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VIDA BEM
VIVIDA
por Clóvis de Barros Filho
AULAS 1 a 4
Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
APRESENTA
2
APRESENTAÇÃO
Por Mario Vitor Santos
Diretor Geral
Esta é uma apostila de apoio ao curso Por Uma Vida Bem Vivida, ministrado pelo
professor Clóvis de Barros Filho, na Casa do Saber. O objetivo dela é servir de
material complementar às aulas do curso, que trata de temas fundamentais da
existência à luz dos pensamentos de filósofos que criaram não apenas novas
formas de entender o mundo como o revolucionaram
O objetivo da apostila vai além de um resumo: ela propõe leituras e sugere acesso
a matérias complementares para estender o curso para além do horário da aula.
Como as aulas, ela visa instigar o questionamento, perguntar, estimular a curiosi-
dade, a vontade de saber mais, de investigar e, quem sabe, até de inventar!
A apostila pode (e deve) ser usada como base para interação e construção do sa-
ber, para o debate de ideias e a confrontação amistosa. É mais um material didáti-
co e de apoio para um trabalho colaborativo, para a troca, seguindo as propostas
de grandes filósofos, aqueles que, pelo trabalho duro e o diálogo, contribuíram
para que cada um vivesse de maneira mais consciente, mudando a si e o mundo.
AVISO
Este material é exclusivo para os inscritos no curso Por Uma Vida Bem Vivida, com Clóvis
de Barros Filho, realizado pela Casa do Saber entre junho e julho de 2020. É proibida a re-
produção ou divulgação deste material, parcial ou em sua totalidade, sem autorização de
seus autores. Os direitos autorais são exclusivos da Casa do Saber.
Clóvis de Barros Filho é professor livre-docente pela USP, onde também obteve
o doutorado em ciência da comunicação. Mestre em ciência política pela Uni-
versidade Paris 3 (Université Sorbonne-Nouvelle), com especializações em direito
constitucional e sociologia do direito, ambas pela Universidade Paris 2 (Université
Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
É autor e co-autor de, entre outros, Reputação: Um Eu Fora De Meu Alcance (com
Luiz Peres-Neto, HarperCollins, 2019), A Monja e o Professor (com Monja Coen,
BestSeller, 2018), O Que Move as Paixões (com Luiz Felipe Pondé, Papirus, 2017),
Felicidade ou Morte (com Leandro Karnal, Papirus, 2016), Somos Todos Canalhas
(com Júlio Pompeu, Casa da Palavra, 2015), Ética e Vergonha na Cara! (com Ma-
rio Sergio Cortella, Papirus, 2014), Devaneios Sobre a Atualidade do Capital (com
Gustavo Dainezi, Sanskrito, 2014), Corrupção: Parceria Degenerativa (com Sérgio
Praça, Papirus, 2014), A Filosofia Explica as Grandes Questões da Humanidade
(com Júlio Pompeu, inspirado em curso da Casa do Saber, Casa da Palavra, 2013),
O Executivo e o Martelo (com Arthur Meucci, HSM, 2013), A Vida Que Vale a Pena
Ser Vivida (também com Arthur Meucci, Vozes, 2010), O habitus na Comunicação
(com Luís Mauro Sá Martino, Paulus, 2003). Escreveu, ainda, Desejo: Inclinações
do corpo, conjecturas da alma (BestSeller, 2020), A Felicidade é Inútil (Citadel,
2019), Deuses Para Clarice (Benvirá, 2018), Shinsetsu: O Poder da Gentileza (Pla-
neta, 2018), Comunicação na Pólis (Vozes, 2004), A Constituição Desejada (Gráfi-
ca do Senado, 1990) e A Política da Constituinte (Instituto Tancredo Neves, 1988).
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
PRIMEIRA AUL A
A VIDA
REFLETIDA
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SÓCRATES
Ficha técnica
Origem, nascimento e morte:
Alópece (atual Atenas), 469/470 a.C. – Atenas, 399 a.C.
Área do conhecimento:
Epistemologia (ramo da filosofia dedicado a pensar as origens, processos e limites dos
diferentes saberes)
Principais Obras:
Não deixou obras escritas
Influências:
Parmênides, Platão, Xenofonte, Aristóteles e praticamente todo o pensamento ocidental
Mas é certo também que foi julgado e condenado à morte, tomando o famoso
cálice de cicuta em 399 a.C. Mas por que? Nos registros de Diógenes Laércio,
autor de biografias de filósofos do século 3º d.C., a acusação apresentada contra
Sócrates foi em função de “não aceitar os deuses reconhecidos pelo Estado, intro-
duzir novos cultos e corromper a juventude”. A pena: morte.
Platão produziu quatro diferentes diálogos que narram este último capítulo da
vida de Sócrates: Eutífron, sobre a ida de Sócrates ao julgamento, quando é deba-
tida a noção de “piedade”; a Apologia, em que Sócrates é julgado e discursa em
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
É durante sua defesa que Sócrates enuncia uma de suas falas mais conhecidas:
Se vos dissesse que esse é o maior bem para o homem, meditar todos os dias
sobre a virtude e acerca dos outros assuntos que me ouvistes discutindo e ana-
lisando a meu respeito e dos demais, e que uma vida desprovida de tais análises
não é digna de ser vivida, se vos dissesse isto, acreditar-me-iam menos ainda.
(Sócrates em Apologia de Sócrates, de Platão).
Ao longo dos diálogos de Platão, Sócrates levanta a hipótese de que todo erro
tem raiz na ignorância, isto é, só é capaz do erro aquele que não conhece, seja
no campo do conhecimento científico quanto no das condutas morais. Aquele
que pratica o mal o faz porque não conhece o bem. Neste contexto, é essencial
o preceito délfico que Sócrates levará adiante, o “conhece-te a ti mesmo” - seria
somente quando todos os cidadãos se conhecessem de fato que a sociedade po-
deria avançar. Essa máxima traduz a consequência ética da filosofia de Sócrates.
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
Sócrates é o exemplo máximo da filosofia como um modo de vida. Ele foi capaz
de traduzir seu pensamento em ação, vivendo o que pensava e, portanto, dando
à sua existência um viés social, público. Para o bem e para o mal – foi, por isso,
condenado à morte. Ainda assim permaneceu fiel àquilo que praticou, recusando
a possibilidade de fugir ou ter sua pena alterada sob a justificativa de a única coi-
sa que importa é viver honestamente, sem cometer injustiças, nem mesmo em
retribuição a uma injustiça recebida. Para não trair a própria consciência, preferiu
declarar-se culpado e aceitar a morte. Diante da esposa, filhos e amigos, diz-se
que suas últimas palavras foram a um dos presentes, lembrando que eles deviam
um sacrifício a Asclépio, deus da medicina e da cura.
VÌDEOS
SEI QUE NADA SEI: A INVESTIGAÇÃO DE SÓCRATES
Mauricio Marsola
https://www.youtube.com/watch?v=6pLSC0498l4
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PLATÃO
(Busto de Platão - feito por Silanião)
Ficha técnica
Origem, nascimento e morte:
Atenas, 428/427 a.C. – Atenas, 348/347 a.C.
Área do conhecimento:
Platonismo – doutrina filosófica segundo a qual as essências das coisas têm existência
real e independente delas, constituindo as ideias puras ou arquétipos, de que os objetos
são grosseiras imitações sensoriais
Principais obras:
A República (376 a.C.); O Banquete (380 a.C); Fédon (por volta do ano 387 a.C.o)
Influências:
Sócrates, Pitágoras, Parmênides, Heráclito
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
Platão fundou a Academia de Atenas, onde reunia seus seguidores mais ilustres
(como Aristóteles) e outros importantes estudantes para praticarem a filosofia e
a dialética, então adaptada à lógica de Platão. A dialética é uma forma de pensar,
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
É nesta reflexão que se dão alguns dos principais diálogos de Platão sobre as vir-
tudes (sobretudo a virtude da justiça) e fonte de passagens representativas como
a alegoria da caverna (uma reflexão sobre o conhecimento), demonstrando que a
vida na pólis pode passar por processos injustos, como a execução de seu mentor
Sócrates, em que a maioria assume uma posição por vezes injusta.
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
Em Mênon, Platão articula por meio de diálogos uma reflexão sobre a virtude hu-
mana, seus valores, suas formas e padrões, e se estas virtudes podem ser repas-
sadas, ensinadas para as próximas gerações, passando pelos questionamentos
sobre o que seria o próprio ensinar. Uma vez que o mundo das ideias nos fornece
arquétipos, formas essenciais, o processo de ensinar não é mais que o ato de tra-
zer de volta conhecimentos que já possuímos, formas inatas, vivências que foram
passadas pela alma. É trazer à tona o conhecimento ao questionar a morada da
verdadeira essência.
O que ama é, de certa maneira, mais divino que o objeto amado, pois possui em si
divindade; é possuído por um deus. (Platão, em O Banquete)
VÌDEO
A REPÚBLICA DE PLATÃO
MAURÍCIO MARSOLA
https://www.youtube.com/watch?v=8YBne9Ln_38&t=48s
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SEGUNDA AUL A
A BUSCA DA
EXCELÊNCIA
ARISTÓTELES
(Busto de Aristóteles)
Ficha técnica
Origem, nascimento e morte:
Estagira, 384 a.C. — Atenas, 322 a.C..
Área do conhecimento:
Filosofia Clássica, Epistemologia – ramo da filosofia dedicado a pensar as origens, proces-
sos e limites dos diferentes saberes
Principais Obras:
Metafísica, Ética a Nicômaco, Política, Retórica
Influências:
Tomás de Aquino, Galileu, Copérnico e virtualmente toda a filosofia ocidental e parte da
filosofia islâmica
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
Atenção:
Não confunda forma com formato! A forma é o que faz possível a diferenciação entre uma árvore e
uma porta de madeira. Ambas podem ser feitas da mesma matéria, porém, são coisas diferentes.
Segundo esta lógica, por exemplo, os indivíduos de uma mesma espécie teriam a
mesma forma, mas seriam diferentes do ponto de vista da matéria, uma vez que
todos os indivíduos são distintos uns dos outros. Para Aristóteles, as formas dos
são imutáveis e perfeitas, como as ideias platônicas, mas não residem em outro
mundo. Não existem formas ou ideias puras, como queria Platão – o intelecto
humano, por meio da abstração, separa a matéria da forma, mas esta é uma ação
que não existe na prática. A dialética, a intersecção entre mente e corpo, para
Aristóteles, é inevitável, intrínseca e eterna.
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
A obra “A Escola de Atenas”, executada por Rafael Sanzio, reúne uma série de gran-
des pensadores da filosofia antiga. Dentre muitos outros nomes, estão Sócrates,
Pitágoras, Epicuro, Parmênides e, ao centro, Platão e Aristóteles. Uma das interpre-
tações da imagem demonstra o conflito entre as teorias dos dois filósofos, uma vez
que Platão, ao apontar para o céu, referiria-se à razão advinda do mundo das ideias
e Aristóteles, ao posicionar sua mão em direção ao solo, atribui a origem do conhe-
cimento ao mundo sensível.
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
A FELICIDADE
Felicidade e alegria são afetos, coisas que sentimos. Eles dependem do instante
de vida em que nos encontramos e de nossa relação com o mundo, a forma como
o afetamos e como somos afetados por ele. Estamos tratando, portanto, de uma
passagem, uma tradução que o corpo faz das transformações ininterruptas que
sofre, que são o motivo de nossos sentimentos surgirem também ininterrupta-
mente.
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
Dinheiro e prazer são meios para a felicidade, não a felicidade. A finalidade na fi-
losofia de Aristóteles é funcional. Ela é definido a partir da função própria de cada
ser. Ora, no caso do ser humano, a função própria é a sua atividade racional. Por-
tanto, um ser humano feliz, no pensamento de Aristóteles, é aquele que faz bom
uso da razão e que vive conforme à razão. Porque só a razão é capaz de educar
os apetites que atrapalham a felicidade humana. Por isso, Aristóteles insiste no
seu pensamento ético na educação das emoções, para que floresça o caráter e se
tenha uma vida virtuosa e boa.
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
forma, quais atividades o afastam de seu exercício pleno das virtudes e da felici-
dade. Tente sair do automático e examinar de maneira crítica em que momentos
sua excelência “acontece”. Num segundo momento, procure fazer sua excelên-
cia se manifestar nas atividades que te afastam da felicidade - ponha a teoria à
prova: é possível ter mais de um “lugar ideal” no Universo?
VÍDEO
A essência da felicidade
Luís Mauro
https://www.youtube.com/watch?v=sTyYYqTOEg4
LIVRO
A felicidade é inútil
CLÓVIS DE BARROS FILHO
https://www.amazon.com.br/felicidade-in%C3%BAtil-Cl%C3%B3vis-Barros-Filho/
dp/6550470226
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TERCEIRA AUL A
O VALOR DO
PRAZER
EPICURO
(Busto de Epicuro, fim do século 3 d.C.)
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
Ficha técnica
Origem, nascimento e morte:
Samos, 341 a.C. — Atenas, 271/270 a.C.
Área do conhecimento:
Epicurismo – sistema filosófico que prega a procura dos prazeres moderados para atingir
um estado de tranquilidade e de libertação do medo.
Principais Obras:
Carta a Heródoto, Carta Sobre a Felicidade a Meneceu, Doutrinas Capitais
Influências:
Demócrito de Abdera, Pirro de Élis, Aristipo de Cirene
Nascido em Samos, uma das ilhas que formam o arquipélago grego ao leste do
Mar Egeu, em 341 a.C, Epicuro refletiu sobre o que faz uma vida ser bem vivi-
da. Ao tratar da felicidade, teve uma visão completamente ímpar em seu tempo.
A felicidade, para ele, só pode ser alcançada por meio de prazeres moderados
que levam a um estado de tranquilidade (ataraxia). A busca do prazer configura a
própria definição de felicidade e vice-versa e o encontro com a felicidade seria a
manutenção do corpo que manteria a serenidade do espírito.
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
O exercício da calma não está no que vemos, mas em passar tempo consigo, com
leituras, escrita e meditação. O bem-estar dependeria das decisões tomadas no
dia-a-dia, da investigação rumo ao autoconhecimento. Para Epicuro, é isso que
nos afasta das distrações e perturbações da vida, abrindo espaço para a liberdade
de ser, de poder vivenciar experiências novas e desfrutar do prazer de viver.
É a partir de sua teoria atomista que Epicuro abre mão de um deus criador e da
ideia de destino, baseando-se na ação do acaso e do fortuito sobre os corpos para
afirmar que estamos sujeitos ao imponderável. Possuímos vontades, autonomia
e liberdade, mas é necessário o compromisso com a ética. Desta forma, Epicuro
estabelece a criação de quatro remédios para o alcance da felicidade:
Para Epicuro, os deuses não estão preocupados com a vida humana, portanto
cabe a nós, por meio da sabedoria, construirmos nosso próprio caminho. Ocupar-
-se de o que pensam os deuses seria tão inútil quanto temer a morte, porque nos
afastaria da vida e dos momentos que importam. Durante a vida, enquanto houver
o bem, seja ele pautado pela prática das virtudes, pela convivência amistosa ou
pelo exercício da memória (portanto, prazer), não existirá dor ou sofrimento. Mes-
mo assim, quando dor ou sofrimento existirem, duram pouco. A arte de viver bem
e a de morrer bem são uma só. Desta forma, a sabedoria e a prática da filosofia
seriam valiosas aliadas na superação das angústias.
De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual
ela é mais preciosa do que a própria filosofia; é dela que originaram todas as de-
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
mais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza
e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade. (Epicuro em
“A Carta a Meneceu”).
VÍDEO
UMA REFLEXÃO SOBRE O PRAZER
Mauricio Marsola
https://www.youtube.com/watch?v=g7QaPGMhszI
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QUARTA AUL A
O AMOR,
O ÁGAPE
JESUS
Vós me procurareis e, assim como disse aos judeus: “aonde eu vou, não podeis
vir”, também vos digo a vós agora. Um novo preceito eu vos dou: que vos ameis
uns aos outros. Assim como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. To-
dos hão de conhecer que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.
(Jesus, na ocasião da última ceia, em João, 13:33-35)
Ficha técnica
Origem, nascimento e morte:
Belém (7-2 AEC) - Jerusalém (30-33 DEC)
Área do conhecimento:
Cristianismo
Principais Obras:
Não deixou obras escritas. Sua sabedoria era difundida através de ensinamentos ao povo
e aos discipulos que, posteriormente, escreveram sobre Jesus.
Influenciou:
Paulo de Tarso, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Santo Abelardo, Dante Alighieri,
John Milton, René Descartes, Gottfried Leibniz, Bento de Espinosa, Friedrich Nietzsche,
Dostoiévski, Sigmund Freud, entre outros
Assim como Sócrates, o que se sabe a respeito de Jesus vem de relatos de ter-
ceiros. Os primeiros escritos cristãos são as cartas de Paulo (por volta do ano 50
do século 1° da nova era cristã). Uma das características de destaque da nova
mensagem que começava a se espalhar com os apóstolos era o caráter universal
do chamado: o Deus cristão era um Deus acolhedor e compreensivo, e para entrar
em seu reino bastava levar uma vida baseada no amor e na caridade, seguindo o
exemplo de Jesus Cristo.
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
Após a morte de Jesus, seus apóstolos se espalharam para disseminar sua men-
sagem, gerando a necessidade de fixar os ensinamentos por escrito. Os evange-
lhos são fruto disso: a reunião das histórias e parábolas pertencentes à tradição
oral, pequenas narrativas que possuem um sentido em si uma função didática.
Os evangelhos que integram hoje o Novo Testamento são os relatos de Marcos,
Mateus, Lucas e de João - apesar de os fundamentos cristãos terem outras per-
sonagens fundamentais.
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
Na Epístola aos Gálatas, Paulo reconhece Pedro, Tiago e João como “colunas”
(Gálatas, 2:9). Eles personificam, de certa maneira, essa edificação sobre a rocha.
Em primeiro lugar vem João, cujo evangelho é a palavra do amor: Deus amou tan-
to o mundo que entregou o Filho Unigênito para que todo aquele que crer nele não
pereça, mas tenha a vida eterna (João, 3:16), expresso também em sua primeira
epístola: Nisto consiste o amor: não em termos nós amado a Deus, mas em ele
nos ter amado e enviado seu Filho para expiar nossos pecados. Se Deus assim
nos amou, também nós devemos amar uns aos outros. Ninguém jamais viu Deus.
Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece conosco e seu amor em nós é
perfeito (I João, 4:10-13).
O segundo pilar, Pedro, afirma nossa regeneração, por Cristo, para a esperança
da glória: Estai, portanto, com o espírito preparado. Sede sóbrios e colocai toda a
esperança na graça que vos será dada na revelação de Jesus Cristo. Como filhos
obedientes, não vos guieis pelos apetites de outrora, em vossa ignorância. Mas a
exemplo da santidade daquele que vos chamou, sede também santos em todas
as ações, pois está escrito: “Sede santos porque eu sou santo” (I Pedro, 1:13-16).
Esse é o processo que levaria a uma vida reformada: O poder divino nos deu tudo
que contribui para a vida e a piedade, fazendo-nos conhecer aquele que nos cha-
mou pela sua glória e virtude. Com elas nos foram dadas as mais preciosas e
ricas promessas para que, por elas, vos torneis participantes da natureza divina,
fugindo da corrupção, que devido às paixões existe no mundo. (II Pedro, 1:3-4).
O último pilar, Tiago, seria um fruto que surge de João e Pedro. O amor e a vida
transformada por ele levariam ao exercício da fé e desse amor em direção ao outro:
De que aproveitará, meus irmãos, a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Po-
derá a fé salvá-lo? Se o irmão ou irmã estiverem nus e carentes do alimento cotidia-
no e algum de vós lhes disser: “Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos”, mas não lhes
derdes com que satisfazer à necessidade do corpo, que adiantaria? Assim também
a simples fé, se não tiver obras, será morta. (Tiago, 2:14-17). São muitas as possi-
bilidades de interpretação. O termo grego ágape, um dos diversos relacionados ao
amor, é geralmente empregado para caracterizar esse amor divino, mas também o
praticado por nós quando inspirado por ele. Independentemente de fé, essa dedica-
ção ao outro é também uma dedicação a si mesmo, não com vistas à promessa da
eternidade, mas do cuidado da própria alma e de um exercício da humanidade. Nas
palavras de Paulo, no presente permanecem estas três: fé, esperança e caridade;
delas, porém, a mais excelente é a caridade. (I Coríntios, 13:13).
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
Representação clássica de Jesus ao lado de uma imagem aproximada de como Jesus teria sido. A imagem à
direita foi produzida pelo antropólogo forense Richard Neave representando um cidadão comum da época, com
base em ossos encontrados na Galileia.
Vídeo
Clóvis de Barros Filho
A Maior Lição de JESUS
https://www.youtube.com/watch?v=GqpttFlNdB0
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POR UMA
VIDA BEM
VIVIDA
por Clóvis de Barros Filho
PARTE 2
Aulas 5, 6 e 7
APRESENTAÇÃO
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Diretor Geral
Esta é uma apostila de apoio ao curso Por Uma Vida Bem Vivida, ministrado pelo
professor Clóvis de Barros Filho, na Casa do Saber. O objetivo dela é servir de
material complementar às aulas do curso, que trata de temas fundamentais da
existência à luz dos pensamentos de filósofos que criaram não apenas novas
formas de entender o mundo como o revolucionaram
O objetivo da apostila vai além de um resumo: ela propõe leituras e sugere acesso
a matérias complementares para estender o curso para além do horário da aula.
Como as aulas, ela visa instigar o questionamento, perguntar, estimular a curiosi-
dade, a vontade de saber mais, de investigar e, quem sabe, até de inventar!
A apostila pode (e deve) ser usada como base para interação e construção do sa-
ber, para o debate de ideias e a confrontação amistosa. É mais um material didáti-
co e de apoio para um trabalho colaborativo, para a troca, seguindo as propostas
de grandes filósofos, aqueles que, pelo trabalho duro e o diálogo, contribuíram
para que cada um vivesse de maneira mais consciente, mudando a si e o mundo.
AVISO
Este material é exclusivo para os inscritos no curso Por Uma Vida Bem Vivida, com Clóvis
de Barros Filho, realizado pela Casa do Saber entre junho e julho de 2020. É proibida a
reprodução ou divulgação deste material, parcial ou em sua totalidade, sem autorização
de seus autores. Os direitos autorais são exclusivos da Casa do Saber.
Clóvis de Barros Filho é professor livre-docente pela USP, onde também obteve
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É autor e co-autor de, entre outros, Reputação: Um Eu Fora De Meu Alcance (com
Luiz Peres-Neto, HarperCollins, 2019), A Monja e o Professor (com Monja Coen,
BestSeller, 2018), O Que Move as Paixões (com Luiz Felipe Pondé, Papirus, 2017),
Felicidade ou Morte (com Leandro Karnal, Papirus, 2016), Somos Todos Canalhas
(com Júlio Pompeu, Casa da Palavra, 2015), Ética e Vergonha na Cara! (com Ma-
rio Sergio Cortella, Papirus, 2014), Devaneios Sobre a Atualidade do Capital (com
Gustavo Dainezi, Sanskrito, 2014), Corrupção: Parceria Degenerativa (com Sérgio
Praça, Papirus, 2014), A Filosofia Explica as Grandes Questões da Humanidade
(com Júlio Pompeu, inspirado em curso da Casa do Saber, Casa da Palavra, 2013),
O Executivo e o Martelo (com Arthur Meucci, HSM, 2013), A Vida Que Vale a Pena
Ser Vivida (também com Arthur Meucci, Vozes, 2010), O habitus na Comunicação
(com Luís Mauro Sá Martino, Paulus, 2003). Escreveu, ainda, Desejo: Inclinações
do corpo, conjecturas da alma (BestSeller, 2020), A Felicidade é Inútil (Citadel,
2019), Deuses Para Clarice (Benvirá, 2018), Shinsetsu: O Poder da Gentileza (Pla-
neta, 2018), Comunicação na Pólis (Vozes, 2004), A Constituição Desejada (Gráfi-
ca do Senado, 1990) e A Política da Constituinte (Instituto Tancredo Neves, 1988).
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QUINTA AUL A
A INTENSA
POTÊNCIA
DE AGIR
ESPINOSA
Pois o homem submetido aos afetos não está sob seu próprio comando, mas sob o
do acaso, a cujo poder está a tal ponto sujeitado que é, muitas vezes, forçado, ainda
que perceba o que é melhor para si, a fazer, entretanto, o pior.
(Espinosa. Ética. Prefácio à quarta parte, “A servidão humana ou a força dos afetos”. Tradução de Tomaz
Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2010).
Ficha técnica
Origem, nascimento e morte:
Amsterdã, Países Baixos (1632) – Haia, Países Baixos (1677)
Área do conhecimento:
Racionalismo
Principais obras:
Princípios da Filosofia de Descartes (1663), Tratado Teológico-Político (1670), Ética De-
monstrada à Maneira dos Geômetras (1675)
Conexões:
Goethe, Fichte, Schelling, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche e Bergson
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
O grande fascínio por Espinosa é que ser pessoal, não possui intelecto e nem
tudo é demonstrável à maneira geomé- vontade, ele é uma natureza naturante
trica (herança do projeto cartesiano). que produz uma infinidade de coisas
Embora ele seja o racionalista abso- nele mesmo. A identificação de Deus
luto, a afetividade não desaparece em como Natureza é a base de seu monis-
meio a tanta razão. Espinosa inclusive mo panteísta e de sua cisão com o du-
demonstrou que afetos nascem da ra- alismo de Descartes, que separava cor-
cionalidade. po e alma. Segundo Espinosa, apenas
Deus pode ser substância e as coisas
PRINCIPAIS IDEIAS: finitas são modificações dessa única
ÉTICA, AFETOS E PAIXÕES substância. Nada é independente a ela,
sendo a matéria um dos atributos pelo
Nosso corpo funciona pelas leis da na- qual Deus se expressa – provocando
tureza, mas nossa alma não, e para a efeitos a que ele chamava de natureza
compreensão das causas dos afetos e naturada.
paixões é preciso partir da causa para
o efeito, não o contrário. Quanto mais A prova do monismo, uma das teses
as paixões são racionalmente compre- mais difíceis de Espinosa, é que pro-
endidas, maiores serão as chances de priedades distintas podem constituir
transformá-las em afetos ativos (que um mesmo ser, retomando um proble-
nascem da razão). Qualquer projeto ma clássico da filosofia: a questão de
ético que pretenda abolir as paixões é, identidade e diferença. Nem toda dife-
para Espinosa, uma ignorância comple- rença é oposição e a diferença não im-
ta. É preciso entender como o conheci- plica incompatibilidade, nem tampouco
mento intelectual e os afetos nascidos é ilusória. A natureza naturante e a natu-
dele transformam nossa vida e nossa reza naturada, ou seja, a causa e o efei-
forma de estar no mundo. Ponto im- to, também são aspectos diferentes
portante: o conhecimento por si só não da mesma realidade. Todos os efeitos,
é capaz de transformar o afeto; só um em todos os modos, pela sua própria
afeto maior pode vencer outro afeto. essência, participam da potência cau-
sal que é a natureza. Existir é causar
Toda ética de Espinosa é uma ética da efeitos. Tudo é causa. Esse dinamismo
potência. O fundamento da potência causal estará na base do desejo, para
de todas as coisas é a identificação Espinosa.
entre a substância (Deus) e a substân-
cia causal e inesgotável (potência) que
produz uma infinidade inesgotável de
efeitos. O Deus de Espinosa não é um
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
Efeitos Efeito
*
com graus de complexidade diferentes. Ideias são maneiras da realidade se manifestar. Não
é só o Homem que têm ideias. Todas as coisas da natureza são animadas em graus diversos.
*2
Nossa alma faz parte de um pensamento universal.
10
Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
sempre alegre. Por mais que tenha fi- com locais definidos; boa disposição e
cado claro que uma paixão triste causa melancolia são alegria e tristeza gene-
uma diminuição do conatus, indireta- ralizadas. Quando existe uma alegria
mente ela pode fazer bem - isto acon- acompanhada da ideia de uma causa
tece quando uma dor corrige um prazer exterior, surge o amor (e da mesma for-
que indiretamente possa prejudicar o ma, no sentido oposto, o ódio). Amor
todo do indivíduo. Como a mente hu- e ódio, na verdade, são para Espinosa
mana tem a capacidade de criar ideias obsessivos e alienantes, e base de to-
cujo conteúdo não depende de causas dos os outros afetos. Por serem afetos
externas, existem afetos que nascem projetados no exterior, imagina-se que
do conhecimento verdadeiro e intelec- o objeto ou pessoa seja a causa úni-
tual. É, portanto, o conhecimento ina- ca da alegria ou do ódio, levando cada
dequado (passivo) que gera paixões. um a querer, a todo custo, sustentar
Daí que, para Espinosa existem afetos ou destruir essa causa. A ideia de que
racionais, podendo se falar em desejos a imaginação tem uma interpretação
racionais e passionais. equivocada do mundo vale também
para o equívoco de que o objeto do de-
Sentimentos cotidianos se encaixam sejo é em si bom ou mau. São ilusões
nessa mesma dinâmica: Dor e prazer naturais da própria consciência que de-
são, respectivamente, tristeza e alegria vem ser corrigidas pela razão.
(O Deus de Espinosa)
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
EXERCÍCIO
Experimente, ao longo da semana, listar as ações e encontros que aumentaram
ou diminuíram sua potência. Reflita por que eles tiveram esse efeito em você e se
ou de que maneiras você pode mudar sua percepção a respeito dos afetos nega-
tivos. Se houver algo que você possa fazer, tente agir sobre ao menos um destes
itens e complemente sua reflexão anterior..
GLOSSÁRIO
Deus: substância infinitamente infinita, geradora de todas as coisas. Tudo na na-
tureza provém e é parte de Deus. Sua existência é comprovável pelo fato de o
homem possuir a ideia de Deus - mesmo ideias são fruto de sua essência.
Conatus: a força de perseverança dos seres vivos; essência do ser e impulso das
manifestações de seus atributos e potências
Livre-arbítrio: para Espinosa é uma ilusão. Pensamos agir livremente, mas a men-
te, finita, age a partir de outras causas finitas que muitas vezes desconhecemos.
Afetos: causas externas que agem em relação ao conatus, aumentando ou dimi-
nuindo a potência de agir.
Vídeos
O QUE É O AFETO? UMA VISÃO A PARTIR DE SPINOZA
LUÍS MAURO SÁ MARTINO
https://www.youtube.com/watch?v=0OCrnnV518s
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NIETZSCHE
(Friedrich Nietzsche.)
“Puseste nessas paixões o teu objetivo mais elevado; então passaram a ser tuas
virtudes e alegrias.”
(Friedrich Nietzsche em Assim falou Zaratustra)
Ficha técnica
Origem, nascimento e morte:
Prússia, 1844 — Weimar, 1900 Weimar
Área do conhecimento:
Perspectivismo – visão filosófica o conhecimento de qualquer realidade pode ser feito a
partir de diferentes perspectivas e todas elas com uma justificativa, onde cada indivíduo
tem sua própria representação do mundo.
Principais Obras:
Assim Falou Zaratustra (1885), A Gaia Ciência (1882), Além do Bem e do Mal (1886), Huma-
no Demasiado Humano (1878).
conexões:
Schopenhauer, Hegel, Goethe, Espinosa, Dostoiévski
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
suiu, até agora, de mais sagrado e mais a busca constante de uma implemen-
poderoso sucumbiu exangue aos golpes tação, de dominar e dar sentido aos
das nossas lâminas. Quem nos limpará acontecimentos e objetos ao redor,
desse sangue?” (Nietzsche, em A Gaia uma constante forma de se expandir.
Ciência) Estas forças podem ser divididas entre
as forças ativas - que existem por si só
PRINCIPAIS IDEIAS: no mundo -, e as forças reativas -que
A MORAL, SUA SUPERAÇÃO E se dão em forma de oposição a uma
A VONTADE DE POTÊNCIA força preexistente. Como a vontade de
potência em si não é nem boa e nem
Ao longo de sua vasta obra, estas ca- má, e como bem e mal são categoriais
tegorias postuladas do pensamento e mutáveis, seria preciso superar a passi-
da cultura ocidental são colocadas em vidade em direção a um niilismo ativo
xeque, uma vez que para Nietzsche a - a transvaloração de todos os valores
civilização foi formada pela imposição - redirecionando esta força vital para a
dos mais fortes sobre os mais fracos, destruição da moral. Em outras pala-
por sábios e líderes que se destacaram vras, é preciso fazer surgir, a golpes de
na mobilização de grupos e de coleti- martelo, um espírito verdadeiramente
vos; e que figuras moralistas forjaram livre das amarras morais, um além-do-
valores e crenças que, de certa forma, -homem.
nos impedem de encontrar nossos pró-
prios valores individuais. “Quando falamos de valores, falamos
sob a inspiração, sob a ótica da vida: a
Haveria, sem Deus, uma força vital que vida mesma nos obriga a instaurar valo-
compõe o mundo. Essa vontade de res, a vida mesma valora através de nós
potência, configura em si o motivo da quando instauramos valores”. (Nietzs-
sobrevivência das espécies, da supera- che, em Crepúsculo dos Ídolos)
ção dos homens sobre os animais não
racionais, sendo um modo de se com- PRINCIPAIS IDEIAS:
portar de algo que não possui em si um O ETERNO-RETORNO
sentido, uma essência. “O mundo visto
de dentro, o mundo determinado por Outro conceito igualmente importan-
seu ‘caráter inteligível’ – seria justamen- te de Nietzsche que foi trabalhado ao
te ‘vontade de potência’, e nada mais”. longo de suas obras, mais especifica-
(Nietzsche, em Além do Bem e do Mal) mente em Assim Falava Zaratustra,
seria o conceito do eterno-retorno, em
A vontade de potência, portanto, seria que Nietzsche propõe um convite à
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
GLOSSÁRIO
Vontade de potência: para Nietzsche, o mundo e todos nós somos uma maré de po-
tência oscilando entre a criação e a destruição, um movimento cego, que não conhece
saciedade ou cansaço, fadados a repetir estas manifestações ao longo da eternidade.
Niilismo: a história - e, portanto, a existência humana - não possui um sentido último,
ou um destino a ser atingido. A consciência é mais um dos acasos surgidos na maré
do tempo e, quando ela desaparecer, nenhum valor absoluto (todos historicamente
criados e situados) originado dela permanecerá. Essa questão deve ser enfrentada,
não evitada.
Eterno retorno: já que a existência não tem sentido último, tudo que existe está inse-
rido na lógica de um vir-a-ser eterno, em que cada acontecimento possível anuncia
outros acontecimentos que se repetem indefinidamente. Tudo, portanto, já estaria
anunciado para acontecer, já que a lógica de tudo que existe é um movimento que vai
da criação para a destruição e de volta novamente.
Amor fati: espécie de resposta ao eterno retorno, seria uma postura afirmativa da
vida e de aceitação da imanência. Sua vida é uma afirmação de sua potência, ou,
por medo das consequências, uma negação? Você aceitaria repetir tudo novamente,
indefinidas vezes? Aprender a amar o destino é superar os ressentimentos e viver
de forma genuína, e implica uma existência que afirme essa vida também de forma
genuína.
Transvaloração: valores morais, por serem relativos e historicamente construídos,
manifestam-se como imposições, frequentemente aceitas passivamente pelo medo
da imoralidade, e que deveriam ser questionadas e/ou subvertidas.
Além-do-homem: a forma humana e utópica de Nietzsche que haveria ultrapassado
não apenas o niilismo, mas todos os grilhões que a cultura e as superstições teriam
colocado no trono de Deus após sua morte ter sido decretada. O além-do-homem te-
ria feito a transvaloração dos valores e sobrevivido, tornando-se imune a toda sorte de
crenças, moral, leis e valores, existindo de forma pura na afirmação de sua potência.
Vídeos
O ETERNO RETORNO E O ALÉM-DO-HOMEM
OSWALDO GIACOIA JUNIOR
https://www.youtube.com/watch?v=qDAHX8KnFz0
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SEXTA AUL A
ÉTICA,
OU A VIDA
COMPARTILHADA
HOBBES
(Retrato de Thomas Hobbes.)
Um homem para outro é como um lobo e não um homem, quando ele não sabe de
que tipo ele é.
(Thomas Hobbes em O Leviatã)
Ficha técnica
Origem, nascimento e morte:
Wiltshire, Inglaterra (1588) - Hardwick Hall, Inglaterra (1679)
Área do conhecimento:
Contratualismo – teorias filosóficas e políticas que tentam explicar os caminhos que levam
as pessoas a formar governos e manter a ordem social.
Principais Obras:
Leviatã (1651), Do Cidadão (1642), Elementos da lei natural e política (1650).
Conexões:
Francis Bacon, Galileu Galilei, Johannes Kepler, Euclides de Alexandria
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
pela própria imposição do medo. Vai se ditar as regras sociais: para ele, é neces-
desenhando aí a figura do Estado. sário um poder comum que seja capaz
de fazer as pessoas respeitarem umas
PRINCIPAIS IDEIAS: às outras – e a expressão mais direta
O CONTRATO SOCIAL deste poder seria a polícia, mas ele tam-
bém poderia se manifestar através da
O Estado seria responsável por mediar interiorização das normas de controle
a liberdade, por permitir que estes mo- social defendidas pelo Estado. Sem um
vimentos sem atrito aconteçam, sem in- poder controlador, viveríamos, segundo
terrupções ou perturbações para todos ele, em um estado de guerra de todos
os sujeitos da sociedade. Em vista disso, contra todos, em que cada um estaria
é preciso suprimir a liberdade absoluta entregue a si mesmo. Isso se daria na
em prol da união e constituição de um medida em que haveria dois elementos
“contrato socia”l, para uma manutenção causadores de guerras: a ambição pelo
harmoniosa da ordem em uma socieda- que é do outro e a defesa preventiva. A
de civil organizada. Além de garantir o sensação de desproteção causada pela
direito à liberdade para todos, o Estado ausência de um Estado faria, portanto,
seria responsável também por garantir que todos se sentissem ameaçados e,
o direito à vida, possível apenas ao não sendo assim, todos se atacariam para
permitir que aflore o estado de natureza evitar serem atacados. Hobbes defendia
de todos contra todos. Nasce, portan- um Estado absoluto porque, segundo
to, a ideia do monopólio da violência na ele, um Estado não absoluto, que pudes-
forma de um estado centralizador. Este se ser regido pelo povo, sofreria cons-
Estado concentraria em si toda a socie- tantes sublevações; além disso, o poder
dade, o território, o comércio, formando seria algo tão importante e perigoso que
assim o corpo político, a coisa pública. é de fundamental importância que a pes-
Este posicionamento a época fora mui- soa no poder fosse uma pessoa capaci-
to controverso, uma vez que o poder tada.
real era posto por uma categoria divina,
como uma imposição da vontade de PRINCIPAIS IDEIAS:
Deus. O contrato é a troca de sua liber- O SOBERANO E A FUNÇÃO DO
dade pela sua segurança. ESTADO
O fato de Hobbes defender um Estado Ainda que, após anos de experiência de-
absoluto provinha de sua crença de que mocrática, tenhamos visto que um Es-
o homem, por natureza, vive em estado tado não precisa, necessariamente, ser
de guerra se não houver um Estado para todo-poderoso para que a ordem de uma
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
GLOSSÁRIO
Estado de natureza: para Hobbes, a autoridade política é artificial. A única naturalida-
de que existe é a possibilidade de dominação dos mais fracos pelos mais fortes. Seu
pensamento, ainda que datado por acreditar que esta condição existiria em socieda-
des ditas “primitivas”, possibilita que esta condição aflore em qualquer momento no
qual o poder estabelecido é minado e a autoridade se desfaz. O estado natural do ser
humano seria, portanto, de conflito permanente, seja pela garantia de necessidades
básicas, medo ou glória.
Contrato social: forma proposta por Hobbes de atenuar e suprimir o estado de natu-
reza. Por meio de um acordo tácito, o soberano deteria o monopólio da violência a fim
de garantir a segurança daqueles que seguem as leis, bem como a punição de quem
não a segue. Em troca, cidadãos abririam mão de seus “direitos naturais” de garantir
a própria sobrevivência pelos meios que julgassem necessários, além da limitação de
sua liberdade em prol de uma coexistência pacífica.
Soberano: o detentor do direito de julgar e punir. A grande questão está em torno de
sua autoridade, fundada nesta “promessa” de os cidadãos cumprirem sua parte no
contrato. Esta fragilidade é sustentada por Hobbes em torno da religião, que estimu-
laria um desenvolvimento moral dos indivíduos, coagindo-os à obediência das leis.
Vídeo
POLITICAL THEORY - Thomas Hobbes
https://youtu.be/9i4jb5XBX5s
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MARX
(Karl Marx)
De cada um, de acordo com suas habilidades, a cada um, de acordo com suas
necessidades. (Crítica ao programa de Gotha)
Ficha técnica
Origem, nascimento e morte:
Tréveris, Prússia (1818) - Londres, Reino Unido (1883)
Área do conhecimento:
Sociologia e Economia
Principais Obras:
A Ideologia Alemã (1846); Manifesto do Partido Comunista (1848); O Capital (1867-1883)
conexões:
Kant, Hegel, Saint-Simon, Proudhon.
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GLOSSÁRIO
Materialismo histórico: método de estudo e interpretação da história, economia e
das sociedades colocado em prática por Marx e Engels. A premissa de Hegel de que
a consciência e as ideias ditariam o rumo da história e da humanidade é invertido: na
verdade, a consciência e as ideias é que são influenciadas pelos acontecimentos his-
tóricos - essencialmente pela luta entre opressores e oprimidos. Daí seu nome “mate-
rialista”, já que todos os movimentos estão ligados às relações humanas - sobretudo
de exploração e enriquecimento -, não a algo superior ou metafísico.
Ideologia: para Marx é um ocultamento do real, ideias que deturpam a percepção
sobre a verdadeira forma pelas quais as relações de exploração acontecem. A ideolo-
gia seria uma “falsa consciência”, fruto da divisão entre trabalho intelectual e manual
e produzida a fim de sustentar e reproduzir os meios de dominação de uma classe
sobre outra.
Mais-valia: há variáveis que compõem o restante do percurso entre o custo de produ-
ção de uma mercadoria e o preço pelo qual ela é vendida: o custo da matéria-prima, o
valor de uso e também o valor do trabalho empregado em sua produção. A fim de que
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
o detentor dos meios de produção tenha lucro, o trabalho é explorado, fazendo com
que seja produzido um excesso e possibilitando a acumulação de capital.
Alienação: gerada em função da mercadoria (a produção decorrente do trabalho) e
do lucro (a exploração do trabalho sem retorno ao trabalhador). Produção e consumo
dependem um do outro e se retroalimentam - cada mercadoria produzida vira uma
mercadoria a ser consumida, situação em que o explorado se torna também explo-
rador da força do trabalho. A alienação se manifesta sempre em que há relações
pautadas pelo capital.
Vídeos
Por que ler Marx? | Clóvis de Barros Filho
https://www.youtube.com/watch?v=m93ihi0DIgE
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DURKHEIM
Ficha técnica
Origem, nascimento e morte:
Épinal, França (1858) - Paris, França (1917)
Área do conhecimento:
Sociologia
Principais Obras:
Da divisão do trabalho social (1893); Regras do método sociológico (1895); O suicídio (1897),
As formas elementares da vida religiosa (1912).
conexões:
Marcel Mauss
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Objeto de estudo
da Sociologia
FATO SOCIAL
Externo
Geral Coercitivo
Os fatos sociais
Os fatos sociais são devem ser exteriores É o poder ou a força
coletivos e não indivi- ao indivíduo, ou seja, que os padrões da
duais. Atingem toda a já estão organizados cultura de uma
sociedade e enraizados na determinada socie-
sociedade antes de seu dade são impostos
nascimento. aos integrantes.
O Fato Social leva os indivíduos a cumprirem padrões culturais e sociais que nem sempre estão
de acordo, mas que são convenções pré-estabelecidas pela sociedade em que vivem. Fatos
sociais podem ser desde o simples ato de tomar banho diariamente até o ato do suicídio, uma
ação que, ao mesmo tempo que não é desejada pelo todo, tragicamente acontece em todos os
grupos sociais. Pensando nessa questão, em 1897, Emilé Durkheim escreve o livro “O Suicídio”.
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
GLOSSÁRIO
Fato social: existem externamente ao indivíduo e independentemente de nossa cons-
ciência sobre sua existência ou autonomia. Por serem externos, não podem ser mo-
dificados simplesmente pela vontade. São fatos objetivos - regras, valores e conven-
ções - que influenciam a forma de pensar e existir dos indivíduos de uma sociedade,
obrigando-os a se adequarem às normas vigentes.
Coerção social: fator fundamental para o funcionamento da sociedade (em conjun-
to com a coesão social). A coerção é tão mais eficiente quanto mais imperceptível
for, tornando-se hábito (como, por exemplo, a educação). A coerção é exercida pelos
fatos sociais e Durkheim diz que não só podem ser transgredida como, em alguns
casos, deve.
Coesão social: o que mantém um grupo social unido e em funcionamento dentro de
uma sociedade - como o compartilhamento de valores, por exemplo. Em um mundo
no meio da industrialização, Durkheim pensou a coesão como decorrente da interde-
pendência dos grupos em cooperação, já que cada setor seria responsável pelo bom
funcionamento de diferentes partes da sociedade.
Suicídio: há três tipos de suicídio para Durkheim: o egoísta (em que há uma excessivi-
dade de individualização que afrouxa os laços entre indivíduo e sociedade), o altruísta
(quando, pelo contrário, há uma dissolução do ego no corpo social, destituindo o su-
jeito de individualidade) e o anômico (praticado quando a sociedade se encontra em
situação de anomia).
Anomia: deriva de a+nomos (a ausência de normas ou regras). Ocorre quando um
acontecimento atípico desestabiliza ou altera as regras da sociedade e, por consequ-
ência, seus meios de funcionamento (como uma crise econômica ou uma pandemia,
por exemplo).
Vídeo
Viver em sociedade é sobreviver | Luís Mauro
https://www.youtube.com/watch?v=Ik2Y0SMAQkM
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
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BOURDIEU
Mais profundamente, uma das maneiras mais imparáveis, para um grupo, de redu-
zir pessoas ao silêncio é excluí-las das posições a partir das quais se pode falar.
Pelo contrário, uma das maneiras para um grupo de controlar o discurso consiste
em pôr em posições nas quais se fala pessoas que não dirão senão aquilo que o
campo autoriza e reclama.
(Pierre Bourdieu. “A censura”, em Questões de Sociologia. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim
de Século, 2003)
Ficha técnica
Origem, nascimento e morte:
Denguin, 1930 – Paris, 2002
Área do conhecimento:
Sociologia/teoria social
Principais Obras:
Questões de Sociologia (1980), O Senso Prático (1980), Meditações Pascalianas (1997), A
Dominação Masculina (1998)
conexões:
Max Weber, Karl Marx, Émile Durkheim, Norbert Elias, Marcel Mauss, Claude Lévi-Strauss,
Michel Foucault entre outros
Ou seja, sempre nos posicionamos em mesmo jogo - algo que Bourdieu cha-
relação a alguém. A posição ocupa- mou de “illusio”. Essa obviedade do va-
da por alguém não é geográfica - em lor do troféu é o que faz com que eles
um “café da manhã com o chefe”, por sejam perseguidos como decorrência
exemplo, o zelador está abissalmente natural de pertencimento a um campo
distante do presidente da empresa se específico. Mas nosso comportamento
pensarmos no campo social; já dois é definido além disso e de nossa pró-
professores com carreiras acadêmicas pria consciência. Muito do que faze-
semelhantes têm a mesma posição mos tem origem social e nós não per-
social, mesmo se cada lecionarem em cebemos. A isso Bourdieu chamou de
continentes diferentes. Todo campo habitus, o conjunto de disposições para
tem estruturas e regras que são re- agir, socialmente construídas e que não
sultado de uma aceitação tácita dos são efetuadas conscientemente. São
agentes, um acordo implícito sobre as as ações inconscientes que importam
formas de agir dentro dos campos (o e que traduzimos em nosso comporta-
que não exclui a possibilidade de que o mento como naturais.
campo seja um espaço de disputa). O
que importa dentro do campo, mesmo Dentro deste contexto, Bourdieu afirma
entre adversários, é que joguem o mes- que todos estão interessados em algo,
mo jogo, já que é isso que os mantêm já que desejos são fatos sociais, têm
como agentes. valor definido socialmente. É investi-
gando o campo, seus troféus e agentes
PRINCIPAIS IDEIAS: que a origem das dinâmicas se revela.
CAPITAL SIMBÓLICO Mas não olhando-o de dentro: só quem
está fora do campo tem recursos para
Há nesses campos uma quantidade olhar o jogo com distanciamento ne-
de “fichas”, distribuída de acordo com cessário para explicá-lo. As ações dos
a relevância de cada agente. Esse é o agentes tendem muito mais a escon-
capital simbólico, conjunto de recursos der sua intenções do que revelá-las.
que se tem para disputar os troféus
existentes no campo específico, e fruto Uma pergunta cabível é: como essas
do reconhecimento de outros agentes estruturas se sustentam? Conforme
que legitimam a importância de uma adquirimos capital e possibilidade de
pessoa. Os troféus, por sua vez, repre- subverter o poder, o interesse se perde.
sentam conquistas dentro do sistema Só quem não possui meios para alterar
de valores de cada campo, que só é o equilíbrio do poder é interessado por
entendido pelos agentes que jogam o isso. Toda trajetória social é constru-
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dura muito mais do que a orgânica. Em muitos casos – como o do próprio Bour-
dieu em relação aos seus desafetos – o capital social de uma pessoa faz as vezes
de sua alma penada.
EXERCÍCIO
Com base no que você aprendeu neste encontro, de que forma Hobbes, Marx, Durkheim
e Bourdieu podem “se encontrar”? Desde o início do curso, uma das constantes é o ques-
tionamento das coisas ditas naturais. Desta vez não é diferente, mas em um espectro um
tanto mais amplo.
Procure o meio que achar melhor - esquemas, fluxos de pensamento (se começou um diá-
rio, abuse dele) - e tente delinear o seu modelo de Estado ideal. Que tipo de “contrato social”
seria estabelecido? Quais concessões individuais seriam feitas em troca de um amparo
deste Estado? Ou não haveria Estado? Como essa organização influenciaria as relações
sociais, tanto no trabalho e na economia quanto no cotidiano? Tente listar as posições
simbólicas, bem como o tipo de capital simbólico e quais são os troféus nos diferentes
campos, partindo de suas relações mais próximas - parceiro(a), familiares, amigos - e vá
ampliando o foco - sua rua, prédio ou condomínio, seu bairro, sua cidade, o próprio país. Se
quiser mesmo desafiar seu pensamento, tente comparar o seu modelo com a realidade,
analisando tanto os pontos em comum quanto aqueles em que ambos se diferenciam, em
maior e menor grau, e veja como pequenos universos geram uma complexidade imensa.
GLOSSÁRIO
Campo social: a sociedade não é apenas um conjunto de indivíduos, mas uma
arena de forças que competem livres de qualquer determinismo por influência e
dominação de respectivos campos (a universidade, o mercado financeiro, o mun-
do artístico ou a política são alguns exemplos). Cada campo tem regras, crenças
e dinâmicas específicas, que frequentemente não valem para outros campos.
Capital simbólico: o valor de troca que determina influência e poder dentro de
cada campo. Pode ser econômico (renda ou bens) ou cultural (diplomas e títulos),
por exemplo. Eles determinam quem atua em qual posição hierárquica e quais as
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SÉ TIM A AUL A
O FASCÍNIO DA
VIDA QUE ESTÁ
POR VIR
BUDA
Deixe para trás o que já se passou. Desapegue-se de tudo o que se passa neste dia.
Abandone o anseio pelo que ainda está por vir. É assim que se pode atravessar até
a outra margem da existência. Com a sua mente enfim liberta, você já não terá a
necessidade de voltar a mergulhar no rio revolto do mundo. Se uma pessoa é ator-
mentada por dúvidas constantes, se ela é dominada pelas próprias paixões e só
tem olhos para a busca desenfreada pelo prazer, então o seu anseio só vai crescer,
dia após dia. Tal pessoa está a forjar o seu próprio grilhão
(Dhammapada - O caminho do Darma como nos ditou o Buda. §348-349. Trad. Rafael Arrais. Publicação
independente, 2019).
Ficha técnica
Origem, nascimento e morte:
Lumbini (atual Nepal, 563 a.C.) - Kushinagar (atual Índia, 483 a.C.)
Área do conhecimento:
Budismo
Principais Obras:
Não deixou escritos de sua autoria. O relato mais fiel é o Dhammapada, feito por discípulos
que conviveram com ele
conexões:
Pirro, Nagarjuna, Hume, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl
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ciência disso, agimos como tal. Como seus fenômenos, como se tivéssemos
todos os seres são interligados, é pre- uma identidade fixa e as coisas deves-
ciso cuidar do mundo como se fosse sem acontecer de acordo com ela.
vocês mesmo. O Budismo defende que
tudo e todos são parte de um mesmo A segunda das nobres verdades refere-
eu. Segundo esta visão, o eu é apenas -se aos apegos (ganância), à aversão
um meio de ir além e de atingir o Uni- (raiva) e à ignorância sobre a própria
verso. condição, princípio gerador dos apegos
e da aversão. A terceira é o fato de que
PRINCIPAIS IDEIAS: existe um estado possível de paz, cha-
AS QUATRO NOBRES mado nirvana (um estado presente e
VERDADES desperto de paz). A quarta é a de que
existe um caminho de libertação, que
Após sua iluminação, Buda viu uma ele denominou de nobre caminho óctu-
oportunidade para expressar esse ca- plo – caminho esse que aponta para a
minho do meio. Seus dois primeiros prática do Budismo.
sermões (considerados o primeiro giro
da roda do Darma – a “lei verdadeira”) Ainda que haja um lado filosófico no
são a base comum a todas as verten- Budismo (Buda perguntou-se, afinal,
tes e escolas budistas. “quem sou eu?” pergunta muito similar
à feita por filósofos desde a Grécia an-
Em seu primeiro sermão, Buda apre- tiga), não se pode dizer que o Budismo
sentou as quatro nobres verdades. A seja uma filosofia ou uma teoria – tra-
primeira delas refere-se ao fato de toda ta-se, principalmente, de uma prática
existência ser dukka, palavra muitas movida pelo sentimento de insatisfa-
vezes traduzida como sofrimento, in- ção – o Budismo busca a libertação
satisfação ou mal. É importante ter em da dukka. Estudar o caminho de Buda
mente que este termo tem três níveis é estudar a si mesmo e estudar a si
de entendimento: o do sofrimento puro mesmo é uma tentativa de iluminar o
e simples (doença, velhice, morte); o caminho de tudo o que existe.
associado à dificuldade humana em
lidar com a temporalidade e a transito- PRINCIPAIS IDEIAS:
riedade das coisas (nesse sentido, fe- O CAMINHO ÓCTUPLO
licidade também pode ser dukka, uma
vez que não pode ser eterna) e o que O nobre caminho óctuplo trata de fala
se refere ao pensamento de que cada correta, ação correta e meio de vida
um é um “eu” separado do mundo e de correto (os preceitos), esforço correto,
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EXERCÍCIO
Na última proposta de exercício desse curso, recupere suas reflexões, desde o
início, e medite sobre elas - não necessariamente uma meditação “budista”, mas
tente perceber o processo pelo qual você passou ao longo das últimas semanas.
Sua forma de enxergar o mundo mudou? Ou mesmo sua forma de enxergar a si
mesmo e suas relações? Se sim, de que maneiras? Se não, por que? Quer um exer-
cício ainda mais radical? Monges budistas passam meses construindo mandalas
com areia colorida, em formatos extremamente complexos, para desmancharem
o desenho quando ele está terminado. São lembretes da impermanência e do
desapego. Se quiser ir ao extremo, desapegue-se de suas anotações - a transfor-
mação, se efetiva, já foi internalizada - e vá em direção a um novo dia, com novos
aprendizados
GLOSSÁRIO
Buda: título budista reservado aos que atingiram a iluminação. A tradição conta
que Sidarta Gautama foi o último de uma linhagem que o antecedeu.
Darma: tem diferentes significados (varia, por exemplo, do hinduísmo para o bu-
dismo, ou para o sikhismo), mas diz respeito, em geral, à norma de conduta ade-
quada - assemelha-se, de certa forma, à virtude. Fala, também, sobre os ensina-
mentos, doutrinas e deveres da vida de acordo com a ordem natural. Aqueles que
vivem de acordo com o darma, vivem no caminho da iluminação.
Carma: é a intenção de cada ato, que pode gerar consequências boas, ruins ou
neutras. O acúmulo destas intenções, dentro do budismo, aprisionaria a pessoa
em um ciclo de reencarnações, sendo a iluminação a quebra e encerramento des-
te ciclo cármico, momento em que o indivíduo se une à ordem cósmica.
Sanga: a comunidade (monástica e praticante) do budismo. Foi estabelecida por
Buda para aqueles que teriam a intenção de viver o darma de maneira íntegra.
Dukka: frequentemente traduzido como “sofrimento”, é a condição essencial da
vida de acordo com o budismo. Há diversos tipos de dukka e o caminho da ilumi-
nação pressupõe a superação deste sofrimento.
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Por Uma Vida Bem Vivida | Clóvis de Barros Filho
Vídeos
O que é Zen Budismo? | Monja COEN
https://www.youtube.com/watch?v=U6aujS2BqrA
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