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(I', I.ibr.

iir« Arrhêrne Fayard, 1995

Tuulo do original francês:


lrs métamorpboses de ta question sociale

Direitos de publicação em língua portuguesa no Brasil:


1998, Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
25689-900 Petrópolis, RJ Dedico este trabalho à memória de meus pais,e àquelas e àqueles
Internet: http://www.vozes.com.bt a quem, ontem como hoje, foi recusado um [uturo melhor.
Brasil
A escrita não é apenas um empreendimento solitário, sobretudo
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser quando se desdobra no tempo. Meu percurso cruzou muitos ou-
reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios tros itinerários, e contraí múltiplas dívidas. Não conseguiria no-
(eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) mear a todas. Entretanto, se meus interlocutores mais numerosos
ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem foram os livros, devo muito ao testemunho dos que, no dia a dia,
permissão escrita da Editora.
enfrentam a miséria do mundo. Minhas atividades no Grupo de
liditoraçâc, e org. literária: Enio Paulo Giachini
Análise do Social e da Sociabilidade e no Centro de Estudos dos
Capa e projeto gráfico: Mariana Fix e Pedra Fiori Arantes Movimentos Sociais, bem como meus seminários na École des
Hautes Études en Sciences Sociales, deram-me a oportunidade
ISBN 978-85-326-1954-9 de trocas fecundas com colegas e estudantes. Levei em conta ob-
servações e críticas das pessoas que se dispuseram a ler este traba-
lho antes de estar concluído, em especial BernardAssicot, Colette
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bec, Monique Benard, Christine Filippi, [ean-François Laé, Cathe-
(Câmara Brasileira do Livro, SP,Brasil) rine Mevel, Numa Murard, Albert Ogien, Giouanna Procacci,
Christian Topalou: ]acques Donzelot exerceu uma vigilância crí-
Castel, Robert
tica durante todo o trabalho, e a organização da obra deve muito
As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário / li nossas discussões. Agradeço igualmente a Pierre Birnbaum e a
Robert Castel ; tradução de Iraci D. Poleti. 8. ed. Petrópolis, RJ :
Vozes, 2009. Denis Maraval que acolheram este livro com presteza e simpatia.
Obrigado também a Emma Goyon por sua incansável paciência
Título original : Les méramorphoses de Ia question sociale.
para digitar as múltiplas versões do manuscrito.
1. Desemprego 2. Salários 3. Sociologia industrial 4. Trabalho e
classes trabalhadoras I. Título.

')7-5815 CDD-306.36

Índices para catálogo sistemático:


I. Salários: Questão social: Sociologia do trabalho 306.36

Editado conforme o novo acordo ortográfico.

!':sl(' livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.


VIII - A nova questão social

o resultado das análises precedentes leva a interpretar a


questão social tal, como se manifesta hoje, a partir do enfra-
quecimento da condição salarial. A questão da exclusão que há
alguns anos ocupa o primeiro plano é um de seus efeitos, essen-
cial sem nenhuma dúvida, mas que desloca para a margem da
sociedade o que a atinge primeiro no coração. Ou não há,
como pretendia Gambetta, senão "problemas sociais" particu-
lares, uma pluralidade de dificuldades a enfrentar uma a uma 1,
ou há uma questão social e é a questão do estatuto do salariado,
porque chegou a estruturar nossa formação social quase intei-
ramente. O salariado acampou durante muito tempo às mar-
gens da sociedade; depois aí se instalou, permanecendo
subordinado; enfim, se difundiu até envolvê-Ia completamen-
te para impor sua marca por toda parte. Mas é exatamente no
momento em que os atributos vinculados ao trabalho para ca-

I Num discurso de 20 de janeiro de 1880, Léon Gambetta declara que o pro-


blema a que se deve dedicar "é o que chamarei de a solução dos problemas
econômicos e industriais, e que me recusarei a chamar de questão social...
Esses problemas só podem ser resolvidos um a um, à custa de estudos e boa
vontade e, sobretudo, à custa de conhecimentos e trabalho" (Discours politi-
ques, IX, p. 122, citado in G. WeiJl, Histoire du mouuement social en Trance,
op. cit., p. 242). Trata-se de uma forma de "dividir as dificuldades em tantas
partes quantas forem necessárias para melhor resolvê-Ias, conforme o Dis-
cours de Ia métbode de Descartes, ou de dividir a questão social em tantas par-
tes quanras forem necessárias para a eludir melhor?

491)
AS METAMORFOSES NA QUFSTJ\O SOCLU VI II - A I\OVA QUESTÃO SOCIAL

racterizar o status que situa e classifica um indivíduo na socie- mada. Por exemplo: bastaria armar-se de paciência e se virar
dade pareciam ter-se imposto definitivamente, em detrimento com alguns expedientes. Período incerto de transição para
dos outros suportes da identidade, como o pertencimento fa- uma inevitável reestruturação das relações de produção: seria
miliar ou a inscrição numa comunidade concreta, que essa cen- preciso mudar certos hábitos antes de encontrar uma configu-
tralidade do trabalho é brutalmente recolocada em questão. ração estável. Mutação completa de nossa relação com o traba-
Teremos chegado a uma quarta etapa de uma história antropo- lho e, através disso, de nossa relação com o mundo: tratar-se-ia,
lógica da condição de assalariado, etapa em que sua odisseia se então, de inventar uma maneira diferente de habitar esse mun-
transforma em drama? do ou resignar-se com o apocalipse.
Sem dúvida, essa questão não admite, hoje, resposta uní- Para evitar tanto as tentações do profetismo como as do ca-
voca. Mas é possível precisar as disputas nela presentes e defi- rastrofismo, vai -se começar pela tentativa de avaliar a amplitu-
nir as opções abertas, conservando o fio condutor que inspirou de exata das mudanças ocorridas em vinte anos e, depois, o
toda esta construção: apreender uma situação como uma bi- alcance das medidas tomadas para enfrentá-Ias. Assim, quanto
furcação em relação a uma situação anterior, buscar sua inteli- ;IS políticas de integração que prevaleciam até os anos 70, as
gibilidade a partir da distância que se aprofundou entre o que políticas ditas de inserção: estarão elas à altura das rupturas
foi e o que é. Sem mistificar o ponto de equilíbrio a que havia que se aprofundaram? Trata-se de modernizar as políticas pú-
chegado a sociedade salarial há cerca de vinte anos, constata-se blicas ou de dissimular sua derrota?
então um resvalamento dos principais parârnetros que garantiam Este trabalho pretende ser essencialmente analítico, e não
esse frágil equilíbrio. A novidade não é só a rctração do cresci- rem por ambição propor uma solução miraculosa. Entretanto,
mento nem mesmo o fim do quase pleno emprego, a menos que () tratamento da questão numa perspectiva histórica permite
se veja aí a manifestação de uma transformação do papel de li ispor de algumas peças para recompor um novo quebra-cabe-
"grande integrador" desempenhado pelo trabalh02• O trabalho, ~:a.Porque esta longa travessia evidenciou alguns ensinarnen-
como se verificou ao longo deste percurso, é mais que o traba- I os: o todo econômico nunca fundou uma ordem social; numa
lho e, portanto, o não trabalho é mais que o desemprego, o que sociedade complexa, a solidariedade não é mais um dado mas
não é dizer pouco. Também a característica mais perturbadora 11111 construído; a propriedade social é, simultaneamente, com-
da situação atual é, sem dúvida, o reaparecimento de um perfil patível com o patrimônio privado e necessária para inseri-lo
de "trabalhadores sem trabalho" que Hannah Arendt3 evoca- ('111estratégias coletivas; o salário, para escapar de sua indigni-
va, os quais, literalmente, ocupam na sociedade um lugar de (LIde secular, não pode se reduzir à simples remuneração de
supranumerários, de "inúteis para o mundo". I1111 a tarefa; a necessidade de preparar para cada um um lugar
Entretanto, essa constatação não é suficiente para avaliar o 1IIIIllasociedade democrática não pode ser realizada por meio
significado exato desse acontecimento nem para saber como (LIcompleta transformação da sociedade em mercadoria, ca-
enfrentar uma situação que é inédita na escala de meio século, v.uido qualquer "jazida de emprego" etc.
embora evoque outras mais antigas, anteriormente encontra- Se, por definição, o futuro é imprevisível, a história mostra
das. Momento difícil de enfrentar enquanto se espera a reto- qlle a gama dos recursos de que os homens dispõem para en-
I nurar seus problemas não é infinita. Se é fato que nosso pro-
111('111<1hoje é continuar a constituir uma sociedade de sujeitos
! Y.Barel, "Le grand intégrateur ", Connexions, 56, 1990. 1111 lrpendentes, então é possível ao menos indicar algumas con-
.\ H. Arendr, Condition de l'homme moderne, op. cit., p. 38. oIl1,Jics a serem respeitadas para que isso ocorra .

-tv« 4')7
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIII-A NOVA QUESTÃO SOCIAL

Uma ruptura de trajetória c dedica-se a repartir seus frutos, negociando a divisão dos be-
nefícios com os diferentes grupos sociais.
Fundamentalmente, é uma representação do progresso É possível objetar que esse Estado Social-democrata "não
que talvez tenha sido levada pela "crise": a crença de que o ama- existe". De fato, sob essa forma, é um tipo ideal. A França nun-
nhã será melhor que o hoje c de que se pode confiar no futuro ca foi, verdadeiramente, uma social-democracias, ao passo que
para melhorar sua condição; ou, sob uma forma menos ingênua, os países escandinavos ou a Alemanha, por exemplo, eram
a crença na existência de mecanismos para controlar o futuro de muito mais. Mas também os Estados Unidos eram menos ou
urna sociedade desenvolvida, dominar suas turbulências e condu- 11;10 eram nada social-democratas. Isso significa que, indepen-
zi-Ia a formas de equilíbrio organizadas de modo cada vez melhor. dentemente da realização do tipo, existem traços dessa forma
Trata-se, sem dúvida, de uma herança eufernística do ideal revo- de Estado que se encontram sob configurações mais ou menos
lucionário de um domínio completo do homem sobre seu destino sistemáticas em constelações sociais diferentes. O que importa
;! através da ambição de fazer entrar, ainda que à força, o reino dos ;Igora é perguntar-se em que medida a França do início dos
fins na história. Entretanto, com o progresso, não se trata mais de .1110S 70 se aproximava da realização dessa forma de organiza-
instaurar à força, aqui e agora, um mundo melhor, mas de pre- ~:;i().Não para inscrevê-Ia em uma tipologia, nem para lhe atri-
parar transições que, progressivamente, é oportuno dizer, per- buir o mérito - ou a vergonha - de não ter estado o bastante ou
mitirão que dele se aproxime. de ter estado próxima demais do ideal social-democrata mas,
Essa representação da história é indissociável da valoriza- si 111, para tentar avaliar a amplitude do deslocamento que se re-
ção do papel do Estado. É preciso um ator central para condu- .ilizou em mais ou menos vinte anos e para medir a bifurcação
zir tais estratégias, obrigar os parceiros a aceitarem objetivos que se produziu quanto à trajetória de então. Acidente de per-
sensatos, zelar pelo respeito dos compromissos. O Estado So- .urso ou mudança completa do regime das transformações so-
cial é este ator. Em sua gênese, como se viu, primeiro foi mon- .iais? Portamo, é necessário proceder a uma avaliação crítica
tado com peças e pedaços. Mas à medida que se fortalece, tI:1 posição então ocupada nessa trajetória ascendente que pa-
chega à ambição de conduzir o progresso. É por isso que o con- n-cia levar a um futuro melhor6.
ceito acabado do Estado Social, no desenvolvimento pleno de
suas ambições, é social-democrata. Sem dúvida, todo Estado
,I', reformas sociais são, em si mesmas, um bem, porque marcam as etapas da
moderno é mais ou menos obrigado a "fazer social" para miti-
It'.dll.ação de seu próprio ideal. O reformismo assume aqui sua acepçâo ple-
gar algumas disfunções gritantes, assegurar um mínimo de co- ILI: ;iS reformas são os meios de realização da finalidade da política,
esão entre os grupos sociais etc. Mas é através do ideal . ( ) momento em que ela esteve mais próxima, pelo menos em intenção deda-
social-democrata que o Estado Social surge como o princípio I,,,Li, fOI,sem dúvida, o da "nova sociedade" de Jacques Chaban-Delmas, am-
1,I.IIIlcnte inspirado por Jacques Delors. Intenção explícita de trocar o
de governo da sociedade, a força motriz que deve assumir a
.rh.mclono dos confrontos de perspectiva revolucionária por uma política de
responsabilidade pela melhoria progressiva da condição de to- , '1IIIIlI'omISSOSnegociados com o conjunto dos parceiros sociais. "O governo
dos", Para tal, dispõe do tesouro de guerra que é o crescimento 1'1''pIle ao patronaro e às organizações sindicais que colaborem com o Estado
n.i nalização de tarefas de interesse comum" (discurso de política geral, de 16
dt' setembro de 1%9, citado por]. Le Goff,])u stlence à Ia paro/e, op. cit., p,
, .' i),

4 Um Estado liberal pode ser obrigado a "fazer social" contra sua vontade e o 1Il1 " 1'.11';1 uma apresentação de conjunto do enfraquecimento do modelo 50-
nimo possível, um Estado Socialista o faria por falta, falta de poder promover , 1.11 democrata na década de 70, d. R, Darendorf, "Uaprês-social-démocra-
transformações radicais imediatamcnre. É para UI11Estado Social-dcmocr.u.i li" •.• /'1' Débat, n" 7, dezembro de 1980,

49H 499
AS METAMOHFOSES NA QUESTÃO SOCJAL 11TH - A NOVA qUESlfI<) S()( :1;\1,

Para isso seria necessário, antes de tudo, livrar-se da emba- de janeiro de 1975 institui a autorização administrativa de demis-
raçosa comemoração das "Trinta Gloriosas,,7. ão só porque são ( ue será, como se sabe, revogada em 1986). Assim, como
embeleza um período que, de guerras coloniais a injustiças sublinha François Sellier, "há devolução do controle de demis-
múltiplas, teve muitos episódios bem pouco gloriosos.Mas so- são à administração do trabalbo"'o: a administração pública,
bretudo porque, mistificando o crescirnento, incita a conside- por intermédio dos inspetores do trabalho, se atribui o papel
rar como impasse pelo menos três características do movimento de árbitro e de recurso em relação a uma prerrogativa patronal
que, então, dominava a sociedade salarial: seu não-acabamen- essencial.
to, a ambiguidade de alguns de seus efeitos, o caráter contradi- Há, pois, redução da arbitrariedade patronal em matéria
tório de alguns outros. de demissão. Mas não há, no entanto, reciprocidade entre os
1. Seu caráter inacabado: mesmo partilhando pouco da empregadores e os empregados em relação a essa disposição
ideologia do progresso, é forçoso convir que a maior parte das Fundamental do direito do trabalho. Quando da demissão por
realizações dessa época marcam etapas intermediárias no de- motivos pessoais (lei de 1973), é o empregador, único juiz do
senrolar de um processo ininterrupto. Por exemplo, no con- "interesse da empresa", quem decide sobre a demissão e for-
texto da consolidação do direito do trabalho, as duas leis que, mula suas razões e, em caso de contestação, é ao demitido que
em fim de período (1973 e 1975), regulamentam as demissões. c.ibe provar que é vítima de uma injustiça. Nas demissões por
Até então, o patrão decidia sobre a demissão, cabendo ao ope- motivo econômico submetidas à autorização preliminar (lei de
rário que se considerasse espoliado provar diante dos tribunais 1')75), também é o empregador, evidentemente, quem tem a
a ilegitimidade da medidas. A lei de 13 de julho de 1973 exige iniciativa, e sempre em nome do interesse da empresa. Muito
que o patrão prove a existência de uma "causa real e séria" - frequentemente, os inspetores do trabalho estão sobrecarrega-
portanto, em princípio objetiva e verificável- para justificar a .los para verificar seriamente se a medida é justificada, e a juris-
demissão". Para as demissões por motivo econômico, a lei de 3 prudência mostra que é muito difícil contestar uma decisão
p.uronal em matéria de demissão econômica'", Assim, os in-
contestáveis avanços do direito do trabalho em matéria de de-
7 Lembremos a maneira como Jean Forastié apresentou, pela primeira vez, a ex-

pressão que se tornou famosa: "Não devem ser chamados de gloriosos os trinta 11\issão não significam que se pratica a democracia na empresa,
anos [...] que fizeram a França passar [...] da pobreza milenar da vida vegetativa aos ()II que a empresa se tornou "cidadã"12.
níveis de vida e aos gêneros de vida contemporâneos? Com mais justiça certamen- Esse exemplo dá as indicações necessárias de uma ambi-
te do qUleos "três gloriosos" de 1830 que, como a maioria das revoluções, ou subs-
tituem um despotismo por outro ou então, no melhor dos casos, não são senão um 1',lIidade mais profunda das realizações promovidas durante o
episódio entre duas mediocridades?" (les Trente Glorieuses, op. cit., p. 28). Com a pníodo de crescimento. As demissões são então pouco nume-
ressalva de que os "três gloriosos" de 1830 eram dias e não anos, pode-se deixar 11lS;ISC, com frequência, o contrato de trabalho por tempo in-
Jean Forastié com a responsabilidade de seu julgamento sobre as revoluções.
Mas reduzir o estado da França de 1949 a "uma vida vegetariva tradicional",
"característica de uma pobreza milenar", não é sério. É uma razão a mais para
tlrul., p. 145.
111
evitar a expressão "Trente Glorieuses".
81i'atava-se de um dos mais consistentes herdeiros do "despotismo de fábri- 11( :1. J Le Goff, Du silence à Ia parole, op. cito
ca" do século XIX. Baseava-se na definição do "contrato de aluguel" do Có- I' :\ 1I11'S111a análise poderia ser feita para a maior parte das "conquistas 50-
digo napoleônico: "O contrato de trabalho estabelecido sem determinação , 1.11',"(ID período, Assim, as seções sindicais de empresa, implantadas após os
de prazo pode cessar por iniciativa de Lima das partes contratantes" (artigo " "I, I, 15 de Grenelle de 1968, têm um papel essencialmente informativo e
1780 d.o Código Civil). , ""'.1111ivo, mas não têm poder de decisão sobre a política da empresa. Sobre
') Cf. F. Sellier, La confrontation sociale en Trance, op. cit., p. 136-138. , '.',,', 1"llItos, cf. J. Le Goff, Du silence à Ia paro/e, op. cit., p. 231 sq.

SO(J SOl
i
li
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
VIll- A NOVA QUESTÃO SOCfAl.

determinado (CDr - Contrat du Travail à durée Indeterminée)


vai até o fim, permitindo ao assalariado fazer carreira na em- prego". Mas tal situação era devida ao fato de que, emperíodo
de quase pleno emprego, admite-se muito e demite-se pouco.
presa. Mas, quanto à segurança do emprego, ~ue daí resul:a
como regra geral, o que é devido a uma pura conjuntura eco.no- Mas desde que mude a conj untu ra, a seguri dade desaparece e o
mica favorável e o que decorre de proteções solidamente fun- caráter "indeterminado" do contrato se mostra como um sim-
ples efeito de uma ocorrência cmpírica c não uma garantia legal.
dadas? Em outros termos, no que foi chamado, no capítulo
anterior, de "Estado de crescimento", o que é que decorre de Em suma, um contrato por tempo indeterminado é um contrato
uma situação de fato - o quase pleno emprego - e de um estado que dura ... enquanto não for interrompido - salvo se existir um
de direito garantido por lei? Qual é o estatuto dessa conexão estatuto especial como o dos funcionários, ou se existirem garan-
l-iaslegais contra as demissões e que, como se viu, continuavam li-
que durou cerca de trinta anos e que foi muito mai~ tacita~en~
te aceita como um fato do que claramente explicitadai Por miradas". Isso não impediu que a maior parte dos assalariados,
exemplo, quando da apresentação da lei de 13 de julho, anteri- durante os anos de crescimento, vivesse sua relação com o em-
ormente evocada, o ministro do Trabalho se expressa nestes prego através da certeza de controlar o futuro e fizesse escolhas
que engajavam esse futuro, como o investimento nos bens du-
termos:
ráveis, os empréstimos para construção etc. Depois da mu-
De que se trata? De fazer nosso direito do trabalho realizar in- dança de conjuntura, o endividamento vai representar uma
contestáveis progressos, protegendo os assalariados contra as espécie de herança perversa dos anos de crescimento, suscetí-
demissões abusivas ... Hoje parece indispensável que o desenvol- vel de fazer numerosos assalariados caírem na precariedade.
vimento econômico não venha a prejudicar os trabalhadores que
Porém, pode-se dizer que antes disso já estavam, sem saber, vir-
contribuem para realizá-Ia. Expansão econômica e proteção so-
tualmente vulneráveis: seu destino estava concretamente liga-
cial devem caminhar juntas':'.
do à busca de um progresso do qual não controlavam nenhum
!6
t Ios pararnetros
A
Efetivamente caminharam juntas. Apesar disso, a natureza .
do vínculo não é clara. Não se trata de uma relação intrínseca
do tipo "não há crescimento econômico sem proteções". (pro-
1'1Cf. B. Fourcade, "L'évolution des situarions d'ernploi particuliêres de 1945
posição cuja recíproca seria: "não há proteções sem crescimen- "1 1990", Travail et emploi, na 52,1992. A análise desse autor confirma que a
to econômico"). O crescimento facilitou as coisas, mas não constiruiçâo de um paradigma do emprego do tipo CDr é correlativa do au-
IlICmO em termos de poder da sociedade salarial. Antes da década de 50, não
substitui a vontade política. Esquece-se, aliás com frequência,
h.i norma geral do emprego mas, sim, uma pluralidade de situações de em-
de lembrar que, sem dúvida, a abertura mais decisiva em maté- prcgo e, em seu interior, o trabalho independente ocupa um lugar irnportan-
ria de direitos sociais foi realizada com a Seguridade Social em t c. A partir da metade dos anos 70, as "situações particulares de emprego"
1945 e 1946, numa França devastada e cuja produção havia caí- g;lnham importância progressivamente, cf. mais adiante.
do aquém do limiar atingido em 1929. I\ As convenções coletivas preveern procedimentos especiais e indenizações
['111 caso de demissões, donde o fato de a demissão representar, para o ernpre-
Assim, as seguridades podem ser enganosas quando se I'.ador, também um custo e inconvenientes (donde ainda o fato de, após o pe-
apoiam exclusivamente no crescimento. Nos anos 50 e 60, o ríodo de pleno emprego, os empregadores privilegiarem formas de admissão
contrato de trabalho por tempo indeterminado tornou-se nor- menos protegidas que os CDI). Mas essas disposições estão longe de equiva-
Il'I' a uma segurança do emprego.
ma e podia passar por uma quase garantia de segurança do em-
I{, Em 1973, 38<Vo dos operários têm acesso à propriedade. Mas dentre esses,
dois terços têm uma dívida que chega perto da metade do valor de sua casa.
l.l Citado por J. Le Goff, Du silence à Ia parole, of!. cit., p. 203. I)() mesmo modo, três quartos dos operários têm carro, máquina de lavar
roupa e televisão. Porém, três quartos dos carros novos, mais da metade das

S()2
503
VI[I- A OVA QUESTAo S()(1/\1.
I\S METI\MORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL

2. Além do caráter inacabado e ainda frágil do que se con- III:\S principalmente gue faça mal oque deve fazer. Com efci-
vencionou chamar "as conquistas sociais", a ampliação das I o, ao longo desses anos, as críticas radicais aos fundamentos
proteções teve também alguns efeitos perversos. Sem retomar a de uma ordem social dedicada ao progresso continuaram
velha antífona dos liberais, para quem toda intervenção do muito m inoritárias, embora tenham sido expressas através de
.• J9 . i
Estado tem, necessariamente, efeitos desresponsabilizadores e 1(, rrnas particularmente espetaculares . Em contra partrda,
de sujeiçâo ", é forçoso constatar que a situação social e políti- (oram numerosas e variadas as críticas à maneira como o Esta-
ca no fim dos anos de crescimento é marcada por um mal-estar d() conduzia a necessária libertação das tutelas tradicionais e
profundo e "os eventos de maio" foram, em 1968, sua expres- das injustiças herdadas do passado. É ocaso do questiona-
são mais espetacular. Pode-se interpretá-I os, em pleno período I11CUtodo modo de gestão tecnocrática da sociedade, tão
de crescimento e de apoteose do consumo, como a recusa de i11tenso na década de 60, e que se exprime através da proli fe-
uma parte importante da sociedade - da juventude sobretudo- ração dos clubes - club Jean Moulin, Citoyens soixante ... - e
em trocar as aspirações a um desenvolvimento pessoal pela se- das associações de usuários preocupados em participar das
gurança e conforto. A palavra de ordem "mudar a vida" expri- iomadas de decisão que comprometem sua vida cotidiana.
me a exigência de recuperar o exercício de uma soberania do Contra a denunciada despolitização da sociedade, é necessá-
indivíduo diluída nas ideologias do progresso, da rentabilida- rio que a ação política e social seja novamente baseada no en-
de e do culto das curvas de crescimento, pelo que, como diz volvimenro dos cidadãos. A própria passividade é o preço que
uma inscrição nas paredes da Sorbonne, "ninguém se apaixo- pagam por terem delegado ao Estado o papel de conduzir ;1
na". Através do hedonismo e da celebração do instante - "já, mudança de cima, sem controle da sociedade civil20• O vigor
imediatamente" -, expressa-se também a recusa em entrar na dos "movimentos sociais" dos anos 60 e do início dos anos 70
lógica da satisfação diferida e da existência programada que demonstra a exigência de uma responsabilização dos atores
implica o planejamento estatal da segurança: as proteções têm sociais anestesiados pelas formas burocráticas e impessoais
um preço; são pagas com a repressão dos desejos e com a acei- de gestão do Estado Social.
tação do torror de uma vida em que tudo está decidido anteci- Num plano mais teórico, o período de promoção da socic
padarnente ' . dade salarial foi também o momento em que se desenvolveu
Essas posições podem parecer-nos, hoje, reações de ricos, lima vigorosa sociologia crítica em torno de três temátic.is
cevados de bens consumíveis e de seguranças outorgadas fa- principais: a colocação em evidência da reprodução das dl'si
cilmente demais. Entretanto, também traduzem uma restri-
ção de fundo quanto à forma de governabilidade do Estado
Social. O que se denuncia não é tanto que o Estado faça demais, I~Além dos vestígios de uma extrema direita que eternamente deuigrc« '('I"
gresso, isso foi sobretudo o feito de grupos radicais de esquerda e dc oru r.r-.
í

exacerbadas de espontaneísmo cuja influência continuou marginal, a desp'·1


máquinas de lavar roupa e perto da metade das televisões novas são compra- to de manifestações espetaculares. Em suas orientações dominantes, IH·III.1:,
das a prestações (cf. M. Verrer,1- Crcuscn, Ilespace ouurier; op. cit. p. críticas da sociedade de consumo, nem a comemoração da ação rcvolwi'"\.1
113-114). ria pelas di fereures famílias do marxismo contradizem os fundamcutr ix .1.1 1;1
17 Essa ideologia passou por uma grande renovação no início dos anos 80. losofia da História que subentende a promoção da sociedade s;ll"ri,,(. /\'.
Para uma expressão particularmente virulenta, cf. P. Beneton, Le fléau du primeiras denunciam principalmente a inclinação das capacidades lTi;IIIV.I·.
bicn, Paris, Calmann-Lévy, 1982. da sociedade moderna quanto ao engodo da mercadoria e as segllll,I:" .. '.'"
confisco pelos grupos dominantes.
IHPara o desenvolvimento dessa análise, cf, J. Donzelot, L'inuention du 50-
20 CL J. Donzdor, liinuention du social, op. cit., capo IV, 2.
rial, O/I. cit., capo Iv, 1.

I()·I
AS METAMORrOSES NA QlJESTÃO SOCIAL
VlIl- A NOVA QlJFSI'Á() S<)( :11\1

gualdades, sobretudo nos domínios da educação e da cultura; a


3. Mas existe talvez uma contradição mais profunda IlO
denúncia da perpetuação da injustiça social e da exploração da
luncionamenro do Estado Social dos anos de crescimento. I\.
força de trabalho; a recusa ao tratamento, indigno de uma socie-
tomada de consciência disso é mais recente: sem dúvida, era
dade democrática, reservado a algumas categorias da populaçâo:
necessário que a situação começasse a se degradar para que o
prisioneiros, doentes mentais, indigentes ... Tratava-se, em
conjunto de seus pressupostos se mostrasse. De um lado, as in-
suma, de tomar ao pé da letra o ideal republicano tal como se ex-
t crvencôes do Estado Social têm efeitos homogeneizadores
pressa, por exemplo, no preâmbulo da Constituição de 1946:
poderosos. Gestão necessariamente categorial dos beneficiá-
Cada um tem o direito de trabalhar e de obter um emprego. [...] A rios de serviços que nivela as particularidades individuais.
nação garante a todos, sobretudo à criança, à mãe e aos trabalhado- Assim, o "detentor de direito" é membro de um coletivo abs-
res idosos, a proteção da saúde, a segurança material, o repouso e o t rato, vinculado a uma entidade jurídico-administrativa de que
lazer. Todo ser que, em razão de sua idade, de seu estado físico ou l- um elemento intercambiável. Este modo de funcionamento
mental, da situação econômica, se encontra na incapacidade de tra- dos serviços públicos é bem conhecido e alimentou por muito
balhar, tem o direito de obter da coletividade meios decentes de tempo as críticas ao caráter "burocrático" ou "tecnocrático"
existência. A nação garante o acesso tanto da criança quanto do da gestão do social. Porém, seu correlato paradoxal o era me-
adulto à instrução, à formação profissional e à cultura".
110S, a saber, que esse funcionamento produz ao mesmo tempo
Não seria incongruente constatar que, no começo da déca- ('feitos individualizantes duvidosos. Os beneficiários dos servi-
da de 70, ainda se estava bem longe da realidade, e não tomar li- ,;os são, a um só tempo, homogeneizados, enquadrados por cate-
geiramente os discursos lenientes sobre o crescimento e o gorias jurídico-administrativas e cortados de seu pertencimento
progresso. Não tendo remorsos hoje por ter pertencido a esse concreto a coletivos reais:
meio. Mas essas críticas não questionavam a onda que parecia ar-
O Estado-providência clássico, ao mesmo tempo em que decorre
rebatar a sociedade salarial e puxava para o alto o conjunto da es- do compromisso de classe,produz efeitos de individualismo formi-
trutura social. Contestavam a divisão desses benefícios e a função dáveis. Quando se proporciona aos indivíduos esse paraquedas ex-
de álibi que, amiúde, a ideologia do progresso desempenhava traordinário que é a garantia da assistência, se permite que, em
para perpetuar as situações conquistadas/é, todas as situacões da existência, se libertem de todas as comunida-
des, de todos "ospertencimentos possíveis, a começar pelas solida-
riedades elementares de vizinhança; se existe a Seguridade Social,
21 Citado in J. Fournier, N. Questiaux, Le pouuoir du social, op. cit., p. 97. não preciso de meu vizinho do mesmo andar para me ajudar. O
Esta obra apresenta um catálogo bastante completo dos progressos que ainda
Estado-providência é um poderoso fator de individualism023•
devem ser realizados no domínio social na perspectiva socialista ... pouco an-
tes da chegada dos socialistas ao poder. O Estado Social está no cerne de uma sociedade de indiví-
22 O confronto entre sociólogos e economistas realizado em 1964, tn Darras, duos, mas a relação que mantém com o individualismo é dupla.
Le partage des bénéfices, Paris, Éditions de Minuit, 1965, expressa bem essa ten-
são entre duas concepções do progresso que a versão crítica não recusa, mas exi-
I\s proteções sociais foram inseri das, como se viu, nas falhas da
ge que sejam explicitadas rigorosamente as condições teóricas e práticas sociabilidade primária e nas lacunas da proteção próxima.
necessárias à sua realização democrática. De minha parte, tentei uma avaliação Respondiam aos riscos existentes para um indivíduo numa so-
do movimento de crítica das instituições e das formas de intervenção médi-
co-psicológicas e sociais, in "De I'intégration sociale à l'éclaternent du 50ci81:
I'émergence, l'apogée et lc départ à Ia retrai te du contróle social", Reuue in-
'I M. Gauchet, "La société d'insécurité", in j. Donzelot, Face à i'cxclusiut),
ternationale d'action communautaire, 20/60, Montreal, outono de J 988,
"/1. cit., p. '170.
506
AS METAMORfOSES NA QUESTÃO SOCIAL VlIJ -A NOVA (~III'.sT/\()',( 11 1:\1

cied~adeem que o desenvolvimento da industrialização e da ur- manter suas proteções por meio de uma ação co m inua, Se ••
banizaçâo fragilizava as solidariedades de proximidade, Os lxrado se retira, é o próprio vínculo social que corre () ris«() .I,
poderes públicos recriam proteção e vínculo, mas com um re- ',('decompor. O indi víduo encontra-se, então, em COlll;11 o i1111'
gistro completamente distinto daquele do pertcncimento a co- .Ii.ito com a lógica da sociedade salarial entregue a si 1IH':dll,1
munidades concretas. Estabelecendo regulaçõcs gerais e qlle dissolveu, juntamente com as solidariedades COIlClTLI:;,'\:.
fun~ando direitos objetivos, o Estado Social também aprofun- )',randes atores coletivos cujo antagonismo cimentava ;1llllid.1
da ainda a distância em relação aos grupos de pertencimento de da sociedade. Em tal contexto, o corporativismo ;11111":1(
.:1
que, em último caso, não têm mais razão de ser para garantir substituir o interesse geral: defesa e ilustração de um esrr.u () :;.1
as proteções, Por exemplo, o seguro obrigatório é realmente a l.uial que se diferencia dos estratos inferiores e aspira ;IS pl!T
mobilização de uma certa solidariedade, e endossa o pertenci- rogativas dos estratos superiores. Em último caso, se o ()hj('IIV'\
mento a um coletivo. Mas pelo modo como foi instrumen- de cada indivíduo é manter e, se possível, melhorar sua pn )PII.I
~a1iza?a, essa forma de "fazer sociedade" não exige senão 1r.ijetória e a de sua família, a vida social corre o risco de ser vI
mvesnmenros pessoais muito limitados e uma responsabiliza- vida como uma struggle for life.
ção mínima (pagar as contribuições que, aliás, são descontadas Ora, se não há contradição, existem, pelo menos, (011(':;
automaticamente e, eventualmente, eleger delegados para a I cnsóes entre esse desenvolvimento do individualismo, qllc c: I
gestão das "caixas" cujo funcionamento é pouco transparente r.icter iza a sociedade salarial, e a imposição de formas de smi, I
par~ todo .~und? ... ). O mesmo se dá com o conjunto das pro- lização da renda e de coerções administrativas, indispens.ivcis
teçoes SOCIaIS.A intervenção do Estado permite aos indivíduos ;10 funcionamento do Estado Social. Este antagonismo p()d(·
esconjurarem os riscos de anomia que, como Durkheim havia ser desarmado enquanto o custo da solidariedade obriga«)li,1
visto, existem no desenvolvimento das sociedades industriais. IlJO foi pesado demais e as coerções regulamentares fOI:1I11
Porém, para fazer isso, têm como interlocutor principal- e em compensadas por benefícios substanciais cujos dividendos ,\
caso extremo único - o Estado e seus aparelhos. A vulnerabili- próprio indivíduo recebia. Assim, as coberturas sociais cr.un li
da de do indivíduo, que foi afastada, encontra-se então recon- nanciadas, como se sabe, por uma grande maioria de ;11ivr »:
duzida a um outro plano. O Estado torna-se seu principal que, em suma, cotizavam sobretudo para si mesmos: asscgu LI
suporte e sua principal proteção, mas essa relação continua vam seu próprio futuro ao mesmo tempo em que gar;llll i;111I
sendo a que une um indivíduo a um coletivo abstrato. É possí- () do coletivo dos assalariados. Porém, sob a dupla cocrc.io d••
vel, pergunta ]ürgen Habermas, "produzir novas formas de desemprego e do desequilíbrio demográfico, o sistema d;I';
vida com meios jurtdico-burocráticosç>" A receita se existe proteções sociais acha-se pressionado por dificuldades. I };i se
ainda não foi encontrada. " a passagem de um sistema de seguros em que os ativos p;lg;1V;IIII
Os perigos contidos nessa dependência em relação ao sobretudo para os ativos para um sistema de solidariedade 11:1
Estado vão se revelar quando o poder público tiver dificuldade cional em que os ativos deveriam pagar sobretudo par;I ill;1I1
vos cada vez mais numerososr'.
para levar a cabo essas tarefas da forma relativamente indolor
que adotava em período de crescimento. Tal como o Deus de Num universo em que, de um lado, o número das peSS();IS id, \',.1"
Descartes que recriava o mundo a cada instante, o Estado deve e das crianças escolarizadas cresce e, de outro lado, os viu, 111, r.

24J. Hahe;,m~s, ."La crise de l'État providence cr l'épuiscrnenr des éncrgies .'.\. D. Olivcnnes, "I.a société de transfert", Le Débat, n" 6<), 111;11\" .01>1 01 ,I.
uroprques , Ecrits politiques, trajo fr. Paris, Ediriori, du Cerf, 1990. 1992.

so,'{
VIIl- A NOVA QUEST;\O S()( :lt\1.
AS METAMORrOSES NA QlJESTAO SOCIAL

entre a produção, o emprego e a renda se enfraq ueccm, a fração pessoas sob sua responsabilidade'r'". Beveridge e Laro que po-
reduzida da população ativa que trabalha desvia uma parte cada diam, sem muitos inconvenientes, senão se contradizer, pelo
vez mais importante de seus recursos para financiar a proporção menos justapor dois modelos de inspiração completamente
esmagadora dos que não trabalham ainda, que não trabalham ti istinta. Não tinham necessidade de escolher, pois o quase ple-
mais ou que nunca trabalharão", 110 emprego podia contribuir para uma" isenção" da necessi-
dade, alimentada pelo trabalho da maioria da população. Mas
Assim, será impossível, sem dúvida, evitar escolhas dolo-
;I proteção de todos pela solidariedade e a proteção dos ativos
rosas. Alguns debates, que há vinte anos tinham um caráter so-
pelos seguros entram em contradição quando a população ati-
bretudo acadêmico, assumem hoje uma acuidade singular. Por
va se torna minoritária.
exemplo, a proteção social deve alimentar a ambição de liber-
Observou-se, igualmente, que o sistema de seguridade so-
tar todos os cidadãos da necessidade, ou deve ser preferencial-
lial quase não se preocupara com a cobertura do desemprego.
mente vinculada ao trabalho? A primeira opção é a de
Piare Laroque justifica-se quanto a isso assim: "Na França, o
Beveridge, que lhe dá um significado muito extensivo: "asse-
desemprego nunca foi uma ameaça tão séria quanto na
gurar a todos os cidadãos do Reino- Unido uma renda suficien-
(,ra- parecer, hoi
. - B retan h a ,,30 '. AI'em dee narecerv .
10jC, smgu Iarmente d ata-
-. Entretanto, o
te para que possam f azer f ace a seus encargos ,,77
da, essa declaração revela, talvez, uma dificuldade de fundo: o
mesmo relatório destaca energicamente, para que um plano de
desemprego pode ser "coberto" a partir do trabalho? Sem dú-
seguridade social tenha êxito, a necessidade de promover uma
vida, até um certo patamar. Mas o desemprego não é um risco
situação de quase pleno emprego: "este relatório considera
\U1l10 outro qualquer (como o acidente no trabalho, a doença
como um dos objetivos da seguridade social a manutenção do <111a velhice sem dinheiro). Caso se generalize, acabará com as
pleno emprego e a prevenção do desemprego'?". A outra op- possibilidades de financiamento dos outros riscos e, portanto,
ção, o "sistema bismarckiano", vincula o essencial das pro- ' com a pOSSI ibilid
1;1111I)em J:1 (e se "cob
1 ic ace co nr.". a SI mesmo' 31 . O
teções às cotizações salariais, e a França, é o que se diz, \·;ISO do desemprego revela o calcanharde aquiles do Estado
aproxima-se dele. No entanto, Pierre Laroque retoma mais ou SI .cial dos anos de crescimento. A configuração que então as-
menos literalmente a formulação de Beveridge sobre a "liber- sumiu baseava-se em um regime de trabalho que hoje está pro-
tação da necessidade": a Seguridade Social é "a garantia dada I lindamente abalado.
a cada homem de que, em qualquer circunstância, poderá as
segurar, em condições satisfatórias, sua subsistência e a das
", I~Laroque, "De I'assurance à Ia sécuriré sociale", Revue internationale du
{"""lil, LVII, n" 6, junho de 1948, p. 567. A expressão "[reedom from toant"
,11'.IITcepela primeira vez em Social Securiry Act de 1935, no período forte
26 Ibid., p. 118. Sobre a dimensão propriameme demográfica da questão, cL
,I•• Ncw Deal do presidente Roosevelt.
].-M. Poursin, "LEtat providence en proie au démon dérnographique", /.,.
Débat, n" 69, março-abril de 1992. No que diz respeito ao trabalho, é necc-: "'I~ l.aroque, La sécurité sociale dans l'économie [rançaise, Paris, Fédération
sário observar que as dificuldades de financiamento não se referem só à an: n.u ionale des organismes de Ia sécurité sociale, 1948, p. 9.
plitude do desemprego, mas também à multiplicação dos empregos instávci: 'I I )Ilis índices desse caráter "excepcional" do desemprego: seu sistema de in-
e mal remunerados que não permitirão senão pequenas corizaçôes sociais t ,1"11i,.:lção pelas Assedie a partir de 1958 não é integrado à Seguridade Social;
exigindo grandes verbas compensatórias. 11111.1circular do Ministério do Trabalho do período Pierre Bérégovoy, de 110-
27W Beveridge, Full Employment ina Free Society (1944), trad. fr. Paris, no \ rurluo de 1982, tira os desempregados que estão com os direitos terrninan-
mar-Montchréticn, J 945, p. ] 5. ,I" do sistema dc seguros para colocá-los no sistema da "solidariedade",
1111111;\ delicada dc rebatizar a assistência.
28 Ibid., p. 16.

S 11
s/O
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL vm - A NOVA QUESTÃO SOCli\1.

Mas o Estado Social talvez esteja ainda mais profundamen- formas de socialismo tinham feito da vitória sobre a heterono-
te desestabilizado pelo enfraquecimento do Estado-nação, de 111 ia do trabalho a condição da fundação de uma sociedade de ho-

que é a emanação direta. Dupla erosão das prerrogativas régias: mcns livres, O Estado Social de tipo social-democrata havia
para baixo, com o aumento de encargos dos poderes locais conservado uma versão edulcorada dessa utopia: não era mais
"descentralizados"; para cima, com a Europa e, mais ainda, necessário subverter a sociedade pela revolução para promover a
coma mundialização da economia e a preponderância do capi- liignidade do trabalho, que continuava a ocupar um lugar central
tal financeiro internacional. Assim como se baseia, e em parte corno base do reconhecimento social e como alicerce a que se
constrói, em um compromisso entre os parceiros sociais no in- prendiam as proteções contra a insegurança e'o infortúnio. Ainda
terior de suas fronteiras, o Estado Social keynesiano supõe, no que a penosidade e a dependência do trabalho assalariado não es-
exterior, um compromisso, implícito pelo menos, com os dife- Iivessem completamente abolidas, o trabalhador recebia uma
rentes Estados que se encontram num nível comparável de l'(nnpensaçâo para elas, tornando-se um cidadão em um sistema
desenvolvimento econômico e social. De fato, a despeito de ine- de direitos sociais, um beneficiário das subvenções distribuí-
vitáveis diferenças nacionais, as políticas sociais, inclusive as das pela burocracia do Estado e, também, um consumidor re-
políticas salariais, de países como a Alemanha, Crã-Bretanha «onhecido das mercadorias produzidas pelo mercado ". Esse
ou França, por exemplo, são (ou eram) compatíveis entre si, IIIOdo de domesticação do capitalismo tinha, assim, reestrutu-
isto é, compatíveis com a concorrência existente entre esses rudo as formas modernas da solidariedade e da troca em torno
países tanto no plano econômico quanto no comercial. De do trabalho, sob a garantia do Estado. Como fica essa monta-
fato, a política social de um Estado resulta de uma arbitragem !',em, se o trabalho perde sua centralidade?
difícil entre exigências de política interna (simplificando:
manter a coesão social) e exigências de política externa: ser
. . e "dpo eroso ,,32 . M as as regras d o Jogo
competitrvo . mu d aram ( )5 supranurnerários
desde o começo da década de 70. Por exemplo, ao invés de os
.
Q uaisquer que possam ser as " causas
o a b a Io que a f eta
,,34 ,
Estados europeus importarem mão de obra imigrante, que fa-
zem trabalhar segundo suas condições, encontram-se em con ,Isociedade no início dos anos 70 manifesta-se de fato, em pri-
corrência num mercado de trabalho mundializado, com zonas mciro lugar, através da transformação da problemática do em-
geográficas onde a mão de obra é barata. Este dado é uma razão prego. Os números são por demais conhecidos e ocupam hoje
suplementar e muito forte para pensar que está fora de cogita () primeiro plano da atualidade: perto de 3,5 milhões de desern-
ção que, mesmo que o crescimento voltasse, o Estado possa rc
tomar amanhã sua política da véspera do "primeiro choque d( I

petróleo" . 11 J. Habermas, "La crise de I'État providence et l'épuisement des énergies


uiupiques", loc. cito
É necessário, pois, perguntar, com Jürgen Habermas, SI"
11 Para uma interpretação econômica inspirada na escola da regulaçâo, cf.,
não se assiste ao "esgotamento de um modelo". As diferenrc., 1'<11' exemplo, J-H. Lorcnzi, O Pastré, J. Tolcdano, La crise du XXéme siêcle,
1'.ll'is, Econornica, [980, ou R. Boyer, J-P. Durand, Eaprcs-iordisme, Paris,
"I'I'()", 1993. Nessa perspectiva, a "crise" atual resulta da perda de fôlego do
32 Sobre esse ponto, cf. as análises de François Fourquct, particu larrncnrc "1.1 uro.lclo fordisra, conjugada com uma perda dos ganhos de produtividade,
citoycnncté, unc subjectivité cxogêne", in La production de l'assentimcut , tllll IIJll esgoramcnto da norma de consumo e do desenvolvimento de um se-
dans les politiques publiques. Techniques, territoires et sociétés, n os 24- 25, 1'.1 uutcrciárjo improdutivo OLlpouco produtivo. Mas () nível de análise csco-
ris, Ministério do Equipamento, dos Transportes e do Turismo, 1993. lllld" aqui não impõe que se pronuncie sobre essas "causas".

512 li t.,
11

AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIlI-A NOVA QUESTÃO S()l :11\1

pregados, ou seja, mais de 12% da população ativa35. Mas o de- r.imbérn chamadas de "atípicas'r", Os jovens são os mais COI1-
semprego é apenas a manifestação mais visível de uma ccrnidos e as mulheres, mais do que os homens". Porém, o fe-
transformação profunda da conjuntura do emprego. A precari- nômeno diz respeito igualmente ao que poderia ser chamado
zação do trabalho constitui-lhe uma outra característica, me- de núcleo sólido da força de trabalho, os homens de 30 a 49
nos espetacular porém ainda mais importante, sem dúvida. O .inos: já em 1988, mais da metade dentre eles eram contratados
contrato de trabalho por tempo indeterminado está em via de mediante um estatuto particular+', E atinge ao menos as gran-
perder sua hegemonia. Esta forma, que é a forma mais estável des concentrações industriais tanto quanto as PME: nas em-
de emprego, que atingiu o apogeu em 1975 e concernia, então, presas de mais de cinquenta assalariados, 'três quartos dos
a cerca de 80% da população ativa, caiu hoje para menos de j( ivens de menos de vinte e cinco anos são admitidos através de
. 40
65%. As "formas particulares de emprego" que se desenvol- rontratos desse trpo .
vem recobrem uma infinidade de situações heterogêneas, con- Esse processo parece irreversível. Não só a maioria das no-
tratos de trabalho por tempo determinado (CDD - Contrat de vas contratações é feita segundo essas formas, mas ainda o es-
travail à Durée Determinée), interinidade, trabalho de tempo loque dos CDI se reduz (mais de um milhão de supressões de
I parcial e diferentes formas de "empregos ajudados", isto é, empregos desse tipo entre 1982 e 1990). Parece também que o
mantidos pelos poderes públicos no quadro da luta contra o processo se acelera. Em 2 de março de 1993, Ia Tribune-Des-
i[ desemprego36• Em números absolutos, os CDI são ainda am- [ossés publicava uma projeção para os próximos dez anos em
plamente majoritários. Mas, quando se contabilizam os fluxos que se prevê uma completa inversão da proporção CDI - ou-
II de contratações, as proporções se invertem. Mais de dois ter- Iras formas de empregos. O número dos CD I poderia então ser

I' ços das contratações anuais são feitas segundo essas formas, reduzido a três milhões. Pode-se, certamente, ter restrições
quanto à precisão matemática de tais previsões. No entanto,
i
!
35 Para se ter a medida da degradação da situação: em 1970, havia 300.000
pessoas à procura de emprego inscritas na ANPE, das quais 17% há mais de lllll
ano (esse desemprego, dito de exclusão, atinge hoje mais de um milhão de pesso- prcgo. São uma manifestação da degradação da condição salarial. Sobre a
as). A verdadeira "decolagem" do desemprego é de 1976, ano em que o número rvoluçâo da estrutura jurídica do contrato de trabalho, cf, a explicação sinté-
de desempregados chega a um milhão. Apesar de um ligeiro aumento do númc I i,-a de S. Erbês-Seguin, "Les images brouillés du contrat de travail", in P.M.
ro de empregos (22 milhões em 1990 contra 21.612.000 em 1982), o número M cnger.]. -C, Passeron, Eart de Ia recherche, Essais en l'honneur de Raymon-
dos que buscam emprego quase sempre aumentou depois disso. Durante a reto ,l,' Moulin, Paris, La Documentation française, 1993.
mada do fim da década de 80, caracterizada por uma taxa de crescimento que
" l.ebaube, llemploi en miettes, op. cito Inúmeros dados atualizados sobre o
chega a 4% em 1988 e 1989, se dá a criação de 850.000 empregos, mas a qucd.i
nu-rcado do emprego podem ser encontrados também in B. Brunhes, Choisir
do desemprego é de apenas 400.000 (cf Données sociales, Paris, INSEE, 199.\)_
l'rtnploi, Paris, La Documentation française, 1993.
Para uma demonstração recente da questão do desemprego, cf J. Freyssincr.
Le chõmage, Paris, La Découverte, 1993. "I 1-:111 termos de "estoques", como dizem os economistas, em 1990, apenas
~ X').1! dos homens e 48% das mulheres, da faixa etária de 21 a 25 anos, traba-
36 Cf. B. Fourcade, "L'évolution des situations d'emploi particuliêres d.-
11.:1111 em tempo integral na vigência do CDI, ao passo que, em 1982, essas ta-
1945 à 1990", loco cito Lembremos com este autor que, antes da generaliza
'as eram, respectivamente, de 70% e 600/0 (cf. l-L. HeIler, M. Th.
ção dos CDI, as "situações particulares de emprego"eram muito numeros.v
I"i ut-Lambert, "Les jeunes entre I' école et l'ernploi", Données sociales, Paris,
(Fourcade fala de 4 milhões em 1950). Mas, em geral, tratava-se de forru.i-.
1NSEE, 1990).
próximas do trabalho autônomo, que poderiam ser classificadas de "pr.
I" M. Cézard,]. L. Heller, "Les formes traditionnelles de I'emploi salarié se
salariais" no sentido de que foram, progressivamente, absorvidas pela r,"
neralização da condição de assalariado. As "novas formas particulares .1.- d':gradent", Économie et statistiques, n" 215, novo de 1988.
emprego", ao contrário, são posteriores à generalização da condição de ;I'. 111J jacquier, "La diversification des formes d'emploi en France", DOI/II';"'\
salariado e, justamente, contemporãneas do desenvolvimento do descm ·.l>litiles, Paris, INSEE, 1990.

S14 S 1\
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VJll - A NOVA QUFS 1'1\() S( )(11\ 1

não deixam de traduzir uma profunda reviravolta da condição de estruturaçào do em prego, a sombra lançada pelas rccstrut 11
salarial41• A diversidade e a descontinuidade das formas de em- rações industriais e pela luta em favor da competitividadc
prego estão em via de suplantar o paradigma do emprego ho- que, efetivamente, fazem sombra para muita gente.
mogêneo e estável. É a própria estrutura da relação salarial que está ameaçado
Por que dizer que isso constitui um fenômeno tão impor- de ser novamente questionada. A consolidação da condição sa-
tante e, sem dúvida, até mesmo mais importante do que o au- l.irial, como já foi sublinhado, deveu-se ao fato de que assalari-
mento do desemprego? Não para banalizar a gravidade do .ir uma pessoa tinha, cada vez mais, consistido em prender sua
desemprego. Contudo, enfatizar essa precarização do traba- disponibilidade e suas competências a longo prazo - isto con-
lho 42permite compreender os processos que alimentam a vul- tra uma concepção mais rude da condição de assalariado que
nerabilidade social e produzem, no final do percurso, o consistia em alugar um indivíduo para executar uma tarefa
desemprego e a desfiliação. De agora em diante, é um equívoco pontual. "A durabilidade do vínculo de emprego implica, com
caracterizar essas novas formas de emprego como "particula- efeito, que não se saiba antecipadamente que tarefas concretas
res" ou como "atípicas". Tal representação remete à preponde- precedentemente definidas o assalariado será levado a reali-
rância, sem dúvida ultrapassada, do CDI. Mais ainda: a 'l.ar,,43.As novas formas "particulares" de emprego se parecem
representação do desemprego como um fenômeno também
mais com antigas formas de contratação, quando o status do
ele atípico, em resumo irracional e que se poderia erradicar à
trabalhador se diluía diante das pressões do trabalho.Aflexibi-
custa de um pouco de boa vontade e de imaginação, todas as coi-
!idade é uma maneira de nomear essa necessidade do ajusta-
sas permanecendo idênticas aliás, também é, sem dúvida, a ex-
mento do trabalhador moderno à sua tarefa.
pressão de um otimismo superado. O desemprego não é uma
Não caricaturemos. A flexibilidade não se reduz à necessi-
bolha que se formou nas relações de trabalho e que poderia ser re-
dade de se ajustar mecanicamente a uma tarefa pontual. Mas
absorvido. Começa a tornar-se claro que precarização do em-
exige que o operador esteja imediatamente disponível para
prego e do desemprego se inseriram na dinâmica atual da mo-
adaptar-se às flutuaçóes da demanda. Gestão em fluxo tenso,
dernização. São as consequências necessárias dos novos modos
produção sob encomenda, resposta imediata aos acasos dos
mercados tornaram-se os imperativos categóricos do funcio-
41 Na mesma lógica, André Gorz cita um estudo de um instituto de pesquisa
alemão prevendo, para os anos futuros, uma proporção de 25% de trabalha- namento das empresas competitivas. Para assumi-los, a empre-
dores permanentes, qualificados e protegidos; 25% de trabalhadores "peri- sa pode recorrer à subcontratação (flexibilidade externa) ou
féricos", subcontratados, subqualificados, mal pagos e mal protegidos; 50% treinar seu pessoal para a flexibilidade e para a polivalência a
de desempregados ou de trabalhadores marginais entregues aos empregos
ocasionais e aos pequenos trabalhos (Les métamorphoses du travail, Paris, rim de lhe permitir enfrentar toda a gama das novas situações
Galilée, 1988, p. 90). (flexibilidade interna). No primeiro caso, o cuidado de assu-
42 Evidentemente, essas transformações da relação de trabalho não signifi- mir as flutuações do mercado é confiado a empresas-satélites.
cam que todas as situações novas estejam entregues ao arbitrário e ao não di- Podem fazê-lo à custa de uma grande precariedade das condi-
reito. Ao contrário, assiste-se, já há cerca de vinte anos, a um intenso trabalho
de elaboração jurídica para inseri-Ias no direito do trabalho (é assim que até
foi elaborada a noção aparentemente estranha de "contrato por tempo inde- 11 F. Dautv, M.-L Morin, "Entre le travail et l'cmploi: Ia polyvalencc des U III
terminado intermitente"). Mas é típico que essas novas elaborações se consti- I ratsà duréc dctcrminéc", Tiauail et emploi, n" 52, 1992. Sobre as di ferc 11 I("s
tuam como referência para o CDI e como tantas dcrrogações em relação a concepções da relação salarial, d. J. Rase, Les rapports de travail ct d'cl/l/'!' ,i:
ele. Sobre tais pontos, d. S. Erbés-Seguin, "Lcs images brouillécs du contrat une alternatiuc à la notion derelation salarialc, GREE, Cahier n" 7, I Iniv.r:«
de travail", loco cito lê de Nancy Il,1992.

516 \ I'
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL vnr - A I:\OV;\ QIII:,ST/\() S( )([1\1

ções de trabalho e de muitos riscos de desemprego. No segun- IIl11ab oa parte d e suas f unçoes
-' Integra d oras 46 , A empresa, 1011'
.
do caso, a empresa se responsabiliza pela adaptação de seu te da riqueza nacional, escola do sucesso, modelo de eficácia l"
pessoal às mudanças tecnológicas. Mas à custa da eliminação de competitividade, sem dúvida. Mas deve-se acrescentar que
daqueles que não são capazes de chegar à altura dessas novas :l empresa funciona também, e aparentemente cada vez mais,
normas de excelência 44. corno uma máquina de vulnerabilizar, e até mesmo como uma
Essas constatações reabrem, de modo profundo, a discus- "máquina de excluir"47. E faz isso duplamente.
são sobre a função integradora da empresa. A empresa dos anos No seio da própria empresa, a corrida à eficácia e à compe-
de crescimento constituiu uma matriz organizacional de 1 irividade acarreta a desqualificação dos menos aptos. A "admi-
base da sociedade salarial. É principalmente a partir dela, nistração participativa" exige a mobilização de competências não
como evidenciam Michel Aglietta e Anton Bender, que se apenas técnicas, mas também sociais e culturais, que pegam no
produz a diferenciação do salariado: estrutura grupos hu- rontrapé a cultura profissional tradicional de uma maioria de as-
manos relativamente estáveis e coloca-os numa ordem hie- s.ilariados'". Quando, no contexto da busca da "flexibilidade
interna", a empresa emende adaptar as qualificações dos tra-
rárquica de posições interdepen dentes'". Esta forma de
halhadores às transformações tecnológicas, a formação ~er-
coesão social é sempre problemática, pois é percorrida por
manente pode funcionar como uma seleção perrnanente't". O
conflitos de interesses e, em última análise, pelo antagonismo
resultado é a invalidação dos "trabalhadores que estão enve-
entre capital e trabalho. Entretanto, corno se viu, o crescimento
lhecendo", demasiado idosos ou não suficientemente forma-
permitia, numa certa medida, ponderar as aspirações do quadro dos para serem reciclados, mas jovens demais para se bcne-
de pessoal e os objetivos da direção, assegurando a progressão liciarern da aposentadoria. Na França, a taxa de atividade da fai-
dos salários e dos benefícios sociais, bem como facilitando a xa etáriados 55 aos 60 anos caiu para 56%, uma das mais baixas
mobilidade profissional e a promoção social dos assalariados. da Europa (é de 76% na Suécia), e a maioria dos trabalhadores
A "crise" reduz ou suprime essas margens de jogo, e as "con- n.io passa diretamente da plena atividade à aposentadoria se-
quistas sociais" tornam-se obstáculos diante da mobilização 1',lIndo o modelo clássico do trabalho protegido",
geral decretada em nome da competitividade máxima. Mas a empresa falha igualmente em sua função integrado-
É paradoxal que um discurso apologético sobre a empresa ra em relação aos jovens. Elevando o nível das qualificações
se tenha imposto exatamente no momento em que ela perdia «xigidas para a admissão, ela desmonetariza uma força de tra-
balho antes mesmo que tenha começado a servir. Assim, jovens
que há vinte anos teriam sido integrados sem problemas à pro-
44 Diferentemente do Japão, da Alemanha e da Suécia, porém menos que (1.';
Estados Unidos e a Grã-Bretanha, a França tem tendência a privilegiar a flex i 'I" Apologia fortaleci da pela conversão do socialismo de governo às virtudes
bilidade externa, o que constitui uma explicação para as altas taxas de desern do mercado depois de 1982. Como todos os convertidos, ele cai de bom gra-
prego e para a maior instabilidade do emprego: os assalariados são menu', do no proselitismo. Cf. J.-p. Le Goff, Le mythe de l'entreprise, Paris, La Dé-
mantidos na empresa, e as tarefas menos qualificadas são resolvidas, frequcu ,ollverte, 1992-
temente, com a contratação externa de um pessoal muito vulnerável à cou
I ' (:f. X. Gaulier, "La machine à exclure", Le Débat, na 69, março-abril de 1992,
juntura (cf, R. Boyer, Eéconomie [rançaise face à Ia guene du Golf;',
Commissariat général du Plan, Paris, 1990). 111 Cf, N.Aubert, V. de Gaulejac,Le coút de l'excellence, Paris, Le Seuil, 1991.
1'1 X. Gaulier, loco cito
45M. Aglietta, A Bender, Les métamorphoses de Ia société salariale, op. (ir.
Cf. também M. Maurice, F. Sellier, J.-J. Sylvesrre, "Production de Ia hiér.ir '.I' Cf. A,-M. Guillemard, "Travailleurs vieillissants et rnarché du travail CII

chie dans I'entreprise", Revue [rançaise de sociologie, 1979. Furope", Trauail et emplol, n° 57, 19.93.

518 SI')
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIU - A NOVA QUESTÃO S()( :11\1.

dução acham-se condenados a vagar de estágio em estágio ou h vo s tais co m o o de Ieva r até o nível do baccalauréat 80<)'Í> l k
de um pequeno serviço a outro. Porque a exigência ele qualifi- urna faixa etária são pseudossoluções para o problema do cru-
cação não corresponde sempre a imperativos técnicos. Muitas prego. Não há certamente sorvo
dos empregos, atualmente Oll
empresas têm tendência a se precaver contra futuras mudanças num futuro previsível, que exijam esse nível de qualificação":',
tecnológicas contratando jovens superqualificados, inclusive Corre-se, então, o risco de desembocar, mais do que numa re-
em setores de status pouco valorizados. É assim que os jovens dução do desemprego, numa elevação do nível de qualificação
portadores de um Certificado de Aptidão Profissional - CAP dos desempregados.
ou de um Certificado de Estudos Profissionais (BEP - Brevet Entendamo-nos bem: é legítimo e até mesmo necessário,
d'Études Professionnelles) ocupam, cada vez mais, empregos do ponto de vista da democracia, atacar o problema das "bai-
inferiores à sua qualificação. Enquanto em 1973 dois terços xas qualificações" (isto é, numa linguagem menos tecnocráti-
dentre eles ocupavam o posto de trabalho para o qual haviam ca, acabar com o subdesenvolvimento cultural de uma parte da
sido formados, em 1985 não eram mais do que 40% nesse ca- população). Mas é ilusório deduzir daí que os não empregados
SOS1. Disso resulta uma desmotivação e um aumento da mobili- possam encontrar um emprego simplesmente pelo faro de uma
dade-precariedade, esses jovens sendo tentados a buscar alhu- elevação do nível de escolaridade. A relação formação-empre-
res, quando possível, uma melhor adequação de seu emprego à go apresenta-se num contexto totalmente distinto daquele do
sua qualificação. Disso decorre, sobretudo, que os jovens real- início do século. O tipo de formação e de socialização promo-
mente não qualificados correm o risco de não ter nenhuma al- vido então pela escola facilitou a imigração para a cidade dos
ternativa para o desemprego, visto que os postos que poderiam jovens do meio rural e a formação de uma classe operária ins-
ocupar estão tomados por outros mais qualificados que eles. truída e competente: os jovens escolarizados pela República
De modo mais profundo, essa lógica ameaça invalidar as polí- encontravam postos de trabalho à altura de suas novas qualifi-
ticas que enfatizam a qualificação como o caminho mais glori-
cações. Hoje, nem todo mundo é qualificado e competente, e a
oso para evitar o desemprego ou para sair dele. Sem dúvida,
elevação do nível de formação continua sendo Umobjetivo so-
ainda é uma visão otimista da "crise" e que levou a pensar que,
cial. Mas este imperativo democrático não deve dissimular um
melhorando e multiplicando as qualificações, seria possível
problema novo e grave: a possível não empregabilidade dos
precaver-se contra a "não empregabilidade". É verdade que,
q ualificados54.
estatisticamente falando, as "baixas qualificações" fornecem
Seria injusto fazer a empresa arcar com todaa responsabili-
os maiores contingentes de desempregados. Mas esta correla-
dade dessa situação. Seu papel é realmente dominar as mudan-
ção não implica uma relação direta e necessária entre qualifi-
cação e emprego. As "baixas qualificações" correm o risco de
estar sempre com o atraso de uma guerra se, entretando, o ní-
,\ Um estudo prospectivo do Centro de Inforrnaçâo e de Previsão Econômica
vel geral de formação se elevou='. É por isso também que obje-
prevê que, no ano 2000, pelo menos 60% dos postos de trabalho exigirão UIll
nível de qualificação inferior ao baccalauréat [diploma de conclusão do 2"
I',rall mediante exames especiais].
51 I~d'lribarne, Le chõmage paradoxal, op. cito ',1 í~assim
que se viu, recen temente, se desenvolver um desemprego de gercn-
52 Acorrida à qualificação pode produzir efeitos propriamente perversos. Se II'Ssem que se possa, ainda, determinar a amplitude da tendência, cf, Ollivicr
a admissão é dirigida preferencialmente para os supcrqualificados, os que Marchand, "La montée recente du chôrnagc eles cadres", Yrcmiércs lnforuur-
buscam emprego mas são pouco qualificados encontram-se, de fato, excluí- t ions, 356, julho de 1993. Em 1992, a porcentagem de gerentes desemprega
dos do tipo de emprego que estavam aptos a ocupar por mais qualificados dos era de 3,4% para 5,1 % ele desempregados elas profissões intcrmcdi.iri.r»,
que eles, mas menos aptos que eles quanto a esses empregos. 12,9% de operários e 13,3% de funcionários.

S20 v.: I
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIII - A NOVA QlJFS 1'1\() SllIl/\ I

ças tecnológicas e submeter-se às novas exigências do que razões não se aproveitariam dele. Mas ele tem, frequente
mercado. Aliás, toda a história das relações de trabalho mostra mente, efeitos perversos sobre o controle do desemprego.
que, ademais, não se poderia pedir aos empregadores para "fa- De toda forma, buscar a salvação por meio da empresa {-
zer social" (quando o fizeram, como no caso da filantropia pa- enganar-se de registro. A empresa expressa a lógica do merca-
tronal do século XIX, foi no sentido exato e limitado da defesa do, da economia, que é "o campo institucional unicamente das
dos interesses da empresa, é claro). Ora, nas transformações empresas ,,56 . N este p Iano, a margem d e mano brara e estreita, é •

em curso, uma adesão de primeiro grau às exigências imediatas porque (o desastre dos países do "socialismo real" o demons-
da rentabilidade pode revelar-se, a médio ou longo prazo mas tra) uma sociedade não pode mais ignorar o mercado, assim
de modo certo contraprodutiva para a própria empresa (por como a física não pode ignorar a lei da gravitação universal.
exemplo, um uso selvagem da flexibilidade rompe a coesão so- Mas se é suicida ser "contra" o mercado, daí não resulta que
cial da empresa ou desmotiva o pessoal). Pode-se, pois, desejar seja necessário entregar-se a ele. A problemática da coesão so-
uma gestão inteligente desses imperativos pela empresa. Em cial não é a do mercado, a solidariedade não se constrói em ter-
contrapartida, é ingênuo acreditar que possa assumir a respon- mos de competitividade e de rentabilidade. Estas duas lógicas
sabilidade dos riscos da ruptura social que decorrem de seu são compatíveis? Voltar-se-á a esta questão. Aqui, era necessá-
funcionamento. Afinal de contas, as empresas mais competiti- rio marcar sua diferença para recusar o impasse que representa
vas são também, amiúde, as mais seletivas e portanto, sob cer- () fato de fazer a empresa arcar com o peso da solução da ques-
tos aspectos, as mais excludentes, e (conferir na indústria tão social atual. Uma vontade política pode talvez - em todo
automobilística) a publicação de "planos sociais" acompanha, caso deveria fazê-lo - enquadrar e circunscrever o mercado
frequentemente, a dos balanços comerciais positivos. É uma para que a sociedade não seja esmagada por seu funcionamen-
maneira de dizer que uma política que tem por objetivo con- to. E não pode delegar à empresa a responsabilidade de exercer
trolar os efeitos da degradação da condição salarial e de vencer seu próprio mandato, salvo para pensar não só que "o que é
o desemprego não poderia apoiar-se exclusivamente na dinâ- bom para a General Motors é bom para os Estados Unidos",
mica das empresas e nas virtudes do mercado. As numerosas mas também que isso é suficiente para assegurar a coesão de
medidas do tipo ajuda para a contratação, abatimento dos en- toda a sociedade.
cargos sociais sem obrigações de contratação pelas empresas Se o domínio da questão social não é da esfera exclusiva da
etc., deram a prova, senão de sua inutilidade, pelo menos de empresa e da economia, é porque sua dinâmica atual produz
seus efeitos extremamente limitados. No que se refere, em par- efeitos desastrosos do ponto de vista da coesão social. À pri-
ticular, a ajudar o público que enfrenta dificuldades, teria sido meira vista, a situação pode ser interpretada a partir das análi-
necessário "distribuir menos frequentemente subvenções em ses da dualização do mercado do trabalhos7, mas convida a
favor de contratações que, de todo modo, teriam ocorrido'r". radicalizar suas conclusões. Há realmente dois "segmentos" de
O que se chama de "ganho inesperado" de algumas medidas emprego, um mercado "primário" - formado por elementos
sociais é muito interessante para as empresas, e não se vê por
li> F. Fourquet, N. Murard, Valeur des services collectifs sociaux, op. cit., P.
.\7.
,j Cf. M.J. Piore, "Dualism in the Labor-Market: The Case of Franco", in I·
55R. Tresmontant, "Chômage: les chances d'en sortir", Économie et statisti M airesse, Emploi et chômage, Paris, Fondation Nationale des Scienccs I',)Ii li
ques, n" 241, março de 1991, p. 50. ques, 1982.

\) .. ),
522
AS METAMORfOSES NA QUESTÃO SOCIAL VlII- A NOVA Q1JI':STi\<)Sl)( 11\1

qualificados, melhor pagos, melhor protegidos e mais estáveis>, do os empregos subqualificados e as indústrias trad icion.i is
c um mercado "secundário" - constituído por pessoal precá- (conferir a ruína do setor têxtil nos países "desenvolvidos",
rio, menos qualificado, diretamente submetido às flutuações onde havia sido, no entanto, o setor industrial com maior de-
da demanda. Mas as relações entre esses dois setores não são manda de empregos). Mas uma empresa pode igualmente 511b-
estabeleci das de uma vez por todas. Esquematicamentc, seria contratar a construção de equipamentos sofisticados ou de
possível dizer que, em período de crescimento e de equilíbrio programas informáticos no Sudeste Asiático ou alhures'".
entre a demanda e a oferta de trabalho, há relação de comple- Essa evolução é agravada pela "terceirização" das ativida-
mentaridade entre os dois setores. É vantajoso para a empresa- des, cuja importância foi destacada por Bernard Perret e Guy
e evidentemente para os assalariados - fixar o capital humano. Roustang'". Semelhante transformação não muda apenas a es-
Esta capacidade de tornar fiel uma clientela minimiza os custos rrutura das relações de trabalho no sentido da predominância
de formação, garante a continuidade das competências e um das relações diretas entre o produtor e o cliente (prestações de
melhor clima social no seio da empresa, economiza os sobres- serviço propriamente ditas) e do caráter informacional e rela-
saltos geradores de queda da produtividade. O mercado se- cional crescente das atividades. Tem uma incidência direta so-
cundário desempenha então um papel de complemento para hre a produtividade do trabalho. Em média, os ganhos de
fazer face aos imprevistos e, eventualmente, de peneira para produtividade indicados pelas atividades industriais são o do-
socializar o corpo de empregados do qual alguns serão integra- hro daqueles do setor de serviços'", Disso resulta uma grave in-
dos de modo estável. Em uma situação de subemprego e de ex-
cesso de efetivos, os dois mercados estão, ao contrário, em
,>'JA questão do impacto desses deslocamentos sobre a degradação do merca-
concorrência direta. A perenidade dos estatutos do pessoal da (11) de trabalho nacional para os próximos anos é controversa. Para um ponto
empresa constitui obstáculo à necessidade de fazer face a uma Ik vista nuançado (mas que, realmente, é do início da década de 80), cf P. Eis-
conjuntura móvel. Inversamente, os assalariados do setor se- hr, J. Freyssinet, B. Soulage, "Les exportations d'emplois", in J. Mairesse,
hllploi et chõmage, op. cito Uma projeção mais recente, em escala europeia,
cundário são mais "interessantes", visto que têm menos direi- prevê que a proporção da produção mundial localizada na Europa do Oeste
tos , não são protegidos por convencões
'-s coletivas e podem ser <;Iirá de 27,3%, em 1988, para24,6% no ano 2000, o que é considerável mas
alugados para atender a cada necessidade pontual" . Acres- 1I1IIitoaquém do cenário catastrófico que às vezes é apresentado (d. G. Lafay,
"Industrie mondiale: trois scénarios pour l'an 2000", Économie et statisti-
centemos que a internacionalização do mercado do trabalho
'1111'S, n? 256, julho-agosto de 1992).
acentua a degradação do mercado nacional. As empresas sub-
,.tI Cf B. Perret, G. Roustang, Lléconomie contre Ia société, Paris, Le Seuil,
contratam também (flexibilidade externa) em países onde o A importância desse processo já tinha sido evidenciada antes desde o
t 1)'),1.

custo da mão de obra é várias vezes menos elevado. Num pri- uucio do advento da sociedade salarial (cf, capo VII). Mas depois ficou para-
meiro momento, essa forma de deslocamento afetou sobretu- .I, J. Hrn 1954, os serviços representavam 38,5% dos assalariados; hoje agru-
1'.1111 perto de 70% (cf B. Perret, G. Roustang, op. cit., p. 55).
,.I l.ssas observações permitem remover uma ambiguidade relativa à "desin-
58 Cf. G. Duthil, Les politiques salariales en Fance, 1960-1990, Paris, ,IIISIrialização". A desindustrialização é um fato, com as consequências sociais
l'Harrnatran, 1993. Uma primeira tomada de consciência coletiva da passa- '1"<' acarreta quanto à dcscsrruturaçâo da classe operária clássica (cf as difi-
, uldndes e a relativa perda de importância das grandes indústrias, C0l110a si-
"em da _problemática
b -
do trabalho dominante até a década de 70, baseada na,
preocupação com a fixação d;] mão de obra na empresa, para uma problema- .JI'I'lIrgia). Mas, como mostra Philippe Delmas (T,e maitre des horloges, ofi.
,11,), as atividades industriais continuam sendo as maiores criadoras de ri-
tica da flexibilidade e da adaptação à mudança, tendo, como consequência, o
risco da explosão dos status, aparece na França durante o segundo colóquio 'IIII'Z;ISe as únicas suscetíveis de "puxar"o crescimento. Ademais, o setor
de Dourdan, em dezembro de 1980, cf. Colloque de Dourdan, L'emploi, en- 1I1,lispróspero e melhor remunerado dos serviços é, em geral, o que esr.i li-
r,.ld" às atividades industriais. Alain Mine (Capres-crise est déjã commcnrér,
[eux économiques et sociaux, Paris, Maspero, 1982.

S2.\
524
AS METAMORI-'OSES NA QUESTÃO SOCIAL VIU - A NOVA QUI 'S li\( )~( )( .11\ I

terrogação quanto à amplitude e quanto às consequências para ma central idade da questão suscitada pelo paupenSIl1() 11:1
o emprego de uma retomada do crescimento. Segundo os eco- primeira metade do século XIX.
nomistas clássicos, cujo pensamento foi sintetizado por Alfred Considerados sob o ângulo do trabalho, três pontos de
Sauvy, as transformações das técnicas de produção sempre fo- cristal ização dessa questão podem ser distinguidos. Em pri-
ram acompanhadas de um "derramamento da mão de obra de meiro lugar, essa desestabilizaçâc dos estáveis. Uma parte da
antigos setores para novas esferas de atividade,,62. Assim, a redu- classe operária integrada e dos assalariados da peq uena clas-
ção da mão de obra ligada à agricultura deu lugar ao desenvol- se média está ameaça da de oscilação. Enquanto a consolida-
vimento de um setor industrial mais produtivo. Contudo, tal ção da sociedade salarial havia ampliado continuamente a
raciocínio é falho se os progressos técnicos apresentam fracos base das posições asseguradas e preparado as vias de promo-
ganhos de produtividade e se, mais do que criar, suprimem em- çãosocial, o que prevalece éo movimento inverso. Ésem dú-
'
pregos. P arece que, rea Imente, e o que acontece 63 . vida a partir do devir desses estratos intermediários - nem a
Portanto, o problema atual não é apenas o da constituição base nem o cume da pirâmide social- que, atualmente, não
de uma "periferia precária", mas também o da "desestabiliza- têm muito a esperar, mas sobretudo a perder, do fato do blo-
ção dos estáveis,,64. O processo de precarização percorre algu- queio da mobilidade ascendente, que se decide o equilíbrio
mas das áreas de emprego estabilizadas há muito tempo. Novo de nossa estrutura social (o populismo, de direita ou de es-
crescimento dessa vulnerabilidade de massa que, como se viu, querda, é a tradução política de que está em situação de in-
havia sido lentamente afastada. Não há nada de "marginal" segurança). Confirmação do fato de que não basta tratar a
nessa dinâmica. Assim como o pauperismo do século XIX esta- questão social a partir de suas margens e contentar-se com
va inserido no coração da dinâmica da primeira industrializa- denunciar a "exclusão".
ção, também a precarização do trabalho é um processo central, Segunda especificidade da situação atual, a instalação na
comandado pelas novas exigências tecnológico-econômicas precariedade. O trabalho aleatório representa uma nebulosa
da evolução do capitalismo moderno. Realmente, há aí uma de contornos incertos, mas que tende a se autonomizar. Menos
razão para levantar uma "nova questão social" que, para es- de um quarto dos 2,5 milhões de desempregados cadastrados
panto dos contemporâneos, tem a mesma amplitude e a mes- na Agência Nacional para o Trabalho e o Emprego - ANTE, em
1986, tinha encontrado um trabalho estável dois anos mais
Paris, Gallimard, 1982), também insiste no papel preponderante das ativida- tarde (22%); 9% estavam resignados com a inatividade defini-
des industriais como principais criadoras da riqueza social e as que têm me- tiva e 44% ainda estavam desempregados, seja (para um quar-
lhores condições de assegurar o lugar de uma nação na competição to), porque continuaram sendo (desemprego de longa duração),
internacional.
seja porque voltaram a ser desempregados após haver ocupa-
62 A Sauvy, La machine et le chõmage, Paris, Dunod, 1990.
do um ou vários empregos. Se forem acrescentados os que, no
63 Assim, em relação com a preponderância das atividades de serviços, os ga-
nhos médios de produtividade por uma hora de trabalho passaram de 4,6% momento da pesquisa, ocupavam um emprego ameaçado, então
por ano, de 1970 a 1974, a 2,70/0, de 1984 a 1989 (cf. B. Perret, G. Rousrang, é cerca da metade dos desempregados, ou ex-desemprega-
Eéconomie cont re Ia société, op. cit., p. "17), Para um balanço dos efeitos da., dos, que está colocada nessas trajetórias erráticas feitas de al-
"novas tccnologias" sobre a organização do trabalho, cf. J-r. Durand, "Tra-
vail contre technologie", in J .-r.
Durand, E-X ..Mcrricn, Sortie de siêcle, Pa-
ternância de emprego e de não ernprego'". Essas proporções
ris, Vigor, 1991-
64Cf. D. Linhart, M. Maruani, "Précarisation et déstabilisation des ernploi-
ouvriers, quelques hypothcscs", 'Irauail et emploi. n" 11, 1982. (,S Données sociales, Paris, 1990, p, 72.

526 SD
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAl. VIlI - A NOVA ql IESTi\O S< li .1:\1

são confirmadas por outras pesquisas. Assim, em 1988, so- do descrédito do trabalho que afetaria as novas gerações (' ('111
mente um estagiário em quatro e um trabalhador precário em que alguns veem o sinal feliz de uma saída da alienação da civi
três encontraram um emprego estável ao final de um a11066. lização do trabalho, é necessário ter presente ao espírito CS,<;:1
Durante esse mesmo ano, perto de 50C)lo dos que procuravam realidade objetiva do mercado de emprego. Como cercar essas
emprego estavam anteriormente empregados COI11 contrato situações e amarrar um projeto a essas trajetórias? O "sonho
d
por tempo etermma o .. d 67
do interino" é o desejo de tornar-se permanente, associado ;1
O desemprego recorrente constitui, pois, uma importante dúvida lancinante quanto à possibilidade de chegar a essa con-
dimensão do mercado do emprego, Toda uma população, so- diçâo". O que se recusa é menos o trabalho do que um tipo de
bretudo de jovens, aparece como relativamente empregável emprego descontínuo e literalmente insignificante, que não
para tarefas de curta duração, alguns meses ou algumas sema- pode servir de base à projeção de um futuro controlável. Essa
nas, e mais facilmente ainda passível de ser demitida. A expres- maneira de habitar o mundo social impõe estratégias de sobre-
são "interino permanente" não é um mau jogo de palavras. vivência fundadas no presente. A partir daí, se desenvolve uma
Existe uma mobilidade feita de alternâncias de atividade e de cultura que é, segundo a feliz expressão de Laurence Roule-
inatividade, de virações provisórias marcadas pela incerteza .iu- Berger, uma "Ieu tura di"o a eatono ,,71 . A'ssnn, vo Ita para o
do amanhã. É uma das respostas sociais apresentadas à exigên- primeiro plano do cenário social uma obrigação muito antiga,
cia de flexibilidade. E custa caro para os interessados. Já em imposta ao que então era chamado de povo: "viver o dia a dia".
1975, Michel Pialoux havia pintado esse "realismo do deses- Não se poderá falar de um neopauperismo?
pero" que obriga algumas categorias de jovens a "escolherem" Uma terceira ordem de fenômenos, a mais inquietante, pa-
essas estratégias do dia a dia68• Tratava-se, então, de uma expe- rece emergir na atual conjuntura. A precarização do emprego e
riência circunscrita, quanto ao essencial, a um público de jo- () aumento do desemprego são, sem dúvida, a manifestação de
vens particularmente desfavorecidos, filhos de imigrantes, 111/1 déficit de lugares ocupáveis na estrutura social, entenden-
moradores dos subúrbios. Hoje, atinge amplas frações dos jo- do-se por lugares posições às quais estão associados uma utili-
vens saídos da classe operária "clássica", titulares de diplomas (LIde social e um reconhecimento público. Trabalhadores "que
técnicos como o CAp' e abocanha também alguns setores da ('stão envelhecendo" (mas frequentemente têm cinquenta
classe média69. A precariedade como destino. Quando se falo ;1I10S ou menos) e que não têm mais lugar no processo produti-

V(), mas que também não o têm alhures; jovens à procura de um


primeiro emprego e que vagam de estágio em estágio e de um
66 M. Elbaum, "Petits boulots, stages, emplois précaires: quelle flexibilii.:
pour quelle insertion", Droit social, abril de 1988, p, 314.
p.queno serviço a um outro; desempregados de há muito tem-
67 G. Duthil, Les politiques salariales en France, op. cit, p. 132.
68M. Pialoux, "[eunesse sans avenir et travail intérimaire" ,Actes de Ia rechri 1,I"i: dissonances et défis, Paris, l'Harrnattan, 1994, er ]. Le Goff, Du silenceà
che en sciences sociales, 1975. 101 [urrole, op. cit. p. 248-249). Cf. também o vasto contingente de trabalho
69 F. o caso do desenvolvimento do que se chama os "estatutos híbrido-,". , l.mdestino, por natureza difícil de mensurar mas que, seguramente, repre-
·,,'II!;!uma grande c1ienrela potencial (cf . .f.-F. Laé, 'Iiauailleur au noir, Paris,
nem assalariados nem artcsâos e que, de fato, trabalham por tarefas p;II.,
1\ kt:!ilié, ] 989). Para rodas essas formas precárias de emprego, a proteção so-
empregadores, sem contrato de trabalho c sem proteção social. O nÚIlH'I.'
.1.11 é ou inexistcntc ou também das mais precárias.
desses empregos, que não são recenseados de modo sistemático em ncn h"",
lugar, é difícil de avaliar, mas sua progressão atual é um bom indício d(' ,I, "S. I\caud, "Le rêvc de l'inrérimaire", in P. Bourdieu, La misére du monde,
gradação da situação salarial (d. D. Gerr irscn, "Au-dclà du 'modele t)'I" 1',lris, Le Seuil, J99.3.
que'. Vers une socio-anrhropologie de I'emploi", in S. Frbes-Scguin, 1:,'/11 I I .. Roulcau-Bcrgcr, La uille intervalle, Paris, Méridiens-Klincksieck,1 <)') L

528 Sl')
1\.<; MEIAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIII - A NOVA QIJlSI/\() ,'i( )(1/'1

po que passam, até a exaustâo e sem grande sucesso, por requa- Quando falta a base sobre a qual havia sido edificada sua idcn
Iificações ou motivações: tudo se passa como se nosso tipo de tidade social, é difícil falar em seu próprio nome, mesmo p.un
sociedade redescobrisse, com surpresa, a presença em seu seio dizer não. A luta supõe a existência de um coletivo e de um pn)-
de um perfil de populações que se acreditava desaparecido, jeto para o futuro. Os inúteis para o mundo podem escolher
"inúteis para o mundo", que nele estão sem verdadeiramente entre a resignação e a violência esporádica, a "raiva" (Dubet)
lhe pertencer. Ocupam uma posição de supranurnerários, flu- que, na maioria das vezes, se autodestrói.
tuando numa espécie de no man's land social, não integrados e Seria possível, talvez, sintetizar essas transformações re-
sem dúvida não integráveis, pelo menos no sentido que Dur- centes dizendo que, para categorias cada vez.mais numerosas
kheim fala da integração como o pertencimento a uma socie- da população ativa, e a [ortiori para as que estão colocadas em
dade que forma um todo de elementos interdependentes. situação de inatividade forçada, a identidade pelo trabalho está
Essa inutilidade social desqualifica-os também no plano CÍ- perdida. Mas a noção de identidade pelo trabalho não é fácil de
vico e político. Diferentemente dos grupos subordinados da manejar no quadro de uma argumentação que gostaria de ser
sociedade industrial, explorados mas indispensáveis, não po- rigorosa/". Certamente, é possível identificar vários círculos
dem influir no curso das coisas. Pode-se ficar surpreso pelo de identidade co~~tiva fundada, primeiro, na profissão (o cole-
fato de que um desastre de 3,5 milhões de desempregados não rivo de trabalho~) e que pode prolongar-se em comunidade
tenha desencadeado nenhum movimento social de qualquer de moradia (o bairro popular "), em comunidade de modo de
amplitude. Em contrapartida, suscitou um número incrível de vida (o bar, as lanchonetes às margens do Mame, o subúrbio
discursos e, por consequência, um número de "medidas de vermelho, o pertencimento sindical e político). Richard Hog-
acompanhamento". "A gente se debruça" sobre o destino des- gart deixou uma das melhores pinturas da coerência dessa cul-
ses não empregados que não são atores sociais e, sim, como foi iura popular, construída em torno das servidões da profissão
dito, "não forças sociais", "normais inúteis"n. Ocupam, na es mas desenvolvendo um sistema de valores com muito poder
trutura social atual, uma posição homóloga à do quarto mun inregrador ". Na sociedade industrial, sobretudo para as elas-
do no apogeu da sociedade industrial: não estão ligados ao..
circuitos de trocas produtivas, perderam o trem da moderni I,1I11á-Io,durante um certo tempo, como sendo um prolongamento do perío-
zação e permanecem na plataforma com muito pouca bag.i ,I,) de disponibilidade da pós-adolescência, ao passo que seria vivido como
11111 drama pelo operário que perdesse o emprego. Mas essas análises estavam
gemo Desde então, podem ser o objeto de atenções e suscir.n
',illladas numa conjuntura do mercado do emprego menos tensa, e o senti-
inquietação, porque criam problema. Porém, o problema é () 1I1I'!ltode "férias" é transitório,
próprio fato de sua existência. Dificilmente podem ser consi ·1 ( :f. um ponto de vista sintético ín C. Dubar, Ia Socialisation. Construction
derados pelo que são, pois sua qualificação é negativa - inuri li ,/,'s identités socia/es et professionnelles, Paris, A. Colin, 1991.
dade, não forças sociais - e em geral são conscientes disso: ", ( :f. R. Sainsaulieu, Lidentité au travail, Paris, Fondation Nationale des Sei-
"II,'es Poliriques, 1" edição, 1978.
',' t 1111
conjunto de textos ;'eunidos por Suzanna Magri c Christian Topalov,
\ ,I/,'s ouimeres, 1900-19JO, Paris, L'Harmatrau, 1990, descreve bem essas
72 J Donzelot,P. Estebc, L'État animateur, op. cito I'II'III<\Sde sociabilidade popular através das quais a proximidade geográfica é
7.1 Como mostra Dominique Schnapper em 1981 (L'épreuve du chôm.iv, .1h.ixe de constituição de solidariedades que funcionam corno "rede de segu-
Paris, Gallimard, 1981), num primeiro momento, a experiência do lk~"'111 II,Lide" contra as adversidades da existência.
prego pode ser muito diferente em função do pertencimento social c do. ,I te Hoggarr, La culture du pauure, op. cit., e 3.3 Newport Strcet, trad. fr, 1':1"
pital cultural mobilizávcl. Um público jovem c bem escolarizado po.l" 1 1 11'.. (;;lILimarcl-Le Seuil, 199].

S30 s.u
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIII - A NOVA QlIl'Sli\() s( )(1/\1

ses populares, o trabalho funciona como "grande integrador", uma personagem onipresente. Desde então, se é intercss.rnn-,
:
o que, como precisa Yvcs Barel, não implica num condiciona- como faz o SERC, observar uma correlação estatística entre,
mento pelo trabalho. "Há a integraçâo familiar. Há a integra- por exemplo, as taxas de ruptura conjugal e a precariedade da
I ção escolar, a integração profissional, a intcgração social, - com emprego 80 ,os processos que coman d am essas re-
re Iaçao
política, cultural etc." Mas o trabalho é um indutor que atra- lações não são, entretanto, explicitados. Existem, de fato, dois
vessa esses campos, é "um princípio, um paradigma, algo en-
f fim que se encontra nas diversas integrações concernidas e que
registros de vulnerabilidade familiar. A família, em geral, tor-
nau-se ca d a vez mais. vu 1nerave' 181,porque se tornou uma es-
então torna possível a integração das integrações sem fazer de- trutura cada vez mais "democrática". Lenta erosão dessa ilhota
saparecerem as diferenças ou os conflitos'<". de poder tutelar que a família tinha continu~do a ser no seio
Porém, salvo para acumular as monografias precisas, é di- da ordem contratual que institui o Código Civil. Todas as re-
fícil ultrapassar esse quadro conceitual geral. É mais difícil ain- formas do Código da Família, até os mais recentes sobre os di-
da mensurar a recente degradação dessas funções integradoras reitos da criança, são orientadas no sentido do estabelecimento
desempenhadas pelo trabalho", Propus uma hipótese geral de uma parceria familiar fundada sobre uma relação de igual-
para dar conta da complementaridade entre o que se passa dade entre os papéis farniliares'". Em outros termos, a família
num eixo de integração pelo trabalho - emprego estável, em- tende a tornar-se uma estrutura relacional cuja consistência
prego precário, expulsão do emprego - e a densidade da inscri- depende, quanto ao essencial, da qualidade das relações entre
ção relacional em redes familiares e de sociabilidade - inserção seus membros. A promoção de uma ordem familiar contratual
relacional forte, fragilidade relacional, isolamento social. Tais negociada fragiliza a estrutura familiar enquanto tal, tornan-
conexões qualificam zonas diferentes de densidade das rela- do-a dependente de autorregulações que ela própria deve con-
ções sociais, zona de integração, zona de vulnerabilidade, zona trolar.
de assistência, zona de exclusão ou, antes, de desfiliação. Mas Porém, algumas famílias estão expostas a um tipo de
não se trata de correlações mecânicas, dado que uma forte va .uneaças completamente distintas. São aquelas que seu frágil
lência sobre um eixo pode completar a fragilidade do outro (cl. st atus social e sua precariedade econômica designam como be-
por exemplo, no capítulo I, o tratamento dispensado ao "po ucficiárias de subvenções sociais sob a condição de haver re-
bre envergonhado" e ao vagabundo: um e outro estão fora d(,
trabalho, mas o primeiro está completamente inscrito na co
rnunidade, ao passo que o segundo está sem nenhum vínculo "li Assim, a proporção das rupturas conjugais é de 24% para os indivíduos que
1"11111memprego estável, de 31,4% para as situações de trabalho instável, e
social). ,I" IX,7% para as pessoas que estão desempregadas há mais de dois anos
Quanto ao período contemporâneo, é mais difícil ain.Li ("I'n'carité et risques d'exc/usion en Franco", CERC, n" 109, 3° trimestre de
1'11,1, p. 30).
controlar essas relações, porque o Estado Social intervém co 111',
li I 0.;. ihrc os índices que demonstram essa progressão da fragilidade familiar a
1'·'" ir da metade da década de 60 - taxa de nupcialidade de fecundidade de
,1'1't1rciabilidade, de coabitação, de "nascimentos ilegítimos" etc. - cf. L.
7S Y. Barcl, "Le grand intégrarcur", loc, cit., p. 89 e 90. UttIISSl'I,La [amille incertaine, Paris, Odile Jacob, 1989.
79A título de ilustração, cf. in F. Dubet, ta galére: jeunes en suruie, Paris, II
'unt csc dessa evolução in r. Théry, Le dcmariage, Paris, Odile Jacob, 1993.
•r '

yard, 1987, p. 92 sq., a comparação entre o comportamento dos jOVl'II",I, • 1,1111.


ir mostra também que essa evolução, que diz respeito a todas as famí-
uma pequena cidade em declínio, ainda impregnada de cultura operá ri", ' , 11.1'.d"do que afirma o direito na matéria, afeta-as diretamcnte, as famílias
deriva da juventude dos grandes conjuntos de subúrbio sem tradição li<- ( 1., 1"'I'"LI'cs estando, de modo geral, menos protegidas pelas prescrições uni
ses. " ""distas desse direito de inspiração muito liberal.

S32 su
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VUI- A NOVA QUESTÃO SOCIAL

cursos'". A intervenção do Estado também assume aí uma for- omesmo ocorre com a correlação entre a degradação do
ma completamente diversa. Enquanto o Código da Família status ligado ao trabalho e a fragilização dos suportes relacio-
pertence à esfera do direito civil e suas prescrições têm uma vo- nais que, além da família, asseguram uma "proteção próxima"
cação universalista, as intervenções especializadas são da res- (relações de vizinhança, participação em grupos, associações,
ponsabilidade do Estado Social, no quadro de uma política de partidos, sindicatos ... ). A hipótese parece amplamente vcrifi-
ajuda às populações desfavorecidas e de manutenção da coe- cada pelas situações extremas que associam expulsão total lh
são social. Porém, se numerosas pesquisas mostram que as ordem do trabalho e isolamento social: aquele sem domicílio
complicações no tecido familiar - separação, divórcio, viu- fixo, por exemplo, como homólogo moderno do vagabundo
vez ... - acarretam frequentemente uma diminuição dos recur- das sociedades pré-industriais'". Para as situações intermediá-
sos das famílias, não se pode concluir disso que as precipitem rias, as relações entre os dois eixos são mais complexas. Em
sistematicamente na precariedade econãmica84. A relação in- que medida a degradação da situação de trabalho é paga com
versa entre uma degradação da situação socioeconômica - de- uma degradação do capital relacional? Salvo engano, não exis-
semprego, endividamento, falência ... - e a dissociação familiar te resposta verdadeiramente convincente para esta questão
também é, frequentemente, mais afirmada do que provada. além de análises pontuais, do tipo histórias de vidaS?, ou de
Enfim e sobretudo, seria necessário estabelecer a relação entre declarações gerais sobre o desastre que representam as ruptu-
a fragilidade especial desse tipo de famílias desfavorecidas e a ras do vínculo social e a perda das solidariedades tradicionais.
fragilização geral da família "moderna", que correspondem a Para aprofundar essas questões, seria necessário estabele-
lógicas completamente distintas. Percebe-se que deve existir cer distinções mais elaboradas entre diferentes formas de so-
uma espécie de espiral entre diferentes tipos de exposição da ciabilidade. Algumas acompanham o pertencimento a coleti-
família aos riscos. A uma vulnerabilidade da estrutura familiar vos estruturados, como o coletivo de trabalho, a adesão a uma
quase reduzida à gestão de seu capital relacional, pode-se associação, a um sindicato ... "Viver do social" (uma experiên-
acrescentar uma vulnerabilidade especial das famílias expostas cia que concerne a vários milhões de pessoas) não equivale, en-
à perda de status social e à precariedade econômica devida à tretanto, ao isolamento completo; mas, ao invés disso, leva a
degradação da condição salarial. Mas faltaria mostrar como se estabelecer outros tipos de relações (por exemplo, com os ser-
. 1am esses panos
arncu I 85
.
lage précaire de Ia gestion des risques sociaux", in F. de Singly, F. Schultheis,
83Trata-se, particularmente, de "famílias monoparenrais", Cf. N. Lefaucheur, /\ffaires de [amille, affaires d'État, Nancy, Éditions de l'Est, 1991; d. também
"Les familles dites monoparentales", Autrement, n? 134, janeiro de 199.1. I;. de Singly, Socioiogie de ia famille contemporaine, Paris, Nathan, 1993.
84 Ou melhor, como diz Claude Martin após uma pesquisa ernpírica rnuir« Pode-se avaliar - mas o recenseamento desse tipo de população é particu-
fll,

precisa, a dissociação familiar "acelera o processo de instabilização dos qUl' 1.1 difícil- em cerca de 1010 da população em idade de trabalhar a pro-
I:i rrnente
eram vulneráveis antes da ruptura" (Iransitions [amillales; éuolution du r/,,' porção dos que estão completamente sem vez, tipo SDF. Cerca de 5010 da
au social et familial aprês Ia décision et modes de régulation sociale, tese .I, população possivelmente ativa reúne uma quase exclusão do mercado do
doutorado em Sociologia, Paris, Université - Paris VIII, p. 464). Encontr.i.« vmprego e uma grande pobreza material e relaciona!. Representam a ponta
a situação atual das pesquisas sobre essas questões in J-c. Kaufman, Célib.u, cxtrema do processo de desfiliaçâo (cf, "Précarité et risques d'exclusion en
ménages d'une personne, isolement, solitude, Bruxelles, Conunission .I,-. lrauce", CERe, loc. cito
Communautés Europécncs, outubro de 1993. 11'1': quando são bem feiras, essas análises não se deixam ler de modo unilarc-
85 Propus lima hipótese para aprofundar esse efeito cumulativo entre a fl-;l)'.1 i.rl. Assim, a situação de desemprego pode levar à ruptura dos vínculos f.uni-
lização do tecido relaciona I em geral e? fragilidade particular das fanuli.r. li.ires mas, também, a lima mohilizaçâo dos recursos familiares (cf. O.
economicamente desfavorccidas in "LEtat providence cr Ia famille: lc 1'·11 S,·!twarrz, Le monde privé des ouuriers, op. cit).

5)4
AS METAMORfOSES NA QUESTÃO SOCIAL VlIJ -i\ l'-:OVA (íIIFSI;\() ,';( H 1/\1

viços sociais e com outros companheiros de infortúnio), res- mitida por razões econômicas. O marido, sem qualific.rc.«.
pondendo a outros objetivos (por exemplo, a troca de nem diplomas, faz pequenos serviços que encontra COIl1 di/i
informações sobre os meios de ser ajudado). Igualmente, o que culdade cada vez maior. As dívidas acumulam-se, porque 1:1111
chamei de desfiliação poderia ser trabalhado para mostrar que bém é preciso pagar as prestações do carro e da televisão, logo
não equivale necessariamente a uma ausência completa de vín- depois as contas atrasadas do telefone e da eletricidade. No
culos, mas também à ausência de inscrição do sujeito em estru- momento da entrevista, a mulher aguarda a apresentação de
turas portadoras de um sentido. Hipótese de novas sociabilidades seu dossiê de RMI e o marido, em período de experiência
flutuantes que não se inscrevem mais em disputas coletivas, an- numa empresa, espera, sem acreditar demais, ser contratado
danças imóveis de que a falta de objetivos precisos dos jovens ganhando o Salário Mínimo Interprofissional de Crescimento-
desocupados propõe uma ilustração. O que lhes falta é menos, SMIC. Suas famílias olham-nos afundarem-se com um ar re-
sem dúvida, a comunicação com outrem (esses jovens têm, provador porque, herdeiras das certezas dos anos de cresci-
amiúde, relações mais extensas do que muitos membros das mento, não conseguem pensar a hipótese de não se encontrar
classes médias) do que a existência de projetos através dos trabalho quando, realmente, se procura. Certamente esses fi-
quais as interações ganhem sentido. Vou voltar a esse tema da lhos indignos traíram a grande promessa da promoção social,
inserção, porque o sentido das novas políticas de inserção po- () que só pode ser por culpa deles. Assim, a success story do
deria ser exatamente o de criar essas sociabilidades, ou consoli- acesso do proletariado aos modos de vida pequeno-burgueses
dá-Ias quando existem mas são demasiado inconsistentes para vira um pesadelo. É como se quase um século de vitórias con-
apoiar um projeto de integração. quistadas contra a vulnerabilidade popular fosse apagado.
Portanto, há um longo caminho a percorrer para estabele- "Não é possível que se viva numa época como esta, que ainda
cer o sistema de relações existente entre a degradação da situa- haja problemas como estes. Dizem que o progresso avança,
ção econômica e social de um lado, e, de outro, a desestabilizaçâo mas não é verdade. Eu acho que ele recua mais do que avança.
dos modos de vida dos grupos que estão face a face com as turbu- Não é possível, é preciso que haja soluções, é preciso que eles
lências atuais. Não sendo possível desenvolver o conjunto dessas .ijam." Como "eles" vão agir? Porque é o Estado Social, evi-
posições, proponho uma imagem ideal típica desse processo dl' dentemente, que é interpelado.
degradação interiorizada como destino, uma imagem d'Épinal :'IS
avessas. Apresenta os componentes de base do drama da condi
ção salarial de que a vulnerabilidade voltou a ser o quinhão: UI1I:1 /\ inserção ou o mito de Sísifo
vida, de agora em diante, "suspensa por um fio" após o desmoro
narnento das condições de uma integraçâo anunciada e até mcs Paradoxo: num período caracterizado pelo fortalecimen-
mo celebrada antes que se realizasse'". Ic} do liberalismo e pela celebração da empresa, as intervenções
N os anos 8O - tarde demais em relação à trajetória ascende 1I ,Ic, Estado, particularmente no domínio do emprego, são nu-
te da sociedade salarial - um casal "tem acesso à propriedad.:" IlllTOSaS,variadas e insistentes como nunca foram. Porém,
com um pequenino capital familiar, ajudas, empréstimos. M:1.':_1 lxm mais do que a um aumento do papel do Estado, é à trans-
mulher, pequena empregada sem status, quase em seguida é (I,' lurmuçâo das modalidades de suas intervenções que se deve
',(') sensível. Antes de tentar declinar suas nuanças, digamos, de
IIIl ,do rápido, o sentido da mudança: marca a passagem de fJo-
~8 P.Bourdieu, "Suspensa por um fio", in A miséria do mundo, Petrópol ix, \'"
,I
1I1 ;1115 desenvolvidas em nome da integraçâo para políticas cou-
zes, 1997, p. 425-427 .

.)36 S,17
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIU - A NOVA (~lIl·:STAU ,;( li 1:\1

duzidas em nome da Inserção. Emendo, por políticas de e medidas específicas para uma clientela de populações p.ur i
integração, as que são animadas pela busca de grandes equilíbrios, culares? Não, se não forem acrescentadas algumas prccisô.-s.
pela homogeneização da sociedade a partir do centro. São de- C0111 efeito, tal disti nção não é recente e precede () advento d:IS
senvolvidas através de diretrizes gerais num quadro nacional. É políticas de inserção. É sem dúvida, no domínio da proteção so
o caso das tentativas para promover o acesso de todos aos ser- cial, o princípio da clássica relação de complementaridade entre (I

viços públicos e à instrução, uma redução das desigualdades seguro social e a ajuda social. A Seguridade Social realiza uma s()
sociais e uma melhor divisão das oportunidades, o desenvolvi- cialização generalizada dos riscos, "cobrindo" os assalariados,
mento das proteções e a consolidação da condição salarial ". suas famílias e, finalmente, todos os que se inscrevem na ordem
Interpretarei aqui as políticas de inserção a partir de suas do trabalho. A ajuda social (assim rebatizada em 1953) herda a
diferenças, e até mesmo - forçando um pouco os traços - de função muito velha da assistência de dar recursos subsidiários a
sua oposição em relação às políticas de inregraçâo. As políticas todos aqueles cuja existência não pode ser assegurada a partir do
de inserção obedecem a uma lógica de discriminação positiva: trabalho ou da propriedade. Pesada herança que faz as subven-
definem com precisão a clientela e as zonas singulares do espa- ções da ajuda social, mesmo quando são um direito, depende-
ço social e desenvolvem estratégias específicas para elas. Po- rem de um teto de recursos ou de uma taxa de invalidez. É por
rém, se certos grupos, ou certas regiões, são objeto de um isso que, para a corrente modernista e progressista dos refor-
suplemento de atenção e de cuidados, é porque se constata que madores sociais, esse dualismo deveria desaparecer dentro de
têm menos e são menos, é porque estão em situação deficitária. um prazo determinado e um sistema único de proteções deve-
De fato, sofrem de um déficit de integração, como os habitan- ria assegurar a todos os cidadãos um conjunto homogêneo de
tes dos bairros deserdados, os alunos que fracassaram na esco- garantias legais - já era, como se observou, a opinião de Jaurés
la, as famílias mal socializadas, os jovens mal empregados ou em 1905, e também a de Beveridge e de Laroque, instituindo a
não empregáveis, os que estão desempregados há muito tem- Seguridade Social.
po ... As políticas de inserção podem ser compreendidas como Essa não é a orientação que prevaleceu. Ao contrário, bem
um conjunto de empreendimentos de reequilíbrio para recu- antes da "crise", a ajuda social diferencia-se e fortalece-se. Sua
perar a distância em relação a uma completa integração (um história, depois do fim da Segunda Guerra Mundial, é a de uma
quadro de vida decente, uma escolaridade "normal", um em- definição cada vez mais precisa do público-alvo de seus benefi-
prego estável etc.). Mas eis que hoje surge a suspeita de que os ciários, à qual correspondem especializações institucionais,
esforços consideráveis, que vêm sendo realizados, há mais ou t écnicas, profissionais e regulamentares cada vez mais minucio-
menos 15 anos, nessas direções, poderiam não ter, fundamen- sas. O Estado é parte interessada nesse processo. Legisla, funda
talmente, mudado a seguinte constatação: essas populações estabelecimentos especializados, garante a homogeneidade
são, talvez e apesar de tudo, na atual conjuntura, inintegráveis. dos diplomas e dos profissionais, coordena a implantação das
É esta eventualidade que deve ser encarada. instituições, bem como a colaboração dos setores público e pri-
É possível distinguir as políticas de imegração das políticas v:ld090. Cristalizam-se, assim, categorias cada vez mais nume-
de inserção a partir da diferença entre medidas de alcance geral

.,,,Sobre o espíri to dessa política que associa o alvo difícil das "populações dI'
X~Acrescentemos, porque se trata também do espaço, dos bairros, da cidade, I i\,'()", seu tratamento por meio de um recnicismo profissional de prcdouu
das políticas de planejamento, que a vontade homogcneizadora c centraliza u.iucia clínica e o desdobramento de grandes diretrizes administrativas (Til
dora da DATAR da década de 60 cxcmplifica perfeitamente . t r.rtx, cf R. Castel, La gestion des risques, op. cit., capo IIl.

.U8

I.
h METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIfI- A NOVA (~lJl~STA( ).\( li MI

nsas de beneficiários da ajuda social que são atendidas por um b nr. O conjunto
. d as proteções, se cmbaralha
L 95
. A multiplic.ic.ro
rgime especial: crianças em dificuldade, pessoas idosas "eco- dos públicos-alvo e das políticas específicas faz duvidar LI:l LI
rornicamente fracas", inválidos, famílias de baixa renda ou de- pacidade do Estado para conduzir políticas de integração COllI
sntegradas'". No início dos anos 70, assiste-se até mesmo ao vocação universal c hornogeneizadora. Entretanto, todas CSS;lS
ragrupamento de algumas dessas categorias em amplos COI1- populações que dependem de regimes especiais caracteri-
gomerados de populações que têm em comum o não poder zam-se por uma incapacidade para acompanhar a dinâmica &1
daptar-se às exigências da sociedade salarial. Lionel Stoleru sociedade salarial, seja porque são afetadas por alguma dcs-
cdescobre "a pobreza nos países ricos" e, menos do que com- vantagem, seja porque dispõem de muito poucos recursos para
htê-Ia, propõe estabilizá-Ia, assegurando uma renda mínima se adaptarem ao ritmo do progresso. O inchaço da categoria de
<DS "mais carentes" (imposto negativo/f). Não se trata mais de "inadaptados sociais" (três ou quatro milhões para René Leno-
tntar reduzir as desigualdades, mas de deixar o máximo de ir!) é o efeito dessa operação, que - diferentemente da maioria
nargem ao mercado, controlando apenas as consequências das desvantagens, perturbações psíquicas etc. - circunscreve
nais extremas do liberalismo. Mais ou menos no mesmo mo- lima população residual por subtração em relação às novas co-
nento, René Lenoir chama a atenção para "os excluídos", ter- crçôes, aliás não definidas, da sociedade moderna. A ina-
no que já é portador da indeterminação que depois daptação social é igualmente uma noção central no relatório
onservou: dois a três milhões de doentes físicos ou mentais, Bloch-Lainé: "São inadaptados à sociedade de que fazem parte
nais de um milhão de inválidos idosos, três a quatro milhões :IS crianças, adolescentes ou adultos que, por razões diversas,
c "inadaptados sociais,,93. Os remédios que defende são, to- 12mdificuldades mais ou menos grandes para agir como os ou-
ovia, mais generosos, pois propõe melhorar sua condição Iros,,96. O conceito subsrancialista da pobreza de ATD -quarto
oando é possível e, sobretudo, tentar prevenir os riscos de ex- mundo tem a mesma função: identificar, a partir de sua incapa-
~ dessas popu Iaçoes
cusao ~ 94 . cidade social, os rejeitados do crescimento.
Assim, no início da década de 70, a distinção Seguridadc Essa tomada de consciência de um princípio de heteroge-
,(cial- ajuda social, cuja complernentaridade era suposta co- ncidade numa sociedade tomada pelo crescimento marca, sem
•I{I vida nenhuma, um recuo das políticas integradoras globais e
multiplica os tratamentos especiais para as "populações com
1h década de 60, dois importantes relatórios apresentam as bases de lU1Ll problemas". Mas ela não impede o avanço da máquina social
jática específica, uma destinada à velhice (P. Laroque, Politique de Ia viei/
rse, Paris, La Documentation française, 1962; algumas de suas recornend.i nem a expansão do progresso. É também por isso que, a despei-
ôs serão retomadas no VI Plano) e outra relativa à desvantagem (F. I() da confusão quanto às operações de financiamento, essa
llch-Lainé, Etude du problêmegénéral de l'inadaptation des personnes han «voluçâo não submete novamente à discussão, de modo funda-
eapées, Paris, La Documentation française, 1969; está na origem da lei .lI
Dde junho de 1975, em benefício das pessoas desfavorecidas). A atcnç.«:
e.icada aos problemas próprios das famílias desfeitas leva, em 1976, à vot.i q, I:.. Alphandari, Action sociale et aide sociale, Paris, Dalloz, 1989, especial-
õ.da ajuda ao pai e/ou à mãe isolada (API), que, diferentemente dos snl.r 1111"111<: p. 118 esq, "La disrinction de l'aide sociale ct de Ia sécurité sociale".
lG-família, presta assistência à situação das "famílias monoparcntais", I,\ iSI em verbas sociais cada vez mais numerosas na fronteira entre esses dois
~lionel Sroleru, Vaincre Ia pauureté dans /es pays riches, Paris, Flarrunariou. , onjuntos: fundo nacional de solidariedade, subsídio para os adultos inváli-
9'3. ,]"'" i\PI. Cf. também C. Guirton, N. Kcrschcn, "Les rêgles du hors-jcu", tu
\~. Lenoir, Les exclus, Paris, te Scuil, 1974. I 'utsrrtion en questiones), Annales de Vaucrcsson, nOs 32-33, 1990.
\ nbre o contexto do conjunto da redescoberta da pobreza no início .1:1.I. '" I:. Illoch-Lainé, Étude du problemegénéral de l'inadaptation des perS01I/Il'S
na de 70, d. B. jobcrt, te social en plan, Paris, Éditions ouvrieres, 191) I . b.nultcapées, op. cit., p. lJ.l.

.41 ).fI
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL Vlll-ANOVA QlIFSIA() S( H 1/\1

mental, a distinção, presente em toda a história da proteção so- ção progressiva marca a instalação no provisório como modo
cial, entre a cobertura pejo trabalho para todos os que podem- de existência.
e portanto devem - trabalhar, e o acesso aos socorros que não Antes mesmo de surgir a noção de inserção no sentido que
podem ou estão dispensados de tal exigência por razões legíti- assumiu depois dos anos 8098, a nova temática começa a se de-
mas97. senhar com o rcaparecimento de uma velha preocupação que
É quando o aparecimento de um novo perfil de "popula- os anos de crescimento pareciam ter feito esquecer: a precarie-
ções com problemas" atropela essa construção, que emerge a dade de algumas situações de trabalho99. Assim, Agnês Pitrou
questão da inserção. É uma inovação considerável: não se trata descreve a fragilidade de algumas famílias operárias que po-
mais de abrir uma nova categoria no registro da deficiência, da dem cair na miséria mesmo não sendo "casos sociais" nem es-
desvantagem, da anormalidade. Esse novo público não depen- tando privadas de emprego, mas que estão à mercê do menor
de diretamente nem da injunção ao trabalho, nem das diferen- acaso'". Convidado, em 1980, pelo primeiro-ministro Ray-
tes respostas preparadas pela ajuda social. As políticas de mond Barre a elaborar propostas para reabsorver as "ilhas de
inserção vão se mover nesta zona incerta onde o emprego não pobreza" que subsistem na sociedade francesa, Gabriel Oheix
está garantido, nem mesmo para quem quisesse ocupá-Ia, e apresenta sessenta sugestões para lutar não só contra a probre-
onde o caráter errático de algumas trajetórias de vida não de- za, mas também contra a precariedade, e algumas delas contêm
corre somente de fatores individuais de inadaptação. Para es- medidas em favor do empregol'". No mesmo contexto, o da
SaS novas populações, as políticas de inserção vão precisar segunda metade do septenato de Valéry Giscard d'Estaing,
inventar novas tecnologias de intervenção. Vão situar-se quando a ruptura na dinâmica do crescimento se torna cada
aquém das ambições das políticas integradoras universalistas, vez mais sensível, aparecem os primeiros "pactos pelo empre-
mas também são distintas das ações particularistas com objeti- go" a fim de facilitar a contrataçâo dos jovens102, e implan-
vo reparador, corretivo e assistencial da ajuda social clássica.
Aparecem numa conjuntura específica em que, no fim dos anos '18Salvo engano, o termo inserção aparece antes, em dois textos oficiais: em
70, começa a se abrir uma zona de turbulência na sociedade sa- 1972 é instituído "um subsídio de inserção" para facilitar a mobilidade dos
larial. Será que estão à altura dessa perturbação? jovens trabalhadores; e o artigo 56 da lei de 1975, em benefício das pessoas
inválidas, diz respeito à "inserção ou reinserção profissional dos desvantaja-
É possível, hoje, começar a levantar esse tipo de questão, dos" (cf, P. Machouf, "L'insertion, un nouveau concept opératoire en scien-
porque as políticas de inserção já são desenvolvidas há mais ou ces sociales?", in R. Casrel, l-E Laé, Le RMI, une dette sacia/e, Paris,
menos 15 anos. No começo, têm um caráter pontual e impro .. l.Harmartan, 1992). Mas trata-se de usos pontuais que não mobilizam tec-
nologias específicas. Igualmente, inúmeras referências à "reinserção" dos
visado e se propõem a ser provisórias. Ninguém, sem dúvida, que saem da prisão dizem apenas que é necessário ajudar, através dos meios
teria podido então antecipar seu alcance. Mas sua consolida apropriados, os ex-prisioneiros a se adaptarem a uma vida normal.
Cf. M. Messu, "Pauvreré er exclusion en France", in E-X. Merrien, Face à
'J'J

Ia pauureté, Paris, Édirions ouvrieres, 1994, e M. Autês, Travail social et pau-


ureté, Paris, Syros, 1992.
97 Assim, a despeito das aparências, a AJ>Tconserva, reinrerprctando-o 1111
11111 Cf. A. Pitrou, La vie précaire. Des [amilles face à leurs difficultés, Paris,
contexto da sociedade moderna, esse critério muito antigo para o acesso 'li I.·, (NAF, 1980.
socorros. A mãe que cria seu filho sozinha é provisoriamente dispensada d"
1111 G, Oheix, Contre Ia précarité et Ia pauureté. Soixante propositions, Paris,
obrigação de trabalhar (subentende-se que ela deve, durante três anos, dcd I
ministêre de Ia Santé et de Ia sécurité sociale, fevereiro de 1981.
car-se à criança). Mas, ao mesmo tempo, essa obrigação é essencialmcur.:
mantida, dado que, após o referido período, deverá retomar um emprego (,. 1112 Trata-se dos três "planos Barre" que, a partir de 1976, afetarão mais de 11111

subentende-se que ela encontrará um emprego). milhão de jovens e que (já) associam estágios de formação e iIlSCIl,:;l(l de

S42 Hi
AS MI~TAMORFOSES NA QlJESTAO SOCL\L vm . A NOVA ()IIF\I'i\() :,\ li ,1.11

tam-se operações "melhoria das condições de moradia e vida sas, ainda que às vezes trabalhem; nem emanação das d:ISS('~.
social" destinadas a agir no quadro de vida de alguns bairros perigosas, ainda que cometam, havendo oportunidade, ;llm

desfavorecidos't". Por trás dessas iniciativas perfila-se uma du- delituosos, nem verdadeiramente "pobres", pois não s;:ü I rcsi)',
pla tomada de consciência: a de que a pobreza poderia não só nados nem assistidos e se viram no quotidiano; nem exprcss.io
representar ilhas de arcaísmo numa sociedade voltada para o de uma cultura especifica de gueto, porque partilham os va!o
progresso, mas também depender de processos relacionados res culturais e consumistas de sua classe de idade; nem complct.i
com o emprego; a de que os problemas apresentados por al- mente estranhos à ordem escolar, porque são escolarizadt IS,
guns jovens não devem ser interpretados apenas em termos de porém mal etc., eles não são realmente nadadisso e, ao mesmo
inadaptaçâo pessoal, mas é necessário também levar em conta tempo, são um pouco de tudo isso. Interrogam todas as instâncias
a situação de emprego e as condições de vida. A sociedade sala- de socialização, mas nenhuma pode Ihes responder. Suscitam
rial começa a perder sua boa consciência. uma questão transversal, sobre a qual se pode dizer que é a
Entretanto, é no início dos anos 80 que se pode situar o questão de sua integração'í" e que se declina segundo múltiplas
nascimento oficial das políticas de inserção. Três relatórios es- facetas: em relação ao trabalho, ao quadro de vida, à polícia e à
boçam seus domínios próprios e sua metodologia 104. São con- justiça, aos serviços públicos, à educação ... Problema de lugar,
cernidas algumas categorias da população, sobretudo os ter um lugar na sociedade, isto é, ao mesmo tempo c correlati-
jovens, que não entram nas modalidades habituais da repre- vamente, uma base sólida c uma utilidade sociais.
sentação e da ação dos serviços públicos. A título de exemplo: A esse desafio, as "missões interministeriais" respondem
esses jovens de Mingucttes - que, em 1981, durante o verão, igualmente de modo transversal e global, por meio de uma re-
queimam carros por ocasião de longas noites de rodeio, o que composição dos métodos e das tecnologias de intervenção so-
foi divulgado com avidez pela mídia - o que, exatamente, pe- cial: localização das operações e centralização sobre objetivos
dem eles? Aparentemente nada de preciso mas, ao mesmo tem-
po, dizem muita coisa. Nem representantes das classes laborio IOSTanto aqui como no conjunto de meu objetivo, tomo o terrnoinregração
l'lll seu sentido geral que inclui a inregração dos imigrantes como um caso
particular. Um jovem de origem marroquina, argelina ou tunisiana, ou um jo-
vem negro, pode encontrar dificuldades suplementares para "integrar-se"
encargos para as empresas, a época, essa iniciativa provoca um verdadei r" por causa do racismo, da atitude de alguns empregadores ou locadores, e
clamor de indignação em inúmeros meios, cf, F. Piettre, D. Schiller, La nut-.
r.unbérn por causa de algumas características de sua socialização familiar.
carade des stages Barre, Paris, Maspero, 1979, Mas se podem representar desvantagens suplementares - mais ou menos
103 Os objetivos são "o estudo das medidas jurídicas, financeiras e administr.i 'OIllO representaram há um século para os jovens bretões ou há meio século
tivas que possam abrir para preocupações mais sociais a concepção, a produ p:lr;\ os jovens italianos -, esses traços inscrevem-se numa problemática co-
ção e a gestão do quadro da vida urbana, e o lançamento de algu Ill.I', 11111111 aos jovens de origem popular. Não existe na França, pelo menos nâo
operações experimentais" (journal officiel de 10 de março de 1977), .uuda, uma underclass constituída sobre uma base étnica, embora haja um
104 B. Schwartz, Einsertion professionnelle et sociale des jeunes, Paris, La I)" , oujunto de características socialmente desqualificadoras, baixo nível eco-
cumentation francaise 1981 para a formacão dos jovens de 16 a 18 anos S"I" 1"\lIlico, ausência de capital cultural e social, moradia estigmatizada, modos
qualificação; H. Dubedout, Ensemble rejairc Ia ville, Paris, La Documcnt ;\1' d,' vida reprovados etc., a que a origem étnica pode se acrescentar. Sobre ;IS
on française, 1983, para a reabilitação social dos bairros pobres; G. BOIIII' ,111 crenças entre os subúrbios franceses e os guetos americanos, cf., por cxcm-
maison, Prévention, répresslon, solidarité, Paris, La Docume nr.u«.« 1'111,L. Wacquant, "Banlieues françaises et ghettos noirs arnéricains, d,'
française, 1983, para combater a delinquência nos bairros desfavorcci.Io 1·.IIII:dgame à Ia comparaison", in M. Wievorka, Les uisages duracismc, Paris,
No mesmo contexto, estão inseridas as Zonas de Educação Prioritária (/.1,'1') I .11l\'couverte, 1992; sobre os problemas específicos criados pela integral::'"
iniciadas em '1981 pelo ministro da Educação nacional, Alain Savary, 1',11, ,1,.'0inugrautes em âmbito nacional, cf D, Schnapper, ta France de l'il111:p;rll! uut,
fortalecer os meios de cscolarizaçáo para as crianças mais desfavorecid,l', I'.IIIS, Gallimard, 1991.

544
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCJAL
VIlI -A NOVA ou 1,'.."1;\1 l',l H 1.\1

precisos, mobilização dos diferentes atores concernidos, pro- gerais são deterrninantes para dar a essas iniciati vas seu vcr.l.:
fissionais e não profissionais (parceria), novas relações entre o deiro significado. A este respeito, Bertrand Schwartz é pnfei
centraleo local-que atropelam as tradiçõesda ação pública- tarnente explícito: "Fazemos questão de marcar os [imius
e entre o tecnicismo dos profissionais e os objetivos globais a dessa ação porque não temos a ingenuidade de acreditar ljlll'
atingi r - que põem em xeq u e as trad ições do trabalho social. pequenas equipes locais, ainda que numerosas [... ], sejam Cl"
Essas práticas foram suficientemente bem analisadas para pazes de, sozinhas, resolver os problemas profissionais, culru-
que seja inútil voltar a elas aqui106; tampouco é indispensá- rais e sociais dos jovens"lOS.
vel, neste contexto, diferenciar as abordagens complementa- O que vai acontecer quando essas esperanças faltarem l'
res: traduzem uma mesma vontade de renovação das políticas quando a "crise", longe de estar resolvida, se endurecer e se
pu.iblilCas107 . instalar? A passagem das operações "Desenvolvimento Social
Na origem, elas eram pensadas e apresentadas como expe- dos Bairros" (DSQ - Développement social des quartiers) 3
rimentais e provisórias. Contemporâneas do início do pri- "Política da Cidade" ilustra o que, realmente, parece ser o des-
meiro governo socialista, inscrevem-se então nos objetivos tino comum dessas políticas de inserção. Os primeiros DSQ,
ambiciosos de uma política de relançamento da economia e do pouco numerosos, têm um caráter experimental notório, ba-
emprego, de inspiração keynesiana. Esperando a retomada, é seado, ao mesmo tempo, num forte investimento político e
preciso andar o mais rápido possível impedindo os riscos de numa vontade de inovação técnica. Enfatizam as potencialida-
explosões violentas nas zonas de fragilidade urbana (Desen- des locais de bairros e a reconstituição de identidades sociais
volvimento Social dos Bairros e Comitês de Prevenção da De- através do desenvolvimento de atividades autogeridas'?". Se-
linquência) e melhorar as condições de escolarização e de melhante efervescência ocupacional não deve ,absolutamente ,
formação de uma juventude cuja ausência de qualificação, ser desprezada, e se voltará a esse ponto. Porém, tudo se passa
mais do que a ausência de trabalho, torna "não empregável" como se as realizações mais dinâmicas tivessem cedido à tenta-
(Zonas de Educação Prioritária e operações "Novas Qualifica- ção - ou tivessem sido obrigadas - de fazer do bairro uma espé-
ções"). Melhorar a socialização dos jovens e ampliar a gama de cie de fenômeno social total capaz de se bastar a si próprio. Este
suas qualificações profissionais representam as condições ne risco de retirada num gueto levanta duas questões perigosas:
cessárias de um reequilíbrio para que possam estar no mesm. l
em que medida essas experiências são transponíveis e generali-
nível das oportunidades que lhes serão abertas. Condições 11l' ,,;í.veis?Sobretudo: em que medida podem ter meios para exer-
cessárias mas não suficientes. Medidas políticas e econômicas cer uma ação sobre parâmetros que escapam ao bairro, sendo
que este não é nem um reservatório de emprego nem mesmo
lima unidade completa de organização do espaço urbano?
106 Para um ponto de vista sintético sobre essas políticas, cf. J. Donzeloi. I'
Esrêbe, r;État animateur; op. cit.; para uma análise das implicações dexx.«.
novas abordagens sobre as formas clássicas de intervenções sociais, cf. J. 1\",.
te trauail social à l'épreuue du territoire, Toulousc, Privar, 1990. IIlK 1\ 5 I 1,. . .I c.:»:
.' c rwartz, .tnsertton socta e et professionnelle des [eunes, op. cito O pri-
107Visto que, frequentemente, estão associadas no trabalho de canu»: 11I1'lrO-mll1ISrrO,em sua carta-missão havia solicitado, aliás, que fossem aprc-
Encontram-se, amiúde, numa área classificada como "DSQ" (dévclol'l" ""Illadas propostas para que "os jovens de 16 a 18 anos nunca scj.uu
rnent social des quartiers/dcscnvolvirnentosocial dos bairros), "conscll«. , «ndcnados ao desemprego nem a empregos demasiado instáveis", o que iur-
municipal de prevenção da delinquência", uma "missão local" para a iw.<, ,,11,':\ um otunismo semelhante por parte do governo.
çâo dos jovens e estabelecimentos escolares sob o regime das "zonas dr ,..t" IIJ'I(1 M.·C. jaillet, ''L'insertion par I'éconornie", inÉvaluatio1Z de Ia /",/i/i
caçâo prioritária". 'lI/I' de Ia oille, vol. n, Paris, Délégation ministérielle de Ia ville,1 <)')\.

S46 .).{/
AS METAMORfOSES l\A QUESTAo SOC1AL
VlJ1 - A :\OVJ\ qIIlSI/\( l ',()(111

A criação da Delegação Interministerial da Cidade (DN- junho de 1991 ,fazia uma avaliação precisa da situação d() co n
Délégation interministérielle à Ia ville), em 1988, e depois a ,
Junto das rea I'izaçoes
- concernentes ao emprego 110 . (' .on. I111;1
do Ministério da Cidade, em 1991, tentam ultrapassar essas pela necessidade de fazer a empresa participar da dinâmica li;1
limitações territoriais. Vontade de suprimir o enclave dos inserção e, neste sentido, fazia apelo à consciência cidad.i d( lS
bairros ditos difíceis, cujos problemas, se, em parte, são de- empresários. É um convite que não ofende ninguém, 111;IS
vidos ao seu fechamento sobre si mesmos, não podem, en- pode-se duvidar de sua eficácia quando, por outro lado, os
tretanto, ser tratados somente in vivo, mas devem ser re- próprios empresários são autorizados, senão convidados, ;\
pensados no espaço da cidade. Esforço, sobretudo, para mo- obter ganhos de produtividade por todos ~s meios, inclusive
bilizar as diferentes administrações do Estado: o ministro da em detrimento do ernpregol".
Cidade tem por missão fazer todos os meios do poder público Cairia muito mal criticar essas políticas de uma maneira
convergirem para a solução do que se tornou, na linguagem unilateral. Evitaram, com certeza, muitas explosões e mui-
oficial, a questão social por excelência, "a questão da exclu- tos dramas, embora essa ação não seja facilmente "avaliável".
são". Os "contratos de cidade" engajam a responsabilidade Também funcionaram como laboratórios onde se experimen-
do Estado e dos poderes públicos quanto a esse objetivo prio- tou uma reorganização da ação pública. Talvez até desenhem
ritário e, para tal, fazem apelo à colaboração dos recursos e um novo plano de governabilidade, uma nova economia das
dos poderes locais. relações entre o centro e o local, novas formas de implicação
Mas depara-se com a mesma contradição encontrada, an- dos cidadãos, a partir das guais a democracia possa encontrar
teriormente, no plano da empresa. No contexto de concorrên- uma fiontc (e renovaçao-. -11l

cia e de busca da eficiência, que prevalece também entre Entretanto, o balanço das políticas territoriais convida
aglomerações, os responsáveis locais podem - ou querem - jo- também a ser extremamente prudente quando se fala, como
gar, ao mesmo tempo, a carta do sucesso econômico e da exce- hoje ocorre com frequência, de um "deslocamento" da ques-
lência , bem como a da assistência aos "desfavorecidos"? A r.io social para a questão urbana. É claro que, numa sociedade
política social local voltada para os "excluídos" corre o risco XO% urbanizada, a maioria dos problemas sociais tem um qua-
de, assim, ser um jogo à margem que consiste em fazer, no local, dro urbano. É claro também que, em alguns locais, vêm crista-
o mínimo para evitar os disfuncionamentos demasiado visíveis, lizar-se, de modo particularmente dramático, todos os
quando não puder descarregá-Ias sobre a municipalidade vizi problemas que resultam da degradação da condição salarial-
nha. taxa elevada de desemprego, instalação na precariedade, rup-
Em se tratando do emprego, a questão é ainda mais grave, ;'1 tlira das solidariedades de classe e falência dos modos de trans-
medida que, salvo exceções, as "verdadeiras" empresas evita
ram, desde o começo, envolver-se nesse movimento. As pol ít i
cas locais propiciaram realizações originais e interessantes. 1111
M. Aubry, M. Praderie, Entreprises et quartiers, Paris, Ministério da Cida-
como as administrações de bairro por agentes nomeados pcI« .Ito, 1991.
Poder Público e que criam, no local, empregos específicos P;lLI 111('fMC]'11
'. .-. ai et, "L'imsertion
. par I"economie','''1 OCo .
at.
os habitantes. Mas continuam muito limitadas (existe, atual 11' Sobre esses pontos, d. J. Donzelot, P. Estêbe, LÉtat animateur, o/!. cit .
mente, cerca de cem administrações de bairro). Um relatório 1'.lra lima apreciação mais desencantada com o impacto dessas mesmas p()líl i
, .IS, ef. Ch. Bachman, N. Lc Guennec, Vio/ences urbaincs, 1945-1992, 1';lris,
de Martine Aubry e Michel Praderie, entregue ao governo ('111 Alhin Michcl, 1995 (no prelo).

S48
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIl! - A NOV J\ ()lll 'STAI ) ',I li 1\ I

missão familiar, escolar e cultural, ausência de perspectivas e local dos conflitos. A questão suscitada por uma políticl I. 11.11
dee projeto
oroi para contro 1ar o f uturo etc. 113 . não é apenas uma questão de escala (o local seria "dClll:1Si:ldl)
Mas, assim como uma sociologia apressada cristaliza na pequeno" para nele se desenvolver uma "grande" polít i':I).
"exclusão" e nos "excluídos" um questionamento que perpas- Trata-se sobretudo da questão da natureza dos parâmetros q 11<'
sa o conjunto da sociedade, também existe uma tentação de fa- uma ação centrada sobre o local pode controlar. A possibil id:1
zer do enclave num território a projeção espacial- ou a metáfora- de de efetuar redistribuições globais e de desenvolver llcgol.i:1
da exclusão, e de acreditar tratar de uma ao tratar da outra. Se- ções coletivas com parceiros representativos escapa-lhe 11,.
ria melhor falar de gestão territorial dos problemas, o que é Uma política territorial é empurrada para uma lógica sistêmi
muito diferente. Michel Autês distingue, com razão, políticas ca: circunscreve um conjunto acabado de parâmetros COI1(TO
territoriais de políticas territorializadas1l4. Em certo sentido, láveis no aqui e agora, e a mudança resulta de um reequilfbrio
sobretudo depois da descentralização, qualquer política é territo- dessas variáveis bem circunscritas. A mudança é, então, um rc
rializada, porque deve ser aplicada localmente a um território. ordenamento dos elementos internos ao sistema mais do que a
Uma política territorial, ao contrário, mobiliza, essencialmen- transformação dos dados que estruturam, de fora, a situação.
te, recursos locais para tratar in situ um problema. Nisso re- Evidentemente, as políticas locais de inserção, sobretudo
side sua originalidade, mas também sua ambiguidade. Rompe na versão "política da cidade", tentam escapar a esse fecha-
a relação de instrumentalização do local pelo central, mas cor- mento. Porém, pelo menos quanto à questão do emprego, que
re o risco de degradar-se em empreendimento de manutenção nos interessa de modo especial aqui, entram em choque C0111
um bloqueio absolutamente compreensível. Se a gestão do em-
prego é confiada à esfera local, é porque não encontrou sua so-
113 Seria necessário, amiúde, nuançar esses diagnósticos sombrios. De um lução alhures, no plano das políticas globais. Corre o risco,
lado, porque se trabalha, se vive, se relaciona e também se ama nas cidades, o
que mostram bem Jean-François Laé e Numa Murard, em L'argent des pau então, de se tornar a gestão do não emprego através da implan-
vres, Paris, Le Seuil, 1981. De outro lado porque, por meio de uma postura tação de atividades que se inserem nessa ausência e tentam fa-
que lembra a dos filantropos do século XIX, muitos "observadores sociais',' zer esquecê-Ia.
estão mal situados para apreender a positividade das práticas populares. I'
possível que certas partes antigas e subúrbios sejam o equivalente, "pós-mo
Ao lado de sucessos circunscritos, como as administrações
demo" digamos, dos bairros populares e que, evidentemente, não podem S(,I de bairros, isso parece ser o que ocorre de modo geral. Um re-
reconhecidos quando se projeta sobre eles a imagem populista idealizada .I" latório de 1988 constatava que a maior parte das operações
"bairro popular", tipo Ménilmontant da "Belle Epoque", com seus bar •.".
I)SQ não continha programa econômico e não havia criado
suas canções, suas tabernas e suas jovens costureiras - mas também com SII.'
miséria, sua raiva e sua violência, que eram menos poéticas. Sobre esse pOIlI", empregos, bem como que o desemprego não havia regredido,
cf. as considerações de Daniel Behar, "Le désenclavement, entre le social ( I,
local, Ia Politique de Ia Ville à l'épreuve du territoire", in ÉvaLuation de la I'"
litique de la uille, op. cit., vol. n. Deve-se lembrar, igualmente, que aquilo qlll 1,1\ Mesmo no âmbito da localidade, o problema da participação dos "usu.i-
alguns chamam de "a crise urbana" não começou hoje. Basta ler Victor J'IIII',', IIOS" nesses dispositivos propicia avaliações mitigadas. Por exemplo, UI11;1
ou a crônica das variedades na imprensa da "Bcllc Epoque" para cntcn.l. 1
llt'sqUlsa baseada em nove dossiês apresentados por cidades para obterem um
como os parâmetros objetivos de tal "crise" (a degradação da moradia 11' 11" 1
v ontrato para desenvolvimento social dos bairros mostra que apenas 1111111
lar, o superpovoamento, a presença das "classes perigosas" na parte antig;1 ,I., '.ISO uma associação de usuários desempenhou papel importante e, assilll
cidade etc.) eram também e até muito mais denunciadas do que hoje. O qlll. 11I('SIllO, tratava-se de uma associação que tinha ligações com a municipali.l.i
novo é, sem dúvida, a propensão a tratar preferencialmente a partir do 1<'11 1 .1(' (cf M. Ragon, "Médiation et société civile: l'exemple de Ia politiquc d •. LI
tório uma "crise" social muito mais geraL I' 111 •. ", in La [ormation de lassentiment dans les politiques publiques. '/;'1/'/1;
114M. Aures, Trauail social et pauureté, op. cit., p. 287 sq. 'I//I'S, territoircs et sociétés, n'" 24-25,1993).

sso \ \ I
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCJAL VJII - A NOVA qlll'.SII\\) ',I )(1\ 1

tendo até, às vezes, aumentado. O relatório convidava a se fa- vidade meios adequados de existência" 118. Assim, csr.io sil 11.1
zer uma revisão a fim de reduzir a ambição dessa política: "ela dos no mesmo plano e beneficiam-se dos mesmos direilos
não poderia ter a pretensão de resolver o problema do desem- todos os que pertencem à esfera da velha" desvantagem" c: os
prego e da qualificação dos homens; pode, apenas, evitar que que deveriam pertencer à esfera do mercado de trabalho.
uma parte da popu Iaçao _. seja comp Ietamente exc.IUlC/ Ia ,,116 .. E'
Em segundo lugar, esse direito de obter "meios adequados
claro que tais políticas não poderiam ter o poder exorbitante de existência" não é um simples direito à assistência. É um d i-
de vencer o desemprego. Porém, ao decodificar este tipo de reito à inserção: "A inserção social e profissional das peSSO;lS
mensagem - "evitar que uma parte da população seja comple- em dificuldade constitui um imperativo nacional"Jl9. O COI1-
tamente excluída" - é necessário entender que seria bom de- trato de inserção é a contrapartida da atribuição de recursos
mais, se fosse possível gerenciar no local as turbulências sociais que liga o beneficiário à realização de um projeto, mas que
e criar um mínimo de trocas e de atividades nos espaços amea- compromete igualmente a comunidade nacional que deveria
çados de anomia completa. Ninguém, exceto os partidários da ajudá -10 a realizar esse projeto. Tentativa de quebrar a imagem
política do pior, pode contestar o interesse desses esforços. secular do "mau pobre", que vive como parasita quando deve-
Contudo, é preciso ser singularmente otimista para ver nessas ria trabalhar, mas também de fazer desaparecer o estigma do
práticas de manutenção as primícias de uma "nova cidadania". assistido, beneficiário passivo de um socorro que é a contra-
Não se constrói cidadania sobre inutilidade social1l7. partida de sua impotência para se assumir a si próprio.
A apreciação que se pode começar a fazer da Renda Míni- Essa transformação decisiva da ajuda social resultou da to-
ma de Inserção é do mesmo tipo. A RMI generaliza a proble- mada de consciência da existência desse novo perfil de pessoas
mática da inserção, pois concerne ao conjunto da população carentes, às quais não se pode mais imputar a responsabilidade
com mais de 25 anos e cuja renda se situa abaixo de um certo de sua condição desafortunada. Não se poderia, pois, nem cul-
patamar. Representa, igualmente, uma inovação considerável pabilizá-los por uma situação de não trabalho que não escolhe-
em relação às políticas sociais anteriores por duas característi- ram, nem tentar cuidar deles ou reabilitá-Ias, colocando-os
cas. Pela primeira vez na história da proteção social, considc numa das categorias clássicas da ajuda social. É preciso aju-
rando-a num longo período, o corte entre as populações aptas dá-Ios a reencontrar um lugar "normal" na sociedade 120.A no-
para o trabalho e as que não podem trabalhar é recusado: ,;iío de inserção designa esse modo original de intervenção e se
"toda pessoa que, em razão de sua idade, de seu estado físico
ou mental, da situação da economia e do emprego, encontra-s.'
IISLei n" 88-1088, de 1 de dezembro de 1988, sobre a Renda Mínima de
0

na incapacidade de trabalhar, tem o direito de obter da colct i IlIScrção,journalofficiel, de 3 de dezembro de 1988. Essa formulação é reto-
m.uia do preâmbulo da Constituição de 1946, mas até então não tinha tido
uruhum começo de execução.
116 F. Levy, Le déoeloppement social des quartiers. Bilan et perspectiues, Pan. 1I'I'bid.
1988. Cf. tambémJ.-M. Delarue, Banlieues en difficultés: Ia relégation, ]';111
I '[) Ik fato, o público dos beneficiários do RMI é heterogêneo. A nova medi-
Syros, 1991, especialmente p. 40 e sq, que evoca o "agravamento" da si! li.'
çâo dos jovens entre 1981 e 1991. Para uma análise sociológica desses Im.1I ,LI "recuperou" antigas figuras da pobreza de tipo quarto mundo que não
1'1 ;111) atendidas pelos dispositivos anteriores da ajuda social. No entanto, ;J
cf. F. Dubet, D. I.apeyronnic, les quartiers d'exil , Paris, te Seuil,199J.
I)n's~:nça d~s que comcçar.nn a ser chamados, a partir de 1984, de "novos po
117 Para um balanço sobretudo pessimista do que foi, ou melhor, do qur I).",
1'1 ,·s , ISto e, um novo perfil de carentes desestabilizac!os pela crise, é que d('
foi feito em matéria de cidadania local, cf. C. Jacquier, "I.a citoyenneté 11I1l.1I ·.•·II<·adeoua mobilizacáo que está na origem da instauração da renda mín i 111;1
ne dans les quarticrs europécns", in J. Roman, Ville, cxclusion. citOYCIIII"I,
,I,· mscrção (cf. R. Casrcl, J-F. Laé, "La diagonale du pauvrc", in Le RMI, tuu:
Entretiens de Ia ville, tr, Paris, F"ditions Esprit, 1993. ,/1'/11' sociale, op. cito

JS2 11;
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOClAl. VIIl-A NOVi\ ()IJI'.\T;\( )\( )(1/\1

dá com o contrato sua metodologia: construir um projeto que transita através do matagal dos "empregos ajudados" c d()s ('s
engaje a dupla responsabilidade de quem recebe a subvenção e tágios e representam, igualmente, cerca de 15% do efetivo I' I.
da comunidade, e desembocar na reinscrição do beneficiário OS 70% restantes dividem-se entre desemprego, em gcral u.io
no regime comum. indenizado, e inatividad e 124.
O artigo primeiro da lei de 1988 contém, entretanto, uma Disso resulta que, para a grande maioria dos beneficiá rios,
ambiguidade fundamental. ''A inserção social e profissional o RMI não desempenha o papel que se supunha que tivesse IlO
das pessoas em dificuldade ... " Inserção social e profissional, espírito de seus promotores: representar uma etapa transitó-
inserção social ou profissional? Esta formulação provocou vio- ria, uma ajuda limitada no tempo para permitir às pessoas em
lentos debates quando da elaboração da lei 121. Mas depois de dificuldade que atravessassem um momento' difícil, antes de
alguns anos de aplicação do RMI, a ambiguidade se decantou. pôr o pé no estribo. Porém, se não funciona como uma peneira,
Essas duas modalidades de inserção abrem-se para dois regis- o RMI torna-se um beco-sem-saída onde correm o risco de ser
tros completamente distintos de existência social. A inserção espremidos todos aqueles cuja existência não é justificada soci-
profissional corresponde ao que se chamou até aqui a integra- almente. E a constatação que fazem, em termos mais ou menos
ção: encontrar um lugar pleno na sociedade, reinscrever-se na explícitos, os relatórios de avaliação: "O RMI é uma baforada
condição salarial com suas sujeições e suas garantias. Em con- de oxigênio que melhora, marginalmente, as condições de vida
trapartida, uma inserção "puramente" social abre-se para um dos beneficiários, sem poder transformá-Ias [...]. Permite que
registro original de existência que cria um problema inédito. os beneficiários vivam melhor onde se encontram'{", Ou ainda,
Primeiro, do ponto de vista quantitativo: todas as avalia- a respeito do sentido que na maioria das vezes assume o contra-
ções do RMI (são numerosas, pois nenhuma medida social to de inserção: ''A noção de contrapartida atenua-se em provei-
nunca foi acompanhada de tal abuso de estudos, pesquisas c to de uma noção que poderia ser a de acompanhamento do
acompanhamentos de todas as espécies) demonstram uma dis- contratante na situação presente,,126.
paridade completa entre os dois tipos de inserção. Ponderando Em outros termos, em que pode consistir uma inserção so-
várias séries de dados, pode-se adiantar que cerca de 15% dos cial que não leva a uma inserção profissional, isto é, à integra-
beneficiários do RMI encontram um emprego, estável ou prc
cário122. Ademais, um número importante de beneficiários também Le RMI à l'épreuue des faits, Paris, Syros, 1991, que apresenta avalia-
,6es solicitadas pela Iissâo pesquisa-ação em cerca de 15 departamentos, S.
l'augam, La société [rançaise et ses pauvres, l'expérience du RMI, Paris, PUF,
121 A portaria de 9 de março de 1989 parece decidir claramente no sentido d.1 1993, S. Wuhl, Les exclus face à l'emploi, Paris, Syros, 1992.
inserção profissional: "Para a maioria dos beneficiários do RMI, a medida d,' 1.'.\ Cf. S. Paugam, "Entre l'emploi et l'assistance. Réflexion sur l'insertion
inserção deverá ter como objetivo, de prazo mais ou menos longo, a inserç.i« professionnelle des allocataires du RMI", Travail et emploi, n" 55, 1993.
profissional. Com efeito, é assim que uma autonomia e uma inserção soci.il 1' .'1 Convém observar também que, como mostra a pesquisa do CERC, :1
duradouras serão melhor garantidas" (Ministério da Solidariedade, da Sl')'.II maioria dos beneficiários que consegue trabalho não o encontra através dos
ridade e da Proteção Social, portaria de 9 de março de 1989,Jaurnal affi,;,", disposirivos do RMI propriamente dito. São pessoas que desenvolveram SlI:lS
11 de março de 1989, § 2-3). próprias estratégias profissionais, visto que, aparentemente, o RMI lhes d:í
122 Cf. P. Valcrcybcrghe, RMI, Le pari de l'insertion, rapport de Ia Cormnis. pouco espaço para respirar.
on nationale d'évaluation du RMI, Paris, La Documentation française, 1')'1 • 1.'\ l.e RMJ à l'épreuue des [aits, op. cit., p. 63.
2 tomos. Duas grandes pesquisas nacionais foram realizadas pelo CI'.I(I
("Atouts et difficultés eles allocaraires du RMI", C~RC, n" 102, Paris, 1.;1 1),. I'" lbid. Para lima reflexão sintética sobre o sentido da noção de contr.uo 11(1
cumentation française, 1991) c pelo CREDOC ("Pane! RMI-CRFI)( )t It MI, cf. R. Lafore, "Les trois défis du RMJ",Actualité juridique, n" 10, otu li
IlIO de 1989.
synthêse des quatre vagues denquêtes", abril de 1992, mimeografado. ( I

SS4 \ \ \
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIlJ -/\ N()VA (,111'.\1.'\1 I ','" 1,11

ção? Uma condenação à eterna inserção, em suma. O que é "estado transitório-durável" a respeito da situação dI' ;d)',IIII',
um inserido permanente? Alguém que não se abandona com- que estão desempregadoshá muito tempoF", É tal11h0111 (11',.;1.1
pletamente, que se "acompanha" em sua situação presente, te- tuto de muitas operações que se montam nos bai rros. ()S :1111
cendo em torno dele uma rede de atividades, de iniciativas, de madores esgotam-se em inventar projetos, em tornar possl'v,'i::
projetos. Vê-se, assim, em alguns serviços sociais, desenvol- os vínculos, em estruturar o uso do tempo em torno dc at ivid:1
ver-se uma verdadeira efervescência ocupacional. Esses es- des por eles suscitadas. Em último caso, seu trabalho co nxist «
forços devem ser subestimados, absolutamente. É uma ques- em construir espaços de sociabilidade diferentes daquele ,'111
tão de honra (mas talvez também de remorso) para uma que vive sua clientela, para lhe tornar suportável um quotid i;1
democracia não se resignar ao abandono completo de um nú- no que, sobretudo, é desesperador. Tornando emprestado ()
mero crescente de seus membros cujo único crime é ser "não vocabulário de Peter Berger e Thomas Luckman, poder-se-i.i
empregáveis". Mas essas tentativas têm alguma coisa de paté- dizer que a inserção tenta realizar uma "socialização secund.i
tico. Evocam o trabalho de Sísifo, rolando sua rocha que sem- ria", isto é, dependurar o indivíduo num "submundo insri-
pre volta a descer encosta abaixo no momento de atingir o tucional ou baseado em instituiçóes'l'Y. Mas as práticas
cume, porque é impossível encaixá-Ia num lugar estável. O su- "institucionais" que sustentam a inserção são lábeis e intermi
cesso do RMI seria sua auto dissolução por transformação de tentes, se comparadas aos outros "submundos" que estrutu-
sua clientela de sujeitos a inserir em sujeitos integrados. Ora, o ram uma vida comum e, em particular, ao do trabalho.
número de seus "beneficiários" diretos dobrou desde os primei Fragilidade acentuada ainda pelo fato de que, para os indivídu-
ros anos de exercício e hoje atinge perto de oitocentos mil. PaLI os que pertencem à esfera das políticas de inserção, a "sociali-
muitos dentre eles, a inserção não é mais uma etapa: tornou-se zação primária", isto é, a interiorização das normas gerais da
um estado. sociedade, através da família e da escola, está amiúde, ela pró-
A inserção como estado representa uma modalidade de ex i~; pria, em falta. Mais do que de socialização secundária de-
tência social muito curiosa. Não invento essa possibilidade. O n ver-se-ia, talvez, falar de "associal-sociabilidade". Por' esta
latório da Comissão Nacional de Avaliação do RL\1Ia evoca à SII.I rxpressão, emendo configurações relacionais mais ou menos
maneira mais diplomática: "para uma grande parte dos benefiii.i vvanescenres que não se inscrevem, ou que se inscrevem de
rios, essas ações os conduzem para um estado" transitório d 11 lima maneira intermitente e problemática, nas "instituições"
rável: "em situação de inserção, essas pessoas têm um st.tt u rvconhecidas, e que colocam os sujeitos que as vivem em situa-
I,,:jo de não ser um peso130•
intermediário entre a exclusão e a inserção definitiva" I li
Estado transitório-durável, posição de interino pUIILt
nente ou de inserido vitalício. Desses "estados", os bendi, 1.1 1'11
(\D, Demaziere',"La négociation de I'identité des chômeurs de longue
rios do RMI não têm a exclusividade. É também a situação .1., .1111'('(:
, Reuue [rançaise de sociologie, XXXIII, 3, 1992.
1"1

jovens que andam de estágio em estágio, às vezes com IH''III' I~Ikrger, T. Luckman, A construção social da realidade, 12a ed., Petrópo-
11'.,Vozes, 1995,
nos trabalhos antes de se desesperarem e abandonarem (',Lê:,' li' 1111. 1
\0 essa noção de "associal-sociabilidade",
)I'C cf. La gestion desrisques, op.
suportável trajeto do candidato à inserção. Querem, ,lI.' li'
,,1 IV Eu a havia proposto a partir da análise de situações de grupos CII!
,,';Ip,
eles, um "verdadeiro trabalho". Um autor fala, igualmcnr. , ' I, '1'''' ,I .ultura das relaçôes entre os integrantes torna-se autônoma c faz "SII-
, I<'.l.lIk".Também havia indicado que esseregistro de existência podia igll:d
111"111,' caracterrzar certas situações sociais em que os atores esrnv.uu
, '"'' kuudos a um jogo relacional por não poderem controlar a estrururu .1:1
127 P.Valercyberghc, RMl, Le pari de l'insertion, op. cit. t. l, ", , ,
I' ,
<l11I,H"I!), Desde então, as situaçócs desse tipo multip licararn-se,

556
AS Mr.:TAMORFOSES NA QUESTÃO SOCLAL VIII - A NOVA (~lll~STi\() ,';( li 1,\1

As políticas de inserção parecem, assim, ter fracassado na se tenham dedicado a insuflar tal "suplemento de social" (11<1
preparação, para uma parte importante de sua clientela, dessa sentido em que se fala de um "suplemento de alma") mais < III
transição para a integração que era sua pri rneira vocação. "Seja menos no momento em que aceitavam que as pressões CC()II')
no quadro do RMI, do crédito para formação e, mais geral- micas ditassem sua lei. Sob o signo da excelência, não h.i 1-',:1-
mente, do conjunto das políticas de inserção das populações nhadores sem perdedores. Mas para uma sociedade que 1I:í()
em via de exclusão, as políticas de inserção param à porta das abandonou seus ideais democráticos, ainda parece justo e pru-
empresas'r':". Tal constataçâo não as condena, pois, por en- dente que aqueles que perderam não sejam entregues a um des-
quanto, têm contribuído para evitar o pior, se pelo menos se tino de párias. Tal poderia ser o sentido das políticas de
pensa que a passagem ao ato de violência e a revolta são o pior a inserção: ocupar-se dos válidos invalidados pela conjuntura. Ú
evitar. Além do mais, na conjuntura econômica e social muito sua originalidade tanto em relação às políticas clássicas de aju-
tensa que as suscitou, enquanto pessoas perfeitamente integra- da social especializadas a partir de um déficit de sua clientela,
das resvalam, é particularmente difícil repor no regime co- quanto às políticas de integração que se dirigem a todos, sem
mum os que já se desengataram ou que estão fragilizados por discriminação. Fazem agir nessas zonas particularmente vul-
seu meio de origem e suas condições de vida. Mas então é pre- neráveis da vida social em que os "normais inúteis" se desenga-
ciso acrescentar que também tiveram uma outra função dis- taram ou estão prestes a fazê-lo.
tinta da que exibem ostensivamente. Apoiando-se numa Num sistema social que assegura um encadeamento sem
expressão que tem suas cartas de nobreza sociológica, dir-se-á rupturas das formas de socialização e das idades sociais (da es-
/ contn ib urram
que e Ias tam b em / para "Iaca mar o o t ano
/ . ,,132 . E vi-. cola ao trabalho, do trabalho à aposentadoria, por exemplo),
denciou-se na França, a partir do início dos anos 80, um con- não se fala de inserção, ela é dada por acréscimo: constituiria
senso bastante generalizado no sentido de aceitar a "coerção p 1eonasmo quanto a' noçao - de integraçao
. - 133 . Q uan do as engre-
maior" que a internacionalização do mercado e a busca a qual- nagens da sociedade salarial começam a jogar, a inserção se
quer preço da competitividade e da eficiência representam. apresenta como um problema e, ao mesmo tempo, propõe
Por causa de tal escolha, algumas categorias da população S(' uma tecnologia para resolvê-lo. Nomeia assim, simultanea-
sentiram enganadas. Será por acaso que a sobrecarga das polí mente, a distância em relação à integração e ao dispositivo prá-
ticas de inserção é contemporânea da assunção da empresa (' tico que é suposto suprimi-Ia. Porém a resposta também se
do triunfo da ideologia empresarial? Tampouco, sem dúvida, (' desdobra. No seio do público que se situa na esfera da inserção,
um acaso que sejam governos socialistas que, particularmente. alguns reintegram o regime comum. Os outros, como se esti-
vessem em estado permanente de perfusão, continuam sob um
regime social intermediário que representa um status novo
131 S. Wuhl, Les exc/us face à l' emploi, op. cit., p. 185. que devemos ao desmoronamento da sociedade salarial e à for-
132 E. Goffman, "Calrner le jobard: quelques aspects de )'adaptatioll " 111:1 atual de tentar enfrentá-lo.
l'échec", in Le parler [rais d'Erioing Goffman, rrad. fr. Paris, Editions de [\.1,
nuit, 1989. Goffman explica que, no jogo social, é preciso deixar se 11 'I " ,
uma saída honrosa para quem perdeu. O vencido, nessas condições, nâ: '1""
de completamente a dignidade e pode conservar lima "apresentação dI' ',I 1II Por outro lado, fala-se de inadaptaçâo, marginalidade, dclinquência ete.:
que não é totalmente desqualificada, mesmo que ele e seus comparsas 11.'" iprc existiu um halo bastante amplo de cornporramcntos
",'1 I não conformes,
sejam completamente ingênuos. Em contraparrida, as reações de qucm ',' ·.IlJ,rl"l'udo nos meios populares, em torno da integração "perfeita". Mas l"S-
afunda em seu fracasso são imprevisíveis e podem ser incontrolávci. Ir.uisgressões e ilegalidades não questionavam
·'.I~; a norma de conformid.nk
acrescentarei: sobretudo se não sabia que estava jogando. '11\ [u.mto parecia certo que o indivíduo, se quisesse, poderia intcgr.rr-sc.

SS8 S,')
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIII - A NOVA QUI;STÃ<) S<)(11\1.

. d o I-ruturo
A crise 134
ceses136 Seguindo tal lógica, o presidente do patronato francOs
declarava em 1983: "1983 será o ano da luta contra as COlT-
Os períodos conturbados são uma vantagem inesperada ções introduzidas na legislação ao longo das Trinta Gloriosas,
para os "fazedores de projetos", como se dizia no século o ano da luta pela flexibilidade"m.ldeia de que não se pode
XVIII. Não tenho, no entanto, a intenção de propor o meu. servir a dois senhores, e de que a "reabilitação da empresa" é o
Se é uma aventura cujo cenário somente a história escreve, o novo imperativo categórico a que a sociedade inteira deve con-
futuro é amplamente imprevisível. O amanhã comportará o formar-se.
desconhecido. Mas também será trabalhado a partir da he- Nessa perspectiva, a maior parte das proteções sociais são
rança de hoje. O longo percurso feito até aqui permite desta- a herança de uma época passada, quando compromissos so-
car conexões fortes entre a situação econômica, o nível de ciais eram compatíveis com os imperativos do mercado. Hoje,
proteção das populações e os modos de ação do Estado Social. têm um efeito de histerese que bloqueia a dinâmica da retoma-
Consequentemente, se é absurdo pretender predizer o futu- da, Esse efeito de inércia atua efetivamente. Quando Ronald
ro, é possível, contudo, desenhar eventualidades que o com- Reagan ou Margaret Thatcher tentaram aplicar uma opção ul-
prometerão num sentido diferente em função das opções que traliberal, tiveram que deixar, no entanto, que subsistisse gran-
forem feitas (ou, ao contrário, que não forem feitas) em maté- de parte das proteções sociais138. Mas, para os defensores de
ria de política econômica, de organização do trabalho e de in- uma tal política, esses resultados imperfeitos são devidos a dois
tervenções do Estado Social. Para simplificar, vou me restringir tipos de razões: as resistências dos grupos sociais que haviam
a quatro eventualidades. conquistado "privilégios" e o risco político de proceder a des-
A primeira é que continua a se acentuar a degradação da con- regulamentações demasiado brutais e demasiado rápidas. As-
dição salarial observável desde os anos 70. Seria a consequência sim, observa-se sempre uma diferença significativa entre as
direta da aceitação sem mediações da hegemonia do merca- posições teóricas dos ideólogos liberais e sua tradução política.
do. "Se 20% dos franceses são tão pouco qualificados quan-
to os coreanos ou os filipinos, não há nenhuma razão par;1 1.16 É verdade que um uso selvagem da desregulamentação, sob a forma, por
pagá-Ios a mais. É preciso suprimir o SMIC,,135. Esta asser- exemplo, de um recurso descontrolado à flexibilidade externa, pode revela r-
se comraproduceme para as empresas. Mas sua ponderação para salvaguar-
ção é uma injúria aos core anos e aos filipinos. Existe certa- dar uma remabilidade máxima é completamente distinta da preocupação de
mente, ou logo existirá, uma maior proporção dessa mão dt' manter a coesão social. A questão será, por exemplo: até que ponto posso cx-
obra estrangeira tão qualificada quanto seus homólogos fran rcrnalizar o máximo de atividades para ser o mais competitivo possível, e nâo
a dos custos, em termos de desemprego e de instabilidade dos empregos, de
ceses, que ocupam empregos de operário qualificado, de téc meu maximalismo produtivista.
nico, e até mesmo de especialista altamente preparado Clll 1.l7y Chotard, relatório para a assernbleia geral do CNPF, Paris, 13 de janeiro
informática, e que custaria muito menos caro, Não há nenhu de 1983, in M.-T Join-Lambert et al., Politiques sociales, Paris, Fondariou
ma razão econômica para não os preferir aos assalariados fra 11 Nationale des Sciences Poliriques, Paris, 1994. Sobre o modo brutal CO\110 o
patronato francês realizou a "modernização" em nome da flexibilidade nos
;1Il0S 80, cf A Lcbaube, Lemploi eu miettes, 01'. cito
!.IX Sobre os Estados Unidos, cf. F. Lesemann,La politique sociale amérir.unc,
134Retomo o título do artigo de KrzysztofPornian, "La crise de l'avenir ", I ,. l'aris, Syros, 1988; sobre a situação na Grã-Bretanha após a po litic.i d,·s("1I
Débat, n" 7, dezembro de 1980. volvida por Margareth Thatchcr, cf, L. Villc, "Grande-Bretagne: lc chtllll.ll',,·
U5 J Plassard, citado in B. Perret, G. Roustang, lléconomic contre Ia socict.: diminue, l'emploi aussi", dossiê de Eexpansion, n" 48, 2-J5 de jllllilo .I,.
op. cit., p. 104. 1994.

560
AS METAMORFOSES NA QUEST,\O SOCIAL VIJI -A NOVA (.1111::;1;\( )'.' )(1.\1

Para o ultraliberalismo, entretanto, isso são pesos sociológicos das primeiras concentrações industriais 141. Em segu: Ido 111)'.,11,
herdados de um passado acabado e que devem ser reduzidos a resposta a esse abalo foi a constituição de novas rcgIlLI<..oc>
p rogressi vamente. sociais - proteções sociais, propriedade social, direitos s( )ei:1 is.
Mas existe uma ubris do mercado que torna ingovernável A "invenção do social" é que domesticou o mercado e hum.uu
uma sociedade inteiramente submetida às suas leis. "O merca- zou o capitalismc 'Y.
do é o estado de natureza da sociedade, mas o dever das elites é Hoje estamos em uma situação completamente disri 11 ta. ( )
fazer dele um Estado de cultura. Na ausência de normas jurídi- aspecto Gemeinschaft da sociedade, ainda forte no século
cas, nas sociedades desenvolvidas como nas outras, ele volta à XIX, foi progressivamente erodido e os recursos em matéri.i
selva, assimila-se à lei do mais forte e fabrica a segregação e a vio- de solidariedade informal estão praticamente esgotados. Fo-
lência,,139. É também a lição que Karl Polanyi extraiu da obser- ram substituídos pelas proteções organizadas pelo Estado So-
vação do desenrolar da Revolução Industrial. O mercado "autor- cial e que, em relação aos aspectos essenciais, ocupam seu Iug:l r
regulado", forma pura do desenvolvimento da lógica econômi- hoje. Donde o caráter vital que essas proteções assumiram.
ca entregue a si mesma, é, estritamente falando, inaplicável, Erradicá-las não seria apenas suprimir "conquistas sociais"
porque não comporta nenhum dos elementos necessários para mais ou menos contestáveis, mas quebrar a forma moderna da
coesão social. Esta coesão depende de tais regulações pelo fato
fundar uma ordem social 140. Mas poderia destruir a ordem so-
de ter sido, em grande parte, construída por elas. Impor de
cial que lhe preexiste. Se o domínio da economia a partir do sé-
uma forma incondicional as leis do mercado ao conjunto da so-
culo XIX não destruiu completamente a sociedade, é porque
ciedade equivaleria a uma verdadeira contrarrevolução cultu-
foi limitado por duas ordens de regulação não mercantis. A so- ral de corisequências sociais imprevisíveis, porque seria
ciedade de mercado pôde ser aclimatada primeiro, porque se destruir a forma específica de regulação social instituída há um
instalou numa formação social em que as tutelas tradicionais e século. Um dos paradoxos do progresso é que as sociedades
as formas "orgânicas" de solidariedade ainda eram fortes: so- mais "desenvolvidas" são também as mais frágeis. Alguns paí-
ciedade predominantemente rural, com vínculos familiares ses - como a Argentina neoperonista - sofreram o efeito de
amplos e sólidos e redes eficazes de proteção próxima. Essa si
tuação anterior ao advento do mercado amorteceu suas poten
cialidades desestabilizadoras que sofreram diretamente só :IS 141Mais próximo de nós, é possível interpretar a considerável diferença
populações já à deriva (desfiliadas), os imigrantes do interior, quanto à gravidade da crise na década de 30 sofrida pela Grã-Bretanha e pela
desarraigados e pauperizados que constituíram a mão de obr.i França, em razão do fato de que a primeira já era uma sociedade quase intei-
ramente salarial e urbanizada, com a maior pane dos recursos e proteções de-
pendendo do trabalho industrial, ao passo que os "arcaísmos" franceses
permitiram amortecer a crise e encontrar solucões de recuo no campo no ar-
139 A Minc,Lenouveau MoyenÂge, Paris, Gallimard, 1993, p. 220. As an.ih rcsanato, e em formas de trabalho pré-indusmal (houve "somente" cerca de
ses de Michel Alberr (Capitalisme contre capitalisme, Paris, Le Seuil, ] 9'11 ) 11mmilhão de desempregados na França, nos anos 30), Na memória coletiva
desenvolvem-se no mesmo sentido. Se existem, esquematicamente, duas I,,, inglesa, ficou uma tal lembrança da Grande Depressão, que a luta pelo pleno
mas de capitalismo, não é porque o mercado enquanto tal reconheça frou«: emprego foi pensada, unanimemente, como a prioridade absoluta das políri-
raso Mas, em contextos diferentes, encontra forças contrárias mais ou nH'I" ,. l':1Ssociais após a Segunda Guerra Mundial, enquanto que o risco do descm-
poderosas. Nos países "anglo-saxônicos", elas lhe dão rédea solta, ao p:" .... , prego não era levado em conta na França nem mesmo pelos mais lúcidos.
que, nos países "rcnanos" ou "alpinos", o enquadram com fortes regul.«. ". 1·12 Lembremos que, para Polanyi, os impasses a que leva o mercado aurorn-
SOCIaIS. )',lIlado dão lugar a dois tipos de resposta: a constituição dos Estados SOli:li.';
140K. Polanyi, La grande transformation, op. cito IIOSpaíses que continuaram democráticos, mas também o fascismo 11:1!\ I,·
manha (cf, La grande transtormation, op. ·cit., capo XX).

562
AS METAMORFOSES NA QCESTAo SOCIAL \TU - A NOVA (~ll L"TiI( ) ',c )( 01,\1

desregulamentações selvagens à custa de enormes sofrimentos Anteriormente foram sublinhados os limites, O1dS r.uulun: ;1
mas, aparentemente, sem se arrebentar. Muito menos sofri- engenhosidade das políticas de inserção. O Estado não L'sg()
mento seria o bastante, sem dúvida, para dilacerar um país tou todas as suas capacidades para controlar os riscos de dcrr. I
como a França, pois não poderia recuar para a linha de defesa pagem da situação arual. Poderia melhorar suas perforrnancc-,
de formas mais antigas de proteção. As interações tecidas pelo sem mudar, fundamentalmente, o registro de suas intervenções.
Estado Social tornaram-se o componente maior de seu tipo de
Por exemplo, o RMI poderia ser um pouco mais generoso, l'
sociabilidade, e o social forma, de agora em diante, a ossatura
poderiam ser realizados esforços suplementares para mobil i-
do societal. Bastaria, então, deixar "as leis naturais" do mer-
zar melhor os diferentes atores da inserção: Omesmo poderia
cado reinarem totalmente para advir uma forma do pior cuja
ser feito quanto às políticas da cidade e do emprego, ao acom-
representação é difícil esboçar, salvo para saber que não com-
portaria as condições mínimas para formar uma sociedade de panhamento dos jovens ou dos desempregados etc, Deve-se
semelhantes. lembrar ainda que o Estado Social ajuda entre 11 e 13.000.000
Uma segunda eventualidade consistiria em tentar manter a de pessoas a não caírem na pobreza, relativa ou absolutaJ4s•
situação atual mais ou menos como está, multiplicando os es- Mas o papel do Estado não se reduz a distribuir subvenções so-
forços para estabilizá-Ia. Até aqui, as transformações que Sl' ciais. As potencialidades do serviço público para "lutar contra
produziram nesses 20 anos não acarretaram nenhum terrerno a exclusão" são grandes, mas ainda continuam amplamente su-
to social. Aparentemente, fortaleceram tantas posições qUL11l butilizadas. O Estado dispõe, em todo o território, de pessoal e
'
tas ciestruíram 143 . A'ssim, co 1ocan d o entre parenteses os d rarn.r:
A de serviços numerosos, variados e, às vezes, poderosos: reparti-
pessoais, numerosos mas em geral vividos na discrição, e ;11 ções da construção, dos transportes e das comunicações, da ar-
guns acessos de violência esporádicos mas bastante bem cir quitetura e do urbanismo, pessoal da polícia, da educação, dos
cunscritos aos meios já estigmatizados, não é impensável qu.: ,I serviços sociais ... Uma das maiores causas das dificuldades encon-
sociedade francesa possa suportar a invalidação social de 10<!.!) Iradas em alguns bairros decorre da fraca presença dos serviços
20%, ou talvez mais, de sua população. públicos. Estes poderiam engajar-se mais na política de discri-
Porque seria possível melhorar a gestão das situações <1111 minação no que diz respeito a regiões com problema, eventuali-
constituem problema. O Estado já está muito presente na :lS:;I' dade, aliás, prevista pelos textos146• O Estado poderia fortalecer
tência a elas. Em 1992, 1.940.000 pessoas passaram Jwl,), ~l'1Ipapel de fiador da coesão social a um custo que não seria

muito numerosos dispositivos de ajuda para o emprego I I I n;orbitante147. Enfim, o que se propõe fazer a política da cida-

143 Durante os anos 80, os lucros do patrimônio imobiliário e do CiI';!..! I, li', (:1'."Précarité etrisques d'exclusion en France", CERC, n" 109, op. cito
nanceiro, bem como os altos salários, aumentaram; a progressão do lO,)"1')"1" I I" "O princípio da igualdade de acesso e de tratamento não impede de dife-
dos impostos e das corizações sociais reduziu-se. A proporção da P0I'III." ", I,OI"OI;lros modos de ação do serviço público a fim de lutar contra as desigual-
concernida por esse superenriquecimento é difícil de estabelecer IlC:;',,\ o' '" ' ,l.ldes econômicas e sociais. As respostas às necessidades podem ser
em que a renda é pouco transparente, mas deve ter favorecido cerca .I, I' )'0 IloIlTl'llciadas no espaço e no tempo, o que deve ser feito em função da divcr-
da renda superior. Inversamente, a parte da renda detida por 10'),'f, doi" I"", 'di Lide das situações dos usuários" (Minisrere de Ia Fonction Publique et de Ia
lias mais pobres diminuiu 15% entre 1979 e 1984 (cf o relatório d,) ( I I" 1\ ("dcrnisation de l'Administration. Direction générale de l'adrninistration
Les français et leurs reuenus, le tournant des années quatre-uiugt, I',,, I I, , I dt' Ia fonction publique, Paris, 18 de março de 1992, p. 4).
Documentation française, 1989). ) 1 l'oclc-se levantar a hipótese de que a frequente tentação de "deslocar" ;1
144 M. Lallement, 'TÉtat et l'ernploi", in B. Eme, J.-L. Laville, e()/"''.I, '" 'I' w,.i;;o social para a questão urbana é devida a essa forte presença do 1':sLl
ale et emploi, op. cito ,I" 1111 território por intermédio dos serviços públicos, enquanto que o ES!;hl,)

564
VllI- " NOVA 12\I FS'(',\( I '.1 H 1.\ I
AS METAMOR}'OSES NA QUESTÃO SOCIAL

de, seria indispensável coordenar estreitamente todas essas Mas, de qualquer forma, existe um forte risco de lkgr;1 I. I 1 Il .,: 11

medidas no plano local para lhes dar a coerência que lhes falta. incontrolável que nos colocaria novamente no quadro (LI 1111
Essa opção "moderada" não é insensata. Aliás, comporta meira opção, a essa volta à "selva" que Alain Minc ~V()l;\.
duas versões. Uma, otimista, pensa que é preciso aguentar al- O sucesso de uma gestão mínima da crise pressupoc, Iglul
guns anos, ou alguns decênios, esperando a retomada e/ou a mente, que suas vítimas continuarão a resignar-se com SI)I rcr :1
consolidação do novo sistema de regulação que não deixará de situação que lhes é imposta. Tal projeção também não é absur
acarretar a instalação na sociedade pós-industrial. A outra, da. A história do movimento operário permite compreender 1I
mais cínica, não acha escandaloso que uma sociedade possa contrario aquilo que pode surpreender na atual a~eitação, 11:1
prosperar, aceitando uma certa proporção de rejeiradosv". maioria das vezes passiva, de uma condição salanal cada vel.
Mas esse quietismo, que prevaleceu até o presente na gestão mais degradada. A constituição de um~ força de contestação.L'
política da "crise", baseia-se em três condições que fazem duvi- de transformação social supõe a reunião de pelo menos trcs
dar de suas chances de poder manter por muito tempo o quase condicões: uma organização estruturada em torno de urna
status quo. condição comum, a pose de um projeto alternati:o de socieda-
Primeiramente, é necessário que a situação atual melhore, de o sentimento de ser indispensável para o funCIOnamento da
se mantenha ou não se degrade demais: que o deslocamento máquina social. Se a história social gravitou durante m~is de
internacional do mercado do trabalho possa ser controlado, um século em torno da questão operária, é porque o movunen-
que um "derramamento" razoável da mão de obra possa ser to operário realizava a síntese dessas três condições: .tinha seus
efetuado com categorias de emprego obsoletas rumo a novos militantes e seus aparelhos, era portador de um proJeto. de fu-
empregos produtivos, que a precarização das condições de tra- turo149, era o principal produtor da riqueza social na SOCiedade
balho não continue a se acentuar a ponto de tornar impossível industrial. Os supranumerários de hoje não apresenta~ ne-
vincular um mínimo de proteções à maioria das situações de nhuma dessas condições. Estão atomizados, só podem alimen-
emprego etc. Sem dúvida, quanto a essas eventualidades, nin- tar a esperança de ser um pouco menos mal colocado na
guém pode hoje ter certezas absolutas, num ou noutro sentido. sociedade atual e são socialmente inúteis. Consequentemente,
é improvável, a despeito dos esforços de grupos militantes mi-
150
não dispõe de pessoal próprio no âmbito da empresa (os inspetores de traba- noritários como o Sindicato dos Desempregados , que esse
lho estão limitados a um papel de controle e de intervenção depois do fato conjunto heterogêneo de situações serializadas possa dar ori-
ocorrido, e as "políticas de emprego" legislam de fora). Assim, a questão do gem a um movimento social autônomo.
território pode ser mais facilmente pensada como uma questão régia do que a
questão do trabalho, ainda que seja uma ilusão acreditar que a questão do em-
prego possa ser tratada no plano do território.
J48 Se essa segunda versão prevalecer - hipótese mais provável, se a situação 149 Era portador de dois projetos de organização social, um. "revolucionário"
atual se prolongar -, pode-se temer uma inflexão das políticas sociais num e um "reformista", cada qual com suas variantes; tal dualidade, ~om a con-
sentido cada vez mais assistencial, em nome de um raciocínio do tipo: as polí- corrência entre as organizações que a ele se vinculavam, foi, sem dúvida, lI11I;!
ticas de inserção são complicadas e dispendiosas, seus resultados são aleatóri- das razões básicas do fracasso do movimento operário. Entretanto, essas cor-
os, basta garantir um mínimo de sobrevivência aos mais carentes. A Rlvl] se rentes puderam pesar no mesmo sentido no momento das grandes "conquis
tornaria simplesmente uma renda mínima, e a política da cidade tomaria um tas operá rias" .
caráter claro de segurança públicaÉ a "solução" liberal, preconizada desde ISO Sobre o Sindicato dos Desempregados, fundado em "\982, cf, a puhli~;l\::-\()
1974 por Lionel Srolcru para dar liberdade de ação ao mercado. Seria tam- mensal Partage que é igualmente uma das melhores fontes de inforrnação s' I
bém o reconhecimento claro da sociedade dual e suainstitucionalizaçâo. bre os problemas de emprego e desemprego, ~obre os debates que ;lClITI'l;lIl1
e sobre a busca de alternativas para a situaçao atual.

1(,,.
566
AS METAMORfOSES I\:A QUESTÃO SOCIAL vur- A NOVA QUESTÃO SOCIAL

Mas a reivindicação organizada não é a única forma de dadc tomada como um todo. Não há nlnguém fora da
contestação. A ano mia suscita a violência. Violência na maio- sociedade, mas um conjunto de posições cujas relações com
ria das vezes sem projeto, devastadora e auto destruidora ao seu centro são mais ou menos distendidas: antigos trabalha-
mesmo tempo, e mais difícil de controlar à medida que não há dores que se tornaram desempregados de modo duradouro,
nada para negociar. Tais potencialidades de violência já exis- jovens que não encontram emprego, populações mal escolari-
tem, mas quando passam ao ato, frequentemente se voltam zadas, mal alojadas, mal cuidadas, mal consideradas etc. Não
contra seus autores (conferir o problema da droga nos subúr- existe nenhuma linha divisória clara entre essas situações e
bios), ou contra alguns sinais exteriores de uma riqueza inso- aquelas um pouco menos mal aquinhoadas dos vulneráveis
lente para os carentes (atos de delinquência, pilhagens de que, por exemplo, ainda trabalham mas poderão ser demitidos
supermercados, destruições ostensivas de carros etc.). Mas no próximo mês, estão mais confortavelmente alojados mas
ninguém pode dizer, sobretudo se a situação se agravar ou sim- poderão ser expulsos se não pagarem as prestações, estudam
plesmente se "mantiver", que tais manifestações não se multi- conscienciosamente mas sabem que correm o risco de não ter-
plicarão até o ponto de se tornarem intoleráveis, desembocando minar ... Os "excluídos" são, na maioria das vezes, vulneráveis
não em uma "Grande Noite", mas em numerosas noites violen- que estavam "por um fio" e que caíram .. Mas também existe
tas durante as quais a miséria do mundo mostraria a face oculta uma circulação entre essa zona de vulnerabilidade e a da inte-
de seu desespero. Uma sociedade democrática estaria, então, gração, uma desestabilizaçâo dos estáveis, dos trabalhadores
completamente desprovida, ou completamente desonrada qualificados que se tornam precários, dos quadros bem con-
diante da exigência de enfrentar essas desordens. Não com- siderados que podem ficar desempregados. E do centro que
portam, com efeito, nenhuma outra resposta possível senão a parte a onda de choque que atravessa a estrutura social. Os
repressão ou o fechamento em guetos, "excluídos" não têm nada a ver com a escolha de uma política
Existe uma terceira razão, a mais séria na minha opinião, de flexibilidade das empresas, por exemplo - salvo que sua
que torna injusriíicável a manutenção da situação atual. É im- situação é, concretamente, a consequência dessa escolha.
possível traçar um cordão sanitário entre os que habilmente se Encontram-se desfiliados, e esta qualificação lhes convém me-
livram de uma situação delicada e os que resvalam, e isso por lhor do que a de excluídos: foram des-ligados, mas continuam
uma razão de fundo: não há "in" e "out", mas um continuum dependendo do centro que, talvez, nunca foi tão onipresente
de posições que coexistem no mesmo conjunto e se "contami- para o conjunto da sociedade. É por isso que dizer que a ques-
nam" umas às outras. O abade Messonnier, quando denuncia- tão suscitada pela invalidação de alguns indivíduos e de alguns
va, na metade do último século, "a gangrena do pauperismo", grupos concerne a todo mundo não é só fazer apelo a uma vaga
não deixava transparecer apenas seu desprezo pelo povo. Se a solidariedade moral, mas, sim, constatar a imerdependência
questão do pauperismo se tornou a questão social do século das posições trabalhadas por uma mesma dinâmica, a do abalo
XIX e teve que ser claramente enfrentada, é porque constituía da sociedade salarial.
a questão da sociedade inteira, que corria o risco da "gangre- A tomada de consciência da existência de tal continuum
na" e da desestabilização, por um efeito bumerangue de sua pe- começa ase difundir+". Em dezembro de 1993, a revista Ia Rue
riferia sobre seu coração.
O mesmo ocorre hoje com a "exclusão" e por isso é neces-
151 Pode-se situar no fim de 1991-início de 1993 a repentina ampliação des-
sário manejar esse termo com infinitas precauções. Volto a ele sa tomada de consciência que teve muita repercussão nos meios de comuni-
uma última vez: a exclusão não é uma ausência de relação so- cação e nos discursos políticos. Efeito, sem dúvida, do patamar psicológico
cial, mas um conjunto de relações sociais particulares da socie- dos três milhões de desempregados atingido em outubro de 1992; também

568 \'69
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIII-ANov"qlIF:-;T,,()~,IH 1..\1

publicava uma sondagem CSA sobre "Os franceses diante da não é por acaso que seja apoiada pela juventude. "Pela priuui
- ,,152. R ea Imente, e,. preCISOser pru d ente em re Iaçao
exc Iusao - as
, ra vez depois da guerra, uma nova geração viu suas cond i(,Jl('s
sondagens, sobretudo quando incidem sobre um tema tão in- de inserção profissional agravarem-se em termos de elllprq.',( I
determinado. Os resultados dessa são, entretanto, perturba- num primeiro estágio, mas também de salário quando chcg« I ;j(

dores. Tudo se passa como se cada grupo tivesse interiorizado . d


fim e um percurso de i -
e lllserçao ,,154
.
os riscos objetivos que corre: os operários e os empregados es- Traduzindo, depois do fato, a perturbação da sociedade d;l
tão mais preocupados do que as profissões intermediárias e os segunda metade do século XVIII (era a véspera das comoções
quadros e, sobretudo, 69% dos que têm entre 18 e 24 anos te- inauditas da Revolução Francesa, mas evidentemente ninguém
mem a exclusão, contra apenas 280/0 dos que têm mais de 65 sabia disso no momento), Paul Valéry diz: "O corpo social perde
anos (dos quais, em compensação, 66% a temem para um pró- suavemente seu amanhã,,155. Talvez nossa sociedade também
ximo). Isso também é, sem dúvida, "a crise do futuro": uma so- esteja prestes a perder seu amanhã. Não só os amanhãs que
ciedade em que os idosos estão mais garantidos quanto ao cantam, enterrados depois de duas ou três décadas, mas a re-
futuro do que os jovens. E, de fato, as pessoas idosas ainda se presentação de um futuro pouco controlável. A juventude não
beneficiam das proteções montadas pela sociedade salarial, ao é, evidentemente, a única concernida, ainda que seja quem res-
passo que os jovens já sabem que a promessa do progresso não sinta, de forma mais aguda, essa ameaça. De modo mais geral,
será mantida. Esses números revelam um preocupante parado- perder o sentido do futuro é ver decompor-se a base a partir de
xo. Os que já estão fora do trabalho estão mais garantidos do que é possível desenvolver estratégias cumulativas que torna-
que aqueles que ainda trabalham, e sobretudo os que se prepa- riam o amanhã melhor para viver do que o hoje.
ram para entrar na vida profissional expressam a mais profun- A terceira opcão reconhece a perda da centralidade do traba-
da preocupação. As reações ao CIP (o "SMIC dos jovens"), na lho e a degradação da condição de assalariado, e tenta encon-
primavera de 1994 reforçam essas impressões. Não há mais trar-lhe escapatórias, compensações ou alternativas. Sem
bela homenagem à sociedade salarial do que a revolta desses dúvida, nem tudo deve ser deplorado na conjuntura atual. As
jovens, tomando consciência, bruscamente, de que estão ame- novas trajetórias profissionais parecem mais atípicas à medida
açados de não poder participar dela. Significativamente, essa que se lhes opõem os ritmos firmemente escandidos da socieda-
reação foi sobretudo obra de jovens relativamente privilegia- de industrial: escolaridade depois aprendizagem, casamento e
dos, ou pelo menos destinados a seguir as vias de uma promo- entrada por quarenta anos numa vida profissional contínua,
ção social que recompense os sucessos escolares e a ambição da acompanhada de uma curta aposentadoria. Eis aí um modelo
integraçâo por meio do trabalho. A adesão aos valores da so- superado, mas será que deve ser lamentado? (Lembremo-nos
ciedade salarial não é apenas uma defesa dos "privilégios", das denúncias do "metrô-trabalho-cama", que não estão tão
como uma crítica demagógica do "sempre mais" gostaria de fa- distantes.) Não será necessário, também, ler através das dificul-
zer acre diitar 153. E',ao contrano,
, . o temor d o " sempre menos " e
dades atuais os índices de uma mudança societal profunda, de
que "a crise" não é a única responsável? Transformações cultu-
das discussões sobre o balanço do poder socialista, que havia sido vitorioso
em 1981 graças, em grande parte, à crença das pessoas em sua capacidade 154 N. Questiaux, conclusão do relatório do CERC, Les français et leurs }'('I'I'
para resolver o problema do desemprego. nus, op. cito
152 "Exclusion, Ia grande peur", La Rue, n" 2, dezembro de 1993. 155P.Valéry, "Montesquieu", Tableau de Ia littérature française, t. 11, ""ri,;,
153 F. de Closets, Toujours plusf, Paris, Grasser, 1982. Gallimard, 1939, p. 227.

\/ I
570
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
VIU - A OV/\ (~llESIN) 0;( li .lAl

rais mais amplas afetaram a s.a~ialização da juventude e atrope- o que iria além do que Karl Polanyi denunciava através til- SII;1
laram. o ellCadeamento tradicional dos ciclos de vida. Toda a crítica do "mercado autorregulado". Ter feito da terra c do ILI
orgaUlz~ção da temporal idade social foi conturbada, e todas as balho mercadorias teve efeitos profundamente desesrabiliza
regulações que comandam a integração do indivíduo em seus dores do ponto de vista social. Porém, o capitalismo no século
diferentes papéis, tanto familiares quanto sociais tornaram-se XIX havia respeitado, ou melhor, não havia anexado cornpic-
. fi ' . 156 ., '
mais e~Ivels . Ao mves de ver anomia por toda parte, é preci- tamente, toda uma gama de práticas que são da esfera do que
so ~ambem saber reconhecer mutações culturais que tornam a chamei de proteção próxima. Aliás, é excitante constatar que ()
s~cIe~ade mais ágil, as instituições menos solidificadas e a orga- discurso otimista sobre as "jazidas de empregos" é, amiúde,
~IZ~Ç~O do trabaJh~ menos rígida. A mobilidade não é sempre mantido por uma família de pensamento extremamente críti-
sl11?n~~o de pr~c~ned.ade. Pôde-se, assim, mostrar que todas as co em relação ao Estado Social e que denuncia suas interven-
trajetórias profIss~onaIs caracterizadas por mudanças frequen- ções burocráticas e suas regulações gerais que quebraram as
tes d~ em~rego nao se reduzem a essa precariedade suportada formas anteriores de solidariedade. Em nome de uma apologia
que e efeito da desestruturação do mercado de trabalho. das relações de proximidade, será que se quer substituir o reino
Po~e-se tratar também de jovens que buscam seu caminho e ex- do regulamento pelo da mercadoria e fazer de toda relação hu-
penmentam, co~o fazem ao mesmo tempo no plano afetivo, mana (salvo no quadro familiar, talvez) uma relação suscetível
ant~s. de se e~tabIhzarem quando chegarem os trinta anosl57• Os de ser remunerada?
espintos mais prospectivos têm descoberto até mesmo que "o Segunda observação: quando se evocam os "serviços de
trabalho acabou", ou quase, e que está mais do que na hora de proximidade" e as "ajudas à pessoa", visa-se a uma confusa ne-
olhar alhures para não perder o que hoje se inventa de novo. bulosa que mobiliza saberes e aptidões completamente hetero-
. Entretanto, quais são concretamente os recursos mobilizá- gêneos. Quanto aos serviços à pessoa, é possível distinguir aí
V~I~para enfrentar essa nova conjuntura? Em primeiro lugar, pelo menos dois grandes tipos: alguns relevam do que Erving
dIra~, desde que se aceita desligar-se do modelo da sociedade Goffman chama de "serviços de reparação" 158. Essas formas
salanal e,desu~ "rigidez", existe uma vasta panóplia de empre- de "intervenção sobre outrem" são obra de especialistas dota-
gos POSSIV~IS.~E ~ caso desses inumeráveis serviços de ajuda à dos de uma competência técnica muito ou relativamente sofis-
pe~s~a, assrstencia a pessoas idosas e a crianças, auxílios do- ticada159. Trata-se, principalmente, das profissões médicas,
mesncos, serviços de manutenção de todas as espécies. Duas sociais, médico-sociais (pode-se também acrescentar os advo-
observações entretanto. gados, os arquitetos e os conselhos de todo gênero). Por inú-
Primeiramente, empreender o transformar sistematica- meras razões, e em particular por seu custo, a expansão desses
mente e.ssasatividades em empregos, seria promover, de modo serviços só pode ser limitada: não se vai propor uma psicanáli-
generaltzado, a "transformação da sociedade em mercadoria" , se a todas as pessoas em situação de isolamento social. Em con-
trapartida, existe um outro tipo de ajudas à pessoa cuja
necessidade se faz sentir por causa da quebra das formas de aju-
156 . da mútua informal que é induzi da pela urbanização, pelo estrei-
CfMB
..1: essin, Cours de uie et flexibilité temporel/e, tese de doutorado em
Sociologia, Paris, Universidade Paris VI!f .,')')')
1·7 ' ,'" .
:' C.-Nicole-DranCOllrt, Le labirynLhe de l'insertion; Paris, La Documenta- 158 E. Coffman, Asiles, op. cit., capo IV
non françalsc; 1991, e, do mesmo autor, "L'idée ele précarité revisiréc" Tra- 159 Para uma aná Iise elo campo das "intervenções sobre o outro", cf. A. ()giclI,
Va/I et emploi; n" 52, 1992. '
I.e raisonneinent psychiatrique, Paris, Méridicns-Klincksieck, 'l ')')0.

572 .,
\ / ~
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VJll- A NOVA Q lJISI't\( ) S< H :1/\ 1

tamento das relações familiares sobre a família conjugal, pelas tos pessoais e as regulações gerais. Mas são pouco visívris
pressões da organização do trabalho etc. O profissional sobre- socialmente e não ultrapassaram o estágio da experirncnraç.i. i.
carregado pode não ter tempo de levar seu cachorro para pas- A preocupação de promover uma "economia solidária" li•.•,
sear, e não poder pedir esse serviço a seus vizinhos, porque não isto é, de ligar a questão do emprego e a da coesão social, de cri-
tem nenhuma relação com eles. Pode também não saber cozi- ar vínculos, ao mesmo tempo que atividades, entre as pessoas,
nhar e pedir para lhe entregarem uma pizza ... Há aí, efetiva- é respeitável ao máximo. Porém, na situação atual, trata-se
mente, "jazidas de empregos", ou melhor, de subempregos, mais de declarações de intenção do que da afirmação de uma
que são, de fato, o financiamento de serviços de ordem domés- política. Igualmente, existe entre o emprego normal e a assis-
tica. André Gorz mostrou bem que essas relações de trabalho tência a inserção social e a requalificação profissional, o setor
não podem ser separadas de uma dependência de tipo servil comercial e o setor protegido, um "terceiro setor" também
que as constituem em "neodomesticidade't'v", Não só porque ch ama doo as vezes d e " econorrua.. socia 1,,163 . E ssas atrvi
ã . id a d es es-
são subqualificadas e sub-remuneradas, mas porque a materia- tão em via de expansão, particularmente através do tratamen-
lidade da tarefa a realizar prevalece sobre uma relação social de to "social" do desemprego, no seio do qual é, amiúde, difícil
serviço objetivada e institucionalizada. Está-se muito aquém decidir se o objetivo perseguido é o retorno ao emprego ou a
da relação salarial moderna, e até mesmo da forma que havia instalação numa situação que é, justamente, "intermediária"
assumido no início da industrialização, quando os parceiros entre trabalho e assistência. Essas realizações, que concerni-
em presença pertenciam a grupos estruturados pelo antagonis- ram a mais de 400.000 pessoas em 1993 e tendem a se auto-
mo de seus interesses. Esses famosos "serviços de proximi- nomizar numa esfera independente do mercado do trabalho
dade" podem, portanto, oscilar entre uma neofilantropia clássico, têm sua utilidade numa conjuntura catastrófica164•
paternalista e formas pós-modernas de exploração da mão de Entretanto, só como eufemismo é que se pode chamá-Ias de
obra, através das quais os ricos se oferecem, por exemplo, "ser- "políticas de emprego".
viços pessoais" financiados por reduções de impostos. Não se contestará, pois, que existam insuspeitáveis "jazi-
Sem dúvida, todos os serviços suscetíveis de serem criados das de empregos". Mas se a crise atual é, realmente, uma crise
não se reduzem a essas formas de neodomesticidade. da integração através do trabalho, sua exploração selvagem
Jean-LouisLaville desenvolveu agamamuito ampla desses ser- não seria capaz de resolvê-Ia. Poderia até mesmo agravá-lal'",
ViçOS161.Mas o cuidado com que tenta dissociá-los dos modos
de quase assistência ou de quase voluntariado mostra que mui-
to poucas realizações são, ao mesmo tempo, inovadoras e por- 162 Cf. J.-B. de Foucault, "Perspecrives de l'économie solidaire", inJ.-L. Lavil-

tadoras de futuro. Efetivamente, podem existir serviços que le, B. Eme, Cohésion sociale et emploi, op. cit., e B. Eme, "Insertion et écono-
mie solidaire", loc. cito
tentam mobilizar recursos monetários e recursos não monetá-
163 Cf. F. BaiLleau, Le travail social et Ia crise, Paris, IRESCO, 1987.
rios, articular a esfera pública e a esfera privada, os invesrimen-
164Cf. M. Elbaum, "Pour une autre politique de traitement du chômagc",
Esprit, agosto-setembro de 1994.
165 Há vime anos, quem viajava só podia ficar chocado com um contrasrc.
160 Cf. A. Gorz, Les métamorphoses du travail, op. cit., p. 212 5q.
Nos países "adiantados", e especialmente nus Estados Unidos, os serviços do-
161 J.-L. Laville, Les sciences de proximité en Europe; Paris, Syros, 1992; d. mésticos eram muito raros e caros e tinham sido substituídos, há basr.uu.:
também in B. Eme, J. -L. La vi Ile, Cohésion sociale et emploi; Paris, Desclée de tempo, pelos aparelhos eletrodomésticos. Contrariamente, nos países 1lll'1l0S
Brouwer,. 1994, as duas contribuições de J.-L. Lavillc, "Serviccs, ernploi ct "desenvolvidos", os empregados domésticos eram muitos e não CLlSI".IV;llll
socialisation", e de B. Eme, "Inscrrion cr économie solidairc". quase nada. Do pomo de vista histórico igualmente, a criadngcrn cr.i 1111111<'

1/\
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIII-A N( )VfI (~III'.'.II\( 1 ',1 " 1.\1

Se o emprego se reduz a uma "transformação de serviços em . pro fiissionais. 168 . Porem,


eras 'd o ponto dee VIsta
vi que ((OS (0(11 ('I
mercadoria", como fica o continuum das posições que consti- ne aqui, toda a questão é saber se o "derrame" dos l'1I11)1 (T,' I.'.
tuía a sociedade salarial, e que é sempre necessário também perdidos pode, ademais, produzir seus efeitos integr:dlll!"lllC'
para construir uma sociedade solidária? Um conglomerado de em direção a esses novos empregos. Arespostaé não, ;lil1<1:1 qllt'
baby-sitters, de garçons no McDonald's ou de empacotadores seja impossível hoje mensurar a amplitude do déficit.
nos supermercados faz "sociedade"? Isso não é dito com des- De outro lado, é certo que profundas transforrnaçócs (,s!;" I

prezo pelas pessoas que se entregaram a essas ocupações; mas, em curso na relação que os sujeitos sociais, e sobretudo os j()
ao contrário, é para que se interrogue sobre as condições que vens, mantêm com o trabalho. Talvez até estejamos a pOli «) (11'
fazem do emprego um vetar da dignidade da pessoa. Uma so- sair da "civilização do trabalho" que, desde o século XVII I, CI)
ciedade "de plena atividade" não é, apesar disso, uma socieda- locou a economia no posto de comando, e a produção na ha:«:
de de plena dignidade, e a maneira como os Estados Unidos do desenvolvimento social. Seria, então, demonstrar um apc .
resolveram parcialmente seu problema de emprego não é ne- go fora de moda ao passado subestimar as inovações que se
. ' fazem e as alternativas que se buscam para ultrapassar a COI1-
cessanamente, um exemplo a ser seguido. A metade dos oito
milhões de empregos criados nos Estados Unidos entre 1980 e cepção clássica do trabalho. Tanto mais que o que funda a dig-
1986 são remunerados por um salário 60% inferior à média nidade social de um indivíduo não é necessariamente o
dos salários indusrriais'f", e a multiplicação de trabalhadores emprego assalariado, nem mesmo o trabalho, mas sua utilida-
sem status nada fez, aparentemente, para combater esses gra- de social, isto é, sua participação na produção da sociedade.
ves sinais de dissociação social que são as violências urbanas as Reconheçamos, pois, que transformações societais profundas
se produzem também através da "crise", mas acrescentando a
taxas de criminalidade e de toxicomania, e a instalação de urna
isso, com Yves Barel, que seus efeitos possivelmente positivos
:erdadeira underclass miserável e desviante, completamente
permanecem, por ora, amplamente "invisíveis,,169. São perfei-
Isolada do conjunto da sociedade 'V.
tamente visíveis, em compensação, as armadilhas em que caem
Duas precisões convidam a nuançar essas apreciações, mas
os espíritos apressados em ultrapassar a alienação do trabalho
sem mudar-~hes a orientação. As transformações tecnológicas
e as sujeições da condição de assalariado. Tal ultrapassagem re-
em curso exigem também empregos qualificados, e altamente
presentaria uma revolução cultural de grande amplitude. Por-
qualificados. Pôde-se mesmo definir a "sociedade pós-indus-
tanto, é paradoxal que uma responsabilidade tão esmagadora
trial" pela preponderância de indústrias novas tais como a da
seja delegada aos grupos mais frágeis e mais carentes, tais como
informação, da saúde, da educação, difundindo bens simbóli-
os beneficiários do RMI, que deveriam provar que a inserção
cos mais do que bens materiais e mobilizando altas competên-
social vale a integração profissional, ou os jovens dos subúrbios,
obrigados a inventar uma "nova cidadania" quando se lhes
r?sa até o século XIX, quando representava cerca de 10% da população das nega, frequentemente, o mínimo de reconhecimento na viela
Cidades, antes de tornar-se uma quase prerrogativa da alta sociedade. Seria
pos~ível se perguntar se a proliferação, hoje, desse tipo de serviço não é um
indício de "terceiro-mundialização" das sociedades "desenvolvidas". 168 Cf., sobre esse ponto de vista, as análises de Alain Touraine. Cf. também 1<.
166 P. Delmas, Le maitre des horloges, Paris, Odile Jacob, 1991, p. 68. Reich, Eéconomie mondialisée, trad. fr. Paris, Dunod, 1933, que dCSCI'l'v(' "
167 Sobre a noção de underclass, cf, E.R. Ricketts, I. Sawill, "Defining and aumento do poder dos "rnanipuladores de símbolos" em detrimento dos IlI't 1

Mc:asunng the Underclass",Journal ofPolicy Analysis andManagement, vol. dutores de bens materiais e dos fornecedores de serviços clássicos.
7, inverno de 1988. 169 Y. Barel, "Le grand intégrateur", loco cito

.')76 ) "'.'
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIII -A NOVA QUE.5TÃO SOCIAL

. a1guma anvi
d e que consiga . id a d e para os supranurneranos
" . 171
de todos os dias, como quando sofrem um controle de polícia,
ou pedem uma moradia ou um emprego. Mas quando se situa na problemática da integração, a questão
O trabalho continua sendo uma referência não só econo- não é unicamente a de obter uma ocupação para todos, e, sim,
micamente, mas também psicologicamente, culturalmente e também um status. Deste ponto de vista, o debate que come-
simbolicamente dominante, como provam as reações dos que çou a se desenvolver em torno do SMIC é exemplar. O status
não o têm. Dois terços dos beneficiários do RMI pedem como de "smicard" é, com certeza, pouco invejável. Mas o SMIC é o
. ida d e, um emprego 170·, e os Jovens se afastam dos estágios
pnon ' passaporte que abre o acesso à sociedade salarial e permite
quando compreendem que não desembocam num "verdadei- compreender, de modo concreto, a diferença entre o fato de
ro trabalho". É possível compreendê-Ios. Se não fazem nada de simplesmente ocupar um emprego e o fato de ser um assala-
reconhecido, não são nada. Por que o rótulo de "Rmiste" se riado. A partir do SMIC, abre-se uma gama de posições extre-
tornou, em poucos anos, um estigma e, com frequência, vivido mamen te diferentes quanto ao salário, ao interesse do trabalho,
como tal pelos "beneficiários do RMI"? O fato é ainda mais in- ao reconhecimento, ao prestígio e ao poder que proporcio-
justo à medida que se trata, para muitos, de um último recurso nam, mas que são, como se estabeleceu (cf, capítulo VII), com-
que aceitaram na falta de encontrar um emprego. Mas a vida paráveis. Hierarquizam-se, distinguem-se e entram em concor-
social não funciona com bons sentimentos. Tampouco funcio- rência sob o regime da condição de assalariado que inclui, com
na só com o trabalho, e é sempre bom ter várias cordas no arco: a retribuição monetária, regulações coletivas, procedimentos,
lazeres, cultura, participação em outras atividades valorizado- convenções e proteções que têm um estatuto de direito. O
ras ... Porém, exceto para as minorias de privilegiados ou dos SMIC é o primeiro escalão a partir do qual um trabalhador se
pequenos grupos que aceitam suportar o opróbrio social, o distingue do ocupante de um emprego qualquer que não está
que permite esticar o arco e fazer partirem flechas em várias di- inscrito na episterné salarial. Assim, é possível prever que lu-
reções é uma força extraída do trabalho. Qual pode ser o desti- tas simbólicas'< encarniçadas se desenvolverão em torno do
no social de um rapaz ou de uma moça - esses casos começam a SMIC, porque representa um dos ferrolhos que bloqueiam o
se apresentar - que, após alguns anos de galera, se tornam desmantelamento da sociedade salarial. Também poderia re-
Rmistes com 25 anos, pois esta é a idade legal do primeiro con- presentar, para o futuro, uma referência para definir um piso
trato? Sabendo que sua esperança de vida é de ainda mais cin-
quenta anos, pode-se sonhar com os encantos de semelhante
)71 Uma posição limite nesse sentido, a proposta de Roger Sue à Universidade
vida libertada do trabalho.
de Verão, organizada pelo Sindicato dos Desempregados em 1993, de aban-
Enquanto quase todo mundo recusa abertamente o mode- clonar completamente o setor mercantil à concorrência selvagem, que é sua
lo da "sociedade dual", muitos fazem dela o leito, celebrando lei, para constituir um "setor de utilidade social" que favoreça o convívio e
seja protegido (cf Partage, n" 83, agosto-setembro de 1993). Não sei se as re-
qualquer realização, do desenvolvimento de um setor "de uti-
servas indígenas favorecem a convivência mas são, parece, protegidas.
lidade social" à abertura de "novas jazidas de empregos", des- 1-2
' Parece, realmente, que o papel desempenhado pelo SMIC no aumento do
custo geral dos salários é muito limitado, e que este custo poderia, aliás, ser
reduzido por medidas técnicas, corno a diminuição de encargos para esse tipo
17(1)
" V,acreyocrg
I ,L. Iéti d e I"~mscrtzon,op.clt.Domesmomodo,em1988,
h e, I .e aert , . de emprego. Porém, assim como 110 caso da autorização administrativa para
de 100 desempregados, 84 procuravam um emprego "normal" e de tempo demissão, cuja supressão deveria permitir, segundo o patronato, criar muitos
indeterminado ; 10, um emprego permanente e de tempo parcial; 4, um em- empregos, quando não era nada disso, trata-se de medidas cujo sentido sim-
prcgo)de temp? ,determinado; 2, um emprego não assalariaclo (Enquêtc em- bólico prevalece sobre a importância econômica - o que não diminui ern n.id.i
f,fo/, I ans, INSEE, 1988, anexo S). sua importância, ao contrário.

S7')
AS METAMOJ~FOSES NA QUESTÃO SOCIAL VIU - A NOVA QUESTÃO SOCIAL

mínimo, em matéria de retribuição do trabalho bem como de mas se tornou sua forma dominante. A promoção da condição
garantias estatutárias, que as novas atividades de uma socieda- de assalariado emancipou o trabalho e os trabalhadores do vis-
de pós-salarial deveriam respeitar a fim de que a saída desse co das sujeições locais; os camponeses, das tutelas da tradição e
modelo não se faça por baixo. do costume; a mulher, da reclusão na ordem doméstica. O tra-
Quarta opção, preparar uma redistribuição dos "raros recur- balho assalariado é uma produção externalizada, para () mer-
sos" que provêm do trabalho socialmente útil. Esta eventualida- cado, isto é, para qualquer um que possa entrar no quadro de
de não deve ser confundida com uma restauração da sociedade uma troca regulada. Confere uma utilidade social geral às ati-
salarial. Evidenciei a que ponto do irreversível se chegou no du- vidades "privadas". O salárioreconheceeremunerao trabalho
plo plano da organização do trabalho e da estrutura do Estado "em geral", isto é, atividades potencialmente úteis para todos.
Social, cuja articulação garantia seu frágil equilíbrio. A socieda- Assim, na sociedade contemporânea, e para a maioria de seus
de salarial é uma construção histórica que sucedeu a outras for- membros, é o fundamento de sua cidadania econômica. Tam-
mações sociais; não é eterna. Entretanto, pode permanecer uma bém está no princípio da cidadania social: esse trabalho repre-
referência viva, porque realizou uma montagem não igualada senta a participação de cada um numa produção para a
entre trabalho e proteções. Este balanço não é contestável em sociedade e, portanto, na produção da sociedade. É assim o
escala da história das sociedades ocidentais. A sociedade salarial ponto médio concreto sobre o qual se constroem direitos e de-
é a formação social que havia conseguido esconjurar, em grande veres sociais, responsabilidades e reconhecimento, ao mesmo
. . - - 173
parte, a vulnerabilidade de massa e assegurar uma ampla partici- tempo que sujeiçoes e coerçoes .
pação nos valores sociais comuns. Em outros termos, a socie- Mas essa construção - que aliás custou caro, tardia e im-
dade salarial é o alicerce sociológico em que se baseia uma perfeitamente promovida através da longa história da "indigna
democracia de tipo ocidental, com seus méritos e suas lacunas: condição de assalariado" - não pode mais continuar a funcionar
não o consenso, mas a regulação dos conflitos; não a igualdade nas condições atuais. Como diz Alain Mine, que foi um dos pri-
meiros a perceber o caráter estrutural da "crise": ''A economia
das condições, mas a compatibilidade de suas diferenças; não a
de escassez em que entramos não faz apelo senão a uma solu-
justiça social, mas o controle e a redução da arbitrariedade dos
ção à qual é necessário recorrer: a divisão. Divisão dos recursos
ricos e dos poderosos; não o governo de todos, mas a represen-
raros, isto é, do trabalho produtivo, da renda primária e da
tação de todos os interesses e sua apresentação para debate no
renda socializada,,174. Essa constatação pessimista é difícil de
cenário público. Em nome desses "valores" - e, evidentemente,
eludir, quando se é cético em relação às capacidades das "jazi-
com e para aqueles e aquelas que os partilham -, é possível inter-
das de empregos" para abrirem verdadeiros empregos e cético
rogar-se quanto à melhor maneira de não di lapidar essa herança.
também quanto à amplitude do "derrame" dos setores sinistra-
A opção mais rigorosa exigiria que todos os membros da
dos em direção aos setores produtivos para reciclar o conjunto
sociedade conservassem um elo estreito com o trabalho social-
mente útil e com as prerrogativas que lhes são vinculadas. A
17.1Cf. A. GO[Z, "Revenu minimum et citoyenneré, droit au travail et droit au
força dessa posição baseia-se no fato de que o trabalho conti-
revcnu", Futuribles, fevereiro de 1993.
nua sendo o principal fundamento da cidadania enquanto esta 174 A Mine, L: aprês-crise est commence, Paris, Gallimard, 1982. Michel Al-
comporta, até prova em contrário, uma dimensão econômica e berr declarava pouco depois no mesmo espírito: "O quc é limitado é o núme-
uma dimensão social. O trabalho, e sobretudo, o trabalho assa- ro global de horas de trabalho" (grifo do autor, Le pari [rançais, Paris, Seuil,
lariado que, é evidente, não é o único trabal ho social mente útil 1983) e propunha um modelo de divisão do trabalho, o "incentivo para os
voluntários do trabalho reduzido".

580 SSI
AS METAMORFOSES ).IA QUESTAü SOCIAL

da mão de obra disponível. Se continuam existindo supranu-


É verdade que medidas gerais, como a redução da scm.u L]
merários e se novamente aumentar a vulnerabilidade de massa,
de trabalho para 35 ou 32 horas, não são soluções miraculos.is
como escapar do risco de deixar apodrecer a situação, a menos
que devam ser aplicadas mecanicamente. O trabalho concreto
que se redistribua, de algum modo, esses "raros recursos" que
é cada vez menos um dado quantificável e intercambiávcl: par
se tornaram o trabalho produtivo e as proteções mínimas para
te do trabalho "invisível" e parte do investimento pessoa]
escapar da instalação na precariedade e da generalização da
numa tarefa, que não se medem apenas pelo tempo de prescn-
cultura do aleatório?
ça, e que se tornam cada vez mais dominantes nas formas mo-
É preciso entender as propostas para uma partilha do tra-
dernas da condição de assalariado'<''.
balho como a resposta mais lógica a essa situação: fazer com
Mas essas críticas da redistribuição do trabalho como um
que cada um encontre, conserve ou reencontre um lugar no
"bolo" que se divide não esgotam o problema. Todo mundo
continuum das posições socialmente reconhecidas a que estão
associadas, na base de um trabalho efetivo, condições decentes sempre soube que o "trabalho" de um professor no College de
de existência e direitos sociais. Tal exigência é concretamente France e o de um OE são irredutíveis, e ninguém nunca pensou
realizável? Não posso pretender, em algumas palavras, dar em amputar o tempo do primeiro para contratar um desem-
conta de um debate complexol ". Apenas duas observações pregado. Ao contrário, os atributos vinculados aos empregos
para precisar o que nele está em jogo. socialmente reconhecidos, que vão efetivamente daquele de
quem ganha o SMIC ao do professor do Collêge de France, se
inscrevem num conjunto de posições ao mesmo tempo irredu-
tíveis e interdependentes, isto é, solidárias. Não podem ser di-
175 Sobre diferentes propostas para realizar essa divisão, cf. D. Taddéi, te
temps de l'eniploi, Paris, Hachertc, 1988; as diferentes obras de Guy Aznar, vididos (como um bolo), mas poderiam ser desdobrados
sobretudo Trauaillcr moins pourtrauailler tous, Paris, Syros, 1992; F. Valette, parcialmente, dado que formam uma totalidade complexa in-
Partage du trauail, une approche nouuclle pour sortir de Ia crise, Paris,
cluindo, simultaneamente, um tempo de trabalho, um salário,
L'Harmattan, 1993; j. Rigoudiar, Réduire le ternps de trauail, Paris, Syros,
1993. Cf. também as diferentes contribuições de André Gorz, que propõe, proteções, garantias jurídicas. Se deve haver divisão, é desses
do ponto de vista conceirual, a versão mais profunda da questão. Essa proble- bens que se tornaram "raros" que se trata. Operação difícil de
mática da divisão do trabalho é sempre cruzada, mas a meu ver erroneamen- conduzir, certamente, mas que prova ao menos que tal divisão
te, com defesas do subsídio universal, ou de uma renda de cidadania, ou uma
renda de existência (cf. um dossiê crítico in "Pour ou contre le revenu mini- não é essa "ideia simples", isto é, simplista, que dela fazem seus
mum, I'allocation universclle, le revenu d'existence", Futuribles, fevereiro detratores. A meu ver, a divisão do trabalho é menos um fim
de 1994). Erroneamente porque a ideia de uma distribuição da renda implica em si do que um meio, aparentemente o mais direto para che-
um modelo de sociedade completamente distinto. Ratifica o corte entre a
renda, de um lado, e os direitos vinculados ao trabalho de outro lado, que a gar a uma redistribuição efetiva dos atributos da cidadania so-
problemática da distribuição do trabalho se esforça, ao contrário, por con- cial. Se esta redistribuição fosse realizada através de outros
servar. Sobre o alcance econômico das diferentes fórmulas de distribuição do meios, eventualmente associados à divisão do trabalho, o mes-
trabalho, cf. G. Cette, D. Taddéi, "Lcs effets économiques d'une réduction
du temps de travail", in Y. Bouin, G. Cerre, D. Taddéi, Le temps de travail, Pa-
ris, Syros, 1993, que enfarizam a importância de uma reorganização profun-
da do trabalho para o sucesso dessas operações. Simulações do OFCE falam ]76 Para um ponto de vista crítico sobre a distribuição do trabalho, ideia "silll
de uma possível criação de empregos da ordem de 2,5 milhões no caso da re- ples" demais, cf P. Boissard, "Partage du travail: les piêges d'une idéc silll
dução da semana de trabalho para 35 horas, desde que tal redução seja en- pie", Esprit, agosto-setembro de 1994; D. Mothé, "Le mythe du lt'llll'S
quadrada por outras medidas (cf. J. Rigaudiat, Récluire le temps de travail, op, libere", ibid., A Supiot, "Le travail, liberté partagéc", Droit social, n'" () I o,
cit., p. 102 sq). setembro-outubro, 1993.

S82
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mo objetivo, do ponto de vista da coesão social, poderia ser circular de novembro de 1982, a indenização do descmprcuc.
. id o 177 .
atmgi começa a ser dissociada, conforme sua duração e a trajcróri.i
Apresentar, nesses termos, a questão da divisão do traba- anterior dos desempregados, entre um regime de seguro fina n·
lho ou da redistribuição dos recursos raros mostra que ela não ciado sobre uma base contributiva e gerido de um modo pari-
levanta apenas problemas técnicos difíceis, mas uma questão tário, e um regime dito de solidariedade pelo qual o Estado
política de fundo. As tímidas propostas feitas no sentido de assume a indenização de algumas categorias de pessoas priva-
uma redução do tempo de trabalho - da lei das 39 horas de das de emprego 179. Essa inovação, considerável visto que L1Z
1982, um fracasso no plano da criação de empregos, a algumas com que uma parte dos desempregados - desempregados por
medidas "experimentais" preparadas pelo plano quinquenal período longo, trabalhadores antes mal integrados no empre-
para o emprego de 1993 - mostram claramente que esses ar- go - se desligue de um regime do trabalho para um regime de
ranjos não estão à altura do problema. Do mesmo modo, as "solidariedade" que, de fato, consiste em alocações de assis-
medidas tomadas para repartir os sacrifícios exigidos pela de- tência de baixo montante, foi decidida sem o mínimo debate
gradação da situação econômica e social são amiúde irrisórias, público e com o objetivo de preservar o equilíbrio da contabili-
quando não penalizam os que se encontram na posição mais dade da UNEDIC. Acha-se assim confirmada uma fantástica
difícil. Assim, o desemprego é seguramente, hoje, o risco social degradação da noção de solidariedade que significava, sob a III
mais grave, o que tem os efeitos desestabilizadores e dessociali- República, o penencimento de cada um ao todo social e que se
zantes mais desastrosos para os que o sofrem. No entanto, pa- torna uma alocação mínima de recursos outorgada aos que não
radoxalmente, é a respeito do desemprego que se demonstrou mais "contribuem", através de sua atividade, para o funciona-
o máximo de "rigor" numa lógica contábil para reduzir as ta- mento da sociedade.
xas e as modalidades de sua indenização. Medidas drásticas fo- Tal degradação interpela o Estado em sua função propria-
ram tomadas a partir de 1984 para rever as indenizações para mente régia de salvaguarda da unidade nacional. Esta função
baixo, e os desempregados foram, assim, os primeiros a experi- comporta, como foi dito, uma vertente "política externa" (defen-
mentar a preocupação de economizar os dinheiros públicos na der seu lugar no "concerto das nações") e uma vertente "política
gestão das subvenções sociais'{". Mais grave: a partir de uma interna" (preservar a coesão social). Assim como a guerra tem um
custo, frequentemente exorbitante, a coesão social também tem
um custo, e pode ser elevado. Esta aproximação não é formal.
177 Sobre essa questão da redistribuição dever assumir formas diferentes das que Não foi por acaso que a tomada de consciência da relação orgâni-
tinha no quadro do Estado, providência, cf as sugestões de Pierre Rosanvallon,
"Une troisiême crise de l'Erar providence", Le Banquet, n" 3, 2° semestre de
ca, unindo a coesão social e uma política social determinada, con-
1993. duzida pelo Estado, se deu quando dos desastres da Segunda
178 Cf. J.-P. Viola, "Surrnonrer Ia panne sociale", Le Banquei, n" 3, 2° semestre de Guerra Mundial, e especialmente na Grã-Bretanha. William Be-
1993. Constata-se, assim, que se é mais rigoroso com os desempregados do que veridge é, a este respeito, perfeitamente explícito:
com os beneficiários de um seguro-doença ou com os aposentados e, sobretudo,
do que com os beneficiários diretos das despesas de saúde, como as com médi A principal proposta deste relatório é esta: o povo britânico deve
cos, farmacêuticos, laboratórios farmacêuticos ete. É verdade que, num outro tornar o Estado expressamente responsável por garantir, em
registro, as "políticas do emprego" e o "tratamento social do desemprego" COIl
somem somas consideráveis (em 1991, 256 bilhões de francos, isto é, 3,5% LI,)
PIB). Mas esse amontoado de medidas, na maioria das vezes, tem como objetivo
li'! Sobre as implicações dessa circular de Pierre Bérégovoy, então minixt ro
tentar resolver os problemas isoladamente. O tratamento do emprego e do d,.
sernprego, tal como é desenvolvido há vinte anos, mostra bem que o que m.ux do Trabalho, e sobre suas consequências a longo prazo, d. A Ll'il;l\dw,
falta não são verbas mas, sim, a definição de uma política coerente . l lemploi en miettes, op. cit., p. 57-62.

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AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
VIU - 1\ NOVA <!lll 'S 1',\( ) ',(" 1:\ I

cada momento, um desembolso suficiente, no conjunto, para


ocupar todo o potencial humano disponível da Crã-Brctanha'Í". A primeira seria ressuscitar o espectro das ofici l1;lS I J;llll>
nais ou do Estado empresário da sociedade. Se isso fossl' 11<T(',';
Porque, acrescenta ele, sário, a ruína da economia nos países do "socialismo reli"
se o pleno emprego [full ernployrncnr] não for conquistado ou provaria que não se elimina o desemprego por decreto c qll\';1
conservado, nenhuma liberdade estará salva, porque, para mui- programação estatal da produção leva ao desastre. Qualquer
tos, não terá sentido 181. fórmula de divisão do trabalho só pode ter sucesso se for ;lCl'it;l
e negociada pelos diferentes parceiros, como se dá na empresa
omandato que o Estado deve assumir para salvaguardar a para reorganizar concretamente o trabalho, chegar a uma me
unidade do povo britânico é do mesmo tipo e tão imperativo lhor utilização dos equipamentos etc. Do mesmo modo, UIll:1
quanto o que assume para rechaçar a agressão estrangeira. A reforma em profundidade da proteção social é impensável sem
questão do pleno emprego é, pois, a forma conjuntural que as- um acordo para sua concepção e sem negociações para sua im-
sume essa questão da preservação do vínculo social numa In- plantação. Mas é possível conceber, por exemplo, uma lei-qua-
glaterra ainda traumatizada pela lembrança da Grande dro estabelecendo de modo absoluto as obrigações em matéria
Depressão dos anos 30. Hoje e na França, visto que a volta ao de tempo de trabalho, de minimum de salários e de mínima so-
pleno emprego está quase certamente excluída, a questão ho- ciais, cabendo aos diferentes "parceiros" ajustá-Ias e adaptá-los
. ~182
móloga é a da divisão do trabalho ou, pelo menos, das garan- pe Ia negociaçao .
tias constitutivas de uma cidadania social (que, de minha Em segundo lugar, o enfraquecimento dos Estados-nações
parte, tenho dificuldade para ver como poderiam ser comple- num quadro europeu e em face de uma concorrência mundial
tamente separadas do trabalho). Questão homóloga, se for generalizada tornar mais difícil o exercício das prerrogativas
verdade que é por meio dessa mediação que se poderá conser- régias em matéria de política do emprego e de política social.
var, ou restaurar, a relação de interdependência do conjunto Entretanto, a constatação dessa dificuldade aumentada não
dos cidadãos com o corpo social. A questão do custo é, então, altera os dados de base do problema. As políticas dos Esta-
a dos sacrifícios que devem ser consentidos para preservar a dos-nações sempre dependeram estreitamente da conjuntura
sociedade em sua unidade. internacional, inclusive suas políticas sociais (conferir acima a
Uma vez que o Estado exprime, em princípio, a vontade necessária "compatibilidade", implícita ou explícita, entre os
dos cidadãos, deveria caber a estes decidirem, através do deba- níveis de proteção social dos países em concorrência). O fato,
te público, até que ponto estão decididos a pagar esse preço. hoje, da concorrência se tornar mais apertada e a margem de
Farei apenas três observações para clarear pseudo-objeções manobra de cada Estado-nação mais estreita, não contradiz o
que ocultam as disputas de interesses das escolhas a fazer. imperativo de ter que preservar a coesão nacional, ao contrá-
rio: é nas situações de crise que a coesão social de uma nação é
particularmente indispensável. Entre o nível local, com suas
180 W Beveridge, Full Employement in a Free Society, op. cit., p. ]44.
181 lbid., p. 279. Bcveridge, apesar de sua hostilidade em relacão ao marxis- 1821ill proposta poderia ser interpretada como LIma rcformulação modcru.i
mo, chega a considerar formas de coletivização dos meios de produção, se for do velho princípio do direito ao trabalho, e o recurso a esse princípio podcri:l
absolutamente necessário para realizar o imperativo categórico do pleno em- repercutir mal, à medida que se revestiu, no movimento operário, de lima I'()
prego. Os tempos mudaram muito, é certo, mas esse recurso quase desespera- rcncialidade revolucionária. Mas perdeu-a, se é necessário acreditar ''''
do aos olhos do próprio Beveridge, mostra a importância fundamental quc preâmbulo da Constituição de 1946, retomado na Constituição de I ()'dL
atribuía à questão da manutenção da coesão social. "Cada um tem o direito de trabalhar e de obter um emprego". Será suhvnsl V()

pedir que a Constiruiçáo da República seja respeitada-


S8ó
VllI - i\ NDV;\ <li II;S·I.\t • '.1 'I 1.\1
i\S MEIAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL

di . , . t e 111elln~;111)11' 1 I
ção social fundadas numa rvrsao mais ex ensa ..i ,
inovações, mas também amiúde suas demissões e seus egoís- contribuição social generalizada, por exemplo - alii'" 111.\ 11.111\
n~os, e o nível supranacional, com suas pressões, o Estado é . d - b ia de [ot u r., dI"~
uma solidarieda de amp J Ia a que nao se asear .'
ainda a instância através da qual uma comunidade moderna se proporcional sobre os assalariados e sobre as emp('l·s:\s, \'.SI.I-.
representa e define suas escolhas fundamentais. E assim como . , l'd e o mo- () :111111 de
também teriam vantagens tUSSO, a mec I a qu .':
faziam alianças, mesmo no momento de sua hegernonia, os · D d " geral a allSl'II",·. (k
1
financiamento as pena rza. e mo f o mais I· '. !(I.\( Il' (. I
Est~dos-nações po~em hoje ser levados, ou obrigados pela uma profunda reforma do sistem~ Isca, cUJ~necess li ~011 . O( (:
conjuntura internacional, a institucionalizar de forma mais es- mundo reconhece há décadas, trai mutto mais uma:;1 . . l 1.1 til A

treita suas convergências no domínio social (conferir, por • Ad • - es eCOll( 11111 "\S
vontade política do que a eXlstenCla e presso l •.
e~emplo, o problema da constituição de uma "Europa social"
digna desse nome em face da concorrência, que também se dá incontornáveis. d
Segundo exemplo: quando se faz da boa saúde a5,<:I:'I"'('
100 plano social, dos Estados Unidos, do Japão ou dos países da
sas uma exigência indiscutível, da qual depende a rrospenlh
Asia do Sudestei'").
de nacional, omite-se de precisar que a empr~s~ .servl·
Enfim, as disputas envolvidas no debate são também ocul- efetivamente ao interesse geral através de sua competltdlVJda~k,
tadas quando se pretende que uma política social diferente é bé . se os a '
assegurando empregos etc., mas tam em ao ínteres <CIO- A .'

incompatível ~om a busca de uma política econômica realista e


nistas (remuneração do capital fi~a~ce~ro). Na seq~~CJa ~1~~C-
re.sponsável. E considerar inquestionáve1 que a aceitação das
diata desse "esquecimento", a eXIgencla de separa!- neflC10S
leis do mercado não deixa nenhuma margem de manobra o .. ,,' ensada -
máximos para investir e cont1l1uar competitivo e p. _ UIlI
~ue significa, aliás, negar a própria possibilidade da ação p~lí-
camente como a necessidade de chegar a uma orgajllZaçao óti-
nca. Mas não é nada disso. O jogo só está bloqueado se se ratifi-
ma do trabalho e a uma compressão máxima do~ Custos
ca o status qu~ sob~etodos os quadros ao mesmo tempo, isto é,
salariais. No entanto, se a empresa é de fato esta artlc~laç:í(\
quando se aceita o Jogo econômico mas se recusa a divisão dos
viva do capital e do trabalho para produzir mais e pfodu~lr me-
sacrifícios que decorrem dessa escolha e que são, no entanto, . ' ' " e que sena pelo
compatíveis com essas exigências econômicas. Assim, é verda- lhor de que hoje se cantam os mentos, parec
de que o financiamento da proteção social atingiu sem dúvida menos lógico colocar no mesmo plano de igualdade a defesa ti:.
. 1,,185
ou logo vai atingir, seu ponto de ruptura, se as modalidades remuneração do trabal ho e a do capita .., ue fr ' .;
desse financiamento continuarem como são atualmente: uma Terceiro exemplo: o peso dos encargos salanals <1. e.l!1:1111
minoria de ativos, pagando logo para uma maioria de inativos a competitividade também é pensado sempre a parn~ddos b.ii-
s
e, entre os ativos, al?umas categorias de assalariados supertri- xos salários, e em parti~ular .do SMIC. Mas a ~isp,~~aa~e do.
butadas em dobro " . Mas formas de financiamento da prote- salários pelo alto questiona 19ualmen,te a coerencJ prst«:
mé salarial. Se a condição de assalanado represepta () con I1
.
nuurn das posições, antenormente
descri
escnto, d eve existir 11111.1.
183Al·'
. Ias, e, mais. ou menos nesses termos que Michel Albert interpreta o con-
fht~ entre seus dOIS modelos de capitalismo: o "anglo-saxônico" e o "rena-
no iCapitalismc contre capitalisme, op. cit.).
IX4A parte' d os trtib utos f'rscars. c parafiscais em relação à renda primária re-
presentava, no início da década de 80, 49,2% para os casais operários COI1-
rrn 26,6% para a.s profissões autônomas e os agricultores (eERC, Le
rl'{lcr~udes français, n" 58,2" trimestre de] 98]). Mas é o conjunto da fisca-
111.;1<';;10francesa que, como se sabe, dá vantagens ao ca pital imobil iário e fi-
ll;llllTlro em detrimento do trabalho. Por exemplo, os direitos de sucessão
VIII 1\i\(IV:\I.\II",I.\tI',(,( 1\1
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL

tual que lhe constituía o cimento. Mas, corno t;llll~)(:nl 1,,1 ('\'1
comparabilidade entre todas as posições e que é quebrada pela denciado , não existe, hoje alternativa digna de crccli u I p.II.1 ,I
"incomparabilidade" de alguns salários, de diretores de empresa, sociedade salarial. E possível uma saída para o 1l1;lr:ISllIO,u r.r.
por exemplo. A relação entre essas disparidades salariais à france- esta não passa - alguns o lamentarão, sem dú:ida - pcl:\lOW.
sa e a competitividade também nada tem de evidente. Na Alema- trução da bela utopia de um mundo maravilhoso o iuh ,k
nha, amiúde apresentada como um modelo de sucesso econômico, sabrochem livremente todos os devaneios dos "fazcdorvs ,k
os baixos salários são nitidamente mais elevados, e os mais altos projetos". Os principais elementos do quebra-~abeç~l j~\cst.IP
salários, comparativamente, o são menos'". dados hic et nunc: proteções ainda fortes, uma SI tuaçao eu lll( I
Assim, a insistência sobre as "pressões maiores" do merca- mica que não é desastrosa para todo mundo, "recurs.os hl111LI
do internacional serve, frequentemente, como álibi para re- nos" de qualidade; porém, ao mesmo tempo, um tecido SOl I:'.'
conduzir práticas que obedecem a uma lógica social e não que se esgarça, uma força de trabalho disponível c~nden:l(1:t :\
econômica: reprodução das situações adquiridas e dos pesoJ inutilidade, e perturbação crescente de todos os ,n~ufrag()s tI:1
institucionais mais do que respeito aos "fundamentais". E sociedade salarial. O fiel da balança pode, sem dúvida, pender
uma boa guerra, desde que a vida social seja uma guerra em num ou noutro sentido, porque ninguém comanda o conjuun I
que o mais forte deve maximizar suas vantagens. Será necessá- dos parâmetros que determinam as transformações e,,~1curso.
rio dar razão a Machiavel? "Os homens não renunciam às co- Porém, para pesar sobre o curso das COisas, duas varraveis se-
modida. d es d a VIC. ia senao
- o bri Iacie ,,187 . H'a
nga di'os pc a neCeSS1( rão, certamente, determinantes: o esforço intelectual p~r~ a11:\'
aí ,efetivamente , um esquema muito forte de leitura da história
- -
lisar a situação em sua complexidade, e a vontade POIt~ICl dl'
das relações sociais, mas é, então, uma história feita de barulho dominá-Ia, impondo esta cláusula de salvaguarda da sociedade
e de furor, e eternamente arneaçada pela ruptura social entre os que é a manutenção de sua coesão social.
detentores das "comodidades" e os que são privados da pró-
pria possibilidade de conquistá-Ias - o que se chama hoje a
"exclusão". O outro esquema que percorre a organização das re-
lações sociais é o de uma solidariedade que conserva a continui-
dade através das diferenças e a unidade de uma sociedade pela
complementaridade das posições ocupadas pelos diferentes
grupos. Sua manutenção impõe hoje uma certa distribuição
das "comodidades".
Tentou-se interpretar a promoção da sociedade salarial
como a frágil construção dessa solidariedade, e a "crise" atual
como o questionamento do tipo de interdependência confli-

l86 Cf. M. Albert, Le pari [rançais, op. cit., p. 97, que observa que o salário de
uma faxineira é mais ou menos duas vezes mais alto na Alemanha do que na
França, ao passo que a renda das profissões melhor remuneradas, descontado
o imposto, é sensivelmente menos alta do que na França.
1~7N, Machiavel, Histoires {lorentines, rrad. fr. ir! Oeuvres completes, LaPléi-
ade, Gallimard, p. 1001.
\ I) I

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