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A ALEGRIA

NA ESCOLA
GEORGESSNYDERS

DEDALUS - Acervo - FE

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EDITORA MANOLE LTDA
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N.º de Índice

fraduzido do ongmãl !.rances


:...A JOIE À L'ÉCOLE
:Opyright © Presses Universitaires de France

rradutoras

Bertha Halpern Guzovitz


\'faria Crist in11 Caponero
:Membros do Grupo de Estudos franceses de Interpretação e tradução - GEFll)

INTRODUÇÃO, 11

'Ião é permitida a reprodução total ou parei~ d este livro sem a autorização expressa dos editoresr, PRIMEIRA PARTE
CULTURA PRIMEIRA E CUL T URA ELABORADA

CAPITULO PRIMEIRO - Al~ria e alegrias c ulturais, 19


A cultura dá satisfação; Quem ousa falar de satisfação?; O escândalo da satisfação;
Mas também a eficácia da satisfação; E mesmo o valor progressista da satisfação; Os
momentos de queda; Satisfação dolorosa.

CAPITULO li - Evocar lrúclalmtntt algumas satisfações da cultura prim eira, 23


Cultura primeira e cultura elaborada; Há muitas alegrias que não têm necessidade do
sistemâtico; Valores reais e limites cerios dessas satisfações.

Direitos adquiridos para a língua portuguesa pela Primeira Seçllo - Alegrias simples, alegrias ambiciosas, 26
ED ITORA MANOLE L TDA.
Rua Conselheiro Ramalho, 516 - Bela Vista A alegria não fica no elementar; Ser feliz de moto; E no entanto insatisfeito.
CEP. 01325 - São Paulo - SP (Brasil)
Segunda Seção - Grupo de Jovens, 25
Tels. (011 ) 287-0746 - 251 -5427 - Caixa Postal 1489
Valores autênticos e que são acesslveis; E apesar disso; Grupo ou ganguc?; É preciso
Impresso no Brasil alegrias da cultura elaborada; Tarefas que va lorizaremos; Os "eu" e o nós; Teoria e
Printed in Brazil prâtica.

CAPITULO III - Q u a ndo 11 cu lt ura p ri meira to rna-se cult u ra de m assa , 30

Primeira Seção - Abrir-se para o mundo, 30


6 A alegria na escola Índice 7

Presença do presente; Apreender o mundo no presente; É a mim que esse discurso se di- SEGUNDA PARTE
rige; Tornar o mundo compreensível; Isso toma conta do corpo; Imagem e som; Cultu-
ra envolvente; A estrela nâo é uma deusa; Modelos na.o Ião longinquos que sejam deses- CONTINUIDADE-RUPTURA
peradores; Sentir-me unido a um público imenso; Viagem; Não recusar a satisfação;
Não mais a da publicidade; As massas vêem-se.

Segunda Seçao, 37 CAPITULO PRIMEIRO - Evocar Inicialmente algumas satisfações d a cultura primeira, 87

I - Abrir-se para o mundo: Presença do presente; Tornar o mundo compreensível; As duas fontes de satisfação; J ovens, não descpcarninhados; Apelo; Luta cm duas fren-
Modelos próximos; Orcenses; Apossar-se do corpo; Cultura envolvente; Estrela; tes; O que me parece mais vivo em Orarnsci; Miscelânia; Criar continuidade; Enfrentar
Sentir-me unido a um público imenso. a ruptura; Sem via de contorno; 'Manter as duas pontas da corren te; Dar a luz ou ... ; Te-
nho dois modelo~; Os únicos e todos os outros; Em ponta e em velocidade de ponta;
II - A alegria est6 em perigo: Quais promessas?; Ideologia dominante, indústria cultu- Sem continuidjldc·ruptura no conservantismo.
ra; Astrologia.
CAPITULO II - Satlsfaç:io de compreend er, continuida de e ruptura em clfndas, 98
A ciencia inquieta, a ciência assegura; A satisfação da matemática; Ruptura e Continui-
dade; A base primeira; Como ir além?; Aquele que clama a ruptura - e que não supri-
CAPITULO IV - Alegrias da cultu ra ela borada; e sua eltlstêncla Inicial, 45
me a continuidade; A continuidade persiste; De acordo com um critico... e de acordo
com o próprio Bachelard.
Primeira SeçlJo, 45
Alegria da ilusão, alegria de abrir os olhos; Gostar do presente; Grandeza e beleza do CAPl'nJLO III - Continuidade e ruptu ra na luta contra os fracassos escolares, 108
presente; AmbigOidade do presente; Presente e passado; O passado renovado pelo pre-
Preliminar; Alegria além do elitismo; Suplemento de infelicidade, suplemento de
sente; Presença da continuidade histórica; Passado, presente e inovação; Ultrapassar o alegria.
"non-sens", justificar contradições; A ciência existe; Abrir o horizonte; Amplidão e
sigruficaçao; as totalidades; Mundo culluraJ, mundo real; A posse do corpo; O afetivo Primeira Seçllo, 110
não mais seria oposto ao racional; As emoções do conhecimento; Grandes homens que
não esmagam os pequenos. 1 - Trabalho opu6rio, cultura técnica: Os operãrios não são robôs; A técnica como
dominio cultural; A máquina força humanistica; Desde o século XVlll; Pais e filhos.
Segunda SeçlJo - Estar unido a um público imenso, 56 2 - Cultura de luta: Luta organizada e festiva; A pafte das crianças.
3 - A solidariedade: E as crianças.
A cultura arbitrária de classe; Os. fracassos escolares; A cultura não é monopólio de 4 -A história; O presente; O afetivo e o racional poderiam se reconciliar.
uma classe; Conduzir a luta cultural.. . diante da indústria cu ltural. .. diante do difícil
S - Gosto estético.
cultural; Afastamento do intelectual de esquerda; Temor âs massas; Fusão e recuo; A
cultura para ajudar a superar a oposição individuo-sociedade; Isto continua sendo tare- Segunda Seçllo, 120
fa difícil; Esforçar-se por uma arte de massa; A cultura ajuda-me a apreender os valores
positivos das massas; Educar e ampliar o dominio cu ltural; Obras comuns; O Mariage Quatro exemplos em que a escola deve estabelecer ruptura sem desconhecer a continui-
de Ffgaro. · dade: Primeiro exemplo: Dos pequenos trabalho aos técnicos; A vulgarização técnica,
nobre tarefa escolar; Segundo exemplo: A consciencia política; Terceiro exemplo: Con-
solidar a solidariedade; Quarto exemplo: O belo.
Renascimento cultural e nascimento dos sucessos escolares; Progresso dos mais explora-
CAPITULO V - Uma cu ltura l)llra agir, 67 dos, progresso de todos; Ilusão da pedagogia?

A cultura, uma mutação; A cultura, uma encarnação; Sair com dificuldade do banho CAPITULO IV - 0 racismo, 127
morno; Cultivar, organizar; Contemplar e agir; A prâtica insubstituivel; O ami-racismo
.~vado pela ação; A psicanâlise esforça-se para uma sin1esc do conhecer e do agir; O Cultura primeira; O jovem aberto ao anti-racismo; O jovem tentado pelo racismo; Há
marxismo e a sintcsc do conhecer e do agir; Primeira aspecto: O materialismo; Segundo soluções simples?; Recurso ao esforço cultural; Unir teoria e prâtica; Os alunos e ora-
aspecto: A "natureza" humana; O que é natura l?; Os grandes sentimentos, a grandeza; cismo; A passagem ao teórico; Segundo esforço; os outros existem; Terceiro esforço:
Alegria e pessimismo; Uso necessário do pessimismo; Bom uso do pessimismo; Uso ca- escapar ao pràzer do racismo; Renunciar ao bode expiatório; Alegria de que não seja-
tastrófico do pessimismo; O Nimismo, arma revolucio nária; O pessimismo como grito; mos os únicos a sermos válidos; Alegria de que "eles" não maculem minha época; Ale-
Escolho; Papai Noel?; Confiança; O cultural, campo de luta política; O cultural, cam- gria de não ter mai~ medo das diferenças; Alegria de descobrir indivíduos; Minha farnl-
po de luta autônoma; Re~:abelecer a integridade e a integralidade das obras; Visto que é lia diante da humanidade; Alegria do intercultural; Alegria dolorosa; Guerra e deses-
um mesmo movimento que se visa; Sonhar e agir. pero.
8 A alegria na escola Índice 9

CAPITIJLO V - 0 amo r, 140 . Segunda Seç4o - Satisfaçôes intermedi6rias, 206


Cuhura primeira; Músicas; Os companheiros; Continuidade e ruptura; Plenitude; Ul- Mais particularmente na escola; Brilhar.
trapassar graus; Que fazer do mundo ao nosso redor?; Em direção a uma sintcsc do car-
nal e do psíquico; Em direção a uma síntese do presente, do passado e do futuro; Fideli-
dade; Em direção a uma síntese entre o não-desejado e o desejado; Em direção a uma
sintcsc do afetivo e do racional; Em direção a uma síntese de mim e do mundo; Meu CAPlroi.o III - Quanto a "minha" escola, 210
amor e o mundo contemporâneo; Multiplicidade; Amor e valorização da mulher; Inge- Manter, ampliar, transformar; Lembrança da continuidade-ruptura.
nuidade?; Não render-se.
Primeira Seçdo - Minha escola e as relaçôes professores-alunos, 211
Anexo - Letras de músicas de amor, 159
1 - Queixas dos alunos: Passar pelo crivo das obrigações e das relações; Professor-
patrão, professor-professor; Relações que destróem a alegria; os alunos se enganam, os
CAPITULO VI - 0 progresso, 165
alunos têm razão; Relações entre pessoas, relações entre culturas.
Juventude e progresso; As ideologias não progressistas; Por que essa extensão do deses- II - Ultrapassar o coriflito: A escola tradicional não atinge esta meta e certos inovado-
pero?; Mús'icas; Volta ao real; Destacar consensos escolares sobre o progresso; E assim res também não; Não considerar seus alunos "tolos"; "Meu" professor consegue con-
mesmo este progresso existe; Equívocos da psicanálise~ E se os amanhãs começassem vencer, tranqüilizar seus alunos; Ouvir os apelos.
realmente a cantar; Progresso da ciência. III - Progresso das relaçôes, progresso da cultura: Relações laudativamente escolares;
Ter como professor uma verdadeira pessoa; O professor, o ator; Grandeza do ridículo;
Anexo - Letras de músicas de protesto, 175 Os alunos exigem dos professores que sejam felizes; Parceiros.

Segunda Seçao - Manter a obrigaçao, 224


A escola fácil demais?; Manter a obrigaç.ã o transformando-a, para transfor~á-la; As
TERCEIRA PARTE obrigações: algo sobre o qual discute-se; Manter e transformar o diferido; O professor:
uma pessoa cm quem acreditamos; Absurdo e justificação do emprego do tempo; Um
ENFIM A ESCOLA aluno que não escolhe e no entanto seria feliz; Em direção a um sistemático individuali-
il'ITROOUÇÃO, 185 zado; O sistemático unindo-se com a continuidade-ruptura.

Continuidade e ruptura, liberalidade e autoritarismo; Renovar o quê? CAPITULO IV - Minha estola e a liberdade, 232

CAPITULO PRIMEIRO - A escola e a ~ão-satisfação, 188 Primeira Seçdo, 232


Primeira Seçdo, 188 1 - A escola que n4o diz nada: Sonho de agilidade; Crítica do desejo; Trabalhar sobre
o desejo; Não se escapa facilmente das influências; Nenhum ensino é inofensivo; Posso
Em busca de alunos que procuram a satisfação na escola; Alunos queixosos; Inconsis- cu me lançar cm uma filosofia da liberdade?; Ser completamente sozinho e preso a si
tência de muitos conteúdos; O que foi a escola cristã?; A escola laica; a meio caminho; mesmo; Ganhar sua liberdade; Continuidade·ruptura e liberdade; Continuidade-ruptu-
Ter algo a dizer aos alunos; dores culturais. ra, liberdade e modelos; Não temer a multiplicidade.
II - Reconhecer.se... no compreender e no agir; Alegria e escolha; A liberdade do in-
Segundo SeçlJo - Pais, filhos, mesmo combate, 193 térprete.
Oásis?; Reforma e revolução; Eu/nós não escapamos da política. III - Consensos progressistas. Qual sociedade comportará a alegria da escola?; De um
bom uso do mal.
Terceira Seçdo - A seleçdo contra a alegria, 196
Segunda Seçllo, 248
O que fazer? E se a própria idéia da escola progressista desmoronasse?; Felizmente a es-
cola é complexa; A escola escâpa dos dominantes. · · . Pensar por si mesmo; A aprendizagem da leitura; O teatro da vida; Aqueles que nos ins-
piram; Não se aprende apenas matemâtica e gramática; Ousar d!izer "belo"; Paralso in-
CAPITULO li - A escola: suas engrenagens, 20 J fantil?; Realidades e limites da arte da criança; Fecundação e continuidade-ruptura;
Confrontos; Ganhar a originalidade; Papel ativo do modelo.
Primeiro Seçdo - Estrutura Sistematizada, 202
CAPITIJLO V - Inovações pedagógicas hatlbuaJs, 257
O próprio sa ber; O anti-acaso; Não é fácil gostar da dificuldade; Apreço, apreciação;
Quando é preciso ir à escola?; Multiplicidade do obrigatório. Primeira Seç4o - A Alegria da escolha, 257
10 A alegria na escola

Alegria de agir de maneira eficaz, em um mundo facil; Alegria da abertura para o mun-
do; Alegria do trabalho em comum; Alegria das novas relações com o professor.

Segunda Seçllo - Os riscos, 261


Introdu·ç ão
Problemas da escol!;la·; R,isco de rapidez; Risco de cepticismo; "Proble~as da eficácia;
Risco em relação à vida democrática na classe; RJsco quanto às relações professores-
alunos; Risco dos "exteriores".

Terceira Seçllo - Tentantiva de .síntese, 267


Primeiro exemplo: Tarefas e redistribuição das tarefas; Segundo exemplo: A vida da
classe; Terceiro exemplo: Presença do geral; Quart~ exemplo: A.decodificação; Quinto
exemplo: O útil, o real; Sexto exemplo: Do bom uso dos exteriores.

À QUISA DE CONCLUSÃO AUSENTE - Uma escola não "totalitária". 276

BIBLIOORAFIA, 278

Este livro gostaria de se fundamentar em três temas.

O primeiro é naturalmente uma am~ição de renovar a escola; nossa es-


cola tem uma terrível necessidade de ser transformada. Esta renovação,
quero afirmar que só pode se realizar a partir de uma renovação do que há
de essencial na escola, específico na tarefa da' escola: a cultura, cujo acesso e
participação são permitidos aos jovens pela escola. Daí minha preocupação
constante: renovar a escola a partir de uma transformação dos conteúdos
culturais.
A pedagogia age fundamentalmente sobre os ~onteúdos: a inovação é
inicialmente o questionamento dos conteúdos; o que será moderno é a abor-
dagem dos problemas do mundo moderno. Trata-se de transformar a escola
reformulando os conteúdos - portanto, com a ajuda dos especialistas;
obra imensa onde posso esperar melhorar apenas a antevisão de algumas di-
reções. No âmago, toda escola define-se pelos conteúdos que seleciona, pro-
põe, privilegia - os .que ela silencia, e é daí que decorrem as abordagens
correspondentes, porque é o que define o tipo do homem que se espera ver
sair da escola.

O segundo tema é o seguinte: Em todos os países e desde muito tempo,


a escola preenche duas funções bem distintas: a primeira é a de preparar os
jovens para o futuro; para a vida de adultos, em particular, para uma pro-
fissão. :t::sse é um papel essencial, inicialmente por razões econômicas e téc-
nicas evidentes; e também porque assim uma resposta é dada ao desejo de
Introdução 13
12 A alegria na escola
nas classes e expliquei aos alunos que minha pesquisa era sobre a alegria na
crescer, de ser iniciado no mundo dos adultos, de penetrar nos segredos que escola, sempre encontrei alguns que murmuraram: " isto não me passa pela
os adultos detêm; a criança sente que se prepara para inserir-se e agir entre cabeça", ou outra fórm ula do mesmo gênero.
os "grandes"; tem consciência de que o que se passa na escola é valorizado A escola dá aos jovens uma alegria.que legitima os esforços que ela re-
pela sociedade - e não é considerado como uma brincadeira. clama? Na verdade esta pergunta contém uma outra - e que é a verdadeira:
Daí a escola ser vista como lugar constan te de incitações a pensar no como podemos transformar a escola para que ... Dez anos obrigatórios de
futuro: "se você não estudar bastante, não passará para a série seguinte, na escola: são dez anos feitos para a satisfação cultural. Que a escola se apode-
"melhor" turma, não conseguirá o Certificado de Aptidão Profissional re deste provérbio inglês: "o objetivo é ser feliz; o momento para ser feliz é
(CAP)*, o diploma do 2? grau etc." agora: o lugar para ser feliz é aqui".
Esse tipo de exigência é, aliás, profundamente interiorizado pelos alu- Não que o conjunto dos alunos seja infeliz ou revoltado: não estamos
QOS . Quando perguntava para crianç~s de cerca de dez anos: "A escola é le- mais em 68. Para a imensa maioria a escola aparece como uma necessidade
gal?, por que a escola é legal?", de dez respostas nove começavam por um que não se discute, da qual eles não esperam nem drama nem satisfação.
"mais tarde": " mais tarde, se estudarmos bastante na escola, teremos uma "Q~ando é preciso ir à escola, preciso ir", dizia-me uma boa aluna da 8~ sé-
boa situação'', ou, ao contrário, "se o aluno estudar pouco, será varredor rie, retomando a liás o títuJo de um filme do momento.
de ruas ou mendigo". E eu tentava retrucar: "mais tarde, sim é verdade, De fato, meu problema é unir os dois temas que acabo de expor: par a
mas por enquanto, agora o que é que a escola lhe oferece?" e essa pergunta dar alegria aos alunos, coloco minha esperança na renovação dos conteúdos
freqüentemente deixa:va a criança .a trapa lh ada . culturais. A fonte de alegria 'ctos alunos, não a procuro inicialmente do lado
Porque o risco é contudo· que a escola apareça aos alunos como um dos jogos, nem dos métodos agradáveis, nem do lado das relações simpáti-
medicamento amargo que é preciso ser engolido por eles agora, a fim de ga- cas entre professores e alunos, nem mesmo na região da autonomia e da es-
rantir para mais tarde um mais tarde bem indeter;minado, prazeres prometi- colha: não renuncio a nenhum destes valores, mas conto reencontrá-los co-
dos, senão assegurados. E então, a escola cairia na resignação de um pre- mo conseqüências e não como causas primeiras.
sente vazio, até enfadonho, como condição de sucesso social muitos anos Quero encontrar a alegria na escola no que ela oferece de particular,
depois. de insubstituivel e um tipo de alegria que a escola é a única ou pelo menos a
É então que quero lembrar a outra função da escola: do maternal á mais bem situada para propor: que seria uma escola q ue tivesse realmente a
universidade, ela ocupa cerca de vinte anos da vida para os mais favorecidos audácia de apostar tudo na satisfação da cultura elaborada, das exigências
socialmente; um pouco menos para os outros, mas eles ai passam contudo a culturais mais elevadas, de uma extrema ambição cultural?
maior, a mais bela parte da sua juventude. Determinando logo que há, que se trata de resgatar, até mesmo de
Num postulado que entendo muito arbitrário, talvez escandaloso em criar um conjunto cultural que se p_ossa propor a cada idade: o conjunto·
relação à necessidade premente, hoje, de preparar os jovens para o não de- .~ cultural para uma criança de oito anos é a elaboração de suas exper iências,
semprego, gostaria no entanto de destacar o segundo aspecto e consagrar de su a~ surpresas, de seus questionamentos - bem como sua linguagem, e o
este livro unicamente a esse segundo aspecto: pensar a escola e o a luno no cultural estende-se a todos os domínios da atividade quando ela atinge o bri-
presente. O que isto pode oferecer aos jovens, na sua vida de jovens, duran- lho do sucesso; e então cada individualidade, cada classe social pode aí en-
te su.a vida de jovens, passar tantos e tantos dias na escola? Que enriqueci- contrar seu proveito.
mento? - , e quem justifica tantos anos passados, tantas coações sofridas? Minha escola: uma alegria que brota de um encontro com as obras de
E a palavra chave chega bem naturalmente: que satisfação poderia, deveria arte, desde os grandes poemas de amor até as realizações científicas e técni-
dar uma tão longa escolaridade a essa massa de a lunos? É o terreno da satis- cas, de uma· tensão em direção aos mais realizados sucessos humanos, de
fação escolar presente, e não retardada indefinidamente, que eu queria ten- uma participação, de um certo modo de p articipação nos movimentos orga-
tar explorar; não ouso dizer que está para ser criado. nizados pelo que os homens se esforçaram para progredir em seus estilos de
Em todos os casos ele não tem uma existência evidente: quando e ntrei vida. Gostar de um texto, compreender como funciona um motor, apreen-
der o que é capitalismo, o socialismo, o Terceiro M undo .. . começar pelo
N.T. menos a 11preendê-lo, na aproximação, mas também as sementes da realida-
• CAP - Certificado de Apridão Profissional que dá acesso à profissão de operàrio de que cada idade e cada aquisição anterior permitem; agir a partir dessas
qualificado.
14 A alegria na escola Introdução 15

aquisições fortificando-as pela ação, enraizando-as na ação. Alunos que vi- apelo à grandeza da vida e aos desejos dos homens - por isso e talvez prin-
vem no nível dos ideais, dos valores. cipalmente aqueles cuja vida é a mais rude - em continuidade com suas
Ousar proclamar a escola, o que eu ousaria chamar, às vezes, de "mi- lutas, e contra a matéria e contra aqueles que os rebaixam. A ruptura que a
nha" escola, como lugar de satisfação, a escola partindo para a conquista escola vai introduzir consiste, talvez, simplesmente em chamá-los do que .
da satisfação. "Vocês verão, vocês compreenderão quando forem grandes, eles são, até o que eles podem ser. "Você não me procuraria se não tivesse
isto lhes servirá quando vocês crescerem". Provavelmente é verdade, mas me encontrado": por que não retomá-lo por nossa conta?, e são os despro-
quero que os jovens tenham satisfação imediatamente, na sua vida de jo- vidos que procuram mais intensamente.
vens. O que 68 introduziu de mais real, foi provavelmente a exigência da
Um lugar onde teremos a ousadia de visar à grandeza, apostar na satisfação em todos os domínios da vida - e, portanto, também na escola.
grnndeza. Cuja primeira condição seja talvez que se abandone os compro- Eu iria até sustentar que lógica e normalmente a escola deveria ser lu-
missos, as meia-medidas, a "inércia", e que se chegue até as grandes verda- . gar de satisfação, de satisfação c.ultural. É aliás sua definição etmológica.
des', às convicções fortes; não obrazinhas. ( Como comp~uç_d_ss~~ I??d~. e. aproxi~ação _d?.s. g~~n~~s. sucessos
A satisfação que minha escola pro cu~a é uma satisfação cap~ de humanos n~o?, e como é que qualquer distração, por exem- /
transtornar os alunos; não ouso falar de iluminação nem de inspiração; e, __..:y pio, ter um "clic" aparece para tantos alunos como promissora de mais sa- · f
no entanto, ir em direção a uma grande obra, uma excelência, é bem uma· \ tisfação do que a abordagem, na escola, digamos de Victor Hugo? Na reali- \
iniciação - e .precisa=-'S"e ·ne--u.m.a.-iniciaç~o. - · "-. dade, o que apresenta problema e pede explicação é~ f~l.ta .de satisfação, a
./ " · A primeira reforma da formação dos prÕfesiiõféssenapara mim que~ '''h"ãu-satisfação" na esco)a. · · ..
/ eles atingissem um entusiasmo cultural, a confiança de que a cultura que \ Trata-se então, na v~rdade, de desorganizar a escola, a partir de novos

,/

I
eles ensinam pode dàr satisfação a seus alunos; num certo sentido, ela está
destinada a dar satisfação; ensina-se para dar satisfação; ao mesmo tempo
em que se estuda matemática, alunos e professores juntos devem se questio-
nar, sobre a satisfação que se pode ter em fazê-lo. Uma espécie de .propa-
ganda a partir da satisfação: "você não estuda na escola, não pode imagi-
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conteúdos. Por que existe um tal abismo entre o que a escola poderia ser, o
que os alunos poderiam viver - e o que eles vivem na realidade? Por que o
cu.ltural não lhes dá satisfação? Por que o cultural escolar lhes dá tão pouca
satisfação 7
Para tentar responder a estas perguntas, é inicialmente a própria cul-
nar de que satisfação está se privando". Ser professor é ter-se aproximado tura que quero sondar, a cultura escolar, elaborada na sua relação com a
dos grandes sucessos - e estar a seu serviço, querer comunicar a alegria que cultura imediata, primeira e antes de tudo a cultura, a cultura dos jovens.
daí decorre, exortar os alunos a reclamar da escola essa satisfação que lhes é 1 É somente em seguida, nas segunda e terceira partes que me voltarei
devida pela escola. · , . .. .. _ .. .. . . I para a escola.
Não é súficiente·que o's~aiUri~s evitem o aborrédmêií.fo-e"o·desconten- A pedagogia, u~a reflexão em conjunto sobre a pedagogia, a renova-
ta:niento, nem que eles "interessem-se·por. .. " pois o simplesmente interes- ção da pedagogia, isto não diz respeito somente aos alunos mais jovens ou
sante, o não enfadonho não bastam para compensar tantos esforços - e en- aos mais rebeldes ou aos mais "desfavorecidos". Diz-se freqüentemente
contra-se esforços em lugares de acesso tão mais fáceis que a escola. que a pedagogia não tem muita coisa a fazer com os alunos maiores nem
Na escola, trata-se de conhecer alegrias diferentes que as da vida diá- com os bons alunos: eles sair-se-ão bem praticamente de qualquer maneira,
ria; coisas que sacodem, interpelam, a partir do que os· alunos mudar.ão algo basta que o professor conheça bem sua matéria e a exponha de modo claro.
em sua vida, darão um novo sentido a ela, darão um sentido a sua vida. Se é É, segundo minha opinião, passar completamente ao lado do proble-
preciso entrar na classe, é porque, no pátio, vocês não atingem o grau mais ma real: os alunos que não se chocam contra as dificuldades dizimadoras
elevado de liberdade, nem de alegria. a
chegarão ultrapassar as exigências da boa nota e mesmo do sucesso no
exame,-alcançarão eles a satisfação cultural escolar?
O terceiro tema, é que tudo isso parece ao mesmo tempo por utópico e / Quero definir a pedagogia como o que se esforça para conduzir os alu-
terrivelmente elitista: é fácil replicar-se que me dirijo ao aluno ideal, hiper- ,. ...'~s, todos os alunos, para a satisfação cuJt.u.r.~l escolar, para transformar a
escola a fim de que ela Cõlõque a Sãi1S1ãção culti:i'r~feSêófar n~ primeiro pia-
1
favorecido em todos os pontos de vista. , \
Creio ser exatamente o contrário: a cultura que estimo e que me dá "'-- no de suas preocupações.
satisfação inscreve-se em continuidade com o que já existe de grandioso, de
P RIMEIRA P ARTE

CULTURA PRIMEIRA
E CULTURA ELABORADA
f "Você não estuda na escola; não pode imaginar de que sa-
tisfação está se privando."

1
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~.
1
CAPÍTULO 1

Alegria e alegrias culturais


"Não é preciso de tudo para fazer um mundo
É preci.50 felicidade e ,nada mais".
ELUARD

Para circunscrever o tema da alegria ousaria apoiar-me em Spinoza:


"a alegria é a passagem de uma perfeição menor a uma perfeição maior"
(l]*.
E entrevejo assim coisas que me tocam diretamente: ali onde há ale-
gria, há um passo à fi-ente, crescimento da personalidade no seu conjunto.
Um sucesso foi atingido e a alegria é tanto maior quanto o sucesso é mais
válido.
Por oposição, de um lado, à tristeza, na qual o indivíduo é obrigado a
restringir-se, reduzir-se, economizar-se. Por oposição também ao prazer:
satisfação de tal desejo, alegria parcial e não central; momentos descontí-
nuos de prazer, como o encanto de se sentir, em taf instante, bem na.sua
pele. E uma vez que estou no século XVII, retomarei em Descartes a distin-
. ção entre alegria e prazer: "(Não é) sempre quando se está rnais alegre que
se tem o espírito mais satisfeito; bem ao contrário, as grandes alegrias são
comumente melancólicas e sérias, e apenas as alegrias medíocres e passagei-
ras são acompanhadas do riso" [2].
Na alegria, é a totalidade da pessoa que progride - e, em relação à
t1.?talidade da vida: sentir' compreender' força ae agir.

A cuhura dá satisfação - Quero afirmar que a cultura dá satisfação,

• Os números entre colchetes remetem aos números da Bibliografia, infra, p. e seguintes .


1.
20 A alegria na escola Alegrias e alegrias culturais 21

ou melhor, que há culturas capazes de dar satisfação. Isso significa que a Mas também a eficácia da satisfação - Devo portanto procurar ao
caminhada em direção à verdade, à apreensão do real, dá mais satisfação, ~esmo tempo uma cultura que não termine em tristeza, em decepção e que
abre mais esperança que permanecer na incoerência, no aproximativo, no possa ao menos esperar estabelecer comunicação com as massas, e por aí
indeciso. mesmo cooperar com sua ação. Uma satisfação comum de comunicação,
Isso significa também que a satisfação da cultura pode e deve culmi- comunitária.
nar em ação que mude alguma coisa no mundo, participe às forças que mu- É precisamente para não esquecer a infelicidade dos outros, para ter a
dam algo no mundo. · força para participar das lutas, que tenho necessidade da satisfação, que
Em suma, a alegria .da cultura como que fortalecendo a confiança em vou esforçar-me para atingir a satisfação. Satisfações bem intensas para me
mim mesmo, a confiança na vida; amar mais o mundo, apreendê-lo como fazer sentir que vale a pena viver, satisfações da cultura que me farão sentir
mais estimulante, mais acolhedor. o possível desabrochar do homem, o escândalo de sua sorte atual, um apelo
à harmonia, uma exigência de harmonia, e a satisfação de persuadir-me de
Quem ousa falar de satisfação? - Mas evocar a satisfação lança-me que sou capaz de juntar-me a esses esforços.
numa encruzilhada de dificuldades; inicialmente quanto à satisfação mes- Que posso oferecer a meus colegas se eu não soube construir para
mo: ousar afirmar a satisfação, que somos capazes de ter satisfação, que mim algo que já é preciso chamar de satisfação? Na procura desvairada do
podemos pretender à satisfação: ousarei dizer que o mundo de hoje é favo~ prazer, Gide percebeu-o bem: "Há na terra tais imensidões de miséria, de
rável à satisfação., e que não devemos renunciar a ela, abdicá-la. infortúnio ... que o homem feliz não pode pensar em sua felicidade sem sen-
A destreza na escala Wliversal, catástrofes, insucessos, esperanças de- tir vergonha dela. E, no entanto, nada pode pela felicidade de outrem,
cepcionadas; em mim mesmo, dor de envelhecer, minhas longas meditações aquele que não sabe ser feliz ele próprio"[3].
de culpa e de fraqueza; ao meu redor, a extrema dificuldade de comunicar-
me com os que me são mais caros, talvez justamente porque me sejam que- E mesmo o valor progressista da satisfação - Os homens não são feli-
ridos. E quero dizer que há lugar para a satisfação. Mais precisamente, que- zes, absolutamente tão felizes como poderiam ser - e é bem por isso que es-
ro indicar a cultura como satisfação, como um dos meios de conquistar a te mundo, esta sociedade devem ser transformados: os gue têm muita con-
satisfação. fiança nos homens, muita esperança na pos.sibiiidáctê deserem· felizes-;-sô·
Será que a cultura não provoca antes inquietude, dilaceramento que êfes pÓqem~iôm~r parte nos avanços revolucionários;. nãõ será isto o mesmo
satisfação? Será que realmente são os mais cultos que são O$ mais felizes? q~e dizer que eles se.,aproximàm d.esde ago;a·d~..um certo tipo de satisfação?
Não seria, ao contrário, os "simples" que vivem os prazeres simples? Quando Engels grita "o direito da vocação à felicidade" [4], nunca nos
preocupamos com as classes oprimidas: escravos, servos, proletários, não
O escândalo da satisfação - E mesmo se houvesse satisfação na cultu- faz sentir a importância revolucionária que se coloca em relação ao proble-
ra, essa satisfação não seria um escândalo? As obras de cultura elaborada ma da alegria - e para todos?
de que espero ter satisfação não são obras populares ; na verdade, ouvir
Mozart separa-me da massa de meus contemporâneos - e faço parte então
de pequenos grupos de "elite" dos quais sei bem que seus projetos de acão Os momentos de queda - A satisfação, a satisfação cultural, sonho
betem muito raramente com os meus. que ela constitua a armação da minha vida, mas não posso ter esperança de
Escândalo por eu querer ser feliz, no momento em que tantos sofrem; me manter continuamente neste nível; haverá passagens com vazio, quedas
esta famosa satisfação não é ela atingida em detrimento dos outros, tomada e pl'ovavelmente também muitos esforços para reconquistar o domínio de si
sobre.o direito de viver dos outros? E desde então meu conforto, mas tam- mesmo, contra as tentações de deixar ir, deixar cair, de resignar-se a colher
bém esses refinamentos de concertos, diante de todos os que têm fome ... um pouco do prazer e dos abandonos consentido~.
Sou solidário, sou cúmplice pelo menos por minhas aceitações e meus silên-
cios de um mundo que condena milhões à infelicidade. Vou tentar ser feliz Satisfaçiio dolorosa - Esta satisfação cultural comporta a luta para
entre os oprimidos ou estou condenado a ignorar a alegria, e por muito, que maior número de homens atinjam a mais satisfação·- e para que uma
muito tempo? confianÇa culturalmente fundamentada prevaleça sobre o desespero.
É uma alegria sempre incerta a ser mantida a muque, perdida, dissi-
22 A alegria na escola

mulada no desalento, e apesar de tudo, de novo, ela é um fim para o qual


nos dirigimos. CAPÍTULO II ·
Satisfação dolorosa, trágica, da qual a angústia nunca está ausente,
nada que se assemelhe menos a calma uniforme, a banalidade da calma.
Estamos a procura de ... nunca possuidores estáveis, nem assegurados
pela satisfação. Minhas satisfações, pude experimentá-las antes da Revolu-
ção, mas não fora do movimento que vai em direção à Revolução. Refletin-
Evocar inicialmente algumas
do sobre minhas satisfações, percebi que elas queriam ser progressistas. satisfações da cu/tura·primeira

Cultura Ç9meira e cultu~a ~~aborada


- Naturalmente, há múltiplas
·.formas intermediárias e que me colocarão em ·situação embaraçosa, mas há
também para os calvos, para os velhos: a partir de quando se é velho? Quem
é velho? É bem difícil precisar; e contudo há bastante velhos - e jovens.
Vou tentar colocar os dois termos extremos: uma cultura que chama-
rei de primeira e, mais tarde, uma cultura que chamarei de cultura elabora-
da. Sou totalmente incapaz de construir urna exposição teórica sobre a cul-
tura, as culturas,. e de definir em que elas consistem. Seria necessário enci-
clopédias, um enciclopedista. Na verdade, gÓstaria de adotar uma perspecti-
va mais limitada e provavelmente· mais segura: evocar alguns exemplos,
pensando antes de tudo na cultura dos jovens, uma vez que se tratará final-
mente de confrontos com o escolar.

(} ·) Há muitas alegrias que não t~m necessidade do sistemático - Há for-


, __:, mas de cultura que são adquiridas fora da escola, f~to<!!!~.u~~f.~r:n!ª­
ção metódica ~~~.4ii...QJ.Le.n.lQ.$J!.O..().f.r:_~.t.Q.9.QJ.H!Rª.l.Q.o,..do .esfQf_ç9_,)}_cmi
de nenhum pfano: nascem da experiência_.dir~la,.dl;!....YL9.!!d!9.S...aab,SOI.Yt.I!!ºs
se~ber; Vãinos em direção a elas seguindo a inclinação da curiosidade
1 e dos desejos; eis o que chamarei de cultura primeira. -------~------..
"
1
-------:---....
Valores reais e limites certos dessas satisfações - Queria evocar ale-
grias da vida quotidiana, alegrias da cultura de massa: es.sas são verdadeiras
alegrias; não tenho a~solutamente a intenção de enfraquecê-ias: mas tenta-
24
. ,. Algumas satisfações da cultura primeira 25
A alegria na escola

rei dizer no que elas me parecem insuficiente~ e isso em relação às suas pró- A alegria niio fica no elementar - Em j Ul'l'.la_._os momento~ descontínuos das
prias promçssas. _S ustentarei que é a cultura elaborada que pode, melhpr alegrias simples e imediatas vão logo ambicionar atingir a duração, a fidelidade e a
q_l:!~a _cy_ltu.i-_a primeira, atingir os objetivos, isto é, finalmente as satisfações consistência e encontrarão desde então todas as interroga~ões que o tempo <;olo,ca.
da cultura primeira. A cultura primeira visa valores reais, fundamentais: em Em nome de seu movimento própriot~s~ C~f!.1plexas 1 e lançam apelos à cul-
fparte, ela os atinge, em parte, não o consegue: a cultura elaborada é uma tura elaborada; nesse movimento de ultrapassagem, cessam pouco a pouco de serem
/ chance muito maior de viver esses mesmos valores com plenitude, o que simples e tornam-se cada vez mais satisfações.
levarâ a uma reflexão sobre a relação entre cultura primeira e cultura elabo-
Ser feliz de moto - Um dos símbolos dessa cultura primeira poderia ser a....!!l.Q.-
rada, relação esta que me parece colocar-se como síntese de continuidade e
!.Q.a.. ou na falta de, a mobilete: assunto de inúmeras conversas e também de m_iiltiplas
de ruptura. ~'r--" , - ações de desmontagem, remontagem, limpeza, conserto, talvez melhoria. Os valo-
• l e
res dessa cultura e ao mesmo tempo, provavelmente, suas satisfações: tomada de
contato com o mundo técnico, o moderno, o hoje; sentido prâtico, desembaraço que
PRIMEIRA SEÇÃO - ALEGRIAS SIMPLES, ALEGRIAS AMBICIOSAS implicam pelo menos num certo modo de aproximação das coisas complexas (1).
Sentimento de poder, doml~iQ..de.si pr.ópFie,ecasiões..para~medir..:se:....pi:o.vas,
Inicialmente direi algumas palavras das alegrias simples e imediatas. d~~J?.q..Q..t_tgdos_cte.fa.s!l.cess.o.s, .de.tempo de.melancolia..e..1ambém-momentQ.S de.
Por exemplo, banh~r-se e em seguida bronzear-se ao sol: satisfação corporal, eiçaltação.
o puro prazer de se sentir viver, entregar-se a não fazer nada, a não pensar além Embriàguez sensual do ar livre, descoberta de horizontes novos - e livres.
daquele instante. Uma cultura que faz apelo à toda pessoa, tanto ao corpo quanto ao espirito, à cora-
Ou ainda tomar entre amigos um "gole" alegre e aproveitar do calor humano gem: não "fraquejar". não ceder diante da dificuldade. E tudo o que se passa em
que suscita esse "estar junto"; passear suavemente em belas paisagens; de um outro torno do perigo: desde o perigo que exige vigilância até o perigo procurado para usu-
modo, confiar-se no que se chama a fé inquebrantável. fruir de uma intensidade aumentada.
Felizmente, essas satisfações existem; podemos prová-las;·degustá-las logo., es- Vitalidade, ação, efervescência, uma cultura ligada a vida, uma vez que ela
tão logo disponiveis e, afortunadamente, abertas a todos: sem necessidade de inter· não pode perder o elo imediato com o vivido, vivência pessoal e vivência do grupo:
minâveis tensões pem aprendizagens. Essas satisfações trazem em si mesma a marca experiências adquiridas à força do ptinho. Dai um carâter certo, irrefutâv!=l, os seres
de sua certeza. ·· e as coisas impondo-se com força e assim com um certo brilho; como a cultura esco-
São reais e não..se trata de modo algum de renunciar a elas: mas, sob sua forma lar êvitarâ parecer pâlida na comparaÇão?
bruta~são muito instâveis~ Se o individuo quer colocâ-las comofilgúã às p~~<?cupa­
ç.S!es habituais·, não se subentende que l}!nhuma trég\}a pode ..manter-se ROt.m~ito '
temR.o?, "uma simples trégua". - - E no entanto insatisfeito - Apesar de tudo, os problemas de violência e limi-
E sobretudo ~ satisfação não se conserva na sua simplicidade: nosso religioso tações cruéis permanecem: tecnicamente, compreende-se mal o que se faz, e isso li-
fervoroso, a partir do momento em que encontra pessoas que não partilham de sua \ i:nita a eficácia; humanamente, onde está a razão de ser válida, digna dos esforços
fé, vai sentir necessidade de responder-lhes: serâ preciso que ele encontre argu- . dispendidos?
mentos. ' E é uma das causas pelas quais tantos jovens motociclistas reunir-se-ão em
=~- Depois de ter-se banhado e ter-se mais ou menos debatido na água, o indivi- grupos onde encontrarão pessoas mais sensatas, prestes a fornecer explicações mecâ-

I
· ·
duo vai querer nadar, e em seguida nadar bem, vai querer manter com a água uma
. rclaçUo mais sutil~ mais refinada, o que aborda a cultura flsica, talvez a cultura
esportiva, logo a cultura.
A conversa· entre colegas vai ter logo necessidade de alimento - a não ser que
gire em torno de mexericos, o que para bem depressa de ser feliz. r
nicas - e também a explicitar os "porquês" desses impulsos.

SEGUNDA SEÇÃO - GRUPO DE JOVENS

Passear na natureza: esta natureza percorrida, se eu pudesse reaproximá-la da- Acabamos de evocá-la:~meira dos je'i'efts é qult!e sempre cultura
quela que é compreendida pelos biólogos ou representada pelos pintores e fotógrafos de sruoo..
ou cantada pelos poetas, não teria eu um contentamento maior? · Os jovens colocam expectativas enormes na vida de grupo, nos companheiros,
Quando, durante as férias principalmente, digo-me que somos bem tolos ao no grupo dos companheiros; uma de suas maiores alegrias, encontram-na em viver
complicar nossa existência, converto-me à ingenuidade; mas é posslvel sem viver o entre jovens o mundo dos colegas; seja em classe, e é um dos sustentáculos que evo-
questionamento de toda a civilização moderna e levantar assim a ladaínha dos pro- cam sem cessar ("felizmente hâ os colegas"). embora então as relações sejam em
blemas mais ousados? parte impostas pela instituição, seja fora da escola - sobre modos mais ou menos
26 A alegria na escola Algumas satisfaçiJes da cultura primeira 27
organizados, desde o centro de férias, os lugares de animação, até os encontros na . vir de exemplo aos adultos. Os jovens vão afirmar que essa camaradagem é a procura
rua. de valores novos, outros modelos de vida, de acordos novos: uma comunidade fra-
Um dos orgulhos, uma das alegrias que os jovens reivindicam é ter muitos terna, igualitária, autêntica: não se trapacearia, nem consigo, nem com os outros; o
companheiros, e bem diferentes, e viver muito com eles - e muitas vezes pensam diálogo verdadeiro tomar-se-ia então possível, ao invés dessa mistura de compromis-
que os adultos não chegam aí e perdem em relação a eles. sos e dissimulações onde se debatem os velhos (2).
Pode-se estar com os companheiros, encontrar alegria em estar com os compa- A camaradagem é sua própria vida - e é portanto a eles que ele volta para ser
nheiros sem outro objetivo bem preciso, ou para fazer coisas, alguma coisa juntos, e introduzido no mundo dos adultos, para abrir caminho para uma vida renovada
todos os casos intermediários. · para todos, mas, eles seriam os pioneiros.

Valores ·autênticos e que são acesslveis - De inicio, dizendo apenas o mais E apesar disso - O grupo de jovens é ••a generosidade que procura
positivo, quÍlis valores afloram aqui? Uma espera de igualdade, uma procura de passagem". Mas, encontrarão eles esta passagem com facilidade'l Sabemos todos
igualdade, a esperança de trocas, de comunicações sobre um pé de igualdade e não que não é nada disso; os jovens ressentem-se eles próprios do negativo, ou pelo me-
mais ser julgado pelo adulto, chocar-se com a superioridade, com a autoridade dos nos dos efeitos, das manifestações do negativo. O grupci· de ]ovens atinge apenas
adultos ou com sua condescendência; "você ainda é um garoto ... não se pode levá- muito parcialmente a satisfação à qual ele se propunha: os valores do grupo são atra-
lo em consideração". vessados incessantern.ente por elementos contrários - e..t. porque eles mal conseguem
A partir do que os jovens aspiram a compreender se uns aos outros: escutar os ~gar a $118 rcalizaç.ãQ. -
parceiros e serem escutados por eles, persuadi-los e deixar-se persuadir por eles.
O individuo vai poder exprimir-se tal como é, falar como quiser ou, não terá
mais necessidade de disfarçar-se em melhor do que é ou, por provocação, em pior. Grupo ou gangue?- Os objetivos pressentidos pelo grupo permanecem extre-
Um passo em direção à liberdade. mamente sujeitos à imprecisão: o individuo pode unir-se tanto para o melhor como
Satisfação da igualdade mas, ao mesmo tempo, satisfaça.o de admirar este ou para o pior, e também para o indiferente e o intermediário: companhia, bando, gan-
gue. o yandalismo seme-se fayor.c~jdo..pelo núm,co.
aquele ~utro que prevalece pela sua superioridade de esportista, de músico: esperan-
ça de juntar-se a ele em sua ascensão? Nunca deve ultrapassar demais os outros a O desejo, o sonho de igualdade diante das desigualdades exacerbadas: sonha-
ponto de propor o inacessível, como tentam tão freqüentemente os adultos. se com um grllpo unido, ter-se-ia "um bom ambiente" e o indivíduo é obrigado are-
Cada um tem alguma coisa a trazer, a oferecer; o que ele mesmo encontrou, conhecer que está fechado em lobbíes herméticos, até hostis; não chega a se reconhe-
sua aquisição; suas experiências; o que ele sabe, o que ele sabe fazer; e em cem oca- ~r, a discutir juntos, a se compreender: tem-se mesmo dificuldade em se estimar.
si~es ele constata que seus gostos, desejos, ll!'Pirações são partilhados. Dessa forma
0

sai do isolamento, o temor de ser a presa de uma fraqueza excepcional vela-se; o gru- Companheiro ou chefe? - l'lao ignorar o uagico desse lugar de conflitos e de
P<> é o lugar onde cada um pode medir-se, confrontar-se com os outros - e ter con- rivalidade: há excluídos, esquecidos,. bodes expiatórios, chefes. Favoritismo, alian-
fiança de que esta comparação não lhe é sempre desfavorável. Uma primeira via em . ças parciais, turmas ou luta entre turmas.
direção à segurança, os primeiros paliativos para os sentimentos de inferioridade. Certamente, os confrontos começam.muitas vezes no plano lúdico, mas pros-
O grupo dá segurança, o número dá seg'tlrança, dá um sentimento de forç& co- seguem ãS' vezes de modo perigoso no real.
mum: vai ajudar a distanciar-se em relação aos adultos, a rejeitar mais ou menos vio- Desde entãc:>, o grupo corre 9 risco de ser o local onde o jovem faz a experiên-
lentamente seu ascendente - e mesmo sem experimentar uma culpabilidade muito cia de sua inferioridade: "nunca tenho nada a dizei:".
viva; é frequentemente o grupo que vai proclamar os direitos da juventude. As causas da popularidade são múltiplas e esta multiplicidade apresenta pro-
Fazer coisasjuntos: terminar com sucesso um esforço comum - ·e assim atin- blemas ao grupo, pois todas as vias de acesso ao poder estão longe de ser tão fecun-
gir juntos uma realização a qual, se cada um tivesse ficado de seu lado, ninguém po- das: pode-se superá-las ~la força flsica, por pressões e ameaças morais, pelo dinhei-
deria atingir. O .grupo como lugar onde se encontra oportunidade de tomar iniciati- ro, a sedução.da palavra, o prestigio emprestado dos pais, por um entendimento com
vas, assumir responsabilidades, brilhar: "tenho meu lugar, sou reconhecido". uma pequena turma de cCunplices, por um encanto pessoal que vai rapidamente às
Pode-se, em certos casos, ter o sentimento de uma garantia quase direta da so- atrações sexuais - e, portanto, a tantas rivalidades previsiveis.
lidariedade, do sustento entre companheiros, pelo funcionamento mesmo do grupo: Um~ solidariedade :usirn mesmo limitada: ajuda-se o companh.e iro, alguns
em escalada ou em espeleologia, é a regra de manterem-se, sustentarem-se uns aos co~panheiros~ não além disso; os outros, os mais fracos, os muito fracos, ficam fora
outros, até mesmo de se salvarem uns a9s outros. do Jogo. Nilo é nada, é pouco, principalmente se o ligamos aos grandes sonhos
Através do que muitas vezes se chega em maiores ambições: de um lado a comunitários.
igualdade em um determinado grupo tem relação com a idéia universal de igualdade: . Os professores de V,itruve (3) querem em vão adquirir a confiança dos jovens e
de outro lado alguns vão proclamar a juventude em grupo como valor e capaz de ser- dos grupos de jovens; são ainda assim levados a constatar que as crianças exploram-
28 A alegria na escola
Algumas satisfaç<Jes da cultura primeira 29
se umas às outras: no dia em que se está encarreaado da limpeza os outros sujam sem
consideração; ele farã o mesmo no dia seguinte. Tarefas que valqrizaremos - Apelo lançado à cultura elaborada na procura
das tarefas do grupo: pole, em certos casos,~e~-.!!.as quais ~
Trampolim ou refúgio? - Um grupo "coeso" mesmo assim apresenta proble- .....,__ - ~ .•
qualidades de cad!Ll.lm tornam-se manifestas, e, conseqüentemente, as exclusões e as
desvâlorizações arriscam-se menos de se debaterem sobre alguns - sempre os mes-
ma: o indivíduo corre o risco de se afundar nele. Não seria mais uma abertura para o
futuro; talvez vá curvar-se, fechar-se nessa pequena sociedade, vivendo néla mesma. mos a interrogarem-se sobre o que é, para um ou outro, um lugar, uma responsabili-
Permanecer entre jovens para não entrar no mundo, não ler que enfrentar o mundo e
dade que seja favorável a seu desenvolvimento próprio à vida do grupo; organizar
dos adultos entregando-se ·a pequenas ações de guerrilha c~ntra eles. A~ga-se ao também a rotatividade das tarefas~c_t~e..criai:..séries..de.peq_ue~ especiaij_s-
grupo, à conformidade do grupo: um refúgio, mas a alegna de se refugiar revela ~a propor obras onde se realizam efetivamente os jogos e as alegrias de comple-
excessivamente o fechamento. mentaridade, de compensação, e, portanto, vive-se realmente o enriquecimento pelo
grupo: quando por exemplo, o jovem já muito •'intelectual" aproveita da experiên-
cia de vida do pequeno desembaraçado e reciprocamenle.
É preciso alegrias da cultura elaborada - É para ir mais longe que se precis.a
da cultura elaborada, mais longe em direção aos mesmos objetivos que a cultura pn-
meira desejava. . . . . Os "eu " e o nós - No fundo cada um quer que os outros sejam ao mesmo
A cultura elaborada não tem nada do medicamento - milagre; é uuc1almente tempo semelhantes e diferentes dele. Para ter alguma c~ance de superar ·essa tensão'
um esforço para apoiar-se em métodos e procedimentos qu~, de perto ou de longe, entre individualismo e o fazer juntos, não importa qual seja a ocupação descoberta,
relacionam-se com gfandes sucessos, aquisições fundamentais - de tal modo que os um pouco ao acaso não gastará. ·
próprios jovens (mas chegarão a1 sozinhos?) adquiram consciência do que s~ passa É um esforço da cultura elaborada tender em direção a um clima onde •'um
em profundidade no seu grupo; um questionamento inseparável de ten~atlvas de grande número de vontades cujos objetivos são heterogeneos, unem-se para atingir
reorganização. Como fazer para que o grupo avance em direção a essa urudad~ que um mesmo fim" (4a]; procurar ações capazes de fazer progredir em direção a um
ele mesmo deseja?, que se torne amplo, não se curve sobre si e desempen~e o papel de acordo entre os desejos. os interesses individuais - e os objetivos do-grupo, seus pe-.
abertura em direção ao mundo ao qual ele aspira? O que está subentendido pe~a per- didos, o espírito comum; o espírito de comunidade. Trata-se do triunfo do objetivo
gunta primordial: por que é tão diflcil às pessoas entenderem-se, O que se V~l f:izer percebido, não somente sobre as tendências à dispersão e ao retomo sobre si, mas
para que se entendam melhor? Assim uma inquietude, uma percepção dos ~tes, também sobre a instabilidade das mudanças bruscas que fazem oscilar tão facilmente
que ex.igem inspiração em uma cultura que ultrapassou um pouco esses limites, do entusiasmo ao abatimento. ·
modificou essa inquietude. Esforço cultural cada vez diferente, é claro, mas que visa toda vez conduzir à
Nunca é fácil amar seus semelhantes: a cultura primeira procura fazê-lo, o gru- convicção, fortificar a convicção de que os avanços importantes não podem ser a
po vivendo então suas experiências diretas sobre o modo do enc.ontro, da coexistê~­ obra de um só: sem o apoio do grupo e particularmente sem essa duração e essa di-
cia, às vezes simplesmente do calor humano. Para perceber as dificuldades, os parti- versidade de esforços possfveis. no e para o grupo, nenhum de nós teria consegui-
cipantes evocam freqüentemente divergências de caracte~es e de gostos ..Isso não .é do .. . E esse objetivo vale a pena.
falso, mas a cultura elaborada estimula um esforço de lucidez e propõe meios de luci- A medida que tiver progredido na sua unidade, o grupo estará mais disponlvel
dez: interrogar-se sobre os casos em que os reagrupamentos unem na verdade os para desenvolver perspectivas em ·direção ao exterior: não é quálquer conjunto de jo-
"bons franceses" diante dos franceses menos enraizados ou dos não totalmente vens em férias numa região que vai querer entrar em relações reais e não simplesmen-
franceses os socialmente favorecidos diante dos mais explorados, sem esquecer to- le pitorescas, folclóricas, com os jovens que moram Já e, em seguida, também com
das as gr~dações dos "relativamente favorecidos"; o que junta os lugares de mora- os adultos.
dia, os modos de educação; e assim se é encaminhado a sentimentos, modos de ser
diferentes; para os alunos a sucessos escolares diferentes. . . Teoria e prática - Eis um exemplo de unidade entre teoria e prática; o pro-
A cultura elaborada para relacionar as divisões por d1spandades de humores gresso do pensamento e o progresso da vida no grupo apóiam-se um ao outro: o teó-
individuais e as grandes cisões que atravessam nosso mundo - e devem fazer incur- rico sonda as vias dos progressos possíveis, mas apenas adquire vida ligando-se ao
são no grupo. . . que se vive e tenta efetivamente essas desuniões, esse desejo de ·ultrapassá-las. E
Assim o indivíduo é levado a confrontar-se com o mundo, a ampliar seu hori- chega-se a entrever essa união que se esperava há muito tempo: "uma multiplicidade
zonte a ponto de considerar os laços ~ntre o que se passa aqui, bem perto e o que se que é unificada através do choque dos indivíduos (ao modo de uma) orquestra"
(4b].
debate na escala geral. Através. do que o grupo pode tentar não somente compree.n-
der as hostilidades, mas também e principalmente considerar solidariedades globais, Não temerei dizer novamente que a elaboração teórica e prática da cultura ela-
capazes de ultrapassá-las. borada visa não apenas destruir, mas dar toda sua intensidade aos valores e às ale-
grias ao mesmo tempo desejadas, esboçadas - e que apesar de tudo tinham sido
. apenas muito parcialmente atingidas na cultura primeira.
-. r ~,

CAPÍTULO III

Quando a cultura primeira


torna-se cultura de massa

Outro exemplo de cultura primeira: gostaria de evocar a cultura de


massa, evocar inicialmente os valores que contém e as alegrias que ocasio-
na: em seguida indicar porque, a meu ver, tanto uma como outra têm tanta
dificuldade em florescer; e finalmente queria colocar, ainda aqui, a cultura
elaborada como podendo retomar por sua conta o positivo da cultura de
massa e conduzi-lo mais além.
Como vangloriar-me de atingir.esse conjunto tão vasto e tão difuso, as
histórias em quadrinhos e revistas de grande tiragem, os filmes (ou emissões
de Tv) qúe atraem um imenso público, as canções e a música que tocam e
repetem na rádio - e os discos batendo cada vez mais os recordes de venda?
Não quero considerar as obras primas do cinema, as realizações mar-
cantes da história em quadrinhos ou da canção, ainda menos perguntar-me
se a história em quadrinhos em si constitui, pode constituir um gênero düe-
rente; capaz de atingir o supremo. Gostaria de instalar-me na zona comum,
média, que é ao mesmo tempo zona de enorme difusão e de enorme atrati-
vo, poder-se-ia dizer para todas as idades e, provavelmente, para todas as
camadas da população, mas pensarei principalmente nos jovens escolariz.a-
dos; o nível habitual daquilo que nossos alunos vivem. ·
Quais são os valores e as satisfações da obra?

PRIMEIRA SEÇÃO - ABRIR-SE PARA O MUNDO

Uma cultura que abre o mundo diante de nós, q ue nos abre para o mundo, que
31 Quando a cultura primeira torna-se cultura de massa A alegria na escola 32
deixa ver e entenoer v mundo: presença do mundo e por isso presença no mundo; E também, diretamente, quando vejo as hesitações, as imperfeições, os esque.-
nossa sensibilidade pode ampliar-se ao destino do mundo, nossa consciência pode cimentos ou as repetições de uma cena que se elabora, que se procura pouco a pou-
tornar-se consciência mundial. Apreender mil formas de vida e não só o que os olhos co; veja as cortinas do mundo,.. debaixo das cartãs, o medo ou o gesto de despeito do
vêem, o que os vizinhos dizem; vale a pena perceber o que se passa em outros luga- campeão vencido; vejo os grandes homens nos momentos em que sãó um pouco
res. O mundo está próximo de nós, penetra-nos, entra em nós. menores.
Quando se pensa em todas as pessoas que morreram sem ter mesmo visto um
balé exótico, para quem os países estrangeiros eram apenas imaginação e muito arbi- Tornar o mundo compreensfvel - Em relação às situações vividas, às pessoas
'! trários, tomamos consciência dessa imensa ampliação dos interesses e da refinação re.ais,' as mídias aparecem, sobretudo para os jovens, como dando um fio condutor,
l correlativa das emoções. Há, apesar disso, possibilidades para que alguns entorpeci- tornando o mundo mais assimilável, menos opaco. A história que lhes ·é mostrada
mentos sejam sacudidos. tem um início e um.fim , uma coerência previsível e aliás explicável, é construída e se-
Por um lado, podemos ser as testemunhas dos grandes homens, das grandes guida, enquanto que a vida, com maior razão, a vida tal como a criança a está desco-
explorações, e isso no mesmo instante em que são realizadas; por outro lado, TV e brindo, apresenta um número interminável de problemas do qual não se chega ainda
1 rádio podem realçar o banal, a vida quotidiana: fazer ressaltar o interesse do que fa- a ter uma visão de conjunto [l] .
zem as "pessoas simples", dar-lhes oportunidade de exprimirem-se, de deporem co- Compreende-se melhor: para um jogo, por exemplo, o indivíduo é direciona-
mo testemunha - o que vai em direção a um sentido dado à existência das massas. do pelos comentários, está instalado no melhor lugar e são os pormenores significati-
vos, os momentos importantes que são mostrados, sublinhados, :até repetidos - en-
Presença do prese!' te - Essa cultura não é passadista; visa o atual, o contem- quanto que na realidade tudo coexiste, tudo está confuso, e cabe a cada um traçar as
porâneo, vive de modernidade. vias de compreensão._ Facilitaçãoj mas ao preço de oríentaÇão, da qual teremos que
Vai desenvolver-se em duas direções: alegria do presente, usufruir do presente, nos perguntar sua relação e suas diferenças com aquele do professor: a TV escolhe
satisfazer seus desejos no presente. Em particular, o amor é evocado mais frequente- · ~para" o jovem as imagens que ele verá, no duplo sentido de: em sua i~t~ção, mas
mente como alegria corporal, possibilidade logo realizável que sob o aspecto de uma também em seu lugar.
longa p~ocura da perfeição, alegria sempre transferida para mais tarde, prazer amar-
go de insaciabilidade. Isso toma conta do corpo - Uma cultura que toma conta do corpo, faz oco-
Daí a importância, nessa cultura da evocação das férias e também da experiên- ráç.ã o bater, aperta a garganta, para não dizer as tripas. p stá logo presente, sensível,
cia vivida das férias, pois é por excelência o momento em que se afirma a existência . atraente, com9vent ~,_J?.atética,
---
calorosa,

lancinante
1
- .ou, _ero..Qµtros casos, diveiti-
do presente, da alegria do presente. Mudar de· ambiente, provocar deslocamento e da. Um choque, um poder de choque.jEmoções; uma força expressiva, um poder de
ruptura, por definição limitados no tempo, é querer viver não de projetos a longo sedução e de convicção que se impõem, captam'. apoderam-se do espectador-ouvin-
prazo mas para resultados imediatos1 Dizer basta às preocupações e às tensões habi- te, arrancam-no a ele·próprio. Na maioria das vezes o corpo entra em jogo: a dança
tuais, esquecer as dificuldades passadas e as que se pressente para o futuro - e trata- evidentemente e também a participação corporal nos ritmos das músicas; quase não
se de deter o presente nas mãos, saber ser feliz.no presente. se pode deixar de gesticular, de balançar-se e aliás porque privar-se disso? O que os
jovens gostam nessa cultura incorpora-se a eles próprios.
Apreender o mundo no presente - E também o sentimento de atualidade, o Daí um limiar de. vitalidade, às vezes de vitalidade agressiva, de excitação, uma
estimulante de estar em contato com o hoje; -o que se apreende de fato que está acon- vivacidade no modo de vibrar que é pouco atingida por outras vias: a gente chora e ri
tecendo, na indecisão do surgimento não se sabe como vai terminar, toma uma in- no cinema (e portanto na TV) ou ouvindo certas músicas. A gente chora ou ri num
tensidade dramática, uma força emotiva - muito mais dificeis, apesar de tudo, a museu ou dianl<: de uma sinfonia "clássica"?
suscitar quando se trata da morte de César. Seguindo o fato conforme seu desenvol-
vimento, estamos em nosso tempo, para o melhor e para o pior, não nos atras~os, Imagem e som - Sabemos que essa cultura privilegia a imagem .e a música so-
não estamos fora de moda. Um passo a mais: .colocamos-nqs ao que estamos fazen- bre as palavras: unia música intensa, intensa e freneticamente ritmada, à ·procura do
do, ao que estamos procurando; como não sentimo-nos concernidos? Convite pre- trepidante: em muitos casos ela pensa só atingir isso através de um nível sonoro tão
mente para participar do presente, do novo, talvez de um progresso. Em nosso mun- elevado, tão agudo ...
do onde s~ entrecruzam as incitações continuas para se manter atualizado e para se Na imagem, o mundo está logo ali, não somente o mundo físieo; mas também
readaptar, essa cultura permite-nos uma renovação constante de. nós mesmos. e sobretudo .º mundo das fisionomias; marca imediata e imediatamente emocionan-
te, enquanto que as descrições da cultura livresca apenas fazem penetrar na cena pro-
É a mim que esse discurso se dirige - Esse sentimento de aproximação do posta pouco a pouco, contanto que se persevere e que se esforce para sintetizar tudo
presente d~ mundo é a.cres~ido em relação à TV ou à rádio; tenho a impressão· que o o que já foi exposto: não é tornar muito mais aleatório o encontro do patétko?
homem político, a estrela: ~igem-se a mim, quase pessoalmente.
33 Quando a cultura primeira torna-se cultura de massa A alegria na escola 34

Cultura envolvente - Na verdade, tanto o cinema, como o teatro ou o concer- nema"; com as transposições e os arranjos necessários, assim mesmo são elas que
to, desenvolvem-se no cerimonial da sala de representação: incomodamo-nos para servirão de referência a uma grande quantidade de condutas.
irmos assistir ao espetáculo e ao mesmo tempo deixamos nossas tarefas habituais, ou
afastamo-nos do ramerrão quotidiano. É uma saída. Ma.S a TV, os discos e mai9 ain- Os grandes sentimentos - E sobretudo vamos viver e aprender alguns grandes
da o transistor envolvem nossa vida, coabitam conosco; o real, o familiar continuam sentimentos simples, fortes, fundamentais - e em relação direta com a alegria: há
a nos cercar, muitas ações persistem em solicitar-nos: se nosso filho chora .. ., se tele- um Bem e um Mal; o mundo no seu conjunto, mas também cada um em particular é
fonamos ... Há ali riscos sobre os quais deveremos retornar, mas a originalidade a presa, a aposta de uma luta entre o Bem e o Mal. Luta capital e sempre indeci.sa:
positiva dessa cultura é que ela participa de nossa vida, integra-se a nossa existência pode ser que um certo homem se deixe levar, abandone-se ao Mal; alguns dedicaram-
diária e abre assim comunicação com o conjunto de nós mesmos, com a intimidade se ao Mal, o mundo fervilha de malvados. Mas há o amor e sua força redentora. há
costumeira de nós mesmos. Heróis que levam, em todo o Universo, o gigantesco bom combate para arrancá-lo
Ela nos penetra tão mais profundamente do que a "consumismo" freqüente- do domínio do império do Mal.
mente nos momentos em que estamos ao mesmo tempo cansados e distendidos; as Mais perto de nós, grandes figuras para admirar: o devotamento do médico, a
tarefas profissionais, sociais terminaram, estamo~ ávidos de outta coisa. coragem e o espírito de sacriflcio de uma equipe de pioneiros, o jornalista que sacri-
" fica sua carreira pela revelação da verdade, a coragem de não deixar acusar-se um
.1 A estrela nllo é uma deusa - Evidentemente a estrela é o sucesso, a encarna- inocente, custe o que custar, a generosidade que faz reencontrar a alegria de viver. E
ção mesmo do sucesso: luxo, triunfo, amores tumultuosos, caprichos; está separada os Bons chegam às vezes até· a ter esperança de reconciliação entre os homens.'
de nós pQf uma distância que é precisamente o lugar do sonho, do mágico: tudo é tão Não esqueceremos o amor dos animais: os Bons libertam e salvam os animais
mais bonito em volta dela. que os Maus sentem prazer em torturar: o elogio às crianças e aos jovens que apare-
Mas muitas estrelas de hoje, ao contrário das Greta Garbo ou das Marlene cem francos, abertos e generosos no meio de adultos curvados diante dos poderosos
Dietrich, não fascinam como os simbolos de um mundo essencialmente diferente do e dos ricos - e são os jovens que maltratam as combinações equívocas, as seduções
nosso. A ambição de imitá-las, até de juntar-se a _elas não te·i:n nada de sacrilégio; 8:5 interesseiras. A grande força dos jovens: eles ajudam-se 2 •
dificuldades de seus inicios de carrê"iras são ditas e reditas para nós, e é bem a prova A felicidade é conquistada pela iniciação rude, que põe em jogo o todo da pes-
que o sucesso se pode conquistar; na vida diária, são como todo mundo, estão apesar soa, sua coragem fisica e moral, assim como sua inteligência: desde o contar que co-
de tudo a nosso nível, podemos ao mesmo tempo admirá-las e confraternizar com nheceu anos de "duras privações" mas foram eles que "me ajudaram a ser cu mes-
elas. A estrela como prova que se pode atÍngir o sucesso, ser feliz e dar alegria, fazer mo" até Superman: "para ser digno de conhecer nossos segredos, você suportou a
partilhar sua alegria. dor do fogo mais tempo que os outros" - passando por Jedi: a iniciação é aqui
transformação do individuo pela ação constante, a relação próxjma a um outro jâ
Modelos nllo tllo longlnquos que sejam desesperadores - Na maioria das ve- formado: provas ásperas onde unem-se ensinamentos e façanhas.
zes, os modelos que essa cultura apresenta apare.cem àqueles que ai participam com As técnicas de ponta, de vanguarda e de ficção científica unem-se para ajudar
próximos deles próprios, de sua vida, a vida vivida e a vida sonhada. "A música dis- os heróis nos seus combates enormes: homens "desmaterializam-se" e tomam-se en-
se o que eu tinha no coração ... é o que eu já sentia ... é o que queria dizer ... isso me tão invisíveis e todo poderosos; o herói percebe um objeto no "vídeo-espaço-tempo-
diz reipeito" em uma palavra encontramo-nos ai, e é porque isso desempenha;-e com ral". Superman recoloca os destroços de dois aviões que se chocaram "em supcrve-
muita força, um papel efetivo na vida de tantos jovens, tantas pessoas. locidade ... soldando-os com sua termo visão ... questão de micro-segundos".
Como a própria estrela, os modelos são abordáveis; podemos esperar que esses Haverá lugar para retornar sobre a csqucmatização, as simplificações, as mis-
amores tornem-se os nossos. tificações; mas tais temas constituem o que eu ousaria chamar de mensagem cultural
Todo um universo evidentemente superior ao meu, mais bem-sucedido; mais da cultura de massa; e o drama que pesa sobre nós, professores, é que tantos jovens
· luxuoso, mais atormentado também; mâs não me.parece impossivel que eu ai pene-
tre. Enquanto que a tragédia clássica .. .
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"Os super-poderes são detidos pelas grandes nações: esses poderes são perigosos e con-
Ousamos abordá-los ·- É porqúe as pessoas vão à cultura de massa não ape vém cuidar para que sejam bem exercidos para que os homens possam viver em paz e livres"
nas para encontrar divertimento, evasão, compensação aos dissabores, mas porque (Superman, setembro de 1984).
ela desempenha uma função propriamente educadora - e que as pessoas sentem-se 2
Donald nunca tem chance: "Adeus, crianças! fecho-me nesse armário e ficarei aqui atê
felizes por aprender, ~sentem-se alegres enquanto aprendem coisas que as ajudarão o final de meus dias: uma vez que não consigo ser bem-sucedido, retiro-me do mundo" (os três
Qas situações de vida:iCOJ'!lo.comporfar-se ~m uma determinada circunstância, como outros tentam ajudá-lo, não dá certo; no final ele volta a seu armário e eles dizem: "Abra a
conduzir uma aventura amorosa. · porta, não lhe pedimos para sair, mas somente para nos fechar com você") (Mickey, setembro
Naturalmente, essas atitudes não poderão ser adaptadas tais e quais, seria " ci- de 1984).
35 Quando a cultura primeira torna-se cultura de massa A alegria na escola 36
ressentem-se deles, levam-nos a sério nos folhetins, músicas e tão raramente na cul- generalidade: há discos, filmes, emissões que penetraram todos os meios: jovens e
tura elaborada de nossas escolas. velhos, camponeses e citadinos, público "culto" e " qualquer" público - e que
agradaram a todos, encontraram portanto urna linguagem comum a todos. Alguns
Superman, setembro de 1984. pontos de reunião.
A mulher que o ama diz de Superman: Particular importância dos momentos em que filhos e pais assistem aos mes-
"Quando o mal parecia ter-se introduzido até nas casas, foi Superman que mos espetáculos: TV, filmes. Uma possibilie!ade, uma chance de diálogo a partir de
,,
li
veio expulsá-lo. Foi ele que trouxe a luz para a mais horrivel obscuridade quando
não podíamos mais acreditar em nada, ele estava lá, representa o que é bom, o ver-
dadeiro, a justiça".
emoções partilhadas. As crianças constatam que seus pais riem freqüentemente nos
· mesmos momentos que elas, ficam angustiados com as mesmas peripécias; parecem
menos fora de moda, menos mergulhados no seu universo de trabalho, das preocu-
pações - e das múltiplas recomendações.
Diálogo entre Batman e Superman (Batman Poche, n? 49, janeiro de 1984) Há algo de válido, até de grandioso na ruptura, no recesso, na solidão; não é
"Quando penso em todos os infelizes sem pais, sem saúde nem superpoderes, uma razão para negar o que há de real em uma cultura que se propõe ser acessível e
não é dando-lhes facilidade material que se vai ajudá-los; é preciso dar-lhes exemplos comovente para um grande número, uma comunidade que se procura através de um
para que possam ter valores e que sai-bam porque estão no mundo". - público imenso.
Por que não se ousaria falar de comunhão?
Batman Poche, n? 49, janeiro de 1984
"Tendo assistido quando bebê ao assassinato de seus pais, Bruce Wayne pro-
meteu a si próprio vingá-los lutando durante toda sua vida contra o mal sob a identi- Viagem - Já foi evocado o tema do presente e das férias; o assunto da viagem
dade noturna de Bat Man". seria também considerado: esse desejo tão forte, principalmente em tantos jovens,
Batman encontra Haven que lhe diz: de abrir-se para outras formas de cultura e de vida, de entrar em contato com outras
"Tentei encontrar a paz retirando-me da sociedade, construi essa cabana e ten- pessoas; pode-se ver ai uma primeira confiança, um apelo lançado àqueles de todos
tei começar do zero. os países como suscetíveis de trazer o válido, de serem eles mesmos válidos, contanto
BA TMAN - Ao invés de lutar, você deserta. que se ultr.apasse a primeira confusão da estranheza.
HAVEN - Antes de vir para cá, estava cheio de raiva e furor. Isso é desertar?
BATMAN - Você parou de lutar, mas eu quero continuar. Um assassino está Nilo recusar a satisfaçiJo - Creio que Morurn, o da primeira edição de L 'es-
por estas paragens - eu o pegarei". prit du temps (1957), tinha razll.o: a cultura de massa é no seu conjunto, uma cultura
de satisfação. E se o autor mudou de opinião em seguida (segunda edição em 1972 e
Sentir-me unido a um público imenso - Uma das alegrias e também um dos também seu livro intitulado Les stars), é menos, se bem que ele pense, pelo fato de
valores mais seguros da cultura de massa é sentir-me unido a um público imenso. Já uma transformação dessa cultura do que por considerar obras que se dirigem, na reali-
os mitos, os contos permitiam a aproximação de temas que todos conhecem, e desde dade, a um público diferente. Provavelmente também porque na primeira edição, a
sua infância. Hoje, TV, rádio, discos e também jornais: tudo- o que atinge milhões, satisfação aparecia-lhe apenas sob a forma um pouco rudimentar de um jogo, sepa-
atinge-me também; um público de massa, um público mundial constitui-se, e faço rado não somente da angústia, mas de quase todo elemento sério.
parte dele, não estou fora do conjunto. Vibrar em uníssono, participar dos mesmos A cultura de massa é assim mesmo a invasão da felicidade, a proclamação de
acontecimentos, alguma coisa como uma interdependência humana. As histórias em que a felicidade é posslvel; uma procura exigente da felicidade e é bem porque ela
quadrinhos são difundidas em milhões de exemplares; uma música: alegria de tê-la corre o risco de lançar-s~ ao desespero e à droga se não encontrar_logo essa satisfação
ouvido muitas vezes, de conhecê-la bem, de poder cantarolá-la mais ou menos: é que espera, com a qual contava.
porque já a ouvimos que queremos ouvi-la de novo: ao mesmo tempo, satisfação Inicialmente conforto, bem-estar, prestigio; em seguida a vitalidade, o dina-
porque muitos outros a ouviram,-conhecem-na, gostam dela, cantam-na. mismo, a coragem das atuações, pelo que o indivíduo sente-se b·e m na sua pele; e en-
Podemos falar do que vemos, compreendemo-nos melhor, os laços se estrei- fim ou de preferência de um extremo ao outro, amar, ser amado, ser amável, ser feliz
tam, sentimo-nos unidos aos que o viram. SatisfaÇão ao verificar que partilhamos· no amor.
dos modelos culturais comuns, às vezes, alegria de vivê-los em comum: sentimo-nos Uma cultura que tranqüiliza, procura acalmar as angústias, que afirma que ser
mais seguros em nossos gostos e escolhas ao constatar que eles dizem respeito a inú- feliz não. está fora.de nosso alcance; tudo não falhou, pode-se dominar provas: certa-
meros de nossos semelhantes. Saber que não se é o único a gostar de uma música, mente elas existetn, interpor-se-ão de modo inelutável, mas podem não ser tão longas
não se está sozinho, ao reencontrar-se no que ela evoca: partilhar as angústias é ain- - e não chegam fatalmente ao fracasso. O mundo como lugar de aventuras e.as
da assim abordá-las com menos insegurança. aventuras valem a pena serem vividas, conhecerão sua recompensa. Uma cultura que
Às vezes é uma cultura que supera as barreiras e que se dirige a uma espécie de revigora apresentando pessoas que conquistam a felicidade e que, em suma, não são
37 Quando a cultura primeira torna-se cultura de massa A alegria na escola 38
tão diferentes de mim. Ten110 portanto mais recursos do JIUe pensava. "Vocês são enccontram "no ar" são vistas - em todos os sentidos do termo: dali a ser persuadi-
formidãveis". Teríamos o direito, teríamos o poder de sermos felizes. do que a gente os conhece, os compreende ...
Não mais a da publicidade - A publicidade constitui uma das formas mais A partir do que o riscos múltiplos - e que vão diminuir o mundo percebido,
notáveis da cultura de massa: sua força de satisfação provém inicialmente de que no portanto estreitar a satisfação correspondente: a existência perde sua extensão quan-
momento em que ela nos apresenta um certo modelo de vida, afirma que somos ca- do as diferenças entre os valores velam-se: o retorno da estrela no meio das imagens
pazes de atingi-lo; falta-nos muito pouco para encontrar esse estilo feliz, exatamente sobre a fome no mundo. O que é o mais importante? O que parece o mais impor-
de dedicarmo-nos a aplicar esse produto; em seguida, proclama que cada produto, tante?
evidentemente parcial, cobrindo apenas uma pequenina parte de nossa existência, Quando os combates da Resistência estão presentes como façanhas individuais
aumenta contudo, imensamente nossas oportunidades de felicidade total. - e que não se aprofunda a narração até fazer aparecer as motivações, os ideais, os
jogos, eles quase não se distinguem mais, através do espaço e do tempo, de mil ou-
Felicidade e perfeiçlJo técnica: a perfeição técnica do disco, a perfeição técnica tras brigas, e o mundo percebido torna-se muito estreito.
do cinema: não há insucesso, nota errada, nunca há confusão: certamente não estilo Para retomar um exemplo de Cazeneuve, o grande desfiladeiro do Colorado,
ali as causas primeiras, mas antes, meios; estão apesar disso particularmente aptos a visto na TV, corre o risco de não atingir nem o grandioso da vida real, nem as infini-
transmitir temas de sucesso, de felicidade - embora exista também um cinema da tas possibilidades do imaginário: a generalização espreita.
incomunicabilidade e do desespero. Abrir-se para o mundo supõe que a acuidade do mundo não se embota; a sim-
patia pela dor do outro como a admiração dfante do novo, do grandioso não vão
As massas vêem-se - A cultura de massa, cultura que se dirige.às massas, é gastar-se de tanto serem tão visto? Depois de ter assistido a tantas catástrofes e revo-
também uma cultura que sabe deter as massas, apresentá-las, representá-las, por luções, sofrimentos e mortes, crimes e bandid06, como resistir à monotonia do
exemplo quando se lançam numa manifestação. A mesma cultura faz vibrar as mas- atroz? É, apesar disso, verdadeiro que todas as cenas de fome parecem-se sinistra-
sas e as mostra vibrantes; podem assim, pela primeira vez, verem-se elas próprias mente.
frente à frente - e isso numa época em que desempenham um papel cada vez mais Há mais a dizer; o mundo difundido onde o reaf mistura-se tão de perto com o
considerável. Através do que a cultura de massa penetra no coração de nosso tempo; fictício acresce por isso mesmo seu caráter de espetáculo; e ·um espetáculo, olha-se,
e na expressão "cultura de massa" permanece apesar de tudo alguma coisa do senti- mas não se prepara para intervir a fim de transformá-lo: provavelmente porque ele
do revolucionário desse termo "massa". parece demasiado irreal e longiquo: mas a abstenção o torna ainda mais longínquo e
irreal.

SEGUNDA SEÇÃO Presença do presente - Alegria de se sentir ligado ao presente.


Mas um primeiro limite encontra-se do lado da precariedade: caráter efêmero
A cultura de massa tem inúmeros motivos para gostar da alegria, para querer a das produções da cultura de massa. Por exemplo, os filmes têm uma vida muito cur-
felicidade. O que temo é que essa alegria não possa desabrochar tanto quanto pro- ta: o primeiro ano de exploração d~ um filme assegura 73% dos espectadores, e o se-
metia porque esbarra em muita oposição e limites. gundo 180Jo [3]. Quando reencontramo-lo na cinemateca, é um outro público, com
um outro estado de espírito. Pode-se ainda falar em cultura de massa? Uma emissão
de TV é raramente programada mais de duas vezes. Sucesso fulgurante de certas mú-
1 - Abrir-se para o mundo sicas; mas a imensa maioria, mesmo as que pareciam as mais atraente, saem da moda
e desaparecem - ou encontram apenas uma existência envelhecida de coisa velha en-
É belo abrir-se para o mundo, contanto que o mundo seja realmente amplo, ternecedora.
variado - e solidamente existente. Provavelmente não se pode separar essa brevidade da pressão de um público
É o contrário que se passa, quando o real, o histórico, o documentário vêm de jovens, cuja própria definição é de se renovar.
confundir-se com o imaginário, o ficticio: entre os cosmonautas autênticos e os mar- , Um segundo limite é bem mais perigoso para a satisfação. É o momento de
cianos fabulosos, muitos telespectadores hesitam; chega-se a seguir, na TV, os dra- lembrar as palavras levemente irônicas de Riesman, as quais não perderam nada de
mas verdadeiros como se fossem outras tantas cenas de cinema. sua atualidade:
Certamente o individuo quis dar início ao conhecimento, à apreensão do real; "Eles conhecem, porque os viram e os ouviram, os homens de Estado e as es-
procura-se alguma coisa, promessas, mas na "difusão", na "radiodifusão", o difu- trelas, os campeões e os cientistas. Estiveram em todos os países; as assembléias deli-
so ameaça [2] . Fatos, muitas vezes pitorescos, mas fragmentados, parcelados, deS!_~: beraram erri sua presença, os cirurgiões operaram diante deles; sabem o nome dos
cam-se sobre um fundo que permanece muito incerto. É uma guerra, mas qual? É melhores detergentes e estão a par das grandes antecipações cientificas" (4).
uma acusação injustificada, mas quando então vivia Dreyfus? As perguntas que se Abordar os problemas presentes, quentes, controvertidos: é o papel do jornal
39 Quando a cultura primeira torna-se cultura de massa A alegria na escola 40
- e também dos debates, tribunas etc., onde aparece a pluralidade dos pontos de
vista, o que evita de "catequizar" - e de ser pesado, aborrecido.
I~ Sobre um exemplo simples, em pequena escala, pode-se perceber essa redução
das perguntas de conjunto a uma série de problemas puramente individuais: um jor-
Mas ninguém pode conservar a palavra muito tempo - expor e justificar sua nal de jo vens levanta o problema dos exc luídos em um grupo, vai-se simplesmente
opinião argumentando-a a partir de precisões técnicas e pormenorizadas: o tempo é 1 dar a palavra a um ex-excluído que soube tomar-se útil a um companheiro, em segui-
limitado em ui tas vezes os participantes silo numerosos; não se pode contar com uma 1 .da a um outro - e ganhou assim pouco a pouco sua reintegração no grupo; procedi-
"próxima vez", com intervalos aproximados, para aprofundar. mento bem hábil para contornar todo questionamento global sobre a estrutura das
Donde muitas vezes tira-se disso principalmente o sentimento de que tudo é relações e dar contudo ao leitor a impressão que a pergunta foi compreendida.
sustentável e aliás tudo está sustentado: desordem, ceticismo: esse presente, no mo-
mento mesmo em que se quer despertar o interesse por ele, merece ainda que a gente Modelos próximos - Alegria de se reconhecer (e de reconhecer os que se co-
se interesse por ele? nhece) nos modelos próximos. O risco é que essa proximidade tome a forma esque-
Entregando-se às vezes ao exercício espetacular de entrevistar não importa mática dos estereótipos: o Judeu avarento, o Negro boa criança mas ... o adolescente
quem, sobre não importa o que, insinua-se que cada um sabe tanto quanto os que sa- em crise de contestação, a avó sensata e meiga, as massas afastadas por um agitador
bem alguma coisa. etc. Num primeiro momento essas simplificações dão prazer porque parecem claras e
Esta familiaridade com questões de hoje e sobretudo com pessoas de hoje, em evidentes; na realidade, é porque foram cem vezes espalhadas, destiladas que pare-
que medida vai ajudar a ancorar-se no atual, em que medida todas essas opiniões, to- cem corresponder à realidade vivida. O dia em que nos tornamos realmente amigos
dos esses acontecimentos que se entrecruzam, entrechocam-se, fazem do presente al- de um verdadeiro Negro, somos obrigados a rejeitar clichês; reconhecer que se dei-
go de fluente, de angustiante - e portanto quase não se pode mais pensar em esperar xou enganar por tais fórmulas pode levar a um esforço de aproveitamento - mas
satisfação? 1•' também a um ceticismo desencorajado acerca de todas as espécies de explicações.
! Os estereótipos do Negro, do Judeu, do operário, de tanto serem propagados,
>' Tornar o mundo compreensfvel - A tentação da cultura de massa é tornar o acabam por ganhar um cunho de "imparcialidade": os romances que descrevem
mundo compreensível através de um-discurso imediatamente seguro - e que não aceitando o colonialismo e a inferioridade congênita dos "indjgenas" acreditavam
questione as estruturas sociais, os poderes sociais.; não fazer política, enquanto que os que adotavam posições inversas ... Pensaremos
- Donde largas zonas de silêncio, grandes ausências: muito raramente serão evo- nos famosos exemplos dos enunciados de problemas de aritmética: é "objetivo" fa-
cados o trabalho como exploração, as greves duras, a vida dos trabalhadores; as ve- zer calcular benefícios, lucros - mas é escandaloso avaliar a proporção de operários
zes em que o individuo será, apesar disso, levado a colocar em cena as massas, elas atingidos por silicose.
aparecerão essencialmente como passivas, sofrendo os acontecimentos, afastadas. Os estereótipos têm um efeito conservador, conformista, contribuem para sus-
Como desde então esperar confiança e alegria de um mundo onde as pessoas fora do citar uma atmosfera de fátalismo: querem-nos persuadir que é "natural" que os Ne-
lance, "fora do jogo" são tão, tão numerosas? gros ou as massas ou os Judeus comportem-se de tal modo e que sejam tratados co-
Para apresentar as dificuldades nas quais o mundo se debate, quase sempre mo conseqüência (de tal comportamento); cada um deve ser mantido em seu lugar,
apontar-se-á toda a luz sobre individualidades: alguns elementos abusivos (e tanto não pode ser de outro modo; o que sobra como esperança de avançar?
mais espetaculares) apresentam problemas; seus danos podem e devem ser contraba-
lanceados por outros indivíduos, não menos espetaculares evidentemente: é porque Orcenses - Os lazeres, a cultura de lazer para engajar-se numa apreensão do
certos Brancos são ávidos a que os Negros se revoltem; se bons Brancos intervêm, a mundo; mas os " circenses" podem servir para dissimular os problemas essenciais:
solução do conflito está bem próxima. por exemplo, o futebol na América do Sul, temperado com uma: boa dose de chauvi-
Corre-se o risco de acreditar que se compreende o mundo porque ele foi recon- nismo, pode ser utilizado para que as massas esqueçam a miséria e suas causas.
duzido a um jogo simples de boas e más vontades pessoais. E também conosco, franceses, devemos tomar cuidado para que o lazer, as fé-
Se um trabalhador não pode reembolsar aos bancos o dinheiro que lhe empres- rias, não sejam um meio de fazer.esquecer que o período - cada vez mais longo -
taram, ou é um indivíduo que não tem consciência profissional ou foi vitima de um do trabalho exige urgentes transformações . Não apostar tudo sobre um breve perío-
outro indivíduo sem êscrupulos - a rigor' de um fenômeno acidental (furacão etc.). do de prazer renunciando a aumentar a alegria do quotidiano.
Inversamente tudo pode arranjar-se, por exemplo, quando apare.ce o bom ofi-
cial, o bom policial que dissimula as insuficiências e as carências dos maus ou negli- Apossar-se· do corpo - A alegria imediata de uma cultura que toma conta do
gentes. corpo, que dá nó na garganta. Mas esse choque, se é violento, é parcial: parcial no
Só existem os indivlduos, e desde então como cada um conhece bastante indi- tempo, a emoção tão viva é logo esquecida e a música de sucesso substituída por uma
víduos, pode sempre "explicar" a disfunção, pelos defeitos de um ou de outro; se os outra; parcial quanto à pessoa: não atinge o conjunto do indivíduo, mas apenas al-
ônibus andam mal, é porque os motoristas são preguiçosos, "conheço um que é mui- gumas atitudes, alguns movimentos, muitas vezes é como um choque brutal, que vou
to preguiçoso". negar em seguida, vem precipitar-se sobre mim, apodera-se de mim, tenho quase a
41 Quando a cultura primeira torna-se cultura de massa A alegria na escola 42
sensação de que me violenta e que vai-me fazer naufragar; prazer de naufragar, mas
também medo: sou eu mesmo que estou em questãv, em jogo? nem segui~a de uma terceira que retomaria o m'!:smo problema impelindo-o para de-
E sobretudo o risco, o limite, o elemento contrário; é que, para chegar aí mais senvolvimentos mais complexos.
facilmente, não se escolhe muito; nos outros povos, nas outras regiões o que é o mais Por outro lado, isto é verdade para toda cultura de lazer, inclusa a cultura ela-
surpreendente, o mais afastado de nossos hábitos, o mais estranho: a singularidade borada, por exemplo, o teatro.
de algum folclore, os momentos de crise, de catástrofes sensacionais. Mas a TV vai muito mais longe nesse sentido, uma vez que ela faz. passar por
Mas, quanto mais se vai nesse sentido, mais os países, as pessoas aparecem co- um sistema que Friedman chamou a •'sandwichage' '. Um movimento de sonata apa-
mo estravagantes, colocadas a distância, difíceis de apreciar; é com dificuldade que rece entre uma emissão cômica e uma reportagem esportiva, alguns minutos são con-
se pode comunicar com elas; não vão elas logo parar de nos tocar? sagrados à pintura moderna entre vinte outros assuntos. Algumas emissões são enti-
tuladas "variedades"; na realidade é quase sempre sobre o modo da variedade que
Cultura envolvente - Alegria de uma cultura que se desenvolve em união com funcionam rádio e TV. Tem-se medo de cansár os espectadores ~- ouvintes manten-
nossa vida; mas corre-se o risco de que ela se desenrole na nossa vida confusamente. · do-os longamente fixados em um mesmo assunto e sobretudo tem-se medo de deixar
A atenç.ã o não sendo sustentada, como numa sala, pela presença de um públi- escapar esse público imenso se cada um não encontra logo com o que satisfazer seu
co numeroso que segue o mesmo acontecimento, nem ajudada por uma arrancada gosto. É preciso ainda saber se querendo levar alegria a todo mundo, não se reduz a
do meio, dos hábitos, por uma solenidade que marcaria a ruptura; vai-se escutar, pouca coisa a alegria de todo o mundo. Será que se progride na alegria de Bach ai in-
por exemplo, o transistor a qualquer hora, em qualquer lugar; impõe-se-lhe silêncio tercalando o rock? Progride-se na alegria do rock intercalando Bach?
tão facilmente quanto se linha solicitado. Quase do mesmo modo para a TV: a músi-
ca e as imagens misturam-se às conversas, às tarefas habituais. Fundo sonoro, ruído
de fundo. Confusamente: isso significa que o cataclismo visto na TV vai-se misturar II - A alegria está em perigo
com o assado queimado.
A atenção está pouco disponível, é raro que esteja longa e unicamente disponí- Essa mesma cultura de massa que reclama e proclama a alegria, o direito à ale-
vel. Freqüentemente se vê sem olhar, ouve-se sem escutar. A palavra, a música, o es- gria coloca a alegria cm perigo.
petáculo nos atingem sem que tenhamos feito esforço para arrumar-lhes um acesso,
sem que nos tenhamos colocado em estado de acolhê-los. Corre-se o risco de apreen- Quais promessas? - A publicidade promete ao consumidor não só um denti-
der apenas algumas migalhas, alguns momentos descontínuos, portanto deforma- frício melhor e que torna os dentes mais brilhantes, mas a felicidade total de ser aco-
dos; corre-se o risco de perder até a idéia porque para isso há um esforço a fazer, lhido de braços abertos e a boca exatamente entreaberta para seus amigos e sua ami-
uma atitude interior e exterior a suscitar. Como desde então esperar que essa cultura ga desde que tenha utilizado o melhor produto; seus aborrecimentos, sua solidão,
penetre-nos tão profundamente para nos dar alegria profunda? sua dificuldade para amar, era portanto muito menos grave do que se imaginava: o
. U~a certa desconsagração da cultura, quando a une a vida familiar, pode todo da vida arranja-se logo que se tiver conseguido tal detalhe, nossas ambi~es
constituir um progresso para a alegria, na medida em que incita cada um a ir em dire- grandiosas podem progredir a partir da limpeza quotidiana, desta limpeza por este
ção âs obras ao invés de ter medo delas; corre o risco de ser um recuo se ele leva adis- produto. Mas não é insinuar que elas são muito menos grandiosas do que imagina-
solver a obra em quaisquer incidentes domésticos. mos? Se bastam pequenos detalhes, processos simples para nos tornar felizes, não es-
taria essa felicidade reduzida a uma poeira de pequenos prazeres simples?
Estrela - De tanto clamar e proclamar o elogio, o panegírico, o triunfo das E tão freqüentemente são prazeres que escapam a nosso poder; na cultura de
estrelas, a cultura de massa corre o risco de apresentar como bem-sucedidas na vida massa, inúmeros são os casos onde o sucesso é devido ao acaso, à boa sorte: o che-
apenas individualidades brilhantes, casos, façanhas que maravilham: campeões, can- fão, tomado de amizade, muitas vezes assegura sua carreira em seguida a um inci-
tores, algumas profissões de prestígio ou de mistério (detetives). dente fortuito; o encenador que passa justamente por ali vai transformar a desconhe-
E os outros, todos os outros, vamos abandoná-los à mediocridade uma vez cida em estrela.
que seus sonhos do prodigioso falharam? Não se dirá apenas a improbabilidade do milagre, mas também que a felicida-
de estã presente como uma exceção, exceção individual ou de um casal, ou melhor,
Sentir-me unido a um público imenso - Uma das alegrias da cultura de massa de uma familia; um elemento, ou acontecimento foi capaz de compensar, a seu
é que se oferece simultaneamente a todos e que, de um certo modo, cada um sente-se favor, imensos desperdicios - dos quais nos fazem ouvir que são, para todos os ou-
ligado a ''todos''. O limite é que ela não se ajusta a ninguém, não se adapta a tal ní- tros, sua sorte quase natural.
vel ~e conhecimentos, a tal estágio de preparação; não manifesta um esforço siste- Dai os limites que vêm oônter a alegrfa: no fundo recomendam-se considerar
mático para conduzir um tema até o conjunto de suas conseqüências possíveis. as coisas com bom humor, sorriso, humor: encará-las de outro modo antes de querer
Uma emissão sobre um assunto não é precedida de uma outra que a prepara, torná-las diferentes - e para o resto contar com essa famosa oportunidade; revoltar-
se não serve para nada, conduz ao pior; é o fato de pessoas ingênuas ou desnorteadas
43 Quando a cultura primeira torna-se cultura de massa A alegria na escola 44

ou manipuladas, freqüentemente jovens, enquanto ainda não "realiiaram seus dese- Através de um meio ou de outro, mesmo quando ela eleva-se até as estrelas, a
jos profundos". Na melhor das hipóteses, eu seria a exceção, minha alegria seria a ideologia dominante vai ao conformismo, à passividade.
exceção, com um travo ·de resignação. É defensável? ·
Se o mundo está condenado à fatalidade das crises e das guerras, à desumani-
dade das defrontações, à oposição irredutivel entre individuo e sociedade, como es-
perar que eu e os meus constituíssemos a ilhot·a preservada?
Proclamar, ao lado de algumas intervenções fenomenais, a fatalidade do que
existe, suspeito muito que é um modo de não ter que lutar pela sua mudança; essa
abstenção agrada minha preguiça, meus medos, muitas vezes ela concorda muito
bem com uma situação "não muito desfavorecida". Sinto apesar de tudo que ela
comporta uma forte dose de má fé - e que para manter-me, devo colocar-me adis-
tância das grandes ondas de protesto e de luta, ali, ao meu redor; não ultrapassar o
nível da inércia do difu5o: olhar pela pequena extremidade do binóculo. Mas será ver
fingida, mesquinhamente; posso esperar grandes alegrias?

Ideologia dominante, indústria cultural - As fraquezas da cultura primeira


não provêm apenas das dificuldades internas de um pensamento que não maneja os 1:.
instrumentos necessários para se analisar. '
A cultura de massa é fenômeno de indústria cultural, nas mãos da indústria
cultural; a qual, de um lado, está à procura de vantagens, de outro lado está desejosa
que sejam o menos posslvel modificadas as estruturas sociais que, no conjunto, não
lhe são desfavoráveis; um mercado cultural. A história em quadrinhos "corrente" é
uma me.r cadoria reproduzida e· difundida de um modo industrial, a preços baixos,
em massa .e para as massas. Uma música conhece a grande difusão contanto que seja
apenas pregada, sustentada, aclamada - e répetida pelq rádio e pela TV, donde em
seguida as pilhas de discos. ·
Unem-se assim·os problemas de dinheiro e a vontade de difundir uma ideolo-
gia dominante, destinada a manter e a consolidar o poder da dasse dominante, a
obter a ad.esão ou pelo menos a resignação dos dominados. Uma ideologia extrema-
mente difundida e insinuari~e: uma vei que a classe dominante coloca à sua disposi-
ção os m~s poderosos meios de difusão.
A ponto de que são as vítimas da mistificàção que são as melhores preparadas
para prestar-se a isso docilmente: e são os operários que estão persuadidos, que se
deixaram persuadir que os filhos de operários não são ' "feitos para" os estudos.

Astrologia - Corre-se o risco de que a crise atual, na confusão que ela suscita,
não vá reavivar velhas credulidades: o domínio dito "paranormal", a astrologia, os
videntes. A dificuldade é maior do que nunca para não se deixar tevar por reações de
irracionalismo. Barthes mostrou com sutileza e humor quanto a astrologia conduzia
rapidamente ao conservantismo: "Os astros nunca postulam uma inversão da or-
dem, influenciam a curto prazo, desejosos do estatuto social e dos horários patro-
nais. As variações.propostas pelos astros são fracas, não tendem nunca a transtornar
uma vida" (5). E as qualidades pregadas são as mais tradicionais, as que permitem
sofrer antes que transformar, colocar um pouco de óleo nas engrenagens rangedo-
ras: gentileza, paciência.
CAPÍTULO IV

Alegrias da cultura elaborada,


e sua existência inicial

PRIMEIRA SEÇÃO

Eis o que eu gostaria de sustentar: Existe uma cultura elabórada que


conduz aos valores e as alegrias em'direção aos quais tendem a cultura pri-
meira, a cultura de massa - e com tanto mais força e amplidão; afirmações
muito firmes, ultrapassando as limitações e as barreiras; o que pode comu-
nicar à ação um impulso mais garantido. É sobre seu próprio terreno que
vejo a cultura elaborada rivalizar com a cultura primeira e superá-la.

Alegria da ilusão, alegria de abrir os olhos - A cultura primeira visa à


alegria de se abrir para o mundo e no entanto ela é ameaçada incessante-
mente de ser uma cultura de evasão: decepciona-se com a existência que se
leva e é para tentar esquecê-la, que o indivíduo projeta-se em heróis de so-
nho e impossivel; quer ser enganado; quer imaginar que t ais aventuras po-
deriam nos acontecer; como os heróis, nós colecionaríamos sucessos, se ao
menos a sorte nos sorrisse como a eles. Em uma fantasia que tanto gostaria
de se crer verdadeira, quer-se ao mesmo tempo esquecer-se e esquecer as
lacunas da vida - em beneficio de compensações imaginárias.
H á uma cultura elaborada onde se penetra tanto mais profundame.nte
quanto se sente melhor a riqueza da existência e do mundo - e, a partir
dela, aspira-se a 'µma riqueza ainda mais iluminadora.
Não deixar de lado o que sei, o tempo de uma leitura ou de uma emis-
são, supor-me no lugar de todos os papéis que não pude desempenhar; mas
46 A alegria na escola Alegrias da cultura elaborada, e sua existência inicial 47
também desejar que, na própria vida, eu estenda minha existência além do resgatar os fatos que vivo, em toda sua capacidade, sua intensidade possí-
que comecei a adquirir dela, fortalecendo os sentidos q ue percebi, confir- vel: através do fervilhar confuso de polêmicas, de incidentes, de detalhes
mando as uniões que comecei a atar. técnicos, são de fato escolhas fundamentais que se nos propõem; e alguns
vão adquirir valor exemplar: "elevar, quando eles merecem, os aconteci-
Gostar do presente - Há um mundo de alegria que só o presente pode mentos politicos à dignidade de acontecimentos históricos" [1].
dar, pois o ·presente é o lugar de minhas tarefas e dos meus projetos; mesmo Freqüentemente tenho necessidade também da cultura para perceber a
se podemos, se devemos compreender e gostar do passado, é muito evidente beleza da minha época, tarefa mais dificil que prestar homenagem aos tem-
que só podemos agir no presente. A cultura elaborada só me trará plena- pos passados. Pintar "o heroísmo da vida moderna", atingir "seu lado épi-
mente a alegria que espero se (evidentemente sem negligenciar o passado) co", pois não é muito evidente mostrar "como somos grandes e poéticos em
ela for até o fim, até o presente, se, mesmo quando se ocupa do passado, ela nossas gravatas e botas engraxadas" [2a].
se estender ao presente, às técnicas de hoje, às obras contemporâneas, às ta- A cultura para amar e enriquecer o quotidiano: lá mesmo onde o hábi-
refas contemporâneas. Uma cultura que me ajuda a tomar consciência do to, o cansaço dos atos sempre recomeçados correm o risco de atenuar minha
mundo de hoje e me faça sentir que é digno apaixonar-se por ele - a despei- sensibilidade; a obra cultural pode me fazer considerar como apaixonante,
to de tudo . excitante - ou escandaloso o que me cerca; consigo melhor, agora, desco-
Evidentemente este presente é também.o lugar de meus erros e de meus brir o familiar, desfrutá-lo ou sofrer com suas fealdades .
fracassos, de minha participação em erros, em fracassos mais globais; daí a Os Impressionistas transtornaram o universo pictórico, mas também
alegria dolorosa, sempre cheia de inquietudes e remorsos, mas já tive que nosso universo quotidiano, assim que renunciaram aos "grandes assuntos"
me perguntar se não é assim que se coloca em verdade a alegria cultural. religiosos ou históricos para contar a beleza dos objetos simples, das cenas
Primeiramente, esse presente que a cultura primeira glorifica tanto e habituais.
atinge na verdade tão pouco aparece-me freqüentemente como um caos, até Dois artistas, aliás completamente diferentes um do outro, ajudaram-
um episódio de decadência; diante disso sinto-me sobretudo esmagado pela m~ a sentir esta alegria do quotidiano. A poesia de Francis Ponge proclama
minha impotência. Daí a tentação de, por despeito, retirar-me, de me refu- a "consolação materialista" descoberta no figo, na batata, no copo d'ágn
giar, pelo menos em pensamento, em um outrora que quero representar Deixo-me levar à alegria de algumas citações: descascar uniu bat<t.
como porto de estabilidade, porto de força. Ora, também tiro proveito d<; cozida ... parece, reconhecendo a perfeição do fruto nu e a facilidade .
um certo número de vantagens do mundo atual, antes de tudo do conforto, operação,. que se tenha cumprido algo de justo, há muito tempo previst•)
preservando-me de considerar o conjunto do presente, nem os balanços: desejado pela natureza, que tivemos, todavia, o mérito de executar".
vivo somente alguns setores parciais, mesquinhamente e, logo, com pouca E, para falar da água, a água que escoa ou a água repoµsando no co-
alegria. po: "líquido é, por definição, o que prefere obedecer ao peso para manter
Tenho necessidade de uma cultura que me ajude a gostar do presente, sua forma, o que recusa toda forma para obedecer ao peso" [3].
manter-me no presente e manter o presente com intensidade e fervor e não E, no outro extremo do quotidiano, Fernand Léger trouxe-me o sus-
na espera. Antes de tudo, apreender as possibilidades, os recuos que este tento de que eu tinha, provavelmente, necessidade de consentir à sedução
presente encerra, reconhecer as forças que o animam no que elas têm de ati- dos objetos industriais, fabricados:, comercializados, modernos: "tons pu-
vo e de criador e ·porque, na maioria das vezes, seu impulso foi contido. ros ... medidas exatas ... força, potência geométrica das formas ... (dos pro-
Uma cultura que me dá a alegria de viver minha época em sua amplidão e dutos) claros e precisos ... no ponto" [4]. Há uma alegria advinda das novi-
com toda a amplidão de que sou capaz, de partilhar o ardor de sua procura dades mecanicistas, das realizações técnicas, e nós retomaremos isso mais
e o terror de suas falências; não me deixar submergir pelo mais imediata- longamente; como consolidá-la na vida dos homens de hoje?
mente visivel e pelo mais freqüentemente repetido: ameaças, confusão, Ao mesmo tempo, é verdade, somos enviados às ameaças inerentes à
abandonos. Também não crer tão depressa no paraíso. vida quotidiana dos homens. Brecht deplora que soframos tanto para des-
Vale a pena participar com todas as forças de minha adesão e de mi- frutar do "lirismo", porém certo, encerrado nos objetos fabricados. Talvez
nha revolta, das esperanças e das lutas. nossa doença provenha de que não possamos admirar a silhueta de um
avião sem pensar nos bombardeios .
.Grandeza e beleza do presente - Tenho necessidade da cultura para
' ,_

48 A alegria na escola Alegrias da cultura elaborada, e sua ex~stência inicial 49


Ambigüidade do presente - Amar em sua dificuldade de ser e seu es- como cada homem , tem alegria em se lembrar da infância. A Grécia consti-
forço para se afirmar, em suma em sua arnbigüidade, as formas modernas tuiu no desenrolar da história, uma infância soberanamente bela e feliz, daí
da existência que, freqüentemente, a cultura primeira oiJ rejeita ou exalta a pe~cepção amante de sua proximidade com nossa idade adulta, nossa ida-
como definitivas. Já Baudelaere reclamava que não se deixasse atenuar "o de atual {6a].
fantástico real da cidade" e convidava-nos a admirar "a solenidade natural Para dizer a verdade, a resposta de Brecht parece mais convincente e
de uma cidade imensa ... os obeliscos da indústria ... os elementos comple- de um alcance muito mais geral: "a humanidade gosta de conservar a lem-
xos de que se compõe o doloroso e glorioso cenário da civilização"· [2b]'. brança de suas lutas e de suas vitórias; ela comove-se quando se lembra de
Não sejamos como aqueles que admiram a coluna de um templo babi- seus esforços ... todas as tentativas feitas pela humanidade para melhorar
lônico e desprezam a chaminé de uma fábrica. . sua condição, cujo sucesso ou fracasso as literaturas descrevem-nos,
· Os objetos do trabalho quotidiano "trazem a marca da natureza im- preenchem-nos com um sentimento de confiança" [7a].
pura, amalgamada-do homem"; e é com efeito porque o papel do poeta será
"penetrá-los em um ato de amor desenfreado". O passado renovado pelo presente - Assim quero atingir a alegria de
"Quero que, na saída das fábricas e das minas, minha poesia esteja unir o presente e o passado: viver as obras qo passado sem as cortas do meu
aderindo à terra; ao ar, à vitória do homem maltratado" [5a]. presente. A pbra passada está datada, em relação a tal época; mas também
a obra passada está presente, ela faz parte de nosso presente. Os grandes he-
Presente e passado - É para amar melhor e compreender o presente róis da cultura, Hamlet, Don Juan, Faust: de um lado posso considerá-los
que é preciso ligá-lo ao passado; trata-se de apreender a realidade em seu significativos historicamente, daí minha alegria de estabelecer comunicação
desenvolvimento; só po.sso esperar apreender a realidade em seu desenvolvi- com aqueles que encarnam tais momentos cruciais do caminho humano. Eu
mento. diria, ao mesmo tempo, que eles conduzem-me a uma tomada de consciên-
Freqüentemente a cultura primeira esforça-se, também ela, mas mui- cia, uma tomada da minha consciência bem além do ponto que tinha atingi-
tas vezes instala-se com tanto prazer no atual que não consegue integrar o do por mim mesmo. Estas duas afirmações conciliam-se à medida em que a
passado; um passo a 111ais, e ela vai tratar de poeirento, de livresco tudo o cultura ajuda-me a viver a continuidade dos esforços dos homens P!U"ª
que não é da última safra. transformar, para ordenar o mundo e seu destino; o sentimento da unidade
Justificar, fundamentar estes laços históricos é difícil - e é por isso humana, não como um simples dado, mas tarefa a recriar e a verificar na
que tenho necessidade da cultura elaborada. proporção em que penetro mais profundamente na alegria cultural. Aliás,
Por muito tempo minhas alegrias culturais foram encobertas por um certos contrastes, distanciamentos, certos sentimentos do acabado são tam;
dilema: ou as obras do passado são passadas, são outras, seu interesse é es- bém fontes de enriquecimento.
sencialmente documentário, a admiração que suscitam é histórica e longín- Das obras do passado desfrutarei sem trair minha época, sem renun-
qua e éorre o risco, afinal de cpntas, de ser exterior a minha vida; no limite, ciar a nenhuma das riquezas da minha época; pelo contrário, é a partir da
este seria um meio de me refugiar fora do presente. Ou as obras do .passado demanda que emana do mundo de hoje que eu posso interrogá-las - e
podem tocar-me, atingir-me - e no âmago. Mas então não é verdade que animá-Ias. Pois são as grandes obras do passado que, ainda hoje, abrem a
existe uma imutabilidade da cultura, a que corresponderia uma imutabilida- porta a novos sentidos, a interpretações múltiplas, ainda não percebidas até
de dos comportamentos e das situações humanas? O mundo não muda, o então porque o presente do público não se tinha ainda alargado com expe-
tema do progresso, da cultura do progresso, seria .ilusório. riências que nós agora atravessamos. Dar a V. Hugo "a cor do tempo" , não
Se dizemos que as grandes obras do passado s'âo como espelhos onde é forjar, sob o nome de Hugo, um porta-voz à moda do século XX; é real-
me reconheço, onde reconheço o que vivo, onde até en,c ontro o sentido do mente escutar as acusações e as esperanças do ·século XIX através do pro-
que vivo atualmente, não correríamos o risco de ir em direção a um huma- gresso e das decepções que o século XX nos comunicou . "A heran_ça cultu-
nismo eternizador que negaria as diferenças, as distâncias e o tempo? ral não saberia ser considerada como constituída de criações do passado que
De fato Marx já ha.via encontrad'o este problema, quando admirava nos limitamos a sacudir dando-lhes um sentido ao gosto d!o dia ... A heran-
que a cultura da Grécia antiga permanecia tão presente, enquanto todas as ça cultural faz-se a cada dia, sempre foi criada no presente, é o presente que
condições sociais (escravidão), todas as ideologias religiosas .(mitologia) se torna o passado" [8).
· tornaram-se radicalmente outras. E ele havia respondido que a humanidade,

...
50 A alegria na escola Alegrias da cultura elaborada, e sua existência inicial 51

Presença da continuidade histórica - Os fundadores de religiões, por ao dinheiro e à concorrência, ao realizarmos uma certa unidade de acolhi-
exemplo, que seja Buda, Jesus ou Maomé, são, na realidade, reformadores mento na escola para todos os alunos, fingimos, porém, ignorar as desigual-
de religiões pré-existentes. E de modo geral, cada pensador, cada artista se • dades nas condições de vida material e afetiva, as distâncias desiguais à cul-
formou conforme sua personalidade própria e em um conjunto de imitações tura proposta; se muitas liberdades individuais são garantidas, esu~mos bem
e de lutas com seus predecessores. O pensamento é o diálogo com o mundo, longe da liberdade, para cada um, de trabalhar nas melhores condições pos-
mas também com os outros pensadores, cada um retomando a questão do síveis· não é a discordância que reduziria a zero as aquisições já obtidas e
ponto onde a tinham deixado alguns de seus predecessores, a partir de opi- bloq~earia toda esperança: é o grau de coerência atingido pelas contradi-
niões divergentes que eles lhe haviam legado. ções de tal sociedade, em tal momento de sua história. Compreendê-la e
Assim, a obra cultural é uma colocação em comum, nunca uma reali- continuá-la por uma penetração mais profunda na realidade que na expe-
zação isolada, fechada em si mesma; cada uma é testemunha da sucessão riência imediata.
humana de um grau, por assim dizer, total da sucessão humana. Eis uma
das alegrias que nela experimento: sinto viver um patrimônio comum, não
abordo uma ilhota arbitrária. A cultura para que eu sinta a história corno A ciência existe - A existência da ciência é a confirmação de que exis-
ponto de apoio; não estou perdido na imensidão dos tempos, o mundo é te um elo, um acordo entre as coisas e o homem. À medida em que o com-
histórico, isto é movimento e transformação, o contrário do repetitivo, do preendemos, o dado deixa de ser uma massa esmagadora; confi'.1°ça. n~
imutável - ou do caótico; ele pode e deve ser renovado. possibilidades de nele nos encontrarmos. A ordem que esperamos 1mpnm1r
Quanto melhor se conhecer o encadeamento e a acumulação das expe- ao mundo não é, portanto, sem relação com o mundo . Não estamos no
riências, das tradições, mais nos tornamos capazes de retomar os problemas exilio.
do ponto onde eles encontram-se depois de terem conhecido tais tratamen-
tos, tais progressos - e é por isso, agora, que se pode tentar ir mais longe.
Atendo-se aos lados mais explorados, a história vai ajudar a ''avaliar
a soma de esforços e de sacrifícios que o presente custou ao passado e que o
e;1sta
Abrir o horizonte - A cultura elaborada que procuro é o "ponto de
que abre mais horiwntes" [2b]. Não se trata de levar em silêncio mi-
nha própria vivência, minha prática pessoal, mas, enquanto eu permaneço
futuro custa ao presente'' [9a]. na experiência primeira, corro o risco de ser prisioneiro de alguns destes
exemplos, destes detalhes que vi, alguns destes casos que conheço.
Passado, presente e inovação - A cultura para criar o novo,r·.1ovos Meu ambiente de vida, meu pequeno terreno pessoal, sem dúvida ne-
modelos, novas relações sociais, forma-se tomando o destino nas mãos, em nhuma real é, mas limitado e fechado em minha individualidade; e minhas
uma sociedade onde haja possibilidade de tomar o destino nas mãos, onde ações correm o risco de se tornarem movimentos parcelados.
valha a pena compreender o que SP passa. A alegria da cultura elaborada é a alegria de ampliar minhas aquisj~
ções sem as trair: adquirir uma visão junto dos problemas e das tarefas; fa-
Ultrapassar o "non-sens", justificar contradições - Quando me dei- zer aparecer os elos entre o que vejo, o que penso viver - e os acontecimen-
xo levar pelos primeiros movimentos, em muitas ocasiões é o absurdo, o de- tos que atravessam o mundo. E assim, apreendo mais dados e os apreendo
sespero que me submergem - a menos que eu me refugie no idílico; a a le- com mais acuidade, pois eles Biminam-se ul'ls pelos outros. E ao mesmo
gria que espero da cultura não é de maneira alguma assegurar-me de que es- tempo, sou concernido por mais, participo mais, é assim que posso esperar
ta desordem é simples aparência, de que tudo está bem como deve ser, mas compreender meu lugar, encontrar e tomar o meu lugar.
justificar as próprias contradições, na esperança de fazê-las progredirem. Submerso pela amplidão do que há por descobrir, mas sobretudo
Brecht diz ao mesmo tempo: "A confusão, a desordem de nossa épo- sujeito à alegria que se desprende da amplidão das perspectivas o parcial ad-
ca, eis o assunto da arte" e "o prazer artístico provém de um sentido dado quire sua significação quando é recolocado nos conjuntos a que a cultura
aos fenômenos" [7b]. É o confronto dessas duas frases que me parece ilu- me introduz.
minádo, sobretudo se chegássemos, além da ar te, a estendê-lo a toda a cul-
tura. Não parar com o "non-sens" aparente, nunca descansar com o senti- Amplidão e significação: as totalidades - O que existe, aquilo a que a
do já atingido. Se a igualdade triunfou sobre a escravidão e os privilégios do cultura permite-me chegar, são totalidades que se tornam, então, significa-
berço - embora a desigualdade tem livre curso em relação à propriedade, tivas, coerentes - coerentes em suas contradições. É isto que está por ser
A legrias da cultura elaborada, e sua existência inicial 53
52 A alegria na escola
paz de vencer o choque efetivo - através disso constituindo uma prope-
compreen dido! que pode ser compreendido . O conjunto, somente o conjun- dêutica eficaz ao choque efetivo: "um ser real, com quem nos simpatizamos
to pode se tornar "transparente e racional" (10]. · tão profundamente, em grande parte permanece-nos Õpaco, oferecendo um
O que parece evidente à primeira vistà, à cultu~a primeira, por exem- peso morto que nossa sensibilidade não pode soerguer" [1 3]. O papel da li-
plo, a população e sua divisão entre cidade e campo ou a " lei" da oferta e teratura é transmutar o obscuro da vida no que Proust chama de "o imate-
da procura, são percepções apenas parciais; elas só adquirem sua significa- rial": o cultivo simbólico das idéias e do sentimento evocados - e eis-nos
ção plena em relação a categorias como o valor, a divisão do trabalho. Estas agora menos desorientados, menos perdidos, menos solitârios também.
categorias não são dadas na experiência imediata; "falta-lhes a matéria for- De um modo mais geral a obra de arte facilita meu acesso ao mundo,
necida pelos sentidos", elas são o resultado de um trabalho cultural dificil. minha apreensão do mundo: para que o objeto seja mais fácil de ser apreen-
Estabelecem-se ao nível da globalidade - e são elas que são " determinan- dido com um só golpe de vista, a pintura reduz suas dimensões e renuncia a
tes", capazes de constituir um fio diretor na multiplicidade das aparências representar seu volume; a escultura, suas cores e tanto uma quanto a outra,
[6b]. os odores, as impressões tácteis. Uma simplificação que direi quase pedagó-
Inserir o vivido "em uma estrutura mais vasta de que ele faz parte e gica e que me permite ir mais ao fundo [14].
onde ele tem uma função " (12] - e é esta inserção que d â ao evento isolado
seu alcance sem destruí-lo. A posse do corpo - A cultura elaborada ·não pode .,~ gabar de atingir
. Situar-se em relação à totalidade: "elevar-se até a inteligência do con- os mesmos efeitos de surpresa que a cultura primeira; ela não pro..:urarâ
JUnto do m?vimento histórico ... os fins ~erais ... a expressão geral" [6c] : é imitar o êxito súbito, a gesticulação direta da cultura primeira - e no en-
para Marx tr tão longe na apreensão do mundo que o intelectual de origem tanto, ela não deve se r~duzir a exposições fria~. insensíveis, que hablf~m o
burguesa ~ode adquirir disso uma consciência revolucionária. Compreen- exterior de nós mesmos.
der ~ par.llr do centro e agir de maneira central: o centro de um conjunto Sonho (e procuro a partir de Brecht) uma cultura elaborada que susci-
que Jâ existe mas que precisa ser recriado sempre, jâ que se trata de reuni-lo te um abalo profundo do afeto, que desencadeie emoções, até violentas,
contra as f~rças de dispers~o, de purificâ-lo das mistificações heterogêneas pois não hâ cultura (e muito menos cultura escolar) que se possa exprimir
que nele se introduzem, CUJO exemplo mais político é este: "recolher e con- sem patética.
centrar as gotículas e pequenos riachos da efervescência popular e reuni-los· O avanço que espero em relação à cultura primeira e a seu abalo, é que
em uma única torrente gigantesca'' ( 11). ela se integÍe ao conjunto da pessoa: ela faz progredir o conjunto da pessoa;
~m~ .cultura que ultrapassa as múltiplas queixas contra os privilégios nunca teremos que enrubescer com ela, que renegâ-la; é o contrârio de
~es~e individuo ou contra a pressão exercida em tal caso por aquele outro atordoar-se, embriagar-se. Assim ela seria capaz de forjar a unidade de mim
md1viduo, ou contra u~a arenga de abusos diversos à posição do pro blema, mesmo, a unidade do que penso e do que sinto, do que quero saber e do que
e. portanto a ação poss1vel, em seu aspecto panorâmico, dado o conjunto da gosto de experimentar, o desdobramento do compreender e o requinte da
situação e das forças presentes, o que é que hoje em dia podemos fazer te- sensibilidade.
mos que fazer - e de inicio sobre quais pontos? Sem esquecer que o ;ível Brecht sonha com peças de teatro que realizem uma fusão entre a ale-
da conscienti~ação dos interessados, e a~tes de mais nada dos mais explora- gria de participar emotivamente da ficção proposta, de se empolgar - e a
dos, s~ a acuidade a que eles terão atingido, inscreve-me, com força, como alegria de me questionar sobre os problemas que são assim levantados: eu
parte integrante desta unidade complexa. conseguiria aproximar uma consciência vigilante e a efervescência do emoti-
vo, do sonho, do imaginário: todo meu eu vibraria, viveria em uníssono.
Mundo . cultural, mundo real - Tenho necessidade da cultura para A obra cultural que me daria alegria esforça-se para "penetrar no
qu~ o mundo :;e torne mais compreensível e mais próximo: em um pólo, ·a âmago das coisas' ' , o que não é possível sem a intervenção de dados, conhe-
rev ela~ão das caract7rísticas típicas das situações típicas - que não são ne- cimentos históricos, psicológicos, sociológico. Se ela relaciona-se com nossa
cessar~am.ent_; ~· mais numerosas, as mais videntes e que porém, podem ser época, não pode se abstrair das grandes descobertas que a marcaram. Ela
as mais s1gmf10a1~vas : há mais explorados que se resignam ou se esforçam ouve proclamar-se o mundo como domável, o que seria palavra vã se ela
por emburguesar-se! do _que com~atentes e são, apesar de todos aqueles que não cedesse todo seu espaço às idéias, aos conflitos de idéias.
carregam o futuro : arriscar-me-ia a não os perceber. Isto posto, o alvo visado por Brecht é que o·conhecimento seja total-
Em um outro pólo, ao menos em outros casos, o choque literârio é ca-

..
54 A alegria na escola Alegrias da cultura elaborada, e sua existência inicial 55

mente convertido em gozo artístico: "O papel do saber é de fato autorizar o pulsações de minha vida, a ponto de me fazer respirar de outro modo" [16],
prazer literário" [7c]. Uma irradiação, um calor que estejam não fora do ao mesmo tempo em que sei que existem leis da gravitação; com a visão de
saber, mas ligados a um saber, parte integrante do saber. Mais uma vez, tal quadro sinto as coisas atraídas para baixo - e vivo, por assim dizer, seu
penso no anti-racismo - e como o fato de acumular materiais para provar e esforço em se oporem a esta tração.
justificar que os "outros" não estão fora do alcance de minha comunica- A pintura me atinge, me "comove", quando me faz sentir a reconci-
ção, exalta no mesmo instante o elo afetivo. liação entre o ver, este ver que é a trama da nossa vida quotidia na, e a
apreensão de signifiéados em sua intensidacte.
O efetivo não mais seria oposto ao racional - Interrogamo-nos sobre Já aquém da elaboração artística, a percepção direta é apreensão das
as relações entre o conhecer e o sentir remete-nos diretamente a Freud: so- expressões, das tensões dinâmicas próprias aos seres e a té às coisas: "avio-
nharemos com todas as análises onde ele mostrou a criança procurando, pa- lência excitante do fogo", simplesmente quando ele é visto e que evito apro-
ra dominar suas angústias, sua culpa do lado do saber: como se desenvolve ximar-me demais dele [ 17].
a sexualidade, o que é o nascimento e sobretudo o co-nascimento de um ir- Mas a arte retoma por sua conta estas indicações ainda imprecisas que
mão menor ao seu lado? A criança pressente que se ela pudesse desenvolver poderiam me escapar ou ao menos, não penetrar em mim profundamente
o lado da compreensão, em maior grau viveria suas emoções de um menos - e ela torna o real não só mais claro, mais visível, mais legível, mas tam-
contrastante. bém mais próximo, corporalmente próximo: as coisas agora "tocam-me".
Nós também temos necessidade, de um desenvolvimento afetivo para A. Arnheim quer mostrar que até à flor, símbolo do que há de mais
atingirmos o conhecimento: "É no amor, no ódio, na admiração( ... ) que o belo na natureza, já que ela une as perfeições formais de harmonia, de sime-
homem e o mundo revelam-se em sua verdade" [15a]. O que pode significar tria, com a irregularidade necessária para revelar o crescimento e a vida,
reciprocamente que, na iluminação da verdade, a violência dos sentimentos ainda falta algo para ir ao fim do que ela queria ser - e o acréscimo que
e das paixões tem sempre sua parte. aqui nos dá a pintura, é aperceber-se das flores mais significativas e por isso
Uma cult ura elaborada capaz de apoderar-se do corpo: influenciaria até mais impressionantes que as flores reais.
suficientemente no discernimento para que o afetivo não se opusesse ao ra- A partir dos primeiros desenhos da criança, quando ela se diverte tra-
cional, mas que eles se vivificassem um ao outro; uma concepção do ho- çando um circulo para representar o sol e a emoção que sentiu, ela introduz
mem, mas também um modo de vida, uma vontade de viver de tal modo ordenação, organização em sua vizinhança sensorial - e se sente mais à
que as emoções e os impulsos não sejam colocados como infalíveis nem so- vontade.
bretudo como incontroláveis; não há lugar para fazer uma camada psicoló- Lévi-Strauss [14] diz bem sutilmente que vendo, por exemplo, uma
gica mais pr~ "unda que a razão: eles não têm que ser aceitos, constatados, gargantilha de renda em um quadro de Clouet, sentimos uma emoção q ue é
recebidos tais e quais , escapando do todo exame critico, de todo julgamento simultaneamente significação (esta gargantilha mostra-se a nossos olhares
de valo r. como adorno banal ou de aparato, nova ou usada) em concordância ou de-
Não que a razão tenha por tarefa combater, reduzir, restringir o afeti- sacordo com a condição de quem a usa. E este contraste ou esta harmonia
vo, o que seria apenas inverter a posição de onde vemos o afetivo submer- literalmente nos "tocam" no mesmo momento em que nos instruem.
gindo o racional. Na realidade "nenhum sentimento de grande valor é dimi- Assim existe uma cultura que se esforça pela união entre o sentimento
nuído quando é elevado à consciência clara e critica" [7c]. e a compreensão; quando "a base intelectual esta enraizada, assimilada,
Em síntese, o homem poderá adquirir domínio de si mesmo - e a ale- vivida, ela pode se tornar paixão" [9b].
gria de ter seu corpo possuído tornar-se-á tão mais completa, se ele não
mais temer ser assediado por pensamentos que correm o risco de ser glaciais Grandes homens que niio esmagam os pequenos - O que atrai a cul-
e emoções que, às vezes, fazem-no sentir violado. tura primeira é a proximidade; a cultura elaborada está sujeita a congelar
com um pavor sagrado, mas pavor assim mesmo, pelo seu afastament o.
Ás emoções do conhecimento - Eu disse que não se via, em um mu- Na realidade, a alegria cultural que desejo aqui é entrar em contato
seu de pinturas, pessoas chorarem ou rirem, pelos menos em relação às com grandes homens que sejam efetivamente maiores do que eu, mas sua
obras propostas; em um certo sentido, a arte pictórica não opera raptus, é grandeza não os condena ao isolamento nem a mim ao abandono. Os que
'verdade. E no entanto o que tal quadro me mostra, "ele o liga às próprias me tocam são os que mantêm uma relação essencial com o que sou, com o

!
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56 A alegria na escola
Alegrias da cu/lura elaborada, e sua exislência inicial 57
que eu mesmo vivo - e sobretudo com o que aspiro a viver: " um fermento
que faz crescer a massa humana" [18]. tuados - e que eles têm, portanto, grande sorte ou antes grandes riscos de
Procuro do lado dos criadores artísticos, como homens políticos, en- serem politicamente situados, e não no que eu considero ser o lado "certo".
globados na mesma fórmula, aqueles que "revelam a época a ela própria"; É o grupo daqueles que venceram socialmente; eles correm o risco ou
eles resgatam "a verdade de seu tempo e de seu mundo" [19). É assim pelo_ de comprazerem-se com seu sucesso e achar que tudo está bem como deve
menos que é atingido o m~imo de consciência possível do grupo social a estar já que, para eles, nada vai mal; ou resignarem-se muito depressa em se
·que eles pertencem - o que implica que eles mergulhem, incorporando-se a declarar incapazes de melhorar um mundo onde eles não sentem, eles pró-
este grupo. 1 • prios, necessidade vigente de mudança.
E é porque as grandes obras podem se dirigir, e se dirigem aos homens Longe de favorecer a alegria de se sentirem unidos às massas, unidos a
comuns, que eles podem, nelas, tomat consciência mais lucidamente do que um grande público, verificamos a todo dia que a cultura elaborada tende a
pressentiam, podendo ultrapassar em direção aos mais encorajados as res- fechar seus adeptos em um círculo estreito, a separá-los. a isolá-los.
postas primeiras que esboçavam em sua espera.
Unir-me aos grandes homens, às visões do mundo elaboradas pelos A cultura arbilrária de classe - Um passo suplementar foi ultrapassa-
grandes - e ao mesmo ·tempo aos movimentos suscitados por eles e sentir do, nós os sabemos bem! Sendo a hierarquia cultura elaborada declarada
que eles me sustêm, me mantêm em meus esforços próprios, de modo algum em si mesma arbitrária, a função real da cultura elaborada seria afirmar a
me esmagam ou me causam vergonha. dependência à classe dos "distintos", que partilham do mesmo arbítrio;
Não são nem relações de chefe para com subordinado ou de padrão servir de sinal de reconhecimento aos membros desta classe, a fim de excluir
para com operário, nem relações carismáticas, a fascinação sendo insepará- os outros. A cultura, expressão do privilégio social; o "arbitrio cultural"
vel de uma passividade dos que são seduzidos. Aqui não haverá uma passa- esconde então um fundamento socialmente discriminativo.
gem posslvel, e nos dois sentidos, cuja prova e cujo efeito são a alegria. É, portanto, por essência, que a cultura elaborada seria elitista, limita-
da a, constituida por um público restrito, sem relação possível com os gos-
tos das massas, com a vida das massas; ela exigiria eliminação dos "bárba-
SEGUNDA SEÇÃO - ESTAR UNIDO ros" e segregação entre "gente bem". A cultura elaborada como porção da
A UM PÚBLICO IMENSO ideologia dominante e propriedade da classe dominante. Os "peritos" em
cultura pertencem à mesma classe que o público a que eles se dirigem - e o
Uma das alegrias da cultura primeira é a capacidade acrescida de estar ciclo se completa.
com os outros, de viver com os outros·. Muitos outros. Aqui; a cultura ela- Daí alguns distinguirem duas culturas: a cultura instituida, dominan-
a
borada parece, singularmente, l~var pior. Em um plano de constatação te, burguesa seria opressora e não teria outro objetivo, outro valor senão o
sociológica, somos obrigados a reconhecer que a cultura elaborada toca, es- de ajudar ideologicamente à opressão; diante da qual existiria: uma cultura
sencialmente, um pequeno número de homens cultos, que pôde se preparar popular, diretamente acessível ao povo a partir de sua própria vida.
longamente, a partir de um certo modo de vida e de um certo tipo de longos - -/
estudos; são necessários conhecimentos e atitudes que só são adquiridos se Os fracassos '!Scolares - É quando se trata de escola que o problema é
somos beneficiados com condições favoráveis desde a j uventude. São en- mais rude: em que medida a cultura dominante é responsável pelo fracasso
contrados poucos operários especializados nos museus de pintura, ainda /
maciço das crianças dominadas? A escola da cultura dominante é agenciada
menos nas exposições modernas; os "dominados" participam pouco da cul- para que a partir do fracasso escolar as crianças dominadas possam preten-
tura dos "dominantes". der apenas empregos sem satisfação, sem interesse, em que é esperado que o
Não se pode dissimular que estes ''homens cultos" são socialmente si- proletariado use sua força de resistência e sua criatividade?
Não se pode calar a inquietude que estas crianças sentem em relação à
cultura da escola, a começar pela língua da. escola, como não sendo a sua;
Os grande homens "por mais educados que sejam, se são unidos aos homens menores como servindo a interesses que não são os seus: a escola quer obrigá-las a se
por algo, se não maiores do que nós, é que eles têm a cabeça mais alta, mas têm os pés tão bai- ~Jinharem nos valores dos "outros". Ao que se acrescenta que ela vai
xos quanto os nossos" (Pascal, Pensées, Seção li, n? 103). separá-las da sua família, do seu meio: o progresso escolar afasta-as daque-
"les que elas amam; talvez, seja uma via de traição.

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58 A alegria na escola Alegrias da cultura elaborada, e sua existência inicial 59

Enquanto nessa cultura os dominadores se encontram, no duplo senti- desta multiplicidade de mensagens em que se banham, vivem e se comovem
do de "compreender" e de "encontrar-se em companhia conhecida". as massas.

A cultura não é monopólio de uma classe - É assim mesmo uma solu- . .. diante do difícil cultural - Mas também o cultural elaborado é di-
ção de facilidade transformar uma constatação sociológica em uma espécie fícil, exige esforço e educação durante longos anos. Quem ousaria, nas con-
de lei da natureza: a cultura elaborada não seria "feita" para eles, a menos dições atuais, surpreender-se com as massas que hesitam em se engajarem?
que sejam eles que não sejam "feitos" para ela; seria "natural" que eles a Em todos os dominios, as grandes obras são de difícil acesso porque atrapa-
abandonassem aos dominantes. lham, atacam as idéias, os sentimentos e os modos de ação considerados até
Não se deveria, por exemplo, esquecer que é Maurras que, para esta- então como evidentes, "naturais". Como poderiam elas, de repente, supor-
belecer a teoria da monarquia e das nobrezas hereditárias, afirma que é tar a concorrência daquelas que visam a ser imediatamente sedutoras, a tra-
mais "natural" a uma sociedade recrutar, por exemplo, os diplomatas entre zer, a cada momento, o prazer do momento?
os filhos de diplomatas; a prova: é mais econômico.
Sustento que, em direito, nas maiores obras, a cultura elaborada se di- Afastamento do intelectual de esquerda - A questão não é menos
rige a todos - e isto tanto para as artes, as letras, as idéias pollticas quanto dramática se a consideramos do outro lado - e é preciso reconhecer o afas-
para as ciências: Mozart vale para todos, até, e sobretudo, para os operârios tamento do intelectual de esquerda: apesar de toda sua boa vontade, ele não
especializados, que não o provara,'h (ainda) como a matemática vale para se satisfaz com a cultura de massa, com a cultura que agrada às massas, que
todos inclusive para multidão daqueles que não a compreendem. A afirma- se dirige às massas; ele consagra uma grande parte de sua vida e de sua ad-
ção q~e nossa sociedade é lugar de luta de classe vale para todos, inclusive miração a obras nas q uais as massas não se reconhecem - e então ele sente
para aqueles que não querem, e que não podem reconhecê-lo. Sustento que um peso na consciência por ser infiel à vida das massas, ao se separar das
as maiores obras se impõem, mantêm-se vivas não só além das situações po- massas, ao desafiá-las e aos seus gostos.
líticas e sociais que presidiram seu nascimento, mas também além das bar-
reiras de classe: a cl~sse do autor, a classe do seu público, do público ao Temor às massas - Que intelectual de esquerda ousaria negar seu te-
qual, a princípio, elas eram destinadas. mor às massas?
"A poesia é como a paz e todos deviam tomar parte nela" [5b]. Por mais que Brecht afirmasse que "o homem não encontra sua hu-
manidade perdida saindo das massas mas mergulhando na massa (7d]. o
movimento primeiro é temer às massas, ter ainda maior temor aos outros
Conduzir a luta cultural ... - Mas é preciso também dizer que esta quando eles tomam a forma das massas; opressão pela massa, perda de si
unidade, esta unicidade da cultura através da qual ela realizaria a união de mesmo na massa.
um grande público, constitui não um fato (nem aliás um voto pio), mas uma Antes de mais nada, temor à massa operária, que constitui a massa
Juta a ser conduzida. por excelência.
Primeiramente compreendamos as causas do estado de fato - e que Provavelmente não mais nos exprimiríamos como Engels (20] no sécu-
são múltiplas: as condições de vida das massas, impostas às massas na socie- lo XIX: ''não é surpreendenle que os trabalhadores que são Lratados como
. dade tal qual ela é, o grau de preparo, ou melhor, de despreparo para a cul- animais, tornem-se realmente animais" e que eles sejam ·submergidos pela
tura elaborada. embriaguez e uma sexualidade grosseira, desregrada - já que só lhes foram
deixados estes dois prazeres.
. . . diante da indústria cultural - Diremos novamente que . o PC?der Mas sentimo-los como degradados por seus modos de trabalho e de vi-
enorme sobre as massas de uma indústria cultural age muito menos com a da: violência - um mundo brulal, medonho; e a alienação por estas horas
intenç'ão de elevar o nivel de vida e de consciência das massas do que para intermináveis onde o homem se torna o escravo da máquina, condenado a
rentabilizar ao máximo os meios consideráveis postos em jogo. Uma indús- fazer sem parar o mesmo gesto parcelado e automatizado. A "cadeia" em
tria cultural em dépendência de alguns grupos industriais e financeiros po- todos os sentidos da palavra. Embrutecimento perigoso para ele,s mesmos,
derosos, ao mesmo tempo, detêm este mercado como os outros mercados e para os. outros também.
sabem bem a importância particular, em relação à defesa de seus interess<:s,
60 A alegria na escola Alegrias da cultura elaborada, e.sua existência inicial 61

Fusão e recuo - Talvez seja preciso retornar até a dificuldade básica relações reais" [6d]. A solidez dos homens e das coisas próximas a mim
das relações entre o indivíduo e o grupo. pode não inquietar, mas, ao contrârio, confortar, afirmar minha existência;
Cada um parece, sente a dificuldade: de um lado, desejo de abrir o sou, p.osso tornar-me, tenho que me tornar "rico em possibilidades que
diálogo, de se unir aos outros, de formar comunidade; alegria de se sentir de (me) são oferecidas pelos homens e pela sociedade das coisas" [9c], as quais
acordo com os outros, temor de ser posto de lado. Mas de outro lado, entram melhor na nossa órbita pelo fato de terem sido trabalhadas pelos
atemo-nos à afirmação pessoal, na originalidade, na diferença - e recea- po,mens.
mos perdermo-nos no grupo. Temor da pressão do grupo, da opressão pelo
grupo; protegemo-nos dos outros como de uma ameaça, curvamo-nos sobre Isto continua sendo tarefa difícil - Esta não-oposição entre o indivi-
nós mesmos, sentimo-nos opostos aos outros. duo e os outros aparece para a cultura progressista como uma das possibili-
De início, evidentemente, porque se trata de assegurar, cada um, sua dades do homem; resta compreender porque ela tem tanta dificuldade em se
carreira, seu desenvolvimento, e muito freqüentemente os sucessos de al- tornar um fato, quais são as forças que, em muitos casos suscitam obstácu-
guém não são facilmente compativeis com os de seus concorrentes. Os ou- lo - e ultrapassá-las. Como reforçar este elo possível, como torná-lo mais
tros constituem recursos, mas também perigos; cada um está sob o poder eficaz e portanto mais rico em alegria?
dos outros. Já há alegria, hoje em dia, em se inserir num social que, ao mesmo
Mas também temos medo de que os outros, uma vida muito próxima tempo, sofre tanto e progride mesmo assim; o que se tornaria a alegria se as
dos outros, nos faça perder nossa perso·nalidade, nossa particularidade. proporções fossem invertidas?
"O individuo opõe-se à multidão, mas se alimenta dela. E o importan-
A cultura para ajudar a separar a oposiçilo indivfduo-sociedade - E te é bem menos saber a que ele se opõe que do que ele se alimenta. É difícil
é, provavelmente, aqui que existe uma cultura elaborada capaz de me fazer ser um homem. Mas não mais tornar-se um homem aprofundando sua co-
progredir, de atenuar meus temores, logo, de abrir possibilidade de alegria: munhão do que cultivando sua diferença; e a primeira alimenta pelo menos
ela vai me ajudar a apreender que não pode haver oposição essencial entre com tanta força quanto a segunda, o fato pelo qual o homem é homem, o
minha individualidade e o coletivo; o indivíduo não está obrigatoriamente fato pelo qual ele se ultrapassa, cria, inventa ou se concebe" [22]. Este texto
definido pelo seu antagonismo como o grupo. Não se está constrangido a é bonito - e seria, no meu entender»ainda mais verdadeiro se ele enuncias-
mostrar de um lado uma interioridade, uma intimidade fechada sobre si se esta união de mim e dos outros, menos como um fato já adquirido, mas
mesma, limitada a si mesma; depois se somaria um meio social, uma deter- como o começo de uma esperança e, sobretudo, de uma tarefa que se reali-
minação social exterior - que seria heterogênea à minha própria natureza e zará na medida em que a "multidão" aqui evocada, quebrando suas oposi-
deveria, portanto, quase fatalmente, ser-lhe opressiva. O indivíduo e aso- ções internas, terá firmado sua forma e sua unidade, ajudando, ao mesmo
ciedade não são duas entidades separadas; depois, procuraríamos, bem ou tempo, o individuo a superar o temor aos outros.
mal,"sua conformidade [21].
A realidade primeira são as questões, as exigências que o mundo apre- Esforçar-se por uma arte de massas - Não se deleitar neste mal-estar.
senta, as correntes que o atravessam, fecundam ou retardam, colocam-se ou· A luta para que o grande público acolha de fato o que sustento que lhe seja
não em contradição umas com as outras, as tarefas que o mundo, em tal destinado de direito, para que as obras da cultura se dirijam a um grande
momento, me propõe; o que toca milhões de homens - e minha originali- público e me liguem a este grande público, tem um sentido: ela certamente é
dade pessoal, são as escolhas de minhas respostas e de minhas inserções, necessâria, possível: "a arte não é uma arte para as massas desde seu nasci-
mais ou menos numerosas, estendidas, intensas, ativas, apaixonadas, mais mento; a compreensão das massas não é a camisa mágica dentro da qual
ou menos dominadas. Um modo pessoal, único de dar a réplica, graus infi- nascem certos livros predestinados, mas sim o resultado de uma s.oma de
nitamente variáveis nas sínteses a que me esforço. esforços" [23]. Resta querer estes esforços, que a sociedade queira estes
A alegria cultural, aqui, é sentir que o "eu" existe - e que ao mesmo esforços.
tempo em que ele não é separável das afinidades que me ligam ao mundo,
das relações pensadas, afetivas e técnicas que me prendem ao mundo, pelas A cultura ajuda-me a apreender os valores positivos das massas -
quais eu me prendo ao mundo; o "eu" existe e não é separável dos outros: Primeiramente a cultura pode fazer-me progredir ajudando-me a apreender
"a verdadeira riqueza intelectual do indivíduo depende da riqueza de suas o valor positivo das massas; é possível uma cultura que me faça conhecer as
62 A alegria na escola Alegrias da cultu~a elaborada, e sua existência inicial 63
massas em sua realidade e seus recursos, que me conduza a confiar nelas - un:i só tip? de cultura, o modo literário-artístico-fil~sófico; não apenas, é
ao invés de acumular suspeitas; pressentir o sentido de todas estas vidas, os ~v~dente, mtegram,-~e a isso o cientifico e técnico; mas também a cultura po-
valores reais inclusos em seu trabalho, sua forma de resistir à exploração e htica, a cultura militante, constitui um domínio cultural essencial e como
ao abatimento, as cem formas de sua aspiração a uma vida renovada. todos os outros, aliás, pode ser via de acesso para todos os outros. pro-O
Conduzir .-a existência comum a uma fórmula como "trabalhar, co- blema é, então, assegurar a interconexão entre os diferentes componentes
mer , dormir'' tem provavelmente alguma utilidade a título de protesto polê- [25]. .
mico, mas é assim mesmo tomar o partido mais fácil - e isto se torna terri- . Será que eu diria como Sartre [15b] que a alegria cultural contém esta
velmente mistificador visto que não se quer mais ver outra coisa. "exigência de que todo o homem sinta o mesmo prazer lendo a mesma
O sofrimento não é mais autêntico do que o prazer, a vaidade não é o obra. Assim, toda a humanidade está presente"? É, antes de uma constata-
todo da vida, nem mesmo, sobretudo, da vida dos explorados. Não é fácil ção, um~ m~ta a qual queremos nos dirigir; ela exige, de uma certa forma,
sentir a importância, o valor, a dignidade do que, à primeira vista, parece que a mruona dos homens não mais tenha sido separada desta "obra" des-
irrisório·, toma às vezes formas irrisórias; para dar só um exemplo, e bem ta alegria, por obstáculos, em tais condições, intransponíveis - e, alédi dis-
parcial, os primeiros operários com "férias pagas", em 36, que descobriam so, que esta própria obra seja efetivamente uma presença da humanidadr.
o mar e esforçavam-se para reconstituir nas praias o ambiente de seu con- um apelo a esta presença, não uma lamentação sobre cada solidão como ir-
junto habitacional e seus descendentes de hoje, turistas inábeis que fotogra- remediável.
fam o que todo mundo já fotografou e que encontrariam coisa melhor nos
cartões postais; é fácil rebaixá-los - enquanto não se compreende que é Obras "comuns" - Subscrevamo-nos à fórmula otimista tle Brecht: a
preciso primeiro caminhar sobre pegadas já traçadas, ligar-se aos valores cultura, .não :•para o pequeno círculo dos iniciados'', não se pode também
mais seguros, prudentemente, sem se distanciar muito do já conhecido - e esperar 1med1atamente atingir à "cultura para todos", mas sim "chegar a
é assim que nos dirigiremos às emoções pessoais. A cultura como afirmação fazer do pequeno círculo de conhecedores um grande círculo de conhecedo-
de que estes esforços, estas condutas não se perdem no vazio. res" [7e]. ·
É porque já há, na vida das massas, valores reais, alegrias reais, que . ~in?a . alegria é necessariamente limitada se eu só a parlilho com um
outros valores, sendo que mais valores são possíveis, estão em vias de serem numero hm1tado dos meus contemporâneos, desprezando, rejeitando a
adquiridos. massa dos outros, desconfiando deles, considerando que eles não são capa-
Nossa época, talvez mais que qualquer outra, se pensamos principal- z~s e no fundo não são dignos de ter acesso ao que, para mim, parece essen-
mente no conjunto dos ex-colonizados, é marcada pela irrupção das massas cial. Um pouco de cultura corre o risco de me afastar dos outros da "multi-
sobre a fre nte do palco: seu progresso material é provavelmente ainda fra- dão profa~a", de me fechar, de me contrair sobre mim mesmo;' se confina-
co, mas o que transtorna tudo, é que elas reivindicam assumir um papel da, a alegria cultural definha, é incessantemente atravessada pela amargura.
criador: "elas impedem que as esqueçamos" (24]. · Resta, portanto, procurar mais cultura.
Esta valorização das massas es~á longe de ser evidente para u m "inte- Depo~it.o minha esperança no futuro dos acontecimentos e portanto
lectual burguês", nem tão evidente, aliás, para as próprias massas. É neces- das me~talldades para que ele promova um modo de vida e de obras onde a
sário simultaneamente um esforço cultural de pensamento e um esforço cul- cultura elaborada, também ela, sobretudo ela, seja lugar de união com 0
tural de ação. Fazer junto, não só escutar junto. A cultura, ao mesmo tem- grande público.
po ajuda-me a descobrir o valor dos outros, e a me unir a eles. Portanto, eu Esperança-sonho? Não que não possuamos ainda os primeiros alicer-
e meus próximos temos um papel a representar, um papel a disputar. ces de tal edifício cultural: já há grandes obras que se dirigem a todos desde
Educar e ampliar o do171fnio cultural - É em seguida a esforços dire- Les Misérables até a 9.ª Sinfonia de Beethoven. A poesia da Resistêncla sou-
tamente culturais que se percebe duas direções: de um lado o papel da esco- be se fazer ouvir pelos públicos mais variados situados na gama cultural so-
la, e nós o abordaremos mais longamente, e também a educação fora da es- cial e política; circunstâncias cruciais onde a emição cultural se une di;eta-
cola: em particular, as massas educando-se pelas iniciativas que assumem mente à plenitude de uma ação a ser conduzida. Trata-se também dos agru-
na luta politica, os progressos que elas podem atingir desta forma quanto ao pamentos complexos que se operam ao redor de obras e açóes anti-racistas
seu nivel de vida - e ao seu nivel dl! dignidade. anti-colonialistas e no esforço pela paz. '
Do outro lado, a transformação do domínio cultural: não se limitar a
64 A alegria na escola Alegrias da cultura elaborada, e sua existência inicial 65

O "Mariage de Figaro" - Um exemplo clássico de um ~úblico ulti:a- os problemas de minha comunidade, de minhas comunidades - e por que
passando as barreiras de classes é da corte de Versalhes aplaudindo o Man~­ não?, da humanidade como os meus.
ge de Figaro de Beaumarchais que, no-entanto, atacava os valores, as tradi- Ainda uma v'ez é nos poetas que irei procurar uma espécie de pressen-
ções sobre os quais seu dominio e até sua existê~cia se ~undame~t.avam. timento.
Se as grandes obras culturais têm uma irradiação alem das ,d1~sões so- Baudelaire, em alguns momentos:
ciais se elas são assim capazes de criar melhor que um grande pubhco, uma
uniã~ do público, é provável que não seja necessário representar o "bur- "Entrar na multidão ... desposar a multidão .. . montar domicilio no nú-
guês" e o público burguês como única, una e definitiv~ente burgu~s : "a mero ... "; acréscimo de força: como se entrássemos " num imenso reservató-
luta de classes se prolonga até nele próprio'' [7f] . Suas hesitações provem de rio de eletricidade" , acréscimo de satisfação que se sente' 'em estar fora de sua
ele não poder ficar completamente insensível à vida das '!1assas, estr~o às casa e no entanto sentir-se em todo lugar como em sua casa" [2d].
paixões das massas, quando elas chegam à efervescência - e, porem, ele
não disiste de manter seu poder. Ou em Apollinaire, esta alegria do indivíduo unido à massa, conci-
Em momentos privilegiados, algumas aspirações progressis.tas tom~ liado e reconciliado com os outros, não separando sua vitalidade da dos
nas obras culturais uma tal força de radiação que elas chegam a influenciar outros:
pessoas que, pelos outros aspec't os de sua cultura e de sua vida, se prendem
a um lado completamente oposto. O público, ao mesmo tempo, cresce e se ''Todos
Levavam um a um os pedaços de mim mesmo
funde. Construíram-me pouco a pouco como se ergue uma torre
Aliás, a troca é reciproca, o apelo é recíproco: a obra cultural te'!1
Os povos se empilhavam e apareci eu mesmo
necessidade do público, ela só existe em sua plenitude quando dá oporturu- Que formaram todos os corpos e todas as coisas humanas" (29]
dade para que um público se constitua. Os grandes criadores esperaram
ap,aixonadamente que sua mensagem atingi~se todos aqu~les que eles
amam, todos os homens. Entre cem exemplos, e notável ver Picasso ter.t~­ E Eluard evocando tão freqüentemente momentos onde todos teriam
ta dificuldade para mostrar suas obras a pessoas que no geral, lhes são indi- emoções com as mesmas coisas, as mesmas coisas lhes susteriam o coração,
ferentes. Tocar o público faz parte da própria obra: "é sob o olhar de outro as vontades poderiam, portanto, se propor objetivos comuns: "Eis que os
'iue seu espirito toma consciência do que ele quis. e conse~uiu fazer, d.eu~ homens tomam consciência em massa. E sua linguagem unifica-se e sua lin-
tela que acabava de assim mostrar (chegou a dizer): vejo-a pela pnme1ra guagem amplia-se'' [30].
vez" [26]. . Há, portanto, uma luta cultural a conduzir, um trabalho de desmisti-
Se as massas têm necessidade da cultura, a cultura tem necessidade das ficação que não se dirige somente aos outros, mas também a mim mesmo,
massas para atingir a amplidão própria que ela deseja, que el~ não podedei- pois, incessantemente, meu modo de vida, minha formação e meus hábitos
"xar de desejar: "Milhões de pessoas desejariam ter acesso mais amplamente de pensamento me lançam aos mesmos pesos. Esta luta cultural não pode se
à cultura e não podem. E é a cultura que sofre com isso, que se encontra desenvolver só no plano das idéias, por simples refutação intelectual: a
atrofiada e desnaturada" [25]. consciência, as opiniões só se modificam com uma modificação da prática,
Ao mesmo tempo que suas lutas e sua tomada de consciência, a massa uma transformação do mundo real; ao menos o sentimento, o pressenti-
poderia se tornar cada vez mais um "indivíduo" [7g], isto é literalmente um mento, o começo de experiência, por exemplo, na comunidade dos militan-
não-dividido - e não adição, justaposição, magma de pessoas. tes, que um outro mundo social é possivel - e posso participar de sua
Desta mesma forma, torna-se possível não ficar mais em ." lugares- vinda.
comuns" mas abrir "lugares comuns a todos" [27]: dirigir-se a todos para Ao mesmo tempo, é dizer que a luta cultural e este modo de alegria
explorar ~m quais condições pod~: haver um "todo". Alegria cultur~l de ter cultural não podem ser simplesmente individuais; é necessário que instân-
quebrado o isolamento, uma alegria individual inseparável da alegria tran- cias organizadas [31], fortes em seu número e em seu passado estejam em
sindividual de participar do sofrimento, das esperanças, dos combates das condições de perceber as aparências (é ainda assim verdadeiro que, em sua
massas - e também do que elas podem conquistar de progresso. . massa, as crianças exploradas tenham bem menos sucessos nos seus estu-
Estar unido ao grande público: .no limite a cultura para chegar a sentir dos, mas a razão não deve ser procurada no lado das interpretações conser-
66 A alegria na escola

vadoras da ideologia dominante) e desenvolvem soluções, umas a curto pra- CAPÍTULO V


zo, outras visando a progressos decisivos.

Uma cultura para a~ir

E é uma tal cultura que pode nos conduzir para a convergência da teo-
ria e da ação. A unidade da cultura como pensamento e como ação está
muito longe de ser evidente; quando a cultura primeira compraz-se a tratar
os intelectuais como ratos de biblioteca ou quando, de um modo mais dis-
tinto, evoca a torre de marfim, certamente está errada, mas. está ela sempre
e certamente errada? É preciso reconhecer que os mais cuitos.não são, diga-
mos os que mais agem, os melhores agentes. Não são també01 sempre os
que melhor preparam os outros para agir: tantos intelectuais comprouve-
ram-se a sondar suas contradições e seus remorsos, depois do que nos aban-
donam bem no meio de seus labirintos; tantos intelectuais condenaram a ex:
Fiquei impressionado ao ver que o poeta do século XIX que parece simbolizar a arte ploração, a desigualdade social - mas para proclamar que eram imutáveis:
oposta a uma ane de massa julga, ele próprio, tal produção como correspondente a um perlo- na melhor das hipóteses elas mudariam de forma, de aparência.
do transitório - uma espera.
Mallarmé declara: "Considero a época contemporânea um interregno para o poeta que
não deve a ela se misturar", espera que correspónda a uma espécie de ruptura de contrato: A cultura, uma mutação - A cultura não é um modo de ocupar os
"em uma época como esta, onde o poeta está em greve diante da sociedade". momentos de.lazer. O que está em jogo é a procura de um modo de existir
É expressamente ao estado da sociedade, ao que o poeta julga ser o estado das massas - não é ir de vez em quando ao concerto, mas uma vida incorporada à mú-
nesta sociedade, que se refere esta ane provisória de cortes,. de retiro: "em uma sociedade sem sica, não é recolher informações sobre.diversos assuntos, mas uma transfor-
estabilidade, sem unidade, não se pode criar ane estável, arte definitiva"; mas este "desuso" e
esta ''efervescência•' da época silo ''preparatórios'', toda esperança de uma reconciüaçllo entre
mação, uma transformação do estilo de vida. A cu'ttura que procuro marca
o poeta e os homens nllo é recusada: "Ela não é Presente - erro que se declara a Multidão" o ser, modifica a vida, as obras-primas que pretendo são as que produzem
[28). E o dia em que a mÚltidllo se declarará. uma espécie de choque essencial: "falamos do homem cultivado e da terra
Não é esta reaproximação que é saudada quando Mallarmé escreve a Zola a propósito cultivada ... a terra, o húmus profundo do homem foi desbravado" [l)
de L 'Assommoir: este livro é ''digno de uma época em que a verdade torna-se a forma popular Uma arrancada, uma agitação no íntimo da pessoa.
da beleza"?
68 A alegria na escola Uma cultura para agir 69
Rimbaud lembra-nos que "o combate espiritual é t ão brutal quanto a "banho morno"; impedir-se a si próprio e aos outros de dormir tranqüilos
batalha dos homens" desde que não se separe mais a cultura da "realidade na insipidez e o "meio-tenho" - sobre um fundo inerte de vaidaae, nos
áspera a abarcar'' [2}. dois sentido~ do termo vaidade; romper com a satisfação conformista, com
a aceitação ~onformista. A cultura que me obriga a olhar a realidade de
A cultura, .uma encarnação - Não se erra ao esperar da cultura elabo- frente - ou pelo menos torna mais dificil o refúgio nos atalhos. Uma cultu-
rada que ela se verifique, torne-se' válida, faça prova de si, encarnando as ra que me ajuda a assumir minha responsabilidade; a abstenção nunca é
tarefas em que o cultivado vai se cumprir, e a questão crucial é assim mesmo possível, nunca é real; não se pode "tirar o corpo fora"; fazer silêncio é ain-
saber em que medida sua cultura o torna mais capaz de agir no sentido da da tomar parti de: o professor que não diz nada, que não faz nenhum co-
alegria - para ele mesmo, para os que o cercam, em relação a outros con- mentário sobre os fracassos dos pequenos Kaddours leva seus companhei-
juntos mais amplos; tornar-se mais eficaz para criar um mundo que dê mais ros a considerar esses fracassos como normais, naturais, inevitáveis. É ain-
lugar à alegria. da tomar partido - mas na confusão, para o conformismo e o cepticismo,
A cultura não é uma soma de conhecimentos, um conjunto de obras a na tepidez, um mínimo de vida que nunca pode ser um máximo de alegría.
,1 admirar, amar, degustar, mas simultaneamente obras e um modo de vida e A cultura impede-me de ignorar o que se passa no mundo - e desde
a procura de novos modos de vida; são os modos de vida inovadores que então proibe-me de acreditar ser inocente. Muitos refúgios tornam-se insus-
permitem tirar das obras toda a força de inovação que elas contêm, recipro- tentáveis; em contrapartida, vou assumir uma posição ao invés de dei.xar-
camente; é apoiando-se nas obras inovadoras que se vai fortificar os novos me ser sacudido pelos vento~.
1 modos de vida. A cultura elaborada pode dar uma amplidão considerável a essa rei-
Sem passar pela cultura elaborada, pode-se ser amável com aqueles vindica1,:ào de exercer responsabilidade efetiva que se encontra de um extre-
1 que se encontra, esforçar-se para aplainar as dificuldades quotidianas. Mas mo ao outro da cultura primeira - e abre portanto, ao mesmo tempo, para
i trata-se aqui de outra coisa; a possibilidade de apreender as causas funda- um trágico e uma alegria imensos.
mentais da incompreensão, da hostilidade entre os homens e de atacá-las. O que é mab conhecido da cultura é o seu papel de crítica, de denúncia
A cultura literária: belos textos sobre o amor, esplêndidos poemas de das taras existentes. Hoje ela pode ir mais além, a cultura que queremos
amor. Em que condições serão eles uma ajuda para amar com mais alegria e promover pode dar um passo a mais: no meio de tantos dramas, ajudar-nos
dando mais alegria? a ler no real de hoje as forças 'que significam os progressos - e encontrar-
Nos lugares de trabalho, o esforço das massas é procurar com que as mo-nos ai.
técnicas e a organização empregadas ajudem a aliviar a pena dos homens e
que as condições de trabalho, bem como os produtos do trabalho, conquis- Cultivar, organizar - O mérito de Gramsci é inicialmente ter estendi-
tem um sentido mais humano: em que casos o cultivado pode conferir a do, bem além das fronteiras do humanismo tradicional, a noção de intelec-
mais amplidão a esse esforço em direção a novos modos de trabalho, mais tual para todos os que exercem funções de organização e em todos os domí-
amplidão, procurando buscar nele mesmo uma confiança mais lúcida, mais nios, o técnico e o engenheiro que organizam o trabalho, o militante que or-
segura de seus sucessos? ganiza uma atividade política [4a]; é sobretudo ter mostrado que esse inte-
Qual cultura ousa fazer frente a guerra e essas formas ocultas de guerra lectual de tipo novo inclui na sua cultura até uma participação na estrutura
qu·e constituem os múltiplos modos de exploração do homem pelo homem? das atividades; pelo que são considerados o conjunto, a generalidade dos
A alegria trágica da cultura é instalar-se no centro dos esforços hu- problemas colocados - e é a condição para que os atos tornem-se mais efi-
manos. cazes; ajudar os outros a passar da atividade técnica no trabalho a uma
compreensão mais ampla das fontes empregadas - e dali a uma visão glo-
Sair com dificuldade do banho morno - Inicialmente, a cultura para bal das condições históricas e sociais onde os procedimentos técnicos e os
não se resignar: estender a toda a cultura o que Baudelaire pr.oclama da poe- conhecimentos são aplicados.
sia, que ''contradiz incessantemente o fato .... No cárcere, ela faz-se revolta; Esse pensamento como organizador da atividade, e, particularmente,
na janela do hospital, é.ardente esperança de cura. Por toda parte ela faz-se das atividades de massa, marca t:rna etapa rumo à unificação do trabalho
negação da iniqüidade" [3aJ. Imergir aa mediocridade, mesmo dourada; manual e do trabalho intelectual.
tomar insuportável a mediocridade; arrancar-se do que Sartre chama de Grarnsci comparara os intelectuais às barbatanas de um corpete que
70 A alegria na escola Uma cultura para agir 71
estruturam e persuadem, sem os quais a massa correria o risco de não ter resto a decisão inversa. O anti-racismo não é tampouco adquirido só pela
consistência. Seria necessário saber o que corresponde hoje a um corpete. prática, como viver com, trabalhar com, nem mesmo talvez fazer equipe
com ... os argumentos são reais, seu papel é essencial, mas é necessário que
Contemplar e agir - Como posso me aproximar dessa slntese entre o pensamento alimente-se do que a ação pode lhe propor. Esses argumentos
compreender e agi.r? Sartre é talvez, uma única vez, bem otimista quando devem .ser sustentados por uma síntese existencial da teoria e da prática: o
afirma: "a admiração é voto de imitação ... a indignação voto de anti-racismo aparece cada vez mais verdadeiro, sua verdade aparece cada vez
mudança" [5]. melhor fundamentada, à medida que ele se incorpora a um estilo de vida.
Mesmo se' a passagem não é tão imediata quanto parece ser esperada A tentativa teórica sistematizada e a atividade de conjunto coerente
aqui, espero ~·1e a cultura "me empolgue" (6) (em todos os sentidos do ter- sustêm-se uma a outra.
mo), que me dê o impulso para agir, que me conduza a coordenar a ação e o.
pensamento. A psicanálise esforça-se ;;;;:;Iuma síntese do conhecer e do agir - Um
De inicio, talvez, nas relações de pessoa para pessoa, inserir paralela- dos méritos da psicanálise é o de coldcar o saber, a cultura como ligação
mente cultura teórica e cultura prática: abrir-se mais àqueles de quem seca- entre teoria e prática.
minha ao lado, melhor apreender seu valor, ter mais opor tunidade de expe- Desde o inicio, o "impulso de saber" é diretamente çomandado pela
rimentar atração - e assim participar de mais·vidas e com mais fervor. Em vontade de fazer frente à situação: é essencialmente quando a criança se
seguida percorrer nos dois sentidos o intinerário que vai da ação à contem- sente ameaçada pela chegada de um rival que ela se questiona.sobre o nasci-
plação; a alegria cultural é escutar La flute enchantée e tirar dai um desejo mento.
reforçado de participar das provas dos homens para livrar-se, mantendo o Até o fim da juventude, uma das ambições do saber ê adquirir o poder
desejo para libertar-se e reforçando-o pelo patético dessa música. dos adultos: o saber dos adultos servirá para comportar-se como os adultos
- e se é esperado que se faça amor como eles, não se trata unicamente
A prática insubstituível - Levar em co.1ta tudo o que a ação e a práti- disso.
ca trazem de insubstituível ao conhecimento: é bem verdade que a prática se Durante toda a vida, o impulso de saber é "sublimação da necessidade
inicia antes da ação sob suas formas mais simples: é preciso falar e escrever de dominar", ter em mãos situações de importância vital: o que tenho von-
antes de aprender gramática e linguística [7). tade não é muito perigoso? Que conciliação encontrar entre meus desejos e
A ação coloca sobretudo em alerta e verifica aspectos da personalida- a preocupação de segurança, de conservação da minha pessoa? Pode-se las-
de que o puro teórico pouco atingia: dar a medida de suas forças, dar prova timar que muitas vezes, em Freud, o saber seja apenas um compromisso en-
de sua vontade e então adquirir auto-confiança: enfim, uma intensidade e tre os desejos contraditórios, bem mais que um avanço, mas o enraizamento
uma aspereza muito menos .viva quando se trata do único conhecimento. A do saber na ação nunca é subestimado [9]. '
realidade à "ardilosa" (Hegel), isto é, os acontecimentos da existência am-
pliam os horizontes, abrem vias mais complexas e mais ricas do que o que a
teoria tinha previsto antes de enfrentá-lo (8). O marxismo e a síntese do conhecer e do agir
Quero esforçar-me por um modo de vida onde a elaboração, a organi-
zação, a sistemática da ação estarão no mesmo nivel que as do pensamento Primeiro aspecto: o materialismo - É no materialismo dialético mar-
onde, a ação não trairá o pensamento. xista que pessoalmente encontro um fundamento sólido, justificando e pro-
movendo a síntese entr~ o conhecer e o agir, e isto sob dois aspectos: afir-
O antiracismo levado pela ação - (retomando uma vez mais es.5e mar que há primazi11 do ser", da existência sobre a idéia "não é a consciência
exemplo) o anti-racismo não se apresenta como a conseqüência evidente e hi.- dos homens que determina seu ser, é seu ser social que determina sua cons-
discutível de argumentos objetivos, teóricos, tirados da biologia e da histó- ciência", é afirmar, entre outras, que não haveria grandes obras culturais
ria. É por isso que não se vence o adversário com tal discurso que se preten- progressistas, se já não houvesse, inicialmente, um movimento, uma luta
de definitivo. progressista nos fatos .. Um único exemplo: a passagem da crença religiosa
O que não significa absolutamente que o anti-racismo seja objeto de fé cristã, quase total na França, durante tanto tempo, ao deismo, e em segui-
ao qual se aderiria sem razões válidas, por decisão arbitrária, como seria de da, para alguns, ao ateísmo e os escritos das "luzes" que não saem apenas
A alegria na escola Uma cultura para agir 73
72
do domínio das idéias, mas remetem à confusões das forças produtivas, Essas relações sociais são ativas, móveis, sou esse futuro de possibili-
relações de produção, transtornos que suscitaram um movim~nto do con- dades que elas abrem. Portanto, o homem muda no âmago quando mudam
junto da sociedade - e a primazia para uma outra classe social. as formas sociais, quando ele participa do esforço que visa mudar as formas
Isso significa que não posso esperar um progresso cultural nem em sociais.
mim, nem nos outros, um progresso na criação e difusão da cultura, se ele Satisfação trágica, porque essa força enorme de retificar o mundo é ao
não participar de um esforço para que os homens vivai:n de outro modo. O mesmo tempo uma responsabilidade enorme pelas melhorias a serem trazi-
progresso cultural não é o impulsor da renovação soc1a[; ª, c~ltura n~o é, das para o mundo. Não se deixar estigmatizar, manter. acrescentar, con-
por si próprio liberadora: que se considere de um lado o publico restnto e quistar a humanização.
selecionado (p'elo menos por enquanto) ao qual ela se dirige e de outro lado
as crises e impasses nos quais ela se debate e que são um dos aspectos do tu- O que é natural? - As instituições, os comportamentos, tantos senti-
multo da sociedade global. mentos habituais e até as crises e as guerras, porque existem, porque são
Mas seria de um materialismo simplista desvalorizar o papel da cultu- tais, cnegam a nos parecer evidentes, imutáveis, comandados por uma espé-
ra: a cultura não é uma pequena coisa perdida nos museus, o sonho de al- cie de destino e é o que faz com que freqüentemente nem mesmo encaremos,
guns estetas. Desde que haja num povo aspiração a um progresso cultural, nem mesmo tentemos mudá-los: não que isso nos satisfaça, mas antes isso
ela inscreve-se realmente, como parte integrante, no progresso geral dos ho- nos parece inevitável; o costume acaba por embotar o que deveria parecer o
mens; ela prova que os homens estão progredindo, ao mesmo te_mpo e°? que mais insuportável - mas subsistem a angústia e o ódio contra o que parece
traz a seu movimento o aumento de força agente. A b~rgues1a do. s~~ulo impor-se a nós.
XVIII não podia pretender a tomada de poder sem justificar suas 1de1as e A cultura, aqui, pode abrir-me para a satisfação de apreender que não
reivindicações nos escritos dos Filósofos e dos Enciclopedistas. é "natural", isto é natural; diante da vida que levamos, vou gritar: "é ex-
traotdinário, estranho, surpreendente, não se acreditar no que se vê."
Segundo aspecto: A "natureza" humana - "A inovação fundam.en· A relação patrão-operário não é de maneira nenhuma semelhante à re-
tal introduzida pela filosofia (marxista) é a demonstração de que não existe lação lobo-cordeiro, não é de maneira nenhuma "natural" como ele. Não é
" natureza humana" abstrata, fixa e imutável, mas que a natureza humana definitivo que as coisas sejam tais como são. Há outras possibilidades - e
é 0 conjunto das relações sociais historicamente determinadas, isto é um fa- que poderiam ser mais felizes.
to histórico" [4b] . . . Brecht observa que assim o domíruo literário aproxima-se da ciência:
Não retomarei as demonstrações nem os desenvolvimentos de Seve so- a ciência mo~tra os fenômenos como muito diferentes da idéia que se fazia
bre este tema. Quero unicamente tirar daí algumas conclusões qu~to à~­ no início, colocando em dúvida o que parecia ir por si só.
tisfação da cultura e à satisfação de agir. Assim, o homem não é tnbut~10 Para que a obra cultur~l ajude-me a agir e para que eu encontre satis-
de uma natureza interior, de um núcleo fixo, imutável, que permaneceria o fação, basta que ela se faça conhecer, que faça viver as coisas tais como são,
mesmo qualquer que fosse o tipo de sociedade, tristemente o mesmo; e por- isto é, que faça ressaltar nossa vida social como problemática, e isso em um
tanto isso não valeria a pena modificar, e com muito custo, as estruturas so- duplo sentido: é um problema em suspenso, a vida social não é definitiva,
ciais, se as relações humanas estivessem condenadas a perma~ecer. o que não marca o fim da história, pode e deve ser ultrapassada; constitui uma
são se a agressividade, a culpabilidade devessem permanecer mscntas na das causas essenciais, mas modificáveis dos problemas e dos temores "indi-
nos~a carne e no nosso espírito: "Será sempre assim ... é a natureza h~a­ viduais" nos quais nos debatemos [lOa].
na". A cultura marxista abre-me para a alegria de agir negando que S~Ja­
mos fechados, dominados por um destino - e inicialmente por um destmo Os grandes sentimentos, a grandeza - Em um sentido, os heróis da
do caráter•. cultura elaborada, os que servem "de grandes interesses", não podem ser
modelos: não se trata de ensaiar-me para imitá-los, à maneira de Dom Qui-
xote. Na verdade, os heróis são modelos: sua grandeza é promessa na qual
1 Jà Marx recomendava tratar "conscientemente todas as condições prévias como cria- quero me engajar, promessa de prolongar minha vida na grandeza; prolon-
ções dos homens que nos precedem (despojá-los) de seu caráter natural (e submetê-los) à força . gar minha revolta na grandeza, viver mais dramaticamente o escândalo en-
dos individues unidos" (ldéologie al/emande, p. 97). tre as possibilidades dos homens e a mutilação presente. Descobrir a riqueza
Uma cultura para agir 75
74 A alegria na escola
esforços), é que ela abra diante deles um horizonte ainda mais atraente. A
latente, "É humano" vai deixar de ser sinônimo. de fraco ou inv~!ºs?· cultura elaborada que procuro será mais otimista, de um otimismo mais só-
"Pode-se gostar de que o sentido da palavra arte seJa tentar dar conscienc1a lido que a cultura primeira, porque será um pessimismo legitimamente ul-
a homens da grandeza que ignoram nele~". [l la]_. Não é menos verd_a~~ no trapassado.
que concerne à ciência e à política. Em que repercute a morte do her~i: Ele É preciso que eu me decida a abordar a dificuldade contra a qual não
teria combatido pelo que, no seu tempo, teria sido embuído do mais forte paro de me debater: falo sem parar de satisfação cultural (e aliás é de propó-
sentido e da maior esperança" [l lb]. Grandeza que não isola um ser como . sito que repito essa ·expressão, agradar-me-ia fazer dela uma espécie de re-
exceção mas, ao contrãrio, o une aos outros, a~udando a u?ião dos outros; frão) e todo meu propósito leva a.dizer que as satisfações da cultura elabo-
"morria entre aqueles com quem gostaria de viver ... muludões reconhece- rada existem e devem ser o objetivo da cultura e da escola. Mas como conci-
riam seus mãrtires". liá-la com o pessimismo que impregna tantas obras e entre as maiores, hoje,
Posso prometer a mim mesmo viver a efervescência amo~o~a dos gnu~­ é certo - mas igualmente no passado?
des poemas? mas minha existência real, meu nivel de amor cama bem mais A cultura parece ser de inicio, e sempre, a revelação da infelicidade:
baixo se 0 que sinto não mantivesse uma marca do exaltante que extrai de- angústia, incomunicabilidade entre os seres, decepções, fracassos de.tantos
les. Não renuncio a procurar do lado dos heróis algo que me sustente e me esforços, fracassos tanto mais dolorosos e muitas vezes tanto mais sangren-
oriente, pois se os abandono, ou melhor, se eles me abandonas~em, eu est~­ tos do que a tentativa visara; e a morte, o sofrimento de tantos inocentes;
ria reduzido a objetivos, a uma existência imediata e então muitas vezes fi- aliás o sofrimento dos culpados não me é mais consolador.
caria abatido, prefiriria o abatimento. . .
Quando vivo através dos heróis, essas Jlmb1ções, esse. fervor,' es~e im-
pulso, a afirmação do poder humano pelos quais me entusiasmo e evidente Uso necessário do pessimismo - Provavelmente há usos reais e neces-
que eles são possibilidades de mim mesmo. . . sários do pessimismo, exatamente para atingir à satisfação. Inicialmente é
A partir da satisfação cultural construo-me, cresço; rrunha satisfação certo que devemos atravessar e reatravessar as aflições, as atrocidades do
cultural é crescer, construir-me. São os heróis, que ultrapassando e de longe mundo; a satisfação da cultura elaborada só pode prevalecer sobre os praze-
a .vida quotidiana, ajudam-se a edificar minha vida quotidi_ana. . .. res da cultura primeira se ela se pronuncia com "conhecimento de causa" e
Descubro que hã também em mim recursos, tenho a minha disposição desde então com uma firmeza mais convincente, melhor estabelecida que as
mais vigor, mais força para agir do que pensava; satisfação de uma posse do pretensões de primeiro lance. Arriscaríamos querer permanecer tranqüilos
meu poder: "uma obra cultural é uma força que desenvolve as força~ da- nos jardins, sem pe.netrar na escória do mundo e de nós mesmos, se a cultu-
quela que se aproxima dela" [12). O her~i pode dar livre _cu_rso ª~.que ficava ra não estivesse lá para nos obrigar a ver - e às vezes mesmo o insustentã-
embrionário, encerto, curvado sobre mim mesmo; muito frequentemente vel. Extraio daí ao menos o consolo de não me sentir como Úma monstruo-
duvido de minha eficácia; seria cômodo, mas bem decepcionante e tão con- sa exceção. Não sou o único a ser assim, não sou tampouco o único a cla-
trârio à satisfação, renunciar a isso, despojar-me, deixar-me despojar disso; mar o quanto é difícil sair de sua solidão. O pessimismo para evitar à satis-
quase contentei-me com o mais simples, com o mais limitado de mim mesmo. fação rãpida, barata; Santo Agostinho, por exemplo, e o terrível do pecado
A cultura primeira procura a intensidade da vida muitas_v_ezes na ex~­ original ajudaram-me realmente a não admitir em volta da criança uma
berância ou simplesmente na amplificação do ruído e dos movimentos: mw- atmosfera de banalidade, de frivolidade onde tudo se arranjaria muito bem
tas vezes também o pressenti111ento de que a generosidade existe projeu~-se e muito rãpido.
apenas nos sonhos sobre-humanos, desumanos: não é o seu interlocutor que Não se trata de deixar de lado Sartre nem tantos outros quanto, apre-
encontramos aqui, conciliado com objetivos vitais, cC?m· esforços que po- sentando os problemas nos quais me debato, eles os direcionam para o inso-
dem se tornar posslveis? · lúvel e para uma angústia, uma incomunicabilidade que se fecha sobre elas
mesmas; pressinto apes·ar de tudo uma satisfação:· meus problemas são ver-
Alegria .e pessimismo - Eu quiz dizer que a cultura primei~a agradá dadeiros problemas, eles impõem-se à atenção, é, portanto, necessãrio de
aos jovens, a meus alunos porque, apesar de tudo, apesar de muitas exce- inicio agravar as dificuldades.
ções, ela é fundamentalmente satisfa~ão de viver. Mais dolorosamente, minha satisfação serã de me perguntar se não
A condição fundamental para que a cultura elaborada~~ toqu~, poss_a acreditei muito provavelmente em soluções demasiado fáceis - e meu es-
tocá-los tanto e mais que a cultura primeira (ainda que ela ex11a muito mais
76 A alegria na escola
Uma cultura para agir 77
forço será prosseguir a pesquisa no caminho assim aberto, sem renunciar a
ter esperança de alguma saída. renovação dos conteúdos ensinados, a qual passa ao que tudo indica por
uma renovação da própria cultura e portanto uma renovação da sociedade
Bom uso do pessimismso - O pessimismo pode ser também a alegria que ao mesmo tempo suscita essa cultura e é influenciada por ela.
dolorosa de estabelecer comunhão com a destreza dos outros: compreender, Como incitar o conjunto dos alunos a encontrar satisfação cultural
chamar para si a infelicidade dos outros, sofrer com seu sofrimento: nas obras, que evidentemente, impõem-se por seu caráter completo, mas
que· ora lhes aparecem como desprovidas da ligação real com seus proble-
"Estou em toda parte onde está a dor mas próprios, com os questionamentos de sua época, ora as abordam mas
Crucifiquei-me na menor lágrima" (13]. dão como respostas o fracasso inscrito no coração de todas as te'ntativas, o
fracasso como pano de fundo imutável de todas as ações?
Ainda que evidentemente meu primeiro movimento seja de afastar-me
dos aborrecimentos dos outros (já tenho, eu próprio, bastante problemas . O otimismo, arma revolucionária - O otimismo é uma categoria pro-
como esse) a cultura pode tornar-me {ão mais disponível, fazer-me sair de g~ess1sta, uma arma revolucionária; e não é um acaso se hoje, muito mais
mim mesmo para participar das penas dos outros - de início provavelmen- amd~ que no passado, quando a sociedade está em ·crise. quando a classe
te em imaginação, no simples domínio das palavras - mas se começo a vi- donunante se sabe em crise, uma tão ampla parte da cultura estabelecida re-
ver pelos olhos dos mais desfavorecidos, o prolongamento em atos pode pete, ~e~~amini;l a revolta sem saída, o insucesso generalizado, a incom-
não estar fora de alcance. Inquietude, é claro, mas satisfação mais intensa preens1b1hdade do mundo e dos destinos para concluir à resignação ou à es-
que a inquietude de ter, eu não diria destruído, mas ao menos ampliado pera do Apocalipse. Diante dos perigos e também dos protestos, os mante-
meu egoísmo: ne~ores da ~rdem não ousam mais sustentar a validade do mundo que cons-
truiram, arnscam-se arduamente a propor objetivos novos: permanece um
s? argumento e eles não deixam de manejá-lo sob cem variações de aparên-
l "A imensa infelicidade das pessoas
Nada é mais urgente do que suportá-la
Nada mais, senão o outro, me é urgente" [14).
cia; não se pode fazer melhor, nunca se faz melhor. Não é um modo de en-
cobrir seu fracasso?
A. cultura, e a mais refinada, pode servir para desmoralizar e propagar
1. O poeta faz-nos passar da constatação da infelicidade a uma simpatia a suspeita do homem em relação às suas forças, pode conduzir à suspeita da
para com a infelicidade e de lá a uma co-presença com aqueles que a inutilidade de seus esforços.
1 sofrem. . . A satisfação cultural ~ por conseguinte a alegria na escola só podem
Mas como estar a seu lado se não é ajudando-os a d escobrir algo além exist~r se houver uma outra cultura diferente daquela que se dedica às vidas
de seu sofrimento ? Por que estar a seu lado se não é para tentar com eles ~erd1das, ao cu.lto do insucesso e que vai entravar as esperanças e as possibi-
ultrapassar a dor? lidades. O destino da escola age sobre a manifestação de uma cultura capaz
de responder à expectativa séria de felicidade nos jovens - essa expectativa
Uso catas1rófico do pessimismo - Porque há assim mesmo, e princi- que eles exploram através das formas múltiplas, matizadas de sua cultura e
palmente na escola, um uso catastrófico do pessimismo: desde 1948, Hours da nossa: dar um sentido à sua vida, encontrar razões para viver.
explicava que o desamor de tantos jovens pelos estudos provém de que a
cultura que se propõe a eles não conduz "nem à vitória, nem à fertilidade" O pessimismo como grito - Felizmente (6) há gritos de dor queres-
(15). Frase capital desde que se dê à "vitória" seu sentido pleno que com- soam ao °!esmo tempo como protestos; há modos de clamar o insucesso do.
porta evidentemente o sucesso social e profissional, mas que não se limita a amor, os esc~ndalos do mundo com um acento tal como ele aparece, embo-
isso. r~ não os a;e1temos, não nos resignemos, queremos fazer ouvir a persistên-
Frase que nos obriga a questionarmo-nos: é a escola que escolhe na cia subte.rra~ea de uma esperança; e é talvez essa expectativa, essa confiança
cultura o que parece conduzir irresistivelmente à derrota? É nossa cultura -: acred1ta~1amos que elas estivessem cobertas pela infelicidade, mas estão
que está em jogo? Não pode ela oferecer outra coisa? ah apesar disso, prestes a serem percebidas, prestes a serem levadas em con-
Direi incessantemente que a renovação da escola é antes de tudo uma ~ª.-:- que me tornam comoventes e próximo das obras que teria acreditado
1mc1almente estranhas a minha pesquisa. Algumas evocações da infelicida-
78 A alegria na escola Uma cultura para agir 79
de já são excessos da infelicidade: "Dizer melhor que qualquer um a miséria Confiança - Será que escolhi as grandes obras que dão ao homem
comum, (é) negar-lhe um poder total de derrota" [lOb]. O escravo que can- c~n~anÇa nele próprio e p~rtanto satisfação extraída. dessa confiança - ou
ta ou melhor os escravos que cantam juntos atingem a expressão de uma due1 que todas as grandes·obras reforçam a confiança do homem nele pró-
dignidade coletiva, a reivindicação de humanidade. As provas assumem prio, é nisso que as reconheço - é.são elas.que quero dedicar à escola?
uma intensidade trágica, uma riqueza que se diria quase brilhante, algo de Os autores já confiaram em mim, confiança, de que eu poderia com-
exemplar; e nesse itinerário, através da culpabilidade e da destreza, as fon- preendê-los, que poderia viver, respirar a sua altura. De algum modo, dedi-
tes da satisfação da c ultura carregam-se de gravidade, não desaparecem. caram-me seus livros.
É que entre o que vivemos, o que tentamos viver ~e a obra cultUial há
Escolho - Finalmente, é verdade, na cultura, nas obras, como no uma rede de ligações, de transições que fazem com que não.sejamos "i~ap­
modo de interpretá-las, escolho: escolho as que souberam atravessar o pes- tos à obra de arte'' [16). É possível que obras contenham a esperança huma-
simismo deixando pressentir que não é o ponto final: mesmo se sou fre- na, "dêem cor . à esperança humana sem cair na imbecilidade edificante
qüentemente fraco e covarde, a realidade e a ficção designam-me homens (mas, no fundo por qu~ nos comprazemo-nos a dar a esse termo um sentido
que souberam ultrapassar sua fraqueza - e esforço-me por tomá-los (e co- também _pejorativo?) "a moral não entra nessa arte a título de objetivo; a
mo) por modelos. Mesmo se essa sociedade está condenada, interiormente moral m istura-se a ela e confunde-se como a própria vida. O poeta é mora-
minada, possui nela mesma os recursos necessários para realizar sua revolu- lista sem o querer, por abundância e plenitude de natureza" [3b].
ção; o passado é a garantia de progressos possíveis, uma vez que progressos
já foram realizados; escolho os que souberam revelar também o aspecto O cultural, campo de luta política - Escolho; na realidade esforço-me
afirmativo dos dramas que sacodem o mundo; evocar o egoísmo, a hostili- para unir o cultural à luta das classes.
dade, a incomunicabilidade e convencer que o homem não se reduz a isso; Sem nenhuma intenção de guardar apenas obras primas explicitamen-
dizer da infelicidade dos homens e que o homem não é feito para a infelici- t~ progressistas, menos ainda explicitamente revolucionár ias, pois o rol se-
dade - e que ele depende do~ esforços para prová-lo; e é o que charno de na de uma brevidade aflitiva e as mutilações impostas em outra parte 1 in-
cultura elaborada progressista. Ou pelo menos é o primeiro caráter pelo su~tentá.veis, bem de fazer obras que não sonhavam, tantos catecismos pré-
qual quero situá-la. revoluciol'lários, extraindo algumas passagens que poderiam prestar-se a tal
As pessoas cultas zombam freqüentemente de nosso preconceito de exegese.
otimismo. Tanto pior, tanto pior para as pessoas cultas. Unir o cultural à luta das classes é inicialmente reconhecer que a cultu-
ra está politicamente situada, que não goza de um privilégio de exterritoria-
Papai Noel? - Evidentemente vão acusar-me de acreditar em Papai lidade .. Há portanto obras que se tratará não simplesmente de explicar mas
Noel, de querer acreditar em Papai Noel, a Biblioteca rosa dos gentis mode- de desmistificar.
los, para não dizer gentis organizadores. Vão lembrar-me que é com os bons A ideologia dominante no que ela tem de mais reacionário é muito fá-
sentimentos que se faz má literatura. Ao que Claude Roy [6] soube dar res- cil de pensar apenas em tais proezas da cultura de massa: en~ontramo-Ja
posta: os "bons" sentimentos, se são sentimentos de "gente bem·• é verda- também sob formas características em obras na aparênçia mais ambiciosa,
de que não levam a grande coisa; resta atingir "os grandes sentimentos", de fato medíocres; penso em todos esses romances colonialistas do século
onde o bom une-se com o fundamental, o fundamentalmente inovador nos XIX onde o exotismo serve para dissimular a infelicidade de uns e a explo-
destinos. ração pelos outros. .
Admiro-me sempre de que a esperança tenha tanta dificuldade para Mas infelizmente! a ideologia dominante foi represen tada, continua a
encontrar lugar no domínio literário (e aliás hoje cada vez mais também no sê-lo no interior da cultura elaborada e por grandes nomes: anteontem pelos
domínio fílmico que sofre sua influência) enquanto que ressoa com força três B: Berres, Bouget, Bazin. -
em música, e creio que também na pintura. A forma sinfonia ou sonata da Onteni por escritores que colaboraram com os nazistas e cujas obras
música clássica e romântica é o corpo a corpo dialético de dois ternas opos- de antes de 39 já demonstravam a tendência ao fascismo. Hoje ...
tos e inseparáveis até o momento de uma união, de uma afirmação vito-
riosa. O cultural, campo de luta autônoma - Mas unir o cultural à luta das
classes não significa de modo algum que o cultural confunde-se com a poli-

..
80 A alegria na escola Uma cultura para agir 81
tica, nem se reduz a um disfarce do político nem a uma defesa em favor de veria mais justificativa para dar o poder a algumas gerações recorrendo a
tal política. Há bem uma autonomia específica do cultural. uma coragem e uma pureza "fora do comum".
Ainda mais, a luta de classe e sua projeção sobre o plano da cultura O amor de Phedre por Hippolyte, quando ela acredita sentir pesar so-
significa também que a cultura nunca é dominante; ela comporta ao mesmo bre toda sua raça senão uma maldição, pelo menos a ausência do apoio do
tempo "a dominação da ideologia burguesa" e indissoluvelmente "a pene- qual terá necessidade, a ausência da graça não está separada desse debate.
tração da ideologia democrática" [17). Na verdade, não se trata de fazer a Através de múltiplas metamorfoses, essa interrogação nos concerne
"seleção" nem a "contabilidade" entre o que seria o bom, o progressista - ainda todos os dias, quem questionamos sobre a igualdade dos homens e as
e o ainda burguês. Mas· lá·onde as tendências, as correntes defrontam-se, diferenças de suas capacidades; ao mesmo tempo, é sob essa forma particu-
encontraremos com o que alimentar nossas satisfações culturais, encontra- lar que ela foi vivida.
remos também como intervir, uma vez que há uma esperança razoável de O mesmo explica que, em A ndromaque, Racine organizou de maneira
fazer com que a situação evolua. totalmente nova materiais preexistentes de modo a acentuar o contraste en-
Unir a cultura à luta de classe é introduzir uma aspereza que pode pa- tre a violência do mundo e uma figura feminina distante e pura. Essa reno-
recer terrível, mas é colocar o cultural no mesmo nível da vida dos homens e vação do tema é inseparável da evolução do meio-social e das idéias do sécu-
é afirmar que sobre o plano cultural também podemos conhecer a satisfação lo XVII: a dignidade da mulher está no centro de múltiplas controvérsias e.
de agir e de contribuir para um progresso. tentativas de ação: as Précicuses não seriam ridículas se os primeiros esfor-
ços para escapar a uma condição rebaixada pudessem logo encontrar o tom
justo. Aqui, ainda uma inquietude de alcance universal é apreendida em tal
Restabelecer a integridade e a integralidade das obras - Opto pela es- momento de sua evolução.
colha de toda uma série de grandes obras que a "cultura oficial" deleita-se Temos ainda e sempre a proclamar com Andromaque que a ternura de
em deixar de lado; estuda-se as Oraisons Funebres de Bossuet e não se está uma mãe para com seu filho, a lealdade de uma esposa para com o marido
errado, nunca os discursos revolucionários de Robespierre ou de Jaures que morto são valores reais, valores sempre progressistas diante do desejo bru-
têm apesar· disso um outro ímpeto. Cem autores permanecem desconheci- tal de um conquistador.
dos, por exemplo, Jules Valles, porque não são bastantes conformistas ou
resignados: porque não dão do homem Uma imagem julgada suficientemen- Visto que é um mesmo movimento que se visa - "Reavaliação
te austera. crítica": não estender a obra para o hoje, pois então valeria mais considerar
E também de apreender os autores reconhecidos em toda sua ampli- francamente obras contemporâneas, nem conferir-lhes uma ·característica
dão, enquanto que os trechos escolhidos, muito habilmente escolhidos pela de imobilidade; equivaleria dizer que nada muda. que "o homem eterno"
ideologia dominante, tentam "domesticá-los". Por exemplo, não apresen- desafia a história; não mais transformar o produto cultural em simples tes-
tar todo Rousseau nas Confessions porque é la que "se descobre o homem" temunho histórico que, portanto, não poderia mais tocar-nos diretamente,
mas dar seu justo lugar ao Contrat Social onde se edifica o projeto revolu- mas sentir a ligação essencial com lutas, que ao mesmo tempo, prosseguem,
cionário - e compreender ·o s dois livros em suas relações recíproc~.s [18). ampliam-se e revestem-se de formas novas. A reavaliação crítica não é
Trata-se pura e simplesmente de reencontrar o sentido real, o.usado, abandonar a satisfação cultural que experimento nas catedrais, também não
ofensivo dos autores. fazer disso simples objeto de contemplação estética, para não dizer de
Escolho tornar público os aspectos realmente progressistas que carac- curiosidade de esteta; não renegarei portanto meu ateísmo. Mas é um convi-
terizam finalmente a .imensa maioria das obras grandiosas: experimentei te para reviver o grandioso do sonho religioso, como quer ele responder a
com Racine uma satisfação inteiramente nova a partir do momento em que esperança dos homens a seus desejos de amar e de serem amados; esse mun-
Benichou [19] fez-me compreender que o poder real acr•editou ser bom agir do pode ser renovado; todo homem tem igual dignidade e direito à mesma
com crueldade contra os jansenistas porque atravé~ das controvérsias teoló- parte de amor: eis o que encarnam as catedrais e com que posso coincidir;
gicas de uma extrema complexidade representava-se o combate entre duas transpondo-o do além para a terra. Alguns de meus colegas esforçar-se-ão
concepções do homem e simultaneamente entre duas figuras possiveis da so- de sua parte para unir a perspectiva celeste e sua ação desde esse mundo.
ciedade: se se afirmasse que todos os homens eram iguais diante da graça di-
vina, seria a ideologia da nobreza hereditária que iria para os ares, não ha- Sonhar e agir - A cultura de que gosto é também a satisfação do des-
:

.1
Uma cultura para agir 83
82 A alegria na escola

conforto, do estranho, da estranheza, o longínquo no espaço e no tempo, a E idiotas de nascença


parte do contraste; não quero renunciar ao domínio do imaginârio, mas sim Que tomamos seu partido".
acrescentar as ocasiões do sonho, a satisfação do sonho, do devaneio.
Uma satisfação que se acompanha da consciência d a irrealidade, devo Tenta-se aqui introduzir um espírito novo ao teatro:
dizer: o remorso da irrealidade? Essa evasão sobre as nuvens, em certos mo-
mentos, dá o sentimento feliz de uma compensação, de uma liberação; em "Uma satisfação, uma volúpia, uma virtude
outros temo às vezes perder o controle e sinto-me um pouco traído em rela- >
Para substituir esse pessimismo velho de um século
1 O que é bem antigo para uma coisa tão aborrecida" .
ção ao terrestre.
Mas na verdade o sonho, quando tornou-se coisa cultural, criação cul- 1
l Seguramente esta é uma situação precâria:
tural, não é redutível ao jogo, não leva con sigo nenhuma fatalidade de fu-
ga; objetivou-se, projetou-se nessa matéria que a linguagem ou o som, a
"Piedade por nós que combatemos sempre nas fronteiras
forma, a cor constituem. O irreal foi elaborado numa obra e desde então 1
1 Do ilimitado e do futuro".
não é mais da ~atureza do fantasma, da alucinação: ele possui uma existên- 1
cia, cuja prova é que encontra-se dividido por milhares e milhares, estabele- 1. Um pouco como se se tratasse do desinteresse de vanguarda:
ce uma comunicação entre os homens, é a própria comunicação. Se ele atin-
giu um tal resultc..do, é que não é abandono, flutuação ao sabor das quime-
"Que remos explorar a bondade
ras mas "consciência e mestria ... domínio de seus meios" [l lc]. Região enorme onde tudo se cala" (22).
E é isso que vai me ajudar a tomar posse de mim mesmo: o homem de
arte tornou-se e quer nos tornar ~'cada vez mais senhor de seu domínio in-
cluindo nisso suas vertigens" (20). Quanto mais freqüento os sonhos cultu-
ralmente encarnados, menos tenho a temer que meus sonhos venham a con-
fundir minha realidade.
Acreditava que eram meus próprios sonhos, ao mesmo tempo estava
bastante orgulhoso de sua originalidade e receava que eles 'me feêhassem em
mim mesmo. Nas experiências culturais descobro que, n:iodulados pela mi-
nha personalidade, eles se comunicam corri um funéio comum - 'e no fim de
contas com o patrimônio das experiências humanas. Satisfação complexa
~e confrontar nossos sonhos e a realidade. Há esperança de construir um
teal que teria menos necessidade ou que teria necessidade de outro modo de
ser completado, prolongado, compensado pelo sonho? Diminuir o afasta-
mento não abafando o sonho, mas intensificando o possível. Sonhar pode
também ser uma via para evocar, sentir, fecundar, projetar mais felicidade
- e chegar às vezes a sentir que esse sonho não é completamente um sonho.
Terminemos nos dando o prazer de citar dois poetas que ousaram não
remoer tris~ezas e, o que é pior ainda, proclamá-las.
"Um autor que não ama o pessimismo é raro! Geralmente ele ama
apenas isso .:. E depois, é bem mais fácil e isso dá o ar de superioridade.
Fala-se mal da humanidade. Julga-se a aparência de um gênio" [21].
Ou ainda:

"Mas há tanto tempo que se faz crer as pessoas


Que elas não têm nenhum futuro, que são ignorantes para sempre
SEGUNDA PARTE

CONTINUIDADE-RUPTURA
CAPÍTULO 1

Continuidade-ruptura

A i:elação que não cessei de evocar entre cultura primeira e cultura ela-
borada é uma síntese complexa de continuidade e de ruptura, onde nenhum
dos dois. elementos anula, engole o outro: continuidade das mesmas satisfa-
1 ções procuradas, rupturas indispensáveis para estabelecer as satisfações
1
com a firmeza que escapava inicialmente.
Poderemos nós multiplicar suficientemente as experiências onde nos-
1 sos alunos perc~berão que o trajeto é difícil, possível, dá satisfação, em su-
ma ele "vale a pena·" ? Eles sentem que as estreitezas, as insuficiências, as
1 incoerências da cultura primeira diminuem sua satisfação - e que passar da ·
cultura primeira à cultura elaboPada, é ampliar essas satisfações - e indis-
soluvelmente consolidar seu poder de ação: não é sofrer uma imposição
exterior. É para cada um dar consistência às suas hesitações precedentes, ul-
trapassar suas próprias contradições - e assim tomar posse de suas rique-
zas, chegar a encontrar a si mesmo na sua individualidade enfim livre da
g~gue dos estereótipos; chegar a uma procura e uma ação rigorosas, ao in-
vés de uma vagabundagem freqüentemente idolente - sinto até o fim de ·
sua experiência pessoal, tendo se apoderado da possibilidade de ir até o fim
de sua experiência pessoal.
.:.•
As duas.fontes de satisfação - Continuidade-ruptura: é dizer que a
proposta vai realmente- tocar os interessados porque ele guarda parentesco
com_ o que eles são, o que eles gostam: ele atinge seus objetivos melhor do .
88 A alegria na escola Continuidade-ruptura 89

que aí chegavam eles próprios nos seus desejos primeiros, dá saída às suas - e o que seria a significação real, o valor real de seus desejos, de sua exis-
esperas. tência.
Já provavelmente aconteceu-lhe sentir no raciocínio matemático essa
transparênica do próprio pensamento esse encadeamento irrefutável dos Apelo - A tarefa é tomar consciência do que há ao mesmo tempo de
argumentos dos quais você sonhou nas discussões habituais; como você fundado e de incompleto, portanto de insatisfatório na experiência simples-
reencontra nos poetas sentimentos que começou a viver e mesmo a ouvir ex- mente vivida e a cultura primeira; o que nutre o desejo de ultrapassá-la e a
primir-se (as canções de amor) mas nunca com um tal brilho. sagacidade de encontrar as vias dessa ultrapassagem.
Uma cultura onde se reco.nhecer, reconhece-se o que se procura e ex- A cultura primeira chega rapidamente a fazer perguntas que não en-
perimenta - agora com mais força e mais lucidez. A satisfaç.ã o que lhes contram resposta na cultura primeira; traz em si própria uma exigência de ir
propõe a cultura elaborada, é essa satisfação que vocês começaram a viver além, o que não significa que essa exigência encontre por ela mesma uma
na cultura primeira, na sua cultura primeira, o que você sente confusa, con- satisfação fácil. É apoiando-se no positivo da cultura primeira que se pode
traditoriamente, lufadas de otimismo, de confiança em si próprio, no mun- ultrapassar os riscos que aí de encontram incluídos.
do, no amor - e isso pode tornar-se mais sólido na medida em que os ele- Afinal a cultura primeira não é simplesmente um ponto de partida que
mentos de satisfação não vão mais ser contrariados por cem outras infü- se abandonaria em seguida, ela não é apenas matéria primeira, mas matéria
trações. · constante, contém valores a manter no programa, que tem um papel a de-
Uma proposta que vai prolongar, purificar, fecundar e finalmente sempenhar no programa, ela ai introduz uma espécie de fermento.
transfigurar seus valores; reconhecer esta cultura elaborada como "culmi- Em suma, o imediato como apelo em direção ao programa.
nância" de sua própria cultura primeira.
Duas fontes de satisfação: é resposta esperada às suas inquietudes - e
resposta mais reconfortante. Luta em duas frentes - Luto em duas frentes, de um lado diante da-
É - ou seria? A cultura que evoco é um fato ou uma esperança? Na queles que vêem apenas a descontinuidade entre cultura primeira e cultura
sociedade atual, eu diria que é um e outro: certamente ela existe a título de
obras e de pesquisas, mas que são para interpretar, suster, prolongar -
. elaborada, que negam qualquer prolongamento de uma na outra e estabele-
cem um fosso intransponível; e luto também diante daqueles que tendem a
como promessas e objetivos. confundir cultura primeira e cultura elaborada, os que não querem reconhe-
cer entre elas diferenças significativas nem na natureza nem na qualidade
das produções: eles dirão que as histórias em quadrinhos das quais são tão
Jovens, não desencaminhados - Pedagogicamente portanto temos ávidos nossos alunos, as músicas de sucesso que todos cantarolam, são tam-
que tratar com consideração a vida, a experiência, a cultura primeira - aci- bém tão válidas quanto V. Hugo.
ma de tudo as dos jovens. Elas não são caos, negatividade: os jovens não se Essa distância entre as culturas, essa hierarquia entre as culturas, são
enganaram de caminho e seria preciso que operassem uma reviravolta ou muitas vezes os intelectuais e os mais cultos que a negam. Na verdade, eles
pelo menos que seguissem um outro caminho diferente para dirigir-se ao dominam tão bem a cultura elaborada que podem se dar ao luxo e ao prazer
programa. Espontaneamente, nossos alunos não gostam do contrário do de brincar com a cultura primeira, de introduzir nela requintes, sutilezas, fi-
que eles deveriam gostar, do que gostaríamos que gostassem. Seu gosto não nuras, intenções que eles próprios transportam desde o programa - e que
é o "mau" gosto nada mais que sua linguagem não é a "má" linguagem. não existem para aqueles que foram reduzidos a um ordenado mesquinho?
Saibamos dizer-lhes: "Seus problemas como suas alegrias são reais; J> O especialista de lingüística geral e comparada declara gostar dos romances
não se trata de modo algum de sacrificá-los no altar da cultura elaborada; o policiais da série negra tanto como das obras de Balzac; suspeito que ele de-
que lhes é pedido não constitui um abandono, uma negação de vocês mes- vorou nos primeiros o capital cultural que somente adquiriu graças aos se-
mos. Vocês devem levar seus desejos muito a sério, vamos levá-lo muito a gundos.
sério. É, segundo minha opinião, a parte de verdade em Rogers no seu con- Quando uma pessoa muito culta afirma que a cultura primeira é tam-
flito com a psicanálise, embora eu não tire daí as mesmas conclusões peda- bém tão conveniente e suficiente quanto a cultura das obras primas, tenho
gógico-terapêuticas; não se ajuda pessoas a progredir obstinando-se a per- sempre medo que não seja dito que é suficiente para os outros, para os fi-
suadi-las de que não há nenhuma ligação entre o que ~las sentem, desejam lhos dos outros e finalmente das outras classes. É o povo que vê certo quan-
90 A alegria na escola Continuidade-ruptura 91

do tem a ambição de adquirir, ele também, a cultura elaborada e que luta nisso em uma seqüência de oscilações: os ensaios bloqueiam-se uns aos ou-
para que seus filhos deixem de s~r excluídos dela. tros, há ameaça de permanecer na "indecisão, 'tla passividade" [12).
Os mais cultos que declaram desdenhar o cultural, como alguns ricos· É em grande parte por causa dessa dificuldade de atingir a coesão que
que cospem sobre o dinheiro. Pode-se levar a sério uns e outros? Mas não o .sentido comum, na prática, é muitas vezes "co~servador, hostil às novi-
há riscos para aqueles que os escutam ingenuamente? dades; (é freqüentemente difícil de ai) fazer penetrar uma verdade nova".
Uma das causas desse disparate é a coexistência, nas consciências, de
estratificações múltiplas saídas de períodos diferentes da história: houve su-
O que me parece mais vivo em Gramsci - É antes de tudo apoiando- cessivamente empréstimo das ideologias dominantes, das filosofias prepon-
me em Gramsci que espero chegar a precisar este complexo de continuidade- derantes - e cada uma deixou uma sedimentação: "o sentido comum tem
ruptura entre as culturas insistindo ora sobre uma, ora sobre a outra, mas restos, reminiscências da concepção.ptolomeana, antropomórfica, antropo-
na verdade cada uma desenvolve-se apenas no interior da outra. cêntrica" e também um grande número de elementos modernos.
Colocando inicialmente o acento sobre a continuidade, diremos que Essas discordâncias são apenas o reflexo da realidade social na depen-
"o sentimento comum" (e parece-me que essa expressão de Grarnsci não es- dência imediata vivida: "o conjunto das relações sociais sendo contraditó-
tá afastada do que chamo a cultura primeira) constitui "uma primeira to- rias, a consciência dos homens pode ser somente contraditória" '[14];. daí
mada de consciência, um primeiro modo de organização e de vontade cole- por exemplo tantas pe5soas que acreditam ser progressistas, querem ser pro-
tiva, pelas pessoas, de suas posições" [la], Gramsci não separando a orga- gressistas e que são presas de tentações, de reações racistas.
nização e a vontade do pensam~nto. Às vezes também em sentido inverso: a prática é de uma solidariedade
Os valores essenciais do programa por mais que sejam hesitantes, en- certa, mas deleitamo-nos em proclamar idéias de egoísmo, e as declarações
volvidos de indeterminação, não indo até o final deles próprios, estão ali, chegam apesar de tudo a frear as ações . .
presentes na cultura primeira; as formas costumeiras de existência e de cul- É que "o sentido comum" não tem acesso aos instrumentos críticos:
tura não são o contrário do que proporá a cultura elaborada, mas sim "uma as opiniões, os empréstimos sucessivos foram "absorvidos de um modo
forma embrionária". caótico" (5), ao sabor das circunstâncias e dos encontros; que seja o folclo-
A insuficiência da cultura primeira, é em primeiro lugar sua heteroge- re, mais ou menos mágico, ou os temas cientificos vulgarizados, o risco é de
neidade: pertencemos a grupos múltiplos, participamos de múltiplas corren- aderir a isso do mesmo modo supersticioso.
tes, vivemos modelos múltiplos - sem que essa diversidade alcance à unida-
de, à coerência: um mosáico "miscelânea de elementos onde nenhum pre- Criar continuidade - Gramsci afirma a continuidade entre a cultura
domina" [12). E por exemplo "elementos realistas, materialistas" estão primeira de uma pessoa qualquer e a cultura elabgrada, não apenas 'q uando
misturados com representações idealistas, religiosas, até supersticiosas. declara: "Todo homem é um artista, um homem de gosto", mas também
Os temas sendo "contaminados" uns pelos outros, fica-se no frag- em tal domínio cultural que passa tão freqüentemente como reservado a es-
·mentário, no disperso, no discordante, no mutilado. Os valores chocam-se pecialistas; "Todos os homens são filósofos ... não se pode pensar em ne-
com seus opostos, não podem atingir seu próprio desenvolvimento, perma- nhum homem que não seja ao mesmo tempo filósofo" (16] e isso nas duas
necem como inibidos; t.udo entrechoca-se nas cabeças; meias-medidas, jus- direções constitutivas da filosofia: a prática uma vez que todo homem pro-
tapõem-se de qualquer maneira, no seu pensamento como na sua vida, um cura forjar-se uma linha de conduta moral, e o esforço teórico: "Todo ho-
pouco disso e uma dose do inverso. Daí hesitações entre as opiniões possi- mem participa de uma concepção do mundo", a qual mantém de modo fir-
veis, desejo de permanecer no estágio das hesitações. {' me, até febrilmente: uma espécie de pressentimento, de presciência da mais
Um passo a mais - e vai-se considerar todo objetivo global como sábia filosofia já está contida na "manifestação mais simples de uma ativi-
belas palavras vãs que não 'pertencem, não podem pertencer à ordem da rea- dade intelectual" [16) .
lidade.
Enfrentar a ·ruptura - Mas, ao mesmo tempo lê-se aqui que não se vai
MisceltJnea - Desde então dificuldade extrema para realizar unidade ficar nesse nível de humildade: o progresso exige ruptura.
entre a teoria e a prática: visto a multiplicidade das direções nas quais o Ruptura para conquistar os meios de passàr pelo crivo, de· questionar
"sentido comum" é arrastado, deixa-se arrastar, o risco é de permanecer um conjunto de influências e de hábitos que tendem a impor-se como natu-

'J
92 A alegria na escola Continuidade-ruptura 93
nus porque constituem o meio no qual está mergulhado desde há muito ruptura já que se trata de tornar crítica uma atividade já existente, mas que
tempo; conquistar a força para conseguir sfilr daí. funcionava sem operar, profundamente, retorno sobre si, questionamento
Desmascarar as mistificações nascidas do funcionamento de nosso sis- de si próprio.
tema social, esforçar-se para desfazer mistificações que muitas vezes conse- Reatar continuidade e ruptura: não ficar em alguns exemplos, em al-
guiram persuadir aqueles mesmo, que são suas vitimas: os filhos de operá- gumas experiências nas quais, mais ou menos inocentemente deleito-me em
rio não são feitos para, não são dotados para os estudos. fundamentar; também não se trata de renunciar à essas aquisições; ainda
Tomar consciência de que a cultura de massa, mesmo se as ~assas fre- que o quisesse, não o conseguiria; mas o esforço é alargar os horizontes,
qüentemente a adotam, não é feita pelas massas, ela lhes é proposta, até im- ampliar as visões além dos objetivos a curto prazo, de meu interesse pessoal
posta pelos cem canais da difusão. A indústria cultural lança modas; essas e familiar; englobar o vivido quotidiano em sínteses onde ele assume seu
modas por mais que sejam diversas, é na verdade raro que não acabem por sentido pleno, até o ponto em que poderei sentir a ligação entre as perguntas
funcionar em proveito da classe dominante e do conservantismo. que me faço e as perguntas que o mundo faz.
Esforço-me para purificar as experiência iniciais e para lhes conferir
Sem via de contorno - Ruptura, arrancada rude, portanto dificul- coerência, unidade, plenitude; pelo que serão reforçadas em intensidade e
dade. em amplidão, elevadas a um tom mais mordaz, "mais épico". São agora os
Muitas vezes a cultura primeira impõe-se a né•J, persegue-nos; a cultu- "furores coletivos" (3) qtie se exprimem, criatn-se·: é o mesmo objetivo, o
ra elaborada não se insinua em nós; compete-nos chegar até ela; não se pode mesmo alvo, de maior alcance, mais verdadeiro; é a mesma satisfação com
esperar banhar-se ai numa impregnação suave, tão suave que o individuo se mais satisfação.
cultivaria sem ter que fazer esforço de conquista, o individuo cultivar-se-ia
sem percebt;r. Dar a luz ou ... - Essa tomada de posse de si próprio é no entanto
Não há grandes obras que se possa atingir nas atitudes de lazer ou de fundamentalmente diferente da maiêutica, pelo menos daquela em que Só-
prazer imediatos; as grandes obras começam por serem difíceis, não se en- crates expõe a teoria - não estou persuadido de que ele a coloque realmente
tregam logo; é preciso ao mesmo tempo um aprofundamento do que é pro- em prática.
posto e dos conhecimento prévios ao que é proposto. Inicialmente porque esse progresso em direção a si próprio exige que
É a mediocridade, "a feliz mediocridade" que "coloca o espectador e se apoie explicitamente sobre a contribuição "exterior" das tradições histó-
o artista comum de nível" (2). ricas, dos movimentos organizados, dos grandes criadores; trata-se de
Assim aproximação incessante da satisfação e do esforço; isso surge enfrentar, de se confrontar, eu diria de se apoiar em pensamentos e tipos de
para mim como um fato primordial de que não se chegará à satisfação cul- vida que atingiram o nível mais elevado.
tural elaborada sem esforço, acrescentando a seguir que não concebo o es- Em seguida não está em jogo um progresso apenas intelectual, na
forço propriamente cultural se não for chegando à satisfação. compreensão; é preciso simultaneamente ação, até que se atinja a uma exis-
Pode-se admirar uma bela vista na montanha após o esforço da esca- tência modelada pela cultura elaborada, até que se consiga quebrar o "pe-
lada; provavelmente pode-se admirá-la também sem esforço, tomando o trificado".
teleférico. Mas não há teleférico para conduzir a Beethoven. Enfim essa sintese entre a continuidade e a ruptura nunca é um objeto
O paradoxo de que temos de convencer nossos alunos - e isto só pode de.constatação; é um esforço, uma tensão para manter a força.
ser pela experiência que viverão - é que seus valores, seus próprios valares
pelo menos sob a forma verdadeiramente realizada nao lhes são dados de Tenho dois modelos - Sou guiado, talvez obsecado por dois mode-
um modo imediato, nem mesmo oferecidos numa aproXimação gradual: ha- los, que aliás têm relação estreita entre si.
verá saltos a realizar, talvez momentos de iluminação, e também períodos Por um lado em Hegel a noção de A ujhebung: é possível que um ter-
de aridez. mo seja ao mesmo tempo "conservado, mantido" e que ele "se ultrapasse"
- e isso ''na medida em que perdeu sua existência imediata ... na qual en-
Manter as duas pontas da corrente - E somos conduzidos por Gramsci trou em unidade com seu oposto". Houve "reconciliação" (4) .
a uma síntese: "Acelerar e disciplinar" (1 7) o vivido é reatar continuidade A cultura elaborada não me aparece como o oposto da cultura primei-
já que não se trata de renunciar ao que se pensava, ao que se gostava - e ra. Mas o que procuro, é bem uma exigência, uma espera que, unindo-se a
94 A alegria na escola Continuidade-ruptura 95
um outro termo, ao mesmo tempo enriquece-se (senão por que dispender que recebemos delas com confusão" dizendo aos alunos: o que vocês pen-
tantos esforços culturais?) e Perpetua-se, pois a alegria da cultura elabora- sam e dizem "com confusão", a cultura elaborada via-se esforçar para en-
da é ultrapassar-se nas próprias esperanças que se pressentia desde o início . . tender e devolver-lhes "com precisão". Espero que vocês sintam o quanto
O outro modelo é evidentemente o modelo marxfata. A afirmação que esse retorno modifica, enriquece o inicial que ele reflete e fortifica a alegria.
me parece fundamentar o Partido na sua originalidade, é que ele pode ter ~~e ~ pequeno Dupont consiga modos de expressão, de pensamento,
um pensamento teórico, elaborado, precisamente o dos "organizadores" de ex1stenc1a que sejam finalmente do pequeno Dupont e de V. Hugo, que
dirigentes, que não consiste em construir "um ideal sobre o qual a realidade sejam o pequeno Dupont enaltecido e acolhido favoravelmente por V.
deveria se regular" que "não fabrica um sistema social tão perfeito quanto Hugo.
possível" - e esse ideal seria sem relação com a vontade primeira, a cultura O risco ameaça sempre, e, terrivelmente, que o Parti.do não se afaste
primeira do comum dos mortais, talvez até se situasse no oposto; o papel do das massas a ponto de se contradizer em suas expectativas - ou em outros
Partido é que os que tentam e que combatem entendem "a verdadeira pala- momentos que não se dilua no "continuismo".
vra" de seu combate já engajado, descobrem, elucidam o que seus esforços Nunca se esquecerá a invocação de Brecht a seu Partido: "Mostre-nos
buscam "na realidade". Em suma, "desenvolvemos no mundo princípios onde está o bom caminho e nós seguiremos; mas não siga o bom caminho
novos que tiramos dos princípios ·do mundo". E isso pode acontecer porque sem nós, pois esse não seria mais o bom caminho".
existe um "movimento real que abole o estado atual", existe "na situação Ao mesmo tempo sei bem que corro o risco de deformar o marxismo
efetiva os meios para resolver o conflito" [5] e por ali mesmo há, e desde uma vez que aplico ao conjunto dos candidatos à cultura elaboraaa o que
sempre, desde bem antes do Partido, homens lutando e recusando esse foi previst~ pelas massas trabalhadoras em luta contra a exploração; e te-
mundo - antes de tudo, os que sofrem mais por causa do estado de coisas nho necessidade do marxismo, encontro apenas no marxismo o fundamento
existentes. do tema continuidade-ruptura: confiança no imediato, confiança no pro-
Ao mesmo tempo o partido encontra sua substância nos esforços, nos grama e o que é o ponto crucial, confiança na possibilidade de passar de um
problemas, na consciência das massas - na qual ela mesma se desenvolve a para outro.
partir das circunstâncias históricas atravessadas, das condições de trabalho
e de vida - e ele vai permitir às massas ir muito mais longe elaborando o Os únicos e todos os outros - Esse movimento de continuidade-rup-
que recebeu as dimensões de projetos de conjunto, de decisões de longo al- tura e a satisfação daí resultante só são possíveis nos "clientes" da cultura
cance, de uma perspectiva englobante. porque é também o movimento próprio aos "autores" dessa cultura, tanto
Se esse duplo movimento pode se realizar verdadeiramente, dos ho- no domínio polltico como em todos os outros.
mens de base aos organizadores e dos organizadores aos homens de base, se Ao mesmo tempo ele fundamenta a afirmação dos pensadores pro-
é possível nesta transformação infinitamente complexa, que os parceiros gressistas de serem eles próprios, originalmente criadores - e de manterem
não percam o contato. Isto significa que é possível que uma cultura elabora- uma ligação direta com as massas; não apenas dirigirem-se a todos: de direi-
da não seja a ruína, mas ao contrário a expansão da experiência primeira, to as. grandes obras concernem a nós todos, mas, indo muito mais longe, a
das lutas primeiras: e é essa relação que procuro porque ela surge para mim ambição de serem os porta-vozes, "colecionadores, intérpretes, depositá-
como fonte essendal de alegria. rios" (7) de todos os que viveram e lutaram - mas em presa a demasiadas
Em termos mais diretos, um dirigente político [6) declarava: "A ori- dificuldades materiais e culturais, não puderam se exprimir muito.
gem dos valores e a fonte do progresso (encontram-se no) próprio movi- Lembraria ainda o famoso poema de Ma1akovski?
mento das massas, nas aspirações exigentes das massas", os problemas .são
colocados pelas próprias massas; a partir do que a teoria revolucionária, a Um mingau de amor e de rouxinóis
elaboração revolucionária, consiste em esclarecer às massas "uma consciên- A rua range, está sem llngua
cia mais clara de seu próprio esforço" e isso dando "sua forma" a esses va- Nãc;> tem do que gritar e falar (Nuage em Pantalon)
lores. Formação que significa possibilidade e vontade de ir até o fim de uma
das cem potencialidades percebidas no início. Conservar e superar a cultura primeira só é possível se os grandes
Ousaria parodiar uma frase capital de Mao Tse-Tung, referida por constituem a realidade, a realização dos pequenos - e não sua anulação.
Malraux nas Anti-mémoires: "Devemos ensinar as massas com precisão o
1

96 A alegria na escola

Em ponta e em velocidade de ponta - A ação da vanguarda é a pedra


angular dessa síntese continuidade-ruptura: tal homem, o próprio Partido
l
1
Continuidade-ruptura

um lado, o pensamento elaborado a partir das grandes obras e a prática


organizada nos movimentos estruturados do outro, não se excluem, mas
97

constitui-se em vanguarda, o que significa que, sem cessar, ele assegura a sustém-se e reforçam-se - e o programa põe em valor e em eficácia maiores
coesão, o contato com o grupo que deve dirigir. Se ele pode tornar suas po- o que já havia de realidade no imediato.
sições, suas decisões admissíveis e convincentes, se ele pode conquistar a Desde então, os esforços dos "grandes" que fundaram, fundam, con-
confiança, é "que colhe sua energia e inspiração na massa" ... ele absorve e tinuam a fundar a cultura elaborada têm diretamente a ver com a sorte de
traduz a energia emotiva, a força criadora da massa (8). Na verdade ele é todos os homens, para ajudá-los a transformá-los; uma cultura que quer
"levado à frente" mas é pela massa: a massa confia nele e ele dá a massa parecer para os interessados como em tomada direta sobre suas expectati-
confiança em si própria, ela aparece como "uma prova dos talentos escon- vas: dá-se como tarefa dirigir-se ao conjunto dos homens para lhes insuflar
didos, potenciais da massa" - e nunca como um índice de impotência. mais força no seu movimento de emancipação - e, antes de tudo, àqueles
No entanto (e eis aí o elemento de ruptura) ele não tem que se adaptar que têm necessidade mais urgente disso, os mais explorados.
passivamente a cada instante aos desejos, aos sentimentos momentâneos de "O poeta precede o acontecimento" diz MaYakovski - e por aí ele
seus companheiros; é possível que a exatidão dessas vistas só apareça depois contribui assim mesmo para sua eclosão. Em um certo sentido a escultura
do golpe. Vanguarda: é um passo adiante, à frente. Isso significa literal- grega exprime, reflete uma certa harmonia na cidade grega; mas também é
mente que ele vê mais longe, na verdade que ele pode atingir até "uma visão através de sua arte que os Gregos avivaram a aspiração à harmonia e come-
do que está nascendo" e que não é ainda evidente para todos. çaram, muito parcialmente, a instaurá-la.
E também "ele vive mais a fundo" e é porque é capaz de arrastar, de Eis ai os traços pelos quais eu queria caracterizar a cultura progressis-
estimular os que estão em flutuação e recuos, hesitação, instabilidade; levar ta, a cultura reavaliada conforme o modo progressista - e equivale dizer
não a obediência, mas à iniciativa; é necessário uma vanguarda, isto é uma que o itinerário continuidade-ruptura só me parece possível em uma deter-
parte mais consciente, mais organizada, mais enérgica, precisamente para minada cultura.
engajar os outros mais adiante nas vias onde, eles próprios, poderão desen- Não é de qualquer pensador que se pode dizer o que cantou Ma'iakovski:
volver sua ação própria: a realidade desse tema e a alegria que lhe é inerente
repousam sobre a convicção que virá logo o momento em que a continuida- Abrimos os tomos de Marx
de será restabelecida - e desde então, eles também, na sua experiência vivi- Como se abre as persianas de sua· própria moradia.
da, experimentam a veracidade de seu olhar, do olhar deles.
Sob quais condições, em que condições o professor pode representar o Mas conduzir os homens a tomarem posse do que sentem, do que que-
papel de uma vanguarda? rem profundamente nunca é imediato, nem fácil.
E vê-se Eluard unir essas fontes de alegria como se isso não colocasse
Sem continuidade-ruptura no conservantismo - Afirmar uma conti- problema: os criadores culturais (na realidade, trata-se aqui de poetas)
nuidade-ruptura em direção a alegria é do mesmo modo afirmar uma cultu- "aprenderam os cantos de revolta da multidão infeliz e, sem se desgosta-
ra progressista nas duas características que me parecem ser constitutivas: rem, tentam lhe ensinar os seus ... os poetas reencontram a esperança de to-
quando as experiências primeiras são sistematizadas em cultura elaborada; dos, eles são seu motor" (9). Estimo que Eluard não tenha considerado o
elas podem se aproximar de verdade, inscrever-se como síntese ascendente poeta como recolhendo da multidão a resignação nem o aibatimento, ainda
em relação ao vivido, trazendo mais lucidez e portanto eficácia nas tarefas menos como o que incita à resignação e ao abatimento; estimo também que
que constituem as exigências de urna época. A cultura elaborada pode atín- ele não tenha ido buscar sua inspiração em outro lugar senão na multidão.
gir o mais verdadeiro e causar mais alegria que a cultura pri~eira: a conti- E era preciso assim mesmo um Eluard para levar a voz da multidão até um
nuidade-ruptura significa que quanto mais penetra-se no real, melhor des- poema.
cobre-se as fontes de alegria que ele encerra. A alegria: participar no surgimento de um mundo onde haverá mais ale-
E por outro lado àfirmar uma continuidade-ruptura é afirmar uma gria. O desespero não é a última palavra, não é ilusório propor uma grandeza
confiança fundamental nas massas, na cultura das massas: a força criadora reconfortante. O mundo não .é incompreensível, perpetuamente fugaz.
essencial não se desenvolve em nenhum outro lugar a não ser na vida e nos A cultura não está fora do alcance,. uma conseqüência fundamental
-:-~forços do conjunto de homens. O pensamento e a prâtica quotidianos de para o pedagogo é que nada se opõe a que ela seja proposta a todos.
CAPÍTULO II

Satis/ação de compreender,
continuidade e ruptura
."' .
em c1enc1as

No mundo técnico e cientifico em que vivemos, que os jovens prova-


velmente mais intensamente ainda que nós, o desejo de manejar eficazmen-
te, de consertar, de fazer pequenos trabalhos domésticos, às vezes de arru-
mar ou de melhorar os objetos técnicos aparece-me como um dado certo -
e não se separa de um desejo de compreendê-los (mobilete, carro, transitor,
TV, geladeira etc.). Certamente uma imensa ansiedade, a interrogação infi-
nitamente inquieta sobre o balanço beneficios-perigos que o progresso cien-
tifico faz os homens sentirem, o simbolo universal sendo hoje as bombas
atômicas; por outro lado a história das ciências é também ela uma história
dolorosa, feita de oposições e de contradições, de modo algum uma subida
regular na felicidade simples de avançar oontinuamente: tantas teorias que
acreditávamos sólidas e que não resistiram. E também os limites, todos os
males que não sabemos ainda cuidar.

A ciência inquieta, a ciência assegura - E no entanto é antes de tudo,


esse pode ser antes de tudo um domínio de satisfação: a ciência assegura
nossa força, . tranqüiliza-nos sobre nossa força e firma a confiança em nós
mesmos, sentimo-nos tomar posse de métodos de pesquisa graças aos quais
o mundo torna-se menos perigoso, mais atraente, mais maravilhoso; ele não
é mais opaco, oposto a nossos desejos, terra de exilio: satisfação de com-
preendei: que o mundo é compreensivel. A alegria de compreender é a ale-
gria de ultrapassar a magia, que é encantadora, rica das mais loucas espe-
ranças, mas fundamentalmente angustiante: não tenho nenhuma possibili-
99 . Satisfação de compreender, continuidade e ruptura em ciências A alegria na escola 100

dade de dominar o que o sobrenatural me trouxe, de fazê-lo durar; logo tal- se atingisse a uma tal adaptação, não se podena esperar tocar mesmo aque-
vez, ele vá ser substituído por seu extremo contrário. Alegria de agir sobre les que ainda não sentiram a paixão da ciência?
os objetos, de experimentar, isto é colocar suas idéias à prova dos fatos, Como em toda pesquisa, confiança que se pode descobrir algo de no-
aperceber-se de seus erros e ter confiança que se pode retificá-los; os fenô- vo sem cessar; avançar sempre adiante: "ver até onde se pode chegar ... não
menos familiares colocam-se em ordem, as noções integram-se, ligam-se em se está fechado, abrem-se portas, pode-se continuar''. E é porque, em mate.-
conjuntos estruturados, ao mesmo tempo em que se vai à uma convergência mática, apoiamo-nos no lógico e no rigoroso que nos sentimos capazes "de
entre práticas e o pensamento teórico: esse sentimento de unidade conduz o ir até o final", pelo menos de tal questão.
indivíduo à satisfação , enquanto que a distorção, a fragmentação suscitam O que vai até um sentimento de criação: "a solução, o indivíduo a
ao contrário dor, até mesmo culpabilidade. cria, ela vem de nós, sai de nós". É porque os melhores, pelo menos, recla-
Há ali um domínio onde o jovem, o aluno pode particularmente ser marão de não serem "muito" guiados.
ativo, lançar-se senão na descoberta, pelo menos nas redescobertas, sentir Mais especificas à matemática aparecem as alegrias seguintes: inicial-
que ultrapassa as dificuldades por seus próprios meios; mesmo se na reali- mente temos provas, é irrefutável, certo - e certo para todo mundo; a satis-
dade a orientação por situações já ordenadas desempenha um papel essencial. fação de que uma multiplicação justa é verdadeira, absolutamente verdadei-
Para que contribui o sentimento que pode-se progredir sem limite ra, em todos os tempos e em todos os países; portanto, pelo menos ao nível
pode-s_e sempre ir além, o que se sabe já serve de convite para ir além; have~ dos alunos, sem controvérsia sobre a validade"dos trâmites nem dos resulta-
rá sucessores para continuar os progressos que engajamos . dos; "estamos certos ou estamos errados", estamos seguros de termos en-
Não somente os jovens encontram aí a alegria de participar do saber e contrado certo quando encontramos certo. E assim o trabalho é "realiza-
da força dos adultos mas eles sentem o domínio técnico cientifico como do", é algo de finito. ·
aquele onde o domínio próprio à juventude tem mais chance de se afirmar Quando nos enganamos, quando perdemos o pé, podemos muito fre-
a juventude aí se move à vontade, os jovens colocam-se como mais exper.i~ qüentemente saber onde, a partir de quando.
mentados que "seus velhos", tão frequentemente derrotados pelas inven- Daí mais profundamente, alegria de penetrar num universo justificá-
ções modernas. Satisfação que coloca em jogo o conjunto do indivíduo, vel e justificado: as coisas ou antes as noções são claras, determinadas, sem
não apenas sua inteligência, suas atividades, mas também essa intensidade ambigüidade - e é porque os raciocinos se encadeiam, seguem-se, cotejam-
de se colocar em questionamento e de perséverar através das inquietudes - se; "isso mantém-se" . A1~~a de evoluir na coerência, de descobrir e de ins-
o que tantas biografias de sábios descreveram e do qual um eco encontra-se tituir a coerência.
em cada pesquisador, em cada aluno-pesquisador. Um mundo de rigor, de ordem e por assim dizer de pureza; um mundo
O domínio do homem sobre o mundo físico não pode se transferir ao completamente "próprio", é "jsuto" ao mesmo tempo pela exatidão e por
mundo social? Por que os homens que atingiram a Lua não conseguiram uma certa justiça, que faz com que se possa apenas apresentar como válidos
deter a guerra? os resultados que se é capaz de sustentar; é o dominio em que é mais difícil
blefar; " levar no bico" sem ter compreendido.
Progressão sistemática: vai-se por etapas, sem queimar etapas, sem
A satisfação da matemática - Evidentemente é a alegria geral da ciên- saltar de uma questão a uma outra antes de ter terminado a primeira: não se
cia, mas nas condições privilegiadas, que oprimem muito, que também exal- fala de uma coisa e logo em seguida de uma outra.
tam muito. A s dificuldades contêm-se, encadeiam-se;. elas constituem um progra-
Como em toda pesquisa, em toda prova, a' alegria do obstáculo supe- iµa que não dá a impressão de ter sido escolhido arbitrariamente pela insti-
rado, da dificuldade vencida: "isso parecia difícil, completamente vago, tuição, contrariamente ao que se passa tão freqiltmtemente com a seleção
estava-se perdido; em seguida chega-se, apreende-se, isso torna-se claro". A dos textos literârios. Esse programa pode ser adaptado, foi adaptado, pode
cada problema, corre-se o risco de "ficar no plano" e uma alegria a enfren- dar a impressão de ter sido adaptado às forças dos interessados: "é feito
tar esse risco - contanto que ele não se revele insuperável. para estar ao nosso alcance e não há nenhuma razão para que não se com-
Precisamente o privilégio da matemática é talvez que um bom profes- preenda". Para ultrapassar a dificuldade de um problema, não é necessário
. }
sor pode graduar a dificuldade, tornar a questão bastante difícil para que partir nas múltiplas direções à procura de outros dados - como quando se
tenha algo de picante, não muito para não desencorajar. Se de modo algum declara contra um fato histórico: "basta refletir para encontrar a solução",

.. ÍFACULDADê DE Ff1llr.Ar Ãn . 11c: o J


101 Satisfação de compreender, continuidade e ruptura em ciências A alegria na escola 102
( ..
reunir em uma certa ordem os elementos até então separados. onde vem é para onde pode ir tanto líquido? dai a idéia de um circuito fe-
Essa alegria de se sentir verdadeiramente senhor de uma situação bem chado, de um movimento circular do sangue.
definida, não me perguntarei por enquanto porque tantas pessoas, tantos
alunos são rebeldes a isso. A base primeira - O ponto de partida, em física, não é absolutamente
Trata-se de uma decepção ao nível da de Stendhal [1]? Ele gostava da o vácuo, a declaração de ignorância; há mesmo uma base primeira, uma
matemãticã..e aí colocava suas esperanças porque ali "a hipocrisia era im- cultura primeira, aquela que se criou sem ensinamento: nada está completa-
possível". Mas prova crucial quando "ninguém podia me explicar como era mente desprovido em física já que se trata de fenômenos que fazem parte de
que menos com menos dá mais"; bem pior, queriam me explicar "porra- nossa vida quotidiana. Quando os alunos afirmam que um objeto duas ve-
zões evidentemente pouco claras para aqueles que as apresentavam para zes mais pesado cai duas vezes mais depressa, o que caracteriza essa idéia
mim" 1 • tipica de cultura primeira, é que o sujeito considera que ela não deixa ne-
Indicarei simplesmente que a recusa dos matemáticos parece-me fre- nhwn lugar à dúvida, constitui a única explicação possivel, ela basta-se a si
qüentemente resultar de que dois tipos de continuidade não foram bem soli- própria.
damente estabelecidos: Para conduzir o interessado·a colocar em dúvida seus conhecimentos
habituais, seus racioclnios espontâneos, para convencê-lo a verificar, a jus-
continuidade do mundo matemático com o mundo habitual: a mate- tificar; para introduzi-lo em um método científico de observação e de expe-
mática pode aparecer como um universo estranho e estrangeiro se por rimentação rigorosas ao invés das aproximações das quais ele se contentava
um lado não se justifica suas relações com os acontecimentos, de um nas necessidades de sua prática, é preciso vencer resistências.
fato, e os triunfos técnico-científicos do outro lado; Elas podem consistir em justapor simplesmente os conhecimentos es-
continuidade no próprio andamento matemático; enquanto que não colares às idéias prévias, sem modificá-las, manejá-las em profundidade;
está bem seguro dos primeiros elementos e dos primeiros raciocinios, é freqüentemente o aluno refugiar-se-á no emprego de termos novos para aí
enganador querer prosseguir seu caminho. Tantas questões que en- reverter o vinho antigo. Ao ínvés de dizer: "quanto mais um corpo é pesa-
contraremos mais adiante quando se tratará da não-satisfação na es- do, mais depressa ele cai", ele vai afirmar: "quanto mais um corpo é pesa-
cola. do, maior é a atração da terra, mais depressa ele cai".
Ou então ficar fechado na experiência, no método experimental: o
Ruptura e con.tinuidade - Por toda uma parte dele próprio o conheci- aluno considera muito freqüentemente, pelo menos no início, que a expe-
mento é ruptura com o conhecimento habitual. riência está apenas destinada a reafirmar suas concepções ou a persuadir os
Pode-se perceber isso especialmente a partir da história das ciências, e outros. Quando a experiência contradiz à evidência do que ele acreditava,
é uma das razões pelas quais ela deveria representar um papel no ensino ele resiste tão obstinadamente à recolocação da questão que prefere criticar
científico: há uma história das ciências, um progresso das ciências e as con- os instrumentos, o modo pelo qual foram utilizados; mediu-se mal ou
cepções novas foram arrancadas de viva luta das representações habituais mediu-se de alturas de queda muito baixas etc.
que não tinham em si nada de insensato e que, para algumas, enraizaram no
decorrer dos séculos. Como ir além? - O progresso do conhecimento é ruptura - e uma
Para citar somente um único exemplo; podia-se estabelecer a circula- intervenção daquele que já sabe é indispensável para suscitar essa ruptura, o
ção do sangue somente extirpando a idéia de que a distribuição sangüínea é que não significa de modo algum introduzir noções totalmente prontas, to-
semelhante a uma irrigação de um jardim pela água dos canais ou dos rega- lº talmente feitas. Ao contrário trata-se de provocar experiências numerosas e
dores - e a água parece perder-se no solo; portanto assimilação a uma rea- variadas, medidas múltiplas e uma reflexão sobre essa multiplicidade, um
lização de técnica humana. E isso ocorreu quando Harvey constatou que em enfoque das dificuldades; a pluralidade dos pontos de vista, o choque das
uma hora o coração envia um peso de sangue triplo ao peso do corpo. De idéias podem permitir atingir a noção de hipótese a ser verificada, se possí-
vel a ser confirmada, mas isso não vai por si só: o risco está sempre presente
de ater-se ao cepticismo ou de contar com a única força das afirmações re-
Fiquei feliz de encontrar em Les étapes de la philosophie mathéma1/que de Brunschvicg petidas - se aquele que sabe não garante que se esteja no bom caminho; ele
uma explicação que me pareceu clara e rigorosa . aí chega por outro lado freqüentemente pelo único jogo de suas entonações.

..
103 Satis/ação de compreender, continuidade e ruptura em ciências A alegria na escola 104

Uma atividade do aluno é necessária para que ele atinja às verdades da trua a opinião;,, que se oponha ao "treino natural", que se faça "violên-
ciência, pelo menos às verdades atuais da ciência atual e mesmo às verdades cia" às aparências, que se "denuncie" as evidências - ao ponto de "derru-
simplificadas da ciência escolar; o ato de conhecer exige que cada um reúna bar os obstáculos'' que constituem os dados empiricos primeiros e de chegar
suas forças em uma ação livre, que ele é senhor único para exercer ou recu- a "~a derrota total da dependência imediata".
sar; falar-se-á com razão de atividade de redescobertas, prevenindo-se dos b) Não basta retificar a opinião vulgar sobre tais pontos particulares,
exageros oratórios do gênero criação, invenção; essa atividade não se exerce mas sim operar "uma inversão de perspectivas"; além do mais, não nos ate-
fora das verdades estabelecidas, menos ainda contra elas, mas para se abrir remos a uma simples transformação do conhecimento, é "uma reforma do
caminho até elas. ser conhecedor que está em jogo", uma "catharsis" que será simultanea-
Para operar a ruptura, a atividade científica do aluno deve ser ao mes- mente intelectual e afetiva: o pensamento cientifico coloca-se como "ins-
mo tempo que livre, dirigida - e de duas maneiras pelo menos: de um lado tância revolucionãria" acerca do pensamento quotidiano.
as noções sobre as quais pode-se para ele experimentar e refletir são temas
elaborados para toda a aquisição das ciências, não se trata de que ele possa c) O simples bom senso, a observação comum constituem "obstácu-
apreendê-los diretamente, decifrá-los em uma observação de tipo quotidia- los" ao ·conhecimento - e isso porque o erro é "primãrio, normal,
no: chega-se ao nível propriamente cientifico quando se maneja tais noções comum", responde a uma estrutura, possui consistência; essas ilusões cor-
como um campo magnético, um fluxo de elétrons, a entropia, as mutações. respondem a uma lógica, são "solidárias" umas com as outras e portanto
Por outro lado convida-se o aluno a se servir de dispositivos experi- "tenazes". Dai a necessidade de uma espécie de "psicanâlise dos erros ini-
mentais que, eles também, repousam sobre um saber já adquirido, encar- ciais".
nam um saber já adquirido: na máquina de medir a queda dos corpos, "a lei
física já está engajada" pela própria construção - e é exatamente porque Na verdade, poder-se-á dizer que todos os grandes pensamentos filo-
"ela pode ser separada disso", o que não quer de modo algum dizer que, sóficos representam wn esforço de ruptura, um convite a despojar-se do
para cada um, essa "descoberta" realiza-se sem esforço, sem iniciação 'pes- "velho homem": Descartes quer romper com as sensações e as imagens,
soal, nem sem alegria. Bergson com os conceitos da lógica. A originalidade de Bachelard está em
Do mesmo modo Bachelard explica que, para medir o comprimento fundamentar esse afastamento sobre uma multiplicidade de anâlises sábias,
de onda de uma radiação, é preciso servir-se de instrumentos que já consti- de exemplos científicos.
tuem teorias materializadas; não há ali nada que se assemelhe a apercepção Nos hábitos de vida prática, é em grande parte pelos valores sensiveis
imediata de um dado por nossos órgãos dos sentidos. que nos guiamos, pelos aspectos coloridos, pitorescos dos fenômenos. Ao
E de modo muito mais geral, as substâncias que a quiinica maneja não contrário "a ciência contemporânea libertou-se inteiramente da pré-história
são dados naturais, que se poderia enc:_ontrar em uma experiência comum,. dos daras sensíveis; ela pensa com seus aparelhos, não com os órgãos dos
mas produtos preparados, tendo atravessado as técnicas de purificação e sentidos".
julgados dignos, pela ciência constituída, de levar seus nomes. Gostaria de dar alguns exemplos disso entre os mais simples que pude
encontrar - e compreender.
Aquele que proclama a ruptura - e que não suprime a continuidade
- Ninguém melhor que Bachelard insistiu na ruptura entre o conhecimento
usual e o conhecimento cientifico. Não se passa de um a outro por simples a) A combustão: para o pensamento imediato, é um fogo, os jogos in-
melhorias, precisões, requintes, aperfeiçoamentos - mas por alguma :coisa · (· finitamente variados e coloridos da chama .. O conhecimento cientifico
que é da ordem da conversão; o saber não sai suavemente do bom senso realiza-se por uma inversão: a chama vai ser considerada como um simples
comum. fenômeno, sem alcance real; o que caracteriza a combustão, são as cinzas,
Gostaria simplesmente de lembrar três temas que circulam em todas as isto é, as matérias transformadas. O progresso do conhecimento consiste
suas obras: em uma prodigiosa extensão da noção de combustão e Lavoisier poderá
mostrar que a respiração é uma combustão - sem chama.
a) Bachelard não deixou de nos advertir que a ciência exige que se faça b) Os corpos flutuantes: na intuição familiar, a criança acredita que é
''abandono de ... ••, que se •'sacrifique" a experiência comum, que se ''des- o corpo que é ativo, ele tem uma forma para flutuar, quase para nadar;
A alegria na escola 106
105 Satisfação de compreender, continuidade e ruptura em ciências

"prova" disso é que se tentamos afundá-lo na água com a mão, sentimo-lo nhecimento e portanto em relação à vida habitual, a fim de que possa se
exercer "uma severidade justa, uma vigilância tônica". Para que são neres-
resistir.
Para chegar ao principio de Arquimedes: "na sua brilhante simplici- sários, na maioria dos casos, professores e toda a instituição escolar.
dade matemática" é preciso desorganizar "o complexo impuro das intui- A ciência, diz-nos Bachelard, vive e pode viver apenas em uma "cida-
ções primeiras" - até chegar a atribuir a resistência à água. de científica", seus progressos sendo controlados muito menos pela respos-
ta direta dos fatos que em relação aos outros sábios; assim "o controle
c) Os modos "naturais" de iluminação, a partir de uma visão empiri-
ca da natureza: diversos processos que são da natureza do fogo; queimar •• objetivo é um controle social". Da cidade científica não se passa à cidade
escolar?
uma matéria. A lâmpada elétrica é uma ruptura com todas as técnicas pre-
cedentes, com todos os caracteres constitutivos das iluminações precedcn! A continuidade persiste - E contudo não se desconhecerá o aspecto
tes: aqui trata-se de impedir que uma matéria queime; uma lâmpada fecha- de continuidade. A psicologia cognitiva de Piaget (2) pode nos trazer pontos
da, sem "dilatação", não para que as correntes de ar, não a apaguem, mas de apoio importantes.
para conservar o vácuo em torno do filamento. Uma criança fracassa ao ordenar 15 bastonetes em ordem de grande-
Ao que se pode acrescentar: para perceber que o filamento deve ser fi- za: ela não realiza uma série completa, mas constroi pequenas séries justa-
no a fim de aumentar a resistência, é preciso conhecer a lei de Joule - e não postas, cada vez de 2 ou 3 bastonetes, sem ligá-los à configuração total. Ela
contemplar esta ou aquela espécie de luz. age por dicotomia: pequeno-grande, ou por tricotomia: pequeno-médio-
d) Último exemplo: um aluno compreendeu o teorema de Pitágoras; grande, essas relações traduzem diretamente aspectos de sua vida prática:
ele realizou evidentemente um progresso mas, do ponto de vista de Bache- seus pais são maiores que ela, ela tem carros pequenos e carros grandes.
lard, poder-se-ia dizer, creio, eu, que mal atingiu o nível do pensamento O que é interessante aqui, é a relação entre os itinerários propriamente
cientifico porque permanece ligado a noção figurada do quadrado. A "con- científicos e os progressos da criança em direção aos instrumentos mentais
versão" decisiva realizar-se-á quando o aluno conceber que as relações en- do conhecimento: o tema piagetiano sendo que o avanço da criança não se
tre as superfícies são verificadas afinal pelos triângulos equiláteros construi- opera por alargamento quantitativo da dicotomia já adquirida, mas sim por
dos sobre os dois lados e sobre a hipotenusa, para todos os polígonos regu- uma mudança qualitativa de pensamento.
lares, para os poligonos semelhantes entre si - e finalmente para três figu- Se os sábios não são os únicos a operar por ruptura, se de um certo
ras quaisquer contanto que elas sejam semelhantes. modo é também por ruptura que as crianças progridem, não se pode dizer
Quando o aluno chega a considerar o quadrado apenas como um aci- que a continuidade é reintroduzida, pelo menos a nível dos itinerários
dente e a conceber a noção abstrata de semelhança como portadora da rela- pessoais?
ção, pode-se dizer que a ruptura em direção ao pensamento científico foi As idéias das pessoas e em particular dos alunos quando abordam a
realizada. · ftsica permitem-lhes interpretar de um modo sensato um n úmero considerá-
vel de fenômenos - a partir de observações ocasionais e de um sentido do
provável.
É preciso definitivamente renunciar ao sonho de uma ciência cômoda: Schwebel e Raph fazem notar que, no caso dos objetos que afundam
os conhecimentos aproximativos do pequeno trabalho doméstico (montar, ou flutuam, não é falso mas incompleto considerar o peso como fator.
desmontar, consertar), as •itentativas experimentais" mal dirigidas, que Outro exemplo: as crianças jovens consideram geralmente o calor co-
mal têm necessidade de serem dirigidas, semelhantes .à quelas que executa- mo uma substância, uma matéria, um fluido que se propaga, reencontrando
mos para nos orientar num quarto escuro ou, para retomar uma metáfora assim a antiga idéia do calórico. Essa noção é evidentemen te falsa (especial-
célebre, semelhantes àquelas que o bebê que aprende a nadar multiplica: mente porque o calor não tem peso) e contudo ela pode lhe servir de suporte
tudo isso não permite chegar ·a ciência, nem constitui o bom caminho rumo para a idéia verdadeira de conservação do calor: em um recinto isolado,
à ciência. corpos em temperaturas diferentes vão evoluir para temperaturas iguais:
Eu diria que a satisfação científica é uma satisfação dificil que 11ão se tudo se passa como se houvesse uma quantidade de calor cedida por um dos
inscreve de maneira nenhuma uniformememente no prolongamento das· ale- corpos e recebida pelo outro [3].
graias da cultura primeira; será preciso um treinamento árduo, cortado por
períodos de austeridade, exigin do um certo encerramento em relação ao co-

j
.1
107 Satisfação de compreender, continuidade e ruptura em ciências
ue acordo com um crítico - Em um artigo de extremo imeresse J.
Oudeis [4] contradiz Bachelard inicialmente no que diz respeito a existência
de realizações científicas que não se colocam em ruptura, mas sim em conti- CAPÍTULO III
nuidade com certas experiências habituais: quando não se limita à lâmpada
incandescente mas que se considere também a lâmpada a arco evidencia-se
que elá produz e mantém uma centelha entre dois pólos, levad~s a uma dife-
rença de potencial suficiente: não se está tão longe das observações corren-
tes que incidem sobre a centelha elétrica, seu ca·ráter luminoso e mesmo de
Continuidade e ruptura na luta
algum modo, o pitoresco. ·
Ele objeta principalmente que entre a experiência comum e o conheci-
contra os fracassos escolares
mento cientifico há uma atividade mediadora que Bachelard às vezes silen-
cia: o trabalho técnico e contudo é uma das vias que permitem atingir o sen-
1 tido da objetividade, das leis: é preciso uma boa ferramenta, bem afiada,
j. que ataque a matéria sob um certo ângulo - e o corte de um instrumento, é
até uma questão de geometria: assim o trabalho conduz â uma visão concei-
r tuai e mesmo matemática das coisas. De modo mais geral o trabalhador
sabe o que é uma aproximação, um limite de precisão, uma tolerância; ele
sabe que não se pode fixar o comprimento de uma prancha de 1 metro com
precisão milimétrica. Nesse sentido a noção de precisão é uma de profissão
antes de ser uma noção de sábio.
Preliminar - Uma pedagogia progressista tem como tarefa primor-
. . . e de acordo com o pr6prio Bachelard - Irei de bom grado mais al lutar contra os fracassos esco_lares maciç<?s das crianças exploradas, das
longe e sustentarei no próprio Bachelard, em contraponto com a ruptura anças das classes exploradas. Atualmente, sabemos todos que a escola é o
cem vezes afirmada, aparece a intuição de uma continuidade entre os diver- lugar onde, estatisticamente falando, as crianças populares fracassam e
sos patamares da experiênciâ; s·ão, na verdade, momentos, raros, mas de tornam-se impopulares junto aos professores, às vezes mesmo junto a seus
uma grande importânci~. O exemplo· mais significativo parece-me ser o se- colegas.
guinte: Bachelard quer instaurar uma cooperação entre alunos, acredita ser Quero sustentar que para elas, ·como para os outros alunos, a renova-
possível e proveitoso que, em uma .classe, os melhores ensinem os menos ção da escola é de inicio uma renovação dos conteúdos ensinados tal como
avançado~ - e, para justificar essa prfttica, não apenas em favor dos atra- conduzem à satisfação - e é de lá que espero renovação dos métodos e das
sados que recebem, ·mas também em consideração aos bons que dão, ele de- relações entre professor.es e alunos: para eles como para os .o utros essa ale-
clara: "Um ensinamento recebido é psicologicamente um empirismo, um gria implica que a cultura inculcada esteja em continuidade-ruptura com a
ensinamento dado é psicologicamente um racionalismo, escuto-os: sou todo cultura que já é a sua, na qual eles já evoluem: uma cultura na qual eles se
ouvidos; falo-lhes: sou todo espírito" (5]. reconhecem, na qual. reconhecem seus valores, mas desenvolvidos até um
Basta P.órtanto umá mudança de atitude, que pode ocorrer a todo ins- ponto que não teriam atingido por eles próprios e que é mais encorajador
tante, do qual cada um é o professor a todo instante para que se passe de um do que o que eles próprios atingiam. Esses deverão ser portanto conteúdos
pólo ao que era dado como pólo oposto, do empirismo ao racionalismo. culturais ligados à vida das massas, ao que melhor sustentou as massas, nas
Não é deixar ouvir que uma continuidade existe entre os dois - ou antes suas lutas e aspirações.
que nos é possível e necessário suscitá-la.
Na medida em que, apesar de tudo, o conhecimento cientifico guarda con- Alegria além do elitismo - Mas há provavelmente mais a dizer: uma
tinuidade com nossa experiência comum, pode-se atingir as perspectivas de cultura que se apoia na cultura e na experiência dos mais explorados pode
onde o universo da ciência não nos aparecerá separado de nosso universo quoti- não apenas excluir da não-satisfação e do fracasso essa cat·e goria de alunos,
diano, de nossas preocupações, de nossos cuidados - nem de nossas alegrias. mas levar para toda escola renovada valores culturais insubstituíveis: eles
tornar-se-ão parte integrante da satisfação cultural para todos, se é verdade,
109 Continuidade e ruptura na luta contra os fracassos escolares A alegria na escola 110

como o sustenta o marxismo, que a aquisição social e técnica das massas de- menos o futuro, estão mais ligadas ao atual, em suma vivem num horizonte
sempenham um pepel motor no avanço histórico de todos. temporal mais curto, percebemos que o problema da satisfação presente e
Retornarei longamente à escola progressista, a ela só pode existir a não preterida ao tempo mítico ond~ "você será grande", é capital pa~a es-
partir de consenso, pelo menos consenso dos progressistas; na elaboraÇão e sas crianças.
na afirmação desses consensos, a classe operária, as crianças da classe ope- c) Freqüentemente mais impregnadas que as outras da ideologia do-
rária têm um lugar essencial a ser mantido: elas devem trazer para a escola o minante, a qual alterna o catastrofismo com a insipidez (são elas que pas-
que esta não construiria sem elas. Será que as palavras de Jaures perderam sam o maior número de horas diante do.aparelho de TV na mesma medida
algo de sua verdade? "Os professores, nas comunas operárias, recebem por em que participam menos dos lazeres organizados), têm necessidade da sa-
assim dizer a idéia socialista das crianças que eles estão encarregados de en- tisfação cultural escolar para ultrapassá-la; e aliás, desde que a escola as
sinar" [ 1]. sustente, elas têm em sua própria experiência, recursos para ultrapassá-Ia.
Aliás tratar-se-á também de reunir em torno da classe operária os ele-
d) Grande risco de não conhecer outros portadores de satisfação cul-
mentos pr~gressistas das outras classes.
As idéias são tão manipuladas que falar de satisfação cultural na esco- tural além da escola - pais, adultos perto dos quais encontrariam respostas
la, de cultura escolar elaborada assume um ar elitista, numil primeira abor- a certas perguntas que elas se colocam. Existe certamente instituições de
dagem, passa por elitista - mesmo se afirmamos que há projetos pa~a cada animação cultural, mas sabemos bem que não são os desfavorecidos que as
domínio e para cada idade. Alguns vão responder que só os favorecidos os freqüentam mais; em compensação todos eles vão à escola já que a escola é
socialmente favorecidos podem gozar dessas satisfações culturais. obrigatória - e aliás não é a obrigação que os apavora, já estão acostuma-
dos com isso.
,,,.- Suplemento de infelicidade, suplemento de alegria - Pode parecer e) Finalmente uma vida mais difícil, logo é particularmente importan-
paradoxal, quase indecente e sobretudo ineficaz propor a satisfação cultural te que elas a compreendam, que a dominem; ainda mais que os outros, elas
i a jovens sufocados por dificuldades de toda espécie - e de grande número têm necessidade ao niesmo tempo de admirar e de não serem desprezadas,
\ de censuras. Tanto mais que não se trata de modo algum de fazer da cultura portanto de não serem excluidas das admirações.
\,, um suplemento da alma para pessoas angustiadas. .
E no entanto minha escola desmorona-se se não e<>nseguir convencer As crianças desfavorecidas devem encontrar na escola muito mais que
também, inicialmente, as crianças das classe·s exploradas que elas podem en- os outros; ousarei dizer que, apesar de certas aparências, elas esperam da es-
contrar satisfação nacuiúifãºe'scÕ!ar, que têm direito à satisfação da cultu- cola muito mais que muitas outras - tanto que a escola não as decepcio-
ra escolar, que a escola vai conduzi-las a um tipo de satisfação que não en- nou, se a escola conseguisse não decepcioná-las.
contrariam em outro lugar, e é essa espera, essa aproximação da alegria que
vai desempenhar um papel essencial na ação contra seus insucessos.
Mais ainda que os outros, são elas que têm necessidade de que a escola PRIMEIRA SEÇÃO
seja lugar de satisfação e satisfação presente:
Já existe em nossa sociedade elementos de uma cultura operária que
a) Quando as outras crianças não sentem satisfação na escola, aborre..: repercute nos filhos de operários e que pode trazer à escola elementos fun-
cem-se, elas continuam todavia a estudar pouco ou muito, sendo mantida5 damentais ..A cultura esoolar renovada deve estabelecer-se em continuidade
pela disciplina familiar, de bons hábitos adquiridos no início de sua esco- com a cultura operária.
laridade - e as perspectivas das belas carreiras com que as familias lhes A cultura da classe operária, por uma espécie de osmose assume aqui
acenam. um efeito capital, a cultura dos filhos de operários é real; a tarefa da escola
Mas as crianças das classes exploradas, que não dispõem desses atrati- não é de modo algum arrancar o povo da barbárie em que ele estaria como
vos, "abandonam" rapidamente o que não lhes interessa - e o colégio en- que enterrado; a cultura não tem de levar, do exterior, a luz a ignorantes:
tão só tem que constatar que elas não estão no seu lugar. "não é verdade que o povo chegue com as mãos vazias" [2]. A partir da ex-
b) Por outro lado se pensamos que, como muitos observadores da periência do trabalho e do mesmo modo da resistência à exploração, os gri-
classe operária o incitam, as classes populares prevêem menos, preparam tos de revolta, de desespero unem-se em força organizada, e cria-se um con-
Continuidade e ruptura na luta contra os fracassos escolares A alegria na escola 112
111
prática, da inteligência teórica e da inteligência manual. Pelo que a classe
junto de sentimentos, idéias e projetos de ação, uma cultura. E é bem uma operária afirma que o mundo da técnica moderna não é em si um mundo
cultura já que as reivindicações materiais não se separam de uma exigência desumano , fatalmente condenado a esmagar os trabalhadores. Os operários
de dignidade: direito à qualificação, direito a participar do poder sobre o são pessoas exploradas, não idiotas.
próprio lugar do trabalho. Será que é possível considerar esses valores com- Ainda é preciso que a cultura nos prepare para compreender esse tipo
patíveis com a ordem capitalista [3]7 de afirmação :__e também para participar de seus esforços para ampliar, em
proporções consideráveis, os recursos incluídos em tais existências.

1- Trabalho operário, cultura técnica A técnica" como domínio cultural - A partir de que, citarei simples-
mente alguns temas culturais essenciais que me parecem constitutivos da
Não apenas uma certa ideologia dominante mas às vezes pensamentos cultur.a técnica: o trabalho técnico traz em si próprio o testemunho de seu
animados das mais louváveis intenções (penso na inumerável posteridade sucesso e de seu valor; agiu-se "com conhecimento de causa", apoiando-se
dos Temps Modernes de Charlot) caminham para a desvalorização do tra- nas leis objetiv~ do real, a partir de uma experiência dos determinismos fi-
balho operário e por isso mesmo da classe operária. Nos grupos imensos de sicos; e dai um certo tipo de confiança no conhecimento, na razão, na força
trabalhadores, a técnica situar-se-ia fora do cultural se a cultura técnica da da verdade. Foi contudo Freud que proclamou que o trabalho é aquilo que
classe operária se reduzisse ao domlnio isolado de gestos automáticos. Dai "liga mais solidamente o indivíduo à realidade" [4]. Confiança que o mun-
dois tipos de conseqüências: os alunos filhos de operários sentem pertencer do pode ser transformado, modelado, dominado pelo trabalho humano; é
a um mundo desprezado o que evidentemente não favorece seu sucesso, ain- .~olhedor aos esforços humanos; eje poderia por direito ser humanizado.
da mais que o trabalho operário representa a ameaça cein vezes repetida, a Confiança também do trabalhador em si próprio: a força do homem
sorte tristemente prevista para todos aqueles que não satisfazem as exigên- diante das resistências e mesmo dos perigos; o homem confirma-se pelos re-
cias da instituição escolar. sultados de seu trabalho, encontra ai· uma prova de si próprio.
Por outro lado, a cultura que se apresenta ao conjunto dos alunos não Durante seu trabalho, o operário especializado faz funcionar sua inte-
pode mais relacionar-se com o mundo do trabalho operário e na realidade ligência, pois há incessantemente incidentes acidentes a serem evitados, pa-
coloca-se em oposição a esse mundo. nês; portanto responsabilidades e decisões a tomar - "aborrecimentos -
Sustentaremos que desde hoje a classe operária tem o que oferecer coisas que bloqueiam - coisas que não funcionam - coisas que desregu-
para a escola; a cultura escolar pode e deve ampliar-se levando em conside- lam o trabalho habitual- há sempre algo"; além disso "nunca são as mes-
ração os valores positivos do trabalho operário. mas coisas" , por exemplo: uma peça que não chega exatamente no lugar pre-
A cultura técnica como parte integrante da cultura: todo mundo a visto, um metal que esquenta muito uma peça que tem muito jogo, uma fer-
proclama e tem-se razão para proclamá-la, contanto que não seja um meio ramenta que está gasta, embotada e não há outra que esteja disponlvel na
deturpado de preparar seleções escolares precoc~s : descobrir-se-ia muito loja, é preciso consertar aquela que se tem; os abastecimentos não são regu-
cedo " aptidões técnicas" naqueles que se quer afastar dos estudos aprofun- lares; a matéria apresenta aspectos imprevisíveis, reações desconcertantes,
dados. "caprichos".
O saber prático do operário só pode ser adquirido pelo confronto com
Os operários não são robôs - Trabalho mutilador, despersonaliza- o real, a preparação efetiva; a experiência dos diversos tipos de incidentes,
ção; cada um anônimo e idêntico a mil outros. Certamente eis um aspecto de acidentes, de irregularidades; múltiplas informações, saídas dos próprios
da divisão da sociedade em classes: alienação, trabalho explorado que traz processos, são adquiridas empiricamente no trabalho - e aos poucos sinte-
mais àqueles que não são coagidos a executá-lo. tizadas: "há uma habilidade dos rapazes em saber o que se passou e como é
Mas já nessas sociedades, é essencial perceber que os operários prepa- preciso consertá-lo; isso torna-se uma coisa que é o resultado de um monte
ram nas tarefas mais repetitivas, um saber indispensável à produção, um sa- de coisas".
ber real que provém daquilo que os processos efetivos nunca se sobrepõem Dai a certeza, a{5esar do que se diz, de uma espécie de formação: " não
exatamente aos processos previstos pela hierarquia - e são necessárias, há ninguém que possa lhe dizer o que quer que seja sobre isto sem ter traba-
portanto, iniciativas. lhado nele pelo menos um ano".
Nesse saber empírico co:!11eça a realizar-se uma unidade da teoria e da
113 Continuidade e ruptura na luta contra os fracassos escolares A alegria na escola 114

O ~perário sabe bem que é preciso intervir imediatamente, que os eni um mundo de cálculo seguro, de planos precisos, de controles severos,
erros de interpretação ou os gestos inadequados serão sancionados pelos de realizações exatas: clareza e de uma certa maneira, honestidade.
próprios fatos. "A máquina contribuiu para eliminar as complicações barrocas, des-
. Assim uma v.alidade desse saber e apesar do cansaço excessivo alguma de a arquitetura de nossas casas até a linha de nossas modas e a atitude de
coisa como a alegria: "as chateações - as coisas que não vão bem no traba- nossas relações ... onde há mais humanidade poderosa e sã: num equipa-
lho - os rapazes estão contentes quando encontraram mesmo assim 0 que mento de carreira ou num salão provinciano, num maquinista de trem ex-
era preciso fazer". presso ou em Mme Bovary?"
Nesses casos favoráveis, orgulho de produzir obras tecnicamente Dimensão eminentemente cultural do trabalho, do mundo do traba-·
ava.nça~as gr.aças às ~áquinas aperfeiçoadas que são como a materialização lho: é reconhecer a dignidade da classe operária e constatar que a sociedade
da mtehgênc~a; atrativo das técnicas modernas, das ti!cnicas de ponta, dos capitalista não aceita que ela mantenh~ o lugar, que desempenhe o papel
sucessos técrucos - perto dos trabalhadores, perto do conjunto dos alunos, que lhe cabe.
e lá os filhos dos trabalhadores não se sentem fora de seu mundo. Setimento
que representa uma parte essencial de nossos sucessos, orgulho principal- Desde o século XVIII - Pode parecer estranho chegar a Diderot [7] e
ment~ perto dos jovens, jovens trabalhadores e alunos que são jovens por entretanto deleito-me em lembrar que soube ver com uma lucidez extraordi-
defimção, que o presente, o moderno, seu tempo aí aparecem como válidos nária os valores humanos da técnica.
e não apenas o passado. Nossa geração, hoje, é capaz disso. A técnica inseparável da ciência, contribui de um modo essencial para
. Conf~ança em um progresso possivel do mundo já que esse progresso é atingir ·O objetivo a que sempre se propuseram a literatura e a filosofia: o
Jisivel na história recente das técnicas e das ciências. homem tomando consciência de si próprio; pois o homem não é conhecido
É ~ trabalho que "cria os primeiros elementos de uma intuição do apenas pelo que pensa, mas pelo que cria - e particularmente uma máqui-
mundo hberada da magia e da bruxaria" [5]. Oramsci evoca o operário afri- na apresenta como uma reprodução materializada do jogo das faculdades
can? que, nas máquinas adquire atitudes racionais já que ele é fetichista em humanas que permitiram construi-la, considerando-a; o homem pode, por
muitos setores de sua vida: parece assim que o trabalho pode estar antecipa- assim dizer, ler Ó que ele é, lê-lo em caracteres maiores, mais claros, mais
~º so~re as outras formas de cultura. e é portanto pelo trabalho que o operá- definitivamente traçados que se ele se curvasse sobre suas idéias e sobre as
rio vai avançar nas outras formas de cultura; da mesma forma uma cultura simples palavras que as exprimem: ' 'há nas artes mecânicas mais comuns
que se apoi~ nesse tipo de atividade pode ajudar todos os alunos a progredi- um raciocinio tão justo, tão complicado e no entanto tão luminoso que não
rem - aqm os alunos da classe operária também não têm a impressão de es- se pode admirar bastante a profundidade da razão e do gênio do homem".
tar em país estrangeiro. Há algo mais a dizer: é muitas vezes através de suas realizações técni-
Será preciso repetir os temas tradicionais, mas não necessariamente cas que o homem se convence de sua grandeza e pensa em sua força: "o es-
falsos, do "bom" trabalhador? Ele cria, sabe que cria o que é útil aos ou- petáculo da indústria humana é em si próprio grande e satisfatório"; é
tros; orgulho, amor e sentimento direto do trabalho bem feito; respeito da quando se isola em si que o individuo se perde na dúvida: muitas especula-
f:rram~nta de trabalho. É também a partir dessas aquisições que podem-se ções tratam apenas de "nos demonstrar o absurdo do espírito humano".
difundir, para os alunos, o valor do trabalho, o valor de seu trabalho. Aqui verdades lim!tadas, na medida do homem, realmente dominadas, on-
de o homem se sente em casa na força de sua autonomia..
E Diderot mostra que a iniciação à técnica não pode estar separada de
A máquina, força humanística - A análise de Moumier [6] não me uma inserção social: se ele quer que se explique o que são ..as artes mecâni-
parece de modo algum ter perdido sua acuidade, quando ele ressalta dois as- cas" incluindo até "as.profissões da última classe dos cidadãos", é na espe-
pectos da cultura operária, a cultura nascida do trabalho operário moderno rança de que os alunos tomem consciência das vantagens cujas técnicas lhes
- e que devem passar para a cultura de todos; dominio responsável de for- causam, e eles deixarão talvez de considerá-las como direitos adquiridos, le-
ças tão pod~rosas: a distração ou a negligência nunca foram tão graves an- varão em conta o papel desempenhado pelas descobertas dos sábios e pela
tes da. máqu!~ª· como depois dela; em muitos casos a máquina acrescentou engenhosidade inventiva dos operários - e também tudo o que isso custa
a responsabilidade do operário, e, de algum modo, seu peso. em esforço humano.
E por outro lado a cultura das técnicas faz viver, faz-nos viver todos
116
Continuidade e ruptura na luta contra os f racassos escolares . A alegria na escola
115
freqüente da humilhação, opor-lhes as reivindicações, a revolta, a espe-
Pais e filhos - Evidentemente essa cultura técnica, tal como se desen- rança.
v?lve na fábrica, é o quinhão dos adultos e não de seus filhos. Pode-se as- Fora da fábrica - e principalmente a função das mulherés: "a honra:
~1~ mesmo pensar que os filhos sentem como uma espécie de horizonte real, das donas de casa, é manter o café quente e a casa limpa; sem essa limpeza
ms1stente, esse universo de máquinas que desempenha um determinado pa- fundamental, sem energia dispendida, há muito tempo q~e as vilas teriam se
pel nas preocupações de seus pais. tornado infectas favelas" [8} .
Tant? .~ais qu~ os pai~ operários são muito numerosos para transpor E já Guéhenno evocava a c.o ragem, a alegria, o requinte que são neces-
a seu dom1cího práticas mais ou menos diretamente inspiradas em seu tra- sários aos explorados para conservar todos os dias sua dignidade [9}.
balho técnico: é o que chamamos comumente de pequenos consertos e mui- Mas sobretudo nos lugares de trabalho: eles sentem a·contradição en-
tas vezes seus filhos associam-se a isso. tre o valor do que criam e o lugar que lhes é destinado na sociedade - e ini-
Por um lado, não se trata de reduzir a cultura técnica: seus limites são cialmente na fábrica onde quase não têm direito de opinar, nem mesmo em
certos, ele não pode reunir as ações sistematizadas; prudentemente projeta- relação a preparação de "suas" máquinas; contradição entre o valor do que
das, preocupadas em marcar um progresso, como por exemplo construir eles criam e o uso que se faz disso·na nossa sociedade em consideração às
um motor de vanguarda. · necessidades humanas.
. Mas. do outro lado, para os adultos operários, o pequeno conserto sig- A classe operária queria dar mais eficácia a seu trabalho, participar do
rufica muitas vezes um protesto mais ou menos explícito, pelo menos uma progresso técnico, do progresso das organizações, reivindica o direito de in-
reação contra modos habituais de trabalhar: tarefa parcelada, dividida cro- tervir: em particular os trabalhadores tomam consciência de que a estrutura
nometrada; ~bj.et.o padronizado; controle, vigilância, exploração. Aq'ui fi- imposta pela hierarquia não é tão racional quanto ela. o pretende: eles con-
nalmente o md1v1duo é senhor de si e vai elaborar o todo do objeto. Isso testam os tempos, as normas, discutem com os engenheiros, propõem ou-
quase era, em menor escala, uma experiência de trabalho liberado. tras soluções e às vezes as impõem. ·
. ~o _mesm~ t~mi;io o jo~~m participa um pouco desses sentimentos por Reivindicações que se desenvolvem no quotidiano e chegam a assumir
mtermedio da v1venc1a fam1har - e aprecia nos pequenos consertos execu- uma importancia geral, polltica: a fábrica sendo um lugar de progresso
tar alguma coisa que será dele, que testemunhará sua habilidade e até a mar- científico e técnico, os trabalhadores têm a convicção que ela poderia e deve-
c'.: de_ sua personalidade. É uma prova que se é capaz. de criar;· uma expe- ria ser um lugar de progresso humano; ·a máquina pode ser dominada, pode
nenc1a ~e ação sobre as coisas que se encontra rapidamente confirmada ou ser utilizada não mais para o máximo de proveito, mas para responder às
desmentida pelo sucesso, pelo fracasso. Não só a relação, mas fambém adi- demandas dos homens.
ferença entre os exercícios escolares habituais é certa. Organizar-se para se opor, em nome do valor 'das massas trabalhado-
Alé~ d? que im~ortância dos pequenos reparos na relação jovem- ras, à exploração, à desiguald1de dos homens até diarite da doença e da
adulto, prmc1palmente Jovem-pais: uma ocasião para mostrar a seu filho o morte; dai acusação de um sistema de proveito.e de concorrência; apercep-
que se sabe fazer, de ensiná-lo e de algum modo aparecer como "pedago- ção possível de um além desse sistema.
go" de seu filho. "Aproveitar-se de toda ocasião para mostrar que não se deixará sub-
É considerando a cultura técnica em toda a sua amplitude que se com- megir. Um modo como outro qualquer de exibir o respeito por si próprio",
preenderá que uma escola capaz de integrá-la à cultura tradicional ao mes- diz R. Linhart evocando os trabalhadores especializados mudando sua rou-
mo tempo enriquecerá suas satisfações e será chamada para oferecê-las a pa de trabalho por um traje de passeio - pelo que esperam passar do estado
um número muito maior de jovens. de explorados ao estado ou pelo menos às atitudes de um homem como os
... Juntos, o técnico é desvalorizado e o objeto técnico possui prestígio: outros'.
isso não serve para nada", segundo a expressão dos alunos.

"A resistência: o vestiário - todas as noites, uma metamorfose coletiva espetacular


2- Cultura de luta produz-se. Em um quarto de hora, numa agitação febril, cada um ternta fazer desaparecer de
seu corpo, de sua aparência as marcas d(rdia de trabalho; querem sair limpos. Melhor, ele-
. ~um certo sentido, a cultura dos explorados, é sua luta: resi~tência
gantes.
quot1d1ana, resistir à estupidez, à monotonia; às angústias, à experiência
117 Continuidade e ruptura na luta contra os fracassos escolares A alegria na escola 118
Luta organizada e festiva - Passagem do orgulho, dia após dia para a Fora do trabalho, vida muitas vezes coletiva, de relacionamento gru-
organização da luta e do pensamento político - com momentos de paraxis- pal com a família, os vizinhos, ao redor dos estádios, das festas, das Asso-
nio como a greve. E a evocação de Verret vai bem longe para daí depreender ciações e também desfiles, reuniões: estar junto, agir junto, prazer de cons-
o :,ignificado: "A greve é exemplo de que o operário curvado pode endirei- tituir a massa, de sentir-se massa, e também poder contar com ... , prestar
tar-se, ela inverte a sujeição, quebra as proibições do regulamt:nto: na gre- serviço, ter-se-á necessidade de serviços.
ve, não se pára apenas: fala-se, grita-se, passeia-se, fuma-se, come-se, vive- Razão pelo qual se pode ir até uma cultura que seja satisfação de
se. Faz-se o que todo munda faz, mas que justamente não se podia fazer na ultrapassar a separação que pressente a força e a segurança que brota do nú-
fábrica . E um pouco mais: reúne-se, proclama-se, manifesta-se, o quê? Que mero: abre-se um caminho da multidão a comunidade. Prazer do grande
se reagiu. O número concentrado vê-se, exalta-se ... acompanhamentos, número e também direitos do maior número.
bandeiras ... a rua ocupada; fe:.,a, criatividade furtiva, canção, sonho ... a Mas a solidariedade·é também um objetivo a reconquistar incessante e
greve, é um 'céu claro' (Léon Bium) na vida cinzenta da classe" [10]. dificilmente, contra as múltiplas causas de divisões: diversidades efetivas e
fragmentações exacerbadas pelas formas múltiplas da exploração: operário
A parte das crianças - Essa cultura política transmite-se às crianças, especializado diante dos operários profissionais, operários diante dos qua-
provável e diretamente por via oral, o que os pais e os vizinhos dizem, reper- dros, homens e mulheres, estrangeiros e nacionais, operários de longa data
cussões vividas das greves; do desemprego, das dificuldades da vida; às ve- em presença das classes médias proletarizadas, operários - camponeses
zes participação em manifestações, em desfiles; talvez também porque a etc. Naturalmente a crise tem como efeito acentuar essas separações .
existência quotidiana dos filhos de explorados sugira-lhes atitudes de resis- Progride-se rumo à solidariedade ao mesmo tempo pelas reivindica-
tência, até de revolta que têm uma relação certa com aquelas de seus pais . ções, pelas lutas e por uma tomada de consciência da comunidade de situa-
É fundamental lembrar que, é no domínio do interesse pela política e ção; essa unidade não pcde nem ser "rotulada" de cima, nem se realizar
conhecimentos em política, "na compreensão dos fenômenos sociais e polí- "espontaneamente". Dai o papel central do sindicato onde o agrupamento
ticos" [11) que as crianças populares além de não levarem nenhuma desvan- atinge até funções de regulagem.
tagem lingüística, ainda superam a maioria de seus colegas.
O que indica bem wna das bases a partir das quais a cultura escolar E as crianças - Ess-"- presença primordial do grupo vale também para
deve ser construída, se ela quer realmente que essas crianças encontrem seu seus filhos: vida de grupc, até de bandos; mais freqüentemente que os ou-
lugar, todo seu lugar e portanto sua possibilidade de alegria na e.scola - tros, eles reencontra·m-se os mesmos com os mesmos, porque aproveitam
e que os outros tenham acesso a uma ampliação de sua visão e de seus inte- menos de certos lazeres organizados ·que se abrem para ouitras reuniões; seu
resses. lazer é muitas vezes estar junto e nada mais; e também uma certa forma de
solidariedade quando eles sentem-se estar .. conjuntamente "do lado erra-
do". Cada vez que a escola quer desmembrar o grupo por considerar ape-
3 - A solidariedade na classe operária é de início um fato, uma espé- nas indivíduos, ao mesmo tempo ela desconhece um dos valores culturais
cie de dado imediato: agrupados em seu trabalho, donde,, de um lado, con- fundamentais (valor que se reencontra em todos os níveis da cultura, em t.o-
dições com uns, destino.comum, dificuldades e lutas levadas juntas sob pena dos os meios, mas que é particularmente promovido pelo movimento popu-
de esmagamento próximo; do outro lado, ação de criar redes de comunica- lar) - e ela acrescenta os riscos de fracasso.
ção para animar, humanizar tarefas tão freqüentemente áridas: "a única Do mesmo modo para interessar as crianças populares nas atividades
categoria social na qual os homens, mesmo para defender seus interesses de wna casa de jovens, é necessário, muitas vezes, que os grupos quedes
mais imediatos, devem se unir e não se opor uns aos outros" (12]. formavam anteriormente sejam reconhecidos, aceitos como tais. ·

4 - A história
"De um lado a fábrica: sujeira, roupas velhas, macacões muito grandes, azuis mancha-
dos, andar arrastado, humilhaç.ã o de ordens sem réplicas.
"Do outro lado, a cidade: terno, sapatos engraxados, postura ereta e a esperança de ser Se a história passa em silêncio ou quase, sua história, suas tradições,
chamado de "Senhor" (Robert Linhart, L 'établi). seus combates, seus momentos de glória e de dor, como pode-se esperar que
119 Continuidade e ruptura na luta contra os fracassos escolares A alegria na escola 120

ela lhe possa dizer respeito? Se ela reduz-se a ser história de alguns grandes Será que é necessário tornar a dizer que este é um dos termos para os
homens, apresentados como seres excepcionais, sem que ela exponha a vida quais tende a cultura elaborada?
· e a ação do povo, em condições nas quais ele possa se reconhecer?
O povo quer transmitir sua herança histórica, a lembrança da opres-
são e os momentos cruciais nos quais ele foi ator, onde ele traçou um cami- 5 ~ Gosto estético
nho em direção a uma sociedade nova: para numerosos operários, a Comu-
na aparece não como uma revolta entre outras, ainda menos uma agitação Pode-se pensar que um dos caracteres de gosto popular, é de não in-
que interrompe uma evolução normal e ordenada, mas a prova típica de trodução distinção acentuada entre a estética e os valores da vida quotidia-
uma criatividade operária na ordem política, o testemunho de que o povo na: o " belo " jardim simultaneamente, fornece um prazer estético e aí a gen-
pode ser fonte de renovação, é capaz de trabalhar pela sua' liberação. te se sente à vontade; ele testemunha trabalho que aí se consagrou, muito
As multidões não se reduzem a fatores de perturbações. Houve revo- trabalho e o trabalho minucioso, iniciativas tomadas - e dá oportunidade
luções, elas fizeram avançar a história, fizeram saltar bloqueios; sem a ação de oferecer flores àqueles que vêm lhe visitar. O belo não se separa do
das massas, os movimentos não teriam atingido uma tal amplitude. Ainda é "preencher bem sua função". ·
preciso revoluções - e portanto que as massas estejam unidas, que esteja- Com isso, procura-se não o extraordinário, o excepcional, o que dis-
mos unidos às massas. tinguiria, singularizaria - mas muitos sucessos comuns: gostar do que os
Uma história que se instaurará assim, a partir dessa sensibilidade, a outros gostam, sentir-se confirmado e unido nas admirações comuns.
partir desses fundamentos específicos, confortará os alunos da class~ operá- Agradam os objetos industriais, padronizados; o que se reproduz, in-
ria - e deve·evidentemente ser estendida a todos, porque trará a todos uma troduzindo aí uma nota de personalização; os assuntos habituais são fre-
leitura mai·s rica e mais real dos acontecimentos. qüentemente sentidos como os mais sedutores.
Daí uma atração pelas produções contemporâneas: "o povo vive no
O presente - A ligação ao presente, a luta no presente e, também, em meio de objetos modernos que ele julga belos: carros, aviões, máquinas ...
certos momentos, saber tirar alegria do presente constituem valores essen- vocês encontrarão como ornamentos nas paredes, nos bailes populares,
ciais da cultura operária: para que seus filhos se interessem pela cultura es- hélices de avião. Todos acham isso bonito".
colar, é indispensável que ela se instale ousadamente no presente; isso signi- É muitas vezes em relação aos objetos fabricados, mais que diante de
fica uma cultura que ousa abordar o presente, que tenha bastante confiança obras puramente estéticas, que o gosto popular se afirma e se desenvolva
no mundo presente para não calar os problemas que ele coloca e que tenha "eles dizem a bela bicicleta porque ela é construída com contrastes de
conseguido estabelecer um consenso a seu respeito, sem nenhuma dúvida o linhas: os círculos das rodas opõem-se às formas geométricas do quadro"
mais difícil dos consensos. [13).
É somente a partir dessa aboráagem sólida do presente que será possi- Provavelmente este é o caminho que seguirá uma escola renovada pa-
vel - e evidentemente necessário - retornar ao passado, esclarecer o pre- ra tocar as crianças populares; pelo que recolocará também as obras de arte
sente pelo passado. no âmago da vida, das preocupações dos homens.

O afetivo e o racional poderiam se reconciliar - A cultura operária


oferece um dos exemplos mais marcantes de união entre o afetivo e o racio- SEGUNDA SEÇÃO
nal. A adesão à revolta operária, a reivindicação operária à emancipação:
há exatamente aqui envolvimentos que alguns gostariam de qualificar como Os valores que acabo de evocar, e talvez com demasiada condescen-
passionais: mas longe de ser obstáculo à lucidez, podem ao contrário consti- dência, não são dados aos explorados e menos ainda a seus filhos em perfei-
tuir um suplemento de clarividência - e também uma reserva de energia. to estado de desenvolvimento; não são aquisições definitivas a serem acolhi-
A áspera alegria da cultura operária, da luta operária, deixa perceber das, propriedades naturalmente ligadas a esse modo de vida; a cultura ope-
1
1· uma reconciliação possível entre a razão e o que se costuma chamar de o rária já não se encontra realizada em algum lugar, inteiramente feita, intei-
1
1 sentimento, muitas vezes para opô-lo à razão; seria portanto a afirmação de ramente pronta, inteiramente pura ..
uma unidade da pessoa, capaz de intensificar s"ua vitalidade. Bem antes, é preciso considerar aqui germes, potencialidades, expio-

1
121 Continuidade e ruptura na luta contra os fracassos escolares A alegria na escola 122

rados por seus adversários. Na melhor das hipóteses são como conquistas a Quatro exemplos em que a escola deve estabelecer ruptura
serem mantidas com esforço.
sem desconhecer a continuidade
Donde, em relação á essas crianças, também a escola e a cultura elabo-
rada têm um duplo papel a desempenhar: apoiar-se em uma continuidade e
realizar um trabalho de ruptura: é por um esforço de ruptura que se condu- Primeiro exemplo: Dos pequenos trabalhos domésticos aos técnicos
zirá a luta contra as infiltrações das ideologias individualistas e fatalista ~,
que se tentará preencher plenamente as lacunas. O objetivo é chegar a uma Quando algumas dessas crianças participam pouco das competições verbais,
cultura onde se reconhecer, apoderar-se, esforçando-se agora por mais U>e- das tarefas e problemas que 1'detur.pam" as palavras·0 mas muito dos consertos do-
rência, firmeza, do que se tinha inicialmente vivido como simples tendência: mésticos: eles são bons para desmontar, montar·de novo, consertar sua mobileta; no
entanto em matemàtica ... não se trata nem de anular ou ignorar esse tipo de ativida-
e portanto tirar disso mais alegria. Progresso possível para alunos oriundos
. de, nem de fazer como se isso pudesse substituir o pensamento geral e abstrato: eis
da classe operária e também para seus colegas enfim para muitos adultos in- um risco de mistificação que isola tão freqüentemente os filhos .de operàrios nas filei-
seguros de sua situação. ras de simples técnicos. O objetivo é inserir nesse consertinho caseiro um esforço de
Uizer que a cultura dos explorados é uma cultura dominada, equivale ultrapassagem para que sejam realmente compreendidos e não apenas usados nem
a dizer ao mesmo tempo que ela tem existência e necessidade de ser organi- mesmo "arrumados" os objetos técnicos quotidianos (mobilete, transistor, TV,
zada, formulada; que encontra particular dificuldade em tomar consciência geladeira etc.); elevar sua prática até o nível em que serão solicitados càlculos, racio-
de si própria, em explicitac-se, em e~bir-se; até o desenvolvimento em pala- cínios, denominações precisas.
vras pode parecer a alguns como contrário a essa especificidade cultural: A partir daí, e para todos os alunos, a escola deve incità-los a não permanecer
''os verdadeiros produtos· do gênio popular, não são os livros, são atos co- como estrangeiros deslocados nem como simples consumidores diante do mundo téc-
rajosos ... a negligência corajosa ... o espírito independente" (Michelet, Le nico de que nos servimos incessantemente.
peuple, 2~ parte, cap. 2).
A vulgarização técnica, nobre tarefa escolar - Isso aparece como uma das
Como poderia ser diferente nas condições de vida sempre precárias,
lacunas mais graves da escola atual que não responde ao desejo tão difundido entre
um equilíbrio do qual não se está nunca seguro - e ainda menos, evidente- os jovens de compreender o funcionamento dos objetos técnicos; pelo que a mate-
mente, em tempo de crise? Não se tem a tranqüilidade que dá aos mais favo- mática unindo-se à física; participariam facilmente da alegria cultural. Para todas as
recidos ·ª segurança de posições de recuo. classes do primeiro grau até o fim do segundo grau encontramos muito para dizer
Em uma, os explorados não têm "meios de fazer isso de sua liberda- das coisas vàlidas, embora evidentemente aproximativas, adaptadas ã cada idade,
de" [14]. em história, por exemplo. Por qut não sobre o fuhcionamento da televisão ou do
Na realidade, o trabalho alienado tão freqüentemente vivido como de- motor a explosão? A colocação dessa "vulgarização", no sentido mais laudatório,
pendência e cansaço extremo - · e que não são compensados em nada por parece-me constituir uma das tarefas urgentes da renovação escolar. Hã ali um tipo
um interesse, uma possibilidade de engajamento proporcionais; cansaço a de estudo que deveria atrair particularmente as crianças populares, pois são contudo
ponto de se tornar indisponível pelo resto da vida. O trabalho corre o risco entre seus pais que são recrutados aqueles que fabricam os motores - e interessar a
todos os outros. Sonho que haja aí, no que concerne por exemplo ao funcionamento
de ser inicialmente aquilo que impede de viver. da TV, um tipo de explicação para o primeiro grau, outro para o segundo grau.
Tanto os explorados como seus filhos são sacudidos em suas experiên- Passar de uma curiosidade imediata e evidente para com os objetos técnicos a
cias efetivas, as quais tendem freqüentemente a incitá-los à resistência senão um esforço para dar todo o seu lugar ao progresso das ciências e das técnicas, em si
à lutà - uma ideologia dominante que os impregna a partir do próprio jogo próprias, e também como tendo melhorado o destino do homem; mas ao mesmo
da organização capitalista e do consumo, do consumo excessivo da cultura tempo tudo o que poderia transtornar para ordenar e dominar essas forças e para
de massa: TV, revistas e jornais de grande tiragem. E só raramente eles pos- que elas não se voltem contra o homem. A atividade do trabalho fundamenta as con-
suem meios para criticá-la; daí decorre dificuldade extrema para estabelecer cepções do mundo mas solicita ela mesma explicitação.
·urna harmonia, tentação de procurar refúgio no esquecimento, na passivi-
dade do destino ou na esperança de uma abertura individual.
Segundo exemplo: a consciência polftica

Os estudos de A. Percheron, aos quais jà fiz alusão, mostram que a consciên-


cia politica dos filhos de ·operàrios, se é rica de apanhados e até de conhecimentos,
123 Continuidade e ruptura na luta contra os fracassos escolares A alegria na escola 124
não está isenta de graves perigos. O mais ameaçador é isso: quando lhes pergunta- rá que não poderia obter sucesso sem o apoio de todos: compete à escola suscitar tais
mos sob~e os desacordos entre governantes e governados, os fi~hos de operários, tarefas, assim ordenadas, às vezes talvez falsificadas.''
como ahás os de empregados, são os que testemunham a mais forte tendência em É também um dos papéis do adulto favorecer trocas entre os grupos já consti-
a~rmar ~ue "o.s ~i.dadãos não têm nenhuma chance de fazer prevalecer seu ponto de tuídos e principalmente a aparição de reagrupameo~os novos: o primeiro grupo for-
vista ... 1mposs1bilidade para os cidadãos de vencer o governo, de regular os conflitos mou-se um pouco ao acaso dos encontros e das·proximidades; nada prova que ele se-
a seu favor". ja o melhor possível. Também a solidariedade familiar, tem de ser prolongada, dian-
A escola tem um papel fundamental a desempenhar para ajudar a consciência te de pais muitas vezes tão pouco disponíveis que vão dar ordens a seus filhos sem ter
politica dessas crianças, apoiando-se no que ela já contém de elementos reais para tempo para ju.stificá-las, às vezes sem sentir necessidade disso: ou pais que nllo po-
ultrapassar um tàl fatalismo. ' dem saber que os desenhos não "figurativos" de seus jovens filhos são produções
Uma cultura elaborada bem como, a reflexão e a ação estando unidas a cons- para serem levadas a sério.
cientização e a análise dirigem-se para a globalidade e persuadem-se que a ~xplora­
ção, a humilhação, isso é imutável, não é "natural".
. Passar da simples recusa, do protesto imediato, mais ou menos controlado - Quarto exemplo: O belo
e e ve~dade que ela tem bem pouca chance de ser bem-sucedida - a projetos comuns,
orgaruzados, coordenados, feitos para durar. No domínio estético, alguns aspectos que eu qualificaria de boa vontade como
Até o momento em que o explorado (ou seu filho) vai descobrir que essa força desmesurados: rigor da existência e portanto rigor de alguns espetáculos, de certas
de trabalho que ele vende, é ele próprio; e é por aí que ele é reduzido ao estado de exibições; e também o cômico "grosseiro"; gosto pela ornamentação rebuscada,
mercadoria, de objeto no "mercado" do trabalho. profusão, acúmulo dos objetos, das cores, dos contrastes violentos.
Verret mostra a relação entre esses limites do gosto popular e os limites impos-
tos à sua vida: esse "luxo" por multiplicação dos objetos e dos detalhes, pela vee-
. mência das emoções, é como uma tentativa de desforra sobrc·a pobreza, a privação,
Terceiro exemplo: Consolidar a solidariedade a cabeleira grisalha; um sonho de abundância, que não se separa do sonho de liber-
dade, e acredita-se poder encher os vazios acumulando o aproximativo. O progresso
. Razão pela qual reencontramos o tema da solidariedade: nos adultos como nas do gosto pela educação pode desde então separar-se de um progresso geral do modo
crianças, .essa solidariedade ou melhor essa tendência à solidariedade é atravessada de ser? Nos dois casos, trata-se de garantir um domínio das coisas e de si próprio,
por conflitos, temíveis divisões; ·em muitos casos ela é incapaz de opor-se ao racismo uma ultrapassagem dos estímulos e dos sobressaltos.
envolvente. Outro aspecto oposto e complementar: é certamente proveitoso que o gosto
É preciso representar-se essas vidas de jovens que se desenrolam incessante- popular coloque a estética no mesmo nível da vida quotidiana, qae não a separe dos
mente nas dificuldades, muit~ vezes na violência: "eles estão sempre um pouco que- valores habituais da existência, mas ao mesmo tempo ele corre o risco de permanecer
brados em alguma parte" (15]; inicialmente é preciso que eles aprendam a se defen- naquilo que não choca, aquilo que é facilmente aceitável - e uma grande parte do
der• o ~ue se confunde desagradavelmente com urna inclinação para atacar; muito dominio das artes será rejeitada [17].
cedo deixados a eles pr_óprios, assumindo a responsabilidade deles próprios, eles bem
sabem que correm o nsco de ser confiados aos mais fortes do ,g rupo a menos que
eles representem eles próprios esse papel. ' Daí a necessidade de uma incitação exterior para ajudar pouco a pou-
Se a escola quer envolvê-los, em particular nas narrativas de leitura· numa at- co esse desejo estético a Ültrapassar seus limites, e dar amplidão às suas exi-
mos~era suave e idUi_c~, expõe-se a aparecer-lhes como completamente irr'eal; e esse gências - e tentar satisfazê-las.
sentunento qu~ ela dmg: a ?utro_s mas não a eles, pode atingir o escolar no seu todo.
~A ener~1a, a toleranc1a e_ sunplesmente a força estão entre os valores dos quais Renascimento cultural e nascimento dos sucessos escolares - A luta
eles tem continuamente necessidade - e que admiram.
contra os fracassos escolares das crianças exploradas passa por uma luta
A escola tem por tarefa sublimar esses hábitos de severidade pelos esportes cer-
t~ente e, de modo mais geral, levando-os certamente em conta; depurá-los na me-
pela renovação cultural: de início esforçar-se para expurgar a cultura esta-
dida em que s~rão propostas tarefas que exijam que se estenda suas energias e que ul- belecida daquilo que os dominantes introduziram nela a fim de fortificar
trapassem a sunpl~s descarga de energia; além do calor humano indistinto, além do sua dominação e de conduzir o povo em direção a caminhos sem saída: de
prazer de estarem Junto~ •. que quase não consegue frear as desordens, propor tarefas um lado, os romances colonialistas e reacionários; do outro as normas cul-
comun~ ca~azes de mobilizar sua imensa disponibilidade: o grupo unindo-se em tor- tas da linguagem e as confusões sabiamente mantidas entre cultura e boas
no do d1fíc1I, não afastando o pouco áspero e perigoso, onde o individuo se persuadi- maneiras, distinção mundana pelas boas maneiras.
125 Continuidade e ruptura na luta contra os fracassos escolares A alegria na escola 126

Em -seguida garantir todo o seu lugar cultural aos valores populares, alunos terão acesso ao mais elaborado que esse simplório - e ganharão de-
desde as aquisições técnicas até as grandes aspirações dos explorados: ao les. Mas há vários caminhos para conduzir a V. Hugo.
mesmo tempo esses valores são indispensáveis para que a cultura não se de-
leite com certos prazeres artificiais, irrisórios, principalmente para que ela Ilusão da pedagogia? - Não cairemos na ilusão pedagogista: a possi-
não sucumba no desespero - e ao mesmo tempo eles próprios têm necessi- bilidade maciça dos sucessos para as crianças exploradas exige uma subver-
dade de serem teorizados e enriquecidos pelas contribuições de sínteses são social de suas condições de vida; não há solução pedagógica, simples-
organizadas; é portanto uma unificação da cultura que aqui está em jogo. mente pedagógica para os grandes bloqueios escolares; não pode haver
Dados que, para todos os alunos, vão se integrar à cultura em seu conjunto, igualdade de oportunidade na escola enquanto ela estiver mergulhada num
fecundá-la, enriquecê-la, consolidá-la - e assim conduzi-la a mais alegria. mundo desigual.
Enfim os valores da cultura popular, vividos de um modo próprio, Isto não significa de forma alguma que a escola seja imponente, ele
com coeficientes de importância diferentes, colocando um acento particular dispõe de uma ''margem de manobras'', nem total nem nula. A renovação
sobre esses e aqueles aspectos da vida, constituem vias de acesso originais dos conteúdos ensinados que trazem respostas às inquietudes, às descober-
que essas crianças tomam com mais boa vontade, menos dificilmente e que tas, às esperanças dos de classe mais baixa, apoiando-se na positividade que
podem conduzi-las à cultura elaborada de todos contudo com riscos meno- brota desse rebaixamento: é a contribuição própria da escoia por um esfor-
res de fracasso . Um filho de operário especializado desenvolveria os valores ço de conjunto que a ultrapassa - e onde, no entanto, ela tem seti lugar.
de solidariedade, de concreto .. . da classe operária através da cultura elabo- É verdade que a escola não é bem-sucedida junto.aos mais explorados,
rada. um fato, um escândalo e os escândalos estão destinados a ter só um tempo;
uma escola progressista deveria encontrar junto deles seus maiores sucessos,
Progresso dos mais explorados, progresso de todos - Há alegria na se é verdade que "as camadas sociais que iiprendem mais avidamente (são
cultura, numa cultura elaborada que levará todos os alunos a apreciarem ao aquelas) que o estado de coisas não satisfaz" [18].
invés de desprezarem e de temerem (primeiros movimentos dificilmente evi-
táveis) a classe explorada, a adquirirem um sentimento fundamentado de
seu papel, tornarem-se sensíveis ao que há de grandeza no seu esforço, em
contradição com as condições em que se desenvolvem seu trabalho, sua
existência; simpatia que pode ir até a participar de suas lutas contra a injus-
tiça da qual ela é vítima - e do mesmo modo fazer a sociedade progredir na
sua totalidade.
Não se progredirá convidando as crianças populares ·a contestar ades-
valorização, efetivamente freqüente, de seus hábitos culturais por uma
contra-desvalorização da cultura "teórica".
Se nossa sociedade é realmente atravessada pela /~ta das classes, e
também sobre o plano das idéias, como supor que a cultura possa estar uni-
camente nas mãos da classe dominante, unicamente determinada pelos inte-
resses da classe dominante? E portanto que um operário trairia sua classe,
renunciaria a ser ele próprio desde que se aproximasse do plano da abs-
tração?
Renunciar a conduzir as crianças populares às formas elaboradas e
difíceis da cultura - e substituir, para elas as grandes obras por qualquer
jornal de criança, qualquer texto de criança - ou os textos mais infantis de
certos adultos é desprezar o povo.
As crianças populares não superarão seus fracassos escolares substi-
tuindo V. Hugo pelo simplório, pois, de um modo ou de outro, os outros
CAPÍTULO IV

O racismo

Não se trata, de modo algum, de considerar o racismo em si, de fazer


uma exposição exaustiva sobre o racismo, mas de encontrar aí um tema, um
exemplo capaz de ilustrar algumas idéias pedagógicas funuamentais.
Quero sustentár que uma educação, uma formação anti-racista
coloca-se em continúidade-ruptura com os modos de ser e de pensar de uma
grande massa de jovens. Isto significa que no nivel da cultura primeira h.ú-
meros são os jovens que vivem o desejo de se abrir para os outros, para to-
dos os outros; rr.as esse desejo é inicialmente constrangido, dissimulado, es-
condido sob tentações contrárias.
E portanto as alegrias que o jovem espera desses encontros, que ele vi-
ve em muitos desses encontros são apesar de tudo alegrias frágeis.
Uma formação sistemática do tipo escolar pode e deve desempenhar
um papel essencial para libertar as alegrias na sua plenitude.

Cultura primeira - A cultura primeira, é aqui algo como a opinião pública


que mantém certos tipos de discurso sobre "essas pessoas" e prepara no que diz res-
peito a elas determinados modos de comportamento.
Um ·lugar no primeiro plano é mantido pelas midias e seus ,grandes meios de di-
fusão.
É também a experiência vivida com os outros jovens e os jovens "outros" nos
lugares e atividades em que somos levados a nos encontrar, até a nos defrontar: é
uma e~eriência adquirida na ação, na prática, diretamente ligada à existência, por-
tanto, possuindo pelo menos aspectos de realidade.
128 A alegria na escola O racismo 129

A partir do que se forma uma rede infinitamente complexa de atrações e de re- ria em quadrinhos, mas num sentido lamentavelmente depreciativo: os árabes são
pulsas. muito freqüentemente suspeitos, dissimulados, falsos, enquanto os amarelos rece-
Atrações: a satisfação que o j~vem sente ao ler ou ao ver histórias de negros, bem ·como partilha mistério e crueldade'.
de índios etc. São fascinantes, prestigiosos. A vida na selva, a luta corpo a corpo Mesmo sem má vontade; as mídias tendem a insistir enfaticamente sobre o que
com as panteras é contudo diferente do que ir de seu conjunto habitacional à escola é insólito, pois lá está o espetacular: mas, de tanto acentuar as diferenças, corre-se o
- e voltar. Os indios dos faroestes e das histórias em quadrinhos aparecem freqüen- grande risco de dar a impressão de corte, de comunicação impossível - e ademais de
temente como os representantes últimos e sedutores de uma civilização próxima da comunicação inútil, tanto seus costumes parecem primitivos, às vezes ridiculos, em
natureza; o negro, o ser feliz por estar vivo. Prestigio das mulheres árabes com véu, todo caso incomensuráveis em relação aos nossos. O pitoresco, o folclore podem ser,
enquanto que em nosso país, quer nas praias ou no cinema, elas teriam mais tendên- em tais momentos, pontos de passagem sedutores; no entanto correm o risco de
cia a se despirem. constituir bloqueios a que vêm misturar-se o eco confuso dos medos e a lembrança
efetiva de certas experiências penosas: desde a agressão até o falatório; medo tam-
O jovem aberto ao anti-racismo - Pode-se dizer que o jovem, menos instala- bém que esses concorrentes tomem nossos lugares, uma vez que já há tantos desem-
do ainda nos hábitos de vida, testemunha muitas vezes uma sensibilidade, uma aber- pregados. Rumor de desvalorização: nas empresas, elas não têm nenhum valor e, cm
tura particulares ao estranho, ao novo, ao diferente; o chamado do exotismo, a von- classe, são certamente burros uma vez que com freqüência são os últimos. Não ousa-
tade de sair de si mesmo para se encontrar noutro lugar: e "esses" têm hábitos, vi- mos mais gostar "dos outros'', perguntamo-nos se é legítimo ir em direção a eles.
vem e sabem freqüentemente coisas, talvez até segredos diferentes que seria apaixo-
nante partilhar com eles . · Há soluções simples? - Como para os outros setores da vida e para as outras
Muitas vezes os jovens, não chegando a inserir-se na sociedade, identificam-se alegrias, podemos todos obter certos sucessos sem passar pela cultura elaborada: a
com os grupos marginais (1). daí tantas histórias em que o jovem herói é um pobre, própria vida, as relações vividas, a via direta, uma certa arte ao abordar o outro não
· um órfão, em suma um "não como os outros", aquele com o qual se tem medo de são o resultado de um esforço cultural sistemático.
pareçer, e cada jovem pergunta-se se não se parece com ele certos traços; uma espécie E no entanto quanto de ingratidão, de equívocos e portanto de risco de
de acolhida dos alógenos no interior de si mesmo. desprezá-"los" introduzem-se assim. Não basta encontrar persas, embora seja mui-
Esta abertura para com o outro, esta disponibilidade em relação aos outros é to freqüentemente de um grande interesse.
um dos temas, um dos valores essenciais da cultura de muitos jovens - e já fora da O racismo não se deixa dominar pelo silêncio, o simples fato de não falar, pois
escola: grandes perguntas sobre as relações humanas, uma grande espera dirigida pa- esse silêncio cede lugar aos rumores, aos preconceitos e também aos julgamentos
ra as relações humanas, turismo e viagem esperados ou já realizados. nascidos das generalizações imediatas.
Aliás nem apelando para a boa vontade pessoal: "veja como esse coleguinha
O jovem tentado pelo racismo - Mas essas atitudes primeiras acarretam tam- negro é bonzinho" ou "vá gentilmente em direção a seu coleguinha negro": pois
bém muito descrédito, muitas vezes elas são incapazes de se oporem ao racismo do cada um pode fazer, faz algumas "felizes" exceções ("você não é como os outros ...
ambiente, pelo menos à desconfiança difusa; às vezes elas incluem tentações, afirma- Ah! se todos fossem como você") sem perder nada de sua desconfiança, de sua hos-
ções racistas: exotismo divertido, ficamos em alguns comportamentos exteriores, no tilidade para com o grupo. São coletividades que existem, não podemos nos ater a
imediatamente vislvel; do anedótico, observações parceladas, parciais, muitas vezes uma série de' problemas individuais.
unilaterais - e isso não ajuda a fazer justiça aos "outros" a partir do momento em Nem dizendo: todos os homens são iguais, o negro é como todo mundo. Ini-
que o problema se torna grave. cialmente (e é uma das características novas do mundo contemporâneo) o negro rei-
Nas generalizações catastróficas, o que vem primeiro, o que é visto primeiro é vindica sua especificidade e "o respeito à sua diferença". Em seguida, a proclama-
tomado como representante de todo o grupo - e é muito fácil encontrar exemplos ção abstrata da igualdade dos homens em direito não se repercute facilmente sobre
desfavoráveis. O cepticismo fácil diante da variabilidade dos costumes e das idéias as situações de fato.
quase não permite simpatizar em profundidade.
Certamente as mídias ajudam a abrir diante de nós os domínios estranhos e a
abrir-nos para .os dominios estranhos: mas algumas esquematizações fazem passar
O estudo da fotonovela como é feito por Evelyne Sullerot em Racisme et Societé apre-
do negro "bom selvagem" ao negro criança, oscilando entre a alegria de sua pueri- senta um grande interesse: é um gênero que se dirige a uma população não favorecida social·
dade e os "caprichos" terrlveis; seu "aspecto", às vezes não está muito afastado da mente - e portanto ela coloca-se facilmente do lado da vitima: principalmente as heroinas de
animalidade. É gentil, acolhedor, fiel - mas tão simplório que parece verdadeira- cor acabam levando vantagem sobre sua rival branca, saem engrandecidas das provas pelas
mente destinado a ser doméstico, para não dizer escravo. Nas histórias em quadri- quais passam - de tal modo sacrificam-se e sabem sofrer pelo homem (branco) que amam.
nhos; os negros chamam a atenção na medida em que não são civilizados. Mas como Mas a am\>igUídade vem de que seu valor essencial, é a submissão, a subserviência, a hu-
em seguida valorizar sua cultura? Os estereótipos facilitam a tarefa do leitor de histó- mildade - como se elas tivessem alguma coisa a ser perdoada: sua cor.
130 A alegria na escola O racismo 131

É indispensá.vel questionar valores mil vezes evocados tais como "tradições, relação de dominação; muitas vezes, em profundidade, a coexistência é se-
costumes, gênio de um povo - do que se diz muitas vezes que eles não podem ser gregativa.
atingidos pelas palavras, pelos raciocínios, pela razão: e jogamo-los no rosto dos ou- A classe é um lugar privilegiado onde o encontro pode, apesar de tu-
tros como razões para exclui-los. do, acontecer com menos desigualdade, condição essencial do progresso;
Finalmente e sobretudo o racismo não é uma ilusão que se dissiparia desde que mas é preciso dizer logo que esta igualdade (relativa) não é dada, deve ser
se considerasse a situação de modo "racional"; o racismo desempenha um papel, conquistada através de um lento trabalho do professor e do conjunto dos
tem uma função para o indivíduo e para a coletividade; e o racismo só se vela na me- alunos, deve ser conquistada sobre disparidades sempre ameaçadoras;
dida em que esses papéis compensatórios tornam-se inúteis.
trata-se principalmente de que a classe se orgânize de tal modo que os "ou-
tros" encontrem ocasiões para se valorizar; se deixamos as coisas prossegui-
Recurso ao esforço cultural - Deste modo é necessário uma interven- rem do mesmo modo, se não preparamos e até se não "tramamos" alguns
ção profunda, organizada, total, institucionalizada da cultura elaborada, acontecimentos da classe, eles correm o risco de aparecer numa situaç.ã o de
em suma um ensino. Ela representa uma ruptura com os hábitos correntes: fraqueza cujas causas objetivas são bem compreensíveis, mas com o tempo
incitar, obrigar a tomar consciência de que ~á ali um problema fundamental sua imagem não está menos enfraquecida e eles, na verdade, não estarão
de conjunto; nenhum de nós escapa; só uma apreensão global, isto é, final- mais no mesmo plano.
mente cultural, ·já pode nos permitir colocá-lo. Negar o racismo, como aliás O professor, o proft:ssor ideal, é aquele que, por experiência e reflexão
negar a luta das classes, não é o caso daqueles que se situam do lado errado. sentirá em que momento e através de que tipo de atividade pode ir até a
De inicio o esforço cultural para fazer viver a gravidade. a globalidade, a in- ajustar a presença de um Kaddour em uma equipe de Duponts que, por ini-
tensidade das inquietudes. ciativa própria não o tinham associado. A classe é o lugar onde, por uma
É um esforço a realizar - mas é um esforço que os jovens podem ter ordem assim sugerida ou mesmo imposta, não é impossível que os Duponts
vontade de realizar porque ao mesmo tempo em que é ruptura, situa-se em progridam em direção a alegria de se abrirem aos kaddours 1 e os Kaddours
continuidade com sua própria existência: não é um revestimento do exte- em direção a alegria de se sentirem integrados.
rior, nem uma pressão exercida por uma autoridade, mas a via para que de-
sabroche, para que se confirme um desejo de abertura, de simpatia que se Os alunos e o racismo - Inicialmente que os alunos digam como sen-
deixava contrariar tanto por dificuldades individuais como por influências tem seus temores, seus rancores, até seus ódios, e mesmo que gritem as injú-
sociais. Esclarecer as razões que conduzem ao racismo, contra o desejo de rias. É a partir de sua experiência e desses esforços para justificar que eles
abertura ao outro. poderão progredir.
Experimentava-se uma indignação indecisa em relação ao destino dos Não em seguida a um debate em que o professor se esforçaria por ser
imigrados e principalmente diante dos "outros" que povoam o Terceiro mais ou menos neutro, e nem também em cursos que se dirigiriam em teoria
Mundo. E no entanto, mil incidentes da vida quotidiana fazem com que eu a todos e que na verdade não diÍiam respeito a ninguém, mas um verdadeiro
a esqueça e correm o risco até de invertê-la. esforço de formação a partir desses alunos e do que eles viveram, dizem ter
Na cultura elaborada progressista, encontro a resposta que procurava, vivido. Não será absolutamente uma maiêutica, pois é indispensável que os
a superação das contradições em que me debatia; posso ir rumo a minha alunos se defrontem com idéias, fatos, práticas novas, contribuições exte-
própria unidade, uma plenitude. riores. Uma empresa difícil, de grande duração, que conhecerá inevitavel-
mente momentos de queda, passagens ao vazio pois é duro ir contra seus há-
Unir teoria e prática - A formação anti-racista constitui por excelên- bitos, contra os hábitos intelectuais e culturais de uma parte pelo menos de
cia um caso em que a união da teoria com a prática é necessária (como fazer seu meio: é para que um aluno não corra o risco.de parar no meio do cami-
uma bela exposição anti-racista admitindo que este ou aquele sejam excluí- nho, diante da primeira dificuldade, que a escola é obrigatória. Num ceno
dos da vida da classe?) mas também onde ela e possível: trata-se de atingir sentido, essa obrigação e também a direção tomada pelo professor vão con-
uma prática sistematizada, como é o teórico; na vida quotidiana e experiên-
cia das relações com os "outros" quase não faz progredir pois a maior parte
do tempo, mesmo se vivemos juntos, é em níveis de existência muito dife- • Sob o nome de Kaddour, ~ost~ia de simbolizar todos aqueles que, aos olhos de Dupont
rentes (caso das empregadas, dos imigrados) e isso transforma-se logo em podem parecer como .. outros" seJam elas Magrebinos, luguslavos, Africanos e Judeus ...

• 1
132 A alegria na escola O racismo 133

tra a autonomia do aluno contra sua livre escolha; mas efetivamente elas es- Se há um grupo rebaixado, os outros já terão alguma satisfação de es-
tão de acordo com o movimento profundo do aluno; é seu próprio desejo de tar em postura um pouco melhor: usufruir das vantagens e do prestígio de
atração que torna-se mais seguro e mais poderoso - e sozinho ele não con- pertencer â fração média.
seguia desempenhá-la exatamente. O esforço cultural é inserir aqui o antagonismo racista no conjunto
A prova de que estamos bem no caminho da liberação, é a alegria que dos antagonismos sociais, portanto chegar a considerá-los na sua amplidão
ai se desenvolve. histórica.
Verdadeiros esforços culturais devem ser realizados para progredir no Inúmeros estudos sociológicos mostraram como, nos Estados Unidos,
anti-racismo - do qual darei apenas alguns exemplos. o racismo contra o negro permitiu manter na passividade e no conformismo
amplas massas brancas, pobres, exploradas - apesar de tudo menos explo-
A passagem ao teórico - Deleito-me em imaginar o pequeno Dupont radas que seus companheiros negros. O racismo conseguiu desviar sua força
indo gentilmente à frente do pequeno kaddour, ao mesmo tempo para con- de cólera e de luta contra os concorrentes negros, persuadi-los que sua infe-
versar ou brincar com ele e de ~lgum modo na esperança de conhecê-lo me- licidade vinha não da organização social na sua globalidade, mas do grande
lhor; e no entanto a relação não se estabelece realmente e o Dupont não número, do número muito grande de homens "de cor" e das condições
sente a alegria com a qual contava mais ou menos explicitamente. competitivas de trabalho que eram obrigados a aceitar (pode-se aliás, nesta
O progresso a realizar para ir em direção a uma confiança mútua, é ocasião, perguntar-se se o branco não é igualmente uma cor).
que nosso Dupont consiga considerar Kaddour ao mesmo tempo como indi-
víduo e como representante de um conjunto: uma cultura, uma história e Segundo esforço: os outros existem - Aplicar-se em creditar aos ou-
também e principalmente uma categoria de explorados. Ele é ele próprio tros o mesmo tipo de existência que reivindico para mim e para os meus.
e é indissociável dos problemas que se colocam coletivamente a todos os É muito difícil para cada um de nós considerar os outros realmente co-
Kaddours. A relação não será verdadeiramente feliz quanto Kaddour pode- mo semelhantes, sendo o primeiro movimento fazer alguma coisa de inter-
rá pensar que é simplesmente aceito a titulo derrogatório. mediário entre o monstro, a coisa e o animal curioso. Com sua ironia habi-
A cultura anti-racista deve formar esta dupla perspectiva - o que exi- tual, Barthes obriga-nos a enfrentar nossos preconceitos; "o negro não tem
ge uma passagem pelo teórico - conforme a idade cios parceiros, é claro; \lida plena e autônoma; é um objeto extravagante; (sua função é) distrair os
passagem difícil todavia pela dificuldade de toda sistematização. homens brancos com seu barroco levemente ameaçador" [2).
Não ficar mais na experiência pessoal que tem certamente o privilégio Se nos deixamos levar pela tendência espontânea, corremos o risco de
de ser o vivido, mas que permanece.terrivelmente fragmentário e parcial:~­ perceber.os outros numa perspectiva bem diferente dos de nosso grupo. São
guns acontecimentos, alguns casos particulares os quais devemos conhecer; be;n conhecidas as frases de Merton: o que para mim e os meus é "frugal,
esse argelino, simpático ou não que, pessoalmente sai ou não de suas difi- econô.mico, previdente" transforma-se nos outros em "avarento, sovina,
culdades. úsurário' '. O verbo "firmar" pode se conjugar assim: sou firme, você é tei-
Trata-se de chegar a pensar em relação à história; à cultura. Nesse es- moso, ele é cabeçudo. ,
forço em direção ao teórico, poderemos descobrir que há causas objetivas · Só se reconhece âs superioridades das minorias nos territórios restri-
do racismo; podemos refletir sobre isso, pod~mos combatê-las. Mas é preci- tos: para os negros - a sexualidade, o jazz, o esporte. Proclama-se a inteli-
so questionar a estrutura de conjunto de nossas sociedades: se "eles" vêm gência dos judeus, mas é para dizê-los "muito inteligent.e" em detrimento
em tão·grande número para nosso pais, é que nossa dominação não val'ori- da moral e do escrúpulo; os dominantes reservam-se a plenitude complexa,
zou suficienteniente seu país: fomos nós que os incitamos no momento em indefinida da existência: ser inteligente e dar os objetos válidos a essa inteli-
que tínhamos necessidade deles: como, alguns anos depois, declará-los bo- gência; ter força sexual e saber dominá-la.
cas inúteis? ' Solicitaremos de nossos alunos um esforço para descobrir nos outros
E principalmente o racismo enquanto instrumento de divisão entre os não apenas as marcas das provas pelas quais passaram, mas também a in-
explorados: rejeitar uma parte da população que se encontra no nivel mais tensidade para viver, âs vezes somente para sobreviver - os tesouros de
baixo da escala social e garantir-se uma reserva de mão de obra mais barata, vontade e de organização que são necessários para isso.
da qual se espera apenas que venha preencher os vazios - e naturalmente os Nós os chamaremos para tomar consciência de que uma parte daquilo
vazios deixados pela promoção dos nacionais. que se reprova nos outro:> é apenas o reflexo das condições de vida que lhes
1
1 O racismo
134 A alegria na escola 135
1
J por esse Outro que rejeita; talvez no seu íntimo, ele gostaria de viver esse
são impostas: de tanto serem mantidos em tarefas subalternas, de serem 1
acolhidos com desconfiança ... "faz-se tudo para que eles se assemelhem às mundo do outro, por insatisfação e recusa de seu próprio mundo.
acusações que se faz contra eles". Falta a longa e difícil tarefa de explicar as formas hostis que esse tipo
estranho de sedução assume - e ultrapassá-las.
Terceiro esforço: escapar ao prazer do racismo - Quero dizer que o Assim, a cultura elaborada anti-racista exige esforços, esforços muito
racismo não pode dar alegria, mas sei bem que suscita prazeres do qual o severos, esforços especificos, quê só ela pode suscitar e estruturar.
principal é provavelmente o de uma garantia automática de superioridade: Minha ambição é mostrar que eles são super-compensados por
todos os branêos são superiores a todos os não-brancos; já que nasci bran- alegrias.
co, estou seguÍ'o pa1'a toda a vida, de minha superioridade; estou do lado
certo, uma vez por todas, do lado da elite - e que deve apresentar-se como Alegria de que nllo sejamos os únicos a sermos válidos - Alegrias de
a 'elite dirigente [3]. se desvencilhar d~ uma fatalidade perversa que multiplica em torno c;le mim,
· Persuadimo-nos, queremos nos persuadir que há, entre os homens di- bem perto de mim, o número dos malditos, de homens que, o que quer que
ferenças essenciais e que desempenham um papel determinante em relação a façam, permanecem por natureza ineducáveis, nasceram inferiores e defini-
toda a personalidade; elas suscitam, em alguns, tanto inferidade e mediocri- tivamente condenados à inferioridade. Viver num mundo em que a estupi-
dade de caráter como de inteligência; em mim e nos meus suscita valoriza- dez atinge tantos seres, isso tem assim mesmo algo de desesperador. Prova-
ção. Sua inferioridade é de nascença, de natureza - portanto definitiva, ir- velmente eu e os meus, estamos entre os puros, os preservados, os dominan-
remediável, ineducável. tes. Mas, somos tão pouco numerosos diante da maré mont'a nte de tantos.
A cultura elaborada progressista pode levar o racista (talvez por levar Alegria de não se sentir mais cercado de rejeitados, mas de possíveis
todos nós) a encarar essas certezas de má fé , a encarar sua própria realida- companheiros.
de: não nos refugiaríamos nessas proclamações, não concordaríamos oom Alegria de quebrar o que se tomava por, o que se queria tomar por um
esses certificados de excelência acabada se não temêssemos, de modo cruel, destino: hã causas objetivas às dificuldades de coexistência, de relação, elas
lancinante, nossa insuficiê~~"ia; essa segurança é apenas a máscara da fra- admitem, solicitam remédios: alegria de não ser impotente. As condições
queza, da insegurança. É na medida em que se sente terrivelmente ameaça- materiais e morais nas quais são obrigados a viver - e através de tantos sé-
do, vulnerável, que o individuo se obstina a construir tal sistema de defesas. culos -:.. esses milhões de outros não favorecem seu florescimento. Elas po-
Não podemos escapar a uma culpabilidade difusa para com todas ''es- dem e devem ser modificadas - e vê-se então negros tornarem-se ...
sas pessoas", sejam os imigrados ou aqueles que povoam os países "em via É definitiva a imutável essa sociedade de concorrência onde uns só
de desenvolvimento": não conseguimos ignorar completamente que desper- podem ser bem-sucedidos em detrimento dos outros - e se as crianças dos
diçamos o supérfluo, enquanto que eles não têm o necessário; que, em par- limpadores de .lama do Mali reclamam empregos mais gratificantes, será
te, é sobre sua miséria que se construiu nosso conforto: sempre impossível satisfazê-los?
O racista só consegue enganar-se a si próprio em parte; a desmistifica-
ção cultural, é o esforço que ele tem de fazer - e que finalmente temos to- Alegria de que eles não maculem minha época - A chegada maciça
dos que fazer - para ir até o fim do que, às vezes, começamos a nos confes- dos outros, é assim mesmo uma das mudanças profundas que marcam nos-
sar: o desprezo racista, meio de justificar nossa situação de privilegiados. sa época - e eles próprios, são fatores de mudança no país em que chegam.
O racismo, é a nostalgia propriamente reacionária de um passado
Renunciar ao bode expiatório - Ater-se a idéia de que nossas dificul- mais ou menos mítico onde "estamos entre nós". Agora "eles nos invadem,
dades, nossos conflitos não podem vir de nós mesmos: são os outros que vão nos submergir, nos dominar - e fazer-nos perder nossos valores pró-
nos trouxeram, são eles os responsáveis. prios, nossos verdadeiros valores". Desde então nossa época é vivida como
Projetar sobre os outros como numa tela os problemas aos quais esta- declínio, degradação, decadência, degenerescência; com um sonho, que
mos presos - e vingar-se dando assim um nome próprio a nossos temores, sabemos ao mesmo tempo impossível de voltar a um antigamente pintado
tornamo-los provavelmente menos assustadores, reforçamos a unidade do como idilio encantador.
grupo sempre mais fácil de constituir no "contra". Ao contrário, a cultura elaborada progressista como alegria de ligar-se
Talvez, como o pensam alguns psicanalistas, o racista esteja fascinado a nossa época, de compreender, admitir, gostar dessas mutações, até nas
136 A alegria na escola O racismo 137

perspectivas difíceis de pluri-culturalidade que elas desenham; alegria Minha família diante da humanidade - Evidentemente nunca é fácil
de aderir fortemente ao atual, de confiar no atual e ao mesmo tempo no conciliar a pequena coletividade que ~tá tão próxima de mim, q~e é quase
futuro. uma parte de mim mesmo - e os grupos cada vez mais vastos, que certa-
mente me atraem mas onde temo me perder.
Alegria de não ter mais medo das diferenças - Ultrapassar um medo Observaremos que Malraux atribuía antes de tudo a alegria de ultra-
fundamental diante daqueles que não são como nós, que nos inquietam por- passar esse afastamento a componeses pobres, explorados, ao mesmo tem-
que testemunham que se pode não ser, nem fazer como nós. Não seríamos po que militantes, combatentes, precisamente aqueles que estão adquirindo
nós o modelo? E do medo nasce a agressividade. Destruir o enclausuramen- uma cultura política: "Quando queremos fazer alguma coisa péla humani-
to em si mesmo, no modelo único de si mesmo, para tornar-se disponivel ao dade, é também pela nossa família. É a mesma coisa" (5). Os privilegiados
diálogo, à troca, à escuta. que não passaram por essa dura escola têm muito menos oportunidade de
Não procurar desesperadamente encontrar-me sempre diante de um atingir tal fusão.
outro eu próprio para evitar o choque do desajuste, aos poucos, conseguir Isso para nos advertir que esse movimento em direção ao outro não
não apenas aceitar, mas amar a alteridade, a diferença da qual o outro é pode ser simplesmente ideal; faz parte de uma solidariedade prática, de um
portador. E é então que posso tomar consciência, além do exotismo e does- hábito de agir em comum. A comunicação anti-racista só J>Ode realmente
tranho, das semelhanças e dos elos solidários. · progredir e dar alegria na medida da participação nos esforços contra a ex-
Assim uma cultura elaborada para atingir a alegria de descobrir seres ploração, a super-exploração de alguns.
que diferem bastante de mim para me ajudar, para me obrigar a sair de
mim, mas que reconheço muito próximas de mim para que a afinidade entre
nós seja real. A alegria de me conhecer melhor conhecendo os outros, sua Alegria do intercultural - Além das alegrias da comunicação de ho-
originalidade, suas razões de viver - e a recíproca. mem .para homem, abrir-se à alegria de comunicar com outras culturas - e
Podemos até dizer que o outro é aquele de quem tenho necessidade pa- inicialmente de fazer-lhes justiça.
ra ser eu; o outro e eu, formar-nos-emos um ao outro partilhando o que ad- As culturas têm significado, não somos os únicos a reter valores. Não
quirimos; ser "compreendido" no duplo sentido do termo, entre os outros, somos a única civilização válida, no meio de um oceano de barbárie e de
a partir dos outros, com os outros. fracassos, sempre ameaçados de sermos engolidos pela selvageria do am-
biente. A cultura descobre a riqueza das civilizações e a alegria infinita de
Alegria de descobrir indivíduos - Chegar até a unicidade desses ou- um diálogo de igual para igual entre as civilizações. Igualdade e unidade dos
tros, de inicio massa indiferenciada, confunsa, mal tem nomes; .não "os" homens, mas também diversidade de suas realizações: vários equilíbrios são
árabes, mas esse reconhecimento das individualidades já evocado por Pas- possíveis, vários equilibrios tornaram-se efetivos. Alegria de participar da
cal: "à medida que se tem mais espírito (e pess.oalmente não separarei o es- diversidade da não inferiorização.
pírito da cultura, do esforço cultural) achamos que há mais homens origi- Há culturas sem competição, onde não se procura levar vantagem so-
nais" (4). Há muito mais homens interessantes que de início se acreditava. bre a outra; em particular, não se quer terminar sua tarefa antes dos "con-
Deste modo, a cultura anti-racista amplia a alegria da comunicação correntes", nem humilhá-los fazendo-os sentir que se sabe mais que eles. O
fazendo o pequeno Dupont perceber que ele tem mais "semelhantes" do valor supremo não é exibir superioridade, aproveitar-se dela.
que pensava - e que os "diferentes" são ao mesmo tempo semelhantes Há sociedades (as sociedades negro-africanas) em que nem viúvas,
com os quais há alegria para comunicar e de quem ele pode não ter descon- nem órfãos não ficam isolados, pois quer a família, quer o herdeiro do ma-
fiança. rido ocupa-se deles; assim a família tradicional oferece ao indivíduo uma es-
Aumentar minha desconfiança conduzindo a amplificações progres- trutura de acolhida que o 'tranqüiliz'a; solidariedade que atenua tantas misé-
sistas, uma simpatia estendendo-se a comunidades cada vez mais vastas, o rias individuais (6).
"mais" quantitativo constituindo aqui uma mutação qualitativa. Sinto-me O Islão pôde ser definido como complementaridade entre as diversas
concernido, responsável, cada vez mais não inocente de acontecimentos, formas de vida humana: técnica, econômica, social, espiritual.
atingido, no melhor e no pior, para tentar passar do pior ao melhor. Em suma, a originalidade de cada cultura no "seu modo particular de
resolv~r os problemas, de colocar em perspectiva os valores ... wna dosa-

.
138 A alegria na escola O racismo 139

gem que nunca é a mesma" [7] e cada uma encontra seus sucessos e seus fra- como valor e não mais como escândalo; então todos os problemas do direi-
cassos próprios. to à diferença vão ser colocados: não só coexistir, mas tornar-se um dos
Além da diferença como riqueza a respeitar, a amar, a cultura pode ti- componentes do país, reivindicando sua identidade própria. A situação é
rar partido da diferença, questionar-se a partir da diferença: as diferentes tanto mais complexa quanto a tomada de consciência da minoria se faz den-
culturas têm cada uma algo a oferecer: alegria de pensar que elas poderiam tro de uma crise; no inicio pelo menos, esse aparecimento de orgulho origi-
progredir por suas trocas; não diremos somente que o passado negro é váli- nal passa muitas vezes por recusas de uma extrema brutalidade.
do, digno de respeito, trouxe valores para a humanidade: não nos propore- E no entanto, quando chegamos a colocar o problema em relação às
mos simplesmente a ajudar os negros, mas procuraremos com eles como sua contribuições especificas, é bem o sinal que conseguimos fazer evoluir o
originalidade pode enriquecer as civilizações de tipo ocidental: nos sucessos conflito, levar a contradição a um patamar superior.
mas também nas dificuldades nascidas da industrialização, os que não se- É nesse cenãrio de sofrimento e de irrealização que a cultura anti-ra-
guiram esse caminho, o que têm eles para nos ensinar? Abertura e não mais cista como modo de pensamento, de educação, de vidà, de luta vai se esfor-
curvar-se sobre si mesmo, terror, pânico, fortaleza sitiada. çar para conduzir o Dupont e também o Kaddour em direção a mais alegria.
Pode-se também chegar por aqui à alegria de pensar que nossa civili- Há mais alegria em gostar dos Kaddours do que em repeli-los e temê-los;
zação, se não é o sucesso completo que alguns tinham profetizado ao impul- m8.s p or que é tão difícil?
so do maquinismo, não é também a derrota, o desumano; deve repor como
os outros, na imensa série dos esforços tentados em direções múltiplas. Guerra e desespero - Opor-nos-emos evidentemente que há alegrias
A cultura decuplica a validade dos mundos; que deixam de estar fora nos raci stas e que os nazistas, os jovens nazistas, parà irem ao paradoxismo
de meu alcance, de minha visão, de meu interesse; intensificar minhas do racismo , co nheceram muitas alegrias.
oportunidades, portanto minhas alegrias de diálogo. Dialogar ao mesmo Todo o problema é saber se podemos acrescentar à alegria uma exalta-
tempo com os Kaddours - indivíduos e com a comunidade, a civilização ção da qual a morte a enfrentar e a morte a propagar são componentes irre-
dos Kaddours. dutíveis. Hitler em Mein Kampf forja uma espécie de hino à glória da força
dita natural, da luta dita natural e cem vezes repete-se que só os fortes, as
Alegria dolorosa - Disse incessantemente alegria - mas não vamos raças fortes têm o direito de viver, o dever de eliminar os fracos, as raças
de modo algum a uma alegria beata, que repousa na sua satisfação. Alegria "corrompidas" ou de reduzi-los à escravidão. A efervescência fascista, a
dolorosa, angustiada, trágica e minha ambiç.ã o é afirmar que a cultura ela- exalt.aç:,~ racista não se separam da preparação da guerra e do culto da
borada progressista, que conduz à alegria trágica, conduz efetivamente à guerra: "a humanidade cresceu na luta perpétua, a paz eterna conduzi-la-ia
alegria. ao túmulo". Não vejo nenhum meio de integrar esse terror bruto à alegria.
Talvez o caso do racismo seja um exemplo: os conflitos com os ou-
tro~. com os exóticos que se deleitam durante toda a noite, com uma música
intensa: as dificuldades das classes em que há tantos alunos de língua não
francesa que têm mais dificuldade de progredir, e tememos sua influência
sobre os nossos, tudo isso não desaparecerá diante das mais belas, das mais
justas argumentações: .as situações de concorrência, em particular quando
reclamam um tratamento dif~rente daqueles que chamamos tão falsamente
de "os imigrados da segunda geração", ainda que não sejam de modo
algum imigrados, mas já nascidos na França. Aqui, ~ alegria é dolorosa
porque deve incessantemente ser reconquistada não só sobre nossa vaidade
e nosso conforto mas também sobre alguns de nossos interesses imediatos; é
uma prova difícil descobrir que não constituímos um modelo único. Os
avanços são diminutos, os recuos, principalmente em período de batalha em
torno dos empregos, são cruéis.
Há mais ainda: quando o outro toma consciência de sua originalidade
CAPÍTULO V

O Amor

Gostaria de propor o amor corno o segundo exemplo de continuidade-


ruptura entre cultura primeira e cultura elaborada.
O amor possui este privilégio de constituir ao mesmo tempo o funda-
mento da vida dos jovens, da cultura primeira e da cultura elaborada.
Em particular, observaremos que a criança, de início, aprende muito
mais sobre o amor pelas mídias do que pela observação direta da realidade:
proclamações repetidas de que o amor, é o essencial da vida, detalhes múlti-
plos, enquanto que na vida as pessoas dissimulam, escondem, as cenas de
amor e também as dificuldades do amor, quase não apresentam vidas intei-
ramente consagradas ao amor.

Cultura primeira - Queria tentar fazer uma idéia do que é o amor na cultura'
primeira - para compreender como a cultura elaborada ao mesmo tempo contradiz
e prolonga as mesmas pretenções, meu objetivo sendo sempre dizer que as exigências
mais imperiosas da cultura elaborada traduzem-se em alegrias mais intensas.
Poderismos fazer uma idéia da cultura primeira a partir das músicas. Apresen-
to aqui apenas um esboço disso. Evidentemente, é uma escolha inteiramente restrita
algumas músicas, ao acaso dos encontros, músicas já um pouco envelhecidas, músi-
cas que, o mais frequentemente já foram impressas em coletâneas, o que indica um
certo tipo de cÓnsagração. Essas músicas não formam de modo algum um bloco ho-
mogêneo, elas se contradizem umas às outras e até as d~ mesmo autor; dai o artifi-
cial, talvez, de querer extrair delas uma ideologia. Simplesmente "encontrei" alguns
temas em algumas músicas e questionei-me sobre seu sentido .

..
141 O amor A alegria na escola 142

De inicio, gostaria de evocar o que me parece mais positivo na cultura primeira que era apenas um deserto; a partir de então é o todo da vida, espera mas que ele seja
das músicas quando ela fala de amor. suficiente para preencher o vazio, para compensar todo o resto (25). Uma cultura de
felicidade, o amor fundamentalmente, é felicidade; mas não conseguimos manter
firme essa felicidade. Dai inúmeros são os momentos de lamentos, de solidão - e
Músicas• portanto, impossibilidade de dar algum sentido à vida (26). Aquele que perde esse
amor sente, pelo menos durante o momento, abater-se sobºre ele a decadência (27).
É o amor que faz existir - Literalmente ele tira do não-ser (l); é fonte e o do O amor escapa - E creio essencialmente por duas razões:
ardor que permite ao homem viver e progredir (2); dois seres unidos pelo amor ao - A disparidade profunda entre os parceiros, entre o homem e a mulher, na
ponto de serem um só (3 e 4); esperança e desejo de apoderar-se inteiramente de uma verdade muitas vezes a inferiorização da mulher.
pessoa (5); o amor faz viver intensamente, na plenitude (6); reanimando forças, im- A mulher como, inatinglvel, inacessível; é marcada por uma variabilidade qua-
pulsos que a vida corrente tinha entediado (7); o amor, desposando os valores de se instintiva, uma inconstância que lhe é propriamente natural (29). De um certo mo-
nosso tempo, faz viver no rítmo de noss~ época, e não no fora de moda (8); poderia do, ela nunca vive no mesmo mundo que o homem. Portanto os encontros entre ho-
haver ai uma felicidade simples e total, uma reconciliação geral (9); Um amor bem- mem e mulher, mesmo e principalmente quando são de amor, contém mistérios, mas
sucedido seria um sucesso completo em que os seres atingiriam uma síntese de suas também equívocos (28).
qualidades mais opostas (10); todos os valores unem-se e fundem em semelhante A relação entre o homem e a mulher é essencialmente desigual: muito freqüen-
amor (11); a vida concentra-se neste afeto imóvel, e que inspira tudo ( 12); amor que temente, é o homem.que domina. Ele julga a mulher, em particular quanto a sua inte-
conduz diretamente a imortalidades. (l 3). ligência, sem nenhum atenuante; às vezes ele se felicita porque a mulher não penetra
Não esqueceremos das músicas que se deleitam a demisticar ou antes a desmiti- no domínio das idéias e então deixa-lhe a exclusividade (30).
ficar o amor, a liberar o amor de certas fantasmagorias (14). As vezes, a relação inverte-se, nem por isso é menos desigual (31) . O amor tem
E no entanto esse amor nilo é literalmente defensável: o amor desen volve-se dificuldade em se manter entre dois seres tão diferentes um do outro; o amor tem di-
num parênteses do tempo - É muito pouco dizer: o amor não dura, o amor vem e ficuldade em conservar seu lugar no meio de relações de dependência que vão eviden-
vai, o tempo dos amores não dura (15); de fato estamos reduzidos a constatar as in- temente conduzir a um desejo de desforra.
termitências do amor; simplesmente observamos que o amor acabou. Não sabemos - O corte entre o amor e o mundo: Nem ao menos 3e trata de justificar o de-
porque amamos e não podemos fazer nada; não sabemos porque não amamos mais, sejo, nem mesmo de perceber isso (32) não só nun~a sabemos quem amamos, por
não podemos fazer nada; limitamo-nos a observar que mudamos, que as coisas mu- quem somos amados mas sobretudo o amor não pode encontrar lugar no mundo: ele
daram (16) . não pode se ligar a nada no mundo, inserir-se em nada do mundo já que repetimos
Só o presente existe, conta - e então é preciso apressar-se para aproveitá-lo. que este mundo é nulo; seria portanto necessário colocá-lo a distância, quase apagá-
t::ultura de prazer, de prazer agora, de prazer limitado ao agora; o temop aparece co- lo, para dedicar-se apenas ao amor, fechar-se no amor; a esperança de constituir a
mo ameaça; é a forma inimiga que vai precipitar no cansaço o no esquecimento (17); dois, a exceção: é loucura, sabemos que é loucura, queremos ser loucos.
o tempo não sendo continuidade produtiva - é um momento, em seguida um outro Mas se realmente o mundo não oferece nenhum apoio ao amor e se o amor
- a intenção não é prolongá-lo para fazer melhor, mas riscá-lo, recómeçar do zero não tem nada a fazer com o mundo, a ver com o mundo, o "afastam~nto" não po-
(18). Podemos nós encontrar músicas em que o tempo seja aprofundamento, cresci- derá durar, um afastamento nunca pode manter-se; por falta de ter um outro alimen-
mento, criação? to além dele próprio o amor vai enfraquecer. Ao mesmo tempo, ·Choraremos uma so-
O amor acontece num parênteses do mundo - Para ter chance de se amar é lidão que, além de ser decepcionante, generaliza-se a todos (33) - e mantem-nos
. recusar o mundo (19), é preciso
preciso . esquecer o mundo (20). Quanto n1ais o mun- ' prontos para a próxima aventura.
do é desprezível e desprezado, mais ele se embrutece, podemos fazê-lo desaparecer A cultura primeira áparece-me como afastada da proclamação de que o amor
melhor, pelo em pensamento, pelo menos em nossos pensamentos - e vamos nos e a felicidade estão ali, oferecidos a todos - e a longa queixa de que ele escapa, a
amar melhor (21). O amor cria uma ilhota isolada no resto do mundo, um pequeno menos que sejamos nós que lhe escapemos.
espaço pacificado, purificado (22). As comparações com um jardim, com uma jan-
gada etc., são freqüentes. O domínio do amor coloca-se como a exceção num mundo Os companheiros - É importante notar que os companheiros recebem mil
dedicado ao ódio e à morte (23); ou mais simplesmente num mundo onde não acon- elogios - e não sofrem os anºa temas que se abatem sobre o amor (34). Provavelmen-
tece nada de interessante, onde não acontece nada (24). O amor torna feliz uma vida te não é a intensidade da paixão, mas sentimo-nos bem; o que pode ser uma vida sem
problema. A amizade é duradoura, pela simples razão de que com os companheiros
estamos em igualdade de condições.
Os números em itálico entre parênteses remetem às letras de algumas músicas citadas no É às vezes a comunidade dos miseráveis, um pequeno grupo que abandonou a
• .'ICXO, infra, p. civilização.
143 O amor A alegria na escola 144

Evidentemente eu teria sido feliz se a exaltação da amizade se desenvolvesse Algumas frases que ressoam em torno das palavras evocadoras do grandio-
não numa oposição ao amor mas numa complementaridadé dos dois modos de re- so. Mathilde "só dava o nome de amor a esse sentimento heróico ... fazer
lação. grandes coisas ... sinto-me no nivel de tudo o que há de mais ousado e
maior. .. minha felicidade será digna de mim" [ 1a). ·
Continuidade e ruptura - A continuidade quanto ao amor entre cul- Aurélien: ''Ele temera parecer-lhe abaixo dessa idéia grandiosa que ele
tura primeira e cultura elaborada é certa: mesmo lugar concedido, mesma fazia de si próprio ... Berenice identificada a todas as idéias nobres". e reci-
primazia, esperanças semelhantes de felicidade. Os temas de bloqueio e de procamente: "Berenice queria a todo custo encontrar (no amor) a prova vi-
fracasso que assinalei na cultura primeira não lhe são próprios e são reen- va da grandeza, da nobreza, do infinito ... enfim, ser-lhe-ia preciso alguma
contrados evidentemente na cultura elaborada. O amor, na cultura elabora- coisa de perfeito. "Sei bem que esse amor vai fracassar, mas quero reter o
da, não é absolutamente o contrário do amor nas músicas; aliás uma cultura momento em que Aurélien diz a Berenice: "Você foi o que houve de me-
que queria incitar os jovens a recusar o amor tal como eles o vivem a partir lhor, de mais profundo em minha vida" [2). '·
das músicas (e dos filmes) parecer-lhe-á pertencer a um outro mundo, nlio A cultura que apresenta o amor como inseparável d~ µrha. tensão; de
terá a possibilidade de exercer uma ação sobre eles e permanecerá sem rela- uma busca do aperfeiçoamento de si mesm9: "Só para mini, eu nunca teria
ção com suas alegrias. o ambicioso desejo de desejar-me melhor do que sou. Mas, para o senhor,
E no entanto há também muitos elementos de ruptura dos quais dese- gostaria de triplicar o que valho". [3).
jo dizer que chegam a conferir mais alegria ao amor. Daí todas as metáforas evocando uma altura atingida, uma altura a
Os valores percebidos na cultura primeira, antes de tudo a esperança atingir: "O amor eleva-nos elevando o objeto tü~ado . Suprima a idéia de
de ser feliz e unidos no amor, quase não chegam a seu florescimento, de tal perfeição, você suprime o entusiasmo" [4].
modo eles são impregnados de incertezas e de faltas; muitas vezes permane-
cemos numa inquietação, num mal-esr ::r. E no entanto o que é cantado dei- Ultrapassar graus - A seguir, espero da cultura o tema de formas
xa vislumbrar aspirações, apelos à formas mais completas, capazes de parti- aproximadas, aproximativas do amor, portanto formas aproximadas, apro-
lhar de uma alegria mais completa. ximativas da alegria; a cultura far-me-á sentir que são pontos de passagem,
A cultura elaborada à qual me ligo intervém não para repetir as pala- graus - e então não é o fim, o objetivo: s~u capaz de mais e mais alegria.
vras das músicas de modo mais bonito, menos ainda para desenvolver uma A cultura afirma-nos que é normal, no duplo sentido do habitual e
seqüência de teorias moralizadoras e restritivas sobre o amor, nem para de- de acordo com o desenvolvimento do indivíduo que o amor comece por ser
ter as esperanças repetindo a incomunicabilidade entre os seres, o perpétuo menos a procura de um outro na sua realidade do que a esperança de eu ser '
mal-entendido ou a usura pelo tempo; é um esforço para viver com mais ple- ajudado; completado, protegido, amo-o pelas minhas qualidades ou como
nitude e portanto com mais alegria as experiências primeiras do amor. &- compensação às minhas. fraquezas: superfície onde posso projetar imagens
forço, do mesmo modo, para compreendê-los melhor, situá-los melhor: é a de mim mesmo: em suma, amo-a para poder me olhar nela pois é então que ·
partir das formas mais completas do amor que as formas primeiras podem me sinto seguro, e tenho uma necessidade terrível de me sentir seguro: "Re-
ser avaliadas. fletia-me num outro ser e minha imagem assim refletida não tinha nada de
Se a cultura elaborada não vai além do amor das músicas, não modifi- repulsivo" [5]. Um prolongamento, uma réplica de mim mesmo.
ca a vida de amor tal como se apresenta nas músicas, para que serve? O ser humano tem tão pouca confiança em suas possibilidades, está de
O que não quer absolutamente dizer que para os homens cultos tudo tal modo embaraçado nos laços de dependência que tem necessidade de ser
esteja resolvido, mil vezes não, pode-se esperar que as contradições s'ejam aprovado e admirado como criança - e a compensação dessa incerteza, são
levadas a um nível superior. . . os sonhos imaturos de dominação. Esse amar imaturo vacila entre "o egoís-
A cultura elaborada, nãq é apenas os-livros lidos, mas um estilo de vi- mo e um devotamento devo'r ador" [6].
da, um modo de atividade que se esforça para encontrar a harmonia entre O que esse primeiro grau de amor comporta de alegria é antes de tudo
todos os domínios em que se procura desenvolver. sentfr-se sustentado, enquanto não deixa de se coloéar a questão crucial: se-
rá que sou capaz de amar? Será que sou digno de amar e de ser amado?
Plenitude - Aquilo que espero da cultura, é talvez inicialmente que Uma proteção contra a angústia e a culpabilidade das quais se sabe bem que
ela una o amor aos temas de grandeza, de altas exigências dirigidas à vida. elas permanecem enredadas ao amor, apesar de ou talvez justamente por
145 O amor A alegria na escola 146

causa das proclamações de que o amor é agora liberado, que não há mais atividades; à medida em que serei bastante forte para enfrentar a vida, serei
doravante nenhum elo entre os temas de amor e os temas de erro. mais capaz de amar, de amar melhor.
. A.beleza de~se momento reside em tudo o que ele contém de procura e
de inquietação criadoras: a procura sexual é indissoluvelmente um esforço Em direção a uma síntese do carnal e do psíquico - A cultura para me
para amar um outro, encontrar sua própria identidade, questionar seu lugar ajudar a apreender que o progresso do amor e o progresso da alegria no
n~ mundo e portanto questionar o sentido do mundo: o que querem de amor, ·é dirigir-se rumo a uma sintese do físico e do sentimental, sintese
mim? O que esperam de mim? muito freqüentemente evocada na cultura primeira, mas como esperança da
Mas a união d~ d~as. f~aquezas, de duas dependências ainda é apenas 0 qual nos desesperamos.
esboço de.amor: dois md1v1~uos que só se mantêm em pé apoiando-se um "O impulso sexual adulto forma-se pela integração dos múltiplos im-
no ?utro, e um esforço em direção ao amor; não é, não há ainda 0 amor: "a petos da vida infantil"; essencialmente "conjunção de duas correntes: a dà
aptidão .de p.ermane~er. sozin?o é condição da aptidão para amar'" [9]. ternura e a da sensualidade". É importante, exatamente em relação aos pro-
. Pois. a mconstanc1a muno-conhecida desse grau provém, de um lado, blemas culturais, ouvir Freud sustentar que o elemento motor em direção a
da 1mprec1são extrema do que se procura; cada um estando ainda na incer- essa unidade pode ser o elemento mental; na puberdade pode sobrevir "um
teza em amor, a mesma incerteza que para todo o resto de sua vida· e por movimento amoroso intenso, de caráter psiquico, que repercutirá sobre a
outro lado esse complemento de mim mesmo permanece indifere~ciado inervação das partes genitais" [7].
portanto facilmente substituivel e desde logo passageiro; além disso, el; Nem o amor se faz sem a posse dos corpos, nem ele se reduz à ligação
cansa-se logo ~? p~pel de contrapeso que quero lhe destinar, para tentar por dos corpos: é uma pessoa que desejamos atingir na sua carne; não somos ir-
sua vez, expenenc1as análogas, mas com um outro. remediavelmente condenados a ser sacudidos entre aspirações ditas (falsa-
mente, aliás) platônicas e um abandono ao corpo: Há "uma signifícação
psíquica do corpo ... o sexual é nossa maneira, já que somos carne, viver a
. Que fazer do mundo ao nosso redor? - É da própria natureza desse relação com outrem ... a sexualidade é dobrada, sobre toda sua extensão, de
JOgo no espelho tentar isolar os espelhos do resto do mundo na esperança uma relação de pessoa para pessoa'' [8].
de ~preender apenas as imagens puras nos espelhos puros; co;tar 0 amor do A afeição, a vontade e o desejo sexual dirigindo-se para um mesmo
conjunto dos acontecimentos e das tarefas, fechar-se, tornar a fechar-se ser, é talvez (como o diz Lagache [6]) uma etapa "normal" do desenvolvi-
nesse amor - e desolar-se por não atingi-lo. mento, mas isso não quer dizer que ela seja ultrapassada de modo automáti-
A ~egria aqui é atravessada por terríveis insatisfações: a incostância co e por todos; não é nem evidente nem fácil que o impulso do corpo entre
~ue é assrm mesmo sentida como inconsistência; e essa presença obsecante, em acorco com o- movimento do coração.
mvasora do mundo ao redor do amor, e da qual não se sabe bem 0 que A cultura elaborada tem um papel a desempenhar para clarear esse ca-
fazer. ~_... minho; enquanto tão freqüentemente as músicas limitam-se a constatar e a
Uma das causas ·da divagação, é a distorção entre a procura da pessoa deplorar as divergências, a tarefa da cultura elaborada é talvez deixar entre-
capaz ?e me tra~er a .complementaridade desejada e os atrativos imediatos, ver que essa síntese está ao nosso alcance, traçar evocações disso - e tanto
o deseJo no seu 1med1atismo brusco, brutal - e todos os casos em que duas melhor para aqueles que são candidatos a essa alegria1 •
s~duçõc:_s n~o se desenvolvem no mesmo sentido. Freud mostrou bem essa
discord.anc~a ~os desejos e do amor: "Os processos de desenvolvimento físi-
1 Essa slntese entre o carnal e o pslquico, encontro-a evocada de modo muito feliz nessas
co e ps1col?g1c.o estabelecem-se inicialmente sem elo entre si" [7].
duas pessagens de Simone de Beauvoir: "Você não era um corpo abandonado em meus braços,
As primeiras formas de amor são ao mesmo tempo as da adolescência mas inteiramente uma mulher ... Yoca não estava perdida no tumulto de seu sangue. Não se
e as das músicas que, precisamente, agradam a tantos adolescentes. sentia presa de uma fatalidade vergonhosa. No meio dos impulsos mais apaixonados, algo em
A cultura para me incitar a ir mais longe e em dir:eção a alegrias mais você dizia: 'é porque consinto' '(Le sang des autres, v). Evi;.-lução parelela mas no vazio e em
amplas; para fazer-me sentir que e eisso vale à pena,, penetrar profundamen- modo de espera: "O mal-(star experimentado durante os cursos de dança irritava-me porque
te em um amor; que devo, tenho o direito de ser exigente no que diz respeito cu o experimentava apesar de mim mesma; não admitia que por um simples contato ... o pri-
meiro acontecido pôde fazer-me naufragar. Chegaria um dia em quç eu desfaleceria entre os
a amor~ para me convencer que conseguirei emergir do narcisismo em amor braços de um homem ... minha decisão justificar-se-ia pela violência de um amor ... comprome-
na medida em que o atingirei no conjunto de minhas relações e de minhas ter-me-ia inteiramente, com meu corpo, minha cabeça e meu passado. Recusaria cataremo·

1
1
••
147 O amor A alegria na escola 148

Em direção a uma síntese do presente, do passado e do futuro - Pessoalmente foi em André Breton que senti melhor a fidelidade como
Aquilo que pode me dirigir para uma segunda esperança de síntese, entre o alegria e como apelo interior a um aumento do amor. Na verdade há "os
passado, o presente de minha vida e seu futuro. instantes negros em que o amor perde repentinamente a força que tinha e
O que sobra na vida adulta das experiências da juventude? E de modo deixa-se cair sem nenhum motivo no fundo do abismo'', mas são apenas
geral, será que não desperdicei meu tempo no irrisório, uma vez que o que instantes e o poeta fica indignado com a idéia corrente de que o amor contí-
me apaixonava, ·agora não me interessa mais?, a começar pelos meus amo- nuo leva ao hábito ... cansaço ... que o amor se gasta como o diamante em
res de outrora. seu próprio pó". E isso parece-lhe falso desde o fisiológico, desde sua reali-
Mas é exatamente um certo tipo de amor que será capaz de estabelecer zação fisiológica: "não há sofisma mais temível que aquele-que consiste em
unidade entre os diferentes momentos de minha vida. "Não acredite que o apresentar a realização do ato sexual como sendo necessariamente acompa-
amor que você conheceu na adolescência esteja perdido. (Ele fez) germinar nhado de uma queda de potencial amoroso entre os seres."
em você aspirações ricas e fortes, projetos que você vive ainda hoje" (9). No Diante do temor da degradação amorosa, o poeta · terá a ousadia de
entanto, o que Rilke apresenta como um fato realizando-se quase por si proclamar que o ser amado torna-se sempre mais ele próprio, portanto mais
mesmo, não será antes um empreendimento?, e cada vez que é difícil, quase amável; impossibilidade de imaginar até o contrário: "Assim se Juliette
desencorajador, a cultura elaborada deve nos dizer que é possível, deve ilus- continuasse a viver não seria contudo mais Juliette para Roméo (11).
trar isso com exemplos e deve nos fazer sentir que isso dá alegria. Na verdade, a concepção da fidelidade em Breton é complexa, ela não
exclui a multiplicidade: ora parece que seja uma série de mulheres amadas,
Fidelidade - De fato, posso encontrar a questão da fidelidade. É um mas que convergem e culminam em uma - e ela será pois a resultante e po-
dos temas fundamentais das músicas, mais freqüentemente como lamúria. deríamos dizer a única, perseguida no decorrer de uma procura exigente.
A ideologia tradicional faz da fidelidade (institucionalizada em casamento) " Revivem finalmente todos os rostos que me encantam. Cabeças de mulhe-
um dever social, um imperativo de estabilidade social: uma instância estra- res que se sucedem sobre seus ombros quando você dorme".
nha, a sociedade como pressão e repressão, prescreve do exterior a persis- Foi preciso que as qualidades fossem ''apreciadas separada e sucessi-
tência a sentimentos que colocamos por eles mesmos como essencialmente vamente em seres amados anteriormente em algum grau, para que enfim
mutáveis. Desde então essa continuidade exigida é entrave, desfavorável ao elas viessem se compor - e esse seria então "o amor louco", integral.
amor e tendo como efeito apenas a diminuição da alegria de amar. Ora é a mesma mulher e ela se veste com existências sempre renovadas
Posso encontrar na cultura elaborada com o que ir mais longe - e po- porque com o tempo, a riqueza da experiência e também o peso da experiên-
derei ao mesmo tempo renunciar ao "papelote" - Don Juan e todos os cia, nosso amor renova-se incessantemente: "o amor recíproco é um dispo-
Don Juan disseram da insatisfação essencial - e não mais submeter-se à fi- sitivo de espelhos que me remetem, sob os mil ângulos que pode assumir pa-
delidade como tristeza indispensável à ordem: se amar é engajar a pessoa in- ra mim o desconhecido, a imagem fiel daquela que amo, sempre mais sur-
teira em direção a urna pessoa inteira, existe na verdade o desejo de viverem preendente de revelação de meu próprio desejo e mais dourada de vida".
juntos provas que só podem ser de grande fôlego, participar das dificulda- Ao mesmo tempo é ela própria e transforma-se à medida que se desenvolve
des comuns e provavelmente também de algumas que sairão do comum. · nosso amor; a duração como criadora, nem convenção nem cansaço.
O amor secreto e ao mesmo tempo o amor como comunhão de vida de E o poeta vai lançar esta afirmação que é ao mesmo tempo o desmen-
todos os dias, em pleno, dia - e é por aí que saímos do provisório. A dura- tido da experiência rotineira, das músicas - e provavelmente também a es-
ção do amor faz parte do amor, a primeira de suas tarefas constantes sendo perança na qual elas não ousam confiar: "o amor verdadeiro não está sujei-
provavelmente proteger nosso filho: to a nenhuma alteração no tempo" [11).
A seu modo, Eluard canta também o recomeço incessante na cons-
Como perpetuamos uma rosa tância:
Cercando-as de mãos felizes [10].
Maravilho-me com a desconhecida que você se torna
Uma desconhecida semelhante a você, semelhante a tudo que amo
Que é sempre novo.
ções, volúpiãs estranhar a essa realização" (Mémoires d'unejeune filie rangée, fim da segunda
pane).
149
É neste tipo de cultura que sinto esta fidelidade inovadora: graças ao
O amor
l
J
A alegria na escola 150

Em direção a uma sfntese do afetivo e do racional - Essa síntese, essa


que ultrapasso as aparências contrárias e é o que tento transpor para minha esperança de síntese implica do mesmo modo em que o amor não seja o con- ·
vida - e tiro mais alegria disso do que permanecer no nível da dispersão trário do conhecimento, que a paixão não seja necessariamente negação da
imediata: "Amar apenas durante wn momento parece-lhe impotência" razão. Uma das contribuições essenciais da psicanálise, da cultura psicana-
[12a]. lítica, é ter colocado o complexo de Édipo, fonte de todos nossos amores,
como procura, procura de nossas origens, desejo de compreender de onde
Em direção a uma sfntese entre o não-desejado e o desejado - O pro- viemos, como viemos - ao mesmo tempo que ligação intensa a uma pessoa.
pósito tão freqüentemente ouvido de que o amor é como urna espécie de fe- Na verdade o amor não se reduz ao conhecimento dos méritos, não é
bre que ataca, abate, desaparece sem que se possa fazer nada. Não se trata de modo algum proporcional ao que penso de seus méritos. Mas a cultura, a
de negar a parte do irracional e do involuntário no amor - e a parte do aca- cultura que aprecio vai me falar de uma "cabeça iluminada por uma pai-
so: um outro poderia bem estar ali, por ocasião do encontro decisivo e tan- xão". O amor pode tornar-se lucidez, necessidade de compreender, alegria
tos autores de Rousseau• a Proust, revelaram o que havia de ilusão em se de compreender. Neste sentido, a cultura é não consentir em que meu amor
persuadir que se ama aquela pessoa a partir de sua unicidade e que se éra seja simples instinto, sem relação com suas qualidades; desde que a amo,
"feito um para o outro". vou preocupar-m~ com suas qualidades, justificar meu amor pelo seu valor,
· Há um outro acaso da obra, no qual não se pensa naturalmente, uma o valor que decifro nela talvez que suscito nela, talvez que suscitamos um ao
espécie de acaso estatistico, e os sociólogos obrigam-nos a enfrentá-lo: fre- outro. Pode evidentemente haver estima sem amor; não gostaria que hou-
qüentemente, o parceiro que "escolhemos" pertence à mesma classe social vesse amor sem estima. O amante tem necessidade "de amar um ser cujas
ou pelo menos a uma classe bastante próxima da nossa; não nos unimos qualidades o elevam a seus próprios olhos" [lc]. Não quero ter de enrubes-
muito longe do que somos socialmente (13). E por mais que eu pense consti- cer de meu amor, ser humilhado pelo meu amor.
tuir uma exceção e que na minha escolha particular as leis gerais não entra- Um tipo de maior capaz de fazer eclodir seus méritos - e em mim
ram em jogo ... mesmo algo que me torne digno desses mesmos méritos: "Agora (que você
·Vou aderir à senteça de Bernard Shaw: "amar é superestimar a dife- me ama) tudo tem um sentido para mim nesta vida ... você despertou mil
rença que há entre esta mulher e as outras"? virtudes adormecidas em meu ser" [12b].
E no entanto o amor não é algo que se aceite, que se receba, que se
"encaixe", de que se constate simplesmente a presença ou a ausência. A
cultura pode ·me fazer sentir que o amor, trata-se também de carregá-lo nos Em direção a uma síntese de mim e do mundo - "Sob o nome de
braços: querer manter, querer salvaguardar nosso amor através das dificul- amor, pode-se compreender todas as paixões expansivas que levam o ho-
dades de se compreender, de se entender, apesar das dificuldades talvez mem fora dele próprio, criam-lhe um objetivo, objetos superiores à sua pró-
também afinal de contas porque se teve dificuldades para se compreender e pria vida" (14]. Acho bonito que·a mesma palavra "amar" aplica-se a uma
porque se tentou superá-las; aguentar através das diferenças, as divergên- · mesma mulher, a colegas, á urna arte e a uma causa; espero da cultura que
cias, os choques - que ao mesmo tempo não cessam de me decepcionar e de ela mostre como possível e mais feliz uma unidade do amor com o conjunto
me desagradar; de acordo, ensinar um e outro, ensinar-se um ao outro a da vida, uma unidade dos amores entre si: aqueles que querem fazer do
aproveitá-los e é também para isso que a duração tem um papel. Ratificar, amor o único setor de sua vida podem evitar o fracasso desse amor? De fa-
reforçar por minha vontade refletida, "cultivada", um primeiro momento to, o esforço da cultura que aprecio é inscrever o amor por uma mulher en-
em que o acaso, as ilusões mantiveram um determinado lugar, de todo mo- tre todas as atividades onde quero colocar minha vida de acordo com o que
do meu amor não é o que eu pensava que ia ser. a ultrapassa, uni-la com o que a ·fundamenta~ como coroamento, expansão
Não é independente do que saberemos fazer - e alegrias que sabere- dessas· atividades; a coragem em amor vai-se unir com as outras coragens.
mos tirar dai. "De tanto se concentrar dentro dele", diz Vicaire Savoyard evocando aque-
les que não chegam a amar.
1 "Tudo é apenas ilusão no amor, confesso-o... O belo não está no objeto que se ama, ele
"Viver um amor, é lançar-se através dele em direção a objetivos no-
é a obra de nossos erros. E que importa?" (Rousseau, /'Emile, Pléiade, p . 743).
vds ... um homem e uma mulher lançaram-se com um mesmo impulso, em
,direç.ã o a um mesmo futuro, na obra que construíram juntos" [15a e b].
151 O amor A alegria na escola 152

Espero que a cultura me faça sentir o amor como realizando-se e dando E Aragon realiza essa transposição poética do conhecer para um uni-
mais alegria quando se torna passagem para o mundo: comunidade de um verso de correspondências entre as coisas e as pessoas:
movimento em direção ao mundo; ainda mais espero da cultura que ela tor-
ne assim o amor. "Compreendo o sol no calor de sua mãos"d.
Como resistir à alegria de divagar de novo através de meus dois poetas
favoritos? Sentimo-nos então em intimidade com o que existe:
O amor para ligar-me melhor ao mundo, não na ilusão de colocá-lo de
lado: "Ouço vibrar sua voz em todos os ruídos do mundo" 4 •

O amor não é subterfúgio para se escapar, evadir-se, perder-se mas


"E graças e seus beijos que me ligavam ao mundo" 1 um passo decisivo para participar da plenitude:

A que responde: "Oh você que suprime o esquecimento, a esperança e a ignorância


Que suprime a ausência e que me coloca no mundo " 5•
"a hera de seus braços a esse mundo me liga"ª.
O amor incitando-me a ir em direção aos outros, não para fugir deles:
O amor como força para aceitar o mundo:
"Gostaria de associar nosso amor solitário
"Foi a partir de você que disse sim ao mundo" 2 • Aos lugares mais povoados da terra"6 •

Em seguida força para amar o mundo: Reencontraríamos assim

"Quando digo baixinho a belaza do mundo "Homens coroados pelo seu pensamento comum" 7 •
Falo de você"b.
Tenho necessidade dos outros para edificar meu amor:
Por esse amor o mundo torna-se mais presente:
"Viver
"Meu amor, vejo o mundo pelos teus olhos, é você que De delícia em fúria de fúria em claridade
me torna esse universo sensível"<. Construo-me inteiro através de todos os seres
Através de todos os tempos no solo e nas ruas" 8 •
O mundo, quando vou em direção a ele com amor, é como que ilumi-
nado por esse amor, e então ele se entrega, abre-se, revela-se. Ao mesmo O amor força de participação aos esforços de todos:
tempo é o amor que dá ao mundo seu brilho e é o brilho desse mundo, do
que vejo e faço nesse mundo que sustém meu amor: (Você) "graças a quem então tomei minha parte de homem no fardo que os
outros homens endossam"•.
"as barcas dos beijos exploram o uni~erso" 3 •
(d) t. 11, p. 179
4
1, 167
Eluard na Plêiade, 11, 338
(a) Aragon em Club Diderot, t. 9. p. 204 1, 197

ll, 423 II, 425


(b) t. 13, p. 107 li, 336
(e) t. 9, p. 195 8 1, 1013
li, 342 (e) t. 14, p. 111
153 O amor A alegria na escola 154

ou ainda: Um amor que me permita acreditar na felicidade, que me faça acredi-


tar na felicidade - e não somente na minha:
"Amá-la canta muito alto à noite
Para iluminar um outro mundo Por você vou da luz à luz
Aquele de minha própria vida: Do calor ao calor
Amá-la devolve-me a todos os homens" 9 • É por você que falo e você permanece no centro
De tudo como um sol consentindo na felicidade 11 •
Para o pior
Entre o "Um único ser lhe falta e tudo parece despovoado" de La-
"Você me abandona sempre naqueles que se separam martine e a paródia de Giraudoux "e tudo é povoado de novo", porque tor-
É sempre nossb amor chorado em todos os olhos'''· namo-nos inocentemente disponíveis a todas as aventuras, ousaríamos pe-
dir que o "único ser" ao mesmo tempo permaneça o único amado e seja
E para melhor aquele que permita não amar (de amor) mas amar apesar disso todos os
outros?
"Não há amor que não seja nosso amor"'· Meus poetas dão-me alegria quando iniciam a música com aqueles que
se tornam deste modo cada vez mais meus semelhantes - e quando anun-
Unir-se não só com este ou aqueles indi\ríduos, mas com o desejo de ciam, saudam essa abertura como realização do amor. Um passo a mais - e
conjunto dos homens: cantaremos que meu amor se nega e portanto falta a alegria se ele dissocia-
se da luta pela felicidade comum; o amor "casando" esta mulher e a espe-
"A história e meu amor têm a mesma pegada"h. rança de um progresso absoluto.
A alegria propriamente poética, a alegria de ir rumo a uma vida co-
com o futuro de conjunto dos homens: mungante enfim realizada ...
"Meu amor tem só um nome, é a jovem esperança";.
Meu amor e o mundo contemporaneo - Na nossa civilização, ao mes-
A palavra de bondade poderia retomar um senti do: mo tempo o amor sexual é exclusivo, o que não é exigldo nem do amor fra-
terno nem do amor parental, provavelmente porque procuramos, sentimos
"Seremos bons com os outros como o somos conosco mesmo aí uma intensidade de empenho que só parece possível, pelo menos num da-
quando gostamos de ser amados" 1º. do momento, com uma única pessoa; e ao mesmo tempo a alegria cultural
mais ampla que nos seja prometida, e que esta amada constitui um acesso
· ou ainda: em direção aos outros e seus esforços de vida: "Vivendo para ele como ele
para ela e juntos para outra coisa que eles próprios" [15c].
"Seu sonho do homem e da mulher juntos ... de onde nasce O exemplo mais simples é desde que amo alguém, fico decepcionado
a bondade do mundo e a belaza do dia"i. se os outros não me dão razão por amá-lo.

"Não há amor feliz".

Aragon explica que escreveu este verso em 1943, num dos momentos
II, 328 mais sombrios da Ocupação, fazendo deste modo compreender que não
;
1 (f) e (g) t. 11, p. 178 pode haver felicidade no interior da infelicidade comumk.
(h) t. 11, p. 78
(i) t. 9, p. 283
.1 to II, 365 11 11, 3S
:1 Ü) t. 14, p. 336 (k) Entretiens avec Francis Crémieux
1
1
1
155 ·.a amor A alegr:ia na escola 156

Em 1956 ele canta: Multiplicidade - É também porque tenho necessidade da cultura para
tomar consciência de que o amor, a alegria de amar não é vivida do mesmo
"Aprendi tudo de você como se bebe nas fontes modo em todas as classes sociais, em todas as posições sociais.
A felicidade existe e creio nela" 1 • Sobre a sociedade de hoje e a título de simples exemplos, contentar-
me-ei em transcrever as duas observações seguintes:
Não que se tenha ultrapassado o conjunto dos problemas e das i:nisé- Os operários são menos numerosos que as outras categorias sociais em
rias, mas no corpo a corpo com a infelicidade tinha apesar disso ocorrido a apreciar a liberdade sexual como "uma boa coisa"; evidentemente pode-
luta pela felicidade. ., mos taxá-los de tradicionalistas, mas mais profundamente entra em jogo o
Com o terrivel circulo vicioso da felicidade: para ser capaz de amar, Jª temor de ver o lar abandonado - e o abandono do lar é muito mais difícil
é preciso que eu não seja infeliz, que não tenha renunciado à felicidade. de suportar numa existência já precária.
Mas como ser feliz antes de amar e ser amado, sem amar e ser amado? En- Outro domínio : as vendedoras de grandes lojas recusaram-se a traba-
quanto se vive mal, mal se consegue amar e ser amado; mas é amar e ser lhar no domingo e inscreveram em cartazes: "o domingo para nossos mari-
amado que ajudará o individuo a viver melhor. dos, não para nossos patrões" [17]. Cria-se assim uma unidade entre as rei-
Talvez ele volte às obras de cultura para fazer viver este dilema com vindicações sociais e o desejo de promover a vida familiar:.
uma tal intensid'a de que possa ser quebrado: se elas pudessem nos fazer sen-
tir neste momento, de qual lado há mais esperança de progresso. · Amor e valorização da mulher - É pensando nos problemas da igual-
' A cultura tem de me lembrar incessantemente que o amor está direta- dade do homem e da mulher que se pode diretamente apreender o amor
mente ligado às transformações do mundo - e que portanto não posso es- · como relação entre dois indivíduos e como participação nos movimentos
perar vivê-lo plenamente .se o separo deste mundo em transformação. É o globais que sublevam toda a sociedade; quando quero compreender porque
próprio Freud que nos previne sobre isso: nem a associação dos interesses, tenho dificuldade em entender-me com minha mulher e quero tentar melho-
nem as vantagens práticas da colaboração são capazes de destruir o fecha-
mento dos indivíduos neles próprios; é somente o amor que "determina a
rar a situação, vou referir-me ao mesmo tempo às dificuldades do diálogo e
à grande luta que levam as mulheres em direção a igualdade real com os ho-
passagem do egoísmo ao altruísmo"; e é assim que o amor vai tornar-se "o mens, inclusive na vida quotidiana e na vida profissional; o que inclui ore-
principal, senão o único fator de civilização" [16a], o qual permanece aliás conhecimento de uma identidade própria: não ser definida pelo homem a
sempre para ele sob as ameaças da barbárie interior e exterior. quem ela está unida, estar segura de não se tornar possessão dele. Vou es-
Dimensão política do amor: não será também porque o mundo social forçar-me também em ligar nossa história conjugal ao que se procura hoje
no seu conjunto parece escapar a nosso domínio que o amor nos parece tão na sensualidade, no corpo, no casal e no não-casal.
freqilentemente impossível de dominar? Na medida em que a família é dis- Há o problema social, geral da igualdade·do homem e da mulher; e há
posta para que nos fechemo.s nela., para que nos protejamos e que proteja- em cada amor, o problema da igualdade dos parceiros. Mas nos dois casos,
mos seu patrimônio, toma-se muito difícil prolongá-la felizmente. Mas a é uma conquista diflcil pois, é preciso reconhecê-lo, a solução imediata
família pode tomar outras medidas ... e milenar, é uma inferiorização, uma subordinação, uma apropriação da
Que pensemos em tudo o que se desenvolveu em tomo dos casamentos mulher.
de conveniência, dos casamentos por dinheiro, dos casamentos quase oficial O esforço cultural para me fazer sentir que esse desequilíbrio é mutila-
e abertamente arranjados por terceiros, em torno do dote - e pelo movi- dor e diminui, em cada um dos dois, a alegria de amar.
mento da sociedade isto se transformou a ponto de tantos romances dopas- Por que não retomar às palavras fundamentais de Marx, retomando
sado tornarem-se incompreensíveis para nossos alunos; em todos os casos, por.sua conta Charles Fourier? "É na relação da mulher com o homem, do
não podemos esperar que eles façam menos gente vibrar. Mas a luta está fraco com forte que aparece de modo mais evidente a vitória sobre a brutali-
bem longe de estar terminada contra os obstáculos sociais ao amor indi- dade", brutalidade que é evidentemente denunciada como inconciliável
vidual. com um amor feliz. "O grau da emancipação feminina é a medida do grau
da emancipação geral. Ninguém é mais profundamente punido que o ho-
mem pelo fato da mulher ser mantida na escravidão".
(1) t. 12, p. 457 E quando Marx diz: "A relação do homem com a mulher revela em

..
157 O amor A alegria na escola 158
que medida o comportamento natural tornou-se humano, em que medida a gens que cantam apenas a alegria - e finjo esquecer em Sthendhal o desfe-
existência mais individual é ao mesmo tempo aquela de um ser social" [18), cho do romance ou em Aragon o fracasso·, por exemplo, de Aurélien em vi-
ele nos ajuda a compreender que o humano, o propriamente humano é uma ver um amor tão ambicioso. "Daquilo que faria ·sua felicidade, ele exige
conquista da cultura sobre o natur·al - que faz com que, fisicamente, a mu- sempre mais ... ele se compraz naquilo que o consome ... o gosto do absoluto
lher tenha menos força~ pelo menos para caçar mamute. · não caminha sem a vertigem do absoluto". Quanto a Sartre .o u a Simone de
Não resisto ao prazer de transcrever esse texto de Rimbaud tão fre- Beauvoir, desde que se considere suas obras na sua totalidade, os fracassos
qüentemente citado onde ele prevê a igualdade da mulher como manifesta- eram colocados corno inelutáveis desde o início: o amor é desejo de conquis-
ção de originalidade: "Quando será quebrada a infinita servidão da tar a liberdade de outrem que, por definição, escapa a esta ação.
mulher ... a mulher encontrará o desconhecido, encontrará coisas estranhas, A cultura não consagrou o essencial de suas forças e atinge as suas reali-
insondáveis, repelentes, deliciosas" (19) , e o poeta espera um excesso de ale- zações mais belas ao evocar· a infelicidade começando pelos amores malsu-
gria no amor, uma vez que essas "coisas", bem longe de criar um obstácu- cedidos?
lo, até uma hierarquia no outro sentido "nós os pegaremos, compreendê- É verdade, tenho também necessidade da cultura para viver os mo-
los-emos' '. mentos de negatividade. A alegria de amor não está separada da dor de
A igualdade dos parceiros, é ter bastante força ponderada para opor- amor, da infelicidade do amor; a cultural inicialmente pa.r a' dissipar osso-
se ao movimento pdmeiro que corre o risco sempre de ser de absorção, de nhos de criança, de onipotência infantil, os sonhos juvenis de fusão; terei
fagocitose, catarse do desejo, portanto de meu desejo; chegar a amar o ou- que lutar contra minha própria agressividade, meus desejos de dominação
tro na sua originalidade, na sua diferença; ao mesmo tempo amar que ele - e esta luta contra mim mesmo pode ser dolorosa; a cultura deve lembrar-
desenvolva sua vida própria, distinta e concomitantemente construir uma se que parte de decepção, de oposição, de revolta e permanece em todo·
comunidade com ele. Movimentos complexos, contraditórios - e há bem amor - e portanto tambem de culpabilidade.
pouca possibilidade que sejam movimentos imediatos. Para ter uma possibilidade de esclarecer minhas ligações com outra
Finalmente a alegria dessa tripla unidade do amor com um ser, com o pessoa, é preciso inicialnlente que a cultura me ajude a tomar consciência de
mundo, com todos, é através de Pablo Neruda que o evocarei ainda uma sua ainbigüidade; para ter urna possibilidade de sair das ilusões da comuni-
vez: cação fácil, é preciso inicia_lmente que a cultura me coloque frente a uma in-
No verão de seu nome brilham os citrinos ... c.omunicabilidade inicial.
Todo o trigo, toco-o de novo em seus quadris ...
Tudo o que é abraço-o no seu beijo e a areia e o tempo Não render-se - Sei de tudo isso e quero tê-lo presente. Na realidade
e a. árvore da·chuva . será tão necessário repeti~lo? É justamente a partir dessa força da infelicida-
Tudo o que é vivo vejo-o na sua vida... de que colocarei meu problema de relação entre a alegria e a cultura. "So-
Sim amo esse pedaço de terra que você é 1 [20). mos devedores das mais belas mani(estações de nossa vida amorosa em réà-
Ingenuidade? - O risco que corro, percebo-o bem, até se não sou çãÓ contra o impulso hostil que sentimos em nosso foro intimo" [16b]. Ima-
mais capaz de evitá-lo: na minha vontade de colocar em primeiro plano ale- ginemos neste ponto de vista (e.só neste ponto de vista, espero) inscrevo-me
grias culturais, escolho, destaco da cultura conteúdos felizes, unicamente e inteiramente na "reação".
de parte a parte fe~zes amores idílicos - e deixo de lado o fracasso, o trági- Não procuro nos autores "bons conselhos" para ser bem-sucedido em
co, isto é a própria realidade. Será que não vou transformar o mundo da amor; mas a cultura é apesar disso uma chance aérescida de comunicação,
cultura em água de rosa&? de abertura; a alegria do amor, transposta para a vida graças e a partir da
Não só escolhi meus autores, mas também em cada um algumas passa- cultura, pode vencer melhor o fracasso do que o amor "bruto" ou antes ela
permite if muito mais longe em direção a esse próprio objetivo do que pres-
sentia o amor ''bruto". Finalmente, de Sylvie Vartan a Victor Hugo há ape-
1 Não ouso citar ainda uma vez Aragon: "Uma das caracterlsticas do amor moderno: que
nas um único amor. ·
o amor do homem e da mulher no casal encontre sua harmonia quando o homem e a mulher A cultura que aprecio é uma possibilidade de enriquecer, de afirmar o
elevam-se simultaneamente a uma mesma concepção do mundo, onde sua aventura amplia-se e amor ~té o ponto em que ele se insere no conjunto de minha vida, no con-
1 o amor ao tornár-se humano identifica-se" (Chroniques du Bel Canto, § J). junto das vidas - e que ele chegue a constituir as vidas como um conjunto.

1
.. 1
159 O amor A alegria na escola 160

Não se resignar ao medíocre, isto é tomar uma consciência mais lúcida (9) AZNA VOUR Minha vida abrasou-se com uma alegria insólita
das causas globais que tornam, no nosso mundo, o amor tão difícil - e não Como rosas A alegria simples de se compreender
Através dos gestos e das palavras ternas
desesperar com um progresso.
Nada mais me é hostil
Tudo me parece limpido
A felicidade veio para me servir de guia.
ANEXO
(IO)RENAUD Sonhava com uma amante que fosse só dele
Letras de músicas de amor Briga Bela ·como uma tatuagem, mesmo assim inteli-
gente,
(1) Jean-Luc LAHA YE Do nada Que ele poderia amar como um amigo.
Mulher que eu amo Você fez um homem de mim.
(11) Jacques BREL Assim alguns dias aparece
(2) Gérard LENORMAN Foi você que me ensinou a ler Na praça Uma chama para nossos olhos
Coraçilo na nuvem Aconteceu que eu sorri Na igreja em que eu ia
Foi você que me deu confiança em mim Chamavam·-no Bom Deus .
E agora sei dizer melhor O amoroso o chama amor
Eu amo você. O mendigo caridade
O sol o chama dia
(3) Michel POLNAREFF Quando você chora em meus braços E o bom homem bondade.
Eu amo você Tenho os olhos que choram por você.
E de um outro modo, mas que também une os valores aparentemente mais opostos:
(4) Karen CHERYL Sua vida é a minha
Os novos rom/Jnticos e é por isso que o amo. Bernard LAVILLIERS Sou o amor que ama
O amor que anda A pureza, a magia, a perversão.
(5) Guy BEART O que há de bom em você, é você
Você Ah eu poderia ainda dizer (12) Francis CABREL Eu não era nada
Que amo tanto seu corpo Morro de amor por ele Morro de amor por ele
É mentira, o que amo em você, é você. Devo apenas sentar-me
Não devo falar
(6) Gilbert BÉCAUD Quero correr os grandes caminhos Não devo querer nada
O amor morreu Descer à margem da rotina Devo apenas tentar
Quero comer todo meu pão branco. Pertencer-111e.

(7) Bernard LA VILLIERS Sou uma grande fera da Amazônia, (13) Michel POLNAREFF Eu o farei vir
Fera da Amazônia Procuro um amor infalível Amo você Onde não se pode morrer.
Uma corrente irresistlvel
É um grande desejo primitivo. (14) François BÉRANGER · A moça que eu amo, não é a mais bela
A moça que eu amo Também não é a mais feia
(8) Karen CHÉR YL Ele tem a emoção de nossa geração Somente mistério e pastilha para garganta
Os novos rom/Jnticos Correspondemo-nos por telefone É por ela que me sinto um homem
Nós, os novos românticos Quando a vejo vir em minha direção
Amo o amor que você me dá Sinto arrepios
Marginal Quando ela se afasta de mim
Sobre nossas motos heróiéas Fico abobalhado
Sinfonia mecânica .
161
O amor A alegria na escola 162

(15) Francis BÉRANOER Os dias são curtos, as noites são breves


Queimemos a vida pelos dois extremos (22) Gérard LENORMAM Nossos corações não terão nenhuma dificuldade
Temamos acordar mortos Voce acaba de fa- Em descobrir um jardim sem ódio
Sem ter gozado suficientemente .de tudo. zer vinte anos Gosta.ria de numa jangada de quatro tábuas
Levá-la
(16) HIOELIN Desligados, semi-nus, quase selvagens.
Não posso mais dizer amo você
Não me pergunte por que
(23) Claude NOUGARO O humano, eu o cuspia
Você e eu não somos mais os mesmos
Minha mulher Ela é a flor humana, e eu a amo.
O ~or vem e vai.
Eu sabia me odiar, ela atenua·o ódio
e eu a amo
A. SOUCHON Amo vócê muito mas não amo você Eu adulava a morte, seu ventre estende a vida
Lulu O que é que lhe agradou muito e muito pior e eu a amo
Pagou mais
(24) Jacques HIGELIN Hoje muitas pessoas não se disseram nada
(17) BRASSENS O tempo é um bárbaro Hoje Não viram nada e não ouviram nada
Os lilases Do gênero de Attila Hoje você me acordou com chá, carícias
Nos corações em que seu cavalo passa E beijos.
O amor não desabrocha
Faz o deserto sob seus passos. (25) AZNA VQUR Estava cercado de aborrecimento, de leis,
Como rosas de parede
(18) Charlélie COUTURE Escuta, vamos mudar de cama, mudar de amor De vazio
Como um avião sem asas Mudar de vida, mudar de dia. Eu que não sabia mais o que fazer com minha
vida
Léona.r d COHEN j
Chamei meu pai Eu que sem você era apenas uma forma imóvel
Eu disse: "Pai, muda meu nome 1 Quero colocar a seus pés cada um dos meus
Aquele que uso está todo coberto de medo 1 momentos.
De lama, de infâmia, de vergonha
Deixe-me recomeçar". (26) TÉLÉPHONE Estou todo como antes, só, só, só
Só Tudo, como no início, nuzinho, sozinho
(19) Edith P IAF Renegaria meus amigos Falo para não dizer nada, não digo nada para
Hino ao amor Renegaria minha pátria não falar
Se você me pedisse. Não digo nada para não berrar
Só, só entre todas essas pessoas
(20) Alain SOUCHON Muito longe, escondidos do mundo Estou só por dentro
O castelo Faremos nossos amores Estou na minha pele, ninguém p6de entrar
Você, apenas você e eu. nela.
(21) Léo FERRÉ Ondas de concreto e de tolices (27) Jacques HIGELIN Chame-me, chame-me
O~das de "drug-stores" e de "strip-tease" Sou talvez um duro misógino e cínico
Dentro em pouco não sobrará nada Mas que nunca teve tanta necessidade de você
Mas nesse dia, minha rola Descon:junto-me e bebo
Esconder-nos-emos como sabemos fazer Não me resta nada nem ninguém.
Nós dois.
A alegria na escola 164
163 O amor
(33) Alain SOUCHON A pequena Bill grita
(:lll) Johnny HALLIDA Y Desposei uma sombra Diz que está todo o tempo sozinha
Desposei uma sombra Uma muiher mistério Mas todo mundo vive separado
passageira e solitária Do mundo inteiro
De onde vem ela? É uma velha doença pegajosa
E quem é ela? Uma sagrada falta de amor 'que escava
Mas quem é ela? Nas nossas cidades, nos nossos campos
Isso pega.
i Pierre BACHELET Para mim, é certo, ela é de outro lugar
1•
!. Ela é de outro lugar Mas ela passa e não responde. (34) RENAUD Uma amante perdida
Massas 'São dez companheiros que voltam.
(29) BRASSENS Coração de alcachofra, você dá uma folha
para BRASSENS Barcos torneio-os muito
todo mundo. Inicialmente o
Mas único que aguentou
os companheiros Que nunca virou
Gérard LENORMAN As moças da praia Chamava-se inicialmente os companheiros.
Quando estão fartas
Vão para outras margens Gilbert BÉCAUD Felizmente há companheiros que sabem bem
E nos abandonam. Que colocando tudo em comum
Sentimo-nos bem.
(30) BRASSENS Ela não tinha cabeça, não tinha
Uma bela flor O espirito muito maior que um dedal Bernard LAVILLIERS Cantarei sempre para meus companheiros
Mas, por amor, não se pede Juke Box mais humildes
Às moças de terem inventado o pó de arroz. Aqueles qut: reconheço sem uma palavra sem
um gesto.
Guy BÉART (ele não se contenta com a presença efêmera de)
Flani-flanons moças sem história Maxime Le FORESTÍ.ER É uma casa azul encostada na colina.
Que não têm idéias San Francisco encostada na colina
azuis ou negras. Dá para ir a pé.
Não se bate à porta.
(31) BRASSENS Nunca tirei meu chapéu Os que vivem lá
Eu me fiz pequenino Diante de ninguém jogaram fora a chave
Agora rastejo e faço-me bonito Encontram-se juntos
Quando ela me telefona. Depois de anos de caminhada.

Gérard LENORMAN Venho em direção a você


Com um escravo, como um vencido
Venho em direção a você
Como um mendigo, as mãos estendidas J•
Eu o homem
o inconsciente, o presunçoso.

(32) Karen CHÉRYL Nenhum teorema


Os novos românticos E é por isso que se ama.
CAPÍTULO VI

O progresso

Como em meus dois exemplos precedentes, o racismo e o amor, quero


dizer que a cultura elaborada pode ser fonte de alegria; aqui tratar-se-á de
mostrar que a cultura elaborada dá alegria afirmando a confiança no pro-
gresso do mundo. Ao mesmo tempo, sempre como nos dois exemplos prece-
dentes, procuro a síntese continuidade - ruptura entre a cultura primeira e
a cultura elaborada.
Quando se trata do racismo, os elementos de continuidade entre a cul-
tura primeira, as experiências primeiras e a cultura anti-racista que quero
propor aparecem como certas: são todos os atrativos dos pequenos Duponts
para os pequenos Kaddours; será então necessário obter rupturas para ul-
trapassar as dificuldades em admitir a alteridade do outro.
Quando falo de amor, vejo muitos aspectos de continuidade: de um
extremo a outro, as provas mais comuns à poesia mais refin.ada, o desejo de
amar e de ser amado conserva uma identidade que não pode deixar de apa-
recer; gostaria também de chegar a rupturas profundas, antes de tudo talvez
no que diz respeito às relações do amor no mundo.
Ao abordar, ao afirmar o tema do progresso, vou ao encontro das
maiores dificuldades, pois o que proponho, o que propomos colocar-me em
ruptura com a maior parte da cultura elaborada, pelo menos contemporâ-
nea; independente do marzjsmo e de algumas correntes cristãs, parece-me
que bem poucos ousam hoje colocar o mundo atual como em via de pro-
gresso. E por um retomo estranho, mas finalmente tranqüilizador, encon-
tro a continuidade do lado das experiências primeiras de muitos jovens - e
é sobre elas que a cultura progressista se propõe a apoiar.
166 A alegria na escola O progresso 167

A confiança no progresso do mundo é, dir-se-ia quase por definição, a sultam disso: não somos nós que, por nós próprios, pudemos cair tão baixo ... Va-
base da cultura progressista, o denominador comum das pedagogias pro- mos afirmar que só pequenos grupos de homens, uma elite restrita, determinada raça
gressistas. A negação do progresso aparece-me como uma das razões essen- mantida pura e privilégiada serão capazes de se opor à multidão e ao movimento
ciais que fazem com que uma cultura e portanto uma escola não consigam atual das coisas. Mussolini queria ser um novo César, Hitler reclamava um retorno
âs origens primitivas da gerrnanidade.
constituir-se como alegria. A escola exige esforços rigorosos se é para ouvir
dizer que tudo vai de mal a pior, qual a necessidade de sair tão cedo da c~a Um escritor francês, ligado aos nazistas, escreveu: "Sou fascista porque medi
os progressos da decadência na Europa. Vi no fascismo o único meio de conter e de
gostosa? reduzir está decadência.'• (2)
Juventude e progresso - O jovem é um ser em progresso, vive o progresso, Por que esta extensão do desespero? - Por que hoje e desde o fim do século
sua vida é o progresso; o encontro do novo, o desejo do novo é seu próprio ser; XIX um tal desenvolvimento das ideologias de não-progresso, uma tal decadência da
ultrapassar-se ir mais longe, não se contentar com o que é, com o que se é; daí uma idéia de progresso? L. Febvre mostra que é a partir do momento em que se acentuam
tendência fundamental a ter confiança e esperança no progresso do mundo. as dificuldades de divisão do mundo, as rivalidades coloniais, o u de outro modo as
Mas ele vai se chocar com fatos dolorosos, angustiante:;, atrozes: guerras, pe- massas organizam-se e reclamam imperió5amente um nível de vida mais elevado que
rigos de exterminação atômica; desperdício por e para uma minoria que por causa o conjunto dos já bem instalados tem medo e exprime seu medo [3]. ·
disso vai até a fome; escândalos da exploração, das crises, do desemprego; industria- Não est~mos longe da análise dé'Oramsci: "a crise da idéia de progresso não é
lização selvagem na fase atual do capitalismo monopolista; múltiplos danos aos di- uma crise da própria idéia; mas uma crise dos portadores desta id!éia" [4]. Os porta-
reitos do homem; o simples desenrolar da vida quotidiana está frequentemente mui- dores, isto é a classe no poder, não acreditam mais na sua sociedade, no seu mundo,
to longe de responder âs esperanças; desde a cidade que oferece tão pouco espaço pa- nas possibilidades de desenvolvimento de seu mundo: as crises, a guerra mundial tes-
ra respirar, jogar, mover-se até o trabalho dos adultos â sua volta: uniformização, temunham que a sociedade t;stabelecida é incapaz de trazer uma solução aos proble-
padronização - e o sentimento geral de uma desumanidade nas relações. Podemos mas que seu próprio desenvolvimento suscitou as questões colocadas e não resolvi-
nos vangloriar de ter o domínio de nosso destino? das remetem a um além do sistema capitalista instituído.
A burguesia tomando consciência de que seu mundo não pode mais progredir
As ideologias não progressistas - Donde ideologias eternas: as ·oisas essen- vai negar que o mundo progride, que ele possa continuar a progredir; perdendo con-
ciais como eternas, imutáveis. Que progresso em relação à arte, à morte, ao· sofri- fiança em seu mundo, a burguesia não confia mais no mundo, quer solapar a con-
mento, à culpabilidade, ao amor? fiança no mundo; o comum no pensamento burguês é apresentar o mundo burguês
E principalmente ideologias de não progresso: os homens não progrediram como natural, conforme e só conforme âs leis da natureza - e então proclamar que
realmente, pois cada progresso aparente é pago por uma regressão pior: os temas do e este mundo vacila, é bem a prova que tudo está perdido. Terá que mostrar que são
aprendiz de feiticeiro: não dominamos nossas invenções, elas se voltam contra nós e os mais explorados que sustentam com mais força o tema do progresso e que as di-
muitas vezes são os remédios que provocam as doenças. ficuldades nas quais nos debatemos acentuam o nascimento de um mundo mais hu-
A partir do que se chega rápido âs profecias do Apocalipse: o mundo está lou- mano.
co, precipitamo-nos em um abismo, seria preciso, depois de séculos de erros, mudar
completamente de direção porque enganamo-nos completamente de caminho. Mas Músicas 1 - Considerando ainda uma vez que as músicas como testemunhos
há tll.o pouca chance de conseguir ... de uma cultura primeira, da cultura primeira de nossos alunos, tenho a impressão
• Queremos tecer em torno de nós uma atmosfera de absurdo, de incoerência; que a tentação inicial é oscilar entre o conservantismo e o anarquismo; conservantis-
um imenso "non-sens" dos acontecimentos, uma imensa confusão dos esforços. Im- mo, satisfação mais ou menos reformista; na verdade isso não vai t ão mal ... as coisas
potência, fatalismo, prostração. Se até agora o conjunto dos homens não obteve na- se arranjam, melhoram pouco a pouco ... vocês viram, há reformas... as descobertas
da de válido, se cada geração deve retomar tudo do zero e até bem abaixo de zero, tecnológicas nos ajudarão; em suma, satisfação mitigada a aceitar mais ou menos o
que esperança razoável pode se manter? mundo tal Q uai ele é, contanto que se abandone o espirito de recriminação e se consi-
As ideologias propriamente reacionárias vão sustentar que se deve, que se po- dere as coisas do lado certo, com bom humor: se cada um desse um pouco de si. ..
de retroceder no caminho e reencontrar o velho tempo bom. Mas também recusa anarquista: 'há beleza em seus gritos de recusa, de cólera;
"Lá atrás, no passado, estava a vantagem, a superioridade. O que chamamos não admitir. não se resignar, não adormecer (1) manter a reivindicação da felicidade,
orientação moderna dos negócios da França foi um mau negócio. Perdemos ai o fun-
damental em tudo." (l]
O reacionário vira-se para o fascismo e para o racismo quando esse negativo é Os números cm itálico entre parênteses remetem às letras de algumas músicas citada em
atribuído â invasão de elementos estrangeiros e à impureza das miscigenações que re- Anexo, infra, p.
168 A alegria na escola O progresso 169
prevista e inacessível (2), "poder-se-ia vi~ outra coisa além do ódio" (François Bé- Volta ao real - Ser conservador ou anarquista; às vezes conservador e anar-
ranger); denúncias comoventes do racismo: não há nada de natural e num mundo· de quista.
liberdade, não consegufria mais insinuar-se (3): a situação inaceitável do Terceiro Uma cultura pode me ajudar a ultrapassar os bloqueios do conservantismo e
Mundo: além do exotismo, como encontrar até uma palavra comum (4)? Em suma do anarquismo: esforçar-me para me tornar revolucionário. Ser revolucionário é ou-
não sofrer a desumanidade de um mundo sem amor (5). sar afirmar o progresso; isto é conseguir uma, conciliação entre o atroz do mundo e o
Mas, a negação anarquista transforma-se logo em desgosto total, sem saída, reconhecimento dos avanços; portanto não desesperar, portanto progredir em dire-
sem esperança (6), o desgosto e o vazio (7) e o medo (8). Zombaria de nossa vida: é a ção à satisfação cultural. ·
falsidade de um cenãrio, de um jogo blefado (9); a custa de querer se proteger os ho- É a afirmação mais dificil de manter e é também a que é mais indispensável pa-
mens escondem-se, isolam-se, fecham-se na incomunicabilidade (10). ra que se possa falar de satisfação cultural; nesta dupla qualidade é provavelmente
Dai o sonho de recomeçar do zero, misturado à raiva de quebrar tudo (11) já ela que pode justificar melhor a existência da escola.
que nesta existência, não se vê possibilidade de ela prolongar-se em algo de válido; o É necessãrio uma cultura capaz de denunciar os escândalos que maculam a to-
sonho que sabemos aliás é quimérico, instalar sua vida independente de, a salvo dos dos .nós, o mundo de hoje é escândalo intolerável, é o contrário do que queremos
acontecimentos que sacodem o mundo (12); vontade louca (em todos os sentidos da realizar - e perceber o que se cria, agora mesmo, de exaltante: "o mundo move-se e
palavra) de fazer o contrãrio, justamente o contrãrio do que se ocorre comumente, mov~-se ~o bom sentido" [5], ele não tomou o mau caminho, oferece os primeiros,
reconhecendo também que é impossível e que é somente uma fuga, uma tentativa de o_s ~nmeiros eleme~tos do que esperamos construir e pricipalmente as forças susce-
fuga (13). t~ve1s para construi-lo. Uma cultura capaz de ir além das aparências imediatas, do
a
Resta o indivíduo prender-se que? À ilusão de férias eternas, de um trabalho SIIDples pre.sente para apreender o movimento profundo do mundo, apreender o real
tão suave como as férias, em oposição total ao trabalho atual (14); a viagem, o outro como movimento, conjunto de forças ativas, o que está sendo ultrapassado.
lugar que seria senão solução, pelo menos mudança; pouco importa o objetivo da E portanto podemos nos apoiar em uma direção existente para levá-la mais
viagem, a viagem deve ser fün em si mesma (15), as partidas estando evidentemente l?~ge. Trata-se de c~mpreender que o progresso é ao mesmo tempo progresso da fe-
associadas às contínuas rupturas de amor (16). licidade (o escravo liberado é contudo mais feliz) e progresso das lutas, eficácia re-
A nostalgia da infância, mas em oposição triste ao crescimento (17) e às vezes, forçada na luta por uma felicidade maior (os escravos liberados e tornados servos
em palavras comoventes, o amor pelo filho contanto que ele seja pequeno ou melhor conduzem a combates menos parcelares contra o sistema feudal). Cada vez é uma
ainda não nascido (18) permanece ainda em pé. E em seguida haveria fraternidade etapa positiva, e nada é definitivamente adquirido, regulado. Trata-se de apreender
dos miseráveis (19). Naturalmente há também o amor: mas já falei muito sobre as a f~rça ·propriamente rev?lucionária desta contradição. É preciso uma revolução, is-
músicas d'e amor. to e, não uma grande noite mas uma série de lutas organizadas para tirar do mundo
Finalmente não há saída, uma vez que não há esperança de desempenhar um de hoje aquilo de que é realmente capaz - e num certo sentido já portador.
papel mesmo que seja pouco eficaz (20); a revolta é ao mesmo tempo indispensável e A cultura validamente pode incitar a adquirir confiapça nas possibilidades de
vã (21); nada muda, nada progride, nada progrediu realmente (22)., nem na situação nosso mundo, sentir o ardor disso, aderir a isso com ardor: vale a pena crescer, en-
dos jovens, nem nos países ex-<:olonizados, nem mesmo no que pensamos ser nosso frentar o futuro. Vocês vieram à escola para estar melhor no caso de participar deste
conforto quotidiano, que se paga P.ela desnaturação da natureza e por um trabalho progresso e P.ºrt,anto tirar dai mais alegria; a cultura é um dos meios, dos mais pode-
frenético se quisermos poder comprar e consumir. rosos, para situa-los melhor neste imenso movimento da história tão dificil de deci-
Desse fracasso para agir a fim de transformar um mundo que se contesta tão frar; é isto que justifica os esforços que lhes pedimos, as obrigações rigorosas do
violentamente e até para pensar a transformação, percebo três causas principais: fre- escolar.
qüentemente uma depreciação da tarefa a ser empreendida; seria simplesmente um
punhado de indivíduos que barrariam o caminho para a felicidade (24); ao mesmo Destacar consensos escolares sobre o progresso - A afirmação do
tempo nada é mais fácil e nada é mais impossível que colocá-los fora do estado de progresso sendo talvez a mais importante em relação à satisfação.cutural, a
prejudicar ou melhor de contorná-los (25); em seguida um cepticismo que nega qual- procura de um consenso progressista quanto ao progresso constitui, creio
quer aproximação da verdade e não dá ganho de causa a qualquer das teorias, até à eu, a pedra de angular para renovar a escola a partir de conteúdos reno-
qualquer das idéias como equivalentes e equivalentemente vãs (26); finalmente um vados.
desprezo do povo, um desprezo das massas (27) que chegam a confiar apenas na con- Poderemos criar um amplo acordo sobre os temas seguintes? ·
testação isolada (28) mas da qual não se pode ignorar a vaidade final. O filho não vai
prolongar os esforços do pai; quer se agarrar à utopia de mudar um mundo "perdi-
do" (29).
a) A história não é caos, sucessão de caprichos e de acasos "ruídos e
furor''; a história dos homens e a história dos acontecimentos sã~ produto-
ras de sentido.
170 A alegria na escola O progresso 171

O que equivale dizer que a história possui uma unidade, uma coerên- do, há coisas que o caminho da história tornou definitivamente caducas, de-
cia, uma continuidade; ela forma um processo total: as divers as ordens de finitivamente ultrapassadas: a escravidão, a desigualdade hereditária como
acontecimentos participam de um movimento de conjunto, eles não se dis- sendo o essencial do homem, das ordens sociais. Houv~ progressos e eles
persam numa sucessão simplesmente justaposta. Desde então há uma inteli- constituem pontos de apoio para nossa ação presente.
gibilidade possível da transformação histórica e um domlnio possível dos Hoje, o válido emerge da escala mundial; o mundo contemporâneo é
homens.sobre sua transformação histórica. O mundo é tal que ele oferece capaz de progressos; milhões de ex-colonizados têm acesso a uma dignidade
abordagens, pontos de apoio tanto â nossa ação como ao nosso pensamento'. nova.
b) Há algo de novo sob o sol; tudo não se resume na repetição e estag- d) O progresso foi arrancado â força pela luta organizada dos explo-
nação; o novo existe e não só neste setor isolado, por exemplo o das técni- rado8, os que sofriam diretamente da infelicidade, na medida em que eles se
cas. É o conjunto da história que participa da novidade. A cultura histórica tornaram suficientemente fortes para pesar sobre as estruturas estabeleci-
abre-me para a alegria na medida em que me tira da apatia, da tristeza aba- das; é provavelmente uma das razões pelas quais ele se realiza no atroz (o
tida da apatia - e faz-me descobrir a originalidade do passado, dos passa- Terror) e deixa subsistir o atroz. O que me c·a usa mais dificuldade no tema
dos, quanto eles foram diferentes do hoje; o mundo mudou, ele vai conti- do.progresso é pensar que todos esses cadáveres de guerra, de fome, de re-
nuar a mudar. Acolher o novo, estar disponível para o novo, ter força para pressão, todo este desumano, este injustificável tem contudo um sentido,
abandonar o conforto intelectual de seus hábitos. justifica-se como etapas em direção a ... Admiro Dostoievski recusando-se a
Uma cultura aprofundada para apreender a profundidade desta mu- admitir que o sofrimento dos indivíduos, das crianças, entra como parte de
dança e para que atinja o que alguns queriam chamar de "a natureza huma- um grande total em direção ao progresso, mas trata-se então de colocar sua
na''. A eliminação da escravidão marca um grau absoluto e irrevogável nas esperança na intercessão divina, que aliás perpetuará os mesmos sofri-
relações dos homens entre si - e ao mesmo tempo naquilo que cada homem mentos.
é para ele próprio. e) Nunca, nenhum progresso é automático; o avanço das c.i ências e
Podemos preparar um futuro, participar de um futuro que será inova- das técnicas é provavelmente o setor mais irrefutável da inovação; mas o
ção real e não somente retomada mais ou menos mascarada do passado; maquinismo somente alivia a pena dos homens se for dirigido politicamen-
que será solução nova á situação nova, infelicidades e dificuldades inéditas, te, isto é, pelos próprios homens; senão ele pode também suscitar o desem-
fontes insuspeitas. Na cultura histórica pressentimos nossos filhos renovan- prego, as crises.
do o mundo de um modo que não podemos nem prever - em que o passa- O desenvolvimento das forças de produção só vai ao progresso huma-
do, isto é nosso presente, será ao mesmo tempo ultrapassado e conservado. no se as formas sociais o impedirem de servir ao desperdício de alguns, no
"Fazer algo de novo é continuar o passado, desenvolvê-lo, transtorná- mêio da penúria, da fome das multidões. Vamos ao mesmo tempo sustentar
lo" (6). que o progresso não é um sonho, é levado pelas próprias estruturas do mun-
c) Não há somente mudança, há progresso, passagem para uma me- do - e que ele não tem nada de um movimento regular e contínuo ao qual
lhora; uma subida, a transformação é orientada para um "mais" . No passa- bastaria se entregar [7].
Não é um sonho: "apesar de todos os acasos aparentes, todos os re-
trocessos momentâneos, um desenvolvimento progressivo acaba surgindo"
[10). Os "desvios", os "subterfúgios", as " discordâncias" podem ser atro-
"Ele (o homem) sabe morrer para que se acabe zes, ele não impede que o nazismo tenha sido vencido, ele não se instalou no
Seu sonho por outras mãos ...
O homem exceto algo que respira mundo; fez milhões de vítimas diretas e milhões de combatentes tiveram
Não inventou para si o futuro" que se sacrificar para vencer: o mundo não se tornou nazista pois enfim a
(Aragon, L e fou d ·'Elsa, Zadjal de l'avenir) guerra, a exaltação da guerra, a guerra de uma "raça" para provar e estabe-
"Que oásis de braços acolher-me-á amanhã? lecer se a supremacia sobre os outros não podiam resolver os problemas de
Você conhece esta alegria de viver coisas novas?" nossa época - e a caminhada para a democracia foi retomada depois do
(Apollinaire, Calligrammes, La Victoire) que constituiu apenas um episódio monstruoso. Quando Marx diz: "Aso-
172 A alegria na escola O progresso 173

ciedade atual tende irresistivelmente para uma forma de vida mais elevada os outros e as estruturas sociais que me arrebatam, mas também transpor-
[Sa], a contradição entre os dois termos "irresistivelmente" que evoca uma tc1111-me.
força certa e "tender para" onde aparece o esforço hesitante coloca o pro-
blema e resguarda-se bem de dar uma resposta simples. Pode haver ai "gi- Equfvocos da psicanálise - Aquilo que Freud, segundo minha opi-
gantescos saltos para trás" [9], a luta das classes ao invés de levar a uma nião, viu mais lucidamente no problema do progresso, é a força que nos in-
transformação revolucionária pode se perder momentaneamente na "ruína cita a superar tudo o que já obtivemos: "o estimulo que impede de nos con-
comum das classes em luta" [Sb]. Se as massas não se organizam, não lu- tentarmos com uma situação dada qualquer que ela seja e que nos impede
tam, todas as coisas podem afundar. sem descanso para frente, "sempre para frente" (l la].
Não há nenhuma fatalidade de progresso, não é de forma alguma um Esta força é marcada por uma ambigüidade conflitante: "a oposição
movimento fixado de antemão em direção a um objetivo pré-determinado; entre a antiga geração e a nova ... O esforço que o filho faz para fugir da au-
no entanto "o movimento do mundo é produtor de um sentido" e este sen- toridade dos pais" [l lb] e ·é porque não só está sujeito a insaciabilidade,
tido que podemos decifrar hoje se formos mais adiante na leitura dos acon- mas parece que é sempre a mesma, a imutável insaciabilidade. "O instinto
tecimentos, é uma caminhada para uma coexistência menos bárbara entre reprimido nunca deixa de se dirigir para sua completa satisfação; (mas há
os homens. sempre) uma diferença entre a satisfação obtida e a satisfação procurada"
Ao mesmo tempo o progresso está fundamentado nas realidades obje- [lla].
tivas e conhecíveis que testemunham avanços do passado, potencialidades O drama é que os esforços dispendidos no curso da história não po-
presentes, razões para esperar - e ele deve ser extraido pela nossa ativida- dem diminuir em nada este descontentamento. Ao contrário, eles correm o
de, pelas nossas lutas. A compreensão tem necessidade de ser sustentada, risco de acrescentar "um perigo constante de neurose".
confirmada por uma ação, ação que se fundamenta na própria compreen-
são: compreender, constatar, participar e alimentar a vontade de promover E se os amanhãs começassem realmente a cantar - Caçoaram muito
um progresso. E é porque é tão difícil de afirmar o progresso, entre todas as dos "amanhãs que cantam". É sempre para amanhã - e nós não veremos
dores e os desesperos do mundo, contra muitas aparências, muitos aconteci- então a realização. Jaures soube magnificamente alterar para uma presença
mentos - dizer a esperança, ter a coragem de uma esperança ponderada - viva do futuro o que é muitas vezes apresentado como resignação imposta:
que é necessário uma cultura, escolas e professores. "felicitar-se porque todas as possibilidades humanas não se manifestam nos
limites estreitos de nossas vidas" (Discours à la jeunesse).

E assim mesmo este progresso existe - Três obstáculos, particular- Progresso da ciência - Quero dizer uma palavra do progresso do co-
mente difíceis de ultrapassar: inicialmente que o otimismo, a afirmação da nhecimento - aqui ainda, visto minhas ignorâncias pessoais, eu seria obri-
felicidade não sejam monopolizados pela cultura de lazer, por um certo tipo gado a refugiar-me nas citações e nas referências.
fácil de literatura; de filmes, de músicas e então o grandioso cultural con- Um dos grandes argumentos, um dos grandes refúgios daqueles que
fundir-se-ia com o desesperador; em seguida superar a idéia comum de que negam o progresso nas ciências, é declarar que as teorias científicas, suce-
o progresso é o trabalho de grandes sábios, de alguns grandes dirigentes dendo-se umas as outras, destróem-se umas as outras.
politicos. Na medida em que não se trata de inverter um movimento de de-
cadência do qual só um grupo restrito teria sido preservado, mas de partici-
par, ampliando-se, de um movimento que já existe, todos estão interessados Ainda uma vez cedo à tentação das citações.
nisso, todos têm seu lúgar a manter. A eliminação das epidemias, é ao mes- Héraclite - "Se não se espera, não se enconttarâ o inesperado, que ·é impenetrável é
mo tempo a descoberta de certos médicos ou biólogos - e os esforços da inacessivel".
· N. Hikemet. - Po~mes: Com me Keren
multidão para melhorar as condições de higiene e de vida. Enfim (e é de lon-
ge o mais penoso) ultrapassar um certo tipo de oposição entre o individuo e Se não queimo
Se você não queima
a sociedade, entre o progresso individual e o progresso social: a ilusão sem- Se não queimamos
pre renascente de que meus desejos pessoais de felicidade, de progresso indi- Como as trevas
vidual têm mais chance de se satisfizerem se eu conseguir abstrair de todos Tornar-se-ão luz?

\
..1
174 O progresso 175
A alegria na escola

Na verdade há muito progresso porque o novo não suscita o desmoro- ANEXO


namento do antigo, mas bem ao contrário sua extensão, seu desenvolvimen-
to, sua generalização - e por isso mesmo às vezes sua simplificação: ''a me- Letras de músiças de protesto
cânica clássica mantém-se perfeitamente verdadeira para todos os fenôme-
(1) RENAUD Se vim cantar esta noite
nos em que a velocidade da luz pode ser considerada como infinitamente É porque não quero que você durma
·A rejlexilo
grande e o " quantum" de ação como infinitamente pequeno". e que seus sonhos sejam dourados
E o criador da física quântica pode concluir: "a antiga concepção da enquanto meu pais está subjugado.
realidade subsiste então, mas ela só forma um capítulo particular num con-
junto mais amplo e mais homogêneo ... as mudanças que nosso conheci- France GALL Resista!, prove que você existe
mento sofre não obedecem então movimentos desordenados, mas consti- Resista Recuse este mundo egoísta
tuem tantos progressos e tantos aperfeiçoamentos" [12). Resista! Siga seu coração que insiste.
Fr. Halbwachs descreve a evolução das ciências como a aparição de Este mundo não é o seu.
teorias cada vez mais poderosas, as quais englobam um número cada vez
maior de situações e dominios: o modelo novo justifica um conjunto mais (2) Julien CLERC Os homens colocam barreiras
Peixes mortos Sempre entre eles e a felicidade.
amplo de fatos, mas o modelo precedente não se torria falso, nem prescrito ;
ele justifica-se e representa um papel como caso particular, numa região es-
pecífica ou como primeira aproximação até um certo grau de precisão, nu- (3) RENAUD (Um jovem mendigo, argelino, foi morto pelos
Os carniceiros tiras; as pessoas em torno do corpo discutem)
ma certa zona de validade, da qual o autor dá um exemplo bastante claro
"E se eles pegassem sua mãe como refém, ou
para o profano: o antigo modelo dos gases como continuas fornece explica-
seu irmão?,"
ção para uma grande quantidade de fenômenos na vida quotidiana e em re- diz um pai de suspensório a um jovem de blu-
lação aos motores; mas é preciso recorrer ao novo modelo (o gás, sistema são de couro;
estático de corpúsculos em movimentos desordenados) para apreender o "e se fosse seu filho que estivesse deitado aí
movimento browniano [13). o nariz na miséria?", responde o jovem para
Kaourganoff [14) evoca finalmente "uma espécie de reincarnação per- concluir.
man~nte do passado no presente": é sempre a lei de Ohm que é válida para
os fenômenos comuns, até se ela não se aplica aos meios que se encontra em
astrofísica; é ainda a lei de Newton que serve para calcular as trajetórias dos
foguetes cósmicos pois· as leis fornecidas pela relatividade geral são inutil-
mente aprimoradas para a técnica de um vôo espacial.
Assim parece ao mesmo tempo, que· cada conhecimento científico é capitalismo como exploraçlo, desperdlcio, escândalo - e simultaneamente avançada em ú.ire-
modificável, destinado a ser substituído; a realidade é inesgotável e nossas ção à organização das massas, o acréscimo de seu poder e de sua tomada de consciência. E
idéias qunca o atingem de modo definitivo; mas também a sucessão dos co- principalmente a terceira: os palscs "cm via de desenvolvimento". Ridículo falar de progresso
nheçimentos é um acréscimo de nossos conhecimentos, uma visão mais quando esses milhões de homens têm fome; ridlculo falar das satisfações da cultura enquanto,
completa, mais precisa - nada que se assemelhe a castelos de cartas que inicialmente, ela~ o que nos faz penetrar no interior de seu sofrimento. A cultura primeira tem
o grande mérito de nos tornar scnsivcis a uma tal situação; ela nos faz experimentá-la como in-
desmoronariam uns após os outros1 • tolerável. Mas será que não corre o risco de nos precipitar no desespero fazendo-nos aparecer a
conjuntura ~ob a marca da fatalidade? A terra, suas terras não poderiam alimentar todos ·os
habitantes. Temos necessidade da cultura elaborada, de um lado evidentemente sobre o plano
t~nico, para que sejam escolhidos, concebidos e realizados os transtornos necessários à valori-
Para não estender muito este livro, tive que renunciar à três análises já redigidas, relati· zação dos palses. Por outro lado, para proclamar que, apesar de tudo, esses povos estão ultra-
vas ao progresso. Uma delas lembrava uma das fases decisivas do progresso da humanldade, a passando um tipo de subordinação cm que os "indlgenas" eram considerados apenas peões so-
supressão da escravidão antiga, tornada possivel e necessária pelo progresso das forças de pro- bre o tabuleiro de xadrez das grandes potências: eles se põem a reivindicar sua vida, seu nivel
f. de vida, seu estilo de vida; através de mil procedimentos, lançam-se a apoderar-se.de sua exis-
dução - mas ao mesmo tempo, ela só se realiza na medida cm que os homens conseguem uma
perturbação das relações sociais de produção, relações sociais no seu conjunto. A segunda: o tência,
176 A alegria na escola O progresso 177

Bob DYLAN Pelo ódio ele foi perseguido Bernard LA VILLIERS Estou podre até a medula ·
OJ(ford Town Somente porque era negro Juke box quem quer me vender um ideal?
Teria feito melhor se tivesse ficado em seu
país. RENAUD Ele irá para brigar
Briga Talvez seja bobo, mas tudo é bobo.
Bob DYLAN Empregada de cor
A morte solitária ela esvaziava o lixo e tirava os pratos (7) RENAUD Não há nada que a ligue
de Hattie Carrol Aproximava-se das mesas, mas não se sentava. Mimi o aborrecimento De qualquer modo ela não sabe fazer nada
Pior ainda, mesmo se ela soubesse
François BÉRANGER Vou pintar meu corpo de preto não gosta dos operários
E costurar diretamente na pele não gosta dos patrões
a ponto de sangrar a estrela amarela. não se interessa por nada
Não gosta de nada, nem dos companheiros
Mike BRANT A diferença de cor diz que está cansada
Pássaro negro é pássaro não existe de carregar sua carcaça
branco Pássaro negro e pássaro branco neste pobre mundo cinzento
acima das fronteiras nesta pobre vida sem vida.
quando eles cantam ao mesmo tempo
é para a terra inteira. (8) François CABREL Quanto mais vai, mais vivo, mais tenho medo
Pássaro negro e pássaro branco Última canção Quanto mais treme em todo lugar
São feitos para se amar. Tenho medo do vazio no desvio do caminho.

Grupo "IMAGO" Tente ganhar o amor das pessoas (9) Guy BÉART Percorri o mundo de hoje
Abrir caminho Não caçoe se elas são diferentes. E vi tudo, luxos, misérias
Pequenos grandes e grandes pequeninos
(4) François BÉRANGER A música dos Indianos ou dos Mexicanos Num cenário montado, por falsários.
Só nos diz miséria, secura da terra
poder dos militares CAPDEVIELLE Você me pergunta para que serve isso
Povos afastados, cidades abandonadas, fave- Quando você está Todas as regras um pouco tru~adas
las super povoadas no deserto De jogo que queremos fazer você jogar
Cheias de crianças subnutridas. com os olhos vendados.

(5) Alain SOUCHON É'uma velha doença pegajosa (IO)TRUST Você batalha toda a vida para pagar seu túmulo
A pequena Bill Uma sagrada falta de amor que se propaga Anti-social Você encobre o rosto enquanto lê o jornal
Nas nossas cidades nos nossos campos. Você anda como um robô nos corredores do
Isso se propaga. metrõ
Você gostaria de dialogar -
Anne SYL VESTRE Guardo no peito um grande medo Impossível avançar sem seu colete a prova de
Coincidências que um dia nos encontremos sem flores balas.
sem crianças, sem esperança.
(11) BÉRANOER O que é que se espera para tudo parar
(6) Alain SOUCHON Era o desgosto Manifesto Tudo quebrar e recomeçar?
O desgosto Desgosto do que nilo sei mas o desgosto
Já criança, é incrível como tudo me dava des-
gosto. r·
178 A alegria na escola O progresso 179

(12) Graene ALLWRIGHT Eu lhe escrevo: Do país do mel e do leite Gérard LENORMAN A partir de amanhã retomarei o cauúnho
Boa sorte Onde cada um faz o que llie O caminho Sob o sol e no vento
agrada Só quero como leito a relva das florestas
Descobre-se os jogos inéditos Espero todo dia conhecer outras pessoas.
E reinventa-se a vida
Avança-se em direção à luz François BÉRANGER Ela viaja pelo mundo todo
E nada mais nos puxa para Ela viaja Tudo é melhor noutro lugar
trás. Tudo é possivel noutro lugar
Em outra parte é sempre novo
(13) Grupo "IMAGO" Eles se encontiararn assim na natureza Entre meus companheiros dos extremo do
O ônibus E produziram sonhos ao invés de hidrocarbu- mundo
retos. Em casa de meus amantes de uma só manhã.
O futuro era terno o presente menos duro -
Os destruidores de sonhos logo chegaram Grupo " IMAGO" Abre o caminho
Sob seus capacetes redondos, por cachorros Abre o caminho Em outro lugar é segurárnente melhor ·
acompanhados. O exotismo tem um gosto extravagante.
Eles não compreendiam
que se pudesse passear quando se deve tra- (16) Bob DYLAN Sou atraido pela baia do Méxfaco
balhar. Farewell Ou talvez pela costa da Califórnia
Assim é o adeus, meu verdadeiro amor.
(14) RENAUD Gostaria de viver só em férias.
Tenho a vida que me /a~ (17) Maxime LE Se morro de amores mortos
arder os olhos FORESTIER Não venha chorar à minha porta
O morrer da Não pense que é por você.
RENAUD Ele sonhava com um trabalho onde não fosse infância É que terei visto a imagem
Briga preciso controlar a presença De uma criança que diz que minha idade
Onde vocé poderia ir quando tivesse vontade A idade adulta começa
Que você fizesse por prazer, não para ganhar o E morre a infância.
pão de cada dia.
(18) Lény ESCUDERO Você me disse: "ela vai nascer"
Jacques HIOELIN O trabalho me fere A metade de sua vem meu amor, quero que você esteja lá
Rebolar vida Você será o primeiro a conhecê-la
Por uns trocados o primeiro que ela verá
Reles empregados, subchefes, burro de carga Você será o,primeiro que a tocará
abaixo de tudo quando a tomar nos braços,
Muito pouco para meu gosto da embriaguez. que sua boca seja também minha boca
quando enfim você a beijar;
(15) Bernad LA VILLIERS Nos vestiários sujos - S minutos roubados Dou-lhe a metade de minha alm a·
Os velhotes Da fumaça do fogo do ruido do desespero Tome, meu amor, ela é sua
Eles sonham com o coral, com o amor, com a Você permanece homem, torno-a mulher
areia quente dando-lhe esse momento.

Refrão Ah meu amor leve-me


Para países tristes, para países fáceis
Para países dóceis.
180 A alegria na escola O progresso 181
(19) HIGELIN Se ás vezes sua alma desespera (23) Graene ALLWRIGHT Aqueles que têm geladeiras e·s tão mais avan-
Hino aos Quando, desencorajado, os homens humilha- Perguntas çados
miseráveis ram-no Do que aqueles que fazem sua feira apenas pa-
Você que foi fiel consigo próprio ra um dia?
E que nem o ódio nem o medo tocou Todos aqueles que têm eletricidade estão me-
Se você se sente rejeitado pelos seus irmãos lhor iluminados
LaJ\Ça uma prece a todo o universo Do que aqueles que se deitam com o sol
chame-me ... quem quer que você seja. E que o vêem nascer?

(20) Bernard LA VILLIERS Que quer você que eu seja? (24) François BÉRANGER (Somos) bem manipulados, bem condiciona-
Tráfico Nessa sociedade Manifesto dos
Um ·anjo ou uma cobra por um bando de tubarões.
Um matador ou um tolo.
Francis CABREL Tenho medo de ter dado o poder a loucos.
Bernard LAVILLIERS Não há saída possível Última cançllo
A zona E mergulhamos na neblina
Nossa música nos assemelha. (25) Graene ALL WRIGHT Da corrente arranque seus dedos
Boa sorte Siga o caminho e encontre-me.
(21) Henri TACHAN Ela é sem disciplina, ela não tem etiqueta
Minha revolta Nenhum partido colocou suas marcas em sua Grupo "IMAGO" Empregaram-se num grande campo
cabeça O ônibus Para viver um pouco melhor
Vooê que espera a Paz, a Justiça, o Amor Era preciso realmente pouco
Você quer a Glória, as honras, a "sabedori.a" Para que eles fossem felizes.
espreitam,
Você que o tempo roe um pouco mais cada dia (26) CAPDEVIELLE (Ele quer se opor aos)
Guarda um grilo de loucura, guarda um boca- Quando você está fantasmas do sindicato dos mercadores da cer-
dinho de juventude no deserto teza.
De revolta, de REVOLTA.
Jacques HIGELIN Fora de você mesmo, que conhece
(22) F. BÉRANGER Nada mudou desde a Argélia O que é bom ou mau
Manifesto · S6 que agora é permitido Fora de você mesmo que conhece
Falar disso e fazer dinheiro com A parte do verdadeiro ou falso
Milhões de cadáveres Faça aquilo que o agrada.
Nada mudou para o jovem de 13 anos
Com seus pequenos seios e seu rosto de criança Daniel BALA VOINE (quem pode, quem ousa dizer)
Que dá a luz nas latrinas de sua escola. A vida nilo me de que lado estão os bons e os maus
ensina nada Gostaria imensamente de me ligar, seguir um
RENAUD Ela mora em algum lugar num subúrbio caminho
Subúrbio comunista Mas não posso, não sei
comunista Mas vive em lugar nenhum, nunca há nada que E fico plantado ali.
se mexa.
O. BRASSENS E como todas são semelhantes entre si ...
Morrer por idéias De suas verdades, de seus ditos co·ntrários
Os dois tios Todos pouco ligam para a unanimidade.
182 A alegria na escola

Uny ESCUDERO Quem ganhou, quem perdeu


Viver para idéias Ninguém sabe, ninguém soube
Quem ainda se lembra
Precisaria perguntar aos mortos.

(27) RENAUD Eles fazem a festa no mês de julho


Hexágono Em lembrança de uma revolução
Que nunca acabou
Com a miséria e a exploração.

As férias Na Espanha, na Grécia ou na França


Eles vão poluir todas as praias
e, s6 com sua presença,
vão estragar todas as paisagens.

(27) François BÉRANGER (Entre os candidatos às eleições)


Manobras Os únicos que são realmente simpáticos
pollticas Que são um pouco você e eu
São aqueles que terão afinal de contas 2 ou 3
Por cento dos votos.
TERCEIRA PARTE
(28) BRASSENS Não tenho necessidade de ninguém para ser
· O plural um
O plural não vale nada para o homem e logo
que ENFIM A ESCOLA
Somos mais de quatro, somos um bando de
tolos
Bando a parte, irra, é minha regra e não recuo.

RENAUD Não será amanhã que me verão andar


Onde/oi que com cretinos que vão às umas,
pus minha pistola? escolher aquele que os fará estourar
Eu, naqueles dias ficarei na minha pocilga
Não quero saber nada da luta da miséria
todos os sistemas são asquerosos.

Guy BÉART Gostaria mui to de encontrar desta vez


O grupo Alguns amigos que são como eu
Grandes solitários imunes a grupos
Gostaria desses companheiros perdidos
Em defesa do individuo
Veja eis o grande público dos sem-grupos.
Introdução

Existe portanto uma satisfação da cultura elaborada que brota do que


eu chamaria conteúdos culturais progressistas ou interpretados de maneira
progressista.
A cultura pode não ser nem fuga nem confissão de impotênda. Suas
duas características fundamentais são que ela abre perspectivas mais recon-
fortantes que a cultura primeira; e por outro lado ela está em continuidade-
ruptura com esta cultura prímeira: continuidade com as perguntas que se
colocam, as alegrias que já eram sentidas; ruptura visto que se trata de colo-
car suas experiências em um plano mais elevado; 'em suma, transformá-las
através de uma elaboração purificadora e assim chegar a senti-las com mais
intensidade, mais força; os interes,ados se reconhecem, reconhecem respos-
- ta a sua espera e ao mesmo tempo percebem uma ultrapassagem das contra-
dições onde suas vidas se debatem. Se tais satisfações culturais existem, se
há uma filiação desta natureza entre o essencial da cultura e o imediato da
cultura, entre as satisfações da cultura elaborada e as satisfações habituais
então uma escola como lugar de satisfação, uma escola que ousa proclamar-
se lugar de satisfação torna-se possível e necessária, e válida a instituição
que organiza a passagem, o trajeto da cultura primeiia, satisfações da cultu-
ra primeira âs satisfações da cultura elaborada, ~ell} que os jovens deixem de
se apoiar em suas satisfações em suas primeiras dificuldªdes.
É necessário uma instituição organizada, pois haverá incessantemente
algo de difícil: ela é possível uma vez que tem como fundamento a continui-
Introdução 187
186 A alegria na escola
Certamente um conteúdo certo, que a mim parece certo, pode ser
dade; ela vale à pena, pois conduz às satisfações que merecem, e amplamen- acompanhado de métodos tirânicos ou simplesmentes enfadonhos, mortal-
te, o esforço que tivemos. mente -enfadonhos: cada vez que o professor não estiver preocupado em se
Há, na cultura elaborada, outras vias além da escola: é entretanto, à relacionar com o que são estes alunos, o que esperam, isto é quando se tiver
satisfação escolar que desejo consagrar estas páginas deixando ao outrém, negligenciado a cultura como continuidade e resposta.
mais qualificado a tarefa de tratar das modalidades que chamam de auto- E principalmente o inverso não é verdadeiro: contrariamente ao que
formação. tentaram vários pedagogos e freqüentemente de grande mérito (não é por
acaso que se fala de "métodos novos" ou qe "métodos ativos"), as inova-
Continuidade e ruptura, liberdade e autoritarismo - Uma escola que ções nos métodos não podem substituir a transformação dos conteúdos:
realiza esta sintese de continuidade e ruptura, significa que não se deixa blo- elas correm o risco de deixar subexistir conteúdos inconsistentes, decepcio-
quear no dilema: ou impor do alto uma cultura já perfeita, completamente nantes, portanto incapazes de conduzir à satisfação; e ~ uma mistificação
pronta - ou de se manter em níveis fáceis, médios: ela recusar-se-á a utili- efêmera querer compensá-los por algo que seria da qualidade da "boas rela-
zar a cultura primeira como meio de atrair o cliente, astúcia liberal que é lo- ções" ou do "aprender a aprender" - pelo que nos absteriamos de colocar
go abandonada para recorrer ao autoritarismo, simples artifícios para atrair os problemas de validade daquilo que aprendemos. · .
o cliente. Ela realmente procura os caminhos de passagem entre as músicas .De fato, se nós quisermos ensinar aos alunos coisas que-.n ão tém liga-
da moda e a "grande" música. ção com sua vivência e os problemas que se colocam, tornar-se inevitável re-
· Não' quero deixar a cultura primeira, a cultura d·e massa, a cultura de correr a processos autoritários, sejam brutalmente autoritários (punições),
lazer ser única depositária da satisfação e desta vez estou de acordo com sejam sutilmente autoritários.
Mac Luhan quando decla ra: "A escola deve ser fascinante a fim de poder
competir com a publicidade, o hit-parade e a televisão". Digo: escola progressista porque o trajeto continuidade-ruptura só me
Mas na realidade estou de acordo com ele somente modificando o sen- parece possivel (é o que a primeira parte quis dizer) numa cultura progres-
tido de suas palavras: procuro para minha escola a satisfação, mas uma sa- sista; porque ao contrário a relação é certa entre tantos anos de escola que
tisfação específica, cultural diretamente resultante do valor dos conteúdos ·se passariam na não-satisfação, na não-confiança em si e na submissão re-
culturais. Através da continuidade, ela estará em ruptura com o prazer, a signada à sociedade tal como ela é: porque este trajeto parece-me funda-
distração; certamente há continuidade entre as satisfações, mas a satisfação mentar uma possibilidade essencial de progresso para as crianças provindas
para a qual minha escola tende não é idêntica a dos momentos de lazer. das classes explo'radas, as quais sabemos bem que constituem o grande bata-
Não vamos trazer à escola, declarar na escola um pouco de jogo, de lhão do fracasso escolar.
divertimento, de distração; não se trata de prometer que se vai apreender O tema da satisfação na escola está muito mais estritamente ligado a
brincando, distraindo-se, menos ainda de anunciar que se vai aprender qua- política que o parecia numa primeira abordagem; as resistências à própria
se sem dar conta. idéia de satisfação cultural são enormes. Elas também possuem um sentido
A dificuldade, o esforço estarão continuamente presente; aprender político. A satisfação é conquista possível, convicção jamais conservadora
para a satisfação, e uma satisfação que irá muito fundo para ultrapassar, que "mais está em nós".
mas não exclui o doloroso; nunca se vangloriar de ensinar pela satisfação.
Se a escola quer rivalizar com o lazer no campo da distração, sempre
será perdedora. No que diz respeito a ser "simpático" no modo do compa-
nheiro, o professor encontrar-se-á toda vez em inferioridade; a escola
cansar-se-á em vão ao querer sem equiparar com o agradável do extra-
escolar.

Renovar o quê? Quero sustentar que é a renovação dos conteúdos que


suscita a renovação dos métodos, das relações entre professores e alunos,
das obrigações e de disciplina, pois aqui estão tantas conseqüências dos con-
teúdos inculcados - e não causas primeiras.
CAPÍTULO 1

A escola e a não-satisfação
Por que a escola leva tão freqüentemente
à não-satisfação?

PRIMEIRA SEÇÃO

Imensas são as resistências da escola e dos alunos à prórpia idéia desa-


tisfação cultural escolar.
Provavelmente estas idéias de satisfação cultural escolar têm uma apa-
rência estúpida: ordenar aos jovens que estão começando a fazer simples-
mente aquilo que eles têm vontade de fazer e que lhes agrada - por exem-
plo, eles estão brincando no pátio de recreação - mandá-fos entrar em clas-
se, porque chegou o momento de desfrutar de uma outra satisfação, mais
confortante: não vão eles responder que a alegria é o tempo livre, o lazer,
quando se é livre e feliz, feliz por que livre?
A rigor, eles aceitariam o tema da satisfação cultural, mas contanto
que se pudesse movimentar à vontade; o que parece impossível na escola, e
que em todo caso não está previsto na "minha" escola.
Mesmo os adultos que se tornaram "intelectuais" escritores, jornalis-
tas, artistas ... quase não acreditam na escola da satisfação cultural que atin-
giram: é mais freqüentemente fora do âmbito escolar que declaram ter co-
nhecido a verdadeira cultura, sem a escola, às vezes contra ela. Engano da
escola? Provavelmente; e depois também, dizer o contrário, seria confessar
que fomos guiados, ajudados, que tivemos necessidade de um apoio, .ainda
que devamos nos declarar os verdadeiros autores de nós mesmos.
Por que isto faz-me pensar em todos esses pais que afirmavam nunca
ter sentido nenhuma dificuldade em amar seus filhos?
189 A escola e não-satisfação A alegria na escola 190

De fato uma das aquisições mais sólidas dos trabalhos de Bourclieu- ç.ã o à escola quando ela não os conduz a satisfação cutural? O momento
Passeron é ter mostrado que aqueles que aproveitam o melhor da cultura preparatório para a renovação escolar, seria um pacto entre professores e
fora da escola são os mesmos que já puderam aproveitar de uma escolarida- alunos sobre a alegria e seus bloqueios.
de profunda e extensa. Para se dar conta desta não-satisfação, os alunos reclamam muito: an-
tes de mais nada, há a obrigação da escola com seu cortejo de avaliações e
Em busca de alunos que procuram a. satisfação na escola - Devo par- sanções: eis contra o que vão se dirigir as acusações.
tir da constatação que a satisfação na escola· está muito longe de ser uma evi-
dência brilhante; e tanto menos se distinguirmos ,a ·satisfação propriamente Inconsistência de muitos conteúdos - A questão deverá ser retoma-
cultural das "satisfações intermediárias": obter bons resultados, saber que da; na verdade, do mesmo modo que conto com uma renovação dos conteú-
se está progredindo, vencer a dificuldade; éonseguir realizar algo que seco- dos ensinados para transformar a escola, assim resposabilizo fundamental-
meçou; certamente estas alegrias são importantes, mas podem se encontrar mente os conteúdos atuais pelo aspecto sombrio de tantas escolas . .
em qualquer atividade; teria oportunidade de retornar a este assunto. O que é ensinado corresponde às expectativas dos alunos? acolhe suas
Atualmente não é segredo para ninguém que a alegria dos jovens se preocupações? amplia sua experiência vivida? Quais relações são mantidas
proclama bem mai.s no seu feriado, em sua vida familiar do que na escola. com as perguntas que eles fazem a si mesmos? Risco constante da irrealida-
Existem· aluno.i que protestam contra a escola, às vezes rejeitam-na e de; vi alunos estudando em classe as guerras de religiões sem mesmo se per-
são rejeitados por ela. Há principalmente, e são aqueles que provavelmente guntarem se dentre eles havia protestantes.
mais me interessam no momento, estes milhares e milhares de alunos que Risco constante de passadismo: o contemporâneo oferece uma alegria
gentilmente fazem seu trabalho, não se saem tão mal, mas vão á escola sem que é a única a ser procurada, visto que sozinho ele pode estar em relaç.ã o
nenhum entusiasmo como um empregado vai a seu escritório. Suas ambi- com o desejo de agir, sozinho pode dar ensejo aquilo que ainda se espera
ções limitam-se a garantir sua aprovação para a série e assim, porque·não se modificar - pelo menos sentir.
deixa de repetir-lhes para preparar seu futuro; eles estudam "pela nota" e Mas o contemporâneo é lugar de incertezas, e freqüentemente mesmo
freqüentemente o confessam ingenuamente; no fundo estudam para ter a os problemas são ai colocados em termos de oposição. O drama é nossa so-
paz esperando trabalhar para ter o salário. ciedade quase não consegue edificar-se a partir destas contravérsias uma
O drama é que eles nem mesmo sonham em fazer perguntas à escola zona bastante ampla de consenso (é também um tema que reencontraremos
sobre a satisfação cultural, reivindicar da escola a satisfação da aventura in- ... l ,
a seguir) por conseguinte a escola teme o contemporaneo ; mas e por isso
..

telectual e da descoberta, a satisfação atual, em sua vida de jovens. A satis- mesmo o mais categórico, o mais tônico da cultura que correm o risco de
fação não é declarada, visada, mal pensada. desaparecer da classe; não abordaremos as questões que apaixonam os ho-
Eles não repugnam a escola, nãó se revoltam contra ela, não têm gran- mens e pelos quais eles se matam. ,
des temores em relação a ela, mas de preferência esperam que isto passe, Tanto mais que a escola vai privilegiar os exercicios, pois eles não são .
com um indício de abatimento, de aceitação. perigosos - e as "preparações". Mas preparar-se para o futuro distante,
Na verdade os alunos esperam aborrecer-se eles estão bastante resig- exercitar-se a sucessos incessantemente diferidos, será que isto pode ir ao
nados a este aborrecimento, e procuram limitar os danos - muito felizes se encontro de satisfação cultural presente, da alegria do jovem na sua vida de
puderem eliminar o desagradável de algumas compensações recreativas, se jovem?
puderem criar uma atmosfera "simpática" com um professor "simpático", Se a escola não se fundamenta sobre o atrativo dos conteúdos, corre o·
introduzir na escola um pouco de diversão ''extra escolar'' - ainda que isto risco de especular o temor, temor de sanções imediatas e principalmente te-
não responda a nenhum de seus problemas, não os "alimente" realmente e mor de grandes fracassos tão freqüentemente profetizados.
permaneçam a cem léguas de tudo aquilo que há de importante em sua vida Risco que a escola se reduza ao confronto de dois mundos estanques,
e na cultura elaborada.

Alunos queixosos - Nós, pais, quando não conseguimos fazer nossos


1 "Se os professores levassem a sério o que eles devem ensinar: liberdade, igualdade, fra·
filhos felizes, ele nos criticam, nos falam de sua decepção, pois se sentem
privados daquilo que lhes é devido. Por que não exigem o mesmo em rela- ternidade, eles tornar-se-iam revolucionàrios (Jaurés em Chambre des députés, 11 de fevereiro
de 189.5).
A escola e não-satisfação A alegria na escola 192

cujo único elo seria esta famosa utilidade para mais tarde. De um lado os Entretanto a escola laica, sob sua forma tradicional, vai de encontro a
jovens impacientam-se com o único valor que lhes parece incontestável, sua enormes dificuld.ades para se destacar daquela que a precedeu e ousarei di-
juventude, o orgulho de sua juventude - e procurando ai o meio de rejeitar zer e sob este aspecto ela permanece a meio caminho.
todo o resto. De outro lado uma cultura que cai sobre eles sem os atingir, Conseguirã ela realmente ultrapassar a desconfiariça no que diz respei-
sem mesmo que eles sintam alegria ao atingi-la. to à juventude? O jovem freqüentemente aparece como uma ameaça para o
Estamos então condenados a estagnar no inodoro, no medíocre, me- adulto, para a sociedade adulta que temos dificuldade em pensar que é ele
diocridade dos esforços como resultados? quem vai continuar sua ação; sem considerar todos os temores que circun-
dam ao redor de um sexual não dominado. Em Alain, a criança permanece
O que foi a escola cristã? O que importa é ver o dos conteúdos ensina- antes de mais nada como ser de impulso, de capricho, de leveza e de humor.
dos a distância: durante séculos, a escola foi fundamentalmente cristã e du- Desconfiança também acerca do mundo - e a escola laica tradicional
·rante séculos a escola cristã foi constituída a alegria: desconfiança no que anuncia ao aluno um futuro pouco acolhedor, onde as dificuldades e as cila-
diz respeito ao mundo considerando como lugar de corrupção, pelo menos das ocupam muito mais espaço que os momentos de realizar-se na alegria.
de tentações, desconfiança no que diz respeito à criança, mais suspeita ain- A escola de Alain insiste muito freqüentemente sobre o esforço da
da que o adulto de pecado original. Conseqüentemente serão santos, santi- criança em se disciplinar, em se submeter às regras, e daí podemos extrair às
ficantes os valores de renúncia, de mortificação, de ascetismo: humilhar-se, vezes o sentimento de que a parte educativa de um trabalho escolar limita-
temer; o sofrimento valorizado como meio de redenção dos pecados, e é an- se-ia a ser difícil, até duro, talvez mesmo desanimador - e não conduzir..~
tes de tudo no sofrimento comum que a comunhão é procurada. um florescimento.
Uma das esperanças de escapar da influência do mal situa-se na escola Daí a grande falha da escola laica tradicional: freqüentemente ela es-
como universo fechado, destinado a afas.t ar, isolar o máximo passivei a quece a satisfação cultural ou mesmo sofre a tentação de transferir esta sa-
criança dos acentecimentos contemporâneos, do curso contemporâneo dos tisfação para mais tarde, um mais mitico, um sucesso tão longe; em seu lu-
acontecimentos, dos quais não esperamos grande coisa de educativo; a seve- gar vamos colocar alegrias puramente escolares, alegrias de sucesso escolar;
ridade da disciplina, o esforço em si, para si mesmo esforçar-se-ão em sepa- mas separadas do conjunto da vida, acessíveis somente a alguns, tais ale-
rar a criança de seus desejos espontâneos, e portanto duvidosos; a obediên- grias logo enfraquecem.
cia, a culpa, em todos os sentidos da palavra, são então objetivos: podemos Considero Alain um pensador de transição: seus mais belos momentos
esperar que elas constituam vias de acesso à satisfaÇão cultural? são aqueles em que ele próprio nos convida a ultrapassar os riscos da auste-
A escola cristã muitas vezes fez uma aliança com o estoicismo antigo, ridade rigida que tão freqüentemente pesam sobre sua escola.
propondo como modelos os heróis de P lutarco, heróis à moda de Plutarco; A religião pode sempre se dirigir para um outro mundo diferente da-
não se pode desconhecer a nobreza, a magnanimidade de tais personagens; quele dos sucessos humanos; um mundo onde a simplicidade da fé é capaz
mas seus esforços, a tensão de todo seu ser podem se tornar insensíveis a tu- num certo sentido, de tornar inútil a cultura, mesmo se os teólogos escre-
do que ''não depende de nós'', para se destacar de tudo o que ''não depende vem mil volumes cientificas para explicar a superioridade do "pobre de es-
de nós", como então encontrar aí promessa de esperança, de alegria? Os pírito". A fuga permanece sempre possível - e portanto sempre prevista.
projetos dos homens devem se inclinar sobre a ordem cósmica das coisas, A laicidade marcou um progresso fundamental, e entretanto ainda tí-
aceitã-las porque é bom em seu conjunto, obstinando-se contra Ós sofri- mido, de tal forma impregnado, apesar de tudo, dos elementos ancestrais; e
mentos individuais que ela comporta: "Sustine et obstine" (Suporte e a escola laica não se converteu de alto a baixo, à procura de alegria.
abastenha-se). Temos de conquistar a alegria nesta terra - terra rude onde os resul-
tados são somente progressivos, parciais, e tanto mais essenciais. E aí esta-
A escola laica: a meio caminho - Enfim veio a escola laica que se re- ria um desabrochar da laicidade.
cusa a honrar o sofrimento, afasta qualquer culto da do·r, espera a alegria
neste mesmo mundo, e particularmente na escola: é a sociedade laica inteira
que ousa afirmar a alegria, e por outro lado sob sua influência o cristianis- Ter algo a dizer aos alunos - A escola dos Jesuítas na secúlo XVIl,
mo abandona aos poucos a valorização do ascetismo: parece mesmo que os tinha algo a dizer aos alunos, mas algo de infinitamente triste: a suspeita
cristãos não ousam mais, atualmente, falar do inferno. lançada sobre a vida e as alegrias que ela pode oferecer, e a compansação
193 A escola e não-satisfação A alegria na escola 194

buscada ou no além transcendental ou uma antigüidade da qual se conser- lar-se ela mesma, é qu~ há nela, em toda parte, uma contradição entr1; os fa-
varia apenas as grandes máscaras estóicas, mas um jovem pode ser estóico? tos e as palavras: fraternidade, o combate está por toda parte; ig~aldade, e
A escola de Jules Ferry tinha algo a dizer aos alunos mas as dificulda- todas as desproporções vão se ampliando; liberdade, e os fracos hbertaram-
des que ela traz consigo vem antes de tudo de que seus conteúdos, sua moral se de todos os jogos da força. O que vocês querem que os professores façam
soam falsos: falsa a missão colonizadora, falsa a ideologia da democracia presos entre as palavras e as coisas?" De onde ele co~cluí~: para. que os pro-
formal, a liberdade e igualdade formais - ou pelo menos terrivelmente in- . fessores estejam em estado de ensinar a moral, o vital, e preciso que eles
completa enquanto que não a levamos até o ponto onde ela exige as condi- possam "pressentir, prever, preparar esta nova or~em: social" [1].
ções de sua realização. · · Apesar da diferença fundamental entre os dois tipos de trabalho, há
E nós, hoje, o que temos a dizer aos nossos alunos? Um certo tipo de uma certa relação entre a satisfação e não-satisfação no trabalho dos adul-
satisfação conservadora, herdada precisamente do século XIX, e cada vez tos - e a satisfação ou não-satisfação no trabalho dos jovens, dos alunos.
menos sustentável: os jovens tornaram-se mais lúcidos, os fatos mais evi- A valorização do trabalho dos alunos na escola está ligada~ ":~orizaçã~ ~o
dentes, as propagandas progressistas denunciaram as imposturas: em resu- trabalho dos adultos. Em uma sociedade onde o trabalho e v1Vldo por mu-
mo as ilusões tornaram-se muito mais inacreditáveis ainda que na época de meros pais como dever enfadonho, aborrecimento, em resumo como triste-
Jules Ferry. za, 0 .trabalho dos alunos pode ser de fato outro? O trabalho como alegria
pode ser uma exceção própria às crianças, fechada na escola?
Dores culturais - Certamente a cultura é também a dor de nossas Em particular, as relações professores-alunos estendem-se até tomar
idéias: tomar consciência que não conseguimos evitar nem as guerras colo- uma dimensão política pois há, através das rupturas, apesar de toda uma
niais, nem os terríveis erros daquilo que levava nossas esperanças; é "tam- continuidade entre os estilos de comandos de tal momento, em uma deter-
bém" ... ·não é "unicamente". A renovação da escola: antes de tudo encon- minada sociedade: na escola, na fábrica, no conjunto da vida social. Na me-
trar na cultura que ela propõe aos alunos o que pode lhes dar confiança váli- dida em que seus pais e.<;tão, em seu trabalho, privados da p~i~pa~ão de
da em si mesmos e em sua época. Se o que nós lhes mostramos se desenvolve decidir, as crianças quase não podem ter confiança que sua propna vida es-
no mal-entendido, no contra-senso e no fracasso, realmente não é de se colar comporta um poder de ação real, nem mesmo uma preparação para
admirar que eles procurem a alegria fora de nossas escolas? um tal poder. Sua esperança nelas próprias acha-se atingida.

Oásis? - Na medida em que a crise de nossa sociedade, a imensa crise


SEGUNDA SEÇÃO - PAIS, FILHOS do capitalismo conduz tantas pessoas, tantos explorados a viver o "desti-
. MESMO COMBATE no" adulto como sombrio opressor, muitas pedagogi~s vão se esforçar pa-
ra proteger a criança o maior tempo possível do mundo que a rodeia, do
Não posso fugir a uma pergunta amplificadora: para que haja satisfa- mundo que a espera; a infância e a escola tentarão constituir-se em peque-
ção na escola, o que deve ser o mundo dos adultos - ou de preferência co- nos mundos mais justos, comunidades preservadas: Oásis.
mo deve se transformar &·m undo dos adultos? Para que as crianças conhe- Mas tais oásis têm bem poucas chances de atingir a alegria, ao mesmo
çam a alegria na escola é preciso que os adultos não se choquem contra mui- tempo porque eles só existem em contraste precário com todo o ambiente
tas infelicidades em sua vida. Nunca a escola pára ua escola. É apoiando-se sentido, pressentido como acabrunhador - e porque eles se sabem tempo-
sobre as forças progressistas já existentes e finalmente por uma mudança rários devendo preparar e conduzir, apesar de tudo, àquilo que eles temem.
social estrutural que podemos esperar atingir uma sociedade capaz de ter Se a e'scola promete a satisfação cultural, proclama os valores culturais de
uma escola de alegria. progresso, a esperança de progresso, de confiança no futuro e nos jovens -
Parece-me que ninguém melhor do que Jaurés, marcou não só onde se mas que ela seja única a anunciar uma sociedade que suscita essencialmente
situa a verdadeira ruptura, mas também a importância essencial da relação uma cultura de incomunicabilidades e de fracassos repetidos, qual força de
entre a escola e a vida, entre a escola e a sociedade: convicção pode ela esperar? Como os jovens chegarão a experimentar que
"Não se pode ensinar uma moral, uma direção geral da vida sem um seu mundo presente e o mundo adulto que os espera não são feitos somente
ponto de apoio na realidade contemporânea; o que caracteriza a sociedade de tristeza, de opressão - e que eles são portanto suscetíveis de avanço?
atual, o que faz com que ela seja incapaz de ensinar a si mesma e de formu- · Não se pode atribuir somente à escola o contrape.so do mundo adulto.
A alegria na escola 196
195 A escola e não-satisfação
Razão pela qual estou constrangido de me confrontar com algo que e
Fundamentar uma escola ae alegria não se separa do movimento pelo qual o mais incompatível com a alegria que procuro.
queremos transformar a sociedade para que ela não seja prometida, não se
sinta destinada a sua própria condenação, danação.
O entusiasmo não se obtém nem por decreto nem por sobressaltos in-
dividuais de boa vontade; ele nasce de uma sociedade progressista - e já da TERCEIRA SEÇÃO - A SELEÇÃO CONTRA A ALEGRIA
ação, da escalada das forças progressistas, capazes de abrir um novo cami-
nho a uma sociedade em busca de si mesma. O que é incompatível com a alegria que procuro na escola é o medo
dos alunos diante da seleção: certament'e a inquietude, para os que já são
Reforma e revolução - Também se coloca o problema revolução e re- bons, de não serem admitidos por vias reais, nas seções C, mas principal-
forma para a escola: mesmo se as reformas parciais opõem-se mais freqüen- mente gostaria de pensar na angústia de muitos alunos ao serem enviados às
temente aos efeitos que as causas, mesmo se elas são incapazes de atingir os fileiras depreciadas, em impasse (Classe Pré-Profissionnelle de Niveau -
objetivos de grande envergadura, elas assumem no entanto, valor essencial, CPPN, por exemplo), onde eles sabem que não obterão qualificação real na
evidentemente pelas melhorias limitadas que elas podem trazer, mas tam- técnica curta (Brevet d'Études Profissionnelles - BEP mas dificilmente
bém para provar que o sistema não é imutável - e portanto não é em vão Certificat d' Aptitudes Profissionnelles - CAP após o 7~) que eles sentem
intervir, organizar-se para intervir em busca de uma melhoria da esc_o la; e é como a antecâmara tão freqüentemente, de uma vida explorada, desvalori-
assim que movimentos mais amplos poderão, algum dia, ser promovidos. zada - ou do desemprego; e os fenômenos de reprodução aqui representam
Cada vez que leio que é preciso mudar a escola de alto a baixo, des- inteiramente o que já fora a vida de seus pais. Tão incompatíyel com a satis-
confio - e estou convencido que nada será feito. Nossa escola já possui fação como com a angústia é a resignàção de serem assim "orientados",
bastante positividade para que seja possível lutar tendo em vista sua trans- quando chegam a modelar, restringir suas aspirações em função deste nível
formação, muitos escândalos para que seja indispensável conduzir esta luta. de emprego que estão "destinados" a ocupar.
O drama da escola é que muitos alunos recorrem à ela em ·busca de co-
Eu - nós não escapamos da po/ftica - Uma vez mais diremos que os mo se desenvolver em uma direção que os atrai, mas a orientação imposta
problemas pedagógicos remetem a problemas políticos; o progresso funda- consegue com freqüência restringir até mesmo a força de desejar. A escola,
mental da pedagogia passa por um progresso fundamental da sociedade. lugar onde se educam os futuros trabalhadores - ou lugar onde se renuncia
Mas hoje devemos dar aula, a satisfação cultural deve começar logo a educá-los? O medo de tornar (ou continuar) se renuncia a educá-los? O
- e não haverá avanço social decisivo se não se criarem também na escola, medo de tornar (ou continuar) trabalhador, pequeno empregado substitui o
homens lúcidos e combativos. medo do inferno - e quase não se progride em direção a alegria.
O circulo vicioso não é tão rigoroso como se poderia acreditar pois, Certamente Alain evoca um aluno que sente uma espécie de prazer,
desde já, podemos nos apoiar em forças progressistas, o movimento pro-. como em um jogo, como em um esporte, para correr o risco de uma nota
gressista que, já anima nossa sociedade. baixa quando ele se empenha numa tarefa difícil - e que se engana: ele bem
Iniciei pela satisfação na escola - e me dei conta que, novamente, en- sabe que no lance seguinte a lousa uma vez apagada, ele conserva todas as
contro o marxismo. oportunidades de desforrar-se.
A crítica política da escola é mistificadora enquanto que ela é critica Mas nas escolas, nos colégios de hoje, é um fracasso maciço que se
política só da escola: seria um meio de inocentar a sociedade, silenciar sobre abate sobre as crianças mais exploradas - e um fracasso médio sobre os
suas responsabilidades. O projeto de uma escola de sucesso para todos ou, mais ou menos explorados. Anteriormente, elas escapavam do fracasso não
como nos agrada dizer, de uma escoli;t da igualdade das oportunidades indi- entrando nem mesmo nos estabelecimentos de segundo grau.
ca a direção com certeza válida. dos esforços, mas isto seria cair na utopia
pedagógica acredita que isso é possível :até o fim em uma sociedade dividi- · O que fazer? - O que pode significar, diante desta situação a esperan-
da, repartida em classes, onde os filhos dos explorados não podem, maciça- ça da alegria na escola - ao mesmo tempo uma·pedagogia progressista, isto
mente falando, pretender o mesmo futuro que os filhos dos dominantes - é uma pedagogia que luta com todas suas forças contra as segregações?
tanto os modos de vida e em particular como as chances familiares de cultu- Primeiramente sou obrigado a moderar meu otimismo; no momento,
ra são heterogêneas.
A alegria na escola 198
197 A escola e não-satisfação

em nossa sociedade, os vereditos negativos precipitam-se de maneira dra- tidade aumentada de progressos e reconversões ulteriores; a vida de traba-
mática - e terrivelmente do mesmo lado. lho e a vida fora do trabalho podem adquirir um interesse mais real.
Mas precisamente este tema da alegria na escola insere-se em um avan- Seria muito fácil, e irrisório, fazer desaparecer os fracassos escolares
ço progressista da sociedade, ele o supõe, não existe sem ele e de um lado ex- renunciando, de uma forma ou de outra, ao período de es<;olaridade.
tremamente modesto pode assim mesmo contribuir para auxiliá-lo.
E u só posso indicar aqui algumas direções do pensamento e da ação E se a própria idéia da escola progressista desmoronasse? - Encontro
que diminuiriam o alcance da seleção e portanto da angústia, a não- aqui, e não poderia deixar de encontrar uma pergunta fundamental: a pró-
satisfação. pria noção de escola progressista é possível?
As fileiras técnicas seriam valorizadas, e não somente na teoria, por- A escola não pode nunca se situar como lugar de harmonia, além dos
tanto menos temidas pelos alunos, menos contrárias à alegria na medida em antagonismos de classes, limite de exceção.que seria subtraído das leis da so-
que o progresso técnico tornaria cada vez mais raras as atividades monóto- ciedade. Não se deve nunca menosprezar a escola como instrumento de re-
nas, repetitivas, não enriquecedoras e de fato perigosas para o próprio equi- produção e conservação: pelo estilo de vida como pelos conteúdos impos-
librio da personalidade. Isto exigiria que este progresso técnico fosse gerado tos, ela vai formar os jovens de "boas maneiras", o que se calcula ser, pelo
de maneira a aliviar a dificuldade dos homens - e não para, ou não somen- menos quanto à massa, hábitos de docilidade e mais forte submissão. E ê
te para tirar proveito. O trabalho na fábrica tornando-se algo que não ocas- dos mais explorados que se vai exigir a mais forte submissão, primeiramente
tigo e o castigo do pobre. porque eles não repelem uma cultura escolar da qual estão, no entanto,
A formação contínua não pode constituir uma panacéia e não deve ser mais afastados, depois e principalmente porque eles aceitam permanecer em
um meio fácil de se resignar às insuficiências da formação inicial; isto é, ela seu lugar, adaptarem-se a seu lugar. Os favorecidos confiam na escola para
tem um papel a ser desempenhado para educar, após o tempo da escola, as conservar a sociedade tal como ela é, mantendo nos postos de comando as
qualificações técnicas e gerais da classe operária - contanto que ainda elites, isto é eles mesmos; o que, repito, implica no fracasso em massa dos
aqui, o progresso técnico seja socialmente dirigido para um aumento das mais desfavorecidos, e num fracasso médio dos mais ou menos favorecidos
qualificações. Os trabalhos de operários especializados pederiam constituir - ou mais ou menos desfavorecidos.
uma etapa antes da obtenção de um emprego qualificado - não um destino Os planos governamentais prevêem as porcentagens de operários espe-
da vida. cializados julgadas pelos dirigentes como necessárias para o bom funciona-
De fato a seleção na escola é a projeção da divisão de nossa sociedade mento da sociedade; tomar-se-ão operários especializados os que terão ob-
em classes; a escola é lugar ·de l'Utas de classes, não acredito que ela agrave, tido fracasso escolar - e milagrosamente o número dos que terão fracassa-
mas registra (e do mesmo modo confirma) as. desigualdades de sucessos se- do na escola encontrará o que teria sido profetizado. Entre os quais haverá
gundo as desigualdades sociais. poucos que não serão filhos de operários especializados. A escola como de-
Na medida em que a classe operária conseguisse valorizar sua contri- sigual, elista, segregativa, é verdadeira. Colette Chiland chega a se questio-
buição à sociedade, conseguisse conquistar a plenitude de seu papel no pla- nar: "O fracasso escolar é o fracasso de uma politica de sucesso ou o suces-
no técnico, sindical, político, ser dirigida para um campo profissional dei- so de uma política do fracasso", de uma política que visa preparar os fra-
xaria de constituir um desterro. cassos?
Até então, os esforços das pedagogias de compensação têm mesmo
uma funç.ã o a ser preenchida, contanto que a compensação se opere simul- Felizmente a escola é complexa - Se a escola fosse somente isto, a
taneamente na escola e em relação à situação vivida pelas crianças, portanto idéia da escola progressista seria contraditória, quimérica. Mas a escola é
pelos seus pais. O problema não é o sucesso individual deste ou daquele in- um local de contradições, lutas, lutas de classes, portanto também luta para
dividuo que, de origem modesta, atingiu situações brilhantes, mas da posi- que o esmagamento social não continue fatalmente em um igual esmaga-
ção intelectual e política de uma classe na sociedade. mento escolar - e o que quero dizer é a participação da alegria na luta de
Gostaria de fazer estas duas afirmações ao mesmo. tempo: os fracassos classes na escola.
escolares são terríveis - e o prolongamento da escolaridade, é do mesmo Professores militam para instaurar um modo de vida e-um acesso ao
modo, para muitos jovens, uma possibilidade aumentada de viver a adoles- conhecimento que ajudem os explorados em seus combates - ou pelo me-
cência em sua indeterminação, a riqueza de sua incerteza; e também possibi- nos que lhes sejam menos desfavoráveis. A satisfação cultural pod~rã man-
199 A escola e não-satisfação A alegria na escola 200

ter estes esforços, na medida em que os interessados sentirem o conhecimen- cas· e inseparáveis das lutas sociais em seu conjunto; a alegria é parte inte-
to inculcado em ressonância com sua própria experiência e capaz de lhes ga- grante dele, para se opor a segregação e para trabalhar na fomação de um
rantir um domínio mais firme. novo homem.
Sabemos que atualmente o desenvolvimento das novas forças produti-
vas implica numa aproximação entre a ciência e os processos produtivos,
em muitos casos uma maior qualificação da força de trabalho - e isto exige
uma formação elaborada dos trabalhadores. Certamente o sonho da classe
dominante é que a escola seja gerenciada para lhes dar com exatidão a ins-
trução necessária para seu trabalho, sem suscitar ambições "exageradas" e
sem que a instrução profissional chegue a discórdia de um questionamento
global.
Mas todas as armas que a burguesia forjou para justificar seu domí-
nio, começando pelas reivindicações de igualdade, liberdade, voltaram-se
contra ela" (2). Acontece o mesmo com os meios de instrução que ela insti-
tuiu.

A escola escapa dos dominantes - A formação dos trabalhadores não


pode se limitar ao que é estritamente necessário para o trabalho tal como foi
previsto, preparado, recortado; ele surgirá como aspirações para participar
na definição, na organização do trabalho, como aspiração para viver me-
lhor e para melhor compreender porque é tão difícil viver melhor: a cultura
como força de luta e de renovação; a cultura como desejo de progredir no
domínio e a compreensão de tal técnica de trabalho, mas também como de-
sejo de abordar os problemas totais que a execução desta técnica, da técnica
suscita.
Nós sempre teremos em mente a dupla face da escola.
Pode-se proceder a um tipo de contraprova; se as classes dominantes
considerassem a escola como sua aliada certa, elas fariam tudo para cobrir
o país de prédios escolares e para prolongar ao máximo o tempo de escolari-
dade, de impregnação da juventude pelas idéias escolares - e principalmen-
te junto aos mais explorados, que constituem o perigo primeiro; elas fariam
tudo para detê-los por uma cultura escolar amplamente difundida.
Ora, é exatamente o inverso que foi colocado em execusão. Já Engels,
em relação à sua época, dizia: "A burguesia tem pouco a esperar, mas mui-
to a temer da formação intelectual do operário" (3). Ao que R. Leroy res-
ponde hoje [4]: "Para reforçar sua exploração, a burguesia conta com are-
cusa, não com a extensão da cultura"; e ela segrega esta recusa não somente
pelo escalonamento das seleções, mas também pela tristeza e pela sua culttt-
ra e modos de transmissão desta cultura.
E é exatamente porque há margem de manobra aberta à escola, que a
escola não está condenada a permanecer fora do combate progressista. De-
vemos utilizar esta margem de manobra em lutas ao mesmo tempo específi-

..
CAPÍTULO II

A escola: suas engrenagens

A escola não é o monopólio da cultura elaborada, nem da satisfação


cultural elaborada. Ria nunca teve este monopólio, hoje ela o tem menos do
que nunca. Fora da escola, é certo que as múltiplas formas de animação, de
autoformação colocam em presença de uma cultura elaborada do mesmo
nível que a cultura escolar: teatro, concerto, museu, ouvir uma conferência,
proceder a experiências científicas, montagens técnincas, TV e cinema -
sem nunca esquecer a cultura de ação, a cultura por participação em ações
militante organizadas.
Pode-se chegar a uma mesma atividade cultural pela escola ou fora de-
la; a mesma tarefa cultural pode ser escolar ou não escolar' o mesmo livro
pode ser lido em casa ou em classe. A visita a um castelo pode ser feita de
um modo escolar (por exemplo haverá para todos relatórios a serem redigi-
dos) ou não escolar.
O lugar evidentemente desenvolve um papel: o lugar da escola ou de
animação ou em casa; mas este lugar não basta para caracterizar a atividade
escolar visto que o lugar teatro pode corresponder ou não a uma atividade
conduzida seguindo a modalidade da escola.
Primeiramente, será que .eu poderia apreender a especificidade da es-
cola, depois procurar como ela pode ser transformada de maneira a se tor-
nar particularmente apta à satisfação cultural? Ou de preferência como ela
é trans.formada quando se ordena ao redor da satisfação cultural.
A alegria na escola A escola: suas engrenagens 203
202
PilIMEIRA SEÇÃO - ESTRUTURA SISTEMATIZADA E, por outro lado, no próprio saber: o saber das "boas pessoas",
adquirido precisamente no decorrer de experiências absurdas e heterogê-
O que me parece caracterizar a escola é uma organização sistemâtica e neas, seria muito mais frutífero, muito melhor adaptado que o sab.er dos
continua das situações: primeiramente, há "pré-requisitos", isto é uma pre- "peritos".
paração, um grau de preparação considerado indispensável ao que se faz; e
portanto uma certa homogeneidade de formação, de conhecimentos, da O anti-acaso - A escola vai-se explicar de maneira ordenada, aplicar
idade é esperada, reclamada dos participantes. Em contrapartida, o siste- de maneira ordenada; os conteúdos culturais não foram encontrados ao
mático esforça-se para adaptar o que propõe a seu público. acaso das experiências vividas.
Em seguida, procede-se em ordem: há etapas, não se deve queimar as Para atingir o sistemático a escola precisa da duração; percebo aqui
etapas, menos ainda ignorar sua existência. Uma sucessão coerente, do gra-
três aspectos essenciais.
duado; passo a passo; há um programa progressivo, uma "progressão", co- O aluno encontra-se no interior do "sistema" escolar por um período
mo se dizia na linguagem dos antigos professores. Cada novo momento in- de tempo tão longo que ele não vê o fim: aos onze anos, ele ainda tem pela
tegra-se ao que precede, consolida o que precede e serve de garantia para ir frer..te pelo menos mais cinco. Isto marca uma diferença radical com a situa-
mais além; cada degrau é ponto de apoio para atingir o degrau seguinte. ção, por ~xemplo, de um estagiârio.
A palavra-mestre da escola é: "na última vez nós paramos em ... por- Para se habituar, digamos, com o universo matemático é necessário
tanto vamos recomeçar daí"'. dar-se uin longo tempo, levarenws muito tempo - e a escolaridade oferece
ou mesmo impõe uma determinada continuidade. Retorna-se a dificuldade,
O próprio saber - O sistemático da aprendizagem repousa no siste- retorna-se novamente a ela, insiste-se, aprofunda-se, obstina-se a ela; o
mático do saber , do real: tal conhecimento explica a razão de um outro, os exercício proposto na segunda-feira é retomado na terça-feira; cada conhe-
conhecimentos estão ligados uns aos outros, encadeiam-se e mantêm-se uns cimento é adquirido, perseguido por uma multiplicidade de exercícios, sob
aos outros, explicamJse uns pelos outros, unem-se em totalidades que lhes uuma multiplicidade de facetas.
dão sentido: inserir tal poema na obra inteira do autor ou na literatura desta Enfim vive-se, progride-se num regime de permanência: no teatro,
época ou no conjunto das obras de execução semelhante, compreender co- vai-se às vezes, quando se têm oportunidade, a escola é uma vida contínua
mo este poema participa de maneira original à unidade imensa da poesia. É do grupo-classe, uma ação contínua do professor - o mesmo professor, os
assim que se pode compreender, apreender em sua coesão o que efetivamen-
mesmos colegas: não é como uma série de conferências.
te possui coesão, unificar o que tende a unidade. A escola tem confiança no .
saber como podendo ser adquirido sistematicamente porque ele forma o sis-
tema; cada pergunta faz parte de um conjunto e esclarecer-se por este con- Não é fácil gostar da dificuldade - O sistemático nunca é dado, dire-
junto: mesmo a maneira como vemos um quadro depende do que nós sabe- tamente legível; um esforço de reestruturação é indispensável para conse-
mos ou sentimos de seu autor, de sua celebridade, de sua época: "nós não guir reunir a experiência esparsa numa totalidade; aí é preciso a intervenção
olhamos da mesma maneira um rosto que nos disseram ser datado de dez de uma terceira pessoa, o professor e todas as dificuldades que ele ajuda a
anos ou seiscentos anos; nós o questionamos de outra maneira" [l]. Certa- resolver, mas também todas as que sua presença acarreta .
mente vai-se introduzir elementos novos a partir de experiências pessoais, Uma segunda causa do diflcil da escola é que ela propõe projetos, pro-
problemas pessoais, pelo que o sistema é modificado, enriquecido, mas con- gressos a longo prazo - e que não são portanto possíveis sem uma determi-
tinua a ser sistema. nada aceitação do protelado: é preciso fazer gamas, muitas gamas antes de
lllich recusa a escola porque ele recusa de um lado o sistemático, na se servir de "freagmentos", é preciso passar por uma freqüência lenta, lon-
aquisição do saber: sustenta que o essencial para cada um de nós foi obtido ga e regular da obra antes que ela se transforme em "surpresa, vertigem,
ao acaso, durante encontro, ao acaso de conversas. exaltação, esplendor que nos constrange" [3].
Os resultados não serão imediatamente sentidos, o esforço não pode
ser logo recompensado; é importante mantê-lo, manter-se aí.
1 É porque "a escola paralela" não é uma escola - e além de· que não quer de forma
Além disso: não se evitará passar pelo austero, pelo árido; túneis, mo-
alguma ser paralela à ·fnstituiçào escolar. mentos decepcionantes, desencorajamento; períodos de aborrecimento e até
204 A alegria na escola A escola: suas engrenagens 205

períodos dolorosos, principalmente quando o aluno pensar em tudo que ele esperar ultrapassar o difícil daquilo que a escola se dá como tarefa a ser en-
está sacrificando e está presente, ao alcance das mãos. frentada.
. Enfim a escola é difícil porque o sistemático exige uma mudança de ni- Há lugar na escola, necessidade de escola, a escola justifica-se - e
vel: o desnível entre a vida havitual de um jovem e as tarefas da escola ca- provavelmente ela apenas se justifica - quando se espera do jovem um sal-
racteriza a escola, ao mesmo tempo o que caracteriza a escola, justifica-a e a to tão considerável que ele deva recorrer ao apoio de uma instituição. Ele
torna muitas vezes, freqüentemente, tão rigorosa. não pode ser bem-sucedido por suas próprias forças, nem mesmo recorren-
Pediu-se ao aluno para mudar o nível de suas atitudes: não se escuta do às forças iguais de seus semelhantes.
um professor como se escuta o transistor, continuando a comer, a éonver- É a isto que gostaria de acrescentar três observações:
sar, com o risco de interromper um momento as atividades concomitantes
quando isto se torna realmente interessante; não se folheia um livro de ciên- - Não há ''bom professor'' que torne tudo fácil - ou ·melhor o bom
cia; não se olha uma obra de arte como se olha a chuva cair. Cada pessoa professor não é aquele que tornaria tudo fácil seja pelo seu encanto, seu ca-
conhece os apelos constantes, às vezes desesperados, da escola para "pres- risma, seja pela virtude iluminadora de suas interpretações; provavelmente
tar atenção": uma tensão em direção ao que, de improviso, por si mesmo, o bom professor é aquele que fornece os meios e a vontade de se medir em
não atrai não retém a atenção - um esforço que ninguém pode manter por relação ao difícil.
muito tempo. - A escola é difícil para todos, certamente em níveis muito diferentes;
Em suma pediu-se ao aluno para encarar o questionamento de suas mas quando não se reduz mais a cultura às boas maneiras, ao bem falar,
tentativas, evidências, certezas até então confortáveis. nem mesmo aos sucessos nos exames, em resumo ao bom tom e àquela fa-
mosa "distinção", parece que ela nunca é imediata, natural, impregnação
Apreço, apreciação - E principalmente a escola é um mundo rigoro- direta do meio; nunca é como o ar que se respira.
so, pois um de seus papéis é avaliar. Os riscos da avaliação foram denuncia- Mesmo os alunos "favorecidos" que obtêm bons resultados na escola
dos centenas de vezes: risco de infantilizar, desesperar, imobilizar; o aluno - e não são todos que são aprovados - não chegam até este por:LO deixan-
sentindo-se atacado se contrai, entra dentro de si. Aqui o esforço é essencial do-se ir, deixando-se levar, mas à custa de grandes esforços.
para que cada pessoa seja comparada a si mesma muito mais que confronta- Certamente a cultura das familias operárias e muito distanciada da
da com os outros. atmosfera das tragédias de Racine, mas Racine não se situa no prolonga-
Mas a escola não renuncia à avaliação enquanto se interessa por fazer mento simples das preocupações e dos costumes culturais de cada jovem
o aluno viver na convicção que tem progressos a realizar, que ele lá está pa- "burguês", nem de seus pais.
ra realizar progressos; além de fazê-lo sentir que suas produções estão à esta
ou àquela distância dos sucessos de referência. Nada é equivalente, existem - Esse esforço em direção ao cultural é particularmente severo para
critérios de valores, uma hierarquia de valores: o texto que ele escreveu, des- uma criança (3): começava a familiarizar-se com o que a cerca; a encontrar
ta vez, é melhor que o precedente; apesar de tudo, os alunos mais velhos fa- caminhos nos seus mundos - e ela é incitada a abandonar o que possuía pa-
zem freqüentemente melhor; seu texto não se destina a tomar o lugar das ra se lançar no desconhecido, ir em direção às exigências mais severas. baí
grandes obras. Em suma, acostumar o aluno a se situar. nostalgia e desgosto, temores e resistências. A escola deve primeiramente
Não comprar o contentamento do aluno abandonando a avaliação, compreendê-las, admiti-las.
não lhe propondo quase nada além das tarefas às quais dir-se-á que não ser- Para que a criança triunfe, é preciso confiança em si, coragem - en-
vem para a avaliação, que não é o caso de erro. O risco de que muitos jo- corajamento; mas também cada passo à frente aumenta a confiança em si .
vens gostam, procuram em seu lazer, nos esportes de lazer, é impossível A criança tem necessidade de obter vitórias - e constatar que em alegria,
transportar o risco às tarefas escolares e aos resultados que elas podem atin- elas supercompensam bem as provas.
gir - ou não.
Multiplicidade do obrigatório - Na covergência do sistemático, do di-
Quando é preciso ir à escola? Muitas vezes o sistemático .é necessário flcil e do diferido coloca-se o obrigatório. Ao se esperar ou melhor ao se pre-
para que a escola seja o lugar do difícil, um difícil que não se deixa enganar parar para viver no universo do trabalho assalariado, os jovens vivem em
por frases soltas nem pelo acaso; e o sistemático é aquilo pelo que se pode quatro meios: a escola, a família, o mundo quotidiano, o mundo do lazer e

!
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206 A alegria na escola A escola: suas engrenagens W7

dos colegas. Evidentemente cada meio possui seu tipo particular de obriga- em primeiro plano: a visão pode se deslocar de campo para campo, pode se
ção; na escola a obrigação é particularmente precisa, codificada; a regra de- encontrar em múltiplos campos.
sempenha um papel em primeiro plano. Eu distinguiria as satisfações intermediárias que são comuns à escola e
Como em toda parte, existem obrigações implícitas, difusas: quando a a outras atividades daquelas que se desenvolvem mais particularmente na
classe é disposta de tal maneira que os alunos comunicam-se entre si o míni- escola.
mo possível, quando a cadeira do profe$sor está mais elevada para que ele Alegria do sucesso, de todo esforço que é bem-sucedido: enfrentar a
domine; o que o professor impõe sem o querer, às vezes mesmo sem o saber, prova, é preciso que haja um certo risco, unia perda, ou pelo menos a amea-
por suas atitudes e pelo modo de vida que ela suscita na sua classe. ça de um fracasso; depois a alegria da vitória.
E principalmente as obrigações diretas, explicitas, são características: Sentir-se progredindo, capaz de progredir, sentir suas forças crescen-
a primeira é ir à escola, numa determinada classe, em momentos fixados - do; Conhecer-se melhor, governar-se, dominar-se mais, ultrapassar-se,
e isto quase todos os dias e quase o dia todo; os alunos não escolhem seus "arrancar-se" diante do obstáculo, resistir, ir até o fim do que se tinha ten-
professores, os professores não escolhem seus colegas, os alunos não esco- tado; pelo que se pode avaliar, ver onde se está, tomar a medida de si mes-
lhem seus colegas de classe; e é preciso, sendo assim, viver e trabalhar em mo e, em casos favoráveis, adquirir confiança em si; em suma fazer suas
conjunto. provas, prestar testemunho, confirmação de sim.esmo.
Todos devem fazer tudo, todos devem fazer de tudo; tudo se dirige a O prazer sentido pelo eu em seu bom funcionamento, uma certa facili-
todos e não somente aos voluntários que o escolheram; cada um deveres- dade na manipulação da força mental e que evidentemente relaciona-se com
ponder verbalmente ou por uma ajuda se for interr.ogado, não somente os o prazer de sentir seu corpo disponível: estar completamente pronto para
que têm vontade ou os que "têm algo a dizer". É a instituição e não os inte- agir.
ressados que decide, fixa de antemão conteúdos, atividades, programas; Estas alegrais nos jovens são mais pronunciadas ainda: o desejo de
vive-se sob o regime do emprego do tempo, isto é, que a instituição organi- progredir, a satisfação de se sentir capaz de progredir fazem parte integran-
zou de maneira minuciosa e detalhada os momentos e durações que se con- te de sua situação: satisfação de tomar iniciativas, e assim sair da dependên-
sagrará para cada atividade. cia infantil. O que não se separa da alegria de crescer: antes, quando ele era
Enfim, os desempenhos dos alunos são controlados, verificados, jul- pequeno, não conhecia, não compreendia bem, não sabia fazê-lo; agora ele
gados, avaliados, corrigidos. adquire poderes, ele se iniciou nos segredos dos adultos, ele vai lhes roubar
O rigor com o qual o aluno é tratado, as ordens às quais ele deve obe- parcelas de sua força.
decer, as tarefas ordenadas, o estado de encadeamento em que ele se encon-
tra, acontece que isto se torna promessá: px:omessa que o aluno chegará ao
rigor no raciocínio e na execução, a apreender um encadeamento das causas Mais particularmente na escola - Primeiramente e antes de tudo a
e efeitos, das idéias e condutas, a uma ordem em seu pensamento e ações, alegria dos colegas, mas aqui não diremos nada sobre isso. Assinalarei sim-
em suma a uma cultura ordenada - e que se ordena com alegria. plesmente como característica a alegria sentida quando um colega faz uma
A escola quando se trata de ... quando se acredita possível formar e en- exposição; freqüentemente então os alunos testemunham uma indulgência
sinar, não apenas esclarecer e informar. que eles estão unidos longe de manifestar diante das explicações dadas pelo
professor.
Esta alegria parece-me conduzir a dois sentimentos: meu colega é ca-
SEGUNDA SEÇÃO - SATISFAÇÕES INTERMEDIÁRIAS paz disto, nós somos capazes disto, não existem somente os professores, os
adultos a serem competentes; e por outro lado, nenhum aluno se sente ultra-
Gostaria de chamar de "intermediárias" as satisfações que são ao passado demais, a exposição do colega pode ensinar coisas, visto que ele es-
mesmo tempo reais e não se confudem com a que considero como a satisfa- tudou mais a questão, mas ele permanece no nível de aluno.
ção cultural escolar culminante. Elas desempenham um papel essencial na Apesar de meu postulado inicial, não se pode aqui passar em silêncio
vida dos alunos: participar da cultura nas suas formas "geniais", incorpo- sob a alegria de preparar seu futuro, futuro escolar e, mais distante, futuro
rar os conteúdos culturais, agir ao nível dos conteúdos culturais elaborados. profissional: os sucessos escolares como promessas de sucesso para o futuro
Nas satisfações intermediárias, não é o objetivo, o objetivo cultural que está e também sentir-se capaz de olhar além do presente; do imediato, agir a lon-
208 A alegria na escola A escola: suas engrenagens 209

go prazo, engajar-se por um longo prazo; todas alegrias que, ao mesmo baixo preço atendo-se somente às dificuldades simples demais e principal-
tempo supõem e fortalecem a confiança no futuro. mente seu alcance real na vida; podemos saboreá-las sem nos preocuparmos
Mas gostaria de insistir na alegria do sucesso escolar no presente: não verdadeiramente com o valor do que se consegue: a alegria de remontar o
somente dar prazer aos seus pais, a um professor que se gosta, não decep- quebra-cabeça chinês, a partir do momento em que o desmanchamos.
cionar sua expectativa, receber sua aprovação mas principalmente saber-se Mas não é menos importante que o aluno apoie-se nas satisfações in-
à altura, em regra, ao nível: ser exatamente como se deve ser, "consigo se- termediárias, que ele seja sustentado pelas satisfações intermediárias em sua
guir"; encontrar lugar, sentir-se em seu lugar. caminhada em direção a satisfação cultural. Certamente existem impureza
Mesmo se a escola tradicional abusou terrivelmente dos exercicios, nas satisfações intermediárias: a gloríola liga-se à cultura pois ela garante
apesar disso eles podem dar aos alunos éertos tipos de alegria: sentir que se sucessos lisonjeiros, permite ser bem visto por alguns, eles mesmos já bem
ganha em habilidade minuciosa, em atenção precisa; orgulho de fazer bem colocados.
feito indiscutivelmente bem feito; aí vê-se melhor. Por exemplo a alegria
..!.._ Entretanto seria ilusório procurar uma satisfação cultural pura, desin-
dos exercidos de ortografia: alguma clareza introduz-se no imenso magma teressada, livre de qualquer parcela de vaidade; seria ilusório pretender se-
das palavras, "et" não mais se confunde com "est". parar completamente o puro e o impuro, e exatamente hipócrita consagrar
Enfim existem conhecimentos que não·me parecem atingir a satisfação o impuro ao desprezo. De fato o impuro é uma das vias de acesso, pode se
cultural no brilho que quero lhes atribuir, mas dos quais muitas crianças ex- tornar uma das vias de acesso em direção à satisfação cultural, por gloriolas
traem determinadas alegrias. Por exemplo alegria de acumular, de colecio- recusar-se-á atitudes de preguiça e facilidade; começar-se-á por gostar de
nar numerosos nomes de flores, cidades, palses; alegria da nomenclatura. Picasso, por acreditar e dizer que se gosta de Picasso, para ganhar a consi-
Pouco se aprende sobre as coisas em si e entretanto, ainda aqui, o caos múl- deração de determinadas pessoas que são importantes para mim; mas isto
tiplo do ambiente abre-se para uma determinada ordem e as possibilidades leva 'ainda assim a freqüentar estas obras e pode-se um belo dia surpreender-
de aí se orientar determinam-se. se a gostar delas "de verdade".
A forma inicial desta alegria é que uma criança, pelo menos em certos Da boa utilização do esnobismo, de determinados tipos de esnobismo,
meios, sente que parecerá uma tola e que ficará perdida nas conversas se a fim de chegar, aos poucos, a alegrias sinceras. A satisfação cultural nunca
não souber absolutamente nada do que se fala ao seu redor; a América do se apresenta sozinha, ela tem necessidade de satisfações intermediárias, e
Sul e as equipes de futebol que vêm para cá. Daí sua alegria quando ele ace- não somente como meios de aproximação: permanece sempre um compo-
de a uma primeira localização no espaço (e também no tempo), satisfação nente de vaidade, uma arrogância de ter conseguido pelo simples orgulho
que só se faz com aquela de estar a par do que preocupa o µrnndo dos adul- do sucesso.
tos - e portanto permanecer afastado fora de seus debates, de não "ser le- Um dos dramas da escola em relação aos bons alunos (pois também
vado em conta''. eles causam problemas), é que freqüentemente eles aproveitam das satisfa-
É preciso reconhecer bem que esta alegria é muito menos encarada ao ções intermediárias e nem mesmo desconfiam da existência da satisfação
nível do colégio quando se tratar de aprender tantos nomes de portos desta cultural; é precisamente porque as primeiras não conduzem, por si mesmas,
mesma América do Sul. até a segunda que compete ao professor estabelecer um trajeto entre elas -
e é este ponto de chegada que se trata de nunca perder de vista; as satisfa-
Brilhar - Mundo da prova, da competição, do exame em suas formas ções intermediárias têm necessidade de se juntar à satisfação cultural para
codificadas, institucionalizadas, a escola é um lugar onde a glória, pelo me- atingir a plenitude delas mesmas: na medida em que o termo visado torna-se
nos a gloríola misturam-se de maneira verdadeiramente inexplicável com as mais válido, a alegria de ser bem-sucedido adquire mais consistência; o or-
mais profundas satisfações culturais: gostar de V. H ugo e colocar-se em evi- gulho de ter ultrapassado os obstáculos que a princípio impediam de gostar
dência, mostrar seus talentos, sentir-se considerado, um pouco invejado. É de Picasso, é assim mesmo algo além da alegria de ter reconstituído o
verdade para todos, ainda mais para os alunos. quebra-cabeça chinês.
É essencial não confundir a satisfação cultural com as satisfações in-
termediárias, não limitar a satisfação cultural às satisfações intermediárias,
não se contentar com as satisfações intermediárias.
Estas alegrias do sucesso que acabei de evocar, pode-se adquiri-las a
CAPÍTULO III

Quanto a ~~minha,, escola.


1
1
!'

"1

Manter, ampliar, transformar __:.O sis.temãtico, o difícil, o obrigató-


rio, todos estes traços evidentemente aplicam-se à escola "tradicional". O
sonho de minha escola não é absolutamente suprimi-los; desejo mantê-los e
de uma determinada maneira até ampliã-los, acentuã-los - diante de certas
tentações inversas de muitos inovadores. Ao mesmo tempo, quero transfor-
má-los a partir de conteúdos renovados qe tal modo que se vá em direção à
satisfação cultural escolar: quero o obrigatório e a alegria presente; o difícil
e a alegria presente. Minha escola é a aposta paradoxal de impor a matemá-
tica tal dia, a todos - mesmo aos que não a querem - e modificar a situa-
ção de modo que todos experimentem satisfação e sintam progredir em dire-
ção à liberdade. Serã que isso é ilusório?

Lembrança da continuidade-ruptura - Isto me parece possível na me-


dida em que os conte culturais renovados possam ser tais que o obrigatório,
isto é o não-desejado, o não imediatamente desejado pelos alunos, encontre
ou melhor suscite seu desejo profundo - e faça deles.um desejo alegre; na
medida em que o difícil, na verdade o desnível, a mudança de planos não
destruam uma continuidade vivida, mas assegurem , desenvolvam, desmisti-
fiquem as premissas sentidas na cultura primeira.
O que os alunos experimentam e praticam em sua experiência imediata
não é aberração a ser anulada; já existe aí riqueza e realidade: senão a inter-
venção da escola seria condenada a romper com a experiência dos jovens, a
vida dos jovens - e portanto sua alegria. Que oportunidade restaria então
211 Quanto a "minha" escola A alegria na escola 212
ao aluno para que ele se lançasse no que lhe é proposto, senão esta prepara- A partir de que aumentam as reinvidicações de autonomia e os pedi-
ção para o futuro a qual não me permito tomar como base. Ele raramente dos mil vezes repetidos de poder escolher somente o que interessa.
vai "vingar-se" pela revolta, mas freqüentemente ameaçando ao extremo Sendo o professor o representante próximo e concreto da obrigação,
suas forças - enquanto que as despende com muito ardor quando se trata as queixas dos alunos evidentemente passam para um segundo registro. A
de uma partida de futebol, e é desse entusiasmo que minha escola tem ciú- obrigação é acusada de perverter a relação com o professor: "sentimo-nos
mes. É verdade: gostaria de captar para a escola uma parte deste imenso en- pouco à vontade diante dos professores, não podemos ser francos com eles,
tusiasmo que os concertos pop, os espetáculos esportivos provocam. é preciso não ser mal vistos por eles".
Há uma relação fundamental entre o progresso que a minha escola O que é notável é que a expectativa dos alunos quanto às relações, a
quer do aluno e o progresso que o jovem deseja de si mesmo, suas próprias pessoa do professor é enorme - muito mais forte que os desejos dirigidos
pesquisas, suas próprias alegrias. aos conteúdos ensinados. Muitos alunos proclamam: a gente estuda bem
O que no entanto não se deve aceitar tal como o é, pois o essencial ain- com um professor que se gosta, a gente estuda "diante do professor" e
da não foi apreendido; as mistificações, o conforto enganador de idéias que parece7lhes um elogio dizer: "esse sabe como agir e pode ensinar qualquer
freqüentemente a gente encontra ao alcance das mãos não foram detruídas e coisa". Muitos alunos colocam toda sua esperança, ao lado das relações
exatamente porque a escola possui um papel enérgico a desempenhar; ela com os colegas, nas relações com a pessoa do professor. Eles aí colocam
não se dissolve em uma nebulosa difusa. também todo seu desespero, diante da realidade das tensões, dos confrontos
A escola é o local onde se apresenta aos jovens, a todos os jovens um - ou pelo menos da frieza, da distância. Isto transforma-se rápido em
tipo de poesia, modos de raciocinio rigoroso que ·eles não tinham atingido agressividade: são os professores que são responsáveis pelos nossos fracas-
até então. Na medida em que o cultural elaborado está em ruptura com a sos, visto que eles querem ser responsáveis por tudo.
cultura imediata, a escola é difícil; os alunos não poderiam obter sucesso Contra o que eles freqüentemente chamam de um simples despejar de
por suas prórpias forças; é preciso para isso a obrigação, a orientação, a in- conhecimentos, os alunos sonham com outras relações: serem levados em
tervenção do professor. consideração, serem conhecidos e reconhecidos em sua individualidade, em
sua vida pessoal; os alunos sonham com relações nas quais poderiam revelar
ao professor seus gostos, seus problemas e mesmo seus defeitos, "desven-
dar sua personalidade" e que o professor se interesse por isso. Poderíamos
PRIMEIRA SEÇÃO - MINHA ESCOLA E AS RELAÇÕES falar, discutir "livremente" com os professores. Chega-se a desejar relações
PROFESSORES-ALUNOS que não seriam mais hierárquicas, onde não haveria mais "distância ... nem
barreira"; alimenta-se a esperança de uma relação de iguâidade: "levamos
1- Queixas dos Alunos ao professor nossa cultura; ele nos traz a suá"; a imagem de relações infor-
mais onde não haveria mais julgamentos, nem notas; seríamos aceitos inde-
É em torno da obrigação que se concentram as queixas habituais dos pendentemente de nossos resultados, alguns dizem: além de seus resultados,
alunos, seja dos revoltados, seja dos resignados: "estamos submissos ao po- uma ligação de homem para homem.
der deles, ao seu bem-querer, sem ter realmente meios de defesa; eles nos Como eles sentem que isto tem pouca chance de se realizar no âmbito
impõem suas leis, decidem, não temos de forma alguma o controle do que dos exercidos escolares e mesmo da escola, a pergunta é freqüente nos en-
nos acontece." contros fora do curso; "atividades de liberdade" conduzidas em comum
Muitos alunos sentem que é a obrigação que é responsável pelos seus com o professor; clubes, visitas, viagens, festas. Os alunos falam disso fre-
males: "um exercício, feito em minha casa, quando quero, pode ser agradá- qüentemente com êxtase e muitas vezes mantêm-se aí por eles mesmos e por-
vel; mas se é imposto, e para um determinado dia, e que além do mais será que eles projetam aí estas relações desejadas.
verificado ... ". E mais profundamente mesmo, a obrigação é sentida como Em grande parte, a não diretividade foi uma tentativa para remediar a
ameaça à originalidade: como chegar a uma personalidade responsável se- absorção das relaçõe~ professor-alunos na única relação de comando, para
guindo incessantemente oondutas de obrigaç_ã o: "somos máquinas para re- fazer florescer uma ligação calorosa. Muitas vezes penso que várias misfica-
petir ... engolir, cuspir". Medo do conformismo; o aluno sente-se perdido ções foram introduzidas, cepticismo, indiferença quanto aos conteúdos,
na massa, não reconhecido, insignificante, simples objeto de pressão . uma certa fuga dia~te das exigências escolares e o modo de progresso que a

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213 Quanto a "minha" escola A alegria na escola 214

escola pode suscitar; e entretanto assim foi marcado um ponto de não-retor- saberão· tirar proveito. Muitos alunos são persuadidos de qu e a escola pode
no: reivindicação de dignidade, a escola não pode se contentar com relações aproveitar de sua situação de fraqueza para "ensinar" sob pretexto de
estabelecidas, distantes, impessoais e que correm o risco de se desenvolve- "corrigir" seus erros (1). A escola como lugar preparado para a satisfação
rem sem brilho. cultural não é ainda uma realidade.
Resta unir relações vivas e progresso cultural.
Professor-patrão, professor-professor - Para levar em consideração
Passar pelo crivo das obrigações e das relações - Lançar um olhar a inquietude dos alunos, dizemos muito: professor-patrão. A verdadeira
critico sobre certas ilusões·, certos comportamentos evasivos nos dá final- função do professor seria preparar à submissão ao patrão, acostumando os
mente mais força para questionar as obrigações que impomos aos alunos. alunos a obedecerem até a um regulamento que não compreendem e não ad-
Passar pelo crivo - com os alunos - das obrigações que lhes são im- mitem, acostumando os alunos a trabalhar sem ter o controle de sua própria
postas, seja para reconhecer que eram eles que viam corretamente. atividade. A resistência dos alunos às obrigações escolares tornar-se-ia se-
A reivindicação dos alunos de escolher ao invés de serem pressionados melhante à resistência dos explorados à exploração; daí con siderar aqueles
coloca em prova a noção geral da obrigação e a multiplicidade de suas apli- que querem trabalhar em classe como "um operário que fura greve" ou
cações particulares. É certo que um grande risco está incluso na obrigação, "pequenos chefes", os contramestres do professor, não há nenhum.
risco de irritar, desencorajar - e que impõe de nossa parte uma contra- Certamente o trabalho escolar e o trabalho assalariado dos adultos
ofensiva: introduzir no interior das atividades impostas algo tão estimulan- possuem características comuns: todos os dois são obrigatórios, compor-
te, tão empolgante que o aborrecimento se torna diminuto. tando uma parte de sacrifício dos desejos imediatos em vista de uma recom-
Mantendo o princípio da obrigação, minha escola questiona-se pois pensa por vir, eles recorrem a uma remuneração externa a si próprios: de
sobre as obrigações que ela impõe; a partir da satisfação cultural e dos con- um lado salário, promoção; do outro boa nota, passagem para a série se-
teúdos culturais adequados; temos que nos perguntar se todas as obrigações guinte etc.
habituais são realmente indispensáveis: no fundo por quem, desde quando, A relação com o professor pode parecer para o aluno, pode funcionar
em que contexto, e quem talvez se modificou se elas foram estabelecidas?, e de fato como semelhante às subordinaçõc;s adultas e como preparatória pa-
no modo de interpretá-las, não as sobrecarregamos de angústia? Tudo à ra essas subordinações: por mais que quisesse separar o após-escola, não
que prescrevemos é realmente exigível no mesmo nível e em qualquer idade? posso esquecer que a esoola é promessa e meio de se preparar para ocupar
Fazer fila pareceu durante muito tempo indispensável: e o que isto significa determinado nível na hierarquia social e que os jogos são sempre desiguais
hoje? A imobilidade em classe prolongando-se nas permissões para pedir pois os mais explorados e seus filhos estão mais distantes que os outros das
ordem para qualquer movimento·é uma lei imutável? expectativas da escola. É possível escapar, até mesmo do decorrer de uma
Freqüentemente obrigações numerosas, difusas, com as quais não apresentação, do drama da escola como agente de.seleção?
pactuamos; não procuramos juntos, professores e alunos, esclarecê-las: ten- Mas há uma especificidade do trabalho escolar: é que ele pode ter rela-
tação da escola de não justificar, menos ainda negociar o que ela impõe, ção com a satisfação cultural e esta satisfação, repito, aparece-me como um
mesmo quando isto fosse facilmente justificável, até negociável: uma vez dos concursos fundamentais da escola na luta contra o fracasso escolar. É
que é obrigatório. na medida em que uma escola esforça-se para lutar contra o tipo de alunos
Donde.o sentimento de muitos alunos que sempre estão a ponto de se- mais profundamente em dificuldades (o que sem dúvida alguma implica nu-
rem pegos em erro;· uma ameaça velada mas constante: "a gente se sente ma sociedade aberta neste sentido) que a autoridade do professor pode to-
cercado"; e finalmente a convicção que a escola é agenciada de tal modo mar seu caráter específico e então pode se tornar verdadeira quando disser
que eles estejam sempre aptos a estarem em "erro". Um mal-estar vago, aos alunos: "Vocês estudam para vocês, não para mim", n em, por mim,
bem contrário à alegria. O mais temivel é talvez esta impressão difusa entre para forças sociais que lhes são hostis. O trabalho escolar pode não com-
muitos, muitos jovens e também entre um número considerável de adultos portar luta entre interesses opostos e então a autoridade do professor não se
(e sabe-se a teorização efetuada por alguns) que o essenciial da escolâ" seria apoia em fundamentos materiais que o conduziriam, o obrigariam a ser
cuidar dos jovens; é para se chegar até este ponto mais comodamente qúe submisso. Alunos e professores podem se manter do mesmo lado em rela-
nós os colocamos reunidos em um mesmo lugar; vamos ensiná-los a apren- ção à tarefa. É na medida em-que a escola fracassa, renuncia a ser lugar de
der a ceder, prepará-los para uma submissão de cujos poderes, em seguida, alegria que a autoridade do professor tende a se aproximar da do patrão; o
215 Quanto a "minha" escola A alegria na escola 216

poder em classe como repressivo e culpado ·marca o fracasso do esforço cul- pela qual sofrem fundamentalmente é pelos conteúdos inadequados; em
tural. parte enxergam corretamente, pois os conteúdos inadequados surgiram das
Daí descobre-se uma reciproca prometedora: o trabalho escolar que obrigações e relações contrárias à alegria.
afirma sua especificidade poderia ser o chamariz, a promessa do que seria A intolerância depende muito menos das características, das indivi-
um trabalho adulto não alienado; percebe-se no trabalho escolar que setor- dualidades presentes do que daquilo que é ensinado, conforme isto encontra
nou satisfação que o trabalho pode não ser punição, expiação, maldição. ou não as expectativas dos alunosi é essencialmente na medida em que a es-
Os privilegiados não são aqueles que não estudam, mas aqueles que podem cola tem vontade de impor aos alunos uma cultura que não mantém relação
estudar uma tarefa que lhes dá satisfação. profunda com o que os atrai, o que eles já experimentaram, adquiriram eles
mesmos que a incompreensão torna-se vazia e aumenta o risco de autorita-
Relações que destróem a alegria - Mas, é preciso ir mais além e ques- rismo; o grupo dos jovens constitui-se então como distante. 9ortanto peri-
tionar-se sobre as obrigações e relações que são contrárias à alegria, incom- goso. Em suma as relações e obrigações não são causas primeiras, mas con-
patíveis com ela. seqüências da atividade cultural proposta e é portanto ela, antes de tudo,
Creio ser em torno deste tema da humilhação que este exame de cons- que se trata de t ransformar. Aos alunos que declaram: ''Este ano não gosto
ciência pode se desenvolver com maior intensidade: os alunos são muitos de matemática, porque não tenho mais o professor que gostava", responde-
mais profunda e freqüentemente humilhados na escola do que o que se acre- ria primeiramente reconhecendo que, é verdade, o gosto por determinada
dita: a dignidade de cada aluno, a consideração que lhe ,é devida, será que matéria. passa freqüentemente pelo afeto por determinado professor; resta
são assuntos abordados com freqüência pelos professores? O que é imcom- saber se os dois professores em questão ensinam realmente a mesma mate-
pativel com a satisfação, não é a obrigação, é a desvalorização: "o contrá- mática; matemática obscura e matemática adaptada aos alunos, é a mesma
rio da humilhação, não é a igualdade, mas sim a fraternidade" [2]. matéria? E principalmente, mesmo se é um ponto de apoio útil, eis aqui um
A obrigação de ser avaliado nos seus desempenhos sempre corre o ris- estágio a ultrapassar: o papel do professor querido é de conduzir até o gos-
co de se transformar em depreciação das próprias pessoas, e isto repercutirá tar da matemática em si mesma; o objetivo a atingir é que o aluno goste de
também na imagem do aluno junto a seus colegas. Muitos alunos trouxe- matemática, que o professor seja simpático ou não.
ram-me reflexões irônicas, debochadas, ofensivas, que o professor tinha di-
to em relação a sua origem, sua linguagem. Provavelmente isto aparecia Relações entre pessoas, relações entre culturas - Dessa forma além
com freqüência ao adulto "atormentado pelas crianças" como seu único das relações entre pessoas, colocar-se-á em questão a relação ou melhor o
meio de defesa. Mas será que ele percebe o alcance de suas palavras e que a conflito.das culturas e aprender-se-á que a humilhação das pessoas jovens e
gente se instala num circulo vicioso de assaltos e vinganças? a desvalorização da cultura dos jovens estão intimamente ligadas.
Os riscos inerentes a instituição escolar são apresentados para se de- É preciso reconhecer realmente que a escola é de início lugar de diver-
senvolverem sem obstáculo; o professor tranqüilizando-se ao tentar acen- gência entre as maneiras de ser: do professor aos alunos, desacordo de ida-
tuar a inferioridade da criança diante dQ adulto; e então seu poder, em lugar de, de formação, de gostos; corre-se~o risco de que o professor esteja volt!l-
de lhe dar prestigio, servirá de escudo. cj.o para o passado, para seu passado que o justifica enquanto que os alunos
Talvez mais que a família e até que a sociedade no seu conjunto, a es- estão voltados para o futuro. O professor tem dificuldade em aceitar a ju-
cola tenha a tentação de formar o aluno pequeno, dependente; um ser que ventude deles, que não é a sua. Quanto mais ele se envolve com seus alunos -
se vai comandar incessantemente, segurar pela mão. e com a cultura que ele quer lhes revelar, mais ele tem dificuldade em supor-
Não é fácil para o professor escapar destas tentações, é preciso para tàr o que sente como uma concorrência ou melhor uma intrusão: a vida de
isso um esforço sobre si mesmo e uma constante reflexão crítica. seus alunos fora de sua ação, fora da escola;_valores e modos de vida tão di-
ferentes dos que ele gostaria de vê-los adotar.
Os alunos se enganam, os alunos têm razão - Acredito que em gran- Por sua parte os aiunos sentem em primeiro lugar a escola como lugar
de parte a consciência dos alunos é mistificada e portanto começarei direta- onde lhes dizem: parem de falar sua lingua habitual, de ler suas histórias em
mente de suas queixas. Consciência mistificada, isto é, que conduz a uma quadrinhos habituais; interrompam sua existência habitual. A partir daí
realidade, mas interpretada seguindo somente uma parte da experiência. seus protestos contínuos: os adultos e particularmente os professores rejei-
Em parte eles se deixam levar pelas aparências e não apreendem que a razão tam sua cultura, sua cultura de jovens sem mesmo conhecê-la, sem fazeres-

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217 Quanto a "minha" escola A alegria na escola 218

forço, o passo adiante, o passo em direção a eles que permitiria reconhecê- te eles terão acesso à dignidade da escolaridade: "Vamos construir grandes
la: "eles não tentam compreender nossos gostos, nossos problemas, recu- escolas para você, onde os grandes homens poderão ficar; e é em sua com-
sam o que nós gostamos". E isso significa também: recusam-nos uma vez panhia que você conhecerá toda a civilização que vale à pena" (3).
que não há realmente terreno comum entre eles e nós. Conflito entre as cul- A proibição de ultrapassar o obstáculo entre as culturas ou impossibi-
turas, daí desentendimento entre as pessoas; como os jovens poderiam con- lidade de superá-lo jogam em sentidó inverso, mas de maneira também-defi-
fiar profundamente naquele que só tem desprezo por algo do que eles ex- nitiva em Mendel ou Illich.
traem seu entusiasmo e sua originalidade? A aposta é a satisfação ou .a não- Para Mendel, os jovens recusam a herança socio-cultural de seus ante-
satisfação na escola: se as duas culturas e as duas posições são sentidas co- passados, doravante completamente inadaptada, separam-se do mundo
mo opostas; os alunos vão se resignar da melhor maneira possível ao mundo adulto e reagrupam-se entre si, e sua cultura de jovens basta-lhes ao mesmo
escolar,' freqüentemente concentrando aí seu prazer na busca das "satisfa- tempo em que ela se basta a si mésma.
ções intermediárias"; na pior das hipóteses riscos de desencorajamento, de Illich opõe a cultura imediata, a cultura das pessoas instruídas à cultu-
fracasso e mesmo de complacência ao fracasso, uma alegria triste de ser mal- ra elaborada dos especialistas, dos peritos - a qual tende somente a conse-
sucedido: "eles não souberam fazer com que eu obtivesse progresso". qüências catastróficas: privar os usuários, a massa dos usuários de sua expe-
riência, despojá-los dos modos de vida que estavam adaptados, para lhes
impor sistemas de conhecimentos e de regulamentação em discordância
U - Ultrapassar o conflito · constante com suas necessidades.

Se o tema continuidade-ruptura tem algo de real, a escola pode sair Não considere seus alunos "tolos" - Não se afastar dos interesses
deste impasse: é possível ao professor ultrapassar a vida quotidiana dos alu- dos alunos constitui um fator essencial da tarefa do professor, o que não
nos, pedir aos alunos para ultrapassarem sua vida quotidiana sem desvalori- significa absolutamente destruir seu estilo, nem abandonar a preocupação
zá-la nem desaprová-la; minha escola espera dos professores que, sem re- de vê-los evoluir. E primeiramente não considerar'seus alunos, ousaria mes-
nunciar completamente à cultura elaborada, eles estejam abertos para a cul- mo dizer, como "tolos" - digamos de maneira mais acadêmica: incultos,
tura dos jovens, que reconheçam o valor de seus gostos e seus modos de bárbaros - o que, no dia a dia é talvez o mais difícil. Preparar-se para ser
vida. professor, progredir na profissão de professor e mais tarde, apesar da dife-
Não conduzir as jovens a um conjunto de insuficiências, de incapaci~ rença de idade e de hábito que evidentemente se acentua; não se enterrar: é
dades, eles agiriam somente pela moda, entusiasmo de grupos, para f4;ar ordenar, desenvolver e em seguida m·anter as exigências da cultura elàbora-
bem. Não recusamos o que lhes toca, sua maneira de abordar a existência: é da e o acolhimento da cultura primeira.
sem rejeição de sua cultura primeira que esperamos vê-los progredir rumo Não só a dificuldade, mas também a grandeza desta tarefa repousa no
às satisfações da cultura elaborada. Aceitar realmente, gostar dos alunos fato de que o professor deva ter afeição não simplesmente por determinadas
como eles são para levá-los a ser tais como deveriam ser; confiança primor- pessoas jovens que ele possa conhecer, gostar, mas pela própria juventude.
dial no aluno como digno de ... capaz de progredir em direção às tarefas cul-
turais, capaz de atingir a satisfação cultural para a qual queremos direcio- "Meu" professor consegue convencer, tranqüilizar seus alunos - E
ná-los. Respeitar os alunos é considerar o que eles são e o que eles podem vir muito pouco dizer: o professor não •:manterá" os jovens pelo apelo inces-
a ser; em suma aceitar as pessoas e principalmente os jovens como eles são, sante de sua fraqueza, não os conduzirá à situações em que somente sua fra-
mas não aí. queza apareceria; será isso paradoxal? Cabe a ele assegurar muito freqüen-
temente aos alunos uma imagem valorizada de si mesmos: persuadí-los que
A Escola tradicional não atinge esta meta, e certos inovadores tam- eles têm coisas a dizer, coisas a fazer de que valem à pena - enquanto que
bém não - É provavelmente o drama da escola tradicional desconhecer es- com freqüência o movimento da sociedade adulta vai murmurar aos jovens,
ta contínuidade entre as culturas; para Alain, a cultura primeira dos alunos aos explorados e aos jovens explorados que o que eles podem trazer, não é
não tem o direito de cidade na escola, a escola não tem com que se preocu- realmente significativo. Cabe ao professor fortalecer entre os alunos uma
par. O professor só quer ter a ver com "algumas dúzias de homens mode- garantia que, apesar das aparências de desenvoltura, faz-lhes freqüente-
los"·, os que são' 'a honra de todo homem e sua verdadeira pátria". Somen- mente falta. Convencê-los de que eles não são menos vencedores que os
219 Quanto a "mi11ha" escola A alegria na escola 220

mais velhos; e que sua época, o futuro de sua época, portanto o seu futuro III - Progresso das relações, progresso da cultura
do mesmo modo, se eles ultrapassarem as imensas dificuldades, também
comportam possibilidades, esperanças, recursos que não dispunham até en- Numa escola renovada pela satisfação cultural, o que seriam as rela-
tão. De fato caberá sempre ao professor dar aos jovens consciência dos ções entre professores e alunos?
valores da juventude, fé nos valores da juventude. É testemunhando-lhes A pergunta afetiva dos alunos será satisfeita e modificada uma vez
uma confiança naquilo que já são que o professor os ajudará a progredir em que quero introduzir as relações calorosas no centro ·de uma exigência de
relação à satisfação cultural escolar: ousarão enfrentar o diflcil; não se re- progresso cultural.
cusarem a si próprios, recusar seus valore:s, mas elaborá-los, explicitá-los, A especificidade real destas relações é que elas se estabelecem em, por
elucidá-los para realizar saltos de ultrapassagem. A escola não resolverá o e para a satisfação cultural escolar, tenderam para a satisfação cultural es-
conflito ou pelo menos a incompreensão entre professores e alunos abando- colar, não esquecendo nunca que os conteúdos culturais renovados cobrem
nando sua própria tarefa onde ela é insubstituível: determinar uma arranca- os campos da compreensão, do sentimento e da ação. As relações professo-
da, levar a uma diferença de nível. res-alunos sob a mais elevada forma, é a participação dos jovens na cultura
Procuraremos os casos, os campos em .Que o professor e os alunos, elaborada, o que, na cultura elaborada, corresponde à sua expectativa con-
cultura do professor e cultura dos alunos, poderão vibrar com as mesmas tanto que seja criadas as situações em que esta expectativa poderá ser enten-
coisas. o que é que na cultura passada deve, ao menos em uma grande parte dida, decifrada. Daí um tipo de ligações pessoais que se criam nesta ocasião
· dela mesma, ser transmitiç:io a fim de se ver consagrado, sem contestação; o e tornam esta ocasião possível: os sentimentos específicos que o aluno tem
que é que na cultura elabor~da pode dizer respeito aos jovens de hoje, a para com aquele que é indissoluvelmente uma pessoa à qual se está ligado e
ponto de que aceitem a ruptura, o esforço de ruptura? Conforme as circuns- o intermediário adaptado para um determinado tipo de satisfação cultural;
tâncias, isto se apresentará primeiramente na técnica ou na poesia ou ... aquele que se distingue por uma fisionomia úníca, e. é também o caminho
pelo qual a ascensão cultural se realizará. Entre professores e alunos nem
Ouvir os apelos - Ao mesmo tempo que suas oposições, suas críticas, frieza, nem ternura passional. O professor e os alunos ligam-se uns aos ou-
os jovens nos oferecem também suas expectativas, seus apelos - ou melhor tros no seu movimento em busca da satisfação cultural, na satisfação cultu-
as críticas constituem a outra face dos apelos; e é isto que faz com que a es- ral desse progresso em busca da alegria. Os alunos ligam-se ao professor no
cola como lugar de satisfação cultural torne-se possível. reconhecimento de seu papel acerca deste progresso. Fazer jorrar as rela-
O jovem espera do professor que ele o ajude a reduzir seu egoísmo, a ções "boas" do que é ensinado, unir as relações de pessoa a pessoa para um
não se deixar levar pela agressividade: isto supõe ao mesmo tempo uma ma- objetivo: a cultura, a satisfação cultural escolar. Isto significa ligar-se ao
neira de viver em classe e conteúdos culturais que se abrem para além do aluno como aluno, no seu status de aluno, porque aluno; valorizar a pessoa
egoísmo e da agressividade. Saberemos nós mostrar-lhes que o mundo que escolar dos alunos, seu modo. de presença escolar; tratar o aluno como alu-
lhes deixamos de herança não é redundante a ponto de desencorajar-lhes a no, nem mais,.nem menos e atingir uma relação verdadeiramente escolar,
boa vontade e que esta cultura a qual os incitamos desempenhou um papel dar toda sua dignidade na qualidade de aluno. O professor é o único a ter
·positivo nas progressões? (4). . - esta visão do aluno, do que é o aluno tanto em sua relação com o cultural
O jovem espera do professor que ele o ajude a ultrapassar sua juventu- como com ~ vida do grupo classe.
de sem anulá-la; isto implica que sejamos capazes de propor-lhes uma
cultura adulta onde os valores, os ideia~, os· significados da infância, certa- Relações laudativamente escólares - Os alunos (e"também os profes-
mente são profundamente modificados (senão por que vir à escola?), mas sores) têm mil razões para desejar wna atmosfera de calor e -harmonia. A ta-
estes não se perderam, dissiparam-se; pelo contrário, afirmaram-se, confir- refa indispensável, e que a satisfação cultural escolar torna possível é .susci-
maram-se; os sonhos de herolsmo não se passarão mais nas ilhas desertas ou tar estas relações inais "humanas" na própria escola, no decorrer do perio-
nas interestelares, mas ainda resta lugar aqui para muitos atos heróicos. do escolar, isto é, onde há obrigação, esforço escolar, avaliação; não imi-
tando, transpondo relações de lazer, de coleguismo ou de família. Esses de-
sesperam-se com a escola poi;que só acreditam possível o calor fora dela ou·
a· escolaridade sem calor.
i É pelo seu ensino, e não fora dele, que o professor pode muitas vezes
1

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)
221· Quanto a "minha" escola A alegria na escola 222
ir além do ensino, rumo a vida íntima do aluno, uma simpatia para com sua Nem o professor como máquina anônima para despejar conhecimen-
vida íntima, na medida em que os alunos integrarão a cultura à sua intimi- tos, nem os alunos que falam de si mesmos aô invés de falar de V. H., mas
dade, onde a cultura e sua cultura repercutirão sobre sua existência profun- sim os alunos que falam de si na sua relação com V. H.: as dificuldades em
da (5), e isto é real porque a cultura não se limita ao puro intelectual. Há se chegar até ai; o que, de V. H., pode ter -ressonância, e<:o em sua v_ida. O
uma especificidade da relação professor-alunos e é importante manter esta professor apresenta V. H. em relaç"ão a ele mesmo, faz sentir o que V. H.
especificidade para que a criança viva as riquezas complementares dos dife- lhe oferece; o professor apresenta V.~.H. em relação aos alunos: o professor
rentes setores de sua existência. tem de construir elos entre o que são os alunos, sua vida e V. H.: sob quais
Em família, os pais amam seu filho, simplesmente porque é seu filho; relações esses alunos podem ser sensíveis a V. H., à esta satisfação cultural?
cada um vale por si, pela simples razão de aí estar. Na medida em que o professor pode ser o modelo, -a identificação com
A escola é organizada para que o aluno faça suas provas, percorra um o modelo, a idealização do modelo, a necessidade de admirá-lo, respeitá-
trajeto ascendente. lo, de ·aí procurar reconforto contra a angústia é ao mesmo tempó desejo de
Deste modo a profissão de aluno é provavelmente a única que com- se comparar com ... de estar no lugar de... tomar o lugar... ao mesmo tempo
porta na sua definição não permanecer ao seu nível, elevar-se incessante- impulso e recusa.
mente e, neste sentido, é uma profissão particularmente diflcil; não nos sur- Num sentido esta ambigüidade é indispensável e o professor deve ser
preenderemos se determinados alunos preferem um emprego assalariado; capaz de aceitar uma certa agressividade, e no entanto a relação pode ser
como eles dizem: a gente gosta mais de "trabalhar" - estas são então tare- purificada: passar do modelo puramente pessoal para o modelo que apre-
fas muito mais imediatamente a seu alcance que as ambições escolares; além senta as obras-primas, é do mesmo modo diminuir os riscos de se perder nas
disso o objetivo é perceptivel de maneira mais direta e elas têm a sensação disputas, nas censuras recíprocas e intermináveis, nas ladainhas dos erros
de já se integrarem no mundo dos adultos. Ao mesmo tempo uma determi- passados.
nada escolha marca mais evidentemente o fracasso da escola junto a estes.
A familia é por excelência um lugar de amor intenso, ardente, conse- O professor, o ator - Gostaria de comparar o professor com o ator.
qüentemente tenso, sempre agitado; ardor, culpabilidade e agressividade Ambos servem a uma causa que os ultrapassa. Preciso que o ator abra cami-
podem ainda ser dissociados? A relação professor-alunos, nos melhores ca- nha para mim rumo ao texto - e cada ator apresenta o texto diferentemen-
sos de sucesso, pode constituir um suporte mais estável e mais estabilizador. te; tenho necessidade de ligar-me à personalidade de tal ator; vou ver tal
O bom professor "gosta" dos alunos mas é significativo não falarmos aqui ator em Moliere. Entretanto isso é apenas um primeiro nível; o progresso a
de amor, termo que imediatamente evoca saltos e sobressaltos. Uma afetivi- ser atingido e assim mesmo chego a Moliere e gosto dele.
dade diferente e complementar da ligação com a família, com os colegas co- · O público testemunha os grandes atores, os grandes intérpretes um ti-
mo da procura sexual. po específico de reconhecimento porque eles lhe permitiram chegar até a
obra, não porque eles teriam se voltado em direção a este ou aquele para es-
Ter como professor uma verdadeira pessoa - Contra certas tentações tabelecer com ele laços particulares: por que os alunos não fariam o mesmo
de diss~l~e~ o papel do professor na intervenção das máquinas pedagógicas em relação ao professor, quando ele os guia em direção a satisfação cultural
ou das m1c1ativas tomadas pelos próprios alunos, quero afirmar a necessi- escolar? ·
dade do professor como intermediário pessoal e personalizado entre o mun- Em todos os campos, temos necessidade, os jovens em particular têm
do da juventude e o mundo da cultura: o representante da cultura elaborada necessidade de se apoiar em·estrelas, incluindo-se ai as estrelas da cultura. O
junto aos jovens. Ele a representa de uma maneira mais adaptada e mais que seria preciso para que o professor fosse estrela?
atraente que os encontros comuns.
Para progredir na cultura, o aluno necessita do filtro de uma persona- Grandeza do ridfcu/o - Evidentemente o professor se presta ao ridí-
lidade; o acesso à satisfação cultural escolar passa por uma pessoa que co- culo, é ridículo - aos olhos de seus alunos, aos olhos do conjunto da popu-
nhece a satisfação cultural, sabe fazê-Ia partilhar e se esforça para viver a lação (muito raros são os filmes em que o professor aparece como simpáti-
classe de maneira que ela seja partilhada. Um professor que vive as idéias co, atraente) e o que mais temo é que com o tempo ele assim se torne tam-
~ue enuncia; nele, por ele as idéias são encarnadas - e é freqüentemente as- bém aos seus próprios olhos.
(.
sim que os al~nos começam a levá-las em consideração~ O irrisório provém das contradições que man~am seu"papel": por um
223 Quánto a "minha " escola A alegria na escola 224
lado ele está em evidência; ele tem, ele pensa manter, pelo menos em sua dades militantes. Um dos meios mais eficazes desta famosa abertura da es-
classe, o lugar de estrela; mas as verdadeiras estrelas, por exemplo, um can- cola é provavelmente uma personalidade magistral aberta. O aluno tem ne-
tor de sucesso, só aparecem ao seu público em alguns espetáculos rara e cessidade de confiar em um adulto, em um certo adulto, em um professor,
excepcionalmente, no aparato da solenidade - e somente nos momentos mas o professor só pode conquistar esta confiança testemunhando que ele
em que todas suas forças estão concentradas em direção a sua atividade ar- se esforça para colocar seus atos em relaç.ã o com suas palavras, que ele por
tística, em direção à emoção que eles vão suscitar: nós vemos o professor sua vez contribuiu para preparar para os jovens um mundo mais acolhedor
muitas horas e muitas vezes; desde então seus tiques, suas manias revelam- às suas forças novas.
se; suas forças dispersam-se entre cem tarefas, a multidão das prescrições,
ordens, sanções, recomendações nas quais ele se afoga; sua preocupação Parceiros - Na minha escola, os alunôs não se tornam iguais aos pro-
primeira, constante, é aguentar, não se deixar devorar. Contradição entre fessores, não lhes prometemos que eles serão iguais aos professores; mas
um sonho de ser amado por ele mesmo, pela matéria que ele representa - e eles não são subordinados, inferiores, a serem "amestrados", nem irrespon-
o desgaste, a erosão de seu prestígio; daí oscilações entre o autoritarismo e o sáveis a serem mantidos em tutela continuamente.
esforço para agradar até para divertir; esta incoerência presta-se facilmente São os parceiros culturais: é a cultura, a satisfação cultural que estabe-
para gozação. lece a comunidade pois associação crescente com mesmos valores e a distân-
Mas é um ridiculo pela bela ambição, ambição bela demais: o profes- cia, distância que se trata precisamente de diminuir: desnível entre a cultma
sor é ridiculo porque ele caminha ao lado do sublime. Um medíocre que do professor e a dos alunos, e é ai que fundamenta o desnível entre as
permanece na mediocridade não é ridículo. Um "simples" professor que . pessoas.
tem a au!iácia de se mover ao nível do sublime e que tem corno missão esta- O que justifica a autoridade do professor é que ele está mais próximo
belecer-o contato entre a massa dos garotos e os mais belos sucessos huma- de determinados ângulos essenciais da satisfação cultural que a eleva e pode
nos não poderá se manter sem cessar nem em todas suas atitudes a uma de- · portanto ajudá-lo a completar seu trajeto. Competência que é o sentido
terminada altura, menos ainda erguer até aí toda sua classe; haverá quedas e primeiro da autoridade.
elas causarão risos. Os alunos não devem ser submetidos aos humores, às decisões sempre
Mas houve, em alguns momentos, apercepção além da escala trivial ... mais ou menos arbitrárias de um homem, nem ao regulamento impessoal da
Quando vejo os professores serem gozados em determinados livros e escola; os alunos não têm de aprender a subordinação a um homem. Têm
filmes de sucesso, pergunto-me se a classe dominante não procura se vingar obrigação, em todos os sentidos do termo, com relação à cultura; pela auto-
assim das decepções que eles lhes causam não se dedicando a ela, como ela ridade do professor, eles vão se formar na hierarquia libertadora da cultura.
sempre o esperou, seus pontos de vista conformistas, antes de tudo sua des- · A autoridade do professor é uma conseqüência da natureza do cultu-
confiança em relação ao progresso cultural das massas. ral, não uma causa primeira. Na realidade professor e alunos estão todos
engajados na hierarquia da cultura, mas em diferentes planos, e distâncias
Os alunos exigem dos professores que sejam felizes - Os alunos são diferentes. É porque a autoridade do professor pode não ser humilhante: é
assim objetos de exigências mútliplas; mas por sua vez eles anunciam exi- possível, ou melhor, é essencial, e isto desde o início da escolaridade, que os
gências em relação a seus professores. Freqüentemente eles tomam a ofensi- alunos sejam levados a sério , tratados com respeito - visto que se trata de
va e perguntam, perguntam-se: será que os professores realmente aprovei- fa'Zê-los partilhar de uma alegria.
tam de sua cultura? São eles, mais felizes, mais eficazes por causa dela?
Questão profundamente justificada. O professor deve poder demonstrar em
toda sua pessoa, o valor de seu sucesso humano: alegria de existir a partir da SEGUNDA SEÇÃO - MANTER A OBRIOAÇÃO
alegria de compreender, agir e progredir na proposta da cultura. E é ela que
fundamenta a alegria de comunicar o que foi assim adquirido, mesmo se Isto posto, minha escola não renunciará de forma alguma à obriga-
nos dois casos o dramático aflora e transtorna. Os professores não são con- ção, pois o cultural elaborado, na medida em que está em ruptura com a ex-
fiáveis se eles mesmos não forem testemunhas de um desabrochar. Manifes- periência imediata, pode conter o difícil e o um pouco diferente - ao que
tação do professor e que será tanto mais real quanto unirá as relações com não chegare;111os sem obrigação; a tensão rigorosa em relação à satisfação a
os alunos e um acesso ao conjunto do ·ambiente, à opinião pública, às ativl- ser CO_?quistada corre o risco de relaxar ·antes de ter atingid:o seu termo, se
225 Quanto a "minha" escola A alegria na escola 226
ela não for mantida pela obrigação. E por outro lado minha· escola quer se
dirigir a todos, obrigatoriamente a todos, mesmo aqueles que, num deter- termos em sua autonomia. Quero ir até obrigações justificadas aos olhos
minado momento, não teriam necessidade dela. dos alunos, em sua vida de alunos porque elas tornam o caminho mais
Não temo que a obrigação em si seja incompatível com a alegria: cuja adaptado rumo à satisfação cultural escol~r. ·
prova vejo no sucesso, junto aos jo\'.ens, do esporte, do trein_<;> esportivo fo- Se pudermos chegar a um mesmo resultado, à mesma alegria, sem
ra da escola: a atividade "de lazer" que é escolhida mais freqüentemente e obrigação nem exigência institucional, a obrigação seria inútil e portanto in-
com mais entusiasmo é aquela que possui mais obrigação, mais regulamen- justificável, monstruosa: a escola também. Que os alunos lembrem-se o que
to, mais disciplina: um adulto está presente e é levado a respeitar estrita- .~ foram suas experiências de satisfação cultural na escola: fizemos algo de vá-
mente as regras e as técnicas estritas. Não basta dizer que aqui, ao contrário lido, não nos restringimos a pequenos compromissos; fomos levados rumo
da escolaridade, existe a escolha e possibilidade de abandonar sem drama: a alegrias essenciais, alegrias interessantes; eles são portanto muito fortes pa-
na verdade a obrigação não é somente adm.itida, mas procurada a medida ra terem experimentado este tipo de alegria e quererem novamente prová-la;
em que os jovens fazem a experiência que os conduz à uma alegria a qual e no entanto eles podem sentir o quanto lhes é difícil manter-se em alto nível
não teriam acesso de outra forma: intensidade, façanha; colocar-se à prova. e durante um longo periodo de tempo.
Incessantemente recaímos na tentação do fácil, so;nos retomados pelo
A escola fácil demais? Às vezes chego a me perguntar se, não é porque ·já conhecido, já familiar. E é então que eles podem:, desejar a obrigação,
a escola é fácil demais para uma certa categoria de alunos, porque permane- chamar pela obrigação para serem "coagidos" a progredir em direção à sa-
ce próxima demais da rotina quotidiana, em suma porque não comporta tisfação cultural escolar. E é esta união da satisfação cultural e da obr~gaçãó
obrigações de uma ordem bastante elevada em relação ao conjunto da per- que constitui. a própria alegria na escola.
sonalidade e das ações possíveis que ela suscita pouco entusiasmo. Será que
realmente vale à pena ir a uma escola que não se diferencia do hâbito, da As obrigações: algo sobre o qual discute-se - Gostaria que minha es-
alegria habitual? cola muitas vezes impusesse obrigações e as justificasse, as explicitasse, o
Num certo sentido, minha escola vai tornar o diflcil mais dificil: pri· que leva a questioná-las e negociá-las. Será possível um consenso sobre o
meiramente porque ela não se refugiará atrás da desculpa cômoda de um obrigatório?
mais tarde indeterminado. Em seguida porque ela quer ampliar o cultural O problema se coloca com mais acuidade quanto às obrigações que
em todos seus domínios e confrontar todos os alunos em todos os domínios, não parecem levar ao apaixonante de maneira convincente. Decorar nomes
incluindo-se ai a estética, o técnico, o corporal. Enfim porque ela quer colo- próprios de portos do Chile, enquanto que, evidentemente, poderemos en-
car exigências cultura\s intensas e visar explicitamente o essencial: as gran- contrá-los em um Atlas, em ocasiões (bastantes raras) em .que tivermos ne-
des ot?ras literárias, os resultados e métodos científicos elaborados, as téc:li- cessidade. É preciso renunciar a isso? Ou melhor de mudar de opinião sobre
cas de.a lto nivel, as grandes tarefas, as grandes organizações: heróis muito o que chamaria de satisfações intermediárias, como a satisfação de exercer
acima do homem médio, de todos nós. O que exige do aluno que ele torne a sua memória - mas poderíamos colocá-la em execução em várias outras
questionar profundamente as atitudes de seu nível comum. atividades? ·
Minha escola gostaria de se perguntar - e também perguntar-lhes
Manter a obrigação transformando-a, para transformá-la - Mas considerando sua idade e seus problemas atuais, o que pode significar para
também quero transformar a obrigação; não se trata apenas dos alunos sen- eles conhecer o Chile: exotismo, diferença entre os países que eles conhe-
tirem-na de outra forma, mas sim que ela seja outra. cem? Problemas dos paises ditos em via de desenvolvimento, depois deste
Procurar com os alunos quais obrigações podem ser transformadas e país em via de desenvolvimento? É então que se trata de determinar até que
como, de maneira tal que eles sintam que sua ação adquire mais alegria; ponto de detalhe e precisão a geografia do Chile pode lhes interessar e qual
obrigar e verificar se, em um certo prazo, os alunos atingiram uma satisfa- carga de trabalho vão consagrar a isso. Dai pode-se tentar estabelece(' o nú-
ção cultural escolar que os torne felizes por terem sido obrigados ou melhor mero "razoável" dos nomes próprios a serem retidos.
de se terem obrigado. É a satisfação cultural escolar efetivamente vivida pe- Em seguida a isso fazê-los aprender obrigatoriamente e enfim consta-
los alunos que fundamenta e regula a obrigação e que vai transformá-la. tar qual satisfação cultural escolar eles tiraramn disso.
Dizer que a alegria supercompensa a obrigação é ainda manter os dois Haveria portanto sessões de discussão sobre o obrigatório (o que fi-
nalmente não me parece contraditório) para transformá-lo e interpretá-lo
227 Quanto a "minha " escola A alegria na escola 228
sobre uma nova ótica. É essencial que os alunos verifiquem este acordo en- cola; neste caso a escola dificilmente é substituível e é neste sentido que fa-
tre o esforço de realizar a alegria colhida somente após terem sido pressió- lo incessantemente de uma alegria própria à escola, específica da escola.
nados.
O professor: uma pessoa em quem acreditamos - Ao mesmo-tempo é
Manter e transformar o diferido - Uma das mais inadmissíveis obri- colocado em jogo a pessoa do professor como aquele que inspira bastante
gações da escóla tradicional é pressionar e finalmente habituar os alunos a 1
confiança aos alunos, para que acreditem nele, em relação àquilo que eles
aceitar que a recompensa, a alegria, a satisfação cultural, vem depois, mui- •'( mesmos não podem verificar imediatamente: por exemplo em matemática,
to tempo depois, uma vez terminadas a juventude e a escolaridade: "você quando nem todos encontram a .mesma coisa, não procedem da mesma ma-
verá, entenderá, isso lhe será proveito~o quando você for grande". A pri- . neira, pode ser o professor que dá segurança em relação a certo método, tais
meira reivindicação é que, evidentemente preparando-se completamente pa- resultados - aguardando que o aluno possa prová~lo com suas próprias
ra o futuro, a escola seja lugar de alegria para os jovens enquanto jovens. forças. A confiança é justificada por um passado recente vivido em comum.
Quero a alegria na própria escola. E no entanto não posso sonhar em supri- A questão se complica quando abordamos campos (história, geogra-
mir o diferido, pois é essencial que a escola realize a ruptura cultural e não fia) em que é o professor que oferece a garantia fundamental de verdade: a
permaneça ao nível do imediato, que os alunos aprendam pouco a pouco a solidez da relação que. terá sido atada, não é somente viver em conjunto,
ultrapassar tais dificuldades técnicas que, durante algum tempo, lhes barra- mas também questionar e aceitar lucidamente este tipo de envolvimento.
ram o caminha da alegria: ler não causa alegria para quem não adquiriu do- Formas supremas do crédito: o professor afirma que Picasso é bonito
mínio da leitura. antes que o aluno possa senti-lo. Ter construído pouco a pouco uma boa re-
Diante desse problema, minha escola procura atuar por fases tais que lação com o professor é para o aluno consentir em entrar ativamente num
o aluno possa apreendê-las de uma única vez onde ele verá seus esforços cul- período de espera ao mesmo tempo que de pesquisa; admitir suspender suas
minarem em alegria - estas fases sendo imediatamente variáveis segundo a reações imediatas, que a novidade choca quase inevitavelmente, acolher
idade, matéria e circunstâncias. com consideração as opiniões do professor. Em que vai ajudar a lembrança
A duração é uma das características específicas da escola: trata-se de das convergências precedentes? Naturalmente é conveniente que esta espera
transformá-la garantindo que o diferido será uma alegria que começa logo seja confirmada, transformada em admiração cultural sincera, sem tardar
como tal e que se desenvolve na medida em que se vai mais adiante; a conti- muito: isto é que o bom professor é aquele que sabe não propor Picasso
nuidade pode ser · também .a lembrança ou melhor a quase-presença, visto muito tempo antes que ele possa ser aceito pela classe; ele tambéni sabe não
que a vida da classe é um bloco que prossegue no tempo, satisfações cultu- esperar muito tempo. '
rais anteriores: foram obtidas a partir do austero, do diferido; a obrigação
que tinha prescrito manter, apoiar o esforço, já e mais de uma vez conduziu Absurdo e justificação do emprego do tempo - O emprego do tempo
ao que a satisfação amplia. aparece freqüentemente como o próprio tipo das pressões injustificadas da
Sonho com um professor dando como tema de estudo, por exemplo, escola: é obrigatório interessar-se por mateQlática segunda-feira das 9 às 10
um poema de difícil acesso: "é idiota", respondem ou pelo menos pensam horas, é obrigatório seguir as previsões estabelecidas com muito tempo de
os alunos. E há efetivamente um momento em que o poema não é bonito antecedência e que evidentemente não levam. em ·consideração o desejo,
uma vez que não se distingue nada nele. O professor prescreve: "vamoses- num determinado ~nstante de continuar uma atividade que interessa ou in-
tudá-lo''. Sonho com alunos que, num curto prazo, ao final de duas sema- terromper "antes da hora" um trabalho que se tornou cansativo. Não são
i estas interrupções o próprio tipo do arbitrário? Evidentemente o emprego
nas (não cinco anos mais tarde) exclamariam: "sim, isso vale à pena, a brin- L
cadeira vale à pena, ter dispehdido tantas horas na escola, ter-me interessa- do tempo pode s~r suavizado como quando se diz: os alunos devem "ter"
do por, ter passado por tantas pressões, pois agora sinto il alegria de pene- tantas horas de geografia por mês, mas eles guardam uma certa possibilida-
trar neste universo emotivo que até então ele tinha apenas pressentido" . de de dividi-las a seu bel prazer. Perspectiva interessante: resta perguntar-se
Não podíamos atingir esta alegria com pouco custo, somente podíamos che- como ela pode de um lado conciliar-se com a vida do grupo-classe e por ou-
gar até ela dificilmente, ai)oiando-nos na obrigação mesmo através de sacri- tro com a intervenção do adulto, a reestruturação pelo adulto dos assuntos
ficios: "um esforço que não teríamos mantido por nós mesmos' ', e·eis por- evocados. De qualquer maneira o fundamental do problema não é modifi-
cado. ·
que esta alegria tinha de tal modo menos chance de ser atingida fora da es-
229 Quanto a "minha" escola A alegria na escola 230

Se a classe é lugar de satisfação cultural escolar ou melhor para que a dificuldade em compreender ... É, ao contrário, um sinal que é preciso pa-
classe se torne lugar de satisfação cultural escolar, trata-se de transformar o cientemente fazer com que a criança penetre nela" [7]. Mas isto com uma
. emprego do tempo de modo que ele se torne apropriação do tempo: primei- dupla condição: que ela sinta esta introdução à matemática como algo que
ramente, ele será o que permite viver no organizado e no regular; "determi- lhe permita aproveitar melhor aquilo de que ela já gosta: por exemplo,
nar sua ação seguindo regras, princlpios, uma lei (e não) ao acaso do mo- pararemos rapidamente no prazer literário se não formos treinados para o
mento", diz Hegel [6). Uma pontualidade que é segurança, proteção que encadeamento lógico dos pensamentos; e que esta introdução se realize
não nos deixaremos levar pela impulsividade, pelo humor. Resta estabelecer "pacientemente", traduzirei de modo sistemático e individualizado.
estas regras como via em direção a uma satisfação positiva, sob pena de de-
clarar que toda atividade é educativa contanto que dê lugar a esforços e>.a-
tos, exatamente medidos, e dai concluiríamos então que Hegel é um bom
crítico. A seguir deve garantir que cada tarefa ocorrerá e não somente espo- Rumo a um sistemático individualizado - Ousar manter o sistemático
radicamente, ao imprevisto das ocasiões. O emprego do "tempo impõe inte- e portanto a escola na sua especificidade, diante daqueles que são tentados a
ressar-se por matemática segunda-feira das 9 às 10 horas: isto significa que abandoná-la para reaproximar a escola da vida quotidiana. Na realidade
segunda-feira das 9 às 10 horas temos certeza de ter tempo para matemática gostaria de uma profunda transformação do sistemático: eu disse anterior-
e sabemos de quanto tempo disporemos para matemática. Teremos bastan- mente que o papel da escola é escolher, através de todo leque da cultura ela-
te tempo para agir e refletir com calma, sem empurrões e sem tempo perdi- borada, o que é adaptado às possibilidades e às alegrias atuais dos alunos.
do; o emprego do tempo como afirmação de que não seremos interrompi- Mas todos nós sabemos que, em todas as classes comuns esta adequação se
dos, incomodados por ou~ras tarefas estranhas. realiza apenas para um pequeno número de alunos, dando a sua heteroge-
neidade: o elo comum é freqüentemente constituido apenas por uma idade
Um aluno que não escolhe e no entanto seria feliz - O diferido, o em semelhante 1, 2 até 3 anos de diferença.
prego do tempo implicam que o aluno não tenha a escolha de suas ativi- Quero transformar o sistemático individualizando o ensino de tal mo-
dades. Também gostaria ao mesmo tempo de manter e transformar esta do que se proponha situações escolares que possam ser dominadas por cada
obrigação em valor positivo de alegria: esta não-escolha pode se transfor- grupo de alunos e principalmente pelos mais oprimidos: "está bem para
mar em grarantia que cada um irá em direção à cultura em toda sua exten- mim, está bem para o meu nivel", na realidade exatamente acima deste ní-
são, abrir-se para o conjunto das matérias, mesmo aquelas que não o sedu- vel, um passo acima e um passo é praticável. É então que se pode incitar os
zem imediatamente. alunos a não largar mão. O que lhes pedimos é possivel e pode conduzi-los à
Isso exigiria que todas as matérias, devendo ser estudadas por todos, satisfação cultural escolar.
fossem efetivamente valorizadas - e por todos; tal que não se conceda uma Todo mundo diz: pedagogia do sucesso, e tem-se razão em dizê-lo.
prioridade esmagadora a idéia, com o risco de eliminar tal outro, isto é na Mas para mim isso não significa que os alunos vão escolher tarefas que lhes
verdade tais alunos: principalmente dar um lugar real ao trabalho técnico, convenham, nas quais poderão brilhar facilmente; mas se bem que as tare-
às artes, às atividades físicas. fas dispostas sistematicamente em relação a elas mesmas, encontrarão, em
A partir do que·nos esforçaremos para levar os alunos a sentirem que relação a sua própria situação, os pontos de apoio de que têm necessidade.
o tempo escolar, a juventude podem constituir um período em que se evita a Transformar, graças ao sistemático, a obrigação garantindo que a tarefa a
especificação; em que não se está ainda submetido à especificação; trata-se ser realizada o modo de vida e em particular a carga de angústia ligados a
de fazer com que aqueles que não se sentem atraídos por determinado cam- cada progresso são adaptados às possibilidades desse momento. A alegria
po percebam que é precisamente deste que têm necessidade e que é a com- '1
do rigor, do bom funcionamento só pode existir se o aluno não se sentir ul-
plementariedade das aproximações em direção à cultura que pode aumentar trapassado pela tarefa. Se o sistemático individualizado puder ser realmente
a alegria; um aspecto da satisfação cultural, é talvez viver o reatamento de aplicado, os alunos não terão mais oportunidade de desesperar na impres-
tal atividade preferida (pois não podemos nos apaixonar do mesmo modo são que está pelo menos no momento, fora de seu alcance.
por tudo) ao conjunto dos outros. A individualização das tarefas é não aprovar um aluno para o nivel se-
É um dos momentos mais verdadeiros de Alain quando declara: "É
guinte enquanto ele não tiver facilidade no nivel precedente: querer ensinar:
muito agradável decidir que' uma criança ignorará a geometria porque tem
"je les ai aimées" para um aluno que está na fase de escolher aleatoriamen-
231 Quanto a "minha" escola
te entre "aimé" e "aimer"• não é realmente ensinar. A individualização
pode tomar formas múltiplas e não é meu propósito aqui pormenorizá-las; CAPÍTULO IV
relembrarei uma palavra que podemos propor para tarefas diferentes ou pa-
ra as mesmas tarefas mas com explicações suplementares, e ainda mais ex-
plícitas quando nos dirigimos a alunos menos hábeis, que podemos também Minha escola e a liberdade
jogar com uma notação diferencial: apenas chamar a atenção de determina-
do aluno somente sobre alguns erros, aqueles que se encontram ao seu al-
cance; se ele confunde "et" com "est"• ou "son" com «sont"• não serve
para nada contar como erro "je chanterais" ao invés de "je chanterai"* in-
dividualização por gráfico em que constatar-se-á os progressos ou regres-
sões de cada um em relação a si mesmo; poder-se-á cumprimentar àquele
que comete seis erros ao invés dos dez habituais e dirigir censuras aquele
que, por uma espécie de descuido, deixou passar dois erros "bobos" en-
quanto que de costume ele não os comete. Individualização possivel tam-
bém nos ritmos de trabalho: alguns saberão "fazer" a divisão no final de
tantos exercicios, de tantas "fichas" para outros será necessário o dobro .de
exercícios. Confio na autocorreção comentada pelo computador individual
para realizar um progresso essencial neste sentido. Uma das razões do su-
cesso áos "métodos novos", é que dando mais lugar para a escolha pelo
aluno aumenta-se consideravelmente·as chances de adaptação indivídualiza- PRIMEIRA SEÇÃO
da da tarefa ao nivel do aluno. Entretanto, temo que, neste contexto, isso só
sirv!I. para certos tipos de tarefas e que a escolha às vezes tenda para o fácil. Por que não reconhecer, como não reconhecer as dificuldades que en-
Go~taria de uma individualização organizada, unir individualização e orga-
contro aqui [1] 7 .
nização. o que vejo melhor, são as duas possibilidades que não quero p~ra nu-
nha escola: de um lado doutrinar, "catequizar"; do outro, nada dizer.
O sistemático unindo-se com a continuidade-ruptura - No fundo mi- O risco de transformar a escola em órgão de propaganda de um parti-
nha primeira parte quis dizer que a cultura primeira forma um sistema com do, de uma religião, de um sistema de pensamento, até de uma class~ S_?ci~:
a cultura elaborada. O sistemático escolar renovado é particularmente o professor aproveitando da fraqueza dos alunos.' de sua men~r res1stenoa;
adaptado para introduzir o aluno neste sistema de continuidade-ruptura: vai usar, isto é, abusar de seu poder, de sua posição de autondade, de seu
sistemática da escola que organiza a ruptura com o nível primeiro do pensa-
Prestígio • talvez também de sua habilidade intelectual. . ?
mçnto e sensibilidade: abrindo um acesso sistemático ao patrimônio cultu- É realmente necessário evocar, enumerar as taras do doutrmamento ·
ral, construindo uma reestruturação sistemática, a escola pode suscitar o risco de simplificação, de esquematização, de um lado risco de mascar~ to-
choque, enfrentar o transtorno introduzido por objetivos de açã~ e pensa- das as dificuldades que existem e do outro os sucessos que foram obtidos;
mento que a vida quotidiana não é suficiente para perceber. E também siste- vai-se suscitar confrontos de pessoas e doutrinas na escola enas famílias.
mático da escola caminhando para o aprofundamento do que o aluno já ti- E mais fundamentalmente ainda, esta arregimentação é contraditória
nha previsto, somente previsto: o que a escola propõe ao aluno é a resposta, à educ;ção; se o aluno não sabe que posições diferentes ou mesmo contrá-
a elaboração de suas expectativas e lacunas de suas expectativas, e ela lhe rias são possíveis, válidas, são consideradas como válidas por grande ~úme­
propõe sistematicamente num determinado momento de ·sua maturidade. O ro, 0 confronto e portanto a dificuldade, o mérito em mante; det~rmmado
sistemático escolar torna-se garantia de que o trajeto é realizável, tem valor, ponto de vista dissipam-se e o valor da adesão torna-se nulo. E ~uito pouc?
retira os bloqueios em benefício da 'alegria. · dizer que a verdade não deve ser imposta; forçar uma ~e~sonahdade, apn~
sionar uma alma, é tão grave como violar um corpo, aprisionar um corpo; e
preciso dizer que o verdadeiro não pode ser imposto, o que se coloca nos es-

• Nota do tradutor: Erros comuns entre escolares franceses.


233 Millha escola e a liberdaae A alegria na escola 234

plritos, não é mais o verdadeiro, mas uma "coisa" fixa, inerte. O confor- çando-se para silenciar as interrogações e angústias de vida presente e vida
mismo no qual o aluno imita, copia, reproduz mecanicamente, diz desse eterna às quais na verdade ele se dedicou.
modo para ser bem visto pelo professor que pensa que a.ssim faz de modo Tais comportamentos não me parecem poder conduzir a uma escola
algum avançar no caminho da verdade: prova disso é que com o'utro profes- da satisfação: silenciamos sobre as questões que apaixonam o mundo, que
sor ele dirá de outro modo. · poderiam apaixonar os alunos; forjamos instrumentos, mas que se destina-
Por outro lado este modo de doutrina corre grande risco de ser. um vam a serem usados neste famoso "mais tarde"; e, aguardando, os anos es-
meio que o professor usa para se assegurar sem grande dificuldade. colares correm o rirsco ae se desenvoverem no abatimento, sem que se passe
Minha escola dirige-se a todos, é aberta a todos e trata de formar para algo importante. C~rtamente cooperar, mas para fazer o que? Encarregár-
a liberdade. se mas a que o indivíduo assim libertado consagrará sua autonomia?
Além do mais, nenhum método é neutro, pois todos os métodos reme-
tem a um conteúdo, de maneira mais ou menos velada, mas o que é velado
exerce aficácia benéfica ou per~gosa: não se aprende a ler sem ler alguma
1 - A escola. que não diz nada coisa - e o estudo critico dos manuais de leitura foi para muitos professo-
res uma revelação: era portanto isto o universo qué se apresentava aos jo-
Recuso também uma escola que não diz nada - co~o, por exemplo, vens e imaginava-se que eles iam reconhecer al sua experiência ... Contra 1\
quando se silencia sobre tomadas de posição que são vitais para os homens ilusão de aprender a aprender, deixarei a palavra a Durkheim': "É impossí-
de nosso tempo e portanto capazes de tocar os alunos em seu intimo; onde vel ensinar um espirito a refletir sem que seja sobre um assunto determina-
se proclama: "gostos e cores não se. discute ... a cada um sua verdade". Va- do. Não se reflete no vazio ... É fazendo-se pensar nas coisas que se forma o
leria à pena tanto sacrifício para chegar lá? espírito ... pensar justamente, é ter das coisas noções exatas" [2]. Os aconte-
cimentos históricos por exemplo não são somente estruturas temporais, mas
a) Este "não dizer nada" reveste.se de formas múltiplas: alguns acre- também e principalmente significados.
ditam escapar das dificuldades do doutrinamento esperando apresentar, e
com igualdade, uma amostra completa das convicções e argumentos: em se- c) O desprendimento, o indiferentismo, as posições ditas de meio-
guida caberã ao aluno escolher. termo: hã por toda parte um pouco de bom e um pouco de mau, portanto
Mas, qual professor poderá defender uma causa com o mesmo cator não se pode escolher, menos ainda agir nem engajar-se: levar os alunos a
a mesma, consagrando para isso um tempo igual, um dia em favor do anti~ considerar essas incertezas como naturais, evidentes, de bom sentido, é .
racismo e um outro em nome da desigualdade das raças humanas e a neces- iniciá-los em um.a caminhada de abstenção tão claraffi011t·e traçada apesar de
sidade para cada uma de se manter em sua pureza? su~ inocência ap.a rente, tão comprometedora em seu~ ~sultados que não
. Também não se pode reduzir o ensino a um questionamento sem nun- itp~Qtta qual dogmatismo. Haveria um pouco de veraade no racismo, assim
ca avançar em direção a respostas. .p1esino é,,J)lje0)so desconfiar um pouco mais daqueles que não são como nós,
· mas sem ir longe demais nem em um sentido nem em outro: é expor. os alu-
b) Inúmeros são os professores que procuram evitar ao mesmo tempo . nos a ficarem desarmados diante das batalhas de idéias que efetivamente se
os problemas controvertidos e os riscos de arregimentar seus alunos, restrin- liberam - e no mundo inteiro. Como poderão lhes resistir aos vencedores,
gindo-se a procedimentos que pensam constituir um bem comum a todos e quaisquer que sejam eles?
esperam estabelecer o acordo de todos: "formar por métodos", aprender a
Não é deste modo que descobriremos o caminho de uma imparcialida-
dominar os instrumentos, as ferramentas de pensamento ... desenvolver o
de onde se desenvolverá realmente a liberdade dos jovens.
sentido do tempo, a estruturação do tempo, situar-se no tempo, decifrar ~
estrutu.ra da narração"; o que se traduz da mesma forma no campo da d) O espírito crítico, o famoso espírito crítico não é de forma alguma
ação: "aprender a tomar iniciativas, assumir responsabilidades ... formar-se um procedimento universal de dúvida podendo aplicar-se a qualquer pro-
para cooperar... encarregar-se". E enfim as múltiplas variações sobre o blema sobre um modo uniformemente eficaz. Ou nós nos deleitamos em ba-
"aprender a aprender... aprender a ser ou tornar-se". tizar com nome de espírito crítico a recusa de qualquer afirmação clara e
Classicamente, estudaremos por exemplo Pascal sob o ângulo de al- nos envolvemos em uma onda e atmosfera inerte de cepticismo. Ou atingi-
guns formalismos: seu estilo sua biografia, o indivíduo que ele foi - esfor- mos realmente um espírito de exame, mas que só pode apreciar uma posição
235 Minha escola e a liberdade A alegria na escola 236

!lPOiando-se nos outros, consideradas como mais válidas, melhor funda- seu desenvolvimento; dever-se-ia somente segui-la, após ter-lhe dixado oca-
mentos em relação a um determinado problema colocado; só questionamos minho livre.
uma atitude a partir de tais objeções que lhe propomos e que elas mesmas Eis uma concepção ao mesmo tempo providencialista e fixista:
originam-se ou de outros andamentos ou de determinadas experiências pes- admite-se uma natureza humana definida, imutável, supõe-se pequenas al-
soais. Em cada caso, trata-se de organizar os confrontos e finalmente tomar mas; perfeitas para sempre, essências puras e inocentes - ou perdidas para
partido a favor e contra validads. Desenvolver o espírito crítico é uma das sempre.
tarefas essenciais da escola, mas que exige precisamente que se envolve mais Na verdade a criança está, no mais profundo dela mesma, imersa em
em favor de certos trâmites - e que se recuse outros. correntes de influências, ela se situa na encruzilhada das ações, das pressões
Para dar um exemplo de grande alcance, mas que pode servir para que se exercem sobre ela e das respostas que ela lhes traz apoiando-se em de-
esclarecer a prática corrente, Copérnico "crítica" Aristóteles batizando, terminada experiência já adquirida, sobre uma ou outra pessoa de seu co-
para um amplo conjunto de fatos conhecidos, um outro sistema de interpre- nhecimento. Seu desejo certamente é individual, mas ele nã9 é nada além de
tação [3]. "reflexão" individual sociais e culturais tais quais se misturam na família e
e) O silêncio é tomada de posição e neste sentido também constitui um na vizinhança". (4). E é exatamente porque os desejos diferem tanto segun-
mbdelo que age sobre o aluno: se os jovens Kaddours obtêm resultados es- do as classes sociais: o desejo de acordeão não é tão freqüente num determi-
colares ruins (fenômeno infelizmente!; estatisticamente constatado) e que o nado lado da escala social como o desejo de violão.
O desejo da criança não é o apelo cândido de uma Providência; ela
professor se contenta em registrá-los mantendo o silêncio sobre as dificulda-
não se precipita sobre o· conjunto dos conhecimentos a serem adquiridos,
des particulares, materiais e culturais nas quais vivem esses colegas, ele dei-
mas mantém-se freqüentemente no que já conhece, pelo menos aquilo que ·
xa a classe sem defesa contra ... e logo sujeita à ideologia tão evidentemente
se parece com algo que ela já conhece. O próprio Claparêde acredita que, se
difundida que os Kaddours são mais burros que os outros; prova disto é:
o gatinho somente tem de seguir seu desejo para correr atrás de um novelo
eles não são bem sucedidos. da lã - e é assim que ele é feliz enquanto prepara suas aprendizagens para o
futuro - , a criança não participa com um mesmo entusiasmo quando se
Sonho de agilidade - Enfim, para muitos, o bom professor seria trata de aprender os nomes dos portos do Cl)ile.
aquele que chegasse a não pesar sobre a personalidade de seus alunos; ele Certamente o desejo da criança contém ºcem elementos essenciais, ire-
não comunica sua opinião, ele não toma partido abertamente para estar se- mos retornar a este assunto em breve, mas primeiramente é necessário reco-
guro de não impor suas idéias: a rigor ele dirá seu ponto de vista pessoal, nhecer que ela não vai, por si mesma ao cultural, ao difícil da cultura: ele
mas sem insitir, como uma das posições possíveis dentre todas as outras. Na não constitui uma passagem fácil, nem trará alegria direta.
maioria das vezes aqueles que querem proceder desta maneira pensam que O desejo é capaz de muitas dissimulações: o desejo de possuir uma
basta proteger a criança de toda influência externa heterogênea - e então moto muito possante não a leva freqüentemente a uma inquietude, a uma
ela tornar-se-ia livre exibindo sua criatividade, extravasando suas forças in- necessidade de se tranqüilizar sobre sua importância, sobre seu próprio
teriores . Um professor de desenho dizia-me: "Eu destruiría algo de essen- poder? ·
cial se propusesse um modelo". Bastaria criar as condições que permitissem Freqüentemente o aluno, depois de ter estudado tal domínio percebe
à criança de se entregar ao seu própria desejo. que entrou no campo de seus interesses - e ele o teria desejado se o desejo
pudesse preceder o conhecimento.
Crítica do desejo - Acreditar que basta diminuir ordenar, até supri-
mir o comando por um outro para que a criança torne-se livre ou até para
Trabalhar sobre o desejo - Purificar o desejo, colocar o desejo em
que ela disponha d~s condições necessárias para sua liberdade, é acreditar
questão, existe exatamente aqui um papel ativo e positivo a desenvolver pa-
que .el.<t possui numa e~pécie de recôndito íntimo, uma espontaneidade que
ra o educador preocupado com a liberdade de seus alunos. Não fecharemos
somente pediria para desabrochar, "expandir-se'', desde que as pressões ex-
os olhos para a moda, para as correntes da moda: como é que acontece que
teriores tivessem sido suprimidas; o desejo da criança seria esta força inte- sejamos tão numerosos em desejar, em ''escolher'' os temas da moda, ases-
rior, espontânea, a própria voz da natureza, vocação que chamaria qual-
trelas da moda; muitas sentem-se felizes por estar de acordo com a moda; do
quer um para construir sua vida e constituiría a linha diretiva e suficiente de

,,.
A alegria na escola 238
237 Minha escola e a liberdade

· mesmo modo trata-se também de tomar consciência do efêmero e dos efei- ma chance de escapar dbs modelos mas neste confronto entre t.an~o~, co~o
tos de preparação que se ensinam naquilo que acreditam ser seu desejo. a criança conseguirá, por razões muitas vezes eminentemente md1v1d~rus e
Um passo a mais: não se pode negligenciar a manipulação do desejo profundamente sociais, privilegiar determinado modelo ou determinada
pela ideologia dominante, a maquinária financeira: por um lado os desejos combinação de modelos?
foram do mesmo modo modelados a fim de satisfazer interesses de dinheiro
- e de conservantismo. Nenhum é~~ino é inofensivo - O dramático da profissão de profe~­
Deste modo critica indispensável do desejo - o que não significa de sor, é que não se pode esperar qµe se ensinará sem se atribuir o ~ir~ito de
modo algum uma vaga suspeita contra o conjunto do mundo contempo- exercer uma autoridade, a sua e aquela de sua "disciplina"; a pnme1ra·to-
râneo. · mada de consciência do professor é abandonar o sonho de ensinar inocente-
Quando o professor esforça-se para se calar e para intervir o mínimo mente, sem ter de manter a responsabilidade de influenciar até de modelar.
, possível, ele não deixa no aluno lugar para uma difusão primordial, enfim Da pressão à opressão há uma distância que nós todos tememos ultrap~ssar
libertada, mas deixa lugar para as nuvens indistintas das dominações e das - e talvez sem nos darmos conta. Para não sucumbir a isso, ousar ensinar.
propagandas. Cada vez que a voz da escola enfraquece, o aluno reencontra ousar escolher, por um esforço constante de lucidez, entre as pressões múlti-
não uma virgindade espiritual mas todas as outras vozes que ressoam muito plas que não evitaremos exercer, nas suas relações múltiplas com as pressões
mais forte. que já, por todos os lados, são exercidas pelos alunos.
Mesmo no pátio de recreação; a criança que brinca de Zorro, Goldo- Certamente não é assustador deter a verdade ou pelo menos pretender
rak etc., somente vai viver seu desejo, seu imaginário através dos mitos e aproximar desfas ou daquelas verdades, de determinado sistema de verda-
idenÚficando-se com os heróis da moda. A escola não é culpada por um des, mas parece-me ainda muito mais assustador obrigar, condenar essas
desvio de espontaneidade. massas de jovens a tão longos anos de escola se não se pensa poder desta
forma ajudá-los a progredir em direção a um "mais verdadeiro", e isto nos
Não se escapa facilmente das influências - Donde quero tirar a con- . domínios que lhesinteressam, onde suas existências vão ser desenrolar.
clusão de que os modelos são inelutáveis; a escolha nunca é: estar submisso O mais terrível da profissão de professor não é ·o temor, no entanto
à influência ou não, exercer uma influência ou não; mas sim: o que é uma sempre presente, que a classe seja levada pela dissipação e talvez.até pela. al-
influência libertadora? Como exercer uma influência libertadora? gazarra mas o sentimento que se vai, cultural, vitalmente, desviar as atitu-
Nos fatos, não se pode evitar guiar a criança em direção a esta ou des dos' alunos em determinada direção, talvez deformá-las, talvez fazê-los
aquela atitude: ela acompanha ou não seus pais à missa, ela é levada ou não ser malsucedidos no essencial da cultura e dos apelos do mundo e que se é
ao desfile do 1? de maio. reponsável por isso.
Não é possível levá-la uma semana à missa, uma outra ao templo pro-
testante, uma terceira semana à sinagoga. Certamente na adolescência ela Posso eu me lançar em -uma filosofia da liberdade? Chegado a este
posicionar-se-á, confirmará ou recusará: mas todos esses anos de infância, ponto, não posso fazer a economia de uma pergunta de conjunto sobre a li-
o modo pelo qual terá vivido todos esses anos de infância terá um grande berdade. A própria cultura comporta valores de liberdade, afirmações es-
peso na sua decisão. · senciais de liberdade; quero uma escola onde se forme realmente os alunos
Não tomar o termo de "modelo" em um sentido estrita, bestamente na liberdade onde os alunos se formem realmente na liberdade. Mas entre os
moralizador: as jovens modelos; nem no emprego estritamente imperativo: dois riscos de doutrinamento e indiferentismo céptico, o caminho é estreito,
urna lição modelo; como se existisse um procedimento único, sobre o qual ·sempre ameaçado.
todo mundo deve se pautar. O modelo, em seu sentido real, é ao mesmo Não há, desde que anunciamo, uma antinomia entre formar, portanto
tempo um certo tipo de perfeição e um ponto de referência que permite se .guiar :---- e li.b ertar? O problema é manter os direitos da indi~idualida?e e o
orientar na indefinida complexidade do real. sentido"da afirmação propriamente magistral que há em posições mais ver-
Desde então gostaria que se representasse como tantos modelos todos dadeiras que em outi'às - e é isto que justifica passarmos tanto tempo n~s
os atrativos que a família, os colegas, as mídias e também a escola (até oca- escolas. Evidentemente sou incapaz de tratar este problema filosófico da h-
tecismo) exercem sobre a criança, todos os comportamentos e valores que . · berdade s~b sua forma mai~ getal como relação e oposiçã~:>''entre o indiv~­
são exaltados diante dela, mas também despejados sobre ela; não ~ a nenhu- duo, as obrigações às quais ele se submete, os valores em direção aos quais
239 Minha escola e a liberdade A alegria na escola 24-0

ele se encaminha . Mantendo-me mais modestamente, mais timidamente.na projeto de vida quer se inscrever ao contrário: consentir em um acesso de
escola, perguntar-me-ei: o que impede um aluno de ser livre? racismo, enquanto que fundamentalmente a gente se quer ·anti-racista, isto
Com toda certeza, os alunos dirão de início a pressãQ exercida por um não é ser livre.
outro, por um professor, que quer impor-lhes suas ordens, seus próprios d) Permanecer sem peso e como flutuante, ausente em um mundo que
dogmas, os quais sempre correm o risco de serem sentidos como intrusão, por isso mesmo encontra-se desvalorizado: uma existência de fantasma e
agressão, derrota, humilhação. um fantasma de liberdade.
É porque há um primeiro grau de liberdade, primeiro significante ao
mesmo tempo em que ele não é a forma suprema mas que subsiste como ba-
'. e) Neste primeiro grau de liberdade, quando se afir ma "fazer aquilo
se fundamental do edifício infinitamente complexo que a liberdade consti- que se tem vontade" precisa-se o · mais freqüentemente "na medida em
' tui. É um poder de escolha; cada pessoa podendo exprimir, fazer, recusar, que... contanto que isso não prejudique a outrem".
aquilo que tem vontade - e nesse momento, sem ter de se curvar diante de O que evidentemente parte de uma boa intenç.ã o, mas que toma adi-
um superior. zer: "não me aborreça que não o aborrecerei" ou ainda: "não penetre em
meu próprio domínio, eu não invadirei o seu". Minha liberdade seria de me
Ser completamente sozinho e preso a si mesmo - Mas não pensare- proteger contra as incursões, as usurpações dos outros, da máquina social.
mos seriamente que basta diminuir a parte de intervenção exterior, ordem Certamente eis uma espécie de pré-requisito que não podemos atual-
do adulto ou organização institucional, para chegar até este valor supremo mente omitir, mal podemos nos resignar a que a liberdade seja somente esta
que é a liberdade; as férias, momento de liberdade - mas também de sub- possibilidade de distanciamento, de ruptura - a qual supõe entre mim e os
missão aos costumes, aos gostos, aos caprichos, ao humor - sem contar to- outros, entre mim e a coletividade, uma discordância fundamental?
das as dificuldades de coabitação - aquilo que se deve fazer porque está na A liberdade seria permanecer alerta para salvaguardar um domínio,
moda nesse momento; as férias como escravidão. uma intimidade incessantemente ameaçada pelos outros; colocar uma bar-
Talvez bastará evocar cinco obstáculos à liberdade para se convencer reira entre mim e os eventuais agressores; ela reduzir-se-ia a um curvar-se
que ela não se confunde nem com as férias nem com a vacuidade. sobre si mesmo e sobre seus bens, "isto só diz respeito a mim", recusas
finalmente um grande vazio, uma imobilidade. Será que aceitaremos que a
a) O aluno não atinge a liberdade, enquanto permanece em uma e~pé­ liberdade se torne sinônimo de medo, de não-satisfação?
cie de mingau das opiniões onde elas se misturam e enfraquecem-se umas às Na medida em que uma sociedade tem comd lei "você trabalha para
outras - e a ação, então, reduz-se a compromissos tímidos. Não chamare- alguém ou é ele que trabalha para você, você rouba ou é roubado" [7]; onde
mos livre este receptáculo das influências contraditórias: ''ligado ao marco- portanto meu interesse pessoal corre o risco de estar incessantemente em
mo a bóia, que nada segura, que tudo solicita e sobre a qual contestam-se e oposição ao interesse dos outros, devo então a todo custo proteger um terre-
anulam-se todas as forças do universo" [5]. E no fundo nem mesmo estou no privado - mas que do mesmo modo é privado de calor humano. É isto a
certo que essas influências se anulem, temo que as mais evidentes não sejam última palavra da história?
as mais seguidas.
Ganhar sua liberdade - É a partir de todas estas sujeições, cuja
b) O que se opõe à liberdade são também todos os momentos em que ordem do professor é apenas uma pequena parte, que o aluno deve conquis-
o aluno se deixa suave, passiva, inertemente levar pelas idéias do ambiente; tar a liberdade. A liberdade do aluno é uma conquista, e difícil; não dado
ele se deixa embalar pelos temas que circulam ao seu redor. ele submete-se a imediato, ponto de partida primordialmente possuido (não basta de modo
eles na ilusão que lhe sejam próprios. Como por exemplo quando uma jo- algum estar completamente sozinho e!Jl sua casa, fazer o que se quer para
vem "chique" tem a impressão de ter escolhido livremente o tênis ao invés ser livre); mas de preferência como um vasto dominio onde ele penetra mais
do boxe, enquanto que ela não faz nada além de se conformar com os este- ou menos dentro. Graus de liberdade, ô complexo dos componentes de li-
reótipos que ditam que o boxe é bom para os garotos - e de preferência de berdade e de dependência; o aluno tem de progredir rumo à liberdade, na li-
origem popular [6]. Não tomar por liberdade e originalidade os costumes, berdade.
as manias do grupo ao qual pertencemos. · Seria preciso refletir sobre a multiplicidade das situações ditas de li-
c) Ceder a tais tentanções parciais, momentâneas enquanto que todo o berdade: por exemplo esta criança sozinha em sua casa; uma atividade "li-
241 Minha escola e a liberdade A alegria na escola 242
• I"·

vre" em uma biblioteca eu um centro documentário; um projeto "livre" autor mas eles são capazes, são eles que são capazes.de dar resposta à minha
executado por um grupo "livre", um desenho "livre", por um lado o aluno expectativa: graças a elas, posso viver com coerência e força, num nível de
não se chocou com as prescrições de assunto, data, donde possibilidades exigência e intensidade inacessíveis quando me mantenho em meus primei-
certas de expressão, mas também todos os estereótipos que circulam ao seu ros impulsos; "modelos" que posso incorporar ao meu todo, viver com o
redor e pelos quais ele se deixou impregnar, tudo o que há de confuso, hesi- meu todo.
tante nos seus trâmites afastados de cem influências, inclusive a influência Não se trata de imitar, reproduzir tais posições; também não se trata
de ser original e de não combiná-las do mesmo modo que as outras. E fre- de adotá-las tais como são; ainda que eu o quisesse, não chegaria até aí, e
quentemente o próprio aluno reconhece que sua produção foi entravada por ninguém quer isso. Se realmente eu chegasse a retomá-las por minha pró-
suas inabilidades técnicas, por elementos desastradamente introduzidos pria conta iria modulá-las, assinalá-Ias com a murca de minha experiência,
etc. de minha personalidade - e é ao mesmo tempo a constituição de minha
A liberdade como conquista não significa que primeiramente haveria personalidade.
um interminável periodo de não-liberdade e que seria preciso esperar, trans- Um modelo que "me é conveniente" (8). o que significa simultanea-
ferir para mais tarde, sempre mais tarde, o objetivo final e longínquo; a ca- mente que ele introduz algo em mim e que adquire importância para mim.
da momento da escola, há em proporções diversas, liberdade e dependência
e, espero, progresso em direção à liberdade. Não temer a multiplicidade - Através do alto nível o aluno toma
Tudo isso para procurar como pode e deve haver uma orientação ru- consciência, a escola o ajuda a tomar consciência da pluralidade existente
mo à liberdade; a escola como aquela que exerce uma orientação, contribui das opiniões - pluralidade que constitui um dos dados de base, uma das ri-
para dar impulso à liberdade de pensamento e de ação. quezas essenciais de nossa sociedade; mas, por si mesmo, o jovem por en-
quanto tocou apenas uma lnfima parte. A partir do que a classe é lugar pri-
Continuidade-ruptura e liberdade - Se a primeira parte deste tra- vilegiado onde se incita os jovens a exprimirem "livremente" suas opções,
balho, em busca de uma cultura na qual se reconheça pela continuidade e atá na confusão e na agressividade.
ruptura, tem algo de real, a escola pode guiar em direção à liberdade, Depois a orientação escolar pode levar o aluno a compreende.r que não
apoiando-se na cultura primeira e nos desejos que aí se encontram, mas sem se ~·escolhe" "livremente" o racismo ou o anti-racismo como se prefere um
permanecer nesta cultura primeira. doce com creme ou uma torta de frutas, segundo sua "vontade"; tomar
Apoiar-se na cultura primeira, já desejada e vivida pelo aluno: "não consciência das influências que fazem pender para esta posição; o nasci-
se pode fazer com que um cavalo beba sem que tenha sede"; cada um des- mento em determinada família, com determinada situação social, determi-
perta ou não o desejo em si mesmo. nação - tradições - e as razões que se pode ter para ratificá-Ias ou para ques-
E não permanecer na cultura primeira: se chegarmos ao que o aluno tioná-las; o que constitui um dos primeiros esforços em direção à liberdade.
percebe, por exemplo, o valor de um anti-racismo coerente e ativo, ele pode O aluno que penetra, e freqüentemente graças à escola, até as razões
compreender por si mesmo que não era realmente livre enquanto permane- de ser de suas opções, os papéis que elas desempenham, o que elas signficam
cia no pequeno nível médio e indeciso: experimentar então que seu próprio ~m profundidade (há realmente uma rel~ção entre o desprezo para com os
desejo de acolha aos outros prolonga-se mais além, exige muito mais do que Arabes e a desvalorização dos menos qualificados da classe operária); co-
ele havia previsto. mo, transcendendo a elas mesmas, implicam certas visc'.)es de conjunto e
A conquista da liberdade na escola realiza-se em alto nível - lembran- por exemplo o que significam os costumes, os modos de vida de todos esses
do que há um alto nivel para cada idade e cada formação: confrontar-se outros em relação a nossos valores?
com os grandes, enriquecer-se esforçando-se para se aproximar do nlvel dos Enquanto a escola não ajudou o aluno a encarar os aspectos difíceis,
grançles, das grandes realizações, das grandes afirmações, das grandes ocultos dos problemas - e é frequentemente tão duro, intelectual e moral-
ações. mente duro, que é preciso recorrer à obrigação para que os jovens não os
abandonem - não há escolha livre, nem mesmo desejo livre. Respeitar a
Continuidade-ruptura, liberdade e modelos - O tema continuidade- criança é não lhe ocultar o acesso ao fundamental. ·
ruptura significa que existem muitos "modelos", teorias, sistematizações, Uma vez chegado ao alto nível - trajeto mantido pela orientação - o
movimentos coletivos que certamente mantêm-se fora de mim, não sou o aluno sente por sui:t própria experiência uma liberdade aumentada, uma li-
243 Minha escola e a liberdade A alegria na escola 244
,.
berdade adquirida: seu desejo era de se entender com os Kaddours, mas ele ' possuem pelo menos, a fim de perseguir um esforço comum de liberação.
se deixava deter pelas dificuldades e se deixava levar pelas aparências; atual- Finalmente, que cada homem sinta em um outro homem a condição e não o
mente ele rt:conhece uma resposta mais lúcida e mais eficaz para as pergun- limite de sua liberdade.
tas que ele se fazia, com o que ultrapassar suas próprias tentativas, contra- Uma liberdade acrescida até a este preço, ela fortalece-se aos poucos,
dições, tentações; o contrário de uma "carapaça" exterior da qual ele seria não explode no momento em que suprimimos algumas instâncias de vigilân-
prisioneiro. . eia; um aluno pode ser mais livre submetendo-se a obrigações escolares que
A matemática, as ciências tornam o aluno mais livre e lhe dão alegria I · lhe abrem o caminho em direção à satisfação cultural do que devaneando,
na medida em que ele ai reconhece a realização das exigências de precisão, flanando ou discutindo interminavelmente com aqueles que não são mais
de clareza - exigências que ele arrastava penosamente na vida quotidiana, conhecedores nem mais ativos que ele.
que se esforçava para inserir na vida quotidiana, mas ele se deixava balan- É verdade que não se forma uma criança autônoma obringando-a in-
çar pela meia-compreensão do ambiente e de suas zonas difusas; no fundo, cessantemente a obedecer, acostumando-a somente à obediência: "ela é por
não seria isso um tipo de resignação, que ele agora pode ultrapasasr, um re- assim dizer vivida" [9], ela não vive por si mesma. Também não se forma
fúgio de decepção do qual ele pode agora sair? assim um ser cultivado, pois a liberdade, a liberdade cultural, não é nem de
O aluno é tanto mais livre quanto mais ele domina em pensamento e permanecer nas primeiras idéias vindas, que se acredita freqüentemente nas-
em ação os terríveis mecanismos que fazem com que muitos homens sejam, cer de si porque não se sabe de onde elas vêm, nem de receber a cultura co-
hoje, sujeitos à fome: de inicio ele era sacudido por uma indignação vaga, mo algo, completamente acabado, uma mercadoria que possa ser trazida e
sujeito à uma culpabilidade difusa, ele percorria fragmentos de informa- transmitida, uma "propriedade" à qual um porteiro dá acesso. "Descon-
ções; ele progride em direção à liberdade quando ele apreende melhor os fiar dos ídoles, mesmo verdadeiros". E elas são idolos enquanto não conse-
porquês desta degradação, que não é uma fatalidade que se opõe às necessi- guimos nos apropriar delas - ou rejeitá-las.
dades dos homens; pode-se agir como opositor à infelicidade.
Alegria e escolha - Em suma, a escola é uma orientação que visa edu-
car, exaltar uma liberdade.
li - Reconhecer-se... Pensa-se correntemente que a renovação da escola e a alegria na escola
é um grande ensejo dado às preferências e às escolhas imediatas dos alunos.
Progredir na liberdade é reconhecer-se melhor em um pensamento e Acredito ao contrário que a escola tem a função de conduzir para a trans-
em uma ação que chegam a estar em ressonância com o conjunto de si, o mutação os desejos existentes, fazer surgir novos desejos, fazer com que a
maior conjunto de si, depois a cultura primeira até o mais elaborado, visto liberdade dos alunos progrida em união com a orientação, como resultado
que eu quis manter que não há quebra irremediável entre eles; um pensa- dos conteúdos renovados e ações que correspondem a isso.
mento e uma ação onde são ultrapassados os caprichos que renegaremos Não é a escolha imediata que suscita a liberdade e a alegria; é preciso
poucos depois, as hesitações que condenavam ao imobilismo. quebrar esta suposta equivalência entre alegria e escolha.
Se não há uma outra liberdade, um grau mais elevado de liberdade
... no compreender e no agir - Os progressos em direção à liberdade I· que seguir seu desejo, minha escola está perdida e talvez a escola em si esteja
desenvolvem-se no domínio de reciprocidade entre a compreensão e a ação. perdida, pois ela nunca conseguirá seguir tão fielmente o desejo que o mun-
O aluno terá mais chance de conquistar a liberdade se ele tiver engaja- do dos lazeres atinge.
do na aventura cultural com mais intensidade, se tiver concentrado mais Se toda obrigação opõe-se à alegria e à liberdade, se é essencialmente a
energia em querer pesquisar: as demonstrações somente se tornam expressi- obrigação que se opõe à alegria e à liberdade, se obrigação significa submis-
vas para aqueles que têm coragem de sondá-las e principalmente de colocá- são, uniformização, despersonalização, minha escola está perdida, pois as
las à prova. alegrias que visa são de um nível que não se atinge sem o apoio da obrigação.
O trajeto através dos graus de liberdade exige audácia pois trata-se de Conto com uma cultura renovada para que os alunos sintam este mo-
mobilizar a confiança em si, o poder sobre si mesmo, a força de assumir e do·de orientaÇão como caminho em direção a mais satisfação e mais liber-
perseguir o que foi empreendido: e també'm a audácia que é requerida para dade. Caminho difícil, a escola permanece lugar de tensões, conflitos; cami-
tentar unir minha liberdade a dos outros - e prin!=ipalmente aqueles que a nho real.
245 Minha escola e a liberdade A alegria na escola 246
Ousaria eu emprestar a metáfora turística? Para atingir o alto nível ·~

precisa-se de uma guia de montanha; mas uma vez chegado até o panorama' ções - sem tornar a escola uma seita, um partido; e isto não somente para
é exatamente éada ."cliente" que contempla a vista extrai dela alegria su~ evitar protestos do lado dos pais, até dos próprios alunos, mas porque in-
alegria, procura ele mesmo este ou aquele aspecto~ ' troduzir dogmas é o contrário da ascensão à verdade e à satisfação cultural.
Também é ele que deve fazer o esforço: o guia não é um carregador de Coloco minha esperança nos conteúdos culturais de alto nível capazes
homens, não mais que o professor. de realizar consensos, de ser plataformas de acordo, regiões de convergên-
cia, programas culturais comuns a diferentes componentes - pelo menos a
A liberdade do intérprete - Talvez poderíamos refletir sobre a liber- todas as linhas que chamarei progressistas.
dade na sua relação com a obrigação sonhando com um texto a ser dito ou O que foi a laicidade em um momento do século XIX. reunião dos ho-
uma partitura a ser interpretada: o texto é um dado obrigatório e no entanto mens de progresso, os republicanos, diante dos defensores do passado mo-
cada executante propõe para ele uma versão diferente, na medida em que narquista, aqui está o precedente histórico, capaz de nos inspirar, mas evi-
ele o sente a partir de sua experiência pessoal - e ele aí imprime algo que dentemente en:i condições completamente diferentes; é um outro tipo de
vem dele. união que se trata de construir, uma laicidade de renovação.
Mas isto exige um texto tal que o intérprete se sinta concernido, toca- Primeiramente lembrar-se sempre da força conquistadora da laicida-
do: de qualquer modo é o texto que ele gostaria de ter escrito, de tal modo de; ela não tem nada de um refúgio no silêncio nem na abstenção: Jaures re-
ele corresponde às suas esperanças; o texto lhe interessa tanto, que ele pode cusa um "ensinamento de indiferença e de equilibrio" que logo se tornaria
repet~-lo "de cor.", .isto é com coração. E é assim que ele mesmo progride · coisa "morta", inerte ... incolor ... gelada ... vazia". A laicidade não é não
em d_ireção a mais liberdade, seu acesso para escrever textos originais, ver- ter "nem doutrina, nem pensamento, nem eficácia intelectual e moral. Há
dadeiramente originais,
. que não sejam o decalque do banal ao seu redor
passa por esta impregnação amante das grandes obras; indo até uma ativi-
. apenas o nada neutro" [10].
Regiões de convergência: não são pontos de doutrina que deveriam ser
dade em que ele introduz sua própria experiência, os conflitos que se desen- uniformemente os mesmos para todos, fórmulas a serem repetidas tais e
volvem
; •
nele mesmo, o que faz com que ele seja diferente t insubstituível. Os
.... •
quais, artigos de fé que bastaria articular, mas grandes atitudes globais, es-
propnos gemos não se formaram de outro modo. tilos de vida. O anti-racismo, a promoção da mulher, a convicção que o
Irei até propor um outro exemplo de uma liberdade que se desenvolve progresso não é uma causa desesperada: meus três exemplos de consensos,
somente na obrigação. Os militantes que realizaram uma adesão consciente aos quais se pode chegar a partir do marxismo, do cristianismo, do huma-
e re~et~da a um pa~tido, à disciplina de um partido, enquanto outras eram nismo ... Estes são campos vastos, nunca se acabaria de explorá-los; eles não
poss1ve1s o~ pelo menos a abstenção, podem ser mais livres que aqueles que podem se tornar propriedade exclusiva de um partido ou de uma seita - e
co~re~ o nsco .d~ permanecer na indecisão, na expectativa - isto porque os todos os outros seriam excluídos. Muitos caminhos conduzem para aí. ex-
primeiros part1c1pam de um movimento organizado, coerente e que pode ponho o meu, sei e digo que existem outros; e em cada domínio é possível
portanto ser mais capaz de criar um excesso de liberdade. uma multiplicidade de posições, uma pluralidade progressista: é a partir de
· ~ertamente toda ação corre o risco de ser opressiva e de se voltar até experiências diferentes, ultrapassando dificuldades diferentes que pessoas
con_tr~ as melh?res int~nções. De fato, a disciplina dt' \Jm partido' ê apénas · diferentes chegaram ao anti-racismo e elas chegaram a anti-racismos dife-
acresc1mo poss1vel de liberdade na medida,!!m que constitui uma unidade vi- rentes - algumas, por exemplo, insistindo mais sobre as desigualdades e o
va, .aberta, acolhedora, porque é a exaltação das esperanças de seus mem- respeito das desigualdades, outras sobre a afinidade essencial entre os ho-
bros - e dos outros. mens. Tanta escolha, tantas linhas de ação são abertas e ne entanto conver-
gem em direção a uma unidade.

111 - Consensos progressistas Qual sociedade comportará a alegria da escolha? - Desta forma
encontra-se novamente quastionado o papel .das forças progressistas quan- .
. O problema da escola laica renovada é encontrar seu lugar entre o do elas se propõem a estabelecer uma sociedade capaz de sustentar uma es-
Charyb~e.do dogmatismo e o Scylla dos cépticos: ousar abordar os proble- cola de alegria.
mas mais importantes, portanto os mais controvertidos, _ousar propor solu- Já para que os alunos não vivessem na angústia das seleções, eu exigia
d~s forças progressistas que valorizassem o conjunto das formas de traba-
247 Minha escola e a liberdade A alegria na esco/'4 248

lho. É talvez o mesmo problema que eu domino agora, mas sob uma forma tam e ajam em relação às verdadeiras causas que impedem homens e povos
mais global e portanto mais dramática: são as forças progressistas capazes de entrarem em acordo entre si?
de estabelecer um consenso de idéias e ações, portanto de alcance político - Aqueles que percebem na nossa época apenas a regressão e a descre-
pelo menos uma série de consensos parciais? Nenhum sistema escolar pode vem como uniformemente consagrada ao catastrófico, e portanto desespe-
se vangloriar de ultrapassar sozinho as divisões da sociedade; mesmo se ela ram-se pr todo progresso, desejam mesmo sabendo impossível, um retomo
pode, por seu lado, ajudar na criação de consensos. Minha escola desabro- ao passado: penso que eles viram somente um lado da realidade, e é preciso
chará apenas apoiando-se em consensos que a precedem e a fundamentam. guardar presente no espirito para não cair no idilismo, acreditar que "já
Enquanto não somos capazes de tais entendimentos, a renovação da aconteceu''. Será completamente utópico incitá-los a investigar de mais per-
escola permanecerá precária, hesitante pois não vejo outros recursos além to este passado - e suas deficiências, e ter mais confiança no presente, isto
dos consensos progressistas para superar o dilema entre catequizar e abster- é neles mesmos?
se, portanto para trazer alegria à escola.
O que não quer dizer de forma alguma que é preciso esperar, esperar a
grande noite; a satisfação cultural na escola existe e existirá antes que todas SEGUNDA SEÇÃO
as condições de alegria sejam realizàdas - e inicialmente existe a alegria de
trabalhar para sua realização. É preciso uma revolução cultural, portanto Considerando-se a dificuldade de apresentar as relações entre liberda-
uma revolução, mas também a revolução começa todos os dias. de e orientação e sua extrema importância para a escola, gostaria também
de enfocá-Ias em dois casos que me parecem ter valor exemplar: primeira-
mente na relação de um leitor com um texto; em seguida quanto a edução
De um bom uso do mal - Resta o problema mais dificil a ser resolvi- estética e a passagem da imitação para a originalidade .
do: há ainda mesmo obtas de alto nivel que vão no sentido do racismo, da
exaltação da guerra; e há principalmente muitos que não abrem outras pers- Pensar por si mesmo - Um texto lido, uma representação teatral
pectivas senão a incomunicabilidade, o desespero e o Apocalipse. Há alunos exerce, por definição uma pressão sobre o leitor - e a primeira reação do
que, devidamente formados e informados vão ainda assim declarar que se indivíduo a procura de liberdade e originalmente poderia bem ser a recusa
ligam ao racismo. Eu não disponho de solução-milagre. minha escola não desta orientação: ele é levado a crer que ler é "consumir" e como sob o
convencerá todo mundo, ela não pode, sozinha, fazer contrapeso a todas as efeito da droga, renunciar a ser ele mesmo; que o leitor é "impressionado
outras influências. pelos sinais como uma placa fotográfica pela luz" e portanto determinado
Não quero nem verdade imposta permanecendo única senhora do ter- por uma causa externa a ele mesmo. Talvez ele se persuada que "deixar-se
reno após termos queimado as obras contrárias nem eu aceitaria que, na mi- guiar" pelos livros "tira de nássa faculdade de julgar uma parte de sua in-
nha escola, todas as opiniões fossem colocadas no mesmo plano, ditas dependência". Ao seu redor, muitos aconselham: não leia tanto e sinta,
igualmente válidas e testemunhas equivalentes da liberdade individual: mi- pense mais "por vocês mesmos" [11].
nha escola não .é um lugar onde cada maneira de pensar, inclusive nazista, Mas Proust nos coloca diante de uma cultura de alto nivel, uma leitura
poderia ser apresentada pelos seus partidários, e caberia aos alunos escolhe- de alto nível: trata-se de "pensamento profundo", aquele que se exprime é
rem minha escola reivindica a responsabilidade de formar os jovens, o que "um professor": é então que a orientação bem longe de se opor à liberdade
implica peio menos numa visão em direção a tais valores. torna-se capaz de sustitá-la.
Num certo sentido, minha escola tem necessidade de testemunhas ra- Na vida diária, quando somos entregues a·nossas últimas forças e não
cistas porque o único anti-racismo verdadeiro é aquele que é conquistado nos confrontamos com uma presença essencial, permanecemos muito fer-
nas tent.ações racistas; é conveniente sondar essas tentações, situá-las - e qüentemente "na superflcie" das coisas e de nossa existência; permanecem
reunir todas as forças de convicção para tentar desoiistificá-las. O nazismo em nós recursos primordiais que não preparamos.
é o disfarce monstruoso do desejo de uin povo de viver.sua unidade: chega- Ora existem textos que constituem "a melhor meneira" de nos enco-
se a convencê-los que o que se opõe ao bom entendimento é a presença de trarmos, de nos construirmos; ele nos tornam ativos e livre pois formam
diferentes "raças" - e que é preciso portanto eliminar os alógenos. Será "uma intervenção... uma impulsão extetrna que, vinda de um . outro,
completamente utópico propor a jovens seduzidos pelo racismo que refli- produz-se no fundo de nós mesmos" - e isto porque eles se dirigem ao es-
?A9 Minha escola e a liberdade A alegria na escola 250

sendal de nosso ser e nos permitem chegar "ao âmago" de nossa vida; des- chegará a "consumir" o texto, no sentido em que se diz que o fogo "conso-
de então eles nos ajudam a "tomar consciência do 9ue nós mesmos senti- me" ou ''não consome". São principalmente as relações entre as idéias,
mos". E é assim que eles vão "nos devolver o uso de nossa atividade pes- portanto o sentido de conjunto que permanecem difusos; nós percebemos
soal" e não "substit~í-las". Assim, é a orientação por um outro que vai pro- detalhes mas não teremos sido capazes de fazer disso um todo, nosso todo.
vocar "a força de pensar por nós mesmos", uma atividade qe recriação: Onde Sartre fala de marcos, Bergson (14) já dizia: "Postes
compreender um pensamento profundo é ter você mesmo, no momento em indicadores ... pontos de referência... aos quais nós nos referimos para nos
que o compreendemos, um pensamento profundo". Esta atividade, ao mes- asseguramos que nso estamos no caminho errado". Observamos que ainda
mo tempo, busca sua fonte fora de nós e ela é o mais pessoal de nós: cada lei- se trata aqui de um texto de alto nível: ler a solução de um problema mate-
tor cada verdadeiro leitor de um texto importante o lê diferentemente, mático. Para chegar a conferir um "sentido completo" das frases, das de-
'
confere-lhe ressonâncias diferentes, vidas diferentes. Proust parece-me aqm. monstrações escritas, portanto que se nos impõem como obrigarórias, deve-
explicitar uma ampla afirmação de Balzac (12): "Nossa alma aceita apenas mos ser capazes de reencontrá-las por nós mesmos, criá-las novamente"; re-
as criações de uma outra alma (isto é o livro escrito por um outro) como construimos os racioclnios ao mesmo tempo por nossos próprios meios e
asas para se lançar no espaço ... ler, é talvez criar a dois". graças ao texto. Talvez Sartre nos tenha ajudado a melhor distinguir e unir
a parte do autor e a parte do leitor; mas o problema é colocado por Bergson
nos termos adequados.
A aprendizagem da leitura - Sartre (13) situa a leitura, portanto o fa-
to de ser conduzido por um texto e em um sentido, obedecer a esse texto co- O teatro da vida - Brecht nos lança na pesquisa de obras teatrais que
mo "criação dirigida" e a união desses dois termos contraditórios, á primei- atingem o espectador a tal ponto que possa e queira desenvolver "um papel
ra vista, parece-me capital para nosso assunto; "criação dirigida" pelo me- produtivo ... uma atividade produtiva", uma relação ativa e critica: con-
nos ·quando o leitor quer se colocar "à altura da obra", o que supõe da mes- frontar-se com o personagem, instituir um colóquio com ele, tomar posição
ma forma que a obra tenha uma altura real; de fato "o autor guia (o leitor) em relação a ele, questioná-lo, associar sua experiência própria com a do
mas só o guia; os marcos que ele colocou são separados pelo vazio, é preciso personagem comparando idéias e sentimentos das duas partes (15).
reuní-los. Para isso é preciso obras pelas quais o espetador sinta-se profunda-
Primordialmente a iniciativa do leitor e ela consiste em "projetar além mente concernido: ele as experimenta como em continuidade com sua vida
das palavras" um tema geral, uma fisionomia global, conjecturas sobre o pessoal, também em ruptura pois pertencem a uma esfera mais heróica e o
que se vai dizer a ele; são elas que dão significado às palavras que ele lê, pois elevam em direção ao mais heróico. É então que as recomendações de
é com elas que ele confronta as palavras lidas; ao mesmo tempo essas .pala- Brecht podem se realizar e que o espectador vai se situar no prolongamento
vras lidas modificam as hipóteses às quais se referem. O que o texto final- do autor de um modo indissoluvelmente afetivo e intelectual: ele perguntar-
mente diz não é nem exatamente o que previmos, nem sem nenhuma relação se-á emotivamente quais podem ser as caµsas (muitas vezes não expressas
com o que previmos: "uma ultrapassagem perpétua da coisa escrita". ou incompletamente expressas ou representadas de um modo mistificador)
Assim o sentido não ·está "contido nas palavras, dado na linguagem"; de determinadas atitudes do perso·nagem: pergun,,tar-se se determinado com-
é ao contrário o presssentimento do sentido pelo leitor que "permite com- portamento responde a um costume freqüente ou constitui um caso excep-
preender as palavras". ESta síntese de orientação e de atividade nos leva até cional; nos casos em que ele se encontra "intelectual e sentimentalmente"
a um nível que não teríamos atingido por nossa própria autoridade e suscita em oposição a tal personagem, ele vai lhe opor sua própria história, repelir
em nós trâmites que são, para cada leitor, realmente seus, originais: cada sua opinião e mesmos suas emoções. Enfim e principalmente a partir da pe-
um os conduz a partir daquilo que se é e os empurra até onde ele pode: "en- ça, o espectador imaginará as seqüências possíveis de certos trâmites, como
quanto que o leitor lê e cria, ele sabe que sempre poderia ir além na sua lei- o personagem agirá mais tarde, o que ele teria podido fazer em outras cir-
tura, criar mais profundamente''. · cunstâncias. O objetivo final ultrapassa a sala do teatro e visa ações de en-
Uma prova que se desenvolve a partir do obrigatório do texto, uma vergadura efetiva: "fazer do espectador o autor que concluirá a peça na vi-
manifestação pessoal e autônoma, é precisamente que ele pode ter fracassa- da real" (16).
do: "as palavras alinhadas em um livro podem ser lidas sem que o sentido
brote daí''. Um leitor distraído, cansado, que não está à altura do livro, não Aqueles que nos inspiram - Certamente .a leitura ou a representação
251 Minha escola e a liberdade A alegria na escola 252

teatral constitui uma orientação diferente daquela da escola, o facultativo é domínios que podem se tornar mais atraentes, com espantar-se que ela so-
muito mais aparente: escolhemos nossas leituras e paramos quando quere- çobre no abatimento? Pode-se, deve-se começar muito cedo esta educação
mos. Mas acredito que haja aqui matéria para ser refletida sobre a relação estética, pois um dos privilégios da arte é que se pode encontrar poemas,
entre a liberdade e uma autoridade que se impõe pelo menos enquanto con- quadros, obras musicais muitas vezes acabadas e suscetíveis de emocionar
tinuamos lendo. crianças muito jovens - em uma idade em que lhes é difícil ter acesso à ale-
Há textos que suscitam uma satisfação cultural criadora: ser guiado gria de compreender a história ou a física, se nãó for graças a simplificação
por eles dá livre curso não apenas à atividade, mas à uma criatividade livre. que correm o risco de ser mutiladoras. Há obras de Mozart que se pode gos-
São em Proust e Sartre textos de alta densidade cultural; além disso, em tar aos seis anos e que se pode continuar a gostar toda sua vida: uma satisfa-
Brecht textos explicitamente progressistas · uma vez que se trata essencial- ção cultural, uma conquista cultural que vai quase de uma extremidade a
mente de um teatro que apresenta esforços de liberação das massas. Temos outra da existência, operando aos poucos modificações desta existência; ao
necessidade de um outro para atingir este grau de lucidez no pensamento, de mesmo tempo a educação estética possui especificidade e ela se integra ao
amplidão em nossa ação, temos necessidades da obrigação de ser confronta- conjunto do esforço educativo.
dos com um outro - um outro que seja mais valoroso, mais compacto que
os homens que encontramos comumente. Ser içado, içar-se, atingir, man-. Ousar dize~ "belo" - Sua especificidade é ajudar os alunos a atingir
ter-se neste nivel de leitura, de texto; a partir do que nossa liberdade, nossa a experiência, a emoção que a obra é bela; verdade de La Palice, mas talvez
alegria é de ai nos movimentarmos como quisermos, nesta companhia, gra- seja conveniente proclamá-la, pois para a imensa maioria dos alunos da es-.
ças a esta companhia. cola de 1? grau o "Francês" é a ortografia, a. gramática, as conjugações.
E é então que podemos formar pensamentos e sentimentos verdadeira- Quantos existem que dizem que o francês é para chegar a belos textos, che-
mente nossos, mais nossos que aqueles que acompanham nossa vida diária; gar a sentir como belos os textos propostos ou compostos? Mas também
enfim conseguirmos nos exprimir. É muito pouco dizer que criamos nossa quantos professores ousam utilizar o termo belo insuflando-lhe um calo~
interpretação, nosso sentido do texto lido; é a partir disso que tornamo-nos, comunicativo?
que confirmamos ou não, desse ou daquele modo aquilo que nos é proposto
pelo autor; e reciprocamente vamos ligar com nossa vida, incorporar à nos- Paraíso infantil? Vale dizer, que a educação estética na escola pode
sa vida algumas das perspectivas abertas por este texto. Prolongar e dobrar ser, deve ser fundamentalmente diferente dos outros dominios? Inúmeros
os "grandes" inserindo-os em nossa própria prática. pedagogos quiseram encontrar ai o lugar onde as exigências, as obrigações
Esta relação viva com o texto, com o modelo, não é possivel que seja seriam colocadas fora da competição e poder-se-ia desfrutar logo .de úm
dada para sempre - e para todos - , visto que cada leitor deve construí-la a prazer sem pressão; desenho livre, poema ou texto livre; imitar, dançar, de-
partir dele mesmo, de seu passado, de suas esperanças, portanto cada um de senhar, verbalizar a sua maneira a partir de... a propósito da música ouvi-
forma diferente. da; e também a música livre, por exemplo aquela que as crianças criam no
Os alunos poderiam não ser mais tão dependentes, passivos, infantili- cantil ou com bolas que pulam sobre uma superfície sonora, quando elas
zados a "seguir" ·um curso, quanto os espectadores a "seguir" uma repre- sentem prazer em combinar efeitos de percussão.
sentação teatral, este termo "seguir" no entanto consagrado pelo uso é o Dessa forma teriamos acesso a uma linguagem, a um meio de comuni-
mais inadequado que se pode imaginar. cação isento de regras e dificuldades da linguagem verbal, assim, criar-se-.
iain "acordes", em todos os sentidos desse termo: os alunos que participam
Nilo se aprende apenas matemática e gramática - Uma segunda via de um jogo musical em conjunto, que obtém efeitos de globalidade - e eles
de reflexão sobre a liberdade nas suas ligações com a orientação e a obriga- chegam então a se situar uns em relação aos outros, a escutarem-se uns aos ·
ção, procurarei do lado da educação estética, mais precisamente de um lado outros escutando a mesma música; ou ainda ilustram uma história caract'e-
a relação entre imitação, impregnação, e de outro cria.ç ão, autonomia de rizando cada personagem ou momento de modo musical, e a prova de ver-
criação. Primeiramente gostaria de dizer que há lugar para a educação esté- dade desenvolver-se-á quando os colegas reconhecerem ou não aquilo que
tica e educação estética esc~lar; certamente esta educação pode ser procura- se esperou que eles aprendessem.
da também em outros lugares (conservatório, animação ...) mas a escola não Essas realizações são importantes, mas para mim constituem apenas
.deve abandoná-la: se ela se priva, multila-se dos domínios mais atraentes, um momento preparatório, mesmo que possam . ser validamente, um mo-
·~·
253 Minha escola e a liberdade A alegria na escola 254

mento preparatório, pois aí falta ou só aparece muito levemente a especifi- Fecundação e continuidade-ruptura - O paradoxo de qualquer eau-
cidade do dominio: o belo. Certamente a arte é linguagem, meio de comuni- cação - particularmente sensível entretanto na educação estética - é que
cação, de expressão; mas ela não se limita a este aspecto: nenhuma palavra, tal progresso em direção a uma liberdade original será atingido com a im-
nenhum desenho culmina em um efeito estático. Por outro lado tivemos ra- pregnação dos grandes criadores e com a presença viva de um patrimônio
zão de suscitar esta atividade criadora da criança, mas na realidade ela per- cultural; nos melhores casos, tratar-se-á .de prologá-lo; a imensa marioria
manece muito ~ouco criadora: encontrando prazer em combinações, para contentar-se-á em se inspirar introduzindo aí um toque pessoal, que se reve-
ela, novas, a criança move-se essencialmente no banal e nos estereótipos. -laria talvez por um exame, impelido como composição individual das diver-
sas influências amadas. A escola é necessária para introduir o jovem Du-
Realidade e limites da arte da criança - Não retomarei uma apresen- pont junto a esses Grandes. · . .
tação de conjunto sobre a arte infantil. Baudelaire soube indicar dois aspec- A impregnação assim procurada apa_rece-me como uma modalidade
tos essenciais de sua positividade: "curiosidade profunda e alegre (da crian- da continuidade-ruptura. Apesar de tudo, é necessário separar o aluno de ...
ça) diante do novo ... a criança vê tudo como novidade ... nenhum aspecto arrancá-lo de suas realizações primeiras e de suas admirações primeiras;
da vida é atenuado" e é dai que nasce "a alegria com a qual a criança absor- mesmo se estas são também aquelas de sua familia: assim aparece o quanto
ve a forma e a cor''. Mas também seus limites: a criança tem os nervos "fra- a educação, e em particular a educação estética, constitui uma intervenção
cos'' [ 17], ela não progride realmente de uma obra para outra, não é senho- profunda, uma mudança global da personalidade do jovem, talvez seja pre~
ra daqui!~ que pr~duz. Essa não-realização pode se exprimir .seja em lingua- ciso dizer: a constituição de sua própria personalidade: hã educação estética
gem cl.áss1ca: a criança "desenha entre outros jogos (mais freqüentemente) quando, por exemplo, visa-se conduzir a criança em direção a formas de ar-
na areia ou no papel solto ... não há nem a vontade, nem a paciência, nem te que não a atraem de inicio; espera-se dela um esforço semelhante aquele
sobretudo a necessidade profunda que são necessárias para imprimir em que tantos adultos, já amadores da arte, _tiveram, numa determinada ~~C?ca,
uma matéria dura, com uma outra matéria dura, a imagem que ela tem no de empreender para chegar a gostar da arte abstrata; este esforço não e tão
espírito" (18]. Seja em linguagem psicanalítica: não há na arte infantil diferente daquele que é solicitado nos outros domínios da escola. Essencial-
"dor d a retenção do gesto, antes de brotar no impulso da obra; (não há),
mente a ruptura significa que há grandes pintores, que valem à pena serem
uma razão difícil (que seja) atravessada pelo engano" (19]. tomados como termos de referência. Mas ao mesmo tempo a interpretação
Conseqüentemente há lugar para uma educação estética escolar e a progressista da cultura fundamenta a confiança que a passagem é possível
escola não está desarmada diante da educação estética. Como para o con- entre as massas, portanto as massas de alunos, e as grandes obras, porque
junto ~a esco~aridade, trata-se de levar até o sistemático das atitudes que as grandes obras nunca são cortadas das correntes· "maciças" de sensibili-
correriam o risco de permanecer no não ainda coerente, no "dissipado". dade e ºde ação características de toda sua época. Algumas obras reclamam
Reciprocamente é importante, para uma reflexão global sobre a .pedagogia, explicitamente esta continuidade, proclamam-se explicitamente; outras
apreender o tema do sistemático em toda sua extensão, o que ele significa acreditam serem destacadas dela, dizem que ela é seu refúgio, mas ao mes-
quando utilizado fora do ensino das ciências exatas. Talvez ninguém tenha mo tempo sentem-na como situação de mal-estar e exceção: é Mallarmé,
exprimido melhor os temas do sistemático na ..arte do que Cézanne (20] lembremo-nos disso, que evoca o·poeta como "em greve" em relação à so-
quando diz: ''Tudo o que vemo~ se dispersa, desaparece... junto as mãos er- ciedade.
o
rantes da natureza, aproximo no mesmo ímpeto tudo que se dispersa ... A continuidade significa que se esta alegria cultural escolar é diflcil de
minha tela, a paisagem, amba§ fora de mim, mas uni caótico, fugitivo, con- .ser atingida, não está fora do alcance e principalmente ela afirma que é pos-
fuso, fora de toda razão, a outra permanente, participando do drama das sível inspirar-se nos grandes não para se renegar mas para encontrar-se a si
~as. . mesmo. Um diálogo, um vaivém pode se instaurar entre as grandes obras e
Também no domínio estético, o aluno tem progressos a realizar: que as realizações estéticas já vividas pela criança, as produções já executadas
as obras das quais ele é o autor tornem-se cada vez mais suas, respondam às por ela, as alegrias que ela já extrai daí.
preocupações de ordem e que a visão do belo estej a cada vez mais ai presen- A escola para conduzir o aluno até formas elaboradas, sublimadas d.e
te; que sua própria iniciativa se separe, que saia do banal, de seu banal e a atividades que ele já colocava em execução - e para lhe tornar esta conti-
seu modo, para se estabelecer em um nível mais alto ela emoção estética. E
paralelamente para as obras admiradas por ele.
nuidade sensível: um belo quadro é um quadro que se parece com que vo- º..
cê.s mesmos já sentiram, com o que vocês quiseram fazer, mas indo mui~o
255 Minha escola e a liberdade A alegria na escola 256

além. Não é absolutamente sem relação com aquilo que se vê de costume, mes, até as rotinas de sua época. Aos poucos eles se apossaram de sua ong1-
mas é do mesmo modo mais bonito, isto dá mais alegria, urna outra alegria. nalidade e então sua ação contribuiu para evoluir estes estilos que primeira-
E é esta consciência da diferença de níveis, sem negação de nenhum dos ni- mente eram impostos a eles.
veis que se adquire aos poucos, eu ia dizer que se merece por quinze anos de
escola. Papel ativo do modelo - Escutar os grandes intérpretes para tentar
representar melhor a si mesmo e também esforçar-se para representar a si
Confrontos - Num artigo de um extremo interesse em que ele se in- mesmo para estar em condição de aproveitar melhor dos grandes intérpre-
terroga sobre o que pode ser um verdadeiro ensino de desenho, do vocabu- tes. Viver em comum com as grandes realizações dos outros para constituir
lário plástico - ''fazer séries coloridas" -, da construção plástica (propor- sua própria personalidade - e ao mesmo tempo realizar-se a si mesmo abre
ções), 0.-L. Marchai [21} propõe colocar o aluno, por exemplo, em presen- · uma via para melhor perceber e gostar mais das grandes obras dos outros•.
ça de retratos de formatos pouco diferentes; executados no mesmo pafs, O modelo é um apelo lançado à iniciativa, à própria atividade daqueles que
mas em épocas diferentes; ou sete retratos executados mais ou menos na dai se aproximam. ·
mesma data, mas por artistas diferentes; ou sete retratos executados pelo Encontramos no progresso estético, de maneira talvez mais impresio-
mesmo pintor mas em periodos diferentes de sua vida. Comparação entre as nante que noutro lugar, um dos traços constitutivos do pedagógico: a inter-
obras, iniciação às influências entre artistas. Outro exemplo: fazer apreen- secção de uma pessoa, de um professor (e sabemos bem que o termo toma
der ao aluno os múltiplos modos de representar a árvore, a mão: um mesmo aqui um sentido diferente daquele que tem em classe) como necessário para
problema de expressão recebeu, ~a história das artes plásticas, quatidade de chegar até a compreensão, até a admiração: "Quem me ama me cria... no
soluções. objeto mesmo do meu amor encontra-se o principio pelo qual sou criado",
Fundamental é a pluralidade dos modelos: um amplo leque, no qual o diz Aragon [22). O que significa ao mesmo tempo, parece-me, atinjo apenas
jovem poderá fazer escolhas, ir em direção aquilo que melhor lhe convém. o objeto de meu amor graças a um amor (pedagógico) do qual eu sou o
Não se trata de imitar. copiar. reproduzir exatamente certos detalhes, tais objeto.
procediméntos, mas admirar sucessos de vários tipos, revivê-los, olhando- O que pode conduzir a desmistificar os termos de passividade (sempre
os, contemplando-os, habituando-se a isso, tentándo reencontrar em si.mes- marcados de conotação pejorativa) e de atividade, tão freqüentemente
mo um pouco de tal estilo, de tal perspectiva sobre o mundo. aproximada, sobre um modo elogioso, de iniciativa e de liberdade.
Depois esconde-se os quadros sobre os quais, a partir dos quais traóa- Quando se compreende realmente o que é a liberdade estética, o que é
lhou-se durante tanto tempo e agora os alunos pintam de outro modo. Se a liberdade, não se aceita mais chamar livre, autônomo, ativo, criativo todo
formos bem-sucedidos, os alunos chegarão não a uma justaposição mas a aluno que realiza, improvisa alguns efeitos ritmicos de percussão sobre uma
uma síntese, slntese deles mesmos em suas personalidades ainda jovens e he- série de cantis vazio$, enquanto que se considera como passivo, "continuis-
sitantes, situadas e marcadas pelos seus modos, e daquilo que eles terão gos- ta" aquele que escuta, gosta de uma sinfonia e consegue coincidi-la com seu
tado e admirado nos Grandes, através dos lugares e épocas. desenvolvimento.
Que o aluno diga: "eu pinto assim, porque eu vejo assim, eu gosto as~ Por outro ládo a dita percussão pode constituir uma primeira tentati-
sim", mas que este "assim" seja alimentado por ... inspirado em ... Minha va em direção à liberdade.
escola está perdida se pusermos modelo e originalidade, imitação e criação,
uma vez que ela se propõe a conduzir à originalidade criadora graças (tam-
bém) a uma apropriação dos modelos.

Ganhar a originalidade - As primeiras tentativas dos jovens não são


logo a primeira vista criativas, originais, nem mesmo naqueles que mais tar-
de irão mais longe: as primeiras obras de Beethoven, é Haydn, com alguns
ace_ntos um pouco mais severos atormentados, mas freqüentemente o aspec- 1
to inovador é mal perceptivel. Esses grandes criadores, durante anos, não Levar-se·á em conta a modéstia destes propósitos: um curso sobre poesia tem por fina-
lidade elucidá-la de modo que se possa tirar melhor proveito dela, não necessariamente apren·
eram livres, não eram eles mesmos, pois não tinham estimulado os costu- der a escrever poesia (Doubrovski no Colloque de Cerisy).
CAPÍTULO V

·i novações pedagógicas
habituais

Gostaria de in~roduzir a noção de inovações pedagógicas habituais pa-


ra designar atividades muito variadas com as quais muitos pedagogos de es-
pírito moderno contam para transformar a escola: desde o jornal escoalr até
I
·• a realização de uma festa, de um filme, de uma emissão de TV ou de uma
peça de teatro ou ainda de uma exposição, desde o conselho e a cooperativa
até a fabricação de objetos úteis, até vendâveis e com este dinheiro ... .'desde
pesquisas, visitas, viagens até a disposiç.ã o, a decoração do quadro de vida;
desde as diferente~ formas de trabalho autônomo, trabalho em biblioteca,
trabalho sobre dpcumentos freqüentemente reunidos e escolhidos pelos alu-
nos até uma série de clubes, todas atividasdes que se abrem "para o exte-
rior" e ocasionam a participação de pessoas externas (1).
O que culmina talvez nas realizações da escola Vitruve: montar um
restaurante, realizar um espetâculo de circo e fazê-lo viajar pela França.

'PRIMEIRA SEÇÃO - A ALEGRIA DA ESCÇLHA

Primeiramente, quais valores foram procurados aqui, que alegrias são


esperadas?
A primeira característica dessas atividades é em grande parte dada à
escolha e ao projeto dos interessados.
Desde que se fala de inovação pedagógica, progressos em pedagogia
- e também, aliâs, desde que se fala de alegria na escola, a proclamação co-
258 A alegria na escola 1 · Inovações pedagógicas habituais 259
i
mum da imensa maioria dos alunos e de muitos pedagogos inovadores é in- co envolve-se em uma prática, os alunos fazem viver seus conhecimentos e
troduzir áreas de opcional e iniciativ~s tomadas pelos alunos a partir de seus são felizes por isso .
próprios desejos; escolha da atividade em si, escolha em uma atividade Objetivos, resultados, progressos, produções cuja validade está próxi-
complexa do lugar que se ocupará, os diferentes alunos vão em direção às ma, visível: pode-se mostrá-la e os próprios interessados podem constatá-la;
tarefas diferentes. Está sub-entendido, parece evidente que é a obrigação vê-se onde se vai e onde está. Esta eficácia é alivio da tarefa, estimulante pa-
que destruía a alegria. ra a tarefa, enquanto que uma formação a longo prazo ou uma atitude im-
Por exemplo, no primeiro grau, em permanência na biblioteca, cada palpável deixa muito na confusão.
aluno escolhe o livro que tem vontade, lê como tem vontade, continua a lê-lo Em suma, não estamos mais somente em ~m mundo de palavras; os
enquanto tem vontade e troca de livro quando quiser. alunos sentem que vivem situações reais, às voltas com a realidade física e
São os alunos que pedem a intervenção do professor quando sentem social, em suas exigências e possibilidades; é verdadeiro, para o verdadeiro,
necessidade de determinada explicação. · em verdadeira grandeza; resistência, consistência, sabor do real.
Trata-se de montar uma peça de teatro, os alunos vão dividir entre si
as contribuições e escolherão seu "papel": efetivamente desempenhar um Alegria da abertura para o mundo - Evidentemente é o mundo de
papel ou confeccionar roupas e cenários ou executar a parte musical etc. As hoje que os alunos encontram em suas ações; eles s~ntem-se formados par o
tarefas propostas são globais e pode-se distribuí-las entre sii de tal modo que mundo de hoje, a partir do mundo de hoje; os debates referem-se ao mundo
cada pessoa se oriente em direção aquilo que desejou fazer ·e onde tem chan- de hoje e os problemas que se colocam efetivamente aos homens neste mo-
ces de sucesso, boas razões para esperar um sucesso. Assim chega-se facil- mento.
mente a uma participação muito mais intensa do que nos exercícios de tipo Os alunos sentem então que· o mundo da escola e· o muito que eles
clássico, portanto convicção de que a individualidade original tem mais pressentem, que eles descobrem progressivamente ao seu redor unem-se e
chance de aparecer; não é mais uma classe estritamente programada, em que não se opõem; que o personagem que trabalha na escola e o personagem
cada momento foi previsto e estabelecido pelo professor, em que a atividade que vive a vida quotidiana e global unem-se ao invés de divergir.
é dirigida de uma extremidade à outra pelo professor. Autonomia, iniciati- E esta abertura ocorre principalmente quando os debates e as ativida-
vas, projetos e contratos negociados, os alunos "controlam sua vida". des em classe desenvolvem-se com a participação de pessoas exteriores à
Uma atividade escolhida e que se situa no prolongamento dos gestos e classe, pessoas que se convidará, com quem se negociará - e que são porta-
experiências pessoais: desse modo parece que cada um é competente, válido doras de uma experiência vivida de uma competência, d·e uma habilidade.
em qualquer lugar, cada um está num determinado campo capaz de realiza- Entrevistar-se-á pessoas idosas sobr·e o que era a vida antigamente; estran-
ções efetivas; daí confiança em si, a qual pode-se esperar que será, por ou- geiros falarão sobre seu país, mostrarão, viverão traços característicos de
tro lado, uma ajuda à luta contra os fracassos. seu país. Também quando as atividades dirigidas a um público, criam um
elo com um público, como uma representação, o jornal escolar. Vamos em
Alegria de agir de maneira eficaz, em um mundo real - Estuda-se direção a um papel da escola na vida do bairro: a escola pode ser reconheci-
"para valer", produz-se algo de seguro, objetos úteis, vendáveis, utilizá- da pelo meio-social; o que, reciprocamente, não é possível sem que a escola
veis; ou ainda organiza-se uma "verdadeira" viagem: combinar o itinerá- parta para a descoberta do meio-social. Dentre os interventores privilegia-
rio, escrever aos órgãos responsáveis, determinar o que é possível quando s.e dos provavelmente estarão os pais.
dispõe de determinado tempo e de determinado dinheiro (administrar um Outros pontos de vista que não os do professor poderão se exprimir,
orçamento); ou ainda "falar a sério" (GFEN) para dizer ao professor, aos em particular os dos trabalhadores; outras atividades tomar-se-ão possíveis
colegas, ao público coisas que ele não sabia, para defender propostas que se e em condições favoráveis (pequenos grupos "animados" por "exteriores").
gostaria de realizar. Move-se na eficácia; isso serve, é válido, sério, isto será
valorizado - e portanto os responsáveis também serão valorizados. O su- Alegria do trabalho em comum - O que os alunos encontram em co-
cesso não tem necessidade de uma nota imposta pelo professor; ele é atesta- mum ultrapassa as experiências individuais, é mais rico e mais argumentado
do pelos próprios fatos e pelo julgamento dos participàntes. que as experiências individuais uma vez que cada um está aberto para os ou-
As tarefas são mais freqüentemente ações ou pelo menos comportam tros e deve justificar suas opções perante os outros.
ações: um "fazer", poder fazer, saber-fazer-preparar o que se sabe: o teóri- Situações reais, portanto atividades complexas onde disciplinas múlti-
260 A alegria na escola Inovações peda~ógicas ha_bituais 261

pias intervêm e unem-se - e também a experiência de vida adquirida fora


1 liado; por outro lado porque os sucessos são certificados pelos resultados,
da escola; transdisciplinaridade, pontes lógicas e metodológicas entre as dis- pelo menos tanto quanto pela opinião de um professor; a emissão será ou
ciplinas e disciplinas com experiências vivida. não compreendida, a peça terá mais ou menos sucesso. Caminha-se para
Dai esperança de se dirigir à pessoa do aluno na sua totalidade par~ procedimentos de auto-avaliação.
lhe apresentar a cultura em sua unidade; atingir o aluno como individuo e Mesmo se não se chega a posições não diretivas, mesmo se não se acei-
não somente em seu aspecto escolar. ta os pontos de vista de Illich e sua recusa aos "pesados" aparelhos escola-
Do mesmo modo os professores são levados a viver·no além de sua es- . .(. res, sonha-se freqüentemente com um outro tipo de professon ele não esta-
pecialização e criar equipes entre eles. ria mais acima dos alunos, não lhes revelaria mais informações "vindas do
Mas também, essas tarefas complexas podem se realizar somente em alto" mas manter-se-ia com eles, no meio deles, para que eles vivessem jun-
comum, cada um tem necessidade dos outros, cada Úm tem seu lugar numa tos situações de procura, de descoberta; ele vai "regular" oque os próprios
atividade comum; fazer junto, viver dUnto; os alunos (e também os profes- alunos encontraram, juntá-lo numa slntese trazendo, acrescentando a isso
sores) vivem uma experiência de complementaridade, que pode levar à coo- seu ponto de vista. ..
peração .. à solidariedade, uma dimensão comunitária. Grupos que devem Vislumbra-se no horizonte a imagem de alunos que aprenderia~qua­
criar suas regras de trabalho e de acordo com a vida quotidiana. se sem se dar conta de que estão aprendendo, estudando; desenvofvendo-se
G>s alunos enfrentando tarefas reais vivem também seus conflitos a partir de seus interesses, seus desejos, numa espontaneidade fefiz~ desco-
reais. Nestas situações complexas aparecem a multiplicidade dos pontos de brihdo as verdades a partir d~ suas livres trocas entre iguais, no prazer de
vista, as divergências, as contradições: os alunos vão se formar no confron- executar junto. Ainda uma vez evocaremos o tema da escola aberta para o
to de pontos de vista diferentes, ele nada tem de escandaloso, cada um deve exterior .·-para •·a~vida, o concreto"' a vida penetrando na escola, a escoia
manter, defender sua opinião e levar em consideração a dos outros. A partir banhando-se. na vida; em que nos deleitamos·ao opor o fechamento escolar, -
do momento em que os alunos emitem propostas e sugestões, reivindicações o encerramento· escolar, a escola como lugar separado, friamente fechada
e críticas instalam-se conferências, debates; uma vida intensa de relações; sobre si.
"comunicamo-nos" e não é mais uma censura.
SEGUNDA SEÇÃO - OS RISCOS
A responsabilidade afirma-se na medida em que cada um, em seu lu-
gar, quer o sucesso do projeto global, mantém-se para não ser desmerecido Certamente algo de sedutor, algo de válido; mas primeiramente devo
aos olhos de seus colegas, para não ser o inoportuno, aquele que levanta dizer em que estas "inovações habituais" inquietam-me e me deixam insa-
dificuldades. tisfeito. Certamente alegrias, mas trata-se também de interrogar-se sobre es-
tas alegrias.
Alegria das novas relações com o professor - Na preparação das ati-
vidades, os alunos negociam com o professor; em campo, o professor não é Problemas de escolha - De fato isto já esteve freqüentemente em dis-
omnisciente, ele pode ser ultrapassdo pela experiência de determinado inter- cussão, quanto aos lazeres, quanto ao desejo. Portanto serei breve nesta ad-
locutor, até de d eterminado aluno; nem todQ-poderoso: pelo menos quanto vertência.
aos seus pareceres, os alunos deverão se adaptar às circunstâncias, às pres- Primeiramente interrogar-se sobre a realidade da escolha. A escolha é
sões dos acontecimentos. As tarefas reais comportam uma margem de in- muito difícil de ser introduzida na escola: o aluno não escolhe nem seu pro-
certeza, de imprevisibilidade: haverá incidentes, tentativas, inconvenientes e fessor, nem seus colegas, escolhe com dificuldade seus membros de equipe.
readaptações a serem executadas; os alunos deverão assumir sua responsa- Mas também a escolha de uns, digamos mesmo da maioria, dificilmente é
bilidade. Ousar enfrentar, lançar-se, engajar-se. conciliável com a escolha dos outros - e a minoria não tem razão real para
Eles não estão mais submetidos a uma autoridade única, de um tipo renunciar à sua opção. Também restaria questionar-se sobre em quais casos
único; outros adultos intervêm - e também o poder dos fatos, e enfim o um paternalismo benevolente (por exemplo em Neill) é substituido por uma
poder do grupo. autoridade abertamente declarada, finalmente não deixando muito mais lu-
Em particular o poder de avalÍação e de correção do professor é consi- gar à escolha pessoal do aluno. ·
deravelmente reduzido: de um lado porque o que é da natureza do projeto e Na medida em que o poder de escolha é efetivo, é conveniente não des-
da participação de cada um não é quase suscetível de ser estritamente ava- . conhecer os riscos: risco de especialização precoce dos alunos; cada um ten-
262 A alegria na escola Ino vações pedagógicas habituais 263
de, cada um tem a tentação de se instalar em, de ir para uma atividade pela mas também no aprofundamento dos temas abordados. Pode-se confiar no
qual ele já está atraído, em que ele será bem-sucedido; treinar isso e cada vez julgamento do público que fora convidado?
mais triunfará. Falta questionar-se se isto não é freqüentemente em detri- Freqüentemente refugiamo-nos em fórmulas enganadoras: "os alunos
mento da formação de conjunto de sua personalidade. descobrem que ... " Na realidade um ou dois iam em um sentido professoral
Por outro lado, consideremos o aluno que não ousa entrar em cena, - e por determinadas intonações, determinadas mímicas convecemos os
portanto não opta por entrar em cena: às vezes é precisamente ele que, para outros que aqueles tinham razão.
progredir em audácia, teria necessidade de tentar um outro papel.
Será que é preciso ainda uma vez repetir que as escolhas, os desejos Risco de cepticismo - Mas duvido principalmente dos riscos de cepti-
dos alunos não dependem somente de sua individualidade, não exprimem cismo: de fato os alunos sentem-se abalados, perdidos· na diversidade, na
somente sua individualidade? Os costumes e os comportamentos sociais, as heterogeneidade das informações. Alunos da 8~ série em sessão de estudo
maneiras de ver e de agir próprias das diferentes classes sociais desempenha autônomo na biblioteca municipal; pedem livros sobre Paris: traz.em para
um papel fundamental - e tem-se grandes chances estat lsticas para que as eles o guia gastronômico de Oualt-Millou e um livro sobre Viollet-le-Duc.
atividades mais verbais sejam ''escolhidas'' pelos alunos de classes favoreci- Não é para estranhar que eles retenham daí um mundo de detalhes, muitas
das enquanto que os alunos de classes populares reencontrarão seu caminho vezes pitorescos, mas que quase não lhes permitirá construir uma opinião
após ter "escolhido" atividades manuais. Uma pedagogia que confirma as segura?
escolhas dos alunos corre o risco de réproduzir, no interior da classe, as cli- Uma segunda fonte de cepticismo pode ser a decepção de não progre-
vagens sociais e portanto cafr no elitismo - contra as intenções de seus pro- dir: para que os debates por exemplo sobre a poluição ou sobre o progresso
motores. não fracassem, é preciso que sejam utilizados e aprofundados conceitos que
naõ pertencem à experiência imediata dos alunos, como as diferentes socie-
Risco de rapidez - Pensemos nas pesquisas em que os alunos colhem dades. Aqui, isso é possível?
informações junto às pessoas ou no t rabalho sobre documentos, em parti- E há principalmente o risco de que debate (ou o trabalho sobre docu-
cular para preparar um debate. Os documentos, as informações são, por hi- mentos) se desenvolva a partir da hipótese, explicitada, que todos as opi-
pótese, de todas as origens, inclusive, por exemplo, no elogio do racismo; niões situem-se no mesmo plano, que todos os pontos de vista são igualmen-
eles não foram selecionados como nos manuais. te válidos como expressões das diversas individualidadses.
Em geral a regra é que o professor por um lado, cuide do bom desen- Conseqüentemente temo que muitos alunos restrinjam-se a constatar
volvimento, de uma tolerância recíproca; por outro lado que ele ajude os pura e simplesmente as divergências: ' 'cada um acha que está certo". Os
alunos a utilizar as informações, isto é selecionar, suprimir o que é inútil; mesmos retomando quase às mesmas afirmações, corre-se o risco de chegar
preencher as lacunas, colocar em ordem, em forma, organizar as descober- ao sentimento desiludido que não há mais nada a dizer, nada melhor a di-
tas de cada um, sua própria ação não irá tão mais longe do que realizar ua zer. É a idéia de verdade, a pesquisa de um " mais verdadeiro" que estão
síntese daquilo que os alunos propõem; finalmente, apresentar seu ponto de em perigo. É que as questões mais complexas e que são o objeto de longos
vista, mas como uma das possíveis dentre outros. estudos, de elaborações de discussões, em que cada um se exprime como
Primeiramente o nde peFcebe os riscos de amadorismo superficial; va- considera bom, como tem vontade.
mos nos "sensibilizar" antes de ensinar. Cepticismo risco de chegar a falta de opinião ou de se ligar em opi-
Em história, por exemplo, um aluno dizia: "Sou eu que procuro os niões médias, que todas as chances de serem conformistas. O cepticismo
documentos e é portanto mais interessante que um curso. Mas os documen- produz "miseráveis" - e não pessoas capazes de progredir duvidando e em
tos que ele pode encontrar, nos sótãos, nos armários, são limitados no tem- seguida ultrapassando esta dúvida; o cepticismo é o aliado do conservantis-
. po, no espaÇo e também nos assuntos abordados. Que chence teremos de mo, na medida em que ele desarma os parceiros. O cepticismo é triste. É o
encontrar documentos que relatam as reivindicações operárias? resultado paradoxal ao qual correm o risco de chegar os pedagogos cujas in-
Os alunos realizaram um filme "autonomamente" e estão muito satis- tenções progressistas são, no entanto, incontestáveis.
feitos. Apesar de tudo falta questionar-se sobre o conteúdo, o valor do que Quando se lê alguns mestres de Vitruve ("En sortant de l'école") tam-
foi considerado; quais progressos foram realizados, em quais domínios bém corre-se o risco de que a alegria na escola seja monopolizada pelo festi-
houve estagnação?, progressos não some~te em relação aos valores fílmicos, vo e inovador; e resignar-se-ia ao que o resto do cultural, começando pelas
264 A alegria na escola Inovações pedagógicas habituais 265

aprendizagens tradicionais, seja puro e simples trabalho aborrecido. Será Isto é muito mais claro quando a rentabilidade entra em jogo: fabricar
este o melhor meio para ser bem-sucedido? objetos para vender; evitrar-se-á "desperdiçar" matéria prima sob pretexto
de inovar; confiar-se-á em procedimentos que já foram testados - e colo-
Problemas da eficácia - A eficácia pode se encontrar na própria ação car-se-á cada um no lugar em que se pode esperar melhor rendimento.
(construir uma janela envidraçada para os dias de chuva, arrumação does- Diria também que conseguir dar o troco, não é a mesma coisa que ad-
paço de recreação) ou em relação a um público (montar uma peça de teatro quirir o sentido dos números, o sentido das operações; recitar, no decorrer
convidando parentes, amigos ... ). do espetáculo, determinado poema escolhido para harmonizar-se com o
O postulado suposto é a concordância entre a ordem da eficácia e o do conjunto apresentado, não é obrigatoriamente a mesma coisa que progredir
pedagógico! a aquisição dos conhecimentos vai se realizar no decorrer da em direção ao sentido profundo deste poema - por exemplo, situando-o
ação; após o que "aprender-se-á facilmente todo o resto". em relação aos outros que não terão sido apresentados no espetáculo.
O que ainda assim suscita muitos problemas: Um pode conduzir ao outro? Talvez através de uma alegria primeira,
Se quisermos satisfazer um público, se quisermos q ue a representação uma confiança primeira oriundas deste tipo de sucesso; mas certamente não
teatral seja bem-sucedida, devemos escapar à tentação de atribuir aos me- sem ruptura, sem que se tenha claramente colocado a ruptura entre os dife-
lhores os papéis mais qualificados, mais difíceis, distribuir papéis confor- rentes tipos de exigências.
mando as qualidades já conhecidas, os sucessos anteriores deste ou daque-
le? Desde que se espera um suC' ...:sso junto a um púbJico, este público influi Risco em relação à vida democrática nas classes - É um dos valores
nas decisões que vamos tomar - e isto não converge 'por si mesmo para a de que os jovens reclamam e de que eles esperam alegria.
tarefa fundamental da eseola: tudo para todos; aqueles que têm mais difi- Certamente um ambiente simpático, relações de amizade entre profes-
culdade num determinado campo devem poder se exercitar nel~ durante· sores e alunos, tempos institucionalmente previstos para que cada um possa
mais tempo que os outros, talvez com modalidades diferentes, mas não se- exprimir-se e dizer suas propostas, devem ajudar a ir em direção à democra-
. rem afastados disso. Temo dois riscos complementares: 4ue se crie um pe- cia. Mas não acreditar rapidamente que as dificuldades são ultrapassadas
queno grupo de especialistas, o grupo teatral ou a equipe esportiva do colé- enquanto que, talvez, elas foram simplesmente mascaradas.
gio - no outro extremo aqueles que têm uma má pronúncia ou falta de :1a- Não basta que se vote, que se discuta, nem mesmo que haja um conse-
bilidade para chutar encotrar-se-ão afetos à venda dos programas. lho para que a vida do grupo construa-se de modo democrático e atraente.
Outro exemplo: quando se constroi uma janela envidraçada, as obri- Corre-se o risco de que voto pró ou contra determinado projeto, por-
gações decorrem dos fatos, são sancionadas pelos fatos; elas não vão neces- que se ama uma deter~inada pessoa ou porque teme-se à ela; corre-se o ris-
sariamente no sentido de um progresso pedagógico. co de que o debate, a discussão seja dominada, monopolizada por alguns
É uma ação que não se repete, que se desenvolve uma vez e em uma que conseguiram impor-se; corre-se o risco de que as discussões não levem a
vez: é difícil refletir sobre isso com calma, encontrar tempo para refletir so- nada, andem em circulo. Isto pode se tornar uma série de pequenas histó-
bre isso com calma, retomar novamente a questão tantas vezes quantas fo- rias e:; de impaciência: confissões, rivalidades, regulamentações de contas,
rem necessárias para que a reflexão amadureça. ' jogo de alianças com este contra aquele. Algo· de limitado, algo de mes-
Aliás, em muitos casos um determinado grau de reflexão não será·ne- quinho .
cessário: pode-se sair dai com " habiHdades", sem teorizá-las, sem interro- A vigilância dos jovens uns para com os outros, até a punição (sanção
gar-se sobre seu fundamento, sem questioná-las - e a ação pode muito bem de exclusão) dos jovens uns para com os outros, não é imediatamente demo-
triunfar com habilidades cheias de lacuna, limitadas ao.que é útil, utilizável crática; nem mesmo o julgamento pelo's colegas, quando vão declarar um
naquele momento, naquele caso. dos seus inapto para executar determin~da tarefa, para desempenhar deter-
Pode-se até recusar uma reflexão aprofundada como sendo prejudi- minado papel. Os lideres suplantam o professor, pelo menos em certos cam-
cial à eficácia da ação: as tentativas, as pesquisas para cQmpreender o por- pos - e finalmente com garantias mais fracas . As interações dos jovens so-
quê do procedimento·empregado, para examinar se um outro procedimento bre outros jovens, em um sentido de igual para igual, não extraem de seu
poderia ser preferívt:l não são convenientes no momento em que se ajusta as moviménto simples a alegria reprimida: angústia que o julgamento do gru-
peças umas às outras. Freqilentemente a construção tem mais chance de ser po não lhe seja desfavorável, estratégias ansiosas para ajustar seus gostos
bem-sucedida quando restringe-se a receitas prov'.1das, ã rotina. ~os modos do grupo, às suas variações e até às evoluções a serem sentidas.
266 A alegria na escola Inovações pedagógicas habituais 267

Longe de ser florescimento democrático, uma tal vida de grupo pode desigualdade cultural diante do professor? Eles querem esconder que não
ser muito dura de suportar, dura demais. são ainda interlocutores do mesmo nível que o professor, que eles não po-
Donde quero concluir que não se pode chegar a democracia sem levar de~ estab~lecer uma comunidade imediata com a cultura. Aquilo que eles
os problemas de conjunto, os problemas teóricos da democracia, sem que recusam, é o pouco a pouco; progredir passo a passo. Ao mesmo tempo eles
haja intervenção, reestruturação da existência da classe pela cultura elabo- desconhecem o universo cultural a ponto de eles pretenderem encontrá-lo
rada, em suma sem apelo ao sistemático - também. num só salto e o acreditam tão próximo que já se vêem professores e possui-
dores. Em suma risco de esquecer que as relações de pessoa para pessoa, a
Risco quanto às relações professores-alunos - O pedido dos alunos alegria das relações de pessoa para pessoa não são o objetivo da classe, não
de manterem com os professores relações mais calorosas deve ser levado a são os fins em si; elas se justificam como vias em direção ao progresso cul-
sério. Mas não é necessário dissimular-se os perigos disso. tural.
Nestes desejos dos alunos temo uma recusa em assumir o que há de es- Eis porque esta reivindicação constante dos alunos: "não serem trata-
pecificamente escolar na relação professor-aluno e pela qual ela pode vir dos, não serem considerados como alunos'' deve ser convertida nesta afir-
completar felizmente as outras relações: determinado aluno gostaria de re- mação de que ser verdadeiramente tratado como aluno, é ser julgado capaz,
viver com o professor cenas semelhantes àquelas que ocorrem em relação digno de ir em direção à cultura e dela extrair alegria.
aos seus pais: perguntas afetuosas, sedução, revolta - enquanto que os
papéis da escola são outros, a causa disto talvez seja que seus pais estavam Risco dos "exteriores"·- Enfim a intervenção de pessoas exteriores, e
ausentes, mas não é uma razão mesmo se é uma desculpa, para tal transfe- principalmente dos pais, levanta múltiplas dificuldades: de que lado da so-
rência. ciedade vamos encontrar os adultos mais disponíveis e aqueles cuja presen-
Ou ainda a pesquisa do " irmão maior": um ser um pouco superior, ça assumirá mais prestigio junto aos alunos? .
um pouco mais forte que si para poder proteger - e no entanto no mesmo Qualquer pessoa de idade não está habilitada para falar ?e sua ~P?­
nível dele a fim de que não exerça uma pressão, uma ameaça muito pesada. ca; pode acontecer que ela a deforme a partir de lembranças muito parcuus,
Mas em quais casos, então, será ele capaz de ser guia em direção a progres- através de ua prisma de seus preconceitos - e no entanto ela poderá se ga-
sos decisivos? bar de conhecer tais acontecimentos por experiência pessoal, e as outras
Em suma, não temos necessidades de ·um proft:ssor para ter um papel pessoas presentes teriam apenas que se calar.
não professoral. Corre-se o risco de intervenções descontinuas e que portanto tocarão
O maior risco que me parece incluso nesta pergunta das relações é que os problemas. .
frequentemente ela vai colocar de lado os conteúdos culturais - e substitui- O que temo principalmente é que se dê a impressão que ser professor
los pela expansão sentimental. O diálogo não visa mais então conquistar não seria uma "verdadeira" profissão para a qual é preciso se formar, na
juntos, professores e alunos, verdades mas pode tornar-se um modo de re- qual é preciso se aperfeiçoar incessantemente - visto que qualquer pessoa
nunciar à procura da verdade; e a tentação é particularmente forte em uma poderia "passar por professor" - enquanto que não se confiaria a direção
época em que muitos professores não tinham tanta confiança naquilo que do ônibus ao primeiro dos usuários que aparecesse.
eles próprios têm para dizer, nem por outro lado na escola como lugar onde
dizê-lo. Encontrar um professor gentil ao invés de encontrar Victor Hugo, é
do mesmo modo uma demissão; falar de si, quase só falar de si ao invés de TERCEIRA SEÇÃO - TENTATIVA DE SÍNTESE
falar de Victor Hugo e de nossas relações possíveis com Victor Hugo, que re-
trocesso! De todas essas ameaças eu não concluo absol~tamente que seja ·preci-
Se o diálogo com o professor se reduz a relação afetiva, a uma relação so renunciar a estas inovações e retornar à escola de Alain que, explicita-
de pessoa para pessoa, eliminando o esforço de apropriação da cultura, mente, recusava entrar em relação com um mundo exterior jlllgado muito
corre-se o risco de se perder, de se mergulhar no anedótico, nos mil inciden- complexo e muito perigoso.
tes e disputas da classe; cada um repetindo seus problemas e o professor res- Na "minha" escola, quero que haja um conselho, organismos de par-
pondendo com "bons oonselhos". Deste modo será que· não descobrimos ticipação dos alunos nas decisões e no funcionamento da classe; é essencial
com frequência alunos que têm medo do desempenho escolar? Medo de sua que os alunos exprimam-se, digam seu ponto de vista sobre o que se passa
268 A alegria na escola Inovações pedagógicas habituais 269
em sua escola, como eles a vivem, como eles gostariam de modificá-la· os Visitas: que haja um relatório e que cada um tenha um relatório a en-
alunos não têm apenas deveres, mas também direitos. ' tregar, o que suscita, desde o momento da visita, uma tensão propriamente
Seu desejo de abrir-se para o mundo, de entrar em relação com as coi- escolar - e eu gostaria de dar um sentido laudativo a este termo; este rela-
sas da vida, de debater sobre isso é profundamente válido. Realizar tarefas tório será o objeto de trabalhos posteriores de aprofundamento.
complexas, de grande fôlego, chegando a resultados tangíveis e podendo es- Admitir-se-ão nas visitas determinados aspectos que permanecerão no
tabelecer assim contato com o público, isto me parece completamente justi- estágio de simples "sensibilização": os alunos visitam uma orquestra, o
ficado. O apelo à competência, pessoas exteriores à escolaridade para pene- maestro consagra alguns minutos para torná-los "sensíveis" à complexida-
trar em determinados domínios pode constituir um recurso real. de de seu papel; mas o essencial da atenção incide sobre um ou dois pontos
Meu sonho: chegar a uma síntese, evitar os riscos destas inovações que serão o ponto de partida de um verdadeiro trabalho - por exemplo,
guardando certos objetivos fundamentais justos; transformar as inovações aos poucos, por inúmeras repetições, aprender a cantar com uma orquestra.
de modo que elas tornem-se verdadeiramente escolares, que elas atinjam o Debates em classe: o profe~sor vai intervir a fim de que o maior núme-
nível escolar - e é evidentemente do lado dos conteúdos culturais renova- ro possível de alunos, finalm~nte todos os alunos exprimam-;;e, ousem ex-
dos e da satisfação cultural escolar que procuro um avanço que não seria primir-se e de modo mais geral, sintam-se concernidos.
simples compromisso. Para determinados alunos cabe ao professor convencê-los que eles têm
Freqüentemente ouve-se dizer que é necessário recorrer a métodos ino- algo a dizer e incitá-los a dizê-lo; ele dará a palavra aqueles que não a pe-
vadores porque o tradicional fracassou. Além dos problemas de métodos dem, ele garantirá um lugar aos mais retraídos. Este papel do professor será
quero sustentar que se o tradicional não progride, não consegue se transfor~ explicado aos alunos.
mar, é .ai:ites de tudo erro de conteúdos válidos. É freqüentemente porque Em todas as atividades deste tipo, o professor que organiza e até mes-
nos afligimos para que os alunos encontrem alegria nos próprios conteúdos mo que impõe redistribuições de tarefas: por exemplo, para o jornal esco-
culturais que queremos lhes oferecer atividade que seriam imediatamente lar, aquele que, fez os desenhos uma vez, na próxima escreverá o texto, no
atraentes, autônomas e calorosas. Não renuncio a unir o amor da cultura próximo número será ele que montará os exemplares; os alunos formam-se
com o "amor" para com os alunos, enriquecer um pelo outro. em inúmeras atividades, todos os alunos esperimentam o conjunto das ativi-
Não esperando poder tratar o problema em seu conjunto, contentar- dades. O tempo da escola é o da não-especificação.
me-ei em refletir sobre alguns exemplos. Não há milagre e é certo que se perderá em sucesso e em eficácia junto
ao público: no número em que o texto terá sido redigido por aquele que é de
Primeiro exemplo: Tarefas e redistribuição das tarefas - A escola preferência um bom desenhista corre o risco de agradar menos aos leitores;
não deve se deixar espoliar de tarefas atraentes, voltadas para o mundo de também corre-se o risco de perder em prazer imediato dos alunos; não serão
hoje, realizando uma colaboração com adultos e portanto uma abertura pa- apenas sempre os melhores em tarefa que serão encarregados dela, mas ain-
ra a vida fo ra da escola. da não serão sempre aqueles que desejarão determinada tarefa, naquele mo-
Realizar um espetáculo, por exemplo, um espetáculo de massa em co- mento que serão levados a executá-la.
laboração com os habitantes; uma festa, que mereça, dirigindo-se aos habi- Caberá ao professor fazer compreender o que é um jornal escolar; não
tantes, .eventualmente execuiada com seu concurso; uma exposição que tra- um sucedâneo do jornal comum, mas sim um exercido da escola, um esfor-
ta de questões que têm importância para as crianças e para os adultos· utili- ço para que a tomada de contato com a realidade, a posse da realidade cons-
zando técnicas mais modernas, montar um filme, vídeo etc. ' tituam um progresso dos alunos, de todos os alunos.
A ·pa,rtir do momento em que se quer fazer disso uma tarefa escolar, A síntese com que sonho é possível apenas se a atividade, em seu con-
nã~ apenas cada um irá participar, deve participar, mas além disso cada um junto, é ou melhor, torna-se assim atraente ao conjunto dos alunos e se eles
vai passar pelo menos nos postos principais, vai aí realmente exercitar-se sentem a intervenção sistemática do professor como o apoio do qual eles ti-
longa e pacientemente e ser ajudado, guiando - e enfim o problema do va- nham necessidade. A escolha não é mais o desejo imediato de determinada
lor, o valor cultural daquilo que foi realizado será explicitamente colocado. atividade parcial , mas uma vontade refletida de fazer avançar um projeto
O problema é escolher projetos tais que esta alternância seja possível: no de- coletivo.
co~r~~ de um ano escolar, todos os alunos terão fabricados oibjetos, redigido
pa10e1s, estudando documentos etc. Segundo .e xemplo: A vida da classe - O que as inovações introduzem
270 A alegria na escola Inovações pedagógicas habituais 271

aqui de positivo, é o tema dos alunos que debatem para chegar a propor de- conscientizem disso: eis o que caracteriza a fabricação de marionetes "esco-
terminada modalidade de ação, determinada tarefa, determinado modo de lares". O filme eleva-se à escolaridade, por exemplo , quando eles seques-
organizar a vida da classe; os alunos que dispõem de meios de controle em tionam entre outras coisas sobre a pluralidade das linguagens, a polissemia
relação ao que lhes perguntamos e finalmente de um poder. da imagem - como um aluno pode ampliar a linguagem que lhe é familiar
Quero dizer que, por sua vez, o professor deve formar os alunos por em associação com aqueles que lhes são menos próximos: progredir no ver-
um lado para a comunicação, para o diálogo - por outro para uma refle- bal graças ao mundo das imagens e vice-versa. E isto não acontece sozinho.
xão sobre o porque das tarefas escolares, portanto as regras que melhor os Os alunos visitam uma cidade: antes da visita, prepara-se não só tecni-
conduzirão ao seu sucesso; enfim sobre a vida do grupo, suas pressões, seus camente mas também emotivamente para o que vai ver, elaborar um plano
avanços de trabalho, um método de pesquisa, de observação. Em seguida, o profes-
Logo à primeira vista, haverá pelo menos tentações de não considerar sor está lá para que se discuta não apenas sobre essa cidade, mas para que os
opiniões mal colocadas, timidamente expostas. A intervenção regular do alunos adquiram meios de ver as cidades de uma modo novo e mais verdadei-
professor será necessária para aqueles que também consigam se fazer com- ro, a próxima cidade que eles visitarem - a ponto de chegarem a se questio-
preender; levar os mais embaraçados, os mais hesitantes a formular clara- nar sobre os problemas do urbanismo.
mente, a justificar suas propostas - e obter dos outros que eles aceitem ai
consagrar o tempo necessário e que será longo. Quarto exemplo: A decodificação - Os alunos entrevistam personali-
Haverá pelo menos tentações de alguns para fazer prevalecer seus pe- dades ou pessoas simples, pedem para que personalidades ou pessoas sim-
didos ou os do pequeno grupo de seus colegas; os m eios de pressão são múl- ples falem em classe; eles realizam "projetos", exploram o ambiente e di-
tiplos. O papel do professor, aqui, é representar o conjunto, a preocupação zem o que viram, oralmente ou por escrito; inauguram uma vida animada
do conjunto, orientar incessantemente para a totalidade. na classe: geram a cooperativa, elegem delegados; o conselho recebe múlti-
Nos conselhos, seguir a vez de falar , falar somente em sua vez, um de plas queixas, múltiplos pedidos; em suma uma multidão de palavras, de
cada vez, deixar os outros falarem, escutar realmente uns aos outros, esfor- propostas e de ações.
çar-se para compreender; eleger um presidente a quem se concederá o direi- O problema é conciliar esta atividade com uma intervenção sistemáú-
to de dar e caçar a palavra; e mais geralmente adquirir o hábito que os inci- ca do professor, uma intervenção que não deve ser vergonhosa, oculta, fin-
·dentes sejam resolvidos pela discussão coletiva, posteriormente, nos dias fi- gindo que os alunos tenham descoberto tudo por eles mesmos, mas ao con-
xados, enquanto que o movimento primeiro é reagir imediatamente, fre- trário declara, aberta, explicita; que os alunos tomem consciência do senti-
qüentemente através de injúrias ou golpes, ou de se voltar para o professor do real desses problemas, de sua dimensão oculta - e que talvez, aos pou-
a fim de que ele resolva a dificuldade [3]; até se pudermos pensar que pelo cos, eles próprios consigam decifrá-los.
menos uma parte dessas aquisições serão realizadas pelos próprios alunos a Por exemplo, um aluno diz que recusa determinada tarefa, determina-
partir de situações que eles efetivamente vivam, sua consolidação somente da função porque ... na verdade tem medo de sua própria fraqueza, ele se
será possivel se o professor apresentar um quadro metódico de vida e o fizer coloca como muito inferior à tarefa para poder enfrentã-la.
respeitar, garante a estabilidade do quadro de vida quando só seria por ad- Um aluno queixa-se de ter apanhado: ele procura se sobressair e
vertência reguladoras dos pontos sobre os quais já foi realizado um acordo. ocupar-se de seus problemas pessoais durante o máximo de tempo possível
do conselho; um aluno queixa-se de ter apanhado: ele é incessantemente
Terceiro exemplo: Presença do geral - Os alunos fazem marionetes e provocador; um aluno queixa-se de ter apanhado: ele é rejeitado por seus
fazem-nas respresentar; jun to com o professor eles vão ver um filme, visitar t, colegas e é infeliz (3).
uma cidade. O papel do professor: que os alunos compreendam que essas condutas
Entra-se na escolaridade, eleva-Se estas atividades ao nível da escolari- efetivamente colocadas em jogo - e eis aqui o progresso fundamental em
dade quando conseguiremos conduzilas ao geral: a partir das marionetes, o relação ao tradicional· - contém um significado diferente de sua aparência
professor que visa, por exemplo, um progresso global das modalidades de primeira.
expressão. Não se trata simplesmente de atingir um resultado material mas, Na realidade, urna visita a uma cidade, tudo o que chamou a atenção
por esta atividade progredir num desenvolvimento de conjunto da persona- dos alunos não está no mesmo nível: há incidentes do dia, o pitoresco que
lidade. O professor zelará por aquilo que se passa assim e que os alunos se logo chama a atenção, o prazer do desajustamento, talvez o atraúvo de relações
272 A alegria na escola Inovações pedagógicas habituais 273

novas e a alegria de ter descoberto determinado movimento importante, de car e justificar o estado dos fatos, a sociedade existente; e é exatamente por-
ter pressentido o que esta cidade oferecia de único em sua fisionomia, em · que ele encontra muitos suportes na ideologia dominante.
seu passado etc.; não se trata apenas de que os alunos, um pouco ajudados A intervenção sistemática da escola para fazer com que os alunos
pelo professor, ordenem suas impressões; a ação original e insubstituivel do apreendam que há um sentido profundo, oculto, " latente" que permite
professor é ajudar os alunos a tomarem consciência com dificuldade da dife- compreender, situar o sentido aparente e ultrapassá-lo numa direção ao
rença dos planos: o prazer de ter tomado um sorvete gostoso com os cole- mesmo tempo mais verdadeira e que traz alegria: o trabalho em série per-
gas, a alegria de ter contemplado os vitrais da Sainte-Chapelle. E também cebido como período intermediário que pode ser ultrapassado na medida
diferença de planos entre gostos e cores sobre as quais não há interesse em em que o progresso técnico encontrará uma vontade de remediar o mais pe-
discutir - e de ter ou não participado daquilo que suscitou o entusiasmo de noso.
muitos conhecedores.
O que supõe assim mesmo modificações fundamentais no modo de Quinto exemplo: O útil, o real - Os ali.lnos apreciam se sentir no real,
conduzir essas "inovações habituais": por exemplo não se colocará mais no útil, no eficaz - eles têm razão. Uma escola que visa apenas adquirir
um professor intervindo na pergunta dos alunos, modelando-se sobre esta bons hábitos para mais tarde, um bom método para mais tarde quase não
pergunta - e que evita um outro papel diferente daquele de regulador do pode causar satisfação cultural presente aos alunos.
que os alunos encontraram por si só: é supor que o aluno sabe precisamente É preciso ainda não cair na mistificação que confundiria o útil escolar
o que tem para perguntar; se ele sabe que as idéias que lhe parecem eviden- com o útil da vida habitual: aquilo que aprendemos em biologia não permi-
tes "pedem" para ser questionadas, ele não seria mais aluno. te que me cuide, apenas permite que eu compreenda melhor o que o médico
Nesta fábrica que eles visitaram, trata-se de aprender finalmente o que diz. É quimérico esperar que os conteúdos adquiridos em classe permitam
não aparece, mas que, sozinho, permite perceber aquilo que aparece: a es- que dispensemos os "peritos" e que evitemos o perigo de que os peritos ve-
trutura social, as infraestruturas econômicas, as relações de produção - e nham a pesar sobre nossas decisões. A imensa maioria dos conteúdos cultu-
como elas se formaram no curso da história; os motivos profundos, efica- rais escolares não servirá, tais como são, para a seqüência da vida.
zes, decisivos que se deixam elucidar apen·as por longos esforços - apoian- Será que o real escolar é uma escola que produz objetos ou serviços ca-
do eles mesmos em trabalhos mais elaborados. O que deve ser atingido, é pazes de trazer dinheiro - e este dinheiro serviria para um melhor funcio-
uma mudança das perpectivas; os alunos não chegarão ai por si só, ainda namento da escola? Se realmente falta-nos créditos podemos recorrer a de-
que percorram os lugares em todo os sentidos. terminados paliativos, contanto que nos conscientizemos que estes são pa-
As "inovações habituais" podem constituir um progresso pedagógi- liativos e não, do mesmo modo, progressos pedagógicos.
co: não quando pretendem.substituir a iniciativa do professor, mas na me- Mas freqüentemente uma espécie de produtividade pecuniária aparece
dida em que elas oferecem a esta iniciativa oportunidades para explicitar. como um penhor de autenticidade do escolar: ter-se-ia oportunidade para
decifrar, decodificar as situações a princípio simplesmente vividas, efetiva- considerar as realizações da escola politécnica socialista: os alunos criam al-
mente vividas; dar-lhes razão e mostrar a razão. go de útil, de utilizável, mas o objetivo é conferir ao seu trabalho um valor
pedagógico - e conseqüentemente este trabalho não é rentável, o que eles
A vida imediata, a consciência imediata correm Õ risco de se restringi- produzem custa para a empresa mais do que a ele lhe rende.
rem ao que é mais facilmente, mais diretamente perceptível (numa fábrica Trata-se de pensar, de construir, evidentemente no presente dos alu-
visitada, a tristeza de muitas tarefas operárias) sem conseguir.e até frequen- nos, um autêntico, um útil, que responda ao desejo justificado dos alunos
temente sem sonhar em situá-las no conjunto das condições de vida, das cir- de estar no real - e que seja especificamente escolar, a fim de que eles apro-
cunstâncias históricas, das modificações ·ocorridas no passado ou previsí- veitem da contribuição insubstituível do escolar. Isto quer dizer que não se
veis para o futuro. Um pensamento coisificado, que coloca "naturezas" de- levará o real à arte de ganhar dinheiro; nem também querer-se-à calcar uma
finitivas, irremediáveis. palavra real sobre uma palavra real fora da escola. Alguns julgam irreais,
Este modo de comportamento responde ao mesmo tempo às dificulda- falseados os ditos do aluno a seu professor quando o primeiro responde a
des intelectuais (passagem par·a o abstrato) e ele não é inocente politicamen- um~ pergunta que o segundo conhece a resposta evidentemente. Acredito
te inocente: considerando as coisas tais como são sendo levado a considerar que haja aqui uma confusão entre os gêneros, entre o gênero escolar e o gê-
que elas são como são e que não podem ser de outra maneira, ele vai fortifi- nero não escolar.
Inovações pedagógicas habituais 275
274 A alegria na escola
Certamente a escola é um lugar fechado, mas queria comparar este fe-
A autenticidade, a utilidade da pergunta escolar (e da resposta) é aju- chamento ao do teatro, do cinema, do estádio (enquanto que o espetáculo
dar o aluno a progredir - e ele não tem certeza de que o melhor modo de de TV permanece aberto a um grande público) - não ao fechamento de
chegar até aí seja enriquecer os conhecimentos do professor. . ~ . uma prisão. É verdade que "a escola é como uma esponja; fechada em sua
A partir do que percebo uma escola que pode se tornar mais autentica embalagem, ela é seca e curvada; colocada em contato direto com o ambien-
que a vida habitual, o que se passa'. aí pode se tornar mais real que a vida te ela dilata-se e reanima-se" [2]. Mas é preciso dizer também que o sistemá-
habitual pois ela pode ir mais além. tico da escola exige um meio próprio, um recinto separado, reservado e pre-
Para a criança particularmente, a existência comum é limitada, as ten- ··' servado, um modo de vida distinto: as coisas se passam de modo diferente
tativas e as experiências que ela pode tentar são restritas pois rapidamente do que na vida corrente, o "jogo" habitual é interrompido e isto porque as
correm o risco de desencadear conseqüências graves, imprevisíveis; é conve- dificuldades para vencer, a aventura de levar para a escola não são as mes-
niente não se expor, não a expor a erros que se tornariam logo custosos. mas que na vida quotidiana. E é porque, apesar da advertência de Illich e
Gostaria que a escola se organizasse como lugar onde o aluno se sen- daqueles que recusam o organizado, é preciso que a escola seja uma insti-
tisse suficientemente em segurança,para tentar, esforçar-se, abordar ? no- tuição.
vo 0 difícil, lançar-se mais ousadamente do que fora da escola: questionar
sis~ematicamente o que foi vagamente percebido "na vida", colocar todas Sexto exemplo: Do bom uso dos exteriores - Não se renunciará a
as cartas sobre a mesa. A escola não é para escapar da vida, evitar a vida. Pa- apelar para "exteriores" a fim de que os alunos participem de outras visões
ra retornar uma vez mais ao meu exemplo favorito, em nenhum lugar uma do mundo, de outros tipos de atividade, seja da dos pais ou de trabalha-
discussão verdadeira sobre o racismo. e com todas as partes interessadas é dores.
fácil devido a suscetibilidades bem compreensíveis. Eu me pergunto se É preciso ainda que o professor permaneça o mestre de obras das in-
ê
não na escola que ela é menos imp.osslvel, e que ela será mais "real:',?~­ tervenções deles; primeiramente vão discutir entre si e com ele; um pouco
ma escola onde os alunos seriam aliás unidos pelas satisfações culturais y1v1- como encenador (e isto inclui tarefas para as quais ele próprio deveria evi-
das em comum. É assim mesmo na escola que os erros não somente são per- dentemente ser formado) e vai ajudá-los a se localizar, a se situar: convencê-
mitidos, mas também fazem parte do processo educativo - e os perigos po- los do objetivo propriamente pedagógico que está em jogo, chamar, por
J,
dem assumir valor pedagógico porque são limitados; isso não irá muito lo~­ exemplo, a atenção deles sobre os riscos do "laisser-aller" e de uma diretivi-
ge, é menos dramático, humilhante, imprevisível, ~calculável do ~ue na vi- dade muito restrita.
da quotidiana. E o professor está presente para ajudar a progredir. A seguir o papel do professor é fazer de modo que as múltiplas inter-
A escola tradicional colocou a escola como lugar de segurança para a . venções organizem-se num todo sistemático: não permanecer numa chuva
criança - e não estava errada; mas prisioneira de sua desconfiança acerca descontínua, em uma "sensibilização" que faz tentar uma única vez qual-
da juventude e do mundo, freqüentemente ela espera desta se.gurança não quer coisa, mas chegar ao nível do ensinamento. O professor deve tirar um
uma audácia acrescida do aluno para abordar o mundo a partir de uma se- partido pedagógico da intervenção: esta atividade de determinado especia-
gurança primordial já adquirida, mas sim uma abstenção, evitações; ela evi- lista, como fazer para que ela participe do desenvolvimento de conjunto da
ta do mesmo modo estabelecer a ligação dialética entre abertura e fecha- criança? Eventualmente o professor deverá adaptar à idade, aos conheci-
mento da escola. mentos já adquiridos, deverá explicitar - e até em determinados casos dis-
Seguindo a fórmula comum, é indispensável qu~ a .es~la sej~ aberta cutir, corrigir. Na escola é o professor que dirige; em particular não confia-
para a vida, que ela acolha, que procur~ todas as contnb~uçoes da Vlda; mas rá um gr.upo de alunos a um único de fora, haverá sempre associação estrei-
é igualmente conveniente que ela não se dissolva no mew ext~rno, nem em ta do interventor e do professor.
outras instituições: se a escpla era totalmente aberta para a vida, se ela co- Tudo o que se passa em classe deve ser ajustado aos alunos, conduzido
piava,. imitava a vida, ela-acabaria por se confundir.com a vida - e desapa- de um extremo ao outro com continuidade e sistematização: eis porque são
receria qualquer oportunidade de conhecer esta satisfação c~lt~ral escolar, necessário verdadeiros professores - e que sejam suficientemente seguros
tão dificilmente substituivel. A escola está ameaçada por dois riscos: fecha- de si para dirigirem-se também ao extra-escolar.
mento sobre si, assimilação pura e simples do mundo; ela deve se transfor-
mar de modo a ir às duas origens: da vida e da esp~cificidade, chegar a uma
síntese particular e daí a uma alegria original.
i A GUISA DE CONCLUSÃO AUSENTE

1
Uma escola não ''totalitária''
.1

·'

A riqueza da vida dos jovens é sua variedade, sua diversidade e a mul-


tiplicidade dos t\pos de alegrias. Os jovens vivem pelo menos em quatro am-
' bientes: a família, a escola, a vida·quotidiana com os colegas e as colegas e a .
.) formação fora da escolà: ela mesma pode se desenrolar nas atividades seja
organizadas (a saber esportes dirigidos, animações, cursos mais ou menos
assegurados) seja escolhidas de modo esporádico: um jogar um jogo, ler de-
terminado livro, ver determinado film~. fazer pequenos reparos etc .
. Cada ambiente tem sua riqueza especifica, seus tipos de exigências,
seus modos de progre'Sso; penso que é essencial que nenhum se deixe invadir
pelos outros, que nenhum queira absorver tudo, englobar tudo; nem esten-
der seu domínio a outros nem anularem-se em outros. Cada um deve ofere-
cer ao joven suas possibilidades diferenciadas - e assim complementares.
Sempre se diz que não é preciso cortar a criança em rodelas de salsi-
cha, que ela é caracterizada pela unidade de sua· pessoa. Mas a abundância
desta unidade está em participar, de modo diferente, em setores de vida
diferentes. Aliás o melhor modo de àproveitar uma salsicha é ainda assim
cortá-la.
Em particular toda educação não pode, não deve s.er feita na escola,
pela escola. A escola imprime sua marca particular sobre uma parte da vida
e da cultura do jovem: ela se dá como tarefa o encontro com o genial - e o
máximo de sua ambição é que ela quer este encontro para todos.
.\ Há muitos outros momentos da vida em que não temos tais objetivos,
em que partimos simplesmente de novos gostos, de nosso desejo; podemos
277 Uma escola nlto "totalitária"

então também encontrar o genial, lançarmo-nos no museu de Louvre, na


maioria das vezes não pretenderemos ir tão longe, há muitas possibilidades
para que não se vá tão longe - e assim está muito bem. Do mesmo modo
não temos necessidade da obrigação, recusamos a obrigação.
A escola, minha escola tem como objetivo extrair alegria do obrigató-
rio. O que justifica que se vá à escola (evidentemente fora da preparação
para o futuro, mas é preciso lembrar que, por hipótese, estou proibido de
evocá-lo?) é que ela suscita uma alegria específica: a alegria da cultura ela-
borada, o confronto com o mais bem-sucedido; o que exige condições parti-
culares do sistemático: o que pode ser fácil, daí o recurso necessário ao obri- Bibliografia
gatório. O problema todo é que os alunos sentem efetivamente a instituição
como dirigida para alegria - e uma alegria que quase não se poderia atingir
de outra maneira.
Eu gostaria de uma escola que tivesse a audácia, que corresse o risco
de assumir sua especificidade, jogar totalmente a carta de sua especificida-
de. Uma das causas.do mal-estar atual parece-me ser que a escola quer be-
ber em todos os copos: ensinar o sistemático, mas também deleitar-se com o
disperso, com o acaso dos encontros; recorrer ao obrigatório, mas ela tenta
dissimulá-lo sob aparências de livre escolha. Em particular a escola, fre-
qüentemente ciosa dos sucessos da animação, cobiça suas fórmulas mais BIBLIOGRAFIA DA PRIMEIRA PARTE
suaves, mais agradáveis - mas ela é na verdade obrigada a constatar que
inadequadas para ensinar álgebra ou para chegar até Mozart.
Direi até que isso não me parece um elogio concedido à escola que os INTRODUÇÃO
alunos chegam a confundir a classe com a recreação, o jogo com o trabalho,
que eles queiram prolongar a classe como uma recreação, retornar à escola Chantralne, Dictionnaíre étymologlque de la langue grecque.
como a um lazer; pois realmente é à escola que eles retornam? Temo que a
escola tenha abandonado seu próprio papel - reconhecendo-se precisa- CAPÍTULO I
mente que em certos momentos, para certos alunos pode ser indicado intro-
(1) Spinoza, Ethique, Ill, XI, escólio.
duzir elementos de brincadeira, momentos de distração, co m a condição de (2) Descartes, Lettre à Elisabeth, 6 de outubro de 1645.
que não se esqueça que estes são estimulantes intermediários, destinados a (3) A. Oide, Nouvelle Nourritures, IV.
ser temporários. [4] Engels, Ludwig Feuerbach, III.

CAPÍTULO li

[l] Cf. H. Lefebvre, Critique de la vie quotidienne, e G. Vincent, Le ptuple lycéen.


[2] Cf. Gaudibert, L 'ordre moral.
(3) Cf. En sortant de l'école: un projet réalisé parles enfants de la rue de Vitruve,
[4).Grarnsci: (a) (citado a partir de "Gramsci dans le texte"), p. 173; (b) ibid., p. 680

CAPÍTULO Ili

Este capitulo e o seguinte são a compilação de múltiplos livros, em particular: Avanzini,


Bauchard, 'Besenval, Burgelin, Cazeneuve, Marie-José Chombart de Lauwe, Chalvon e Sou-
chon, Eco, Fouilhé, Fresnault, Gabei, Oamarra, Gérin, Guy Gaulthier, Laulan, Franck Mar-
279 Bibliografia A alegria na escola 280

chand, E. ~orin, Piemme, Michel Pierre, Planque, Porcher, Sainsaulieu, J. Tarciieu, Tardy, (30) Eluard, La poésie est contagieuse.
Thibault. (31) Cf. Malglaive, Pratique pédagogique, p. 224.

Além de: CAPÍTULO V


(1) 8 . Bcttclhcim, Le coeur conscient, p. 64. (1) A. Anaud, Messages révolutionnaires.
[2] Cf. Hamelin e, Le domestique et l'qffranchi. [2) Rimbaud, Une saison en enfer: Adieu.
[3] L. Porchcr, L'écoleparallele, p. S1. (3) Baudelaire: (a) L'art romantique: Pierre Dupont; (b) L'art romantique: V. Hugo.
[4] Ricsman, La joule solitaire, chap. Ili. [4] Oramsci: (a) p. 604; (b) p. 429.
[SJ Barthes, Mythologies: astrologie. (5) Sartre, Qu'est-ce que la littérature?, II.
(6) Cf. Claude Roy, Descriptions critiques - Le commerce des classiques - Défense
de la littérature.
CAPÍTULO IV (7) Cf. Reboul, Qu'est-ce qu'apprendre?
[8] Cf. Lukács, Signification présente du réalisme critique.
[l) V. Hugo, Les 11oix intérieures, Prefácio. (9) Cf. Freud, Trois essais, cap. li, e Abrégé de psychanalyse.
(2) Baudelaire: (a) Sa/on de 184S; (b) Salon de 1846; (e) Salon de 18S9; (d) L'art ro- (10) 8arderis: (a) Lectures du réel, p. 285; (b) ibid., p. 59.
mantique: le peintre de la 11ie moderne. {1 Jj Malraux: (a) Le temps du mépris, Prefácio: (b) La condition humaine: (e) Les voix
(3) Francis Ponge, Lc grand recuei!: Pieces - Le parti pris des'choses. du silence: la création artistique; li.
(4) Fernand Léger, Fonctions de la peinture. ' (12) Michel 8utor, em Lettres nouvelles, fevereiro de 1961.
(SJ Pablo Neruda: (a) Las furias y las penas (traduzido cm Enzensbcrger: Culture ou (13) MaYakovski, citado em Cl. Frioux, M. par fui-mime.
mise en coditlon?), canto geral XV, XX; (b) Discours de 1953 (Em Enzensberger). (14) Aragon, Le fou d'Elsa: Le printemps . .
[6] K. Marx: (a) Critique de l'économie politique, p. 17S; (b) ibid., Introdução; (e) [lSJ Hours, em La Vie intellectuelle, novembro de 1948.
Manifeste Communiste (burgueses e p roletários); (d) ldéologie allemande, p. 67. (16] Jean Villar, De la tradiction théâtrale, p. 147.
[7] 8. 8rccht: (a) Lesarts et la révolution; p. 17S, e Petil Organon, 69; (b) Ecritssur /e (17) R. Lcroy, La culture au présent, p. 30.
théâtre, t. I, p. 325;L~ arts et la révolution, p. 176; (e) ibld., p. 347; (d) Surfe réa- [18] Cf. Fayolle, ~inte-Beuve et te XVIIF sieclt.
lisme, p. 88; (e) Surfe réallsme, p. 63; (f) L 'achai du cui11re, p. 16S; (g)Ecritssur la (19) Cf. 8énichou, Morales du Grand Siecle; L 'écri11ain et ses travaux.
politique et la société, p. S2. (20) Ouillevic, em Europe, março de 1966.
(8) Resolução do Comitê Central do PCF, Argenteuil, 1964. [21) Max Jacob, Le terroin Bouchaballe: La dame aux sept maris.
(9] Oramsci: (a) ibid., p. 621; (b) ibid., p. 302; (e) ibid., p. 179. (22) Apollinaire, Caligrammes: Sur les prophéties; Les mamelles de Tirésias, Prólogo;
(10] Cf. Lukács, Histoire et conscience de classe. Calligrammes: La folie rousse.
(11] Lénine, Que faire?, Ili.
(12] L. Goldmann, la création culturelle dans la société moderne, p. 162.
(f3) M. Proust, Du côté de chez Swann, t. I, p. 65. BIBLIOGRAFIA DA SEGUNDA PARTE
(14) Cf. Lévi-Suauss, La pensée sauvage, cap. 1~.
[IS) Sartre: (a) Qu'est-ce que la /ittérature?, IV; (b) ibid., II. CAPÍTULO 1
[16) 8arderis, Lectures du réel, p. 94.
(17] Cf. A. Arnheilm, Psychologie de /'art. (1) Oramsci, citado a partir de ;'Oramsci dans le texte": (1 1], p. 39S; [121 p. 584; (13] p.
(18] L. Febvre, Combats pour l'hístolre, p. 82. S84; (1 4 ) p. 720; [I'J p. 303; (1 6 ) p. 131e170; (17 ) p. 623.
[19] Hegel, Phi/osophie de l'histoire, Introdução. [2] Didcrot, Salon de 1767: Sur l'Epicié.
(20] Engels, Classes laborieuses, p. 161. (3) A. Artaud, Messages révolutionnaires.
(211 Cf. 5eve, Marxísme et théorie de la personnalité - Une introduction à la philoso- {4) Hegel,Sciencedefalogique, liv. I,cap. l?, d.
phie marxiste. [SJ K. Marx, Lettre à Ruge.
(22) Malraux, Le temps du mépris, Prefácio. (6) Laurént Casanova, Congres du PCF 1947.
[23] Marakovski em 1928. (7) . Aragon, La culture et les hommes.
[24] Camus em Stockholrn em Essais (Plêiade, p. 1079). [8] Gorki, La culture et le peuple, p. 248.
[2S) Cf. R. Leroy, La culture au présent. (9) Eluard, Premiere anthologie vivante de la poésie. Prefácio.
(26) 8rassar, Con11ersations avec Picasso, p. 173.
1
1 (27) Cf. Jeanson, L 'action culturelle dans la cité. CAPÍTULO II
! (28) Mallarmé, cm Pléiade, p. 666, 870, 372.
(29) Apollinaire, Alcools: Cortége. Este capitulo é a compilaç.ã o de multiplos livros, em particular: 8runer, Pédagogiede la
1
1.
281 Bibliografia A alegria na escola 282

découverte; Nimicr, Mathématique et qffectivité; Giordan, Une pédagogie pour les sciences la science (especialmente as contribuições de Marie Jahoda-KJinchebérs, Lévi-Strauss, Arnold
expérimentales; Canguilhcm, Etudes d'hlstoire et de la phllosophie des sclences; Lébouté, M. Rose); P. Thuillier, Jeux et e!Veux de la science, les biologistes prendront-ils le pouvoir?; R.
L 'enseignement de la physique. - Poimboeuf e Malglaive, em Education permanente, maio de Bastide, Le prochain et le lontain .
1973, n ~ S; Malglaive, ibid., outubro de 1977, n~ 10; Migne, ibid., outubro de 1970, n~ 8; Col·
mcz, Revue française de Pédagogie, olftubro de 1978. - E naturalmente os Bachelard. Além de:

Além de: (1) Cf. Erikson, Adolescence et crise.


l (2) Barthes, Mythologies - Bichon chtt. les Negres.
(1] Stendhal, Henri Beyle, cap. 34. > (3) Cf. Sartre, Réflexions sur la question juive.
(2) Schwebel e Raph, Piaget à l'école, p. 150. (4) Pascal, Pensées, seção l, n~ 7.
(3) Francis Halbwachs, La pensée physique chtt. l'enfant et le savant. [S) Malrawc, L'espoir, p. 98.
(4) J. Oudeis, cm Revue de l'Enseignement philosophique, fevereiro de 1971. [6] Cf. Leiris, Cinq études d'ethnologle.
(S) Bachelard, La formation de l'esprit scientifique, cap. XII. [7) Lhi-Strauss, Race et histolre.

CAPlTULO III CAPÍTULO V

Este capitulo é a compilaçãd de múltiplos livros, em particular: Richta, La civllisation Este capitulo é a compilação de múltiplos livros, em particular Vintras (tése policopiada
au carrefour; Friedmann, Le travail en mielles; Durvazedier, Loisir et culture; Société éducati· sobre a música dos jovens), Fromm, L 'art d'aimer; Erikso~. Erifance et société-Adolescent:e
ve et pouvoir culturel; Lefebvre, Critique de la vie quotidienne; Oddone, Redécouvrir l'expé· et crise; CI. Roy, Le verbe aimer; Allendy, L 'erifance méconnue.
rience ouvriere; Ch. Fourrier, Dynamique institutionnelle de l'enseignement; Danielle Linhart,
L'appel de la sirene; De Montmollin, Le taylorisme au visage humain; Desbrousses e Peloille, Além de:
Pratique et connaissances ouvrieres; Poujol, Les cultures popularies.(e particularmente a con·
tribulção de P . Belleville); Malglaive, Politique et pédagogie; Duvignaud, Sociologie de la con· [1) Stendhal: (a) Le rouge et /e nolr, cap. XI; (b) Filosofia nuova, II, 122; (e) !h.
naissance (e particularmente a contribuição de Ansart); Verret, Le travail ouvrler. l'amour.
(2) Aragon, Aurélien, EpUogo.
Além de: (3) Shakespeare, Le marc:hand de Venise, ato III, se. 2.

(1) Jaur~s à la Chambre des députés, 21 de junho de 1894.


L (4) Rousseau, La Nouve/le Hélorse, 1 ~ parte, Carta XXIV.
(5) Mauriac, La noeud de vip~res, 111.
(2) Nizan, Pour une nouvelle culture, p. 21. (6) Cf. Lagache, tm Encyclopédie Françoise, t. Vlll.
(3) Cf. Arnaud Spire, em L 'Humanité, 8 de junho de 1984. (7) Freud, Trois essais, Conclusão.
(4) Freud, Malaise dans la civilisation, li, p. 25 (nota). (8) Merleau-Ponty, Signes, p. 288.
[5) Gramsci, ibid., p. 622. (9) Rilke, Lettres d un }eune poete, Carta VII.
(6) Mounier, La petite peur du XX! siecie, p. 141. (10) Eluard, Poésie ininterrom~. II.
(7) Oiderot, Essai sur /es études en Russie; e Encyclopédie, art.: "Educação". (11) André Breton, L 'amour fou; Fata morgana.
(8) P. Belleville, Une nouvelle classe ouvriere - Roubaix. [12) Balzac: (a) Les Cho1111ns (Pléiade, p. 1039); (b) Louis Lambert (Pléiade, p. 428).
(9) Cf. Guehenno, Caliban parle. (13) Cf. Alaln Oirard, Le choix du c:ortioint.
(10) Verret, Le travail ouvrier, p. 13S. (14) Maine de Biran, Journal, 1819.
(11) Percheron, L 'univers politique des erifants - les 10-16 ans et la politique. (15) S. de Beauvoir: (a)Py"huset Cinéas, I~ parte: L'instant; (b)Les bouc:hes inutiles,
(12) Goldmann, Recherches dialectiques, p. 96. ato I; (e) L 'Amérique au }our le }our, p. 322.
(13) F. Léger, em Europe, agosto de 1971. (16) Freud: (a) &sais de psychanalyse - Psychologie collective et aitalyse du moi, cap.
(14) Engels, Classes laborieuses, p. 17S. VI; (b) lbid., 4~ parte, cap. II.
(15) C. Petonnet no Colóquio de sociologia, 1981. (17) Cf. J .·P. Terrail, em Société Françoise, novembro 1982, e Danielle Bleitrach, em
(16) Verret, em La pensée, maio-junho de 1972. La Pensée, julho de 1982.
(17) Cf. R. Moulin, L 'expression esthétique de la vie quotidienne. (18) K. Marx, La Sainte Familie, cap. VIII,§ 6; Ebauche d'une critique de l'économie
(18) Brecht, Ecrits sur le tltéOtre, p. 1.11. po/itique (Plélade, li, p. 78).
(19) Rimbaud, Lellre d Paul Demeny.
CAPÍTULO IV (20) P. Ncruda, La centeine d'amour, l, V, VIII, XVI.

Este capitulo é a compilação de múltiplos livros, em partioular: Racisme et société (espe-


cialmente a coptribuição de Patrice de Comarmond e Colette Guillaumin); Le racisme devant
283 Bibliografia
A a/el(ria na escola 284
CAPÍT.Ut,O VI " [5] Cf. ,Bley, Les classes de réadaptation dans les lycées. .
[6) Hegel, Discurso de 2 de setembro de 1891, em Textes pédagogiques.
(1) Maurras, Vingt-cinq ans de monarchle. 1 (7] Alain, Propos (Plêiade, p. 657).
(2) Drieu La Rochelle, NRF, janeiro de 1943.
.J3J L. Febvre, Combats pour l'histoire, p. 31.
·1 CAPÍTULO IV
(4) Oramsci, ibid., p. 186. 1
[S) Oeorges Marchais, L 'Humanité de 7 de dezembro de 1983. [1] Cf. Porcber, em L 'Education, 12 de maio de 1983.
[6) Brecht, Me Ti, p. 110. (2) Durkbeim, L 'évollltion pédagogique, t. 2, cap. XI.
[7] Cf. fyferleau-Ponty, Humanlsme et Terreur: (3) Cf. Koyré, Etudes d'hlstoire de lapensée scientifique.
(8] K. Marx: (a) La guerre civl/e en France (Dirigida para o conselho... ); (b)Manifeste, (4] Oramsci, ibid., p. 623.
communlste (burgueses e proletários). (5) P. Valéry, Varlété - lntroduction à la méthode de Léonard de Vinci.
[9) Unine, t. 22, p. 333. · [6] Cf. A. Girard, Les choix du cottjoint. ·
(10) Engels, Ludwig Feuerbach, p. 61. (7] Lénine, t. 31, p. 292.
( 11) Freud: (a) Essais de psychanalyse -Au-deld du príncipe de plaisir; (b) Trois essais, (8) Cf. Claude Roy, Défense de la littérature.
cap. V, v. (9) Brecht, L 'achat du cuivre, p . 84.
(12] Max Planck, L 'image du monde dans la physique contemporaine. [10] Jaures, Revue de l'ense/gnement primaire, outubro de 1908.
· [13] Francis Halbwachs, La pensée,physique chei l'enfant et le savant. [11) Proust, Prefácio de sua tradução de La Bible d'amiens de Ruskin; prefácio de sua
(14] Kourganoff, La face cachée de ."université. tradução de Sésame et les lys de Ruskin.
'" (12] Balzac, Physiologie du mariage (Plêiade, t. X, p. 708).
[13] Sartre, Qu'est-ce que la littérature?, II.
BIBLIOGRAFIA DA TERCEIRA PARTE . (14] Bergson, L 'e//ort intellectuel, em L 'energie spiritue/le.
[IS] Brccht, Sur /e réalisme, p. 65; Pctit Organon, § 77.
Esta parte é a compilação de múltiplos livros, em particular: Fourier, Dynamique insti· [16] Althusscr, Pour Marx, p . 146.
tutionnelle de l'enseignement; Reboul, Qu 'est·ce qu'esl (lpprendre?; Neil Postman, Enseigner, (17] Baudelaire, Ecrits sur l'Art - le peintre de la vie moderne, III.
c'est résister; Passcron, art. "Pédagogie", em Encyclopédie Universalis; Terricr e Bigeault, (18] Elie Faure, L 'art antique, p. 49.
Une école pour Oedipe, Dubar, Formation permanente et contradíctlons sociales; Malgiaive,
Politique et pédagogie en /ormation d'adultes.
1.
\,
(19) Michel Mathieu, em Psychanalyse et génie créateur, p. 35.
(20) Cézanne, citado em Oasquet.
[21] 0.-L. Marchai, em Revue /rançaise de Pédagogie, primeiro trimestre de 1969.
Além de: (22) Aragon, Entretien avec Francis Crémieux, p. 62.

CAPÍTULO 1 CAPÍTULO V

(1) Jaurcs cm Chambrc des députés, 11 de fevereiro de 1985. [1] Cf. os livros do GFEN, Parler pour de bon d l'école; Réussir d l'école.
(2) K. Marx, Dix-huit brumaíre.
[2) Cf. Erny, em Revue/rançaisede Pédagogíe, abril de 1981; Malglaive e Weber, ibid.,
[3) Engels, Classes laborieuses, p. 157. outubro de 1982 ·e janeiro de 1983.
(4) R. Leroy, ~a culture au présent, p. 150. (3) Cf. Oury, De la classe coopérative d la pédagogie instítutionnelle.

CAPÍTULO li

(1] Butor, Les mots dons la peinture, p. S e 11.


(2] Porcher, L ''ducation esthétique (contributo de Forquin). \
(3) cr. ~azzo, Des garçons de s~ d douze ans.

CAPITULO II/

(1) Cf. Hameline, Le domestique et l'qf/ranchi.


(2) Malraux, L 'espoir, p. 206.
[3) Alain, Propos sur la religion, 21 de dczeipbro de 1935.
[4) Cf. Malrieu, Traité de psychologie de l'efl/a(.lt, t. V.

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