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Ficha Técnica

Promoção
Ministério do Esporte
Ministro de Estado do Esporte
Leandro Cruz Fróes da Silva
Secretária Nacional de Esporte, Educação, Lazer e Inclusão Social -
SNELIS
Andréa Barbosa Andrade de Faria
Diretor do Departamento de Desenvolvimento e Acompanhamento de
Políticas e Programas Intersetoriais de Esporte, Educação, Lazer e
Inclusão Social - DEDAP
Rafael Azevedo Santos
Diretor do Departamento de Gestão de Programa de Esporte, Educação,
Lazer e Inclusão Social - DEGEP
Ângelo de Bortoli Filho
Coordenador-Geral de Inclusão Social - CGLIS
Hudson Gonçalves das Neves
Realização
Universidade Federal de Goiás
Reitor
Edward Madureira Brasil
Centro de Desenvolvimento de Pesquisas de Políticas de Esporte e Lazer
da Rede CEDES - Goiás
Coordenador
Dr. Wilson Luiz Lino de Sousa
Publicação
Coordenação Geral:
Dr. Wilson Luiz Lino de Sousa
Diagramação: Elisandra Lemos da Silva
Impressão: Formato 3 Gráfica e Editora

Ficha catalográfica
BRASIL. MINISTÉRIO DO ESPORTE. I Seminário Lutas e Artes Marciais:
dimensões educacionais e formação humana. Rio de Janeiro: Formato 3 Gráfica
e Editora, 2018. 40 p.
1. Lutas. 2. Artes Marciais
Agradecimentos

Gostaria de mencionar o trabalho e as contribuições dos colegas Marcel Farias


de Sousa e José Luiz Cirqueira Falcão, da Universidade Federal de Goiás, e de
Ricardo Ricci Uvinha, Universidade de São Paulo (EACH/USP), no processo de
concepção e realização da pesquisa, dos textos e documentos produzidos e de
tantas outras ações para que o Seminário pudesse acontecer e essa Cartilha pudesse
ser publicada.

Importante reconhecer o competente trabalho da equipe da SNELIS e da


Coordenação-Geral de Lazer e Inclusão Social, pois foi pelo empenho dessas
trabalhadoras e trabalhadores que este evento se tornou possível, bem como este
documento viabilizado.

Agradecimento especial à Profa. Dra. Leila Mirtes Magalhães Pinto, pela


oportunidade, pela leitura atenta e crítica dos textos, pelos contribuições no
processo de organização e realização do Seminário e por compartilhar seu vasto
conhecimento e alegria.

Em tempo, gostaria de parabenizar os gestores do Ministério do Esporte, aqui


representados pelo Ministro de Estado do Esporte, Leandro Cruz Fróes, a
Secretária Nacional da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD),
Denise Cardoso de Gusmão Cunha, o Superintendente de Relações Institucionais
da Autoridade de Governança do Legado Olímpico (AGLO), Célio Rene Trindade
Vieira, o Diretor do Departamento de Desenvolvimento e Acompanhamento de
Políticas e Programas Intersetoriais de Esporte, Educação, Lazer e Inclusão Social
(DEDAP), Rafael Azevedo Santos e o Coordenador-Geral da CGLIS, Hudson
Gonçalves das Neves pela sensibilidade ao identificar a demanda social, técnica e
científica necessárias ao desenvolvimento das práticas das Lutas e Artes Marciais e,
por extensão, à qualificação dos programas e projetos desenvolvidos e das relações
sociais dos brasileiros e brasileiras que participam destes.

À vocês o meu sincero agradecimento!


Wilson Luiz Lino de Sousa
APRESENTAÇÃO
Ministro de Estado do Esporte
Leandro Cruz Fróes da Silva
Esta Cartilha foi organizada a partir do I Seminário "Lutas e Artes Marciais:
dimensões educacionais e formação humana" promovido pelo Ministério do
Esporte e realizado pelo Centro de Pesquisas da Rede CEDES do Estado de Goiás.
Evento que contou com a participação de pesquisadores brasileiros especialistas
nos estudos sobre Lutas e Artes Marciais.
Este Seminário tem por objetivos marcar de forma efetiva o compromisso do
Ministério do Esporte, dada a relevância acerca da temática, e consignar o
entendimento da importância da continuidade do estudo científico, da produção de
novas publicações e eventos que buscarão subsidiar a intervenção profissional
qualificada nos diferentes campos de atuação, a partir de diferentes horizontes
teóricos e metodológicos, superando as perspectivas analíticas unidimensionais
presentes em alguns estudos.
Pelo Programa Rede CEDES o Ministério do Esporte se compromete com a
realização de várias ações estratégicas de qualificação e aperfeiçoamento das
Políticas Públicas de Esporte e Lazer por meio da realização de pesquisas
científicas, a socialização de conhecimentos e a formação da população,
especialmente dos agentes das políticas públicas de esporte e lazer de inclusão
social.
Nesse sentido, este Seminário contempla os três objetivos estratégicos da Rede,
visando despertar praticantes das Lutas e Artes Marciais, educadores, gestores e
dirigentes para o direito de todos aos conhecimentos, debates e práticas destas
modalidades, especialmente valorizadas como oportunidades educativas para
formação humana.
A essência deste processo é o fortalecimento das dimensões histórico-ética-
política e pedagógica por meio da construção e do debate de referenciais sólidos,
que orientem ações sistemáticas dos educadores que se dedicam às Lutas e Artes
Marciais.
Assim, com a realização de um conjunto de procedimentos que possibilitam o
desenvolvimento da produção acadêmico-científica, visamos subsidiar o progresso
do Programa Luta pela Cidadania, do Projeto Esporte e Cidadania, do Projeto
DELAS – Práticas Esportivas para Mulheres e do Projeto Virando o Jogo,
contribuindo com a identificação das contradições, conceituação dos fenômenos e
do exercício de superações intrínsecas de cada vertente.
Por isso, esperamos que as leituras e os debates mobilizados a partir desta
Cartilha e Seminário possam instigar aos praticantes e educadores das Lutas e Artes
Marciais o interesse não só pelos conhecimentos como também pela participação
cada vez maior nas oportunidades de práticas educativas em suas realidades.
Sucesso ao evento!
Dezembro de 2018
SUMÁRIO

Apresentação
Ministro do Estado do Esporte
Leandro Cruz Fróes da Silva......................................................................................... 5

Introdução
Coordenador do Centro de Pesquisas da Rede CEDES de Goiás
Dr. Wilson Luiz Lino de Sousa..................................................................................... 7

1. LUTAS E ARTES MARCIAIS NOS ESTUDOS DA REDE CEDES


Dra. Leila Mirtes de Magalhães Pinto – Universidade Federal de Minas
Gerais........................................................................................................................ 9

2. O QUE SÃO AS LUTAS?


Dr. Benedito Carlos Libório Caires Araújo – Universidade Federal de
Sergipe.................................................................................................................... 14

3. CULTURA OCIDENTAL E WING CHUN


Dr. Pedro Gomes Neto – Universidade Federal de Goiás........................... 17

4. A LUTA CORPORAL E AS ARTES MARCIAIS COMO PRÁTICAS


ÉTICAS
Dr. Cristiano Roque Antunes Barreira – Universidade de São Paulo.......... 21

5. ARTES MARCIAIS: saberes e poderes públicos


Dr. Walter Roberto Correia – Universidade de São Paulo........................... 24

6. UMA EXPERIÊNCIA COM O BUDŌ JAPONÊS E O JAPÃO: trajetórias,


itinerários ou caminhos de formação humana
Dr. Fábio José Cardias Gomes – Universidade Federal do Maranhão...... 27

7. A IMPORTÂNCIA DO TRATO DA LUTA NA ESCOLA


Dr. Neuber Leite Costa – Universidade Federal da Bahia............................ 31

8. REALIDADE E POSSIBILIDADES DO ENSINO DAS LUTAS NO


BRASIL: sínteses reflexivas sobre o trabalho docente
Dr. José Luiz Cirqueira Falcão – Universidade Federal de Goiás............... 34

SOBRE OS AUTORES.............................................................................................. 37
INTRODUÇÃO
Dr. Wilson Luiz Lino de Sousa
Coordenador do Centro de Pesquisas da Rede CEDES de Goiás
Coordenador do I Seminário
"Lutas e Artes Marciais: dimensões educacionais e formação humana"

O tema desenvolvido nesta Cartilha são as Lutas e Artes Marciais em suas


dimensões ético-filosóficas, sociohistóricas e processos interétnicos e identitários
em suas inter-relações com processos de escolarização, legislação a fim e políticas
públicas.
Embora as pesquisas acerca de Lutas e Artes Marciais tenham crescido bastante
nos últimos anos no Brasil, via de regra a maioria delas se concentra numa
perspectiva neotecnicista em que podemos observar uma ênfase em estudos que
procuram sistematizar procedimentos e estratégias para o seu trato a partir de uma
articulação com os fundamentos da chamada Pedagogia do Esporte.
Com isso, os conhecimentos socializados apontam modelagens e esquemas
pedagógicos para o trato com as Lutas e Artes Marciais a partir de uma perspectiva
sintonizada preponderantemente com o fazer técnico (savoir faire, ou saber fazer) dos
fundamentos específicos, ainda que em graus elevados de complexidade, tanto do
ponto de vista do ensino-aprendizagem das técnicas corporais, quanto do ponto de
vista das metodologias de ensino.
Essa perspectiva de pesquisa tem contribuído para o incremento do campo das
Lutas e Artes Marciais numa dimensão prescritiva e, por vezes, restritiva, já que não
leva em consideração outras dimensões que compõem o fenômeno das Lutas e
Artes Marciais, como as dimensões ético-filosófica e sociohistóricas e os processos
interétnicos e identitários que também moldam as Lutas e são responsáveis pelas
suas configurações no contexto contemporâneo.
Em relação a essa restrição, destacamos o alerta de Hegel, quando diz que:
“quem considera primeiro as árvores, e somente está pendente delas, não se dá
conta de todo o bosque, se perde e se desnorteia dentro dele, isto é, por culpa das
árvores, não se vê o bosque”.
Em suas formas originais ou adaptadas, as Lutas estão presentes nos clubes e
academias, nos filmes de ‘ação’, nas revistas especializadas, nos vídeos com
‘ensinamentos’ de defesa pessoal, nas competições esportivas transmitidas pelas
redes de televisão, nos jogos de videogame, por meio da Internet, no ambiente
escolar, como sistemas de ginástica, entre outros.
Entretanto, nem sempre a população tem um contato adequado com as diversas
formas de Lutas e Artes Marciais na sociedade. Estas foram transformadas em
‘mercadoria’ pela cultura globalizada do espetáculo. Tais práticas acompanham
nova
nova tendência no discurso das mídias sobre a cultura corporal de movimento,
chamada de ‘confundimento’ ou ‘entrelaçamento’ entre os modelos de estética
corporal e o modelo do fitness (saúde/aptidão física), afastando-se de seus
princípios originários, assim como daqueles que cotidianamente as exercitam em
seus contextos específicos.
Além disso, as Lutas e Artes Marciais na contemporaneidade parecem privilegiar
preponderantemente os valores que fomentam o individualismo, a competição
exacerbada, o vencer a qualquer custo, a supremacia dos mais fortes sobre os mais
fracos.
No sentido de nos permitir avanços em direção a explicações e conceituações
do fenômeno Lutas e Artes Marciais, bem como a entendimentos desse fenômeno
em suas dimensões ético-filosóficas, sociohistóricas e fatores interétnicos e
identitários e reverberações em processos de escolarização, na legislação afim e nas
políticas públicas no contexto contemporâneo, realizamos uma pesquisa cujos
primeiros resultados estão sintetizados nesta cartilha. Estudo que partiu da análise
da produção científica os principais periódicos e bancos de dados nacionais,
disponibilizada online e em português referente a Lutas e Artes Marciais no Brasil.
E como primeiro resultado desta pesquisa, estamos lançando esta Cartilha
esperando que possa contribuir para democratizar conhecimentos sobre Lutas e
Artes Marciais, bem como alimentar o debate sobre essas práticas culturais,
identificando contradições, exercitando superações e desafiando a realização de
novos estudos sobre cada um dos temas tratados.
Benedito Carlos Libório Caires Araújo iniciou as discussões com o tema O que
são as Lutas? Ampliando a reflexão filosófica, o Dr. Pedro Gomes Neto
desenvolveu o tema Cultura ocidental e Wing Chun.
E, na linha de estudos filosóficos e psicológicos, o Dr. Cristiano Roque Antunes
Barreira refletiu sobre A luta corporal e as Artes Marciais como práticas éticas.
Ampliando as reflexões até aqui realizadas, o Dr. Walter Roberto Correia se
debruçou sobre o tema Artes Marciais: saberes e poderes públicos, analisando essas
práticas no esporte, educação e saúde, dentre outros campos sociais e das políticas
públicas.
A partir da análise de experiências educacionais das artes – caminhos marciais, o
Dr. Fabio José Cardias Gomes discutiu Uma experiência com o Budô Japonês e o Japão:
trajetórias, itinerários ou caminhos de formação humana.
Estendendo essa discussão para o campo da Educação e Educação Física, o Dr.
Neuber Leite Costa desenvolveu a reflexão sobre A importância do trato da Luta na
escola, temática ampliada pela discussão sobre Realidade e possibilidades do ensino das
Lutas no Brasil: sínteses reflexivas sobre o trabalho docente, desenvolvida pelo Dr. José
Luiz Cirqueira Falcão.
Por fim, seja bem vindo/a as leituras e aos debates aqui propostos!
LUTAS E ARTES MARCIAIS NOS ESTUDOS DA REDE CEDES
Dra. Leila Mirtes de Magalhães Pinto
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

Estamos aqui falando de Lutas e Artes Marciais, que é um dos temas de pesquisa
que integra a 5ª Linha de estudos da Rede CEDES: Observatório do esporte e da
atividade física.
Mas... REDE CEDES, que Rede é essa?
Quais estudos sobre Lutas e Artes Marciais já foram desenvolvidos pela Rede
CEDES?
A Rede CEDES é programa do Ministério do Esporte executado pela Secretaria
Nacional de Esporte, Educação, Lazer e Inclusão Social (SNELIS), que é
desenvolvido em parceria com Instituições de Ensino Superior (IES), públicas e
privadas. O objetivo geral da Rede é produzir e socializar informações e
conhecimentos fundamentados nas Ciências Humanas e Sociais, bem como realizar
formações, visando contribuir com a qualificação das políticas públicas de esporte e
lazer do País.
Para atender a esse objetivo geral a Rede CEDE tem como objetivos
específicos:
 Promover a integração de pesquisadores, grupos de pesquisas, IES,
estudantes, gestores e outros agentes das políticas de esporte e de lazer com a
sociedade brasileira;
 Fomentar pesquisas que contribuam com o aperfeiçoamento da política do
esporte e lazer e a promoção da equidade regional no desenvolvimento da
ciência no Brasil;
 Democratizar o acesso a informações e conhecimentos sobre esporte e a
lazer;
 Socializar conhecimentos sobre esporte e lazer por meio de atividades
educativas, eventos, Centros de Memória, publicações impressas distribuídas
gratuitamente (livros, periódicos, materiais didáticos e outros) e difundidas
por meios eletrônicos (Site do Ministério do Esporte, Repositório
Institucional Vitor Marinho da Rede CEDES e outros meios);
 Promover a formação e o assessoramento de pessoas e instituições que
atuam com políticas públicas de esporte e lazer;
 Viabilizar cooperação e intercâmbios nacionais e internacionais, fomentando
a produção e difusão de informações e conhecimentos, bem como trocas de
experiências entre pesquisadores, gestores e outros agentes de esporte e lazer.
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Criada em 2003, a Rede apoia o desenvolvimento de pesquisas em 10 linhas de
estudos, que são:

1. Memória do esporte e do lazer: Pesquisas sobre memórias da educação física,


esporte e lazer no Brasil.
2. Perfil do esporte e do lazer: Diagnósticos do esporte e do lazer de municípios,
Distrito Federal e estados brasileiros, estudos cartográficos, de territórios e outros.
3. Políticas, programas e ações integradas de esporte e do lazer: Estudos que
subsidiem políticas, programas e projetos intersetoriais das áreas do esporte e lazer,
desenvolvidos nos âmbitos federal, estadual ou municipal, integrados com outras
áreas da política social brasileira, como educação, turismo, segurança, saúde,
trabalho, juventude, cultura, meio ambiente, desenvolvimento social, dentre outras.
4. Grupos com necessidades específicas: Estudos sobre demandas específicas
para o desenvolvimento de programas sociais de esporte e lazer que tratem do
esporte de criação nacional e identidade cultural, da valorização de diferenças
culturais, das demandas de pessoas com deficiências e necessidades específicas de
idade, gênero (destaque para mulheres) e etnia/raça (quilombolas, indígenas),
populações ribeirinhas, rurais, da região do semiárido brasileiro, dentre outras.
5. Observatório do esporte e da atividade física: Aprofundamento de estudos
relevantes para a Política Nacional do Esporte, considerando fundamentos para a
compreensão da prática e assistência do esporte e atividade física ao longo da vida.
Temas como: torcidas organizadas, violência no esporte, mídia esportiva, políticas
públicas de esporte, lutas e artes marciais, dança, saúde e atividade física, estilo de
vida, cadeia produtiva do esporte, educação olímpica, educação para a antidopagem,
esporte escolar, esporte de lazer, esporte universitário, futebol, legados,
megaeventos esportivos, dentre outros.
6. Gestão do esporte e do lazer: Estudos sobre gestão de políticas e programas
de esporte e de lazer, considerando princípios, perspectivas de intervenção,
planejamento, financiamento, formação e gestão de pessoas, atividades, ação
comunitária, animação sociocultural, formação de recursos humanos, metodologias,
controle social, dentre outros aspectos que podem ser abordados.
7. Avaliação de políticas, programas e projetos sociais de esporte e lazer:
Avaliação de políticas públicas, programas e projetos sociais de esporte e lazer
desenvolvidos pelo governo federal (em particular os Programas do Ministério do
Esporte), governos estaduais e municipais e outras entidades.
8. Infraestrutura e espaços de esporte e lazer: Estudos sobre a implantação,
manutenção, uso, acessibilidade e novas tecnologias de infraestruturas públicas de
esporte e lazer, considerando demandas e necessidades da população e das políticas
desenvolvidas.
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9. Processos políticos: Estudos realizados sobre Sistema, Planos e Políticas nos
âmbitos nacional, estadual ou municipal, ordenamento legal do esporte,
Conferências Nacionais, Estaduais e/ou Municipais, e outros.
10. Esporte, lazer, escola e formação: Estudos que atendem necessidades do
Sistema Nacional do Esporte no que diz respeito ao esporte e lazer na escola (na
educação básica e ensino superior) e na formação de professores.

Dentre as várias pesquisas desenvolvidas pela Rede CEDES, destacamos


estudos relacionados às Lutas, Artes Marciais e Capoeira, como por exemplo:

Lutas tradicionais
BRINCAR, JOGAR, VIVER: IX jogos dos povos Indígenas. PINTO, Leila Mirte;
GRANDO, Beleni (Central de Textos, 2009)
AS LUTAS TRADICIONAIS KAINGANG DO SÉC XXI. RAMON, Paulo; FREIRE,
Luane (UEL, 2011)
CELEBRANDO OS JOGOS, A MEMÓRIA E A IDENTIDADE: XI Jogos dos Povos
Indígenas de Porto Nacional/Tocantins/2011. FERREIRA, Maria Beatriz Rocha; VINHA,
Marina (Dourados, 2015)
Judô
JUDÔ CIDADÃO: aprendizagem de práticas cooperativas e socializadoras. CÁRDENAS,
Ramón Núnez; FREIRE, Ivete de Aquino (2013)
Capoeira e Artes Marciais
ARTES MARCIAIS TRADICIONAIS: estudo do processo de implantação do Karatê
Kyokushin no Brasil e comemoração aos 40 anos da modalidade esportiva no Brasil.
(FUnB, 2014)
ESPORTE E LAZER NA CIDADE A PRÁTICA TEORIZADA E A TEORIA
PRATICADA. FALCÃO, José Luiz Cirqueira; SARAIVA, Maria do Carmo (Lagoa Editora,
2007)
PRÁTICAS CORPORAIS, v. 3. SILVA, Ana Márcia (2010)
CAMPOS DE VISIBILIDADE DA CAPOEIRA BAIANA AS FESTAS POPULARES,
AS ESCOL A S DE CAPOEIRA, O CINEMA E A ARTE (1955-1985). JUNIOR, Luís
(2010)

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Os estudos realizados e em andamento nos Centros de Pesquisas, desenvolvidos
em todas as linhas de estudos, indicam um aumento significativo da produção de
conhecimento que vem sendo realizada pela Rede desde sua criação. É importante
saber que de 2003 a 2014 a Rede CEDES apoiou a realização de 160 estudos. Mas,
com a implantação dos seus Centros de Pesquisas, a Rede se consolida como
Programa do Ministério do Esporte e estende sua atuação a todo território nacional
(26 Estados e Distrito Federal), estando, no momento, desenvolvendo outros 113
estudos científicos.
Os Centros de Pesquisas da Rede CEDES aglutinam 82 Instituições de Ensino
Superior, sendo: 21 da Região Norte, 30 do Nordeste, 08 do Sudeste, 13 da Região
Sul e 10 da Região Centro Oeste. Com isso, ao todo, a Rede integra, hoje, 114
Grupos de Estudos e 335 Pesquisadores brasileiros, que se dedicam às Políticas
Públicas de Esporte e Lazer.
O atual momento da Rede é inédito no Brasil e na América do Sul pela
abrangência nacional e a densidade do trabalho, que atende a todos os objetivos da
Rede.
O conjunto das ações científicas e educativas desenvolvidas pelos Centros tem
impactado significativamente na formação de estudantes, gestores e outros agentes
das políticas públicas de esporte e lazer. A Rede impacta também no trato de
questões prioritárias para a Política Nacional do Esporte, traduzidas pelas suas 10
linhas de estudo.
Toda a produção impressa da Rede CEDES é distribuída gratuitamente e, de
forma digital, disponibilizada para livre acesso pelo Repositório Institucional Vitor
Marinho. Este foi criado e funciona no laboratório LaboMídia do Centro de
Desportos da Universidade Federal de Santa Catarina. Este Repositório objetiva
reunir, preservar e disponibilizar, organizadamente, toda a produção científica e
tecnológica da Rede CEDES.
Assim, dá visibilidade aos documentos reunidos num mesmo espaço digital,
cujo acesso aberto se faz por meio de um endereço comum, que facilita as
consultas dos usuários. Disponível em http://www.vitormarinho.ufsc.br/

PARA SABER MAIS


PINTO, Leila M. S. M. Legado da Rede Cedes para o esporte de lazer no Brasil: conquista
política pelo conhecimento, tecnologia e governança. In: MARINHO, A.,
NASCIMENTO, J. V. do & OLIVEIRA, A. A. B. (Orgs). Legados do Esporte Brasileiro.
Coleção Temas em Movimento. V. 5. Florianópolis: Editora da UDESC, 2014. p.331-376.

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O QUE SÃO AS LUTAS?

Dr. Benedito Carlos Libório Caires Araújo


Universidade Federal de Sergipe – UFS

A partir de um breve histórico das atividades com Lutas, tomando-a como


ponto de partida de uma análise sob o modo de produção, perguntamos:
 Seriam as Artes de Combate (Luta/Luta Corporal) um conhecimento necessário
à socialização das novas gerações?
 O que elas potencializam na formação humana?
 O que orienta a necessidade desse conteúdo nos modos de produção
escravista, feudalista, capitalista, para que o mantenhamos nos programas
formativos das futuras gerações, entendendo os diferentes interesses
estruturais que organizam cada lógica social?
As Lutas figuram entre as mais antigas atividades humanas que objetiva o
beligerante, o agonístico, a sobrepujança, a sublimação e, em última/primeira
instâncias, a contradição entre morte/vida. Nessa definição aplicam-se sentidos mais
amplos, desde lutas ideológicas aos conflitos presentes nas unidades dos contrários
(pares dialéticos – dialética hegeliana), entre outras formas desenvolvidas pelo gênero
humano. Por isso, consideraremos Lutas Corporais como atividade específica da
Cultura Corporal, voltada ao desenvolvimento de técnicas com finalidade de subjugar
e/ou matar.
Em diferentes civilizações, seja a mais primitiva das organizações sociais ou as
mais complexas, existiam atividades voltadas para o sentido do combate, ou para a
defesa ou ataque a outros grupos sociais, para manutenção da vida ou ampliação de
sua riqueza.
Como nosso desafio é construir o arcabouço conceitual para definição de Lutas
Corporais, iniciamos esse exercício pela caracterização dos diferentes projetos
históricos de mundo e de homem, caminho que nos leva a uma reflexão sobre a
noção de técnica, e do conteúdo da Cultura Corporal, que denominamos Luta/Luta
Corporal.
Neste percurso buscamos evidenciar nexos que nos auxiliam no processo de
identificação da sua unidade essencial entre o sentido (objetivo/intenção) de suas
expressões utilizadas em diversos espaços e tempos. E, de modo sumarizado,
analisaremos o movimento histórico concreto do desenvolvimento da Luta Corporal,
tarefa que não é fácil, mas necessária.

14
Com o desenvolvimento das forças produtivas e na medida em que a sociedade
se distanciou de suas origens naturais a Luta se tornou imprescindível. Nesse
contexto, surge a necessidade da preparação do guerreiro como atividade essencial à
manutenção de interesses de classe, ocorre o desenvolvimento de técnicas de
combate sofisticadas e de tecnologias de combate. O aprendizado da técnica passa a
se dar por meio de instrução – da Cultura de Luta.
Com o excedente econômico gerado pelo desenvolvimento da força produtiva a
exploração do homem pelo homem passou a ser uma atividade lucrativa e essencial.
As sociedades escravistas se caracterizavam pela existência de duas classes sociais
antagônicas: os senhores e os escravos. Já que toda a produção destes pertencia ao
seu senhor, aos escravos não interessava o aumento da produtividade. Por isso, a
única forma de aumentar a produtividade era aumentar o número de escravos.
Sobre esse período, a literatura especializada atribuiu grande importância aos
registros escritos sobre programas de formação para os meninos, onde o conteúdo
Luta aparece como fundamental para formação do cidadão grego (lembremos que
não eram considerados cidadãos gregos: mulheres, não gregos e escravos). A Luta
era elemento central na educação dos jovens gregos, e a guerra constituía tanto
parte integrante da vida em sociedade como atividade essencial para definir as
subjetividades, para a formação dos indivíduos e dos coletivos humanos.
Foi no período do Império, com a consolidação do projeto expansionista, que
Roma organizou uma estrutura militar financiada pelo Estado. Temos relatos
antigos sobre o oficio de guerreiro, mas em Roma, sobretudo no período imperial,
essa atividade ganhou contornos estatais, diferente da Grécia Antiga, em que os
cidadãos livres se ocupavam das funções do exército. Roma instituiu o soldado.
E eis que surge o termo Arte Marcial, que abriga um complexo de
conhecimentos voltados para a guerra, podendo ou não consistir em Luta/Luta
Corporal. Como arte significa condição mais avançada da razão humana, aquilo que
objetiva a criação, o novo, a vanguarda. E como marcial, significa atividade militar
que objetiva a guerra, que se trata de conflito que se apresenta em antagonismo aos
interesses de Estado, seja contra outro Estado, seja por conflitos internos, no
sentido de tomada do poder de Estado, ou de separação, constituindo um novo
Estado.
No período medieval, a antiga educação guerreira, tornou-se educação
cavalheiresca, isto é, assumiu também aspectos intelectuais. Tal destino era
reservado apenas aos meninos nobres. A honra, portanto, o comportamento
moralmente correto, mais ainda que a força, é a glória do cavaleiro. O
enobrecimento dos costumes cavalheirescos, do qual tanto se falou, era um dado
real da evolução histórica.

15
No nosso entendimento, a sociedade que melhor expressou a transição das lutas
do feudalismo ao capitalismo foi a sociedade japonesa. Enquanto a Europa vivia ‘a
plenos pulmões’ a restruturação social para adaptar-se ao novo modelo produtivo,
o Japão vivia uma estagnação, que, posteriormente, condenaria o ‘xogunato’
(sistema de governo do Japão de 1192 a 1867) ao seu fim.
As revoluções sociais ocorridas na Europa, com as unificações territoriais e
investimento na tecnologia marítima e bélica, alteram significativamente as relações
de poder. Nesse sentido, a corte japonesa iniciou uma transformação social que
mudaria radicalmente a base produtiva desse País, com a explicita intenção de
igualar-se economicamente e belicamente às grandes potências ocidentais, tornando
incompatível o modo de vida do samurai, com a nova organização social. Em meio
a este processo, questionados sobre a necessidade de construção de valores sociais
próprios, aspecto necessário para construção da identidade nipônica, o Japão revê
suas orientações sobre o modelo e os conteúdos escolares.
Sob a ótica da nossa discussão, o processo educativo é uma mediação
fundamental na constituição cultural do indivíduo, que tem como função principal
reproduzir o próprio capital e suas formas de sociabilidade.
Nesse sentido, a explicitação da posição que ocupamos relacionada às Lutas, no
plano político e intelectual, justifica-se, no contexto deste texto, em função da
necessidade de um melhor esclarecimento sob as perspectivas que estão sendo
postas para o seu desenvolvimento. Desta forma, chamamos atenção para as
possibilidades concretas da formação política, como um aspecto inerente ao trato
do conhecimento Luta Corporal, afirmando que o ensino de Lutas, na ausência dessa
orientação, se resume a transposição didática de um conglomerado de gestos, tal
qual, a serviço da ordem, orientam para o favorecimento hegemônico.

PARA SABER MAIS


ARAÚJO, B. C. L. C. A cultura, a história e a educação: debates iniciais sobre a inserção do
conteúdo luta na realidade da escola. Anais do XVIII CONBRACE V CONICE – XVIII
Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte. Brasília-DF, 2013.
AWI, F. Filho teu não foge à luta: como os lutadores brasileiros transformaram o MMA em um
fenômeno mundial. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013.
DEL VECCHIO, F. B.; FRANCHINI, E. Lutas, artes marciais e esportes de combate:
possibilidades, experiências e abordagens no currículo em Educação Física. In: SOUZA
NETO, S.; HUNGER, D. (Orgs.). Formação profissional em Educação Física: estudos e
pesquisas. Rio Claro: Biblioética, 2006, p.99-109.
FREITAS. F. M. de C. Judô: ética e educação: em busca dos princípios perdidos. Vitória:
EDUFES. 2007. p. 316.

16
CULTURA OCIDENTAL E WING CHUN
Dr. Pedro Adalberto Gomes de Oliveira Neto
Universidade Federal de Goiás – UFG
“Kung Fu sem sistema não é Kung Fu, mas Kung Fu que é
só sistema não pode ser um bom Kung Fu” (Moy Yat).
A tradição filosófica assentada na tríade Sócrates, Platão e Aristóteles, seguida
pelo cristianismo medievo, concebeu o homem superior aos demais seres,
justificando que os humanos têm razão (Lógos e Ratio) enquanto os demais seres
não a possuem. Isso implica que essa característica específica da nossa espécie
merece cuidado quanto à sua compreensão, exatamente porque é mediante ela que
o homem pode se manter e reproduzir-se diante das intempéries naturais. Essa
essência humana deve ser compreendida, tanto em sua forma quanto em seu
conteúdo, para que o homem possa edificar o seu ethos, a sua ética, o que significa,
originariamente, o cuidado que devemos temos ter em relação a nossa casa, a
morada do ser. Nesse sentido, a razão foi sendo arquitetada no Ocidente como a
essência que possibilita a condução da existência humana. É exatamente por ela,
natureza e significado, que as pessoas podem conseguir se manter diante das
diferenças naturais ou humanas. Esse processo cultural implicou em certa
preeminência no conteúdo, na função e na finalidade prática da razão. Em uma
palavra, no Ocidente, a razão deve ser preenchida para que os homens possam
edificar o seu ethos, a sua ética, o cuidado consigo mesmo, com os outros e com a
natureza, o que impactou diretamente em uma concepção educacional estritamente
cognoscente.
Na modernidade, a razão continua a ser afetada por compreensões díspares.
Habermas nos indica duas reviravoltas ocorridas nesse período: o mentalismo
cartesiano e o transcendentalismo kantiano. O primeiro identifica a razão como a
faculdade de distinguir o verdadeiro do falso, e a define como o princípio da sua
filosofia, o que identifica a consciência com a autoconsciência e torna o Eu capaz
de representar objetos. A outra reviravolta, a transcendental, também entende a
autoconsciência como uma relação da consciência com o eu, mas Kant promove o
que Tugendhart denomina por revolução reflexiva ou a reflexão do eu sobre a
possibilidade do conhecimento, e nesse aspecto, Kant desloca a representação dos
objetos para a representação própria aos sujeitos.
Kant se propõe, em sua obra Crítica da razão pura, edificar um caminho seguro
para as ciências, o que só se torna possível porque ele desloca o olhar causal ao
fenomênico e, assim procedendo, tanto elabora uma teoria que inaugura a
epistemologia do século XIX pelo viés “lógico formal” quanto impacta diretamente
nas concepções educacionais. Trata-se de compreender a possibilidade do saber
pela sensibilidade e entendimento, o que significa que só se conhece investigando
fenômenos. O númeno, a coisa-em-si, a verdade se afasta do conhecimento, dado
que ela não se satisfaz com objetos sensíveis, o que torna a verdade inacessível ao
saber.
17
Hegel nos alerta do perigo da filosofia se converter em lógica, edificando outro
princípio que, em paralelo ao kantiano, também inaugura, por outro viés, a
epistemologia do século XIX, o enfoque onto-lógico. Hegel critica o princípio
egoico dos modernos e defende que o Absoluto, como indeterminado, encontra-se
no começo do ser e do saber. Esse indeterminado se determina e se indetermina
em um processo formativo que estabelece etapas de reconhecimento da
consciência. Diferente de Descartes e Kant, Hegel não identifica consciência com
autoconsciência, mas aquela pode se encaminhar a esta mediante um processo
formativo, e pela alteridade.
A contemporaneidade que se inaugura pelos vieses “lógico formal” e onto-
lógico sofreu vários golpes ao que tange ao processo formativo, o que nos
credencia rever o gonzo cultural assentado no preenchimento da razão – próprio ao
ocidente – e procurar na cultura chinesa, em geral, e no Wing Chun, em particular,
auxílio à educação brasileira.
É nesse sentido que apresentamos o Wing Chun Kuen Kung Fu como uma das
fontes que, juntamente com o Tao Te Ching, pode nos oferecer oportunidades para
refletirmos sobre Arte Marcial e educação.
O que nos interessa em Hegel é o princípio onto-lógico por ele edificado: o
Absoluto, entendido como indeterminado. O que questionamos é o princípio
filosófico ocidental no qual a razão assume características específicas que nos
distanciaram de uma formação integral. Por isso, é chegada a hora de refletirmos
sobre o princípio do Tao, para Tze e o princípio filosófico hegeliano como
contribuições à formação brasileira. Isso nos possibilita encontrar em outras
culturas universalíssimas teorias e experiências que possam contribuir com a
formação integral do homem na atualidade. A cultura chinesa, de forma geral, e o
Wing Chun Kuen Kung Fu, em particular, nos parecem úteis ao nosso propósito.
Conta-se que em meados do século XVII, a abadessa Ny Mui criou um sistema de
arte marcial que, posteriormente será denominado por Wing Chun, o que significa
“belo tempo da primavera” ou “cantar a primavera”, o que significa seguir a energia
do fluxo criativo que se renova constantemente. Mais tarde, Ny Mui ensinou o seu
sistema para uma moça que se chamava Yim Wing Chun, o que fez com que Ny
Mui homenageasse o seu estilo de Kung Fu com o nome da amiga. Daí originou-se
o nome dessa arte marcial chinesa: Wing Chun Kuen Kung Fu. Wing Chun
significa “belo tempo da primavera”, Kuen, “punho” ou “estilo da primavera”,
Kung, “Treino, esforço” e Fu, “energia”. De forma que o Wing Chun prima pelo
emprego do Yin/Yang, suave e energético.
O sistema se compõe de seis níveis: Siu Nim Tao, Chum Kiu, Biu Je, Mui Fah
Jong, Luk Dim Poon Kwan e Baat Jaam Do, tendo como pilar os três primeiros,
nos quais se aprende o foco e o posicionamento, o desenvolvimento da conexão
corporal e a adaptação às adversidades. Assim como a cultura chinesa, o Wing
Chun sofre influência da filosofia taoísta, principalmente pela obra Tao Te Ching, de
Lao Tze.
18
Diferente da cultura Ocidental, calcada no princípio da razão que deve ser
preenchida, da formação que se reduziu à superioridade do saber cognoscente, no
Tao Te Ching não se trata de um apossar-se do conhecimento, mas o de se pôr ao
caminho, caminhar, o próprio movimento, permitir-se ser-sendo, sem desejo, sem
vontade. A felicidade não consiste em encher-se de saber, mas no esvaziar-se do
ego. Trata-se do ‘não-desejar’, o que não significa ter uma atitude amorfa, morta,
como muito se entende no Ocidente. O ‘não-desejar’ é permitir. Permitindo pelo
vazio o Tao, o caminho já está a caminhar, o pleno já se põe presente. No verso 4
do texto Tao Te Ching, Lao Tze assevera que o caminho, o Tao, é vazio e ele assume
forma, harmonia na manifestação do caminho. As formas do Kung Fu e do Karatê
Dô são expressões máximas desse caminho. No Wing Chun, por exemplo, uma
forma deve se manter na transferência de energia de um movimento ao outro,
mantendo-se o corpo harmonizado no equilíbrio sempre constante e presente do
Yin/Yang.
Nesse sentido, o Homem Sagrado do Tao Te Ching é desapegado do ser, da
forma. Não há espaço para o preenchimento. Ele deve estar, como se vê no verso
6, em sintonia com o vazio. Diz Lao Tze: “O espírito do vale não morre, diz-se
místico feminino. A porta do místico feminino diz-se raiz do céu e da terra, suave e
multíflua. Parece lá existir, contudo opera fio a fio”. A harmonia é a manifestação
do caminho, o vazio, a sua natureza. Por isso, o caminho é o vazio e ele assume
forma. Alcança este nível, o homem que é Sagrado, o homem sábio ou aquele que
atingiu a união da consciência pura com a vida infinita. Ele não está em posse de
algo, como acima foi apontado em relação ao saber filosófico ocidental, em sua
origem, mas simplesmente permite o Tao.
Há pouco mais de 200 anos atrás, o Ocidente se consagrou como a cultura do
acúmulo, do preenchimento, da técnica, cada vez mais considerando a razão como
guia humano exclusivo ou principal nesse processo do saber e do ser, concebendo
a cultura como o arcabouço que deve ser cada vez mais recheada de novidades,
próprias a um progresso, a uma vida melhor, à felicidade. Pode-se depreender o
porquê do construto teórico kantiano ter causado um silêncio em sua época. Pode-
se organizar o mundo via o fenômeno, e a verdade se resguardar em outro mundo.
Em outros termos: pode-se construir um mundo fenomênico, aparente, sem
pessoas, mas com sujeitos, sem verdade, mas com validades, sem virtudes, mas
com leis. Esse silêncio fora abalado pelas considerações de Hegel que, em sua tese
de doutoramento (1986), afirma que seu trabalho doutoral nasceu da preocupação
da filosofia ter se convertido em lógica. Hegel nos anuncia o descalabro que
emergia em nossa cultura e inicia sua trajetória teórica, objeto dessa discussão.
Para criticar a perigosa orientação kantiana, a qual nos conduziria a um mundo
aparente e fenomenal, Hegel propõe outro princípio filosófico, o onto-lógico: o
indeterminado. Nesse sentido, Hegel se aproxima – em tese – de Lao Tze. Mas essa
aproximação é somente em tese.

19
Hegel se mantém no caudal teórico ocidental, e embora tenha edificado um
princípio indeterminado, assim como Lao Tze o denomina, seu gonzo teórico é
maculado pela tradição da racionalidade ocidental.
A arte marcial, em geral, e o Wing Chun, em específico, podem propiciar um
processo formativo que considere o corpo ou a empiricidade imbricado, de forma
holística, com a natureza e, assim procedendo, há contribuições ao processo
formativo brasileiro suplantar a dicotomia marcante em nossa educação.

Figura 1. Bai Zhi Zen – Nome do Prof. Pedro em mandarim recebido por estar no
quinto nível do Wing Chun (significa: ‘aquele que preserva sabedoria’)

Os benefícios da prática do Wing Chun, dentre outros, que podem ser


delineados em muitos aspectos da vida humana, são: o controle físico e emocional,
a confiança e o bem estar, o zelo consigo mesmo e com os outros, a imbricação
com a natureza, vida centrada e saudável, controle e deslocamento da energia, foco,
posicionamento, mudança de direção, adaptação. Simplicidade em seu agir,
eficiência na finalidade de sua ação, reflexos, melhoramento da saúde mediante
exercícios físicos, redução do stress, boa postura e estabilidade corporal e vivencial,
mobilidade e flexibilidade. Com a superioridade ocidental da educação cognoscente
e a minimização de outros aspectos que constituem o ser humano, a prática do
Wing Chun pode contribuir com uma formação integral do homem.
É chegada a ora de revisitarmos os ensinamentos oriundos de outras culturas
para que possamos retomar o debate acerca da educação, como processo
formativo, dentro da nossa tradição estritamente racional. É nesse sentido que o
Kung Fu, de forma ampla, e o Wing Chun, de maneira específica, podem nos
auxiliar na busca de uma educação que realmente forme pessoas.

PARA SABER MAIS


HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992.
TZU, Lao. Tao Te Ching. São Paulo: Editora Mandruvá, 1997.

20
A LUTA CORPORAL E AS
ARTES MARCIAIS COMO PRÁTICAS ÉTICAS

Dr. Cristiano Roque Antunes Barreira


Universidade de São Paulo – EEFERP/USP

Estudos filosóficos e psicológicos sobre Artes Marciais podem ser uma questão
chave para compreensão ética das relações humanas e culturais. A plasticidade e
variedade das Artes Marciais dificulta a compreensão de sua natureza ética comum.
Com recurso à fenomenologia, e mais especificamente à arqueologia
fenomenológica das culturas, apresentamos a matriz da experiência vivida das Artes
Marciais, bem como sua tendência à universalidade. Por esta abordagem,
resguardamos, todavia, o respeito e o cuidado com relação às particularidades
culturais das diferentes modalidades marciais, que não se reduzem a um
denominador comum universal. Referindo-se a Marte, o antigo e virtuoso deus
romano da guerra, sua etimologia ajuda a notar que não existem "artes areais", as
Artes de Ares, o antigo deus grego da guerra, cujo caráter era disruptivo e impulsivo.
Assim, as Artes de Combate se distanciam do transbordamento hostil, que é inerente
à experiência da briga, cuja estrutura intencional pode ser figurada pelo diagrama:

Se não todas, muitas das Artes Marciais encontram na imagem do duelo – um


combate por uma questão de honra – seu mito fundador. Como mito fundador, o
duelo evoca o espírito de um combate definitivo, sem segundas chances, no qual o
que está em jogo é permanecer vivo e matar, ou morrer. O motivo do combate não
deve ser pelas razões erradas, mas deve ser justo o que, nas Artes Marciais se
inscreve como aquilo pelo que vale a pena lutar e pelo que não lutar equivaleria a
envergonhar e manchar a honra do sujeito.

Sua instrumentalização militarizada, por sua vez, converte suas técnicas em


ofício no qual se pratica um combate ofensivo instrumental.
21
Praticar Artes Marciais é diferente de duelar ou de fazer uso instrumental das
técnicas de combate, como ocorre nos casos de defesa pessoal. O retorno à
experiência vivida na prática do combate executado nas Artes Marciais demonstra
que esta acontece como luta corporal, onde a questão da honra não é a razão para
lutar. O deslocamento do aspecto instrumental para o experiencial como o centro
das Artes Marciais Modernas permite a compreensão de como sua ética não é mais a
de particularidades nacionais ou étnicas, mas tende à universalidade e a um modo
não violento de combate, orientado pela cultura de paz e por uma subjetivação
política cuja promoção educativa precisa ser conhecida para ser apropriadamente
valorizada como tal.

A luta implica reciprocidade intencional, ou seja, a vontade mútua de fazê-lo.


Portanto, implica a manutenção do respeito aos demais em combate, sem que a
ação combativa seja desencadeada por uma questão de honra alheia à própria luta, e
sem que um ou ambos lutadores sejam dominados por sentimentos hostis. A
motivação da luta é a luta em si.
O deslocamento da centralidade instrumental para a centralidade experiencial e
formativa das Artes Marciais Modernas é decisivo para sua compreensão ética. Mesmo
incompleto e parcial, é esse deslocamento de valor que permite a apreensão de seu
sentido ético universal.
Ao longo da história, essa universalidade quase nunca foi explicitada, mas foi
vivida e praticada em contextos particulares, locais, étnicos, nacionais, favorecendo
clãs, pequenos grupos, reinos ou até grandes exércitos imperiais, que usavam suas
artes marciais contra ameaças ou inimigos. Nestes contextos, mesmo sem deixar de
ser formativa, a centralidade das Artes Marciais foi principalmente instrumental,
como ainda é o caso nas forças armadas, em que o sentido marcial é propriamente
militar. O coração das artes marciais modernas, no entanto, não é militar e não se
reduz à sua instrumentalidade.

22
Praticar Artes Marciais designa como alguém exerce seu poder sobre outra
pessoa, bem como sobre como alguém experimenta o poder de outra pessoa
exercida sobre si mesmo. Na luta corporal isso se dá ao modo de um diálogo
corporal, um modo não violento de combater, ainda que feito com determinação de
vencer. Quando as Artes Marciais são apenas instrumentais e exclusivamente
destinadas a superar um inimigo, esse exercício de poder se traduz como um
exercício de violência.
Aceitar a violência aberta no ambiente de prática de Artes Marciais só se justifica
quando isto é entendido como fortalecimento na preparação do praticante para um
futuro confronto violento com um inimigo, quando extrapolar os limites das normas
de sensibilidade de alguém, visa brutalmente ‘endurecê-lo’, isto é, tornar a exposição à
violência algo conhecido e tolerável.
A possibilidade de violência é uma questão existencial de todas as Artes Marciais.
Sem referir-se à violência, sem referir-se a um tipo de código de conduta, escrito ou
não, que designa quando é válido e quando não é válido fazer uso das técnicas de
Luta, a Arte Marcial se reduz à Luta corporal, perdendo a dimensão atitudinal e ética
que a constitui.
Como a Arte Marcial moderna não é apenas um instrumento de combate, ao
contrário de um soldado que obedeça a ordens, o artista marcial deve incorporar
um senso de justiça que lhe permita tomar decisões autônomas e, como um
guerreiro, seguir seu coração.

PARA SABER MAIS


BARREIRA, C.R.A. (2017). The essences of martial arts and corporal fighting: a classical
phenomenological analysis. Archives of Budo, 13, 351-376.
BARREIRA, C. R. A. (2012). Os valores na pedagogia das lutas, artes marciais e
modalidades esportivas de combate. In: Franchini, E. & Del Vecchio, F.B. (Org.). Ensino de
lutas: Reflexões e Propostas de Programas. 1.ed.São Paulo: Scortecci Editora, 28-46.
MELO, F.; BARREIRA, C.R.A. (2015). As fronteiras psicológicas entre violência, luta e
brincadeira: as transições fenomenológicas na prática da capoeira. Movimento, 21, p. 125-138.

23
ARTES MARCIAIS: saberes e poderes públicos.

Dr. Walter Roberto Correia


Universidade São Paulo – USP/Escola de Educação Física e Esporte

As Lutas, Artes Marciais e Modalidades Esportivas de Combate (L/AM/MEC)


compreendem um amplo e diversificado universo de manifestações antropológicas.
A despeito de características comuns, que permitem ao senso comum identificação
e reconhecimento, são as diferenças entre os componentes que lhe conferem
encanto e notoriedade. Essas atividades humanas são praticadas nos mais diversos
contextos socioculturais, como por exemplo, clubes, academias, escolas,
associações, institutos, organizações não governamentais, instituições filantrópicas,
etc.
Essas manifestações culturais estão apoiadas em associações, federações e
confederações, com regras e estatutos próprios de controle e organização. De
modo geral, essas mesmas instituições oferecem programas ligados às suas
respectivas modalidades ou artes, visando o envolvimento de um extenso público
constituído por crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos e grupos com
necessidades especiais.
As L/AM/MEC estão previstas em políticas sociais importantes, mais
destacadamente nos campos do esporte e da educação.
No contexto esportivo, essas práticas têm um importante lugar no cenário
olímpico brasileiro, uma vez que as modalidades esportivas de combate têm
logrado resultados expressivos com reconhecimento internacional. Para este setor,
temos a provisão de programas de apoio aos atletas em diferentes níveis, ainda que
de forma oscilante e contingencial. Nas políticas de inclusão social, muitas vezes,
como parte programática das agendas de grupos e partidos políticos, é passível de
constatação a reivindicação e a destinação de investimento público para combater
processos de exclusão de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social.
No âmbito da saúde, algumas modalidades de L/AM/MEC são usadas tanto
para a prevenção de doenças e reabilitação funcional como para a promoção da
saúde de forma mais ampla. Nesse domínio, as pesquisas se tornam fundamentais e
a premissa subjacente é a de que as Artes de Combate ou Lutas são portadores de
especificidades ou particularidades psicomotoras, cujas propriedades podem ser
elementos importantes em terapêuticas e processos de elevação e sustentabilidade
do bem-estar.

24
No que diz respeito ao campo do entretenimento, nas últimas décadas
observamos a ascensão vigorosa dos torneios de Artes Marciais mistas denominados
“Mixed Martial Arts” (MMA). Esses, que envolvem lutadores com diferentes
extratos socioculturais, alimentando, possivelmente, vários elementos
idiossincráticos.
Por essas e outras razões, dada a vigorosa emergência dessas manifestações no
seio da vida cotidiana, se faz necessária uma imersão crítica e criativa no
denominado ‘universo marcial’.
A produção de conhecimento sobre o fenômeno das L/AM/MEC na
contemporaneidade será indispensável para alargar o entendimento sobre a
natureza dessas elaborações humanas e, especialmente, ampliar a compreensão e o
aperfeiçoamento na utilização dos saberes e dos poderes contidos nessas
tecnologias do corpo. As representações populares do senso comum, subsidiadas
por diferentes setores econômicos, reiteram determinadas ideias e imagens que,
ordinariamente, negligenciam essa presumida complexidade e
multidimensionalidade. É oportuno sublinhar que certos protagonismos
interessados em formatar as L/AM/MEC em objeto de consumo, bem como, em
permuta política, têm implicado em adorná-las com promessas e benefícios
audaciosos, de forma que seja socialmente aceito e, por fim, consumidas. Essa
situação é similar no âmbito do esporte como ferramenta de inclusão e redenção
social.
Nesses casos, restringe-se um fenômeno complexo e relevante, demasiadamente
humano e paradoxal, engendrando-o na dinâmica controversa das astúcias
institucionais à luz de conveniências políticas e econômicas. Nesse processo de
incorporação e transformação, são negligenciados ou descartados vários elementos
vantajosos ao desenvolvimento humano. Como exemplificação, conteúdos típicos
dessas atividades como torções, chaves, projeções, golpes de propulsão e utilização
de armas, devem ser redimensionados para lugares como escolas, clubes, empresas,
academias e organizações não governamentais com propósitos de inclusão social.
Como elucidação dessa assertiva, a denominação Lutas, por exemplo, se
inscreve como conteúdo da escolarização por meio da Educação Física Escolar, e
são pedagogizadas sob o formato dos ‘jogos e brincadeiras de oposição’. Do ponto
de vista da Educação Física, as L/AM/MEC são apropriadas pelo imperativo das
noções de atividade física, esforço físico ou pedagogia do movimento do corpo
humano. No caso do esporte, os Sistemas de Combate ou Artes Marciais devem se
submeter aos códigos, normas, regras e sentido de eficácia da instituição esportiva,
produzindo assim um impacto substancial na lógica e na condução dessas
manifestações culturais. Se tomarmos os objetivos das instituições militares, a
premência do combate e do conflito tende a enfatizar a busca pela eficiência
técnica em cenários específicos de conflito.

25
Em suma, podemos cautelosamente admitir que o contato entre instituições
diversas desencadeiam processos de assimilação, transformação e sínteses muito
específicos, por vezes díspares, gerando configurações e práticas culturais
compostas por mutações, transgressões, perdas ou atualizações.
O Estado Democrático de Direito, na sua irrefutável responsabilidade de
fomentar ações políticas com vistas ao desenvolvimento da cidadania e do bem
estar social, tem a incumbência de assimilar parcelas expressivas do conhecimento
disponível de determinados campos da cultura, especialmente, daquelas que se
constituem objetos e conteúdos das suas ações.
Isto se faz necessário, porque as políticas públicas têm o potencial de produzir
repercussões tocantes na vida dos cidadãos e cidadãs, além da imperiosa
responsabilidade do uso adequado dos caros e limitados recursos públicos.
Por essas e outras razões relevantes, a produção de conhecimento sobre as
L/AM/MEC são indispensáveis para que possamos compreender
progressivamente este fenômeno tão complexo, de modo que sirva de subsídios
para qualificar as ações governamentais.
Precisamos valorizar a ideia de pluralidade e diversidade cultural, de tal sorte,
que a ação amplie as possibilidades de criação e reinvenção da pluralidade pulsante
das L/AM/MEC como culturas vivas, pautadas por uma pluralidade de saberes, de
modo a pavimentar um profícuo “movimentar-se” entre o “combate e o debate”.
Mais saberes e, sobretudo, melhores poderes para o usufruto crítico, criativo e
humanizador das L/AM/MEC!

PARA SABER MAIS


CORREIA, W.R. Artes marciais e Educação Física: entre inquietudes e obviedades. IN:
ANTUNES, M.M.; ALMEIDA, J.J.G. Artes marciais, lutas e esporte de combate na perspectiva da
Educação Física: reflexões e possibilidades. Curitiba: CRV, p.43-65, 2016.
CORREIA, W.R.; SOUZA, M.T.; OLIVEIRA, L.R. Arte marcial e política pública: algumas
especulações. IN: III Seminário Esporte, Atividade Física e Saúde. São Paulo: Gráfica da
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, p.26-30, 2012.
FRANCHINI, E., DEL VECCHIO F. Estudo das modalidades esportivas de combate:
estado da arte. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte. São Paulo, v.25, n° spe, dezembro,
2011.

26
UMA EXPERIÊNCIA COM O BUDÔ JAPONÊS E O JAPÃO:
Trajetórias, itinerários ou caminhos de formação humana

Dr. Fabio José Cardias Gomes


Universidade Federal do Maranhão – UFMA/Campus Imperatriz

Das minhas experiências pessoais e profissionais, sem dúvida, a mais marcante


até hoje, foi vivenciar um país sonhado na infância: o Japão. Do outro lado do
mundão, é um universo diferente, sem dúvida! Outras pessoas, outras histórias,
outros pensamentos, comidas, cheiros, vozes, palavras, sentimentos, angústias,
amores, dores, problemas, questões e tudo o que cabe no humano, próprio do
Homo sapiens sapiens. Dividimos a mesma espécie, mas a cultura daquele País é
peculiar e marcou para sempre a minha alma mestiça, brasileira, migrante e errante.
Como bolsista do Ministério da Educação, Esporte e Cultura do Japão, de 2001
a 2005, e lá se vão alguns anos, eu me ajaponesei um pouco na Universidade de
Tsukuba, sushizando pelos restaurantes universitários espalhados por aquele belo e
saudoso campus, da renomada Tsukuba Science City, com seus prêmios Nobel, com
o histórico de ter Jigoro Kano como primeiro reitor, um rei japonês, um Thor da
região de Kanto, província de Ibaraki. Me ajaponesei porque ainda preservo alguns
sentimentos, pensamentos, comportamentos e consciências que absorvi por lá,
ainda que sutis e contraditórios, e logo familiar se tornou um japonês, ou num
nissei brasileiro. Logo eu, um caboclo amazônida, que se apaixonou pelo Budô na
academia de Machida, o mestre karateca, natural de Ibaraki.
Então, foi com a experiência do Aikidô, do Judô, do Iaidô que eu saboreei um
pouco o chão do outro, sua terra, sua água, sua alma. Confuso inicialmente, mas
perspicaz em perceber que para entender cultura japonesa é necessário ser japonês,
ajaponesar-se no sentido de estar com o pensamento aberto às múltiplas facetas do
Nippon, e o Budô é uma delas, cheia de detalhes. Colegas ficaram por lá vivendo,
outros voltaram inúmeras vezes, alguns abominaram tão fechada socialização,
poucos cortaram o preconceito da diferença. Eu nunca mais voltei ali, ocupado que
estava aqui, com a certeza de não ser mais o tempo que tive em mãos e alma, se
voltasse. Espero retornar logo, mas será um novo tempo e espaço de pensar e
sentir, talvez no tempo Olímpico de 2020.
E ainda que com mínima reflexão, relato aqui o que de teoria brevemente
pensei na tese doutoral de 2012, e eis abaixo algumas contribuições possíveis a
partir da Psicologia e do Imaginário material.

27
Do Kakutogi ao Budô : e três dimensões de estudo

A primeira noção a desembainhar é a qual aprendi com um mestre de Iaidô, da


cidade de Tsuchiura, terra de samurai, perto de Tsukuba, famosa também pelos
tatuadores dos Yakusa, que Luta Corporal é Kakutôgi e Arte Marcial é Budô.
Kakutôgi serve ao divertimento, à contenda, à competição agressiva e Budô reverbera
sua herança histórica da guerra, do campo de batalha, dos bushi, e serve atualmente
ao Budô e Bushidô moderno, à educação escolarizante ou à formação do sujeito e sua
humanidade, que dever ser elevada. A faixa preta deveria ser símbolo do quanto se
tornou elevado o coração de alguém, pela persistência na prática marcial, da arte.
A segunda noção é um corte tridimensional que fiz na minha consciência para
tentar compreender três dimensões que percebia na época, agora, claro,
contaminado pelo estudo de autores europeus, especialmente os da psicologia
profunda e os do imaginário material, como Sigmund Freud, Carl Gustav Jung, Jean
Chateau, Gaston Bachelard, Gilbert Durand, Marcos Ferreira-Santos, e japoneses
afins como Nakagomi Shiro, Hayao Kawai, IzutsuToshihiku, Shinni Nakamura,
Todo Yoshiaki.
Ou seja, as dimensões: 1) TÉCNICA ESTÉTICA MARCIAL - do domínio
técnico da corporeidade e suas extensões; 2) ÉTICA-ASCÉTICA FILOSOFICA
MARCIAL - da ética conscientizadora ou da moral anôma-heterônoma-autônoma;
3) MITO-POÉTICA MARCIAL – das mitopoéticas, de remitologização e
representatividades simbólicas como produtos da prática.

Figura 2. Tridimensões marciais – Modelo TEEMPO

É claro que não há tripartidamente, assim, na concepção japonesa original de


Budô, a sistematização como proponho em tese, mas me ajudou a conglomerar suas
trilogias autóctones, por exemplo, do ShuHaRi , do Sen Sen no Sen, outro exemplo.
Tríades típicas do imagináro do Anthropo bípede, também presente nas religiões
como o Dharma-Bhudda- Sangha, aTenRiKyo, dentre diversas imaginações tripartidas.
E assim, seria o conjunto e maestria das dimensões que integraríamos como
formação do Homo sapiens sapiens, agora um Homo sapiens m-artius ou mesmo na
categoria do Homo faber, para superarmos nosso Homo demens e atingirmos elevados
níveis de humanização e seu desenvolvimento. Pois são os corações que devem ser
elevados, o amor como fim do Budô, ditam os mestres iluminados!
28
Relembrei em tese que a Capoeira de matriz afrobrasileira também é pensada
num tripartido educativo:

Figura 3. Tripartições didáticas concebidas por Mestres de Capoeira

É o que encontro ao avançar estudos orientais. Pode ser bidimensional, plural,


mas as tripartições estão sempre presentes, uma possibilidade de compreensão.
Como mostro a seguir, exemplos da unificação do Corpo, Técnica e Mente
asiáticos:

Figura 4. Tripartições didáticas concebidas nas Maestrias Orientais

Meu caminhar marcial, com erros e acertos, indas e vindas, superficialidades e


aprofundamentos epifânicos, feridas não cicatrizadas no coração, cortes na
consciência, golpes baixo e duros na alma, e outros elevados e sutis de espírito,
quedas bruscas mas com levantes inspiradores, me levam a compreender que o
Budô japonês é um instrumento de desenvolvimento da pessoa, com um fim nobre
e guerreiro da paz: a capacidade-potência de amor próprio e fraternal que nos
humaniza, a prórpia potência do projeto de humanitas.

Figura 5. Evolução do termo Budō: de Avançar-com-as-Armas para Parar-as-Armas.

29
Que o Japão é um país incógnita e contraditório, como toda cultura humana,
mas que possui elementos que os não-japoneses podem se beneficiar, e assim tenho
visto. Que precisamos pensar a esportivização contemporânea do Budô como uma
razão-ferramenta que ajuda, um ratio, mas também descaracteriza sutis propriedades
das artes intrínsecas da prática, a parte sensível, o sensus.
Então, temos também que artializar a prática, e mais ainda, de poetizar nosso
corpo. Que ele próprio escreva narrativas cotidianas dentro e fora do mundão e da
cena dos tatames dos Dôjô. Reencontrar nosso mito pessoal e coletivo, nessas
trajetórias, itinerários e caminhos para que nos tornemos cada vez mais humanos,
para além do ponto o qual alcançamos, agora tênue, nesses duzentos anos de
sociedade industrial descartável, perversa e destruidora da natureza.
Concordamos que ainda nos falta muito!?

PARA SABER MAIS


BARREIRA, Cristiano Roque Antunes. Arqueologia da intenção do caminho do karatê: análise
psicológica e fenomenológica. Tese doutoral apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto, 2004.
CARDIAS-GOMES, Fábio José. Psicologia dos esportes de combate e artes marciais. In:
RUBIO, Katia. Psicologia do Esporte Aplicada. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2003.
CARDIAS-GOMES, Fábio José. O pulo do gato preto. Tese doutoral apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo,
2012.
MASATOSHI, Sugie. Japanese Budo. In: Japanese Budo. Tokyo: Nippon Budokan, 2009.
NAKABAYASHI, Shinni. Budo no sussume. Tokyo: Kodansha, 1994.

30
A IMPORTÂNCIA DO TRATO DA LUTA NA ESCOLA

Dr. Neuber Leite Costa


Universidade Federal da Bahia – UFBA

Geralmente quando se fala em Luta, o senso comum remete ao ato de brigar.


Diversos fatores os diferenciam. Podemos mencionar as regras, a organização, a
hierarquização, somente para citar alguns desses fatores. O ato de lutar é um ato
humano. Registros científicos apontam que nas primeiras civilizações, essa
manifestação já se encontrava presente, assim como questões que a envolvem até a
contemporaneidade.
Nos livros mais antigos que temos conhecimentos, nas pesquisas antropológicas
e paleontológicas, assim como por toda a história da Antiguidade, de uma forma
geral, há relatos de ocasiões em que os atos de atacar e defender-se estavam
presentes de forma cotidiana na vida das pessoas, nas mais variadas configurações.
No seu desenvolvimento na sociedade esse fenômeno se apresenta como
prática utilitária, de exercícios físico, rituais de passagem, ginástica, entretenimento,
defesa pessoal, esporte. Toda essa produção humana e esse conhecimento cultural
necessita estar presente na formação dos(as) estudantes brasileiros(as). Todavia, ao
adentrar na escola, por meio das aulas de Educação Física, como conteúdo, esta
precisa ser pedagogizada.
Na literatura, encontramos alguns trabalhos escritos sobre a ausência da Luta,
enquanto conteúdo da disciplina Educação Física. Vários são os fatores apontados
sobre essa problemática. Observamos historicamente que a cultura corporal que reúne
o esporte, a ginástica, os jogos, as brincadeiras, a dança se faz constantemente
presente nos planejamentos dos professores dessa disciplina. Entretanto,
constatamos que a Luta, se constitui a margem dessas outras práticas.
Existem pesquisas que apontam argumentos restritivos para o trato da Luta
enquanto conteúdo da Educação Física seja por falta de vivência pessoal dos (as)
professores (as) ou possível estímulo à violência que o conteúdo poderia
desencadear. Entretanto, muitas vezes, esses argumentos atribuídos a professores
de Educação Física parece não incomodar. E isso é preocupante, pois estamos
falando de comportamentos prejudicais para a educação, a cultura, a escola, a
Educação Física e, principalmente, para os estudantes que ficam à margem dos
conhecimentos sobre as Lutas, que inclusive são parte de sua cultura.
As Lutas podem ser trabalhadas na escola por meio de vivências, debates,
vídeos, livros, palestras, seminários - de forma planejada e organizada, conforme
orientam documentos oficiais da educação brasileira, bem como sua legislação.
Sempre é importante conhecermos a cultura mundial, todavia é imprescindível
conhecermos a cultura local - as nossas Lutas.

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Existem no norte do País, indícios de combates corpo a corpo e
enfrentamentos com armas, registrados por meio de pinturas rupestres em paredes,
no sítio arqueológico do Parque Nacional da Serra da Capivara, no estado do Piauí.
Essas pinturas são atribuídas aos paleoíndios, grupos de seres humanos mais
antigos do que as nações indígenas que conhecemos hoje. Podemos notar dentre
esses registros, atividades de combate e o uso de armas. Características do que
denominamos de Luta, na contemporaneidade.
Atualmente, temos acesso a algumas manifestações ancestrais de Lutas
brasileiras como: o Huka Huka, praticado no Alto do Xingu; a Marajoara, muito
presente na cultura da Ilha de Marajó; e a Luta do Derruba Toco da cultura Pataxó,
nas regiões da Bahia e Minas Gerais. Assim como outras que foram incorporadas à
nossa cultura, através do legado africano e afro-brasileiro, como por exemplo o
Maculelê, o Batuque e a Capoeira.
É imprescindível que essas vivências, estas histórias e esses conhecimentos
estejam acessíveis aos nossos educandos e educandas. Por isso, é função docente
problematizar, sempre que possível, acontecimentos históricos, conteúdos e
informações relacionados à Lutas.
Na atualidade, as modalidades esportivas de combate e suas competições, bem
como suas organizações esportivas estão muito presentes. Vale destacar que a Luta,
enquanto esporte e suas competições, constituem-se em ressignificações da Luta
enquanto fenômeno cultural. Importante discutir as possibilidades de prática de
cada uma delas.
As competições de Mixed Martial Arts (MMA) e de Ultimate Fighting Championship
(UFC) são eventos contemporâneos que tentam traduzir uma lógica esportista nos
combates. Os lutadores são tratados como atletas, recebem salários e prêmios e
reproduzem um discurso com base em códigos de guerreiros samurais. Contudo, a
prática, como critério de verdade, acaba por revelar discursos falaciosos.
Todos esses comportamentos são ótimos temas para debates. Uma ação em
uma competição de Luta pode se transformar em uma ponderação sobre a
humanidade do ser, pode ser tema de um debate ou de uma atividade pedagógica
que envolva maior complexidade, incluindo pesquisa.
Outra discussão interessante é sobre a ética. Não são poucos os exemplos que
vimos de unfair play (jogo injusto, não cortês, que vai contra as regras e/ou
manipulação destas – má esportividade) em contraponto ao fair play (atitude
moralmente boa, jogo limpo ou o espírito esportivo no sentido de respeito às
regras estabelecidas). Conceito bastante presente, por exemplo, no futebol, mas,
todavia, com exemplos negativos. O fair play é uma das características do esporte
moderno, que vem sendo tantas vezes deturpada na atualidade.
Relacionado à Luta, podemos questionar a possibilidade de reconhecimento e
aceitação do perder. Saber perder e reconhecer que o outro foi melhor, foi mais
técnico
32
técnico, aproveitou melhor as oportunidades em determinado momento, é um
comportamento louvável no universo das Lutas e Artes Marciais. A Luta indígena
Huka-huka pode ser usada para debater determinadas questões que presentes hoje
em dia na Luta enquanto modalidade esportiva de combate, na qual às vezes há
uma supervalorização de determinados aspectos e a aceitação de comportamentos
que seriam questionáveis em situações cotidianas distintas. Algumas referências
trazem a informação de que não há um árbitro e, sim, um observador denominado
de ‘dono da Luta’. Contudo, existe o reconhecimento, a partir das regras de quem
ganha e de quem perde, sem a necessidade de um observador externo. Esse
reconhecimento e aceitação mostra um comportamento interessante sobre perder e
ganhar. Também não há prêmio, somente reconhecimento e respeito.
O estudo das Lutas pode se configurar como uma quebra de paradigma do
eurocentrismo na escola. O professor de Educação Física, ao dar o tratamento
adequado ao conteúdo Luta, bem como ao estabelecer os nexos nele contido,
pertinentes às demandas para a formação de uma humanidade mais justa,
consciente, igualitária e ética, contribui para a construção de uma sociedade
solidária e fraterna.
Assim, Luta é um assunto vivo, constante no contexto societal, dialético, que se
transforma e se ressignifica.

PARA SABER MAIS


ABREU. Frederico José de. Bimba é bamba: a capoeira no ringue. Salvador: Instituto Jair
Moura. 1999.
NASCIMENTO, Paulo Rogério Barbosa do ALMEIDA, Luciano de. A tematização das lutas
na Educação Física Escolar: restrições e possibilidades. V 13. N. 3. Revista Movimento. Porto
Alegre. 2007. P. 91-110.
RUFINO, Luiz Gustavo Bonatto. A pedagogia das lutas: caminhos e possibilidades. Jundiaí:
Paco Editorial, 2012.

Figura 6: Curso de Bastão Retrátil - Foto do Prof. Neuber

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REALIDADE E POSSIBILIDADES DO ENSINO DAS LUTAS NO
BRASIL: SÍNTESES REFLEXIVAS ACERCA DO TRABALHO
DOCENTE

Dr. José Luiz Cirqueira Falcão


Universidade Federal de Goiás – UFG

Embora as Lutas Corporais se apresentem como campos relativamente


autônomos, o trato com esse conhecimento precisa levar em consideração os
avanços teóricos verificados nos diferentes campos do conhecimento,
especialmente, a Educação, Ciências Sociais, Educação Física, Artes e áreas
correlatas.
O legado deixado pelos nossos antepassados no campo das Lutas Corporais
necessita de um cotejo permanente com as experiências acumuladas pelos seus
praticantes na atualidade, pois os seus saberes são confluências advindas de
vivências, percepções e reflexões construídas não apenas a partir da transmissão de
referências históricas e do cultivo de determinados pressupostos teóricos. Esses
saberes são também produto da relação entre corpo, movimento e cultura.
A realidade atual desse campo complexo de saberes frequentemente reflete uma
lógica hegemônica baseada, na maioria das vezes, no repasse de técnicas de ataque e
defesa, emolduradas de ‘sermões’ dogmáticos e mistificadores, do tipo: “sofra agora
e viva o resto de sua vida como um campeão”.
Considerando que as lutas e, por extensão, a educação não acontecem fora da
luta de classes, e o dojô, o tatame, a roda de capoeira etc. não são lócus inócuos,
puros, descolados e imunes às relações políticas, sociais e econômicas.
O trato com o conhecimento das Lutas passa prioritariamente pela figura do
professor, do mestre, do sensei. Nesse contexto, mais do que ‘falar de’, opera-se um
‘fazer com’. Essa especificidade pedagógica envolve denso convívio social,
experiência corporal e movimentos, possibilitando, consequentemente, a formação
de valores que, a rigor, são razoavelmente duradouros.
As sínteses reflexivas aqui apresentadas acerca do trato com esse conhecimento
podem servir como ‘armas da crítica’ a subsidiar a consciência de todos os
envolvidos para enfrentar as perspectivas prescritivas e conservadoras ainda
recorrentes nesse campo.
Embora o fenômeno das Lutas sugira diferentes possibilidades de usufruto, com
destaque, na atualidade, para a sua condição de mercadoria, o nosso foco de
interesse é contribuir para a formulação de uma concepção de Luta como prática
corporal que se materialize para além da eficácia do gesto, da melhoria de
indicadores orgânicos ou da mera atividade física.
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As chamadas Artes-Marciais, codificadas por meio de esquemas de aprendizagem
com o objetivo de ataque e defesa, transcenderam o caráter belicoso das Lutas de
outrora e alcançaram o status de Arte, ao desenvolverem filosofias baseadas em
preceitos éticos e morais que têm sido negligenciados em detrimento de outras
finalidades.
O alargamento do conceito de Luta para outras esferas da vida se torna cada vez
mais necessário. Isso implica em enfrentar, entre outras questões, construções
dogmáticas que assolam a consciência de homens e mulheres, induzindo-os a tratar
os fenômenos socioculturais como produto da natureza e não da história. Que esse
conceito alargado possa desferir uma ‘rasteira’ em condicionamentos e prescrições,
muitas vezes velados e sutis, mas nem por isso menos poderosos, que fazem muitos
acreditar, até hoje, por exemplo, que ser rico é tão natural quanto ter esse ou aquele
tipo físico.
O ‘saber-fazer’ e o saber sobre o ‘saber-fazer’ constituem um ponto de tensão
em relação ao trato com o conhecimento das Lutas nos seus diferentes espaços de
prática. É imprescindível evitarmos a lógica maniqueísta que determina ‘quem
pensa’ e ‘quem executa’. Ensino e aprendizagem constituem um par dialético em
que um não se realiza sem o outro. É na mediação operada pelo mestre entre o
conhecimento sistematizado e o contexto em que o discípulo atua que se situa o
conhecimento pedagógico, que, por sua vez, se constrói de forma indissociável do
conhecimento específico.
Uma ênfase exagerada em seus aspectos técnicos pode incorrer no risco de
transformar as Lutas numa espécie de franquia meticulosamente moldada, destinada
a disseminar modelos e padrões ilusórios de corpo e de comportamento, como se
todos fossem portadores das mesmas características e das mesmas condições
materiais de vida.
O trabalho docente no campo das Lutas deve contemplar, de forma articulada, a
rigorosidade, a criatividade, a criticidade e o conhecimento prévio dos sujeitos
envolvidos no processo, bem como, deve ser acompanhado de um permanente
espírito investigativo.
Por fim, apresentamos a possibilidade de as lutas serem tratadas como
“complexos temáticos”, em que há uma inextrincável articulação entre corpo,
cultura, memória, história, processos de construções identitárias e de auto-
organização.
Considerando seus diferentes espaços de prática, destacamos os elementos de
qualificação do conhecimento sobre o complexo temático Lutas que:
1 - Ao se articular com outros complexos, como elos de uma mesma corrente,
revela as reais relações do processo de produção da vida e conduz à compreensão
da realidade social. Se na prática concreta das Lutas interagem aspectos
psicológicos, políticos, culturais e econômicos da vida, essa prática deve ser
experimentada, problematizada, teorizada e reconstruída coletivamente.
35
2 - Ao adotar como pressuposto a totalidade concreta, quebra, efetivamente,
com as falsas hierarquias e estabelece uma relação de ensino-aprendizagem
centrada na ação dialógica e não na lógica da ordem, da prescrição, do
autoritarismo. Isso implica que o mestre (shiran) e professor (sensei) não precisam de
discípulos fiéis e seguidores, mas da inserção de todos em articuladas redes de
intercâmbios em torno de problemáticas significativas da vida, respeitando
características, acúmulos, virtudes e limitações de cada um no processo educativo.
Precisamos trabalhar na lógica da auto-organização em que os envolvidos no
processo educativo tenham experiências em todas as possibilidades do trabalho
pedagógico.
3 - Adota o pressuposto de que cada pessoa tem seu jeito de lutar, mas a luta
deve ser sempre coletiva. Nessa perspectiva, deve-se operar na lógica da auto-
organização dos praticantes, que exige exame dos condicionantes socioeconômicos
sobre seus saberes/fazeres.
4 - Concebe a história dessas manifestações da cultura corporal numa
perspectiva dinâmica. Com isso, evita sua idealização e mitificação, contribuindo
para que seus praticantes se sintam partícipes do presente histórico.
5 - Articula, de forma equilibrada, diferentes possibilidades metodológicas para
fazer frente ao alto grau de complexidade de suas culturas subjacentes, em busca de
fundamentações conceituais, procedimentais e atitudinais que possibilitem uma
leitura/análise dialética e uma teoria que aponte caminhos e seja reconstruída pela
prática, alçada ao nível da consciência.
6 - Reconhece que toda manifestação de Luta constitui numa síntese de
múltiplas determinações em jogo. Para essa compreensão é preciso intercâmbio,
participação ativa e diálogo permanente para construir conhecimento extraído da
prática social, necessário à transformação da realidade e à superação de perspectivas
ingênuas.
Mesmo que o tratamento das Lutas a partir do conceito de ‘complexo temático’
possa sugerir um campo infinito de possibilidades, este não deve ser confundido
com uma mistura de procedimentos aleatórios, frutos de vivências pragmáticas
específicas dos mestres e professores. É necessário contemplar, além dos
fundamentos históricos, os sentidos e os significados que os sujeitos atribuem a
essas manifestações.

PARA SABER MAIS


FALCÃO, J. L. C. O jogo da capoeira em jogo e a construção da práxis capoeirana. Tese (Doutorado
em Educação). Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Educação, 2004a.
FALCÃO, J. L. C. Fundamentos socioculturais das lutas na educação física. In:
LAZZAROTTI FILHO. Licenciatura em Educação Física. Volume 7. Goiânia: Gráfica
UFG/CIAR UFG, 2015b.
SOUZA, G. C.; MOURÃO, L. Mulheres do tatame: o judô feminino no Brasil. Rio de Janeiro:
Mauad X e FAPERJ, 2011.
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SOBRE OS AUTORES

WILSON LUIZ LINO DE SOUSA


Professor e Coordenador do Curso de Bacharelado em Educação Física da
FEFD/UFG. Licenciado em Educação Física pela ESEFSCS, Mestre e Doutor em
Educação Física pela Unicamp, na temática: Políticas Públicas de Esporte e Lazer.
Pesquisador do CBCE e Coordenador do Centro de Desenvolvimento de Pesquisa
em Políticas de Esporte e Lazer da Rede CEDES/GO.

LEILA MIRTES MAGALHÃES PINTO


Professora de Educação Física e Especialista em Pedagogia do Esporte pela
UFMG. Mestre em Educação Física: Recreação e Lazer pela UNICAMP. Doutora
em Educação pela UFMG. Coordenadora Científica da Rede CEDES do
Ministério do Esporte. Pesquisadora e consultora nos campos do Lazer, Educação
e Políticas Públicas de Esporte e Lazer.

BENEDITO CARLOS LIBÓRIO CAIRES ARAÚJO


Graduado em Educação Física e especialista em Metodologia da Pesquisa em
Educação Física, Esporte e Lazer pela UFBA. Mestre em Educação pela UFSC e
Doutor em Educação pela UFS. Professor do curso de Educação Física
Licenciatura, pesquisador em Educação Física, Esporte e Lazer (REDE LEPEL) e
coordenador, do LEPEL-UFS. Mestre de Capoeira concedido pela Associação
Quilombo Capoeira (AQC) de Santo Amaro da Purificação - Bahia em 2005.

PEDRO GOMES NETO


Graduado em Filosofia pela UFG. Mestre em Filosofia pela UFMG. Doutor em
Filosofia pela PUC RS. Atualmente é Professor Associado I da Faculdade de
Educação da UFG e atuante na Graduação e Pós-graduação em Psicologia da
UFG. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Ética e Filosofia
Política, Metafísica, Ontologia, Filosofia e Educação, e Filosofia e Psicologia.
Praticante de Kung Fu.

CRISTIANO ROQUE ANTUNES BARREIRA


Bacharel e Licenciado em Psicologia. Psicólogo e Doutor em Psicologia pela
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP. Atualmente é
Professor Associado (RDIDP) da USP, na Escola de Educação Física e Esporte de
Ribeirão Preto e professor orientador no Programa de Pós-graduação em
Psicologia/FFCLRP/USP. Foi professor junto à Escola de Artes Ciências e
Humanidades (USP) e, atualmente, é Diretor da EEFERP/USP e Presidente da
ABRAPESP.

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WALTER ROBERTO CORREIA
Pedagogo, Professor de Educação Física, Livre Docente da Escola de Educação
Física e Esporte da USP. Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Mestre em Educação Física pela Escola de Educação Física e Esporte da
USP. Formação em Psicanálise pelo CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos.
Mestre Qualificado em Ving Tsun/Kung Fu (Arte Marcial Chinesa) pela
International Moy Yat Ving Tsun Federation. Graduado em Aikido pelo Instituto
Takemussu.

FABIO JOSÉ CARDIAS GOMES


Professor-Pesquisador de Psicologia na UFMA/Imperatriz. Doutor em Educação
pela USP. Mestre e Especialista em Saúde e Ciências do Esporte (Psicologia do
Esporte) pela Universidade de Tsukuba (Japão). Graduado e Bacharel em
Psicologia pela UFPA. Coordena o projeto de Extensão-Cultural NEGO
D´ÁGUA: Capoeira Angola e Arte-Educação. Ex-bolsista da International
Olympic Academy (Ancient Olympia, Grécia). Embaixador da Ethnosport World
Society (Russia). Judoka faixa-preta pela Kodokan de Tokyo.

NEUBER LEITE COSTA


Doutor em Educação pela UFBA. Mestre de Capoeira da Associação Cultural de
Capoeira Maré. Faixa laranja da Academia de Krav Maga Paralela, filiado à
Federação Sul Americana de Krav Magá. Já praticou hapkido, boxe e jiu-jitsu.
Professor de Capoeira e Metodologia do conhecimento da luta nos cursos de
Educação Física da Faculdade Social e UNEB. Coordenador o curso de licenciatura
em Educação Física da UNEB/Alagoinhas e representante da Secretaria de
Educação do Estado da Bahia no Conselho de Esporte e Conselho Gestor da
Salvaguarda da Capoeira na Bahia.

JOSÉ LUIZ CIRQUEIRA FALCÃO


Professor de Educação Física da Universidade Federal de Goiás. Doutor em
Educação pela Universidade Federal da Bahia. Pós-Doutorado em Educação Física
pela Universidade Federal do Espírito Santo. Mestre de Capoeira do Grupo de
Capoeira Beribazu.

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