Você está na página 1de 152

CARNAVAL

TRIBUTÁRIO
ALFREDO AUGUSTO BECKER

CARNAVAL ./

TRIBUTAR!O

2ª Edição

2004
© Desta edição - 1999
LEJUS- LIVRARIA E EDITORA JURÍDICA SENADOR
Comércio e Importação de Livros Jurídicos
CEP 01501-060- Rua Conde do Pinhal, 70- São Paulo- Brasil
Fones: (011) 3104-2527-3105-1486- Fax: 3105-5357
Produção gráfica: VALENTIM RIGAMONT
Revisão: SIMONE
Diagramação: SoLANGE R. PALMEIRA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Becker, Alfredo Augusto, 1928-


Carnaval tributário I Alfredo Augusto Becker. - 2. ed.
-São Paulo: LEJUS, 1999.

1. Becker, Alfredo Augusto, 1928- 2. Direito tributário


-Legislação- Brasil 3. Reminiscências I. Título.

99-1206 CDU- 34:336.2(81) (094.56)

Índices para catálogo sistemático:

I. Brasil : Leis comentadas : Direito tributário 34:336.2 (81) (094.56)


2. Leis: Direito tributário: Comentários: Brasil 34:336.2 (81) (094.56)

2• Edição - 1• reimpressão
2004

Direitos autorais reservados. Proibida a reprodução parcial ou total


por quaisquer meios. A violação de direitos autorais está sujeita a pu-
nição conforme as leis vigentes.
"I meri leggisti
sono puri asini."

Bartolo da Sassoferrato (1313-1357)


que ensinou a Tullio Ascarelli
que ensinou a Rubens Gomes de Souza
que ensinou a mim.
INDICE

PRIMEIRA PARTE

CARNAVAL TRIBUTÁRIO

Prefácio à 23 Edição . ... ... .... .. ... ... .. . ... .... .. .. .. . ... .. .. ... .. .. .. .. .. . .. ... .. ... .. .. .. . .. ... . 9

Capítulo I -Carnaval Tributário ............................................... ,..... 13


Capítulo II -Naufrágio Fiscal......................................................... 15
Capítulo III -Política Fiscal e Estado de Sítio ................................. 19

SEGUNDA PARTE

O MUNDO JURÍDICO E O OUTRO

Capítulo IV -Micro biografia ........................................................... . 27


Capítulo V -Fantasma .................................................................... . 37
Capítulo VI -Supremo Tribunal: Quatorze x Alfredo Augusto: Zero .. 41
Capítulo VII -O Poeta e o Legislador .............................................. . 47
Capítulo VIII -0 Mundo Jurídico e o Outro ..................................... . 49
Capítulo IX -José Souto Maior Borges ........................................... . 51
Capítulo X -Rubens Gomes de Sousa ........................................... . 53

TERCEIRA PARTE

CONVERSAÇÕES COM JURISTAS DAS MINHAS RELAÇÕES

Capitulo XI -Das Coisas Graves e da sua Linguagem..................... 85


Capítulo XII -Súmula do Supremo Tribunal: Migração da Civiliza-
ção do Texto para a Civilização do Número .............. 89
Capítulo XIII -0 Juiz e a Política....................................................... 95
Capítulo XIV -Dos Velhos e dos Jovens............................................. 103
Capítulo XV -Honestidade Intelectual .............................................. 107
Capítulo XVI -Fascínio pela "Kultur" Germânica ............................. 111
Capítulo XVII -Crimes de Lógica ....................................................... 115
Capítulo XVIII -Falsidade na Dicotomia da Lei em Forma e Conteúdo . .. 119
Capítulo XIX - Ut!,lidade ou Inutilidade do Jurista............................. 123
8 ALFREDO AUGUSTO BECKER

QuARTA PARTE

INTERPRETAÇÃO DAS LEIS TRIBUTÁRIAS

Capítulo XX -Teoria do Abuso das Formas Jurídicas....................... 129


Capítulo XXI -Origem e Causa da Teoria .......................................... 131
Capítulo XXII -Circunstâncias que Favoreceram a Aceitação da Teoria . 139
§ 12 Nazismo ............................................................ 139
§ 22 Fascismo............................................................ 141
§ 32 Fascínio pela "Kultur" Germânica.................... 144
§ 42 Migração dos Juristas para a Economia............ 144
§ 52 Invasão Vertical dos Economistas..................... 147
Capítulo XXIII -Reação Contemporânea contra a Teoria..................... 149
Capítulo XXIV -Conclusão................................................................... 151
PREFÁCIO À 2ª EDIÇÃO

O "Carnaval Tributário", de Alfredo Augusto Becker, e um


livro que fala da ausência da memória como prolongamento dos
sentidos, estando, por isso mesmo, em contacto estreito com a
realidade. Há quem diga que esse aspecto legitima nossas lem-
branças como instrumentos fortíssimos, e até exclusivos, de
conhecimento do real. Tudo aquilo que não puder ser retido nos
misteriosos arquivos da memória deixa de existir e, se por ela
não for recebido, jamais adquirirá foros de existência. Daí a
afirmação segundo a qual "a ausência é mais forte e incisiva
que a presença".
Alfredo Augusto tenta explicar sua opção pelo "outro
mundo", que não o do direito, e porque desapareceu do cenário
jurídico, permanecendo como se fora um fantasma, ao mesmo
tempo em que sumia a 2a edição do Teoria Geral do Direito
Tributário. Para fazê-lo, tece, em vinte e quatro capítulos, con-
gregados em quatro partes, uma fileira de recordações,
entrecortadas por registros interessantes de sua experiência pro-
fissional, de seus sonhos e esperanças, de um ideal vivido com
entusiasmo e emoção, de quem se apega, efetivamente, a um
compromisso sério e definitivo com a existência. Sentimos que
a vida é um desejo sempre insatisfeito, que transcende o pró-
prio objeto tão insistentemente procurado. O ser humano, de
fato, não cabe no mundo material em que vive, razão pela qual
só se satisfaz com o impossível. Afinal de contas, não existimos
para além dos nossos sonhos! E este livro revela um quê de
decepção do homem em face da multiplicidade real do seu
meio. Mas, uma desilusão melancólica de quem sabe que o
mundo, tal como é, na sua crueza, pouco vale. É preciso que ele
seja banhado pelo sonho e pela fantasia. Aí, sim, damos-lhe
esplendor e sentido estético, residindo nisso o sentido de nossa
atividade moral. E Alfredo Augusto, apontando em direção a
10 ALFREDO AUGUSTO BECKER

esse antagonismo entre a alma humana e a realidade que nos


envolve, dá bem a dimensão do caminho para se chegar à região
dos valores morais.
Penso não ser necessário acentuar o tom metafórico que
Becker imprime a seu estilo, falando de um mundo povoado
por príncipes e campeões, ao mesmo tempo em que se declara
cansado dos embates advocatícios, que lhe teriam provocado
"fraturas no esqueleto" e "desfigurado sua face com hemato-
mas".
Nesse livro, que pretenderia ser mera coleção de reminis-
cências, interpõe-se o pensador, o filósofo e o poeta, que apa-
recem e desaparecem como o cintilar das estrelas. O jurista,
porém, permeia todo o escrito, atravessando o livro COIJ1 postu-
ras doutrinárias que revelam o grande conhecedor, o arguto e
competente advogado.
Estou certo de que não estaria me distanciando das confis-
sões do autor ao afirmar que Becker, realmente, se afastou dos
trabalhos da Dogmática Jurídica, mas continuou seu labor rele-
vantíssimo na militância da advocacia, trabalhando em causas
de grande responsabilidade profissional. Numa sociedade
estruturada em função de certos valores, muitos dos quais nun-
ca aceitou, manifestando-se com palavras e atitudes concretas,
não deixou sua vocação de procurar amigos, sinceros e verda-
deiros. Agora, a lua veio como prêmio, algo a que o comum dos
homens não tem acesso, porque depende da sensibilidade e do
seu exercício, depende, na sua pureza, da retidão de princípios
e daquele romantismo com que a trajetória de Becker encheu os
olhos, a consciência e o coração de seus contemporâneos.

Faz. Santo Antônio de Palmares (SP), 12 de janeiro de


1999

PAULO DE BARROS E CARVALHO


PRIMEIRA
PARTE

CARNAVAL
TRIBUTÁRIO
CAPÍTULO I
CARNAVAL TRffiUTÁRIO

H á 40 anos, o Sistema Tributário brasileiro era estruturado


de acordo com a forma e a cor das estampilhas. Havia
estampilhas federais, estaduais e municipais e as diretrizes da
Política Fiscal concentravam-se em disciplinar - arduamente a
hierarquia dos formatos das estampilhas e a tropicalidade das
suas cores. Estas e aquelas obedeciam a uma sagrada ordem de
mutações: segundo a competência constitucional impositiva;
segundo a natureza e o valor do tributo; segundo os dotes e a
imaginação do artífice gravador da matriz da estampilha, que
contribuía até com mais inteligência que o legislador para a
criação do tributo. Naquele tempo, graças ao colorido e ao
formato das estampilhas, o chamado Sistema Tributário era um
Carnaval. Só havia confusão, muito papel colorido e era até
divertido.
Quando saíamos das Faculdades de Direito com o diploma
de bacharel debaixo do braço, nossa cultura em matéria de
ciência jurídico-tributária era tão grande que com uma petição
de habeas corpus, redigida no mais elevado estilo, apoiada na
lei, na jurisprudência e na doutrina, na qual se requeria a ime-
diata soltura de um homem e que terminava com a impressio-
nante e original frase: "Termos em que pede que se faça Justi-
ça!", o advogado não compreendia porque o inocentíssimo
continuava preso e o mandado de soltura nem sequer datilogra-
fado.
Sua perplexidade só terminava quando o ajudante substi-
tuto do escrivão explicava-lhe que a petição continuava parali-
sada e não recebera nem o despacho: "Junte-se aos autos",
porque ein lugar do imposto de selo estadual verde-garrafa, o
advogado havia assinado a petição sobre um selo dos Correios
e Telégrafos Nacionais. Nesse momento, após 5 anos de Facul-
14 ALFREDO AUGUSTO BECKER

dade de Direito, é que o bacharel recebia a sua primeira lição


de Direito Tributário.
Em 1963 (três meses depois de ter lançado o meu livro
Teoria Geral do Direito Tributário), o Supremo Tribunal Fede-
ral, em Tribunal Pleno, julgou, pela primeira vez, o problema
da natureza dos "empréstimos compulsórios": se eram "em-
préstimos" ou tributos (neste último caso, inconstitucionais). O
único Ministro que votou entendendo ser o "empréstimo com-
pulsório" mera máscara para. fraudar o contribuinte e conside-
rando-o um autêntico tributo, foi o Luiz Gcllotti. Seu voto (ven-
cido por 10 x 1) fundamentou-se no meu livro. A partir daquele
julgamento, o tributo mascarado de empréstimo compulsório"
entrou para a Súmula do STF e nós todos "entramos pelo cano".
Nos últimos anos, a quantidade e variedade de tributos
mascarados de "empréstimos" é tão grande que formam um
bloco carnavalesco: "Unidos da Vila Federal". O Presidente da:
República e o seu Ministro da Fazenda são os "abre-alas". O
ritmo é dado pelo fêmur dos contribuintes, que também forne-
ceram a pele para as cuícas. O Presidente e seus Ministros
lançam ao público os confetes de nossos bolsos vazios e as
serpentinas de nossas tripas. No Sambódromo conquistaram,
por unanimidade, o prêmio: "Fraude contra o Contribuinte".
II
CAPÍTULO

NAUFRÁGIO FISCAL

A tributação irracional dos últimos anos conduziu os contri-


buintes (em especial os assalariados) a tal estado que, hoje,
só lhes resta a tanga.
E, além da tanga, restam-lhes apenas a fé e a esperança na
mudança desse estado de coisas simultaneamente com a mu-
dança dos Ministros da Fazenda e do Planejamento.
Porém, se a estes contribuintes tributarem até mesmo a
tanga, então, perdidas estarão a fé e a esperança. Infelizmente
existem fundadas razões para que tal aconteça.
E se a exposição que o leitor lerá parecer-lhe caótica, re-
corde-se que eu estou procurando descrever o caos.
O primeiro fato caótico é a contradição (na interpretação
das leis fiscais) entre o Ministério da Fazenda e o Ministério do
Planejamento. Explico. Depois de muito estudo, o Ministério
do Planejamento e o Ministério da Fazenda, finalmente, che-
gam a um ponto de vista harmônico e unânime no tocante à
formulação literal das leis e regulamentos fiscais.
Isto posto, a lei é promulgada e ambos os Ministérios
supõem que o problema foi resolvido e que a unanimidade e a
harmonia na interpretação da lei fiscal entre os dois Ministérios
permanecerão.
Pura ilusão.
Em todos os tempos e em todos os Estados, os Ministros
sempre tardam muito em baixar do plano olímpico das abstra-
ções, em descer dos problemas abstratos e das soluções abstra-
tas. E quando, passados muitos meses ou anos, finalmente seus
pés tocam a terra dos homens, ficam perplexos e irritados ao
verem que o antigo problema continua insolúvel e que aquela
perfeita solução abstrata é um novo perfeito problema concreto.
16 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Já em 1930, o filósofo francês Bergson queixava-se do


mau hábito de os homens inteligentes confundirem o possível
com o real.
O possível são hipóteses múltiplas em qualidade e quan-
tidade porque (explica Bergson) o possível é simplesmente o
não-impossível e aquilo que (em relação ao futuro) não é im-
possível de acontecer é de uma multiplicidade quase infinita.
Ora, aquilo que afinal aconteceu: o fato real (a hipótese
que realmente se realizou) é único e irreversível.
E advertiu Bergson que os homens mais propensos a con-
fundir o possível com o real são precisamente aqueles que li-
dam com números, com a matemática, com sistemas lógicos
herméticos. Tais homens (habituados a equacionar os proble-
mas no plano abstrato da matemática superior) supõem que a
solução abstrata possível seria perfeitamente realizável e que
pela simples formulação literal de uma lei (de imposto de renda
ou de reforma agrária) tudo já estaria resolvido, porque o pro-
cedimento dos contribuintes e o de seus fiscais teriam a
concatenação lógica dos algarismos dentro da solução ma-
temática.·
Os contribuintes e os seus fiscais lidam com números, mas
eles próprios não são algarismos. Quem redigiu a lei igualou os
homens com os algarismos e superou até a observação de
Bergson, pois confundiu o impossível com o real.
Tão logo publicado o texto oficial da lei tributária (ou da
reforma agrária), aqueles órgáos que hierarquicamente estão
abaixo dos respectivos Ministérios e que se destinam a aplicar
e a esclarecer o texto legal adotam uma interpretação frontal-
mente contrária aos objetivos de política fiscal do Ministério do
Planejamento e aos de política de reforma agrária do Ministério
da Agricultura.
Note-se que as leis fiscais são originalmente obra do Mi-
nistério do Planejamento e do Ministério da Fazenda. Os obje-
tivos de política fiscal daquela lei são claros e simples. Entre-
tanto, a sua formulação é péssima.
Tão péssima que se torna ininteligível e impraticável.
Necessita a elaboração de regulamento que a converta na ima-
gem e semelhança do homem, isto é, humanamente praticável.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 17

Tal como estão formuladas as leis fiscais e de reforma


agrária, elas exigem que esta terra seja habitada exclusivamente
por gênios matemáticos e inventivas, todos filhos naturais de
Pascal e Descartes.
As leis do imposto de renda são alteradas - contínua e
mensalmente - por outras leis, decretos-leis, portarias ministe-
riais, pareceres normativos e outros atos de órgáos governamen-
tais. A proliferaçao dessas alterações é tão rápida e contínua
que o Governo não se dá mais ao trabalho de consolidar tudo
em novo Regulamento do Imposto de Renda, cuja sigla, hoje,
é uma ironia: RIR.
Por tudo isso, Luigi Eiaudi (Professor de Finanças, Reitor
de Universidade, Ministro da Fazenda, Senador e Presidente da
República Italiana) declara: "A finalidade de um bom ordena-
mento tributário não é a de fazer pagar o imposto com o má-
ximo rendimento para o Estado e com o mínimo incômodo para
os contribuintes. Um imposto não é 'moderno', não participa
dos tempos novos e nem da moda mundial, se não é engendra-
do de modo a fazer o contribuinte preencher grandes formulá-
rios; a fazê-lo correr, a cada momento, o risco de pagar alguma
multa, tornando-lhe a vida infeliz com minuciosos aborreci-
mentos e com a privação da comodidade que não faz mal a
ninguém e que ele procurou através de uma longa experiência".
E conclui Luigi Emaudi: "A finalidade do imposto não é a de
buscar fundos para o erário, mas a de provocar repugnância ao
contribuinte".
O quadro que descrevi faz pensar num episódio da última
Grande Guerra de 1939. Refiro-me a Dunkerque.
Na praia, aflitas, em pânico, desorientadas, está a massa
imensa dos contribuintes.
Ao Ministério de Planejamento incumbe fornecer-lhes os
barcos para a sobrevivência.
Porém, estabelece tantas formalidades para o embarque
que a quase-totalidade da massa de contribuintes continua na
praia, na ingênua tentativa de praticar o impraticável e de en-
tender o ininteligível.
E até mesmo aqueles poucos felizardos que conseguiram
embarcar: "embarcaram". Isto é, foram, estão sendo e serão
18 ALFREDO AUGUSTO BECKER

imediatamente torpedeados pela fiscalização do imposto de renda


em virtude daquela contraditória diretriz de interpretação fiscaL
da qual já falei.
Diante disso, só resta para aquela massa imensa de contri-
buintes, como estímulo fiscal, a filosofia de José Ortega y Gasset
que diz: "Somente os náufragos conhecem as idéias verdadei-
ras".
Cada ano é ano de naufrágio fiscal. Os náufragos, ~6 anos
depois é que saberão que morreram afogados no mar dos
sargaços das leis fiscais. Quando começarem as revisões das
declarações de renda e os respectivos exames em sua escritura-
ção fiscal. O auto de infração será o atestado do óbito ocorrido
anos atrás.
E aos náufragos que me procuram buscando a salvação
recomendo lavrar o encerramento de seus livros fiscais escritu-
rando o poema de Stéphane Mallarmé: Brise Marine, cujo texto
é o seguinte:
La chr.ir est triste, hélas! et i'ai lu tous les livres.
Tradução: O fisco é triste. Safa! E eu escriturei todos os
livros.
Fuir! lá-bas Juir!
Alguém quer esperar pela tradução?
CAPÍTULO III
POLÍTICA FISCAL E ESTADO DE SÍTIO

instrumental revolucionário que eu - já em 1963 - anali-


. O sava e recomendava como decisivo era (e continua sendo)
o instrumento da Política Fiscal: o tributo. Não apenas para
arrecadar meios financeiros para construir, mas o tributo tam-
bém para destruir. Destruição de classes sociais privilegiadas e
destruição de sistemas econômicos desumanos.
O homem elevado à dignidade de agente de criação do
novo mundo deverá, antes, criar o instrumento que pela sua
eficácia destrua os bezerros de ouro e molde o barro incandes-
cente da humanidade atual.
Esse instrumento é a nova legislação. A criação dessas
novas leis é uma atividade artística extremamente delicada e
impregnada de humanismo. O legislador deve ter cultura e sen-
sibilidade que o ensinem a respeitar o que há de permanente na
natureza humana e de sadio nas reivindicações do homem.
É verdade que a destruição das falsas ideologias poderá ser
obtida pela força bruta. Porém, este recurso não será trabalho
de inteligência, mas de animalidade.
Naquelas sociedades humanas em que se utilizou o recur-
so da força bruta, houve apenas troca de posições: alguns do
plano inferior subiram e todos os do plano superior (que são
sempre um pequeno número) baixaram e foram unir-se ao saldo
do povo real que, em sua totalidade, permaneceu no plano in-
ferior da servidão humana abjeta.
Este recurso não conduz à solução, mas apenas ao desper-
dício das energias do povo real no momento em que atingem
sua tensão incontrolável. Exaurida a energia, há uma pausa,
durante a qual as energias sociais voltam a se ::v:nmular <lté a
nova eclosão, que não criará o novo Ser Social, mas apenas
inverterá as posições.
20 ALFREDO AUGUSTO BECKER

A paz que sobrevém não é a da satisfação daquelas funda-


mentais aspirações humanas, é a paz do esgotamento.
Aquelas energias sociais que restituíram à sociedade hu-
mana a sua juventude e que a conduziram a um clímax genético
foram desperdiçadas no mais triste onanismo.
A verdadeira revolução que gerará o novo Ser Social de-
verá ser obra de huma!1ismo e seu principal instrumento, a le-
gislação integralmente rejuvenescida. E nesta obra revolucioná-
ria a tarefa fundamental é atribuída ao Direito Tributário.
A nova legislação tributária, pelo impacto dos tributos,
destruirá a velha ordem sócio-econômica e, simultaneamente,
financiará a reconstruçao da comunidade humanizada. Aos de-
mais ramos do Direito cabe a tarefa de disciplinar a reconstru-
ção.

O ANJO E A BESTA

As críticas que faço aos Ministérios da Fazenda e do


Planejamento não devem ser interpretadas como dirigidas às
pessoas físicas e humanas que exercem as funções dos órgãos
daquela pessoa jurídica que é todo e qualquer Ministério Esta-
tal.
O Ministério do Planejamento e o Ministério da Fazenda
são dois Seres Sociais, com existência real e personalidade
própria inconfundível com a daqueles indivíduos humanos que
os integram.
Cada Ministério é um híbrido do polvo e da hidra. Não se
podem atribuir a um Ser Humano as idéias contraditórias, as
infelizes ações, as nocivas omissões de um Ser Social de múl-
tiplas cabeças e de milhares de braços que se decuplicam nos
dedos que tanto se intrometem quanto se escondem.
Isto não quer dizer que as pessoas físicas que integram os
Ministérios sejam anjos. A respeito dessas pessoas físicas é
perigoso esquecer a advertência Je Pascal: elas não são anjos,
nem bestas, mas sim homens e a infelicidade da condição hu-
mana consiste em que o homem que se esforça para atingir a
perfeição do Anjo acaba por assumir a face da Besta.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 21

AS VÍTIMAS DA BESTA

Eu pergunto:
Poderá a vítima, com sua única e mísera cabeça, conven-
cer aquela multidão de cabeças?
Com apenas os seus dois braços, o triturado poderá movi-
mentar milhares de braços em omissão nociva e - simultanea-
mente - paralisar outros milhares de braços em ação infeliz?
Vítimas do Ministério do Planejamento e do Ministério da
Fazenda são o contribuinte e o próprio Ministro.
Ambos são vítimas, contudo não há igualdade entre as
suas respectivas condições de vitima. O contribuinte tem o sofrer,
ao passo que o Ministro tem o sofrer e o poder inerente à sua
funcão hierárquica. O Ministro é o único que tem o poder su-
ficiente para dominar a Besta Estatal nascida da hidra que amou
o polvo. Por isso, embora o Ministro não seja o autor, ele é o
responsável - perante o povo - por todos os atos infelizes e
omissões nocivas do seu Ministério.
O povo tem o direito de ver claro e fazer com que o seu
Ministro também veja claro.

O DIREITO DE VER CLARO

"Para um cristão moderno (diz Albert Begum) a opção


entre os regimes políticos ou os sistemas econômicos e sociais
obedece - antes de tudo - à vontade de respeitar em cada ho-
mem sua plena dignidade de pessoa, cujo primeiro direito e o
mais sagrado é o Direito de Ver Claro. De aceitar ou de recusar,
com todo o conhecimento, as regras do jogo. Fora desta liber-
dade, ou desta maioridade cívica reconhecida a todos os mem-
bros da comunidade, nós não supomos que possa existir outra
coisa que a Tirania" (Pascal- Par Lui Même, Paris, Éditions du
Senil, 1964, p. 86).
Há quase 100 anos, Machado de Assis dizia a mesma
verdade, defendendo o "Liberdade, antes confusa, que nenhu-
ma!".
22 ALFREDO AUGUSTO BECKER

OS MODOS DE COLABORAÇÃO

Há muitas maneira de ajudar o Governo. Por exemplo: os


industriais e comerciantes (paulistas, cariocas, mineiros e gaú-
chos) têm oferecido banquetes em homenagem aos Ministros
da Fazenda e do Planejamento. Tal método é inteligente e de
resultados imediatos: os industriais e comerciantes têm oportu-
nidade de constatar que aqueles Ministros de Estado não são
lobos ferozes; e estes, a comprovação de que os comerciantes
e industriais não são cordeiros inocentes.
Para que o Governo veja claro, eu lhe ofereço a mise en
scene do segundo ato da peça teatral Estado de Sítio, de Albert
Camus.
O Ministro do Planejamento promulgou seu primeiro ato
institucional:
"Art. 12 Pode-se passar sem pão e sem mulher, mas um
atestado válido e que certifique não importa o quê, eis a única
coisa que não pode faltar".
O primeiro certificado era o "Certificado de Existência".
Esta certidão seria concedida em caráter provisório e a prazo
curto. Contudo, para obtê-la era necessário que, antes, fosse
feita a prova de que já .se possuía o "Certificado de Saúde".
Este prévio "Certificado de Saúde" seria fornecido, me-
diante algumas formalidades, no primeiro andar do Edifício do
Ministério da Fazenda, Departamento de Espera, Secção Auxi-
liar.
O Contribuinte (a fim de obter o "Certificado de Existên-
cia") providenciou a obtenção do prévio "Certificado de Saúde"
e compareceu àquele referido Departamento de Espera- Secção
Auxiliar. Este nega-lhe o "Certificado de Saúde".
O Contribuinte, então, volta, comparece diante do Minis-
tério da Fazenda e explica:
Contribuinte: Eu venho do primeiro andar e, lá, me
responderam que seria necessário voltar aqui a fim de obter o
"Certificado de Existência", sem o qual eles não me concederão
o "Certificado de Saúde".
Ministro da Fazenda: Isto é clássico!
Contribuinte: Como, isto é clássico?
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 23

Ministro da Fazenda: Sim, isto prova que esta cidade co-


meça a ser administrada. Nossa convicção é que vós todos sois
culpados. Culpados de serem governados, naturalmente. Ainda
é necessário que vós todos sintais - por vós mesmos - que sois
culpados. E vós não vos sentireis culpados enquanto não vos
sentirdes cansados. Nós vos estamos cansando, eis tudo. Quan-
do vós todos estiverdes aniquilados de cansaço, o resto prosse-
guirá sozinho.
Contribuinte: Posso, ao menos eu, obter este sagrado
"Certificado de Existência"?
Ministro da Fazenda: Em princípio não, uma vez que vos
é necessário o prévio "Certificado de Saúde" para ter o "Cer-
tificado de Existência". Aparentemente, não há saída.
Contribuinte: Então?
Ministro da Fazenda: Então, resta a nossa boa vontade.
Mas ela é a curto prazo, como toda a boa vontade. Nós vos
daremos, pois, este certificado por favor especial. Ele será vá-
lido simplesmente por uma semana. Dentro de uma semana,
nós veremos.
Contribuinte: Nós veremos o quê?
Ministro da Fazenda: Nós veremos se tem cabimento a
sua renovação.
Contribuinte: E se o certificado não for renovado?
Ministro da Fazenda: Vossa existência, não tendo mais sua
garantia, sujeitar-se-á - sem dúvida - a um processo que a
eliminará. Senhor Delegado da Receita: mandai fornecer este
certificado em treze exemplares.
Delegado da Receita: Treze?
Ministro da Fazenda: Sim! Um para o interessado e doze
para o bom funcionamento.
Ministro do Planejamento: Fazei começar os grandes traba-
lhos inúteis. Vós -caro amigo Ministro da Fazenda- apressai o
balanço das deportações e concentrações. Ativai a transformação
de inocentes em culpados para que a mão-de-obra seja suficiente.
Deportai, isto é o que é importante! Nós iremos necessitar de
homens, isto é que é seguro! Onde está o cadastro?
Ministro da Fazenda: Está sendo feito; tudo é pelo melhor;
parece-me que esta brava gente me compreendeu!
24 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Ministro do Planejamento: Vós - meu caro amigo Minis-


tro da Fazenda - tendes o enternecimento muito fácil. Vós
experimentais a necessidade de ser compreendido. É um erro
em nossas funções! Esta brava gente, como vós dizeis, natural-
mente nada compreendeu. Mas isto não tem importância. O
essencial não é que eles compreendam, mas sim que eles se
executem. Escutai! Esta é uma expressão que faz sentido. Não
achais?
Ministro da Fazenda: Qual expressão?
Ministro do Planejamento: Executar-se! Ide, vós outros,
executai-vos! Executai-vos! Hein! Que fórmula!
Ministro da Fazenda: Magnífica!
Ministro do Planejamento: Magnífica! Nela se encontra
tudo! Primeiro a imagem da execução, que é uma imagem
enternecedora e, depois, a idéia de que o executado colabora -
ele mesmo - na sua própria execução. E isto é a finalidade e a
consolidação de todo o bom Governo!
SEGUNDA
PARTE

O MUNDO JURÍDICO
E O OUTRO
IV
CAPÍTULO

MICROBIOGRAFIA

N asci em Porto Alegre, em maio de 1928. Portanto, tenho 60


anos. Quando eu tinha 30 anos, até a palavra "sexagenário"
me assustava. Hoje, perdi o medo da vida e da morte. E a
minha classificação zoológica (dinossauro ou pássaro) é inda-
gação que cabe aos outros. Aos gravebundos.
Desde 1952 até 1986 (durante 34 anos) fui advogado
especializado em Direito Tributário, trabalhando em meu escri-
tório de advocacia. Em fins de 1986, fechei o escritório - por
razões que estão neste livro - e dei a totalidade de minha bi-
blioteca especializada ao meu amigo Antônio Corrêa Meyer,
que é sócio fundador de um grande escritório em São Paulo.
A partir de 1986, continuei a ser aquilo que sempre fui,
desde a infância: poeta, devorador de livros e amante da músi-
ca. Parodiando o Fernando Pessoa, eu digo:

Quem passou pela infância


E não foi poeta,
Só passou pela infância.
Foi um pateta.

Em 1958, aos 30 anos de idade, descobri que eu era um


grande ignorante da Ciência Jurídica e que essa ignorância não
seria satisfeita por nenhum dos livros de Direito Tributário
(brasileiros, portugueses, franceses, italianos, alemães, uruguaios
e argentinos) que lotavam minha biblioteca de advogado "espe-
cializado" em Direito Trihutário. Todos esses livros padeciam
da mesma ignorância, e a minha ficou consolada por estar cer-
cada de tão numerosa, simpática e internacional companhia.
Contudo, continuei insatisfeito.
28 ALFREDO AUGUSTO BECKER

De 1958 a 1962, durante 4 anos consecutivos, não gozei


férias, nem sábados, nem domingos, nem feriados. Continuei a
trabalhar como advogado, porém só na parte da tarde dos dias
úteis. Todos os dias e manhãs eu me concentrei no estudo da
Teoria Geral do Direito e da Teoria Geral do Estado. Após esses
4 anos, em 1962, com 34 anos de idade, eu entreguei à Editora
Saraiva, em São Paulo, um livro com 621 páginas, cujo título
é Teoria Geral do Direito Tributário. A la edição foi de 2.000
exemplares, lançados à venda em 1963, e se esgotou em menos
de 2 anos. A 2a edição foi de 5.000 exemplares, lançados à
venda em 1972, e há muito tempo está esgotada.
Aquele livro era e é pura teoria geral. Não comenta, nem
analisa nenhuma legislação. Apenas ensina o seu leitor a pensar
e, depois, .por si mesmo, resolver o seu problema jurídico resul-
tante de qualquer lei tributária.
Naquele distante ano de 1958, eu deixei de ser Monsieur
Jourdain. Eu compreendi que o jurista (o advogado e o juiz)
exercem - como profissão - a práxis da semântica. O mundo
jurídico é o país onde se fala a linguagem jurídica. E esta re-
sulta do mesmo processo da invenção da linguagem pelos tro-
gloditas: denominação e classificação das coisas e pessoas para
impor uma determinada regra de conduta: "um dever ser". Aquele
que detém o Poder Político (chefe de tribo ou ditador ou assem-
bléia) é o único que pode (sabe) falar essa linguagem e com ela
escrever livros: os códigos de leis. A arte dos trogloditas em
criar linguagem inteligível era superior à dos nossos legislado-
res.
Ora, todas as outras pessoas nunca conseguem saber ou
estar de acordo no tocante ao exato e unívoco significado des-
sas estruturas significantes de um "dever ser". Além disso, a
frase primeira e fundamental da linguagem jurídica é o seguinte
postulado: "Ninguém pode alegar a ignorância da lei". Por isso
existem os advogados para investigar o halo conotativo dos
significados da lei e o juiz para decidir- em cada caso concreto
- qual é o único significado da linguagem jurídica. Cada pro-
cesso é um livro de crítica semântica escrito por dois advoga-
dos e um juiz e que tem por objeto de trabalho algumas poucas
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 29

frases de linguagem jurídica. Infelizmente, a linguagem jurídica


é tão artificial quanto o esperanto.
Quando terminei a redação do livro Teoria Geral do Direi-
to Tributário, eu tinha 34 anos de idade. Isso nada significa,
porque o alemão Albert Hensel também tinha a mesma idade
quando findou a redação de seu famoso livro Direito Tributá-
rio. E porque outro alemão, o Werner Heisenberg, quando re-
cebeu o prêmio Nobel de Física em 1932, tinha 31 anos de
idade e a obra que lhe fez merecer esse prêmio, ele já a tinha
criado e redigido com 24 anos.
Aliás, Pascal ( 1623-1662), quando morreu, tinha apenas
39 anos. Com 28 anos escreveu seu Prefácio sobre o Tratado
do Vácuo, discordando frontalmente (e com absoluta razão) da
teoria de Descartes ( 1596-1650) sobre o vácuo. Em 23 e 24 de
setembro de 1647, Descartes procurou pessoalmente Pascal (que
estava doente em sua residência em Paris) para discutir sobre o
vácuo. Descartes entendia que o vácuo estava cheio de fluído
sutil e imponderável, que ele denominava "éther". Pascal enten-
dia e provava que o vácuo era o vácuo: a ausência de qualquer
substância ou fluido. Nessa discussão, Descartes, com 51 anos,
se contrapunha a um jovem Pascal de 24 anos.
Para facilitar o cálculo dos impostos (!) Pascal inventou,
aos 19 anos, a máquina de calcular aritmética, cujo modelo
definitivo ficou pronto aos seus 29 anos. Ele foi o inventor do
computador e a sua máquina de calcular era simples, mas fun-
cionava e apresentava resultados certos. Ao passo que a máqui-
na de calcular do Leibniz (1646-1716), que acrescentou à de
Pascal os perfeccionismos da Kultur germânica, não funciona-
va!
A finalidade do livro Teoria Geral do Direito Tributário é
fazer a cabeça do leitor, a fim de que ele - independente do
tempo e lugar - por si mesmo resolva o problema jurídico
criado por lei (anterior ou posterior) ao livro. E isso indepen-
dente do país onde esse leitor for advogado ou juiz.
Naquela época, eu era totalmente desconhecido no mundo
das letras jurídicas e o livro é de pura teoria. Três meses depois
de lançado, aquele livro passou a integrar acórdãos do Supremo
30 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Tribunal Federal, do Tribunal Federal de Recursos e pareceres


da Procuradoria-Geral da República.
A Saraiva aceitou minhas sugestões referentes à parte grá-
fica do livro e resultou uma obra que o Aliomar Baleeiro dizia
ser o ~ :vro jurídico mais bonito jamais editado no Brasil.
A 1.:ais forte emoção que esse livro me proporcionou foi
uma dedic8tória. Quando o Aníbal (que eu conheci menino),
filho do falecido Amilcar de Araújo Falcão, aproximou-se de
mim e me pediu uma dedicatória na Teoria Geral do Direito
Tributário eu lhe escrevi:

Ao Anibal que me oferece a alegria de eu poder voltar


a abraçar a carne e o sangue do Amilcar.

Três meses depois do lançamento da Teoria Geral, ele já


fundamentava o voto vencido (1 O x 1) do Ministro do Supremo
Tribunal Federal Luiz Gallotti, entendendo que "empréstimo
compulsório" é sempre um autêntico tributo. Escudado no meu
livro, o Luiz Gallotti enfrentou, na arena do Pleno, dez Minis-
tros. Hoje quem é que ainda acredita que "empréstimo compul-
sório" seria empréstimo?
Em 1967, quaP..do o Ministro Luiz Gallotti já era Presiden-
te do STF, eu recebi carta sua, pedindo-me um exemplar do
meu livro porque ele desejava dá-lo, como presente de forma-
tura, a um sobriP..ho. Naquela carta, ele me dizia que mandar::~.
procurar o livro em todos os "sebos" de São Paulo e Rio.
Nenhum deles o possuía e informavam que havia fila de espera
e que o preço da Teoria Geral atingira o mais alto valor jamais
alcançado na Bolsa de Livros Usados. Vinte anos depois, o
Paulo de Barros Carvalho me telefonou de São Paulo para me
avisar que, naqueles "sebos", a fila de espera aumentara e qúe
o último exemplar fora vendido por US$ 200,00. Confesso que
isso foi antes do último crash da Bolsa de New York.
Em dezembro de 1965, eu recebi uma carta do Rubens
Gomes de Sousa, falando em seu próprio nome e na qualidade
de Presidente da Comissão de Assessoramento do Ministério da
Fazenda e do Ministério de Planejamento, durante a tramitação
do Projeto do Código Tributário Nacional no Congresso Nacio-
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 31

nal. Nessa carta Rubens me pedia um parecer demonstrando


que a "Teoria do Abuso das Formas Jurídicas e a Interpretação
Econômica das Leis Fiscais" era um absurdo jurídico que dei-
xava o contribuinte ao arbítrio subjetivo do Ministério da Fa-
zenda e não ao julgamento objetivo dos Tribunais. Era uma
teoria introduzida no Código Tributário alemão pelo Nazismo e
que autorizou a morte financeira dos contribuintes alemães de
forma igual à morte física dos judeus. O pedido de Rubens era
justificado em sua carta pela decisão do Ministério tia Fazenda
de introduzir aquela teoria nazista no capítulo da interpretação
das leis fiscais.
Escrevi o parecer solicitado, que resultou em 30 páginas.
Em janeiro de 1966, enviei ao Rubens o parecer, que produziu
o efeito desejado, uma vez que c. Código Tributário Nacional
não converteu em lei aquela teoria nazista. Essa é a origem do
meu ensaio "A Interpretação Econômica das Leis Tributárias e
a Teoria do Abuso das Formas Jurídicas", que o Gilberto Ulhôa
Canto dizia ser uma briga em família, porque eu "tacava o
porrete" na cabeça do Enno Becker.
Em 1972, havia em São Paulo um curso de Pós-Graduação
dedicado ao Direito Tributário e dirigido pelo Geraldo Ataliba,
Paulo de Barros Carvalho e outros. Esse curso era ministrado
nos fins de semana, a fim de permitir que dele participassem,
como membros discentes, juizes, procuradores da República e
dos Estados, advogados e professores, muitos vindos semanal-
mente de outros Estados e cidades. A taxa de inscrição era
muito alta. Aquele que pagava essa taxa recebia uma bela pasta
com o programa do curso e outros impressos, entre os quais
cópias xerox de diversos capítulos integrais do meu livro (esgo-
tado há mais de 7 anos) considerados pelo corpo docente como
indispensáveis ao acompanhamento dessa Pós-Graduação em
Direito Tributário. Entre o corpo discente, havia pessoas que
julgavam que eu era autor alemão, há muitos anos falecido e
que a Saraiva lançara a tradução d0 livro, omitind3 o nome do
tradutor.
Os organizadores do curso convidavam sun'idades nacio-
nais e estrangeiras para proferir conferências. Eu, diversas ve-
zes, fui convidado e sempre sumi.
32 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Entre as sumidades que aceitaram proferir conferências,


estavam Gilberto Ulhôa Canto e o professor italiano Di no 1arach
que, por ser judeu e para não ser assassinado, emigrara da Itália
para Buenos Aires, Argentina, onde continuou trabalhando como
professor de Direito Tributário e escreveu vários livros especia-
lizados nessa matéria.
Gilberto Ulhôa Canto, na sua conferência, declara textual-
mente em matéria de Direito Tributário, a última obra original
era de 1937 e de autoria do Di no 1arach: Principii per l 'Appli-
cazione Tas se di Registro, Padova, CEDAM, 1937.
Dino Jarach, no dia seguinte, ao proferir sua conferência,
declara que, em toda a América Latina, a única obra que ele
julgava original em Direito Tributário era de 1963: o livro de
um misterioso Alfredo Augusto Becker, Teoria Geral do Direi-
to Tributário.
O julgamento do Dino Jarach foi para mim surpreendente
e de rara imparcialidade, porque na Teoria Geral eu acusara
Dino Jarach (e os demais discípulos do Benvenuto Griziotti,
fundador da Escola Pádua) de ensinarem a doutrina do Direito
Tributário Invertebrado: submissão do contribuinte aos capri-
chos da subjetividade do juiz da ganância do Estado. Eu os
acusei de paraquedistas do Direito Tributário. Eles saltavam da
Economia diretamente para dentro do campo jurídico, tendo
como armamento a total ignorância do que é o Jurídico.
Em outubro de 1972, a Feira do Livro, em Porto Alegre,
foi inaugurada pelo Diretor-Presidente da Editora Saraiva,
Paulino Saraiva. Depois da inauguração, ele compareceu à minha
residência para me propor, pessoalmente, uma 2a edição da Teoria
Geral do Direito Tributário. O Diretor-Presidente da Editora
Saraiva encontrou um Alfredo Augusto fazendo regressão inte-
lectual de 40.000 anos antes de Cristo. Eu estava lendo o livro
de 541 páginas dedicadas exclusivamente ao Homem Antes da
Escrita: L'Homme Avant l'Écriture (2a ed., Paris, Armand Colin,
1968), obra coletiva, onde cada capítulo é escrito por um pro-
fessor das Universidades da França, sob a direção de André
Varangnac. Os demais professores são: C. Arambourg, P. Bosch-
Gimpera, H. Breuil, V. Elisseff, P. Montet, J. Naudou, A. Parrot.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 33

E a minha regressão era 40.000 anos a.C. porque as pin-


turas das cavernas de Altamira e de Lascaux não são obras
estéticas, mas sim pictogramas: escrita utilizando, como símbo-
los gráficos de idéias, a reprodução pictórica de animais e ar-
mas de caça, como demonstra André Leroi-Gourhan, profe~;jvr
na Sorbonne, nos dois volumes de sua extraordinária obra: Le
Geste et la Parole, Paris, Albin Michel, v. 1 (1964) e v. 2
(1965). André Leroi-Gourhan entende que os pictogramas da-
quelas cavernas datam de 15.000 anos a.C. e os primeiros
pictogramas datam de 35.000 anos a.C.
Eu terminara a redação da Teoria Geral do Direito Tribu-
tário em junho de 1962 e, desde aquela época, o Direito Tribu-
tário só era objeto de minha atenção no meu escritório de ad-
vocacia. Todo o meu tempo disponível eu utilizei, desde junho
de 1962, para satisfazer minha curiosidade em: semântica, lin-
güística, história da escrita, processo da hominização (a evolu-
ção do animal hominídio em homem), biologia, processo bio-
quíinico do pensamento, física nuclear: matéria = energia e
vice-versa. E música e música e sempre mais música. "De la
musique avant toute chose", já dizia o Paul Verlaine em sua
L'Art Poéti que.
Quando o Paulino Saraiva me visitou em minha residên-
cia, estávamos em 1972, 1O anos depois de eu haver terminado
a redação da Teoria Geral do Direito Tributário. Ora, durante
todo o ano de 1971 eu me dedicara exclusivamente a escrever
um livro que é a decodificação semântica do último livro de
Albert Camus, A Queda (La Chute), escrito em 1956. (O livro
O Exílio e o Reino, lançado depois, é constituído de ensaios
redigidos muito antes de 1956.) Por essa decodificação, eu com-
provo que o livro A Queda constitui, em leitura vertical, uma
autêntica confissão autobiográfica do Albert Camus, na qual ele
relata seu rompimento, em 1952, com Sartre e a intelligentsia
de gauche de Paris. Ele também relata a sua terrível decisão de
tomar posição muito criticada na Guerra da Algéria: a revolu-
ção árabe contra o Governo colonial francês. Guerra na qual o
terrorismo mais desumano foi praticado por ambos os lados.
Por exemplo: lançar granadas dentro das salas de aula de crian-
ças.
34 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Minha decodificação (em conseqüência da necessidade de


comprovar a veracidade de todos os fatos de meu relato) resul-
tou num livro de 528 páginas datilografadas e que foi, por
minha conta, traduzido para o francês. (O livro A Queda, do
Albert Camus, se datilografado, resultaria em menos de 100
páginas.)
A Gallimard recusou a publicação do livro porque aceitou
a decisão da máfia proprietária do Albert Camus, cujo capo di
tutti capi era o Roger Quilliot.
As outras principais editoras de Paris também recusaram a
edição, mas por outra e única razão: não investiriam capital
num livro que redundaria em propaganda gratuita para a
Gallimard. Quem lesse meu livro iria imediatamente comprar
todos os outros livros de Albert Camus, os de Sartre, de Simone
de Beauvoir, de Brice Parain, de Jean Grenier. Todos escritores
cujos livros são editados exclusivamente pela Gallimard.
A minha luta, em 1972, em Paris, para obter a publicação
do livro está descrita no meu livro Colecionador de Silêncios,
Capítulo III: "A Queda do Albert Camus e a Minha". O relato
dessa luta parece-me, às vezes, tão (ou mais) interessante quan-
to o próprio livro. Naquele mesmo capítulo está transcrita a
opinião do maior crítico literário francês, Roland Barthes, sobre
o meu livro. Na parte final está a crítica do Érico Veríssimo,
poucos meses antes de sua morte.
Por que não tentei a sua publicação no Brasil? Respondo
com outra pergunta:
Em 1972, no Brasil, quem é que tinha interesse por Albert
Camus e cultura semântica?
E por que eu escrevi o livro que faz a decodificação do
livro A Queda, do Albert Camus?
Por duas razões:
Primeira: Uma noite, ao voltar do escritório, eu vi a lua
cheia nascer sobre as árvores do parque, lá no fim da avenida.
Naquele exato instante, eu tomei consciência de que, durante os
últimos 15 anos, eu fora um quadrúpede a ruminar leis e inca-
paz de erguer a cabeça do campo jurídico para olhar para cima,
mais alto que a platitude do chão. Eu esquecera que a lua exis-
te.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 35

Segunda: O livro A Queda é a confissão da queda de um


advogado em Paris. Em 1971, todos os meus colegas eram
príncipes e campeões olímpicos, e eu, aos 43 anos de idade, já
era um advogado com o couro coberto de hematomas e o es-
queleto fraturado por quedas.
CAPÍTULO v
FANTASMA

L uigi Vittorio Berliri só deixou um livro: L'Imposta di


Ricchezza Mobile, Milano, Giuffre, 1949. Quando esse li-
vro foi editado, Luigi já havia morrido. Tinha como epígrafe,
que adiante transcrevo, as palavras de seu irmão Antonio Berliri,
que se dirigia diretamente ao Luigi.
Em 1962, enviei ao Antonio Berliri minha Teoria Geral do
Direito Tributário, onde ele pôde ver a influência que recebi de
seu irmão e o amor que sentia por Luigi. Um advogado paulista,
de passagem por Roma, visitou o Antonio e disse-me que viu,
no seu gabinete de estudo, na estante de livros atrás de sua
cadeira, o meu livro.
Em 1966, recebi do Antonio uma carta na qual pedia meu
livro a fim de oferecê-lo (como presente de formatura em Di-
reito) a seu sobrinho, filho do Luigi. Eu lhe remeti o livro
acompanhado da carta (vertida para o italiano) que a seguir
transcrevo:

Porto Alegre, 30 de setembro de 1966.

Egrégio Professor Antonio Berliri:

Agradeço-lhe vivamente sua carta de 16 do corrente


na qual me pergunta onde poderá adquirir o meu li-
vro "Teoria Geral do Direito Tributário" editado em
1963. Em menos de dois anos, sua edição se esgotou
(e eu . .. primeiro). Todavia, para os amigos e para os
inimigos, conservo alguns exemplares. Entre os ami-
gos, o livro demonstra que Antonio Berliri continua
entre os primeiros.
38 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Esta carta é parte integrante do livro que a acompa-


nha.
Sei ler o italiano, mas não o falo e nem o escrevo. O
mesmo acontece com Você em relação ao português.
Porém, enquanto a minha ignorância do italiano é uma
vergonha, o seu conhecimento do português revela um
nobre amor.
Pedi ao Prof Angelo Ricci, da Faculdade de Filosofia
da Universidade de Porto Alegre, a gentileza de tra-
duzir para o italiano esta carta e o índice do livro e a
sua "Introdução" (ns. 1 a 9). Espero poder mandar-
lhe estas duas últimas traduções até o dia 20 de outu-
bro.
O homem pensante está mais presente nos seus escri-
tos que na pessoa física. O homem vive enquanto seu
livro fizer com que seja amado.
- Sócrates já morreu?
- Claro que não.
- Mas Sócrates não deixou nenhuma palavra escrita!
- Porém hoje nós conheceríamos e amaríamos
Sócrates, se um seu amigo não tivesse escrito os diá-
logos?
- E Luigi Vittorio Berliri morreu?
- "Luigi: O mistério de além-túmulo é impenetrável
(epígrafe de Antonio Berliri), mas me agrada acredi-
tar que Tu possas ainda, embora seja com olhos e co-
ração diferentes, interessar-te pelas pessoas e pelas
coisas que amaste e que Tu possas daí compartilhar a
alegria desta Tua obra e avaliar o afeto com que a
cuidou para Ti o Teu irmão Antonio."
Ao ler Luigi Vittorio Berliri, o leitor se torna "étonné
et ravi, car on s 'attendait de voir un auteur, et on trouve
un homme". A sombra de sua mão costuma estender-
se sobre a página iluminada, depois se fecha, com o
dedo indicador apontando a idéia que decifra o pro-
blema jurídico. Afetuosa maneira de persuadir, riso
contagiante.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 39

O seu estudo sobre a interpretação das leis tributá-


rias é obra prima onde tudo está dito- sem excesso e
sem lacuna- com atraente elegância.
"]'avais passé longtemps dans l 'étude des sciences
abstraites (Pascal: geometria; eu: direito tributário)
et le peu de communication qu'on en peut avoir m'en
avait dégouté. Quand j' ai commencé l 'étude de
l'homme, j'ai vu que ces sciences abstraites ne sont
propres à l'homme, et que je m'égarais plus de ma
condition en y pénétrant que les autres en les ignorant.
J 'ai pardonné aux autres d 'y peu savoir. Mais j 'ai cru
trouver au moins biens de compagnons ... "
Poucos e inesperados foram os amigos que Pascal e
eu encontramos. Todavia, quando em solitude, come-
ça a leitura do livro: L' Imposta di Ricchezza Mobile,
o leitor logo se encontra na companhia de Luigi e de
seu irmão.
E o meu livro?
Eu vivo nele. Mas meu livro nasceu- dentro do túmulo
da língua portuguesa- morto. Portanto, eu não exis-
to.
O diálogo universal se estabeleceu -durante os últi-
mos séculos - em italiano, francês, inglês e alemão.
Dentre os homens que dialogam, eu estou presente,
porém totalmente mudo e invisível. Umfantasma.
Sou um homem que morreu sem deixar um livro e sem
a possibilidade de ressuscitar no livro escrito por um
amigo. Porque, na verdade, não é suficiente ter ami-
gos. Necessário ser Sócrates.

Assim findou minha carta e começou minha vida de fan-


tasma no mundo jurídico.
CAPÍTULO VI
SUPREMO TRIBUNAL: QUATORZE
x ALFREDO AUGUSTO: ZERO

E sta foi a minha maior vitória profissional de advogado


especializado em Direito Tributário.
A história, em síntese, foi a seguinte: a Standard Electric
S.A., sociedade brasileira com sede no Rio de Janeiro e cujo
capital era totalmente norte-americano, vendeu ao Governo
Federal, ao Estado do Rio Grande do Sul e a outros Estados
montanhas de equipamento para instalações telefônicas. Nin-
guém pagou à vendedora. Nem queria ou podia pagar. Porém,
todo o equipamento já estava instalado e funcionando.
O Estado do Rio Grande do Sul estava abarrotado de arroz
que era comprado e estocado pelo IRGA (Instituto Rio-
Grandense do Arroz), órgão estatal, para manter o preço interno
e não levar à falência os agricultures. Então o Governo Federal
(com o apoio do Governo Estadual, que lhe devia bilhões de
cruzeiros em empréstimos) propôs à credora Standard Electric
o seguinte: em pagamento de seu crédito ela receberia o carre-
gamento com arroz (do IRGA) de quatro imensos navios
graneleiros. Mas tinha uma outra condição: a Standard Electric
não poderia vender esse arroz dentro do mercado interno (para
não reduzir o preço do arroz). Ela teria que exportar a totalida-
de do arroz para o estrangeiro, ao preço que ela e seu eventual
comprador acertassem. O IRGA não conseguia exportar porque
o preço do arroz, no mercado internacional, era inferior ao de
seu custo interno. Em desespero de causa, a credora Standard
Electric aceitou a proposta, recebeu o arroz que abarrotava os
porões de quatro navios graneleiros, deu quitação aos devedo-
res e exportou a totalidade daquela montanha de arroz.
42 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Só então, eu fui procurado pela Standard Electric para


estudar se aquelas exportações para o estrangeiro estavam (ou
não) tributadas pelo ICM (Imposto sobre a Circulação de Mer-
cadorias). Estávamos em 1967, e a legislação sobre essa maté-
ria era (como sempre) um aranhol e maçaroca de leis de incen-
tivos fiscais à exportação. Estudei o caso e concluí que aquela
exportação de arroz estava isenta do ICM. Recebi procuração e
passei a discutir a matéria no Judiciário.
Perdi em primeira instância. Perdi em segunda instância.
Interpus recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Fede-
ral. Avisei o escritório de advocacia que, em Brasília, era o meu
correspondente, a fim de me telefonar tão logo entrasse em
pauta para julgamento o meu recurso extraordinário. Assim eu
teria tempo suficiente para viajar a Brasília. O advogado que
era o titular do escritório (sob cuja responsabilidade tramitava
no Supremo Tribunal Federal o meu processo) me comunica
que seu escritório não tinha percebido o ingresso na pauta para
julgamento do meu recurso extraordinário. Só então, aquele
escritório tomara conhecimento da tramitação do caso: por una-
nimidade o meu recurso não fora admitido e, por isso, o Supre-
mo Tribunal Federal nem examinara o mérito da questão.
Estávamos em 1970. Contratei o advogado José Guilher-
me Villela, que fez o milagre de conseguir interpor um recurso
de revista que foi julgado pelo Tribunal Pleno, naquela época
constituído de 14 membros e presidido pelo Ministro Luiz
Gallotti.
Quando o recurso de revista entrou em pauta para julga-
mento, o José Guilherme me telefonou. Fui a Brasília e entre-
guei pessoalmente a cada um dos 14 Ministros do Supremo
Tribunal Federal o opúsculo sobre o caso. Fiquei em Brasília
porque faria (e fiz) a sustentação oral do caso. Seria a primeira
vez que eu compareceria pessoalmente ao Supremo Tribunal
Federal.
Na tarde do julgamento do meu caso, o Supremo Tribunal
Federal também julgaria um pedido de habeas corpus impetra-
do pelo ex-presidente da República Jango Goulart e também
julgaria o pedido de expulsão do Brasil de dois padres católicos
estrangeiros que eram missionários junto às tribos de índios do
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 43

rio Araguaia e eram acusados de "subversão". O salão de jul-


gamento do Supremo Tribunal Federal, em Tribunal Pleno, es-
tava todo lotado por advogados, políticos e senhoras vestidas e
penteadas com a mais requintada elegância. Parecia o Teatro
Municipal do Rio em noite de concerto pela Orquestra Filarmô-
nica de Berlim, regida pelo Herbert von Karajan. É claro que
nada disso era por minha causa. Toda aquela intelligentsia ju-
rídica, política e feminina estava ali para assistir ao julgamento
do ex-presidente Jango Goulart e à expulsão dos dois missioná-
rios estrangeiros.
O Supremo Tribunal Federal julgou primeiro o habeas
corpus do Jango. Durou 1 hora esse julgamento e o Supremo
Tribunal Federal concedeu o habeas corpus.
Depois julgou a expulsão dos padres missionários. Esse
julgamento durou 1 hora e o Supremo Tribunal Federal deter-
minou a sua expulsão.
Depois o Supremo Tribunal Federal foi tomar chá. O seu
Presidente, Luiz Gallotti, me viu, reconheceu e me chamou
para apresentar-me ao Procurador-Geral da República, que me
disse: "O seu nome é com muita freqüência citado nesta sala,
quer pelos advogados que fazem a sustentação oral, quer pelos
Ministros e por mim mesmo".
Aí, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, afetuosa-
mente, se apóia em meu braço esquerdo e diz:
- Alfredo, vem comigo à biblioteca do Supremo. O teu
livro está lá e eu mesmo faço questão de te mostrar.
- Presidente, não faça isso. Eu sei que ele lá se encontra
e o senhor tem coisas muito mais importantes e urgentes a
fazer.
- Absolutamente. Eu faço questão de te mostrar o teu
livro na biblioteca do Supremo.
E fomos, de braços dados, à biblioteca do Supremo. E as
bibliotecárias não encontram o meu livro. O Presidente se exal-
ta e exige urna busca rigorosa e imediata. Eu, mais uma vez,
peço ao Presidente que não se preocupe e olho as bibliotecárias
nervosas, pedindo perdão com os olhos. De súbito, eu reparo na
entrada da biblioteca urna imensa mesa redonda, acumulada de
livros e, bem no cume da montanha, o meu livro.
44 ALFREDO AUGUSTO BECKER

- Presidente, veja V. Exa. que o meu livro está ali no alto


daquela mesa.
- Alfredo, isso é ainda mais importante do que encontrá-
lo nas estantes. Isto significa que um dos Ministros o levou para
sua residência para estudá-lo. Vamos ver quem foi. Olha aqui,
Alfredo, foi o Djaci Falcão.
Depois do chá, o Tribunal Pleno volta para o salão de
julgamento. Para surpresa minha, sua lotação continuava a
mesma.
O Supremo passa, de imediato, ao meu caso. Preliminar-
mente, admite o recurso de revista interposto pelo José Guilher-
me. Em conseqüência, passa ao julgamento do mérito do caso
cuja exposição fora, por mim, impressa no opúsculo distribuído
na véspera e na minha sustentação oral feita de uma pequena
escrivaninha frontal ao hemiciclo dos Ministros, em plano mais
elevado. Porém, eu me senti abaixo de todos e isolado do mundo.
Iniciada a votação, cada Ministro foi votando contra o
mérito e justificando sua negativa. Quando chegou a vez do
Aliomar Baleeiro, cabeça grande e cabetos brancos com estrias
negras, o rosto lanhado de tigre brigador, ele se inclina para a
frente e, apontando para mim, diz:
- Oh, Becker, hoje de manhã, lá pelas 11 horas, depois de
ler o seu memorial, você sabe que eu me convenci de que você
tinha razão? Depois, pensando e refletindo sobre o seu caso,
mudei de julgamento. Voto contra!
Terminada a votação, eu perdi o processo por 14 x O.
Antes que o Tribunal Pleno passasse para o processo seguinte,
o Aliomar Baleeiro de novo se inclina para frente e aponta com
o braço e mão direita estendida em minha direção:
- Oh, Becker. Não fica triste, não. Você teve enterro de
herói. Seu caixão foi transportado em carreta de artilharia. Houve
tiros de bombarda, salva de fuzis e toque de clarim. Ao teu
recurso de revista o Tribunal Pleno dedicou 1 hora. Normal-
mente, ele julga essas revistas em 1 minuto.
Eu assisti aos julgamentos seguintes. No processo em que
o advogado era o jurista e professor especializado em Direito
Administrativo, Caio Tácito, ele também perdeu por 14 x O.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 45

Lembrei-me de, no avião de volta, sentar longe dele, porque 28


x O poderia desequilibrar a aeronave.
Quando tudo terminou, eu fui me despedir dos Ministros
e agradecer a atenção concedida ao meu caso. Ao me despedir
do Ministro Victor Nunes Leal, que fora o último a votar, ele
me declara:
- Alfredo, você tem toda a razão. O meu voto era a seu
favor! Porém, o que adiantaria votar por último e a seu favor?!
Reabriria a discussão. Nenhum Ministro reformaria seu voto e
o resto da tarde eu ficaria sustentando a sua tese contra os 13,
sem nenhuma utilidade. E isso atrasaria, ainda mais, os outros
processos que aguardam julgamento.
CAPÍTULO VII

O POETA E O LEGISLADOR

lf\\poeta é o esposo da palavra. Não a compra nem a estupra.


\LJIEle a possui no amor e passa toda a vida a cuidar da
intimidade do corpo e da inteligência da palavra.
Ao poeta, a palavra se entrega, abrindo-lhe o sexo. Sem
traumatizá-la, o poeta a penetra e no âmago da palavra ejacula
a realidade inominada que o angustiava. Fecundada, a palavra
engravida - no contexto do poema - e dá à luz uma nova
realidade que era ignorada pelos homens e pelo próprio poeta.
O poeta cria regras de conduta para os homens de boa
vontade alcançarem a plenitude e a sociedade a harmonia.
O legislador cria leis de conduta para os homens de má
vontade.
O homem de boa vontade recebe, como legisladores, os
seus poetas.
O homem de má vontade merece, como poetas, os seus
legisladores.
Ao homem de má vontade deve ser aplicado o Código
Penal e todos os demais Códigos.
Porém, o homem de boa vontade merece que todas as
provas indiciárias que lhe são desfavoráveis sejam examinadas
à luz lunar dos princípios hermenêuticas de Paul Verlaine:

C' est à cause du ela ir de la Zune


que j 'assume ce masque nocturne
Et de Saturne penchant son urne
Et de ces Zunes l'une apres l'une. 1

1. Paul Verlaine, A La Maniere de Paul Verlaine, no seu livro Paralletement.


48 ALFREDO AUGUSTO BECKER

E o Tribunal de Justiça, em sessão plenária, por acórdão


unânime, absolverá o réu e determinará que seja posto em liber-
dade na "Rua dos Cataventos", com base no Artigo V do Có-
digo do Mário Quintana:

Eu nada entendo da questão social.


Eu faço parte dela, simplesmente...
E sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda a gente,
Nem é deste Planeta ... Por sinal. 2

2. Maria Quintana, Rua dos Cataventos, Soneto V, Porto Alegre, 1938.


CAPÍTULO VIII
O MUNDO JURÍDICO E O OUTRO

O Direito Natural é um sonho de seminarista. O direito -


todo o direito - é artificial. Ele não é um fato oriundo da
natureza ou inscrito no código genético do animal humano, que
estaria à espera do investigador (o jurista) para ser descoberto
e aplicado.
O jurídico foi, é e será obra do homem. Com maior ou
menor boa-fé, o homem constrói e impõe o jurídico como regra
de conduta obrigatória para seus dessemelhantes, isto é, para os
demais homens que não integram a camarilha do "legislador"
(este vocábulo foi prostituído pelos atos institucionais, decre-
tos, decretos-leis e pareceres normativos). Recordo o que já
concluiu Norberto Bobbio: a justiça nada tem que ver com o
direito. A juridicidade (a validade da regra jurídica) será ames-
ma: seja numa sociedade de homens probos ou numa sociedade
de ladrões ou como sempre tem acontecido: numa sociedade de
homens probos governada por ladrões.
O mundo jurídico é criação abstrata do cérebro humano.
As leis são regras de conduta para impor um determinismo
artificial nas relações entre os homens. A lei é mecanismo or-
topédico. Entretanto, as leis que são fabricadas (por má-fé ou
ignorância), em lugar de restituirem o sorriso ao rosto ou devol-
verem o caminhar às pernas, provocam o esgar da dor e fixam
grilhões. As leis, a hermenêutica jurídica, os acórdãos, tudo no
mundo jurídico é abstrato e artificial, salvo os efeitos: a dor e
a perda da liberdade.

Há falta de oxigênio e sol


dentro do mundo jurídico.
O direito não amanhece.
Não chove.
50 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Dentro do direito não transitam nuvens


e nem sopram ventos.
As entidades do mundo jurídico não têm carne
e nem temperatura.
Jamais foi escutado canto de pássaro
dentro do Código Florestal
ou vislumbrado peixe no Código das Águas.
Da lei brotam artigos, parágrafos, alíneas, remissões.
Sequer uma flor ou ramo verde.
A vida do animal humano é muito curta
e eu só tenho uma.
Entre o direito e a abóbora
eu optei pela abóbora.
IX
CAPÍTULO

JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

mundo jurídico é um mundo mesquinho. Ele substitui o


O mundo dos fatos reais por um universo de palavras. Onde
há uma floresta amazônica, o legislador determina que deva
existir uma flor de papel. Tudo se converte em papel e em
signos gráficos no papel: as palavras. Os próprios juristas pas-
sam a vida a investigar palavras, a escrever palavras a propósito
de palavras.
Quando se encontram com seus colegas, escondem sua
face verdadeira sob a máscara do papel. Dizem e escutam pa-
lavras de louvor ou de crítica nas quais não acreditam. Os
congressos e as conferências são um teatro cujos personagens
desempenham o seu papel de papel para espectadores que fin-
gem compreender e gostar daquilo.
Talvez por isso, Rubens Gomes de Sousa gostava de me
dizer uma observação feita há mais de 600 anos pelo maior
jurista da Idade Média, Bartolo da Sassoferrato (1313-1357),
que morreu aos 44 anos de idade: I meri leggisti sono puri
asini. Durante muitos anos, eu fui um asno.
E aconteceu que José, um outro jurista, escolheu Teresa
para esposa, a mulher de olhos verdes e cor de fruta ao sol.
Estando sua esposa a caminhar por uma rua de Recife, viu
uma casa e disse a seu esposo:
- Compra essa casa.
- Impossível. Não disponho de dinheiro suficiente. Teria
que vender meu escritório de advocacia.
- Vende o escritório.
- Para continuar a pagar as prestações teria que vender o
automóvel que acabei de comprar e que eu mesmo lavo.
- Vende o automóvel.
52 ALFREDO AUGUSTO BECKER

- Ficaria obrigado a trabalhar toda a vida somente para


pagar o preço da casa.
Trabalharás toda a vida. Dentro dessa casa. A meu lado.
O homem atendeu o pedido da esposa.
Pouco a pouco, os dedos do homem passaram a cuidar de
samambaias e avencas em lugar de artigos e parágrafos. Apren-
deu a fazer amizade com as árvores do jardim e com elas con-
versar por telepatia. E, enquanto ele não retoma a casa, as suas
três cachorras ficam sempre atentas para poderem conhecer -
de longe - o ruído e o ritmo dos seus passos.
Esse homem tem existência real. Esse homem é único e
insubstituível. Esse homem não é de papel, não usa máscara
nem representa ninguém. Esse homem é ele mesmo. Por onde
caminha, ele deixa suas pegadas profundas no deserto deste
mundo, e nenhum vento as apagará.
X CAPÍTULO

RUBENS GOMES DE SOUSA

F oi o autor do Anteprojeto do Código Tributário Nacional e


da Comissão que redigiu o Projeto final (baseado no seu
Anteprojeto), aprovado em 1966 pelo Congresso N acionai e
promulgado com o título de Código Tributário Nacional, até
hoje vigente com as centenas de costumeiras alterações. Deze-
nas dessas alterações foram referentes ao imposto estadual de
circulação de mercadorias, cujo capítulo original jamais entrou
em vigência, porque entre a data de sua promulgação e a data
de sua entrada em vigor, esse capítulo foi totalmente revogado
e substituído por um aborto estrangulado pelo cordão umbilical
de leis, decretos-leis, atos institucionais e outros atos pornográ-
ficos.
Mas o que me interessa é o Rubens, cuja inteligência e
cultura era maior e melhor do que o somatório das de todos os
Senadores e Deputados do Congresso Nacional.
Até vir a falecer em 13-9-1973 (com a idade de 60 anos
e 6 meses) de um terceiro infarto, Rubens foi o maior e mais
respeitado jurista especializado em Direito Tributário, não só
no Brasil como na América Latina.
Em 1968, o Governador do Estado de São Paulo, Roberto
de Abreu Sodré, convidou Rubens para a indicação de Ministro
do Supremo Tribunal Federal, a fim de ocupar a vaga aberta
pela aposentadoria do Ministro Candido Mota Filho. O Gover-
nador informou-lhe que o Supremo Tribunal Federal já fora
consultado sobre sua indicação e que, por unanimidade, apro-
varia sua nomeação. Rubens não aceitou o convite por entender
que a sua vocação consistia em ser advogado, atuando como
parecerista e escritor de livros e ensaios doutrinários em maté-
ria jurídico-tributária.
54 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Tanto quanto de Direito Tributário, Rubens entendia de


navios de guerra a vela e das batalhas navais desses barcos,
principalmente as dos ingleses contra os franceses à época de
Napoleão. E seu entendimento sobre essa matéria era tão ínti-
mo e profundo que conhecia toda a minuciosa terminologia
daquilo que estrutura o barco, seu velame, sua artilharia, sua
manobra para navegar e combater. Se Napoleão tivesse entrega-
do o Almirantado da esquadra francesa a Rubens, ele teria al-
terado a história, e hoje a língua francesa seria o idioma oficial
de Londres. Ele recebera de presente a cópia fiel, nos mínimos
detalhes, do navio de guerra francês Le Tonnant, que foi apreen-
dido pelo Almirante Nelson, vencedor da batalha de Aboukir. A
cópia do Le Tonnant, possuída e amada por Rubens, foi cons-
truída pelos seus próprios marinheiros franceses, durante o
período de sua prisão na Inglaterra.
Rubens falava e escrevia fluentemente espanhol, francês,
inglês e italiano.
Residia na cidade de São Paulo. Vestia-se com apurada
elegância. Tecido inglês, gravatas francesas e italianas. E fuma-
va a sua bela coleção de cachimbos. Mostrou-me um livro de
300 páginas, editado na Inglaterra: Tratado de Arte de Fumar
Cachimbo. Com freqüência, consultava esse Tratado.
A face de Rubens era a de sósia do compositor musical
tchecoeslovaco Anton Dvorak, que compôs a conhecida e
belíssima Nona Sinfonia, também chamada de Sinfonia Novo
Mundo, e o mais belo trio da história da música: Dumky Trio.
O tema principal daquela sinfonia o Dvorak compôs, numa
inspiração súbita, quando contemplava as cataratas do Niágara,
nos EUA. Esqueceu as cataratas e no punho branco engomado
da sua camisa fez as anotações musicais daquele tema. O corpo
e o bigode de Rubens também eram iguais aos do Anton.
E eu (que nem cigarro fumava) invejava a arte de Rubens
ao fumar cachimbo. Ele não fumava cachimbo. Rubens tocava
um instrumento musical; oboé. As baforadas eram as sonorida-
des e melodias que ele criava, pensando feliz na sua música
interior. Pedi-lhe: Rubens, me ensina a fumar cachimbo! Na-
quela época, 1958, eu tinha 30 anos. Rubens saiu comigo e
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 55

entrou numa casa especializada em toda a parafernália de ca-


chimbos. Depois de muitos exames e reflexões, deu-me de
presente um cachimbo italiano de fornilho crespo e marrom
escuro. A parte inferior do cachimbo até a boquilha era cor de
vinho chanti rosso e plana, a fim de se descansar o cachimbo
sobre a mesa da escrivaninha e ele ficar erecto, sem o auxílio
de quaisquer suportes. Também recebi de presente um instru-
mental de dentista que era destinado à higiene do cachimbo.
Uma lata azulada de fumo inglês Capstain no corte de fumo
que o Rubens apreciava. E Rubens me advertiu de que se devia
amá-lo e amaciá-lo com as primeiras cachimbadas para curtir a
parte interior de seu fornilho.
Voltei a Porto Alegre feliz! No dia seguinte iniciei, sentado
na poltrona predileta, a minha primeira cachimbada. Cinco
minutos depois, levantei-me e vomitei no banheiro todo o al-
moço.
No dia seguinte, cheio de coragem prossegui no curtimen-
to do cachimbo. Dez minutos depois, corri para o vaso sanitá-
rio; mal tive tempo de arriar as calças e o almoço foi embora
pelo caminho oposto ao da entrada.
No terceiro dia, voltei ao cachimbo. Fiquei tão tonto e tão
indisposto que permaneci 24 horas deitado na cama.
Telefonei para Rubens e lhe relatei a minha Ilíada e Odis-
séia, acrescentando que continuava com gosto de fuligem de
lareira na boca.
- Mas Alfredo, não é assim que se faz. E preciso ir deva-
gar. Segundo recomenda aquele meu tratado sobre a arte de
fumar cachimbo, confirmado pela minha experiência pessoal,
ao fumar cachimbos novos, curtir o fornilho do cachimbo exige
no mínimo 1 mês!
Eu não sobreviveria a esse mês. Pensei, refleti e encontrei
a solução da curtidura da curtição: enchi bem o fornilho com o
fumo inglês. Pressionei o fumo utilizando um dos instrumentos
da parafernália e sentei-me no jardim. E quem passou a fumar
o cachimbo foi o aspirador de pó. Em prolongadas sucções.
Nada aconteceu com o aspirador. Na quinta sucção o fomilho
do cachimbo explode entre meu polegar e o indicador da mão
esquerda.
56 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Senti-me humilhado. Enrubeci de vergonha. Eu cometera


a mesma crueldade do Primo Altamirando que, aos 6 anos,
botou dentro do liquidificador o canário da Tia Zulmira, a ve-
lhinha tia do Stanislaw Ponte Preta.
Conheci Rubens por acaso. Em junho de 1956. Eu tinha
26 anos e nenhum cliente. Todos pertenciam ao meu pai, que
era especializado em Direito Societário e Tributário e em cujo
escritório de advocacia eu era office boy. Meu pai era germâni-
co. Durante o quarto e quinto anos da Faculdade de Direito, no
seu escritório, eu fui exclusivamente datilógrafo. Nem office
boy.
Eu pensava diferentemente. Com 26 anos de idade e 2 de
diplomado em advocacia, estudei o capítulo das "Partes Bene-
ficiárias" da lei das sociedades por ações e os poucos artigos
que a lei do imposto de renda dedicava à "Parte Beneficiária".
Após 1 mês de estudo, descobri um sistema em que, mediante
o resgate anual de uma parte das Partes Beneficiárias, a Dire-
toria das sociedades por ações poderia receber, como gratifica-
ção, até 90% do lucro líquido do balanço, se assim aprovasse
a assembléia geral dos seus acionistas. E essa gratificação da
diretoria, independente de seu montante, estava totalmente livre
de imposto de renda e numa operação absolutamente legal!
Escrevi um parecer de 100 páginas sobre essa matéria,
explicando tudo, e pedi que meu pai o lesse e me autorizasse
a utilização dessa estrutura em seus clientes. Ele estudou o meu
parecer e respondeu: Não! Eu lhe perguntei se aceitava um
desempatador de altíssimo nível. Ele respondeu: Sim!
Meu pai diariamente lia e estudava o volumoso livro que
o Tuílio Ascarelli escreveu quando residia no Brasil. Seu título:
Problemas Jurídicos das Sociedades Anônimas no Brasil. Era
um livro curioso que provava a inteligência genial e a cultura
borbulhante de idéias originais do Tullio Ascarelli. Na maior
parte de suas páginas, o texto do livro limitava-se às dez pri-
meiras linhas. Em algumas, só à primeira linha. O restante da
página estava todo preenchido, em letra miúda, com as "notas
de rodapé", com as "sub-subnotas às notas" que aquela única
linha de texto fizera germinar e florescer no cérebro genial do
Tullio Ascarelli.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 57

Perguntei a meu pai: O Tullio te serve como desempatador?


- Eu aceito o que o Tullio Ascarelli disser sobre teu pa-
recer!
Isso em julho de 1956. Telefonei para o escritório de ad-
vocacia que o Tullio Ascarelli mantinha em São Paulo. Agora,
já há muitos anos, ele residia em Roma, como Catedrático de
Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade de
Roma. Ele vinha ao Brasil somente nas férias romanas e aqui
ficava I a 2 meses. Tive sorte: o Tullio Ascarelli acabava de
chegar de Roma para, em São Paulo, atender pessoalmente seus
clientes. Expliquei ao advogado colega do Tullio Ascarelli a
matéria e a necessidade de obter um seu parecer escrito. O
Tullio Ascarelli mandou me avisar que me receberia às 1O horas,
na segunda-feira seguinte. Na hora e dia marcados, compareço
ao seu escritório, sou recebido com alegre simpatia pelo Ascarelli
e seu cachimbo. Fiz-lhe a síntese do meu parecer e pedi que o
lesse e depois me desse um parecer escrito sobre o assunto. O
Ascarelli disse-me que leria o meu trabalho e que dentro de 3
dias eu voltasse à mesma hora ao seu escritório para ele me
dizer se poderia, ou não, dar o seu parecer escrito.
Três dias depois, voltei ao Tullio Ascarelli. Recebeu-me
com um abraço e riso muito simpático. Disse-me que me daria
parecer favorável. Aquilo mesmo ele já fazia para certos clien-
tes especiais. Recomendou-me cuidado em não divulgar aquela
estruturação jurídica porque, senão, o Ministério da Fazenda
dar-se-ia conta da omissão da lei do imposto de renda sobre as
Partes Beneficiárias e imediatamente alteraria essa lei, tributan-
do o seu resgate.
Passei aqueles 3 dias, em São Paulo, freqüentando livra-
rias, em especial a "Loja do Livro Italiano", na rua Barão de
Itapetininga. No terceiro dia, eu havia comprado tantos livros
italianos de Direito Tributário, que o gerente da loja me pergun-
ta:
- Você conhece o Prof. Rubens Gomes de Sousa?
- Pessoalmente não. Mas sua obra eu a conheço toda.
Considero-o o melhor tributarista do Brasil.
- Quer conhecê-lo pessoalmente?
- Quero!
58 ALFREDO AUGUSTO BECKER

O gerente telefona para o Rubens e lhe diz que em sua loja


estava um jovem advogado gaúcho que muito o admirava e que
gostaria de conhecê-lo. Em resposta, o Rubens (que tinha escri-
tório bem próximo) convida-me para almoçar com ele. Dez
minutos depois aparece-me o Anton Dvorak e leva-me para
almoçar no restaurante do Automóvel Club do Brasil. Do res-
taurante levou-me ao seu escritório, que era éonstituído de imensa
sala com as paredes cobertas de estantes de livros. Naquela
época, Rubens limitava-se a dar pareceres sobre Direito Tribu-
tário. Apresentou-me sua secretária e da:ilógrafa: Simone Weil
(nome idêntico ao da filósofa francesa e judia que se suicidou
em 1943, em Londres). Também me apresentou ao seu oflice
boy. Quando ficamos a sós ele acrescentou: "O membro mais
importante deste escritório é esse menino que serve o cafezinho
e compra bananas no botequim da esquina".
Nesse nosso primeiro encontro, Rubens e eu falamos
ininterruptamente por 5 horas. Rubens falou-me, com honesti-
dade e autenticidade (como sempre o fez), sobre tratadistas,
escolas e autores de livros de Direito Tributário. Nacionais e
estrangeiros.
- Este, deves estudá-lo. Este outro é uma besta. Não perde
tempo com ele e todos os seus discípulos que parecem coelhos
prolíficos a parir ensaios e livros e revistas totalmente idiotas!
Naquelas 5 horas, antecipei 50 anos de estudo de Direito
Tributário e me autograduei Master e Ph.D. em Direito Tribu-
tário.
Desde aquele encontro ficamos amigos. Sempre que eu ia
ao Rio de Janeiro tratar de assuntos profissionais junto aos
tribunais administrativos e judiciais e ao Ministério da Fazenda
(ainda não existia Brasília), fazia escala em São Paulo e lá
ficava 3 dias só para abraçar Rubens e sua família. Conversá-
vamos mais sobre música e literatura do que sobre Direito
Tributário.
Dois anos depois (1958), Rubens vem a trabalho a Porto
Alegre e traz junto sua esposa, Elza Alves de Lima Gomes de
Sousa. Aqui ficou 5 dias e engordou 3 quilos, de tanta carne e
vinho tinto. Pois, nesta matéria, eu também era colega e conhe-
cedor.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 59

Sua esposa Elza conheceu-me nessa ocas1ao. Três dias


depois de convivermos e à noite, ao escutarmos música, apon-
tando para Rubens e para mim, Elza diz à minha esposa Vera:
- É incrível. Rubens e Alfredo são almas gêmeas!
Elza só enganou-se no substantivo. Rubens e eu éramos e
continuamos a ser: tigres gêmeos! Nossa amizade e intimidade
se firmaram em nossas brigas de tigre contra tigre. Nenhum de
nós, na patada, encolhia as unhas. Eram garras abertas para
dilacerar a cata do outro.
Um dia comprei um livro do Fernando Pessoa, heterônimo
Alvaro de Campos, marquei a página onde se encontra o Poema
em Linha Reta e junto mandei-lhe uma carta na qual lhe dizia
apenas isso: "Considera esse poema escrito por mim e endere-
çado a ti"!

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.


Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, (... )Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, ab-
surdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes
das etiquetas,
(... )
Que tenho sofrido enxovalhas e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridí-
culo ainda;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas
ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisso tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe- todos eles príncipes na vida
(... )
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse( ... )
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma
vezfoi vil?
60 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Ó príncipes, meus irmãos


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,


Podem ter sido traídos- mas ridículos, nunca!

(Fernando Pessoa: excertos de ';cu Poema em linha recta


in Obras Completas, li (Álvaro C~·.npos), Lisboa, Edições Ática,
1964, p. 310).
Rubens respondeu-me imediatamente, enviando-me de
presente um enorme livro: Cantigas de Escamho e de mal dizer
dos Cancioneiros Medievais Galego-Portugueses, edição crítica
pelo Prof. M. Rodrigues Lapa, Coimbra, Editorial Galáxia, 1965.
As dimensões e grossura são próximas às de um volume da
Enciclopédia Larousse. Suas 765 páginas são, como o nome do
livro já adverte, cantigas trufadas de ofensas pornográficas e
descrições de ginástica erótica e outras delicadezas galego-por-
tuguesas.
Rubens e eu ficamos ainda mais amigos.
Quando, em 1958, Rubens escutava música em minha casa,
tomou conhecimento duma pequena obra: Prece da Vida Judai-
ca composta pelo judeu suíço, radicado nos EUA, Ernst Bloch.
É uma obra-prima solada por violoncelo e acompanhamento de
piano. O violoncelista era o italiano Antonio Janigros (que depois
dirigiu a orquestra de câmara Os solistas de Zagreb ). Rubens
não descansou enquanto não encontrou, em São Paulo, o disco
idêntico. Escreveu-me carta feliz.
Rubens escreveu a totalidade de seu Anteprojeto do Códi-
go Tributário por vontade própria, sem que ninguém lhe tivesse
pedido. Escreveu por prazer intelectual, como o Anton Dvorak
compôs sua Sinfonia Novo Mundo. Quando, em 1953, o Aliomar
Baleeiro soube da existência desse Anteprojeto, pronto e acaba-
do, na casa do Rubens, foi procurá-lo e pediu-lhe para propó-
lo em 1953 ao Congresso Nacional, tal qual estava redigido,
para que dele resultasse o Código Tributário Nacional. Rubens
não fez objeção alguma. Aliomar Baleeiro propôs ao Congresso
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 61

Nacional o seu exame e promulgação como Código Tributário


Brasileiro. O Aliomar foi nomeado Relator do Anteprojeto na
Câmara dos Deputados. E lá ficou o Anteprojeto do Rubens
parado durante 13 anos, criando bolor e mofo verde, como o
Visconde de Sabugosa quando a Emília o esqueceu atrás do
armário.
Em outubro de 1965, quando passei por São Paulo para
abraçar e conversar com o Rubens, ele, referindo-se ao seu
Anteprojeto e ao seu primeiro infarto (1962), me fez a confi-
dência que transcrevo, na carta que lhe enderecei tão logo che-
guei a Porto Alegre:

"Porto Alegre, 19 de outubro de 1965.

Rubens, meu amigo:

Quinta-feira, em São Paulo, num momento de confi-


dência, tu o disseste: 'Melhor seria se em 1962 me
tivesse extingüido '.
Padeces do mesmo erro de perspectiva de Rilke:

Qui donc, si je criais, m 'entendrait parmi les


hiérarchies des anges? et, en supposant que l'un d'eux
soudain me prenne sur son coeur: je succomberais,
mort de son existence plus forte. Car le beau n 'est rien
que le premier degré du terrible; à peine le supportons-
nous, et, si nous l 'admirons ainsi, c' est qu 'il néglige
avec dédain de nous détruire. Tout ange est effrayant.
Je me contiens donc et refoule en moi le cri d'appel
d'un sombre sanglot. Hélas! à qui donc nous est-il
possible de recourir?

Rubens, como Rilke, não percebe que em resposta ao


seu brado sucede o silêncio, porque não existe uma
hierarquia que lhe seja superior. A existência mais forte
é precisamente a sua.
Aqueles a quem tu- ao longo de tua existência- aper-
tas contra teu coração: morrem se pertencerem à li-
62 ALFREDO AUGUSTO BECKER

nhagem dos medíocres; ressuscitam se tiverem a tua


raça.
Aqueles a quem abraçaste, a outros abraçarão.
(Ascarelli que abraçou Rubens; Rubens que abraçou
tantos que deles já não se dá conta.) Les 'anges
effrayants 'se multiplicam e- em sua peregrinação pela
terra dos homens - vão semeando morte e ressurrei-
ção. De século em século, a humanidade resulta me-
nos medíocre.
Quando eu entro em depressão, gosto de reler uma
passagem da crônica que Albert Camus escreveu quan-
do Paris capitulou em 1940:

C'est une tâche, il est vrai, qui n 'a pas de fin. Mais
naus sommes là pour la continuer. ]e ne crois pas assez
à la raison pour souscrire au progres, ni à aucune
philosophie de l'Histoire. ]e crois du moins que les
hommes n'ont jamais cessé d'avancer dans la
conscience qu 'ils prenaient de leur destin. Naus
n 'avons pas surmonté notre condition, et cependant
naus la connaissons mieux. Naus savons que naus
sommes dans la contradiction, mais que naus devons
refuser la contradiction et faire ce qu 'i! faut pour la
réduire. Notre tâche d'homme est de trouver les
quelquesformules qui apaiseront l'angoisse infinie des
âmes libres. Naus avons à recoudre ce qui est déchiré,
à rendre la justice imaginable dans un monde si
évidemment injuste, le bonheur significatif pour des
peuples empoisonnés par le malheur du siecle.
Naturellement, c'est une tâche surhumaine. Mais on
appelle surhumaines les tâches que les hommes mettent
longtemps à accomplir, voilà tout.

Com esta transcrição terminava minha carta a Rubens.


Eu gostava de ouvir Rubens me repetir o que ele aprendera
do Tullio Ascarelli (do qual fora admirador e amiga) que, por
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 63

sua vez, aprendera do maior jurista italiano da Idade Média,


Bartalo da Sassoferrato:

1 meri leggisti sono puri asini.

E Rubens gostava que eu lhe repetisse a que me ensinou


Miguel de Unamuno, no seu livro escrito em 1912 em Salamanca
te publicado em 1913), Espanha: Del Sentimento Trágico de la
Vida:
"Na hierarquia dos atributos humanos, acima da inteligên-
cia, estão o amor, a angústia e a caridade".
Rubens e eu mantínhamos uma correspondência perma-
nente. A seguir transcrevo uma das cartas que exemplifica a
natureza de nossa amizade:

"Porto Alegre, 25 de agosto de 1967.

Rubens:

Manda-me a carta que estavas a me escrever, em prin-


cípios dejulho, na qual me falavas numa visita do pin-
tor Harry Elsas e de outras coisas que não me disses-
te quais, mas que tenho interesse em saber. Um velho
poeta filósofo pré-socrático, Parmênides, dizia que 'ser
e pensar é o mesmo'. Tu e eu; enquanto juristas, so-
mos mercenários intelectuais. Nós passamos a existir
-nós mesmos- quando pensamos com a espontanei-
dade com que me escrevias aquela carta e com que te
escrevo esta.
Manda-me aquela tua carta no estado em que ela se
encontra hoje. Não a termines. As cartas genuínas
comecam e terminam de súbito. Não permitas que
aconteça com aquela tua carta o que eu permiti que
acontecesse com uma carta que eu te escrevia em fins
de julho.
Era de manhã, cheguei no escritório e desejei conver-
sar contigo sobre umas idéias que nas últimas sema-
64 ALFREDO AUGUSTO BECKER

nas me perseguiam com impertinência e fascínio. Como


eu estava muito falastrão aquela manhã e o meu im-
pulso de comunicação era mais rápido que a mão, to-
mei um carretel de fita gravadora e comecei a conver-
sar contigo no magnetofone.
Nossa conversa durou três horas. O resultado não foi
extenso, mas agudo e extremamente profundo. Eu fi-
cava uns 15 minutos a pensar, como ave de rapina
parada no ar alto que de repente se lança sobre o pei-
xe e o prende com unhas e garras. Para estas preci-
pitações a mão é paralítica. Eu só consigo, nessas
ocasiões, deslocar-me dentro do espaço do magne-
tofone. A mão só começará a trabalhar depois que eu
receber o ditado já transposto no papel pelo datiló-
grafo. Nesta fase, então, haverá um trabalho de arte-
sanato, juízo crítico e frutificação.
Toda aquela minha conversa girava em torno do se-
guinte: Os peixes são idéias e os pássaros são pala-
vras. Não no sentido de metáfora, mas no de entida-
des reais como idéias e palavras. Por uma distração
do intelecto humano, que através dos milênios foi, cada
vez mais, se atrofiando, hoje nós não conseguimos mais
pensar os peixes como idéias e os pássaros como pa-
lavras. Não conseguimos porfenômeno análogo àquele
que, faz alguns anos, nos impedia de considerar os
negros como seres humanos iguais a nós brancos. Há
poucos dias, por acaso, examinando o Código Comer-
cial Brasileiro, encontrei um edijicante artigo adver-
tindo de que: 'Os escravos nao podem ser objeto de
penhor mercantil'.
Ora, aconteceu que quando eu terminei de conversar
contigo era já uma hora da tarde. Almocei. E, regres-
sando ao escritório, foi me invadindo uma onda de
ridículo sobre tudo aquilo que eu pensara e te falara
durante a manhã. E o sentimento de ridículo se trans-
formou em fúria e furioso cometi um sacrilégio. To-
mei o carretel onde esiava gravada aquela nossa con-
versa matinal e, sobre aquela mesma fita ainda não
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 65

transcrita pelo datilógrafo para o papel, ditei (esma-


gando, palavra por palavra, tudo que nela havia) a
defesa da mortadela envolta em embalagem não des-
tinada a sua apresentação à sociedade e, por conse-
guinte, liberta das relações com o imposto de produ-
tos industrializados. (Provavelmente, hoje à tarde,
voltarei a pensar que pratiquei um ato de caridade.)
Hoje, ainda é manhã. Falo no magnetofone. O ditado
será transcrito pelo datilógrafo e a carta será posta
no correio antes do meio-dia. Caso contrário, hoje à
tarde, quando regressar, praticarei outro ato de cari-
dade.
Ontem, à noite, um amigo de infância mostrou-me as
três fotografias coloridas que junto com esta te man-
do. Elas foram obtidas em meu apartamento, há uns
vinte dias, num sábado de feijoada.
O sábado, a feijoada, a temperatura fria e o dia cin-
zento me fazem pensar, agora, que há nove anos atrás,
em tua casa à rua Maestro Schiaffarelli, num dia as-
sim, comi uma feijoada assim. Vera e eu fomos apre-
sentados a teu pai, a tua mãe, à mãe de Elza e a teus
cunhados. As três horas da tarde, tu te apagaste numa
poltrona dizendo: 'Que ninguém me peça para dizer
coisas inteligentes'.
Naquele tempo Eduardo colecionava chaveiros. Fize-
ra naquela manhã a sua primeira comunhão e ainda
não se sentia muito a vontade dentro das calças com-
pridas. Regina andava apaixonada pelo Vinicius de
Morais. Eu, injusta e burramente, manifestei meu
desinteresse pelo poeta amado. Hoje, confesso que o
Vinicius de Morais é um dos dois maiores poetas líri-
cos que o gênero humano até hoje produziu (o outro
poeta eu não sei quem poderá ser; admito a sua exis-
tência apenas por hipótese reveladora de minha opi-
nião equilibrada). Porém, tenho certeza absoluta de
que a poesia lírica universal alcançou sua obra-pri-
ma no: 'Receita de Mulher'. Há outras poesias que
hoje, ao meio-dia, quando chegar em casa vou ouvir:
66 ALFREDO AUGUSTO BECKER

São as letras que o Vinicius fez para os sambas


'Berimbau', 'Até o Sol Raiar', 'Canção do Amanhe-
cer'. (Não vou adiante na enumeração, não porque
inexistiriam outras poesias do Vinicius tão belas e dig-
nas como estas, mas simplesmente porque a lembran-
ça destas já me deixa em estado de plenitude lírica.)
Mas voltemos às três fotografias. Meu amigo reconhece
que é um simples aprendiz defotografeiro. Além disso
te pede que devolvas as três fotografias, pois as consi-
dera insubstituíveis em sua coleção. Como ele está se
iniciando na arte fotográfica, tais fotografias servi-
rão de base para medir seu progresso, não apenas na
luminosidade, mas principalmente na escolha dos se-
res dignos de serem fotografados. Como nestas três
fotografias ele teve a felicidade de se aproximar do
zero absoluto, ele as considera extremamente estimu-
lantes, pois qualquer outra fotografia que tirar apre-
sentará índices de progresso em relação a estas.
Nelas verás este teu amigo, uma razoável receita de
mulher e um aperitivo de mulher. A Helena não quis
se deixar fotografar porque lavara a cabeça e estava
ornamentada com tubos, fios e lenço colorido. Um
poste telefônico onde se enredou pandorga.
Bem, estou te mandando as fotografias porque em duas
delas aparece o quadro do Don Quixote pintado pelo
Harry Elsas e sobre o qual provavelmente ele te falou.
Na história da encomenda e aquisição deste quadro,
ocorreram estranhas coincidências que me fazem pen-
sar em telepatia, destino, sei eu lá o que... Contudo sei
que tudo isto faz parte do quadro e o quadro faz parte
de minha vida. E a esta altura não sei mais se é o
quadro que vive em mim ou se sou eu que vivo dentro
do quadro. Se o pintor não te falou sobre tais estra-
nhas coincidências, eu sobre elas te falarei noutra
ocasião.
Desejo muito que tu conheças este quadro. Infelizmente
a fotografia saiu escura. Espero que um dia voltes a
Porto Alegre para vê-lo à noite, dentro da sala toda
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 67

escurecida, exceto o quadro. E também vê-lo, enquan-


to refletido no vidro da janela. Atrás a noite é escura e
há estrelas e ramos de árvore. Como as estrelas pis-
cam, os ramos estremecem e o vidro da janela é sua-
vemznte ondulado, a gente de repente percebe que o
Don Quixote e Sancho Pança estão vivos e se aproxi-
mam de nosso albergue, sentarão à nossa mesa e toda
a noite transcorrerá em vigília e em estranhíssimos
diálogos.
Este quadro tem desagradado noventa e nove por cen-
to das pessoas que o contemplam pela primeira vez.
Depois, com o tempo, elas vão se acostumando ou
criando amizade com o quadro. A reação contrária
ao quadro, nas primeiras vezes, resulta de que todos
nós estamos preparados para ver um quadro de Don
Quixote anedótico e num estilo a la Gustave Doré.
Ora, este quadro contraria todas as expectativas. Con-
fesso que a mim não contrariou (salvo no cavalo, mas
hoje não mais). Eu sempre amei Don Quixote nas suas
fases de Alonso QuUano, el Bueno. Quem nunca amou,
quem nunca lutou por um ideal, quem nunca foi der-
rotado, quem nunca tomou consciência de suas pró-
prias limitações, quem nunca sepercebeu terrivelmente
ridículo por não poder renegar seu amor, seu ideal,
sua derrota e suas limitações, quem nunca atravessou
fase de extrema e absoluta prostração física e moral,
continuará cego, surdo e mudo diante deste quadro de
Don Quixote.
Entre outras coisas que existem neste quadro (igual-
mente estranhas, curiosas e telúricas) eu observo a
semelhança da face de Don Quixote com a estrutura
da face que ficou gravada num tecido de linho chama-
do 'Sudário de Turim' e que alguns- sem razão- acre-
ditam ser a mortalha que envolveu Cristo quando foi
conduzido ao sepulcro.
Há dois dias atrás vi o Evangelho segundo Pasolini.
Coisas que passaram a fazer parte do meu plasma
sangúmeo foram aquelas pedras e aquelas escadarias.
68 ALFREDO AUGUSTO BECKER

A cena da dança da Salomé adolescente, com um ramo


florido de árvore nas mãos, num pátio de uma fortale-
za velhíssima, ás duas horas da tarde, o tocador de
flauta apoiado na arcada olhando as encostas do vale,
achei-a belíssima e me fez perdoar o Rei por ter man-
dado decapitar São João Batista.
Outra coisa também que me causou agudíssima im-
pressão é aquela canção (que umas quatro ou cinco
vezes surge no filme) acompanhada por um instrumen-
to de cordas arcaico e que eu não sei distinguir onde
termina a voz do instrumento e onde começa a voz do
homem.
Deves ter visto este filme. Escreve-me sobre o mesmo.

Alfredo Augusto.

Em 1970, eu lhe telefonei, pedindo-lhe que me escrevesse


um relatório autobiográfico a ser utilizado num dos capítulos de
um livro que eu pretendia escrever e que é o livro que hoje
estou escrevendo. A postergação foi causada pelo outro livro de
528 páginas que escrevi em 1971, dedicado à decodificação do
livro A Queda, de Albert Camus.
Rubens atendeu meu pedido, enviando-me um relatório de
21 páginas, das quais 14 são dedicadas a sua cópia do navio de
guerra a vela francês Le Tonnant. Apenas as restantes 7 páginas
são dedicadas à autobiografia dele, Rubens. Transcrevo a seguir
essas 7 páginas que retratam a inteligência, a cultura, o humor,
a ironia do homem Rubens. Fatos de sua vida que são ignora-
dos por todos aqueles que o conheceram, mesmo tendo sido
íntimos amigos e colegas de escritório. Estas páginas redigidas
por Rubens são até hoje inéditas:
Dados pessoais: Je nacquis (frase que admiro pela cora-
gem de evitar o chavão je suis né é a primeira frase de Si le
Grain ne Meurt, a autobiografia de André Gide) em Bruxelas,
em 11 de março de 1913. Meu pai, coitado, mesmo depois de
cego, costumava dizer que estudara medicina em Bruxelas por-
que era filho do pai dele. Meu avô paterno, Manuel José Go-
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 69

mes, era um cidadão português oriundo de um lugarejo perdido


do Alentejo chamado Soutello. Aos 15 anos de idade veio para
o Brasil, consignado pelo pai dele a um tio que já estava aqui
e que tinha um negócio de secos e molhados no Rio de Janeiro:
trabalhava o dia inteiro como caixeiro, vendendo bacalhau, e à
noite dormia em cima do balcão porque não tinha dinheiro para
pagar um quarto. Com o tempo, mudou-se para uma cidade do
interior de São Paulo chamada Amparo, e lá, a força de trabalho
e economia, chegou a ser o cidadão n. 1, dono de uma casa
bancária e um dos fundadores da Cia. Mogiana de Estradas de
Ferro (hoje encampada pelo governo do Estado). O rei de Por-
tugal, D. Manuel, o nomeou cônsul. Já cinqüentão, casou-se
com Constança de Souza Aranha, filha do Barão de Campinas,
de quem teve meu tio Amadeu (hoje com 92 anos) e meu pai.
Enviuvando, casou-se uma 211 vez com uma dama que por si só
vale outra carta, que escreverei para não tornar esta comprida
demais; dela teve duas filhas e, aos 69 anos, um par de gêmeos.
A piada da família é que o esforço o matou: a "viúva mudou-
se para a Suíça e lá viveu até 1930, liquidando a fortuna do meu
avô, que deveria ter sido considerável (matéria da outra carta).
A 211 piada da família é que o fato do último rei de Portugal, D.
Luiz, o ter feito Visconde de Soutello em 191 O, dias antes da
revolução que derrubou a monarquia em Portugal, foi a causa
da dita revolução. Meu pai estudava medicina na Bahia: deu lá
uma epidemia de cólera, ou coisa que o valha. Meu pai disse
a meu avô que a única alternativa era a Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro. Meu avô respondeu que no Rio tinha febre
amarela (Oswaldo Cruz ainda não tinha aparecido): logo, vais
estudar na Europa. E lá se foi meu pai para Bruxelas, onde, ao
contrário dos muitos brasileiros que lá estavam, estudou mes-
mo, tanto assim que numas férias passadas no Brasil, casou
com minha mãe, que já tinha de olho, e a levou para lá. Lá
nasci. Em 1914 rebentou a guerra, de que a Bélgica recebeu um
primeiro impacto. Meu pai serviu num hospital de sangue até
que, ante a iminência da tomada de Bruxelas pelos alemães, o
governo belga mandot! que todos os estrangeiros fossem embo-
ra. Saímos de Bruxelas pelo último trem antes da entrada do
70 ALFREDO AUGUSTO BECKER

general Von Kluck, para Londres, por 6 meses, que era o tempo
que os otimistas achavam que a guerra ia durar. Ao fim de 6
meses, como a guerra não tinha jeito de acabar, voltamos para
o Brasil, sem dinheiro, com a viagem financiada pela Embaixa-
da. Existem até hoje nos arquivos familiares os documentos do
ltamaraty acusando o reembolso das despesas. Nunca mais voltei
a Bruxelas: lá irei em setembro, por causa do negócio da IFA
(vide adiante).
Que pretendia ser?: Oficial de Marinha. Fui recusado no
concurso de 1929 porque só enxergava dois palmos adiante do
nariz, e o mínimo era três palmos. Foi uma sorte: se não falhas-
se no exame físico, falharia irremediavelmente no seguinte, que
era de matemática. Até 1961, quando a Regina se casou, eu
dependia dela para fazer as 4 operações; desde então, não as
faço mais. Em seguida, tentei, em 1936, a carreira diplomática.
Com surpresa geral (principalmente minha) ganhei o concurso
e fui nomeado Cônsul de 3a classe. Como o Consulado mais
vagabundo é de 2a classe, os de 3a ficavam no Rio, aprendendo
o que se chama a carriere (em francês mesmo). Até que o então
Ministro Pimentel Brandão me chamou ao seu gabinete e me
perguntou: 'O Sr. tem fortuna pessoal?' Não. 'O Sr. tem apoio
político?' Não. 'Então aceite um conselho: peça demissão.' Pedi-
a, voltei para São Paulo e entrei para o escritório de um advo-
gado, já falecido, chamado Pelágio Lobo, extremamente inteli-
gente e grande admirador das óperas de Puccini (vício que me
ficou até hoje). (P.L. foi meu padrinho de casamento em 1938
e morreu de enfarte em 1954). Ele era advogado da Cia. Mogiana
de Estradas de Ferro. Nessa altura, o Estado cobrava um impos-
to sobre o capital das S.A.. Todas as estradas de ferro tinham
brigado, e perdido, alegando que sendo concessionárias federais
não podiam ser tributadas pelo Estado. A Mogiana perdeu como
as outras; de modo que na hora da apelação, Pelágio me deu os
autos e disse: 'faça; está perdido mesmo!'. De modo que me
deu uma idéia. Fui à Secretaria do Tribunal, li os autos e vi que
todas tinham alegado a mesma coisa, e perdido. Daí, inventei
um outro argumento (não tenho a menor idéia de qual era) e o
Tribunal, apanhado de surpresa, deu provimento. De modo que
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 71

a Mogiana foi a única que ganhou o troço. Dai para diante, é


claro que toda questão fiscal que aparecia no escritório vinha
automaticamente para mim. Essa é a razão (a única razão) de,
como dizem os que querem tirar de mim alguma vantagem, eu
ser o 'Papa' do Direito Tributário brasileiro. Assim se fazem as
carreiras e as reputações.
Quase esquecia de dizer que depois do desaponto da Es-
cola Naval fiz um ano de medicina, para contentar meu pai, que
não imaginava outra carreira para mim. Deve ter sido o ano
mais infeliz da minha vida: passava o dia a lavar as mãos e me
parecia que nunca ia conseguir livrar-me do cheiro de formol e
coisas piores. Afinal, feitos os exames, cheguei-me a meu pai
e lhe disse que na medicina eu só via para mim duas oportu-
nidades: médico legista, que só lida com cadáveres, logo não
pode fazer mal maior; ou médico militar, que cura tudo a pon-
tapés. E perguntei-lhe se queria uma dessas carreiras para o
filho. Claro que ele respondeu que não; e fui para a Faculdade
de Direito. Mas não por vocação: simplesmente porque para lá
iam meus antigos companheiros do Colégio São Luís, que ti-
nham passado aquele ano preparando-se (si c) para o vestibular.
Repito: assim se fazem as vocações ...
Que idiomas falo?: Português (muito mal). Francês (muito
bem), porque nos bons tempos depois que voltamos da Europa
e moramos no Rio de Janeiro (rua de S. Clemente, pegado à
casa de Ruy Barbosa) tive uma governante francesa (solteirona,
velha e horrorosa, de modo que não tenhas idéias sexuais pre-
maturas); inglês, muito bem, idem, idem, idem. Americano (que
é outra língua) por causa da profissão. Italiano, que aprendi
sozinho lendo I Promessi Sposi de Alessandro Manzoni, e de-
pois, direto, Dante Alighieri. Espanhol, que não passa de por-
tuguês mal pronunciado. Alemão, um pouquinho, depois de
esgotado 5 professores, homens e mulheres, e de que desisti
depois que a última professora, que me fazia ler contos de fadas
(Grimm, etc.), um dia em que ela não conseguia traduzir Der
Zauberwand (a varinha de condão), de repente disse - 'Ah!
sim, o pau da mágica'. Daí para diante, quando me sugerem
aprender alguma outra língua (grego, russo, etc.) eu pergunto:
72 ALFREDO AUGUSTO BECKER

'Declina?' e se me dizem 'sim' eu respondo categoricamelte


'não'. Mesmo em alemão, só sei declinar o artigo: Der, Des,
Dem, Den. Mas não o substantivo. Em tempos, no Colégio São
Luís, dos jesuítas (1925-1929), falei ifalei) latim direitinho, mas
só porque tinha como professor um padre que era um nobre
espanhol, Don Miguel de Cerdá, que com 70 anos era um gênio
para ensinar línguas. Hoje, não consigo ler nem inscrições de
túmulos. Grego (clássico) nunca consegui aprender, porque não
estudei em Oxford e porque tem um tempo de verbo, chamado
'ariosto', que nunca ninguém, nem nenhum dicionário, conse-
guiu me explicar o que significa: é um passado que ainda não
passou, um presente que não existe, e um futuro que 'talvez
exista': desisto. Além disso, o alfabeto simplificado tem 36
letras, de modo que só peço a Deus (ou a Zeus) que o mate e
ao diabo que o carregue. Quando esbarro com algum negócio
em grego (em Montaigne, por exemplo), recorro a um livrinho
do Salomon Reinach, Eulalie ou le Grec sans larmes, que é
uma preciosidade. Mas tenho pena de não saber o grego e o
russo, quando mais não seja por causa daquelas letrinhas que
são esteticamente muito mais bonitas que as latinas.
Poetas italianos da Renascença: Renascença é um concei-
to muito vago. Italiana, alemã, francesa, significam coisas muito
diferentes, em espírito e em época. Ficando com a italiana, que
me parece a única verdadeira, da qual as outras são imitações,
penso que o poeta, de que me disseste que te fiz ler coisas, seja
Petrarca (1304-1374), de que traduzo do Petit Larousse: 'Poeta
e humanista italiano, nascido em Arezzo, historiador, arqueólo-
go, pesquisador de manuscritos antigos, foi o primeiro dos
grandes humanistas da Renascença. Sua glória repousa sobretu-
do sobre os seus sonetos em dialeto toscano (i. é, digo eu,
florentino), das Rimas e dos Triunfos, compostos em honra de
Laura de Noves e publicados em 1470 no Canzoniere'. Petrarca
era um poeta áulico, secretário dos Papas de Avinhão, onde
viveu; mas a sua verdade está nos sonetos a Laura (que era uma
senhora gorda, mãe de 11 filhos), à qual ele dedicou não sei
quantos sonetos, uns a 'Laura viva', outros a 'Laura morta', que
te recomendo ler na edição moderna Rizoli (Milão), especial-
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 73

mente o n. 104, do qual intentei (ou perpetrei) uma tradução em


português, que deve ser o que te impingi e que tenho vergonha
de reproduzir nesta carta, que já vai longa, e que foi musicado
por Liszt nos Années de Pélérinage que apesar de ser meio
cafajeste, no caso pegou bem a coisa. Outro é Dante, não a
Divina Comédia, que tem sua oportunidade (só o Inferno, por-
que o Purgatório tem seus momentos e o Paradiso é uma cha-
tice total), mas a Vita Nuova.
Universidades estrangeiras: Não as há. Como diz o Indro
Montanelli no prefácio da sua Storia di Roma (escrita em tom
de pilhéria mas com muita verve e sobretudo muita verdade),
'jamais fui nomeado cav. uff.'. Apenas na Faculdade de Direito
de Harvard, quando passei lá 3 meses em 1957 para terminar
aquele malfadado Taxation in Brazil, deram-me o título de
cortesia de Assistant Professor, apenas para eu ter uma situação
definida e poder almoçar na cantina dos professores. Não sei se,
passados os três meses, o título ainda vale, e nunca me preocu-
pei de saber. Fora isso, fiz conferências (ou mesas redondas) lá
e nas de Buenos Aires e Montevideo, por ocasião dos Congres-
sos da IFA. Também na do Rio de Janeiro (a velha, da rua do
Cate te), que também considero 'estrangeira': como bom caipira
paulista, sempre que desembarco em Santos Dumont fico es-
pantado de não precisar passaporte.
Cargo atual na IFA: Membro do 'Comitê Científico
Permanente' (o 'permanente' não qualifica o Comitê como não
sendo temporário: qualifica os seus integrantes como sendo
vitalícios). Esse órgáo existe desde a fundação da IFA (1947?)
mas nunca teve maior expressão e se limitava a emitir resolu-
ções que o seu atual Presidente, um suíço muito inteligente e
simpático, qualificava de 'votos piedosos'. Recentemente (e,
como verifiquei em Geneve, por influência do Sainz de Bujanda),
decidiram dar mais ênfase ao tal Comitê, como meio de elevar
o padrão da IFA e evitar que ela continue sendo apenas a igre-
jinha pessoal do seu fundador e Presidente (perpétuo), um ame-
ricano muito burro mas muito esperto chamado Mitchell B.
Carroll, e do seu Secretário (também 'perpétuo'), o muito
inteligente, muito simpático e meu muito bom amigo, o holan-
74 ALFREDO AUGUSTO BECKER

dês J. van Hoorn Jr. (o J. é Jacobus, naturalmente, sendo ele


holandês). A atual composição do Comitê é a seguinte: Presi-
dente, Raoul Lenz (Suíça); Membros: Jean Bauniet (Bélgica),
Arthur Dale (Inglaterra), Alfons Reining e Wolfgang Mershmann
(Alemanha Ocidental: W. M. é o Presidente do Tribunal Fiscal
de lá), Pierre Kerlan (França), Gian Antonio Micheli (Itália),
Leif Mutén (Suécia), J. F. Pick (Israel), Sinz de Bujanda (Es-
panha), Stanley S. Surrey (Estados Unidos), Christiaanse
(Holanda), e eu e van Hoorn (ex ojjlcio). Os países estão ai
apenas para informação, porque os membros não representem
seus países: são escolhidos pelo seu alto valor pessoal (hum).
As funções do Comitê são indefinidas. Por iniciativa pró-
pria, ele pode sugerir temas de estudo e designar relatores,
dentre seus membros ou fora deles: que me conste, nunca o fez.
Em Geneve, o Bujanda propôs que seja função do Comitê es-
colher os temas dos Congressos da IFA, para evitar temas idio-
tas, repetidos com outros nomes, ou por demais 'práticos', isto
é, de interesse restrito a algum grupo que se disponha a reforçar
as finanças da IFA; mas, por esta última razão, a idéia do Bujanda
não despertou o entusiasmo geral e ficou para ser resolvida em
Bruxelas em setembro. Agora (e esta a razão da reunião de
Geneve), a IFA foi convidada, ao mesmo tempo, pela ONU e
pelo MEC para atuar como 'consultora fiscal' desses supergo-
vernos: dentro da IFA, o exercício da função caberia natural-
mente ao Comitê, mas na reunião de Geneve, ao contrário do
que seria de esperar, a aceitação desses convites não foi
inconteste. Expressou-se o temor de que a IFA inteira acabasse
engolida pela ONU ou pelo MEC, ou por ambos, e, de entidade
puramente privada que vive de suas edições e de subsídios não
governamentais (o próprio governo holandês só lhe cede o uso
daquela casinha que aparece na capa do Bulletin), virasse de-
partamento de um órgáo muito maior, mais atuante e politica-
mente mais forte (estás vendo despontar, ao longe, a torre da
igrejinha?). De modo que os convites foram polidamente agra-
decidos e pediu-se à ONU e ao MEC para mandar representantes
a Bruxelas que expliquem melhor os encargos, obrigações e
vantagens, para então se tomar uma decisão a respeito de acei-
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 75

tar ou não. Entrementes, nomeou-se o Bujanda para dar, em


Bruxelas, um parecer preliminar, de princípio e reservado. É
essa a coisa, em seu estado atual.
Convite para o STF: Relê tua própria carta de 17-10-1967
e, se o guardaste, o meu bilhete de 17-11, sobre os pombos. Na
tua carta comentas o 'relatório' que te mandei e no qual a
história está contada em miúdos. Quanto à intervenção do
Aliomar, creio que se limitou a duas coisas: antes do convite,
a expressão de um desejo sincero, manifestado num jantar em
casa dele, a que assistiu também o Gilberto, e no qual todos três
bebemos um bocado; quando do convite, um trabalho junto aos
colegas para assegurar a afirmativa, que me foi feita pelo Abreu
Sodré, de que o meu nome contava com a unanimidade da casa.
Nesse trabalho ele terá sido ajudado pelo Gallotti, que sempre
me festejou muito (o que não quer dizer grande coisa porque é
o jeito dele com todo mundo) e pelo Vitor Nunes, que, à sua
moda mineira e reservada, creio seja um simpatizante (não chego
a dizer um 'amigo') sincero.
Livros amigos: Em primeiro lugar, incondicionalmente,
Montaigne: é a melhor escola de bom senso, de humanidade e
de simplicidade que conheço. Esse é o que iria comigo para a
ilha deserta. Depois, dependendo do estado de espírito e da
oportunidade, os já falados Dante e Petrarca, e Cervantes. Dos
modernos, acho que é Gide: também pela humanidade e pela
profunda angústia humana que transparece sem ser dita. A
epígrafe do seu Journal o define bem: les extrêmes me touchent.
Já não tenho a mesma afinidade com dois outros epigonos da
angústia humana, Julien Green e Camus: porque descrêem do
homem, quando não têm raiva dele; ao passo que Gide tem
compaixão, mas não por si mesmo. Inimigos: todos aqueles em
que o autor é o principal personagem: Mauriac, p. ex., ou Graham
Greene, ou Goethe.
Música: Mozart e Bach (nessa ordem) me fazem compa-
nhia; Beethoven e Brahms me impõem a sua presença; Mahler
é o Gide musicado".
Em 1972, 1 ano antes de morrer, Rubens veio a Porto
Alegre participar de um Congresso de Direito Tributário ao
76 ALFREDO AUGUSTO BECKER

qual não compareci como foi sempre meu hábito. O único e


primeiro Congresso do qual participei foi em São Paulo, em
1962, Jornadas Latino-Americanas de Direito Tributário. Parti-
cipei em atenção ao Rubens, que fora o organizador. Fui. Vi.
Escutei. Não gostei. Jamais!
O último dia do Congresso em Porto Alegre foi utilizado
para levar os congressistas à serra gaúcha para conhecerem as
"pérolas": Gramado e Canela e se intoxicarem com os vinhos
de Caxias.
Rubens não quis se intoxicar, nem "perolar". Ele foi de
manhã para meu apartamento, onde passamos o dia e a noite a
escutar música e a conversar.
A música que mais encantou Rubens foram as doze peças
para piano que constituem a Suite lberia, a obra-prima do com-
positor espanhol Isaac Albeniz. Ele compôs essas peças em
Paris de 1906 a 1908. Morreu 1 ano depois, com 49 anos de
idade. Essas peças foram compostas originalmente para serem
tocadas pelo pianista espanhol Ricardo Vifíes, que também re-
sidia em Paris e onde ganhou o primeiro prêmio do Concurso
realizado em 1904. Morreu em 1943 em Barcelona e durante
toda a sua vida deu concertos em todo o mundo. Era conside-
rado um dos melhores pianistas da época. Algumas peças de
Debussy e Ravel foram tocadas- pela primeira vez- ao públi-
co por esse pianista, Ricardo Vifíes. Pois, o senhor Ricardo (ao
qual as peças eram dedicadas) declarou ao lsaac que a Suite
lberia era intocable por ele ou por qualquer outro pianista que
tivesse estrutura humana. Tal a complexidade da composição.
Talvez um ser extraterreno, algum arcanjo pianista.
Desde 1908, os poucos pianistas que tentaram interpretar
a Suite lberia fracassaram e terminaram a gravação ou concerto
no consultório de médico ortopedista para rearticular seus dez
dedos e interromperam, por meses, concerto de piano de qual-
quer compositor por proibição do fisioterapeuta. Recentemente
(em 1980), o pianista espanhol Ricardo Requejo gravou para a
marca Claves da Suíça e sob a direção da engenharia eletrônica
do muito Kultur her van Geest de Heidelberg. O resultado foi
um requeijão. Nunca mais se ouviu falar do pobre Ricardo, que
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 77

deve estar convalescendo até hoje em Sanatório Psicoterápico


da Suíça.
A interpretação que Rubens escutou foi a da pianista espa-
nhola Alicia de Larrocha, que, por essa gravação de 1961, re-
cebeu a Medalha Paderewski. A matriz original da gravação é
da Hispania Vox, que depois cedeu seus direitos à Erato de
Paris. Posteriormente, em 1973, a Alicia deu nova interpretação
de toda essa obra-prima. Foi gravada em Londres, pela DECCA.
É melhor interpretação do que a sua primeira e a parte de en-
genharia de som está excelente (transcorreram 12 anos de evo-
lução dessa engenharia desde sua primeira gravação). Em 1988,
a DECCA lançou, em compact disc (matriz digital), a terceira
interpretação da Suíte Iberia pela Alicia de Larrocha. É a me-
lhor de todas.
Falar da interpretação integral pela Alicia de Larrocha das
12 peças da Suíte lberia, obra-prima do Isaac Albeniz, eu não
posso. Falar da sua interpretação não dá. Para formar sua opi-
nião, o leitor procure o disco e o escute. Eu posso é falar da
pessoa Alicia de Larrocha. Ela é a arcanja que baixou à terra e
toca piano com suas asas. Todavia, é uma arcanja diferente das
pinturas da Renascença Italiana. Ela nasceu em 1923 em Bar-
celona, Espanha. E morena, gordinha, com 1,45 m de altura e
mãos de andorinha. Minha mãe, que tem hoje 87 anos, e à qual
falei da minha pianista predileta, não ficou com ciúmes. Disse-
me com orgulho:
- Sou muito mais alta do que essa tua Alicia. Eu tenho
1,48 m de estatura!
Depois de escutarmos muita música, Rubens pediu-me que
eu lhe fizesse o relatório da minha última aventura intelectual.
Estávamos em junho de 1972. Eu passara abril e maio em Paris,
lutando para obter que a Gallimard publicasse meu livro: Le Mythe
de Camus- La Chute dans la Sémantique. Naquela semana em
que Rubens e eu conversávamos, eu recebera a carta da Simone
de Beauvoir criticando meu livro e, simultaneamente, a revista
L'Express que, de modo indireto, explicava a crítica da Simone.
Tudo isso está relatado no capítulo "A queda do Albert Camus e a
minha", do meu livro Colecionador de Silêncios.
78 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Rubens foi a primeira pessoa a quem relatei o que me


levou a escrever aquele livro e a luta pela sua publicação na
Gallimard.
O relatório durou umas 3 horas. Rubens, sempre quieto,
nada disse ou perguntou, enquanto me escutava. Quando termi-
nei, Rubens, sem virar o rosto para mim, olhando para a frente
com a sua bigodeira, fez uma cara de tigre em fúria e disse para
SI mesmo:
- Eu dissipei toda a minha vida com esse Direito Tributá-
rio!
Eu nada disse. Compreendi sua conclusão. E para distraí-
lo, fiz com que escutasse toda a Suite lberia pela Alicia de
Larrocha.
Vou relatar uma coincidência muitíssimo estranha que me
aconteceu na última semana de agosto de 1986.
Em princípios de agosto eu recebera cinco livros do Jean
Giono e dez livros do Michel Déon. Ambos romancistas fran-
ceses. Li dois livros do Jean Giono que me aborreceram e desisti
de ler os restantes três livros. Então, li dois livros do Michel
Déon e achei o autor bobo, repetitivo, esnobe, desistindo de ler
os sete restantes livros.
Então, tomei o livro do John Kenneth Galbraith: Anatomia
do Poder. Não consegui ler 20 páginas de tão chato que me
pareceu o livro e o abandonei. Advirto o leitor de que esse foi
o único livro que desse autor não consegui ler. Todos os demais
livros do J. K. Galbraith eu já os tinha lido, apreciado e apren-
dido muitíssimo.
A seguir, iniciei a leitura da biografia do escritor austríaco
Stefan Zweig, que se suicidou em 1942 em Petrópolis-R], jun-
tamente com sua esposa. O livro foi escrito por um brasileiro
filho de um amigo do S. Zweig. O livro me pareceu pessima-
mente escrito, superficial, confuso, irritante. Desisti de sua lei-
tura. Esse livro estava na estante dos livros para serem lidos há
3 anos.
Finalmente, tomei daquela mesma estante um livro que ali
esperava 2 anos para ser lido. Ernst Jung: Orages d'Acier. É
livro autobiográfico e relata a sua experiência pessoal durante
toda a Grande Guerra de 1914-1919, da qual ele participou,
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 79

com 20 anos, na infantaria, como tenente do exército alemão.


Foi gravemente ferido três vezes e acabou recebendo a mais
alta condecoração militar alemã. Li todo o livro (600 páginas).
E um livro horripilante, cheio de atrocidades, de estupidez militar.
Eu me sentia dentro de um matadouro de homens. E livro es-
crito com frieza objetiva, como um relato histórico, porém
pessoal e minucioso. No curso do livro, tomei a decisão de, ao
terminá-lo, passar a ler os nove volumes da edição francesa do
livro do Roger Martin du Gard: Les Thibault.
Por que essa decisão? Porque há 24 anos eu possuía esse
livro na minha biblioteca e nunca me despertou interesse em lê-
lo. Parecia-me sempre que seria um livro extenso, romântico,
em síntese: chato. A vinculação com o livro que eu estava lendo
foi a seguinte: o livro em curso de leitura me reportava para a
Europa durante os anos 1914-1919. O livro Les Thibault termi-
nava nessa mesma época. Por isso, eu não me sentiria tão ana-
crônico. Eu estaria observando a mesma guerra, agora, do lado
francês.
Por uma sucessão de fatos das mais diversas naturezas e
absolutamente acidentais e desconexos, terminei a leitura da
Orages d'Acier uns 2 dias depois daquele que eu previra como
o dia do término.
Tomei, então, o primeiro volume dos Les Thibault e li a
dedicatória do Rubens Gomes de Sousa para mim. A data dessa
dedicatória: 23-8-1962. O dia que eu estava vivendo: 23-8-1986.
Há 24 anos eu recebera esses nove volumes, todos encaderna-
dos em couro verde, como presente do Rubens. Há 24 anos eu
não me interessei em lê-lo. No curso desses 24 anos, apenas
algumas vezes eu lera a dedicatória.
Esse livro integrava a biblioteca do Rubens e fora encader-
nado por determinação sua, tendo as suas iniciais - R.G.S. - na
lombada de couro verde.
Rubens teve o seu primeiro infarto cardíaco no dia em que
o Brasil ganhou a copa do mundo no Chile: 1962. Quando
soube disso, escrevi-lhe uma carta muito afetuosa, que o como-
veu. Nessa carta, dizia-lhe que, enquanto ele estivesse convales-
cendo, eu estaria lhe fazendo companhia. Eu seria um "fantas-
ma" borracho (beberia todas as garrafas de bordeaux francês de
80 ALFREDO AUGUSTO BECKER

sua adega) e intelectual: leria- para nós dois- os nove volumes


do Les Thibault. Por isso, o livro me foi presenteado com a
dedicatória seguinte:

Meu caro Alfredo:

Como em sua carta de visita ao moribundo Você suge-


re fazermos juntos a 'primeira' leitura dos Thibault,
faço de conta que Você não os tem e Ih' os mando, com
este ofertório assinado in extensio para explicar as
iniciais na lombada.
Abraço do
Rubens Gomes de Sousa
São Paulo 23/811962.

A dedicatória não tem nada de especial. Talvez: "visita ao


moribundo". A minha carta é que falava na minha presença a
seu lado sob a forma invisível de "fantasma". Recordo-me que
o esvaziamento de suas garrafas de bordeaux seria a prova da
minha presença em sua casa.
Um ano tem 365 dias. Durante 24 anos, tive - em cada
ano - 364 oportunidades de começar a ler o livro doado, em dia
diverso do da dedicatória. Durante todo esse tempo, sempre fui
um leitor voraz. Tive 8.760 dias à minha disposição para iniciar
a leitura e apenas 24 dias - cada dia separado por 364 dias -
para ocorrer a coincidência. Transcorreram 8.760 dias, foram
perdidas 23 oportunidades de coincidência, para que ela ocor-
resse.
Nos 15 dias que antecederam a coincidência, eu li quatro
livros, estudei a oportunidade da leitura de dez livros e os re-
jeitei. Iniciei a leitura de três livros e após umas 50 páginas,
interrompi a leitura. Finalmente, escolhi um livro cuja leitura,
durante os últimos 2 anos, eu vinha adiando. E foi justamente
esse livro (pleno de mortos!) que me levou à leitura do livro
que me fora dedicado por um amigo morto há 13 anos. Rubens
faleceu em 1973, com 60 anos de idade. Fui a São Paulo espe-
cialmente para estar presente em seu enterro.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 81

Nos últimos 13 anos tenho pensado, com freqüência, no


Rubens. Tenho sabido melhor compreendê-lo. E muitas vezes
sinto falta da sua presença para conversarmos e trocarmos con-
fidências.
Três dias depois da coincidência, telefonei para a sua filha
Regina, que reside em São Paulo.
Conheci Regina quando ela era ainda menina de uns 13 ou
14 anos. Isso há 29 anos. Nos últimos 13 anos eu só me comu-
niquei com Regina duas vezes. A primeira, em 1973, no enterro
do seu pai. A segunda, em 1983, quando ela me telefonou para
dizer que sua mãe pusera à venda um quadro adquirido pelo
Rubens daquele mesmo pintor Harry Elsas, autor do meu qua-
dro de Don Quixote, da mulata que eu digo que é a Vera e de
mais quatro quadros. Tantos que a Vera me fez jurar que não
compraria mais quadros desse pintor.
O quadro posto à venda pela viúva do Rubens retrata uma
moça de uns 18 anos, pálida, tranqüila, sorriso apenas sugerido,
e tendo ao fundo uma árvore no outono, com tons de carvão em
brasa.
Não comprei o quadro e indiquei um advogado em São
Paulo que gostava muito dos meus Harry Elsas e ao qual eu
telefonei, recomendando a aquisição. Não comprou. Não sei se
foi vendido.
Para Regina eu apresentei, como fundamento de minha
recusa, o juramento à Vera. Porém, na verdade, não adquiri esse
quadro (que continuo a achar muito belo) porque tinha certeza
de que sua presença em minha casa me deixaria triste, oprimi-
do, deprimido. Recordo-me que, há uns 9 anos, eu fui com Vera
visitar a viúva do Rubens. Conversamos tranqüilamente e de-
pois ela nos convidou para irmos à sua biblioteca, porque gos-
taria de me dar um livro de Rubens. No caminho para a biblio-
teca, passamos por um estreito e sombrio corredor onde, de
súbito, como uma aparição fantástica, eu me encontro com a
moça do quadro. Imediatamente, fui dominado por intensa
emoção e tristeza pela morte de Rubens.
O Rubens e seus familiares sabiam que eu denominara o
quadro de Celestina quando moça. No gabinete do meu escri-
82 ALFREDO AUGUSTO BECKER

tório de advocacia, desde 1962, me olha a Celestina do Picasso.


Hoje, em minha residência, ela me observa enquanto ouço
música.
Claro que o meu quadro, embora seja uma pintura a óleo,
é cópia do original. Duvido que o proprietário do autêntico
tenha recebido a compreensão, o afeto e a coragem que a
Celestina me transmite a cada dia, há mais de 24 anos.
Após aquele telefonema de 1983, escrevi carta para a Regina
dizendo-lhe que, à medida que os anos iam passando, mais falta
eu sentia do Rubens.
Agora, em fins de agosto, quando eu lhe telefonei, disse-
lhe que precisava muito conversar com Rubens e, como isso era
difícil, optara por conversar com a filha do Rubens. Relatei a
coincidência e pedi-lhe que me escrevesse sobre ele. Ela pro-
meteu que me escreveria e me pediu que eu lhe respondesse
logo. Poucos dias depois, recebi sua carta e imediatamente lhe
respondi.
Rubens morreu do terceiro infarto, numa sexta-feira, com
chuva e frio, pelas 20 horas do dia 13-9-1973, vestido para ir
a um concerto musical, sentado no sofá de seu gabinete resi-
dencial, enquanto aguardava que sua esposa Elza acabasse de
se vestir.
Fui a seu velório e enterro. A sua ausência me causa dor
e frustração que vão aumentando com os anos. Todos os dias
sinto vontade de vê-lo e com ele conversar. De escrever-lhe
carta e receber sua resposta. Às vezes, por fração de segundos,
compreendo que quem morreu não foi Rubens. Fui eu.
TERCEIRA
PARTE

CONVERSAÇÕES COM JURISTAS


DAS MINHAS RELAÇÕES
CAPÍTULO XI
DAS COISAS GRAVES
E DA SUA LINGUAGEM

uando se escreve, quando se fala ou simplesmente quando


Q se vive, não é necessário fazê-lo sempre do cume da glória
cívica ou nas contorções do melodrama. 1
"Não é nas coisas extraordinárias e bizarras que se encon-
tra o melhor, seja qual for a sua natureza. (... ) Os melhores
livros são aqueles que os leitores acreditam que, eles mesmos,
poderiam havê-los escrito. (... ) Não é necessário elevar o espí-
rito. As maneiras tensas e contorcidas de escrever saturam o
espírito de tola presunção, pela extravagante elevação de espí-
rito e pela grandiloqüência vã e ridícula. O alimento sólido e
vigoroso é desprezado. Uma das razões principais que tanto
tem afastado aqueles que querem. apreender os conhecimentos
que os levarão ao caminho certo é a suposição de que as coisas
verdadeiras são inacessíveis porque os escritores delas falam
utilizando palavras grandiosas, elevadas e sublimes. Isto estraga
tudo! Eu gostaria de nomeá-las com palavras humildes, comuns
e familiares: estas são as palavras que melhor lhes convém. Eu
odeio aquelas palavras de grandiloqüência!'?
"Quando se encontra o estilo natural. fica-se surpreso e
encantado porque, onde se esperava ver um escritor, encontra-
se um homem". 3
Escreve-se como se vive. Com hipocrisia ou autenticidade.
Mais de 300 anos são passados e o leitor dos Pensées ainda
ouve a voz rouca de Pascal e entrevê, no hiato de duas folhas,

I. Jean Gren~er, Les Greves, Paris, Gallimard, 1957, p. 10.


2. Pascal, L' Art de Persuader, in Opuscules et Lettres de Pascal, coligidos por
Louis Lafuma, Paris, Aubier, 1955, p. 151.
3. Pascal, Pensées, n. 36, texto organizado por Jacques Chevalier, 1949.
86 ALFREDO AUGUSTO BECKER

a sua face, ora irônica, ora apaixonada, sempre fraternal. Quan-


tas vezes durante a leitura sua mão descansa em nosso ombro
e depois, fazendo sombra na página, ela avança e se detém com
o dedo indicador na palavra que decifra o texto.
O mesmo aconteceu ao próprio Pascal, quando ele estuda-
va os filósofos gregos: "A gente imagina Platão e Aristóteles,
envergando longas e amplc.s vestimentas de pedantes. Entretan-
to - prossegue Pascal - ambos eram boa gente e, como os
outros, riam com seus amigos. Eles se divertiam ao escreverem
suas Leis e suas Políticas e, enquanto escreviam, se recreavam.
Estes seus escritos (sobre as Leis e sobre as Políticas) eram a
parte menos filosófica e menos séria de suas vidas: a mais
filosófica era a de viver simplesmente e tranqüilamente. Se eles
escreveram sobre política, foi com a finalidade de disciplinar
um manicômio. E se eles o fizeram parecendo falar como se
fosse de uma coisa grave, é que eles sabiam que os loucos, aos
quais eles se dirigiam, pensavam ser reis e imperadores. Eles se
intrometeram na tarefa de seus governadores a fim de lhes
moderar a loucura da melhor maneira possível". 4
A fim de que o livro seja humano não é suficiente que ele
faça pensar sobre o seu objeto; ainda é necessário que ele con-
duza discretamente o pensamento também sobre o seu autor. O
livro deve, por transparência, permitir adivinhar a face do escri-
tor. E isso é verdadeiro mesmo nas obras de ciência. Os únicos
autores antigos que hoje ainda são lidos não são aqueles que
disseram as coisas mais verdadeiras, mas aqueles cuja lingua-
gem guarda os traços de sua face e de sua personalidade. 5
Ao iniciar seu livro Dieu et la Permission du Mal, Jacques
Maritain, referindo-se à linguagem dessa obra, adverte que o
leitor não deverá estranhar uma familiaridade de linguagem muito
rara nos livros onde são tratadas matérias tão graves e onde o
respeito por tais assuntos costuma exigir que o autor, ao escre-
ver, enterre na cabeça o bonnet doctoral. Ele declara concordar
com Kierkegaard no tocante á linguagem que o escritor deve

4. Pascal, Pensées n. 294, texto organizado por Jacques Chevalier, 1949.


5. Jean Guitton, Le Travaillntellectuel, Paris, Aubier, 1951, p. 149-50.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 87

escolher para analisar os assuntos da mais alta seriedade. Um


certo humor na linguagem - conclui lacques Maritam - é pre-
cisamente o sinal do maior respeito pela seriedade da matéria
sobre a qual se escreve. 6
No prefácio do seu Traité du Désespoir, Kierkegaard ob-
serva que muitos leitores julgarão que este singular estilo e
disposição não seria construtivo e nem revelaria rigor científico,
porque para tais leitores a ciência edificante residiria na serie-
dade. Entretanto, a catedrática gravidade do escritor não signi-
fica seriedade - diz Kierkegaard - mas farsa e vaidade. O leitor
poderia esperar o estilo mais solene, mas a solenidade - a esta
altura dos acontecimentos - não tem mais sentido e cai facil-
mente na insignificância. 7
Do livro deve erguer-se a mão ectoplásmica do escritor para
acariciar a face do leitor ou para agarrá-lo pelo gasnete e sacudir-
lhe a cabeça e as idéias adormecidas em berço esplêndido. 8
Uma idéia "pura", quase sempre, é uma idéia vazia. O escri-
tor aparenta serenidade ao expressar aquelas idéias neutrais- não
porque já as dominou - mas porque ainda nem as abordou. É
uma calma fácil a do pensador que ainda não apreendeu a idéia,
calma fácil e inútil. Os filósofos nunca se apresentaram com aquela
face e comportamento por nós imaginados na escolaY
É bom ter, sempre ao alcance da mão, o livro incisivo e
insolente que nos revela nossas fraquezas e nos obriga a procu-
rar provas para aquelas nossas costumeiras afirmações de cer-
teza científica. 10
Sobre o riso, o filósofo Henri Bergson escreveu um livro:
Le Rire - Essai sur la Signification du Comique, que já esgotou
202 edições desde 1924. O homem em solidão ignora o riso-

6. Jacques Maritain, Dieu et la Permission du Mal, Paris, 1963, p. 7.


7. Kierkegaard, Traité du Désespoir, Paris, 1949, p. 479 (tradução francesa da
obra cuja edição original é de 1849).
8. Ortega y Gasset, La Rebelión de las Masas, in Obras Completas, Madrid,
1957,t.4,p.ll5.
9. Jean Grenier, Essais sur l'Esprit D'Orthodoxie, 2. ed., Paris, Gallimard,
1961, p. 106._
10. Jean Guitton, Le Travail lntellectuel, cit., 1961, p. 102-3.
88 ALFREDO AUGUSTO BECKER

diz Bergson - nosso riso é sempre um riso de um grupo de


homens. Por mais franco que se suponha o riso, ele esconde
sempre um pensamento subentendido pelo grupo, uma cumpli-
cidade com os demais homens. 11 Não há comicidade fora da-
quilo que é propriamente humano. 12
O meio natural do riso é a sociedade. E nela o riso exerce
uma função útil, uma função social. O riso tem uma significa-
ção social e responde a certas exigências da vida em comum
dos homens. 13 A sociedade exige um esforço constante de har-
monização dos indivíduos que a integram. A rigidez do espírito
ou do corpo é prejudicial à sociedade. Por isso a sociedade
reage no sentido de eliminar tal rigidez e obter de seus mem-
bros a maior elasticidade e a maior sociabilidade possível. Aquela
rigidez é a comicidade e aquela reação é o riso como castigo.
O riso é uma espécie de gesto social que castiga para corrigir
o indivíduo que ameaça a harmonia da sociedade. 14
É falso pensar que o tratamento risonho de uma coisa
grave seja indício de análise superficial da mesma. Toda vez
que um juízo crítico é emitido de uma forma humorística, pode-
se ter certeza que o autor daquele juízo examinou o objeto de
sua crítica com frieza, porque o riso - demonstra Henri Bergson
-não tem maior inimigo que a emoção. Isto significa que aque-
le que ri está contemplando e ajuizando com serenidade e sem
paixão. O riso é sinal certo de objetividade e exige, para pro-
duzir todo o seu efeito, anestesia momentânea do coração. O
humor se dirige diretamente à inteligência pura. 15
O homem que perde - ao ser atingido pelo humor - a
segurança e a certeza de sua atitude e de sua conduta, perde-as
porque ele baseava a segurança e a certeza nas evidências fal-
sas, nos fundamentos óbvios, na sacrossanta e preguiçosa tradi-
ção. O humor acorda a consciência.

11. Henri Bergson, Le Rire - Essai sur la Signification du Comique, Paris,


Presses Universitaires de France, 203. ed., 1964, p. 4-5.
12. Henri Bergson, op. cit., p. 2.
13. Henri Bergson, op. cit., p. 6.
14. Henri Bergson, op. cit., p. 15-6.
15. Henri Bergson, op. cit., p. 3-4.
CAPÍTULO XII
SÚMULA DO SUPREMO
TRIBUNAL: MIGRAÇÃO DA
CIVILIZAÇÃO DO TEXTO PARA
A CIVILIZAÇÃO DO NÚMERO

' ' N a época de Gaius, de Dorat, de Pothier, o jurista ainda


tinha tempo. Mas, hoje, o jurista do direito pvsitivo está
embarcado na aceleração da história pelo 'dado' movente sobre
o qual ele trabalha. O progresso das técnicas dissolve e renova
a sua obra num ritmo tal que as obras de direito envelhecem em
poucos anos. Isto porque elas são escritas sobre a areia das
instituições cuja mutabilidade é de uma rapidez cada vez mais
vertiginosa. E Gaius, ele mesmo, mais envelheceu no espírito
da maior parte dos juristas, no curso dos últimos 50 anos, do
que havia envelhecido durante os 18 ou 19 séculos anteriores". 1
A experiência da vida insinua um preconceito contra ac1 ui-
lo que é teórico. Salvo se o homem sabe olhar com seus olr.os
e não com seus hábitos (preconceitos e crenças). Ele não enxer-
ga senão aquilo que está acostumado a ver. Ele não escuta e n[:l
compreende senão o eco de seus pensamentos inveterados. TudJ
lhe é espelho para reencontrar, não a sua verdadeira face, ma5
aquela máscara que ele gostaria de mostrar. 2
Em 1919, Paul Valéry lavrou o atestado de óbito da civi-
lização que naquela época morrera. 3 O mundo de hoje é um

1. R. Savatier. Les Métamorphoses Économiques et Sociales du Droit Privé


d'Aujourd'hui; L'Universalisme Renouvelé des Disciplines Juridiques, 2.
série, Paris, 1959, p. 71.
2. René Huyghe, Dialogue avec le Visible, Paris, 1955, p. 5.
3. Paul Valéry, carta publicada, em abril de 1919, pelo Athenoeum de Londres
e in Voriété, Paris. Gallimard. 1953, v. 1, p. 11-2. Ver sua transcrição na
minha Teoria Geral do Direito Tributário, p. 204, nota 10.
90 ALFREDO AUGUSTO BECKER

esboço e não uma obra concluída. Toda essa ebulição de forças


antagônicas restituiu ao mundo sua juventude e o surto violento
dos instintos elementares. O que estremece o mundo são frêmitos
de gênese. Vivemos a idade mais interessante da história da
humanidade, embora não a mais tranqüila, pois nos alimenta-
mos das energias genéticas duma nova civilização. 4
O Professor de Psicologia das Artes Plásticas, no Colégio
de França, René Huyghe, no seu Dialogue avec !e Visible de-
monstra que um dos sinais mais característicos do tempo atual
é a substituição do texto pela imagem. Estamos irresistivelmen-
te emigrando da civilização do livro pa~·a a da imagem. A apreen-
são das idéias e das coisas que (excetuada a captação física) são
apreendidas pela idéia da coisa, hoje, é feita, cada vez mais, por
meio de sensações figurativas e não-textuais. 5
A sensação difere do pensamento porque não dialoga com
o seu objeto. A sensação identifica-se com o seu objeto; regis-
tra-o e sofre seus efeitos. Não é apenas o meio, mas o modo de
aquisição que se transforma. A vida da inteligência acha-se
ameaçada. A imagem substituiu o texto. A vida sensorial ocupa
o lugar que a vida intelectual preenchia. E, assim como o texto
escrito veio substituir o método milenar da transmissão oral,
fenômeno análogo ocorre atualmente na substituição gradual da
linguagem escrita pela imagem. 6
Já não se atinge o pensamento por uma expressão lingüís-
tica, mas por uma impressão ótica. O texto escrito que, às vezes,
acompanha a imagem ótica é simples acessório complementar.
E a técnica do choque psíquico em substituição à reflexão. 7
Outro fenômeno contemporâneo é o da contração dos tex-
tos escritos e a substituição do Verbo por um Sinal. Um exem-
plo: a Súmula do Supremo Tribunal Federal substituiu as fun-
damentações doutrinárias. Substituiu até mesmo a citação dos

4. Alfredo Augusto Becker, Teoria Geral do Direito Tributário, São Paulo,


1963, p. 531.
5. René Huyghe, Dialogue avec le Visible, Paris. 1955, p. 21-2.
6. René Huyghe, op. cit., p. 21-2; 42-7.
7. René Huyghe, op. cit., p. 18-9.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 91

textos legais aplicáveis ao caso. Por sua vez, o próprio texto da


Súmula é substituído por um Signo: a cifra aritmética.
"Há um século aproximadamente - diz Albert Camus -
que nós vivemos dentro de uma sociedade que não é nem mesmo
a sociedade do dinheiro (o dinheiro ou o ouro podem suscitar
paixões carnais), mas a sociedade dos símbolos abstratos do
dinheiro. A sociedade dos homens de negócio pode definir-se
como a sociedade onde as coisas desaparecem em proveito dos
signos. Quando uma classe dirigente mede suas fortunas não
mais pela medida agrária, nem pelo lingote do ouro, mas pelo
número de cifras correspondentes idealmente a um certo núme-
ro de operações de câmbio, ela quer, por este mesmo gesto,
colocar uma certa espécie de mistificação no centro de sua
experiência e de seu universo. Uma sociedade fundada sobre
signos e, na sua essência, uma sociedade artificial onde a ver-
dade carnal do homem se encontra mistificada. A gente não se
surpreenderá, então, que aquela sociedade escolheu, para for-
mar sua religião, uma moral de princípios formais e que ela
escreveu as palavras 'Liberdade - Igualdade', tanto sobre as
prisões, quanto sobre os templos financeiros. Entretanto, não se
prostitui impunemente as palavras". 8
Não há mais seres vivos - acusa Jean Grenier - apenas
existem cifras. Um homem é chamado por uma sucessão de
cifras como se chama o subscritor de telefone. É bem mais
cômodo: um nome próprio nada tem de exato, ele não resiste ao
exame. Por que se chamaria alguém Júlio ou Henrique? Outrora
deixava-se tudo ir ao acaso; agora é o reino da ordem. O em-
prego das cifras é uma conquista decisiva da ciência. Quantas
reformas a fazer ainda! E necessário fazer desaparecer o indi-
víduo: não falemos mais de indivíduos, mas de unidades. Nin-
guém é insubstituível e a quantidade de cifras é inesgotáveJ.9
"Se nós deixarmos finalizar este movimento de separação
entre o público e as elites - pergunta Jean Guitton - que alcan-

8. Albert Camus, Discours de Suede, 38. ed., Paris, Gallimard, 1958, p. 33-4.
9. Jean Grenier, A Propos de 1 'Humain, 4. ed., Paris, Gallimard, 1955, p.
148-9.
92 ALFREDO AUGUSTO BECKER

çaremos nós enfim? Acontecerá que a humanidade se especia-


lizara em grupos muito reduzidos de puristas, em cenáculos de
inventores revoltados, em pequenas comunidades de tecnocratas.
Estes pequenos universos fechados, falando entre eles uma lin-
guagem algébrica, acreditarão representarem, sozinhos, a ver-
àadeira cultura. E, do outro lado, a massa será entregue à téc-
nica da imagem, do rádio, da literatura de grande tiragem. Nada
será feito para preencher o intervalo que estava outrora ocupado
por uma linguagem compreensível por cada um" .10
A civilização do número suprimiu o amadurecimento da
idéia no espaço de um raciocínio e estateleceu a ligação direta:
sensação-ação.
A civilização do número vai sobrepujando a civilização do
texto e o indivíduo entrou em declínio. O capital autêntico da
sensibilidade pessoal e singular escasseia. A atmosfera de slogans
e a retórica dos números industrializaram o homem e produzi-
ram um ser mental pré-fabricado. Isto explica- por reação- o
nosso interesse pelo poeta e pelo artista, pela criança e pelo
louco, os quais continuam impregnados de sua autenticidade
individual e ainda não se estandardizaram pela massificação
das idéias.''
Há um século e meio (1819) que Lamennais se apercebeu
dessa metamorfose e denunciou: "Já não se lê; já não há mais
tempo para isso. O espírito é solicitado, simultaneamente, de
todos os lados; onde ele passa é necessário falar-lhe depressa.
Mas há coisas que não podem ser ditas, nem compreendidas
tão depressa e estas coisas são precisamente as mais importan-
tes para o homem. Esta aceleração de movimento que nada
permite relacionar, que não deixa meditar, bastaria, só por si,
para enfraquecer e, a longo prazo, destruir inteiramente a razão
humana". 12

10. Jean Guitton, Le Clair et I'Obscur, Paris, Aubier, 1964, p. 13.


11. René Huyghe, Dialogue avec le Visible, cit., p. 53-7.
12. Lamennais, Mélanges Religieux et Philosophiques, 1819, apud René
Huyghe, op. cit., p. 53.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 93

Nos tempos modernos, o escritor mais célebre é aquele


que é admirado ou detestado sem ter sido lido. 13 Escreve-se
para ser lido. Entretanto, se a imprensa faz uma crítica pitoresca
sobre o livro, ninguém o lerá e aceitarão para sempre o juízo
crítico daquele jornalista que escreveu a notícia. Para se ter
prestígio, não é indispensável escrever livros. É suficiente fazer
acreditar que se escreveu um, do qual a imprensa da noite terá
falado e sobre o qual o pseudo-escritor dormirá para sempre. 14
Não é necessário que um livro seja compreendido, e nem
sequer lido, para que tenha influência. Por vezes, um belo título
é suficiente, desde que ele tenha um pouco de mistério sedutor,
um pouco deste afrodisíaco que é o obscuro. Os livros são altas
montanhas, que a gente observa de longe, conhece só o título
e a quantidade de paginas. 15
Ora, tudo isso é de uma importância vital para o jurista
porque a atitude mental jurídica é precisamente um reflexo
condicionado à incidência da regra jurídica. O agir juridicamen-
te (do sujeito passivo e do sujeito ativo da relação jurídica)
consiste num modo de executar a conduta predeterminada. 16
Esta disposição para sujeitar-se a um estímulo é reflexiva
não como jurídica, mas como disposição congênita. Esta dispo-
sição é um mecanismo nervoso inato e que esta sempre pronto
a se destravar e funcionar sob a ação de um estimulante espe-
cífico.
O estimulante condicionador é a regra jurídica transmitida
-por enquanto -pela linguagem (texto escrito).
O reflexo condicionado é a atitude mental condicionada à
incidência daquela determinada regra jurídica, isto é, a atitude
mental do sujeito ativo e do sujeito passivo em se sujeitarem

13. Albert Camus, Discours de Suede, cit., p. 37.


14. Albert Camus, L'Été, Paris, Gallimard, 1954, p. 125.
15. Jean Guitton, Le Clair et l'Obscur, cit., p. 23-5.
16. Alfredo Augusto Becker, Teoria Geral do Direito Tributário, São Paulo,
1963, p. 43. Para a análise mais completa do fenômeno ver p. 33-46, 18-
20, 47-99, 263-308.
94 ALFREDO AUGUSTO BECKER

aos efeitos jurídicos resultantes da incidência daquela regra


jurídica sobre sua hipótese de incidência que se realizou. 17
Para que sejam conhecidos e obedecidos os efeitos jurídi-
cos numerosíssimos e particularíssimos da legislação que im-
põe a disciplina jurídica à conduta dos indivíduos que integram
um Estado, é indispensável que a regra jurídica continue a ter
formulação em texto escrito, isto é, a sua estrutura deverá ser
enunciada por linguagem que formule uma específica estrutura
lógica 18 e não por linguagem que enuncie simples afirmações
dogmáticas e, muito menos, por imagens ou signos ou núme-
ros.
Caso contrário, não mais haverá cognição do efeito jurídi-
co que disciplinará a conduta humana, o qual era alcançado
pela reflexão do raciocínio. O que, então, estará ocorrendo é
simples choque psíquico: sensação-ação.
Ora, quando para a apreensão (ou transmissão) das idéias
se elimina a fase intermediária da reflexão pelo raciocínio e se
utiliza o mecanismo psíquico da ligação direta: sensação-ação,
o indivíduo humano perde a possibilidade de ajuizar sobre a
qualidade sadia ou nociva da conduta que lhe está sendo impos-
ta (ou que ele pretende impor a outros). Perde a oportunidade
de aperfeiçoar o instrumental jurídico e substituir o que se tor-
nou obsoleto (ou prejudicial) por novas regras jurídicas. Perde
a humanidade. Coisifica-se.
O efeito jurídico é uma idéia que amadurece no espaço de
um raciocínio. A civilização do número, predominando sobre a
civilização do texto, já determinou distorções e atrofias na ati-
tude mental do homem, a tal ponto que este texto que acabou
de ser escrito, se for lido por juristas, será julgado fantasia.

17. Alfredo Augusto Becker, op. cit., p. 44-6.


18. Alfredo Algusto Becker, op. cit., p. 265 e s.
CAPÍTULO XIII
O JUIZ E A POLÍTICA

E m cada Estado há uma filosofia do mundo que predomina


- durante algum tempo - sobre as demais filosofias. Essa
filosofia predominante sobre as outras, quando se refere à fina-
lidade da vida social, determina o conteúdo do Bem Comum
específico ao respectivo Estado. O conteúdo desse Bem Co-
mum é um complexo de direitos e deveres originalmente natu-
rais e posteriormente jurídicos. 1
Originalmente, aqueles deveres e direitos são naturais (de
direito natural); portanto, ainda não são jurídicos, não têm qual-
quer eficácia jurídica e existem apenas no plano pré-jurídico.
Aqueles direitos e deveres naturais só entrarão para dentro do
mundo jurídico quando e mediante a sua transfiguração pelo
direito positivo: a regra jurídica contida na fórmula literal de
uma lei. 2
Porém, o Estado não está subordinado ao direito natural e
pode criar regra jurídica (direito positivo) que deforme e até
contrarie o direito natural; este é apenas um "dado" (matéria-
(prima) com o auxílio do qual, ou contra o qual, o legislador
constrói a regra jurídica; e a contrariedade ao direito natural
não enfraquece a juridicidade da regra jurídica. 3
Aquele complexo de direitos e deveres de direito natural,
considerado em seu conjunto, forma precisamente o conteúdo

1. Alfredo Augusto Becker, Teoria Geral do Direito Trihutário, cit., n. 49, p.


149 e n. 53, p. 160 e s. No mesmo sentido: Jean Dabin, Théorie Générale
du Droit, cit., n. 167, e Georges Burdeau, Traité de Science Politique, cit.,
n. 270, p. 321-3.
2. Alfredo Augusto Becker, op. loc. cit. No mesmo sentido: Jean Dabin e
Georges Burdeau, op. loc. cit.
3. Alfredo Augusto Becker, op. loc. cit. No mesmo sentido: Jean Dabin e
Georges Burdeau, op. loc. cit.
96 ALFREDO AUGUSTO BECKER

da fenomenologia social que Georges Burdeau batizou com o


nome de "idéia do direito". Esclarece Georges Burdeau o que
é a "idéia do direito": "Em todo agrupamento humano que
alcançou um grau de maturidade suficiente para compreender
que uma certa disciplina é indispensável à vida em comum, esta
ordem se concretiza numa representação de regras de conduta
cuja observação é necessária. Esta representação pode ser resul-
tante da concepção do grupo inteiro ou apenas duma classe ou
mesmo de apenas algumas personalidades dirigentes. Como quer
que seja, a partir do momento em que aquela idéia adquire uma
precisão e uma autoridade suficiente, ela torna-se uma espécie
de imagem daquilo do que deve ser a sociedade. Nas socieda-
des primitivas, esta imagem se confunde com a realidade por-
que não se concebe ainda a possibilidade de uma mutação
desejada e conscientemente preparada. Entretanto, nas socieda-
des mais evoluídas, esta imagem será a de uma ordem social
desejável. Mas é sempre daquela imagem que decorrerão todas
as regras de direito, compreendidas como tais as regras de con-
duta das quais depende a realização do tipo de sociedade alme-
jado".4
A "idéia do direito" é aquela imagem ou aquela represen-
tação do que devem ser as relações sociais e as soluções para
os conflitos gerados entre tais relações sociais. A "idéia do
direito" é o direito natural e a regra de conduta decorrente
daquela idéia do direito e que passa a existir somente depois de
promulgada uma lei, é a regra jurídica. 5
Com o tempo, aquela filosofia do mundo (cujo reflexo é a
"idéia do direito") modifica-se ou é substituída por outra que -
neste ínterim - fortaleceu-se e tornou-se a predominante. Em
conseqüência, o direito positivo vai sofrendo alterações a fim
de adequá-lo ao novo conteúdo do Bem Comum (idéia do di-
reito) sob pena de o Estado manejar instrumental jurídico im-

4. Georges Burdeau, Méthode de la Science Politique, Paris, 1959, n. 138


(grifou-se): ver também, do mesmo autor, Traité de Science Politique, cit.,
n. 37 e 61.
5. Alfredo Augusto Becker, op. loc. cit. No mesmo sentido: Jean Dabin e
Georges Burdeau, op. loc. cit.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 97

praticável ou inadequado para proteção do seu Bem Comum. A


"idéia do direito", pois, é essencialmente mutável e contingente
e esta sua mutabilidade e contingência são a causa da diversi-
dade - no tempo e no espaço - dos sistemas jurídicos. 6
A "idéia do direito", por si mesma, ainda não é regra
jurídica, mas o ponto de partida, a inspiração ou a idéia germinai
da regra jurídica (direito positivo), contida na formulação literal
legislativa.7
A "idéia do direito" é um direito imperfeito porque falsea-
do por maior ou menor dose de erros humanos. A "idéia do
direito" origina-se de uma interpretação filosófica do Bem
Comum; por sua vez, o conteúdo deste (Bem Comum) depende
dafilosojia do mundo que- num determinado tempo e lugar-
estiver predominando; por isso o conteúdo do Bem Comum
pode resultar autêntico ou falso na medida da falsidade daquela
filosofia predominante.
Em conseqüência, os erros da filosofia predominante
logicarr.ente falsearão o direito e, na medida desta falsidade a
"idéia do direito" irá se distinguindo, ou melhor, contrariando
o direito que cada homem considera ser o perfeito.
A filosofia do mundo que predomina em determinado
Estado, com o curso do tempo, deixa de ser a predominante e
cede lugar a uma outra filosofia a qual passa a ser a predomi-
nante. Essa nova filosofia que se tornou a predominante passa
a formular suas próprias regras jurídicas. Mediante revogações
de leis, alterações de leis e criação de novas leis, ela substitui
o sistema jurídico até então vigente por um novo sistema jurí-
dico que melhor reflita a "idéia do direito" dessa nova filosofia
predominante.~
Diante do exposto, pode-se compreender a radi..::al diferen-
ça entre a atitude do legislador (atitude mental política) e a
atitude do juiz (atitude mental jurídica) diante da regra de con-
duta (regra jurídica) expressa na fórmula literal legislativa (a
lei).

6. Alfredo Augusto Becker, op. loc. cit.


7. Alfredo Augusto Becker, op. loc. cit.
8. Alfredo Augusto Becker, op. loc. cit.
98 ALFREDO AUGUSTO BECKER

O legislador observa a conduta dos homens perante a regra


jurídica a fim de verificar se tal regra jurídica está disciplinando
as relações sociais de maneira harmônica com a "idéia do di-
reito" do legislador.
Por outro lado, o juiz diante daquela mesma regra jurídica
não indaga se ela está ou não h2.1mônica com a "idéia do direi-
to" predominante na época, mas indaga se ela está ou não sen-
do obedecida e para esta indagação ele deve, preliminarmente,
interpretar a lei, isto é, examinar a linguagem do legislador para
dela extrair a verdadeira regra de conduta imposta coercitiva-
mente pelo. legislador. Nessa investigação o juiz não pode estar
indagando se tal regra de conduta, na opinião dele, juiz, foi
feliz ou infeliz no sentido da melhor harmonia com a "idéia do
direito" vigente na época. E o juiz não pode estender sua inter-
pretação a este plano porque a "idéia do direito" do juiz (recor-
de-se a mutabilidade e a contingência da "idéia do direito")
frequentemente é diversa - em maior ou menor extensão - da
"idéia do direito" que inspirou o legislador. Para o juiz a lei é
um fato essencialmente imutável (salvo pelo advento de nova
lei) e que só admite uma única interpretação.
Para o legislador, a mesma lei é um fato essencialmente
mutável, permanecendo inalterada apenas enquanto refletir a
"idéia do direito" que lhe foi a idéia germinai.
Infelizmente muitos juízes interpretam a lei imersos na
confusão da atitude mental política com a atitude mental jurí-
dica. Nesse caso, o juiz imagina estar interpretando a lei, quan-
do, na verdade, está fazendo política: interpreta um conflito
social e impõe a esse conflito a solução que lhe parece a mais
aconselhável segundo a filosofia predominante no próprio juiz.
A contaminação da atitude mental jurídica do juiz pela
política é amplamente analisada pelo jurista Achille Battaglia
em seu livro de 1962: I Giudici e la Politica. E um dos mais
altos valores desse livro é o de constituir o depoimento de um
jurista italiano que viveu o problema do Poder Judiciário na
Itália, antes, durante e depois do Fascismo. Suas palavras não
são elucubrações de um teórico, mas falam a linguagem inequí-
voca das cicatrizes carnais. As reflexões e advertências a seguir
feitas são extraídas desse livro.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 99

O juiz que se deixou contaminar pela atitude mental polí-


tica, ao interpretar a lei, adota uma das duas soluções seguintes:
Ou recusa-se o juiz a obedecer a regra de conduta deter-
minada pelo legislador e invade-lhe o campo legislativo, crian-
do para o caso uma regra jurídica própria mediante a adaptação
e a maior, ou menor, deformação da lei original.
Ou recusa-se o juiz a aplicar a nova lei e continua a aplicar
a lei antiga (que fora parcial ou integralmente revogada pela
nova lei) como se a vontade do legislador antigo fosse mais
acertada e justa do que a do novo legislador. 9
O juiz que se deixou contaminar pela atitude mental polí-
tica, ao justificar sua sentença, naturalmente procurará se socor-
rer de argumentos lógicos e jurídicos. Entretanto, tais argumen-
tos, se examinados com objetividade, denunciam que a senten-
ça tem essencialmente um caráter político e que resultou de
uma filosofia própria e particularíssima do juiz no tocante àquilo
que melhor realizaria a ordem social desejável. O juiz confun-
diu o poder de fazer ou refazer a lei com o poder de aplicá-la. 10
A lei impõe a todos e particularmente ao juiz um modo
determinado e único de pensar e é precisamente o modo indi-
cado pelo legislador.''
Quando o antigo sistema jurídico é substituído por um
novo, o juiz deve se esforçar para purificar sua atitude mental
jurídica, eliminando as contaminações políticas que poderão
distorcer e falsear a interpretação das novas leis que vieram
substituir aquele antigo sistema jurídico. O trabalho dessa pré-
via purificação da atitude mental jurídica do juiz será facilitado
se o juiz tomar consciência das distinções entre as duas seguin-
tes inclinações psicológicas: o legislador quer sempre inovar,
ao passo que o juiz quer sempre conservar. A função do legis-
lador é a de substituir a antiga lei pela nova; a função do juiz
é a de aplicar a lei nova. Ora, aquela tendência conservadora do
juiz o induz, com freqüência, a distorcer a interpretação da nova
lei (que revogou ou alterou uma lei antiga) de tal modo que a

9. Achille Battaglia, 1 Giudici e la Política, Bari, Laterza, 1962, p. 4.


I O. Achille Battaglia, op. cit., p. 6.
11. Achille Battaglia, op. cit., p. 9.
100 ALFREDO AUGUSTO BECKER

nova lei interpretada se torna mais ou menos semelhante à


antiga lei. Contra esta interpretação farisaica do juiz reage, por
sua vez, o legislador impondo a obrigatoriedade de sua própria
interpretação da nova lei e, em conseqüência, promulga uma lei
interpretativa. Aqui ocorrem duas atitudes patológicas: a do
juiz que invade a competência do legislador, fazendo uma inter-
pretação legiferante; a do legislador que invade a competência
do juiz, promulgando uma lei interpretativa. 12
"Sabemos, por tremenda experiência - adverte Achille
Battaglia -, o quanto são frágeis os nossos ordenamentos de-
mocráticos, estejamos sempre em estado de alerta, perante o
Poder Executivo, por temor de perdê-lo. Porém sabemos que no
Estado de Direito a mais eficaz proteção do ordenamento de-
mocrático está nas mãos do juiz. Se o juiz não cede, torna-se
muito difícil que o arbítrio e o despotismo se institucionalizem". 13
Mas a apontada situação particularíssima e decisiva do
juiz - esclarece Achille Battaglia - impõe ao juiz a mais rigo-
rosa atenção para não ultrapassar os limites do próprio poder
judicante. O juiz é o intérprete da vontade da lei, não e o seu
árbitro. Infeliz a sociedade cujos juizes pretenderem substituir
aquilo que é ordenado pelo legislador por aquilo que a eles,
juizes, parecer mais justo. 14
No estado democrático moderno, cada indivíduo é muito
frágil para defender-se a si mesmo e muito isolado para poder
contar com a ajuda dos outros indivíduos, por isso a defesa de
cada indivíduo e de todos está na lei e no juiz chamado a
aplicá-la. 15
Distante aquele tempo em que o Governador, para obter do
juiz uma sentença favorável ao Governo, como medida proces-
sual preliminar, lançava aquele juiz dentro da masmorra. Hoje
basta corrompê-lo- diz Achille Battaglia- e como quase sem-
pre o juiz é um funcionário do Estado, o Poder Executivo dis-
põe de excelente e eficaz meio de corrupção dos juizes, regu-

12. Achille Batlaglia, op. cit., p. 12.


13. Achille Battaglia, op. cit., p. 13.
14. Achille Battaglia, op. cit., p. 13.
15. Achille Battaglia, op. cit., p. 27.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 101

Iando as suas promoções e as suas transferências segundo a


"colaboração" política revelada pelos juizes em suas sentenças.
Hoje - adverte Calamandrei - basta a um ministro do Poder
Executivo dar a entender que de uma determinada sentença
pode depender a promoção ou a transferência do juiz, para que
este magistrado que não é um símbolo, mas um homem, com
todos os seus problemas de esposa e filhos, de alimentação,
vestuário e educação sinta-se na angústia de uma gravíssima
alternativa. 16
A propósito da contaminação política na atitude mental
dos juizes, deve-se refletir sobre a sábia, experiente e aguda
observação do Professor das Universidades de Neuchâtel e
Géneve, Claude du Pasquier, na terceira edição (1948) de sua
Introduction à la Théorie Générale et à la Philosophie du Droit.
A sua conclusão é a de um jurista que observou e analisou as
causas e os efeitos das duas grandes guerras que, na primeira
metade deste século, devastaram a Europa. A este valor de
experiência vivida e própria, acresce a circunstância de que o
seu ensinamento é também a confissão de um erro que agora
ele corrige:
"Assim o espírito do direito postula serenidade na sua
aplicação. Nós fôramos durante muito tempo -confessa Claude
du Pasquier - partidários de seu extremo amoldamento; nós
estávamos inclinados a lançar fora os entraves de um 'juridismo'
que nos parecia, por vezes, petrificado. As atribulações por nós
sofridas e que numerosas vítimas ainda sofrem colocaram em
plena luz o outro lado do problema. Embora continuemos a
condenar o excesso de uma regulamentação burocrática, nós
reconhecemos que estávamos errados ao procurar aJ;Ilenizar as
garantias e as formas: elas protegem o sujeito de direito contra
os excessos de febre que podem inflamar a opinião pública e
contaminar mesmo os magistrados. O direito deve permanecer
senhor, não somente em razão de seu conteúdo moral, mas
simplesmente porque é direito". 17

16. Achille Battaglia, op. cit., p. 28.


17. Claude du Pasquier, Intmduction à la Théorie Générale et à la Philosophie
do Droit, 3. ed., Neuchâtel, 1948, p. 321; Henri de Page, L'Obligation
102 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Sem dúvida, a "moralização do direito" pela criação de


novas regras jurídicas justas em substituição das injustas é obra
meritória e indispensável para o aperfeiçoamento do homem e
da sociedade. Entretanto, essa ação moralizadora cabe exclusi-
vamente ao Poder Legislativo (criador das regras jurídicas) e
não ao Poder Executivo e nem ao Poder Judiciário.
A pretexto de "moralizar" o direito, de "humanizá-lo", e
de fazer seja lá o que for, acaba-se sempre por enfraquecer o
direito, amolecê-lo, arrancar-l!1e os nervos c esvaziá-lo de sua
substância
Se diante de uma lei o Órgão Executivo ou o Órgão Judi-
ciário intenta a sua moralização ou aperfeiçoamento mediante
uma "interpretação" que, moldando-a e adaptando-a ao caso
concreto, afaste ou reduza a injustiça ou im:,Jerfeição, então, o
que se está fazendo, na verdade, é subordinar a lei ao critério
de moral ou de perfeição da própria pessoa humana que exerce
a função executiva ou judiciária. É extrair da lei precisamente ·
aquilo que a faz jurídica, esquecendo-se que a regra jurídica foi
e é a única solução que o homem encontrou para regrar uma
sociedade formada e mantida por indivíduos que professam as
mais diversas e até contraditórias regras de Moral e de Perfei-
ção.

Abstraite en Droit Interne et en Droit Comparé, Bruxelles. 1957, p. 229,


236-7: Emilio Betti, Interpretazione de/la Legge e degli Atti Giuridici,
Milano, 1949, p. 185.
18. Henri de Page, L'Obligation Abstraite en Droit Interne et en Droit
Comparé, cit., p. 229, 236-7.
CAPÍTULO XIV
DOSVELHOSEDOSJOVENS

os 28 anos de idade (1651 ), Pascal escreveu o "Prefácio


A para o Tratado do Vácuo". Nesse prefácio ele contrapõe a
razão do homem em progresso contínuo ao instinto dos ani-
mais que, através dos tempos, permanece imutável:
"O mesmo não acontece com o homem - observa Pascal
- o qual foi criado para o infinito. O homem está na ignorância
na primeira fase de sua vida; mas ele se instrui incessantemente
na medida em que sua idade vai aumentando. Isto porque ele
aproveita não somente a sua própria experiência, mas ainda a
experiência dos homens que o antecederam, de vez que ele
guarda sempre na sua memória os conhecimentos que ele mes-
mo adquiriu e mais os conhecimentos dos homens que o ante-
cederam, os quais estão sempre presentes nos livros por eles
deixados.
E como ele conserva esses conhecimentos - prossegue
Pascal - ele pode também os aumentar facilmente; de modo
que os homens estão hoje, de alguma maneira, no mesmo es-
tado onde estariam os antigos filósofos se eles pudessem ter
envelhecido até o presente, acrescentando aos seus próprios co-
nhecimentos aqueles que seus estudos lhes teriam podido acres-
cer durante o curso de tantos séculos.
Disto decorre -conclui Pascal - que, por uma prerrogativa
particular, não somente cada um dos homens avança, dia a dia,
nas ciências, mas todos os homens, em conjunto, estão em
continua progressão na medida em que o universo envelhece,
porque o mesmo fenômeno que sucede durante as diferentes
idades de um mesmo homem singular, também ocorre na suces-
são dos homens. Deste modo toda a seqüência de homens,
durante o curso de tantos séculos, deve ser considerada como
104 ALFREDO AUGUSTO BECKER

um mesmo homem que subsiste sempre e que apreende conti-


nuamente".
O tigre que morre hoje tem a mesma idade daquele que
morreu 5 mil anos atrás, porque os tigres só sabem acumular as
próprias vivências. Porém, o mesmo não ocorre com os ho-
mens.' Estes são todos - em maior ou menor grau - antropó-
fagos. Alimentam-se das vivências dos coevos e também e prin-
cipalmente das vivências de todas as gerações anteriores.
Além disso, nos últimos 30 anos (em virtude do progresso
da medicina na conservação da vida humana) as três gerações
coevas passaram a ser quatro gerações a atuarem, simultanea-
mente, no momento histórico. Essa circunstância aumentou de
modo extraordinário as recíprocas permutas de vivências entre
as quatro gerações contemporâneas (em síntese: antropofagia
por osmose). De modo que, hoje, os jovens amadurecem com
vertiginosa rapidez e os amadurecidos tardam a envelhecer e,
muitas vezes, morrem sem que o seu intelecto tenha envelheci-
do.2
Os velhos devem - com simpatia conceder atenção às idéias
dos jovens. E os jovens devem - afetuosamente - escutar e
interrogar os velhos, em especial aqueles que, tendo exercido
uma função de alta responsabilidade, deixaram de exercê-la e
que, amadurecidos pela idade, não misturam a seu pensamento
nenhuma paixão, nenhum espírito de partido ou de reivindicà-
ção. Os velhos têm necessidade do impulso dos jovens para não
estagnarem e engrandecerem de puro enfatuamento; e os jovens
necessitam dos velhos que não têm mais nenhum interesse em
enganar. 3
"A língua, tal qual a somos, tal qual ela se derramou até
nós para formar-nos, é o acúmulo de toda a sabedoria, de todo
o esforço criador, de todas as vitórias e de todas as derrotas dos
intelectos que nos precederam. Todos os nossos pensamentos,
dos quais nos compomos, carregam a marca de nossos anteces-

1. Ortega y Gasset, La Rebelión de las Masas, cit., t. 4, p. 136.


2. Julián Marías, Las Edades y la Convivencia, no seu livro Los Espafioles,
Madrid, 1962, p. 281 e s.
3. Jean Guitton, Nouvel Art de Pense r, Paris, Aubier, 1946, p. 31-2.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 105

sores, tanto em seus conceitos (palavras) como em sua estrutu-


ra" .4
"O clima que prevalece na camada da conversação é de
intelectos realizados pelo contato com outros. Os intelectos são
abertos uns para os outros, são reais não por estarem aqui, mas
por estarem juntos. Os intelectos absorvem informações emiti-
das por outros, isto é, aprendem e compreendem, e emitem
informações novas, isto é, articulam. Para falarmos existencial-
mente, os intelectos transformam as informações que lhes são
coisas em informações que lhes serão instrumentos; neste tra-
balho produtivo deixam de ser determinados, para tornarem-se
livres. A liberdade do intelecto, na camada da conversação, reside
em sua transformação de frases em novas informações a serem
transmitidas". 5
"O que transforma o caos em cosmo é a possibilidade da
conversação, é o vem e o vai da língua". 6
O verdadeiro pensador é aquele que - ingressando na
conversação universal das diversas linguagens - procura e al-
cança a realidade mediante a harmonização de idéias que pare-
ciam alheias ou indiferentes àquela específica realidade e a
conciliação entre homens que se imaginam inimigos ou estran-
geiros em razão das teorias que esposaram.
A solidão da linguagem - mesmo da linguagem pura de
uma ciência - ainda padece do defeito de ser solitária. A soli-
dão das diversas linguagens cria distorções. A confusão a res-
peito de uma verdade não se origina na multiplicidade das lin-
guagens, mas no círculo fechado da linguagem solitária que
leva a crer que - ela mesma - seria um universo e a única
pensável. 7

4. Vilém Flusser, Língua e Realidade, São Paulo, Herder, 1963, p. 214-5.


5. Vilém Flusser, op. cit., p. 151-2.
6. Vilém Flusser, op. cit., p. 32. .
7. Jean Guitton, L'Amour Humam, 2. ed., Paris, Aubier, 1963, p. 23.
CAPÍTULO XV
HONESTIDADE INTELECTUAL

espírito que busca a verdade - adverte Jean Grenier - só


O deve interromper sua investigação quando encontrar real-
mente essa verdade. Se não a encontrar e enquanto não a alcan-
çar deve ser suficientemente honesto para confessar sua própria
ignorância. 1
A interpretação das leis é uma ciência que - a rigor e a
final- se reduz a alguns poucos princípios. Devemos redescobri-
-los. Embora pareça contraditório, as diversas teorias herme-
nêuticas (ex.: Abuso do Direito, Interesse Social, Distinção entre
Forma e Conteúdo da Lei, Interpretação Econômica) são evasi-
vas que o intérprete adota por preguiça de encontrar e aplicar
aquelas poucas e simples regras da ciência da interpretação
jurídica. Em lugar dessas regras (que o intérprete ignora ou
despreza) ele inventa teorias complicadas e métodos confusos,
tudo para "justificar" a sua preguiça intelectual de - com pa-
ciência e objetividade - apreender e aplicar aquelas poucas e
simples regras de hermenêutica jurídica.
A mesma acusação que, aqui, se faz aos intérpretes da lei,
Descartes dirigiu aos lógicos e algébricos de seu tempo. A nova
ciência da interpretação das leis deveria se purificar do inútil,
como outrora Descartes purificou a lógica e a álgebra para re-
duzi-las a alguns princípios. Ele tinha razão em dizer que a
multidão de teorias é uma desculpa para a preguiça intelectual.
O espírito humano, sempre esquivo e pronto a encontrar uma
desculpa, se propõe métodos rigorosos e resoluções heróicas
para se dispensar de as observar, desculpando-se no seu íntimo.

1. Jean Grenier, A Propos de 1 'Humain, cit., p. 50.


108 ALFREDO AUGUSTO BECKER

"Estes métodos e resoluções são excessivamente fortes para


mim e impraticáveis". 2
Muitos juristas pensam que suas conclusões serão tanto
mais verossímeis quanto mais difícil de se compreender for a
linguagem e que se deveriam empregar termos difíceis e legí-
veis· apenas pelo privilegiado círculo dos iniciados. É verdade
que a obscuridade da linguagem produz um efeito quase reli-
gioso. Entretanto, nada nos assegura que uma página obscura
tenha a profundidade por acréscimo. A obscuridade intelectual
de um homem é uma impotência, embora os fatos provem que
ela é adorada por certos homens os quais escolhem aquele in-
telecto obscuro para sacerdote de uma religião que tem sua raiz
precisamente numa fragilidade. E aquele homem de intelecto
confuso e impotente torna-se profeta, adquire prestígio, discí-
pulos e igreja. 3
O já citado Professor Catedrático de Filosofia da Sorbonne,
Jean Guitton, membro da Academia de Letras da França e pri-
sioneiro, por 5 anos, em campo de concentração nazista, muito
investigou e refletiu sobre a arte de pensar e o trabalho intelec-
tual, tendo escrito sobre essa especialidade três obras: Nouvel
Art de Penser (1946), Le Travail Intellectuel (1951 ), Apprendre
a Vivre et à Penser (1957). Na segunda destas obras, ele faz a
seguinte confidência:
"Eu gostaria de dizer aquilo que me ensinaram os cinco
anos de reclusão a respeito do trabalho do espírito. Um dos
primeiros caracteres desta situação é que ali nos falta tudo que
até aquela ocasião nos parecia ser muito necessário. Ali (no
campo de concentração) a pessoa está reduzida à sua atenção,
à sua memória e às raras conversações. Isto nos leva a pensar
que os livros não são indispensáveis, que Úm pequeno número
em todo o caso deva ser suficiente. Isto eu já o sabia por ter
visto viver um cego pensante". 4

2. Jean Guitton, Le Travail Intellectuel, cit., p. 82-3.


3. Jean Guitton, op. cit., p. 159-60.
4. Jean Guitton refere-se ao sacerdote lazarista e cego com o qual conviveu
muitos anos e manteve contínuos diálogos sobre filosofia e religião. O
resultado dessa convivência e desses diálogos Jean Guitton nos mostra em
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 109

"Nossa civilização- continua Jean Guitton- supersaturada


de conhecimentos e de meios de saber oferece tantas máscaras
e tantos falsos apoios que o homem não sabe mais aquilo que
ele conhece e aquilo que ele ignora. Entretanto, a prova de que
alguém é sabedor de alguma coisa - diz Aristóteles - é que ele
pode ensinar. Eu medi durante esta ausência de livros e de notas
o diminutp saber dos mais sábios (isto é, daqueles homens que
no campd de concentração eram os eruditos); mas este pouco
que eles sabiam - quando era tirado de suas entranhas - eles
ensinavam bem". 5
O grande sociólogo russo e professor catedrático das
Universidades Norte-Americanas, Pitirim Sorokim, escreveu um
volumoso livro intitulado: Achaques y Manias de la Sociologia
Moderna y Ciencias Afines. O Capítulo 11 desse livro intitula-
se: "Defectos Verbales - Jerga Obtusa y 'argot' Fingidamente
Científico". E o professor Pitirim Sorokim inicia esse capítulo
com as seguintes palavras:
"É uma questão de observação vulgar que a inadequação
intelectual inata (deficiência mental) se associa com as corres-
pondentes dificuldades na aquisição de meios verbais para a
formação e a comunicação simbólica. Esta dificuldade é pro-
porcional ao grau de defeito intelectual. Segundo Schopenhauer,
as idéias claras se expressam geralmente em linguagem inteli-
gível e clara, ao passo que as idéias vagas se comunicam de um
modo obtuso e nebuloso. A amnésia e as falsas pretensões de
originalidade, uma lógica pobre e a vacuidade de idéias, junto
com o desejo de ocultar estes defeitos com uma roupagem verbal
impressionante, são os culpados de numerosas desordens de
linguagem entre muitos investigadores psicossociais e socioló-
gicos modernos. A característica comum de todos estes defeitos
consiste em substituir por vocábulos vagos, embaraçosos e
imitativos os outros mais claros e compreensíveis". 6

seus dois livros: Portrait de Monsieur Pouget (1941) e Dialogues avec


Monsieur Pouget ( 1954 ).
5. Jean Guitton, Le Travail Intellectuel, cit., p. 13-4.
6. Pitirim Sorokim, Achaques y Manías de la Socíologia Moderna y Ciencias
Afines, Madrid, 1964, p. 39-40 (a edição original é norte-americana,
Chicago, 1956).
11 o ALFREDO AUGUSTO BECKER

Miguel de Cervantes, no ano de 1505, já chegara a idên-


tica conclusão: " ... porque la claridad de su prosa y aquellas
entricadas razones suyas !e parecían de pelas, y más cuando
llegaba a leer aquellos requiebros y cartas de desafios, donde en
muchas partes hallaba escrito:
'La razón de la sinrazón que a mi razón se hace, de tal
manera mi razón enflaquece, que con razón me quejo de la
vuestra fermosura'.
Y también cuando leía: ... 'los altos cielos que de vuestra
divinidad divinamente con las estrellas os fortifican, y os hacen
merecedora dei merecimiento que merece la vuestra grandeza'.
Con estas razones perdía ei pobre caballero el juicio, y
desvelábase por entenderias y desentrafiarles el sentido, que no
se lo sacara ni las entendiera el mismo Aristóteles, si resucitara
para sólo ello". 7

7. Miguel de Cervantes, Don Quixote de la Mancha. Cap. 1.


CAPÍTULO XVI
,
FASCINIO PELA "KULTUR"
GERMÂNICA

111\homem moderno padece do fascínio pela Kultur germânica.


\lJIPrincipalmente o jurista. Se aquilo que ele está lendo foi
escrito por um alemão e está impresso no idioma teutônico,
então, é algo tanto mais admirável quanto mais complicado. E
recebido respeitosamente como a verdade científica que não
admite prova em contrário, salvo se escrita por outro alemão, de
preferência em letras góticas.
Ora, aplicam-se perfeitamente à doutrina jurídico-teutônica
as mesmas palavras de Jean Dabin aos que sofrem a psicose do
Direito Romano. 1 Em matéria de teoria juridico-tributária, não
há o Berlim locuta est. Os alemães não descobriram tudo e
aquilo que eles descobriram não é sempre a verdade pura e
perfeita. Depois dos alemães, ainda há lugar para um esforço
critico pessoal de elucidação de pontos obscuros e até mesmo
de abandono de conceitos deles recebidos.
O desejo de fidelidade a um velho mestre induz o jurista
a atraiçoar a verdade. O fato de uma doutrina perdurar há mais
de dez séculos não é argumento que prove sua veracidade, pois
aquela doutrina pode simplesmente ser um erro que tenha per-
durado dez séculos mais que os outros erros. Se, de um lado,
se critica a originalidade juvenil, não deve ser esquecido que,
do outro lado, encontra-se a obstinação senil. O conflito entre
os velhos e os jovens é a doença crônica das civilizações fun-
dada sobre o argumento da autoridade. 2

I. Jean Dabin, Une Nouvelle Définition du Droit Réel, Paris, 1961 (separata
da Revue Trimestrielle du Droit Civil, Paris, Sirey, 1962, n. 1, p. 43). As
palavras originais de Jean Dabin encontram-se transcritas em Alfredo
Augusto Becker, Teoria Geral do Direito Tributário, cit., p. 13.
2. Jean Grenier, A Propos de l'Humain, cit., p. 49.
112 ALFREDO AUGUSTO BECKER

O halo de cientificidade da língua alemã decorre do fato


de o idioma germânico ser o mais apto para criar abstrações. De
modo que um alemão, ao escrever seja lá o que for, parece
sempre pensar, ainda que ele não faça nada mais do que cons-
truir uma simples frase banaP
Por isso há tantos escritores que gostam de utilizar vocá-
bulos alemães ou transcrever textos de autores alemães, evitan-
do traduzi-los. Esse curioso hábito dos que padecem do fascí-
nio pela Kultur germânica é explicado por um Professor Cate-
drático de Semântica, a ciência do significado das palavras:
"Quando se emprega uma palavra estrangeira explica Stephen
Ullmann - ela é empregada não porque haja necessidade real,
mas sim pelo seu valor de esnobismo pelo ar de distinção que
confere à linguagem, obtendo-se assim o que se pode chamar
de efeitos evocadores secundários. 4
Desse modo pode-se facilmente compreender que um livro
causará uma grande influência mesmo sem ter sido compreen-
dido ou lido. E o autor passa a ser admirado, atingindo a maior
celebridade, sem nunca ter sido lido. 5
Para alcançar a reputação e para atrair os jovens, nos tem-
pos modernos, é necessário pensar idéias obscuras e escrevê-las
confusamente (e quem declara isso é o Professor Catedrático de
Filosofia na Sorbonne, Jean Guitton, em 1952, depois de ter
escrito os livros: La Nouvel Art de Penser e Le Travail
Intellectuel). "Eu- prossegue Jean Guitton- eu amo a transpa-
rência e também a profundidade. A profundidade na transparên-
cia, como nas águas calmas. Uma certa obscuridade particular
à filosofia presente não me é assimilável. E eu me pergunto se
ela o é para os outros que dizem compreendê-la. Sim, eu me
pergunto se, para diversos de meus contemporâneos as palavras
mais familiares como 'compreender', 'amar', 'perceber' 'ser' ...

3. Jean Guitton, Le Travail Intellectuel, cit., p. 107.


4. Stephen Ullmann, Semántica- Introducción a la Ciencia dei Significado.
trad. esp., Madrid, Aguillar, 1965, p. 151 (a edição original é: Semantics-
An lntroduction to the Science ofMeaning, Oxford, Basil Blackwell, 1962).
5. Albert Camus, Discours de Suede, cit., p. 37; e também in L'Été cit., p.
125.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 113

têm o mesmo significado que para mim. Assim 'pensar', para


diversas inteligências eminentes de hoje, é gozar, no meio da
linguagem, duma certa densidade de obscuro; é oscilar suave-
mente dentro do nevoeiro e torná-lo ainda mais espesso, guiado
por vaga idéia de solução possível, obscura ela mesma. Para
estes espíritos o esforço de alcançar a claridade na :nvestigação
profunda, sena desde logo reconhecer, antecipadamente, que se
é um incapaz". 6
"Eu creio que esta diferença - prossegue Jean Guitton - ·
decorre de uma sensibilidade diferente diante do idioma. Os
alemães pensam em seus vocábulos até suas raízes, mas eles
não atribuem a cada vocábulo um sentido distinto e único. Cada
um dos vocábulos alemães permanece um programa de indaga-
ções angustiantes e excitantes. Para mim, o vocábulo é um<i
chegada, um limite, um repouso; ele deve guardar qualquer
coisa do cristal; ter uma forma nítida e os seus ecos naturais
devem ser rapidamente amortecidos. Somente então o pensa-
mento habita". 7
Quando a gente pergunta a um alemão a hora de seu reló-
gio e ele nos responde em seu kultur idioma, então, nós esque-
cemos a hora e ficamos - horas e horas - a meditar sobre o
tempo, o universo, as galáxias ... e cai mos dentro de um buraco
negro.

6. Jean Guitton, Journal- Études et Rencontres, Paris, Plon, 1959, p. 23-4.


7. Jean Guitton, Journal- Études et Rencontres, cit., p. 24.
CAPÍTULO XVII
CRIMES DE LÓGICA

lbert Camus inicia o seu mais longo ensaio filosófico com


A a frase: "Há crimes de paixão e crimes de lógica". 1
A mesma técnica de criar no intelecto do juiz a indecisão
nebulosa e melodramática por intermédio da invocação do amor
para justificar os crimes de paixão está sendo hoje em dia lar-
gamente utilizada mediante a invocação da política (razões de
Estado) para justificar os crimes de lógica que - à força de
coação psicológica- querem sejam cometidos pelos juizes em
tribunal pleno.
Também nos crimes de lógica, o juiz, ao premeditá-lo,
sente uma advertência específica em sua consciência e, se. por
desventura chega a perpetrá-los, escuta um remorso genuíno.
Cada homem está dotado de uma faculdade específica que lhe
impõe - mesmo antes de qualquer consideração moral - a ne-
cessidade de uma constante harmonia lógica com os princípios
que regulam todo pensamento e toda ação humana, mesmo
quando o homem age de modo que ele imagina ser eminente-
mente prático e notadamente na apreciação de suas proposi-
ções, responsabilidades e possibilidades. 2
Por isso o grande moralista Malebranche advertia: "Não se
deve jamais dar consentimento inteiro senão às proposições que
nos pareçam tão evidentemente verdadeiras de tal modo que
não se possa recusá-las, sem sentir uma vergonha interior e as
censuras secretas da razão". 3

I. Albert Camus, L'Homme Revolté, Paris, Gallimard, 1951.


2. Jean Guitton, Nouvel Art de Penser, cit., p. 89.
3. Malenbranche, apud Jean Guitton, op. loc. cit.
116 ALFREDO AUGUSTO BECKER

"A possibilidade do emprego da palavra- esclarece Roma-


no Ouardini - não se funda apenas em o homem possuir o dom
da fala e em as coisas, por seu turno, constituírem formas in-
tencionais objetivas que podem ser reveladas graças à palavra;
reside também na própria natureza verbal do mundo; vem de
que o mundo emerge de um falar e subsiste no modo de uma
palavra expressa. Se assim não fosse, a linguagem humana não
poderia ser acolhida pelo Universo. As palavras errariam nele
como fantasmas". 4
Entretanto, Stephen Ullmann, em seu livro Semántica -
Introducción a la Ciencia del Significado, muito bem demons-
tra que: "o significado de uma palavra somente pode averiguar-
se pelo seu uso. Não há nenhum atalho que possa conduzir ao
significado da palavra, seja o atalho da introspecção oti qual-
quer outro método". 5
Por sua vez, o uso da palavra se altera quando aos homens
lhes parece conveniente alterar o significado da palavra. Os
homens, deliberada e conscientemente, passam a usar errada-
mente a palavra a fim de - com esse uso errôneo - alterar o seu
significado. E Stephen Ullmann adverte de que as mudanças de
significado da palavra pelo deliberado uso errôneo da mesma
são freqüentíssimas na época atual durante períodos de mudan-
ça de mentalidade pública. 6
É curioso que tal metamorfose já foi constatada por Tucí-
dides, quando escreveu sobre a decadência das regras éticas
durante a guerra do Peloponeso.
"A aceitação ordinária das palavras - diz Tucídides - em
sua relação com as coisas mudou-se quando os homens julga-
faro conveniente. A audácia temerária chegou a ser considerada
como valente lealdade a um partido, a vacilação prudente como
especiosa covardia, a moderação como uma capa para a debi-

4. Romano Guardini, O Mundo e a Pessoa, São Paulo, 1963, p. 180 (trad. da


ed. alemã: We/t und Person, Würzburg, 1952).
5. Stephen Ullmann, Semántica- Introducción a la Ciencia dei Significado,
cit., p. 76. A edição original é de Oxford, 1962: Semantics -An Introduction
to the Science of Meaning.
6. Stephen Ullmann, op. cit., p. 3-4.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 117

lidade efeminada, e ser esperto em tudo foi não fazer nada em


nada". 7
Entretanto o homem não prostitue impunemente as pala-
vras. Há um século que se vive numa sociedade de símbolos
abstratos que substitui a realidade das coisas e onde a coisa
desaparece em proveito do símbolo. Uma sociedade fundada
sobre símbolos é em sua essência uma sociedade sintética onde
a verdade carnal do homem se encontra mistificada. 8

7. Tucídides, apud Stephen Ullmann, op. loc. cit.


8. Albert Camus, Discours de Suede, cit., Paris, p. 33-4.
CAPÍTULO XVIII
FALSIDADE NA DICOTOMIA DA LEI
EM FORMA E CONTEÚDO

N a interpretação das leis, os homens se habituaram a distin-


guir entre a forma e o conteúdo como se fosse possível e
científica tal distinção e como se dessa dicotomia pudessem ser
obtidas aquelas conclusões hermenêuticas que eles afirmam,
mas que justificam com premissas tão obscuras e nebulosas e
elásticas que estas mesmas premissas poderiam ser utilizadas
para o caminho de uma conclusão diametralmente oposta à
primeira.
É um erro tradicional na hermenêutica jurídica a dicotomia
entre forma e conteúdo da lei. A forma e o conteúdo da regra
jurídica - na verdade - surgem simultaneamente. Surgem do
mesmo e único esforço intelectual que faz a forma e o conteúdo
surgirem do caos e da indolência. 1
Mas, em que consiste o esforço intelectual?
"Eu creio - responde Jean Guitton - que o esforço consis-
te em passar de um plano a outro plano. A inteligência tem
tendência de se manter no plano isolado das idéias ou no plano
isolado dos fatos. Na verdade, aquilo que deveria merecer aten-
ção é o fato esclarecido pela idéia; é idéia encarnada num fato.
Todo o espírito da ciência está ali. O fato puro não tem exis-
tência: aquilo que deve ser objeto de nossa investigação não é
o fato puro, é o fato enquanto nos remete a uma lei geral. E, de
igual maneira, uma lei pura e abstrata não é concebível: a lei
deve sintetizar uma multidão de fatos". 2

1. Jean Guitton, Le Travaillntellectuel, cit., p. 150.


2. Jean Guitton, op. cit., p. 50.
120 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Depois de longamente investigar a capacidade de atenção


do intelecto humano, Jean Guitton esclarece: "É o caráter es-
treito e oscilatório de toda a atenção. A embocadura de nossa
atenção é exígua; toma-se necessário verter o elixir gota a gota.
O espírito é volátil; a atenção assemelha-se a um farol que
aclara um segundo, depois se extingue e volta a reacender. É
possível que a atenção esteja ligada - durante seu exercício -
a este movimento de respiração que vai e que vem". 3
O esforço intelectual - demonstra Jean Guitton - "reside
numa zona mediana que é aquela onde a idéia desce de sua
morada para se encarnar num detalhe, num caso, numa concre-
tização. Naquela zona mediana também ocorre o inverso, isto é,
o dado concreto recorre à idéia a fim de nela adquirir um sen-
tido. Esses dois movimentos, o de ascensão e o de queda, cons-
tituem a respiração da inteligência". 4
Um dos mais agudos pensadores franceses da primeira
metade deste século, Paul Valéry, analisando a fenomenologia
da expressão verbal dos poetas, tece reflexões que se aplicam
peifeitamente ao jurista que se esforça para alcançar a genuína
e única interpretação de determinado artigo de lei.
"Mas a poesia - diz Paul Valéry - é toda pagã: ela exige
imperiosamente que não haja almas sem corpo; nenhum senti-
do, nenhuma idéia que não seja o ato de alguma figura
observável, constraída de sonoridades, de durações e de inten-
sidades.
Pouco a pouco no poeta, a linguagem e o Eu passam a se
corresponder de um modo bem diferente do que sucede com os
outros homens. Aquilo que para o poeta é capital na palavra, é
-- para os outros homens - insensível ou indiferente. Os outros
homens são totalmente indiferentes para o episódio verbal do
qual depende para nós a vida ou a morte dum poema. Crédulos
e abstratos, os outros homens contrapõem o fundo à forma;
oposição que não tem sentido senão no mundo prático, este no
qual há permuta imediata de palavras por atos e de atos por

3_ Jean Guitton, op. cit., p. 84-5.


4. Jean Guitton, op. cit., p. 53.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 121

palavras. Eles não percebem que aquilo que eles chamam o


fundo não é outra coisa que uma forma impura, isto é, mistu-
rada. Nosso fundo é feito de episódios e de aspectos incoe-
rentes: sensações, imagens de todos os gêneros, impulsões,
vocábulos isolados, fragmentos de frases ... Mas para transmitir
aquilo que reclama ser transmitido e quer se desprender do
caos, é necessário que todos esses elementos tão heterogêneos
sejam representados dentro do sistema unificado da linguagem
e que se formule alguma proposição. Esta transposição de acon-
tecimentos interiores em fórmulas constituídas de símbolos da
mesma espécie - igualmente convencionais -pode até ser olha-
da como a passagem de uma forma ou aspecto menos puro a
outra forma mais pura". 5

5. Paul Valéry, Je Disais Quelquefois a Stéphane Mallarmé, in Variété, 53.


ed., Paris, Gallimard, vol. 3, p. 25-6.
XIXCAPÍTULO

UTILIDADE OU INUTILIDADE
DO JURISTA

A estrutura jurídica é o instrumento para harmonizar e reger


os fotos constitutivos do ambiente social - forças, ideais,
interesses e necessidades sempre em movimento e freqüente-
mente antagônicas -, por isso o jurista, antes de tomar uma
decisão a respeito deles, deverá esforçar-se paro compreendê-
los e para tal é imprescindível a ciência e a experiência do meio
social considerado. 1
A paz é a fase em que a hostilidade natural dos homens
contra os homens se manifesto por criações, em lugar de se
traduzir por destruições como acontece na fase de guerra. 2 Sob
o ângulo do jurista, todo o indivíduo é um violento, ou melhor,
possui uma violência virtual que - não importa quando - pode
tornar-se atual; é essa violência virtual que torna necessária a
estrutura jurídica. 3
A estrutura jurídico existe pora modificar o curso espon-
tâneo dos atos humanos, de modo que toda a estrutura jurídica
supõe uma tensão ou, ou menos, a possibilidade de uma tensão
entre a conduta que ela impõe e a realidade social. 4 Dentro da
sociedade, os indivíduos vivem em permanente competição de
interesses. O indivíduo desinteressado seria perigoso para a

1. J. Dabin, Théorie Générale du Droit, 2. ed., Bruxelles, 1953, n. 126 e 128.


2. Paul Valéry, carta publicada, em abril de 1919, pelo Atheneoeum de Londres
e in Variété, cit., p. 21.
3. E. Weil, Philosophie Politique, Paris, 1956, p. 83, c; em sentido análogo,
ver Giorgio dei Vecchio, Philosophie do Droit, Paris, 1953, p. 296: F.
Carnelutti, Teoria General del Derecho, Madrid, 1955, p. 30 (trad. espanhola
da 3. ed. italiana, Roma, 1951).
4. J. Haesaert, Théorie Générale du Droit, Bruxelles, 1948, p. 404.
124 ALFREDO AUGUSTO BECKER

sociedade. O homem medíocre não conhece a dialética da ten-


tação; por isso sua orientação para o bem não é precedida de
uma ruptura com o maP Entretanto, o indivíduo não deverá
empregar a força e a violência natural para lutar contra seus
competidores. O comportamento do indivíduo deverá ser tal
que os outros membros da sociedade possam contar com uma
certa regularidade no seu modo de agir, nas suas intenções pací-
ficas e na veracidade de seus assuntos privados e públicos; a
função da estrutura jurídica é obter de tais indivíduos um tal
comportamento. 6
A fim de que a ação de cada indivíduo tenha o seu
desenvolvimento garantido, é necessário que cada indivíduo
saiba (com relação à sua ação e às ações dos outros indivíduos)
qual será o seu resultado histórico, ou melhor, como será qua-
lificada e como será incluída na vida histórica da sociedade e
isso ele obtém graças à estrutura jurídica. 7
O instrumental jurídico atua mediante regras de conduta,
segundo as quais o fazer ou o não-fazer do homem deve sujei-
tar-se.8 A estrutura jurídica transforma o determinismo natural
(espontâneo e, pois, ao arbítrio da conveniência e da violência
do indivíduo) dos atos e fatos sociais, em um determinismo
artificial porque impõe àqueles atos e fatos sociais um compor-
tamento obrigatório cuja estrutura e direção se apresentaram ao
jurista como necessárias ao Bem Comum. 9

-----~----
5. J. Grenier, L'Existence Malheureuse, 3. ed., 1957, Paris, p. 34.
6. E. Weil, Philosophie Politique, cit., p. 83; N. Bobbio, Teoria del/a Norma
Giuridica, Torino, 1958, p. 234.
7. L. Ofíate, La Certeza del Derecho, trad. esp., Buenos Aires, 1953, p. 74-6;
R. Savatier. Les Métamorphoses Économiques et Sociales du Droit Civil
d'Aujourd'hui, 2. ed., Paris, 1952, p. 14; na 2" série das Métamorphoses
(Paris, 1959), dedicada ao "Universalisme renouvelé des disciplines
juridiques", p. 72.
8. N. Bobbio, Teoria delta Norma Giuridica, cit., p. 3-34.
9. J. Haesaert, Théorie Générale du Droit, cit., p. 404-5, 453; Pontes de
Miranda, Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro, 1954, v. I, § 2, n. I,
b, e§ 6°, n. 3. Em sentido análogo: G. Burdeau, Traité de Science Politique,
Paris, 1949; v. 1, n. 270, p. 321-3, Kelsen, Teoria General dei Derecho y
dei Estado, 2. ed., México, 1958, p. 53-4 (edição original Berkeley, 1944).
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 125

Embora soe paradoxal, esse poder de dominação da estru-


tura jurídica é justamente o instrumento da liberdade do ho-
mem, pois lhe confere a certeza naquelas suas relações sociais
porventura disciplinadas por regra jurídica, permitindo-lhe cons-
truir sua vida dentro da violenta competição de interesses dos
outros indivíduos. 10
Em primeiro lugar, é preciso determinar o que se quer
fazer, definir o resultado que se pretende obter. Só depois de
definido o objetivo da ação é que se procuram os meios para
conseguir esse resultado. E a função do jurista é a de fornecer
aqueles meios de atuação (estruturas jurídicas) para obtenção
de um resultado predeterminado. 11
A necessidade que deve ser satisfeita é a garantia e a
harmonização de dois grupos de interesse em conflito. O instru-
mento que será criado para satisfazer essa necessidade é a es-
trutura jurídica. Porém, a estrutura jurídica só será instrumento
de convivência social na medida de sua praticabilidade. 12 Todo
o esforço do jurista consiste precisamente em criar esse instru-
mento praticável de ação social, moldando os interesses em
conflito a fim de harmonizá-los. 13 As estruturas jurídicas não se
mantém em estado de "ideal descarnado", pois elas só existem
referindo-se à realidade social do homem concreto. 14 A estrutu-
ra jurídica é criada para resolver e harmonizar conflitos e situa-
ções sociais deste mundo real não para um mundo ideal. 15 Não
se pode conceber outra estrutura jurídica a não ser aquela que

I O. R. Savatier, Les Métamorphoses Économiques et Sociales du Droit Privé


d'Aujourd'hui; l'universalisme renouvelé des disciplinesjuridiques, cit.,
p. 72.
11. J. Haesaert, Théorie Générale du Droit, cit., p. 114-6.
12. J. Dabin, Théorie Générale du Droit, cit., n. 24 e 167; J. Haesaert, Théorie
Générale du Droit, cit., p. 407 e 462.
13. R. Savatier, in Le Droit Privé Français au Milieu du XX Siecle, Paris,
1950, v. 1, p. 84; J. Dabin, Théorie Générale du Droit, cit., n. 167; P.
Roubier, Théorie Générale du Droit, 2. ed., Paris, 1951, p. 192-9 e 203 e
S.
14. J. Dabin, Théorie Générale du Droit, cit., n. 167.
15. J. Haesaert, Théorie Générale du Droit, cit., p. 406-7.
126 ALFREDO AUGUSTO BECKER

seja praticável e útil neste mundo onde nós vivemos. 16 Se for


concebida uma estrutura jurídica para um mundo imaginário
ideal, o resultado será - é verdade - uma estrutura do outro
mundo, mas também só servirá para aquele Outro Mundo.

16. J. Haesaert, Théorie Générale du Droit, cit., p. 89; P. Esmein, Le régime


d'État de Droit, in Introduction à l'Étude du Droit, Paris, 1951, v. 1, p.
155; Kelsen, Teoria General de/ Derecho ydel Estado, cit., p. 14-5 (edição
original Berkeley, 1944).
QUARTA
PARTE

INTERPRETAÇÃO DAS LEIS TRIBUTÁRIAS


CAPÍTULo XX
TEORIA DO ABUSO DAS FORMAS
JURÍDICAS

A partir de 1919, uma corrente doutrinária de interpretação


fi.das leis tributárias se originou, floresceu e, por bastante
tempo, predominou. Ao terminar a Segunda Grande Guerra, em
1945, a referida doutrina entrou em declínio e, hoje, embora
esteja superada ela é a responsável pelo maior equívoco na
história da doutrina do Direito Tributário.
Segundo aquela corrente doutrinária, na interpretação das
leis tributárias, dever-se-ia ter como princípio geral dominante
(e não como regra jurídica excepcional e expressa) o princípio
de que o Direito Tributário, ao fazer referência a institutos e
conceitos dos outros ramos do Direito, desejaria que o intérpre-
te da lei tomasse não o fato (ato, fato ou estado de fato) jurídico
com sua específica natureza jurídica, mas sim o fato econômico
que está subjacente ao fato jurídico ou os efeitos econômicos
decorrentes do fato jurídico.
Na interpretação da lei tributária dever-se-ia ter em conta
o fato econômico ou os efeitos econômicos do fato jurídico
referido na lei tributária, de tal modo que, embora o fato jurí-
dico acontecido fosse de natureza jurídica diversa daquela ex-
pressa na lei, o mesmo tributo seria devido, bastando a equiva-
lência dos fatos econômicos subjacentes ou dos efeitos econô-
micos resultantes de fatos jurídicos de distinta natureza.
Além disso, o dever tributário não poderia ser evitado ou
diminuído pelo abuso das formas jurídicas. Esse abuso ocorre-
ria quando, na juridicização de um fato ou efeito econômico, a
pessoa utilizasse ou criasse uma estrutura jurídica perfeitamen-
te legal (porém não usual naquela época e circunstâncias) a fim
de evitar o tributo que a lei determinara incidir sobre uma di-
ferente estrutura jurídica que era a usual.
130 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Os doutrinadores e legisladores que esposaram essa teoria


aceitavam-na, com maiores ou menores ressalvas, na medida de
sua respectiva sensibilidade àquilo que é Jurídico e segundo o
grau de conhecimento da fenomenologia jurídica. Com tais
ressalvas, procuraram conciliar o inconciliável e o resultado foi
o que a seguir se verá.
CAPÍTULO XXI
ORIGEM E CAUSA DA TEORIA

m 13 de dezembro de 1919, foi promulgado o Código Tri-


E butário Alemão (Reichsabgabenordnung- RAO). Nesse có-
digo, pela primeira vez, a teoria acima conceituada tornou-se lei
e foi imposta a todos os intérpretes e juizes como regra de
conduta obrigatória. Essa regra está formulada nos §§ 42 e 52
(depois §§ 92 e 10) do RAO de 1919, nos seguintes termos:

§ 4 2 ( § 92 ): Na interpretação das leis fiscais deve-se


ter em conta a sua finalidade, o seu significado eco-
nômico e a evolução das circunstâncias.
§ 52 ( § I O): A obrigação do imposto não pode ser evi-
tada ou diminuída mediante o abuso das formas e das
possibilidades de adaptação do direito civil. 1

Enno Becker foi o elaborador do anteprojeto do Código


Tributário Alemão de 1919 e participou, como representante do
Governo, nos trabalhos legislativos da Comissão Parlamentar2
e, na condição de autor do anteprojeto do RAO e de Presidente
da 4íl Secção da Corte Suprema Financeira do Reich 3 foi o
primeiro e maior responsável pela criação, divulgação e prestí-
gio da teoria hermenêutica em análise. Ainda não contente com
sua transformação em lei, aplicou-a farta e largamente na posi-
ção de Presidente da 4íl Secção da Corte Suprema Financeira e

1. Albert Hensel, Diritto Tributaria, Milano, 1956, p. 63, 144-5 e 150, nota
167 (tradução italiana da 3• edição alemã de 1933).
2. E. Vanoni, Natureza e Interpretação das Leis Tributárias, Rio de Janeiro,
1952, p. 159 e 202 (tradução de Rubens Gomes de Sousa do original italiano,
Padova, 1932).
3. E. Vanoni, op. cit., p. 202-3.
132 ALFREDO AUGUSTO BECKER

defendeu-a, de 1919 a 1937, ardorosamente em livros e diver-


sos estudos doutrinários. 4
É muito importante observar-se que, antes de Enno Becker
haver transformado em lei a sua teoria hermenêutica, a jurispru-
dência fiscal da Alemanha e a de seus Tribunais Superiores não
esposavam aquela sua teoria. 5
Com intuição profética, alguns membros da Comissão Par-
lamentar (incumbida de apreciar o anteprojeto do RAO) teme-
ram que a teoria de Enno Becker, uma vez convertida em lei,
produzisse os mesmos resultados - incerteza e arbítrio - da
escola da livre investigação do direito. Enno Becker, na condi-
ção de autor do anteprojeto e de representante do governo junto
à Comissão Parlamentar, procurou afastar os temores daqueles
membros, declarando-lhes expressamente que tal não acontece-
ria e que, graças ao § 42 do RAO de 1919, é que a sentença
poderia ser "justa e sensata". 6
Ora, o comportamento da jurisprudência fiscal após a
promulgação do RA0-1919 demonstrou que os tribunais ale-
mães, inclusive a Corte Suprema, na aplicação da lei tributária
ao caso concreto, aproveitaram-se de liberdade máxima na

4. Ver, principalmente, o curioso "depoimento" que, no ano de 1940, em pleno


apogeu do Nazismo, presta Othmar Bühler no seu estudo dedicado a lembrar
a extraordinária importância de Enno Becker- desde 1918 até 1937- sobre
a jurisprudência e doutrina do Direito Tributário, publicado na Rivista di
Diritto Finanziario e Scienza del/e Finanze, 1940, 4:43-6.
Observe-se o relatório e críticas feitas por E. Vanoni, Natureza e
Interpretação das Leis Tributárias, cit., p. 159-61, 201-8 (tradução de
Rubens Gomes de Sousa do original italiano, Padova, 1932). Veja-se,
também, o estudo de Enno Becker, Accentramento e sviluppo de! Diritto
Tributaria tedesco, in Ri vista di Diritto Finanziario e Scienza del/e Finanze,
1937, fase. 1, p. 164.
5. E. Vanoni, Natureza e Interpretação das Leis Tributárias, cit., p. 201, in
fine (tradução de Rubens Gomes de Sousa do original italiano, Padova,
1932). Alberto Hensel, Diritto Tributaria, cit., p. 150, nota 167 (tradução
italiana da 3• edição alemã de 1933).
6. E. Vanoni, Natureza e Interpretação das Leis Tributárias, cit., p. 202
(tradução de Rubens Gomes de Sousa do original italiano, Padova, 1932).
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 133

aplicação da lei, porque a isto lhes induzia o malfadado § 4º do


RA0. 7
Aliás, o posterior comportamento do próprio Enno Becker
deve ter estarrecido aqueles membros da Comissão Parlamentar
aos quais ele tranqüilizara, afirmando categoricamente que o §
4º do RAO não ensejaria a oficialização da escola da livre in-
dagação do Direito aplicável, pois foi a 4a Secção da Corte
Suprema, justamente aquela presidida por Enno Becker, a que
deu maiores provas da máxima liberdade na adaptação da lei
fiscal ao caso concreto. 8
A jurisprudência que, então, tornou-se a predominante
procurou atribuir ao juiz uma função antecipatória da atividade
legislativa. 9 E o próprio Enno Becker embora várias vezes se
tenha declarado contrário à escola hermenêutica do Direito li-
vre não trepidou em escrever: " ... é matéria da competência da
Corte Suprema Financeira completar o direito contido na lei,
mal formulado em razão da urgência e da necessidade, e às
vezes deixado expressamente incompleto. Neste trabalho co-
mum, o posto predominante compete à Corte Suprema". 10
Em 1932, Ezio Vanoni estava totalmente iludido quando
disse que a posição de Enno Becker era isolada na doutrina
alemã e que a jurisprudência germânica havia, mais tarde, re-
cuado daquelas posições. 11
Como a seguir se demonstrará, aquela ilusão de Vanoni foi
destruída pela observação de Hensel em 1933, pela promulga-
ção, em 16-10-1934, da Lei de Adaptação Tributária (Steueran-
passungsgesetz) e pelo estudo de 1940 (em pleno apogeu do
Nazismo e do Fascismo) do Prof. de Direito Tributário da
Universidade de Münster, Othmar Bühler, e que tem por obje-
tivo lembrar a extraordinária importância de Enno Becker -
desde 1918 até 1937 -para o desenvolvimento da jurisprudên-
cia e doutrina do Direito Tributário.

7. E. Vanoni, op. cit., p. 203.


8. E. Vanoni, op. Joc. cit.
9. E. Vanoni, op. Joc. cit.
10. E. Vanoni, op. cit., p. 206-7.
11. E. Vanoni, op. cit., p. 208.
134 ALFREDO AUGUSTO BECKER

A impressão de Vanoni resultou principalmente daquele


período de 2 anos (anteriores a 1932) em que estudou na Ale-
manha.12 Ora, Hensel escreveu em 1933 (depois de Vanoni) e,
além disso, Hensel era professor universitário alemão radicado
permanentemente na Alemanha, de onde saiu, no outono de
1933, para- no mesmo outono e poucos dias depois de chega-
do à Itália - morrer de angina pectoris em Pádua. Hensel,
depois de destituído da sua cátedra na Universidade de Konigs-
berg, foi coagido a sair da Alemanha, porque sua avó paterna
era irmã do musicista F. Mendelsohn, um israelita. 13 Por ironia
do destino, Hensel escreveu o Prefácio para a 3ll edição do seu
livro, em abril de 1933, dedicando sua obra "em honra e reco-
nhecimento" a Enno Becker, Presidente da Supremo Corte Finan-
ceira do Reich. 14
Tendo-se presente o acima relatado comportamento, desde
1919, de Enno Becker e sua sempre crescente autoridade fun-
cional (autor do anteprojeto do RAO; representante do Governo
para participar dos trabalhos legislativos da Comissão Parla-
mentar de 1919; Presidente da 4ll Secção da Suprema Corte
Financeira do Reich), não se pode concordar com a afirmação
de Vanoni, em 1932, de que a posição doutrinária de Enno
Becker era isolada e de que a jurisprudência recuara da livre
adaptação da lei fiscal ao caso concreto. E não é possível con-
cordar com Vanoni porque Hensel, em 1933, referindo-se à in-
terpretação das leis fiscais, expressamente declara: " ... que a
adaptação de seu conteúdo legislativo muitas vezes imperfeito
à necessidade prática do caso singular está em boas mãos,
junto da Suprema Corte Financeira, cuja jurisprudência tão

12. E. Vanoni, op. cit., Introduzione, p. VI, in fine. Benvenuto Griziotti informa
que o período foi de dois anos, no Prefácio, p. IX, que escreveu para a
tradução italiana do livro de Hensel, Diritta Tributaria, cit.
13. Ver o Prefácio, p. IX, que Benvenuto Griziotti redigiu para a tradução
italiana do livro de Hensel, Diritta Tributaria, cit. (tradução italiana da 3•
edição alemã de 1933).
14. Albert Hensel, op. cit., Prefácio, p. XLVII.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 135

freqüentemente recebe a marca da personalidade de Enno


Becker" .15
E posteriormente a 1933 - como se verá - não só a Supre-
ma Corte Financeira do Reich, mas também toda a doutrina,
continuou a receber, com excessiva freqüência, a "marca da
personalidade" de Enno Becker. 16
Em 1934, a teoria hermenêutica de Enno Becker recebeu
a consagração máxima ao ser aceita pelo Governo Nazista da
Alemanha, mediante a promulgação, em 16-10-1934, da Lei de
Adaptação Tributária Alemã (Steueranpassungsgesetz) que de-
termina em seu:

§ 1Q- Nonnas Tributárias.


1) As leis fiscais devem ser interpretadas segundo as
concepções gerais do nacional-socialismo.
2) Para isto deve-se ter em conta a opinião geral, a
finalidade e significado econômico das leis tributárias
e a evolução das circunstâncias.
·······························································································
3) O mesmo vale para julgar os fatos.
§ 6Q- Abuso de Direito.
1) A obrigação tributá ria não pode ser evitada nem
reduzida por abuso das formas, nem pela interpreta-
ção abusiva das possibilidades formais do direito pri-
vado.
2) Em caso de abuso, os impostos devem ser cobra-
dos conforme uma interpretação legal adequada aos
efeitos, situação e fatos econômicos.

15. Grifou-se; Albert Hensel, op. cit., no final de seu Prefácio, p. XLVII-
XLVIII.
16. Ver o estudo do próprio Enno Becker, Applicazione de lia legge d 'imposta
secondo criteri economici obbiettivi nella giurisprudenza della Corte
Finanziaria de! Reich, Rivista di Diritto Finanziario e Scienza delle
Finanze, 1937, fase. 2, p. 220-5. Ver também o estudo de 1940 de Othmar
Bühler (dedicado a lembrar a extraordinária int1uência de Enno Becker
sobre a jurisprudência e doutrina) publicado na Rivista di Diritto
Finanziario e Scienza deite Finanze, cit., 4:43-6.
136 ALFREDO AUGUSTO BECKER

É muito sintomático observar que, em I 937, comentando


o supratranscrito inciso 1 do § 1Q da Lei da Adaptação Tribu-
tária Alemã de 1934 (" 1) as Leis fiscais devem ser interpretadas
segundo as concepções gerais do nacional-socialismo") o pró-
prio Enno Becker expressamente declara que tal regra "foi posta
em lugar visível como guia condutor, esperando-se que ela
informe e anime toda a aplicação do direito e jurisprudência". 17
E se alguém ainda tiver alguma dúvida sobre a verdadeira
origem e causa da teoria hermenêutica em análise, deverá
abandoná-la diante do depoimento prestado por Othmar Bühler,
na Alemanha, em 1940 (em pleno apogeu do Nazismo) a fim de
ser publicado na Itália (no apogeu do Fascismo) e que tem por
objeto precisamente lembrar a extraordinária importância e
decisiva influência de Enno Becker - desde I 918 até 1937 -
para a "evolução" (como se verá, o que houve foi uma verda-
deira regressão) da jurisprudência e doutrina do Direito Tribu-
tário.
O depoimento de Othmar Bühler (examinado com a pers-
pectiva histórica apontada no presente estudo) é insuspeito jus-
tamente porque ele o fez como amigo e admirador da obra de
Enno Becker. As palavras textuais de Othmar Bühler, a seguir
transcritas, encontram-se no seu referido estudo-depoimento de
1940. 18
Diz Othmar Bühler, referindo-se a Enno Becker: um Uomo,
lo cui straordinaria importanza per lo sviluppo dei diritto
finanziario a partire dei 1918, merita di essere ilustrata anche
su questa Rivista, in cui Egli ha publicato spesso notevoli
contributi sul diritto finanziario tedesco". 19
Mais adiante, esclarece Othmar Bühler: "Tutti gli elementi
essenziali della 'Reichsabgabe-ordnung' del 1919 sono infatti

17. Enno Becker, em seu estudo Accentramento e sviluppo dei Diritto


Tributaria tedesco, Rivista di Diritto Finanziario e Scienza delle Finanze,
cit., fase. 1, p. 161.
18. Othmar Bühler, L'Importanza de Enno Becker per lo Sviluppo dei Diritto
Tributaria Tedesco dai 1918, publicado na Rivista di Diritto Finanziario
e Scienza delle Finanze, cit., 4:43-6.
19. O grifo é nosso.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 137

dovuti a Enno Becker, che con essa creó il diritto tributaria


formale per la nuova amministrazione financiaria, instaurata nel
1920". 20
E prossegue Othmar Bühler: "Enno Becker ha svolto una
straordinaria attività pressa il 'reichsfinanzhof' dai 1920 al '22
como giudice, dai '22 al '35 come presidente della sezione
competente per I' imposta sul reddito. Tale attività e ~i:2.ta da lui
realizzata in modo tale do potere affermare che Enno Becker ha
impresso il suo marchio al lavoro di questa sezione, anzi, di
piu, a tutto il nuovo diritto tributaria". 21
E conclui Othmar Bühler: "Debbo pertanto limitarme ad
indicare quello che Egli mirava a conseguire e che pure ha in
larga misura raggiunto, voglio dire l'elaborazione dei propri
principi dell'interpretazione dei diritto tributaria, la creazione
ed il riconoscimento dei particolare sistema di concetti, propri
di quel diritto. Quale nocciolo di questa concezione, per cosi
dire, la construzione piu cara al Becker, puõ essere indicato il
criterio della 'considerazione economica ', che significava
innanzitutto una messa in guardia contra il formalismo, contra
una acritica recezione di concetti dei diritto civile nella configu-
razione de lia fattispecie finanziaria". 22

20. O grifo é nosso.


21. O grifo é nosso.
22. O grifo é nosso.
CAPÍTULO XXII
CIRCUNSTÂNCIAS QUE
FAVORECERAM A ACEITAÇÃO
DA TEORIA

A seguir, serão indicados as circunstâncias que favoreceram


a aceitação e divulgação da teoria hermenêutica em análi-
se. Todas as circunstâncias atuaram simultaneamente nos diver-
sos países (Alemanha, Itália, França, Espanha, Portugal, Brasil,
Argentina, Uruguai, México). Entretanto, em cada país as cir-
cunstâncias que predominaram foram distintas.
Aquele que - sem orgulho e preconceito - fizer um exame
do consciência jurídico-tributária de seu respectivo país, saberá
facilmente apontar, dentre as múltiplas circunstâncias, aquelas
que predominaram em sua própria pessoa e na de seu país.

§ PNAZISMO

Para se avaliar a íntima vinculação e harmonia do Nazis-


mo com a teoria hermenêutica em análise, deve-se preliminar-
mente recordar aquela fenomenologia que Georges Burdeau
investigou e que batizou com o nome de idée de droit.
Demonstra Georges Burdeau que: "Dans tout groupement
humain parvenu à un degré de maturité suffisante pour
comprendre qu'une certaine discipline est indispensable à la vie
commune, cet ordre se concrétise dans une représentation des
régles dont I' observation est nécessaire. Cette représentation
peut être la fait du groupe entier ou d'une classe seulement ou
même de quelques personnalités dirigeantes. De toute façon à
partir du moment ou elle acquiert une précision et une autorité
suffisantes, elle va être une sorte d'image de ce que doit être la
société. Dans les sociétés primitives cette image se confrondra
140 ALFREDO AUGUSTO BECKER

avec la réalité car on ne conçoit pas encere la possibilité d'un


changement voulu et consciemment préparé. Dans les sociétés
plus évoluées, cette image sera celle d'un ordre social désirable.
Mais, dans tous les cas, c'est d'elle que procéderont les regles
de droit comprises comme des normes de l'observation des-
quelles dépend la réalisation du type de société envisagée.
J'appelle idée de droit cette image ou cette représentation
de ce que doit être 1' économie générale des rapports sociaux,
parce qu'elle n'est au fond qu'une systématisation intellectuelle
d'une organisation sociale en fonction des regles juridiques
susceptibles de la maintenir ou de procure r son avénement" .1
A idée de droit origina-se de uma conceituação do Bem
Comum de um determinado país. Por sua vez, o conteúdo dessa
conceituação depende da filosofia do mundo que- num determi-
nado tempo e lugar- estiver predominando. 2 Por isso o conteú-
do do Bem Comum pode resultar autêntico ou falso na medida
da falsidade daquela filosofia predominante. 3
Tendo-se presente a investigação feita neste estudo sobre a
origem e causa da teoria hermenêutica em foco, não é possível
negar que, no período de 1919-1933, a personnalité dirigeante
(naquilo que se referia à interpretação do Direito Tributário) era
Enno Becker. Pelo ·mesmo motivo, também não se pode negar
que durante aquele período Enno Becker conseguiu plenamente
impor a sua idée du droit no tocante à hermenêutica das leis
fiscais. E a sua idée du droit era tão harmônica com a classe
social que - na década de 1930 - começou a dominar a Alema-
nha e o Nazismo consagrou-a integralmente na Lei de Adapta-
ção Tributária de 16-10-1934.

1. Georges Burdeau, Méthode de la Science Politique, cit., n. 138 (grifou-se);


ver também, do mesmo autor, Traité de Science Politique, cit., n. 37 e 61.
Ver nossa Teoria Geral do Direito Tributário, cit., n. 49, 53 e 54.
2. Georges Burdeau, Traité de Science Politique, cit., n. 37 e 61. Ver nossa
Teoria Geral do Direito Tributário, cit., n. 53.
3. Nesse sentido: Georges Burdeau, Traité de Science Politique, cit., n. 27 e
61; Jean Dabin, Théorie Générale du Droit, cit., n. 143; N. Bobbio, Teoria
deita Scienza Giuridica, Torino, 1950, p. 29-34. Ver também nossa Teoria
Geral do Direito Tributário, cit., n. 49, 53 e 54.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 141

A partir daí, durante mais 1O anos, aquela "idée du droit"


(no tocante à interpretação do Direito Tributário) passou a ser
imposta (com os métodos absolutos, totalitários e exclusivistas
do Nazismo) a todas as cátedras universitárias, tribunais, legis-
ladores e estudiosos radicados na Alemanha e nos países em
que ela, já antes de 1939, dominava ideologicamente ou desper-
tava admiração respeitosa.

§ 22 FASCISMO

A mesma fenomenologia da idée du droit que ocorreu na


Alemanha no tocante à interpretação das leis fiscais, também
aconteceu na Itália fascista. Aqui várias foram as personnalités
dirigeantes. A primeira foi o próprio Enno Becker e seus dis-
cípulos teutônicos que eram lidos sôfrega e respeitosamente
pelos juristas e financistas italianos ansiosos de se especializa-
rem rapidamente no Direito Tributário e atenderem melhor a
voracidade dos orçamentos do governo fascista.
Assim corno o Nazismo na Alemanha, o Fascismo na Itá-
lia criou o ambiente propício, o caldo de cultura, para a rápida
proliferação e gigantismo daquela malfadada idée du droit na
hermenêutica das leis fiscais.
Em 1932, Ezio Vanoni, com seu livro que graças a "un
lungo soggiorno in Gerrnania, un hanno consentito un apropriato
studio delle recenti scuole tedesche di diritto tributário" ,4 con-
taminou a Itália. E quem se incumbiu de espalhar aquela "idée
du droit" por toda a península italiana foi Benvenuto Griziotti
e sua famosíssima "Escuola di Pavia". 5
Para se ter urna idéia da íntima harmonia da tese herme-
nêutica (objeto deste estudo) com regimes políticos ditatoriais,
corno o Nazismo e o Fascismo, e o quanto tais circunstâncias
contribuíram para a regressão da atitude mental jurídico-tribu-
tária da doutrina alemã e italiana, observe-se o que aconteceu
com Ezio Vanoni.

4. Ezio Vanoni, Natura e Interpretázione delle Leggi Tributaria, Padova, 1932,


Introduzione, p. VI, in fine.
5. Ver nossa Teoria Geral do Direito Tributário, cit., n. 29.
142 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Depois de receber uma sadia formação jurídica na Itália,


Ezio Vanoni vai à Alemanha para, num "lungo soggiorno" fazer
"un appropriato studio' delle recenti scuole tedesche di diritto
tributaria". E de lá, volta, em 1932, profundamente perplexo e
intrigado com a "idée du droit" de Enno Becker. Tanto isto é
verdade que Vanoni faz, no seu livro de 1932, acerbas críticas
às idéias e comportamento de Enno Becker. Nessas críticas,
Vanoni revela possuir - naquela época - agudeza e sensibilida-
de jurídica suficientes para sentir repulsa às ideias hermenêuti-
cas de Enno Becker. 6
As idéias de Enno Becker a tal ponto ofendiam a sensibi-
lidade jurídica de Vanoni que de, ao concluir sua análise crítica,
na tentativa de não demonstrar sua decepção pelas "recenti scuole
tedesche", afirma que a posição de Enno Becker era isolada na
doutrina alemã e que a jurisprudência não mais o seguia. 7 Como
já se demonstrou no presente trabalho, Vanoni ao fazer aquela
afirmação estava totalmente equivocado. 8
Ora, em 1937, cinco anos depois (durante os quais sofreu
a influência da circunstância do Fascismo) Vanoni (cansado de
procurar conciliar o inconciliável) não mais vacila e nem mais
sente "ripugnanza" em elogiar teses hermenêuticas como a se-
guinte: "L' affirmazione piú vigorosa - proclama Ezio Vanoni,
referindo-se à Lei de Açlaptação Tributâria alemã de 1934 - e
que lia posta dal § I, comma 3 della Steueranpassungsgesetz,
secando cu i i fatti giuridicamento rilevanti per 1' ímposizione
debbono essere giudicati secando la concezione generale
(Weltanschauung) nazional-socialista con riguardo alla con-
cezione dei popolo (Volksanschauung). La concezione política
dominante diviene cosi uno strumento importantíssimo per ia
interpretazione delle leggi di imposizione, una guida sicura nei
casi dubbi, che secando alcuni si dovrebbe sostituire, como
norma fondamentale di applicazione della legge al principio
dell'uguaglianza di fronte all'imposizione. Ma sopratutto si

6. E. Vanoni, op. cit., p. 202-8.


7. E. Vanoni, op. cit., p. 208.
8. Ver no presente trabalho as pp. 107 a 110.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 143

afferma como la pietra di paragono al tocco delia quale e dato


rilevare se il diritto precedente alia rivoluzione meriti o non
meriti di essere applicato dai funzionario o dai giudice dei nuovo
Stato. Reinhardt, che come Segretario di Stato alie Finanze, fu
uno degli elaboratori delia nuova riforma, scrive decisamente:
'Le norme tributarie, che formalmente non sono sato abrogato,
ma che sostancialmente non si accordano con la concezione
generale nazionalsocialista, sono per questo espressamente
dichiarate inapplicabili ai § 1, comma 3 de lia Steueranpas-
sungsgesetz .. .' 11 § 1, comma 3 delia Steueranpassungsgesetz é
la fonte dei rinovamento dei diritto in quei campi dei diritto
tributaria, i quali non hanno ancora subito un fondamentale
rifacimento dopo la Rivoluzione nazional-socialista". 9
No final do acima aludido estudo, Vanoni faz uma discreta
crítica aos primeiros parágrafos do RAO de 1954, porém ape-
nas na parte referente "ai concetto di legge e di norma giuridica,
ed alio stesso concetto di imposta" .10 Essa crítica não pode ser
atribuída ao critério de interpretação do Direito Tributário con-
sagrado pelo RAO, pelas seguintes razões:
a) no texto, Vanoni refere-se exclusivamente aos concei-
tos de lei, de regra jurídica e de imposto;
b) a atitude de Vanoni em 1932 diante da função legiferante
e antecipatória do Juiz era diametralmente oposta àquela que
assumiu ao elogiar o critério hermenêutica do § 1!l do RAO de
1934 (ver o texto de Vanoni supra transcrito);
c) Vanoni introduziu e defendeu na Itália a interpretação
das leis fiscais segundo a teoria do abuso das formas jurídicas
e da prevalência do conteúdo econômico;
d) Vanoni era o discípulo mais querido da Escuola di Pavia
de Benvenuto Griziotti.

9. Ezio Vanoni, em seu estudo L'Esperienza della Coditicazione Tributaria in


Germania, publicado naRivista Internazionale di Scienza Sociali, set. 1937,
fase. 5; e republicado em Ezio Vanoni, Opere Giuridiche, Giufré, 1962, v.
2, p. 381 e s. O trecho transcrito encontra-se na p. 406.
10. Ezio Vanoni, Opere Giuridiche, v. 2, p. 408, in fine, e 409.
144 ALFREDO AUGUSTO BECKER

§ 32 FASCÍNIO PELA "KULTUR" GERMÂNICA

Ver, no presente livro, o Capítulo 16, nas pp. 90 a 92.

§ 42 MIGRAÇÃO DOS JURISTAS PARA A ECONOMIA

Com razão, em 1950, Norberto Bobbio conclui sua mono-


grafia sobre a Teoria del/a Scienza Giuridica, advertindo que
Monsieur Jourdain fazia prosa sem o saber e o jurista faz, sem
o saber, ciência; ainda mesmo quando ele imagina que os cien-
tistas são os outros e ele apenas um dogmático ou técnico. O
jurista, para fazer ciência, não necessita afastar-se do Direito
Positivo e procurar, como já foi tentado uma vez, a ciência
jurídica no Direito Natural, como substitutivo da pouca ou
nenhuma ciência que supunha existir na interpretação das leis.
A história do Direito Natural é a história de uma grande evasão.
A história da verdadeira ciência jurídica começa quando o can-
saço daquela fuga induziu o jurista a voltar e a compreender
que aquilo que ele procurava fazer fora de casa, podia fazê-lo
dentro de seus próprios muros, onde, pelo longo abandono,
existe angustiante desordem e muitíssima coisa ainda por fa-
zer.''
A história do Direito Tributário na primeira metade deste
século é a história da grande migração dos juristas para a rea-
lidade material das terras da Economia Política e Finanças
Públicas.
Somente a partir de 1945, ao terminar a guerra, é que os
especializados em Direito Tributário começaram a perceber que
eles eram excelentes economistas e sábios financistas e hábeis
político-fiscais, mas não juristas. Por isso, em 1959, o Professor
da Universidade de Bari, Benedetto Cocivera, lamenta que o
Direito Tributário ainda pareça uma Cinderela. 12

11. N. Bobbio, Teoria de/la Scienza Giuridica, cit., p. 235. Ver também nossa
Teoria Geral do Direito Tributário, cit., n. 18.
12. B. Cocivera, Principi di Diritto Tributaria, Mi1ano, 1959, v. 1, p. 13. Ver
também nossa Teoria Geral do Direito Tributário, cit., p. 15-6.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 145

Os principais fatores que induziram os juristas do Direito


Tributário a emigrarem para as terras da Economia e Finanças
foram os seguintes:
a) Autonomia
b) Sistema dos fundamentos óbvios
c) Rebelião do fato contra o jurídico
d) Abuso do direito
e) Esquecimento de que o jurídico também é realidade.
Autonomia. O adolescente anseio pela autonomia do Di-
reito Tributário fez com que se procurasse, com urgência, um
fundamento para tão sagrada qualidade. Esse fundamento lhes
foi oferecido pela "insuspeita" doutrina teutônica da interpreta-
ção das leis fiscais segundo o critério da prevalência do conteú-
do econômico e do desprezo pelas formas jurídicas em virtude
do abyso das mesmas. Além do mais, doutrina essa respeitabi-
líssima porque trazia "impresso il straordinario marchio della
personalità di Enno Becker".
A maior parte dos juristas especializados em Direito Tri-
butário proclamou-se filiada à tese da autonomia, por simples
e pura solidariedade aos colegas que - nas cátedras e nas revis-
tas- desafiavam e lutavam com os administrativistas e os civi-
listas. Um exemplo notável foi o que aconteceu, em 1928, com
a famosíssima briga entre Fr. Geny e L. Trotabas. 13
Hoje, a evolução da ciência jurídica demonstra que o
"problema" da autonomia do Direito Tributário é um problema
falso porque simplesmente não existe a pretendida autonomia e
nem mesmo a sacrossanta autonoma entre o Direito Público e
o Direito Privado. 14
Sistema dos fundamentos óbvios. O Direito Tributário está
em desgraça e a razão deve buscar-se não na superestrutura,
mas precisamente naqueles seus fundamentos que costumam
ser aceitos como demasiado "óbvios" para merecerem a análise
crítica.

13. A luta pode ser encontrada na Revista de Direito Administrativo, Rio de


Janeiro, 20:6 e 26:34.
14. Ver nossa Teoria Geral do Direito Tributário, cit., n. 9.
146 ALFREDO AUGUSTO BECKER

Esclarecer é explicar as premissas. O conflito entre as teo-


rias jurídicas do Direito Tributário tem sua principal origem
naquilo que se presume conhecido porque se supõe óbvio. De
modo que de premissas iguais em sua aparência (a obviedade
confere uma identidade falsa às premissas) deduzem-se conclu-
sões diferentes porque cada contendedor atribuiu um diferente
conceito às premissas "óbvias". Essa dualidade de conclusões
deixa ambos os contendedures surpresos e perplexos (pois par-
tiram das "mesmas" premissas "óbvias"), sem que um possa
convencer o outro da veracidade de sua respectiva conclusão. 15
Rebelião do fato contra o jurídico. Em todos os ramos do
direito e principalmente no Direito Tributário, o jato está em
rebelião contra o jurídico e o linguajar jurídico atual multico-
loriu-se de expressões que denunciam a homenagem que os
juristas, hoje, rendem ao fato: fato gerador, contribuinte de fato,
domicílio de fato, tutela de fato, separação de fato, sociedade de .
fato, filiação de fato etc.
A estrutura de fato parece absorver ou anestesiar a eficá-
cia jurídica em prejuízo da estrutura jurídica. Grande parte da
doutrina jurídica assiste impassível ou até coopera ativamente
para esta inversão irracional da fenomenologia jurídica: o fato
subjugando o jurídico, esquecendo-se que o jurídico existe jus-
tamente para dominar o fato. 16
As três causas da rebelião do fato contra o jurídico são:
a) o desejo por uma simplificação do direito positivo; 17
b) o progresso das ciências pré-jurídicas e o envelheci-
mento das estruturas jurídicas; 18
c) o realismo degenerado em mística. 19
Abuso do direito. Aqueles que negam a liceidade da evasão
fiscal (elusão ou evasão legal) e, na sua ocorrência, entendem
que se deva fazer abstração da estrutura jurídica (o que significa

15. Ver nossa Teoria Geral do Direito Tributário, cit., n. 3.


16. Ver nossa Teoria Gemi do Direito Tributário, cit., n. 26-9.
17. Ver nossa Teoria Geral do Direito Tributário, cit., n. 26-7.
18. Ver nossa Teoria Geral do Direito Tributário, cit., n. 28.
19. Ver nossa Teoria Geral do Direito Tributário, cit., n. 29.
CARNAVAL TRIBUTÁRIO 147

recomendar o abandono da realidade jurídica, aceitando-se ape-


nas a realidade econômica), nada mais fazem do que implantar
dentro do Direito Tributário, empírica e quase sempre incons-
cientemente, a teoria do abuso do direito e todas as confusões
e erros jurídicos que ela costuma gerar. 20
Esquecimento de que o jurídico também é realidade. Muitos
estudiosos do Direito Tributário esqueceram (ou, pelas circuns-
tâncias acima apontadas, não quiseram admitir) que o fato ju-
rídico é uma realidade distinta do fato econômico subjacente e
que aquela específica realidade jurídica é um excelente signo
presuntivo de uma específica capacidade contributiva. 21

§ 52 INVASÃO VERTICAL DOS ECONOMISTAS

Simultaneamente com a migração dos juristas -na primei-


ra metade deste século para a realidade material da Economia,
ocorreu o inverso: a invasão vertical dos economistas para den-
tro da realidade psicológica do Jurídico. 22
Nas asas vertiginosas dos imensos déficits orçamentários,
os economistas passaram por cima da Teoria Geral do Estado
e da Teoria Geral do Direito e foram lançados diretamente dentro
do Direito Tributário. A ignorância dos economistas sobre a
ciência jurídica casou-se com a ignorância dos juristas sobre a
economia. E como os juristas espontaneamente estavam fugin-
do em direção à Economia, então, aconteceu - no mundo - um
fenômeno inverso do da gênese bíblica, pois, no fim era o caos
e dentro dele, patinhando grotescamente, o Direito Tributário
Invertebrado. 23
Tudo isto faz rir, somente quando a gente se esquece que
construir o direito é uma genuína Arte e interpretá-lo uma ver-

20. Ver nossa Teoria Geral do Direito Tributário, Cit., n. 38-45.


21. Ver nossa Teoria Geral do Direito Tributário, cit., n. 133-40.
22. O jurídico é uma realidade essencialmente psicológica: ver nossa Teoria
Geral do Direito Tributário, cit., n. 10-29 e n. 81-100.
O Estado também é uma realidade psicológica: ver nossa Teoria Geral
do Direito Tributário, cit., n. 46-8.
23. Ver nossa Teoria Geral do Direito Tributário, cit., n. 1-2.
148 ALFREDO AUGUSTO BECKER

dadeira Ciência. Ambas da competência exclusiva daqueles que


têm sensibilidade e vocação jurídica: os juristas. 24
É claro que nisso não há ofensa e nem menosprezo ao
trabalho dos economistas e financistas, pois é justamente o tra-
balho do economista e do financista que oferece a melhor e
mais importante matéria-prima ao jurista incumbido de criar a
regra jurídica tributaria. 25
O jurista não é superior ao economista e nem vice-versa.
O que sucede é que cada um tem um muito distinto objeto de
trabalho.

24. Ver nossa Teoria Geral do Direito Tributário, cit., n. 20 e 30-7.


25. Ver nossa Teoria Geral do Direito Tributário, cit., n. 6 e 21-3.
CAPÍTULO XXIII
REAÇÃO CONTEMPORÂNEA
CONTRA A TEORIA

H oje, a principal preocupação dos juristas é a juridicização


do Direito Tributário. Retirá-lo da zona da ciência econô-
mica e fazê-lo voltar para o plano da ciência jurídica. Só assim
poderão ser sanados os extensos e profundos malefícios da infeliz
teoria de Enno Becker.
O primeiro grande sintoma dessa reação é que, hoje, tanto
os juristas quanto os financistas estão de pleno acordo em re-
comendar a rigorosa e nítida separação entre a Ciência das
Finanças Públicas e o Direito Tributário e isto quer no plano
didático, quer no plano científico. Os melhores e mais comple-
tos estudos nesse sentido foram feitos, em 1959, por Romanelli-
Grimaldi (Catedrático da Universidade de Nápoles) e, em 1962
e 1963, por Fernando Sáinz de Bujanda (Catedrático da Univer-
sidade de Madrid). 1
Eu demonstrei exaustivamente o funesto equívoco da teo-
ria hermenêutica ora analisada. 2
Muitos outros autores têm se pronunciado contra a teoria
hermenêutica ora analisada, porém ainda o fazem com maiores
ou menores ressalvas, procurando conciliar o inconciliável, por
saudosismo, por fidelidade aos clássicos e por injustificável

1. Romaneili-Grimaldi, Metodologia de Derecho Financiem, Revista de


Derecho Financiem y de Hacienda Pública, Madrid, 11 (42):731-80, jun.
1961; Fernando Sáinz de Bujanda, no seu livro Hacienda y Derecho, Madrid,
1962, v. 2, p. 47-137 e também no v. 3 (edição de 1963), p. 39-143. Ver
também nossa Teoria Geral do Direito Tributário, cit., n. 7 e as dezenas de
professores ali indicados.
2. Ver nossa Teoria Geral do Direito Tributário, cit., n. 30-45.
150 ALFREDO AUGUSTO BECKER

modéstia que os inibe de declarar cruamente a sua "ripugnanza"


a teoria hermenêutica que lhes ofende a sensibilidade e vocação
jurídica.
Curioso fenômeno ocorreu nos anos de 1950-1960, na
Alemanha. Com exceção do inciso 1 do § 12 que foi revogado
depois de os demais dispositivos (§ 12 , incisos 2-3 e § 62 , incisos
1-2) transcritos neste trabalho 3 da Lei de Adaptação Tributária
Alemã 16-10-1934, foram conservados. Isso não é de admirar,
porque o Professor Othmar Bühler, em 1940, já declara: "la cui
influenza (de Enno .becker) sul diritto tributaria tedesco sarà
accusata anche dopo generazioni". 4
Entretanto, depois de 1958, diversos acórdãos (18-4-1958,
24-1-1962, 16-5-1962), a Corte Constitucional Federal Alemã
recomenda aos tribunais fiscais que se subordinem às estruturas
dicas do direito civil no julgamento de problemas de natureza
tributária. 5 ·

3. Ver transcrição na p. I09.


4. Othmar Bühler, no seu estudo dedicado a analisar a extraordinária influência
de Enno Becker sobre a legislação, jurisprudência e doutrina do Direito
Tributário, publicado na Rivista di Diritto Finanziario e Scienza Finanze,
1940, fase. 1, p. 42-6 (o texto transcrito encontra-se na p. 46).
5. S. C. Navarrine, em suas notas e comentários à tradução argentina da Ley
de Adaptación Impositiva A/emana, Buenos Aires, 1964, p. 35.
XXIV
CAPÍTULO

CONCLUSAO

B astou ao Nazismo, em 1934, introduzir no § 19 do Código


Tributino Alemão o inciso 1: "As leis fiscais devem ser
interpretadas segundo as concepções gerais do nacional-socia-
lismo", para que os Tribunais, apoiados na teoria herroenêutica
em análise (e que lhes era imposta pelos incisos 2-3 do§ 19 e
incisos 2-3 do § 69 do RAO rfe 1919), passassem :>. julgar os
problemas fiscais segundo a ideologia nazista. A atitude, em
1934, do governo nazista induz às duas conclusões seguintes:
a) O governo nazista, sentindo que a teoria hermenêutica
(que fora convertida em lei em 1919) o deixaria ao arbítrio das
ideologias particulares de cada juiz, impôs a todos os Tribunais
uma única ideologia: a nacional-socialista.
b) Com a revogação da ideologia nacional-socialista, a
interpretação das leis fiscais ficará ao sabor da ideologia predo-
minante em cada juiz ou tribunal, que continuará a adaptar a lei
fiscal ao caso concreto, agora, segundo a própria e pessoal ideo-
logia.
A propósito da ideologia política do Estado e da ideologia
particular de cada juiz, leia-se o que foi analisado no Capítulo
13 deste livro, na p. 77.

Você também pode gostar