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DESPORTO E EDUCAÇÃO FÍSICA EM PORTUGUÊS

CIFI2D·Centro de Investigação, Formação, Inovação e Intervenção em Desporto


Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
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«Publicamos para não passarmos a vida a corrigir rascunhos».

Jorge Luís Borges


(1899–1986)
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DESPORTO E EDUCAÇÃO FÍSICA EM PORTUGUÊS


Contributo para o XIII Congresso de Ciências do Desporto e de Educação Física
dos Países de Língua Portuguesa (Maputo: 30 de Março – 2 de Abril de 2010)

CIFI2D·Centro de Investigação, Formação, Inovação e Intervenção em Desporto


Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
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Organizadores
Jorge Olímpio Bento
Go Tani
António Prista

Edição
CIFI2D·Centro de Investigação, Formação, Inovação e Intervenção em Desporto
Faculdade de Desporto da Universidade do Porto

Patrocínio
Instituto do Desporto de Portugal

Capa, design e paginação


Armando Vilas Boas

Impressão
Multitema

ISBN 978-972-8687-44-1
Depósito legal nº 305113/10

Impresso em Março de 2010


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SUMáRIO

Luís Bettencourt Sardinha


Presidente do Instituto do Desporto de Portugal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Rogério José Uthui
Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1. Jorge Olímpio Bento, Helena Cristina Baguinho Bento


Desporto e Educação Física — Acerca do ideal pedagógico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
2. Go Tani, Cássio de Miranda Meira Júnior, Maria Tereza Cattuzzo
Aprendizagem Motora e Educação Física: Pesquisa e Intervenção . . . . . . . . . . . . . 36
3. António Prista
A saúde e o papel interventivo da educação física em países africanos.
Uma reflexão breve . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
4. Wagner Wey Moreira, Vilma Lení Nista-Piccolo
Formação de Professores de Educação Física e o Projecto Pedagógico da Escola:
a busca do pensamento complexo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
5. Isabel Mesquita
Contributo para uma mudança de paradigma na formação de treinadores:
Razões, contextos e finalidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
6. Walter Roberto Correia
Educação Física Escolar e o Esporte no Brasil: Entre o Insólito e o Impertinente . . 100
7. Teresa Oliveira Lacerda
Estética, estética do desporto e educação estética pelo desporto . . . . . . . . . . . . . . . 108
8. Paula Botelho-Gomes, Paula Silva, Paula Queirós, Maria José Carvalho
Mulheres e Desporto, e Estudos de Género:
contributos da investigação e do associativismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
9. Ruy Jornada Krebs, Carl Gabbard, Priscila Martins Caçola
O Desenvolvimento Motor e o Modelo Bioecológico de Bronfenbrenner . . . . . . . . 141
10. Umberto Cesar Corrêa, Andrea Michele Freudenheim, Luciano Basso
Em Busca da Prática “Ótima” na Aprendizagem de Habilidades Motoras:
Reflexões a Partir da Estrutura Constante-Variada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152
11. Fernando Tavares
Aprender as habilidades nos jogos desportivos na perspectiva
do ensino compreensivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159
12. Soares, S., Fernandes, R., Vilas-Boas, J.P.
Adaptação ao Meio Aquático em palavras simples:
da academia à prática quotidiana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172
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13. José A.R. Maia, André Seabra, Rui Garganta, Raquel Chaves,
Michele Souza, Daniel Santos
Factores Genéticos e Ambientais nos Níveis de Actividades Físico-Desportivas.
Um Estudo em Famílias Nucleares Portuguesas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 188
14. Dartagnan Pinto Guedes, Mônica Vieira de Souza
Atividade Física Habitual e Fatores Associados em Adolescentes Brasileiros . . . . 217
15. Markus Vinicius Nahas, Mauro Virgilio Gomes de Barros,
Maria Alice Altenburg de Assis
A Complexidade e a Efetividade da Promoção de Estilos de Vida Saudáveis
no Ambiente Escolar: O Projeto Saúde Na Boa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231
16. Rui Proença Garcia, Fátima Santos
Obesidade: um problema (também) cultural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243
17. Cláudia Lúcia de Moraes Forjaz, Andréia Cristiane Carrenho Queiroz,
Crivaldo Gomes Cardoso Junior
Exercício Físico na Hipertensão Arterial: Riscos e Benefícios . . . . . . . . . . . . . . . . . 256
18. Lilian Teresa Bucken Gobbi, Ellen Lirani-Silva, Rodrigo Vitório, Natalia Mada-
lena Rinaldi, Marcelo Pinto Pereira, Claudia Teixeira-Arroyo, Fabio Augusto Bar-
bieri, Paulo Cezar Rocha dos Santos, Rosangela Alice Batistela, Alline Castello
Salles, Vivian Raile, Ana Paula Teixeira Alves, Luana Carolina de Morais
Exercício e Doença de Parkinson: Aspectos da Formação em Educação Física . . 274
19. Joana Carvalho
Envelhecimento Activo: recomendações para a prática de exercício físico . . . . . . 294
20. Paulo de Tarso Veras Farinatti, Walace David Monteiro,
Pedro Paulo da Silva Soares
Aptidão Física, Envelhecimento e Exercício: Uma Abordagem Aplicada . . . . . . . 308
21. Suely Santos, Maria Cecília Oliveira Fonseca,
Marcelo Eduardo de Souza Nunes, Mariana Marilia Franzoni
Idosos Brasileiros: Um Desafio para a Sociedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 337
22. Alfredo Faria Junior, Elza Rosa da Silva
Motivação, o Idoso e o Atletismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 345
23. Ana Paula Lima Teixeira, Rodrigo Cavasini, Alberto Reinaldo Reppold Filho
Programas de Atividades Físicas de Aventura na Natureza para Jovens Infratores:
Revisando a Literatura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 360
24. Paulo Cesar Montagner, Leopoldo Katsuki Hirama
Esporte e Projeto Social na “Favela”:
Memórias, Experiências e Valores Educativos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373
25. Antonio Jorge Gonçalves Soares, Tiago Lisboa Bartholo,
Leonardo Bernardes Silva de Melo, Hugo Paula Almeida da Rocha
Mercado do Futebol, Juventude e Escola: Primeiras Leituras . . . . . . . . . . . . . . . . . 401
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26. Elsa Pereira, Margarida Baptista, Gustavo Pires


Desporto e Turismo: a importância dos eventos desportivos . . . . . . . . . . . . . . . . . 406
27. José Augusto Rodrigues dos Santos
Alimentação e Nutrição do Desportista.
Hidratação, sobrecarga glicogénica e suplementação ergogénica . . . . . . . . . . . . . 427
28. Alberto Carlos Amadio, João Paulo Vilas-Boas
Aspectos Metodológicos para o Estudo Biomecânico das Forças Internas
ao Aparelho Locomotor: Importância e Aplicações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 441
29. J. Paulo Vilas-Boas, Alberto Carlos Amadio
Confusões, controvérsias ou modernidades na interpretação da
mecânica propulsiva do nadador? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 462
30. Rafael Guimarães Botelho
Literatura infantil, educação física e desporto:
da teoria às possibilidades práticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 470
31. António Fernando Boleto Rosado
Educação Olímpica: da Utopia Pedagógica à Didáctica do Olimpismo . . . . . . . . 485
32. Gustavo Pires
Olimpismo e “Soft Power”: Desporto é Política . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 497
33. Duarte Freitas, José Maia, António Prista, António Marques,
Gil Afonso, Élvio Gouveia, Gaston Beunen
Maturação biológica: indicadores, inter-relação e tendência secular . . . . . . . . . . 525
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Luís Bettencourt Sardinha

Presidente do Instituto do Desporto de Portugal

O reforço das qualificações necessárias ao exercício das diferentes funções técnicas na área
da actividade física e do desporto constitui um dos principais desafios estratégicos que
orienta as prioridades definidas em matéria de política desportiva, prioridades essas ins-
critas no quadro definido pela Estratégia de Lisboa e que reconhecem a educação e a for-
mação como factores insubstituíveis de desenvolvimento económico e tecnológico, da
coesão social, do desenvolvimento pessoal e do exercício pleno da cidadania.
O desafio da educação e formação no desporto e do intercâmbio entre diferentes patama-
res de experiências neste domínio tem sido também o mote para a institucionalização de
espaços de diálogo e trabalho de equipa junto da Comunidade de Países de língua Portu-
guesa, como é exemplo a parceria estabelecida entre o Instituto do Desporto de Portugal,
IP e a Confederação Portuguesa de Associações de Treinadores no desenvolvimento de
projectos de cooperação com os Países de Língua Portuguesa no âmbito da formação de
treinadores.
O contributo que o desporto pode dar como ponto de encontro e de confluência entre os
oito países falantes de português e na construção da lusofonia, quer no domínio da edu-
cação e formação quer noutros domínios, é inestimável, permitindo estreitar fraternal-
mente os laços que contribuem para que seja uma comunidade singular e a tomada de
consciência gradual da pluralidade de elos que os unem, nas tradições históricas e cultu-
rais, na diferença e no contraste com outros povos de diferentes fonias. Importa lembrar
que o português ocupa o sétimo lugar entre as línguas mais faladas do mundo, a seguir
ao chinês, inglês, hindu, espanhol, russo e árabe, surgindo mesmo antes do francês. A par-
ticipação do desporto neste projecto ambicioso fornece um campo excepcional para a
transformação da Comunidade de Países de Língua Portuguesa num espaço de coopera-
ção, fraternidade e amizade entre povos que partilham não só o elemento linguístico -
cultural, mas também outros valores comuns que os identificam.
Em 2010 decorrem dois eventos que traduzem esta determinação de, também no desporto,
congregar esforços em torno do projecto de construção de uma identidade neste universo
lusófono, levando por diante uma acção operativa e concertada no sentido de dar corpo
às principais aspirações dos visionários desta grande comunidade. O primeiro é o XIII
Congresso de Educação Física e Ciências do Desporto dos Países de Língua Portuguesa su-
bordinado ao tema “Desporto, Identidade Académica e Profissional” que se realiza, em
Maputo, entre 30 de Março e 2 de Abril, estando a organização entregue à prestigiada Fa-
culdade de Ciências de Educação Física e Desporto da Universidade Pedagógica de Mo-

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çambique; o segundo, são os VII Jogos Desportivos da CPLP que se realizam de 30 de Julho
a 07 de Agosto também em Moçambique. Com o estabelecimento deste tipo de canais de
comunicação de partilha de ideias, experiências e de permuta de conhecimentos que dili-
genciam no sentido da mobilização deste universo lusófono em torno de objectivos co-
muns, no respeito das suas identidades, todos damos uma valiosa contribuição à
edificação da lusofonia.
Este livro intitulado Desporto e Educação Física em Português, é uma edição a propó-
sito do XIII Congresso de Educação Física e Ciências do Desporto dos Países de Língua
Portuguesa; reúne autores do Brasil, de Moçambique e Portugal e compreende relevantes
contributos técnicos e científicos. É um título feliz. Um título que exprime a empenho de
se disponibilizar à comunidade lusófona conhecimento actualizado que seja importante
e necessário para o desenvolvimento do Desporto e Educação Física em todos os países lu-
sófonos. Em linha com outras iniciativas congéneres, é com muito prazer que o Instituto
do Desporto de Portugal, IP se associa à publicação deste livro como mais um importante
contributo para uma efectiva construção da lusofonia.

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Rogério José Uthui

Reitor, Universidade Pedagógica

Está comprovado: em corpo são, alma sã.


De facto, desta plêiade de praticantes, professores, críticos, investigadores e fazedores de
políticas de educação física e desportos, portanto, do corpo são, saiu talvez o melhor ali-
mento da alma: o livro.
O título do livro é bastante sugestivo: “desporto e educação física em português”, o con-
teúdo, enciclopédico, o colectivo de autores, cooperativista e o prefaciador esquisito.
Comecemos pelo fim. O prefaciador é um educador em física e não exactamente um pro-
fissional de educação física. A coincidência é, pois, desviante o que me permitirá refugiar-
me no senso comum dos conceitos e das ideias.
A seguir, o colectivo de autores. Não se pode falar de ciências do desporto e de cultura fí-
sica no mundo lusófono sem que se cite o nome de cada um deles. É um grupo alegre de
interessados na matéria (os ingleses chamam de stakeholders) que considero de coope-
rativistas por vários motivos: frequentam sempre os mesmos eventos científicos, coope-
ram em todas as esferas da vida de forma admirável, trabalham nos mesmos laboratórios
(no eixo Portugal – Brasil – Moçambique), leccionam os mesmos ou diferentes cursos em
diferentes universidades dos três países em conjunto e publicam sempre em parceria.
Tive a sorte de conhecer todo o grupo, às partes e na totalidade, em Maputo, Porto e Por-
talegre, pois claro. São os porta-estandartes da ciência do desporto e da cultura física no
mundo lusófono.
Do conteúdo do livro muito se pode dizer. O temário cobre, no meu entender, todas as
possíveis áreas em que se pode falar de desporto e educação física: o ensino, os jogos tra-
dicionais e outros aspectos culturais, o lazer, a alta competição, os métodos de treina-
mento, a biomecânica do exercício, a predisposição genética dos indivíduos (vista numa
perspectiva de “transect” intercontinental), a nutrição, bem como os problemas ligados
à saúde pública relacionados com aspectos culturais e com hábitos neo-modernos.
A perspectiva transnacional que o grupo de autores apresenta na colocação dos problemas
investigados, torna o livro muito didáctico embora compreensivelmente prenhe de aspec-
tos acurados de ciência positiva.
Numa leitura do livro na diagonal (tanto mais que não seja para evitar entorpecer nos
conceitos mais finos da ciência eclética que é a educação física e o desporto) não se nos es-
capam nem a problematização mais teórica de conceitos mais comuns nem o estudo in-
teressado dos problemas relacionados com cada uma das três sociedades lusófonas
envolvidas.

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A riqueza genética, cultural, ambiental e social dos diferentes grupos populacionais que
se podem encontrar nos três países, está sabiamente destilada no livro, nas metodologias
científicas adoptadas, na perspectiva cultural da análise e na diversidade lógica dos tí-
tulos dos capítulos. Não deve ter sido fácil alinhar este livro.
Por fim, o título. A aventura cooperativista dos autores surge no âmbito da preparação
de espólio científico para sobrar em Maputo no final do XIII Congresso de Ciências de
Desporto e Educação Física dos Países de Língua Portuguesa em Março de 2010. O título
não poderia ser outro. Aliás já vimos mais acima que o livro foi preparado por todos os
que fazem a investigação nesta área em português. É pois, bastante acertado e sugestivo
o título.
É isso; na aldeia global a ciência da lusofonia começa a afirmar-se. Mais alto, mais rápido,
mais forte.

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Desporto e Educação Física


— acerca do ideal pedagógico
Jorge Olímpio Bento1
Helena Cristina Baguinho Bento2

Companheiros de viagem
A partir de noções elementares comuns a toda a espécie humana, e que podem ser
expressas em todas as línguas, bons, maus ou indiferentes são todos companheiros
de viagem. Na inclusão ou na exclusão, na guerra e na paz, fazem parte de uma
aventura que mal sabem interpretar e que não é na morte que se pode resolver: é
no caminho. As interpretações da vida – sejam elas científicas, metafísicas, éticas,
estéticas, religiosas ou laicas – não são indiferentes à qualidade da viagem. Mas,
se não quisermos que valha a vontade do mais forte, será preciso conversar, tornar
o outro nosso hóspede ou aceitar a hospitalidade do outro. Isto significa reconhecer
que não estamos acabados, que não somos perfeitos, por isso estamos a caminho,
com o sentido que cada um ou cada grupo descobre para a sua vida. Caminhamos
com gente que vem de todo o lado, de todas as culturas, povos e línguas. Fora do
diálogo, não há salvação.

Frei Bento Domingues3

Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam.


O Livro dos Itinerários4

1. Introdução
Temos o privilégio de actuar no campo da palavra; é com ela que lavramos o terreno
do nosso mister. Por sermos professores e académicos, somos oficiantes convictos do
poder da palavra e da linguagem. Esta função prende-nos ao dever de a cultivar e hon-
rar, de preparar e semear com ela o agro da formação e reflexão. Para que do chão duro
e ruim se levantem impossíveis, nasçam e floresçam sóis e luas, astros e estrelas.5
Ademais não se pode ignorar esta advertência certeira de Ludwig Wittgenstein (1889-
1951): “Os limites da nossa linguagem são os limites do nosso mundo”. Aqui e agora,
no tempo de expansão e imposição avassaladoras da tecnologia e da parafernália das
imagens, os universitários são chamados a reabilitar a palavra, a retirá-la do exílio e da
postergação, porque só com ela se alargam os horizontes da visão e compreensão, da
inquietação e da respectiva formulação. Precisamos de inventar palavras novas, leves,
azuis, substantivas, aumentativas, aladas, estimulantes, encorajadoras, criadoras...6

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Nos nossos ouvidos ressoa igualmente a responsabilizadora intimação de José de


Alencar (1829-1877): “Todo o homem, orador, escriptor ou poeta, todo o homem
que usa da palavra, não como um meio de comunicação de suas idéas, mas como de
um instrumento de trabalho... deve estudar e conhecer a fundo a força e os recursos
desse elemento de sua actividade”.7
Portanto e porque a linguagem representa a forma das ideias, a qualidade e o rigor
do nosso pensamento, servimo-nos da palavra, sobretudo da escrita, para fazer luz
e ver claro dentro de nós e tentar assim irradiar alguma claridade para fora de nós.
Sim, seja desculpada a pretensão, escrevemos com o intuito de nos esclarecermos
e modificarmos e, em segundo lugar, de contribuirmos para a melhoria do desporto
e dos olhares e juízos que sobre ele se lançam e tecem, para mudar a maneira de o
entender, apreciar e configurar. Para que na imagem do desporto se expresse, con-
firme e eleve o desenho da palavra e ele seja uma criatura à imagem do criador.
Neste sentido é pertinente lembrar o seguinte: o desporto, o seu estudo e a sua fun-
damentação, reflexão, ciência e teorização, tal como as suas escolas e os seus do-
centes têm que lutar árdua e constantemente para afirmar, provar e sustentar na
Universidade e nas instituições de apoio à investigação a autonomia, a dignidade e
a relevância da área. Esta é uma luta incessante e desigual, que carece de ser travada
a toda a hora. As outras áreas estão dispensadas desse esforço; herdaram o lugar que
ocupam, por obra, graça e dom da tradição. Para elas o passado é uma herança, para
nós é uma conquista sempre desafiante, tentada, almejada e repetida.
Quem labora no desporto e educação física tem, pois, muito que reflectir; tem que
escolher e escrever palavras e textos, para fundar e justificar um estatuto e papel
intelectual. Ao contrário do que sucede noutros domínios, o nosso tem que ser per-
manentemente defendido, sob pena de se perder.
É isto que justifica a elaboração deste livro, visando ademais congregar, saudar e ir-
manar, de uma maneira assaz simbólica e fraterna, companheiros de profundas
cumplicidades e sintonias, envolvê-los numa corrente de afecto e reconhecimento
pela sua inquebrantável lealdade e fidelidade a causas que a todos enobrecem.
Sim, é tudo isto que nos agrega e irmana neste empreendimento bibliográfico, alis-
tados de bom grado no coro de António Ferreina:

Floresça, falle, cante, ouça-se e viva


A portugueza língua, e já onde for,
Senhora vá de si, soberba e altiva!8

Ademais na nossa actividade de oficiantes da palavra tomamos como lema a necessi-


dade de pensar aquilo que se faz e de procurar fazer aquilo que se pensa. Para tanto
deitamos mão a tijolos que ajudem a configurar o edifício do protagonismo axiológico
na vida, na educação e, obviamente, no desporto. O mesmo é dizer que recorremos à
ferramenta da palavra para amplificar a voz da Ética, da Razão e da Humanização dos
humanos. Impulsiona-nos a intenção de assumir a função primordial de reavivar e
espicaçar a consciência acerca do modo como a questão da dignidade do homem é
abordada e concretizada. Pugnamos pela elevação da qualidade do desporto, balizada
por padrões culturais e civilizacionais, por critérios éticos e humanos que introduzam

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o geral e global no particular e peculiar. Move-nos o desejo de ajudar a entender e


construir o sentido de um desporto melhor; de nos consagramos à configuração de
um fenómeno universal, que vem do fundo do tempo em que os homens se ergueram
do chão e ousaram fitar o céu e sonhar com o infinito.
Assim olhamos com reservas os ‘conselhos’ para que a formação seja mais ‘eficaz’ e
‘pragmática’. Desconfiamos que, com isso, nos estão a pedir que enterremos a palavra,
que fabriquemos quadros em série, abúlicos, conformistas, formatados e pobres de
espírito, de pensamento e de conhecimento do teor cultural e humanizante do des-
porto, coadjuvantes na perversão da sua identidade e finalidade. Que formemos qua-
dros herméticos, carregados de certezas e seguranças, que mais não são do que
expressão do medo de se abrirem à complexidade e autenticidade do mundo. Ao
invés, atrevemo-nos a sustentar bem alto a bandeira da porfia em formar quadros
‘ilustrados’, hermeneutas capazes de inteligir o desporto e de o situar no plano da vida
e no contexto sócio-cultural; capazes de viver a sua inteligência e de viver a partir
dessa faculdade maravilhosa que é a de percebermos a nossa própria limitação.
Perante a desoladora constatação de que as sociedades modernas se converteram
num hospício global, assistimos atónitos à deriva insana da Universidade, impul-
sionada pelos fanáticos jihadistas dos ventos reformistas neoliberais. Ela descura e
abandona a obrigatoriedade de convocar e agraciar os sonhadores numa era que dei-
xou de sonhar; desconsidera os criadores e vendedores de sonhos para arrebatar e
libertar as pessoas do cárcere da rotina e demência do discurso alienante que, de
todos os lados, invade e habitua os ouvidos à deformação. Pouco a pouco, a Univer-
sidade envergonha-se deles e encara-os como indesejáveis, quase como se fossem
energúmenos e réprobos merecedores da condenação à prisão ou às galés; renuncia
a ser o habitat natural dos que, no dizer clarividente de Augusto Cury, “de alguma
forma vendem sonhos por meio da sua inteligência, crítica, sensibilidade, genero-
sidade, amabilidade”. Nela, citando o mesmo autor, “os vendedores de sonhos são
frequentemente estranhos (….) São anormais. Pois o normal é chafurdar na lama
do individualismo, do egocentrismo, do personalismo”. E no entanto o legado dos
sonhadores, por mais escorraçados e vilipendiados que sejam e inimigos que acar-
retem, é inesquecível.9
Como pode a Universidade achar-se e não se perder neste caldo requentado?!
Aguilhoados e algo assombrados por estas inquietações, valorizamos imensamente
a palavra e a competência de a usar. No princípio era o Verbo – assim reza a história
da criação do mundo, das coisas, das plantas e dos seres que o habitam. Somos cria
de nomes, de palavras e frases. Tudo emergiu e emerge graças à nossa capacidade e
sensibilidade para descortinar e dizer, para antever e nomear. É a palavra quem no-
meia e separa, quem diferencia a noite do dia, a claridade da escuridão, o riso do gru-
nhido, o bem do mal, a altura da baixeza, a grandeza da vileza, a virtude da falta
dela, a coragem da cobardia. Ela possibilita e confere a medida da criação, como disse
a poetisa Sophia de Mello Andresen (1919-2004), no poema o nome das coisas:

De longe muito longe desde o início


O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse.

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2. Do desporto
Mas… o que é o desporto? Não há resposta simples para uma pergunta tão complexa.
De resto uma resposta, sendo ligeira e curta, é redutora e diz pouco; e, sendo longa,
é uma fuga da pergunta.
Em todos os tempos e lugares e em todos os contextos civilizacionais, a humanidade
confrontou-se sempre com duas, entre outras, questões principais: O que é o
Homem? Qual o sentido da vida?
Estas perguntas ocuparam, de maneira obsessiva e permanente, os curiosos e os
pensadores, os filósofos e os sábios em toda a parte do Mundo, procurando tirar van-
tagem do facto, aparentemente negativo, do homem ser um mostruário da evidên-
cia de carências, fraquezas, fragilidades, debilidades, insuficiências e imperfeições,
de haver nele muito por fazer. Em todas as épocas e segundo o estado e o modelo
de evolução civilizacional, a procura de resposta àquelas questões levou ao surgi-
mento, nascimento, amadurecimento, florescimento e desenvolvimento de dife-
rentes tipos de culturas. Todas elas intentam, a seu modo, formular e concretizar
aspirações, axiomas, conceitos, ideais, fins, metas, mandamentos, normas, princí-
pios, símbolos e valores, visando balizar os caminhos de ascensão e formação do
Homem e de indicação exaltante do sentido da vida. É isso mesmo que se encontra
também expresso na enorme variedade de culturas lúdicas e somáticas, dispersas à
escala planetária. O culto do jogo e do corpo, do agonismo, das destrezas, habilidades
e proezas corporais reproduz o ideário localmente imanente aos restantes domínios
culturais e ao envolvimento social.
Ou seja, no decurso da civilização, do Oriente ao Ocidente, do Norte ao Sul, surgiram
e desenvolveram-se visões e expressões culturais muito distintas entre si. Não apenas
no tocante ao entendimento e organização da vida no plano mais geral, ideal, espiri-
tual e sagrado, mas também no terreno do profano, das práticas lúdicas, motoras e
corporais. Por exemplo, no Oriente distante forjaram-se culturas solidamente anco-
radas em sistemas de ideias e propostas de estilos de vida, superiormente elaborados
por figuras eminentes (Buda ou Sakya-Muni, Lao-Tseu, Confúcio ou Kung-Fu-Tseu,
entre outros) da história do pensamento humano. Enquanto no Ocidente o patrimó-
nio cultural é muito marcado pela matriz grega e judaico-cristã.
Precisamente por isso, ao longo dos séculos, instituiu-se no Mundo um mosaico de
culturas adstritas aos mais variados sectores da vida, nomeadamente no capítulo
do ludismo, das festas e folias, dos lazeres e das múltiplas manifestações, métodos
e sistemas de exercitação e recreação corporais. E, muitas vezes, a convivência e o
diálogo culturais encontraram dificuldade de acontecer; ou seja, são assaz difíceis a
fusão e a integração das culturas locais, embora se assista a um alastramento e afir-
mação de algumas pelos diversos itinerários geográficos, culturais e sociais em que
se cumpriram a diáspora, a errância e a peregrinação das ideias, dos povos e dos im-
périos. Por outras palavras, navegando através dos lugares e do tempo, encontramos
indícios reveladores dos escolhos, dos possíveis e impossíveis da miscigenação lú-
dica, como espelho das diferenças e assimilações no contexto mais abrangente. Até
que surge o desporto, a facilitar o empreendimento nunca antes conseguido, pelo
menos na sua maior parte.

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Poderá parecer paradoxal a aceitação universal do desporto. Com efeito ele é origi-
nário do contexto civilizacional ocidental e, mais ainda, da parte norte do hemis-
fério; é uma cultura corporal, agónica, lúdica e somática que traduz o modo
ocidental de interpretar e responder às questões do Homem e do sentido da vida.
Com raízes profundas e sólidas nas matrizes grega e judaico-cristã, nos mitos pro-
meteicos10 e bíblicos da cultura e da civilização, no Humanismo e Iluminismo, na
filosofia e modernidade ocidentais, ele representa uma maneira elaborada de olhar
para a ‘imperfeição’ de um homem, animado da necessidade e capacidade de se mo-
dificar e transformar, de evoluir e aperfeiçoar, de se superar e transcender, para ser
mais e melhor como humano e pessoa. É uma categoria antropológica e axiológica,
uma encenação filosófica e pedagógica do sentido da vida e do trato inter-humano,
reveladora do teor e grau da nossa humanidade, isto é, do modo e da forma como
aceitamos o outro. É um instrumento voltado para forjar o Homem como uma fi-
guração da ética e da estética, como uma mistura de Apolo (representante da beleza,
da luz, da harmonia e do rigor) e de Dionísio (representante da festa, do deleite, do
instinto, do excesso e da desmedida), como uma unidade de ser e parecer, de essên-
cia e comportamento.
O desporto e todas as outras expressões da cultura humana servem exactamente
para isso: para arrancar o homem do estado animal, dos instintos e impulsos primi-
tivos, das formas originárias e arcaicas. Para sublimar a nossa natureza original e,
em cima dela, edificar uma condição humana, marcada pela racionalidade, pela téc-
nica, pela arte, pela virtude, pela ética e pela estética, isto é, pela excelência.
Esse Homem é aquele que a trajectória da civilização e da sabedoria humanas, desde
os seus primórdios, vem idealizando e prescrevendo nas normas e leis, nos manda-
mentos e símbolos inscritos em tábuas de pedra, nos desenhos e pinturas das pare-
des das cavernas, na terracota, nos pergaminhos, assim como nas lendas e
mitologias.
Esse Homem é o da relação entre o Eu e o Outro, o que se revê na lonjura, na altura,
na distância, na transcendência, na elevação, na ânsia de perfeição, no mais-além.
Ele extrapola a realidade, mas é desejado, percebido, sentido e visto para ser incor-
porado nela e para a sublimar.11
Esse Homem é o da Torre de Babel e o do esforço titânico de escalar o céu. O Homem
feito do limo da terra e animado pelo fogo divino, o dos jogos e o do desporto, o
herói do Estádio esculpido nos mármores brancos de Poros e pintado em vasos e ân-
foras, cantado por poetas e filósofos, admirado e aclamado pelos seus semelhantes
e invejado pelos deuses do Olimpo; o Atleta dos Jogos de Olímpia e de todas as acró-
poles de promoção da cidadania. É o Homem grego: o semideus de Hércules e Pro-
meteu, capaz de façanhas inauditas e sobrenaturais, o ser teórico (theion + orao)12,
da contemplação e atracção do divino, do superior e transcendente, do harmonioso
e belo, existente na ordem do Cosmos e possível de incorporar no projecto humano.
É o homem judaico (e cristão): da redenção e salvação, animado pela ânsia da pro-
messa da Terra Prometida, situada para além da aridez do Monte Sinai, assaz dis-
tante e só alcançável através da observância normativa, de princípios, leis e ideais.13
Esse é o Homem afirmado e celebrado pelas proezas e excessos do seu corpo, quer
o dos atletas da idade média premiados como santos graças à ascese e mortificação,

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quer o dos santos dos novos tempos glorificados como atletas devido à superação e
exaltação. O Homem que procura a coroa de louros, a admiração e o reconheci-
mento nos mais distintos pódios olímpicos.
Esse é o homem que sente uma afinidade mágica com animais e monstros, que não
consegue desfazer-se da sua carne teimosamente animal, porém quer ser humano,
elevar-se acima do que é. Não possui um conceito de humanidade definitivamente
elaborado, nem conhece fronteiras que o distingam inequivocamente do animal,
contudo entrega-se a uma busca interminável. Sabe que nunca vai deixar de ser ma-
caco, mas não se contenta com tal e aspira a ter uma segunda natureza. E para tanto
assume a edificação da condição humana como um árduo e porfiado combate de
afirmação e sobrevivência numa arena em que ouve à sua volta vozes de penúria,
insuficiência e falta, amplamente difundidas e partilhadas.
Sim, é essencialmente para isso que serve o desporto. Para melhor conhecermos a
condição humana, para alargarmos os seus limites e possibilidades, para que ela seja
menos imperfeita, para que seja melhor e superior, de acordo com subidos parâme-
tros de ordem simbólica, ética e estética, nos planos espiritual, gestual e corporal.
Ele é um instrumento e investimento no progresso comportamental e moral; é fac-
tor de uma nova cidadania planetária e projecta o tão almejado humanismo para a
esfera do universalismo.
“Eu não sei porque estamos aqui, mas tenho a certeza de que não é
para nos divertirmos”, formulou Ludwig Wittgenstein (1889-1951), sugerindo que
estamos na vida amarrados ao imperativo de atingir voo, elevação, superioridade,
grandeza, qualidade, excelência.
A esta luz o desporto é um denominador comum da execução de capacidades, ha-
bilidades e potencialidades corporais transcendidas. Nele o corpo sobe até onde lhe
é possível, visando performances transbiológicas, para além dos imperativos da uti-
lidade quotidiana. Nele mostram-se os dois pólos antagónicos que correspondem à
dupla voz da nossa condição humana: a que se exprime em altura e a que nos em-
purra para a baixeza. Nele somos para além do que nos acorrenta à terra e ao corpo
e assim tornamos este um espírito incarnado.
Citius! Altius! Fortius! – eis o lema inspirador e fundador do desporto e do olimpismo.
Temos que ser mais lestos e rápidos no assumir dos deveres. Temos que ser mais
altos e rigorosos nos nossos objectivos, sonhos, projectos e actos. Temos que ser
mais fortes e ousados para abordarmos e ultrapassarmos os desafios, obstáculos e
perigos, para não cairmos na indignidade, na indecência, na indolência, na desídia
e na imoralidade.
O desporto é, portanto, muito mais do que um mero divertimento lúdico ou uma
simples actividade física. É uma exigente filosofia e pedagogia da existência, a afir-
mar que o homem tem que se cumprir em todos os campos e áreas do seu labor, não
sendo dispensado de se transcender e humanizar também pelas performances cor-
porais. É um meio, humildemente tentativo e pertinaz, de enxergar e inventar o
Homem e de perseguir o sentido da vida.
Como reza um ditado dos Cabilas, tribo do Norte de áfrica, “só Deus é Deus através
de si mesmo; os homens tornam-se Homens através dos outros homens”. Atingimos
a Humanidade através dos feitos e proezas dos outros; as performances de alguns
redimem-nos e sublimam-nos a todos.

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Não admira assim que o desporto, restaurado por Coubertin (1863-1937) com os
Jogos Olímpicos de Atenas em 1896, se tenha estendido rapidamente a todo o globo
e tenha adquirido o estatuto de cultura corporal, lúdica e somática, universalmente
atraente e predominante. Talvez por constituir um ponto de união de tudo aquilo
que perfaz o cerne das culturas corporais ancestrais e indígenas. Não acabou com
elas, mas avivou-as, renovou-as, transformou-as e insuflou-as com um ímpeto de
desportificação. O mesmo é dizer que o vasto panorama de práticas lúdicas e somá-
ticas, existentes nos mais recônditos locais do planeta, passou a avocar uma confi-
guração desportiva.
O fenómeno desportivo atravessou os séculos, em formas e modelos mais ou menos
codificados, elaborados e organizados; ressurge no início do século XX e desenvolve-
se flamejante e exponencialmente no seu decurso, sobretudo a partir dos anos 50,
após a segunda guerra mundial. Alastra a todas as idades, grupos e estatutos sociais
e culturais, anexa territórios anteriormente estranhos ou hostis (p. ex., prisões e
hospitais); é instrumentalizado para as mais diversas aplicações e intencões (edu-
cação, bem-estar, saúde, recriação, lazer, reabilitação, inclusão, espectáculo, tu-
rismo, comércio, indústria, moda etc.); passa do singular para o plural e torna-se um
traço marcante de um estilo de vida moldado pela desportividade. Não espanta que
muitos teóricos e intelectuais, porventura despeitados, classifiquem o século XX
como o “estranho século do desporto”; e, menos ainda, que se assista à emergência
e ascensão de um novo conceito e modelo de homem: o Homo Sportivus, prolonga-
dor do Homo Gymnasticus, do Homo Ludens e do Homo Olympicus, tradutor do Homo
Performator e filiado na tradição cristã do Homo Novus.

3. Dos problemas
Como se disse atrás, quem labora no desporto tem muito que reflectir e escrever,
para fundar e justificar um estatuto intelectual. Para contribuir para a melhoria do
desporto e para modificar os olhares e juízos que sobre ele se projectam, os modos
de o valorar e considerar.
Consequentemente confrontamo-nos sempre com o problema da legitimação e da
explanação do papel educativo e formativo do desporto, na escola e fora dela. Ou
seja, enfrentamos a necessidade de elaborar e formular argumentos que explicitem
e justifiquem a sua existência e função pedagógica.
Já nos defrontamos, várias vezes, com esta questão, com particular incidência na
defesa do direito da educação física e desportiva a ter assento no cânone das disci-
plinas escolares. Para o efeito socorremo-nos de uma pluralidade de perspectivas, tais
como:

— Uma fundamentação antropológica, acentuando a relevância do domínio motor


e corporal para um conceito integral de educação e da pessoa.14
— O significado do desporto para o enriquecimento da vida social e individual, fun-
dando plenamente a conveniência de preparar as crianças e jovens para inter-
virem neste sector.
— Acentuação das potencialidades específicas que o desporto encerra para corres-
ponder às precisões de formação, de educação, desenvolvimento e configuração
da identidade e auto-conceito dos adolescentes.15

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Nesta linha de raciocínio erigimos como argumento central a favor da presença da


educação física e desportiva na escola o facto de ser a única disciplina que visa pre-
ferencialmente a corporalidade. E de ela constituir uma forma específica da relação
do sistema educativo com o corpo. Dito de outro modo, aquela disciplina, o seu fun-
cionamento e reconhecimento traduzem a maneira como o sistema educativo olha
o corpo, como o observa sob a perspectiva da sua real importância educativa. Mais
ainda, a existência da educação física expressa a obrigação e a pretensão do sistema
educativo intervir na feitura e modelação do corpo ou de não se alhear completa-
mente deste processo. A circunstância do homem ter corpo e a função que este re-
presenta na estrutura do viver implicam que os alunos aprendam a lidar com ele e
que se constitua em oportunidade de educação e formação. Logo a educação física e
desportiva distingue-se de outras áreas, no concernente à sua tarefa educativa pri-
mordial, pelo facto de educar, formar, socializar e possibilitar experiências a partir
do corpo.
Para avivar o desatino das medidas de desconsideração e redução da educação física
e desportiva, trouxemos à colação alguns indicadores de uma transformação preo-
cupante do contexto envolvente, como sejam os seguintes:

— Mudanças na vida das crianças e jovens, geradoras de uma redução de oportuni-


dades de exercitação corporal.
— Diminuição das condições de satisfação positiva das pulsões lúdicas, com o con-
comitante défice de socialização em muitos papéis implícitos nos jogos e brin-
cadeiras.
— ‘Betonização’ dos espaços e intensificação do trânsito, da violência e insegurança
nas cidades e nas suas periferias, reduzindo cada vez mais as oportunidades da
brincadeira e das práticas corporais e desportivas espontâneas.
— Aumento crescente do consumo de meios áudio-visuais, com sobrecarga da
visão e audição e redundando numa geração de cegos e surdos, a par da depre-
ciação e do défice de estimulação dos outros sentidos.
— Acréscimo das deficiências da postura e dos riscos coronários precoces.
— Crescimento dos índices de corpulência e diminuição da valia das capacidades
motoras e da aptidão desportivo-corporal.
— Decréscimo alarmante da capacidade de rendimento escolar e reconhecimento
dos efeitos de compensação da actividade desportiva para ajudar a reverter aquela
pecha.

Neste empreendimento tratamos de mobilizar razões de ordem intrínseca e extrín-


seca, procurando conduzir a argumentação para o campo da enumeração das vantagens
da existência da área escolar de educação física e desportiva e apresentando as desvan-
tagens da sua ausência. E procuramos enfatizar o contributo da prática desportiva para
a realização de objectivos que vão muito para além do domínio puramente motor e
corporal e integram dimensões cognitivas, afectivas e sociais, tais como:

— Desenvolvimento da personalidade e da capacidade de rendimento geral, da


saúde e do bem-estar.

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— Aquisição dos valores do fair play, do respeito pela diferença e valia dos outros,
da consideração e tolerância, assim como de atitudes de abertura, diálogo, inte-
gração e convivialidade.
— Coadjuvação na formação de um estilo de vida que assuma um papel estabiliza-
dor e orientador no âmbito da estratégia de prevenção de comportamentos des-
viantes, ligados ao consumo de drogas e às diversas formas da violência.

Na tentativa de somar argumentos demos de caras com uma frase de Peter Kline
que reza assim: “A escola deveria ser a melhor festa da cidade”. Isto lembrou-nos que
a necessidade de renovar a escola, de recriar e tornar mais atraentes as formas de
realizar a educação não dispensa, de maneira alguma, o contributo da actividade
desportiva. Com efeito a escola carece de riso, de entusiasmo, de dinamismo, de
palmas, de alegria e animação; precisa que se goste dela. Ora o desporto é um meio
primordial de revigorar a educação, de lhe emprestar uma cara de festa e euforia,
de apego e empatia, de quebrar a rotina escolar com competições internas e exter-
nas. Trata-se, enfim, de demonstrar coerência, de consumar o desiderato de despor-
tificar a escola e escolarizar o desporto.
Toquemos numa onda muito na moda, que é a de associar a educação física escolar
e a prática da exercitação corporal à problemática da saúde. A acentuação desta rela-
ção é tão intensa que deixa no esquecimento – se é que não exclui mesmo! – as ou-
tras ambições e finalidades educativas. Parece que nada mais conta! O ‘activismo’ e
o ‘intervencionismo’ físicos recebem forte vento pela popa, fazendo ondular a ban-
deira da estapafúrdia ‘actividade física’ e levando a arrear e abandonar o pendão do
desporto e do enfoque nos valores que ele encerra.
É verdade que estamos a assistir à instalação e alastramento de um preocupante
ambiente obesogénico, relaxado e indolente, ligado a altos índices de inactividade e a
baixos teores de desempenho, de aptidão e condição desportivo-corporais. E é tam-
bém sabida a conexão entre estes aspectos, a obesidade e as doenças cárdio-vascu-
lares. Daqui decorre uma séria ameaça não somente à saúde, mas igualmente à
realização de valores educativos e sociais. Com efeito a condição corporal cumpre
um papel instrumental ao serviço de outras condições e acepções (psicológica, afec-
tiva, cognitiva, social) da pessoa e da sua vida. O que é bem perceptível no caso dos
idosos e dos obesos.
Há, por conseguinte, razões ponderosas para encarar a necessidade de melhorar o
índice da activação corporal e da condição física das pessoas. Isto é, o ambiente obe-
sogénico não pode ser subestimado; pelo contrário, obriga-nos a olhar para além dele.
Parafraseando Fernando Pessoa, o corpo é a pessoa de fora que dá a imagem da pes-
soa de dentro, dos seus sentimentos, do estado da sua vontade, das disposições e
atitudes determinantes da conduta. Assim sendo, a quadratura obesogénica retrata
um mundo anafado e afogado em obesidade e adiposidade na alma, no coração e
nos olhos. Um mundo em que há mais indivíduos com excesso de peso do que com
fome, um mundo marcado, pois, pela falta de sensibilidade e decência.
Se apurarmos o olhar e a reflexão, veremos que a epidemia da obesidade se casa com
a ‘razão’ indolente. Esta detém o predomínio, a prevalência e a primazia na actual
conjuntura; e estende os seus tentáculos ao relativismo e à desclassificação cultural,

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trazendo consigo a aniquilação da estesia e a expansão do grotesco e fazendo tábua


rasa da dificuldade. Eis-nos perante um elitismo invertido, que celebra o bacoco, o
vulgar, o ordinário, o pacóvio, o boçal, o trivial e o popularucho.
Isto mostra que a avalanche obesogénica não se detém num ponto; alastra em várias
direcções, enredada em graves nexos de influência mútua. Semelhante à Hidra de
Lerna, desdobra-se e renasce em muitas ramificações e versões, não bastando cor-
tar-lhe uma das cabeças para a debelar.16 No campo pedagógico manifesta-se em
‘teorias’ (didáctica do eduquês) que favorecem o abaixamento das exigências e con-
comitantemente o relaxamento e a preguiça e abaixamento. No plano ético reper-
cute-se num vazio moral e num cenário crepuscular, ocupados pela ‘ética indolor’,
pelo esquecimento e enfraquecimento da normatividade, dos compromissos, de-
veres e obrigações e pela exacerbação dos direitos e facilitações.
Não custa reconhecer linhas de causalidade e reciprocidade entre o entorno obeso-
génico, a crise da ética, a debilidade ou eclipse da vontade e a ‘cultura’ da passividade.
Há, por isso, que intervir neste todo tão complexo, deitando mãos a meios corres-
pondentes. Ora o desporto é uma pedagogia do esforço, da acção e da vontade, tão
necessária para reabilitar a escola e ajudar esta a cumprir a sua missão central; para
que nela não se faça o que se quer, mas se queira e deseje aquilo que se faz.
A ênfase dada à aliança do par ‘actividade física – saúde’ provoca a negligência e o
abandono das valências culturais, sociais, educativas, axiológicas, éticas, estéticas,
motoras etc., que constituem o cerne do desporto e avalizam a sua criação e prática.
O panorama obesogénico não aconselha uma tal deriva higienista e sanitária. Care-
cemos de mais labor pedagógico e não tanto de activismo físico, de mais moral em
acção e não tanto de fisiologia, de mais reflexão filosófica e não tanto de prescrições
médicas.
Sejam relevadas a repetição e insistência, para desfazer as dúvidas: o sedentarismo,
a inactividade e as suas sequelas combatem-se não com um ‘activismo’ higienista
que se esgota em si mesmo, mas com uma actividade chamada ‘desporto’ que, por
ter matriz cultural, agrega uma pluralidade de efeitos educativos. Logo renunciar
ou afrouxar na observância dos princípios e valores do desporto equivale a empo-
brecer os cidadãos nas suas expressões técnicas e motoras, éticas e estéticas, cívicas
e morais e a favorecer a proliferação do laxismo e relativismo, do clima relaxado e
indolente.
Por outras palavras, para aumentar a possibilidade de sucesso da intervenção nos
terrenos da obesidade, da actividade ou inactividade, da ética e da moral, é curial
investir no território da vontade. E este tem um pólo de excelência: o desporto. Os
actos desportivos são exercícios espirituais, morais e anímicos, só são físicos na apa-
rência; na sua substância e finalidade são sempre decisões volitivas, uma mobiliza-
ção da vontade para buscar o que nos falta ou conservar o que temos. As mãos e os
pés tentam fazer por fora aquilo que a razão e a alma, o ânimo e o coração idealizam
e fazem por dentro. Deste jeito a arquitectura exterior do trabalho e do formato dos
ossos, músculos e articulações está ligada à arquitectura interior da consciência e
da vontade.
Mergulhe-se abaixo da superfície: ver-se-á que, no desporto, a mente e o corpo ficam
num estado de inigualável imbricação, intimidade e cumplicidade. Para marcar um

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golo nem o corpo basta, nem o espírito chega; ambos são requisitados em igual me-
dida e em perfeita harmonia. Ambos se misturam para revelar e celebrar a maravilha
exaltante da humana competência.
Mais alto, mais longe, mais veloz, mais resistente, mais forte! Não apenas no plano ges-
tual e motor, mas também e sobretudo no plano ético e estético, no moral e com-
portamental, no sentimental e espiritual. É por isso que aquele apelo vai além do
desporto e faz deste um emblema e factor da educação e da vida.
Em síntese, os problemas atrás aflorados constituem um teste à nossa acção. Desa-
fiam-nos a intervir na realidade, a semeá-la de metas, de sonhos e de sentido hu-
mano. A substituir os apelos e lamentações por estratégias de acção e
responsabilização. O mesmo é dizer que a escola não pode lavar as mãos face ao de-
senvolvimento da vontade e da capacidade de acção das nossas crianças. Se tivermos
em atenção que o perfil do dia-a-dia de cada criança se distingue também pela dife-
rença de tempo gasto em actividade motora e que o grau de inclinação para esta é
resultante do processo de socialização; se a escola ignorar este facto e não fizer nada
para criar uma atmosfera que motive para a prática desportiva os alunos mais fracos
e carenciados em termos motores; se habituar estes à permanência no insucesso,
na desilusão, na frustração, resignação, marginalização e exclusão; se favorecer ati-
tudes de recusa e saída do desporto, então não surpreenderá que os jovens apresen-
tem níveis baixos de aptidão física e de saúde.
Acresce que a educação funda-se precisamente na preocupação de enraizar uma
cultura do apreço, da valorização e fruição da vida! Ora a escola percorre este cami-
nho quando nela há movimento, carga, trabalho, suor e esforço; quando há golos,
cestos, pontos e remates; quando se corre, salta e luta; quando se vencem receios,
complexos e medos; quando se enfrentam e ultrapassam barreiras e obstáculos;
quando há optimismo e empenhamento; quando há desejo, gosto e oportunidade
de exercitar, aprender e render; quando há regozijo na vitória e a derrota forja o
ânimo e a determinação de tentar ganhar; quando agir, fazer e experimentar são os
verbos preferidos, e desistir, não participar e estar fora de jogo são comportamentos
proibidos; quando corpos grandes e pequenos, gordos e magros, fortes e débeis, ve-
lozes e lentos são iguais no gosto pela acção e pelo uso desportivo do corpo. Quando
tudo isto contribui para que a prática desportiva se torne uma necessidade vital, in-
tegrante de um estilo de vida fomentador da saúde. E isto é possível! Logo, sendo
possível, tem que merecer o nosso contagiante entusiasmo.

4. Das finalidades
Poderíamos prolongar este tipo de argumentos que certificam o cerne da educação
da saúde, hoje tão necessitada, reclamada e valorizada. Porém vamos fazer uma in-
flexão no discurso, mesmo sabendo que já está tudo dito e inventado, restando-nos
apenas pretextos para a inovação nos modos de dizer e de abordar os problemas.
Voltemo-nos para os fins do labor educativo.
Juan Carlos Tedesco lembra-nos que a crise da educação não é hoje o que era ontem:
“Não provém da deficiente forma como a educação cumpre os objectivos sociais
que tem atribuídos, mas, mais grave ainda, não sabemos que finalidades deve cum-
prir e para onde efectivamente deve orientar as suas acções.” Ou seja, esclarece Fer-

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nando Savater, “o problema educativo já não pode reduzir-se simplesmente ao fra-


casso de um pequeno número de alunos, por mais numeroso que seja, nem tam-
pouco a escola cumpre como é devido as nítidas missões que a comunidade lhe
exige!” A educação e a escola tornam-se instituições difíceis devido à imprecisão e
vastidão das suas exigências ou à contradição, oposição e divergência que elas en-
contram no contexto social.17
A ementa dos objectivos é tão vasta e diluída e, em certos aspectos, tão contraditória
que gera desalento e obriga a perguntar: Que fins -primeiros e últimos - visa a educação?
Como método para reagir recomenda Fernando Savater o seguinte: “quando o nú-
mero de perguntas e a sua radicalidade envolvem claramente a fragilidade receosa
das respostas disponíveis, talvez tenha chegado a hora de recorrer à filosofia. Não
tanto pelo afã dogmático de dar um remédio rápido para o desconcerto, mas para
utilizar este a favor do pensamento de que o tornarmo-nos intelectualmente dignos
das nossas perplexidades é a única via para começar a superá-las”.18
Nesta conformidade parece-nos curial e indispensável convocar uma propensão de
abordagem dos fins da educação muito cara a Savater. Inspirado no postulado enig-
mático do grande poeta grego e olímpico que foi Píndaro (521-441 a. C.)19, o pensador
espanhol aponta como razão cimeira da educação a aprendizagem da humanidade, o
aprender a ser humano e a saborear, na famosa expressão de William Shakespeare
(1564-1616), o leite da ternura humana.
Para corresponder à essencialidade da sociedade, que é sobretudo a de ser ‘humanó-
gena’, de ter como produção principal e mais custosa a de seres humanos e não tanto
a das mais engenhosas e sofisticadas máquinas, a educação “é o embarque irreme-
diável na condição humana”. Com o intuito de conter e sobrelevar as nossas facul-
dades animais e de desacorrentar Prometeu, de vestir de humanidade e traços humanos
o macaco nu, de que Desmond Morris tanto nos fala na sua obra, carecida de ser re-
lida com novos olhos e entendimento. Eis o humano a surgir como ideal!
Dito por outras palavras, a educação age em nome do instinto de conservação e em
defesa própria. “O homem que a educação deve plasmar dentro de nós – assinalou
Durkheim (1858-1917) – não é o homem tal como a Natureza o criou, mas sim tal
como a sociedade quer que ele seja; e quere-o tal como o exige a sua economia in-
terna”. Ou seja, o ideal pedagógico é obra da sociedade. E este ideal diz-nos que “a
sociedade – retomo Savater – prepara os seus novos membros do modo que lhe pa-
rece mais conveniente para a sua conservação, não para a sua destruição…”20
Não olvidemos que nascemos prematuros e demasiado pequenos, com uma invalidez
originária, a solicitar a ajuda e intervenção de uma larga série de próteses para ser col-
matada. Nascemos para ser humanos. Nascemos para a Humanidade. Precisando melhor,
a nossa natureza, biologicamente fundada, carece de ser confirmada por um segundo
nascimento, pelo contágio social e cultural com os outros. Para alcançarmos a condi-
ção humana não basta a espontaneidade natural; requer-se a deliberação artificial.
Para ser humano – bom ou mau – é precisa sempre a intermediação da arte.21
Para ser homem não basta nascer, é necessário também aprender. Aprender através
da comunicação com os semelhantes e através da transmissão deliberada, escolhida
e sistemática de normas, de conhecimentos, de técnicas, habilidades, símbolos e
memórias. Seguindo o conselho do sábio imperador romano Marco Aurélio (121-

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180 d. C.): “Os homens nasceram uns dos outros; educai-os ou suportai-os.” É pre-
ciso ensiná-los a ser livres e a escolher.
A competência da liberdade não é algo dado ontologicamente na natureza humana,
mas sim uma conquista da nossa integração social. Como postulou Hegel (1770-1831),
“ser livre não é nada, tornar-se livre é tudo”. Não partimos da liberdade, mas cami-
nhamos para ela, libertando-nos da ignorância original, do determinismo biológico
ou social, de apetites e impulsos instintivos que a convivência ensina a controlar.
A liberdade não é a ausência original de condicionamentos. (Quanto mais pequenos
somos mais condicionados estamos por tudo aquilo sem o qual não poderíamos so-
breviver!) É a conquista de uma autonomia, simbolicamente instituída nas nossas
atitudes e escolhas e facultada pelas aprendizagens apenas possíveis na interacção
com os outros. E isto está bem presente no jogo desportivo, nas suas formas de
aprendizagem, treino e competição.
Em concordância com a perspectiva atrás delineada, a essência da educação é a de
ensinar a respeitar com algum temor aquilo que depois devemos fazer por livre, es-
pontânea e prazerosa vontade.22 Como formulou o escritor italiano Corrado álvaro
(1895-1956), “a educação seria a arte de parecer inofensivo”. O mesmo disse Aris-
tóteles (384-322 a.C.): “A inteligência é a insolência educada”.
Com isto pretende-se afirmar que as pessoas não nascem, mas são feitas pessoas,
mediante a sublimação dos instintos e impulsos presos à nossa natureza biológica
e animal. Precisam de se tornar humanas e neste processo são guiadas por outras,
educadas e treinadas na arte de educar e treinar seres humanos, servindo-se de ob-
jectos culturais. É com o intermédio destes que se pode entrever o apogeu do chão
e perseguir a utopia de tornar viável o sujeito inviável.
Mais, ninguém cresce sem modelos. Se as crianças e jovens não têm como modelo
o adulto e outras referências maduras, então correm o risco de se identificarem com
modelos propostos e exaltados pela televisão ou pela brutalidade das ruas - uma li-
mitação mutiladora do seu crescimento. É a criança que realiza o acto genial de
aprender, mas com o apoio dos outros.
Diz-se que Deus criou o mundo a partir do nada, mas o resultado de tamanho im-
proviso não aconselha a repetição do procedimento com as crianças. Estas crescem
em todas as latitudes com a ajuda dos adultos que lhes oferecem simultaneamente
suporte, encorajamento e resistência. Quando esta ‘tutela’ é descurada ou inexis-
tente, ficam sujeitas à deformação. Ou seja, a abolição da autoridade dos adultos e
da sua função de ensinar significa uma recusa em assumir a responsabilidade pelo
mundo em que são postos os mais novos.23
O desafio da educação é ingente, até porque, lembra Frei Bento Domingues, “só os
animais é que nascem quase prontos para a vida adulta”.24 Pelo que, adianta André
Malraux (1901-1976), “são precisos 60 anos e não 9 meses para fazer um homem”.25
Como se isso não bastasse, nesta obra não podemos contar com apoio divino, já que
estamos por nossa conta e risco, segundo a amarga achega de Aristóteles: “Deus é
demasiado perfeito para poder pensar noutra coisa senão em si próprio”. E o poeta
Manoel de Barros, voz iniludível do Pantanal brasileiro, não é menos cáustico: “Me
abandonaram sobre as pedras infinitamente nu”.

25
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Estamos condenados a sermos nós quem deve pensar e cuidar da nossa forma e con-
dição, beleza e perfeição. Somos os sujeitos do oitavo dia da criação. Chegou a nossa
vez da criação: da nossa e do mundo! Sabendo que na natureza tudo está disperso e
separado. Assim a condição ou forma humana (tal como a arte, a arquitectura, a mú-
sica, a literatura, o desporto, a dança ou a culinária) é o esforço e o resultado de jun-
tar e incorporar na pessoa ‘coisas’ dispersas e de dar ao conjunto conteúdo e forma
de harmonia, de ética, estética, performance e excelência.
É por isso que os professores são como os poetas e outros criadores e artífices. Têm
por ofício configurar a beleza, a virtude e excelsitude. Cuidam da pessoa de fora
para aumentar a expressão da pessoa de dentro. Para elevar a condição humana.
Consomem-se na tentativa de concretizar a intrigante formulação de Johann Wolf-
gang Goethe (1749-1832): “Se os macacos chegassem a experimentar tédio, pode-
riam tornar-se gente”. Porque criariam um método para o enfrentar e superar.
Mais, os professores entregam-se a transmitir o apego a símbolos e valores, tendo
em vista a constatação de Vergílio Ferreira (1916-1996), de que qualquer animal
pode tornar-se humano se conseguir descolar das coisas. A sua tarefa vê-se dificul-
tada, porquanto anota o espírito incisivo de José Saramago: “A mentalidade antiga
formou-se numa grande superfície que se chamava catedral; agora forma-se noutra
grande superfície que se chama centro comercial. O centro comercial não é apenas
a nova igreja, a nova catedral, é também a nova universidade”.
Sim, é próprio dos homens aprender, aprender de outros homens, ser ensinado por eles.
Mas... os educadores devem ensinar o quê? Aquilo que o outro precisa de aprender
e não consegue aprender sozinho, por não ser fácil, por custar afinco, disciplina,
método, esforço, orientação e controlo. Não há outra via. O ensino e a aprendizagem
são o processo árduo, mas imprescindível, para tentar produzir “indivíduos autó-
nomos, capazes de participar em comunidades, que saibam transformar-se, sem se
renegarem a si próprias, que se abram e ampliem sem perecer, que se ocupem mais
do desamparo geral dos seres humanos…” Para conseguir adquirir a estatura humana
em toda a sua plenitude. Sabendo que, ao contrário do animal, os recursos do me-
nino humano tendem para o ilimite. Que os indivíduos da nossa espécie permane-
cem até ao final dos seus dias imaturos, experimentadores e falíveis; mas sempre,
em certo sentido, juvenis, aprimoráveis, isto é, abertos a novos saberes. Que todos
morrem jovens!26
Não há volta a dar: ser humano é um dever e a sua aprendizagem também. E “o prin-
cipal bem que temos que produzir e aumentar é a humanidade compartilhada…”27
Esta súmula reveste uma esplêndida formulação e um grandiloquente ideal que
devem animar os nossos passos. Produzir e aumentar, ensinar e aprender a huma-
nidade compartilhada é preservar e aperfeiçoar as nossas próprias raízes, os traços
que distinguem e afirmam o homem. E entre estes, em função daquilo que me
anima neste escrito, queremos reafirmar a consciência da vida e da morte, os sím-
bolos, os sonhos, os ideais, os princípios, os valores, a procura da felicidade, o sen-
tido do humor, da admiração e do espanto, o riso, o jogo, a capacidade ilimitada de
aprender, isto é, aquilo que nos torna semelhantes uns aos outros e que está sempre
presente onde há homens com moral e saúde, éticos e sadios.

26
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Isto traz-nos à lembrança uma anotação de Mário Quintana (1906-1994), em Agenda


Poética:

A pena que me dão as crianças de hoje!


Vivem desencantadas como uns órfãos:
As suas casas não têm porões nem sótãos,
São umas pobres casas sem mistério.
Como pode nelas vir morar o sonho?

O lamento anterior não se aplica apenas às crianças. Nesta época da globalização e


da dita pós-modernidade estamos a ficar mais pobres. No dizer de Walter Benjamin
(citado por Octávio Ianni), estamos a abandonar uma após a outra as peças do patri-
mónio humano, a empenhá-las muitas vezes por um centésimo do seu valor, para
recebermos em troca a moeda miúda e vulgar, actualmente em vigor. E esta chama-
se pobreza de experiência, pobreza externa e interna, resultante da substituição da
vivência pela aparência, do facto pelo simulacro, do real pelo virtual, da palavra pela
imagem. Claro que as primeiras dimensões não desapareceram, mas estão encolhi-
das e invertidas; são as segundas que surgem proeminentes e altaneiras na vida so-
cial e povoam o imaginário de todo o mundo, levando à anulação, ao encolhimento
e desaparecimento da individualidade e das peculiaridades na multidão. A razão
instrumental uniformiza os espaços e tempos, os modos de produzir e consumir,
de ser e viver, de pensar e imaginar, as actividades das pessoas, dos grupos, das or-
ganizações e nações; o mundo é tecido de modo pragmático, à medida e sob os di-
tames do princípio da quantidade e quantificação, em detrimento da qualidade. A
língua técnica substitui a humanista e a expressividade vive uma decadência, porquanto
a das imagens é estereotipada e perde-se na rigidez do slogan.28
O notório engordamento e enriquecimento da aparência à custa do emagrecimento e em-
pobrecimento da experiência reflecte um universo da fragmentação, com a história a ser
substituída pelo efémero, pela imagem do instante e do lugar fugidio, com o indiví-
duo reduzido a adjectivo subalterno e o corpo a cobrir-se de adereços, tendendo ele
próprio a converter-se em adereço, a vender-se e comprar-se como objecto.29
Afinal onde está a qualidade como bitola de configuração da vida? Por onde anda a
sanidade corporal, mental e social do homem?

5. Recriação da forma humana


Recorremos a Humboldt (1767-1835) e ao esboço do Homo Performator, erigido em
cima do sublimado Homo Violens. Agarramo-nos à sua prescrição de que o destino
do homem é ‘formar-se’, reforçar-se de formas e ‘performances’ sempre novas e su-
periores, para substituir as originais, antigas e anteriores que se vão gastando e fi-
cando pelo caminho. E socorremo-nos também de Goethe (1749-1832) e da sua
afirmação de que “a coisa mais digna de que se ocupa o homem é a forma humana.”
Disso ocupa-se o homem e ocupam-se a civilização e a cultura com todas as suas
criações e instituições, desde tempos imemoriais. Não sem razão, porquanto é ex-
tremamente difícil alcançarmos uma forma decente, correspondente a uma ideia
generosa e elevada da noção de Homem e de nós próprios. Não nos estamos a referir

27
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apenas ao nosso aparato físico, à couraça óssea e muscular, à forma externa. Estamos
a pensar em tudo quanto nos define e apresenta como seres simbólicos, por dentro
e por fora, de alto a baixo, no corpo e na alma, nos pensamentos e actos, nos senti-
mentos e gestos, nos ideais e nas palavras, nas emoções e reacções. Estamos a pensar
no Homem-Todo, na grandeza da pessoa de dentro que se expressa e irradia na pes-
soa de fora. E a esse entendimento e estado holístico atrevomo-nos a chamar saúde
e forma da verdade, da beleza, da ética e da estética.
É este o trabalho primordial do homem e o da sua formação. E é também o seu des-
tino. Nascemos para nos formarmos. Para criarmos e acrescentarmos expressões da
forma humana sempre mais subidas e exigentes. Esta é uma obrigação de todos os
dias, a pedir labor e esforço continuados, já que o Homem é o inacabado e inconcluso,
um ser precário e transitório, por isso mesmo, ainda em formação; nunca está for-
mado de todo e, por mais perfeito que seja, permanecem nele máculas de imperfei-
ção a aguardar uma intervenção condizente e a deitar por terra as ideias do fim da
história e da criação ou vinda do Homem Novo.
Proclamou, há alguns anos, a publicidade da Reebock que há um atleta dentro de cada
um de nós. Sim, há um esboço e um projecto de homem à espera de realização. Nem
todos podem ser campeões, mas todos podem dar e revelar o melhor de si mesmo – acres-
centava o slogan publicitário da Coca-Cola nos Jogos Olímpicos de Barcelona (1992).
Sobretudo devemos e podemos trocar o insuficiente, o menos e o pior, que estão den-
tro de nós, pelo suficiente, o mais e o melhor, que estão fora de nós. É para isso que
servem a educação e o desporto, que há professores e treinadores e carecemos de
aprender e treinar um pouco todos os dias. Para nos formarmos. E somos nós os auto-
res desse feito, dessa obra mais ou menos esbelta ou tosca. Cada um é operário do edi-
fício da sua formação. E esta não é um espectáculo assente no divertimento, gozo e
prazer; custa sacrifício e suor, desprendimento e entrega, respeito e observância de
deveres, compromissos, obrigações, normas, princípios e valores morais e universais.
Já ficou dito e redito, a formação do homem e da sua autonomia, emancipação e
razão, à luz de bitolas humanistas, é a grande missão da Humanidade e da civilização
e das instituições criadas para esse fim. Em todos os tempos e lugares e pelos mais
diversos meios. Na era actual não decresce o imperativo de agarrar, com redobrado
afinco, o empreendimento; bem pelo contrário.
Está-se mesmo a ver que isto reclama a urgente revitalização da ética. Não como
uma religião, mas sim como um conjunto de ideais racionais vinculados ao objec-
tivo de viver mais e melhor (anseio enraizado no Humanismo e Iluminismo), re-
pondo e apreciando o cultivo das virtudes humanas, nomeada e fundamentalmente
das seguintes: a coragem e a fortaleza para viver com rectidão e suportar com cons-
tância, dignidade e firmeza as ameaças, as iniquidades, pressões e agravos feitos à
decência e ao bem público e comum; a generosidade e a justiça para dar ao outro
aquilo que lhe é devido, para conviver com o semelhante, para não ficar indiferente
aos seus problemas e para defender os sistemas e medidas de solidariedade; a tem-
perança, a prudência e a moderação para assegurar o domínio da vontade sobre os
apetites e instintos e proporcionar o equilíbrio nos usos e costumes; e a prudência
e a sabedoria para seguir a razão e discernir, em todas as circunstâncias, o bem e es-
colher a regra, a medida e a correcção dos meios para o atingir, assim como para so-
breviver às contrariedades que não podemos abolir.

28
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Precisamos de ética porque nos espaços por ela não preenchidos medram desordens,
conflitos e antagonismos impeditivos da vinda e florescimento da harmonia e da
felicidade. Por isso também ela corrobora que o principal bem a produzir e aumen-
tar, a ensinar e aprender é o da humanidade compartilhada.
Muito a propósito colocou Kant (1724-1804) a questão: “O bem universal será por
acaso uma ideia que possa prejudicar o nosso bem particular?” E a razão responde
mandando prolongar o esforço da civilização e humanização, de modo a alcançar
em todos os homens a liberdade, total e não parcial ou hemiplégica, da coacção e da
miséria, sejam elas materiais, espirituais e morais.
Ora o alimento preferido da miséria é a ignorância. Onde esta vigora, onde as pessoas
crescem sem adquirir competências para expressar e advogar a sua opinião, as suas
expectativas e posições, onde não têm possibilidades de cantar no coro polifónico
universal, aí vêem aumentados os seus problemas e vêem-se entregues nas mãos de
bruxos e exploradores dos mais diversos matizes. E aí reina a miséria e não a liberdade.
Esta triste realidade choca-se com a obrigação indeclinável da sociedade democrá-
tica em criar os cidadãos garantes da sua legitimidade, em dotar os indivíduos de
requisitos indispensáveis para que sejam pessoas em plenitude e em todo o tempo.
Em ensiná-los a inventar para si, durante toda a existência, uma vida sempre me-
lhor. Em facultar-lhes o acesso a conhecimentos que lhes permitam viver à altura
da sua época, ser contemporâneos do tempo que lhes foi dado viver, através do usu-
fruto da tecnologia, do progresso e dos bens que o distinguem. Em formar neles a
consciência do valor intrínseco da sua vida e do seu significado vital para a comu-
nidade. Em incentivá-los a que sejam o melhor que é possível ser, sabendo que será
sempre insuficiente e que por isso não permite descanso ou desistência o esforço
de continuar a mudar e a transformar o mundo, como se nele houvessem de viver
eternamente. Em entusiasmá-los a agarrarem-se ao projecto de configuração da
identidade, encarando esta como algo sempre dinâmico, com a inquietude do que
parece e é longínquo, mas também com a esperança do quanto já foi percorrido e
com o alvoroço de quem se levanta na alvorada e está sempre de partida para viajar
até às estrelas. Em estimulá-los a cultivar, conservar e transmitir o amor e a fideli-
dade ao humano.
Para este destino grandioso pode e deve a educação desportiva do homem convergir
por muitos caminhos. De resto o desporto é um lugar pedagógico por excelência. Ao
tornar evidentes as nossas fraquezas, insuficiências, mazelas e contradições, põe a
nu e convida a cultivar o que em nós falta. Cuidamos nele daquilo que nos falta e não
tanto do que em nós abundante; no seu código os deveres e compromissos, as normas,
obrigações e proibições sobrepõem-se, em muito, aos direitos, às lassidões e permis-
sões. Por isso mesmo é educativo e civilizador. Funda e reforça também a convicção
de que o caminho mais longo é o homem como pessoa moral. É para ela que vale ver-
dadeiramente a pena trabalhar e é para ela que sempre apontaram as fundamentações
antropológicas e filosóficas dos exercícios físicos e desportivos, como, por exemplo,
o fez Pestalózzi (1746-1827). É essa a estátua mais bela cuja projecção e construção
devem congregar todos os artistas de vanguarda. Uma estátua que seja a exaltação
simbólica e celebre o anseio e a consciência da ânsia do Homo Viator, de ser romeiro e
estar sempre a caminho, à procura de uma forma nova e superior.

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O desporto faz parte da luta contra a ideologia da impotência que nos sussurra que
não podemos fazer nada por nós, que não somos sujeitos principais da nossa cons-
trução, que nos devemos omitir e entregar nos braços de um destino de derrotados
e vencidos da existência. Ele parece apostado em dar razão ao aviso do Padre Antó-
nio Vieira (1608-1697): “Nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe. Por-
tanto só existimos nos dias em que fazemos. Nos dias em que não fazemos, apenas
duramos”.
Lembra-nos o mandamento de persistirmos na humanização da terra, de maneira
modesta e realista. Sem metas e ilusões desmedidas, mas esgotando o campo do
possível por entre os apertos que amarram a condição humana à natureza do animal
e do bicho medular que igualmente somos.
Só não vê quem não quer ou é cego em matéria de convicções e ideias: o desporto
configura um teste da nossa forma e desafia-nos a procurar melhorá-la constante-
mente. Incita-nos a aprimorar a elegância e a combater a deselegância das reacções,
das atitudes e comportamentos; o índice do apego ou desapego à observância de
princípios e regras; o grau do respeito ou atropelo dos direitos e da pessoa dos outros.
E nem sempre ficamos contentes com a forma que ostentamos e ele nos revela. O
que confirma que Goethe tinha inteira razão e apurada visão. Que estamos longe
de exibir uma forma consentânea com a ideia de dignidade do Homem que Kant
nos atribuiu. Estamos longe de ser autênticos e belos, éticos e saudáveis; estamos
sempre aquém do gesto bonus e bellus, da bondade e da beleza, da verdade e da esté-
tica que inspiram a matriz humana.
Na presente conjuntura do mercado neoliberal (e do seu relativismo ético, legal e
moral), fria e racionalmente orientado para a produção de danos colaterais em todas
as esferas da vida e actividade humana, estamos muito longe de devotar às outras
pessoas o apreço, a consideração e a valorização que atribuímos aos bens de con-
sumo. Importa, pois, que treinemos as crianças e jovens a sentir respeito pelos ou-
tros, a demonstrar uma sensibilidade desperta e inquieta em relação ao destino de
exclusão e marginalização a que são condenados todos os que não cabem no topo
cada vez mais estreito da pirâmide, ocupado exclusivamente pelos poderosos e de-
finidores do que conta e vale.
Para tanto importa também que hasteemos, no mastro do dia-a-dia, a flâmula dos
princípios basilares da educação e do desporto, hoje e sempre:

— Primeiro: o domínio da verdade e do seu avesso, do que é da ordem do bem e do cor-


recto e daquilo que é falso e reprovável.
— Segundo: a percepção da beleza e da sua ausência, do subido e magnífico que nos
enlevam e encantam e daquilo que é feio, grotesco e horrendo.
— Terceiro: a adesão à moralidade, praticando e defendendo aquilo que nos dignifica
e engrandece e rejeitando aquilo que é mau, nos apouca e perverte.

6. Conclusão
O desporto instala em conceitos e preceitos, princípios e axiomas, direitos e deveres,
ilusões e utopias. É uma opção pela dificuldade, perante a tentação da facilidade.
Nele aprende-se que não podemos descansar e que o mérito e o sucesso sérios e hon-

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rados custam dedicação porfiada e suada, uma vez que o talento é raro, porquanto,
ao contrário do que consta no registo bíblico, Deus não criou o homem conforme à
Sua imagem e semelhança; somente quando se distrai, em dia de aniversário, é que
faz uma criatura à Sua medida. Somos produto da transpiração e, quase nada, da ins-
piração ou predestinação.
No desporto erguemos, assinala Fernando Savater, o apreço por dons universal-
mente valiosos (habilidade, agilidade, resistência, força, velocidade, aprumo, cor-
recção, elegância, honestidade, seriedade, jogo limpo...), afastamo-nos, a sete pés,
do gorduroso odor ao estábulo30 e celebramos como própria a excelência onde quer
que ela ocorra e seja quem for aquele que a demonstre.31
Enquanto não abdicarmos do modelo de Homem, fundado na nobreza e lhaneza do
carácter e no trabalho digno e honrado, que tem guiado a civilização, desde o início
até aos nossos dias, o desporto continuará a ser um investimento na emancipação
corporal e cívica das pessoas. Esta é tanto ou mais necessária do que o progresso
científico e tecnológico.
Ele desafia-nos a tomarmos a gnose e a técnica, a ética e a estética dos nossos actos
como pontes para a liberdade. Porque nós somos livres não tanto pela boca falante,
mas sim pela mistura que o corpo sabe realizar com os sentidos. Somos livres pelo
saber, pelo querer e fazer consequentes e não pelo apetecer e dizer negligentes; pela
palavra convincente e pela acção correspondente. Por fazermos convergir o eixo da
visão e o eixo das coisas e acções.
No desporto participamos na construção de pessoas e identidades cujo Ego é sempre
um espírito incarnado, uma tatuagem corpórea da alma. Ocupamo-nos da apropria-
ção e irradiação de símbolos, mitos e ideais através de desempenhos corporais. Da
adesão a uma cultura de metas e compromissos, de dificuldades e desafios, de há-
bitos e rotinas de trabalho para lá chegar. E assim procuramos anular as fronteiras
entre a alma e o mundo exterior; lavramos no esforço severo, incansável e sistemá-
tico de projectar a nossa natureza, nomeadamente o corpo, contra si própria, para
além e acima de si mesma, convidando-a a não se dar por satisfeita com o seu esta-
tuto, a exceder-se, a suplantar-se e a chegar a níveis para os quais não parece parti-
cularmente predestinada.
À herança e matriz helénicas adiciona a esperança judaico-cristã; transfigura a tragédia
grega por meio da excelência e enaltecimento dos actos e feitos corporais, iludindo a
dor e a potencialidade desta para nos destruir; com a promessa de saúde e longevidade
alimenta o sonho de um final feliz e assim o esforço é iluminado pelo sorriso.
Como todas as formas de criação nas letras, nas artes, na ciência etc., é um dos palcos
da competição humana onde se revelam qualidades e avanços, onde se partilham
anseios e projectos com os demais. Onde a valia, a competência e o poderio dos ho-
mens e povos podem ser afirmados sem o recurso à exibição e crueldade da violên-
cia gratuita e arrasadora.
É um esforço universal de estudo, conhecimento e melhoria da condição humana.
Um dos factores de exaltação da humanidade e da sua mestria em canalizar as forças
primárias e rasteiras da nossa natureza para fins que nos engrandecem e enterne-
cem. O campeão desportivo e os galardoados com o Prémio Nobel enfileiram neste
património.

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Este jogo celebra o poder do homem e da sua corporeidade em criar beleza, harmo-
nia, perfeição e arte. Exalta a plasticidade e a liberdade do corpo e a superação dos
seus limites. Civiliza e aprimora o corpo natural, moldando-o como artefacto cul-
tural. Intenta dar aos pés a agilidade das mãos e ao corpo a leveza do espírito e dos
ideais. E assim o empenhamento desportivo-corporal inscreve-se no objectivo de
aperfeiçoamento estético da conduta geral do homem em relação a nós e aos outros.
Faz parte do processo civilizador, coopera na formação do índice de civilização, ao
educar o indivíduo para a auto-imposição de limites e restrições, de inibições e con-
troles das reacções primárias, impulsivas e instintivas, para o apego e observância
conscientes das normas e regras, para a prática e reivindicação dos direitos como
um sujeito de iguais deveres.
O atleta, formulou Píndaro (521-441 a.C.), é “aquele que se deleita com o esforço e
o risco”. É isto que constitui o desporto e é constituinte de nós, expressão do nosso
ser. Carregamos este desafio e destino, o peso do sentido da vida e da existência.
Nós os humanos, porque somos e nos sabemos frágeis e precários, transitórios e
mortais, ansiamos e procuramos conquistar e beber da taça do mundo. Os Deuses,
porque são eternos e omnipotentes, não precisam de realizar feitos que concitem a
admiração dos seus semelhantes e projectem o seu nome para a eternidade.
Nós os humanos praticamos a única coisa que aos Deuses é vedado fazer: arriscar-
se ao fracasso, ao insucesso, à incerteza, à tensão, à desilusão e à derrota. Eles – os
Deuses - só sabem e podem ganhar; nós somos predestinados a assumir o risco de
perder, nascemos para cumprir o destino e fado de ganhar algumas vezes, de perder
muitas outras e de ter que aprender a perder e a suportar a derrota, mas sem perder
a face, a determinação e o gosto de insistir, treinar e competir, de tentar e ousar, de
melhorar e progredir. Chama-se a isto vencer, viver e existir.
É, pois, também com o concurso do desporto que intentamos aliviar a canga da sorte
dramática e trágica de Sísifo, almejar e saborear a dignidade e liberdade.32 É com o
seu ideário e o cumprimento das suas exortações e prescrições que, parafraseando
Richard Bach (autor do hino à liberdade humana intitulado Fernão Capelo Gaivota),
“podemos sair da ignorância, podemos ser criaturas perfeitas, inteligentes e hábeis.
Podemos ser livres! Podemos aprender a voar!”
Impõe-se, a terminar, um apontamento. Tudo quanto ficou escrito atrás pertence
obviamente ao campo do ideal, do desejável e do transcendente. Há que pôr os pés
no chão e aceitar que ele é áspero, duro, pedregoso e ruim. Todavia este reconheci-
mento e a evidência de que ele nem sempre se deixa transcender não autorizam a
queda no abismo do desânimo e demissão, da desculpa para a desistência e a inacção.
Estas são faltas infamantes. Enquanto indivíduos e cidadãos temos o direito de ver
tudo negro. “Mas – adverte Fernando Savater - enquanto educadores temos apenas
o dever de ser optimistas! E, na verdade, o ensino pressupõe o optimismo tal como
a natação exige um meio líquido para exercitar-se. Quem não quiser molhar-se, deve
abandonar a natação, quem sentir repugnância pelo optimismo, deve abandonar o
ensino e não pode pretender pensar em que consiste a educação. Porque educar é
acreditar na perfectibilidade humana, na capacidade inata de aprender e no desejo
de saber que a anima, acreditar que existem coisas (…) que podem ser sabidas e que
merecem sê-lo, que nós, homens, podemos melhorar-nos uns aos outros através do

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conhecimento. (…) Com verdadeiro pessimismo pode escrever-se contra a educa-


ção, mas o optimismo é imprescindível para (…) exercê-la. Os pessimistas podem
ser bons domadores mas não bons professores.”33
Não convertamos, pois, a reflexão em lamúria inibidora da acção; nem nos entre-
guemos à ingénua espera de ver o sonho realizado espontaneamente, sem o empe-
nho correspondente. A esperança passiva e demissionária tem de ser extirpada
como um furúnculo maligno. Aos professores cumpre integrar o coro que canta,
em harmonia, a canção do semeador, de Miguel Torga (1907-1995):

Na terra negra da vida,


Pousio do desespero,
É que o Poeta semeia
Poemas de confiança.
O Poeta é uma criança
Que devaneia.

Mas todo o semeador


Semeia contra o presente.
Semeia como vidente
A seara do futuro,
Sem saber se o chão é duro
E lhe recebe a semente.

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Notas
1 Professor Catedrático da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, CIFI2D - Centro de Investi-
gação, Formação, Inovação e Intervenção em Desporto.
2 Mestre em Ciências do Desporto, Estudante de Doutoramento da Faculdade de Desporto da Universi-
dade do Porto, CIFI2D - Centro de Investigação, Formação, Inovação e Intervenção em Desporto.
3 Frei Bento Domingues: Companheiros de Viagem, in: jornal Público, p. 36, 8 de Novembro de 2009,
Porto.
4 SARAMAGO, José: A viagem do elefante, São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
5 A língua é verdadeiramente materna e o nosso berço parturiente. Dá-nos o leite de integração no
mundo: os valores, princípios, sonhos, ideais e inclinações; os modos de perguntar e responder, de ob-
servar e entender, de aperceber e valorar, de ser e estar.
6 Como Manoel de Barros (in: Retrato do Artista Quando Coisa), “gosto de viajar por palavras (mais) do
que de trem”.
7 FAUSTO DE BARRETO e CARLOS DE LAET: Anthologia Nacional ou Collecção de Excerptos dos Principaes Es-
criptores da Língua Portugueza do 20º ao 16º Século, 14ª Edição, Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1929.
8 FAUSTO DE BARRETO e CARLOS DE LAET, ibidem.
9 CURY, Augusto: O vendedor de sonhos, Editora Academia de Inteligência, São Paulo, 2008.
10 Prometeu, filho do Titã Jápeto, é, segundo a mitologia clássica, o Deus ou génio do fogo. Criou o
homem com o limo da terra e animou-o com o fogo que ele roubou, com esse fim, ao céu. Inicia assim a
primeira civilização humana. Como castigo Júpiter mandou Vulcano acorrentá-lo no monte Cáucaso,
onde um abutre lhe devorava o fígado, até que Hércules o livrou desse suplício.
11 Muito a propósito postulou Fernando Pessoa (1888-1935): “Os Deuses são a encarnação do que nunca
poderemos ser”. Funcionam como referência para o que queremos e devemos ser e como termo de com-
paração para o que somos.
12 O teórico é aquele que é capaz de idealizar e ver (orao) o superior e divino (theion).
13 Segundo a Bíblia foi no Monte Sinai, península montanhosa do Egipto sita entre os golfos de Suez e
Acaba, que Moisés recebeu de Deus, no meio de relâmpagos e trovões, o Decálogo, vulgarmente conhe-
cido como os Dez Mandamentos.
14 “O que Deus exige é por causa do Homem. O único interesse de Deus é o Homem. Como escreveu
Santo Ireneu, ‘a glória de Deus é o Homem vivo’, isto é, o Homem plenamente realizado em todas as di-
mensões. De tal modo Deus ama o Homem que quer que tenha um desenvolvimento íntegro de toda a
sua pessoa. Não pode desenvolver-se apenas numa dimensão, pois precisa de um crescimento holístico.
Deus quer que o Homem vá tão longe no seu ser quanto pode ser. É necessário sublinhar este desenvol-
vimento harmónico da pessoa toda, que é o que Deus quer. A pessoa deve desenvolver-se no seu ser físico
– também é necessário cuidar da saúde, por exemplo -, no seu ser intelectual – é preciso esforçar-se por
entender a realidade, entender-se a si mesmo e a sociedade -, no seu ser emocional – cada vez estamos
mais despertos para a importância das emoções positivas e negativas na existência humana -, no seu ser
social – os outros também existem e sem tu não há eu -, no seu ser artístico – sem beleza, não há salvação
-, no seu ser moral – é preciso aprender a distinguir entre bem e mal e a saber julgar do bem e do mal -, no
seu ser espiritual – não é o Homem, constitutivamente, o ser do transcendimento sem fim, até ao Infi-
nito?” (Anselmo Borges, in: Imagem de Deus e do Homem, Miriam – Revista Cristã de Actualidade,
Agosto/Setembro 2009, Vila Nova de Gaia).
15 BENTO, Jorge Olímpio: Contexto e Perspectivas. In: Contextos da Pedagogia do Desporto. Livros Hori-
zonte, Lisboa, 1999.
16 Segundo a Mitologia Grega, a incumbência de cortar as cabeças (7-10) da Hidra de Lerna, um misto de
serpente e dragão, foi o segundo dos doze trabalhos impostos ao semideus Hércules pelo seu irmão Eu-
risteu. Hércules ou Héracles executou esses trabalhos e realizou outros feitos notáveis, como o de desa-
correntar Prometeu das cadeias que o prendiam nas montanhas do Cáucaso.

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17 SAVATER, Fernando: O VALOR DE EDUCAR, Editorial Presença, Lisboa, 1997.


18 Ibidem
19 Neste contexto afigura-se oportuno trazer à colação a conhecida exortação de Píndaro (521-441 a.C.):
Sê quem és! Tenta ser e realizar a imanência que há em ti!
20 Fernando Savater, ibidem.
21 José Saramago retrata deste jeito a dialéctica do animal e do humano no indivíduo: “... em um elefante
há dois elefantes, um que aprende o que se lhe ensina e outro que persistirá em ignorar tudo (...) Descobri
que sou tal qual o elefante, uma parte de mim aprende, a outra ignora o que a outra parte aprendeu...”
(In: A viagem do elefante, p. 153, São Paulo: Companhia das Letras, 2008). É a manifestação deste conflito
e contradição que perfaz o teor educativo e pedagógico de uma actividade. No desporto isto é particu-
larmente evidente.
22 No dizer de O Eclesiastes (obra atribuída ao Rei Salomão - 1082-975 a.C. - e incluída pela Igreja nos livros
canónicos), o temor é o princípio da sabedoria, porque o ser humano deriva exactamente do confronto
aterrador com a certeza da morte, das limitações e obrigações que isto impõe. É deste medo – que é a fonte
primordial e a metáfora de todos os medos, nomeadamente do medo de jogar e perder – que provém o
respeito pela realidade e pelos outros, cúmplices e parceiros da nossa finitude. Condiz com isto a afirma-
ção de que o objectivo da educação é aprender a respeitar com prazer o que começamos a respeitar através
de uma ou outra forma de temor. A decadência dos modelos de autoridade – sejam o pai ou a mãe ou as
regras e os professores – equivale a uma perda destruidora de modelos de auto-estima e contribui para
o aumento da delinquência juvenil.
23 Fernando Savater, ibidem.
24 Frei Bento Domingues: Os filósofos e o Natal, in: jornal Público, p. 32, 20 de Dezembro de 2009, Porto.
25 Nove meses somente são bastantes para fazer um animal.
26 No fundo, começamos a ficar velhos, quando deixamos de ter vontade de aprender coisas novas.
27 Fernando Savater, ibidem.
28 IANNI, Octávio: Teorias da globalização. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1995.
29 Ibidem.
30 “De todos os animais, o homem é aquele a quem mais custa viver em rebanho”, disse e bem Jean Jac-
ques Rousseau (1712-1778).
31 SAVATER, Fernando: O MEU DICIONÁRIO FILOSÓFICO. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000.
32 É possível comparar a aventura humana à condenação imposta pelos deuses a Sísifo, rei de Corinto,
devido à crueldade deste: foi condenado aos Infernos e a levar uma pedra enorme até ao cimo de uma
montanha muito empinada, donde ela caia mal lá chegava. Era assim obrigado a recomeçar incessante-
mente a mesma tarefa. O mito de Sísifo ficou como símbolo de um trabalho ou encargo extenuante, que
renasce a todo o instante e que os humanos devem assumir para expiarem as suas culpas e se cumularem
de decência e dignidade.
33 SAVATER, Fernando: O VALOR DE EDUCAR. Editorial Presença, Lisboa, 1997.

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Aprendizagem Motora e Educação Física:


Pesquisa e Intervenção
Go Tani
Cássio de Miranda Meira Júnior
Universidade de São Paulo - Brasil
Maria Tereza Cattuzzo
Universidade de Pernambuco - Brasil

1. Introdução
A aplicação de conhecimentos acadêmico-científicos na intervenção constitui uma
das condições imprescindíveis nas profissões denominadas de academicamente
orientadas (Tani, 2008). Na realidade, é essa aplicação que garante a identidade pro-
fissional como tal. No entanto, é importante reconhecer que, especialmente na-
quelas profissões ainda incipientes, não se pode esperar a existência de um corpo
organizado e robusto de conhecimentos capaz de dar respaldo aos programas, pro-
jetos e procedimentos de intervenção profissional de uma forma abrangente. Daí a
necessidade de se lançar mão de outros conhecimentos como aqueles adquiridos
pela experiência pessoal e profissional que, mesmo ainda não testados por meio de
estudos acadêmico-científicos, mostram-se úteis na solução de problemas no coti-
diano da intervenção. Oportuno esclarecer que as profissões academicamente
orientadas são aquelas em que o seu exercício requer uma formação de nível supe-
rior, o que não é uma exigência para as profissões tecnicamente orientadas, nas
quais a formação desejada é, por exemplo, a de ensino médio profissionalizante.
A Educação Física e as Ciências do Esporte - doravante apenas Educação Física no
sentido lato para facilitar a comunicação e compreensão - são áreas de intervenção
ainda recentes em comparação às mais tradicionais como a Medicina e a Engenharia.
Isto implica uma atuação profissional em que conhecimentos adquiridos pela ex-
periência pessoal na perspectiva de praticantes da cultura de movimento - esporte,
ginástica, dança, jogos, exercício - ocupam ainda um lugar importante nos proce-
dimentos didático-pedagógico dos profissionais.
Evidentemente, para a Educação Física, a superação gradual dessa situação - a qual,
caso não buscada com a devida importância e atenção pode colocar em cheque sua
autenticidade e legitimidade como uma profissão academicamente orientada (Tani,
1996) - depende do seu amadurecimento como uma área de conhecimento, me-
diante estudos e pesquisas amplos e profundos acerca dessa cultura de movimento.
Apesar de ainda carecer de uma definição mais clara da sua base epistemológica
(veja, por exemplo, Tani, 1996, 1998), é também de se reconhecer que a Educação
Física, como área de conhecimento, demonstrou nessas últimas décadas um avanço
acadêmico-científico acentuado com um expressivo crescimento na sua produção
científica. Utilizar esses conhecimentos na intervenção constitui, portanto, uma
condição sine qua non para melhorar a qualidade da prática profissional e elevar o

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livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 37

seu reconhecimento social. Afinal, todas as profissões socialmente valorizadas em


alto grau passaram por esse processo. Basta lembrar que não faz muito tempo, o cui-
dado com a saúde da população envolvia a atuação de médicos e curandeiros. O sta-
tus e o reconhecimento profissionais que os médicos hoje desfrutam na sociedade
decorrem da utilização de conhecimentos científicos que a Medicina produziu no
tratamento dos pacientes, isto é, uma consequência do avanço da Medicina como
uma área de conhecimento.
A aplicação de conhecimentos acadêmico-científicos na intervenção profissional
depende de vários fatores. Não se restringe, naturalmente, apenas à disponibilidade
desses conhecimentos. O acesso a eles, por meio de cursos de formação profissional,
é fundamental e necessita ser dinâmico e qualificado (Tani, 2007). A natureza do
conhecimento é um outro fator que condiciona grandemente a efetividade dessa
aplicação. Sabe-se que existe uma grande distância entre o conhecimento explica-
tivo que a pesquisa oferece e procedimental que a intervenção reclama. Em outras
palavras, entre conhecimentos básicos e conhecimentos de natureza aplicada e tec-
nológica. Um exemplo prático é oportuno para um melhor esclarecimento. Certa-
mente os conhecimentos básicos sobre os mecanismos de coordenação e controle
de movimentos são importantes para profissionais da Educação Física. Permite-
lhes uma melhor compreensão do fenômeno, oferece-lhes um instrumental para
observação e avaliação do comportamento motor das pessoas. No entanto, esses co-
nhecimentos não são pertinentes para orientar as suas ações - procedimentos -
quando o objetivo é melhorar a qualidade dos padrões de movimento dos seus alu-
nos ou clientes. Da mesma forma, os conhecimentos básicos de eletromagnetismo
e estrutura dos materiais são importantes para os engenheiros, mas eles não ofere-
cem elementos para a construção de casas e carros econômicos e confortáveis. Co-
nhecimentos de natureza aplicada ou tecnológica são necessários para esses fins.
Em suma, não resta dúvida sobre a relevância do conhecimento acadêmico-científico
na Educação Física, mas é preciso senso crítico para não extrapolar os limites na sua
valorização e cair no cientificismo ingênuo. A intervenção é um fenômeno muito
complexo, com inúmeros fatores intervenientes e não previsíveis, o que torna crucial
discernir qual conhecimento é útil para quais situações e objetivos. Além disso, con-
vém lembrar que nem tudo está estudado, muito menos esclarecido e explicado pela
ciência. A intervenção implica e provavelmente sempre implicará uma boa combi-
nação de ciência e arte. Afinal, a Educação Física lida com seres humanos.
Com essas considerações em mente, o objetivo deste texto é procurar contribuir
para uma maior aproximação entre a Aprendizagem Motora e a intervenção em
Educação Física, ou seja, trazer conhecimentos acumulados sobre fatores que afe-
tam a aquisição de habilidades motoras e discutir suas possíveis implicações e apli-
cações para a melhoria da prática profissional.
Os fatores que afetam a aquisição de habilidades motoras são também os fatores
que os profissionais manipulam no ensino dessas habilidades. Exatamente por esse
motivo é que muitos ainda confundem a Aprendizagem Motora com a Pedagogia
do Movimento. Certamente, os conhecimentos produzidos pela Aprendizagem
Motora podem representar importantes subsídios para uma tomada de decisão mais
coerente e consistente acerca dos projetos, programas e procedimentos de inter-

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livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 38

venção (para maiores detalhes veja, por exemplo, Tani, 2006, 2008; Tani & Corrêa,
2004; Tani, Freudenheim, Meira Júnior & Corrêa, 2004). No entanto, é preciso es-
clarecer que esses conhecimentos não dizem respeito a como deve ser essa inter-
venção. Em outras palavras, o estudo dos fatores que afetam a aquisição de
habilidades motoras com objetivo de compreender os processos e mecanismos de
aprendizagem resulta em conhecimentos básicos que podem servir fundamental-
mente como hipóteses operacionais para a intervenção, mas não como prescrição
da intervenção. Isto posto, a expressão “maior aproximação entre a Aprendizagem
Motora e Educação Física” colocada no objetivo do artigo pode ser mais bem quali-
ficada. Essa aproximação pode ser concretizada testando essas hipóteses operacio-
nais de duas formas: em primeiro lugar, estimulando a realização de pesquisas
aplicadas numa situação real de ensino-aprendizagem ou próximas, o que envolverá
a co-participação de pesquisadores e profissionais efetivamente engajados na in-
tervenção, seja nas escolas, clubes ou outras instituições; o segundo objetivo é, exa-
tamente por conta desse envolvimento, contribuir para que esses profissionais
assumam atitude de pesquisador, no sentido de reconhecer esses conhecimentos
como hipóteses operacionais a serem efetivamente testadas no cotidiano da sua
prática profissional.

2. Fatores que afetam a aquisição de habilidades motoras


É amplamente conhecido que as pesquisas em Aprendizagem Motora são basica-
mente de dois tipos: a) estudo dos mecanismos e processos subjacentes à aquisição
de habilidades motoras; b) estudo dos fatores que afetam essa aquisição. Como foi
mencionado, os conhecimentos acerca dos fatores que afetam a aquisição de habi-
lidades motoras são aqueles mais próximos da intervenção, visto que esses fatores
são os mesmos que são manipulados pelos profissionais no ensino das habilidades.
Podem ser úteis, portanto, aos profissionais que lidam com movimento humano,
seja na perspectiva da melhora, manutenção ou reabilitação da capacidade das pes-
soas de se movimentar.
Diversos são os fatores que afetam a aquisição de habilidades motoras. Alguns estão
presentes antes da prática, como a instrução verbal, a demonstração e o estabeleci-
mento de metas; outros durante a prática, como os diferentes tipos de prática - men-
tal e física, constante e variada, do todo e das partes, variada por blocos e aleatória,
e massificada e distribuída; finalmente, existem os fatores que se fazem presentes
após a prática, como o feedback extrínseco nas suas diferentes configurações - fre-
quência absoluta e relativa, magnitude, direção e magnitude+direção, imediato e
retardado, individual e acumulado.
Em razão do espaço reservado para este capítulo, serão apresentados e discutidos
apenas alguns dos fatores mais estudados e que são usualmente os mais manipula-
dos pelos profissionais na sua intervenção: demonstração, prática variada e sua es-
trutura, e feedback extrínseco.

2.1. Demonstração
Uma imagem vale por mil palavras! A demonstração - também conhecida como mo-
delação - tem sido apontada como a fonte mais adequada para fornecer informação

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livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 39

prescritiva ao aprendiz motor (Al-Abood, Davids & Bennett, 2001; Freudenheim,


Iwamizu & Santos, 2008; Mendes, 2004; Wrisberg, 2007). A demonstração pode
ser definida como uma imagem que o aprendiz observa da execução completa ou
parcial de alguém e que pode ser apresentada ao vivo, por vídeo, foto ou desenho.
Além de ilustrar a meta da ação, essa informação informa sobre o meio para alcançá-
la, ou seja, favorece a compreensão do que e do como fazer.
Segundo a corrente behaviorista, a demonstração foi entendida como um meca-
nismo de imitação, não mediado por quaisquer operações. Depois de observar a de-
monstração, o aprendiz tenta reproduzir uma cópia da imagem do movimento
observado. O processo entre o ver e o fazer não é mediado por operações mentais e
cognitivas, ou seja, não se estabelecem relações entre o percebido da demonstração
e o executado pelo sistema efetor. Já com a idéia de um referencial interno ao qual
o aprendiz tentaria se aproximar depois de observar a demonstração, a corrente
cognitivista considerava a existência de processos internos baseados em operações
mentais; portanto, há alguma correspondência entre o ver e o fazer.
Na esteira dessa concepção, surgiu a corrente cognitivo-social, que concebe a de-
monstração como um componente de orientação, destinado a guiar o aprendiz para
atingir a meta – processo esse também mediado por representações. A observação
da execução da tarefa motora traduz-se numa representação cognitiva que serve
de referência tanto para produzir como para avaliar o movimento. Essa represen-
tação que resulta da demonstração, segundo Annett (1982), é composta por ima-
gens (obtidas por intermédio das sensações experimentadas), critérios (modos de
funcionamento do sistema) e esquemas (estruturas generalizáveis).
Os processos básicos pelos quais a aprendizagem por observação ocorre são a aten-
ção, a retenção, a reprodução e a motivação (Bandura, 1986). O que observar e o que
extrair da demonstração dizem respeito à atenção, cujos níveis são afetados desde
as características do observador e do modelo até a natureza da ação demonstrada.
A retenção corresponde a transformar e reestruturar o que se observou em símbolos
na memória - a demonstração só será efetiva se o aprendiz registrar de forma mne-
mônica o que observou. A transformação da observação em movimento efetivo é
papel da reprodução; esta fase é mediada por um mecanismo de auto-regulação
composto por feedback para que haja possibilidade de sucessivas correções (há apro-
ximação entre os modelos interno e externo). Por último, a eficácia da demonstra-
ção condiciona-se à motivação, pois não haverá reprodução satisfatória caso o
aprendiz esteja desmotivado a observar e/ou a executar. A aprendizagem por ob-
servação coloca seu foco principal no aprendiz, o qual, pelo processo de desenvol-
vimento altera as capacidades de observação, codificação, reprodução e previsão
(Mendes, 2004).
Alguns princípios têm sido associados ao uso da demonstração como estratégia de
aprendizagem motora. O primeiro é o da capacidade limitada de processamento de
informação (Magill, 2007; Schmidt & Wrisberg, 2008), isto é, as pessoas concen-
tram-se em apenas uma quantidade pequena de informação ao mesmo tempo.
Logo, o excesso de informação pode ser prejudicial à aprendizagem, já que o apren-
diz pode ter uma “pane” caso seja sobrecarregado com muita informação, por exem-
plo, quando uma criança que está aprendendo a cortada do voleibol é

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“bombardeada” com várias demonstrações em conjunto com instruções detalhadas


de cada parte do movimento. Daí surge a importância de outro princípio muito uti-
lizado na temática da demonstração: o da atenção seletiva, segundo o qual é neces-
sário focar no ponto-chave da habilidade motora (Freudenheim, Iwamizu & Santos,
2008; Magill, 2007; Schmidt & Wrisberg, 2008; Wulf & Weigelt, 1997).
Uma das avenidas de estudo mais trafegadas pelos pesquisadores da área é a com-
paração e a associação da demonstração com a instrução verbal. Na comparação
entre as duas, há uma tendência muito forte a favor da demonstração. Na associação
das duas, a tendência sólida é em relação à idade do aprendiz: quanto maior a idade,
mais efetiva a combinação da demonstração com a instrução verbal (Iwamizu &
Freudenheim, 2007; Publio, Tani & Manoel, 1995; McCulagh, Stiehl & Weiss, 1990;
Schoenfelder-Zohdi, 1992; Weise-Bjornstal & Weiss, 1992; Weiss, 1983; Weiss, Eb-
beck, & Rose, 1992; Wrisberg & Pein, 1990).
Quando se considera a demonstração per se como variável de aprendizagem motora,
quatro importantes perguntas podem ser formuladas: o que demonstrar, quem de-
monstra e quem observa, quando demonstrar e como demonstrar? A seguir, cada
uma dessas questões será explorada.
A escolha sobre o que demonstrar deve ser balizada pelos aspectos relevantes que
determinam o bom desempenho na situação de teste (competição, apresentação,
audição, etc.). Em estágios iniciais, a demonstração deve ser focada nos pontos-cha-
ves. Logo, é recomendável não sobrecarregar o aprendiz com muita informação vi-
sual, sobretudo para iniciantes e quando a imagem envolver um número grande de
componentes importantes. Essas sugestões encontram suporte nos princípios da
capacidade limitada de processamento de informação e da atenção seletiva. Uma
estratégia de facilitar o processo é simplificar a demonstração enfatizando apenas
um aspecto da habilidade por vez, por exemplo, no chute do futebol, demonstrar
apenas o local do pé de apoio. Uma vez adquirido esse ponto-chave, o aprendiz pode
partir para um novo ponto-chave (local de contato da bola com o pé de chute) ou
então receber uma demonstração completa do chute (Schmidt & Wrisberg, 2008;
Wrisberg, 2007).
Quem demonstra é denominado “modelo”, razão pela qual por vezes o termo “de-
monstração” é substituído por “modelação”. Na literatura, o padrão mais consis-
tente em relação a quem demonstra é que quanto maior o status do modelo, maior
a efetividade da demonstração (McCullagh, 1986; Zetou, Fragouli & Tzetzis, 1999);
Assim, pode-se sugerir que o aprendiz presta mais atenção a uma pessoa que lhe
inspira mais motivação. Em contrapartida, não há consistência na literatura quando
a variável é o nível de desempenho do modelo; algumas pesquisas mostram que o
modelo habilidoso favorece a aprendizagem (Zetou, Tzetzis, Vernadakis & Kiou-
mourtzoglou, 2002), enquanto outros que são prejudiciais (McCullagh & Caird,
1990; Hebert & Landin, 1994). Nem sempre, portanto, a imagem ideal e correta
(sem erros) conduz à melhor e mais precisa representação do movimento.
O aprendiz é quem observa a demonstração. Maior quantidade de alternância de
funções de demonstração/observação em dupla com troca de informações verbais
sobre uma tarefa de equilíbrio favoreceu o desempenho nos testes de aprendiza-
gem, proporcionando participação mais ativa do aprendiz ao longo do processo

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(Shea, Wulf & Whitacre, 1999). A visualização em vídeo de boas tentativas próprias
de execução também se mostrou um procedimento eficaz de aprendizagem motora
(Starek & McCullagh, 1999). Essa tendência de reforço do comportamento motor
pela informação também vem sendo sustentada em vários estudos com conheci-
mento de resultados auto-controlado (Chiviacowsky, Wulf, Wally & Borges, 2009;
Chiviacowsky & Wulf, 2007). Existe ainda uma tendência de adultos e adolescentes
aproveitarem-se mais da demonstração do que crianças (Weiss & Klint, 1987), o
que sugere que a idade é uma variável importante para que os processos cognitivos
concernentes à demonstração sejam de fato efetivos.
Quando demonstrar também é um fator importante a ser considerado. O momento
em que a demonstração parece perder a efetividade em termos de aprendizagem é
o final da prática na fase de aquisição; pesquisas mostraram que as demonstrações
antes da primeira tentativa, e do início até o meio da prática são benéficas para o
desempenho nos testes de aprendizagem motora (Landers, 1975; Weeks & Ander-
son, 2000). A tentativa de explicação para a superioridade desses procedimentos
temporais baseia-se no modelo descritivo de Gentile (1972, 1987), uma vez que o
argumento dos autores é que as demonstrações no início do processo favorecem a
melhor obtenção da ideia do movimento. A frequência da demonstração refere-se
à relação entre as tentativas de prática e o número de demonstrações observadas.
A pesquisa de Sidaway e Hand (1993) demonstrou que 100% de frequência relativa
de demonstração proporcionou melhor aprendizagem da tacada do golfe em com-
paração a 20%, 10% e nenhuma demonstração. No que tange à freqüência da de-
monstração, a resposta depende da fase de aprendizagem do aprendiz e a
preferência dele sobre receber ou não a demonstração. Além disso, autores clássicos
da área sugerem que quanto mais prática motora, menor a necessidade de demons-
trações, uma vez que os aprendizes mais habilidosos são capazes de captar os pon-
tos-chaves com mais facilidade em relação aos iniciantes (Magill, 2007; Schmidt &
Wrisberg, 2008; Wrisberg, 2007). Ainda, há evidências que os aprendizes aprovei-
tam mais das demonstrações quando as solicitam (Wrisberg & Pein, 2002; Wulf,
Raupach & Pfeiffer, 2005), reforçando a tendência atual em estudos de aprendiza-
gem motora com regimes auto-controlados (Chiviacowsky, Wulf, Medeiros, Kaefer
& Tani, 2008; Chiviacowsky, Wulf, Medeiros, Kaefer & Wally, 2008; Chivia-
cowsky, Pinho, Alves & Schild, 2008; Corrêa & Walter, 2009).
A última categoria de pergunta é orientada ao como demonstrar. A demonstração
em velocidade reduzida (câmera lenta) mostrou-se importante para habilidades de
maior complexidade (Williams, 1989). Já para habilidades motoras cujos aspectos
temporais (ritmo e timing) são cruciais para o desempenho, a demonstração deve
ser realizada em velocidade real (Mendes, 2004). Wrisberg (2007) sugere que a di-
ferenciação entre habilidades motoras similares deve ser realizada com demons-
trações das duas habilidades em câmera lenta, por exemplo, o ataque potente e a
“largadinha” do voleibol, em que apenas o final do gesto é diferente. Ainda, a de-
monstração mostrou-se mais efetiva para habilidades fechadas (Weeks, 1992) já
que a reprodução do que foi observado não exige adaptações correntes a cada mu-
dança do ambiente. Por fim, a posição do aprendiz em relação a quem demonstra
também é uma variável importante; para algumas habilidades motoras tais como

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arremessar uma bola de basquetebol, sacar no voleibol ou no tênis e saltar sobre a


mesa na ginástica artística, a informação relevante é mais bem captada quando ob-
servada de lado (Wrisberg, 2007), enquanto outras são mais bem visualizadas de
frente ou de trás (seqüências de dança, bloqueio do voleibol). Nesse particular, Is-
hikura & Inomata (1995) mostraram que a demonstração de frente para o aprendiz
foi mais eficaz que a demonstração de trás.
Em suma, há muito conhecimento científico disponível acerca do fornecimento de
instrução prescritiva em forma de demonstração ao aprendiz motor. Em conjunto
com a instrução verbal ou isoladamente, a demonstração é um fator de aprendiza-
gem motora fundamental, que, adequadamente fornecido pode auxiliar o profis-
sional da Educação Física em sua prática cotidiana.

2.2. Prática constante, variada e interferência contextual


Variar ou não variar a prática motora, eis a questão? Essa indagação pode ter resposta
em modelos descritivos que caracterizam o processo de aquisição de habilidades
motoras ou em teorias de aprendizagem motora. Essa temática é extremamente
atraente porque possui, além desse apelo teórico, uma importância prática relativa
a questões de motivação, monotonia, mudança, troca, repetição e previsibilidade.
A prática é um dos requisitos básicos da aprendizagem, pois sem ela dificilmente
haverá melhora na proficiência. No entanto, esse requisito pode ser uma armadilha
porque remete à questão de que a aprendizagem é antes uma questão de quanti-
dade. Em outras palavras, a questão da quantidade pode passar a falsa idéia de que
“quanto mais prática, maior a habilidade”. Não há dúvida que a quantidade de prá-
tica é importante, entretanto, considerar apenas esse fator pode fazer os aprendizes
dedicarem muito tempo e esforço na prática de aquisição, mas apresentarem de-
sempenho inadequado em situações de “teste”, ou seja, na competição, jogo, apre-
sentação, audição, etc. Por isso, além de praticar várias vezes, é preciso também
valorizar a qualidade da prática, usando estratégias que melhorem o desempenho,
sobretudo nos testes, momentos em que níveis de proficiência são realmente im-
portantes.
Em relação ao uso da variação na prática motora, há vários tipos de estruturas pos-
síveis: com muita variação, com variação intermediária e com pouca variação. Prá-
ticas constantes e por blocos implicam em nenhuma ou pouca variação; práticas
mistas ou seriadas possuem variação intermediária; prática aleatória envolve muita
variação. O Quadro 1 especifica essas estruturas de prática de acordo com o exemplo
de uma seqüência de 30 diferentes arremessos ao alvo: A – arremesso lateral; B – ar-
remesso por baixo; C – arremesso por cima baixo; A – arremesso lateral a seis metros
do alvo; a - arremesso lateral a quatro metros do alvo; @ - arremesso lateral a dois
metros do alvo.
Práticas motoras sem variação implicam repetir a mesma habilidade motora por
muitas e muitas vezes. Não faltam exemplos de profissionais da área que lançam
mão desse procedimento em suas intervenções. Intuitivamente essa parece ser a
prática mais adequada no estágio inicial de aprendizagem, em que as experiências
do aprendiz devem ser orientadas de modo a ajudá-lo a alcançar a meta da ação. Os
modelos que descrevem os estágios de aprendizagem reforçam essa hipótese intui-

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tiva (Bernstein, 1967; Gentile, 1972, 1987). Segundo Gentile, as condições de prática
devem, no estágio inicial, proporcionar ao aprendiz motor a obtenção da idéia geral
do movimento; no segundo estágio, as habilidades motoras abertas (ambiente ins-
tável – por exemplo, nadar no mar) devem ser diversificadas, enquanto as habili-
dades motoras fechadas (ambiente estável – por exemplo, nadar na piscina) devem
ser fixadas. Para Bernstein, os graus de liberdade devem ser restringidos no início
da prática para que depois sejam liberados. Embora esses modelos descritivos não
façam menção explícita a como exatamente estruturar a prática motora, a orienta-
ção que se pode deduzir é de pouca variação na prática inicial e introdução de va-
riação em momentos posteriores, exceção feita às habilidades fechadas no modelo
de Gentile, que indica pouca variação durante todo o processo.

Quadro 1: Exemplos de estruturas de prática e quantidade de variação.

Estrutura de prática Quantidade de variação Seqüência de tentativas


Constante Nenhuma AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
Blocos Baixa AAAAAAAAAABBBBBBBBBBCCCCCCCCCC
Blocos Aleatórios Baixa BBBBBAAAAACCCCCAAAAABBBBBCCCCC
Constante-Blocos Baixa CCCCCCCCCCCCCCCAAAAABBBBBCCCCC
Blocos-Constante Baixa BBBBBCCCCCAAAAACCCCCCCCCCCCCCC
Constante-Variada Média AAAAAAAAAAAAAAA@aAaA@A@a@Aa@aA
Constante-Aleatória Média CCCCCCCCCCCCCCCBCABACBCACABABC
Blocos-Aleatória Média AAAAABBBBBCCCCCBCABACBCACABABC
Seriada Média ABCABCABCABCABCABCABCABCABCABC
Variada-Constante Média @aAaA@A@a@Aa@AaAAAAAAAAAAAAAAA
Aleatória-Constante Média BCABACBCACABABCBBBBBBBBBBBBBBB
Aleatória-Blocos Média BCABACBCACABABCAAAAACCCCCBBBBB
Variada Alta aA@Aa@a@A@aAa@A@aAa@AaA@A@aA@a
Aleatória Alta BACCABABCBCACBABCABACBCACABABC

Embora a prática constante proporcione vantagens, principalmente para habilida-


des fechadas, muitas repetições da mesma habilidade podem causar monotonia e
falta de engajamento cognitivo. Além disso, aprendizes motores de modalidades
esportivas que dedicam prática sob as mesmas condições várias e várias vezes
podem ser enganados pela falsa idéia de que eles estão cometendo menos erros du-
rante a prática de aquisição. Porém, a questão é saber se o bom desempenho se man-
terá em condições de “teste”. De fato, são raras as situações de competição em que
os aprendizes executam as habilidades motoras em regimes repetitivos. Na direção
do modelo de Gentile (1972), Wrisberg (2007) sugere que práticas com pouca va-
riação devem ser usadas mais frequentemente para habilidades fechadas e só devem
ser usadas ocasionalmente para habilidades abertas.
A especificação do modo de variação na prática motora iniciou-se com a noção de
variabilidade de prática, que pode ser definida como o número de habilidades dife-
rentes praticadas numa sessão. De acordo com a teoria de esquema motor (Schmidt,
1975), o aumento no número de variações diferentes de uma habilidade ao longo
da prática deveria implicar em melhor aprendizagem. As primeiras pesquisas sobre
o tema mostraram que praticar apenas uma variação da habilidade foi menos eficaz

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livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 44

do que praticar algumas variações, quando a aprendizagem foi mensurada pelo de-
sempenho numa variação nova da habilidade (Kerr & Booth, 1978; McCracken &
Stelmach, 1977; Moxley, 1979; Newell & Shapiro, 1976). No entanto, a literatura re-
cente tem mostrado que, para melhorar o desempenho de retenção e transferência,
a prática constante deve ser realizada em momentos iniciais do processo, antes que
qualquer variabilidade seja introduzida (Corrêa, Benda, Meira Junior & Tani, 2003;
Corrêa, Barros, Massigli, Gonçalves & Tani, 2007; Paroli, 2005; Pinheiro & Corrêa,
2007; Shea & Wulf, 2005; Wrisberg, 2007). A teoria de esquema opera com os con-
ceitos de “programa motor generalizado” (PMG) e “parâmetros”. O PMG é uma su-
posta estrutura responsável pela geração de respostas dentro de uma categoria de
movimentos, por exemplo, o chute no futebol, o saque do tênis ou a estrela da gi-
nástica artística. Essa estrutura seria composta tanto por aspectos invariantes (se-
quenciamento dos componentes da habilidade, tempo relativo e força relativa)
como aspectos variantes (tempo e força absolutos); estes últimos “parametrizam”
as ações governadas pelo PMG, por exemplo, a musculatura específica utilizada para
realizar o chute ou a amplitude e velocidade do mesmo. A noção de variabilidade
de prática está diretamente relacionada à variação de parâmetros de um PMG.
Assim, é plausível assumir que depois que se adquire um entendimento do padrão
básico de movimento por meio de prática constante, esse padrão então deva ser va-
riado mediante prática variada. Uma criança de escolinha de voleibol que adquiriu
um PMG para o toque por cima pode começar a variar seus padrões por intermédio
de diferentes quantidades de força aplicadas na bola, diferentes finalizações do
gesto motor ou diferentes angulações do cotovelo. A prática com variação de parâ-
metros oferece a vantagem de reforçar tanto o padrão relativo de tempo entre os
componentes da habilidade motora como a capacidade de modificação do padrão.
Em outras palavras, o aprendiz aprende as regras para executar adaptações no pa-
drão básico de movimento, inclusive novas variações que eventualmente sejam ne-
cessárias em situações mais complexas. A criança que varia o toque por cima durante
a prática começa a entender a relação entre a força aplicada na bola e a precisão de
seus movimentos ou entre o modo de finalizar o movimento e a trajetória da bola.
Em suma, quanto mais variada a prática dos parâmetros, maior a capacidade de
adaptação do aprendiz para transferir o que foi praticado.
A variação da prática também pode ser referente a diferentes PMGs. A teoria da in-
terferência contextual (Battig, 1972; Shea & Morgan, 1979; Lee & Magill, 1983) for-
nece subsídios consistentes para estruturar esse tipo de variação. O fenômeno da
interferência contextual acontece quando a ordem em que se pratica várias tarefas
numa sessão afeta a aprendizagem dessas tarefas. Em comparação à prática por blo-
cos ou com interferência contextual baixa, a prática aleatória ou com interferência
contextual alta requer a prática de diferentes variações da tarefa que mais tarde fa-
cilitarão o desempenho de retenção e transferência (consultar Quadro 1 para exem-
plos dessas duas estruturas de prática). Esse melhor desempenho nos testes
proporcionado pela interferência contextual alta tem sido atribuído a noções de es-
quecimento e reconstrução do plano de ação (Lee & Magill, 1983) e de elaboração
(Shea & Morgan, 1979; Shea & Zimny, 1983). Esses são processos que promovem es-
forço cognitivo adicional porque o aprendiz engaja-se em atividades extras de pro-

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cessamento de informação importantes para desempenhar bem nos testes. Em ou-


tras palavras, durante a prática aleatória o aprendiz varia o padrão básico de movi-
mento (PMG) a cada tentativa, por exemplo, praticando cinqüenta diferentes
arremessos à cesta do basquetebol (“jump”, “gancho”, bandeja, “tapinha” e enter-
rada), cada qual com um padrão distinto numa ordem imprevisível. A prática alea-
tória é um exemplo de estrutura com muita variação e, por isso, constitui-se num
regime mais desafiador se comparado a práticas com pouca variação. A prática por
blocos, por sua vez, exigiria do atleta de basquetebol, por exemplo, executar em se-
qüência dez “jumps”, dez “ganchos”, dez bandejas, dez “tapinhas” e dez enterradas.
Ressalta-se que os dois regimes de prática (por blocos e aleatório) requerem a mesma
quantidade de repetições para cada variação de arremesso, mas o regime aleatório
evita que o mesmo arremesso seja repetido várias vezes em sequência.
Esse assunto é bastante relevante no contexto esportivo, já que as situações com-
petitivas mudam muito. Os aprendizes podem não gostar tanto de prática aleatória
porque ela provoca mais erros durante a prática, podendo causar problemas moti-
vacionais. Contudo, o que vale ser enfatizado durante a prática é que o importante
é também ter bom desempenho na competição. A questão então passa a ser não o
quanto o aprendiz gosta da prática, mas o quanto a prática está preparando-o para
as demandas que serão enfrentadas nas situações competitivas. Se a estrutura de
prática atender essa meta, o aprendiz irá gostar muito mais da competição. Então,
para decidir que prática usar, é preciso ter em mente o princípio da relevância: atle-
tas que executam seqüências aleatórias durante a competição devem praticar essas
ações preferencialmente de modo aleatório, por exemplo, jogadores de voleibol que
executam vários PMGs em seqüência (passe, ataque, bloqueio, defesa e saque). Uma
prática variada do mesmo PMG, por sua vez, é mais indicada para atletas que ne-
cessitam executar variações de um mesmo padrão básico, por exemplo, jogadores
de tênis que necessitam sacar em diferentes locais da quadra e com diferentes quan-
tidades de força no primeiro e segundo serviço (Wrisberg, 2007).
Em conformidade com a literatura sobre variabilidade de prática, os estudos iniciais
sobre o fenômeno da interferência contextual mostraram que a prática aleatória
proporcionou melhor retenção e transferência que a prática por blocos. Entretanto,
com a continuidade das pesquisas sobre o tema veio um grande número de refuta-
ções acerca da superioridade da prática aleatória sobre a prática por blocos. O estado
da arte permite afirmar que o efeito da interferência contextual parece não ser glo-
bal porque ocorre em situações bastante específicas. De acordo com extensas revi-
sões de estudos sobre o tema (Brady, 1998, 2004; Meira Júnior, Tani & Manoel, 2001;
Meira Júnior & Tani, 2005), a prática aleatória é superior à prática por blocos: a) em
situações de laboratório, b) com habilidosos, c) mais na transferência que na reten-
ção, d) quando o aspectos manipulados foram os parâmetros de um mesmo PMG
isoladamente ou os diferentes PMGs isoladamente e e) com prática extensiva. Em
contrapartida, a prática por blocos é superior à prática aleatória: a) com crianças,
adolescentes ou portadores de síndrome de “Down” em nível moderado, b) com
pouca prática e c) em tarefas contínuas.
Talvez a melhor alternativa para resolver esse impasse seja considerar que práticas
mistas sejam mais efetivas que práticas extremas (com alta ou baixa interferência

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livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 46

contextual) ou recolocar outra questão: quando introduzir a variação na prática?


Essa nova questão também sugere a prática mista como melhor candidata. Pesqui-
sadores têm encontrado resultados consistentes a favor de práticas mistas, especial-
mente favoráveis à prática constante-aleatória (Corrêa, 2001; Corrêa, Benda, Meira
Junior & Tani, 2003; Corrêa, Barros, Massigli, Gonçalves & Tani, 2007; Paroli, 2005;
Pinheiro & Corrêa, 2007). Essa tendência aponta para a mesma direção proposta
nos modelos descritivos dos estágios de aprendizagem motora: prática com pouca
variação no início e mais variação no final. Parece que formar o padrão básico me-
diante prática com pouca variação no início do processo de aprendizagem motora é
condição necessária para que esse padrão seja diversificado/adaptado com mais va-
riação em estágios intermediários e avançados.

2.3. ‘Feedback’ extrínseco


A prática e a informação sobre o erro (feedback) podem ser consideradas variáveis
essenciais que modulam a aprendizagem motora (Schmidt & Lee, 1999; Salmoni,
Schmidt & Walter, 1984). Nos momentos iniciais da aquisição de uma habilidade
motora, o aprendiz tem que tratar com grande quantidade de incerteza proveniente
das demandas do ambiente, da tarefa e do próprio corpo; nessa fase, ele dificilmente
consegue responder com sucesso a tantas demandas, e as ações são desorganizadas,
pouco eficazes e apresentam muitos erros. O feedback recebido ao longo das tenta-
tivas práticas pode se constituir um fator essencial no processo cognitivo de resolver
o problema motor, mediante o qual o comportamento vai se tornando cada vez mais
consistente e eficiente.
Feedback extrínseco (FE), também conhecido com feedback aumentado e conheci-
mento de resultados, é o dado externo que suplementa a fonte interna (feedback in-
trínseco) de informação sobre o erro, na avaliação da ação (Schmidt & Lee, 1999;
Adams, 1987). Assim, se o feedback intrínseco é de domínio exclusivo do aprendiz, a
outra fonte de conhecimento sobre o erro - FE - é externamente controlada por agentes
como professores, colegas, experimentadores, gravações em vídeo ou computador.
O FE auxilia o aprendiz a reduzir o desvio entre o que foi planejado e o que foi execu-
tado (Tani, 1989). Juntamente com a prática, ele poderia ser considerado uma das fon-
tes de ordem para o sistema (Meira Júnior, 2005; Cattuzzo & Tani, 2009). Essa
informação adicional sobre o erro tem o potencial de auxiliar na interpretação das in-
formações naturalmente disponíveis ao aprendiz, já que age fornecendo uma refe-
rência, ou uma checagem confiável para o praticante, a fim de assegurar que os dados
do feedback intrínseco estão sendo corretamente processados. Além disso, o FE tam-
bém funciona como um importante agente motivador durante a aprendizagem de
habilidades motoras (Salmoni, Schmidt & Walter, 1984; Lee, Keh & Magill, 1993).
Pesquisas laboratoriais têm confirmado, reiteradamente, o efeito positivo do FE,
mas também tem sido evidenciado que o poder explicativo desse efeito pode sofrer
limitações em virtude de questões metodológicas, como por exemplo, a capacidade
do protocolo experimental para separar as mudanças no comportamento motor que
são permanentes das que são transitórias (Russel & Newell, 2007; Salmoni, Schmidt
& Walter, 1984), a falta de controle da quantidade de prática (Lee, Keh e Magill,
1993) e até mesmo conclusões de efeitos positivos baseados em resultados pouco
consistentes (Kluger & De Nisi, 1986).

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Os resultados de pesquisas laboratoriais, as quais primam pela validade interna,


podem subsidiar importantes hipóteses sobre o FE em situações mais próximas do
mundo real. No entanto, deve ser levado em conta que da descrição e explicação
fornecidas pela pesquisa básica até se chegar aos procedimentos para solucionar
problemas da prática profissional, existe um longo caminho a ser percorrido (Tani,
2001; Tani & Corrêa, 2004; Tani, Dantas & Manoel, 2005).
De acordo com Lee, Keh e Magill (1984), fundamentados em pesquisas laboratoriais
da aprendizagem motora e em situações de sala de aula, pesquisadores e professores
têm aceitado o FE como um elemento essencial para a aprendizagem e para o en-
sino. No entanto, eles sugerem que o construto do feedback precisa de mais estudos
antes da completa compreensão de sua natureza e significado.
Uma meta análise sobre os efeitos dos vários tipos de FE foi realizada por Kluger e De-
Nisi (1986). Eles incluíram estudos de intervenção de FE com ao menos um grupo
controle, com medidas de desempenho e que incluíssem ao menos 10 participantes.
Os resultados sugeriram que: a) o feedback é mais efetivo quando fornece informações
sobre respostas corretas, mais do que sobre as incorretas; b) o impacto positivo do FE,
porém, é modulado pela dificuldade das metas e complexidade das tarefas, principal-
mente quando as metas são específicas e desafiantes, mas a complexidade da tarefa
é baixa; c) FE em forma de elogios não se mostrou efetivo, o que não surpreende, uma
vez que ele contém pouca informação relacionada à tarefa; d) a efetividade do FE tam-
bém está relacionada à baixa ameaça à auto-estima, presumivelmente porque essa
condição permite que a atenção seja concentrada na tarefa.
Fundamentados nos resultados desta meta análise, Kluger e DeNisi (1986) propu-
seram uma teoria sobre o efeito da intervenção com FE. A suposição central dessa
teoria é que esse feedback muda o foco da atenção entre três níveis que são hierar-
quicamente organizados: de aprendizagem da tarefa, motivação e processos meta
cognitivos e afetivos. A teoria foi testada e os resultados sugeriram que a efetividade
da intervenção do FE diminui à medida que a atenção se aproxima dos processos
meta cognitivos e afetivos e se distanciam do nível relacionado ao desempenho da
tarefa. Os autores, no entanto, considerando que os resultados sobre a intervenção
do FE são modulados pelas características das tarefas, afirmam que o efeito da in-
tervenção com feedback ainda carece de muitas investigações.
Com o objetivo de examinar a literatura, a partir da perspectiva da pedagogia da
Educação Física, para determinar o estado do conhecimento e orientar a pesquisa
sobre o feedback fornecido pelo professor, Lee, Keh e Magill (1993) apontaram al-
gumas características das investigações sobre esse tema. Eles notaram que os mar-
cos teóricos utilizados em tais pesquisas são diversos, dependendo da pergunta de
pesquisa; também notaram que muitos pesquisadores têm desenvolvido seus pró-
prios sistemas de observação multidimensionais para descrever a forma, a direção,
o tempo, o conteúdo, a relevância e a precisão do FE.
Lee, Keh e Magill (1993) relataram que noutro estudo de revisão (Siedentop, 1991
apud Lee, Keh & Magill, 1993) ficou evidenciado que, tipicamente, o feedback for-
necido pelo professor parece ser razoavelmente freqüente - cerca de 30-60 ocor-
rências num período de 30 minutos. Ademais, embora existam divergências nas
pesquisas sobre o feedback do professor em aulas de Educação Física notou-se que o

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FE geralmente é verbal, na forma de afirmações positivas e não específicas; ele


ocorre em situação de prática/treino mais do que no jogo; é dirigido mais ao indiví-
duo do que ao grupo (Lee, Keh & Magill, 1993).
De acordo com Lee, Keh e Magill (1993), esses estudos de cunho analítico-descritivo
fornecem ricas descrições do comportamento do aluno e do professor, as quais fun-
damentam uma compreensão inicial da natureza e significado do FE. Uma das con-
sequências disso, por exemplo, foi a emergência de estudos com intervenção
manipulando o tipo e a qualidade do feedback, porém mantendo sempre uma alta
frequência, já que havia uma forte crença de que quanto mais feedback, melhor.
O FE é também utilizado como variável na investigação da efetividade do professor.
Lee, Keh e Magill (1993) conduziram sua revisão de literatura a partir de dezesseis
artigos selecionados, obedecendo aos seguintes critérios: (1) o estudo deveria ter
sido realizado numa situação instrucional com um ou mais professores, com uma
ou mais classes ou pequenos grupos de estudantes; (2) o comportamento do pro-
fessor deveria ser medido objetivamente; (3) o desempenho dos estudantes deveria
também ser registrado.
Lee, Keh e Magill (1993) levantaram sérias questões sobre os achados de sua revisão.
Primeiramente, a quantidade apropriada e o tipo de FE deveriam variar não somente
para diferentes habilidades, mas também para diferentes alunos aprendendo a mesma
habilidade. O que parece ser apropriado para promover a aprendizagem de um aluno
pode não ser para outro; conceitualmente, para ter sentido, a pesquisa sobre efeitos do
feedback do professor deveria incluir a percepção dos alunos sobre essa variável.
Nesse particular, um importante aspecto que tem recebido atenção em estudos re-
centes conduzidos em laboratório é o efeito do feedback extrínseco auto-controlado
(Chiviacowsky, & Wulf, 2005; Chiviacowsky, Medeiros & Kaefer, 2007; Chivia-
cowsky, Pinho, Alves & Schild, 2008; Chiviacowsky, Wulf, Medeiros, Kaefer & Tani,
2008; Chiviacowsky, Wulf, Medeiros & Kaefer, 2008; Huet, Camachon, Fernandez,
Jacobs, & Montagne, 2009), no qual o aprendiz tem controle e decide as tentativas
de prática em que receberá essa informação. O conjunto dos resultados permite
apontar que a prática com fornecimento de feedback controlado pelo aprendiz pa-
rece ser mais efetiva comparativamente àquele controlado por uma fonte externa.
Em segundo lugar, Lee, Keh e Magill (1993) assumem que existem muitos riscos
em fazer prescrições para os professores fundamentados em resultados de pesquisas
laboratoriais de Aprendizagem Motora, ou em resultados de estudos em sala de aula
de outras áreas do conhecimento. No primeiro caso a pesquisa conduzida em am-
bientes controlados tem limites na generalização de seus achados para ambientes
sociais complexos, que tratam com múltiplas variáveis intervenientes. No segundo
caso, a transferência de resultados entre áreas de conhecimento, pode ser especial-
mente problemática dada a especificidade dos objetivos da Educação Física.
Finalmente, Lee, Keh e Magill (1993) acreditam que em algumas situações, a habili-
dade motora pode ser aprendida sem o feedback do professor. Se os alunos têm certa
base de conhecimento e desejam trabalhar para produzir seu próprio feedback, a infor-
mação sobre o erro vinda do professor pode não ser necessária. Segundo esses autores,
pesquisadores e teóricos da aprendizagem motora estão ainda começando a se pergun-
tar se o FE é essencial para a aprendizagem de habilidades motoras como se acreditava.

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As investigações sobre os efeitos do FE na aquisição de habilidades motoras, em si-


tuações de laboratório, têm sido realizadas em relação a vários aspectos como, por
exemplo, grau de precisão, interpolação de atividades, faixa de amplitude ou tole-
rância de erro, quantidade de CR em diferentes estágios de aprendizagem, comple-
xidade da tarefa e, mais intensamente, frequência (Blischke, Marschall, Müller &
Daugs, 1999; Chiviacowsky, 2000; Chiviacowsky & Tani, 1993, 1997; Lustosa de
Oliveira, 2002; Lustosa de Oliveira, Corrêa, Gimenez, Basso & Tani, 2009; Magill,
1994; Meira Júnior, Barrocal, Perez, Gomes & Tani, 2006; Tani, Meira Júnior &
Gomes, 2005; Swinnen, 1996; Wulf, Hörger & Shea, 1999; Wulf, Lee & Schmidt,
1994; Wulf & Schmidt, 1989; Wulf, Schmidt & Deubel, 1993; Wulf, Shea & Mats-
chner, 1998).
Em relação à frequência de FE, tem-se verificado que frequências menores são mais
eficazes para a aprendizagem do que frequências altas (Chiviacowsky & Tani, 1993,
1997; Lustosa de Oliveira, 2002; Lustosa de Oliveira, Corrêa, Gimenez, Basso &
Tani, 2009). Resultados como esses têm sido explicados no sentido de as menores
frequências possibilitarem ao aprendiz a utilização do feedback intrínseco que, por
sua vez, possibilita o desenvolvimento da capacidade de detecção e correção de
erros. Isso reflete em uma menor dependência em relação ao FE (Salmoni, Schmidt
& Walter, 1984).
Em suma, mediante os achados de sua revisão, Lee, Keh e Magill (1993) concluíram
que, ainda que se conheça bastante sobre o padrão típico de feedback do professor
de Educação Física, pouco é conhecido sobre os seus efeitos concretos no sucesso
dos alunos. O professor frequentemente fornece feedback relacionado ao desempe-
nho do aluno durante a prática, mas muitas vezes ele não tem efeito significativo,
podendo até mesmo ser prejudicial na aprendizagem da tarefa motora. Eles afir-
mam que os achados são inconsistentes e nem sempre dão suporte ao FE como um
elemento essencial em situação de ensino-aprendizagem.
Considerando o FE como um dos fatores mais influentes na aprendizagem e desem-
penho de habilidades motoras, Hattie e Timberley (2007) fizeram uma análise con-
ceitual do FE e uma revisão das evidências de estudos realizados. Embora a revisão
parecesse confirmar o potencial do FE em provocar mudanças no comportamento
dos aprendizes, os autores concluíram que o tipo do feedback e a maneira como ele
é fornecido podem provocar diferenças na sua efetividade em sala de aula.
Conceitualmente, de acordo com Hattie e Timberley (2007), FE é um fenômeno bas-
tante abrangente e contextual. Para eles FE é a informação extraída a partir do de-
sempenho, vinda de um agente externo como, por exemplo, professor, colegas,
livros, pais, o próprio aprendiz. Um professor ou pai pode dar uma informação corre-
tiva sobre o erro; um colega pode fornecer uma estratégia para corrigir o erro; um livro
pode dar informação que esclareça as idéias sobre o desempenho; um pai pode forne-
cer encorajamento; e o próprio aprendiz pode também se um agente ao buscar e ava-
liar a correção do erro. Além disso, eles enfatizam que FE não ocorre no vazio: para
ser poderoso em seu efeito deve haver um contexto de aprendizagem para o qual a
informação sobre o erro é dirigida. Em suma, Hattie e Timberley (2007) conceituaram
o FE como uma informação que o aprendiz pode confirmar, adicionar, sobrescrever,
sintonizar ou reestruturar a informação que está na memória, seja essa de domínio

49
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do conhecimento, conhecimento meta cognitivo, crenças acerca de si mesmo ou das


tarefas, além de informações sobre táticas e estratégias cognitivas.
Utilizando os resultados de doze meta análises sobre FE, Hattie e Timberley (2007)
afirmaram que ele é, claramente, um poderoso fator que afeta a aprendizagem, mas
também notaram considerável variabilidade, indicando que alguns tipos são mais
influentes do que outros. Os maiores efeitos envolviam alunos recebendo informa-
ção sobre o erro acerca da meta da tarefa e dicas ou reforço de como torná-la mais
efetiva, e utilizar vídeo ou computador; os efeitos mais baixos foram relacionados
ao feedback em forma de elogios, recompensas e punição.
A partir de seus achados, Hattie e Timberley (2007) propuseram um modelo iden-
tificando três principais questões feitas pelo professor e/ou aluno: (1) “O que eu
tenho que fazer?/Quais são as metas?”; (2) “Como eu estou indo?/Qual progresso
está sendo feito em direção à meta?”; (3) “O que devo fazer na próxima vez?/Quais
atividades necessitam ser feitas para melhorar o progresso?
As respostas a essas questões facilitam a aprendizagem quando existe discrepância
entre o que foi compreendido e o que era para ser compreendido. Isto pode aumen-
tar o esforço, motivação ou engajamento para reduzir tal discrepância e/ou aumen-
tar a busca do processo que leva a tal compreensão. De acordo com Hattie e
Timberley (2007), o maior objetivo do processo educativo seria auxiliar o aprendiz
a identificar as divergências entre: “Como eu estou indo?” relativo a “Como eu de-
veria estar indo?” e fornecer suporte na forma de alternativas ou passos sobre “O
que fazer em seguida?”
Enfim, para Hattie e Timberley (2007), FE quando focaliza a auto-regulação é po-
deroso na medida em que leva a um maior empenho, ou investir mais esforços na
tarefa para aumentar a auto-eficácia. Quando FE chama a atenção para os processos
regulatórios necessários para se envolver com uma tarefa, a crença dos aprendizes
sobre a importância do esforço e suas concepções de aprendizagem podem ser mo-
duladores importantes no processo de aprendizagem.
Em suma, mesmo considerando que o feedback do professor não necessariamente é
essencial para o sucesso do aluno, os autores revisados enfatizam a necessidade de
maiores estudos antes que se possa estabelecer princípios sobre a efetividade do feed-
back no cotidiano da sala de aula. Mesmo considerando as divergências existentes
entre suas propostas teóricas, alguns dos indicativos sobre a intervenção com FE
podem ser sintetizados: a) parece haver uma concordância de que o efeito positivo do
FE está relacionado à meta da tarefa, ou seja, a contextualidade da informação sobre
erro parece produzir mais efeitos positivos no comportamento do aprendiz; b) pode
ser apontado que o efeito do feedback relaciona-se ao esforço cognitivo no uso da in-
formação sobre o erro, mais do que quando essa informação é usada apenas como um
agente motivador; c) parece haver uma tendência clara em relacionar o FE às estraté-
gias cognitivas de concentração da atenção na tarefa a ser aprendida.

3. Considerações finais
Pesquisas sobre os fatores que afetam a aquisição de habilidades motoras têm reve-
lado interessantes achados que podem contribuir para aprimorar a intervenção pro-
fissional em Educação Física. Afinal, entre um profissional que ensina habilidades

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motoras sem nenhum conhecimento de como ocorre a sua aquisição, e aquele que
o faz tendo uma noção dos processos envolvidos, deve haver diferença nos seus pro-
cedimentos didáticos (Tani, 2001).
No entanto, como foi discutido, os conhecimentos acerca do processo de aquisição
de habilidades motoras não nos dizem como elas devem ser ensinadas. Estabelece-
se, desta forma, um aparente dilema que reclama por uma solução prática: como
fazer com que esses conhecimentos tenham uma contribuição mais direta e efetiva
para melhorar a intervenção, seja na perspectiva do ensino, do treino ou da reabi-
litação? Três alternativas podem ser pensadas: a) a realização de pesquisas que, com
base nos conhecimentos sobre como o ser humano aprende habilidades motoras,
busquem métodos mais eficientes de ensinar habilidades motoras, ou seja, pesqui-
sas aplicadas; b) a realização de pesquisas de integração e síntese de conhecimentos,
em que a preocupação central seja a verificação experimental da aplicabilidade dos
conhecimentos, princípios e hipóteses derivados da pesquisa básica numa situação
real de prática profissional (para maiores detalhes, veja, Tani, 2006; Tani, Dantas &
Manoel, 2005). Esses dois tipos de pesquisa envolveriam uma co-participação de
acadêmicos e profissionais que efetivamente atuam na intervenção, pois procura-
riam sintetizar tanto conhecimentos acadêmicos como práticos e caracterizariam
um tipo de pesquisa em que é preciso conciliar ganho em validade ecológica com
certa perda em fidedignidade (veja, por exemplo, Freudenheim & Tani, 1998; Públio
& Tani, 1993; Públio, Tani & Manoel, 1995). Acredita-se que os resultados desse tipo
de pesquisa, em que a validade ecológica é enfatizada, podem ser transportados para
a situação de prática profissional com maior facilidade; c) a utilização desses conhe-
cimentos básicos na intervenção como hipóteses operacionais a serem testadas no
cotidiano da prática profissional. Essa última alternativa constitui a estratégia mais
rápida de aproximação entre a Aprendizagem Motora e Educação Física, com o
ganho adicional de contribuir para uma mudança de atitude dos profissionais, de
disseminador de conhecimentos prontos e acabados para pesquisador que testa hi-
póteses operacionais de intervenção. Como se sabe, essa atitude é altamente requi-
sitada em qualquer profissão na sociedade contemporânea e se constitui uma das
metas do próprio processo de formação profissional.

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A saúde e o papel interventivo da educação física


em países africanos. Uma reflexão breve
António Prista
Faculdade de Educação Fisica e Desporto, Universidade Pedagógica, Moçambique

Introdução
Embora seja corrente a ideia, bem arreigada no nosso padrão cultural, da “mente sã
em corpo são”, a verdade é que nunca o papel do exercício físico na saúde tem sido
tão exacerbado como nas duas últimas décadas. Num mundo actualmente desig-
nado de “globalizado”, mas simultaneamente bem diferenciado por enormes cliva-
gens sócio-económicas e culturais, a Educação Física tem sido chamada, não sem
controvérsia, e pelo menos em teoria, a desempenhar um papel relevante na saúde
das populações de diferentes estratos etários, naquilo que actualmente se designa
por construção de estilos de vida activos e saudáveis.
Por razões óbvias, toda a estrutura conceptual e operativa desta nova vaga de Epi-
demiologia da Actividade Física tem partido, sem qualquer sombra de dúvida, das
transformações económicas, sociais, urbanísticas e tecnológicas ocorridas nos países
designados de desenvolvidos, particularmente nos Estados Unidos e na Europa do
norte e do centro. De uma forma ou de outra, e no que diz respeito à educação for-
malizada, é esta nova forma de perspectivar a educação para a saúde, sobretudo a
partir dos olhares da Epidemiologia e da Saúde Pública que se tem espalhado por
todo o mundo. Um exame breve, mas inequívoco, dos objectivos e conteúdos des-
critos nos programas de educação física de distintos países do planeta não revela
grandes diferenças. Contudo, é importante ressaltar que, não obstante o conside-
rável avanço da uniformização de modelos sócio-económicos, o mundo (ainda) se
caracteriza por uma acentuada variabilidade cultural inquestionável, qualquer que
seja a óptica de leitura. À partida este facto parece conter um paradoxo: como é que
em sociedades culturalmente distintas se encontram propostas de solução aparen-
temente tão homogéneas?
No âmbito desta breve reflexão, a questão essencial que colocaremos é saber se, em
contextos sócio-geográficos e culturais tão diversificados, caberá à educação física
um papel muito uniforme na sua associação à saúde. Este texto, muito breve, pre-
tende apresentar algum pensamento sobre o papel da educação física na saúde em
países economicamente menos desenvolvidos. Esta “viagem” será marcada por dois
pilares: (1) o referente a fatias muito importantes e altamente generalizadas do es-
tado actual do conhecimento e, (2) a nossa experiência de investigação de carácter
epidemiológico e antropológico em Moçambique.

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O papel tradicional da educação física


Um olhar brevíssimo aos primórdios da história da Educação Física e Desporto ob-
riga a remontar cerca de 10 mil anos atrás quando se assistiu, gradualmente, a uma
sedentarização dos povos nómadas que se transformavam, lentamente e ao sabor
de circunstâncias de natureza ambiental e pressões gregárias, de caçadores-colec-
tores em agricultures-criadores de gado (Lorens, 1974; Cashmore, 1990). Sugere-se
que ao deixar de desenvolver actividades fisicamente exigentes e intensas como
caçar, por exemplo, os homens começaram a dedicar uma fatia importante do seu
tempo diário a actividades físicas não directamente utilitárias e que se inspirariam
nas tradicionais actividades de caça. A associação desta transformação da estrutura
social à natural componente lúdica humana terá gerado um crescente papel socio-
educativo do jogo (desporto) que lhe conferiu vários papéis profundamente inte-
grados na estrutura de cada sociedade.
A atribuição da origem do desporto à Grécia antiga, onde os Jogos Olímpicos se cons-
tituíram como um papel de extrema relevância, parece ser um pouco determinada
pela importância histórica que se atribui a essa civilização, que se repercute até aos
dias de hoje em múltiplos aspectos da actividade humana. Embora não haja dúvidas
acerca do interesse e importância de estudo e repercussão na educação física do des-
porto perspectivado na Grécia antiga, parece-nos no entanto existir um exagero
acentuado que conduz a uma restrição de outros olhares relevantes, sobretudo de
contextos sócio-geograficamente diversos dos que mais foram influenciados pelo
“milagre grego”.
A educação física em áfrica, por exemplo, antes da colonização europeia e numa
grande parte de sociedades actuais que permanecem estruturalmente sob a forma
tradicional, não encontra na literatura científica qualquer referência. Um olhar
breve, mas imparcial, pela literatura da história e sociologia do desporto e da edu-
cação física conduz o leitor quase que exclusivamente à descrição e sistematização
do conhecimento do que se passou e passa nos denominados países ocidentais. Os
conceitos, as teorias e as formas de operar desses países acabam criando raízes em
quase todas as práticas educativas formais dos outros países, incluindo os denomi-
nados de países “não desenvolvidos”. Assim, e embora as sociedades comportem
em si aspectos culturais e papéis precisos relativos ao jogo e ao execício físico, a edu-
cação física formal apresenta-se inquestionavelmente globalizada.
Tendo em mente esta importante consideração, a educação fisica, conforme é des-
crita nos manuscritos, tem assumido papéis distintos associados a momentos his-
tóricos e sociais. Preparação militar, preocupações estéticas e instinto lúdico
combinam-se de diferentes formas em função do espírito do tempo, características
sócio económicas e culturais. É, contudo, no século XX que a formalização da edu-
cação física se estabelece de modo mais sólido e consistente, acompanhando o de-
senvolvimento industrial. E é nessa altura que, para além de aspectos de preparação
militar e estética, a preparação desportiva emerge de forma inequívoca e avassala-
dora. Da ginástica de Ling e dos jogos educativos, a educação física transforma-se
em disciplina de preparação e ensino dos desportos convencionais.
A revolução tecnológica observada nos países industrializados, que emerge de
forma exponencial nas duas últimas décadas do século XX, induz uma alteração

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abrupta nas preocupações sociais relativamente ao exercício: a sedentarização cres-


cente combinada com a melhoria de condições higiénico-sanitárias altera, nestes
países, o panorama epidemiológico. Das doenças infecto-contagiosas como factores
de morbilidade e mortalidade de primeiro plano, passa-se abruptamente para o cres-
cimento das patologias crónicas, das quais se destacam as doenças cardiovasculares.
Esta transfomação é atribuída a um conjunto de factores de onde sobressai as alte-
rações alimentares e a diminuição dos hábitos de actividade física de níveis mode-
rados a elevados.
No início, a controvérsia estabeleceu-se em torno da atribuição do papel ao principal
responsável pela alteração do panorama epidemiológico: inactividade física ou so-
brealimentação, qual deles o “vilão”? Posteriormente, com os avanços no domínio
da Genética, a interacção destes dois factores com a heredeteriedade passou a cons-
tituir um novo foco de investigação. Este assunto será abordado, tangencialmente,
mais adiante.
Indepentemente de toda a controvérsia acerca do papel da educação física na saúde,
assiste-se a um novo figurino de intervenção que colocou aspectos prioritários da
educação física em segundo plano. A ordem de importância alterou-se por força de
condicionalismos que ou escaparam aos educadores, ou estes não perceberam face
às novas realidades epidemiológicas. Prevenir as doenças do foro hipocinético passou
a constituir um assunto prioritário da educação física. A forma como este papel pode
ser desenvolvido e a sua interacção com todos as outras facetas que envolvem a os
conteúdos e alcances da educação física tem sido bem controversa. Contudo, e para
que fique bem claro, adoptar um pensamento que radicalize a educação física num
plano educativo alheio às realidades das sociedades actuais em termos de saúde in-
fanto-juvenil é hoje considerado uma atitude e forma de estar algo heréticas.

O “paradigma” da actividade física associada à saúde


Quase todo o cidadão urbano tem como adquirido que o exercício físico é funda-
mental na preservação da saúde, mesmo sabendo que menos de metade da popula-
ção não pratique regularmente nenhuma actividade de nível moderado-a-elevado
(i.e., que sejam sedentários). Esta noção, bem impregnada em muitas sociedades
actuais, tem muito pouco tempo de existência. Tal como referimos anteriormente,
brotou de uma sedentarização exponencial induzida pela revolução tecnológica.
A alteração do panorama da mortalidade e morbilidade nos países desenvolvidos
alterou o papel socialmente atribuído à educação física. A constatação gradual de
que doenças como a diabetes, hipertensão, lipidemias, ansiedade, determinados
tipos de cancro, entre outras, foi um dos grandes motores que estão na origem do
conceito de aptidão física associada à saúde (Maia, 1997). Este conceito fundamenta-
se em evidências epidemiológicas, clínicas e laboratoriais de que determinado tipo
de doenças podem aumentar ou diminuir a sua prevalência pela ausência ou pre-
sença de prática regular e sistemática de exercício físico.
A constatação de que a partir das últimas décadas do século passado se alterou o re-
conhecimento do papel da educação física no plano da saúde pode ser ilustrada pela
consulta das bases de dados das publicações científicas. Por exemplo, na base Pub-
med (www.pubmed.org), provavelmente a maior base de dados existente sobre pu-

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blicações de saúde, verificamos o seguinte: comparando as publicações até e depois


de 1980, e introduzindo palavras-chave como “actividade física e saúde”, são lista-
das 35 vezes mais publicações no período pós 1980 relativamente ao período ante-
rior a esse ano. Em proporção, esses artigos passaram de 0,04% para 2% do total de
artigos com a palavra “health”. Se introduzirmos a palavras “educação fisica e
saúde” e compararmos os mesmos períodos, verificamos um aumento de 12 vezes
o número de artigos listados. Contudo, a quase totalidade dos artigos advêm de po-
pulações de países industrializados. Apenas 0,17% mencionam, de alguma forma,
países não desenvolvidos. Estes dados ilustram as alterações do reconhecimento do
papel da educação fisica na saúde, mas salientam, também, o facto da temática ser
quase que exclusiva de países desenvolvidos.
Conforme mencionamos anteriormente, o papel da actividade física na saúde é fun-
damentado por múltiplas evidências. É interessante verificar que esse papel come-
çou a ser reconhecido mais pela manifestação dos efeitos da inactividade física que
pela actividade em si mesma. Parece que, até ao crescimento abrupto das sociedades
com forte tendência para o sedentarismo, quase ninguém tinha reparado muito
bem que a actividade física de nível moderado-a-intenso, de carácter sistemático
constituía um elemento essencial no quotidiano do homem. Esta “falta de atenção”
talvez se deva ao facto de que andar, correr, saltar e lançar, por exemplo, sejam ac-
tividades tão naturais cuja associação à sobrevivência humana as tornam quase “in-
visíveis” para alguns olhares.
A necessidade e urgência em estruturar e operacionalizar conceitos não escapou à
relação que se estabelece entre actividade física e saúde. Num esforço de contrariar
o efeito da inactividade física, e consequente decréscimo da aptidão fisica, rapida-
mente se estabeleceu um conceito de aptidão fisica associado à saúde bem como se
estrutaram factores e componentes (Bouchard e col., 1988). Foram imediatamente
“eleitos” como componentes da aptidão cardiorespiratória pela sua relação com
doenças cardiovasculares, a flexibilidade ficou adstrita à sua associação a lesões
musculo-articulares, a resistência muscular à sua relação com a funcionabilidade e
protecção articular, particularmente a coluna lombar. A estas componentes, que
tradicionalmente já faziam parte das compoentes da aptidão fisica associada ao ren-
dimento corporal, juntaram-se outras até então impensáveis e inadmissíveis no
mundo médico: a composição corporal e a aptidão metabólica ou fisiológica.
A composição corporal, cujo indicador mais importante é a percentagem de gordura
do corpo, passou a traduzir o “estado de uma parte importante do peso relativa-
mente ao seu total”. Em termos genéricos, quanto mais gordura um indivíduo tem
relativamente ao resto da massa corporal, maior é a sua desvantagem em termos de
performance e de saúde cardiovascular. Ou seja, da mesma forma que a aptidão car-
diorespiratória, a flexibilidade e a resistência muscular, a composição corporal fa-
vorece ou prejudica, em simultâneo, a performance corporal e a saúde. No que
respeita à aptidão fisiológica, a ideia foi a de agrupar indicadores fisiológicos, como
a tensão arterial, a glicemia sanguínea, os triglicerídeos, o colesterol, entre outros,
num grupo de indicadores que, podendo ser alterados por níveis elevados de acti-
vidade física e a condição física de um indivíduo, seriam igualmente indicadores de
saúde associados ao exercício físico.

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Estas ideias tiveram grandes repercussões no pensamento actual do mundo da edu-


cação física. Rapidamente a ideia de desenvolver programas de “actividade física”
com um foco na saúde fisiológica de crianças, jovens, adultos e idosos tomou corpo
e espalhou-se pelo mundo e instituições. O crescimento da prevalência do sobre-
peso, obesidade e suas comorbilidades determinou uma nova “moda” na educação
física que se repercute, actualmente, nos programas traçados a todos os níveis.

A aptidão física associada à saúde em países Africanos:


expressão e implicações da subnutrição
Quando por volta de 1990 se iniciou a pesquisa formalizada na área da educação fí-
sica em Moçambique, o país possuía um PIB per capita de aproximadamente 100
US$ o que lhe conferia um lugar entre os países mais pobres do mundo. Este estado.
embora estivesse associado ao fim do período colonial, era determinado por uma
guerra que inviabilizava a produção e organização do país. Sendo assim, a diferença
entre cidade e campo, embora existente, não era muito acentuada como posterior-
mente passou a ser. A cidade capital, caracterizava-se por pela existência reduzida
de tráfego viário, falta de artigos de consumo, inexistência de electrónica lúdica,
entre outros aspectos que, fazendo parte da vida quotidina das cidades do primeiro
mundo, não se observavam no Maputo de então. As crianças brincavam essencial-
mente na rua e os jogos eram extremamente activos (Prista e col., 2000). Os pro-
gramas de educação física não deixavam contudo de ter como objectivos o
desenvolvimento de componentes da aptidão física associada à saude. A questão
que se colocava na altura era a da pertinência destes programas. A pesquisa nesse
sentido revelou que as crianças de Maputo eram extremamente aptas em todas as
componentes que não dependessem do tamanho corporal (Prista e col, 1997). Foi
demonstrado que esses níveis de aptidão estavam associados aos jogos activos e às
tarefas de sobrevivência diária como pilar, acartar água, ir à machamba, além do
andar ser o meio priveligiado de deslocação. Não fazia muito sentido que os progra-
mas de educação física tivessem uma concentração elevada no desenvolvimento
de capacidades em que as crianças e os jovens mostravam elevada competência.
Mas os programas eram mesmo assim.
A grande preocupação em Saúde Pública nos países Africanos, como é o caso de Mo-
çambique é, inequivocamente, a que se refere às doenças infecto-contagiosas. Ma-
lária e tuberculose ocupam o lugar dianteiro às quais se associam agora o HIV-SIDA.
As razões prendem-se, necessariamente, a condições higiénico-sanitárias e alimen-
tação. A erradicação da pobreza, processo pelo qual passa necessariamente um in-
vestimento gigantesco na educação, parece ser a única forma eficaz de o resolver.
A não ser por excesso de demagogia, não existe qualquer evidência que nos permita
afirmar que a educação física possa contribuir para a erradicação das doenças in-
fecto- contagiosas e suas causas. Embora numa estratégia global bem deliniada
possa pensar- se em alguns aspectos educativos cujo meio possa ser a educação fí-
sica, não faz qualquer sentido pensar-se que o desporto possa ser um veículo eficaz
para combater a malária, por exemplo. Contudo, a educação física tem objectivos e
potencialidades que são necessárias a qualquer criança de uma qualquer parte do
mundo, inclusive as que vivem em zonas endémicas destes tipos de doenças. Assim,

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um conhecimento mais extenso da criança Moçambicana tem que passar, necessa-


riamente, por um conhecimento mais sólido d as implicações do seu meio am-
biente, características específicas das regiões e pessoas com quem vive. O
delineamento de programas de educação física não pode alhear-se da criança e
jovem a quem se destina, do seu meio e caracteristicas específicas. Exige-se, pois,
uma atitude mais multifacetada e coerente com o seu legado socio-cultural.
Uma das principais consequências das deficientes condições higiénico-sanitárias e
nutricionais de muitas regiões Africanas é a redução do crescimento estaturo-pon-
deral. Exactamente por isso, a medição e atribuição de significado aos valores da al-
tura e do peso em relação à altura são indicadores eleitos para monitorização das
crianças (Tanner, 1986). A relevância deste indicador levou James Tanner, um dos
mais conceituados investigadores do crescimento infantil a afirmar que “o estado
de crescimento da população de um país é melhor indicador bem mais adequado do
seu desenvolvimento do que o seu produto interno bruto”. Na verdade, o PIB de um
país indica quanto esse país produz mas não de que maneira a população desse país
utiliza essa produção e distribui a riqueza gerada. Por seu turno, a avaliação de um
indicador como a altura em função da idade (cujo valor abaixo da taxa normal define
uma condição nefasta que se designa de “stunnting”), expressa a variabilidade nas
condições alimentares e higiénico-sanitárias como sejam o acesso a alimentação
adequada, serviços de saúde, meio higiénico, saudável e outras condições que de-
terminam a saúde e bem-estar.
A relevância deste indicador é surpreendemente elevada quando se avalia o cresci-
mento das crianças até aos 5 anos de idade. Experimentamos representar grafica-
mente a taxa de mortalidade à nascença de países com distintos PIB´s per capita e
comparamos os valores com a prevalência de “stunting” desses países de crianças
com menos de 5 anos (figura 1). De forma impressionante, as linhas de prevalência
de “stunting” e a taxa de mortalidade à nascença sobrepõem-se, indicando uma ele-
vada tendência entre os dois indicadores, o que sugere uma forte associação. A sim-
ples avaliação da altura das crianças pode assim constituir um instrumento de
elevada utilidade para avaliação individual e epidemiológica das condições da po-
pulação em cada região.

Figura 1: Taxa de nados/mortos por mil partos (A) e prevalência de “stunting” (B) em
crianças até aos 5 anos em países de diferentes PIB´s (observe-se o paralelismo das li-
nhas nos dois indicadores)

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Embora a validade deste indicador (a altura) em crianças de idade escolar seja con-
troverso (Prista et al, 2003), a população Africana nesta faixa etária apresenta-se,
relativamente às restantes, com uma elevada taxa de “stunting”. Em Moçambique,
forma observadas taxas de “stunting” em idade escolar com grande variabilidade
em função do período de avaliação, classe social e região amostrada (campo e ci-
dade), sendo impossivel estabelecer valores nacionais. Por exemplo, os valores mé-
dios de altura das crianças e jovens urbanos de classe social priveligiada situam-se
acima do percentil 50, enquanto que os seus pares urbanos de classe social desfa-
vorecida situam-se por volta do percentil 25; as crianças e jovens de uma zona rural
têm valores médios abaixo do percentil 10. Esta observação expressa, inequivoca-
mente, o resultado da exposição a condições diversificadas do ponto de vista sócio-
económico, social e de saúde.
Concomitantemente com este estado de crescimento desigual, a actividade física
habitual das crianças mais desfavorecidas é extremamente mais intensa, assim
como alguns aspectos do seu rendimento corporal (Prista et al, 1997; 2009). Por
exemplo, a aptidão cardiorespiratória das crianças dos subúrbios de Maputo era
signficativamente superior à dos seus pares de classes priveligiadas apesar de apre-
sentarem maior incidência de “stunting. Ou seja, a expressão da relação da saúde e
da performance corporal não deve realizar-se de forma linear, mas sim através de
redes mais complexas de interacção de múltiplos factores. Esperar-se-ia que crian-
ças e jovens classificados de mal nutridos apresentassem deficiências ao nível da
aptidão física, o que não aconteceu. Provavelmente existem níveis de malnutrição
a partir dos quais isso será inevitável, o que não parece ser o caso das crianças de
Maputo. Por outro lado, as tarefas de sobrevivência e os jogos ao ar livre parecem
ter exercido um estímulo na prestação corporal que se sobrepõe, no caso da aptidão
fisica, aos efeitos nefastos do défice do crescimento estaturo-ponderal.
Estas e outras especificidades da realidade Africana não podem ser desprezadas na
definição de programas de educação física. A cópia mecânica dos programas “glo-
balizados” chega a atingir o absurdo. A grande variabilidade e as especificidades im-
põem uma avaliação criteriosa que permita uma definição contextual na
intervenção em educação física, sem se abandonar, em nenhum momento, aquilo
que poderemos designar de conhecimento factual bem consolidado em diferentes
realidades.

Urbanização e factores de risco: o crescimento da obesidade e comorbilidades


Nos finais do século XIX, as principais causas de morte na Europa eram as as pato-
logias infecto-contagiosas expressas pelas doenças agudas respiratórias, diarreias
infantis e tuberculose. Cem anos depois, a mortalidade na Europa é liderada pelas
doenças do foro cardiovascular e o cancro. Em áfrica, tal como no início do século
XX na Europa, as doenças infecto-contagiosas continuam a liderar as causas de
morte. Contudo, os indicadores estão a mudar. O panorama epidemiológico Afri-
cano no início do século XXI apresenta características jamais observadas, nomea-
damente pela manutenção das taxas de prevalência das doenças infecto-conta-
giosas, em simultâneo com o crescimento dos factores de risco de doenças não
transmissiveis, em particular as doenças do foro cardiovascular. A contribuição dos

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países pobres para os 23% de pessoas com excesso de peso no mundo é já considerá-
vel, e está em pleno crescimento. Dos 396 milhões de obsesos estimados em 2005,
mais de 100 milhões já eram dos paises não desenvolvidos.
As estimativas para áfrica revelam uma evolução negativa, deveras assustadora,
dos factores de risco de doença cardiovascular a todos os níveis. De 2000 para 2030,
o crescimento previsto da prevalência do sobrepeso em áfrica em geral é de 14.9
para 28.7%, e o da obesidade é de 6.6 para 17.5% (Kelly et al, 2008). O crescimento
da diabetes é de 7,1% para 18.6% (Haslem e James, 2005). A hipertensão é já muito
elevada, neste caso por associação a uma forte propensão dos Africanos para valores
altos. Africa está entre as regiões com maior prevalência de hipertensão arterial (La-
wesa et al, 2006). Em consequência deste panorama, a estimativa de número de
mortes por doença isquémica na áfrica sub-sahariana aumenta, de 1990 para 2020,
em 125% nos homens e 141% nas mulheres. Por seu turno, a estimativa de alteração
da taxa de mortalidade provocada por acidente vascular cerebral é de 126 e 134%,
respectivamente para homens e mulheres (Yussuf et al, 2001). Isto quer dizer que
o número de mortes por isquemia cardíaca e acidentes vasculares cerebrais vai au-
mentar mais do dobro em áfrica, uma taxa muito superior daquela que se estima
para os países desenvolvidos, mas similar a outras regiões dos chamados países “em
desenvolvimento”.
As estatísticas em Saúde Pública são inequívocas quanto a este panorama. Os países
Africanos, como outros países não desenvolvidos, sofrem um crescimento abrupto
da mortalidade e morbilidade provocadas pelas doenças não transmissiveis. Estes
países são denominados países em transição epidemiológica.
Estudos realizados em Moçambique confirmam este quadro. O fim de vários perío-
dos de guerra, no ano de 1992, marcou uma clivagem no perfil socio-económico de
Moçambique com consequências a todos os níveis. O PIB per capita aumentou em
mais de 3 vezes de 1990 para 2007, repercutindo-se essencialmente numa alteração
de estilo de vida na cidade. De forma muito súbita, a cidade capital, onde se con-
centra uma enorme parte deste crescimento, viu a sua população triplicada, o tran-
sito aumentando exponencialmente, a televisão passando a constituir um produto
massivo com a oferta de dezenas de canais, os jogos electrónicos e os celulares subs-
tituindo os jogos ao ar livre. O espaço livre reduziu drasticamente com o aumento
da densidade populacional e a explosão da construção; os automóveis substituíram
a deslocação a pé, e o computador passou a fazer parte da cultura quotidina de mui-
tos cidadãos. Aliado a uma generalização do “fast-food”, a cidade capital em muitos
poucos anos passou de uma cidade virada para o movimento, para uma cidade virada
para o consumo e sedentária (Saranga et col, 2008).
Vários estudos têm mostrado as consequências deste fenómeno nas crianças de Ma-
puto. A comparação do estado de crescimento, composição corporal desenvolvi-
mento motor e indicadores de saúde da população escolar de Maputo antes e depois
do “boom” urbanístico, ilustra bem as alterações observadas (Saranga et col. 2002,
Damasceno et col. 2002, Prista et al, 2005). Em apenas 7 anos, de 1992 para 1999, a
população escolar de Maputo aumentou a prevalência de sobrepeso de 0 para 4%
nos rapazes e de 2% para 8% nas meninas. No mesmo período, os níveis de aptidão
fisica desceram significativamente em quase todas as componentes, com particular

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relevância na aptidão cardiorespiratória; os níveis de factores de risco de doença


cardiovascular aumentaram. Concomintantemente, os hábitos de actividade, ob-
jectivamente mensurados, revelaram uma queda drástica. Os jogos ao ar livre e
muitas actividades de sobrevivência estão a deixar de fazer parte do quotidiano das
crianças e jovens. De todos os parâmetros medidos nestes estudos, a única notícia
agradável é que as taxas de “stunting” na capital Moçambicana desceram drastica-
mente, no mesmo período, de 34% para 7% nos rapazes e de 25% para 4% nas meni-
nas. Passaram-se já mais 10 anos do período de colecta destes dados. O PIB per capita
de Moçambique alterou-se em cerca do dobro, e as alterações no panorama urba-
nístico de Maputo acentuaram-se exponencialmente. Acredita-se que a situação es-
teja agora muito mais grave.
No caso do adutos Moçambicanos a situação não é muito diferente. O único estudo
conhecido à escala nacional foi realizado no ano de 2005 (Damasceno et al, subme-
tido, Damasceno et al, 2009). Para um país conhecido pelos graves problemas de
sub nutrição e condições higiénico-sanitárias, os dados são surpreendentes: nas ci-
dades, 39% das mulheres e 21% dos homens têm peso a mais do que o indicado como
saudável; na cidade capital, esse número passa para 51% e 26% nas mulheres e ho-
mens, respectivamente; a hipertensão arterial atinge já 33.1% dos Moçambicanos
adultos (31.2%; nas mulheres e 35.7% nos homens). Estes dados, referidos aqui como
exemplo, ilustram claramente o sentido dos problemas de Saúde Pública. Tal como
referimos anteiormente relativamente a áfrica em geral, Moçambique mantém
taxas elevadas de morbilidade e mortalidade por doenças infecto-contagiosas.
Assim, áfrica não está a conhecer uma transformação do panorama epidemiológico
tal como ocorreu na Europa no século passado, mas sim adicionando problemas
novos aos já existentes. Esta tendência está a repercutir-se com um impacto consi-
derável na pressão social sobre a educação física. Os profissionais da área começaram
a ser chamados a intervir na área da saúde preventiva e curativa. A exigência da for-
mação profissional não é apenas para a educação física escolar e o treino desportivo;
é agora, também, na área da actividade fisica e saúde, ou desporto e saúde, como
preferirmos.

Factores que determinam o crescimento da obesidade e comorbilidades


A tentativa de simplificar as razões pela qual o mundo está a conhecer uma verda-
deria pandemia da obesidade, que como vimos está atingir até o continente Afri-
cano, não é em nada facilitada pelo facto de ocorrer por um número elevado de
factores que interagem de forma extremamente complexa. Se listassemos todos
esses factores que podem interagir, entre os que estão associados com ambiente fí-
sico, ambiente social, comportamento e aspectos meramente biológicos deparamos
uma lista de dezenas de indicadores que formam uma rede altamente complexa
que influenciam, de algum modo, o desiquilibrio entre dispêndio e aporte energé-
tico (Quadro 1). Não cabendo, no âmbito deste manuscrito, uma análise exaustiva
desses factores, optamos por nos debruçarmos sobre alguns aspectos que conside-
ramos de primeira importância para a compreensão do problema, e eventual pro-
cura de soluções, em particular, no âmbito da educação fisica.

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Quadro 1. Possíveis factores que agem de modo


aditivo e multiplicativo no aumento da obesidade
Ambiente Físico Ambiente Social Comportamento Biológico
· Urbanidade · Alimentação · Ausência de · Reguladores do
· Densidade recreativa amamentação apetite
populacional · Publicidade · Menos tempo de · Metabolismo
· Poluição ambiental constante AF vigorosa · Termogenese
· Calçado · Acesso aos nutrientes · Abandono do cigarro · Taxa de oxidação
· Tipo de construção · Preço da comida · Nutrição na gestação · Regulatores da
· Automóveis · Politicas agrícolas · Porções maiores adipogenese
· Etiquetas · Maior sedentarismo · Epigenética
· Pressão sobre o · Dietas rigorosas · Regulatores periféri-
sedentarismo · Medicação cos do apetite:
· Fast food · Comida densa · Herdeteriedade
· Comer à pressa
· Menos refeições
em casa

Adaptado de Claude Bouchard

Uma análise evolutiva e generalista conduz-nos á ideia de que, em última instância,


as alterações abruptas na estrutura e composição da alimentação e a mudança de
padrões de actividade física operadas nas sociedades são os princípais responsáveis
pela pandemia das doenças hipocinéticas. Ou seja, alteramos os padrões no sentido
de maior consumo e menor actividade física, e os resultados estão à vista. Esta al-
teração parece estar a operar-se agora de forma abrupta nas cidades africanas, mas
não ainda nas zonas rurais do continente. Contudo, a população urbana Africana
cresce exponencialmente.
Embora possa ser controverso, parece ser razoável admitir que alterações na alimen-
tação e actividade fisica contribuem para este fenómeno. Do lado da alimentação,
os nutrientes com maior teor de açúcar, o aumento do consumo de óleo, aumento
da densidade energética e aumento do consumo animal; do lado da (in)actividade,
a mecanização dos serviços e trabalho doméstico, o tipo de transporte utilizado e o
lazer sedentário (Popkin, 2005).
Muito se tem “falado” sobre propensão genética para a obesidade. Embora haja uma
óbvia variabilidade individual para a propensão no acúmulo de tecido adipososo e
uma maior ou menor taxa metabólica, a observação evolutiva dos hominídeos deixa
poucas dúvidas sobre a grande responsabilidade cultural na actual tendência para
o incremento do sobrepeso e obesidade. Em particular, a observação do homo sapiens
sapiens, mostra-nos uma propensão inequívoca para a actividade fisica (Marlowe,
2005). Tudo indica que, quer do ponto de vista anatómico, quer do ponto de vista
das funções fisiológicas, a nossa constituição genética está concebida para a activi-
dade física moderada frequente, intercalados com períodos de alta intensidade. De-
finitivamente, não somos o resultado de uma longa evolução para caçadores-reco-
lectores para ficarmos sentados diante de um computador, viajar de avião, automó-
vel ou assistindo televisão “horas a fio”. A existência de uma espécie como a nossa,
sem contar sequer de onde vimos antes de passarmos para homo sapiens, está esti-

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mada em vários milhares de milhões de anos. A observação das características cul-


turais da nossa espécie ao longo da história dá-nos uma imagem inequívoca: a re-
volução tecnológica, que nos tornou definitivamente sedentários, tem apenas
algumas décadas enquanto que, em toda a nossa existência de milhares de milhões
de anos, a nossa sobrevivência dependeu da actividade física (Quadro 2). É mais do
que sensato admitir que não foram as últimas décadas que transformaram geneti-
camente o homem de tal forma que nos readaptamos a uma situação ambiental. É
muito mais provável que estejamos desadaptados a este tipo de vida actual e, em
função dessa desadaptação, alteramos drasticamente o panorama das patologias
que nos afligem.

Quadro 2: Marcos culturais na história do homo


sapiens sapiens (adapatado de Marlowe, 2005)

Comportamento Anos de existencia


Uso de ferramentas 2.500 Milhões de anos
Caça regular 1500
Uso do fogo 0.500
Domínio do fogo 0.250
Pesca com arpão 0.075 – 0.080
Ponta da flexa 0.065 – 0.070
Linguagem 0.050
Arte 0.035
Uso do arco e flexa 0.011
Agricultura 0.010
Primeiras cidades 0.007
Escrita 0.0032
Revoluçao industrial 0.0002
Revoluçao tecnológica 0.000025

Podemos assim dizer que a alteração de frequências génicas e emergência de muta-


ções não é concomitante com as súbitas alterações culturais pelo que os nossos genes
continuam adaptados a condições existentes na altura da sua selecção pelos meca-
nismos Darwinianos. Somos caçadores-recolectores deslocados para um mundo di-
ferente (Eaton & Eaton, 2003). No longo período de adaptação que nos conduziu à
nossa actual forma e função, tínhamos de nos movimentar quando a fome se fazia
sentir. Hoje a comida chega aos nosso estômagos sem qualquer esforço físico; não gas-
tamos quase nenhuma energia para comermos e, pelos dados que possuímos, não al-
teramos em grande medida a quantidade de calorias que ingerimos. É verdade que há
cerca de 10 mil anos passamos de caçadores-recolectores para agricultores-criadores
de gado, mas ao que parece, e embora a estrutura alimentar tenha mudado, nem a ac-
tividade fisica nem a ingestão calórica sofreram grandes alterações.
A situação parece ser ainda mais grave pelo facto de, muito provavelmente, sermos
vitimas de uma selecção natural desfavorável para “manter a linha”. Em situações
de privação, como se depreende ser muito frequente no homem primitivo, sobre-
vivem os que conseguiriam acumular mais energia, ou seja, aqueles com maior pro-
pensão genética para uma boa acumulação. Em termos práticos, em situação de

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privacção, os sujeitos com genes propensos a uma maior retenção de energia teriam
mais chances de sobreviver. Se isto aconteceu, os genes da acumulação foram ob-
jecto de selecção. Nesse caso, numa situação de excesso de disponibilidade nutri-
cional, estamos em clara desvantagem. Como bem afirma Drauzo Varela “ Animais
com cérebros forjados em tempos de miséria não podem ter a geladeira cheia, churrasca-
ria, rodízio e disque pizza à disposição” (Drauzo Varela, Borboleta da Alma, pag. 147).
Esta hipótese tem sido seriamente estudada por geneticistas, biólogos, endrocrino-
logistas, entre outros interessados na temática (Chakravarthy and Booth, 2004). A
hipótese dos “thrifty genes”, consiste na possibilidade de existência de genes pro-
pensos a estimular uma maior retenção da energia o que, em situação de uma dis-
ponibilidade excessiva de hidratos de carbono, estaria a provocar não só a pandemia
da obesidade mas, o distúrbio insulinémico e o crescimento da diabetes tipo 2 que
se observa no mundo inteiro. Uma outra faceta, está na observação de que crianças
que nascem de gestações deficientes em termos alimentares, estão a apresentar ní-
veis elevados de distúrbios metabólicos (Cripps e col., 2008), o que traduziria um
problema semelhante. Trata-se de um fenómeno que parece agravar ainda mais o
debilitado estado de saúde pública dos países economicamente desfavorecidos. As
privações na gestação e na infância repercutem-se no estado adulto, também por
uma maior propensão para as doenças não transmissíveis. Isso poderia explicar o
facto de estarem a ser observados maiores níveis de obesidade em crianças que so-
freram o processo de “stunting”.
Em suma, parece que independentemente dos mecanismos específicos, estamos
perante uma desadaptação ao sedentarismo que, tendo uma resposta biológica, pa-
rece ser essencialmente induzido por uma alteração cultural. Os resultados da ava-
liação dos níveis de actividade física de diferentes populações à escala do planeta
conduzem-nos a este facto. Existe evidência que a relação do aporte energético/ac-
tividade física de alterou de 3 para 1, nos tempos ancestrais, para 7 para 1 nas socie-
dade modernas (Saris e col, 2003). Isto quer dizer que, da quantidade de energia
total que se estima um homem médio ingerir, cerca de 1/3 era dispendida em acti-
vidade pelos nossos ancestrais, enquanto que um cidadão urbano de hoje dispende
apenas 1/7 do que come. Se efectuarmos alguns cálculos comparativos, embora gros-
seiros, isto corresponderia a “engordar” aproximadamente 35 kg por ano.
A controvérsia sobre a atribuição do papel de “vilão” das doenças da modernidade
à alimentação e/ou ao sedentarismos parece pender para uma interacção de ambos
mas pendendo, em termos de significado, para a diminuição da actividade física.
Tudo indica que o que acontece é que nos tornamos abusivamente sedentários. Por
exemplo, na Reino Unido, embora o consumo calórico tenha diminuido de 1980
para 2000, a taxa de obesidade no mesmo período continuou a aumentar o que
nos conduz à constatação de que o controlo alimentar não parece resolver por si só
o problema. Definitivamente, a inactividade física tem de ser levada muito a sério
na resolução dos problemas epidemiológicos do século XXI.
Em áfrica, e não obstante a reduzida informação sobre o assunto, tudo indica que a
urbanização e a mecanização dos serviços está a conduzir-nos para um panorama
ainda mais drástico. Por um lado, não foram resolvidos os problemas sócio-ambien-
tais que causam as pandemias das doenças infecto contagiosas; por outro, não se

68
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está a criar infra-estruturas para evitar o novo quadro epidemiológico. A redução


dos espaços livres, as construções sem planeamento urbano, o aumento do crime
urbano, o favorecimento do automóvel e a introdução da televisão e jogos electró-
nicos são apenas exemplos muito palpáveis da situação. Por outro lado, a progressão
do “fast food”, com a sua enorme densidade calórica, é mais do que evidente. A con-
sequência é a que referimos anteriormente.

Das soluções
É consensual pensar-se que uma boa solução para um qualquer problema passa, ne-
cessariamente, pelo reconhecimento e eliminação das suas causas. Mas é também
um dado adquirido que quando, ou enquanto, as causas não têm cura, é necessário
aprender a conviver com as mesmas. Esta estratégia reclama, necessariamente, um
delineamento estratégico adequado. O que não parece ser lógico é querer aplicar
constantemente o mesmo remédio e esperar resultados diferentes. Infelizmente
é isto que se tem feito em relação à obesidade e suas co-morbilidades, um pouco por
todo o mundo. Nas últimas décadas, esta prática estendeu-se com grande incidência
aos países menos desenvolvidos, sobretudo nos países Africanos.
Anteriormente foram identificadas as causas do problema em apreço, em quatro
níveis: espaços físicos, factores sociais, comportamentos e factores biológicos. Um
olhar sintético para cada uma destes níveis revela:

— Ao nível fisico, a urbanização crescente sem qualquer planeamento, ocupando


os poucos espaços existentes, betonizando jardins, parques infantis e campos
desportivos a um ritmo alucinante. As cidades crescem demograficamente ao
mesmo ritmo que os espaços de lazer desaparecem. Assim, a população aumenta
e paradoxalmente a infra-estrutura lúdica-desportiva diminui.
— Ao nível social todo o consumo parece virar-se para o sedentarismo. Diversos es-
tudos teem mostrado que a diferença entre a oferta de produtos de consumo ca-
lórico e de lazer sedentário, relativamente ao de produtos desportivos como a
televisão e jogos electrónicos, aumenta exponencialmente.
— Ao nível do comportamento, e não obstante os mecanismos de propaganda ten-
derem a promover a actividade física e a taxa de adesão ao exercício aumente, o
hábito regular de actividade é muito inferior à taxa de abandono. Somando os
que não aderem e os que tentam aderir, a diferença para os que praticam regu-
larmente exercício físico é enorme.
— Por último, ao nível biológico, tem-se tentado as mais diferentes estratégias, mui-
tas comerciais, através de processos milagrosos de todo o tipo, cujo resultado é
muito claro. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, a facturação da in-
dústria do “Weight Loss” está acima dos 40 biliões de dólares anuais e os ameri-
canos continuam a aumentar a obesidade a níveis inquestionavelmente
elevados.

Enfrentando enormes dificuldades, as sociedades mais ricas começam a tomar me-


didas de convivência com o problema, tentando atenuar causas e efeitos. Não é, por
ora, o caso dos países mais pobres que, como referimos, se limitam a cometer erros,

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com algumas agravantes, cujas consequências são bem conhecidas. O aparecimento


de ginásios, nutricionistas, fisiologistas do exercício, “personel trainers”, psicólogos,
remédios e dietas milagrosas têm-se mostrado não só ineficazes na solução do pro-
blema, como por vezes prejudiciais e mesmo “perigosos”. Na maior parte dos casos,
as pessoas aderem a estes programas com sacrifício psicológico e financeiro que, pelas
duas razões, muito rapidamente conduzem à desistência. A maioria não chega
mesmo a iniciar. Os resultados dos estudos são bem claros: ao nível de casos indivi-
duais algumas destas soluções podem produzir efeitos, embora numa fracção redu-
zida dos seus aderentes, os efeitos sejam temporários. Em termos sociais não são.
A informação sobre a necessidade de um estilo de vida activo é hoje a acessível a
todas as pessoas que vivem nas cidades, mesmo em áfrica. O problema já não é mais
a ausência de informação. O grande desafio é fazer com que as populações tenham
o hábito adquirido, e mantido, de um estilo de vida activo. E hábito significa algo
que fazemos habitualmente, sem qualquer sacrifício. É exactamente isto que os re-
médios milagrosos não conseguem resolver, nem conseguirão nunca.
No ano 2000 desenvolvemos um programa de investigação/intervenção com mu-
lheres obesas Moçambicanas (Miller e col., 2003). O programa visava testar o efeito
de um trabalho a longo prazo de re-estruturação cognitiva. Utilizando técnicas oriun-
das da Psicologia, a ideia era comparar o efeito dos programas convencionais que as
pessoas utilizavam para perder peso, comerciais ou não, com um programa baseado
na alteração comportamental por via do reconhecimento da relação emocional. O
programa recorreu a técnicas de transformação da relacão emocional com os hábitos
prejudiciais à saúde, transformando-os em hábitos favoráveis. O programa mostrou-
se muito eficaz no sentido da alteração de hábitos. As mulheres do grupo experimen-
tal mostraram ganhos em novos hábitos, que se tornavam definitivos quando
conseguiam realiza-los com prazer. As mulheres que se envolveram com os diversos
métodos convencionais, conseguiam ganhos idênticos ao nível dos indicadores fi-
siológicos avaliados, mas as vantagens eram temporárias. Isto é, os programas con-
vencionais apenas não conseguiam estabilizar os ganhos porque, baseados em
sacrifícios, implicavam um retorno rápido aos comportamentos anteriores.
A observação dos resultados da pesquisa e da intervenção no sentido de (re) cons-
truir um estilo de vida activo no homem urbano mostra uma tremenda dificuldade
na eficácia dos programas testados. Por um lado, as causas que nos conduziram a
uma vida sedentária e hipercalórica não só permanecem, como aumentam, em mui-
tas regiões do planeta particularmente em áfrica. Por outro lado, a estratégia de
convivência com as determinantes está a resultar em fracasso, face a uma matriz
complexa de factores, dos quais o comercial e a ausência de políticas construídas na
base do interesse público.
As soluções são obviamente de difícil alcance e requerem muita coragem que por
ora nao parece estar “disponivel”.

Papel da educação física


A palavra de ordem das organizações de saúde nas últimas décadas tem sido a do
movimento e do controlo alimentar. Dia da actividade fisica, dia do coração, dia dos
hipertensos, dia dos diabéticos, e muitos outros dias, apresentam sempre a activi-

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dade fisica como uma componente de grande relevo, quando não a mais impor-
tante. A própria pirâmide alimentar traz na sua base a actividade física. O reconhe-
cimento médico e social da importância da actividade fisica parece estar
definitivamente solucionado, pelo menos ao nível do discurso oficial. Isso é já um
grande passo. Na prática, porém, esse reconhecimento não está ao nível das causas
e das soluções que conduzam a uma cura efectiva. A pandemia não está a parar, está
a crescer. Questiona-se então o papel da educação fisica neste quadro.
Embora haja que reconhecer o carácter dinâmico e contextual do que se constitui
como objectivos da educação fisica, e neste sentido ocorre alguma desadaptação em
momentos e espaços, parece haver um dilema enorme na educação em geral, e na
educação física em particular. A grande dificuldade do sistema educativo actual não
é o de definir como alcançar os objectivos, mas saber definir quais são os objectivos
(Bento, 2004). No caso da educação física, enfrentamos uma dificuldade enorme
em definir a sua identidade e papel.
Em termos genéricos, o papel do sistema educativo é o de possibilitar o acesso ao
conhecimento sistematizado e acumulado historicamente. No caso da educação
para a saúde trata-se de desenvolver, no aluno, conhecimentos, aptidões e atitudes
relativamente ao estilo de vida activo (Tani e Manoel, 2004). E a educação fisica
será provavelmente um dos meios mais eficazes que a escola tem ao seu dispor para
atingir este objectivo.
Assumindo um conceito de educação física como uma disciplina de carácter forma-
tivo, como qualquer outra disciplina, ser-lhe-á atribuída, na escola, o papel de dar ins-
trumentos à criança e ao jovem que lhe permitam ser e permanecer um cidadão
activo durante o seu crescimento e ao longo da sua vida. O método para atingir este
objectivo nem sempre é consensual. Contudo, somos em crer que, assumindo este
objectivo, não resta outra alternativa senão incluir na educação física escolar elemen-
tos que apetrechem o aluno de “saberes, aptidões e atitudes relativamente ao estilo
de vida activo”. Isto só poderá ser realizado com o concurso de elementos teóricos e
práticos. As duas aulas de educação física semanal, não podem pretender substituir a
prática quotidiana do exercício, ou do desporto, se assim pretendermos chamar.
É razoavel pensar-se que tornar um cidadão activo pressupõe a sua preparação desde
pequeno e que essa preparação deve ser realizada na escola. O que se observa, con-
tudo, é que, independentemente desta preparação, a vida quotidiana moderna “em-
purra o cidadão” para comportamentos sedentários, seja no lazer seja no trabalho.
áfrica não está, antes pelo contrário, livre desse estigma e, infelizmente, o seu po-
tencial rico potencial cultural, que se baseia em movimento muito associado ao
jogo e a dança, está sendo desaproveitado e inibido. A experiência em Moçambique
tem demonstrado um enorme asfixiamento da educação física relativamente a mo-
delos estereotipados. O jogo e a dança, no nosso entender, constituem um elemento
básico fundamental que tem de ser potencializado. Jogar e dançar está associado ao
prazer, que, nos aprece ser condição sine qua non para o sucesso de um plano de
tornar os cidadãos regularmente activos (Tani, 2002). Contudo a formação de um
cidadão consciente que na sua actividade contribua, pelo seu conhecimento e ati-
tude, para uma sociedade activa e saudável, tem de estar entre as prioridades do
papel da educação física.

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A história dos países desenvolvidos já nos ensinou os resultados da urbanização ir-


racional. A educação física não pode de forma nenhuma resolver o problema. Mas
se a educação tem um papel na formação do cidadão do futuro, do qual se espera
estar preparado com o seu saber, saber fazer e ser para transformar positivamente
a sociedade, então a educação física terá, acreditamos, a sua quota e importante
parte na responsabilidade de formar um cidadão não apenas activo mas participante
num processo de criação de ambientes favoráveis.

Agradecimentos
Ao nosso eterno Mestre José Maia por mais um “round” de ensinamentos na revisão
deste texto.

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livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 75

Formação de Professores de Educação


Física e o Projeto Pedagógico da Escola:
a Busca do Pensamento Complexo
Wagner Wey Moreira
Universidade Federal do Pará – Brasil
Vilma Lení Nista-Piccolo
Universidade São Judas Tadeu - Brasil

Entendemos que associar a formação de Professores de Educação Física ao Projeto


Pedagógico da Escola só é possível através de uma postura política. A escola, por se
ater ao momento de aprendizagem dos alunos que ali frequentam, não pode abrir
mão do sentido político para a compreensão de mundo. Entretanto, o termo político
não deve ser caracterizado pelo simplismo de formas padronizadas. A importância
da dimensão política necessita ser aquilatada nos dizeres de Morin (1986, p.17):

A política trata do que há de mais complexo e mais precioso: a vida, o destino, a li-
berdade dos indivíduos, das coletividades, e, por conseguinte, da humanidade. No
entanto, é na política que reinam as idéias mais simplistas, menos fundamenta-
das, mais brutais, mais mortíferas. É o pensamento menos complexo que reina
nessa esfera que é a mais complexa de todas. Nela, são as estruturas mentais mais
infantis que impõem uma visão maniqueísta na qual se opõem Verdade / Mentira,
Bem / Mal.

Quantas vezes, na busca de uma adequação das propostas de Educação Física Escolar
ao Projeto Pedagógico da Escola, encontramos intermináveis debates estéreis de
posturas opostas como jogo x esporte, competição x cooperação, construtivismo x
crítico-superador, crítico-superador x desenvolvimentismo e tantos outros, mos-
trando atitudes dogmáticas simplistas de um “ou isto” “ou aquilo”? Aqui aparece o
reino, na esfera política de ação, do pensamento fechado sobre si mesmo, do pen-
samento dogmático, do pensamento linear. Claro está que não propomos um ecle-
tismo ingênuo, mas sim um pluralismo consciente que poderá favorecer o
entendimento e a ação das propostas curriculares em Educação Física no dia a dia
do professor na escola. O sentido tópico da coerência interna dessa área de conhe-
cimento deve, necessariamente, associar-se à coerência utópica do Projeto Pedagó-
gico da Escola e com ele fazer um diálogo que possibilite a aprendizagem
significativa do aluno.
Cremos que temas gerais como, por exemplo, o de sustentabilidade de vida no pla-
neta, deva merecer atenção quer do Projeto Pedagógico da Escola, quer da disciplina
Educação Física. A partir daí, talvez, constatemos a necessidade de reformular os
caminhos para uma formação profissional do Professor de Educação Física.
Um primeiro alerta nesta trilha que deverá ser observado por todos os profissionais

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livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 76

que trabalham com a formação do Professor de Educação Física, é o de associarmos


o ver e o pensar. Isto vale para a nossa própria ação, da mesma forma que vale como
pressuposto importante a ser incorporado pelos discentes em sua formação. Sempre
calcados em Morin (1986, p.111), lembramos:

Para saber ver é preciso saber pensar o que se vê. Saber ver implica, pois, saber pen-
sar, como saber pensar implica saber ver. Saber pensar não é algo que se obtém por
técnica, receita, método. Saber pensar não é só aplicar a lógica e a verificação aos
dados da experiência. Pressupõe, também, saber organizar os dados da experiên-
cia. Precisamos, pois, compreender que regras, que princípios regem o pensamento
que nos faz organizar o real, isto é, selecionar / privilegiar certos dados, eliminar
/ subalternizar outros.

Só esta menção já nos remete a propor mudanças nos valores até hoje presentes nos
cursos de formação profissional em Educação Física. Cursos ainda contaminados
por princípios positivistas de que o homem é explicado biologicamente como um
ser definido que apresenta desigualdades naturais, as quais justificam as desigual-
dades sociais, e assim, formam professores que vão atuar nas escolas valorizando o
desenvolvimento do físico e da moral. Sem compreender o real, porque não sabem
ver, novos professores saem carregados de valores subordinados aos códigos e sig-
nificados do contexto social dominante. E, esses, são transmitidos culturalmente,
por meio da educação.
Calcados em modelos de seleção de indivíduos “perfeitos” fisicamente e de exclusão
de incapacitados, os cursos de formação em Educação Física transformam concep-
ções, tendências, valores e percepções. Vimos, na história do século XX, que a for-
mação profissional da área realçou a importância, dentre outras, das regras
cumpridas, do privilegiar o sentido anatomofisiológico de corpo, dando com isto
um contorno de organização do real.
Sabemos que a Educação Física nasceu sob a égide da técnica e do rendimento em
solo europeu, marcada por uma visão funcional utilitarista da saúde e do adestra-
mento físico. Assim, o delineamento dado à formação desse profissional esteve por
muito tempo pautado no escopo biologicista. Mas, com a missão de ultrapassar a
pura e simples aquisição de conhecimento, o processo de formação docente deve
levar o licenciado em Educação Física a resgatar os aspectos humanos, a compreen-
der o ser na sua totalidade e na sua historicidade. É importante formar profissionais
com visão crítica da realidade, dinâmicos e participativos em suas ações. Para tanto,
devem conhecer novas bases epistemológicas produzidas na atualidade, as quais de-
nunciam a pura reprodução dos modelos esportivos como um fim em si mesmo,
propiciando o emergir de novos paradigmas que poderão nortear a formação do pro-
fissional de Educação Física.
Levar o licenciado à reflexão sobre seu papel, visando dar re-significado a seus pen-
samentos e as suas ações, através de um movimento dialógico permeado de dife-
rentes experiências individuais, em que o perceber e o perceber-se nas situações e
emoções vividas sejam considerados, pode estabelecer um vínculo entre o que é
ensinado na Universidade e o trabalho docente na escola, entre a formação e a atua-

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livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 77

ção docente apoiada num Projeto Político Pedagógico da escola, sem transformar
teorias ou ideologias em dogmas, sem tentar negar o real. Aqui se concretiza o ver
e o perceber.
Desta forma, os novos profissionais poderão deixar de superficializar o relaciona-
mento com o outro e com o mundo como consequência da divisão sujeito-objeto,
da separação homem-mundo, apoiando-se em um pensamento não linear.
A formação de professores é um processo complexo que estabelece relações múlti-
plas, as quais mobilizam as dimensões ética, social, política, econômica e humana.
É a partir dessas relações que se dá a dicotomia teoria/prática, a distância entre uni-
versidade e escola, a separação entre pesquisa acadêmica e pesquisa na prática.
A apropriação de conhecimentos científicos e pedagógicos pelos futuros profissio-
nais deve permitir a leitura dos problemas em situações reais, visando a busca de
soluções para o contexto em que vivem. Não pautado num modelo aplicacionista
do conhecimento que dissocia a pesquisa da formação e da atuação profissional,
mas apoiado numa integração que promova reflexão para a ação.
Assim, devemos buscar novos princípios gerais para nossas propostas pedagógicas,
passando de uma ideia de ser humano mutilado, dissociado, para uma ideia de ser
humano num contexto da complexidade.
Aqui já temos um segundo pressuposto básico para sugerir modificações: devemos
partir do ser humano e aí enquadrar a formação profissional. Mais uma vez, recor-
rendo a Morin (1986, p.113):

Vamos partir do homem. Ele é concebido como ‘homo sapiens’ e ‘homo faber’.
Ambas as definições são redutoras e unidimensionais. Portanto, o que é ‘demens’
– o sonho, a paixão, o mito – e o que é ‘ludens’ – o jogo, o prazer, a festa – são ex-
cluídos do ‘homo’, ou, no máximo, considerados como epifenômenos. O senti-
mento, o amor, a brincadeira, o humor passam a não ter mais lugar, senão
secundário ou contingente, em todas as visões controladas pelo paradigma de
‘homo sapiens / faber’. (...)
Precisamos superar a noção de homem técnico (homo faber), associando a ela, in-
dissoluvelmente, a de homem imaginativo (que imagina, sonha, cria fantasmas,
mitifica).

Este segundo pressuposto, se aplicado à formação profissional em Educação Física,


provavelmente, influenciará novos professores a dominar, ao lado dos aspectos téc-
nicos de suas propostas pedagógicas criadas nas estruturas dos conhecimentos his-
tóricos da área, um conceito de ser humano em sua complexidade, na sua relação
consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Isto é superar a proposta baseada
apenas na técnica, da qual derivam como valores maiores os aspectos tecnoeconô-
micos, que por sua vez ditam toda a política de organização e de produção da socie-
dade contemporânea.
Deixamos claro que a proposta desse novo olhar para a formação profissional do
professor deve associar, de maneira consistente, o contexto, o entorno com as preo-
cupações resultantes da coerência interna da área chamada Educação Física. Essa
deve, por sua vez, trabalhar os princípios de um conhecimento pertinente e de um

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livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 78

ensino preocupado com a condição humana. O caminho a ser trilhado para isso
exige: o enfrentamento de nossas incertezas; a aprendizagem do sentir, do ver e do
ouvir; uma educação para nos tornarmos pessoas compreensíveis e sensíveis, ações
ausentes no ensino escolar atual; o encontro com o real; o estabelecimento de uma
ética centrada no ser humano, entendido esse humano ao mesmo tempo como in-
divíduo, sociedade e espécie.
O que seria então um conhecimento pertinente? Segundo Morin (2000), seria co-
nhecer o contexto, o global, o multidimensional e o complexo. Para se chegar a esse
conhecimento não se necessita de uma reforma programática, mas sim, de uma re-
forma paradigmática.
Conhecimento pertinente e novos paradigmas que devem estar presentes na cons-
trução do Projeto Pedagógico da Escola.
O contexto é necessário ao conhecimento em qualquer área, inclusive a Educação
Física, mas não basta conhecer informações ou dados isolados porque isso é insufi-
ciente para um docente reflexivo. Já o conhecimento global significa mais do que
revela o contexto, pois é o conjunto das diversas partes ligadas a ele de modo orga-
nizacional. Já nos afirmava Morin (2000, p. 37):

... tanto no ser humano, quanto nos outros seres vivos, existe a presença do todo
no interior das partes: cada célula contém a totalidade do patrimônio genético de
um organismo policelular; a sociedade, como um todo, está presente em cada in-
divíduo, na sua linguagem, em seu saber, em suas obrigações e em suas normas.

A multidimensionalidade está presente nas unidades complexas, como o ser hu-


mano ou a sociedade. É por essa razão que o ser humano é ao mesmo tempo bioló-
gico, psíquico, social, afetivo e racional. Já a sociedade comporta dimensões
histórica, econômica, sociológica, entre outras. Por último, o conhecimento perti-
nente exige parâmetros balizados pela complexidade, no sentido de o conheci-
mento ser tecido junto, sem separação de seus elementos constitutivos.
Sempre é preciso lembrar que as pessoas formadas no isolamento disciplinar per-
dem suas aptidões naturais para contextualizar os saberes necessários para a docên-
cia. Não perceber o global pode levar ao enfraquecimento da responsabilidade.
Aqui já é possível realçar a mudança: tanto a Formação Profissional de Educação Fí-
sica quanto a elaboração do Projeto Pedagógico da Escola devem levar em conside-
ração: o contexto, o global, o multidimensional e o complexo.
Tudo o que foi afirmado em relação ao conhecimento pertinente pode ser identifi-
cado como ausente na tradição da Educação Física. O ensino de seus conteúdos, rea-
lizado de forma estanque, fragmentada, descontextualizada, pode enfraquecer a
capacidade de perceber a multidimensionalidade, a contextualização, as relações
complexas desse ser aprendente e dessa sociedade onde ele se insere. Como exem-
plo, aprendemos sobre o fenômeno esporte não em sua complexidade, mas em suas
técnicas e táticas, numa metodologia fracionada de parte por parte, na ideia de que
a soma desse conhecimento resultaria no conhecer o todo. Em muitas palestras que
realizamos, lembramos que vários alunos e alunas de escolas de ensino fundamen-
tal e médio passaram aprendendo um esporte, como por exemplo, o voleibol, du-

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rante mais de oito anos, realizando toques, manchetes, saques, na crença de que a
soma desses fundamentos propiciaria jogar voleibol. No entanto, muitos desses dis-
centes não conseguiram jogar o voleibol após esses anos.
Aplicar os critérios advogados pela teoria da complexidade, neste caso, provavel-
mente inverteria o vetor da aprendizagem. Deveríamos destinar mais tempo ao ato
de jogar, que é global e complexo, ao ato de refletir as experiências sobre esse jogo,
do que tempo destinado ao ato da aprendizagem repetitiva do movimento técnico-
mecânico de sacar, de dar toques ou manchetes. Contextualizar o jogo, o esporte,
os movimentos gímnicos, dentre outros pertencentes ao conhecimento histórico
da Educação Física, tanto na forma teórica quanto na prática, é superar a formação
tradicionalmente realizada nessa área.
Da mesma forma, na construção do Projeto Pedagógico da Escola não podemos im-
primir um método que privilegie a soma das partes para se alcançar um todo. Não é
somando conhecimentos estanques de disciplinas isoladas que o aluno conseguirá
apreender o entorno, o contexto, ou mesmo alcançar a cidadania. O ato de somar in-
formações, de localizar cidades em mapas, de reconhecer regras lingüísticas, de de-
senvolver habilidades motoras, de reconhecer fases na história da arte não garante o
conhecimento pertinente que leva ao reconhecimento da condição humana.
O Projeto Pedagógico da Escola deve favorecer o sentido da condição humana.
Agora, então, resta tentar responder o que seria ensinar a condição humana? Uma
Educação Física, como disciplina curricular, não deve servir para a formação de ani-
mais esplêndidos. Ela deve servir para que o ser humano possa, através do conheci-
mento e da prática de atividades físicas e esportivas, reconhecer-se como humano
numa relação de interação com o meio ambiente. Não conhecer essa íntima relação
de dependência ser humano / cosmos pode propiciar, como temos visto, um agra-
vamento da ignorância do todo, mesmo no avanço do conhecimento das partes.
Conhecer a condição humana é lembrar de que como seres vivos deste planeta de-
pendemos da biosfera terrestre. Assim, devemos reconhecer nossa identidade ter-
rena, física, psíquica e biológica. Nossa condição de hominização exige um processo
de humanização, sendo o ser humano constituído de um princípio biofísico e de
um princípio psicossociocultural, ambos dependentes. Esses princípios devem nor-
tear: as aulas de Educação Física na escola; a formação desse profissional; a materia-
lização do Projeto Pedagógico da Escola.
Neste sentido, a educação deverá ser um ensino universal, centrado na condição
humana, lembrando que conhecer o humano é situá-lo no universo e não separá-
lo deste e nem dicotomizá-lo.
A escola precisa desmitificar a chancela de uma aprendizagem unicamente “men-
tal”, abrindo espaços para trabalhos essencialmente corporais que representam pro-
cessos cognitivos. Só assim a Educação Física pode encontrar sua relevância no
ambiente escolar. O que propomos é que a corporeidade seja um instrumento pe-
dagógico que auxilie aos professores de outras áreas a compreenderem o ser hu-
mano de maneira mais complexa.
Enxergar as possibilidades corporais dos alunos como expressão de inteligência hu-
mana, tanto nas aulas de Educação Física como fora delas, permite reconhecermos
conhecimentos indizíveis revelados pelo corpo. Segundo Najmonovich (2001, p.23)

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“Só podemos conhecer o que somos capazes de perceber e processar com nosso corpo”.
Se o ser humano se expressa por meio de suas ações e qualquer ação é corpora, daí
defendermos também as possibilidades corporais na escola para além das aulas de
Educação Física, numa tese que parte das premissas que enfatizam que o cogito e o
corpo são aspectos de uma mesma realidade, que o corpo é o ser que realiza sua exis-
tência e que a relação ser humano / mundo é corporal.
Assim como propôs Merleau-Ponty (1994) devemos entender nossos corpos como
organismos cognoscentes, não apenas integrados, mas inseparáveis do seu meio. O
conhecimento pode ser desenvolvido num cenário escolar por diferentes rotas de
acesso, contextualizado no mundo em que se vive. As diferentes linguagens utili-
zadas numa situação de aprendizagem devem valorizar não só a resolução de pro-
blemas, mas também a criação deles.
É fácil perceber, na atualidade, a hegemonia do pensamento disjuntivo, em que de-
terminados conhecimentos fazem parte das ciências naturais e outros fazem parte
das ciências humanas. Esta separação homem / natureza, de certa forma, propiciou
o agravamento da ignorância do todo. Como exemplo, degradar a natureza no ter-
ceiro mundo não faz parte das preocupações do ser humano do primeiro mundo.
Na Educação Física, ao se deparar com estes novos valores integrativos, os procedi-
mentos da ação do profissional dessa área devem ser modificados. Há que se apre-
sentar práticas esportivas e atividades físicas que entrem em consonância com o
respeito à natureza, com formas de aprimoramento do conhecimento desta, po-
dendo ser a Educação Física Escolar um instrumento de ação e denúncia quando
este princípio for desrespeitado. Apenas como um possível exemplo, podemos rea-
lizar caminhadas com os alunos em trilhas, ou em margens de rios mostrando o des-
caso e até a agressão que alguns destes ambientes sofrem com o acúmulo de toda
forma de lixo. E ainda, relacionar as alterações que um ambiente poluído provoca
em nossos organismos, no aspecto da saúde.
Outro ponto recomendado por Morin (2000) e que deveria ser preocupação tanto
na formação profissional em Educação Física quanto na construção de um Projeto
Pedagógico na Escola, diz respeito à busca de uma ética do gênero humano. Esta
ética estaria calcada na tríade indivíduo / sociedade / espécie, sendo cada um destes
termos, ao mesmo tempo, meio e fim do outro.
Marina (2001) acredita que a ética deva fazer parte das preocupações no campo da
ciência como tarefa para o século XXI. Para Gardner (2006) a educação do novo mi-
lênio deve ser trabalhada junto às questões da moralidade. “Todo el proceso de inven-
ción de la ética se identifica con el proceso de una inteligencia que busca la mejor de sus
posibilidades, el modo más inteligente de ser inteligente”, afirmou Marina (2001, p.162).
Dentre as missões destinadas a esta ética propriamente humana, chamada por Morin
(2000) de antropo-ética, destacamos: respeitar no outro, ao mesmo tempo, a dife-
rença e a identidade quanto a si mesmo; desenvolver a ética da solidariedade; desen-
volver a ética da compreensão. As perguntas que fazemos agora a todos os leitores:
Esta missão não poderia e não deveria ser trabalhada, por exemplo, através de um
conteúdo da Educação Física Escolar chamado esporte? Não seria o esporte um ex-
celente instrumento para a incorporação de uma ética da solidariedade?
Há tempos atrás, assistimos a uma fita de vídeo que nos comoveu. Tratava-se do de-

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senvolvimento de uma competição esportiva para seres humanos portadores de de-


ficiência mental. Em uma prova de corrida, no atletismo, um dos integrantes, na
reta final perde o equilíbrio e cai. Os demais competidores, ao identificarem essa
cena, param de correr, retornam, auxiliam o atleta que havia caído a se levantar e,
só depois disto, voltam a correr abraçados na direção da chegada. Difundir valores
como estes praticados pelos atletas, não é uma grande oportunidade para a apren-
dizagem de uma ética da solidariedade e de uma ética da compreensão?
A Educação Física, como estamos tentando demonstrar, possui um conhecimento
histórico que pode estar estruturado com todas as premissas advogadas por Morin
para a constituição de um conhecimento complexo. Ela pode favorecer como proposta
de aprendizagem, alguma superação das preocupações apontadas por esse autor em
sua teoria da complexidade. Ela pode ser elemento colaborador para a religação dos
saberes, mencionada pelo autor como o desafio do século XXI (Morin 2001).
A este propósito, convém lembrar as críticas apresentadas por Vincent (2001), de
como estamos acostumados a não reconhecer (inclusive na formação profissional
em Educação Física) algumas contradições para aprender sobre a vida. Diz o autor
que a vida, tal como é geralmente ensinada e apresentada nos programas escolares,
assume sempre uma feição de coisa morta. Vamos para a formação profissional em
Educação Física para identificar se isto também existe? Todos nós, professores de
Educação Física, aprendemos sobre movimento e vida em peças anatômicas mortas
nas bancadas dos laboratórios de Anatomia. Aprender desta forma não é impor-
tante? Para o conhecimento do “corpo problema” é, como afirma Regis de Morais
(2007). Mas, para conhecer o fenômeno corporeidade em toda a sua complexidade,
isto não basta. Recuperando Vincent (2001, p.184) temos:

O corpo é o teatro do mundo. O mundo se exprime nele sob as instâncias do paté-


tico e não da razão, o que não passa de um instrumento lógico de tratamento do
mundo. São as paixões que fundamentam o humano e lhe dão a palavra. A escola
não pode ir contra o humano, ela deve ser uma escola dos sentimentos. Eu defendo
o prazer, é claro, mas, mais do que isto, defendo a totalidade das emoções. São elas
que permitem o reconhecimento do outro. Processos que se opõem encontram-se
no centro das paixões.

Ainda recorrendo ao conhecimento esporte, na pertença da Educação Física Escolar,


podemos afirmar que ele pode e deve ser trabalhado para o entendimento do pres-
suposto mencionado anteriormente, pois ele favorece ao humano momentos de
saída do estritamente racional, bem como estão nele os sentimentos de prazer, de
emoção, de paixão, de reconhecimento do outro, quer como companheiro, quer
como adversário. Voltamos a afirmar que a Educação Física Escolar, a partir de uma
mudança de olhar sobre a sua área, enquadra-se como possibilidade de análise, de
discussão e de reflexão, no dia a dia da vivência das pessoas, dos pressupostos ad-
vogados pela teoria da complexidade.
Por fim, como professores de Educação Física, devemos lutar para que nossos alunos
possam aprender e, se possível, apreender, pois, assim fazendo estarão incorpo-
rando conceitos. Em uma de suas publicações, Moreira (2001), discute a relação

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aprendizagem e qualidade de vida, lembrando que devemos ter: na aprendizagem


afetiva, valores pessoais como agressividade, amizade, ódio, amor, alegria, prazer,
frustração, êxito, entre outros; na aprendizagem relacional, valores sociais como
cooperação, competição, participação, luta, segregação, justiça, entre outros; na
aprendizagem cognitiva, valores e conceitos elaborados como lógica, imaginação,
resolução de problemas, compreensão, reflexão, entre outros. Mas, como ponto im-
portante na formação profissional do professor de Educação Física, a todas essas
aprendizagens somar-se-ia a aprendizagem da motricidade, com os procedimentos
relacionados ao “fazer onde”, na qual: as capacidades perceptivas dariam conta da
aprendizagem da espacialidade, da temporalidade, da corporeidade, do equilíbrio,
das coordenações e outras; as capacidades inerentes, para realizações em que esti-
vessem presentes força, flexibilidade, resistência e velocidade; as capacidades so-
ciais, para atividades de aprendizagem realizadas com os outros, no sentido da
expressão, da comunicação, do jogo, do esporte, da ginástica e da dança; finalmente,
os procedimentos do fazer, inerentes à motricidade, ainda poderiam ser objeto da
aprendizagem de habilidades como saltar, levantar, recepcionar, golpear, subir, car-
regar, entre outras.
Afirmamos mais:

Se o homem, quando nasce, pode ser considerado um ser biológico por excelência,
em sua existencialidade, ao humanizar-se, realiza movimentos no sentido de se
superar e de caminhar em direção a si mesmo, em direção ao outro e em direção
ao mundo, passando de um estado inicial determinista de instintos, reflexos, fun-
ções orgânicas para uma intencionalidade guiada por racionalidade, inteligência,
criatividade, sensibilidade e afetividade. Essa sua facticidade, essa sua existencia-
lidade, onde o homem e o humano podem ser compreendidos pelos movimentos,
pela expressão, pela comunicação, é o que denominamos o conhecimento identifi-
cador da motricidade. (Moreira, 2001, p.24)

A Educação Física Escolar pode colaborar no Projeto Pedagógico da Escolar para uma
educação em que a vida passe a ser sinônimo de qualidade. Atender às formas ex-
pressivas da motricidade, como os esportes, os jogos, as atividades de aventura e
risco, as danças, os exercícios, por exemplo, e entendê-las, há de exigir de nós uma
revisão de muitos conceitos atuais vinculados à formação profissional do professor
de Educação Física.

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Referências bibliográficas
Gardner, H. - The Development and education of the mind: the selected works of Howard Gardner, New
York: Taylor & Francis, 2006.
Marina, J.A. - Ética para náufragos, Lisboa: Caminho, 2001.
Merleau-Ponty, M. – Fenomenologia da Percepção, São Paulo: Martins Fontes, 1994.
Moreira, Wagner W. – Qualidade de vida: complexidade e educação, Campinas: Papirus, 2001.
Morin, Edgar – Para sair do século XX, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
Morin, Edgar – Os sete saberes necessários para a educação do futuro, São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO,
2000.
Morin, Edgar – A religação dos saberes: o desafio do século XXI, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
Regis de Morais, J. F. – Consciência corporal e dimensionamento do futuro, in: Moreira, Wagner W.
(Org.), Educação física e esportes: perspectivas para o século XXI, Campinas: Papirus, 2007.
Najmanovich, D. – O sujeito encarnado: questões para pesquisa no/do cotidiano, Rio de Janeiro: DP&A,
2001.
Vincent, Jean-Didier – As paixões e o humano, in: Morin, Edgar (Org.) – A religação dos saberes: o desafio
do século XXI, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

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Contributo para uma mudança de


paradigma na formação de treinadores:
Razões, contextos e finalidades
Isabel Mesquita
Faculdade de Desporto, Universidade do Porto

1. Introdução
A busca de um novo paradigma de formação de treinadores desportivos que pre-
tenda congregar sinergias e potencialidades, no sentido de melhor qualificar os pro-
fissionais que actuam no mundo do Desporto é, inexoravelmente, uma prerrogativa
do novo século. Estas demandas decorrem de movimentos sediados na Europa, a
partir de directrizes emanadas do processo de Bolonha para a área do Ensino, pre-
tendendo-se estabelecer para a profissão de Treinador de Desporto exigências forma-
tivas condizentes com as proclamadas para as demais profissões de formação
superior adstritas ao Desporto.
A emergência de dotar a formação deste profissional de bases consistentes, cienti-
ficamente fundadas, em referência às exigências profissionais, uniu um corpo subs-
tantivo de entidades internacionais, oriundas do sistema desportivo e educativo
europeu, em torno da reflexão e discussão desta problemática1. Resulta, daí, a ne-
cessidade de alicerçar a formação do futuro treinador desportivo de perspectivas
que, sem deixarem de configurar os valores éticos, culturais e científicos norteado-
res da sua construção, sejam capazes de responder às exigências proclamadas pelos
imperativos de âmbito profissional, contribuindo para o efeito o estabelecimento
de sinergias entre a formação sediada no sistema universitário e desportivo.
Este novo paradigma transita, inexoravelmente, de uma concepção de formação
centrada na aquisição de conhecimentos para o domínio de competências, não
numa visão tecnicista mas sobretudo holística da formação, onde os saberes de âm-
bito deontológico, relacional e humanista assumem paridade com os demais. De
facto, para obter sucesso na sua função, o treinador necessita de possuir uma com-
plexa teia de competências (Gilbert & Trudel, 1999), devendo estas ser abrangentes
em relação aos domínios que comporta e específicas em relação aos envolvimentos
desportivos onde se aplicam. Nesta conformidade, emerge que as competências
profissionais têm um sentido dinâmico e adaptativo face aos contextos e níveis de
prática profissional. Num nível macro de análise é impositiva a diferenciação das
competências profissionais do treinador desportivo em função do nível e contexto
de prática, isto é, o Treino de Crianças e Jovens e o Treino de Alto Rendimento, dada
a particularidade de finalidades e metas que os mesmos abraçam.
Requer ainda especial atenção neste âmbito, uma reflexão sobre os processos, meios
e métodos de formação do Treinador de Desporto, em suma, o confronto entre os

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modelos de formação em uso e os desejáveis, porquanto da sua configuração de-


pende, em grande medida, a qualidade da formação prestada. Como advogam Cas-
sidy & Rossi (2006), o desempenho profissional, em qualquer área de actividade
humana, depende altamente de um processo de formação qualificado, funcionando
este como carta de alforria do exercício profissional competente. Com efeito, o con-
junto de competências que um treinador precisa de possuir é de tal forma vasto que
só através de uma formação qualificada, assente numa formação regida por valores,
promotora do pensamento crítico e referenciada aos constrangimentos concretos
dos ambientes de prática, é possível alcançar tal desiderato (Gilbert & Truddel,
2004, 2005).
O presente artigo ao congregar a reflexão centrada (1) na mais-valia da formação do
Treinador de Desporto em sede de sistema universitário (2), na premência da matriz
conceptual, da formação, centrada no paradigma de competências e (3) na necessidade
de implementação de modelos que operacionalizem estes intentos, pretende concre-
tizar um sinal inequívoco de mudança na formação dos treinadores desportivos.

2. A formação do Treinador de Desporto no espaço universitário


O Desporto constitui um fenómeno social que, a partir da última metade do século
passado, sofreu um desenvolvimento notável, resultante do aprimoramento do pro-
cesso de treino e de competição, ao que não é alheio o contributo oriundo da inves-
tigação centrada nas Ciências do Desporto. De facto, após a segunda guerra mundial,
impulsionada por prerrogativas de ascendente ideológico (Green & Houlihan,
2005), esta actividade humana foi alvo de elevados investimentos, conducentes à
optimização do rendimento desportivo, com destaque para o contributo do acervo
de conhecimento proveniente das Ciências do Desporto no desenvolvimento de
meios, métodos e sistemas de avaliação. Neste âmbito, o processo de treino adqui-
riu, progressivamente, um lugar de cimeira, enquanto meio de optimização da per-
formance desportiva, reivindicando do agente responsável pela sua planificação,
implementação e avaliação, o Treinador de Desporto, competências capazes de plas-
mar estas exigências.
Treinar deve ser entendido como o processo intencional e deliberado de fazer apren-
der e desenvolver capacidades, ou seja, como um conjunto de acções organizadas,
dirigidas à finalidade específica de promover intencionalmente a aprendizagem,
com os meios adequados à natureza dessa aprendizagem. Nesta conformidade, o
treinador deve ser visto como o profissional que tem a função específica de conduzir
esse processo, o treino desportivo, fazendo-o no quadro de um conjunto de saberes
próprios, saberes esses que sustentam a capacidade de desempenho profissional.
As funções do treinador definem-se, assim, com base num conjunto de competên-
cias resultantes da mobilização, produção e uso de diversos saberes pertinentes
(científicos, pedagógicos, organizacionais, teórico-práticos, etc.), organizados e in-
tegrados adequadamente, em função da complexidade da acção concreta, a desen-
volver em cada situação de prática profissional.
A necessidade de se desenvolver um novo conceito de excelência no Desporto, o
qual deve ser abrangente e plural em referência a diferentes níveis e propósitos de
prática desportiva, é apontada como condição prioritária na qualificação e demo-

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cratização da prática desportiva (Kirk, 2001). Neste âmbito, a diversidade de níveis,


contextos e objectivos de prática exige, ao treinador, o aporte de conhecimentos e
competências diversificadas, adaptadas às prerrogativas dos ambientes onde actua.
Nesta conformidade, a orientação da actividade desportiva de crianças, jovens e
adultos, tanto no âmbito do Desporto de Participação2 como do Desporto de Ren-
dimento3, não é mais uma tarefa que possa ser entregue, quando não abandonada,
a agentes que não possuam formação qualificada para o exercício profissional.
Nesta cultura de exigência, a qualificação dos processos de formação de treinadores
não é mais adiável, porquanto dela depende, em grande escala, o desenvolvimento
do Desporto. Esta assunção resulta do entendimento de que o Desporto ao ser plural
e contribuir para a formação pessoal, social e desportiva de todos, independente-
mente da raça, do género, da idade, do nível de habilidade desportiva ou da moda-
lidade praticada, deve ser orientado por treinadores qualificados. Em consonância
com tal desiderato, a formação deve dotar o treinador de competências ecléticas, as
quais se inscrevem, não só, no domínio dos saberes técnicos mas também, e não
menos importante, em matéria relacional e deontológica. Neste âmbito, almeja-se
que o treinador seja capaz de adoptar posturas sócio-criticas, que encare o conheci-
mento não exclusivamente como um instrumento profissional mas também como
um meio de realização pessoal, concebendo a profissão como um projecto de vida e
de auto-valorização.
Mais importa que, independentemente do nível de formação, a ênfase do processo
seja colocada no desenvolvimento e na promoção do pensamento crítico, na capa-
cidade de detectar e resolver problemas, na elevação dos valores que o treinador
perfilha e transmite e no desenvolvimento da sua capacidade de liderança e de co-
municação, considerados eixos nucleares do desenvolvimento da excelência pro-
fissional.
Tradicionalmente, a formação de treinadores tem sido consumada em sede de sis-
tema desportivo, competindo às Universidades o papel maior, embora informal e
nem sempre reconhecido, de fornecer conhecimento pedagógico e científico sus-
tentado. Na actualidade, e de acordo com directrizes emanadas do esforço europeu
em estabelecer alinhamentos na formação superior das profissões de Desporto, tem
vindo a reconhecer-se que a excelência profissional do treinador pode ser alcançada
por mais do que uma via formativa, entendendo-se como desejável a existência de
convergências e tangências entre as diferentes vias, fomentando-se sinergias que
lhes dêem corpo e as nutram reciprocamente.
Em Portugal, as intenções e reflexões provenientes do espaço europeu de conferir
um novo rumo à formação de treinadores, sedenta de referencial axiológico e ins-
trumental, pedagógico e cientificamente fundados, fez eco em sede de lei, na pos-
sibilidade e relevância do Treinador de Desporto obter formação por via de
habilitação académica de nível superior4. Neste quadrante, o estabelecimento de
alinhamentos entre vias de formação distintas poderá estimular a abertura de ca-
nais explícitos de comunicação e complementaridade entre a formação técnico-
profissional e a formação académica, numa perspectiva de aprendizagem ao longo
da vida. Oferece-se, ainda, relevante e urgente conceder ao Treinador de Desporto o
acesso à formação académica superior, reconhecendo-se e creditando-se a sua for-

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livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 87

mação anterior, ao mesmo tempo que se incentivam as instituições de ensino su-


perior a participar na oferta de acções de formação técnico-profissionais.
Esta necessidade de grande abertura da Universidade ao mundo e à sociedade era
impensável na sua génese, há 700 anos, por não lavrar nos desígnios e na matriz
epistemológica que a legitimaram. Contudo, imperativos maiores, impostos por
factores de ordem cultural, social e económica, têm vindo a soprar desafios de mu-
dança, com acurado destaque na actualidade; os quais impõem à Universidade a ne-
cessidade de fazer face às exigências de desenvolvimento social, humano e
tecnológico, impelindo novos rumos e horizontes (Marques, 2002). Neste particu-
lar importa, todavia, salientar os perigos que o actual ambiente de concorrência ge-
neralizada – apelidado de globalização - pode comportar para a Universidade,
porquanto a ciência pode ver-se despida dos grandes ideais e fins em proveito dos
meios, sendo, concomitantemente, convertida em mera técnica (Bento, 2008).
Segundo Eraut (1995) é possível identificar duas grandes fontes do conhecimento
profissional; uma que apela para o pragmatismo operante e outra para a erudição e
racionalidade científica. A primeira baliza um saber empírico que corporiza uma
concepção tecnicista da profissão, baseada em saberes de experiência feita, pouco
criativos e construtivos, enquanto que a segunda enleva o culto da sabedoria e da
espiritualidade, onde o lídimo saber profissional é fecundado na matriz da formação
académica.
Este novo paradigma de formação inscreve-se obviamente nos desígnios da segunda
fonte de conhecimento anunciada por Eraut, sendo prenunciador da afirmação so-
cioprofissional e da consolidação da carreira de treinador onde, por certo, a forma-
ção académica, pelo ideário que sustenta e pelo acervo de conhecimento que
comporta, fornece um inestimável contributo na elevação e qualificação dos pro-
cessos formativos e, consequentemente, na perseguição da excelência profissional.
Perrenoud (1993), ao definir formação como uma intervenção visando uma modi-
ficação nos domínios do saber-ser, do saber e do saber-fazer do sujeito em formação,
plasma um conjunto eclético de conhecimentos e competências que importa ad-
quirir no âmbito desse processo. Tal entendimento legitima a assunção de que a for-
mação do Treinador de Desporto deve considerar, simultaneamente, o treinador
como objecto e sujeito, tornando-o capaz de encarar os limites do seu conhecimento
e capacidades, de conceber a profissão como uma missão, de projectar as necessi-
dades prementes na busca da excelência profissional (Rosado & Mesquita, 2009).
Neste sentido, a formação académica, por se referenciar a processos que se orientam
para o desenvolvimento acentuado de diferentes áreas do conhecimento, radicadas
nas Ciências do Desporto, proporciona aos futuros treinadores a aquisição de uma
cultura geral, isto é, o desenvolvimento de competências de banda larga prenun-
ciadoras do desenvolvimento de atitudes críticas situadas, a abertura a novas ideias
e a capacidade de encarar os limites do seu próprio conhecimento, pelo desenvol-
vimento de competências metacognitivas.
Bento (2008), em referência à formação universitária, salienta o seu papel inequí-
voco de promover a capacidade de reflexão, de intervenção, de construção pessoal
e de formação, em matéria ética e deontológica quando comenta (excerto de texto
da página 34, 2º paragrafo):

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“…há que reafirmar que a Universidade não é somente uma instituição para a qua-
lificação e habilitação académica de estudantes. Nem apenas para os dotar, refor-
çar e potenciar com conhecimentos científicos entendidos estes em sentido restrito.
Ela tem igualmente que os “formar” ajudá-los a promover e a tomar a “forma”
dada pelo saber que releva do humano, do cultural, do espiritual e do moral. Não
pode desfazer-se da obrigatoriedade de assumir um protagonismo axiológico de
iluminar a sociedade, as suas organizações e os seus sujeitos e actores com a luz de
axiomas e normativos éticos”.

Trata-se de privilegiar na formação do Treinador de Desporto, e para a qual a formação


académica fornece um contributo inestimável, a organização de processos de de-
senvolvimento pessoal que respeitem a individualidade do treinador, que o esti-
mulem a descobrir-se e a descobrir a sua maneira pessoal de se tornar treinador, o
seu estilo, os seus sentimentos, os seus valores e crenças, num ambiente de reflexão
sobre si, “personalizador” da formação. Sendo que o treinador deverá ser uma pes-
soa culta, esperando-se que essa cultura eclética lhe permita corresponder às exi-
gências profissionais, o desenvolvimento de processos de auto-formação, de
inovação e de competências para o exercício profissional exige, cada vez mais, uma
formação inicial capaz de responder a estas prerrogativas.
Concomitantemente, a formação universitária pela inquietude, curiosidade e as-
sertividade face à compreensão e resolução de fenómenos e problemas emergentes,
constitui um nicho de excelência na produção de saberes. Essa mais valia assegura
aos futuros treinadores a possibilidade de desenvolverem atitudes de pesquisa, de
interesse e análise dos problemas correntes da prática, em sede de Treino Despor-
tivo, escudadas em saberes teóricos cientificamente suportados.
Aliás, a própria formação de treinadores carece de construtos teóricos que susten-
tem o delineamento e o desenvolvimento de modelos de formação, ao que não é
alheio o facto dos cursos de formação de treinadores serem relativamente recentes
e, consequentemente, imperar o empirismo e os saberes técnicos (Campbell, 1993;
Saury & Durand, 1998). A investigação neste domínio tem um longo caminho a per-
correr, sendo urgente e não mais adiável a sua perspectivação, porquanto dela de-
pende a qualificação dos processos formativos e a melhoria das práticas
profissionais.
De acordo com as directrizes provindas do Thematic Network Project AEHESIS (Duffy,
2005), as competências do Treinador de Desporto comportam três vectores estru-
turantes da sua construção:

(1) Saber demonstrar as competências necessárias potenciadoras do progresso dos


praticantes;
(2) Assumir atitudes e viabilizar condutas adequadas às situações específicas de ac-
tividade profissional, de acordo com os valores éticos da profissão;
(3) Possuir competências de planeamento, de organização, de implementação e de
liderança;
(4) Ser capaz de avaliar o trabalho desenvolvido, através da pesquisa e da auto-re-
flexão, propedêutico da melhoria das práticas profissionais.

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Como advoga Jones (1997) os conhecimentos que possibilitam a ascensão a estas


competências edificam-se na conjugação de saberes fornecidos por diferentes áreas
das Ciências do Desporto.
Nesta conformidade, a Universidade pela coexistência de duas culturas, a científica
e a das humanidades, alvora aos estudantes, futuros treinadores, uma formação,
em sede de Treino Desportivo, simultaneamente eclética e rigorosa, onde é dese-
jável que coabite ciência e ética, filosofia e tecnologia, erudição e pragmatismo,
epistemologia e racionalidade. Esta coabitação é exaltada por Bento (2008) quando
postula que a missão das instituições de formação e de investigação é, por excelên-
cia, a criação e difusão de saber mas, também, de integração de esforços e instru-
mentos de modelação de vida, na esteira de um comprometimento ético e cultural.

3. Competências Profissionais do Treinador de Desporto


A actividade do treinador no processo de treino e de competição é conotada como
multifacetada, requerendo, por isso, o domínio de um largo e exigente leque de co-
nhecimentos e competências, ajustado às condições particulares do envolvimento
da prática. Nesta conformidade, as competências profissionais, as quais incluem o
conjunto de atitudes, conhecimentos e habilidades face às exigências de contextos
de prática, têm vindo a ser alvo da atenção da investigação.
Neste âmbito e não raramente os conceitos de conhecimento e competência têm
sido referidos como sinónimos, sendo estudados de forma não sistemática e dife-
renciada (Baptista et al., 2007). Apesar do conceito de conhecimento possuir diver-
sas definições, a literatura é unânime em considerar que se trata da representação
de um domínio de conceitos ou princípios teóricos, que são aprendidos, lembrados
ou reproduzidos (Kirschner et al. 1997). Sendo assim, o conceito não inclui uma co-
notação de aplicação, sendo necessária uma mudança de paradigma que evolua das
questões relativas àquilo que os treinadores devem saber para a habilidade de aplicar
aquilo que sabem. Deste modo, é valorizada a aplicação do conhecimento estraté-
gico e situacional do treinador (Kirschner et al. 1997; Jones et al. 2003), a qual se
expressa em competências específicas, adaptadas às circunstâncias da prática, mu-
táveis e imprevisíveis.
Por sua vez, competência é uma expressão utilizada com diferentes significados (Carr,
1993), sendo, não raramente, confundida com performance o que, conceptualmente,
é erróneo, porquanto um indivíduo pode ser competente e, no entanto, não obter
boa performance em determinado momento por razões diversas. Tal, remete para a
necessidade de se atribuir um significado eclético ao conceito de competência, não
se remetendo à listagem de um conjunto de tarefas a serem cumpridas (Hager &
Gonczi, 1996). Kirschner et al. (1997) associam competência à capacidade que o indi-
víduo possui de utilizar eficazmente o conhecimento e a habilidade que possui, sendo
esta última, requisito imprescindível para aceder ao primeiro. Enquanto que a habi-
lidade é uma atitude processual, ou seja, corporiza uma capacidade para agir, a com-
petência transcende a acção, o que implica a utilização estratégica do conhecimento
(Baptista et al., 2007). O mesmo será afirmar que a competência remete para a tomada
de decisão intencional, convocando habilmente os conhecimentos e utilizando-os
adequadamente em situações imprevisíveis, se não mesmo adversas, modeladas por
factores contextuais particulares (Westera, 2001).

89
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O reconhecimento do Desporto enquanto veículo de afirmação política e social


tem vindo a reclamar a efectivação de uma liderança e vigilância activa e sistemá-
tica dos processos de treino por alguém qualificado, o treinador (Tubino, 1987).
Deste modo, e sendo o treinador cada vez mais uma personagem central na lide-
rança do processo de treino dos praticantes e responsável pela coordenação de equi-
pas de trabalho, é-lhe reclamado um domínio vasto de competências, em
referência às múltiplas funções que desempenha (Abraham & Collins, 1998). A ne-
cessidade de possuir um conhecimento profundo e vasto acerca dos fundamentos
teóricos e metodológicos que norteiam a planificação, estruturação do treino e op-
timização da performance, tem concedido primeiro plano aos conhecimentos pro-
venientes das Ciências do Desporto conotadas como “duras” (Biologia, Fisiologia,
Biomecânica, entre outras) e à Teoria e Metodologia do Treino Desportivo (Garcia
Manso et al. 1996).
As matérias do foro deontológico e pedagógico e em particular os primados axioló-
gicos que norteiam a construção e edificação de posturas profissionais eticamente
fundadas, são relegados para segundo plano. De facto, é comummente, reconhecido
que a formação pedagógica e humanista tem estado arredada das formações profis-
sionais dos treinadores, principalmente, em sede de formação outorgada pelo sis-
tema desportivo. Deixa-se, de lado, o desenvolvimento de competências
profissionais essenciais, com prejuízo da reflexão ético-deontológica, da análise
aprofundada do sentido do Desporto e das suas práticas profissionais (Rosado &
Mesquita, 2009). Há que assumir, e verter em sede de currículo, que ao treinador
desportivo, dada a função social que desempenha, é-lhe exigida uma intervenção
balizada por referenciais éticos, deontológicos e pedagógicos, respaldada em pos-
turas sócio-criticas.
Num nível macro de análise é impositiva a diferenciação das competências profis-
sionais do treinador desportivo em função do nível e contexto de prática onde
actua, isto é, o Treino de Crianças e Jovens e o Treino de Alto Rendimento, dada a
particularidade de finalidades e metas que os mesmos abraçam.
Particularmente, no que respeita ao Treino de Crianças e Jovens é primeira missão
do treinador ser educador, no Desporto e pelo Desporto, através da promoção do
desenvolvimento de competências de vida. Daqui emerge que ser competente neste
nível de prática, significa ser capaz de fomentar o gosto e entusiasmo pela prática
desportiva, enquanto actividade significante de um estilo de vida activo (Petlich-
koff, 1993; Mesquita, 2005).
Neste desiderato, assume importância crucial que o treinador valorize o desenvol-
vimento pessoal e social dos jovens praticantes através da prática desportiva, sob a
égide dos imperativos de educação e formação. Isso significa que o treinador deve
entender que os propósitos da prática desportiva não se esgotam no desenvolvi-
mento de competências motoras, devendo situar-se no fomento de valores e atitu-
des, cruciais para o desenvolvimento da literacia desportiva e da filiação à prática
desportiva para a vida (Mesquita, 2004). Deste modo, a sensibilidade para intervir
e reflectir com sentido de responsabilidade sobre os problemas éticos, cívicos e so-
ciais, releva-se como eixo estruturante da aquisição de competências profissionais
no âmbito do Treino de Crianças e Jovens.

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No âmbito da influência que pode exercer no desenvolvimento da literacia despor-


tiva, das competências motoras e do entusiasmo pela prática, sobressai a importân-
cia da criação de ambientes positivos de aprendizagem, os quais devem ser
propulsores do desejo de auto-superação, da busca progressiva da autonomia, do
comprometimento e da responsabilidade dos praticantes, na prossecução das tare-
fas de treino e de competição (Mesquita, 2005).
Do mesmo modo, a sua intervenção técnica tem de ser balizada por referenciais de
qualidade, na medida em que é nas etapas da formação inicial que a dotação motora
geral e os contornos elementares da dotação motora específica são adquiridas (Mes-
quita, 2009). Isto exige uma formação específica capaz de responder às exigências
particulares da modalidade e, simultaneamente, abrangente no que se referencia
à exploração das possibilidades educativas do Desporto na formação de crianças e
jovens (Rosado & Mesquita, 2009).
Tomando o Treino de Alto Rendimento como contexto de intervenção do treinador,
assume como primordial que este domine um conjunto de competências profissio-
nais simultaneamente ecléticas, em referência à pluralidade de domínios temáticos
onde intervêm, e específica, tendo por referência o nível de prática onde actua. A
elevada exposição pública a que está sujeito, as prerrogativas de rendimento que
lhe são impostas no âmbito dos quadros competitivos onde participa, a necessidade
de ser capaz de liderar, catalisar a dinâmica de grupo e optimizar climas de partici-
pação plural nas equipas técnicas que coordena requerem do treinador de Alto Ren-
dimento uma formação fundada em bases sólidas. O ambiente onde,
frequentemente, actua, por assumir contornos instáveis e adversos, exige-lhe a ca-
pacidade de tomar decisões dinâmicas, as quais reivindicam planos estratégicos de
intervenção, suportados numa actividade intensiva de reflexão, decisão e opera-
cionalização (Cushion et al., 2003).
Mais importa que seja capaz de adoptar posturas sócio-criticas face às políticas de
desenvolvimento desportivo vigentes, sendo capaz de valorizar o Desporto en-
quanto instrumento do desenvolvimento humano. Capacidade crítica, agir estra-
tegicamente, estabelecer sinergias a partir da optimização de recursos, valorizar a
autonomia, o compromisso e a responsabilidade partilhada de todos os intervenien-
tes são determinantes conducentes à excelência profissional do treinador de Alto
Rendimento.
Do mesmo modo, a sua visão sobre o mundo e o Desporto terá de ser abrangente,
ética e deontologicamente fundada, sendo capaz de influenciar a adopção de boas
práticas aos profissionais e atletas sob a sua responsabilidade, de gerar ambientes
propulsores do desenvolvimento do Desporto, de valorizar a integração do conhe-
cimento e o desenvolvimento tecnológico emergente da investigação científica e
de experiências de sucesso internacionalmente reconhecidas.

4. Modelos de formação emergentes na formação do Treinador de Desporto


O treinador nos primórdios da sua existência era considerado uma figura irrele-
vante e dispensável, pelo simples facto de se considerar que o Desporto não se en-
sinava, tendo esta crença o seu expoente de divulgação no apogeu da Revolução
Industrial (During, 1994). Melhor aludindo, o Desporto era um bom mestre que

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dispensava treinadores; para além disso, desempenhar a função de treinador emer-


gia como uma herança gratuita de premiação de carreiras de sucesso como atleta.
Campbell (1993) denuncia esta situação e releva o parco estatuto social que a função
de treinador desportivo possui na década de cinquenta, estendendo-se até ao prin-
cípio da década de noventa do século passado.
Lyle (2002) adverte para esta realidade sobressaindo, no entanto, o facto do início
do novo século ser um momento, por excelência, para a qualificação profissional
do Treinador de Desporto, dada a vontade política em credibilizar socialmente esta
profissão, da elevada expansão e impacte social do Desporto e do interesse crescente
da academia em estudar este fenómeno.
Tradicionalmente, a investigação que incide sobre a formação de treinadores carac-
teriza-se pela dispersão e ausência de modelos teóricos robustos (Lyle, 2002). A am-
biguidade, desde os primeiros tempos da actividade do treinador, no tocante ao
reconhecimento social da profissão tem contribuído fortemente para esta situação.
Woodman (1993) destaca algumas atribuições para uma profissão se constituir,
como sejam: conhecimento de base; prática profissional; habilidades específicas;
carreira estruturada; código deontológico de prática; requerimentos para a formação
e exercício profissional e uma associação profissional. Alguns destes aspectos en-
contram-se no presente momento em fase de construção, abrindo perspectivas para
se almejar num espaço temporal que se pretende breve, o alcance do reconheci-
mento social da profissão de Treinador de Desporto.
Este novo impulso, tem catapultado a discussão, em sede de sistema desportivo e
académico, sobre a inoperância dos modelos de formação vigentes, porquanto mos-
tram não resolver os problemas que se colocam ao treinador no seu quotidiano,
sendo premente promover uma formação que se afigure adequada às reais necessi-
dades que este enfrenta no seu quotidiano; equacionando conteúdos e estratégias,
criando condições para a construção de uma profissão com capacidade de resposta
aos desafios que o mundo do Desporto actual coloca (Rosado & Mesquita, 2008).
No âmbito da formação do Treinador de Desporto importa equacionar os propósitos
e modelos de formação no âmbito da formação inicial (de certificação de nível) e da
formação contínua, na medida em que comportam propósitos distintos embora
complementares (Gilbert & Truddel, 2004). Nomeadamente, a formação contínua
é concorrente da renovação de saberes, da intensificação do comprometimento do
treinador com a profissão, em suma, da qualificação profissional (Saury & Durand,
1998; Rosado & Mesquita, 2008). Neste particular, importa promover a conviviali-
dade, a partilha de conhecimento e de experiências profissionais entre treinadores
com níveis de qualificação distintos, porquanto incita a discussão e a reflexão sobre
as práticas profissionais, factor conducente à busca da excelência profissional numa
perspectiva de longo prazo.
A formação do treinador, para almejar corresponder à panóplia de competências re-
queridas para o exercício profissional, onde não são de desprezar as competências
pessoais, terá de ser orientada por valores, deverá promover o pensamento crítico
e, ainda, a aquisição de um conhecimento tácito robusto, para fazer face aos cons-
trangimentos concretos, complexos e imprevisíveis, apanágio dos ambientes de
prática (Jones, 2006).

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Contrariamente a tais exigências, a formação de treinadores desportivos tem-se es-


truturado em torno daquilo a que apelidamos de visão tecnocrática estrita, num
ambiente de grande desvalorização dos aspectos teóricos e dos espaços de reflexão.
Por outro lado, a formação teórica, ainda assim escassa, envolve-se em saberes abs-
tractos arredados da experimentação, não potenciando o desenvolvimento de sa-
beres centrados na acção profissional. De lado, fica a formação em matéria
relacional e deontológica, o desenvolvimento de posturas profissionais reflexivas
e críticas, a aquisição de uma consciencialização de si enquanto pessoa e enquanto
profissional, a possibilidade de desenvolver competências de investigação e a cria-
tividade (Rosado & Mesquita, 2009).
Do mesmo modo, o sistema operante coloca o formando, ou seja, o futuro treinador,
como um mero receptor, quando a dinâmica e a imprevisibilidade dos ambientes
onde actua reclamam a capacidade de contextualizar decisões e acções constrangi-
das ecologicamente. Neste âmbito, a reflexão e a aprendizagem experiencial têm
vindo a revelar-se estratégias de formação fulcrais na aquisição de competências
profissionais (Gould et al., 1990; Salmela, 1995; Knowles et al., 2005). Colocam em
causa as tradicionais estratégias de formação de treinadores, assentes em prescri-
ções de desempenho profissional, as quais não conferem espaço à aprendizagem
pela reflexão acerca da própria prática (Jones et al., 2003; Knowles et al., 2005). O
sentido da mudança não implica tanto a necessidade de adquirir conhecimento de-
clarativo mas, preferencialmente, a capacidade de reflectir a prática e de contex-
tualizar o conhecimento declarativo e processual, de forma a melhorar o
conhecimento condicional (Potrac et al., 2000).
A importância da reflexão na aquisição de competências profissionais encontra su-
porte na teoria de Schön (1983, 1987). Este autor, baseado na investigação de mo-
delos profissionais em áreas diversificadas, verificou que o crescimento profissional
é consumado através da experiência de reflexão sobre os dilemas práticos, referido
como conversação reflexiva. De acordo com Schön (1987), a teoria da reflexão é par-
ticularmente apropriada para ambientes onde os procedimentos são altamente fle-
xíveis, com possibilidades de respostas diferenciadas, sujeitas a apreciações
qualitativas de processos complexos, apanágio dos envolvimentos de intervenção
do treinador. Segundo o autor os indivíduos prestam mais atenção à informação
que tem um significado pessoal e imediato para eles, particularmente quando a
atenção operativa é grande, o que significa que a aprendizagem quando é situada
(problema concreto, emergente de cenários reais de treino/competição) promove
a intensificação do envolvimento pessoal e a focalização nos problemas.
Todavia, a ilusão de que a capacidade reflexiva é adquirida naturalmente pela ex-
periência tem conduzido à sua negligência nos programas de formação de treina-
dores. Não é raro assistir-se a uma preocupação exagerada em se cumprir o
programa, ou seja, dar toda a matéria, sendo negligenciados os processos de reflexão
e mesmo quando estes existem, são desencadeados nas horas que eventualmente
sobram. Neste âmbito, as reflexões não são sistemáticas, não possuem orientação
de acordo com parâmetros de reflexão preestabelecidos, não exercem, por isso, a
influência desejada na capacidade reflexiva acerca da própria acção.
Para que a reflexão seja bem sucedida deve comportar 4 fases (McCaughtry et al.,

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2005): (1) Interpretação de situações-problema e construção de estratégias; (2) Fo-


calização da atenção na reflexão sobre as suas experiências passadas, no sentido de
estabelecer possíveis analogias com as situações de momento; (3) Desenvolvimento
de soluções e estratégias para os problemas concretos, baseadas no confronto da re-
flexão sobre o experimentado (no momento/antes); (4) Implementação e avaliação
dos resultados com espaço para a reflexão, propedêutica da compreensão das causas
do efeito obtido (sucesso/insucesso). Complementarmente, a reflexão deve acon-
tecer em envolvimentos situacionais apelativos da discussão, na medida em que a
reflexão sobre a própria actuação ou a de outros, só melhora a capacidade reflexiva
se a troca de ideias, conceitos e sentimentos for intencionalmente promovida.
Sendo assim, os programas de formação devem deliberadamente provocar experiên-
cias de auto-reflexão, de partilha de pensamentos, da valorização das experiências
práticas, em contextos específicos suportadas pela supervisão e aconselhamento.
Obviamente que a reflexão sobre a prática não se deve cingir, exclusivamente, aos
conteúdos de natureza técnica mas também, e não menos importante, ao desenvol-
vimento pessoal e social dos formandos concretizado na capacidade de aprender a
partilhar ideias, de aceitar as diferenças, de desenvolver valores morais e de valorizar
a boa prática desportiva. A construção de um estilo pessoal é um dos requisitos para
alcançar a expertise, sendo potenciada pela prática reflexiva. Os grandes erros no
treino cometem-se, não raramente quando os treinadores principiantes querem ser
como outros treinadores, usualmente mais experientes e com sucesso, adoptando
comportamentos que não se aplicam à situação em questão nem tampouco à sua
personalidade. Daí que o mais importante é fomentar nos treinadores principiantes
a capacidade de reflectir e de tomar decisões baseadas na sua própria experiência, e
não na de outros, base da construção do conhecimento profissional, proveniente da
reflexão na acção e da reflexão sobre a acção.
Na realidade, o contacto dos treinadores principiantes com treinadores experientes
têm vindo a revelar-se uma estratégia crítica para facilitar o processo reflexivo, eixo
central na aquisição de competências profissionais (Knowles, Borrie & Telfer, 2005;
Salmela, 1995, 1996), ressaltando, neste âmbito, a mentoria (processo de acompa-
nhamento e aconselhamento de um treinador experiente do treinador em forma-
ção, em situações concretas de prática) como uma valiosa estratégia de formação.
De facto, a mentoria é apontada pelos treinadores experts como a estratégia de for-
mação que mais efeito produz na optimização das capacidades do treinador (Irwin
et al., 2005; Michels, 2001). Permite fazer o elo entre o conhecimento declarativo,
o processual e o condicional, quando o formador estabelece a relação entre o conhe-
cimento dito teórico ou fundamental e o conhecimento prático, emergente dos pro-
blemas concretos apanágio do treino e da competição. Segundo Schembri (2003),
o mentor é um conselheiro experiente, em quem se pode confiar, sendo a mentoria
particularmente atractiva para aqueles que realizam a formação de treinadores,
dado que essa experiência é consumada durante o exercício profissional, propor-
cionando oportunidades sublimes de reflexão sobre experiências de coaching con-
cretas. Os “mentorados” têm assim oportunidade de serem formados em situações
reais, reflectindo sobre a experiência vivida e sendo guiados para um nível novo de
intervenção com a colaboração do mentor.

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Do que foi exposto resulta que, mais do que adquirir elevado conhecimento teórico,
importa, acima de tudo, possuir conhecimento prático acerca de soluções a aplicar,
em cada situação particular de treino/competição. O mesmo será afirmar que no
processo de formação importa, sobretudo, que os treinadores em fase de formação
adquiram e dominem os conhecimentos que são capazes de aplicar. De facto, é o
sentido de aplicação dos conhecimentos que permite a consolidação das aprendi-
zagens sustentáveis a longo prazo; caso contrário, mesmo que o treinador em for-
mação possua um vasto conhecimento, não significa que o saiba aplicar, de acordo
com as particularidades das situações de treino/competição. Daí que é o conheci-
mento condicional (quando e onde aplicar procedimentos particulares), adquirido
pela aprendizagem experiencial, que confere apropriação ecológica ao conheci-
mento declarativo (informação factual sobre o que fazer) e processual (como fazer).
A importância da aprendizagem experiencial no processo de formação de treina-
dores é acrescida, por integrar o material de base necessário à construção do conhe-
cimento profissional, na medida em que o que sucede num contexto particular de
aprendizagem é que confere significado à solução que se adopta (Potrac et al., 2000).
Tal significa que os conhecimentos teóricos adquiridos só se tornam verdadeira-
mente úteis e significativos quando mostram ser eficazes, em contextos dinâmicos
sujeitos a circunstâncias únicas, apanágio do treino/competição (Jones et al., 2003).
Para tal, é necessário que, no processo de formação, a vivência de experiências prá-
ticas seja valorizada e que a participação nas actividades seja activa e deliberada,
em detrimento da participação passiva, na qual, o formando é apenas um mero re-
produtor das orientações prescritas pelo formador.
Promover nos formandos uma atitude proactiva em oposição à reactiva, esta última
estimulada frequentemente nas estratégias de formação tradicionais onde o for-
mando se limita a receber informação emitida pelo formador e a aplica reactiva-
mente sem a questionar, é crucial na edificação do conhecimento profissional.
Em suma, aprender experienciando não pode significar a utilização ausente de cri-
tério de situações práticas, sem referenciais pedagógicos e metodológicos nortea-
dores das estratégias de formação a aplicar. A aprendizagem experiencial deverá ser
aproveitada pelos formadores, enquanto meio prioritário de aprendizagem, desde
que se baseie na compreensão das decisões tomadas e nos erros cometidos. A refle-
xão sobre a própria aprendizagem, com incremento progressivo da autonomia e da
responsabilização nas decisões tomadas, decorrentes prioritariamente da adaptação
das soluções aos problemas reais, e não replicando acriticamente as prescrições
apontadas pelo formador, promove a aquisição de conhecimento profissional sus-
tentável a longo prazo.

Conclusões
Tradicionalmente, a formação de treinadores tem sido consumada em sede de sis-
tema desportivo, competindo às Universidades o papel maior, embora informal e
nem sempre reconhecido, de fornecer conhecimento pedagógico e científico sus-
tentado. Na actualidade, a eclosão de um novo paradigma de formação de treina-
dores na Europa, o qual projecta um envolvimento maior e mais comprometido da
Universidade, reconhece que a excelência profissional do treinador pode ser alcan-

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çada por mais do que uma via formativa, entendendo-se como desejável a existência
de convergências e tangências entre as diferentes vias. Este novo paradigma de for-
mação é, indubitavelmente, prenunciador da afirmação socioprofissional e da con-
solidação da carreira de treinador, onde, por certo, a formação académica pelo
ideário que sustenta e pelo acervo de conhecimento que comporta, fornece um
inestimável contributo na elevação e qualificação dos processos formativos e, con-
sequentemente, na perseguição da excelência profissional.
Neste alcance, deverá existir um esforço inegável em configurar curricular e peda-
gogicamente os programas de formação de alicerces conceptuais robustos, congre-
gando conteúdos diversificados e complementares, os quais perpassam os científico
e tecnológicos alcançando os do foro deontológico, relacional e humanista.
A necessidade de treinadores qualificados tem crescido de forma exponencial na
nossa sociedade, contrariando a crença geral de que qualquer um pode ser treinador,
desde que o deseje e que o seu passado desportivo o permita. Se esta necessidade é
hoje percebida como fundamental pela maioria dos agentes desportivos, também
é verdade que as ofertas de formação focam-se, no essencial, na optimização da per-
formance nos aspectos relativos ao conhecimento técnico e táctico (no caso dos
Jogos Desportivos) e no ensino e mestria das habilidades desportivas; por outro
lado, os conteúdos “mais teóricos” são abordados não raramente de forma abstracta,
longe dos problemas colocados pela prática e em particular dos envolvimentos e
particularidades situacionais que lhes conferem legitimidade e significado. Trata-
se, por isso, de uma formação básica, arredada de uma relação perene e auspiciosa
entre teoria e prática onde a primeira peca por ser demasiado abstracta e a segunda
demasiado funcionalista.
Deste modo, o saber em uso, ou seja o domínio de competências, como tão bem re-
fere Perrenoud (1993), emerge na actualidade como bússola orientadora da confi-
guração curricular dos cursos de formação. Todavia, o saber em uso não deve ser
confundido com o domínio de saberes técnicos, arredados das teorias que os sus-
tentam, mas sim sustentar-se em competências teoricamente fundadas, que per-
mitam ao treinador a capacidade de reflectir e compreender o sentido das suas
acções, pelo desenvolvimento de competências metacognitivas. Daí ser lícito e
apropriado afirmar que o treinador deve ser um “prático-teórico”.
Para almejar estes intentos os modelos de formação não podem basear-se mais em
estratégias de ensino altamente explícitas e prescritivas, assentes num estilo de en-
sino autocrático, onde os formandos assumem um papel passivo e onde, não rara-
mente, os conteúdos são abordados de forma abstracta, descontextualizados das
prerrogativas da prática.
O desenvolvimento destas competências, exige novas abordagens, construtivistas
e ecológicas, melhor servidas por estratégias de formação mais informais, mais im-
plícitas e mais flexíveis. Se o desenvolvimento profissional for percebido como re-
gido pela complexidade, resultado de uma multiplicidade de inter-conexões entre
dimensões micro, meso e macro, onde as dimensões individuais, grupais e organi-
zacionais se estruturam em sistemas dinâmicos, será necessário adoptar modelos
de formação que valorizem a reflexão, a aprendizagem experiencial e a mentoria
enquanto estratégias qualificantes da formação do Treinador de Desporto. A pesquisa

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nesta matéria é, naturalmente, fundamental e deve responder a questões sobre as


necessidades de formação de treinadores, nos seus diversos níveis e contextos pro-
fissionais, bem como à eficácia das diversas estratégias de formação que dão corpo
e substância aos modelos em uso.

notas
1 Estruturas europeias afectas à formação superior de profissionais de Desporto em geral e do treinador
em particular: European Coaching Council (ECC), da European Network of Sport Sciences, Education and
Employment (ENSSEE) em associação com o Thematic Network Project AEHESIS (Aligning a European Hig-
her Education Structure in Sport Science) e do International Council for Coaching Education (ICCE) (2006).
2 Entende-se por Desporto de Participação toda a prática desportiva organizada que se desenvolve em
múltiplos contextos de prática (escolas desportivas, núcleos desportivos, clubes, autarquias, etc.), com
quadros competitivos pouco formais ou mesmo informais.
3 Entende-se por Desporto de Rendimento toda a prática desportiva organizada que se desenvolve em
clubes, associações (selecções regionais) ou federações desportivas (selecções nacionais) com quadros
competitivos formais.
4 Diário da Republica, 1ª série nº 252 - 31 de Dezembro de 2008, Capítulo II, artigo 6º, 1º ponto, alínea a).

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Educação Física Escolar e o Esporte no Brasil:


Entre o Insólito e o Impertinente
Walter Roberto Correia
Universidade de São Paulo - Brasil

O presente ensaio é a expressão da versão revista e ampliada do texto “Educação Fí-


sica Escolar e Esporte: uma relação não espetacular” apresentado no Seminário “As
Conquistas da Educação Física” na Assembléia Legislativa do Estado de São
Paulo/Brasil no ano 2008. Desta maneira, caminhamos no sentido de adensar al-
gumas reflexões numa questão que, por ora, se demonstra atual e contraditória, ou
seja, as relações socialmente estabelecidas entre Educação Física Escolar e o fenô-
meno Esporte. Portanto, nossa opção foi a de investimento no que aqui denomina-
mos de “espírito da impertinência”.
A palavra impertinente (do latim impertinens ou impertinentis), dentre algumas in-
terpretações, situa-se como algo relacionado com um argumento ou comporta-
mento ofensivo, desrespeitoso, inoportuno ou insolente. Assim sendo, para as
finalidades de configuração de uma reflexão que envolva a Educação Física e o Es-
porte, procuraremos formular indagações que se aproximem mais do campo da in-
solência e do inoportuno, deixando para trás o território do ofensivo ou do
desrespeitoso. Desde já, nos colocamos como insólitos, propondo o atrevimento e
a ousadia na exploração de uma temática complexa que, por sua vez, supera nossas
presunções de cunho acadêmico e profissional.
Assim sendo, seguindo nosso exercício especulativo, tomamos o binômio Educação
Física - Esporte como objeto de nossa reflexão. Considerando os fatos sociais como
os Jogos Panamericanos – Rio/ 2007, a participação e os resultados nos Jogos Olím-
picos na China (2008), a indicação do Brasil como sede da Copa do Mundo de Fute-
bol em 2014 e, a inédita e derradeira “vitória” do Brasil para sediar os Jogos
Olímpicos de 2016, podemos dispor e testemunhar um movimento “plural” e “en-
tusiástico”, de avaliações e diagnósticos no que tange ao desempenho do sistema
esportivo brasileiro. Nesse contexto, entre uma infinidade de “vozes” e “profecias”,
encontramos uma narrativa recorrente, ou seja, para que o Brasil se constitua numa
potência olímpica é necessário condicionar estrategicamente a Educação Física Es-
colar neste projeto.
Essa mensagem que perpassa outros tempos é vigorosamente reafirmada por dife-
rentes interlocutores de setores provenientes da esfera governamental/ministerial,
do jornalismo, da classe política, das políticas públicas, dos atletas olímpicos e não
olímpicos e, sobretudo, no senso comum. Representações dessa estirpe, não alcan-
çam o status do se possa denominar como pensamento inovador ou de vanguarda.

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A lógica que subsiste ao crivo da crítica e busca ancoragem no espectro social mais
amplo, esforça-se por tentativas de atrelamento e subordinação da Educação Escolar
aos interesses da instituição esportiva. Esse processo está devidamente registrado
nos anais da historiografia brasileira e mundial. Análises fomentadas pelas Ciências
Humanas sejam de teor sociológico, filosófico ou antropológico, anunciam e de-
nunciam de forma recorrente uma relação muito estreita entre autoritarismo e po-
pulismo em políticas de massificação das práticas esportivas.
O Esporte como manifestação sociocultural incontestável, está inserido na dinâ-
mica da vida cotidiana com toda sua multidimensionalidade, e desta maneira, as-
sentado sob os alicerces de sua inexorável ambigüidade, contradição,
paradoxalidade e, não menos verdadeiro, seu “encanto”. Dito de outra forma, o Es-
porte é “demasiadamente humano!” Assim, os aspectos econômicos, políticos, socio-
lógicos, antropológicos, ecológicos, técnicos, filosóficos, biológicos, históricos,
psicológicos, estéticos e éticos se entrecruzam reciprocamente e se interpõem como
desafios para todos aqueles que se ocupam direta ou indiretamente dele. O fenô-
meno esportivo é um grande empreendimento da sociedade globalizada, ajustado
ao espectro mais amplo da sociedade tecnológica, do mundo capitalista e, suntuo-
samente alinhado ao imperativo da “sociedade do espetáculo”.
Nesse contexto, se faz necessário sublinhar a pretensão de certos atores sociais em
sugerir a subordinação do sistema educativo formal (escolas, professores, alunos,
aulas e práticas educativas) aos ditames do sistema esportivo. Nosso entendimento
sobre essa questão incita-nos para o apontamento do recrudescimento de uma in-
compreensão generalizada/socializada tanto da natureza do fenômeno Esporte
como da especificidade da instituição escolar. As demandas proclamadas pelos pro-
tagonistas que defendem essas proposições, invariavelmente comportam interesses
econômicos e ideológicos que não necessariamente coincidem com os interesses
públicos mais legítimos e democráticos.
Como elucidação destas convicções identificamos – “Esporte é saúde”; “Esporte é in-
tegração social”; “Esporte é inclusão social etc.”. A linguagem disseminada ao grande
público se consubstancia de forma linear e homogeneizada, tendo a pretensão de
convencer a população dos presumíveis “benefícios” do Esporte como uma de-
manda universal. Neste ideário compartilhado no fluxo da vida ordinária pelos ci-
dadãos e cidadãs, lançamos como contraponto impertinente que o que estava em
jogo no “Jogo Grego Antigo” é distinto do que está em jogo no Esporte dos “tempos
modernos”, ou como preferem alguns, da “Modernidade Tardia!”.
Adicionando mais um elemento reflexivo em nossa discurssividade insólita, o jogar
para “louvar” as divindades gregas na antiguidade implica um fenômeno certa-
mente diferenciado do “esportear” para os patrocinadores no cenário da moderni-
dade mutante. Cabe aqui, portanto, destacar que nem sempre o Esporte é saúde! Nem
sempre o Esporte é inclusão e paz social. Melo (2001) nos provoca com sua pertinência
impertinente com a respectiva interrogação: Esporte é saúde: desde quando? Na con-
figuração “volátil” do Esporte como espetáculo, seus “tempos e lugares” já são pre-
viamente marcados, dito de outra forma, para cada corpo um lócus diferente na
“grande festa global”. Enfim, um “certo esporte” não vem, de fato, se legitimando
como direito amplo de e para todos.

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Considerando uma mentalidade pragmática e utilitarista, identificamos na socie-


dade uma multiplicidade de orientações publicamente proclamadas que “tecem” e
“engendram” arbitrariamente, uma “aproximação” conceitual e institucional do
clube e da escola, do atleta e do aluno, do professor e do técnico, da educação e do
adestramento, para prover o Esporte com “talentos esportivos” provenientes do
sistema escolar. Exemplificando, no treinamento esportivo o que se almeja é a ma-
ximização do movimento do corpo humano. A racionalização, a mensuração, a es-
pecialização e a máxima produtividade, tal como os slogans “NOTHING IS
IMPOSSIBLE”” (Nada é Impossível) e “NO LIMITS” (Sem Limites), são imperativos
deste processo. Na escola e na Educação Física Escolar os rituais, os conhecimentos,
a linguagem, os símbolos, os procedimentos, o estatuto jurídico, as finalidades e os
processos sociais são outros.
A configuração e a proposição dos saberes socialmente relevantes a serem selecio-
nados, sistematizados e ressignificados na escolarização e na Educação Física Escolar
são dimensões prioritárias e de reivindicação autônoma para o Ministério da Edu-
cação e não para sobreposição de demandas oriundas e pontuais do Ministério do
Esporte. Resultados e performances esportivas, não se coadunam linearmente com
fracasso ou sucesso escolar de ontem, hoje e amanhã.
Temas e objetivações culturais relacionadas ao movimentar-se humano e/ou a cul-
tura corporal de movimento, são elementos constitutivos e demarcadores da espe-
cificidade da Educação Física Escolar. A política educacional brasileira, por meio dos
seus Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN/1997) prescreve os conceitos corpo
e movimento como referências conceituais para orientação do referido componente
curricular. Nessa mesma, se inscreve a proposição do estudo das manifestações es-
portivas nos diferentes níveis da escolaridade básica. O que se almeja, portanto, é a
compreensão ampla deste “marco conceitual”, otimizando e recriando as possibili-
dades de aprendizagem e compreensão sobre corpo/movimento humano. A partir
da sistematização crítica dos saberes escolares, sejam esses de dimensões concei-
tuais, procedimentais ou atitudinais/valorativas, podemos sinalizar e explicitar as
correlações entre o Esporte da escola e o Esporte na escola (VAGO, 1996) e, so-
mando-se neste contexto, as relações de interfaces e distinções dinâmicas entre
estes mesmos.
O Esporte da escola é passível de ser abordado por diferentes áreas do saber, podendo
ser problematizado na sua transversalidade. Reafirmando a “força” do Esporte como
tema e objeto de estudo, não podemos admitir que a especificidade da instituição es-
colar seja negligenciada, ou seja, desconsiderar as demandas concretas, sobretudo,
históricas, no que tange à singularidade e identidades culturais de seus protagonistas.
A escola como construção histórica que é, necessita empreender uma reflexão filo-
sófica sobre os seus propósitos constantemente, de forma a favorecer sua atualiza-
ção política e pedagógica. Assim sendo, nunca é redundante o debate e o resgate
sobre certas “obviedades”, especialmente quando essas mesmas trazem consigo as
complexidades inerentes e emergentes dos significados e dos saberes escolares no
âmbito da escolarização básica. O fracasso e/ ou sucesso escolar são também resul-
tantes de uma escola que pensa, ou não, autonomamente sobre suas próprias pos-
sibilidades e limitações. Sendo assim, são imprescindíveis questões como:

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De onde são provenientes os saberes escolares? Quem realiza a seleção dos conteú-
dos a serem desenvolvidos na sala de aula? Que instâncias autorizam e legitimam
o que se ensina ou o que se aprende na escolarização? Quem responde pelo o que
não se ensina e o que não se aprende? Como é feita a construção e disponibilização
do conhecimento escolar? Qual é a função do componente curricular Educação Fí-
sica? O que justifica o tema Esporte como conteúdo escolar e na Educação Física?
Quais são as inevitáveis ênfases e omissões presentes no processo de estruturação
curricular? Nessa perspectiva, Canen & Moreira (2001) nos ofertam uma reflexão
pontual sobre os dilemas da construção curricular:

Sabe-se que o currículo corresponde a uma seleção da cultura, que, se faz em um


universo mais amplo de possibilidades. Essa seleção, ao enfatizar determinados
saberes e ao omitir outros, expressa uma posição político-pedagógica que opera a
favor dos interesses de determinados grupos.” (p.7).

Essas indagações continuarão perpassando o debate educacional, uma vez que a


produção histórica da escola e de seus “objetos e conteúdos” expressam um campo
de disputas ou, em outras palavras, as ênfases e as omissões do currículo escolar são
todas elas “interessadas”. O que se persegue e se acirra em termos de embates edu-
cacionais, são lutas por projetos, sempre parciais e incompletos, na perspectiva e
na pretensão da hegemonia ou universalização de modelos de sociedade e cultura
dos seres humanos. Todos os discursos historicamente produzidos para e por meio
da educação, seja esta escolar ou não, partiram de uma premissa irrefutável, ou seja,
que saberes implicam a configuração de poderes.
Assim sendo, mesmo considerando que toda forma de elaboração de conhecimento
(científico, religioso, artístico, filosófico, sapiente etc.) esteja constituída de uma
dimensão pública e coletiva, sua socialização não se reveste de uma partilha pautada
pela cooperação justa e equânime, dito de forma diferente, mulheres e homens, ne-
gros e brancos, pobres e ricos, crianças e adultos, escola pública e particular, se apro-
priam de forma desigual do saber escolar e não escolar, o que por sua vez, confere
poderes e lugares desiguais e assimétricos no plano da convivência social. Para
Freire (1993) estas questões implicam um posicionamento político como podemos
identificar:

Se nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da equi-


dade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o diferente
e não a sua negação, não temos outro caminho senão viver plenamente a nossa
opção. Encarná-la, diminuindo assim a distância entre o que fizemos e o que fa-
zemos. Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, ex-
plorando os outros, discriminado o índio, o negro, a mulher não estarei ajudando
meus filhos a serem sérios, justos e amorosos da vida e dos outros. (p.67).

As considerações acima mencionadas dizem respeito igualmente em relação à cul-


tura corporal de movimento e, sem dúvidas, em relação ao Esporte. Saber ou não
saber, o que saber, como saber, saber e não poder, poder e não saber, saber e poder,

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saber e viver, são questões que repercutem concretamente na vida e na dignidade


das pessoas. Essas condições são imprescindíveis nos processo de ruptura com a alie-
nação imposta, especialmente no manejo/manipulação do mundo adulto em rela-
ção ao que chamamos de “dominação etária” do universo adulto sobre o corpo
infanto-juvenil na esfera da formação, iniciação e especialização esportiva!

Quando um número muito grande de instâncias formadoras de consciência ideo-


logicamente falsa age sobre uma mesma instituição, no caso o Esporte, os agentes
(no caso os praticantes) podem ser iludidos sobre seus próprios interesses verda-
deiros (KUNZ, 2000, p.27).

Partindo da premissa que a escolarização não é um processo social neutro sobre o


qual se projetam expectativas e demandas sociais prementes, uma questão se
impõe, ou seja: Como o Esporte deve ser abordado na perspectiva dos saberes esco-
lares? Qual seria a contribuição do componente curricular Educação Física no pro-
cesso de tematização do fenômeno esportivo nos diferentes níveis do Ensino
Básico? Como configurá-lo como tema transversal? De que maneira podemos oti-
mizar a participação dos diferentes componentes curriculares ou áreas do conheci-
mento humano tendo o Esporte como tema integrativo do projeto escolar?
(CORREIA, 2008).
Diante do exposto, quais seriam algumas alternativas promissoras para que o pro-
cesso de sistematização dos conhecimentos escolares relativos ao tema/fenômeno
Esporte alcançasse uma pertinência e consistência curricular e educativa? Na escola
podemos esboçar ensaios propositivos para um estudo do Esporte de maneira de-
monstrar que os seres humanos são estruturados para moverem-se. Que os seres
humanos são capazes de desenvolver e expressar suas capacidades e habilidades cor-
porais e de movimento para adaptação, interação e transformação de si e do meio
em que vivem. Ainda na direção dessas pretensões, é passível de sensibilização e
esclarecimento, que o Esporte implica linguagem, códigos, significados e intencio-
nalidades construídas socialmente. Podemos por meio do debate educativo, de-
monstrar que os saberes e poderes corporais/movimento no contexto esportivo são
socializados de forma muito desigual entres os membros de uma mesma sociedade,
conforme sua classe social, poder econômico, gênero, grupo étnico etc.
Não obstante, sob o prisma da cultura escolar podemos refletir sobre as relações do
fenômeno esportivo com as questões relativas à saúde, articulando criticamente os
conceitos qualidade da vida e qualidade de vida! A condição para configurar uma
transformação metodológica e pedagógica como sugere Kunz (2000) para ressigni-
ficação do Esporte como trabalho, linguagem e interação humana, a partir de uma
razão comunicativa de teor e densidade crítica é mais do que plausível e necessária.
Nesse contexto, podemos efetuar um investimento na articulação dessas questões
com a dimensão do consumo, do meio ambiente, do lazer, da diversidade cultural,
da sexualidade e outras. Cabe aqui ressaltar que não descartamos o estudo dos ele-
mentos constitutivos do movimento inerentes à pluralidade das manifestações es-
portivas e a exploração de atividades dessa natureza nos seus aspectos técnicos,
lúdicos e estéticos.

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Talvez neste sentido, caiba a assertiva de que compete à escola a sistematização de


saberes socialmente relevantes num dado momento histórico, sobretudo, a elabo-
ração de uma linguagem crítica em relação a estes mesmos saberes. Assim sendo, a
escola pode oferecer e dispor as perguntas que não são comumente efetuadas e dis-
ponibilizadas nos diferentes canais de comunicação e práticas sociais.
Como forma incipiente de elucidação, poderíamos pensar com nossos alunos o que
está em jogo no Jogo Olímpico? O que poderia justificar a presença de crianças sub-
metidas a jornadas de 40 horas de treinamento esportivo em centros de “excelên-
cia”, seis vezes por semana, em um país que não admite o trabalho e exploração da
mão de obra infantil? O que significa a expressão “especialização esportiva pre-
coce”? Uma forma moderna de trabalho infantil? Como explicar as motivações e
os condicionantes psicológicos, sociais e políticos, que justificam as formas distintas
de violência no cenário esportivo como agressões, dopagem e corrupção? Como
compreender os investimentos públicos no Esporte e suas relações com outras de-
mandas públicas como segurança, transporte, saúde e educação? Em que medida
os resultados esportivos indicam efetivamente o nível de desenvolvimento hu-
mano de uma nação?
Em Pequin 2008, a delegação esportiva brasileira ficou à frente de países com índices
de desenvolvimento humano (IDH) muito superiores ao nosso. Que relação é essa?
As modalidades que trouxeram medalhas ao Brasil depois destes últimos jogos olím-
picos, em sua grande maioria, não tem sua presença registrada nas quadras, pátios,
salas e nos livros escolares! Que relação é essa com as aulas e professores e profes-
soras de Educação Física ao tentar sinalizar que a potência olímpica do futuro de-
pende o sistema escolar? O que justifica a subutilização de equipamentos esportivos
milionários provenientes dos recursos públicos, em cidades cujo livre trânsito dos
cidadãos é impedido ou cerceado por grupos organizados e poderes “locais e para-
lelos” em setores e territórios urbanos demarcados?
Por outra ótica, por via do “encantamento”, podemos discutir em que medida as
cenas esportivas nos excitam? Por que nos orgulhamos, sonhamos, choramos, iden-
tificamos e gritamos diante de imagens “espetaculares”? Por que o herói, o sacrifí-
cio, a superação, o surpreendente e o inesperado no Esporte nos captura? Por que
pessoas com a dor e o desconforto na competição, dizem reiteradamente que a
busca em superar a si mesma lhes confere sentido para viver?
Anexando essa discussão com a lógica da sociedade de consumo, temos evidências
da necessidade de uma tomada de consciência sobre os limites para o corpo, numa
época que a ética do dever já desde muito foi substituída pela ética do desejo. No
campo das práticas corporais em geral, são corriqueiras as situações de excessos,
sejam estes ligados aos fenômenos da vigorexia, bulimia, anorexia, ortorexia, obe-
sidades e lesões por esforços repetitivos. A busca do corpo desejado e desejante é
reconhecida pelo olhar interessado e voyer, circundados por paredes plenas de “es-
pelhos” e “reflexos”.
A perspectiva da “construção” de um modelo idealizado de corpo, alcançar a glória
olímpica, o status e a fama, de obter músculos “impossíveis”, vem se tornando uma
autêntica “cultura da perversão corporal”, socialmente enaltecida e institucional-
mente autorizada. O limite está aí para ser ultrapassado! A ambivalência de um

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corpo vivo, que se sacrifica na linguagem do sacrifício, do esgotamento, ou seja, da


pulsão de morte. O corpo nesta concepção se vislumbra como objeto a ser moldado,
sendo os indivíduos não sujeitos de afetos, mas sim, como objetos de e para o desejo!
O corpo concreto, sensível e pensante se converte em objeto de idolatria e símbolo
do efêmero!
Entretanto, mover-se implica, também, sonhar, fantasiar, desafiar, saborear, espe-
rançar, lançar, chorar, cooperar, caminhar, mover, aprender e...viver! Talvez seja por
todas essas questões e, muitas outras, que não formulamos nesse ensaio, que o Es-
porte deva ser um projeto escolar. Este fenômeno nos afeta e faz parte do nosso co-
tidiano. Como já havíamos dito, o Esporte é demasiadamente humano e, por sua
vez, também comporta o “desumano”. A impressão que se tem é a de que não é exa-
tamente esta a perspectiva que muitos “defensores” do Esporte na escola estejam
reivindicando. Como Bracht et al.(2003) sinalizam, temos uma pseudo-valorização
da Educação Física nas escolas do ponto de vista das atuais políticas públicas. Edu-
cadores! Atenção: querem jogar um jogo na escola, que pode bem não ser o jogo da
escola! O jogo de “não jogar um jogo”. O nosso jogo aqui é de mostrar que a relação
entre Esporte, Educação Física e a Escolarização não é tão espetacular! Assim, “jogar
um pouco menos com a escola” para podermos jogar um pouco mais e melhor na
educação! Seria uma saída para o impasse?

Eles estão jogando o jogo deles. Eles estão jogando de não jogar um jogo. Se eu lhes
mostrar tal qual eles estão, quebrarei as regras do seu jogo e receberei a sua puni-
ção. O que eu devo pois é... jogar o jogo deles, ou seja, o jogo de não ver o jogo que
eles jogam! (Ronald Laing – “Laços”).

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Estética, estética do desporto


e educação estética pelo desporto
Teresa Oliveira Lacerda1,2

1. Introdução
A estética do desporto constitui-se actualmente como uma área legitimada no seio
das ciências do desporto. A existência de associações internacionais como a Inter-
national Association for the Philosophy of Sport (IAPS), a British Philosophy of Sport As-
sociation (BPSA), ou a European Association for the Philosophy of Sport (EAPS), que se
estabelecem como sedes de análise, discussão, investigação e difusão deste domínio
de conhecimento (em conjunto com as restantes temáticas da filosofia do des-
porto), traduz-se em evidência objectiva desta realidade. A publicação, assídua e
consistente, de artigos em revistas de circulação internacional, desde o início da dé-
cada de 70 do século passado (das quais se destaca o Journal of the Philosophy of Sport),
assim como a sua presença em seminários e disciplinas de cursos de desporto de di-
ferentes faculdades de variados países, e ainda, a participação desta temática nos
mais diversos congressos de ciências do desporto, em particular, de filosofia do des-
porto, testemunham o seu desenvolvimento e consolidação, bem como o interesse
do seu contributo para a compreensão do fenómeno desportivo.
Neste contexto é importante destacar, ainda que de forma breve, o percurso desta
área na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto: a publicação dos primeiros
trabalhos surgiu pela mão de Marques (1990) e Marques e Botelho (1990), num con-
gresso submetido à temática Desporto, Ética e Sociedade. Em 1993, Marques desen-
volveu um trabalho fundador, intitulado Desporto, Arte e Estética. Fronteiras e espaços
comuns. Em 1996, a realização do seminário Cultura, Estética e Desportos, marcou
uma etapa importante na afirmação deste domínio de estudo. O primeiro doutora-
mento na área realizou-se em 2002 (Lacerda, 2002), ao qual se foram sucedendo
monografias de licenciatura, dissertações de mestrado e de doutoramento. A partir
de 2003 a estética do desporto passou a integrar os conteúdos da disciplina de In-
trodução ao Pensamento Contemporâneo da licenciatura, assim como módulos de al-
guns cursos de mestrado. Com a reestruturação dos planos curriculares determi-
nada pelas reformas de Bolonha, está presente no 1º ciclo de estudos como disci-
plina optativa e em diversos cursos de 2º ciclo.
O presente trabalho tem como principal propósito rever aspectos nucleares relativos
aos domínios da estética geral e da estética do desporto. Procuram esclarecer-se concei-
tos e expor as contribuições mais significativas da literatura internacional neste domí-
nio, realçando-se a divergência de opiniões e a falta de consenso quanto à relação
desporto-arte. Por último, assinala-se a importância da educação estética pelo desporto.

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2. A propósito de estética
As primeiras tentativas sistemáticas para definir a estética iniciaram-se no século
XVIII, em pleno auge da filosofia racionalista ocidental, pela mão de Baumgarten
(Munro, 1962; Souriau, 1970; Bayer, 1993; Estrada Herrero, 1988; Suassuna, 1996).
A ordem irrefutável da ciência newtoniana e da lógica cartesiana, compeliram a
maioria dos estudiosos a aceitar a supremacia do pensamento racional como o único
processo da consciência humana digno de confiança. Tudo o mais que se passava no
homem – sentimentos, crenças, intuições – não podia ser tomado seriamente, por-
que resistia à transformação numa entidade que pudesse ser estudada com as fer-
ramentas da lógica ou das emergentes ciências empíricas. Contudo, tão depressa a
hegemonia cartesiana se estabeleceu como começou a estimular a sua própria an-
títese (Csikszentmihalyi e Robinson, 1990). Tendo codificado a razão, Descartes
ajudou a mostrar quão pouco da experiência humana ela era capaz de explicar. O
trabalho de Baumgarten surgiu, justamente, como uma reacção às descrições pura-
mente racionais da consciência. Ele próprio era um membro da escola racionalista,
seguidor de Descartes e de Leibniz, discípulo de Wolff, mas, em contraste com os
seus mentores, sentiu que excluir as sensações e percepções do conhecimento, ar-
gumentando que eram inerentemente confusas, era sacrificar formas válidas de
consciência no altar da razão (Estrada Herrero, 1988). No final do século XX, os es-
tudos no domínio das neurociências vieram legitimar e premiar o vanguardismo
do pensamento de Baumgarten, mostrando que a emoção constitui parte integrante
dos processos de raciocínio e tomada de decisão (Damásio, 2000).
O termo estética foi criado por Baumgarten, em1750, para designar uma forma de
apreensão da realidade que era para si tão clara como a cognição lógica que Descartes
tinha “destilado” do fluxo da consciência. Esta nova disciplina respeitava: ao estudo
filosófico e científico da arte e do belo (Souriau, 1990), na perspectiva duma teoria
da sensibilidade (Bayer, 1993; Ferry, 1990) ou, duma “(...) ciência do conhecimento
sensorial, cujo objectivo é a beleza, em contraste com a lógica, cujo objectivo é a
verdade” (Munro, 1962, p. 6). Baumgarten considerava a estética como a parte da
gnoseologia que se ocupava do conhecimento sensível (Perniola, 1997). 1750 mar-
cou, com efeito, o ano em que este filósofo alemão publicou, com o título de Aes-
thetica, o primeiro volume duma obra sobre a temática estética, no sentido em que
a entendemos contemporaneamente. O termo surgiu derivando do uso substantivo
do adjectivo grego aisthetike remetendo, consequentemente, para o âmbito da sen-
sação, da sensibilidade, da imaginação (Estrada Herrero, 1988; Franzini, 1999).
Souriau (1970) refere-se a 1750 como a data do “baptismo” da estética, pois já muito
antes os filósofos se debruçavam sobre esta questão. Também Franzini (1999) evi-
dencia que não é possível fazer coincidir o nascimento da estética com o apareci-
mento de um termo. Desde a antiguidade se reflectia sobre a problemática estética,
mas de forma dispersa e pulverizada. Por outro lado, a arte era até aí um reflexo dum
outro mundo, imitação da natureza ou do divino, não inovação, antes e, acima de
tudo, perpetuação duma tradição. Ferry (1990) opina que em pleno cartesianismo,
com o romper da ordem cósmica da tradição, está criado o contexto para o surgi-
mento da estética cuja problemática constitui, em seu entender, um sinal evidente
do advento dos tempos modernos. Também Barilli (1994) refere que, embora Des-

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cartes não tenha tido propriamente uma estética, anunciava já Kant e o primado
do gosto sobre a ideia do belo em si. De igual modo Galard (2000) nota que, no século
XVIII, a emergência da subjectividade fez com que tenha havido uma viragem de
atenção para a relação entre o objecto julgado belo e a sensibilidade que o apreende.
Hegel, cuja obra constitui o primeiro sistema integral de uma filosofia da arte, re-
tomou a reflexão sobre o belo, que perspectivou determinado como a aparência ou
o reflexo sensível da ideia. Para Hegel a arte era, a par da religião e da filosofia, um
momento do espírito absoluto, constituindo uma das mais elevadas manifestações
históricas da verdade (Perniola, 1997). Também em Nietzsche a estética e a arte são
consideradas de forma privilegiada, pelo que Bayer, na sua História da Estética
(1993), refere que para este filósofo “A arte (…) é a afirmação da existência e o esti-
mulante do sentimento de vida. O belo é o que aumenta a vida; junta a vontade dis-
persa em todo o universo. O objecto de arte é igual ao da moral ou da ciência: procura
tornar a vida mais intensa.” (p. 327).
Souriau (1990) entende que, mais de dois séculos depois, o essencial das concepções
de Baumgarten não perdeu a sua validade, havendo contudo necessidade de as com-
pletar com contribuições de autores mais recentes. Deu-se uma verdadeira revolu-
ção na forma de olhar o problema da beleza. O alargamento do conceito de belo, a
questão de a noção de belo se ter cindido, em muito contribuiu para o enriqueci-
mento das concepções de Baumgarten. “O nascimento da estética como disciplina
filosófica está indissoluvelmente ligado a uma mudança radical da representação
do belo, quando este passa a ser concebido em termos de gosto e portanto a partir
daquilo que no homem vai surgir como a própria essência da subjectividade, como
o mais subjectivo do sujeito. Com efeito, com o conceito de gosto, o belo é reportado
intimamente à subjectividade humana e, no limite, acaba por ser definido pelo pra-
zer que proporciona, através das sensações ou sentimentos que em nós suscita.”
(Ferry, 1990, p. 33).
Também Alonso-Geta (1991) sublinha a dimensão essencialmente humana da es-
tética (e Genette, 1997, invoca-a como um ramo duma antropologia geral), refe-
rindo-se-lhe como algo que o homem experimenta, desenvolve e cria ao longo do
tempo, o que evidencia o carácter mutável desta face da realidade humana. A esté-
tica possui um conteúdo emotivo, sendo-lhe própria também uma inter-conexão
lógica entre sentimento, emoção e percepção (Alonso-Geta, 1991). Desta forma a
autora realça as questões da sensibilidade e do sentimento que confluem na estética
e que tão pertinentes se tornaram na actualidade. Acrescenta que a estética «(...)
necessita da conjugação e relação de duas dimensões, a objectiva (existência externa
do objecto) sobre a qual se exerce a actividade reflexiva e a subjectiva tanto na di-
mensão individual como social.» (Alonso-Geta, 1991, p. 758).
Hoje em dia, para Souriau (1990), o termo belo designa com precisão dois conceitos
diferentes: por um lado, o estudo daquilo que nos séculos XVIII e XIX se designava
por modificações do belo e que no século XX passamos a designar por categorias esté-
ticas; por outro lado, o termo belo pode designar o carácter comum a todas essas ca-
tegorias, isto é, o valor estético em geral - existe evidentemente aqui uma ordem de
preocupações especial, pelo que o estetólogo procura justamente a especificidade.
Assim, e na esteira de Adorno (1970), o conceito de belo deve figurar na reflexão es-

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tética apenas como um momento, um momento de antinomia: não se deve definir


o belo, nem tão pouco renunciar ao seu conceito. Para este autor existe uma ideia
da vida no conceito de belo, sendo a estética muito mais do que aquilo a que se
chama belo. Para Adorno (1970) o princípio do belo deve ser entendido como pro-
duto de devir, na sua dinâmica, isto é, conteudalmente. Também o conceito de
forma é por si abordado caracterizando a forma estética como “(…) desdobramento
da verdade.” (Adorno, 1970, p. 165).
É precisamente como um dos caminhos possíveis na procura da verdade da vida
que perspectivamos a estética. O desporto inscreve-se na vida e, como ela, persegue
a verdade, traduzindo-se a estética do desporto numa possibilidade de aprofunda-
mento do conhecimento do desporto. Se a estética geral se preocupa em perceber
“o que é este objecto que produz em nós determinados juízos e sentimentos?” (Estrada
Herrero, 1988), a estética do desporto inquieta-se, naturalmente, pela compreensão
das qualidades estéticas do desporto e pelas emoções e apreciações que ele suscita.

3. Estética do desporto3
A literatura mais relevante dos últimos quarenta anos tem-se centrado predomi-
nantemente na delineação da experiência estética induzida pelo desporto, assim
como na identificação de semelhanças e diferenças entre o desporto e a arte. Podem
identificar-se quatro posições fundamentais no tratamento desta temática:

— o desporto como uma actividade com valor estético e como uma forma de arte;
— o desporto como uma actividade quase-artística e estética;
— o desporto como uma actividade não artística e estética;
— o desporto como uma actividade nem estética nem artística.

Apresentamos em seguida os principais argumentos que justificam cada uma destas


posições. Como as diferenças entre a primeira e a segunda posições são relativa-
mente ténues e, por vezes até, difíceis de estabelecer de modo preciso e exclusivo,
optámos por as reunir no mesmo ponto.

3.1. O desporto como uma actividade com valor estético e como


uma forma de arte ou como uma actividade quase-artística
Esta categoria associa os autores que defendem o postulado de que o desporto é ine-
rentemente artístico, é um tipo de actividade artística, podendo ser caracterizado
como uma arte performativa, o que permite associá-lo quer à dança quer à arte dra-
mática (sobretudo à tragédia). Os defensores do ponto de vista de que o desporto é
uma actividade quase-artística, esforçam-se, como os anteriores, em apontar seme-
lhanças e dissemelhanças entre arte e desporto, argumentando que este último é capaz
de realizações artísticas, em potencial é artístico, sem ser necessariamente artístico.
Kuntz (1985) é um forte defensor de que o desporto pode ser considerado uma arte.
Afirma que na literatura respeitante à filosofia do desporto se produzem argumen-
tações muito diversas ao tentar relacionar-se a estética com o desporto. Entende
que aquela área é tão recente que se torna necessário que se examinem as questões
em função dos contextos de que emergem e que se produza mais em termos de es-

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tudos empíricos. Este autor interroga-se sobre o que se deve de facto estudar: o
atleta que pensa que actua como um artista? A performance, isto é, o «jogo bem jo-
gado»? Se não tomarmos a perspectiva do atleta ou a do espectador, deveremos cen-
trar-nos na do treinador? Ou deveremos antes considerar a forma como a
performance desportiva é julgada? Os valores estéticos estão nas actividades ou nas
atitudes dos sujeitos perante elas?
A diversidade e a riqueza das questões levantadas por Kuntz há mais de vinte e cinco
anos atrás, justifica que se continuem ainda a traduzir em questões de investigação
capazes de contribuir para o avanço do conhecimento nesta área. A sua chamada de
atenção para a importância dos estudos de carácter empírico, foi levada em grande
consideração pela faculdade de desporto da universidade do Porto onde, desde o
final da década de 90 do século passado, se têm desenvolvido numerosos trabalhos
a partir do ponto de vista dos intervenientes directos no fenómeno: atletas, treina-
dores, juízes, professores e estudantes de desporto. Considera-se que o contributo
esclarecido destes actores é fundamental para o desenvolvimento e consolidação
desta área das ciências do desporto.
Uma temática fundamental neste domínio, respeita à necessidade em identificar e
descrever o valor estético do desporto, o que remete para o contexto das categorias
estéticas. A partir de um artigo dedicado à ginástica, inserido na Sports Rules Ency-
clopedia (1966, cit. por Kuntz, 1985), Kuntz faz um levantamento das categorias
mencionadas como indicadoras de uma performance estética. São referidas a agili-
dade, o equilíbrio, a força, a elasticidade, o ritmo, a harmonia, a proporcionalidade,
a elegância, a facilidade, a precisão e o estilo, que devem coexistir com ausência de
falhas na execução. No artigo respeitante aos saltos para a água, surgem categorias
como suavidade, precisão, estilo, energia, arrojo, confiança e amplitude. Este tipo
de actividades é julgado de acordo com determinados padrões que o autor designa
por «normas estéticas formais». A este propósito, importa realçar que os regulamen-
tos deste tipo de modalidades podem ajudar a esclarecer o entendimento das cate-
gorias estéticas em contexto desportivo. Boxill (1988) salienta, aliás, que o princípio
subjacente às regras no desporto é sempre o de estabelecer um desafio, desafio que
obriga à evidenciação da excelência do corpo, produzindo uma resposta e uma ex-
periência estéticas. O desafio leva os atletas a não se satisfazerem apenas com mar-
car pontos, mas em marcá-los com estilo, com fluidez, com graciosidade (ibid.). As
preocupações com a eficiência dos gestos não se retiram, elas estão sempre presen-
tes, mas Boxill afirma que “(...) o método mais eficiente é habitualmente o que ma-
nifesta a excelência do corpo e o exibe em harmonia com os equipamentos e/ou os
factores da natureza. Quando o corpo se move de forma eficiente demonstra uma
fluência e uma graça que constituem a sua beleza.” (Boxill, 1988, p. 514). O autor
pensa que quanto maior a eficiência mais converge para a estética do corpo, até um
ponto em que eficiência e beleza se fundem numa só, como sucedia com a corrida
eficiente de Sebastian Coe ou a eficiência de nado de Mark Spitz.
O corpo manifesta-se, com efeito, como um dos elementos centrais da estética do
desporto, corpo que anima e dá vida ao movimento, corpo do atleta e corpo da
equipa, corpo desportivo e corpo do desporto. Para Masterson (1983), se existem
obras de arte no desporto, elas compreendem movimentos individuais e em grupo,

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ataque, defesa e contra-ataque, assim como ritmo, cor e composição, podendo exibir
elegância, estilo, graça, poder, economia ou outros elementos estéticos.
O elemento vitória, característica marcante da instituição desportiva, é frequen-
temente apontado como um óbice à estética do desporto. Kuntz (1985) interroga-
se se, por exemplo, ganhar uma competição de ginástica, o que requer a presença
de um conjunto de categorias estéticas, significa uma desvalorização da capacidade
artística do ginasta, que cumpre com todos os padrões estéticos estabelecidos? Re-
fere que numerosas vezes se deu conta de críticas a jogadores de ténis que venceram
competições jogando, contudo, sem graça e facilidade. Do ponto de vista conceptual
parece-lhe assim possível que o elemento não-estético, talvez mesmo anti-estético,
não seja o competir para ganhar, pela vitória, mas falhar em alcançá-la de acordo
com os padrões estéticos apropriados. Boxill (1988) entende também que o desejo
de vitória não obscurece necessariamente a beleza, argumentando que se a beleza
não é o objectivo único do desporto, também não o é relativamente às diferentes
artes. Para este autor, o forte desejo de vitória que marca presença indelével no des-
porto, não o afasta definitivamente do domínio da arte. Defende que quem pensa
que é preferível marcar pontos independentemente da forma como esses pontos
são marcados (que pode ser a mais desajeitada e desadequada possível), está a assu-
mir a perspectiva do “ganhar a qualquer preço”. Considera que o desejo de vitória
é evidentemente muito forte em todos os eventos competitivos, não se traduzindo,
contudo, no único objectivo. Do seu ponto de vista alguns atletas preferem perder
através duma boa prestação do que ganhar por meio de uma péssima realização.
Shannon Miller, que foi medalha de ouro na ginástica artística nos Jogos Olímpicos
de 1996, refere algo que, de certa forma, corrobora a opinião de Boxill: “Em 1996
senti a trave firme debaixo dos meus pés. Mesmo que não tivesse ganho uma me-
dalha naquele dia, ter-me-ia sentido igualmente fantástica. Não é possível imaginar
o que se sente quando todo o trabalho árduo se materializa num exercício magní-
fico, quando executamos as habilidades da forma que as tínhamos imaginado rea-
lizar tantas vezes nos nossos sonhos.” (cit. por Langsley, 2000, p. 16). Um outro
ginasta manifesta-se de forma idêntica: “Temos que nos lembrar que, em última
análise, somos os nossos próprios juízes e encontrar a satisfação interior que pro-
vém da apreciação honesta de nós próprios ao sabermos que demos o nosso me-
lhor.” (ibid., p. 203). Boxill (1988) afirma que também alguns treinadores optariam
por ver as suas equipas perder através dum jogo bem jogado do que ganhar por acaso,
por sorte, um jogo mal jogado. Em seu entender, num jogo bem disputado a vitória
não ocupa o papel principal; no “ganhar a qualquer preço” o jogo bem jogado passa
a um plano secundário. Boxill (id.) considera que isto é especialmente verdade
quando a vitória está associada a interesses pecuniários ou a qualquer outro propó-
sito exterior. Declara que um jogo bem jogado, esteticamente agradável, constitui
frequentemente o objectivo primordial e é sempre preferível ao “ganhar a qualquer
preço”. Para Boxill (1988) o desejo de vencer contribui até para elevar o carácter es-
tético do desporto (ao contrário de o diminuir): “Um jogo bem jogado agrada do
ponto de vista estético e só ocorre numa competição que envolva o desejo de ga-
nhar. Sem o desejo de ganhar existe uma falta de concentração que se repercute no
carácter artístico da performance.” (ibid., p. 515). Pensamos que ao desejo de ganhar

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está implícita a necessidade de transcendência, de superação, características mar-


cantes da natureza humana e da actividade desportiva e que, neste contexto, se
podem ler e interpretar como categorias estéticas. Também relativamente à questão
do resultado, e tomando o caso concreto do futebol, Moderno (1998) entende que
a dicotomia futebol-arte/futebol-de-resultados representa um falso conflito; o fu-
tebol-arte tem como objectivo buscar resultados, sendo que da sua prática advém a
consequência natural que é o bom resultado. Para Moderno (1998) o bom futebol é
o belo futebol. Admite, contudo, que do belo futebol pode também surgir a derrota,
mas afirma que é preferível perder bonito do que perder feio.
Estabelecer um conjunto de características suficientemente relevantes que é par-
tilhado pelas artes e pelos desportos, ou por algumas artes e alguns desportos, é di-
fícil (Kuntz, 1985). Na perspectiva da utilidade e do trabalho, as prestações nas duas
famílias de actividades pertencem ao lazer e são associadas a recreação. Mas, a teoria
do jogo é, ela própria, um conceito difícil, que produz muitos paradoxos, quando os
artistas praticam seriamente e quando os atletas treinam até ao ponto de exaustão
e se expõem a grande dor (Kuntz, 1985). Kuntz pensa que o princípio mais correcto
para uma resposta positiva ao problema de como é que a estética se aplica ao des-
porto, respeita em perceber porque é que determinadas performances são designadas
por artes e outras por desportos. O aspecto mais superficial prende-se com o facto
de umas se realizarem numa sala de concertos, ou num museu e as outras num pa-
vilhão, ou num estádio desportivo. Para além dos edifícios especiais onde são criados
mundos especiais, existem as regras às quais os dois tipos de performers têm que obe-
decer, a que se juntam as unidades de tempo e espaço, assim como formas específi-
cas de usar o tempo e o espaço. Mas, este tipo de análise não dilui a diferença: não
há partitura, nem coreografia, nem texto no desporto, como na música, na dança
ou no teatro, apenas planos de jogo que podem ser considerados aproximações
(ibid.). De acordo com Boxill (1988) é inquestionável que há movimentos despor-
tivos que possuem um grande valor estético mas o autor interroga-se, também, se
por esse motivo é lícito depreender que são arte. O voo de um pássaro, um belo pôr-
do-sol, uma queda de água, possuem valor estético mas não concluímos por isso que
são arte (ibid.). Afirma que as qualidades estéticas são o que mais interfere no prazer
e significado dos desportos para os participantes e espectadores. Sustenta que con-
siderar o desporto uma forma de arte não constitui uma ideia nova. Numa obra de-
dicada ao cricket, mas que o autor entende poder ser extensível a todos os desportos,
James (1983, cit. por Boxill, 1988) faz notar que “Os estetas têm desprezado os jogos
desportivos e os restantes desportos, em seu próprio detrimento. A aridez e a con-
fusão continuarão até incluírem os desportos e as pessoas que os observam como
parte integrante dos seus dados.” (p. 509). Boxill (1988) advoga que o desporto, tal
como a arte, aprofunda e alarga o sentido da vida de cada um. O autor entende que
admitir que existem muitas diferenças entre o desporto e a arte não justifica satis-
fatoriamente a exclusão do desporto do domínio da arte. Também existem muitas
diferenças em relação às diversas artes entre si e isso não faz com que algumas delas
percam o seu estatuto (ibid.). Julga o que é verdadeiramente significativo relativa-
mente a essas diferenças é o meio através do qual a arte se manifesta; o meio fornece
o veículo para a expressão do eu.

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Também Masterson (1983) sustenta que o desporto possui características que


podem ser consideradas esteticamente ressalvando, contudo, que possuir uma di-
mensão estética não identifica necessariamente uma actividade, ou o seu produto,
como arte. Faz notar que não são apenas as pessoas com interesses filosóficos que
se têm debruçado sobre a ligação entre o desporto e as artes, sendo que alguns ar-
tistas também a evocaram. Cita o caso de Picasso, que parece ter visto o boxe como
uma forma de arte. Analogamente, em diversas obras de Hemingway as alusões
apaixonadas às corridas de cavalos ou aos combates de boxe, levam a admitir uma
certa afinidade no modo como o desporto e a arte são tratados. Moderno (1998) con-
tribui para a discussão com um trabalho sobre o futebol (perspectivado como ex-
pressão da cultura brasileira), que considera como arte. Afirma que são numerosas
as referências ao belo no jogo, sendo que a estética do futebol vai desde a beleza do
golo à beleza da sua comemoração pelo público e pelos jogadores, e até mesmo às
coreografias de ambos.
Do ponto de vista da acção física, Kuntz (1985) chama a atenção para um tipo de
análise estética que pode ser aplicada – a cinestésica e empática. Sublinha que al-
guma coisa se passa fisiológica e psicologicamente entre o executante e o especta-
dor. Kuntz partilha a opinião de Kovich (1971, cit. por Kuntz, 1985) de que uma
análise meramente científica do movimento não atinge as «qualidades artísticas».
Esta autora entende que acontece arte nas piscinas, nos ginásios e nos estádios por
intermédio do desporto, opinando que a definição de arte necessita ser alargada a
fim de poder incluir as performances atléticas. Não são apenas desportos como a pa-
tinagem artística e a natação sincronizada que podem ser comparados à dança, mas
também o salto à vara, o ténis, a ginástica, e não apenas as performances excepcio-
nais, mas “(...) qualquer habilidade técnica em forma de movimento que expresse
beleza (...)» (Kovich, 1971, cit. por Kuntz, 1985, p. 497). Existe valor estético para o
executante e para o espectador? Kovich (ibid.) analisa a experiência de alegria, ex-
citação, satisfação em praticar e em testemunhar realizações desportivas. A beleza
do movimento depende, em seu entender, da resposta estética do executante e/ou
do espectador. Afirma que o executante percebe os seus movimentos como arte
através da percepção cinestésica, a consciência do seu sentimento pessoal. Ele não
pode sair de si próprio e observar os seus movimentos ao mesmo tempo que os exe-
cuta, mas sabe, duma forma intuitiva, quando são realizados correctamente; a ava-
liação da prestação pelo espectador ou pelo juiz serve apenas como um testemunho
adicional à veracidade do movimento para o próprio executante (Kovich, 1971, cit.
por Kuntz, 1985).
“O espectador não pode divorciar o homem dos seus movimentos.” (Kovich, ibid.,
p. 497). Kuntz afirma que para Kovich o desporto constitui verdadeiramente uma
forma de arte, e não é apenas o produto das habilidades humanas que está em ques-
tão, é o homem. Pesquisas com recurso à electromiografia evidenciaram que a mí-
mica dos observadores acompanha os movimentos do executante, induzindo uma
forma restrita de participação (Kuntz, 1985). O autor observa que assim como o
executante sente a arte que está a criar, também um espectador atento sente esta
mesma qualidade, embora não com a mesma extensão. De forma intencional ou
não, estabelece-se uma comunicação silenciosa entre o executante e o espectador,

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existe empatia com os elementos de força, espaço e tempo do mundo do executante


e os seus gestos podem contribuir, pelo menos parcialmente, para que o espectador
interprete o movimento como belo e significativo (Kuntz, 1985). Este entendi-
mento é reforçado de modo muito expressivo na obra Gymnastics – In perspective
(Langsley, 2000): os depoimentos de ginastas, treinadores, juízes, jornalistas e pú-
blico em geral, colocam a ênfase nas possibilidades de comunicação através dos
modos de expressão técnica e artística desta modalidade que fascina, seduz, des-
perta emoção, apela à dimensão afectiva do espectador.
Para além da resposta quinestésica-empática entre espectador e atleta, e das emo-
ções, muitas vezes ricas e intensas, Kuntz (1985) interroga-se que outros valores
estéticos transporta o desporto? Como outros autores analisa a categoria dramatur-
gia que é considerada por vezes como ausente do desporto. Entende que esta talvez
seja a melhor forma de tratar a questão relativa às diferenças entre o desporto e as
actividades artísticas. Refere que numa peça de teatro os actores possuem um texto
e desempenham papéis ao representarem o carácter e as acções dos personagens.
Mas os intervenientes num jogo jogam nos lugares da equipa e, em conformidade
com as regras, disputam a vitória. O jogo pode ter uma estrutura de princípio, meio
e fim, pode ter pontos mais baixos, mais altos e até um climax, mas a sua estrutura
não é simbólica. De que é que trata o jogo? Afirma que os jogos não têm guião nem
representam a realidade. Este entendimento é refutável: Parlebas, por exemplo,
afirma que “O jogo desportivo representa uma sociedade em miniatura, um verda-
deiro laboratório das condutas e das comunicações humanas.” (1986, cit. por Costa,
1990, p. 66). Também Costa (1990) situa as competições desportivas entre os siste-
mas mais simbólicos e rituais da contemporaneidade, onde convivem o maravi-
lhoso, o dramático e o passional (Costa, 1997). Para este autor, da simbólica do
espaço, que é sobretudo expressa pelo terreno de jogo (imagem do mundo e do es-
paço social), à simbólica do herói desportivo, o universo do Desporto é povoado de
símbolos que exercem a sua função no imaginário colectivo do homem. Costa
(1997) sublinha que é para si “(...) clara a impressão de que a linguagem desportiva
é eficaz, de que a comunicação simbólica do desporto é forte e de que a mensagem
transmitida é de um profundo significado sócio-antropológico.” (p. 19, 20).
Kuntz revê a as posições de alguns autores a propósito da categoria drama. De acordo
com Weiss (1972, 1973, cit. por Kuntz, 1985) o importante é saber se existe alguma
excelência dramática para além da luta pelo sucesso na competição e pela vitória.
Admite que há aspectos dramáticos no jogo, mas um jogo é dramático apenas epi-
sodicamente: «(...) os pontos altos ocorrem inesperadamente no seio de uma mul-
titude de momentos planos.» (Weiss, 1972, cit. por Kuntz, 1985, p. 503). Em nosso
entender, a riqueza e o significado da dramática do jogo, decorre exactamente do
facto de se manifestar com maior intensidade em determinados momentos. Há que
ter em conta também a especificidade de cada desporto: não é possível manter uma
elevada tensão dramática durante os noventa minutos de um jogo de futebol, mas
o mesmo já não se passa relativamente a uma corrida de 100m no atletismo ou a um
exercício de ginástica.
Kuntz menciona também Fraleigh (1972, cit. por Kuntz, 1985), um outro autor que
argumenta que se existem diversas dimensões do desporto, e existe mimesis ou re-

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presentação, assim como agon ou competição então, colocar a ênfase no desporto


como drama é uma forma de lhe preservar um significado mais rico. Em sua opinião,
a luta pela excelência não se esgota nas dimensões citius, altius, fortius, instituídas
pelo olimpismo moderno e, apesar de não figurarmos o atleta perfeito como um
deus do Olimpo, nem lhe cantarmos louvores como herói, reconhecemos na exce-
lência algo para além do record. Fraleigh (1972, cit. por Kuntz, 1985) entende “o
mais alto” (altius) como um símbolo de transcendência: “Na dança o ser humano
move o seu corpo fazendo uso do espaço, do tempo e da força para produzir imagens
de infinitude, eternidade e omnipotência como uma forma simbólica de ultrapassar
a sua «terrestralidade»”. (ibid., p. 503). Kuntz (1985) questiona-se se o significado
do desporto é então o de que o homem luta e se esforça para atingir a divindade?
Reconhece que é mais fácil entender exactamente o significado dos acontecimen-
tos desportivos em contexto social como uma “celebração”. Afirma que os eventos
desportivos perspectivados como rituais festivos fortalecem certamente as tradi-
ções duma sociedade. “Como o drama (...) o desporto instrui as pessoas através da
comemoração das glórias do passado e fortalece o orgulho da comunidade.” (Kee-
nan, 1972, cit. por Kuntz, 1985, p. 503). Costa (1997) manifesta um entendimento
semelhante ao afirmar, tomando o exemplo do futebol, que “(...) vivido ao mais
alto nível e nos momentos mais quentes das grandes competições internacionais,
é perfeitamente capaz (...) de traduzir ritualmente o drama do mundo, da história
e mesmo do destino dos povos.” (p. 21).
A visão do desporto enquanto dramaturgia e por vezes até tragédia, está protegida
da carga transportada pelo ponto de vista simplesmente hedonista que perspectiva
o desporto como mera recreação (Kuntz, 1985). O valor estético da tragédia requer
dor, que pode ser ilustrada no conceito bipolar de beleza descrito por Keenan:
“Quando o desprazer é percebido como um meio de fomentar o desenvolvimento
e cultivar uma experiência, pode ser visto como estético e agradável, deleitável.”
(Keenan, 1972, cit. por Kuntz, 1985, p. 504). O mesmo autor reforça a sua posição
evidenciando que, embora num jogo não exista texto nem personagens actuando
de acordo com um enredo, existe, contudo, uma resposta à questão qual é o seu “sig-
nificado”, ou “propósito”, ou “revelação”, ou “conteúdo simbólico”. “A tragédia
simboliza a luta do homem com as iniquidades e paradoxos da vida. Na tragédia o
homem é confrontado com forças hostis relativamente às quais inevitavelmente
sucumbe. A exibição de coragem face à adversidade é premiada pois reflecte algo
de belo acerca do homem - o espírito com o qual empreende um maravilhoso com-
bate contra um mundo preponderante e imprevisível.” (Keenan, 1972, cit. por
Kuntz, 1985, p. 504). Kuntz (1985) opina que a análise de Keenan transmuta o agon
em mimicry, isto é, a luta para vencer é transformada num aspecto necessário do
mundo imaginário que nos é apresentado. É uma perspectiva que desvaloriza o ga-
nhar a qualquer preço e, embora tenha surgido como uma filosofia estética, é tam-
bém uma filosofia moral do desporto (ibid.). Kuntz (1985) pensa que, relativamente
a esta temática, é necessário salvaguardar que embora um jogo possa ser visto como
uma peça trágica, o jogador não é um actor duma tragédia. Em sua opinião é neces-
sário não esquecer que se está a aplicar a estética ao desporto, a procurar semelhan-
ças e a fazer analogias, mas não a tentar identificar o desporto com a arte. Reforça

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contudo que, do seu ponto de vista, pode existir arte no desporto, citando como um
exemplo emblemático desta sua forma de pensar a Regata de Veneza.
Masterson (1983) sustenta uma posição mais assertiva, afirmando que se existe, de
facto, uma relação entre o desporto e as artes, então o drama (no sentido que tem
vindo a ser tomado, de peça ou composição teatral) é o parente mais próximo do
desporto. Para justificar a sua opinião Masterson procura suporte noutros autores.
Refere-se a Mumford (1966, cit. por Masterson, 1983) que entende que os espectá-
culos desportivos exibem elementos dramáticos, assim como a Maheu (1962, ibid.)
que descreve os aspectos emocionais do desporto e da arte dramática, e que rela-
ciona o envolvimento da audiência no teatro com a intensa empatia desenvolvida
entre os espectadores e os atletas no desporto. Menciona também Keenan (1975,
cit. por Masterson, 1983) que perspectiva as competições atléticas como formas sig-
nificativas de expressão humana, em que existe o envolvimento de tensão dramá-
tica; essa tensão advém do esforço dos atletas em ultrapassar as suas limitações,
assim como as dos outros. Masterson alude ainda a Kitchen (1966, ibid.) que afirma
que o drama e a tragédia desempenham um papel importante no desporto. Indica
uma série de autores próximos do teatro (Brook, Artaud, Stanislavski, Grotowski,
cit. por Masterson, 1983) que o perspectivam como uma forma particular de com-
preensão da realidade, como parte dessa mesma realidade, como um encontro vivo,
espontâneo e criativo entre o actor e a audiência, determinado pela performance dis-
ciplinada, sincera e autêntica do actor, sendo que o principal material que utiliza é
o seu corpo, que tem que ser treinado para obedecer. Masterson (1983) reconhece
aqui um forte ponto de convergência entre o teatro e o desporto, que complementa
com a perspectiva daqueles que descrevem o teatro e a arte de representar como
um veículo que permite emergirmos de nós próprios e preenchermo-nos, e com a
visão dos que enfatizam a relevância do desporto na compreensão do eu e da indi-
vidualidade única de cada um. Para Masterson (ibid.) é através do conhecimento de
si próprio, através duma actividade cujo instrumento é o corpo, que o desporto e o
teatro se relacionam de forma muito próxima. Um outro meio de expressão em que
o artista usa o seu corpo como o instrumento para a produção da obra é a perfor-
mance art, que Masterson (1983) situa também na fronteira do desporto. O uso do
corpo como um instrumento é assim comum ao teatro, à performance art e ao des-
porto, sendo que cada actividade proporciona um meio que encoraja os seus parti-
cipantes a descobrir as suas capacidades e limitações, favorecendo um melhor
conhecimento de si próprios (Masterson, 1983).
Deste modo, Masterson (1983) sustenta que ao desporto cabe um lugar entre as
artes, na medida em que no desporto se podem produzir obras de arte: “(...) a acção
superlativa de um indivíduo, ou de um grupo de jogadores, resolvendo os problemas
impostos pelo desporto, em acordo com as regras e com a ética, estimulados pelo
drama, tensão, incerteza e humor da ocasião, pode dar lugar a exibições da habili-
dade humana ligadas a coragem, força de vontade, determinação e esforço, que
podem manifestar beleza e o sublime, criando assim arte no desporto.” (Masterson
e Gaskin, 1974, cit. por Masterson, 1983, p. 181). Para o autor, o material que se pre-
tende trabalhar até à maestria é o corpo e o seu movimento. Em seu entender, o
desportista tenta exceder as limitações físicas quando procura executar movimen-

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tos que batam records ou quando se esforça por realizar melhor do que na vez pre-
cedente - os desportistas treinam o seu corpo com estas finalidades. Quando o con-
seguem e o realizam com excelência, o público reconhece-o, e descreve o jogo, a
corrida, o golo ou o movimento como belos; outras vezes os espectadores reagem
de acordo com a energia, a força, o vigor da exibição, que se transforma em “poder
humano” (Masterson, 1983).
Wertz (1985a,1985b) é um outro autor que partilha a opinião de que o desporto
pode, em circunstâncias determinadas, ser considerado uma arte. Entende que de-
cidir se o desporto é, ou pode ser arte é um problema contingente, o que significa
que se torna necessário analisar os casos individualmente, não sendo possível a ge-
neralização. Wertz (1985a, 1985b, 1988) pensa que o desporto pode constituir um
meio artístico tão facilmente como o barro, a tinta ou as palavras, condicionando
este seu entendimento a dois aspectos fundamentais: o contexto e a intenção, que
constituem traços das acções, necessários para que lhes seja atribuído significado.
A posição de Wertz é muito concordante com as concepções mais actuais, na me-
dida em que a intenção do artista é muito valorizada na arte contemporânea, em
articulação com a sua interacção com o campo cultural onde se operam as avaliações
estéticas e os reconhecimentos sociais. Este autor pensa também que é necessário
atender às circunstâncias em que decorre a intencionalidade para podermos afirmar
que um evento é arte. Não concorda com a posição de algumas teorias descritivas
da arte que sustentam que a mera existência de intenções artísticas (com a ênfase
nas intenções) é suficiente para que um objecto ou actividade sejam considerados
como tal. Em seu entender, o adjectivo “artístico” precisa de contribuir com algo
para o significado da expressão “intenções artísticas”. Wertz partilha a opinião de
Montague (1971, cit. por Wertz, 1985a) de que o que é requerido é que o processo
de criação ou realização manifeste a manipulação intencional do sujeito (artista)
do seu meio, em acordo com conceitos estéticos. Não basta existir a intenção de rea-
lizar algo artístico, é necessário o controlo estético do meio – no caso do atleta o
meio é o seu corpo (Wertz, 1985a). Quando o desporto é arte as intenções reflectem
a manipulação consciente do meio, através de conceitos estéticos (ibid.). Wertz
(1985a) reporta-se ao estudo de um caso para dar consistência à sua argumentação:
a atleta de patinagem artística Peggy Fleming. Considera na patinagem artística
duas componentes: o ringue (que funciona como palco) e o corpo que desliza no
gelo (o corpo é o meio). Os exercícios realizados por aquela atleta eram marcados
por valorizações estéticas; eram rotinas que iam para além do físico ou atlético, pos-
suindo “algo” adicionado que conferia fluidez, graciosidade e coerência aos movi-
mentos (ibid.). O autor refere que antes de Peggy Fleming praticava-se um tipo de
patinagem artística (que consistia num evento atlético, orientado exclusivamente
pelos aspectos técnicos); depois de Fleming, que introduziu a patinagem estética,
este desporto transformou-se. As realizações desta atleta eram justamente descritas
como artísticas, exibindo ligação entre os movimentos, num continum, ou unidade,
inquebrável durante todo o exercício (Wertz, 1985a). Wertz afirma que Fleming e
outros patinadores poderiam não ter a intenção particular de criar arte, mas a per-
formance resultante era passível de ser classificada como tal, devido ao controlo es-
tético exercido através do meio em questão. Também Hyland (1990) se refere ao

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caso particular da patinagem artística, citando igualmente Fleming, e ainda pati-


nadores como Toller Cranston e John Curry, convergindo com a opinião de Wertz
(1985a) de que estes atletas revolucionaram em certa medida a patinagem artística,
introduzindo mais explicitamente movimentos estéticos nos seus exercícios. Hy-
land (1990) nota que aqueles patinadores caracterizavam a sua actividade despor-
tiva como uma forma de arte e qualificavam-se a si próprios como artistas. Wertz
(1985a) admite que o que é válido para a patinagem artística poderá ser, de forma
semelhante, para qualquer outro desporto (o ténis, por exemplo). Opina que cada
desporto tem a sua oportunidade de as actividades que o constituem poderem ser
consideradas artísticas, para o que concorre também o papel da intenção do obser-
vador, particularmente do crítico. Uma vez mais se realça a actualidade do discurso
de Wertz, pois a crítica é de importância fundamental na arte e no desporto con-
temporâneos, assim como constitui (nas suas dimensões de apreciação e julga-
mento) um dos objectos de estudo da estética geral e da estética do desporto. A
esteticização do discurso produzido pelos media a propósito do desporto, constitui
campo para estudo e investigação.

3.2. O desporto como uma actividade


com valor estético e fora do domínio da arte
A tendência relativamente aos partidários deste ponto de vista é para citarem as se-
melhanças e diferenças entre a arte e o desporto, para afirmarem que as diferenças
são mais evidentes do que as semelhanças e para concluírem que, por mais interes-
sante que o desporto possa ser em termos estéticos, falha em obedecer às estritas
condições da arte.
A necessidade de delimitação do presente trabalho conduziu a que, relativamente
a esta posição, nos detenhamos no contributo de Best (1988a, 1988b), na medida
em que se trata de um dos mais significativos neste domínio, absolutamente incon-
tornável a todos os que se debruçam sobre esta temática. Convém sublinhar que,
embora nos distanciemos de alguns argumentos desenvolvidos por Best, a consi-
deração do desporto enquanto actividade estética e não artística tem constituído o
princípio norteador de toda a nossa actividade de investigação.
Na sua reflexão acerca da tríade desporto-estética-arte, Best é designado como um
dos principais opositores à teoria de que o desporto pode ser considerado como arte
(apesar de admitir que existe, ou pode existir, uma forte componente estética no
desporto). Para este autor (Best, 1988a), a discussão em torno da problemática re-
lativa à estética do desporto tem permanecido confusa devido, em parte, a uma
falha no reconhecimento da distinção entre o sentido, o significado, das expressões
estético e artístico. Entende que todos os desportos podem ser considerados do ponto
de vista estético, da mesma forma que qualquer objecto ou actividade o pode ser.
Contudo há, em seu entender, actividades e objectos que possuem um interesse
estético mais central, constituindo-se como um exemplo paradigmático as obras de
arte. Para Best (1988a) há menos possibilidades de sermos induzidos em erro se con-
siderarmos a estética como uma forma de percepção dum objecto ou duma actividade
(posição nitidamente subjectivista), em vez de como um traço constitutivo desse
objecto ou actividade. Em seu entender isto prende-se com a utilização, por vezes

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indevida, do termo conteúdo estético, que conduz a que pareça (erradamente) que a
estética é algo que se pode acrescentar ou subtrair. Hyland (1990) considera esta
chamada de atenção por parte de Best muito importante pois, em qualquer discus-
são acerca da relação entre arte e desporto, é fácil e tentador passar do reconheci-
mento de ingredientes estéticos no desporto para a afirmação que,
consequentemente, o desporto deve ser arte. Um outro factor que para Best (1988a)
contribui também para uma certa confusão relativamente a este assunto respeita à
falta de distinção entre duas formas em que o termo Estética é utilizado: a forma
avaliativa e a forma conceptual. Quando se afirma que determinado indivíduo é um
“atleta estético” está-se a fazer uso do termo na sua forma avaliativa (positiva), o
que o faz equivaler a gracioso ou esteticamente agradável. Mas o autor entende que
a forma conceptual é a que deve interessar a quem reflecte sobre a estética do des-
porto, pois é a que inclui o belo e o feio, o gracioso e o sem graça (desajeitado), o es-
teticamente interessante e desinteressante, o que evidencia, em nosso entender, a
importância do recurso a categorias estéticas.
Para o autor é fundamental que se esclareça o que é que distingue a estética de ou-
tras formas de consideração dos objectos, apontando como uma característica im-
portante a estética ser um conceito não funcional (non-functional) e não útil / não
propositivo (non-purposive). Para melhor ilustrar o seu entendimento, Best (1988a)
recorda que uma obra de arte quando é considerada do ponto de vista estético, não
é relacionada com nenhuma função ou propósito externo que possa eventualmente
servir (como por exemplo, ser um bom investimento financeiro).
Uma outra questão que Best (1988a) chama ao primeiro plano com vista a esclarecer
o conceito de estética é a de meios e fins. Na arte, ou duma forma mais geral na es-
tética, a distinção entre meios e fins não se aplica, ao contrário do que acontece no
desporto. O autor discorda da opinião de Anthony (1968, cit. por Best, 1988a) que
sustenta que o desporto é uma forma de arte, assim como da de Carlisle, (1969, ibid.)
que afirma ser a estética o conceito unificador de todas as actividades que recaem
sobre a designação de Educação Física. Para Best (1988a) a maioria dos desportos
assemelham-se a uma obra de arte quando considerada como um investimento, isto
é, quando existe uma finalidade que é independente da maneira como é atingida.
Pensa que em grande parte dos desportos a maneira de atingir o objectivo principal
é de reduzida significância desde que, evidentemente, os regulamentos da activi-
dade desportiva em causa sejam cumpridos. Best (ibid.) considera que o factor pri-
mordial e a marca evidente do sucesso manifestam-se, em muitos desportos, pelo
atingir de um fim específico e independente. Qualquer pormenor de uma obra de
arte é importante para a sua valorização estética, enquanto que quando julgamos
algo através dos meios que conduzem ao fim desejado, há aspectos concernentes
aos meios que são irrelevantes, ou existem mesmo meios alternativos para atingir
a mesma finalidade. O autor refere que enquanto a arte possui meios e fins que são
contínuos, no desporto eles são descontínuos. Entendemos que a diversidade de
meios existente no desporto, ao contrário de o desvalorizar esteticamente, pode
contribuir para a sua valorização. Essa diversidade pode ser relacionada com impro-
visação e com criatividade, aspectos importantes na arte, assim como no desporto.
Uma outra problemática equacionada por Best (1988a) refere-se à questão da forma

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e do conteúdo na arte. O autor explica que existe uma íntima e peculiar relação entre
a forma de um objecto apreciado esteticamente, isto é, o carácter particular de ex-
pressão, e o seu conteúdo, ou seja, o que o objecto expressa. Isto conduz a que em
arte não possa existir alteração na forma de expressão sem a correspondente alte-
ração no que é expressado. Nota que é verdade que o objectivo de um desporto não
pode ser atingido isolado das regras e normas que regem a modalidade: marcar um
golo em futebol não se reduz à questão de colocar a bola dentro da baliza do adver-
sário, requer conformidade com os constrangimentos regulamentares. Contudo,
em contraste com uma obra de arte, dentro dos limites regulamentares existem
muitas formas de atingir o objectivo, isto é, marcar o golo (Best, 1988a).
Best (1988a) entende também que é necessário estabelecer diferenças quanto à im-
portância relativa da estética nos vários tipos de actividades desportivas. Por um
lado, existe um grupo alargado de desportos que designa por desportos propositivos
(purposive sports) em que a estética é pouco importante, ocorre de forma acidental,
podendo ser considerada como um sub-produto ou uma propriedade contingente
(Best, 1988b). Nesta categoria inclui desportos como o futebol, o atletismo ou o
squash. Considera que o propósito pode ser isolado da maneira como é atingido,
desde que conforme aos regulamentos. Contudo, certos movimentos, o jogo em si,
ou o espectáculo (performance) podem ser considerados do ponto de vista estético,
mas a estética não é central à actividade (ibid.). Afirma que neste tipo de desportos
o carácter da actividade é definido pelo propósito, que pode ser especificado de
modo independente, sendo a estética acidental, casual. Por outro lado, distingue
uma categoria de desportos diferente da anterior, na qual a finalidade não pode ser
isolada da estética. Para o autor estão neste caso, por exemplo, a natação sincroni-
zada, os trampolins, a ginástica, a patinagem artística e os saltos para a água. Designa
estes desportos por desportos estéticos (aesthetic sports) e, tal como o nome sugere,
a estética é-lhes inseparável (Best, 1988b). Afirma que, como nas artes, o seu pro-
pósito não pode ser dissociado da maneira de ser atingido; existe um fim intrínseco
que não pode ser identificado senão por recurso aos meios. A maneira como os mo-
vimentos apropriados são realizados não é acidental mas central à actividade des-
portiva. Saltar para a água não é sinónimo de atirar-se para a água; o objectivo não
é apenas que o atleta se atire de uma prancha para a água, mas a maneira como o faz
(Best, 1988a). Com efeito, há normas estéticas implícitas no termo “saltar para a
água”, o que conduz a que o salto não possa ser realizado de forma aleatória. Movi-
mentos desajeitados, descontrolados, sem graça, não podem fazer parte da tarefa
nem contribuir de maneira alguma para o seu sucesso. Assim, para Best (1988a), a
distinção é clara: um desporto propositivo é aquele em que, de acordo com as regras,
existe uma variedade indefinida de maneiras de atingir a finalidade; em contraste,
um desporto estético é aquele em que o propósito não pode ser especificado inde-
pendentemente da maneira de ser atingido. Para o autor não teria sentido, por
exemplo, dizer a um atleta de patinagem artística que não se preocupasse com a
forma como realizava os seus elementos, desde que atingisse o objectivo da patina-
gem; esse objectivo está inevitavelmente relacionado com a maneira como os mo-
vimentos são efectuados. Pelo contrário, já faria sentido incentivar uma equipa de
futebol a marcar golos sem se preocupar com a forma como esses golos fossem mar-

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cados. Se qualquer forma de se atirar para a água não cumpre com os requisitos dum
salto para a água, já qualquer forma de fazer entrar a bola na baliza adversária, den-
tro dos limites regulamentares, é considerada como golo, ainda que seja um golo de
sorte ou um golo marcado desajeitada e deselegantemente (ibid.). Para Best (1988a,
1988b) é importante, assim, realçar que o traço fundamental dos desportos estéti-
cos, o que os aproxima efectivamente da arte, consiste na quase identificação entre
meios e fins.
É exactamente esta característica que, do ponto de vista do autor, se evidencia, ou
é o fundamento também da apreciação estética dos desportos propositivos. De
facto, Best (ibid.) pensa que considerar esta categoria de desportos do ponto de vista
estético é reduzir o hiato entre meios e fins. Numa perspectiva puramente propo-
sitiva, qualquer forma de ganhar é válida, desde que de acordo com as regras, o que
já não basta quando o que está em causa são considerações estéticas (Best, 1988a,
1988b). O leque de possibilidades de atingir a finalidade de forma esteticamente sa-
tisfatória reduz-se, dado que o objectivo não é apenas ganhar, mas fazê-lo com o
máximo de eficiência e economia do esforço. Contudo o autor refere que a mais ele-
vada satisfação estética é experienciada pela observação do atleta que actua de
forma graciosa e económica mas que, igualmente, atinge o propósito do desporto
em causa: o jogador de ténis que executa um serviço eficaz com um estilo impecá-
vel, proporciona ao espectador maior satisfação estética do que se o falhar, com o
mesmo estilo impecável. A satisfação estética mais elevada requer portanto que a
acção seja direccionada para o fim em causa (Best, 1988a). A posição de Best relati-
vamente a este assunto satisfaz-nos bastante mas pensamos, no entanto, que o atin-
gir a finalidade de forma esteticamente satisfatória (para utilizarmos a expressão
do autor) não diminui o leque de possibilidades, antes o alarga. Ao entrarem em
jogo categorias como harmonia, ritmo, expressividade, criatividade, estilo, é au-
mentado o espectro de possibilidades de realização dos movimentos, o que contri-
bui para o enriquecimento das diferentes modalidades desportivas.
Best (1998a) reflecte também acerca do papel do contexto no sentimento estético
e realça dois aspectos que entende serem de grande importância no significado da
noção de experiência estética no desporto. O primeiro desses aspectos respeita a
que um movimento não pode ser considerado estético isoladamente, mas apenas
no contexto de uma acção particular inserida num desporto específico. Um gracioso
movimento de onda com o braço esquerdo pode ser muito efectivo em dança, mas
o mesmo movimento pode resultar feio e absurdo como parte da acção num serviço
de ténis, na medida em que diminui ou desvia a concentração do esforço da tarefa
específica (ibid.). Best (1989) considera que um movimento é esteticamente satis-
fatório apenas se, no contexto da acção como um todo, é visto como formando uma
estrutura uniforme que é tomada como o método mais económico e eficiente de
atingir o fim requerido. O segundo aspecto diz respeito à concepção, errada para
Best, de que os sentimentos funcionam como critério da qualidade estética, esta-
belecendo-se uma relação de dependência entre esta e aqueles. Esta falsa noção con-
siste em tomar o sentimento do performer ou o do espectador como o último árbitro
(Best, 1988a). Para o autor é importante não negligenciar que qualquer sentimento
só é inteligível se puder ser identificado pela sua manifestação característica em

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termos de comportamento. Best considera que é o movimento físico, observável,


que identifica o sentimento e não, como muitas vezes se pensa, o sentimento in-
terior que confere ao movimento qualidade ou significado estético. Relacionado
com este aspecto Best (1988a) menciona a questão de a atitude estética ser muitas
vezes tomada como predominantemente contemplativa, opinião de que discorda.
Para o autor a contemplação é uma parte importante da estética mas não é exaus-
tiva, na medida em que entende existir uma satisfação estética por parte do atleta,
satisfação essa que é intrínseca (e não dissociada ou retrospectiva) à actividade rea-
lizada, o que converge com Kuntz (1985) que se referia à estética por via quinesté-
sica e por via empática, sendo que a primeira se aplicaria ao atleta e a segunda ao
observador. Ainda relativamente à noção de contexto Best (1988b) esclarece que
não o entende como um simples cenário físico, no sentido asséptico, onde tem lugar
a acção, e indica vários aspectos que se relacionam e nos quais o significado de uma
acção depende do contexto: num primeiro sentido, o contexto inclui todos os tipos
de práticas para as quais determinado espaço ou cenário é utilizado; num segundo
sentido, o contexto pode ser entendido como toda a sequência de acções em que a
acção principal está contida; finalmente, o contexto pode ser tomado como a própria
prática em que se insere a acção(Best, ibid.).
Best (1988a) coloca-se a questão se os desportos estéticos, pelo facto de se aproxi-
marem das artes devido à impossibilidade de distinção entre meios e fins, podem
legitimamente ser considerados como formas de arte? Entende que não e argu-
menta de várias formas: começa por comparar o desporto com a dança, distin-
guindo-os pelo carácter objectivo do primeiro e subjectivo da segunda. Depois
invoca a confusão dos argumentos que afirmam que o desporto é arte, que se baseia
no facto de os termos estético e artístico serem tomados como sinónimos, descurando
a distinção entre acontecimentos estéticos e artísticos. Para Best (1988a) estética é
o género de que o artístico é uma espécie. Pensa que enquanto na arte a principal fi-
nalidade é produzir artefactos ou performances com o objectivo de provocar prazer
estético, no desporto a estética não é o objectivo primeiro. Acrescenta que uma
outra característica marcante da arte é ela ter a possibilidade de expressar concep-
ções morais, sociais, políticas ou emocionais, o que não se passa com o desporto; se
um ginasta incluísse no seu exercício movimentos que expressassem a sua visão da
guerra, ou do amor, isso diminuiria a qualidade da sua performance, ao contrário do
que aconteceria com qualquer forma de arte. Parece-nos extremada a posição de
Best, na medida em que qualquer exercício de patinagem artística, de ginástica rít-
mica desportiva, de natação sincronizada ou até os exercícios de solo de ginástica
artística podem, de forma evidentemente menos óbvia do que a arte, expressar sen-
timentos ou emoções, individuais ou sociais. De igual modo, nos jogos desportivos
colectivos a forma empenhada e cooperante como uma equipa interage pode ex-
primir solidariedade e esperança. Também Wertz (1988), Boxill (1988) e Kupfer
(1988b) discordam da posição de Best, afirmando que a expressão de atitudes, ca-
rácter, situações da vida e mesmo referências morais abundam no desporto. Igual-
mente Hyland (1990) opina que o exercício de um patinador ou de um ginasta pode
expressar alegria, tristeza ou solidão, fazendo notar que em muitas competições
desportivas dão-se “lições da vida”, nas quais estão patentes a coragem, o ultrapassar

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de obstáculos, o saber lidar com a pressão, etc. Best (1988a) refere que por exemplo
na pintura abstracta ou na dança pede-se muitas vezes que não se procure um sig-
nificado, mas que se apreciem simplesmente as linhas, as cores, o movimento, etc.
Faz notar, contudo, que é intrínseca à noção de arte a possibilidade de abordar temas
com relevância social, constituindo este, certamente, um factor crucial na maneira
como a arte tem influenciado a sociedade. Para Best (1988b) no desporto, mesmo
nas mais elevadas performances ou mesmo nos desportos estéticos, esta possibili-
dade não se constitui como um traço marcadamente presente, sendo que quando
surge, o seu carácter é extrínseco à actividade desportiva.
Best (1988b) argumenta contra as posições que defendem que porque a arte não
pode ser estrita e rigorosamente definida, qualquer objecto ou actividade podem
ser arte. Entende que se o termo se aplica a tudo não pode, significativamente, apli-
car-se a nada, deixando de ter sentido a existência da expressão arte. Só se existirem
algumas fronteiras, ainda que vagas e mutáveis, é que tem sentido a existência do
conceito de arte; afirmar que não há fronteiras, utilizando esse argumento para sus-
tentar que o desporto é arte, resulta na condenação que qualquer coisa o possa ser
(Best, ibid.).
Best (1988b) evidencia, contudo, que ao não considerar o desporto como uma arte
não lhe retira valor algum. Pelo contrário, o autor pensa que, julgado pelos critérios
da arte, o desporto seria considerado como uma arte pobre. Do seu ponto de vista,
há que julgar o desporto e os desportos pelos seus próprios padrões ou modelos, in-
cluindo os padrões estéticos (ibid.). Esta parece-nos ser, com efeito, a questão cen-
tral: a possibilidade de viver experiência estéticas e de emitir juízos estéticos
relativamente ao desporto.
Best alerta também para a utilização por parte de alguns autores (Anthony, 1968,
Reid, 1970, cit. por Best, 1988a) dos termos bonito e gracioso aplicados ao desporto,
no sentido de o aproximar da arte, o que para ele não passa, uma vez mais, de uma
indevida confusão de conceitos. Cita igualmente o caso de Lowe (1976, cit. por Best,
1988a) que evoca a beleza do desporto no sentido de o comparar às artes performa-
tivas, argumentando que beleza e os seus cognomes não implicam necessariamente
arte. Com efeito Best (1988b) entende que a beleza não garante o carácter de arte a
uma actividade, nomeando artistas como Munch e movimentos artísticos como o
dadaísmo, que no seu trabalho, de forma deliberada, desprezaram a beleza. Refere-
se ainda a Carlisle (1969, cit. por Best, 1988a) que aproxima da arte a patinagem ar-
tística, os saltos para a água, a ginástica e a natação sincronizada, por via dos critérios
estéticos que são aplicados à dança, discordando também deste ponto de vista. Su-
blinha, contudo, que apesar de não atribuir ao desporto, nem mesmo aos desportos
que designa por estéticos, o carácter de arte reconhece, em particular a estes últi-
mos, um elevado valor estético. Esta parece-nos que é a perspectiva mais profícua,
que permitirá avançar para além do impasse a que a definição das relações desporto-
arte acaba quase sempre por conduzir. O corpo humano, com o qual se realiza o mo-
vimento desportivo, não é certamente um objecto artístico, mas “(...) nas suas
estratégias de cooperação com o real, emerge como um objecto necessariamente
belo. Daí que o movimento utilizado para fazer desporto empreste a este último
essa mais-valia estética.” (Cunha e Silva, 1999, p. 60).

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Best (1988a, 1988b) menciona uma outra concepção, errada do seu ponto de vista,
respeitante aos termos dramático e trágico e às suas categorias (a que se fez alusão
no ponto anterior), que são aplicados de forma equívoca ao desporto pois, para ele,
não podem ser empregues noutros contextos com o mesmo sentido que o são na
arte. Afirma que em teatro, por exemplo, a tragédia acontece aos personagens de
ficção que estão a ser representados e não aos actores, isto é, às pessoas que dão vida
à representação. Em contraste, tragédia no desporto ocorre com os participantes,
com as pessoas reais que nele tomam parte (Best, ibid.). Para Best é claro que o ob-
jecto central da arte é um objecto imaginário, ao contrário do que se passa no des-
porto. Assim discorda de Reid (1970, cit. por Best, 1988a) que afirma que os
espectadores de desporto são o verdadeiro teatro dos nossos dias, de Carlisle (1969,
cit. por Best, 1988a) que sustenta que o cricket é uma forma de arte dramática e vi-
sual, de Kitchin (s.d., cit. por Best, 1988a) que se refere ao futebol como um drama
sem guião e de Keenan (1973, cit. por Best, 1988a) que declara que as provas de atle-
tismo, assim como outros desempenhos humanos, acarretam uma componente
dramática. Best (1988a) afirma que o sentido em que estes autores utilizam os ter-
mos trágico e dramático divergem do sentido em que são usados em arte: enquanto
um momento trágico em teatro representa um triunfo, uma marca de sucesso, um
momento trágico em desporto significa um fracasso para o atleta (mesmo que tenha
atingido esse momento de forma nobre e corajosa). Best (1988b) acrescenta ainda
que enquanto no teatro não é o carácter do actor que é mostrado mas sim o da per-
sonagem que o actor representa, no desporto é o carácter do atleta, da pessoa, que
é evidenciado. Em nosso entender há aqui dois aspectos a considerar: por um lado,
o termo dramático por referência a teatro, no sentido de uma representação o que,
em certa medida, também se passa no desporto que é, igualmente, uma represen-
tação. Por outro lado, dizer que o actor evidencia unicamente o carácter da perso-
nagem é limitador, pois este carácter está sempre condicionado e reflecte a
interpretação do actor; aquilo que se mostra e passa para o público não é impessoal,
está impregnado das características individuais e das possibilidades expressivas do
actor. Assim, parece-nos que é possível converter as divergências de Best em con-
vergências.
Best (1988a) refere-se ainda ao facto de as actividades desportivas e os movimen-
tos dos atletas serem um tema tratado na arte, por exemplo na pintura e na escul-
tura. Embora existam autores (nomeadamente Lowe, 1976, cit. por Best, 1988a)
que entendam este facto como mais um argumento a favor do desporto ser consi-
derado como arte, Best discorda, afirmando que apesar de o desporto poder cons-
tituir tema da arte, a arte não pode constituir tema do desporto; com efeito, falar
de tema em desporto não faz, para Best, qualquer sentido. O autor interroga-se se
a principal questão não será porque é que algumas pessoas estão tão fortemente
inclinadas em argumentar que os desportos são formas de arte? Best (1988a) de-
marca-se completamente da opinião que sustenta que esse facto elevaria o estatuto
de desporto. Subscrevemos este ponto de vista e até que, actualmente, o desporto
se manifesta como uma actividade com uma relevância cultural muito semelhante
à da arte, não necessitando da sua aproximação para que lhe seja atribuído reco-
nhecimento social.

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3.3. O desporto como uma actividade nem estética nem artística


Não existem defensores estritos deste ponto de vista. Apenas Ziff (1974, cit. por Os-
terhoudt, 1991) e Martland (1985, ibid.) se aproximam desta posição, embora não sus-
tentem que o desporto não possui nenhum atractivo estético (Osterhoudt, 1991).
O principal argumento de Ziff (1974, cit. por Osterhoudt, 1991) centra-se em afirmar
que não existem problemas significativos que possam, de forma sensata, ser carac-
terizados como problemas da estética do desporto. De acordo com a perspectiva
deste autor não há traços ou características estéticas que sejam originais no des-
porto, não havendo portanto quaisquer características do desporto que o individua-
lizem esteticamente. Entendemos que as questões relativas ao record, ao exceder
limites, ao ultrapassar barreiras, isto é, as questões da superação e da transcendên-
cia, são aspectos específicos do desporto, não lhe sendo embora exclusivos. O autor
afirma que os problemas filosóficos significativos acerca do desporto estão limita-
dos a questões lógico-linguísticas e epistemológicas (o que nos parece dum sim-
plismo extremo). Ziff (1974, cit. por Osterhoudt, 1991) admite, no entanto, que
alguns desportos em certas ocasiões - mais insistentemente os denominados des-
portos estéticos - produzam referências estéticas explícitas, mas a maioria não o
faz; daqueles que o fazem, a forma (como o seu elemento estético), não é mais do
que um factor esbatido, sendo portanto não mais do que do que um traço subordi-
nado, auxiliar. O seu conteúdo estético é, portanto, para o autor, um epifenómeno,
uma consequência secundária das características principais do desporto, que são
técnicas e não estéticas. Aqui radica um dos erros fundamentais de Ziff, pois é sobre
a técnica que se edifica uma parte importante da estética do desporto. Um dos traços
fundamentais da cultura desportiva é representado precisamente pela técnica, que
a estética aprecia e ajuíza. Ziff esclarece que “(...) a eficiência mecânica pode ou não
ser estética mas não há intenção por parte do atleta de que essa eficiência seja bo-
nita. A falta de intenção para que exista beleza desqualifica o desporto como poten-
cialmente estético.” (1974, cit. por Boxill, 1988, p. 509).
Martland (1985, cit. por Osterhoudt, 1991) argumenta que embora a arte e o des-
porto, enquanto experiências humanas, possam partilhar algo do elemento jogo,
apesar disso a arte não possui uma semelhança familiar com o desporto porque: i)
na arte, diferentemente do que acontece no desporto, as regras, os valores e os ob-
jectivos que a regem estão em contínuo fluxo (nunca estão decididas; estão perma-
nentemente abertas); ii) diversamente, no desporto é possível distinguir bons de
maus desportos (aqueles que permanecem fieis às regras com base em propósitos
intrínsecos ou em propósitos extrínsecos, respectivamente), ou bons desportos de
desportos corruptos (aqueles que permanecem estritamente fieis às regras que de-
finem o jogo, daqueles que simulam jogar mas apenas ostentam os padrões que de-
finem o jogo). Em sua opinião, juízes e espectadores funcionam de modos
qualitativamente diferentes na arte e no desporto, o que contribui para o total dis-
tanciamento destes dois domínios.
Depois de percorridas as principais posições em torno dos problemas levantados
pelas relações entre desporto, estética e arte, avançamos para um outro domínio
que suscita cada vez mais interesse e que se expressa na díade desporto-educação
estética.

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4. Estética do desporto e formação


Uma das problemáticas que tem merecido a nossa atenção mais recentemente, res-
peita ao papel da estética do desporto em contextos formativos. Que o desporto pos-
sui valor estético, que é passível de desencadear experiências estéticas e que é
susceptível de provocar juízos de gosto, parece inegável para os estudiosos da ma-
téria. Mas, como fazer valer todo este potencial na escola, no clube, no contexto da
recreação e lazer, do desporto adaptado, ou do desporto para seniores? No presente
trabalho focalizamo-nos no desporto na escola.
Enquanto docente da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto e co-respon-
sável pela formação dos futuros professores de educação física (EF), temos procu-
rado despertar os estudantes para o quadro de possibilidades oferecido pelo
desporto em termos de educação estética, colocando a ênfase na necessidade em
que os conteúdos tratados nas aulas de EF na escola façam emergir a sua estética.
Não se trata de acrescentar nada de acessório nem de decorativo, mas de valorizar
uma componente que pertence à natureza do desporto.
Na formação dos estudantes procura mostrar-se que os objectivos da EF devem in-
corporar o desenvolvimento da sensibilidade e da consciência estéticas. Parte-se da
ideia, portanto, de que este é um propósito não apenas das disciplinas que têm for-
tes ligações às artes, como a educação visual, a educação musical ou a língua portu-
guesa, mas de que o desporto pode cumprir também com este desígnio. Enfatiza-se
que a dança, a patinagem artística e a ginástica desempenham um papel importante
no processo. Contudo, aos outros desportos integrados no currículo, cabe também
uma função relevante. A estética faz parte da malha, da rede, por que é constituído
o tecido do desporto. A estética não é algo que se acrescenta ou retira ao desporto,
de acordo com o ponto de vista de cada um, ou em função da modalidade desportiva
em causa, mas é uma dimensão que lhe é intrínseca, que faz parte da sua matriz,
como por exemplo as dimensões lúdica ou ética. A educação estética pelo desporto
promove a aprendizagem de outros modos de ver, de pensar e compreender o
mundo do desporto.
Faz-se notar que já desde há vários anos os Programas de EF, nas suas indicações ao
nível das categorias de objectivos para os diferentes ciclos de ensino, consagram
(em conjunto com os domínios motor, cognitivo e sócio afectivo) também o domí-
nio estético. No entanto, é importante realçar que esta categoria apenas surge elen-
cada à ginástica e à dança, o que reflecte um entendimento muito estreito, mesmo
redutor, quanto às potencialidades estéticas do desporto, parecendo fazer depender
esse potencial do estatuto do desporto como forma de arte (o que sucede aliás, em
parte ou totalmente, com os autores supra-citados no ponto 3.1.).
Reforçamos a necessidade em atender ao valor estético do desporto, em o considerar
como objecto estético, sendo este o ponto de partida para uma estética do desporto
e não dos desportos, de determinados desportos.
Sublinha-se que não existe experiência estética apenas na presença do objecto. O
papel do sujeito é imprescindível à existência da experiência. Os Programas na sua
formulação de objectivos no domínio estético, apontam, justamente, para que os
alunos sejam capazes de apreciar os desempenhos dos seus colegas, valorizando
assim o desenvolvimento de uma atitude estética, indispensável à instauração de

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uma relação estética com o desporto e à sua apreciação. Em nosso entender, essa
capacidade para apreciar não tem que respeitar apenas ao desempenho do outro,
mas também ao desempenho próprio, do qual pode resultar prazer estético. Apren-
der a adoptar uma atitude estética em relação ao desporto, permite a focalização da
atenção em aspectos que não se prendem apenas com o produto da actividade
(como é muito comum por parte dos alunos no contexto escolar), mas que dizem
respeito sobretudo à qualidade do processo. Factores como a plástica do corpo em
movimento, a sua fluidez e harmonia, a qualidade técnica e táctica, o envolvimento
ambiental, os materiais utilizados, o vestuário e acessórios, as relações de coopera-
ção e oposição, etc., dizem respeito à apreciação do processo. Dotar os alunos da ca-
pacidade de considerarem estes aspectos, prende-se com educação estética pelo
desporto, educação essa que contribui para a estruturação da sua vida interior, pro-
movendo novas formas de sentir, conhecer e viver o desporto.
Na formação dos futuros professores de EF, procura evidenciar-se que em desportos
como a ginástica, por exemplo, o professor não deve centrar a sua actividade de en-
sino apenas nos aspectos funcionais/instrumentais da técnica, mas também nos as-
pectos estéticos, criando situações que potenciem a aprendizagem das habilidades
técnicas para a eficácia, que é, naturalmente, estética. Nos diferentes tipos de feed-
backs, há que destacar de igual modo a dimensão funcional e a dimensão estética.
Nas situações de avaliação, importa valorizar também os aspectos estéticos (que têm
que ter expressão na classificação), como a harmonia e fluidez de movimentos, o
equilíbrio na realização, a expressividade, a criatividade, a elegância, o estilo pessoal
(tão importante na expressão da singularidade de cada um). Estes aspectos, na edu-
cação estética pelo desporto, não podem estar desligados de outros como a utilização
de música nas aulas, a atenção dada ao estado e à aparência das instalações desporti-
vas e do material, às condições de iluminação, ao equipamento dos alunos. O papel
do professor é o de criar e cultivar a apetência para o prazer estético.
Nos jogos desportivos colectivos podemos falar em estética da técnica e da táctica,
que se expressa de múltiplas formas: no ritmo inerente à realização dos elementos
técnicos e do próprio jogo; na velocidade, qualidade e complexidade da organização
das jogadas, do ataque, do contra-ataque, da recuperação defensiva. Em todos estes
aspectos é possível apreciar a expressão e a plástica do corpo em movimento, pa-
tentes nas diferentes formas de locomoção, na variabilidade de posições assumidas
pelo corpo, na alternância entre tensão e relaxamento, no desenrolar de acções que
implicam constantes readaptações e combinações. Também nestes desportos a pro-
cura da chancela pessoal, de um estilo próprio, promove a manifestação do eu de
cada um. A apreciação do equilíbrio, ofensivo e defensivo, assim como do equilíbrio
na perspectiva biomecânica (que implica sinergia muscular e aparente ausência de
esforço visível), promovem igualmente a educação estética. Ainda a harmonia: de
movimentos, entre o corpo e a bola, o acordo entre os vários elementos da equipa,
a harmonia do todo, ou seja, do jogo. Até a perfeição, que num primeiro momento
se nos pode afigurar pertença do alto rendimento e não do nível de rendimento ca-
racterístico do desporto na escola, pode constituir uma categoria estética com um
potencial formativo importante, ao nível da correcção de movimentos, da adopção
de uma postura corporal adequada, da fidelidade a um determinado modelo de jogo,

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da procura da excelência (que se situa num patamar necessariamente diferente do


que é esperado no contexto do alto rendimento).
A educação estética pelo desporto na escola, passa também pelo aproveitamento
das artes que representam o desporto, enquanto formas privilegiadas de dar vida
aos conteúdos da EF. A aula de atletismo ou de basquetebol pode incorporar a cha-
mada de atenção para a pluralidade e diversidade dos espaços desportivos, reme-
tendo para o domínio da arquitectura desportiva. As artes gráficas (cartazes,
medalhas, selos), o cinema, a fotografia, podem constituir excelentes auxiliares
para a aprendizagem funcional das técnicas desportivas, ao mesmo tempo que se
reflecte e incorpora o seu valor estético.
Os desportos de aventura na natureza, tão do agrado dos jovens em idade escolar,
possibilitam a concentração em aspectos da estética ambiental e até o inter-face
com a educação ambiental (que é atravessada também pela dimensão estética).
Abrir os alunos para a possibilidade de o espaço físico se converter num território
emocional, num espaço significativo, em vivências de contemplação, liberdade, su-
peração, pode estar nas mãos do professor de EF.
Procura-se, deste modo, formar os futuros professores de EF para que sejam com-
petentes na viabilização da educação estética pelo desporto. O paradigma da edu-
cação contemporânea, em que racionalidade, eficácia e competitividade parecem
ser as palavras de ordem, não tem que ser incompatível com o cultivo da sensibili-
dade. O espaço da EF pode constituir (se o professor para isso estiver preparado)
oportunidade para desenvolver nos alunos apetência para viver o que é menos prá-
tico, menos utilitário, de certo modo até, gratuito, e fruir essa vivência.

notas
1 Faculdade de Desporto da Universidade do Porto (FADEUP)
2 Centro de Investigação, Formação, Inovação e Intervenção em Desporto (CIFI2D)
3 A autora realizou uma extensa revisão da literatura na sua tese de doutoramento (Lacerda, T., 2002,
Elementos para a construção de uma Estética do Desporto. FADEUP), que apresenta de forma resumida no
presente trabalho.

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Mulheres e Desporto, e Estudos de Género:


contributos da investigação e do associativismo
Paula Botelho-Gomes, Paula Silva, Paula Queirós, Maria José Carvalho
Faculdade de Desporto, CIFI2D, Universidade do Porto, Portugal

Introdução
A temática Mulheres e Desporto e os Estudos de Género no desporto são relativa-
mente recentes em Portugal.
O despertar para estas temáticas, quer quanto objecto de investigação académica,
quer quanto objecto de problematização e intervenção cívica, remonta ao Congresso
Internacional Mulheres e Desporto, organizado pelo Movimento Democrático das Mu-
lheres, e realizado em Lisboa, em Novembro de1996. Este congresso, inspirado na
Declaração de Brighton (1994), documento desconsiderado pelas instâncias gover-
nativas em Portugal, e assim desconhecido ou ignorado no mundo do desporto, mo-
tivou congressistas para a discussão, a reflexão, a acção política em favor da
igualdade e da participação das mulheres no desporto a todos os níveis, funções e
esferas de competência, e para a investigação1;2.
Sendo, até então, uma problemática praticamente ignorada pelas instâncias públi-
cas e privadas, este congresso constituiu um momento marcante de reflexão e de
congregação de muitas vontades desportivas, já sensibilizadas para as desigualdades
entre homens e mulheres no desporto, mas sem mobilização para acções conjuntas.
A partir de então tais vontades materializaram-se, sobretudo, em duas vertentes:
na constituição da Associação Portuguesa Mulheres e Desporto (APMD3) e na mo-
bilização de um conjunto de docentes para a investigação desta temática na Facul-
dade de Desporto da Universidade do Porto (FADE.UP4)
O presente texto pretende, ainda que de forma sucinta, dar a conhecer trabalhos
desenvolvidos, quer pela FADE.UP, quer pela APMD.

Exemplos de investigação realizada pela Faculdade de Desporto


Os estudos de género só a partir da década de 80 suscitaram o interesse de investi-
gadores/as em Portugal.
A partir da década de 90, o debate teórico acerca das questões de género estende-se
à academia e está presente em trabalhos académicos em áreas como a psicologia, a
sociologia da educação, a geografia humana, a antropologia e a filosofia (Amâncio,
20035; Carmo e Amâncio, 20046).
A inclusão do desporto nos estudos de género é relativamente recente: a investiga-
ção em ciências do desporto ainda não conferiu a devida importância ao carácter
estruturante do género nas práticas físicas e desportivas. São, assim, escassos os es-

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tudos, teóricos e empíricos, que conjuguem género e desporto. Acresce o facto de o


desporto ser, para muitas feministas, um mundo usualmente pouco presente nas
suas reflexões (Hall, 19907; 19968). Deste modo, o tema das mulheres no desporto
parece-nos, ainda, sujeito a uma dupla marginalidade que sustenta as resistências
que sempre ocorrem quando queremos falar de mulheres e feminismos no âmbito
do desporto, e de desporto no âmbito dos feminismos. Se o desporto parece esquecer
a genderização que o estrutura, os feminismos abstraem-se da importância social e
cultural do desporto, e da possibilidade de se constituir como um meio de empode-
ramento (Silva et al., 20059; Silva et al., 200610).
Consideramos que, em Portugal, a Faculdade de Desporto foi pioneira no que diz
respeito a estudos que conjugavam ‘género, educação física e desporto’11. Duas datas
e dois trabalhos, um de mestrado e um outro de doutoramento, certificam o com-
promisso com esta área de investigação:

— em 2002, defendeu-se a primeira dissertação de mestrado Questões de género na


aula de Educação Física : representações de alunas e de alunos do 9º ano da Escola Bá-
sica do 2º, 3º ciclos de Santiago12;
— em 2005 realizou-se o primeiro doutoramento em Ciências do Desporto que
teve o género como tema da dissertação, A construção/estruturação do género na
aula de Educação Física no ensino secundário13.

Entre estes dois marcos e após eles, temáticas usualmente investigadas na Educação
Física e Desporto foram sendo revisitadas através da dimensão de género, enquanto
categoria analítica, nomeadamente nos seguintes projectos:

— Percepções de alunos e alunas do ensino secundário acerca de como o género se estru-


tura no espaço da aula de Educação Física14;
— Identificação de factores facilitadores e inibidores da prática desportiva, escolar e
extra-escolar, em jovens do ensino secundário15.

Com estes estudos pretendeu-se conhecer, através de entrevistas semi-estrutura-


das, as opiniões de alunos e alunas acerca da:

(1) representação que têm do actual modelo curricular de iniciação desportiva, e se


essa representação é congruente com as suas expectativas;
(2) avaliação dos factores que facilitam ou dificultam a sua participação nas activi-
dades da aula de Educação Física (EF);
(3) percepção ou não de atitudes e comportamentos sexistas nas aulas de EF;
(4) forma como questionam, ou não, as relações de género no âmbito das activida-
des físicas e desportivas.

Sucintamente, os resultados indicam que: (1) este modelo não é adequado e carac-
terizam-no como monótono, enfatizando a previsibilidade e repetição das matérias
(Botelho-Gomes et al., 200516) (2) a percepção das oportunidades de prática extra-
escolar é diferente para raparigas e para rapazes, sendo que o sexo feminino se re-

134
livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 135

cente mais da diferença de ofertas (Botelho-Gomes et al., 200517); (3) e (4) existe
ainda uma certa estereotipização de actividades físicas associadas ao género, e ati-
tudes e comportamentos sexistas nas aulas de Educação Física, que resultam em
relações de género problemáticas, percepcionadas e questionadas, fundamental-
mente pelas raparigas (Silva, Botelho-Gomes e Graça, 200518; Silva et al., 200619).
As iniquidades de género na aula de EF e sua monitorização (Silva, Botelho-
Gomes e Queirós, 200320) assim como as percepções de alunos e alunas acerca de
estereótipos de género foram também objecto de análise (Silva, Botelho-Gomes
e Queirós, 200421).
Nesta caminhada, investigaram-se ainda, por exemplo, as representações de género,
raça/etnia e de alunos/as com necessidades educativas especiais em manuais de edu-
cação física do 2º e 3º ciclos de ensino (Botelho-Gomes et al., 200822). Este estudo per-
mitiu verificar uma forte e consistente associação da educação física ao mundo
masculino, expressa pela hipervalorização do modelo masculino e sub-representação
da figura feminina nos manuais; e ainda uma acentuadíssima associação de maior
parte dos conteúdos aos rapazes. Os manuais transmitem, e assim perpetuam, este-
reótipos de género. Isto é: os manuais não contribuem para a alteração da narrativa
hegemónica do desporto (apesar do mundo real a desmentir): ‘varões’, ‘brancos’ e
‘perfeitos’, contrariando uma educação na cidadania, a socialização de rapazes e ra-
parigas em contexto escolar e a formação desportivo-corporal de todos/as.
A Educação Física, enquanto espaço de reafirmação de uma masculinidade hegemó-
nica, ficou bem retratada no estudo de Silva et al. (2008)23, onde se constatou, nomea-
damente, a presença, em discentes e docentes, de crenças que condicionam as
práticas desportivas ao género, e sinais muito claros de um ambiente homofóbico no
desenvolvimento de actividades desportivas. Estes sinais parecem resultar de ideo-
logias e visões estereotipadas que determinam quais as práticas desportivas não ade-
quadas aos rapazes, na salvaguarda da esperada e normativa heterossexualidade.
Docentes foram questionados acerca das relações de género nas classes de EF e
como concebem a organização das actividades em grupos mistos (Botelho-Gomes
et al., 200424). Os/as docentes consideram que as relações de género dependem fun-
damentalmente do conteúdo a ensinar/aprender; valorizam o trabalho em grupos
mistos; e afirmam que o curriculum de EF favorece maioritariamente os rapazes.
Estes exemplos sumários de estudos e respectivas conclusões convidam a uma re-
flexão muito séria acerca da importância da dimensão de género na formação de
docentes, de outros técnicos e dirigentes do desporto e sobre a orientação curricular
perfilhada em muitos países da União Europeia, nomeadamente em Portugal.

Associação Portuguesa Mulheres e Desporto (APMD):


um breve retrato e actividades desenvolvidas
A APMD, oficialmente constituída em 199825, é uma organização de direitos de mu-
lheres que tem como fins denunciar e combater discriminações e promover a igual-
dade de oportunidades e a participação das mulheres no desporto a todos os níveis,
funções e esferas de competência. Desde então fez-se representar no órgão consul-
tivo do governo para as questões da igualdade de género em Portugal26. Tem sido
ainda o contacto em Portugal de várias organizações congéneres, tais como: Euro-

135
livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 136

pean Women and Sport (EWS); International Association of Physical Education and
Sport for Girls and Women (IAPESGW); International Working Group – Groupe Inter-
national de Travail (IWG-GIT) e Women Sport International (WSI).
A nível nacional, tem desenvolvido colaborações com a Associação Portuguesa de Es-
tudos sobre Mulheres, com a Confederação do Desporto de Portugal e Comité Olím-
pico de Portugal e com a Confederação Portuguesa das Associações de Treinadores.
A Associação, ao longo dos seus parcos dez anos de vida, participou em fóruns27, ci-
meiras, acções de formação, conferência, e colóquios relacionados com o seu âmbito
de intervenção e fez-se representar na Comissão de Educação, Ciência e Cultura /
Subcomissão de Juventude e Desporto, para expor o seu parecer sobre a proposta
da lei-quadro do desporto (2004).
A produção editorial tem sido uma das suas áreas de intervenção e de divulgação,
onde se destacam os seguintes livros:

— Equidade na Educação: Educação Física e Desporto na Escola / Equity on Edu-


cation. Physical Education and Sport at School (2000, edição bilingue28);
— Deusas e Guerreiras dos Jogos Olímpicos (200629);
— Despertar para a Igualdade, mais Desporto na Escola (200630);
— Mulheres e Desporto. Declarações e Recomendações Internacionais (200731);
— As Portuguesas nos Jogos Olímpicos e Paralímpicos (200832)
— Igualdade de género no desporto. Educação e políticas públicas (200933)
— Desporto na Escola – Educando para a igualdade (200934)

De quatro em quatro anos, a APMD organiza um Congresso Internacional com o


objectivo de promover uma discussão alargada sobre as questões da participação
das raparigas e mulheres no desporto e de dar a conhecer as linhas e resultados de
investigação nesta área, quer nacionais quer internacionais.
Em 1999, o I Congresso Internacional “Mulheres no Desporto: sem limites, sem
barreiras” realizou-se em Lisboa. Em 2003, o II Congresso Internacional “Mulheres
e Desporto: agir para a mudança” teve lugar no Porto, numa realização conjunta da
APMD e da Faculdade de Ciências do Desporto e da Educação Física (FCDEF).
O III Congresso Internacional Mulheres e Desporto: Igualdade de género no des-
porto Educação e políticas públicas, realizou-se em 2008, em Lisboa.
A APMD desenvolveu entre 2004-2006 dois projectos: “Agir para Mudar” e “Mais
Desporto na Escola”, com financiamento da União Europeia.
No projecto Agir para Mudar o objectivo principal visou o conhecimento de casos
concretos de discriminação sexista no desporto para se estabelecer pontos de par-
tida para as acções de mediação, sensibilização e denúncia. A dificuldade em alterar
esta situação, a ausência de dados sistematizados e a inexistência de medidas e ac-
ções específicas têm protelado a forma de encarar e alterar este problema, como
aliás é referido no II Plano Nacional para a Igualdade35.
A informação e consciencialização das práticas discriminatórias em função do sexo
deverão abranger um leque alargado de pessoas, praticantes e decisores, de modo
a permitir actuar na sua prevenção de forma sistemática. Dai se ter envolvido di-
versas entidades parceiras, Federações e Associações desportivas e Autarquias, no

136
livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 137

sentido da sensibilização dos/as agentes dos subsistemas desportivos para a iden-


tificação e a prevenção das discriminações sexistas no desporto. O projecto desen-
volveu-se na área geográfica dos distritos de Braga e Porto.
O projecto experimental, Mais Desporto na Escola, desenvolveu-se em escolas bási-
cas e secundárias da área geográfica do distrito do Porto, decorreu nos anos lectivos
de 2004/2005 e 2005/2006, e visou cativar e motivar as raparigas para a continui-
dade da prática desportiva regular e organizada, apresentando como objectivos es-
pecíficos: (1) contribuir para a diminuição do abandono desportivo precoce das
raparigas; (2) sensibilizar professores/as, dirigentes associativos e eleitos/as das au-
tarquias para as questões de igualdade de oportunidades na participação desportiva;
e, (3) divulgar e disseminar práticas não sexistas (boas práticas) de dinamização e
animação desportiva em meio escolar.
Foram envolvidos no projecto 2.529 alunos e alunas do 7º ao 12º ano (que partici-
pavam em regime voluntário), 118 docentes (52 professores e 66 professoras) de
Educação Física, 31 atletas de alta competição, eleitos locais, dirigentes associativos
desportivos e um jornal desportivo. No decorrer das actividades foram ainda esta-
belecidos contactos com outras pessoas responsáveis de entidades não governa-
mentais, técnicos de autarquias locais e da estrutura do Desporto Escolar.
Ao longo dos dois anos lectivos foram realizadas diversas actividades de dinamiza-
ção e sensibilização dirigidas aos vários públicos alvo, com destaque para as dirigidas
a alunas e alunos das escolas parceiras e que estão vertidas no manual Despertar
para a Igualdade, Mais Desporto na Escola. Este manual é o primeiro instrumento
sobre esta temática em Portugal e constitui um precioso auxiliar para o corpo do-
cente sobre a introdução desta temática nas escolas.
Encontra-se em desenvolvimento o projecto, em parceria com a Confederação Por-
tuguesa das Associações de Treinadores, Treinadoras - dirigir outros desafios (2008-
10) que tem como objectivos: (1) conhecer a situação das treinadoras e os factores
que limitam a sua participação; (2) sensibilizar públicos estratégicos para a neces-
sidade de adoptar medidas específicas para promover o aumento do número de trei-
nadoras e melhorar o seu estatuto e (3) contribuir para a valorização e visibilidade
da intervenção das mulheres treinadoras e dos seus desempenhos desportivos. Re-
sultados preliminares foram apresentados no Seminário Desafios à Mudança, reali-
zado em Outubro de 200936.

Nota conclusiva
Enquanto que no panorama internacional, tanto no domínio da investigação como
no domínio do labor das organizações não governamentais (ONG), ainda que usu-
fruindo de apoios públicos ou com parcerias com intuições desportivas, a matéria
das mulheres e desporto e os estudos de género no desporto, já são alvo de anos e
anos de interesse e trabalho sistemático, em Portugal este caminho é ainda recente
e atulhado de uma cultura organizacional conservadora e machista.
Por parte dos poderes públicos, designadamente da tutela do desporto, existe
grande insensibilidade para as discriminações e desigualdade de oportunidades
entre homens e mulheres no desporto. Ainda que no plano legislativo tenham feito
alusões a esta matéria, no plano operacional não existe qualquer directriz, qualquer

137
livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 138

estratégia ou plano de acção tendente a equilibrar o fosso entre a participação des-


portiva feminina e masculina.
Assim, é de registar, necessariamente, o trabalho contínuo e sistemático da APMD
(representando mais de 400 associados/as) que ao longo dos 10 anos de existência
tem contado essencialmente com a colaboração da Comissão para a Cidadania e
Igualdade de Género (CIG), órgão atento, sensível e actuante nas questões relacio-
nadas com os direitos das mulheres em Portugal.
No domínio da investigação, o mais difícil já foi feito, dar os primeiros passos, se-
guros consistentes e de qualidade, como comprovam os vários artigos, dissertações
e teses publicadas, numa área de estudo pouco explorada e com objectos de inves-
tigação tão frutuosos e diversificados, como comprova a literatura universal. O
acervo bibliográfico da biblioteca da FADE.UP, enriquecido com os seus trabalhos
internos e registando já inúmeras obras internacionais ilustra bem esta evidência.
O caminho faz-se caminhando, e estamos cientes que com os contributos já firma-
dos, da FADE.UP e da APMD, ao que se juntarão outras organizações e investigado-
res/as, a matéria das mulheres e desporto e os estudos de género no desporto em
Portugal, têm uma grande margem de progressão para se equiparar à produção e ao
estado de consciencialização crítica e actuante quer dos países vizinhos, quer das
realidades internacionais mais exemplares nestes domínios.

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Notas
1 Cf., Carvalho, Maria José; Cruz, Isabel. (2007). Mulheres e Desporto. Declarações e recomendações in-
ternacionais. Queijas: APMD.
2 Cf., Carvalho, Maria José; Silva, Paula. (2007). Pela igualdade no desporto: dez anos de intervenção da
Associação Portuguesa Mulheres e Desporto. ex æquo, 16, pp. 55-65.
3 www.mulheresdesporto.org.pt
4 www.fade.up.pt
5 Amâncio, Lígia (2003). O feminismo é um projecto mas também um método.... In: Notícias da Amadora,
edição 1526.
6 Carmo, Isabel; Amâncio, Lígia. (2004). Vozes Insubmissas: a história das mulheres e dos homens que lutaram
pela igualdade dos sexos quando era crime fazê-lo. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
7 Hall, Ann (1990). How should theorize gender in the context of sport? In: Messner, M. A.; Sabo, D.F.
(Eds.), Sport, Men and the Gender Order. Critical Feminist Perspectives. Champaign, IL: Human Kinetics,
pp. 223-240.
8 Hall, Ann (1996). The «Doing» of Feminist Research. In: HALL, A. (Ed.), Feminism and Sporting Bodies.
Champaign Il: Human Kinetics, pp. 69-87.
9 Silva, Paula; Botelho-Gomes, Paula; Graça, Amândio; Queirós, Paula (2005). Acerca do Debate Meto-
dológico na Investigação Feminista. Revista Portuguesa de Ciências do Desporto, 5, (3), pp. 358-370.
10 Silva, Paula; Botelho-Gomes, Paula; Queirós, Paula (2006). Educação Física, Desporto e Género: o ca-
minho percorrido na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto (Portugal). Movimento, 12 (1),
pp.31-58.
11 Considera-se como ‘primeiro ensaio’ na temática: Botelho-Gomes, Paula. Género, Coeducação e Edu-
cação Física. Implicações pedagógico-didácticas. In: Botelho-Gomes, P.; Graça, A. (Eds.), Educação Física
na Escola – Novos desafios, diferentes soluções. Porto: Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Fí-
sica da Universidade do Porto, 9-21, 2001.
12 Ferraz, Goreti (2002). Dissertação de Mestrado. Porto: FCDEF-UP.
13 Silva, Paula (2005).Tese de Doutoramento. Porto: FCDEF-UP. Com este trabalho, a autora recebeu o
Prémio Mulher Investigação Carolina Micaëllis de Vasconcellos, 2006 (in ex-aequo).
14 Botelho-Gomes, Paula; Graça, Amândio; Silva, Paula. Projecto financiado pelo Instituto de Inovação
Educacional – 2002/03.
15 Botelho-Gomes, Paula; Silva, Paula; Graça, Amândio; Queirós, Paula. Projecto Financiado pelo Instituto
do Desporto de Portugal – 2005/06.
16 Botelho-Gomes, Paula; Silva, Paula; Graça, Amândio; Queirós, Paula (2005). What about the physical
education curriculum? The students’ views of secondary school PE. In 10 Annual Congress European Col-
lege of Sport Science, Belgrade CD-ROM.
17 Botelho-Gomes, Paula; Graça, Amândio; Silva, Paula; Queirós, Paula (2005). Opportunités de Pratique
Sportive selon le Sexe perçues par des Élèves de L’enseignement Secondaire. In: Livro de Resumos do
2ème Biennale de l’AFRAPS – 3ème biennale de l’ARIS ‘Intervenir dans les activités physiques, sportives et artisti-
ques : du débutant à l’experimenté. Pratiques, recherches, formations. Louvain-la-Neuve.
18 Silva, Paula; Botelho-Gomes, Paula; Graça, Amândio. (2005). Estudo dos preconceitos de alunos e alu-
nas acerca do desporto no masculino e no feminino. In: Botelho Gomes, P; Cruz, I. (Org.) Mulheres e Des-
porto: agir para a mudança. Lisboa: Associação Portuguesa a Mulher e o Desporto. ISBN: 972-98686-1-1,
Associação Portuguesa Mulheres e Desporto, http://www.mulheresdesporto.org.pt/13%20-
%20Estudo%20dos%20preconceitos%20.pdf
19 Silva, Paula; Botelho-Gomes, Paula; Graça, Amândio; Queirós, Paula (2006). How boys and girls per-
ceive gender relations in PE classes. Book of Abstracts ECSS Lausanne 06: 390.
20 Silva, Paula; Botelho-Gomes, Paula; Queirós, Paula. (2003). Gender in Physical Education Lessons:

139
livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 140

proposals to observe inequities. In: Sena Lino, L.; Ornelas, R.; Carreiro da Costa, F. Pieron, M. (Eds.). Pro-
ceedings of the Internacional AIESEP Congress. Madeira: AIESEP, CD – ROM.
21 Silva, Paula; Botelho-Gomes, Paula; Queirós, Paula. (2004). As Actividades Físicas e Desportivas têm
Sexo? – O Género no Desporto. Boletim de Educação Física da Sociedade Portuguesa de Educação Física,
28/29: 53-63.
22 Botelho-Gomes, Paula; Silva, Paula; Queirós, Telma; Caetano, Sílvia (2008). Manuais de Educação Fí-
sica: em rota de colisão com género, diversidade e cidadania. In Fernanda Henriques (org.), Género, Di-
versidade e Cidadania. Ed. Colibri/NEHM/CIDEHUS-UE: Lisboa, 89-101.
23 Silva, Paula; Botelho–Gomes, Paula; Goellner, Silvana. (2008). Educação Física no sistema educativo
português: um espaço de reafirmação da masculinidade hegemônica. Rev. Bras. Educ. Fís. Esp., São Paulo,
v.22, n.3, pp.219-233.
24 Botelho-Gomes, Paula.; Silva, Paula.; Queirós, Paula.; Graça, Amândio. (2004). Teacher’s Perceptions
of Gender Relations in Physical Education: how they conceive the organization of activities in mixed
classes. In 9th Annual Congress European College of Sport Science. Clermont Ferrand, CD-ROM.
25 Publicação dos estatutos conforme publicação do extracto dos estatutos no D. R. nº 72 de 26-3-1998,
p.6.560
26 Em 1998 este órgão denominava-se Conselho Consultivo da Comissão para a Igualdade e para os Di-
reitos das Mulheres (CIDM), e actualmente intitula-se Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género
(CIG) http://www.cig.gov.pt/
27 Destacamdo-se o Fórum Educação para a Cidadania, iniciativa impulsionada pelo Ministério da Edu-
cação e pela Presidência do Conselho de Ministros, resultando uma publicação disponível em
http://www.dgidc.min-edu.pt/cidadania/Paginas/default.aspx
28 Botelho-Gomes, Paula; Silva, Paula; Queirós, Paula. Queijas: APMD.
29 Cruz, Isabel; Silva, Paula; Botelho-Gomes, Paula. Lisboa: CIDM, Colecção fio de ariana.
30 Cruz, Isabel; Botelho-Gomes, Paula (Coordenação). Queijas: APMD.
31 Carvalho, Maria José; Cruz, Isabel. Queijas: APMD.
32 Carvalho, Maria José; Cruz, Isabel. Queijas: APMD.
33 Botelho-Gomes, Paula; Silva, Paula; Cruz, Isabel. Queijas: APMD.
34 Silva, Paula; Cruz Isabel; Botelho-Gomes, Paula. Lisboa: Presidência do Conselho de Ministros, Co-
missão para a Cidadania e Igualdade de Género.
35 Resolução nº 184/2003, de 25 de Novembro
36http://www.mulheresdesporto.org.pt/APMD%20%201%BAs%20resultados%20do%20estudo%20diagn%F3sti
co%20TREINADORAS%20NOV-09.pdf

140
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O Desenvolvimento Motor e o Modelo


Bioecológico de Bronfenbrenner
Ruy Jornada Krebs
Universidade do Estado de Santa Catarina - Brasil
Carl Gabbard
Texas A&M University - Estados Unidos
Priscila Martins Caçola
Texas A&M University - Estados Unidos

1. Introdução
Ao longo das últimas décadas o estudo do desenvolvimento motor na infância tem
sido apontado como uma das prioridades para o avanço na proposição de modelos
que orientem tanto a prática da educação física escolar quanto a do esporte fora do
contexto da escola (Gabbard, 2008; Gallahue & Cleland, 2003). Esse crescente in-
teresse pelo estudo do desenvolvimento motor gera uma questão que vem intri-
gando os pesquisadores da área – Como assegurar a validade ecológica de nossas
pesquisas sobre o desenvolvimento motor?
A pesquisa em desenvolvimento motor e a intervenção profissional na área foram
discutidas recentemente em uma publicação de Corrêa (2008), numa coletânea
onde o autor reuniu artigos de diferentes estudiosos da área do comportamento
motor para se debater especificamente a questão da validade ecológica apontada no
parágrafo anterior. Estudo e pesquisa em desenvolvimento motor foi também o
tema da coletânea de organizada por Rodrigues, Saraiva, Barreiros e Vasconcelos
(2009). Esse assunto gerou, ainda, as publicações de Catela e Barreiros (2008), e Bar-
reiros, Cordovil e Cavalheiro (2007).
De acordo com Bronfenbrenner (1979), uma concepção ecológica de desenvolvi-
mento em contexto tem implicações diretas com o método e com o delineamento
da pesquisa. Embora ele entenda como desejável que a pesquisa não fique restrita
ao ambiente do laboratório, ele adverte que o simples fato de transferir o contexto
da investigação para uma ambiente natural não é suficiente para garantir a validade
ecológica da pesquisa. Ao fazer a sua definição para validade ecológica Bronfenbren-
ner salientou que ela se refere “à extensão na qual o ambiente experienciado pelos
sujeitos de uma investigação científica tem as propriedades que lhes são atribuídas
ou que o pesquisador assumiu que o ambiente tivesse” (p.29). Estudos considerados
com “pouca validade ecológica”, por exemplo, podem ser vistos como incompletos
no sentido de não levarem em conta a relação dinâmica do indivíduo e contexto
presente no desenvolvimento motor. Porém, em meio ao um contexto tão diversi-
ficado, o problema de se assegurar validade ecológica em estudos no desenvolvi-
mento motor persiste como um desafio à pesquisadores.
Inerente à pesquisa em desenvolvimento motor está a questão de quais paradigmas
teóricos dão suporte a esses delineamentos de pesquisa. Gabbard (2008) analisa as
perspectivas teóricas subjacentes às pesquisas em desenvolvimento motor, e sa-

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lienta que nos anos recentes, visões mais abrangentes e explanatórias das mudanças
desenvolvimentais têm sido usadas. Esse autor enfatiza que “essas teorias conside-
ram o contexto ambiental nos quais o desenvolvimento ocorre, e tentam explicar
os mecanismos e processos responsáveis pelas mudanças” (p. 22). Gabbard comenta,
também, que essas novas teorias buscam oferecer explicações mais compreensivas
entre a interação dinâmica do organismo e ambiente, especificando relações que
influenciam o desenvolvimento motor.
Ao examinar as mais recentes abordagens teóricas ao estudo do desenvolvimento,
Gabbard (2008) usou o seguinte critério para apresentá-las. Inicialmente ele discu-
tiu as abordagens que davam destaque aos sistemas ambientais, e colocou nesse
grupo a teoria dos sistemas ecológicos, de Bronfenbrenner, e a perspectiva ecológica de
Gibson (1986). A seguir, ele discutiu as abordagens que enfatizavam os sistemas
biológicos, quando ele destacou o modelo do processamento de informação, a pers-
pectiva das estruturas coordenativas, a teoria dos sistemas dinâmicos e a teoria da sele-
ção de grupos neuronais. No terceiro grupo ele colocou o modelo dos “constraints”, de
Newell (1986).
Não é a proposta deste ensaio a análise e discussão de todas as abordagens teóricas
destacadas por Gabbard, no parágrafo anterior. Assim, nos limitaremos a mostrar,
inicialmente, a evolução do modelo teórico de Bronfenbrenner, desde sua proposi-
ção da Ecologia do Desenvolvimento Humano (1979), até à conclusão de sua teoria Bio-
ecológica do Desenvolvimento Humano, (2005, 2006). Após essa primeira etapa,
pretendemos mostrar as possibilidades de se usar o modelo Processo-Pessoa-
Contexto-Tempo (PPCT), de Bronfenbrenner, para se delinear pesquisas de desen-
volvimento motor em contexto e, assim, visar perspectivas que lhes assegurem
validade ecológica.

2. Antecedentes do modelo bioecológico de Bronfenbrenner


Antes de se discutir o Modelo Bioecológico de Bronfenbrenner é necessário que se
faça uma breve retrospectiva na obra desse autor. A década de setenta pode ser to-
mada como o marco inicial do modelo, quando Bronfenbrenner publicou dois livros
que se tornaram “clássico” nas ciências do desenvolvimento humano: Two Worlds
of Childhood: US and USSR (Os Dois Mundos da Infância: EUA e URSS), em 1970, e
Ecology of Human Development: experiments by nature and design (Ecologia do De-
senvolvimento Humano: experimentos naturais e por delineamento), em 1979.
No seu primeiro livro Bronfenbrenner discute critérios para se analisar duas cultu-
ras diferentes, e divide o livro em duas partes. A primeira foi denominada como A
construção do novo homem soviético, em que ele analisa dois tipos de contexto em
que a criança soviética se desenvolvia: o contexto da família e o contexto das comu-
nidades coletivas. No contexto familiar ele destacou os hábitos de cuidados mater-
nos, os valores e as técnicas de disciplinar as crianças. Nas comunidades coletivas
ele focalizou, principalmente, os centros pré-escolares e a escola soviética. Como
conclusão dessa primeira parte ele discute as implicações psicológicas dos métodos
soviéticos de se educar as crianças, destacando três fatores: a doação e a retirada do
afeto, a ausência do pai e a família centrada na figura materna, e o convívio da
criança em comunidades coletivas.

142
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A segunda parte do livro foi denominada como Criando crianças na América: passado,
presente e futuro. Essa segunda parte começa com uma severa crítica ao modo como
as crianças são criadas nos Estados Unidos, e para enfatizar essa crítica o autor usa
a expressão desconstrução da criança americana. Nessa desconstrução estão enfati-
zados a urbanização das cidades e os impactos da televisão. Bronfenbrenner enfa-
tiza, também, princípios e possibilidades de se melhorar as condições para o
desenvolvimento das crianças, e salienta a necessidade de se avançar das ciências
para as ações sociais. Ele conclui sua obra com a seguinte constatação:

Nós percorremos um longo caminho em nosso estudo comparativo da socialização


na União Soviética e nos Estados Unidos. Nós começamos com fatos descritivos,
consideradas as suas implicações à luz de dados e teoria das ciências socais, e fi-
nalizamos com um projeto para mudanças em nossa própria sociedade. (p.165)

No seu segundo livro, sobre a ecologia do desenvolvimento humano, o autor ofe-


rece uma nova perspectiva teórica para o estudo do desenvolvimento humano. Essa
perspectiva está sustentada pela interação e evolução entre a pessoa e o ambiente.
O objetivo do autor foi o de apresentar uma teoria das interconexões ambientais e
o seu impacto nas forças que afetam diretamente o crescimento psicológico do ser
humano. No entanto Bronfenbrenner foi um pouco além desse objetivo, pois além
de haver delineado um modelo teórico para representar os diferentes sistemas que
compõe o ambiente em que o desenvolvimento humano ocorre, ele desenvolveu
um conjunto de hipóteses e proposições para orientar pesquisas em desenvolvi-
mento humano. O seu modelo das interconexões dos diferentes níveis do ambiente
foi discutido desde a sua dimensão mais imediata à pessoa em desenvolvimento, o
microssitema, até a mais abrangente, o macrossistema. As outras duas dimensões
intermediárias são o mesossistema e o exossistema. Para se entender melhor esse
modelo de interconexões, faz-se necessário observar o conceito de desenvolvi-
mento que Bronfenbrenner adotou:

Talvez a característica menos ortodoxo da teoria proposta é o seu conceito de de-


senvolvimento. Aqui a ênfase não é nos processos psicológicos tradicionais de per-
cepção, motivação, pensamento, e aprendizagem, mas em seu conteúdo – o que é
percebido, desejado, temido, pensado, ou adquirido como conhecimento, e como
a natureza desse material psicológico modifica-se como uma exposição e interação
da pessoa com o ambiente. (p. 9)

A preocupação maior de Bronfenbrenner nesse livro foi oferecer fundamentação


para se entender o ambiente não apenas no nível de teoria, mas, principalmente,
em termos de trabalho empírico. Para isso é importante que se destaque o conceito
do autor para ecologia do desenvolvimento humano:

A ecologia do desenvolvimento humano envolve o estudo científico da acomodação


progressiva e mútua entre um ser humano ativo, em crescimento, e as proprieda-
des mutantes dos ambientes imediatos nos quais a pessoa em desenvolvimento

143
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vive; como este processo é afetado pelas relações entre esses ambientes, e pelos con-
textos maiores nos quais os ambientes estão inseridos. (p.21)

O livro está dividido em quatro partes. A primeira faz uma introdução à orientação
ecológica e define os conceitos básicos dessa abordagem. A segunda é dedicada a ex-
plicar os elementos dos ambientes onde a pessoa em desenvolvimento participa
ativamente, e esses ambientes são denominados como microssistemas. Na terceira
parte Bronfenbrenner analisa diferentes tipos de microssistemas, e enfatiza o la-
boratório como um contexto ecológico, apontando as características que afetam o
desenvolvimento da criança nos diferentes tipos de instituições, tais como orfana-
tos, creches, e pré-escola. Na quarta parte o autor discute as implicações do mesos-
sistema, do exossistema e do macrossistema.
Na década de oitenta Bronfenbrenner esteve envolvido em uma série de temas
sobre desenvolvimento humano, que resultaram em uma quantidade de artigos e
dois capítulos em livros. No entanto ele não abordava explicitamente o seu modelo
teórico com os quatro níveis do contexto, microssistema, mesossistema, exossis-
tema e macrossistema:

Desde a publicação de ecologia do desenvolvimento humano, há quase uma década


atrás, eu tenho estado engajado em uma operação secreta. Em uma série de artigos es-
critos ostensivamente para outros objetivos eu tenho perseguido uma agenda oculta:
a de reavaliar, revisar, ampliar, bem como se arrepender, ou mesmo, renunciar, alguns
dos conceitos colocados em meu livro de 1979. (Bronfenbrenner, 1992, p. 187)

O primeiro capítulo que Bronfenbrenner publicou nessa década foi em co autoria


com Crouter (1983), que analisava a evolução dos modelos ambientais usados em
pesquisas do desenvolvimento humano. Esse mesmo tema foi retomado por Bron-
fenbrenner, já no final dessa década, quando ele publicou um capítulo, intitulado
Interacting Systems in Human Development (Sistemas Interativos no Desenvolvi-
mento Humano), em um livro de Bolger, Caspi e Downey (1988). Nesse capítulo
Bronfenbrenner inicia com uma questão a respeito da pesquisa em desenvolvi-
mento Humano – Ao longo de quais parâmetros os paradigmas de pesquisa do desen-
volvimento em contexto variam? Na busca de resposta a essa indagação, ele discute
os paradigmas de pesquisa usados até então para o estudo do desenvolvimento hu-
mano, e os classifica em dois grandes grupos. Os Aristotélicos ou “teóricos de classe”
e os Galileanos ou “teóricos de campo”.
Dentre os paradigmas denominados como Aristotélicos, que buscam explicar o fe-
nômeno classificando-o em categorias (uma alusão aos quatro elementos de Aris-
tóteles: terra, ar, fogo e água), Bronfenbrenner identificou quatro modelos teóricos:
(a) o modelo do Endereçamento Social, (b) o modelo dos Atributos Pessoais, (c) o
modelo do Nicho Sociológico, e (d) o modelo Pessoa Contexto. O primeiro modelo
é apontado por Bronfenbrenner como o usado com maior freqüência para o estudo
do desenvolvimento em contexto. A crítica que ele fez a esse modelo é que as pes-
quisas envolvem pouco mais que meras comparações entre crianças e adultos que
vivem em regiões geográficas ou contextos sociais diferentes. O segundo tipo de

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modelo é semelhante ao primeiro, com a diferença que as características usadas


para comparações são de natureza biológica, como por exemplo idade, sexo, com-
posição corporal, etc. O terceiro tipo de modelo preocupa-se com a comparação dos
efeitos de contextos com nítidas diferenças sociais. Basicamente essas pesquisas
tentam evidencias os riscos que contextos socialmente empobrecidos oferecem ao
desenvolvimento do ser humano. O último modelo avança um pouco quando com-
parado com os demais, pois faz uma interação entre as características do contexto
social com os atributos da pessoa em desenvolvimento.
Em relação ao segundo grupo de modelos de pesquisa, identificados como Galilea-
nos, Bronfenbrenner salienta que esses modelos caracterizam-se por especificarem
os processos particulares em que um determinado fenômeno é investigado. Nesse
grupo, Bronfenbrenner colocou quatro tipos de modelos: (a) modelo do Processo
no Microssistema, (b) modelos de Processo Contexto, (c) modelos de Processo Pes-
soa Contexto, e (d) modelo do Cronossistema. As pesquisas orientadas pelo pri-
meiro tipo desses modelos analisam as influências emanadas tanto da própria
pessoa quanto das outras pessoas que compartilham um mesmo ambiente, das ca-
racterísticas físicas do ambiente e dos objetos presentes nesse contexto imediato.
No segundo tipo os pesquisadores buscam explicar os processos causais que afetam
o desenvolvimento da pessoa e que têm relação com variáveis situadas fora do mi-
crossistema. O terceiro tipo de modelo difere desse segundo por acrescentar mais
um elemento de análise, os atributos da pessoa em desenvolvimento. O quarto mo-
delo caracteriza-se por romper uma tradição nas ciências do desenvolvimento hu-
mano. Essa ruptura diz respeito à interpretação da variável “tempo”, que até então
era tratado como uma característica meramente cronológica, que servia para orde-
nar indivíduos em função da idade. O cronossistema busca ordenar os eventos em
função de sua sequência histórica e contexto em que os eventos ocorrem.
A década de noventa é marcante na obra de Bronfenbrenner, pois é nessa época que
ele denomina, pela primeira vez, o seu modelo como teoria. Em 1992 ele publica
um capítulo num livro de Vasta, intitulado como Ecological Systems Theory (Teoria
dos Sistemas Ecológicos). Nesse capítulo o autor começa fazendo uma crítica nas
pesquisas que colocam o foco do estudo nas características do contexto e ignoram
as características desenvolvimentais da pessoa. Ele denominou essas pesquisas
como sendo de “contexto sem desenvolvimento”. No entanto Bronfenbrenner per-
cebeu que essa crítica se aplicava aos seus próprios estudos, pois ele também negli-
genciara em tratar de forma equilibrada a interação entre a pessoa em
desenvolvimento e os contextos onde ela se desenvolve:

Ironicamente, tendo feito a crítica, eu devo agora admitir que ela também se apli-
que aos meus escritos. Qualquer pessoa que se dê o trabalho de examinar o meu
livro The Ecology of Human Development (Bronfenbrenner, 1979) irá descobrir
que ele tem muito mais coisas ditas a respeito da natureza e contribuição desen-
volvimental do ambiente do que a respeito do organismo ele próprio. (p. 89)

Nesse capítulo Bronfenbrenner discute a necessidade de um paradigma ecológico


para se discutir desenvolvimento em contexto. Esse paradigma ela vai buscar na

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obra de Kurt Lewin, que desenvolveu uma equação para explicar o Comportamento
como uma função conjunta de Pessoa e Ambiente. Bronfenbrenner substituiu o
fator Comportamento pelo fator desenvolvimento e apresentou a seguinte fórmula:
D = f (PE). Nesse capítulo ele novamente retoma a questão dos modelos de pesquisa,
e usa dados disponíveis em estudos de outros pesquisadores para acentuar a dife-
rença entre os “modelos teóricos de classe” e os modelos “teóricos de campo”. Bron-
fenbrenner destaca a superioridade do modelo “Processo Pessoa Contexto” sobre
os demais, apontando uma lacuna nesse tipo de modelo. “O elemento ausente é o
mesmo que foi omitido na fórmula original de Lewin, a dimensão tempo” (1992,
p. 201). Para complementar essa lacuna, ele recomendou a utilização do modelo que
ele denominou como cronossistema:

Especialmente nos anos mais recentes, contudo, a pesquisa em desenvolvimento


humano tem projetado o fator tempo ao longo de um novo eixo. Na metade dos
anos setenta um crescente número de pesquisadores começou a empregar delinea-
mentos de pesquisa que levavam em conta a constância e a mudança não apenas
na pessoa, mas também no ambiente. Eu tenho me referido aos delineamentos
desse tipo como modelos do cronossistema.(1992, p. 2001)

O outro fato marcante nessa década de noventa é a publicação em 1995, de seus dois
capítulos no livro de Moen, Elder e Lüscher. No primeiro capítulo Bronfenbrenner
faz uma análise de seu modelo teórico a partir de uma reflexão sobre a sua própria
história de vida, e denomina a si próprio como “um observador participante”. No
segundo capítulo ele apresenta as perspectivas futuras da ecologia desenvolvimen-
tal. É nesse capítulo que ele propõe formalmente o Modelo Bioecológico, composto
de seus quatro elementos: Processo, Pessoa, Contexto e Tempo. Ele também atualiza o
seu conceito para desenvolvimento humano:

Especialmente em suas fases iniciais, e numa grande extensão ao longo da vida, o


desenvolvimento humano ocorre através de um processo de interações recíprocas
progressivamente mais complexas entre um organismo humano ativo e em evo-
lução biopsicológica, e as pessoas, objetos e símbolos em seu ambiente mais ime-
diato [microssistema]. Para ser efetiva a interação deve ocorrer em bases justas
num extenso período de tempo. Tais formas duradouras de interação no ambiente
imediato são referidas como processos proximais. Exemplos de padrões duradouros
são encontrados em atividades entre pais-filhos, crianças-crianças, jogo em grupo
ou solitário, leitura, aprendizagem de novas habilidades, atividades de estudo,
atividades esportivas e desempenho de tarefas complexas. (p.620)

Nesse segundo capítulo o autor explica de uma forma bastante clara, as caracterís-
ticas da pessoa no modelo PPCT. Inicialmente ele identifica dois tipos de caracterís-
ticas pessoais, que são importantes para o desenvolvimento do ser humano. As
primeiras são “as medidas já familiares de habilidade, aquisição, temperamento e
personalidade, medidas tipicamente pelos testes psicológicos” (1995, p. 634). Essas
características foram denominadas como recursos pessoais ou responsabilidades. O

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outro tipo de atributos pessoais é interpretado por Bronfenbrenner como sendo


mais dinâmicos e refletem a concepção de que o organismo humano é um agente
ativo em seu desenvolvimento. “São essas características que desencadeiam, sus-
tentam e melhoram a interação entre o organismo [pessoa] e as características par-
ticulares de pessoas, objetos e símbolos em seu ambiente” (1995, p.634). Ele
chamou essas características de disposições pessoais. O próprio autor salienta que
esses dois tipos de atributos pessoais possam sugerir uma dicotomia entre recursos
biopsicológicos e disposições direcionais, mas na verdade elas representam a com-
plementaridade entre a substância psicológica [recursos] e a força psicológica [dispo-
sição]. Em 1998 Bronfenbrenner publica em co autoria com Morris, um capítulo na
5ª edição do Handbook of Child Psychology (Lerner, 1998) em com o título de Eco-
logia dos Processos Proximais. Nesse capítulo é acrescentado mais um tipo de atributo
pessoal, as demandas, que interferem na aceitação ou rejeição da pessoa por parte
dos demais presentes no contexto.
Até a metade da primeira década deste século, que marca a data de seu falecimento,
Bronfenbrenner foi bastante ativo no sentido de completar a sua teoria de desen-
volvimento humano. Em 2005 (ano de sua morte) foi publicado o livro que pode
ser considerado como uma síntese de sua obra, nas últimas quatro décadas – Making
Human Beings Human (Humanizando Seres Humanos). Esse livro está dividido em
duas partes. A primeira trata sobre a natureza da teoria e da pesquisa bioecológica e
na segunda ele enfatiza o uso da ecologia do desenvolvimento humano para me-
lhorar a condição humana. Nesse livro ele renomeia a sua teoria como Teoria Bio-
ecológica do Desenvolvimento Humano. Ao apresentar essa versão atualizada de sua
teoria, Bronfenbrenner salienta:

A teoria bioecológica do desenvolvimento humano atinge a maturidade 10 anos


após a publicação da “teoria dos Sistemas Ecológicos” a qual havia retomado a
questão do futuro da “ecologia do desenvolvimento humano” como uma disci-
plina. O seguinte sucessor desse artigo aceita a teoria bioecológica como um para-
digma e especifica e define suas propriedades. (p. 3)

Ao escrever a sua teoria bioecológica Bronfenbrenner comenta dois modos de pes-


quisa na ciência do desenvolvimento humanos. Um é mais familiar aos pesquisa-
dores, o “modo da verificação”, cujo objetivo é replicar achados anteriores usando
outros contextos para se ter certeza de que esses resultados ainda são aplicáveis. O
outro, ainda muito pouco conhecido e utilizado, é o “modo da descoberta”, que está
comprometido com dois objetivos interdependentes, buscar novas hipóteses alter-
nativas com seus correspondentes delineamentos de pesquisa, para a produção do
conhecimento científico; e oferecer bases científicas para se planejar políticas so-
ciais e programas mais efetivos para se enfrentar as novas e emergentes influências
disruptivas ao desenvolvimento humano.
A seguir é apresentada uma interpretação do modelo PPCT: Em 2006 foi publicada
na sexta edição do Handbook of Child Psychology (Lerner, 2006) a atualização do ca-
pítulo que Bronfenbrenner, em co autoria com Morris, havia publicado em 1988.
Nessa nova versão o capítulo teve o seu nome mudado para The Bioecological Model
of Human Development. A citação seguinte aparece na conclusão do capítulo:

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Os quatro componentes que definem o modelo bioecológico deverão estar teorica-


mente relacionados uns com os outros e com os resultados desenvolvimentais que
serão obtidos com a investigação. Isso significa que a escolha das variáveis que
irão representar cada uma das propriedades definidas deverá estar fundamentada
em pressupostos relativos às suas inter-relações esperadas. (p. 825)

Figura 1 – Representação gráfica do modelo PPCT.

Com essa breve retrospectiva sobre a obra de Bronfenbrenner, pretendeu-se mos-


trar a preocupação do autor com a pesquisa na área do desenvolvimento humano.
Na continuidade deste ensaio pretende-se discutir a pesquisa em desenvolvimento
motor e como o modelo PPCT pode ser utilizado para orientar pesquisas nessa área.

3. A pesquisa em desenvolvimento motor e o modelo PPCT


A crítica que Bronfenbrenner (1995b) fez à produção de conhecimento na área do
desenvolvimento humano, foi a de que ”a ciência desenvolvimental de hoje tornou-
se a ciência das tendências em torno da média” (p.632), e que nós sabemos muito
pouco a respeito das exceções. Essa crítica pode ser estendida à produção do conhe-
cimento em desenvolvimento motor. Um exemplo disso pode ser encontrado nos
estudos de perfil de crescimento, estado nutricional, padrões motores, em que os re-
sultados são enfatizados através de suas médias e respectivos desvios padrão, per-
centis e escores “Z”. O próprio Bronfenbrenner trouxe uma explicação para esse fato:

A razão para este paradoxo é que a ciência psicológica tomou a física como o seu
modelo, e a física busca descobrir princípios universais: aqueles que se aplicam a
todos os fenômenos físicos, através do tempo e do espaço. Mas os seres humanos,

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como todas as criaturas vivas, são amplamente variáveis em suas características


biopsicológicas e, como resultado, são diferencialmente suscetíveis às condições
externas e forças às quais eles são expostos durante o seu tempo de lida. Natural-
mente isso não significa que tais variações são assistemáticas e, por isso, e não re-
ceptivas a investigações científicas; o que isso significa é que os modelos de pesquisa
que nós usamos precisam levar em consideração tais variações, ao invés de consi-
derá-las simplesmente erros randômicos. (p. 633)

Quando Bronfenbrenner (1988) publicou, em co-autoria com Morris, The Ecology


of Developmental Processes (A Ecologia dos Processos Desenvolvimentais), ficou en-
fatizado que o modelo havia sofrido uma mudança em seu “centro de gravidade”,
pois se no modelo de 1979 era o contexto o seu elemento de maior destaque no novo
modelo os processos proximais passavam a ser o seu construto central (conforme
está representado na Figura 1). Bronfenbrenner (1995b) comenta que sem a inclu-
são dos processos proximais no delineamento da pesquisa, informações valiosas a
respeito tanto das características da pessoa quanto das do ambiente seriam perdidas.
Até a presente data, poucas publicações na área das ciências do esporte e da educa-
ção física têm mostrado a utilização do modelo PPCT como de pesquisa. Recente-
mente, foi organizado um número especial no International Journal of Sport
Psychology inteiramente dedicado à abordagem ecológica à cognição e ação no con-
texto do esporte e do exercício. Nesse número Krebs (2009a) foi responsável por
apresentar a teoria bioecológica de Bronfenbrenner, e como ilustração da aplicabi-
lidade da teoria nos contextos esportivos, o autor delineou um modelo para avaliar
o desenvolvimento de talentos esportivos. Com base nessa adaptação do modelo
PPCT para a pesquisa na área das ciências do esporte e da educação física, serão dis-
cutidas algumas possibilidades de se formular hipóteses para se investigar o desen-
volvimento motor de crianças e jovens.
Um exemplo de pesquisa que usa o modelo PPCT como base é um estudo feito por
Tudge e colegas (2003), que teve o objetivo de focar nas relações entre atividades
de brincar relevantes de crianças pré-escolares e a percepção que professores têm
em relação a competência das crianças quando eles entram na pré-escola. As variá-
veis do estudo foram elegantemente analisadas seguindo o modelo PPCT. O grau
de interação em atividades diárias (Processo) e a iniciação nessas atividades (Pessoa)
foram observados por um período de um dia. As crianças foram separadas em duas
classes sociais (Contexto), e observações feitas por professores em relatórios de
competência acadêmica depois de dois anos de entrada na escola primária foram
seguidas por dois anos consecutivos (Tempo).
O estudo descrito no parágrafo anterior exemplifica como é possível contextualizar
um estudo no modelo PPCT, o que enriquece o estudo e aumenta a validade ecológica
daquela pesquisa. O entendimento do modelo é essencial para que pesquisadores se-
lecionem variáveis que são relevantes e influenciam o desenvolvimento, sempre lem-
brando que o desenvolvimento motor é o estudo de mudanças no comportamento
motor influenciadas por fatores biológicos e ambientais (Gabbard, 2008).
Dois estudos publicados recentemente sobre atributos pessoais de tenistas jovens (Co-
petti, 2001, Krebs et al. 2008) usaram o modelo bioecológico de Bronfenbrenner para

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investigar o processo de engajamento e permanência de tenistas jovens no contexto


do esporte de rendimento. Ambos os estudos focaram suas hipóteses nos atributos da
pessoa e usaram como instrumento de coleta de dados a entrevista semi estruturada.
Para a análise dos dados obtidos observa-se no estudo de Copetti uma estratégia de
comparação de resultados, que o autor denominou como “fator de interação”. Com
essa estratégia foi possível que Copetti com parasse os resultados dos atributos pessoais
tanto numa direção intrafatorial quanto numa dimensão interfatorial.
Outro exemplo específico ao desenvolvimento motor é a influência de equipamen-
tos e brinquedos disponíveis no lar onde a criança vive, especialmente durante os
primeiros anos de vida, e passa a maior parte do tempo. Esses fatores geram as ca-
racterísticas das variáveis “Processo” (as continuidades e mudanças nas interações
da criança e as pessoas com quem ela interage numa base regular) e “Contexto” (dis-
ponibilidade de materiais e atividades diárias que influenciam desenvolvimento
motor, além da estrutura da casa e equipamentos). Uma das tentativas de se enten-
der como e quanto o ambiente do lar influencia o desenvolvimento motor foi apre-
sentada por Rodrigues e colegas (2005), com a criação do questionário AHEMD
(Affordances in the Home Environment for Motor Development; Oportunidades no Lar
para o Desenvolvimento Motor), para crianças de 18 à 42 meses de idade. De uma
forma simples, porém efetiva, o questionário enriquece as pesquisas com crianças
dessa faixa etária, fornecendo informações fundamentais sobre as oportunidades
de estimulação motora que a criança tem em casa.

4. Considerações finais
O modelo bioecológico de Bronfenbrenner abordado nesse capítulo é diretamente
relacionado a umas das questões principais que pesquisadores no desenvolvimento
motor encaram em seus estudos – “Como assegurar a validade ecológica de pesqui-
sas sobre o desenvolvimento motor?” Os conceitos apresentados apresentam pos-
sibilidades de incluir ou aumentar validade ecológica em estudos da área.
A descrição histórica da obra de Bronfenbrenner desde a sua concepção até o modelo
atual reflete as contradições, relações e interações que cercam o estudo do desen-
volvimento motor. Assegurar validade ecológica em pesquisas não é uma tarefa
fácil, devido à complexidade das relações e transformações dinâmicas entre o indi-
víduo e o ambiente. O modelo PPCT facilita o entendimento e dá a oportunidade a
pesquisadores de usar uma teoria que leva em consideração a importância dos as-
pectos fundamentais que promovem desenvolvimento.
Entender a teoria de Bronfenbrenner desde a sua concepção até o estado atual é parte
do entendimento do complexo e dinâmico processo que cerca o desenvolvimento
motor. Pesquisadores devem reunir esforços no sentido de incluir variáveis contextuais
e ambientais que sejam fundamentais para a explicação de mudanças no comporta-
mento motor. O modelo PPCT mostra alguns exemplos de como buscar e separar va-
riáveis influentes. Com alguns esforços, será possível se delinear futuras pesquisas em
desenvolvimento motor que levem em conta os quatro fatores do modelo bioecológico,
e possibilitem não apenas a replicação dos estudos existentes, mas, principalmente,
gerar novas hipóteses alternativas para se investigar as continuidades e mudanças nas
características motoras da pessoa em desenvolvimento e as propriedades dinâmicas dos
contextos em que essa pessoa está direta ou indiretamente inserida.

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Em Busca da Prática ‘Ótima’ na Aprendizagem


de Habilidades Motoras: Reflexões a Partir
da Estrutura Constante-Variada¹
Umberto Cesar Corrêa
Andrea Michele Freudenheim
Luciano Basso
Universidade de São Paulo - Brasil

1. Considerações iniciais
Há consenso de que a quantidade e a qualidade da prática são aspectos cruciais para
a aquisição de habilidades motoras. O que tem sido objeto de investigação são as es-
pecificações das quantidades e qualidades de prática que mais favorecem a aquisi-
ção. Nesse sentido as perguntas feitas têm sido, por exemplo: a qual regime de
prática submeter os aprendizes a fim de promover uma aprendizagem eficiente?
Qual é a quantidade de prática necessária à aprendizagem de habilidades motoras?
A prática refere-se ao envolvimento sistemático do aprendiz com a habilidade mo-
tora. Dada a sua abrangência, no campo da Aprendizagem Motora, ela tem sido in-
vestigada em relação a diversos fatores, tais como: (a) tipo, metal e/ou física; (b)
organização, distribuída e/ou maciça (Lee & Wishart, 2005); (c) do todo e/ou das
partes (Corrêa, Silva & Paroli, 2004); e, (d) em relação à estrutura, variada (aleatória,
em blocos) e/ou constante (Corrêa, 2006).
O presente capítulo traz algumas reflexões e proposições baseadas em um conjunto
de pesquisas relativas a este último aspecto, a estrutura de prática. Nas referidas
pesquisas, a aprendizagem de habilidades motoras é abordada como processo adap-
tativo, isto é, como um processo contínuo que compreende a reorganização de ha-
bilidades motoras. Nesse contexto, a aprendizagem de habilidades motoras tem sido
concebida como envolvendo as fases de estabilização (funcional; formação de es-
trutura/padrão) e adaptação (reorganização da estrutura formada) (Choshi, 2000;
Tani, 2005). Especificamente, no presente capítulo, considerando as conclusões
desses estudos, são propostas a existência de quantidade e estrutura de prática óti-
mas para a promoção da aquisição de habilidades motoras.

2. Sobre a estrutura de prática


Temos conduzido estudos nos quais os efeitos das estruturas de prática constante,
variada aleatória e a combinação de ambas (constante-aleatória e aleatória-cons-
tante) têm sido investigados. Considera-se prática constante quando a habilidade
motora é praticada em uma única condição ao longo de um conjunto de tentativas
e, prática variada aleatória, quando diferentes condições de uma mesma habilidade
ou diferentes habilidades são praticadas em ordem aleatória Nesse contexto, têm
sido elaboradas as seguintes perguntas: o processo adaptativo seria favorecido por
qual estrutura de prática? Por quê?

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A primeira pesquisa (Corrêa, 2001) envolveu a realização de três experimentos que


diferiram quanto ao componente da tarefa manipulado na prática variada. A tarefa
de timing coincidente constou da execução de uma seqüência de movimentos vi-
sando a coincidência com um estímulo visual. No experimento 1, a prática variada
referiu-se ao componente perceptivo da tarefa, isto é, a velocidade de apresentação
do estímulo visual foi variada. No experimento 2, a prática variada foi manipulada
quanto a diferentes seqüências de movimento. E, no experimento 3, a prática foi
variada nos aspectos perceptivo e motor da tarefa de aquisição, respectivamente,
velocidade de apresentação do estímulo visual e sequência de movimento (padrões
de resposta) foram variadas. Nos três experimentos os participantes foram crianças
de 10 a 12 anos de idade. Os resultados mostraram que nos três experimentos os
grupos que melhor se adaptaram foram aqueles submetidos à prática constante se-
guida de prática variada aleatória (prática constante aleatória).
Na segunda pesquisa (Corrêa, Benda, Meira Júnior e Tani, 2003) os mesmos quatro
grupos formados em função da estrutura de prática aprenderam uma tarefa de con-
trole de força manual, cujo objetivo era alcançar metas de desempenho pré-estabe-
lecidas. As características dos participantes foram similares às do estudo anterior.
Os resultados indicaram que os grupos de prática constante e constante-aleatória
foram aqueles que apresentaram melhor desempenho na fase de adaptação.
Em uma terceira pesquisa, três experimentos foram realizados com foco na especi-
ficidade da tarefa (Barros, 2006). A pergunta formulada foi se os efeitos supracitados
eram específicos à tarefa. Nos experimentos 1, 2 e 3 as exigências de aprendizagem
e a variabilidade de prática foram de, respectivamente, controles temporal, de força
e espacial. Participaram crianças com as mesmas características das pesquisas an-
teriores. Os resultados mostraram que nos experimentos com tarefas que envolve-
ram predominantemente controle de tempo e de força os grupos de prática
constante-aleatória foram aqueles que apresentaram melhor adaptação. Por sua vez,
no experimento com tarefa de controle espacial, o grupo que melhor se adaptou foi
o submetido à prática aleatória-constante.
Mais recentemente os efeitos da estruturação da prática foram investigados em re-
lação à idade dos aprendizes (Gonçalves, 2009). Crianças, adultos e idosos foram
submetidos à aprendizagem da mesma tarefa de timing coincidente utilizada em
Corrêa (2001), ou seja, tocar alvos de forma seqüencial em integração a um estímulo
visual. Os resultados mostraram que o processo adaptativo na aprendizagem de
crianças, adultos e idosos de uma tarefa de timing coincidente foi beneficiado pela
prática constante-aleatória.
Em suma, como se pôde notar, os resultados dos estudos sobre os efeitos da estru-
tura de prática [exceção feita apenas ao experimento 3 de Barros (2006)] revelaram
a prática constante-aleatória como aquela que melhor promove a aprendizagem de
habilidades motoras. Isto é, a capacidade de adaptação a partir de modificações de
parâmetros e/ou da estrutura da habilidade adquirida é favorecida pela prática cons-
tante seguida da aleatória. Tais resultados podem ser explicados concebendo-se que,
no processo de estabilização, a prática constante, primeiramente, possibilita a for-
mação da estrutura da habilidade (padrão); e, que a prática variada aleatória, em se-
guida, possibilita a sua diversificação. Nesse sentido, a formação da estrutura
precede sua diversificação.

153
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Esses resultados e explicações incitaram a seguinte pergunta: 1) Quanto de prática


constante deve preceder a introdução da prática aleatória?

3. Sobre a formação de padrão em habilidades motoras


A pergunta “quanto de prática constante deve preceder a introdução da prática alea-
tória” se origina do fato de nos experimentos apresentados anteriormente a estru-
tura constante-aleatória ter sido organizada em 50% das tentativas, ou seja, metade
das tentativas ter sido realizada em no regime de prática constante e a outra metade
no de prática variada. Considerando que o processo adaptativo em aprendizagem
motora foi beneficiado quando na estabilização a formação da estrutura precedeu
sua diversificação, ou seja, por meio de prática constante-aleatória, seria importante
investigar quando introduzir a diversificação. Ou, por outro lado, quanto de prática
constante seria necessário para a formação de padrão (estabilização funcional).
A busca de respostas para estas perguntas envolveu a realização de três pesquisas
(Corrêa, Gonçalves, Barros, & Massigli, 2006; Corrêa, Barros, Massigli, Gonçalves,
& Tani, 2007; Corrêa, Massigli, Barros, Gonçalves, Oliveira & Tani, 2010), cujos ob-
jetivos eram investigar os efeitos de diferentes quantidades de prática constante
anteriormente à prática aleatória, no processo adaptativo em aprendizagem motora.
As três pesquisas foram desenvolvidas a partir de metodologia similar ao das pes-
quisas apresentadas no tópico anterior: a tarefa de aprendizagem foi de timing coin-
cidente, os participantes foram crianças entre 10 e 12 anos de idade. . O
delineamento envolveu três grupos de prática constante-aleatória: o primeiro grupo
executou a prática constante até o alcance de determinado desempenho critério; o
segundo grupo executou a prática constante 33% além do alcance do desempenho
critério; e, o terceiro grupo executou 66% de prática constante adicional ao alcance
do desempenho critério.
Nesses estudos de Corrêa et alli foram manipulados, respectivamente, a seqüência
de toques (2006), a sequência de toques e a velocidade do estímulo visual (2007), e
somente a velocidade do estímulo visual (2010). . Os resultados, dos três estudos,
indicaram não haver diferenças entre os grupos de prática. Sendo assim, os autores
sugeriram que é suficiente a prática constante ser conduzida até o alcance do de-
sempenho critério, ou seja, até a formação de padrão, não havendo necessidade,
portanto, de estender a quantidade de prática constante para além da mesma.
A interpretação, nesse caso, remeteu à existência de uma quantidade “ótima” de
prática constante antes da introdução da prática variada aleatória. Mas por que es-
tamos chamando a menor quantidade de prática constante de “ótima” já que ótima
indica algo além do “bom”? Ótima por que, em não tendo sido detectada diferença
entre os grupos em função da quantidade de prática constante após o alcance do de-
sempenho critério (estabilização), permitiu o alcance da mesma capacidade de
adaptação, entretanto, com menor esforço, tempo e energia!
Os resultados e interpretações apresentados no presente tópico ajudam a respon-
dera pergunta sobre “quando começar a variar”! Entretanto, estes estudos não abor-
dam a pergunta de “quanto variar”.

154
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4. Sobre a diversificação de habilidades motoras


A pergunta levantada em função dos achados e interpretações apresentados no tó-
pico anterior foi: Será que haveria uma quantidade “ótima” de prática aleatória após
a prática constante? Contudo, uma investigação sobre a prática aleatória precisa
considerar que esta é apenas um dos tipos de prática variada. Sendo assim, um se-
gundo tipo de prática variada, “por blocos”, foi considerado nas investigações sobre
a diversificação de habilidades motoras. Nesse sentido, formulou-se também a se-
guinte pergunta: A existência de uma quantidade ótima seria dependente do tipo
de prática variada (por blocos ou aleatória)?
Corrêa (2007) realizou três experimentos com o objetivo de investigar os efeitos
de diferentes quantidades de prática aleatória e por blocos (18, 35 e 63 tentativas),
após a prática constante. Os participantes e a tarefa de aprendizagem seguiram os
protocolos dos estudos anteriores. Nos experimentos 1 e 2, nos quais a velocidade
do estímulo visual e o padrão seqüencial de resposta foram respectivamente ma-
nipulados, os resultados mostraram que, na fase de adaptação, não houve diferenças
entre os grupos em termos de quantidade de prática. Porém, mostraram que os gru-
pos de prática constante seguida pela variada por blocos foram mais perturbados
com a modificação da tarefa do que os demais grupos, independente da quantidade
de prática.
Já no experimento 3, em que a velocidade do estímulo visual e o padrão de resposta
foram manipulados, os resultados não mostraram efeitos da quantidade de tenta-
tivas, e tampouco do tipo de prática variada.
As conclusões a partir desses resultados foram as seguintes: a) Há uma quantidade
ótima de prática variada após a prática constante; b) Essa quantidade corresponde
a dezoito tentativas de prática variada aleatória quando estão envolvidas três velo-
cidades do estímulo visual ou padrões seqüenciais de resposta e a dezoito tentativas
de prática variada aleatória ou por blocos, quando está ,envolvida a combinação de
três velocidades do estímulo visual com três padrões seqüenciais de resposta; e, c)
A quantidade ótima é dependente do tipo de prática variada (por blocos ou aleató-
ria) apenas quando ela se refere à manipulação dos aspectos perceptivo e motor da
tarefa em separado.
No mesmo sentido das pesquisas anteriores, interpretou-se como ótima a menor
quantidade de prática, já que com ela foi alcançado o mesmo nível de adaptação
possibilitado pelas demais quantidades de prática variada. Em outras palavras, a
menor quantidade é ótima porque ela possibilitou suficiente diversificação para a
ocorrência de adaptação.
Mas, ainda, em relação à prática variada após a constante, outro aspecto entra em
jogo: a quantidade de variações!

5. Sobre a quantidade de diversificação de habilidades motoras


Nos três experimentos realizados por Corrêa (2007), a manipulação dos aspectos
da tarefa (velocidade do estímulo e/ou sequência de toques), resultou em condições
diversas em relação à quantidade de diversificações das habilidades motoras na prá-
tica. Enquanto nos experimentos 1 e 2 a prática foi variada em relação a três condi-
ções, respectivamente, três velocidades do estímulo visual e três padrões

155
livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 156

seqüenciais de resposta, a combinação desses aspectos no experimento 3, fez com


que a prática variada envolvesse nove condições. Talvez isso explique o fato de os
resultados do último experimento terem sido diferentes dos primeiros.
Essa possibilidade levou Pinheiro (2009) a elaborar a seguinte pergunta: Diferentes
quantidades de variações na prática aleatória, após a prática constante, afetariam o
processo adaptativo?
Seguindo os protocolos anteriormente apresentados, foram realizados três experi-
mentos com crianças em uma tarefa de timing coincidente. No primeiro experi-
mento, a prática aleatória foi manipulada em relação ao aspecto perceptivo da tarefa
de aquisição, no segundo experimento, em relação ao aspecto motor e, no terceiro
experimento, a prática aleatória foi manipulada em relação aos aspectos perceptivo
e motor da tarefa de aquisição, como segue.
O objetivo de Pinheiro (2009) foi investigar os efeitos da quantidade de elementos
manipulados na prática aleatória, após a prática constante, no processo adaptativo
em aprendizagem motora. Os resultados dos três experimentos mostraram que as
crianças que aprenderam com menor quantidade de elementos manipulados na va-
riabilidade se adaptaram igualmente àquelas que tiveram maior quantidade de ele-
mentos manipulados. Dessa forma, concluiu-se que os efeitos das diferentes
quantidades de variabilidade na prática aleatória, após a prática constante, no pro-
cesso adaptativo de aprendizagem motora foram semelhantes.
Essa conclusão possibilitou ao autor sugerir a existência de uma quantidade “ótima”
de elementos a serem variados na prática aleatória, ou seja, de diversificação. Essa
quantidade ótima seria de três velocidades do estímulo visual, três padrões seqüen-
ciais de resposta e, quando da combinação desses aspectos, a quantidade ótima seria
de nove. De uma forma simples, a menor quantidade de elementos variados pode
ser entendida como ótima por não fazer sentido variar muitos aspectos se, ao variar
poucos, o mesmo estado é alcançado.

6. A prática ótima em aprendizagem motora: uma síntese


O conjunto dos estudos apresentado sugere a existência de uma quantidade ótima
de prática e que essa quantidade apresenta dependência de determinado tipo de
prática. Especificamente verificou-se que:
a) A prática constante, anteriormente à prática variada aleatória, é mais benéfica
para o processo adaptativo de aprendizagem motora quando conduzida até o alcance
do desempenho-critério. Ainda, que esse benefício diminui progressivamente me-
diante o aumento na quantidade de prática (Corrêa et alli, 2006; 2007; 2010).
b) Crianças que aprenderam com menor quantidade de elementos variados se adap-
taram igualmente àquelas que tiveram maior quantidade de variabilidade (Pinheiro
et alli, 2009).
c) Há uma quantidade ótima de prática variada após a prática constante; essa quan-
tidade corresponde a dezoito tentativas de prática aleatória quando estão envolvidas
três velocidades do estímulo visual, também dezoito tentativas de prática aleatória
quando envolvidos três padrões seqüenciais de resposta e dezoito tentativas de prá-
tica variada aleatória ou por blocos quando envolvida a combinação de três veloci-
dades do estímulo visual e três padrões seqüenciais de resposta (Corrêa, 2007).

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livro:livro maputo 6/3/10 23:23 Page 157

d) A quantidade ótima de prática variada é dependente do tipo de prática variada


(por blocos ou aleatória) apenas quando ela se refere à manipulação dos aspectos
perceptivo e motor da tarefa em separado (Corrêa, 2007).
As conclusões sugerem também, que a quantidade “ótima” é aquela “mínima” em
virtude de ela ter sido suficiente para promover a adaptação de habilidades motoras
sem a necessidade de prática ou variabilidade adicional. Em outras palavras, é ótima
em razão de envolver menor gasto de tempo, energia e informação.
Uma pergunta que surge a partir dessas conclusões é: por que o mínimo é suficiente
para a adaptação em aprendizagem motora? Uma possível explicação refere-se às
quantidades mínimas serem ótimas em razão de o ser humano reorganizar a redun-
dância adquirida em sucessivas adaptações.

7. A prática ótima em aprendizagem motora: perspectivas de investigação


Diante das constatações, especulações e proposições apresentadas, temos levantado
algumas perguntas para futuras investigações. A existência de quantidades ótimas
relacionadas à prática seria específica:

— Ao tipo de prática? Em duas das pesquisas apresentadas as estruturas de prática


constante (Corrêa et alli, 2003) e aleatória-constante (Barros, 2006) também
mostraram ser benéficas ao processo adaptativo de aprendizagem motora.
Ainda, a possibilidade de fazer inferências sobre a existência de uma quantidade
ótima de prática não é restrita às pesquisas realizadas no âmbito do processo
adaptativo em aprendizagem motora; ela pode ser estendida à prática variada
aleatória, em resultados de pesquisas sobre os efeitos da interferência contextual
(Corrêa & Pellegrini, 1996).
— Ao tipo de tarefa? Com uma exceção, em termos do tipo de tarefa (a de controle
de força manual, realizada com um dinamômetro manual digital) todos os es-
tudos utilizaram tarefas de timing coincidente junto ao aparelho de timing coin-
cidente em tarefas complexas (Corrêa & Tani, 2004). Nesta tarefa, verificamos
que quando a aprendizagem envolveu demanda espacial (Barros, 2006, exp. 3),
os resultados foram diferentes daqueles que foram foco das proposições do pre-
sente capítulo.
— À aprendizagem de crianças? Em todos os estudos, por uma questão de controle
e poder de generalização dos resultados, os participantes foram crianças.
— Ao patamar alcançado? Em razão da especificidade da tarefa, equipamento e par-
ticipantes de pesquisa, o desempenho critério utilizado foi o de três tentativas
consecutivas em até 50ms de erro. Entretanto, a literatura mostra o desempe-
nho de adultos na mesma situação experimental em até 30ms de erro. Para esse
caso, por exemplo, a quantidade mínima seria suficiente?

Por fim, esses aspectos, quantidade mínima de prática e desempenho critério re-
metem a dois dos principais aspectos manipulados na intervenção profissional em
educação física e esporte. Eles implicam, também, na existência de uma referência,
ao se pensar sobre o que é aprendizagem e/ou quando se considera que uma habili-
dade motora foi aprendida.

157
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 158

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Nota
1 Tema desenvolvido por ocasião do I Encontro Paulista de Comportamento Motor - EACH – USP (Corrêa,
2009).

158
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Aprender as habilidades nos jogos desportivos


na perspectiva do ensino compreensivo
Fernando Tavares
Centro de Estudos dos Jogos Desportivos (CEJD)
Faculdade de Desporto – Universidade do Porto

1. Introdução
No processo de ensino-aprendizagem nos jogos desportivos colectivos (JDC) é
comum verificar na estrutura de um treino de jovens, a exercitação de um conjunto
amplo e variado de diferentes habilidades motoras. De igual modo, é usual observar
que os jovens jogadores exercitam essa habilidade durante um certo tempo, depois
passa para outra habilidade e assim sucessivamente. O que está inerente a esta
forma de actuar, é o facto de se pensar que executando um determinado número
de repetições dessa habilidade, isso será suficiente para os jogadores alcançarem
um bom nível de domínio das mesmas. No entanto, o que podemos verificar, em
muitos casos, é que quando esses jovens passam à prática do jogo real, eles não con-
seguem aplicar essas habilidades no contexto do jogo, uma vez que elas não estão
devidamente adquiridas. Também, é usual ouvir comentários de treinadores em
que manifestam a sua surpresa pelo facto de observarem uma diferença na perfor-
mance da sua equipa dos treinos para os jogos. Que razões poderão contribuir para
tal, i.e., o que estará a efectuar no treino que contribua para não conseguir repro-
duzir o mesmo na competição? Esta constatação, leva-nos a questionar a possibili-
dade de este tipo de processo, baseado exclusivamente nas repetições dos gestos
técnicos e com particular incidência no estágio inicial da aprendizagem, ser o mais
indicado para os jovens jogadores poderem fazer a transposição das habilidades para
o seu desempenho no jogo.
Um dos aspectos mais significativos na formação de jogadores nos JDC, tem a ver
com a aprendizagem e aquisição das habilidades motoras do jogo. Integrados num
processo de formação mal orientado, teremos jovens com insuficiente qualidade
no desempenho das suas habilidades e, por conseguinte, no rendimento do jogo.
Para Druckman e Bjork (1991) citados por Schmidt e Wrisberg (2001) “a eficácia de
um programa de treino deveria ser medida não pela velocidade de aquisição de uma
tarefa durante o treino ou pelo nível de performance alcançado no final do treino,
mas pelo desempenho dos aprendizes nas tarefas pós-treino e situações do mundo
real que são o alvo do treino” .
Uma aprendizagem “tradicional” dos JDC, significa ensinar aos jovens os gestos téc-
nicos da respectiva modalidade desportiva e em impor a ordem no campo, através
da repartição formal dos jogadores. Contudo, é importante lembrar que a dinâmica
relacional do jogo nos JDC, resulta da existência simultânea de cooperação e oposi-

159
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 160

ção, pelo que enquanto uma equipa tenta coordenar as suas acções para atingir os
seus objectivos, a outra (oposição) tem como finalidade contrariar, perturbar, essa
intenção do adversário. Esta noção central de oposição leva-nos a considerar as duas
equipas como sistemas com diferentes níveis de organização. Assim, durante o jogo
a relação de forças e o seu equilíbrio entre as duas equipas pode ser quebrado mo-
mentaneamente através dos confrontos. Por isso, cada equipa tenta obter um de-
sequilíbrio favorável para alcançar o seu objectivo. Isto significa, que os jogadores
são confrontados com constrangimentos e situações imprevistas, pelo que têm ne-
cessidade de se adaptar a essas situações que mudam constantemente e que resul-
tam desse confronto. Deste modo, torna-se necessário que os jogadores possuam
habilidades com qualidade, que lhes permitam, em situações de jogo com alguma
complexidade, intervir com eficácia no desempenho das mesmas. Isto significa que
a aquisição das habilidades no processo de aprendizagem deve ter em conta esta rea-
lidade, pois quanto mais elevado for o nível de prática mais exigente se torna para
o jogador a necessidade de saber e executar com eficácia as suas habilidades. Por
isso, é fundamental que os jovens jogadores, durante o seu processo de formação,
sejam sujeitos a um modelo de ensino que lhes permita adquirir e desenvolver as
suas habilidades de forma adequada.
De acordo com Gréhaigne et al. (1999), este tipo de análise, que privilegia a oposição
e a “gestão da desordem” como fonte de todo o progresso, parece colocar em evi-
dência novos conceitos para um ensino renovado dos JDC. Vários estudos vêm con-
firmando esta realidade e propondo a mudança de concepção, na qual se presta cada
vez mais atenção ao tipo de aprendizagem que os jogadores realizam. Ou seja, cada
vez mais se pretende que o jogador compreenda (perceba) aquilo que aprende e não
seja unicamente um simples executor de acções que não entende, exercendo os
chamados “modelos compreensivos” um papel determinante.

2. O Ensino Compreensivo nos JDC


No ensino dos JDC podemos identificar diversos modelos, o que pode levar-nos a
questionar o porquê de uns serem ou poderem ser melhor que outros. Será que a
natureza dos respectivos modelos pode ter a ver com a finalidade dos mesmos, i.e.,
se educativo (destinado a ser aplicado nas aulas de educação física) ou de rendi-
mento (a ser aplicado nos clubes desportivos)? Ou seja, parece que o “modelo téc-
nico” se relaciona com o âmbito das federações desportivas que têm como
referência uma só modalidade desportiva e a prática se orienta para o rendimento.
Enquanto “modelos compreensivos” se enquadram melhor com os interesses edu-
cativos, permitindo uma iniciação comum e polivalente sem interesses de rendi-
mento desportivo. Será que deve ser assim? Ou, pelo contrário, o modelo de ensino
deverá ser o mesmo, independentemente da origem dos seus destinatários? Pensa-
mos que sim, pois o que muda são as circunstâncias em que ele é aplicado e desen-
volvido e não os objectivos a que se propõe.
Nos modelos tradicionais de ensino dos JDC, como o “modelo técnico”, é enfatizado
a aprendizagem dos elementos técnicos, apresentados e exercitados em situações
descontextualizadas, ao mesmo tempo que é atribuída reduzida importância aos
conteúdos tácticos. A insatisfação com o modelo técnico, centrado no domínio da

160
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 161

execução antes de passar à táctica parece-nos ter claras insuficiências na maioria


da iniciação dos JDC pelo que tem motivado a procura de abordagens alternativas.
Assim, e de acordo com Graça (2002), “têm vindo a ser desenvolvidos, testados e
divulgados modelos alternativos para o ensino do jogo, dando maior ênfase à com-
ponente táctica” e que podemos enquadrar nos chamados “modelos compreensi-
vos”: (i) o Modelo de Ensino dos Jogos para a Compreensão (Bunker e Thorpe, 1982);
(ii) o Modelo Desenvolvimental (Rink, 1993); (iii) o Modelo de Educação Desportiva
(Siedentrop, 1987); (iv) o Modelo de Competência nos Jogos de Invasão (Musch e Mer-
tens, 1991). A estes, podemos acrescentar o Modelo Integrado (French et al., 1996;
Castejón e López Rós, 1997), que permite iniciar e participar no desporto actuando
os dois elementos (técnico e táctico) de forma simultânea, apesar de com equilíbrio
entre estes dois elementos durante a prática.
Assim, para os referidos autores, os modelos compreensivos oferecem mais garan-
tias de aplicação e utilização na fase inicial da iniciação. O ensino compreensivo nos
JDC fomenta, através da reflexão sobre a prática, a relação do que está a aprender
com o conhecido e, por sua vez, reconhece e promove a autonomia do jogador me-
diante a constante avaliação da adequação de meios empregues com o objectivo a
alcançar em cada situação de prática.
Neste sentido, o Modelo de Ensino dos Jogos para a Compreensão de Bunker e Thorpe
(1982) apresentam uma abordagem ao jogo na qual a compreensão do mesmo tem
um lugar importante. Propõem o seguinte modelo de análise dos JDC: (1) a forma
do Jogo. O jogo do adulto constitui o objectivo, mas inicialmente os jogadores
devem ser familiarizados com uma variedade de jogos “reduzidos”; (2) a apreciação
do jogo; (3) consciência táctica (estratégia); (4) a tomada de decisão; (5) a execução
das habilidades; (6) a avaliação da prestação do jogo (performance) (Fig.1). Esta
“abordagem pela compreensão” do jogo, coloca a tónica sobre a táctica consciente
e os procedimentos da tomada de decisão antes da selecção das habilidades motoras
e sua execução, propondo que os jogadores tenham uma ideia inicial da modalidade
desportiva e do que pode esperar deles, para assim despertar a sua consciência tác-
tica de modo a permitir-lhes solicitar as técnicas que são necessárias para o jogo. O
modelo surge como “reacção à abordagem tradicional ao ensino dos jogos dema-
siado centrado nas técnicas descontextualizadas” (Graça, 2002), sendo colocados
aos jogadores questões da ordem “do que fazer” e “quando fazer” e não apenas “do
como fazer”. O contexto de jogo e o significado das acções, “os porquês”, têm pre-
cedência sobre a técnica, justificando a sua oportunidade e adequação.
O Modelo Integrado também propõe um ensino sem que tenha de começar um tra-
balho prévio da técnica, mas que deve ser a partir das habilidades e destrezas básicas
que se comece com o ensino do jogo (French et al., 1996; Castejón e López Rós,
1997). De acordo com este modelo, há uma apresentação simultânea dos elementos
técnicos e tácticos, mas de forma equilibrada na sua exigência. Com ele pretende-
se que o aluno não se apresente antes das tarefas com uma carga que impeça exe-
cuções correctas, dentro da sua limitada bagagem motora e táctica. Quando se
consegue uma superação nesta fase, o passo seguinte é introduzir as habilidades
aprendidas na situação real de jogo, i.e., o contexto real. Este ciclo se repete, tal
como se vê na Fig. 2.

161
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 162

1. 

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  Fig. 1 –
 Modelo
  de
 Ensino
   dos Jogos para    
 a Compreensão (Bunker e Thorpe, 1982)
              
                 
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Ensino da técnica com implicação Ensino da táctica com implicação


de poucos elementos tácticos de poucos elementos técnicos

%'(!) "()* $(""(  '( "(%"')"!),"" 


% ""( !)"()!"())"( %'!"(

Fig. 2 – Modelo representativo para o ensino integrado técnico-


-táctico (French et al., 1996; Castejón e López Rós, 1997). 
                 

162
          
           
        
            
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A evidência da natureza dos modelos compreensivos, remete-nos para uma impli-


cação cognitiva na aprendizagem, onde várias áreas das Ciências do Desporto fazem
interface (Aprendizagem Motora, Psicologia do Desenvolvimento da Criança,
Treino Desportivo, Pedagogia, etc.) e que têm demonstrado que os pressupostos
cognitivos são solicitados mais cedo do que muitos treinadores pensam e que o co-
nhecimento está presente desde a mais tenra idade (infância). Perante esta reali-
dade, poderemos perguntar até que ponto é adequado retardar o conhecimento
táctico e estratégico no processo de iniciação desportiva, dando única ênfase ao do-
mínio da técnica. De acordo com Tavares (1993, 2005, 2006), as investigações rea-
lizadas sobre as características dos jogadores experts e as diferenças entre
experts-novices (peritos-principiantes), permitem destacar a vantagem cognitiva,
que realça o papel do conhecimento e a experiência desportiva, conhecimento que
no expert se mostra organizado e hierarquizado. Assim, é importante saber como
proporcionar esse conhecimento desde os primeiros passos da iniciação, para que
os jogadores possam, desde o início, organizar os seus recursos cognitivo-motores
no sentido de dar a solução aos problemas de jogo sem ter que esperar pelo domínio
das técnicas. No que diz respeito ao conhecimento implicado nos JDC é um conhe-
cimento prático, que exige a compreensão dos procedimentos implicados no jogo
e a aquisição contextual das habilidades, pelo que uma habilidade técnica só tem
sentido dentro de um contexto e é onde se deve aprender e onde adquire completo
significado.
Tendo em conta as exigências cognitivas da aprendizagem desportiva, o modelo
compreensivo de ensino dos JDC procura proporcionar que o jogador aceda a reco-
nhecer os problemas a resolver e a gerar as suas próprias soluções, identificando os
recursos motores que mobilizou no seu desenvolvimento. Nos JDC onde existe um
elevado grau de variabilidade, isto possibilitará aos jogadores deduzir regras de acção
a partir da avaliação da relação entre os meios que se utilizam em relação ao objec-
tivo que se pretende conseguir em cada momento. Para isso, será necessário como
referem Devis e Peiró (1992) “ensinar os aspectos contextuais e os princípios tác-
ticos dos jogos desportivos porque são os que configuram o seu entendimento, a
implicação activa inteligente e a utilidade do domínio da habilidade técnica”. Ou
seja, permitirá ao jogador organizar a sua acção de jogo de uma forma intencional e
adaptada às características contextuais de cada jogo desportivo, e de igual modo
poder aplicar estas regras de acção a outras situações similares. Por isso considera-
mos que no ensino dos JDC podemos promover o “saber como” a partir do modelo
compreensivo, já que este se baseia no reconhecimento das capacidades cognitivas
do jogador e fomenta que estes se impliquem de forma activa na construção e con-
trole da sua própria aprendizagem.
O que muitas vezes se considera básico, do ponto de vista do treinador, para poder
participar, pode ser demasiado exigente para o jogador. Há que entender que a prá-
tica deve ser a que necessitam os jogadores e não a que desejam os adultos. Por isso,
a apresentação, desenvolvimento e refinamento das habilidades motoras, deve
supor um interesse dentro das possibilidades do jogador. Para o treinador, o que é
significativo para determinado jogador implica que ele comprove que consegue uti-
lizar adequadamente o que já sabe, com o que agora se lhe apresenta de novo. Com

163
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uma abordagem exclusivamente técnica, o jogador fica sem saber para que serve
tudo aquilo que se lhe oferece. Isto não significa, de todo, que devemos abandonar
o ensino da técnica nos JDC ou que o modelo de ensino técnico não deva ser utili-
zado. O que pretendemos questionar é a sua utilização dominante e quase exclusiva
na fase inicial do processo ensino-aprendizagem nos JDC. O modelo técnico terá a
sua intervenção mais justificada quando do refinamento das habilidades motoras
na fase autónoma do jogador.
Por conseguinte, a abordagem táctica do ensino dos jogos coloca o jogador no centro
do processo ensino-aprendizagem se pretendermos adoptar realmente uma pro-
gressão construtivista (Gréhaigne e Godbout, 1995; Rink et al., 1996).

3. Aquisição das habilidades nos JDC


Parece haver um entendimento generalizado, por parte dos treinadores, de que a
habilidade motora de um jogador está simplesmente relacionada com a sua capaci-
dade de executar com precisão e consistência um determinado movimento e sem
que tal implique uma análise das condições do envolvimento em que se realiza. Ou
seja, partem do pressuposto de que os processos cognitivos (perceptivos e de deci-
são) do jogador não são solicitados. Esta é uma ideia errada pois “realizar um movi-
mento desligado do contexto, sem uma leitura do envolvimento, não caracteriza
uma habilidade por mais consistente que ela seja” (Tani, 2008). Por isso, tem au-
mentado a ideia de que a habilidade no desporto não é meramente um produto da
mestria física do jogador (Allard, 1984; Tavares, 1993; Tavares et al., 2006; Starkes
& Deakins, 1984; Ericksson, 1996; Williams et al, 2004; Tani et al., 2006). Está de-
monstrado que os jogadores experts são tipicamente caracterizados por possuírem
superiores skills perceptivos e cognitivos quando comparados aos jogadores princi-
piantes (Tavares, 1993; Williams et al. 2004). Neste contexto, o cérebro e o sistema
nervoso são responsáveis pela nossa capacidade de aprender a controlar o movi-
mento. Eles agem como um computador processando informação a partir de uma
variedade de fontes, a fim de produzir movimentos específicos. Os movimentos
não ocorrem simplesmente como consequência espontânea, como actividade mus-
cular não planeada, mas sim como produto final de uma série de processos que ocor-
rem no cérebro e no sistema nervoso, que não são observáveis directamente, mas
que são fundamentais para o desempenho desportivo de qualidade.
Para adquirirem as habilidades específicas da respectiva modalidade desportiva, a
maioria dos jovens jogadores na aprendizagem passa por três estágios identificáveis:

1º — O estágio cognitivo
A aprendizagem no estágio cognitivo ou inicial é centrada em determinar o que pre-
cisa de ser feito a fim de realizar a habilidade correctamente e com sucesso. Ques-
tões como “Como faço para pontuar neste jogo?” “Como deverei posicionar-me em
relação aos meus colegas”? são observadas neste estágio. Por conseguinte o reforço
da performance neste estágio envolve largamente o pensamento e planeamento
(cognição) ao contrário da prática motora efectiva.
Padrões de movimentos anteriores (desenvolvidos por outras habilidades) são en-
caixados de uma nova forma. Os desenvolvimentos da performance tendem a ser

164
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 165

muito rápidos, mas os níveis da mesma variam substancialmente com novas estra-
tégias a serem julgadas e muitas vezes abandonadas. A execução do movimento é
muito inconsistente e os aspectos perceptivos e decisionais da performance são
ambos lentos.
Durante o estágio cognitivo, uma boa instrução e demonstração podem desenvol-
ver a performance mais rápido do que mesmo a prática de tarefas. O transfer da
aprendizagem para outras habilidades motoras é mais susceptível de ser positivo
neste estágio, e o treinador deve ser capaz de ajudar os jogadores a adquirir as habi-
lidades traçando paralelos entre as necessidades de novas tarefas e os desportos que
os jogadores já conhecem.

2º — O estágio associativo
O segundo estágio da aprendizagem começa quando o jogador decidiu pela melhor
forma de realizar a tarefa e centrar a atenção em cima do tempo de execução das
habilidades motoras. Os jogadores neste estágio intermédio da aprendizagem tor-
nam-se progressivamente tanto mais consistentes e precisos na realização de pa-
drões particulares de movimento e mais capazes de gerarem novas respostas de
movimento quando necessário.
O desenvolvimento do estágio associativo é tipicamente gradual, mas a performance
é marcadamente mais consistente do que na fase cognitiva. Neste estágio da apren-
dizagem, o treinador poderia progressivamente tornar a situação prática mais com-
plexa (p. ex., introduzindo jogadores opositores ou novas opções de jogo), para
ajudar os jogadores tornarem-se mais familiarizados com as exigências perceptivas
e decisionais da competição.

3º — Estágio Autónomo
Depois de uma prática longa, alguns, mas não todos, jogadores entram na fase au-
tónoma da aprendizagem, onde o controlo das habilidades motoras necessárias
torna-se praticamente automático. Neste estágio, o controlo dos movimentos
torna-se tão preciso e o desempenho tão consistente e preciso que os jogadores não
precisam mais manter a verificação do feedback sobre a forma como eles estão a exe-
cutar os seus movimentos. Isto permite-lhes deslocar a sua atenção para outras ta-
refas, como observar o movimento de outros jogadores.
Contudo, nos JDC a realização superior das acções de jogo reclama um domínio das
habilidades técnicas que possa dar suporte à concretização de uma “dupla tarefa”,
que se traduz na capacidade do praticante deslocar a atenção de uma tarefa motora
(por ex., drible) para uma tarefa cognitiva (por ex., analisar os deslocamentos dos
colegas durante a acção de jogo). Vankersschaver (1983), refere que a evolução nessa
dupla tarefa, ao nível das etapas de formação, é caracterizada pela passagem pro-
gressiva do controlo visual ao controlo quinestésico. Através do refinamento téc-
nico, o jogador efectua, progressivamente, a passagem da atenção centrada na
execução motora para os aspectos de ordem decisional. Ao prevalecer, na relação
com a bola, o controlo quinestésico, o jogador tecnicamente evoluído fica liberto
para efectuar a “leitura” das situações de jogo e, consequentemente, poder optar
pelas melhores soluções.

165
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Mesmo quando aparentemente os jogadores alcançam o estágio autónomo da


aprendizagem, eles podem ainda continuar a desenvolver as suas habilidades, desde
que se comprometam a uma prática apropriada e intensiva. Na verdade, não há evi-
dência que a aprendizagem das habilidades motoras cesse, mesmo depois de décadas
de prática. Os treinadores deveriam considerar a utilização prática dos exercícios
com o necessário cuidado de modo a ajudar o jogador a aprender a executar ainda
mais automaticamente as habilidades.
No entanto, os treinadores devem ter atenção com a prática em todos os estágios
da aprendizagem para assegurar que a técnica do movimento correcto é desenvol-
vida e mantida. Erros na técnica podem ser extremamente difíceis, se não impos-
sível, de corrigir no estágio da aprendizagem autónoma.

3. Tipo de Prática
Vários estudos realizados em condições laboratoriais (Shea e Morgan, 1979; Lee e
Magill, 1983), no âmbito da Aprendizagem Motora, alicerçados na teoria da inter-
ferência contextual, têm vindo a demonstrar que a variação das condições de prática
favorece o processo de aprendizagem (Godinho et al., 1999). Neste âmbito, os estu-
dos de investigação testam dois tipos de organização da prática durante a aquisição
da tarefa: constante e variada. Por prática constante entende-se a prática da mesma
tarefa sempre nas mesmas condições de realização. A prática variada consiste na re-
petição de variantes da mesma tarefa em que os seus parâmetros foram relativa-
mente alterados, proporcionando variações em torno da mesma habilidade. É
frequente verificar-se melhor performance do grupo com prática constante na aqui-
sição e níveis de desempenho superiores do grupo com prática variada nos testes
de retenção e transfer. Ou seja, a variabilidade das condições de prática (Fig.3) produz
efeitos negativos na aquisição (efeitos temporários), mas positivos na retenção e
transfer da aprendizagem (efeitos permanentes ou duradouros). Contudo as carac-
terísticas da tarefa motora ou o nível de desenvolvimento dos sujeitos, são aspectos
que parecem interferir com os efeitos atrás referidos. No entanto, Meira e Tani
(2001) não confirmaram o efeito da interferência contextual, quando se estendia a
quantidade de prática e admitem que ele não seja extensivo a todos os tipos de
aprendizagem”.
Uma das implicações mais importantes da investigação sobre a prática constante
diz respeito ao impacto das repetições dos movimentos na aprendizagem das habi-
lidades. O paradoxo da prática constante é que produz desempenho eficiente du-
rante o treino inicial, mas não cria aprendizagem duradoura. Os jogadores
conseguem um bom desempenho porque exercitam num ambiente estável e pre-
visível (o que é o oposto na maior parte das situações nos JDC, onde as habilidades
são de natureza aberta e de baixa organização) e como tal são capazes de sintonizar
bem os parâmetros do movimento de uma tentativa para a seguinte.
Assim, exercitar de acordo com uma série de condições tarefas diferentes preparam
melhor os jogadores para lidar com as condições de uma nova tarefa do que aqueles
que praticam em condições imutáveis (constantes). Fornecer uma série de condi-
ções de prática diferenciadas parece ser particularmente importante no treino de
tomada de decisão em JDC onde a adaptabilidade é fundamental para o sucesso da

166
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Fig. 3 – Efeitos na aprendizagem da
variabilidade das condições de prática
            
            
performance. Jogadores expert na tomada de decisão em JDC partilham essa carac-
terística como parte  das suas
 
histórias 
de práticas. Por isso, a variabilidade
   que ob-   
servamos no desporto,
 necessita
  também  de uma variabilidade
   na aprendizagem
  
(Ruiz Pérez, 1995; Schmidt, 1988). Os movimentos técnicos devem realizar-se em
 com mudanças
situações    para que o jogador   compreenda   quando  e onde  devem   
levar a cabo determinada    acção.            
Se os jogadores têm de transferir muito do que eles aprenderam a partir da sessão
de treinos para a competição,
 então  a sessão de treinos  deve imitar   tão quanto pos-
sível a própria
 modalidade
  desportiva
  (a competição).
   Isto aplica-se
 não  só às com-   
petências de execução do movimento, mas também às competências perceptivas
e decisionais.  Praticar
  e aprender
  todas as competências
   respectiva
da   
modalidade   

desportiva enquanto pratica o jogo (como ocorre   na abordagem
  ao ensino
 das habi- 
lidades nos jogos para a compreensão), parece ser uma melhor forma de aprender
do que a tradicional
 abordagem  de aprendizagem    habilidades
das   de forma  isolada.
   
Experiências deprática  variada,  especialmente
   durante os anos  de formação,   pare-
  
cem ter sido particularmente fundamentais para desenvolver aspectos da perfor-
              
mance em relação aos jogadores expert (Abernethy et al., 1998).
Daí existir um conjunto
  de autores  a reclamar da necessidade  da aprendizagem
  e  
aquisição das habilidades serem realizadas de forma contextualizada (Graça., 1995,
           
2000; Gréhaigne et al., 1999; Temprado & Famose, 1999; Tavares, 2005; Tani et al.,
2006; Tani, 2008; Mesquita, 2008). Isto significa que o jogador deve aprender as
habilidades na presença de colegas e adversários para melhor compreender a razão
da aplicação dos seus movimentos, para além de proporcionar o recurso a outras va-
riações de movimento resultantes dos constrangimentos da situação. Por conse-
guinte, devemos ter presente da necessidade de o ensino da técnica nos JDC ser

167
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 168

feito em ambientes que integrem a especificidade do jogo, dado que o domínio da


técnica exige adaptabilidade. Ou seja, o jogador pode executar muito bem o respec-
tivo gesto técnico, mas se não o souber aplicar de forma apropriada ao momento do
jogo de nada servirá o domínio dessa técnica!
Rink (1993), considera que devido ao facto de as habilidades técnicas nos JDC serem
fundamentalmente de natureza aberta, a estruturação das tarefas deve contemplar
os seguintes pressupostos: (1) as habilidades devem ser praticadas em contextos va-
riáveis com a solicitação de execuções variadas, o mais cedo possível; (2) as habili-
dades devem ser praticadas em contextos com baixa interferência contextual o
menor tempo possível; (3) devem ser privilegiadas as situações que coloquem pro-
blemas semelhantes aos que surgem em situações de jogo.

4. Considerações Finais
Aprendizagem e ensino sucedem-se ao mesmo tempo. Como a intenção é abordar
um ensino que produza aprendizagens significativas, devemos ter em conta os fac-
tores da aprendizagem que nos podem ajudar a elevar um ensino do jogo centrado
nos conhecimentos do jogador. De uma maneira geral, os padrões motores básicos
são relativamente fáceis de melhorar e refinar. Por um lado, a maturação, por outro,
a possibilidade de utilizá-los em diversos contextos, fazem deles os antecedentes
motores necessários para novas aprendizagens. Contudo a simples maturação não
deve ser a que condicione a aprendizagem e o ensino do jogo (pois não deve ficar
dependente da maturação do jovem para que se ensine).
Nesta perspectiva, no processo de aprendizagem, o que importa é conseguir apren-
dizagens motoras que podem ser aplicadas nos JDC, assim como sejam habilidades
mais ou menos efectivas, porque são acções que conduzem a colocar-se em posição
de vantagem perante os adversários e posteriormente realizar ou controlar algum
tipo de resposta. A questão é que é necessário que essa aprendizagem se produza no
contexto em que se vai aplicar.
Para os treinadores, o ensino compreensivo, do ponto de vista da aprendizagem mo-
tora, parece colocar uma dificuldade que não é fácil de resolver. O que ocorre quando
se coloca a um grupo de jovens jogadores uma situação táctica que não conseguem
solucionar porque não possuem ainda os meios (técnicas) que os ajudem a satisfazer
tal situação? Nesse contexto, o modelo de ensino utilizado tem uma importância
decisiva, pelo que deve utilizar o equilíbrio na exigência da técnica e da táctica em
cada momento do processo. Ou seja, o que desejamos é que os jogadores realizem
uma técnica com alto nível de exigência, pelo que se deve proporcionar um am-
biente táctico simples e vice-versa.
Um outro aspecto importante a considerar na aprendizagem das habilidades diz res-
peito à adaptação às mudanças que exigem padrões flexíveis de movimento. Se a
aprendizagem for totalmente dirigida, eliminando “liberdade” na escolha das res-
postas, a ênfase estará a ser dada apenas ao aspecto invariável da habilidade, cons-
tituindo para a formação de padrões de movimento estereotipados. No entanto, se
um excesso de liberdade for tolerado, será difícil adquirir a consistência necessária
para a realização do objectivo com experiência. Por isso, Tani et al. (2006), conside-
ram que se deve proporcionar liberdade na escolha de alternativas e encorajar os jo-

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gadores a explorar as suas potencialidades de movimento. Na opinião dos referidos


autores, no inicio da aprendizagem, os movimentos serão inconvenientes e desor-
denados. Contudo, resultante da orientação e instrução recebida e do feedback in-
trínseco, a sua macroestrutura tornar-se-á gradualmente ordenada, até que seja
encontrado um padrão correspondente a uma técnica.
Também, a noção de especificidade de aprendizagem sugere que as melhores expe-
riências da prática são as que trazem os indivíduos o mais próximo possível para as
condições da habilidade-alvo e do contexto-alvo.
Por último, para conceber sessões práticas apropriadas para os jogadores de JDC, os
treinadores podem seguir três passos fundamentais: (1) no primeiro, necessitam
avaliar as exigências das tarefas específicas da sua modalidade. Devem tentar cal-
cular quanto importante é a aquisição da habilidade para o desempenho dos joga-
dores; (2) no segundo passo, os treinadores necessitam de avaliar as capacidades
actuais dos seus jogadores, de preferência através da avaliação da sua capacidade
para perceber, decidir e agir; (3) no terceiro passo, os treinadores necessitam de de-
senvolver condições de prática específica destinada a corrigir as deficiências das ha-
bilidades específicas dos jogadores. Esta abordagem sistemática possibilita aos
treinadores oportunidades para ajudar os jogadores a aprender as habilidades.

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171
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 172

Adaptação ao Meio Aquático em palavras simples:


da academia à prática quotidiana
Soares, S., Fernandes, R., Vilas-Boas, J.P.
Universidade do Porto, Faculdade de Desporto, CIFI2D, Porto, Portugal

1. Introdução
A adaptação do ser humano ao meio aquático (AMA) é, antes de mais, uma questão
de sobrevivência. Mais tarde ou mais cedo, com maior ou menor frequência, de
forma mais ou menos inusitada, qualquer pessoa acaba por contactar com o am-
biente aquático, seja ele natural (mares, rios, lagos,…) ou produzido pelo próprio
Homem (piscinas, tanques, represas,…). A capacidade de nele sobreviver vai depen-
der da quantidade e qualidade das adaptações até então adquiridas e do conheci-
mento que o sujeito tem deste meio. Neste contexto, a AMA é vista no seu sentido
mais lato: quanto melhor for a competência aquática de um indivíduo melhor será
a sua adaptação. Estará melhor adaptado à água o sujeito que nade todas as técnicas
padronizadas, parta e vire, jogue pólo aquático, salte e faça natação sincronizada,
entre outras competências não associadas a modalidades desportivas aquáticas. Em
sentido restrito, a AMA é vista como a primeira fase do ensino da natação ou de ou-
tras disciplinas aquáticas. Nesta fase procura-se resolver os problemas de equilíbrio,
respiração e propulsão que o “não-adaptado” sente e que decorrem das diferenças
existentes entre o meio terrestre e o meio aquático; procura-se ainda dotar o indi-
víduo de um conjunto de competências básicas que visam facilitar a aquisição de
competências mais complexas. Por exemplo, ensina-se o aluno a rodar no eixo
transverso com vista à futura aquisição das técnicas de viragem com rolamento.
Neste contexto, a AMA ultrapassa a importante relação do indivíduo com a sobre-
vivência no meio aquático, passando a ser olhada como pressuposto da aprendiza-
gem e, inclusivamente, do próprio rendimento desportivo futuro na natação.
O texto que a seguir se desenvolve está redigido de uma forma simples, usando uma
linguagem que se quer tão próxima possível da que se utiliza no bordo da piscina,
muitas vezes destituída de alguns dos formalismos que caracterizam a linguagem
científica. Foi intencional! E foi intencional porque reconhecemos ser, nos tempos
de hoje, difícil discutir estas questões apenas escorados na argumentação científica
e no discurso académico tradicional. De facto, se a natação é, de entre as modalida-
des desportivas, talvez a que evidencia mais exuberante desenvolvimento cientí-
fico, em muito devido ao efeito catalítico dos congressos mundiais da série
Biomechanics and Medicine in Swimming, a investigação em torno das questões pe-
dagógico didácticas tem sido escassa, se não virtualmente inexistente. Este artigo
pretende, neste contexto, ser uma espécie de grito, pelo menos no espaço da língua

172
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portuguesa, para a necessidade de se produzir mais e melhor investigação científica


que sustente o discurso académico nas questões pedagógico-didácticas da natação.
Um grito que surge concomitantemente com a abertura de horizontes da referida
série de congressos mundiais, a qual, a partir da edição de Oslo de 2010 se abre a
toda a investigação produzida no espaço da natação e das actividades físicas desen-
volvidas em meio aquático. A opção por um discurso simples, conforme ao estado
de desenvolvimento científico da didáctica da natação, não invalida que nalgumas
situações se apliquem termos mais formais, que poderão ser simplificados na prática
do dia a dia.
Durante as páginas seguintes discorreremos acerca da sequência a adoptar para pro-
porcionar a um indivíduo a respectiva adaptação ao meio aquático, justificando al-
gumas das opções tomadas à luz da didáctica e de alguns princípios mecânicos
especificamente relacionados com o meio aquático. Trata-se de uma proposta ela-
borada e permanentemente optimizada pelo Gabinete de Natação da FADEUP, com
base na consulta de documentos vários e na experiência colectiva dos docentes. En-
cerraremos com uma reflexão relativa ao conceito de saber nadar e indicando al-
guma literatura de suporte ao ensino da natação que poderá ser consultada.

2. Progressão pedagógica para Adaptação ao meio Aquático


A necessidade de adaptar o ser humano ao meio aquático advém, em primeiro
lugar, da estranheza sensorial que este lhe causa. Por um lado, o equilíbrio, a res-
piração e a locomoção alteram-se drasticamente em comparação com o ambiente
terrestre. Por outro, a água simplesmente incomoda nos olhos, no nariz, na boca
e nos ouvidos. A face parece não gostar da água e ser-lhe reactiva, inclusivamente
de forma reflexa e com consequências centrais (reflexo bradicárdico de imersão).
A par e passo, seguindo uma progressão lógica e coerente, o aluno vai resolvendo
os seus problemas até chegar a um momento em que é capaz de se deslocar na
água movendo os seus segmentos corporais, seguindo um padrão de movimento
espontâneo e natural, no qual não se reconhece necessariamente nenhuma téc-
nica padronizada de nado. Aí já a água na cara poderá ser sobretudo um prazer e,
depois, ou talvez ao mesmo tempo, o padrão motor tende a evoluir para as técni-
cas padronizadas, ou para soluções próximas dado o tropismo decorrente do ca-
rácter “natural” das últimas.

2.1. Equilíbrio vertical


A aquisição do equilíbrio vertical é o primeiro passo da adaptação ao meio aquático.
Quando um sujeito entra na água de pé e tenta simplesmente caminhar, a primeira
coisa que sente é que se desequilibra. A conquista do equilíbrio aquático pode então
ser induzida com deslocamentos suaves, locomovendo-se para a frente, para trás,
de lado, a rodar e das formas que o aluno conseguir imaginar. Depois, à medida que
se sente mais seguro, podemos sugerir-lhe que corra, salte e brinque de forma mais
atrevida. A necessidade de o aluno conseguir caminhar na água é fundamental.
Antes de avançar para o desenvolvimento de outras competências temos de ter a
certeza de que o aluno, em caso de queda, consegue retomar a posição vertical, sem
risco de afogamento. Para tal, a técnica dos “joelhos o peito” poderá / deverá ser in-
troduzida tão precocemente quanto possível.

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2.2. Adaptações da face


Resolvida a situação de equilíbrio vertical e para minimizar ainda mais o risco de
afogamento em situação de queda na água, é necessário começar rapidamente com
o trabalho de adaptação da face. O aluno tem que suportar o contacto da água com
os olhos, o nariz, a boca e os ouvidos. O que mais lhe irá custar será a abertura dos
olhos em imersão e, nesse momento os professores não podem ceder à pressão dos
pais e dos alunos que insistem no uso dos óculos de natação. Um aluno não deve
usar óculos de natação antes de conseguir abrir os olhos dentro de água de forma
natural e espontânea. Este é o momento de propormos exercícios onde a expiração
activa está presente (e.g. «faz bolhinhas debaixo de água com a boca») e exercícios
em que o aluno tem que ver, com a face imersa, que objecto foi escondido no fundo
da piscina ou o número de dedos que estão visíveis na mão do professor.
A absoluta necessidade de aquisição das três competências que expressam a adap-
tação da face à água (imergir a face e, simultaneamente, abrir os olhos e expirar ac-
tivamente) é sustentada por várias ordens de razões: (i) porque um sujeito que «sabe
nadar o suficiente para não se afogar«, numa situação de acidente (queda inadver-
tida na água), pode afogar-se pelo simples facto de não conseguir ultrapassar a afli-
ção de ter a face (ouvidos incluídos) rodeada de água. Assusta-se, hiperventila e
engole / inspira água; (ii) porque qualquer habilidade realizada com o corpo na ho-
rizontal é sujeita a maior arrasto hidrodinâmico (força oposta ao deslocamento do
sujeito) quando a cabeça está emersa. Tal acontece porque os membros inferiores
(MI), ou pelo menos a região pélvica, tende a afundar quando a cabeça se eleva, fi-
cando o corpo em posição oblíqua, o que aumenta a área de superfície frontal oposta
ao deslocamento. (deslocar-se na posição vertical na água é mais difícil do que des-
locar-se na horizontal porque a superfície corporal que cria resistência é maior
quando estamos de pé); (iii) porque a expiração é realizada dentro de água. Se não
o for, quando o praticante emerge a cabeça, no tempo que tem para inspirar vai ter
que expirar e inspirar, o que aumenta o tempo de permanência da cabeça fora de
água, diminui o tempo inspiratório, induz maior arrasto e provoca uma descoorde-
nação global dos movimentos; (iv) abrir os olhos é fundamental por uma questão
de orientação. A existência de linhas pretas no fundo e paredes da piscina justifica-
se, exactamente, pelo facto de necessitarmos de guias para que o nado ocorra em
linha recta, ou tão simplesmente para que nos possamos orientar no espaço. Ne-
cessitamos, pela mesma razão, do festão de falsa partida e dos festões de viragem
para sabermos, quando nadamos costas, o quão próximo estamos da parede. É fácil
testar esta necessidade. Basta tentar nadar em linha recta com os olhos fechados.
O que vai acontecer é um desvio da linha de nado para as laterais, dependendo de
qual é o MS dominante.

2.3. Imersão em profundidade e salto de pé


Uma vez que o aluno já imerge a face e se desloca na água em posição vertical com
alguma segurança podemos começar a fazê-lo entender que, se cair inadvertida-
mente à água, não fica pousado no fundo da piscina, como se de um pedaço de metal
se tratasse, um pensamento muito usual no senso-comum. De facto, o corpo tende
a emergir, o que acontece porque, enquanto no meio terrestre o corpo está sujeito

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à força da gravidade, que atrai o corpo para o centro da terra e que é responsável
pelo facto desse corpo ter peso, na água há uma outra força a actuar sobre o corpo,
chamada força de impulsão hidrostática. A força de impulsão é a força que empurra
o corpo imerso para cima, na direcção da superfície, e é a resultante do efeito da
pressão hidrostática (força exercida pela água por unidade de superfície do corpo
imerso) que actua sobre o corpo, a qual é mais intensa nas zonas que estão a maior
profundidade. Esta força não é, contudo, normalmente suficiente para nos man-
termos à superfície com a face emersa, nomeadamente a boca e o nariz. Isso poderá
ocorrer nos bebés e nos idosos, especialmente nas senhoras, bem como nos obesos;
não tanto nos sujeitos adultos com composição corporal normal, sem sobrepeso. Se
o aluno ainda não conseguir sustentar-se na água, após a queda tenderá a emergir,
mas vai engolir e inspirar água e o afogamento ficará iminente, dando-se pouco
abaixo da interface entre o ar e a água.
Para melhor entender a emersão o aluno deve ser convidado a imergir em profun-
didade e a subir até à superfície ajudado pela força de impulsão. Podemos pedir-lhe
para descer a escada da piscina com apoio dos MS, para largar o bordo da piscina e se
impulsionar para o fundo, sentando-se, se conseguir, para descer agarrado a uma
vara, para descer juntamente com o professor ou impulsionado por ele. Mal o aluno
toque o fundo deve soltar-se de tudo a que estiver agarrado, dirigir o olhar para cima
e começar a subir, sentindo de que forma «algo» o empurra em direcção à superfície.
Se mover os MS e os MI, sobretudo de forma calma e convenientemente orientada,
sobe ainda mais rápido e mal se agarra ao bordo da piscina fica seguro. É natural que
o aluno sinta receio durante a realização destes exercícios, mas tal é absolutamente
natural e não devemos deixar de o incentivar para esta conquista tão importante.
A partir do momento em que o aluno já caminha na piscina para a frente, para trás
e para os lados, já molha a cara, abre os olhos e expira e já consegue imergir o corpo
todo até ao fundo da piscina, pode começar a saltar de pé, tendo o cuidado de melhor
se apoiar no bordo da piscina usando a flexão dos dedos dos pés.

2.3.1. Uso de flutuadores fixos


É talvez agora o momento de reflectir um pouco sobre o uso, na fase de AMA, de
flutuadores (materiais que dão ao corpo a capacidade de flutuar) fixos, como é o
caso das braçadeiras e dos cintos de flutuação, que são muito utilizados com crianças
pequenas, aquelas que não têm pé, mesmo numa piscina de água rasa para um
adulto. O relato que se segue foi retirado de um comentário a uma notícia colocada
num espaço de partilha virtual e, na nossa opinião, vale a pena ser cuidadosamente
analisado. Chamamos a atenção para o facto de estarmos a analisar o domínio do
senso-comum. A autora da notícia pretendia chamar a atenção para os cuidados que
devemos ter com as crianças e a água (leia-se piscinas, mar...) durante os períodos
de férias, particularmente no verão. Conhecemos vários exemplos similares a este.
«...estávamos num condomínio fechado com piscina e andava por ali uma menina
que não devia ter mais de 3 anos. Andava com as braçadeiras e entrava e saída da pis-
cina a seu bel-prazer. Os pais estavam do outro lado de uma sebe a não a conseguiam
ver. Às tantas a menina veio de ao pé dos pais sem as braçadeiras e como normal-
mente fazia (e como ainda ninguém lhe tinha dito que não podia ir para a água sem

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elas) atirou-se para dentro da água. Se não fosse o Sr. Marido [a autora do relato re-
fere-se ao seu próprio marido] atirar-se logo lá para dentro e trazê-la para fora, ela
tinha lá ficado e os pais nem sequer se tinham apercebido de nada.» (as expressões
a negrito foram propositadamente salientadas)
Sobre o relato anterior podem ser feitas duas importantes leituras: (i) nunca se deve
deixar uma criança sem vigilância próximo de volumes relevantes de água, mesmo
que a situação pareça «segura» e (ii) no ensino da natação, na fase inicial de AMA, a
utilização de braçadeiras, cintos ou outro material flutuador, além de retardar a
aquisição da autonomia aquática (tal como no bebé o uso do carrinho voador atrasa
a aquisição do andar), não permite que a criança aprenda que não sabe nadar, que
adquira a noção de risco. Tal como se depreende do relato, uma criança que sempre
vivenciou situações de flutuabilidade e segurança no meio aquático, sem nunca ter
percebido que tal capacidade lhe advinha das braçadeiras que sempre lhe foram co-
locadas, comporta-se como quem «sabe nadar». Esta criança nunca sentiu o seu
corpo a afundar-se na piscina, nunca teve necessidade de utilizar movimentos pro-
pulsivos que a dirigissem para a superfície (o simples esbracejar) e nunca tentou al-
cançar a parede ou outro apoio perto de si. Esta criança, além de se comportar como
quem «saber nadar», ou como se soubesse nadar, não tem o menor instinto de de-
fesa, de «auto-salvamento».
Em termos de ensino da natação, uma criança só adquire a noção de que se pode
afogar e de que necessita de fruir a água com respeito quando é confrontada com a
imersão completa da face, com a abertura dos olhos estando a face imersa e com o
salto de pé, imergindo e, posteriormente, recuperando a superfície.

2.3.2. Aquisição da noção do risco de afogamento e “auto-salvamento”


Apesar do confronto da criança com as situações de imersão da face e do corpo, de-
pendendo da sua idade, a noção do risco de afogamento pode ou não ser adquirida.
Para adquirir esta noção é necessário que, enquanto bebé, se ultrapasse a fase da in-
consciência do risco É ainda importante referir que, mesmo depois da aquisição da
noção de risco de afogamento, é muito difícil uma criança adquirir algumas com-
petências de «auto-salvamento» antes dos 2.5 anos e, mesmo depois de as adquirir,
vai continuar a requerer uma vigilância muito apertada, porque na emoção do mo-
mento, brincando, imitando outras crianças, pode ir além daquilo que é capaz. Antes
desta idade, na maioria das vezes, a competência de “auto-salvamento” traduz-se
na simples acção de, depois de cair à água perto do bordo, a criança emergir e deslo-
car-se para se agarrar. Note-se, ainda, que estas afirmações dificilmente são válidas
se a criança cair à água vestida, porque só a muito custo será capaz de sustentar o
peso da roupa molhada. Todas as pessoas deveriam saber que, numa situação de
queda acidental à água, a primeira coisa que devem fazer é despir-se, tirando o cal-
çado em primeiro lugar. Contudo, isto é algo que um bebé ou uma criança pequena
têm dificuldade em fazer.

2.4. Equilíbrio vertical autónomo em água profunda


Quando o aluno já consegue caminhar na piscina, já molha a cara, abre os olhos e
expira, já consegue imergir o corpo todo até ao fundo da piscina e já salta de pé, po-

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demos tentar que ele se equilibre autonomamente, na vertical, em piscina de água


profunda. Esta é uma habilidade importante, porque é a que vai permitir que o
aluno mantenha a face à superfície e respire se cair à água e não tiver pé. Para de-
senvolver esta competência podem fazer-se alguns jogos. Por exemplo, estando o
aluno apoiado com as mãos no bordo, pedimos-lhe, primeiro, que retire uma mão,
depois a outra. De seguida vai bater palmas e fazer outras brincadeiras, até ser capaz
de se sustentar movendo apenas os MI e os MS. Vai demorar algum tempo até o
aluno se conseguir sustentar e a estratégia é ir repetindo; insistir várias vezes en-
quanto vamos avançando com outros conteúdos da AMA. Se não houver a possibi-
lidade de acesso à piscina de água profunda e todo o trabalho tiver de ser
desenvolvido em piscina de água rasa (com pé), teremos de ultrapassar este impor-
tante passo e passar para o conteúdo seguinte da progressão pedagógica: a posição
de medusa.

2.5. Equilíbrio estável: a posição de medusa


A medusa, ou posição fetal na água, começa a ser trabalhada após o salto de pé ou o
equilíbrio vertical autónomo. É a habilidade aquática em que o corpo humano mais
se aproxima do equilíbrio indiferente. O equilíbrio indiferente caracteriza-se pela
coincidência dos pontos de aplicação das forças peso – massa do corpo multiplicada
pela aceleração da gravidade - (centro de gravidade – CG) e impulsão (Centro de Im-
pulsão – CI), o que acontece apenas em corpos homogéneos, como uma bola de ma-
deira, por exemplo. Trata-se de um tipo de equilíbrio impossível no corpo humano,
por ser constituído por diferentes tipos de tecidos (ósseo, muscular, adiposo,...). No
caso da posição de medusa, o aluno encontra-se em equilíbrio estável, tal como na
posição vertical direita, mas neste último caso com um grau de estabilidade inferior.
O equilíbrio de um corpo diz-se estável quando o CG se encontra colocado em baixo
o CI e na mesma linha de acção (na mesma vertical). Existem situações muito ex-
cepcionais em que o equilíbrio estável pode ser obtido com o CG numa posição su-
perior ao CI, mas desde que um outro ponto (o metacentro) esteja colocado em
baixo. Quando um corpo se encontra em equilíbrio estável, qualquer força tendente
a desequilibrá-lo faz com que o peso e a impulsão formem um sistema de forças que
obriga o corpo a rodar de novo para a posição de equilíbrio – daí a noção de estabili-
dade.
O aluno vai começar por experimentar a posição de medusa, primeiro, realizando
uma apneia inspiratória (inspirar o mais possível e suster o ar, bloqueando a expi-
ração). O ar é menos denso que a água, ajudando a flutuar. O aluno vai sentir que,
com inspiração máxima, é muito fácil flutuar. São critérios para a realização da me-
dusa com apneia inspiratória a manutenção da face em imersão e da posição fetal.
Depois do aluno já conseguir adoptar a posição de medusa com apneia inspiratória
deve deixar-se manipular. Devemos tocar, empurrando e rodando ligeiramente o
corpo do aluno, que se deixará voltar à posição inicial, sentindo como o seu corpo
tende a flutuar e a recuperar sempre a mesma posição – posição que, de resto, lhe
permite, com facilidade, atingir a posição de pé. Por fim, devemos estimular uma
habilidade mais difícil, a medusa com apneia expiratória. A dificuldade associada a
esta habilidade advém da necessidade de resistir à apneia expiratória. O aluno tem,

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primeiro, que realizar expiração forçada e depois tem que adoptar a posição de me-
dusa só com o volume de ar residual. Se o aluno conseguir suportar a apneia expira-
tória vai sentir o seu corpo descer em direcção ao fundo da piscina, salvo nalguns
casos em que existe flutuabilidade positiva mesmo em apneia expiratória (bebés,
idosas, obesos,…).

2.6. Equilíbrio horizontal ventral e dorsal


Até ao momento e retomando a progressão pedagógica na posição de medusa, ainda
não foi solicitado ao aluno que se colocasse na posição horizontal, a posição de nado.
Não há que ter pressa ou ansiedade relativa à aquisição desta competência. Uma
propedêutica incorrecta vai levar a que o aluno não consiga posicionar o corpo de
forma adequada. Por exemplo, se a capacidade de imergir a face não estiver adqui-
rida, o aluno vai colocar-se em posição horizontal ventral com a cabeça emersa, o
que origina o afundamento dos MI e impede a manutenção do equilíbrio. É impor-
tante reter que aprender a nadar é um processo que demora o seu tempo e a preci-
pitação faz queimar etapas importantes do mesmo, ou seja, inibe a aquisição de
competências necessárias à aprendizagem das habilidades mais complexas.
Antes do aluno começar a tentar o domínio do equilíbrio horizontal tem que apren-
der a “deitar-se na água”, quer em decúbito ventral, quer dorsal. É imprescindível
que seja capaz de passar da posição vertical para a horizontal, quer ventral, quer
dorsal, voltando a retomar a posição vertical inicial. Depois de treinar estas altera-
ções de posição pode começar a adoptar a posição de estrela (flutuar com os MI e os
MS afastados), com a face imersa. Apesar da necessidade de imersão na face, a defi-
nição da posição de estrela é mais fácil na posição ventral. Deitar em decúbito dor-
sal, para trás, é vertiginoso e é natural que o aluno reaja de forma mais receosa às
primeiras propostas de realização da estrela dorsal.

2.7. ‘Deslize’
Um aluno que vai começar a aprender o deslize já tem, obrigatoriamente, a face bem
adaptada à água e é capaz de se colocar na posição horizontal. Também não revela
medos ou receios no contacto com a água.
Para ser capaz de deslizar o aluno tem que colocar um ou, se possível, ambos os MI
na parede e promover, depois, a extensão total do corpo. Inicialmente não será exi-
gida a posição hidrodinâmica, apesar de o aluno a dever conhecer (conf. 2.7.2). Nas
primeiras tentativas, o deslize pode ser realizado entre paredes (testa e lateral,
numa quina da piscina). Depois, deve começar a partir da parede testa e deslizar, o
mais possível, ao longo da pista. Nos primeiros deslizes pode permitir-se ao aluno
que se mantenha à superfície. Contudo, com o passar do tempo e à medida que ele
se torne mais competente, é necessário exigir que os deslizes ocorram sempre com
o corpo totalmente imerso.

2.7.1. Força de arrasto hidrodinâmico


A explicação para a necessidade da imersão total do corpo durante o deslize é, como
qualquer gesto na natação, explicada pela hidrostática e hidrodinâmica, disciplinas
da mecânica de fluidos que se debruçam, respectivamente, sobre o estudo de corpos

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em equilíbrio estático e em situação dinâmica. A questão que se coloca é a seguinte:


porque é que o arrasto hidrodinâmico à superfície é superior ao que se observa em
imersão? Tentaremos, de seguida, uma explicação simples e clara, quer para aqueles
que se estão a iniciar nesta matérias, quer mesmo para o senso-comum, particular-
mente para os pais dos alunos, aos quais os objectivos e conteúdos da nossa actuação
devem ser devida e convenientemente justificados.
Quando o corpo se move na interface entre o ar e a água, parte da energia que devia
servir exclusivamente para a propulsão é transmitida às massas de água, animando-
as de movimento. Reconhece-se este fenómeno de transferência de energia obser-
vando as ondas que se formam à volta do corpo do nadador e se afastam dele, em
direcção aos bordos da piscina. Estas ondas são muito similares àquelas que se for-
mam quando atiramos uma pedra para dentro de um lago em que as águas estavam
paradas. A formação de ondas à volta do corpo do nadador é um dos fenómenos hi-
drodinâmicos responsáveis pela frenagem do seu movimento, conhecido por arrasto
de onda, ou arrasto de formação de onda. Mas o arrasto de onda não é a única forma
de arrasto que o corpo sofre quando se desloca à superfície da água. Existem também
o arrasto de fricção e o arrasto de pressão. Junto ao corpo existe uma fina camada de
água que se define por nela se observar uma variação da velocidade com a distância
perpendicular à superfície do corpo (variação proporcional à viscosidade do fluido),
sendo nesta igual à velocidade relativa do corpo e no seu limite externo igual à ve-
locidade da massa de água circundante, ou corrente livre. Chama-se-lhe Camada Li-
mite. Dentro da Camada Limite, as diferenças de velocidade entre as camadas de
fluido adjacentes criam um efeito de atrito, que se designa por arrasto de fricção.
Outro tipo de arrasto que o corpo sofre quando à superfície da água é o arrasto de
pressão. Quando um corpo se desloca na água, ou num outro fluido de característi-
cas similares, a extremidade anterior do corpo (cabeça, ombros...) constitui uma
barreira oposta ao deslocamento do fluido. Nesta zona algumas partículas de água
reduzem drasticamente a sua velocidade relativa e outras chegam mesmo a uma
velocidade relativa nula em relação ao corpo. Chama-se a estes pontos ou regiões
anteriores do escoamento em relação ao corpo em movimento Pontos ou Regiões
de Estagnação. A região de estagnação é uma região de altas pressões do fluido.
Quando conseguem fluir a partir do ponto que as fez desacelerar ou onde ficaram
estagnadas, as partículas de águas fluem na direcção dos pés (extremidade posterior
do corpo), umas seguindo pela parte superior do corpo, outras pela parte inferior,
outras ainda pelas regiões laterais do corpo. A determinado momento deste escoa-
mento verificam-se fenómenos hidrodinâmicos complexos que dão origem a gra-
dientes de pressão adversos no interior da camada limite, forçando ao seu
destacamento, ou separação, da superfície do corpo, antes ainda de se ter atingido
a extremidade posterior do corpo – às vezes muito antes mesmo. Chama-se a este
fenómeno Descolamento ou Separação da Camada Limite, o qual dá origem a uma
região de elevada vorticidade (movimento rotacional do fluido), normalmente tida
por de elevada turbulência e à qual se chama Esteira. A Esteira é uma zona de ele-
vada velocidade de escoamento e de muito baixa pressão e situa-se na extremidade
posterior do corpo que lhe dá origem. Este fica, deste modo, sujeito a um gradiente
de pressões entre a Região de Estagnação, frontal e de altas pressões, e a Esteira,

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posterior e de baixas pressões, gradiente este que dá origem a uma força orientada
das altas para as baixas pressões (para trás) e de intensidade proporcional a esse gra-
diente de pressões e à área de corte do corpo que separa as referidas zonas de altas
e baixas pressões. É a esta força que se chama Arrasto de Pressão. Este tipo de arrasto
é o responsável pelo facto de não se dever elevar muito a cabeça quando se nada,
por exemplo. Elevando a cabeça, os MI tendem a afundar, criando muitos mais
zonas de estagnação e pontos de separação das partículas de água e aumentando o
arrasto de pressão. No deslize, se o aluno se deslocar com um bom alinhamento cor-
poral, em imersão, minimiza os pontos de estagnação e de separação e consegue
desloca-se a uma velocidade média superior, reduzindo a aceleração determinada
pelo arrasto hidrodinâmico.

2.7.2. Posição hidrodinâmica


A posição hidrodinâmica dita fundamental é a posição corporal que permite deslizar
sofrendo da água a menor resistência hidrodinâmica (arrasto) possível.
Para contrariar a força de arrasto é necessário colocar os MS à frente, no prolonga-
mento do corpo, juntar as mãos, sobrepondo-as abertas e com os dedos unidos, e
aduzir (juntar) os MS assim estendidos contra a cabeça (tomar como referência as
orelhas ajuda os alunos a compreender melhor o que se pretende). Os ombros
devem elevar-se um pouco para que desapareça o espaço entre eles e a cabeça. A ca-
beça deve estar alinhada com o tronco, em posição neutra, nem com o queixo pu-
xado para o peito (cabeça flectida), nem inclinada para trás (estendida), permitindo
olhar o tecto. Todo o corpo deve estar alinhado e sob alguma tensão, por forma a
conferir-lhe consistência geométrica. Quase todos os músculos se contraem, espe-
cialmente os dos MS e dos MI, e os pés devem ter “as pontas” bem estendidas – fle-
xão plantar (“pé de bailarina”). Esta é a posição hidrodinâmica. O aluno não pode
deixar de a aprender. Ela vai permitir que o aluno adopte uma melhor posição de
nado. É uma posição que terá também de ser adoptada em todos os deslizes que
forem realizados após a partida e as viragens, numa qualquer prova de natação.

2.8. ‘Parafusos e cambalhotas’


O deslize de que falamos no ponto anterior terá de ser realizado pelo aluno quer em
decúbito ventral, quer dorsal, uma vez que constitui o ponto de partida para a aqui-
sição da capacidade de rodar sobre o eixo longitudinal, ou seja, sobre a capacidade
de fazer «parafusos». Os «parafusos» não são fáceis de realizar, uma vez que impli-
cam já a necessidade de realizar alguns movimentos alternados dos MI. Esta habi-
lidade parece um pouco descontextualizada, mas não o é, de facto. Rodar sobre o
eixo longitudinal é muito importante para se conseguir uma boa rotação do tronco
nas técnicas alternadas (crol e costas) e também para a futura aquisição da capaci-
dade de virar, principalmente de costas para costas, em que é necessário passar da
posição dorsal para a ventral antes de rodar sobre o eixo transverso (dar uma «cam-
balhota” para a frente).
As rotações sobre o eixo transverso são exactamente o conteúdo seguinte que o
aluno deve aprender. O eixo horizontal é o eixo que atravessa o corpo da direita para
a esquerda e que passa pelo centro de gravidade. Muitas vezes é substituído nas

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brincadeiras das crianças pelo varão de protecção da saída da escola em que as crian-
ças gostam de rodar. O aluno deve aprender a rodar com o corpo engrupado, para a
frente e para trás. A aquisição desta competência vai ser de grande valia na apren-
dizagem futura das viragens de rolamento. Também vai permitir ao aluno aprender
a retomar as suas referências em termos de orientação, depois de ter rodado na água,
uma competência importante para o auto-salvamento em caso de acidente aquá-
tico. Por exemplo, se o aluno alguma vez cair à piscina ou de um barco, mesmo de-
pois de duas ou três “cambalhotas”, saberá exactamente onde está.
Se estivermos a ensinar a nadar numa piscina de água rasa (com pé), podemos ajudar
o aluno a rodar. Numa piscina de água profunda (sem pé), podemos colocar o aluno
no bordo, na posição de grande flexão de MI (de “cócoras”), e ele terá de fazer as
“cambalhotas” deixando-se cair para a água e rodando.

2.9. Movimentos alternados dos membros inferiores


Depois do aluno ter aprendido tudo o que descrevemos até ao momento, deverá
estar pronto para começar a propulsionar-se através da acção alternada dos MI, quer
estando na posição ventral, quer na posição dorsal. Os movimentos dos MI poderão
ser exercitados livremente, ou com o auxílio de uma placa flutuadora. No primeiro
caso a coordenação com movimentos da cabeça que permitam a respiração torna-
se muito importante, sobretudo depois de se explorar a realização de pequenos per-
cursos em posição hidrodinâmica fundamental e em apneia inspiratória. Com a
utilização de placa, esta deve ser pegada na posição horizontal, usando-se uma pega
média (as duas mãos agarram os bordos laterais da placa). O aluno deve estender
bem os MI, sem esquecer os pés, e sem ficar exageradamente tenso. Deverá também
estender os MS. É fundamental que coloque a cabeça dentro de água, para uma boa
manutenção do alinhamento corporal e minimização do arrasto. Sempre que o
aluno necessitar de inspirar deve elevar a cabeça e inspirar fortemente. Depois,
deve voltar a colocar a cabeça em imersão e expirar tanto ar quanto conseguir. É ne-
cessário cuidar que o aluno não expire fora de água, realizando uma apneia quando
a face está imersa. Este erro é particularmente grave, nomeadamente porque, mais
tarde, quando o aluno estiver a aprender as técnicas de nado, será impossível con-
seguir um nado bem coordenado sem que se realize a inspiração aquática. Tal acon-
tecerá porque o aluno vai expirar e inspirar no momento destinado apenas à
inspiração, o que atrasará a imersão da face.

2.10. Propulsão autónoma


Quando o aluno chega a este nível de desenvolvimento das suas habilidades aquá-
ticas, já adquiriu todas a competências anteriores e deve ser estimulado a encontrar
formas diferentes de se deslocar na água. Contudo, ainda sem que lhe ensinemos
qualquer técnica estereotipada de nado. Podemos usar jogos em que o aluno tem
de ser deslocar em meio aquático imitando objectos, animais ou acontecimentos.
Devemos usar imagens tão sui generis quanto possível (ex: nada como se fosses uma
cadeira, como um Leão, como um candeeiro, como uma ave, como um parafuso.
Imita um piano a cair à água, um rallie. Inventa tu! Nada como quiseres.). A única
exigência a colocar é a de que o aluno seja capaz de se deslocar. Neste momento o

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aluno estará pronto para novas aquisições. Podemos dizer que está adaptado ao meio
aquático. Não tem problemas em nadar sem óculos, sabe realizar respiração aquática
(inspiração aérea e expiração imersa), não precisa de braçadeiras ou flutuadores para
se manter à superfície, sabe colocar-se em posição hidrodinâmica, fazer “parafusos”
e dar “cambalhotas”.

2.11. Salto de cabeça


Se sentirmos que o aluno está preparado para tal, podemos fechar este ciclo adap-
tativo ensinando-o a saltar de cabeça. O salto de cabeça difere do salto de partida
apenas no facto de, no segundo, o aluno saltar para nadar e, no primeiro, saltar para
aprender a entrar na água de cabeça. No ensino desta habilidade temos que precaver,
a todo o custo, a vivência negativa da “chapa” ou “chapão” na água (queda com im-
pacto da barriga ou de todo o corpo). O segredo do ensino do salto de cabeça está em
não deixar o aluno vivenciar o «chapão», o que se consegue eliminando a fase de
voo do salto de partida. Um salto de partida consiste em quatro acções a serem en-
sinadas, a acção no bloco, o voo, a entrada e o deslize. Na natação de competição ini-
cia-se a acção no bloco com um apito longo do juiz árbitro, que passa, de seguida, a
partida para o juiz de partidas. O aluno sobe para o bloco e fixa os dedos dos pés no
bordo anterior do mesmo. Coloca as mãos entre os pés, agarrando, também com as
mãos, a parte anterior do bloco. Puxa o bloco para si como se o quisesse arrancar à
voz de «aos seus lugares», dada pelo juiz de partida, e fica imobilizado nesta posição.
Ao sinal de saída, dado pelo juiz de partidas, inicia-se a impulsão e, depois, o voo. A
acção começa com o desequilíbrio do corpo, em bloco, para a frente. O voo realiza-
se com o corpo completamente estendido e em posição preparatória da posição hi-
drodinâmica. As mãos vão tocar a água em primeiro lugar e o mais longe possível,
sem que se comprometa a qualidade da entrada. No ensino, é exactamente o voo
que se retira. O aluno deve entrar na água perto do bordo ou do bloco e «picando»
para o fundo da piscina (Fig. 1).

Figura 1 – Entrada na
piscina, de cabeça, sem voo.

A entrada na água dá-se com as mãos em primeiro lugar e todo o corpo deve passar pelo
«buraco» aberto pelas mãos. Por fim, o aluno vai deslizar com o corpo em posição hidro-
dinâmica, a uma altura de cerca de 50 cm da superfície, habilidade que ele já aprendeu.

182
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2.12. Conceito de ‘saber nadar’


Não é possível dizer «quanto» é que uma pessoa precisa de saber nadar. Quanto ne-
cessita uma pessoa de saber nadar para, por exemplo, poder salvar-se a si mesma ou
a outrem? Ou tão simplesmente para poder fruir o prazer da água em segurança.
Para responder a esta questão é necessário partir do princípio de que quem apenas
tem uma adaptação ao meio aquático rudimentar não consegue salvar-se ou salvar
alguém numa situação de acidente. Mas chegará saber nadar crol e costas? Necessi-
tará também das técnicas de bruços, das partidas e das viragens? E da mariposa? Se
um sujeito necessita de saber nadar mariposa para se salvar, por exemplo, é uma
questão irrelevante. O que interessa é que o sujeito que nada mariposa tem um
nível de competência aquática superior e é o nível de desempenho superior que daí
advém que pode fazer a diferença ao salvar a sua vida ou a de outros. Quanto mais
habilidades um sujeito conseguir realizar no meio aquático (habilidades da natação
pura, de natação sincronizada, dos saltos para a água, do pólo aquático, do simples
exercício ou fruição aquática), mais apto estará, teoricamente, a sobreviver nesse
meio. Por isso, se queremos que os nossos alunos sejam sobreviventes de um aci-
dente aquático devemos ensinar-lhes o mais que possamos. Quando olhamos para
um aluno é natural perguntarmo-nos: até onde o ensino? A resposta a dar deverá
ser sempre a mesma: tudo o que eu for capaz de lhe ensinar, de lhe proporcionar,
mesmo que os pais me digam que só querem que o filho se «desenrasque» para o
caso de cair «à piscina que temos lá em casa». E porquê tudo? Porque não sabemos
se algum dia ele vai necessitar de uma competência aquática superior para se salvar
ou para salvar alguém, se quererá ser um nadador, de natação pura ou sincronizada,
se quererá ser um jogador de polo aquático, se quererá fazer um curso superior de
educação física, se irá querer fazer carreira na marinha, se, se, se, se... O lema mais
importante é, em linguagem bem corrente, «não cortar pernas», ensinar-lhe tudo.
Mesmo que ele não venha a ser nadador de alta competição, mesmo que ele venha
a ser um profissional qualquer de outra área que não o desporto aquático, mesmo
que ele só venha a nadar como forma de «manutenção», de recereação ou de recu-
peração. Ainda assim, só nadará se o seu nado for competente e lhe transmitir uma
sensação agradável. Se for penoso e sofrido, um nado de «desenrasca«, de pouco ou
nada irá servir-lhe, seja em que circunstância for. Neste sentido, os profissionais
das actividades aquáticas, só têm uma solução: ser profissionais de excelência para
produzir alunos de excelência, capazes de aplicar as competências desenvolvidas
naquilo que eles vierem a necessitar. É isso que se deve tentar todos os dias, quer
com os mais velhos, quer com os mais pequeninos.

2.13. Literatura de suporte em ensino da natação


A literatura científica referente à didáctica da natação é particularmente escassa.
A maioria dos trabalhos que encontramos está editada em formato de livro ou cons-
titui meros artigos de opinião, onde, grosso modo, algumas opções metodológicas
são defendidas apenas pelo sentido da lógica. Trata-se de literatura eminentemente
técnica, de melhor ou pior qualidade. Estes textos, apesar de carecerem de funda-
mentação científica, podem e devem ser consultados, particularmente porque a
maioria contém uma série de propostas de exercícios que poderão ser adoptados na

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prática lectiva. Encerraremos este trabalho deixando algumas sugestões de obras


que poderão ser consultadas pelo leitor.

3. Conclusão
O processo adaptativo ao meio aquático constitui a propedêutica do ensino das téc-
nicas de nadar, partir e virar. Pressupõe uma abordagem sequencial de conteúdos,
ordenados do mais simples para o mais complexo. Esta ordenação tem por base uma
fundamentação suportada na documentação técnica existente, na lógica e no co-
nhecimento didáctico, bem como nos princípios da mecânica de fluidos. Apesar de
carecer de validação científica, reune aceitação suficiente na comunidade técnica
e escora-se em vários anos de estudo, reflexão e experiência suportados pelas ciên-
cias do desporto. Assim é a proposta que aqui deixamos.

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livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 188

Factores Genéticos e Ambientais nos


Níveis de Actividades Físico-Desportivas.
Um Estudo em Famílias Nucleares Portuguesas
José A. R. Maia, André Seabra, Rui Garganta,
Raquel Chaves, Michele Souza, Daniel Santos
CIFI2D, Laboratório de Cineantropometria e Gabinete de Estatística Aplicada,
Faculdade de Desporto, Universidade do Porto, Porto, Portugal
Duarte Freitas
Departamento de Educação Física e Desporto,
Universidade da Madeira, Madeira, Portugal

Resumo
Genericamente, os propósitos desta pesquisa foram os seguintes: (1) identificar a influência de factores
genéticos e ambientais nos níveis de actividades físico-desportivas em famílias nucleares, (2) a possibi-
lidade de efeitos pleiotrópicos entre obesidade, sobrepeso e actividades físico-desportivas e (3) averiguar
a influência dos progenitores, estatuto sócio-económico, melhor amigo e professor de Educação Física
nos níveis de actividades físico-desportivas dos irmãos.
A amostra foi constituída por 1450 famílias (n=5800 sujeitos) de diferentes regiões do norte do país. A aci-
vidade físico-desportiva foi avaliada com o questionário de Baecke et al. (1982). Os procedimentos estatís-
ticos compreenderam: análise exploratória com o PEDSTATS, e agregação familiar com o HLM, e a pesquisa
de genética quantitativa com o modelo de componentes de variância implementado no software SOLAR.
Os principais resultados mostram os seguintes pontos: (1) a elevada qualidade da informação disponível;
(2) a presença de agregação familiar em todos os fenótipos considerados; (3) correlações baixas-a-moderadas
entre todos os fenótipos nos diferentes membros das famílias; (4) estimativas elevadas de heritabilidade
para os fenótipos relacionados com o desporto, e baixos-a-moderados para os outros fenótipos; (5) ausência
de efeitos pleiotrópicos entre índice de massa corporal e qualquer fenótipo marcador de actividades físico-
desportivas; (6) ausência de efeitos significativos do Prof. de Educação Física, e (7) um efeito saliente dos
amigos. Em suma, os resultados salientam a importância dos factores genéticos, dos amigos e da “irrele-
vância” do Prof. de Educação Física na variação populacional nos níveis de actividades físico-desportivas
de irmãos. Palavras-chave: factores genéticos, famílias, actividades físico-desportivas.

Abstract
The purposes of this study were: (1) to identify the importance of genetic and environmental factors in physical
activity of nuclear families, (2) the possibility of pleiotropic effects governing obesity, overweight and physical
activity, and (3) search for the influence of socioeconomic status, best friend, and physical education teacher in
physical activity of siblings. Sample size comprises 1450 nuclear families (n=5800 subjects) from different regions
of the north of Portugal. Physical activity was assessed with the Baecke et al (1982) questionnaire. Exploratory
data analysis was done with PEDSTATS, familial aggregation with HLM, and quantitative genetic analysis with
SOLAR. Main results show the following: (1) the high quality of all data; (2) the presence of familial aggregation
in all considered phenotypes; (3) low-to-moderate correlations among all family members in all phenotypes; (4)
high heritability estimates for sports related phenotypes, and low-to-moderate estimates to the other phenotypes;
(5) absence of pleiotropic effects among body mass index and all other physical activity related phenotypes; (6)
lack of relevant effect of physical education teacher, and (7) a high importance of peers (i.e., best friends). In sum,
these results show the importance of genetic factors in governing variation in physical activity phenotypes, as
well as the relevance of peers. Physical education teachers do not seem to influence to a substantial degree physical
activity of their students. Key-words: genetic factors, families, sport-physical activities.

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1. Introdução
Vivemos um tempo em que antropólogos físicos (Cordain et al., 1998), fisiologistas
de renome (Bar-Or & Rowland, 2004; Rowland, 2005; Willmore & Costill, 2004), e
especialistas em Saúde Pública (Andersen, 2003; Blair et al., 2001; Caspersen 1989;
Caspersen et al., 1985; 1998; Dishman et al., 2004) reclamam uma atenção redo-
brada para aspectos emergentes da Medicina Evolutiva face às ameaças de duas das
maiores epidemias da modernidade – a obesidade e o sedentarismo. As consequên-
cias são bem evidentes no aumento da prevalência das doenças crónico-degenera-
tivas e dos gastos esperados em medicação, apoio médico e hospitalar.
O homo sapiens sapiens transformou-se, num curto espaço de tempo (≈ 100-150
anos), naquilo que se designa por homo sedens, fortemente sensível aos mais varia-
dos factores de risco de doenças metabólicas (Dishman et al., 2004), que induzem
um aumento da prevalência da morbilidade e mortalidade (ver relatório do CDC,
1996), implicando uma redução drástica da qualidade de vida e fruição dos momen-
tos de recreação e lazer.
É um facto indesmentível que o ser humano possui uma estrutura biológica que im-
plica uma forte troca informacional com o ambiente, ao mesmo tempo que consome
energia para se manter vivo. Ora este consumo implica uma elevada funcionalidade
mecânica (i.e., a produção de trabalho) para que a “totalidade” dos sistemas e órgãos
funcione de modo altamente eficiente. Esta elevada funcionalidade desenvolveu-
se em épocas em que era caçador-recolector, mantendo-se em níveis elevados
mesmo quando inventou a agricultura (Cordain et al., 1998). O maior problema sur-
giu aquando da invenção de uma fortíssima tecnologia ligada à revolução industrial
e mais tarde à informatização, i.e., à robótica, e produção automática.
O consumo de energia total diário do ser humano organiza-se em três grandes ca-
tegorias: (i) o metabolismo de repouso que consome a maior parte da energia, ≈ 70%
dependendo do sexo e da quantidade de massa isenta de gordura; (ii) o efeito tér-
mico induzido pela ingestão de nutrientes, ≈ 10%; (iii) a actividade física (ActF) diá-
ria produzida voluntariamente pelos músculos esqueléticos, ≈ 20%. Destas
componentes, a que mostra uma maior variabilidade interindividual no seio de uma
qualquer população é a ActF. Conforme é bem evidente na Figura 1, o fenómeno
mais evidente em qualquer população de sujeitos aparentados, ou não, numa qual-
quer característica quantitativa é a da variação, qualquer que seja categorização da
ActF: ocupacional, de recreação, nas actividades domésticas, ou a sua manifestação
mais formal, organizada e culturalmente referenciada – o desporto.
Se nos conformarmos à noção que no seio de cada família se transmitem dois patri-
mónios fundamentais – o genético e o cultural, é de esperar a presença de um “pa-
drão” genérico de associação nos valores de ActF total entre sujeitos com diferentes
graus de parentesco, conforme mostramos na Figura 2, onde os valores de correlação
são significativamente maiores do que zero.
Estudar padrões de transmissão de características no seio de famílias nucleares, com
um grau razoável de extensão horizontal e vertical, tem sido um dos grandes pro-
pósitos da Genética Médica quando se pesquisam doenças raras, cujos modos de
transmissão seguem um padrão Mendeliano (sobre esta matéria consultar Rega-
teiro, 2003; Plomin et al., 2003). Contudo, é importante salientar que os fenótipos

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Figura 1: Variação interindividual: - gráfico da esquerda=pais; gráfico da direita=filhos

Figura 2: Padrões de associação da ActF Total entre pai-filhos (esquerda) e irmãos

em estudo no lato território das Ciências do Desporto são de natureza quantitativa


contínua, cujos efeitos genéticos são essencialmente poligénicos ou oligogénicos
(Maia et al., 1999; 2001; 2002; Fernanges & Maia, 2006).
Estão disponíveis na literatura diferentes abordagens para dissecar e esclarecer a es-
trutura complexa e multivariada de uma vasta plêiade de fenótipos, de que a ActF
na sua expressão diferenciada é um exemplo bem acabado. Um dos mais interes-
santes, e que estará bem patente neste trabalho é o da abordagem top-down (mais
detalhes em Bouchard et al., 1997). Parte-se de uma distribuição gaussiana de de
um fenótipo em estudo em famílias nucleares e tenta-se inferir acerca dos factores

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genéticos que estão na origem da variação e covarição entre familiares com níveis
distintos de parentesco. Os dois pontos seguintes procurarão traçar, sumariamente,
esta aventura.

2. Epidemiologia da Actividade Física


2.1. Um pouco de história
Ainda que se possa pensar que os primórdios da Epidemiologia da Actividade Física
(EAF) tenham emergido na antiguidade clássica, ou em grandes figuras clássicas da
medicina como Hipócrates ou Galeno, o facto é que o ponto singular da aventura
inquisitiva da EAF é historicamente muito próxima. Deve-se à clareza da visão e
empenho do famoso médico inglês Jeremy Morris, e ao trabalho infatigável e ilu-
minador de um médico americano, Ralph Paffenbarger, o lançamento firme das
pontes da EAF. Um texto central de esclarecimento conceptual é o de Caspersen et
al. (1985). Contudo, o documento nuclear que institucionalizou a EAF é o de Cas-
persen (1989), dado ter estabelecido formalmente o paradigma, as metodologias,
as ferramentas e o alcance da pesquisa epidemiológica em ActF. Textos subsequen-
tes (Dishman et al., 2004) nada mais fizeram deo que solidificar este edifício, avan-
çando por pesquisas descritivas do comportamento da ActF de populações, bem
como dos seus determinantes situados ao nível dos sujeitos (Sallis & Owen, 1999).
Esta disciplina do lato território da Epidemiologia, bem como inquietações diversas
acerca do aumento “assustador” do sobrepeso e obesidade, a que se acrescentam ní-
veis preocupantes de sedentarismo e inactividade física foram exportadas dos EUA
para diferentes países do mundo. Portugal não foi excepção. O domínio das Ciências
do Desporto dos países lusófonos rapidamente incorporou estes problemas. Assis-
tiu-se, e assiste-se, a um incremento substancial da pesquisa no universo da EAF
em Portugal, percorrendo avenidas bem simples de estudos de prevalências popu-
lacionais e, factores de exposição responsáveis pelos resultados encontrados, bem
como se avança por estudos de intervenção. Uma matéria recente de pesquisa re-
fere-se à relação entre actividade física e síndrome metabólica.
Um dos aspectos menos explorados é o que se refere a investigação com famílias
nucleares no fascinante território da Epidemiologia Genética.

2.2. Enquadramento e tipos de abordagem em pesquisa Epidemiológica


Genericamente, o questionamento epidemiológico em torno da ActF procura re-
velar, quantitativamente, acerca de ocorrências (O QUÊ) de níveis distintos de
ActF, em QUEM (i.e, em que sujeitos), ONDE (em que espaço sócio-geografico, e
daqui a noção de estratificação populacional por diferentes áreas ou zonas), COMO
[i.e., que agentes causais (factores de exposição) estão na origem das prevalências
ou incidências da característica descrita de modo contínuo ou binário – e daqui o
discurso acerca dos determinantes ou variáveis correlatas dos níveis distintos de
ActF], e finalmente QUANDO (e que nos remete para pesquisa de natrueza trans-
versal-observacional, ou bem mais interessante para estudos de natureza prospec-
tiva-longitudinal).
A investigação limitada a estudos de natureza transversal-observacional centrada
na Epidemiologia Descritiva remete-nos para a apresentação detalhada dos níveis

191
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 192

de ActF, em função de um conjunto diversificado de descritores que podem ser con-


fundidores dos valores de prevalência da actividade física intensa, ou moderada,
apenas para utilizar estes dois exemplos. A idade, sexo, estatuto sócio-económico,
…, são covariáveis que reclamam uma atenção particular na descrição dos níveis de
ActF em termos populacionais. Nesta matéria destacamos os textos magistrais de
Caspersen (1989; 1998).
Se deslocarmos a nossa atenção para a Epidemiologia Analítica, então a variabilidade
dos resultados (i.e., nas prevalências ou incidências) das caraterísticas ou fenótipos
sob investigação reclama uma focalização na identificação do(s) factor(es)/deter-
minante(s) que lhe dão origem. Ainda que seja da maior conveniência guiar a análise
por uma qualquer teoria ou modelo mais ou menos formal (do inglês theory or model
based data analysis), é corrente o uso da regressão múltipla para se determinar o grau
de importância dos predictores, medidos numa escala contínua ou discreta, que são
utilizados numa perspectiva de all variables entry at the same time, ou stepwise. Um
texto resumo em língua inglesa que refere extensamente este tipo de estratégia é
o de Sallis & Owen (1999), e em língua portuguesa salientamos várias teses de mes-
trado em Saúde Pública e Epidemiologia da Actividade Física realizadas na Facul-
dade de Desporto da Universidade do Porto.
Raras vezes se utilizam interacções entre predictores, modelos de equações estru-
turais com variáveis latentes, ou path analysis. Mais raro ainda é encontrar estudos
com famílias nucleares que recorrem ao paradigma da Epidemiologia Genética.

2.3. Estudos em famílias nucleares


2.3.1. Pesquisa centrada em Epidemiologia Analítica
Os estudos centrados no domínio da Epidemiologia Analítica não são tão extensos e
recentes como seria expectável para um domínio relevante da pesquisa acerca dos de-
terminantes ou variáveis correlatas que condicionam, no seio da família, a prática de
actividades desportivo-motoras com algum nível organizacional e formal de crianças
e jovens. Para salientar a marcha acontecimental deste tipo de pesquisa iremos dividir
este breve resumo em dois planos: o internacional e o nacional, sendo que será sempre
uma leitura truncada pela circunstância de não dispormos de toda a literatura dispo-
nível. Contudo, é nossa convicção que temos a mais relevante.

2.3.1.1. Literatura internacional


Lewko e Greendorfer, em 1977, apresentam um sumário da pesquisa efectuada até
a data acerca da influência familiar e do dimorfismo sexual na socialização despor-
tiva da criança, sendo avançado, de modo breve, as grandes conclusões possíveis:

— Mais do que a escola e os amigos, é atribuído um papel de destaque na socializa-


ção desportiva da criança à sua família, com base nos papéis e nos modelos que
são atribuídos aos progenitores.
— Os pais têm um papel mais importante que os irmãos.
— Ao pai é atribuído o papel mais importante na inculcação de modelos de sociali-
zação desportiva, independentemente do sexo da criança.
— Os rapazes atribuem ao Desporto uma importância bem maior do que o que é
salientado pelas raparigas.

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Partindo do paradigma da aprendizagem social, Greendorfer & Lewko (1978) estu-


daram 95 famílias cujos filhos (aluno referência) tinham entre 8 e 13 anos. Com
base em questionários para marcar os níveis de ActF das crianças e da família, foi
possível identificar a relevância do papel dos progenitores, principalmente do pai
na socialização desportiva do filho, sendo que a sua importância era maior do que
a dos amigos, irmãos e prof. de Educação Física.
Gottlieb & Chen (1985) estudaram crianças americanas das 7ª e 8ª classes (n=2695
de 52 escolas de 22 cidades) acerca dos seus padrões culturais de exercício e ActF
generalizada. Também nesta pesquisa ficou clara a importância do papel dos pais,
sobretudo quando são também activos e possuem uma função de modelo de com-
petência e saber relativo ao corpo, ao exercício e respectivos benefícios.
Famílias americanas de origem mexicana (n=111 famílias), bem como famílias an-
glófonas (n=95 famílias) foram estudadas por Sallis et al. (1988) no que respeita aos
seus hábitos de ActF. As correlações mãe-filhos foram mais elevadas do que as res-
peitantes ao pai-filhos, sendo que daqui foi possível sugerir a importância da família
como factor influenciador dos níveis de ActF dos filhos, mesmo quando se ajusta-
ram os dados em análise para o IMC.
Numa abordagem bem simples a partir de tabelas de contingência com dados reco-
dificados, Freedson & Evenson (1991) pesquisaram aspectos da agregação familiar
na ActF de crianças de 5 aos 9 anos de idade. A proporção de acordos de prática de
pai-filhos foi de 70% e na mãe-filhos foi de 66% o que salienta, claramente, a simi-
laridade familiar e a importância dos progenitores, sobretudo do papel do pai.
Numa linha de pesquisa bem semelhante está o trabalho de Moore et al. (1991)
acerca da semelhança familiar na actividade física de crianças de 4 a 7 anos de idade.
Quando a mãe é activa a propensão da criança ser activa é duas vezes superior à de
uma mãe inactiva. Quando se trata do pai a propensão é de três vezes, e quando os
dois progenitores são activos, a propensão é de seis vezes.
Wold & Andersen (1992) pesquisaram aspectos da promoção da saúde e da partici-
pação desportiva em famílias nucleares pertencentes a 10 países europeus, sendo
clara a presença de um factor familiar a governar aspectos bem diversificados da
prática desportiva e aspectos relativos à saúde e bem- estar.
Partindo da ideia bem cara a Bandura e à sua teoria da aprendizagem social através
da noção de papel e de modelo, Anderssen & Wold (1992) investigaram os níveis de
ActF nos tempos de lazer de crianças e jovens noruegueses (904 sujeitos e respec-
tivas famílias). Os principais resultados foram claros em anunciar a importância do
modelo parental, de outros significantes e dos irmãos na promoção de ActF.
McMurray et al. (1993) inventariaram as influências parentais nos níveis de aptidão
física e padrões de ActF de crianças de 1253 famílias, sendo que somente foi repor-
tada informação acerca das atitudes de um dos progenitores. Ainda que seja clara a
relevância do factor parental, os autores mostraram que no que respeita às melho-
riaes dos níveis de aptidão física, é fundamental pesquisar aspectos do ambiente fí-
sico da criança, mormente os que se encontram associados à facilitação de práticas
informais e formais que impliquem uma forte disposição para a sua ActF.
Em suma, parece ter ficado bem clara a importância da família na transmissão de
hábitos de ActF no seu seio, e da importância do pai em detrimento da mãe.

193
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 194

2.3.1.2. Literatura nacional


Pensamos que o primeiro trabalho devotado à causa da agregação familiar nos há-
bitos de actividade física no seio de famílias nucleares se deve a Pereira (1999), ao
pesquisar 512 famílias (trios=pai, mãe e filha), cujas filhas tinham entre 12 e 19 anos
de idade, estudantes dos 2º e 3º ciclos do ensino básico e do ensino secundário (a
amostra final foi constituída por 1511 sujeitos). Com base em informação providen-
ciada pelo questionário de Baecke et al. (1982) foi possível verificar: (1) a presença
de forte agregação familiar na prática da ActF das filhas, (2) sendo mais evidente a
influência da mãe, (3) com estatuto sócio-económico elevado, e (4) com vantagem
de prática quando o(a)s seu(a)s amiga(o)s também praticam actividades físico-des-
portivas.
Num outro sentido vai a investigação de Cardoso (2000) quando inquiriu 284 fa-
mílias (também trios=pai, mãe, filho), cujos filhos pertenciam aos 10º, 11º e 12º
anos de escolaridade. Também aqui se recorreu ao questionário de Baecke et al.
(1982). Não foi evidente qualquer padrão de agregação familiar nos níveis de prática
de ActF, bem como não foi possível revelar influências significativas do estatuto
sócio-económico da família, do prof. de Educação Fsica ou dos amigos.
Um último estudo foi o de Fernandes (2001) que pretendeu inventariar aspectos
da agregação familiar no auto-conceito físico e nos níveis de ActF de 178 famílias
cujos filho(a)s tinham entre 14 e 18 anos de idade. Para além de ser clara a presença
de semelhança familiar em diferentes facetas do auto-conceito físico (actividade
física, competência desportiva, saúde, auto-estima, flexibilidade, resistência e
força) quando se estudaram díades pai-filho(a), mãe-filho(a), não ficou evidente
que o mesmo padrão de resultados fosse claro para os diferentes índices de ActF.
Em suma, as conclusões da pesquisa portuguesa a que tivemos acesso parecem ser
contraditórios nos seus resultados, que podem ser reflexo, provavelmente, da re-
duzida dimensão amostral, ou ausência de variação dos resultados entre-famílias.

2.3.2. Pesquisa centrada na Epidemiologia Genética (EG)


2.3.2.1. O campo de estudos da Epidemiologia Genética
Pensamos que é por demais evidente que os filhos tendem, em média, a asseme-
lhar-se aos seus progenitores (Falconer, 1960). Genes e ambiente são factores trans-
missíveis e partilhados em famílias com níveis distintos de extensão horizontal e
vertical num dado ponto da sua história e num contexto sócio-cultural relativa-
mente definido (Lynch & Walsh, 1998).
A EG (Thomas, 2004) procura, numa das suas primeiras etapas, identificar seme-
lhanças ou parecenças entre familiares em diferentes características, apontando
para a ideia que algo “corre na família”. Esta é uma primeira impressão da agregação
familiar que pode ser estimada de diferentes formas, desde simples medidas de fre-
quências conjuntas, até estatísticas F ou odds ratios. Esta etapa bem singela, e apa-
rentemente humilde face a complexidades de análise da Biologia Molecular,
representa a etapa fundamental para um estudo mais detalhado da(s) caracterís-
tica(s) sob investigação dos.
A segunda etapa procura documentar, para além de modos de transmissão de ca-
racterísticas discretas e/ou contínuas, a magnitude do valor da agregação familiar

194
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 195

numa dada população, e que pode ser expressa por uma estatística designada por
heritabilidade (h2). Dito de modo bem simples, h2 significa o quanto da variação po-
pulacional na característica em causa pode ser atribuída a diferenças genéticas entre
sujeitos. Apresentar o valor desta estatística, da sua precisão e equivalência relati-
vamente a outros estudos, são tarefas muito relevantes.
A terceira etapa leva-nos mais longe reclamando DNA dos familiares. Trata-se de
realizar análises de Linkage com marcadores genéticos altamente polimórficos es-
palhados aleatoriamente no genoma com distâncias de cerca de 15-20 cM, tentando
identificar regiões cromossómicas (i.e., locais candidatos) que, com elevada proba-
bilidade, contêm genes que são responsáveis pela associação que existe entre mar-
cadores genéticos e a característica em causa. Esta etapa, altamente dispendiosa (na
casa dos 200.000 Euros) reclama, normalmente, amostras com uma extensão de
milhares de sujeitos.
A última etapa refere-se à possibilidade de utilizar um gene candidato que se pensa
ser responsável pela variação no fenótipo em estudo, e realizar um estudo de caso
controlo. Espera-se que para um dado genótipo, a frequência dos casos seja mais
elevada do que aquela que é de esperar por mero acaso. Esta etapa implica a geno-
tipagem de todos os sujeitos, casos e controlos, ou numa estratégia mais sofisticada
de association mapping, o que implica custos elevados de realização (também na
casa dos milhares de Euros).
É mais do que evidente que a presente pesquisa situa o seu olhar somente nas duas
primeiras etapas, consideradas fundamentais em todo o ciclo da EG. Sem sinais vi-
síveis e relevantes, não há qualquer sentido em realizar pesquisas altamente dis-
pendiosas de genética molecular.

2.3.2.2. Informação relevante no estrangeiro e em Portugal


Um dos estudos pioneiros acerca da agregação familiar em comportamentos e ap-
tidões que estão relacionadas à saúde, bem como na capacidade em realizar trabalho
de forma satisfatória é o de Pérusse et al. (1987). Estes autores, baseados no estudo
das famílias francófonas de Quebéc (n=375 famílias), com progenitores de
idade=43.2±5.2 anos, e filhos, 14.6±3.3 anos, procuraram deslocar o alcance da Epi-
demiogia Analítica para o território da Epidemiologia Genética, ao traçarem os pro-
pósitos de estudar as determinantes genéticas e ambientais (1) na capacidade de
trabalho, (2) na performance muscular, e (3) performance motora. Partindo do tra-
balho pioneiro de 1919, -1921 do brilhante biólogo e geneticista Sewall Wright, ex-
pandido por Cloninger et al. (1979), os autores da pesquisa recorreram ao
procedimento da path analysis para estimar, na variância total dos diferentes fenó-
tipos utilizados (p. ex: PWC150, nº sit-ups, força isométrica, tempo de reacção e
tempo de movimento), as componentes relativas aos factores genéticos, factores
culturais transmitidos pelos progenitores e outros efeitos ambientais aleatórios e
únicos de cada elemento da família. Os resultados mostraram efeitos genéticos ne-
gligenciáveis no PWC150 e tempo de movimento (≈ 20%), ≈ 30% no tempo de reac-
ção e resistência muscular. Verificou-se um efeito elevado na transmissão cultural
da força muscular (≈ 63%), sendo que a maior fatia foi atribuída a factores não trans-
missíveis.

195
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 196

Em 1988, a mesma equipa (Perusse et al., 1988) coloca a sua atenção num grande
projecto nacional canadiano, e que amostrou cerca de 13.440 famílias, num total
de 34.363 sujeitos distribuídos por diferentes idades dos 7 aos 69 anos. O grande
propósito era investigar a presença de factores genéticos e culturalmente transmis-
síveis em famílias nucleares no que à sua aptidão física diz respeito.
A sua metodologia de análise é em tudo semelhante à do texto anterior, embora o
nível de sofisticação estatística seja mais elevado. Os fenótipos estudados referem-
se a características somáticas (da altura às componentes do somatótipo), e da apti-
dão física (PWC150, push-ups, força isométrica, …). Com base nos padrões de
correlação (baixos-a-moderados entre diferentes níveis geracionais na estrutura fa-
miliar), os autores formularam diferentes modelos que iam da transmissibilidade
genética e cultural dos dois progenitores, a que era específica e independente de
cada um. Os valores estimados de transmissibilidade variaram entre 27% e 48% para
todos os fenótipos.
Provavelmente, o primeiro estudo disponível na literatura internacional de realce
sobre actividade física em famílias é atribuído a Pérusse et al. (1989), cujo título é
bem esclarecedor: genetic and environmental influences on level of habitual physical
activity and exercise participation, e foi publicado na prestigiada revista - American
Journal of Epidemiology.
A partir do estudo das famílias francesas do Québec (Canadá), os autores recrutaram
375 famílias (≈ 1610 sujeitos), de que faziam parte 717 progenitores (43.2±5.2 anos)
e 893 filhos biológicos e adoptados (14.6±3.3 anos). O instrumento utilizado para
marcar a actividade física foi o questionário desenvolvido pela equipa e designado
por B3DPAR, baseado no auto-relato de 3 dias de todos os múltiplos de 15 minutos
nas mais diversas actividades minuciosamente descritas no questionário.
Com base num complexo processo de refinamento dos fenótipos utilizados, recor-
rendo a ajustamentos para a idade, sexo, idade x sexo, idade2, IMC, PWC150 e esta-
tuto sócio-económico, os autores utilizaram os resíduos normalizados para marcar
a ActF e a participação em exercício (e que correspondia a 5 vezes o metabolismo
de repouso). A análise estatística foi realizada a partir dos procedimentos da path
analysis dirigida para o campo da Epidemiologia Genética por Morton (1974) e Rao
et al. (1974; 1976), e que se encontram implementados no software BETA (Clonnin-
ger et al., 1979).
Os principais resultados salientaram as correlações de magnitude distinta entre fa-
miliares com grau distinto de parentesco. Por exemplo, nos níveis de ActF habitual,
o rMZ=0.72, rDZ=0.62, rirmãos=0.42, resposos=0.18, rpais-filhos=0.16. Na partici-
pação no exercício físico, os valores foram de rMZ=0.74, rDZ=0.76, rirmãos=0.34,
resposos=0.16, rpais-filhos=0.09. As estimativas dos factores transmissíveis para a
ActF habitual foram de ≈ 29% de efeitos genéticos, e de 0% na participação em exer-
cício! A maior fatia da variância total foi atribuída a factores não transmissíveis, si-
tuando-se entre 71% e 88%.
Depois de um interregno de cerca de 10 anos, os autores voltaram a dedicar a sua
atenção ao assunto, sob a mão de Simonen et al. (2002), e uma vez mais com a
mesma base de dados das famílias francófonas do Québec. Contudo, os fenótipos
utilizados para marcar a ActF foram distintos, embora baseados no B3DPAR, a que

196
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se adicionou informação acerca do questionário de Baecke: inactividade física, ActF


moderada-a-vigorosa, ActF total, e horas.s-1 dedicadas à prática de ActF mais recor-
rente dos sujeitos.
Também aqui se recorreu ao modelo de path analysis implementado no software
SEGPATH (Province & Rao, 1995) para testar distintas formulações dos padrões de
correlações entre familiares, depois do fenótipo em causa ter sido ajustado para a
idade, sexo, idade x sexo, idade2 e idade3. Tendo sido identificada a presença de agre-
gação familiar (1.40≤F≤1.52), foram calculadas as correlações entre familiares e sub-
metidas aos 9 modelos descritores destes padrões. O melhor modelo providenciou
a estatística mais interessante, a heritabilidade, tal que: Inactividade, h2=25%
(IC95%=18-32%), ActF moderada-a-vigorosa, h2=16% (IC95%=12-16%), ActF total,
h2=19% (IC95%=12-26%); horas.s-1, h2=17% (IC95%=10-24%).
Mitchell et al. (2003) pesquisaram aspectos da agregação familiar do intake nutri-
cional e actividade física no famoso projecto do San Antonio Family Heart Project.
Entre 1992 e 1995, 1431 sujeitos pertencentes a 42 pedigrees extensos foram con-
tactados para fazerem parte do estudo. Os fenótipos em apreço foram obtidos a par-
tir de um questionário de frequência alimentar e de uma versão modificada do
questionário de Stanford (7d-1 Stanford Physical Activity Recall).
Ao contrário dos trabalhos anteriores, Mitchell e colaboradores adoptaram uma es-
tratégia de análise recorrendo ao software SOLAR, que permite considerar a pre-
sença de covariáveis na estimação dos efeitos genéticos. O melhor modelo é
contrastado com um modelo simples designado de esporádico. Os autores também
estimaram a magnitude dos efeitos culturais no seio da família (do inglês household
effects). As correlações para a totalidade das Kilocalorias dispendidas na ActF foram:
rpai-mãe=0.273; rpais-filhos=0.144; rirmãos=0.095. As estimativas de heritabilidade
foram de 0.26±0.06, e para o ambiente cultural=0.17±0.04.
Os trabalhos mais recentes acerca da problemática da agregação familiar nos níveis
de ActF devem-se a Matton et al. (2006) e Lopes et al. (2006). Os primeiros autores
amostraram famílias belgas flamengas (nf=292) e estimaram a ActF com base no
Flemish Physical Activity Computorized Questionnaire de que obtiveram 4 fenótipos:
prática desportiva (horas.s-1), tempo a ver TV (horas.s-1), ActF moderada (horas.s-
1) e ActF vigorosa (horas.s-1). Recorrendo ao software QTDT foi possível estimar a
transmissibilidade total e que correspondeu, por ordem dos fenótipos anteriores, a
0.111, 0.228, 0.161 e 0.085.
Lopes et al. (2006) investigaram famílias do distrito de Bragança (nf=284, a que cor-
responderam 1136 sujeitos), sendo que a idade média dos filhos variou entre 6 e 19
anos. Para avaliar a ActF recorreu-se ao questionário do IPAQ (versão curta), que
permitiu derivar os seguintes fenótipos: andar, ActF moderadas-a-intensas, ActF
vigorosas. A partir do software S.A.G.E. foi possível estimar o complexo novelo de
associações entre familiares (8 correlações distintas), bem como estimativas de he-
ritabilidade: andar, h2=0.221±0.065; ActF moderada-a-vigorosa, h2=0.419±0.078;
ActF vigorosa, h2=0.233±0.093. O total de Met´s semanais produziu um
h2=0.225±0.059.
Em suma, os trabalhos revistos são unânimes em mencionar a importância dos fac-
tores genéticos e ambientais na agregação familiar nos níveis de ActF, sendo que

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as estimativas genéticas variam entre 0.085 e 0.419, não obstante a variedade de


fenótipos para marcar a ActF, a multiplicidade de métodos estatísticos, e modos de
medir a ActF.

3. Propósitos da pesquisa
Os grandes objectivos desta pesquisa são os seguintes:

1. Identificar a magnitude da influência dos factores genéticos e ambientais nos


níveis de actividades físico-desportivas, sobrepeso e obesidade em famílias nu-
cleares.
2. Estudar o padrão de influência do sobrepeso e obesidade nos níveis de actividade
físico-desportiva, sobretudo o valor da sua correlação genética (i.e., a possibili-
dade de um dado conjunto de genes influenciar as duas características – fenó-
meno de pleiotropia).
3. Pesquisar a manutenção da magnitude dos factores genéticos e ambientais em
sub-grupos de famílias, em função de níveis distintos de actividades físico-des-
portivas, ao longo de diferentes intervalos de idade.
4. Averiguar a influência dos progenitores, estatuto sócio-económico, melhor
amigo e professor de educação física nos níveis de actvidades físico-desportivas
dos irmãos.

4. Metodologia
4.1. Amostra
Esta amostra é constituída por 1450 famílias (ntotal=5800 sujeitos) provenientes de
diferentes zonas do norte do país. As famílias foram contactadas pelos professores de
Educação Física dos filhos. Depois do consentimento escrito do encarregado de edu-
cação, do conselho executivo de cada escola e da Direcção Regional de Educação Norte
para realizar o estudo, foi enviado a cada agregado familiar um conjunto informativo
acerca dos propósitos da pesquisa, bem como de instruções adequadas para o preen-
chimento das informações requeridas. Passado um mês, cerca de 10% das famílias
foram re-contactadas para efectuar um re-teste da informação obtida, sendo que a
fiabilidade foi superior a 0.70 para todos os elementos do agregado familiar.

Quadro 1. Informações gerais da estrutura das famílias

Estatísticas genéricas
Progenitores-descententes=5800 Masculino=2899
Irmandades=1450 Feminino=2900
Irmãs-irmãs=373 Média do tamanho do pedigree=2
Irmão-irmão=373 Tamanho do pedigree=4
Irmão-irmã=703

4.2. Fenótipos (marcação da ActF)


Um fenótipo é um traço mensurável, uma quantidade presente num dado espaço
observacional de uma característica que pode ser expressa de forma contínua ou
discreta. Um fenótipo é um sinal claro de aspectos comportamentais dos sujeitos

198
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 199

em estudo, de particularidades ou regularidades da sua Biologia, ou um sinal bem


mais complexo de natureza bio-comportamental. A ActF, genericamente enten-
dida, é um fenótipo complexo de natureza nem sempre muito clara na sua expres-
são quantitativa, univariada e/ou multivariada.
A ActF tem sido genericamente definida como qualquer movimento produzido vo-
luntariamente pelos músculos esqueléticos que resulta em dispêndio energético
para além do metabolismo de repouso (Caspersen et al., 1985).
A definição anterior é de tal modo extensa que compreende um espaço observacio-
nal que exige grande precisão na operacionalização da sua medição e quantificação.
O fenótipo é uma característica quantificável num espaço observacional que mos-
tra, em diferentes sujeitos, graus distintos de severidade e cuja natureza é intrin-
secamente multivariada. Como bem refere Rice (2001), a definição precisa de um
fenótipo, necessariamente estreito na sua latitude, exige o não fraccionamento da
variância total observável na ActF em sub-tipos (por exemplo uma divisão tercílica
ou quintílica), até porque não há consenso generalizado acerca do que são os graus
distintos de severidade inactiva, até severidade activa. Foi exactamente a partir
deste posicionamento, e de alguma necessidade de representação multivariada da
ActF, que optamos pelos fenótipos seguintes:

— Índice de actividade física trabalhos/escola


— Índice de actividade física nos tempos de recreação e lazer
— Índice de prática desportiva
— Índice total (somatório dos índices anteriores)
— Prática desportiva (resposta binária)
— Altura, peso e índice de massa corporal

4.3. Instrumento
O questionário utilizado na avaliação dos níveis de actividade física (AF) dos sujei-
tos foi o de Baecke et al., (1982). Este questionário é composto por 16 itens de res-
posta tipo Lickert, numa escala de 1 a 5 de ordem crescente de importância. Os itens
procuram estimar a actividade física total (AFT) através de três índices: actividade
física no tempo de escola/ trabalho (IAFET); actividade física no tempo dedicado ao
desporto (IAFD) e actividade física no tempo de recreação e lazer (IAFTL).

Índice de actividade física no tempo de escola/ trabalho (IAFET):


Este índice tem como objectivo determinar os níveis de AF de crianças e jovens nas
actividades escolares. Para o seu cálculo utilizam-se os itens 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8.
A fórmula utilizada no cálculo deste índice é a seguinte:

IAFET= [I1+(6-I2)+I3+I4+I5+I6+I7+I8]/8; em que Ii, i= 1,2...8 são os itens do questionário.

Índice de actividade física no tempo dedicado ao desporto (IAFD):


As questões que se referem a este índice são as: 9, 10, 11 e 12. A maior dificuldade na
determinação deste índice, verifica-se na questão 9, cujo valor relativo resulta do
seguinte cálculo:

199
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I9 = Σ2i=1 (intensidade x tempo x proporção)

O conceito de intensidade refere-se a uma estimativa do dispêndio energético médio


em função de diferentes actividades desportistas. Para o efeito adaptou-se como re-
ferência uma estimativa do dispêndio energético em Mega Joules por hora (MJ.h-1),
de acordo com Durnin e Passmore (1967) que consideram os seguintes níveis:

(1) nível baixo – actividade que promove um consumo calórico médio de 0.76MJ/h
(ex: bowling, golfe, vela);
(2) nível médio - actividade que promove um consumo calórico médio de 1.26 MJ/h
(ex: badminton, ciclismo, dança, natação); e
(3) nível alto - actividade que promove um consumo calórico médio de 1.76MJ/h
(ex: boxe, futebol, remo).

Deste modo, a fórmula utilizada no cálculo deste índice é a seguinte:

IAFD= (I9+I10+I11+I12) / 4; em que Ii, i= 9,10...12 são os itens do questionário.

Índice de actividade física no tempo de recreação e lazer (IAFTL):


Este índice é determinado através das questões 13, 14, 15 e 16. O cálculo deste índice
resulta da seguinte fórmula:

IAFTL= [(6-I13)+I14+I15+I16]/ 4; em que Ii, i= 13, 14...16 são os itens do questionário.

A Actividade Física Total (AFT) corresponde ao somatório dos três índices anteriores,
em que AFT = AFET + AFD + AFTL.

É importante salientar que foi introduzida uma adaptação ao questionário, de


forma a ser possível identificar a influência do melhor amigo e do professor de Edu-
cação Física nos níveis de actividade física das crianças e dos jovens.

4.4. Procedimentos estatísticos


A análise dos resultados foi efectuada em diferentes etapas que se assinalam de se-
guida:
1º Os dados foram colocados num ficheiro Excel, e corrigidos todos os erros de en-
trada; de seguida foi construído um outro ficheiro no software SPSS 14, re-estrutu-
rando a informação de modo a ter o formato de linkage; finalmente foi utilizado o
software PEDSTATS (Wigginton & Abecasis, 2005) para verificar a estrutura indivi-
dual de cada família nuclear, de todas as famílias, da representação das distribuições
das variáveis e da exploração das medidas de associação entre membros da família
para os fenótipos em estudo.
2º Com base no ficheiro de estrutura familiar (tipo linkage ou cluster em 2 níveis –
sujeitos e famílias) foram estimados, recorrendo a procedimentos de máxima ve-
rosimilhança, os valores de correlação intraclasse (evidência de agregação familiar)
nos fenótipos em estudo. Também se recorreu ao software HLM 6 para representar,

200
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 201

graficamente, o comportamento dos resultados nos 6 fenótipos em sub-amostras


aleatórias das famílias. 3º Os valores de correlação entre pares de irmãos foram cal-
culados no módulo FCOR do software de Epidemiologia Genética S.A.G.E. (SAGE,
2005). Dado que no cálculo multivariado das correlações entre pai-mãeo, pai-filho,
pai-filha, mãe-filho, mãe-filha, irmão-irmão, irmã-irmã, irmão-irmã, deste módulo
do S.A.G.E., está implementado um algoritmo baseado nas séries de Taylor, não é
necessária a presença de normalidade multivariada (Keen e Elston, 2003). As cor-
relações obtidas, intraclasse entre pares do mesmo sexo, e interclasse entre pares
do sexo oposto, são estimativas robustas dos valores populacionais.
4º Para identificar as contribuições genéticas e ambientais nos diferentes fenótipos
marcadores da ActF, foi utilizado o método de componentes de variância imple-
mentado no SOLAR (Almasy & Blangero, 1998; 2000), necessitando de uma nova
formatação dos ficheiros para se conformar às exigências deste software. O fenótipo
quantitativo de um indivíduo (y) é modelado do seguinte modo,

y = μ + Σ βjvij + gi + ei,

em que μ é a média de um qualquer fenótipo, βj é o coeficiente de regressão para a


covariável j, vij o valor da covariável j no indivíduo i, gi e ei representam desvios da
μ para o indivíduo i que são atribuídos a efeitos genéticos aditivos e efeitos ambien-
tais não medidos, respectivamente; gi e ei não estão correlacionados, são normal-
mente distribuídos com média 0 e variâncias σ2g e σ2e. No modelo mais simples, a
covariância entre um conjunto de familiares (Ω) é função das variâncias aditivas,
genética e ambiental. Para permitir a análise de uma estrutura arbitrária de pedi-
grees, cada variância é multiplicada por uma matriz estrutural. A matriz estrutural
para a variância genética aditiva é duas vezes a matriz dos coeficientes de kinship
(Φ), enquanto que a matriz estrutural da variância ambiental é uma matriz de iden-
tidade (I), tal que

Ω = 2 Φσ2A + I σ2e.

A partir do momento em que se definem os valores esperados para a média e para a


matriz de covariâncias de cada pedigree, a verosimilhança de cada pedigree é avaliada
a partir da função de densidade normal multivariada, e somada para todos os pedigrees.
As verosimilhanças dos fenótipos dos membros de cada família seguem uma distri-
buição normal multivariada, apesar do método implementado no SOLAR ser robusto
a violações desta assunção. Os valores de p calculados para cada estimativa de herita-
bilidade são obtidos por testes de razões de verosimilhança, em que a verosimilhança
de um modelo poligénico é comparado com um modelo esporádico. Duas vezes a di-
ferença nos logaritmos naturais destas verosimilhanças é assintoticamente distri-
buído como uma mistura 1/2:1/2 de qui-quadrado com 1 grau de liberdade.
A heritabilidade de características discretas (a prática desportiva) foi analisada de
acordo com o modelo de característica de limiar do SOLAR (Duggirala et al., 1997).
O método assume que um indivíduo pertence a um dado estatuto (i.e., pratica des-
porto), se a característica geneticamente determinada (i.e., a sua liability) excede
um determinado limiar. A correlação na liability entre os indivíduos i e j é dado por

201
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 202

ρij = 2φijh2 + Iije2,

Em que ρij é a correlação na liability para a prática desportiva entre os sujeitos i e j;


φij é o coeficiente de kinship para os indivíduos i e j; h2 é a heritabilidade atribuída
a efeitos poligénicos aditivos; Iij é o coeficiente para efeitos aleatórios do ambiente
para os sujeitos i e j; e e2 é igual a 1-h2. Os testes formais são realizados do mesmo
modo que o modelo anteriormente referido.
Os cálculos das estimativas de heritabilidade foram ajustados para a presença de di-
ferentes covariáveis (sexo, idade, idade x sexo, idade2, idade3), depois de uma trans-
formação linear das variáveis para obter normalização da sua distribuição. Estas
transformações foram realizadas no SOLAR.

5. Resultados e Discussão
A análise e discussão dos resultados serão apresentadas sequencialmente face ao
enorme volume de dados, bem como à necessidade de entendermos melhor a im-
portância dos diferentes procedimentos estatísticos utilizados. Assim, a nossa se-
quência será a seguinte:

1º Em primeiro lugar lidaremos com a análise exploratória com base no software


PEDSTATS.
2º De seguida trataremos do problema da agregação familiar com recurso à mode-
lação hierárquica, e à exploração gráfica de sub-amostras de famílias ordenadas
em função dos valores de resposta em cada um dos fenótipos.
3º Em terceiro lugar calcularemos os valores de correlação entre familiares com e
sem ajustamento para as médias de idade.
4º Finalmente abordaremos as estimativas de heritabilidade para os vários fenóti-
pos em estudo.

5.1. Análise exploratória (PEDSTATS)


Os resultados da análise exploratória centram-se (i) nalguns dos itens do questio-
nário (aleatoriamente seleccionados para verificar da qualidade da entrada dos
dados), (ii) em informação acerca da estrutura dos pedigrees, (iii), em valores numé-
ricos relativos aos fundadores e do sexo dos diferentes membros das famílias, e (iv)
finalmente na sua apresentação gráfica.
O Quadro 2 apresenta a generalidade da estrutura das 1450 famílias, onde é evi-
dente a ausência de erros, bem como a clareza na distribuição da estrutura de cada
família, sendo que cada família nuclear é composta por 4 elementos: 2 progenitores
e 2 filhos.
No Quadro 3 temos informação relativa às estatísticas descritivas mais simples e
importantes para se apreciar a qualidade da distribuição dos resultados, bem como
uma primeira impressão acerca dos valores de correlação entre familiares de dife-
rentes sexos. Nada de substancial a mencionar, dado não ser evidente a presença de
estatísticas com valores “anormais”.

202
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Quadro 2: Estatísticas essenciais da estrutura das


famílias do presente estudo (output do PEDSTATS).

PEDIGREE STRUCTURE

Individuals: 5800
Founders: 2900 founders, 2900 nonfounders
Gender: 2901 females, 2899 males
Families: 1450

Family Sizes
Average: 4.00 (4 to 4)
Distribution: 4 (100.0%), 0 (0.0%) and 1 (0.0%)

Generations
Average: 2.00 (2 to 2)
Distribution: 2 (100.0%), 0 (0.0%) and 1 (0.0%)

Females Per Family


Average: 2.00 (1 to 3)
Distribution: 2 (48.5%), 3 (25.8%) and 1 (25.7%)

Males Per Family


Average: 2.00 (1 to 3)
Distribution: 2 (48.5%), 1 (25.8%) and 3 (25.7%)

Checking family connectedness ...


All individuals in each family are connected.

Quadro 3: Estatísticas descritivas dos diferentes fenótipos e variáveis de


controlo da qualidade da informação (partes do output do PEDSTATS).

QUANTITATIVE TRAIT STATISTICS


ALL DATA:
[All Phenotypes] Min Max Mean Var SibCorr
Q13 5799 100.0% 1.000 5.000 3.379 0.753 0.202
Q14 5798 100.0% 1.000 5.000 3.190 0.757 0.139
Q16 5784 99.7% 1.000 5.000 3.279 1.487 0.311
Pdesp 5799 100.0% 0.000 1.000 0.337 0.224 0.302
ScoreD 1937 33.4% 0.030 14.570 3.580 6.826 0.255
Indice1 5800 100.0% 1.000 5.000 2.798 0.527 0.022
Indice2 5800 100.0% 0.750 5.000 2.145 0.510 0.492
indice3 5800 100.0% 1.000 4.750 2.790 0.310 0.191
IndiceT 5800 100.0% 3.750 12.500 7.732 1.388 0.322
Total 48317 92.6%

FEMALES:
[All Phenotypes] Min Max Mean Var SibCorr
Q13 2901 100.0% 1.000 5.000 3.404 0.782 0.175
Q14 2901 100.0% 1.000 5.000 3.260 0.710 0.095
Q16 2895 99.8% 1.000 5.000 3.329 1.353 0.393
Pdesp 2900 100.0% 0.000 1.000 0.248 0.187 0.346

203
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 204

ScoreD 715 24.6% 0.030 11.340 2.837 4.346


0.373
Indice1 2901 100.0% 1.250 4.750 2.723 0.402 -0.041
Indice2 2901 100.0% 0.750 4.750 2.001 0.422 0.529
indice3 2901 100.0% 1.250 4.500 2.777 0.281 0.199
IndiceT 2901 100.0% 3.750 11.500 7.501 1.211 0.298
Total 23916 91.6%

MALES:
[All Phenotypes] Min Max Mean Var SibCorr
Q13 2898 100.0% 1.000 5.000 3.353 0.724 0.156
Q14 2897 99.9% 1.000 5.000 3.119 0.794 0.136
Q16 2889 99.7% 1.000 5.000 3.228 1.617 0.268
Pdesp 2899 100.0% 0.000 1.000 0.426 0.245 0.335
ScoreD 1222 42.2% 0.030 14.570 4.015 7.768 0.385
Indice1 2899 100.0% 1.000 5.000 2.873 0.642 0.041
Indice2 2899 100.0% 0.750 5.000 2.289 0.557 0.437
indice3 2899 100.0% 1.000 4.750 2.802 0.338 0.185
IndiceT 2899 100.0% 3.750 12.500 7.964 1.459 0.285
Total 24401 93.5%

Figura 3: Gráficos do índice de actividade física


total (output produzido pelo PEDSTATS)

204
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 205

205
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No Quadro 4 temos informação detalhada, por estruturas familiares, e de membros


da família dos dois sexos, no que se refere aos valores das covariáveis utilizadas
nesta pesquisa e que se referem à altura, peso, IMC, idade, idade2, idade3 e interac-
ção idade x sexo. Emerge das estatísticas descritivas valores esperados para os dife-
rentes elementos das 1450 famílias. Por exemplo, a idade varia entre os 6 e os 78
anos, a altura entre 1,130 e 1,950 metros e o peso entre 22 e 130 quilos. Gostaríamos
de chamar a atenção para a estrutura global da primeira parte dos resultados, e para
das diferentes partes agrupadas pelo sexo dos sujeitos.
É importante salientar que o índice de massa corporal enquanto indicador do grau
de gordura-magreza expressa, nos valores da sua variação aspectos de sujeitos
normo-ponderais, com sobrepeso e obesos, desde que o IMC seja ≤ a 25, entre 25 e
30 e ≥ 30, respectivamente. Claro que é extremamente fácil verificar pelos resul-
tados do limite máximo de cada distribuição de valores em cada sexo e geração que
há resultados do IMC bem superiores a 30, ao mesmo tempo que sugerem a pre-
sença de variação significativamente diferente de zero, abrindo as portas à sua ex-
plicação com base em factores genéticos e ambientais.

Quadro 4: Resultados das estatísticas descritivas para as covariáveis


consideradas nesta pesquisa (output do PEDSTATS)

COVARIATE STATISTICS
ALL DATA:
[All Phenotypes] Min Max Mean Var SibCorr
peso 5744 99.0% 22.000 130.000 64.916 213.217 0.183
altura 5548 95.7% 1.130 1.950 1.646 0.012 0.140
idade 5777 99.6% 6.000 78.000 30.398 225.397 0.131
IMC 5526 95.3% 11.730 41.210 23.689 16.882 0.224
age2 5777 99.6% 36.000 6084.000 1149.415 918977 0.114
age3 5777 99.6% 216.000 474552 49139 2746013994 0.102
agesex 5776 99.6% 6.000 128.000 45.327 739.996 0.111
Total 39925 98.3%
FEMALES:
[All Phenotypes] Min Max Mean Var SibCorr
peso 2876 99.1% 22.000 110.000 60.277 137.943 0.308
altura 2756 95.0% 1.130 1.860 1.601 0.006 0.242
idade 2890 99.6% 7.000 64.000 29.840 205.593 0.149
IMC 2744 94.6% 12.250 41.210 23.348 16.900 0.341
age2 2890 99.6% 49.000 4096.000 1095.956 800082 0.148
age3 2890 99.6% 343.000 262144 45368 2240377870 0.151
agesex 2889 99.6% 14.000 128.000 59.687 822.523 0.148
Total 19935 98.2%
MALES:
[All Phenotypes] Min Max Mean Var SibCorr
peso 2868 98.9% 22.000 130.000 69.569 245.531 0.228
altura 2792 96.3% 1.160 1.950 1.690 0.013 0.113
idade 2887 99.6% 6.000 78.000 30.957 244.676 0.133
IMC 2782 96.0% 11.730 40.120 24.026 16.642 0.276
age2 2887 99.6% 36.000 6084.000 1202.930 1032587 0.095
age3 2887 99.6% 216.000 474552 52915 3224626019 0.066
agesex 2887 99.6% 6.000 78.000 30.957 244.676 0.133
Total 19990 98.5%

206
livro:livro maputo 6/3/10 23:33 Page 207

5.2. Agregação familiar (HLM 6.0)


Uma etapa decisiva que condiciona qualquer estudo de Epidemiologia Genética é
o que se refere à possibilidade de identificar a presença de agregação familiar nos
fenótipos em estudo. Claro que se não houver qualquer relação entre os elementos
da mesma família, não há qualquer motivo para suspeitar de uma base genética a
influenciar a magnitude da expressão da característica na família. Tudo se resume,
na falta de melhor informação, a influências aleatórias do meio ambiente.
O software HLM tem uma elevada versatilidade em representar graficamente os va-
lores dos diferentes fenótipos em cada família, bem como a representação entre fa-
mílias, desde que agrupemos os resultados em função da mediana dos valores de
cada família. Se houver agregação familiar, verifica-se um incremento da mediana.
Isto significa que há mais variação entre famílias, do que no seio de cada família.
Ora é esta variação entre famílias que ilustra bem que, no continuum, há uma va-
riância substancial que tem de ser explicada na base de características que distin-
guem as famílias. Uma delas é a sua herança cultural partilhada num dado ponto
da sua história. A outra é o património genético.
As Figuras seguintes ilustram esta ideia. Contudo, para que se perceba bem o seu
significado, é preciso lembrar que cada uma delas se refere à distribuição de extre-
mos e quartis relativos a cada família. A título de exemplo, vejamos a primeira.

Figura 7: Diagrama de extremos e quartis de 30 famílias agrupadas em função


do valor da mediana nos valores da ActF total (o sinal + corresponde à mediana)

Cada diagrama de extremos e quartis corresponde a uma família (que tem 4 ele-
mentos). Como os sinais + (que correspondem à mediana) vão tendo valores cada
vez mais elevados, da família 1 à família 30, é evidente a presença de um “factor fa-
miliar” a governar este comportamento diferenciador das famílias, e que pode ser
de origem genética ou de herança cultural comum.
Por exemplo, a Figura 8 refere-se ao índice de actividade física total, onde é clara a
presença de um padrão diferenciador entre as famílias face ao comportamento as-
cendente da mediana.

207
livro:livro maputo 6/3/10 23:35 Page 208

Figura 8: Distribuição dos diagramas de extremos e quartis das famílias


no seu índice de ActF total (amostra aleatória de 581 famílias)

Estas representações gráficas reforçam a ideia de diferenças nas heranças genéticas


e culturais entre famílias, e que reclama um exame mais minucioso. Uma forma
extremamente simples de interrogar os dados familiares é tentar responder à se-
guinte pergunta: quanta da variação total (s²T) é variância familiar (s²F)? A partir
dos resultados iniciais do ajustamento de um modelo de ANOVA com efeitos alea-
tórios é possível estimar uma quantidade designada por correlação inter-cluster, que
é a parte inicial da nossa pergunta. Os resultados obtidos no HLM (Quadro 5) mos-
tram variância entre famílias significativamente maior do que zero, salientando a
presença de agregação familiar. Resultados semelhantes foram sugeridos por dife-
rentes autores sumariados nos pontos 2.3.1.1. e 2.3.1.2., ainda que tenham utilizado
procedimentos estatísticos diversos.
Em suma, o que aqui está presente é a sugestão da agregação familiar das mais di-
versas manifestação da ActF entre famílias, o que levanta a possibilidade da sua ex-
plicação em termos culturais comuns, ou genéticos.

Quadro 5: Estatísticas fundamentais do HLM para estimar a correlação inter-cluster

Índices Componente de Variância c2 Valor de prova (p) r (inter-cluster)


Índice Total
Famílias 0.22628 2579.51 <0.0001 0.163 (16%)
Residual 1.16193
Índice 1
Famílias 0.02139 1695.24 <0.0001 0.041 (4%)
Residual 0.50597
Índice 2
Famílias 0.04272 1979.90 <0.0001 0.084 (8.4%)
Residual 0.46762
Índice 3
Famílias 0.04641 2082.96 <0.0001 0.10 (10%)
Residual 0.42526

208
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 209

5.3. Correlações entre membros da família


Os resultados das correlações entre os diferentes tipos de relações de parentesco no
seio das famílias nucleares estão apresentados no Quadro 6. Conforme é de esperar
neste tipo de pesquisa, e ao contrário do que acontece com investigação gemelar
(Maia et al., 1999; 2001; 2002), as estimativas das correlações na população são bai-
xas a moderadas para os 3 índices parcelares e para o índice de ActF total. Um padrão
equivalente tem sido encontrado em diferentes pesquisas descritas anteriormente
no ponto 2.3.2.2, salientando valores baixos a moderados. Por exemplo, na pesquisa
de Pérusse et al. (1989) em famílias canadianas da província do Quebec, os valores
de correlação entre diferentes parentes situaram-se entre 0.18 entre esposos, 0.16
entre pais e filhos e 0.42 entre irmãos. Resultados equivalentes foram reportados
por Simonen et al. (2002) com os mesmos dados, mas com recurso a outra estrutura
de análise dos dados. Em contrapartida, em famílias americanas referidas por Mi-
chell et al. (2003), os valores de correlação foram de 0.14 entre pais e filhos e 0.01
entre irmãos. Torna-se evidente que os resultados da nossa pesquisa são bem mais
elevados, o que pode deixar transparecer (1) aspectos específicos das características
do instrumento utilizado para marcar diferentes aspectos da ActF, (2) da população
portuguesa e da sua elevada adesão à prática generalizada do desporto, como bem
reportam Adelino & Coelho (2005).
Convém não esquecer, que pais e filhos ou irmãos partilham, em média, metade
dos seus genes idênticos por descendência. Isto significa que o valor teórico máximo
esperado para efeitos exclusivamente genéticos é de 0.50. Qualquer resultado su-
perior reflecte efeitos ambientais acrescidos aos dos genes. Contudo, é importante
salientar que os resultados reportados no Quadro 6 não estão ajustados para ne-
nhuma das covariáveis consideradas anteriormente (idade, sexo, idade x sexo,
idade2, idade3). Gostaríamos de salientar o facto da maior parte das correlações ser
significativamente maior do que zero, à excepção do que ocorre em algumas rela-
ções no índice 1. Esta circunstância no padrão das correlações sugere semelhança
familiar para os índices em estudo.
Em suma, as correlações sugerem um padrão consistente de familiaridade nas mais
diversas expressões da ActF intra e entre famílias.

Quadro 6: Correlações (± erro-padão) entre familiares (output do S.A.G.E.)

Índices Pai- Mãe- Pai- Mãe- Irmão- Irmã- Irmã- Pai-


filho filho filha filha irmão irmão irmã mãe
Índice 1 0.209 0.149 0.058 0.034 0.041 0.051 -0.042 0.286
(0.025) (0.026) (0.026) (0.026) (0.052) (0.038) (0.052) (0.024)
Índice 2 0.184 0.120 0.149 0.176 0.437 0.458 0.531 0.303
(0.028) (0.028) (0.028) (0.029) (0.041) (0.029) (0.037) (0.024)
Índice 3 0.183 0.150 0.230 0.241 0.185 0.188 0.199 0.318
(0.025) (0.025) (0.025) (0.025) (0.050) (0.036) (0.049) (0.022)
Índice total 0.142 0.121 0.125 0.143 0.285 0.334 0.298 0.276
(0.027) (0.028) (0.028) (0.028) (0.048) (0.034) (0.047 (0.024)

209
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 210

5.4. Estimativas de efeitos genéticos (SOLAR)


5.4.1. Prática desportiva
As questões relativas à prática desportiva estavam divididas em diferentes patama-
res. O primeiro era uma simples questão de resposta binária: praticas desporto? Sim
ou não.
A segunda referia-se a uma estimativa do score desportivo que considera não só es-
timativas do dispêndio energético da modalidade desportiva, mas também infor-
mação relativa à frequência semanal de prática e duração anual. É este compósito,
que considerando a possibilidade de prática de um segundo desporto, foi designado
de score desportivo. Os principais resultados das estimativas de heritabilidade obti-
dos a partir da fragmentação da amostra por diferentes intervalos de idade, bem
como do número total de sujeitos estão mencionados no Quadro 7.

Quadro 7: Estimativas de heritabilidade para os


fenótipos prática desportiva e score desportivo

Fenótipos Heritabilidade Covariáveis Valor de Curtose


(h²±erro-padrão) (R²) prova (p) residual
Até aos 12 anos
Prática desportiva 0.505±0.120 0.182 <0.0001
Score desportivo 0.989±0.124 0.032 <0.0001 -0.406
Dos 13 aos 16 anos
Prática desportiva 0.467±0.063 0.217 <0.0001
Score desportivo 0.532±0.097 0.112 <0.0001 0.211
≥ 17 anos
Prática desportiva 0.668±0.09 0.187 <0.0001
Score desportivo 0.404±0.136 0.099 0.001 1.109
Todas as idades
Prática desportiva 0.583±0.043 0.193 <0.0001
Score desportivo 0.550±0.059 0.086 <0.0001 0.789

O número de respostas obtidas nas famílias nucleares não parece deixar lugar para
dúvidas, uma vez que as estimativas de heritabilidade se situam entre os 47 e os
99%, mesmo depois de ajustamentos para o sexo, idade, idadex*sexo, idade2. A va-
riância explicada por estas covariáveis é bem distinta – desde cerca de 1% até 20%.
Estamos diante de resultados de magnitude bem elevada, em termos de estimativas
populacionais, e que veiculam a ideia da adesão ao desporto e a variação da sua in-
tensidade ser governada por factores de ordem genética. No passado, o geneticista
italiano Gullio Gedda cunhou a expressão isodesportivização para designar um fe-
nómeno de prática de desporto corrente em famílias nucleares. Este autor subli-
nhava, no tempo em que pesquisou atletas de nível elevado, a ideia que a prática
de desporto de alto nível “corria em famílias”. Este facto ficou demonstrado mais
tarde em pesquisas realizadas em países do leste europeu, ao verificar-se a presença
elevada de linhagens de famílias de desportistas (Kovar, 1981). É evidente que ape-
sar de haver uma forte predisposição genética para a prática do desporto, não deve
ocorrer um argumento algo elitista ou eugenista em torno dos resultados obtidos.
Os genes não actuam num “espaço” vazio (Khoury et al, 1993; Lynch & Walsh,

210
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1998; Ridley, 2003; Thomas, 1993), ou indeterminado. Precisam de um ambiente


favorável para a sua expressão e “casamento” com os mais diversos factores do en-
volvimento para permitir a cada sujeito a possibilidade de expressão das suas po-
tencialidades (Bouchard et al., 1997; Plomin et al., 2003). Mas para que não haja
equívocos, convém realçar que se todos temos o direito à prática desportiva, não
devemos esquecer que diante do treino e da competição haverá uma forte variação
de resposta, em que os “melhores apetrechados” são os que mais facilmente salien-
tam as suas capacidades e atributos. Ora uma parte substancial destes é de origem
genética (Bouchard et al., 1997).
Em suma, os valores descritores dos efeitos genéticos da prática desportiva são bem
elevados, cerca de 50%. Este facto relança a discussão em torno da variabilidade da
resposta ao treino e à competição, bem como ao facto da abertura aos programas
mais diferenciados de prática desportiva generalizada da população. Mas nem todos
serão desportistas, ou mesmo atingirão desempenhos elevados.

5.4.2. Índices de actividades físico-desportivas


Relembramos que, com base nos 16 itens do questionário de Baecke é possível de-
rivar 3 índices: ActF na escola/trabalho, ActF nos tempos de recreação e lazer, Índice
de prática desportiva, que para além do score desportivo, considera mais 3 questões.
Finalmente é possível calcular um índice global de ActF. Os principais resultados
estão no Quadro 8.

Quadro 8: Estimativas de heritabilidade dos diferentes índices


que marcam facetas diversas da ActF, mais prática desportiva

Índices Heritabilidade Covariáveis Valor de Curtose


(h²±erro-padrão) (R²) prova (p) residual
Até aos 12 anos
IActF Esola/trabalho 0.159±0.072 0.229 0.011 0.0289
Índice Desportivo 0.261±0.066 0.282 <0.0001 0.1838
Índice de ActF de 0.207±0.072 0.041 <0.0001 -0.0114
recreação e lazer
Índice total 0.158±0.071 0.360 0.010 0.1745
Dos 13 aos 16 anos
IActF Esola/trabalho 0.173±0.037 0.184 <0.0001 0.0452
Índice Desportivo 0.283±0.033 0.355 <0.0001 0.4910
Índice de ActF de 0.292±0.037 0.466 <0.0001 -0.0338
recreação e lazer
Índice total 0.280±0.0356 0.076 <0.0001 0.3090
≥ 17 anos
IActF Esola/trabalho 0.241±0.045 0.125 <0.0001 -0.1675
Índice Desportivo 0.406±0.040 0.279 <0.0001 0.6432
Índice de ActF de 0.334±0.043 0.267 <0.0001 -0.0003
recreação e lazer
Índice total 0.271±0.043 0.058 <0.0001 0.0008
Todas as idades
IActF Esola/trabalho 0.171±0.023 0.198 <0.0001 0.523
Índice Desportivo 0.324±0.021 0.290 <0.0001 0.445
Índice de ActF de 0.326±0.022 0.034 <0.0001 -0.030
recreação e lazer
Índice total 0.256±0.022 0.058 <0.0001 0.044

211
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 212

À excepção do índice de ActF na escola/trabalho, que apesar de ser significativa-


mente maior do que zero, todos os outros estão na casa dos resultados reportados
na literatura, e às vezes bem maiores. Este facto vem salientar, uma vez mais, a in-
formação veiculada em diferentes experiências realizadas com animais (sobre esta
matéria consultar Fernandes & Maia, 2006) que - diferentes formas de expressão
da ActF são condicionadas por factores genéticos. Ainda que estes aspectos de al-
guma Homologia Sinténica sejam objecto de controvérsia, o facto que parece in-
controverso é que a variação populacional nos níveis de ActF dos humanos é
condicionada por factores genéticos.
As diferentes estimativas de heritabilidade das diversas formas de expressão da ActF
são normalmente baixas a moderadas, em contraste com os resultados provenientes
de estudos gemelares que são mais elevados (ver Oliveira & Maia, 2002; Fernandes
& Maia, 2005). Os valores que foram referenciados no Quadro 7 encontram-se entre
0.17 e 0.40. São ligeiramente mais elevados do que os que se encontram referencia-
dos na literatura. Por exemplo, Simonen et al. (2002), em famílias canadianas, re-
portou 0.16 para as actividades moderadas-a-vigorosas, e 0.19 para a actividade física
total (o valor que encontramos para este índice foi de 0.26). Do mesmo modo, Mit-
chel et al. (2003) referiram, em amostras de famílias dos EUA, estimativas de 0.26
para Kilocalorias gastas em actividades físicas de cariz diverso. Na Bélgica, os resul-
tados de Matton e colaboradores (2006) mostraram que os efeitos genéticos se si-
tuam entre 0.11 e 0.23, ao passo que a pesquisa realizada em Bragança (Lopes et al.,
2006) verificou valores entre 0.21 e 0.41.
Convém salientar que as estimativas de heritabilidade são sempre valores especí-
ficos das amostras donde derivaram, valem para o contexto sócio-cultural da amos-
tra, bem como da sua realidade histórica. Contudo, não deixa de ser interessante
verificar que as estimativas de heritabilidade do presente estudo são bem mais ele-
vadas do que as anteriores. Este facto pode encontrar justificação em características
bem próprias da nossa amostra, bem como da realidade história e sócio-cultural da
nossa população em detrimento das outras referidas, à excepção da realizada em
Bragança, não obstante o questionário utilizado ser distinto.
Em suma, os resultados sugerem a presença de efeitos genéticos a governar os valo-
res dos diferentes índices de ActF da população portuguesa. Todavia abrem as portas
às mais diversas intervenções do ambiente face à enorme plasticidade de resposta
que é de esperar da forte heterogeneidade da população portuguesa.

5.4.3. Efeitos genéticos comuns (pleiotropia) entre IMC e níveis de activida-


des físico-desportivas
Testados diferentes modelos na estratificação da amostra em função da idade, ou
mesmo no total da amostra, não foi possível identificar qualquer padrão claro de
efeitos pleiotrópicos entre expressões distintas de ActF e o IMC.

5.4.4. Efeitos dos amigos e do Prof. de Educação Física nos níveis de activi-
dades físico-desportivas
Os resultados elaborados com base em modelo de regressão múltipla não salientaram
qualquer influência substancial do Prof. de Educação Física. Pelo contrário, salientaram

212
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 213

o papel dos amigos, quer se trate de ActF nos momentos de recreação e lazer, no índice
desportivo, ou no índice de ActF total. Estes resultados são algo preocupantes face à
responsabilidade acometida ao Prof. de Educação Física na construção de estilos de
vida activa e saudável. Por outro lado ao salientar a importância do amigo, relança a
temática dos outros significantes e do papel do envolvimento nas práticas desportivo-
motoras de um grupo de jovens socialmente agrupados em conjuntos de interesses.
Em suma, os dados revelam a ausência de importância do Prof. de Educação Física
nos níveis de ActF de crianças e jovens e remete um papel de destaque aos amigos
que ajudam, um dado grupo na construção social de hábitos e atitudes relativa-
mente ao corpo e ao Desporto.

6. Conclusões
As conclusões desta pesquisa podem situar-se em três planos:

1º Plano informacional: está disponível uma amostra substancial da pesquisa em


famílias nucleares, que recorreram a delineamentos impostos pela Epidemiolo-
gia Genética e que podem ser úteis a pesquisadores futuros. De um modo equi-
valente é mencionada a investigação disponível em Portugal, e que é
extremamente escassa. Fica aberta uma porta bem grande, e um desafio aos pes-
quisadores portugueses interessados nesta matéria fascinante.
2º Plano “instrumental”: estão disponíveis diferentes ferramentas para analisar a
extrema complexidade que representam os dados provenientes de famílias nu-
cleares. Desde o PEDSTATS, aos softwares mais sofisticados como são o SOLAR
ou o SAGE, a sua utilização será um auxiliar precioso para explorar, de modo
bem detalhado, o conteúdo das hipóteses que possam ser lançadas pelos pesqui-
sadores portugueses.
3º Plano da informação disponível: é inequívoca a presença de efeitos genéticos a
governar as variações e diferenças entre famílias no que respeita aos seus níveis
distintos de ActF. É um facto indesmentível que existe uma variação e diferença
substancial entre famílias. Ainda que os efeitos genéticos sejam moderados, car-
regam consigo dados importantes em termos de entendimento da presença de
famílias muito activas e outras menos activas.

É importante que se saliente os resultados da prática e score desportivo. As estimativas


dos efeitos genéticos são moderadas a elevadas. Este facto remete-nos para a necessi-
dade de perceber subtilezas da diferenciação da resposta ao treino e à competição.
Este conjunto de dados e conclusões implicam, uma vez mais, um forte apelo, al-
tamente diferenciador, à população portuguesa: façam actividade física de carácter
lúdico e gratificante. Mas, acima de tudo pensem e pratiquem DESPORTO prenhe
de carga emocional, sempre altamente socializante. É uma faceta da cultura hu-
mana que carrega consigo toudo um mundo de sentido e valores que as famílias
percebem e trazem consigo. Passem dos sofás à prática de inquestionável valor.

Agradecimentos: Ao IDP pelo financiamento de parte do projecto designado de


agregação familiar nos hábitos de actividade física de famílias Portuguesas. À FCT
pelo apoio ao projecto PTDC/DES/67569/2006.

213
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 214

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livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 217

Atividade Física Habitual e Fatores


Associados em Adolescentes Brasileiros
Dartagnan Pinto Guedes
Mônica Vieira de Souza
Universidade Estadual de Londrina - Brasil

1. Introdução
Os benefícios da atividade física associados à saúde e ao bem-estar são bem discuti-
dos na literatura e reconhecidos pelas diversas entidades oficiais nacionais e inter-
nacionais 41,48. Os efeitos benéficos da atividade física foram assinalados quer em
crianças e jovens quer em adultos e são de caráter biológico 4,14,16,19,23,29,32 e psicoe-
mocional 8,18,33,34,42,43,46. Contudo, constata-se que, nos últimos anos, a prática ha-
bitual de atividade física em populações jovens vem diminuindo consideravelmen-
te em diferentes regiões do mundo 1,13,24,25, sendo o sedentarismo considerado um
dos principais problemas de saúde pública 48.
Apesar da sua importância na promoção de programas de saúde pública, pouco se
conhece sobre os hábitos de atividade física dos adolescentes brasileiros. No con-
texto brasileiro, os raros estudos localizados têm utilizado amostras pouco repre-
sentativa do segmento populacional envolvido, além de empregar instrumentos
de medida que contemplam dimensões específicas de atividade física 11,26,31.
O objetivo deste estudo foi analisar os níveis de pratica habitual de atividade física
e os fatores associados à adoção de comportamentos sedentários em adolescentes
de ambos os sexos, na faixa etária dos 15 aos 18 anos, residentes na cidade de João
Pessoa, Paraíba, Brasil.

2. Métodos
Para a elaboração do estudo foram utilizadas informações contidas no banco de
dados construído a partir de um levantamento descritivo de corte transversal, de
base populacional, envolvendo medidas antropométricas, percepções quanto à qua-
lidade de vida e à prática habitual de atividade física, além de informações sociode-
mográficas de escolares da cidade de João Pessoa, Paraíba, situado na região nordeste
do Brasil. A coleta dos dados foi realizada nos meses de setembro a novembro de
2007 e os protocolos de intervenção utilizados foram aprovados pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Paraíba (Processo 689/06) e acompa-
nharam normas da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde sobre pesquisa
envolvendo seres humanos.
A cidade de João Pessoa, cenário do presente estudo, é a capital do Estado da Paraíba,
um dos nove Estados da região nordeste do Brasil, reconhecidamente uma das re-
giões brasileiras mais pobres. João Pessoa é uma das capitais brasileiras que apre-

217
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 218

senta alguns dos piores indicadores de desenvolvimento humano do país. Seu Ín-
dice de Desenvolvimento Humano (IDH) está estimado em 0,683, distribuído em
IDH-Renda: 0,643, IDH-Longevidade: 0,620 e IDH-Educação: 0,785, enquanto o
IDH médio do Brasil é equivalente a 0,800 40.

Amostra e seleção dos sujeitos


Os sujeitos da amostra foram aleatoriamente selecionados da população escolar
com 15 a 18 anos de idade (37020 indivíduos) que freqüentava o ensino secundá-
rio no município de João Pessoa, Paraíba, Brasil. O tamanho da amostra foi esta-
belecido assumindo intervalo de confiança de 95%, erro amostral de 3% e
acréscimo de 10% para atender eventuais casos de perdas na coleta dos dados. Con-
siderando que o planejamento amostral envolveu conglomerados, definiu-se um
efeito do delineamento da amostra (deff) equivalente a 1,5, o que foi previsto ini-
cialmente uma amostra mínima de 1200 escolares. Porém, a amostra definitiva
utilizada no tratamento das informações foi composta por 1.268 escolares (630
moças e 638 rapazes).
Os critérios adotados para a exclusão de algum escolar sorteado para o estudo foram:
(a) recusa em participar do estudo; (b) não-autorização dos pais ou responsáveis; (c)
ausência às aulas no dia agendado para a coleta dos dados; e (d) algum problema fí-
sico que o impedisse, temporária ou definitivamente, de realizar as medidas antro-
pométricas.

Atividade física
As informações quanto à percepção da atividade física foram obtidas por intermédio
do Questionário Internacional de Atividade Física (International Physical Activity
Questionnaire – IPAQ) em seu formato curto, versão 8, tendo como referência a úl-
tima semana. As quatro questões do instrumento procuraram prover informações
quanto à freqüência (dias/semana) e à duração (minutos/dia) na execução de cami-
nhadas e de atividades cotidianas que exigem esforços físicos de intensidades mo-
derada e vigorosa, além do tempo (minutos/dia) despendido em atividades
realizadas em posição sentada nos estudos, no trabalho, no lazer, na ocupação do
tempo livre e nas atividades domésticas. Para categorização da prática habitual da
atividade física recorreu-se ao consenso proposto pelos idealizadores do IPAQ, con-
siderando três categorias: baixa, moderada e elevada 17.

Indicadores sociodemográficos
Foram levantadas informações quanto ao sexo, à idade, à situação conjugal dos pais,
ao núcleo familiar, ao número de irmãos, à escolarização dos pais, à classe econô-
mica familiar, ao tipo de escola, ao período de estudo, ao meio de transporte para
deslocamento até a escola, à jornada de trabalho, ao uso de tabaco e de bebidas al-
coólicas. Para definição da classe econômica familiar recorreram-se as diretrizes
propostas pela Associação Nacional de Empresas de Pesquisa, com base no nível de
escolaridade dos pais, condições de moradia, posse de utensílios domésticos, auto-
móveis e quantidade de empregados domésticos 1.

218
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 219

Antropometria
Foram realizadas medidas de massa corporal e estatura, o que permitiu o cálculo do
índice de massa corporal (IMC). Para a determinação das medidas equivalentes à
massa corporal foi empregada balança antropométrica com definição de 10g, aferida
a cada dez pesagens, enquanto para a realização das medidas de estatura utilizou-
se estadiômetro de alumínio com escala de 1 mm, a partir dos procedimentos apre-
sentados pela Organização Mundial da Saúde 47. O IMC foi calculado mediante a
razão entre a medida da massa corporal expressa em quilogramas e da estatura ex-
pressa em metros ao quadrado (kg/m2).

Tratamento estatístico
O tratamento estatístico foi realizado mediante o pacote computadorizado Statis-
tical Package for the Social Science (SPSS), versão 17.0. Para testar a normalidade das
distribuições foi empregado o teste de Kolmogorov-Smirnov. Recorreu à estatística
não-paramétrica uma vez que as distribuições não mostraram distribuição normal.
Para a caracterização do tempo despendido nas diferentes dimensões de atividade
física e da quantidade de MET’s equivalente à atividade física recorreu-se aos pro-
cedimentos da estatística descritiva (mediana e diferença interquartil) e, posterior-
mente, para comparar as variáveis selecionadas entre sexo e idade, à análise de
variância por postos de Kruskal-Wallis (K-W). Quando significantes, a análise de
variância foi complementada pelo teste U Mann-Whitney para identificar as dife-
renças específicas. O nível de significância foi fixado em pelo menos 5% (p < 0,05).
As proporções de adolescentes reunidos nas três categorias de atividade física pro-
postas pelo IPAQ (baixa, moderada e elevada) foram analisadas mediante tabelas
de contingências, envolvendo testes de qui-quadrado ( 2) para identificação das di-
ferenças estatísticas entre sexo e idade.
Para estabelecer a extensão das associações estatísticas entre os indicadores socio-
demográficos e os níveis relatados de atividade física recorreram-se aos cálculos dos
valores de odds ratio (OR), estabelecidos por intermédio da análise de regressão lo-
gística binária e ajustados para idade cronológica, assumindo intervalos de con-
fiança de 95%. Em sendo assim, para atender as condições do procedimento
estatístico, a atividade física foi dicotomizada em dois estratos, de acordo com as
categorias sugeridas pelo IPAQ: (a) sedentário, envolvendo aqueles adolescentes
classificados na categoria de baixa atividade física; e (b) não-sedentário, envolvendo
aqueles adolescentes classificados nas categorias de moderada e elevada atividade
física.

3. Resultados
Informações estatísticas quanto ao tempo despendido nas diferentes dimensões da
atividade física estimadas pelo IPAQ são mostradas na tabela 1. Ao analisar os valores
K-W, verifica-se que o tempo despendido em atividades que exigem esforços físicos
de intensidade vigorosa apresentou diferenças estatísticas favoráveis aos rapazes.
Por outro lado, as moças relataram se envolver significativamente mais tempo em
atividades do cotidiano que são desempenhadas em posição sentada. Quando das
comparações entre as demais dimensões de atividade física (caminhadas e esforço

219
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 220

físico moderado), não se encontraram diferenças estatísticas importantes entre


ambos os sexos.
Comparações entre as idades consideradas revelam que, em ambos os sexos, a me-
diana do tempo de envolvimento em atividades de maior ou menor esforço físico
apresenta modificações significativas com o passar dos anos. Moças e rapazes com
menos idade tenderam a permanecer significativamente menos tempo em posição
sentada e mais tempo em atividades que envolvem esforços físicos de intensidade
vigorosa, em comparação com seus pares de mais idade. Verificou-se também,
grande variação interindividual quanto ao tempo despendido nas quatro dimensões
consideradas de atividade física, como pode ser verificada pelos elevados valores
equivalentes às diferenças interquartis.

Tabela 1 – Valores medianos e diferenças interquartis (Q3 – Q1) equivalentes ao tempo


(mim/semana) despendido em diferentes dimensões da atividade física de adolescentes
de João Pessoa, Paraíba, Brasil, 2007.

Idade (Anos) Posição Caminhadas Esforços Esforços


Sentada Moderados Vigorosos
Moças
15 3360 (2100) 1050 (560) 2030 (1050) 840 (490)
16 4200 (2240 980 (630) 1610 (980) 700 (420)
17 5250 (2940) 770 (490) 1260 (840) 490 (350)
18 6790 (3080) 560 (350) 770 (490) 280 (210)
Rapazes
15 2380 (1330) 1330 (700) 2240 (1050) 1400 (700)
16 2730 (1470) 1190 (770) 2100 (980) 1190 (770)
17 3500 (1960) 910 (560) 1820 (980) 910 (560)
18 4620 (2520) 770 (490) 1610 (1050) 770 (630)
K-Wgênero 14,176 (p=0,00) 4,704 (0,24) 6,514 (p=0,10) 21,819 (p=0,00)
K-Widade 10,618 (p=0,00) 9,593 (0,00) 10,782 (p=0,00) 27,263 (p=0,00)

A tabela 2 aponta as proporções de adolescentes classificados nas três categorias de


atividade física propostas pelo IPAQ. As comparações entre ambos os sexos apontam
diferenças estatisticamente significantes nas proporções de adolescentes classifi-
cados nas categorias extremas de atividade física. A proporção de moças e de rapazes
que relataram possuir uma prática habitual moderada de atividade física foi bas-
tante similar (42,9 e 44,2%, respectivamente). Os dados encontrados revelam que
36,7% dos rapazes envolvidos no estudo apresentaram elevado nível de atividade
física, enquanto apenas 28,9% das moças podem ser consideradas como tal (c2 =
5,047; p = 0,0248). No entanto, se por um lado, a proporção de moças que relataram
possuir baixo nível de atividade física foi bastante similar a proporção de moças
consideradas como de elevado nível de atividade física (28,2%), entre os rapazes,
esta proporção foi significativamente menor (19,1%).
Quando das comparações entre as idades consideradas no estudo, mais uma vez não
foram identificadas diferenças estatísticas importantes nas proporções de adoles-
centes que relataram possuir uma prática habitual moderada de atividade física.
Contudo, as proporções de adolescentes envolvidos no estudo que apresentaram

220
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 221

baixo nível de prática habitual de atividade física aumentaram significativamente


com a idade (c2 = 9,050; p = 0,0000), ao passo que, de maneira inversa, as proporções
de adolescentes que atenderam os critérios equivalentes à prática habitual elevada
de atividade física foram significativamente menores entre aqueles que apresen-
tavam idades mais avançadas (c2 = 8,396; p = 0,0043).

Tabela 2 – Proporção (%) das categorias de atividade física de acordo


com sexo e idade de adolescentes de João Pessoa, Paraíba, Brasil, 2007.

Atividade física
Idade Baixa Moderada Elevada
(Anos) Moças Rapazes Moças Rapazes Moças Rapazes
15 23,2 15,0 42,9 44,2 33,9 40,8
16 25,6 16,7 42,8 44,7 31,6 38,6
17 29,3 19,9 43,0 44,9 27,7 35,2
18 34,6 24,6 43,1 42,6 22,3 32,8
15 – 18 28,2 19,1 42,9 44,2 28,9 36,7
c2sexo 5,921 (p = 0,0166) 0,168 (p = 0,6841) 5,047 (p = 0,0248)
c2idade 9,050 (p = 0,0000) 0,351 (p = 0,9502) 8,396 (p = 0,0043)

Os resultados equivalentes às dimensões de odds ratio (OR) acompanhadas dos


respectivos intervalos de confiança de 95% relacionados ao risco relativo de os
adolescentes apresentarem comportamento sedentário em função dos indicado-
res sociodemográficos analisados no estudo, separadamente para moças e rapazes,
são mostrados na tabela 3. Neste caso, de acordo com o delineamento estabelecido
para a regressão logística, os cálculos equivalentes a OR foram ajustados para as
idades. Os resultados encontrados sugerem que, tanto entre as moças como entre
os rapazes, o estado civil dos pais, o núcleo familiar e o número de irmãos não de-
monstram qualquer impacto significativo para que os adolescentes selecionados
no estudo viessem a ser categorizados como sedentários, mediante os critérios
propostos pelo IPAQ.
No entanto, a escolaridade do pai/responsável e a classe econômica familiar se de-
finiram como dois atributos importantes para que os adolescentes venham a adotar
comportamento sedentário. Os adolescentes cujos pais ou responsáveis apresentam
mais de 12 anos de escolarização demonstraram possuir risco cerca de duas vezes
maior de serem sedentários do que os adolescentes em que seus pais ou responsá-
veis apresentam menos de 4 anos de escolarização (Moças – OR = 2,06; 95% IC 1,58
– 2,61; Rapazes – OR = 2,14; 95% IC 1,64 – 2,73). No que se refere à classe econômica
familiar, as estimativas relacionadas às OR revelam que aqueles adolescentes per-
tencentes às famílias mais privilegiadas economicamente são os que têm maiores
chances de serem sedentários. Na presente casuística, aquelas moças pertencentes
a classe A demonstram possuir três vezes mais chances de serem sedentárias que
seus pares pertencentes a classe E (OR = 2,98; 95% IC 2,31 – 3,72). No caso dos ra-
pazes, o impacto da classe econômica familiar na ocorrência do sedentarismo redu-
ziu-se ligeiramente; contudo, ainda assim, permaneceu extremamente elevado
(OR = 2,61; 95% IC 1,90 – 3,44).

221
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Tabela 3 – Valores de odds ratio e intervalo de confiança de 95% entre adoção de comportamento
sedentário e indicadores sociodemográficos de adolescentes de João Pessoa, Paraíba, Brasil, 20071.
Moças Rapazes
Situação Conjugal dos Pais
Solteiros Referência Referência
Casados 1,05 (0,70 – 1,46) 1,13 (0,75 – 1,58)
Separados/viúvos 1,39 (0,95 – 1,90) 1,41 (0,98 – 1,90)
Núcleo Familiar
Mãe ou pai Referência Referência
Pai e mãe juntos 1,14 (0,71 – 1,64) 1,11 (0,70 – 1,56)
Parente 1,23 (0,89 – 1,61) 1,27 (0,89 – 1,72)
Não-parente/sozinho 1,31 (0,95 – 1,72) 1,39 (0,99 – 1,86)
Número de Irmãos
≥ 5 Irmãos Referência Referência
3 – 4 Irmãos 0,97 (0,50 – 1,49) 1,04 (0,53 – 1,59)
1 – 2 Irmãos 1,32 (0,92 – 1,80) 1,21 (0,86 – 1,61)
Nenhum irmão 1,39 (0,96 – 1,90) 1,44 (0,99 – 2,04)
Escolaridade do Pai/Responsável
≤ 4 Anos Referência Referência
5 – 8 Anos 1,38 (0,99 – 1,85) 1,45 (1,08 – 1,8)
9 – 11 Anos 1,80 (1,35 – 2,38) 1,89 (1,41 – 2,36)
≥ 12 Anos 2,06 (1,58 – 2,61) 2,14 (1,64 – 2,73)
Classe Econômica Familiar
Classe E (Menor) Referência Referência
Classe D 1,32 (0,99 – 1,70) 1,27 (0,95 – 1,67)
Classe C 1,74 (1,35 – 2,16) 1,65 (1,35 – 2,01)
Classe B 2,41 (1,86 – 3,04) 2,12 (1,62 – 2,83)
Classe A (Maior) 2,98 (2,31 – 3,72) 2,61 (1,90 – 3,44)
Tipo de Escola
Pública Referência Referência
Privada 2,02 (1,59 – 2,52) 1,81 (1,39 – 2,31)
Período de Estudo
Diurno Referência Referência
Noturno 1,49 (1,07 – 1,98) 1,63 (1,19 – 2,11)
Tipo de Transporte para Escola
Caminhando/bicicleta Referência Referência
Ônibus 1,57 (1,12 – 2,10) 1,60 (1,19 – 2,13)
Carro 1,98 (1,44 – 2,62) 1,92 (1,42 – 2,58)
Trabalho Remunerado
Não trabalha Referência Referência
Trabalho eventual 1,14 (0,86 – 1,45) 1,21 (0,90 – 1,59)
Trabalha ≤ 20 horas/semana 1,32 (0,97 – 1,71) 1,40 (1,02 – 1,85)
Trabalha 20 – 40 horas/semana 2,45 (2,03 – 2,97) 1,53 (1,16 – 1,98)
Uso de Tabaco
Não-fuma Referência Referência
Parou de fumar 1,21 (0,85 – 1,62) 1,39 (0,94 – 1,94)
Fuma ≤ 10 cigarros/dia 1,78 (1,29 – 2,35) 1,94 (1,45 – 2,66)
Fuma > 10 cigarros/dia 2,86 (2,33 – 3,46) 2,07 (1,61 – 2,60)
Uso de Bebidas Alcoólicas
Não bebe Referência Referência
Bebe ≤ 6 doses/semana 1,64 (1,31 – 2,01) 1,57 (1,21 – 1,99)
Bebe > 6 doses/semana 2,92 (2,43 – 3,50) 2,14 (1,68 – 2,71)
IMC
< 20 kg/m2 Referência Referência
20 – 23 kg/m2 1,42 (0,98 – 1,97) 1,32 (0,91 – 1,83)
23 – 25 kg/m2 1,64 (1,15 – 2,22) 1,51 (1,09 – 2,08)
25 – 28 kg/m2 1,85 (1,32 – 2,46) 1,63 (1,18 – 2,14)
> 28 kg/m2 2,11 (1,56 – 2,79) 1,89 (1,38 – 2,48)
1
Análise ajustada para a idade.

222
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 223

O tipo de escola e o período em que se estuda também contribuem para que os ado-
lescentes venham a ser sedentários. Nas moças, um comportamento sedentário
tem o dobro de chance de ocorrer entre as adolescentes que freqüentam escolas pri-
vadas em relação as que freqüentam escolas públicas (OR = 2,02; IC 95% 1,59 – 2,52).
No caso dos rapazes, é observado risco relativo voltado ao sedentarismo 81% maior
entre os adolescentes de escolas privadas em comparação com os de escolas públicas
(OR = 1,81; 95% IC 1,39 – 2,31). Quanto ao período em que estudam, moças e rapazes
que freqüentam escolas no período noturno apresentam, respectivamente, 49%
(OR = 1,49; 95% IC 1,07 – 1,98) e 63% (OR = 1,63; 95% IC 1,19 – 2,11) mais chances de
serem sedentários que seus pares que freqüentam escolas no período diurno.
Ao considerar o tipo de transporte que os adolescentes utilizam para se deslocarem
até a escola, constata-se que moças e rapazes que se deslocam de carro apresentam
por volta de duas vezes mais possibilidades de se tornarem sedentários (Moças –
OR = 1,98; 95% IC 1,44 – 2,62; Rapazes – OR = 1,92; 95% IC 1,42 – 2,58) quando com-
parados aos que se deslocam caminhando ou pedalando. Em se tratando de trabalho
remunerado, aqueles adolescentes que cumprem jornada de trabalho de 20-40
horas/semana, sejam moças ou rapazes, demonstram maior vulnerabilidade para
se tornarem sedentários diante de seus pares que não realizam trabalho remune-
rado. Contudo, as magnitudes dos valores equivalentes à OR destacam que o envol-
vimento com trabalho remunerado neste período da vida apresenta participação
acentuadamente maior na definição do sedentarismo entre as moças que entre os
rapazes. Moças com jornada de trabalho remunerado de 20-40 horas/semana de-
monstram risco duas vezes e meia mais elevado de serem sedentárias que seus pares
que não realizam trabalho remunerado (OR = 2,45; 95% IC 2,03 – 2,97). Entre os ra-
pazes, o risco equivalente foi uma vez e meia maior (OR = 1,53; 95% IC 1,16 – 1,98).
Quanto ao uso de tabaco e de bebidas alcoólicas, as estimativas encontradas revelam
que a exposição de risco dos adolescentes assumirem uma postura sedentária é pro-
gressivamente maior de acordo com a mais elevada quantidade de cigarros/dia e
doses/semanas utilizada. Os rapazes que fumam mais de 10 cigarros/dia e fazem
uso de mais de 6 doses/semana de bebidas alcoólicas demonstram possuir risco pró-
ximo de duas vezes maior de serem sedentários (uso de tabaco – OR = 2,07; 95% IC
1,61 – 2,60; uso de bebidas alcoólicas – OR = 2,14; 95% IC 1,68 – 2,71) em comparação
com aqueles que relataram não fazer uso de tabaco e de bebidas alcoólicas. No caso
das moças, nessas mesmas condições, o risco de se assumir uma conduta sedentária
entre aquelas que fumam e que fazem uso de bebidas alcoólicas é ainda maior, se
aproximando de três vezes mais (uso de tabaco – OR = 2,86; 95% IC 2,33 – 3,46; uso
de bebidas alcoólicas – OR = 2,92; 95% IC 2,43 – 3,50).
Os achados do estudo apontam que o excesso de peso corporal é outro atributo forte-
mente relacionado com a adoção de comportamentos sedentários entre os adolescen-
tes. As dimensões de OR encontradas permitem inferir que a proporção de ocorrência
do sedentarismo aumenta paralelamente aos maiores valores de IMC calculados em
ambos os sexos. Estima-se que os rapazes com peso corporal equivalente a IMC > 28
kg/m2 venham a apresentar risco 89% maior de serem sedentários (OR = 1,89; 95% IC
1,38 – 2,48) que seus pares com peso corporal equivalente a IMC < 20 kg/m2. No caso
das moças, o risco se eleva para mais que o dobro (OR = 2,11; 95% IC 1,56 – 2,79).

223
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 224

4. Discussão
No presente estudo são apresentados dados acerca da atividade física e dos fatores
associados aos comportamentos sedentários de uma amostra representativa de ado-
lescentes entre 15 e 18 anos da cidade de João Pessoa, Paraíba, Brasil, mediante ques-
tionário de auto-relato. Convém salientar que, quando comparados com métodos
de medidas mecânicas e eletrônicas, como é o caso dos pedômetros, dos acelerôme-
tros e da monitoração da freqüência cardíaca, os questionários para esta finalidade
podem eventualmente sobrestimar os níveis de atividade física 39. No entanto, ape-
sar das limitações, os questionários são extremamente úteis para analise de infor-
mações equivalentes à atividade física de grandes amostras em estudos
epidemiológicos 30. Neste sentido, o IPAQ, questionário empregado neste estudo,
vem sendo utilizado em alguns estudos no Brasil e em outros países, com resultados
satisfatórios. Um estudo anterior atestou a qualidade dos indicadores de validação
e das características psicométricas do IPAQ em adolescentes brasileiros 12.
Ao analisar as informações associadas ao tempo mediano despendido nas quatro di-
mensões de atividade física, relatadas pelos adolescentes mediante o IPAQ, verifi-
cou-se que os resultados apontaram os rapazes como sendo habitualmente mais
ativos que as moças e tendência de declínio nos níveis de atividade física durante a
adolescência em ambos os sexos. Apesar de ser possível encontrar algumas diferen-
ças conforme o tipo e a intensidade da atividade física realizada são consensuais
entre os estudos disponibilizados na literatura o entendimento de que a atividade
física tende a estar negativamente associada à idade, sobretudo nos últimos anos
da adolescência. Neste particular, as atividades de intensidade vigorosa são as que
mais diminuem com o avanço da idade 2,3,20,24,36. Embora diversos estudos na área
tenham procurado identificar as razões para esse declínio, permanece por esclarecer
se é resultado de fatores biológicos ou de fatores ligados ao ambiente, se da interação
de ambos os fatores, ou se por qualquer outro mecanismo de natureza social ainda
não possível de identificação.
A grande maioria dos estudos localizados na literatura tem mostrado que os rapazes
são fisicamente mais ativos que as moças 2,3,20,24,36. Este também foi o caso dos re-
sultados encontrados no presente estudo. No entanto, as diferenças registradas
entre ambos os sexos foram dependentes das categorias da prática habitual da ati-
vidade física equivalente a intensidade dos esforços físicos relatados.
Similar aos achados de outros estudos epidemiológicos descritivos 3,20,24 foi obser-
vado um significativo maior envolvimento dos rapazes em atividades físicas de in-
tensidade elevada (36,7% versus 28,9%), enquanto as moças mostraram maior
participação em atividades físicas de baixa intensidade (28,2% versus 19,1%).
A prevalência de sedentarismo dos adolescentes de João Pessoa, Paraíba, Brasil, foi
de 28,2% entre as moças e 19,1% entre os rapazes. Portanto, menor do que as cifras
encontradas na população de adolescentes de mesma idade da Finlândia, 50% entre
as moças e 41% entre os rapazes 35, e da Espanha, 40,8% em ambos os sexos 38. Nos
Estados Unidos levantamento nacional mostrou uma prevalência de sedentarismo
em adolescentes de mesma idade entre 43% e 60% 6.
Apesar de a prevalência do sedentarismo encontrado no presente estudo ser menor
do que a encontrada na literatura para a adolescência são cifras bastante preocupan-

224
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 225

tes. Como apontam alguns estudos, o sedentarismo além de ser um importante


comportamento de risco predisponente a inúmeros distúrbios orgânicos na adoles-
cência, a magnitude do risco tende a aumentar com a idade, o que pode indicar uma
maior possibilidade do sedentarismo se manter também na fase adulta 37.
As chances dos adolescentes aqui analisados apresentarem comportamentos seden-
tários variou de acordo com selecionadas características sociodemográficas. A esco-
laridade dos pais, a classe econômica familiar, o tipo de escola e o turno que
freqüenta a escola, o tipo de transporte utilizado para se deslocar até a escola, a rea-
lização de trabalho remunerado, o uso de tabaco, o consumo de bebida alcoólica e
os valores equivalentes de IMC associaram-se de forma significativa e indepen-
dente com o comportamento sedentário nos adolescentes de ambos os sexos. Por
outro lado, o estado civil dos pais, a situação de moradia e número de irmãos de-
monstrou baixo impacto para a adoção de um estilo de vida sedentário.
A classe econômica familiar demonstrou estar inversamente associado ao risco do
sedentarismo. Ou seja, os resultados encontrados no presente estudo apontaram
que os adolescentes pertencentes às famílias de mais elevada classe econômica de-
monstraram maior risco para assumirem comportamento sedentário. A classe eco-
nômica familiar é um determinante que mais tem sido referenciado na literatura
como modulador da atividade física. Os resultados dos estudos disponibilizados na
literatura, no entanto, são pouco consensuais e não permitem identificar com cla-
reza o sentido e a magnitude da associação entre a classe econômica familiar e a ati-
vidade física. De fato, é possível encontrar estudos que revelaram a existência de
uma associação positiva entre a classe econômica e a atividade física 10,28 e outros
em que essa associação foi negativa 5,20 ou inexistente 45. A principal razão para esta
divergência nos resultados poderá estar vinculada ao modo como a classe econô-
mica familiar tem sido definida. Na literatura observam-se estudos que procuraram
identificar a classe econômica familiar pelo rendimento familiar, pela formação
acadêmica dos elementos constituintes do agregado familiar e pela atividade ocu-
pacional desenvolvida por cada um dos membros da família.
Com relação à escolaridade dos pais, diferentemente do que vem sendo apontado
em estudos envolvendo casuísticas norte-americanas e de países europeus 10,28,45,
os resultados encontrados sugerem que adolescentes filhos de pais que freqüenta-
ram por mais anos a escola também demonstraram possuir maior risco de serem se-
dentários. A justificativa para que a maior escolarização dos pais possa estar
positivamente associada à atividade física nos jovens de países mais industrializa-
dos fundamenta-se no pressuposto de que, considerando o fato dos jovens passarem
grande parte do seu tempo diário na escola, obriga a que muito da sua possível par-
ticipação em atividade física deva, necessariamente, ser realizada fora do ambiente
escolar. Contudo, para que isso possa acontecer, os jovens necessitam de um su-
porte social e educacional que lhes permita aderir a essas atividades que normal-
mente decorrem em organizações esportivas (clubes, associações, ginásios), o que
parece não ser o caso na população de adolescentes analisada no presente estudo.
O tipo de estrutura da escola (pública e privada) e o período em que os adolescentes
freqüentam a escola (diurno e noturno) relacionam-se igualmente com a ocorrência
do sedentarismo e, apesar de pouco descrito, encontra-se alguma evidência na lite-

225
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 226

ratura sugerindo que os adolescentes que estudam em escolas públicas e no período


diurno são mais ativos fisicamente 11,26.
A significativa associação encontrada entre o tipo de transporte utilizado para se
deslocar até a escola e o perfil de prática de atividade física não foi inesperada. Ou-
tros estudos também referiram à importante contribuição que o deslocamento
ativo até a escola pode oferecer a atividade física dos jovens 7,15. Entre os objetivos
propostos para que os jovens tornem-se mais ativos fisicamente, destaca-se o in-
centivo de deslocamentos para a escola por meio de caminhadas ou pedalando, evi-
tando a utilização de veículos automotores.
No presente estudo, foi encontrada ainda, associação significativa entre o uso de
tabaco e o consumo de bebidas alcoólicas e a ocorrência do sedentarismo. Outros
estudos também descreveram uma relação muito próxima entre inatividade fí-
sica, uso de tabaco e outros aspectos que constituem um estilo de vida não-sau-
dável, constatando que estes comportamentos tendem a agregar-se em alguns
adolescentes 21,38,44.
Corroborando com achados apresentados por outros estudos disponibilizados na li-
teratura 9,22,27, os resultados do presente estudo apontaram que o sobrepeso, esta-
belecido mediante o IMC, está fortemente associado ao estilo de vida sedentário. Ou
seja, aqueles adolescentes com IMC mais elevado apresentaram maior probabilidade
de serem sedentários. No entanto, com um delineamento transversal, como é o caso
do presente estudo, não é possível afirmar se o sobrepeso é responsável ou conse-
qüência do sedentarismo, salientando a possível reversibilidade desses achados.
O presente estudo apresenta algumas limitações que devem ser consideradas, das
quais é importante referir que, tal como as variáveis sociodemográficas, as infor-
mações equivalentes à atividade física também foram auto-declaradas. No entanto,
o reportar desses indicadores é procedimento corrente em estudos com essas carac-
terísticas, sendo a forma mais viável de realizar levantamentos em larga escala. Por
outro lado, o maior tamanho amostral permite de alguma forma minimizar even-
tual imprecisão das estimativas calculadas.
Também, a avaliação transversal pode limitar, em particular para as variáveis vin-
culadas ao comportamento, como é o caso do uso de tabaco, consumo de bebida al-
coólica, tipo de transporte para se deslocar para a escola, jornada de trabalho
remunerado e presença do sobrepeso, o estabelecimento de associações sem que
seja equacionada a possibilidade de existir causalidade inversa. Contudo, a magni-
tude dos valores de OR pôde explicar parcialmente os fatores associados ao seden-
tarismo na população de adolescentes analisada. Devido ao possível impacto das
diferenças regionais, a metodologia empregada no presente estudo poderá ser re-
plicada em outros locais e contribuir para fornecer dados sobre tendências e dife-
renciais do sedentarismo em diversas regiões do País.

5. Conclusões
Na população de adolescentes de João Pessoa, Paraíba, Brasil, a prevalência do se-
dentarismo se aproximou de 24%. O estudo indicou a extensão com que seleciona-
das variáveis sociodemográficas podem estar associadas ao sedentarismo. Com o
aumento da classe econômica familiar e do nível de escolarização dos pais diminui

226
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 227

de forma significativa a atividade física. Os jovens que estudam em escolas privadas,


no período noturno e que se deslocam para a escola com veículos monitorizados
são mais propensos ao sedentarismo que seus pares que estudam em escolas públi-
cas, no período diurno e se deslocam para escola caminhando ou pedalando. Os fu-
mantes e os que consomem bebidas alcoólicas apresentam maior probabilidade de
se tornarem sedentários. Aqueles adolescentes com valores mais elevados de IMC
demonstram maior vulnerabilidade para se tornarem sedentários.

227
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 228

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230
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 231

A Complexidade e a Efetividade da Promoção de


Estilos de Vida Saudáveis no Ambiente Escolar:
O Projeto ‘Saúde na Boa’
Markus Vinicius Nahas
Universidade Federal de Santa Catarina - Brasil
Mauro Virgilio Gomes de Barros
Universidade de Pernambuco - Brasil
Maria Alice Altenburg de Assis
Universidade Federal de Santa Catarina - Brasil

1. Introdução
As doenças e agravos do mundo contemporâneo refletem as condições e os estilos
de vida das populações. Vivemos em uma era de transições e contradições. Há as
doenças da miséria, da subnutrição e da falta de saneamento; e há as doenças decor-
rentes do comportamento, do nosso jeito de viver. Ainda que para as doenças da mi-
séria concorram muito mais fatores econômicos e políticos, para ambos contribuem
a educação e o acesso às oportunidades para escolhas na vida das pessoas.
Dados da Organização Mundial da Saúde (WHO, 2005) indicam que mais de 60%
das mortes no planeta decorrem de doenças e agravos não transmissíveis (DANT),
condições que poderiam, em grande proporção, ser evitadas ou retardadas, expan-
dindo significativamente os anos de vida ativa e autônoma (e reduzindo enorme-
mente os custos públicos e pessoais com tratamentos precocemente requeridos).
Não por acaso, a OMS e os governos em grande parte das nações estão empenhados
em “promover a saúde”, focando em ações que levem a melhores condições e estilos
de vida, reduzindo, assim, as chances de doenças e agravos sabidamente evitáveis
(WHO, 2003). O conceito revisado por O’Donnel (2008, p.iv) define Promoção da
Saúde como a:

“Ciência e arte de ajudar as pessoas a mudar seu estilo de vida no sentido de um


estado de saúde ideal, que se constitui num processo de engajamento em busca de
um equilíbrio dinâmico entre as dimensões física, emocional, social, espiritual e
intelectual e a descoberta da sinergia entre os seus aspectos mais positivos. A mu-
dança de estilo de vida deve ser facilitada pela combinação de esforços para infor-
mar, motivar, construir conhecimentos e, principalmente, oferecer oportunidades
para práticas positivas em saúde.»

Ainda que a manifestação explícita e as conseqüências mais drásticas das DANT


ocorram a partir da meia idade, têm-se observado, nas últimas décadas, uma cres-
cente prevalência de diabetes tipo II, hipertensão, dislipidemias e obesidade entre
jovens (15 a 24 anos), com sintomas observados já na infância. E aí está um paradoxo
desta transição epidemiológica: tais problemas precocemente manifestados não são
restritos aos mais abastados. A obesidade é, hoje, um problema de saúde bastante

231
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 232

“democrático” e universal, conseqüência da ampla disponibilidade de alimentos


energeticamente densos (fonte de muitas calorias por grama) sem a correspondente
qualidade em termos de nutrientes essenciais.
Em particular, tem chamado à atenção o período de transição da adolescência à vida
adulta (15-24 anos), quando muitos comportamentos são agregados ou desapare-
cem do cotidiano dos jovens e remanescem pela vida adulta (Gordon Larsen et al.,
2004; Zick et al., 2007)).
A OMS reconhece como os principais comportamentos de risco entre jovens o ta-
bagismo, os comportamentos que resultam em lesões e violência, o consumo de ál-
cool e outras drogas, os hábitos alimentares inadequados, o estilo de vida sedentário
e o comportamento sexual de risco (WHO, 2005).
Sabe-se que é preciso agir desde cedo, educando, motivando e criando oportunida-
des para as mudanças de comportamentos relacionados à saúde, visando melhores
condições de saúde e bem-estar, no presente e no futuro. Nesta missão ao mesmo
tempo educacional e de saúde pública, nenhum contexto tem a abrangência e es-
pecificidade disponíveis no sistema escolar (Sallis & McKenzie, 1991; Baranowaski
et AL., 1998; Pate et al., 2002).

2. O projeto SAÚDE NA BOA


Com essas questões em mente e considerando as evidências epidemiológicas dis-
poníveis, desenvolveu-se um estudo que teve por objetivo observar os efeitos de
uma intervenção de base escolar planejada para reduzir riscos de obesidade, em par-
ticular a exposição à inatividade física e maus hábitos alimentares, entre adoles-
centes de duas cidades brasileiras: Florianópolis, SC e Recife, PE. Esta intervenção
ocorreu durante o ano letivo de 2006 em 10 escolas estaduais (cinco em cada ci-
dade), com outras 10 servindo como grupo controle.
O projeto fundamentou-se nas proposições do programa Escolas Promotoras de
Saúde, da Organização Mundial da Saúde (WHO, 2005), e o Guia para Programas de
Saúde nas Escolas e Comunidades, do Centro de Controle e Prevenção de Doenças
nos Estados Unidos (www.cdc.gov). As atividades foram organizadas em três áreas
principais: (a) mudanças organizacionais e ambientais; (b) modificação curricular
em Educação Física; e (c) capacitação de professores de Educação Física para ques-
tões de saúde na juventude.
Justificou-se este projeto pelas evidências internacionais e locais de que o excesso
de peso entre adultos e crianças vem aumentando rapidamente nas últimas déca-
das. A OMS estima que, no mundo existam mais de um bilhão de pessoas com ex-
cesso de peso (Índice de Massa Corporal – IMC - maior ou igual a 25), com a
perspectiva de se ver esse número aumentar para 1,5 bilhões até 2015, caso não
sejam tomadas medidas urgentes (WHO, 2005). No Brasil, dados do IBGE (2004),
indicavam que cinco em cada dez adultos tinham excesso de peso, incluindo 11%
classificados como “obesos” (IMC=30 ou superior). E essa proporção tem aumen-
tado rapidamente nas últimas décadas, principalmente entre os homens, acompa-
nhando a tendência mundial de ganho de peso na população, independentemente
da faixa etária.

232
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 233

Tendências Recentes de Excesso de Peso e obesidade no Brasil


(% da população adulta; IMC = peso (kg) / estatura2 (m)

Período Excesso de Peso (IMC³25) Obesidade (IMC³30)


Homens Mulheres Homens Mulheres
1974/751 18,6 28,6 2,8 7,8
19891 29,5 40,7 6,1 12,8.
2002/20031 41,0 40,0 8,9 13,1
20082 47,3 39,5 12,4 13,6
1
POF/IBGE (IBGE, 2004)
2
VIGITEL (Brasil / MS, 2008) - dados apenas das capitais

Entre crianças e adolescentes, observa-se que, em apenas duas décadas (1974/75 a


1996/97), houve um aumento de 4,1% para 13,9% na prevalência de indivíduos com
excesso de peso (Wang, Monteiro & Popkin, 2002). Em Santa Catarina, um estudo
com amostra representativa dos estudantes do ensino médio (15 a 19 anos) mostrou
que aproximadamente um terço dos jovens era insuficientemente ativo e metade re-
feria alimentação pouco saudável (Nahas, De Bem, Barros et al., 2005). Esses compor-
tamentos de risco eram mais prevalentes entre os alunos do turno noturno, que, à
época, representavam aproximadamente 50% do total nas escolas públicas estaduais.
Está claro que o aumento da obesidade tem relação direta com estes dois aspectos do
comportamento em todas as idades: a inatividade física e alimentação inadequada.
Ainda que sejam comportamentos modificáveis, tal processo é sabidamente com-
plexo, como é complexo compreender qualquer aspecto do comportamento humano.
Com esta complexidade em mente, a OMS considera a escola um dos locais privile-
giados para intervenções que possam promover hábitos mais saudáveis e reduzir os
riscos de diversas doenças, incluindo a hipertensão, o diabetes e a obesidade.
Embora existam dados sobre a prevalência de diversos comportamentos relaciona-
dos à saúde em várias regiões do Brasil, pouco se sabe, até esta data, sobre a efetivi-
dade de intervenções que promovam hábitos alimentares saudáveis e atividade
física no ambiente escolar, particularmente entre estudantes que freqüentam o en-
sino noturno.
Assim, este estudo de intervenção foi realizado para verificar a efetividade de um
ano de intervenção em escolas estaduais do ensino médio de duas regiões brasileiras
(nordeste e sul), representadas pelas cidades de Recife e Florianópolis. A intenção
era desenvolver ações integradas, de baixo custo e culturalmente relevantes, que
pudessem ser replicadas e disseminadas em outras escolas de ensino médio.

Definição do problema que justificou este projeto


Aproximadamente um terço dos estudantes do ensino médio em Santa Catarina
não são ativos fisicamente segundo recomendações internacionais (≥ 300 min/ sem
de atividades moderadas a vigorosas), e aproximadamente a metade desses jovens
tem hábitos alimentares pouco saudáveis. Esses comportamentos predisponentes
à obesidade tendem a ser mais prevalentes entre os estudantes do período noturno
(Nahas et al., 2005).

233
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3. Métodos
População e amostra
A população alvo deste estudo incluiu alunos do ensino médio matriculados no pe-
ríodo noturno das escolas estaduais de Florianópolis (aproximadamente 13 mil alu-
nos em 43 escolas), e em Recife (aproximadamente 50 mil alunos em 113 escolas).
A faixa etária na amostra compreendeu alunos de 15 a 24 anos, levando em consi-
deração o perfil etário dos alunos que freqüentam o ensino médio noturno. A esco-
lha dessa população decorreu das seguintes evidências: (a) 70% dos estudantes do
ensino médio freqüentam escolas públicas; (b) em torno de 50% dos estudantes
nesse nível estudam a noite; (c) a inatividade física e os maus hábitos alimentares
são mais prevalentes entre estudantes do período noturno; (d) Florianópolis e Re-
cife podem proporcionar comparação da efetividade da intervenção entre jovens
estudantes de duas regiões diferentes do país.
Neste estudo, as escolas dos grupos de intervenção (10 escolas, cinco em cada ci-
dade) e controle (também cinco em cada cidade) foram selecionadas aleatoria-
mente, após terem sido pareadas a partir de informação sobre o porte e a localização
da escola em cada cidade. As avaliações do impacto foram feitas através de questio-
nário aplicado em três ocasiões: março (baseline) e dezembro (pós-intervenção) de
2006, e junho de 2007 (follow-up). Todos os alunos do ensino médio noturno foram
expostos à intervenção, mas responderam ao questionário aqueles pertencentes às
turmas de primeiro e segundo anos (2006), dentro da faixa etária considerada (15 a
24 anos).
Considerando os cálculos amostrais necessários para garantir representatividade e
poder de demonstrar diferenças significativas nas observações (se elas realmente
existissem), estimou-se que seria necessária uma amostra com, pelo menos, 1.872
estudantes. Considerando as perdas que poderiam ocorrer pela evasão escolar,
foram aplicados, aproximadamente, 2.500 questionários, buscando assegurar, ao
término da intervenção, o número mínimo desejado.
Basicamente, a intervenção concentrou-se nas seguintes ações:

1. Informar e motivar: Promover campanha informativa sobre a importância de


um estilo de vida ativo e de uma alimentação saudável – agora e para o futuro
(palestras, cartazes, folhetos, página na internet);
2. Capacitar professores: Promover curso de aperfeiçoamento para professores de
Educação Física com o intuito de modificar os programas da disciplina, incluindo
informação e experiências promotoras de hábitos mais saudáveis;
3. Modificar ambiente e normas: buscar parcerias e criar condições para a oferta de
lanches mais saudáveis (distribuição semanal de frutas), acesso a atividades es-
portivas/ recreativas nos finais de semana; incentivo à participação nas aulas de
Educação Física e deslocamento ativo para a escola.

As orientações do CDC para que programas de Educação Física possam efetiva-


mente contribuir para a adoção de um estilo de vida fisicamente ativo, agora e por
toda a vida, incluem os seguintes elementos no currículo escolar:

234
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 235

1. Enfatizar a participação em atividades físicas prazerosas e que possam ser prati-


cadas por toda a vida;
2. Oferecer uma diversidade de atividades competitivas e não-competitivas para
as diferentes idades, níveis de interesse e capacidade;
3. Proporcionar aos jovens habilidade e confiança, necessárias para a prática regular
de atividades físicas;
4. Promover a atividade física através de todos os componentes curriculares e por
meio de ações coordenadas envolvendo a escola e os programas comunitários.

Variáveis do estudo
Os comportamentos que foram pesquisados e considerados para efeito de avaliação
da intervenção foram determinados a partir da literatura específica (Baranowski
et al., 1998; Sallis et al., 2000; Salis et al., 2001) incluíram: (a) prática de atividades
físicas (número de dias da semana em que o jovem acumulava 60 minutos ou mais
de atividades físicas de intensidade moderada a vigorosa - AFMV); (b) hábitos se-
dentários (horas por dia assistindo TV ou usando computador/ vídeo game; (c) con-
sumo de frutas e verduras (número de dias por semana em que o jovem referiu
consumo desses alimentos); e (d) consumo de refrigerantes (número de dias por se-
mana em que o jovem referiu consumo dessa bebida).
A escolha dos indicadores se deveu à prevalência desses comportamentos entre ado-
lescentes, a provável associação com o ganho de peso observado em outros estudos
publicados, o conhecimento acumulado de outras intervenções para mudança 6 de
comportamento, e os valores culturais associados com tais comportamentos
comportamento, e os valores culturais associados com tais comportamentos (Pate, Trost, (Pate,
Trost,Mullis
Mullis et2002;
et al., al., 2002; Wechsler
Wechsler et al., 2000).
et al., 2000).

Período de intervenção e avaliações


Período de intervenção e avaliações

Avaliações Principais Avaliações secundárias (sazonais)

Avaliação
Formativa

Inicial Intermediária Pós-intervenção Follow-up


Março 2006 Junho Setembro Dezembro 2006 Junho 2007

Avaliação do Processo
Relatório Final
Setembro 2007

PERÍODO DE INTERVENÇÃO

Avaliação formativa
Avaliação
Esta forma de formativa
avaliação serve para se conhecer as condições iniciais das escolas, in-
cluindo infra-estrutura, recursos disponíveis, estrutura curricular, professores e
Esta formapor
receptividade de parte
avaliação serve para
da direção se conhecer as
e responsáveis condições
pelas iniciais
cantinas. das informações
Essas escolas,
servem para identificar
incluindo possíveis
infra-estrutura, recursos discrepâncias entre escolas
disponíveis, estrutura curricular,intervenção
professores ee con-
trole,receptividade
evitando-seporque variáveis
parte intervenientes
da direção e responsáveis afetem os resultados.
pelas cantinas. Visitas preli-
Essas informações
minares às escolas e reuniões com a direção, professores e alunos forneceram
servem para identificar possíveis discrepâncias entre escolas intervenção e controle, as
informações iniciais necessárias para a avaliação formativa.
evitando-se que variáveis intervenientes afetem os resultados. Visitas preliminares às
escolas e reuniões com a direção, professores e alunos forneceram as informações
iniciais necessárias para a avaliação formativa.
235
Avaliação do processo

Esta forma de avaliação ocorreu durante todo o período de intervenção, com os


seguintes objetivos: (a) documentar se todos os aspectos da intervenção estão
acontecendo conforme planejado; (b) registrar se as etapas da intervenção ocorrem
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 236

Avaliação do processo
Esta forma de avaliação ocorreu durante todo o período de intervenção, com os se-
guintes objetivos: (a) documentar se todos os aspectos da intervenção estão aconte-
cendo conforme planejado; (b) registrar se as etapas da intervenção ocorrem dentro
do cronograma inicialmente previsto; (c) verificar se as atividades são consistentes
com a fundamentação teórica e princípios gerais da intervenção; (d) verificar se al-
guma modificação nas escolas controle pode ameaçar as comparações planejadas.
A parte mais formal da avaliação do processo foi conduzida por um avaliador inde-
pendente e permitiu que se fizessem as necessárias correções na intervenção du-
rante seu desenvolvimento. Reuniões periódicas foram realizadas entre a equipe
de intervenção e os avaliadores do processo, nas duas cidades em que se desenvol-
veu o projeto Saúde na Boa - Florianópolis e Recife.
Este projeto foi submetido e aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa com
Seres Humanos em Recife (Instituto Materno-Infantil de Pernambuco) e Florianó-
polis (UFSC).

4. Resultados principais
Com a intenção de que a intervenção fosse construída de modo a permitir sua dis-
seminação em outras escolas estaduais do ensino médio no país, enfatizou-se um
número limitado de variáveis e ações específicas. O foco foi nas mudanças de com-
portamentos alimentares (consumo de frutas e verduras, e consumo de refrigeran-
tes) e atividade física moderada a vigorosa acumulada ao longo da semana
(incluindo prática de exercícios e esportes durante a semana e o deslocamento para
a escola).
Partiu-se da hipótese de que os estudantes das escolas experimentais demonstra-
riam comportamentos mais saudáveis (alimentação e atividade física) após a expo-
sição à intervenção que aconteceu de março a novembro de 2006.
A intervenção foi planejada de acordo com os seguintes critérios: (a) incluir ativi-
dades culturalmente relevantes e de baixo custo; (b) enfatizar atividades simples e
fáceis de serem implementadas; (c) sempre que possível, incluir informações de
saúde nos programas das disciplinas; (d) as atividades deveriam ser facilmente man-
tidas e disseminadas para outras escolas após o período de intervenção. Esperava-
se que as ações planejadas pudessem modificar positivamente tanto as variáveis
mediadoras (conhecimento, atitudes, auto-eficácia), como os comportamentos (há-
bitos alimentares e atividade física).
As características dos estudantes dos grupos intervenção e controle são apresenta-
das na tabela a seguir. Em geral, 55,7% dos 2.155 sujeitos incluídos na amostra inicial
eram do sexo feminino, refletindo a realidade de que mais moças do que rapazes
freqüentam (e concluem) o ensino médio em escolas públicas. A média de idade de
18,4 anos (DP=2,3) também indica que uma significa parcela (um terço) dos estu-
dantes tem mais de 18 anos, sendo a faixa delimitada para este estudo entre 15 e 24
anos (a faixa da juventude, segundo a OMS).
Uma proporção maior de estudantes em Florianópolis tinha um emprego, conside-
ravam-se de pele branca, e consumiam menos frutas que seus correspondentes de
Recife. Em geral, os grupos controle e intervenção podem ser considerados seme-
lhantes no início da intervenção.

236
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 237

Perfil Geral dos Estudantes: Características demográficas


da amostra na avaliação inicial (n=2.155)

Florianópolis Recife Total


Intervenção Controle Intervenção Controle Intervenção Controle p6
Número de 5 5 5 5 10 10
escolas
Questionários 592 564 467 532 1.059 1.096
Válidos (n) % 60 55.4 56.9 50.1 58.6 52.8 <0,01
Mulheres
Idade- 18.1 (2.4) 17.2 (2.0) 19.1 (2.0) 19.4 (2.2) 18.5 (2.3) 18.2 (2.4) <0,01
Média (SD)
Trabalho 53.1 52.3 36.2 43.7 45.6 48.2 0,19
(% sim)
Mora com a 85.9 89.9 89.9 90.9 87.7 90.4 0,04
família (%)
Cor da pele 52.5 61.0 24.7 27.3 40.2 44.2 0,02
(% branca)1
Insuficiente- 55.1 66.7 59.3 56.0 56.9 61.5 0,03
mente ativos (%)2
Frutas - 57.1 59.0 52.2 47.5 53.4 54.9 0,47
baixo consumo3
Excesso de 17.3 13.3 17.9 16.9 17.5 15.0 0,12
peso corporal4
Percepção 72.5 71.4 71.9 73.9 66.2 64.9 052
positiva de saúde5

1 Auto-referida; 2 Menos de 5 dias/sem com 60 min+ AFMV; 3 Consumo em pelo menos 5 dias/sem;
4 IMC; Cole et al., 2000; 5 Excelente + Muito Boa + Boa; 6 Qui-quadrado

A prevalência de inatividade física foi medida pela referência de não realizar ativi-
dades físicas moderadas a vigorosas (AFMV) por um período acumulado de 60 mi-
nutos em nenhum dia da semana (Prochaska, Sallis & Long, 2001). Destaca-se que,
para ambos os sexos e nas duas cidades, houve um impacto significativo da inter-
venção na diminuição da proporção de estudantes que relataram não realizar ati-
vidades físicas em qualquer dia da semana. Isso reforça a idéia de efetividade do
projeto Saúde na Boa em relação à inatividade física dos jovens estudantes.

Impacto na proporção de estudantes ‘inativos’ (0 dias 60 min AFMV)

237
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 238

Impacto no consumo de FRUTAS (< 3 dias por semana)

Impacto no consumo de Refrigerantes (5+ dias por semana)

5. Dificuldades e limitações
A maior limitação deste estudo está relacionada com a redução no tamanho da
amostra entre as coletas, no início e no final do ano letivo de 2006. Pesquisa com-
plementar por telefone mostrou que isso se deveu, principalmente, à ocorrência de
greve de professores no período de desenvolvimento da pesquisa, tanto em Recife
quanto em Florianópolis. Uma análise das características dos sujeitos nas duas co-
letas (pré e pós-intervenção) revelou que as perdas foram mais significativas entre
sujeitos do sexo masculino e aqueles com idades entre 20 e 24 anos, mas de uma
forma similar em ambas cidades e nos grupos controle e intervenção. A perda equi-
valente nas duas cidades e grupos reduz a probabilidade de alteração significativa
nas características da amostra em função do elevado abandono dos escolares.
A pesquisa complementar (por telefone) realizada com 249 estudantes que aban-
donaram seus cursos naquele ano ajudou a entender as causas e períodos em que
esses alunos deixaram de ir às aulas. Aproximadamente um terço deles afirmou ter
deixado a escola para trabalhar. Outros haviam mudado de cidade ou deixaram de
ir às aulas por problemas de saúde. Independentemente da razão alegada, o maior
número de desistências ocorreu durante as greves de professores. Aproximada-

238
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 239

mente 15% não se encontravam na escola durante o período de coleta, que durou
aproximadamente 10 dias, e 54% dos respondentes afirmaram que pretendiam re-
tornar à escola no ano seguinte.
Algumas dificuldades na implementação da intervenção foram:

(a) Os recursos iniciais para o desenvolvimento do projeto foram repassados com


um semestre de atraso;
(b) Em ambos os estados (Santa Catarina e Pernambuco) as informações sobre o nú-
mero de turmas e de alunos no ensino médio noturno só foi confirmado pelas
Secretarias de Educação no final do mês de março ou início de abril;
(c) Os professores em geral (incluindo os de Educação Física) demonstraram, desde
o início dos contatos, certa resistência à mudança relativa aos seus métodos de
atuação, além de se sentirem desmotivados para a inclusão de novas estratégias
e experiências ligadas ao projeto Saúde na Boa. Tal desmotivação era justificada,
geralmente, pelos baixos salários e excesso de aulas ministradas ao longo da se-
mana.
(d) Durante o desenvolvimento do projeto (2005-2007), as aulas foram suspensas
por motivo de greve dos professores por um período aproximado de 40 dias le-
tivos, tanto em Recife quanto em Florianópolis.
(e) Os proprietários das lanchonetes/cantinas não cooperaram com o projeto, de-
monstrando claro descontentamento com qualquer iniciativa que envolvesse a
promoção de hábitos alimentares saudáveis, inclusive quando já havia imposi-
ções legais, como no caso das escolas catarinenses.

Diversas publicações com relatos deste projeto estão disponíveis em periódicos es-
pecializados: (a) Validação do instrumento de coleta (Nahas et al., 2007); (b) Des-
crição dos métodos do projeto (Nahas et al., 2009a): Efetividade da intervenção –
atividade física (Barros et al., 2009); e Comparação de dados entre cidades (Nahas
et al., 2009b).

6. Conclusões gerais
Este estudo foi proposto para observar os efeitos de uma intervenção de base escolar
nos hábitos alimentares e de atividade física de estudantes do período noturno das
escolas estaduais de ensino médio de Recife e Florianópolis. Tais cidades foram es-
colhidas por representarem realidades sócio-culturais distintas neste país.
O projeto Saúde na Boa foi planejado em tal maneira que envolvesse relativamente
poucos recursos, com ações simples realizadas pelos próprios membros da comuni-
dade escolar, com particular destaque para os professores de Educação Física. A
equipe de pesquisa dava o necessário suporte e orientação, mas as ações eram efe-
tivadas pelos professores e funcionários, uma vez que se pretendia que tais inicia-
tivas pudessem ser continuadas e disseminadas.
Diversos artigos foram publicados e outros estão sendo desenvolvidos, e as princi-
pais conclusões sobre a efetividade da intervenção podem ser apresentadas: (a) A
intervenção mostrou-se efetiva na redução da proporção de estudantes que relata-
vam não realizar, nenhum dia da semana, 60 minutos de atividade física moderada

239
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 240

a vigorosa (AFMV); (b) A proporção de estudantes que relatou incluir frutas e ver-
duras em sua alimentação em menos de três dias por semana diminuiu significati-
vamente no grupo de intervenção, aumentando no grupo controle; (c) O consumo
de refrigerantes (dias de consumo por semana) diminui no grupo de intervenção,
mas não se modificou no de controle.
A possibilidade de se expandir o projeto para outras escolas e localidades deve ser
considerada. Autoridades das áreas de saúde e educação podem utilizar as evidências
deste estudo de intervenção e de outros similares para orientar e justificar investi-
mentos para promover hábitos mais saudáveis na população estudantil do ensino
médio, em particular os que freqüentam as escolas públicas no período noturno.
Não se pode afirmar que as evidências deste estudo possam ser estendidas aos alu-
nos do período diurno, mas as dificuldades seriam certamente menores do que as
encontradas no ambiente noturno.

Financiamento:
ILSI / PAHO / CDC – Healthy Lifestyles, Healthy People Project
CNPq

240
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 241

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242
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 243

Obesidade: um problema (também) cultural


Rui Proença Garcia
Universidade do Porto
Faculdade de Desporto
Centro de Investigação, Formação, Inovação e Intervenção em Desporto
Fátima Santos
Universidade Fernando Pessoa
Faculdade de Ciências da Saúde / Escola Superior de Saúde
Bolseira (SFRH/BD/36614/2007) da Fundação para a Ciência e a Tecnologia

Introdução
O mundo de hoje está a passar por uma forte zona de turbulência. É o desencanto
da economia, são as tensões religiosas – civilizacionais? – que emergem um pouco
por todo o lado, são as agressões ambientais provocadas por alguns e sentidas por
todos. Enfim, convulsões que põe a nu a falácia de um sistema que tudo prometeu
e pouco conseguiu cumprir.
No que diz respeito ao desencanto da economia parece que estamos a viver um pe-
ríodo análogo àquele ocorrido no final dos anos 20 do século passado. Para Jean La-
croix (in 31) a crise económica de 1929 inscreveu-se na vastidão de uma crise
axiológica que colocou o homem numa situação periférica em relação a valores es-
cusos. O desenvolvimento científico também não fica imune às crises do ser hu-
mano, reflectindo essas convulsões, resistindo a algumas e cedendo a outras.
Estamos no limiar de uma nova forma de ver os problemas, fazendo convergir múl-
tiplas visões para o mesmo fenómeno, rejeitando abordagens únicas e indiscutíveis.
A complexidade não pode ser invocada apenas como uma subtileza semântica para
desresponsabilizar as nossas incapacidades para lidar com fenómenos que necessi-
tam de abordagens profundas e diferenciadas.
Edgar Morin (27) apresenta a ideia de um novo cientista. Compara-o a um chefe de
orquestra que convoca vários conhecimentos (instrumentos musicais) em harmo-
nia para compreender um determinado fenómeno, embora não dominando ne-
nhum desses instrumentos.
Também temos pretensões de convocar para a compreensão do sedentarismo/obe-
sidade o maior número de instrumentos da orquestra do saber. Tarefa ingrata pois
nem ao menos conhecemos os seus nomes, muito menos as suas sonoridades.
Temos uma ideia do som do violino, do piano ou de um ou outro instrumento de
percussão. Queremos juntá-los para que assim consigamos escutar o som do uni-
verso, o som da vida, no fim de contas a sinfonia universal lembrada pelos estóicos.
Provavelmente estamos perdidos num labirinto e por isso, quais desesperados, so-
corremo-nos de tudo para ultrapassar as dificuldades impostas pelo desconhecido.
Lembramo-nos de Wittgenstein (37: 103) quando, num dia do ano de 1948, afirmou
não sabemos do que é que andamos à procura até o encontrarmos. Não sabemos qual é
o caminho, mas vamos por aqui porque cremos que será a melhor via para alcançar

243
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 244

o esplendor da verdade. No fim de contas não estaremos muito distantes do famoso


círculo hermenêutico enunciado por Paul Ricoeur (32), para quem o ponto de par-
tida para o conhecimento é uma crença (crer para compreender, compreender para
crer). Somos ambiciosos ao afirmar que não queremos somente acreditar mas saber.
Pode ser uma ilusão, mas também poderá ser um caminho de busca.
Reconhecemos que não somos virtuosos no uso de vários dos instrumentos da
nossa orquestra. Contudo, resolvemos convocar a antropologia, a filosofia, a tecno-
logia, a etnobiologia e a geologia/climatologia para tentar perceber as razões genési-
cas do sedentarismo e da obesidade que por aí grassam neste nosso mundo. Pode
ser que consigamos alguns acordes harmoniosos.
A obesidade é um fenómeno de dimensão global, não estando apenas circunscrito
a alguns países ou sociedades. Países ricos ou pobres, zonas favorecidas ou desfavo-
recidas, classes sociais de elevados ou de baixos rendimentos estão sujeitos a este
flagelo global. É um dos maiores problemas actuais da comunidade médica, consti-
tuindo-se como uma verdadeira epidemia, cujas consequências não estão ainda to-
talmente avaliadas (29, 30, 36). A Organização Mundial de Saúde tem alertado para
este problema e muitas instituições governamentais também o têm feito. As cam-
panhas na comunicação social são diárias, mas o problema agrava-se dia após dia,
alastrando-se por todo o lado, mesmo para regiões que até há bem pouco tempo pa-
reciam imunes a este mal, como são os casos de alguns países da longínqua ásia. Pa-
rece que estamos a travar uma guerra há muito condenada ao insucesso.
A bibliografia de uma forma geral e o senso comum – muitas vezes alicerçado no
saber científico – apontam duas causas principais para explicar o actual estado das
populações: excesso alimentar e falta de exercício físico (2, 17, 18). Estes dois ins-
trumentos são aqueles que mais se fazem ouvir, mas provavelmente será necessário
ouvir outros instrumentos para podermos perceber com harmonia a extensão deste
problema de saúde pública.
A validade explicativa dos dois argumentos apresentados é indiscutível, mas cremos
que são mais fruto de consequências de causas mais profundas e longínquas que se
perdem na escuridão de longos milénios.
Assim, o propósito deste trabalho é tentar buscar as razões genésicas que desenca-
dearam um longo processo que permitiu que o actual ser humano progrida para a
obesidade. Para concretizar tal propósito convocamos várias áreas de conhecimento,
nomeadamente aquelas já referidas, com o intuito de tentar integrar a obesidade
numa visão geral do ser humano, não ficando prisioneiro de percepções parcelares
de um fenómeno que é multifacetado.

O espanto
Em tempos aprendemos na Metafísica de Aristóteles que a filosofia tem origem num
espanto. Ampliando este princípio para todo o tipo de conhecimento, podemos con-
siderar a existência de um espanto perante as coisas e de um outro espanto perante
o ser. É espantosa a harmonia do universo, a criação da vida e tantas outras coisas
que nem reparamos dada a velocidade a que vivemos. É espantoso o que nos rodeia,
desde o desabrochar de uma simples flor até à mais sofisticada máquina construída
pelo génio humano.

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livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 245

Também é para nós um espanto que haja um ser que viva pensando, que tenha cons-
ciência que é sábio (homem sábio sapiente – homo sapiens, sapiens – ou seja, homem
sábio que sabe que o é), que perceba a sua finitude e que ao mesmo tempo se consi-
dere um ser ínfimo e grandioso.
Tudo isto é causador de espantos, mas também é maravilhoso que nos deleitemos com
pequenos aspectos do nosso quotidiano, de pequenos gestos e atitudes que nos parecem
corriqueiros, ou com factos colossais e insondáveis como é o caso da nossa origem.
O homem é recente na história do cosmos. Sem entrar em grandes detalhes, se fosse
possível comprimir o tempo do universo a um ano (o big-bang teria acontecido às 0
horas do dia 1 de Janeiro) o homo sapiens sapiens apareceria apenas nos últimos mo-
mentos do dia 31 de Dezembro. Porém, falamos de 100.000 anos1. É um pequeno
lapso de tempo cósmico mas um longo tempo humano. A evolução dos seres vivos
é lenta quando vista pelo relógio humano, mas mesmo assim alguém nascido há
30.000 anos poderia viver entre nós. As suas capacidades seriam iguais às nossas.
Tim Ingold (19) afirma que os cérebros desses seres humanos são em tudo iguais
aos actuais. Até aqui nada de estranho. Contudo, quando viajamos um pouco por
este mundo verificamos que grandes acontecimentos que marcam a humanidade
como a invenção da escrita, edificações relevantes, sítios arqueológicos considera-
dos pela UNESCO como fazendo parte do património da humanidade são recentes,
tendo menos de 10.000 anos.
Apenas para ficarmos com uma ideia sobre o tempo, convém sublinhar que Biblos,
a cidade habitada mais antiga do mundo, a actual Yabayl situada a sul de Beirute,
teve a sua origem em 5000 a.C., isto é, há cerca de 7.000 anos; que as pirâmides do
Egipto foram construídas há cerca de 4.500 anos; e que a fundação do famoso Reino
da Babilónia aconteceu há 4.300 anos. Mais antigas são as origens de Jericó, 9.000
anos, mas mesmo assim dentro do lapso de tempo considerado.
O próprio Dilúvio, figura de grande importância na religião cristã, deverá ter ocor-
rido no sexto milénio antes da nossa era, embora este acontecimento deva ser ana-
lisado por um outro referencial que não apenas pelo diapasão da ciência.
A invenção da escrita também só tem meia dúzia de milhares de anos. A roda, ele-
mento técnico tão elementar nas nossas vidas, terá sido inventada também há
5.000 ou 6.000 anos. Não mais do que isso!
Sócrates, apenas como curiosidade, nasceu por volta de 470 a.C. Só por aqui ficamos
com uma noção um pouco mais clara da contingência do tempo.
A velocidade humana, qual drama na percepção de Michel Mafesolli (25), é uma
constante em muitos domínios. Tudo acontece com uma velocidade estonteante,
não havendo sequer tempo para compreender os acontecimentos que estão a de-
correr, uma vez que outros já se precipitam. Também a sequência de civilizações
que nasceram e desapareceram nos últimos 10 milénios tem sido impressionante,
pelo que importa tentar descortinar qual o acontecimento que permitiu que tal
evolução se registasse na humanidade. Não foi decerto apenas uma simples vontade
de construir tanto em tão pouco tempo, numa clara ruptura com o passado imemo-
rial, que levou o homem a actuar desta forma.
Cremos que houve uma razão profunda, talvez singular, que levou o nosso ante-
passado a construir cidades, monumentos, a escrever, a inventar, a instalar-se no

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mundo como se estabeleceu, organizando-se originalmente tal como o fez. Estamos


certos que foi algo marcante, universal e tangível que possibilitou um autêntico
salto civilizacional. Finalmente, estamos certos que talvez encontremos aí a razão
mais profunda causadora do sedentarismo e da obesidade.

A marca do Planeta na vida humana


Afirma Jean Demangeot (10: 132) que nenhuma zona bioclimática actual é indemne
às heranças do Quaternário. Até há 10.000 anos, início da época denominada de Ho-
locénico, o clima era uma sucessão de épocas frias e de outras quentes. A partir de
então, o clima estabilizou-se, alterando o tipo de vida das pessoas: de uma vida pre-
datória passou-se para um tipo de vida baseado na produção de alimentos.
A passagem nas sociedades humanas de uma vida centrada na recolha de produtos
oferecidos de forma espontânea pela natureza para uma outra, em que se produz
de modo regular e controlada os seus alimentos, é vista como a mais importante re-
volução na história humana. Para Kluckhohn (21) estamos perante o mais signifi-
cativo acontecimento da história da humanidade que permitiu ao homem
guindar-se ao patamar em que se encontra. Edgar Morin (27) também contribui para
o realce que tem de ser atribuído a este fenómeno, pelo que se torna inevitável abor-
dar este tema para compreendermos as nossas raízes mais profundas e que marcam
a actual forma de viver.
Encontramos em Jacques Barrau (1) uma interessante afirmação metafórica que
pode sintetizar com bastante acuidade a extrema importância que teve para o
homem o processo da domesticação de plantas e de animais: libertou o homem do
impasse do estado selvagem. É evidente esta evolução não foi instantânea, levando
milénios a generalizar-se por todo o Planeta, devendo ser tomada como um conti-
nuum e não como um momento mais ou menos feliz da humanidade.
Quando cruzamos os dados da geologia e da climatologia com outros provenientes,
por exemplo, da história ou da antropologia, verificamos que existem algumas re-
lações. O período considerado como sendo de história, em contraponto com a pré-
história, desenvolve-se todo ao longo dessa época geológica, o Holocénico, isto é,
durante um longo e não habitual período de tempo quente e estável. Há muito que
existiam homens, mas deles pouco resta. Outra curiosidade reside na evolução da
população mundial que sofre um brusco e continuado aumento a partir exacta-
mente de há cerca de 10.000 anos, embora com uma grande acentuação a partir da
utilização intensiva dos combustíveis fósseis (20). De alguns milhões, poucos, há
10.000 anos, até aos mais de seis mil milhões de habitantes de hoje, todo um au-
mento populacional se verificou em tão pouco tempo, pelo que as alterações à na-
tureza, algumas delas críticas, não deverão ser caso para espantos. O homem, como
haveremos de voltar a referir, assume-se como uma autêntica força capaz de ade-
quar o planeta aos seus interesses e caprichos, possuindo uma força equivalente a
muitos vulcões.
A respeito da tardia consciência das alterações climáticas induzidas pelo homem é
curioso verificar que o próprio Teilhard de Chardin (4: 146) dizia que a Vida na Terra
parece desenvolver-se com uma margem suficientemente larga (…) para que nesta direc-
ção, nenhum perigo sério se anuncie, salvo, momentaneamente, do lado da destruição

246
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 247

das terras aráveis. O mundo não mudou assim tanto nos últimos 50 anos, tempo de-
corrido desde que esta frase foi pronunciada. O que se alterou, estou certo, foi a
consciência pelo dramatismo da situação. Passámos da consciência de um mundo
aterrorizador para um outro a evidenciar uma tremenda fragilidade. A um Planeta
vitorioso sucedeu-se uma t(T)erra queimada, destruída, vencida pelo descomunal
poder adquirido pelo homem. Os desertos ampliam-se. Os oceanos sobem conti-
nuamente. As condições climatéricas degradam-se sem cessar provocando despren-
dimentos das calotes polares, numa incrível sucessão de causas-efeitos que
produzem novas causas e assim por diante, quase até à possibilidade do absurdo da
aniquilação total da vida no planeta. O homo demens de Edgar Morin2 mostra-se em
toda a sua plenitude.
Um vulcão pode entrar em erupção unicamente por causas naturais, expressando
apenas a necessidade do interior terrestre de se descomprimir. Contudo, na inge-
nuidade do cidadão comum, a causa já não é apenas atribuída à natureza mas tam-
bém ao homem. No fim de contas estamos perante uma derivação do chamado
efeito de borboleta. Se uma simples mariposa bate as asas em Hong-Kong, lá longe,
em Nova Iorque, acontece um furacão. Se alguém se constipa e espirra na Europa,
acontece um terramoto nas mais recônditas regiões asiáticas. A escala não será
muito diferente, pelo menos na visão simples de quem é vítima de fenómenos da
natureza. A globalização é um jogo que se desenvolve em muitos tabuleiros. Tam-
bém se joga no campo do simbólico.
Perante esta autêntica cascata de acontecimentos é legítimo concluir que o tempo
do Holocénico ou pós-glaciar, tem um significado muito para além daquele impre-
ciso normalmente atribuído aos tempos geológicos. O Holocénico é a nossa época,
onde o homem se desenvolveu de sobremaneira, criando uma ruptura em relação
a uma existência antiquíssima.
A necessidade de dividir o tempo em períodos levou a que se considerasse a história
a partir da invenção da escrita, ou seja por volta do ano de 4000 a.C. A história com-
porta assim 5 a 6 milénios (15), o que significa que a maior parte do tempo de exis-
tência da humanidade não é devidamente considerada.
Atribuindo-se o valor que se queira conceder a Santo Agostinho (33), cremos que é
muito interessante verificar que este extraordinário homem da Igreja Católica tenha
proposto a data de 5000 a.C. para a criação do universo, o que nos atira para os inícios
do Holocénico, não podendo separar-se esta criação da própria criação humana.
As grandes edificações surgem apenas nos últimos milénios. Parece que tudo se
centrou nesse breve período de tempo. Que terá acontecido para que tal tivesse
ocorrido? Ao que parece, e de acordo com inúmeros especialistas, alguns dos quais
já referenciados, surgiu a agricultura. Muito provavelmente a história recente do
homo sapiens sapiens se funde com a história da agricultura (1), que se tornou pos-
sível por via de uma profunda alteração ambiental.
Intimamente associada à agricultura, a que Jacques Barrau (1) denomina de domes-
ticação das plantas, colocando-a a par da domesticação de animais, fazem o seu apa-
recimento a ideia de propriedade, de hierarquia, de desigualdade, enfim, da
sociedade devidamente organizada, como nos lembra ainda Dominique Simonnet
(35). Neste mesmo sentido apontam as palavras de Jean-Marie Pesez (28) quando

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discute o conceito de aldeia, ligando a sua origem aos primórdios da domesticação


do mundo natural.
Com efeito, há cerca de 8.000 a 10.000 anos que impera um novo tipo de vida,
provavelmente criado ou introduzido a partir da ásia Ocidental, que levaram a
que as populações se sedentarizassem3 pela primeira vez na história da humani-
dade, pelo menos com a prevalência que então tomou em relação a qualquer outra
forma de vida.
Que tempo fabuloso foi esse dos primórdios da agricultura e da domesticação de
animais! Durante centenas de milhares de anos os nossos antepassados – tantos os
próximos como os nossos ancestrais longínquos – desenvolveram uma vida baseada
essencialmente no nomadismo, na caça e na recolecção e de um momento para o
outro todo este mundo se esboroa, irrompendo uma nova forma de estar. Parece
que estamos perante uma incrível revolução ou perante o corolário de uma gradual
evolução humana. Jean Guilaine (16) aponta o caminho em direcção a uma progres-
siva evolução ocorrida em simultâneo em várias partes do mundo.
Práticas imemoriais alteraram-se rapidamente. Estamos perante uma singularidade4
que importa aprofundar. Da vida errante de outros tempos passou-se para a vida
em comunidade, presumivelmente junto a cursos de água, onde as plantas e os ani-
mais se poderiam desenvolver com relativa facilidade. Um novo cenário se afigura
ao homem, que passa por uma sua rápida multiplicação, provocando ajustamentos
na vida de relação até então desnecessários. É de crer que este novo ambiente tenha
desencadeado toda uma série de inovações tecnológicas e sociais para fazerem face
aos novos desafios provocados pelo sedentarismo. Com a domesticação de animais
e com o domínio sobre o plantio de plantas o aporte proteico e de hidratos de car-
bono ficou facilitado, sendo possível estabelecer uma certa relação com um surto
demográfico que levou à criação das bases do poder instituído em forma de estado,
o que ocorreu há cerca de 5.000 anos (22).
Em suma, uma das consequências do clima instaurado há cerca de dez milénios, no
início do Holocénico, foi a criação das bases da sociedade contemporânea, onde se
assiste a uma radicalização da vida sedentária que indiscutivelmente leva ou levou
à obesidade.
Os pontos a seguir expostos sintetizam bem toda a argumentação sugerida nos pa-
rágrafos anteriores, contribuindo para a eventual formulação de uma hipótese cul-
tural sobre a instauração do sedentarismo e da obesidade nos nossos dias,
apresentando uma sequência lógica das consequências do processo de domesticação
da natureza:

1. Há cerca de 10.000 anos apareceram os primeiros traços da domesticação com in-


teresse económico, em especial no Alto Eufrates, dominando o homem animais
como o porco, o carneiro e a cabra;
2.Cerâmica desenvolvida no próximo oriente há cerca de 7.000 anos;
3.Prenúncios de uma urbanização;
4.Desenvolvimento da metalurgia;
5.Surgimento das grandes civilizações da antiguidade clássica.

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Estamos perante um dos mais importantes factores que desencadeou o despertar


da civilização, com todas as grandezas e fragilidades resultantes deste salto no de-
senvolvimento do ser humano.
O mundo sofreu uma lenta mas constante evolução, assumindo-se a aldeia como o
centro, assistindo-se a uma fixação das populações em torno de um lugar. Segundo
Richard Dawkins (9) foi nesse momento que nasceu o conceito de lar. A grande mo-
bilidade do passado dá lugar ao sedentarismo, pelo menos no que respeita ao grosso
da comunidade. De predador nómada, o homem passou para produtor sedentário.
Que evolução surpreendente! Tudo se alterou, desde a alimentação até às relações
de poder, sendo até possível intentar perceber as razões da expansão colonialista a
partir do uso doméstico dos animais e das plantas. Jared Diamond (11) fez esse exer-
cício intelectual, pelo que recomendamos a leitura da obra indicada na bibliografia
para todos aqueles que queiram verificar que fenómenos, distantes vários séculos,
se podem interligar, obtendo-se uma visão de mundo bem diferente daquela que é
proporcionada pela noção de períodos históricos mais ou menos estanques.
Não será muito difícil propor um modelo conceptual, qual cascata de acontecimen-
tos, que levaram o homem a adoptar um comportamento tendencialmente seden-
tário ao longo dos últimos século:

1. Alteração climática que possibilitou a existência de um clima com poucas varia-


ções;
2.Crescente sedentarização do homem que implicou:
a. Domínio da agricultura;
i. Mais alimento disponível com menor esforço;
b. Domínio da domesticação de animais;
i. Mais alimento disponível sem esforço e meios de trabalho e de transporte
sem grande esforço físico
3.Necessidade de desenvolvimento tecnológico para fazer face às exigências da agri-
cultura cujo sentido último é a diminuição do esforço físico;
4.Maior disponibilidade alimentar o que permitiu um aumento populacional;
5.Por via desse aumento possibilitou-se o controlo de determinadas doenças que,
qual dialéctica, tem como consequência um aumento sustentável da população;
6.Aparecimento de uma nova organização social onde há uma clara distinção das
pessoas pela mobilização da força física para o quotidiano.

É óbvio que este quadro-resumo não termina no ponto 6, sendo possível alargá-lo
um pouco mais, mas neste momento não será necessário proceder de tal forma.

Sedentarismo: mal do século ou consequência de milénios?


Com o fim da era glacial, instalou-se uma nova forma de estar perante o mundo. É
muito provável que se tenham alterado práticas, atitudes e comportamentos, nas-
cendo, qual metáfora, um novo homem, tal terá sido a grandeza das modificações
registadas na vida humana. A Terra, a Terra-Mãe dos poetas, é, tem de ser, muito
mais do que um simples cenário da vida. As alterações de dimensão macro havidas
no Planeta, reflectir-se-ão num ser que há muito pensava, criava e se adaptava aos

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diversos condicionalismos que se sucediam. O fim de um tempo, neste caso com


características glaciais, marcará também a aurora de uma nova existência, de uma
maneira inovadora de se relacionar com o meio ambiente.
Segundo Desmond Clark (5: 205), desta época conhece-se largo número de acampa-
mentos de grande densidade, o que nos permite supor um notável aumento da população
global, dos hábitos sedentários e da utilização das terras, pelo que é possível concluir-
se sem mais esforço argumentativo que a vida sedentária começou a estar inerente
à forma de vida adoptada.
Grande parte dos autores já citados descrevem inúmeros exemplos que atestam a
tese do sedentarismo das populações a partir de há 8.000 a 10.000 anos, povos esses
espalhados um pouco por todo o território do globo, excepto na Austrália que, se-
gundo Jared Diamond e Josephine Flood (11, 12, 14), manteve as mesmas caracte-
rísticas anteriores, não havendo indícios do desenvolvimento da agricultura e de
domesticação de animais em grande escala.
Exceptuando grande parte do continente australiano, o homem pressionou, de
modo sistemático, o ambiente, estando ele próprio submetido a um enorme stress
adaptativo a vários níveis, tudo levando a crer que os nossos limites ainda não te-
nham sido alcançados. A adopção de comportamentos diferenciados, cada vez mais
regulados ou resultantes de culturas, encaminharão o homem para novos rumos,
possibilitando lentas adaptações mesmo ao nível biológico. As tolerâncias ao leite
animal e ao trigo podem atestar pequenas mas importantes adaptações do nosso or-
ganismo a novas condições alimentares.
Não é plausível pensar que a evolução humana tenha chegado ao seu término com
o homo sapiens sapiens. Nem acabou, nem começou a partir dele, ou seja, de nós.
Nem, tão pouco, começou uma nova evolução com a chegada dele, a nossa chegada,
ao palco da vida. Estamos perante uma impressionante continuidade, pelo que é de
admitir futuras alterações a variados níveis do ser humano.
Todavia, não podemos classificar as possíveis mudanças num organismo como ex-
pressão da ou de uma evolução. É conhecida a posição de Charles Darwin (8) sobre
o sentido da evolução. Para ele, tal como se encontra assente na sua obra de refe-
rência, como a selecção natural actua unicamente pelo bem e para o proveito de cada ser,
todos os dotes corporais e mentais tenderão a progredir para alcançar a perfeição. Ora,
segundo Lewontin e Levins (23), é perfeitamente possível haver mudanças sem
que resultem numa evolução, pelo menos quando considerada com um sentido de
alcançar a perfeição anunciada pelo autor de A origem das espécies.
Este debate é de extrema importância para o ser humano, uma vez que a adopção
de determinados comportamentos poderá induzir visíveis mudanças no organismo
sem que representem um caminhar para a “perfeição”, sugerindo mesmo o caso in-
verso. Não é claro que qualquer evolução orgânica ou outra possa ser considerada
como a obtenção de um estado superior ou mais complexo, podendo significar
mesmo um determinado retrocesso na “busca da perfeição” anunciada por Darwin,
como poderemos observar hoje em dia em muita bibliografia sobre o darwinismo.
Adaptação e evolução são conceitos que terão de ser utilizados com o necessário cui-
dado, a fim de não se criar a ideia que estamos perante fenómenos que sugerem uma
hierarquia. Por essa visão, as espécies mais antigas encontram-se mais longe da per-

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feição, e aqueles organismos mais recentes e complexos encontram-se no limiar da


perfeição. Pode não ser bem assim e o homem personifica essa possibilidade.
Torna-se óbvio que a posição do homem é confortável quando quer hierarquizar os
seres vivos, colocando-se invariavelmente no topo desse escalonamento. É natural
que o façamos, faltando apenas uma validação dos critérios hierárquicos por um
qualquer outro. Não sabemos se numa situação catastrófica, até mesmo provocada
pelo homem, como uma guerra nuclear generalizada, seríamos nós a perpetuar a
vida no planeta ou uma qualquer outra forma viva, considerada de nível hierárquico
inferior. É um tema interessante mas que não pode ser agora discutido.
Wittgenstein (37: 87) é clarividente quando afirma que só por acidente os sonhos de
um homem acerca do futuro da filosofia, da arte, da ciência, se tornam verdadeiros. O
que ele vê no seu sonho é uma extensão do seu próprio mundo, portanto TALVEZ o seu
desejo (ou talvez não), mas não a realidade. Entendemos que o mesmo se passa
quando se idealiza o passado. O que queremos encontrar é uma forma de, muitas
vezes, legitimar o presente, seja em aspectos mais ou menos prosaicos, sejam nou-
tros mais críticos para a nossa existência.
Face ao exposto, tem cabimento colocar uma hipótese: a de estarmos no limiar de
um novo homem, de uma evolução do homo sapiens sapiens, de um homem que con-
siga estabelecer uma harmonia entre a sua existência e a própria obesidade.
Tentámos mostrar a possibilidade do convívio do homem com o sedentarismo ao
longo dos últimos milénios. Geneticamente estamos preparados para a vida activa
(7). O nosso genótipo expressa-se pela actividade física, seja ela qual for. O seden-
tarismo parece ser um comportamento deformado da natureza do ser humano. Ape-
sar desta evidência, pode sempre questionar-se se a obesidade, variação fenotípica,
não tem uma origem genotípica, elevando esta discussão para campos complexos,
sobre os quais não temos a mínima capacidade de intervenção, mas que deverão
ser considerados em futuros estudos por parte de especialistas desta área de conhe-
cimento. Admitimos a hipótese de existirem causas profundas inclusas no próprio
projecto da evolução que levam o homem a ser cada vez mais sedentário e obeso (3).
Actualmente estamos numa encruzilhada evolutiva: ou mantemos as nossas carac-
terísticas e para tal teremos de acentuar o enorme valor do desporto, certamente
vital em toda a dimensão invocada por esta palavra; ou teremos de evoluir para uma
espécie, ou melhor, para uma derivação da subespécie, que compatibilize as conse-
quências do sedentarismo com a própria vida, o homo sapiens, sapiens obesus…
Provavelmente, para não afirmar a certeza, já passámos por esse estádio da evolu-
ção, onde a gordura era um factor vantajoso no seio da espécie. Sabe-se que até a
nível cultural, a gordura, mesmo excessiva, pode constituir-se numa vantagem adi-
cional no que diz respeito à obtenção do sucesso reprodutivo. É assim com a repre-
sentação da obesidade junto de algumas comunidades. Ser gordo significa que se
tem capacidade económica para se alimentar e para assegurar a alimentação da com-
panheira e dos futuros filhos. Se esta representação é exclusivamente humana, o
que está por detrás dela é uma característica biológica encontrada em muitos ani-
mais. Aliás, o facto do homem e da mulher acumularem gordura em locais diferen-
tes do corpo sugere que há já uma predisposição genética para tal, podendo ser um
comprovativo que a obesidade não é um fenómeno actual. A actualidade do pro-

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blema coloca-se a um outro nível, o de não existir uma sucessão de períodos de


abundância e de escassez alimentar. Talvez compreendendo melhor a inscrição do
homem na natureza se consiga entender melhor alguns fenómenos que na aparên-
cia são simplesmente humanos.
Esta discussão, praticamente inexistente nos fóruns das Ciências do Desporto, terá
de ser aberta, no sentido de se perceber com toda a profundidade o que significa
para o homem o sedentarismo. Não basta apontar os seus efeitos nefastos mas per-
ceber, qual “plano B”, o seu significado a nível da própria humanidade.
Defendemos a necessidade de acentuar a evidência genética da actividade física,
sendo que o mundo do desporto, do nosso desporto, é a resposta histórica e civili-
zacional para levar a bom porto tal tarefa.
Porém, teremos de estar atentos ao futuro, sob pena de simplesmente desaparecer-
mos da face da Terra. O desafio é demasiado grande para que não tenhamos a devida
atenção aos sinais que já por aí irrompem.

Reflexões finais
Cremos que a principal conclusão que podemos retirar deste ensaio é a íntima liga-
ção do homem com a natureza, formando um par irresolúvel, que ao longo dos tem-
pos, com ênfase para os dois últimos séculos, tem gerado um campo de tensão entre
aqueles que preconizam uma superioridade do homem sobre todo o resto e aqueles
que o vêem como uma parte integrante da natureza e, por isso, sem o direito de a
destruir.
Como tentámos mostrar ao longo deste trabalho, foi uma singularidade geológica
que poderá ter desencadeado uma sucessão de acontecimentos que levaram que um
determinado tipo de vida se impusesse.
A vida humana liga-se à vida do planeta que é a nossa casa cósmica. Sabemos que pos-
suímos hoje uma capacidade enorme para a modificar, como tem sido anunciado e
denunciado por muitas pessoas e instituições. O homem é uma autêntica força da na-
tureza, conseguindo moldar em poucos momentos aquilo que outras forças produzi-
ram num colossal lapso de tempo. Como vem documentado na Suma Perfectionis, obra
alquímica do século XIV, o que a natureza só pode aperfeiçoar num grande espaço de
tempo, nós podemos concluir em pouco tempo com a nossa arte (in 24: 183) A história hu-
mana poderia ser sintetizada numa simples fórmula: da sujeição às forças da natureza,
até à assunção do estatuto de força natural. É uma simples fórmula, imprecisa, mas
reveladora do papel do homem nesta nossa Casa Comum que é o Planeta.
A Terra, esse impressionante Planeta Azul, qual expressão dialéctica, é influenciada
pelo homem e influencia fortemente o nosso viver quotidiano. Se existir um holo-
causto qualquer, que provoque uma extensa alteração do clima, como já no passado
ocorreu por diversas vezes, o homem sobrevivente (se o houver) saberá adaptar-se
à natureza resultante desse cataclismo, construindo uma renovada forma de estar,
moldando-se de acordo com as condições existentes, criando muito provavelmente
uma inovadora civilização, construindo ou construindo-se como um novo ser. Pen-
sar no homem sem esta estreita relação com a Terra5 é, a nosso ver, pensar mal.
Nesta fusão do homem com a Terra (ou com a geia) funda-se uma nova visão de
homem, do nosso homem. É por isso que ambicionamos desenvolver uma nova

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visão na antropologia. Sabemos que é uma pretensão desmedida que ultrapassa em


muito as nossas capacidades e os nossos conhecimentos, mas mesmo assim arris-
camos em propor um novo foco de interesse antropológico. Ambicionamos desen-
volver uma Antropologia Telúrica! A obesidade, a simples obesidade, mostra a forte
ligação de um comportamento humano – cultural – a uma evolução geológica/cli-
matérica.
Giordano Bruno,6 indiscutível adepto da teoria heliocêntrica, dizia que todas as coi-
sas estão no Universo e o Universo está em todas as coisas, assim como nós estamos nele
e ele está em nós, de modo que tudo concorra para uma perfeita unidade. Embora este
pensamento seja velho de cinco séculos, não será de todo descabido aplicá-lo ac-
tualmente a problemas de menor dimensão, mas nem por isso pouco importantes
para o homem.
O homem é parte integrante da natureza, pelo que desconsiderar esta íntima rela-
ção é desconsiderar o próprio homem. Vai longe, ou melhor, quer-se longe essa opo-
sição entre o homem e a natureza que foi mais fruto de uma desesperada tentativa
de nos situarmos para além da própria natureza, legitimando desta forma uma ati-
tude predatória cujos contornos e consequências começam agora a ser melhor com-
preendidos em toda a sua dimensão. Tentámos perceber as distinções e não os
inúmeros laços que nos ligam ao planeta, ao telúrico. Cosmos, planeta, vida e
homem formam um conjunto indissociável, pelo que é perfeitamente expectável
que o ser que somos possua marcas indeléveis das diferentes camadas físicas e tem-
porais da Terra. Estamos fundidos com o planeta, formando uma liga única, condi-
cionando e sendo condicionados, numa reciprocidade impressionante que urge
proclamar.
Se a nossa vida também está marcada pelo local onde vivemos, não será de todo im-
possível considerar o facto da evolução da própria vida humana ter sido marcada
pela evolução do planeta, plasmando desta maneira a ideia da unidade entre
homem e natureza. Possivelmente, a melhor palavra para expressar esta unidade
seja simbiose. Se este conceito é utilizado amiúde pela biologia e pela astronomia
(ver 14) também poderá ser aproveitado para ilustrar a adjacência entre cultura e
Terra.
Terminamos esta reflexão apresentando uma passagem de um relatório sobre as
ciências sociais (6) que adianta que existem convergências entre as ciências naturais
e sociais e que estas têm vindo a evoluir no sentido de um respeito cada vez maior
pela natureza. As inter-relações são evidentes, não devendo ser decompostas em
pequenos fragmentos para serem geridas analiticamente, promovendo-se, ao invés,
a unidade nos seus estudos.

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Notas
1 Os números referentes à idade do homem variam bastante, havendo quem aponte um tempo menor e
outros autores que o ampliam para valores superiores. O tempo aqui proposto é um razoável compro-
misso entre ambas posições.
2 A designação homo demens é recorrente no discurso de Edgar Morin. Ver, por exemplo, Cultura e barbárie
europeias (26) Lisboa: Instituto Piaget. Se bem que muitas vezes este demens é sinónimo de louco, por
outras pode significar intuição. Assim, o homo sapiens demens é um ser que ao mesmo tempo é racional
e intuitivo, podendo por via de qualquer uma delas chegar ao paroxismo da loucura.
3 Convém esclarecer que a agricultura foi decisiva para o estabelecimento em grande escala de popula-
ções sedentárias, mas não foi a única causa fundadora desse modo de vida. A este respeito seguimos a
posição prudente de Andrew Sherratt (34)
4 Esta palavra não surge aqui com a força com que a matemática a utiliza, mas apenas para designar um
simples acontecimento invulgar. Se o holocénico foi mesmo uma singularidade [de tipo matemático] é
coisa que não poderemos afirmar por… ignorância.
5 A palavra terra é polissémica. Pode ser um planeta, um bocado de solo ou o próprio solo, um lugar.
6 Giordano Bruno foi um filósofo italiano que viveu no século XVI.

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Exercício Físico na Hipertensão Arterial:


Riscos e Benefícios
Cláudia Lúcia de Moraes Forjaz
Andréia Cristiane Carrenho Queiroz
Crivaldo Gomes Cardoso Junior
Universidade de São Paulo — Brasil

1. Introdução
A hipertensão arterial caracteriza-se por uma doença na qual os níveis de pressão
que o sangue exerce sobre as paredes das artérias são mantidos acima de valores
considerados normais. Assim, são considerados hipertensos, indivíduos cujos valo-
res de pressão arterial sistólica e/ou diastólica de repouso permanecem iguais ou
acima de 140 e 90 mmHg, respectivamente (1, 2).
A hipertensão arterial é conhecida como um assassino silencioso, pois apesar de não
apresentar sintomas evidentes, causa grandes consequências ao organismo, promo-
vendo lesões em diversos órgãos-alvo, como coração, rins, retina e cérebro (1). Desta
forma, a hipertensão arterial é um dos principais fatores de risco para o desenvolvi-
mento de doenças cardiovasculares, explicando 40% das mortes por acidente vascu-
lar cerebral e 25% daquelas relacionadas à doença da artéria coronária (2).
A prevalência de hipertensão arterial varia consideravelmente em diferentes loca-
lidades. No Brasil, inquéritos regionais demonstraram taxas variando de 22,3 a
43,9% da população adulta (1). No estudo de Framigham, estima-se que indivíduos
normotensos aos 50 anos têm 90% de chances de desenvolver hipertensão no de-
correr de suas vidas (2).
Desta forma, observa-se que a hipertensão arterial é uma doença de alta prevalência
e com consequências maléficas ao organismo, sendo sua prevenção e tratamento
uma importante questão de saúde pública.
O tratamento da hipertensão arterial se faz por medidas medicamentosas e não me-
dicamentosas. Dentre os medicamentos anti-hipertensivos incluem-se os bloquea-
dores adrenérgicos, os bloqueadores do sistema renina-angiotensina-aldosterona,
os diuréticos e os antagonistas dos canais de cálcio, entre outros. Em relação às me-
didas não medicamentosas, destaca-se a mudança de hábitos alimentares com a re-
dução do consumo de sal, álcool e alimentos de alto grau calórico, a perda de peso e
a prática regular de atividades físicas (1).
Em relação aos exercícios físicos, os exercícios aeróbicos são os classicamente indi-
cados para os indivíduos hipertensos. Entretanto, mais recentemente, os exercícios
resistidos também passaram a ser indicados, em complemento aos aeróbicos, para
esta população (3-5).
Para se analisar o efeito de qualquer conduta em indivíduos portadores de qualquer
doença, é importante ponderar os riscos e benefícios que tal conduta pode determinar

256
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para uma população específica. Desta forma, este capítulo discutirá os riscos e os be-
nefícios inerentes aos exercícios aeróbicos e resistidos para indivíduos hipertensos.
Quando consideramos os riscos do exercício em hipertensos, ele se refere à possi-
bilidade da pressão arterial se elevar demasiadamente durante a execução do exer-
cício. De fato, um aumento exacerbado e, principalmente, abrupto da pressão
arterial aumenta a possibilidade de rompimento de aneurismas (regiões enfraque-
cidas da parede arterial) pré-existentes (6), causando acidente vascular cerebral he-
morrágico, dissecação de aneurisma de aorta ou mesmo morte. Este é um risco
especialmente importante em hipertensos, pois estes pacientes têm maiores chan-
ces de terem aneurismas (7). Por outro lado, os benefícios específicos do exercício
físico em indivíduos hipertensos caracterizam-se pela possibilidade deste exercício
reduzir a pressão arterial desses pacientes, reduzindo a morbimortalidade cardio-
vascular nesta população (1). Este benefício pode ser conseguido a partir do efeito
agudo pós-exercício, decorrente de cada sessão de treinamento, ou do efeito crônico
do exercício, decorrente da prática regular por um período de tempo.
Assim, nas partes seguintes deste capítulo, serão discutidos, para os exercícios aeró-
bicos e resistidos, os efeitos agudos durante e após o exercício, bem como os efeitos
crônicos do treinamento, a fim de permitir uma ponderação final em relação aos
riscos e benefícios de cada um destes tipos de exercício e a elaboração de conceitos
gerais para uma prescrição eficaz e segura.

2. Exercício aeróbico
Caracterização do Exercício Aeróbico
Os exercícios aeróbicos se caracterizam pela realização de esforço físico, cuja pro-
dução de energia resulta da utilização do oxigênio(3). Quando realizados de forma
regular caracterizam o treinamento aeróbico, que promove melhoras expressivas
na via oxidativa de produção de energia. Para se obter esses efeitos, os exercícios
devem envolver a participação de grandes massas musculares (pelo menos 1/6 da
massa muscular total do organismo), que se contraiam ciclicamente, em intensi-
dade leve a moderada e por longa duração(3).

Respostas Agudas Durante o Exercício Aeróbico


Durante a realização do exercício físico aeróbico, a função cardiovascular é inten-
sificada com o intuito de manter o aporte sanguíneo necessário para o músculo em
atividade (8). Para tal, ao se elaborar o plano motor no córtex cerebral, o comando
central envia uma mensagem para o sistema nervoso autônomo, desativando o sis-
tema nervoso parassimpático e ativando o simpático. Além disso, ao se iniciarem
as contrações musculares e os movimentos articulares, os mecanorreceptores lo-
calizados nos músculos e articulações são ativados pelo movimento a também au-
xiliam neste redirecionamento do sistema nervoso autônomo para a predominância
simpática (9) e, em consequência disso, a frequência cardíaca, o volume sistólico e
o débito cardíaco aumentam. Além disso, os metabólitos produzidos na muscula-
tura esquelética, juntamente com o óxido nítrico produzido pelo endotélio em res-
posta ao atrito do sangue com os vasos, promovem dilatação dos vasos da
musculatura ativa, o que leva à diminuição da resistência vascular periférica (10).

257
livro:livro maputo 6/3/10 23:40 Page 258

Esses ajustes resultam no aumento da pressão arterial sistólica e manutenção ou


mesmo redução da diastólica (Quadro 1).

Quadro 1. Respostas cardiovasculares durante o exercício aeróbico realizado em cicloer-


gômetro em 50% do consumo pico de oxigênio (VO2pico) em indivíduos jovens normo-
tensos e sedentários.
Repouso Exercício
VO2, mL/min 252 1297
Frequência cardíaca, bat/min 53 121
Volume sistólico, ml 59 116
Débito cardíaco, L/min 3.1 14.0
Resistência vascular periférica, unidades 27.1 6.4
Pressão arterial sistólica, mmHg 104 131
Pressão arterial diastólica, mmHg 74 68

Alguns fatores inerentes ao próprio exercício aeróbico - intensidade, duração e


massa muscular exercitada - influenciam as respostas da pressão arterial durante
sua execução. A influência de cada um destes fatores está demonstrada na Figura 1.

Figura 1. Resposta da pressão arterial sistólica (PAS) durante o exercício aeróbico. Pai-
nel A. Resposta observada ao longo do tempo em exercícios de diferentes intensidades:
30 e 50% do VO2pico. Painel B. Resposta observada no exercício realizado com 1 ou 2
pernas em 50% do VO2pico.

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Quanto maior a intensidade do exercício, maior é a necessidade de aporte sanguíneo


para a musculatura exercitada e, portanto, maior o aumento do débito cardíaco e da
pressão arterial sistólica. Esse aumento na intensidade do exercício também se acom-
panha por aumento da vasodilatação periférica, de maneira que a pressão arterial dias-
tólica não se modifica ou diminui ainda mais com o aumento da intensidade. Por
outro lado, a duração do exercício não altera o comportamento da pressão arterial ao
longo da execução do exercício, pois a necessidade de aporte sanguíneo por minuto
permanece constante se a intensidade do exercício não se altera (11, 12). Além disso,
em exercícios realizados com mesma duração e intensidade, quanto maior for a massa
muscular envolvida, menor será a elevação da pressão arterial, pois a vasodilatação
ocorre num território maior, reduzindo mais a resistência vascular periférica(8).

258
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Além das características do exercício, as características da pessoa que vai se subme-


ter a este exercício também pode influenciar as respostas da pressão arterial. Neste
sentido, pacientes hipertensos costumam ser mais responsivos ao exercício que os
indivíduos normotensos (13, 14). Em outras palavras, além de ter níveis maiores de
pressão arterial no repouso e durante o exercício, estes pacientes costumam elevar
mais a pressão durante a execução do exercício. De fato, os indivíduos que são hiper-
reativos ao exercício (a pressão arterial aumenta acima de 220 mmHg no pico do
esforço) têm mais complicações da hipertensão em longo prazo (15, 16).

Respostas Agudas Após o Exercício Aeróbico


Assim que se finaliza o exercício aeróbico, os vasos sanguíneos da musculatura ativa
permanecem dilatados, porém as contrações musculares em torno destes vasos ces-
sam, interrompendo a bomba muscular que auxiliava o retorno venoso. Desta
forma, o sangue tende a se acumular na musculatura anteriormente ativa, redu-
zindo o retorno venoso e, consequentemente, o volume sistólico, o débito cardíaco
e a pressão arterial, o que pode causar desconforto como tonturas, enjôo e até des-
maio (17). A magnitude desta resposta pode ser minimizada pela desaceleração lenta
do esforço, fazendo-se uma volta à calma gradual. Entretanto, na ocorrência de sin-
tomas, a conduta a ser adotada é colocar a pessoa deitada e elevar as pernas, facili-
tando o restabelecimento do retorno venoso.
Depois de finalizada esta adaptação abrupta inicial, a pressão arterial permanece com
valores inferiores aos observados no período que antecedeu o exercício ou ainda que
aqueles observados em um dia controle, em que não houve a realização de exercícios
físicos (Figura 2). Esse fenômeno tem sido denominado como hipotensão pós-exer-
cício (18), embora os valores de pressão arterial mantidos neste momento não ca-
racterizem níveis reais de hipotensão clínica, pois não deflagram sintomas.

Figura 2. Resposta da pressão arterial média (PAM) de indivíduos


normotensos e hipertensos após uma sessão de 45 min de exercício
físico em cicloergômetro em 50% do VO2pico.

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259
livro:livro maputo 6/3/10 23:40 Page 260

Esta hipotensão pós-exercício tem importância clínica, pois ela é mais evidente em
indivíduos que têm pressão arterial elevada, tem magnitude significante e perma-
nece durante um longo período de tempo. Nesse sentido, a hipotensão pós-exercí-
cio aeróbico tem sido verificada em homens e mulheres, jovens e idosos (19, 20),
normotensos e hipertensos (21). Sua magnitude média é de 5 a 10 mmHg para os
indivíduos normotensos e 20 mmHg para os hipertensos(22). Além disso, ela pode
durar por até 16 horas em hipertensos (23).
Diversos fatores podem potencializar a ocorrência, a magnitude e duração da hipo-
tensão pós-exercício. Neste sentido, o efeito da intensidade do exercício é bastante
controverso, mas de modo geral, pode-se dizer que em normotensos, os exercícios
aeróbicos de maior intensidade promovem maior efeito hipotensor pós-exercício
(24), porém a intensidade elevada nem sempre tem maior efeito (25, 26). De ma-
neira geral, exercícios entre 40 e 60% do VO2pico promovem bom efeito hipotensor
pós-exercício na população hipertensa. A duração do exercício exerce uma impor-
tante contribuição na hipotensão pós-exercício. Assim, exercícios mais prolongados
promovem queda da pressão arterial pós-exercício mais precoce, de maior magni-
tude e que permanece por mais tempo (26). Normalmente, exercícios com 30 a 45
minutos de duração promovem bom efeito hipotensor pós-exercício. Em relação
ao tamanho da massa muscular exercitada durante o exercício aeróbico, exercícios
envolvendo maiores grupos musculares, provocam hipotensão pós-exercício de
maior magnitude e duração (27, 28). Assim, exercícios de caminhada, corrida e ci-
cloergometria promovem bom efeito hipotensor pós-exercício. Todos os aspectos
citados acima (maior intensidade, maior duração e maior massa muscular) impli-
cam em gasto energético despendido durante a realização do exercício físico. De
fato, exercícios que promovem um maior dispêndio energético resultam em maior
hipotensão pós-exercício (27) e parece haver um gasto energético mínimo para de-
sencadear a queda da pressão arterial pós-exercício.
Os mecanismos responsáveis pela ocorrência da hipotensão pós-exercício aeróbico
ainda não estão plenamente estabelecidos (29). Do ponto de vista hemodinâmico,
quando a recuperação é feita na posição deitada, o mecanismo responsável pela
queda da pressão arterial é a redução da resistência vascular periférica. Por outro
lado, quando a recuperação é feita na posição sentada, algumas pessoas têm a queda
da pressão arterial por redução da resistência vascular periférica e outras por redu-
ção do débito cardíaco (24). A queda do débito cardíaco resulta da redução do volume
sistólico pós-exercício, uma vez que a frequência cardíaca permanece elevada por
vários minutos durante a recuperação (24). Quando a hipotensão pós-exercício
ocorre em virtude da diminuição da resistência vascular periférica, essa diminuição
se dá pela manutenção da vasodilatação periférica no período pós-exercício (30).

Respostas ao Treinamento Aeróbico


Dados epidemiológicos demonstram que indivíduos mais ativos têm menores ní-
veis de pressão arterial. Assim, indivíduos que praticam atividades físicas vigorosas
têm 30% menos chance de se tornarem hipertensos(31). Além disso, estudos clíni-
cos também comprovam que o treinamento aeróbico regular resulta na redução dos
níveis de pressão arterial clínica (Figura 3).

260
livro:livro maputo 6/3/10 23:40 Page 261

Figura 3. Variação da pressão arterial média


(DPAM) em resposta a um período de treina-
mento aeróbico (quatro meses, treinamento
em cicloergômetro, entre os limiares ventila-
tórios) ou de controle.

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A meta-análise mais recente sobre este assunto verificou reduções médias de 3,0 e
2,4 mmHg para as pressões arteriais sistólica e diastólica, respectivamente, após o
treinamento aeróbico, sendo que esta redução foi mais expressiva nos indivíduos
hipertensos, -6,9 e -4,9 mmHg, respectivamente (32). Embora tais reduções possam
parecer modestas, elas são semelhantes às obtidas com medicamentos anti-hiper-
tensivos. Além disso, sabe-se que reduções de apenas 2 mmHg, quando sustentadas,
representam reduções de 6% na mortalidade por acidente vascular encefálico e 4%
na mortalidade por doença da artéria coronária (2).
Considerando-se a pressão arterial ambulatorial, ou seja, de 24 horas, o efeito do
treinamento aeróbico ainda não foi plenamente estabelecido, mas a maioria dos es-
tudos verifica redução desta pressão, sobretudo no período de vigília, quando o hi-
pertenso está acordado (32). Entretanto, para que o efeito do treinamento seja
evidenciado na pressão arterial de 24 horas parece ser necessário um período mais
longo de treino.
É importante ressaltar ainda que o treinamento aeróbico também reduz a pressão
arterial durante o próprio exercício, ou seja, a pressão arterial medida numa deter-
minada intensidade absoluta (carga) de exercício é menor após um período de trei-
namento aeróbico. Além disso, nos pacientes hipertensos, a pressão arterial para a
mesma intensidade relativa (percentual do VO2max) de exercício também se reduz
com o treinamento (33).
Todos os efeitos hipotensores relatados anteriormente podem trazer consequência
para o tratamento dos hipertensos. Desse modo, alguns pacientes são capazes de
controlar sua pressão arterial sem a necessidade do uso de medicamentos após o
treinamento físico e, em outros, a dose ou o número de medicamentos podem ser
reduzidos após o treino (34). Entretanto, é importante ressaltar que aproximada-
mente 25% dos hipertensos não respondem com queda da pressão arterial ao trei-
namento aeróbico, o que pode estar ligado a características genéticas (35).

261
livro:livro maputo 6/3/10 23:40 Page 262

As características do treinamento aeróbico, como intensidade, duração e frequência,


também podem interferir nas respostas dos hipertensos ao treinamento. Neste sen-
tido, numa revisão recente (36), verificamos em relação à intensidade que, em hi-
pertensos, o treinamento de menor intensidade tem maior efeito hipotensor. Além
disso, esse treinamento mais leve (40 a 60% do VO2pico) reduz a pressão arterial,
principalmente, no período de vigília. Em relação ao volume do treinamento (du-
ração e frequência semanal), os dados sugerem que o treinamento com maior vo-
lume apresenta maior efeito hipotensor crônico.
Os mecanismos responsáveis pela redução da pressão arterial com o treinamento
aeróbico ainda não estão totalmente esclarecidos. Em normotensos, o treinamento
promove bradicardia de repouso, mas aumenta o volume sistólico, de modo que o
débito cardíaco se mantém(8). Entretanto, em indivíduos com débito cardíaco au-
mentado, caso de alguns hipertensos, o treinamento físico pode aumentar a natriu-
rese, reduzindo o volume plasmático, o volume sistólico, o débito cardíaco e,
consequentemente, a pressão arterial (37, 38). Porém, na maior parte dos hiperten-
sos, a elevação da pressão arterial se faz por aumento da resistência vascular peri-
férica e, nestes casos, a redução da pressão arterial com o treino decorre da
diminuição desta resistência, promovida pela redução do tônus simpático e da ação
de agentes vasoconstritores endoteliais (endotelina–1, angiotensina e tromboxano)
e pelo aumento da liberação de fatores relaxantes do endotélio (óxido nítrico, pros-
taciclina, fator hiperpolarizante do endotélio e prostaglandina E) (39-41).

3. Exercício resistido
Caracterização do Exercício Resistido
O exercício resistido, também chamado de exercício com pesos, exercício de força
ou musculação, se caracteriza por um exercício que requer que os músculos de um
determinado segmento corporal se movam (ou tentem de mover) contra uma força
de oposição, normalmente representada por algum tipo de equipamento, por elás-
ticos, por pesos livres, por outros acessórios, ou mesmo pelo peso do próprio corpo
(42). De modo geral, os exercícios resistidos normalmente são isotônicos/dinâmi-
cos, ou seja, apresentam movimento articular com alternância de contrações con-
cêntricas e excêntricas. Porém, algumas vezes, estes exercícios podem ter
características isométricas/estáticas (ausência de movimento apesar da geração de
tensão), como quando o exercício é feito em alta intensidade ou é levado até a
exaustão muscular momentânea (43).

Respostas Agudas Durante o Exercício Resistido


Durante a execução do exercício resistido, observa-se aumento expressivo da pres-
são arterial, tanto sistólica quando diastólica (Figura 4). Em halterofilistas, execu-
tando o “leg-press” duplo em 80-100% de 1RM até a exaustão foram observados
valores médios de pressão arterial sistólica/diastólica de 320/250 mmHg (44). Em
indivíduos normotensos sedentários, observamos picos de pressão arterial de
188/113 mmHg e, em hipertensos não medicados, picos de 238/140 mmHg durante
a realização do exercício de extensão de ambas as pernas em 40% de 1RM até a
exaustão (45, 46).

262
livro:livro maputo 6/3/10 23:40 Page 263

Figura 4. Pressão arterial sistólica e diastólica medidas durante a execução de uma série
do exercício de extensão de pernas em 40% de 1 RM até a exaustão em um indivíduo
normotenso (painel A) e um hipertenso não medicado (painel B).

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O aumento de pressão arterial durante a realização do exercício resistido está relacio-


nado ao aumento simultâneo do débito cardíaco e da resistência vascular periférica.
O aumento do débito cardíaco é evidenciado, principalmente, quando o exercício é
dinâmico, e decorre do aumento da frequência cardíaca, pois o volume sistólico au-
menta apenas nos períodos de relaxamento entre as repetições. Por outro lado, o au-
mento da resistência vascular periférica é evidente, principalmente quando o
componente isométrico do exercício é grande, ou seja, nos exercícios estáticos ou nos
dinâmicos de alta intensidade ou conduzidos até a fadiga concêntrica (47, 48).
É importante considerar que as características da população e do exercício execu-
tado podem influenciar a magnitude de aumento da pressão arterial durante a rea-
lização do exercício resistido. Neste sentido, indivíduos hipertensos apresentam
maior aumento de pressão arterial durante o exercício resistido do que os normo-
tensos. Além disso, os hipertensos necessitam de um maior tempo de intervalo de
recuperação entre as séries do exercício para que os valores de pressão arterial re-
tornem aos valores basais, sendo importante salientar que se a pressão arterial não
retornar aos valores basais durante o intervalo, o aumento dessa pressão na próxima
série será ainda maior (45). Por outro lado, hipertensos medicados apresentam
menor aumento da pressão arterial durante o exercício que os não medicados (46),
o que demonstra um efeito protetor da medicação anti-hipertensiva (Figura 5A).
Em relação às características do exercício, a massa muscular exercitada, a inten-
sidade, o número de repetições e o prolongamento da série até a fadiga concên-
trica podem afetar a resposta da pressão arterial. Neste sentido, quanto maior a
massa muscular exercitada, maior será o aumento da pressão arterial durante o
exercício resistido (49). Da mesma forma, quanto maior o número de repetições
executadas, maior será a pressão arterial, visto que os níveis desta pressão aumen-
tam progressivamente ao longo da série, atingindo os maiores valores na proxi-
midade da fadiga concêntrica (45). Quanto à intensidade, para um mesmo número
de repetições, o exercício realizado em alta intensidade promoverá maior au-
mento de pressão arterial que o exercício de baixa intensidade (49). Entretanto,
se a série do exercício for conduzida até a fadiga concêntrica (quando o indivíduo

263
livro:livro maputo 6/3/10 23:42 Page 264

Figura 5. Valor máximo da pressão arterial sistólica (PAS) atingido durante a execução
do exercício de extensão de ambas as pernas em: Painel A – normotensos (NT), hiperten-
sos (HT) e hipertensos medicados com atenolol (HT med) realizando o exercício em 40%
de 1 RM até a exaustão; Painel B – hipertensos em 40 e 80% de 1 RM conduzido até a fa-
diga concêntrica.

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não consegue continuar se exercitando), a elevação da pressão arterial será seme-


lhante, o que independe da intensidade com que o exercício foi realizado(50).
Porém, na intensidade mais elevada, esse pico de pressão arterial será atingido
com menor número de repetições e, portanto, em menor tempo, o que implica
que a velocidade de incremento da pressão arterial será maior, o que expressa um
maior risco de rupturas de aneurismas.
Parte da elevação da pressão arterial durante a execução do exercício resistido deve-
se à realização da manobra de Valsalva, de modo que existem recomendações para
que esta manobra seja evitada. No entanto, essa manobra é inevitável durante a
realização de exercícios resistidos de intensidade alta ou realizados até a fadiga con-
cêntrica (51).
Para controlar o risco de elevação da pressão arterial durante o exercício resistido,
algumas instituições de saúde sugerem que a pressão arterial seja medida num
membro que não esteja participando do movimento (3). Entretanto, a medida feita
pela técnica auscultatória nesse membro durante o exercício pode subestimar os
valores reais em mais de 15% e, se for feita logo após a finalização do exercício, su-
bestima em mais de 30% (52). Portanto, a medida indireta da pressão arterial com
o método auscultatório durante o exercício resistido não é válida.

Respostas Agudas Após o Exercício Resistido


Da mesma forma que após o exercício aeróbico, o exercício resistido também pode
promover a hipotensão pós-exercício, ou seja, a redução da pressão arterial du-
rante o período de recuperação em comparação com o período pré-exercício ou
com um dia controle sem a execução de exercícios (53-55). Porém, a ocorrência
desta hipotensão após o exercício resistido só passou a ser estudada mais recen-
temente, de modo que ainda existem poucos estudos e os resultados nem sempre
são convergentes.

264
livro:livro maputo 6/3/10 23:40 Page 265

Com relação à redução da pressão arterial clínica, a maioria dos estudos observou
redução da pressão arterial, tanto sistólica quanto diastólica, pós-exercício em hi-
pertensos e normotensos (53-70) (Figura 6). Porém, existem estudos que mostra-
ram manutenção ou mesmo aumento da pressão arterial após a realização do
exercício(55, 57-60, 62, 63, 65, 67-75).

Figura 6. Comportamento da pressão arterial sistólica (PAS) após a finalização de uma


sessão de treinamento resistido envolvendo 6 exercícios executados em 40 a 50% de
1RM em mulheres normotensas (painel A) e hipertensas medicadas (painel B).

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Considerando-se a pressão arterial de 24 horas, apenas dois estudos abordaram este


assunto com hipertensos, sendo que em um deles a redução da pressão arterial per-
durou apenas durante a primeira hora após o término do exercício resistido (61),
enquanto que no outro estudo, que avaliou mulheres hipertensas em uso de cap-
topril, a redução perdurou por até 10 horas pós-exercício (53).
Os diferentes resultados verificados pelos estudos supracitados podem ser explica-
dos pela diversidade de protocolos utilizados, que incluíram diferentes populações
e protocolos de exercícios. Em relação à população, indivíduos que possuem maior
pressão arterial pré-exercício apresentam maiores reduções desta pressão após a
realização do exercício (53, 54). Quanto aos possíveis fatores de influência relacio-
nados ao protocolo de exercício, a intensidade parece ser especialmente impor-
tante, visto que o exercício realizado com baixa intensidade promove maior efeito
hipotensor pós-exercício que o de alta intensidade (55). Além disso, o maior volume
de exercícios resistidos (realização de múltiplas séries) também está associado a um
maior efeito hipotensor pós-exercício (63). Para finalizar, a utilização de exercícios
que envolvam maiores grupamentos musculares também favorece uma maior hi-
potensão pós-exercício (69).
Os possíveis mecanismos da redução da pressão arterial após uma única sessão de
exercícios resistidos foram estudados apenas em normotensos. Neles, a redução da
pressão arterial no período de recuperação se deve à redução do débito cardíaco, de-
vido à queda do volume sistólico, que não é totalmente compensada, apesar do au-
mento da freqüência cardíaca.

265
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Respostas ao Treinamento Resistido


O treinamento resistido apresenta efeitos bastante comprovados sobre o sistema
músculo-esquelético. Neste sentido, o treinamento resistido, principalmente de
maior intensidade, promove aumento expressivo da força e potência musculares,
estimula a hipertrofia muscular e auxilia na formação e/ou manutenção da massa
óssea, enquanto que o treinamento resistido de baixa intensidade estimula o au-
mento da resistência muscular e tem efeitos positivos, porém de menor magnitude,
sobre a massa muscular e óssea (76).
Por outro lado, os efeitos do treinamento resistido sobre o sistema cardiovascular
ainda são bastante controversos. O corpo de conhecimento atual sugere que o trei-
namento resistido pode reduzir, na ordem de -3,2 e -3,5 mmHg, as pressões arteriais
sistólica e diastólica, respectivamente (77). Entretanto a meta-análise que chegou
a essa conclusão incluiu nove estudos, envolvendo indivíduos normotensos e hi-
pertensos, com ou sem o uso de terapia medicamentosa e incluindo protocolos de
treinamento extremamente distintos. Dessa forma, estes resultados não podem
ser extrapolados para nenhuma situação específica.
Assim, considerando-se apenas os estudos com normotensos, há indícios de que o
treinamento resistido pode reduzir os valores de pressão arterial de repouso (Figura
7), sobretudo o treinamento realizado com menor intensidade (78).

Figura 7. Pressão arterial sistólica (PAS) de repouso medida em indivíduos idosos nor-
motensos submetidos a um período de treinamento resistido de intensidade progres-
siva. Painel A - 10-12 semanas de treinamento (8 a 12 RM). Painel B - 16 semanas de
treinamento (4 RM).

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Por outro lado, poucos estudos foram realizados com indivíduos hipertensos. Dos
que analisaram apenas hipertensos (79-81), nenhum observou redução efetiva da
pressão arterial com o treinamento resistido, e apenas um deles, que envolveu o
treinamento de baixa intensidade, verificou uma pequena queda (79). Por outro
lado, os que mostram efeitos benéficos do treinamento resistido em reduzir os ní-
veis de pressão arterial investigaram hipertensos diabéticos ou associaram os exer-
cícios resistidos aos aeróbicos (82, 83), de forma que estes fatores podem ter
influenciado os resultados encontrados. Alguns estudos (80, 84) avaliaram também

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o efeito do treinamento resistido sobre a pressão arterial ambulatorial de indivíduos


hipertensos e nenhum deles observou alteração dessa pressão. Assim, não existem
evidências científicas de que este tipo de treinamento possa ter efeito hipotensor
sobre a pressão arterial de repouso em hipertensos. Porém, este assunto precisa ser
mais estudado.
É importante ressaltar, entretanto, que antigamente se dizia que o treinamento re-
sistido aumentava a pressão arterial, porém nenhum estudo relatou este aumento,
nem em normotensos, nem em hipertensos, não havendo, portanto, nenhum in-
dício científico neste sentido.
Os mecanismos relacionados à resposta da pressão arterial após o treinamento re-
sistido ainda não foram devidamente estudados. Em um estudo inicial com indiví-
duos idosos normotensos, verificamos que a queda da pressão arterial se deveu à
diminuição da resistência vascular periférica (dados não publicados). Por outro lado,
este treinamento resistido parece não alterar (81, 84) ou mesmo aumentar (85) a
atividade nervosa simpática, o que poderia impedir a queda da pressão arterial.
Neste mesmo sentido, tem sido observado que o treinamento resistido pode au-
mentar a rigidez arterial (86), o que também agiria contra a redução da pressão ar-
terial pós-treinamento. Entretanto, esses resultados não são unânimes, e estes
fatores precisam ser mais bem investigados.

4. Considerações finais
Diante do exposto, fica evidente que, como qualquer conduta executada em indi-
víduos portadores de doenças, tanto o exercício aeróbico quanto o resistido promo-
vem riscos e benefícios para os indivíduos hipertensos, porém adaptações podem
ser feitas na prescrição destes exercícios a fim de minimizar os riscos e maximizar
os benefícios.
Em relação ao exercício aeróbico, observa-se que o risco existe em função da pressão
arterial sistólica aumentar durante sua execução, principalmente em hipertensos
hiper-reativos. Porém, este risco pode ser controlado, pois é possível medir a pressão
arterial sistólica com a técnica auscultatória durante o exercício (13, 14) e, se o nível
estiver muito elevado, maior que 180/105 mmHg (13, 14), é possível minimizar o
risco reduzindo-se a intensidade do exercício. Por outro lado, este tipo de treina-
mento trás benefícios expressivos, promovendo redução de grande magnitude e
duração na pressão arterial após a realização de cada sessão de exercício (hipotensão
pós-exercício), que pode ser maximizada em hipertensos através do exercício de
menor intensidade, mas com maior massa muscular e maior duração. Além disso,
cronicamente, o treinamento aeróbico também trás benefícios já bastante compro-
vados e expressivos, reduzindo a pressão arterial de repouso, durante o exercício e
nas 24 horas do dia, o que pode resultar em menor necessidade de uso de medica-
mentos. Cabe ressaltar que estes benefícios podem ser maximizados pelo treina-
mento de menor intensidade, mas com maior volume (maior duração por sessão e
maior número de sessões por semana).
Dessa forma, o exercício aeróbico apresenta risco baixo e controlável em hiperten-
sos, e promove benefícios expressivos sobre a pressão arterial desses pacientes,
sendo imprescindível sua recomendação para esta população. Para se maximizar os

267
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benefícios e minimizar os riscos, recomendam-se exercícios de intensidade baixa


(40 a 60% da frequência cardíaca de reserva) e maior volume (pelo menos 3 vezes
por semana por pelo menos 30 minutos – para maior efeito recomenda-se sessões
de 50 a 60 minutos por 5 vezes na semana). Além disso, exercícios que envolvam
maior massa muscular são mais indicados. É importante que os pacientes estejam
com a pressão arterial razoavelmente controlada para a execução do exercício, pelo
menos inferior a 160/105 mmHg. No caso de pacientes hiper-reativos ao exercício,
a medida da pressão arterial pelo método auscultatório durante a execução do exer-
cício é recomendada.
Considerando-se os exercícios resistidos, fica evidente que os dados científicos são
bem escassos e, portanto, a certeza das afirmações aqui colocadas é menor, de modo
que os conceitos podem mudar substancialmente nos próximos anos com a evolu-
ção dos trabalhos nesta área. Assim, o leitor deve manter uma atualização constante
em relação a este aspecto. Com o conhecimento atual, é possível verificar que a exe-
cução do exercício resistido representa uma situação de risco para hipertenso, pois
a pressão arterial sistólica eleva-se expressivamente, não sendo possível controlar
este aumento a partir da medida indireta desta pressão durante a execução do exer-
cício. Entretanto, o aumento da pressão arterial se relaciona, principalmente, com
exercícios que envolvam grandes massas musculares, alta intensidade, condução
até a fadiga concêntrica, intervalos curtos entre as séries e a execução da manobra
de Valsalva. Por outro lado, este tipo de exercício pode ter um efeito hipotensor
após cada sessão de exercício, principalmente quando os indivíduos estão medica-
dos e a sessão envolve exercícios de baixa intensidade e alto volume. Cronicamente,
não há evidências de efeito hipotensor do treinamento resistido em hipertensos,
mas se este efeito ocorrer, é mais provável que ele aconteça com o treinamento de
baixa intensidade.
Dessa forma, pode-se dizer com o conhecimento atual que o exercício resistido
apresenta risco para os indivíduos hipertensos e seus efeitos benéficos sobre a pres-
são arterial parecem estar mais atrelados aos benefícios agudos após cada sessão de
treinamento. Porém, este tipo de exercício apresenta benefícios expressivos sobre
o sistema músculo-esquelético, que não são conseguidos com o treinamento aeró-
bico. Além disso, quando executados em conjunto com o aeróbico, o treinamento
resistido aumenta os efeitos benéficos conseguidos sobre as co-morbidades que se
associam à hipertensão arterial, como a obesidade e a resistência à insulina. Desta
forma, mesmo sem apresentar benefícios específicos expressivos sobre a pressão
arterial de hipertensos, os exercícios resistidos devem ser recomendados para esta
população. Entretanto, para minimizar os riscos durante a execução, este tipo de
exercício deve ser recomendado para hipertensos controlados (pressão arterial in-
ferior a 160/105 mmHg) e não hiper-reativos. Além disso, recomenda-se a execução
de 8 a 10 exercícios, dando preferência para a execução de exercícios que envolvem
menor massa muscular, utilizando-se intensidades leves (50% de 1RM) e reali-
zando-se as séries até a fadiga moderada, ou seja, a série deve ser interrompida
quando a velocidade de movimento tender a diminuir. Para completar, devem-se
estabelecer pausas longas entre as séries e os exercícios (90 segundos).

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273
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 274

Exercício e Doença de Parkinson:


Aspectos da Formação em Educação Física
Lilian Teresa Bucken Gobbi, Ellen Lirani-Silva
Rodrigo Vitório, Natalia Madalena Rinaldi
Marcelo Pinto Pereira, Claudia Teixeira-Arroyo
Fabio Augusto Barbieri, Paulo Cezar Rocha dos Santos
Rosangela Alice Batistela, Alline Castello Salles
Vivian Raile, Ana Paula Teixeira Alves, Luana Carolina de Morais
Universidade Estadual Paulista - Brasil

1. Introdução
Descrita pela primeira vez em 1817, a doença de Parkinson (DP) é uma patologia
neurológica, crônica, degenerativa e progressiva que ocorre devido à disfunção dos
neurônios secretores de dopamina dos núcleos da base, mais especificamente da
substantia nigra pars compacta. Dados epidemiográficos revelam a grande relevância
social da DP, uma vez que o número de idosos vem crescendo em todo o mundo
(LUTZ et al., 2001) e a DP atinge principalmente adultos com mais de 50 anos de
idade (VAN DEN EEDEN et al., 2003).
A DP é a segunda patologia neurodegenerativa em incidência na população mun-
dial acima dos 60 anos de idade, sendo que acomete cerca de cinco milhões de pes-
soas ao redor do mundo (OLANOW, STERN & SETHI, 2009). Especificamente no
Brasil, sua prevalência não é conhecida (SECRETARIA DE ASSISTÊNCIA DA
SAUDE – BRASIL, 2002), mas estima-se que em 2030, 340 mil pessoas sejam aco-
metidas pela DP no país.
Como consequência do déficit dopaminérgico, os pacientes com DP apresentam si-
nais e sintomas motores (MORRIS et al., 2001; HAUSDORFF, 2009) e não-motores
(STELLA et al., 2007a; 2007b) e, considerando o amplo quadro de comprometimen-
tos, o tratamento multidisciplinar que inclua profissionais de todas as áreas da saúde
(Educação Física, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina, Nutrição e Terapia Ocu-
pacional) é recomendado. Estes profissionais devem estar qualificados para intervir
e avaliar o efeito desta intervenção por meio de métodos e instrumentos específi-
cos. O sucesso do tratamento depende do relacionamento avaliação-intervenção,
uma vez que as avaliações apresentam o quadro do paciente e auxiliam no direcio-
namento da intervenção profissional.
Dentre as áreas da saúde, a Educação Física vem promovendo benefícios que com-
preendem aspectos motores e cognitivos através de programas de atividade física
especialmente desenvolvidos para esta população (TANAKA et al., 2009; GOBBI et
al., 2009a). De maneira geral, estes programas têm o objetivo de melhorar compo-
nentes da capacidade física e funções cognitivas, de modo que possam ser observa-
dos benefícios em relação à autonomia e à qualidade de vida dos pacientes.
Segundo o Sistema CONFEF/CREFs, o profissional de Educação Física no Brasil é
especialista em atividades físicas e tem o propósito de prestar serviços que favore-

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livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 275

çam o desenvolvimento da educação e da saúde, contribuindo para a capacitação


e/ou restabelecimento de níveis adequados de desempenho e condicionamento fi-
siocorporal dos seus beneficiários. Ainda, a intervenção do profissional de Educação
Física visa à consecução do bem-estar e da qualidade de vida, da prevenção de doen-
ças, de acidentes, de problemas posturais e da compensação de distúrbios funcio-
nais, contribuindo também para a consecução da autonomia, da auto-estima e das
relações sociais. Neste sentido, o profissional de Educação Física deve estar capaci-
tado para atender pacientes com DP no contexto de uma equipe com profissionais
de outras áreas da saúde.
Considerando o exposto, o presente capítulo abordará aspectos da formação profis-
sional em Educação Física para o atendimento de pacientes com DP em equipe mul-
tidisciplinar. Assim, os objetivos propostos são: (i) abordar os principais
comprometimentos da DP; (ii) apresentar os benefícios observados em estudos en-
volvendo intervenção através de atividades físicas e intelectivas e, ainda, apresentar
instrumentos específicos de avaliação (funcional, motora e cognitiva) que podem
ser utilizados por profissionais de Educação Física; (iii) analisar a capacitação do pro-
fissional de Educação Física para planejar, diagnosticar, implementar e avaliar a in-
tervenção em pacientes com DP.

2. A doença de Parkinson
A presente seção deste capítulo tem como principal objetivo caracterizar os pacien-
tes com DP quanto aos seus comprometimentos motores e não motores. Essa ca-
racterização se faz necessária para que seja possível ao leitor e ao educador físico,
dentro do aspecto da sua profissão, identificar as principais necessidades desses pa-
cientes. Ainda, para que se torne claro o processo que leva o paciente a apresentar
tais sinais e sintomas, uma breve revisão sobre a neurofisiopatologia da DP é apre-
sentada a seguir.
A DP é uma doença neurodegenerativa progressiva caracterizada pela perda dos
neurônios dopaminérgicos nigroestriatais localizados na parte compacta da subs-
tância negra, situada nos núcleos da base, que inerva o neocórtex (MOORE, 2003).
Esta estrutura tem como principal função o controle dos movimentos, ou seja, a re-
gulação da atividade dos neurônios motores superiores.
A dopamina é um dos principais neurotransmissores envolvidos na DP, sendo que
sua principal função é a regulação das vias direta e indireta dos núcleos da base.
Além da dopamina, outros neurotransmissores têm papel fundamental nesta re-
gulação, tais como, ácido gama-amino butírico (GABA), acetilcolina, substância P,
encefalina e glutamato. Consequentemente, na DP ocorre redução do envolvi-
mento na via direta e aumento de disparos na via indireta. De forma geral, as afe-
rências da substância negra estão reduzidas, dificultando a geração de atividade
inibitória pelo caudado e putâmen. Portanto, esta alteração na via direta faz com
que a inibição tônica do globo pálido (segmento medial ao tálamo) esteja alterada
(PURVES et al., 2005), reduzindo a excitação talâmica do córtex motor. A Figura 1
apresenta a contribuição dos neurotransmissores para as alterações nas vias
direta/indireta na DP.

275
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 276

Figura 1: Ilustração comparativa das vias direta e indireta de


indivíduos neurologicamente sadios e de pacientes com DP.
Fonte: Adaptado de Blandini et al. (2000). SNc = substância negra (parte
compacta), SNr = substância negra (parte reticulada), NST = núcleo sub-
talâmico; GPL = globo pálido (porção lateral), GPM globo pálido (porção
medial), VD e VI = vias direta/indireta.

Como consequência da morte dos neurônios dopaminérgicos, comprometimentos


motores e não motores são observados. Os sinais e sintomas motores são os que tra-
zem maior alteração no desempenho das atividades de vida diária, entre os quais
se destacam a hipocinesia (diminuição da amplitude e velocidade dos movimentos),
acinesia (dificuldade de iniciar os movimentos), tremor de repouso, rigidez, bradi-
cinesia (lentidão dos movimentos) e instabilidade postural (MORRIS, MORRIS &
IANSEK, 2001). Esses comprometimentos motores podem ser classificados como
contínuos ou episódicos (HAUSDORFF, 2009). Desta forma, os pacientes com DP
apresentam dificuldades em realizar movimentos coordenados, sequenciais e de
alta complexidade, que exigem demanda atencional para realizá-los (MORRIS &
IANSEK, 1996), podendo aumentar o risco de quedas.
Uma das atividades de alta complexidade e sequencial que está comprometida nos
pacientes com DP é a marcha. Quando pacientes com DP são comparados a indiví-
duos saudáveis, há redução do comprimento da passada e velocidade da marcha e
aumento do tempo de duplo-suporte, da cadência (MORRIS et al., 1994a; 1994b;
LEWIS et al., 2000; HAUSDORFF, 2009) e da variabilidade da marcha. Estas altera-
ções estão relacionadas à hipometria (diminuição na amplitude de movimento), à
arritimicidade e à instabilidade, gerando um padrão mais conservador de locomoção
(BUCKLEY, PITSIKOULIS e HASS, 2008; VITÓRIO et al., 2009).

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livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 277

Em particular, os pacientes com DP iniciam a ativação muscular precocemente,


principalmente dos músculos gastrocnêmio e tibial anterior, na tentativa de vencer
a bradicinesia durante a locomoção (NIEUWBOER et al., 2004). Entretanto, essa
ativação precoce promove maiores níveis de coativação muscular por mais tempo
(ALBANI et al., 2003), acarretando o aumento do risco de quedas (AAGAARD et al.,
2002), do gasto energético (MIAN et al., 2006) e ineficiência do movimento (REE-
VES, MAGANARIS & NARICI, 2005).
Além dos comprometimentos da marcha, a instabilidade postural tem sido conside-
rada um dos maiores problemas para pacientes com DP, como consequência do com-
prometimento dos componentes do controle postural (equilíbrio e orientação
corporal) (HORAK, 2006; VAUGOYEAU & AZULAY, 2009) e da rigidez cervical
(BLOEM et al., 2001; FRANZÉN et al., 2009). Nesse aspecto, os resultados encontra-
dos na literatura apresentam controvérsias quanto à oscilação postural. Por exemplo,
alguns estudos encontraram aumento (ADKIN, BLOEM & ALLUM, 2005; ROCCHI,
CHIARI & HORAK, 2002), enquanto outros estudos verificaram redução (SCHIEP-
PATI & NARDONE, 1991) quando comparados com idosos sadios. Ainda, pacientes
com DP revelam uma estratégia rígida para controlar as oscilações posturais (TER-
MOZ et al., 2008) e aumentam a área de oscilação postural na ausência de informa-
ção visual (BROWN et al., 2006). Recentemente, foi sugerido que esta dependência
visual pode ser considerada uma estratégia adaptativa para compensar os déficits
proprioceptivos (VAUGOYEAU & AZULAY, 2009). Assim, pode-se concluir que pa-
cientes com DP apresentam déficits na integração das informações sensoriais.
A associação dos sinais e sintomas motores com os déficits de integração sensorial
aumenta o risco de quedas. Quando esses aspectos estão relacionados com a seve-
ridade da doença, representam 68% das causas de quedas em indivíduos com DP
(SCHAAFSMA, et al., 2003). Ashburn e colaboradores (2001) verificaram que 63%
dos pacientes com DP apresentaram pelo menos uma queda em um período de um
ano. Estas quedas podem aumentar a incidência de fraturas ósseas, aumentando a
mortalidade e morbidade e reduzindo a qualidade de vida (HIRAYAMA et al., 2008).
Recentemente, tem sido proposto que as funções motoras apresentam uma asso-
ciação com funções cognitivas, sintomas depressivos e ansiedade (CALABRESI et
al., 2006; WICHOWICZ et al., 2006), também afetando a qualidade de vida. Entre
os sinais e sintomas não motores, destacam-se a disfunção autonômica, a demência
e os distúrbios sensitivos, de humor e do sono (OLANOW, STERN & SETHI, 2009).
Prejuízos cognitivos (STELLA et al., 2007b; TANAKA et al., 2009) e sintomas de-
pressivos (STELLA et al., 2007a) também têm sido observados. Em relação às de-
sordens cognitivas, pacientes com DP apresentam alterações nas funções do córtex
frontal (executivas), prejudicando o desempenho de tarefas que envolvem plane-
jamento, organização sequencial, atenção seletiva e memória de trabalho (HIG-
GINSON et al., 2003).
A terapia medicamentosa com Levodopa (metabólico precursor da dopamina) é a
mais utilizada para reduzir os sinais e sintomas motores e não-motores da DP (JAN-
KOVIC, 2008). Como coadjuvante à terapia medicamentosa, programas de exercí-
cio físico têm sido considerados estratégias eficientes para melhorar a
funcionalidade, o equilíbrio, a marcha e a qualidade de vida (GOODWIN et al.,

277
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 278

2008). A prática de atividade física promove um efeito protetor (FAHERTY et al.,


2005) pela liberação de fatores neurotróficos, maior oxigenação cerebral e aumento
no número de células cerebrais (FOX et al., 2006). No próximo item, são apresen-
tados alguns estudos que, por meio de intervenções motoras, demonstram melhora
ou manutenção no desempenho físico e mental de pacientes com DP.

3. Exercício e doença de Parkinson


Clinicamente a opção primária para o tratamento da DP é a terapia medicamentosa,
sendo os agonistas dopaminérgicos e principalmente a Levodopa os mais utilizados
(OLANOW, STERN & SETHI, 2009). Infelizmente, a Levodopa, além de perder sua
efetividade com o passar do tempo, leva ao aparecimento e desenvolvimento de dis-
cinesias (FABBRINI et al., 2007; OLANOW, STERN & SETHI, 2009). Consequente-
mente, profissionais dos mais diversos setores da área da saúde têm buscado terapias
alternativas que, associadas ao tratamento medicamentoso, possam contribuir com
a melhora da qualidade de vida da pessoa com DP. Neste sentido, dentro dos limites
da capacidade física individual, o exercício físico é uma opção não-farmacológica que
tem sido altamente recomendada (OLANOW, STERN & SETHI, 2009).
Diversos programas de atividade física vêm sendo desenvolvidos e estudados, com
a finalidade de melhor conhecer os efeitos do exercício na DP, tanto na prevenção
do agravamento precoce dos sinais e sintomas como na manutenção da funcionali-
dade em detrimento do progresso da doença (FALVO, SCHILLING & EARHART,
2008; GOODWIN et al., 2008; HERMAN, GILADI & HAUSDORFF, 2009). No es-
copo do presente capítulo, alguns trabalhos recentes, relacionados ao exercício e a
DP, selecionados no período de 2004 a 2009, foram reunidos e analisados em relação
ao tipo de atividade desenvolvida, ao protocolo de treinamento adotado, à área de
formação dos profissionais envolvidos e aos principais resultados ou benefícios para
os pacientes com DP.
Com as buscas realizadas, 24 estudos que incluem a temática exercício e DP foram
elencados, evidenciando um aumento crescente na produção científica relacionada
a esta temática no decorrer do período pesquisado. De 2005 a 2008, doze trabalhos
foram encontrados (SIQUEIRA & VIEIRA, 2005; RODRIGUES et al., 2005; PROTAS
et al., 2005; ASHBURN et al., 2007; DIBBLE et al., 2006; VOLPI & NAVARRO, 2006;
HASS, COLLINS & JUNCOS, 2007; HERMAN et al., 2007; O’BRIEN, DODD & BI-
LNEY, 2008; MAK & HUY-CHAN, 2008; KURTAIS et al., 2008; FISHER et al., 2008),
mesma proporção publicada no ano de 2009 (CANNING et al., 2009; DIBBLE et al.,
2009; FRAZZITA et al., 2009; HACKNEY & EARHART, 2009; MORRIS, IANSEK &
KIRKWOOD et al., 2009; RIDGEL, VITEK & ALBERTS, 2009; SAGE & ALMEIDA,
2009; GOBBI et al., 2009a; GOBBI et al., 2009b; TANAKA et al., 2009; YOUSEFI et
al., 2009; ZEIGELBOIM et al., 2009). Dentre as publicações de autores brasileiros,
3 trabalhos aparecem entre os anos de 2005 e 2006 (SIQUEIRA & VIEIRA, 2005;
RODRIGUES et al., 2005; VOLPI & NAVARRO, 2006), sendo que em 2009, 4 estudos
foram encontrados (GOBBI et al., 2009a; GOBBI et al., 2009b; TANAKA et al., 2009;
ZEIGELBOIM et al., 2009).
Os programas de atividades desenvolvidos podem ser divididos em específicos, com
ênfase em componentes específicos da capacidade funcional, e os programas gene-

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livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 279

ralizados, que enfatizam vários componentes da capacidade funcional e que visam


à melhora global do paciente. Ainda, quanto à forma de trabalho, os programas des-
critos incluem intervenções aplicadas individualmente ou em grupo.
Todos os programas de exercícios descritos nos estudos evidenciaram melhoras, ou
no mínimo manutenção dos aspectos clínicos, motores, funcionais e cognitivos nos
pacientes com DP. Os programas de exercícios resistidos foram capazes de promover
melhoras nos comprometimentos da doença (RODRIGUES et al., 2005), na função
muscular (DIBBLE et al., 2006; HASS, COLLINS & JUNCOS, 2007), na destreza
(RIDGEL, VITEK & ALBERTS, 2009) e nos aspectos motivacionais, de interação so-
cial e de qualidade de vida (RODRIGUES et al., 2005; O’BRIEN, DODD & BILNEY,
2008; DIBBLE et al., 2009). Exercícios resistidos específicos para membros inferio-
res proporcionaram aumento da massa muscular do grupo trabalhado e foram efi-
cientes em melhorar a mobilidade dos membros inferiores (DIBBLE et al., 2006).
Programas de exercícios de força associados a exercícios de equilíbrio (CANNING
et al., 2009), assim como os exercícios específicos de marcha (PROTAS et al., 2005),
foram eficientes em diminuir o número de quedas dos pacientes com DP. Além
disso, exercícios de andar na esteira evidenciaram melhoras na qualidade de vida,
na funcionalidade dos membros inferiores, nos comprometimentos da doença e na
velocidade do andar (HERMAN et al., 2007; KURTAIS et al., 2008).
Exercícios associados ao treinamento sensorial também apresentaram benefícios
aos pacientes. Programas que utilizaram dicas auditivas e/ou visuais reduziram o
número de quedas, amenizaram os comprometimentos da doença e melhoraram a
funcionalidade e a marcha dos pacientes (MAK & HUY-CHAN, 2008; FRAZZITA et
al., 2009; SAGE & ALMEIDA, 2009). Ainda, exercícios de reabilitação vestibular pro-
moveram melhoras nos níveis de atividade física e nas atividades da vida diária,
pois diminuíram a ocorrência de vertigens durante a realização dessas tarefas (ZEI-
GELBOIM et al., 2009).
Programas de atividade física generalizada, com ênfase em atividades recreativas e
que englobam os componentes da capacidade funcional (resistência, coordenação,
equilíbrio, força e flexibilidade), promoveram melhoras no equilíbrio e na mobili-
dade, na força, na coordenação, na marcha tanto em terrenos regulares quanto ir-
regulares, na qualidade de vida, nas funções executivas e aumento na amplitude
de movimento articular ativa (TEIXEIRA-ARROYO et al., 2008; GOBBI et al., 2009a
GOBBI et al., 2009b; TANAKA et al., 2009). Considerando a progressividade da DP,
este programa foi eficiente em manter estáveis os comprometimentos da doença,
a flexibilidade, a agilidade e a resistência (GOBBI et al., 2009b).
Pacientes com DP também se beneficiaram de exercícios específicos das atividades
da vida diária, pois estes favoreceram a melhora da auto-percepção sobre a saúde e
a qualidade de vida (YOUSEFI et al., 2009). Para pacientes hospitalizados, progra-
mas de atividade física sistematizados foram importantes no sentido de reverter o
agravamento da doença. Exercícios de força e equilíbrio dinâmico, associados a es-
tratégias cognitivas, promoveram redução nos comprometimentos da doença e me-
lhora na qualidade de vida dos pacientes no período da internação, com
manutenção dos resultados após a alta (MORRIS, IANSEK & KIRKWOOD, 2009).
A manipulação da intensidade do exercício resulta em diferentes efeitos sobre a ca-

279
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pacidade funcional de pacientes com DP, confirmando o efeito protetor da atividade


física na plasticidade neural (TILLERSON et al., 2003; FISHER et al., 2004). Ao con-
trário de programas de exercícios intensos e moderados, que melhoraram a veloci-
dade da marcha, o comprimento do passo e da passada, a distribuição total do peso
durante a tarefa de sentar e levantar e as capacidades funcionais (BURINI et al.,
2006; FISHER et al., 2008), exercícios com intensidades mais baixas indicaram
pouca ou nenhuma melhora funcional ou motora (FISHER et al., 2008; KURTAIS
et al., 2008).
A partir dos estudos analisados, fica evidente que a prática regular de atividade física
pode contribuir para a manutenção e a melhora da independência e, consequente-
mente, da qualidade de vida de pacientes com DP. Em relação aos profissionais ca-
pacitados para a elaboração desses programas de atividades, os estudos relacionados
foram desenvolvidos por equipes multidisciplinares (médicos, fisioterapeutas, pro-
fissionais de Educação Física e engenheiros). Para o profissional de Educação Física
estar preparado para atuar junto a essas equipes multidisciplinares, a formação aca-
dêmica deve oferecer disciplinas que capacitem o futuro profissional para atuar na
área da saúde junto a grupos especiais.
A formação atual do profissional de Educação Física o capacita para a elaboração de
programas de treinamento, considerando a intensidade, a carga, os aspectos fisio-
lógicos, metabólicos e de periodização. No entanto, o trabalho com o paciente com
DP exige conhecimento específico sobre as características da doença, tanto no con-
tato direto com o paciente quanto para a elaboração dos programas de exercícios e
avaliação. Neste sentido, é de fundamental importância conhecer e saber aplicar
instrumentos específicos para avaliação dos aspectos funcionais, motores, cogniti-
vos e neuropsiquiátricos.
Nos estudos pesquisados, os principais testes utilizados foram: contração isométrica
voluntária máxima e teste de uma repetição máxima, para avaliar a força; teste de
Romberg e teste de Babinski-Weil, para avaliação do equilíbrio estático e dinâmico,
respectivamente; Escala de Equilíbrio Funcional de Berg; bateria da American Al-
liance for Health, Physical Education, Recreation and Dance - AAHPERD, para avaliar
os componentes da capacidade funcional; Parkinson’s disease Questionnaire (PDQ-
39) e o World Health Organization Quality of Life-bref (WHOQOL-bref), para avaliar
a qualidade de vida; Timed Up and Go, para avaliação da funcionalidade; goniometria,
para avaliar amplitude de movimento ativa; Escala Internacional de Eficácia de Que-
das (FES-I), para avaliação do medo de quedas em diversas atividades da vida diária;
Freezing of gait Questionnaire, para avaliação de episódios de freezing na marcha; Wis-
consin card Sorting test, para avaliação das funções executivas; escala de Hoehn &
Yahr, para classificação do estágio evolutivo da doença; Mini Exame do Estado Men-
tal e Teste do Relógio, para avaliar funções cognitivas; e a Hospital Anxiety and De-
pression Scale (HAD), para avaliação de sintomas de ansiedade e depressão. Alguns
destes testes podem ser aplicados pelo profissional de Educação Física, porém ou-
tros testes (como os clínicos) precisam de supervisão de Neurologista experiente.
No entanto, o profissional deve compreender todos eles para que possa entender o
significado dos resultados finais de cada um, para poder elaborar com precisão um
programa adequado de exercícios aos pacientes.

280
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Apesar de alguns testes inespecíficos serem utilizados na avaliação dos pacientes,


é necessária a utilização de testes específicos para a DP, pois eles são mais sensíveis
para detectar alterações gerais e específicas relacionadas à doença.

4. Métodos de avaliação funcional e cognitiva


para pacientes com doença de Parkinson
A determinação da condição funcional e cognitiva dos pacientes com DP é procedi-
mento essencial para a prescrição da atividade física. Para determinar estes aspectos,
é necessária a avaliação do paciente nas diferentes valências funcionais e cognitivas.
No entanto, o ato de avaliar relacionado à DP não é tarefa fácil, uma vez que poucos
instrumentos são validados especificamente para esta população. Na maioria das
vezes, para avaliar os aspectos funcionais e cognitivos, instrumentos não específicos
para a DP são utilizados (GOULART & PEREIRA, 2005). Assim, dentro das compe-
tências necessárias para trabalhar com o paciente, o profissional de Educação Física
necessita conhecer as avaliações especificas e não específicas e saber como aplicá-
las e analisá-las.
Para auxiliar nesta tarefa, foi realizada uma busca na literatura, com a finalidade de
reunir avaliações específicas ou mais frequentemente utilizadas na DP e que pos-
sam determinar os aspectos funcionais e cognitivos do paciente, bem como os pos-
síveis efeitos do exercício sobre essas funções.

Avaliação funcional
a) Andar: a avaliação da locomoção pode ser realizada através de testes laboratoriais
e de campo. Na avaliação em laboratório, a análise cinemática do padrão locomotor
é a mais utilizada e recomendada (PIERUCCINI-FARIA et al., 2006; VITÓRIO et al.,
2009). Para a avaliação de campo, os testes mais indicados são os testes de 6 minutos
(SCHENKMAN et al., 1997) e de 2 minutos (LIGHT et al., 1997), nos quais o partici-
pante realiza a caminhada em um corredor, indo e voltando, sendo quantificada a
distância percorrida.
b) Postura: a associação de vários componentes pode determinar o controle postural.
Assim, para avaliação completa da postura, é necessário verificar a oscilação corpo-
ral, o alinhamento postural (VIEIRA, BRINO & SOUZA, 1999) e a amplitude de mo-
vimento articular (DUARTE & MOCHIZUKI, 2001). Os instrumentos mais
indicados e utilizados para este tipo de avaliação são as análises cinemática (BAR-
ROS et al., 1999) e cinética (MOCHIZUKI & AMADIO, 2003) e a goniometria (PAL-
MER & EPLER, 2000).
c) Atividades da vida diária e déficits motores: para a avaliação do desempenho na rea-
lização das atividades da vida diária e dos déficits motores, os instrumentos mais
aplicados em pacientes com DP são: a Parkinson’s Disease Rating Scale (WEBSTER,
1968); o Physical Performance Test (PASCHAL et al., 2006); e a Parkinson Activity Scale;
(NIEUWBOER et al., 2000). Estes testes avaliam as atividades da vida diária, consi-
derando os sinais e sintomas específicos da DP. Neste aspecto, além de testes espe-
cíficos, instrumentos não específicos como a Escala de Sydney (HELY et al., 1993)
e a Schwab and England Activities of Daily Living (SCHWAB & ENGLAND, 1969) tam-
bém são amplamente utilizados.

281
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 282

d) Componentes da capacidade funcional: com exceção do equilíbrio estático e dinâ-


mico, que é avaliado pela Escala de Equilíbrio Funcional de Berg (CAETANO et al.,
2009; SCALZO et al., 2009), os outros componentes da capacidade física não apre-
sentam testes validados para pacientes com DP. No entanto, a bateria da American
Alliance for Health, Physical Education, Recreation and Dance - AAHPERD (OSNESS et
al., 1990; SáNCHEZ-ARIAS et al., 2008) é amplamente utilizada. Esta bateria avalia
flexibilidade, coordenação, agilidade, resistência cardiorrespiratória e força. Para a
avaliação da mobilidade funcional básica, um teste muito empregado é o Time Up
and Go (MORRIS, MORRIS & IANSEK, 2001; CHRISTOFOLETTI et al., 2006).
e) Qualidade de vida: especificamente para avaliar a qualidade de vida de pacientes
com DP, o teste Parkinson’s Disease Quality of Life é bastante empregado (DE BOER
et al., 1996). Este teste é subdividido em 4 categorias: sintomas parkinsonianos e
sistêmicos, função emocional e social. Entretanto, o Parkinson’s Disease Question-
naire 39 - PDQ-39, atualmente validado para a população brasileira, tem sido bas-
tante sensível para detectar alterações na qualidade de vida dos pacientes
(JENKINSON et al., 1995; SOUZA & BORGES, 2007). Este instrumento compreende
os domínios de mobilidade, atividades da vida diária, bem-estar emocional, dificul-
dades e apoio social, cognição, comunicação e desconforto corporal. Um pouco
menos específico, o Perfil de Saúde de Nottingham (HUNT et al., 1980), que avalia
a qualidade de vida de pacientes com doenças crônicas, também tem sido empre-
gado em pacientes com DP.
f ) Aspectos clínicos (motores e não motores) que interferem na capacidade funcional:
não apenas componentes motores interferem na capacidade funcional do pa-
ciente com DP, mas também aspectos não motores. Geralmente as avaliações clí-
nicas compreendem estes dois aspectos e os instrumentos específicos para a DP
mais utilizados são: a Escala de Hoehn e Yahr (Degree of Disability Scale; HOEHN
& YAHR, 1967), que classifica o avaliado dentro de cinco estágios, de acordo com
a severidade da doença; a Unified Parkinson’s Disease Rating Scale - UPDRS (FAHN
& ELTON, 1987), que avalia o nível de acometimento da doença através de seções
específicas de atividade mental, comportamento e humor, atividades funcionais
e de vida diária e aspectos motores; a Scale for Outcomes in Parkinson’s disease –
SCOPA (MARINUS et al., 2004), que avalia o domínio motor, o comprometimento
e as complicações referentes a doença; a Non-Motor Symptoms Scale for Parkinson’s
disease (CHAUDHURI, HEALY & SCHAPIRA, 2006), que avalia sintomas não mo-
tores dentro de 9 dimensões (cardiovascular, sono/fadiga, humor/cognição, pro-
blemas de percepção, atenção e memória, função gastrointestinal, função
urinária, função sexual e miscelânea). As avaliações clínicas também incluem ins-
trumentos que não são específicos para a DP e os mais empregados são apresen-
tados na sequência: o Beck Depression Inventory (LEVIN, LLABRE & WEINER,
1988), que abrange aspectos cognitivos, comportamentais e somáticos da depres-
são; o State-Trait Anxiety Inventory (SPIELBERGER et al., 1983), que avalia os sen-
timentos de apreensão, tensão, nervosismo e preocupação; e a Hospital Anxiety
and Depression Scale (ZIGMOND & SNAITH, 1983; MONDOLO et al., 2006), que
avalia os sintomas de ansiedade e depressão.

282
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Avaliação cognitiva
a) Geral: a avaliação cognitiva geral é importante para verificar o nível de compro-
metimento cognitivo do paciente com DP. Para isso, os testes mais aplicados são: o
Mini-Mental State Examination (HOOPS et al., 2009) e o Montreal Cognitive Asses-
sment (NAZEM et al., 2009). Ambos os testes apresentam pontos semelhantes a
serem avaliados (orientação para tempo, orientação para local, registro de palavras,
atenção e cálculo, lembrança de palavras mencionadas, linguagem e capacidade
construtiva visual) e levam em consideração a escolaridade da pessoa avaliada. En-
tretanto, o Montreal Cognitive Assessment tem sido mais sensível que o Mini-Mental
State Examination para avaliar o estado cognitivo geral de pacientes com DP (ZADI-
KOFF et al., 2008).
b) Funções executivas: as funções executivas estão relacionadas com o planejamento
de tarefas e a resolução de problemas. Costumeiramente, são avaliadas através de
escalas validadas para pacientes com DP, como: a Frontal Assessment Batery (LIMA
et al., 2008), que avalia processos neurocognitivos associados ao lobo frontal do cé-
rebro; o Wisconsin Card Sorting Test (MATSUI et al., 2007), instrumento neuropsi-
cológico que avalia funções executivas, uma vez que é sensível em identificar
disfunções do córtex pré-frontal; o Category Fluency Test (animals and supermarket
items) (LUTEIJN & BARELDS, 2004), que avalia fluência verbal e, de modo qualita-
tivo, é utilizado na análise das estratégias organizacionais quando o rápido acesso
às informações semânticas é requerido; o Controlled Oral Word Association Test (BEN-
TON & HAMSHER, 1976), que mensura a capacidade do avaliado de fazer associa-
ções verbais com estímulos específicos; o Tower of London-Drexel Test
(CULBERTSON & ZILMER, 2001), que avalia funções executivas e identifica défi-
cits cognitivos e executivos através tarefas de resolução de problemas;
c) Atenção: a atenção é importante para a memória de longo prazo para captação da
informação recebida. Algumas escalas validadas para pacientes com DP são utiliza-
das para este fim, como: a Wechsler Adult Intelligence Scale - Third Version (WAIS-III)
Similarities (WECHSLER, 1997a), que avalia atenção concentrada através de um
teste de procurar símbolos; o Digit Symbol Test (WECHSLER, 1981), que avalia a
atenção concetrada; o Trail Making Test part B (REITAN, 1992; XANTHOPOULOS et
al., 2008), que avalia o nível de função executiva relacionada a atenção, incluindo
conjunto de deslocamento e flexibilidade cognitiva; o Stroop Color Word Test part C
(STROOP, 1935), que avalia atenção seletiva; e a adapted version of WAIS-R forward
and backward digit span (LINDEBOOM & MATTO, 1994; DEMAKIS et al., 2001), que
avalia a velocidade e a eficiência visuomotoras, a capacidade de coleta de informa-
ção através da visão, a aprendizagem, a criação e a manutenção de conjunto e o es-
forço de atenção sustentada.
d) Memória: a memória é uma capacidade que tende a ser comprometida na DP e
pode ser classificada em memória de curta e de longa duração (TANAKA et al.,
2009). Os principais testes utilizados para a avaliação da memória são: o Corsi’s Block-
Tapping Test (COOLS et al., 1984), que avalia a capacidade de memória visual de
curto prazo e a aprendizagem visuoespacial; a Block span forward (Wechsler Memory
Scale – Revised, WECHSLER, 1997b), que avalia a memória declarativa episódica e a
capacidade de evocação (memória de longa duração); o Rey Auditory Verbal Learning

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Test (REY, 1964; TIERNEY, 1994), que avalia a aprendizagem e a memória verbal, in-
cluindo inibição proativa e retroativa, retenção de codificação versus recuperação
e organização subjetiva; o Rivermead Behavioural Memory Test (WILSON, COCK-
BURN & BADDELEY, 1985), que avalia aprendizagem e retenção contextual verbal
e aspectos executivos da memória verbal e visual.
A partir dos instrumentos apresentados, é possível verificar que, para a avaliação
de alguns aspectos, existe a necessidade de desenvolvimento de testes específicos
para pacientes com DP. A especificidade da avaliação possibilita o melhor conheci-
mento do estado geral e específico do paciente, possibilitando o planejamento e a
prescrição de programas de exercícios que atendam as necessidades de cada caso.
Para isso, a formação/capacitação do profissional precisa integralizar conhecimen-
tos a respeito destas avaliações.
No entanto, algumas lacunas na formação do educador físico são evidentes. Por
exemplo, poucas disciplinas dos cursos de Educação Física procuraram ensinar mé-
todos de avaliação para populações especiais, como é o caso do paciente com DP.
Assim, o tópico a seguir aborda esta problemática.

5. Formação em Educação Física para o trabalho


com pacientes com doença de Parkinson
A fim de analisar a capacitação do profissional de Educação Física para planejar, diag-
nosticar, implementar e avaliar a intervenção em pacientes com DP, uma busca foi
realizada nos sítios oficiais das Instituições de Ensino Superior (IES) no Brasil e nos
países de língua portuguesa, que oferecem cursos de graduação em Educação Física.
A pesquisa teve o intuito de identificar IES que apresentem disciplinas específicas,
programas de extensão com atendimento desta clientela e/ou projetos de pesquisa
envolvendo a intervenção por meio de exercício para pacientes com DP. Esta busca
foi realizada inicialmente nas IES públicas e particulares do estado de São Paulo,
seguida pelas IES federais e estaduais do Brasil e pelas principais IES dos países de
língua portuguesa. Devido à grande quantidade de IES particulares que oferecem
cursos de graduação em Educação Física no Brasil, é possível que algumas IES não
tenham sido localizadas/investigadas.
Nos sítios em que havia a opção de busca, as palavras-chave doença de Parkinson,
educação física, exercício, atividade física e intervenção motora foram empregadas. Nos
sítios em que não havia ferramenta de busca, o rol de disciplinas da grade curricular
e a listagem de programas de extensão foram investigados. Os sítios de determina-
das IES representaram um problema para a pesquisa realizada, uma vez que os de
algumas instituições não puderam ser acessados ou mesmo não disponibilizavam
a matriz curricular do curso ou suas ementas.

Instituições de ensino superior brasileiras


No estado de São Paulo, nenhuma Instituição de Ensino Superior (IES) que oferece
cursos de graduação em Educação Física relaciona disciplina específica com esta te-
mática. Entretanto, aspectos da DP são abordados em disciplinas como Neurofisiolo-
gia e Educação Física Adaptada. No que concerne aos programas de atendimento à
comunidade, apenas a UNESP (Universidade Estadual Paulista) de Rio Claro oferece

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um programa regular com exercícios físicos para pacientes com DP (PROPARKI), vin-
culado ao curso de graduação em Educação Física. O Programa de atividade física para
pacientes com doença de Parkinson (PROPARKI) tem característica multidisciplinar,
envolvendo educadores físicos, fisioterapeutas e médicos, além de alunos de gradua-
ção e pós-graduação dos cursos de Educação Física e Fisioterapia.
A pesquisa realizada nas IES particulares de São Paulo não apresentou nenhuma
instituição que desenvolva projetos de extensão relacionados à atividade física e
pacientes com DP. No entanto, algumas faculdades apresentam, vinculadas a grade
curricular no curso de graduação em Educação Física, disciplinas que relacionam
atividade física e doenças crônicas neurodegenerativas.
Em relação às IES federais no Brasil, exceto São Paulo, 42 instituições com cursos
de Educação Física foram incluídas na busca. Nenhuma disciplina específica ou pro-
jetos de extensão relacionados com o curso de Educação Física foram localizados.
Dentre as 26 IES estaduais no Brasil com curso de graduação em Educação Física,
um projeto de extensão envolvendo atividade física e DP foi localizado na Univer-
sidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Este projeto, intitulado Projeto de
Parkinson, envolve um grupo de ajuda mútua, musicoterapia e vivências corporais,
administrado por alunos e profissionais de Fisioterapia e Educação Física.
Quanto às IES particulares de outros estados brasileiros, foram incluídas no total
79 faculdades, 23 universidades, 22 centros de ensino, 10 institutos e uma unidade
de ensino. Dentre estas IES, apenas o Centro Universitário Metodista do Rio Grande
do Sul cita a DP na grade curricular, incluída na disciplina de Anatomia. Além disso,
não foram encontrados projetos de extensão direcionados para pacientes com DP
em nenhuma IES particular.

Instituições de ensino superior dos países de língua portuguesa


A pesquisa realizada nos países de língua portuguesa seguiu o mesmo protocolo de
busca utilizado nas IES do Brasil. Os seguintes países foram incluídos: Portugal,
Timor Leste, São Tomé e Príncipe, Angola, Cabo Verde, Macau e Moçambique. Den-
tre estes, Portugal foi o que apresentou o maior número de instituições (cinco uni-
versidades) com cursos de graduação em Educação Física, segundo a Sociedade
Portuguesa de Educação Física. Entre estas, apenas a Universidade de Coimbra pos-
sui um projeto de pesquisa envolvendo a DP. Porém, esse projeto está vinculado à
Faculdade de Medicina e investiga a influência genética no desenvolvimento da
DP. Entretanto, disciplinas específicas ou projetos de atendimento a comunidade
não foram encontrados em Portugal.
Outros países de língua portuguesa também apresentam IES com cursos de gradua-
ção e pós-graduação em cursos similares a Educação Física: três IES em Macau; duas
em Cabo Verde e uma em Moçambique. Além de não terem sido encontradas disci-
plinas vinculadas à temática desse capítulo, nenhum projeto voltado ao atendi-
mento da comunidade foi localizado. Os países de Timor Leste e São Tomé e Príncipe
possuem apenas uma IES em seu território. No entanto, estas instituições não pos-
suem sítios oficiais, não sendo possível identificar se as mesmas apresentam cursos
de graduação em Educação Física e programas de exercício para pacientes com DP.

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6. Considerações finais
O presente capítulo abordou aspectos da formação profissional em Educação Física
para o atendimento de pacientes com DP em equipe multidisciplinar. Diante desta
problemática, os tópicos “A DOENÇA DE PARKINSON” e “EXERCÍCIO E DOENÇA
DE PARKINSON” oferecem informações importantes para subsidiar a atuação pro-
fissional de educadores físicos no planejamento, implementação e avaliação da in-
tervenção através de atividades físicas e intelectivas. Além disso, instrumentos de
avaliação amplamente utilizados nos pacientes foram apresentados de maneira su-
cinta, com o intuito de representar um ponto de partida para aqueles que desejam
obter mais informações sobre os testes de interesse.
O conjunto de estudos envolvendo os diferentes benefícios da atividade física em
pacientes com DP ressalta a importância da associação da terapia farmacológica com
o exercício físico no tratamento. Em síntese, a literatura específica mostra que pro-
gramas de atividade física, tanto direcionados para a melhora de parâmetros espe-
cíficos como dos componentes gerais da capacidade física, promovem benefícios
significativos na qualidade de vida de pacientes com DP. Entretanto, novos estudos
devem buscar o estabelecimento de consensos a cerca do melhor delineamento de
um programa de atividade física, considerando frequência semanal, intensidade,
volume, tipo de atividade, entre outros. É importante ressaltar que as atividades
propostas devem atender aos interesses individuais dos envolvidos, visando conci-
liar a busca por uma melhor condição geral com o prazer em estar se exercitando.
A pesquisa sobre a formação do profissional de Educação Física mostrou que as IES
não oferecem disciplinas específicas sobre a DP. No entanto, disciplinas relaciona-
das apresentam informações a respeito da doença em seus diferentes aspectos e,
assim, podem subsidiar a atuação do profissional junto aos pacientes com DP. O pro-
fissional de Educação Física deve saber integrar os conhecimentos das diferentes
disciplinas para o planejamento e implementação de programas de intervenção.
Duas das instituições brasileiras de ensino superior IES pesquisadas (UNESP Rio
Claro e UESB) apresentam projetos de extensão universitária que oferecem ativi-
dades físicas específicas para pacientes com DP. Além de beneficiar os pacientes
através de prestação de serviço de alta qualidade, tais projetos contribuem para a
formação e a capacitação dos estudantes e profissionais envolvidos, representando
uma oportunidade de vivência da prática profissional dentro de uma abordagem de
caráter multidisciplinar. Ainda, a existência de programas dentro de universidades
favorece o desenvolvimento de pesquisas que podem avançar o conhecimento a
cerca dos benefícios do exercício físico sobre pacientes com DP.

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Envelhecimento Activo: recomendações


para a prática de exercício físico
Joana Carvalho
Centro de Investigação em Actividade Física, Saúde e Lazer da
Faculdade de Desporto da Universidade do Porto (CIAFEL-FADEUP)

O envelhecimento na Europa e no mundo é um desafio marcante para o novo sé-


culo. Nos últimos anos, o número de idosos cresceu significativamente, atingindo,
nos dias actuais, um contingente nunca visto. Segundo dados do Fundo das Nações
Unidas para a População [1], em 1950, havia cerca de 204 milhões de idosos no
mundo. Em 1998, quase cinco décadas depois, este número já alcançava 579 mi-
lhões de pessoas e em 2000 estava já nos 605 milhões. As estimativas do número
de pessoas idosas para 2025 e 2050, apontam para um contingente de, aproxima-
damente, 1,2 e 1,9 biliões de pessoas respectivamente. Tais reflexos do envelheci-
mento populacional requerem medidas, iniciativas e intervenções, no sentido de
melhorar a qualidade de vida dos idosos e assegurar a sua integração progressiva e
equilibrada na sociedade.
Entre outros, a actividade física regular tem sido indicada como um coadjuvante
importante no sentido de diminuir a degeneração progressiva associada ao enve-
lhecimento. Todavia, para além dos potenciais benefícios do exercício físico, exis-
tem também riscos associados a essa exercitação. Neste trabalho focamos alguns
princípios e regras fundamentais para a prescrição do treino em idosos.

Envelhecimento, actividade física e qualidade de vida


Nas últimas décadas assistiu-se a um aumento considerável da população idosa, par-
ticularmente evidente nos países desenvolvidos. Este fenómeno resulta do decrés-
cimo das taxas de fecundidade e natalidade, do aumento crescente da esperança de
vida, bem como da diminuição das taxas de mortalidade.
Todavia, embora o aumento da esperança média de vida se constitua como um as-
pecto positivo, o facto é que esta tendência se baseia mais em factores de natureza
quantitativa e não qualitativa. Ou seja, apesar de todos os esforços médicos e cien-
tíficos para prolongar os anos de vida dos sujeitos idosos, este aumento da longevi-
dade nem sempre se faz acompanhar por uma vida salutar, autónoma e com
qualidade. Infelizmente o envelhecimento está, na generalidade dos casos, asso-
ciado a um aumento na ocorrência de patologias crónico-degenerativas [2]. Deste
modo, não é de estranhar o crescente interesse, particularmente nas últimas déca-
das, que se tem vindo a observar por parte de investigadores de diferentes ramos
do conhecimento pelo bem-estar, saúde e qualidade de vida dos idosos.
O envelhecimento tem sido descrito como um processo, ou conjunto de processos,

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inerente a todos os seres vivos e que se expressa pela perda da capacidade de adap-
tação e pela diminuição da funcionalidade [3] estando assim associado a inúmeras
alterações com repercussões na mobilidade, autonomia e saúde desta população.
Os comportamentos tipicamente associados aos idosos referem-se à passividade e
imobilidade, com reduzida actividade física, criando determinado tipo de padrões
e estereótipos que determinam, frequentemente, a forma de agir deste extracto po-
pulacional. Este sedentarismo dos idosos é, na generalidade dos casos, mais o resul-
tado de imposições sociais e culturais do que uma incapacidade funcional da sua
sustentação [3]. De facto, a senescência associada ao declínio das diversas funções
e órgãos, não deve ser atribuída exclusivamente ao envelhecimento per si, mas fun-
damentalmente à inactividade física e ao desuso [3].
Neste sentido, e em termos de saúde pública interessa, sobretudo, conhecer as for-
mas de tentar atenuar esta degeneração progressiva.
Entre outras, a inactividade física incontestavelmente contribui, quer para o maior
risco de desenvolvimento das doenças cardiovasculares (DCV), sendo o risco de de-
senvolver uma DCV cerca de 1,5 vezes maior em pessoas com baixos níveis de acti-
vidade física [4], quer para um agravamento da incapacidade funcional observada
na generalidade dos idosos [3]. Assim, se, por um lado, a inactividade é um impor-
tante factor de risco para o desenvolvimento de DCV e perda de funcionalidade, pelo
contrário, o aumento da actividade física, entendida não apenas no seu aspecto for-
mal e estruturado mas também não-formal, tem reflexos determinantes na dimi-
nuição dos efeitos deletérios do envelhecimento dentro dos vários domínios físico,
psicológico e social [5]. Adicionalmente, são notórios os efeitos do exercício físico
na melhoria da composição corporal e consequentemente na redução de factores de
risco das diferentes patologias características da sociedade contemporânea [6].
Ao longo dos anos, um número crescente de estudos tem tentado analisar a poten-
cial influência do exercício físico na idade biológica, capacidade funcional e saúde
do idoso (para refs. ver [7]). Por exemplo, diferentes estudos têm demonstrado que
o declínio físico e funcional associado ao envelhecimento pode, mesmo em sujeitos
com idade extrema, ser revertido através do exercício físico. Para além disso, sabe-
se também que a prática de exercício físico está associada à redução da incidência
de doenças cardiovasculares, hipertensão, diabetes tipo II, neoplasia do intestino,
bem como, a estados de ansiedade e depressão [8]. A prática regular de actividade
física tem sido relacionada com o aumento do conteúdo mineral ósseo e com a re-
dução do risco de quedas e fracturas osteoporóticas [9]. Assim, um aumento na ac-
tividade física formal e não formal pode vir a ser uma estratégia preventiva efectiva,
tanto para o indivíduo como para a sociedade, sendo uma forma de melhorar a saúde
pública [10].

A pirâmide de actividade física


Para que os idosos iniciem e mantenham a sua participação em actividades físicas
é necessário criar actividades que lhes propiciem o bem-estar, o que pressupõe a
adequação à sua condição de idoso. Não existe idade para aprender novos movimen-
tos, sendo apenas necessário adaptar o exercício físico às características e possibili-
dades de cada um, ao seu grau de patologia, mobilidade e autonomia.

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O exercício físico encerra vários objectivos ao nível físico, fisiológico, social e psi-
cológico, que se resumem num objectivo principal que é a melhoria do bem-estar
e da qualidade de vida da pessoa idosa [3].
Para ajudar a entender a frequência com que devem ser feitos os diferentes tipos de
actividade física para promover a saúde e a qualidade de vida necessários para um
envelhecimento saudável, a Pirâmide da Actividade Física é uma importante ferra-
menta [11]. Assim, na base da pirâmide temos as actividades físicas não-formais (do
dia-a-dia) que correspondem às actividades do nosso quotidiano e que são facil-
mente modificáveis. No segundo patamar da pirâmide, encontramos as actividades
aeróbias de carácter mais formal ou planeado, como é o caso da caminhada moderada-
a-vigorosa e do jogging. No terceiro patamar encontram-se as actividades de força e
de flexibilidade. Finalmente, no topo da pirâmide encontramos o período de inacti-
vidade, que deve ser reduzido ao máximo.
O American College of Sports Medicine (ACSM) [12] recomenda para o bem-estar e
a saúde em geral da população idosa, um programa de exercício físico completo e
multidimensional onde sejam incluídas as diferentes componentes da aptidão física
tais como a resistência aeróbia, força muscular, equilíbrio e flexibilidade.
São variadíssimas as actividades que podemos apresentar a este escalão etário, desde
as danças e jogos tradicionais, até exercícios mais localizados de reforço muscular,
passando pelas actividades aquáticas, o caminhar, exercícios de flexibilidade, equi-
líbrio, coordenação (velocidade de reacção e movimento), exercícios de relaxa-
mento e respiratórios, sendo que a forma ideal de trabalho é a combinação das
diferentes actividades.
Dentro deste propósito, o treino de flexibilidade, de força e de resistência aeróbia
tem merecido particular atenção.

O treino de flexibilidade no idoso


A flexibilidade apresenta uma grande importância na qualidade de vida dos idosos,
pois é essencial para a realização das mais variadas tarefas da vida diária, tais como
calçar os sapatos, subir e descer degraus, pentear o cabelo, etc.
A palavra flexibilidade deriva do latim flectere ou flexibilis que significa dobrar, e é
entendida como a capacidade de movimentar uma articulação na sua amplitude de
movimento normal, na amplitude de movimento disponível numa articulação ou
grupo articular que permite a execução de determinadas tarefas fundamentais para
a realização das actividades da vida diária [13].
A flexibilidade é uma dimensão da aptidão física, com características próprias para
cada articulação que reflectem particularidades genéticas ou padrões típicos de de-
terminadas actividades. A amplitude de movimento depende primariamente da es-
trutura e função do osso, músculo e tecido conjuntivo, bem como de outros
factores, tais como, o padrão de uso, a dor e a capacidade para gerar força muscular
suficiente e de forma coordenada [14]. Diferentes articulações do mesmo indivíduo
apresentam níveis de flexibilidade distintos [13]. Além disso, na mesma articulação,
a flexibilidade também é específica de um determinado movimento, uma vez que
diferentes estruturas ósseas, articulares e musculares estão envolvidas em diferen-
tes movimentos da articulação [15]. Ou seja, o facto de um determinado indivíduo

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ter uma amplitude de movimento do ombro mais elevada, não significa que a arti-
culação da coxo-femural também o terá.
Segundo Alter [15] existem dois tipos fundamentais de flexibilidade: estática e fun-
cional (ou dinâmica). A primeira refere-se à manutenção de uma postura por um
período de tempo, sem ou com ligeiro movimento a uma velocidade reduzida. Este
tipo de flexibilidade está associado com a colocação do músculo no seu máximo de
alongamento, suportando esta posição durante um determinado período de tempo.
A flexibilidade dinâmica corresponde à capacidade para utilizar a amplitude de mo-
vimento de uma articulação na execução de uma da actividade ou função, indepen-
dentemente da velocidade ser normal ou aumentada. Assim, vemos que a
flexibilidade é específica do padrão genético, de cada articulação, mas também da
actividade física desenvolvida.
De acordo com Norkin e White [16] a amplitude de movimento de uma articulação
ou grupo articular pode classificar-se em passiva e activa. A amplitude activa de
movimento designa a quantidade de movimento articular realizada por um indi-
víduo de forma voluntária no decorrer do arco de movimento para uma determi-
nada articulação ou grupo articular, sem qualquer assistência externa. A amplitude
passiva, por seu lado, refere-se à quantidade de amplitude de movimento articular
avaliada pelo examinador, sem o auxílio do indivíduo.
A diminuição da amplitude articular resulta, entre outros da atrofia muscular que
é uma importante manifestação do envelhecimento no idoso. Assim, observa-se
uma redução no tamanho das fibras e também no seu número, sendo estas substi-
tuídas por colagénio que progressivamente diminuem a elasticidade muscular e
consequentemente a amplitude articular [14].
A quantidade de colagénio tende desta forma a aumentar com a idade. Para além
disto esta proteína, com o envelhecimento, torna-se mais cristalina e tende a au-
mentar o número de ligações cruzadas entre as suas fibras, ficando com um maior
diâmetro, e consequentemente reduz a sua extensibilidade e a aumenta a sua re-
sistência ao movimento. Por conseguinte é fácil compreender que os tecidos que
contêm colagénio na sua composição, como os músculos, tendões e ligamentos,
ficam menos propensos a serem alongados [14].
As fibras de elastina também apresentam alterações motivadas pelo envelheci-
mento, tais como a fragmentação das suas fibras ou o seu enfraquecimento, calci-
ficação e aumento do número de ligações cruzadas. Todas estas modificações
conduzem a uma perda progressiva da resiliência articular e a um aumento da sua
rigidez [14].
Para além das alterações degenerativas articulares e musculares, associado ao en-
velhecimento está o fenómeno de inactividade física ou desuso. O desuso é a maior
causa de declínio da flexibilidade em idosos, pois produz um aumento da rigidez
dos tecidos conectivos (ligamentos, tendões, músculos), restringindo a amplitude
articular [17]. A imobilidade prolongada conduz à formação anormal de ligações cru-
zadas entre as fibras de colagénio, que levam à diminuição da capacidade de alon-
gamento da estrutura afectada, seja ela músculo, fáscia ou ligamento.
Apesar de treino aeróbio e de reforço muscular serem aqueles mais frequentemente
recomendados para os idosos, a inclusão de exercícios de flexibilidade num pro-

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grama de actividade física é também determinante dado os seus múltiplos efeitos


tais como a alteração das propriedades do tecido muscular e conjuntivo com au-
mento da função e da amplitude de movimento necessários para a realização eficaz
de diferentes tarefas quotidianas, a provável diminuição de dores de origem arti-
cular e a melhoria da performance muscular [18].
Os baixos valores de flexibilidade têm sido associados à maior prevalência de lesões,
particularmente da coluna vertebral [19] bem como, à maior dificuldade em cami-
nhar e em realizar autonomamente as tarefas diárias [20].
Para manter ou melhorar a amplitude de movimento articular têm surgido variados
métodos. De acordo com Holland [14] estes podem ser classificados em dois grandes
grupos: programas de exercícios gerais, e programas específicos de flexibilidade. Os
primeiros englobam a combinação de várias actividades como a dança, a resistência
e a força. Os segundos dizem respeito apenas a protocolos de alongamentos espe-
ciais [15].
Os exercícios de flexibilidade devem ser incorporados em todos os programas de
actividade física para idosos, de modo a manter e melhorar a amplitude de movi-
mento [8].
De acordo com o ACSM/AHA [21] programa de exercícios de flexibilidade deve ser
realizado pelo menos 2 dias por semana, durante pelo menos 10 minutos e devem
ser privilegiados os movimentos utilitários, mantendo o alongamento estático (sem
insistências e sem dor) .
O ACSM/AHA [21] defende que a execução de exercícios de alongamentos em ido-
sos deve ter em atenção a carga aplicada, já que o excesso de amplitude de movi-
mento para além do limite da articulação pode afectar a sua estabilidade, tendo
como consequência o aparecimento de dores, as quais podem afectar a estabilidade
articular e conduzir ao abandono dos programas de actividade física.
Segundo o ACSM [22] o desenvolvimento de um programa que vise aumentar a fle-
xibilidade deve ter uma intervenção entre 6 semanas e 2 anos, e conter essencial-
mente exercícios estáticos.
Nas formas especiais de desenvolvimento da flexibilidade estão descritos três mé-
todos fundamentais: exercícios estáticos, balísticos (ou dinâmicos) e de facilitação
neuromuscular proprioceptiva [13].
Os exercícios estáticos parecem ser os mais comummente utilizados para aumentar
a flexibilidade em idosos. Consistem num alongamento lento até uma posição pra-
ticamente máxima que é mantida durante um período de tempo, voltando depois
para um estado de repouso. Podem ser feitos de duas formas: (1) através do alonga-
mento estático-passivo, onde o movimento é executado com o auxílio de outra
parte do corpo ou de um assistente, seguindo-se o período em que não ocorre mo-
vimento ou (2) através do alongamento estático-activo, onde o movimento e a pos-
tura no máximo de alongamento é mantida pela acção dos músculos agonistas,
ajudando desta forma os músculos antagonistas a relaxar, facilitando o alonga-
mento [15]. Os exercícios balísticos envolvem movimentos rápidos em que uma
parte do corpo é posta em movimento e a inércia deste leva a percorrer a máxima
amplitude de movimento até que um grupo muscular atinja o seu limite de alon-
gamento, seguido de um relaxamento imediato. Já os exercícios de facilitação neu-

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romuscular proprioceptiva consistem em alternar a contracção muscular com o seu


alongamento passivo, ao longo de algumas séries de movimento. Este tipo de téc-
nica normalmente requer a intervenção de um assistente com experiência nesta
técnica [13].
A importância da flexibilidade do idoso é inegável, não apenas em termos funcio-
nais, como também, está relacionada com parâmetros da saúde, devendo por isso
ser efectuados exercícios de alongamento de forma sistemática.

O treino aeróbio no idoso


A componente cardiorrespiratória, também frequentemente designada por aptidão
cardiovascular ou capacidade aeróbia, tem sido considerada como determinante do
ponto de vista da saúde, sendo definida como a capacidade de realizar exercícios di-
nâmicos de intensidade moderada a alta, com grandes grupos musculares, por lon-
gos períodos de tempo [23]. Esta componente é dependente da funcionalidade dos
sistemas respiratório, cardiovascular e musculo-esquelético [24] sendo que destes,
o sistema cardiovascular parece ter uma influência mais notória.
O tradicional critério de avaliação da capacidade cardiorrespiratória baseia-se na
medida directa do consumo máximo de oxigénio (VO2máx), sendo considerado [3]
um VO2máx de 13 ml/kg/min como o mínimo necessário para viver de forma inde-
pendente.
Com o envelhecimento são observadas alterações, quer a nível central, quer a nível
periférico no sistema cardiovascular. Entre outras, a redução de aproximadamente
1 batimento por minuto (bpm) na Frequência Cardíaca Máxima (FCmáx) observada
com o aumento da idade [25] parece assumir especial relevância para o declínio de
8% a 10% por década no VO2máx de homens e mulheres sedentários [23]. O au-
mento da espessura da parede ventricular, o aumento da resistência vascular peri-
férica com consequente aumento da Pressão Arterial (PA), o aumento no volume
diastólico final, a redução no volume sistólico máximo, a redução da diferença ar-
tério-venosa de O2 (provavelmente, por uma associação entre a perda de eficácia
em redireccionar o fluxo sanguíneo dos órgãos inactivos para os que estão em acti-
vidade e a reduzida acção das enzimas mitocondriais), e o reduzido débito cardíaco
são também alterações relevantes associadas ao processo de envelhecimento [25].
Estas alterações, em conjunto, reduzem a capacidade de esforço durante a realização
de trabalhos máximos e tarefas sub-máximas reduzindo a capacidade funcional glo-
bal dos idosos [23]. Além disto, a baixa aptidão cardiorrespiratória tem sido descrita
como um factor de risco independente de mortalidade e de desenvolvimento de
doenças cardiovasculares (DCV) [26].
Para além dos factores anteriormente referidos, a inactividade assume aqui um
papel de realce. A meta-análise realizada por Hawkins e Wiswell [23] evidencia que
indivíduos que se mantém activos apresentam menor declínio na capacidade aeró-
bia e, mesmo os sujeitos que se tornam activos em idade avançadas, conseguem
apresentar melhor aptidão aeróbia do que os seus pares sedentários, ocorrendo as
melhorias mais evidentes no VO2máx quando o exercício envolve o uso de grandes
grupos musculares por períodos prolongados, é ritmado e de natureza aeróbia.
Assim, o exercício aeróbio, caracterizado pelo envolvimento de grandes grupos

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musculares em actividades dinâmicas que resultam num aumento substancial do


gasto energético [27] é capaz de melhorar a aptidão cardiorrespiratória, reduzir os
riscos e mortalidade por DCV, devendo ser, como tal, recomendado para todas as
idades [28].
Embora haja riscos, diversos estudos têm demonstrado a segurança do exercício
aeróbio em adultos fisicamente aptos e em indivíduos inseridos em programas de
reabilitação cardíaca. Além disso, acredita-se que, geralmente, os benefícios do exer-
cício são superiores ao risco [25].
Vários estudos indicam de forma consistente que a prática de exercício aeróbio
induz não apenas melhorias, quer a nível central (tanto em termos morfológicos
como funcionais), quer a nível periférico [27] como também está associada com a
melhoria do metabolismo da glicose, com a redução da PA, com a melhoria do perfil
lipídico e com a diminuição dos depósitos de gordura corporal [8].No entanto, os
benefícios associados à prática de exercício físico, só ocorrem, na generalidade dos
casos, quando o exercício é realizado de forma regular, sistemática e de acordo com
alguns princípios e procedimentos metodológicos [8].
Apesar do mínimo recomendado se situar nos 30min de actividade física moderada
a maioria dos dias da semana [11], actividades mais específicas de exercício planeado
aumentando progressivamente o volume de treino são requeridas para se obter
maiores benefícios para a saúde [8].
Segundo as recomendações estabelecidas pelo ACSM [29] para se atingirem alguns
efeitos importantes na capacidade cardiorespiratória, é necessário que a actividade
se realize entre 75 e 90% da FCmáx ou 60 a 80% do VO2máx ou FC de reserva. To-
davia, são contempladas intensidades menores (55-70% FCmax) para os sujeitos
mais velhos e fisicamente mais debilitados. Assim, a intensidade da actividade deve
ser suficientemente elevada (mínimo de 55% da FCmax) para induzir alterações fi-
siológicas significativas sem, no entanto, induzir risco de lesão sobre o sistema car-
diovascular e locomotor.
Recomenda-se a realização de diferentes tipos de actividade mas com baixo impacto
articular e que englobe grandes grupos musculares tais como, caminhar, nadar, pe-
dalar, dançar, actividades e jogos de resistência, etc. A intensidade da actividade
deve ser moderada e adaptada às características de cada um de forma a não sobre-
carregar o sistema cardiovascular e locomotor [8].
A duração do treino deve estar compreendida entre os 20 e os 60 minutos depen-
dendo da frequência e intensidade do mesmo, aconselhando-se numa fase inicial o
trabalho intermitente dada a menor tolerância dos sujeitos para longas durações.
Para indivíduos com baixa aptidão física, múltiplas sessões de curta duração (apro-
ximadamente 10 min) podem ser necessárias [29]. De acordo com a Organização
Mundial de Saúde (OMS) [30], muitos dos ganhos para saúde são obtidos através
de, no mínimo, 30 min. de actividade física diária (cumulativa, ou não), com inten-
sidade moderada. Ou seja, embora a intensidade do treino seja um factor determi-
nante para as elevadas alterações verificadas no VO2max, as melhorias na
capacidade submáxima, que é aquela mais solicitada no dia-a-dia do idoso, não são
tão dependentes da intensidade.

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A frequência do treino aeróbio deverá situar-se entre as 3 e as 5 vezes por semana


sendo que uma frequência semanal superior a cinco vezes aumenta o risco de lesão
e parece não induzir benefícios adicionais em termos de saúde [31].

O treino de força no idoso


Com o envelhecimento, observa-se uma redução da força, potência e resistência
dos músculos esqueléticos, traduzindo-se numa diminuição da aptidão muscular.
Diferentes autores têm referido que sarcopenia associada ao envelhecimento, tra-
duzida na perda da quantidade e qualidade muscular, é um aspecto determinante
na morbilidade e mortalidade destes escalões etários mais velhos [32, 33]. A perda
da força e da massa muscular predispõe os idosos a uma limitação funcional, sendo
este um factor predisponente para muitos dos processos patológicos associados ao
aumento da morbilidade e mortalidade [32].
Há mais de 150 anos atrás, Quetelet [34] descreveu originalmente a diminuição da
função muscular com o envelhecimento. Desde essa data até à actualidade, vários
estudos têm-se ocupado com esta temática, sendo consensual que este decréscimo
se torna mais evidente a partir dos 60 anos [35] para além de ser mais pronunciado
nas mulheres [36].
De acordo com vários autores, a força muscular máxima é alcançada por volta dos
30 anos, mantém-se mais ou menos estável até à 5ª década, idade a partir da qual
inicia o seu declínio. Entre os 50 e os 70 anos existe uma perda de aproximada-
mente 15% por década, após o que a redução da força muscular aumenta para 30%
em cada 10 anos.
A diminuição da força é não apenas específica de cada indivíduo, mas também de
cada grupo muscular e ainda do tipo de contracção [37]. Por exemplo, diferentes es-
tudos mostram que a diminuição da força dos membros inferiores com a idade é
mais acentuada do que a observada nos membros superiores [37-39].
A diminuição da força é atribuída maioritariamente à perda de massa muscular, seja
pela atrofia, seja pela redução do número de fibras musculares [40].
Para além da literatura descrever a atrofia muscular induzida pela idade em dife-
rentes grupos musculares (para refs. ver [41]), alguns dados referem ainda um au-
mento de tecido não contráctil com influência directa no declínio da força
observado com o envelhecimento [42].
Para além da atrofia e da hipoplasia, vários trabalhos têm sugerido existir, com o
avançar da idade, reduções da capacidade de recrutamento neural, mecanismo que
poderá também contribuir de forma significativa para as alterações funcionais ob-
servadas nos idosos [43]. Por exemplo, existem evidências directas e indirectas de
alterações quantitativas e qualitativas das Unidades Motoras com a idade (para refs.
ver [41]).
Embora não exista consenso na literatura, vários autores têm descrito alterações
com a idade nas propriedades contrácteis (tempo para alcançar pico máximo, semi-
tempo de relaxamento, velocidade máxima de encurtamento, torque máximo) de
diferentes grupos [44].
Assim, torna-se evidente que o declínio da força com a idade é multifactorial não
podendo ser explicado exclusivamente pela perda da massa muscular [43]. Para

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além dos mecanismos atrás referenciados, outra das possibilidades implicada neste
processo, é o facto dos idosos terem uma reduzida capacidade de activar completa-
mente os seus grupos musculares [45].Este declínio quantitativo e qualitativo na
funcionalidade e estrutura do sistema muscular tem implicações significativas na
capacidade funcional do idoso [46]. Vários estudos têm demonstrado uma correla-
ção positiva entre a força muscular, particularmente a força dos extensores do joe-
lho, com a velocidade de marcha [47], com a subida de degraus[47], com a
capacidade de se levantar de uma cadeira [48] e com a capacidade de realizar dife-
rentes actividades do dia a dia [47]. No estudo de Avlund et al.[47], os idosos (idade
média de 75 anos) que apresentavam reduzidos níveis de força nos músculos ex-
tensores do joelho, apresentaram também uma maior fatigabilidade, bem como
uma maior necessidade de ajuda na realização de diferentes actividades diárias.
Níveis moderados de força são necessários para a realização de inúmeras tarefas diá-
rias, tais como, carregar pesos, subir escadas, levantar-se de cadeiras, etc. Neste sen-
tido, a força adquire uma importância cada vez mais acentuada com o avançar da
idade [46].
Para além deste facto, a literatura sugere que os baixos índices de força estão re-
lacionados com a maior susceptibilidade de ocorrência de quedas e consequentes
fracturas, facilitadas pela desmineralização óssea comum neste escalão etário [49,
50]. Embora ainda não tenha sido estabelecida uma relação de causa-efeito entre
a força muscular e a incidência de quedas, diferentes estudos suportam esta hi-
pótese [51, 52].
Dado que, tal como referido anteriormente, a fraqueza muscular contribui para al-
terações na mobilidade, autonomia, bem como, para o maior risco de quedas e frac-
turas nos idosos, um adequado programa de treino de força pode constituir-se como
um meio importante para a vida diária do idoso.
Neste sentido, apesar do exercício aeróbio ser aquele que, tradicionalmente, é o
mais recomendado para aumentar a aptidão física e saúde, o treino de força pode e
deve ser, hoje, considerado como um componente fundamental do programa geral
de exercício físico do idoso.
O treino de força é de extrema importância para este escalão etário uma vez que as-
sume um papel fundamental, não só na manutenção e promoção da saúde, mas
também na independência do idoso para a realização das suas tarefas diárias. Dife-
rentes estudos têm demonstrado que, independentemente da idade e do sexo, com
estímulos adequados de treino é possível aumentar a força e resistência muscular
dos músculos exercitados [53]. Para além dos factores mais relacionados com a fun-
cionalidade, o treino de força parece ajudar a manter ou até melhorar a densidade
mineral óssea [54], a taxa metabólica basal [55], a sensibilidade da insulina [56], o
tempo de trânsito intestinal e a diminuir a dor e a incapacidade induzidas pela de-
generação articular [29].
Todavia, apesar dos benefícios induzidos pelo treino de força, este deve reger-se de
acordo com um conjunto de princípios e procedimentos, deve ser progressivo e in-
dividualizado, induzindo estímulos para os principais grupos musculares envolvi-
dos nas actividades quotidianas. Deste modo, devem ser realizados exercícios para
os membros superiores favorecendo as actividades motoras diárias, bem como para

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os membros inferiores. Neste caso, o propósito é fortalecer os músculos responsá-


veis pelo equilíbrio e marcha necessários para a mobilidade [57]. São também im-
portantes exercícios para os músculos posturais que são fundamentais para uma
boa postura e estabilidade corporal. O trabalho de força deve ser orientado no sen-
tido de existir um equilíbrio entre os músculos flexores e extensores. Por exemplo,
o desequilíbrio observado, na generalidade dos casos, na musculatura dos membros
inferiores relaciona-se com a maior instabilidade da articulação do joelho, e como
tal, com a maior instabilidade postural e da marcha [12].
De forma a obter o máximo benefício, os exercícios de força devem ser realizados
com uma intensidade moderada, na sua amplitude máxima individual e de forma
lenta e controlada. A respiração deve ser ritmada evitando sempre o bloqueio res-
piratório (manobra de Valsalva) dada a sua influência na elevação da pressão arterial.
Fleck et al. [58] mostraram existir uma relação directa entre a pressão intratoráxica
provocada pela manobra de Valsalva e os valores da pressão arterial sistólica (PAS),
diastólica (PAD), débito cardíaco e volume sistólico durante a realização de exercí-
cios de força. De igual modo, os exercícios isométricos devem ser evitados [59].
Tal como no treino aeróbio, o volume de treino é igualmente um aspecto impor-
tante para optimizar a resposta de adaptação ao treino de força, se a intensidade do
treino for baixa, o número de repetições e o volume total de treino devem ser mo-
derados a intensos de forma a maximizar a resposta muscular ao treino de força.
Vários autores recomendam uma frequência de 2 a 3 dias por semana, 8 a 10 exer-
cícios, 2 a 3 séries de 8 a 12 repetições cada [60]. No entanto, e porque a lesão no
aparelho muscular esquelético pode ocorrer nos sujeitos mais velhos e mais debili-
tados, o ideal é utilizar cargas baixas a moderadas com 10 a 15 repetições [61].
A intensidade do treino de força é também um aspecto determinante, correspon-
dendo as mais elevadas intensidades de treino a maiores adaptações. No entanto,
para além dos potenciais benefícios do exercício de força, existem riscos associados
a essa exercitação, particularmente no que se refere ao sistema muscular e em par-
ticular ao sistema cardiovascular, uma vez que este tipo de exercício pode potenciar
arritmias [19] e elevar os valores da pressão arterial [5]. Para além disso, muitos dos
idosos que se iniciam neste tipo de programas de exercício físico são sedentários e,
eventualmente, poderão sofrer de desconhecidas ou imperceptíveis patologias car-
diovasculares. Alguns estudos recomendam uma intensidade de 80% de 1RM para
maximizar a força e os ganhos funcionais após o treino de força [61]. Todavia, por
outro lado, existem também trabalhos que descrevem que baixas intensidades e
mesmo baixas frequências de treino induzem melhorias na força. Por exemplo,
Bemben et al. [62] mostraram que um programa de baixa intensidade com volume
de treino suficiente, pode produzir ganhos de força relativos semelhantes ao treino
de elevada intensidade em mulheres pós-menopausa sedentárias.
Neste sentido, é clinicamente importante perceber que, se um idoso não tolera ele-
vadas intensidades como consequência da dor articular ou de qualquer outra enfer-
midade, um programa modificado de exercício constitui-se como uma alternativa
importante para a melhoria da saúde e da aptidão física. Assim, numa fase inicial, o
começar com intensidades mais baixas pode ser um requisito importante para pos-
teriormente ser possível aumentar as cargas de treino.

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Deste modo, durante estas sessões de trabalho de força, e com o propósito de mini-
mizar a fadiga sem sobrecarregar o sistema muscular e cardiovascular, não apenas
se deve trabalhar de forma alternada a parte inferior e superior do corpo, como tam-
bém, os intervalos entre as séries devem permitir a recuperação completa.
Resumindo, o treino progressivo de força com intensidade moderada, realizado com
técnicas apropriadas, pode e deve ser efectuado com elevada tolerância por idosos
saudáveis, desempenhando um papel importante enquanto estratégia para a ma-
nutenção e/ou aumento da força muscular.
Finalmente, e após todas as considerações de âmbito mais fisiológico, importa sa-
lientar que um programa de exercício físico deve ser prescrito de acordo com as ca-
racterísticas, necessidades, objectivos, nível inicial, estado de saúde e de condição
física dos idosos. Dentro deste propósito, aconselha-se, antes de se iniciar um pro-
grama de exercício físico, a realização de um exame médico-desportivo que permita
por um lado, avaliar a condição física do sujeito e, por outro lado, despistar possíveis
contra-indicações. De igual modo, a ênfase deve ser, pelo menos numa fase inicial,
colocada em factores motivacionais capazes de provocar alterações no estilo de vida,
tornando a actividade física como parte integrante dos seus hábitos de vida.

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Aptidão Física, Envelhecimento e Exercício:


Uma Abordagem Aplicada
Paulo de Tarso Veras Farinatti
Walace David Monteiro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Universidade Salgado de Oliveira - Brasil
Pedro Paulo da Silva Soares
Universidade Salgado de Oliveira - Brasil
Universidade Federal Fluminense - Brasil

1. Introdução
A prática regular de exercícios físicos ao longo de toda a vida é aceita como inter-
venção que contribui para a prevenção e tratamento de diversas condições patoló-
gicas e a manutenção da aptidão funcional. Nesse contexto, há certa concordância
sobre a necessidade de se manterem os níveis de potência aeróbia máxima, força
muscular e flexibilidade. De fato, acumulam-se investigações buscando compreen-
der como o organismo que envelhece reage ao treinamento físico, bem como definir
as relações dose-resposta relativas a essas variáveis de aptidão funcional.
O presente capítulo descreve, com uma abordagem aplicada, o que a literatura dis-
ponível apresenta quanto à forma pela qual as variáveis mencionadas respondem
ao treinamento físico regular. Em cada seção, o texto inicialmente analisa as possi-
bilidades de o exercício acarretar efeitos positivos. Em seguida, são discutidos as-
pectos metodológicos da sua prescrição, considerando as características das pessoas
idosas. No intuito de estabelecer uma ponte entre a discussão teórica e a prática
concreta, encerra-se o capítulo com a apresentação de um programa de atividades
físicas desenvolvido sob a forma de Projeto de Extensão Universitária, pelo Labo-
ratório de Atividade Física e Promoção da Saúde da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, denominado Projeto Idosos em Movimento: Mantendo a Autonomia.

2. Atividade física e (potência aeróbia máxima) capacidade aeróbia


A potência aeróbia máxima (capacidade máxima de consumo de oxigênio)
(VO2max) depende da captação do ar atmosférico pelo sistema respiratório, distri-
buição pelo sistema cardiovascular e utilização pelos tecidos. As variáveis fisiológi-
cas que refletem cada uma dessas etapas são, respectivamente, a ventilação
pulmonar (VE), o débito cardíaco (Q · produto entre freqüência cardíaca-FC e volume
de ejeção sistólica-VS) e a diferença arterio-venosa de oxigênio (dif (a-v)O2). Du-
rante o processo de envelhecimento há uma tendência de declínio da capacidade
de se elevar o Q· (Proctor et al., 1998; Farinatti, Soares, 2009), em virtude de uma
redução na FC máxima (Fleg et al. 2005; Christou, Seals, 2008) e na capacidade de
se elevar o VS (Gates et al., 2003; Nottin et al., 2004). Por outro lado, o envelheci-
mento pode se associar a perdas importantes de massa muscular (Raue et al., 2009)
e limitações na capacidade de redistribuição do fluxo sanguíneo (Schrage et al.,
2006). Isso pode contribuir com um menor potencial de produzir elevadas dif (a-

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v)O2, principalmente em idosos sedentários (Weiss et al., 2006). Logo, há uma


franca tendência de declínio da capacidade aeróbia máxima com a idade (McGuire
et al., 2001a, 2001b; Christou, Seals, 2008), bem como aumento da intensidade re-
lativa em atividades submáximas e prolongamento do período de recuperação pós-
esforço (Farinatti et al., 1999).
O declínio médio do VO · 2max com a idade gira em torno de 0,40 a 0,50 ml·kg-1·min-
1·ano-1 para o sexo masculino e 0,30 ml·kg-1·min-1·ano-1 para o sexo feminino (Short
et al., 2004, Lanza et al., 2008; Farinatti, Monteiro, 2008). Isso corresponderia a
aproximadamente 10% por década a partir dos 30 anos de idade. Assim, indivíduos
adultos sedentários podem ter uma redução da ordem de 5 a 15% do seu potencial
máximo de consumo de oxigênio a cada 10 anos. Em outras palavras, ao menos no
plano teórico, aos 60-65 anos de idade o VO · 2máx pode equivaler a cerca de 60% dos
valores exibidos aos 20-25 anos de idade. Não é difícil entender, com isso, que ati-
vidades rotineiras na juventude podem, em idades avançadas, representar exigên-
cias elevadas, com comprometimento da independência funcional.
A diminuição da potência aeróbia com a idade parece inexorável, mas sua a veloci -
dade pode ser sensivelmente reduzida face à prática regular de exercícios físicos
(Fletcher et al., 1996; Knapik et al., 1996; Gates et al., 2003). De fato, programas re-
gulares de exercícios podem modificar favoravelmente o VO · 2max, a capacidade sub-
máxima de trabalho e as repostas cardiorrespiratórias de forma geral em indivíduos
com mais de 70 anos de idade (Fletcher et al., 2001; Nottin et al., 2004). Estudos lon-
gitudinais demonstraram que a capacidade aeróbia de idosos treinados é 20 a 30%
superior do que a exibida por pessoas inativas de idade similar (Young, Press, 1995;
Stathokostas et al., 2004). Em termos relativos, as respostas ao estímulo do treina-
mento podem ser até maiores do que o observado em indivíduos jovens (Woo et al.,
2006; Lanza et al., 2008). Os efeitos do treinamento aeróbio em idosos ocorrem
tanto na dimensão central, quanto periférica (Hepple et al. 1997; Wilmore et al.,
2001). Além da redução do Q · no exercício submáximo, com maior VS e menor FC,
a dif (a-v)O2 tende a aumentar em todas as situações de exercício, ajudando a expli-
car o incremento geral identificado para o VO · 2máx. Obviamente isso repercute
sobre as cargas relativas impostas pelas atividades cotidianas.
No que diz respeito à prescrição do treinamento aeróbio para idosos, não há grandes
diferenças em relação ao que é habitualmente empregado com adultos jovens
(American College of Sports Medicine – ACSM, 2009b; Monteiro, Farinatti, 2008).
Por outro lado, a presença de condições patológicas específicas e, em muitos casos,
uma reduzida capacidade funcional, trabalhos mais intensos exigem supervisão
mais próxima. Devido à grande variabilidade na capacidade funcional exibida por
idosos, bem como dos medicamentos frequentemente utilizados por esta popula-
ção, aconselha-se a realização de teste cardiopulmonar de exercício para quantifi-
cação adequada da intensidade do esforço e riscos associados. Estudo conduzido em
nosso laboratório revelou que estratégias de triagem sem exercício, como o conhe-
cido questionário Par-Q, têm variabilidade excessiva entre idosos, com ocorrência
expressiva de falsos-negativos (Farinatti et al., 2007). Variações abruptas de inten-
sidade e duração do esforço acarretam aumento dos riscos de fadiga precoce e lesões.
Logo, em comparação com os jovens, algumas variáveis relevantes devem ser espe-

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cialmente acompanhadas, como a sensação de dor local, percepção do esforço, dis-


pnéia acentuada ou dificuldade de concentração.
Como em qualquer caso, o treinamento aeróbio envolve a manipulação do tipo de
atividade e de sua intensidade, duração e freqüência. A seguir são tecidas conside-
rações sobre cada um desses aspectos.
Quanto ao tipo de atividade, em linhas gerais recomenda-se que abranjam grandes
massas musculares, exercitadas de forma cíclica e contínua. Os exercícios não
devem impor ao idoso uma elevada sobrecarga sobre o sistema locomotor. Nesse
contexto, a caminhada (mesmo acelerada) pode ser uma escolha interessante. Além
de não terem contra-indicação, há evidências de que programas de caminhada
podem acarretar efeitos positivos sobre variáveis cujo controle é desejável nos ido-
sos, como a pressão arterial (Rachid et al., 2000; Fagard, 2001). Exercícios em bici-
cleta ergométrica e no meio aquático também atendem bem às necessidades dos
idosos (Taunton et al., 1996; Takeshima et al., 2002; Mattos, Farinatti, 2007).
A duração do esforço pode variar bastante em função da capacidade funcional do
idoso. Parece ser consensual que a duração mínima associada a efeitos mais signifi-
cativos seja de 30 minutos (ACSM, 2009b). Contudo, caso o idoso seja mal condi-
cionado, pode-se ministrar atividades a partir de 10 a 15 minutos, até que se chegue
aos 30 minutos. É claro que durações mais longas podem ser prescritas, dependendo
do nível de condicionamento do idoso. Contudo, deve-se levar em conta nesses
casos a relação entre volume e intensidade do esforço. Para evoluir no programa de
exercícios, o volume deverá ser paulatinamente substituído pela intensidade, de
modo que se possa obter uma relação ótima entre essas duas variáveis. Obviamente,
isso dependerá dos objetivos da prescrição. No que diz respeito à freqüência de trei-
namento, não se pode esquecer que, quando o número de sessões semanais au-
menta, incorre-se em maior risco de lesões ortopédicas, principalmente em
atividades com alto impacto. Há que se ter cuidado com esse aspecto, já que os ido-
sos apresentam, em geral, maior fragilidade óssea, muscular e articular quando
comparados aos indivíduos mais jovens. Freqüências superiores a 3-4 vezes por se-
mana, principalmente nas atividades em que o nível de impacto é maior, deveriam
no nosso entender ser evitadas (Monteiro, Farinatti, 2008).
A intensidade e freqüência de trabalho podem ser estabelecidas em função de va-
riáveis distintas. A intensidade tem relação direta com a sobrecarga fisiológica apli-
cada. Já a freqüência de treinamento associa-se ao tempo ótimo para que ocorra o
processo de supercompensação, influenciando e sendo influenciada pela intensi-
dade das atividades. Para os idosos menos condicionados, a intensidade poderá ini-
ciar com 40% do VO2 de reserva (VO2R) ou da freqüência cardíaca de reserva (FCR).
Em função da evolução do estado de treinamento, esses valores poderão chegar
aproximadamente a 85% do VO2R e da FCR (ACSM, 2009b). Considerando conjun-
tamente as variáveis ‘duração’ e ‘intensidade’, deve-se reconhecer que, quanto
maior o tempo de esforço mantido em alta intensidade, maiores serão os ganhos
aeróbios. Deve-se pensar, porém, que em comparação com indivíduos mais jovens,
os idosos apresentam maior resposta cronotrópica para um mesmo débito cardíaco
e VO2 de trabalho, bem como acúmulo de lactato precoce para um mesmo percen-
· 2max (Mattern et al., 2003). Intensidades de trabalho elevadas, com isso,
tual do VO

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são difíceis de atingir e suportar por longo tempo, configurando-se extremamente


desconfortáveis. Além disso, os riscos associados a atividades desse tipo também
aumentam. Portanto, a administração de cargas elevadas deve ser feita com cautela,
por profissionais experientes e apenas em caso de necessidade imposta pelos obje-
tivos do treinamento.
Nesse contexto, é importante mencionar que exercícios muito intensos não são ne-
cessários para induzir efeitos de treinamento em idosos. Acumulam-se evidências
de que trabalhos feitos com intensidade e, por vezes, volume reduzidos, são eficazes
na produção adaptações cardiorrespiratórias e funcionais (Hamdorf et al., 1992; De
Vito et al., 1997; Takeshima et al., 2002; Mattos, Farinatti, 2007; Geraldes et al.,
2008c). Além disso, aproximam-se mais do perfil de atividades compatíveis com as
respostas fisiológicas dessa população – de fato, diferenças entre jovens e idosos
manifestam-se mais nitidamente em atividades com intensidade relativa mais in-
tensa, ao passo que em atividades de intensidade leve a moderada a capacidade de
trabalho revela-se bastante semelhante entre os grupos etários (Shephard, 1990;
Wajngarten et al., 1994). Enfim, nota-se que, por vezes, os efeitos do treinamento
são mais facilmente detectáveis em níveis submáximos, mais próximos do exigido
pelas tarefas do dia-a-dia, do que em testes máximos (O’Hagan et al., 1994; de Vito
et al., 1997). Esse aspecto é fundamental para o acompanhamento dos progressos
com o treinamento, já que as respostas cardiovasculares e respiratórias às atividades
submáximas constituem um importante indicador da capacidade funcional do
idoso. É fácil entender que a pessoa idosa que se desincumbe de suas tarefas diárias
com menor VO2 de trabalho, freqüência cardíaca, pressão arterial ou ventilação,
está exposta a menos riscos cardiovasculares e, de forma geral, a uma menor sobre-
carga relativa cotidiana. Finalizando a presente seção, o Quadro 1 apresenta algumas
recomendações que podem ajudar no planejamento de programas de treinamento
aeróbio para idosos.

Quadro 1 – Recomendações para o treinamento aeróbio para idosos


1 – A escolha da modalidade de exercício é o primeiro aspecto a ser considerado. Caminhada e ciclismo
estacionário ou ao ar livre aparecem como boas opções para o iniciante, devido ao baixo risco ortopédico.
Trabalhos no meio aquático, bem como atividades em grupo como a dança também podem ser interes-
santes. Para os mais condicionados, a corrida pode ser a escolha mais adequada.
2 – A intensidade do esforço geralmente varia de 40 a 80-85% da FCR ou VO2R. Para maior segurança e
determinação da intensidade adequada do trabalho, é importante realizar teste de exercício máximo, e
se possível, com medida direta do consumo de oxigênio. Deve-se ter em mente que idosos exibem maior
resposta de freqüência cardíaca para um mesmo débito cardíaco e VO2 de trabalho, bem como acúmulo
precoce de lactato em comparação com sujeitos jovens.
3 – A duração do esforço é influenciada pela intensidade e frequência semanal do exercício. Trabalhos a
partir de 20-30 minutos produzem bons resultados. Para os idosos mais condicionados, a duração pode
chegar aos 50-60 minutos, tal como preconizado para o adulto jovem.
4 – Quanto à frequência semanal, um mínimo de 2-3 vezes por semana é geralmente indicado para apri-
morar a condição do praticante. Para os idosos bem condicionados, a frequência semanal de treinamento
pode chegar a 5-6 dias, obviamente na dependência do objetivo do treinamento.
5 – O ritmo de progressão do treinamento é individual. Nesse sentido, devem ser considerados a capa-
cidade funcional do idoso, seu estado de saúde e os objetivos específicos do treinamento. Assim como
no adulto jovem, a ênfase inicial deve ser no volume, para depois recair na intensidade.

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6 – Uma estratégia interessante para aplicar o treinamento aeróbio em idosos é mesclar os treinamentos
‘contínuo’ e ‘intervalado’ na mesma sessão de exercício. Inicialmente, a maior parte da sessão é destinada
ao trabalho contínuo, enquanto o intervalado vai tomando maior proporção, conforme o idoso for apri-
morando a sua condição. A intensidade do esforço deve ser monitorada continuamente para modifica-
ções nas cargas de trabalho.
7 – A fase de aquecimento deve ser gradual, para evitar fadiga precoce e desconforto durante a sessão de
treinamento. O período de volta à calma também deve ser bem planejado para a recuperação do idoso,
diminuindo as chances de ocorrências cardiovasculares associadas à brusca interrupção do trabalho.
8 – Com relação à prevenção de lesões ortopédicas, maiores cuidados devem ser tomados nas atividades
de maior impacto, principalmente quando as mesmas apresentam intensidades, durações e frequências
elevadas de treinamento.
9 – Uma boa hidratação é fundamental para o idoso realizar o trabalho nas durações e intensidades pro-
postas, dadas as dificuldades de termorregulação. A falta de hidratação pode levar à fadiga precoce, além
de afetar diretamente as respostas hemodinâmicas e cardiovasculares ao esforço. Idosos têm menor sen-
sibilidade à sede quando desidratados, fazendo com que sua reidratação voluntária seja menos frequente.
Além disso, têm resposta renal mais lenta ao sódio e à água, tornando-os mais suscetíveis aos riscos de
hiponatremia do exercício. Por isso, pausas para hidratação devem ser estimuladas, independentemente
da solicitação nesse sentido.
10 – Possíveis mudanças no sistema cardiorrespiratório podem ocorrer no nível submáximo, com reper-
cussões evidentes sobre a independência funcional. A inclusão de exercícios aeróbios regulares, mesmo
com intensidade e volume reduzidos, pode contribuir para a melhoria da condição cardiorrespiratória e
manutenção da autonomia de idosos.

3. Atividade física e força muscular


A redução da massa muscular (conhecida como ‘sarcopenia’) e, conseqüentemente,
da força muscular, são fenômenos típicos do processo de envelhecimento. A sarco-
penia caracteriza-se pela redução não apenas do tamanho individual das fibras, mas
também do seu número, principalmente fibras do tipo II, ocorrendo mesmo em ido-
sos fisicamente ativos (Aoyagi, Shephard, 1992; Verdijk et al., 2007; Hameed et al.,
2002).
Há concordância de que o pico de força é atingido em torno dos 20 anos de idade
para homens e alguns poucos anos antes para as mulheres (Farinatti, 2008), sendo
a diminuição gradual para ambos os sexos mais acentuada para membros inferiores
que superiores [60% para os músculos das pernas e 70% para os músculos dos braços]
entre os 30 e 80 anos de idade (Ăstrand et al., 2003). O declínio na força associa-se
fortemente com alterações na massa muscular – de fato, a massa magra corresponde
a aproximadamente 50% do peso total, reduzindo-se para 25% entre os 20 e os 80
anos de idade (Short et al., 2004; Koopman, van Loon, 2009). As modificações na
massa muscular com o envelhecimento apontam para reduções na área de seção
transversa de 23% em comparação com sujeitos jovens e valores de força máxima
de 30% a 98% menores que adultos jovens, dependendo o movimento analisado
(Doherty, 2003; Forrest et al., 2007; Raue et al., 2009).
Logicamente essas modificações trazem prejuízos à funcionalidade do idoso. Em
um estudo com 189 mulheres, Estrada et al. (2007) encontraram uma prevalência
de sarcopenia de 25% e uma relação direta entre a massa corporal e o desempenho
em diversas tarefas funcionais, como a caminhada ou manutenção do equilíbrio
(Geraldes et al., 2008b). Mesmo sendo uma medida de força muito específica, a

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força de preensão manual revelou-se preditora do desempenho funcional de idosos


frágeis e sedentários (Geraldes et al., 2008d). Rantanen (2003), enfim, estabeleceu
uma clara relação entre declínio da força, perda de independência funcional e au-
mento das taxas de mortalidade durante o processo de envelhecimento.
Por outro lado, a reversão da diminuição da força e potência muscular por meio do
treinamento físico tem impacto significativo no desempenho de idosos em tarefas
funcionais, como subir escadas, caminhar ou levantar de cadeiras (Puthoff et al.,
2007; Henwood et al., 2008; Geraldes et al., 2008c). O treinamento da força pode
acarretar incremento tanto da força muscular, como da própria capacidade máxima
de consumo de oxigênio (Sillanpää et al., 2008). Uma vez submetidos a sobrecargas
adequadas, indivíduos idosos exibem melhorias comparáveis e até mesmo maiores
do que as observadas em adultos jovens (Fiatarone et al., 1994; Grabiner, Enoka,
1995; Lexell et al., 1995; McCartney et al., 1996; Phillips, Hazeldene, 1996; Trancoso,
Farinatti, 2002; Kalapotharakos et al., 2004; Signorile et al., 2005).
Apesar do consenso em torno desse ponto, a mesma concordância não se dá quando
o problema é determinar a magnitude dos efeitos do treinamento. Na verdade, a ex-
tensão das respostas ao treinamento depende de diversas particularidades meto-
dológicas, como os níveis de força iniciais, grupos musculares trabalhados, tipo de
força envolvido, características do treinamento e qualidade de sua supervisão.
Deve-se reconhecer que, em grande parte, os resultados alcançados pelos estudos
que aplicaram treinamento da força em idosos poderiam ser atribuídos ao sedenta-
rismo dos praticantes, o que torna mais fácil obter efeitos espetaculares em tempo
relativamente curto (Farinatti, Silva, 2007; Farinatti, Monteiro, 2008).
Provavelmente, a melhoria da força em resposta ao treinamento durante as suas pri-
meiras 8 a 12 semanas repousaria, sobretudo, em adaptações coordenativas ou ‘com-
ponente neural’ da força (Fleck, Kraemer, 2006). O incremento da força ocorre em
virtude de uma melhor coordenação na aplicação da tensão, tanto pela otimização
do recrutamento das unidades motoras, como por inibição recíproca e propriocepção
mais eficientes (Coburn et al., 2006; Sakamoto et al., 2006). Apesar de programas com
ênfase neurogênica serem classificados como de curto prazo, deve-se notar que os
seus efeitos podem estender-se por períodos prolongados, dependendo do estado ini-
cial de treinamento dos indivíduos. Nesse sentido, Deschennes e Kraemer (2002) su-
geriram que, em sedentários, os ganhos de força relacionados à melhora coordenativa
podem predominar até cerca de 20 semanas de treinamento.
Obviamente os efeitos nunca são exclusivamente neurais ou hipertróficos. Assim,
programas de treinamento de curto prazo também trazem como resposta modifi-
cações na área de seção transversa do músculo. Häkkinen e Häkkinen (1995) tes-
taram um protocolo experimental de 12 semanas, aplicado em amostra de mulheres
e homens divididos em grupos etários – 9 homens e 9 mulheres de 43 a 57 anos e
10 homens e 11 mulheres de 64 a 73 anos. O principal efeito do treinamento asso-
ciou-se à força máxima, que melhorou significativamente em todos os grupos. A
área de seção transversa do quadríceps também aumentou em jovens e idosos, sem
sinal de estabilização ao final das 12 semanas. Alterações eletromiográficas indica-
tivas de um padrão de contração mais eficaz deram-se nos dois grupos, mas apenas
nas primeiras oito semanas de treinamento. O mesmo perfil de evolução foi obser-

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vado para as curvas de força-tempo, o que confirmam o entendimento de que as


adaptações neurais processam-se mais rapidamente do que as estruturais.
Para a obtenção de ganhos continuados de força, os programas de treinamento
devem ser capazes de provocar adaptações músculo-esqueléticas, já que a possibi-
lidade de adaptações coordenativas tende a declinar com o tempo. As evidências
disponíveis indicam que pessoas idosas podem beneficiar-se também de programas
desse tipo, com respostas hipertróficas manifestando-se por longos períodos (Pika
et al., 1994; Morganti et al., 1995; Welle et al., 1996; Hakkinen et al., 1998).
Os mecanismos subjacentes à hipertrofia muscular são vários, passando por esti-
mulação hormonal e diferenciação celular. No tocante ao papel de certos hormô-
nios, destaca-se na literatura a análise da testosterona, hormônio do crescimento
(HGH) e fator insulínico do crescimento do tipo I (IGF-I). Kraemer et al. (1999) de-
bruçaram-se sobre essa questão, examinando a possibilidade de o treinamento con-
tra-resistência de intensidade adequada repercutir nas taxas de testosterona sérica,
cortisol, HGH e IGF-1 em pessoas idosas e jovens. A relação entre força máxima na
linha de base e os níveis de testosterona foram confirmados, a concentração deste
hormônio tendendo a ser maior nos indivíduos mais jovens. Não houve diferença
significativa na testosterona total nos grupos jovem e idoso, como efeito do treina-
mento. Da mesma forma, as concentrações de hormônio de crescimento não se al-
teraram em ambos os grupos. Por outro lado, as taxas de cortisol e IGF-1 pareceram
ter sido beneficiadas pela atividade proposta.
Muitos estudos debruçaram-se sobre a possível relação dos fatores insulínicos de
crescimento com a hipertrofia muscular e o ganho continuado de força em idosos.
De forma geral, acredita-se na hipótese de que as respostas hipertróficas musculares
seriam intermediadas pela resposta aguda de produção de HGH às séries propostas,
apesar de a testosterona exercer um papel importante na manutenção da massa
muscular (Kraemer et al., 1999; Izquierdo et al., 2001; Häkkinen et al., 2001; Nindl
et al., 2001). A associação entre picos de HGH e níveis de produção de fatores insu-
línicos do crescimento, especialmente o IGF-1, tem sido apontada como importante
fator determinante da indução dos mecanismos de síntese protêica vinculados à hi-
pertrofia muscular (Corpas et al., 1993), o que se manteria em pessoas idosas, apesar
de certo declínio na produção de HGH e IGF-1 (Papadakis et al., 1995; Goodman-
Gruen, Barret-Connor, 1997). Por outro lado, a atividade física tende a exercer efeito
positivo sobre esta relação, em todas as idades (Poehlman, Copeland, 1990; Bonne-
foy et al., 1998; Cappola et al., 2001).
Acredita-se, ainda, que parte das adaptações observadas nos idosos deva-se também
à participação de células satélite (Hikida et al., 2000). Aparentemente, tais células
encontram-se mitoticamente inativas, mas podem ser mobilizadas pela carga me-
cânica ou dano celular, e podem se diferenciar em mioblastos fundindo-se às fibras
pré-existentes formando novos núcleos, com capacidade de manter a síntese pro-
téica e, então, promover hipertrofia (Harridge, 2003). Existem evidências de que o
IGF-1 também exerça algum papel nesse processo (Hameed et al., 2002). No en-
tanto, as cargas devem ser suficientemente elevadas para provocar rupturas da
membrana que levem à diferenciação das células-satélite, o que implica sobrecargas
e volumes importantes de treinamento.

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Importa saber que, em quaisquer dos casos, seja na produção de hormônios, seja na
possível diferenciação de células-satélite, o idoso parece manter as condições fisio-
lógicas para hipertrofiar a musculatura em resposta a cargas e volume adequados de
treinamento (Hikida et al., 2000; Thornell et al., 2003; Kostka et al., 2003; Smilios
et al., 2007; Cadore et al., 2008). Por outro lado, nota-se que, apesar de os idosos pro-
vavelmente serem fisiologicamente capazes de hipertrofia continuada, programas
de treinamento capazes de produzi-la devem associar carga e volumes compatíveis
com as necessárias respostas hormonais e de diferenciação celular. Isso deve ser le-
vado em conta no planejamento de programas de exercícios para idosos, já que nem
sempre esse tipo de estímulo é confortável, predispondo de certa maneira à evasão
do treinamento (Farinatti, Monteiro, 2008). Além disso, cargas e volumes elevados
colocam em maior risco a integridade do aparelho locomotor do praticante.
Em termos gerais, programas de treinamento da força levam em conta os seguintes
fatores: a) tipo e número de exercícios; b) intensidade do esforço; c) número de sé-
ries; d) número de repetições; e) duração dos intervalos entre séries e exercícios; f)
forma de condução dos exercícios; g) freqüência semanal de treinamento; i) siste-
mas de treinamento.
A escolha dos exercícios deveria priorizar a associação com atividades importantes
para a autonomia funcional, como a locomoção e tarefas diárias. O estabelecimento
de uma relação ótima no volume total de trabalho (interação entre sobrecarga, re-
petições, séries e freqüência semanal) envolve aspectos ligados a praticamente
todas as variáveis da prescrição. Além disso, podem existir demandas requeridas
por outros tipos de treinamento, como o aeróbio. Algumas das características que
podem ajudar na determinação do volume de treinamento são: a) estabelecer ob-
jetivos primários e secundários na prescrição; b) identificar as atividades que pro-
vocam maiores demandas energéticas nos idosos (incluem-se aí exercícios formais
e atividades cotidianas); c) identificar características específicas relacionadas à re-
cuperação (dor, desconforto, falta de disposição etc.); d) dosar a freqüência semanal
em função do volume de atividades diárias e características específicas de recupe-
ração; e) testar gradativamente a evolução do volume de trabalho incluindo-se aí
exercícios, repetições, cargas e freqüência de treinamento, dentre outros fatores;
f) considerar os aspectos psicológicos, principalmente os relacionados à motivação
para o treinamento.
É aceito que cargas abaixo de 60% da força máxima acarretariam efeitos modestos
de treinamento em idosos, situando-se a faixa ótima de sobrecarga entre 80 e 90%
(Frontera et al., 1988; Fiatarone et al., 1994; ACSM, 2009a). Contudo, deve-se lem-
brar que, quanto maior a carga, maior o tempo que musculatura de pessoas de idade
avançada exigiria para recuperar-se. Uma estratégia para otimizar os ganhos obti-
dos, sem espaçar as sessões semanais, seria trabalhar com resistências variáveis, ao
invés de impor uma sobrecarga intensa e contínua em todas elas (Hunter et al.,
2001). O trabalho com variação de cargas, por alguma razão, tenderia a otimizar a
execução de tarefas com exigência submáxima de força e padrão coordenativo es-
pecífico, independentemente da repercussão na força máxima absoluta. De qual-
quer forma, a manipulação das cargas relaciona-se ao sistema de treinamento
empregado. O ritmo de progressão das cargas varia muito entre os indivíduos idosos,

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em função da heterogeneidade clínica, fisiológica e física. Nas primeiras semanas,


nas quais o ganho de força ocorre predominantemente devido ao componente neu-
ral, as cargas não precisam ser elevadas, devendo-se priorizar a técnica de execução
e a variedade de exercícios. No caso dos idosos, então, o ritmo de evolução da força
deve sopesado, antes de se colocar a ênfase da prescrição no incremento das cargas
mobilizadas (Farinatti, Monteiro, 2008).
Em geral, o repertório varia de 8 a 10 exercícios, podendo apresentar mudanças em
função dos objetivos do programa. Quanto ao número de séries e repetições em cada
exercício, os aprimoramentos na força podem ser obtidos com a realização de 3 a 5
séries compostas por 8 a 12 repetições máximas (ACSM, 2009a). Em alguns casos,
esses valores podem ser alterados: um menor número de repetições aparece asso-
ciado a uma maior quantidade de séries. No entanto, uma prescrição desse tipo é
mais indicada para indivíduos que estão preocupados em obter elevados níveis de
hipertrofia muscular, o que extrapola em muitos casos as necessidades do idoso.
Os intervalos entre séries e exercícios podem variar bastante. Fundamentalmente,
o que vai defini-los é a capacidade individual de recuperação. Para idosos que apre-
sentam maior nível de condicionamento, pode ser comum realizar exercícios repe-
tidos para um mesmo grupamento muscular (sistema de séries múltiplas).
Contudo, somente em indivíduos muito bem condicionados esse procedimento de-
veria ser aplicado. Uma conduta que pode ajudar no controle dos intervalos entre
os estímulos seria o acompanhamento da sensação subjetiva de fadiga e de recupe-
ração relativa. Há estudos que sugerem ser possível até mesmo prescrever a inten-
sidade do treinamento resistido para idosos com base na Escala de Borg (Raso et al.,
2000; Ades et al., 2003). É interessante notar que a ordem dos exercícios pode in-
fluenciar na percepção do esforço de idosos ao longo de uma sessão de treinamento.
Diferentemente de indivíduos jovens (ACSM, 2009b; Farinatti et al., 2009), por-
tanto, iniciar a sessão por pequenos grupamentos musculares, migrando para os
maiores, acarretaria um maior cansaço, com impacto sobre o número máximo de
repetições executadas durante as séries (Silva et al., 2009).
A freqüência semanal de treinamento é definida em função da habilidade do prati-
cante em executar os exercícios, do seu nível de condicionamento e do tipo de trei-
namento conduzido. Efeitos positivos estão associados a um mínimo de duas
sessões (ACSM, 2009a, 2009b), sendo que níveis ótimos ocorrem provavelmente
quando o treinamento é realizado de 3 a 5 vezes por semana (Rhea et al., 2003).
Contudo, isso não leva em conta os diferentes sistemas de treinamento. Alguns sis-
temas são muito exaustivos, impedindo que o praticante se exercite um mesmo
grupamento na maior parte dos dias. Essa constatação é válida tanto para indivíduos
jovens quanto para os idosos. Para os indivíduos que realizam de uma a três séries
com poucos exercícios, pode ser possível exercitar-se na maior parte dos dias da se-
mana. Em contrapartida, para aqueles que o fazem com maiores intensidades, a re-
cuperação pode não ser ótima após 24 h ou mesmo 48 h, havendo necessidade de
maiores intervalos entre as sessões de treinamento. Em programa de treinamento
desenvolvido em nosso laboratório, cada grupamento muscular (exercícios ou sé-
ries) é estimulado no máximo três vezes em cada sessão, as quais têm lugar pelo
menos duas vezes semanais. Dessa forma, de forma alternada é possível treinar qua-

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tro a seis vezes por semana cada grupamento muscular, de forma que cada um deles
não seja solicitado mais do que três vezes na semana.
A questão das lesões sempre vem à baila quando se discute a intensidade do treina-
mento de força para idosos. Apesar de reconhecer-se que cargas elevadas possam
predispor a acidentes, alguns estudos parecem sugerir que, quando comparados in-
divíduos jovens com pessoas de idade avançada, o risco para lesões musculares e so-
brecarga cardiovascular excessiva não é muito diferente (Featherstone et al., 1993;
Roth et al., 1999, 2000; Bermon et al., 2000). A tolerância cardiovascular aos exercí-
cios resistidos também parece não se alterar como efeito do envelhecimento. As
respostas agudas de duplo-produto tendem a ser as mesmas que em indivíduos jo-
vens: a sobrecarga cardíaca eleva-se rapidamente quando se trabalha com cargas
elevadas, mas a duração da atividade sendo curta, acabaria por limitar os riscos de
isquemia (Benn et al., 1996; Pollock et al., 2000). Por outro lado, em termos crônicos
o treinamento da força traria benefícios, já que a sobrecarga cardíaca relativa dimi-
nuiria para intensidades absolutas similares de trabalho muscular (Pollock et al.,
2000; Fletcher et al., 2001). Enfim, sessões de treinamento da força parecem ser ca-
pazes de induzir hipotensão pós-exercício (Polito et al., 2003; Simão et al., 2005;
Polito, Farinatti, 2006; Campos et al., 2009), o que por si só é um efeito desejável
para sujeitos idosos.
Na perspectiva da prescrição do exercício, dados disponíveis em nosso laboratório
sugerem que: a) o tempo de tensão (número de repetições) acarreta uma sobrecarga
cardíaca maior que trabalhos curtos com cargas elevadas (Farinatti, Assis, 2000;
Lucas, Farinatti, 2007; Polito et al., 2007); b) o número de repetições tem efeito pre-
ponderante sobre as respostas de freqüência cardíaca e pressão arterial, em relação
ao número de séries e intervalo de recuperação (D’ávila et al., 2001; Polito et al.,
2004); c) o número de séries tem efeito cumulativo sobre as respostas de pressão
arterial (principalmente diastólica), independentemente do intervalo de repouso
(D’ávila et al., 2001; Polito, Farinatti, 2009); d) a alternância de grupamentos mus-
culares na execução de exercícios contínuos exerce efeito favorável nas respostas
cardiovasculares agudas ao treinamento contra-resistência (Veloso et al., 2003). Por
outro lado, o fracionamento das séries pode ser contraproducente, caso seja neces-
sário mobilizar a carga a partir da inércia (Polito et al., 2008); e) exercícios diferentes
para os mesmos grupamentos musculares podem associar-se a respostas cardiovas-
culares diversas (Leite, Farinatti, 2003). O conjunto desses resultados indica que a
manipulação de algumas variáveis pode diminuir o estresse cardiovascular asso-
ciado ao treinamento da força. De forma geral, evitando-se contrações ou movi-
mentos cíclicos mantidos por longo tempo, em um mesmo grupamento muscular,
tende-se a obter menores valores finais de freqüência cardíaca e pressão arterial ao
final das séries de exercícios. Aconselha-se, portanto, a adoção de estratégias como
alternância de grupamentos musculares ou fracionamento das séries, na prescrição
do treinamento para idosos, cujo risco de intercorrência cardiovascular não deve
ser negligenciado.
Finalizando, apresenta-se no Quadro 2 um conjunto de recomendações para a elabo-
ração e aplicação do treinamento de força em idosos (Quadro 2). Logicamente, elas
devem ser analisadas com cautela em função das características individuais do prati-
cante, as quais, como se sabe, são por demais heterogêneas em idades avançadas.

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Quadro 2 - Diretrizes gerais para elaboração do trabalho de força em idosos

1 – O praticante deve dominar a técnica dos exercícios antes de iniciar o treinamento com sobrecarga.
2 - A integridade ósteo-mio-articular, assim como a segurança cardiovascular, são aspectos que devem
ser considerados na elaboração dos programas. Nem sempre a maior carga ou o maior volume de trabalho
são os mais adequados para produção do efeito desejado.
3 – Séries conduzidas de forma alternada podem associar-se a uma menor sobrecarga cardiovascular para
um mesmo número de repetições, contribuindo para o controle das respostas cardiovasculares durante
o esforço.
4 – O número de exercícios geralmente varia de 8 a 12. Porém, isso depende dos objetivos e necessidades
dos praticantes, bem como da forma de periodização adotada.
5 – A resistência utilizada pode variar entre 50 e 80-90% de uma 1 repetição máxima (RM), dependendo
da prioridade do trabalho. Alternar cargas nas sessões de treinamento parece ter bons resultados com
idosos. Além disso, deve-se evitar a manobra de Valsalva, facilitando o retorno venoso e diminuindo as
respostas cardiovasculares agudas.
7 – Recomenda-se para o iniciante a realização de uma série de cada exercício, progredindo para séries
múltiplas ao longo do treinamento. Os intervalos de recuperação entre exercícios e séries dependem da
sobrecarga utilizada e da capacidade de recuperação. Por isso, não deveriam ser fixos, antes variando em
virtude da percepção do praticante.
8 – Preconiza-se para iniciantes entre 8 a 12 repetições por exercício. Posteriormente, em função dos
objetivos da prescrição, esse número pode diminuir, com aumento das cargas. A velocidade de movi-
mento deve ser confortável, priorizando a técnica da execução do exercício e, portanto, a segurança do
praticante.
9 – A freqüência semanal dependerá do nível de aptidão do praticante. Para iniciantes que trabalham
com cargas não elevadas, o programa poderá ter lugar em quase todos os dias da semana. Para os mais
adiantados, que treinam com cargas elevadas, a freqüência semanal de trabalho por grupamento mus-
cular deveria diminuir.
10 – A quebra da rotina no treinamento deve ser sempre considerada, para aumentar o potencial de ade-
são do praticante. Aliás, isso é válido para qualquer tipo de treinamento empregado em idosos. A duração
total do treinamento não deveria ultrapassar 1:30 h.

4. Atividade física e flexibilidade


Muitos fatores influenciam a flexibilidade, sendo assim difícil separar a influência
da idade de outras variáveis, como participação desportiva ou as atividades habituais
(Farinatti, 2008). No entanto, há relativa concordância em que haja diminuição da
amplitude de movimentos com o passar dos anos. Shephard (1990), por exemplo,
sugere que o declínio possa chegar a até 20% entre os 20 e os 65 anos, acelerando-
se a partir daí. Adams et al. (1999) e Farinatti (2008) mencionam perdas de 20 a 30%
entre os 30 e os 70 anos, principalmente nos homens.
Em todas as idades, há uma tendência de o sexo feminino exibir valores de flexibi-
lidade superiores aos observados no sexo masculino. Os movimentos de tronco são,
sem dúvida, aqueles em relação aos quais se dispõem de mais dados quando o tema
é o envelhecimento (Shephard, 1990, 1997). Outros grupos de movimento, con-
tudo, têm sido valorizados em estudos com pessoas idosas. Cunningham et al.
(1993) incluíram os movimentos de ombro entre os melhores preditores de depen-
dência futura, ao lado do nível de participação em atividades cotidianas e velocidade
da marcha. Quanto aos movimentos de quadril, além de contribuírem com medidas

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de flexibilidade de tronco, associam-se à manutenção de padrões de marcha mais


eficientes, uma vez que deles em muito depende a amplitude da passada (Williams,
Bird, 1992; Vandervoort et al., 1992; Gehlsen et al., 1993; Farinatti, Nobre, 2004).
Apesar de a maior parte dos estudos dispensarem suas atenções para movimentos
de tronco, ombro e quadril, o impacto do envelhecimento sobre outras articulações
também é mencionado na literatura. Vandervoort et al. (1992) referem-se a perdas
especialmente importantes na articulação do tornozelo (50% no caso das mulheres
e 35% nos homens, entre os 55 e 85 anos de idade). A diminuição da força dos mús-
culos flexores do tornozelo e o aumento da resistência muscular [em função de uma
maior proliferação de tecido conectivo na composição dos músculos] podem dimi-
nuir a capacidade de flexionar os tornozelos. Isso, somado à menor mobilidade do
quadril, contribuiria para a alteração do padrão de marcha em indivíduos idosos. Os
passos tornam-se mais curtos e arrastados, além de sobrevirem alterações desfavo-
ráveis no equilíbrio (Williams, Bird, 1992; Farinatti, Nobre, 2004; Farinatti, Guima-
rães, 2005).
Por fim, é importante destacar que o declínio da flexibilidade remete à relação com
a manutenção da autonomia funcional. Níveis reduzidos de flexibilidade têm sido
associados a dificuldades de desempenho em muitas atividades cotidianas impor-
tantes, como a utilização de transportes públicos, subir degraus, lavar-se, vestir-se
ou calçar-se, assim como a uma menor eficiência no padrão de marcha e maior in-
cidência de quedas (Chakravarty, Webley, 1993; Rantanen et al., 1994; Gregg et al.,
2000; Carter et al., 2001; Farinatti, Nobre, 2004; Farinatti, Guimarães, 2005; Geral-
des et al., 2008a). Ou seja, a redução da amplitude articular associa-se fortemente
com a capacidade para realização de tarefas diárias.
Se, em qualquer idade, a flexibilidade é a qualidade física mais afetada pelo padrão
de atividades cotidianas (o que ajudaria a explicar seu declínio acelerado), o contrá-
rio também parece acontecer – ao iniciar-se um programa de treinamento, os ga-
nhos de amplitude tendem a ocorrer rapidamente (Shephard, 1997; Lazowski et al.,
1999). Na verdade, não há aspecto fisiológico que possa fazer crer que os níveis de
amplitude de movimentos alcançados por pessoas idosas, como efeito de treina-
mento regular e específico, difiram da flexibilidade desenvolvida em qualquer outra
fase da vida adulta.
O exercício contribui para a estabilidade e a mobilidade articulares durante o enve-
lhecimento, sendo importante para adultos de meia-idade e idosos (Raab et al., 1988;
Shephard, 1990; Farinatti et al., 1995; Phillips, Haskell, 1995). Nesse contexto, o tipo
de atividade parece não ter de ser especificamente direcionado ao desenvolvimento
da amplitude de movimentos, para que melhorias sejam observadas, principal-
mente em idosos sedentários. Em idosos sedentários, a flexibilidade responderia
favoravelmente a estímulos diversos, como o treinamento da força (Chapman et
al., 1972; Barbosa et al., 2002; Monteiro et al., 2008), caminhada e corrida (Buccola,
Stone, 1975), exercício em ciclo-ergômetro (Hubley et al., 1984), ioga (Blumenthal
et al.,1989), ginástica geral (Farinatti et al., 1995), treinamento aeróbio (Morey et
al., 1999; McMurdo, Burnett, 1992) ou natação competitiva (Soares et al., 1995).
Assim, parece que a simples modificação do padrão habitual de movimentação das
pessoas idosas, principalmente quando sedentárias ou frágeis, pode ser suficiente

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para efeitos positivos na sua amplitude de movimentos. Quando se trata de idosos


ativos, evidentemente, o treinamento específico parece representar uma diferença
importante em termos de ganhos de amplitude articular (Rider, Daly, 1991; Fari-
natti et al., 1996; Lan et al., 1998; Hong et al., 2000).
Alguns autores propuseram-se a definir as sobrecargas ideais de extensão muscular
para obterem-se efeitos no treinamento de flexibilidade. Acredita-se que se deva
atingir o ponto de clivagem do colágeno, para que haja estimulação no sentido de
subseqüente deposição longitudinal desta proteína, através da ativação de fibro-
blastos terminais do tecido conjuntivo (Conroy, Earle, 1994). Obviamente, na prá-
tica é impossível determinar qual o momento em que isso ocorre ao executar-se
um exercício de alongamento. Assim, geralmente as recomendações acabam por
sugerir se estenda a musculatura até que a posição atingida represente um ligeiro
desconforto, não existindo a necessidade de sentir-se dor para obtenção de resulta-
dos positivos (Rapoport, 1984). A ocorrência de dor estaria associada a amplitudes
que ultrapassam a resistência do colágeno à tração, levando à ruptura de suas fibras
e, portanto, lesão do tecido conjuntivo da fáscia muscular (Sutton, 1984). Além
disso, pode haver danificação muscular, com danos no retículo sarcoplasmático, tú-
bulos-T e linhas Z (Byrd, 1992; Fridén, Lieber, 1992). Dependendo da extensão em
que isso ocorre, o processo inflamatório decorrente pode implicar em importante
sensação tardia de dor muscular – no caso das pessoas idosas, é fácil entender que
tal desconforto possa contribuir com uma evasão do programa de atividades físicas.
O aquecimento é uma estratégia recomendada para prevenir os riscos de lesão con-
juntiva e muscular.
Em linhas gerais, sabe-se que a simples repetição de um exercício pode levar ao au-
mento da amplitude de movimentos alcançada, indicando que as respostas da fle-
xibilidade são particularmente sensíveis a estímulos agudos, podendo perdurar por
vários minutos (Henricson et al., 1984; Viveiros et al., 2004). A duração do estímulo
e o número de repetições são, portanto, aspectos importantes do treinamento.
Sabe-se que o grau de ativação dos fusos musculares é diretamente proporcional ao
comprimento final alcançado pelas fibras. Por outro lado, a despolarização dos fusos
musculares tende a diminuir se a posição é mantida – em outras palavras, o fuso
muscular exerce um efeito limitador agudo forte, mas crônico fraco (Hutton, At-
water, 1992; Wenngren et al., 1998). Com isso, a contração reflexa da musculatura
antagonista ao movimento realizado também tende a diminuir. Com o tempo, as
novas amplitudes vão sendo ‘aceitas’ progressivamente como normais pelo fuso
muscular.
Mas, se a duração da contração é reconhecida como um fator fundamental da so-
brecarga, a forma de fazê-lo continua um tanto obscura. De fato, o espectro das re-
comendações é muito grande, sendo possível encontrar menções que vão de 6 a 60
segundos de exposição (Farinatti, 2001). Algumas pistas fornecidas por estudos ex-
perimentais, no entanto, permitem reduzir a amplitude de possibilidades. Resul-
tados produzidos por Bandy e Irion (1994), Bandy et al. (1997) e Roberts e Wilson
(1999) apresentaram fortes evidências de que estímulos entre 10 a 30 s de duração
produziriam ganhos de flexibilidade significativos, independentemente da fre-
qüência de treinamento. A freqüência de treinamento, portanto, consistiria em va-

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riável secundária para a melhoria da flexibilidade. Na verdade, não haveria proble-


mas em que a freqüência de exercícios fosse diária, mas também não se sabe até que
ponto isso implicaria em efeito adicional.
Outra questão refere-se à escolha dos movimentos a incluir em programas de exer-
cícios visando o desenvolvimento da flexibilidade de idosos. Alguns grupamentos
articulares deveriam receber maior atenção. A flexibilidade de tronco é importante
para a na manutenção dos níveis gerais de mobilidade, além de associar-se às dores
na coluna cervical e lombar (ACSM, 2006). As articulações do quadril e tornozelo
têm papel importante na geração do padrão de marcha, fator de independência para
o idoso (Farinatti, Nobre, 2004). Enfim, há evidências de que a articulação do ombro
perde rapidamente flexibilidade (Germain, Blair, 1983; Shepard, 1990), com pre-
juízo para movimentos associados às atividades cotidianas (vestir-se, banhar-se, al-
cançar objetos em cima de prateleiras ou embaixo de bancadas etc). Na perspectiva
da independência funcional, seria então aconselhável incluir exercícios de mobili-
dade dos ombros em diversos planos.
São três as formas mais comuns de treinamento de flexibilidade: a Estática ou Pas-
siva, a Balística ou Ativa, e a Facilitação Neuromuscular Proprioceptiva (FNP). O
treinamento passivo envolve um relaxamento completo e voluntário da muscula-
tura durante o alongamento. Este método talvez seja o mais difundido, pois é fácil
de ser aprendido, eficaz e apresenta relação mínima com dor tardia e lesões. É con-
veniente quando conforto e tempo limitado de treinamento são os principais fato-
res a serem considerados na elaboração do programa. Na execução do exercício,
move-se lenta e progressivamente o segmento à posição de sobrecarga, mantendo-
a durante algum tempo. A ampla maioria dos autores indica este tipo de treina-
mento para iniciantes e não atletas, considerando-o mais seguro para o praticante
(Alter, 1999; ACSM, 2006).
Nota-se que o equilíbrio é um componente a ser considerado em exercícios de alon-
gamentos para idosos, principalmente quando realizados em pé. Como relatado por
Alter (1999), distúrbios sensoriais auditivos, visuais, vestibulares e proprioceptivos
podem afetar o equilíbrio e a percepção do corpo no espaço. Com a idade, a contri-
buição da visão para o equilíbrio torna-se preponderante – como não é raro que ido-
sos tenham deficiências visuais, podem ficar mais suscetíveis às quedas. Isso traz
vantagens para o método passivo de treinamento: em virtude da forma de condução
dos movimentos, o equilíbrio necessário para realizar os envolver exercícios é
menor, tornando-o o método passivo atrativo em programas para idosos.
O método balístico compreende movimentos forçados e repetidos nos extremos de
movimento, sem que se sustente à posição final. Caracteriza-se pelo ganho de ve-
locidade no decorrer do movimento. Em função disso, tem grande potencial de es-
timulação dos reflexos de estiramento via fuso muscular (Moore, Hutton, 1980), o
que seria contraproducente, acarretando um maior risco de lesões. Isso, por si só,
seria uma desvantagem para aplicação com idosos.
A forma mais comum de FNP consiste em levar o movimento à sua máxima ampli-
tude e, logo a seguir, contrair estaticamente a musculatura alongada contra o sen-
tido da extensão. Busca-se inibir a ação reflexa do fuso muscular, contra a extensão
praticada, através da estimulação dos Órgãos Tendinosos de Golgi e ou de inibição

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recíproca agonista-antagonista (Burke et al., 2000). O método reveste-se de riscos


de lesão conjuntiva e muscular importantes: deve-se lembrar que os tecidos moles
das pessoas idosas tendem a ser menos flexíveis, seja por menor conteúdo hídrico,
seja por calcificação aumentada ou predominância de fibras colágenas em detri-
mento da elastina. As estruturas articulares e ósseas também podem apresentar-se
fragilizadas, em virtude de osteopenia avançada, artrite ou complacência ligamen-
tar, o que pode contribuir para quadros de hipermobilidade (Dolan et al., 2003) que,
se mal interpretados no momento do exercício, aumentam as possibilidades de
ocorrência de lesão.
Em suma, a intensidade da extensão parece ser o fator preponderante no estabele-
cimento de sobrecargas para o treinamento de flexibilidade. Fatores como duração
e freqüência aparecem em nível secundário. Os estudos que propuseram a analisar
o método mais eficaz de alongamento, principalmente em se tratado de pessoas
idosas, são escassos. Em sua maior parte, sugerem que não haveria vantagem de
uma forma de trabalho sobre a outra (Entyre, Lee, 1987; Alter, 1999). Desse modo
e sopesados todos os aspectos, acreditamos que, na ampla maioria dos casos, o mé-
todo passivo tende a ser o mais indicado em programas de treinamento para idosos.
O Quadro 3 apresenta algumas recomendações que podem ser seguidas na elabora-
ção de programas de treinamento da flexibilidade para idosos.

Quadro 3 – Recomendações para o treinamento de flexibilidade para idosos

1 - Fornecer explicações simples e concisas, demonstrar o exercício ou as posições desejadas. Eliminar


ruídos ou distrações que possam atrapalhar a concentração. Dar tempo para que o idoso compreenda as
instruções.
2 - Realizar exercícios em duplas, pois exigem menos equilíbrio do que os feitos sozinhos. Evitar, porém,
que os movimentos sejam conduzidos pelo companheiro, o que aumenta os riscos de lesão. Quando pos-
sível, incluir músicas suaves durante as sessões de treinamento.
3 - Evitar que o idoso passe rapidamente da posição de decúbito para a estação de pé (hipotensão postu-
ral). Preferencialmente, solicitar que permaneça sentado por um pequeno tempo, antes de levantar-se.
4 – Realizar aquecimento antes do treinamento. Quando o objetivo for relaxamento, o aquecimento
não é prioritário. Nesse caso, conduza os movimentos até um ligeiro desconforto, não havendo necessi-
dade de atingirem-se amplitudes máximas de movimento.
5 - Para iniciantes, realizar o treinamento através do método passivo. Para os mais adiantados, depen-
dendo dos objetivos do programa, é possível mesclar os métodos passivo e FNP. O método balístico deve
ser evitado, a não ser que movimentos em velocidade com arcos importantes de movimento façam parte
da rotina do indivíduo.
6 - Provocar adaptações progressivas, priorizando a duração em detrimento da intensidade. Evitar a dor.
O ponto de desconforto já é suficiente para que a amplitude de movimentos seja aprimorada. A duração
aproximada para se obter efeitos positivos na flexibilidade situa-se entre 10 a 30 segundos.
7 – Deve-se alertar o idoso para o risco de dor muscular tardia (24 a 48 horas após), toda vez que se reinicia
ou aumenta a intensidade de exercícios de flexibilidade.
8 - Os principais grupos articulares a serem trabalhados, em virtude das relações com mobilidade, inde-
pendência funcional e dores na coluna, associam-se a movimentos de ombro, tronco, quadril e tornozelo.
O número de exercícios depende dos objetivos e necessidades dos praticantes. Quando o objetivo for
trabalhar a flexibilidade de maneira genérica, geralmente são incluídos de 8 a 10 exercícios.

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9 - Não é preciso realizar um número demasiado de repetições. Cada exercício pode ser trabalhado de
3 a 5 vezes. Deve-se lembrar que a repetição excessiva de movimentos em sua máxima amplitude
pode predispor os praticantes a lesões. A freqüência semanal de treinamento varia de 3 a 5 vezes. Con-
tudo, isso pode variar, dependendo do grau de condicionamento do idoso e dos objetivos com a prática
do exercício.
10 - Incluir exercícios de alongamento em todo tipo de treinamento, tanto na etapa inicial (aqueci-
mento), quanto na final (volta à calma), sendo que nesta última deve-se evitar alcançar amplitudes má-
ximas.

5. Um exemplo concreto de programa de atividades físicas para idosos:


o Projeto Idosos em Movimento: Mantendo a Autonomia (IMMA)
O Projeto IMMA, criado em 17 de outubro de 1989 na Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, concentra-se no aprimoramento dos aspectos metodológicos do en-
sino de atividades físicas para idosos, dentro de um contexto multi-cultural. Neste
sentido, seus objetivos são: a) contribuir para diminuir o isolamento dos partici-
pantes, isolamento induzido pela aposentadoria e pela diminuição da aptidão fun-
cional; b) proporcionar o gosto pelo movimento, de modo a que se constitua em
estratégia para a manutenção da autonomia de ação dos indivíduos; c) integrar os
idosos em uma atividade de grupo, de forma a fazê-los reencontrar, em contato com
outros de idade semelhante, o prazer de se comunicarem e de se expressarem par-
ticipando de uma atividade coletiva; d) contribuir para a formação de recursos hu-
manos para a condução de atividades físicas com indivíduos idosos; e) contribuir
para a pesquisa e produção de conhecimentos no âmbito da atividade física e a au-
tonomia de idosos. As maiores contribuições do Projeto IMMA ocorreram na cons-
trução de uma didática específica para as atividades físicas para pessoas idosas e a
disseminação das informações sobre os avanços nesse campo.
A metodologia de trabalho envolve o desenvolvimento de atividades corporais, le-
vando em conta as necessidades em termos de autonomia e os interesses dos parti-
cipantes. Dentre as atividades propostas encontram-se a ginástica, a dança e jogos
recreativos. O trabalho inclui, ainda, um levantamento periódico das dificuldades
para uma vida autônoma a partir do cotidiano das pessoas idosas. Enfim, promove-
se o aprimoramento da aptidão físico-funcional para minorar as limitações identi-
ficadas, realizando-se e uma avaliação periódica da aptidão físico-funcional dos
participantes.
De forma geral, os candidatos ao projeto passam por uma triagem inicial e, ao longo
de sua participação efetiva, por avaliações anuais. Inicialmente é feita uma consulta
ambulatorial de enfermagem, na qual são apreciadas as condições clínicas gerais do
idoso e suas queixas em relação à saúde, sendo aplicados testes básicos de indepen-
dência funcional, memória e função cognitiva de forma geral, visão e audição. Em
seguida, os candidatos são encaminhados à realização de exames complementares,
laboratoriais (hemograma completo) e ergometria em teste de esforço progressivo,
com eletrocardiograma. Aqueles que podem arcar com as despesas destes exames
(planos de saúde etc) são solicitados a fazê-lo, enquanto os que não podem são en-
caminhados ao Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE-UERJ), com o qual o
Projeto IMMA mantém um acordo, onde os exames são realizados gratuitamente.

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Finalmente, de posse dos resultados dos testes, é marcada consulta com médico do
programa, que avalia as condições de participação do aluno. A reavaliação dos par-
ticipantes do projeto é anual, seguindo os mesmos princípios.
É importante ressaltar que o controle médico não é utilizado com fins de excluir pos-
síveis candidatos do ingresso nas atividades do projeto. Normalmente e tanto quanto
possível, a avaliação médica é utilizada como fonte de informações sobre comprome-
timentos que possam ser agravados pela atividade física, que ofereçam certo risco ou
que possam ser compensados por ela. Assim, indivíduos com hipertensão em repouso
ou reativa ao esforço, diabetes, problemas ósteo-articulares ou déficits cognitivos
preocupantes, são acompanhados com mais cuidado durante as aulas – por exemplo,
no caso dos diabéticos a glicemia deve ser controlada antes e depois das sessões, no
caso de hipertensos reativos, a pressão deve ser observada antes, durante e após as
sessões e assim por diante. Além disso, dependendo do caso, o aluno pode ser enca-
minhado a atendimento complementar, de maneira que se adotem estratégias tera-
pêuticas ou preventivas relativas a problemas específicos diagnosticados.
Mas as estratégias de avaliação do Projeto IMMA não se esgotam na dimensão clí-
nica. O nível de autonomia de ação dos participantes é apreciado duas vezes por
ano, no início e fim do período letivo. Para tanto, foi adotado como teste padrão o
Sistema Senior de Avaliação da Autonomia de Ação (SysSen) (Farinatti, 1998, 2000; Fa-
rinatti, Vanfraechem, 1999, 2000; Farinatti et al., 1998, 2008). O teste consiste em
um questionário para levantamento as necessidades em termos de força de mem-
bros superiores e capacidade cardiorrespiratória para atividades realizadas em três
dimensões (o que se faz, o que se deve fazer em virtude de imposições ambientais
e o que se desejaria fazer, mas não se faz atualmente) e um teste de campo visando
estimar o potencial de satisfação daquelas necessidades, no âmbito da aptidão física.
Do cruzamento dessas informações obtém-se um índice que exprime o quanto o
idoso tem de potencial para realizar atividades que respondam às necessidades im-
postas pelo ambiente físico, mas também às suas próprias aspirações quanto às ati-
vidades correspondentes a uma vida autônoma.
Antes das aulas, algumas rotinas pré-participação têm lugar. A pressão arterial e a
glicemia de todos os idosos são aferidas e comparadas com as informações sobre a
preexistência de quadros de hipertensão arterial ou diabetes, bem como quanto ao
nível de normalidade esperado em função dos medicamentos utilizados. De posse
desses dados, o professor tem condições de decidir sobre a participação na aula e
sobre a necessidade de encaminhamento médico. Após a aula a pressão arterial e a
glicose sangüínea voltam a ser controladas, de maneira que se controle o retorno
aos valores tensionais de repouso e se evitem episódios de hipoglicemia. Todas as
rotinas preventivas são exibidas na lista de chamada aplicada pelos professores,
apresentada na Figura 1. Na lista, além do nome dos alunos, é possível visualizar ra-
pidamente os comprometimentos de cada um deles, de forma a auxiliar o processo
decisório e facilitando a atenção individualizada, mesmo que a aula se dê em grupos.
Esta lista de chamada, aliás, representa uma ponte bem sucedida em os exames mé-
dicos pré-participação e a atuação do professor. Na verdade, é através dela que os re-
sultados da avaliação do médico são efetivamente aplicados na rotina das aulas, o
que nem sempre é feito em programas desse tipo.

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Figura 1 – Exemplo de preenchimento de lista de freqüência das aulas do Projeto IMMA

Algumas rotinas adicionais completam o que foi apontado, consistindo em proce-


dimentos ligados a cuidados com o ambiente físico e o material das aulas, o horário
das atividades, o vestuário e o calçado, o uso de óculos, chegando até a decisão de
suspensão das aulas em dias de temperatura muito elevada. A questão da segurança
nas atividades físicas inclui também a questão da intensidade da aula, que se pro-
cura manter entre 3 e 4 METs, dadas as características e as especificidades de nossa
população alvo. Como forma de controle da intensidade das atividades, desenvol-
veu-se uma conjugação da Escala de Borg CR-10 (Borg, 2000) para medida da sensa-
ção subjetiva de esforço com uma escala pictórica, de forma a superar as dificuldades

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acarretadas pelo baixo nível de escolaridade dos idosos a quem o Projeto atende (5%
de analfabetos e 56% com ensino fundamental incompleto).
Enfim, para melhor controlar a questão da segurança nas atividades físicas e apri-
morar o desempenho didático-pedagógico do professor, foi idealizado um esquema
padrão para as aulas, estas últimas concebidas de forma ampla. As condições para
uma aula não dizem respeito apenas ao local, mas também ao conteúdo, a lição, ou
seja, ao ensinamento que ocorre naquele local. Refletir sobre a aula não é uma tarefa
fácil, pois significa penetrar na profundidade da intencionalidade das atividades pe-
dagógicas. Assim, com fins de treinamento dos recursos humanos, abraçou-se a
idéia de que as sessões de atividades físicas para os idosos (as aulas) seriam elabora-
das obedecendo a um esquema pedagogicamente pré-determinado, ainda que sufi-
cientemente flexível para permitir adequações. Com a adoção desse tipo de
esquema almejou-se inibir ‘tentativas perigosas de originalidade’, principalmente por
parte de alunos em treinamento ou profissionais com pouca experiência com as
pessoas idosas. O esquema IMMA para aulas de ginástica/dança é composto de seis
partes, conforme descrito no Quadro 4.

Quadro 4 – Esquema IMMA para aulas de ginástica/dança

1) Aquecimento, que emprega diferentes alongamentos e formas de andar, individualmente, em duplas


ou em pequenos grupos, com variação de ritmo e envolvendo diferentes segmentos corporais.
2) Flexibilidade e trabalho muscular geral, trabalho que visa melhorar a mobilidade articular (com os
alunos em duplas ou pequenos grupos, geralmente sentados) e a força, com trabalho com cargas leves.
3) Equilíbrio (estático e dinâmico), que objetiva o fortalecimento das estruturas muscular e articular
essenciais ao equilíbrio, com mudanças de posição.
4) movimentos de coordenação e imitação, incluindo reprodução de seqüências de movimento, envol-
vendo dois ou mais segmentos corporais. Nesta parte são ainda incluídos exercícios de reforço para ree-
ducação postural (marcha, subida de escadas, reeducação respiratória e mudanças de decúbito etc).
5) Movimentos de deslocamento no espaço, com elementos da ginástica e da dança, seguindo ou não
determinada música ou marcação rítmica, envolvendo elementos básicos como: gestos, giros e voltas
simples, transferência de peso corporal em diferentes passos e formações.
6) Relaxamento, procurando evitar o aumento das tensões musculares, através de movimentos lentos
e suaves. Procura-se restabelecer o equilíbrio respiratório e circulatório. Inclui-se nesta parte a possibi-
lidade de discussões sobre temas ligados à saúde (principalmente as atividades físicas) e ao exercício da
cidadania de forma geral.

Completam a rotina de atividades ciclos de palestras sobre temáticas visando ajudar


os alunos a entender questões relacionadas às relações entre saúde e atividade física.
Tal proposta busca coerência com o objetivo mais geral do projeto, a saber, estimular
a autonomia dos alunos no sentido de que desenvolvam condições para gerenciar
os próprios problemas de aptidão física e, de certa forma, praticarem atividades fí-
sicas de forma independente. As palestras acontecem bimestralmente e, entre uma
e outra temática abordada, nas aulas que se seguem os assuntos são reforçados pelos
professores a fim de que sejam paulatinamente assimilados pelos alunos.
Os resultados obtidos pelo Projeto IMMA indicam que a adesão dos participantes
ao programa de atividades físicas é elevada e que há uma tendência a que as queixas

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quanto às limitações para a autonomia de ação diminuam em médio prazo. Igual-


mente, constatam-se melhorias das condições de aptidão físico-funcional com a
participação no programa. Um dos objetivos fundamentais do projeto é a formação
de recursos humanos para trabalhar com atividades físicas voltadas para as pessoas
idosas – o sucesso desta vertente pode ser medido pela boa inserção dos estudantes
treinados no projeto no mercado de trabalho. Enfim, diversas publicações origina-
ram-se do projeto, além de memórias de licenciatura, dissertações de mestrado e
teses de doutoramento. Em conclusão, pode-se afirmar que os objetivos do Projeto
IMMA vêm sendo colimados, tanto no sentido da intervenção quanto da formação
de pessoal qualificado e produção do conhecimento.

6. Considerações finais
A prática sistemática de atividades físicas pode atuar de forma positiva na redução
e/ou manutenção de diversos aspectos associados à saúde e autonomia funcional
das pessoas idosas. No contexto da elaboração de programas de exercícios para essa
população ao menos três pontos devem ser considerados. Primeiramente, há que
conhecer as modificações acarretadas pelo processo de envelhecimento sobre as va-
riáveis fisiológicas relevantes aos objetivos perseguidos e às condições objetivas da
prática do exercício. Em segundo lugar, é necessário estabelecer com base nesse co-
nhecimento as expectativas quanto aos efeitos do treinamento, bem como os pos-
síveis efeitos e riscos associados ao programa de exercícios. Enfim, é necessário
conhecer as bases fisiológicas que regem a elaboração do treinamento e as possibi-
lidades de sua aplicação no contexto com que se lida.
O presente capítulo procurou abordar aspectos nessas três dimensões fundamentais
para o delineamento de programas de treinamento visando o desenvolvimento da
aptidão física e a promoção da saúde das pessoas idosas. É claro que um texto desta
natureza não consegue esgotar as múltiplas possibilidades da prescrição do exercício
para idosos, por demais abrangentes e complexas. Assim, optou-se por restringir a
discussão às qualidades físicas por nós consideradas como básicas para a funciona-
lidade do idoso: capacidade cardiorrespiratória, força muscular e flexibilidade. Da
combinação dessas qualidades, em um contexto funcional, definem-se outras qua-
lidades físicas importantes, como o equilíbrio ou a coordenação motora.
As evidências aqui apresentadas sugerem que há uma clara tendência ao declínio
no desempenho em todas as qualidades físicas aqui discutidas. Por outro lado, fica
igualmente claro que a prática sistemática de atividades físicas, em qualquer idade,
pode contribuir para minorar essas perdas e, mesmo, revertê-las. Outro aspecto im-
portante estabelecido pelos estudos disponíveis diz respeito ao potencial das pes-
soas idosas em responderem aos estímulos do treinamento. Na verdade, os efeitos
benéficos da prática do exercício sobre a capacidade física e funcional dão-se, fre-
qüentemente, em resposta a volumes e intensidades reduzidos de treinamento.
Coerente com essa premissa, foram descritas as características de um programa de
atividades físicas desenvolvido na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o Pro-
jeto IMMA, que já conta com 20 anos de experiência acumulada e centenas de aten-
dimentos. Nota-se que a abordagem do Projeto IMMA opta por uma perspectiva
inclusiva, valendo-se da avaliação pré-participação para determinar condutas dife-

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renciadas, ao invés de restringir a participação. Com isso, no mesmo espaço de aula


convivem idosos com diferentes condições clínicas e funcionais. É claro que isso
influencia na intensidade e volume dos exercícios propostos, adequados à capaci-
dade de execução de todos, o que não impede que efeitos favoráveis ocorram. Por
outro lado, esse viés certamente contribui com a absoluta ausência de intercorrên-
cias cardiovasculares ou ortopédicas ao longo de todos esses anos, além de ser de-
terminante fundamental da forte adesão dos praticantes, uma das principais
características do projeto.
Em poucas palavras, isso significa que programas de exercícios para idosos não pre-
cisam impor cargas de trabalho excessivas ou desconfortáveis. Na verdade, esse tipo
de abordagem tende a aumentar do risco associado às atividades e diminui o poten-
cial de adesão ao treinamento. Programas prazerosos e variados, que favoreçam a
adesão em prazo longo, parecem-nos os mais indicados para uma ótima relação
risco-benefício nessa população.

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Idosos Brasileiros: Um Desafio para a Sociedade


Suely Santos
Maria Cecília Oliveira Fonseca
Marcelo Eduardo de Souza Nunes
Mariana Marilia Franzoni
Universidade de São Paulo - Brasil

1. Palavras iniciais
“Envelhecer é um privilégio e uma conquista social”, segundo a declaração da Organi-
zação Mundial da Saúde. De fato, as características populacionais, como a longevi-
dade de diferentes países, demonstram a transformação da sociedade mundial. A
população idosa brasileira, por exemplo, saltará de 9% (18 milhões) a 18% (33 mi-
lhões) da população total, no período de 2005 a 2022. Esse processo ocorrerá, por-
tanto, em apenas 17 anos, enquanto que na França, a população idosa passou de 7%
para 14% em 115 anos. Considerando-se o total de habitantes desses dois países em
números absolutos (Brasil: 192 milhões; França: 64 milhões), a transformação da
sociedade brasileira tem sido significativa e, conseqüentemente, a adaptação terá
de ser rápida.
Os debates sobre as mudanças da previdência social já têm tomado os noticiários
há alguns anos. Foram elaboradas algumas leis no sentido de garantir serviços e di-
reitos da população idosa (Lei Orgânica da Assistência Social, Lei 8.742/1993; Polí-
tica Nacional do Idoso, Lei 8.842/1994; Portaria Nº 2.528 de 19/10/2006; Estatuto
do Idoso, 2003). No entanto, há de se ter um cuidado especial com a saúde pública,
já que existe um risco aumentado em adquirir doenças crônico-degenerativas com
o avanço da idade.
A prática regular de atividade física ao longo do processo de envelhecimento, em par-
ticular, também tem papel de destaque na qualidade da vida humana. O envelheci-
mento se caracteriza por um conjunto de mudanças, as quais muitas vezes estão
associadas a aspectos negativos. A diminuição progressiva das capacidades motoras
(força, velocidade, resistência, agilidade e flexibilidade), que são as capacidades gerais
para realizar uma variedade de habilidades motoras, é um exemplo das transforma-
ções que acompanham o avanço da idade. Essa diminuição de capacidades motoras
implica em um decréscimo significativo no desempenho de tarefas cotidianas.
Tal dificuldade influencia negativamente a habilidade em interagir de forma efetiva
com o ambiente. Por sua vez tal fato ocorre como conseqüência do próprio decrés-
cimo no desempenho de tarefas cotidianas. O resultado desse processo ocasiona
numa diminuição da qualidade de vida, que está relacionada a valores pessoais e
inúmeros outros fatores, dentre eles a prática de atividade física, que tem se mos-
trado eficiente na minimização das perdas referentes às capacidades motoras de
idosos (Chodzko-Zajko, 2009).

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2. Aprendizagem motora e envelhecimento


O movimento é fundamental na medida em que se constitui como um meio para
que determinados objetivos sejam alcançados e tarefas sejam realizadas, tanto de
caráter geral, atividades recreativas, esportivas ou dança, quanto da vida diária, ali-
mentação, higiene pessoal, etc. (Okuma, 1998). Desta forma, é esperado que o in-
divíduo tenha competência motora suficiente para atingir tais objetivos e responder
de forma efetiva às constantes modificações impostas pela instabilidade do am-
biente em que vive.
Aliás, a capacidade para executar habilidades motoras é uma característica da exis-
tência humana. O ser humano é capaz de realizar movimentos habilidosos inde-
pendente da situação em que a tarefa venha a ser realizada, seja em situação
competitiva no esporte, de reabilitação física ou de vida cotidiana. Contudo, um
importante aspecto a destacar é que essa capacidade é fruto de um processo de
aprendizagem (Corrêa et al., 2005).
Felizmente, a capacidade de aprender e de reorganizar-se é contínua ao longo da
vida, inclusive nas etapas mais avançadas do desenvolvimento humano. Sendo
assim, o idoso tem a possibilidade de adquirir novas habilidades que possam auxi-
liá-lo na resolução de possíveis problemas cotidianos, ou mesmo no desempenho
de habilidades especializadas, como os movimentos esportivos, por exemplo. Nesse
sentido, adaptar-se às mudanças que ocorrem durante o envelhecimento garantiria
aos indivíduos um grau de autonomia e independência desejáveis.
Apesar da grande porcentagem de idosos brasileiros sedentários (Neri, 2007), a re-
lação positiva entre envelhecimento e atividade física já está bem documentada.
Isto porque, se o envelhecimento provoca uma diminuição das capacidades motoras
e da eficiência fisiológica, a atividade física promove exatamente o contrário.
A literatura também aponta de forma clara qual o tipo, intensidade, duração e fre-
qüência da atividade física para a população idosa (Chodzko-Zajko, 2009), mas o
efeito da prática de atividade física no cérebro ainda não está claro. Essa preocupação
talvez tenha tido início na década de 90 do século passado.
Estudos experimentais evidenciaram a neurogênese em resposta a exposição de
animais a ambientes enriquecedores, que segundo os autores, aumentaria a sobrevi-
vência dos neurônios (Black et al., 1990; Jones et al., 1996; Kleim et al., 1996; Klint-
sova et al., 1997; Kleim et al., 1998; Ivanco & Greenough, 2000; Churchill et al.,
2002; Grossman et al., 2002; Kleim et al., 2002; Kleim et al., 2003; Derksen et al.,
2007; Hattori et al., 2007). Ambiente enriquecedor para os animais se caracteriza,
muitas vezes, por uma gaiola cheia de brinquedos e dispositivos tais como bolas,
rodas, escadas, rampas, etc., que possibilita que os animais produzam movimentos
complexos e diversificados.
De um modo geral, observou-se que o processo de aprendizagem motora estimu-
lado pelo ambiente enriquecedor, levou a um aumento de 25% das conexões sináp-
ticas, enquanto a densidade de vasos sangüíneos permaneceu inalterada. Já o uso
repetitivo de conexões pré-existentes, proporcionado pelo treinamento obrigatório
em esteira (movimento simples), levou a uma melhoria da densidade de vasos san-
güíneos, enquanto que o número de conexões sinápticas permaneceu inalterado.
Esses resultados indicam que a aprendizagem de habilidades complexas possibilitou

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que novas conexões sinápticas fossem formadas, produzindo, também, melhoras


nos déficits de desempenho motor apresentados previamente (ocasionados pelo
consumo de álcool). Esse tipo de condição ambiental levaria a uma formação múl-
tipla de sinapses que fortaleceria determinados caminhos que podem constituir
um mecanismo fundamental de codificação neural (Federmeier et al., 2002). Por-
tanto, há a sugestão de que a exposição à ambientes de elevada demanda motora
pode servir como um modelo de intervenção e reabilitação.
Essa plasticidade cerebral devido a manipulações do ambiente não foi evidenciada
apenas em ratos com lesão cerebral ou não, mas também, em gatos (Beaulieu & Co-
lonnier, 1989); cachorros jovens e idosos (Mattson, 2003; Milgram, 2003); e maca-
cos (Plautz et al., 2000). Nesses estudos foram observadas mudanças funcionais
através da melhoria do desempenho e, também, mudanças na morfologia do cére-
bro dos animais. Vale notar que tais mudanças foram associadas ao esforço caracte-
rístico do processo de aprendizagem motora, particularmente, aquele que envolveu
a aquisição de habilidades complexas proporcionadas por ambientes enriquecedores
(Diamond, 2001; Carey et al., 2005).
A plasticidade do cérebro ou capacidade de reconfigurar-se é acompanhada por mu-
danças sinápticas. Embora a plasticidade neural seja óbvia no início da vida, o cére-
bro permanece maleável durante todo o ciclo de vida, de tal forma que a exposição
à experiências enriquecedoras pode afetar a percepção e conexões sinápticas em
idades avançadas (Diamond, 2001).
Em seres humanos, entretanto, sabe-se que tarefas de ativação mental são acom-
panhadas por muitas mudanças, tais como aquelas desencadeadas no metabolismo
cerebral (consumo de glucose por células cerebrais, aumento do fluxo e tempera-
tura do sangue). Essas mudanças podem ser observadas diretamente através de ins-
trumentos de imagens computadorizadas, como as imagens feitas por meio de
ressonância magnética funcional (fMRI) e a tomografia de emissão de pósitron
(PET) (Amaro & Yamashita, 2000; Cardoso & Sabbatini, 2000; Ashburner & Friston,
2000; Good et al., 2001; Covolan et al., 2004). A partir dessas metodologias de es-
tudo, Churchill et al. (2002) sugerem que os resultados preliminares da função ce-
rebral junto à integração de estudos com animais e humanos nos conduzem ao
entendimento do efeito da experiência no substrato do comportamento durante o
envelhecimento.
Avanços metodológicos como fMRI e PET têm permitido observar os efeitos da
aprendizagem motora nas estruturas cerebrais de humanos, além de associá-los às
mudanças comportamentais. Os estudos de Draganki et al. (2004), Meister et al.
(2005) e Boyke et al, 2008 ilustram como tais metodologias têm sido utilizadas.
Portanto, a plasticidade cerebral parece estar diretamente relacionada à aprendizagem,
o que de certa forma confirma um conceito consagrado na aprendizagem motora, o
qual retrata a aprendizagem como um processo que envolve uma mudança relativa-
mente permanente no desempenho motor, como resultado da prática ou experiência
(Schmidt, 1988), que pode levar horas, dias e até semanas (Cech e Martin, 1995).
Talvez seja relevante ressaltar que, aparentemente, o SNC do indivíduo faz o que é
possível, ou seja, utiliza os recursos existentes num dado momento com o objetivo
de ser bem sucedido. Assim, uma forma de intervenção, como um programa de ati-

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vidade física (por exemplo), seria oferecer condições para que o sistema/indivíduo
pudesse escolher uma resposta motora adequada. Isso significa oferecer possibili-
dades de escolha. Segundo Mark Latash1 (comunicação pessoal), seria pretensão do
pesquisador ou do professor saber mais do que o SNC de uma pessoa.
Embora haja evidências que apontam declínios na aquisição de habilidades motoras
de idosos (Gehring, 2008) comparados a adultos jovens (McNay & Willingham,
1998; Ruiz et al., 2007; Seidler, 2007a), os resultados de pesquisa demonstram que
idosos são capazes de modificar o comportamento de forma qualitativamente su-
perior em função da prática. Isso foi evidenciado tanto em tarefas motoras realiza-
das em laboratório de pesquisa (Santos & Tani 1994, 1995; Seidler, 2007b), como em
tarefas motoras de maior validade ecológica como o malabares (Voelcker-Rehage &
Willimczik, 2006), ou o golfe (Steinberg, 2000; Steinberg & Glass, 2001).
A faixa etária dos grupos considerados idosos merece algum destaque, visto que a
maior parte dos delineamentos de pesquisa reúne, em geral, todos os indivíduos
acima de 60 anos de idade. Esse critério de agrupamento parte da premissa, segundo
a qual, após os 60 anos de idade não ocorrerão mudanças significativas em termos
de desenvolvimento. Com isso, muitas vezes tais grupos experimentais incluem
indivíduos desde os 60 anos de idade até indivíduos entre 80 e 90 anos de idade.
Embora a utilização de grupos mais homogêneos em termos de idade cronológica
possa facilitar a compreensão do envelhecimento, a viabilização da pesquisa, em
termos metodológicos, é dificultada. É necessário considerar que as mudanças de
desenvolvimento continuam a ocorrer ao longo de todo o ciclo de vida (Santos,
2002), portanto, agrupar pessoas de 60, 70, 80 e 90 anos de idade (ou mais) é um
equívoco. Recentemente, Gehring (2008) demonstrou diferenças de desempenho
na aquisição de uma habilidade motora de dois grupos de idosos, um de 60-64 anos
de idade e outro de 75-79 anos de idade.

3. Atividade física e envelhecimento


Não obstante, sabe-se que uma porção considerável da população idosa brasileira
não pratica qualquer atividade física. Um estudo realizado por Neri (2007) caracte-
rizou a população idosa brasileira em inúmeros aspectos. As informações levantadas
apontam que apenas 19% dos idosos reportam nenhum problema de saúde, en-
quanto que 81% identificam os mais diversos problemas, sendo que pressão alta
(42%), problemas de visão (26%) e dores nas costas (23%) merecem algum destaque.
Quando questionados se faziam atividade física, observou-se que 51% dos idosos
fazem caminhada, mas não o fazem com a freqüência desejada. Além disso, também
foram identificadas as seguintes atividades: alongamento (12%), andar de bicicleta
(9%), ginástica (8%), natação (3%), musculação (2%), esportes (3%), corrida (2%),
hidroginástica (3%) e outras atividades (3%).
É interessante observar que idosos parecem preferir atividades em grupos (prova-
velmente pela diminuição de papéis sociais que ocorre com o envelhecimento), mas
quando as atividades realizadas em grupo são consideradas, observa-se que poucos
idosos participam de programas de atividade física. Supõe-se, portanto, que a oferta
de programas direcionados a idosos ainda está aquém da demanda. Além disso, tais
programas envolvem na maior parte das vezes, uma população feminina. Em torno

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de 80% dos idosos envolvidos em programas de atividades físicas são mulheres. No-
vamente, supõe-se que esses programas não atraem a população idosa masculina.
Outra característica da população idosa brasileira é a diversidade cultural, pois, além
das diferenças regionais de um país de grande dimensão territorial, há a influência
do processo de imigração (8% Italiano; 7% Português; 3% Espanhol; 2% Alemão; 1%
Africano; 1% Japonês), que pode gerar outras preferências por atividades.
Portanto, constata-se que: (a) andar é a principal atividade, mas idosos não a fazem
com a freqüência desejada; (b) a maioria dos idosos faz atividade física sozinho; (c)
a oferta de programas de atividade física para idosos é baixa; (d) programas de ati-
vidade física parecem atender principalmente mulheres idosas; (e) e as diferenças
individuais na população idosa são altas.

4. Considerações finais
Muitas vezes, a preocupação com o envelhecimento se circunscreve a questões nu-
mérico-demográficos, à aposentadoria da sociedade, ao tratamento de doenças e,
mesmo, ao desenvolvimento de tecnologias ou metodologias anti-envelhecimento.
No entanto, tais preocupações devem estar comprometidas com a melhoria da qua-
lidade de vida da população idosa.
É fato que o declínio das capacidades motoras é inevitável ao longo do envelheci-
mento, porém, a curva desse declínio pode ser reduzida quando a atividade física
sistematizada é utilizada como forma de intervenção. A importância que essa ati-
vidade exerce sobre a qualidade de vida dos seres humanos, particularmente, du-
rante a velhice, tem sido consistentemente confirmada. Tais intervenções, em
geral, envolvem a repetição de movimentos cíclicos e de baixa complexidade, com
o objetivo de aumentar a eficiência fisiológica dos praticantes (exercícios de mus-
culação, caminhada, etc.).
Considerando também que a capacidade de aprender movimentos é mantida com
o avanço da idade, a aquisição de habilidades motoras parece ser um caminho pro-
missor no sentido de subsidiar programas de atividades físicas para idosos, con-
forme sugerido por Santos & Fonseca (2004). Estas autoras apontaram para a
possibilidade de um programa de atividades físicas para idosos que utilize conteú-
dos envolvendo a prática de habilidades complexas. Tais habilidades possibilitariam
também as desejáveis mudanças fisiológicas que a tradicional prática de habilidades
simples (exercícios de musculação, caminhar, pedalar, etc.) promove. Essa forma
de intervenção envolveria a preparação de um ambiente que expõe os indivíduos a
desafios e situações de resolução de problemas. Esse conjunto de condições ambien-
tais levaria a uma série de adaptações e ajustes na seleção de respostas motoras, para
que os objetivos das tarefas sejam realizados com sucesso.
Finalmente, com o intuito de envolver a população idosa brasileira em programas
de atividade física de forma efetiva serão apontados alguns fatores, os quais gestores
ou a sociedade como um todo poderiam considerar: as diferenças culturais e regio-
nais; diferenças inter-individuais e de gênero; oferta de serviços e/ou oportunida-
des para a atividade física em todo o país; e locais adequados para a prática de
atividade física (incluindo calçadas seguras).

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1 Mark Latash, Distinguished Professor of Kinesiology do College of Health and Human Development, Pennsylvania
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Motivação, o Idoso e o Atletismo


Alfredo Faria Junior*
Elza Rosa da Silva**

Vários autores defendem a necessidade de se conhecer profundamente as razões


porque as pessoas decidem praticar desporto. Dentre essas investigações a maioria
concentrou-se em saber por que os jovens têm se dedicado à prática do desporto e
qual tem sido ele. Foram desenvolvidos e publicados nos últimos anos numerosos
estudos sobre este tema. Os resultados destes estudos parecem evidenciar que, de
modo geral, os motivos que levaram os jovens à prática do desporto foram; “o di-
vertimento, o melhoramento das suas competências ou o aprendizado de novas
competências, o contato com os amigos ou a criação de novos amigos, e a melhoria
da sua forma física”. (FONSECA; RIBEIRO, In: FONSECA, 2001).
A maior parte desses trabalhos foi desenvolvida nos países anglófonos como os de
P. Brodkin e M. Weisss (1987), Diane L. Gill, John Gross, Sharon Huddleston (1983)
e de Daniel Gould, D. Feltz e M. Weiss (1985), nos Estados Unidos. Na Inglaterra
encontramos o trabalho de Martin J. Lee, sobre a relação entre valores e motivo em
desporto e de Jean Whitehead sobre algumas implicações dos modelos alternativos
de motivo e valores no desporto para jovens (In: VANFRACHEM-RAWAY; AU-
WEELE, 1995b) No Canadá, citam-se a investigação de Geatane Tremblay e Dennis
Hrycaiko (In: VANFRACHEM-RAWAY; AUWEELE, 1995b) Podem-se também apon-
tar os estudos de Tony Morris e colaboradores e de Kerrie McQuillan e Judith Kea-
ting (In: VANFRACHEM-RAWAY; AUWEELE, 1995a) feitos na Austrália.
Em língua portuguesa menor tem sido o número de trabalhos publicados. Em Portugal,
por exemplo, desenvolveu-se a pesquisa sobre o tema a partir do momento em que
José Cruz e António Cunha (1990) aplicaram, entre outros instrumentos, uma versão
traduzida do Participation Motivation Questionnaire (GILL; GROSS; HUDDLESTON,
1983) a um grupo de jogadores de handbol, “que integrava as seleções de iniciados e
juvenis da região de Braga” (FONSECA; MONTEIRO; CUNHA, In: FONSECA, 2001).
Rosa Maria Ferreira Martinho (In: MOTA; DUARTE; GUEDES, 1999) investigou a mo-
tivação para a prática de atividades desportivas de aventura na Natureza, e concluiu
que a procura da emoção e aventura “demonstrou ser um fator motivacional impor-
tante para a prática de atividades desportivas de aventura na natureza” (p. 36).
Outro momento marcante da revisão foi a edição do livro Estudos sobre Motivação
(FONSECA, 2001) que reuniu uma coletânea de artigos de pesquisa sobre a moti-
vação e o desporto. Em um número infinitamente menor encontramos investiga-
ções sobre essa temática voltadas para os idosos.

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A palavra motivação é derivada do verbo em latim movere, que aparece com diversas
definições (PINTRICH; SCHUNK, 2002). Segundo Afonso Antonio Machado e Fer-
nando Cesar Gouvêa (1998), as questões semânticas permeiam os estudos relacio-
nados à motivação.
Numa revisão de literatura sobre a motivação humana observaram-se alguns anta-
gonismos no suporte teórico-conceitual que impedem a construção de um referen-
cial teórico homogêneo.
No início do século XX, os motivos eram chamados de instintos, por se acreditar
que eram forças herdadas, irracionais e imperiosas, comuns à espécie, comenta
Linda L. Davidoff (2001). Hoje as pesquisas mostram a diversidade de definições
sobre motivação e teorias tentando explicar o funcionamento desta força misteriosa
e desconhecida, que leva as pessoas a agir em direção ao alcance de objetivos. Porém,
ainda há confusão e desconhecimento sobre o que é motivação.
Nos ambientes empresariais e na educação, o tema é abordado sob diferentes pers-
pectivas, e notamos o interesse dessas áreas sobre o aprofundamento das questões
motivacionais para o trabalho, para os estudos e aprendizagem e até para o autoco-
nhecimento (WINTERSTEIN; VEDITTI JUNIOR, 2009).
Em Portugal, Jorge Olímpio Bento (1986) lembra que “os motivos representam as
forças interiores, o ‘motor psíquico’ da atividade de aprendizagem, as forças motri-
zes que põem a atividade em movimento” [...] “Motivos são forças motrizes atuais
da atividade; um decurso adequado da atividade ocasiona que se consolidem como
qualidades psíquicas da personalidade” (p. 73). Paula Brito (1994) ao refletir sobre
os motivos que nos impulsionam para a prática e a participação desportivas, lembra
que “um motivo é um fator dinâmico (consciente e inconsciente, fisiológico, afe-
tivo, intelectual, social, em interação por vezes) que age influenciando o compor-
tamento ou conduta de um indivíduo na direção de um objetivo, fim ou meta,
consciente ou inconsciente aprendidos” (p. 18).
No Brasil, pensamos que processo de ajustamento de um indivíduo ou de um grupo
ao meio físico e social é condicionado por um sem número de fatores, dentre os
quais encontramos os motivos ou propósitos. Realmente, a conduta humana seria
inexplicável e incompreensiva, se deixássemos de considerar esses elementos que
impelem o indivíduo à ação, à reação, ao esforço, à luta e até mesmo ao sacrifício
(FARIA JUNIOR, 1969). Esses elementos podem ser estudados quanto à sua natu-
reza: biológica, psicológica e social. E quanto à sua duração e persistência, que
podem ser transitórios, quando condicionam a conduta do indivíduo durante curto
espaço de tempo (horas, dias), sem marcar, profundamente, a sua personalidade, e
permanentes, quando deixam marcas profundas na personalidade do indivíduo,
desde a sua infância até a sua morte (FARIA JUNIOR; RIBEIRO, 1996).
Suzi de Fátima Fleury (1998) entende motivação como um estado mental, envol-
vido em diferentes sentimentos, como entusiasmo, zelo e confiança nas conquistas.
Destaca também como o “traço comum em pessoas de sucesso e atletas renomados
a capacidade de se motivar para poder suportar as rotinas de treinamento” (p. 76).
Samia Hallage Figueiredo (2000) considera motivação como “o estudo das condi-
ções que determinam a efetividade do estímulo contingente como reforçador ou
punidor” (p. 66). Fernando Cesar Gouvêa (2001) entende que o nível ótimo de mo-

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tivação nos desportos e outras atividades é único e específico de cada tarefa. Assim,
a motivação refere-se a fatores e processos que levam as pessoas à ação ou à inércia
em determinadas situações. Dietmar Martin Samulski (2002), por seu turno, con-
ceitua motivação como a totalidade dos fatores que determinam formas de com-
portamentos dirigidos a um determinado objetivo e a caracteriza como um processo
ativo, intencional e dirigido a uma meta, o qual depende da interação de fatores
pessoais (intrínsecos) e ambientais (extrínsecos).
Assim, a motivação é uma condição fundamental e indispensável para o alcance dos
objetivos pessoais. Varia de indivíduo para indivíduo, pois as necessidades, os objetivos
e os valores sociais são diferentes e variam conforme o tempo. A motivação tem sido
um dos fatores comportamentais estudados no meio desportivo, por ser de fundamen-
tal importância para a mobilização positiva de uma equipe. Além da influência no re-
sultado competitivo, a motivação para a superação da árdua rotina diária dos
treinamentos no alto nível é outro ponto de grande importância (CAMPOS, 2009).
O estudo da motivação mostra-se como um fator de impacto que permite conhecer
porque os indivíduos escolhem determinado desporto e os fatores que determinam
a adesão, a manutenção, o abandono e o reingresso nessas atividades.
Robert S. Weinberg e Daniel Gould (2008) afirmam que os professores de educação
física querem motivar crianças pouco ativas, mais interessadas em videogames, os
técnicos querem que seus atletas continuem treinando e os fisioterapeutas querem
motivar seus clientes a continuarem seu programa de reabilitação. Percebe-se então
que a motivação é importante tanto para as pessoas, como para os atletas, como
para vários profissionais. Ter sucesso inclui saber os fatores e os métodos para in-
tensificar a motivação.
O desenvolvimento demográfico, com suas espetaculares consequências, colocou
em destaque uma mudança significativa do que é ser idoso e a importância das ati-
vidades físicas e desportivas para este grupo populacional. O conceito imaginativo
e desejável de uma velhice ativa, sã e satisfeita integra a atividade física e o des-
porto, como tratamento indispensável para os idosos, tanto na área de prevenção e
da compensação sadia como no aumento do bem estar geral e a melhoria da inde-
pendência e a competência nas atividades diárias (DENK, 2003).
No Brasil, documentos como a Política Nacional do Idoso (BRASIL. CONGRESSO
NACIONAL. 1994) e mais recentemente, o Estatuto do Idoso (BRASIL. CON-
GRESSO NACIONAL, 2003) “tentam garantir os direitos, a integração e a partici-
pação do idoso na sociedade” (SILVA, 2009). Algumas políticas municipais reforçam
os dizeres dos documentos federais. A Política Municipal do Idoso (NITERÓI. Câ-
mara Municipal de Niterói, 1999), por exemplo, preconiza “incentivar e criar pro-
grama de lazer, esporte e atividades físicas que proporcionem a melhoria da
qualidade de vida do idoso e estimulem sua participação na comunidade” (p. 7).
Como se deduz, a participação de idosos brasileiros no desporto é um fato recente,
computado a partir das últimas décadas do século XX, mas com uma rápida disse-
minação. Surgiu, então, uma série de estudos e investigações sobre o tema motiva-
ção dos idosos e prática de atividades físicas e em especial o desporto. Além disto, a
motivação e a atividade física podem melhorar a socialização na convivência do
idoso com outras pessoas.

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Quanto aos instrumentos a utilizar na pesquisa o Participation Motivation Question-


naire (PMQ) parece ser o instrumento mais utilizado pelos investigadores da moti-
vação e desporto. Com efeito, ele tem sido aplicado, pelo menos, em países tão
distintos como Estados Unidos da América (KLINT; WEISS, 1987; BRODKIN;
WEISS, 1990), Austrália (LONGHURST; SPINK, 1987), Itália (BUONAMANO; CEI;
MUSSINO, 1995), Espanha (ALONSO; CRUZ, 1993; LAZARO; VILLAMARIN; LIMO-
NERO, 1993), Hungria (SINGH, 1993) e Portugal (CRUZ; CUNHA, 1990; FONSECA;
RIBEIRO, 1994).
Nos últimos anos três autores brasileiros desenvolveram trabalhos sobre a motiva-
ção que tem levado idosos à prática da natação (SENFFT, 2008), do voleibol (CAM-
POS, 2009) e do atletismo (SILVA, 2009). Eles buscaram instrumentos que
descrevessem bem os motivos que desejavam estudar e se defrontaram com dois
problemas. O Participation Motivation Questionnaire (GILL, GOSS; HUDDLESTON,
1983) havia sido criado para jovens. Foi necessário então substituir a pergunta ‘I
want to be physically fit’ por ‘eu quero ser saudável (fisicamente e mentalmente)
“por ser este um dos indicadores dos motivos fundamentais para os idosos aderirem
ao desporto (PáVEL, 1992; SANTIAGO, 1993). O segundo tinha sido em parte resol-
vido, pois seria a tradução para o português por Sidônio Serpa e José Frias (1990).
Restava adaptar a tradução para o contexto brasileiro, uma vez que o Acordo Orto-
gráfico ainda não havia sido assinado (ACORDO ORTOGRáFICO DA LÍNGUA POR-
TUGUESA. 1995).
A revisão continuou com a busca por artigos publicados sobre atletismo no Brasil.
Os resultados foram os seguintes: Os motivos sociais e sua relação com a prática e a
participação em competições de másters (SHIGUNOV, 1997), Piscinão de Ramos já
teve centro de atividades físicas (SILVA, 2008), Aspectos motivacionais de adesão
ao atletismo veterano (SILVA; FARIA JUNIOR, 2008a), Atletismo veterano do Rio
de Janeiro: fatores de adesão (SILVA; FARIA JUNIOR, 2008b); Esporte másters: mo-
tivação para prática (CUNHA et al., 2008), O envelhecimento bem sucedido de atle-
tas corredores, ALMEIDA; DOLL, 2008).
Os resultados dos estudos previamente feitos evidenciaram a existência de um con-
junto de fatores motivacionais associados ao envolvimento dos indivíduos em ati-
vidades desportivas tais como: afiliação, desenvolvimento de competências,
amizade, realização/estatuto, competição e trabalho em equipe. Todavia, estes fa-
tores não tem emergido do mesmo modo em todos os estudos realizados (FON-
SECA, 1993, 1995a, 1995b). Na realidade, António Manuel da Fonseca (In:
FONSECA, 2001), ao analisar as soluções identificadas pelos autores que desenvol-
veram análises fatoriais exploratórias através da utilização do PMQ, verificou que
elas não coincidem nem na quantidade (varia entre 4 e 8) nem na qualidade e per-
centagem de variância que explicam os fatores que as constituem.
Buscando esclarecer a situação, Fonseca (2001) realizou duas análises fatoriais ex-
ploratórias “com respostas de 543 atletas de diversos desportos, de ambos os sexos,
com idades compreendidas entre os 10 e os 17 anos” (p.39). A segunda análise fato-
rial exploratória feita apenas com os resultados da primeira mostrou a existência
de quatro fatores: Realização (estatuto, emoções e prazer, ocupação dos tempos li-
vres), Competição (competição), Competências Físico-Desportivas (forma física,

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desenvolvimento técnico) e Afiliação (afiliação geral, afiliação desportiva/equipe).


E concluiu que “a solução final parece resolver alguns dos problemas evidenciados
noutros estudos, porquanto apresenta uma elevada convergência entre a qualidade
semântica dos itens e a sua inclusão nos distintos fatores” (p. 39). Maria Dulce Si-
queira Senfft (2008), ao validar o PMQ para seu trabalho, achou cinco fatores: os
quatro apresentados por Fonseca, mais o Saúde (eu quero ser saudável/fisicamente
e mentalmente).
A amostra obedeceu a um critério de seleção intencional e justificou-se por ser a
Associação de Veteranos de Atletismo do Rio de Janeiro (AVAT-RJ) reconhecida ofi-
cialmente pela Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) e pela Associação Bra-
sileira de Atletismo Máster (ABRAM). Escolheu-se a idade igual ou superior a 60
anos e foram pesquisados 42 atletas de ambos os sexos, que treinavam na AVAT-RJ
há pelo menos 6 meses.

Resultados do PMQ acima de 90%

Questão Pergunta Percentual


06, 18, 24, Quero ficar em forma; Gosto do espírito esportivo; 100
29 Quero ser saudável; Gosto de me divertir.
01, 11, 15 Gosto de melhorar minhas habilidades, 97,6
Gosto de encontrar novos amigos; Gosto de me exercitar.
12, 17, Gosto de fazer coisa no qual sou bom. Gosto de ação. 95,2
03, 16, 20 Gosto de ganhar. Gosto de ter algo para fazer. 92,8
Gosto de competir.
02 Quero estar com meus amigos. 90,5

Na interpretação dos resultados as teorias da motivação nos ajudam a compreen-


der os motivos, os desejos e as necessidades que as pessoas têm para alcançar seus
objetivos.
Não ignoramos o trabalho de Tara K. Scanlan e Jeffery P. Simons (in: ROBERTS,
1995) sobre o construto de divertimento desportivo mas, buscamos algo mais atual
sob a teorias da motivação. Para Itiro Ilda (1998), as teorias sobre a motivação têm
atribuído várias origens para suas fontes, como uma necessidade inata, um estado
de privação ou um desequilíbrio com o ambiente e que as teorias mais antigas ten-
dem a localizar os motivos na própria pessoa, na forma de necessidades pessoais.
Ultimamente têm-se dado maior ênfase ao relacionamento do indivíduo com o
meio ambiente. Em relação aos níveis de influência intrapessoal e interpessoal,
temos os modelos do tipo comportamental e cognitivo.
Considera-se que o comportamento é mediado pelo conhecimento, ou seja, o que
sabemos e pensamos influencia nossas ações. Por outro lado, o conhecimento é tido
como necessário, mas não suficiente para produzir mudanças de comportamento.
As percepções subjetivas, a motivação e os fatores ambientais seriam igualmente
importantes (FARINATTI; FERREIRA, 2006, p.91).
Aplicados no nível intrapessoal, esses modelos são os mais básicos relacionados à
promoção da saúde, assim, frequentemente esses modelos de intervenção são de
alcance mais amplo.

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Mas existem críticas a estes modelos onde a tendência é de se pensar que as raízes
de um dado comportamento estão no controle individual.
Por outro lado, no nível interpessoal as teorias assumem que a vida social resulta na
influência recíproca dos indivíduos com a sociedade (FARINATTI; FERREIRA, 2006).
Na década de 1970 surgiram, na área acadêmica, vários modelos teóricos compor-
tamentais que tentaram compreender racionalmente a mudança de comporta-
mento, muitos deles usados nos programas de promoção da saúde (FERREIRA,
2008).
Alguns desses modelos de intervenção em promoção da saúde são citados por Paulo
de Tarso Veras Farinatti e Marcos Santos Ferreira (2006), como por exemplo: o Mo-
delo de Crença em Saúde (Health Belief Model), de Irwin M. Rosenstock (1974), que
focaliza a percepção do indivíduo em relação a possíveis ameaças para a saúde, assim
como possíveis comportamentos a adotar para prevenir ou administrar o problema;
a Teoria da Ação Racional (Theory of Reasoned Action) de Icek Ajzen e Thomas J. Mad-
den (1986), que busca identificar os fatores determinantes do comportamento in-
tencional; a Teoria do Comportamento Planejado (Theory of Planned Behavior) de
Icek Ajzen (1991), que trata a intenção (racional) como principal fator da decisão de
mudar comportamento; a Teoria de Aprendizagem Social (Social Learning Theory)
de Albert Bandura (1977), que parte da premissa de que as pessoas e seu ambiente
interagem continuamente, descrevendo fatores psicológicos que estariam na ori-
gem de comportamentos; e o Modelo Transteórico ou Estágios de Mudança (Trans-
theoretical Model or Stages of Change Model) de James O. Prochaska e Carlo C.
DiClemente (1982), que se refere à prontidão para mudança de comportamento.
Verificou-se então que esses modelos e teorias são os mais citados e representativos
também nos estudos sobre motivação e a adesão à prática de atividades físicas,
sendo que o Modelo Transteórico, conforme Farinatti e Ferreira (2006) é um dos
mais conhecidos e utilizados em estudos relacionados à mudança de comporta-
mento individual em vários campos. Simone Teresinha Meurer (2008) confirma
essa afirmativa quando explica que existem vários estudos envolvendo a temática
motivação para a prática de atividades físicas e que há dificuldades na seleção dos
instrumentos quando se pretende avaliá-la, especialmente na população idosa no
Brasil. Porém, ela concluiu que a Teoria dos Estágios de Mudança de Comporta-
mento ou Teoria do Modelo Transteórico foi a mais utilizada nos estudos de avalia-
ção da motivação para a prática de atividades físicas de idosos.
Os modelos na área da motivação e da adesão são adaptações de propostas vindas
de diversificadas áreas como a saúde, a psicologia, a sociologia, o marketing e a eco-
nomia e possuem vários objetivos. Desde prevenção de doenças, como a adesão ao
exercício físico ou até mesmo como melhorar a comunicação e o aumento de vendas
de um produto.
Esses modelos consideram diferentes teorias no que se refere a mudança de com-
portamento e manutenção de atitudes e tentam explicar estas questões diante de
múltiplos fatores condicionantes como os pessoais, os sociais, os ambientais, os si-
tuacionais entre outros.
MODELO TRANSTEÓRICO OU MODELO DE ESTáGIOS DE MUDANÇAS. (PRO-
CHASKA; DiCLEMENTE, 1982).

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A terapia transteórica foi uma alternativa utilizada no final da década de 70 que


procurou uma síntese na proliferação de sistemas terapêuticos onde cinco processos
básicos de mudança (três verbais e dois comportamentais) foram identificados, po-
dendo ser aplicados tanto no nível individual quanto ambiental.
Este modelo incorpora conceitos de várias teorias e se utiliza do conceito de auto-
eficácia da Teoria de Aprendizagem Social de Albert Bandura (1977).
Ao estudar o processo utilizado pelas pessoas para fazerem suas próprias mudanças
de comportamento em comparação com as mudanças realizadas dentro de um tra-
tamento formal, quatro estágios de mudança foram identificados: contemplação,
determinação, ação e manutenção.
As pessoas em processo de mudança dentro e fora da terapia parecem aplicar três
processos verbais de mudança nos estágios de contemplação e determinação e de-
pois dois processos comportamentais nos estágios de ação e manutenção.
O modelo transteórico saiu da fundamentação dessa terapia e foi criado para estudar
como as pessoas abandonavam o tabagismo por conta própria, mostrando como iam
modificando e desenvolvendo seus comportamentos tantos negativos como os po-
sitivos.
A noção de estágio é importante, pois reflete a dimensão temporal, ou seja, a noção
de que a mudança envolve tanto noções de estabilidade quanto de transitoriedade.
As pessoas usam diferentes estratégias à medida que tentam mudar o comporta-
mento (PROCHASKA; DiCLEMENTE, 1982; 1983). As mudanças de comporta-
mento estão de acordo com o estágio em que a pessoa se encontra, sendo que a
fundamentação está na idéia de que essa mudança é um processo racional.
Segundo Glanz Karen (1999), citado por Farinatti e Ferreira (2006), essa premissa
está baseada no fato de que as pessoas em diferentes fases no processo de mudança
podem se beneficiar de intervenções diferenciadas de acordo com a fase em que se
encontram.
Conforme Prochaska e Bess H. Marcus (1994), citados por Farinatti e Ferreira
(2006), a utilização do Modelo Transteórico ao exercício físico se deve às semelhan-
ças entre os padrões de recaídas de vícios comportamentais (tabagismo, alcoolismo,
hábitos alimentares, drogas) e o sedentarismo.
A partir da década de 1990 começaram a relacioná-lo e a citá-lo nos estudos de ade-
são à atividade física (LAFORGE et al., 1999; SARKIN et al., 2001; MOE et al., 2002;
WOODS; MUTRIE; SCOTT, 2002; SUMINSKI; PETOSA, 2002; ROGER et al., 2002;
OKA, 2003) citados por Farinatti e Ferreira (2006), que concluem dizendo que: ape-
sar disso, há que se aprofundar as investigações com o intuito de consolidar o seu
uso para este fim, uma vez que existem algumas limitações nos trabalhos desen-
volvidos até o momento. Sente-se a falta, por exemplo, de estudos de validade que
se valham de medidas objetivas, assim como amostras mais representativas (FARI-
NATTI; FERREIRA, 2006, p. 103).
O modelo transteórico passou por transformações e atualmente tem cinco estágios:
pré-contemplação, contemplação, preparação, ação e manutenção.
A progressão nos estágios é cíclica e nem sempre é linear, pois as pessoas fazem vá-
rias tentativas antes de alcançarem seus objetivos.
Tanto as situações como os traços motivam as pessoas a terem vários motivos para

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agir. Os motivos estão relacionados a várias razões (emagrecer, condicionamento


físico), podem ser conflitantes (exercitar após o trabalho ou ficar com a família), e
podem ser compartilhados ou únicos (pressão dos pais, competitividade) e a ênfase
cultural (diversidade cultural).
Existem dois motivos que influenciam o desempenho e a participação no esporte:
a motivação para realização e a competitividade.
A motivação para realização, para Edward James Murray (1986) é o esforço de uma
pessoa dominar uma tarefa, alcançar excelência, superar obstáculos, melhor de-
sempenho do que os outros e orgulhar-se de seu talento, e para Gill (1986), é a orien-
tação da pessoa para lutar por sucesso, persistir ante o fracasso e ter orgulho de suas
realizações, ambos citados por Weinberg e Gould (2008).
A competitividade é definida como “uma disposição para lutar por satisfação ao se
comparar com algum padrão de superioridade na presença de avaliadores” (p. 3)
(MARTENS In: WEINBERG; GOULD, 2008). Resumindo, o nível de motivação para
a realização seria a auto-competição, enquanto o nível de competitividade seria o
comportamento avaliado socialmente.
Como vimos anteriormente, a motivação humana então, pode ser definida basica-
mente como sendo construída através de dois tipos de fatores: os fatores extrínsecos
e os fatores intrínsecos.
Alguns fatores podem interferir na motivação, como os sociais - o sucesso e o fra-
casso, foco na competição, e comportamento dos treinadores e como os psicológicos
- necessidade de competência, necessidade de autonomia e necessidade de relacio-
namento (WEINBERG, GOULD, 2008).
Há uma interdependência entre o vínculo da realização da tarefa e a motivação in-
trínseca. A motivação intrínseca representa a vontade interior de realizações de de-
terminadas tarefas, não dependendo exclusivamente de fatores motivacionais
externos. É a força psíquica interior para o empenho em uma atividade por vontade
própria (MIRANDA; BARA FILHO, 2002).
Mesmo o fator intrínseco sendo o mais influente, o fator extrínseco pode atuar
sobre o intrínseco alterando os objetivos e metas estabelecidas, explica Afonso An-
tonio Machado (2006).
A motivação extrínseca é caracterizada como aquela que é controlada por reforços
administrados por um agente externo. Já a motivação intrínseca é um comporta-
mento mediado por reforços sobre os quais o próprio indivíduo tem controle
(PUENTE, 1982).
O motivo é uma força interna que está dentro de cada um de nós que pertence a
nossa personalidade, para despertar esse motivo necessitamos de um incentivo,
que é uma força externa (BARROS, 1995).
A motivação intrínseca é uma razão vinda de dentro do indivíduo e a extrínseca
vem da necessidade externa onde a razão pela qual se faz alguma coisa é apenas um
meio para se alcançar um objetivo maior (FRANCO, 2000).
A motivação intrínseca refere-se ao interesse, ao desejo e ao prazer de participar
que atuam no espírito dos indivíduos para levá-los à ação e a motivação extrínseca
refere-se ao uso de incentivos ou a valores de ordem social, relacional, afirmação,
hierarquia, diferença (LIRA, 2000). É um processo intencional, ativo e dirigido a

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uma meta, o qual depende da relação de fatores pessoais (intrínsecos) e ambientais


(extrínsecos) (SAMULSKI, 1995; 2002).
A auto-eficácia é um dos seis elementos da teoria da aprendizagem social (determi-
nismo recíproco, capacidade comportamental, expectativas, auto-eficácia, apren-
dizado por observação e reforço), criada por Bandura (1977).
A teoria foi originalmente desenvolvida numa abordagem sócio-cognitiva à mu-
dança de comportamento que reconhecia a auto-eficácia como um mecanismo cog-
nitivo para mediar a motivação e o comportamento. Está relacionada com a
percepção da própria capacidade de que as pessoas têm de realizar uma tarefa com
sucesso.
A auto-eficácia adota uma abordagem interacional onde um fator pessoal e deter-
minantes ambientais interagem produzindo mudança de comportamento. É for-
mada por seis fontes: realização de desempenho, experiências indiretas, persuasão,
experiências imaginativas, estados fisiológicos e emocionais. Fica clara a reciproci-
dade entre auto-eficácia e desempenho.
A influência da auto-eficácia no processo de mudança de comportamento varia de
acordo com os estágios alcançados. A noção de auto-eficácia está ligada à motivação
de vencer obstáculos e à manutenção dos comportamentos modificados. Está ba-
seada em duas estratégias: estabelecimento de objetivos intermediários e avaliação
e feedback. Ou seja, se uma pessoa sedentária se sente confiante em praticar alguns
minutos diariamente de exercícios físicos, pode gradativamente aumentar essa du-
ração relacionada à sua confiança. E se há progressos, aumenta a motivação e dimi-
nui a ansiedade (FARINATTI; FERREIRA, 2006).
De acordo com Bandura (1977), citado por Farinatti e Ferreira (2006), a auto-eficácia
envolve duas variáveis: a expectativa de auto-eficácia, que é a convicção de que ele
conseguirá realizar o comportamento para a obtenção de resultados, e a expectativa
de resultados, que é a estimativa do indivíduo de que determinado comportamento
levará a certos resultados.
Esse conceito colabora na compreensão do Modelo Transteórico, pois é consisten-
temente identificado como um fator determinante para escolha da atividade, o
nível de esforço e a manutenção da prática do exercício físico.
Alguns autores classificam esses determinantes em fatores pessoais e ambientais.
Nos fatores pessoais temos as variáveis demográficas (sexo, idade, escolaridade,
renda), as variáveis cognitivas (atitudes, obstáculos, expectativa, falta de tempo,
auto-eficácia) e as variáveis comportamentais (dieta, atividade física anterior,
fumo). Nos fatores ambientais temos o ambiente social (família, amigos), o am-
biente físico (proximidade, clima) e características da atividade física (qualidade,
quantidade, intensidade, frequência, duração, em grupo, isolado e o técnico).
Algumas variáveis determinam maior ou menor grau de participação nas atividades
físicas e que estas podem ser categorizadas como fatores pessoais passados e pre-
sentes, fatores ambientais ou situacionais passados e presentes, fatores comporta-
mentais e fatores relativos ao programa de exercício físico (DISHMAN, 1994;
DISHMAN; SALLIS; ORENSTEIN, 1985).
As variáveis podem ser: influência de práticas esportivas anteriores, ocupação pro-
fissional e tempo disponível, baixa renda e inatividade, escolaridade e maiores in-

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formações sobre os benefícios da atividade física, atitudes do cônjuge podem ser


mais importantes do que a do participante, entre outros.
Marcos Santos Ferreira e Alberto Lopes Najar (2005) citam várias pesquisas que
comprovam algumas das variáveis dos estudos de Dishman como: experiências an-
teriores na prática esportiva e de exercícios físicos; apoio do cônjuge e de familiares
(KING et al., (1992), aconselhamento médico (BULL; JAMROZIK, 1998), conveniên-
cia do local de exercitação (ANDREW et al., 1981), aspectos biológico-fisiológicos
(DISHMAN; GETTMAN, 1980; DISHMAN,1981; KLONOFF et al., 1994), gênero
(GARCIA et al., 1995), automotivação para a prática do exercício(FARINATTI, 1998),
disponibilidade de tempo (JONHSON et al.;1990), condição socioeconômica (MON-
TEIRO et al., 1998; RAUDSEPP; VIRA 2000), conhecimento sobre exercício físico e
acesso a instalações e espaços adequados à prática de exercícios físicos, (WELK,
1999; SALLIS et al., 2000); ambiente físico e a proximidade de instalações (SALLIS
et al., 1990), modestas alterações no ambiente físico, (BRONELL et al. , 1980).
Conhecer as razões de adesão a uma prática esportiva depende das condições de
vida, dos objetivos, das motivações e das expectativas de cada um.
Organizar todo esse complexo de dúvidas, de informações e de interesses poderá ser
útil na elaboração de programas de treinamento que se adapte às necessidades de cada
um, objetivando identificar se os fatores motivacionais que levam indivíduos a agirem,
a aderirem, ajudando na divulgação sobre os benefícios da prática de atividades físicas
competitivas ou não, e para os profissionais interessados na questão da adesão.
Sendo assim, os estudos na área de adesão são importantes para classificar e sele-
cionar objetivos adequados para cada grupo ou população específica.
Apesar da contribuição de vários autores de tentar definir, motivos, fatores intrín-
secos e extrínsecos e de terem desenvolvido instrumentos de avaliação determi-
nando metas e comportamentos baseados numa diversidade de teorias, até o
momento não existe consenso, mas podemos dizer que existem avanços.
Respondendo aos questionamentos surgidos nesta pesquisa, pode-se afirmar que,
através da revisão de literatura investigada e das evidências nas pesquisas aqui ci-
tadas, percebemos que existem várias explicações, razões, fatores e motivos para a
mudança de comportamento em direção a uma meta.
Percebe-se então que a motivação segue vários caminhos, mas também apresentam
pontos de convergência, onde ela se inicia com um motivo da pessoa e que esses va-
riam de intensidade. Que a motivação recebe influência do ambiente e influi sobre
ele provocando mudanças de comportamento ou não.
O motivo, a personalidade e o ambiente são determinantes do grau de motivação alia-
dos à auto-eficácia de cada pessoa como razão de adesão, permanência, abandono e
reingresso nas práticas de atividades físicas, onde podemos acompanhar pelas fases
cíclicas e nem sempre lineares no modelo transteórico, pois as pessoas fazem várias
tentativas (adesão/ação/manutenção/manutenção/recaídas) antes de alcançarem
seus objetivos. E que as ações, estímulos, cognições e desejos de mudança de com-
portamento derivam de planejamento, de metas e que tudo na vida tem um valor
Mas não podemos esquecer que a motivação pode ter um aspecto tanto de atitude
positiva como um aspecto de atitude negativa de vida, cabendo a cada um escolher,
pois só muda quem tem os seus motivos.

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Concluiu-se que, os fatores mais importantes da prática do atletismo veterano da


AVAT-RJ podem ser resumidos em: ser saudável, treinar, competir, medalha,
equipe, espírito esportivo, diversão, melhorar habilidades, amigos, algo que fazer,
viajar, aliviar tensões, afiliação, proximidade do local de treinamento, aposentado-
ria, prática de modalidade anterior, influência do técnico, tipo de treinamento ente
outros. Concordando praticamente com quase 100% dos seis artigos encontrados.

* Doutor Honoris Causa pela Universidade do Porto; Pós-Doutorado pela Universidade de Londres. Dou-
torado em Educação Física pela Universidade Livre de Bruxelas. Professor Titular pela UNIVERSO.
** Mestre em Ciências da Atividade Física pela UNIVERSO

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Programas de Atividades Físicas de Aventura


na Natureza para Jovens Infratores:
Revisando a Literatura
Ana Paula Lima Teixeira
Rodrigo Cavasini
Alberto Reinaldo Reppold Filho
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

1. Introdução
Ao longo dos últimos anos, a exclusão social, entendida com uma situação de falta
de acesso às oportunidades oferecidas pela sociedade aos seus membros, tem figu-
rado entre os temas mais debatidos nos meios acadêmicos e políticos. Este interesse
é normalmente justificado pelo número crescente de indivíduos que vivem as con-
seqüências deste processo, permanecendo à margem da sociedade contemporânea
(BULLA; MENDES; PRATES, 2004).
A criminalidade, considerada um dos indicadores mais complexos de exclusão so-
cial, tem acompanhado o crescimento desse processo não somente nos países mais
pobres, mas no mundo como um todo. É perceptível a preocupação dos governos e
da sociedade civil com esse fato, uma vez que a criminalidade, em especial entre jo-
vens, tornou-se um sério problema em vários países.
No Brasil, dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística com-
provam o aumento da criminalidade, que pode ser exemplificado pela taxa de mor-
talidade por homicídios, que cresceu 130% de 1980 a 2000, passando de 11,7 para 27
por cada 100 mil habitantes (IBGE, 2004). As estatísticas evidenciam que um nú-
mero significativo dos envolvidos em crimes violentos é composto de jovens do
sexo masculino, com idades entre 15 e 24 anos, geralmente pobres e moradores das
periferias dos grandes centros urbanos.
Frente a esta situação, diferentes setores do governo e da sociedade em geral têm
se mobilizado para encontrar formas de combater a exclusão social e aspectos a ela
relacionados, entre eles a criminalidade. Entre as iniciativas voltadas para o enfren-
tamento da criminalidade juvenil, a utilização de atividades físicas e esportivas tem
se ampliado em diferentes países.
Os estudos voltados para a relação das atividades esportivas com o enfrentamento
da criminalidade juvenil costumam centrar atenção na prevenção, evitando o en-
volvimento dos jovens com o crime, e na reabilitação, promovendo ações e ofere-
cendo oportunidades para que os jovens que cometeram delitos refaçam suas vidas
e retornem ao convívio social (DONNELLY et al, 2007; BAILEY, 2006; COALTER;
ALLISON; TAYLOR, 2000; MASON; WILSON, 1988).
De modo geral, as iniciativas voltadas para a prevenção utilizam todos os tipos de
atividades físicas e esportivas, ao passo que as voltadas para a reabilitação têm em-
pregado principalmente atividades físicas e esportivas praticadas próximas à natu-

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reza (COALTER, 2001). Escalada, canoagem, rafting e montanhismo figuram entre


as modalidades mais utilizadas. Seguindo a nomenclatura proposta por Betrán e Be-
trán (1995), tais atividades serão designadas nesse estudo de: Atividades Físicas de
Aventura na Natureza (AFAN).
O emprego das AFAN tem sido justificado em virtude da sua grande aceitação para
fins de reabilitação entre jovens infratores. Tais atividades possuem características
ímpares, como a presença de risco subjetivo e contato mais próximo à natureza e
por servirem como instrumentos de desenvolvimento da auto-estima, autocon-
fiança, auto-imagem e de competências ligadas ao trabalho em grupo e de liderança
(COALTER; ALLISON; TAYLOR, 2000; MASON; WILSON, 1988; HATTIE et al, 1997).
A utilização destas atividades para a reabilitação de jovens infratores ocorre desde
meados do século XIX, em instituições de ensino Inglesas (MASON; WILSON,
1988). Contudo, começaram a ser realizadas de forma mais organizada e planejada
no final dos anos 30, por Karl Holton na área rural da cidade de Los Angeles. Estes
programas promoviam AFAN com o intuito de auxiliar jovens envolvidos com a cri-
minalidade a adotarem um padrão de vida distante do crime (ROBERTS, 1988 apud
WEST; CROMPTON, 1999).
Em 1941, Kurt Hahn criou a Outward Bound na Inglaterra e duas décadas depois co-
meçou a promover programas voltados para a reabilitação de jovens infratores por
meio das AFAN, nos Estados Unidos (WEST; CROMPTON, 1999). Hoje esta institui-
ção sem fins lucrativos está presente em 27 países, inclusive no Brasil.
A partir das experiências de Holton e Hahn, o emprego de AFAN como instrumento
auxiliar na reabilitação de jovens em situação de criminalidade foi se tornando po-
pular nos Estados Unidos e, a partir dos anos 70, muitas ações semelhantes também
começaram a ser desenvolvidas em outros países. De fato, os programas realizados
pela Outward Bound têm se tornado referência para outras iniciativas levadas a
efeito mundialmente (MASON; WILSON, 1988).
O crescimento de programas de AFAN voltados para reabilitação de jovens infratores
tem despertado o interesse de pesquisadores. Este quadro se reflete no número cres-
cente de estudos que vêm sendo realizados nos Estados Unidos (RUSSELL, 2005,
2003, 2002, 2001; EGGLESTON, 2000; WILLIANS, 2000; WILSON; LIPSEY, 2000;
WEST; CROMPTON, 1999), Canadá (RUSSELL, 2006; REID et al, 1994), Reino Unido
(RUIZ, 2004; LONG, 2002; COALTER, 2001; COALTER; ALLISON; TAYLOR, 2000), Is-
rael (ROMI; KOHAN, 2004); Austrália (LAN; SVEEN; DAVIDSON, 2004; RAYMOND,
2004; HATTIE et al, 1997) e Nova Zelândia (CRISP, 1998; MOSSMAN, 1998).
Os projetos de reabilitação de jovens infratores que fazem uso das AFAN possuem,
em sua maioria, diferenças consideráveis, o que torna a investigação destas inicia-
tivas uma tarefa complexa e desafiadora. Considerando esses aspectos, o presente
estudo foca na relação das AFAN com a reabilitação de jovens infratores e tem por
objetivo examinar, por meio de uma revisão da literatura, quais as contribuições
que essas atividades trazem para os jovens que delas participam.
Cabe salientar, que as pesquisas sobre os benefícios das AFAN para a reabilitação de
jovens infratores possuem características distintas no que se refere ao número de
participantes, às modalidades praticadas e riscos envolvidos, ao envolvimento da
família e à assistência após o término do programa.

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Desta forma, para facilitar a análise, os materiais foram organizados em três cate-
gorias: a) os estudos que buscam verificar as reduções nas taxas de reincidência cri-
minal entre jovens infratores participantes de programas de AFAN; b) as pesquisas
que focam em benefícios psicológicos e sociais provenientes da prática de AFAN,
como a elevação da auto-estima, auto-imagem, autoconfiança, liderança e trabalho
em equipe, considerados fatores de proteção em relação ao comportamento delin-
qüente e, assim, prevenindo contra novos envolvimentos de jovens infratores com
o crime; c) os trabalhos que buscam averiguar tanto as reduções nas taxas de rein-
cidência criminal, quanto os benefícios sociais e psicológicos da prática das AFAN
para jovens infratores.

2. A prática das AFAN e a redução das taxas de


reincidência criminal entre jovens infratores
O primeiro trabalho que avaliou os benefícios das AFAN em relação às taxas de reinci-
dência criminal foi desenvolvido nos Estados Unidos pela Outward Bound, no final dos
anos 60. De fato, o trabalho de Francis Kelly e Daniel Baer ainda é considerado como
uma das principais obras de referência na área, servindo de inspiração inicial para in-
vestigações que foram realizadas nos anos seguintes (WEST; CROMPTON, 1999).
Neste estudo, os autores demonstraram que as AFAN podem auxiliar na reabilitação
de jovens infratores e, inclusive, serem mais eficientes do que outras modalidades
esportivas, desenvolvidas dentro e fora do ambiente escolar. Para tanto, foram in-
vestigados 120 jovens que já haviam cometido infrações criminais, dos quais 60 par-
ticiparam de programas de AFAN desenvolvidos nos Centros da Outward Bound nos
Estados de Minnesota, Colorado e Maine. Os demais jovens participaram de outros
programas esportivos realizados pela Divisão de Serviços Juvenis de Massachusetts
e que não envolveram AFAN. Após um ano, as taxas de reincidência criminal foram
comparadas e os participantes das AFAN obtiveram índices de 20%, ao passo que os
integrantes do grupo que participou de outros programas esportivos atingiram
taxas de 42% (KELLY; BAER, 1968).
Em outro estudo, o Departamento de Justiça Criminal da Califórnia nos Estados
Unidos avaliou o Programa de Desafios ao Ar Livre Nokomis voltado para jovens
delinqüentes da cidade de Long Beach. Nesta pesquisa, fizeram parte 192 jovens,
97 do grupo que praticou AFAN e 95 do grupo que participou de outras ações de rea-
bilitação. Os resultados demonstraram que os integrantes de ambos os grupos apre-
sentaram uma diminuição em seus envolvimentos em atos criminais,
principalmente em curto prazo. Assim, demonstrando que os jovens participantes
de AFAN obtiveram benefícios similares aos jovens que se envolveram em outras
atividades desenvolvidas em programas tradicionais para a reabilitação de indiví-
duos delinqüentes (DESCHENES; GREENWOOD, 1998).
Castellano e Soderstrom (1992) investigaram o Programa Outward Bound, realizado
no Estado Norte Americano de Ilinóis, que desenvolve atividades de trekking, esca-
lada, canoagem e montanhismo. Os autores selecionaram 60 jovens envolvidos com
a criminalidade, sendo que 30 participaram do programa de AFAN e os outros com-
puseram o grupo controle, não participando de atividades deste tipo. Os achados
demonstraram que a participação em AFAN pode diminuir as taxas de reincidência

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criminal, pois os jovens transgressores que participaram integralmente das ativi-


dades propostas obtiveram um distanciamento da criminalidade.
Na pesquisa realizada por Russell (2003) foram avaliados sete programas dos Esta-
dos de Oregon, Utah e Idaho nos Estados Unidos, todos voltados para o desenvolvi-
mento de AFAN. Foram avaliados 858 indivíduos, sendo 69% do sexo masculino e
31% do feminino, 75% com idades entre 16 e 18 anos, que participaram das ativida-
des propostas durante 45 dias ininterruptos em média. As modalidades desenvol-
vidas foram trekking, acampamento, escalada e montanhismo. Os autores
observaram que os jovens infratores tiveram grande aceitação pelos programas de
AFAN, pois mais de 97% dos participantes permaneceram até o fim das atividades
propostas. Além disso, observaram que as AFAN podem se relacionar com uma di-
minuição na taxa da criminalidade cometida por jovens. Cabe salientar que este
trabalho evidenciou que tanto a participação em programas de curta duração (21
dias), como de longa duração (mais de 50 dias), apresentaram resultados semelhan-
tes quando considerados em longo prazo. Neste sentido, o autor afirma a necessi-
dade de maiores avaliações em longo prazo e estudos longitudinais, para que se
possa potencializar a eficiência destas iniciativas.
A meta-análise realizada por Wilson e Lipsey (2000) considerou 28 pesquisas, envol-
vendo mais de três mil sujeitos. O estudo demonstrou que jovens delinqüentes par-
ticipantes de programas de AFAN apresentam taxas de reincidência criminal de 29%,
ao passo que os indivíduos dos grupos de controle apresentam taxas de 37%. Os pro-
gramas que envolveram familiares, psicólogos e terapeutas apresentaram os resulta-
dos mais positivos, não existindo relação entre a duração dos programas com os
benefícios alcançados. Deve-se ressaltar que a maior parte dos estudos avaliados nesta
pesquisa se refere a indivíduos do sexo masculino e de cor branca, o que, segundo os
autores, pode sugerir tanto uma fragilidade nas afirmações deste estudo, quanto uma
necessidade de investigações mais consistentes, envolvendo outros públicos.
De forma semelhante aos trabalhos anteriores, a pesquisa realizada por Sveen e De-
nholm (1997) encontrou evidências que sustentam a utilização das AFAN como um
instrumento auxiliar para a reabilitação de jovens infratores. Este estudo focou sobre
o Projeto Hahn, que é uma das mais antigas iniciativas do gênero realizadas na Aus-
trália, baseada nos programas da Outward Bound. Participaram deste estudo 62 jo-
vens, 44 homens e 18 mulheres com idades entre 15 e 25 anos. Os resultados
demonstraram benefícios significativos para os indivíduos que praticaram rapel, es-
calada, espeleologia, montanhismo, canoagem e trekking. Os participantes do Projeto
Hahn avaliados tiveram menor envolvimento em roubos, melhor desempenho es-
colar e maior facilidade de ingressar no mercado de trabalho, considerados indica-
dores importantes quando se trata do envolvimento dos jovens com a criminalidade.
Outro programa que emprega as AFAN para a reabilitação da criminalidade é o Wha-
kapakari Youth, desenvolvido, desde 1977, na Ilha de Great Barrier na Nova Zelândia.
Este programa tem como público alvo jovens da comunidade Maori em condição
de risco e foi o foco da pesquisa realizada por Eggleston (2000). Neste estudo, foram
realizadas entrevistas com 20 jovens, 19 do sexo masculino, com idades entre 13 a
16 anos, que haviam participado de práticas de canoagem, trekking, escalada, acam-
pamento e vela. De uma forma geral, estes indivíduos obtiveram uma redução no

363
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 364

uso de drogas e no envolvimento com a criminalidade. Além disso, os jovens mani-


festaram que programas deste gênero devem: planejar o retorno dos jovens para
seus lares, após as atividades; ampliar a integração entre as atividades desenvolvidas
com o dia a dia dos participantes; implementar avaliações nas atividades desenvol-
vidas; proporcionar assistência contínua aos participantes, inclusive após o término
do programa (EGGLESTON, 2000).
Finalmente, o Programa de Expedições ao Lago Wendigo realizado na Província de
Ontário no Canadá foi alvo do estudo realizado por Russell (2006). O autor sustenta
o emprego de AFAN para jovens em situação de criminalidade. Neste trabalho,
foram empregados pré-testes e pós-testes com um grupo de 57 jovens, com uma
média de idade de 15 anos, que praticaram trekking, esqui, orientação, canoagem e
acampamento. Estas atividades tiveram uma duração média de 102 dias, dos quais
40% foram gastos em expedições para locais distantes dos centros urbanos. Os re-
sultados indicaram que os praticantes de AFAN tiveram uma redução em suas taxas
de reincidência criminal. Além disso, o autor afirma que este programa demonstra
oferecer um ambiente seguro e que desperta o interesse dos participantes. Sugere,
entretanto, que outros estudos sejam realizados para que possam ser feitas afirma-
ções mais definitivas.

3. A prática das AFAN e os benefícios psicológicos e sociais para jovens infratores


Um número considerável de pesquisas voltadas para a reabilitação por meio das
AFAN refere aos benefícios psicológicos e sociais que essas atividades trazem para
jovens infratores. Entre os benefícios encontram-se: o aumento da auto-estima e
da auto-imagem, a aquisição de competências relacionadas com o trabalho em
equipe e o desenvolvimento da capacidade de liderança. Assim, por exemplo, o au-
mento da auto-estima é considerado um fator de proteção em relação ao compor-
tamento delinqüente em jovens, prevenindo o seu envolvimento com a
criminalidade (CROMPTON; WITT, 1997). Nessa parte do trabalho, apresentamos
as linhas gerais de alguns desses estudos.
O estudo de Mossman (1998) sobre o Programa de Aventura e Desafio ao Ar Livre,
desenvolvido no Presídio de Rolleston na Nova Zelândia desde 1993, buscou veri-
ficar se os participantes de AFAN obtiveram benefícios psicológicos e sociais. Em-
bora o estudo não trate exclusivamente de jovens, apresenta resultados que
corroboram com a tese central defendida por vários autores de que as AFAN podem
ser utilizadas em programas de reabilitação. Participaram da pesquisa 168 indiví-
duos, com idades entre 17 e 56 anos, sendo que 84 compuseram o grupo experimen-
tal e os demais o grupo controle. Os integrantes do grupo experimental estiveram
envolvidos durante três semanas em atividades de trekking, escalada, rapel e espe-
leologia, ao passo que os participantes do grupo controle permaneceram no presí-
dio. Os participantes das AFAN obtiveram resultados superiores em relação aos
níveis de bem estar, autoconfiança e coesão social, os quais se relacionam direta-
mente com os objetivos deste centro prisional. Ainda em relação aos benefícios da
prática de AFAN para a reabilitação da criminalidade, a autora afirma que esses
podem ser mais expressivos quando as AFAN são empregadas em conjunto com as
demais iniciativas (MOSSMAN, 1998).

364
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 365

O trabalho realizado nos Estados Unidos, com estudantes do ensino médio do Estado
do Colorado, demonstrou que jovens em situação de risco e envolvidos com a crimi-
nalidade obtiveram melhorias na auto-estima, capacidade de concentração e controle
pessoal, as quais normalmente são reduzidas nestas populações. Os participantes de
atividades de escalada apresentaram níveis superiores nestes indicadores. O autor
conclui que as AFAN podem afetar positivamente estes jovens em situação de risco,
prevenindo seu envolvimento com a criminalidade (CROSS, 1999).
Russell (1999) investigou quatro programas Norte Americanos de AFAN que obje-
tivam a reabilitação de jovens infratores: Anasazi, no Estado de Arizona, fundado
nos anos 60 e considerado um dos mais antigos; School of Urban and Wilderness Sur-
vival, fundado em 1981 no Estado de Idaho e que desenvolve AFAN durante 21 dias;
Aspen Achievement Academy, que realiza programas com 52 dias de duração; Cathe-
rine Freer Wilderness Therapy Expeditions, no Estado de Oregon e que desenvolve
suas atividades em expedições de 21 dias. De um modo geral, estes programas em-
pregam principalmente a canoagem, a vela, o trekking, a escalada, a orientação e o
montanhismo e possuem acompanhamento psicológico e terapêutico, além do en-
volvimento direto e indireto dos familiares nas atividades propostas. O estudo de-
monstrou que os jovens participantes destes programas elevaram seus níveis de
auto-estima e auto-imagem, além de desenvolveram novas habilidades sociais e co-
nhecimentos em geral, os quais auxiliaram na solução de problemas pessoais e em
seus relacionamentos com seus pais, amigos e sociedade como um todo. Por fim, o
autor conclui que a participação em AFAN não deve ser entendida como a simples
oportunidade para a prática de atividades recreativas em contato com a natureza,
mas como uma ferramenta capaz de propor benefícios para os jovens. Neste sen-
tido, o envolvimento dos pais durante os programas de AFAN pode acentuar estes
resultados positivos. Assim, reduzindo efetivamente o envolvimento com a crimi-
nalidade, fato que, outras intervenções, muitas vezes, não conseguem realizar com
sucesso (RUSSELL, 1999).
Outro estudo desenvolvido por Russell (2005), que possui uma abordagem predo-
minantemente qualitativa e é uma continuação de sua pesquisa realizada em 2003,
focou nos participantes e, principalmente em seus pais. Neste estudo, foram en-
trevistados 47 jovens e seus pais, permitindo ampliar a compreensão de efeitos em
longo prazo advindos da participação em atividades de trekking, acampamento, es-
calada e montanhismo. A maioria dos pais e dos jovens considerou a participação
em programas de AFAN como sendo positiva e que os benefícios obtidos, após dois
anos, ainda estavam presentes. Além disso, os pais afirmaram que estes benefícios
afetaram suas famílias como um todo relatando que seus filhos obtiveram melhoras
em relação à concentração, auto-estima e autoconfiança. Entretanto, as entrevistas
também evidenciaram que mais da metade dos jovens continuaram a utilizar dro-
gas e parte destes estava envolvida com atos criminosos.
A relevância de aproximar os pais dos jovens infratores em trabalhos desenvolvidos
em programas de AFAN também está presente no trabalho desenvolvido por Crisp
(1998). Para análise comparativa, o autor selecionou 14 programas desenvolvidos
na Inglaterra, Escócia, Nova Zelândia e Estados Unidos. De um modo geral, os pro-
gramas de longa duração apresentaram objetivos complexos e os de curta duração

365
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 366

objetivos mais simples. Além da proximidade com os familiares, a compreensão dos


problemas e das necessidades dos participantes, a adoção de sistemas de planificação
de riscos e a utilização de AFAN que possuam riscos subjetivos mais expressivos,
foram consideradas fundamentais para o sucesso nas ações que buscam a reabilita-
ção de jovens envolvidos com o crime. Por fim, o autor afirma que as AFAN demons-
traram possuir características que permitem auxiliar na reabilitação de jovens
infratores (CRISP, 1998).
A meta-análise desenvolvida por Cason e Gillis (1994) evidenciou que as AFAN
podem ser empregadas para a reabilitação de jovens infratores, em virtude de ele-
varem os índices de auto-estima e autoconceito em seus participantes. A análise
dos dados de 43 estudos anteriores permitiu afirmar que os jovens que participaram
de programas de AFAN obtiveram índices 12% superiores de auto-estima e autocon-
ceito. Os autores concluíram que os jovens são os indivíduos que mais se beneficiam
de programas deste tipo, os quais apresentam melhores resultados quando são de-
senvolvidos por períodos mais longos.
Outra meta-análise, que investigou os dados de 96 estudos desenvolvidos entre
1968 e 1994, abrangendo 12.057 indivíduos, sendo 72% do sexo masculino, também
evidenciou ganhos nos índices de auto-estima e aspectos ligados à liderança em
seus participantes, principalmente nos programas que se estenderam para 21 dias
ou mais. Além disso, outros dois aspectos demonstraram ser relevantes. O primeiro
relaciona-se ao fato de que as condições sócio-econômicas e as características étni-
cas dos participantes de programas de AFAN, presentes nos trabalhos avaliados
nesta meta-análise, não demonstraram influenciar os resultados obtidos. Já o se-
gundo, volta-se para os resultados encontrados em relação ao público feminino,
presentes em apenas 10 estudos, e que permitem afirmar que homens e mulheres
possuem diferentes expectativas em relação aos programas de AFAN, contudo apre-
sentam benefícios semelhantes (HATTIE et al, 1997).
De maneira contrária aos trabalhos citados anteriormente, o trabalho realizado em
Israel por Romi e Kohan (2004), demonstrou que a participação em programas de
AFAN pode não produzir benefícios em relação à reabilitação de jovens infratores.
Neste estudo foram investigados 94 jovens, cerca de 80% do sexo masculino e com
idades entre 15 e 18 anos. Estes jovens não estavam freqüentando a escola e já ha-
viam cometidos atos criminosos. Os sujeitos da pesquisa foram divididos em três
grupos: os participantes das AFAN, que foram 36; o grupo alternativo, em que 25
jovens participaram de outras atividades voltadas para a reabilitação da criminali-
dade, e o grupo controle, formado por 33 indivíduos que não estiveram envolvidos
em nenhuma destas atividades. Ao final do programa de AFAN, centrado no trek-
king, todos os jovens foram avaliados, não sendo encontradas diferenças estatísticas
entre os índices de auto-estima dos três grupos.
Um segundo estudo que não encontrou efeitos positivos da prática de AFAN foi de-
senvolvido por Harrison (1999), sobre o Spectrum Wilderness Program, desenvolvido
nos Estados Unidos. Este programa desenvolveu atividades de trekking, canoagem,
espeleologia, escalada e arborismo, durante um período de 30 dias ininterruptos.
Nesta pesquisa foram realizados pré-testes e pós-testes com 30 jovens, dos quais 26
do sexo masculino. Os achados indicaram que não houve alterações nos índices de
auto-imagem dos participantes, contrariando assim as conclusões de outros estudos.

366
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 367

4. A relação das AFAN com a redução da reincidência criminal


e os benefícios psicológicos e sociais para jovens infratores
Nessa parte, apresentamos trabalhos que investigaram a redução da reincidência
criminal e os benefícios psicológicos e sociais dos programas de AFAN para jovens
infratores.
Um exemplo destas abordagens é o estudo desenvolvido por Lan, Sveen e Davidson
(2004) que focou no Projeto Hahn realizado na Austrália. Esta pesquisa conduziu
pré-testes e pró-testes com 79 jovens, 56 do sexo masculino e 23 do feminino, com
idades entre 13 e 15 anos. Estes indivíduos que já haviam se envolvido com atos cri-
minais participaram de atividades de trekking, escalada, rapel, espeleologia, mon-
tanhismo, canoagem e canionismo, durante seis dias ininterruptos. Os resultados
indicaram elevações nos índices de auto-estima, melhorias relacionadas ao bem-
estar e diminuição nas taxas de reincidência criminal. Além disso, o último pós-
teste, realizado dois anos depois da participação no Projeto Hahn, demonstrou que
estes benefícios se estenderam até este período. Desta forma, o estudo evidenciou
que a prática de AFAN pode auxiliar na reabilitação de jovens infratores, inclusive
em longo prazo (LAN; SVEEN; DAVIDSON, 2004).
A pesquisa realizada por Hunter (1996) investigou outro programa que desenvolve
AFAN com público em situação de risco e envolvido com a criminalidade. Neste es-
tudo realizado sobre o Programa da Outward Bound no norte da Califórnia, foram
realizados pré-testes e pós-testes com 100 jovens, de idades entre 14 e 18 anos que
já haviam cometido algum ato criminal. Os achados indicaram que estes indivíduos
demonstraram um maior interesse em se afastar das atividades criminais, maior
facilidade em interagir com outros e aceitar as orientações advindas de adultos e
instrutores. Além disso, foram encontradas diferenças entre os resultados dos par-
ticipantes, em virtude de suas origens étnicas. Entretanto, segundo os autores, isto
não diminui o impacto positivo deste programa, pois estas diferenças ocorreram
em virtude de alguns jovens não se sentirem a vontade para se expressar frente aos
demais membros de seus grupos. Os pesquisadores sugerem que a avaliação em gru-
pos focais seja repensada em estudos desta complexidade.
Russell (2000) realizou um estudo de caso, em que comparou quatro participantes
de programas de AFAN desenvolvidos nos Estados Unidos. Estes indivíduos obti-
veram elevações nos índices de auto-estima e auto-imagem e diminuição na rein-
cidência de atos criminosos. Além disso, alguns alcançaram um melhor
relacionamento entre os familiares, diminuição no uso de álcool e outras drogas e
o interesse em melhorar o desempenho escolar.
A revisão de literatura realizada por Willians (2000) conclui que as AFAN demons-
tram ser mais eficientes do que outras ações para a reabilitação da criminalidade.
Neste sentido, a análise de obras produzidas entre 1974 e 1995 nos Estados Unidos,
indicou que as taxas de reincidência de atos criminais nos indivíduos que estejam
participando de algum tipo de atendimento institucional superam a média de 65%,
naquele país. Ao passo que, as taxas de reincidência em indivíduos participantes de
programas baseados em AFAN ficam entorno de 32%, podendo isto estar relacio-
nado aos seguintes fatores: o relacionamento entre instrutores e participantes que
proporciona uma transferência de valores morais e sociais; o tempo investido no

367
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 368

desenvolvimento das atividades, que podem chegar até seis meses ininterruptos e
superam a maior parte de outras iniciativas preventivas; as interações sociais pro-
venientes das práticas de AFAN, o que pode estimular o desenvolvimento de habi-
lidades ligadas ao trabalho em equipe e liderança, além da aceitação de ordens e
conselhos dos demais.
Outro trabalho a demonstrar que as AFAN podem ser mais eficientes do que outras
abordagens para a reinserção da criminalidade foi realizado por Russell, Hendee e
Cooke, (1998). O foco desta pesquisa foi o Programa Descoberta ao Ar Livre reali-
zado entre 1993 e 1995 por quatro centros da Federal Job Corps, nos Estados Unidos.
A Federal Job Corps é um programa voltado para jovens em situação de risco que é
realizado em mais de 130 centros de atendimento. A comparação dos jovens infra-
tores que participaram deste programa de trekking e acampamento, com uma se-
mana de duração, com os jovens que permaneceram nos centros da Federal Job Corps
realizando outras atividades, permite afirmar que foram alcançadas diminuições
nas taxas de reincidência criminal, elevações em indicadores de auto-estima e auto-
imagem, bem como o desenvolvimento de competências comunicativas, de lide-
rança e para o trabalho em equipe entre os participantes das AFAN. Além disso,
demonstram, através de uma avaliação indireta, que para cada dólar investido pelo
Governo Norte Americano neste programa, foi produzida uma economia superior
a 1,52 dólares. Os autores sustentam assim a viabilidade de ações deste tipo por parte
do governo, por ser uma ação preventiva e de baixo custo.
De fato, as AFAN demonstraram ser ferramentas importantes para a reabilitação de
jovens infratores. Entretanto, existem autores que afirmam que devemos ter cau-
tela ao utilizar essas atividades. Raymond (2004), por exemplo, analisou os níveis
de auto-estima e auto-imagem em jovens que participaram do Programa Flanders
realizado na Austrália, envolvendo trekking e acampamento, com jovens infratores
que não realizaram tais atividades. Os resultados indicaram aumento na auto-es-
tima e auto-imagem em curto e médio prazo, além da diminuição das taxas de rein-
cidência criminal do primeiro grupo. Contudo, o autor ressalta que estes resultados
não devem ser generalizados para todos os programas de AFAN, uma vez que, os re-
sultados alcançados por estes programas variaram de acordo com o perfil dos parti-
cipantes. Dessa forma, devido à heterogeneidade dos programas não é possível
afirmar que todos venham a obter resultados positivos.

5. Considerações finais
As AFAN, cada vez mais presentes na sociedade contemporânea, têm ocupado um
papel importante entre as iniciativas voltadas para a reabilitação de jovens infrato-
res. Além disso, têm sido foco de um número crescente de investigações científicas.
De uma forma geral, estas investigações buscam verificar os ganhos gerados pelas
AFAN em relação às taxas de reincidência criminal e os benefícios psicológicos e so-
ciais. Alguns estudos tratam desses aspectos separadamente, enquanto outros os
examinam em conjunto.
De acordo com os estudos analisados, as AFAN apresentam características que as tor-
nam instrumentos muito úteis para a reabilitação de jovens infratores. Alguns autores
sustentam que a utilização das AFAN para a reabilitação da criminalidade em jovens

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livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 369

pode obter alguns resultados que não são atingidos por outras ações realizadas em
centros de atendimento para infratores. As atividades mais empregadas em progra-
mas de reabilitação para esse público incluem: trekking, montanhismo, escalada,
rapel, arborismo, canoagem, atividades de acampamento, vela e espeleologia.
Os resultados encontrados em relação ao público feminino, presente em um nú-
mero reduzido de estudos, demonstraram que tanto homens quanto mulheres
obtêm diminuições nas taxas de reincidência criminal e benefícios psicológicos e
sociais em virtude da prática de AFAN. Entretanto, os interesses em relação às ati-
vidades demonstram ser diferentes entre os sexos.
De maneira semelhante ao público feminino, existem poucas pesquisas que levam
em consideração os aspectos sócio-econômicos e étnicos dos participantes de pro-
gramas de AFAN, todavia os que o fazem encontram resultados positivos. Neste
sentido, tanto os jovens brancos, que perfazem o público da maior parte das ações
investigadas, como os pertencentes a minorias étnicas, demonstram ser beneficia-
dos pelas AFAN.
Em relação à idade dos participantes, os estudos analisados não encontraram dife-
renças significativas, demonstrando não existir uma idade mais adequada para a
participação em atividades deste tipo.
Em relação aos custos e benefícios desses programas existem fortes indicativos de
que estes são economicamente viáveis. Neste sentido, alguns estudos afirmam que
os investimentos neste tipo de programas podem gerar economias em outros seto-
res da sociedade, uma vez que as abordagens tradicionais de reabilitação da crimi-
nalidade necessitam de recursos até 50% superiores para atingirem resultados
semelhantes aos dos programas de AFAN.
Outro aspecto a ser ressaltado é que os jovens infratores demonstram preferência
em participar de programas de AFAN, em relação a outras intervenções institucio-
nais. Isso ocorre em virtude de dois aspectos principais: os jovens não percebem a
prática de AFAN como uma forma de punição, mas como uma maneira de provarem
sua importância. O outro se deve a duas das características fundamentais das AFAN,
que são a presença de desafios a serem superados, com um menor número de regras,
bem como a inexistência de competições. Desta forma, permitindo o convívio, por
um determinado período, em um ambiente distante da sociedade e de suas regras,
consideradas injustas por parte dos jovens infratores.
O envolvimento dos familiares e de integrantes da comunidade próximos dos indiví-
duos infratores é considerado como uma estratégia importante para aumentar os be-
nefícios gerados pela prática das AFAN. Os responsáveis pelos programas de AFAN,
bem como os jovens infratores que participaram destas iniciativas, declaram que esta
aproximação na elaboração, execução e após o término das atividades deva ser imple-
mentada, para que os resultados possam permanecer por um período mais prolongado.
Entre as críticas mais presentes nos trabalhos analisados estão a inconsistência me-
todológica e a inexistência de avaliações na maioria destas iniciativas. De um modo
geral, estas são justificadas pela complexidade desta área e as possíveis soluções
estão relacionadas ao incentivo para a realização de mais estudos, bem como a cons-
cientização dos executores e coordenadores de projetos de AFAN da importância
de avaliar todas as ações desenvolvidas.

369
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Além disso, as teorias psicológicas e sociais1 que buscam sustentar a relação da prá-
tica das AFAN como a redução da criminalidade entre jovens infratores não conse-
guem explicá-la completamente. Desta forma, evidencia-se a necessidade de mais
estudos e, inclusive, a formulação de teorias mais robustas que possibilitem uma
compreensão mais profunda do assunto.
Há dúvidas também em relação aos efeitos de diferentes modalidades de AFAN, ao
tempo de duração destas atividades, à presença ou não de acompanhamento psico-
lógico, ao envolvimento da família, às características e às competências dos respon-
sáveis, principalmente dos instrutores e ao perfil dos participantes.
Por fim, existe a necessidade de maiores investigações, uma vez que parece não ser
apropriado afirmar que todas as modalidades de AFAN, desenvolvidas para diferen-
tes públicos, podem ser favoráveis para a reabilitação de jovens infratores. Em
pesem essas limitações, cabe destacar que já existem estudos suficientes para sus-
tentar a conclusão de que as AFAN podem ser empregadas como instrumentos úteis
para a reabilitação de jovens infratores.

1
O trabalho desenvolvido por Jeffrey Seagrave intitulado Sport and juvenile delinquency, publicado na
revista Exercise Sport and Science Reviews, n. 11, 1983, bem como o de Walter Schafer, Some Social
Sources and Consequences of Interscholastic Athletics: The Case of Participation and Delinquency, pu-
blicado no International Review for the Sociology of Sport, n. 1, vol. 4, 1969, apresentam teorias sobre
a relação da prevenção da criminalidade por meio de atividades físicas e esportivas.

370
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 371

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372
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Esporte e Projeto Social na ‘Favela’:


Memórias, Experiências e Valores Educativos
Paulo Cesar Montagner
Universidade Estadual de Campinas - Brasil
Leopoldo Katsuki Hirama
Universidade Federal do Recôncavo Baiano - Brasil

1. Apresentação: motivações dos autores


Após trabalharmos como técnicos de modalidades esportivas durante anos nos es-
portes competitivos, vários foram os exercícios e experiências provocados pelo con-
tato direto e cotidiano com o ESPORTE. Vivenciamos discussões e ações de
diferentes agências e ambientes na formação de pessoas através do esporte e reco-
nhecemos como importantes as reflexões sobre a influência do esporte na socie-
dade. Como menciona Bentos (2007), os equívocos e ataques ao Desporto ocorrem
por pessoas que tem reservas e complexos por diferentes razões, algumas “[...] in-
gênuas e confusas e outras bem espertas e oportunistas” (p. 9).
Portanto, se considerarmos as nossas experiências bem como o apreço que temos
por esse grandioso fenômeno cultural, consideramo-nos também responsáveis pelo
denominado por Bento (2007) – registrado no livro “Em defesa do Desporto” - de
“[...] uma responsabilidade e uma obrigação indeclináveis para todos quantos amam
o desporto, entendem e apreciam a sua incumbência cultural ao serviço do processo
civilizatório dos humanos e da respectiva sociedade” (p. 10).
As experiências por nós vivenciadas possibilitaram detectarmos as mais variadas
possibilidades para contribuir com a formação pessoal dos jovens alunos e atletas.
Sempre discutimos e tivemos ciência a respeito da seletividade nas modalidades
esportivas competitivas, na busca por jovens com perfis considerados mais adequa-
dos ao Esporte como, por exemplo, a importância da estatura no voleibol e no bas-
quetebol, o que provoca a exclusão de muitos, e, mesmo com jovens dispostos a se
comprometerem com várias sessões de treinamento por semana, não encontram
espaço para seu desenvolvimento. Ainda, várias foram as nossas experiências em
projetos de esportes nas suas mais diferentes formas, cenários e personagens.
Isso posto, vale também registrar que o presente estudo apresenta uma caracterís-
tica diferente de outros trabalhos por nós elaborados, relata sobre projeto de esporte
para jovens da comunidade de Heliópolis, uma das maiores favelas de nosso país, o
Brasil, a primeira em tamanho do estado de São Paulo.
O professor Leopoldo Katsuki Hirama sempre esteve perto desse campo de atuação,
não sendo novato em vivências dessa natureza. Teve, dentre as suas várias expe-
riências, a criação de uma ONG (Organização Não-Governamental) que buscava
oferecer oportunidades aos jovens sem acesso aos clubes e escolas esportivas do
município de Campinas-SP de aprendizado através do esporte. Essas novas e ricas

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vivências proporcionaram o conhecimento e o convite para trabalhar em um pro-


jeto social de maior envergadura na capital do estado, cidade de São Paulo, numa
grande comunidade de periferia, aquela que foi sua maior viagem profissional até
a presente data. Adentrou na comunidade de Heliópolis, a maior “favela”1 do estado
de São Paulo, e lá estavam esperando cerca de 440 crianças e jovens de 7 a 15 anos
vinculados a um projeto que tinha o esporte como “eixo norteador”.
Ao professor Paulo Cesar Montagner, o desafio de organizar, em conjunto com o pro-
fessor Leopoldo um projeto que permitisse registrar, a partir dessa rica experiência,
a realidade de um projeto esportivo nessa comunidade, experimentado “por dentro”,
ou seja, as inúmeras experiências vivenciadas, e o que, nessa investigação, o diferen-
ciava daquelas pesquisas em que os investigadores vão para uma coleta de dados no
campo por um período e depois registram nos seus computadores os “relatos e dados
coletados”, sem o menor convívio com a realidade e a população investigada.
Enfim, uma oportunidade incomum de construir um relato concreto do vivido bus-
cando orientar as reflexões para novos projetos numa área que cresce e se desen-
volve cada dia mais no Brasil; contribuir na construção de referências teóricas para
programas esportivos dessa natureza.
Entre os questionamentos, adequar a pedagogia ao contexto social em que as crian-
ças e jovens estavam inseridos foi um enorme desafio. De que esporte tratar? Quais
as possibilidades de contribuição que poderiam ser oferecidas? Quais as carências
que poderiam ser minimizadas? Portanto, para nós, desde a primeira oportunidade
de trabalhar com jovens em situação de risco em São Paulo até hoje, já se passaram
mais de uma década de experiência vivenciadas “in loco” pelos autores.
Talvez exista um consenso quando se afirma que o esporte tem o poder de atrair as
crianças e adolescentes. “Tirar das ruas!” é a afirmação mais utilizada. Mas o que
fazer a partir deste ponto? O que trabalhar? Como? Por quê? Garcia (2005, p. 24)
confirma a proposta de alguns projetos de oferecimento de atividades apenas com
o objetivo de “passar o tempo, ocupar a cabeça”.
Dialogando sobre a ação do esporte e a inclusão social, Constantino (2007) apre-
senta aprofundada reflexão sobre as contribuições do fenômeno desportivo. Cor-
roboramos com sua reflexão desde muito (Montagner, 1993), de que os “[...]
comportamentos desportivos, não são transferíveis automaticamente para as ac-
tividades sociais” (Constantino, 2007, p.70). Reconhecemos a importância do des-
porto na formação de crianças e jovens e tratamos no texto de relativizar essas
afirmações, considerando as ações do esporte como não sendo um fim em si
mesmo, assim...

[...] pode preencher múltiplas funções e assumir diferentes significados sociais.


Pode constituir-se nos dias de hoje, como um importante meio de socialização que
permite transmitir normas e valores sociais e garantir direitos de cidadania. Mas
isso obriga a rejeitar teses apologéticas que entendem o desporto como uma ‘escola
de vida’ e a aceitar que as práticas do desporto, não são integradoras por essência,
pelo que carecem de um forte investimento educativo. Do estado, é certo, mas tam-
bém da família, do clube, dos treinadores, dos dirigentes e de todos quantos orga-
nizam e enquadram a prática desportiva (CONSTANTINO, 2007, p. 70 e 71).

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O Brasil vive um fenômeno de crescimento acentuado no número de ONGs (orga-


nizações não-governamentais), conhecidas também como fundações privadas e as-
sociações sem fins lucrativos, atuantes nas mais diversas áreas, entre elas a
educação. Segundo o IBGE (2004) são ao todo 275.895 instituições desta natureza
no país em levantamento realizado em 2002. Deste universo geral do terceiro setor,
62% foram criadas a partir de 1990, o que revela a juventude da maioria das insti-
tuições. O ritmo de crescimento vem aumentando a cada década. Dos anos 70 aos
80 foi de 88%, dos anos 80 aos 90 foi de 124% e de 1996 a 2002 o crescimento foi de
157% (IBGE, 2004).
Aproximando-se da especificidade da educação física, é conhecida por esporte edu-
cacional a ação em projetos sociais, em sua maioria desenvolvida por ONGs que
atuam em comunidades carentes tendo como eixo central o ESPORTE. Ainda se-
gundo o IBGE, são 26.894 ONGs que se classificam como atuantes na área de re-
creação e esporte, o que representa 9.75% do total (IBGE, 2004).
Diante deste quadro de crescimento das instituições e conseqüentemente do al-
cance de suas ações, este texto se justifica pela intenção de colaborar para uma re-
flexão sobre as características que devem ser levadas em consideração na
especificidade da intervenção da pedagogia do esporte em projetos sociais destina-
dos a crianças e jovens carentes. Portanto, esperamos que o estudo permita, e que
será detalhado adiante, recuperar memórias e dar voz aos que em geral não são es-
cutados, oferecendo-lhes instrumento que possamos registrar e exprimir seus pen-
samentos, desejos e sentimentos.

2. Os projetos sociais e a pedagogia do esporte


2.1. Organizações não-governamentais, projetos sociais
e jovens carentes: o universo do estudo
A população jovem em situação de risco do Brasil se reflete em números significa-
tivos. Segundo a UNICEF2 (Fundo das Nações Unidas para a Infância) são 62 milhões
de jovens com menos de 18 anos, dos quais 27,6% são pobres. Entre 12 a 18 anos são
21 milhões de adolescentes dos quais apenas 59% terminam o ensino fundamental
e 40% o ensino médio.
Tais números ajudam a ilustrar o universo de jovens que vivem alguma forma de
exclusão ou dificuldade em sua formação, espaço no qual as instituições do terceiro
setor, em geral, buscam atuar.
Apesar desta atenção dada aos projetos sociais, do aumento dos investimentos e
ações no terceiro setor assim como a importância e responsabilidade atribuída aos
programas nas ONGs, (com destaque aos que atuam tendo como eixo norteador o
esporte) ao procurar referências teóricas, estudos científicos que pudessem balizar
nosso projeto, percebeu-se que existe uma grande carência. O material encontrado
sobre o tema, em sua maioria, versava sobre a descrição de programas realizados ou
as bases fundamentais a serem seguidas, sempre de maneira generalizada.
Como este setor já se configura como um importante meio de intervenção na for-
mação dos cidadãos brasileiros, já confirmada sua presença e ação, acredita-se ser
necessárias novas investigações nas especificidades de suas diferentes áreas de atua-
ção em busca da melhoria da qualidade dos serviços prestados.

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O fenômeno das ações das ONGs está cada dia mais presente no cotidiano da popu-
lação. Nos Jogos Panamericanos do Rio, em julho de 2007, houve grande divulgação
sobre os trabalhos realizados por instituições sem fins lucrativos, principalmente
os que são mantidos ou organizados por atletas ou ex-atletas de renome, como a
Fundação Gol de Letra fundada pelos ex-jogadores de futebol Raí e Leonardo, o Ins-
tituto Guga Kuerten, do tenista de mesmo nome ou ainda o trabalho do judoca Flá-
vio Canto com crianças e jovens das “favelas” do Rio de Janeiro.
A participação e o sucesso de atletas panamericanos que iniciaram a prática espor-
tiva em ONGs também receberam atenção da mídia. O primeiro medalhista de ouro
brasileiro nesta edição dos Jogos, o atleta Diogo Silva, do taekwondo, iniciou sua
trajetória esportiva em um projeto social. Outro medalhista de ouro, o atleta Edson
Isaías da Silva, da canoagem, também começou a praticar a modalidade numa ONG.
Mesmo não sendo declarada a formação de atletas de alto rendimento como objetivo
das ONGs, é fato que muitos talentos são iniciados pelo trabalho social. Segundo a
própria Hortência, ex-jogadora de basquetebol, campeã mundial e vice-campeã olím-
pica, que durante os Jogos Panamericanos, defendia o incentivo fiscal para projetos
socioeducativos que atuam com o esporte, afirmou em diversos meios de comunica-
ção3 que ela própria iniciou a prática esportiva em um projeto social.
Não somente os destaques esportivos em competições de alto-rendimento foram
divulgados, como também exemplo de jovens que afirmam ter mudado os rumos
de sua vida por causa da vivência esportiva nos projetos4.

Tudo começou em 2000, quando o projeto Educação Criança e Futuro foi inserido
na comunidade. Eu comecei a participar do projeto como aluno e virei monitor.
Em 2006, eu me tornei Professor e hoje eu estou dando aula em um novo pólo, na
Ilha do Governador (Rodrigo Borges, morador da “favela” da Rocinha, R.J., judoca
do projeto organizado pelo atleta Flávio Canto).

O esporte me deu o direito de estudar em colégios bons, vou poder estudar em uma
faculdade. Além disso, me trouxe disciplina e me afastou de drogas e bebidas (Aline
Torres, atleta da Vila Olímpica da Mangueira).

2.2. Divergências e controvérsias


Apesar da imagem de sucesso largamente divulgada pela mídia, o setor convive com
divergências e controvérsias. Uma acirrada discussão está na herança assistencialista
que os projetos sociais ainda convivem, presentes em ações nas quais a comunidade
espera ganhar, em lugar de conquistar. E, em muitos casos, continua ganhando,
mesmo sendo possível perceber que em determinados casos não se trata de bens
inacessíveis. A intenção é a de refletir sobre as conseqüências de se cultivar nos ha-
bitantes de comunidades periféricas um sentimento de direito a bens que muitas
vezes poderiam adquirir por condições próprias.
Outro tema bastante polêmico é o da utilização de comunidades periféricas como
ferramenta de marketing, o chamado marketing social. Na “favela” de Heliópolis,
qualquer projeto, com ou sem apoio financeiro, é examinado pelos dirigentes da
comunidade e muitos não são aceitos por entenderem que não representarão be-

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nefícios aos moradores. Esta triagem acontece porque, segundo a liderança da as-
sociação do local, já se implantaram muitos projetos que tinham como propósito
principal à promoção da própria empresa, sendo projetos que se utilizavam da fama
de maior favela do Estado para conseguir uma imagem inicial de credibilidade e se
aproveitar da facilidade de divulgação, visto a popularidade da comunidade. Assim
que atingido tal objetivo, a empresa finaliza seus investimentos, não dando conti-
nuidade ao processo iniciado.
Como resultado, a empresa continua com a possibilidade de divulgar seu suspeito
compromisso social, mesmo omitindo que tenha sido um projeto passado. Já na co-
munidade o sentimento de serem utilizados e manipulados permanece, tanto que
provocou esta ação de triagem aos projetos. Outra possível conseqüência é o senti-
mento de não merecimento por projetos bons e duradouros, servindo, ao contrário
de auxiliar, por afetar a auto-estima de seus moradores. Nas memórias coletadas,
esta conseqüência também foi afirmada por um dirigente local5.
Atualmente se destaca nos meios de comunicação a imagem da empresa que auxilia
comunidades periféricas, e com isso, agrega valor positivo à sua imagem. No en-
tanto, infelizmente existem casos em que este auxílio é divulgado de maneira a
não representar a ação implantada de fato. Além disto, problemas como a pressão
por número mínimo de atendidos, em detrimento da qualidade da intervenção,
ações de maior impacto aplicadas sem atender às características da comunidade,
utilização da imagem da população em eventos e programas publicitários sem re-
torno adequado, são fatos que precisam ser refletidos e evitados nos programas dos
projetos sociais. Muniz (2001), com relação a problema desta natureza enfrentado
em um centro comunitário estudado, afirma:

E, por necessidade de sobrevivência e por falta de clareza de suas diretrizes, os va-


lores acabam sendo transformados. E muitas vezes a linguagem quantitativa, a
visão de mercado, o tempo acelerado para apresentar resultados, sobrepunham-
se aos objetivos humanitários, em que prevaleciam a qualidade, as inter-relações,
a intersubjetividade, o tempo subjetivo, a diversidade, o conflito, a contradição,
etc. Sendo assim, tornava-se necessário construir com os profissionais da institui-
ção um espaço de resistência que permitisse driblar a lógica homogeneizante e em-
botadora da criatividade para que o centro comunitário pudesse crescer sem
perder seus princípios e diretrizes (MUNIZ, 2001, p. 194).

Por outro lado, as empresas que se utilizam de ações sociais como ferramenta de
marketing correm o risco de sofrer o que o autor chama de efeitos colaterais inde-
sejáveis, pois a população pode identificar a possível chantagem emocional, rejei-
tando a partir deste ponto, seus produtos.
Como, em sua maioria, as ONGs não geram receitas próprias, é necessária a captação
de recursos, que aliada à possibilidade de lucro das empresas do segundo setor, vem
formando uma legião de profissionais atuantes nesta área (MONTAÑO 2002).
Esta nova possibilidade de ação tem provocado diversos efetivos negativos nas
ONGs. Montaño (2002, p. 208) afirma: “Por outro lado, a atividade de ‘captação de
recursos’ no ‘terceiro setor’ pode levar a uma perda de identidade, perda de rumo,
descaracterização da ‘missão’ da organização”.

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Este mesmo autor cita uma matéria da revista Exame (Exame 2000:24) sobre cap-
tação de recursos com o título: “O melhor jeito de pedir”. E descreve o desvio da
missão e modo de atuar das ONGs para a obtenção dos recursos, como a necessidade
de adequar o projeto a ser “vendido” ao perfil da empresa e não do público com
quem trabalha, ou sobre os benefícios da doação, relacionando-o com os possíveis
ganhos da empresa e não com os da comunidade atendida e também discute a me-
lhor época para abordar a empresa ignorando se existem necessidades mais desta-
cadas pela sociedade atendida em determinadas épocas do ano. E finaliza afirmando:

Desta forma, os recursos, que já não são “autogerados”, também não são “autoge-
ridos”. Com isso, a perda de rumo, a descaracterização da “missão” organizacio-
nal, a submissão dos seus valores e filosofia aos interesses da agência “doadora”
representam uma fortíssima tendência.

Com essas características, uma atividade - a captação de recursos - que deveria ser
funcional torna-se essencial, e, ainda mais, torna-se fundamento da “missão” or-
ganizacional. Assim, as organizações do “terceiro setor”, como num frenesi, vol-
tam-se para a captação de recursos. O que deveria ser atividade auxiliar torna-se
atividade central, tamanha a dependência dessas organizações por esses recursos
externos (MONTAÑO 2002, p. 210).

O problema é tão atual e real que foi exposto na forma de filme6 nacional, um drama
ficcional, mas que pode retratar a realidade vivida em muitos duvidosos projetos
sociais. No entanto, parcerias com a iniciativa privada podem ser positivas. Chinelli
(1993) descreve uma relação entre uma ONG e empresa privada na qual esta última
não interviu na administração dos valores repassados e nem na missão e forma de
trabalho da instituição, desencadeando processos interessantes de gestão:

Na verdade, trata-se de uma estratégia funcional tanto à Xerox quanto ao projeto


comunitário. A Xerox, com essa postura liberal, não só ratifica sua imagem de em-
presa preocupada com a questão social, ao mesmo tempo comunitária no que diz
respeito à administração dos recursos e a prestação de contas. E o “pessoal da Man-
gueira”, com atitudes como esta, (prestavam contas mesmo sem a exigência da em-
presa - observação do autor) tem certamente sua credibilidade e legitimidade
reforçada junto aos demais agentes envolvidos no projeto comunitário (p.55).

Outra discussão no terceiro setor é se a intervenção nos projetos socioeducativos


deve seguir na perspectiva de auxiliar o ensino formal, ou não, trilhando através de
diversas áreas sem a preocupação de complementaridade. Nesta mesma temática,
há também controvérsias sobre a que nível se deve atuar nas estimulações sobre a
área de atuação.
Von Simson, Park e Fernandes (2001), em estudo na região metropolitana de Cam-
pinas, estado de São Paulo, que realizou uma sondagem em 28 instituições diversas
que atuam com educação não-formal7, apresentam que, de maneira geral, as inter-
venções não são realizadas de maneira sistemática, oferecendo um tipo de trabalho
mais reformador, seguindo a orientação de carência cultural e de posturas assisten-

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cialistas, do que transformador, seguindo a orientação calcada na valorização e cons-


trução das práticas culturais.
Caminhando para a área específica deste estudo, o esporte, o dilema está em como
tratá-lo. Oferece-se o esporte como lazer, atividade exclusivamente lúdica, como
forma de atrair as crianças e jovens ao projeto, ou planeja-se um programa de con-
tinuidade de desenvolvimento, no qual os jovens poderão conhecer a modalidade,
gostar e continuar a se aprofundar? Sobre este tema, em geral, o discurso nos pro-
jetos socioeducativos que atuam com o esporte afirmam que o objetivo principal
não é a detecção de talentos, mas que é possível oferecer estímulos para que, inclu-
sive o jovem talentoso possa se desenvolver. Alega-se que a busca é por contribuir
para a formação do cidadão.
No entanto, qual o meio mais eficaz para esta contribuição na formação do cidadão?
Alguns projetos optam por ações diversificadas, oferecendo aos jovens uma gama
de atividades, mas em muitos casos, não conseguindo manter uma continuidade e
aprofundamento. Encontrou-se em Zaluar (1994) relatos de que muitos participan-
tes acabam abandonando o programa exatamente por, apesar de seus desejos, não
perceberem a continuidade do aprendizado. Por outro lado, existem projetos
que atuam na estimulação específica de uma área escolhida. Em alguns casos, o ob-
jetivo é o alto rendimento, como por exemplo, a formação de músicos.
Na própria “favela” de Heliópolis existe uma ONG que desenvolve um programa
que atua com a música. A formação dos jovens consiste em canto e instrumentos
de orquestra. Alguns jovens formados estão no exterior dando continuidade aos es-
tudos, participando de outras orquestras. Neste caso há também quem critique a
ação, alegando a exclusão dos que não tem gosto ou talento para a música. Por outro
lado, não oferecer espaço de continuidade e formação adequada àqueles que têm
vocação também não se constitui como uma exclusão? Por que, quando se trata de
projetos socioeducativos, a idéia de que se devem oferecer apenas atividades onde
todos possam participar é a que predomina?
Acredita-se que estes temas de discussão são importantes para este e outros estu-
dos, podendo servir de referência para a análise dos dados recolhidos com os jovens
nos projetos. Posteriormente, por outro lado, espera-se contribuir oferecendo sub-
sídios para reflexões mais aprofundadas sobre estas controvérsias no terceiro setor.

2.3. O projeto social na maior favela do Estado de São Paulo,


a segunda maior favela do Brasil
Este estudo tem como público-alvo, jovens também participantes de um projeto
socioeducativo que utilizava o voleibol como eixo norteador. Este projeto se localiza
na “favela” de Heliópolis, que pelos seus números estatísticos podem oferecer uma
representação de um universo ímpar.
A “favela” de Heliópolis pertence à zona sul da cidade de São Paulo, e está localizada
no bairro do Sacomã. Originou-se a partir de uma desocupação, realizada pela pre-
feitura no bairro de Vila Prudente, no início da década de 70. Desde então a comu-
nidade tem crescido acentuadamente, sendo considerada a maior do Estado de São
Paulo em número de habitantes. Estima-se que atualmente vivem, em uma área
de apenas 1 km2 (demarcada na fig.1 em branco), cerca de 120 mil habitantes, o que
representa uma das maiores densidades demográficas do continente.

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Os participantes da pesquisa freqüentaram o núcleo socioeducativo do programa


da Prefeitura de São Paulo que teve origem na década de 70 no Projeto Menor Tra-
balhador de Rua (1973), que na época buscava ser uma opção de não internação para
crianças com desvios de comportamento, pois havia grande pressão da população
contra os maus tratos sofridos nas FEBEMs (Fundação Estadual para o Bem–Estar
do Menor). Este projeto foi sofrendo adequações, passando a ser conhecido por de-
signações diferentes como Atividade Menor Trabalhador de Rua (1975) e Projeto
Orientação Sócio-Educativa ao Menor - OSEM (1977) adotando uma linha de pre-
venção em vez da internação e atendendo as crianças e adolescentes das camadas
populares de forma a evitar seu abandono.
Em 1986 os núcleos passaram a se chamar Centros da Juventude - CJs, mantendo a
linha anterior somando-se a intenção de proporcionar reforço escolar. Em 1999
mudou-se para Espaços Gente Jovem - EGJs e em 2004, Núcleos Socioeducativos -
NSE. Tais alterações se relacionam principalmente com as mudanças de gestão mu-
nicipal, pois internamente pouco se alterou desde os CJs. (SOUZA, 2002, p. 25).
Cada NSE pode e é estimulado a ser formado em parceria com organizações não-
governamentais (ONGs) como associações de bairros e com a iniciativa privada.
No núcleo Heliópolis a parceria acontece com a UNAS (União dos Núcleos de Ação
Social de Heliópolis e São João Clímaco), Sociedade Amigos de Heliópolis e outra
ONG dirigida por uma ex-atleta de voleibol e patrocinada por uma empresa pri-
vada. Este projeto específico com o esporte, no qual os jovens, foco deste estudo,
participaram, tem atualmente uma abrangência que envolve diretamente três es-
tados, Paraná, onde se originou São Paulo e mais recentemente, Rio de Janeiro to-
talizando 45 núcleos.
Os trabalhos do núcleo Heliópolis iniciaram-se em 2002 com 200 educandos, en-
trando em expansão para um total de 440 com idades entre 7 a 15 anos a partir do
2º. ano de atividade. No início de 2004 foi aberto um núcleo broto (núcleo menor
atrelado ao núcleo principal), em uma escola municipal situada no entorno so-
mando-se mais 200 vagas.
Eram oferecidas aulas de voleibol duas vezes por semana, com duração de 1 hora
cada sessão, além de atividades extras como teatro, campanhas de solidariedade e
de participação na comunidade.
O apoio da empresa privada foi fundamental na estruturação e manutenção das
atividades. Iniciou-se com o investimento na construção de uma quadra coberta,
onde originalmente existia um espaço conquistado pela Associação dos Morado-
res, que consistia em terreno de algumas moradias desocupadas e derrubadas. O
pequeno ginásio de esportes ocupou todo este espaço e continha uma quadra com
dimensões reduzidas de futsal e voleibol, dois vestiários, mezanino e pequeno de-
pósito de materiais.
A compra de materiais esportivos, manutenção dos equipamentos, uniformes, sa-
lários de educadores, coordenadores e estagiários do projeto de voleibol eram pro-
venientes da empresa privada e eram administrados pela ONG dirigida por uma
ex-atleta profissional de voleibol. Obviamente a empresa esperava retorno deste
investimento através do marketing, agregando valor de empresa socialmente res-
ponsável, ao divulgar seus trabalhos na comunidade.

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O objetivo principal do projeto para a ONG, responsável pedagógico pelas ações, era
a de contribuir para a formação cidadã dos jovens esperando ser capaz de transfor-
mar sua realidade e a da comunidade em que viviam, utilizando-se como eixo nor-
teador o esporte, e como mencionado, mais especificamente na modalidade
voleibol. Como objetivos específicos, estavam a ampliação do universo cultural dos
educandos, o desenvolvimento de conhecimentos voltados para a manutenção da
saúde, contribuir para a formação do jovem enquanto cidadão crítico, participante
e transformador de sua realidade, oportunizar a formação profissional em áreas so-
ciais, de educação e de saúde, desenvolver competências e habilidades psicomoto-
ras, sócio-afetivas e cognitivas, promover a integração do programa com as
comunidades local e escolar.
Até o período em que atuamos no projeto aconteciam torneios competitivos que se
realizavam em três etapas. A primeira dentro dos próprios, onde todos os alunos
participavam. A segunda, em nível regional, reunia-se os alunos classificados por
qualidade técnica no esporte e merecimento alcançado pelo compromisso e esforço
nas atividades propostas, em um torneio estadual. Por fim, os classificados repre-
sentariam os núcleos e seu estado na etapa nacional, realizado na cidade de Curitiba.
Portanto, o projeto se desenvolvia em várias partes do Brasil.
O grupo foco da pesquisa foi formado por 30 adolescentes de 15 e 16 anos, que fre-
qüentaram treinamentos da modalidade e participaram de muitas outras ações a
partir do esporte, entre o início de 2003 até final de 2005. Estes jovens foram esco-
lhidos por terem sido pioneiros em diversas ações através da proposta esportiva
dentro e fora do espaço do projeto.

2.4. Observações metodológicas


Apresentado o ambiente e personagens segue-se para as bases metodológicas da
pesquisa, orientando-se pela etnografia e utilizando-se da metodologia da história
oral, buscaram-se reconstruir as memórias dos jovens, educadores, mães e lideran-
ças, confrontando-as com a do próprio pesquisador de campo (prof. Leopoldo) que
vivenciou o processo como educador do projeto. Relacionando-se tais dados com as
referências teóricas levantadas, pretendeu-se alcançar como objetivos:

1. Através do estudo de caso, levantar características relevantes da comunidade


em sua complexidade e também relacionadas à inserção do projeto socioeducativo
na mesma.

2. Compreender as transformações vividas em seu cotidiano, pelos jovens que se


integraram ao projeto, no período enfocado e na contemporaneidade.

3. Descobrir os significados da cultura local que permitam contribuir para a estru-


turação de projetos socioeducativos que possuam o esporte como eixo norteador.

Entendeu-se por significados a busca por uma interpretação da teia de relações ocor-
ridas na comunidade estudada, levando-se em conta as motivações, tensões e emo-
ções que dinamizam as ações do local.

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3. O esporte a ser tratado


O esporte é um fenômeno sócio-cultural que tem crescido muito nas últimas dé-
cadas. Atualmente tem grande influência em todas as áreas da vida humana, sejam
econômicas, sociais e políticas.
Como dar um tratamento pedagógico a este fenômeno de maneira que se aprovei-
tem suas múltiplas possibilidades em sua aplicação em comunidades periféricas? É
possível adequar os estímulos da pedagogia do esporte de maneira a contribuir para
a minimização dos problemas e carências vividos por jovens moradores de “fave-
las”? Devido à grande exposição que o esporte alcança atualmente na mídia, ele
agrega valores a quem o comenta, pratica ou assiste.
Segundo Zaluar (1994), o esporte tem muita importância nas classes populares, pois
permite a representação do social idealizado, onde todos seguem as mesmas regras,
independentemente de classe social. Situações como o de quem é mais habilidoso
deve jogar mais, remete a uma questão de justiça possível no esporte, o que é mais
raro acontecer em diversos outros momentos dos jovens em situação de risco. Em
Heliópolis, presenciou-se uma ação semelhante, quando indagados pelo educador
sobre como deveria ser a escalação da equipe titular em jogos de campeonato, ofe-
recendo-lhes duas opções, sendo a primeiros onde todos jogam pelo menos em uma
parte do jogo e outra em que se privilegiariam os mais habilidosos. A votação foi
unânime para a segunda opção, alegando-se justiça e possibilidade maior de sucesso.
É freqüente nas crianças e jovens, o sonho de se tornar um grande astro do esporte.
Sabe-se que esta é uma possibilidade pequena. É, portanto, necessário não alimen-
tar este desejo? Por que não direcioná-lo à experiência de superação e evolução den-
tro das possibilidades e individualidades?
Zaluar (1994, p. 197) afirma também ter encontrado em núcleos de programas so-
ciais através do esporte, problemas com adolescentes que não encontravam conti-
nuidade no desenvolvimento da modalidade. Ignorou-se o desejo dos jovens e
também as possibilidades de formação profissional como atletas ou profissões afins.
A Ainda e também no esporte, a idéia de que para pobre qualquer coisa serve, pre-
dominou. A mesma autora cita os discursos de estagiários responsáveis pelas aulas:

Qualquer modalidade motiva. Eu acho que eles não têm muito. Pouca coisa que
você dá a eles já é bom. Eles não precisam muito... (ZALUAR, 1994, p. 85).

Eu não cobro nada deles. Eles brigam comigo. “Pô, você! Gente, eu não posso cobrar
isso aqui de vocês. Também não posso exigir demais, se a pessoa não quer fazer,
não faz. Isto aqui não é um clube não, bicho”. Quando eu entrei para a Fundação
me deram um toque que era nível recreativo. Como eu adoro bagunça, então vou
dar minha aula de bagunça... (ZALUAR, 1994, p. 95).

Bento (1999, p. 63) afirma que é necessário repensar a pedagogia que para substituir
o emprego do esporte como ferramenta ideológica ou onde se privilegiava apenas
os mais aptos excluindo-se todos os outros, implantou-se uma espécie de ética in-
dolor, com afrouxamento dos vínculos a compromissos e deveres a tudo que impli-
que trabalho, esforço, disciplina, sacrifício, afinco, persistência e suor.

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Desta maneira o esporte tratado neste estudo é aquele que sofre um tratamento pe-
dagógico seguindo sempre a visão do fenômeno como possibilidade educacional, nos
diferentes níveis e situações. Como afirma Santana (2005), não é possível escapar da
educação ao se fazer, assistir ou planejar o esporte. Ou ainda, em Bento (2007, p.33):

[...] o desporto está aí para cultivar a ética e estética da contingência, da beleza e


alegria do contingente e imanente na peripécia que a vida encarna, celebrando
tanto o brilho do que nos é dado como a sombra do que nos falta e inquieta. Con-
vida-nos a optar “pelo aperfeiçoamento humildemente tentativo e resignadamente
inabalável do que sempre nos parecerá de algum modo imperfeito, em vez de o re-
cusar com desânimo culpável ou de tentar agigantá-lo até que a sua enormidade
inumana nos esmague”. (p. 33)

Mas qual tratamento pedagógico desenvolver? Educar para quê? Entende-se que o
caminho a ser percorrido por uma proposta pedagógica em um projeto socioeduca-
tivo que utiliza o esporte como eixo sugere possibilidades de minimização ou reso-
lução dos problemas identificados pela comunidade em questão. Antecipando
algumas questões que serão analisadas posteriormente, são problemas a serem con-
siderados: baixa auto-estima, a falta de pertencimento a um grupo que lhe dê ex-
pectativas de evolução e desenvolvimento, as poucas opções para o distanciamento
do tráfico, a exclusão de ambientes culturais e educacionais de qualidade, a educa-
ção formal de má qualidade, entre diversos outros.
Desta forma, é aconselhado que o tratamento pedagógico a ser elaborado e posto
em prática seja adequado e procure auxiliar o jovem no combate a tais flagelos que
enfrentam cotidianamente, permeados por valores que se distanciem desta lógica
individualista da vantagem em detrimento do outro e sim da melhoria das condi-
ções de vida particular e em comunidade.
Assim acredita-se que é possível educar aprendendo o esporte, se aprimorando, atin-
gindo bom nível de performance conforme possibilidades, admirando, sonhando, en-
tendendo, pesquisando, ensinando aos outros. Sobre isso, Freire (2003) defende um
lema: que se ensine o esporte a todos, que se ensine bem a todos, que se ensine mais
do que esporte a todos, e finalmente que se ensine a gostar do esporte.

4. As memórias e vozes subterrâneas dos envolvidos


Nesta parte do texto, o título faz menções ao termo memórias subterrâneas utili-
zado por Von Simson (2003) para definir as memórias de grupos dominados que,
em geral, não fazem parte da memória coletiva formada por fatos e aspectos julga-
dos relevantes pela classe dominante. No entanto, é possível fazer com que estas
memórias subterrâneas façam parte da memória coletiva. Uma das formas foi a em-
pregada nesta pesquisa, através do registro e da posterior análise realizada justa-
mente neste estudo, buscando através das memórias individuais construir
memórias coletivas.
Utilizamos também a proposta elaborada por Von Simson (1988) e o registro de tre-
chos de falas captadas nas memórias dos indivíduos para auxiliar na análise do fe-
nômeno pesquisado. As vozes registradas são provenientes de cinco perfis
diferentes de pessoas da comunidade, a saber:

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1. Jovens adolescentes - são os personagens centrais do estudo, formando o grupo


mais antigo do projeto e que se responsabilizaram por diversas ações na comuni-
dade.
2.Jovens de nova geração - ouviu-se também alguns alunos de uma geração mais
nova, que na época do estudo estavam no processo de assumir as vagas daqueles
anteriores que pela idade já adulta deixavam o projeto.
3.Mães dos jovens - foram entrevistadas seis mães de alunos.
4.Educadores - foram ouvidos três educadores com o perfil de atuarem no próprio
projeto e serem moradores da comunidade. Todos estavam cursando faculdade
de Educação Física.
5.Liderança comunitária - foi entrevistada a líder comunitária responsável pela in-
termediação entre comunidade, ONGS locais e empresa na implantação e primei-
ros anos do projeto.

4.1. Memórias do projeto esportivo


No estudo original8 são realizadas diversas reflexões acerca do ambiente da favela
partindo da fala de seus moradores. Aspectos como crescer na comunidade, mora-
dia, violência, a imagem e o poder das mães são discutidos no texto. No entanto,
para este capítulo resolveu-se priorizar as considerações em torno da especificidade
da pedagogia do esporte no projeto social.
Destacaram-se primeiramente o desejo, a importância e os aprendizados atribuídos
pelos jovens ao aprofundamento e a continuidade no esporte. Aprender cada vez
mais e colocar em prova seus desempenhos foram afirmados como fator motiva-
cional e de comprometimento às ações do projeto.
Em seguida foram destacadas a relação do educador com o educando e a exigência
dos jovens por um profissional que procure entender a comunidade, compreender
sua dinâmica, conhecer os jovens e se comprometer com as transformações que
pode mediar.
O terceiro tema tratado diz respeito ao sentimento de pertencimento muito valo-
rizado e destacado por todos os grupos entrevistados, tanto os jovens participantes
do projeto, como as mães, educadores e liderança. Fazer parte de um grupo que é
consciente de seus objetivos e desafiado a melhorar, se esforça em conjunto e por
isso é valorizado pela comunidade é ressaltado através de lembranças e memórias
consideradas marcantes.

4.2. O ensino do esporte de forma continuada e profunda


A expectativa de continuidade dos ensinamentos no esporte está presente em mui-
tos discursos. Uma questão inicial que aborda este tema é o controle da liderança
com relação à permissão de implantação de um projeto na comunidade. Como He-
liópolis é considerada a maior favela do estado9, tem grande visibilidade, muitas
empresas tentaram se aproveitar realizando falsos projetos, de natureza pontual,
explorando a imagem de que estaria colaborando com a comunidade e em seguida
se retirando, deixando poucos benefícios. Com relação a estas empresas, a liderança
entrevistada afirma:

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Não tinha a ver, era só... Porque às vezes eles vinham com a cabeça de que era um
zoológico, vamos lá olhar os bichinhos, vamos fazer uma coisinha ali e tudo bem.
A proposta não era essa. Liderança 1

Desta forma, tanto na implantação como durante a execução dos projetos existe
um acompanhamento e controle da comunidade, que preza pela continuidade dos
trabalhos em benefício de seus moradores:

Nossa, vinha muita gente. Teve várias pessoas. Porque Heliópolis tem uma história,
por exemplo, o Cingapura daqui é diferente, por quê? Porque Heliópolis é diferente.
Tem comércio, 3 quartos, porque quando vinham e diziam vai ser assim a gente
dizia não, vamos conversar. Então esta forma de se organizar, o povo quando
passa a ter consciência da força que ele tem, eu acho que ele muda. Liderança 1

Com relação ao ensino do esporte, fica bastante claro o desejo dos educandos por
dar continuidade ao aprendizado, não permanecendo nas atividades essencial-
mente recreativas e com características de iniciação da modalidade, que no caso
deste projeto, era o voleibol. Quando perguntado sobre a continuidade no processo
que vivenciaram, buscando aprofundamento na modalidade, percebe-se que este
caminho está ligado ao desejo de melhorar, de evoluir:

Nossa, isto foi muito bom, porque vários adolescentes aqui não tinham muita coisa
para fazer. Quer dizer, ia para a escola, fazer um curso, quem tivesse condições,
quem não tivesse ficava em casa, na rua, fazendo o que não devia. Então eu acho
que isto foi uma ótima iniciativa, não é? Porque vai dando prioridade para alguns
adolescentes de conhecer outros lugares, outras pessoas, eu acho que teria que con-
tinuar. Porque tudo que é bom a gente tem que continuar e melhorar cada vez
mais, não é? Jovem 8

Também se afirma que existe uma relação entre o aprendizado do esporte e o apren-
dizado para ser aplicado em outras situações da vida:

Por mais que pareça exigir demais querer desenvolver um projeto que tenha um
foco maior no voleibol, numa coisa de aprender um pouco mais, acho que não seria
ruim desenvolver um projeto assim no sentido de que as pessoas têm capacidade
de querer fazer algo mais, e eu acho que o mais importante, que por mais que a
gente talvez não seja, por mais que não se forme jogadores profissionais, a gente é
capaz de refletir essa busca na vida. Eu posso não ter conseguido isso, mas eu vou
correr atrás de outras coisas, e vou dar o meu máximo, sempre! Jovem 2

No estudo original (Hirama, 2008), nas discussões sobre a pedagogia do esporte, de-
fende-se um tratamento pedagógico específico onde se consideram as individuali-
dades, a realidade dos educandos, ensinando bem a modalidade e além dela. Foi
encontrada em alguns depoimentos a forma de estimulação capaz de “seduzi-los”
para o desejo de continuar a se desenvolver:

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Ah, sempre aquela coisa, aquela pontinha... Por exemplo, tinha aula na segunda,
aí no final da aula o Professor deixava meio aquela coisa: “Ah, na próxima aula a
gente vai aprender posicionamento!” e a gente ficava todo ansioso para a outra
aula. Tinha os amigos também da turma e mesmo que a gente fosse tomar bolada,
mesmo que a gente não conseguisse cumprir a proposta da aula, a gente sempre
ficava ansioso para completar aquilo na próxima aula. E nunca era um ciclo que
se encerrava. Era contínuo sempre, e a gente sempre ficava na expectativa para a
próxima aula, ver o que a gente podia aprender, para campeonatos também, a
gente ia se preparando o ano inteiro e eu acho que era isto que criava esta expec-
tativa na gente. Jovem Nova Geração 7

A continuidade também é importante no processo de comprometimento dos jo-


vens com o projeto. Esta ação é construída em médio prazo e desta forma, se não
for garantida a permanência dos estímulos, os vínculos não acontecerão:

Então, no começo não, eu acho que no começo não, até porque eles não tinham este
costume de ter este compromisso. Mas isto foi criado com o tempo. Eles se compro-
meteram depois. Claramente eu vejo que da metade do processo até o final, eles se
comprometeram. Do começo até a metade eles estavam iniciando, eles estavam
num processo de comprometimento. E eu acho que a ações que foram feitas du-
rante o processo fizeram com que eles se comprometessem. Professor 1

A competição é um fator presente quando se objetiva a continuidade em uma mo-


dalidade esportiva. A discussão na Educação Física sobre os possíveis problemas que
a competição acarreta são também apresentados pelos entrevistados. O assunto sus-
cita reflexões profundas nos últimos 20 anos no Brasil e nos vários países, especial-
mente entre a população de crianças e jovens. Os argumentos do papel da
competição na escola são amplamente conhecidos e os conhecidos argumentos de
que a escola não deve formar campeões, sequer formar atletas foi carregado para os
projetos socioeducativos.
Constatino (2007) expressa que no ambiente escolar, na Europa, esses argumentos
teóricos mantém a escola “[...] em relação à competição desportiva uma indisfarçá-
vel reserva...Permanece em muitos professores e em algumas escolas de formação,
uma ‘cultura de desconfiança’ em relação ao desporto formal, designadamente ao
que se convencionou chamar de ‘desporto federado’” (p. 67 e 68).
Como exposto nas memórias, os jovens participaram de um campeonato regional
e perderam a maioria dos jogos. Balizando-nos pelo estudo de Montagner (1993) e
entendendo ser possível o oferecimento de situações positivas com a competição,
os jovens enfrentaram equipes com maior estrutura e tempo de preparo. Ao serem
perguntados se tais experiências produziram alguma espécie de trauma, eles res-
pondem:

Olha, em mim não. Mas depois que a gente... Eu encontro alguns que começam a
falar daquele tempo, a lembrar, e eles começam a falar umas coisas que às vezes
ficaram marcadas, mas eu acho, é, por ter ficado marcado e porque foi relevante,

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não é? Mas eu acho que também foi necessário para a gente conseguir caminhar
naquela competição.
[...] Pessoal, claro, ficavam tristes porque tinham perdido, não iam ficar alegres,
mas eu acho que motivava, motivava, claro. A gente sabia que foi trabalhado tam-
bém que o mais importante não era ganhar tudo, quer dizer, o mais importante
era você competir, lutar para ganhar o jogo, fazer o time todo voltado para aquilo,
todo mundo trabalhando focado no objetivo, acho que foi muito importante. E
apesar de a gente ter perdido foi enriquecedor também. Jovem 1

Eu vejo assim, não vou falar que eu não ficava decepcionado por perder quase
todos os jogos, mas assim, eu tentava levar tipo como um desafio para a vida. Por-
que assim, a gente treinava, treinava e chegava na hora não dava certo. Porque
será, ficava pensando. Chamava o pessoal para se esforçar cada vez mais, mas não
dava. Então eu procurava, tipo, depois de um certo tempo, a refletir a respeito da
vida também, porque se a gente levar para nossa vida, realmente para nós há esta
dificuldade, chegar a um certo nível, chegar onde você quer chegar, alcançar sua
meta, seu objetivo, é realmente difícil. Tem vários obstáculos, várias dificuldades,
e isto ocorreu muito. Hoje eu procuro levar para minha vida pessoal, porque difi-
culdade eu vejo direto e então eu fico procurando abraçar as oportunidades para
chegar num objetivo maior que eu quero. Jovem 3

A continuidade no processo de aprendizagem no voleibol, na busca por aprofunda-


mentos táticos e técnicos, oferecendo no percurso estímulos em uma competição
de bom nível regional, tinha por objetivo estimular aprendizados que pudessem
contribuir para a formação dos jovens e procurar minimizar as pressões caracterís-
ticas desta comunidade.
Na questão da auto-estima, houve jovem que afirmou que o esporte não chegou a
proporcionar mudanças significativas neste sentimento:

O pessoal não chegou a ver que poderia ser superior, poderia superar o que todos
achavam deles, Sobressair sobre esta característica que julgavam eles. [...] Acho
que não. Mudava muitas vezes quando o time conseguia se sobressair, conseguia
mostrar que estava lá para jogar. Um exemplo foi o jogo contra Jundiaí, o time co-
meçou a ficar com medo, o nosso começou a se sobressair, passar deles, jogar muito
bem, daí não começaram as risadinhas, começaram a perceber, ficaram assusta-
dos, um pouco. Jovem 3

No entanto, outros enxergaram mudanças no comportamento através da competi-


ção:

Bom, para gente eu acho que isto diminuiu, porque a gente vê que nós somos im-
portantes! Não somos insignificantes como as pessoas do outro lado vêem! Para
eles eu acho que somos coitadinhos não é? Mas vai de cada um fazer aquilo que a
gente realmente é. Se você quer ter potencial, você vai ter potencial. Agora se você
não quiser, quiser ser um coitado, um fraco, você vai ser. Jovem 9

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Ô, bastante. E muitos, acredito, que mudou o pensamento. A gente não sabe por
que a gente não continuou convivendo. As pessoas que eu encontro são raras e eu
só falo um oi, não tenho mais aquela amizade que tinha antes, aquele apego. Mas
a maioria, acho que o I., você, serviu para acordar o pessoal. Acho que é por isso
que quando você saiu foi para isto. Para você vir e fazer todo mundo acordar. Acho
que se não tivesse surgido, estou sendo até um pouco radical, mas eles não teriam
este pensamento então eles estariam na mesma. Eles estariam na mesma vida, na
mesma fase, na mesmice. Jovem 6

Vivenciar o aprendizado do esporte em busca de aprofundamento constante pro-


porcionou, segundo relatos, uma oportunidade, que em primeira análise, pode pa-
recer simplória, mas que surge no discurso de muitos jovens como algo marcante e
que indica romper com o isolamento que viviam, romper com a lógica “da casa para
escola, da escola para a casa”:

Sempre foi um aprendizado para a gente conhecer mais o time, porque era um
time grande, num set você ficava com um time, no outro você ficava com outro.
Mas foi aprendizado mesmo, para a gente conhecer mesmo o ambiente onde a
gente estava pisando. E não é só jogar voleibol no núcleo, tinha um outro mundo
maior aí fora que a gente tinha que se habituar. Jovem 1

Eu penso também o tanto que vôlei me propiciou, não é? Foi muito legal, não é?
As viagens, eu acredito que se eu não tivesse entrado no vôlei estaria na favela fa-
zendo nada não é? Até hoje! Jovem 3

Como forma de se manter o foco da atuação centrado no eixo esporte e aprofundar


os conhecimentos e vivências, os jovens puderam exercer a função de monitores,
como auxiliares nas aulas dos educandos mais novos e árbitros em torneios, tanto
internos como entre outros núcleos do projeto. Os jovens atribuem a estas ações
muitos aprendizados:

Com aquele jeito de árbitro amigo, a gente podia visualizar melhor as dificuldades
que cada um tinha. Poder conversar mais com ela, auxiliar nas dificuldades que
elas tinham, ter aquele contato mais pessoal. Jovem 3

Ah, me sentia uma Professora! Era ótimo, porque você está ensinando uma coisa
que você aprendeu. Ensinando uma coisa que você já sabe para uma pessoa que
não sabe ainda. Ou que sabe que você esta ajudando aquela pessoa a melhorar. É
uma sensação muito boa! Jovem 8

Outra característica comum relacionada ao processo de aprofundamento no esporte


foi a de estimular os sonhos nos jovens, no sentido de ampliar as expectativas de
formação e constituição na vida. Quando perguntado sobre as diferenças entre os
jovens do projeto e jovens que não participam de nenhum projeto, um dos educa-
dores confirmou as desigualdades nas expectativas:

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E as diferenças, a gente mora no Heliópolis e a gente observa grupos, existem vários


grupos de jovens dentro de Heliópolis. Este grupo é um grupo diferenciado mesmo
porque muitos grupos aqui no Heliópolis, a gente percebe que os meninos adoles-
centes e as meninas também, eles não buscam uma melhora de vida, eles ficam na-
quele círculo vicioso. Não procuram fazer uma faculdade, muitos, principalmente
as meninas, não procuram um trabalho legal, se contentam com o pouco. E a gente
conseguiu despertar nestes meninos este desejo de buscar melhorar, buscar ter uma
vida melhor. Buscar futuramente de ter condições de constituir uma família e dar
condições melhores para esta família. Eu não vejo em outros grupos este desejo de
querer melhorar, fazer uma faculdade, melhorar financeiramente, de sair do He-
liópolis, eles pensam que a vida deles vai ser aqui sempre. Vão crescer, assim como
já cresceram, e vão morrer aqui. Educador 1

Retornando aos jovens e a questão dos sonhos, eles se colocam da seguinte maneira:

Ah, como a J. (J11) falou: eu acho que a gente aprendeu mesmo o que é sonhar, por-
que acho que a gente não tinha este sonho, eu até sabia, mas não exatamente, que
nem você falou uma vez que existia um muro assim e que a gente tinha que olhar
por cima dele. A gente tinha que chegar até ele e olhar por cima. Eu acho que o pro-
jeto mostrou isto, a olhar o que tem por fora, porque antes a gente só tinha aquele
mundinho, era só aquele e já era. Jovem 10

Nosso mundo era só isso, terminar o ensino médio, trabalhar vai de faxineira,
(Risos)... Mas é, acho uma vergonha, minha irmã, ela é nova, acabou os estudos e
podia procurar algo melhor e ela não, é faxineira. 22 anos. Porque, porque eu acho
que ela não teve a mesma oportunidade de a gente tivemos. Eu também. Antes de
eu entrar no projeto eu pensava, qual vai ser meu futuro. Meu futuro é eu casar,
ter 3,4 filhos, e trabalhar num serviço de merda, para ganhar uma merda, enten-
deu? Agora não, antes no projeto eu queria ser jogadora ou Professora de vôlei,
mas agora não, eu comecei a trabalhar numa área diferente e eu penso outra coisa,
já. Então eu não posso falar eu quero ser administrador de empresa, porque pode
mudar daqui a dois anos. No projeto eu aprendi a correr atrás, porque viver é di-
fícil, no meu trabalho às vezes eu faço muito esforço e ninguém reconhece, porque
minha patroa saiu de férias e eu fiquei com a responsabilidade toda dela e às vezes
eu fico chateada porque ela não reconhece, ai eu penso hoje não, mas amanhã com
certeza ela vai reconhecer, porque um dia se eu sair de lá ela vai sentir muita falta,
então com o projeto eu aprendi correr atrás das coisas que eu quero. Jovem 11

Em se tratando de trabalho com crianças e jovens em situação de risco, muito se dis-


cute sobre o perigo de se estimular sonhos e desejos distantes das suas realidades.
Como o projeto estudado desenvolvia a modalidade voleibol, foi natural que muitos
sonhassem em se tornar jogadores profissionais como seus ídolos (incluindo a pre-
sidente da ONG responsável pelo projeto de esportivo, que foi uma grande jogadora
em nível mundial da modalidade, e com quem todos tinham contato constante).
É sabido que nenhum dos jovens participantes deste grupo foco do estudo se tornou

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jogador profissional. Nenhum deles sequer se mantém em treinamento, no en-


tanto, temos suas afirmações com relação à possível frustração por não alcançarem
o sonho de ser jogador:

Não, eu acredito que na vida, se você tiver um sonho, você vai querer alcançar de
qualquer jeito, não? Mas ao não alcançá-lo, com as outras pessoas eu não sei, mas
comigo, eu não fiquei triste. Eu sei que é um sonho, não impossível, mas um sonho
extremamente difícil, mas eu sei que não poderia ter desistido. Mas das conseqüên-
cias que foram acontecendo eu comecei a desviar meu sonho, talvez aquele poderia
ser meio supérfluo. Procurei imaginar um sonho mais próximo da minha reali-
dade, um sonho que talvez seria significante para mim, algo com a minha cara,
meu estilo, uma perspectiva melhor. Jovem 310

Partindo deste último depoimento, outros jovens relacionam a possibilidade e o


exercício de sonhar a partir das vivências do projeto com a reformulação destes de-
sejos. O que foi anteriormente a vontade de ser atleta profissional, atualmente é a
formação profissional, com destaque ao ensino superior, o sonho a ser perseguido,
e, aliás, já sendo executado por alguns:

Não era diretamente relacionado na quadra, mas a gente viu o resultado fora. Era
com a família onde a gente estava mais focado. Tinha depoimentos de família que
chorou quando o filho falou: “Mãe, eu quero fazer uma universidade!” Não o fato
dele querer fazer uma universidade, mas o fato dele conseguir sonhar ! Porque
antes isto também não tinha. Liderança 1

Para mim me ajudou em escolher o que eu queria fazer com relação à minha pro-
fissão, depois que eu comecei a fazer monitoria eu vi que era aquilo que eu queria,
fazer Educação Física. Me ajudou a escolher minha profissão11. Jovem 9

Uma das jovens do grupo passou no vestibular em duas universidades públicas de


São Paulo, fato bastante raro na comunidade. Quando questionada se seu desejo por
trilhar este caminho tem relação com as experiências do projeto, ela responde:

Sim. Foi uma coisa muito simultânea, foi concomitante. Na hora que eu estava co-
meçando o ensino médio, então foi uma coisa... Eu já, pelo apoio da minha mãe e
pelo meu comportamento na escola, eu sempre tive vontade de fazer uma coisa ba-
cana, de ter um trabalho legal, não sei se eu tinha a intenção de conquistar inde-
pendência, mas o meu futuro é este mesmo. Mas acho que participar do projeto
me deu mais garra para correr atrás disto. E acho que mais importante, aliou a
vontade que eu tinha de ter algo mais à noção do mundo onde eu estava, onde eu
estou, das pessoas com quem eu convivo, das diferenças entre elas, e do que signi-
ficaria conquistar isso. Eu acho que isto foi importante, porque nem sempre a
gente tem essa visão: “puxa, olha o que eu estou para fazer!” Acho que me deu mais
força ainda, me motivou mais ainda e me deu a importância e o esforço que eu
teria que fazer. Jovem 5

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Ao se discutir a profundidade nos ensinamentos em projetos sociais é possível per-


ceber que ela se dá em diversos aspectos. No caso deste estudo, além do desenvol-
vimento específico da modalidade esportiva voleibol, em seus fundamentos
técnicos, táticos, competições, ainda relaciona-se com fatores como auto-estima,
monitoria, co-responsabilidade e estimulação do sonho, este último largamente
afirmado pelos jovens.

4.3. Proximidade na relação educador/educando


Uma das questões orientadoras para a realização das entrevistas procurava investi-
gar quais as características que um educador deveria apresentar para trabalhar em
um projeto socioeducativo com esporte. Este questionamento teve o objetivo de
levantar indicativos sobre a importância deste profissional no ambiente e como os
entrevistados achavam que ele devia se comportar, quais qualidades e conhecimen-
tos deviam ter e demonstrar.
É neste tema que se encontrou o maior número de depoimentos convergentes, in-
dicando que os diferentes grupos entrevistados possuíam visão semelhante quando
o assunto é o profissional trabalhador de um projeto socioeducativo.
Praticamente unanimidade nos depoimentos, uma das características elencadas se
trata da necessidade do educador conhecer a comunidade na qual vai trabalhar. Não
se exige que ele seja morador do local, mas que busque entendê-la nas suas relações
particulares:

Além de dar a aula ele tem que conhecer os alunos, os moradores, muitas vezes o
tráfico, e dependendo da realidade, isto é importante, ele tem que conhecer o con-
texto em que ele está inserido, ele tem que fazer parte do contexto, ele tem que, na
verdade, viver no contexto. As pessoas precisam conhecê-lo. Eu acho que a trans-
formação vai vir daí. A partir do momento que o Professor é reconhecido dentro
da comunidade como uma pessoa que não é da comunidade, e as pessoas percebem
que ele está lá para ajudar e ele está conseguindo realizar mudanças na realidade
que ele está inserido, através de vida dele, eu acho que o trabalho consegue ter fru-
tos a partir daí. Educador 1

Tem a questão da amizade, de você conhecer seu aluno, se preocupar com ele, e eu
acho que quando a gente conhece realmente o aluno, sua realidade, quando a gente
dá a oportunidade para ele falar simplesmente da vida dele, eu vejo que o aluno se
sente confiante, o aluno fala: caramba, nele eu posso confiar! Ele não é um estra-
nho! Acho que é isto: a gente não pode ser um estranho para o aluno! Educador 2

Outra característica atribuída ao educador ideal faz referência à vocação, ao gostar


do que faz, se deixar envolver pela causa do projeto. Segundo relatos, assim ele terá
maiores chances de provocar mudanças reais na comunidade:

Olha, tem que gostar mesmo, viu! Gostar daquilo que faz. Acho que é importante
em qualquer profissão, tem que gostar mesmo, se sentir parte daquilo que o manda
chuva está te falando. Se sentir parte e amar, eu acho que é o principal. É você amar

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aquilo que você está fazendo. Só a chance deste Professor poder...vai trabalhar com
crianças , não é? Com todas as faixas de idade, e pode trazer muitos benefícios
para estas crianças. Eu acho que o principal é ter que gostar mesmo. Jovem 1

Como visto anteriormente, espera-se que o projeto esportivo tenha continuidade


e profundidade. Portanto também é desejado que o profissional tenha uma boa for-
mação na modalidade:

Primeiro o Professor tem que manjar muito do esporte que ele está trabalhando. Por
exemplo, se você está no voleibol, você tem que entender do voleibol. Educador 1

É lógico, importante conhecer do que a pessoa tem que conhecer do que ela esta fa-
lando. Não vai falar de voleibol e chegar lá falando de chuchu! Tem que ter uma
base, uma formação legal. Jovem 5

A figura do educador como um exemplo a ser admirado é fato descrito pelos jovens
e afirmado como relação fundamental no cotidiano do projeto:

Acho que ser for um projeto social, tem que ter uma preocupação cem formar pes-
soas, em ser exemplo, é inevitável, os alunos vão olhar para esta pessoa e vão dizer:
“ puxa, quando eu crescer eu quero ser assim, eu quero fazer isso!”, então de qual-
quer forma ele tem que ter consciência de que ele vai ser um modelo, então ele tem
que ter um comportamento que de certa forma seja exemplar. Jovem 5

E acho que ele tem que ser alegre. Não demonstrar que ele está triste porque o Pro-
fessor é o espelho do aluno, então o aluno reflete nele, quando o Professor está triste
ele fica triste, quando o Professor fica alegre. Jovem nova geração 1

Além do exemplo, muitos entrevistados fizeram referência à relação de proximi-


dade e amizade do educador com os educandos. Não basta conhecer a comunidade,
ter uma conduta correta, cumprir com as obrigações. Exige-se maior envolvimento:

Ah, uma pessoa que entenda as dificuldades, não é? Que tenha paciência. Porque
assim: as pessoas não são iguais, cada um tem seu jeito, que tenha paciência com
o jeito de cada um, que tenha um lugar adequado, um lugar que precise, arrumar
parcerias também. E ir cultivando. Para os adolescentes verem que o que eles estão
fazendo é o melhor para eles. È que nem uma escola. Que nem, tem as escolas, mas
o pessoal fala que as escolas não prestam. Mas porque que as escolas não prestam?
Porque o Professor entra na sala, não fala um bom dia, já vai escrevendo, na hora
que vai embora já apaga, vai embora, não dá um tchau, então é assim, se você cul-
tiva, a pessoa vai se apegar, vai ter carinho, e quando você precisar daquela pessoa
ela não vai te dizer um não! Se você souber lidar com ela. Eu acho que independente
do lugar, ou do dinheiro, de qualquer coisa, independente de tudo isso, é a culti-
vação entre as pessoas, porque se você tratar uma pessoa bem, você pode treinar
na rua. Jovem 8

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Primeira coisa ele tem que ter aquela coisa, eu não sei dizer o nome, sabe aquela
coisa para cativar os alunos, além de ser o Professor, ser amigo também. Primeiro
de tudo ele tem que ser amigo dos seus alunos depois vem o Professor. Acho que é
o mais importante. Jovem 9

Mas o primeiro foco foi mesmo a questão da carência, sabe. De ter alguém mesmo
que olhasse. Eles chegaram lá, uns chegaram tão desengonçados, tão sem nada, e
de repente você viu um homem, virou um homem, sabe, de cabeça, de atitudes,
então eu acho que isto contribuiu. Liderança 1

4.4. O Sentimento de pertencimento


Outra característica detectada nos depoimentos é relacionada ao valor atribuído ao
grupo e os sentimentos por fazer parte dele. É afirmado que para a constituição e
manutenção do grupo é necessário que os objetivos sejam bastante claros, permi-
tindo que os jovens optem por participarem ou não do projeto:

Mas eu acho que é isto, já que você está ali, você tem que saber quais são as regras
verdadeiras, e aí você vai estar fortalecendo seu grupo, porque ele está tendo en-
tendimento do todo, se você trabalha o indivíduo picado, o rendimento dele é pi-
cado. E você não pode cobrar um rendimento integral. [...] Então eu acho que tem
que trabalhar tendo claro qual é o objetivo que você quer com seu esporte, com este
grupo qual é o foco que eu quero atingir, também deixe claro para ele, e aí ele vai
ter esta opção, é isto mesmo que eu quero, é desta forma que eu quero trabalhar, e
ele vai render muito mais. Liderança 1

Uma das educadoras afirmou conhecer outros grupos que, por falta de um objetivo
definidos, de direção, apresentam outra característica:

Então, eu conheço outros jovens que participam de outros projetos, aqui dentro
de Heliópolis, e comparando com este grupo, eu acredito que estes outros jovens
eles não tem uma organização como eu enxerguei neste grupo. Que até hoje, eu
acho que eles são ainda organizados, não é? Eu acho meio desorganizados os jo-
vens dos outros projetos, não tem uma direção, é aleatório. Educador 3

Quando perguntado se enxergava alterações no comportamento dos jovens no de-


correr do projeto, outro educador que acompanhou o grupo de jovens de maneira
bem próxima atenta para a falta de perspectivas e objetivos no início dos trabalhos:

Eu me lembro que no começo, os meninos, era como se você pegasse uma pessoa
sem nada na cabeça. E aí, durante este tempo a gente foi tendo vivências, a gente
foi amadurecendo como grupo, e estes adolescentes foram crescendo, porque eles
estavam dentro de um ambiente, que é o Heliópolis e parece que eles só conseguiam
ver o Heliópolis. Não conseguiam ver além do Heliópolis. Eu acho que a experiên-
cia, estes anos de convívio com os adolescentes ajudaram-nos nisso. A criar uma
expectativa que eles não tinham. Eles achavam que eles tinham que ficar no He-

394
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 395

liópolis, passar a vida, muitos falavam isso, passar a vida toda no Heliópolis, e não
tinham, não tinham objetivos, não tinham metas a alcançar. Educador 1

E atribui à ação do projeto o interesse nos jovens por se desenvolver:

Eu acho que tem várias coisas que contribuem. Tem a questão do desemprego, que
muitos se acomodam por isso. Eu acho que tem a questão de falta de estímulo dos pais
desses jovens, muitos pais, não estou falando que são todos, mas muitos pais não es-
timulam, não pressionam este jovem para que ele se interesse em outras coisas. E eu
acho que fez a diferença foi que nós suprimos esta falta dos pais dos jovens que tiveram
esta experiência. Eu acho que a gente contribuiu nisso. A gente fez o que muitas fa-
mílias não estavam conseguindo fazer. Que era dar este estímulo. Educador 1

Dentre outras relações e formas de estímulo mencionadas pelo educador era a de


delegar e dividir responsabilidades com o grupo. A monitoria, momento em que os
jovens ajudavam os educadores nas aulas dos mais novos, recebendo a função de
orientar, de organizar as turmas, auxiliar na dinâmica das atividades, passando a
ser uma referência para todos, proporcionou o sentimento de pertencimento:

Porque a gente via a figura do Professor fazendo assim então eu vou tentar fazer
como ele, mas era uma criação, a gente criava muito como monitor, eu me sentia
mais valorizado, mais pertencente ao projeto. Falava: “Caramba, eles acreditam
em mim e eu posso contribuir de alguma forma no aprendizado destas novas
crianças, não é?” Jovem 2

Um dos objetivos construídos com os jovens foi o de montar a equipe de voleibol,


tanto feminina como masculina e dar continuidade no processo de evolução no
nível de performance e conhecimento da modalidade. Esta busca também é lem-
brada como fator de união e fortalecimento do grupo:

Eu gostava bastante dos campeonatos, porque eu acho que os campeonatos jun-


tava muito o time feminino, o time feminino era muito afastado, por intrigas...
Então, eu acho que a quando a gente se juntava mesmo para jogar a gente se unia.
A gente esquecia as diferenças, não é? Então a gente se apegava, via que aquele
abraço que a gente tava dando era uma abraço verdadeiro, não aquele abraço que
você dá, “Hã, oi!...”(fisionomia de desagrado) , sem graça, era um abraço que tinha
algo a ver com o grupo. Jovem 8

O grupo indica ter sido construído através da influência de diversos aspectos. Como
já colocado anteriormente, as responsabilidades atribuídas aos jovens, o objetivo a
ser alcançado, a formação das equipes e a mediação dos educadores estão presentes
neste depoimento, como uma síntese das análises deste tema:

A gente fala até hoje que o que fez com que o grupo ficasse reunido é que a gente
queria treinar vôlei, daí veio o Professor, e aí o Professor junto com os adolescentes

395
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 396

que fizeram que a gente quisesse estar aqui, que fizessem a gente se tornar autô-
nomos, que a gente corresse atrás dos nossos objetivos, coisa que com os jovens
desta segunda fase (chamados neste estudo como a nova geração) que a gente fala,
não está acontecendo. Mas aí eu não sei se é por causa do Professor ou por causa
do interesse dos jovens, porque naquela época tinha os dois lados, a gente tinha o
Professor que era, como posso explicar, acho que o nosso suporte, que nos segurava
era ele, qualquer problema que a gente tinha a gente recorria a ele, e ele sempre aju-
dava a fortalecer o grupo e até a gente mesmo em questões pessoais, até. Acho que
foi isto que fortaleceu o grupo. Acho que pela confiança do resto dos Professores
também, a amizade que todo mundo tinha pelo outro, responsabilidades que a
gente tinha contribuiu bastante. Jovem 7

A relação de amizade formada entre os jovens é uma das afirmações mais presentes e
valorizadas quando o assunto é o pertencimento do grupo. A permanência desta ami-
zade após o término da equipe de voleibol é relatada por vários jovens e educadores:

Com relação ao time, nós fechamos um grupo muito legal, até mesmo depois do
treino nós nos reuníamos, a gente conversava fora tanto de voleibol como de di-
versos assuntos, a gente tinha aquele laço de amizade. Na hora da dificuldade pro-
curar saber, montar uma estratégia para sobressair da dificuldade. Acho que este
laço de amizade que acabou ficando, de conversar, durou muito tempo. No outro
dia a gente se reunia para conversar, discutir sobre voleibol, acho que este é um
ponto legal. Jovem 3

A maneira como o grupo agia com cada integrante pode indicar os motivos desta re-
lação forte de amizade:

Por... Eu era travado, mas todo mundo, você vê, o trabalho que foi feito foi tão bom,
mas tão bom, eu acho que eu não estou viajando na maionese, foi tão bom, porque
se eu fosse jogar na minha escola, voleibol com os meus colegas, eu ia ouvir um
monte de... Não é, besteira: “Ah, você não sabe jogar!” Não iam nem me deixar
jogar, não ia nem entrar na quadra. Mas aqui o pessoal procurava ajudar, era tra-
balhado com a gente: “Procura ajudar seu colega!” E o pessoa ajudava mesmo. E
eu era travado mesmo, não conseguia, mas ninguém se cansava de falar para mim
como eu deveria fazer, e eu tentava fazer, mas ... Jovem 1

Este último jovem, quando questionado se achava que fazia parte do grupo, res-
ponde:

Me sentia, me sentia sim. Eu não tinha, claro, o mesmo desempenho que o P., o V.,
mas me sentia, eles me incluíam no grupo. Apesar de ser travado eles me incluíam!
Jovem 1

A afirmação de alguns jovens alegando que o projeto simbolizava a sua segunda casa
pode indicar a maneira como se sentiam pertencentes aqueles espaços:

396
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 397

Eu escutei da boca do I. (jovem de uma geração mais nova) que a 2ª casa dele era
a sede, porque ele amava as aulas de voleibol, porque ele tinha prazer. Eu acredito
que era por causa da aula. Através das aulas que eles amavam eles acabavam se
comprometendo com as outras coisas porque tinha algo que lhes dava muito pra-
zer. Educador 3

Com certeza. A gente chamava ali de segunda casa. A gente se sentia bem lá dentro.
Jovem nova geração 1

Às vezes até a primeira! Jovem nova geração 2

Às vezes até a primeira porque a gente passava lá maior parte tempo lá do que em
casa. Jovem nova geração 1

Agir em grupo é aumentar as possibilidades de atuação, principalmente na comu-


nidade de Heliópolis, como afirma a liderança entrevistada:

Têm jovens que na mudança enquanto pessoa, de se cuidar, também isto teve. Ele
se tornou mais questionador, mais amigo do outro. Eles se fortaleceram enquanto
grupo. Eu acho que isso foi bacana, eles traziam coisas enquanto grupo. Não fala-
vam no individual. E para esta comunidade acho que é isto que é importante, não
é? Porque se você começa a trabalhar no individual, você se perde, e eles vieram
com uma força enquanto o grupo. Liderança 1

O sentimento de pertencimento e suas características como os laços de amizade, a


busca por objetivos comuns, as responsabilidades assumidas, o apoio e cooperação
entre os jovens, a aquisição de maior força de representação na comunidade e a per-
manência de algumas destas relações mesmo após dois anos de encerramento das
atividades com o projeto indicam que o fato de pertencer ao grupo foi relevante no
processo vivenciado.

5. Considerações finais: a busca por respostas e


o encontro de novos questionamentos
Considerações finais ou iniciais? Finais, se relativas a este texto em particular. Con-
tudo, no universo de relações envolvidas no conjunto dos ambientes em que se pro-
pôs investigar, ou seja, jovens de comunidades periféricas, projetos socioeducativos
e pedagogia do esporte, exige desdobramentos. Esperamos que a partir destas con-
clusões, as novas inquietações e a proposta sirvam de “estopim” para outras inves-
tigações, transformando nossas conclusões em pontos de partida para outros
estudos. Afinal de contas, o crescimento do terceiro setor é uma realidade e o oti-
mismo atribuído às ações dos projetos requer ser tratado com respeito, atentando-
se para a qualidade das propostas.
Apesar da complexidade do tema deste estudo, ousa-se concluir que para fazer
frente aos dramas enfrentados diariamente por jovens moradores de comunidades
periféricas como a favela de Heliópolis, é preciso que se planejem intervenções in-
tensas e profundas.

397
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 398

O tratamento pedagógico afirmado neste estudo sugere que se considere uma série
de requisitos que tornem um projeto capaz de estimular transformações na vida de
seus educandos e familiares:

1. Requisito da profundidade e a continuidade no aprendizado a que se propõe, le-


vando-se em conta o desejo dos jovens por continuar a se desenvolver, aprender
mais profundamente o esporte, sentir o prazer de ser desafiado e valorizado, pois
oferecer continuidade é acreditar que podem seguir evoluindo.
2.Exigência do educador comprometido com a missão de estimular a transformação
dos jovens. Para tanto, conhecer seus educandos, sua família e comunidade, estar
disponível, ser exemplo de conduta, enfim, estabelecer uma relação de proximi-
dade com aqueles com quem vai trabalhar, são requisitos do profissional em pro-
jetos socioeducativos.
3.Construir um ambiente que desenvolva o sentimento de pertencimento a um
grupo com ideais claros, capazes de promover a ruptura dos limites da comuni-
dade. Estimular a compreensão nos jovens de que além de fazer parte, eles são co-
proprietários do espaço do projeto e, como tal, também co-responsáveis por sua
existência, cientes de que podem usufruir do momento passageiro para sua eman-
cipação e formação e garantir sua permanência aos mais novos que virão.
4.Considerar a dinâmica da comunidade onde está inserido o projeto. É possível
afirmar que os requisitos descritos anteriormente terão sua ação minimizada se
não houver um esforço para se compreender minimamente as relações construí-
das entre os moradores, seus grupos, seus poderes e influências.

É pertinente concluir ainda que o esporte, se tratado de forma adequada, pode tam-
bém se vincular as outras dimensões da vida dos jovens participantes de projetos
socioeducativos de forma a colaborar efetivamente para minimizar as pressões exer-
cidas pela exclusão vivida por todos os moradores de comunidade periféricos. No
entanto é imperativo refletir nas nuances desta intervenção. A teia de relações que
cada grupo vive é bastante complexa e buscar conhecê-la poderá fazer da ação so-
cioeducativa uma “ponte” para novos caminhos até então escondidos ou invisíveis
aos olhos de seus moradores.
Conhecer, entender e adequar os detalhes nas relações vividas com requisitos como
os que foram levantados é o que se acredita dar tratamento pedagógico às ações.
Tais requisitos sugerem a necessidade de repensar projetos que por medo de excluir
seus jovens, atuam de maneira descontinuada, descontextualizada, sem cobranças
e, desta forma, diminuem suas possibilidades de romperem com as barreiras da fa-
vela. Parece pouco possível pensar em formação eficaz para jovens em situação de
risco sem oferecer-lhes estímulos e aprendizados que de fato possam contribuir para
a batalha diária contra a exclusão e outros riscos emanados pela localização geográ-
fica e formas de organização social. Estes aprendizados poderão ser mais facilmente
adquiridos através do esforço, dedicação, perseverança, superação, o que pode sig-
nificar que nem todos aceitarão o desafio, uns por não se atraírem pelo eixo da pro-
posta, outros por não se sentirem no momento de se comprometerem, outros...
No entanto, o medo de frustrar é partir do pressuposto de que não são capazes, de

398
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 399

que são fracos para tanto. Mas provavelmente estes jovens moradores de comuni-
dades periféricas – os favelados - sejam os mais habituados a lidar com a frustração,
pois a enfrentam cotidianamente. Acredita-se que é aconselhável ter como eixo
norteador para uma proposta de educação não-formal em uma comunidade perifé-
rica, a idéia de que os jovens são capazes de superar os limites impostos pelo meio
em que vivem, acreditando que ter baixas expectativas para com eles se traduz em
uma ofensa ou até mesmo um equívoco em projetos dessa natureza. Desta forma,
o foco e alvo das ações no projeto socioeducativo indica ser o de oferecer possibili-
dades capazes de provocar transformações para que os problemas deixem de ser su-
portados para passarem a ser, de fato, superados!

Notas
1
A denominação “favela” aparece entre aspas, pois geralmente vem “carregada” de sentido pejorativo,
o que não reflete a intenção de sua utilização no presente estudo. Seu uso é justificado por ser uma pa-
lavra bastante conhecida, aparecendo inclusive em produções científicas e pelo fato da comunidade foco
do estudo ser chamada comumente de favela de Heliópolis, inclusive pelos próprios moradores. Segundo
o novo dicionário Aurélio, favela significa conjunto de habitações populares toscamente construídas e
desprovidas de recursos higiênicos. Em Heliópolis, muitas construções apresentam fundações sólidas,
algumas com vários andares e recursos higiênicos. No entanto, regiões com estas mesmas características
mantêm a denominação de “favelas”, provavelmente por suas origens.
2
Informações retiradas do site: www.unicef.org.br
3
Extraído do site www.globo.com e www.diário.com.br
4
Extraído do site www.globo.com/rjtv, na sessão globo comunidade.
5
HIRAMA,L. K. H.. ALGO PARA ALÉM DE TIRAR AS CRIANÇAS DA RUA: O papel da pedagogia do esporte
em projetos socioeducativos. Unicamp, Campinas, SP (Dissertação de Mestrado), 2008.
6
O filme chama-se: Quanto vale ou é por quilo, de direção de Sergio Bianchi, distribuição Europa Filmes,
2005. Sinopse retirada do site 2001 o cinema está aqui, no dia 22 de janeiro de 2008: Quanto Vale ou É
Por Quilo? Desenha um painel de duas épocas aparentemente distintas, mas, no fundo, semelhantes na manu-
tenção de uma perversa dinâmica sócio-econômica, embalada pela corrupção impune, pela violência e pelas
enormes diferenças sociais.  No século XVIII, época da escravidão explícita, os capitães do mato caçavam negros
para vendê-los aos senhores de terra com um único objetivo: o lucro. Nos dias atuais, o chamado Terceiro Setor
explora a miséria, preenchendo a ausência do Estado em atividades assistenciais, que na verdade também são
fontes de muito lucro Com humor afinado e um elenco poucas vezes reunido pelo cinema nacional, Quanto Vale
ou É Por Quilo? Mostra que o tempo passa e nada muda. O Brasil é um país em permanente crise de valores.
7
Denominação dada aos meios de intervenção educacional não pertencentes ao ensino escolar. Têm
como características a não fixação de tempos e locais, a flexibilidade de conteúdos e métodos em ade-
quação aos grupos trabalhados. Simson (2001, p. 9)
8
O estudo original refere-se à dissertação de mestrado elaborada por Leopoldo K. Hirama e orientada
pelo prof. Dr. Paulo Cesar Montagner defendida na FEF-Unicamp em 17 de setembro de 2008, com o tí-
tulo “ALGO PARA ALÉM DE TIRAR AS CRIANÇAS DA RUA: O papel da pedagogia do esporte em projetos so-
cioediucativos”. As memórias e falas coletadas estão registradas na dissertação e encontram-se disponíveis
para cópias/download na biblioteca digital da Universidade Estadual de Campinas
(www.unicamp.br/bc).
9
Segundo sites: www.unas.org.br ou www.pt.wikipedia.org/wiki/heliópolis
10
Atualmente este jovem está cursando faculdade de Logística na rede particular através de convênio
com uma ONG local.
11
Atualmente esta jovem está cursando faculdade de Educação Física na rede particular através de con-
vênio com uma ONG local.

399
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400
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 401

Mercado do Futebol, Juventude e Escola:


Primeiras Leituras
Antonio Jorge Gonçalves Soares
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Gama Filho
Tiago Lisboa Bartholo
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal de Santa Catarina
Leonardo Bernardes Silva de Melo
Universidade Gama Filho
Hugo Paula Almeida da Rocha
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Marcelo, 16 anos, acorda diariamente antes das seis horas da manhã, organiza seu
material de treino, seus livros e cadernos escolares, come algo de forma rápida e
pega um ônibus no município de Nova Iguaçu, deslocando-se até a Associação Atlé-
tica Portuguesa, um clube de futebol da segunda divisão, localizado na Ilha do Go-
vernador, Rio de Janeiro1. Chega ao destino por volta das oito horas da manhã, se
encontra com seus companheiros e treina das nove ao meio-dia. Sai correndo para
sua escola em Nova Iguaçu e chega, geralmente, 40 minutos atrasado. Tem liberação
dos professores por ter apresentado uma declaração do clube. Às terças e quintas-
feiras, sai da escola antes do término do horário, também com a anuência dos pro-
fessores, para treinar futsal na Gávea (Clube de Regatas do Flamengo), um bairro
localizado na zona sul da cidade que fica a 50 km de Nova Iguaçu. Nos dias de treino
de futsal Marcelo chega em casa por volta das dez e meia da noite.
A história de Marcelo se assemelha à de muitos jovens dos estratos sociais mais baixos
de nosso país. A vida corrida entre ônibus, treinos e escola demonstra o investimento
de tempo, esforço e recursos que estes jovens e suas famílias fazem em função do
sonho de tornar-se jogador de futebol, única forma que eles veem de ascender social-
mente em um país onde a qualidade do ensino público deixa muito a desejar.
As questões que nos guiam para pensar a relação entre a formação profissional no
futebol e a escolarização básica no Brasil são as seguintes: Como explicar o interesse
de um contingente significativo de jovens brasileiros do sexo masculino e o inves-
timento de tempo, recursos e esforços para profissionalizar-se em um esporte que
possui um mercado restrito, com poucas vagas e poucas chances de sucesso? Como
os jovens que estão oficialmente inscritos nos clubes de futebol conciliam a forma-
ção no futebol com a escola básica?
O mercado para atletas de futebol no Brasil, apesar dos dados não serem precisos,
gira em torno de 10 a 15 mil postos de trabalho. Parte desses postos é formada por
empregos sazonais e bastante precários. O mercado nacional é formado pelos 500
clubes de futebol credenciados às subsidiárias da FIFA – organismo supranacional
que detém o monopólio do futebol espetáculo (DAMO, 2005). Embora o número
de clubes possa parecer expressivo para formar o mercado do futebol, o número de
postos de trabalho valorizados economicamente é restrito. Dos 500 clubes vincu-
lados à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), apenas 4%, isto é, 20 clubes, pos-

401
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 402

suem 90% da preferência dos torcedores (idem). Tal preferência indica que apenas
poucos clubes possuem potencial de exploração e geração de receitas economica-
mente significativas junto ao público consumidor.
Se olharmos com atenção a pirâmide salarial deste esporte no Brasil, veremos que
estamos longe do sonho de riqueza e mobilidade social. Os dados disponibilizados
indicam que 84% dos jogadores, de todas as divisões do futebol profissional no Brasil,
recebem salários de até R$1.000,00, 13% recebem entre R$1.000,00 e R$9.000,00, e
apenas 3% recebem acima de R$9.000 por mês2. Esses indicadores não sofreram mu-
danças significativas nos últimos seis anos3. Mesmo que em determinados momen-
tos os jornais e a televisão divulguem as dificuldades e percalços desta profissão, isso
parece não desestimular a demanda de jovens que batem às portas dos clubes. Tor-
nar-se um jogador de prestígio que venha a ser negociado para um clube europeu é
o que alimenta o sonho desses jovens. Esse tipo de formação tem hoje o mercado in-
ternacional como alvo. Mas o destino dessa massa de jogadores formados no país,
quando aproveitados no futebol profissional, será possivelmente trabalhar na 2a, na
3a e na 4a divisão do futebol no Brasil. Apesar disso, o grande contingente vinculado
às categorias de base representa a aposta na profissão.
O início da carreira no futebol não é nada fácil. O “vestibular” para vestir a camisa
de um clube tem uma relação candidato/vaga inimaginável para o sistema escolar.
Ao analisar o processo das “peneiradas”, um dos meios mais popularizados de acesso
ao início da carreira, Toledo (2002) indica que estatisticamente a taxa de aprovei-
tamento é próxima a 1%. Em 1995, por exemplo, dos 3.500 jovens que se aventura-
ram nas “peneiras” do São Paulo Futebol Clube, apenas cinco foram aproveitados;
em 1996, no mesmo clube, apenas dois dos 4.000 candidatos foram aproveitados.
Em 2008, o Flamengo teve mais de 1.000 candidatos de todo o Brasil tentando uma
vaga nas categorias de base do “Ninho do Urubu”4, e apenas dois foram seleciona-
dos5. Se são tão poucas as possibilidades de sucesso, o que explica tanta procura e
investimento? Para além das respostas culturais, ou seja, aquelas que explicam o
papel socializatório do futebol em nossa sociedade, as hipóteses que podemos le-
vantar para explicar o alto investimento de tempo, trabalho corporal e o desejo des-
ses jovens e suas famílias são as seguintes: a) quanto menor o capital cultural da
família do jovem, maior será o investimento na carreira de jogador; b) o processo
de formação no futebol pode render prestígio social e alguma remuneração ou ajuda
de custo ainda na formação; c) as poucas oportunidades de ascensão social na socie-
dade brasileira, somadas à precariedade da escola pública brasileira6 e do mercado
de trabalho para as novas gerações, transformam o futebol profissional em projeto
familiar para as camadas populares (RIAL, 2006).
De acordo com Damo (2005), o menino que passa nesse “vestibular” e ingressa nas
categorias de base do futebol terá que realizar um investimento estimado em 5.000
horas de exercícios corporais, treinos de técnicas esportivas e psicológicas ao longo
de 10 anos de formação no esporte. Apenas para termos uma ideia do que significa
esta informação, se considerarmos que o aluno da escola pública brasileira perma-
nece em média quatro horas por dia na escola e que cada ano deve ter 200 dias leti-
vos, a formação ao longo dos nove anos do ensino fundamental terá uma carga de
7.200 horas. No ensino médio, a carga será de 2.400 horas. Para exemplificar, o atleta

402
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 403

que começasse na categoria mirim aos 12 anos, idade equivalente ao 7° ano escolar,
se completasse o ensino médio aos 18 anos, quando estaria no último ano de juvenil,
teria tido uma carga horária de 5.600 horas na escola. Isso demonstra o significado
do tempo de 5.000 horas estimado por Damo (2005) para a formação no futebol.
Na pesquisa que estamos realizando7, levantamos uma série de dados de atletas de
12 a 20 anos inscritos oficialmente na FERJ (Federação de Futebol do Estado do Rio
de Janeiro). O tempo médio de treino semanal de todas as categorias é de 14 horas
e 20 minutos, sem contarmos o tempo destinado aos jogos. Se considerarmos que
esses atletas de futebol geralmente têm um mês de férias, variando um pouco de-
pendendo da categoria, num ano em que eles tenham em média 49 semanas de ati-
vidades nos clubes, a carga horária anual destinada aos treinos será de 702 horas e
20 minutos. De acordo com nossa pesquisa, se projetarmos isso pelos nove anos de
formação, considerando apenas as categorias estudadas (do mirim até os juniores),
o atleta terá tido uma carga de 6.321 horas de treinos. Observe-se que nossas esti-
mativas consideram apenas o tempo de treino no Rio de Janeiro, sendo superiores
às encontradas por Damo (2005) em seu estudo.
Esses dados demonstram que desde cedo os jovens atletas entram num rígido regime
disciplinar que regula horários e comportamentos dentro e fora do clube, no sentido
de formar o ethos do jogador de futebol. Tal regime se assemelha à disciplina do
mundo do trabalho. Vale lembrar que esse regime tende a ser mais controlado para
os atletas que vivem albergados nos clubes e longe de suas famílias. A partir da cate-
goria mirim, aos 12 anos, podem receber alguma ajuda de custo para passagens, gastos
básicos ou incentivos financeiros, dependendo, é claro, da estrutura financeira do
clube e do potencial do atleta. No Clube de Regatas do Flamengo, por exemplo, todos
os atletas das categorias de base do futebol recebem ajuda de custo para passagens e
gastos básicos. A partir dos 16 anos de idade, quando podem oficialmente assinar
contratos de trabalho, eles podem receber incentivos financeiros que variam entre
R$1.200,00 a R$2.000,00, sendo que esses valores podem até ser superiores em al-
guns casos. É claro que essa não é a realidade da maioria dos clubes, mas o regime de
trabalho corporal e a dedicação para a formação profissional no futebol é semelhante,
com ou sem remuneração. Todos alimentam a esperança de uma transferência para
um grande clube com remuneração ainda na fase de formação.8
Diante disso, argumentamos que esses atletas podem ser considerados jovens
aprendizes de uma profissão, mesmo que essa atividade e esse tipo de instituição
formadora, o clube, não estejam contemplados no Decreto 5.5989, de 1° de dezem-
bro de 2005, que regula a formação profissional do jovem aprendiz. Por outro lado,
as resoluções do referido decreto sobre os direitos do jovem aprendiz e deveres das
instituições formadoras, entre eles a adequação do horário das atividades de forma-
ção profissionalizante à escola, podem não ser observadas pela maioria dos clubes.
Sabe-se que os atletas de todas as categorias de base geralmente treinam cinco vezes
por semana, e em momentos de competição treinam fora do turno normal ou via-
jam para jogar. Assim, no caso do futebol a rotina de treinos semanais é que acaba
condicionando o horário de frequência à escola. Um levantamento de informações
com 186 atletas-estudantes, de 15 a 17 anos, nos clubes do Rio de Janeiro,10 revelou
que 41,9% destes jovens estudavam à noite. A opção por este turno se dava em fun-

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livro:livro maputo 6/3/10 23:45 Page 404

ção do atraso escolar destes alunos com relação a outros da mesma faixa etária. Além
disso, conforme a idade avança, a dedicação ao esporte exige mais tempo, e estudar
à noite passa a ser uma forma de conciliar a escola com o cotidiano dos treinos.
Como contraponto à realidade brasileira, Souza; Vaz; Bartholo; Soares (2008) nar-
ram a trajetória de Leandro11, um adolescente de 12 anos contratado para jogar no
Clube Feyenoord, na Holanda. Na época, ele havia sido matriculado em uma escola
holandesa regular, cujas aulas ocorriam de segunda a sexta-feira, das 9 às 16 horas
(sete horas diárias de permanência), e os treinos ocorriam no final da tarde e durante
parte da noite. Isso porque, na Holanda, é a escola que determina o horário dos trei-
nos, e mesmo os jovens imigrantes devem estar matriculados na escola regular. Esse
é um bom exemplo para pensarmos a relação escola-futebol em nosso país e os in-
vestimentos que nossos clubes realizam na formação escolar de nossos atletas.
Os dados sugerem que a carreira no futebol pode ser uma aposta com poucas chan-
ces de realização. No entanto, o destino dos jovens que não conseguem concretizar
este sonho seria diferente se eles tivessem investido pesadamente na escola pública
que existe hoje no Brasil? Os argumentos que temos para buscar respostas são os
seguintes: a) sabemos que a escola brasileira tem baixa qualidade e é desinteressante
(uma pesquisa recente revelou que o principal motivo de abandono escolar até o
ano de 2006, dentre outros apresentados, era a falta de interesse intrínseco na es-
cola, apontada por 43,3% dos jovens que abandonaram a escola [NERI, 2009])12; b)
a taxa de desemprego entre os jovens é significativamente mais alta quando com-
parada com a população economicamente ativa (PEA), e ela tende a aumentar entre
aqueles que possuem baixa escolaridade (SCHWARTZMAN; COSSÍO, 2007); c) em
termos de probabilidade, a sociologia da educação aponta que a origem social e a es-
colarização dos pais determinam a localização dos filhos na estratificação social
(BOURDIEU, 1998; SCHWARTZMAN, 2004; 2006); d) durante conversas com jo-
vens atletas, constatamos que o futebol se torna o foco de suas vidas e, com isso, a
escola, as tarefas escolares e outras possibilidades de formação cultural ficam em
segundo plano e não são valorizadas por eles.
Diante desse cenário, entendemos que a aposta dos virtuosos no futebol é bastante
razoável, pois o modelo atual de ensino público no Brasil é desinteressante e pouco
produtivo não só para os atletas, mas também para grande parte dos jovens brasi-
leiros.

Agradecimentos: A pesquisa que deu origem a este texto conta com o apoio do CNPq, Faperj e Funda-
ción Carolina-Espanha.

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Referências bibliográficas
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CATANI, A. (Orgs.). Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 39-65.
DAMO, A. Do dom à profissão: uma etnografia do futebol de espetáculo a partir da formação de jogadores
no Brasil e na França. Porto Alegre, Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Gra-
duação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005, 434 p.
HELAL, R.; SOARES, A.J.G.; SALLES, J.G. do C. Futebol. In: DaCOSTA, L.P. Atlas do esporte no Brasil. 1ª ed.
Rio de Janeiro: Shape, 2005, p. 257-259.
NERI, M.C. O paradoxo da evasão escolar e as motivações do sem escola. In: VELOSO, F.; PESSÔA, S.;
HENRIQUES, R.; GIAMBIAGI, F. (Orgs.). Educação básica no Brasil: construindo o país do futuro. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2009, p. 25–50.
RIAL, C. Jogadores brasileiros na Espanha: imigrantes porém... Revista de Dialectologia y Tradiciones Po-
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SCHWARTZMAN, S. As causas da pobreza. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
__________. Programas sociais voltados à educação no Brasil. Sinais Sociais, 2006, v. 1, p. 114-145.
SCHWARTZMAN, S.; COSSÍO, M.B. Juventude, educação e emprego no Brasil. Cadernos ADENAUER, Ge-
ração Futuro, 2007, v. 7, p. 51-65.
SOUZA, C.A.M.; VAZ, A.F.; BARTHOLO, T.L.;  SOARES, A.J.G. Difícil reconversão: futebol, projeto e des-
tino em meninos brasileiros. Horizontes antropológicos [online], 2008, vol.14, n.30, p. 85-111. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832008000200004&lng=en&
nrm=iso> Acesso em: 22/out/2009.
TOLEDO, L.H. Lógicas do futebol. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2002.

Notas
1
A distância entre este município e a Ilha do Governador é de 38 km.
2
Dados da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) em 2009 amplamente divulgados pela mídia.
3
CBF (2003).
4
Centro de treinamento do Flamengo em Vargem Grande, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.
5
SporTV Repórter, Programa intitulado “Olheiros Virtuais”, Canal SporTV, exibido em 23/set/2009.
6
Dados sobre a precariedade do ensino público no Brasil podem ser esclarecedores do quadro que estamos
descrevendo: o índice de repetência de alunos é de 20,6%, o maior da América Latina. A formação dos
professores no ensino básico é insuficiente. Dos professores de 1ª a 4ª série/2° ao 5° ano, apenas 47%
têm diploma universitário; destes, apenas 43% têm diploma em licenciatura. De cada 100 crianças ma-
triculadas na 1ª série/2° ano do ensino fundamental, 88,6% chegam à 4ª série/5° ano, 57,1% à 8ª série/9°
ano e 36,6% ao 3° ano do ensino médio. Com relação ao gasto médio por aluno, o Brasil – país com a eco-
nomia mais diversificada e desenvolvida da América do Sul – fica atrás de seus vizinhos Argentina, Uru-
guai, Chile e Colômbia. Ver “Escola Brasil” (O Globo, Rio de Janeiro, 22/jul/2006).
7
Os dados apresentados fazem parte de uma pesquisa mais ampla que analisa a conciliação entre a formação
profissional no esporte e a escolarização básica. A pesquisa “Formação profissional no esporte e escolarização
de atletas no Rio de Janeiro” está atualmente em curso e é financiada pela Faperj e pelo CNPq.
8
Dados coletados no Club de Regatas Vasco da Gama mostraram que os atletas do juvenil (a partir dos
16 anos) que são avaliados com potencial podem conseguir contratos que variam de R$600,00 a
R$3.000,00. Fonte: Idem.
9
As instituições formadoras do Sistema S (SENAI, SENAC, SESI) foram contempladas, mas é evidente
que os clubes esportivos não figuram no decreto.
10
Dados da pesquisa “Formação profissional no esporte e escolarização de atletas no Rio de Janeiro”, que
está atualmente em curso e tem financiamento da Faperj e do CNPq.
11
Este atleta entrou ilegalmente na Holanda, com passaporte falso, e foi ouvido pela CPI da Nike. Seu
nome no artigo supracitado é fictício.
12
Análise a partir da base de dados do PNAD 2004 e 2006.

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Desporto e Turismo:
a importância dos eventos desportivos
Elsa Pereira — Universidade do Algarve – epereira@ualg.pt
Margarida Baptista — FMH / Universidade Técnica de Lisboa
Gustavo Pires — FMH / Universidade Técnica de Lisboa

Introdução
Na era da globalização, o fenómeno desportivo assume contornos de interface com
os demais sectores da sociedade. O desporto conquista um significado social e eco-
nómico crescente, não só nas vertentes da competição e do espectáculo, movimen-
tando cada vez mais pessoas e valores, mas também na sua vertente do lazer, do
prazer pela prática desportiva, no contributo que estas práticas dão para o bem-estar
dos indivíduos e das populações. Neste sentido, Pires (2007:18) refere que “tal como
ao tempo dos primeiros jogos na Grécia antiga, o desporto é portador de um capital
social simbólico a uma escala global que não deve ser menosprezado”.
Por seu turno, o turismo é considerado uma das maiores indústrias da actualidade,
representando aproximadamente 6 por cento das exportações de bens e serviços a
nível mundial (WTO, 2007).
A relação entre o desporto e o turismo sempre existiu, sempre se praticou natação
nas praias, se fez passeios nas montanhas durante as férias, etc. No entanto, esta
relação têm-se vindo a intensificar e a consolidar. Gratton e Taylor (2000) afirmam
que o desporto relacionado com o turismo é uma parte crescente do mercado turís-
tico (in Deane & Callanan, 2004).
De uma maneira geral, as primeiras referências que nos surgem sobre o tema focam-
se no impacto dos grandes eventos desportivos e sua relação com o turismo. Facto
que, aliás, julgamos ter despoletado o interesse pelo tema do Desporto e Turismo.
Não existem dúvidas quanto ao enorme impacto económico que os grandes eventos
desportivos provocam ao nível de todo o sistema turístico da região onde decorrem.
Estes sempre foram indutores de uma relação com o turismo; recorde-se, por exem-
plo, os Jogos Olímpicos da Antiguidade que constituíam um pólo de atracção, fazendo
com que os diferentes povos se deslocassem a Olimpo para poderem assistir.
Os eventos e nomeadamente os desportivos têm-se tornado mais valias para os paí-
ses, destinos e cidades que os acolhem. Neste sentido, têm proliferado os estudos
que se debruçam sobre esta temática. Recentemente, a literatura que aborda esta
problemática apresenta uma linha de investigação que se foca na importância do
pensamento estratégico, de intencionalidade, para que a comunidade receptora
possa de facto tirar o máximo partido dos eventos desportivos. A perspectiva de po-
tencializar/maximizar os benefícios do evento, representa uma mudança funda-
mental, pois opta-se por desfocalizar a investigação, da tradicional análise de

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impactos cuja orientação se centra nos resultados, para uma refocalização na estra-
tégia, no planeamento. Não basta recebermos o evento para que o impacto esperado
aconteça, é necessário à priori, definir estratégias, linhas de acção, no sentido de ca-
pitalizar as oportunidades proporcionadas pelo evento.
Ao longo deste texto, e partindo de uma breve retrospectiva conceptual do desporto
e turismo, pretendemos abordar a linha de investigação que se centra na potencia-
lização dos eventos desportivos e apresentar o design do Estudo de Caso sobre Po-
tencialização de Eventos Desportivos Náuticos no Município de Portimão, Algarve.

Contextualização do Desporto e Turismo


Abordagem Histórica
Foi na década de 60 que surgiram os primeiros artigos que abordam a problemática
do desporto e turismo. Em 1963, McIntosh, estabelecia algumas relações entre o des-
porto e o turismo, apontando que a instauração das férias pagas e dos fins-de-semana
deu aos indivíduos a possibilidade de usufruírem de determinadas práticas desporti-
vas que não se conseguiam realizar num final de dia ou num feriado de meio-dia. En-
contramos nos anos 70 referência à relação entre desporto e turismo. Feio (1978), ao
abordar as diferentes perspectivas em que podemos analisar o universo do desporto,
refere o sector do turismo como um sector que abrange o âmbito do desporto e do
lazer. Segundo Constantino & Feio (s.d.:9) “a adopção de um entendimento de que o
Ambiente, o Recreio, o Desporto e o Turismo (ARDT), afirmam-se cada vez mais nas
suas interdependências vitais e constituem na sua multidimensionalidade, um con-
tinuum, natural a preservar face ao continuum cultural de que o Desporto, o Recreio
e o Turismo, fazem parte integrante e onde se afirmam”.
Um estudo de 1981 sobre desporto e turismo em 6 países da Europa Ocidental con-
cluiu que existe uma ligação entre o desporto e o turismo na mente dos participan-
tes, empresas e autoridades locais, mas também uma falta de consciência sobre a
interligação destes dois universos, ou até mesmo uma resistência a pensá-los em
conjunto, por parte dos políticos, dos estrategos e dos serviços públicos (Glyptis,
1991). Esta questão estrutural tem-se constituído como uma desvantagem quando
falamos na integração de dois sectores organicamente separados e sem tradição de
serem perspectivados em conjunto.
Contudo nos anos 90 o termo Desporto e Turismo começou a ganhar mais expres-
são. O Sports Tourism International Council (STIC)1 foi fundado em 1990, organização
que se dedica exclusivamente a esta problemática. Esta organização criou o pri-
meiro jornal dedicado ao Desporto e Turismo entitulado Journal of Sport Tourism,
que começou a ser publicado em Outubro de 19932.
Pires em (1993:4) salienta que o turismo é um “sector fortemente ligado à economia
do desporto, desde que sobre ele exista, de facto, uma ideia acerca da construção do
futuro”.
O aumento do significado social e económico do Desporto e Turismo tornou-se cada
vez mais evidente e em 2001 a Organização Mundial de Turismo (OMT) e o Comité
Olímpico Internacional (COI) organizaram conjuntamente a primeira Conferência
Mundial de Desporto e Turismo, com o intuito de debater as várias vertentes deste
fenómeno e de reflectir sobre estratégias de desenvolvimento (Keller, 2001).

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A nível governamental começaram a surgir em alguns países comissões especiali-


zadas na área do desporto e turismo e as apostas estratégicas tornam-se cada vez
mais evidentes. Países como a Inglaterra, Canadá, Espanha e França são exemplo
duma abordagem concreta ao binómio Desporto e Turismo (Pereira, 2007).
Verificamos que em Inglaterra a British Tourist Authority (BTA) identificou quatro
pilares para o desenvolvimento turístico daquele país: património, regiões rurais,
cidades e o desporto. Foi criado pela BTA em 2000 o departamento de Desporto e
Turismo para promover a Grã-Bretanha como o país do desporto, de forma a incen-
tivar um aumento da procura turística não só no âmbito do espectáculo como tam-
bém ao nível da prática e da experiência desportiva (Hinch & Higham, 2004).
No Canadá também surgiu, em 2000, uma organização no âmbito do desporto e tu-
rismo, Canadian Sport Tourism Alliance (CSTA), através de uma parceria com a Co-
missão de Turismo daquele país. A missão desta organização é aumentar a
capacidade e a competitividade deste país para atrair e ser anfitrião de eventos des-
portivos (CSTA, 2002, in Hinch & Higham, 2004). Um dos principais objectivos é
promover o desenvolvimento de parcerias entre os detentores dos direitos dos
eventos e as cidades que se candidatam a anfitriãs e organizadoras dos mesmos.
Em Espanha, existe uma liderança ao nível das políticas de cooperação na área do
Desporto e Turismo. Integrado na estrutura do Ministério de Industria, Turismo e Co-
mércio/Secretaria de Estado do Turismo, foi criado um organismo para Inovações e Ini-
ciativas cuja missão é estimular e apoiar a inovação, através de Clubes de Produto,
onde foram integrados os produtos desportivos, como nomeadamente o turismo
náutico que se encontra definido como um Clube de Produto, com o conceito de Es-
tação Náutica (Galindo, 2003). A Associação Espanhola de Estações Náuticas (AEEN)3
que representa o produto Estações Náuticas, assinou um convénio com a TURES-
PAÑA e com as Comunidades Autónomas de Andaluzia, do Principado das Astúrias,
das Ilhas Baleares, Catalunha, Galiza, Região de Múrcia e a Comunidade Valenciana,
para desenvolver actuações conjuntas para a promoção e apoio à comercialização
do produto Estação Náutica.
França definiu que a oferta desportivo-turística deveria ser potencializada através
dos Comité Régional de Tourism (CRT), orgãos da administração pública regional res-
ponsáveis pela concepção de planos regionais de desenvolvimento do turismo e ac-
tividades de lazer (Pigeassou, 2002).
Pensamos que tanto o desporto como o turismo são fenómenos que emergem numa
sociedade dos lazeres, denominada por vários autores como a “Era dos Lazeres”.
Consideramos que estes dois fenómenos sociais estabelecem uma série de interfa-
ces que nos permitem conceptualizá-los de uma forma integrada, constituindo uma
identidade própria (Pereira, 2007).
Na senda de Pires (2007) consideramos que o cluster do Desporto e Turismo é deter-
minante para a conquista da vantagem competitiva que Portugal pretende alcançar,
numa indústria que se constitui como uma aposta de desenvolvimento para o país,
o turismo.
O desporto contribui, sem dúvida, para o desenvolvimento do sistema turístico,
pois pode ser um meio de:

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— atrair turistas, com o consequente aumento dos seus gastos médios diários;
— melhorar a qualidade da oferta pela diversidade ou inovação de actividades que
tem a capacidade de proporcionar;
— contribuir para o aumento do turismo de qualidade/diminuição do turismo de
massas;
— a diversificar espacial e temporalmente a actividade turística;
— melhorar a notoriedade e imagem do destino devido à oferta de férias activas/di-
nâmicas /desportivas;
— promover o destino turístico devido à oferta de férias activas/dinâmicas /des-
portivas e à melhoria da animação;
— criar postos de trabalho;
— aumentar a satisfação/fidelização dos clientes;
— contribuir para um desenvolvimento endógeno e integrado;
— viabilizar a obtenção de mais rendibilidade a longo prazo;
— aumentar a procura global do produto turístico/desportivo (quota de mercado
e volume de vendas).

O desporto desempenha de facto um papel importante na promoção e atracção dos


destinos turísticos para além de ser obviamente um gerador de receitas. Veja-se a
popularidade que os eventos desportivos, como por exemplo Jogos Olímpicos, dão à
cidade e ao país onde decorrem. Pensamos que potencializando esta relação, como
alguns países estão já a fazer, ambos os sistemas podem sair beneficiados. O desen-
volvimento em Desporto e Turismo é um factor de inovação e sustentabilidade.

Breve Análise aos Conceitos e aos Modelos


Verificamos que uma das preocupações centrais da investigação foi a classificação
dos diferentes tipos de Desporto e Turismo. De uma maneira geral apontam para
uma tipologia caracterizada por duas vertentes: uma activa que implica a partici-
pação em práticas desportivas e uma passiva que se circunscreve à assistência a es-
pectáculos desportivos.
O Desporto e Turismo tem sido alvo de inúmeras definições, para Augustyn
(1996:438) Desporto e Turismo é “an activity that occurs when people travel to
another place for leisure – either to express / improve their fitness, to attain good
frame of mind or to create social ties through sport – and who stay there for at least
twenty four hours but less than one year. In other words, sport tourism is a form
of sport that involves mobility”. De acordo com Standeven & De Knop (1999:12)
Desporto e Turismo, são “todas as formas de envolvimento passivo ou activo na ac-
tividade desportiva, quer seja através de uma participação casual ou organizada por
razões não comerciais ou de negócios/comerciais, que implicam viajar para fora do
local de habitação ou do local de trabalho”. Pereira & Carvalho (2004), definiram o
Desporto e Turismo como as dinâmicas que se estabelecem entre as práticas des-
portivas e o sistema turístico, tanto na vertente do lazer como da competição, onde
invariavelmente se deve equacionar as práticas (Pratice), as pessoas (People) e os
locais (Place):

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Sport Tourism = 3’P = Pratice/People/Place

As práticas são um ponto fulcral na medida em que o desporto, facilitador de expe-


riências a diferentes níveis é o focus do desenvolvimento do Desporto e Turismo,
permitindo às pessoas, que são o elemento activo e interactivo de todo o processo,
a apropriação do local. O local é o espaço eleito pelo turista, deslocado do seu habitat
e onde se desenrolam as práticas, deve dar resposta ao imaginário e estar envolto
em significados distintos.
A abordagem de Kurtzman et al. (1997) apresenta uma perspectiva que considera-
mos bastante sui generis. O binómio Desporto e Turismo é entendido como um veí-
culo para a compreensão e para a paz entre os povos. O desporto, per si, já é um meio
de promover as relações sociais. Quando o turismo se relaciona com o desporto, o
contributo é ainda mais evidente, pois estão em causa duas comunidades distintas,
a receptora e a visitante.
Segundo Pereira (1999 e 2001) e Pereira & Carvalho (2004), um modelo explicativo
do fenómeno do Desporto e Turismo deve ser conceptualizado do ponto de vista
dos participantes de modo a permitir a definição de diferentes segmentos de mer-
cado para posterior concertação de produtos. De acordo com o factor que desenca-
deia a necessidade de viajar, o Desporto e Turismo pode assumir duas vertentes
distintas que podem dar origem a diferentes segmentos de mercado:

— Vertente eminentemente turística, onde o sistema turístico é o motor deste binó-


mio. A procura de práticas desportivas, por parte dos turistas, centra-se essen-
cialmente na óptica do lazer. Em função das motivações e necessidades dos
turistas, pois o que consideramos decisivo é aquilo que o turista pretende. Esta
vertente pode integrar dois segmentos diferenciados:

— Turismo activo/desporto integrador – em que os turistas procuram determi-


nado destino ou unidade de alojamento, devido não só devido às caracterís-
ticas gerais que apresentam, mas também à oferta desportiva diversificada,
proporcionando a prática de várias modalidades. Nesta categoria o desporto
é importante mas também é importante toda a experiência relacionada com
as férias ou com a viagem, ou seja o aprés desporto. Neste caso a prática é im-
portante mas integrada nas experiências relacionadas com as pessoas e com
os locais. No entanto, em termos globais a participação nas diferentes práti-
cas desportivas não condiciona as motivações ao nível do conhecimento do
destino, dos aspectos distintivos e únicos que possam ser interessantes visi-
tar. É característico neste tipo de turistas a eleição de “pacotes integrados”
(práticas desportivas+outros produtos associados). Um dos exemplos eluci-
dativos deste tipo de pacotes são as fórmulas clube, entre as quais o Club Med
é um dos mais conhecidos. Existem, também, determinados destinos que es-
tabelecem estratégias concertadas entre entidades públicas e privadas no
sentido de dotar a região em que estão inseridos de um aporte significativo
ao nível das facilidades para a prática de desportos. A Espanha é um bom
exemplo deste tipo de concertação estratégica no que diz respeito à organi-
zação das diferentes regiões turísticas;

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— Turismo passivo/desporto complementar – neste tipo de turismo, a oferta des-


portiva não é equacionada aquando da selecção do destino ou da unidade de
alojamento, ou seja, não determina a decisão do turista, no entanto, condi-
ciona a imagem a posteriori, assim como possíveis viagens de retorno ao des-
tino. O desporto pode até surgir como algo acidental ou ocasional, não sendo
o objectivo da viagem. Corresponde ao denominado turismo de massas, ou
turismo de sol e praia. O perfil destes participantes é na maioria dos casos fa-
mílias ou grupos de jovens. Habitualmente designada de animação despor-
tiva e fazendo parte integrante da oferta de animação do destino ou unidade
de alojamento, esta, desempenha um papel fundamental como componente
do pacote turístico, sendo que a existência de facilidades desportivas começa
a ser cada vez mais importante. Neste caso, o ênfase é dado fundamental-
mente nas pessoas e nos locais mas tendencialmente as práticas desportivas
irão desempenhar um papel cada vez mais significativo mesmo que a parti-
cipação seja ocasional pode ser um elemento importante na viagem de re-
torno, no imaginário do turista. A oferta desportiva pode apresentar várias
características, como sejam, práticas não formais ou informais, vocacionadas
para a terceira idade, para crianças, para famílias, para grupos, para o turismo
de negócios, para o turismo de congressos e incentivos, para a melhoria da
condição física, para o convívio, para a relaxação, para o contacto com a na-
tureza, etc. Dependendo, fundamentalmente, do tipo de clientes actuais
e/ou potenciais de determinado destino ou unidade de alojamento e respec-
tivas motivações, assim deve ser a oferta proporcionada.

— Vertente eminentemente desportiva, pois é o sistema desportivo o motor deste bi-


nómio. De acordo com as necessidades do sistema desportivo, onde as pessoas
se deslocam para determinado destino tendo como principal objectivo o des-
porto e não o turismo, que serve fundamentalmente de suporte às actividades,
podemos diferenciar três categorias:

— Desporto turístico/desporto condicionador – em que se procura determinado


destino turístico ou unidade de alojamento, devido às condições óptimas ou
ideais para a prática de determinada modalidade desportiva. As característi-
cas deste segmento são bastante específicas, pois a natureza da maioria des-
tes desportos faz com que os participantes não as possam realizar na sua área
de residência, porque dependem na maioria das vezes de recursos naturais.
Assim o viajar é uma parte necessária para a realização das práticas desporti-
vas, sendo o local, e nomeadamente a qualidade de facilidades desportivas
para a prática da modalidade uma das componentes principais das suas ex-
periências. Devido ao facto deste segmento não poder participar nas activi-
dades na sua área de residência faz com que realizem este tipo de férias
desportivas entre uma vez por mês e 4 vezes por ano. Para muitos destes des-
portistas-turistas, deslocarem-se para diferentes locais que proporcionem o
tipo de práticas que desejam realizar é uma das características do seu com-
portamento. Dirigem-se a um destino fundamentalmente para prática de

411
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uma determinada modalidade desportiva na óptica do lazer. Podemos dividir


em subcategorias distintas de acordo com o tipo de desporto que os turistas
procuram e temos como principais, o turismo do golfe, o turismo náutico, o
turismo de aventura, o turismo de contacto com a natureza, o turismo do
esqui, o turismo do fitness/Spa, etc.;

— Estágios desportivos – em que os indivíduos ou equipas, amadores ou profis-


sionais do desporto deslocam-se a determinado destino devido às condições
ideais que este proporciona para a prática de determinada modalidade des-
portiva, na óptica da competição, com o objectivo da manutenção e/ou me-
lhoria da performance. Neste caso, é importante a existência de um conjunto
de infra-estruturas desportivas de qualidade que dê resposta às necessidades
inerentes às modalidades desportivas assim como a possibilidade de haver
elevado nível de treino/competição com outros atletas ou equipas. Os des-
portistas que realizam este tipo de estágios são normalmente turistas passi-
vos, pois o tempo livre é reduzido e na maioria das vezes utilizado para
recuperação/relaxação dos períodos de treino;

— Eventos desportivos – nesta categoria integramos tanto as competições des-


portivas como os espectáculos desportivos, tanto os desportistas, principais
actores do fenómeno desportivo, como os espectadores que se deslocam de-
vido ao evento, temos assim:

— Desportistas profissionais e staff de apoio e organizacional – o tempo de


permanência em determinado destino é exclusivamente dedicado à prá-
tica/organização desportiva de alta competição, logo, a componente tu-
rística circunscreve-se, essencialmente, à utilização das unidades de
alojamento e de restauração, dando origem a uma prática turística de ca-
racterísticas passivas;
— Espectadores desportivos – aqueles que pretendem assistir aos eventos des-
portivos, são motivados pelo desporto-espectáculo a deslocarem-se a de-
terminado destino. Este tipo de turistas dispõe de algum tempo livre (após
ou entre os espectáculos desportivos) para conhecer o destino onde se en-
contra, no entanto, o tipo de turismo apresenta, ainda, características pas-
sivas, pois é condicionado pelos horários do espectáculo desportivo.

Existem outros modelos que procuram representar o binómio do Desporto e Turismo.


Weed & Bull (2004), por exemplo, conceberam o “Sport Tourism Participation
Model”. Este é um modelo dinâmico que pretende desenvolver uma compreensão
dos comportamentos dos desportistas-turistas no que se refere ao nível de participa-
ção desportiva (que vai aumentando ao longo de um eixo horizontal, desde a partici-
pação desportiva acidental nas férias às férias desportivas) como também ao nível de
importância atribuído à viagem de desporto e turismo pelos indivíduos (eixo vertical).
O modelo define ainda a categoria dos “intenders” como aqueles que apesar de não
praticarem desporto assistem ao espectáculo desportivo.

412
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Figura 1. Modelo explicativo do fenómeno


Desporto e Turismo de Pereira & Carvalho
(2004).

Gammon & Robinson (2003) criaram um modelo que acenta num eixo bidireccio-
nal que diferencia por um lado “Sports Tourism” (Desporto e Turismo), onde o des-
porto é a primeira motivação para viajar, e por outro “Tourism Sport” (Turismo e
Desporto), em que as férias são a primeira motivação para viajar (p.23). Dentro de
cada uma das dimensões iniciais existe ainda a subdivisão em duas categorias, a
”hard” e a “soft”.
No modelo apresentado por Kurtzman & Zauhar (2003) são definidas cinco cate-
gorias diferentes para classificar as actividades do Desporto e Turismo:

— “Sports Tourism Events” – refere-se a todas as práticas desportivas de cariz com-


petitivo ou de espectáculo atraindo não só os atletas e sua equipa técnica como
também e maioritariamente espectadores;
— “Sports Tourism Attractions” – inclui os museus desportivos, conferências despor-
tivas, parques temáticos desportivos, festivais e demonstrações desportivas, etc.;
— “Sports Tourism Tours” – engloba as viagens de aventura desportiva, expedições
“outdoor”, viagens de equipas profissionais para participar em jogos, ou em es-
tágios, etc.;
— “Sports Tourism Resorts” – locais especializados numa prática desportiva, por
exemplo, golfe, ténis, fitness, ou mesmo locais que oferecem práticas desporti-
vas diversas;
— “Sports Tourism Cruises” – cruzeiros especializados numa prática desportiva,
ou em várias e em conferências desportivas. Uma das estratégias para atrair tu-
ristas é o convite a celebridades desportivas como atracção.

O modelo da autoria de Standeven & De Knop (1999:64) é dos mais antigos da lite-
ratura e procura ilustrar uma relação funcional entre o desporto e a actividade tu-

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rística usando dois critérios. Por um lado a natureza da experiência desportiva (am-
biental ou interpessoal), por outro lado, a natureza da experiência turística (como
a experiência cultural de um lugar, natural ou artificial de acordo com os diferentes
ambientes em que se pode desenrolar, nomeadamente: zonas costeiras, zonas ru-
rais, zonas históricas, zonas culturais e de entretenimento).
De realçar que todos os modelos apresentados incluem os eventos desportivos como
uma categoria com especificidades que importa relevar.

‘Focus’ da investigação: potencialização dos eventos desportivos


Estado da Arte
Chalip (2001) salienta que os eventos desportivos são o elemento mais estudado
do desporto e turismo, constituindo-se como a maior componente dos eventos tu-
rísticos (Getz, 1998). A indústria dos eventos turísticos é o elemento que apresenta
mais rápido crescimento no mercado das viagens de lazer (Shifflet & Bhatia, 1999).
Os eventos desportivos são um meio de atingir mais valias a diferentes níveis, con-
tribuindo para o desenvolvimento local e regional. São utilizados de forma cres-
cente pelos países, pelos destinos e pelas cidades, essencialmente, como estratégias
políticas (Burbank et al., 2002; Hiller, 2000) e económicas (Crompton, 1999; Mules
& Faulkner (1996); Pennington-Gray & Holdnak (2002)), mas também como estra-
tégias sócio-culturais (Fredline & Faulkner (2001); Jonsson (2003)).
A investigação nesta área tem proliferado, sendo que a maioria dos estudos foca a
perspectiva do impacto económico para justificar os gastos do evento. Nesta linha,
os impactos são analisados tanto a nível político, como turístico, ou urbano. Mc
Donnell et al. (1999), por exemplo, referem que os eventos desportivos podem ter
repercussões ao nível do fluxo de visitantes durante a época baixa, da intensificação
da experiência turística global, do desenvolvimento e da promoção do destino e
ainda como promotores de impactos a longo termo nos destinos.
Nos estudos que se debruçam sobre os impactos são considerados uma variedade
de benefícios positivos muitas vezes denominados por legados - “legacy” (Ritchie,
2000:156), e de impactos negativos. Estes impactos são sentidos por uma série de
stakeholders incluindo participantes, comerciantes locais, população local, tanto no
período que antecede o evento como durante e após o seu terminus.
Contudo, a literatura têm-se focado menos nos impactos ambientais e sócio-cultu-
rais. Goldblatt (2000) reforça esta necessidade afirmando que os impactos de outros
factores adicionais deveriam ser estudados, nomeadamente ao nível do capital so-
cial e ecológico, político, dos media e dos skateholders. Autores como
Prasad (1999) e Searle (2002), Delamere (1997, 2001), Fredline (2001, 2003, 2005)
e Garcia (2002, 2003) têm procurado estudar estas perspectivas (in Ziakas, 2007).
Existem estudos que demonstram que os impactos dos eventos desportivos nem sem-
pre são positivos, apresentando dados objectivos que apontam neste sentido. Pen-
nington-Gray & Holdnak (2002) num estudo que desenvolvem onde analisam as
características de participação dos visitantes num evento desportivo concluem que
não existe relação, no timming do evento, entre o evento e o destino (os visitantes
não ficaram alojados na comunidade, não participaram em outras actividades ofere-
cidas pelo destino). Não obstante vários estudos demonstrarem os impactos negativos

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dos eventos desportivos, os decisores políticos continuam a apoiar a sua realização.


A reflexão sobre esta realidade, conduziu os investigadores a debruçarem-se sobre a
importância do pensamento estratégico, de intencionalidade, para que a comuni-
dade receptora obtenha mais valias com a realização do evento desportivo. Getz em
2000, ao abordar as principais tendências no sector dos eventos e suas implicações
ao nível da investigação alerta para a importância do desenvolvimento estratégico
dos eventos (ao nível do desenvolvimento turístico e económico, da requalificação
urbana, dos objectivos sociais e culturais, para marketing do sector privado, etc.).
Neste âmbito refere a importância de investigação se debruçar na análise dos even-
tos que melhor funcionem ao nível do desenvolvimento estratégico.
De facto, nos últimos anos, tem sido evidente uma nova tendência na investigação
sobre os eventos desportivos, que se posiciona na perspectiva que antecede o
evento e que defende que os impactos do evento dependem da forma como este é
potencializado. A ênfase é colocada no “leveraging” ou seja nos benefícios positivos
que podem ser alavancados através dos eventos desportivos (Chalip, 2000, 2001,
2004; O´Brien, 2006).
Em 2000, Chalip utiliza pela primeira vez o conceito de “leveraging”, num artigo
que se debruça sobre as estratégias utilizadas pela Austrália para potencializar os
Jogos Olímpicos a vários níveis, nomeadamente para intensificar a imagem do des-
tino, para captar turismo e para o desenvolvimento de negócios (Chalip, 2000).
Foram identificados como estratégicos os pontos de potencialização relacionados
com o turismo: prolongamento dos visitantes dos J.O. a outras zonas da Austrália
(J.O. como uma oportunidade para visitar o país); desenvolvimento de relações para
que a Austrália aumentasse a sua capacidade para receber turismo de negócios; de-
senvolvimento de interesse nos potenciais turistas pelo destino Austrália. Desta
forma três segmentos de turistas constituíram-se como importantes: turistas de
lazer, turistas de negócios e MICE (“meetings, incentives,
conventions and exibitions”). As organizações de turismo Australianas desenvol-
veram relações com operadores turísticos que apenas estavam a programar para os
J.O., no sentido de os ajudar e dar a conhecer as
potencialidades do país e encorajando-os desta forma a continuar a programar a
Austrália após os J.O.. Recomenda, ao finalizar, que se analise e avalie esses esforços
de potencialização dos eventos desportivos, para obter boas práticas que possam
ser aplicadas em futuros eventos.
Chalip (2004:228) define “leveraging” como “the process throught wich the bene-
fits of investiments are maximized”. O conceito de “leverage” remete para a noção
de uma vantagem que se obtêm através do efeito de uma alavanca. Neste caso os
eventos desportivos podem constituir-se como a alavanca para o desenvolvimento
da comunidade a vários níveis (Chalip, 2000, 2001, 2004; O´Brien, 2006). Os auto-
res reforçam que para que os eventos desportivos sejam sustentáveis e retenham
o apoio público e privado que os organizadores reclamam, então os benefícios que
são prometidos devem ser propiciados através de estratégias de alavancagem
(O´Brien & Chalip, 2007). Pretende-se que a comunidade receptora obtenha mais
valias com a realização do evento desportivo através do desenvolvimento estraté-
gico dos eventos.

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livro:livro maputo 6/3/10 23:47 Page 416

Actualmente é comum os grandes eventos desportivos serem acompanhados por


programas estratégicos de alavancagem. Por exemplo, todos os Jogos Olímpicos
desde Sydney; 2002, 2006, e 2010 Commoweath Games em Manchester, Mel-
bourne e Nova Deli respectivamente (O´Brien & Chalip, 2007).
O reduzido trabalho empírico que se tem desenvolvido na perspectiva do “leverage”
apresenta um enfoque no desenvolvimento económico particularmente através do
turismo e da marca do destino (Chalip & Leyns, 2002; Chalip, 2004; O´Brien, 2006,
2007). Reclama-se, então, a necessidade de analisar também como os eventos des-
portivos podem ter um efeito de alavanca para a obtenção de benefícios sociais nas
comunidades receptoras (Chalip, 2006; O´Brien & Chalip, 2007). Ao aprofundar a
perspectiva de alavancagem de acordo com o enfoque económico, Chalip (2004)
cria um modelo que divide em dois níveis:

— actividades que são desenvolvidas em torno do evento, no timming do evento;


— actividades que pretendem maximizar, a longo prazo, os benefícios do evento.

Figura 2. Representação esquemática das alavancas de um evento (in Chalip, 2004).

Como se observa na figura, o modelo apresenta o portfolio de eventos do destino


como o recurso alavancável (“leverageable”), em que os objectivos estratégicos são:
a optimização dos negócios e das receitas, através da oportunidade que representa
para a comunidade a vinda de visitantes (no timming do evento); a intensificação
da imagem do destino/comunidade receptora, através da mediatização do evento
(médio longo prazo). As oportunidades para alavancar no timming do evento passam
pela optimização dos negócios e dos receitas (alojamento, restauração, comércio
local) através de:

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livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 417

— actividades desenhadas para induzir a despesa dos visitantes (bilhetes, lembran-


ças do evento e do local, restauração, alojamento, atracções do local, e criação
de novos mercados, por exemplo, programas alternativos para os mercados
acompanhantes como as esposas e os filhos);
— actividades desenhadas para prolongar a estadia do visitante;
— utilização das cadeias de fornecedores locais/retenção das despesas do evento;
— criação oportunidades de desenvolver e intensificar as relações de negócios (ex:
Sydney Business Bureau – centro de hospitalidade para negócios, (O´Brien,
2006)).

Curioso de salientar que um estudo sobre a alavancagem de um evento desportivo


pelo comércio local concluiu que poucos são os comerciantes que implementam as
tácticas necessárias para fomentar/incentivar as compras, o uso da restauração ou
as visitas a locais de atracção turística (Chalip & Leyns, 2002).
A médio-longo prazo a mediatização do evento desportivo é o elemento que poderá
permitir uma maior alavancagem, através da visualização e exposição do destino
conjuntamente com a publicidade e as imagens do evento, e através da utilização
do evento na publicidade e promoções do destino.
O´Brien (2007) aplica o modelo à análise da organização de um festival regional de
surf, na Austrália, e concluiu que os eventos desportivos de menor dimensão apre-
sentam, também, potencial para contribuir para o desenvolvimento das comuni-
dades. Posteriormente O’Brien & Chalip (2007) propõem um complemento ao
modelo anterior com a inclusão do leverage social. Esta reflexão assenta na possibi-
lidade que os eventos desportivos têm de contribuir para alcançar benefícios sociais,
através do incremento do espírito de comunidade e compreende duas dimensões:

— promoção da interacção social;


— indução do espírito de celebração.

Como a investigação que tem sido desenvolvida na perspectiva da potencialização


económica tem-se circunscrito a mega eventos em grandes cidades, O’Brien (2007)
reforça a importância de se desenvolver estudos em contextos e eventos de menor
dimensão.

Objectivo da Investigação em Curso


O objectivo do estudo que estamos a desenvolver é investigar como os eventos des-
portivos são potencializados num contexto local de uma comunidade do Algarve,
Portimão. Partilhamos do pressuposto que o desporto deve ser um meio para a me-
lhoria da qualidade de vida dos indivíduos e para o desenvolvimento das comuni-
dades (Pires, 2007). De acordo com o objectivo acima referido pretendemos:

— identificar, descrever e compreender as estratégias, as tácticas e as acções de po-


tencialização económicas (optimização dos negócios e das receitas, e intensifi-
cação da imagem do destino/comunidade receptora) e sociais (promoção da
interacção social e indução do espírito de celebração) planeadas à priori;

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— identificar, descrever e compreender as estratégias, tácticas ou acções de poten-


cialização emergentes (a estratégia compõem-se, também, por uma compo-
nente emergente (Pires, 2005);
— analisar o processo de implementação das tácticas e acções planeadas e emer-
gentes;
— identificar, descrever e compreender estratégias, tácticas e acções de sucesso e
insucesso implementadas e analisar possíveis causas.

Baseamo-nos no Model for Sport Event Leverage desenvolvido por Chalip (2004) e
no Model for Social Leverage de O’Brien & Chalip (2007) que ainda não foi aplicado
à organização de eventos e reclama verificação empírica.

Perspectiva Investigacional
De acordo com Guba & Lincoln (1994) o paradigma de investigação deve ser um
guião que de forma integrada contribui para a definição da natureza da realidade
que se pretende analisar, da relação entre o investigador e o que se pretende inves-
tigar e da forma como iremos conhecer essa realidade.
Neste sentido procuramos apresentar os princípios orientadores que nos serviram
de guião. A investigação que estamos a desenvolver no âmbito do processo estraté-
gico não assenta na possibilidade de se estabelecerem relações entre causas especí-
ficas e efeitos específicos, acções específicas e resultados específicos. As ciências da
complexidade ajudam-nos a compreender que quando as organizações funcionam
numa instabilidade limitada, as relações entre causa e efeito tendem a desaparecer.
A sensibilidade, dos sistemas complexos, às condições iniciais faz com que a relação
entre acções individuais e resultados globais não sejam identificáveis (Stacey, 1995).
De facto a nossa preocupação prende-se com a análise dos eventos desportivos, do
portfolio de eventos desportivos náuticos, da forma como são geridos para que se
torne um contributo para o desenvolvimento social. Como afirma Mintzerb (2005)
o desenvolvimento organizacional pretende atingir o desenvolvimento social. Esta
análise justifica-se, na medida em que nos sistemas em mudança, as dinâmicas não
se limitam a acções de causa e efeito, sendo as acções inovadoras e imprevisíveis
que originam nova direcções estratégicas. Stacey (1995) afirma que o focus da in-
vestigação deve ser centrado na compreensão das dinâmicas de grupo nos proces-
sos de aprendizagem política e organizacional auto-organizados
espontaneamente, através dos quais as organizações inovam. A perspectiva da
complexidade, sugere o estudo, acerca de como a aleatoriedade das conexões entre
as pessoas e as regras simples de decisão que usam, pode conduzir a padrões com-
plexos e globais de comportamento, assumindo a forma de nova direcção estraté-
gica e renovação organizacional.
Stacey (1995) sugere que o “paradigma da complexidade” fornece um quadro de
referência para uma nova perspectiva de análise do processo estratégico. O quadro
de referência fornecido pela “ciência da complexidade” baseia-se no estudo de
sistemas não lineares e de “network feedbacks” (GleicK,1987; Waldrop, 1992;
Kauffman, 1991, 1992; Gell-Man, 1994, in Stacey, 1995). O estudo destes sistemas
tem demonstrado que para produzir comportamentos contínuos de mutação,

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criatividade e inovação, os sistemas têm que operar longe do equilíbrio, onde são
conduzidos por feedbacks negativos e positivos para estados paradoxais de estabi-
lidade e instabilidade, previsibilidade e imprevisibilidade. A dinâmica de sucesso,
nestes sistemas, pauta-se pela sua capacidade de permanecer afastado do equilí-
brio adaptativo, em estados de instabilidade, irregularidade e imprevisibilidade
(Stacey, 1995).
Apesar de a maioria dos trabalhos neste campo terem sido desenvolvidos em siste-
mas naturais (Gleick, 1987; Waldrop, 1992; Prigogine & Stengers, 1984; Nicolis &
Prigogine, 1989) verifica-se um grande interesse em aplicar as descobertas subja-
centes aos sistemas sociais (Anderson, Arrow & Pines, 1988; Nonaka, 1988; Peters,
1991; Wheatley, 1992; Zimmerman, 1992; Stacey, 1991, 1992, 1993; Goldstein, 1994)
(in Stacey, 1995). Stacey (1995) advoga que os investigadores organizacionais
devem enquadrar as suas investigações no paradigma da complexidade, pois as or-
ganizações são sistemas não lineares de “network feedback”. Isto implica que as
propriedades destes sistemas, como a instabilidade limitada, a espontânea auto-or-
ganização e ordem emergente, devam ser aplicadas às organizações. A perspectiva
dos sistemas complexos advogada por Stacey (1995), está centrada na dinâmica de
todo o sistema. Foca-se na procura de processos centrais de evolução e de transfor-
mação, e na instabilidade e nas dinâmicas de desordem que aqueles geram, na net-
work informal da organização.
Sendo esta perspectiva um dos princípios orientadores da nossa investigação, e
sendo os eventos desportivos uma alavanca num processo de evolução e transfor-
mação do Município de Portimão, urge compreender como o são, ou seja de que
forma são um contributo, uma mais valia para o desenvolvimento local, quais as
estratégias e tácticas inerentes à sua potencialização, quais as dinâmicas que pro-
movem, como evolui o processo.
Nesta linha Morin (1990) enfatiza que o conceito de estratégia, neste caso refe-
rindo-se à estratégia política, pelo facto de lidar com incerto, com o acaso, com múl-
tiplas interacções, necessita de uma abordagem em consonância com o paradigma
da complexidade. “A estratégia permite, a partir de uma decisão inicial, encarar um
certo número de cenários para a acção, cenários que poderão ser modificados se-
gundo as informações que vão chegar no decurso da acção e segundo os imprevistos
que vão surgir e perturbar a acção” (Morin, 1990:116). Para Morin (1990) a comple-
xidade é incerteza, acaso, indeterminação, ordem e desordem o que leva a que o in-
vestigador científico se enquadre nesta perspectiva epistemológica, que passa pela
aceitação da contradição, da imprecisão, da incerteza e da ambiguidade.
De acordo com esta perspectiva, interessa não só analisar e compreender as estra-
tégias, como a evolução dessas estratégias e os caracteres da sua diversificação. No
nosso entender só compreendendo e analisando as acções poderemos caracterizar
e compreender as estratégias. É na interacção com o meio que a estratégia se ex-
pressa, no sentido pretendido inicialmente ou noutro diametralmente contrário.
A estratégia, não sendo um programa pré-definido a aplicar invariavelmente no
tempo, necessita para ser conduzida, de uma organização que não se reja pelos prin-
cípios da programação, que tenha capacidade de reflexão para integrar os elementos
que possam contribuir para o seu enriquecimento.

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A nossa opção direccionou-se, assim, para uma abordagem qualitativa, pois este é
um estudo desenvolvido em contexto de vida real que procura ter em conta os pon-
tos de vista dos que estão envolvidos nos fenómenos (Denzin & Lincoln, 2000).
Apesar de nos basearmos no modelo de análise criado por Chalip (2004) e O’Brien
& Chalip (2007), procurando analisar em termos empíricos como se comporta, con-
sideramos fundamental a compreensão dos processos e significados, através dos ac-
tores sociais e suas interacções. Queremos compreender o que fazem, como fazem,
porque fazem, quais os principais actores, obstáculos e facilitadores do processo de
potencialização dos eventos. E daí a opção também pelo paradigma interpretativo/
construtivista pois permite analisar a realidade social sendo construída através da
compreensão das acções dos indivíduos ou do grupo nos seus contextos naturais
(Denzin & Lincoln, 2000). Este contempla a multiplicidade dos contextos sociais,
incluindo a do investigador e neste caso, sendo a minha formação de base as ciências
do desporto e todo o meu percurso profissional nesta área, sem dúvida que vai in-
fluenciar a minha visão da potencialização dos eventos.
O enfoque inicial dedutivo baseia-se nos itens definidos no modelo que citámos.
Estes itens assumem o papel de “conceitos sensibilizadores” pois servem-nos de
guia na aproximação à realidade empírica. No entanto, na iteração e reflexão com
e acerca da realidade observada, procuramos estar atentos a itens de potencialização
emergentes, numa perspectiva de abertura e enriquecimento dos conceitos através
dos dados que recolhemos da realidade (Blumer, 1969, in Moreira, 2007). De facto
o enfoque dedutivo caracterizou a fase inicial de aproximação ao contexto, mas foi
dando lugar a uma interacção entre dedução e dados observáveis pois assume-se
com esta investigação a pretensão de se produzir teoria. Corroboramos a afirmação
de Nogeste (2007) quando nos diz “however, to the point where after the initial in-
ductive or dedutive stage, the research becomes a series of iterations or interplays
between deduction and induction”, pois de facto, os sucessivos passos são constan-
temente acompanhados por fluxos iterativos de retroacção, permitindo um refazer
e aperfeiçoar constante das etapas iniciais de investigação.

Metodologia
Considerámos o método de investigação mais adequado o Estudo de Caso - Poten-
cialização dos Eventos Desportivos Náuticos no Município de Portimão. De acordo
com Yin (2003:19) “os estudos de caso representam a estratégia preferida quando
se colocam questões do tipo “como” e “porquê”, quando o pesquisador tem pouco
controle sobre os acontecimentos e quando o foco se encontra em fenómenos con-
temporâneos inseridos em algum contexto da vida real”.
O contexto seleccionado reúne as condições para propiciar uma investigação neste
âmbito, pois definiu uma estratégia de desenvolvimento que tem como alavanca
os eventos desportivos (apresenta um programa anual relevante de grandes eventos
desportivos internacionais e uma empresa pública municipal, a ExpoArade, que tem
como objecto, entre outros, a “organização, gestão e exploração de eventos”).
Os eventos desportivos náuticos foram-nos referidos como aposta prioritária pelo
vértice estratégico da ExpoArade. A orientação da investigação no sentido dos even-
tos desportivos náuticos parece-nos adequada pois, numa perspectiva do desenvol-

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vimento endógeno (Vazquéz, 1988), o mar constitui um recurso natural com


grande potencial, factor produtivo a ser mobilizado4. Foram seleccionados eventos
abaixo especificados, que decorreram em 2008 e 2009:

— KITE MASTERS PORTIMÃO WORLD TOUR;


— FORMULA WINDSURFING WORLD CHAMPIONSHIP;
— CIRCUITO AUDI-MEDCUP;
— P1 WORLD CHAMPIONSHIP;
— PORTIMÃO GLOBAL OCEAN RACE;
— CAMPEONATO DO MUNDO DE MOTONáUTICA.

Os actores organizacionais da ExpoArade que se encontram ligados aos eventos des-


portivos constituem-se como elementos da amostra, assim como elementos exte-
riores à organização que integrem ou cooperem no processo de potencialização dos
eventos desportivos em análise.
Ao longo do trabalho de campo utilizaremos as entrevistas qualitativas, a observa-
ção directa e a investigação documental, referenciadas por Denzin & Lincoln (1994)
como métodos imprescindíveis no estudo de caso. A triangulação de métodos será
um procedimento que nos permitirá clarificar significados, visualizar e analisar o
fenómeno por vários meios.
Numa primeira fase, antes da realização dos eventos, com o objectivo de identificar,
descrever e compreender as estratégias, as tácticas e as acções de potencialização
económicas (optimização dos negócios e das receitas, e intensificação da imagem
do destino/comunidade receptora) e sociais (promoção da interacção social e indu-
ção do espírito de celebração) planeadas à priori, utilizaremos o método de entre-
vistas qualitativas, conduzidas com base num guião e sujeitas a gravação. Este
método concede a liberdade para que o investigador possa alterar ou reformular tó-
picos ao longo da entrevista (Moreira, 2007), o que nos permite indagar acerca das
acções de potencialização, dos processos, dos actores envolvidos e colocar outras
questões que no decorrer da entrevista surjam pertinentes.
No período de realização dos eventos, segunda fase, o objectivo é identificar, des-
crever e compreender as estratégias, tácticas ou acções de potencialização emer-
gentes, assim como analisar o processo de implementação das estratégias, tácticas
e acções planeadas e emergentes. O método privilegiado será a observação directa
no local dos eventos. Será feito um registo sistemático das observações e das intros-
pecções num caderno de campo (Spradley, 1980). À excepção da Global Ocean Race,
a 1ª volta ao mundo à vela em duplas e solitário, que termina aproximadamente
nove meses depois em Portimão, e cuja observação será feita no período da partida
e da chegada dos velejadores.
A terceira fase do estudo tem como objectivo identificar, descrever e compreender
as estratégias, as tácticas e as acções de sucesso e insucesso implementadas e ana-
lisar possíveis causas. O método utilizado será a entrevista qualitativa, conduzida
através de um guião e sujeitas a gravação. Este conjunto de entrevistas tem também
como objectivo clarificar dados, recolhidos através da observação e que possam não
estar explícitos para o investigador.

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Com o objectivo de recolher informação sobre os eventos em análise e sobre o con-


texto onde se desenvolve o estudo, decorrerá ao longo das diferentes fases a inves-
tigação documental (actas de reuniões, contratos, material promocional tanto
electrónico como impresso, artigos de revistas e jornais regionais, media releases,
dados estatísticos, registos históricos e outros).
A análise qualitativa de conteúdo, a análise hermenêutica e a grounded theory serão
os métodos aplicados para análise dos dados recolhidos ao longo do trabalho de campo.
A análise hermenêutica adequa-se quando se pretende aprofundar situações sociais
ou organizacionais. Esta focar-se-á no significado dos dados recolhidos, sendo parti-
cularmente útil quando os dados nos remetem para interpretações contraditórias do
mesmo fenómeno (Myers, 2009). Apesar da investigação em curso se caracterizar
por uma estratégia dedutiva global, sempre que o corpus de dados o justifique opta-
remos por codificações indutivas. O recurso à grounded theory será realizado no sen-
tido de desenvolvermos teoria de modo indutivo (Strauss & Corbin, 1990).
De acordo com as recomendações de Spradley (1980) e Yin (2003) será desenvol-
vido e aplicado um protocolo baseado nas categorias de potencialização económica
e social (Chalip (2004); O’Brien & Chalip (2007)) e os itens de potencialização que
forem mencionados pelos entrevistados ou identificados na observação directa ou
na investigação documental que não constem no modelo. A unidade de registo será
criada de acordo com os itens de potencialização e os dados recolhidos serão anali-
sados várias vezes de forma a identificar-se temas, conceitos e categorias com per-
tinência em termos de objectivos do estudo (Miles & Huberman, 1994).

Conclusão
Um dos maiores desafios para o desenvolvimento do Desporto e Turismo é fazer
compreender aos políticos tanto do sistema desportivo como do turístico que os be-
nefícios que advêm de uma visão estratégica em conjunto, num sistema híbrido,
composto por dois sectores diferentes, constituiem-se como imprescindíveis. A
aposta deverá ser centrada nas sinergias regionais, pois a este nível as possibilidades
de cooperação são mais elevadas. Destacamos a colaboração das autarquias locais e
associações de municípios, entidades de turismo, parques naturais, associações para
o desenvolvimento regional, empresas privadas, universidades, e outras que se jus-
tifiquem de acordo com a especificidade dos projectos. Em nosso entender a criação
de associações especializadas de Desporto e Turismo, facilitadoras de redes de coo-
peração, de plataformas de comunicação e de lobby5 será o passo seguinte como es-
tratégia de desenvolvimento.
O nosso enfoque de investigação procura estudar uma das categorias do Desporto
e Turismo – os Eventos Desportivos. Gostaríamos de salientar que, ao longo da re-
colha de dados do nosso trabalho, fase que está praticamente no seu terminus, fomos
desenvolvendo a análise qualitativa dos mesmos numa perspectiva de “evolutio-
nary case study approach” (Dawson, 2008), o que nos permitiu identificar itens de
potencialização que não constavam no modelo base e que após reflexão nos orien-
tou para o refinamento dos instrumentos de recolha de dados e aplicação da versão
renovada. Queremos reforçar a especial importância que terá neste trabalho, após
o processo de redução dos dados, a triangulação dos mesmos, de acordo com as várias

422
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 423

fontes (empresa pública municipal, promotores externos, e internos dos eventos,


patrocinadores, actores estratégicos desportivos e turísticos) e métodos utilizados.
Este procedimento permitirá um maior nível de confiabilidade para o desenvolvi-
mento de interpretações sobre o caso em estudo e posterior contributo para o en-
riquecimento do conhecimento teórico nesta área.
Esperamos que os resultados deste estudo possam vir a contribuir para um incre-
mento do conhecimento sobre estratégia e eventos desportivos, e para a definição
de linhas orientadoras de gestão estratégica de eventos desportivos, numa perspec-
tiva de desenvolvimento das comunidades. O desporto, pelas suas características,
tem a capacidade de contribuir para o desenvolvimento dos indivíduos e das nações,
e poderá ser um dos instrumentos da política, entendendo esta como um conjunto
de opções ideológico-estratégicas que se focam no desenvolvimento das sociedades.
Assumimos a estratégia como sendo o exercício concreto e complexo do poder na
relação entre os seus fins, caminhos e meios e não como um manual técnico ao ser-
viço da táctica e do curto prazo (Garcês & Martins, 2009) e nesta óptica pensamos
que cabe ao gestor do desporto o raciocínio estratégico aquando da tomada de deci-
são para que não se realizem actos de planeamento sem existir uma ideia do resul-
tado dos mesmos.

Notas
1 Vide http://www.sptourism.net.
2 Vide www.tandf.co.uk/journals.
3 Associação que conta com mais de 20 Estações Náuticas espalhadas por toda a Espanha.
4 De realçar que o actual Plano Estratégico Nacional do Turismo (2006-2015) define nos seus eixos estra-
tégicos, nomeadamente no “Eixo I – Territórios, Destinos e Produtos”, o turismo náutico como um pro-
duto prioritário para o Algarve (TP, IP, 2007 in Pereira, 2008).
5 Veja-se o caso de Espanha com a criação da primeira Estação Náutica em 1995 e com a criação da Asso-
ciação Espanhola das Estações Náuticas em 2000.

423
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livro:livro maputo 6/3/10 23:51 Page 427

Alimentação e Nutrição do Desportista.


Hidratação, sobrecarga glicogénica
e suplementação ergogénica
José Augusto Rodrigues dos Santos

A alimentação humana é um processo complexo rela-


cionado com as condições ecológicas do desenvolvi-
mento de cada grupo humano. O panorama alimentar
actual é o resultado da evolução da humanidade, pois
muitos dos hábitos alimentares actuais são o resultado
de múltiplas experiências realizadas no decurso dos
tempos e que exploraram as possibilidades de confec-
ção dos vários alimentos.
Daqui surge a diferenciação entre alimentação e nutri-
ção. A alimentação é um processo externo aos seres
vivos relacionado com a escolha, preparação e ingestão
dos vários alimentos preparando-as para uma eficaz
transformação nos nutrientes constituintes. A nutri-
ção, é um processo endógeno biológico que permite
que os organismos assimilem os nutrientes e os utili-
zem para a realização das suas funções vitais.
De forma mais directa, um nutriente é um constituinte alimentar que pode ser uti-
lizado pelo organismo como fonte de energia ou material de construção e/ou regu-
lação, no processo de manutenção da vida.
Os vários aspectos do processo nutritivo servem duas grandes funções:

A. Manter a homeostasia do organismo, pela constante renovação dos tecidos e


princípios vitais.
B. Manter a capacidade de acção e movimento, ou seja a capacidade de realizar tra-
balho.

Estas duas funções são características de todos os seres vivos, que se podem dividir
em função do processo nutricional:

— Seres autotróficos, que se alimentam a partir de substâncias elementares (luz,


anidrido carbónico, água, etc.) e que constituem o reino vegetal.
— Seres heterotróficos, que se alimentam quer de seres autotróficos quer de outros
seres heterotróficos.

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Os seres heterotróficos alimentam-se assim de substâncias complexas, que após so-


frerem um processo de digestão, se desdobram nos respectivos componentes ele-
mentares (nutrientes) que são dirigidos para o apoio a todas as funções orgânicas.
Os nutrientes classificam-se em:

1. Macronutrientes ou princípios imediatos


— Proteínas ou Prótidos
— De origem animal (carne, peixe, ovos, leite)
— De origem vegetal (feijão, ervilhas, soja, lentilhas, etc.)
— Gorduras ou Lípidos
— Gorduras saturadas (óleo de palma, gordura das carnes, etc.)
— Gorduras Monoinsaturadas (azeite, óleo de amendoim, etc.)
— Gorduras Polinsaturadas (óleos de girassol, açafroa, etc.)
— Carbohidratos
— Monossacarídeos (glicose, frutose, galactose)
— Dissacarídeos (sacarose, maltose, lactose)
— Polissacarídeos (glicogénio, amido)

2. Micronutrientes ou elementos protectores


— Vitaminas
— Lipossolúveis (vitaminas A, D, E, K)
— Hidrossolúveis (Vitamina C e Complexo B)
— Sais minerais, electrólitos e oligoelementos
— Cálcio, fósforo, sódio, cloro, ferro, zinco, selénio, etc.
— Enzimas biocatalizadores
— ATPase, Creatinaquinase, Fosfofrutoquinase, etc.

A utilização de todos estes nutrientes em função das características de cada indiví-


duo e do seu nível de actividade é que definem uma dieta equilibrada.
O rendimento desportivo deve ser perspectivado não somente em função da ade-
quação dos estímulos de treino mas também a partir dos aspectos de recuperação e
duma nutrição equilibrada.
O perfil da dieta do desportista afecta não só a sua condição de saúde bem como a
capacidade para desenvolver esforços acima dos níveis de normalidade.
Eis algumas perguntas que normalmente são levantadas em relação ao processo nu-
tricional de um desportista:

— O que podemos considerar uma boa dieta?


— Quais são os melhores carbohidratos para um desportista?
— Devo fazer uma “sobrecarga de carbohidratos” antes duma competição?
— Qual a quantidade de bebida que devo ingerir para fazer uma rehidratação eficaz?
— As bebidas desportivas são melhores do que água?
— O atleta tem necessidade de ingerir suplementos de vitaminas e minerais?
— Os suplementos dietéticos potenciam a minha performance?
— Como desportista devo ingerir proteínas extra?

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— As desportistas necessitam de suplementos de ferro e cálcio na sua dieta?


— Devem as crianças e jovens atletas ingerir alimentos especiais?

Tentaremos responder a estas e outras perguntas no sentido de evitar erros nutri-


cionais que podem afectar o rendimento desportivo.

1. Uma boa dieta


Em termos gerais podemos considerar uma boa dieta, aquela que apresenta uma
grande variedade de alimentos e permite a ingestão de nutrientes nas percentagens
e quantidades adequadas aos gastos específicos de um dado desportista. Para sujei-
tos sedentários a OMS (Organização Mundial de Saúde) preconiza a ingestão de 50-
55% de carbohidratos, 12-15% de proteínas e 25-30% de gorduras.
Especificamente, uma dieta adequada para muitas actividades desportivas deve
conter 60-70% do total de energia sob a forma de carbohidratos, 12% de proteínas e
o restante de gorduras.
Vários estudos por nós realizados permitem verificar que uma grande percentagem
de desportistas não têm uma dieta equilibrada quer em qualidade quer em quantidade.

Quadro 1. Valores médios (±DP) de aporte energético e de macronutrientes em vários


populações de desportistas (Siqueira & Rodrigues dos Santos, 2004; Couto & Rodrigues
dos Santos, 2005)

Grupo Momento Energia (kcal) Proteínas (%) Gorduras (%) CHO (%)
Fundistas Fase Competitiva 2.961±559 17.6±5.0 30.8±12.6 51.1±16.3
Homens (n=22)
Surfistas Fase Competitiva 2708±520 18.2±2.2 35.0±4.8 46.8±5.0
Homens (n=23)
Meio-fundistas Fase competitiva 2953±1009 17.2±2.9 30.1±5.0 52.7±6.2
Mulheres (n=27)

Temos de analisar os resultados, não em função das médias que podem ser pouco
esclarecedoras, mas em função das amplitudes que nos permitem verificar que en-
quanto alguns desportistas apresentam sérios défices energéticos e nutricionais
outros alimentam-se em excesso o que pode trazer problemas de saúde e de sobre-
carga ponderal que poderá afectar o rendimento desportivo. Em relação às percen-
tagens relativas os vários macronutrientes é de salientar o reduzido aporte de
carbohidratos e a excessiva ingestão de proteínas, panorama que é reforçado por
outros estudos que realizamos com outros tipos de populações.
Em relação às populações africanas importa referir que uma dieta fundamental-
mente vegetariana pode permitir o acesso aos nutrientes essenciais para uma boa
saúde e para a obtenção de bons rendimentos desportivos. Foram estudados os há-
bitos alimentares dos atletas quenianos do grupo étnico dos Kalenjin, do qual pro-
vêm alguns dos melhores meio-fundistas e fundistas do mundo, e verificou-se que
93% dos alimentos utilizados são de origem vegetal, correspondendo os carbohi-
dratos a 78% do aporte calórico total (Christensen et al., 1998).

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Portanto, elevados rendimentos desportivos em esforços de endurance podem ser


perfeitamente compatíveis com uma dieta essencialmente vegetariana. No en-
tanto, defendemos que a ingestão de alguns alimentos de origem animal e funda-
mental para evitar défices de alguns nutrientes essenciais para o equilíbrio do
organismo (e.g. cianocobalamina, ácido fólico, etc.).

2. Ingestão de Carbohidratos (CHO)


Os carbohidratos são o combustível mais importante para os músculos em exercí-
cio, fundamentalmente para o apoio energético aos esforços de grande intensidade,
pelo que devem constituir o teor fundamental da dieta. Os carbohidratos apresen-
tam-se sob duas formas: simples (glucose, frutose, sacarose, etc.) e complexos
(amido). Os CHO simples são uma forma de energia rapidamente disponível e que
na generalidade provocam altas descargas de insulina (o que pode ser vantajoso ou
prejudicial), enquanto os CHO complexos, devido a demorarem mais tempo a ser
digeridos, representam uma fonte energética mais atrasada no tempo. De uma
forma geral podemos afirmar que durante o exercício a melhor forma de fornecer
energia ao organismo é através dos CHO simples de rápida assimilação (e.g. glicose,
maltose), enquanto que nas refei-
ções que antecedem uma dada reali-
zação desportiva devem ter
prevalência os CHO complexos.
Eis algumas boas fontes de carbohi-
dratos: cereais do pequeno-almoço
especialmente integrais; todos os
tipos de pão, bolos ou panquecas;
pastas; arroz; batatas; bases de pizza
(massa alta com pouca gordura); fei-
jões, ervilhas, vegetais de raiz; bolos
de frutas ou biscoitos com baixo teor
de gordura, vários tipos de frutas
secas e frescas.
Os CHO são o combustível por excelência para o exercício qualquer que ele seja. Se
existe um défice crónico de CHO na dieta de um desportista em regime de duplo
treino diário, o esforço vai incidir mais no metabolismo das gorduras o que é feito
à custa duma inferior intensidade de treino. De igual forma, é importante a ingestão
adequada de CHO para o cérebro e sistema nervoso central que, situações normais,
requerem o suprimento contínuo de glicose, para funcionarem adequadamente. O
cérebro, após exercício exaustivo, tem necessidade acrescida de CHO (Nybo e tal.,
2003). Acresce que a ingestão aumentada de CHO reflecte-se num superior estado
de vigilância e num estado de humor mais positivo (Lieberman et al., 2002) o que
determina um estado psicológico favorável ao treino e ao empenhamento no
mesmo. A fadiga central é muitas vezes a razão da falta de estímulo para o treino
de elevada intensidade.

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3. Sobrecarga de Carbohidratos
A energia consumida durante o exercício é principalmente fornecida pelos carbo-
hidratos e lípidos, por isso para a melhoria da endurance é necessário regular o me-
tabolismo destes dois substratos. Durante o exercício de endurance, o glicogénio é
gradualmente depleccionado o que vai progressivamente dificultando a manuten-
ção de um dado nível de intensidade de exercício. Uma forma efectiva de melhorar
a endurance consiste no aumento das reservas musculares e hepáticas de glicogénio
antes do exercício. Quando o glicogénio tecidular está depleccionado, a actividade
da enzima glicogeno-sintetase (que promove a síntese de glicogénio nos tecidos)
está transitoriamente elevada, induzindo o aumento da quantidade de glicogénio
armazenado a partir da conversão dos vários carbohidratos.
De forma a preparar convenientemente um dado evento desportivo, principal-
mente esforços de endurance, deve-se obviamente reduzir a intensidade e volume
de treino e aumentar, pelo menos nos últimos 3-4 dias que antecedem a competi-
ção, o aporte de energia proveniente dos carbohidratos para cerca de 70% do aporte
calórico total. Devem ser ingeridos entre 8-10 g de CHO por kg de peso corporal.
Assim, um atleta com 60 kg deve ingerir entre 480-600 g de carbohidratos. Deve-
se ter cuidado de não aumentar a quantidade de energia ingerida numa fase de ate-
nuação do treino; assim deve-se reduzir o aporte de gorduras e proteínas para
contrabalançar o aumento no consumo de CHO, evitando-se assim que o excesso
calórico se transforme em gordura, facto que pode afectar o rendimento desportivo.
Com este procedimento podemos aumentar até ao dobro as reservas de glicogénio
muscular o que é benéfico para esforços de elevada intensidade que se prolonguem
no tempo (e.g. futebol, corridas de meio-fundo e fundo, etc.). Ter em atenção que
o armazenamento de glicogénio pode aumentar o peso corporal, pois cada grama
de glicogénio é armazenada com 3 gramas de água. No entanto, este aumento de
peso, ao contrário do derivado do aumento da gordura corporal, é benéfico pois cor-
responde a mais energia para o músculo e a mais água para os processos termo-re-
guladores. A sobrecarga de carbohidratos só é efectivamente eficaz para actividades
que durem pelo menos 90 minutos.
Num estudo realizado por Bergstrom et al. (1967) foi demonstrado que um nível
inicial de glicogénio muscular de 1.75 g/100 g de músculo húmido permitiu a exe-
cução de uma dada carga estandardizada por 114 minutos; quando o conteúdo de
glicogénio muscular foi alterado para 0.63 ou 3.31 g/100 g, o tempo até à exaustão
foi de 57 e 167 minutos, respectivamente. Este estudo histórico, permite-nos veri-
ficar a importância das reservas iniciais de glicogénio muscular na performance em
esforços prolongados

4. Perda de fluidos e rehidratação


A água é o principal constituinte do corpo humano e desempenha um papel crucial
na função circulatória, nas reacções químicas envolvidas no metabolismo energé-
tico, na eliminação dos produtos residuais (“lixo” metabólico) e na manutenção do
volume plasmático e regulação da temperatura corporal.
O corpo humano é essencialmente constituído por água (65 a 70%), e embora al-
guns tecidos apresentem um fraco teor em água (osso – 20%; tecido adiposo – 30%),

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75% do músculo-esquelético é água. O meio hídrico é fundamental para o trabalho


muscular e variações significativas do conteúdo em água do músculo afectam a con-
tractilidade muscular e a capacidade de trabalho. Importa referir que somente 20 a
25% da energia química armazenada no músculo é transformada em trabalho mus-
cular; cerca de 75 a 80% dessa energia química é perdida sob a forma de calor que
tem de ser evacuado do corpo para manter as condições óptimas térmicas que pro-
piciam o máximo rendimento muscular. Por cada litro de oxigénio consumido são
produzidos 16-20 kJ que o corpo pode armazenar em pequena quantidade tendo o
restante e de ser evacuado através dos vários mecanismos termo-reguladores.
A sudação é o mecanismo pelo qual o corpo tenta manter a temperatura central por
volta dos 37º centígrados. A sudação resulta na perda de fluidos corporais e electró-
litos (cloro, sódio, magnésio, potássio e cálcio), perda essa que se não for controlada
pode conduzir a uma situação de desidratação e eventualmente ao colapso circula-
tório e choque de calor.
O exercício extenuante ou em condições de calor pode induzir uma grande perda
de fluidos. A capacidade de trabalho será inexoravelmente afectada se os fluidos
não forem repostos. O grau de desidratação condiciona a manutenção da capacidade
de trabalho muscular e os indicadores de fadiga e exaustão.

Percentagem de peso corporal perdido como suor Efeito fisiológico


2% Redução da performance
4% Declínio da capacidade de trabalho muscular
5% Exaustão provocada pelo calor
7% Alucinações
10% Colapso circulatório e síncope térmica

Um atleta deve estar bem hidratado antes do exercício o que pode ser comprovado por
uma urina clara e abundante. Antes da competição deve-se tentar beber até 500 ml de
fluido e cerca de 150-250 ml cada 15 minutos durante o esforço. Beber tanto quanto o
possível após o esforço. Deve-se treinar a ingestão de bebidas durante o treino para ha-
bituar o organismo a esvaziar, em esforço, os fluidos que chegam ao estômago.
A sede não é um bom indicador de desidratação, a diminuição do peso corporal sim;
no entanto é necessário despir as roupas molhadas cujo peso pode esconder as per-
das hídricas estabelecidas.
Para rehidratar deve-se beber água, sumos de frutas (diluídos com 50% de água), be-
bidas desportivas, soluções de rehidratação oral. Podemos fazer também a nossa
própria bebida. álcool, chá e café actuam como diuréticos e não são bebidas adequa-
das para o restabelecimento de fluidos perdidos pelo exercício.
Como nota importante, importa referir que embora um atleta deva beber antes e
durante o exercício para repor os fluidos perdidos pelo suor, evitando a desidratação
e os perigos consequentes, deve-se ter em conta que a sobrecarga hídrica pode levar
a uma situação de hiponatriemia, que se caracteriza por uma baixa maciça de sódio
sanguíneo causado por uma excessiva diluição o que pode conduzir a síncope fatal.
Assim as melhores bebidas para rehidratação após exercício físico intenso e prolon-
gado devem ter algum sódio para fixar a água no organismo e algum açúcar para aju-
dar à reposição das reservas musculares e hepáticas de glicogénio.

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5. Bebidas Desportivas
A reposição de fluidos é conseguida através da ingestão de água simples. No entanto,
em alguns casos a utilização de bebidas desportivas é mais benéfica.
As bebidas aconselhadas aos atletas podem ser:

— Isotónicas
— Hipertónicas
— Hipotónicas

Quando a hidratação é o objectivo principal, a água simples é adequada, embora be-


bidas hipotónicas ou isotónicas ainda sejam melhores pois podem ser absorvidas
mais rapidamente a partir do intestino. Quando a reposição energética tem a prio-
ridade, recomenda-se uma bebida mais concentrada (acima de 6%), que fornece car-
bohidratos em maior quantidade embora sejam menos eficientes para a hidratação.
As bebidas isotónicas estão aptas a repor rapidamente os fluidos perdidos pelo suor
providenciando carbohidratos. Este tipo de bebida é a preferida por muitos atletas
(e.g. modalidades de endurance e jogos desportivos colectivos) já que fornece gli-
cose, a fonte de energia corporal mais importante. As bebidas isotónicas devem ter
uma concentração de glicose variando entre 6% e 8%.
As bebidas hipotónicas repõem rapidamente os fluidos perdidos pelo suor. São acon-
selháveis para atletas que necessitam de fluidos sem uma sobrecarga de carbohi-
dratos (e.g. ginastas, jockeys).
As bebidas hipertónicas são utilizadas para suplementar a ingestão diária de carbo-
hidratos, normalmente após exercício e no sentido de potenciar as reservas mus-
culares de glicogénio. Nas modalidades ultra-prolongadas são necessários elevados
níveis de energia e as bebidas hipertónicas podem ser tomadas durante o exercício
para fornecer a quantidade de energia necessária mesmo à custa de algum descon-
forto gástrico ou motor (uma bebida com 16% de polímeros de glucose aportará
energia adicional importante para o suporte energético durante o exercício muito
prolongado). Se usadas durante o exercício prolongado, as bebidas hipertónicas
devem ser tomadas conjuntamente com bebidas isotónicas para repor os fluidos. É
necessário ter em conta que quanto mais concentrada a bebida (superior conteúdo
em CHO e minerais) mais dificultado fica o esvaziamento gástrico e mais lenta a
absorção.
Normalmente as bebidas desportivas industriais contêm carbohidratos e sódio os
quais maximizam a absorção de fluidos providenciando ao mesmo tempo energia
para os músculos. A dieta recuperará as perdas minerais provocadas pela sudação
pelo que será de evitar a sobrecarga de minerais nas bebidas, com excepção óbvia
das ultramaratonas cuja duração exige especiais cuidados na manutenção do equi-
líbrio hidríco-electrolítico.
Embora alguns autores advoguem o interesse em adicionar outras substâncias (e.g.
glicerol, proteínas) às bebidas desportivas para uma melhor rehidratação, os resul-
tados são conflituais. Em relação à performance desportiva foi verificado, após cor-
rida de meia-maratona, que a adição de proteínas às bebidas desportivas, embora
apresentasse algum benefício em relação à sensação retardada de desconforto mus-

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cular induzida pelo exercício, não tinha qualquer efeito na melhoria da perfor-
mance após recuperação quando comparado com a ingestão exclusiva das bebidas
desportivas usuais (Millard-Stafford et al., 2005).

6. Ingestão de Vitaminas e Minerais


Os micronutrientes, nomeadamente vitaminas e minerais são necessários somente
em pequenas quantidades mesmo para um desportista. Não são combustíveis para
o metabolismo energético mas são importantes para o apoio a múltiplas reacções
químicas complexas que
mantêm o organismo ac-
tivo e saudável.
Vitaminas e Minerais extra
sob a forma de suplemen-
tos são em geral desneces-
sários quando se consome
uma larga variedade de ali-
mentos dos 4 grupos prin-
cipais: pão, cereais e
batatas; leite e produtos lác-
teos; frutas e vegetais;
carne, peixe, aves, ovos,
gramíneas (leguminosas),
nozes e sementes.
Contudo muitos atletas preocupam-se por a sua dieta não ser equilibrada. Também
os vegetarianos e aqueles com baixa ou alta ingestão energética procuram apoios
para tornar a dieta completa. Se alguém decidir tomar um suplemento:

— deve escolher um multivitamínico com suplemento de ferro


— comprá-lo na farmácia
— perguntar ao farmacêutico ou médico qual o melhor e mais adaptado à condição
pessoal
— seguir as instruções de dosagem, pois mais não quer dizer melhor e muitas vezes
significa perigoso.

A ingestão excessiva de vitaminas não melhora a performance ou condição física, e


pode ser a causa de distúrbios gastrointestinais com afectação directa do rendi-
mento desportivo.
Entre os factores bio-reguladores mais utilizados pelos atletas aparecem os antioxi-
dantes. Vitamina C, vitamina E, pró-vitamina A (betacaroteno), selénio, zinco, glu-
tationa, coenzima Q10, têm sido objecto de múltiplos estudos e os resultados são
conflituais. De uma forma geral a suplementação com estas substâncias não apre-
senta resultados significativos directos na melhoria da performance. Em sujeitos
em carência ou défice nutricional específico, a suplementação de um dado mineral
ou vitamina pode ter efeitos positivos na performance desportiva. No entanto, em
sujeitos com uma dieta equilibrada a suplementação vitamínica e/ou mineral pode

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livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 435

inclusive ter efeitos deletérios quer na performance quer na saúde dos indivíduos.
Por exemplo, Gomez-Cabrera et al. (2008), comprovaram que a suplementação de
1 g diária de vitamina C reduz a expressão dos factores-chave de transcrição envol-
vidos na biogénese mitocondrial, reduzindo a eficiência do treino de endurance e
inibindo a recuperação da função muscular após exercício excêntrico (Close et al.,
2006).

7. Ingestão Proteica e Força Muscular


Está bem definido que a força de um músculo é geralmente proporcional à sua área
de secção transversa, pelo que, em última instância, é necessário aumentar o vo-
lume muscular de forma a potenciar a força. O tecido muscular, além de água como
elemento principal, é essencialmente composto por proteínas (como a actina e mio-
sina principais proteínas contrácteis), pelo que é importante aumentar o conteúdo
em proteínas do músculo modulando o metabolismo proteico na fase de aumento
do volume muscular. O volume muscular e a força podem ser aumentados promo-
vendo a síntese proteica ou inibindo a degradação das proteínas. O treino de força
visa ambos os efeitos: diminuir o desgaste muscular para uma dada tensão de es-
forço e aumentar a síntese proteica através da activação de vários factores de cres-
cimento (e.g. hormona de crescimento, IGF-1, etc.).
A Organização Mundial de Saúde (OMS) aconselha, para sedentários, a ingestão diá-
ria de proteínas variando entre 0.8 e 1.0 g por quilograma de massa corporal. Para
desportistas, as proteínas devem corresponder a 12-15% do valor energético total
(Lemon & Proctor, 1991). Parece que as necessidades proteicas de um desportista
estão relacionadas com o tipo de actividade desenvolvida. Assim, os especialistas
dos desportos de força parecem ter maior necessidade de proteínas que os especia-
listas dos desportos de endurance. Lemon (1995) aconselha a ingestão proteica de
1.4-1.8 g.kg-1.dia-1 para modalidades de força e 1.2-
1.4 g.kg-1.dia-1 para modalidades de endurance, em-
bora exista certa controvérsia sobre os valores
adequados a cada modalidade.
Muitos desportistas consideram ter necessidade de
grandes quantidades de proteínas. Isto não é ver-
dade. Mesmo durante fases de treino intenso, so-
mente são necessárias quantidades de proteínas
ligeiramente superiores ao normal. As proteínas in-
geridas acima das necessidades corporais serão ar-
mazenadas como gordura e provocam uma
sobrecarga renal e hepática induzindo uma situação
de acidose sistémica.
Para se assegurar que a dieta contém todos os ami-
noácidos essenciais (Leucina, Arginina, Isoleucina,
Lisina, Histidina (crianças), Metionina, Fenilala-
nina, Treonina, Triptófano, Valina) deve-se assegu-
rar a ingestão dos alimentos proteicos completos
(leite, queijo, iogurte, carne, aves, peixe, ovos) e os

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feijões, leguminosas, cereais, nozes e sementes. Embora os produtos vegetais não


possuam todos os aminoácidos essenciais a conjugação de dois alimentos vegetais,
normalmente uma leguminosa e um cereal, permitem resolver o problema. Uma
dieta vegetal rica em feijão e arroz possui todos os aminoácidos essenciais. Como
vimos atrás, a dieta dos fundistas quenianos da etnia Kalenjin é fundamentalmente
vegetariana, o que não impede a sua excelência performativa.
Muitos desportistas recorrem com frequência à suplementação proteica ou de ami-
noácidos individuais ou engrupados (e.g. aminoácidos de cadeia ramificada).
Embora a investigação corrente sugira que sujeitos envolvidos, seja em exercícios
de força de elevada intensidade seja em exercícios de endurance, possam ter neces-
sidades aumentadas de proteínas na dieta, a investigação disponível é equívoca ou
mesmo negativa em relação aos efeitos ergogénicos da suplementação proteica ou
de aminoácidos. Em geral, sujeitos fisicamente activos devem ser aconselhados a
obter os aminoácidos necessários para a reconstrução tecidular através do consumo
de proteínas naturais de elevada qualidade que podemos encontrar em alimentos
como a carne, o peixe, o leite e os ovos.

8. Mulheres Desportistas
A mulher desportista, em virtude da pressão na procura de um corpo extrema-
mente funcionante (nas fundistas do atletismo o peso supérfluo paga-se com a afec-
tação da economia de corrida) ou esteticamente sugestivo, ocorre com frequência
em situações de desordem alimentar. A procura da magreza extrema reduz drasti-
camente a percentagem de gordura corporal, podendo induzir situações de ame-
norreia primária ou secundária que podem estar relacionadas com a emergência de
situações de osteopenia e osteoporose.
Uma mulher desportista, para o bom funcionamento do seu processo hormonal,
não deve privilegiar a magreza por si, mas procurar um corpo equilibrado adaptado
à sua modalidade desportiva através duma dieta adequada em quantidade e quali-
dade, às suas exigências físicas.
Particularmente nos esforços de endurance a mulher pode desenvolver situações
de anemia que podem afectar quer a performance quer a saúde.
A anemia é particularmente deletéria para os atletas ao afectar o transporte sanguí-
neo de gases (O2-CO2) reduz a capacidade de trabalho físico e pode provocar fadiga,
fraqueza e tonturas. Numerosos factores podem contribuir para o desenvolvimento
de anemia nos atletas: exigências aumentadas de ferro e aumento das perdas (uma
perda consistente de ferro ocorre através da sudação), hemólise mecânica intravas-
cular (incluindo a denominada hemólise plantar) e a pseudo-anemia dilucional (que
ocorre por aumento da fixação de água e consequente aumento do volume plasmá-
tico). Acresce que nas mulheres atletas, a todos estes factores tem de ser acrescen-
tada a perda de sangue (e consequentemente de ferro) pela menstruação.
Normalmente, em atletas, a anemia é derivada da deficiência em ferro (Beard &
Tobin, 2000).
De uma forma geral, as deficiências minerais são raras em atletas, com a possível
excepção de ferro e cálcio, particularmente nas mulheres. A mulher atleta com uma
pobre ingestão de cálcio mas também períodos irregulares apresentam um risco

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maior de desenvolvimento de fracturas de stresse e mais tarde de osteoporose. Ve-


getarianos devem-se assegurar que a ingestão de ferro é adequada. Os valores reco-
mendados são de 8.7 mg/dia para o homem e 14.8 mg/dia para a mulher e 700
mg/dia de cálcio para ambos.
Boas fontes de ferro são a carne vermelha limpa (especialmente o fígado), cereais
fortificados e muesli, feijões e favas, amendoins, damascos, sementes de sésamo e
pão e biscoitos de trigo integral.
Boas fontes de cálcio são o leite semi-desnatado, queijo de baixo teor de gordura, sar-
dinhas, feijões e favas, iogurte, pão branco e sementes de sésamo. Já que afectam a
absorção de ferro alguns alimentos não devem ser ingeridos às refeições: suplementos
de cálcio, café, chá verde, chá preto. Para melhor absorção de ferro presente nas le-
guminosas deve-se ser ingerida simultaneamente uma bebida rica em vitamina C.
Deve-se ter o máximo cuidado acerca da suplementação de ferro, pois sujeitos com
níveis normais de ferro podem desencadear uma situação de hemocromatose, prin-
cipalmente sujeitos homozigóticos com um dado polimorfismo que afecta cerca de
1% dos europeus, que é muito mais perigosa que níveis marginalmente baixos de
ferro sanguíneo. Embora a suplementação de ferro seja frequente em atletas, não
tem, efeitos positivos em relação à performance (Zoller & Vogel, 2004), por isso o
status de ferro deve ser bem escrutinado pois só em situações de anemia ferro-de-
pendentes é que devem ser aconselhados suplementos de ferro.

9. Crianças e Jovens Atletas


Não existem especiais recomendações dietéticas para crianças, a não ser uma dieta
bem equilibrada adequada para uma boa saúde e um crescimento saudável, que
deve assentar em alimentos de baixo teor em gordura e ricos em carbohidratos, fun-
damentalmente complexos. A criança desportista deve ser habituada a ingerir gran-
des quantidades de água antes e após os eventos desportivos.
Algumas regras devem assistir a alimentação das crianças e jovens sejam ou não
desportistas:

— A dieta deve ser constituída por 55-65% de carbohidratos (principalmente CHO


complexos como as massas, frutas em natureza, pão integral, arroz, batata, etc.)
— O aporte proteico deve variar entre 12 a 15% do valor calórico total. Enquanto
em adultos sedentários a Organização Mundial de Saúde aconselha a ingestão
de proteínas a variar entre 0.8 e 1 g/kg/dia, nas crianças e jovens activos os va-
lores devem ser superiores (1.4 a 1.6 g/kg/dia). Outros autores sugerem valores
diferentes.
— O consumo de gorduras deve ser reduzido. Vários estudos que realizamos com
jovens desportistas (Couto & Rodrigues dos Santos, 2005; Rodrigues dos Santos
et al., 2009) verificaram que os jovens apresentam um consumo de gorduras
acima das recomendações. Mesmo em jovens atletas as gorduras da dieta não
devem ultrapassar os 25% do volume calórico total.
— Deve-se comer em abundância alimentos de elevada densidade nutricional
(ricos em nutrientes), com especial ênfase nos legumes e frutas.
— Embora o peixe faça parte da dieta mediterrânea é pouco apreciado pelos jovens

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(muito por culpa da fast food); no entanto, os vários tipos de carne podem fazer
o mesmo efeito se forem completadas com a ingestão de pílulas de óleo de fígado
de bacalhau, para aumentar o aporte de ácidos gordos ómega-3, factores muito
importantes numa dieta equilibrada.
— De uma forma pedagogicamente correcta deve-se ensinar os jovens a reduzir os
alimentos de elevada densidade calórica, ricos em gordura e açúcar (fritos, ham-
búrgueres, doces, etc.). Atenção reduzir não é eliminar pois os jovens ao estabe-
lecer uma dada relação afectiva (prazer-desprazer) com os alimentos não podem
ser abruptamente privados daquilo de que gostam.
— Aumentar o aporte de vitamina C, através de alimentos naturais ricos neste nu-
trimento (morangos, kiwi, abacaxi, laranja, acerola, etc.).
— Beber leite com regularidade ou em sua substituição iogurte ou queijo. É de reter
que o jovem em crescimento necessita de um aporte aumentado de cálcio para
os seus ossos, dentes e função muscular.
— Beber água em quantidade e várias vezes ao dia.
— Optar por uma dieta variada; a diversidade alimentar permitirá o acesso facili-
tado a maior número de nutrientes evitando carências nutricionais.
— Controlar e reduzir o consumo de sal e açúcar. São os pais, desde as idades mais
temporãs, que devem habituar os filhos numa culinária pobre em sal e de redu-
zido teor em açúcar. Tal atitude contribuirá positivamente na luta contra a hi-
pertensão (sal) e obesidade e diabetes mellitus de tipo II (açúcar).
— Para aumentar o aporte de fibras alimentares não são necessários suplementos
específicos. Deve-se aumentar a ingestão de frutos frescos e legumes (estes atra-
vés de sopas quando houver resistência por parte dos jovens).

Embora os jovens apresentam uma superior capacidade de suportar excessos ali-


mentares devido à sua taxa de actividade, importa reter que a gordura supérflua ad-
quirida nos primeiros anos de vida é muito difícil de ser anulada depois.

10. Dieta Pré-competição


Embora não gostemos de dar soluções ou receitas, apresentamos uma dieta a ante-
ceder a competição a partir do cabaz de alimentos normal na Europa.

SOPA. Puré de legumes e hortaliças batido em copo liquefactor engrossado com


arroz ou massa (nunca com leguminosas ou batata), temperado com azeite

PRATO PRINCIPAL. Peixe cozido, assado na brasa ou grelhado com muito pouca
gordura, a limpar de pele e gorduras visíveis; em alternativa, carne magra muito
tenra ou picada, grelhada.
Massa cozida, arroz ou farinha de pau sem estrugido, ou puré de batata. Nunca ve-
getais, leguminosas ou batatas (a não ser em puré)

SOBREMESA. Fruta batida. Eventualmente substituída por sumo, tomado como


bebida no decurso da refeição, diluído a 50%. Doce de colher pouco açucarado: ale-
tria, arroz doce, creme

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BEBIDA. Infusão digestiva: limonete, tília, menta ou macela; em alternativa chá


fraco quando não se tome café. Nunca bebidas alcoólicas ou gasosas. Café longo,
com o máximo de 8 gr de açúcar, no caso de atletas não excitáveis, ou, em alterna-
tiva chá.

PÃO. Tostas ou pão tostado; nunca fresco. Pode usar-se até 15g de manteiga

O tempo de ingestão da última refeição pré-competição é normalmente de 3 a 4


horas antes. No entanto, em sujeitos muito excitáveis esse tempo tem de ser au-
mentado, enquanto outros atletas necessitam de aportes energéticos até bem perto
da competição.
Para evitar situações de hipoglicemia reaccional (baixa abrupta de açúcar no san-
gue) não devem ser ingeridos alimentos ricos em carbohidratos na hora que ante-
cede a competição. No entanto, os sujeitos que experimentam estas situações
negativas são raros. Como advertência é de salientar que qualquer prática nutricio-
nal deve ser experimentada em treino.

11. Conclusão
Embora com especial atenção à hidratação e metabolismo dos carbohidratos abor-
damos alguns assuntos que frequentemente preocupam os desportistas. As análises
e sugestões apresentadas não podem ser consideradas como dogmas nutricionais
mas somente como referências. A educação nutricional de um desportista é um pro-
cesso sempre em evolução que acompanha o nível de desenvolvimento científico
das áreas biológicas. O bom senso é a regra de ouro para abordar a nutrição humana,
sabendo-se que quanto mais rica e diversificada for a alimentação menos riscos se
correm de desenvolver défices nutricionais.

439
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 440

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livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 441

Aspectos Metodologicos para o Estudo Biomecâ-


nico das Forças Internas ao Aparelho Locomotor:
Importância e Aplicações
Alberto Carlos Amadio & João Paulo Vilas-Boas
(Universidade de São Paulo, Escola de Educação Física e Esporte
& Universidade do Porto, Faculdade de Desporto, CIFI2D)

Considerações iniciais
Biomecânica é uma disciplina entre as ciências derivadas das ciências naturais, que se
ocupa de análises físicas de sistemas biológicos, conseqüentemente, de análises físicas
de movimentos do corpo humano. Quando dimensionamos a biomecânica no con-
texto das ciências derivadas, cujo objetivo é estudar o movimento, devemos lembrar
que esta reivindicação científica apoia-se em dois fatos fundamentais: a) a biomecânica
apresenta claramente definido seu objeto de estudo, definindo assim sua estrutura de
base do conhecimento; b) seus resultados de investigações são obtidos através do uso
de métodos científicos, envolvendo todas as etapas do trabalho científico.
Naturalmente estes aspectos são amplamente dinâmicos e não devem sofrer soluções
de continuidade em função do tempo, admitindo avanços científicos que colaboram
para o crescimento do próprio conhecimento científico. Assim, é muito importante
dizermos que não é suficiente a matéria de estudo estar definida, mas também é ne-
cessário que existam métodos de estudo próprios para que se aplique na investigação
do movimento. Seu atual estágio de desenvolvimento é expresso pelos novos proce-
dimentos e técnicas de investigação, nas quais podemos reconhecer a tendência cres-
cente de se combinar várias disciplinas científicas na análise do movimento.
Nos últimos anos, o progresso das técnicas de medição, armazenamento e proces-
samento de dados contribuiu enormemente para a análise do movimento humano.
É claro que nenhuma disciplina se desenvolve por si mesma; para a sua formação, a
biomecânica recorre a um complexo de disciplinas científicas e, particularmente
no caso da biomecânica, pode-se observar uma estreita relação entre as necessidades
e exigências da prática do movimento humano.
O corpo humano pode ser definido fisicamente como um complexo sistema de seg-
mentos articulados, em equilíbrio estático ou dinâmico, ou em situação de ausência
de equilíbrio, onde o movimento é causado por forças internas atuando fora do eixo
articular, provocando deslocamentos angulares dos segmentos, e por forças externas
ao corpo. Em princípio deve-se considerar que a estrutura funcional do sistema bio-
lógico passou por um processo organizacional evolutivo de otimização, que se dife-
rencia sensivelmente do caminho de aperfeiçoamento técnico do movimento. Em
contraposição a um corpo rígido, a estrutura biológica do corpo humano permite a
produção de força através da contração muscular, que transforma o corpo num sis-
tema autônomo e independente, produzindo o seu próprio movimento. Desta ma-

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neira definimos que a ciência que descreve, analisa, e modela os sistemas biológicos
é a biomecânica, logo uma ciência de relações altamente interdisciplinares dada a na-
tureza do fenômeno investigado. Assim, a biomecânica do movimento busca explicar
como as formas de movimento dos corpos de seres vivos acontece na natureza a partir
de parâmetros cinemáticos e dinâmicos (ZERNICKE, 1981).
Conhecimentos científicos possibilitam o desenvolvimento de métodos para o es-
tudo de fenômenos naturais, indispensáveis para a compreensão dos parâmetros
que compðem o universo do movimento humano. A biomecânica interna investiga
as forças que tem sua origem dentro do corpo e que na maioria dos casos pressu-
põem conhecimento da biomecânica externa. Portanto, com relação a aplicação da
biomecânica para análise e investigação de movimentos do corpo humano e con-
sequentemente do movimento esportivo, poderíamos apresenta-la subdividida em
duas áreas de estudo: biomecânica interna e biomecânica externa.
Na área de análise do movimento esportivo, o comportamento da sobrecarga arti-
cular e os efeitos dos mecanismos motores no processo de aprendizagem são exem-
plos de áreas do conhecimento, que se relacionam com a diagnose no esporte.
Portanto referimo-nos ainda a uma biomecânica do esporte, que se dedica ao estudo
do corpo humano e do movimento esportivo em relação as leis e principios físico-
mecânicos incluindo os conhecimentos anatômicos e fisiológicos do corpo humano.
No sentido mais amplo de sua aplicação, ainda é tarefa da biomecânica das ativida-
des esportivas a caracterização e otimização das técnicas de movimento através de
conhecimentos científicos que delimitam a área de atuação da ciência, que tem no
movimento esportivo seu objeto central de estudo. A biomecânica do esporte inte-
gra ainda outras áres da ciência que também possuem no movimento esportivo a
definição do seu objeto de estudo.
O relacionamento entre os parâmetros estruturais do movimento faz-se presente,
na prática, através da real interdependência entre dois parâmetros: o qualitativo e
o quantitativo, dada a natureza da tarefa de movimento a ser realizada. Assim sendo,
encontramos distintos tipos de relacionamento com participação de maior ou
menor grau dos parâmetros estruturais para cada tarefa de movimento. Quanto
maior a interdependência mais avançado é o processo de especialização e maturi-
dade do movimento. Muito raramente poderíamos encontrar tarefas de movimento
de interesse de estudo onde não existisse interdependência alguma entre estes pa-
râmetros estruturais do movimento. Portanto, quanto maior a interdependência,
tanto maior é a possibilidade de entendermos a estrutura de movimento na sua con-
cepção mais complexa para a análise.
No processo de investigação do movimento em biomecânica, busca-se a definição
de um método para a orientação da análise experimental, procedimento que poderá
envolver uma técnica ou um conjunto delas, permitindo o esclarecimento de pro-
blemas na estrutura da investigação. Assim, o primeiro passo é o estabelecimento
de objetivos para o desenvolvimento da análise do movimento humano.
Outro aspecto muito importante em estudos biomecânicos é o desenvolvimento
de uma ampla base de dados relativa a informaçðes acerca do movimento humano.
A possibilidade de intensificar as interpretaçðes estatísticas de modelos biomecâ-
nicos depende, em primeiro lugar, da expansão dos parâmetros e variáveis do mo-

442
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 443

vimento nesta ampla base de dados, que devemos buscar através de estudos expe-
rimentais e demais registros sobre informações de testes em biomecânica.
Através da biomecânica e de suas áreas de conhecimento correlatas podemos analisar
as causas e fenômenos do movimento. Para que possamos entender melhor a com-
plexidade do movimento humano e explicarmos suas causas, é necessário que outros
aspectos da análise multidisciplinar sejam também consideradas. Além da biomecâ-
nica fazem parte desse campo de estudo e de pesquisa outras importantes disciplinas
como a antropometria, a neurofisiologia, a fisiologia geral, a bioquímica, o ensino e a
aprendizagem do movimento, a psicologia, a física, a matemática, entre outras.
Considerando-se o movimento humano como o objeto central de estudos em edu-
cação física e esportes, analisamos suas causas e efeitos produzidos em relação à
biomecânica e às demais áreas de estudos que compõem esta multidisciplinar in-
terdependência no estudo do movimento humano. Para a investigação deste mo-
vimento, torna-se necessário, pela complexidade estrutural do mesmo, a aplicação
simultânea de métodos de mensuração nas diversas áreas do conhecimento da ciên-
cia. A este procedimento denomina-se «Complexa Investigação« do movimento. Este
procedimento deve envolver todos os métodos de pesquisa em biomecânica, de-
terminados pelas variáveis a serem observadas na análise do movimento, como,
por exemplo, a combinação simultânea e sincronizada de procedimentos cinemá-
ticos e dinâmicos tão comuns e necessários para a interpretação do movimento.
Todo estudo biomecânico depende da determinação de grandezas mecânicas, que
podem ser interpretadas como propriedades do corpo humano em análise compor-
tamental, ou mesmo entendidas no processo de desenvolvimento como sendo pas-
sível a alterações. Medir uma grandeza física significa estabelecer uma relação entre
esta e uma grandeza-unidade de mesma natureza. Padronizar procedimentos de
medida em biomecânica torna-se uma tarefa difícil, pois o processo de coleta, ar-
mazenamento e digitação de dados depende muito dos avanços tecnológicos e das
mudanças que ocorrem, o que nos impede de traçar técnicas definitivas. Essas mu-
danças ocorrem no sentido tanto da pesquisa básica quanto nas aplicações da bio-
mecânica (WOLTRING, 1992).
A determinação de forças internas assume destacada relevância científica e tecno-
lógica na análise biomecânica do movimento humano. A partir da análise dessas
forças, importantes considerações acerca do controle do movimento e da sobrecarga
mecânica imposta ao aparelho locomotor podem ser feitas, contribuindo de forma
efetiva na busca de parâmetros de eficiência do movimento e/ou proteção do apa-
relho locomotor. As forças internas podem ser obtidas através de modelos físico-
matemáticos aplicados ao corpo humano. Em função da simplificação da
representação do aparelho locomotor, estes modelos permitem o cálculo dessas for-
ças, a partir de variáveis oriundas da dinamometria, da cinemetria e da antropome-
tria (AMADIO & DUARTE, 1996; SOUSA, 2007; SOUSA et al., 2007).
Quanto às técnicas de medição em biomecânica poderíamos relacionar os métodos
que representam todo o suporte de desenvolvimento e evolução da ciência, parti-
cularmente em biomecânica do esporte: a) simulação e otimização computacional
da técnica de movimento; b) comando e controle da técnica de movimento por
computação; c) análise da sobrecarga do aparelho locomotor.

443
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 444

Por sua vez, a biomecânica, como já classificamos, pode ser dividida em interna e
externa, dada a grande diferença de sua abordagem e aplicação. A Biomecânica In-
terna se preocupa com as forças internas, as forças transmitidas pelas estruturas
biológicas internas do corpo, tais como forças musculares, forças nos tendões, liga-
mentos, ossos e cartilagem articular. Elas estão intimamente relacionadas com a
execução dos movimentos e com as cargas mecânicas exercidas pelo aparelho loco-
motor, representadas pelo stress, que é o estímulo mecânico necessário para o de-
senvolvimento e crescimento das estruturas do corpo. O conhecimento destas
forças internas tem aplicações como o estudo clínico da marcha originada por ano-
malia muscular, transplante de tendão ou amputação de membros, por exemplo,
para aperfeiçoamento da técnica de movimento, assim como na determinação de
cargas excessivas durante as atividades físicas em esportes de alto nível ou em ati-
vidades laboriais do cotidiano. A determinação das forças internas dos músculos e
das articulações ainda é um problema metodológico não totalmente resolvido na
biomecânica, mas seguramente constitue-se a base fundamental para melhor com-
preensão de critérios para o controle de movimento (CHAO, 1986).
O sistema de comando estabelece uma sequência relacionada ao processo de ativa-
ção de centros nervosos para o controle de movimento. Esta sequência de ativação
dos padrões musculares podem modificar-se em função de respostas do sistema sen-
sorial periférico, do controle articular ou mesmo por ação de outros receptores. A
interação entre o sistema nervoso central, sistema nervoso periférico e o sistema
músculo-esquelético define a base de funcionamento e comando de movimento,
que tem por pressuposto um modelo constituído, fundamentalmente segundo o
princípio causa e efeito (VAUGHAN et al 1992) conforme ilustrado na fig. 1.

Fig. 1: Componentes que estabelecem a base funcional do sistema de comando e controle de


movimento segundo modelo de natureza causa e efeito (adaptado de VAUGHAN et al. 1992).

444
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 445

Este estudo sobre o funcionamento físico de estruturas biológicas tem se baseado


principalmente em medidas experimentais. Pela óbvia dificuldade metodológica
de acessarmos o comportamento biomecânico de estruturas internas dos sistemas
biológicos, a sua parametrização em termos de variáveis biomecânicas internas se
torna extremamente dependente ou de medições externas ao organismo, isto é,
observadas exteriormente, ou de equações de estimação. Desta maneira, a biome-
cânica estrutura-se como um ramo de grande interação com áreas diversas que se
aplicam ao estudo do movimento, em especial ao do corpo humano, como a Edu-
cação Física, a Medicina, a Fisioterapia, a Engenharia, a Física, entre outras áreas.
Por se tratar de uma disciplina com alta dependência de resultados experimentais,
é premente que a biomecânica apresente grande preocupação com seus métodos
de medição. Somente desta forma é possível buscar métodos e medidas mais acu-
rados e precisos para a modelagem do movimento humano. Os métodos utilizados
pela biomecânica para abordar as diversas formas de movimento são: cinemetria,
dinamometria, antropometria e eletromiografia (WINTER 1990, AMADIO 1989 &
BAUMANN 1995 ). Utilizando-se destes métodos, afinal, o movimento pode ser
descrito e modelado matematicamente, permitindo a maior compreensão dos me-
canismos internos reguladores e executores do movimento do corpo humano,
como descrito na fig 2, onde observamos áreas para análise e medição do movi-
mento de origem analítica e/ou experimental para a determinação destes parâme-
tros da biomecânica interna.

Fig 2. Áreas para complexa análise biomecânica do movimento


humano (adaptado de AMADIO 1989, BAUMANN 1995).

445
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 446

Estudo de modelos para a determinação de forças internas


Entre as abordagens possíveis para a determinação das forças internas destacamos
duas: a) direta e b) indireta, através de procedimento analítico indireto, utilizando-se
medidas externas e um modelo mecânico do sistema em questão. Há grande dificul-
dade na determinação de forças internas pelo método direto, pois implica fundamen-
talmente na colocação de transdutores dentro do corpo humano para desempenhar
tal tarefa. São poucos os estudos neste campo, e tratam, basicamente, de inserção de
transdutores de força diretamente no tecido biológico em seres humanos, ou de trans-
dutores em endopróteses e órteses que são então utilizadas pelo indivíduo.
Os transdutores de força inseridos diretamente no tecido biológico são colocados
em estruturas como tendões, a maioria deles no tendão calcâneo ou no patelar, li-
mitando-se a medir a força nesta estrutura. Os primeiros trabalhos em humanos
foram feitos utilizando-se strain-gauge para medir a força de tração no tendão cal-
câneo (KOMI et al., 1987). Com o desenvolvimento de transdutores mais compactos
e de outros princípios, como transdutores baseados em fibra ótica, estas medidas
diretas tem se tornado menos traumáticas, mas ainda assim aplicável apenas em
casos específicos (KOMI, 1995). Outro problema é que para a calibração do trans-
dutor são utilizadas medidas indiretas, semelhantes àquelas dos procedimentos
analíticos indiretos. Então, se o procedimento indireto é adequado para a calibração,
este pode ser utilizado em outras situações e o método invasivo in vivo poderia ser
evitado (BAUMANN, 1995). A colocação de transdutores em endopróteses e em ór-
teses, substituindo um ou mais segmentos amputados, (BERGMANN et al., 1993)
tem permitido a medição direta de forças nestas estruturas, mas limitam-se a casos
que reportam patologias específicas. Portanto, a determinação das forças internas
deve ser executada indiretamente, por meio de modelos mecânicos do corpo e me-
didas simultâneas e sincronizadas das variáveis biomecânicas externas.
A determinação de forças internas por medidas indiretas tem sido alvo de muitos
trabalhos desde os primeiros estudos de Braune e Fisher, entre 1898-1904 sobre for-
ças internas durante a marcha, onde os experimentos foram limitados pela falta de
um instrumento adequado para medir a força de reação do apoio e seu ponto de apli-
cação. Uma análise mais avançada das forças internas durante a marcha foi feita por
ELFTMAN, em 1938, já utilizando plataforma de força reação do solo. Os estudos
que se seguiram, sofisticaram o modelo mecânico, aplicaram-no para diferentes mo-
vimentos e forças internas e desenvolveram critérios de validação. Entre estes estu-
dos se destacam os de PAUL (1965), MORRISON (1970), SEIREG & ARVIKAR (1973),
PEDOTTI et al. (1978), CROWNINSHIELD & BRAND (1981), PIERRYNOWSKI &
MORRISON (1985), GLITSCH (1992), SIEBERTZ (1994), KRABBE (1994).
Numerosas técnicas analíticas e experimentais tem sido desenvolvidas para deter-
minação indireta de forças internas. Analiticamente, a determinação de forças inter-
nas envolve 2 passos, como ilustrado na fig 3 e em acordo com ALLARD et. al. (1995):

a) a determinação de forças e momentos intersegmentares nas articulações, ba-


seada nos dados cinemáticos e cinéticos (problema de dinâmica inversa); e
b) a distribuição das forças e momentos intersegmentares entre os músculos e as
forças articulares de vínculo.

446
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Fig 3: Determinação analítica das forças musculares


e articulares (adaptado de Allard et. al., 1995).

Na determinação das forças e momentos intersegmentares, as equações de movi-


mento devem ser resolvidas inversamente, isto é, deduzir as forças a partir da cine-
mática, uma vez que não conhecemos as expressões literais para as forças agindo
sobre os segmentos do modelo. Assim, utiliza-se o diagrama de corpo livre para o
modelo de um segmento qualquer do corpo humano, de maneira exemplar, em
duas dimensões, como ilustrado na fig 4.
E as equações de movimento, na notação adotada, seriam:
para translação:

mi¨xi = Fi(i+1)x + Fi(i-1)x + FEx

¨ i = Fi(i+1)y + Fi(i-1)y - mig + FEy


miy

para rotação:

¨ = Mi(i+1)z + Mi(i-1)z
Iizϴiz

– (yi(i+1) – yi) Fi(i+1)x + (yi – yi(i+1)) Fi(i+1)x – (yE – yi) FEx

– (xi(i+1) – xi) Fi(i+1)y + (xi – xi(i+1)) Fi(i+1)y + (xE – xi) FEy

447
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 448

xi-xi(i-1) xi(i+1)-xi

Fi(i+1)
Mi(i+1)
Ji(i+1)=(x
) Fi(i+1)
FEy
yi(i+1)-yi
E
rCM=(xi,yi) FEx

m ig
yi-yi(i-1)
Fi(i-1)x
Ji(i-1)=(x i(i-1),yi(i-1))
Mi(i-1)z
Fi(i-1)y

Fig 4: Diagrama de corpo livre para um segmento


genérico (adaptado de Nigg & Herzog, 1994).

onde:
qiz é o ângulo do eixo longitudinal do segmento entre as duas articulações Ji(i-1) e
Ji(i+1);
Iiz é o momento de inércia do segmento i sobre o eixo z passando pelo centro de
massa;
FE é uma força externa sobre o ponto E.

Neste sistema de equações de movimento, as forças que causam o movimento não


são conhecidas, mas sim seus efeitos e as posições dos segmentos, observando-se o
movimento. Portanto a resolução deste sistema não pode ser feita pelo método tra-
dicional de integração (SYMON, 1986), mas sim pelo caminho inverso, a derivação
numérica dos dados. Este problema é definido como o «problema de dinâmica in-
versa« em biomecânica, como ilustrado na fig. 5. Há dois procedimentos para a in-
terpretação deste problema de dinâmica inversa:

a) O primeiro é medir experimentalmente os dados das posições dos segmentos e


diferenciá-los numericamente para obter as velocidades e acelerações corres-
pondentes. Substituindo estes dados cinemáticos nas equações de movimento
e conhecendo as medidas antropométricas, nomeadamente as propriedades
inerciais dos segmentos considerados, pode-se obter um sistema de equações al-

448
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 449

gébricas onde somente as forças são desconhecidas. No entanto, os erros nas me-
didas antropométricas e a diferenciação numérica, que determina os erros ex-
perimentais na medida das posições, podem comprometer a confiança nos
resultados obtidos;
b) O segundo procedimento utiliza um processo iterativo para determinar as forças
que minimizarão a energia total no movimento, utilizando então critérios de
otimização para minimizar a energia. O problema é que a seleção destes critérios
necessita de fundamentos fisiológicos e que os valores específicos para as forças
de vínculo articular não podem ser determinados a priori. Resalte-se que esta-
mos nos referindo a critérios de otimização para as forças e momentos externos
e não para as forças internas.

A dinâmica inversa, juntamente com o modelamento do corpo humano em seg-


mentos articulados, apresenta-se como a alternativa mais adequada à determinação
das forças internas (AN, et al. 1995). O método direto usado para medir as forças in-
ternas é extremamente invasivo e na maioria das vezes impróprio para a rotina diá-
ria, enquanto que a dinâmica inversa, como método indireto, é mais indicada
quando o objetivo é estudar o controle neuro-muscular do sistema músculo-esque-
lético e seu modelamento exige uma precisão maior nos dados anatômicos, ainda
não totalmente disponível
A dinâmica na literatura
inversa é umaespecializada.
poderosa ferramenta para o cálculo das
A dinâmica inversa é uma poderosa
resultantes das forças musculares ferramenta para o cálculo
nas articulações das resultantes
(BAUMANN, 1995). O das
forças musculares nas articulações (BAUMANN, 1995). O processo consiste, por-
processo consiste, portanto, em obter a descrição cinemática do movimento,
tanto, em obter a descrição cinemática do movimento, os dados antropométricos
os dados antropométricos do modelo anatômico e as medidas de forças
do modelo anatômico e as medidas de forças externas ao sistema (que no caso do
andar humano externas ao sistema
é a força de reação(quedono solo),
caso do andar
para humano
definir é a força de
as equações doreação do
movimento,
solo), parana
conforme ilustrado definir
fig 5.as equações do movimento, conforme ilustrado na fig 5.

CINEMETRIA ANTROPOMETRIA DINAMOMETRIA


(video) (modelos) (plataforma de força)

DESLOCAMENTO
x i , y i , zi parâmetros parâmetros forças
geométricos inerciais externas
φi , θi , ψ i

VELOCIDADE
x i , y i , zi
φi , θi , ψi EQUAÇÕES DO MOVIMENTO

Fi,j = m i a i
i, j
ACELERAÇÃO
xi , yi , zi M i , j = Ii α i
i, j
φi , θi , ψi

Fig 5: Etapas e variáveis biomecânicas e respectivas técnicas de medição utilizados


Fig 5: Etapas e variáveis biomecânicas e respectivas técnicas de me-
para a definição das equações do movimento, segundo o principio da dinamica
dição utilizados para a definição das equações do movimento, se-
inversa o(DALLA
gundo VECCHIA,
principio 1998). inversa (DALLA VECCHIA, 1998).
da dinamica

Através de modelo antropométrico estabelece-se as propriedades


449tais como: propriedades geométricas - que
físicas do corpo humano estudado,
envolvem medidas de comprimento, área e volume dos segmentos - e
propriedades inerciais, envolvendo medidas de massa, centro de gravidade e
momento de inércia dos segmentos. Embora as grandezas físicas a serem
determinadas pela antropometria sejam conceitualmente simples, a sua
medida no corpo humano in vivo implica em muitas dificuldades. Geralmente
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 450

Através de modelo antropométrico estabelece-se as propriedades físicas do corpo


humano estudado, tais como: propriedades geométricas - que envolvem medidas
de comprimento, área e volume dos segmentos - e propriedades inerciais, envol-
vendo medidas de massa, centro de gravidade e momento de inércia dos segmentos.
Embora as grandezas físicas a serem determinadas pela antropometria sejam con-
ceitualmente simples, a sua medida no corpo humano in vivo implica em muitas
dificuldades. Geralmente muito esforço é gasto na formulação das equações que
governam um modelo em biomecânica e, em contraste, as propriedades físicas de
entrada são retiradas dos dados da literatura disponível, que nem sempre são ade-
quados à investigação ou aplicação em andamento. Ainda que muitas estruturas
biológicas sejam de limitado interesse para determinação de forças internas em bio-
mecânica, um complexo modelo músculo-esquelético do corpo humano ainda se
constitui num formidável desafio (ALLARD et. al., 1995). Existem diversos métodos
para a determinação experimental das propriedades inerciais. A literatura aponta
fundamentalmente para seis principais modelos teóricos assim classificados: o mo-
delo de Hanavan (HANAVAN, 1964), o método fotogramétrico (JENSEN, 1989), o
modelo de Hatze (HATZE, 1980), o modelo de Yeadon (YEADON, 1989), o modelo
de Zatsiorsky (ZATSIORSKY & SELUYANOV, 1983) e equações de regressão (DRIL-
LIS & CONTINI, 1966).
Um exame do sistema muscular do membro inferior revela 38 músculos de impor-
tância para um modelamento detalhado. Muitos músculos são particionados em duas
ou mais estruturas devido a considerações funcionais, como por exemplo, distintas li-
nhas de ação de força. Ao todo, são 47 músculos que formam o complexo sistema mus-
cular dos membros inferiores (CROWNINSHIELD & BRAND, 1981). Como veremos,
o aparelho locomotor é extremamente redundante, apresentando mais músculos do
que seria necessário para executar o movimento observado (BERNSTEIN, 1967).
O desenvolvimento de um modelo mecânico para a estrutura biológica do corpo
humano ou de seus segmentos com o objetivo de determinar parâmetros internos
desta estrutura, forças musculares por exemplo, em situação dinâmica ou estática,
é altamente complexo, face à intrincada natureza do fenômeno a ser modelado.
Então, o modelo utilizado para a descrição deste fenômeno, que seria por demais
complexo, é simplificado, podendo desta forma, reduzir a exatidão ou resolução de
parâmetros da Mecânica (DUARTE & AMADIO, 1993). Segundo CHAO (1986), se
assumirmos que os segmentos dos membros do corpo humano podem ser idealiza-
dos como pêndulos compostos com muitos graus de liberdade, e devido à geometria
anatômica complexa e ao não total conhecimento da teoria de controle neuromus-
cular, o equacionamento e análise da atividade humana permanece um desafio para
a biomecânica. O desenvolvimento de modernas técnicas para quantificar o movi-
mento humano e a computação, têm capacitado análises e modelamentos mais
completos. No entanto, em geral, a biomecânica ainda é uma ciência fenomenoló-
gica, restrita à descrição do movimento observado e forças envolvidas.
Embora o modelo mecânico em questão seja regido pelas mesmas leis físicas, a abor-
dagem e considerações na biomecânica, tais como simplificações e condições de
contorno, e a determinação dos parâmetros experimentais de entrada mencionados
anteriormente, diferencia bastante a metodologia utilizada se comparada à utili-
zada em ciências exatas.

450
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 451

O corpo humano constitui uma estrutura por demais complexa para ser reprodu-
zido em detalhes por um modelo. Invariavelmente, mesmo em um modelo com-
plexo para uma característica, ele apresenta um elevado grau de simplificação sob
outro aspecto. Por exemplo, a descrição do andar parte de um modelo de um seg-
mento considerando apenas o membro inferior para até um modelo de 17 segmen-
tos considerando o corpo inteiro (MILLER, 1979). Em outro exemplo,
CROWNINSHIELD & BRAND, em 1981, modelaram o segmento inferior do corpo
num complexo modelo de 47 músculos, mas considerando o segmento inferior
composto por estruturas rígidas. BAUMANN & STUCKE (1980), consideraram os
segmentos como estruturas deformáveis, admitindo deslocamento de massa, num
modelo bastante complexo, mas com as ações musculares sendo representadas por
grupos musculares, reduzindo bastante o número de linhas de força.
No desenvolvimento de um modelo mecânico para o sistema músculo-esquelético
do corpo, ou de segmentos específicos, geralmente é considerado que a estrutura
esquelética é mantida em equilíbrio por tensões musculares. Todos os músculos
considerados no modelo são tratados como forças de tensão, dirigidas ao longo das
linhas de ligação entre os pontos de origem e inserção (HERZOG, 1987; BAUMANN,
1992). Então o modelo mecânico consistirá de estruturas rígidas, representando os
segmentos corporais, unidos por juntas com graus de liberdade variáveis em função
da articulação modelada e da complexidade do modelo. Estes segmentos são ligados,
em pontos específicos, por linhas de ação representando os músculos.
Um dos grandes problemas da biomecânica é a natureza mecanicamente redun-
dante do sistema músculo-esquelético, havendo músculos que podem desempe-
nhar funções sinergísticas. Desde que há mais músculos presentes do que são
requeridos para produzir qualquer situação de equilíbrio estático ou padrão de des-
locamento observado pela cinemática, as equações clássicas de análise cinética não
permitem uma solução única das forças musculares cruzando as articulações. O sis-
tema é indeterminado, uma vez que há mais incógnitas do que equações (GLITSCH,
1992), como exemplifica o modelo da fig 6, para o segmento inferior.
Portanto com o auxílio do modelo supra referido (fig 6) buscamos a determinação de
parâmetros biomecânicos de sobrecarga, baseando-nos fundamentalmente na quan-
tificação do momento de rotação na articulação, como indicador de força interna.
Algumas limitações devem ser consideradas em relação à utilização do modelo no
processamento destas forças internas, entre elas a falta conhecimento sobre o prin-
cípio do recrutamento da força muscular humana e a função como ela se distribui.
Assim buscamos através do princípio da minimização de forças e tensões, uma pos-
sível resolução para estes parâmetros internos indicadores da sobrecarga mecânica
ao aparelho locomotor. Claramente este sistema é indeterminado, uma vez que
temos mais incógnitas, forças musculares e forças de contato e vinculo articular,
do que equações. Este sistema matematicamente indeterminado é um problema de
distribuição e envolve calcular as forças internas agindo no sistema músculo-es-
quelético usando as forças e momentos articulares conhecidos. Com o objetivo de
acharmos uma solução para o problema, o sistema é tornado de duas maneiras: a)
ou reduzindo o número de incógnitas (método de redução); b) ou aumentando o
número de equações do sistema (método de otimização), até que o número de equa-
ções e incógnitas seja o mesmo.

451
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 452

Fig 6: Modelo de segmento inferior e definição da convenção dos mo-


mentos articulares no plano sagital (A) (Msk e Mxa) e plano frontal (B)
(Mfk e Mya); considerando-se dados da cinemática (coordenadas espa-
ciais para joelho e tornozelo) e da dinâmica da força reação do solo.
(adaptado de BAUMANN e STUCKE, 1980 e GLITSCH,1992).

O método de redução tem sido utilizado na determinação de forças internas no qua-


dril (PAUL, 1965 e PAUWELS, 1980), joelho (GLITSCH, 1992) e tornozelo (SUTHER-
LAND et al., 1980 e STUCKE, 1984) durante o andar normal. Neste método, é feita
uma série de simplificações funcionais e anatômicas para reduzir o número de es-
truturas produtoras de forças cruzando uma articulação. Músculos com funções si-
milares ou com inserções e orientações anatômicas comuns podem ser agrupados
juntos, e a eletromiografia indicaria quais são os músculos ativos ou inativos que
possam ser eliminados. No método de redução geralmente se analisa sistemas arti-
culares isolados. A ação biarticular de determinados músculos, tais como o reto fe-
moral ou o gastrocnêmio, não são normalmente levadas em conta. Na mesma
perspetiva, a co-ativação de músculos antagônicos tende a ser ignorada, com o ob-
jetivo de simplificar a análise.
Num sistema indeterminado onde existem infinitas soluções, elas são obtidas so-
mente com uma significante simplificação da anatomia funcional. Um método de
solução sem tais simplificações é o que procura uma solução ótima do sistema se-
gundo algum critério de maximização ou minimização de uma variável do sistema.
A solução do sistema indeterminado é obtida formulando uma função custo e uti-
lizando uma técnica de otimização matemática. A função custo fornece a base para
comparação das diversas soluções e a melhor solução é obtida pelo algorítmo de oti-
mização. A consideração de otimização assume que a divisão da carga mecânica
entre os músculos segue certas regras adquiridas de controle motor e que a estraté-
gia de recrutamento muscular é governada por certos critérios fisiológicos que bus-
cam a eficiência funcional máxima. O método de otimização não é somente uma
forma elegante e mais completa de resolver o sistema indeterminado, mas é um

452
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 453

método mais realístico por acreditar que a natureza procura a eficiência do corpo
humano, como já afirmavam os irmãos Weber, em 1836, dizendo que a locomoção
é realizada de modo a otimizar, ou seja, a minimizar o custo metabólico.
Os problemas de otimização, em geral, são definidos por três quantidades: a função
custo, as variáveis de design, e as funções de vínculo. A função custo é a função a ser
otimizada. Para o problema de distribuição em biomecânica, a seleção e justificação
do critério ótimo tem sido um dos grandes problemas. Uma grande variedade de
funções custo tem sido utilizadas com sucessos diferentes. Os critérios, segundo a
natureza do método de otimização, podem ser agrupados em lineares e não lineares.
Os primeiros critérios de otimização desenvolvidos postulavam que a força mus-
cular total ou o trabalho muscular utilizado deve ser o mínimo possível, portanto
são as funções custo que estão sendo minimizadas (SEIREG & ARVIKAR, 1973 e
ZAJAC & WINTERS, 1990). As variáveis de design são as variáveis que são sistema-
ticamente alteradas até que a função custo seja otimizada e todas as funções de vín-
culo sejam satisfeitas. As variáveis de design devem estar contidas na função custo,
e para o problema de distribuição, elas geralmente são as magnitudes de cada força
muscular. As funções de vínculo restrigem a solução do método de otimização para
certas condições de contorno. Por exemplo, as forças musculares devem ser maior
ou igual a zero, uma vez que o músculo só pode fazer força de tração.
Diversos métodos têm sido propostos baseados em critérios fisiológicos, isto é, no
tipo de fibras, áreas da secção transversal dos músculos, ângulo de penação, densi-
dade e massa do músculo, velocidade de contração, entre outros critérios (PIERRY-
NOWSKI & MORRISON, 1985; CROWNINSHIELD & BRAND, 1981 e BRAND et al
1982). O método de otimização, no entanto, também apresenta limitações. Pri-
meiro, o cálculo das forças transmitidas pelas estruturas no joelho tem sido simpli-
cado, ignorando os ligamentos e seus processos de controle de movimento
(vínculos). Segundo, em alguns critérios de otimização (principalmente os critérios
lineares) a atividade muscular dos antagonistas não é adequadamente estimada.

Exemplos de aplicações a movimentos selecionados


Apresentamos através da fig. 7 a quantificação de parâmetros das forças de reação
do solo, como primeiro indicador de sobrecarga para o aparelho locomotor, consi-
derando-se distintas velocidades de deslocamento para o correr, comparadas às res-
postas dinâmicas que ocorrem durante a fase de apoio com o solo no andar. Estes
parâmetros indicadores da sobrecarga mecânica foram determinados através de re-
gistro em protocolos experimentais conforme metodologia anteriormente discu-
tida e estão representados numa hierarquia em função da velocidade de
deslocamento entre as estruturas de movimentos de locomoção.
Entre os estudos aplicados que buscam descrever indicadores do comportamento
das variáveis dinâmicas durante a corrida, tem-se usado a força de reação do solo
como componente descritivo-primário. Assim, com relação à corrida, são duas as téc-
nicas de movimento que podem influenciar a distribuição de cargas no aparelho lo-
comotor: (a) corredores de retro-pé (constituem-se em aproximadamente 80%) e (b)
corredores de ante-pé (20%), de acordo com BAUMANN (1992). Ao observarmos a
curva força de reação do solo em função do tempo, os corredores de retro-pé e os de

453
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 454

Fig. 7: Curvas da função força X tempo para andar, corrida lenta


e corrida rápida considerando-se a componente horizontal (Fx) e
vertical (Fz), (modificado de SCHWIRTZ, GROSS & BAUMANN,
in WILLIMCZIK 1989).

ante-pé apresentam comportamentos distintos: os primeiros com e os segundos sem


a presença de um pico de força inicial (conforme fig 8). O impulso é aproximada-
mente o mesmo pois, ambos apresentam o mesmo peso corporal e deslocam-se à
mesma velocidade. Entretanto as forças articular e muscular na articulação do tor-
nozelo indicam enormes diferenças entre ambas as situações de sobrecarga que de-
correm das diferentes técnicas de movimento. O corredor de ante-pé apresenta uma
carga no tendão de Aquiles, aproximadamente 25-30% maior se comparado ao cor-
redor de retro-pé. A mesma relação é observada para a força articular, considerando-
se para a articulação do tornozelo. Os valores obtidos para a força de compressão
articular representam aproximadamente 9 vezes o peso corporal.
Analisando a relação força – pressão no movimento humano BAUMANN (1992) co-
loca que o ser humano precisa, em pé ou caminhando, através de forças musculares
agir contra a forca da gravidade e transmitir com o pé uma força sobre a superfície
de contato, sendo seu componente vertical com algumas oscilações o equivalente
a sua força peso. Esta força age sobre uma superfície de contato do pé com a base de
apoio e gera uma pressão que se distribui de alguma forma. Esta distribuição de pres-
são não é em geral uniforme sobre a superfície de contato e modifica-se em função
do tempo. Existem diferentes possibilidades de medições da distribuição de pressão
plantar, assim, de acordo com as características dos sistemas será possível medirmos
em situação descalço ou dentro do calçado (interação pé-calçado-solo).
Podemos observar o registro para medição da distribuição da pressão plantar utili-
zando-se do sistema F-Scan (Tekscan Inc) para medição da fase de apoio do andar, so-
mando-se todos os quadros registrados à frequência de 165 Hz, onde observa-se (fig.

454
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 455

Fig 8: Cinegrama (acima) do primeiro e último contato com


o solo e componente vertical da força de reação do solo
(abaixo), para atleta que utiliza a técnica de retropé (es-
querda) e técnica de antepé (direita), PC = peso corporal.
(modificado de Krabbe, 1994).

9) a trajetória do ponto de aplicação da força resultante – centro de pressão (COP) -


, o intervalo entre cada circulo para a marcação do tempo é de 0,02 s. Através da
fig.10 pode-se observar ainda importante output do sistema, representando a dis-
tribuição tridimensional da pressão plantar durante a fase de apoio da marcha para
um instante selecionado; pode-se ainda dinamicamente observar no monitor do
sistema toda a sequência do registro.

Fig. 9: Fase de apoio total para a marcha, observada


com o sistema F-Scan. Registro da trajetória do ponto
de aplicação da força resultante em função da área de
contato do pé direito, intervalo de tempo para cada cir-
culo da frequência de amostragem 0,02s.

455
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 456

Fig. 10: Distribuição dinâmica tridimensional da


pressão plantar em instante selecionado da fase de
apoio para a marcha, registro com o Sistema F-Scan.

Alguns estudos têm demonstrado que, na ausência ou diminuição de informação


somatossensorial, há um deslocamento anterior do centro de pressão durante as
fases de apoio na marcha, também manifestado por maiores valores de pressão
plantar na região do antepé (SACCO, 1997; SACCO & AMADIO, 2000). Este fato pode
ser devido às maiores possibilidades de controle postural durante a marcha que esta
região do pé fornece, uma vez que existe maior flexibilidade no antepé em termos
musculares, ligamentares e articulares, e deslocando o controle da estabilidade mais
anteriormente, os sujeitos estariam buscando formas mais eficientes de controle
postural, considerando que as vias normais sensoriais estariam comprometidas.
Outro aspecto muito importante da análise de distribuição de pressão plantar com
calçados, segundo MACHADO (1998), é que ao contrário das medições com plata-
formas de força, será compreendido o que acontece entre a superfície plantar do pé
e o calçado, bem como qual será a influência deste calçado no pé humano. A autora
aponta uma grande vantagem das plataformas de força que é a possibilidade de
medir-se forças de reações do solo em todos seus componentes bem como seus mo-
mentos, já dentro do calçado os esforços só são normalmente coletados na direção
vertical, apesar de alguns progressos terem já sido conseguidos no domínio do de-
senvolvimento de sensores do esforço no plano (Cardoso, 2008. “Caracterização das
componentes horizontais das forças de apoio geradas durante a marcha”. Tese de mes-
trado em Engenharia Biomédica, FEUP, Porto, Laboratório de Óptica e Mecânica
Experimental da Faculdade de Engenharia e Laboratório de Biomecânica da Facul-
dade de Desporto da Universidade do Porto, Portugal, não publicado). Inclusiva-
mente por isto, os procedimentos de medição de distribuição plantar de esforços
dentro do calçado representam a melhor alternativa para avaliar-se a interação entre
pé-calçado-solo no movimento humano.
Através da fig 11 podemos observar os momentos intersegmentares para as articu-
lações do tornozelo e joelho. Esses valores apresentam-se normalizados no tempo,
considerando-se o apoio simples do ciclo do andar para análise do movimento ob-
servado (n=20). Demonstra-se, através do Coeficiente de Variação (CV), o grau de
incerteza na determinação deste parâmetro, calculado em função da variabilidade

456
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 457

representação funcional da ação muscular sobre a estrutura articular, gerando


momentos de força muscular responsáveis pelo movimento em si bem como
pelo controle
intrinseca e regulaçãoestudado.
do movimento deste movimento, emdestes
Assim, através acordo com DALLA
momentos VECCHIA
intersegmen-
(1998).
tares, têm-se a representação funcional da ação muscular sobre a estrutura articular,
gerando momentos de força muscular responsáveis pelo movimento em si bem
Observa-se
como pelo controle e ainda
regulaçãogrande estabilidade
deste movimento, nestescom
em acordo valores
DALLA de CV ao
VECCHIA
compararmos
(1998). com os dados de WINTER (1991), que determinou valores para
Observa-se ainda grande estabilidade nestes valores de CV ao compararmos com os
10 tentativas
dados de WINTERna (1991),
mesma quefase do ciclovalores
determinou do andar
para 10em cadencia
tentativas natural,
na mesma faseCV
determinado paraem
do ciclo do andar comparação intra-sujeito
cadencia natural, de 37% para
CV determinado e 16% para os intra-su-
comparação momentos
jeito de 37% e 16% para os momentos intersegmentares determinados em função
intersegmentares determinados
da articulação do joelho e tornozeloem função da articulação
respectivamente. do joelhocorrespon-
Nossos resultados e tornozelo
respectivamente.
dentes apresentamNossos
os valoresresultados
de 23.2% ecorrespondentes apresentam
24.1% para as mesmas os valores
articulações.

de 23.2% e 24.1% para as mesmas articulações.

(A) (B)
Fig 11: Momentos intersegmentares para a articulação do tornozelo (A) e do joelho (B),
relativos ao peso corporal (PC) durante o tempo de apoio para o ciclo da marcha e res-
Fig 11:pectivos
Momentos intersegmentares
valores do coeficiente depara a articulação
variação do VECCHIA,
(CV) (DALLA tornozelo (A) e do joelho
1998).
(B), relativos ao peso corporal (PC) durante o tempo de apoio para o ciclo da marcha e
As pesquisas em biomecânica ainda são carentes de padronizações metodológicas,
respectivos valores do coeficiente de variação (CV) (DALLA VECCHIA, 1998).
bem como são imcompletos os modelos utilizados para a formação de teorias com
explicação causal do movimento. Desta forma, fica restrita a possibilidade de com-
parações entre resultados de diversos autores e ainda corremos riscos de utilização
As pesquisas em biomecânica ainda são carentes de padronizações
de modelos físico-matemáticos não adaptados as características do movimento em
metodológicas,
estudo. Entretanto,bemcom como são imcompletos
o acelerado desenvolvimento os científico
modelos eutilizados
tecnológicopara
que a
observamos atualmente, encontramo-nos numa situação onde sempre surgem
formação de teorias com explicação causal do movimento. Desta forma, fica
novas possibilidades e opções de procedimentos na elaboração e operação de dados
restrita a possibilidade
e estas instruções de comparações
estão sendo utilizadas ementre resultados
biomecânica, de diversos
colaborando autores
assim para e
o progresso, modernização, automatização e, enfim, enorme auxílio na análise do
ainda corremos riscos de utilização de modelos físico-matemáticos não
movimento humano de maneira mais precisa e científica.
adaptados
Apresentamos as acaracterísticas do movimento
discussão metodológica em estudo.
dos parâmetros Entretanto,
de sobrecarga com o
do aparelho
locomotor, em função de duas razões fundamentais: (a) apresentação das depen-
acelerado desenvolvimento científico e tecnológico que observamos
dências dos parâmetros dinâmicos em relação à sua determinação e melhor inter-
atualmente,
pretação dos encontramo-nos numa
valores apresentados situação onde
na literatura; sempre osurgem
(b) possibilitar cálculo novas
dos
parâmetros de sobrecarga. Portanto a sobrecarga do aparelho locomotor foi tema
possibilidades e opções de procedimentos na elaboração e operação de dados
tratado de forma metodológica, com a preocupação de ilustrar o significado das for-
eças
estas instruções
de reação do solo,estão sendo utilizadas
suas componentes em biomecânica,
e demais parâmetros de colaborando assim
orientação e posi-

457
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 458

ção dos segmentos corporais para a determinação e dimensionamento da sobrecarga


mecânica no aparelho locomotor. Portanto a análise biomecânica da fase de apoio
não é somente necessária para a descrição da estrutura de movimento, como tam-
bém para a determinação dos parâmetros na análise quantitativa da referida sobre-
carga. Neste sentido pode-se definir o conceito de sobrecarga, que é designada pela
ação de forças que atuam sobre determinadas estruturas ou elementos estruturais,
por exemplo, forças articulares quando duas superfícies articulares são comprimi-
das; forças musculares, definidas pelo desenvolvimento de diferentes formas de
trabalho no músculo; forças de tração que são transmitidas pelos tendões; e outras.
Os parâmetros que definem a sobrecarga articular, são calculados através de output
numérico do ponto de aplicação da força e da magnitude da força reação do solo,
combinada com o ponto da coordenada espacial do centro da articulação, isto é, os
parâmetros da biomecânica interna são quantificados com a ajuda de um modelo
onde as características cinemáticas, dinâmicas e antropométricas, que são medidas
diretamente, são utilizadas simultaneamente. Portanto, para o cálculo destes pa-
râmetros buscam-se referências em equações e modelos, em relação aos quais de-
vemos considerar: (a) a análise do movimento poderá ser limitada às reconstruções
bi ou tridimensionais; (b) existem respostas que restringem as aplicações dos mo-
delos em função de não considerarmos força de atrito e deslocamento de massa
muscular que ocorre em função do choque mecânico no movimento.
O vetor força não é aplicado diretamente no centro da articulação durante a fase de
apoio, e assim as forças, juntamente com os braços de alavanca correspondente, dão
origem ao momento de rotação. Através da fig 12 representamos o diagrama vetorial
da força de reação do solo em relação ao deslocamento do ponto de aplicação da força
resultante no plano sagital, e ainda, com relação às posições do segmento inferior, ob-
tido a partir das coordenadas dos eixos articulares do referido segmento por meio da
cinemetria. Essa visualização vetorial da força de reação do solo caracteriza a acelera-
ção do centro de gravidade na direção do movimento. Portanto a fig. 12 demonstra a
importância destes valores, obtidos a partir da plataforma de força sincronizada com
o registro cinemático das coordenadas do segmento inferior, para a interpretação di-
nâmica do salto e ainda para outros cálculos de determinação da grandeza da sobre-
carga mecânica que o segmento inferior controla durante o movimento.

Fig 12: Representação vetorial da


força de reação do solo resultante no
plano sagital, relativa à posição do
segmento inferior durante a fase de
apoio para o salto triplo no atle-
tismo, parâmetros considerados
para o cálculo das grandezas de so-
brecarga mecânica (AMADIO, 1989).

458
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 459

Apresentamos ainda através da fig 13 a quantificação de parâmetros de sobrecarga


para o aparelho locomotor, considerando-se distintas disciplinas atléticas compa-
radas às solicitações que ocorrem durante a fase de apoio com o solo na marcha hu-
mana. Estes parâmetros indicadores da sobrecarga mecânica foram determinados
através de rotinas e formalismos de cálculo, conforme metodologia anteriormente
discutida e estão representados numa hierarquia entre as estruturas de movimento
de maior solicitação mecânica na prática esportiva.

Fig 13: Valores médios para momentos de força e forças arti-


culares máximas entre os parâmetros selecionados das forças
internas durante a fase de apoio com o solo para o segmento
inferior para diferentes movimentos. (A) marcha voluntária,
(B) marcha atlética, (C) jogging 3.5 m/s, (D) sprint 6,0 m/s,
(E) ataque frontal no voleibol, (F) salto em distância 6,27 m;
(G) salto mortal a retaguarda na Ginástica.

459
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 460

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461
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 462

Confusões, controvérsias ou modernidades na


interpretação da mecânica propulsiva do nadador?
J. Paulo Vilas-Boas1, Alberto Carlos Amadio1
1 Universidade do Porto, Faculdade de Desporto, CIFI2D, Portugal
2 Universidade de São Paulo, Escola de Educação Física e Esporte, Brasil

1. Introdução
A natação é uma modalidade muito particular. Por um lado, consiste numa activi-
dade individual, cíclica e fechada, isto é:

(i) trata-se de uma modalidade onde o resultado, as mais das vezes, decorre apenas
do desempenho de um sujeito, não estando, por isso, sujeito às circunstâncias
da interacção, da oposição, do entendimento, da cumplicidade, etc.;
(ii) trata-se também de uma modalidade cujo movimento ou técnica característica
e predominante é inúmeras vezes repetido em treino, e em competição, com
uma frequência determinada e com características que perduram no tempo,
sendo sobretudo influenciáveis, de forma aguda, por fenómenos de fadiga, ou,
de forma crónica, por efeito de aprendizagem ou lesão. Neste contexto, o movi-
mento desportivo é facilmente definível, sendo susceptível de ser descrito, no
limite da simplicidade, pela seguinte relação de parâmetros quantitativos:

v = DC * FG , (1)

onde v representa a velocidade de nado, DC a distância percorrida pelo nadador num


ciclo e FG a frequência gestual, medida pelo número de ciclos realizados por unidade
de tempo. Partir e virar são acções acíclicas - ainda que a segunda se repita, em al-
gumas provas, também ciclicamente -, mas são também fechadas e representam
um percentual bem menos significante da duração total de cada prova;
(iii) por último, trata-se de uma modalidade onde o desempenho, em valor absoluto,
não depende da prestação dos adversários. Naturalmente que ganhar ou perder uma
prova depende sempre do desempenho dos adversários, mas realizar um determi-
nado tempo ao percorrer uma determinada distancia, muito embora possa, no li-
mite, ser influenciado por terceiros, é-o muito menos do que uma resposta a um
serviço em ténis, ou a consecução de um bloco em voleibol.
Em modalidades deste tipo, é normal considerar-se que os factores limitativos do de-
sempenho são maioritariamente de natureza condicional e não tanto de natureza téc-
nica e/ou biomecânica, mesmo que se considere sempre, ainda que por razões de
decência, uma influência subliminar de factores de rendimento deste tipo. É, por
exemplo, o que acontece com a corrida, e sobretudo com a corrida de longa duração.

462
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 463

Este tipo de análise, porém, tem vindo a transformar-se significativamente, e são


já várias as modalidades individuais, cíclicas e fechadas, onde se confere uma ele-
vada, e crescente, importância à técnica, mormente aos factores biomecânicos que
a constrangem. A natação é, de facto, uma dessas modalidades, onde de há muito
se vem afirmando esta relevância que importa conferir à habilidade do nadador para
se relacionar mecanicamente com a água.

2. O Homem e a água: relevâncias em biomecânica da natação


No que respeita especificamente à biomecânica da natação, são naturalmente plu-
rais os domínios de preocupação e de investimento da investigação científica. To-
davia, desde há já muito anos, sobretudo depois dos contributos de di Prampero et
al. (1974), que se reconhece que o rendimento desportivo em natação (a velocidade
de nado v) é equipotenciado por factores energéticos (potência dos sistemas forne-
cedores de energia implicados - E) e biomecânicos, sendo estes últimos fundamen-
talmente determinados pela capacidade de minimizar a força resistiva oposta ao
deslocamento do nadador (arrasto hidrodinâmico - D) e pela capacidade de maxi-
mizar o aproveitamento da energia disponível em força propulsiva capaz de realizar
trabalho (eficiência propulsiva - ep):

v = E * (ep * D -1) (2)

Percebe-se da expressão anterior que, com vista ao alto rendimento desportivo em


natação, as mais relevantes questões biomecânicas deverão gravitar em torno dos
seguintes objectivos:

(i) minimizar a força de arrasto hidrodinâmico (D) oposto ao deslocamento do na-


dador;
(ii) maximizar a capacidade de produção de força propulsiva (P) no quadro de um
determinado investimento bioenergético e
(iii)minimizar as flutuações na intensidade relativa de D e P em cada ciclo, por
forma a minimizar também as flutuações intraciclicas da velocidade horizontal,
determinantes de uma menor economia motora e, portanto, de uma menor
adequação global do gesto (Vilas-Boas, 1996).

As questões que se prendem com o arrasto hidrodinâmico suscitam alguma contro-


vérsia, como por exemplo a importância relativa do arrasto de fricção face ao arrasto
de pressão, o papel da depilação, ou o efeito efectivo de fatos de banho como os re-
centemente banidos pela FINA.
Por seu lado, as questões relativas à propulsão, depois de algumas controvérsias ini-
ciais, sobretudo as que se prenderam com a introdução da teoria da asa e do teorema
de Bernoulli na explicação da mecânica propulsiva do nadador de elite (Counsil-
man, 1971), vinha passando por uma fase de relativa acalmia, mesmo depois de Un-
gerechts (1992) e Colwin (1984, 1985a, b) terem introduzido a chamada “teoria dos
vórtices”. É que esta última aproximação complementava o corpo de conhecimen-
tos teórico preexistente sem o contrariar, antes explicitando as razões de algumas

463
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 464

descontinuidades ou incongruências teóricas, como seja a do chamado “paradoxo


das pernadas sinusoidais de crol, costas e mariposa” (Vilas-Boas, 1994), resolvido
pela perspectivação de soluções propulsivas em regimes de escoamento instável,
nomeadamente através da projecção de vórtices separados e a formação de estradas
de Karman.
Todavia, mais recentemente têm surgido um conjunto de argumentações em des-
favor do quadro teórico aparentemente prevalecente, que impõem que se reanalise
a mecânica propulsiva do nadador perspectivando a sua propriedade.

3. Revisitação da mecânica propulsiva do nadador


3.1. Notas históricas
A explicação do mecanismo propulsivo em natação vem sendo tentada desde há
muito. Com Cureton (1930), para um círculo mais restrito e, depois, com Counsil-
man (1968), foi sendo divulgada a chamada “teoria do arrasto propulsivo”, concep-
ção que, escorada conceptualmente sobre a terceira lei de Newton, Princípio da
Acção/Reacção, estabelecia que, realizando acções segmentares sucessivas directa-
mente orientadas para trás, impulsionando água nessa direcção, o nadador ficaria
sujeito à acção de forças de arrasto hidrodinâmico opostas ao deslocamento antero-
posterior dos segmentos propulsivos, orientadas para a frente e, por isso, susceptí-
veis de contrariar a acção da força de arrasto de perfil oposta ao deslocamento do
corpo todo do nadador. Por esta força se tratar de uma força de arrasto hidrodinâ-
mico, apesar de oposta ao deslocamento aquático dos segmentos propulsivos, e por,
simultaneamente, se tratar de uma força propulsiva, ficou conhecida por força de
arrasto propulsivo.
Com base nesta concepção teórica começou por se preconizar a realização de bra-
çadas com trajectos motores rectilíneos: as chamadas “tracções rectas”. Apesar de
aceite, na altura, pela generalidade da comunidade técnica e científica, foi percebido
que os nadadores pareciam não respeitar, de facto, o preceituado teórico desta teoria
explicativa da mecânica propulsiva do nadador. De facto, os nadadores persistiam
em realizar trajecto motores “ondulados”, com configurações próximas de um “S”,
que foram inicialmente interpretados como a solução para o nadador encontrar
zonas de “água parada”, evitando a água entretanto acelerada para trás nas primeiras
fases da acção propulsiva, onde se perderia “apoio” propulsivo.
Neste período da reflexão em torno do mecanismo propulsivo em natação, a refe-
renciação do movimento da mão do nadador era realizada assumindo por referen-
cial o próprio corpo do nadador. Percebia-se que a mão, depois de entrar à frente do
ombro, deslocava-se para a frente e para baixo, depois para trás, para dentro e para
cima, passando junto ao plano sagital médio na região abdominal do nadador e, de-
pois, para trás, para fora e para cima, emergindo junto à coxa. Naturalmente que,
nestas circunstâncias, não era possível perceber-se qual o real padrão de desloca-
mento da mão em relação à água, uma vez que o corpo do nadador, ele mesmo, se
deslocava concomitantemente para a frente relativamente à água.
A mais conveniente referenciação cinemática do nadador foi conseguida quando se
utilizou pela primeira vez a técnica fotogramétrica do traçado luminoso (“light
trace photography”) em natação (Counsilman, 1971). Nesta altura percebeu-se, pen-

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samos que pela primeira vez, que no trajecto motor, sobretudo dos membros supe-
riores do nadador, prevaleciam os deslocamentos oblíquos mas dominantemente
transversais relativamente à direcção pretendida para o nado. Segundo Counsilman
(1971), estes trajectos sugeriam que o nadador utilizava para a propulsão não apenas
a força de arrasto hidrodinâmico propulsivo oposto ao deslocamento dos segmentos
propulsivos, mas também a força ascensional hidrodinâmica produzida pelas mãos
(e também pelos antebraços) e pelos pés dos nadadores, em obediência ao definido
pelo Teorema de Bernoulli e no quadro de um efeito hidrodinâmico particular, de-
signado por efeito venturi, ou efeito de asa, ou aerofoil.
Depois de Counsilman (1971) foram muitos os autores e os trabalhos de investiga-
ção consagrados à afirmação desta perspectiva teórica, nomeadamente os de Schlei-
hauf (1974, 1979, 1984, 1986), Schleihauf et al. (1983, 1988), Wood (1979), Berger
(1996), Berger et al. (1996). Entretanto, o centro de alto rendimento de Colorado
Springs (USA Swimming), enquanto liderado por John Troup e, depois, enquanto
dirigido por Jane Cappaert, publicava numerosas análises cinéticas tridimensionais
da acção propulsiva de múltiplos nadadores (Cappaert et al., 1992a, b), que contri-
buíram decididamente para a afirmação da “teoria da força ascensional” ou “teoria
da asa”, a qual ganhou grande divulgação, sobretudo com a obra de Ernest Maglis-
cho, publicada em 1982: “Swimming Faster”.
A produção de força ascensional hidrodinâmica em torno de uma asa, ou de um
aerofoil, ou de um segmento propulsivo de um nadador, requer, entretanto, regi-
mes de escoamento estável, menos fáceis de conceber quando se percebe as conti-
nuadas mudanças de direcção e de velocidade da mão do nadador, do que quando
se aprecia a cinemática da asa de um avião ou de um hélice de uma embarcação, por
exemplo.
A “teoria dos vórtices”, inicialmente proposta pelos trabalhos de Colwin (1984,
1985a, b) e de Ungerechts (1985) e, depois, implementada pelos desenvolvimentos
de Arellano (1999), veio a alimentar o conjunto de argumentos que sustentavam a
observação de escoamentos estáveis, compatíveis com os vários vórtices de extre-
midade observados, mas veio igualmente mostrar que as fases de mudança de di-
recção e de velocidade de deslocamento da mão e, sobretudo, do pé, deveriam
assumir um papel decisivo na propulsão do nadador, a qual deveria decorrer, tam-
bém, em regimes de escoamento instável.
Com o crescente reconhecimento da importância dos escoamentos instáveis em
torno dos segmentos propulsivos do nadador cresceram também as críticas à “teoria
da asa”, críticas que vieram proporcionar algumas situações muito interessantes
na comunidade científica, umas mais pelas objecções teóricas propriamente ditas,
outras mais pela reacção de alguns autores.

3.2. A fase da crítica à “teoria da asa”


A crítica à “teoria da asa” foi sobretudo impulsionada pela “mudança de campo” de
um dos grandes divulgadores da teoria da asa: exactamente Ernest Maglischo (Cos-
till et al., 1992; Maglischo, 1993, 1999). Sublinhe-se, entretanto, que isto pratica-
mente coincidiu com uma fase em que a mesma se poderia encontrar
“enfraquecida” pelas críticas de Payton e Bartlett (1994, 1995), não à concepção

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teórica ela mesma, mas à metodologia utilizada para avaliar a mecânica propulsiva
do nadador com base nela, particularmente no que respeita à precisão dos procedi-
mentos cinemétricos imagiológicos utilizados para descrever a posição, orientação
e velocidade da mão durante o trajecto motor tridimensional do nadador.
A crítica mais consistente de entre as que são apresentadas reporta-se exactamente
às garantias de observação de condições de escoamento estável em trechos suficien-
temente longos do trajecto motor, para que a força ascensional hidrodinâmica possa
efectivamente ser produzida e, assim, desempenhar um papel qualquer, esperada-
mente de alguma relevância.
Todavia, os argumentos mais recorrentemente observados gravitam em torno da
não “prevalência” da força ascensional hidrodinâmica (L) em favor da força de ar-
rasto propulsivo (Dp), ou em torno de uma hipotética oposição entre Bernoulli e
Newton (Catteau, 1997; Hellard, 1997), facto que constituiria uma verdadeira no-
vidade teórica em Física.
O que é interessante notar é que não nos parece que essa tenha alguma vez sido
uma questão central; isto é, não entendemos que a comunidade tenha estado preo-
cupada com a possibilidade de L ser sempre, ou predominantemente, dominante
sobre Dp, mas tão só com a possibilidade dela desempenhar um efectivo papel pro-
pulsivo, por pequeno que fosse.
Para além deste “pormenor”, os elementos nucleares de crítica parecem ser os se-
guintes:

(i) os escoamentos em torno dos segmentos propulsivos não são suficientemente


estáveis para assegurar a produção de L em obediência ao teorema de Bernoulli;
(ii) a obliquidade dos trajectos motores acontece não para favorecer a melhor orien-
tação da força resultante de L e Dp, mas para favorecer a deflexão, para trás, de
água que, por reacção, sujeite a superfície palmar a uma força propulsiva orien-
tada para diante;
(iii)mesmo que L possa efectivamente ser utilizada, a razão L/Dp será normalmente
inferior à unidade, expressando a sua menor importância relativa.

Como já referimos, a primeira observação não é compatível com a observação re-


corrente de vórtices de extremidade em nadadores, os quais traduzem exactamente
o funcionamento da mão como uma asa, sujeita a um importante gradiente de pres-
sões entre as superfícies dorsal e palmar, que obriga a um escoamento de extremi-
dade e à instauração do referido vórtice; vórtice que é normalmente percebido como
se se tratasse de uma espécie de “fumo”, tal como o que se observa, pelas mesmas
razões, nas asas dos aviões e dos automóveis de fórmula 1 (Vilas-Boas, 1994).
Quanto à segunda objecção, não nos parece incompatível a produção de força L e a
deflexão de água em sentido oposto, se não observe-se o que se passa por baixo do
rotor de um helicóptero, exactamente em consequência da sua aerodinâmica “ber-
noulliana”. Naturalmente que, devido às muito altas pressões produzidas, sobra um
impulso da massa de ar para baixo, que normalmente provoca grandes distúrbios
aos penteados e a alguns adereços de quem passa por baixo do hélice e que explica
o efeito acção / reacção na sustentação do aparelho.

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Por último, insistimos que não se trata de discutir se L, ou Dp, são circunstancial-
mente mais importantes. Claro que se L assumisse sempre o protagonismo, a acção
de nadar seria especialmente mais eficiente (deGroot e Van Ingen Schenau, 1988),
podendo mesmo acontecer que seja exactamente esse, um dos pormenores mais
relevantes que distinguem os nadadores de melhor nível dos de menos bom nível.
De resto, sobra claramente a noção de que a mão do nadador se comporta como uma
asa especialmente “rústica” com uma razão L/Dp muito reduzida quando, por
exemplo, comparada com a asa de um avião (Sanders, 1997a, b). Pudera! Não foi para
isto que a evolução da espécie a “imaginou”…
De facto, num estudo recente recorrendo à Dinâmica Computacional de Fluidos –
DCF - (Marinho et al., 2007), foi possível constatar que a mão e o antebraço do na-
dador não são hidrodinamicamente neutros. A 45º de inclinação ( = 45º) da mão
relativamente à direcção do seu deslocamento e com uma orientação rádio-cubital
do escoamento, o valor de CD é sensivelmente o dobro de CL (0.62 vs. 0.32, respec-
tivamente). Significa isto que, nos dias de hoje, não se poderá sustentar, no quadro
da teoria da asa, que a mão e o antebraço do nadador possam circunstancialmente
funcionar em regime de predominância de L sobre Dp, mas significa também que
não parece coerente negligenciar a possibilidade de optimizar hidrodinâmicamente
a acção propulsiva do nadador em ordem ao aproveitamento do ainda que pequeno
contributo que L possa proporcionar para a propulsão total produzida pelo nadador.
A este respeito, de resto, os resultados mais recentes acerca da questão do afasta-
mento dos dedos do nadador durante a acção propulsiva, também obtidos através
de DCF (Marinho et al., no prelo), mesmo contrariando os dados experimentais ob-
tidos por Schleihauf (1979) há mais de três décadas, tornam evidente a subtileza
das relações hidrodinâmicas que se estabelecem no decurso da acção propulsiva dos
nadadores de elite. Neste estudo foi possível mostrar que L e Dp, mas especialmente
este último, são potenciados por ligeiros afastamentos interdigitais, provavelmente
por efeito de prolongamento hidrodinâmico da superfície propulsiva devido à vor-
ticidade estabelecida entre os dedos.

4. Conclusão
Em conclusão, pensamos que neste domínio, como em tantos outros da nossa vida
e do pensamento contemporâneo em particular, a procura de um equilíbrio, inclu-
sivamente na esfera da ciência, parece ser sempre uma solução avisada, mesmo re-
conhecendo que os saltos qualitativos mais impressionantes tendem a ocorrer
exactamente da negação do estabelecido. Parece todavia, que neste particular ainda
não será o caso...

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Literatura Infantil, Educação Física e Desporto:


da Teoria às Possibilidades Práticas
Rafael Guimarães Botelho

Introdução
Elaborar um capítulo no terreno da literatura infantil pode ser considerado de
menor valor por parte da comunidade científica de várias áreas do conhecimento.
Dita asserção é corroborada pelos que outrora se dedicaram ao tema como, a título
de exemplo, Moreno Verdulla (1994), que ressaltou que a literatura infantil é uma
parte da literatura universal comumente ignorada.
Uma consulta ao Dicionário das ciências da educação (DICCIONARIO..., 1988) re-
vela a pouca atenção que se dá à literatura infantil: “Não resulta fácil definir este
ramo da literatura, que durante tanto tempo foi considerado como subliteratura [...]”
(p. 874, grifo nosso e tradução nossa).
Tatiana Monteiro (2007) confirma que a literatura infantil encontra, desde o seu
surgimento no cenário cultural mundial, inúmeros obstáculos à sua legitimação.
Pari passu, Carrasco Rodríguez (2005) admite que “até bem pouco tempo atrás a li-
teratura infantil não era considerada um campo de investigação digno do mundo
acadêmico [...]” (p. III-IV, tradução nossa).
Muito mais arriscado é aunar o tema da literatura infantil à Educação Física e ao
Desporto, quando se verifica que a tendência das pesquisas brasileiras, seja em um
nível de formação inicial ou stricto sensu, é apresentar enfoques biológicos e técni-
cos (BOTELHO, OLIVEIRA, 2006; BOTELHO, OLIVEIRA, FARIA JUNIOR, 2007;
FARIA JUNIOR, 1987; 1999). Soma-se a esta tendência, o fato dos cursos de Educa-
ção Física no Brasil estarem sob a égide das Ciências da Saúde (BRASIL, 1997; DO-
CUMENTOS..., 1999; KISS, 1982). Consequentemente, o trabalho em tela pode ser
considerado frívolo por alguns investigadores que se cercearam a uma visão positi-
vista da Ciência.
Não obstante, e à raiz das asserções apresentadas, este texto tem por objetivos dili-
genciar e ilustrar a utilização da literatura infantil no campo da Educação Física e
do Desporto.

Breves considerações a respeito da literatura infantil


Carrasco Rodríguez (2005) adverte que “a primeira grande derrota que se sofre ao
estudar a literatura infantil é a dificuldade em definir a expressão”. Para a autora,
tampouco é fácil encontrar uma definição universalmente aceita da palavra litera-
tura. A esta dificuldade, deve-se acrescentar o sobrenome infantil.

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Diversas são as abordagens para conceituar a expressão literatura infantil. Para au-
tores de diferentes blocos linguísticos, ela é definida como:

— “O material escrito para crianças desde zero até os 12 ou 13 anos de idade.” (KIM-
MEL, 1986, p. 17, tradução nossa).
— “Uma obra estética destinada a um público infantil.” (BORTOLUSSI, 1987, p. 16,
tradução nossa).
— “A definição de literatura infantil repousa no coração de seu próprio desígnio: é
uma categoria de livros cuja existência depende totalmente das supostas rela-
ções com um determinado público leitor: as crianças.” (LESNIK-OBERSTEIN,
1996, p. 17, tradução nossa).
— Um ramo da literatura que está dirigido a meninos e meninas que ainda não che-
garam à primeira fase da adolescência. Tal literatura apresenta um conjunto de
funções: didática, lúdica, literária, sociocultural, axiológica, entre outras, e, ade-
mais, divide-se em diferentes categorias: fábulas, contos, novelas, poesia e ou-
tras. Os textos destinados à literatura infantil (geralmente são os livros ditos
infantis os que constituem as primeiras experiências leitoras) podem ser escritos
por diferentes grupos etários (crianças, jovens, adultos e idosos), mas, sempre
terão como público principal as crianças (BOTELHO, 2009a).

Normalmente, os que se dedicam a escrever sobre literatura infantil manifestam a


necessidade de explicar por que e para que serve este ramo da literatura. Nesta pers-
pectiva, e com base na literatura da área, a seguir são apresentadas as funções mais
recorrentes e visíveis da literatura infantil em seu árduo e longo percurso de desen-
volvimento.

Função didática
São vários os autores que indicam a existência de uma função didática na literatura
infantil (BORTOLUSSI, 1987; ESCARPIT, 1986; KIMMEL, 1986; RECUERDOS...,
1997; SáNCHEZ CORRAL, 1995). Por exemplo, Escarpit recorda que a literatura di-
dática é, em todos os países, a primeira etapa da literatura infantil.

A literatura infantil sempre foi didática. Como adultos, sempre tentamos ensinar
às crianças; é uma relação natural ensinar às crianças o comportamento, e as his-
tórias se desenvolvem a partir destas premissas. Nos séculos XVII e XVIII a forma
de se transmitir esses ensinamentos era bem direta (KIMMEL, 1986, p. 18, tradu-
ção nossa).

Um breve apanhado histórico confirma que “a literatura do século XVIII é rica em


gêneros de clara intenção didática e pedagógica.” (RECUERDOS..., 1997, p. 36, tra-
dução nossa).
Segundo Bortolussi, com o desenvolvimento da Pedagogia no século XVIII se acen-
tuou a preocupação didática da literatura infantil. “Função didática e função mora-
lizadora invadiram o terreno literário, com resultados lamentáveis.” (p. 27, tradução
nossa).

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À função didática da literatura infantil, acrescentam-se as acepções didático-moral


e didático-pedagógica. Como aponta Sánchez Corral, “ninguém pode negar uma
constante que definiu desde sempre os livros infantis: a finalidade moralizante que
governa a estrutura final dos textos.” (p. 97, tradução nossa).
Em virtude dos aspectos moralizantes presentes nos textos destinados à infância,
o surgimento da autêntica literatura infantil foi postergado até o Século XIX, pre-
cisamente quando se produziu a transição da expressão didático-moral para a ex-
pressão lúdico-estética (SáNCHEZ CORRAL, 1995) ou “a transição da literatura
didática à verdadeira literatura infantil.” (BORTOLUSSI, 1987, p. 17, tradução nossa).
“O século XIX é o período de nascimento de uma literatura infantil em que a preo-
cupação imaginativa, estética e recreativa se impõe à preocupação ética e pedagó-
gica. Enfim, é o século da fantasia.” (BORTOLUSSI, 1987, p. 31, tradução nossa).

Função lúdica
Por sua vez, há também os autores que chamam a atenção para a existência de uma
função lúdica na literatura infantil (CARRASCO RODRÍGUEZ, 2005; MORENO
VERDULLA, 1994).
Para Moreno Verdulla, a literatura infantil é um jogo de crianças. A função lúdica
da literatura transforma a mensagem em puro jogo, gratuito, sem o pragmatismo
da comunicação usual. Esta função é frequentemente utilizada na poesia infantil,
na folclórica, nas cantilenas, nos trava-línguas e nas canções.

Efetivamente, durante anos, longe das salas, onde não havia outra coisa que te-
diosos exercícios de gramática ou de história da literatura, sempre houve um re-
fúgio para as crianças que gostavam de leitura: um mundo de canções e livrinhos,
de contos e, posteriormente, de gibis, que foram lidos ansiosamente, que se recons-
truíram diariamente e que se integraram aos jogos infantis até o ponto de perder
página por página e afetar sua frágil existência. (MORENO VERDULLA, 1994, p.
15, tradução nossa).

Carrasco Rodríguez (2005) é outra autora a destacar a função lúdica da literatura


infantil.

Em nossa opinião, a literatura deve produzir prazer e diversão, já que as crianças


se chegam ao texto de uma forma diferente, mas vivencial. Como em nenhuma
outra época os livros infantis nos determinam, mergulhamos neles sem preconcei-
tos, nos entusiasmam ou nos aborrecem, os adotamos e não os olvidamos. Se uma
história não atrai os leitores, então não é literatura infantil. Se há algo que as crian-
ças não toleram é o tédio. Na verdade, deve-se perguntar se não ocorre o mesmo
com qualquer obra literária. (CARRASCO RODRÍGUEZ, 2005, p. V, tradução
nossa).

Função literária
A função literária que se associa à literatura infantil está relacionada à aprendiza-
gem, pelas crianças, dos modelos narrativos, teóricos e dramáticos.

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Os autores que têm sua formação inicial na área de Literatura e que escrevem obras
infantis ou a respeito delas reivindicam que este tipo de livro deveria exercer ex-
clusivamente sua verdadeira (ou principal) função: a literária.

A tendência para se escolarizar a literatura infantil e utilizá-la como recurso di-


dático, ademais de aproveitá-la como pretexto para o ensino de outras disciplinas,
está bastante arraigado em alguns ambientes. E a partir deste erro, às vezes, são
difundidas determinadas orientações didáticas de caráter administrativo. (CER-
VERA, 1989, p. 40, grifo do autor e tradução nossa).

Consequentemente, surge uma discussão de qual seria a real função da literatura


infantil, o que gera tensão entre a função literária e demais funções deste tipo de
literatura, especialmente a didática.
Para Cervera (1989), “utilizar a literatura infantil com fins didáticos próximos e
imediatos não passa de uma mera instrumentalização da mesma, o que conduz a ex-
tinguirem-se os frutos mais importantes que a criança pode extrair de seu contato
com ela.” (p. 38, tradução nossa).

Que o conto esteja vinculado à educação parece que é um fato comprovado, mas
que deva conter doses tão fortes de didatismo é uma opinião discutível, pois já se
viu como em épocas anteriores foi precisamente este o elemento que impediu o es-
tabelecimento de uma autêntica comunicação literária, o verdadeiro encontro
entre emissor e receptor. (BORTOLUSSI, 1987, p. 43, tradução nossa).

Por conseguinte, rompe-se a função didática que muitos professores e professoras,


provenientes de outras áreas de estudo (Biologia, Pedagogia, Matemática, História
ou Geografia, por exemplo) e que escrevem ou investigam os livros infantis, rei-
vindicam para a literatura infantil.

Função sociocultural
Cervera (1989), apresentando as razões para se incluir a literatura infantil na escola,
indica dois objetivos que exemplificam sua função sociocultural:

— “A aproximação à escola da vida, já que a literatura infantil é fruto da cultura


que se produz na vida. Introduzir este tipo de leitura na sala de aula é uma forma
de contiguidade entre ambas realidades.” (p. 39, tradução nossa).
— “O aproveitamento dos elementos folclóricos presentes na literatura infantil.
Esta integração do folclore é a garantia de aproximação ao espírito do povo.” (p.
39, tradução nossa).

“Nos livros escritos para os mais pequenos predomina o mundo mágico, onde apa-
recem cenas e situações da realidade que a criança vivencia em muitos casos.”
(SARTO, 1994, p. 65, tradução nossa). Portanto, iniciar o acesso à representação da
realidade oferecida por meio da literatura e compartilhada por uma sociedade de-
terminada é uma das funções da literatura infantil (COLOMER, 2008).

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Função axiológica
A função axiológica da literatura infantil está relacionada à questão da transmissão
de valores e contravalores a partir das narrativas apresentadas pelos autores de obras
infantis.
Sarto (1994) recorda que os livros infantis de hoje deixaram de ser histórias fáceis
(onde tudo estava resolvido) e histórias fechadas (das que não se tinha nada mais a
dizer) para ser histórias abertas (sem resolver) e com uma grande riqueza de valores,
que deixam a critério da imaginação da criança a possibilidade de elaborar seu pró-
prio juízo crítico.

Nos livros escritos para meninos e meninas podem encontrar-se todos os temas da
sociedade: imigração, separação dos pais ou divórcio, pobreza, solidariedade, tra-
balho e desemprego, velhice, marginalização, xenofobia, racismo, família, doenças,
morte, injustiça, delinquência, droga etc. (SARTO, 1994, p. 65, tradução nossa).

Peter Hunt (1999), em seu livro Entendendo a literatura infantil, ratifica a função
axiológica deste tipo de literatura:

Direta ou indiretamente os livros infantis tiveram e ainda têm influências sociais,


culturais e históricas. Estes livros têm uma grande importância educacional. Sua
importância apresenta consequências que vão mais além da cultura, alcançando
a língua e a política. Muitos adultos, e decerto a maioria dos que estão em posição
de poder e influência, leram livros infantis durante a infância, o que leva a crer
que as ideologias subjacentes a estes livros tenham, de alguma maneira, influen-
ciado o desenvolvimento dessas pessoas. (p. 1, tradução nossa).

O estágio incipiente na identificação e análise da literatura infantil


com temática relacionada à Educação Física e ao Desporto no Brasil
Alguns campos do conhecimento têm preterido a literatura infantil enquanto ob-
jeto de estudo ou como material literário pertencente à atividade escolar. A Educa-
ção Física, neste aspecto, é uma disciplina que pouco tem feito para acercar à sua
prática este tipo de literatura, recurso tão relevante, próprio e cativante para as
crianças. Pode-se, inclusive, falar-se de uma não-literaturização dos conteúdos es-
colares de grande parte da Educação Física no Brasil.
Esta não-literaturização, que significa a falta de iniciativa ou até mesmo a resistência
na utilização de materiais literários pela maior parte do professorado de Educação
Física, ficou evidente num anúncio veiculado em um jornal de grande circulação
no Estado do Rio de Janeiro, cujo principal objetivo era a venda de uma coleção de
clássicos da literatura. Para isto, a parte mais destacada do anúncio (em azul) exibiu
o título seguinte: “9 em cada 10 professores recomendam esses livros. O outro dá
aula de educação física.”
A partir de uma mensagem cujo propósito foi menoscabar a disciplina, os professo-
res de Educação Física foram dissociados de qualquer prática teórica e literária.
Outro problema verificado foi uma dificuldade na identificação de materiais de li-
teratura infantil com temática relacionada à Educação Física e ao Desporto no Brasil.

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Figura 1. Anúncio para a venda de clássicos da lite-


ratura veiculado no Jornal Extra (NOVE EM
CADA 10 PROFESSORES..., 2004).

Por exemplo, Amarílio Ferreira Neto (2005), registrando o histórico das publicações
brasileiras periódicas de ensino, técnicas e magazines na área, apresenta a seguinte
asserção:

[...] Se a Educação Física obteve seu espaço legal com a contribuição dos impressos
de ensino e técnico, sua legitimidade, no século XXI, requer impressos de ensino
voltados para a orientação da intervenção pedagógica na escola, tanto com chan-
cela da esfera pública como de caráter comercial. (p. 776).

Com o escopo de identificar materiais literários para a área, foram realizadas três
buscas (nos meses de março, maio e dezembro de 2009) na base Esporte & Arte:
Diálogos –projeto desenvolvido na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
e subvencionado por diferentes agências de fomento– e verificou-se que esta im-
portante base continha unicamente dois livros com temática relacionada à Educação
Física e ao Desporto registrados na categoria literatura infanto-juvenil.
Uma consulta em diferentes livrarias brasileiras (Saraiva, Livraria Pontes, Livros

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de Futebol, por exemplo), a importantes bibliografias sobre literatura infantil (BI-


BLIOGRAFIA BRASILEIRA DE LITERATURA INFANTIL E JUVENIL..., 2001, 2004)
e ao Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira (COELHO, 2006) in-
dica a existência de livros infantis com temática relacionada à Educação Física e ao
Desporto. Não obstante, estes livros estão dispersos, o que dificulta as iniciativas
de professores e investigadores desse campo do conhecimento.
Tarefa ainda mais árdua é desenvolver diferentes análises e avaliações nestes livros
para que os professores, antes de oferecê-los aos alunos e alunas durante as ativi-
dades práticas da Educação Física e do Desporto, possam conhecê-los e selecioná-
los, evitando qualquer informação incorreta ou até mesmo ofensiva.
A questão da necessidade de se efetuarem análises em materiais de literatura infan-
til que apresentam temática relacionada ao Desporto ganhou destaque nos meios
de comunicação brasileiros a partir do problema que afetou as escolas públicas do
Estado de São Paulo (LIVROS APREENDIDOS, 2009).
Este livro –intitulado Dez na área, um na banheira e ninguém no gol– apresenta imagens
de conotação sexual, diálogos grosseiros, além de conteúdo eivado de estereótipos,
preconceitos e discriminações, todos negativos (MARTINS; SEINCMAN, 2002).
Cada exemplar desse livro custou ao governo R$ 21 reais e 86 centavos. Foram com-
prados 1.700 livros e já se havia distribuído às escolas um total de 1.216 exemplares
(NAVEGA, 2009).
Esse material foi adquirido sem uma prévia análise, uma avaliação por parte dos
funcionários e especialistas do Governo de São Paulo. Esse livro em tempo algum
deveria ter sido recomendado para alunos, independentemente se estão no nível
fundamental ou médio.
Decerto, a problemática ora descrita caracteriza-se como um fator interveniente à
constituição de um corpus teoricus voltado ao alunato na disciplina da Educação Fí-
sica no Brasil. Esta iniciativa, para os mais desavisados, para os que se preocupam
tão-somente em quantificar o tempo de movimento das aulas, e, também, para os
entusiastas e defensores da desportivização, não significa diminuir o tempo de prá-
tica; pelo contrário, o que se sugere é agregar fundamentação ao movimento, é ofe-
recer aos alunos a oportunidade de ter contato com o movimento por via do
conhecimento (seja científico ou literário) inerente à Educação Física e ao Desporto.
Para sustentar esse argumento e disseminá-lo aos que hoje estudam para ensinar
amanhã e também aos que já ensinam, mas que continuam estudando, apresentar-
se-ão, a seguir, algumas propostas de uso da literatura infantil que foram baseadas
na investigação acadêmica e na prática escolar.

Exemplos de utilização da literatura infantil na Educação Física


e no Desporto: das propostas internacionais às de língua portuguesa
A utilização da literatura infantil como um recurso de apoio às aulas de Educação
Física pode ser, para muitos investigadores e professores brasileiros, uma ação re-
cente ou até mesmo inovadora. Não obstante, a prévia revisão de trabalhos publi-
cados em língua inglesa indica que a partir de meados da década de 1950 autores
como Arthur Miller e Virginia Whitcomb (1957) já consideravam os livros infantis
com temática relacionada ao Desporto um importante material literário para a dis-
ciplina de Educação Física.

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Por meio da linguagem as crianças aprendem a escutar, falar, ler, escrever e sole-
trar. Da mesma maneira que em outras áreas da aprendizagem, os fundamentos
da linguagem podem ser aprendidos mais facilmente por intermédio de experiên-
cias que as crianças já conhecem e já desfrutaram. Muitas destas experiências
foram originadas a partir dos jogos, e, na escola, o jogo é desenvolvido por meio
da Educação Física. (MILLER; WHITCOMB, 1957, p. 277, tradução nossa).

Os autores em seu livro elaboraram uma lista de cinco páginas que reuniu 86 livros
infantis organizados segundo critérios de nível escolar e também por categorias
como histórias desportivas específicas para meninas; histórias escritas para meninos e
meninas sobre estrelas do desporto; e livros de habilidades e conhecimentos.
O exemplo ora destacado decerto representa um grande avanço da Educação Física per-
tencente ao bloco anglófono e, por sua vez, revela uma visão prospectiva em relação à
importância da utilização de materiais específicos da literatura infantil na disciplina.
Ainda nesse contexto linguístico, Ritchie Gabbei e Heidi Clemmens (2005) utili-
zaram livros infantis para desenvolver aspectos relacionados à expressão corporal
na disciplina de Educação Física. Para os autores, fontes literárias, como livros pu-
blicados ou mesmo estórias e poemas criados pelos alunos, podem ser utilizadas
para desenvolver sequências de movimento e de dança em aulas de Educação Física.
Utilizando a técnica de mímica, Gabbei e Clemmens uniram linguagem e movi-
mento por meio da literatura, e utilizaram um esquema de aula com quatro fases:
a primeira constitui a fase de mímica das ações contidas nos livros infantis; a se-
gunda compreende a divisão da turma em grupos, a destinação de partes da narra-
tiva do livro infantil para cada grupo e a criação de uma breve sequência de dança
baseada na narrativa; a terceira fase é composta por movimentos mais subjetivos e
abstratos, que explorem diferentes posturas cênicas; e a quarta constitui a organi-
zação lógica de uma sequência de dança e a apresentação do produto final.
Igual ao caráter pioneiro no uso da literatura infantil na área, os primeiros trabalhos
acadêmicos que empregaram a análise de conteúdo nos livros infantis também
foram originados no âmbito da língua inglesa, exemplos são os textos Sexismo na
literatura de educação física das séries iniciais: uma análise de conteúdo (HIL-
DRETH, 1979) e Impotência feminina adquirida no esporte: uma análise da litera-
tura infantil (WEILLER; HIGGS, 1989).
Somente quase quatro décadas depois do trabalho de Miller e Whitcomb (1957) foi
publicado na Espanha o trabalho Contos motores (CONDE CAVEDA, 1994). Neste
livro, foram incluídos 25 contos para que os professores possam lê-los aos alunos e
também aplicá-los às aulas de Educação Física.
Nessa obra de dois volumes, todos os contos estão estruturados e organizados por
meio de um quadro sinóptico, que inclui a idade sugerida para a aplicação do conto,
o número de alunos, o local, os materiais, os objetivos gerais, a proposta, os conteú-
dos e alguns desenhos ilustrativos.
O conto motor, que também pode ser denominado conto para brincar e jogar, é um
tipo de conto que apresenta características e objetivos próprios, podendo ser clas-
sificado como uma variante do conto cantado e do conto representado (CONDE CA-
VEDA, 1994).

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Segundo Conde Caveda, este tipo de conto reúne todas as condições para ser utili-
zado como uma alternativa válida de se ensinar jogando, uma vez que sua inerente
qualidade lúdica é um fator que favorece o aprendizado da criança.
Uma revisão não exaustiva da literatura, ainda que ampla, identificou algumas ini-
ciativas que relacionaram os contos motores ou propriamente o conto às atividades
próprias da Educação Física e do Desporto (ARTEAGA CHECA; ZAGALAZ SáN-
CHEZ; CEPERO GONZáLEZ, 1999; CIDONCHA FALCÓN; DÍAZ RIVERO, 2009;
GONZáLEZ PIÑERO; MENDOZA PEÑA, 2007ab; HERNáNDEZ; GÓMEZ LECUM-
BERRI, 2008, 2009; HERRERA RUIZ, 2008; JIMÉNEZ ORTEGA; VELáZQUEZ ME-
JÍAS; JIMÉNEZ ROMáN, 2008; LAS AVENTURAS DE PIENSANTODO Y
CABEZAHUECA..., 2008; MARTÍNEZ CALLE, 2007; ROVIRA DE RIVAS, 2003).
Nesse contexto, Ruiz Omeñaca (2008, 2009) apresenta à comunidade acadêmica o
que denominou de contos motores cooperativos, uma variante do conto motor, que,
como o próprio nome indica, apresenta relação com as atividades físicas cooperativas.

Quando falamos sobre conto motor cooperativo nos referimos, basicamente, a um


relato que nos remete a um cenário imaginário onde os personagens cooperam
entre si, dentro de um contexto de desafio e aventura, com o fim de alcançar
um objetivo compartilhado, com o qual os meninos e meninas podem identifi-
car-se. Deste relato originam-se propostas em que os alunos e alunas participam,
por meio da atividade motriz cooperativa, imitando os personagens do próprio
conto. (RUIZ OMEÑACA, 2008, p. 3-4, grifo do autor).

Segundo Ruiz Omeñaca (2008), o conto motor cooperativo pode ser um excelente
referencial, uma vez que: a) propicia um marco idôneo para a interdisciplinaridade;
b) favorece uma educação baseada no conjunto das características pessoais dos alunos;
c) estimula o desenvolvimento da criatividade em sua acepção mais ampla; d) possui
um caráter flexível em relação ao tratamento dos aspectos ligados ao conhecimento
corporal; e) permite integrar atividades, jogos, desafios e opções metodológicas de ca-
ráter cooperativo; f) vai ao encontro da idéia de uma educação intercultural; g) pode
favorecer a discussão sobre valores em um rico cenário educacional.
Outra proposta interessante foi a desenvolvida por Gil Madrona (2006), na qual o
autor e seus colaboradores utilizaram, nas aulas de Educação Física, os jogos popu-
lares que aparecem na ilustre obra Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Estes jogos
foram trabalhados também de forma interdisciplinar e de modo teórico-prático com
outras áreas de ensino, como Língua, Ciências e História. Numa primeira fase, foram
identificados quais eram os jogos motores populares que apareciam na obra de Cer-
vantes. Em uma segunda etapa, adaptaram esses jogos às características de cada con-
texto escolar para, finalmente, desenharem uma proposta de intervenção
educativa. Uma das finalidades do projeto foi permitir, por intermédio desta obra
imortal da literatura universal, que os alunos compreendessem o contexto socio-
cultural em que vivem.
Rafael Guimarães Botelho (2009b), revisando parte da literatura infantil em língua
castelhana, assinala três maneiras de se utilizar esta literatura em uma Educação
Física voltada para a paz, a saber: 1ª livros infantis podem contribuir à Educação

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para a não-violência no Desporto; 2ª contos com temática relacionada ao Desporto


podem discutir valores na educação escolar; 3ª contos motores cooperativos podem
ser utilizados para o desenvolvimento das atividades físicas cooperativas.
No âmbito brasileiro, foi identificada a interessante proposta de José Maurício Ca-
pinussú de Souza (1979), que deu status acadêmico às histórias em quadrinhos bra-
sileiras com temática relacionada ao Desporto quando, em sua dissertação de
mestrado, analisou O ensino dos fundamentos desportivos através da história em qua-
drinhos, uma forma de literatura de massa.
Permeada pelo mesmo debate, Gílian Carraro (1992) publicou o artigo Maurício de
Sousa e seus personagens visitam a escola. Qual é a mensagem que eles transmitem?
Neste trabalho, Gílian propõe aos professores de Educação Física a utilização das
revistas em quadrinhos (RQ) enquanto recurso didático que possibilite aos alunos
uma leitura crítica da realidade ao correlacionar a mensagem subjacente nas His-
tórias em Quadrinhos com situações do cotidiano.
“Na utilização das RQ, os alunos têm a oportunidade de discutir o conteúdo das his-
tórias, alterando, reconstruindo ou criando novos diálogos e desfechos. Fazendo
montagens teatrais; recorte e colagem; debates [...]” (CARRARO, 1992, p. 282).
Estas duas experiências confirmam que, além da leitura de gibis e histórias em qua-
drinho ser uma fonte prazerosa, as crianças sempre os utilizam de forma autônoma.
Além disso, outra vantagem para a utilização deste tipo de material em aulas de
Educação Física é o seu baixo preço, sua elevada e contínua produção no Brasil e seu
fácil acesso (presente em quase todas as bancas de jornais).
Maristela Vicente de Paula (2003) investigou o uso de materiais bibliográficos por
um grupo de 27 professores que ministravam aulas de Educação Física nos ensinos
fundamental e médio. Deste grupo, apenas um professor não utilizava materiais
bibliográficos. No entanto, quando se analisou qual era o tipo de material usado,
apenas dois professores do grupo investigado declaram que fizeram uso de livros
de literatura infantil.
Com o escopo de diligenciar a possibilidade de uso da literatura infantil na área,
descreve-se resumidamente, a partir de um relato de experiência do autor deste ca-
pítulo, a aplicação de um livro infantil em uma aula de Educação Física.

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Referência: PIMENTEL, P. Tito: um professor muito especial. 2. ed. Ilustrações


André David Tortato Corso, Reinaldo Vigenati. São Paulo: Phorte, 2000.

Capa do livro Exemplo de uma página


(PIMENTEL, 2000, p. 19).
Tipo de literatura infantil: livro infantil narrativo.
Assunto: promoção da saúde.
Bloco temático: saúde.
Suporte: papel.
Versão e língua da publicação: original em língua portuguesa.
Breve relato da atividade: Foram elaboradas, pelo professor, brincadeiras a partir da nar-
rativa do livro Tito: um professor muito especial. As brincadeiras tinham como objetivo
explicar aos alunos a anatomia e a mecânica da coluna vertebral. Durante as atividades,
que reuniram duplas de alunos do primeiro ciclo do ensino fundamental, foram utili-
zados amortecedores de tênis novos e usados para simular os discos intervertebrais e
como estes recebiam impacto durante uma caminhada e um salto. Nos primeiros cinco
minutos de aula procedeu-se à leitura de trechos do livro para, posteriormente, inicia-
rem-se as atividades práticas. Nestas, cada dupla caminhava e saltava com um amor-
tecedor na mão; depois, cada aluno sentava de costas para seu companheiro,
juntando-as, e faziam movimentos para cima e para baixo com a finalidade de sentir
as diferentes regiões da coluna vertebral. Durante a volta à calma, foram lidas pelo pro-
fessor e por um aluno e discutidas com os demais alunos algumas páginas do livro. A
partir destas atividades, os alunos e alunas, sempre que pensavam nos personagens da
narrativa, recordavam os temas abordados durante esta aula, que aconteceu em 2004.

Figura 2. Breve relato de aplicação da literatura infantil em uma aula de Educação Física.

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A modo de conclusão
A primeira ideia que se conclui é que o professorado de Educação Física não pode
preterir uma manifestação tão importante como a da literatura infantil em seu dia-
a-dia.
Que o campo da Educação Física e do Desporto sofre influência de diferentes áreas
é tema já discutido. No entanto, descurar as diferentes manifestações que o campo
da Literatura oferece a esta área de estudo é uma atitude que visa a cercear cultu-
ralmente a prática da disciplina.
A Educação Física e o Desporto no Brasil carecem de iniciativas acadêmicas que
identifiquem e analisem materiais de literatura infantil de lavra própria e que reúna
estas informações em uma base de dados voltada aos que se dedicam à Educação Fí-
sica e ao Desporto em seus diversos níveis de ensino e pesquisa.

Notas
Rafael Guimarães Botelho. Licenciado em Educação Física (2002) e Mestrado em Educação (2006)
– Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Aperfeiçoamento em Metodologia da Pesquisa (2003) e Es-
pecialização em Ética Aplicada e Bioética (2003) – Fundação Oswaldo Cruz. Mestrado em Iniciação à
Pesquisa em Educação Física e Esporte: didática e desenvolvimento profissional (2009), Diploma de Es-
tudos Avançados em Didática da Expressão Corporal (2009) e doutorando em Educação Física e Esporte:
didática e desenvolvimento profissional (2007-) – Universidade Autônoma de Barcelona.

“Este trabalho foi elaborado com o apoio do Programa Alßan, Programa de bolsas de alto nível da União
Européia para América Latina, bolsa número E07D403960BR.”

481
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Educação Olímpica: da Utopia Pedagógica


à Didáctica do Olimpismo
António Fernando Boleto Rosado1

Já se disse tudo mas como ninguém ouve, é sempre necessário recomeçar.


André Gide

O Monte Olimpo ainda é a morada dos Deuses. Habitar no Olimpo é o sonho su-
premo do Homem e a Educação o seu instrumento para lá chegar. Na medida em
que a finalidade da Pedagogia é a realização do Homem, ela é, em primeiro lugar,
uma Ideologia, uma Visão, lugar de reflexão sobre o Homem no seu caminho para
a Transcendência. A educação, ainda antes de ser do domínio da ciência, é do domí-
nio da arte, fundando-se não na prosa mas na poesia. Exige que se reconheça, como
afirmava o poeta Teixeira de Pascoaes, “A essência das coisas é de natureza poética
e não científica”. Está, por isso, mais perto da Alma. Não há, portanto, educação
que não seja uma educação para a transcendência, que não envolva o sentido espi-
ritual da vida, que não caminhe pelas veredas da moral e da ética. Na realidade, toda
a educação é uma educação moral. A educação é sempre orientada por um ideal de
Humanidade, por uma axiologia, por um sistema de valores e de crenças, daí resul-
tando uma determinada concepção de Homem e uma particular intenção de
(trans)formação do Homem. Essa transformação é sempre um projecto enraizado
na Utopia, sempre aberto e livre, sempre criador de humanidade. Na realidade, o
Homem é sempre um homem de desejo, mais percurso do que meta; o que o move
é o mal-estar provocado por uma realidade que deseja que mude, pela angústia da
sua condição humana, pela presença esperada do divino. A dimensão espiritual do
mais simples acto educativo pode estar oculta mas, como o ar que se respira, não
deixa de estar presente. A pedagogia inspira-se em ideais filosóficos, em desejar para
o Homem uma vida mais verdadeira, mais pura e mais bela. Os ideais platónicos de
Verdade, de Bem e de Beleza, relembrando a “Pampaedia” de Coménio, fundam o
nosso ideário pedagógico. Que todos sejam educados em todas as coisas e total-
mente. E que o façam em pleno desenvolvimento da transcendência, tornando
todos os homens, o mais possível, semelhantes a Deus.
Este ideário educativo, se dominantemente ocidental, mergulha não só no solo e
mar helénico mas, também, em territórios mais distantes, nas velhas culturas e ci-
vilizações orientais. Um ideário largamente transcultural, não-contingencial, que
nos remete para a essência do humano, para um sentido do caminho da humani-
dade, para níveis de universalismo que importa desocultar.

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Toda a história do pensamento pedagógico revela-se-nos como uma obra de filosofia


e de poesia incessante. Ilumina-a a moral, a arte, a ciência e a acção. É que as utopias
também se concretizam. A educação quer-se, desde Platão e Sócrates, activa, irónica
e maiêutica, auto-dirigida, orientada para o “mestre interior”, para a descoberta de
si, dos outros, do mundo, do transcendente. Quer-se, também, integral, harmo-
niosa, de desenvolvimento equilibrado de todas as dimensões da natureza humana,
caminhando para a autonomia dos Homens, para dar ao “corpo e à alma” toda a be-
leza e perfeição de que são capazes. A educação envolve-se com a formação do ca-
rácter, no seu sentido mais amplo, de educação das virtudes, da excelência. Alcançar
a excelência é o objectivo da educação, ou seja, da Pedagogia.

Educação e Educação Olímpica


Muitos dos ideais educativos da nossa época foram formulados na Grécia Antiga.
Os métodos activos fundam-se no pensamento de Platão e Sócrates. A própria ideia
de educação integral, tão cara à Educação Nova e ao actual pensamento pedagógico,
terá, aí, a sua origem. Neste sentido, a educação olímpica recolhe, não exclusiva-
mente, o essencial do ideário olímpico antigo como a matriz do seu pensamento
pedagógico. Esta recolha não é, no entanto, passiva e actualiza-se com as contribui-
ções pedagógicas da modernidade. É um ideário moderno e em constante mutação,
acompanhando os tempos novos de um homem que, no tempo, se vai renovando
no seu projecto de Ser. O Olimpismo deve ser uma pedagogia aberta que admita
considerável transformação em função das circunstâncias. É essa orientação que
permitirá manter acesa a chama humanista que a ilumina.
Na educação olímpica se recorda, com facilidade, os ideários pedagógicos da Educa-
ção Nova. Nela reconhecemos a orientação naturalista, a valorização da afectivi-
dade, da experimentação e da acção, do divertimento, do prazer e do jogo, da
autonomia do educando. Reconhece-se, no ideário da educação olímpica, o carácter
activo da aprendizagem e a valorização da aprendizagem em grupo. Vemos, no seu
discurso, desfilar, a nossos olhos, e de memória, pedagogos como Rousseau, Pesta-
lozzi, Froebel, Maria Montessori, Ovídio Decroly, John Dewey, Claparède, entre
tantos outros. Entre os pedagogos portugueses como João de Barros, Faria de Vas-
concelos e Leonardo Coimbra, também entre outros, reconhecemos, com formu-
lações e ênfases diversas, o mesmo ideário.
O contributo da Educação Olímpica para a Educação, para a Pedagogia, traduz-se no
reforço do compromisso da educação desportiva com o desenvolvimento, com a
promoção de valores e com a possibilidade deste desenvolvimento ocorrer, tam-
bém, no terreno desportivo.
O Olimpismo recorda-nos que é necessário combater a “passividade” instalada em
torno da educação para os valores. Relembra que a educação para os valores se funda,
em primeiro lugar, numa auto-reflexão, activa, crítica, incidindo sobre os nossos
valores e atitudes, sobre a nossa própria identidade e projecto de vida e sobre o ali-
nhamento, a coerência, entre estes níveis lógicos com o plano comportamental.
Na realidade, falar de valores, hoje, é, em muitas circunstâncias, um acto de resis-
tência. A pedagogia olímpica é (deve ser) um desses actos de resistência, de persis-
tência, de abnegação e vontade de continuar a reflectir sobre o Homem, sobre novos

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projectos de construção da humanidade, de construção do Homem e de concepção


e construção do Desporto ao serviço desse ideário.

Olimpismo como educação descolarizada


O sistema educativo formal, com a presença omnipresente da Escola, deve ter um
papel decisivo no desenvolvimento pessoal e social, no desenvolvimento de com-
petências de vida e no desenvolvimento moral e do carácter. Este alinhamento com
os valores deve passar, também, pelo aprofundamento das possibilidades educativas
dos valores olímpicos na formação dos jovens. Os jovens devem familiarizar-se com
os valores olímpicos nas diferentes etapas e espaços do seu percurso educativo. O
tema “Citius, Altius, Fortius” está profundamente alinhado com os objectivos da
Educação Física. A filosofia e os valores do olimpismo fazem parte da doutrina da
Educação Física tendo expressão em diversos desenhos curriculares, ainda que, na
maioria das vezes, se expresse, apenas, através do “currículo oculto”. Sublinhemos,
no entanto, que o projecto educativo da Escola em matéria de educação para os va-
lores em geral e para os valores olímpicos em particular, não é só da responsabili-
dade da Educação Física e do Desporto Escolar. Se o Desporto é o meio privilegiado
para alcançar esses valores, ele não deixa de ser, apenas, um meio. O Desporto não
é, assim, um fim em si mesmo e outros meios, nomeadamente outras áreas curri-
culares, podem constituir espaços de formação para os valores que o olimpismo pre-
coniza. Sublinhe-se que o Olimpismo, como conteúdo, envolve dimensões
históricas, culturais, estéticas, sociológicas, políticas, económicas, filosóficas, mo-
rais e desportivas e pode ser objecto de diversas abordagens, quer disciplinares, quer
interdisciplinares, quer transdisciplinares. Na realidade, a educação olímpica é um
projecto de educação integral, “... uma filosofia de vida que exalta e combina, em
harmonia, as qualidades do corpo, a vontade e o espírito. Aliando o desporto com a
cultura e a educação, o Olimpismo propõe-se criar um estilo de vida baseado na ale-
gria do esforço, no valor educativo do bom exemplo e no respeito por princípios éti-
cos fundamentais e universais” (Coubertin, 1918).
Entre os valores educativos, Szymiczec (1969) destaca o seu valor cultural, repre-
sentando o olimpismo uma parte muito significativa da nossa história cultural e
um legado artístico e estético muito significativo, e o seu valor humanístico, no seu
apego à liberdade, à honestidade, à amizade, à paz, ao espírito de superação, à valo-
rização do auto-conhecimento, da disciplina, da fraternidade e da sã convivência
social e internacional no culto pela cooperação, tolerância e amizade internacional.
Mais do que o aperfeiçoamento físico e que a adopção de estilos de vida saudáveis,
o que já não seria pouco, a educação olímpica é um projecto de educação social, cí-
vica, de educação intercultural, alicerçada nos valores da fraternidade, da camara-
dagem, da convivência social, na cooperação, no respeito e na compreensão mútua,
na amizade internacional, no combate à discriminação em função de características
como, entre outras, a nacionalidade, a etnia e o género.
Por outro lado, do ponto de vista individual, enfatiza competências de vida tidas
como fundamentais: o valor do auto-conhecimento, do auto-controlo, da auto-rea-
lização, de valorização do esforço, da perseverança, do auto-aperfeiçoamento, da
harmonia pessoal.

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A educação olímpica enfatiza, ainda, numa dimensão de transferibilidade, o desejo


de que esses valores se transfiram para outras esferas da vida da pessoa, formando
não exclusivamente o desportista mas o Homem.
O seu desejo é promover competências humanas que estão muito para além da prá-
tica desportiva e se aplicam aos outros domínios da vida humana.
A Pedagogia Olímpica deve ser entendida, neste contexto, como um projecto for-
mativo para a escola como um todo, envolvendo a totalidade da comunidade escolar,
as múltiplas áreas curriculares e os seus diversos agentes.
Reconheça-se, adicionalmente, que a Educação Olímpica envolve objectivos e con-
teúdos transdisciplinares, de assinalável transversalidade, que comprometem não
exclusivamente a Educação Física e o Desporto mas, também, todas as áreas da for-
mação do homem, todos os espaços em que esta se pode concretizar.
Não é, importa sublinhar, um projecto educativo exclusivamente para os estudan-
tes, os desportistas ou para os jovens. É um projecto para todas as pessoas, de todas
as idades, qualquer que seja a sua condição. Deve ter lugar na Escola, com presença
visível nos programas de Educação Física e de Desporto Escolar; deve ter lugar, sa-
liente, nos clubes, nas associações, nas federações e nas estruturas governamentais
de gestão do fenómeno desportivo. Deve afectar os critérios de gestão e adminis-
tração do desporto, a organização desportiva, a organização de eventos, os regula-
mentos das competições, os códigos de ética profissional dos diversos agentes
desportivos, as práticas dos dirigentes, dos treinadores, dos desportistas e dos outros
diversos agentes envolvidos.
A educação olímpica não se caracteriza, pelo menos no essencial - que também os
há - por um conjunto de conteúdos, mais ou menos codificados, nem tanto por uma
didáctica ou uma metodologia concreta e, muito menos, pela existência de profis-
sionais ou espaços exclusivamente capacitados para a desenvolverem. Em todos os
ambientes sociais, ensina-nos, se aprende e educa. Todos somos educadores, todos
somos responsáveis. Trata-se de um projecto de educação “desescolarizado”, que
exige a cooperação activa da família, da escola, dos meios de comunicação social e
das diversas organizações sociais. É um projecto que se dirige, também, aos espec-
tadores, aos consumidores do fenómeno desportivo e, genericamente, a todas as
pessoas ao longo da sua vida. É um projecto educativo de responsabilidade pública.
É pedagogia “pública” transmitir conhecimentos e criar as bases de um projecto de
vida que concretize os imprescindíveis processos de socialização dos indivíduos mas
que desenvolva, também, cidadãos críticos, responsáveis, promotores de um
mundo mais civilizado, críticos com os defeitos do presente e comprometidos com
o desenvolvimento da sociedade.
A educação olímpica é, também, uma educação ecológica. Ecológica, esclarecemos,
não somente porque equaciona, como o faz, cada vez mais, as relações do Homem
com o Ambiente, dimensão emergente da nossa responsabilidade colectiva, mas
porque deve considerar o conjunto das influências sócio-ambientais que podem
afectar o desenvolvimento do seu projecto formativo integral. Considerar desde as
influências mais imediatas, passando pela política educativa e pelos níveis estru-
turais de organização do desporto, da cultura e da sociedade é-lhe imprescindível.
É, assim, literalmente, um projecto político.

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Ofuscação do futuro pelo presente e pelo passado


O valor cultural, social e educativo do Desporto e do Olimpismo em particular, é,
muitas vezes, ofuscado pela realidade vivida nas práticas quotidianas que caracte-
rizam a realidade dos Jogos Olímpicos e de que os media vão dando conta. Muitas
dessas realidades são profundamente deseducativas. A história do Olimpismo está
saturada de acontecimentos desta natureza. A violência dentro e fora dos estádios,
o ênfase exagerado na competição, a procura “a todo o custo” dos records, a corrup-
ção, a dopagem, a excessiva comercialização do humano que se sente e a alienação
que se pressente, determinam a desconfiança e o cepticismo acerca do Olimpismo
e dos seus valores. Tais práticas exigem um combate activo e um desses instrumen-
tos de combate não pode ser outro senão a própria pedagogia olímpica, entendida
como estrutura de desocultação, de resistência, de crítica, de reserva de ideias di-
rectoras para as práticas dos indivíduos e das organizações que configurem o pleno
desenvolvimento do humanismo latente nas práticas olímpicas. A pedagogia olím-
pica deve, portanto, ser uma pedagogia crítica, vigilante; a estrutura de vigilância
do Olimpismo. Educar para o Olimpismo é, também, portanto, desenvolver com-
petências de análise crítica dos fenómenos sócio-culturais que a actividade física e
desportiva representa, num compromisso para a eliminação de situações em que
os ideais olímpicos não se concretizam na sua plenitude. Discutir os valores, com-
prometer-se com os valores e combater as práticas olímpicas que os renegam eis
um dos objectivos da educação olímpica.

Como concretizar a Utopia?


A Pedagogia Olímpica vale mais pela arquitectura global do seu projecto do que pela
sua didáctica. É nessa dimensão, pedagógica, na utopia do projecto que representa,
que lhe encontramos o seu maior valor. Os seus objectivos devem ser entendidos
como ideais utópicos. Nesse sentido, não nos dizem o que é o Olimpismo mas ape-
nas o que pretende atingir. E é aí, no carácter geral dos seus princípios, que reside o
seu universalismo e encontramos o essencial dos seu mérito. No entanto, é a
“norma” didáctica que permite a sua implementação nas circunstâncias concretas
da vida dos desportistas, pelo que teremos de olhar, com maior atenção, para a sua
didáctica, para o seu instrumentário, isto é, para o conjunto de estratégias, de mé-
todos e procedimentos que permitem a concretização do projecto de educação olím-
pica. A tarefa não é fácil e merece-nos os seguintes comentários iniciais. Uma
educação olímpica deve ser uma educação progressiva, que imagine o futuro, que
encare novas possibilidades de concretizar a sua missão. Há, na pedagogia, mais para
inventar do que para descobrir. A pedagogia olímpica deve, portanto, nascer da es-
timulação da imaginação, deve encontrar novos meios de se concretizar nos novos
futuros da humanidade. Deve, para tal, construir uma didáctica que operacionalize
a possibilidade de concretizar os seus ideais.
A Didáctica Olímpica, inspirando-se na sua Pedagogia, deve encontrar na Ciência e
na Tecnologia os meios de que necessita para concretizar o seu projecto pedagógico.
Neste sentido não haverá Olimpismo sem Ciência. Não tem sido, aliás, a Ciência, a
grande obreira dos Sonhos da Humanidade?

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Essa didáctica olímpica a que nos referimos deve inspirar-se, sendo essa uma das
suas fontes fundamentais de produção de saberes, na investigação científica e na
análise dos paradigmas e metodologias que têm vindo a desenvolver-se, nomeada-
mente, no âmbito da educação para o desenvolvimento pessoal e social, da educação
moral e ética e do desenvolvimento de competências de vida. Os conhecimentos aí
produzidos são de vital importância para a concretização dos ideais olímpicos e o
Movimento Olímpico não pode esquecer essa preciosa fonte de inspiração para as
suas práticas formativas. Infelizmente, sendo fundamental, só o discurso filosófico
e pedagógico não será suficiente.
No âmbito da Pedagogia Olímpica existirá, sempre, a necessidade de intervir sobre a
educação moral, sobre a educação do carácter, sobre a qualidade moral das decisões e
do comportamento individual. Importa reconhecer, no sentido de optimizar essas
intervenções, seguindo Campbell & Bond (1982), que o carácter é determinado por
variáveis como a hereditariedade, as experiências da infância, a modelação pelos adul-
tos significativos, pela influência dos pares, pelo meio físico e social, pelos media,
pelos conteúdos ensinados nas organizações de pertença (família, escola, igrejas, etc.)
e pelas situações e papéis específicos que o indivíduo vai assumindo na vida.
No âmbito desta problemática, da educação para os valores, muitos programas têm
sido, na última década, desenhados na perspectiva de influenciar o desenvolvi-
mento de valores morais. Muitos têm equacionado os contributos do desporto, por
exemplo, na educação do carácter (Shields & Bredemeier, 1995). No entanto, em-
bora exista algum suporte empírico sobre o valor do desporto neste desenvolvi-
mento, existe, também, a ideia de que efeitos contrários podem acontecer (Danish,
Petitpas & Hale, 1990, 1993).
Na realidade, parece que os seus efeitos sobre o desenvolvimento pessoal e social
dos desportistas tem menos a ver com a prática em si mesma e mais com a filosofia
das organizações desportivas, a qualidade dos processos de orientação do treino, a
natureza do envolvimento parental e das experiências e recursos individuais dos
participantes (Smith & Smoll, 2002).
No que se refere à Educação para os Valores, algumas estratégias parecem ter impactos
significativos sobre o desenvolvimento do carácter: as actividades devem ser dirigidas
por adultos que exercem a sua autoridade de forma firme, sensitiva e imaginativa,
revelando-se comprometidos tanto com o desenvolvimento das competências des-
portivas como com o desenvolvimento do carácter, sendo exigentes, em ambos os
domínios, não só com os praticantes mas, também, consigo mesmos. Essa direcção
das actividades deve concretizar-se num contexto que mantenha a disciplina através
de códigos disciplinares claros e aceites como legítimos (Wynne, E. 1989). Por outro
lado, esse ambiente deve ser estruturado para que os praticantes tenham diversas
possibilidades de praticar comportamentos pró-sociais, fornecendo-lhes formas de
reconhecimento dessas boas condutas. As boas práticas sugeridas envolvem a criação
de condições para que os praticantes vivam um conjunto de papéis que valorizam,
dentro de um grupo afectivamente investido, em ambientes onde exista aceitação
pelos pares e sentimentos de pertença (Petitpas & Champangne, 2000). O clima emo-
cional percebido e a sua correcta gestão representa um pano de fundo estruturante
da possibilidade de afectar o desenvolvimento de valores.

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Um outro elemento, referido como fundamental, é o envolvimento em actividades


voluntárias, onde existem objectivos e incentivos de natureza profundamente in-
trínseca. Tal significa que as indicações para a gestão da motivação que suporte este
desenvolvimento estruturam-se em torno da ideia de que os atletas deverão ser en-
volvidos em actividades intrinsecamente motivantes, desafiadoras e percebidas
como suficientemente importantes para merecerem consideráveis níveis de tempo
e esforço. O clima motivacional transforma-se, assim, numa variável decisiva para
a optimização do processo de formação moral.
A este propósito refira-se que existe considerável suporte para o tipo de ambiente
de aprendizagem que é mais adequado para promover a auto-estima, a persistência
e o desenvolvimento de competências (Duda, 1992). Essa evidência sugere que pais
e treinadores que colocam a ênfase em motivações externas como ganhar, compa-
rar-se com os outros ou o reconhecimento público, podem criar uma orientação para
o ego ou um ambiente focado na performance que é menos propício para o desen-
volvimento psicossocial. Pelo contrário, pais e treinadores que colocam a ênfase no
esforço, na auto-superação e na motivação intrínseca criam um ambiente de orien-
tação para a tarefa e um clima de mestria que apresentam melhores condições de fa-
cilitação de uma ética de trabalho, a persistência face aos erros e aos
desapontamentos, o empenhamento e a motivação intrínseca bem como o desen-
volvimento de competências de vida positivas (Larson, 2000). Este tipo de motiva-
ção propícia, ainda, a criação de ambientes psicologicamente seguros, onde os
praticantes estão mais dispostos a correr riscos e a aprender com os seus erros (Da-
nish et al., 1993).
Na realidade, o desenvolvimento psicossocial parece ser facilitado se (a) os prati-
cantes estão envolvidos numa actividade desejada, (b) enquadrados por adultos
preocupados e pertencendo a um grupo ou comunidade positiva, que não tem
medo de desafiar e exigir excelência, possuindo, simultaneamente, elevados níveis
de expectativa positiva, (c) aprendendo competências e habilidades que são impor-
tantes para a vida. Acresce, ainda, a necessidade da existência de sistemas de sím-
bolos, de cerimónias, de actividades, que favoreçam o desenvolvimento de
identidades colectivas, factor fundamental de desenvolvimento pessoal e social.
A educação para os valores olímpicos parece exigir, como se induz, um ambiente
ou contexto onde os jovens possam desenvolver o sentido de iniciativa e liberdade,
fornecendo a motivação interna promotora da persistência, da criatividade, do al-
truísmo e dos compromissos cívicos. Por outro lado, essa formação só é possível
num ambiente que forneça oportunidades de ganhar confiança nas suas capacida-
des para as usar em outros contextos que não o do desporto. Importa, no essencial,
que os desportistas sejam ajudados a identificar as competências exigidas no mundo
do desporto que podem ser transferidas para outros ambientes, criando oportuni-
dades para utilizarem essas competências em diferentes contextos, fornecendo-
lhes suporte e encorajamento para assim procederem. É, aliás, essa possibilidade, o
sentido último da Educação Olímpica.
A educação olímpica exige, ainda, sublinhamos, a criação de um outro ambiente di-
dáctico: o ambiente moral.

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A potenciação deste ambiente moral resulta da qualidade das relações, comporta-


mentos e expectativas dos adultos e mentores, em particular, os pais e os treinado-
res. A este propósito, Perkins, (1997) refere que o envolvimento parental tem claros
benefícios no que se refere ao desenvolvimento psicossocial e moral através do des-
porto e que, para garantir a potenciação desse contributo, os pais, sem serem intru-
sivos, devem demonstrar um interesse activo nas actividades dos jovens. Aberto à
participação dos pais e de outros adultos, a intervenção sobre a formação do carácter
não deixará de procurar agir junto destes no sentido de colmatar as suas próprias
formas de resistência a essa formação.
Na realidade, importa que as relações interpessoais sejam de suporte a essas apren-
dizagens, que exista uma exposição aos valores sociais, que exista interacções entre
pares, que exista reflexão e discussão acerca de assuntos morais, que existam expe-
riências que promovam a compreensão dos outros, a empatia, a responsabilidade
pelos outros e o empenhamento e desejo de aperfeiçoamento contínuo até à exce-
lência em todos os aspectos da sua formação.
A educação olímpica não se pode fundar, exclusivamente, no conhecimento moral,
no conhecimento das regras do fair-play ou dos valores olímpicos, antes devendo
resultar da criação de um ambiente de convivialidade, de um clima afectivo seguro
e de um ambiente ético partilhado. A educação olímpica efectiva tem de considerar
a racionalidade e a afectividade, uma dimensão de conteúdo ou de conhecimento
e uma dimensão de reflexão e apreço.
Ryan & Lickona (1987) sublinham, fundando as ideias acima expostas, que o carác-
ter envolve conhecimento, afecto e acção, daí resultando indicações fundamentais
para a intervenção do formador desportivo neste domínio. O conhecimento moral
implica, para os autores, o conhecimento dos valores morais (reconhecidos como
válidos numa determinada cultura local, nacional ou universal), o raciocínio moral
(respondendo às questões da crítica aos valores), as estratégias de decisão, a imagi-
nação moral e o juízo judicioso.
Por outro lado, Ryan & Lickona (1987) referem que a dimensão afectiva da morali-
dade se determina pela identificação pessoal com os valores, pela atracção por esses
valores, pelo compromisso, lealdade e existência de sentimentos de culpabilidade
pela infidelidade a esses valores.
Os autores consideram a vontade, as competências de intervenção e o hábito como
factores determinantes da acção moral.
Também para Cunha (1996), o desenvolvimento moral exige raciocínio moral, con-
trolo do comportamento, afecto e preocupação com os outros. Exige, ainda, que se
considerem os hábitos e o conhecimento da tradição como factor essencial na for-
mação da consciência. Na realidade, a formação em valores inclui o conhecimento
dos valores consensuais da comunidade desportiva (os valores olímpicos, por exem-
plo), a identificação com esses valores e a valorização de hábitos e atitudes social-
mente relevantes. Em matéria de formação moral, Ryan (1987) citado por Cunha
(1996) afirma a importância dos formadores desenvolverem as seguintes compe-
tências específicas: (1) saber aceitar-se como modelo, (2) comprometer-se com o do-
mínio moral, (3) saber argumentar moralmente e assistir os praticantes nesse
processo, (4) saber exprimir a sua visão moral, (5) saber promover a empatia, (6)

492
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saber promover o clima moral no grupo de trabalho, (7) saber envolver os pratican-
tes na acção moral.
A educação olímpica não deve deixar de se basear na capacidade de autonomia da pes-
soa, do atleta, aceitando o facto de que não existe, sobre muitas matérias, consenso
moral e de que se vive em ambientes culturais e interculturais de relativismo moral.
Importa, portanto, contrariar práticas doutrinadoras e pensamentos únicos, acei-
tando que algum relativismo ideológico e alguma neutralidade do treinador pode ser
necessária para facilitar quer a clarificação de valores quer a discussão de dilemas mo-
rais. Esta posição didáctica parece ser decisiva na clarificação dos valores pessoais na
medida em que ajudará o desenvolvimento do espírito crítico e da autonomia.
Esta neutralidade não deve, apesar disso, como vimos, ser um fundamento decisivo
da intervenção na formação em valores; o treinador, não pode ser um simples faci-
litador desta formação. Para Cunha (1996), a educação moral exige, também, trans-
missão clara e directa de valores, a proclamação de valores e ideais, de uma forma
equilibrada e baseada na racionalidade, enfatizando o raciocínio mas, também, os
conteúdos. A explicação e demonstração racional, o uso de grandes exemplos, um
ambiente de diálogo, de racionalidade e de liberdade, são aspectos decisivos a con-
siderar nas estratégias formativas neste domínio.
Por outro lado, recordamos, a clarificação de valores pessoais não pode fazer esque-
cer que uns valores são mais justos e equilibrados que outros e que, se é difícil de-
fender a tese da universalidade dos valores olímpicos, não deixará de ser verdade a
existência de grandes consensos civilizacionais em torno de um grupo significativo
desses valores.
A existência de fases do desenvolvimento moral, referenciadas, por exemplo, por
Kohlberg (1971), vem, ainda, sublinhar o facto de que os processos de formação, de
suporte ao desenvolvimento do raciocínio e educação moral, devem estar de acordo
com os estádios de desenvolvimento moral, colocando-se, deste modo, desafios
muito diferenciados aos programas de formação olímpica.

Olimpismo e Formação de Agentes Desportivos


Se a Pedagogia Olímpica é, como defendemos, no essencial, um projecto de educa-
ção moral, importa que se envolva, profundamente, nas problemáticas, na reflexão,
sobre os processos de educação e de desenvolvimento moral. O conhecimento já
produzido nesta área deverá, também, ser exportado, rapidamente, para o mundo
do desporto e, em particular, para a área da formação dos agentes desportivos. Pa-
rece-nos decisivo, na criação de condições para a concretização dos ideais olímpicos,
que a formação de professores, treinadores e outros agentes desportivos envolva o
desenvolvimento de competências de educação moral, de desenvolvimento pessoal
e social dos atletas, considerando, em particular, os ideais e valores olímpicos. Não
deverá bastar aos professores elevados níveis de domínio técnico da sua profissão
e aos treinadores um elevado domínio dos aspectos técnicos dos seus desportos sem
que as suas concepções de ensino e treino sejam objecto de reflexão, sem que os va-
lores ético-desportivos sejam considerados, pelos próprios, como uma dimensão
significativa da sua responsabilidade profissional e do seu próprio projecto de vida
e sem que a sua compreensão dos processos de desenvolvimento moral e de educa-

493
livro:livro maputo 6/3/10 23:24 Page 494

ção moral sejam aprofundados. Neste sentido, importa que a formação de profes-
sores e treinadores não seja, apenas, dirigida para competências ligadas ao conhe-
cimento dos aspectos técnico-tácticos ou metodológicos que mais directamente
dizem respeito ao rendimento desportivo, mas que possam, também, influenciar,
as suas competências profissionais no que se refere ao desenvolvimento de valores.
Tal exigirá, também, uma formação pessoal centrada sobre as suas atitudes, valores
e crenças, bem como as suas próprias concepções de Homem, de Vida, de Missão. O
mesmo imperativo deve estender-se para as formações de outros profissionais liga-
dos ao mundo do desporto: os dirigentes desportivos, os juízes e árbitros, os médicos
e paramédicos, os jornalistas, os psicólogos do desporto, etc.

Palavras Finais
O Olimpismo é uma teoria e uma prática ao serviço do Homem. Neste sentido,
existe para servir o Desporto na justa medida em que serve a Humanidade que neste
se substancia. O Olimpismo, enquanto praxis, exige aos seus diversos agentes muito
mais do que uma intervenção técnica; exige uma intervenção fundada na filosofia
e, simultaneamente, na ciência, esclarecendo, deste modo, e tornando mais eficaz,
a sua intervenção no plano ético e de orientação dos seus potenciais efeitos forma-
tivos para aspectos da formação e do desenvolvimento moral, da formação do ca-
rácter, da formação pessoal e social dos diversos agentes desportivos.
Na realidade, o que pode ser aprendido pode ser ensinado e, no que se refere à for-
mação de valores e atitudes, tal evidência não pode ser esquecida. Tal exige uma Di-
dáctica Olímpica. A educação olímpica define-se no âmbito de um quadro
conceptual que não só permite mas exige, uma intervenção sobre a identidade pes-
soal, sobre o desenvolvimento de competências de vida (independência, autono-
mia, auto-estima e percepção de competência, auto-realização e auto-desafio,
responsabilidade pessoal e social,) que se concretizará nos ambientes desportivos
e em contextos mais alargados de pessoas e circunstâncias. As tentativas de procurar
afectar o desenvolvimento de valores exigem um conhecimento aprofundado dos
processos de desenvolvimento e de educação para os valores. Afectar a motivação,
a definição de objectivos, o desejo e a ambição, desenvolver valores adequados face
à competição, aprender a respeitar as regras e os outros, desenvolver o fair-play e
os comportamentos éticos, as relações com os outros no que se refere ao respeito e
à aceitação da diversidade, aprender a ganhar e a perder, são tudo aspectos verda-
deiramente essenciais da educação olímpica que têm que se traduzir em práticas
formativas concretas e eficazes.
Como promover a integridade? O compromisso e o empenhamento? Como promo-
ver o respeito pelos direitos dos outros? Como promover o sentido de justiça e a
preocupação com os outros?
Neste sentido, praticar desporto é, em primeiro lugar, uma experiência moral e es-
pera-se que, do envolvimento nessa prática moral, resulte cooperação, amizade, ge-
nerosidade, magnanimidade, compaixão, sentido de justiça, autenticidade,
transcendência, humanidade, por fim.
Em síntese, o desenvolvimento humano na sua dimensão de formação moral e
ética, de educação para os valores e de desenvolvimento de competências pessoais

494
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e sociais que se transferem para outros contextos de vida, representa o sonho por
detrás do projecto pedagógico que o Olimpismo encarna.
Trata-se, portanto, de um projecto de desenvolvimento humano, de largos e lon-
gínquos horizontes, sem dúvida, utópico, no melhor sentido desta palavra. É que a
utopia, ocupando-se de imaginar o futuro, é a verdadeira fonte da juventude, a
fonte da imortalidade.

1
Professor Associado da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa

495
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496
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Olimpismo e “Soft Power”: Desporto é Política


Gustavo Pires
Professor Catedrático da Faculdade de Motricidade Humana,
Universidade Técnica de Lisboa

Como afirmou Melo de Carvalho (2000),1 num artigo a que intitulou “Olimpismo:
hipocrisia ou função humanista?”, a crise do Olimpismo encontra-se encerrada em
duas questões fundamentais: por um lado, uma comercialização sem fronteiras; por
outro, um falso discurso que procura escamotear a realidade da situação. E conti-
nuou dizendo que enquanto a estrutura do Movimento Olímpico é cada vez mais
poderosa, o Ideal Olímpico tem vindo a caminhar progressivamente para a sua fra-
gilização. Entretanto, decorreram quase dez anos em que aconteceram significati-
vas mudanças sociais, económicas e políticas. Não restam dúvidas que o Movimento
Olímpico aumentou significativamente o seu poder, contudo fica por saber se o
mesmo se passou com o Ideal Olímpico, ou se, pelo contrário, como Melo de Car-
valho afirmou vai para dez anos, acabou por ficar mais fragilizado.
A nossa resposta relativamente à questão colocada é a de que, desde 2001, com a
liderança do actual presidente do Comité Olímpico Internacional (COI), Jacques
Rogge, o Movimento Olímpico tem vindo a mudar em questões fundamentais,
pelo que a maneira como hoje opera, é bem diferente daquela em que operou du-
rante a segunda metade do século XX. Está-se numa situação ideal? Estamos em
crer que não, contudo, o que é facto é que, na actual presidência têm vindo a acon-
tecer algumas mudanças de sinal positivo que, tendo em conta o título do artigo
de Melo de Carvalho, nos levam a pensar que as coisas no Movimento Olímpico
começam a inclinar-se mais para o lado da função humanista do que para o lado
da hipocrisia. E estão a inclinar-se mais para o lado da função humanista, na me-
dida em que Jacques Rogge conseguiu ultrapassar a maior das mistificações que
acompanharam o Movimento Olímpico durante toda a segunda parte do século
XX que, contra toda a evidência, partia da ideia de que “o desporto nada tem a ver
com a política”. Esta ideia foi cunhada por Avery Brundage (1887-1975) que pre-
sidiu ao COI de 1952 a 1972 que, de uma forma falaciosa, a fundamentava da se-
guinte maneira: “Se aceitarmos que num mundo imperfeito como o nosso, se
deixe de praticar desporto, cada vez que as leis humanas são violadas, nunca ha-
verá competições internacionais.”2
O mundo mudou, o desporto mudou, a presidência do COI mudou, estão criadas
condições para que as coisas melhorem no Movimento Olímpico. A nossa tese é a
de que estão a melhorar.

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1. Sociedade em Rede
Nos últimos anos, a internet tomou conta do mundo e estabeleceu uma rede de re-
lações virtuais entre milhões de pessoas, absolutamente inimaginável ainda há
meia dúzia de anos. Ora, este facto está a transformar a maneira como o sistema
desportivo mundial funciona e a maneira como se relaciona com outros sistemas
sociais. Hoje, estão a surgir diversas comunidades interessadas directa ou indirec-
tamente no fenómeno desportivo que interagem na rede em tempo real 24 horas
por dia. Em consequência, o Movimento Olímpico passou a estar presente na inter-
net desde logo através do site do COI, mas também passou a ser escrutinado através
de um sem número de sites e de blogues independentes com capacidade para, de
um momento para o outro, mobilizarem o interesse e a acção de milhões de pessoas
por todo o mundo.
Deste modo, a sociedade da comunicação em rede coloca as mais diversas organiza-
ções e os respectivos líderes debaixo dos olhares do mundo. Qualquer assunto que há
uns anos era tratado na maior das privacidades, hoje, de um momento para o outro,
salta para a rede podendo assumir um “efeito de borboleta” e provocar uma tempes-
tade social à escala do planeta. Estamos a funcionar cada vez mais a partir de redes de
interesses, de organizações e de pessoas que estabelecem entre si à volta dos mais di-
versos assuntos, temas e problemáticas, relações fluidas e mutáveis, mas também de
consequências imprevisíveis. De facto, o mundo está cada vez mais a funcionar
menos em regimes piramidais de hierarquias lineares pelo que cada vez faz menos
sentido que determinadas organizações reivindiquem para si o vértice de uma qual-
quer pirâmide hierárquica de poder na medida em que o verdadeiro poder está na rede
de comunicação, de informação e de conhecimento que funciona sem limites à escala
mundial. Quer dizer que, no mundo em rede, a pirâmide organizacional tradicional
da civilização industrial está a deixar de ter o sentido e a importância de outrora.
Assim sendo, o sistema desportivo mundial começa a funcionar com uma descentra-
lização extrema e um alto padrão de flexibilidade que obriga as mais diversas organi-
zações a um ajustamento em tempo real às novas realidades e provocações que, a todo
o momento e de todos os lados, surgem no sistema que transcende fronteiras, iden-
tidades e interesses corporativos ou nacionais. Por exemplo, hoje, o COI, a FIFA e a
UEFA, com frequência, pretendem intervir nos Estados nacionais. Por sua vez, redes
de Estados nacionais, como é o caso da União Europeia (EU), também fazem vingar
as suas opiniões junto das organizações supranacionais.3
Constata-se ainda que o sistema está a evoluir de organizações multinacionais para
redes internacionais à medida que o processo de globalização se desenvolve. Por isso,
o COI está a deixar de ser uma organização transnacional de representação mítica, em
que a sua imagem foi construída em benefício próprio a partir de uma ideia de Pierre
de Coubertin (1863-1837) e dos seus amigos, para passar a ser uma organização inter-
nacional a funcionar em redes mais ou menos formais e cada vez mais descentraliza-
das. A estratégia de Jacques Rogge de alterar a correlação de forças no interior do próprio
COI, fazendo com que cada Federação Internacional lá passe a estar representada é um
sinal de uma certa desagregação do “poder duro” do Movimento Olímpico Internacio-
nal, protagonizado na última metade do século XX, fundamentalmente por Avery
Brundage (1887-1975), e por Juan Antonio Samaranch (1920).4

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Note-se que, e este é um dos principais problemas do COI e do próprio Jacques


Rogge,5 o ponto fraco deste tipo de redes reside na sua incapacidade para processar
grandes transformações que exijam acordos e compromissos muito alargados. Nes-
tes termos, não vale a pena pensar em mudar muito de uma só vez através de planos
deliberados como o pretendem muitas entidades individuais e colectivas que pres-
sionam o COI. Mais vale idealizar estratégias emergentes de maneira a ir mudando
muitas vezes ao longo do tempo. No fundo, foi o que Jacques Rogge fez durante o
seu primeiro mandato. Certamente, vai continuar a fazê-lo no segundo já a decorrer.
Para que isto seja possível, a rede tem de viver uma forte cultura de conhecimento
mas, também, uma forte cultura de mudança que lhe é dada fundamentalmente
pelo seu grau de educação. O problema é que todas as transformações culturais e
educacionais levam tempo a surtir efeitos.
Não restam dúvidas que estamos a viver tempos de mudança que já não se compa-
decem com discursos fechados, corporativos e sem sentido global, na medida em
que já nada têm a ver com o mundo e o desporto em que vivemos. Até porque, como
refere Manuel Castells (2000),6 a lógica da rede é mais poderosa do que a lógica dos
poderes dentro da rede. Nesta perspectiva, começam agora a surgir dentro e fora do
Movimento Olímpico as forças de pressão necessárias para processar as mudanças
há muito desejadas. E esta pressão é portadora de futuro como se constata pelo dis-
curso de Jacques Rogge na 121ª sessão do COI realizada em Copenhaga em 2 de Ou-
tubro de 2009, a propósito da sua eleição para o segundo mandato. Entre outras
coisas Jacques Rogge comprometeu-se a:7

— Implementar as recomendações do XIII Congresso Olímpico realizado de 3 a 5


de Outubro em Copenhaga;
— Valorizar os novos Jogos Olímpicos da Juventude que se vão estrear em Singa-
pura, em Agosto. Os de Inverno serão realizados em Innsbruck em 2012;
— Preservar e fortalecer os recursos do COI e melhorar a estrutura para a partilha
de receitas;
— Continuar a apoiar os CON e as FI, defendendo a autonomia do desporto onde
quer que ela esteja ameaçada;
— Reforçar uma aliança firme com os atletas, liderando a luta contra a dopagem;
— Institucionalizar um novo organismo independente de controlo a fim de com-
bater o flagelo das apostas irregulares e manipulação de resultados;
— Promover em matéria de desporto a redução das diferenças entre o mundo de-
senvolvido e o mundo em desenvolvimento e entre homens e mulheres;
— Redobrar os esforços para colocar o desporto ao serviço da humanidade;
— Inspirar jovens e velhos e dar aos atletas a oportunidade de liderarem pelo exem-
plo;
— Desenvolver os valores olímpicos do “fair Play”, o respeito, a solidariedade e a
busca da excelência.

Para além do mais, Jacques Rogge anunciou que o COI vai realizar uma série de re-
formas durante o próximo mandato a fim de melhorar o seu funcionamento bem
como manter os Jogos Olímpicos como um evento desportivo de superior qualidade.

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As principais reformas vão ser:

— Criar um sistema mais estruturado a fim de que, de uma forma rotineira, se faça
a revisão e actualização do programa de modalidades desportivas olímpicas;
— Melhorar o sistema de julgamento e de arbitragem anti-doping;
— Tomar medidas para restringir o tamanho e o custo dos Jogos.

O COI ainda adoptou a proclamação do Milénio das Nações Unidas relativa ao De-
senvolvimento (agenda 21 - questões ambientais) e recebeu das Nações Unidas
apoio no que diz respeito à Trégua Olímpica; ao desenvolvimento e à educação atra-
vés do desporto; e à ajuda humanitária e à protecção da saúde em todo o mundo.
Repare-se que nada disto é conversa vã, na medida em que há vontade, as pessoas
estão disponíveis e os recursos financeiros também existem. Durante o mandato
de Jacques Rogge o COI quadruplicou suas reservas financeiras de US $ 105 milhões
em 2001 para mais de US $ 400 milhões em 2009, pelo que aumentou significati-
vamente a distribuição de fundos às Federações Internacionais, aos Comités Olím-
picos Nacionais e ao Programa Solidariedade Olímpica que proporciona assistência
financeira aos mais diversos projectos de desenvolvimento do desporto, no âmbito
da formação de atletas.
Contudo, na dialéctica de confronto de ideias numa estrutura em rede, alguns dos
seus membros serão sempre “mais iguais do que os outros”. Não se deve estranhar
tal situação. De uma maneira geral, as relações de interdependência tendem a ser
assimétricas. Como refere Melo de Carvalho, o fosso entre os países ricos e o 3º e
4º Mundos, alarga-se produzindo injustiças globais à escala do Planeta. Contudo, a
denúncia sistemática e permanente dessas injustiças passou a fazer parte da rede e
o COI já não pode pretender viver à margem delas, quer dizer, noutro mundo. Hoje,
são múltiplas as ONGs que interagem no sistema exercendo sobre o COI enormes
pressões tal como, por exemplo, a “Play the Game”8 que tem realizado uma acção
notável em termos de combate à corrupção no desporto.
Nesta perspectiva, o desporto é assumido como um instrumento de desenvolvimento
humano pelo que à semelhança do que fazia Pierre de Coubertin, deve voltar a ser
considerado uma ferramenta de “soft-diplomacia”, ao serviço das relações interna-
cionais a fim de catalisar as transformações necessárias ao desenvolvimento e ao pro-
gresso. Se tal vier a acontecer, podemos dizer que o desporto está integrado numa
dinâmica do chamado “soft power”9 que, ao longo da história do século XX, aconteceu
por diversas vezes e em várias circunstâncias, umas com êxito, outras sem qualquer
êxito. Por exemplo, aconteceu com êxito em 1971 em plena Revolução Cultural chi-
nesa10 com a abertura da China ao mundo através da política do ping-pong desenca-
deada por Mao Zedong, que acabou por ser bem mais eficaz do que o chamado “hard
power” e da diplomacia de confronto de forças entre os dois países desde 1949. Acon-
teceu sem qualquer êxito nos Jogos de Montreal (1976) quando vários países africanos
protestaram contra o facto da equipa de râguebi da Nova Zelândia ter feito uma di-
gressão pela áfrica do Sul, “furando” o boicote desportivo em vigor. Os países africa-
nos recusavam-se a participar nos Jogos a menos que a equipa da Nova Zelância fosse
afastada. O COI, em virtude do râguebi não ser uma modalidade olímpica, tentou ig-

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norar a questão e o tiro saiu-lhe pela culatra. A 48 horas do início dos Jogos, 30 países
e cerca de 1000 atletas abandonaram Montreal.11
Entretanto, a atribuição da realização dos Jogos da XXIX Olimpíada à cidade de Pe-
quim, veio trazer uma nova dinâmica política e social ao Olimpismo moderno que
tem vindo a estabelecer um corte com o “discurso de avestruz”, quer dizer, a diplo-
macia do silêncio desencadeado nos anos cinquenta por Avery Brundage, com a má-
xima de que “o desporto nada tem a ver com a política”. Hoje, este tipo de discurso,
embora muitos dirigentes ainda o queiram manter, está condenado ao fracasso na
medida em que as estruturas de autoridade em linha estão cada vez mais desajus-
tadas à dinâmica informacional/global, pelo que as lideranças das organizações des-
portivas têm de se adaptar a uma nova forma de relações institucionais em rede,
em alternativa ao modelo neo-clássico do passado do “quero posso e mando” de
Avery Brundage que determinava simplesmente aquilo que podia ou não fazer
parte da agenda.
Agora, na perspectiva de Castells, a globalização e a “informacionalização” estão
estruturalmente relacionadas com o funcionamento em rede e a flexibilidade.
Assim, também as mais diversas organizações desportivas para além do modelo tra-
dicional começaram a funcionar numa teia de redes múltiplas que fazem parte de
uma grande diversidade de contextos institucionais. Perante este quadro, em que
o poder, muitas vezes, é exercido de uma forma aleatória, o COI foi levado através
de Jacques Rogge a protagonizar um discurso novo que, pelo menos aparentemente,
começa a colocar novamente os valores da ideologia Olímpica no centro do desen-
volvimento do Movimento Olímpico. Com este novo posicionamento, o COI:

— Promove os seus próprios valores sem o cinismo do passado;


— Atrai a simpatia das pessoas e das organizações, através das suas atitudes hones-
tas e claras;
— Torna-se numa instituição geradora de desenvolvimento e de progresso aos
olhos da comunidade mundial.

2. A Ruptura de Jacques Rogge


Desde 2001, data em que foi atribuída a Pequim a responsabilidade de sediar os Jogos
Olímpicos da XXIX Olimpíada, até Agosto de 2007, à parte de uma excepção ou de
outra, o mundo viveu mais ou menos desinteressado da questão olímpica e dos pró-
prios Jogos Olímpicos. Entretanto, a 7 de Agosto de 2007, precisamente um ano
antes da cerimónia de abertura dos Jogos, Jacques Rogge publicou um artigo de opi-
nião no “Herald Tribune”12 que, aparentemente, passou despercebido à generali-
dade dos dirigentes desportivos dos mais diversos países do mundo. Muito
provavelmente, Rogge já estava a prever o que ia acontecer nos próximos meses,
porque, no referido artigo, o Presidente do COI começou por dizer que muitos ob-
servadores iriam querer avaliar a situação social e política da China na mesma me-
dida em que o fariam do ponto de vista das performances desportivas. De facto,
dizemos nós, outra coisa não seria de esperar porque, desde que tinha sido atribuída
a realização dos Jogos Olímpicos a Pequim, haviam enormes expectativas de que os

501
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Jogos Olímpicos promoveriam um conjunto de mudanças políticas e sociais de


grande significado na República Popular da China (RPC). E Jacques Rogge, nos dois
primeiros parágrafos do artigo em causa, estabeleceu um corte radical com o dis-
curso tradicional do passado admitindo haver expectativas mundiais de que os jogos
promovessem a abertura da China. Ora, esta posição franca e aberta contrasta com
a cultura do passado em que não se admitia sequer qualquer referência a um assunto
de tal melindre. E a prová-lo aí está a posição de António Samaranch que, na velha
tradição da “política de avestruz” que desenvolveu nos 21 anos em que liderou o
COI, relativamente aos direitos humanos na China, afirmou ao jornal desportivo
Marca (30/3/2003): “nosotros estamos en un mundo maravilloso. Los políticos no
hascen ninguna falta, hacen falta los atletas”. Se compararmos esta posição com a
de Jacques Rogge que certamente não escreveu por acaso, constata-se que estavam
há vários anos a decorrer enormes mudanças de mentalidade no COI. Dizia Jacques
Rogge: “o Movimento Olímpico não existe no vácuo. O desporto faz parte da socie-
dade.” Em conformidade, “é natural que organizações como as dos direitos humanos
e outras coloquem as suas causas sob a luz que os Jogos Olímpicos estão a colocar
na China a fim de chamarem a atenção para as causas que advogam. Contudo, os
Jogos só podem ser um catalisador de mudança e não uma panaceia.” E continuou
defendendo que qualquer expectativa de que o COI possa exercer pressão sobre a
China, para além daquilo que é necessário para a realização dos Jogos, não tem sen-
tido, porque o COI “não tem qualquer competência relativamente a assuntos de so-
berania da China”. Depois, Jacques Rogge não deixou de afirmar que os Jogos
Olímpicos de Pequim eram um passo em frente nas relações da RPC com o resto do
mundo. Nunca desde o tempo de Pierre de Coubertin que foi um especialista na
arte do “soft power”, o mundo tinha ouvido semelhantes afirmações por parte de
um presidente do COI.
Depois, em 15 de Outubro de 2007, o “Le Monde” perguntou a Jacques Rogge se es-
tava preocupado com o movimento de contestação das associações de defesa dos
Direitos Humanos que questionavam a realização dos Jogos Olímpicos na China. O
Presidente do COI respondeu não acreditar que aquelas organizações pudessem pre-
judicar os Jogos. E acrescentou: “Submetê-los-emos e suportá-los-emos até à reali-
zação da cerimónia de encerramento. Mas eu creio que é normal, é uma boa guerra:
vai acontecer um evento planetário eles aproveitam para defenderem as suas causas
que são perfeitamente honradas e respeitáveis.”13
Com as suas declarações ao “Le Monde”, Jacques Rogge, muito embora não suspei-
tasse do que estava prestes a acontecer, contudo, na linha do artigo do “Herald Tri-
bune”, marcou uma posição de princípio que estabeleceu uma ruptura fundamental
relativamente à posição manifestada por muitos dirigentes que, confundindo o le-
gitimo direito de crítica como um mero oportunismo, consideravam todos aqueles
que as faziam como meros oportunistas.
O que é facto é que, com estas duas intervenções públicas, o líder do COI, deu um
sinal de uma extraordinária abertura de espírito relativamente a um passado re-
cente, na medida em que reconheceu, não só, a honradez das causas dos manifes-
tantes como até o direito de se aproveitarem de uma organização com o prestígio

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dos Jogos Olímpicos, para fazerem passar as ideias em que acreditavam. Ora, isto
representou um corte profundo relativamente à atitude dos três presidentes do COI
que o antecederam, bem como com o pensamento da generalidade dos líderes des-
portivos a nível mundial que, salvo raras excepções, nunca souberam muito bem
para que lado é que haviam de emitir opinião.

As ONGs e a Família Olímpica


É evidente que o COI tem de conviver com muitas Organizações Não Governamen-
tais (ONGs) que exercem uma vigilância participativa sobre as mais diversas insti-
tuições que hoje, devido às pressões políticas e económicas a que são sujeitas,
muitas vezes, acabam por colocar em segundo plano os valores que deviam defen-
der. Por isso, é absolutamente normal que as mais diversas ONGs tenham não só
uma atitude crítica relativamente ao que se passa na China, bem como à posição do
próprio COI, no que concerne ao respeito pelos Direitos Humanos nos países das ci-
dades aonde se realizam os Jogos Olímpicos. É sadio, é bom, é promotor de desen-
volvimento e de progresso que exista este controlo social, aberto e democrático, de
umas organizações sobre outras e vice-versa. A democracia é isto mesmo. É uma
cultura de vigilância democrática em rede, ao serviço do desenvolvimento humano.
E foi Jacques Rogge que no âmbito do COI abriu esta porta, pelo que se espera que
nos 205 países do mundo que têm comités olímpicos venha a acontecer, tão breve
quanto possível, a mesma coisa. Porque, o valor da referida abertura é tanto maior
quanto se sabe que o COI sempre viveu numa espécie de sistema fechado, à margem
de um controlo social mais ou menos institucionalizado, na medida em que foi o
modelo organizativo deixado por Pierre de Coubertin que, como refere Helen Lens-
kyj (2000)14, fundou o COI na lógica de um “clube privado”. Ora, esta circunstância
da qual Pierre de Coubertin dificilmente poderia ter fugido, originou diversos pa-
radoxos que, muitas vezes, não têm sido bem estudados e entendidos. Entre eles,
está o da designada “família olímpica” que se manteve durante praticamente todo
o século XX como uma estrutura fechada sobre si própria e, por isso, com grandes
dificuldades em gerir os problemas levantados por uma sociedade em rede com um
cada vez maior número de pessoas e de instituições a querer ter opinião sobre uma
questão – o Olimpismo – que, como se sabe, é património não da famigerada “famí-
lia Olímpica” mas património da humanidade. E Jacques Rogge também anunciou
esta abertura da “família olímpica” à generalidade da humanidade quando abriu as
portas do XIII Congresso Olímpico à participação do público em geral que teve a
oportunidade de apresentar comunicações, teses e propostas, uma vez que o con-
gresso teve uma primeira fase virtual. Deste modo, as questões relativas ao Olim-
pismo foram pela primeira vez partilhadas à escala do planeta, por todos os países,
comunidades e cidadãos.
Gerir o Movimento Olímpico de uma forma fechada, conduziu, entre outros proble-
mas de difícil solução, ao rebentamento de um enorme escândalo de corrupção em
1998 que, há muito, já andava nas páginas da imprensa, mas que era abafado, por uma
cultura de silêncio – metáfora da prisão psíquica15 – que, em muitas circunstâncias, de
uma maneira geral, sempre caracterizou a vida das organizações desportivas.

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Olimpismo & Corrupção


O COI não podia, de maneira nenhuma, continuar com a política do passado em
que, perante toda e qualquer contrariedade, metia a cabeça na areia. A este respeito,
foi sintomática a posição do COI relativamente à corrupção entre os seus membros.
O que aconteceu foi que, de negação em negação, o assunto se avolumou de tal ma-
neira que, quando rebentou, estava absolutamente fora de controlo.
Entretanto, para a história fica o jornalista Andrew Jennings16 que com a publicação
do livro “Lords of the Rings - Olympic Corruption”, desencadeou a partir de 1992,
uma campanha internacional a denunciar o que se passava a nível do COI relativa-
mente ao comportamento escandaloso de alguns dos seus membros. Contudo, de-
vido ao enorme poder do COI, só muito dificilmente as denúncias atingiram a luz
do dia. E, por incrível que possa parecer, em 1994, Andrew Jennings acabou por ser
julgado à revelia e condenado a cinco dias de prisão por um tribunal suíço, por fazer
determinadas acusações relativamente a alguns membros do COI, acusações que o
tempo veio a provar estarem certas.17
Entretanto, o escândalo acabou por rebentar na sua plenitude a 10 de Dezembro de
1998, quando o suíço Marc Hodler, membro vitalício do COI desde 1963 (!), candi-
dato à presidência do COI em 1980 e derrotado por Antonio Samaranch, antigo ex-
Presidente da Federação Internacional de Esqui, responsável pelo processo de
investigação aos Jogos de Salt Lake City (2002), entre outras coisas, resolveu dizer
para quem o quis ouvir que: “de cinco a sete por cento dos membros do COI eram
compráveis”.18
Em consequência, vários dirigentes do COI foram acusados de terem recebido fa-
vores em troca do seu voto. Alguns foram expulsos, outros, conseguiram arranjar
justificações um tanto ou quanto duvidosas. Ainda em 2004, o sul-coreano Kim Un-
Yong vice-presidente do COI foi sentenciado no seu país a dois anos de prisão por
corrupção desenvolvida no âmbito do desporto e do Olimpismo.19
Hoje, o COI para além de ter instituído mecanismos internos de controlo ao pro-
cesso de candidaturas à realização dos Jogos Olímpicos, adoptou o combate à cor-
rupção como uma das suas estratégias mais incisivas.

Human Rights Watch


Perante o que se passou desde o início da segunda metade do século XX as posições
das ONGs, de uma maneira geral, devem ser entendidas numa perspectiva positiva.
Porque podem estabelecer um sistema informal de monitoragem de que todos
podem beneficiar a começar pelo próprio COI. Por isso, a posição de Jacques Rogge
relativamente às ONGs só pode ser vista como muito positiva na medida em que
revela uma abertura de espírito por parte do COI, uma organização que, infeliz-
mente, o mundo se habituou a ver fechada. Assim, só podem ser bem-vistas e nunca
como oportunistas as organizações que nos últimos anos exerceram pressão sobre
o COI:

— A Fédération Internationale des Ligue des Droit de L’Homme (FIDH), com a data
de 11 de Fevereiro de 2007, escreveu uma carta ao COI e a Jacques Rogge aler-
tando-o para o facto de: “no futuro, tanto a história como a sociedade civil vão

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julgá-lo a si e ao COI pela ausência de uma efectiva acção antes da cerimónia de


abertura dos Jogos, num lugar aonde milhares de defensores da democracia e
pelo primado da lei, foram vítimas de uma violenta repressão.”20
— Em 11 de Setembro de 2007, a Human Rights na China (HRIC) escreveu uma
carta a Jacques Rogge, pedindo-lhe para que o COI divulgasse o contrato estabe-
lecido com Pequim: “sem a divulgação do Contrato, o público não pode avaliar
os esforços tanto do IOC como do BOCOG a fim de cumprirem o prometido e as
suas obrigações.”21
— A Human Rights Watch (HRW), quando em Março de 2008, rebentaram os pro-
testos no Tibete, criticou veementemente o silêncio do COI, relativamente à
violação dos Direitos Humanos na China: “a recusa do COI em se demarcar dos
abusos directamente ligados aos Jogos de Pequim compromete os Direitos Hu-
manos na China e ofende o espírito da Carta Olímpica”.22

E a este respeito a HRW ainda vai mais longe na medida em que afirma que a ques-
tão “não é saber se o COI é uma organização que defende os Direitos Humanos,
mas se o Movimento Olímpico respeita os direitos do Homem. Se for esse o caso,
permanecer em silêncio enquanto se intensifica a repressão na China não é acei-
tável”.23
Assim, através das mais diversas ONGs que controlam as atitudes e comportamen-
tos dos governos, bem como de outras ONGs pode haver evolução e progresso no
que concerne ao respeito pelos Direitos Humanos.

Novamente o Parlamento Europeu


A fechar um ciclo de sete anos que desde a decisão de atribuir os Jogos a Pequim,
Edward McMillan-Scott Vice-presidente do Parlamento Europeu escreveu uma
carta (10/2/07) a Jacques Rogge imediatamente antes do início da Olimpíada de Pe-
quim em que afirmava: “tendo em conta (…) o debate relativo ao diálogo EU/China
acerca dos Direitos Humanos, a realizar no Parlamento Europeu no próximo dia 12
Dezembro escrevo-lhe a fim de o convidar a tornar pública a sua própria avaliação
acerca dos compromissos assumidos pela China quando foi atribuída a Pequim a or-
ganização dos Jogos Olímpicos de 2008. (…) O habitual argumento de que o COI não
se envolve em política está manifestamente errado como, por exemplo, ficou de-
monstrado quando o COI boicotou a participação da áfrica do Sul aos Jogos Olím-
picos de 1964 a 1992. Para além do mais, o Artigo 1 da Carta Olímpica determina
“princípios éticos universais fundamentais” e todos os que conhecem a China re-
conhecem que longe de reformas nas esferas política ou social, o regime continua
as suas políticas brutais e repressivas contra toda a forma de dissidência, e as suas
políticas relativamente à religião são genocidas. Também foi notável o efeito da
acção do Presidente Ronald Regan ao pedir reformas na Coreia do Sul antes dos
Jogos de Seul em 1988 que conduziram ao estabelecimento da democracia naquele
país. Escrevo-lhe com o objectivo de o convidar a fazer uma avaliação acerca do com-
prometimento da China relativamente ao compromisso que teve para consigo e o
seu Comité como foi sugerido durante a audição sobre Direitos Humanos na China,
pela Subcomissão dos Direitos Humanos do Parlamento Europeu, em 26 de Novem-

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bro, realizada pelo meu colega Pál Schmitt, detentor de duas medalhas olímpicas e
membro do COI. (…) A minha opinião pessoal é que nenhum político eleito em elei-
ções livres e justas e figura sénior na vida nacional no âmbito da União Europeia
devia ir aos Jogos de Pequim e acredito que o seu Comité devia decidir para o futuro
que os jogos se deveriam realizar para sempre em Atenas, que organizou com par-
ticular sucesso os Jogos de 2004.”24
Nunca alguém pertencente a uma instituição como o Conselho da Europa tinha ido
tão longe a afrontar o COI e as suas posições. Estas posições são muitíssimo impor-
tantes na medida em que a história do Olimpismo moderno ensina-nos que os pro-
blemas da corrosão do carácter não estão no Olimpismo nem nos Jogos Olímpicos
porque os seus valores e os seus ideais são perenes e estão inscritos na Carta Olím-
pica, mas pelas fraquezas da própria condição humana. O problema está nos diri-
gentes que têm corrompido o Olimpismo e os próprios Jogos Olímpicos, a fim de
obterem vantagens pessoais. Muitos deles, estão lá há demasiados anos. Já só são
capazes de defenderem os seus próprios interesses pelo que são completamente in-
capazes de ouvir qualquer crítica por muito justa que seja. Por isso, como refere
Melo de Carvalho (2000), enquanto a estrutura do Movimento Olímpico é cada vez
mais poderosa, o Ideal Olímpico tem vindo a caminhar progressivamente para a sua
fragilização. Depois, dizemos nós, quando os princípios e os valores deixam de co-
mandar o desporto, este transforma-se numa actividade de alienação de massas à
margem do desenvolvimento humano. Por isso, sempre que surgem pessoas como,
entre outros, Helen Lenskyj, Andrew Jennings ou Edward McMillan-Scott, uma
académica, um jornalista e um político, só nos podemos regozijar.
Hoje é possível dizer que com Jacques Rogge a tradicional política de silêncio do
COI, começou a alterar-se para uma atitude proactiva com o fim de evitar que um
Movimento Olímpico, sem agenda e sem projecto político, ande sistematicamente
atrás dos acontecimentos. Contudo, ter uma agenda bem definida e projectos apon-
tados para a construção de um futuro comum não é fácil para uma organização
como o COI em que participam mais Comités Olímpicos Nacionais do que o número
de países que fazem parte da ONU.

3. Líderes Mundiais
Em 2001, com a decisão de atribuir a Pequim a organização dos Jogos, o COI “armou
uma bomba relógio” que podia rebentar de um momento para outro. E rebentou. E
os Jogos Olímpicos de Pequim vieram, mais uma vez, colocar na agenda dos líderes
mundiais as questão das relações entre o desporto e a política. E de uma forma bem
diferente daquelas que aconteceram em Moscovo (1980) e em Los Angeles (1984).
Entretanto, o mundo mudou e os problemas deixaram de poder ser equacionados
da mesma maneira. Por isso, se o boicote puro e duro aos Jogos de Pequim sempre
foi uma hipótese mais do que remota, a ausência das principais figuras mundiais na
cerimónia de abertura, embora tenha sido referida por alguns líderes, também
nunca teve reais condições de sucesso. O mundo, em 2008, vivia num equilíbrio
periclitante pelo que praticamente ninguém estava interessado em arvorar grandes
atitudes de efeitos imprevisíveis. Era a “realpolitik” a funcionar.

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“Realpolitike”
No quadro da “realpolitik”, a posição do COI não foi fácil. De facto, Jacques Rogge
foi apanhado sozinho na defesa dos Direitos Humanos, entre os interesses da RPC
em abafar a contestação à sua política de Direitos Humanos e os interesses dos di-
versos líderes mundiais preocupados em não afrontar o poderio económico e finan-
ceiro da China. Só depois das contestações no Tibete em Março de 2008, tendo como
pano de fundo a véspera da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim,
é que os líderes mundiais se dignaram emitir opinião sobre o assunto que, de uma
maneira geral, foi no sentido de não incomodar a RPC:

— Pedro Silva Pereira, ministro da Presidência, admitiu, que o Governo português


se fará representar na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim;25
— Ângela Merkel, chanceler da Alemanha foi quem em primeiro lugar decidiu não
estar presente nos Jogos Olímpicos.26
— Vaclav Klaus Presidente da República Checa afirmou que não ia estar presente;27
— O Primeiro-ministro polaco Donald Tusk também disse que não iria estar pre-
sente;28
— Nicolas Sarkozy deixou uma ameaça no ar. “Todas as opções estão em aberto”,
respondeu Sarkozy quando os jornalistas o questionaram sobre as críticas que
têm sido feitas acerca da posição tardia da França face à crise tibetana e sobre a
possibilidade de um possível boicote aos Jogos de Pequim. Sarkozy, pressionado
pelas responsabilidades da Presidência Europeia acabou por garantir que estaria
presente na cerimónia de abertura;29
— George W. Bush anunciou que estaria presente na China, em Agosto. “Para co-
meçar, vou aos Jogos (...) Não mudei meus planos. (…) Faço isto porque posso
falar (com o Presidente chinês, Hu Jintao) de liberdade religiosa antes, durante
e depois dos Jogos, e é o que tenho feito. (…) Se politizar os Jogos Olímpicos, serei
menos eficaz quando falar com eles sobre estas questões. (…) Tenho falado sobre
liberdade religiosa cada vez que os visito. Já conversei sobre Darfur. Falei sobre
Myanmar, sobre o Dalai Lama. Não preciso dos Jogos Olímpicos para expressar
minha posição.”;30
— Em Pequim, no final de um encontro com o Primeiro-ministro da China, o Pre-
sidente da Comissão Europeia Durão Barroso manifestou-se contra um eventual
boicote aos Jogos.31
— Para o Presidente do Parlamento Europeu Hans-Gerd Poettering, justificam-se
“medidas de boicote” caso a China não dialogue com o Dalai Lama;32 Neste qua-
dro, o Parlamento Europeu é uma excepção na medida em que, em 2001
aquando da atribuição da realização dos Jogos a Pequim, tomou uma posição bem
crítica acercas do assunto;
— A União Europeia (UE) rejeitou qualquer boicote aos Jogos Olímpicos de Pequim,
defendendo que não seria uma resposta apropriada ao problema do respeito dos
Direitos Humanos. Entretanto, mostrou-se muito preocupada com a violência
no Tibete, mas descarta a possibilidade de boicotar os Jogos Olímpicos;33
— Hillary Clinton, candidata à nomeação democrata, defendeu que George W.
Bush não devia comparecer à Cerimónia de Abertura dos Jogos Olímpicos;34

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— Para o ex-embaixador holandês em Pequim, Dirk-Jan van den Berg, o boicote


seria um insulto de primeira grandeza, não só às autoridades chinesas, mas a
todo o povo chinês. O Primeiro-ministro holandês, Jean-Peter Balkenende, tudo
indica, concordou com o ex-embaixador.35
— O ministro japonês das Relações Exteriores, Masahiko Komura informou que o
Japão se oporia ao boicote aos Jogos Olímpicos. Contudo, pediu à China que
“mostre transparência na gestão da crise.”;36
— Gordon Brown, Primeiro-ministro inglês, disse pretender assistir à cerimónia
de encerramento dos Jogos Olímpicos, informou Downing Street.37
— Ma Ying-jeou, candidato do Kuomintang (KMT) às eleições em Taiwan declarou
que Taiwan devia boicotar os Jogos Olímpicos se o Partido Comunista da China
continuasse a “oprimir o povo tibetano e a situação no Tibete se deteriorar”. Foi
imediatamente criticado pelo líder administrativo de Taiwan e pelo Partido Pro-
gressista Democrático (PPD), assim como pelo candidato do PPD, Frank Hsieh.38

Neste novo século, os Jogos Olímpicos são vistos pelos dirigentes da generalidade
dos países com olhos bem diferentes daqueles com que os viram nos anos oitenta.
Contudo, o cidadão comum, minimamente atento, também suspeita que a posição
da generalidade dos dirigentes políticos perante a China se fica a dever ao enorme
receio que agora existe sobre o poderio económico e financeiro daquele país. Por
isso, devemos entender a generalidade das posições mais por razões de interesse do
que por razões de solidariedade. Porque, bem vistas as coisas, a Europa e os EUA
estão de certo modo reféns do poder económico e financeiro da China. Por exemplo,
o governo chinês condenou o encontro em Londres entre o Primeiro-ministro do
Reino Unido, Gordon Brown e o Dalai Lama, líder espiritual tibetano no exílio. O
Ministério de Assuntos Exteriores chinês afirmou que o encontro “interfere nos as-
suntos internos da China e fere os sentimentos do povo chinês”. Brown recebeu o
Dalai Lama no Palácio de Lambeth, sede da Arquidiocese de Canterbury na capital
britânica e não numa instalação do Estado o que reforçaria a oposição de Londres
face à questão do Tibete. Brown jogou com prudência a fim de não prejudicar as re-
lações económicas com a China. Mesmo assim, os chineses permitiram-se criticar
a sua atitude!39
De uma maneira geral, os diversos líderes mundiais agiram de uma forma mais ou
menos concertada e sensata no sentido de não perturbarem não só o equilíbrio in-
terno como externo da China. Ninguém estava interessado em agitar, antes pelo
contrário, se os Jogos Olímpicos servissem para estabilizar o sistema mundial tanto
melhor.

Boicotar Vs Pressão
É claro que seria profundamente penalizante para as relações internacionais se a
Europa, os EUA ou um grupo significativo de países resolvesse boicotar os Jogos de
Pequim ou até mesmo só a cerimónia de abertura. Só uma política de “terra quei-
mada” podia advogar uma medida deste tipo para pressionar a RPC relativamente
aos Direitos Humanos. Contudo, quanto àqueles que afirmam que o boicote aos
Jogos Olímpicos de Moscovo (1980) não teve quaisquer resultados políticos, seria

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bom que considerassem que o boicote aos Jogos teve certamente alguma coisa a ver
com a queda do muro de Berlim. Pelo menos, abalou a consciência das populações
e, certamente, as convicções dos líderes que nos anos oitenta já tinham conheci-
mento de que as coisas não iam bem no país. Também podemos perguntar se, em
1936, tivesse havido um boicote aos Jogos Olímpicos de Berlim o caminho do na-
zismo na Alemanha teria sido o mesmo. Estamos em crer que não. Os Jogos de Ber-
lim foram um autêntico hino ao nazismo e serviram de estímulo ao grande ditador
para avançar com os seus projectos que conduziram à hecatombe da II Guerra Mun-
dial. Ao tempo, muito embora Pierre de Coubertin tivesse apoiado a realização dos
Jogos de Berlim (1936), o que é facto é que estava velho, doente, falido e frustrado
pela desconsideração que os franceses lhe dedicavam, pelo que os nazis, aprovei-
tando-se do seu débil estado psicológico, se utilizaram dele. Acabou por morrer um
ano depois dos Jogos. Teve a sorte de não ver o arranque da guerra desencadeada
pelos alemães. Teria de lamentar profundamente o discurso que proferiu através
da rádio, aquando da cerimónia de encerramento dos Jogos de Berlim (1936): “que
o povo alemão e o seu chefe sejam agraciados por quilo que acabam de conseguir.”
O problema que se coloca é o de saber se é legítimo os líderes mundiais participarem
em eventos desportivos à escala mundial de uma forma completamente desinte-
ressada das barbaridades e das injustiças que estão a ser cometidas pelo país da ci-
dade anfitriã, e fazê-lo utilizando hipocritamente a desculpa de que “o desporto
nada tem a ver com a política” pelo que os atletas não podem deixar de competir. A
generalidade dos líderes mundiais, respondeu que sim, muito embora reconheça-
mos que seria bem pior se tivessem respondido que não.
As condições sociais em 2008 eram completamente diferentes das de 1936 ou até
mesmo das de 1980. Numa perspectiva mundial no que diz respeito à construção
da paz e do desenvolvimento humano, o mundo em geral e a China em particular
ganharam muito mais com a participação de todos os países nos Jogos do que ga-
nhariam se os Jogos tivessem sido boicotados por alguns, mesmo que poucos, países.
E ganharam na medida em que, hoje, o sistema mundial de comunicação não tem
nada a ver com o passado mesmo que recente. Nos tempos que correm, o mundo é
uma pequena aldeia em que as comunicações fluem com uma grande facilidade e a
uma velocidade vertiginosa, pelo que faz mais sentido utilizar os meios tecnológi-
cos que permitem um envolvimento alargado a centenas de milhões de pessoas nos
mais diversos pontos do planeta, do que um boicote decidido nos gabinetes duma
nomenclatura política qualquer, com pouco impacto a nível mundial.

4. Os Líderes Desportivos
Apesar dos princípios expressos na Carta Olímpica, que esclarecem a vocação e a
missão do Movimento Olímpico, a generalidade dos líderes, sobretudo na segunda
metade do século XX, a partir dos Jogos Olímpicos de Helsínquia (1952),40 devido
à “guerra fria” em curso, procuraram produzir um discurso “politicamente cor-
recto”, em que o desporto foi invariavelmente considerado uma actividade assép-
tica, desenvolvida à margem da sociedade, sem qualquer contacto com as realidades
mais comezinhas do mundo, da vida e da política, pelo que nada tinha a ver com os
pecados do mundo e dos homens.

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Entretanto, no meio do clamor provocado pelo percurso da Tocha Olímpica a cami-


nho de Pequim, muitos dirigentes desportivos continuaram a insistir em proferir
as mais diversas proclamações acerca da incompatibilidade do desporto com a polí-
tica. E no calor da batalha que antecedeu os Jogos, ficará certamente para a história
do desporto português a frase proferida pelo chefe da missão portuguesa aos Jogos
Olímpicos de Pequim: “nós somos desportistas, cumprimos a Carta Olímpica e dei-
xamos a política para os políticos.”41 Depois, afirmações com um conteúdo mais ou
menos semelhante, foram produzidas por muitos dirigentes. Por exemplo:

— Vicente Moura, Presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP) classificou


de “oportunistas” os que defendem um boicote aos Jogos Olímpicos de Pequim
(2008), devido às questões do Tibete e dos Direitos Humanos na China.42
— Carlos Arthur Nuzman, Presidente do Comité Olímpico Brasileiro (COB), após
o encerramento da reunião de trabalho da Comissão de Coordenação dos Jogos
Olímpicos Pequim (9/4/2008), afirmou: “boicotar os Jogos, como pretendem
fazer dirigentes da Alemanha, da Polónia e da República Checa, é um desrespeito
aos atletas que vão participar na competição”.43
— Thomas Bach, Presidente do Comité Alemão das Federações Olímpicas (DOSB)
afirmou não participarem em nenhum boicote aos Jogos de Pequim na medida em
que os realizados no passado tiveram um impacto limitado. E disse: “o desporto
não é uma ferramenta apropriada para aplicar pressão política. O desporto não está
em posição de poder resolver os problemas que nem as Nações Unidas nem as na-
ções individualmente foram capazes de resolver, apesar de décadas de esforços.”44
— Mario Vazquez Rana, Presidente da Associação dos Comités Olímpicos Nacionais
afirmou: “qualquer político que defenda o boicote está a cair num sério erro. Para
mim, um boicote total ou um boicote parcial está fora de questão.”45
— Erica Terpstra, líder do Comité Olímpico Holandês, disse acreditar que: “é peri-
goso misturar desporto com política. Queimar o desporto com isto (boicote) é
errado. Deixem os meus atletas em paz” – keep your hands off my athletes –.46
— Claudia Bokel, líder da Comissão de Atletas da Associação dos Comités Olímpicos
Europeus afirmou não se envolver na questão do boicote. E continuou: “nós
como atletas estamos muito preocupados mas há muito tempo que trabalhamos
para conseguir a qualificação para os Jogos. Como atletas, devemos ter o nosso
tempo para competir, e não para nos envolvermos e sermos utilizados como ins-
trumentos políticos.”47
— Togay Bayatli, Presidente do Comité Olímpico Turco disse: “o desporto não deve
suportar o peso. Os nossos países estão a negociar na China. Toda a gente vai à
China. A iniciativa tem de partir dos políticos e dos homens de negócios.”48
— Chris Rudge, director executivo do Comité Olímpico Canadiano afirmou: “nós
não apoiamos um boicote principalmente neste momento. Não vejo que nada
possa acontecer que nos leve a aderir a um boicote. Continuamos a suportar a
posição do COI de que somos uma organização desportiva. Acreditamos que o
Movimento Olímpico e a presença dos Jogos Olímpicos num país é uma força
para o bem e para transformações positivas e acreditamos que essas coisas estão
a ocorrer na China.”49

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— Milan Zver, o ministro esloveno dos desportos que presidiu à reunião entre as
autoridades governamentais e os responsáveis pelos Comités Olímpicos da Eu-
ropa dos 27 – note-se que a Eslovénia presidia à União Europeia – afirmou ser
contra o boicote aos Jogos Olímpicos. E argumentou: “a pressão política através
do desporto não funcionou. O boicote aos Jogos Olímpicos de Moscovo foi bem
ineficiente a nível político. Por outro lado feriu seriamente o Movimento Olím-
pico. O desporto é um instrumento de diálogo”50

Estas posições representam um pensamento fechado, que se baseia num discurso


fundamentado num certo número de clichés que nada têm a ver nem com a vida,
nem com a obra de Pierre de Coubertin. Contudo, perante as posições mais ou
menos acéfalas protagonizadas por dirigentes desportivos que nem se deram ao tra-
balho de alinhar pelo pensamento de Jacques Rogge o que só lhes ficava bem, des-
toou a de Jörg Schild Presidente do Comité Olímpico Suíço que acusou os
organizadores dos Jogos Olímpicos de não aceitarem críticas e propôs que os países
anfitriões dos Jogos fossem simplesmente obrigados a cumprir a Carta Olímpica. Já
em Março de 2008 ele tinha desafiado o COI a tomar posição relativamente ao con-
flito entre a China e o Tibete.51 É evidente que este último tipo de discurso é um
sinal de esperança de que alguma coisa possa estar a mudar.

Pacto de Silêncio
O problema é que os dirigentes desportivos e políticos, como geralmente não atri-
buem ao desporto a importância política que efectivamente o desporto tem en-
quanto agente catalisador, depois, quando surge uma qualquer questão mais
complicada para resolver, então, não sabem o que fazer. Deste modo, limitam-se a
correr atrás dos acontecimentos.52 E, como quem não sabe gerir controla, começam
a engendrar todo o tipo de processos implícitos e explícitos a fim de minimizar os
estragos. Foi esta a posição da Associação Olímpica Britânica – recordamos que Lon-
dres vai organizar os Jogos em 2012 – ao elaborar um “código de silêncio” para os
atletas seleccionados para participarem nos Jogos de Pequim. Ao tempo, a comuni-
cação social dizia: “os atletas britânicos terão de assinar um contrato comprome-
tendo-se a não falar sobre política ou Direitos Humanos para poderem participar
dos Jogos Olímpicos de Pequim, que serão disputadas este ano, informou a Associa-
ção Olímpica Britânica (BOA). Para poder pertencer à equipa britânica, os atletas
terão que aceitar um contrato que estabelece que eles ‘não vão comentar sobre qual-
quer assunto político sensível’ que envolva o país sede, disse o porta-voz da BOA,
Graham Newson.”53
Tem sido esta “política” de “esconder a cabeça na areia” que mais tem prejudicado o
Movimento Olímpico, pelo que também é absolutamente incompreensível a posição
da Associação de Comités Olímpicos Nacionais (ACON) expressa pelo seu Presidente,
o mexicano Mário Vázquez Rana, ao cabo da reunião (2005ª) de três dias realizada
em Pequim. No comunicado emitido, a ACON para além de aprovar por unanimidade
uma declaração contra um boicote aos Jogos Olímpicos de Pequim 2008, decidiu tam-
bém não mencionar a questão do Tibete a fim de não ser acusada de interferência!
Contudo, numa primeira declaração que depois acabou por ser emendada, a ACON

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pedia uma “resolução justa e razoável para o conflito interno que afecta a região do
Tibete”.54 A posição da ACON55 peca por estar completamente à margem dos verda-
deiros problemas que envolvem o Movimento Olímpico que ou são solidários com os
próprios problemas da humanidade, ou não servem para nada.
Felizmente para o Movimento Olímpico, a posição desumana da ACON foi ultra-
passada por Jacques Rogge que, no mesmo dia, apelou à China para que tivesse uma
atitude pacífica relativamente aos tumultos no Tibete, reafirmando que o recurso
à violência é incompatível com os Jogos Olímpicos. Ao contrário da generalidade
dos dirigentes do Movimento Olímpico, Jacques Rogge, assumiu com coragem uma
mudança de atitude relativamente às relações do desporto com a política, estabe-
lecendo um corte radical com a diplomacia de silêncio do passado, que acabou por
ter a sua máxima expressão numa Tocha Olímpica a caminho de Pequim, protegida
por uma equipa de “gorilas”.
Jacques Rogge provocou um corte com um discurso pretensamente apolítico que,
na realidade, sempre consubstanciou posições políticas – veja-se, por exemplo, o
caso das duas Chinas –56 profundamente desajustadas não só ao ideário de Pierre de
Coubertin, como à dinâmica de solidariedade que deve orientar a missão do Movi-
mento Olímpico ao serviço do Direitos do Homem e do desenvolvimento humano.
Em conformidade, Jacques Rogge inaugurou uma “diplomacia silenciosa” que pro-
cura resolver os problemas fora do alarido da comunicação social, em oposição a
uma “diplomacia do silêncio” que caracterizou a política do COI durante a segunda
metade do século XX, bem simbolizada pelo comunicado da ACON emitido da reu-
nião realizada em Pequim.

A Regra 51
Infelizmente, a generalidade dos dirigentes desportivos pratica objectivamente
uma “diplomacia do silêncio” quando afirma: “se [os atletas] não quiserem, podem
não ir, mas se vão aceitam as regras da Carta Olímpica.”57 Depois, remetem tudo
para a Regra 51 da Carta Olímpica. Claro que, como certamente a grande maioria
dos atletas nunca leu a Carta Olímpica e jamais ouviu falar da Regra 51 ou de outra
qualquer, acaba por ficar constrangido a emitir qualquer opinião. A questão da edu-
cação olímpica, como refere Nelson Todt (2007) passa pela assunção dos rituais e
cerimónias olímpicas como instrumentos integradores de uma prática curricular
interdisciplinar que continua arredada dos sistemas educativos. Quando um atleta
chega aos Jogos Olímpicos, deve chegar não só porque cumpriu uma marca olímpica
mas, também, porque é detentor de uma cultura que lhe permite saber aonde está
e como é que deve estar. Ora, isto só é possível a partir de uma educação olímpica
no ensino obrigatório que, depois, se deve projectar e cultivar na vida de atleta.58
Como esta prática nunca aconteceu, a Regra 51 da Carta Olímpica59, foi utilizada
como uma arma destruidora do livre pensamento e da crítica por aqueles que têm
do Olimpismo uma visão mesquinha, retrógrada e anti-democrática. A Regra 51 de-
nomina-se esclarecedoramente: “publicidade, demonstrações, propaganda”:

— O ponto nº 1 diz que a Comissão Executiva do COI “determina os princípios e as


condições a que todas as formas de anúncios publicitários ou outra publicidade
pode ser autorizada.”

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— O ponto nº 2 determina que nenhuma forma de publicidade será admitida nos


estádios…
— O ponto nº 3 estabelece que nenhuma espécie de demonstração ou de propa-
ganda política, religiosa ou racial é autorizada nos locais olímpicos.

Quer dizer, a Carta Olímpica não proíbe nem limita o direito à expressão de opinião
nos locais olímpicos, mas tão só:
“Demonstrações ou propaganda política, religiosa, ou racial”,
Ora, isto é uma coisa completamente diferente.60
Assim, o impedimento dos espaços olímpicos a demonstrações ou a propaganda po-
lítica, religiosa ou racial expressa na Carta Olímpica, parece-nos ser uma medida
perfeitamente aceitável na medida em que não podemos imaginar que, em plenos
Jogos Olímpicos, possa acontecer uma demonstração de propaganda do regime do
país anfitrião, uma manifestação de atletas islamitas e uma contra manifestação de
atletas judeus ou cristãos ou, ainda, uma manifestação de atletas latinos contra
anglo-saxónicos ou vice-versa. Também não concebemos que possam ser expostos
cartazes com estes temas ou outros semelhantes.
Estamos de acordo que a Carta Olímpica não permita demonstrações ou propaganda
no espaço olímpico, sob pena de ninguém se entender. Por isso, uma organização
tipo “Team Darfur”61 ultrapassa em muito o direito de opinião de qualquer cidadão,
até porque, desde logo, começa a conflituar com os direitos dos outros. Organizações
como a “Team Darfur” têm todo o direito de se manifestarem mas fora do espaço
olímpico. No entanto, os atletas olímpicos que participam nos Jogos, a título indi-
vidual ou através da missão de que fazem parte, têm o direito de manifestar as suas
opiniões sejam elas quais forem aonde quer que seja, porque eles estão na sua pró-
pria casa e na sua própria festa.62 A festa, quer os dirigentes gostem quer não, é dos
atletas não é dos dirigentes.
E a respeito da Regra 51 Jacques Rogge mais uma vez foi esclarecedor quando se di-
rigiu à 205ª reunião dos Comités Olímpicos Nacionais realizada em Pequim: “a ca-
pacidade de alguém expressar a sua opinião é um direito humano básico e como tal
não necessita de ter uma cláusula específica na Carta Olímpica porque está lá im-
plicitamente. (…) Mas pedimos que não exista propaganda ou demonstrações nos
recintos dos Jogos pela simples e boa razão de que temos 205 países e territórios re-
presentados, muitos dos quais estão em conflito, e os Jogos não são o local para
tomar posições políticas ou religiosas.” 63
No mesmo comunicado, Jacques Rogge colocou ainda a questão sob outro prisma:
“se os atletas genuinamente desejarem expressar as suas opiniões, tudo bem. Mas
não nos esqueçamos, que também existe um direito de ‘não expressar opinião’. Os
atletas não devem sentir qualquer obrigação moral de terem de falar. Eles merecem
o direito de poderem concentrar-se na sua preparação e não devem ser obrigados a
expressar a sua opinião se não o desejarem fazer.” 64 Ao colocar o problema nestes
termos, o Presidente do COI deu uma lição magistral aos dirigentes que, completa-
mente desactualizados relativamente aos novos tempos, impedem o normal de-
senvolvimento do Movimento Olímpico no sentido do desenvolvimento humano
e no da verdadeira celebração da humanidade, que passa necessariamente por uma

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posição inequívoca do Movimento Olímpico internacional no que diz respeito à de-


fesa dos Direitos Humanos.

Comissão de Atletas Olímpicos


Também a Comissão de Atletas do próprio COI constituída por ex-atletas como,
entre outros, Sergey Bubka e Alexander Popov, emitiu um comunicado onde se re-
cusavam a deixar de ter opinião: “os atletas têm o direito de se expressarem indivi-
dualmente e têm muitas oportunidades de o fazerem antes e durante os Jogos. Mas
deverão estar mais focados na obtenção de sucesso desportivo.”65 É evidente que já
é qualquer coisa. Mas qualquer coisa bem cuidadosa na medida em que o comuni-
cado não deixa de afirmar que os atletas apesar de terem o direito a manifestarem
a sua opinião, contudo, “deverão estar mais focados na obtenção do sucesso despor-
tivo.” Estamos de acordo. O que não deve acontecer é que um “chefe de missão” não
tenha problemas de consciência ao afirmar “nós somos desportistas… deixamos a
política para os políticos”, ou “deixem os meus atletas em paz” porque, no fundo,
tais declarações atribuem, quer eles queiram quer não, a condição de “bestas es-
plêndidas”66 aos atletas. Os atletas não são, nem em quaisquer circunstâncias
podem ser colocados numa posição de “alienados sociais” que deixam a política para
os políticos. A referida afirmação é uma ofensa a todos os desportistas. E é uma pro-
vocação a todos aqueles que dedicam a sua vida ao desporto porque, acima de tudo,
entendem o desporto como um projecto ao serviço da dignidade e do desenvolvi-
mento humano.
Como refere Otávio Tavares (2002) reportando-se à Comissão de Atletas do próprio
COI, ela deve ser responsável pela defesa do legado olímpico. E o legado olímpico
para as novas gerações, é um COI livre de corrupção e entregue aos desígnios do de-
senvolvimento humano a fim de, de quatro em quatro anos, poder realizar a maior
festa à escala do planeta aonde verdadeiramente se celebra a humanidade. Nesta
perspectiva Otávio Tavares propõe: “que o Olimpismo seja não só a ideologia de
uma prática desportiva como também um verdadeiro integrador do Movimento
Olímpico.”67 A identidade do atleta olímpico, na perspectiva de Kátia Rubio (2007),
deve ser perfeitamente clara, sem qualquer margem para dúvidas, quanto ao direito
que lhes assiste de manifestarem ou não a sua opinião.68
Atletas com membros, tronco e cabeça é uma nova realidade à qual nem os atletas,
nem os treinadores, nem os dirigentes, nem os políticos podem fugir.

5. Uma Nova Mentalidade e Prática…


Apesar de tudo, hoje, a situação começa a ser diferente na medida em que a genera-
lidade das pessoas interessadas nas questões do Olimpismo e dos Jogos Olímpicos,
já não acredita que o desporto nada tem a ver com a política. Elas recusam uma pers-
pectiva apolítica e acéfala de ver o desporto, como se o Olimpismo tal qual religião
estivesse acima das mais comezinhas realidades da vida e, por isso, não pudesse ser
interrogado ou criticado. Assim, perante um movimento internacional em defesa
do direito do desporto à política e da política ao desporto, o COI deixou de ter con-
dições para continuar a ignorar a questão. Os Jogos Olímpicos de Pequim vieram
acelerar um processo que corria o risco de ficar adormecido na consciência das pes-

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soas. E devido às mais diversas pressões sobre o COI realizadas por organizações go-
vernamentais e não governamentais, Jacques Rogge encontrou a oportunidade para
quebrar uma prática de mais de cinquenta anos, simbolizada por uma comprome-
tedora política de silêncio, em que todo e qualquer assunto que tivesse a mínima
inconveniência para os dirigentes do Movimento Olímpico, era simplesmente co-
locado no índex.
Hoje parece claro que as coisas com Jacques Rogge começaram a mudar. De tal forma
que, perante os protestos que atingiram um volume de ruído absolutamente ex-
traordinário, a 10 de Abril de 2008, numa atitude absolutamente inédita no Movi-
mento Olímpico, Jacques Rogge fez um dramático apelo às autoridades da RPC
solicitando-lhes que cumprissem a promessa assumida em 2001, quando se com-
prometeram a melhorar a sua política em matéria de Direitos Humanos a fim de
poderem receber a realização dos Jogos olímpicos.
E ele tinha razão até porque para que não existissem dúvidas acerca do espírito dos
acordos celebrados, imediatamente no ano seguinte, em 2002, Jacques Rogge in-
formou o mundo através de uma entrevista à BBC, que o Governo do RPC tinha
prometido “melhorar a agenda social da China, incluindo os Direitos Humanos”
quando em 2001 foi atribuída a Pequim a organização dos Jogos da XXIX Olimpíada.
Na referida entrevista à BBC, Jacques Rogge deixou ficar claro que: “esperava que o
padrão de Direitos Humanos melhorasse, sob pena do COI ter de, sobre o assunto,
tomar uma decisão.” (…) “Pedimos claramente à China que respeite esse compro-
misso moral”.69
Entretanto, as autoridades chinesas através Jiang Yu, a porta-voz do Ministério dos
Negócios Estrangeiros da RPC, apressaram-se a pedir ao COI para não relacionar
“factos políticos irrelevantes” com os Jogos Olímpicos. E durante uma conferência
de imprensa em Pequim Jiang Yu ripostou a Jacques Rogge: “esperamos que os
membros do COI continuem a respeitar a Carta Olímpica. A perturbação e a sabo-
tagem do percurso da chama são contra o espírito da Carta Olímpica, as leis inter-
nacionais e os habitantes de todo o mundo que defendem a paz.”70
Quer dizer, no fundo, os dirigentes da RPC não aprenderam nada durante mais de
50 anos e o inútil problema das “duas Chinas”, que só serviu para massacrar pessoas
e queimar projectos desportivos como aconteceu com todos aqueles que tiveram
de subordinar os resultados desportivos aos ditames da política e dos dirigentes chi-
neses. Repare-se que houve, pelo menos, um atleta chinês que se suicidou em vir-
tude de ter sido obrigado a sacrificar os resultados desportivos aos ditames dos
interesses do partido.
Agora, à semelhança do passado, bem vistas as coisas, a divergência pública entre o
COI e o Governo da RPC constituiu um rude golpe na estratégia chinesa para manter
dissociados os Jogos Olímpicos das questões politicamente delicadas para o regime.
Do lado do Movimento Olímpico, tal divergência representa uma nova oportuni-
dade, na medida em que significa o início de uma nova era na diplomacia do COI,
em que as relações entre o desporto e a política deixaram de ser equacionadas no
secretismo das reuniões privadas e na hipocrisia das afirmações de conveniência,
para passarem a ser pública e claramente assumidas. Ora, este facto, pode significar
que estamos a entrar numa nova era em que o COI, apesar de todos os incómodos,

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quer passar a controlar a sua agenda política e a deixar de andar atrás dos interesses
de terceiros. Na realidade, Jacques Rogge assumiu a crise não só como uma contra-
riedade absolutamente normal na vida das organizações, mas, também, à boa ma-
neira da cultura chinesa, como uma boa oportunidade para provocar um salto
qualitativo nas relações diplomáticas do COI. E disse: “é uma crise, não existe qual-
quer dúvida acerca disso”71
Em simultâneo, avisou o mundo que o COI passou a ter a sua própria agenda polí-
tica, o que significa que, se por um lado, não se deixa manipular pelos interesses
das grandes potências, por outro lado, começa a demonstrar que sobre assuntos po-
líticos que interferem com o normal funcionamento do Movimento Olímpico é ob-
rigado a ter opinião e a tomar decisões, por muito que elas custem.
Assim, Jacques Rogge, pelo menos aparentemente, fez o trabalho de casa, quer
dizer, estudou a história do Olimpismo de maneira a não cometer os mesmos erros
dos seus antecessores. Ao fazê-lo, iniciou uma nova era no Movimento Olímpico
em que o COI assume uma posição própria, relativamente aos diversos regimes po-
líticos e às autoridades dos respectivos países.
Ora, se esta perspectiva está a acontecer em termos internacionais, o que se espera
é que venha também a desenvolver-se em termos nacionais, de maneira a que seja
preservada a independência dos CONs. Até porque, se os responsáveis dos CONs,
por um lado, estão sempre prontos a reivindicar a sua independência relativamente
aos respectivos governos, não podem depois andar de “mão estendida” a pedir aos
governos o dinheiro que os pode alimentar, mas que lhes corrompe a dignidade e a
independência e os põe não ao serviço da juventude mas ao serviço dos respectivos
regimes. Isso sim, é a utilização a todos os títulos reprovável do desporto pela polí-
tica e da política pelo desporto.72

Uma Nova Diplomacia


Sob a liderança de Jacques Rogge, o COI tem vindo paulatinamente a modificar a
sua tradicional posição institucional quanto às grandes questões políticas, econó-
micas e sociais que abalam o mundo e devem preocupar e suscitar opinião, até por
simples motivos de consciência cívica da generalidade das pessoas e das organiza-
ções. Duma posição de recusa em tomar parte ou sequer considerar o problema, pas-
sou para uma posição de condescendência para, agora, assumir uma outra muito
mais positiva, em que o Olimpismo é tido como um agente catalisador. E porquê?
Um catalisador facilita as reacções químicas, apresentando-se inalterado no fim da
reacção. Quer dizer que, o Movimento Olímpico pode catalisar as grandes transforma-
ções sociais de que a humanidade necessita, sem que com isso, como aconteceu em
Moscovo (1980) e Los Angeles (1984), no fim, seja a única instituição a pagar a factura.

A Responsabilidade Social dos Patrocinadores


Em 2007 mais de 700 activistas pró-Direitos Humanos foram presos na China. O
mais famoso deles, Hu Jia, foi condenado a três anos e quatro meses de prisão por
conceder entrevistas críticas aos mídia estrangeiros. Com o aproximar dos Jogos as
autoridades lançaram um manual com proibições para os turistas que visitassem a
China durante os Jogos. Por exemplo, estrangeiros com t-shirts com dizeres como

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“Tibete Livre” ou que protestem em defesa dos Direitos Humanos seriam pura e
simplesmente presos.
A um mês do início dos Jogos, a organização de defesa dos Direitos Humanos HRW
afirmava sem quaisquer dúvidas que a RPC “continua a restringir a liberdade de
movimentos dos jornalistas no Tibete e noutras regiões, violando a sua promessa
de acesso livre e sem limites.”73 Entretanto, o COI ficou no fio da navalha por três
razões fundamentais:

— Em primeiro lugar, estava pressionado pelos movimentos de defesa dos Direitos


Humanos que não aceitavam, e bem, que o Olimpismo servisse para mascarar
todo o tipo de agressões à condição humana;
— Em segundo lugar, estava prisioneiro da RPC na medida em que a partir do mo-
mento em que, em 2001, atribuiu a organização dos Jogos a Pequim, deixou de
poder conduzir na plenitude o destino dos próprios Jogos Olímpicos;
— Em terceiro lugar, estava perante a situação de ter de responder aos patrocina-
dores (Olympic Partner), quer dizer, à Atos Origin, à Coca-Cola, à General Elec-
tric, a Manulife, à Johnson & Johnson, à Kodak, à Lenovo, à McDonald’s, à
Omega, à Panasonic, à Samsung e à Visa, relativamente ao que estava a acontecer
no que diz respeito aos Direitos Humanos na RPC.

Por exemplo, Neville Isdell o Presidente da Coca-Cola, afirmava a responsabilidade


social da empresa da seguinte maneira: “na Coca-Cola acreditamos que um envol-
vimento decidido nos Direitos Humanos é fundamental para a maneira como con-
duzimos o nosso negócio.”74 As restantes empresas associadas ao COI têm
declarações de comprometimento social mais ou menos semelhantes.75 Ora, as re-
feridas empresas representam 87% das receitas do COI e, certamente, não hesita-
riam em abandonar o barco, se as coisas não corressem bem. Uma situação deste
género seria catastrófica.
Mas as coisas também não foram nada fáceis de gerir para as autoridades chinesas.
Hoje, sabe-se que o custo dos Jogos Olímpicos de Pequim, embora se fale em 25 mil
milhões de euros, muito provavelmente, feitas as contas, a cifra indicada, aliás como
acontece sempre, vai ficar bem acima daquele valor. Por isso, se para as autoridades
chinesas, do ponto de vista externo, os Jogos Olímpicos de Pequim eram um meio
para mostrarem ao mundo que a China é um país a entrar no clube dos países de-
senvolvidos, do ponto de vista interno, os Jogos eram um instrumento de constru-
ção da identidade nacional, aliás à semelhança daquilo que a RPC sempre fez com
o desporto.

A Nova Missão do COI


Nesta perspectiva, num comunicado emitido na véspera da cerimónia do acender
da Chama Olímpica em Olímpia, Jacques Rogge, perante o espanto da generalidade
dos dirigentes olímpicos afirmou ser a cerimónia do acender da Tocha Olímpica um
momento propício à reflexão acerca da missão do COI: “o acender da Chama Olím-
pica amanhã em Olímpia é um momento de reflexão acerca da missão do Comité
Olímpico Internacional. A principal responsabilidade do COI é proporcionar os me-

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lhores Jogos Olímpicos possíveis, aos atletas que os merecem. Vamos fazê-lo através
de uma colaboração intensa e próxima com o Comité Organizador dos Jogos de Pe-
quim. A atribuição dos Jogos Olímpicos ao país mais populoso do mundo divulgará
o Olimpismo a um quinto da humanidade. Acreditamos que a China mudará
abrindo-se ao escrutínio do mundo através dos 25000 representantes dos mídia que
assistirão aos Jogos. Os Jogos Olímpicos são uma força para o bem. Eles são um ca-
talisador para a mudança e não uma panaceia para todos os males. As ONGs e os ac-
tivistas dos Direitos Humanos querem influenciar os Jogos e pedem ao COI que
actue a seu lado. O COI respeita as ONGs e os grupos activistas e as suas causas e
dialoga frequentemente com eles – mas nós não somos nem uma organização po-
lítica nem uma organização activista. Como referi a semana passada, os aconteci-
mentos no Tibete são um assunto de grande preocupação para o COI. O COI já
expressou a esperança de que o conflito seja resolvido pacificamente, tão breve
quanto possível. A violência sejam quais forem as razões é contrária aos valores e
ao espírito Olímpico. O COI continuará a respeitar a causa dos Direitos Humanos.
O COI trabalhará determinadamente com a China para o bem dos atletas e o sucesso
dos Jogos Olímpicos.”76
Depois, no dia seguinte, durante a cerimónia em Olímpia, o Presidente do COI sem
alvoroços e sem quaisquer dramas mostrou-se empenhado numa “diplomacia si-
lenciosa” no sentido de obrigar o regime de Pequim, não a mudar porque não seria
realista pretender que a China mudasse a sua política de um dia para o outro, mas a
iniciar pequenas atitudes e gestos de abertura que, no futuro, podiam significar
muito. De facto, em alternativa a qualquer boicote ou posição de força, parece-nos
a atitude mais inteligente a que procura pressionar a China obrigando-a aos poucos
a mudar, não só relativamente à sua política interna como externa.
Assim, no seu discurso, Jacques Rogge mostrou-se preocupado com a violência no
Tibete, onde a China reprimiu com desnecessária violência manifestações de tibe-
tanos. Mas também afirmou que: “o COI é uma organização desportiva que não
pode fazer mais do que juntar-se aos líderes mundiais num apelo para que seja en-
contrada uma solução pacífica para o problema.”77
Ora, esta perspectiva do COI, representa uma mudança radical relativamente a um
passado dominado por uma “diplomacia do silêncio”, institucionalizada por Avery
Brundage.

A Pressão em Processo
Aqueles que entendem o desporto enquanto agente de desenvolvimento humano,
não podem descansar sobre as vitórias conseguidas. Nesta conformidade, o melhor
que podem fazer é continuar a pressionar o sistema a fim de não o deixar regressar
à posição inicial. É neste sentido que entendemos a posição de Sophie Richardson,
directora para a ásia da HRW, quando numa conferência de imprensa em Hong
Kong afirmou: “o COI disse que prefere uma diplomacia silenciosa (...), o problema
é quando é tão silenciosa que se torna insustentavelmente inaudível.”78 Sophie tem
razão e está certa quando pressiona Jacques Rogge e o COI. A pressão deve ser reali-
zada antes dos Jogos, durante os Jogos e depois dos Jogos.
Também a AI, a dez dias de início dos Jogos, acusou a China de os estar a aproveitar

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para realizar acções de repressão e um grupo de observadores dos Direitos Humanos


denunciou que a RPC estava a condicionar o serviço de acesso à Internet, obrigando
o COI a investigar a situação.
Entretanto, em 28/07/2008 a televisão alemã denunciou que, num documento in-
terno, o COI tinha orientado os seus funcionários a “driblar” as perguntas críticas
sobre Direitos Humanos e liberdade de imprensa na China. Jörg Schild, Presidente
do Comité Olímpico Suíço, posto perante a situação afirmou à rede de televisão
ARD, da Alemanha: “Se as lideranças (do COI) não são mais capazes de receber crí-
ticas feitas com base em factos, então alguma coisa não está correcta. O COI deve
exigir aos futuros países candidatos a sediar os Jogos que assumam o compromisso
de cumprir a Carta Olímpica.”79 Ainda segundo Jörg Schild, a pressão sobre países
anfitriões, como a China, não seria necessária se no momento da concessão dos
Jogos ficasse claro que o país sede era obrigado por escrito a comprometer-se com a
Carta Olímpica, tal como acontece aos atletas.
A maior vitória de todo o processo, é que, hoje, este tipo de questões já não é exclu-
sivo de um círculo muito restrito de pessoas. Ao saltarem imediatamente para a co-
municação social, podem assumir o “efeito de borboleta” e atingirem proporções
de consequências imprevisíveis. Em conformidade, têm de ser tratadas de uma ma-
neira completamente diferente.

A Trégua Olímpica
É nesta perspectiva que vemos a posição do Secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon,
ao solicitar que os conflitos a decorrerem em todo o mundo estabeleçam tréguas,
de acordo com uma tradição da Grécia Antiga. Tal trégua segundo Ban Ki-Moon: “
permitiria uma pausa para reflectir sobre os elevados custos da guerra, uma abertura
ao diálogo e um intervalo capaz de abrir caminho a cuidados de auxílio às popula-
ções afectadas.”80
Mal sabia Ban Ki-Moon que não passariam dez dias sem que dois países se envol-
vessem em guerra precisamente na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos. De
facto, a Rússia e a Geórgia envolveram-se num conflito a todos os títulos lamentável
que só veio, mais uma vez, provar que, muito embora o Homem seja um ser de es-
perança ele está marcado no seu código genético pela violência que pode conduzir
à guerra. De facto, quando o homem está em paz não há nada que deseje mais do
que a guerra e quando está em guerra não há nada que deseje mais do que a paz. Por
isso, a guerra longe de passar a ser uma relíquia dos tempos bárbaros e primitivos
da humanidade, apenas se tem vindo a modernizar através dos novos conhecimen-
tos científicos e das conquistas das novas tecnologias. Os gregos antigos sabiam que
os Homens, na sua tacanhez, tinham necessidade de violência para se sentirem glo-
rificados. Para suprirem essa necessidade sem os custos trágicos da guerra inventa-
ram os Jogos Olímpicos e assim, tornaram a paz gloriosa, através do prazer lúdico
da violência controlada. Era a trégua olímpica. Pela primeira vez na história do
Olimpismo moderno a paz foi ignorada por duas potências vizinhas durante a Paz
Olímpica. Ficará para a posteridade o conflito entre a Rússia e a Geórgia iniciado
precisamente na abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim. Por isso, não faz qualquer
sentido continuar a afirmar que o desporto nada tem a ver com a política. E Ban Ki-

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Moon confirmou-o na sua alocução ao já referido XIII Congresso Olímpico quando


disse: “o desporto pode ser visto em qualquer parte do mundo. Viajei por países re-
pletos de pobreza. Por comunidades em luta pela sobrevivência. Por lugares devas-
tados pela guerra, onde toda a esperança parecia perdida. De repente, aparecia uma
bola feita de sacos plásticos ou de jornais atados com um cordel. E víamos o desporto
dar vida aos sonhos e às esperanças.” E os 1.200 delegados presentes tiveram a opor-
tunidade de perceber a força que o desporto pode ter quando Ban Ki-moon lhes
mostrou a referida bola artesanal feita de sacos velhos de plástico atados com um
cordel. Os donos da bola eram crianças pobres dos bairros de Nairobi. E aquela bola
artesanal foi substituída por bolas e equipamentos desportivos de qualidade, ofe-
recidos pela ONU. Depois, o Presidente do Comité Olímpico internacional (COI)
Jacques Rogge assinou a bola improvisada que foi leiloada a fim de apoiar um novo
fundo de ajuda da ONU aos trabalhadores locais ou suas famílias, feridos ou mortos
durante as operações humanitárias.
E esta foi uma lição que o secretário-geral das Nações Unidas Ban Ki-moon e Jacques
Rogge deram a um certo mundo do desporto que vive extasiado com o dinheiro,
com as mordomias, com as passeatas, com as luzes da ribalta, com os favores políti-
cos, com o mercantilismo exacerbado, sem perceber que, se o desporto não estiver
inquestionavelmente ao serviço do desenvolvimento humano transforma-se numa
actividade alienante promotora de mais desigualdades, de mais injustiças e de mais
conflitos e subdesenvolvimento.
É evidente que também não podemos ter a ilusão de que o desporto vai acabar com
todos os males do mundo. Sabemos que não vai, por isso, estamos totalmente de
acordo com o presidente do COI quando disse ao Congresso: “enquanto organização
baseada em valores desportivos, não podemos mudar o mundo sozinhos. Mas po-
demos – e agimos nesse sentido – ajudar a torná-lo num lugar melhor”.
E estamos de acordo com Jacques Rogge porque entendemos o Olimpismo como
um instrumento de poder que no designado domínio do “soft power” pode, en-
quanto catalisador, ajudar a resolver muitos dos problemas que afligem o mundo
moderno. Porque, ao integrar o desporto com a cultura, a educação e o ambiente o
Olimpismo procura criar um modo de vida baseado na alegria do esforço, no valor
educativo do bom exemplo e no respeito universal pelos princípios éticos.

5.6. Conclusão
A nossa tese defende que as coisas estão a mudar e que Jacques Rogge é um presi-
dente portador de futuro. Na realidade, entre o discurso reaccionário de Avery Brun-
dage e a perspectiva mercantilista Antonio Samaranch, Jacques Rogge, com o seu
exemplo e a sua prática, tem vindo a dar um novo rumo ao Movimento Olímpico.
O “soft power” tem sido a sua estratégia.
Quando Melo de Carvalho em 2000 afirmava que a crise do Olimpismo se encontrava
encerrada, por um lado, numa comercialização sem fronteiras e, por outro, num falso
discurso que procura escamotear a realidade da situação, ele tinha razão. Provavel-
mente ainda tem, contudo, no mundo em que vivemos, por vezes, surgem de onde
menos esperamos sinais de esperança. Até prova em contrário, Jacques Rogge veio
trazer, à escala mundial, sinais de esperança para o Movimento Olímpico.

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Notas
1 Carvalho, Melo de (2000). Olimpismo: Hipocrisia ou função humanista? Avante, 1403, 19 de Outubro.
(http://www.pcp.pt/avante/20001019/403t4.html).
2 Brundage, Avery (1973). Memórias. Madrid: Instituto Nacional de Educación Física, p.260.
3 A Lei Bosman do Tribunal de Justiça da União Europeia permitiu que os futebolistas enquanto traba-
lhadores comunitários, não se vissem impedidos de jogar noutro país da União Europeia por normas in-
ternas da UEFA e das respectivas Federações nacionais de Futebol.
4 Na última metade do século XX exerceu ainda a presidência do COI de 1972 a 1980 Michael Killanin
(Lord Killanin) (1914-1999), contudo, a sua liderança nada teve a ver com a de Brundage ou Samaranch.
5 Jacques Rogge é o primeiro presidente do COI a presidir à instituição tendo um período limite de tempo
que foi aprovado pelo Comité Executivo do COI em finais de 1999. A partir de então, as presidências do
COI ficaram restritas a um período de oito anos, seguido de mais um mandato único de quatro anos. Por-
tanto existe um limite de 12 anos o que devia ser um exemplo para muitos dirigentes dos vértice estra-
tégico do mundo do desporto que estão há doze, dezasseis, vinte, vinte e quatro e mais anos agarrados
ao poder, com enormes prejuízos para as instituições.
6 Castells, Manuel (2000) A sociedade em Rede – A era da informação: economia, sociedade e cultura.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Vol. I.
7 Esta agenda de trabalho, em grande medida, decorre das teses do XIII Congresso Olímpico realizado
em Copenhaga de 3 a 5 de Outubro de 2009. Este congresso teve uma ampla participação na medida em
que ele próprio funcionou em rede a uma escala mundial.
8 A organização “Play the Game” (www.playthegame.org), sediada na Dinamarca, tem por objectivo pro-
mover a ética, a democracia e a transparência no mundo do desporto. Esteve associada à realização do
XIII Congresso Olímpico.
9 Nye, Joseph S. (2004). Soft power the means to success in world politics. USA: Perseus Books Group.
10 A Revolução Cultural da China foi um movimento de massas na RPC ocorrido entre 1966 e 1976, de-
sencadeado por estudantes e trabalhadores, contra a burocracia que tomava conta do Partido Comunista
Chinês. Por exemplo, o grande obreiro das duas candidaturas da RPC à organização dos Jogos Olímpicos
e actualmente membro do COI, He Zhenliang, foi apanhado pela “revolução cultural” tendo sido desta-
cado pelo Partido para trabalhos na província. Em Novembro de 1969 Zhenliang foi enviado pelo Partido
para “May 7 Cadre School” na província de Shanxi para reeducação onde ficou durante um ano e meio”.
Cf.: Liang, Lijuan (2007). He Zhenliang and China’s Olympic Dream. Pequim: Foreign Languages Press.
p.90.
11 Os Jogos de Montreal acumularam problemas sobre problemas. Para além do referido, a derrapagem
financeira ficou na história do desporto e a ameaça dos EUA abandonarem os Jogos devido à questão das
duas chinas também pairou no ar.
12 In: http://www.iht.com/articles/2007/08/07/opinion/edrogge.php.
13 In: Le Monde, 15/10/07.
14 Lenskyj, Helen J. (2000). Inside the Olympic industry: Power, politics, and activism. Albany: State
University of New York Press.
15 A organização como prisão psíquica é vista como um lugar de constrangimentos psicológicos, em opo-
sição aos exageros racionalistas de outras perspectivas: (1) Factores como agressividade, avareza, medo,
ódio, desejo sexual, não têm um estatuto formal dentro das organizações; (2) As pessoas estão presas
consciente ou inconscientemente aos valores da organização; (3) Pelo que esta metáfora se relaciona
também com a cultural. Qualquer organização que se preze, seja ela um clube ou um banco, é um sistema
cultural, onde as pessoas comungam sentimentos, valores, ideais com vista a, através de uma estratégia
deliberada, se atingirem os objectivos por todos desejados. Por isso, quem pertence a uma organização
está sujeito a regras que deve voluntariamente assumir e respeitar, pelo que podemos dizer que está
numa “prisão psíquica”. (Conf.: Morgan, Gareth (1986). Images of Organizations. London: Sage.
16 Jennings Andrew & Simon, V. (1992). Los Senores de los Anillos. Poder, Dinero y Doping en los Juegos

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Olímpicos. Barcelona, Edicions Transparència, SA El Triangle.


17 Andrews Jenning foi condenado em 1994 à revelia por um tribunal suíço a cinco dias de prisão por ter
acusado o membro coreano do COI, Kim Un Yong de ser um vigarista. http://www.playthegame.org
18 Marc Hodler faleceu a 18/10/2006.
19 “The track record on Olympic corruption”. In: BBC Sport, 30/7/2004. Se consultarmos o livro (Miller,
David (1992). Revolution Olímpica – Biografia Olímpica de Juan António Samaranch. Barcelona: Edi-
ciones Península), podemos verificar o currículo de Kim Un-Yong. Ele foi o grande responsável pela atri-
buição dos Jogos da XXIV Olimpíada à cidade de Seul na Coreia do Sul. Durante os 12 primeiros anos do
mandato de Samaranch ele foi a segunda personalidade de maior influência no Movimento Olímpico
internacional. Ele ocupou o cargo de Secretário do Primeiro-ministro, foi conselheiro da missão coreana
na ONU e nas embaixadas da Coreia do Sul em Washington e Londres, delegado à Assembleia-geral da
ONU. No mundo do desporto estava relacionado com o taekwondo, o judo e o atletismo. Em 1974 foi
eleito presidente do Comité Olímpico do seu país. Foi membro do Comité dos jogos Asiáticos.
20 In: www.fidh.org/IMG/pdf/cn1102a.pdf ( consultado em: 1/9/08).
21 In: http://hrichina.org/public/PDFs/CRF.3.2007/CRF-2007-3_Rogge.pdf (consultado em: 1/10/08).
22 In: www.globoesporte.com (consultado em: 1/4/08).
23 In: www.globoesporte.com (consultado em: 1/4/08).
24 In: http://www.forumolimpico.org/?q=node/495
25 In: Record, 27/3/2008.
26 In: Guardian, 28/3/08.
27 http://noticias.uol.com.br/ultnot/afp/2008/03/26/ult34u202091.jhtm - (consultado em: 26/03/2008)
28 www.rr.pt/Informacao (consultado em: 27-03-2008).
29 In: Diário de Notícias, 26/3/08.
30 In: France Presse, 10/04/2008.
31 In: Rádio Renascença on line, (consultado em: 25/4/08).
32 In: AEIOU, (consultado em: 22/3/08).
33 In: Diário Digital, (consultado em: 17/3/08).
34 In: http://presidenciais2008.wordpress.com/ (consultado em: 20/7/2008)
35 In: www.parceria.nl (consultado em: 2/5/08).
36 In: www.uai.com.br (consultado em: 18/3/08).
37 In: BBC-Brasil, (consultado em: 5/4/2008).
38 In: www.globoesporte.com (consultado em: 1/4/08).
39 In: www.timesonline.co.uk/tol/news/politics/article3912694.ece (consultado em: 12/5/2008).
40 Porquê a partir dos Jogos de Helsínquia? Porque eram os primeiros Jogos em que a RPC pretendia par-
ticipar. Porque aconteceram inúmeros percalços que indiciavam o início da “guerra-fria”. Porque já se
anunciava a liderança de Avery Brundage, que veio a protagonizar um novo estilo do COI tratar das ques-
tões políticas. Ao tempo, Brundage era Vice-presidente do COI e já tinha um enorme poder de influência.
Brundage veio a assumir a presidência do COI imediatamente a seguir aos Jogos.
41 In: TSFonline, (consultado em: 2/4/08).
42 In: LUSA, (consultado em: 27/4/08).
43 In: GLOBOESPORTE.COM, (consultado em: 03/04/2008).
44 In: Reuters, (consultado em: 30/3/08).
45 In: Higher, Faster, Stronger, 5/4/2008.
46 In: Associated Press, (consultado em: 17/3/2008).

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47 Ibidem.
48 Ibidem.
49 Ibidem.
50 Ibidem.
51 In: Swissinfo.CH, consultado em: 29/7/2008).
52 O Presidente da República, Cavaco Silva declinou o convite para assistir à abertura dos Jogos Olímpicos
de Pequim. Não são conhecidas as razões, a não ser as tradicionais dificuldades de agenda, no entanto, o
Comité Olímpico de Portugal (COP) emitiu um comunicado onde “esclarece que não existe qualquer
relação entre a conjuntura política actual e a ausência do Presidente da República nos Jogos Olímpicos
de Pequim” (Público, 20/3/08), como se o COP alguma vez pudesse esclarecer o pensamento e as moti-
vações de Cavaco Silva. Dizem que a decisão foi tomada antes dos acontecimentos. Ora, tal afirmação é,
no mínimo, subvalorizar a capacidade de análise dos problemas de Cavaco Silva, desde logo porque há
muito que se sabia que as coisas com a China no que diz respeito ao Darfur, ao Tibete e aos Direitos Hu-
manos iriam certamente perturbar a organização dos Jogos Olímpicos.
Para além de tudo o mais, Cavaco Silva evita aquilo que aconteceu ao seu antecessor durante os Jogos de
Atenas (2004), quando foi envolvido através da comunicação social numa hipotética candidatura à rea-
lização dos Jogos Olímpicos em Lisboa.
53 In: Terra, 10/2/2008, http://www.cinform.com.br/conteudo/?codigo=7591.
54 In: www.esportes.terra.com (consultado em: 9/4/08).
55 Entretanto, a 7/04/08 o Presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP) apressou-se a informar a
agência Lusa o que ia acontecer: “Nenhum dos Comités Olímpicos apoia um boicote nem retaliações
que prejudiquem os Jogos Olímpicos”.
56 Sobre o caso das duas Chinas ver: Pires, Gustavo (2008). O Olimpismo hoje. De uma diplomacia do si-
lêncio para uma diplomacia silenciosa. O caso das duas chinas. Revista Portuguesa de Ciências do Des-
porto. 9 (2) (supl.1), 159-195.
57 Vicente Moura, Presidente do Comité Olímpico de Portugal, in: Público, 14/2/2008.
58 Através de consulta ao site do COP (31/7/2008) podemos verificar que a Carta Olímpica não está lá.
59 Sobre a Regra 51 da Carta Olímpica ver: Pires, Gustavo & Marcelino João (2008) A Carta Olímpica –
Regra 51. In: www.forumolimpico.org.
60 Repare-se ainda que a Regra 51, bem como o seu “Texto de Aplicação”, são na versão francesa da Carta
Olímpica (Julho de 2007), constituídos por 5232 caracteres. Destes, 128 caracteres dizem respeito à im-
possibilidade de serem realizadas demonstrações ou propaganda política, religiosa ou racial nos locais
olímpicos. Todos os restantes mais de 5 mil caracteres, têm a ver com marketing e publicidade. Portanto,
o que está fundamentalmente em causa é a defesa dos símbolos Olímpicos de eventuais abusos comer-
ciais que sobre eles podem ser exercidos e, jamais o direito à livre expressão.
61 “Team Darfur” é uma união internacional de atletas empenhados em denunciar o que se passa em
Darfur no Sudão a fim de que se possa pôr um fim à dramática situação. http://teamdarfur.org/aboutus
(consultado em:27/9/2008).
62 A Regra 51 não diz que, na Aldeia Olímpica ou noutro local qualquer, um atleta não pode dar uma en-
trevista a um órgão de comunicação social manifestando a sua opinião contra a política da República
Popular da China, por exemplo, relativamente ao Darfur. Também não está escrito na Carta que um
atleta não pode manifestar a opinião no seu blogue, sobre os Direitos Humanos na China ou em qualquer
outro país. Também não vemos como se possa impedir que uma missão de um qualquer país, expresse
através do seu chefe de missão uma qualquer posição relativa a qualquer assunto. Só assim, o Olimpismo
deve ser entendido como um instrumento ao serviço do desenvolvimento humano que deve marcar a
sua própria agenda e jamais deixar-se instrumentalizar.
63 © IOC/R.Juilliart - 10 April 2008: “Freedom of expression is a basic human right”.
http://www.olympic.org/uk/news/olympic_news/full_story_uk.asp?id=2535

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64 © IOC/R.Juilliart - 10 April 2008: “Freedom of expression is a basic human right”.


http://www.olympic.org/uk/news/olympic_news/full_story_uk.asp?id=2535
65 O comunicado da Comissão de Atletas pode ser consultado no site do Comité Olímpico de Portugal.
66 Uma expressão de Manuel Sérgio. Com a devida vénia.
67 Tavares, Otávio (2002) The Olympic athlete: Hero or mediator. Olympic Studies, Rio de Janeiro: Uni-
versidade Gama Filho, p. 346.
68 Rubio, Katia (2007). Sou ou estou atleta? A questão da identidade e os estudos olímpicos. Ética & Com-
promisso Social nos Estudos Olímpicos. Porto Alegre - Brasil: EDIPUCRS, p.85.
69 In: Diário de Notícias, 11/4/2008.
70 In: CNN.com/ásia, (consultado em: 10/4/2008).
71 Ibidem.
72 Por exemplo, o Comité Olímpico de Portugal assinou um contrato-programa (872/2005) com o Go-
verno através do Instituto do Desporto de Portugal (Diário da República, nº 70 – 11 de Abril de 2005), no
valor de 14 milhões de euros, em que se comprometeu relativamente aos Jogos de Pequim a ganhar cinco
medalhas; doze diplomas; estar presente em dezoito modalidades desportiva. O problema que se coloca
é o de saber qual é o tipo de independência que um contrato deste tipo permite de parte a parte, sabendo-
se do envolvimento político e social de que o desporto hoje é objecto. Só se os interesses forem comuns
e muitas vezes não são, antes pelo contrário. Entretanto, o COP já assinou outro contrato com o Governo
para os Jogos de Londres (2012). Pergunta-se: Qual é a independência do COP relativamente ao governo?
73 In: Público, 8//7/08.
74 In: Business Wire, (consultado em: 23/8/2007).
75 In: http://china.hrw.org/corporate_sponsors#coca-cola (consultado em: 23/8/2007).
76 International Olympic Committee Press Release, (consultado em: 23/3/2008).
77 International Olympic Committee Press Release, (consultado em: 23/3/2008).
78 In: http://china.hrw.org/corporate_sponsors#coca-cola (consultado em: 23/8/2007).
79 In: Swissinfo.CH, (consultado em: 29/7/2008).
80 In: Record, 30/7/2008.

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Maturação biológica: indicadores,


inter-relação e tendência secular
Duarte Freitas1, José Maia2, António Prista3, António Marques2,
Gil Afonso1, Élvio Gouveia1, Gaston Beunen4
1Departamento de Educação Física e Desporto, Universidade da Madeira / Secretaria Re-
gional de Educação e Cultura, Portugal; 2Faculdade de Desporto, CIFI2D, Universidade do
Porto, Portugal; 3Faculdade de Ciências de Educação Física e Desporto, Universidade Peda-
gógica, Moçambique; 4Department of Sport and Movement Sciences, Faculty of Ki-
nesiology and Rehabilitation Sciences, Katholieke Universiteit Leuven, Bélgica

1. Maturação biológica
1.1. Conceito
A maturação é o processo de tornar-se ‘maduro’ ou completamente desenvolvido.
É o processo que marca o progresso em direcção ao estado adulto. Entre as princi-
pais características da definição realçamos as seguintes: (1) é um processo direc-
cionado para um alvo, (2) é um processo que requer organização e especialização,
(3) é um processo limitado no tempo e comum a todos os indivíduos e (4) é um
processo regulado por genes e características do envolvimento (Silva et al. 2004;
Freitas et al. 2002).
A maturação ocorre e é eventualmente alcançada em todos os tecidos, órgãos e sis-
temas de órgãos, mas cada um deles a diferentes velocidades e taxas. Como resul-
tado, a avaliação da maturação biológica varia de acordo com o sistema corporal
considerado. Regra geral, o sistema esquelético, reprodutor (sexual) e somático são
usados na avaliação da maturação biológica. A maturação dentária é ocasionalmente
utilizada, mas a informação resultante tende a divergir dos restantes sistemas (Beu-
nen et al. 2006).
A maturação dos diferentes sistemas tende a ocorrer de forma independente da
idade cronológica, pelo que a idade cronológica não é um bom indicador da matu-
ração biológica. Genericamente, a maturação biológica na criança e no adolescente
é um conceito operacional porque o processo não pode ser observado ou medido di-
rectamente. Os indivíduos variam no nível de maturação alcançado, num dado
ponto do tempo, no momento em que ocorre o evento maturacional e na taxa de
maturação (Malina et al. 2004). Assim, num grupo de crianças com a mesma idade
cronológica, algumas estão biologicamente avançadas, outras acompanham a sua
idade cronológica e, ainda, outras estão atrasadas. As três categorias ou estatutos
não representam qualquer desvio à normalidade.

1.2. Sistemas e indicadores de maturação biológica


Um indicador de maturação deve ser objectivo, válido e fiável. Isto é, deve reflectir
o sistema biológico considerado, ocorrer em todos os indivíduos à medida que pro-
gridem em direcção ao estado adulto e, alcançar um ponto final comum. Paralela-
mente, um indicador de maturação biológica deve ser independente do tamanho
alcançado (Beunen et al. 2006).

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O aparecimento do osso, a partir da cartilagem, as alterações na forma do osso e a


fusão da epífise sobre a metáfise são os indicadores utilizados na quantificação da
maturação esquelética. De forma similar, as características sexuais secundárias, os
órgãos reprodutores e os pêlos púbicos são os indicadores usados na avaliação da
maturação sexual. Os parâmetros do salto pubertário, nomeadamente, a idade no
início do salto pubertário e a idade no pico de velocidade da altura (PVA), junta-
mente com a percentagem de estatura alcançada numa determinada idade, são os
indicadores utilizados na avaliação da maturação somática ou morfológica. A erup-
ção e calcificação dos dentes são os indicadores da maturação dentária.

1.2.1. Maturação esquelética


A maturação do esqueleto tem sido referida como o melhor sistema para avaliar a
idade biológica ou o estatuto maturacional de um sujeito (Freitas et al. 2002; Ache-
son, 1954). O esqueleto pré-natal é formado por cartilagem e a progressão ocorre
em direcção à ossificação total, ou seja ao esqueleto axial adulto. A maturidade nos
ossos tubulares é alcançada quando a epífise se funde com a metáfise e, assim, à diá-
fise correspondente; no caso dos ossos redondos ou irregulares, a maturidade é de-
finida pela morfologia adulta (Beunen et al. 2006).
A ideia subjacente à quantificação da maturação biológica assenta na construção de
uma escala cujo ponto de partida é o aparecimento do centro ósseo e, o término, o
osso adulto. Este trajecto é mensurável através de uma radiografia. Os ossos da mão
e do punho são os mais utilizados na avaliação do estatuto maturacional de uma
criança ou adolescente. O grande número de ossos nesta zona, a maior facilidade
na obtenção da imagem radiografia e uma menor exposição à radiação são as razões
centrais que justificam tal escolha (Freitas et al. 2002). No entanto, a ausência de
centros de ossificação em alguns ossos da mão e do punho, ao nascimento, tem con-
duzido à utilização de outras áreas do corpo humano, como sejam, o joelho, o tor-
nozelo e o pé (Malina et al. 2004; Roche et al. 1975; Hoerr et al. 1962).
Os métodos Greulich e Pyle (Greulich e Pyle, 1959), Tanner-Whitehouse (Tanner
et al. 1962; 1975; 1983; 2001) e Fels (Roche et al. 1988) são os mais utilizados na ava-
liação da maturação esquelética. O método Greulich-Pyle (Greulich e Pyle, 1959)
foi baseado no trabalho desenvolvido por Todd (1937) e é, por vezes, designado de
atlas ou técnica de inspecção. O atlas consiste num conjunto de radiografias repre-
sentativas do estatuto maturacional de ambos, elementos do sexo masculino (31
standards) e feminino (27 standards), para uma dada idade cronológica, desde o nas-
cimento até aos 19 anos, para o sexo masculino, e até aos 18 anos, para o sexo femi-
nino. Os standards estão espaçados por intervalos de 3 meses, do nascimento aos 5
anos e, depois, em intervalos anuais até à puberdade. Entre os 11 e os 14 anos, no
sexo masculino, os standards estão distribuídos em intervalos de 6 meses. O mesmo
ocorre entre os 13 e os 14 anos, no sexo feminino. A partir dos 14 anos, os standards
estão distribuídos em intervalos anuais. Uma excepção é observada entre os 15 e os
16 anos, no sexo masculino, onde observamos uma distribuição semestral.
Cada standard do atlas consiste na radiografia típica para aquela idade e sexo, numa
amostra de 100 sujeitos. Ou seja, cada osso, na radiografia standard, representa a
aparência mediana numa dada idade cronológica (Beunen et al. 2006). O método é

526
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baseado em radiografias de crianças de raça branca que participaram no ‘Brush


Foundation Study’. As crianças nasceram nos Estados Unidos da América, Estado
de Ohio, Cidade de Cleveland e, na sua maioria, eram descendentes de europeus.
As famílias pertenciam ao estatuto socioeconómico elevado. As crianças foram exa-
minadas em intervalos de três meses, durante o primeiro ano de vida, em intervalos
de 6 meses, dos 12 meses aos 5 anos, e depois, anualmente. A idade óssea é obtida
através da combinação, o mais próxima quanto possível, do raio-x da mão e do
punho de um indivíduo ao raio-x do atlas. Por exemplo, se o raio-x da mão e do
punho de um indivíduo, do sexo masculino, é similar ao standard 21 do atlas, a idade
óssea será 11 anos e 6 meses.
Embora o método Greulich e Pyle (1959) seja usado desta forma, uma melhor apro-
ximação para captar a variação entre os ossos da mão e no punho, bem como entre
os raios-x standards é conseguida através da avaliação individual de cada osso. Isto
é, cada osso deve ser combinado com o standard coincidente, utilizando um proce-
dimento idêntico ao anterior. A idade óssea do raio-x standard corresponde à idade
óssea do osso em questão. O processo é repetido para todos os ossos que são visíveis
no raio-x e a idade esquelética é a mediana das idades ósseas da totalidade dos ossos
avaliados (Beunen et al. 2006; Malina et al. 2004).
O método Tanner-Withehouse (Tanner et al. 1962; 1975; 1983; 2001) é também co-
nhecido como o método de pontuação ou aproximação individual. Indicadores de
maturação são definidos e descritos para cada osso. Cada indicador é expresso desde
a ossificação inicial até à união (rádio, cúbito, metacarpos e falanges) ou morfologia
adulta (ossos do carpo). São avaliados 20 ossos da mão e do punho, nomeadamente,
rádio, cúbito e 1º, 3º e 5º metacarpos; falanges proximais do 1º, 3º e 5º dedos; e os
ossos do carpo (grande osso, unciforme, piramidal, semi-lunar, escafóide, trapézio
e trapezóide). Para cada osso são definidos 8 ou 9 estádios (A até H ou I) e, a cada
um deles, é atribuído um ‘score’ de maturação em função de um determinado peso
biológico. O ‘estádio A’ significa ausência de formação óssea e o último ‘H ou I’ o
osso adulto. A soma dos ‘scores’ de maturação são posteriormente convertidos em
idade óssea através de tabelas construídas para o efeito (Freitas et al. 2002).
A primeira versão do método [Tanner-Whitehouse I; Tanner et al. (1962; 1975)] for-
nece uma idade esquelética baseada na soma de 20 ossos da mão e do punho. A se-
gunda versão [Tanner-Whitehouse II; Tanner et al. (1983)] fornece três escalas e
idades esqueléticas para cada uma delas: a escala 20 ossos (TW2-20 ossos), a escala
RUS (rádio, cúbito e ossos curtos) (13 ossos) e a escala Carpal para os sete ossos do
carpo ou ossos redondos. Os métodos Tanner-Whitehouse Ie II (Tanner et al. 1962;
1975; 1983) foram desenvolvidos numa amostra de cerca de 3000 crianças Inglesas
saudáveis. Na segunda versão do método, o estádio final de um grande número de
ossos não foi avaliado e o sistema de avaliação foi modificado. Contudo, os critérios
para avaliar o desenvolvimento de cada osso mantiveram-se inalterados.
A terceira versão do método [Tanner-Whitehouse III; Tanner et al. (2001)] considera
apenas a escala RUS (13 ossos) e a escala dos ossos do carpo (7 ossos). Ou seja, a escala
20 ossos foi eliminada. Os valores de referência são agora baseados em crianças e
adolescentes do Reino Unido, Argentina, Espanha, Estados Unidos da América, Itá-
lia e Japão. A grande alteração consiste na conversão do ‘score’ de maturação esque-

527
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lética na idade óssea. Os critérios para avaliar o desenvolvimento de cada osso man-
tiveram-se inalterados (Beunen et al. 2006).
O método Fels (Roche et al. 1988) foi desenvolvido em crianças, adolescentes e jo-
vens adultos que participaram no ‘FELS Longitudinal Study’ (South-western Ohio,
USA). Um total de 335 rapazes e 332 raparigas, de raça branca, do estatuto socioe-
conómico médio, foi seguido desde o nascimento até à idade adulta. As radiografias
à mão e ao punho foram efectuadas no 1º, 3º, 6º, 9º e 12º mês; em intervalos de 6
meses do 1º ano de vida até aos 18 anos; e em intervalos de 2 anos depois dos 18 anos
e até aos 22 anos. Um total de 7,308 radiografias, do sexo masculino e de 6,515, do
sexo feminino, foi utilizado no desenvolvimento do método. O número de radio-
grafias, por criança, variou entre 1 a 38.
O método consiste na avaliação individual (método de pontuação ou aproximação
individual) de 22 ossos da mão e do punho, nomeadamente, o rádio, cúbito, ossos do
carpo (grande osso, unciforme, piramidal, pisiforme, semi-lunar, escafóide, trapézio
e trapezóide), adutor sesamóide do polegar, 1º, 3º e 5º metacarpos, falanges proximais
do 1º, 3º e 5º dedos, falanges médias do 3º e 5º dedos e falanges distais do 1º, 3º e 5º
dedos. Cada indicador teve que satisfazer 5 critérios (discriminação, universalidade,
fiabilidade, validade e plenitude). Os indicadores são extensivamente definidos e
apresentados 13 rácios (divisão do diâmetro da epífise pelo diâmetro da metáfise) para
os ossos longos. Os critérios para cada indicador de maturação e estádios são baseados
na alteração em forma dos ossos do carpo e na epífise/ metáfise de cada osso longo. O
número de indicadores a ser avaliado, numa dada idade cronológica, varia em função
da idade cronológica e do sexo. O estádio de cada osso e/ou os rácios obtidos são pos-
teriormente introduzidos num programa (FELShw) para estimar a idade esquelética
e o erro padrão de estimativa (Roche et al. 1988).
Os três métodos são similares na sua estrutura mas diferem nos indicadores, escalas
de maturação e amostras de referência. Os métodos Greulich e Pyle (Greulich e Pyle,
1959) e Fels (Roche et al. 1988) fornecem apenas uma idade esquelética. O método
Tanner-Whitehouse (Tanner et al. 1962; 1975; 1983; 2001) apresenta uma, duas ou
três idades esqueléticas. Dadas as diferenças no método e na amostra de referência,
a estimação da idade óssea, por cada um deles, não é equivalente. Isto é, a avaliação
de um mesmo raio-x, pelos três métodos, pode conduzir a idades esqueléticas dis-
tintas (Malina et al. 2004).
Independentemente do método utilizado, o controlo da qualidade dos resultados
de avaliação é essencial. A variação no seio de cada observador (fiabilidade intra-ob-
servador) e entre observadores (fiabilidade inter-observador) pode ser considerável
e deve ser referida. Paralelamente, o uso do raio-x não está isento de algumas limi-
tações. O exame radiográfico à mão e ao punho envolve uma pequena exposição à
radiação. Finalmente, os estádios são arbitrários e sugerem passos discretos num
processo contínuo (Beunen et al. 2006).

1.2.2. Maturação sexual


A maturação sexual é um processo contínuo com início na diferenciação embrio-
nária dos órgãos sexuais e o seu término no alcançar da maturidade e fertilidade
(Malina et al. 2004). A avaliação da maturação sexual é baseada nas características

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sexuais secundárias: mama e menarca nas raparigas, órgãos genitais (pénis e testí-
culos) nos rapazes, e pêlos púbicos em ambos os sexos. O desenvolvimento da
mama, órgãos genitais e pêlos púbicos é frequentemente avaliado numa escala de
5 estádios, inicialmente descritos por Reynolds e Wines (1948) e popularizados por
Tanner (1962). O estádio 1 é indicativo de ausência de desenvolvimento (estádio
pré-púbere), o estádio 2 é definido como o desenvolvimento inicial ou aparência,
os estádios 3 e 4 os estádios intermédios e, finalmente, o estádio 5 indica o estado
adulto ou maduro (Freitas et al. 2002; Tanner, 1962).
A avaliação das características sexuais secundárias é comummente efectuada atra-
vés da inspecção visual (exame clínico) e fotografia. Fora do contexto clínico, a auto-
observação de crianças e jovens tem sido crescentemente utilizada. A auto-avaliação
deve ser efectuada num quarto privado, usando fotografias de boa qualidade e des-
crições simplificadas. Há uma necessidade de controlo da qualidade da avaliação
(fiabilidade intra e inter-observador). Genericamente, a reprodutibilidade em ob-
servadores experientes é boa, com cerca de 80% de acordos na avaliação dos estádios
(Beunen et al. 2006; Malina et al. 2004).
A idade na menarca, a primeira menstruação, é talvez a característica sexual secun-
dária mais utilizada na avaliação da maturação sexual, nas raparigas. A sua estimação
é possível através de três métodos: (1) prospectivo, interrogando as mesmas rapari-
gas em intervalos regulares de 3 a 6 meses; (2) retrospectivo, perguntando às rapa-
rigas pós-menarcais ou mulheres a data de ocorrência da primeira menstruação; e
(3) ‘status quo’, indagando um grande número de raparigas, no intervalo etário 9-
16 anos, acerca do seu estado menarcal. Os dois primeiros métodos fornecem a idade
da menarca para indivíduos, enquanto o método ‘status quo’ fornece uma estima-
tiva da idade da menarca de uma dada amostra (Beunen et al. 2006). A média de
idade na menarca das raparigas madeirenses é 12.56 ± 0.98 (Freitas et al. 2002).
Outras características sexuais secundárias incluem os pêlos axilares, nos dois sexos,
os pêlos faciais e a alteração do tom de voz, nos rapazes. Regra geral, estes indica-
dores apresentam um desenvolvimento tardio durante a puberdade e não são muito
utilizados na quantificação da maturação biológica (Beunen et al. 2006; Malina et
al. 2004). Na avaliação dos órgãos genitais dos rapazes uma estimativa mais directa
é fornecida pela palpação do volume testicular e comparação com o orquidómetro
de Prader (Holtain Ltd, Crymych, UK). Os modelos variam entre 1 a 25 ml; o volume
3 ml representa o início do crescimento testicular e o volume 25 ml o estádio adulto
(Largo e Prader, 1983a).
As características sexuais secundárias são relativamente fáceis de avaliar, reflectem
um sistema biológico importante e estão proximamente relacionadas com o eixo
hormonal subjacente. Contudo, apresentam limitações, como por exemplo, a arbi-
trariedade dos estádios, a sua limitação à puberdade e a invasão da privacidade (Beu-
nen et al. 2006). Paralelamente, no caso da fotografia, há dificuldade em visualizar
o aparecimento dos pêlos púbicos. A inspecção visual, nos exames clínicos, também
não permite reconfirmar ou comparar os dados com exames anteriores (Taranger,
1976). Ao nível da auto-avaliação do desenvolvimento da mama, pêlos púbicos e ór-
gãos genitais, há a tendência para que algumas crianças adulterem o seu estatuto
de maturação (Freitas et al. 2002).

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1.2.3. Maturação somática ou morfológica


O tamanho corporal, por si só, não é um indicador de maturação biológica uma vez
que o tamanho adulto não é o mesmo para todos os indivíduos (Beunen et al. 2006).
Contudo, se dados longitudinais, especificamente para a altura, percorrendo o final
da infância e a adolescência estão disponíveis, as inflexões da curva de crescimento
que marcam o salto pubertário podem ser usadas para derivar dois indicadores da
maturação somática: a idade no início do salto (primeiro ponto de inflexão da curva;
‘take-off’) e a idade no momento em que ocorre a maior taxa de crescimento esta-
tural [segundo ponto de inflexão da curva que descreve o salto pubertário; pico de
velocidade da altura (PVA)] (Malina et al. 2004).
A estimação dos parâmetros que definem o salto pubertário é possível através do
ajustamento da curva individual de crescimento, a partir de procedimentos gráficos
e matemáticos, também designados na literatura de modelos paramétricos (estru-
turais) e não-paramétricos (não-estruturais). Os modelos paramétricos impõem
uma forma muito rígida ao padrão de crescimento e os parâmetros não possuem,
necessariamente, significado biológico. Os modelos não-paramétricos ultrapassam
alguns dos problemas anteriores: a forma da curva é determinada ao longo de in-
tervalos reduzidos e é assumida não ser igual para todos os sujeitos. Recentemente,
foi sugerida a combinação de modelos paramétricos e não-paramétricos para mo-
delar a curva do crescimento físico humano, desde o nascimento até à idade adulta
[Karlberg (1998; 1989); Cole (1988); Karlberg et al. (1987)].
De igual modo, se dados longitudinais estão disponíveis, a percentagem de estatura
adulta alcançada numa determinada idade ou a idade na qual uma determinada per-
centagem de estatura adulta é alcançada pode ser usada como indicador de matura-
ção (Beunen et al. 2006). Os indivíduos que crescem a uma taxa mais rápida estão
mais próximos da sua estatura adulta final, relativamente àqueles que crescem a
uma taxa mais lenta (Malina et al. 2004). O cálculo da percentagem de estatura
adulta requer a predição ou estimação da estatura de um indivíduo a partir de dados
recolhidos em pontos anteriores do tempo (Roche, 1984). Os métodos mais utili-
zados na predição da estatura adulta são os métodos Bayley-Pinneau (Bayley e Pin-
neau, 1952), Roche-Wainer-Thissen (Roche et al. 1975) e Tanner-Whitehouse
(Tanner et al. 1975). Mais recentemente, Khamis e Roche (1994) e Beunen et al.
(1997) apresentaram novos desenvolvimentos no domínio da predição da estatura
adulta, naquilo que designaram de métodos não-invasivos, ie, não utilizam a ma-
turação esquelética como variável preditora.
A avaliação da maturação somática baseada nos parâmetros da curva de crescimento
é limitada ao período pubertário e apenas um ou dois eventos são considerados. O
uso da percentagem da estatura adulta é uma técnica indirecta que exige a estima-
ção da maturação esquelética, pelo menos para os sistemas mais precisos (Beunen
et al. 2006).

1.2.3. Maturação dentária


A maturação dentária tem sido tradicionalmente estimada a partir das idades de
erupção dos dentes transitórios (ou de leite) e dos dentes permanentes (ou defini-
tivos), do número de dentes presentes numa dada idade cronológica ou a idade na

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qual um número específico de dentes emergiu (Beunen et al. 2006; Demirjian et


al. 1973). A mineralização ou calcificação dos dentes, avaliada através de uma radio-
grafia panorâmica ao maxilar inferior esquerdo, constitui, também, um indicador
de maturação biológica.
No primeiro sistema, os dentes transitórios e definitivos são estudados separada-
mente e uma simples aproximação consiste em contar o número de dentes visíveis
numa determinada idade. Os dentes transitórios começam o seu aparecimento aos
6 meses de idade e apresentam a sua oclusão aos 30 meses. Os dentes permanentes
iniciam o seu aparecimento aos 6 anos e concluem o seu aparecimento (omitindo
o 3º molar) aos 12 anos (Harris, 1998; Demirjian, 1986). A segunda aproximação ba-
seia-se nos critérios matemáticos desenvolvidos por Healy e Goldstein (1976) e Tan-
ner et al. (1983) na elaboração do método de pontuação para a maturação
esquelética. O processo de mineralização do dente é dividido num conjunto de es-
tádios (A até H) e, para cada um deles, é atribuído um peso biológico. O ‘estádio A’
corresponde ao início da mineralização e o ‘estádio H’ ao dente adulto. A soma dos
‘scores’ fornece uma estimativa da maturação dentária numa escala de 0 a 100. Três
sistemas são apresentados: um para os sete dentes (2º molar, 1º molar, 2º pré-molar,
1º pré-molar, canino e incisivos lateral e central), um para quatro dentes (2º molar,
1º molar, 2º pré-molar e 1º pré-molar) e outro, novamente para quatro dentes, subs-
tituindo o 1º molar pelo incisivo central sempre que este não esteja presente (2º
molar, 2º pré-molar, 1º pré-molar e incisivo central).
À semelhança dos critérios desenvolvidos para a maturação sexual e esquelética, os
estádios da calcificação são discretos e os critérios são um pouco arbitrários (Beunen
et al. 2006). Em adição, a radiografia ao maxilar inferior constitui um procedimento
invasivo.

1.3. Inter-relação dos indicadores de maturação


As questões que se levantam neste domínio são várias e podem ser formuladas, de
acordo com Malina et al. (2004) e Freitas et al. (2002), do seguinte modo: (1) haverá
uma ‘medida’ simples de maturação que permita definir a idade biológica de um in-
divíduo e, por extensão, identificar o ‘avanço’, ‘normalidade’ ou ‘atraso’ no seu tra-
jecto para o estado adulto? Será que os indicadores dos vários sistemas disponíveis
medem o mesmo tipo de maturação biológica? e (3) será que uma criança avançada,
normal ou atrasada na sua maturação biológica manterá esse estatuto ao longo da
sua idade cronológica?
As respostas são complexas porque apenas a maturação esquelética e a percentagem
de estatura adulta percorrerem o período de crescimento físico humano e desen-
volvimento que medeia o nascimento e a idade de jovem adulto. Os indicadores de
maturação biológica, tais como a idade no PVA, os estádios de maturação sexual e a
idade na menarca, nas raparigas, são limitados à puberdade (Beunen et al. 2006; Ma-
lina et al. 2004).
Os estudos realizados na Polónia (Bielicki et al. 1984), Suiça (Largo e Prader, 1983a,
b), Suécia (Taranger et al. 1976), Reino Unido (Marshall, 1974) e Estados Unidos da
América (Nicolson e Hanley, 1953) permitem responder às questões formuladas.
Genericamente, os indicadores estão fortemente correlacionados e o seu conjunto

531
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parece definir as alterações biológicas que ocorrem durante o período pubertário; o


crescimento pré-pubertal e pubertal são qualquer coisa independentes; há um fac-
tor geral de maturação que distingue entre aqueles que são avançados, normais ou
atrasados no ‘timing’ dos eventos pubertais; há uma tendência para que uma criança
seja avançada ou atrasada como um todo, ie, no desenvolvimento sexual, morfoló-
gico e esquelético; há uma predisposição para permanecer avançado ou atrasado no
desenvolvimento de qualquer sistema durante a puberdade; há uma inclinação
geral para aqueles que alcançam um determinado estádio ou característica morfo-
lógica numa idade cronológica tardia também o fazerem em termos de idade esque-
lética; nenhum simples indicador ou sistema fornece uma descrição do ‘tempo’ de
crescimento e maturação de um indivíduo neste período de vida (Silva et al. 2004).
Esta síntese é reforçada com os trabalhos de revisão efectuados por Beunen et al.
(2006), Silva et al. (2004), Malina et al. (2004), Malina e Beunen (1996), Beunen
(1993) e Malina (1978). As ideias chave são as seguintes:

(1) A correlação entre a maturação esquelética e a percentagem de estatura adulta


é positiva e moderada para o elevado, o que indica que as crianças avançadas na
sua idade esquelética estão, em média, mais próximas da estatura adulta em
todas as idades durante a infância e adolescência do que aquelas que se encon-
tram atrasadas na idade esquelética.
(2) Os indicadores de maturação sexual e somática estão positivamente relaciona-
dos (correlações moderadas para o elevado), o que sugere que um indivíduo
avançado ou atrasado na sua maturação sexual está avançado ou atrasado no
salto do crescimento em altura, respectivamente. De modo similar, se o indiví-
duo está avançado ou atrasado no aparecimento de um indicador específico de
maturação sexual, ele está avançado ou atrasado no desenvolvimento de outros.
(3) A maturação esquelética está relacionada com o desenvolvimento das caracte-
rísticas sexuais secundárias e o PVA. A variação na idade esquelética é mais re-
duzida na menarca (raparigas) e PVA (rapazes) do que a idade cronológica.
(4) À medida que a maturação sexual e o salto pubertário decorrem, a relação entre
a maturação esquelética e os eventos maturacionais torna-se mais forte. As cor-
relações entre a idade esquelética e os diversos indicadores, como por exemplo,
o PVA, últimos estádios de desenvolvimento das características sexuais secun-
dárias, menarca e 95% da estatura adulta, aumentam com a idade.
(5) Os índices de maturação sexual, a idade com que alcançamos várias percenta-
gens de estatura adulta, a idade com que os diferentes estádios de maturação es-
quelética são atingidos e a idade no PVA estão razoavelmente próximos.

Em suma, os indicadores de maturação esquelética, somática e sexual estão rela-


cionados entre si (Beunen et al. 2006; Malina et al. 2004; Silva et al. 2004; Freitas
et al. 2002).

1.3. Alcance, sequência e duração dos eventos pubertários


A avaliação da maturação sexual e morfológica em diferentes amostras tem permi-
tido quantificar a média e/ou mediana de idade com que alcançamos os estádios,

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bem como conhecer a sequência e duração de transição entre os estádios. Os traba-


lhos de revisão efectuados por Beunen et al. (2006), Malina et al. (2004) e Silva et
al. (2004) revelam as características seguintes:

(1) O primeiro sinal de desenvolvimento dos órgãos genitais nos rapazes (estádio 2
- G2) ocorre entre os 9 e os 13 anos, numa percentagem igual ou superior a 90%.
Nas raparigas, cerca de 95% alcançam o estádio 2 do desenvolvimento da mama
(B2) e dos pêlos púbicos (PH2) entre os 8 e os 13 anos. O estádio maduro dos ór-
gãos genitais dos rapazes (G5) é alcançado entre os 12 e os 17 anos em mais de
90% dos elementos das diferentes amostras. Um intervalo mais precoce e ex-
tenso é observado nas raparigas. Cerca de 100% atingem o estádio maduro do de-
senvolvimento da mama (B5) e dos pêlos púbicos (PH5) entre os 11 e os 18.9
anos. Isto quer dizer que aos 12 anos um elemento do sexo masculino ou femi-
nino poderá ter iniciado ou alcançado o estádio maduro no desenvolvimento
das características sexuais secundárias.
(2) A média de idade no ‘takeoff’ (início do salto pubertário) é 8.0 e 10.3 anos em
amostras do sexo feminino europeias e norte-americanas, e a idade no PVA é de
cerca de 2 anos mais tarde (10.8 a 12.2 anos). Os eventos correspondentes para o
sexo masculino ocorrem cerca de 2 anos mais tarde. Os desvios padrão das ca-
racterísticas somáticas variam entre 0.7 e 1.2 anos, indicando um grau elevado
de variação inter-individual no ‘timing’ do salto pubertário (Beunen et al. 2006).
(3) O desenvolvimento dos órgãos genitais nos rapazes precede o desenvolvimento
dos pêlos púbicos. O PVA ocorre depois do estádio 4 do desenvolvimento dos ór-
gãos genitais (G4). Nas raparigas, o PVA ocorre depois do B2 ou PH2 e é sempre
anterior à menarca. O desvio é de cerca de 1 ano, em ambos os sexos, pelo que
esta sequência pode ser completamente alterada.
(4) Nos estádios intermédios do desenvolvimento dos pêlos púbicos (PH3 ou PH4)
os elementos das diferentes amostras encontram-se distribuídos entre os está-
dios iniciais e finais do desenvolvimento dos órgãos genitais (G2, G3, G4 e G5).
Uma distribuição similar é observada em algumas das combinações possíveis:
órgãos genitais/pêlos púbicos; pêlos púbicos/mama; e mama/pêlos púbicos. A
relação entre o PVA e os diferentes indicadores de maturação sexual é idêntica:
no momento em que este ocorre, as crianças encontram-se distribuídas entre
PH2 e PH5; G2 e G5; e B2 e B5. O mesmo é valido para a relação menarca/mama
e menarca/pêlos púbicos: B2 e B5; PH2 e PH5, respectivamente.
(5) Uma grande de indivíduos encontra-se em PH3 ou PH4, no momento em que
ocorre o PVA. Nas raparigas, cerca de 51% encontram-se em B3, no momento do
PVA e mais de 60% encontram-se em B4 ou PH4, na idade que ocorre a menarca
(Marshall e Tanner, 1970). Análise semelhante é possível efectuar na relação ór-
gãos genitais/pêlos púbicos ou pêlos púbicos/órgãos genitais: a grande maioria
dos elementos encontra-se em dois estádios (por exemplo, G4 ou G5) quando
fixamos um indicador maturacional (por exemplo, PH5).
(6) A duração da transição pubertária do G2 ao G5, B2 ao B5 e do PH2 ao PH5 é va-
riável. A duração média é 2,2 anos para o desenvolvimento da mama e 2.7 anos
para o desenvolvimento dos pêlos púbicos nas raparigas Suíças (Largo e Prader,

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1983b). As estimativas correspondentes para os rapazes Suíços são, em média,


3,5 anos para o desenvolvimento genital e 2,7 para o desenvolvimento dos pêlos
púbicos (Largo e Prader, 1983a). Dados do ‘Harpenden Growth Study’ (Marshall
e Tanner, 1970) indicam períodos mais longos: 4 anos para a mama e 2,5 anos
para o desenvolvimento dos pêlos púbicos.

É possível, pois, sugerir que o grande intervalo de variação no ‘timing’ e ‘tempo’ im-
plica grandes limitações sobre o uso da sequência média do desenvolvimento dos
indicadores de maturação biológica (Beunen et al. 2006).

1.4. Influência genética e de envolvimento na maturação biológica


Os genes desempenham um papel determinante no processo de crescimento físico
humano e desenvolvimento da criança e do adolescente (Thomis e Towne, 2006).
Bailey e Garn (1986) quantificaram as correlações entre pares de familiares, in-
cluindo gémeos, na idade em que apareceram os centros de ossificação primários e
na taxa de ossificação. Os valores das correlações foram mais elevados nos gémeos
monozigóticos (MZ) comparativamente aos gémeos dizigóticos (DZ). De modo si-
milar, as correlações foram mais elevadas entre irmãos comparativamente às corre-
lações pai-filhos, primos e não relacionados. No âmbito do ‘Wroclaw Twin Study’,
Koniarek (1988a) encontrou uma diferença intra-par nos ‘scores’ de maturação es-
quelética inferior nos gémeos MZ, de ambos os sexos, do que nos gémeos DZ, no in-
tervalo etário dos 7 aos 18 anos. O desvio padrão da diferença intra-par foi mais
pequeno para os gémeos MZ do que para os gémeos DZ. Numa análise mais recente
do ‘Polish Longitudinal Twin Study’, Loesch et al. (1985) observaram um maior con-
tributo genético para a variância na maturação esquelética na idade do PVA e na idade
no pico de crescimento na maturação esquelética (ver também Malina et al. 2004).
Em famílias que participaram no ‘Fels Longitudinal Study’, Towne et al. (2002) es-
timaram a heritabilidade (h2) da idade esquelética aos 3, 6, 9, 12 e 15 anos de idade
cronológica. O h2 da idade esquelética foi mais elevado aos 3 e 6 anos de idade (h2 =
~1.00 e 0.97, respectivamente) e decresceu para 0.48 aos 15 anos. Estas descobertas
são similares àquelas encontradas em crianças e adolescentes belgas que participa-
ram no ‘Leuven Longitudinal Twin Study’ (Thomis et al. 2001). Aos 10 anos, h2 =
0.92 e e2 = 0.08; aos 13 anos, h2 = 0.88 e e2 = 0.12. Numa análise preliminar em crian-
ças nepalesas (Towne et al. 2005a) o coeficiente de heritabilidade do ‘tempo’ de ma-
turação esquelética dos 6 aos 18 anos foi elevado (h2 = 0.92).
A maturação sexual está, também, sobre controlo genético. Malina et al. (2004) re-
ferem correlações mais elevadas na idade de ocorrência da menarca nos gémeos MZ,
comparativamente aos gémeos DZ, irmãs biológicas e pares mãe-filha. Thomis e
Towne (2006) num trabalho de revisão apresentam correlações para a idade na me-
narca mais elevadas nos gémeos MZ do sexo feminino (0.65 a 0.90) em relação aos
seus pares DZ (0.16 a 0.60). As correlações entre irmãs estavam compreendidas no
intervalo 0.24 a 0.39 e as correlações mãe-filha no intervalo 0.24 a 0.39. Dados pros-
pectivos (Towne et al. 2005b) revelam estimativas de heritabilidade ligeiramente
mais elevadas (0.50). Traços similares foram observados em outras características
sexuais secundárias. No ‘Wroclaw Longitudinal Twin Study’, os gémeos MZ do sexo

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masculino, seguidos dos 8 aos 18 anos de idade, foram mais concordantes do que os
gémeos DZ para o desenvolvimento dos órgãos genitais (G2 a G5) e desenvolvi-
mento dos pêlos púbicos (PH2 a PH5) (Koniarek 1988b). As raparigas MZ foram
também mais concordantes do que as raparigas DZ para os estádios do desenvolvi-
mento da mama e dos pêlos púbicos no ‘Wroclaw Twin Study’ [Orczykowska-Swiat-
kowska (1988); ver também Towne et al. (2005) e Malina et al. (2004)].
Os coeficientes de heritabilidade dos parâmetros da curva de crescimento e, assim,
dos indicadores da maturação somática ou morfológica foram igualmente estima-
dos. As estimativas de h2 para o ‘timing’ do salto pubertário em gémeos Suecos e
Polacos estavam contidas no intervalo 0.49 a 0.76, excepto para o PVA nas raparigas
Suecas (Fischbein, 1977; Hauspie et al. 1994). As similaridades intra-par da curva de
crescimento foram também mais elevadas nos gémeos Suecos (r = 0.85) do que nos
gémeos DZ (r = 0.54) [Fischbein e Nordqvist (1978); ver também Towne et al.
(2005)]. Mais recentemente, Beunen et al. (2000) quantificaram a variação genética
e de envolvimento nos parâmetros biológicos do salto pubertário em 99 pares de
gémeos com idades compreendidas entre os 10 e os 18 anos. O contributo genético
para o ‘timing’ e velocidade do salto pubertário em estatura estava compreendido
entre 0.89 e 0.93, levando os autores a concluírem que a maioria das características
do salto pubertário estavam sob um forte controlo genético.
Recentemente, uma análise efectuada em crianças nepalesas (Towne et al. 2005a)
revelou um ‘linkage’ significativo (LOD = 3.32) do tempo de maturação esquelética
no intervalo dos 6 aos 18 anos a marcadores genéticos no cromossoma 3p. Em crian-
ças norte-americanas que participaram no ‘Fels Longitudinal Study’, Duren et al.
(2005) encontraram um ‘linkage’ significativo da cortical do segundo metacarpo e
idade esquelética à mesma localização no cromossoma 3p. Os dois estudos forne-
cem alguma evidência de um gene ou genes no cromossoma 3p que influencia (m)
a maturação esquelética e crescimento ósseo na infância. A variante B1 (CYP3A4*B1
‘variant genotypes’) parece estar, também, associada ao início do desenvolvimento
da mama em meninas com 9.5 anos (Kadlubar et al. 2003). Similarmente, Raivio
et al. (1996) observaram que a variante ‘LH-B allele’ estava associada a um volume
testicular mais pequeno em rapazes Finlandeses.
Embora os processos de maturação biológica e os indicadores correspondentes es-
tejam sob controlo genético, um grande número de factores de envolvimento estão
associados à variação na maturação Estas condições incluem a qualidade de vida,
tamanho da família ou número de irmãos, área de residência, estatuto sócio-eco-
nómico (ESE), clima, altitude, raça/etnia e doença (Beunen et al. 2006). Em ado-
lescentes Ingleses e Polacos, os indivíduos que pertenciam ao ESE elevado
alcançaram o PVA e a menarca, em média, mais cedo do que os colegas do ESE baixo
(Malina et al. 2004). A relação entre alguns critérios de estratificação social e a ma-
turação esquelética foi também investigada em crianças e jovens Dinamarqueses.
Andersen (1968) observou que a percentagem de crianças atrasadas na maturação
esquelética aumentava significativamente quanto mais baixo o estatuto social. No
âmbito do ‘Leuven Growth Study’, Renson et al. (1980) encontraram resultados um
pouco distintos. As habilitações literárias dos pais, a profissão do pai e o grau de ur-
banização da área de residência não estavam associados, na sua maioria, a qualquer

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diferencial na maturação esquelética dos adolescentes Belgas. O diferencial na ma-


turação esquelética associado ao ESE foi igualmente reduzido nas crianças e ado-
lescentes que participaram no Estudo de Crescimento da Madeira (Freitas et al.
2004). Apenas aos 10-11 anos, os rapazes e raparigas do ESE elevado estavam ligei-
ramente avançados comparativamente aos colegas do ESE médio e/ou baixo.
A subnutrição crónica associada geralmente à pobreza social e a fracas condições
económicas é o factor de envolvimento com maior influência na maturação bioló-
gica (Beunen et al. 2006). A subnutrição está associada a idades mais tardias no PVA
e na menarca, em áreas rurais, nos países em desenvolvimento. Em oposição, o so-
brepeso e a obesidade parecem estar associados com o avanço maturacional na
criança e no adolescente. Beunen et al. (1982) observaram que os rapazes Belgas
mais gordos estavam avançados na maturação esquelética em cerca de 0.5 anos e
que os mais magros estavam atrasados 0,8 anos. Os valores correspondentes para
as raparigas estavam compreendidos nos intervalos 0,2-1,2 anos (5% mais gordas) e
0,0-0,9 anos (5% mais magras). Resultados similares foram observados em adoles-
centes Holandeses (van Lenthe et al. 1996) e crianças e adolescentes Norte-ameri-
canos (Guo et al. 1998).
Os centros de ossificação aparecem mais cedo nos brancos do que nos negros, du-
rante o 1º ano de vida e 1ª infância (Malina et al. 2004). Os dados da maturação es-
quelética são consistentes com a idade da menarca. As raparigas negras alcançam a
menarca, em média, ligeiramente mais cedo do que as raparigas brancas, 12.5 versus
12,8 (MacMahon, 1973) e 12.1 versus 12.6 (Chumlea et al. 2003). O início do desen-
volvimento das características sexuais secundárias é também precoce nas raparigas
e rapazes negros (Malina et al. 2004; Sun et al. 2002). Paralelamente, os adolescen-
tes negros Norte-americanos alcançam o PVA mais cedo do que os colegas de raça
branca (Berkey et al. 1994).
A idade na menarca apresenta uma correlação negativa (-0,5 a -0,6) com a tempe-
ratura média anual do local onde residem os indivíduos (Roberts, 1973). As correla-
ções sugerem uma maturação precoce em climas quentes, a qual é contraditória à
associação entre o tipo de físico e o clima (Beunen et al. 2006). Contraditória é, tam-
bém, a associação entre a altitude do local de residência e a maturação biológica.
Malina et al. (2004) referem que a altitudes elevadas, como por exemplo, no Peru,
Bolívia e Nepal (3000 m ou mais), a maturação biológica ocorre mais tarde, compa-
rativamente aos pares que residem ao nível do mar. Contudo, o oposto foi observado
na Etiópia. Uma possível justificação para este diferencial parece residir nas condi-
ções de vida, nomeadamente, dieta, doenças infecto-contagiosas e ESE baixo nos
grupos étnicos residentes em altitudes elevadas (Beunen et al. 2006).

1.5. Tendência secular nos indicadores de maturação biológica


A análise da distribuição temporal dos indicadores de maturação biológica em pe-
ríodos extensos tem sido designada de tendência e/ou mudança secular. Comum-
mente, implicam quinquénios, décadas ou até períodos de maior duração (Floud et
al. 1990; Last, 1988).
A evidência disponível para as mudanças seculares na maturação biológica é deri-
vada do registo quase que exclusivo da idade da menarca e da idade no PVA. A média

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de idade na menarca em vários países europeus decresceu cerca de 0,3 ano/década


entre 1880 e 1960 (Tanner, 1968). Nos Estados Unidos da América, a média de idade
na menarca baixou de 14,7 anos, em 1870, para 12,8 anos em 1950 (Wyshak e Frisch,
1982). Dados recentes de uma amostra representativa de raparigas Norte-America-
nas revelaram um valor médio 12,5 anos (Chumlea et al. 2003). No Japão, a média
de idade da menarca nas raparigas nascidas em 1990 estava qualquer acima dos 16
anos; o valor médio para as raparigas nascidas em 1890 e 1985 foi 12,2 anos (Noda e
Nishiyama, 2000; ver também Maliana et al. 2004).
A tendência para um decréscimo na idade da menarca abrandou ou parou, nos Es-
tados Unidos da América e em alguns países da Europa, tais como o Reino Unido,
Holanda, Hungria, Alemanha, Croácia e Portugal (Beunen et al. 2006). Contudo,
dados recentes relativos a raparigas Dinamarquesas (Olesen et al. 2000) e Sul Co-
reanas (Hwang et al. 2003) revelam uma tendência secular positiva na média de
idade da menarca.
A tendência secular na idade do PVA foi alvo de uma revisão profunda em trabalhos
recentes desenvolvidos por Beunen et al. (2006) e Malina et al. (2004). Os estudos
longitudinais percorrem um intervalo de 50 anos, na Europa, e 75 anos nos Estados
Unidos da América. Na Europa, a idade no PVA estava compreendida no intervalo
13,8 – 14,2 anos, para os rapazes, e entre 11,6 e 12,3 anos para as raparigas, na quase
totalidade das amostras. Nos Estados Unidos da América, a idade no PVA variou
entre 11.3 e 11.9 anos, nas raparigas, e entre 13.3 e 14.1, nos rapazes. Para além das
limitações inerentes às técnicas e métodos usados na estimação da idade no PVA,
aos erros de amostragem e ao carácter único das amostras longitudinais, a proximi-
dade de valores médios, ao longo dos anos e nos vários estudos, conduziu os autores
a sugerirem a inexistência de uma tendência secular ao nível do PVA e, assim, da
maturação somática e morfológica.

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