelo
estruturalismo lacaniano e lévi-straussiano, que, juntamente com as teorias freudianas,
enfatizam a figura paterna e o poder do “phallus” na constituição do desejo humano
(Braidotti, 2002). Este terceiro elemento é o Outro do Outro que, segundo Butler (2004),
motiva e excede a relação de desejo, ao mesmo tempo que a constitui. Esta conceção é
importante para pensar a relação entre o(s) género(s), porque afasta o pensamento
heterossexista dual. Butler (2004) afirma mesmo que Benjamin auxilia o pensamento
crítico na possibilidade de imaginar uma passagem psíquica em que o “phallus” não
controla o circuito dos efeitos psíquicos, abrindo o entendimento para outras possibilidades
normativas. São estes pontos teóricos que vão questionar qual o lugar do género dentro do
humano ou o que significa ser humano e ter um género: Será que o sujeito generificado se
reflete no outro género? Qual a legitimidade da dualidade de género no reconhecimento do
ser humano? Terá sido o feminino totalmente incorporado no humano (ou numa versão do
humano)? Estas e outras questões serão discutidas nos pontos seguintes.
108
Capítulo III – Identidade e Género
Apesar de, na segunda metade do século XX, se manifestar em vários caminhos teóricos da
Psicologia, da Sociologia e dos movimentos feministas, que o conceito de género difere do
de sexo, na verdade o género acaba por repetir o mesmo mecanismo de pensamento da
dualidade sexual. Quer isto dizer que o conceito de género não é tão claro e universal como
se pensa e que o verdadeiro conceito sociológico de género – entendido como “homem” e
“mulher” – não deve ser reduzido a diferença sexual. Obviamente que os dois conceitos
não devem ser confundidos, pois o sexo é frequentemente conotado com a diferença
biológica entre homem e mulher, enquanto o género se refere a um efeito construído e,
sobretudo, variável. Todavia, na visão de Judith Butler (1993, 1990, 2004), nenhuma
definição simples ou direta de género é suficiente, pois a importância do conceito reside na
capacidade que o sujeito possui de reconhecer a variação de género na cultura pública. O
género não deve ser apenas pensado como uma forma discursiva de construir o masculino
e o feminino, mas como um conjunto de características sexuais construídas
discursivamente e também como uma visão performativa que desloca e desvaloriza o
estatuto simbólico da diferença sexual (Butler, 1993, 2004).
Já a diferença sexual deve ser vista, segundo Irigaray (2005), como uma questão dos
nossos tempos (e não como um facto), como algo parcialmente dado e parcialmente
construído, que engloba a relação entre o biológico, o cultural e o social, tratando-se de um
conceito de “fronteira”. O sexo transforma-se assim numa construção que é materializada
no tempo, deixando de ser apenas uma construção estática do corpo, para passar a ser um
processo pelo qual normas regulatórias o materializam (Butler, 1993). Mas, segundo
Braidotti (1994) parece ser necessário manter o quadro estrutural de diferença sexual, pois
isso mantém autêntica a continuidade da realidade política e cultural da dominação
masculina (que dificulta frequentemente a alteração ao nível do simbólico,
independentemente das “permutações” de género).
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Capítulo III – Identidade e Género
a afirmar que é sobre o corpo ou um sexo biológico que são fixados os atributos sociais de
género:
Ainda segundo Miranda (2008), a identidade de género deve ser vista não como algo que
os sujeitos possuem, mas como algo que os sujeitos fazem, e que pode ser analisado de
acordo com diversas teorias. Para a autora existem seis importantes teorias na construção
do género: a teoria dos papéis, a teoria da socialização, o interaccionismo simbólico, a
teoria do desenvolvimento cognitivo, a teoria do esquema de género12 e a teoria
psicanalítica. Todas estas teorias estiveram no centro da discussão psicológica, sociológica,
antropológica e até cultural dos Estudos de Género, a partir da segunda metade do século
XX.
A teoria dos papéis auxilia na perceção do desempenho social do sujeito como resultado de
comportamentos e atitudes que este interiorizou no processo de socialização e em função
das expetativas do Outro. Com a teoria da socialização destacam-se os processos através
dos quais as crianças desenvolvem os comportamentos e as identidades de género. O
interaccionismo simbólico “enfatiza os processos de interação através dos quais se
produzem as diferenças de género no quotidiano” (Miranda, 2008:4), enquanto a teoria do
desenvolvimento cognitivo descreve a relação progressiva entre a criança e o meio na
construção da sua identidade de género. A teoria do esquema de género é, na opinião da
socióloga, a teoria que articula todas as anteriores:
Finalmente, a teoria psicanalítica aponta que são as diferenças sexuais (físicas) entre
rapazes e raparigas que incutem o desenvolvimento da identidade de género. Em jeito de
síntese, as duas primeiras centram-se na importância da influência da socialização na
12
Tradução nossa de Gender Schema Theory.
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Capítulo III – Identidade e Género
construção da identidade de género, revelando uma certa passividade do sujeito nas suas
escolhas; a terceira e a quarta teorias demonstram como o sujeito (sobretudo a criança)
participa ativamente nas interações sociais que formam o seu género; e a teoria do esquema
de género articula todas as anteriores. A última distingue-se por destacar que as diferenças
físicas são cruciais na formação da identidade de género, afastando a influência social.
Isto significa que, de uma forma geral, a sexualidade serve-se do género, no sentido em
que o género a que um determinado sujeito “pertence” determina o tipo de sexualidade que
ele “tem” ou irá “ter”. Todavia, Butler (2004:183) afirma que, como a regulação do género
é uma parte importante da normatividade heterossexual, “(…) insistir na separação radical
entre género e sexualidade é perder a oportunidade de analisar essa particular operação do
poder homofóbico”. Isto porque o facto de se ter um género não determina a sexualidade,
pois segundo a autora existem possibilidades sexuais que não são constrangidas pelo
género e existem possibilidades de género que não são determinadas por formas de
heterossexualidade hegemónica.
111
Capítulo III – Identidade e Género
112
Capítulo III – Identidade e Género
2000:243), protetor e ditador das leis (Barker & Galasinski, 2001), enquanto a mulher se
submetia ao imperialismo da masculinidade e se centrava no bem-estar afetivo do lar
doméstico, sendo “boa” mãe e esposa dedicada. Embora esta fosse uma visão limitativa e
superficial das relações de género, foi, durante muito tempo, a realidade de muitas
sociedades do mundo ocidental. Contudo, a contextualização histórica, económica, social e
cultural, a autodeterminação feminina e a sua necessidade de emancipação conduziram as
mulheres à adoção de alguns papéis tradicionalmente masculinos que lhe permitiram tomar
a rédea de algumas decisões fora da gestão do lar:
Nesta linha de pensamento, alguns autores contemporâneos sublinham que esta mudança
socioprofissional só acentuou os comportamentos machistas e incentivou o Feminismo
radical, pois a prioridade que é universalmente reconhecida ao sexo masculino é afirmada
nas estruturas sociais, “(…) baseadas numa divisão sexual do trabalho de produção e de
reprodução biológica e social que confere ao homem a melhor parte (…)” (Bourdieu,
1999:29). Estando estas estruturas tão embrenhadas nas sociedades atuais, os esquemas de
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Capítulo III – Identidade e Género
Apesar de o século XX ter marcado a entrada das mulheres na História, ainda se sente,
hoje, o impacto da profunda mudança que abriu o mundo do trabalho e do poder às
mulheres, e que levou o homem pelo caminho da afetividade (Pedrosa, 2000). Este alcance
do poder pelas mulheres refere-se a posições que as mulheres adquirem, e que outrora
eram masculinas, e a atitudes e comportamentos que no passado eram recusados ao sexo
feminino. Efetivamente, o trabalho crítico do movimento feminista foi fundamental para
romper o círculo generalizado de posições (Vaquinhas, 2002), fazendo emergir “(…) o
facto de a dominação masculina já não se impor com a evidência do óbvio” (Bourdieu,
1999:77).
Esta conjuntura despertou sentimentos de receio, sobretudo nos homens, que já eram
visíveis nos primeiros mitos da cultura ocidental. Mas no final de toda esta jornada, que
teve até o apoio da mudança jurídica, a mentalidade de mulheres e homens ainda se
encontra presa a estereótipos sociais que parecem inerentes à sua condição sexual, como se
pode constatar neste exemplo de Dietrich Schwanitz:
Não há dúvida: se o nível de uma cultura for aferido pelo seu caráter pacífico,
pelo repúdio da crueldade e pela capacidade de comunicação, as mulheres são o
sexo mais civilizado (Schwanitz, 2007:397).
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Capítulo III – Identidade e Género
Quando os dominados aplicam aos que os dominam esquemas que são o produto
da dominação, ou, noutros termos, quando os seus pensamentos e as suas
perceções se estruturam em conformidade com as próprias estruturas da relação
de dominação que lhes são impostas, o seus atos de conhecimento são,
inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão (Bourdieu, 1999:12).
Tanto identidades quanto diferenças de género dizem respeito aos papéis que o
homem e a mulher assumem na sociedade. Género é, portanto, uma construção
histórica, produzida e reproduzida dentro da e através da cultura. Também é
importante ressaltar que género é uma construção política, produzida [através de]
classificações, ordenamentos, hierarquias e diferenciações (Andreoli, 2003:17).
Em suma, em termos biológicos, os sujeitos estão associados a um sexo, que faz deles
homens ou mulheres. Socialmente, as experiências de cada um conduzem à sua conotação
de género: feminino ou masculino. Quer isto dizer que “a socialização é o maior fator na
aquisição de papéis sexuais” (Boudreau, 1986:64). É então que surge a identidade de
género, baseada nos comportamentos e atitudes socialmente estabelecidos com base no
sexo.
115
Capítulo III – Identidade e Género
(…) Nas crenças, normas e práticas que impedem os membros de uma categoria
de género da participação plena e igualitária em todos os aspetos da vida social, e
que impedem os membros dessa categoria de desenvolver os recursos
necessários para promover e proteger os seus interesses.
Já quando nos referimos à dimensão comportamental dos sujeitos, alguns teóricos afirmam
existir diferenças significativas entre homens e mulheres. A maior parte das vezes, as
116
Capítulo III – Identidade e Género
No que respeita às relações familiares, as mulheres ainda são, muitas vezes, subordinadas à
tomada de decisão masculina, pois a própria construção social assente na convencional
família nuclear e patriarcal dificulta o acesso à igualdade de exercício de poder para os
dois sexos, apresentando-se como uma barreira ao potencial da mulher (Heiss, 1986). Estes
padrões ainda hoje continuam a ser difundidos, segundo Costa et al (2003) graças a dois
principais meios: o curriculum cultural e a pedagogia dos media. No primeiro caso são as
representações da sociedade que fazem circular o saber produzido, enquanto o segundo
aspeto se refere à prática dos meios de comunicação em divulgar informações que
produzem barreiras sociais (de género, de classe, educacionais, étnicas, etc.). Todavia, não
basta mudar as normas para alterar as conceções de identidade de género; é necessário
estudar e conhecer para poder intervir na mentalidade subjacente aos papéis de género que
criam e sustentam essas mesmas normas.
117
Capítulo III – Identidade e Género
Foucault reclama assim que a sexualidade e o poder são coextensivos, e que uma
sexualidade subversiva ou emancipatória dificilmente se liberta da lei ou da norma
estabelecidas, ao contrário do que é o pensamento de outros autores pós-estruturalistas,
como Butler ou Braidotti, que permite pensar e “(…) constituir sujeitos dentro de uma
heterossexualidade hegemónica e consequentemente sobrenormativa” (Oliveira, 2013:69).
Todavia, parece haver consenso entre estes autores quando se pensa a sexualidade como
algo “(…) construído dentro dos termos do discurso e do poder, onde o poder é
parcialmente entendido em termos de heterossexualidade e convenções culturais fálicas”
(Butler, 1990:30).
o poder não opera num único lugar, mas em lugares múltiplos: a família, a vida
sexual, (…) a exclusão dos homossexuais, as relações entre os homens e as
mulheres. Só podemos mudar a sociedade sob a condição de mudar essas
relações (Foucault, 2006:262).
118
Capítulo III – Identidade e Género
O facto de a sexualidade (ou a diferença sexual) ser severamente regulada pela sociedade
torna-a num belíssimo exemplo de como os mecanismos de poder atuam. A sociedade
criou uma espécie de guiões sexuais que indicam como os sujeitos se devem comportar nas
suas relações, vendo, por exemplo, o comportamento não-heterossexual como desviante.
Estes guiões são, normalmente, expressivos do ideal passivo e dependente do sexo
feminino, e da assertividade e do domínio do sexo masculino, o que não implica que os
homens sejam predadores sexuais e as mulheres meras presas (Woodward, 1997). Foucault
anuncia na sua obra História da Sexualidade que o Cristianismo foi o principal regulador
do pensamento e da conduta sexual, pois criou normas sociais assentes na monogamia do
casal e na subserviência da mulher.
Ao compreender o sujeito como algo feito pelo discurso e que envolve relações de poder, o
pensamento foucaultiano explica como se dá a construção da(s) identidade(s) de género.
Efetivamente, a forma como o “governo da cultura” atua nas identidades múltiplas dos
sujeitos encontra-se dependente das instituições e práticas sociais que são atravessadas por
questões de género ou, como afirma Andreoli (2003), que se encontram “generificadas”.
119
Capítulo III – Identidade e Género
Isto implica que, nas suas relações sociais, os sujeitos sejam representados por símbolos,
práticas, discursos, representações e relações que os vão constituindo como masculinos ou
femininos.
Em suma, Foucault prevê que é possível atribuir uma função arqueológica e outra
genealógica aos estudos de género. Ao se aceitar uma polaridade de género, isso implica
questionar e analisar arqueologicamente quais os meios, as condições e os processos
usados para construir estes discursos da polaridade. A partir do momento em que são
questionadas posições e efeitos de poder na construção discursiva, adivinha-se uma tarefa
genealógica. Na realidade, é difícil separar estes dois conceitos, pois a arqueologia é
também uma genealogia.
120
Capítulo III – Identidade e Género
A relação que se estabelece entre os sujeitos e a sociedade cria dinâmicas de poder que se
diferenciam de acordo com o seu sexo/corpo ou, mais especificamente, com o género que
lhes está associado. Assim, segundo Isin & Wood (1999:72) “as ideologias e práticas
sexuais são tão antigas como qualquer mito em que a civilização ocidental repousa”, tendo
sido apenas com o capitalismo moderno que os papéis feminino e masculino se
institucionalizaram, espacial e economicamente. Deste modo, o simbolismo do corpo, a
sexualidade, a política, o trabalho remunerado e a organização da sociedade atribuíram
poder ao homem de uma forma desmesurada.
Neste sentido, durante séculos foi criada uma ideologia que afastava o feminino dos
sistemas de poder através da construção de ambientes privados para as mulheres e de
ambiente públicos para os homens (Bathla, 1998); isto confinava as mulheres à esfera
privada da família e afastava a vida doméstica da discussão pública. Estas afirmações
levam Stockard & Johnson (1992) a declarar que a dominação masculina tem sido bastante
documentada, na medida em que se refere a convicções e a significados culturais que
existem no sistema de símbolos culturais, nas interações do dia a dia e nas instituições
sociais, e que consentem mais importância e prestígio à masculinidade em detrimento da
feminilidade: “os papéis domésticos para as mulheres e os papéis públicos para os homens
são enfatizados em todas as sociedades” (Stockard & Johnson, 1992:245).
14
Tradução nossa de gender order.
121
Capítulo III – Identidade e Género
afirmam que se trata da forma pela qual as relações de poder entre homens e mulheres
tomam sentido, pois é através das ordenações de género que são criados códigos de
feminilidade e de masculinidade, e organizadas relações. Esta abordagem não é uma mera
representação da sociedade patriarcal, pois reconhece o papel ativo dos sujeitos na
re(criação) das relações de género, permitindo que haja mudança social baseada nas
relações de poder e resistência.
Maria Rocha (2007) acrescenta ainda outra tendência, a do Feminismo liberal, onde o
poder é visto enquanto manifestação jurídica na qual é necessário entrar de forma a
alcançar direitos de igualdade. As teorias feministas mencionadas por estas duas autoras
são distintas entre si, mas:
Apesar da variedade de movimentos feministas que se focam nas teorias das relações de
género e poder, percebe-se que o objetivo da segunda vaga de Feminismo era,
essencialmente, entender o poder como autodefinição e como fim do domínio masculino,
de forma a abrir as portas da igualdade para as mulheres. Isto conduziu alguns feministas
122
Capítulo III – Identidade e Género
pelo caminho teórico de Foucault, que se afastava das conceções tradicionais do poder
opressivo e se centrava nas relações de poder que atravessavam todos os domínios da
sociedade. Este modelo procura acabar com a noção do “poder masculino” e traz à
discussão as dinâmicas que, inseridas nos discursos sociais, constituem os sujeitos como
relações de poder.
Como já foi referido, a Revolução Industrial trouxe mutações na conjuntura social das
mulheres, pois permitiu criar condições de acesso à atividade profissional, iniciando toda
uma alteração à estrutura de desigualdade e inferioridade feminina. Isto conduziu a
transformações na própria estrutura familiar, pois a mulher começa a adquirir
responsabilidades outrora masculinas. No século XIX, a mulher encontrava-se subordinada
à vontade masculina devido à invenção do casamento monogâmico como meio de
assegurar a herança da propriedade privada (Taylor, 1997); esta necessidade de
transmissão da propriedade privada não permitia que a relação entre homens e mulheres se
baseasse no amor romântico.
123
Capítulo III – Identidade e Género
Contudo, esta dinâmica, que permite que a dominação masculina se perpetue na sociedade
para além das metamorfoses nas formas de produção económica, foi parcialmente
interrompida pela entrada da mulher no mundo do trabalho remunerado. Esta mudança
permitiu que a mulher adquirisse um papel social mais ativo, afastando-a do seu único
papel (até então) que se limitava à produção de herdeiros. Esta mudança trouxe alterações
visíveis na estrutura familiar e nas relações de poder no casamento, que se traduziram em
mudanças nos papéis sociais feminino e masculino (Torres, 2001, 2002).
Todavia, Judith Bulter (2004) considera que ainda hoje o casamento (seja heterossexual ou
homossexual) se apresenta como a única forma de sancionar ou legitimar a sexualidade ou
as normas sexuais, e a parentalidade ou relação de parentesco, o que representa uma visão
inaceitavelmente conservadora da sociedade. Desta forma, o Estado personalizado no
poder do casamento apresenta-se como o detentor do desejo de legitimação pessoal e
social, quer ao nível do desejo e da sexualidade, quer ao nível da identidade:
O Estado torna-se no meio pelo qual uma fantasia se torna literarizada: desejo e
sexualidade são retificados, justificados, conhecidos, instalados publicamente,
imaginados como permanentes, duráveis. E, no preciso momento, desejo e
sexualidade são desapropriados e deslocados, então o que nós “somos”, e o que a
nossa relação “é”, deixam de ser assuntos privados. De facto, ironicamente,
podemos dizer que pelo casamento os desejos pessoais adquirem um certo
anonimato, (…) mediados publicamente (…) (Butler, 2004:111).
Até à segunda metade do século XX, os papéis masculino e feminino eram natural,
inevitável e funcionalmente diferentes, principalmente na vida familiar, em que o homem
assumia um papel “instrumental” e de suporte familiar, enquanto a mulher desempenhava
“atividades expressivas”, como, por exemplo, educar os filhos e acompanhar o marido
(Taylor, 1997). Esta dinâmica estava construída em torno da ideia de manter afastada a
124
Capítulo III – Identidade e Género
mulher das posições de competitividade masculina. Ora, este aparente domínio masculino
num nível micro (familiar) é uma amostra daquilo que se passa a nível macro (sociedade):
as mulheres são constantemente afastadas das ocupações masculinas no mundo do trabalho
de forma a não competirem diretamente com o sexo oposto.
Esta distribuição baseada no sexo/corpo criou aquilo que Isin & Wood (1999)
identificaram como espaço de identidade de género. A ocupação deste espaço estabelece-se
em casa, familiarmente, e isso reflete-se na sociedade, e vice-versa. As noções de espaço
de género estão fortemente ligadas às diferenças hierárquicas entre mulheres e homens e às
atividades diferenciadas que normalmente lhes são atribuídas e que foram alicerçadas nos
modelos das famílias burguesas. Este modelo familiar assentou na reformulação do
conceito de sociedade patriarcal desenvolvido por Kate Millett (1989) na década de 1970.
Este conceito, que representava as estruturas familiares dominadas pelos homens mais
velhos, foi ampliado por esta feminista americana para a representação das estruturas de
domínio masculino que existiam a todos os níveis sociais. Esta ideia de construção familiar
baseada no poder masculino conduziu Heiss a afirmar que:
Tem sido dito muitas vezes que o lugar da mulher é em casa, mas raramente tem
sido sugerido que a casa é o lugar da mulher (...). Não é simplesmente que os
homens tenham tendência a dominar em mais áreas do que as mulheres (...) [mas
sim] que os maridos tenham mais probabilidade de exercer poder nas áreas
femininas do que as esposas em áreas dominadas por homens (Heiss, 1986:89-
90).
Este autor baseia a sua posição num estudo sobre a distribuição de papéis familiares
conduzido nos Estados Unidos na década de 1980, onde foi possível identificar quais as
condições em que se desenvolvem as relações de poder entre o casal. Assim, determinou-
se que os homens exercem mais poder nas decisões familiares que as mulheres, mas que
este depende e varia de acordo com alguns fatores, como, por exemplo, a natureza das
decisões a tomar, o poder económico do sujeito, a capacidade de negociação e a condição
sociocultural da mulher – as mulheres com mais poder nas tomadas de decisão familiares
são, por exemplo, as que têm educação mais elevada que os maridos e as que estão
empregadas. Estas diferenças na distribuição do poder variam de acordo com o tempo e o
espaço em que se inserem, mas é facilmente percetível que as mulheres se encontram em
125
Capítulo III – Identidade e Género
Em grande parte dos estudos de género, as relações sociais entre o sexo masculino e o
feminino têm sido analisadas enquanto relações de poder, como forma de perceber,
interpretar e ultrapassar diferenças. Este dinamismo entre relações de género e poder
prevalece nos discursos sociais, sobretudo naqueles difundidos pelos movimentos
femininas. Trata-se de discursos que analisam as tensões entre homens e mulheres, de
acordo com o contexto em que são utilizados e interpretados. Os discursos de género são
elementos poderosos, pois produzem homens e mulheres socialmente marcados pelo
género, ou seja, marcados pela diferença.
126
Capítulo III – Identidade e Género
Ainda no âmbito do debate que articula poder e género destaca-se a obra Anatomia do
poder feminino15 (1990), da autoria de Chinweizu16. O autor, que aponta críticas às
atuações dos movimentos feministas, afirma que se o poder feminino existisse seria algo
possuído pelas mulheres através da autoridade pública, criando aquilo que se conhece
como “matriarcado”. Todavia, para o autor, apesar de uma sociedade totalmente matriarcal
não existir, isso não implica que não exista poder feminino: trata-se de uma espécie de
“poder sem autoridade”.
Embora Chinweizu (1990) reconheça que as mulheres não se encontram bem representadas
nas estruturas públicas e institucionais, ele assume que existem muitas outras fontes de
poder (educação, propaganda, castigo, reconhecimento, etc.) que estão nas mãos femininas.
Quer isto dizer que na sociedade há espaço para ambos os géneros e que apesar de,
aparentemente, as sociedades parecerem falocêntricas e patriarcais existe, nos bastidores,
uma versão feminina das mesmas. Trata-se de uma hierarquia pouco clara das relações de
poder entre homens e mulheres:
Porque cada homem tem como chefe a sua própria esposa, ou a sua mãe, ou
qualquer outra mulher na sua vida, os homens podem governar o mundo, mas as
mulheres governam os homens que governam o mundo (Chinweizu, 1990:12).
Chinweizu (1990) afirma que o poder feminino existe sobre o masculino e que é visível
através de cinco pilares principais: 1) o controlo feminino sobre o ventre; 2) o controlo
feminino sobre a cozinha; 3) o controlo feminino sobre o berço; 4) a imaturidade
15
Título completo da obra: Anatomy of female power. A masculinist dissection of matriarchy.
16
Chinweizu é um investigador nigeriano que fez a sua formação superior nos E.U.A.
127
Capítulo III – Identidade e Género
Para o autor, este matriarcado escondido é uma opção consciente das mulheres, pois estas
preferem não ter de lidar com as obrigações a que a exposição do seu poder lhes poderia
trazer. As mulheres preferem posições com pouca pressão e baixo risco, liderando por trás
do trono do patriarcado: “sob este acordo, uma mulher tem tudo a ganhar e nada a perder,
exceto pequenas vaidades” (Chinweizu, 1990:75). Aos olhos da teoria foucaultiana, poder-
se-ia entender esta posição das mulheres como o “poder de resistência” ao poder
masculino. Toda esta visão leva Chinweizu (1990) a colocar uma questão: porque é que os
homens não se revoltam com esta situação e impõem um verdadeiro patriarcado? Para ele,
a resposta é simples: porque esta é uma fachada que alimenta o ego masculino o suficiente,
e, para além disso, as mulheres não o iriam permitir.
128
Capítulo III – Identidade e Género
Contudo, é importante fazer-se outra leitura desta teoria, na medida em que, apesar de o
autor destacar constantemente que a posição de “poder por trás do trono” é uma posição
perfeitamente consciente das mulheres, esta pode ser apenas a única forma de “poder” que
lhes é permitida. Embora o discurso do autor pretenda caminhar no sentido da libertação
das mulheres (focada na consciência da sua própria situação), por vezes, as suas palavras
salientam o conformismo e não preveem a capacidade das mulheres irem mais além nos
seus modelos de resistência ao poder masculino. No âmbito de algumas teorias feministas,
esta pode revelar-se como uma das formas machistas de dar um falso sentido de liberdade
e de poder às mulheres. Chinweizu apenas parece dar continuidade ao simbolismo
lacaniano que sedimenta práticas sociais que perpetuam a heteronormatividade cultural
através da estrutura familiar edipiana (falocêntrica). Esta visão afasta-se completamente da
pós-estruturalista que prevê um queerismo da psique, da diferença sexual e do género, e
que repensa toda a estrutura social de poder.
O problema do autor reside, logo à partida, na sua definição de poder como “posse” e não
como exercício: “se a essência do poder é a habilidade de conseguir o que queremos, então
as mulheres estão longe de ser impotentes” (Chinweizu, 1990:11). De facto, esta definição
afasta-se da conceção foucaultiana de poder distribuído e entrelaçado nas relações do
tecido social, o que, automaticamente, se revela desatualizado no contexto teórico pós-
moderno. O poder não é o que queremos ou possuímos, mas sim o que é exercido e circula
no feixe de relações organizadas, piramidal e coordenadamente (Foucault, 2010a).
129
Capítulo III – Identidade e Género
Não são o desenvolvimento e a maturação físicos que atribuem uma identidade de género a
um sujeito, mas sim a sua inserção e o seu reconhecimento no meio social, enquanto
mulher ou enquanto homem (e, em algumas culturas, enquanto terceiro género). Este
sentido de si é atribuído pelos papéis sociais que estão inevitavelmente ligados ao sujeito,
mas também são construídos papéis que se vão desenvolvendo ao longo da vida do sujeito
de acordo com o reconhecimento do seu género pela sociedade. O sexo, o corpo e a idade
são aspetos que normalmente remetem para a biologia e para a sociobiologia, mas é
importante perceber que são as normas e os valores culturais que aprendemos sobre estes
aspetos que nos ajudam a formar a nossa identidade individual como homens e mulheres
(Abbott, 1998).
Até à segunda metade do século XX, a identidade de género não era uma problemática, na
perspetiva antropológica, porque era associada a aceitação e a imposição sociocultural. A
identidade já era vista como uma construção complexa, e o género era apenas uma parte do
Eu de cada sujeito. Contudo, o facto de se perceber que não existe um modelo cultural
único de género, mas uma multiplicidade de discursos sobre o género (Moore, 2000),
despertou o interesse de investigadores, pois o modelo do sujeito tradicionalmente unitário,
racional e masculino começava a ser colocado em questão.
130
Capítulo III – Identidade e Género
20
Le Deuxième Sexe (publicado em 1949 e distribuído por dois volumes) fica conhecido como o ensaio
filosófico que analisa profundamente o papel das mulheres na sociedade.
131
Capítulo III – Identidade e Género
autonomia individual, ao mesmo tempo que se deseja a relação com o Outro (que pode ser
conflituosa e/ou estimulante). Mais do que discutir a relação entre o Eu e o Outro,
Beauvoir disseca as relações entre os sexos masculino e feminino, e analisa o papel social
da mulher.
132
Capítulo III – Identidade e Género
que lhes é oferecida alternativa. Beauvoir acrescenta que uma das vantagens da mulher ser
o Outro é a capacidade dela evitar a angústia de ter responsabilidade pela vida; no fundo de
ter a responsabilidade de uma existência autêntica. Contudo, aqui é preciso salientar que
Beauvoir não considerou o facto de que nem sempre há uma alternativa para o sexo
feminino, e que nem sempre a mulher se satisfaz com as “vantagens” de ser o Outro.
Para Beauvoir (1977a), os rapazes são, desde cedo, encorajados a verem-se como sujeitos,
enquanto as raparigas são preparadas para serem o objeto, e, embora olhem para si
naturalmente como sujeito, à medida que entram na idade adulta tomam consciência de que
são o Outro. De facto, para o homem parece não existir um conflito na forma como se vê e
como é visto pelo Outro, enquanto nas mulheres existe um conflito entre a sua existência e
o ser o Outro: “(…) a feminilidade significa ser um objeto. Ser um sujeito e uma mulher
não é tarefa fácil” (Lundgren-Gothlin, 1996:182). Esta pressão é feita sobretudo pelos
homens que querem possuir um Outro que os legitime e, em certa medida, os julgue (o
olhar de um homem para outro homem é diferente do olhar de uma mulher para um
homem).
Ao estar condenada a exercer o papel do Outro, a mulher exerce um poder precário que é
reforçado pela teoria da transcendência e da imanência23, explorada tanto por Sartre (1962)
como por Beauvoir (1977a). Para a pensadora, existe uma esfera de transcendência própria
à masculinidade que engloba criação, criatividade e existência, e que é apelidada de esfera
pública. Esta esfera entra em contraste com a feminina, a chamada esfera privada ou da
imanência, e que é caracterizada pela repetição, continuidade e manutenção (Lundgren-
23
Simone de Beauvoir (1977a) regressa às raízes filosóficas do Marxismo quando este adota a distinção de
Hegel entre imanência e transcendência.
133
Capítulo III – Identidade e Género
Uma ética verdadeiramente socialista, isto é, que procura a justiça sem suprimir a
liberdade, que impõe aos indivíduos encargos, mas sem abolir a individualidade,
se encontrará muito envergonhada pelos problemas que coloca à condição das
mulheres (Beauvoir, 1977a:75).
24
A experiência vivida.
134
Capítulo III – Identidade e Género
volume, a autora tenta mover-se fora do contexto das construções dos homens que veem a
mulher como o Outro, desafiando a dualidade objetivo/subjetivo.
Beauvoir (1977a) procura demonstrar que o conflito Eu-Outro não é solipsista, mas sim
intersubjetivo, onde a identidade do Eu é sustentada e ameaçada pelo Outro, pela
identificação com o Outro. Para a autora, enquanto o homem se reconhece e é reconhecido
pelo que faz, à mulher é travada a sua subjetividade, deixando-a afastada da forma
autêntica de elaborar uma identidade. Para a autora, a liberdade feminina deve passar pela
independência económica e deve ser uma tomada de posição coletiva, que incentive o
afastamento dos laços financeiros, emocionais e sociais que prendem as mulheres aos pais
e aos maridos. Na realidade, Beauvoir defende um Feminismo ativista, pois, para si, o
único recurso para a libertação das mulheres é a luta coletiva.
135
Capítulo III – Identidade e Género
Ainda no seio da discussão, David Gauntlett (2002) defende que, apesar de muitos sujeitos
verem o género como um atributo que é culturalmente fixo e permanente no Eu de cada
um, o género deveria ser visto como uma variável fluida que pode mudar de acordo com
diferentes contextos e tempos, deixando de ser um atributo e passando a ser uma
performance (uma forma de estar, de se ver, de se mostrar aos outros, e que se pode
modificar repetidamente).
Este caráter performativo do género é largamente discutido nas obras de Judith Butler,
englobando não apenas atos de fala, mas também atos corporais, pois as significações
corporais (a forma como o sujeito age mesmo no ato da fala) podem ser diferentes do
sentido (aquilo que o sujeito pretende dizer). Claramente, como corpo o sujeito é algo mais
do que ele próprio, na medida em que, ao ser constituído social e politicamente, o seu
corpo tem, indiscutivelmente, uma dimensão pública: “(…) constituído como um
fenómeno social na esfera pública, o meu corpo é e não é meu” (Butler, 2004:21). Na
realidade, os sujeitos vivem e recebem, constantemente, noções de realidade (e implicações
ontológicas) que lhes dizem que tipos de sexualidade e de corpos são considerados
aceitáveis, verdadeiros e reais, e que tipos não o são.
Neste contexto teórico, convém esclarecer que dizer que o género é uma performance
implica que o sujeito atua e representa um papel de género a que pertence, apresentando-o
ao mundo. Já dizer que o género é performativo trata-se de algo diferente, pois implica que
136
Capítulo III – Identidade e Género
Segundo Judith Butler (2004) é necessário criar espaço para estas “novas” formas de
género, discutindo-as e desenvolvendo-as na lei, na psiquiatria, na teoria social e literária, e
na complexidade lexical. Tudo isto implica uma política centrada na questão da
sobrevivência, visto que o mundo terá de entender os sujeitos com estes “novos” géneros e
o seu desejo de não-normatividade sem o encarar com violência. Os próprios sujeitos têm
de viver sem se entenderem como irreais. Portanto, dentro da política teórica deverá haver
espaço para o pensamento do possível, pois “o pensamento de uma vida possível é apenas
uma indulgência para aqueles que já se conhecem ser possíveis; para aqueles que ainda
estão à procura de se tornarem possíveis, a possibilidade é uma necessidade” (Butler,
2004:219).
Esta renovada visão de género afetaria, com certeza, a forma como os sujeitos vivem e as
necessidades e espectativas das comunidades em que se inserem, e, obviamente, de toda a
humanidade:
137
Capítulo III – Identidade e Género
A performatividade de género abre então as portas para novas formas de realidade através
da incorporação. Segundo Butler (1993, 2004), o corpo é um processo de transformação
que excede e (re)trabalha a norma e que mostra que a realidade existente não é fixa. Mas,
se imagens de outras possibilidades não são apresentadas isso significa que não há espaço
para desfazer a norma e abrir a porta para o imaginário de outras “normalidades” humanas.
Este assunto abre caminho para toda uma discussão sobre a legitimidade das normas de
género que são (re)produzidas na sociedade.
É neste sentido que segue o trabalho teórico de Judith Butler, que procura desfazer
conceções restritivas da normatividade social e simbólica, a vários níveis, mas sobretudo
ao nível da sexualidade e do género. Se, por um lado, as normas são aquilo que orientam os
sujeitos e os guiam no contacto e interação com o Outro, por outro lado, elas são também a
forma pelo qual o sujeito é reconhecido como humano, codificando nesse processo
complexas operações de poder:
O sujeito é assim constituído por normas que não são feitas por ele, mas que existem a
priori e que representam uma forma de poder social (que não implica propiamente uma lei)
que produz o campo inteligível da humanidade e um aparato pelo qual a binariedade de
género é instituída. De facto, existem normas e discursos de género em curso, impostos
138
Capítulo III – Identidade e Género
Esta visão complexifica-se quando se passa a perceber que o género não é mais do que
uma regra regulatória reproduzida, invocada e incitada por normas linguísticas e corporais.
Deste modo, para que o sujeito faça parte da cultura imposta, é necessário que respeite os
tabus da heterossexualidade normativa. Mas, se se reconhece que são as regras que formam
e produzem o género, não seria possível pensar o que aconteceria se o género estivesse a
priori da regulação? Como seria a humanidade se o género não fosse uma norma
regulatória simbolicamente imposta?
Para Judith Butler, se o género é culturalmente formado, isso implica que seja também um
domínio de liberdade. Torna-se importante resistir à violência que é imposta pelas normas
de género ideais, especialmente para com aqueles que não encaixam nelas ou se mostram
inconformados com a apresentação do género. Desta forma, a autora afirma a necessidade
de “desfazer” a norma para “desfazer” o género, utilizando para isso uma formação de
pensamento complexa que tem início no conceito “tornar-se”.
Com a obra Undoing Gender (2004), Judith Butler desenvolve toda uma estrutura de
pensamento que se baseia particularmente na afirmação de Simone de Beauvoir
(1977ª:285) “não se nasce mulher: torna-se uma”. Desta forma, Butler acredita que o
“tornar-se” é o veículo para o próprio género, que se encontra em constante processo de
transformação e de construção. Para a autora, fazer-se justiça ao próprio sujeito é percebê-
lo como humano antes do seu género e vê-lo para lá da sua sexualidade, da sua genitália.
Já para Rosi Braidotti (2002) que entende que para se pensar a identidade, o sujeito ou
qualquer perfil identitário, isso implica, frequentemente, uma diferenciação sexual, ou seja,
é difícil pensar as questões supracitadas sem sexualizar o sujeito. A solução está em
desconstruir isto através do “desejo” de “tornar-se”, de criar/recriar o sujeito: “tornar-se é a
realização do encontro imanente entre sujeitos, entidades e forças que estão aptos
mutuamente a afetar e trocar partes uns dos outros de uma forma criativa e não-individual”
(Braidotti, 2002:68).
139
Capítulo III – Identidade e Género
Apesar de Butler e Braidotti identificarem ambas a presença de uma estrutura real, social e
normativa em que o feminino é constantemente um Outro do Eu masculino (aquilo que
Braidotti apelidou de “lógica do mesmo”), a resolução de cada uma para o problema difere.
Para Butler a solução está na aniquilação do pensamento binário masculino-feminino e da
diferença sexual, sendo esta normatização substituída pela performatividade de género.
Para Braidotti é a diferença sexual e o que está entre o masculino e o feminino que
permitem pontos de fuga para outras performatividades/leituras capazes de apresentar
novas formas de resistência. Este ponto de vista interessa particularmente a esta
investigação, na medida em que também se procuram as possibilidade, os pontos, os
lugares e/ou os perfis resistentes.
Uma leitura aberta do caminho teórico destas duas autoras deixa adivinhar que o género
não deve determinar a existência dos sujeitos na sua individualidade e que a sociedade
deve deixar espaço para que o sujeito possa escolher como quer ser reconhecido. Quer isto
dizer que, apesar do género ser um aparato que produz e normaliza o masculino e o
140
Capítulo III – Identidade e Género
feminino, este “(…) pode bem ser o aparato pelo qual esses termos são desconstruídos e
desnaturalizados” (Butler, 2004:42), contribuindo, tanto de uma forma como de outra, para
a construção da identidade dos sujeitos.
Esta realidade desperta algumas questões sobre a identidade, pois se os indivíduos estão
sujeitos a estas normas, que tipo de pessoas estão a ser “feitas”? Que tipos de homem estão
a ser validados? Que tipos de mulheres são aceites? E qual o lugar dos sujeitos que vivem
entre a binariedade de género? Se se pensar nas duas formas comumente aceitáveis para
pensar o sujeito e o género – meio ou genética – estas questões ficam, à partida, reduzidas
a estruturas simbólicas e normativas falocêntricas, que frequentemente são causadoras de
“crises” identitárias, pois é a presença ou a ausência do “phallus” a medida das coisas e a
forma como se determinam os sujeitos.
141
Capítulo III – Identidade e Género
Estas questões levantadas por Butler demonstram que a identidade de género deixou de ser
uma questão do “ser” (ontológica) para passar a ser uma questão do “tronar-se”, o que
conduz a várias “direções” identitárias. Mesmo quando o sujeito tem a sua identidade de
género e a atua, no futuro é possível perdê-la, reconstruí-la, validá-la de outra forma,
transformando a própria questão de género numa pergunta constante e nunca numa
resposta definitiva. Desta forma, o género é visto como um “falhanço” e, no pensamento
butleriano, o que deve ser valorizado é o desejo e o reconhecimento de cada um. Já
Braidotti (2002) afirma que a discussão das teorias da diferença sexual (sobretudo a
feminista) deve enfatizar a importância política do desejo em oposição à vontade, bem
como o seu papel na construção do sujeito, colocando este desejo de ser e de se tornar
debaixo da mesma capa teórica da ontologia.
Toda esta discussão, que se apoiou fundamentalmente nos argumentos de Butler, reforça a
ideia de que tanto a questão da diferença sexual como a da identidade de género devem ser
constantemente problematizadas e abertas a discussão, em vez de fechadas numa definição,
pois isso fará com que o sujeito se transforme em algo “estranho” e que atua de acordo
com o socialmente estabelecido (mesmo que não “encaixe” nas construções sociais dos
conceitos). Esta visão entende que o futuro simbólico abrirá múltiplas possibilidades, tanto
para mulheres como para homens, libertando-os da obrigatoriedade de permanecer uma
coisa ou agir de acordo com uma determinada forma (dividida no sentido falocêntrico
heteronormativo). Resta questionar: Será que a estrutura para pensar a diferença sexual e o
género tem de ser binária para que se possa emergir a multiplicidade do feminino e do
masculino? Butler (1993, 2004) lança o desafio teórico de se pensar antes: Porque não
pode ser esta estrutura sexual ela própria transformada do binário para a multiplicidade?
Butler (1990) continua a apontar neste sentido, ao afirmar que o comportamento de cada
sujeito não é o seu sexo ou o seu género, mas sim tudo o que o seu sexo ou o seu género
são (os conceitos deixam de ser universais e imutáveis). Isto não implica que a troca ou
substituição da identidade de género seja um procedimento simples, pois a identidade (de
qualquer tipo) é uma construção social, que constitui um sujeito dentro das relações de
poder e das identificações psicológicas, sociológicas, culturais e até físicas de cada um.
142
Capítulo III – Identidade e Género
Hoje, a conceção do homem como sujeito absoluto começa a ser substituída por uma
multiplicidade de interpretações. Dá-se uma dissolução de papéis masculinos e femininos,
e as novas gerações vão-se desenvolvendo em sociedades cada vez mais abertas a novos
sistemas de comparação, que se afastam das conceções tradicionais chauvinistas. As
mulheres pensam mais em si, nas suas necessidades, nas suas capacidades e na sua
centralidade, apoderando-se da sua identidade, que, embora também seja desenvolvida por
comparação a outros, é mais vivida como um Eu e não simplesmente como um Outro
masculino. Contudo, existem ainda fortes influências desse pensamento tradicional que vê
o homem como o Eu e a mulher como o Outro, que, de tão enraizado que se encontra,
dificulta os processos de mudança. Muitas dessas influências encontram-se presentes nos
discursos, nos hábitos quotidianos, na linguagem, nas representações mediáticas, nas
práticas religiosas e nas atividades sociais.
143
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
Na sua obra Crise no Castelo da Cultura (publicado em 2011)25, Moisés Martins procura
legitimar a importância das Ciências da Comunicação e dos estudos dos media na
sociedade atual, mostrando como estas áreas de estudo instauram um paradigma
historicista, através do qual é possível atingir o conhecimento da realidade. O autor fala de
uma escolha que valoriza a temporalidade, a situação, a linguagem e a interpretação: “quer
isto dizer que as Ciências da Comunicação vão insistir no atual e no contemporâneo e vão
fixar-se no presente e no quotidiano” (Martins, 2011:41), enveredando pelos novos
caminhos da investigação das Ciências Humanas e Sociais, parceiras dos Estudos
Culturais.
Moisés Martins (2011) afirma ainda que as Ciências da Comunicação se afastam das
conceções de análise da Sociologia clássica que se centram na classe social, para a
substituir por outras unidades como o género, a idade, a etnia, etc. É dada agora mais
25
Título completo da obra: Crise no Castelo da Cultura. Das Estrelas para os Ecrãs.
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
Uma das questões mais discutidas neste âmbito centra-se na preocupação em perceber se
são os media os criadores dos processos culturais ou apenas o espelho desses mesmos
processos. Ambas as funções lhes podem ser atribuídas, embora não de uma forma tão
simplista. Se, por um lado, os media produzem e disseminam mensagens para a sociedade,
assumindo um papel essencial na formação sociocultural dos sujeitos, por outro refletem
comportamentos já enraizados. Contudo, importa realçar que os media não se reduzem a
meros espelhos da realidade, pois são polissémicos, assumem diversos sentidos (tal como
as audiências), e funcionam como mediadores entre significantes, significados e leitores.
Isto possibilita a conjugação de diferentes identidades e experiências no processo de leitura
dos seus textos.
Os media não se limitam, portanto, a transmitir um significado já existente, mas têm sim
um trabalho ativo de seleção, estruturação e apresentação desses mesmos significados
26
Segundo o autor, no âmbito das Ciências da Comunicação, os estudos das relações de poder e de
dominação concentram-se “primeiro num entendimento gramsciano de hegemonia, depois na conceção
foucaultiana dos ‘estados de poder’, e ainda, na caracterização bourdieusiana das ‘relações de força’, num
campo social específico” (Martins, 2011:42).
27
Este caminho teórico foi tomado pelo Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) e pelo Glasgow
Media Group (GUMG), sobretudo nas décadas de 1970 e 1980.
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
Esta responsabilização dos media leva Norman Fairclough (1995) a referir que a análise
dos textos mediáticos, de forma a entender a relação dos processos de comunicação nos
ambientes socioculturais, deve englobar três áreas: representação, identidade e relação. O
autor afirma mesmo que qualquer texto é sempre simultaneamente constitutivo de
identidades sociais, relações sociais e sistemas de conhecimento e crença. Para este teórico,
quando é feita uma análise dos textos dos media é fundamental ter presente as seguintes
questões: 1) Como é representado o mundo? (relações, eventos, acontecimentos, etc.); 2)
Quais as identidades dos envolvidos no contexto? (jornalistas, audiências, entrevistado); e
3) Que relações são estabelecidas entre os envolvidos? A resposta a estas questões obriga a
que os significados codificados nos textos mediáticos sejam descodificados através da
análise dos mesmos (Hall, 2006), oferecendo leituras e sentidos renovados28. Deve-se,
portanto, salientar a importância do papel dos discursos mediáticos como veículo de
descrição e de compreensão do sujeito, da sua identidade, do seu comportamento, das suas
representações em relação ao Outro, em relação ao mundo social.
Existem estudos que se preocupam em analisar como alguns sujeitos ou grupos (mulheres,
jovens, minorias étnicas, etc.) são representados nos media e como a criação de certas
“imagens” desses sujeitos ou grupos ajuda a moldar a sua conceção identitária e a sua
projeção social. Frequentemente, as “imagens” que os media divulgam sobre determinado
grupo e que refletem uma suposta realidade, irão, posteriormente, refletir-se na vida real
desse grupo. A maior parte das vezes, os meios de comunicação mostram o ponto de vista
do(s) Outro(s) (Gauntlett, 2002); e isto afeta a forma dos sujeitos verem o mundo e de se
formarem a si próprios como indivíduos. É neste sentido que segue o trabalho de Stuart
Hall sobre os media, que se centra nas questões de produção e de representação,
especificamente no âmbito identitário. Hall (1997a) sugere mesmo que podemos teorizar a
identidade dentro da representação mediática.
28
O mesmo pode ser aplicado à leitura e à análise de imagens mediáticas.
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
Outra das áreas de interesse para os Estudos Culturais prende-se com pesquisas sobre
como os media contribuem para a manutenção e distribuição das relações de poder. De
facto, o exercício do poder necessita de um “espaço” de articulação e os meios de
comunicação permitem que estas dinâmicas se desenvolvam na sociedade, por vezes de
forma completamente transparente. Isto permite que os media sejam estudados, antes de
tudo mais, como uma indústria que dá poder a alguns indivíduos ou grupos sobre outros,
“em termos de acesso, controlo institucional, retorno financeiro e na seleção e
enquadramento de mensagens” (Johnson et al, 2004:138).
A própria natureza da função dos media, uma função social e cívica, pode criar situações
confusas entre estes e a sociedade, na medida em que os media alcançaram grande
autonomia e a sociedade atinge mais consciência dessa emancipação e desse poder
(McQuail, 1997). Todavia, a atual tomada de consciência da sociedade sobre o poder dos
media conduz a uma diminuição deste sobre aquela. Esta controvérsia entre poder e media
ter-se-á transformado, com o tempo, numa das dinâmicas simbólicas mais exploradas dos
estudos contemporâneos dos meios de comunicação. Neste sentido, os Estudos Culturais
procuram sensibilizar os sujeitos para as relações de poder que se encontram codificadas
nas mensagens culturais mediáticas, ao mesmo tempo que os encorajam a resistir aos
domínios que lhes são impostos e a criarem a sua leitura crítica e alternativa:
Os Estudos Culturais podem mostrar como a cultura dos media nos manipula e
doutrina, e então podem dar poder aos indivíduos para resistirem aos sentidos
dominantes nos produtos culturais mediáticos e produzir os seus próprios
sentidos (Kellner, s.d.:12).
Logo no início dos seus trabalhos, Williams, Thompson e Hoggart definiram uma questão
central para a teoria dos estudos críticos dos media ao problematizarem como as classes
subalternas podem contestar, transformar e libertar-se das leituras dominantes,
descodificadas a partir dos textos mediáticos. Isto implica que os investigadores devem
olhar para os media como uma forma de poder social e de sistema de combate político.
Anos mais tarde, David Morley acrescentou que só é possível compreender a hegemonia e
a liberdade nos meios de comunicação se colocarmos frente a frente um conjunto de
fatores opostos que se relacionam:
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
Atualmente, nos estudos dos media, coloca-se uma questão fundamental: Terão os media
mais poder sobre a audiência ou será a audiência a ter mais poder sobre os media? Alguns
autores consideram os conteúdos dos media como “formadores” de opinião, pois o
conteúdo que distribuem tem o poder de influenciar os sujeitos e de afetar o meio social.
Outros autores mostram que os conteúdos dos media não são “formadores” de opinião,
porque apenas refletem comportamentos, identidades, valores e relações sociais que já
existem na sociedade. Se, por um lado, Horkheimer & Adorno (1979) acreditam no poder
dos media sobre a população e nos seus efeitos negativos, por outro, Fiske (1989a, 1989b)
defende que é a audiência que domina e não os meios de comunicação. Contudo, no
entender desta investigação, estas aceções são demasiado rígidas, pois ambas as hipóteses
podem e devem ser consideradas. O desafio será ver esta relação através de um prisma
“circular”, dependente da situação contextual e envolvendo elementos dos dois processos.
De acordo com Van Dijk (1995), o poder dos media é simbólico e persuasivo, controlando,
potencialmente, uma parte da mente dos recetores, mas não as suas atitudes e os seus
comportamentos. Aliás, existe sempre um mínimo garantido de autonomia e de liberdade
por parte da audiência, o que lhe confere um papel ativo e uma capacidade de resistência às
mensagens que o poder incute. O autor afirma ainda que a noção de “acesso” é
fundamental na análise do poder dos media, pois o poder centra-se em quem possui acesso
a recursos valorizados, como, por exemplo, quem controla os meios de comunicação.
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
Retomando a problemática do poder dos media enquanto produtores e/ou refletores dos
processos culturais, Ghilardi-Lucena (2005) transpõe a questão para o âmbito das
representações, como sugerem as suas palavras:
Ghilardi-Lucena (2005) continua o seu raciocínio, declarando que este mundo real (ou
social) tem conduzido os sujeitos ao encontro de novas identidades (fragmentadas), pelo
que a construção da identidade está intimamente relacionada com o processo de
representação. Esta teorização vai ao encontro da linha francesa que deposita no discurso a
responsabilização no auxílio da edificação identitária dos sujeitos; discurso este envolvido,
em grande medida, nos e pelos meios de comunicação. Em suma, o conteúdo das
representações mediáticas mostra-se indispensável, pois os media podem ser um poderoso
e educativo instrumento de (re)socialização (Damme, 2011).
Stuart Hall (1986) vê as representações como práticas discursivas que são capazes de
descrever e construir factos sociais, pelo que esta posição nos leva a partir do princípio que
as representações (quer as textuais, quer as icónicas), vinculadas pelos media, podem servir
como pontos de identificação para a formação de identidades sociais (Pedro & Santos,
2009). Acrescenta-se a eventualidade de outras possibilidades de identificação, dada a
natureza ilocucionária das representações sociais, que enquanto práticas discursivas tornam
admissíveis outras delimitações de fronteiras identitárias:
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
Esta posição demonstra que, apesar das relações quotidianas e dos media participarem na
elaboração das representações sociais, “por meio de processos de influencia social”, nem
todos os sujeitos são ativos na construção das suas representações, pois “a estrutura social
determina que nem todos têm igual margem de liberdade no processo de negociação das
representações” (Cabecinhas, 2009:54). É aqui que se incluem as representações
mediáticas de género, que, na maioria das vezes, não são expressivas da realidade
identitária, dificultando o processo de identificação por parte dos sujeitos.
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
oportunidade de negociar a sua própria vida, mas, apesar desta evolução, a forma como as
mulheres se veem é irrefutavelmente moldada pelas imagens de si, que são geralmente
construídas e mostradas à sociedade. Estas imagens vão reforçar ideologias dominantes de
diferenças de género, transformando a representação numa problemática política. Quer isto
dizer que, através da representação, as mulheres podem perder o seu próprio poder de
decisão, ficando sujeitas, tal como qualquer outro grupo, ao poder de decisão do Outro
(Robinson & Richardson, 1997).
O movimento feminista europeu terá trazido uma perspetiva reformista na abordagem das
questões de género, onde as representações sociais tiveram um papel importante. Para
Lígia Amâncio (1993), os quadros teóricos da Psicologia Social, especificamente no que
diz respeito às representações sociais, ajudaram a solidificar muitas questões relacionadas
com a(s) identidade(s) de género. Mesmo Moscovici (1981) salientou a assimetria das
representações sobre homens e mulheres, bem como o seu papel regulador nas posições e
nas relações sociais dos sujeitos. Através desta visão, Lígia Amâncio assume que:
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
O estudo das representações deve, segundo Vala (2006), considerar a análise das relações
entre as identidades sociais e as representações sociais. Esta análise pode ser elaborada sob
duas perspetivas: ver como as representações sociais (enquanto variável dependente) são
criadas no interior de categorias ou grupos sociais; ou ver como as representações da
estrutura social (enquanto variável independente) criam formas de categorização social ou
grupos sociais, neste caso específico, categorizações de género.
A obra Gender: Stereotypes and Roles (1992) da autoria de Susan Basow destaca-se na
discussão dos estereótipos de género, pois gira em torno do conceito de género e dos
aspetos sociais que rotulam o masculino e o feminino. A autora começa por afirmar que a
diferenciação de género é feita através de papéis comportamentais, ocupações,
características físicas e traços de personalidade, o que conduz a estereótipos. Tudo isto
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
fortifica a oposição entre os dois sexos e a sua categorização social. Contudo, a autora
indica que os sujeitos não podem ser constantemente entendidos como um conjunto de
características consistentes e opositoras baseadas no sexo, pois os atributos que são vistos
como distintivos de cada sexo podem existir em ambos.
Para Susan Basow (1992) existem duas teorias básicas que se encontram na origem dos
estereótipos de género: a teoria do núcleo da verdade30 e a teoria do papel social31. A
primeira pressupõe que os estereótipos de género possuem alguma legitimidade empírica,
aceitando que existem diferenças comportamentais reais entre o sexo masculino e o
feminino, e que os estereótipos apenas o exageram. A segunda teoria pressupõe que os
estereótipos de género surgem dos diferentes papéis sociais tipicamente ocupados por
homens e mulheres. De qualquer forma, os estereótipos de género são uma espada de dois
gumes, pois, para além de refletirem diferenças comportamentais baseadas no sexo, dão
também origem a outros estereótipos: “se os estereótipos funcionam como parte das
expetativas do papel sexual, então as pessoas vão aprendê-los e ser influenciadas por eles”
(Basow, 1992:11). A análise dos estereótipos de género levanta questões de controlo social
e de relações de poder que se focam principalmente na norma masculina e no “desvio”
feminino. De facto, os homens, e todas as coisas vistas como masculinas, são socialmente
representados, na sua maioria, como tendo mais poder e estatuto do que as do sexo oposto,
na medida em que os próprios homens promovem comportamentos dominantes que são
incutidos ao nível pessoal e institucional.
Para Susan Basow (1992), na área das interações de poder, os homens são estereotipados
como mais proficientes, na medida em que dominam os campos da agressividade, da
assertividade, da competição, da realização pessoal e da não-conformidade, enquanto as
mulheres são rotuladas com o domínio da complacência. Muitos dos estereótipos de género
e poder encontram-se relacionados com as tarefas que homens e mulheres possuem na
sociedade e que dependem de três fatores: a base da subsistência da sociedade, a base da
oferta e da procura do trabalho; e a base da compatibilidade das tarefas com o sustento dos
filhos. Em todas estas vertentes, a tendência fora, durante muitos séculos, para a
subordinação da mulher em relação ao homem. Hoje, estes fatores continuam a ser aceites,
30
Tradução nossa de kernel of thruth theory.
31
Tradução nossa de social-role theory.
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
Apesar dos media procurarem afastar-se da fantasia na tentativa ser serem objetivos na
construção de imagens reais, é impensável esperar que excluam os estereótipos como parte
integrante das suas representações, pois, de acordo com a teoria dos Estudos Culturais,
associada aos estudos dos media, o estereótipo deve ser visto como um tipo de
representação dominante e não como algo prejudicial na análise social.
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
A partir da segunda metade do século XX, os estudos feministas vão assim insistir em
destacar o predomínio do chauvinismo masculino nos media, apesar da influência feminina
na produção e na reprodução de conteúdos. A posição das mulheres nos media continua a
ser conotada com o conceito de “minoria”, pois, como afirma Van Dijk (1995), no mundo
das notícias: a maior parte dos jornalistas são homens; as mulheres não têm a mesma
igualdade de ascender a elevadas posições editoriais; as fontes femininas são, muitas vezes,
desvalorizadas; e o papel atuante das mulheres é de menor importância. Van Dijk afirma
mesmo que a maioria das notícias é orientada para os homens e que os assuntos de género,
o sexismo, os movimentos feministas e as contribuições femininas são, muitas vezes,
ignorados ou atirados para segundo plano:
Estas propriedades das notícias discutidas por Van Dijk (1995) e pelos autores supracitados
podem ser alargadas a outras vertente dos media, como, por exemplo, a publicidade, os
anúncios, as séries de entretenimento, os filmes, etc., que mostram que os media não
desafiam totalmente o poder da elite masculina, dificultando, por vezes, a potencial
resistência feminina. Há, de facto, uma tendência para ligar a feminilidade ao consumo e à
leitura, e a masculinidade à produção e à escrita (Modleski, 1986). Simplesmente, as
mulheres vivem rodeadas de imagens que tendem a fixar-se, mas que, por se inserirem no
mundo “real”, levam Elspeth Probyn (1993) a afirmar que estas imagens podem e devem
ser alvo de contestação.
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
O Feminismo tem tido um forte impacto nos estudos dos media, partilhando uma visão em
que as sociedades são caracterizadas pelo domínio masculino (patriarcado) sobre as
mulheres. Os feministas colocam assim uma questão: Porque não se revoltam as mulheres
contra esta situação? Tal como os marxistas (que procuravam explicar o falhanço da
revolta da classe trabalhadora), os feministas recorrem ao conceito de ideologia: “a
ideologia patriarcal trabalha para representar papéis de género, com a divisão entre o
homem como provedor económico e a mulher como provedor emocional no lar, como
‘natural’ e inevitável, em vez de um produto do poder masculino” (Dutton, 1997:67). Esta
ideologia patriarcal nos media é referida em muitos estudos e uma das formas frequentes
de o fazer é representar as mulheres como objeto de desejo dos homens. Muitas análises de
conteúdo mostram ainda que as mulheres são sub-representadas na maior parte dos meios
de comunicação, e quando aparecem é de forma marginalizada ou inferiorizada (Dutton,
1997).
Deste modo, nota-se que, até à década de 1970, os media representavam as mulheres em
papéis tradicionais ou simplesmente as excluíam física e simbolicamente. As mulheres não
eram vistas em posições de poder e a sua “imagem” era trivializada, limitando-se aos
papéis domésticos ou à sua condição sexual. Esta invisibilidade das mulheres revia-se
numa aniquilação simbólica do sexo feminino (Taylor, 1997). Contudo, depois da década
de 1970, a ausência ou banalização feminina nos media foi substituída por representações
mais positivas e por formas de resistência, que reforçam uma mudança no conhecimento e
na representação dos desejos femininos (e na sua sexualidade).
Todas estas problemáticas, que são transformadas em mensagens, são absorvidas pelas
audiências que vão dar impulso à oposição de género, pois, como afirma Crawford (1995),
muito do que se apresenta como sendo diferenças naturais dos sexos, são sim
representações ou construções da interação social, mas às quais é conferida “realidade”. Os
media refletem e auxiliam na perceção que os sujeitos possuem dos papéis apropriados
para o homem e para a mulher, bem como dos estereótipos de determinados grupos. Em
suma, os media refletem e formam opiniões.
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
Na obra Media, Gender and Identity: An Introduction (2002), David Gauntlett coloca uma
questão fundamental: Porquê explorar a relação entre media, identidade e género? Para o
autor, os media e a comunicação são elementos centrais da vida moderna, enquanto o
género (e a sexualidade) continuam a ser fundamentais para a forma como pensamos uma
identidade:
Através dos meios de comunicação é possível detetar como as identidades de género são
construídas no meio social, pois os textos e as imagens são a representação de uma prática
ou realidade sociocultural. É neste sentido que, mais do que determinar quais os papéis de
género estereotipados que os media reproduzem, é necessário analisar o simbolismo
contido nas mensagens divulgadas. A maior parte das vezes, estas representações oferecem
modelos tradicionais de identidade, mas já é possível detetar algumas mudanças na
sociabilização de género (Taylor, 1997).
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
Como era de esperar, as críticas feministas, a partir da segunda metade do século XX,
iniciaram a discussão sobre as representações mediáticas das mulheres e os estereótipos
dos papéis sexuais. O facto de o Feminismo reconhecer que o “ser mulher” implica um
processo que começa à nascença (e até antes dela) e requer uma intensiva socialização, vai
alterar as normas de género e as conceções da mulher intacta e perfeita. Alguns trabalhos
começam mesmo a sugerir a possibilidade dos conceitos “homem” e “mulher” possuírem
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
uma identidade comum, pelo que o género pode ser (des)construído com base na
representação (Hartley, 2004), no discurso e até na experiência vivida.
Muitos dos textos e das imagens mediáticos são produzidos e distribuídos quase sempre
num contexto de dominação masculina, tanto nos princípios de representação, como nas
instituições, o que significa que as mulheres são apresentadas e definidas por aqueles a
quem estão subordinadas (Mota-Ribeiro & Pinto-Coelho, 2005). Efetivamente, quando um
grupo social é representado por outro com mais poder, os seus interesses têm tendência a
não serem servidos. Contudo, isto não implica que se houvesse um maior número de
mulheres a produzir conteúdos mediáticos isso imediatamente significaria o afastamento da
masculinidade. Haveria necessidade de uma adaptação social que passaria não só pela
produção de conteúdos mediáticos, mas também pelas audiências.
Uma das correntes que é apontada como uma forma de fugir a esta tendência demasiado
masculina do discurso mediático é a literatura, mais precisamente a “literatura light”, que é
habitualmente escrita por e para mulheres, e que é algo também conhecido, no mundo
anglo-saxónico, por chick-lit32. De acordo com Pereira (2006), a “literatura light” transfere
o “real” para o texto, criando-se uma empatia com o leitor, que acaba por se rever nas
personagens. Este tipo de literatura, segundo a opinião da autora, permite a partilha de
afetos, emoções, experiências e intimidades, e pode incentivar uma “relação” em que a
mulher-leitora se revê na mulher-autora, um pouco à maneira do “estado do espelho” de
Lacan (1981) que determina que o Eu corresponde a uma internalização do Outro, através
da identificação.
A “literatura light” pode ser vista como um refúgio de mulheres e para mulheres, como um
espaço dedicado quase exclusivamente ao género feminino. É através deste tipo de
literatura que se podem fazer leituras de conteúdo simbólico ao nível identitário, na medida
em que se trata de um facilitador de compreensão de determinados perfis habitualmente
diferenciados pelo género. Todavia, esta corrente pode também servir de apoio a muitas
conceções estereotipadas sobre o feminino, sobre o que as mulheres escrevem e,
consequentemente, sobre a construção identitária dos géneros.
32
Literatura escrita por e para mulheres.
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
Admitindo a teoria de que o sujeito constrói a sua identidade com base na relação com o
Outro, é preciso reconhecer que a “imagem” do homem se vincula, sem dúvida, à da
mulher, e vice-versa. No caso de determinados meios de comunicação, Damean (2006)
assegura que esta relação assenta em oposições binárias – sujeito/objeto,
essência/aparência, cultura/natureza, razão/paixão, atividade/passividade, espírito/matéria
– em que a mulher se encontra frequentemente na segunda posição. Em suma, há uma
tendência para os media assegurarem a produção e a transmissão de discursos patriarcais
nas sociedades contemporâneas. Contudo, esta posição é um pouco redutora, na medida em
que não prevê a complexidade simbólica das relações identitárias e não permite uma
generalização científica. Se existem, de facto, exemplos desta realidade dualista,
fortemente masculinizada, existem também outros representativos de realidades
feminizadas, assexuadas e/ou transexuais.
Tem-se desenvolvido, nos estudos do género e dos media, uma tendência para monitorizar
a representação da mulher e encontrar estratégias que desafiem os estereótipos de género.
Isto porque os media são centrais no processo de representação de género, e o género é
uma construção social discursiva na qual os media desempenham um importante papel
(Bamburac & Isanovic, 2006). De facto, os media desempenham um papel primordial na
construção do discurso e da(s) identidade(s) de género, pelo que podem ser vistos como
“tecnologias (sociais) de género”, segundo as palavras de Liesbet van Zoonen (2002:57),
ou seja, “locais centrais onde a negociação discursiva em relação ao género acontece”.
33
Tradução nossa de ready-made identities.
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
Quando esta questão é colocada, a sua resposta parece óbvia. Contudo, este otimismo é
afastado quando se analisa o estado da arte da realidade mediática e se percebe que as
políticas institucionais, os valores profissionais, e as exigências sociais se encontram
enraizados numa cultura de domínio masculino (Gallagher, 1992), o que dificulta o
trabalho das mulheres no mundo dos meios de comunicação e influência, claramente, o
conteúdo dos mesmos. Carla Cerqueira (2008a:141) afirma que “o discurso jornalístico
continua, assim, a difundir mensagens estereotipadas e pouco representativas das mulheres
na sociedade”, tanto que existe a necessidade de construir imagens diversificadas para que
os sujeitos tenham a perceção dos novos papéis sociais que estão a ser praticados pelas
mulheres.
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
das mulheres, o que lhes permite a escolha por entre um vasto conjunto de papéis socias
que tanto podem ser efetuados dentro da esfera privada, como da pública, mas que não são
“radicalmente diferentes dos tradicionais”. Para Damean (2006:92), os media oferecem
modelos tradicionais, aos quais foram acrescentados alguns elementos liberais, ou seja,
“para além de bonitas e mães, as mulheres femininas também surgem como profissionais,
bem-sucedidas na esfera pública”. Trata-se de um acréscimo de papéis, e não de uma
evolução ou uma troca dos mesmos, o que pode implicar, na visão desta autora, uma
distorção do modelo de emancipação feminina.
Naturalmente, as mulheres deveriam ter a liberdade de optar (ou se identificar) por vários
modelos sociais que fossem distribuídos pelos media, e que auxiliassem na formação da
sua “imagem” e na construção dos seus papéis sociais. Contudo, em muitos casos, as suas
opções estão limitadas e são induzidas pelo discurso mediático. Em suma, embora se
reconheça que “as representações mediáticas da feminilidade têm um forte impacto nas
mulheres e na formação das suas identidades” (Damean, 2006:93), o problema reside em
que essas representações, muitas vezes, não correspondem à realidade, e as mulheres têm,
cada vez mais, consciência disso.
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
revelarem um paradoxo: por um lado incentivam a inovação – homens que zelam pelo
espaço doméstico, cuidam dos filhos, cozinham e limpam –, mas, por outro, insistem no
statu quo – homens provedores do lar e da família, que frequentam espaços e atividades
naturalmente masculinos. Para Linda Kerber (1988), deve ser ultrapassado o problema da
visão dualista que separa homens e mulheres, e que vê o mundo feminino como algo à
parte da vida social. Assim, são urgentes as análises que se revelam capazes de superar esta
tendência, olhando para a sociedade como uma construção que engloba relações dinâmicas
de género. Todavia, Hermes (2007:206) entende que esta não será uma tarefa fácil, pois
compara as representações de género nos media com a lógica de tocar acordeão: “tão
facilmente como ele se desenrola, irá dobrar novamente ao som das ideologias
dominantes”.
Para Joke Hermes (2007:206), “as representações mediáticas de género consistem num
complexo sistema de códigos, convenções e regras” que, em conjunto, “produzem uma
versão do que são as sociedades”, pelo que existem dois argumentos fundamentais que
devem preocupar os investigadores dos estudos da representação da(s) identidade(s) de
género nos media: um prende-se com a complexidade das regras, dos ideais e das
distinções patentes no conceito de género, impostas por exigências culturais extensas, e
que são transmitidas pelos media; outro que afirma que, independentemente das mudanças
sociais trazidas pela segunda vaga do Feminismo, existe ainda uma sistematização das
diferenças entre masculinidade e feminilidade que estão incorporadas nas representações
mediáticas. O autor finaliza ainda o seu raciocínio afirmando que a representação feminina
assenta muito no sexo, enquanto a representação masculina assenta no poder.
Se muitos dos estudos iniciais atribuíam aos media apenas o papel de refletir os valores e
as posições das mulheres na sociedade, investigações recentes sugerem que os meios de
comunicação determinam como são as mulheres e que estas devem ter um olhar mais
atento à forma como os media condicionam e manipulam as suas atitudes.
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Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
épocas. Neste sentido, aquilo que pode ser relevante para os dias de hoje, pode não ter sido
há uma, duas ou três décadas atrás, porque os sujeitos e os próprios media sofrem
mudanças profundas com o passar do tempo.
Neste sentido, na década de 1970, surgiram os primeiros estudos sobre a representação das
mulheres nos media, centrados naquilo que eram considerados os assuntos e os tópicos
femininos. Para Robinson (1978), os assuntos de interesse para a mulher eram: eventos nos
quais as mulheres participavam como criadoras de notícias; alguns assuntos de particular
interesse para a audiência feminina; e eventos reportados por elementos do sexo feminino.
Já Doris Graber (1978) aponta como tópicos femininos: a família, a saúde, a educação, a
violação e o abuso de crianças.
O interesse por estes estudos avança, destacando-se, por exemplo, na década de 1990, o
trabalho de Gina Bailey. Bailey (1993) destaca que para as mulheres uma história tem
interesse quando é centrada em mulheres, trata sobre problemas ou assuntos femininos
e/ou inclui fotos de mulheres. Para o seu estudo, a autora definiu como tópicos de interesse
qualquer item que, por exemplo: reflita a perspetiva feminina em qualquer área ou
atividade; represente problemáticas que as mulheres enfrentam socialmente; tenha o nome
de uma mulher ou de uma organização feminina; e fale sobre os estatutos de igualdade,
emancipação e libertação ou sobre movimentos femininos.
Já na década seguinte, Anne Cronin (2000), nos seus estudos sobre o consumo, olha para
os media como marcadores da “imagem” feminina que, frequentemente, sugerem que a
mulher possui uma obrigatoriedade ética de monitorizar a sua aparência física, o que a
impede de se individualizar realmente. Esta posição realça a vertente sexual da mulher,
centrada, sobretudo, no corpo feminino e nos ideais de beleza e juventude.
166
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
De acordo com um estudo publicado em 1979 por Mieke Ceulemans e Guido Fauconnier,
investigadores do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Católica de
Louvain, foi possível analisar a forma como a mulher era representada nos media, e como
se encontrava a sua situação profissional na área. Este estudo engloba vários difusores
mediáticos (imprensa, televisão, rádio, cinema), sobretudo nos E.U.A., na América Latina
e na Europa, durante a década de 1970. Para esta investigação, revela-se de particular
interesse a parte do estudo em que os autores discutem a forma como é tratada a “imagem”
feminina nos jornais europeus naquele período, a análise das rubricas femininas, e a
relação entre a imprensa e o movimento feminista.
Para Ceulemans & Fauconnier (1979) há uma dúvida que paira sobre a análise da
imprensa: Estarão os jornais a refletir a posição das mulheres na sociedade, ou a contribuir
167
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
para essa mesma influência? Na opinião dos autores, há uma inclinação para a segunda
hipótese:
Em relação às rubricas femininas, os autores afirmam que nos jornais britânicos os temas
são tradicionais e estão relacionados com a alimentação, a moda e a casa, pelo que
apresentam como solução a necessidade de mais jornalistas mulheres, de forma a dispersar
as temáticas e chegar a mais leitores/leitoras: “precisamos de mais jornalistas mulheres
para humanizar informação e melhor servir os interesses dos leitores e das leitoras”
(Ceulemans & Fauconnier, 1979:43), sobretudo através das rubricas.
Como a maioria dos artigos de jornal e rubricas confinavam a mulher ao seu papel
doméstico e sexual, o movimento feminista começa a intervir vigorosamente na imprensa,
questionando o papel da mulher na sociedade. Como forma de resposta, muitos jornais
utilizavam representações estereotipadas das feministas, normalmente em posições de
revolta ou tumulto, o que nunca auxiliou na criação de uma “imagem” positiva deste
movimento.
168
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
acompanhar a evolução dos tempos na relação dos media com a representação das
mulheres.
Em 1994, Julia Wood publicou um artigo que procurou analisar a influência dos media na
maneira como o género era visto, particularmente quando este é representado de forma
irrealista, estereotipada e limitadamente. Neste seguimento, Wood (1994) indica três temas
principais que descrevem a forma como os media representam o género: 1) as mulheres
estão sub-representadas; 2) os homens e as mulheres são representados de forma
estereotipada; e 3) as representações de relações de género enfatizam os papéis tradicionais
e normalizam a violência contra a mulher.
Em terceiro lugar, Wood (1994) acredita que as relações entre homem e mulher são
representadas nos media de forma a reforçar os estereótipos e os papéis tradicionais. Para a
autora, os media representam as relações de género através do confronto, particularmente
de acordo com quatro formas: a) independência masculina versus dependência feminina; b)
autoridade masculina versus incompetência feminina; c) homem como chefe de família
versus mulher como cuidadora do lar; e d) homens como agressores versus mulheres como
vítimas e objetos sexuais. Este último ponto desperta na autora a questão da violência
contra as mulheres. Para Julia Wood (1994), os media retratam de forma positiva a
agressão masculina e a passividade feminina, pelo que é necessário entender se estas
169
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
Um trabalho publicado por Nirman Bamburac & Tarik Isanovic (2006) sobre a
representação das mulheres, nos media impressos, na Europa de Leste, procurou interpretar
mensagens “codificadas” nos textos mediáticos, de forma a analisar relações, crenças e
questões identitárias. Usando oito seções (primeira página, atualidade/política, mundo,
economia e negócios, notícias de crimes/acidentes, entretenimento, cultura e arte, e
desporto) de jornais diários da Bósnia, Croácia e Sérvia, os autores partiram com a
hipótese de que as identidades, relações e crenças se refletem e são construídas através da
forma como e onde o género é (re)apresentado e posicionado nos jornais. Assim, os autores
focaram a análise de acordo com seis formas e técnicas de posicionamento e tratamento de
género nos jornais selecionados: presença/ausência; temas; vozes/fontes; ocupações;
representações visuais (fotografias); e linguagem de género “sensível”.
Os autores referem ainda que utilizaram o critério das ocupações na análise das relações
sociais, pois “a ocupação é um dos marcadores essenciais da identidade de uma pessoa e
do seu estatuto numa sociedade, e por isso é frequentemente alvo de representações
estereotipadas” (Bamburac & Isanovic, 2006: 56). A quinta técnica utilizada é a da análise
de fotografias, pois a imagem oferece informação adicional ao texto, revelando-se também
uma fonte de marketing. Por último, os autores consideram o uso de determinado tipo de
linguagem como representativo de determinadas relações sociais. Quer isto dizer que o uso
170
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
(ou o não-uso) de linguagem sensível ao género por parte dos jornalistas é um indicador da
prática e da posição do jornal em relação aos papéis, às relações e às crenças de género.
Carla Cerqueira (2008a) procedeu à análise de conteúdo dos textos/imagens dos jornais de
acordo com as seguintes variáveis: jornal; número de notícias; tipo de texto (entrevista,
reportagem, notícia, breve, estatística, outro); espaço ocupado (1 ou 2 parágrafos, 1/8
página, ¼ página, ½ página, ¾ páginas, 1 página, etc.); tipo de tema (política, economia,
educação, saúde, justiça/tribunais, assuntos militares, religião, manifestações
culturais/artes, ciência/inovação, desporto, media, História/efemérides, questões de género,
trabalho, problemas sociais, jet set, moda/beleza, histórias de vida, etc.); valência (positiva,
negativa, neutra, mista); imagem (com imagem, sem imagem, gráfico); tipo de fotografia
(mulheres em grupo, mulher individual, mulher em ambiente familiar, mulher em trabalho,
outro); número de fontes (com citação, sem citação); estatuto da fonte (oficial, não
identificado, anónimo, cidadão comum, celebridade, documental, meios de comunicação
social, blogues/sites, outro); e autoria (homem, mulher, não identificado).
Com esta análise, Cerqueira (2008a:160) conclui que “o discurso mediático representa as
mulheres de forma muito reduzida, ou seja, o sexo feminino continua a ter pouca
visibilidade (falta de diversidade de papéis e posições)”. No caso específico do Dia
Internacional da Mulher, as mulheres aparecem, maioritariamente, em notícias de
informação geral ou estatística, carreira e vida profissional, e assuntos ligados à violência
171
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
(…) Esta análise mostra-nos que, embora a maioria das notícias seja assinada por
mulheres, a imagem que é veiculada não apresenta grandes alterações em relação
ao que tem sido estudado por vários autores que se dedicam à relação entre os
media e o género. Pode dizer-se que o discurso jornalístico reproduz atitudes e
ideologias que legitimam a dominação, bem patente nos atores sociais que são
ouvidos e naqueles que ficam na penumbra (Cerqueira, 2008a:161).
Uma das autoras que também se debruça sobre a análise de género nos media, no contexto
nacional, é Cláudia Álvares (2005, 2011). A autora, num artigo sobre Feminismo e
representação discursiva do feminino (publicado em 2005), afirma que a definição de
poder feminino na imprensa portuguesa está relacionada com duas esferas – a pública e a
privada –, e que este tipo de poder pode ser definido a partir da sua incorporação nos
domínios da produção e da reprodução. A autora prevê ainda que estas linhas podem ser
estudadas, utilizando a análise de conteúdo, sob as seguintes vertentes: as atitudes; os
objetivos; o grau de credibilidade dos agentes; os meios utilizados para os agentes
atingirem objetivos; as coordenadas espácio-temporais das ações; a causa de conflitos nas
ações; e o resultado desses conflitos.
No panorama português, destaca-se ainda o estudo realizado por Carla Cerqueira, Luísa
Teresa Ribeiro e Rosa Cabecinhas (2009) sobre a presença feminina na imprensa regional,
apresentado no X Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Segundo as
autoras, estudos nacionais e internacionais comprovam que o discurso jornalístico é
desigual em relação à distribuição de género. As vozes femininas e os seus pontos de vista,
especialmente nas hard news (onde são abordados assuntos como a política e a economia)
são praticamente inexistentes, pois os homens apoderam-se da palavra. As autoras dão
alguns exemplos baseando-se nos estudos de Pedro Sousa (1998)34 e de Carla Cerqueira
(2008b)35, que comprovam que as citações masculinas em jornais portugueses são
predominantes e mais relevantes em relação às citações femininas.
34
Artigo intitulado “Diários portugueses: que espaço para o cidadão comum?”.
35
Artigo intitulado “A imprensa e a perspetiva de género: As vozes femininas nas notícias de primeira página
do Público e do Correio da Manhã”.
172
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
Em muitos momentos, os textos são ultrapassados pelas imagens no que diz respeito à
comunicação contemporânea, daí a premência em compreender como a imagem comunica
e difunde as suas mensagens. Segundo Martine Joly (2012), é através da Semiótica que as
categorias funcionais da imagem e as suas especificidades complexas podem ser
ultrapassadas, visto que a imagem passa a ser analisada sob o ponto de vista da
significação. Desde meados do século XX que o conceito de Semiologia da Imagem tem
vindo a ser aprofundado36, pelo que “material ou imaterial, visual ou não, natural ou
fabricada, uma imagem é antes de mais algo que se assemelha a qualquer outra coisa”
(Joly, 2012:42) – isto coloca a imagem na categoria das representações, o que implica que
a imagem seja entendida como signo analógico.
Vendo a imagem como um meio de comunicação ou uma mensagem para o Outro, esta
deve ser entendida e analisada com base nos princípios da comunicação: emissor –
mensagem – recetor. Desta forma, devem entrançar-se as normas da análise verbal e da
virtual para que, conjuntamente com as expetativas e os contextos de receção, possa ser
feita uma completa e meticulosa interpretação do(s) significado(s) da imagem. Assim, por
36
Particularmente no âmbito dos estudos das imagens publicitárias.
173
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
Para Nick Lacey (1998), a forma implica como a imagem foi criada e abarca elementos
como as dimensões, o formato dos frames, os ângulos, a altura, o nível, a distância, a
profundidade, etc. Em relação ao conteúdo, este autor indica que é necessário ter em
consideração o que se encontra na imagem, nomeadamente o sujeito, o contexto e a
iluminação. Mota-Ribeiro & Pinto-Coelho (2005) apontam alguns critérios específicos de
análise de imagens de mulheres nos jornais, que devem, à partida, incluir imagens com
mulheres (sem homens) e imagens sem mulheres (imagem de um ou mais homens e/ou
imagens sem motivos humanos ou sexo não-identificado). Para as autoras, pode-se
enumerar e interpretar o número de imagens de mulheres por secções ou temas de acordo
com os seguintes tópicos: destaque, sociedade, nacional/política, mundo/internacional,
economia/negócios, desporto, opinião/espaço público, artes/entretenimento, local.
No artigo de Pedro & Santos (2009), que aborda o estudo das representações da dona de
casa moderna numa revista direcionada para o público feminino, deteta-se, uma vez mais,
uma cadeia discursiva e reguladora que naturaliza os limites impostos na dualização de
género. Neste estudo foram analisadas, particularmente, imagens de acordo com os passos
de Joly (2012): 1) identificar os tipos de significantes plásticos, icónicos e linguísticos da
imagem; 2) fazer com que a eles correspondam os significados considerados habituais; 3)
observar o cruzamento dos diferentes tipos de signos e os significados que daí emergem; e
4) relacionar os significados e formular uma versão plausível da mensagem implícita
vinculada à imagem.
Fundamentando-se nos passos referidos, Pedro & Santos (2009) estabeleceram a sua
análise com base em dois critérios principais: análise dos aspetos técnicos (luz, posição,
ângulo, etc.); e análise dos significados plásticos (cores, formas, linhas, texturas e a própria
composição interna da imagem), icónicos (figuras que se reconhecem através da
semelhança visual com o que representam) e linguísticos (linguagem verbal contida nos
textos que acompanham). Com este estudo concluiu-se que as imagens publicadas na
174
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
revista consistiam “em discursos que difundiam expectativas sociais capazes de influenciar
julgamentos e escolhas”, e que, em conjunto com outros dispositivos, participaram da
“constituição de subjetividades, definindo relações de género plenas de hierarquias, onde
ser uma ‘verdadeira mulher’ significava dedicar-se às atividades domésticas” (Pedro &
Santos, 2009:181-182).
É neste sentido que a análise conjunta de texto e imagem se revela fundamental nos
estudos dos media e deve ser aplicada na análise dos discursos representativos das
mulheres na imprensa local e regional que, de acordo com Cerqueira et al (2009), se
encontram pouco estudados. Efetivamente, estas publicações são importantes, pois
permitem que sejam formulados, divulgados e difundidos modelos socioculturais,
permitindo que sejam criados e mantidos traços identitários comunitários (Cerqueira et al,
2009), na medida em que as fontes e os recetores de informação são “pessoas”.
No Relatório sobre a imagem das mulheres nos media, as autoras Michèle Reiser &
Brigitte Gresy (2008:80) concluem que “os homens são os atores principais, responsáveis
pelo programa do mundo”. Já as mulheres ficam em segundo plano, pois os media
remetem-nas para papéis que escondem a verdade e, sobretudo, as suas necessidades. A
intensidade de estudos como este reside, precisamente, na tentativa de tentar expor as
diferenciações que os media fazem entre homens e mulheres. No fundo, fica registado que
175
Capítulo IV – Media, Representação Discursiva e Identidade(s) de Género
Neste sentido, existem já algumas tentativas para mostrar que homens e mulheres não
devem ser mecanicamente comparados, pelo que alguns estudos falam mesmo da
desconstrução social do género. De facto, ao pensar a teoria do poder e dos micropoderes
de Michel Foucault (2006, 2010a, 2010c), percebe-se que o filósofo afasta qualquer
tipologia desse poder, bem como qualquer diferenciação hierárquica entre os micropoderes
masculinos e femininos.
37
Por “ordem de género” entende-se os significados e as práticas das relações de género presentes no mundo
social, que contribuem assim para a manutenção de esquemas identitários tradicionais (Connell, 2002).
176
PARTE II
METODOLOGIA E ESTUDO EMPÍRICO
Capítulo V – Metodologia de Investigação
179
Capítulo V – Metodologia de Investigação
Tal como qualquer projeto tem que encontrar o seu método, também todos os
investigadores têm que encontrar um percurso que funcione não apenas para o
seu assunto, mas também nas condições das suas vidas (Johnson et al, 2004:84).
Outra das particularidades dos Estudos Culturais é o seu interesse por questões
socioculturais e teóricas que reúnem a abstração sociológica e a prática histórica, não só
através da construção de “textos”, mas igualmente através de uma dinâmica que permite
uma intervenção in loco, pois “como investigadores [dos Estudos Culturais], (…) a nossa
própria leitura deve (…) ser uma leitura próxima e não uma leitura fechada” (Johnson et al,
2004:169).
Por outro lado, os Estudos Culturais são um campo epistemológico onde a teoria tem um
papel crucial. Segundo Stuart Hall (1997c), os Estudos Culturais apoiam-se em diferentes
discursos teóricos que advêm da tradição da análise textual, da crítica literária, da História,
180
Capítulo V – Metodologia de Investigação
dos Estudos de Género, da Linguística e de outras áreas oriundas das Ciências Sociais e
das Humanidades. Esta legitimação teórica permite aos Estudos Culturais praticar um certo
hibridismo metodológico, circulando essencialmente através de três métodos a que
McRobbie (1997) apelidou dos três “E’s”: Empírico, Etnográfico e Experimental. Já Paula
Saukko (2003) afirma que a verdadeira imagem de marca dos Estudos Culturais é a sua
abordagem à pesquisa empírica, que procura interligar experiência vivida, textos (ou
discursos) e contexto social. Esta abordagem permite que sejam selecionados caminhos
metodológicos que melhor se adaptem ao objeto de estudo. Desta posição nasce uma teoria
metodológica multifacetada ou prismática que acaba por se afastar da teoria metodológica
positivista.
Esta versatilidade metodológica deve, contudo, ter sempre presente que os Estudos
Culturais exigem também que se investigue, constantemente, os modos pelos quais o
sentido é produzido nos diversos discursos e contextos culturais e sociais. Se, por um lado,
os Estudos Culturais privilegiam a investigação sobre o texto, os modos comunicativos e o
sentido, por outro lado também privilegiam a investigação sobre o contexto. Na opinião de
Raquel Miranda (2006:234), o que interliga esta pluralidade de opções teórico-
metodológicas dos Estudos Culturais – que, por vezes, chega a ser até contraditória – “(…)
é a conceção da investigação como atividade crítica (…)”, e, acrescente-se, como atividade
que possui um contexto.
É por todas estas caraterísticas que os Estudos Culturais se apresentam como o modelo que
melhor responde àquilo que hoje é pensado como “cultura”, o que levou Couldry
(2000:143) a afirmar que são os Estudos Culturais que melhor compreendem a interligação
das análises, dos valores, da metodologia e da política, pelo que “(…) estão melhor
colocados para agir em relação ao campo da cultura”. Esta ação pode ilustrar-se no campo
da análise dos textos ou discursos que circulam nos canais sociais.
181
Capítulo V – Metodologia de Investigação
A análise dos textos (e das imagens) dos media (aqui entendidos como discursos) são, de
facto, uma área de estudos que merece toda a atenção por parte dos Estudos Culturais, na
medida em que implicam, não apenas a análise dos procedimentos de produção e de
receção, mas também a crítica de processos socioculturais. De acordo com Van Dijk
(1985d), grande parte da pesquisa dos media é sobre as dimensões sociais do processo de
comunicação, pelo que se devem privilegiar os estudos dos sistemas mediáticos, sobretudo
a um nível micro. Olhando para o estudo dos media como uma prática contextualizada
social e textualmente, Suter (1993) entende que existem quatro áreas que devem delinear a
análise do discurso em causa: contexto situacional, função, conteúdo e forma. Assim,
ultrapassa-se o campo meramente descritivo, para atingir o interpretativo.
Os estudos dos media podem, de acordo com Chris Barker (2000), seguir uma abordagem
textual desconstrutivista, narrativa e/ou semiótica. No primeiro caso, o investigador
182
Capítulo V – Metodologia de Investigação
183
Capítulo V – Metodologia de Investigação
foucaultiana de discurso, e os quais foram valorizados neste estudo. Estes cinco pontos
são: formações discursivas; especificidade discursiva; operação do poder por meio de
regimes discursivos; dimensão institucional dos discursos; e produção discursiva da
subjetividade.
Nos estudos dos media têm sido utilizadas várias metodologias que procuram técnicas para
medir os fenómenos sociais. Contudo, atualmente, os investigadores sociais e das
humanidades reconhecem o valor interpretativo dos métodos, pelo que dão preferência às
metodologias qualitativas, que “(…) são projetadas para explorar e avaliar coisas que não
podem ser facilmente resumidas numericamente” (Priest, 1996:5), sobretudo quando se
trata de uma investigação empírica.
Quando Max Weber (1992) faz da atividade social a base do interesse sociológico, as
metodologias compreensivas ganham destaque. Estas metodologias compreensivas ou
indutivas focam-se no mundo social, nas representações sociais, nas práticas dos atores,
38
“(…) Foucault usa discursos ou formações discursivas para se referir a grupos de declarações que
fornecem uma maneira de representar um tópico, uma preocupação ou um objeto particulares” (Nixon,
1997:302).
184
Capítulo V – Metodologia de Investigação
nos símbolos e até nos investigadores, afastando-se um pouco das conceções lógico-
dedutivas ou cartesianas – metodologias que se socorrem de quadros de interpretação
sistémicos ou funcionalistas (Guerra, 2010). Contudo, segundo a publicação Pesquisa
qualitativa e análise de conteúdo39 (2010) de Isabel Guerra, apesar de existir uma clara
rutura epistemológica, teórica e metodológica entre as metodologias indutiva e lógico-
dedutiva, estas duas vertentes não devem ser consideradas, hoje, como opostas, na medida
em que se influenciam e podem ser utilizadas em conjunto:
Ainda segundo Guerra (2010:9), as metodologias compreensivas são orientadas “(…) para
a identificação das práticas quotidianas e [para a] emergência de novos fenómenos
sociais”, que vão clarificar e transformar as dinâmicas sociais. Ao denominar-se estas
metodologias de “qualitativas”, percebe-se a sua fluidez e legitimidade teórica,
epistemológica e política, ao mesmo tempo que se aceita o seu enquadramento em práticas
de pesquisa e de tratamento muito diversificadas.
Quando se trabalha com uma metodologia que privilegia a análise das experiências e o
significado da atividade social, é possível a utilização de formas de recolha, de tratamento
e de análise de material muito diversas. Todavia, tal como qualquer outra ciência, que se
socorre da lógica, do rigor e da coerência, a metodologia qualitativa atinge estas três
características através da legitimação (interna e externa) e da fiabilidade das suas
abordagens. A legitimação interna prevê a exatidão dos resultados que são alcançados
através da discussão teórica e da inclusão do sentido crítico e da empatia do investigador:
39
Título completo da obra: Pesquisa qualitativa e análise de conteúdo. Sentidos e formas de uso.
185
Capítulo V – Metodologia de Investigação
Ainda de acordo com Isabel Guerra (2010), existem três etapas fundamentais na realização
de uma investigação qualitativa indutiva que podem ser discutidas e utilizadas neste
estudo: 1) construção inicial do objeto; 2) segunda construção do objeto e papel da teoria; e
3) hipóteses. A definição do objeto é uma problemática que não fica selada à partida e se
prolonga no tempo: “(…) constrói-se progressivamente em contacto com o terreno a partir
da interação com a recolha dos dados e a análise, não estando previsto um quadro teórico e
um quadro de hipóteses estabelecidos a priori” (Guerra, 2010:37). É nesta fase inicial que
é elaborado um projeto que vai conter o primeiro modelo de abordagem empírica ao objeto
de estudo, mas igualmente as primeiras leituras necessárias à sua interpretação teórica e
epistemológica. De seguida, o objeto passa a ser construído já com o auxílio da
contextualização teórica, surgindo a primeira formalização do problema, da questão e dos
objetivos de investigação.
Em relação às hipóteses, Guerra (2010:39) deixa bem claro que “para alguns autores, elas
são dispensáveis e até contraditórias com a lógica da análise compreensiva; mas, para
outros, isso só acontece na fase exploratória da pesquisa”. De facto, é perfeitamente
aceitável que as hipóteses de investigação sejam substituídas por premissas ou objetivos
186
Capítulo V – Metodologia de Investigação
No que diz respeito à utilização de “variáveis”, alguns autores preveem a sua categorização
e nivelação, como é o caso de Priest na obra Doing Media Research: An Introduction
(1996), enquanto outros não as consideram por as acharem parte integrante dos métodos
quantitativos. Contudo, no caso particular deste estudo, foram adotados os conceitos de
“categoria” e “níveis de categoria”, em vez de “variável”, e de “ocorrência” em vez de
“contabilização”, por se mostrarem mais de acordo com o material recolhido, o tipo de
análise realizada e os próprios objetivos da investigação.
Segundo a autora supracitada, a “diversidade” (que pode ser externa ou interna) implica a
garantia de que a utilização do material para análise se faz tendo em consideração a
heterogeneidade dos fenómenos que estão a ser estudados. A diversidade externa atinge-se
com a multiplicidade de sujeitos ou de situações no contexto social ou, no caso deste
estudo, com a escolha de jornais variados para que a “amostra” seja constituída a partir de
uma diversificação de elementos. A diversidade interna tem um intuito teórico diferente e
aplica-se quando o investigador procura “(…) explorar a diversidade de um conjunto
homogéneo de sujeitos ou situações” (Guerra, 2010:41), pelo que é necessário garantir a
variedade interna de um determinado grupo ou situação.
187
Capítulo V – Metodologia de Investigação
na definição da “amostra” que fará parte do estudo; “amostra” esta que, nesta investigação
específica, foi denominada de “amostra teórica”40.
Isabel Guerra (2010) faz ainda uma incursão pelos diferentes tipos de “amostragem” que
podem ser utilizados nos estudos qualitativos, nomeando e diferenciando cada um deles.
Contudo, e tal como se verifica nesta investigação, as decisões sobre a quantidade e a
variabilidade de material que se deve recolher e analisar numa investigação qualitativa
dependem de inúmeros fatores, dos quais se destacam: o tipo de objeto de estudo; os
objetivos da investigação; as limitações do estudo; os recursos disponíveis; e as próprias
opções do investigador. Os dados que se recolhem num estudo qualitativo não são
somados, mas interpretados: “não se procura nem a representatividade estatística, nem as
regularidades, mas antes uma representatividade social e a diversidade dos fenómenos”
(Guerra, 2010:48). Assim, todas as opções metodológicas são válidas desde que as
escolhas sejam bem fundamentadas (teórica e empiricamente), e que se respeite o rigor, a
coerência e a lógica exigidas a um estudo científico.
É por todas estas razões que a metodologia qualitativa se revela de crucial aplicabilidade
nos Estudos Culturais e nos estudos dos media, visto que o âmbito de análise se envolve
com os significados e as interpretações do mundo social. As abordagens qualitativas
permitem investigar como as audiências entendem os discursos dos media ou, no caso
particular deste estudos, como os media representam os sujeitos e o contexto sociocultural
em que se inserem. Importa ainda salientar que no âmbito dos Estudos Culturais e,
especialmente, dos estudos dos media, torna-se cada vez mais difícil não incluir modelos
quantitativos nas análises qualitativas. Apesar de se revelar crucial a utilização de
metodologias qualitativas, que se baseiam no estudo dos significados e das representações,
é muito frequente complementar estes estudos com abordagens quantitativas, o que foi
cumprido nesta investigação.
40
O conceito de “amostra teórica” contrasta com o de “amostra aleatória”, regularmente adotada pelos
estudos quantitativos.
188
Capítulo V – Metodologia de Investigação
Este estudo visa recolher e analisar discursos (de género) contidos no jornal O Ilhavense,
de forma a compreender como estes são constitutivos e representativos da realidade social.
Nesta afirmação encontra-se a premissa de que as práticas discursivas são práticas
socioculturais, (re)produzidas através de relações de poder, num determinado contexto
espácio-temporal. Portanto, esta investigação procura identificar que tipo de ações estão
relacionadas com as relações discursivas presentes neste jornal, quais os objetivos que
estão na base destes textos e imagens, que tipo de relações de poder circulam entre os
géneros e quais as formas de resistência que se verificam. Para colocar em prática estas
premissas, tomou-se como opção o uso da técnica qualitativa da análise de conteúdo, que
se releva a forma mais indicada para o estudo destes textos mediáticos:
189
Capítulo V – Metodologia de Investigação
Assim, e segundo Bardin (1991), a análise de conteúdo é constituída por três fases
fundamentais: a fase da “descrição” (enumeração das características dos textos); a fase da
“interpretação” (significados concedidos às características dos textos); e a fase da
“inferência” (procedimento intermediário que permite a transição da primeira fase para a
segunda). São as inferências (ou deduções lógicas) que permitem identificar as causas e as
consequências de um determinado conteúdo discursivo.
Segundo Laurence Bardin (1991), apesar da análise de conteúdo ter surgido no seio da
hermenêutica, da retórica e da lógica, o seu grande salto metodológico deve muito ao
estudo das comunicações e à semiótica. A análise de conteúdo revela-se um instrumento
bastante eficaz para a análise das comunicações ou dos discursos, pois permite alcançar,
através de várias formas e métodos, os sentidos latentes das mensagens, em diversos
domínios (escrito, oral e icónico). É esta posição que leva Bardin (1991:9) a afirmar que,
atualmente, a análise de conteúdo é “um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez
mais subtis, em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a «discursos» (…)
extremamente diversificados”.
Efetivamente, a análise de conteúdo não deve significar “contar” ou “medir”, mas sim
interpretar e compreender práticas e experiências, através da construção de significados. A
análise de conteúdo permite auxiliar na descodificação das mensagens e das condições de
produção de discursos, alcançando uma leitura simbólica do mundo:
(…) A análise de conteúdo tem uma dimensão descritiva que visa dar conta do
que nos foi narrado e uma dimensão interpretativa que decorre das interrogações
do analista face a um objeto de estudo, com recurso a um sistema de conceitos
teórico-analíticos cuja articulação permite formular as regras de inferência
(Guerra, 2010:62).
190
Capítulo V – Metodologia de Investigação
de um instrumento, mas de um leque de apetrechos; ou, com maior rigor, será um único
instrumento, mas marcado por uma grande disparidade de formas e adaptável a um campo
de aplicação muito vasto: as comunicações” (Bardin, 1991: 42).
Numa segunda fase, o material recolhido foi explorado de forma minuciosa, o que se
revelou essencial para delimitar a estrutura de análise, que surgiu exatamente antes do
processo de interpretação e inferência dos dados. Este foi o momento em que ficaram
delimitadas estratégias e foram reajustados objetivos (processos apenas permitidos depois
de um contacto mais delicado com os dados). Foi também nesta fase que se excluíram
alguns dos procedimentos e foram incluídos outros. As primeira e segunda fases
191
Capítulo V – Metodologia de Investigação
Na terceira fase da análise de conteúdo realizada neste estudo, os dados foram tratados e
legitimados de forma analítica. Este foi o momento em que a investigadora começou a
interrogar-se sobre os fenómenos culturais, inferindo e interpretando o sentido social
latente do material. Nesta fase do processo é preciso ter sempre em consideração que o
material empírico e a teoria interrelacionam-se e comunicam constantemente. É neste
momento que, segundo apresenta Gunter (2000), existem diversas abordagens qualitativas
da análise de conteúdo que podem ser conduzidas, tais como, por exemplo: análise
estruturalista-semiótica; análise do discurso; análise retórica; análise narrativa; e análise
interpretativa. Contudo, é importante perceber que a maior vantagem da análise de
conteúdo reside na sua capacidade de adaptabilidade ao objeto de estudo, o que incute um
elevado grau de liberdade nas escolhas do investigador. Nesta investigação, não se optou
por discriminar estes diferentes tipos de análise de conteúdo, por se achar que esta técnica
implica já uma articulação de abordagens que são selecionadas e utilizadas à medida que a
análise do material assim o exige.
Nesta terceira fase, o papel e as opções da investigadora foram cruciais, pois é ela quem
delimita o objeto, as categorias, as codificações e as interpretações, daí o caráter de
subjetividade que se pode atribuir à técnica da análise de conteúdo. Contudo, nesta
investigação, tal como se revela necessário em qualquer pesquisa qualitativa, procurou-se
obedecer a alguns pressupostos que permitissem refletir sobre a legitimidade e a fidelidade
do estudo: procurou-se executar uma pesquisa exaustiva, pertinente e homogénea que
atingisse uma consistência argumentativa interna. Em suma, a análise de conteúdo
demostra uma vertente objetiva e outra subjetiva que se complementam:
Cumprido todo o processo de análise, este estudo garantiu a diversidade (externa e interna)
e saturou a informação, pelo que os riscos de generalização são semelhantes aos de
192
Capítulo V – Metodologia de Investigação
qualquer outra investigação. Todavia, é necessário ter em consideração que “(…) qualquer
pesquisa é sempre parcelar e provisória, (…) porque as dinâmicas sociais mudam no
espaço e no tempo (…)” (Guerra, 2010:86).
A seleção de Ílhavo para este estudo prende-se com o facto de esta vila possuir uma
composição social peculiar, marcada por fortes segmentações de género. Esta situação é
fruto de uma herança histórica, marcada pela ausência de grande parte da população
masculina, que embarcava, por longos períodos de tempo, nas campanhas da pesca do
bacalhau. Segundo Elsa Peralta (2008:166), Ílhavo é recorrentemente identificada como
“terra do matriarcado”, pelos ilhavenses e pelas localidades próximas, o que assinala “(…)
a predominância do papel da mulher na comunidade”.
As viagens marítimas dos portugueses à Terra Nova, em busca do bacalhau, tiveram início
por volta do século XVI (Fonseca, 2007), mas é só no século XIX que esta atividade
económica começa a ganhar expressão no contexto nacional. É a partir deste período que a
constituição de empresas de construção naval e de transformação pesqueira começam a
florescer, sobretudo em Ílhavo – local reconhecido pelas “capacidades marítimas” dos seus
homens. Agora, estes homens, habituados às lides do mar alto, olham para a pesca do
bacalhau como uma atividade profissional que permite o sustento das suas famílias.
41
As quatro freguesias são: Gafanha da Nazaré, Gafanha da Encarnação, Gafanha do Carmo e São Salvador
(sendo esta última sede do concelho, elevado à categoria de cidade em 1990).
193
Capítulo V – Metodologia de Investigação
O século XX ficou marcado pela evolução técnica e comercial da pesca do bacalhau, bem
como também pelo seu declínio. Até à década de 1930, as condições de trabalho e a falta
de organização do ramo dificultavam muito a ascensão da atividade, dos empregadores e
dos pescadores. Contudo, a partir de 1934 o Estado Novo impõe um conjunto de medidas
protecionistas que procuravam apoiar a indústria da pesca do bacalhau, por razões de
regulamentação do abastecimento público. Assim, “com a criação da Comissão Reguladora
do Comércio do Bacalhau, a reorganização da pesca longínqua, o surgimento das leis
protecionistas desta atividade e a organização corporativa das pescas” (Costa, 2008:7), os
homens de Ílhavo veem as suas condições de trabalho melhoradas, juntamente com a
possibilidade de um ordenado fixo, pelo que ganham confiança numa profissão que,
rapidamente, passa a ser o sustento de gerações: “Ílhavo pode orgulhar-se de grande parte
dos seus filhos ter embarcado como pescadores, marinheiros e oficiais na maioria dos
navios bacalhoeiros” (Parracho, 1997:102). Segundo Nuno Costa, a partir de 1937:
Nuno Costa (2008) mostra o peso desta atividade ao nível do concelho de Ílhavo,
utilizando, como exemplo, as contagens correspondentes à campanha de 1960: existiam 73
embarcações (22 navios arrastões e 51 navios à linha), com capacidade máxima de
tripulações de 5563 homens. Em relação ao contexto nacional, o investigador indica que
Ílhavo contribuiu com 21,7% dos tripulantes, o que corresponde a 1209 homens. Contudo,
194
Capítulo V – Metodologia de Investigação
a partir de 1960 o número de pescadores começou a reduzir, fruto do peso dos arrastões
que ultrapassavam o volume de pescado dos veleiros e que apenas necessitavam de um
terço do número total de mão de obra (Garrido, 2001, 2010).
Em 1967 termina a intervenção do Estado que regulava esta indústria e abrem-se as portas
para a liberalização económica da atividade. No ano seguinte começam a ser visíveis os
impactos negativos desta decisão, sobretudo no que diz respeito às más condições de
trabalho dos pescadores que são forçados a seguir outras direções: emigração e pesca
costeira (Amorim, 2001).
Toda esta conjetura conduzia à ausência prolongada dos homens, que raramente era
inferior a 5/6 meses, o que afetava as vivências sociais de Ílhavo. Logo, segundo Nuno
Costa (2008:78) “cabia às mulheres a responsabilidade pela estabilidade familiar, pela
educação dos filhos e pelo controlo do orçamento familiar”. Para o investigador, este papel
regulador e controlador do lar e da gestão familiar podia ser assumido plenamente pela
mulher, que excluía totalmente o marido das decisões ou apenas partilhava com ele o rumo
das mesmas:
(…) A grande maioria das mulheres revela que a sua autonomia de decisão se
devia à legitimação que os maridos lhes davam, através da confiança que
depositavam nelas, uma vez que as mulheres os informavam de todas as decisões
que tomassem, mesmo que fosse apenas nas chegadas das viagens (Costa,
2008:88)
Destaca-se ainda que estas mulheres, que viviam uma vida maioritariamente solitária, junto
dos filhos e na esfera do lar, tinham o costume de trabalhar na agricultura, na criação de
gado ou na costura, de forma a equilibrar o orçamento familiar. Todavia, o trabalho fora de
casa, dependente de outrem, não era bem-visto socialmente, nem aceite pelos maridos.
195
Capítulo V – Metodologia de Investigação
Assim, “as mulheres têm uma presença bastante discreta, (…) não pública, mas um poder
decisivo”, segundo Moreirinhas (1998:160).
Vários relatos sobre a gestão do orçamento doméstico, a vida familiar, a educação dos
filhos e as práticas de lazer são apresentados, analisados e discutidos por Nuno Costa
(2008), na sua dissertação de mestrado – Mulheres de bacalhoeiros: sazonalidade e género
(1950-1974). Neste estudo são apresentados dados procedentes de relatos no feminino que
evidenciam que, apesar das mulheres tomarem decisões sozinhas relativamente à família e
à gestão do lar, nalgum momento elas admitem que informam os maridos, e que estes,
antes de partirem, deixam a sua “autorização” para que elas decidam em nome deles. São
estas imagens de homens como principais provedores e decisores do lar e de mulheres
como educadoras e gestoras da vida familiar que levam a colocar as seguintes questões:
Quem dominava o panorama social da vila? Que poder tinham as mulheres? Era Ílhavo, de
facto, uma sociedade matriarcal na época em que a pesca do bacalhau estava no seu auge?
Toda esta discussão questiona a posição que as mulheres ilhavenses tomavam tanto no
contexto privado, como no público. Uma forma de encontrar resposta para as questões
acima colocadas é proceder à análise dos discursos sociais que proliferavam na época,
particularmente no que diz respeito às representações do e no feminino. Deste modo,
revela-se fundamental o estudo da representação (aqui entendida como representação
discursiva) presente nos meios de comunicação mais relevantes, influentes e abrangestes
da época: os jornais – testemunhos de uma vivência, vozes da “realidade” e
(des)construtores de discursos.
196
Capítulo V – Metodologia de Investigação
A escolha do jornal O Ilhavense como fonte de informação prende-se com duas questões
fundamentais: em primeiro lugar, os jornais são detentores e distribuidores de discursos
que circulam na sociedade; em segundo lugar, este jornal específico é particularmente
representativo da sociedade em estudo, de tal forma que Elsa Peralta (2010:451)
considerou O Ilhavense “(…) a voz pública mais ativa ao serviço da construção da tradição
local (…)”.
Desde 1921 que O Ilhavense procura informar (através de uma edição com três números
por mês e com base no lema “Por Ílhavo”), todos os que se interessam pela vida local e
pelas tradições e valores daquela sociedade em particular, tal como se pode verificar nas
palavras contidas no “Estatuto Editorial do Jornal O Ilhavense”, publicadas por Elsa
Peralta:
Esta investigação procura pensar ao nível do discurso (mediático) e dos efeitos, causas e
ações que são reproduzidos e que isso reproduz, pois, mais do que reconhecer a existência
197
Capítulo V – Metodologia de Investigação
de normas abstratas que norteiam os sujeitos e a sociedade, é importante entender que a sua
verdadeira natureza reside na prática, onde elas têm o verdadeiro valor. Desta forma, este
estudo começa por procurar responder a uma questão central: Era ou não Ílhavo (na década
de 1950) uma sociedade matriarcal? – Análise de discursos de um jornal local. O período
escolhido representa o expoente da pesca do bacalhau, que obrigava a longos períodos de
ausência masculina (que podiam ascender aos 12 meses), naturalmente substituídos pela
assinalada presença feminina. Assim, para identificar e analisar os discursos e dinâmicas
de poder nas relações de género em Ílhavo (na década de 1950) e, consequentemente, para
responder à questão de investigação, estabeleceu-se um conjunto de objetivos específicos.
198
Capítulo V – Metodologia de Investigação
De forma a perceber como uma atividade específica42 altera uma determinada sociedade
(num período de tempo particular) e influencia as representações de género e as dinâmicas
de poder, procedeu-se à recolha de informação através da pesquisa da imprensa local,
particularmente do jornal O Ilhavense. Os dados foram recolhidos de acordo com critérios
previamente estabelecidos, identificados através da revisão bibliográfica, e que respeitam
as necessidades do estudo. Posteriormente, os dados foram meticulosamente distribuídos
em grelhas e analisados através da técnica da análise de conteúdo, para poderem ser
discutidos os resultados, de forma a legitimar os objetivos propostos. Neste sentido,
pretende-se perceber se a sociedade ilhavense da década de 1950 é representada ou não
como matriarcal, sendo para isso avaliados os discursos (textuais e icónicos) de género
presentes nos jornais locais, bem como as dinâmicas de poder estabelecidas entre homens e
mulheres.
42
Nomeadamente a pesca do bacalhau e outras atividades marítimas que conduzem à ausência dos elementos
do sexo masculino, de Ílhavo, por longas temporadas.
43
Destaca-se que, quando um texto é escrito por uma mulher, esta dimensão terá prioridade sobre as outras,
identificando-a como primordial.
44
São excluídos textos referentes a santas, visto que não são relevantes para este estudo. Já no levantamento
e análise dos ícones, as imagens de santas são consideradas “imagens com mulheres”, na medida em que são
frequentemente humanizadas.
199
Capítulo V – Metodologia de Investigação
mulheres”45. Há ainda um quinto assunto, o qual se apelidou de “outros” e para o qual são
remetidas todas as referências que não se incluam nos assuntos anteriormente referidos46.
No quadro que se segue, apresenta-se uma síntese do volume de peças escritas n’O
Ilhavense, em todos os anos selecionados da década de 1950, e por assunto.
O quadro 1 permite esquematizar as ocorrências de peças escritas, por ano, e por assunto,
revelando a extensão do levantamento do material, que culmina nas 10104 peças escritas.
Importa referir que, como é possível verificar com o quadro 1, da esquerda para a direita, o
material levantado segue uma espiral ascendente que se inicia com os “textos escritos por
mulheres” (num total de 182 textos), passando pelos “textos escritos sobre mulheres” (num
total de 716 textos), pelos “textos escritos para mulheres” (num total de 273 textos) e
“pelos textos que fazem referência a mulheres” (num total de 1390 textos), culminando nas
ocorrências dos textos que não cabem em nenhum dos outros assuntos (num total de 7543
textos).
Para cada um dos assuntos anteriormente referidos, foi criada uma grelha de análise que
identifica, em primeiro lugar, o número do jornal, seguindo-se a identificação e descrição
do texto em análise. Esta grelha foi depois completada com as categorias e correspondentes
problemáticas, fazendo-se estas últimas acompanhar, sempre que se revelou necessário e
45
Importa aqui distinguir as duas dimensões “textos sobre mulheres” e “textos que fazem referência a
mulheres”. Por exemplo, se numa peça existir referência a várias pessoas – homens e mulheres – opta-se por
“texto com referência a mulheres”; se numa peça existir apenas referência a mulheres, opta-se por “texto
sobre mulheres”.
46
Aqui se inserem todos os textos que não se refiram, de qualquer forma, a mulheres.
200
Capítulo V – Metodologia de Investigação
De seguida, o texto foi identificado de acordo com o seu “tipo” e que pode ser:
“agradecimento”, “anúncio”, “carta”, “conto”, “crónica poética”, “denúncia”,
“entretenimento/quebra-cabeças”, “entrevista”, “estatística”, “informação pública/aviso”,
“nota breve”, “notícia”, “oráculo”, “poema”, “reportagem” ou “outro” (ver descrição no
quadro 2). Os diferentes tipos de texto foram previamente estabelecidos. Todavia, durante
o processo de levantamento e análise dos dados, alguns tipos de texto foram excluídos,
enquanto outros foram acrescentados à lista inicial. No quadro 2 descreve-se sumariamente
cada um dos tipos de texto supra indicados.
201
Capítulo V – Metodologia de Investigação
47
O jornal O Ilhavense era, na época, dirigido e editado por um homem – José Pereira Teles. Este facto,
juntamente com o marcado olhar masculino habitualmente incutido na imprensa da época (e particularmente
neste jornal), levam à conclusão de que os textos não-assinados são considerados textos escritos no
masculino.
202
Capítulo V – Metodologia de Investigação
O “tipo de tema” refere-se, como o próprio nome indica, ao tema que envolve o texto em
análise. Neste estudo foram identificados vinte e seis “tipos de tema”:
“aniversários/acontecimentos de relevo”, “artes e espetáculos”, “assistência aos outros”,
“associativismo”, “casamento/família”, “desporto”, “emigração”, “estudos/educação”,
“história local”, “infância”, “justiça/tribunais”, “lazer/tempos livres”, “textos de criação
literária”, “morte/luto”, “negócios/comércio”48, “política/economia”, “religião”,
“saúde/beleza”, “sexualidade”, “terceira idade”, “trabalho/profissional”, “vida doméstica”,
“vida marítima”, “vida militar”, “violência/vitimização” e “outro” (ver descrição no quadro
3).
Os diferentes tipos de tema foram previamente estabelecidos. Contudo, tal como acontece
com os tipos de texto, durante o processo de levantamento e análise dos dados, alguns tipos
de tema foram excluídos, enquanto outros foram acrescentados à lista inicial. Ressalta-se
que, em alguns momentos, foram detetados no mesmo texto mais do que um tema. Nestes
casos, optou-se por considerar o tema mais preponderante para a interpretação do respetivo
texto. No quadro 3 descreve-se sumariamente cada um dos tipos de tema supra indicados.
48
O tipo de tema “negócios/comércio”, transversal a todas as análises, deve ser entendido, na análise das
imagens, no âmbito da publicidade (na medida em que as imagens representam anúncios a produtos e a
estabelecimentos comerciais).
203
Capítulo V – Metodologia de Investigação
204
Capítulo V – Metodologia de Investigação
Importa neste momento ressaltar que, embora tenham sido levantados dados
representativos dos “textos escritos por mulheres”, dos “textos sobre mulheres”, dos
“textos escritos para mulheres”, dos “textos que fazem referência a mulheres” e ainda de
outros textos (como se pode verificar no quadro 1), neste estudo foram analisados e
discutidos apenas dois assuntos: “textos escritos por mulheres” e “textos sobre mulheres”.
De facto, estes dois assuntos, por representarem as mulheres-autoras e também aquilo que
era escrito sobre o feminino, apresentavam-se como fundamentais para dar resposta à
questão de investigação. Para além disso, a limitação de tempo não permitiria a análise de
todos os assuntos levantados.
49
Para este efeito lugares como as Gafanhas não são considerados como Ílhavo, na medida em que são
apresentados no jornal como diferentes da realidade ilhavense.
205
Capítulo V – Metodologia de Investigação
Como é possível observar no quadro 4, foram levantadas 712 imagens, das quais 131 são
de mulheres, 110 são de homens, 29 são mistas e 442 não se incluem em nenhum destes
assuntos. Em cada imagem deste estudo é identificada a página em que esta se insere, a
dimensão da mesma, a relevância (local da página em que a imagem se insere), o tema53
que representa, a legenda e uma breve descrição da imagem (com a preocupação de
identificar se se encontram representações icónicas de mulheres). As representações
visuais são objeto de estudo por si só, mas servem também como complementos dos textos,
50
A análise dos dados revelou a necessidade das categorias serem reorganizadas e reunidas em outras novas
categorias, permitindo leituras alternativas.
51
Imagens que contêm figuras femininas e figuras masculinas.
52
Para “outras” são remitidas as imagens com paisagens, animais e elementos construtivos, que não incluam
figuras humanas.
53
Os temas das imagens são os mesmos já indicados para os temas dos textos. Contudo, por necessidade de
cumprir as exigências de algumas imagens, foi acrescentado um outro tema: “animação”. Já os temas “saúde”
e “beleza” foram, no caso das imagens, reunidos numa só temática “saúde/beleza”. Destaca-se ainda que os
temas das imagens estão diretamente relacionados com os temas dos textos. Por exemplo, se surgir a
fotografia de uma mulher num anúncio da venda de uma bicicleta, o tema da imagem será
“negócios/comércio”.
206
Capítulo V – Metodologia de Investigação
pelo que são abordadas na análise de forma independente e ainda sempre que se ache
pertinente um olhar mais atento à relação entre discurso textual e ícone.
Nº de Nº de Nº de imagens que Nº de
Nº total de
Ano imagens de imagens de incluem mulheres e outras
imagens
mulheres homens homens (mistas) imagens
1950 21 14 5 83 123
1951 4 9 3 59 75
1954 7 30 1 109 147
1955 32 28 6 96 162
1958 40 13 12 48 113
1959 27 16 2 47 92
Total 131 110 29 442 712
A análise das imagens permitiu, primeiramente, uma abordagem quantitativa, pois foram
contabilizadas todas as imagens (no total e por assunto, como se observa no quadro 4),
tendo-se posteriormente optado por uma análise e uma discussão mais profundas das
imagens de mulheres, das imagens de homens e das imagens que incluem mulheres e
homens (mistas), tendo sido estes três assuntos reformulados em apenas dois: “imagens
que incluem mulheres”54 e “imagens que incluem homens”55.
54
Nas imagens que incluem mulheres, são contabilizadas e analisadas as imagens onde aparecem só
mulheres e as imagens onde aparecem mulheres e homens, perfazendo um total de 160 imagens.
55
Nas imagens que incluem homens, são contabilizadas e analisadas as imagens onde aparecem só homens e
as imagens onde aparecem mulheres e homens, perfazendo um total de 139 imagens.
56
À semelhança do que ocorreu na análise dos textos, a análise dos dados icónicos revelou a necessidade das
categorias serem reorganizadas e reunidas em outras novas categorias, permitindo leituras alternativas.
207
Capítulo V – Metodologia de Investigação
208
Capítulo VI – Estudo Empírico
6.1. Estudo de textos escritos por mulheres, n’O Ilhavense, na década de 1950
6.1.1. Apresentação e análise dos dados relativos aos textos escritos por mulheres
Numa primeira fase selecionou-se apenas, do conjunto de peças recolhidas, aquelas que
foram escritas por mulheres, conduzindo-se a análise sem recurso a programas
informáticos de análise de dados. No geral, observa-se que existem percentagens
demasiado baixas de autoria feminina nestes exemplares, visto que das 10104 peças que
constituem o universo da investigação, apenas 182 foram escritas por mulheres, o que
corresponde a 1,8% do total, como se pode ver no quadro 5. Em todos os anos analisados,
as percentagens de peças escritas por mulheres mantem-se abaixo dos 2,3%, o que revela
uma presença reduzida da produção escrita feminina no jornal O Ilhavense.
209
Capítulo VI – Estudo Empírico
Percentagem de
Nº de peças escritas
Ano Nº de peças escritas peças escritas
por mulheres
por mulheres
1950 (ano 39) 1491 29 1,9%
1951 (ano 40) 1511 29 1,9%
1954 (ano43) 1892 44 2,3%
1955 (ano 44) 1711 24 1,4%
1958 (ano 48) 1699 28 1,6%
1959 (ano 49) 1800 28 1,6%
Total 10104 182 1,8%
Numa fase posterior, foi possível analisar o material, fazendo emergir as categorias
identificadas como fundamentais para esta investigação. Assim, para cada peça escrita por
uma mulher, em cada número de jornal (no universo dos seis anos estudados), foram
levantados e analisados dados referentes a seis dimensões fundamentais desses textos:
“tipo de tema”, “tipo de texto”, “sentido do discurso”, “tipo de linguagem”, “hierarquia” e
“mulher de Ílhavo”57.
Como se pode observar no quadro 6, os temas mais abordados pelas autoras das peças são
a “criação literária” e a “morte/luto”, com 78 ocorrências (39% do total) e 38 ocorrências
(19% do total), respetivamente. Seguem-se, ainda com alguma expressão, os temas
“emigração” (10,5%) e “casamento/família” (9,5%), enquanto os restantes – “religião”,
“saúde”, “estudos/educação”, “vida marítima”, “assistência aos outros”, “artes e
espetáculos”, “trabalho/profissional”, “lazer/tempos livres”, “justiça/tribunais”, “vida
doméstica”, “mar/vida marítima”, “política/economia”, “infância”, “negócios/comércio”,
“beleza” e “terceira idade” – não possuem destaque significativo.
57
Elementos já explicitados no capítulo da metodologia, no ponto reservado à apresentação geral dos dados.
210
Capítulo VI – Estudo Empírico
Quadro 6 | Ocorrências da categoria “tipo de tema”, nos textos escritos por mulheres, na
década de 1950
Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Criação
10 15 27 11 9 6 78 39%
literária
Morte/ luto 4 5 5 3 6 15 38 19%
Emigração 2 3 2 5 6 3 21 10,5%
Casamento/
3 2 2 2 7 3 19 9,5%
família
Religião 2 0 1 2 1 2 8 4%
Saúde 1 2 0 1 0 1 5 2,5%
Mar/ vida
1 0 0 1 2 1 5 2,5%
marítima
Estudos/
1 0 2 0 1 0 4 2%
educação
Assistência aos
2 0 0 0 0 1 3 1,5%
outros
Artes e
Tipo de 0 0 0 0 2 0 2 1%
espetáculos
tema
Trabalho/
1 0 1 0 0 0 2 1%
profissional
Lazer/ tempos
2 0 0 0 0 0 2 1%
livres
Justiça/
1 0 0 0 0 0 1 0,5%
tribunais
Vida doméstica 1 0 0 0 0 0 1 0,5%
Política/
0 0 1 0 0 0 1 0,5%
economia
Infância 0 0 0 1 0 0 1 0,5%
Negócios/
0 0 0 0 0 1 1 0,5%
comércio
Beleza 0 0 0 0 0 1 1 0,5%
Terceira idade 0 0 0 0 0 1 1 0,5%
Outros 1 2 3 0 0 0 6 3%
Total 32 29 44 26 34 35 200 100%
Uma análise mais atenta dos níveis de categoria que constituem o “tipo de tema” (ver
quadro 6) permitiu um reagrupamento do material, que resulta numa nova forma de
organizar e apresentar os dados, agora com novas categorias, como se pode observar no
quadro 7.
211
Capítulo VI – Estudo Empírico
Quadro 7 | Ocorrências da “área íntima”, da “área mista” e da “área social”, nos textos
escritos por mulheres, na década de 1950
Saúde 5
Mar/vida marítima 5
Família 47%
Assistência aos outros 3
Vida doméstica 1
Infância 1
Terceira idade 1
Total 94
Criação literária 78
Área mista
Artes e espetáculos 2
Arte e
Lazer/tempos livres 2 41,5%
curiosidade
Beleza 1
Total 83
Religião 8
Estudos/educação 4
Área social
Trabalho/profissional 2
Intervenção
Justiça/tribunais 1 8,5%
pública
Política/economia 1
Negócios/comércio 1
Total 17
Outros Total 6 3%
Total 200 100%
De seguida, com 83 ocorrências (ou 41,5% do total), surge a categoria “arte e curiosidade”,
uma categoria que abarca os tipos de tema relacionados com assuntos que invocavam um
sentido artístico: “criação literária”, “artes e espetáculos”, “lazer/tempos livres” e “beleza”.
Esta nova categoria insere-se numa “área mista”, que transita entre as esferas da intimidade
e da exposição social.
212
Capítulo VI – Estudo Empírico
Na análise da categoria “tipo de texto”, foram considerados onze níveis diferentes que se
encontram presentes no quadro 8.
Quadro 8 | Ocorrências da categoria “tipo de texto”, nos textos escritos por mulheres, na
década de 1950
Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Nota breve 7 5 9 10 11 4 46 25,3%
Poema 4 13 21 5 1 1 45 24,7%
Agradecime
3 6 5 4 4 17 39 21,4%
nto
Conto 5 2 0 3 4 4 18 9,9%
Crónica
0 0 5 2 3 1 11 6,1%
poética
Tipo de Informação
texto pública/ 6 1 0 0 1 0 8 4,4%
aviso
Carta 1 1 1 0 1 0 4 2,2%
Reportagem 3 0 1 0 0 0 4 2,2%
Anúncio 0 0 0 0 1 1 2 1,1%
Entrevista 0 0 0 0 1 0 1 0,5%
Notícia 0 0 0 0 1 0 1 0,5%
Outros 0 1 2 0 0 0 3 1,6%
Total 29 29 44 24 28 28 182 100%
213
Capítulo VI – Estudo Empírico
No quadro 8 verifica-se que as mulheres escrevem sobretudo textos que se inserem nos
níveis de categoria “nota breve” (46 ocorrências ou 25,3% do total), “poema” (45
ocorrências ou 24,7% do total) e “agradecimento” (39 ocorrências ou 21,4% do total). Os
restantes temas – “conto”, “crónica poética”, “informação pública/aviso”, “carta”,
“reportagem”, “anúncio”, “entrevista”, “notícia” e “outros” – encontram-se entre os 0,5% e
os 9,9% do total de ocorrências.
A análise dos textos revela ainda que as “notas breves” são pequenas notas que
correspondem sobretudo a informações publicadas por mulheres sobre a temática
“emigração”. Já os níveis de categoria “poema” e “agradecimento” (bastante utilizados)
estão relacionados com os níveis de categoria “criação literária” e “morte/luto”,
respetivamente.
Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Neutro 11 16 11 8 13 18 77 42,3%
Sentido do Crítico 8 5 25 5 8 2 53 29,1%
discurso Laudatório 10 4 6 8 4 6 38 20,9%
Misto 0 4 2 3 3 2 14 7,7%
Total 29 29 44 24 28 28 182 100%
214
Capítulo VI – Estudo Empírico
Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Tipo de Conotativo 14 17 35 14 14 9 103 56,6%
linguagem Denotativo 15 12 9 10 14 19 79 43,4%
Total 29 29 44 24 28 28 182 100%
Trata-se de autoras com tendência para utilizar, na descrição dos factos, uma linguagem
sensível, emotiva e com conteúdos pouco latentes, o que as leva, em vários casos, a utilizar
uma linguagem conotativa, mesmo em notas meramente informativas. Apesar dos seus
discursos serem maioritariamente neutros, a sua linguagem remete para diferentes sentidos,
articulados com valores afetivos e sociais.
No que diz respeito à identificação de hierarquias de género e/ou social, verifica-se que, na
esmagadora maioria dos casos, não é identificada qualquer tipo de hierarquia (89,6 % do
total). As autoras não deixam transparecer facilmente relações de hierarquia social ou de
género, e raramente tomam posições críticas, tal como se pode verificar com os dados
presentes no quadro 11.
Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Não se deteta 22 26 41 22 26 26 163 89,6%
Hierarquia de
género 3 2 0 2 1 2 10 5,5%
(masculino)
Hierarquia Hierarquia de
género 3 1 3 0 0 0 7 3,8%
(feminino)
Hierarquia
1 0 0 0 1 0 2 1,1%
social
Total 29 28 44 24 28 28 182 100%
A última categoria de análise é a que pretende identificar a origem das autoras das peças.
Como se pode ver no quadro 12, a maior parte das mulheres que escreve no jornal é de
215
Capítulo VI – Estudo Empírico
Ílhavo (47,3% do total), embora exista uma percentagem significativa de autoras que não é.
As autoras ilhavenses estão particularmente associadas à temática da “morte/luto”, pois são
as que escrevem os agradecimentos lutuosos.
Quadro 12 | Ocorrências da categoria “mulher de Ílhavo”, nos textos escritos por mulheres,
na década de 1950
Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Sim 12 10 15 13 17 19 86 47,3%
Mulher de Não 12 13 15 6 6 6 58 31,9%
Ílhavo Não
5 6 14 5 5 3 38 20,9%
identificado
Total 29 29 44 24 28 28 182 100%
Uma análise mais pormenorizada permite identificar que, no que diz respeito à temática da
“criação literária”, a autoras são, sobretudo, mulheres brasileiras que estão presentes no
jornal O Ilhavense através do espaço que é reservado para a rubrica “Falemos do Brasil”.
Esta rubrica, dirigida por Jorge Ramos, encontra-se recheada de peças escritas por
autores/as brasileiro/as58.
Ainda sob a temática da “criação literária”, destaca-se também a rubrica “Gente moça”,
dirigida por Campos Leal (Jodi), de Abrantes, que recebe peças de todos o país, que depois
publica numa página d’O Ilhavense. Nesta rubrica, há espaço para alguns contos e poemas
de mulheres portuguesas, particularmente mulheres jovens, visto que o intuito da rubrica é
publicar trabalhos juvenis. Evidencia-se ainda uma outra autora (sobretudo de contos) da
capital, que no final do ano de 1959 passa a ter a sua própria rubrica intitulada
“Miscelânea” – onde há espaço para alguma publicação no feminino. Finalmente, neste
jornal, estão presentes alguns textos escritos por autoras reconhecidas nacionalmente pela
sua produção literária, como é o caso da poetisa Florbela Espanca (um modelo de
sentimentalidade).
216
Capítulo VI – Estudo Empírico
Uma leitura atenta dos dados reconhece que, sob a temática da “criação literária”, as
autoras publicam, sobretudo, “poemas”, havendo também espaço para os “contos”
(particularmente nos anos de 1950 e de 1958). No geral, a produção literária destas autoras
não está associada a nenhum tipo específico de discurso, na medida em que transita entre o
“laudatório”, o “crítico”, o “neutro” e o “misto”, de acordo com o “tipo de texto” e o ano
em análise. Todavia, destaca-se o facto de a produção poética estar associada a uma
linguagem conotativa, que trabalha com o sentido figurativo das palavras. Salienta-se
também o facto de, em toda a produção literária, não se detetar à superfície dos textos
qualquer referência hierárquica, quer ao nível do género, quer ao nível social. E no que diz
respeito à origem das autoras de “criação literária”, destaca-se a particularidade da maioria
ser do Brasil (autoras introduzidas pela rubrica “Falemos do Brasil”).
6.1.2. Discussão dos dados relativos aos textos escritos por mulheres
Com base nos dados apresentados relativamente à categoria “hierarquia” (como se pode
ver no quadro 11), os discursos destas mulheres não refletem diretamente relações
hierárquicas. Todavia, uma leitura atenta dos dados indica que essas relações de poder
existem, mas não se encontram à superfície dos textos. Ora, o objetivo desta análise vai ao
encontro de um dos papéis fundamentais dos Estudos Culturais, que é procurar desvendar e
explicitar as relações que existem entre as práticas socioculturais e o poder (Foucault,
2006). No caso dos textos que foram escritos por mulheres no jornal O Ilhavense, estas
217
Capítulo VI – Estudo Empírico
No âmbito dos Estudos Culturais, é importante perceber quem é incluído ou excluído das
relações de poder, ou quem se inclui ou exclui dessas mesmas relações, o que implica
entender a complexidade do feixe das relações entre o Eu e o Outro, neste caso entre o
género masculino e o género feminino. Na realidade, o poder não opera somente nas
instituições, nas organizações ou no Estado, mas sobretudo nos sujeitos, que evoluem e se
situam socialmente através das microrrelações que estabelecem com outros sujeitos. No
caso particular da análise dos textos escritos por mulheres, interessa investigar a perspetiva
simbólica das relações de poder compreendidas nos discursos no feminino.
Começando pela quantidade de textos produzidos por mulheres, percebe-se que a sua
intervenção social é quase nula quando comparada com a produção masculina. De facto,
em 10104 peças escritas n’O Ilhavense, apenas 182 foram escritas por mulheres, o que
corresponde a 1,8% da produção escrita (ver quadro 5). Estes dados são fundamentais para
perceber a representação mediática da dinâmica de género, na década de 1950, que
tendencialmente maximiza o masculino, enquanto menoriza o feminino. E, para além da
produção reduzida (espelho de uma representação feminina limitadíssima), importa
identificar e analisar em que circunstâncias as mulheres escrevem e quais as áreas em que
se encontram efetivamente envolvidas.
218
Capítulo VI – Estudo Empírico
Este processo implica que o nível de autonomia na produção escrita no feminino seja
limitado. No caso dos agradecimentos lutuosos, é permitida uma maior liberdade na
expressão escrita, mas relembre-se que estes pequenos textos passam também pela revisão
do diretor do jornal – José Pereira Teles – e pelo carimbo da comissão de censura (Barros,
2005). Estas restrições colocadas na seleção dos textos e das temáticas são uma das formas
socialmente institucionalizadas para regular comportamentos e atitudes socialmente
espectáveis, sobretudo para o género. Os homens, como maioria, como Ser Absoluto – nas
palavras de Beauvoir (1977ª) – criam mecanismos diluídos de normatização para a
minoria, o Outro, ou seja, o género feminino.
Este panorama não implica que as mulheres tenham mais ou menos poder que os homens
nestas áreas sociais específicas (até porque o poder não é aqui admitido como algo que se
possui), mas apresenta uma realidade onde as mulheres são excluídas do exercício do
poder, por regulação da sociedade e por adoção de um mecanismo pelo qual as mulheres
ajustam os seus próprios discursos àquela mesma realidade. Estas tecnologias normativas
(Foucault, 2010c), que se encontram infiltradas na sociedade, podem, consciente ou
inconscientemente, seccionar as áreas de intervenção dos sujeitos de acordo com o seu
género, algo que acontece neste jornal.
Uma visão global permite, portanto, detetar que as áreas do mundo privado são as mais
representadas pelas mulheres (cerca de 47% das ocorrências, como se pode verificar com o
quadro 7), mais especificamente as temáticas relacionadas com a família. Esta conclusão
vai ao encontro da revisão de literatura da especialidade, que afirma que, na maior parte
219
Capítulo VI – Estudo Empírico
dos casos, as mulheres publicam (ou são publicadas) numa envolvência privada ou
sexualizada. Mais especificamente, a revisão bibliográfica destaca como tradicionalmente
femininos os tópicos da família, das crianças, da assistência aos outros, da educação e da
vitimização sexual. A esta limitação de “temáticas femininas” junta-se, no período pós-
guerra, o apelo da sociedade para que as mulheres voltem à esfera privada e à vida
doméstica, incentivando a diminuição da sua participação social, sobretudo em atividades
decisivas e com forte impacto civil.
Neste estudo, o destaque vai para uma área que não é habitualmente referida na literatura
da especialidade, nem nos estudos de caso, embora alguns dos tópicos que a compõem
sejam frequentemente referenciados. Trata-se da área artística e de curiosidade,
considerada aqui uma “área mista” (por envolver o mundo privado e o íntimo) e que tem
também bastante projeção na produção feminina, com 41,5% das ocorrências (ver quadro
7). Esta área, que engloba as temáticas da “criação literária”, das “artes e espetáculos”, do
“lazer/tempos livres” e da “beleza”, permite às autoras circularem entre a esfera privada e a
pública, sobretudo no caso da “criação literária” que surge com um número esmagador de
ocorrências.
220
Capítulo VI – Estudo Empírico
Com efeito, os homens têm, neste jornal, várias possibilidades de atuação, e até vários
papéis a adotar de acordo com as circunstâncias ou as temáticas que trazem à discussão; já
as vozes ou os perfis das mulheres são limitados e até monótonos. Esta é uma das formas
de circulação do poder. De facto, apesar de não existirem hierarquias “visíveis” ou diretas
nos discursos das mulheres, é possível entender os significados que estão por trás dos
dados. Quando, num universo de 10104 textos, apenas 1,8% foram escritos por mulheres, e
quando destes apenas algumas áreas lhes estão circunscritas, emerge a ideia de que o
mundo em que vivem possui dinâmicas “generificadas”, onde determinados temas estão
simplesmente fora do alcance expositivo feminino.
Regressando aos resultados da análise dos dados, o cruzamento das dimensões (dos anos
da década de 1950) permite perceber que quando as mulheres escrevem textos, a “criação
literária” é a temática que se evidencia, enquanto os tipos de texto relacionados, são,
maioritariamente, o “poema” e o “conto”. A leitura destes poemas e contos deixa
221
Capítulo VI – Estudo Empírico
Pobre pescador que, confiante, largaste no teu frágil barquinho para, no alto mar,
lançar a rede, e regressar a casa com os canastros cheios de peixe! (…) Pobre
pescador, teu corpo destroçado aparecerá entre as rochas, sobre a areia ou não
mais ninguém o verá porque foste pasto dos peixes. (…) Pobre pescador (…) que
não pudeste pedir, com o último beijo e o último abraço, as orações da tua
esposa, a companheira dedicada de toda a tua vida e que, agora, terá de lutar
sozinha!”
(O Ilhavense, 20 de agosto de 1950, p.2)
Ainda de acordo com Pereira (2006), a “literatura light” transfere o real para o texto. Este
tipo de literatura, segundo a opinião da autora, é normalmente escrito por e para mulheres,
podendo mesmo criar-se uma “relação” em que a mulher-leitora se revê na mulher-autora,
numa forma muito simples e imediata de identificação. Pode-se dar como exemplo outro
conto de Mari Carmen Flores – “Tia Matilde a solteirona” – publicado n’O Ilhavense de 20
de setembro de 1950. Este texto conta a história de uma “solteirona” – Matilde – que
descreve o seu amor tardio por um jovem que depois se apaixona e casa com a sua
sobrinha Maria Júlia. Trata-se de um conto que procura criar empatia com as leitoras,
sobretudo na carga fortemente emotiva e negativa que é atribuída ao conceito “solteirona”:
Nesta tarde enevoada, enquanto, por detrás das janelas, vejo o morrer de mais
um dia em minha existência triste e amargurada de solteirona, sinto uma angústia
que me oprime a garganta e uma infinita tristeza em meu coração.
(O Ilhavense, 20 de setembro de 1950, p.2)
222
Capítulo VI – Estudo Empírico
Esta “solteirona” representa aqui toda a mulher sem homem, ou seja, toda a mulher sem
regra ou orientação, à qual falta algo. De facto, naquela época, a necessidade de atribuir a
cada mulher um homem não mais é do que uma forma (in)visível de poder ou até mesmo
uma tecnologia de controlo que Foucault tão bem referenciou.
Trata-se, portanto, de contos e poemas que primam pela ausência de uma reflexão ou teoria
literária, optando até pela partilha de descrições afetuosas ou meramente descritivas. É com
este tipo de literatura que as autoras destes jornais se vão demarcar do discurso masculino,
embora as narrativas incidam, particularmente, “(…) na descrição de um mundo (ainda)
patriarcal” (Pereira, 2006:173) e socialmente construído de acordo com as normas
masculinas.
Em relação aos poemas, vários são os exemplos no jornal O Ilhavense que se encontram
vazios de sentido, com capacidade para ir além da superficialidade ou atinjir a dimensão
crítica, e que são aqui representativos da produção literária no feminino. Destes destaca-se,
por exemplo, o poema “Cancioneiro”, de Lilinha Fernandes, na rubrica “Falemos do
Brasil”:
223
Capítulo VI – Estudo Empírico
Neste ponto é fundamental perceber que, mais do que uma área de atuação ou de
representação, que permite às autoras expressar a sua visão da realidade, a “criação
literária” parece ser o registo no qual as mulheres se sentem mais à-vontade. De facto, a
“criação literária” não é uma “coisa” feminina, visto que outros textos analisados nesta
categoria de produção literária estão repletos de autores masculinos, mas é através da
“criação literária” que o feminino se expressa. Nestes textos, as autoras partilham um
imaginário lírico, que lhes permite uma espécie de refúgio para um mundo alternativo,
onde produzem maioritariamente narrativas descritivas, afastando-se da produção de
intervenção social e moral, e das discussões de cunho teórico ou político. Exemplo deste
tipo de produção, entre muitos outros, é o texto de Mari Carmen Flores, intitulado
“Quando Sevilha dorme”, publicado na rubrica “Gente Moça”, em 20 de novembro de
1950:
Sevilha, capital da Andaluzia, rainha e flor das cidades alegres, cheia de graça e
de cor, de rapazes apaixonados e de lindas raparigas, dorme nas noites suaves;
um céu azul-escuro manchado de pequenas e rutilantes estrelinhas a cobri-la e
parece que a envolvê-la do aroma perfumado dos seus jardins cheios de sonho
224
Capítulo VI – Estudo Empírico
aonde a alma se sente poeta, parece ainda que a arrulha o manso vaivém das
águas do Guadalquivir.
A Giralda ergue-se silenciosa; a Torre do Ouro faz uma sombra pitoresca; e o
bairro de Santa Cruz queda-se partido na silenciosa paz da noite. (…)
(O Ilhavense, 20 de novembro de 1950, p.5)
Outro facto interessante prende-se com a origem destas autoras que, na sua maioria, não
são de Ílhavo, mas encontram aqui um espaço para exporem a sua identidade imaginária,
fantasiosa e marcadamente emotiva. Tal como já foi referido aquando da análise dos
dados, as autoras são sobretudo brasileiras (que publicam através da rubrica “Falemos do
Brasil”) ou nacionais (as que publicam através das rubricas “Gente moça” e “Miscelânea”).
Na verdade, a diversidade e a internacionalização das autoras demonstra que, apesar d’O
Ilhavense ser considerado um jornal regional, a sua projeção ultrapassa fronteiras locais e
nacionais. Por outro lado, esta realidade permite questionar o papel da projeção social da
mulher ilhavense e o seu lugar na esfera pública, uma vez que não há grande espaço para a
sua produção textual no jornal de maior importância de Ílhavo.
225
Capítulo VI – Estudo Empírico
Tudo promete e tudo procurará tratar com a boa vontade que põe em todas as
coisas que respeitem à Ciência, às Letras e às Artes, se lhe não faltar a ajuda de
todos os outros a quem se abre, mais uma vez, esta porta, para os seus estudos e
primeiros voos. (…)
(O Ilhavense, 20 de novembro de 1959, p.5)
No que diz respeito ao tema da “morte/luto” (o segundo “tipo de tema” com mais
ocorrências), repare-se que, apesar de ser referido ao longo dos anos analisados, apenas
ganha destaque no ano de 1959 (ver quadro 6), onde consegue ultrapassar (por mais do
dobro) o número de ocorrências do tema “criação literária”. Associado ao tema da
“morte/luto” está o “tipo de texto” que se apelidou de “agradecimento”. Trata-se aqui de
textos em que as mulheres são “autoras” de inúmeros agradecimentos lutuosos pela morte
de familiares, como se pode verificar pelo exemplo que se segue:
60
Repare-se que aqui o espaço íntimo (ou privado) invade, sucessivamente, o espaço público.
226
Capítulo VI – Estudo Empírico
Estas notas informativas lutuosas, assinadas por mulheres, revelam que um lado prático,
mas simultaneamente umbrático, não deixa de pairar sobre o seu imaginário de mães,
esposas e filhas. A necessidade de cuidar da família, de informar os outros e de não deixar
passar em silêncio um ato tão violento (e simultaneamente tão natural) como é a morte,
facultam um caráter “neutro” aos seus discursos e uma simplicidade “denotativa” à sua
linguagem, como se pode verificar com os exemplos que se seguem:
A esposa, filha e genro e toda a demais família do falecido José Marques, vêm,
por este meio, agradecer a todas as pessoas que o acompanharam no seu funeral
e lhe enviaram sentidos pêsames.
Ílhavo, 15 de junho de 1959.
Maria da Silva Marques e Família
(O Ilhavense, de 20 de junho de 1959, p.4)
Embora estes textos sejam assinados por mulheres (sobretudo por mulheres que são de
Ílhavo), restam muitas dúvidas sobre a legitimidade da sua autoria. Quer isto dizer que, na
maioria dos casos, parece existir um modelo de escrita fornecido pelo jornal, que depois é
apenas assinado pelas mulheres em luto; e apesar de não parecer haver espaço para
227
Capítulo VI – Estudo Empírico
hierarquias visíveis, é certo que se notam diferentes tipos de modelo de escrita lutuosa que
são escolhidos e publicados de acordo com a importância social da família.
Apesar destes textos não possuírem uma função poética ou moralizante, deteta-se uma
carga simbólica associada, embora de forma sombria. Efetivamente, Ílhavo é um espaço
social onde os homens são vítimas do mar, por vezes demasiado cedo, pelo que as
mulheres parecem especializar-se, por força das circunstâncias, em lidar com a morte e o
luto, afastando-se de uma apropriação lírica deste (como acontecia com a temática da
“criação literária”), e optando por uma via mais realista e sóbria. Esta visão tão pragmática
da mulher de Ílhavo (e talvez de todas aquelas que vivem em comunidades piscatórias
deste género) surge da necessidade de lidar tão abruptamente com duas condições
extremas: a vida e a morte. As subscritoras destas notas lutuosas parecem demonstrar todas
estas características, exaltando uma espécie de endurance identitária, muito sofrida por
conta das circunstâncias, mas sobretudo muito naturalizada e pouco evasiva, como
exemplifica o agradecimento lutuoso que se segue:
Pode-se também referir que o tema “emigração” (que corresponde a 10,5% do total, como
se vê no quadro 6) está representado nos textos escritos por mulheres, na medida em que
estas, em conjunto com os maridos, escreviam notas de despedida aos amigos e familiares
quando se ausentavam do país. Existem também alguns exemplos de mulheres que iam ao
encontro dos maridos que já viviam além-fronteiras, sobretudo no Brasil, em África e nos
E.U.A., e de mulheres que vieram de férias a Ílhavo e que se despedem, pois regressam aos
lugares onde estão emigradas. Todas estas notas eram breves e pouco descritivas, contendo
apenas a informação relativa ao nome dos emigrantes, ao local para onde se deslocavam e
à data de partida, como se pode observar nos exemplos que se seguem:
228
Capítulo VI – Estudo Empírico
Francisco Fonseca e sua esposa Rosa Tourega Fonseca, tendo retirado para
Gloucester Mass. (América do Norte) e não lhes sendo possível despedirem-se
de todas as pessoas da sua amizade e relações, fazem-no por este meio, a todas
oferecendo os seus préstimos naquela cidade.
Francisco Fonseca
Rosa Tourega Fonseca
(O Ilhavense, de 10 de novembro de 1951, p.4)
Maria Solange Guerra Coelho de Moura, tendo de retirar com seu filhinho para
Moçambique onde vai juntar-se a seu marido, Máximo António Coelho de
Moura, e não tendo tempo de se despedir pessoalmente de todas as pessoas de
sua amizade e relações, vem fazê-lo por este meio, a todos oferecendo, naquelas
paragens, o seu limitado préstimo.
Ílhavo, 6 de fevereiro de 1958.
Maria Solange Guerra Coelho de Moura
(O Ilhavense, de 10 de fevereiro de 1958, p.3)
Isilda Maria da Silva tendo de regressar à América do Norte despede-se, por este
meio, de todas as pessoas da sua amizade e relações a quem não pode dizer
adeus pessoalmente e oferece a todos os seus limitados préstimos naquela grande
Nação.
Ílhavo, 10 de Outubro de 1958.
Isilda Maria da Silva
(O Ilhavense, de 20 de outubro de 1958, p.4)
229
Capítulo VI – Estudo Empírico
ter em conta na análise dos textos mediáticos e que estão de acordo com a teoria de
Norman Fairclough (1995): como é representada a realidade específica em estudo e quais
as relações que se estabelecem com os envolvidos. Contudo, segundo Fairclough (1995) é
necessário identificar e interpretar quais as identidades dos envolvidos no contexto
mediático, que, no caso específico deste estudo, se personifica nos perfis que as autoras
relevam através da publicação dos seus textos.
Neste estudo, embora o tema “família” seja objeto de uma produção textual significativa, a
identidade da mulher-autora não revela um perfil esperado de mãe, esposa ou educadora.
Porém, a análise dos textos produzidos por estas mulheres conduziu a dois modos muito
estereotipados de se apresentarem: “mulher-emotiva/fantasiosa” e/ou “mulher-prática”.
230
Capítulo VI – Estudo Empírico
como se pode verificar no texto “Pobre pescador!” de Mari Carmen Flores (publicado n’O
Ilhavense de 20 de agosto de 1950, e já exemplificado atrás), ou no conto “Noite de
Tempestade”, de Maria José Sacramento, publicado na rubrica “Gente Moça”:
Acordei sobressaltada. Tinha sonhado. Esse sonho pesava em mim com tanta
violência que, maquinalmente, levei as mãos aos olhos.
Na escuridão imensa do quarto pareceu-me ver ainda o quadro de miséria com o
qual acabara de sonhar. O silêncio era profundo e, no entanto, pareceu-me ouvir
gemidos. Acendi a luz. Tudo estava calmo. Estremeci, contudo. Os meus
pensamentos baralhavam-se. Num pequeno bibelot que estava em cima do
toucador vi a criança pálida do sonho. Os móveis pareciam mover-se e
transformarem-se em seres vivos.
Ergui-me. Sufocava. Lá fora a chuva caía, batendo com força nas vidraças. Senti
a cabeça pesada. Doía-me mesmo. (…)
(O Ilhavense, 20 de janeiro de 1958, p.2)
Pelo contrário, a “mulher-prática” é aquela que discursa acerca da morte com uma
simplicidade natural e um caráter meramente informativo e socialmente codificado. A nota
de agradecimento lutoso que segue em baixo é um dos exemplos de “mulher-prática” que
tem de resolver os assuntos de vida e de morte:
Estes perfis surgem como uma espécie de “identidades prontas”61, que desempenham um
papel fundamental na educação social dos sujeitos, principalmente no que diz respeito aos
seus comportamentos de género. Efetivamente é, em grande parte, através dos meios de
comunicação que as identidades de género são construídas no meio social, pelo que é
necessário analisar o simbolismo envolvido nas mensagens divulgadas, que, na grande
maioria das vezes, oferece modelos estereotipados e socialmente consolidados de
identidade, baseados em discursos que já estão em curso e saturados de normas.
61
Tradução nossa de ready-made identities (Damean, 2006).
231
Capítulo VI – Estudo Empírico
Este perfil de “mulher-prática” não deve ser analisado como contraposição antagónica do
perfil de “mulher-emotiva/fantasiosa”, como uma primeira leitura pode deixar supor. Em
primeiro lugar, trata-se de autoras com origens diferentes e, logo, com contextos
socioculturais divergentes: as mulheres de Ílhavo que relatam as mortes dos seus maridos
parecem revelar um perfil prático, que decorre da naturalização da sua experiência com a
morte, fruto do particular contexto piscatório no qual se encontram envolvidas; enquanto
as autoras de produção literária, e que revelam um perfil emotivo/imaginativo, não são
apenas ilhavenses, mas também mulheres oriundas de outros lugares do país e ainda do
Brasil (contextos muitos distintos do de Ílhavo).
232
Capítulo VI – Estudo Empírico
Os casos de “não-identidade” são relativos à maioria das autoras que se retiram da sua
identidade escrevendo textos estereotipados ou socialmente codificados. Aqui entra a
maior parte dos poemas e dos agradecimentos lutuosos. Todavia, a análise permite concluir
que existe uma minoria de autoras que abre espaço para uma assinatura62, deixando
sobressair aquilo a que se chamou, neste estudo, de “identificação por frequência” e de
“identificação mediada”.
Nos textos analisados, foi encontrada uma autora – Mari Carmen Flores – que deixou a sua
marca na memória do leitor através do número de ocorrências e de uma certa fidelização
estilística. Esta autora consegue, portanto, vincar a sua identidade através de uma
“identificação por frequência”. Há ainda o exemplo de uma outra mulher que evoluiu
hierarquicamente no jornal, começando como simples poetisa e autora de pequenos contos,
vindo a ascender a editora de página. Esta autora – Maria José Sacramento –, que se
escreve através dos discursos dos “outros”, possui o que se pode designar por um grau
mínimo do discurso de identidade, ao promover uma “identificação mediada”.
233
Capítulo VI – Estudo Empírico
que o Eu feminino nunca retoma a si livre do Outro masculino. Assim sendo, e nesta fase,
importa trazer para a discussão a pergunta que orienta esta investigação: Era ou não Ílhavo
(na década de 1950) uma sociedade matriarcal?
No que diz respeito à produção escrita no feminino, Ílhavo não era representado como uma
sociedade matriarcal. Antes pelo contrário, Ílhavo era representado na imprensa local como
uma sociedade marcadamente masculina, onde as mulheres têm pouquíssima voz, estão
sujeitas a restrições no espaço de publicação e circunscritas a um conjunto de temáticas
que se limitam à envolvência com a família e com as artes. Todas as restantes atividades
críticas ou cívicas, de verdadeira mediação ou intervenção social, estão afastadas do seu
universo. Para além disso, estas mulheres adotaram uma identidade assumidamente
estereotipada, e que, na grande maioria dos casos, oferece pouca resistência à imposição
das estruturas de poder masculinas. A única forma aparente de resistência a estas estruturas
é visível apenas quando as mulheres ilhavenses falam sobre a morte e expressam o seu luto
de uma forma sóbria, o que contrasta com uma reação emotiva que se poderia esperar
nestes casos.
Neste estudo surge uma outra questão pertinente: Entrará esta mulher representada como
emotiva e fantasiosa, e também prática e racional, em contraste com um homem lógico,
crítico e político? Para responder a esta questão seria necessária uma análise meticulosa
aos textos escritos por homens, algo que este estudo não abrange. Todavia, esta
investigação deixa transparecer, no que diz respeito à temática da morte/luto, que tanto
homens como mulheres estão num nível de igualdade visível na codificação dos textos –
homens e mulheres apresentam uma linha textual lógica e pouco emotiva. Ou seja, a reação
socialmente esperada de maior frieza dos homens em lidar com a morte é também
partilhada pelas mulheres (o que aqui pode reabrir a discussão da verdadeira autoria dos
textos lutosos).
Quando se compara os textos, dentro da mesma temática, escritos por homens e por
mulheres, no que diz respeito à “criação literária”, a mulher é mais evasiva, enquanto o
homem consegue ter uma forma de expressão mais crítica, deixando transparecer, por
exemplo, um caráter moralizador nos contos e uma maior profundidade poética nos
poemas. Fundamental é perceber que, apesar desta dualidade na identidade de género, os
discursos destas autoras representam diferentes consciências que lhes permitem atuar ou
234
Capítulo VI – Estudo Empírico
6.2. Estudo de textos escritos sobre mulheres, n’O Ilhavense, na década de 1950
6.2.1. Apresentação e análise dos dados relativos aos textos escritos sobre mulheres
À semelhança da análise de textos escritos por mulheres, para o estudo de textos escritos
sobre mulheres foram selecionados alternadamente os números do jornal O Ilhavense –
1950, 1951, 1954, 1955, 1958 e 1959 – de forma a garantir a representatividade, a
diversidade e a saturação da informação. De um conjunto de 10104 peças escritas, foram
selecionadas para este estudo aquelas que são sobre mulheres, sendo conduzida uma
análise sem recurso a programas informáticos de análise de dados.
Em primeiro lugar foram contabilizados os textos escritos sobre mulheres, como se pode
observar no quadro 13. Num universo de 10104 peças, existem apenas 716 escritas sobre
mulheres, o que corresponde a 7,1% do total. Apesar de se notar uma subida ao longo da
década, assinala-se que estes continuam a ser números baixos no que diz respeito à
presença feminina no jornal O Ilhavense.
Percentagem de
Nº de peças escritas
Ano Nº de peças escritas peças escritas
sobre mulheres
sobre mulheres
1950 (ano 39) 1491 81 5,4%
1951 (ano 40) 1511 102 6,8%
1954 (ano 43) 1892 135 7,1%
1955 (ano 44) 1711 125 7,3%
1958 (ano 48) 1699 132 7,8%
1959 (ano 49) 1800 141 7,8%
Total 10104 716 7,1%
Tal como foi efetuado no estudo dos textos escritos por mulheres, em cada peça escrita
sobre uma mulher (em cada número de jornal) foram levantados e analisados dados
235
Capítulo VI – Estudo Empírico
referentes a seis dimensões fundamentais desses textos: “tipo de tema”, “tipo de texto”,
“sentido do discurso”, “tipo de linguagem”, “hierarquia” e “mulher de Ílhavo”63.
63
Elementos já explicitados no capítulo da metodologia, no ponto reservado à apresentação geral dos dados.
236
Capítulo VI – Estudo Empírico
Quadro 14 | Ocorrências do “tipo de tema”, nos textos escritos sobre mulheres, na década
de 1950
Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Criação
14 24 34 39 22 14 147 20,5%
literária
Religião 4 2 2 3 48 70 129 18%
Morte/ luto 17 17 22 14 17 10 97 13,6%
Saúde/ beleza 1 1 21 31 5 1 60 8,4%
Estudos/
11 10 7 6 6 6 46 6,4%
educação
Casamento/
8 8 14 8 4 4 46 6,4%
família
Negócios/
12 14 10 3 1 0 40 5,6%
comércio
Assistência
1 3 2 6 7 3 22 3,1%
aos outros
Trabalho/
0 2 1 1 8 10 22 3,1%
Tipo de profissional
tema Aniversários/
aconteciment 4 4 1 2 4 6 21 2,9%
os de relevo
Justiça/
4 0 9 3 0 5 21 2,9%
tribunais
Política/
2 4 0 2 0 1 9 1,3%
economia
Artes e
0 1 0 1 4 2 8 1,1%
espetáculos
Emigração 0 0 2 1 4 1 8 1,1%
Sexualidade 2 2 1 0 0 0 5 0,7%
História local 0 0 0 0 0 4 4 0,6%
Lazer/
1 1 1 0 0 0 3 0,4%
tempos livres
Infância 0 0 1 0 0 0 1 0,1%
Outros 0 9 7 5 2 4 27 3,8%
Total 81 102 135 125 132 141 716 100%
237
Capítulo VI – Estudo Empírico
Quadro 15 | Ocorrências da “área íntima”, da “área mista” e da “área social”, nos textos
escritos sobre mulheres, na década de 1950
Trabalho/profissional 22
Intervenção
Assistência aos outros 22 40,9%
pública
Justiça/tribunais 21
Política/economia 9
História local 4
Total 293
Criação literária 147
Área mista
Saúde/beleza 60
Arte e
Artes e espetáculos 8 30,5%
curiosidade
Lazer/tempos livres 3
Total 218
Morte/luto 97
Casamento/família 46
Área íntima
Aniversários/acontecimentos
21
de relevo
Família 24,9%
Emigração 8
Sexualidade 5
Infância/maternidade 1
Total 178
Outros Total 27 3,8%
Total 716 100%
A segunda nova categoria a emergir, com 218 ocorrências (30,5% do total), é “arte e
curiosidade” e corresponde a uma área mista, que reúne em seu torno os seguintes níveis
de categoria: “criação literária”, “saúde/beleza”, “artes e espetáculos” e “lazer/tempos
livres”. Finalmente, é possível reunir os restantes níveis de categoria – “morte/luto”,
“casamento/família”, “aniversários/acontecimentos de relevo”, “emigração”, “sexualidade”
238
Capítulo VI – Estudo Empírico
Note-se agora que da primeira categoria (“intervenção pública”) para a segunda (“arte e
curiosidade”) há apenas uma diferença de 7,3 pontos percentuais; e desta para a terceira
(“família”) há ainda uma menor diferença de apenas 2,6 pontos percentuais. Estes dados
traduzem a proximidade que existe entre as novas categorias criadas.
Passando para a análise da categoria “tipo de texto” escrito sobre mulheres, foram
examinados onze níveis diferentes que se encontram presentes no quadro 16.
Quadro 16 | Ocorrências da categoria “tipo de texto”, nos textos escritos sobre mulheres,
na década de 1950
Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Nota breve 4 22 17 19 59 76 197 27,5%
Notícia 26 22 32 19 25 30 154 21,5%
Anúncio 15 14 29 31 8 10 107 14,9%
Conto 6 10 22 28 6 5 77 10,8%
Poema 5 10 9 5 15 5 49 6,8%
Agradecime
6 5 13 9 10 6 49 6,8%
nto
Tipo de Informação
texto pública/ 12 8 6 6 3 4 39 5,5%
aviso
Reportagem 3 5 2 3 3 1 17 2,4%
Entretenime
nto/ quebra- 2 2 0 0 0 0 4 0,6%
cabeças
Entrevista 0 0 0 1 0 0 1 0,1%
Outros 2 4 5 4 3 4 22 3,1%
Total 81 102 135 125 132 141 716 100%
Os dados presentes no quadro 16 revelam que a “nota breve” e a “notícia” são os tipos de
texto que se destacam, com 197 ocorrências (27,5%) e 154 ocorrências (21,5%),
respetivamente. Os dados relativos a notas breves são elevados, na maioria dos anos
analisados, exceto nos anos de 1950 e 1954, onde são ultrapassados numericamente pelos
dados relativos às notícias. De seguida, com percentagens inferiores a 15%, apresentam-se
239
Capítulo VI – Estudo Empírico
Com o quadro 17 é possível verificar o “sentido do discurso” dos textos escritos sobre
mulheres nos jornais correspondentes aos anos analisados. O primeiro destaque vai para a
neutralidade de cerca de 40% dos textos (289 ocorrências). Todavia, salienta-se o facto de
nos anos de 1958 e 1959 o sentido laudatório nos discursos sobre mulheres superar o
neutro.
Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Neutro 40 46 70 60 40 33 289 40,4%
Sentido do Laudatório 16 33 21 30 70 86 256 35,8%
discurso Crítico 24 21 26 32 18 22 143 19,9%
Misto 1 2 18 3 4 0 28 3,9%
Total 81 102 135 125 132 141 716 100%
Segundo o quadro 17, é ainda possível apurar que 35,8% (256 ocorrências) dos textos
escritos sobre mulheres são laudatórios, enquanto 19,9% (143 ocorrências) dos textos são
críticos. Há ainda uma pequena percentagem (3,9%) dos textos escritos sobre mulheres que
são mistos (28 ocorrências).
Já em relação ao “tipo de linguagem” (quadro 18) existe uma diferença bastante ligeira
entre os dados, pois 50,6% (362 ocorrências) dos textos escritos sobre mulheres são
conotativos e 49,4% (354 ocorrências) são denotativos. Todavia, até 1958 o tipo de
linguagem em relação aos textos escritos sobre mulheres é particularmente denotativo,
mudando esta realidade nos anos de 1958 e 1959. Mais uma vez, importa referir que as
diferenças numéricas entre a linguagem conotativa e a denotativa, por cada ano em análise,
são ligeiras.
240
Capítulo VI – Estudo Empírico
Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Tipo de Conotativo 32 49 54 52 80 95 362 50,6%
linguagem Denotativo 49 53 81 73 52 46 354 49,4%
Total 81 102 135 125 132 141 716 100%
Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Não se deteta 62 87 120 110 114 131 624 87,2%
Hierarquia
9 10 9 9 11 6 54 7,5%
social
Hierarquia de
Hierarquia género 6 5 6 4 5 4 30 4,2%
(masculino)
Hierarquia de
género 4 0 0 2 2 0 8 1,1%
(feminino)
Total 81 102 135 125 132 141 716 100%
241
Capítulo VI – Estudo Empírico
Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Sim 39 38 70 69 86 106 408 57%
Mulher de Não 24 35 45 49 29 29 211 29,5%
Ílhavo Não
18 29 20 7 17 6 97 13,5%
identificado
Total 81 102 135 125 132 141 716 100%
Na sua maioria (408 ocorrências que equivalem a 57% do total, e que têm maior expressão
nos dois últimos anos analisados), os textos escritos são sobre mulheres ilhavenses,
enquanto apenas 29,5% dos textos são sobre outras mulheres (211 ocorrências). Todavia,
em 97 textos (13,5% do total) não foi possível localizar as mulheres referidas.
6.2.2. Discussão dos dados relativos aos textos escritos sobre mulheres
A análise dos dados demostra que 1958 e 1959 são anos de viragem, responsáveis por
algumas das conclusões chegadas. Em primeiro lugar, cada um destes anos apresenta 7,8%
de textos escritos sobre mulheres (em relação ao total de textos escritos por ano), o que é
superior à média total (7,1%), como se pode observar no quadro 13.
No que diz respeito ao “tipo de tema”, apesar da “criação literária” ter mais ocorrências no
total, a sua contabilização decai nos anos de 1958 e 1959, emergindo a “religião”, o que
provoca uma mudança no tipo de produção escrita sobre o feminino, visto que a imagem
da mulher passa a ser objeto de maior atenção no campo da intervenção pública, sobretudo
na organização de atividades religiosas, do que na mera produção de contos e poemas.
Obviamente que, como as “notas breves” estão associadas ao tema “religião”, também
estas vão sofrer uma subida no final da década de 1950. Estes dados acabam igualmente
por estar relacionados com o sentido do discurso, que em 1958 e 1959 passa a ser
maioritariamente laudatório, ultrapassando todos os outros, particularmente o neutro, que
liderava as ocorrências. Tudo indica que, as mulheres, ao envolverem-se em atividades de
caráter religioso, são progressivamente alvo de crítica tendencialmente laudatória.
242
Capítulo VI – Estudo Empírico
Partindo agora para uma análise mais detalhada dos dados, começa-se por salientar o facto
de apenas 7,1% dos textos produzidos n’O Ilhavense serem sobre mulheres e, embora
estejam presentes várias temáticas, importa focar este estudo na “criação literária”, na
“religião” e na “morte/luto”, por serem estas as que possuem maior ocorrência.
No que diz respeito à “criação literária”, a imagem da mulher é sobretudo utilizada para
preencher o imaginário criativo da literatura poética deste jornal, na medida em que a
produção de poemas e de contos se centra, na maior parte dos casos, na figura feminina. A
mulher é o objeto do imaginário masculino que é utilizado como inspiração simbólica na
produção textual.
Neste contexto, muitos contos incluem a figura feminina, como, por exemplo, os de
Manuel Adra, Silva Peixe, C.E.R. (autor desconhecido), José Geitoeira e Observador
(autor desconhecido). Como exemplos, destacam-se pequenas passagens dos contos dos
autores nomeados:
- Manuel Adra escreve sobre o casamento de Cristina – mulher não muito bonita, mas que
arranja marido e irradia felicidade (“até parece mais bonita”);
A Cristina parecia outra. Estava mais alegre, mais exuberante, o olhar com mais
luz. Quase me pareceu bonita, apesar do buço castanho e dos dentes saídos.
(…)
- Andas a tratar do enxoval?
Andava mesmo! Ele queria casar depressa, ia para uma viagem de 8 meses,
andava num panamaiano…
- Gostas dele? – quis saber.
- Gosto – respondeu corando mais ainda – ele é muito meu amigo…
Esta é a história da Cristina a quem o Menino Jesus pôs um marido no sapatinho.
(O Ilhavense, 1 de janeiro de 1951, p.1)
243
Capítulo VI – Estudo Empírico
- Silva Peixe escreve sobre a desgraça em que cai uma mulher grávida fora do casamento e
que é abandonada pela traição do apaixonado;
Conhecia-a no campo, quando ela era pura e linda como a luz deste alvor que
acabo de contemplar.
(…)
Sorrimos os dois, e após um galanteio trocámos algumas palavras de amor, desse
amor tão puro como a pureza da alma dessa mulher.
(…)
Certo dia, entrei [no moinho]: Sim, entrei, mas antes o moinho tivesse ruído,
para matar peçonha deste grande pecador. Dessa entrevista, nasceu o fruto do
pecado; uma filha - «a flor do campo».
(…)
Depressa me esqueci dessa linda camponesa que se deixou morrer vendo no seu
sedutor o maior dos traidores. Outra mulher veio ocupar no seu coração, o lugar
daquela que tinha ficado no moinho, acariciando o fruto do seu puro amor, e
duma vil traição. Alguns meses depois, recebo uma carta de Maria, dizendo:
São estas as últimas linhas que te escrevo, sinto que a morte se aproxima a
passos gigantescos! (…) Não quero partir (…) sem te pedir que não vejas a
minha filha, a filha duma qualquer. Por mim estás perdoado de todo o mal que
me fizeste, mas peço-te que veles pela nossa filha, que lhe dês um nome digno
dela, e que sejas melhor para ela que foste para mim: vela por essa inocente, que
eu morro confiando no meu pedido.”
(O Ilhavense, 20 de março de 1951, p.4)
- C.E.R. escreve sobre as mulheres da rua do Espigueiro que, de tão bonitas que eram,
“enfeitiçavam” os rapazes, e por isso eram consideradas bruxas;
244
Capítulo VI – Estudo Empírico
- José Geitoeira escreve sobre três mulheres que estão no intervalo de um espetáculo e
criticam uma outra que se masculinizou, e escreve ainda sobre como uma mulher pode ser
mentirosa (mulher que mente por ter vergonha de ser a esposa de um ferroviário);
- Observador escreve sobre um casal em que ela exige tudo e ele não tem dinheiro.
O certo é que ela primeiro quis vestidos, fatos, sapatos, meias, malas!...
Absolutamente lógico. Todas as mulheres querem isso. E eu, com grandes
sacrifícios, aguentei o barco. Depois quis um rádio. Realmente, até parecia mal
não termos um rádio. Tinha razão. Comprei-lhe a telefonia. Depois, parece-me
que por esta ordem, quis um filho. Absolutamente lógico! Toda a mulher quer ter
filhos… é a vida e principal missão delas. Aliás (é uma mulher cheia de sorte!) já
antes quisera um marido, e o certo é que o teve. E, graças a Deus!... Já temos um
filho que é um amorzinho.
(…)
Mas estas coisas são artes do diabo. Habituou-se, e cheguei à conclusão que a
única coisa que ela não queria… era ter dinheiro em casa.
(O Ilhavense, 10 de dezembro de 1958, p.4)
245
Capítulo VI – Estudo Empírico
De uma forma geral, grande parte dos textos literários sobre mulheres, presentes n’O
Ilhavense, expõem uma mulher que se define através da sua relação com o homem,
particularmente se se trata de uma mulher casada ou não. Portanto, na maioria dos contos e
dos poemas – onde a mulher tende a ser a protagonista da história – deteta-se, facilmente,
um caráter moralizador, que denuncia os comportamentos da mulher (de acordo com a sua
condição de casada ou solteira) através de exemplos.
Desta forma, é aqui visível que o poder do casamento é o que detém o desejo de
legitimação destas mulheres enquanto seres humanos (Butler, 2004). A Religião associada
ao Estado torna-se o meio pelo qual o feminino é medido, valorizado e legitimado,
tendencialmente excluindo as mulheres que vivem fora desta situação – as mulheres
solteiras. Importa aqui questionar: O que significa incluir as mulheres que vivem dentro do
casamento? E as que vivem fora desta legitimação social? Como as apelidar?
Esta produção literária sobre mulheres vai ao encontro do que foi discutido na revisão de
literatura e nas restantes análises, de que os media, tendencialmente, criam apenas duas
imagens da mulher (Wood, 1994) – uma angelical e outra diabólica. Esta dicotomia surge
da forte influência da metáfora religiosa que apresenta a mulher de acordo com duas óticas:
Eva (pecadora e que leva Adão a pecar) e Maria (mãe de Cristo e modelo de castidade,
devoção e santidade). Obviamente que se trata de dois protótipos de mulher – que não
existem – que se encontram nas pontas de dois extremos do comportamento social, mas
que, contudo, são frequentemente produzidos, utilizados e reforçados na produção
mediática.
Esta influência secular da simbologia católica acarreta vincadas funções sociológicas que
determinam o que implica ser/estar no feminino, e os textos em análise são mais um desses
exemplos. Efetivamente, os autores do jornal O Ilhavense atrás citados apresentam,
constantemente, uma mulher “má” ou “bruxa”, com um comportamento condenável e
manipulador (que procura um homem, “forçando-o” a casar através de contornos
maquiavélicos), deixando subentender o contraste com uma mulher “boa” e exemplar,
modelo para toda a mulher ilhavense (mulher “abençoada” pelo casamento). Ou seja, os
textos expõem (utilizando a ficção), os comportamentos e as atitudes a evitar pelo sexo
feminino, ao mesmo tempo que descrevem os socialmente aceites. A mulher é
246
Capítulo VI – Estudo Empírico
No caso da referida “dependência”, basta fazer emergir a tendência sexista da época que
pretendia afastar a mulher do trabalho remunerado, aumentando o seu grau de dependência
do marido. Simultaneamente, as pressões sociais para empurrar a mulher para a estrutura
matrimonial também aqui se fazem sentir. A mulher é incentivada a casar e a depender
económica e socialmente do marido, forçando a manutenção de um ciclo de complexas
relações de poder, onde “ela” é sempre o elemento dominado, embora nem sempre
conformado.
Em suma, estes textos literários, escritos na sua maioria por homens, protagonizam a
mulher, apresentando-a numa dicotomia do (in)desejável. Estes discursos aparecem assim
como mais um mecanismo de vigilância do ideal moralizante do feminino, ou seja, do que
implicava ser mulher, em Ílhavo, naquela época.
247
Capítulo VI – Estudo Empírico
Maria Rosa Praia Marnoto agradece uma graça recebida por intercessão de Santa
Filomena.
(O Ilhavense, 1 de janeiro de 1958, p.2)
Lídia São Marcos torna públicas, como prometeu, algumas graças alcançadas por
intercessão do bondoso padre Cruz.
(O Ilhavense, 1 de janeiro de 1958, p.5)
Maria Fernanda Neves de Oliveira torna pública uma graça recebida através do
Padre Cruz.
(O Ilhavense, 10 de janeiro de 1958, p.6)
Cabe aqui fazer uma pequena anotação em relação à referência ao “bondoso padre Cruz”.
De facto, muitos destes pedidos de graças e agradecimentos incluem o nome deste padre,
sobretudo no final da década, o que pode estar relacionado com a procura de aprovação
(comportamental, atitudinal e, em última instância, social), por parte destas mulheres,
através da religião.
Importa aqui perceber se é a religião uma forma de dar voz à mulher, ou apenas uma lente
que projeta o comportamento feminino, ao mesmo tempo que o disciplina. Se, por um lado,
não é através da religião que o feminino se expressa (como foi possível observar na análise
dos textos escritos por mulheres), por outro, é através dela que ele é expressado. Quer isto
dizer que o feminino é frequentemente encurralado no espaço religioso, sobretudo em
contextos que não exigem muito destaque social e em que a mulher possa surgir de forma
discreta. Falta ainda referir que a mulher é vista como um ser frágil, que está
constantemente dependente da intervenção divina ou masculina (aqui representada pelo
padre da paróquia), e, ao mesmo tempo que por ela é vigiada, também por ela é punida (se
assim se revelar necessário).
248
Capítulo VI – Estudo Empírico
Quer isto dizer que a mulher aplica aqui mecanismos de (auto)vigilância numa escala
comportamental, e que estes se materializam na sua ligação com o divino (o padre) e na
forma como ele lhes concede graças. Claramente se lida ainda aqui com normas que
vigiam e disciplinam (repressiva e produtivamente), e que estabelecem o “certo” e o
“errado”, pois segundo a tradição moralizante da Igreja Católica, só os bons são
recompensados. Por outras palavras, ao dar visibilidade a determinadas mulheres (visto
que os seus nomes são referidos), o jornal está a presenteá-las socialmente e a utilizá-las
como exemplo a seguir por outras mulheres. Estes breves anúncios têm, portanto, uma
dimensão prescritiva.
O ato discursivo destas mulheres apresenta-se aqui como um ato de confissão. Confissão
que se procura libertar através da linguagem e do corpo, na medida em que as palavras são
performativas ou ofertas corporais (Butler, 2004). Trata-se de uma espécie de “confissão
psicanalítica” pela qual, (in)voluntariamente, estas mulheres se expõem, verbalizando
aquilo que consideram verdadeiro. Contudo, importa ressalvar que a legitimação que estas
mulheres procuram foi identificada por Michel Foucault como “poder pastoral”, ou seja, o
poder do padre ou a voz da verdade. Pode-se olhar para esta confissão como uma
necessidade de legitimar a psique, procurando para isso a autoridade do Outro (masculino)
e moralizador (religião): “(…) o padre tem uma autoridade discursiva da verdade” (Butler,
2004:161).
249
Capítulo VI – Estudo Empírico
Este tipo de notícias são uma forma ainda mais apurada de dar destaque às mulheres cujo
comportamento é socialmente conformado e “bem visto”. Mais do que “publicitar” o
comportamento expectável da mulher, estes textos vigiam-no e incentivam a sua
multiplicação. Isto vai ao encontro do regime do poder disciplinar teorizado por Michel
Foucault (2010c:170) que afirma que “a disciplina faz ‘funcionar’ um poder relacional que
se autossustenta pelos seus próprios mecanismos (…)”, afastando a arte de punir da
repressão e aproximando-a de um conjunto de atos, comportamentos e normas que
diferenciam por comparação e apresentam uma regra a seguir. No caso particular destes
textos, as mulheres são incluídas numa norma que as envolve num contexto
comportamental socialmente aceitável e expectável, automaticamente excluindo e
distinguindo as “outras” que não se incluem neste conjunto.
Há ainda no jornal algumas referências a mulheres que fazem donativos para a igreja de
Ílhavo. Muitas destas mulheres, emigrantes nos E.U.A e no Canadá, são brevemente
distinguidas no jornal como exemplos a seguir. Nestas notas é, normalmente, indicado o
nome da mulher que faz o donativo, o local onde se encontra radicada, o fim do donativo e
a quantia doada, como se pode observar nestes exemplos:
250
Capítulo VI – Estudo Empírico
Estas notas são outras das formas que conotam a mulher com o “bem”, mas implicam
ainda uma outra complexa relação entre o feminino e a sociedade, pelo que importa
perguntar: Não estarão as mulheres a procurar visibilidade social através da sua capacidade
económica? Estarão elas a pagar, literalmente, o seu lugar de destaque na sociedade? Ou
será apenas a mulher emigrante a procurar manter viva a sua presença e o seu valor no
contexto social ilhavense?
Importa ainda fazer referência à organização das comissões de festas, visto que na época
eram formas de representação do estatuto social (e de género) das localidades. Na maioria
das vezes, os lugares de destaque destas comissões eram atribuídos aos homens. Contudo,
visto que Ílhavo carecia de elementos do género masculino (por longos períodos de
tempo), um dos aspetos que se esperava encontrar relativamente às mulheres no contexto
religioso em Ílhavo era o seu papel preponderante na constituição das comissões de festas,
assumindo aí lugares de destaque. Todavia, no jornal O Ilhavense não se encontrou essa
projeção social, podendo apenas dar-se como exemplo uma referência que corresponde à
comissão de organização da festa da Senhora da Saúde na Gafanha da Encarnação (mas
mesmo assim onde é o homem a dar o lugar à mulher, visto que quem nomeia as
organizadoras é o reverendo pároco):
251
Capítulo VI – Estudo Empírico
Um olhar atento identifica, neste ponto, uma rutura em relação ao que já foi referido sobre
o tema “religião”. Se, com os pedidos de graças, as notícias sobre comemorações religiosas
(e outras festas) e os donativos, as mulheres ganham alguma visibilidade social em Ílhavo,
no caso das comissões de festas essa visibilidade é drasticamente reduzida. Será esta uma
representação da falta de visibilidade da mulher nos lugares de destaque social? Pois, se, de
facto, são elas quem organiza as festas e quermesses, e interpelam pelas graças divinas,
porque não lhes atribuir lugares de destaque nas comissões, sobretudo num contexto em
que escasseiam os homens? Ou, colocando a questão de outra forma, se as mulheres
tinham lugar no contexto religioso do concelho, porque não eram produzidos conteúdos
discursivos sobre isso no jornal O Ilhavense?
No que diz respeito ao tema da “morte/luto”, trata-se sobretudo de notícias sobre a morte
de mulheres, nomeadamente as pertencentes a uma camada elevada da sociedade, as que
morrem fruto de acidentes ou outras causas chocantes, ou simplesmente as que, por serem
conhecidas dos ilhavenses ou a pedido da família, merecem destaque em notícia lutuosa.
Existem ainda variadíssimas notas de agradecimento dos familiares de mulheres falecidas,
à semelhança do que acontecia com os textos escritos por mulheres.
Um dos casos que mais se destaca, pela sua dimensão e atenção dispensada, é a notícia do
falecimento de D. Nair Figueira de Moura (uma não-ilhavense), informação de primeira
página, com exposição da fotografia da falecida a preto e branco:
(…) Faleceu na vila de Vagos, com 36 anos, a ex.ma sr.ª D. Nair Figueira de
Moura, esposa do ex.mo sr. dr. Frederico de Moura, sub-delegado de saúde e
médico muito distinto naquela vila.
(…)
252
Capítulo VI – Estudo Empírico
A morte desta senhora deu motivo a uma grande manifestação de pesar, não só
pelas qualidades da ilustre extinta, mas também pela alta consideração em que é
tido em todos os meios sociais o sr. dr. Frederico de Moura.
Em Ílhavo era o pronto-socorro que conduzia a urna, aguardado à porta do
Hospital, pelas individualidades de maior representação nesta vila, alunos do
Externato, Bombeiros Voluntários, Guarda Republicana, direção do Hospital e
muitos amigos doridos.
(O Ilhavense, 20 fevereiro de 1951, p.1)
Na realidade, este tipo de modelo noticioso não é tão frequente quando se trata do
falecimento de uma mulher, ao contrário do que acontece quando se trata do falecimento
de um homem. Normalmente, as notícias de falecimento de mulheres são breves e
particularmente informativas, sem recurso a fotografia. Apenas quando se trata de esposas
ou filhas de alguém (masculino) com um estatuto social elevado é que lhes é dedicado
espaço e visibilidade no jornal, tal como se pode verificar com o caso acima exposto de D.
Nair Figueira de Moura, que até na morte é definida através do masculino (ex.: “esposa do
ex.mo sr. dr. Frederico de Moura”). Em outras notícias é ainda possível ter acesso à
descrição pormenorizada dos cortejos fúnebres e das pessoas presentes nos velórios,
embora respeitando as normas referidas em cima (em relação ao estatuto social). Quer isto
dizer que, quanto mais influente for a pessoa falecida, maior, mais descritiva e mais
ilustrada será a notícia, sendo colocada no topo da pirâmide a morte de homens influentes.
253
Capítulo VI – Estudo Empírico
A área mista, que reagrupa temas ligados às artes e curiosidades, apresenta-se em segundo
lugar, muito por causa dos temas “criação literária” e “saúde/beleza”. Não muito afastado,
em termos percentuais (como se pode ver no quadro 15), encontra-se o conjunto de temas
correspondente à “área íntima”.
Importa referir, nesta fase, que as três áreas indicadas, apesar de apresentarem
percentagens diferentes (o que as separa hierarquicamente), não são muito díspares. Isto
acontece muito por força da distribuição dos níveis de categoria com mais ocorrência por
cada uma das áreas. Curioso é perceber que, apesar dos limites nas áreas e nas formas de
representação, é na produção sobre o feminino que as mulheres ganham alguma
intervenção social.
Quanto ao “tipo de texto”, a investigação releva a “nota breve” e a “notícia” como os mais
referenciados. Um cruzamento entre o “tipo de texto” e o “tipo de tema” revela ainda que
as “notas breves” são pequenas notas que discursam particularmente sobre a temática
“religião”, enquanto a maior parte das notícias são sobre “morte/luto”. Portanto, há aqui
uma ligação entre alguns dos temas e dos tipos de texto mais frequentes. Todavia, salienta-
se o facto de o “tipo de tema” mais referido ser também aquele que é exposto de forma
mais concisa (através de notas breves). Já o segundo tema – “morte/luto” – é o que merece
uma produção noticiosa um pouco mais cuidada e extensa, talvez fruto da natureza
descritiva que envolve o tema, como já foi referido.
Tal como foi possível identificar na análise dos textos escritos por mulheres, também aqui
é possível apontar perfis sociais da mulher ilhavense. Numa primeira etapa sobressaem
254
Capítulo VI – Estudo Empírico
Moisés Martins (1990:86), na sua obra O olho de Deus no discurso salazarista, fala da
moral católica enquanto dispositivo tático, que funciona como “instância disciplinar
perfeita”. Ora, esta ideia de moralizar a mulher encaixa nesta súplica religiosa de caráter
normativo e controlador. Ainda segundo o mesmo autor, há nesta moral cristã uma vontade
de amestrar as mulheres, de reconhecer “(…) o sujeito obediente, o indivíduo submetido a
regras, a ordens e hábitos, o indivíduo submetido a uma autoridade (a autoridade da
Igreja), que em si deve funcionar automaticamente” (Martins, 1990:47). Logo, a religião
não só releva a capacidade de estruturar o feminino individualmente (e a sua relação com a
comunidade), como de organizar a vida coletiva das mulheres ilhavenses.
As relações de poder são tão complexas que, nestes discursos sobre o feminino, as
mulheres necessitam da religião para se normatizarem socialmente, pelo que fazem
donativos, organizam festas e encomendam rezas: ou porque procuram a aprovação do
pároco, ou porque procuram a aprovação da sociedade ilhavense. A forma como os
discursos são apresentados deixa transparecer um perfil social de (auto)identificação por
parte das mulheres em relação à sua condição de “mulher-moralizada”. O seu papel na
igreja católica parece satisfazê-las, respondendo às suas necessidades de reconhecimento
social.
255
Capítulo VI – Estudo Empírico
Tal como já foi referido, estes discursos sobre o feminino surgem como mecanismos de
vigilância do comportamento das mulheres ilhavenses, que não apresentam indícios de
identificação por parte das mesmas. Estes mecanismos são maioritariamente criados pelo
Outro masculino, e procuram encaixar a mulher em apenas dois blocos opostos – “mulher
boa” e “mulher má” – o que afasta a conceção da mulher como ser individualizado com
uma identidade própria, autónoma em relação ao cânone masculino, e, por sua vez, afasta a
identificação do feminino com este perfil social. Logo, isto implica que são produzidos
parâmetros de personalidade ou de identidade de acordo com normas abstratas,
estruturalmente fálicas, e que condicionam e “fazem” alguns tipos de mulher.
Importa ainda perceber que, apesar da mulher não se identificar com este perfil social não-
individualizado, não surgem, no jornal, indícios de reação feminina. Ou seja, a mulher
ilhavense pode não se identificar com este perfil, mas parece interiorizá-lo, não mostrando
resistência à sua proliferação, pelo menos no jornal analisado. Isto vai ao encontro do
modelo hegemónico masculino, que se impõe no meio social ilhavense, e que prolifera nas
redes relacionais, tanto masculinas como femininas.
Mais do que simples palavras articuladas, estes discursos são formas de pensar e viver
socialmente a feminilidade, tanto pelos homens como pelas próprias mulheres. Os
discursos textuais (e iconográficos), que proliferam neste jornal, têm consequências para as
mulheres ilhavenses, que os interiorizam (quer se comportem ou não de acordo com eles),
solidificando representações e perfis identitários sedimentados por estruturas hegemónicas
masculinas, que, em nenhum momento – e respondendo à questão de investigação proposta
256
Capítulo VI – Estudo Empírico
Mais do que fazer uma discussão sobre os dados relativos aos textos escritos sobre
mulheres, importa compará-los com os dados referentes aos textos escritos por mulheres,
de forma a encontrar elementos comunicantes ou eventualmente díspares, ou seja,
procurando outras formas de ver/expressar o feminino no jornal O Ilhavense.
A primeira nota vai para a contabilização efetiva do número de textos. Nos textos escritos
por mulheres, num universo de 10104 peças, 182 foram escritas por mulheres, o que
corresponde apenas a 1,8% do total (ver quadro 5). Tal como já foi referido anteriormente,
este número é irrisório comparado com a produção textual atribuída ao homem, o que
afasta o feminino da realização discursiva da época. No caso dos textos escritos sobre
mulheres a percentagem sobe um pouco, pois, num universo de 10104 peças, existem 716
escritas sobre mulheres (equivalentes a 7,1% do total, como se pode observar no quadro
13). Apesar de o número de textos escritos sobre mulheres ser superior ao de textos
escritos por mulheres, continua-se a lidar com números baixíssimos, o que é representativo
da condição feminina da época: as mulheres não produziam textos, nem eram matéria
textual no jornal O Ilhavense, o que, mais uma vez, se afasta da premissa da sociedade
ilhavense ser representada dentro de um contexto matriarcal, na década de 1950. Neste
sentido, O Ilhavense é a voz de uma cultura, de um olhar e de um nome masculinos.
Apesar de a presença feminina, em termos numéricos, ser reduzida, é um facto que ela
existe, embora relacionada com temáticas específicas. Nos textos escritos por mulheres
sobressaem os temas “criação literária” (39%) e “morte/luto” (19%), por serem os que têm
mais referências, e nos textos escritos sobre mulheres os tipos de tema que se destacam,
são “criação literária” (20,5%), “religião” (18%), e ainda “morte/luto” (13,6%) – ver
quadro 6 e quadro 14, respetivamente. Estes dados representam as temáticas que mais
rodeavam o universo feminino, e um enfoque apenas nestes temas reforça – à semelhança
do que vai acontecer com a análise das imagens de mulheres – o caráter apolítico do
feminino. As mulheres estão sub-representadas no jornal O Ilhavense, e continuam a ser
257
Capítulo VI – Estudo Empírico
Como se pode verificar, nos textos escritos por mulheres e nos escritos sobre mulheres não
são detetadas grandes diferenças ao nível das temáticas. Existem contudo alguns tipos de
temas encontrados nos textos no feminino que não foram encontrados na produção sobre o
feminino, embora não sejam relevantes em termos numéricos. Por exemplo, nos textos
escritos sobre mulheres os temas “sexualidade” e “aniversários/acontecimentos de relevo”
(ver quadro 14) são referidos, não existindo nos textos escritos por mulheres. No sentido
contrário, os temas “vida doméstica”, “terceira idade” e “mar/vida marítima” (ver quadro
6), que surgem nos textos escritos por mulheres, são omissos na produção discursiva sobre
o feminino, o que significa que não se encontra no imaginário da produção masculina
aquilo que é considerado pelo imaginário próprio do feminino. Como é natural, o
imaginário sobre a mulher é mais estereotipado (embora seja o mais prevalecente em
termos percentuais) do que o da própria, que é autêntico. Logo, também isto contribui para
a construção de um olhar estereotipado da mulher que reforça o lugar hegemónico da
produção de sentido do homem.
Tal como já foi referido anteriormente, é possível um reagrupamento dos tipos de tema que
permite organizar os dados em diferentes áreas, de forma a facilitar a sua interpretação. No
caso dos textos escritos por mulheres, em primeiro lugar, encontra-se a área íntima
(família) e, em último lugar, a área social (intervenção pública), como se pode verificar no
quadro 7. Quer isto dizer que as mulheres não se projetavam a si próprias socialmente em
áreas relacionadas com o trabalho, os estudos, a religião, a política ou os negócios, mas
sim contemplando sobretudo o lugar do feminino dentro da esfera privada e íntima da
família. Todavia, no caso dos textos escritos sobre mulheres esta questão inverte-se,
ficando a área social com 40,9% das ocorrências (como se pode observar no quadro 15).
O espaço feminino é agora projetado socialmente com produção textual que se insere
nomeadamente nas áreas da religião (festas religiosas), da finalização dos estudos e dos
negócios. Contudo, apesar do feminino ter ganho espaço social nos textos escritos sobre
258
Capítulo VI – Estudo Empírico
mulheres, isso não implica que esses lugares sejam de destaque. No primeiro caso, já foi
discutido que apesar de as mulheres serem chamadas para o panorama social religioso, as
suas atividades são de “bastidores”, não assumindo estas qualquer liderança ou tomada de
decisão no caso das festas ou quermesses. O seu papel é meramente prestável e de
execução. No caso dos estudos, são de facto visíveis as referências ao número de mulheres
que terminam os seus estudos, embora não seja claro qual o seu papel na vida profissional
depois dos estudos terminados (tudo apontando para mulheres formadas que esperam um
“bom” casamento). Relativamente ao campo dos negócios, existem algumas ocorrências,
embora a maioria seja referente à mesma mulher que possui um estabelecimento em
Ílhavo. Ou seja, o número de ocorrências é significativo, mas não a sua diversidade.
No caso do “tipo de texto”, tanto nos textos escritos por mulheres como nos escritos sobre
mulheres, os tipos de tema e os tipos de texto com mais ocorrências entrecruzam-se. Por
exemplo: na produção no feminino analisa-se a “nota breve”, o “poema” e o
“agradecimento”, que acabam por estar relacionados com os tipos de tema “criação
literária” e “morte/luto” (ver quadros 6 e 8); na produção do feminino sobressaem a “nota
breve” relacionada com a temática “religião” e a “notícia” relacionada com a temática
“morte/luto” (ver quadros 14 e 16).
Em relação ao tipo de linguagem, tanto nos textos escritos por mulheres como nos escritos
sobre mulheres este é maioritariamente conotativo, embora no segundo caso a diferença
para o denotativo seja residual, como se pode ver no quadro 18. Resta referir que em
ambas as situações é a mulher de Ílhavo a que se encontra em maior destaque.
259
Capítulo VI – Estudo Empírico
De uma forma geral, os textos escritos por mulheres e os textos escritos sobre mulheres
parecem estruturalmente idênticos, embora a ordem de importância temática esteja
invertida. Curioso é o modo como estes dados se encontram relacionados com a forma
como a mulher se vê a si própria e como é vista pelo Outro, ou seja, pelo homem.
Aparentemente, quando se fala em “textos escritos por mulheres” isto implica que a análise
seja entendida a partir do olhar da mulher sobre si própria, como esta se identifica com o
que escreve, como se autorrepresenta e qual o lugar a que entende pertencer na sociedade
ilhavense. Na mesma linha de pensamento, quando se fala em “textos escritos sobre
mulheres” isto implica que a análise seja entendida através do olhar exterior, do Outro
masculino que pensa, avalia e representa a mulher. Nestes textos, a mulher parece ser
tendencialmente apresentada a partir de um ponto de vista social (de visibilidade exterior),
o que é coerente com a quase certa autoria masculina destes textos.
Este estudo deixa adivinhar um pensamento hegemónico que envolve as relações entre
homens e mulheres, neste contexto específico. As identidades de género não parecem ter
aqui um problema de definição ou afirmação, nem há lugar para colocar a questão da
resistência feminina. De facto, dá-se a imposição de um modelo masculino, que organiza e
define o feminino, e que aparentemente não encontra resistência. Um olhar atento dos
perfis identificados demonstra exatamente isso.
Apesar de se identificar, nos textos escritos por mulheres, uma mulher que não revela o
perfil esperado de mãe, esposa ou educadora, e de se reconhecer uma “mulher-prática” que
deixa transparecer algumas mudanças na sociabilização de género em Ílhavo, certo é que
os restantes perfis encontrados (tantos nos textos escritos no feminino como nos escritos
260
Capítulo VI – Estudo Empírico
Tudo isto implica que a sociedade ilhavense desta época, apesar das particularidades
sociais que apresenta, está de acordo em relação às questões de género e à respetiva
distribuição de papéis vigentes na época e de tão difícil libertação: o feminino definido por
um imaginário estereotipado pelo sistema organizacional e estrutural masculino, e vigiado
e mantido por uma política interna de autodisciplina.
64
Realizada sem recurso a programas informáticos de análise de dados.
261
Capítulo VI – Estudo Empírico
Estas imagens, entre desenhos e fotografias (a preto e branco) ocupam sensivelmente cerca
de 7% do espaço de exposição destes jornais (ver quadro 21)65. Uma análise geral dos
dados permite concluir que, das 712 imagens que se encontram nestes jornais, 22,5%
incluem mulheres (160 imagens)66, como se pode observar no quadro 22.
Quadro 22 | Imagens que incluem mulheres e imagens que incluem homens, na década de
1950
Dos anos analisados destaca-se o de 1958 por possuir um número mais elevado de imagens
que incluem mulheres (52 imagens, que correspondem a 46,8% do total de imagens
publicadas nesse ano), enquanto o ano de 1954 é o que revela uma percentagem mais
reduzida de imagens que apresentam mulheres (5,4% do total de imagens publicadas nesse
ano), como se pode verificar no quadro 22.
Em relação ao ano de 1954, destaca-se o facto de este ser uns dos que possui mais
imagens, o que não corresponde proporcionalmente ao número de imagens que incluem
mulheres. Em relação ao ano de 1958 destaca-se o facto de não se tratar de um dos anos
com maior número de exemplares, nem de imagens, embora sejam abundantes os ícones
com a presença feminina.
Quando se analisam as ocorrências icónicas relativas ao sexo masculino, uma análise geral
dos dados permite concluir que, das 712 imagens, apenas 19,5% incluem homens (139
65
Tendo em consideração a dimensão de cada página de jornal, o número de peças escritas e o número de
imagens, é possível calcular uma estimativa do espaço ocupado pelas imagens, apesentado em percentagem
(%).
66
Nas imagens que incluem mulheres, são contabilizadas as imagens onde aparecem só mulheres e as
imagens onde aparecem mulheres e homens.
262
Capítulo VI – Estudo Empírico
imagens)67, como se pode verificar no quadro 22. De todos os anos analisados destaca-se o
de 1958 por possuir a percentagem mais elevada de imagens que incluem homens (22,5%
do total de imagens publicadas nesse ano), enquanto o ano de 1950 é o que revela a
percentagem mais reduzida de imagens que incluem homens (15,4% do total de imagens
publicadas nesse ano), como se pode observar no quadro 22. A presença icónica dos
homens segue uma espiral ascendente entre 1951 e 1955, decaindo nos anos de 1958 e
1959.
O ano de 1950, apesar de possuir um número relativamente elevado de imagens, acaba por
limitar numericamente as imagens que incluem homens. Já o ano de 1958, que não é um
dos anos com maior número de imagens, destaca-se por ser o ano com maior número de
imagens onde figuram homens.
Note-se também que a soma das imagens que incluem mulheres (160 imagens) e das
imagens que incluem homens (139 imagens) perfaz um total de 299 imagens (que
correspondem a 42% do total das imagens publicadas, como se poder observar no quadro
22). Este número corresponde a menos de metade das imagens publicadas (712 imagens),
pelo que importa indicar que as restantes imagens se inserem na categoria “outras”, que
correspondem a imagens que não incluem homens nem mulheres.
67
Nas imagens que incluem homens, são contabilizadas as imagens onde aparecem só homens e as imagens
onde aparecem mulheres e homens.
263
Capítulo VI – Estudo Empírico
Quadro 23 | Ocorrências do “tipo de tema” das imagens que incluem mulheres, na década
de 1950
Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Saúde/ beleza 0 0 0 3 27 24 54 33,8%
Negócios/
18 0 5 7 1 0 31 19,4%
comércio68
Criação
0 0 0 24 1 1 26 16,3%
literária69
Assistência
4 0 0 0 14 0 18 11,3%
aos outros
Morte/ luto 2 2 2 1 0 0 7 4,4%
Religião 0 5 0 1 0 0 6 3,8%
Artes e
Tipo de 0 0 1 0 2 2 5 3,1%
espetáculos
tema Estudos/
0 0 0 0 4 1 5 3,1%
educação
Lazer/
2 0 0 0 1 0 3 1,9%
tempos livres
Casamento/
0 0 0 0 1 1 2 1,3%
família
Aniversários/
aconteciment 0 0 0 1 1 0 2 1,3%
os de relevo
Política/
0 0 0 1 0 0 1 0,6%
economia
Total 26 7 8 38 52 29 160 100%
264
Capítulo VI – Estudo Empírico
da figura 6); e anúncio da venda de uma marca de motociclos com utilização da imagem de
uma mota conduzida por uma mulher (ver exemplo da figura 7).
265
Capítulo VI – Estudo Empírico
266
Capítulo VI – Estudo Empírico
Tal como acontece com o tratamento dos dados no assunto “textos escritos por mulheres”,
onde os níveis de categoria do “tipo de tema” foram reagrupados em novas categorias,
também na leitura de imagens que incluem mulheres foi possível realizar o mesmo
processo (tal como se pode verificar com o quadro 24).
Quadro 24 | O corpo no regime das imagens que incluem mulheres (jornal O Ilhavense, na
década de 1950)
No quadro 24 foi possível reunir os níveis de categoria em três novas categorias mais latas
no que respeita à compreensão de utilização da imagem de mulher, e que se centram no
regime corporal das imagens: “estética/beleza”, “assexualidade” e “autoridade”. Estas
novas categorias ou modos de figuração imagética procuram colocar em destaque as mais
importantes dimensões da imagem corporal feminina que a sua representação suscita no
material estudado.
267
Capítulo VI – Estudo Empírico
(119 ocorrências, que correspondem a 74,4% do total). Quer isto dizer que, nestas imagens,
a mulher é tendencialmente representada como “bela” e cuidadora da sua aparência.
Passando agora para a análise das imagens masculinas, a categoria “tipo de tema” (ver
quadro 25) revelou que as imagens do jornal O Ilhavense, que incluem homens, podem ser
distribuídas por dezasseis níveis diferentes, dos quais se destacam: “negócios/comércio”
(35 ocorrências ou 25,2% do total), “religião” (20 ocorrências ou 14,4% do total),
“assistência aos outros” (15 ocorrências ou 10,8% do total) e “morte/luto” (15 ocorrências
ou 10,8% do total).
268
Capítulo VI – Estudo Empírico
Quadro 25 | Ocorrências do “tipo de tema” das imagens que incluem homens, na década de
1950
Níveis da Total
Categoria 1950 1951 1954 1955 1958 1959 Total
categoria %
Negócios/
0 0 19 16 0 0 35 25,2%
comércio70
Religião 2 7 3 4 1 3 20 14,4%
Assistência
4 0 0 0 10 1 15 10,8%
aos outros
Morte/ luto 2 1 2 2 4 4 15 10,8%
Política/
2 3 1 2 1 3 12 8,6%
economia
Estudos/
1 1 0 3 2 0 7 5%
educação
Aniversários/
aconteciment 4 0 0 0 1 1 6 4,3%
os de relevo
Tipo de
Artes e
tema 0 0 4 0 0 1 5 3,6%
espetáculos
Desporto 0 0 0 2 3 0 5 3,6%
Mar/ vida
1 0 0 1 0 2 4 2,9%
marítima
Trabalho/
1 0 0 1 0 2 4 2,9%
profissional
Criação
0 0 1 2 1 0 4 2,9%
literária71
Lazer/
2 0 0 0 1 0 3 2,2%
tempos livres
Casamento/
0 0 0 0 1 1 2 1,4%
família
Animação 0 0 0 1 0 0 1 0,7%
Vida militar 0 0 1 0 0 0 1 0,7%
Total 19 12 31 34 25 18 139 100%
269
Capítulo VI – Estudo Empírico
270
Capítulo VI – Estudo Empírico
As imagens sob a temática “assistência aos outros” vão ao encontro do que foi referido no
ponto reservado à análise das imagens que incluem mulheres. Trata-se de eventos de ajuda
à misericórdia e ao hospital de Ílhavo, nomeadamente fotografias de eventos específicos de
angariação de fundos (ver exemplo da figura 13).
Já em relação à temática “morte/luto”, salienta-se o facto de n’O Ilhavense ser usual dar-se
destaque ao falecimento de figuras importantes, quer ao nível local, quer ao nível nacional,
sendo estas informações lutosas frequentemente acompanhadas de fotografia a preto e
branco (ver exemplo da figura 14). Este tipo de peças é, normalmente, sobre homens,
embora também se registe a mesma prática quando se trata de mulheres socialmente bem
posicionadas, mas em menor quantidade72.
Na leitura de imagens que incluem homens, foi ainda possível realizar o mesmo processo
de reestruturação de categorias (tal como se pode verificar no quadro 26), à semelhança do
que foi feito com a leitura das imagens que incluem mulheres. No caso das imagens
masculinas, o modo de figuração imagética que se destaca é a “autoridade”, que incorpora
os níveis “negócios/comércio”, “religião”, “política/economia”, “estudos/educação”,
72
Note-se que, como se pode observar comparando os quadros 23 e 25, as fotografias lutuosas de mulheres
são menos de metade das fotografias lutuosas de homens.
271
Capítulo VI – Estudo Empírico
Quadro 26 | O corpo no regime das imagens que incluem homens (jornal O Ilhavense, na
década de 1950)
272
Capítulo VI – Estudo Empírico
Sexo
Mulher Homem
Regime político das imagens
Política do corpo Corpo que se trata
–
(estética/beleza) Corpo que vende
Mãe de família, esposa e
Política da intimidade (imagem crente
Cuidador da família
assexuada) Cidadã empenhada em
causas sociais
Autoridade social
monitorizada pela
Política de visibilidade social
– religião
(autoridade)
Cidadão empenhado em
causas sociais
Uso erótico das imagens
Uso da imagem corporal
Política económica do corpo de forma
masculina em contexto
descontextualizada
Em primeiro lugar, destaca-se o uso icónico que é dado ao corpo no feminino. A imagem
do corpo da mulher tem uma presença forte nas páginas do jornal O Ilhavense, sobretudo
como corpo que pode/deve ser tratado, conservado e embelezado, e ainda como corpo que
vende. Exemplo disto é o excesso de imagens corporais de mulheres associadas à venda de
produtos masculinos. Com efeito, a análise efetuada indica este jornal como reprodutor de
imagens que vendem o corpo feminino como belo, atribuindo-lhe um uso erótico de forma
descontextualizada (venda de produtos para o público masculino).
O corpo masculino é também usado, mas fora de uma política da beleza ou do erótico. A
imagem masculina está centrada numa política económica, na medida em que é usada para
estabelecer a ligação entre produtos masculinos e público masculino. Aqui pretende-se
273
Capítulo VI – Estudo Empírico
A análise das imagens permite entender ainda o uso da imagem do corpo mediante uma
política de intimidade. No que diz respeito ao uso da imagem feminina, percebe-se que esta
pode ser diversas vezes conotada com o perfil de mãe de família, esposa e crente.
Reproduz-se a imagem de uma mulher preocupada com a sua família, e protetora do seu
lar, que possui uma posição de subserviência em relação à religião (mulher que reza e pede
graças, mas a quem não é dado espaço de atuação). Esta mulher é apresentada ainda como
cidadã empenhada em causas sociais, embora sem lhe ser dado qualquer destaque de
autoridade ou liderança nos movimentos sociais, ao contrário do homem. O homem é, num
regime das imagens que apontam para a dimensão de intimidade, aquele que cuida da
família (“homem de família”).
Onde a mulher parece não se destacar é na dimensão social. Os lugares de liderança são
concedidos ao homem e isso está representado no que designamos por política de
visibilidade social das imagens praticada n’O Ilhavense. O homem é representado como
cidadão empenhado em causas sociais (surgindo nos lugares de comando) e como
autoridade social, que monitoriza sobretudo usando a religião.
Neste estudo, onde se revela fulcral identificar e interpretar as significações dos discursos
textuais, revela-se igualmente importante analisar as imagens, pois, como afirma Christian
Metz:
As imagens – como as palavras, como todo o resto – não poderiam deixar de ser
‘consideradas’ nos jogos do sentido, nos mil movimentos que vêm regular a
significação no seio das sociedades. A partir do momento em que a cultura se
apodera do texto icónico – e a cultura já está presente no espírito do criador de
274
Capítulo VI – Estudo Empírico
Esta visão demonstra a autonomia do estudo das imagens, que pode ou não estar anexado
ao estudo da mensagem textual (ou linguística), na senda do que Roland Barthes (1982:21)
apelidou de uma “inversão histórica importante”. Para este autor, a imagem ganhou um
papel que em muitos casos superioriza o da palavra, o que o leva a afirmar convictamente
que a palavra se tornou “parasita” da imagem, na medida em que esta deixou de ilustrar a
palavra:
Todavia, a análise de uma imagem, seja ela uma fotografia ou um desenho, esteja ela
ligada ou não à publicidade, implica sempre um processo complexo de identificação, de
interpretação e de elucidação dos elementos discursivos, culturais, semióticos e sociais que
englobam o objeto icónico. A respeito deste assunto, Roland Barthes escreveu um texto
bastante esclarecedor intitulado Retórica da Imagem (1964) e que procura dar aos leitores
uma visão sobre o processo de análise e interpretação de uma imagem através do conjunto
275
Capítulo VI – Estudo Empírico
O texto começa por usar um exemplo de uma publicidade da marca Panzini para identificar
três tipologias de mensagem que, habitualmente, uma imagem possui: mensagem
linguística, mensagem icónica codificada e mensagem icónica não-codificada. Barthes
(1964:43) começa por explicitar que, apesar de algumas imagens não se fazerem
acompanhar de discurso textual – o que lhes confere uma espécie de “intenção enigmática”
–, a relação texto-imagem é muito importante, pelo que não se deve falar de uma
“civilização da imagem”.
Passo a passo, resta explicitar qual a função de cada tipologia de mensagem que Barthes
(1964:44) identificou, tendo sempre presente que, para o autor, “(…) todas as imagens são
polissémicas”, o que coloca sempre uma questão de sentido. Em relação à mensagem
linguística é importante perceber que esta possui uma função elucidativa de ancoragem e
de retransmissão em relação à mensagem icónica. Por um lado, a ancoragem tem uma
função de elucidação aplicada a certos signos (é seletiva): o texto ajuda a identificar
denotativamente a imagem e a interpretar simbolicamente (ou conotativamente) a imagem;
por outo lado, a retransmissão – rara na imagem fixa e mais usada em cartoons e cinema –
tem uma função diferente de elucidação, pois avança com o significado que não é possível
encontrar na mensagem em si (ex.: legendas nos filmes).
276
Capítulo VI – Estudo Empírico
consideração que, por exemplo, um mesmo “leitor” possui uma pluralidade de léxicos: “a
imagem, na sua conotação, é então constituída por uma arquitetura de signos desenhados a
partir de uma profundidade variável de léxicos [codificados]” (Barthes, 1964:48). Tudo
isto significa que numa imagem se encontram significantes que são conotativos, sendo o
seu conjunto aquilo que conhecemos como retórica, o que acaba por surgir como aspeto
significante da ideologia. Contudo, há sempre um certo grau de denotatividade na
mensagem retórica, porque senão o discurso não era possível: (...) o mundo do significado
total é dilacerado internamente (estruturalmente) entre o sistema como cultura e o sintagma
como natureza” (Barthes, 1964:51).
Em suma, para além da mensagem linguística ou textual que acompanha a imagem em si, a
imagem providencia sinais descontínuos, mas que podem e devem ser assimilados e
decifrados em conjunto, tais como, por exemplo: a existência de um significado e de um
significante, a presença de “objetos” que transmitem uma ideia ou que até fazem o “leitor”
retomar ao mercado e a evocação de uma memória que envia o “leitor” para um
significado (a)estético que depende de um conhecimento cultural. Tudo isto faz com que a
imagem transmita uma mensagem através de signos que funcionam como um todo
coerente, que requerem um conhecimento cultural geral e que se referem a significados
globais (todavia, se se excluir a mensagem linguística e a simbólica, resta sempre uma
mensagem icónica que possui uma certa informação desprovida de todo o conhecimento).
277
Capítulo VI – Estudo Empírico
No caso específico desta investigação, revela-se essencial a realização de uma “leitura” das
imagens presentes n’O Ilhavense, que não só complemente a análise textual, como deixe a
descoberto uma outra possibilidade que os textos não parecerem anunciar. Em suma, os
textos parecem revelar uma realidade que as imagens expõem, e é aqui (nas imagens) que
aparecem, de forma mais clara, mecanismos de poder que escapam às censuras mais
politicamente corretas e que condicionam mais fortemente a produção textual.
A primeira evidência vai para uma interpretação geral dos dados, destacando-se o facto
d’O Ilhavense possuir mais produção textual do que icónica. De facto, observando o
quadro 21 é possível perceber que o jornal está recheado de textos (10104 peças), enquanto
apenas se contabilizam 712 imagens. No entanto, tal não implica que os sentidos das
imagens sejam menos relevantes. De facto, quando se faz uma análise comparativa entre a
totalidade da produção de textos e da produção de imagens percebe-se que, enquanto no
primeiro caso o número de textos produzidos por mulheres é significativamente baixo (182
peças num total de 10104, o que corresponde a 1,8%, como se pode observar no quadro 5),
no que diz respeito à presença feminina em imagens as ocorrências são bastante mais
elevadas (160 imagens num total de 712, o que corresponde a 22,5%, como se pode
observar no quadro 22). Logo, é através das imagens que se anuncia uma lógica mais
reveladora das relações de género que condicionam a produção textual e imagética d’O
Ilhavense, mostrando-se o “regime do olhar” mais denunciador e até mais arrojado do que
o do texto (que a análise até agora efetuada permite considerá-lo mais “policiado”).
Segundo autores como Ceulemans & Fauconnier (1979), Gallagher (1992), Damean
(2006), Cerqueira (2008a) e Mota-Ribeiro (2005), no estudo das representações mediáticas
as imagens são fundamentais para perceber quais os perfis de género criados e difundidos
pelos media. A publicação de certas imagens (estando ou não agregadas a textos) auxilia
na formação de conceções identitárias dos sujeitos, que, posteriormente, têm projeção
social. Na verdade, as imagens que os meios de comunicação divulgam sobre determinado
sujeito, grupo ou até género, e que designam/mostram uma suposta realidade, podem
depois refletir-se na vida real desse mesmo sujeito, grupo ou género. Quer isto dizer que as
mulheres representadas n’O Ilhavense (e mesmo as leitoras) podem ser entendidas como
um produto identitário criado pelas imagens construídas e apresentadas à sociedade pelo
jornal, o que reforça ideologias dominantes de diferenciação de género.
278
Capítulo VI – Estudo Empírico
Isto vai ao encontro dos primeiros estudos feministas que acusam os media de não
transmitirem imagens que são a expressão direta da realidade, mas sim representações
distorcidas e estereotipadas dessa mesma realidade. Contudo, no âmbito dos Estudos
Culturais não se deve excluir o estudo dos estereótipos como parte integrante das
representações mediáticas, na medida em que eles existem nos contextos sociais. Mas é
preciso ter em atenção que não só os estereótipos condicionam a realidade, como também
partem da própria realidade (mas não de uma forma direta). Ainda neste contexto, Silvana
Mota-Ribeiro (2005) destaca a importância dos estereótipos como operação ideológica, na
medida em que estão carregados de potencial hegemónico. Quer isto dizer que os
estereótipos simplificam o mundo e legitimam a ideologia dominante, justificando as
diferenças sociais entre os grupos (neste caso entre o masculino e o feminino).
Para além disso, importa ressalvar que “(…) toda a imagem é polissémica, implicando
subjacente aos seus significantes uma «cadeia flutuante» de significados, dos quais o leitor
[e o investigador] pode[m] escolher uns e ignorar outros” (Barthes, 1982:32). De certa
forma, isto é o mesmo que afirmar que existe na imagem um sentido óbvio e um sentido
obtuso (Barthes, 1982), com os quais, por um lado, os sujeitos se podem (ou não)
identificar, e que, por outro lado, podem/devem ser trazidos para a discussão de acordo
com as necessidades que o estudo apresentar. Quer isto dizer que o sentido simbólico das
imagens é de extrema importância, na medida em que “o simbólico define valores, e estes
são estados de poder, estabelecidos ou produzidos incessantemente no solo móvel das
relações (…)” (Martins, 1992:195).
Quando se observa o quadro 22 (imagens que incluem mulheres e imagens que incluem
homens na década de 1950), a primeira reação prende-se com o número de ocorrências,
pois num total de 712 imagens, 160 incluem mulheres e apenas 139 incluem homens. A
diferença não é muito significativa, mas mostra que a imagem feminina, nos jornais
analisados, é mais utilizada do que a masculina, em grande medida por responsabilidade da
279
Capítulo VI – Estudo Empírico
A análise revelou ainda que a partir do ano de 1954 a presença icónica no feminino vai
seguir uma espiral ascendente (exceto no ano de 1959). Uma relação entre os dados do
quadro 22 e os do quadro 23 identifica que, de uma forma geral, a imagem da mulher é
utilizada, crescentemente, de forma erotizada e até sexualizada, pois serve sobretudo para
ilustrar textos, sejam eles literários ou publicitários. Destaca-se mesmo a temática
“saúde/beleza” que possui o maior número de ocorrências no feminino e que não é
referenciada no masculino. Resta aqui indicar que, embora a presença feminina n’O
Ilhavense seja fisicamente visível, esta é socialmente invisível, pois como afirma Mota-
Ribeiro (2005): a mulher é feita para ser vista e ver-se, através de uma visibilidade
autoconsciente, baseada na beleza e no corpo, e crucialmente construída de acordo com o
olhar do Outro (do masculino).
Quando se passa para a discussão das temáticas que englobam as imagens femininas,
deteta-se que o supracitado nível “saúde/beleza” é o mais referenciado, seguindo-se os
níveis “negócios/comércio” e “criação literária”. Em relação à “saúde/beleza” –
publicitação de cabeleireiros e de tratamentos de pele –, reforça-se a ideia de que a imagem
da mulher é, constantemente, convocada a uma obrigatoriedade em monitorizar a sua
aparência física, o que, segundo Anne Cronin (2000), a impede de se individualizar
realmente. Os media apresentavam-se, à época (e ainda hoje), como fortes marcadores da
imagem feminina, realçando uma vertente sexual centrada no corpo e nos ideais de
juventude e de beleza, que não são alheios ao jornal O Ilhavense. De facto, as expetativas
face ao feminino são construídas em torno da sua aparência (o que não acontece com o
masculino), proliferando o culto e o “mito do belo”, transformando a mulher naquilo que
Mota-Ribeiro (2005) apelida de “belo sexo”.
Estes dados vão ao encontro da revisão de literatura sobre a temática, na medida em que,
até à década de 1970, a imagem da mulher limitava-se, sobretudo, aos papéis domésticos, à
sexualidade/erotismo e à sua condição reprodutora. Manifestava-se uma espécie de
invisibilidade das mulheres que Taylor (1997) apelidou de “aniquilação simbólica do
280
Capítulo VI – Estudo Empírico
feminino”. Só depois, com as décadas seguintes, os media começaram a ser palco de outras
modalidades de representação e de novas formas de resistência. Contudo, a aliança da
imagem feminina à indústria da beleza e da moda – enquanto utilizadora e vendedora de
produtos de beleza – foi (e é) uma prática comum nos meios de comunicação, agravada
pelo mito histórico que associa o homem à produção e a mulher ao consumo (Friedan,
1963).
Até este momento da análise detetam-se três elementos, associados à imagem feminina,
que se revelam fundamentais para a discussão: corpo, idade/saúde e moda. Há, de facto,
uma exposição física/corporal da figura feminina, associada a um ideal de juventude e a
um cuidado com a imagem pública, que seguem exemplos modelares e que se centram
sobretudo nas imagens de cortes de cabelo da moda (na publicidade a salões de
cabeleireiro) e na publicidade que apresenta um modelo de mulher, com vestuário
recomendável. Entende-se aqui que o uso da imagem corporal, associada à moda, tem uma
função de representação social, mas, acima de tudo, sexual. De acordo com Barthes (1981),
a forma como a sexualização dos corpos é representada através do vestuário/moda vai
depois influenciar a representação ou a imagem social que os sujeitos têm. O autor afirma
ainda que mais complexa é a relação moda/vestuário com a saúde e a idade, pois é a
moda/vestuário que atribui significação ao corpo, assegurando ou adulterando a passagem
do tempo.
Barthes (1981) continua afirmando que a moda é responsável pela passagem do corpo
abstrato para o real e que o faz através de três formas que são detetáveis na análise das
imagens presentes neste estudo: 1) a moda propõe um ideal encarnado; 2) o vestuário
decide qual o corpo que está “na moda”; e 3) a moda acomoda o vestuário para que este
transforme o corpo real e faça com que ele signifique o corpo ideal. Acrescenta-se aqui
que, ao desempenhar um papel fundamental naquilo que significa ser mulher, o corpo e a
aparência ideal “prendem” as mulheres a um conjunto de práticas disciplinares
(maquilhagem, depilação, cuidados com o cabelo e com a pele, etc.) que funcionam como
sucessivos mecanismos de regulação e correção comportamental, preparados para envolver
o feminino num aparato de (auto)vigilância que vai ao encontro da conceção de poder que
Michel Foucault (2010c) desenvolveu – em que as redes de poder se sustentam, vindas a
partir de todos os ângulos, onde os que vigiam são constantemente vigiados. Na opinião de
281
Capítulo VI – Estudo Empírico
Silvana Mota-Ribeiro (2005), a crítica feminista acredita mesmo que o mito de beleza
feminina se revela uma poderosa arma política contra os avanços do feminino, visto que
consegue ser mais coercivo que os mitos da maternidade, da castidade, da passividade e da
domesticidade.
É relevante destacar que a imagem feminina usada para ilustrar este jornal é uma opção
demarcada do género masculino, pois, tal como acontece com a produção textual, as
imagens publicadas no jornal O Ilhavense são produzidas e distribuídas quase
exclusivamente num contexto de produção masculina. A própria década estudada está,
efetivamente, sob a alçada de estruturas de dominância masculina que veem reproduzidos
estereótipos demarcados da mulher, sobretudo quando a figura feminina é usada junto aos
textos publicitários da venda de produtos tendencialmente masculinos, como as
motorizadas73. Trata-se aqui de perceber que esta é uma das formas de operação da própria
construção e diferenciação de género, que é colocada em prática através de meios de
exclusão (Butler, 1993). Ou seja, a necessidade de clarificar as linhas de género/sexo numa
sociedade heterossexual exige um controlo masculino e patriarcal da sociedade e das suas
73
Este aproveitamento da imagem feminina ainda hoje é visível, pois muitos objetos conotados com o sexo
masculino, como, por exemplo, os da indústria automóvel, são publicitados juntamente com a imagem
sexualizada da mulher.
282
Capítulo VI – Estudo Empírico
representações. Logo, o que está em jogo é o poder das imagens para (re)produzir o
feminino sem que as próprias mulheres executem um papel preponderante no processo,
embora participem dele.
Pode-se aqui olhar para esta realidade através do conceito “homossocial”, trazido à
discussão por Judith Butler (2004) e baseado em teorias de Lacan, Lévi-Strauss e Eve
Sedgwick. Em Lacan, a visão homossocial prende-se com a ideia do sujeito querer ser livre
para desejar quem lhe é proibido, afastando o Outro do Outro e ficando com o desejo do
Outro. Lévi-Strauss fala da teoria das trocas de mulheres, onde clãs masculinos trocam
mulheres para estabelecerem relações simbólicas com outros membros de outros clãs, pelo
que as mulheres são desejadas precisamente por pertencerem ao Outro. Já Sedgwick
discute a relação de um homem que deseja uma mulher como um laço homossocial entre
dois homens (laço este que é articulado pela heterossexualidade). Esta visão homossocial
determina uma espécie de apoderamento ou possessão do feminino pelo masculino, que vê
a mulher como sua ou como do Outro homem a quem ele permitir, desenvolvendo
complexas relações sociais (homossociais) que acabam por emergir psíquica, identitária e
comunitariamente em ambos os géneros.
Esta sobre-exposição dos ícones femininos vai ao encontro do que já foi discutido em
relação aos media como marcadores da imagem feminina (Cronin, 2000), em que a mulher
é representada esteticamente como “objeto/corpo/vedeta” (Cerqueira, 2008a). Em suma,
nestes jornais, a imagem da mulher é (re)produzida pelo homem sob um imaginário que
pensa o ideal figurativo de beleza e de juventude femininas.
Foi tendo em conta estas reflexões que se construiu o quadro 27, que apresenta o regime
político das imagens d’O Ilhavense, na década de 1950. De facto, de acordo com a análise
efetuada, a imagem da mulher é fabricada em torno de uma específica política do corpo, de
forma descontextualizada e erotizada. O corpo da mulher é aquele que deve ser cuidado e
embelezado para que possa vender (alimentando uma política económica); um corpo que é
exposto para ser olhado e espelhado de acordo com a norma masculina. Já o corpo
masculino é o símbolo da autoridade social, monitorizada sobretudo pela religião, e é
usado como regulador de comportamentos morais. Juntamente com esta posição
autoritária, o uso em contexto do corpo do homem favorece uma posição política da figura
masculina, atribuindo-lhe o domínio do panorama social.
283
Capítulo VI – Estudo Empírico
É neste momento que é necessário inserir uma discussão sobre as relações de poder que a
análise destas imagens deixa vislumbrar. Segundo Michel Foucault (2010ª), as
microrrelações de poder são fundamentais nas estruturas identitárias dos sujeitos. Estas
relações são construídas e mantidas numa base discursiva (textual ou icónica) que define a
forma como os sujeitos se expressam ou são entendidos. Uma das formas de atuação destes
discursos é através da sexualidade ou dos corpos, algo que se deteta pela leitura simbólica
da imagens destes jornais. O poder deixa de ser exercido através do castigo dos corpos e
passa a ser exercido através de um regime de monitorização e vigilância constantes
(Foucault, 2010c; Butler, 1993), que passam, neste caso, pela utilização do feminino como
elemento sexualizado e diminuído (por ambos os géneros) em oposição ao masculino,
como antes já foi referido nesta discussão.
De facto, a maioria das imagens das mulheres publicadas n’O Ilhavense revela que o poder
não precisa de ser opressivo (no verdadeiro sentido da palavra), quando pode ser
“produtivo”: o poder produz discursos através de uma rede que atravessa o corpo social,
criando e formando opinião. Na verdade, as imagens em análise regulam e controlam a
exposição e a representação do feminino, auxiliando na definição da sua imagem, do seu
comportamento e, mais especificamente, da sua identidade.
Verifica-se, portanto, que n’O Ilhavense estão incorporados mecanismos que servem de
guia para o comportamento das mulheres, ou até mesmo de espelho para o entendimento
da posição que se espera destas mulheres na sociedade, mais concretamente o que se
espera delas e que papéis lhes são admitidos. Este guia comportamental foca-se
particularmente na forma como o corpo, associado à beleza e ao vestuário, é representado.
Particularmente, é o vestuário (e a forma como este é pensado e trabalhado), ou a sua
ausência, que legitima a significação do corpo. É esta afirmação que leva Roland Barthes
(1981) a entender a moda (e todos os elementos que a envolvem) como a componente
284
Capítulo VI – Estudo Empírico
285
Capítulo VI – Estudo Empírico
Quer isto dizer que, como corpos, os sujeitos são mais do que eles próprios, são
constituídos como campos de vulnerabilidade, de desejo e de reconhecimento, ou seja, são
constituídos politicamente (Butler, 2004). Deste modo, invariavelmente, o corpo tem uma
dimensão pública e é instituído como um fenómeno social, pois incorpora a norma.
Todavia, é possível tirar proveito desta forma de ver a corporalidade, na medida em que é
possível criar novas formas de realidade através da incorporação: se o corpo é um processo
de transformação, é possível retrabalhar e exceder a normatividade e abrir caminho a novas
possibilidades identitárias. Em relação a este assunto, Judith Butler afirma que:
Nesta fase da discussão, pode-se introduzir a questão da resistência de outra forma: Como
é que as mulheres aceitavam esta representação da sua imagem corporal/sexual? Por um
lado, porque elas estavam submetidas a estruturas masculinas dominantes (Bourdieu, 1999)
e, por outro, porque elas se encontravam envolvidas naquilo que Foucault (2010c) chamou
de “tecnologias do Eu”, o que implica uma autorregulação do sujeito (neste caso das
próprias mulheres) e que é reforçada pelas diversas formas como os discursos (textuais e
icónicos) encorajam (ou não) práticas e perfis identitários específicos no feminino. Estas
redes relacionais são demasiado complexas, pois os discursos são legitimados por
mecanismos e por instituições sociais como o Estado, a Escola, a Igreja e até os Media, que
se encontram submetidos a “estruturas históricas de ordem masculina” (Bourdieu, 1999:5).
No caso específico deste estudo, a Igreja é o mecanismo mais eficaz da estrutura social, na
medida em que se encontra fisicamente presente n’O Ilhavense, regulando
comportamentos e moralizando o feminino – “ela [a Igreja] é o instrumento de uma
vigilância permanente, exaustiva, omnipresente, capaz de tornar tudo visível (…), um
grande olho cravado em toda a parte, uma atenção móvel e sempre atenta (…)” (Martins,
1990:88). E quem é esta “Igreja”? Certamente, o grupo masculino. É por isto que o homem
é identificado como autoridade social que normatiza através da moral religiosa.
286
Capítulo VI – Estudo Empírico
Neste sentido, torna-se cada vez mais evidente que o verdadeiro caminho a considerar
deveria ser o respeito pelos corpos, cuja autonomia depende de serem livres dos discursos
que os constroem, o que se refletiria na verdadeira escolha identitária ou na liberdade de
identificação do sujeito, não o obrigando a depender da construção sobre si pelo Outro. Tal
como indica Butler (1990, 1993), o corpo responde a um comportamento performativo por
ter uma história de ser afetado pela diferença sexual e não escapar dos efeitos do sexismo,
pelo que a verdadeira autonomia do sujeito sobre si mesmo é algo difícil de alcançar.
Importa agora referir que a imagem masculina é também utilizada sob a temática
“negócios/comércio”, quando se trata de publicidade a produtos para o público masculino.
Fugindo-se, por vezes, da utilização da imagem sexualizada da mulher, opta-se pelo uso da
imagem identificativa do homem, na medida em que se procura vender produtos
tradicionalmente masculinos, no entender do jornal. Quer isto dizer que, obviamente, a
imagem do homem não é usada da mesma forma que a imagem da mulher quando se trata
de publicidade (neste caso a bicicletas e a motas), embora o caráter simbólico disciplinador
esteja fortemente presente, como se pode ver pela publicidade que associa a figura
masculina e o texto “deixe-se conduzir pela mão da experiência” (ver figura 12).
Concluindo esta parte da discussão, para Foucault (1984e) o sujeito constrói uma
identidade que é produto das relações de poder que se exercem sobre si e o seu corpo.
Assim, a identidade do sujeito vai-se estruturando à medida que se vão dando conflitos
entre discurso, controlo e disciplina. Trata-se de entender o conceito de identidade como
um processo que relaciona a nossa corporalidade com a do Outro (Sartre, 1976) e que na
prática, neste estudo icónico, se explica pela presença de um Eu-masculino-dominador em
oposição a um Outro-feminino-dominado.
6.3.2.2. Os perfis identitários das mulheres nas imagens d’O Ilhavense, na década de
1950: “identidade sem identificação” e “identidade por empatia”
287
Capítulo VI – Estudo Empírico
Gauntlett (2002) que prevê que as imagens de homens e mulheres, divulgadas pelos media,
têm impacto sobre o próprio sentido de identidade dos sujeitos.
De um modo geral, a análise das imagens de mulheres presentes n’O Ilhavense remete, tal
como acontece com a análise dos textos de autoria feminina, para modalidades identitárias
desprovidas de bastiões de identificação ou de individualização. Reconhece-se uma
(re)utilização da imagem feminina como ícone corporal de beleza, que sexualiza
demasiado o ideal iconográfico, o que evidencia um olhar masculino, que se apodera da
identidade imagética feminina.
Olhando as representações visuais das mulheres ilhavenses, estas evidenciam uma espécie
de perfil de “identidade sem identificação”, quer dizer de “não-individualização”, mas este
agora um pouco diferente do que é reportado na análise dos textos escritos por mulheres.
No caso dos textos escritos por mulheres, as autoras despersonalizam-se, pois entendem
que as suas vidas privadas não têm interesse público. No caso das imagens (sobretudo nas
temáticas “negócios/comércio” e “criação literária”), as mulheres parecem também não
participar do processo de individualização, pois as suas imagens são utilizadas sobretudo
75
Tradução nossa de ready-made identities.
288
Capítulo VI – Estudo Empírico
para a publicitação de produtos masculinos – imagens utilizadas pelo sexo oposto e para o
sexo oposto. Neste perfil, as mulheres são excluídas da construção da sua própria imagem
e todos os indicativos da individualidade feminina são apagados, pois as mulheres são
representadas através de uma imagem erotizada ou num padrão de beleza estereotipado.
Com efeito, o perfil social de “identidade sem identificação” remete para o facto de as
mulheres estarem diretamente excluídas da construção da sua própria imagem, embora
permitam que tal processo prolifere. De facto, tal como já foi referido na discussão da
relação corpo-moda trazida por Barthes (1981), o uso do corpo associado a um vestuário é
capaz de atribuir significado identitário, no qual as mulheres se sentem individualizadas e,
ao mesmo tempo, multiplicadas em vários perfis. Ora, esta condição que é deixada para a
mulher confunde a construção da sua verdadeira identidade, impondo-se uma certa
liberdade “condicionada”: a mulher poder escolher, mas não pode participar na construção
da sua imagem. Falta apenas reforçar a ideia de que a grande maioria das imagens
femininas destes jornais é apresentada em contexto publicitário, o que agrava a
representação identitária da mulher, pois, tal como afirma Durand (1974:19), “a
publicidade apresenta-se (…) como artifício, exagero voluntário, esquematismo rígido”.
Para além disto, importa destacar que as próprias mulheres se encontram submetidas a
estruturas de poder hegemónico masculino, o que valida o facto de não apresentarem,
aparentemente, qualquer resistência à forma como a sua imagem é trabalhada.
Contudo, no que diz respeito à análise de imagens que remetem para a temática
“saúde/beleza”, parece haver um outro grau de identidade, onde se deteta algum nível de
identificação. A temática “saúde/beleza” reporta para a publicitação de cabeleireiros e de
tratamentos de pele, dirigindo-se ao público feminino, onde se procura que as mulheres se
identifiquem com as mensagens que as imagens lhes transmitem. Este grau de identidade
pode-se apelidar de perfil de “identidade por empatia”. Aqui, mais uma vez, a mulher é
conduzida à regulação do seu aspeto físico, emergindo uma forma subtil de vigilância e
289
Capítulo VI – Estudo Empírico
controlo através da sua imagem perante a sociedade. Espera-se que esta mulher cumpra os
padrões de beleza de forma a satisfazer a espectativa social que a vê como (futura) esposa,
mãe e dona de casa.
6.3.2.3. Os perfis identitários dos homens nas imagens d’O Ilhavense, na década de
1950: “homem-social” e “homem-moral”
No caso das imagens no masculino é interessante verificar que ao longo dos anos
analisados a sua presença é crescente, fruto da sua distribuição por diversas temáticas,
algumas delas que não chegam a entrar no campo feminino, como é o caso da “vida
militar”, do “trabalho/profissional”, do “desporto”, da “animação” e do “mar/vida
marítima” (comparar quadros 23 e 25). Interessante é perceber que as três primeiras
temáticas se incluem na área social, ambiente do qual as mulheres são frequentemente
afastadas, tanto na produção escrita como na icónica.
76
Como é possível verificar pela leitura do jornal e pelas ocorrências dos textos que falam sobre mulheres.
290
Capítulo VI – Estudo Empírico
“morte/luto” que, juntamente com o tema “religião”, dão projeção social à imagem do
homem.
Uma análise mais profunda desta temática deixa transparecer questões políticas e sociais
ocultas à primeira vista. De facto, a religião em que o homem mergulha (e em que é
representado) é sinónimo de poder, neste caso espiritual e moral. Isto significa que um
espaço social como Ílhavo, com uma presença física masculina muito limitada, exige um
rosto que regule moralmente a sociedade. Este símbolo de poder, aparentemente
assexuado, é a expressão masculina mais forte em Ílhavo e, como tal, a que merece
destaque na imprensa local. Em suma, o homem-religioso transforma-se no elemento que
gere o feixe de relações de poder, exercendo influência sobre os comportamentos
normativos na sociedade.
291
Capítulo VI – Estudo Empírico
Curiosos são os resultados relativamente à temática da família, pois seria esperada uma
sobrevalorização da imagem feminina de cuidadora do lar (mãe e esposa), o que não
acontece. Esta imagem de mulher “boa” surge, mas apenas com 18,1% das ocorrências
(ver quadro 24) e ao mesmo nível da imagem masculina. Identifica-se portanto um outro
perfil imagético que engloba quer homens quer mulheres, o de “cuidadores”: homens e
mulheres surgem no seu papel de beneméritos sociais e cuidadores do bem comum,
embora, no caso das mulheres surja uma outra dimensão de cuidadora também do lar, no
seu papel de mãe e esposa (o que talvez se possa explicar pela ausência de muitos homens
de Ílhavo nesta década, acabando as mulheres por assumir também este papel).
Estes dados revelam que pode ser no contexto familiar que as relações de poder
tradicionais, baseadas nas estruturas de dominância masculina, se desviem da sua norma.
Os homens não são representados dentro do bloco independência-autoridade-chefe de
família, mas sim como intervenientes e cuidadores. Todavia, a própria especificidade de
Ílhavo, marcada pela ausência masculina por conta das campanhas do bacalhau, pode
justificar esta representação social, pelo que se torna difícil admitir que este seja o caminho
que representa uma possível forma de resistência feminina.
Com esta análise se assinala, mais uma vez, a tendência para a estrutura masculina se
apoderar da condição feminina, deixando para as mulheres aquilo que é conhecido como o
espaço simbólico da objetivação. Naturalmente, esta situação mostra a existência de
relações de poder presentes nas decisões (in)conscientes do uso da linguagem icónica, não
292
Capítulo VI – Estudo Empírico
Resta colocar algumas questões que podem auxiliar o entendimento dos dados analisados
no jornal: Será que, à semelhança do que determinou o estudo de Pedro & Santos (2009)77,
é possível concluir que as imagens publicadas no jornal O Ilhavense implicam discursos
capazes de influenciar escolhas identitárias? O que representa o feminino? E o que é o
corpo masculino e qual a sua importância na representação imagética do homem?
Quanto à primeira questão, no caso particular das imagens publicadas n’O Ilhavense, mais
do que influenciarem escolhas identitárias, estas legitimam os perfis sociais (que foram
identificados através desta investigação). Quer isto dizer que, estas imagens, como
representação dos perfis de género existentes em Ílhavo consolidam e fortalecem
comportamentos, papéis e funções. Por um lado, estas imagens espelham a forma como os
homens se apresentam socialmente e como as mulheres são apresentadas, e, por outro lado,
como ambos são valorizados dentro do contexto familiar, individual e sociocultural.
De seguida, importa perceber que, nas imagens d’O Ilhavense, o feminino é “corpo”,
aparência, beleza e erotismo. Ser mulher implica ser para o Outro e para si mesma a partir
de um olhar exterior. Este olhar exterior é aquele que normatiza e cria uma rede estrutural
daquilo que representa ser mulher, qual a sua função e qual o seu papel numa sociedade
que, apesar de ser maioritariamente composta por mulheres, continua sujeita a uma forma
masculina de ver e organizar as “coisas”.
293
Capítulo VI – Estudo Empírico
Estas questões são, de alguma forma, complementares, pois há de facto uma tendência
limitativa do perfil feminino nestas imagens, seja ela social, sexual ou identitária. No geral,
é possível entender que estas imagens se baseiam numa visão ideológica quase
exclusivamente masculina, o que restringe a exposição, tanto de mulheres como dos
próprios homens.
Com efeito, tudo aponta para que as desigualdades de género representadas nestas imagens
se encontrarem baseadas nas estruturas tradicionais de dominância masculina. Quando se
discute um contexto discursivo que é construído e difundido por redes sobretudo
masculinas, é impossível não pensar na influência que tal situação terá no tecido social. As
próprias mulheres, envolvidas nestas redes, irão apresentar uma propensão para se
identificarem com a ordem estabelecida. Todavia, o arquiteto do discurso dificilmente
pode exercer controlo completo sobre a interpretação de um recetor desse mesmo discurso,
o que pode permitir percursos resistentes a esta realidade. No caso específico das imagens
d’O Ilhavense não se detetam indícios de resistências femininas, mas antes algumas
alterações no perfil familiar masculino (onde o homem é também entendido como cuidador
do lar), instituído e projetado pelos próprios homens. Esta realidade pode explicar-se
através de um prisma que entende que o feminino se encontra sob alçada de um sistema
hegemónico masculino, capaz de estruturar toda uma sociedade.
294
Capítulo VI – Estudo Empírico
A forma que o grupo dominante encontra de manter o monopólio intelectual e moral sobre
o grupo dominado prende-se com a construção do que Gramsci apelidou de “bloco
ideológico” (1996)78. Trata-se de reconhecer o poder ideológico que instituições como a
Escola, a Família, a Igreja ou até os meios de comunicação (particularmente a imprensa),
os eventos culturais, os partidos políticos e simples estereótipos exercem na construção e
manutenção do poder hegemónico. De facto, é possível perceber que dificilmente um
grupo consegue exercer poder sem ao mesmo tempo exercer a sua hegemonia através de
um aparato ideológico (Althusser, 2006), e isto é válido, em primeiro lugar, no que às
diferenças de género diz respeito.
78
Ou o que Althusser (2006) apelidou de “aparato ideológico do Estado”, num contexto mais específico.
295
Capítulo VI – Estudo Empírico
pelo que é importante entender, no caso dos discursos visuais d’O Ilhavense, onde e como
atua o poder hegemónico.
Em primeiro lugar, e como já foi repetidas vezes enunciado neste estudo, as imagens de
mulheres são construídas num contexto de dominação masculina: a produção e a
distribuição do jornal são masculinas, os perfis masculinos detetados são sinónimo de
autoridade (social e moral), e a imagem da mulher está essencialmente conotada com
aparência e erotismo. Todavia, as mulheres revelam-se também “opressoras” de si
próprias, ao desencadearem um conjunto de mecanismos contínuos de regulação, correção
e atuação dos seus comportamentos, próprios de uma sociedade ideologicamente patriarcal.
Desta forma, a leitura do poder hegemónico pode ser reestruturada através das teorias
foucaultiana e bourdieusiana de poder. De facto, pode-se olhar a relação entre homens e
mulheres – representada nas imagens d’O Ilhavense – através de um prisma hegemónico
que legitima o poder que é exercido pelo grupo dominante (masculino) sobre o grupo
dominado (feminino). Porém, as relações entre ambos os grupos são de tal modo
complexas – implicando resultados tanto coercivos como produtivos – que se torna mais
claro pensá-las através de uma leitura dos “estados de poder” de Foucault (1984ª, 2010b,
2010c) ou dos “campos de força social” de Bourdieu (2000).
No primeiro caso, são consideradas as relações de poder como fluxos constantes entre os
sujeitos e validadas tanto pelas normas como pelos discursos sociais. No caso dos “campos
de força social”, a relação entre dominadores e dominados é vista como assimétrica,
variando de acordo com as circunstâncias. Logo, apesar do olhar masculino ser
evidenciado nos discursos visuais d’O Ilhavense, torna-se necessário compreender qual o
lugar/papel do feminino nesta construção simbólica, utilizando o quadro teórico (pós-
)estruturalista. Só desta forma é possível compreender e interpretar as relações de poder
entre homens e mulheres, compreendendo o(s) lugar(es) a partir dos quais se produzem
determinados perfis, ultrapassando o próprio conceito de hegemonia.
Através da análise das imagens d’O Ilhavense é possível apurar que a representação visual
do feminino se baseia num olhar marcadamente masculino. Isto envolve um sistema de
vigilância apertado do Outro (masculino), mas igualmente do próprio Eu (feminino), o que
complexifica as relações de poder entre ambos. No caso particular desta investigação, as
imagens das mulheres são um bom exemplo de como existe uma envolvência hegemónica
296
Capítulo VI – Estudo Empírico
No caso desta investigação, demonstrou-se mais uma vez que ser mulher significa beleza e
corporalidade, o que revalida o “mito do belo”, prendendo a mulher a uma vigilância
constante da sua aparência, com fortes consequências na (auto)perceção do feminino. Isto
apenas reforça a ideia de que a vigilância (dos corpos) valida o poder da estrutura social
predominantemente masculina. A imagem como lugar de definição do feminino traz
algumas controvérsias, porque, apesar de fugir muitas vezes à realidade do que é ser
mulher, e prender o feminino a ideais corporais e de aparência (por vezes perigosos para a
saúde da mulher), muitas mulheres identificam-se com estas medidas. Para além disso, não
parece haver tendência para a construção de resistência feminina, graças a um olhar
masculino (hegemónico) que abarca e subverte o próprio olhar feminino sobre si.
Resta agora encerrar a discussão afirmando que, num contexto como o de Ílhavo, em que a
presença física feminina é extraordinariamente visível, fruto da ausência masculina em
grande escala, por longos períodos de tempo, esperar-se-ia que a mulher fosse representada
de uma outra forma. Contudo, a mulher de Ílhavo continua a ser representada mediante
papéis tradicionais, com ligeiro impacto na vida social e sem nenhuma forma aparente de
resistência. Portanto, quando se coloca a questão “Era ou não Ílhavo (na década de 1950)
uma sociedade matriarcal?”, mediante a análise das imagens publicadas n’O Ilhavense,
esta sociedade dita “matriarcal” parece não o ser, e ainda usa o corpo da mulher de uma
forma sexualizada (“mito do belo”), apresentando-a como uma figura sem grande
profundidade, e retirando-lhe qualquer carácter de subjetivação e individuação.
Em suma, esta análise permitiu identificar que a lógica das imagens é mais reveladora que
a dos textos, na medida em que a lógica dos textos esconde e naturaliza o que as imagens
revelam com maior clareza, tanto denotativa como conotativamente. As hierarquias que se
encontravam, por vezes, camufladas na produção textual explícita são agora reveladas pelo
poder da imagem: o discurso visual é mais claro, denunciador e regulador, e deixa-se
297
Capítulo VI – Estudo Empírico
298
7.1. Era ou não Ílhavo (na década de 1950) uma sociedade matriarcal?
“A minha paixão política reside nas metamorfoses positivas, daquelas que destabilizam
relações de poder dominantes, desterritoralizam identidades baseadas na maioria e
valorizam e causam um feliz sentido de empoderamento nos sujeitos empenhados em
tornar-se.”
Este estudo estruturou-se em torno da questão de investigação “Era ou não Ílhavo (na
década de 1950) uma sociedade matriarcal? – Análise de discursos de um jornal local”.
Esta questão impôs-se em resultado de um conjunto de circunstâncias históricas,
contextuais e teóricas que afirmavam a excecionalidade social de Ílhavo, apresentando-o
como uma sociedade matriarcal. Esta categorização remonta ao século XIX, altura em que
a sociedade ilhavense começa a moldar-se em torno de uma estrutura presencial
praticamente feminina, visto que a maioria dos homens se encontrava ausente (por longos
períodos de tempo) na pesca de alto mar (nomeadamente na pesca do bacalhau). Tal como
já foi referido no capítulo dedicado à metodologia de investigação, foi no século XX que
esta conjuntura assumiu proporções mais profundas, sobretudo na década de 1950, altura
em que a pesca do bacalhau atingiu o seu expoente máximo (Garrido, 2004; Amorim,
2001).
299
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
vida privada e social, empoderando a sua presença e influência. Foi esta conjetura que
possibilitou levantar a hipótese teórica da exceção, num contexto nacional em que a mulher
estava ainda demasiado dependente do masculino.
Todavia, resistia sempre a possibilidade de, no fundo, a sociedade matriarcal de Ílhavo não
passar de um mito que procurava transformar a mulher ilhavense num ideal romântico,
doméstico e maternal, e que era validado por uma esfera pública que convertia estas
mulheres “(…) em instrumentos culturais ao serviço do exercício de uma influência
civilizadora no universo masculino” (Peralta, 2008:166). Foi neste contexto que surgiu a
oportunidade de questionar a possibilidade de Ílhavo ser ou não uma sociedade matriarcal,
através do estudo das representações/discursos no e do feminino. Para levar a bom termo
esta tarefa, foi utilizada a imprensa local – jornal O Ilhavense – como fonte de informação
e de recolha de dados, pois, segundo Martins (2011), os media clássicos (imprensa e meios
de comunicação literários e editoriais) são comunicação pública. Os resultados da análise
destes dados foram posteriormente discutidos com o intuito de responder à questão
colocada.
Assim, a questão de investigação “Era ou não Ílhavo (na década de 1950) uma sociedade
matriarcal? – Análise de discursos de um jornal local” possibilitou gerar um nível de
discussão que permitiu determinar não apenas qual o verdadeiro lugar de representação das
mulheres ilhavenses daquela época, mas também quais os possíveis espaços de
desconformidade/resistência. Desta forma, e em primeiro lugar, a análise levada a cabo
neste estudo permitiu concluir que Ílhavo (na década de 1950) não era representado –
particularmente nos discursos d’O Ilhavense – como uma sociedade matriarcal. Ou seja,
este estudo aponta para o facto de Ílhavo não ser uma exceção no panorama nacional, e,
antes pelo contrário, que a sociedade ilhavense manifestava uma rígida estrutura normativa
masculina, que controlava e “policiava” o feminino através de um emaranhado de relações
de poder que envolviam um complexo aparato regulativo. Este complexo sistema de
relações de poder possibilitou identificar diferentes regimes políticos de representação,
através dos quais foi possível iniciar uma discussão final sobre a representação do lugar do
feminino e da(s) identidade(s) de género em Ílhavo.
300
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
por um lado, estes campos de força exigem relações de produtividade, por outro lado, são
limitados por aquilo que o autor chamou de “censuras do campo”. Estas censuras estão
presentes nos discursos que legitimam os sujeitos e que são frequentemente reconhecidos
como discursos hegemónicos que não se dão como tal. No caso das relações de género,
Bourdieu (1999:5) afirma ainda que o domínio masculino sobre o feminino tem um
fundamento histórico e simbólico que submete os sujeitos a “estruturas históricas de ordem
masculina”. Para o autor, a dominação masculina e a divisão dos sexos são sustentadas
numa construção histórica baseada na sexualidade e numa construção social dos corpos
que, validadas por mecanismos e instituições socias (Escola, Estado, Igreja, Media),
legitimam a eternização de simbologias seculares.
A contribuição teórica destes autores é imprescindível na leitura daquilo que, neste estudo,
são as relações ou dinâmicas de poder. Quer isto dizer que se considera que as práticas
sociais e culturais ocorrem dentro de um sistema que se rege por relações assimétricas de
poder. De acordo com o que foi possível apurar na profunda discussão bibliográfica deste
estudo, estas relações de poder assentam em mecanismos regulativos que devem ser
entendidos como regras ou normas. Estas normas – que como reforça Foucault (1981,
2006, 2010c) tanto podem ser produtivas como coercivas – são autênticos estados de poder
que regularizam e (des)equilibram a vida dos sujeitos através de tecnologias de controlo
que são, muitas vezes, verdadeiros mecanismos dissimulados nas práticas sociais.
302
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
que se estabelecem entre os sujeitos. Esta leitura do exercício do poder incute-lhe uma
elevada carga simbólica, na medida em que implica um aparato normativo, de controlo e
de vigilância que se autorrecria com a frequência do óbvio: “o simbólico define valores, e
estes são estados de poder, estabelecidos ou produzidos incessantemente no solo móvel das
relações de força” (Martins, 1992:195).
Desta forma, a complexidade das relações de poder e a carga simbólica a elas associada
dificultam a construção de uma teoria do poder ou até mesmo de uma análise do poder em
si. Assim sendo, Foucault (2010c) defende que é necessário reunir princípios de análise das
relações de poder quando se revela essencial examiná-lo. Esta prática pode basear-se em
regimes (políticos) de atuação (que se instalam em verdadeiros “estados de poder” ou
“campos de força” que interpretam os sujeitos à luz das suas relações de poder), centrados
na sociedade (pela autoridade normativa que exercem e pela política económica que
legitimam) e/ou no próprio sujeito (pelo seu corpo, pelo seu íntimo). Trata-se de
verdadeiros regimes de “verdade” que, aos olhos da teoria foucaultiana, implicam
dispositivos delicados e extremamente eficazes, capazes de regularizar a forma como os
sujeitos atuam e se constituem como indivíduos. Portanto, olhar o poder através de regimes
políticos implica olhar o poder através de instrumentos simbólicos que legitimam e
orientam as relações entre os sujeitos (a um micro-nível), ao mesmo tempo que auxiliam
na construção das suas identidades (individuais ou coletivas).
Em suma, se o poder não pode ser analisado e/ou explicado por si só, e apenas faz sentido
dentro do feixe de relações em que atua, revela-se fundamental olhar as representações ou
os discursos (textuais e icónicos) que atravessam o seu exercício. Esta leitura discursiva,
que respeita uma estrutura simbólica, implica uma interpretação à luz de uma razão
política, que, no caso deste estudo, pode abranger vários regimes. Neste sentido, para
determinar se Ílhavo era representado como uma sociedade matriarcal na década de 1950,
foi necessário analisar a dinâmica das relações de poder entre homens e mulheres. Neste
processo, emergiu uma grelha organizada em quatro regimes políticos de representação:
política do corpo, política económica, política de controlo social e política da intimidade.
Os quatro regimes políticos, que sustentam a discussão das relações de poder e das
dinâmicas de género em Ílhavo, foram identificados com base na revisão bibliográfica da
especialidade, em articulação com a própria leitura dos dados recolhidos/analisados no
303
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
estudo empírico. Numa primeira fase, estes regimes emergiram da análise das imagens do
jornal O Ilhavense e foram discutidos particularmente naquele contexto. Contudo, ao se
determinar que as imagens evidenciavam um regime do olhar mais denunciador e arrojado
que o textual, e ao se compreender que os regimes políticos identificados estavam em
contexto com a restante análise, revelou-se imprescindível centrar a discussão final dos
dados nesta grelha.
O estudo da microfísica do poder supõe que este seja exercido segundo uma estratégia de
dominação que não implique posse ou propriedade, mas sim estratégias e técnicas de
funcionamento e de manutenção que renovam, automaticamente, as relações de poder entre
os sujeitos. Isto implica que o aparato que valida e dá continuidade às dinâmicas de poder
seja constantemente vigiado por um aparelho disciplinar que reside na sociedade e nos
próprios sujeitos. Segundo Michel Foucault (2010a, 2010c), é esta disciplina que faz
funcionar o poder relacional que se autossustenta através dos seus próprios mecanismos.
Ou seja, é através destes mecanismos que se impõem as normas e que se legitimam os
processos de regulamentação social, que, segundo Foucault (1984a, 2010a, 2010b, 2010c),
Bourdieu (1999) e Butler (1990, 1993), se aplicam a todas as coisas, mas, primeiramente,
ao próprio corpo. Desta forma, o corpo deve ser pensado como um sistema, passível de
(des)codificação.
O corpo revela-se assim um meio pelo qual se faz aplicar a norma que regulariza a
sociedade (seja ela, por exemplo, baseada na binariedade sexual ou na atribuição do
género). Assim, nunca o corpo se encerra numa forma privada, pois é-lhe atribuída uma
legitimação pública e, logo, uma dimensão política: “o corpo tem a sua invariável
dimensão pública; constituído como um fenómeno social na esfera pública, o meu corpo é
e não é meu” (Butler, 2004:21). Neste sentido, o corpo, como objeto simbólico, deve ser
entendido como um efeito discursivo que, na opinião de Butler (2004), deve ser olhado
através de um lugar epistemológico (o corpo torna-se inteligível), ontológico (o corpo
torna-se regulável) e político (o corpo torna-se passível de legitimação e normatização). É
então que o corpo passa a ser reconhecido como um lugar suscetível à legitimação, à
regulação e ao controle, que tanto pode ser “vítima” de repressão, como meio para
reconstruir e exceder a norma.
304
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
À luz desta contextualização teórica, quando se olha para os dados recolhidos do jornal O
Ilhavense, independentemente da dimensão analisada, é percetível a implicação política do
corpo que, neste caso particular, legitima uma dinâmica relacional entre os sujeitos, que é
marcada por uma clara divisão entre o género feminino e o género masculino (e,
consequentemente, o seu sexo/corpo). Esta construção não permite ao sujeito uma
verdadeira libertação do seu corpo (Butler, 1993, 1997) e remete-o sempre para as
limitações da categorização do Outro. É o sujeito externo, o Outro, que olha, identifica e
categoriza os corpos, o que não permite colocar em prática as verdadeiras teorias da
identidade performativa que Butler (1990, 2004) apresenta e que fazem sentido quando se
pensa o sujeito como realmente livre.
Isto é o que se passa quando se olha para o assunto “textos escritos sobre as mulheres”,
independentemente dos autores serem homens ou mulheres, pois tanto uns como outros se
encontram sob a alçada daquilo que Pierre Bourdieu (1999:5) apelidou de “estruturas
históricas de ordem masculina”. De facto, os discursos sobre o feminino estão submetidos
a estruturas discursivas que legitimam o que representa ser mulher ou homem, que estão de
tal forma enraizadas na sociedade (tanto na época em estudo, como ainda na atualidade)
que se torna difícil pensar um lugar para o sujeito se criar a si mesmo longe da sua
corporalidade. Acrescente-se que estas estruturas conduzem os sujeitos a interpretar a
humanidade como masculina, sendo esta corporalidade masculina vista como a
“normalidade” que define a mulher (Beauvoir, 1977a, 1977b).
O mesmo acontece nos textos escritos por mulheres que apresentam um discurso
tendencialmente estereotipado baseado naquilo que deve ser a sua incorporação feminina.
As práticas de género d’O Ilhavense – neste caso o acesso à produção textual e a restrição
temática – estão em conformidade com a visão da sociedade que incorpora o binómio de
género. Retomando as teorias das autoras Simone de Beauvoir (1977a, 1977b), Judith
Butler (1990, 1993, 1997, 2004) e Rosi Braidotti (1994, 2002), que interpretam a sociedade
como tendencialmente dividida por opostos, verifica-se que no caso de Ílhavo essa
oposição é representada com base no género e nos usos do corpo, em que o masculino é a
medida e o feminino é o Outro. Esta divisão estrutural suporta-se em estereótipos e
conceções tradicionais que organizam o mundo e os espaços consentidos a cada sujeito, de
acordo com o seu género e, particularmente, com base no seu corpo. O corpo tornou-se,
305
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
com frequência, numa medida de categorização dos sujeitos, prendendo-os àquilo que se
espera que sejam os comportamentos e as atitudes espectáveis de cada sexo e, logo, de
cada género. Esta posição normativa, que não aceita perfis alternativos ou outras
performatividades (e que dificulta lugares de resistência), legitima a imagem do feminino
(e do masculino) com base no uso do corpo, e no que implica ser mulher (e ser homem).
Um dos exemplos flagrantes desta divisão do género reside no perfil “sem identificação”,
no assunto “textos escritos sobre mulheres”. Este perfil retrata as mulheres que são
utilizadas para satisfazer o imaginário literário deste jornal, particularmente o imaginário
masculino. Apesar destas mulheres não validarem este perfil, pois não contribuem
diretamente para a sua configuração (o que não permite assegurar nenhuma
individualização) os textos que o legitimam possuem um caráter moralizador que
exemplifica quais os comportamentos socialmente (in)aceitáveis da mulher ilhavense.
Desta forma, é valorizado um sentido ético que procura normatizar a mulher, apresentando
os dois pólos comportamentais do feminino: a mulher ideal (casada) e a mulher traiçoeira e
erotizada (solteira). Esta conjuntura reforça aquilo que Wood (1994) acredita serem as
representações das relações de género nos media: formas de reforçar os estereótipos e os
papéis tradicionais.
Neste estudo, a política do corpo ganha ainda mais visibilidade no campo das imagens, na
medida em que a relação entre as dinâmicas de poder e os discursos de género são
consolidados pela quantidade e pela contextualização das imagens analisadas, e ainda pelos
usos do corpo feminino. Em relação ao primeiro aspeto, salienta-se o facto de as imagens
revelarem, de forma mais clara, uma realidade que já os textos expunham, pois os
mecanismos de poder que condicionavam a produção textual parecem aqui escapar às
censuras politicamente corretas. Apesar de existir neste jornal mais produção textual do
que icónica, em termos percentuais o número de imagens que representam mulheres é mais
abundante e representativo do que na produção textual no e do feminino (tal como já foi
indicado e avaliado anteriormente neste capítulo). Esta realidade demonstra um regime do
olhar mais denunciador e arrojado que o textual, revelador das relações de género
centradas nos usos do corpo. É através do sentido simbólico destas imagens que é possível
determinar as ideologias dominantes da diferenciação de género e detetar a exposição
estereotipada do feminino, através da evidência que é dada ao corpo e à beleza da mulher.
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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
No caso das imagens, não só o poder masculino reprime o feminino, como também produz
relações que levam o feminino a reprimir-se a si próprio, utilizando a corporalidade como
veículo para impor um poder moral e disciplinador. Esta leitura reforça a conceção de que
os corpos femininos e masculinos veem-se e relacionam-se como se se tratasse de uma
questão de política convencional, socialmente legitimada. Estas declarações, que estão de
acordo com as afirmações de Butler (1990, 1993, 2004), de Foucault (1984a, 1984b, 1984c),
de Irigaray (2005) e de Braidotti (2002), julgam a importância da diferença sexual e a sua
estruturação corporal, capazes de preservarem o binómio de género (simbólica e
socialmente):
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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
Em relação a este assunto, Braidotti (2002) atesta que o corpo, como construção social e
força simbólica, ainda se mantém no centro da discussão contemporânea, e o seu binómio
vai reforçando as relações de poder e as exclusões estruturais. A autora afirma mesmo que
os sujeitos “incorporados” (especialmente os femininos) são colocados na interseção de
importantes mediações de poder: visibilidade e representações mediáticas (consumo de
imagens corporais). Apesar desta “realidade”, Braidotti (2002) reconhece que, num
determinado contexto mediático, é natural que haja uma reação do Outro ao seu uso
corporal, embora nem sempre isso aconteça.
Em suma, a mulher ilhavense continua a ser representada como corpo que vende, que é
sexualizado e que necessita ser embelezado para ser valorizado. A imagem da mulher
sexualizada (“mito do belo”), apresenta-a como uma figura com pouca profundidade e
retira-lhe qualquer individualidade, o que limita a atuação do feminino e dificulta outras
formas de se ser mulher. A mulher é representada tendo em conta um aparato regulativo
que passa pelo corpo e que não manifesta sinais de implosão ou de resistência.
De facto, é possível verificar que o regime das imagens demonstra de forma mais visível
como é representado o lugar da mulher na sociedade ilhavense. A imagem corporal da
mulher reforça estereótipos e auxilia na conceção de uma sociedade que diminui e
sexualiza o feminino. Mais uma vez se dá conta de um aparato normativo que conduz a
sociedade a uma estrutura fálica, independentemente da presença masculina em Ílhavo ser
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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
Em relação aos textos escritos por mulheres, é percetível a falta de “valor económico”
atribuído tanto à produção textual como à contextualização temática. Por um lado, as
autoras-mulheres estão consideravelmente em menor número em relação aos homens-
autores, o que reduz a sua importância económica na produção discursiva do jornal; por
outro lado, os temas abordados por elas afastam-se completamente da política económica.
De facto, níveis de categoria como “trabalho/profissional”, “política/economia” ou
“negócios/comércio” quase não possuem ocorrências (como se pode verificar no quadro 6),
o que justifica o afastamento das mulheres da produção discursiva dentro do âmbito da
política económica. Pelo contrário, o discurso masculino é muito mais abrangente e
valorizado dentro deste campo. Um cenário semelhante é visível no assunto “textos
escritos sobre mulheres”, visto que a “imagem” da mulher é sobretudo associada a
temáticas como, por exemplo, “criação literária”, “religião” e “morte/luto”, que não se
enquadram na política económica do sujeito.
Efetivamente, é no circuito das imagens d’O Ilhavense que a política económica se revela
mais profícua, sobretudo quando interpretada à luz dos usos do corpo no campo da
publicidade. De facto, a significação da imagem publicitária é claramente intencional,
porque “se a imagem contém signos, é pois certo que em publicidade esses signos são
plenos, formados em vista da melhor leitura (…)” (Barthes, 1992:27), pelo que, neste
contexto, é possível afirmar que o corpo adquire eficácia económica através dos anúncios
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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
publicitários. Quer isto dizer que é na produção de imagens publicitárias a produtos (tanto
de uso feminino, como de uso masculino) que a política económica se envolve no território
da corporalidade, particularmente no corpo como representação da binariedade sexual e
mecanismo disciplinado.
Tal como já foi referido na discussão sobre o regime político do corpo, as imagens d’O
Ilhavense expõem o corpo feminino como corpo que vende e corpo que se cuida. No caso
do corpo que vende, encontram-se envolvidas as imagens femininas para publicitação de
produtos masculinos. Estas imagens deixam adivinhar uma mulher que não parece
participar do processo de estruturação das mesmas, embora permita que tal processo
prolifere. Estas mulheres são aquelas que apresentam um perfil de “identidade sem
identificação”, ou seja, de não-individualização. Importa ainda referir que, nestas imagens,
o feminino é erotizado ou utilizado num padrão de beleza estereotipado, dirigido e vigiado
pelo masculino, pelo que todos os indicativos da individualidade feminina são apagados,
sendo as mulheres excluídas da estruturação da sua própria imagem.
310
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
A mulher, cuja imagem “física” é potencialmente valorizada dentro do mercado dos bens
simbólicos e económicos, entra em contraste com o homem. N’O Ilhavense, o corpo
masculino é também usado, mas fora de uma política da beleza ou de uma lógica
erotizante. A imagem do homem é usada para estabelecer a ligação entre os produtos
masculinos e o público masculino, explorando uma vertente económica do uso do corpo
masculino perfeitamente contextualizada (ao contrário do que acontece com o uso da
imagem do corpo feminino). Acrescenta-se ainda que, naquela época, dentro do propósito
económico, a imagem “embelezada” do homem tendia a diminuí-lo, apagando o seu lugar
de destaque social, pelo que era raro o uso sexualizado ou embelezado do corpo masculino.
Neste estudo, a relação entre as dinâmicas de poder e os discursos de género pode também
ser analisada tendo em consideração uma vertente política de controlo social. De facto,
quer se pense nas relações entre os sujeitos através de uma dinâmica de “estados de poder”
(Foucault, 1984a, 2010a, 2010c) ou de “campos de força” (Bourdieu, 2000), é certo que a
sociedade é estruturada com base em relações assimétricas (ou “lutas”) cujo objetivo
último (ou aquilo pelo qual se “luta”) é o poder. Assim sendo, é no campo social que os
discursos d’O Ilhavense apresentam alguns dos instrumentos mais eficazes, capazes de
legitimar, controlar, excluir e/ou vigiar os estatutos, os papéis e os comportamentos dos
sujeitos sexualizados.
Tal como já foi largamente discutido, o jornal O Ilhavense não só legitima uma divisão
sexual dos corpos (e todos os preconceitos/estereótipos que isso acarreta), como valida
formas de perpetuar a dominação masculina sobre o feminino. À partida, duas das formas
de o fazer prendem-se com a mínima participação efetiva do feminino e a limitação do seu
campo de ação. De facto, segundo a revisão de literatura sobre os estudos dos media e as
relações de poder-género, não só é importante verificar as áreas em que o mundo feminino
se insere (ou é inserido) e é projetado pelos media, mas também a participação efetiva na
produção de conteúdos (Ceulemans & Fauconnier, 1979; Wood, 1994; Bamburac &
Isanovic, 2006; Cerqueira, 2008a; Cerqueira et al, 2009). Neste sentido, um dos aspetos
que se deteta no jornal O Ilhavense, tanto nos discursos no feminino como nos discursos
sobre o feminino, é que se continua a lidar com números baixíssimos, o que é
representativo da condição feminina da época: as mulheres não produziam textos, nem
311
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
eram matéria textual neste jornal. Ílhavo caracterizava-se por ser, na época em questão,
uma sociedade com uma forte representação mediática masculina, onde a voz do feminino
era reduzida e limitada, pois as mulheres estavam sujeitas a restrições no espaço de
publicação e circunscritas a um conjunto de temáticas com pouca implicação/intervenção
social. O Ilhavense, efetivamente, era a voz de uma cultura, de um olhar e de um nome
masculinos.
As condições de publicação n’O Ilhavense, que submetem os textos das autoras ao olhar
masculino e a condições de “censura” indiscutivelmente controladas por homens, afastam-
se da premissa que valorizava a imagem de Ílhavo como uma sociedade matriarcal. A estas
condições junta-se ainda a censura política (“lápis azul”), pelo que é necessário ter em
consideração os filtros (morais, políticos, sociais, masculinos, etc.) pelos quais passavam
312
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
os textos escritos por mulheres. Efetivamente, na década de 1950, a Censura era um dos
meios pelos quais era legitimado o simbolismo salazarista (Martins, 1992), que pretendia
limitar as ideias vanguardistas, e, neste caso concreto, as reflexões do feminino. O aparato
simbólico salazarista valorizava uma mulher limitada às valências da família, da crença e
da submissão ao Estado (que incorporava o ideal autoritário fálico), o que limitava a
atuação do feminino e a produção sobre o feminino no jornal O Ilhavense.
O mesmo se passa com o discurso sobre a morte/luto (segunda temática mais abordada
neste jornal pelas mulheres) que, em conjunto com a produção literária, se afasta das áreas
de verdadeira decisão e intervenção social. Esta evasão do mundo social parece estar
interiorizada nas mulheres ilhavenses, onde não há espaço para lugares relevantes de
existência nem de resistência. Apresenta-se assim uma realidade onde as mulheres são
constantemente excluídas do exercício do poder através de um aparato regulativo da
sociedade (Foucault, 2010C), ao qual as mulheres ajustam os seus próprios discursos.
Deste modo, a limitação das autoras d’O Ilhavense, tanto em quantidade textual como em
variedade temática traduz uma interiorização de esquemas estruturais de dominância
masculina que depois se refletem na sua produção textual: por um lado, são poucas as que
se aventuram na produção discursiva mediática, visto tratar-se de um “mundo”
313
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
maioritariamente masculino; por outro lado, elas restringem-se às áreas que são
tradicionalmente destinadas ao feminino, não ousando (ou não lhes sendo permitido)
escrever sobre temáticas de verdadeira intercessão política e/ou social. Logo, a valorização
que era vulgarmente atribuída ao feminino na sociedade ilhavense – proclamando-a
matriarcal – não se verifica ao nível dos textos produzidos por mulheres.
No caso dos textos escritos sobre mulheres (com autoria maioritariamente masculina) a
política de controlo social é visível particularmente a dois níveis: a reduzida quantidade de
textos produzidos sobre mulheres e as temáticas em que estes se inserem (espaços
atribuídos ao feminino). Em relação à quantidade de textos produzidos sobre mulheres é
importante perceber que apenas 7,1% dos textos produzidos n’O Ilhavense (na década
analisada) são sobre mulheres (como se pode verificar no quadro 13), o que demonstra a
reduzida importância que a produção sobre o feminino tinha naquele contexto. Apesar das
mulheres constituírem uma parte significativa da sociedade ilhavense, parece haver pouco
a escrever sobre elas, os seus feitos e as suas atividades, tanto no aspeto quotidiano como
ao nível de outras atividades de maior destaque social.
314
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
Ainda no âmbito das temáticas às quais é associada a mulher, o segundo destaque vai para
a “religião”, particularmente em contexto social e onde a “fragilidade” feminina está
constantemente dependente da intervenção divina e masculina, figurada no padre da
paróquia. Aqui a mulher é frequentemente vigiada pelo poder assexuado deste homem, ao
mesmo tempo que é encorajada a autovigiar-se ou a autodisciplinar-se. A norma do
comportamento social da mulher ilhavense é estruturada pelo domínio masculino e é
controlada por um dos mecanismos mais bem organizados da sociedade: a Igreja. Este
panorama vai ao encontro do que já foi referido neste estudo relativamente à necessidade
que a sociedade sente em monitorizar o comportamento de género, que neste caso passa
por uma instituição social (a Igreja), mas também pelas próprias mulheres, que exercem
tecnologias de controlo sobre si (e sobre as outras mulheres).
315
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
No que diz respeito à temática “morte/luto”, nos textos escritos sobre mulheres, destaca-se
o facto de, quando se trata do falecimento de uma mulher, a construção discursiva ser
breve e particularmente informativa (sem recurso a fotografia). Apenas as mulheres
relacionadas com homens influentes têm destaque, o que, mais uma vez, legitima o
relacionamento do seu grau de exposição social e de importância com o seu grau de
ligação a um homem. Se, por um lado, a identidade da mulher se apaga no momento da sua
morte, por outro lado, ela pode ganhar destaque se associada a um homem influente. O seu
“nome” ganha importância quando, na verdade, não é o seu “nome”.
Acrescente-se ainda que, nas imagens que projetam os modelos do masculino, é possível
identificar dois perfis que têm fortes implicações sociais e que comprovam o que até aqui
foi sugerido: perfil de “homem-social” e perfil de “homem-moral”. Em qualquer um dos
casos, os homens apresentam um elevado nível de identificação e de individualização,
participando e validando a imagem que este jornal expressa de si próprios. Esta imagem do
masculino apresenta um homem socialmente visível e moralmente responsável e entra em
contraste com a imagem de mulher dependente, sexualizada e moralizada. O “homem-
social” é aquele que é representado através de imagens que englobam temáticas que
conferem autoridade e projeção social ao masculino (e que são a maioria). A imagem
316
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
Portanto, outra grande conclusão a que a presente análise chegou é que n’O Ilhavense
existem diversas possibilidades de atuação e até vários papéis a adotar pelos homens
ilhavenses, bem como lhes é atribuído um lugar de evidência no campo social e moral. Por
outro lado, os perfis das mulheres ilhavenses são mais limitados, insípidos e
estereotipados, havendo apenas alguns casos que parecem querer afastar-se deste panorama
(como se poderá ver no ponto seguinte). Contudo, tendo em conta que os media são uma
das formas mais poderosas e persuasivas na influência como são vistos os homens e as
mulheres, isto pode conduzir a caracterizações erradas, estereotipadas e distorcidas nas
formas como os sujeitos se veem a si próprios (Wood, 1994) e como são olhados pelo
Outro. E são estas caracterizações que vão marcar vincadamente a(s) identidade(s) de
género dos sujeitos. Resta agora recordar os diferentes perfis que foi possível identificar na
análise dos dados dos diferentes assuntos e dimensões estudados, introduzindo uma
discussão em torno da política da intimidade.
317
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
Como já foi anunciado nesta investigação, a identidade dos sujeitos é reconhecida através
da conjugação de três dinâmicas: a institucional (instituições sociais como o Estado, os
Media, a Igreja, a Escola, etc.), a individual (que remete para uma escolha do próprio
sujeito) e a simbólica (que implica a incorporação de um conjunto de normas que circulam
(in)voluntariamente na sociedade). Estas três dinâmicas auxiliam na categorização da
identidade, não só como um ato de adesão pessoal, mas também como representação
(Bourdieu, 1980; Martins, 1996). Quer isto dizer que a(s) identidade(s) dos sujeitos estão
dependentes de uma espécie de vontade pessoal, mas também dos discursos sobre si (logo,
do reconhecimento do Outro).
Portanto, a(s) identidade(s) dos sujeitos não depende(m) só da sua própria construção ou
daquilo que ele identifica como sendo o seu perfil, mas igualmente do reconhecimento do
Outro. Logo, é necessário assumir definitivamente que a identidade é também uma
construção discursiva (portanto, social), que emerge de um sistema simbólico de forças,
pois, tal como indica Bourdieu (1980:67): “todo o discurso sobre a identidade (…) revela o
campo de uma luta simbólica, onde o que se decide é quem tem o poder de definir a
identidade e o poder de fazer reconhecer a identidade definida”.
No caso específico deste estudo, aquilo que as mulheres escrevem, aquilo que é escrito
sobre elas e as imagens que as caracterizam permitiram criar representações do feminino
que, apesar de exigirem o reconhecimento ou a legitimação do Outro, encontram-se
tendencialmente inseridas na esfera privada (da intimidade), do que propriamente na esfera
pública (social). De facto, no jornal O Ilhavense, o conjunto de características atribuídas ao
feminino, por meio da interpretação do conteúdo da sua produção discursiva ou da
produção discursiva do Outro sobre o feminino, permitiram identificar perfis identitários
que não revelam grande intervenção social, política e/ou económica por parte destas
mulheres. Estes perfis são o espelho identitário das mulheres ilhavenses, visíveis no
contexto da imprensa local, e representam uma realidade que expõe o espaço simbólico
318
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
que lhes é deixado. Mais do que individualizações identitárias, a maioria dos perfis
identificados surge como uma espécie de “identidades prontas” (Damean, 2006), capazes
de oferecer modelos identitários particularmente estereotipados e socialmente codificados,
apoiados em representações discursivas saturadas de normas.
Em relação aos textos escritos por mulheres, encontram-se dois tipos de mulher-autora: por
um lado, uma “mulher-emotiva/fantasiosa”, que se associa à produção literária, e, por
outro, uma “mulher-prática” ligada ao hábito informativo da morte/luto. A “mulher-
emotiva/fantasiosa” é a autora que trabalha o espaço literário de implosão emotiva, onde
sobressaem os seus sentimentos, particularmente através dos poemas e contos produzidos.
Esta “criação literária” é representativa de um discurso fortemente fantasioso e emotivo, e
que hoje se designaria por “literatura light”. A “literatura light” transfere o real para o
texto, dando-se uma forma simples e imediata de identificação entre a mulher-leitora e a
mulher-autora, em que a primeira se revê na segunda (Pereira, 2006).
Efetivamente, os poemas e os contos produzidos por estas mulheres são, na sua maioria,
estereotipados (nos temas e nas abordagens) e sem expressividade, o que demonstra a
ausência de uma teoria ou reflexão literária, que é substituída pelo excesso de descrições
afetuosas e superficiais. Para além disso, um dos objetivos destes textos parece ser o de
atribuir um homem a cada mulher – especialmente através do casamento –, utilizando um
registo no qual as mulheres parecem sentir-se mais à vontade, pois é o espaço onde
expõem a sua identidade imaginária, fantasiosa e emotiva. Esta valorização da “mulher-
casada” vai ao encontro da teoria de Pierre Bourdieu (1999:11), que admite o casamento (e
as relações de parentesco) como uma forma de fixar as mulheres a um “(…) estatuto social
de objetos de troca definidos em conformidade com os interesses masculinos, e votado a
contribuir assim para a reprodução do capital simbólico dos homens (…)”. O casamento dá
continuidade às trocas simbólicas que legitimam as diferenças e limitam a autonomia do
feminino.
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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
própria. Contudo, uma minoria das autoras abre espaço para uma espécie de marca ou
assinatura, deixando transparecer casos de “identificação por frequência” e de
“identificação mediada”. No que diz respeito à “identificação por frequência” encontra-se a
autora Mari Carmen Flores que deixou uma marca nos leitores fruto do número de
ocorrências discursivas produzidas e de uma certa fidelização estilística. Já Maria José
Sacramento, que evolui hierarquicamente no jornal, apresenta-se como uma autora que se
escreve através dos discursos do Outro, possuindo um grau mínimo de identidade a que se
apelida de “identificação mediada”. Estes graus de “não-identificação” só vêm reforçar a
ideia de que, exceto alguns relatos de duas autoras que mostram um grau mínimo de
identificação por parte das mesmas, na sua esmagadora maioria trata-se de discursos que
apresentam um contexto em que a mulher ilhavense parece não ser valorizada (nem se
valoriza) na sua individualidade subjetiva.
Em suma, neste jornal, o feminino expressa-se através de uma produção literária que
reflete um imaginário romântico e emotivo, que funciona como fuga para uma realidade
alternativa, mas que não oferece qualquer resistência à estrutura existente, nem procura
alcançar a produção teórica, interventiva e até poética. Em contraste com este “tipo” de
mulher, surge um homem crítico, moralizador e poeticamente mais profundo, cujo discurso
é mais valorizado social e politicamente. O perfil de “mulher-emotiva/fantasiosa” parece
legitimar a dualização do conceito de género que acentua a exposição identitária do
homem-sujeito/objetivo/racional em oposição à mulher-objeto/subjetiva/emotiva que a
literatura da especialidade evoca.
320
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
Importa também referir que não há uma apropriação lírica da morte, sendo a produção
escrita mais realista e sólida, o que parece conferir uma espécie de endurance identitária a
estas mulheres habituadas a vivenciar a morte dos pescadores da família (frequente numa
realidade como Ílhavo, onde grande parte da população masculina se dedicava a uma
atividade de risco). É neste preciso momento que, na produção discursiva no feminino,
parece dar-se uma fuga do caráter emotivo e do imaginário lírico que se atribui à produção
literária. É na temática da morte/luto que tanto mulheres como homens se aproximam,
apresentando um mesmo tipo de lógica textual e de diminuído grau de emoção, embora
não o suficiente para valorizar uma representação do feminino com substancial destaque
(pessoal, político ou social). Contudo, este perfil de “mulher-prática”, por apresentar uma
mulher com uma identidade que se aproxima das características vulgarmente atribuídas ao
homem, pode apresentar-se como um perfil alternativo dentro da produção escrita no
feminino. Ou seja, este perfil pode anunciar-se como uma identidade de resistência, pois
quando as mulheres ilhavenses falam sobre a morte e expressam o seu luto de uma forma
prática e sóbria acabam por contradizer uma reação emotiva que se poderia esperar nestes
casos, tal como é indicado na literatura da especialidade e nos estudos realizados por
Ceulemans & Fauconnier (1979), Marzlof (1993), Bailey (1994) e Graber (1978).
321
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
natural e prática, foi possível identificar alguns exemplos mais complexos, tanto ao nível
gramatical como emotivo. Estes textos, mais longos e descritivos por natureza, ganhavam
destaque no jornal de acordo com a posição social do defunto e, por consequência, da
mulher que o “assinava”. Também nos textos escritos sobre mulheres, a identidade
feminina é apagada no momento da morte, exceto quando a defunta é associada a um
homem de elevado estrato social. Estes testemunhos são a prova que o feminino não só se
encontrava limitado no género, como também na classe, o que dificultava a libertação das
mulheres das dinâmicas que as censuravam, vigiavam e controlavam.
Portanto, a esmagadora maioria dos textos escritos por mulheres não deixa manifestar uma
identidade feminina própria, singular e em oposição ao socialmente instituído, pois o Eu
feminino nunca retoma a si livre do Outro masculino. O feminino escreve-se,
frequentemente, através de caracterizações estereotipadas que se encontram presas a
“imagens miméticas” que circulavam e se mantinham como crenças baseadas naquilo que
se conhece como os papéis sociais representados por mulheres e homens. Quer isto dizer
que, apesar das teorias modernas e pós-modernas reconhecerem que o conceito de
identidade de género tradicional sofreu um deslocamento e uma desagregação (Foucault,
1984d, 1997; Hall, 2001c; Butler, 1990, 2004; Braidotti, 1994; Weir, 1996), no caso do
jornal O Ilhavense (particularmente na década de 1950) as autoras produziam textos
mediáticos que refletiam uma categorização de género binária e pouco individualizada.
Embora se assuma, nesta investigação, que o poder dos media é simbólico e persuasivo,
capaz de controlar potencialmente uma parte da mente dos recetores (Van Dijk, 1995) e até
dos produtores de discurso, é sempre possível contar com alguma capacidade de
autonomia, liberdade e até resistência. Contudo, no caso do jornal O Ilhavense, as
mulheres produtoras de textos elegeram uma identidade assumidamente estereotipada, e
322
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
que, na grande maioria dos casos, oferece pouca resistência à imposição das estruturas de
poder masculino.
Retomando agora o assunto “textos escritos sobre mulheres”, é possível reconhecer dois
perfis de mulheres: perfil “sem identificação” (ou de “não-individualização”) e perfil de
“autoidentificação”. O perfil “sem identificação”, tal como já foi referido no regime de
controlo social, representa as mulheres que são usadas para satisfazer o imaginário literário
do jornal. Estes discursos, com um forte cunho moralizador, são exemplificativos do “tipo”
de mulher que é aceitável, censurando aquelas que não entram neste espectro. No plano da
“autoidentificação” encontram-se as mulheres que são envolvidas nas temáticas “religião”
e “morte/luto”. Em relação ao primeiro caso, este perfil é representativo de um tipo de
mulher apresentado como um ser delicado, moralizado e frágil, regularmente dependente
da interceção divina e masculina (homem moralizador). É através da religião que o
feminino é estruturado, tanto individual como coletivamente, e isto parece satisfazer as
mulheres ilhavenses. De forma alguma o papel religioso que é atribuído a estas mulheres
parece corresponder às suas necessidades de reconhecimento social, mas é como se
precisassem da religião para se “normalizarem” e encaixarem no tecido social (daí
organizarem festas, encomendarem rezas e fazerem donativos à Igreja). No caso da
temática “morte/luto”, os discursos sobre o feminino são, normalmente, notas breves e
informativas de falecimento de mulheres, que vão ganhando destaque de acordo com o seu
grau de associação familiar a um homem (e à sua posição na sociedade). Contudo, parece
não haver indícios de reação feminina a este grau mínimo de individualização.
323
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
Importa ainda referir que tanto nos discursos das autoras como nos textos sobre o feminino
há uma relação de interdependência interiorizada por estas mulheres que apresenta um
caráter politicamente policiado, tanto a nível comportamental e atitudinal, como a nível
corporal (Foucault, 2010c). Esta construção do feminino deixa, novamente, adivinhar uma
estrutura fálica interiorizada, vigiada e autopoliciada pelas próprias mulheres, e que não
lhes permite identificarem-se com uma identidade livre da normatividade de género que
subjuga o feminino ao masculino.
No caso das imagens que contém mulheres, e cujos perfis já foram discutidos no âmbito do
regime político do corpo e da política económica, reforça-se a ideia de que a identidade
feminina é legitimada e/ou censurada praticamente de acordo com os usos e a exposição do
seu corpo. É sobre este corpo que são fixados os atributos sociais de género (Miranda,
2008), que socialmente reconhecem o sujeito como “homem” ou “mulher”. Butler (2004)
acrescenta que o aparato de conhecimento aplicado ao corpo (como ser-se reconhecido
como mulher ou homem) implica uma violência (simbólica) implementada na norma e na
institucionalização do poder dessa implementação.
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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
Ainda na linha da análise das imagens foi encontrado um outro perfil que é partilhado tanto
por homens como por mulheres: o perfil de “cuidadores”. Neste perfil estão incluídas as
imagens que representam ambos os géneros como beneméritos sociais e cuidadores do
Outro (especialmente da família), embora nas mulheres surja também o cenário de
cuidadoras do lar. De facto, no contexto privado-familiar, tanto homens como mulheres
parecem identificar-se com um perfil de “cuidadores” não havendo referências que
indiquem a existência de um esperado homem-chefe de família/autoritário. Este perfil não
liberta as mulheres do estereótipo de mãe de família, esposa e crente, não lhes atribuí
qualquer liberdade de personificação e não se apresenta como lugar de resistência, mas
demonstra uma posição que normalmente não é representada como pertencente ao mundo
masculino. Este perfil masculino serve, por si só, como elemento de diferença, mas não é
suficiente para representar Ílhavo como uma sociedade com características matriarcais.
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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
Olhando agora estes regimes através de um esquema ortogonal pelo qual se distribui
política corporal, política económica, política social e política da intimidade no campo de
ação das esferas pública e privada, é possível verificar em que aspetos eles se fundem e em
que aspetos se distanciam. A primeira grande conclusão retirada deste estudo é que na
esfera pública – que reúne os campos social, político e económico – as mulheres têm pouca
visibilidade e poucos perfis a apresentar. O feminino não ocupa lugares de destaque social
e é constantemente regulado pela autoridade masculina e legitimado pelas próprias
mulheres. Esta vigilância é feita com base naquilo que Foucault (2010c) chama de poder
disciplinador. Este poder disciplinador organiza-se de forma complexa, na medida em que
se revela anónimo e automático. Quer isto dizer que, a vigilância que incorre sobre os
sujeitos, numa relação de dominação, é exercida através de um feixe de relações
dinâmicas, em que ao mesmo tempo que o sujeito vigia o Outro, ele próprio também é
vigiado.
O facto da esfera pública não dar espaço para a criação de perfis femininos que se
destaquem social, política e/ou economicamente é figurativo de uma sociedade que
simbólica e discursivamente remete as mulheres para um lugar de não-representatividade.
Deste modo, é no campo da intimidade que sobressaem os perfis do feminino, que são
legitimados pela sociedade e, na sua maioria, pelas próprias mulheres. Estes perfis
funcionam como uma espécie de mecanismos de controlo, na medida em que comunicam
às mulheres o que podem ou não fazer e como se devem ou não comportar, sob pena de
serem excluídas socialmente (por exemplo, se as mulheres são solteiras devem procurar
unir-se rapidamente ao homem através do matrimónio).
326
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
uma relação que torne o sujeito obediente, sendo que este controlo é exercido primeiro ao
nível pessoal/íntimo, para depois ser disseminado na sociedade ao nível educacional, moral
e até económico. Exemplo disto é a forma como os discursos textuais e icónicos
divulgados pel’O Ilhavense são responsáveis por representar uma mulher com perfis
limitados e segundo uma imagem sexualizada, focada no mito da beleza.
Um olhar atento sobre os diferentes regimes políticos discutidos permite identificar os usos
do corpo como elemento comum. Efetivamente, o corpo deixa o seu lugar íntimo para
ingressar na esfera pública, atravessando quase todos os campos sociais: política,
economia, religião, família, media, educação, etc. É sobretudo através do corpo que são
aplicados os mecanismos sociais de vigilância e de controlo do feminino, tanto pelos
homens como pelas próprias mulheres. Ao nível da política económica, o uso sexual do
corpo ou até a divisão sexual do sujeito envolvem-se em discursos de regulamentação que
procuram resolver problemas económicos. A mulher não se evidencia na sociedade
ilhavense, mas o seu corpo é explorado social e, sobretudo economicamente, como corpo
que vende e que deve ser cuidado, de forma a preencher o imaginário literário e
iconográfico do Outro. Já o corpo masculino é aquele que se impõe como autoridade civil e
moral. Deste modo, no jornal O Ilhavense, os usos do corpo funcionam como mecanismos
responsáveis pela manutenção das estruturas de divisão sexual dentro dos regimes políticos
identificados. E, ao se reforçar o ideal de divisão sexual, perpetuam-se as diferenças
simbólicas tradicionais e estereotipadas que existem entre o feminino e o masculino.
Segundo Bourdieu (1999), a divisão sexual está objetivada nas coisas e incorporada nos
corpos que legitimam, como naturais, as diferenças entre o sexo masculino e o sexo
feminino. Esta divisão funciona graças a uma estrutura simbólica que confirma a
dominação masculina em vários campos sociais e que se verifica, primeiramente, ao nível
do corpo. Para o autor, as diferenças biológicas parecem fundamentar as diferenças socias,
contribuindo para justificar muitas das atribuições simbólicas que são conotadas com o que
implica ser mulher e ser homem:
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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
Para além disto, tal como foi possível verificar neste estudo, as próprias mulheres não
contestam esta realidade, visto que estão envolvidas em relações de poder que, de acordo
com Bourdieu (1999), estão submedidas a esquemas de pensamento que são o produto da
incorporação dessas mesmas relações de poder. Logo, as oposições e classificações com
base no corpo e, consequentemente no género, acabam por possuir legitimação simbólica,
histórica, social e sistemática. Na maior parte dos casos, esta incorporação é produto de
uma fortíssima violência simbólica, que acentua estereótipos e limita as reações dos
sujeitos dominados (neste caso, as mulheres).
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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
dualidade (ex.: homem-mulher, branco-preto, etc.). O sujeito deve ser entendido como uma
entidade dinâmica e em constante mudança, através de uma visão descentrada e
multifacetada, desafiando os modelos estabelecidos de representação. Atualmente, esta
teoria ganha mais força, graças ao constante processo de transição, hibridização,
nomadização (Braidotti, 2002) e performatividade (Butler, 2004) em que os sujeitos vivem,
e que faz com que a dualidade comparativa que é utilizada para os definir (e estabelecer a
sua identidade) deixe de fazer sentido.
Quer isto dizer que, tendo em conta os dados trabalhados nesta investigação e a discussão
promovida pela literatura da especialidade, é possível determinar a existência de um
modelo discursivo identitário binário, em que num dos lados se encontra o masculino e no
outro oposto o feminino. Todavia, apesar de serem representados como antagónicos, física
e socialmente, importa referir que se trata de géneros construídos com base na oposição um
do outro – o que um é o outro não é. Se, por um lado, O Ilhavense oferece a imagem de um
homem socialmente interventivo, racional, moralizador e cuidador, por outro, é
apresentada uma mulher-objeto, dependente, moral e socialmente vigiada, erotizada
(corpo/beleza), cuidadora dos outros e da família, e sem qualquer autoridade ou lugar de
destaque nas áreas de intervenção social. É este modelo que comprova que O Ilhavense (na
década de 1950) segue aquilo que Rosi Braidotti (2002) apelidou de “lógica do mesmo”.
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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
Rosi Braidotti (1994, 2002) aborda este assunto, afirmando que apesar da diferença sexual
ser importante na estruturação do sujeito como Eu – e no seu relacionamento com o
Outro/sociedade –, ela é fundamental na sua desconstrução. É a diferença sexual que
permite ao sujeito construir-se de outra forma, ser de outra maneira, tornar-se naquilo que
anseia sem as limitações do dualismo de género. Isto é possível através do reconhecimento
dos mapeamentos e das figurações alternativas que se encontram entre o espectro do
masculino e do feminino. É neste caminho que seguem as teorias pós-estruturalistas da
diferença sexual que procuram desconstruir o modelo dialético de representação do género
através do binário masculino-feminino. Por exemplo, ao continuar a ser vista como o Outro
de uma relação de oposições, a mulher fica desprovida de um conjunto de atributos
fundamentais para a sua construção como sujeito, reduzindo-se a um lugar de sub-
representação por falta, excesso ou deslocamento. É isto que é necessário desconstruir,
desnormatizar.
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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
Tendo em consideração que O Ilhavense segue a “lógica do mesmo” já apontada – que ela
é uma realidade e que é com base nela que a estrutura social ilhavense é binariamente
representada na década em causa – há necessidade de encontrar soluções com base nos
esquemas de pensamento referidos. Retomando Braidotti (2002), esta apresenta uma
solução para a problemática da diferenciação de género, mais concretamente, para a
questão da “lógica do mesmo”. Este esquema reside, fundamentalmente, em reconhecer
que existe um tecido normativo e social que valida a diferença sexual, estabelecida em dois
pólos, em que “A” é o masculino e “B” é o feminino, embora no caminho entre “A” e “B”
seja possível seguir percursos alternativos, que dão acesso a outros percursos alternativos,
e assim sucessivamente. Braidotti (2002) afirma mesmo que o desafio dos sujeitos reside
assim em pensar sobre processos (mais do que sobre conceitos), de forma a considerarem
no que se querem converter, ressurgindo a teoria do “tornar-se” também teorizada por
Butler (2004). O esquema da “lógica do mesmo” apresenta-se como uma “realidade” no
conteúdo discursivo presente n’O Ilhavense, mas que parece querer aceitar – embora
superficialmente – possibilidades, lugares e figurações/perfis alternativos (já referidos) e
em mudança, capazes de cartografar relações de poder e de identificar estratégias de
resistência.
Assim, a resolução da questão da “lógica do mesmo” pode ser encontrada nas formas de
resistência ou micro-resistência, pelo que importa perceber: Quais as possibilidades de
resistência que o feminino usa n’O Ilhavense? Que representações ou figurações
divergentes se detetam? Que fluxos/transformações se oferecem ou podem oferecer? Só
analisando as possibilidades, os lugares e os perfis ou as figurações de resistência é
possível perceber e interpretar os caminhos alternativos que são deixados para as mulheres
ilhavenses e que estão representados nos discursos textuais e icónicos da imprensa local.
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Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
A “mulher-prática” é aquela que escreve sobre a morte e o luto de forma prática, simples e
natural, através de um caráter informativo. Neste contexto discursivo, tanto homens como
mulheres se apresentam num nível aproximado de igualdade na lógica textual e no
diminuído grau de emoção quando discursam sobre a morte e o luto, fazendo-o de forma
pouco evasiva e pouco emotiva. Todavia, importa referir que a “mulher-prática” participa
de uma espécie de “não-identificação” identitária, pois não há uma marca pessoal na sua
produção textual. Ou seja, embora este tipo de produção discursiva se apresente como uma
possível forma de resistência à maneira como o feminino se anuncia e é representado n’O
Ilhavense, tal como já foi anunciado anteriormente nesta discussão é possível que a
mulher-autora não tenha “voz” na escolha dos anúncios lutuosos. Recorde-se que, dado o
caráter simples e pouco emotivo destes textos, é possível que as censuras masculinas
controlassem a produção feminina sobre a morte/luto, dando apenas espaço para a mulher
assinar textos previamente validados pela direção do jornal. Portanto, a existência deste
perfil não é suficiente para demonstrar a presença de uma mulher independente,
interventiva e subjetivada, tanto ao nível pessoal como social. Importa apenas perceber que
esta é a temática pela qual o feminino foge à normatividade estabelecida e no qual se
poderiam encontrar possibilidade transformativas.
Quanto aos casos pontuais referidos, que não são, no fundo, lugares de resistência, é
possível indicar o perfil de “mulher-emotiva/fantasiosa” (no assunto “textos escritos por
mulheres”) como potencial lugar de mudança. No perfil de “mulher-emotiva/fantasiosa”
333
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
Contudo, se, por um lado, a resolução teórica de Braidotti passa por encontrar
caminhos/perfis alternativos entre o binarismo (“A” e “B”), já a de Butler ultrapassa esta
estruturação e prevê uma outra construção do sujeito. Para Butler não devem existir pólos
opostos (“A-B”), nem os lugares entre “A” e “B”, mas sim uma forma completamente
diferente de pensar o sujeito. Trata-se de aceitar o sujeito como um ser humano com
capacidade performativa. Butler acredita que há espaço para uma reapropriação do
“phallus” (Lei/norma/ordem) ou até para uma reestruturação normativa/simbólica de
“outra coisa”. Isto pode significar um caminho para a subversão do género e até para o fim
da diferença sexual. Trata-se da “apropriação” ou implosão simbólica da norma fálica
através de uma estratégia performativa que implica conhecimento, desejo, relações de
poder, ação/política e conceção teórico-prática.
Em suma, Judith Butler (1990, 1993, 1997, 2004) ultrapassa o conceito de diferença sexual
e foca-se na necessidade de se abraçar a performatividade de género como condição para
compreender, aceitar e interpretar o sujeito e o seu lugar na sociedade. Esta visão comporta
grandes mudanças na forma de olhar e compreender o Outro, ao mesmo tempo que admite
novas formas de aceitar a diferença, novas performatividades, novos perfis, e, por
consequência, novos sujeitos. Esta teoria abre caminho para o desejo de “se tornar
algo/alguém” (e não apenas “ser algo/alguém”) e deixa lugar para a(s) resistência(s).
Neste sentido teórico, uma das formas de reação/resistência das mulheres pode passar pela
implosão e/ou desconstrução normativa/simbólica, através de um processo de
transformação ou de “tornar-se”; uma espécie de “fuga do falocêntrico” que Deleuze
334
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
apelidou de “fiasco da alma” (Braidotti, 2002:68). Mas então como efetuar esta mudança e
contrariar estes perfis pouco individualizadores e antissubversivos? Dando visibilidade à
produção discursiva do feminino. Mas como? Havendo a oportunidade de mais mulheres
produzirem conteúdo discursivo individual, com o qual se identifiquem e que formalizem a
sua presença e visibilidade no jornal. E, muito importante, em conjunto com o aumento da
produção feminina, e no que diz respeito ao assunto “textos escritos por mulheres”,
oferecer outros fluxos resistentes capazes de alterar o panorama estrutural das
representações do feminino, como, por exemplo, estimular a produção de textos com maior
variedade temática, que fujam à validação da censura (particularmente da masculina) e que
sejam representativos da individualidade e da verdadeira subjetividade da mulher
ilhavense.
No assunto “textos escritos sobre mulheres” não há espaço para a resistência, até porque o
feminino é trabalhado e representado pelo masculino, de acordo com uma visão
estereotipada, limitada e até erotizada. Uma das possibilidades de ultrapassar este
panorama pode estar no aumento da produção escrita sobre mulheres ao mesmo tempo que
se variam as temáticas em que o feminino é inscrito, dando alguma projeção social e
reconhecendo outros lugares e outras figurações femininas no contexto ilhavense. O estar
mais próximo da realidade seria dar espaço para que o feminino se apresentasse de acordo
com outros perfis, mais adequados a uma realidade social que era visivelmente feminina.
No caso dos discursos visuais também não se detetam lugares de resistência, embora exista
um perfil – “identidade por empatia” – com o qual as mulheres ilhavenses possuem um
determinado nível de identificação com a imagem que é apresentada de si próprias
(publicidade de cabeleireiros e tratamentos de pele). Em relação à representatividade
icónica, seria importante que a quantidade e a realidade das imagens com mulheres fosse
outra, sendo valorizadas as atividades de destaque social, político, religioso e educativo
(entre outras) em que as mulheres se envolviam. Conjuntamente com isto era importante
dar outra visibilidade à imagem do feminino que não a sexualização corporal e a
manutenção do “mito da beleza” que satisfaz o imaginário masculino.
Os dados indicados nos parágrafos anteriores vão ao encontro da opinião teórica de Rosi
Braidotti (2002), particularmente no que diz respeito à questão da denúncia à sexualização
do feminino e da exigência de um despertar político das mulheres. Para a autora, a mulher,
335
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
Neste contexto, o caminho deve ser a singularidade em vez de uma posição identitária
global que sirva a todas as mulheres. O segredo (a resistência) está no desejo de “se tornar”
mulher e construir uma imagem que esteja de acordo com o que realmente implica ser
mulher (em Ílhavo ou fora dele), ou melhor, o que deveria implicar. E o segredo está
também na vontade política e na determinação em encontrar uma representação mais
adequada da realidade corporal feminina. As mulheres precisam de se pensar e de se
representar nos seus próprios termos, através de um modo ativo de ser e de “se tornar”,
para que, física e simbolicamente, ganhem um lugar com voz que afaste o materialismo
corporal e o simbolismo feminino das idealizações masculinas.
336
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
um cuidado extra e profundo: não basta mudar alguns itens que constituem a
sociedade/humanidade, mas sim mudar a sociedade/humanidade em si. Trata-se de
perceber que a própria noção de “identidade” está desajustada e que é necessário adotar
uma posição horizontal e vertical que repense todas as relações de género, tanto no espaço
como no tempo, no intervalo entre o binómio de género, evitando a polarização normativa.
Braidotti (2002) segue assegurando que devem ser as diferenças múltiplas (que não são
homogéneas nem harmoniosas, mas antes diferenciadas internamente) o cerne da
estruturação do sujeito. Estas diferenças podem e devem ser analisadas em termos de
relações de poder, onde o papel do homem reside em denunciar a exclusividade de uma
sexualidade fálica (redefinindo os seus desejos), e o objetivo de agir politicamente
(sobretudo para as mulheres) deve ser o de situar cada sujeito feminino no topo das
contradições sociais e simbólicas, para depois destabilizar este sistema sociossimbólico e
as relações de poder que o sustentam. Mas, importa não esquecer que, qualquer que seja a
opção política ou o caminho a seguir, devem ser considerados o contexto e o tempo –
atuais e genealógicos.
Num determinado momento, Braidotti (2002) coloca uma questão fulcral: Como pode o
sujeito feminino redefinir-se ou expressar-se de forma “diferente”, liberto da estrutura
hegemónica da oposição binária de pensamento em que a filosofia ocidental o confinou? A
autora automaticamente responde que o ponto de partida está no “tornar-se” mulher de
uma forma “pós-edipiana” ou “a-edipiana” (Braidotti, 2002:81), o que, na perspetiva (pós-
)feminista, se centra na ativação de agentes políticos e epistemológicos (desconstrução das
representações falocêntricas do feminino e potencial transformação das mulheres da vida-
real/quotidiano), capazes de dar definições alternativas do sujeito feminino. Braidotti
(2002) reconhece que, obviamente, todo este processo é dificultado pela teoria lacaniana
que valoriza a inevitabilidade histórica e psíquica do sistema falocêntrico centrado no
significante fálico, mas aponta duas soluções teóricas para esta problemática: segundo
Irigaray pode-se substituir isto por um simbólico feminino, expresso num imaginário que
deixa de ser mediado pelo “phallus”; e segundo Deleuze pode-se repensar a subjetividade
sem fazer referência ao sistema simbólico de ninguém. De qualquer forma, uma nova
construção do sujeito feminino implica uma revisão do próprio conceito de subjetividade
humana no geral, pois o “tornar-se” mulher não deve ser algo que se oponha à
337
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
Em jeito de síntese, até este momento foi possível perceber que questões como o género, a
diferença sexual, a corporalidade, a performatividade e o desejo (de reconhecimento),
amparadas pelas teorias discursivas do poder, são fundamentais na compreensão das
dinâmicas sociais. Foi possível interpretar a influência da socialização na construção da
identidade de género “tradicional”, na medida em que a sociedade potencia a atribuição de
papéis sexuais e de perfis identitários com base no sexo (Foucault, 1984ª, 1984b, 1984c;
Boudreau, 1986; Bourdieu, 1999; Braidotti, 2002; Butler, 2004). De facto, reconhece-se a
sexualidade como fulcral na constituição do sujeito e das relações de poder que ele
acarreta, graças à importância económica, cultural e simbólica que ganhou na cultura
ocidental. Logo, é esta normatividade social e simbólica que legitima e suporta as
estruturas de dominância falocêntrica (a supremacia modelar do homem, branco,
heterossexual e proprietário), dificultando outras formas de pensar e construir o sujeito
(sobretudo o feminino) e a sua forma de viver em sociedade. Mas, quando se fala de um
processo de transformação que implique alterar estas estruturas, é preciso ter consciência
que dissolvê-las (ou à diferença sexual) acarreta fortes consequências sociais e até
psíquicas.
338
Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”
Em suma, Braidotti (2002) sugere dois caminhos para resolver os problemas conservadores
e a diferença sexual da sociedade contemporânea. Em primeiro lugar, deve-se usar uma
crítica baseada nas teorias do “tornar-se” ou “transforma-se” num sujeito diferente,
renovado e “desterritorializado” (que reconheça novas figurações simbólicas e
normativas). Esta posição está também de acordo com a teoria performativa já apontada
por Butler (2004) e amplamente discutida nesta investigação. Em segundo lugar, devem-se
valorizar as reivindicações feministas e reconhecer a diferença sexual de forma a
possibilitar a crítica às relações de poder que essas assimetrias acarretam:
Neste caso, apesar de valorizar e defender as lutas feministas, a teoria butleriana segue um
caminho diferente, como já foi apontado, na medida em que pretende superar o conceito de
diferença sexual e vê o sujeito como ser humano capaz de ultrapassar as barreiras da
sexualidade. Este é o verdadeiro espírito do Pós-Feminismo. Contudo, apesar de
teoricamente diferentes, as posições destas duas teóricas (que se posicionam sempre que
necessário entre o Feminismo, o Antifeminismo e o Pós-Feminismo) concorrem para
implodir os sentidos, os valores e os símbolos identitários. Isto permite uma mudança no
imaginário social contemporâneo que culmina no colapso ontológico da Pós-Modernidade,
onde o(s) Outro(s) (femininos ou não) se renova(m) – sexual, corporal, material, subjetiva
e até tecnologicamente (Ferreira, 2015) –, elaborando novos quadros concetuais e abrindo
a possibilidade de novas ansiedades ou de novos posicionamentos da subjetividade.
339
De acordo com o senso comum, Ílhavo seria uma sociedade dominada pelas mulheres. Foi
no sentido desta afirmação – perpetuada naquela região por muitas décadas e até ao
presente – que se estruturou esta investigação, sobretudo com o objetivo primordial de
responder à seguinte questão de investigação: “Era ou não Ílhavo (na década de 1950) uma
sociedade matriarcal? – Análise de discursos de um jornal local”. Colocada a questão de
investigação, cedo se reconheceu que seria fundamental desenvolver o estudo empírico
numa base teórica transdisciplinar e num sistema metodológico multifacetado que só os
Estudos Culturais oferecem. Isto porque, por um lado, seria necessário definir, interpretar e
relacionar vários conceitos, oriundos de diferentes áreas disciplinares, como, por exemplo,
os conceitos de poder, de discurso, de identidade e de género; e, por outro lado, porque os
Estudos Culturais exigem a valorização dos sujeitos e das suas práticas, fornecendo as
ferramentas necessárias para que se possa examinar, interpretar e criticar qualquer texto,
instituição ou prática cultural dentro do sistema de relações onde estes são criados,
consumidos e (re)produzidos.
341
Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente
sociedade não surge representada, no mais importante jornal da época, como matriarcal.
Pelo contrário, a voz do feminino era reduzida e limitada, a sua condição não era matéria
de destaque e a sua imagem era sobretudo sexualizada.
À forma como o grupo dominante mantem o monopólio intelectual e moral sobre o grupo
dominado, Gramsci apelidou de “bloco ideológico”. Este “bloco ideológico” é um
reconhecimento do poder ideológico que instituições como a Família, a Escola, a Igreja, os
Media, os eventos culturais, os partidos políticos e ainda simples estereótipos exercem na
estruturação e conservação do poder hegemónico, e isto aplica-se com precisão a partir do
342
Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente
ponto de vista do género. Neste sentido, as mulheres que produzem textos n’O Ilhavense
não questionam o campo estreito de publicação e limitam-se às temáticas pouco profundas
e insípidas que desenvolvem, sendo vigiadas, sobretudo, pela Igreja e pela imprensa local,
que validam os comportamentos moral e socialmente aceites.
No caso da produção textual sobre o feminino, as mulheres não têm lugar na construção da
sua imagem ou representação, satisfazendo um imaginário repleto de estereótipos e
conotações tradicionalistas. Apesar das mulheres formarem parte significativa da sociedade
ilhavense, a quantidade de textos produzidos sobre elas é baixa, para além de que o espaço
atribuído ao feminino é limitado e inclui, sobretudo, três temáticas: “religião”, “morte/luto”
e “criação literária”. A “religião” apresenta a mulher como sujeito frágil e dependente do
masculino, encorajando-a a autodisciplinar-se. No caso da “morte/luto”, as mulheres são
desvalorizadas no anúncio da sua morte, sendo apenas destacadas quando associadas a um
homem. Já na “criação literária”, a mulher é usada como elemento necessário para
preencher o imaginário “poético” do jornal.
343
Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente
mulher (e ser homem), o que acaba por ter impactos nas classificações ao género. Logo, os
sujeitos acabam por ser construídos com base no seu sexo/género e sempre em relação a
categorizações heteronormativas (a partir do Outro). Isto porque o feminino (o grupo
dominado, à luz da teoria do poder hegemónico de Gramsci) é construído sobretudo com
base nas conceções masculinas (o grupo que domina). Por outras palavras, o poder
hegemónico auxilia na construção e na subsistência dos discursos estruturantes da(s)
identidade(s) de género, pois o grupo dominante “tem” o poder de determinar a identidade
e o poder de fazer reconhecer a identidade determinada.
344
Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente
No que diz respeito à análise das imagens presentes n’O Ilhavense, estas apresentam um
regime do olhar mais denunciador que o textual. Em primeiro lugar, e apesar da quantidade
de imagens de mulheres ser superior à quantidade de imagens de homens – ao contrário do
que acontece com o número de textos produzidos por sujeitos de ambos os sexos – O
Ilhavense mostra, de forma mais evidente, como é vista socialmente a mulher e quais as
suas atribuições corporais. As mulheres são representadas através do “mito do belo”, com
pouca profundidade e mediante papéis tradicionais com pouco impacto na vida social. A
imagem da mulher é sobretudo associada ao corpo/beleza, o que reforça as práticas de
(auto)vigilância de forma a remeter o feminino para um lugar de erotismo e sexualização.
Neste caso, o corpo feminino é reprimido pelo corpo masculino (que surge nas imagens
d’O Ilhavense como lugar de autoridade social, moral e disciplinadora). Estas
características articulam-se com as estruturas hegemónicas masculinas, que validam
construções sociais simbólicas baseadas no binarismo tradicional de género, em que o
homem é a “medida” e a mulher é o Outro.
345
Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente
tradicionais. De facto, a forma como a mulher e o seu corpo são representados n’O
Ilhavense segue no sentido daquilo que Foucault intitulou de “política do corpo”, em que
os sujeitos se veem e se relacionam com os seus corpos e com os corpos dos outros através
de convenções e mecanismos de poder socialmente ratificados.
Ao ser entendido como lugar político, o corpo fica suscetível à normatização, e os sujeitos
acabam por ser construídos como campos de desejo e de reconhecimento, ao mesmo tempo
que se tornam vulneráveis. Ao concorrer para que o corpo feminino tenha uma dimensão
pública e seja instituído como fenómeno social, O Ilhavense perpetua um ideal de mulher
estereotipado e tradicional, que concorre, juntamente com os discursos textuais, para criar
uma identidade feminina, que é fruto das relações de poder que se exercem sobre si e o seu
corpo.
Neste sentido, e reconhecendo que o poder está incorporado em diversas práticas que
limitam e simultaneamente produzem a identidade dos sujeitos (particularmente a(s) sua(s)
identidade(s) de género), esta investigação discutiu igualmente este tema, em particular nos
capítulos III e IV. De facto, na década de 1980, os Estudos Culturais aprofundaram as
teorias sobre a construção da identidade, concentradas agora na ideia de que o sujeito passa
a ter várias identidades que se (trans)formam constantemente, evoluindo para aquilo que
Stuart Hall (2001c) considera o indivíduo fragmentado. A primeira parte do terceiro
capítulo desta dissertação discute, a partir dos Estudos Culturais, a identidade como um
lugar de partilha cultural, absorvendo da Modernidade a ideia de que a identidade segue
por trilhos autorreflexivos suscetíveis à mudança, à multiplicação e à inovação, e retirando
da Pós-Modernidade a ideia de que a identidade vai ficando cada vez mais instável,
fragmentada e até frágil. Ao discutir a identidade a partir da cultura, os Estudos Culturais
valorizam as relações que os sujeitos estabelecem entre si, e a forma como se dirigem ao
Outro ou como se – auto e hétero – representam, criando sistemas de força, de adaptação e
de resistência.
A identidade é, assim, construída dentro dos discursos, que incluem representações que
circulam na sociedade e que provêm das relações que os sujeitos estabelecem entre si. Isto
pode significar, por um lado, uma pluralidade de identidades disponibilizadas pelo
contexto cultural, mas, por outro, uma prisão estereotipada em modelos identitários “pré-
fabricados” e prontos para serem aplicados de acordo com determinadas características dos
346
Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente
De facto, o capítulo IV deste estudo parte da premissa de que através dos meios de
comunicação é possível detetar como a(s) identidade(s) de género são construídas e
expostas no meio social, pois os textos e as imagens são apresentados como uma prática ou
realidade sociocultural. Deste modo, mais do que determinar quais os papéis de género
estereotipados que os media multiplicam, é necessário analisar as cristalizações simbólicas
contidas nas suas práticas discursivas, que, muitas vezes, oferecem modelos tradicionais de
identidade de género, onde os homens são apresentados como o modelo, a normalidade e a
igualdade e as mulheres como a diferença. Assim, os media apresentam-se como uma das
instituições mais influentes na forma como vemos o género masculino e o género
feminino, o que pode conduzir a conceções estereotipadas e culturalmente condicionadas
na forma como os sujeitos se veem a si próprios e como percebem o normal e o desejável.
Desta forma, nesta investigação a discussão também se centrou nos perfis identitários que
emergiram da análise do estudo empírico, com base nos discursos textuais e visuais do
jornal O Ilhavense, e tendo em conta diversos indicadores simbólicos e identitários
recolhidos na revisão bibliográfica. Em suma, ao contrário do homem, que se apresenta
através de várias possibilidades de atuação e de diferentes papéis, o perfil feminino é, na
generalidade, mais limitado, insípido, estereotipado e moralizado, e mesmo direcionado
para satisfazer um certo imaginário literário pretensamente “poético”. São frequentes os
casos de “não-identificação” e de “não-individualização” identitária das autoras (quer
porque não se distinguem umas das outras quer porque a sua presença não chega, na
generalidade, a ser constante e suficientemente individualizada) e são débeis os exemplos
de resistência. Trata-se de mulheres que se autovigiam aos níveis do comportamento e que
legitimam a sua exposição corporal, deixando sobressair uma enraizada estrutura fálica
pela qual se orientam (e são orientadas).
347
Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente
Resta apenas referir o perfil de “cuidadores” que é partilhado tanto por homens como por
mulheres, fugindo um pouco às evidências espetáveis e delineadas pela revisão
bibliográfica. De facto, homens e mulheres surgem como beneméritos sociais, apesar de,
no caso das mulheres, existir também uma dimensão de cuidadoras do lar. Contudo, não
existem referências que evidenciem a presença de um homem-chefe de família. No
contexto familiar, tanto homens como mulheres apresentam um certo nível de identificação
com uma espécie de “perfil cuidador”. Talvez isto se fique a dever ao facto de os homens
estarem ausentes por longos períodos de tempo, atribuindo-se um certo equilíbrio de papéis
no que diz respeito ao cuidado da família, fugindo-se daquilo que era considerado, à época,
como expectável (que, no clima salazarista que vigorava, implicava que o homem
assumisse o papel de chefe de família). No entanto, apesar desta dualidade, não existem
evidências de uma mulher-chefe de família, ou de qualquer outro destaque no feminino,
que permita considerar esta sociedade como matriarcal.
Ainda de forma a dar resposta à questão de investigação, este estudo procurou – através de
um último capítulo (Capítulo VII – Regimes de poder numa sociedade “matriarcal”) –
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Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente
recuperar as principais conclusões retiradas da análise dos dados e dar-lhes uma nova
leitura com base nos regimes políticos já antes identificados no âmbito da discussão que as
imagens do jornal O Ilhavense suscitaram: política do corpo, política económica, política
de controlo social e política da intimidade. Estes regimes políticos de representação
permitiram fechar a discussão relativamente aos paradigmas de representação de género
presentes no jornal O Ilhavense, possibilitando uma complexificação das relações de poder
e da(s) identidade(s) de género que daí surgem.
Estes regimes demonstram que não é possível estar fora das relações de poder e que,
enquanto sujeitos, os seres humanos ocupam espaços que articulam esfera privada e esfera
pública. No caso dos discursos d’O Ilhavense, conclui-se, em primeiro lugar, que na esfera
pública – campo social, político e/ou económico – as mulheres têm pouca visibilidade e
poucos perfis disponíveis. As mulheres ilhavenses não são representadas em lugares de
destaque social e o seu comportamento é frequentemente regulado pelo homem (autoridade
masculina) e legitimado pelas próprias mulheres. Verifica-se igualmente que o campo
privado da intimidade remete para questões de identidade, pelo que se abre e funde com o
social, logo, com a esfera pública. Todavia, estes perfis são pouco profundos, insípidos e
limitados a um espaço de pouca visibilidade, o que, aliado ao que anteriormente foi dito,
concorre para pôr em causa a ideia de que Ílhavo era representado como uma sociedade
matriarcal.
Porém, uma das principais conclusões retiradas da análise dos regimes políticos – e,
consequentemente, desta investigação – prende-se com os usos do corpo, ou aquilo que se
interpreta como política corporal, tanto quando foi possível perceber da análise do jornal O
Ilhavense. De facto, nos discursos textuais e icónicos presentes n’O Ilhavense, os sujeitos –
particularmente as mulheres – são constituídos com base na sua corporalidade. Quer isto
dizer que a mulher e/ou o homem são pensados e expostos de acordo com o seu corpo
(independentemente do campo – social, económico, íntimo – pelo qual são examinados),
através de um aparato regulativo que assenta em normas simbólicas estereotipadas e
tradicionais. Se, por um lado, a mulher é sinónimo de corpo que vende e que deve ser
embelezado/sexualizado para ser olhado pelo Outro, por outro lado, o corpo do homem é
utilizado como símbolo de autoridade social. No jornal O Ilhavense, o corpo funciona
como mecanismo responsável pela manutenção de estruturas de divisão sexual,
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Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente
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Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente
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Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente
Foi tendo em conta este panorama que, na discussão final presente no último capítulo, se
sugeriram algumas hipóteses alternativas de forma a produzir um olhar crítico sobre o
binarismo de género e a pseudotransparência identitária do feminino. Assim, o aumento da
produção discursiva feminina aliado à variedade temática (temas com maior intervenção
política e destaque social) e o fim da censura masculina parecem ser suficientes para dar
início a uma alteração do panorama discursivo. Para além disso, o aumento da produção
sobre o feminino também associado a outras temáticas mais interventivas e empoderadoras
poderiam concorrer para modificações estruturais na forma de representar a mulher. Outra
das alternativas apresentadas prende-se com o aumento da produção iconográfica com a
figura feminina, valorizada através de outros meios que não exclusivamente o sexual, visto
que se detetou um excesso de imagens focadas na erotização do corpo da mulher e no
“mito do belo” feminino.
Novos olhares poderiam contribuir – não apenas naquele contexto, mas ainda transpondo
para a atualidade – para desconstruir a “imagem” tradicional e estereotipada que
frequentemente representa o feminino. Tornar-se-ia mais fácil desfazer a diferença sexual,
denunciar a exclusividade masculina e a estrutura fálica em que assenta a sociedade (que é
repetidamente representada pelos media), e repensar a própria noção de identidade,
evitando a polarização normativa. Só desta forma seria possível iniciar um processo que
pensasse o sujeito como ser humano, o que implica pensar o mundo de outra forma.
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Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente
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Uma cultura matriarcal em Ílhavo?
– Contributos para a reavaliação de uma representação persistente
recentes, mas como as normas que dirigem a realidade não as admitem, é necessário
considerá-las como “novas”). Ou seja, para Butler (1993), o caminho do género passa pelo
“respeito pelos corpos”, que devem ser livres dos discursos que os constituem (isto porque
os corpos/sexos não são naturais, mas sim discursivos).
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