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C A S A D A � P A L A V R A
A designação"história cultural"
está, hoje, associada a um nome:
Roger Chartier. Diretor de estudos,
na famosa École des Haures
Études en Sciences Sociales de
Paris, autor de inúmeros livros
traduzidos nas mais diversas ün
guas, consagrado internacional
mente como um dos maiores, se
não o maior especialista da
história do livro e da leitura, ele
é, para além do intelectual de
renome, uma figura humana cheia
de calor e entusiasmo. Há mais de
quinze anos, Chartier é reconhe
cido como o maitre à penser de
uma abordagem que investiga não
apenas a história das instituições
(escola, imprensa e tudo o mais
que, sob o Antigo Regime, dizia
respeito à livraria, à censura e à
biblioteca), mas também a
história das práticas que davam
vida e sentido à produção, difusão
e apropriação dos textos.
Inteligência e erudição fazem de
suas obras um marco obrigatório
para todos os que se interessam
por temas como cultura, livro,
teatro e educação. Chartier é,
ainda, pioneiro ao apontar a
relação dialética - marcada por
descontinuidades e diferenças -
entre os gêneros e as formas dos
textos e a história da leitura e dos
leitores.
Chartier não poderia nos convidar
a viagem mais extraordinária do
que a dedicada ao tema da diver- MARY DEL PRIORE
do palco
à págin
Este livro, publicado no âmbito do Program a de A poio à
Publicação, contou com a ajuda do M inistério Francês das
Relações Exteriores, da Embaixada da França no Brasil e da
M aison de France no R io de Janeiro.
C et o u v r a g e , p u b li é d a n s le c a d r e d u P r o g r a m m e d '/ lid e à la
P u b lic a t io n , b e n e f i c i e d u s o u t i e n d u M itiis tè i-e d e s A f f a ir e s
E tr a n g è r es , d e l'A m b a ssad e d e F r a n ce a u B r é s il e t d e la M a iso n d e
F r a n c e d e R io d e J a n e ir o .
Roger C h artier
DO PALCO À PÁGINA
P u b lica r tea tro e le r rom a n ces
n a época m od ern a (séculos XVI-XVIII)
T ra d u ç ã o d e B r u n o F e it le r
C A S A D A UM! P A L A V R A
Copyright©2002, Roger Chartier
Tradução
Bruno Feider
( a g r a d e c im e n to s a L iv ia A lessa n d ra F ia lh o C osta e G io v a n n a C esera n i)
Revisão da tradução
Mary Del Priore
Revisão
Nana Vaz de Castro
Pesquisa literária
Alexandre Arbex Valadares
Norma Schipper
Pesquisa iconográfica
Marcos Ribas de Faria
C a p a (sob re g r a v u r a do s é a d o x vill, M á q u in a d e te a tr o d e H e rm a n d )
e produção editorial
C A S A D A ■M M P A L A V R A
editora@ casadapalavra.com.br
www.casadapalavra.com.br
C A T A L O G A Ç Ã O N A F O N T E DO D E P A R T A M E N T O N A C I O N A L D O L I V R O — BN
ISBN 8 5 -8 7 2 2 0 -5 2 -7
Prefácio 7
Roteiro.
Guia de interpretação do autor.
10 — 1)0 P A L C O À PÁGINA
A disciplina que estuda os textos como formas impressas e seus processos de trans
missão, incluindo seus modos de produção e de recepção.
FORMAS DA ORALIDADE E PUBLICAÇÃO IMPRESSA'
As proezas mais ilustres perdem seu brilho se não são cunhadas em palavras [...] Eu
serei Enéias; tu serás meu Virgílio.
F O R MA S DA O R A L I D A D E E P U B L I C A Ç Ã O IMPRESSA — 15
uma outra obra: “D entro dei térm ino de un ano aplaudirem os otra loa,
p oeta”?'
Um ano mais tarde o poeta retoma à presença do rei. Seu novo
poema era bastante diferente do precedente. Por um lado a nova ode
quebrava todas as leis, fossem gramaticais (“ Un sustantivo singular podia
regir un verbo plural. Laspreposiciones eran ajenas a las normas comunes”vn),
poéticas (“La aspereza alternaba con la dulzura”vm) ou retóricas (“Las
m etáforas eran arbitrarias o a s ílo parecían”>x). A obra não se ajustava de
modo algum às convenções da arte literária; ela não era mais imita
ção, mas invenção.
Por outro lado, desta vez o poeta leu sua obra, e não a recitou com
a mestria que havia demonstrado um ano antes. Ele o fez com dificul
dade, hesitação, incerteza: “lo leyócon visible inseguridad, omitiendo ciertos
pasajes, como si él mismo no los entendiera dei todo o no guisieraptvfanarlos”.x
A leitura foi feita diante do rei e do círculo de letrados, mas o público
desapareceu. Este novo texto, estranho, surpreendente, não era mais
da ordem da representação, mas da ilusão. Ele não levava a crer nas
proezas do rei; ele era estas proezas, que foram assim “mostradas” à
audiência: “No era una descripción de la batalla, era la batalla” .XI O poe
ma criou sozinho o evento, na sua força primordial. A ékpbrasis foi
substituída pela representação.
O poema prende e cativa sua audiência: “Suspende, m aravilla y
deslum bra” .x n Ele exerce um efeito nas sensibilidades que a primeira
loa não conseguia realizar apesar de sua perfeição formal. Para des
crever esses efeitos, B o r g e s utiliza um vo ca b u lá rio característico da
idade de ouro da literatura espanhola: “em belesar”, “m aravillar”, “en
cantar”. Contudo, desta vez a ficção foi considerada e condenada como
xvn Ninguém rebaixe a lágrima ou rejeite/ Esta declaração da maestria/ De Deus, que
com magnífica ironia/ Deu-me a um só tempo os livros e a noite,
xviii Senti que havia cometido um pecado, talvez daqueles que o Espírito não perdoa.
xlx Aquele que agora nós dois dividimos. O de haver conhecido a Beleza, que é um dom
interdito aos homens. Agora nos cabe expiá-lo.
xx É um mendigo que percorre os caminhos da Irlanda, que foi seu Reino, sem nunca
ter repetido o poema.
KOl i MAS DA OKAL1DADK E P U B L I C A Ç Ã O I M P R E S S A -- 19
xxl A arte acontece, declarou W histler, mas a consciência de que jamais acabaremos de
decifrar o mistério estético não se opõe ao exame dos fatos que o tornaram possível.
20 — 1)0 P A L C O X PÁGINA
xxn. Um bom tipógrafo deseja ao mesmo tempo fazer com que o sentido que o autor
deseja dar a sua obra seja inteligível ao leitor, e com que a obra seja atraente ao olhar
e agradável à leitura. Deste modo, se sua prova for escrita numa língua que entende,
ele lê esta prova com consideração; ele conseguirá assim captar a mensagem que o
autor quer transmitir e conseqüentemente irá considerar o melhor modo de orde
nar tanto a página de rosto como o corpo do texto da obra. Isto também permitirá
que a tabulação, a pontuação, a segmentação, a utilização do itálico, etc. se harmo
nizem melhor com o espírito do autor e com a capacidade do leitor.
F O R M A S DA O R A L I D A D E E P U B L I C A Ç Ã O I M P R E S S A . — 27
xxvl Só te suplico uma coisa, leitor: que pronuncies bem meus versos e que ajustes tua
voz a tua paixão, e não como alguns que os lêem mais como se fossem uma carta ou
algum edito Real do que um poema bem declamado; suplico-te ainda, desde já, que
sempre que vires este sinal ! eleves um pouco tua voz para dar graça ao que estará
sendo lido.
30 — DO P A L C O À PÁGINA
e nunca no fim dela”, e o “point rond” (ou ponto final), que “é sempre
c o lo c a d o n o fim da frase”. A mesma nomenclatura já havia sido pro
posta na edição da Instruction des enfans de Olivetan, publicada em
Genebra em 1537 por Jean Gérard, onde a “Table des accents et des
poinctz” diferenciava a “v irgu le ou point à queue", os “deux points" e o
“pointfinal" ? c Do mesmo modo, uma Instruction et créance des chrétiens,
publicada em Estrasburgo em 1546, menciona numa lista de “Lettres
su rven antes”, a “v irg u le”, o “comma" e o “poin t" ?1
Os dicionários de língua francesa do fim do século XVIII regis
tram a eficiência do sistema proposto por Dolet (enriquecido somen
te do ponto-e-vírgula, que indica uma pausa de duração intermediária
entre a vírgula e o dois-pontos), e também a distância criada entre a
voz do leitor e a pontuação, previamente considerada, segundo a ter
minologia do dicionário de Furetière, como uma “observação gra
matical” que marca as divisões lógicas do discurso. Nos exemplos
propostos por Furetière no seu dicionário, publicado em 1690, ele
in d ica que: “ Ce C o r r e cte u r d T m p r im e r ie e n te n d f o r t b ien la
ponctuation"XXKm e “Inexactitude de cet A uteur va ju sq u es là q u ’il pren d
soin des points et des virgu les" ,XXV[ri Se o primeiro exemplo atribui de
modo óbvio a pontuação à competência técnica própria dos editores
de texto e revisores empregados pelos impressores, o segundo exem
plo implicitamente faz referência à falta de interesse geral por parte
dos autores ao que concerne a pontuação. Moxon faz alusão direta a
esta negligência nos seus M echanick Exercises:
incum bent on the Compositer, viz. to discern and am end the bad
XX I X 38
Spelling and poin tin g o f his Copy, i f it be E nglish'
xxix Peias [ejs edição, um tipógi*afo deve seguir sua prova à risca, isto é, acatar e seguir
somente o que ela diz, de modo que ela é a Jei e a autoridade a respeitar. Porém, a
negligência de alguns bons autores e a ignorância de outros levaram os impressores
a introduzir um costume que, entre eles, é visto como uma incumbência e um dever
do tipógrafo, e que consiste em discernir e corrigir os erros de ortografia e de pon
tuação presentes na prova, se esta é em inglês.
xxx o p r iv i l è g e d u r o i era a autorização dada pelo governo real para que se pudesse impri
mir um certo texto.
32 — 1)0 P A L C O A PÁGINA
XXXI» ge dizemos algo ofensivo, é intencionalmente. / Assim podereis pensar que não que
remos ofender, / sem ter a intenção de fazê-lo. / Eis o verdadeiro começo de nossos
fins.
xxxiv ge djzemos algo ofensivo, saiba que o fazemos / para que possas crer que não quere
mos ofender / mas para mostrar até onde vai nossa arte: / eis o verdadeiro começo de
nossos fins.
F O R MA S l)A O R A L I D A D E E P U B L I C A Ç Ã O I MI Mi E S S A — 37
xxxv Não tema matar Edward, sua morte será uma boa coisa.
xxxvi mate 0 rei, deve-se temer o pior.
38 — 1)0 P AL CO À P Á G I N A
NOTAS
1 Os três primeiros capítulos deste livro correspondem à tradução de meu íivro P u b lish in g
D ra m a in E arly M o d em F r a n ce, Londres, The British Libraiy (“The Panizzi Lectures
19 9 8 ”)) 1999.
2 B o r g f .s , Jorge Luis. “El espejo y la mascara”, in Borges, El lib ro d e a ren a (1975), Madri,
Alianza Editorial (“Biblioteca Borges”), 1997, p . 80-86 [tradução em português: Borges,
Jorge Luis. “O espelho e a máscara”, in Borges, O livro d e a reia , Lígia Morrone Averbuck
(trad.), São Paulo, Globo (“Obras completas de Jorge Luis Borges”, vol. 3), 1999].
3 Iff., B .W . R ea d in g a n d F iction in G olden -A ge Spain. A P la ton ist critiq u e a n d som e p ica resq u e
r e p lies , Cambridge, Cambridge University Press, 1985.
4 B o r g e s , Jorge Luis. “La ceguera” (1977), in Borges, S iete n och es, Cidade do Mexico,
Fondo de Cultura Económica, 1980, p. 141-íóO [tradução em português: Borges, Jo r
ge Luis. “A cegueira”, in Borges, S ete n o ites, Sérgio Molina (trad.), São Paulo, Globo
(“Obras completas de Jorge Luis Borges, vol. 3), 1999].
14 M oner , Michel. C erv a n tes con teu r, é cr its e t p a ro les, Madri, Bibliothèque de la Casa de
Velazquez, 1989.
21 Veja os exemplos dados por B i n n s , James. “ST C Latin Book: Evidence for Printing-
House Practice”, in T he L ib ra ry, 5J série, vol. XXXII, n. 1 (março, 1997), p. 1-27 (exem
plos 32, 33, 35 e 36).
40 — 00 PAL CO Á P Á G I N A
24 B i n n ' S, James. A rt. cit. p. 7 (exemplo 10, M. A. de Dominis, D e rep u b lica ecclesiastic/!,
1617).
26 Ib id., p. 247.
28 Cf. Binn, James. A n . cit., exemplo 26, p. 15, e M oxon, Joseph. M ech a n ick E xercises, op.
cit., p. 247.
34 Cf. H a r t , John. A n O rth o gra p h ie, 1569, A Scholar Press Facsimile, Menston (Inglater
ra), The Scholar Press Limited, 1969, que constatou que “a escrita deve representar as
diversas partes da voz”, e B u l l o k a r . Booke a t la rge, 1580, in T he Works o f W illiam Bullokar,
J. R. Turner (ed.), The University o f Leeds, School o f English, 1970, vol. III.
F O R M A S DA O R A L I D A D E E P U B L I C A Ç Ã O U U M Ï E S S A — 41
44 Veja os comentários feitos por Louis Van Delft, cuja edição foi a primeira a restaurar as
maiúsculas, op. cit., p. 45-57.
Nunca fez parte dos meus hábitos (cortês leitor) submeter minhas peças à imprensa. A
razão disso alguns atribuem à minha própria incapacidade, mas prefiro, neste caso,
submeter-me à severa censura deles, do que, ao procurar evitar a imputação de fra
queza, incorrer na maior suspeita de desonestidade. Pois mesmo se alguns costu
mam vender duas vezes seu trabalho, primeiro ao palco e depois à edição, quanto a
mim, eu me proclamo aqui sempre fiel à primeira e nunca culpado da última. C on
tudo, visto que algumas de minhas peças chegaram (sem meu conhecimento e sem
nenhuma das minhas diretivas) acidentalmente às mãos dos impressores, e de modo
tão corrupto e mutilado (pois tomadas somente de ouvido) que fui incapaz de as
reconhecer e tive vergonha de as contestar, dispus-me a fornecer esta peça na sua
roupa original: primeiro por esta edição ter meu consentimento, em seguida porque
as outras foram muito desmerecidas por terem sido publicadas de modo tão bárbaro
e em trajes tão esfarrapados. Aceitem-na, corteses senhores, e mostrem-se leitores
assim como demonstram ser bondosos auditores.
Uns homens que vivem, se sustentam e se vestem de roubar aos autores suas comé
dias, dizendo serem capazes de memorizá-las só de ouvi-las, e que isto não é roubo,
visto que o ator as vende ao povo e que eles podem se orgulhar de sua memória.
0 TEXTO l)E TEATRO: TRANSMI SSÃO E EDIÇÃO — 45
piores expectativas: “He hallado, leyendo sus traslados, que para un verso
mío bay infinitos suyos, llenos de locuras, disparates e ignorancias, bastantes
a quitar la honra y opinion a l m ayor ingenio en nuestra nación, y las
estranjeras, don deya se leen cm tanto gusto. ”m2 A observação de Lope é
inteiramente corroborada pela análise de uma cópia manuscrita da
sua peça P erib a n ez y el Comendador de Ocana, que possui apenas cem
versos em comum com o texto impresso em 1614 em M adri, Barce
lona e Pamplona.3
Na Inglaterra, a memória era auxiliada pelo uso da estenografia.
Devemos recordar que pelo menos dez manuais de “ch aracterie",
“brachygraphy”, ou “stenography” foram publicados entre 1588 e 1626.4
Graças a estes métodos lestos de redação, os textos das peças encena
das à tarde nos teatros podiam ser no mesmo instante anotados e em
seguida transcritos e vendidos a um editor. No prólogo de 1637 do
seu I f You Know Not M e, You Know No Bodie; or The Troubles o f Q ueene
Elizabeth, obra datada de 1605, Thomas Heywood alude a esta prática
dizendo de sua peça:
III Lendo suas transcrições, notei que para um verso meu, havia infinitos seus, cheios
de loucuras, disparates e ignorâncias, o suficiente para comprometer a honra e a
reputação do m elhor poeta da nossa nação e das estrangeiras, onde já se lêem com
tanto gosto.
IV Favorecida e assistida desde o berço / o público encheu assentos, caixas, todo o
teatro / De tal maneira que alguém tomou nota / da intriga, e a imprimiu (com
quase nada de verdadeiro) / E neste claudicar ela coxeou tanto tempo / Que o autor
quer agora vingar este dano / Sem medir esforços a pôs de pé / Para ensinar-lhe a
andar. Então lhe rogo, sente-se e aprecie.
46 — 1)0 P AL CO X P Á G I N A
parce q u ’il serait a r riv é q u ’en ayant ci-devant com posé quelques
autres, aucunes d ’icelles auraient été prises et transcrites p a r des
particuliers, qui les auraient fa it imprimer, ven dre et débiter en
v e n u des lettres de p rivilèges qu ’ils auraient surprises en notre
gran de chancelle?'ie à son préjudice et dommage.
Porque, tendo c o m p o s t o outras peças, algumas foram tomadas e transcritas por cer
tas p e s s o a s q u e as imprimiram, venderam e distribuíram, sob a cobertura de p r iv ilè g e s
subtraídos de nossa chancelaria, causando-lhe danos e prejuízos.
0 TEXTO l)E TEATI Î O: TRANSMI SSÃO E EDIÇÃO — 47
VI
Com comentários sobre cada cena.
48 — 1)0 P AL CO X P Á G I N A
sendo montada sem músicas ou danças. Ela foi encenada dez vezes
entre os dias nove de novembro e nove de dezembro, a cada vez acom
panhada por outra peça do repertório de M olière e por ele escolhida,
seja por também ser nova (.Amphytrion), seja porque a intriga tratava
das ansiedades do casamento (Sganarelle ou le cocu im agin aire, L’Ecole
des m aris), seja ainda porque a peça utilizava, como G eorge Dandin,
recursos da farsa (Le M édecin m a lgré lui) (O m édico contra a vontadé).21
A “mesma” peça foi assim encenada em condições de representa
ção completamente diversas, cada uma para um público diferente (a
Corte ou um grupo heterogêneo de citadinos) com um leque de expe
riências, referências e expectativas específicas. Contrariando a crítica
tradicional, insensível aos modos de impressão e de representação dos
textos, e que acredita que o significado de uma obra literária pode ser
inteiramente designado através dos seus protocolos lingüísticos, a du
pla participação de G eorge Dandin nas festividades da Corte e nas prá
ticas teatrais urbanas nos mostra que o sentido de uma obra depende
sempre da maneira como ela é apresentada aos seus leitores, especta
dores ou ouvintes. Nas PanizziLectures de 1985, D. F. McKenzie subli
nhou que “o método influencia o sentido” e que um texto impresso
muda radicalmente de sentido dependendo da apresentação tipográ
fica, do formato, da paginação, das ilustrações, da organização, de sua
segmentação.22 Do mesmo modo, o sentido de cada peça de Molière
variava freqüentemente de acordo com os dispositivos de representa
ção que, a cada vez, modelavam a peça de modo específico.
E suficiente apenas chamar atenção para o fato de que “em sua
parasitária falta de função e seus ideais culturais comuns, la cour et la
ville misturavam-se em uma sociedade completa e homogênea”;23 ou
lembrar a fluidez das fronteiras sociais existentes entre a nobreza e a
burguesia, para descrever a diferença entre a “Corte” e a “cidade” e
pressupor que as diferentes audiências de uma peça a recepcionam de
modo similar?24 Ainda que os espectadores dos festejos da Corte e os
da sala parisiense tivessem as mesmas expectativas, as diferenças pro
fundas entre os mecanismos que regiam os dois meios de encenação
provocavam reações de tipos muito diferentes à peça. Se aceitamos
que a construção do significado depende, em grande parte, das for
mas de transmissão e de recepção dos discursos, temos que explorar
0 T E X T O DE T E A T R O : T R A N S M I S S Ã O E E D I Ç Ã O — 53
personnes qui ont des yeux pou r découvrir dans la lecture tout le
je u du théâtre.
,x E desnecessário adverti-los de que existem neste texto muitas passagens que depen
dem da atuação. E sabido que as peças só são feitas para serem representadas, e eu
só aconselho a leitura desta às pessoas que têm olhos para descobrir, pela leitura,
todo o jogo teatral.
0 T K X T O DE T E A T R O : T R A N S M I S S Ã O E E DI Ç ÃO — 55
Uma vez que boa medida da graça encontrada nesta peça depende da atuação e do
tom da voz, importava-me que ela não fosse despojada desses ornamentos; e como
achei que o sucesso que ela teve nas representações foi o suficiente para não ir mais
além [..,] não queria que ela saltasse do Théâtre Bourbon para a Galerie du Palais.
NT: A Galerie du Palais era o lugar onde os livreiros especializados em novidades
literárias tinham suas lojas.
Seria de se desejar que estes tipos de obras pudessem sempre vos ser mostrados com
os ornamentos que as acompanham no palácio real. Vós as veríeis num estado muito
mais tolerável, e as melodias e as sinfonias do incomparável senhor Lully, mescladas
à beleza das vozes e à destreza dos dançarinos, lhes dão, sem dúvida, graças das quais
eles se privam com grande embaraço.
56 — 1)0 FA I C O \ PÁGINA
rendre grâ ce du succès de cette com édie”,xu visto que o rei ordenou a
M olière que acrescentasse à peça um outro “fâch eux ”, ou personagem
“qui a été trou vép a rtou t le plus beau m orceau de l ’ou vra ge” xm Ao mesmo
tempo em que aparentemente negava que se tratasse de uma dedica
tória, M olière mobilizou a figura retórica mais clássica do gênero,
louvando o príncipe como fonte primordial de inspiração, como o
principal autor da obra que lhe era oferecida. Deste modo, o rei mos
trava-se realmente um soberano absoluto, visto que ele possuía não
apenas o que podia dar (favores ou proteção), mas também o que ele
recebia — isto é, a obra que lhe era oferecida.30Molière também zomba
de outro gênero; o do comentário, ou examen, composto pelo pró
prio autor e que trata de seu próprio trabalho: “le tem ps viendra de
fa ir e im prim er m es rem arques su r les pièces que j ’aurai faites, et j e ne
désespère pas de fa ir e v o ir un jour, en gra n d auteur, que j e puis citer Aristote
et H orace”.xw Seu alvo era claramente Corneille, que, na edição de
suas obras publicada em 1660, incorporou comentários a suas peças.
Esta aceitação irônica das regras da publicação impressa revela o pro
cesso de transformação pelo qual M olière passou e que transformou
o ator e diretor de uma companhia teatral em verdadeiro “autor”.
Depois do lançamento de Les Précieuses ridicules, M olière subme
teu-se à lógica que regia a impressão e a pxiblicação de suas peças. O
modo pelo quai as edições autorizadas das peças eram realizadas é o
primeiro aspecto deste processo. O mecanismo era sempre o mesmo:
Molière pedia um p rivilège para proteger uma ou mais peças, que junto
com os textos, posteriormente vendia para um livreiro ou um grupo
de livreiros que se associavam como editores. Todas as peças escritas
e encenadas por M olière foram publicadas assim — exceto sete peças
impressas pela primeira vez em 1682, dez anos depois da sua morte,
na edição das obras completas dirigida por La Grange. As relações
que M olière estabeleceu com os editores parisienses para a publi-
xn O que faço não é tanto para lhe apresentar um livro como para ter o ensejo de lhe
agradecer o êxito desta comédia.
xm Que por toda gente foi reputado o melhor episódio da peça.
XIV Tempo virá em que eu mandarei imprimir as minhas observações sobre as peças que
tenho escrito, e espero provar então que, quaí um grande autor, posso citar em meu
favor Aristóteles e Horácio.
0 TEXTO DE T E A T R O : T R A N S M I S S Ã O E E DI Ç ÃO — 57
cação autorizada de suas peças passou por três etapas. Entre 1660 e
1666, ele colaborou com vários dos livreiros que controlavam o mer
cado de lançamentos literários, primeiro de Luyne, Barbin e de Sercy,
os editores de Les P récieuses ridicules, e em seguida Quinet, Jolly,
Billaine, Loyson e Guignard. Entre 1666 e 1670, já em bons termos
com Ribou, M olière lhe entregou nove peças, entre as quais G eorge
Dandin. Finalmente, em 1670 e 1671, ele começou a colaborar com
dois novos livreiros, Pierre Promé e Pierre Le Monnier, para a publi
cação de quatro peças. Apesar de confusa, a história das edições auto
rizadas de M olière já é bem conhecida.31
O segundo aspecto, a história das edições piratas, é mais complexo
e obscuro. Ele nos leva de volta ao “in-décimo segundo ruim ” de
G eorge Dandin de Lyon. Uma análise preliminar das diferenças textu
ais existentes entre esta edição e a edição parisiense publicada por
Ribou permite que se identifiquem quatro tipos de erros: omissões,
substituições, confusões e acréscimos.32
omissões
'w Paris: — A nobreza, em si, é boa, importante sem dúvida; mas vem acompanhada de
tào más circunstâncias, que é melhor nem tocar nela.
Lyon: — A nobreza, em si, é boa, importante sem dúvida, mas que é m elhor nem
tocar nela.
58 — 1)0 P AL CO P , Í CI NA
Todo o meio do discurso, “d ’en user com m e vous faites. Oui, oui, m al
fa it à vous”, foi deixado de lado pela edição pirata.
substituições
xvl Paris: — Fazeis muito mal agindo assim. Isso mesmo, muito mal; e não adianta
abanar a cabeça e fazer caretas.
Lyon: — Fazeis muito mal, e não adianta abanar a cabeça e fazer caretas.
xvn Paris: M onsieur de Sotenville: — Cuidado, pois sabeis que esta será a última imper
tinência que agüentaremos de vós.
Lyon: Monsieur de Sotenville: — Cuidado, pois sabeis que esta será a última vez
que perdoaremos vossas impertinências.
0 TEXTO DK T E A T R O : T R A N S M I S S Ã O E E DI Ç ÃO — 59
confusões
acréscimos
Paris: Dandin: — Hé? com m ent nom m ez-vous celui qui vous a
en voyé là-dedans?
Lubin: — C’est le seign eu r de notre pays, M onsieur le vicom te de
chose... Foin, j e ne m e souviens ja m a is com m ent diantre ils
baragouinent ce norn-là. M onsieur C li... C litandre‘
xvm paris- — ó céus, ajudai meus desígnios, concedendo-me a graça de fazer com que
vejam que me estão desonrando.
Lyon: — O céus, ajudai meus desígnios, concedendo-me a graça de fazer com que
vejam como fui chifrado,
xix p aris: Dandin: — Claro. E como se chama o senhor que vos enviou?
Lubin: — E o senhor desta aldeia, o senhor visconde de ... Raios! Nunca me lembro
como diacho eles estropiam esse nome, senhor C li... Clistério!
60 — 1)0 PALCO À PÁGINA
NOTAS
2 L as D ed ica tória s d e P a rtes X III-X X d e L ope d e Vega, Thomas E. Case (estudo crítico),
University o f N orth Carolina e Madri, Editorial Castalia, 19 7 5 , P a r te X III (1620 ),
p. 5 4 -5 6 .
8 Num comentário à advertência ao leitor feito por Thomas Heywood no seu T he R ape
o fL u c r c c e citado no começo deste capítulo, Paul Werstine desassocia os atores da re
construção de memória: “A história de Heywood não só permite que se deixe em aber
to a possibilidade de uma reconstrução de memória — como o fazem igualmente várias
outras histórias coevas sobre a impressão de sermões, discursos e peças — mas também
ultrapassa o reducionismo do século X X que dava os atores como únicos produtores
dos textos que teriam sido compostos de memória”. Veja Paul W e r s t in e . “Narratives
A bout Printed Shakespearean Texts: ‘Foul Papers’ e ‘Bad’ Q uartos”, S h a k esp ea re
Q u a rterly , vol. 4 1, n. 1 (primavera 1990), p. 65-86 (citação p. 84).
16 G u i u e r x , Albert Jean. B ib lio gra p h ie d es Œ u vres d e M o lièr e P u b liées a u X V lIe s iècle, Paris,
Editions du Centre National de Recherche Scientifique, 1961 + suplemento, 1965
(reedição em 1973), tomo I, p. 283-292.
15 L ’Im p osteu r, / ou / L e T a rtu ffe, / C om m ed ie. / Par I.B.P. de M olière / Sur l’imprimé aux
/ despens de l’Autheur / A Paris / Chez Jean Ribou, au Palais, vis a vis / la porte de
l ’Eglise de la Sainte Chapelle /M .D C .LX IX /. Avec privilège du Roy (B.M. Lyon, 264
265).
2 5 M on grédien , Georges. R ecu eil d es tex tes e t d es d o cu m en ts d u XVIIe siè cle r e la tifs à M o lière,
Paris, Editions du Centre Nationale de la Recherche Scientifique, 1965, t. I, p. 321-
322.
25 M o l i è r e . L’A m ou r m éd ecin (1666), “Au lecteur”, in M olière, Œ u vres com p lètes, op. cit.,
vol. II, p. 95 [tradução em português: M olière, O a m o r m éd ico , Maria José de Carvalho
(trad.), São Paulo, Papyrus, s/d.].
2/M o l i è r e . L es P récieu ses r id icu les (1659), “Préface”, in Molière. Œ u vres co m p lètes, op. cit.,
vol. I, p. 263-264.
28 Id em . L A m ou r m êd e à n (1666), “Au lecteur”, in Molière. Œ uvres com plètes, op. cit., vol. II,
p. 95.
29 Id em . L es F âcheux (1662), “Au roi” e prefácio, in Molière. Œ uvres com p lètes, op. cit., vol. I,
p. 4 8 1-4 8 4 [tradução em português: M olière, Os im p o rtu n o s: co m éd ia a n três atos, Guedes
de Oliveira (trad.), Porto, Livraria Chardon de Lélo & Irmão, 1929].
32 Utilizo aqui o texto da peça da edição publicada por Ribou, como dado por George
Couton (G eo rge D an din , in M o l iè r e . Œ u vres C om plètes, op. cit., vol. II, p. 463-503), o
texto da edição pirata de Lyon e a tradução em português.
“ G ref .nhi . a i t , Stephen. S ha k esp ea rea n N egotia tion s: th e C ircu la tion o f S o cia l E n ergy in
R en a issa n ce E n gla n d, Berkeley e Los Angeles, University o f California Press, 1988,
p. 10 -11.
E NT R E 0 P A L C O E A P Á G I N A
I A única coisa que me aflige é pensar que cenas concebidas simplesmente para serem
declamadas possam ser publicadas sem a autorização necessária; e que menos ofen
dido ficarei se eu mesmo fizer os estragos.
II Mas como outros me causariam mais danos, o modo menos inconveniente deve ser
aceito. E por isso que eu mesmo dou à luz esta comédia.
70 — 1)0 P A L C O A PÁGIN A
III Portanto, minha ausência forçada faz com que eu deva confiar cegamente no
discernimento dos impressores. Apesar disso, imploro que os erros leves de orto
grafia sejam do mesmo modo levemente ignorados e que o modo desagradável desta
bagatela soar à leitura possa ser perdoado pelo prazer que ela já lhe proporcionou
quando foi apresentada ao vivo com toda a força da encenação ao vivo.
IV Se alguém se perguntar por que imprimi uma comédia, cuja vida depende tanto da
voz do ator, que ele saiba que não se pode impedir que seja publicada; que o fato de
ser eu mesmo o responsável por eia sirva então de boa desculpa.
v Desta vez corrigidos os muitos erros que passaram na primeira edição devido à au
sência do autor.
Vl Leitor, examinei este texto para emendar a primeira impressão, que saiu defeituosa.
Entretanto, o fiz com tamanha urgência que alguns erros permaneceram; que sua
circunspeção os retifique. Comédias são escritas para serem declamadas, e não lidas.
Lembre-se que a vida destas coisas depende da representação.
vu Operários ignorantes.
KNTliK 0 P A L C O E A 1‘ ÀCI NA — .71
x Confesso que grande parte da graça de uma peça depende da sua representação.
Entretanto, uma representação nunca será graciosa sem que a decência da lingua
gem e a engenhosidade da encenação se unam em perfeita harmonia.
XI De acordo com os textos originais.
xn ^ tragédia da duquesa de Malfy, tal como foi encenada pela companhia Kings
Maiesties Servants em privado 110 Black-Friers e em público no Globe. Este é o
texto completo e exato, com a impressão de diferentes detalhes e cuja dimensão não
é compatível com uma representação. Escrita por John Webster.
ENTRK 0 PALCO E A P Í G I N A ~ 73
A p erfo rm a jice teatral não era mais pensada como uma contri
buição a uma produção colaborativa da peça, mas vista como um
xra M a sq u e era um divertimento teatral inglês dos séculos XV I e XVTI. Feito de panto
mimas, danças, diálogos e cantos, era freqüentemente encenado na Corte.
xiV Fica reconhecido e entendido por e entre as sobreditas partes e os ditos Espectado
res e Ouvintes, assim como os curiosos e os invejosos, os complacentes e os sensa
tos, os que Julgam com fundamentos e os compreensivos, que eles aceitam e se
comprometem inexoravelmente a permanecer pacientemente durante duas horas e
meia, e quem sabe um pouco mais, nos lugares em que seu dinheiro ou seus amigos
os puseram. O Autor promete, neste espaço de tempo, mostrar-lhes por nós [isto é,
os atores] uma nova Peça idônea chamada isarti io l o m f . w fayre , alegre e tão baru
lhenta quanto uma piada, e feita para deliciar a todos sem ofender ninguém. Contanto
que eles tenham a inteligência ou a honestidade de se levar a sério.
74 — ■1)0 P AL CO À P Á G I N A
de las gentes, donde los libros lo hacen con m enos fu erz a y más
dj-r- i jd y espacio.
ip cu lta • XV13
xv A força das histórias é maior quando são encenadas do que quando são lidas, do
mesmo modo que se diferenciam a realidade da pintura, e o original do seu retrato
[...]. Sendo assim, ninguém poderá negar que as façanhas e as sentenças referidas no
teatro, ao vivo com seus personagens, não sejam de grande efeito para renovar a
fama na memória das pessoas, enquanto os livros o fazem com menos força, com
mais dificuldade e tomando mais tempo.
E NTRE 0 PALCO E A PÂCI NA — "1
para estudiarla les qiiedaba a sus duenos, no se deja con todo eso des-
conocerlafertilidaddesu riqutsima vena, tan conocidaa todos™ b
X' 1 Nestas doze comédias o Leitor verá muitas coisas sentenciosas e graves, e muitas
outras agridas e sutilmente ditas, pois mesmo que seja bem verdade que seu autor
nunca as tenho feito para dá-las ao prelo, e que muitas delas tenham sido escritas
precipitadamente, visto que os atores tinham tão pouco tempo para decorar seus
papéis, nem por isso se deixará de reconhecer a fertilidade de sua riquíssima inspira
ção, tão conhecida de todos.
XVN Se não vos inclinardes às letras, deves possuir poucos livros, bem escolhidos, e deves
extrair deles as frases, sem deixar passar, quando lerdes, coisas de importância sem
sublinhá-las ou fazer anotações nas margens.
78 — DO PAL CO À P Á G I NA
xvm ^ leitura de Sêneca em inglês, à luz de velas engendra frases boas, como ‘B lood is a
b e g g a r ’ e assim por diante. E se, em uma manhã gelada, complicares ainda mais sua
leitura, ele lhe renderá alguns Hamlets, e quem sabe até muitos discursos Trágicos.
xlx Ali! Veja onde se encontra, sem esperanças / de escapar das mãos que querem lhe
tirar a vida: / pois é bem verdade que Q u em d ies v id it v e n ie n s s u p erb u m , / H u n c d ies
v id it f u g i e n s ja c e n te m .
EN T R K 0 P A L C O E A P Á G I N A — 79
■
— ou, inversamente, a amplificação como aplicação de uma ver
dade universal a um caso em particular, como no trecho:
xx Mas quando me recordo de que sou rei, / lembro-me de que devo me vingar dos
danos / que M ortim er e Isabel causaram. / Mas que são reis sem regimentos, / senão
sombras num dia ensolarado?
xxl Atingido, o cervo da floresta / corre para um relvado que feche suas feridas, / mas
quando o majestoso corpo do leão recebe uma chifrada, / ele o lacera e o rasga com
sua pata furiosa, / e com grande repulsa de que a baixa terra / possa beber seu san
gue, ele se eleva no ar: / isto também vale para mim.
80 — ■1)0 PAL CO À P Á G I N A
xxn p 0js doze convêm ao tempo / e à paciência daquele que está escutando.
ENTRE 0 PALCO E A PÁGINA — 81
xxm jsjão permita o desenlace / antes de chegar a última cena, / pois sabendo o vulgo o
fim que a peça tem, / vira o rosto para a porta e as costas / ao que esperou cara a cara
por três horas; / pois não se deve saber mais do que se mostra,
xxix p 0js considerando que a cólera / de um espanhol sentado não se aplaca / se não lhe
representam em duas horas / tudo entre o Gênesis e o Juízo Final, / estimo que se
deve lhe dar gosto, / e que assim seja feito do melhor modo.
82 — 1)0 PA I.CO À P Á G I NA
xxv E, quando vou escrever uma comédia, / tranco os preceitos sob seis chaves; / tiro
Terêncio e Plauto do meu estúdio, / para que não gritem comigo (pois mesmo / de
livros mudos, a verdade costuma clamar), / e escrevo de acordo com a arte que
inventaram / os que pretenderam receber o aplauso do vulgo, / pois como é o vulgo
que paga as peças, é justo / falar-lhe como a um néscio e assim dar-lhe satisfação.
xxvi p a]cos montados em espaços parecidos com currais e que foram de larga utilização
em toda a Península Ibérica ao longo da Idade Moderna.
xxvii jsTjo exjste na Espanha preceitos ou leis que se apliquem às comédias que satisfazem
o vulgo; máxima que não desagradaria Aristóteles, quando diz que o poeta da fábula
atingiria seu propósito se ela conseguisse agradar aos ouvintes.
KNTRK 0 P A L CO E A P Á G I N A — 83
xxvm jrora sej3) tocias as outras / pecaram gravemente contra a arte. / Sustento, enfim, o
que escrevi, e sei / que mesmo que pudessem ter sido melhores de outra maneira, /
não teriam o gosto que tiveram, / porque às vezes o que é contra o justo, / pela
mesma razão deleita o gosto.
xx,x Num instante, seremos eu o autor, / tu o teatro, e o homem o recitante.
84 — DO PAL CO A P Á G I N A
xxx Como esta Peça é longa demais para ser convenientemente Representada, foram
deixadas fora do Palco certas partes que pouco prejudicam a Intriga e o Sentido,
mas como não queremos prejudicar de nenhum modo o incomparável Autor, as
inserimos no Texto Original com esta marca “ [isto é, com aspas no começo da
linha].
ENTRE 0 PALCO E A PÁGINA 85
xun Ser ou não ser, eis a questão, / Será mais nobre suportar na mente / As flechadas da
ultrajante fortuna, / Ou armar-se contra um mar de perigos, / E enfrentando-os,
vencer: morrer, dorm ir / Nada mais
xuv iMorrer, dorm ir / Dormir, e talvez, sonhar.
E N T R E 0 P A L CO E A P Á G I N A — 91
Xl-V Ninguém existiu nele; por trás de seu rosto (que mesmo nas pinturas ruins da época
não se assemelha a nenhum outro) e de suas palavras, que eram copiosas, fantásticas
e agitadas, não havia senão um pouco de frio, um sonho tão sonhado por ninguém,
xi.vi a os vinte e tantos anos foi a Londres [...] em Londres encontrou a profissão para a
qual estava predestinado, a de ator, que em um palco brinca de ser outro.
92 — 1)0 PAL CO ,\ P Á G I N A
Nadie fite tantos honibres como aquel hombre [...] A veces, dejó
en algún recodo de la obra una confesión, seguro de que no la
descifrarían; Ricardo afirm a que en una sola persona, hace elpa^el
de muchos, y Yago dice con curiosaspalabras “no soy lo que soy
xu’ii Ninguém foi tantos homens como aquele homem [...] Às vezes, deixou em algum
canto da obra uma confissão, certo de que não a decifrariam; Ricardo afirma que em
sua única pessoa faz o papel de muitos; e lago diz com curiosas palavras “não sou o
que sou”.
xmu A história acrescenta que, antes ou depois de morrer, soube-se diante de Deus e lhe
disse: “Eu, que tantos homens fui em vão, quero ser um e eu”. A voz de Deus lhe
refundiu, em um torvelinho: “Eu tampouco o sou; sonhei o mundo como sonhaste
tua obra, meu Shakespeare, e entre as formas de meu sonho estás tu, que como eu és
muitos e ninguém”.
E N T R E 0 P A L CO E A P Ä G I N A — 93
NOTAS
5 Id em . Ib id em .
4 S hakespeare , W illiam . T he C om plete Works, O rig in a l-S p e llin g E dition, Stanley W ells e
G ary Taylor (ed.), Oxford, Clarendon Press, 1986, p. LIX.
9 L oew en stein, Joseph. “The Script in the Marketplace”, R ep resen ta tm is, 12 (outono,
1985), p. 10 1 -1 14 ; M o n tro se , Louis A. “Spencer’s Domestic Domain: Poetry, Property,
and die Early M odern Subject”, in S u b ject a n d O b ject in R en a issa n ce C u ltu re, Margreta
de Grazia, M aureen Quilligan e Peter Stallybrass (eds.), Cambridge, Cambridge
University Press, 1996, p. 83-130, e B land, Mark. “W illiam Stansbyand the Production
o f T he W orks o f B en ia m in Jo n so n , 1 6 1 5 -1 6 ”, T he L ib ra ry, 6a série, vol. XX, n. 1 (março,
1998), p. 1-31.
12 D oce C otn edias d e L ope d e Vega C arpio / Familiar del Santo Oficio / Sacadas de sus
Originales / Quarta Parte / Dirigidas a Don Luis Fernandez de Córdova / Ano 16 2 4/
En Pamplona, por Juan de Oleyza / Impressor del Rey de Navarra.
13 L as D ed ica tória s d e P a rtesX III-X X d e L ope d e Vega, Estúdio crítico con textos de Thomas
94 — DO P A L CO A P Á G I N A
E. Case, Madri, University o f North Carolina e Editorial Castalia, 1975 (citação tirada
da P a r te XVIII, 1623, p. 203-205).
16 Veja as obras de B i.air, Ann. “Humanist Methods in Natural Philosophy: The Common
Place Book”, J o u r n a l o fH is to r y o fI d e a s , 53 (1992), p. 5 41-5 5 1, e T he T h e a ter o f N a tu re:
J e a n B od in a n d R en a issa n ce S cien ce, Princeton, Princeton University Press, 1997, p. 49-
81 e 18 0 -2 2 4; e de M oss, Ann. P r in te d C om m o n p la ce-B oo k s a n d th e S tr u c tu r in g o f
R en a issa n ce T h o u g h t, Oxford, Clarendon Press, 1996.
17 L as D ed ica tória s d e P a rtes XIII-XX , op. cit. (citação tirada da Parte XIV, 1620, p. 102-
105).
18 Cf. G oyf/p, Francis. L e “s u b lim e ” d u lieu co m m u n . L’in v en tio n rh éto riq u e à la R en a issa nce,
Paris, Honoré Champion, 1996, p. 605-609.
” H unter , G. K. “The M arking o f S en ten tiœ in Elizabeth Printed Plays, Poems, and
Romances”, T he L ib ra ty, 5’ série, vol. VI, n. 3/4 (dezembro, 1951), p. 17 1-18 8 .
25 Ib id., p. 76.
24 L ope de V ega. A rte m tev o d e h a c e r co m ed ia s en este tiem p o ( 1609), in Rozas, Juan Manu
el, S ign ifica d o y d octrin a d e l A rte N u evo d e L ope d e Vega, Madri, Sociedad General Espanola
de Libreria, 1976, p. 177-194.
2> Cf. R ozas , Juan Manuel. S ign ifica d o y d octrin a d e l A rte N uevo, op. cit., p. 87-88.
33 DlÉZ B orque , José Maria. T eoria, fo r m a y fu n c ió n d e i tea tro esp a n o l d e los S iglo s d e Oro,
Palma de M allorca, Oro Viejo, 1996, p. 37-63.
J o s e p L lu ís . “ E s p e c t á c u lo y r e p r e s e n t a c ió n . L o s a c t o r e s . E l p ú b lic o . E s t a d o d e la
c u e s t ió n ” , in La C om ed ia , J e a n C a n a v a g g io ( o r g .) , M a d r i, C a s a d e V e lá z q u e z , 1995, p.
115 -12 9 .
41 R adaddi, Mongi. D a ven a n t's A da p ta tions o f S hak espeare, op. cit., p. 64-78.
96 — 1)0 P A L C O X PÁGIN A
41 Comparei os textos do in-quarto de 1637 e dos in-fólio de 1623 e de 1664 a partir dos
exemplares da Lilly Library da Indiana University em Bloomington. Para as edições
do começo do século XVIII, veja T aylor, Gary. R ein v e n tin g S ha k esp ea re, op. cit., p. 52-
99, D o b s o n , Michael. T he M a k in g o f th e N a tion a l P oet, op. cit., p. 117 -13 3 , e D f, G raxia ,
Margreta. S hak espearean Verbatim: T he R eprodu ction o f A u th en ticity a n d th e 179 0 A pparatus,
Oxford, Clarendon Press, 1991.
45 S o b r e a p o n t u a ç ã o e lis a b e t a n a d a s p e ç a s , v e ja o s e s tu d o s p io n e ir o s d e S im p s o n , P e r c y .
S h a k esp ea rea n P u n ctu a tion , O x f o rd , C la r e n d o n P r e s s , 19 11 ( o n d e p e r g u n t a , p . 8: “ p o d e -
s e a t r ib u i r u m s ig n if ic a d o à s v í r g u l a s ? ”), e d e M c D o n a l d A l d f . n , R a y m o n d . “T h e
P u n c t u a t io n o f S h a k e s p e a r e ’s P r in t e r s ”, P u b lica tion s o f th e M o d ern L a n gu a ge A ssociation
o f A m erica , v o l. XXXIX (1924), p . 557-580, e o liv r o d e G r a h a m - W h i t e , A n th o n y .
P u n ctu a tio n a n d I ts D ra m a tic Value in S h a k esp ea rea n D ra m a , N e w a r k , U n i v e r s it y o f
D e la w a r e P r e s s e L o n d r e s , A s s o c ia te d U n i v e r s it y P r e s s , 1995.
46 B o r g f .s , Jorge Luis. “Everything and Nothing” (1960), in Borges, El h a ced or, Madri,
Alianza Editorial (“Biblioteca Borges”), 1997, p. 52-55 [tradução em português: Borges,
Jorge Luis. “Everything and Nothing”, in O fa z ed o r, Josely Vianna Baptista (trad.), São
Paulo, Globo (“Obras completas de Jorge Luis Borges”, vol. 2), 1999],
0 ROMANCE: DA REDAÇÃO À LEITURA1
I Discutimos muito sobre C larissa. Os que desprezavam esta obra o faziam completa
mente. Os que a estimavam, tão indignados na sua estima quanto os primeiros no
seu desprezo, a consideravam como uma das façanhas da mente humana.
II O que me dizes do enterro e do testamento de Clarissa, eu já o havia sofrido. Isto só
é uma prova a mais da semelhança de nossas almas.
Mais uma vez meus olhos encheram-se de lágrimas; não conseguia mais ler; levan
tei-me e comecei a me lamentar, a interpelar irmão, irmã, pai, mãe e tios, e a falar
bem alto, o que não deixou de surpreender Damilaville, que não entendia nada do
meu arrebatamento ou do meu discurso e que me perguntava contra quem me irri
tava.
102 — 1)0 1‘ AI.CO À 1'ÁGIiNA
1V Ó Richardson, Richardson, homem único aos meus olhos! tu serás minha leitura
para sempre. Se um dia for forçado por necessidades urgentes, se meu amigo cair na
indigência, se a mediocridade da minha fortuna não bastar para dar os cuidados
necessários à educação dos meus filhos, venderei meus livros, mas tu permanecerás;
tu permanecerás na mesma prateleira que Moisés, Homero, Eurípedes e Sófocles, e
eu os lerei sucessivamente.
v Adeus amigos, releiam-no.
Vl Pintores, poetas, pessoas de bom gosto, pessoas de bem, leiam Richardson, leiam-
no sem parar.
0 R O MA N C E : I) A R E DAÇÃO A L E I T U R A — 103
Vil Anotei 110 meu exemplar a carta 124, que é de Lovelace ao seu cúmplice Léman.
vm Notei que numa sociedade onde a leitura de Richardson se fazia em grupo ou sepa
radamente, a conversação ficava mais interessante e mais viva. Por ocasião desta
leitura, escutei os pontos mais importantes da moral e do bom gosto serem discuti
dos e aprofundados.
,x Os detalhes de Richardson desagradam e devem desagradar um homem frívolo e des
regrado; mas não fo i para este homem que e l e e s c r e v e u , m u s para o homem tranqüilo
e solitário, que conheceu a vaidade do alvoroço e dos divertimentos do mundo, e que
gosta de viver na sombra de um retiro e de comover-se utilmente no silêncio.
104 — DO PAI . CO À P A G I N A
XIM Ouvi disputas sobre a conduta de seus personagens, corno se se tratassem de fatos
reais; louvar ou condenar Pamela, Clarisse, Grandison, como se fossem persona
gens vivos que conhecêssemos, e que nos interessassem no mais alto grau.
x,v Um dia, uma mulher de gosto e de sensibilidade pouco comuns, muito preocupada
com a história de Grandison, que havia acabado de ler, disse a um de seus amigos de
partida para Londres: Suplico-lhe que veja em meu nome iMiss Emilie, Mr, Belfort
e sobretudo Miss Howe, se ela ainda vive.
xv Só engloba uma porção do tempo, um ponto da superfície do globo.
xvl O coração humano que foi, é e que sempre será o mesmo, é o modelo que reproduzes.
0 R O M A N C E : DA R E D A Ç Ã O À L E I T U R A ■1 0 7
que vale para Richardson mas também para a N ouvelle Héloise, publi
cada em 1761 e implicitamente presente no texto de Diderot, faz com
que se possa duvidar da validade de uma oposição tão marcada entre
dois estilos de leitura, tidos como sucessivos.
Seria ela suficiente para invalidar a idéia de uma “revolução da
leitura”? Pode ser que não. Por um lado, a produção impressa e as
condições d e a ce sso ao liv ro e m tod a a Europa ilustrada sofreram
mutações profundas apesar da estabilidade das técnicas e do trabalho
tipográficos. Por toda parte, o crescimento da oferta e a laicização
dos impressos, a circulação de livros proibidos, a multiplicação dos
periódicos, o triunfo dos pequenos formatos e a propagação das salas
de leitura e das sociedades literárias, onde a leitura não implicava
necessariamente a compra do livro, permitiram e impuseram novas
maneiras de se ler. Por outro lado, para os leitores e as leitoras mais
letrados, o leque das maneiras de ler parece ter-se diversificado, pro
pondo práticas diferenciadas de acordo com o tempo, os lugares, os
gêneros. Assim, cada leitor podia ser sucessivamente um leitor “in
tensivo” ou “extensivo”, absorto ou desenvolto, estudioso ou diverti
do. Por que não pensar que a “revolução da leitura” do século XVIII
reside justamente na capacidade de se mobilizar diferentes modos de
se ler? Estes são seus limites, visto que tal possibilidade não é dada a
todos, longe disso, pois esta capacidade só está ao alcance dos leitores
e das leitoras mais experientes e bem providos. Daí, também, sua natu
reza complexa, pois é necessário reconhecê-la, não na generalização
de um novo estilo, hegemônico e específico, mas no recurso a uma
pluralidade de práticas, tanto antigas quanto novas.21 Leitor “inten
sivo” de Richardson, Diderot também era um leitor erudito, compul
sivo, irônico —•e outras coisas mais.
A constatação desta diversidade das práticas é importante na me
dida em que toda abordagem plenamente histórica dos textos literá
rios supõe que se rompa com a universalização de uma modalidade
especial da leitura e, inversamente, que se identifiquem as competên
cias, os códigos e as convenções próprias a cada comunidade de inter
pretação. Contrariando o fetichismo ou o etnocentrismo espontâneo
da leitura, é necessário lembrar com Pierre Bourdieu que
110 — no FAI . CO À P A G I N A
xvM Homens, venham aprender com ele como se reconciliar com os males da vida; ve
nham, para que choremos juntos sobre os pobres personagens das suas ficções e
digamos, se o destino nos pesar: pelo menos as pessoas de bem também chorarão
sobre nós. Se Richardson se propôs a ser interessante, foi para os desventurados. Na
sua obra, como no mundo, os homens se dividem em duas classes: os que desfrutam
da vida e os que sofrem. Ele sempre me associa aos últimos; e, sem q u e eu m e d ê conta ,
o sentimento de comiseração se exerce e se fortifica.
0 R OMA N C E : Il A li K 1) A Ç Ã 0 À L E I T U R A — 111
xvl" Ele me conduz às boas pessoas, ele me afasta dos maus; ele me ensinou como os
reconhecer por sinais rápidos e delicados. As vezes ele me guia sem q u e eu m e d ê
canta.
xix G ran dison e P a m ela são também duas belas obras, mas eu prefiro C larissa. Nela, o
autor não dá um passo que não seja genial.
xx Vós que lestes as obras de Richardson somente na vossa elegante tradução francesa
e que credes as conhecer, vos enganais.
112 — 1)0 PALCO À P A G I N A
XXI Oh Richardson! mesmo contra nossa vontade tomamos um papel nas tuas obras,
nos intrometendo nas conversas, aprovando, condenando, admirando, irritando-
nos, indignando-nos. Quantas vezes não me surpreendi, como pode acontecer com
crianças que vão pela primeira vez assistir a um espetáculo e gritam: Não a cred ite n ele,
ele o e n g a n a ... s e va is lá estará s p erd id o. Minha alma vivia numa perpétua agitação.
0 R O M A N C E : 1)A R E D A ÇÃO À L E I T U R A — 113
Une idée qui m 'est vernie quelquefois e?i rêvan t aîix ouvrages de
Richardson, c ’est quej ’avais acheté un vieux château, qu ’en visitant
lin jo u r ses appartem ents,j’avais aperçu dans un angle une arm oire
qu ’on n ’a vaitpas ouverte depuis longtemps, et que l ’ayant enfoncée,
j ’y avais trou vé pêle-m êle les lettres de Clarisse et de Pamela.
Après en avoir lu quelques-unes, a vec quel em pressem ent ne les
aurai-je pas rangées p a r ordres de dates! Quel chagrin n ’aurais-
j e pas ressenti, s ’il y avait eu quelque lacune entre elles! Croit-on
que j ’eusse sou ffert q u ’une m ain tém éra ire (j’ai presq u e dit
sacrilège) en eût supprim é m ie lign e?
xx" Uma idéia que me veio algumas vezes quando sonhava com as obras de Richardson
foi a de que eu havia comprado um velho castelo. Visitando um dia seus aposentos,
entrevia num canto um armário que não havia sido aberto há muito tempo, e que
arrombando-o, encontrava as cartas de Clarissa e de Pamela misturadas. Depois de
ter lido algumas delas, com que diligência não as teria arrumado por ordem de datas!
Que tristeza não teria sentido se houvesse alguma lacuna entre elas! Pode-se imagi
nar que eu teria sofrido se uma mão temerária (quase disse sacrílega) tivesse supri
mido uma linha sequer?
114 — 1)0 P A L C O À PÁGINA
xxm po rque uma desprezava a história de Clarissa, na frente de quem a outra estava
prosternada.
0 R O MA N C E : DA R E DAÇÃO À L E I T U R A — 115
La p iété de Clarisse l ’im patiente [...] Elle rit, quand, elle voit
cette enfant désespérée de la malédiction de son père [...] Elle trouve
extraordinaire que cette lecture m ’arrache des larm es [...] A son
avis, l ’esprit de Clarisse consiste à fa ire des phrases, et lorsqu’elle
en a pu fa ire, la voilà consolée.
xx,v A piedade de Clarissa a impacienta [...] Ela ri vendo esta criança desesperada pela
maldição de seu pai [...] Ela acha extraordinário que esta leitura me arranque lágri
mas [...] Na sua opinião, o espírito de Clarissa consiste em fazer frases, e uma vez
tendo-as feito, ei-la consolada,
xxv' Dig0 _llie que esta mulher nunca poderá ser minha amiga: eu me envergonho que o
tenha sido.
xxvi Confesso-lhe, uma grande maldição sentir e pensar isto; tão grande que teria
preferido, mais cedo, que minha filha tivesse morrido em meus braços antes de lhe
ter batido. iMinha filha! sim, foi o que pensei, e não me desdigo.
116 — 1)0 PALCO À P Á G I N A
que ele leia para ela os trechos mais tocantes de Clarissa para que a
baixeza de sua alma se revele:
xx™ Leia-lhe precisamente estes dois trechos [o enterro e o testamento], e não me deixe
de informar que suas risadas acompanharam Clarissa até sua última morada, para
que assim minha aversão por ela seja completa.
0 R O MA N C E : DA R E DAÇÃO A L E I T U R A — 117
xxxi Construí uma imagem dos personagens postos em cena pelo autor; suas fisionomias
estão por aqui: reconheço-as na rua, nas praças públicas, nas casas; elas me inspiram
simpatia ou aversão. Uma das vantagens do seu trabalho é que mesmo embarcando
um imenso campo de visão, sempre subsiste sob meus olhos alguma parte de seu
quadro. Raramente encontro seis pessoas reunidas, sem lhes atribuir alguns de seus
nomes. Ele me conduz às pessoas de bem, ele me afasta dos maus; ele me ensinou
como os reconhecer por sinais rápidos e delicados.
0 R OMA N C E : «A R E DAÇÃO À L E I T U R A 1 1 9
xxxn £ra aSsim qUe eu comparava a obra de Richardson a um livro ainda mais sagrado.
xxxiii Q uem ]eu as obras de Richardson sem desejar conhecer este homem, tê-lo como
irmão ou amigo?
xxxiv Richar(]son já se foi. Que perda para as letras e para a humanidade! Esta perda me
atingiu como se ele tivesse sido meu irmão. Levava-o em meu coração sem jamais
tê-lo visto, conhecendo-o somente através de suas obras. Nunca encontrei um com
patriota seu, ou um dos meus que tenha viajado pela Inglaterra, sem lhe perguntar:
vistes o poeta Richardson? em seguida: vistes o filósofo Hume?
120 — 1)0 PAL CO À P Á G I N A
xxxv ]Sfeste Üvro imortal, como na natureza durante a primavera, não se acham duas fo
lhas do mesmo verde. Que imensa variedade de tons.
xxxvi ]}e uma m?j0 todo-poderosa e de uma inteligência infinitamente sábia.
0 R O MA N C E : BA R E D A ÇÃO Ã L E I T U R A — 121
xxxviiQh Richardson! se não gozaste em vida de toda a reputação que merecias, como
serás grande no tempo dos nossos sobrinhos, quando eles o virem com a mesma
distância com que vemos Homero! Quem ousará então arrancar uma linha de tua
sublime obra? Tiveste mais admiradores entre nós que na tua pátria, e disso me
alegro. Séculos, apressem-se de correr e de trazer convosco as honras devidas a
Richardson! Tomo como testemunhas a todos os que me escutam: nunca precisei do
exemplo dos outros para te homenagear; hoje mesmo curvar-me-ia ao pé da tua
estátua, a d o ra r-te -ia , procurando no fundo de m in h ’alm a expressões que
correspondessem ao tamanho da admiração que tinha por ti, mas não encontrava.
122 — DO PAL CO A P Á G I N A
NOTAS
1 Este capítulo é uma versão revisada do meu artigo “Richardson, D iderot et la lectrice
impatiente”, publicado na revista M LN , n. 114, 1999, p. 647-666.
2 S tallybrass, Cf. Peter. “Shakespeare, die Individual, and the Text”, in C u ltu ra l S tu dies,
Lawrence Grossberg, C ary Nelson e Paula A. Trechler (eds.), Nova York e Londres,
Routledge, 1992, p. 5 9 3 -6 12 ; D e G razia , M argrets e S tallybrass, Peter. “The
M ateriality o f the Shakespearean Text”, S ha k esp ea re Q u a rterly , vol. 44, n. 3 (1993),
p. 255-283, e M asten , Jeffrey. “Pressing Subjects or, the Secret Lives o f Shakespeare
Compositors”, in L a n g u a g e M a ch in es. T ech n ologies o f L ite ra ry a n d C u ltu ra l P rod u ctio n ,
Jeffrey Masten, Peter Stallybrass eN acy Vickers (eds.), Nova York e Londres, Routledge,
1997, p. 75-105.
5 E ngfxsing , Rolf. “Die Perioden der Lesergeschichte in der Neuzeit. Das statistische
Ausmass und die soziokulturelle Bedeutung der Lektüre”, A rch iv f ü r G esch ich te d es
B u ch w esen s, X (1970), p. 9 44-1002.
4 D arnton , Robert. T he F orb id d en B est-S ellers o f P r e-R ev o lu tio n a ry F ra n ce, Nova York e
Londres, W .W . N orton and Company, 1995, p. 219.
7 Dentre os livros de Louis Marin, podem servir de exemplo a isso La C ritiq u e d u discou rs.
E tu des s u r la L ogiq u e d e P o rt-R o ya l e t les P en sées d e P ascal, Paris, Editions de Minuit,
1975; L e P o rtr a it d u R oi, Paris, Editions de Minuit, 1981; O p a cité d e la p ein tu r e . E ssais
s u r la re p résen ta tio n a u Q u a ttro cen to , Paris, Usher, 1989 e D es p o u v o irs e t d e l ’im a g e,
G loses, Paris, Editions du Seuil, 1993.
8 Citamos o texto publicado em D iderot . A rts e t le ttr e s (1 73 9-1 76 6), C ritiq u e I, Jean
Varloot (ed., notas e apresentação), Paris, Hermann, 1980, E loge d e R icha rd son , p. 18 1 -
208 (com uma introdução por Jean Sgard).
11 M arin , Louis. “Le descripteur fantaisiste. Diderot, S a lon d e 176 S, C a sa n ove, n. 94, ‘U ne
m a r ch e d ’a r m é e ’, description”, D es p o u v o ir s e t d e l ’im a g e, G loses, o p .c it., p. 7 2-10 1.
15 Cf. D iderot . E loge d e R icha rd son , dans Œ u vres esth étiq u es, Paul Vernière (org.), Paris,
Garnier, 1959, p. 2 1-48 (citação p. 25).
H D iderot . C orresp on da n ce, Laurent Versini (ed.), Paris, Robert Laffont, Bouquins, 1997,
p. 272.
15 Ib id ., p. 348.
16 Cf. S iegel , June S. “Diderot and Richardson: Manuscripts, Missives, and M ysteries”,
D id ero t S tu d ies XVIII, Otis Fellows e Diana Guiragossian (ed.), Genebra, Librairie
Droz, 1975, p. 145-167, e a introdução de Jean Sgardao E loge d e R ichardson, in D iderot .
A rts e t le t t r e s (1 7 3 9 -1 7 6 6 ), op. cit., p. 18 1-184 .
20 Iee, B. W . R ea d in g a n d fic tio n in G on den -A ge S pain. A P la ton ist critiq u e a n d so m e p ica resq u e
rep lies, Cambridge, Cambridge University Press, 1985, p. 49-83.
21 Estes temas foram desenvolvidos em C hartier, Roger. “Libri e letton”, in L’l lltm iin ism o.
D iz ion a rio sto rico , Vincenzo Ferrone e Daniel Roche (ed.), Roma-Bari, Editori Laterza,
1997, p. 292-300.
22 B ourdieu , Pierre. “Lecture, lecteurs, lettrés, littérature”, C hoses d ites, Paris, Editions
de Minuit, 1987, p. 132-143 (citação p. 133) [tradução em português: Bordieu, Pierre.
I “Leitura, leitores, letrados, literatura”, in C oisas ditas, Cassia R. da Silveira e Denise
M oreno Bergomi (trad.), São Paulo, Editora Brasiliense, 1990, p. 13 4 -14 6 (citação p.
135)].
23 A fórmula foi assinalada por J osephs, Herbert. “Diderot’s E loge d e R ich a rd son : A Paradox
on Praising”, in E ssays on th e A ge o f E n ligh ten m en t in H on or o f O ra 0 . W ade, JeanM acary
(ed.), Genebra, Librairie Droz, 1977, p. 169-182 (particularmente p. 174),
2Î Cf. T u r n f . r , James Grantham. “Novel Panic: Picture and Performance in die reception
o f Richardson’s P a m ela ”, R ep resen ta tion s, 48 (outono, 1994), p. 70-96, que indica que:
“Richardson iião consegue nem controlar nem dissociar-se do processo de leitura
124 — 1)0 PAL CO À P Á G I N A
participativo, projetável e emotivo que ele mesmo iniciou pela escolha do gênero da
novela, pondo Ln p o o r G irl's little e tc.’ no centro da história, valorizando os sentimentos,
dando significados ao ‘toque’, transformando a narrativa em ‘cenas’ de crescente pai
xão e lançando a obra inteira a um público excitável como se fosse um guia, um estímu
lo à ação. Ele próprio reconhece que os leitores fazem coisas com os textos em vez de
os consumir passivamente, e admite ter em mente esta interação quando compõe”
(citação p. 82).
27 Sobre esta tensão, veja a análise sutil de K f.y n e r , Tom. R ich a rd son ’s C larissa a n d th e
E ig b te e n th -C e n tm y R ea d er, C a m b r id g e , Cambridge University Press, 1992, particular
mente p. 56-84, “Richardson’s Reader”, onde K eyner nota que “E precisamente pelo
fato de se ausentar logo de começo — o que dá ao exercício de leitura sua maior e mais
completa liberdade — que Richardson realiza sua pretensão de educar de modo mais
convincente” (citação p. 82).
29 Sobre a identidade das duas amigas indispostas por causa de Richardson: S ie g r i ,, June
S . “Diderot and Richardson”, a rt. cit. p. 163 -166 , chega a conclusão de que “a mãe de
Sophie, a horrenda M orphyse da correspondência, é mais provavelmente a terrível
m e r e - q u i- r it do segundo parágrafo” e que a carta original deve ser atribuída a Madame
d’Epinay, mas que “Diderot parece ter inserido na carta real (ou no pastiche de várias
cartas reais), a sua própria oratória exaltada ”, enquanto Jean Sgard, na sua edição do
E loge ( D id e r o t . A rts e t lettr e s (1 73 9-1 76 6), op. cit., p. 204, nota 16) indica que “os
trechos citados retomariam os termos de uma carta de Diderot a Madame d’Epinay”,
mas declara que “a outra [amiga], que deve ser uma amiga de Diderot, uma mãe de
família, nos é desconhecida”.
J" S g a r d , Jean, introdução ao E loge d e R icha rd son , in Diderot. A rts e t le ttr es (1 73 9-1 76 6),
op. cit., p. 187: “Não nos precipitemos em considerar Diderot como um teórico genial
do romance. O que mais nos admiraria no E loge d e R icha rd son seria o arcaísmo dos
argumentos e a influência dos preconceitos da época”.
32 S tarohinski, Jean . “‘S e m ettre à la place’. (La m utation de la critique, de l ’âge classique
à D id ero t)”, C a h iers V ilfredo P a reto , n. 3 8 -3 9 (1 9 7 6 ), p. 3 6 4 -3 7 8 .
33 I b id em , p. 377.
M Ib id em , p. 378.
i7 Citado por R o s e , M ark em “The Author as Proprietor: Donaldson v. Becket and the
Genealogy o f M odern Authorship”, R ep resen ta tion s, n. 23 (verão, 1988), p. 5 1-85 (cita
ção p. 62), e em A u th ors a n d O w n ers: T he I n v en tio n o f C op y righ t, Cambridge (Mass.) e
Londres, Harvard University Press, 1993, p. 1 1 7 -1 2 1 .
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NO O U TO N O DE 2 0 0 2 , E IM PRESSA NA GRÁFICA
M A R K G R A PH . A C O M PO SIÇ Ã O EA1PREGOU AS