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ÉTICA
UMA PRIMEIRA CONVERSA
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wmfmartinsfontes
SÃO PAULO 2012
Esta dtrra foi publicada orininalmente em francês em o título
LETHIQUE ESPLIQUÍE ATOUT LE MONDE
por Lditians du Seudl, Pare
Copyrizht * Cáitivas du el 24A
Copyright s 2107, Editora VítE Mantins Fontes Ltdo
São Paulo, para o presente edição
1: edição 2012
Tradus
Anála Correa Fum
Acompanhamento editorial
Luzio Aparecido din Santos
Bevisies gráficas
Verudiana Cunha Não poderemos ser justo: não formos humanos.
Maria Rezina Pibews Machado
Edição de ane Vauvernargues, Reflexões
e máximas, 12
Katio Harumi Trrasako
Producin gri
Coralds Alves
Paginação
Moucir Katsumi Matsusala
Voltar ao início * 9
Capindo 1
As aventuras de uma palavra * 13
Copítuto 2
Um dominio sem fronteiras * 25
Capítulo 3
Entre religiões e filosofias * 43
Capítuto &
Virtudes, deveres ou consequências * 53
Capítuto 5
As dificuldades das aplicações * 69
Capitulo 6
Exemplos de bioética * 81
80 81
os
nada a respeito delas, seus pais começaram a desco- ficado: Pode sigmificar simplesmente que grup
diferentes detendem princiy nios distintos, Suasm com
con
bri-las. Algumas dessas técnicas são ainda apenas
imaginadas: o útero art ial, por exemplo, que, se vicções religiosas, filosóficas ou polticas faze
mesmo sistema de
algum dia existir, poderá permitir que um feto se de- que uns e outros ndo tenham o
ex
senvolva inteiramente fora do ventre da mãe. Por valores. Assim, alguns acharão que determinada
enquanto, de fato, isso ainda parece ficção cientifica. periência deve er proibida, enquanto outros pensa
Mas não é inacessível. Imagine tudo o que mudaria rão, a0 contrário, que deve ser autorizada,
de
na vida das mulheres — e dos homens! — se a gravidez Entre as discussões desses ultimos anos, os
ão
os embri
com taç
a respeito da experimen oes
fosse assumida por uma máquina? bates
Essas situações novas — muitas das quais já são humanos inutilizados colocaram em evidência essa
(K}
82
Porque julgam tais Prá da re-
ticas contrárias à dig decisio precisa num caso concreto. À marca
da pessoa. Aos seus nidade
olhos, esses embriões. .
mesmo Nexão ética contemporánea ¢, Muitas vezes, à tensão
qQue par €Cam ser apenas
um amontoado de células, Quero falar dessa tensão interna que subsiste neces-
14 530 1dentificados como sere
s humanos. Outros, 20 sariamente quando não há solução que se imponha
contrdrio, consideram que é
perfeitamente possivel de maneira absoluta, sem discussão, com uma evi-
utilizar esses embriões Ppara fins tera
peéuticos ou ex- dência total.
perimentais. Não consideram que se trate de seres
Ora, a realidade não espera. É preciso dizer “sim”
humanos propriamente ditos, na medida em
que ou “nao” a alguém que pede um tratamento, que es-
seu desenvolvimento se situa bem antes
da forma- pera uma decisão. À discussão permanece aberta,
ção do corpo.
mas a escolha deve ser feita. Ao mesmo tempo, essa
Assim, pessoas diferentes tém visoes totalmente
decisão tem algo de imperfeito. É preciso contudo
opostas sobre as mesmas situações. Com isso, a in-
assumi-lo. O que descobrimos no campo da etica
certeza cresce. Devemos portanto chegar a concilia-
aplicada, qualquer que seja a diversidade das discus-
ções, encontrar equilibrios provisérios. Mas não é o
sões e a amplitude dos debates, ¢ tambem a solidão
unico caso de contradição entre principios. Ao lado
das escolhas.
desses conflitos entre sistemas de valores opostos,
Já lhe falei, você se lembra, da fórmula de Sartre:
acontece também de encontrarmos conflitos entre
“Decidimos sozinhos e sem desculpas.” O seu signi-
os préprios principios.
ficado? Sem lei divina transmitida nem código mo-
— Entre os proprios principios? O que isso quer
ral herdado, estamos sós, desprovidos de qualquer
dizer?
abrigo em que possamos nos esconder. Não temos
— A ética aplicada nao divide unicamente a so-
desculpas a procurar, estamos sozinhos exercendo
ciedade, com comunidades que tém cada uma seus
soberanamente nossa liberdade. Acredito que
valores e suas maneiras de ver. Ela divide também os essa é
uma descrição que corresponde profundamente
préprios individuos, quando se veem diante da ne- à
situagdo ética contemporanea.
cessidade de hierarquizar os principios e tomar uma
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X Nessa solidio e nessa incerteza, nte o primeiroo ser
ser h humano
é preciso se produzirão cletivame
sda lei, e incorrerãoem penas F
info AL é é precpreciso abrir debates, não penas pe-
deixar as clonado serás o fora de
questoes fundamentais nas mãos dos especialistas sadas. O que mot!
vou essa proibição do ponto
da precaução,
nem acreditar que clas se resolvem sozin
has. Gran- vis ta ctico? Não é somente 0 prin cipio
desdes deba
debate
tes éticos s real
s ético re. izam-se atualmente na nossa em razão dos sofrimentos possíveis ligados à incer-
sociedade. rfeição das técnicas.
teza dos resultados ¢ à impe
tal, a clonagem re-
— Por exemplo?
De maneira mais fundamen
rume ntali-
- Lembrei a questão do embrião, e da utilização produtiva foi considerada como uma inst
dos embriões excedentes. Um outro exemplo é a clo- zação inaceitável do ser viv o futuro, que
depende da
nagem humana. Desde o nascimento da ovelha Dolly, própria clonagem. Efetivamente, na reprodução ha-
em 199 , que foi o primeiro mamifero produzido bitual, seja ela natural ou medicamente assistida,
por essa tecnologia, a questão da clonagem foi obje- dois códigos genéticos se combinam, o do pare o da
to de inumeros debates. Para entender o sentido das mãe, e dão um resultado rigorosamente imprevisi-
discussões, e de algumas decisões já tomadas a vel. Um indivíduo é de alguma forma sempre o filho
respeito da clonagem humana, é preciso antes lem- da sorte, o resultado único de uma loteria genética
brar a distinção capital entre a clonagem reproduti- que, com os mesmos pais, pode proporcionar inu-
va (em que se trataria de reproduzir um organismo meráveis outras combinagoes.
mento de um embrião obtido através de clonagem) Pois trata-se de uma “reprodugao idéntica”, uma du-
e a clonagem terapéutica (em que se trata de limitar plicagio de um individuo. O “clone” teria o mesmo
a utilização de um embrião obtido através de
clona- código genético do “clonado”, a copia seria idéntica
ulas permitindo a cultura de 20 modelo. Mas não necessariamente em todos os
gem à produção de
o). detathes de seu organismo. E ainda menos na sua
tecidos utilizáveis para restaurar o organism
É provável
Hoje a clonagem humana é proibida.
consciéncia e seus pensamentos! Um ser humano
1 ado, apese ar
clon
mas aqueles que de e todas f; i que circulam
as fantasias
que seja posta em prática um dia, ,
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seria uma pessoa integral, com sua biografia própria os debates sejam mais amplos. Um importante tra-
e sua autonomia. balho é realizado pelas comissoes de ética que se -
N O que foi recusado, proibindo-se a clonagem multiplicaram no mundo desde que a Franca fun-
humana reprodutiva, foi também a entrada numa dou a primeira, em 1984. Confrontadas com os pro-
aventura humana desconhecida. Pois os lagos de pa- blemas novos que surgem no campo meédico, elas os
rentalidade, de filiagao, de sucessao das gerações se abordam levando em conta diferentes sensibil:idades
alterariam profundamente pela realizagao dessa re- éticas que se manifestam na sociedade, e se empe-
produgao nao sexuada que nao tem precedente em nham em propor soluções que são a0 mesmo tempo
toda a histéria da humanidade. respeitadoras das pessoas e dos principios e aceitá-
— E quanto a clonagem terapéutica? veis por todos.
— Os debates prosseguem. O caso é muito dife- Mas esse trabalho, entretanto consideravel, deve
rente, pois o objetivo é curar, e o desenvolvimento ser retomado e ampliado pelo debate público.
dos embriões deve permanecer muito limitado. En- — Mas nao sao questoes de especialistas, discussões
tretanto, as opinides são diferentes segundo os paises, muito técnicas, especializadas dema:
as legislagoes, as convicgoes intimas. Alguns conside- — Não acho. Sao escolhas que dizem respzito a
ram que essa clonagem ¢ legitima e deve ser autoriza- todos nos, que dizem respeito aos nossos fithos e ao
da, cerceada evidentemente por leis que prevejam mundo no qual desejamos viver. Numa democracia,
sanções para eventuais abusos ou desvios. Outros o trabalho dos especialistas é explicar quais são as
pensam, ao contrério, que se trata de um atentado ao opções e suas diferentes consequéncias, mas cabe a0
cardter sagrado da pessoa e da dignidade humana. povo decidir. Nem todo mundo é geneticista, biólo-
Em torno dessa questio e de muitas outras — g0, médico, jurista, nem mesmo filosofo. Mas todo
como por exemplo a gestação por outrem (o proble- mundo deve poder entender quais são as escolhas
ma das “maes de aluguel”), o direito de levar à que se colocam as nossas sociedades, as implicações
da bioética, e os debates fundamentais que estão em
morte os pacientes incuraveis que a solicitam, as
doações de órgãos —, € preciso que as informagoes e
JOBO nessas questões aparentemente técnicas.
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e, mas também
existéncia permanente — na sociedad
— E você, afinal, como vê as escolhas que se
em cada um de nós.
oferecem? esentam apenas
Pois esses dois polos não repr
— Parece-me que hoje duas grandes atitudes se cate; gorias ideológi
cas e políticas conhecidas —“co
n-
initivos ou apenas
inéditas. Nas aplicações dos novos avanços biotec- rias, de acordos, de protocolos def
damente ne-
nolé; gicos, essa atitude privilegia a satisfaç
ão dos de- provisórios). De fato, parece-me profun
práti-
sejos pessoais d: s indivíduos, tal como se
manifes- cessário dar razão, tanto na reflexão quanto na
tar
tam na evolugdo dos cost tumes (casais
homossexuais, ca, a cada um desses dois polos. É preciso ten
idade de procriagdo, por exemplo).
Supde-se que pensá-los em conjunto, na complexidade de suas in-
dessas satisfa- terações. Porque os debates sobre a bioética precisam
novas formas de felicidade decorram v
entender que é necessário ao mesmo tempo limites e
ções individuais.
de maneira inovações, proibições e transgressões. Dessa manei-
Entre esses dois polos, que descrevo
vocé pode, como ra, situada sob permanente incerteza, a ética encon-
muito esquemitica, parece-me que
s lhe convem tra-se no seu lugar, entre mudança e renascimento.
qualquer um, escolher aquele que mai:
opinião, trata-
ou que lhe diz mais. Mas, em minha
em conta 2
_se menos de escolher do que de levar
90 91
Conclusão
¥ mF
ENTRE MUDANÇA
E RENASCIMENTO
de estilo,
A ética atravessa OS séculos, mudando
XIX e XX,
mas sem nunca desaparecer. Nos séculos
i-
pudemos imaginá-la moribunda, ou mesmo aniqu
história
lada. Não somente devido aos eventos da
ais
política, mas também em razão das críticas radic
das quais ela foi objeto. Nietzsche, mais que nenhum
outro, foi até os bastidores. Entrando no subsolo
onde se fabricam os ideais, ele descobre nas cozinhas
manhas e astúcias pouco apetitosas.
Segundo ele, não se deve nunca acreditar nos va-
lores sob palavra. Por trás das virtudes, é preciso
procurar apetites ferozes. Na justiça, o desejo de vin-
gança e a alegria de fazer sofrer. Na igualdade, a re-
Í
vanche dos incapazes. Na fraternidade, o ressenti- É
mento. Nenhum pensador, sem dúvida, submeteu a I
|
ética a mais dura crítica. Nenhum filósofo tentou
mais violentamente denunciar as hipocrisias e as
aparências enganosas.
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Esse questionamento completo desemboca, em mento. Existe o desconhecido entre nós, sempre. Essa
prcocupução com os outros, que se chama ética, é
Nietzsche, numa forma nova de aceitação da exis-
tência na sua integralidade, caracterizada por uma sempre também a preocupação com outra coisa.
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Todos falam de ética. Negócios, esportes,
midias, medicina... o termo diz respeito
também à vida cotidiana.
Mas seu sentido permanece muitas vezes
obscuro. É simplesmente a moral? Ou a
invenção de regras novas? E quem deve
participar da reflexão? Especialistas ou
cada um de nós?
Num estilo límpido, Roger-Pol Droit
esclarece a história da palavra. Expõe com
pedagogia as implicações das crenças
religiosas e das análises filosóficas.
Desde os saberes da Antiguidade até
a bioética de amanhã, as perspectivas
mudam. Mas o eixo central permanece
o mesmo: o melhor guia, para a ética,
é a preocupagao com os outros.
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Uma primeira conversa
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E Roger-Pol Droit
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ISBN 978-85-7827-554-9
LL
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