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SÃO PAULO
2015
Carlos Eduardo Pinheiro
SÃO PAULO
2015
PINHEIRO, Carlos Eduardo.
182 fls
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Aos meus grandes amores, Luiz Felipe, Ana
Clara e Maria Eduarda.
Este Trabalho tem como objetivo discutir a memória dos ex-presos políticos e
torturados. Na análise de autores como Michel Pollak e Maurice Halbwachs é
notória a concordância de que a memória é uma construção feita no presente a
partir das vivências do passado, sendo, portanto, uma reconstrução do
passado e não um relato fiel dos fatos ocorridos. Procurando sistematizar a
memória dos ex-presos políticos, com ênfase na prática da tortura durante a
repressão ditatorial no Brasil. A partir da vigência da Lei 11.255/95 criou-se um
lugar de memória para que este grupo registrasse a sua história e assim
promovesse uma confrontação com a versão oficial. A análise dos documentos
reunidos pela Comissão Especial de Indenização implantada por força da Lei
revela os dados obtidos pela burocracia que determinava a vigilância, a coleta
de informações, a prisão, e que tinha como instrumental a institucionalização
da tortura praticada por seus agentes em prédios públicos. Neste cenário, se
traz à luz os fatos e personagens de uma batalha que se travou no Brasil e
seus desdobramentos. Foi possível ainda estabelecer, a partir dos
documentos, um breve perfil dos militantes políticos perseguidos pela
repressão, os prédios públicos onde o Regime Militar empreendeu sua lógica,
as técnicas de tortura e quem eram os responsáveis pela implantação da
política de Segurança Nacional. Por fim, nos deparamos com outro discurso da
memória nacional, onde os ex-presos políticos superam o estigma de 'inimigos
da pátria' impingido pela versão oficial e passam a ser considerados 'heróis da
resistência democrática'.
This work aims to discuss the memory of former political prisoners and tortured.
In the analysis of authors like Michael Pollak and Maurice Halbwachs is notorius
agree that the memory is a construction made in this livings from the past, and
therefore a reconstruction of the past and not a faithful and reporting of the
facts. Looking systematize the memory of former political prisoners, with
emphasis on the practice of torture during the dictatorial repression in Brazil.
After the effective date of Law 11,255 / 95 created a place of memory for this
group register its history and thus promote a confrontation with the official
version. The analysis of documents collected by the Special Committee on
Compensation implanted under the Law reveals the data obtained by the
bureaucracy that determined the surveillance, information collection, arrest, and
had as instrumental institutionalization of torture committed by its agents in
public buildings. In this scenario, it brings to light the facts and characters in a
battle that happened in Brazil and its consequences. It was also possible to
establish from the documents, a brief profile of political activists persecuted by
repression, public buildings where the military regime undertook its logic, the
torture techniques and who were responsible for the implementation of the
National Security Policy. Finally, we come across another discourse of national
memory, where the former political prisoners overcome the stigma of 'enemies
of the fatherland' foisted by the official version and now considered to be
'heroes of the democratic resistance'.
1 INTRODUÇÃO....................................................... 12
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS.............. 18
2.1 Entrevistas............................................................ 20
3 O GOLPE.............................................................. 33
3.3 Posse..................................................................... 49
3.4.3 A queda................................................................. 59
3.4.4 Participação Estadunidense............................... 60
REFERÊNCIAS................................................................................ 176
12
1 INTRODUÇÃO.
A história de um país pode ser traduzida como a soma dos fatos de maior
relevância a um grupo de cidadãos, mas encontra-se distante das percepções
do indivíduo, surgindo à diferenciação estabelecida por Halbwachs (1990) entre
memória e história. Desta forma, podemos então questionar a historiografia que
não leva em consideração a voz dos individuos que nela estavam presentes,
pois falta a esta historiografia, como fala Halbwachs (1990), o detalhe, a classe
destituida de direitos e liberdade, sujeitos fundamentais na reconstrução das
histórias e memórias decorrentes do golpe militar de 1º de Abril de 1964 e aos
21 anos que se sucederam, deixando um gosto amargo para muitos dos
cidadãos que o viveram.
O fato gerador foi uma cena presenciada por mim na minha infância. Nasci no
ano de 1965, crescendo sob o regime autoritário, em uma família que tinha
como seu líder o meu saudoso avô Ernesto, totalmente alinhado em suas
lembranças com o governo de Getúlio Vargas, mas que tratava os
acontecimentos da época como tabu. Lembro-me que quando criança achava
muito natural ir a exposições do Exército com a escola, mas um fato me
chamou a atenção e me despertou a curiosidade para entender algo que para
minha infantil compreensão me parecia confuso. Em frente à casa do meu avô,
na época, existia um bar e um fato que aconteceu um dia me chamou a
atenção. Um automóvel ‘Veraneio’ sem nenhuma inscrição que o diferencia-se
de um automóvel normal em frente ao referido bar, após todos os ocupantes
saltarem e darem início a uma blitz, tudo isso de uma maneira brusca e
impondo maus tratos aos frequentadores, coisa normal pelo que me lembro da
época, e quase ao mesmo tempo, com uma freada brusca, outra viatura
‘Veraneio’ para em frente ao bar, mas essa caracterizada como uma viatura
policial. Desceram com armas em punho, rendendo os ocupantes do primeiro
‘camburão’ e novamente os ocupantes do bar. Após um breve ‘acerto’, os
policiais foram embora, deixando a primeira viatura sem inscrições no bar,
dando continuidade aos maus tratos aos seus frequentadores.
Cada vez mais nos damos conta da linha que separa diversos campos da
história. Pôr isso sendo necessário situar esse trabalho, diria que ele nos
remete ao campo da Nova História Política na medida em que serão estudadas
as organizações de vanguarda, e pelo fato de se refletir sobre a ditadura militar
16
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS.
2.1 Entrevistas.
Para esse trabalho foram contactadas 11 pessoas que por algum motivo na
primeira metade dos anos 1970, que foram presos,detidos ou torturados pela
máquina repressora do regime.
Durante esse percurso, por indicação de pessoas nas mais variadas situações,
fomos efutuando os contatos, e das 11 pessoas contatadas, 6 pessoas não
aceitaram falar sobre o assunto, e em todos os casos,não por qualquer outro
motivo a não ser, não querer se recordar do referido episódio que já foi
superado e não se sentir a vontade de trazer isso a tona novamente .
ainda não estão preparados para revelar as tais ‘memórias subterrâneas’, com
exceção dos integrantes da familia Barreto.
Iniciamos a nossa entrevista com o Sr Divá nos falando sobre Zequinha e sua
família:
1
Olderico Campos Barreto: Preso e torturado pela ditadura militar, sobreviveu aos ‘anos de
chumbo’, atualmente reside na propriedade da família, na Bahia.
Otoniel Campos Barreto: Morreu assassinado pela repressão poucos dias antes de Zequinha.
Olival Campos Barreto (Divá): Nosso entrevistado, que ainda menino sobreviveu à invasão
de sua casa em agosto de 1971, atualmente vivendo em Osasco.
Maria Dolores Campos Barreto: Atualmente vive em Osasco.
Ana Campos Barreto: Atualmente vive no Bairro de Santo Amaro, em São Paulo.
Edinalva Campos Barreto: Atualmente vive na Itália.
23
Sr. Diva neste momento interrompe a sua fala, me olha nos olhos e diz:
Em 6 de maio de 1964, poucos dias após o golpe militar, Zequinha Barreto fez
o alistamento militar obrigatório, sendo chamado para servir o exército naquele
mesmo ano.
Pós-prisão
Neste momento a tristeza se abate sob o Sr Divá, e percebi que a partir deste
ponto o tom da entrevista deixa de ser histórico e passa a ser melancólico, o
que ele era nos relatar a partir de agora foi a desgraça da sua familia.
Estes dois militantes eram: Lamarca e Luiz Antonio Santa Barbara, codinome
Professor Roberto (um Militante de feira de Santana, estudante secundarista)
Lembrou seu Devá, que na época tinha 11 anos. Poucos dias depois, em 17 de
setembro, exaustos e doentes, Lamarca e Zequinha foram encontrados e
executados no povoado de Pintada, município de Ipupiara, no sertão da Bahia.
Olderico diz ainda que: “Enquanto era novamente espancado, um policial disse,
referindo-se ao meu irmão morto (Otoniel): Isso é para ver o que acontece com
quem foge".
Foi dentro de casa, depois de ter sido ferido. Tomei uma rajada
de tiros que me pegou na mão e no rosto e me tirou os
sentidos por algum tempo. A minha atitude de atirar contra os
homens que cercavam a casa do meu pai não foi de
resistência, mas uma forma de avisar o Zequinha e o Lamarca.
Olderico Barreto ficou preso por mais de dois anos, enquadrado por dois
artigos da Lei de Segurança Nacional (resistência armada e terrorismo). O
enquadramento na LSN poderia render-lhe de 13 a 30 anos de prisão, mas
depois a pena foi abrandada. Em 1979, com a Lei da Anistia, seu processo foi
considerado extinto. Até hoje Olderico aguarda uma indenização do governo
federal, que ainda não chegou.
Professor, estado civíl não informado na data da prisão, não era um militante,
mas ao chegar em sua casa, em uma noite no ano de 1974, lhe é entregue
por sua família, um bilhete não oficial, escrito em papel de pão (palavras do
entrevistado), escrito para que o entrevistado se apresenta-se o mais rapido
possível, nas estalações do Doi-Codi, na rua Tutóia. O entrevistado, na manhã
seguinte se dirigiu ao endereço citado, sendo detido imediatamente a sua
chegada. Após a sua prisão foi colocado em sua cabeça um capuz de tecido
preto, sem aberturas e encaminhado para uma sala, que o entrevistado relatou
sendo uma sala de identificação. Após ser fotografado e ter suas digitais
colhidas foi encaminhado para uma cela onde não tinha nenhum outro preso.
Mario Rosa.
Iremos usar agora uma frase, que no meu modo de ver traduz esse momento,
dita pelo Prof. Antonio Carlos Bernardo: “Tive um bom psicólogo, foi o Henfil”.
31
Após uma batida policial em sua casa, onde o Sr Jaime não se encontrava,
foram efetuadas as prisões do seu sobrinho e das pessoas que lá estavam, seu
Jaime foi apanhado e preso em seu local trabalho no meio do expediente, na
época era funcionário empresa Cobrasma.
Devido a indícios encontrados em sua casa foi preso e levado para o DOI-
CODI na Rua Tutóia onde foi interrogado e torturado, para entregar outros
participantes do movimento por 6 dias. A sua tortura foi executada por 2 grupos
de 3 agentes que lhe aplicaram choques, telefone e também afogamento. Após
a sua soltura, o mesmo Sr Jaime nos informou que era seguido por agentes do
DOI-CODI:
Era uma vida muito aflita, porque você, até pra entrar dentro de
casa a gente ficava com medo de entrar e ter gente. Nossa
casa foi roubada, tiraram umas pastas que tinham e a gente
não sabe como, mas entraram e tiraram. A gente saia na rua,
olhando pra praça porque a gente não sabia se tava sendo
perseguido, se ia ser preso, sabe.
3 O GOLPE.
Para que haja uma definição de qual a natureza política e social do acontecido
no Brasil em março de 64, é preciso, antes de tudo, deixar claro que se
entende por ‘revolução’ e por ‘golpe de Estado’.
AI-1: Redigido por Francisco dos Santos Nascimento foi editado em 9 de abril
de 1964 pela junta militar. Passou a ser designado como Ato Institucional
Número Um, ou AI-1 somente após a divulgação do AI-2. Com 11 artigos, o AI-
1 dava ao governo militar o poder de alterar a constituição, cassar mandatos
legislativos, suspender direitos políticos por dez anos e demitir, colocar em
disponibilidade ou aposentar compulsoriamente qualquer pessoa que tivesse
atentado contra a segurança do país, o regime democrático e a probidade da
administração pública.
O regime militar durou até 1985, quando Tancredo Neves foi eleito,
indiretamente, o primeiro presidente civil desde 1964.
nele uma ameaça ao país, por seus vínculos com políticos do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido Socialista Brasileiro (PSB)
Após esta conversa, Brizola mobilizou o apoio da Brigada Militar, que após uma
reunião com os oficiais dirigentes, manifestando-se a favor da constituição e a
resistência. (BRAUN, 2007).
Frente ao Manifesto lançado pelo Marechal Lott, que foi divulgado amplamente
pelos jornais, o Ministro da Guerra Odílio Dennys ordenou o recolhimento dos
jornais e a sua prisão.
Na saída de sua casa foi aclamado pelo povo, sendo chamado de ‘Marechal da
Legalidade’, ficando preso por um mês, logo após a sua libertação, em
comunicado público, ainda, demostrou-se defensor da legalidade
constitucional. (CARLONI, 2010).
Porto Alegre toda a Tropa do Rio Grande do Sul que julgar conveniente [...]
Empregue a Aeronáutica, realizando inclusive o bombardeio, se necessário”.
(FELIZARDO, 1991, p.32).
Na madrugada do dia 28, uma ordem de ataque foi expedida pela Aeronáutica
para o que 1º Esquadrão do 14º Grupo de Aviação de Canoas. Para garantir
que o bombardeio não ocorresse a Brigada Militar cercou a base da
Aeronáutica em Canoas Impedindo, desta maneira, que os aviões decolassem
rumo ao Palácio Piratini. Mesmo que estes conseguissem decolar, o ataque já
estava frustrado devido à sabotagem realizada pelos próprios militares de baixa
patente, que haviam desarmado as bombas e furado os pneus das aeronaves,
assim, sabotando as ordens do Ministério da Guerra e de seus superiores
imediatos. (ROLIM, 2009).
Assim, era impossível que os aquartelados atacassem seu próprio povo, que
estava à frente do Palácio. Por fim, o seu comandante tinha opção
conservadora e legalista e também aderiu ao Movimento da Legalidade.
O apoio dos militares foi de suma importância para as ações realizadas pela
Campanha da Legalidade, a capacidade de perceber a fragilidade do momento
pesou na decisão e também a pressão das minorias militares, colocando assim
ao lado de Brizola, um dos melhores e mais bem equipados dos regimentos do
Exército Nacional, que se uniu aos Comitês de Resistência Civil pelo interior do
Estado, com base na capital do Rio Grande do Sul.
Às dez horas da manhã deste dia, o General Machado Lopes marca uma
reunião com o Governador do Rio Grande do Sul que esperava ser preso,
como insurgente, o que não ocorreu devido ao apoio do III Exército a
Campanha da Legalidade que seria manifestado nesta reunião.
Antes desta reunião, em uma conversa com seu assessor de imprensa Chaves
Hamilton, o Governador Brizola descreve a necessidade de um canal de
comunicação com a população, assim, surge à ideia de solicitar a Rádio
Guaíba, que ainda estava em funcionamento. Compartilhando com o diretor da
Rádio Gaúcha Maurício Sirotsky Sobrinho, que abre a possibilidade da
requisição pelo Estado dos equipamentos da Rádio Guaíba que se encontrava
em funcionamento, já que os da sua rádio haviam sido apreendidos.
Após contato com o proprietário da Rádio Guaíba, Breno Caldas Junior, este
pede ao governador uma garantia legal, um ofício para a carga dos
equipamentos, sendo feito pelo Secretário da Fazenda Gabriel Obino, neste
momento a Brigada Militar colocava-se em guarda perante as antenas de
transmissão que se localizavam na Ilha da Pintada, em Porto Alegre.
Além desta exigência, Breno Caldas Junior pede que a Rádio Guaíba seja
instalada em outro lugar. Acompanhado de alguns policiais da Brigada Militar, o
Secretário da Fazenda vai à sede da rádio Guaíba e retira os equipamentos
que seriam levados ao Palácio Piratini.
45
A rádio instalada nos porões do Palácio Piratini deu eco à voz de Brizola que
clamava pela Legalidade, mesmo que as instalações fossem precárias, sua voz
era forte e mobilizou o Rio Grande do Sul e o Brasil.
Do interior do Estado, muitas pessoas rumavam para Porto Alegre, por ordem
do Governador Brizola, foram distribuídos dois mil revólveres para os civis que
estavam na frente do Palácio Piratini e para a fábrica Taurus foi solicitada a
produção massiva de armas de pequeno porte, especialmente, metralhadoras.
(MAIA, 2004, p.24).
2
O hino da Legalidade foi composto pela poetiza gaúcha Laura de Lemos, a pedido do
governador Leonel Brizola, a composição realizou em poucas horas, no Teatro de Equipe, em
Porto Alegre. A letra do hino ressalta o desejo de luta pela constituição: “Avante brasileiros de
pé/ Unidos pela liberdade/ Marchemos todos juntos/ Com a bandeira que prega a lealdade/
Protesta contra o tirano/ E recusa a traição/ Que um povo só é bem grande/ Se for livre sua
Nação”. (MAIA, 2004: p.31).
47
A adesão popular foi total, eram jovens, estudantes, operários, pais de família,
todos se alistam em postos espalhados pelas cidades do Rio Grande do Sul, o
histórico espírito de luta do povo gaúcho tinha acordado.
Mas a maior derrota ficou por conta da população que se mobilizou no Rio
Grande do Sul, Goiás e Paraná, para garantir a sua posse conforme a
constituição vigente, o que não aconteceu de fato.
3.3 Posse.
Algumas garantias seriam necessárias, haja vista que circulavam boatos, que
alguns militares da Aeronáutica, não conformados com a decisão conciliatória
da posse de Jango, estavam preparando uma operação secreta para abater o
avião que o levaria de Porto Alegre para Brasilia.
Recebido por autoridades dos três poderes, jornalistas e grande massa popular
e com um forte aparato de segurança, chefiado pelo general Ernesto Geisel (na
época subchefe do Gabinete Militar do renunciante presidente Jânio Quadros)
e seguindo para a Granja do Torto, onde seria sua residencia oficial por todo
tempo em que foi presidente da república, isto é, até a noite de 1º de Abril de
1964. (PINHEIRO 1993, p.63).
Tancredo Neves demitiu-se do cargo em julho de 1962, sendo que após isso se
tornou primeiro-ministro o gaúcho Brochado da Rocha, também do PSD, que
deixou o cargo em setembro do mesmo ano, sendo sucedido por Hermes Lima.
Com altos níveis de inflação, sendo San Tiago Dantas como Ministro da
Fazenda e Celso Furtado como Ministro do Planejamento, foi lançado o Plano
Trienal, um plano que pretendia atuar sobre os problemas estruturais do país.
Entre as medidas, previa-se o controle do déficit público e a manutenção da
política desenvolvimentista, usando a captação externa de recursos para o
financiamento das chamadas reformas de base, que eram medidas
econômicas e sociais de caráter nacionalista que previam uma maior
intervenção do Estado na economia. Na denominação de reformas de base,
incluíam-se as reformas bancária, fiscal, urbana, eleitoral, agrária e
educacional, defendia-se também o direito de voto para os militares de baixa
patente e para os analfabetos, além disso, eram propostas medidas de corte
nacionalista, como maior intervenção do Estado na vida econômica e maior
controle dos investimentos estrangeiros no país, mediante a regulamentação
das remessas de lucros para o exterior. (GENNARI, 1964)3.
3
Decreto nº 53451, de 20 de janeiro de 1964, e lei nº 4131, de 13 de setembro de 1962, sobre
remessa de lucros. (GENNARI, 1997).
52
No dia 3 de setembro ainda de 1963, outra lei foi aprovada, esta alterava a
estrutura de contabilidade das grandes empresas estrangeiras e reduzia o
altíssimo índice de lucros que conquistavam no Brasil.
Na data, Jango assinou dois decretos, com o poder que a Constituição de 1946
o destinava.
Na noite de 30 de março todo o país estava ligado no discurso que Jango faria
para um auditório superlotado de cabos e sargentos, no Automóvel Clube do
Rio. Perante mil sargentos das Fôrças Armadas e Auxiliares, o presidente João
Goulart, em violento discurso, tornou irreversível sua posição de esquerda e
desencadeou, graças a essa definição, feita em têrmos candentes, a
movimentação das fôrças que o derrubaram.
aplausos. Cabo Anselmo quis falar à fôrça na reunião, só sendo impedido por
interferência direta do Gabinete Militar de Goulart.
Dois dos seus amigos pessoais, Samuel Wainer e João Etcheverry, foram ao
encontro dele no Palácio Laranjeiras, para repassar o discurso preparado e
acompanhá-lo ao Automóvel clube. Encontraram um Jango inesperado, abatido
e muito nervoso, temendo sofrer provocações, e estava convencido de que
aconteceriam.
Iniciado o levante em Minas, San Thiago Dantas foi a Jango comunicar-lhe que
uma frota americana estava a caminho da costa do Espírito Santo, para o
possível apoio ao golpe. O aviso apenas apressou a fuga de Jango do Rio de
Janeiro. O ‘dispositivo militar’ não apareceria e Jango não quis acionar o que
lhe restava, nem mesmo quando a tropa gaúcha, ao menos esta, propôs-se a
resistir.
3.4.3 A queda.
Mesmo dentro dos partidos não havia identidade entre os eleitos e o projeto do
partido, sendo um fato comum, após as eleições, a troca de partidos entre
deputados.
65
Podemos então identificar que as greves tinham um forte caráter político, e que
não se restringiam a reivindicações por melhores salários, mas lutavam por um
determinado projeto para o Brasil.
Uma análise mais aprofundada das mobilizações feitas pela CGT nos mostra
que a força atribuída à central era maior que a sua real inserção entre os
trabalhadores, ressaltando que a maior parte dos trabalhadores mobilizados
nas greves pertencia ao funcionalismo público, permanecendo pouco
mobilizados os trabalhadores industriais de São Paulo (onde se concentrava
boa parte do proletariado brasileiro), além disso, não existiu uma política de
fortalecimento das bases sindicais, a preocupação exclusiva era a de pressio
nar o Congresso, deixando de lado a atuação direta dentro das empresas, no
sentido de ampliar a organização dos trabalhadores. Este distanciamento,
explica porque o operariado assistiu de braços cruzados “à preparação e ao
desfecho do golpe anti-popular e anti- operário”. (TOLEDO, 2006, p. 76).
Esta linha política de atuação é duramente criticada por Caio Prado Jr. em seu
livro ‘A revolução brasileira’, em que sustenta que o campo brasileiro é
estruturado de forma capitalista, e, portanto, a atuação nele deve ser no
sentido de melhoria das condições de trabalho do proletariado rural. Para ele,
67
4
A CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), vinculada à ONU, nasce no fi nal da
década de 1940 – quando se vivia um momento de crise do pensamento liberal clássico – com
o objetivo de promover o desenvolvimento econômico do continente latino-americano. Em meio
à crise do liberalismo, um dos pilares do pensamento cepalino torna-se a discussão sobre o
papel do Estado, fortemente infl uenciada pelo pensamento keynesiano e marcada por uma
tentativa de interpretar a crise do capitalismo liberal a partir da periferia. A importância da
CEPAL nos anos 1950 e 1960 é tamanha que dois de seus principais colaboradoreso argentino
Raúl Prebisch e o brasileiro Celso Furtado – alcançaram papel de destaque na discussão
teórica sobre a economia da América Latina e na formulação de políticas públicas para o
desenvolvimento latino- americano. Celso Furtado chegou a ser ministro do Planejamento no
governo João Goulart.
68
Notamos que de fato existiu uma maior mobilização das forças populares
durante o governo João Goulart, a atuação dava-se no sentido de pressionar o
poder público para conquistar reformas na tentativa de construir o projeto
nacional-reformista. Porém, a força de mobilização encontrava-se mais nos
discursos exaltados dos dirigentes do que dentro da classe Proletária.
O IPES foi criado em fins de 1961, por um grupo de empresários com o intuito
de estimular em todo o país uma reação empresarial ao que consideravam
uma “tendência esquerdista da vida política” (DREIFUSS, 1981, p.90), e logo
se uniu ao IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática, criado na década de
69
Uma CPI foi criada para investigar a suspeita de corrupção eleitoral nas
eleições de 1962 para o Congresso. O alvo da Comissão era o envolvimento
ilegal do capital privado e estrangeiro nos assuntos políticos por via do
complexo IPES/IBAD. O IBAD foi considerado culpado por corrupção eleitoral e
foi fechado, o IPES foi absolvido com base no argumento de que não havia
realizado nenhuma atividade incomum que infringisse seus objetivos
publicamente declarados em sua carta de fundação.
O IPES con seguiu impor seus interesses à opinião pública por meio de seu
relacionamento com os grandes veículos de comunicação da época.
(DREIFUSS, 1981). O controle que o complexo IPES/IBAD tinha sobre as
principais agências de publicidade também exercia forte influência na linha
71
Pollak (1989) aponta que, em todos os grupos, há uma marca comum que
caracteriza o fenômeno da memória: a sua seletividade. A apropriação do
75
Esses são classificados como militantes políticos. Outros 134, dentre homens e
mulheres, são atualmente considerados como desaparecidos, casos onde não
exixtem cadáveres e nem mesmo evidências de mortes, sem dar oportunidade
às familias de promover um enterro digno aos seus filhos. Como mostramos, há
uma dívida a ser saldada com uma parcela da população que em sua memória,
e pela memória, ainda possui tais feridas abertas e delas surgem clamores
para que as verdades do passado sejam de fato reveladas. Essas vozes ativas
de uma parcela da sociedade fazem surgir suas memórias “que prosseguem
seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível
afloram em momento de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados”.
(POLLAK, 1992, p. 04).
Mesmo distantes e separados pelo tempo que nos separam dos fatos, nos
comprometemos a realizar por meio do estudo a guarda da memória.
Diferentemente do que nos mostrou Rollemberg (in Azevedo, 2009, p. 381),
não nos vemos como “saudosistas de um passado não vivido” e sim nos
enquadramos nas observações de Pollak (1992, p. 201) quanto a quase uma
memória herdada, pois, “por meio da socialização política, ou da socialização
histórica,[...] (ocorrem) fenômenos de projeção ou de identificação com
determinado passado”.
Diríamos então que a ‘subversão do silêncio’ foi mais usual neste período e a
sua luta pela construção dessa memória seguiu caminho com o governo de
continuidade dos integrantes de grupos de resistência à ditadura.
Porém, por mais estranho que possa parecer, não houve um amplo debate na
sociedade brasileira. O senso comum ainda não se articulou para essa questão
da memória, como diz Rolland (in AZEVEDO, 2009, p. 419): “nada aflora à
superfície da memória [...] do maior país da América Latina, o Brasil”.
5
Para mais informações sobre os grupos acessar os sites: <www.ternuma.com.br>
(TERNUMA) e <www.torturanuncamais-rj.org.br> (TORTURA NUNCA MAIS).
80
Para Meneses (1992, p.10): “Memória nacional [...] não é o somatório das
diferentes memórias coletivas de uma nação apresenta-se como unificada e
integradora, procurando a harmonia e escamoteando ou sublimando o conflito:
é da ordem da ideologia”.
Com a instauração do golpe de 1964 veio com ele seu aparato burocrático que
também intervinham nos processos culturais e intelectuais. Dessa maneira agia
naquele momento influenciando as memorias futuras, em forma de censura ou
mesmo das musicas encomendadas por ela.
6
Para Meneses (1992) memória e história não podem se confundir. A primeira é ‘operação
ideológica’, a segunda é ‘operação cognitiva, forma intelectual’.
82
Então nossa memória não pode ser negligenciada, ela deve submeter os
indivíduos mesmo que sendo por meio de organizações governamentais ou
não, para auxílio da construção e mesmo de uma reconstrução de suas
memórias e de suas vidas.
83
7
Sobre o assunto ver: <www.history.umd.edu/HistoryCenter/2004-
05/conf/Brazil64/papers/cficoport.pdf.>. Acesso em 25/02/2014.
84
Segundo Halbwachs (1990) não seria possível existir uma memória individual,
pois os seus comportamentos pessoais são reflexos do grupo. A visão de um
acontecimento, portanto, não poderia ser tida como algo elaborado
isoladamente, posto que ela está carregada de sinais que a marcam, segundo
o contexto em que foi produzida
8
O auge dos protestos estudantis se deram a partir da morte do estudante paraense Edson
Luís de Lima Souto assassinado pela Polícia Militar em 28 de março de 1968 durante um
confronto no restaurante Calabouço, centro do Rio de Janeiro. Edson foi o primeiro estudante
assassinado pela Ditadura Militar e sua morte marcou o início de um ano turbulento de intensas
mobilizações contra o regime militar.
85
Nos anos iniciais, houve o investimento nos centros de informação das três
forças militares:
Divisão de Busca
Serviços Gerais
localizada na Ilha das Flores, um dos mais conhecidos porões do regime (SNI,
2014) para combater o chamado inimigo interno.
Dos quadros do SNI, saíram dois presidentes militares: o então coronel João
Baptista Figueiredo, que comandou a Agência Central e o general Emílio
Garrastazu Médici, que, em 1967, assumiu a chefia do SNI, substituindo o
demitido Golbery do Couto e Silva.
9
Expressão adotada por Nilo Batista, defensor de presos políticos detidos na Penitenciária
Regional de Linhares, em aula sobre Criminologia e Execução Penal, na Pós-Graduação em
Ciências Criminais promovida pela Faculdade de Direito da UFJF, no dia 20/05/05.
10
A segurança do preso não era total devido às novas transferências para locais ignorados,
como no caso do frei Tito de Alencar Lima, retirado do Presídio Tiradentes para ser
barbaramente seviciado na Oban, in: GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. SP:
Companhia das Letras, 2002, p. 278. Ainda sobre o assunto, cabe registrar a simulação do
suicídio de Milton Soares de Castro numa cela da Penitenciária Regional de Linhares, morto
92
em 28 de abril de 1967 no Quartel General Regional do Exército em Juiz de Fora. IN: ARBEX,
Daniela. Cova de militante desaparecido é encontrada em JF. Tribuna de Minas,
28/04/2002, Geral, p. 3.
93
as prisões, como já foi dito anteriormente, via de regra, ocorriam sob a forma
de sequestro. Sem mandato judicial, sob um clima de horror que implicava a
todos aqueles que possuíssem algum tipo de relação com o detido.
Com a edição do AI-5 foi necessária a adequação da Justiça Militar aos novos
tempos. Esta necessidade foi suprida por decretos-lei (1001, 1002 e 1003 de
21 de setembro de 1969) efetivando a perseguição e a punição políticas,
segundo os objetivos arbitrários do segmento que organizara o sistema, e
visava o controle estatal de todas as esferas políticas, econômicas e sociais.
Entre as medidas adotadas, a Lei de Organização Judiciária Militar indicava a
divisão das circunscrições da Justiça Militar, por competências, tornando
grupos políticos especialidades de algumas Auditorias. (ARQUIDIOCESE,
1995).
11
Mesmo que existam diferenças, nos testemunhos, referimo-nos a determindas invariantes
dos mesmos na sequência seqüestro-tortura, entre outras.
96
Houve casos de pessoas procuradas pelos órgãos de segurança que, por sua
própria vontade compareceram as dependências policiais ou militares, no
intuito de esclarecer possíveis suspeitas que recaiam sobre elas. Alguns
desses casos, registrados pelos Conselhos de Justiça das auditorias,
demonstram que, nem assim, o sistema repressivo agiu dentro do respeito aos
direitos fundamentais da pessoa, exemplo disso é o depoimento prestado em
1973,no Rio de Janeiro, pela estudante Lúcia Regina Florentino Souto, de 23
anos :
(...) que a primeira vez foi a Ilha das Flores12 visitar a irmã que
estava presa, naquela ocasião, o Comandante disse que fosse
prestar um esclarecimento e, como lá estava, prontificou-se a
depor; (...) que uma semana depois, foi a sua casa um agente
pedindo que fosse à Ilha da Flores, que o Comandante
precisava lhe falar e, assim atendeu o convite e lá compareceu,
ficando, na ocasião, presa; que no dia seguinte, foi prestar
depoimento, depoimento este que foi conseguido a peso de
choque elétrico no seio, espancamento com palmatória,
tentativa de enforcamento, tapas no rosto, além de terem dito
que sua irmã seria assassinada. (ARQUIDIOSESE, 1985, p.
1843).
12
http://www.hospedariailhadasflores.com.br/historico_item_09.asp. Cessadas as atividades da
Hospedaria, foi instalado na Ilha das Flores o CENATRE, Centro Nacional de Treinamento para
oficiais militares administrados pela Marinha. Três anos depois a ilha passou a ser um presídio
de reclusão de opositores ao regime militar, instaurado após o golpe civil-militar de 1964. O
presídio utilizou as antigas instalações da Hospedaria que anteriormente serviram para
atividades congêneres: a ala norte. Um dos alojamentos, repleto de quartos de ambos os
lados, foi transformado em carceragem. No final deste pavilhão ficavam a ala feminina e as
celas dos presos incomunicáveis. Esta se voltava para São Gonçalo. A ala masculina voltava-
se para a baía de Guanabara. Ao chegar à ilha os presos eram encaminhados às celas dos
incomunicáveis. Após um período de isolamento, eram transferidos para as celas dos
comunicáveis. Estas comportavam de quatro a seis pessoas. A partir deste momento, tinham
acesso a livros, jornais, toca-disco, banho de sol e práticas esportivas.
100
os presos políticos havia uma distinção clara entre as duas fases do processo
de prisão.
Seria inconseqüente de nossa parte abordar esta etapa da prisão como uma
resistência ampla, visto as condições degradantes em que ainda se
encontravam os presos políticos. Mesmo com o alívio, sentido pelos presos
políticos, quando reconhecidos pelo Estado, a garantia de maior segurança não
era efetiva com a transferência, pois muitos presos ainda foram torturados
nesse período, como é o caso do Frei Tito. A transferência para as instituições
de reclusão não eliminava por completo o contato com as sevícias e torturas,
pois frequentemente presos comuns eram torturados por carcereiros e
funcionários (...) ou mesmo retirados do presídio e assassinados pelo
Esquadrão da Morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury. (RANGEL, In:
FREIRE, e outros, 1997). Segundo Goffman (1987, p. 82), as prisões
caracterizam-se por instituições totais que visam à fragmentação do “eu”
interno do preso. Ou seja, a desarticulação do indivíduo que é tido como
membro ameaçador do status quo e que, portanto, deve ser isolado.
13
Livro de Cópias de Mandados de Prisão e Alvarás de Soltura (1969 a 1972) localizado no
arquivo da Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar em Juiz de Fora (MG).
104
De fato, o local era constituído de 196 celas individuais 16. Construído em 1966,
a penitenciária foi utilizada antes do término das obras para abrigar presos
comuns. Mais tarde, seria readequada para a utilização como presídio político
para presos enquadrados na Lei de Segurança Nacional, o que embora
implicasse na ocupação por presos políticos, acabou por receber outros
indivíduos detidos, segundo os ditames desta lei, por outras razões 17.
16
“ESTADO terá dificuldade para amenizar o presente de grego da penitenciária de JF”. Diário
Mercantil, 25/01/1966, p. 05. SM-BMMM/JF.
17
O assaltante de bancos Dino Valesi teve sua prisão preventiva decretada pelo juiz auditor da
4ª C. J.M. fundamentada na Lei de Segurança Nacional (Decreto-lei 898/69). IN: SÃO 17
processos contra Dino Valesi. Diário Mercantil, 03/10/1972, p. 06.
18
Segundo Carlos Fico, à análise romantizada do período se contrapõe as memórias de alguns
ex-integrantes da luta armada que analisam o processo como experiência ingênua. No
entanto, afirma o historiador, foi Daniel Aarão Reis Filho quem melhor definiu as arestas do
debate ao abordar o assunto fora das duas classificações, definindo oprojeto da luta armada
segunda a intenção de tomada do poder político. (FICO, 2004ª, p. 22-23).
106
Uma relação entre os dois momentos pode ser descrita a partir da experiência
de Maurício Paiva, militante do COLINA, Comando de Libertação Nacional, que
vivenciou as duas fases do processo de detenção. Esteve preso na Vila Militar
da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro, instituição de interrogatório e lugar
onde: “(...) Deus não entra. Se entrar, a gente (os torturadores) dependura no
pau-de-arara! (...)”. (PAIVA, 2004, p. 61).
Naquele local, os presos seriam cobaias nas aulas de tortura para oficiais das
Forças Armadas com práticas minuciosamente explicadas por meio de slides
acompanhados de demonstrações práticas.
Como no poema de Alex Polari, “Compensação”, que diz: “Melhor que lutar
pela liberdade/ é vivê-la/ já que nem sempre isso dá pé,/ melhor que lembrá-la/
é ir à luta”. (ALVARENGA, 1980, p. 149).
Para facilitar ainda mais o seu trabalho, o sistema repressivo passou a dispor
de seus próprios ‘aparelhos’: O Aparelho Repressivo.
Foi por meio dos aparatos repressivos das unidades de forças militares ou
policiais que guardavam autonomia de ação entre si, que as ações eram
ordenadas a partir de um núcleo central, o Serviço Nacional de Informações –
SNI, criado em 1964. O SNI subordinava outros órgãos repressivos, como os
centros de informações das três armas (CIEX, CINEMAR), a polícia federal e
as polícias estaduais (como por exemplos os DOPS). Para integrá-los criou-se
o Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de
108
Com isso presos políticos eram mantidos em cárcere privado, após serem
seqüestrados alguns encontraram a morte naqueles locais. Outros, mantidos
permanentemente encapuzados, retornaram sem noção de onde haviam
estado. São raros os que viram com os próprios olhos os sinistros imóveis
devidamente equipados e adaptados para toda a sorte de torturas e que
retiveram em suas memórias, detalhes como vias de acesso e tempo de
percurso, que talvez facilitem a identificação exata daqueles aparelhos do
sistema repressivo.
Ouvida pela Justiça Militar no Rio, em 1972, a bancária Inês Etiene Romeu, 29
anos, contou: “(...) que esteve cem dias em cárcere privado, onde foi submetida
a coações e sevícias de ordem física, psicológica e moral”. (ARQUIDIOCESE,
1985, p. 301).
O juiz auditor da Auditoria de Juiz de Fora, em Minas Gerais passou aos autos
este trecho do depoimento do repórter fotográfico José do Carmo Rocha, 39
anos, quando este foi interrogado em 1976:
(...) que foi preso na sua residência, pela manhã, por vários
homens armados, em número de seis (6) aproximadamente e
levado para um local ignorado; que nesse lugar passou nove
(9) dias, depois foi interrogado na Polícia Federal; que quando
esteve preso, no lugar que ignora, foi espancado; (...) que após
ser ouvido na Policia Federal retornou ao lugar de onde viera
antes, onde passou mais dois dias. (ARQUIDIOCESE, 1985, p.
740v).
(...) que depois desse período foi levado para o Colégio Militar,
onde foi interrogado sem que as autoridades tomassem por
termo suas declarações, havendo durante esses interrogatórios
sofridos, ameaças de torturas; que depois daí foi transferido
para Neves onde passou mais ou menos uns 40 dias, sendo,
nesse período, vez por outra, trazido ao Colégio Militar, onde
era interrogado; que dessas últimas vezes em que esteve no
Colégio Militar, assinou vários depoimentos. (ARQUIDIOCESE,
1985, p. 464 a 468).
(...) foi iniciada viagem que durou, ao que supõe, perto de uma
hora, das quais uns dez minutos em zona urbana, meia hora
em estrada de intenso tráfego e vinte minutos em estrada
ascendente não pavimentada, de solo irregular, cheia de
curvas e que atravessa uma linha férrea, fato este indicado
pela coincidência da passagem, na ocasião, de um trem a
velocidade bem reduzida. Chegando ao destino, foi retirado do
carro por alguém que, chamando-o pelo nome, disse estar em
poder do “braço clandestino da repressão do governo”, do qual
ninguém poderia tirá-lo e que havia chegado a sua hora. Em
seguida, é conduzido por um gramado até uma calçada
cimentada, transposta a qual segue-se uma escada que desce
uns quatro lances em ângulo reto, até um recinto que
denominam de “buraco”, onde o colocam voltado para um
canto da parede. (...) sente que o chão de cimento é lamacento
e escorregadio e que as paredes são úmidas, com o reboco em
decomposição, caindo aos pedaços ao nele se apoiar. Supõe,
por isso, tratar-se de ambiente subterrâneo. (...) foi levado para
um quarto de piso de tacos, tendo passado de novo pela
calçada e pelo gramado, entrando em um prédio, subindo nova
escada e atravessado corredores que dobram em ângulo reto.
(...) é mais uma vez levado à tortura, agora ao ar livre, sem
pau-de-arara, mas com novo método que consiste em pendurar
a vítima pelos pés, mantendo os braços suspensos, (...)
Descido do novo instrumento de martírio, perguntaram-lhe se
sabe nadar e informaram-no de que tomaria um banho de
cachoeira e a seguir de rio. (ARQUIDIOCESE, 1985, p. 2190).
No local atual, lhe era evidente estar em zona de subúrbio, ouvindo, com
regularidade, passagem de carros, inclusive ônibus.
Dois exemplos são apresentados por Nora (1993). O primeiro deles trata do
que ocorre nos Estados Unidos com relação às diferentes interpretações da
Independência ou da guerra civil, onde a tradição americana não é
questionada, muito devido ao fato de que não há uma cultura baseada na
tradição da história; ao contrário, na França, a historiografia é iconoclasta e
irreverente. “Ela consiste em tomar para si os objetos melhor constituídos da
tradição - uma batalha chave, como Bouvines, um manual canônico, como o
pequeno Lassive - para demonstrar o mecanismo e reconstituir ao máximo as
condições de sua elaboração”. (NORA, 1993, p. 10). Ao interrogar uma
tradição, a historiografia reconstitui seus mitos e suas interpretações,
revelando que nós não nos identificamos mais completamente com a sua
herança. Nora utiliza a metáfora da lâmina que é introduzida entre a árvore da
memória e a casca da história para evidenciar o fim da adequação da história
e da memória. Nessa ‘mistura’, nem história, nem memória emergem
incólumes do processo de auto-afirmação, “não mais buscando a gênese,
mas o deciffamento do que somos à luz do que não somos mais”. (NORA,
1993, p. 20).
“A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como
Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é,
por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada”.
(NORA, 1993, p. 9).
Estes são os primeiros sinais de que havia uma memória subterrânea viva e
que começava a se manifestar. Estes relatos são, inegavelmente, um impulso
para a memória dos militantes políticos contra a repressão.
126
Verifica-se junto aos ex-presos políticos que, apesar do silêncio imposto pela
necessidade de sobrevivência, estes foram difundindo as suas lembranças
nas redes familiares e de amizade, "esperando a hora da verdade e da
redistribuição das cartas políticas e ideológicas". (POLLAK, 1989, p. 5).
Com os dados compilados por meio do projeto, esses 695 processos somaram
um total de 7.367 nomes de pessoas que foram levadas ao banco dos réus, em
processos politicos formados na justiça militar no período.Necessário se faz
registrar que um certo percentual desses nomes é composto de cidadãos que
responderam a mais de um processo.A média de réus por unidade de processo
fica, então próxima do número 10.
Passando agora para os dados referentes aos orgãos de segurança, vê-se que
o exército foi o principal agente da repressão, sendo responsável direto por
1.430 prisões, além de outras 884 efetuadas pelos DOI-CODIs, também
comandados por oficiais dessa arma,sem contar o elevado número de casos
(3.754 - 51%) em que inexistem registro sobre o orgão que efetuou a prisão.
129
Sobre a frequência do tipo de acusação que era dirigida aos réus demonstrou
que, em primeiro lugar , apareceria a questão da militância em organização
partidária proibida sao de 4.935 casos .
Quase dois terços dos processos reunidos para o estudo do Projeto BRASIL
NUNCA MAIS -BNM referem-se a organizações partidárias proibidas pela
legislação vigente já antes de abril de 1964, perseguidas após a instalação do
Regime Militar.
A primeira divisão mais expressiva nas fileiras do PCB, que resultou em duas
forças partidárias com linha claramente diferenciadas e que continuam assim
133
Surpreendido pelo golpe militar em abril de 1964, o PCB sofre durante com a
repressão. É praticamente desmantelado o aparelho sindical que tinha sido
estruturado ao longo de duas décadas sob sua hegemonia; intelectuais
134
A partir de 1966, o PCB sofre uma luta interna que resulta no surgimento de
inúmeros grupos dissidentes. As divergências se deram em torno do balanço
sobre os ‘erros e causas da derrota de 64’ e a respeito da questão da luta
armada que vinha impulsionada em vários países da América Latina
desde a revolução Cubana, de 1959, culminando com a morte de Che
Guevara, na Bolívia, em outubro de 1967.
Entre 1974 e 1976, esse partido enfrenta, então, sucessivas ondas de prisões,
com centenas de cidadãos sendo presos e torturados em todo o país. Parte
135
A referida luta interna, que sacudiu o PCB após 1964, gerou inúmeras
organizações que se estruturaram em todo o país, rompendo com o bloco
ortodoxo que tinha em Luis Carlos Prestes a principal liderança. Algumas das
organizações nascentes teriam certa abrangência nacional e outras não
passariam de círculos de militantes confinados a uma única região.
Nessas ocasiões fica claro que a força prevaleça sobre a razão, ficando aberto
o caminho às expansões da maldade e da violência, com o apoio ou através
dos governos criando leis e formas que permitam a tortura, em nome da defesa
da liberdade ou da proteção da sociedade. O espetáculo punitivo é instaurado
e a execução da pena passa a ser apenas “um novo ato de procedimento ou
142
Muitos inocentes foram presos. Estes sofriam mais. Por não ter o que dizer e
confessar eram vistos com desconfiança, cada vez mais as torturas que
sofriam se intensificavam.
A violência política não foi aplicada somente aos que eram suspeitos de
estarem lutando contra o governo. Uma reportagem publicada na folha de
Londrina em 27 de fevereiro de 1970 trazia informações sobre a denúncia de
um inocente que estava sendo torturado em uma delegacia. O caso se deu da
144
Eduardo Leite.
No mesmo ano, essas declarações foram reiteradas, em São Paulo, pelo depoimento
da socióloga Eleonora de Oliveira Soares, de 27 anos:
A primeira denúncia desta morte foi na 1ª Auditoria de São Paulo, em 1973, por
meio do auto de interrogatório e qualificação da professora Maria Amélia de
Almeida Telles, de 28 anos.
375v a 376v).
(...) que quando estava nesta última cela, de certa feita ouviu
os gritos e gemidos de uma pessoa que foi colocada na cela
solitária; que já estava em tal cela 15 dias antes do
interrogando chegar ao pavilhão; (...) quer esclarecer também
que, durante sua permanência em tal pavilhão, sempre ouviu
gritos e gemidos, quer durante o dia, quer durante à noite; que
observou, com respeito àquele rapaz da solitária, que no início
154
ao juiz-auditor:
Wladimir Herzog
19
Estas eram práticas específicas da AI – AMNESTY.
160
A maneira encontrada por essas ONGs para colaborar nas campanhas pela
defesa dos Direitos Humanos e, mais tarde, na luta pela anistia, se fazia de
várias maneiras: publicação das denúncias nos Relatórios Anuais, dossiês e
relatórios específicos sobre o Brasil e ‘adoção’20 de presos, divulgação de
denúncias por meio da mídia internacional, pressão sobre o governo brasileiro,
envio de correspondência para autoridades brasileiras, palestras,
manifestações e passeatas de protesto, criação de comitês em diversos países
e cessão de material para as três sessões do Tribunal Bertrand Russell II 21.
Este tribunal, sem filiação a qualquer governo ou partido político, tinha como
objetivo julgar, a princípio, a ditadura brasileira e, posteriormente, as ditaduras
latino- americanas. Os exilados brasileiros também tomaram parte nas
campanhas, denunciando por meio da mídia e do tribunal Bertrand Russel II, as
torturas e as prisões arbitrárias que aconteciam no Brasil, além de fundarem
e/ou atuarem nos vários comitês que reivindicavam a anistia. Apesar da
Anistia Internacional se interessar pelo caso brasileiro desde 1966, por
princípio, a instituição se limitava à defesa de ‘presos de opinião’, segundo
denominação própria. Aqueles que tivessem usado a violência não seriam
contemplados. Na prática, no entanto, este princípio, em alguns casos
conhecidos foram deixados de lado, e a AI (Anistia Internacional), assumiu a
defesa de diversos militantes da luta armada. Foi a partir de denúncias sobre a
prática de tortura em presos políticos que os presos comuns puderam,
posteriormente, ser beneficiados por campanhas internacionais. Na medida em
que o número de presos políticos diminuía, a Anistia Internacional foi
deslocando seu interesse para as denúncias de tortura em presos comuns
20
Alguns presos cujos processos sensibilizavam mais a opinião pública ou alcançavam maior
repercussão na mídias recebiam um tratamento especial, ou seja, eram “adotados”, conforme
denominação da AI.
21
As sessões ocorreram em mar./abr. de 1974, jan. de 1975 e jan. de 1976 (ROLLEMBERG,
2001, p. 233).
161
22
Cf. O Globo, 10/06/2001, p. 8/9
162
23
Não podemos esquecer que a lei foi aprovada pelo Congresso Nacional e que não houve
protestos da imprensa ou da sociedade.
163
O fórum escolhido para julgar os crimes previstos pela lei foi a Justiça Federal
e seus praticantes eram sujeitos a julgamento singular, ou seja, havia distinção
entre crimes políticos e comuns.
Na verdade, mais do que uma simples lei que garantisse a segurança nacional,
a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), elaborada basicamente pela ESG,
‘aperfeiçoada’ com a criação dos órgãos de informação e repressão da ditadura
brasileira e compartilhada com os outros regimes ditatoriais estabelecidos na
América Latina, ou seja, as leis foram sendo criadas na medida em que o
regime se consolidava.
165
Interessante notar que a palavra partido não podia compor a sigla dos novos
movimentos políticos, além disso, tornaram-se indiretas as eleições para os
cargos de presidente da República e vice-presidente, reinstituindo-se os
poderes do executivo para dar continuidade às cassações. Quanto aos
governadores de estado e seus respectivos vices, também passaram a ser
eleitos indiretamente com o AI-3, decretado em 5 de fevereiro de 1966.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Por sua vez, a construção de uma nação, passa pela seleção dos ‘lugares de
memória’ descritos por Pierre Nora. Todos esses lugares de memória, se forem
objeto de um ritual, possibilitam em termos material, simbólico e funcional que
os indivíduos se encontrem em sentimento com seus compatriotas. Tornar-se-
ia possível desenhar fronteiras mais ou menos sólidas que separassem um
grupo de indivíduos dos demais grupos existentes a partir do esforço de se
criar “pontos de referência que [estruturem] nossa memória e que a [insiram] na
memória da coletividade a que pertencemos”. (POLLAK, 1989, p. 3-15).
A memória oficial busca calar a memória das minorias ou as memórias que não
estão alinhadas as memórias totalizantes, mas esta minoria silenciada tem a
missão de preserva-la e transmiti-la as novas gerações para que possam
aflorar em momentos de crise ou de movimentos bruscos. Este período de
silêncio, de maneira alguma é resultado do esquecimento, mas se transforma
em fonte de resistência para os silenciados. É desta forma que, para aquele
grupo de indivíduos que tiveram suas vivências renegadas pela memória
coletiva nacional, o testemunho se apresenta como a maior arma de resgate
dessas memórias subterrâneas.
A esse respeito Passarinho (2001) diz: “os vencedores pelas armas não
pregam o perdão, que pressupõe arrependimento, mas o esquecimento mútuo,
fundamental para a reconciliação”.
de 1979, após uma ampla mobilização social, ainda durante o regime militar de
1964.
Embora esta tenha sido a redação original, o trecho final onde se lê ‘ e outros
diplomas legais’ foi vetado por orientação do então presidente João Batista
Figueiredo em mensagem apresentada à sessão conjunta do congresso
nacional em 22 de agosto de 1979.
É unanime surgir nos relatos dos presos políticos, relatos sobre as condições
de ferimentos e traumas sobre seu corpo e as condições que foram submetidos
173
após serem torturados. Relatam e relembram com muita clareza das dores, das
fraturas e dos traumas a que foram submetidos.
26
A Comissão Nacional da Verdade, que foi responsável por investigar as
‘graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946
e 5 de outubro de 1988’, nos mostrou que quando se trata de batalhas por
memórias não se pode produzir o perdão levando em consideração o tempo
que passou, pois as feridas ,neste sentido, estão ainda com a casca muito fina
e sempre irão estar lá, pois para Halbwacs (2006), a duração de uma memória
está limitada a duração da memória do grupo, isso significa dizer que há
necessidade de preservação de elos entre os integrantes de um grupo para
que sua memória permaneça. Como exemplo dessa afirmação, descreveremos
lembranças a respeito da relação torturado, torturador e corpo. Enquanto os
torturados tem uma facilidade maior de se lembrarem dos momentos vividos,
descartando sempre das lembranças a figura real do torturado, ficando apenas
uma imagem, o torturador menos envolvido com o individuo, não recupera
facilmente a mesma lembrança com a riqueza de detalhes rememorado pelo
lado do torturado, haja vista que o torturado sempre estará ligado ao grupo
,tendo como elo de ligação o corpo que é um lugar de memória e carrega as
marcas e os traumas .
174
Apesar da existência de tortura não ser um fato desconhecido pela maioria dos
cidadãos, foi rompida a fronteira do ‘dizível’ e do ‘indizível’ ,submergindo com
as memórias subterrâneas da sociedade civil dominada, passando então do
“não dito” a a situação de contestação e reinvindicação. (POLLAK, 1989).
REFERÊNCIAS.
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1980.
ARNS, Dom Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1987.
CARVALHO, Annina Alcantara de. A Lei, ora, a lei... In: FREIRE, e outros.
Tiradentes: um presídio da ditadura. São Paulo: Scipione cultural, 1997.
FICO, Carlos. Como Eles Agiam. Rio deJaneiro/São Paulo: Ed. Record, 2001.
MENDES, José Nonato. Nossa luta não foi em vão. É a história. In: FREIRE, e
outros. Tiradentes: um presídio da ditadura. São Paulo: Scipione cultural,
1997.
ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: FERREIRA, Marieta de
Moraes & AMADO, Janaína. (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de
Janeiro: FGV, 2002.