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ORIGEM E SIGNIFICADO DO
SISTEMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO

1. Introdução.

O Sistema Nacional de Educação é um conceito novo na legislação educacional brasileira.


Não existia antes da Emenda Constitucional 59 de 11 de novembro de 2009 que alterou o parágrafo
214 da Carta Magna, passando este a ser assim redigido:

“A Lei estabelecerá o Plano Nacional de Educação, de duração decenal, com o


objetivo de articular o Sistema Nacional de Educação em regime de colaboração e
definir diretrizes, objetivos metas e estratégias de implementação para assegurar a
manutenção e o desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e
modalidades”.

É preciso, pois, descrever quais foram as idéias que levaram à criação deste conceito.

Em 1931 Getúlio Vargas dirigiu-se pessoalmente à Conferência Nacional da Educação


promovida pela Associação Brasileira de Educação, que estava se reunindo no Rio de Janeiro no
Palácio Tiradentes. O Presidente fêz um apelo aos educadores no sentido que estes lhe mostrassem
o caminho para reconstruir o edifício da educação no Brasil. Os educadores apresentaram então, em
1932, o documento que veio ser conhecido como o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”.

Após receber o documento, Getúlio Vargas pediu para que os educadores se reunissem com
o recém-criado Ministério da Educação para elaborar um Plano Nacional de Educação. A ideia
partiu do próprio Manifesto, pois este havia sido apresentado como contendo “as bases e as
diretrizes” de um Plano de Reconstrução Nacional para a Educação. Tratava-se, portanto, de um
Plano Nacional de Educação. Mas como a tarefa havia sido recém pedida e não tinha havia tempo
para apresentar o plano em todos os detalhes, os pioneiros decidiram que iriam esboçar apenas as
suas “bases e diretrizes”. Portanto, o Manifesto dos Pioneiros não era uma Lei de Diretrizes e
Bases, mas a exposição de um PNE elaborado pelos educadores da época, do qual seriam
apresentadas somente as suas “bases e diretrizes”. Mas foi a partir deste texto que se originaram
estes conceitos que despontariam na legislação brasileira após a 2a Guerra Mundial.

Antes da Segunda Guerra Mundial, inspirada no Manifesto, a Constituição de 1934 havia


estabelecido em seu artigo 150 apenas que

“compete à União fixar o Plano Nacional de Educação compreensivo do ensino de


todos os graus e ramos comuns especializados, e coordenar e fiscalizar a sua execução
em todo o território do país”.

A Constituição de 1934 não pensava em termos de Lei de Diretrizes e Bases, mas em termos de
Plano Nacional de Educação.

Tal Plano Nacional de Educação, porém, não passou da sua primeira versão. Em 1937 houve
um golpe que instituiu ditadura do Estado Novo. No mesmo ano foi promulgada uma nova
constituição onde já não se falava mais em Plano Nacional de Educação, mas apenas em
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“fixar bases e traçar as diretrizes a que devem obedecer à formação física, intelectual
e moral da infância e da juventude”.

Aqui não se fala mais de Plano Nacional de Educação. Tampouco se menciona uma Lei de
Diretrizes e Bases. Como o regime era ditatorial, Getúlio Vargas não pensou em uma Lei de
Diretrizes e Bases que limitasse as suas competências, porque ele mesmo e seu Ministro da
Educação, Gustavo Capanema, iriam decidir todas as leis educacionais. A partir daí o Ministro
Capanema passou a escrever ele próprio a legislação educacional como se o Brasil, em matéria
educacional, fosse um Estado unitário e não federativo. À medida em que estas leis iam surgindo,
sob a forma de Leis Orgânicas da Educação, o ministro foi compreendendo que as leis orgânicas
seriam uma exigência prévia para que fosse possível ser estabelecido um Plano Nacional de
Educação, e não vice-versa. Capanema aqui refere-se a leis orgânicas de ensino, e não a uma Lei de
Diretrizes e Bases, porque este conceito não existia durante o governo Vargas.

Retrospectivamente, Gustavo Capanema, Ministro da Educação durante a maior parte da Era


Vargas via com otimismo o trabalho educacional empreendido pelo Estado Novo. Em 1946 ele
resumiu deste modo alguns dos principais aspectos da evolução da questão educacional durante o
período:

“Em 1932, havia no país 27.000 escolas primarias com 2 milhões de alunos.

Em 1945, o número dessas escolas era de 45.000 com 3 milhões e meio de alunos.

O aumento é, como se vê, realmente notável. Mas não é tudo.

Em 1932, dos dois milhões de alunos do curso primário, 121.000 chegavam à


conclusão do curso. Em 1945, quando havia 3,5 milhões de alunos, o número de alunos
que se formavam no ensino primário, era de 300 mil alunos. Esses resultados mostram
a melhoria da organização escolar e a sua maior eficiência”.

2. A reconstrução da educação nacional.

Durante o governo Vargas a educação realmente evoluiu, mas ditatorialmente e de maneira


centralizada. Quando o Estado Novo foi derrubado em 1945 decidiu-se escrever uma nova
constituição, as novas disposições vinham com a intenção de desfazer a ditadura educacional que
havia vigorado. Os educadores entendiam que deveria haver uma colaboração conjunta dos três
níveis de governo, municipal, estadual e federal, mas que o problema educacional deveria ser
resolvido basicamente no nível do município, isto é, ao nível local e não pelo governo federal. Foi
por este motivo que então começou-se a falar em Lei de Diretrizes e Bases.

Os educadores criaram a ideia de uma Lei de Diretrizes e Bases durante a redação da Constituição
de 1946 para limitar ao mínimo o papel do governo federal na educação, e não para conferir-lhe
toda a extensão que o Ministro Capanema pretendia. É isto o que está embutido na declaração do
artigo 5 da Magna Carta de 1946 quando estabelece que

“Compete à União legislar sobre Diretrizes e Bases da Educação Nacional”.


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Promulgada a Lei de Diretrizes e Bases a nível nacional, a partir daí o governo federal não deveria
mais imiscuir-se em matéria propriamente pedagógica a não ser em seu próprio sistema federal de
educação, aquele que era prescrito no artigo 170 da Constituição:

“A União organizará o Sistema Federal de Ensino e dos territórios”.

Aqui não se falava de Sistema Único de Educação. Foi no Estado Novo que a educação no Brasil
funcionava como um Sistema Único de Educação, quando o Ministério da Educação era quem
decidia tudo em matéria de educação nacional. Por este motivo a Constituição de 1946, em vez de
referir-se a um Sistema Único, estabelece que a União organizaria o Sistema Federal de Ensino,
onde a União legislaria apenas sobre as poucas escolas que pertencessem ao próprio governo
federal, mesmo que estas estivessem localizadas em todo o território nacional.

No artigo seguinte, de número 171, a Carta Magna prescrevia que

“os Estados e o DF organizarão os seus Sistemas de Ensino”.

Cada Estado deveria ter um Sistema de Ensino distinto e autônomo, estabelecido pelo próprio
Estado, com regras criadas inteiramente por ele, que obedecessem a um mínimo exigido pela LDB,
estabelecida a qual nada mais a União teria o que exigir dos Estados.

Os sistemas de ensino municipais não são mencionados porque os educadores tinham


consciência que estavam remontando uma educação nacional de que se havia iniciado a construção
no início da Era Vargas, mas que havia sido abortada pelo Estado Novo. Agora era mister
recomeçar outra vez e, nesta perspectiva, era prematuro falar em sistemas municipais de ensino. A
idéia dos educadores era que, na medida em que fosse desenvolvida a educação brasileira,
futuramente haveria lugar para vários sistemas de ensino, não apenas nos Estados como também
nos municípios.

3. O pensamento dos educadores sobre


a situação educacional brasileira.

Os educadores da era pós Vargas eram críticos quanto aos números que eram apresentados
pelo Ministro Capanema como uma vitória. Em uma conferência pronunciada em 1953 e publicada
no livro “A Educação não é Privilégio”, Anísio Teixeira comenta a respeito daqueles mesmos
dados:

“Antes do governo Vargas tínhamos 27 mil escolas e 2 milhões de alunos matriculados


no ensino primário. Mas no final do ensino primário somente se formavam 120 mil
alunos. Gradativamente, entre o primeiro e o quarto ano, a maioria abandonava a
escola. De dois milhões, só 120 mil se formavam.

Mas curiosamente, logo após a quarta série do primário matriculavam-se na primeira


série do ensino médio em torno de aproximadamente 120 mil alunos. Ou seja, apesar
da desistência assombrosa, ano após ano, ao longo do curso primário, os que
chegavam ao fim do primário não desistiam do médio.

Mais tarde, terminada a era Vargas, tínhamos 45 mil escolas com 3,5 milhões de
alunos matriculados no ensino primário, mas desses 3,5 milhões de alunos só 285 mil
terminavam o curso.
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Tanto antes quanto depois, a porcentagem de reprovação é fantástica, mas o número


de alunos que termina o primário é o mesmo que ingressa na escola média.

Ao mesmo tempo, porém, aumentou o número absoluto de analfabetos, os que não têm
diploma, que praticamente duplicou. Isto significa que, apesar de tudo, hoje estamos
produzindo mais analfabetos. Apesar de termos o dobro de alunos formados, o número
de analfabetos está crescendo”.

Este é o problema da educação nacional, e é por isso que temos que reconstruir a
educação nacional, a grande tarefa que temos que fazer”.

A conclusão de Anísio é que o grande problema está em a escola brasileira não havia sido feita para
educar o povo, mas para produzir uma elite. Pouco importa que esta elite esteja aberta para todos e
que ninguém esteja proibido de fazer parte da elite. Mesmo assim nossa escola foi feita para
fabricar uma elite. Não nos importamos com a multidão. As escolas são para selecionar os melhores
para que entrem no curso médio, e o curso médio existe para conduzir os alunos para a graduação
em medicina, direito e engenharia. Construída a elite, o restante que foi reprovado não necessita ser
educado:

“Precisamos então reorganizar o sistema escolar para haver uma escola que seja para
todos”,

dizia Anísio. Ele também se pergunta como seria possível estabelecer um sistema de ensino com
esta finalidade, e sua resposta é que basicamente uma das causas que produz esse resultado é a
própria centralização da educação, pois para produzir um cidadão que participe conscientemente do
governo de uma democracia, esse cidadão terá que ser cidadão do seu município e de sua
localidade. Não será possível que um Sistema Federal, localizado no Ministério da Educação ou no
Congresso Nacional, possa legislar para formar cidadãos que possam ter este nível de consciência.
Para isto seria necessário dar autonomia, a mais completa possível, para os educadores do próprio
lugar onde estão os alunos. E é justamente para isto que existe o sistema federativo. Em outra
palestra pronunciada em 1952 (“A Educação e a Unidade Nacional”) Anísio diz o seguinte:

“Uma nação ou povo é a expressão de sua cultura, e essa cultura será tanto mais una,
tanto mais homogênea e tanto mais inteiriça quanto mais primitiva ela for. Demasiada
unidade é uma condição de elementarismo. A condição para haver o progresso, não é a
unidade, mas a diversidade, diversificação. O desenvolvimento cultural da humanidade
é uma lenta marcha da unitariedade para a diversidade. Sob esse ponto de vista,
podemos considerar a educação como uma das condições para uma cultura em
processo de florescimento ou diversificação. A educação é um dos instrumentos da
diversificação cultural.

Falando de cultura, uniformidade, unitariedade e linearidade são indicações de


primitivismo, de selvagerismo, de barbarismo, de não-desenvolvimento, de ausência de
crescimento. De onde vem essa idéia de que a escola deve se tornar a promotora da
unificação nacional? Na realidade, as pessoas que pensam assim, os unitaristas, de
fato eles têm um problema a resolver, mas este não é o problema da unidade nacional,
e sim o problema do controle das escolas, para que possam fazer delas instrumentos de
suas ideologias ou de outros planos pré-concebidos, com os quais põem em perigo
exatamente a unidade da cultura nacional.
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A consciência profissional dos professores e educadores é que deverá determinar os


currículos, a seriação, a organização, os métodos e as práticas didáticas, por meio de
seus órgãos coletivos e individuais, a serem estabelecidos e criados pela lei, se
quiserem, ou melhor, pela delegação das leis aos próprios interessados em cada caso
particular. Muitos dos equívocos e as confusões do país, em matéria de educação,
provêm do erro de querer resolver pela lei o que deve ser deixado pelo controle
delicado e progressivo desta opinião especializada e profissional. Quando isto for
devidamente reconhecido, teremos criado as condições para o progresso contínuo e
crescente das nossas instituições educacionais, dotadas que serão elas da autonomia
necessária para sua própria direção.

A reconstrução educacional brasileira suscita problemas de duas ordens: o primeiro, é


um problema político e financeiro. O primeiro problema é a gestão do financiamento.
Resolvido este, temos a do conteúdo, a da metodologia da educação, onde só aquelas
bases preliminares constituem problemas de legislação que devem ser equacionadas
pela chamada Lei de Diretrizes e Bases. Resolvida a questão da LDB, que é a Lei dos
preliminares, o problema que vem em seguida é um problema que deve ser resolvido
não pela lei, mas pelos educadores e professores brasileiros em um ambiente de
liberdade e responsabilidade, de experimentação e verificação, de flexibilidade e
descentralização, para que se crie a escola brasileira ajustada às condições locais,
viva, flexível e elástica. Toda a questão está em que estas não podem ser apenas
executores de soluções rígidas e uniformes previstas na lei, mas devem possuir uma
real iniciativa para planejar, para experimentar e para executar, no campo escolar,
tudo que seja lícito e aconselhável nos termos da prática e da ciência educacional
existente. Será necessário legislar em educação, e será suficiente legislar em educação
como se legisla em saúde pública, ou como se legisla em agricultura, de modo que não
continuemos estrangulados numa camisa-de-força legal.

Não haverá outro meio de progredir senão este, que aliás é o mesmo meio de progredir
pelo qual progredimos na medicina, na engenharia e no direito. Não podemos
continuar sem a possibilidade de progredir porque tudo está disposto na lei e não pode
ser alterado. Uma das mais remotas, mas nem por isso menos graves consequências da
centralização, é o desinteresse pelo estudo das questões específicas da educação e do
ensino. Por que estudar estas coisas, se quem resolve é a lei e não o professor? A
inacreditável deficiência de pessoas devidamente especializadas em educação é
proveniente, em grande parte de não passarem hoje as autoridades educacionais de
executores passivos de leis pseudo-pedagógicas”.

Estas foram as linhas em que os educadores brasileiros tentaram reorganizar a educação nacional no
pós-guerra. Após a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases, em 1961, Anísio Teixeira publicou
ainda um pequeno artigo intitulado de “Meia Vitória, mas Vitória”. Neste texto inúmeras vezes
citado, a expressão “meia vitória” deve-se ao fato que durante a tramitação do projeto da LDB
houve uma dura controvérsia entre os papéis que seriam desempenhados pela escola pública e
privada na educação nacional, e a solução de compromisso que foi adotada não agradou totalmente
a nenhum dos lados que se debatiam. Quanto, porém, à ressalva “mas vitória”, deve-se ao fato que
na questão da descentralização a LDB deixou a todos completamente satisfeitos:

“A vitória maior da LDB, que foi aprovada, está no novo conceito, no novo status
dessa lei. Trata-se de uma lei complementar à CF, e não de uma simples lei federal,
que regulasse as funções do Governo Federal em educação.
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Não se trata de uma lei cujo cumprimento dependa da autoridade federal, como era o
caso das demais leis federais do ensino. Este é o ponto fundamental: que não surja
nenhum regulamento a esta lei.

Quem vai proceder aos atos complementares para a execução da LDB são os Estados,
e não o poder federal. O poder federal poderá fazer a sua lei federal reguladora de seu
Sistema Federal de Ensino, mas os Estados é que terão agora de fazer as suas leis
estaduais de diretrizes e bases, fundadas nas diretrizes e bases nacionais, e não
federais, para criação dos Sistemas Estaduais de Educação.

A emulação”, (a independência, o incentivo) “dos 21 sistemas estaduais de educação é


que irá dar ao país a sábia competição de 21 experiências educacionais.

Essa autonomia, essa faculdade, esse novo poder dos Estados é que desejo saudar
nesta ocasião em que se vota a primeira lei nacional de educação no Brasil. Mas
cuidado, se persistirem os hábitos da imposição do Governo Federal e os hábitos de
dependência dos Estados, tudo poderá perder-se, vencendo a máquina administrativa
que ainda aí está e que vencerá todo o extraordinário esforço que representaram os
treze anos de luta por esta lei de meia vitória, mas de qualquer modo, de vitória contra
a centralização e o totalitarismo do Estado Novo.

4. O Plano Nacional de Educação.

No início da Era Vargas a reconstrução da educação no Brasil foi pensada em termos de um


Plano Nacional de Educação. Com o advento do Estado Novo o plano, já redigido em sua versão
preliminar, foi abortado. Em 1945 os educadores preparavam-se para reorganizar tudo. Em 1961 foi
sancionada a Lei de Diretrizes e Bases. A previsão agora era que os planos educacionais deveriam
ser elaborados e executados pelos Estados e tanto os legisladores como os educadores concordavam
que futuramente, quando a educação tivesse progredido, também os municípios deveriam elaborar e
executar seus próprios planos de educação. Não deveria haver Plano Nacional de Educação que
interferisse em questões pedagógicas. Para isto bastaria a Lei de Diretrizes e Bases. Deveria haver
uma descentralização progressiva dos planos de educação.

Somente haveria Plano Federal de Educação para o Sistema Federal de Ensino, não para a
União. Mas no artigo 171 da Constituição de 1946, onde se dizia que os Estados e o Distrito Federal
organizariam seus sistemas de ensino, havia um parágrafo único que estabelecia que, para o
desenvolvimento destes sistemas, a União cooperaria com recursos que, em relação ao ensino
primário, proviria do respectivo fundo nacional. Estes recursos viriam do disposto no artigo 169,
que estabelecia que a União aplicaria nunca menos de 10% da renda resultante dos impostos na
manutenção e desenvolvimento do ensino, enquanto os Estados, o Distrito Federal e os municípios
deveriam aplicar pelo menos 20% dos impostos com o mesmo fim. Seria necessário regulamentar,
portanto, como aqueles 10% seriam aplicados no auxílio dos sistemas estaduais e nos municípios.
Para isto seria necessário um plano, mas este plano não se referia a questões pedagógicas, mas à
aplicação de recursos. Em tudo o resto que já não estivesse determinado pela LDB a atividade
pedagógica deveria ser totalmente regulamentada pelos Estados. O Plano Nacional de Educação
passou a determinar o modo de gerir o dinheiro arrecadado pela União para que fosse possível
diminuir as desigualdades educacionais entre estados e municípios.

Quem recebeu a incumbência de redigir o primeiro Plano Nacional de Educação seguindo as


determinações da LDB de 1961 foi o próprio Anísio Teixeira. Nesta época Anísio era o diretor do
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Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, também conhecido pela sigla INEP. Criado em 1938
por Capanema e inicialmente dirigido por Lourenço Filho, tratava-se, no dizer do próprio Ministro,
“de um centro nacional de estudos e pesquisas sobre o problema da educação nos seus diferentes
ramos e graus, para que o Ministério da Educação e Saúde, quanto ao ensino, não se tornou
apenas um departamento burocrático para administração de repartições e serviços educacionais”.

As idéias utilizadas por Anísio Teixeira ao redigir o primeiro Plano Nacional de Educação
que o Brasil teve foram explicadas inúmeras vezes por ele enquanto esteve, por mais de uma
década, na direção do INEP. Mais que qualquer outro documento, estas ideias ilustram o que os
educadores da época pensavam sobre a reconstrução educacional do Brasil. Não teria sido ele o
escolhido para redigir o primeiro Plano Nacional de Educação se suas idéias, amplamente
conhecidas por todos, não fossem as também as idéias de todos e as que refletiam o a interpretação
da legislação elaborada. O que segue adiante pode ser encontrado no artigo “Sobre o Problema de
Como Financiar a Educação do Povo Brasileiro”, apresentado no XIº Congresso Brasileiro de
Educação realizado em Curitiba em 1954. “O financiamento da educação pública no Brasil”,
sustenta Anísio,

“não é um empreendimento que possa ser atacado globalmente, mas que deve ser
realizado pelos governos locais, isto é, os governos municipais, e com o apoio dos
governos estaduais e federais. Os recursos dos governos estaduais e federais devem ser
acrescentados aos municipais, e não reduplicados.

Não podemos imediatamente construir um sistema de ensino nacional para 8 milhões


de crianças. O que temos que entender é que importa muito mais criar um serviço que
tenha em si as possibilidades de um desenvolvimento progressivo, do que de imediato
dar escolas perfeitas e acabadas.

Deveria em primeiro lugar criar-se o Fundo Federal de Educação, com os 10% da


receita tributária federal. Os Estados e os Municípios, que devem aplicar 20% das
receitas tributárias em educação, devem criar respectivamente seus fundos estaduais e
municipais de educação. As escolas devem passar a ser instituições locais, geridas
localmente, decididas localmente, planejadas localmente, e desta maneira, elas se
tornarão desiguais, e devem ser mantidas em condições desiguais. O Estado, por sua
vez, não deve constituir um outro sistema escolar mais caro e paralelo ao municipal,
mas deve ajudar o município com o auxílio que deve ser calculado por aluno
matriculado, destinado a elevar o nível do ensino de cada município, um a um. E o
Governo Federal, da mesma maneira, deve acudir, também, o município, dando-lhe o
restante que nem o Estado e nem o próprio Município poderia dar com seus exclusivos
recursos. Cada município deverá ter o seu fundo escolar municipal próprio, que deverá
ser dividido pelo número de crianças que estão na escola no mesmo município, de
modo que as escolas devem ser mantidas dentro desta cota individual por aluno.

Uma vez criado em cada munícipio o sistema de escola primária, o Estado deverá
partir em seu auxilio por 3 meios: em primeiro lugar, formando o professor, e deste
modo, assegurando a equivalência do professor com o sistema dos outros municípios.
Em segundo lugar, o Estado deve dar assistência técnica e orientação com a missão,
não de fiscalizar, mas de guiar e aconselhar os municípios. Em terceiro lugar, deve
conceder-lhes o auxílio financeiro por aluno, destinado a melhorar a qualidade de
ensino”.

Com isto, estamos criando


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“um sistema de progresso permanente e de possibilidade de previsões e planejamentos


inteligentemente progressivos. A despeito da administração do ensino ficar confiada a
dois mil municípios e vinte estados, o plano, desta maneira, seria, na verdade, um só
sem que a União se intrometa no planejamento e na elaboração do currículo, das
estratégias, no trabalho do professor mas, apoiado pelo Estado e pela União de tal
maneira que possamos reduzir a desigualdade entre os vários municípios
contrabalançando a diferença de arrecadação dos municípios”.

Que destino teve este Plano Nacional de Educação e quais foram seus resultados? Dois anos depois
de aprovado, veio a revolução militar de 1964 e a educação nacional foi reorganizada segundo
outras diretivas. O primeiro PNE que o Brasil teria em 1936 foi abandonado com o advento do
Estado Novo de Vargas, o segundo teve sorte semelhante porque a partir de 1964 os militares, que
não eram especialistas em educação, subordinaram a educação às diretivas econômicas nacionais
elaboradas pelos ministério da área econômica, que viam o problema econômico do Brasil como um
todo e não raciocinavam em termos propriamente pedagógicos.

5. A Constituição de 1988.

A Constituição de 1946 foi a primeira que estabeleceu que competia à União legislar sobre
as diretrizes e bases da educação nacional. A Constituição de 1967 manteve neste tema os mesmos
termos que a de 1946, e a Constituição de 1988 referiu-se novamente, em seu artigo 22, competir
privativamente à União legislar sobre a diretrizes e bases da educação nacional. As disposições são
repetidas exatamente com as mesmas expressões e não há nenhuma evidência de que o conceito de
diretrizes e bases ou do que fosse uma Lei de Diretrizes e Bases tivesse sido alterado ao longo
destes anos. As constituições de 1967 e de 1988 estavam repetindo os mesmos conceitos de da
Constituição de 1946.

A Constituição de 1988, contudo, trouxe várias mudanças em termos educacionais. A


primeira grande mudança está no artigo 211, onde estabelece-se que

“a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em sistema de


colaboração, seus sistemas de ensino”.

A mudança está em que, com a nova Constituição, foram acrescentados a este artigo os sistemas
municipais.

No mesmo artigo 211 o legislador acrescentou um parágrafo estabelecendo que a União

“organizará e financiará o sistema federal de ensino e dos territórios e prestará


assistência técnica e financeira aos Estados, ao DF e aos Municípios para o
desenvolvimento de seus sistemas de ensino”.

Este parágrafo estabelece onde é permitido que a União interfira nos sistemas estaduais e
municipais de ensino. A Constituição afirma que a União irá organizar apenas o seu sistema, que é
o sistema federal de ensino, e no que diz respeito aos sistemas estaduais, municipais e do Distrito
Federal a competência da União será somente a de financiar e prestar assistência técnica. São,
basicamente, os conceitos que já estavam na Lei de Diretrizes e Bases de 1961.
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6. O projeto da Lei de Diretrizes e Bases de 1988.

Em meados dos anos 80, um grupo de educadores, predominantemente alinhados com a


esquerda, prevendo o clima político que seria gerado com a elaboração da nova constituição, criam
em 1986 um fórum, inicialmente composto por 15 entidades, ao qual denominam de Fórum da
Educação na Constituinte em Defesa do Ensino Público e Gratuito. Aprovada a Constituição, o
fórum passou a chamar-se de Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP). Encerrados
os trabalhos da constituinte, o Fórum foi ampliado com a participação de 26 entidades, e apresentou
imediatamente um projeto de lei visando criar uma nova Lei de Diretrizes e Bases que substituísse a
de 1961.

O projeto estava sendo trabalhado há muito tempo pelo professor Dermeval Saviani, que
lecionava Filosofia da Educação na PUC de São Paulo. Desde a época de seu mestrado, Saviani
tentava resolver os problemas educacionais do Brasil valendo-se dos instrumentos de análise da
dialética marxista e da obra de Antônio Gramsci. Saviani doutorou-se em Filosofia da Educação
através de uma tese que foi posteriormente publicada com o título de “Educação Brasileira:
Estrutura e Sistema”. Foi com base nas idéias desenvolvidas em sua tese que Saviani procurou
transformar a legislação educacional brasileira. Saviani fazia parte de várias das entidades que
integravam o FNDEP, de muitas das ele também era fundador. Foi assim que, antes mesmo que se
encerrasse a constituinte e fosse promulgada a Constituição de 1988, Saviani apresentou um projeto
de lei completo de uma nova Lei de Diretrizes e Bases coerente com as suas idéias e de seu grupo.
O texto do projeto da nova LDB havia sido apresentado por Saviani durante a Décima Reunião
Anual da ANPED, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, realizada em
Salvador em 1987. No ano seguinte, a proposta foi publicada no número 13 da Revista da
Associação Nacional de Educação.

Precedido de um estudo introdutório, Saviani aí sustenta ter havido dois entendimentos para
o conceito de diretrizes e bases. Em um primeiro sentido, diretrizes e bases significariam as leis
gerais da educação, e neste caso o termo geral significaria genérico, isto é, referir-se-iam a leis
aplicáveis a diversas situações e em condições variáveis. Em um segundo sentido, historicamente
defendido pelo Ministro da Educação do Estado Novo Gustavo Capanema, entendia-se que as
diretrizes e bases da educação nacional deveriam ser gerais porque seriam normas de aplicação
universal, ou seja, abarcariam tudo o que se refere à educação nacional.

Comentando em seguida o projeto de Lei Diretrizes e Bases que ele passa a apresentar,
Saviani diz que entre as suas principais características está a que não mais se mencionam sistemas
de ensino estaduais, municipais, federal ou do Distrito Federal, mas apenas serviços educacionais
oferecidos pelos entes federativos, porque o autor entende que deve haver um sistema único de
Ensino no Brasil e que este deve ser definido pela União. Na visão do professor Saviani, se há um
Sistema ele só pode ser único, porque vários sistemas independentes não podem formar um
verdadeiro sistema, mas algo dissonante. Portanto, se pretendemos construir um sistema de ensino,
este sistema só pode ser único.

A segunda grande característica do projeto que está sendo apresentado consiste no modo de
conceber os conselhos de educação. Saviani pretende que o Conselho Nacional da Educação, que
até aquele momento tinha sido considerado um órgão consultivo do Ministério da Educação, apenas
para questões relativas ao sistema federal de educação, deveria passar a ser o órgão normativo
central de toda a educação brasileira, completamente independente tanto do Ministro da Educação
quanto do restante do Ministério. O Conselho Nacional de Educação, sustentava Saviani, deveria
ser desatrelado do poder executivo ao qual estava subordinado. Não deveria mais ter seus membros
exclusivamente nomeados pelo Presidente da República através de indicação do Ministro da
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Educação. Estes deveriam ser indicados por entidades de classe representantes da comunidade
brasileira, e deveria ter uma independência semelhante aos poderes legislativo e judiciário, e possuir
orçamento próprio, de tal maneira que ele pudesse gozar de completa independência de legislar em
matéria de educação.

Sem dizê-lo explicitamente, Saviani na verdade estava propondo que o Conselho Nacional
da Educação despontasse dentro do regime político brasileiro como um quarto poder, paralelamente
aos poderes executivo, legislativo e judiciário, e que, embora em seu projeto ainda admitisse que
parte de seus participantes fossem indicados pelo Presidente e pelo Congresso, alguns de seus
membros deveriam ser apontados nem diretamente pela eleição popular, nem indiretamente por
autoridades eleitas pelo povo, mas por indicação de um determinado número de entidades de classe.

O texto publicado por Saviani na Revista ANDE deu entrada na Câmara dos Deputados, sem
nenhuma alteração, por iniciativa do deputado Octávio Elíseo e passou a tramitar sob o nome de
Projeto de Lei 1258 de 1988.

Em seu quarto artigo, que trata sobre o dever de educar, o projeto afirma que “a educação é
dever do Estado”, diversamente do que a Constituição estabelece em seu artigo 205, que estabelece
ser a educação “dever do Estado e da família”.

O artigo quinto do projeto estabelece que

“Haverá no país um Sistema Nacional de Educação, constituído pelos vários serviços


educacionais desenvolvidos no território nacional”.

O projeto trata ainda sobre o Conselho Federal de Educação, definindo-o como órgão normativo, a
nível nacional, a ser constituído por 30 membros.

Mais adiante, o projeto que em seu artigo quarto havia retirado a família do dever de educar,
afirmando apenas que a tarefa da educação nacional cabe ao Estado, faz uma concessão em seu
artigo 25 e estabelece que

“cabe à família escolher o tipo de educação anterior ao primeiro grau que deve ser
dado aos seus filhos”.

7. Educação Brasileira: Estrutura e Sistema.

Ao doutorar-se em Filosofia da Educação, Dermeval Saviani havia estudado extensamente o


conceito de sistema de educação. Ele observou que, no Brasil, as leis educacionais falam de
sistemas quando, por exemplo, estabelecem que

“os Estados, a União, organizarão os seus sistemas de ensino”.

Então ele se pergunta: “O que é um sistema de ensino?”

Após averiguar que nas discussões realizadas no Congresso durante a tramitação do projeto
da LDB de 1961 nenhum dos parlamentares se deteve para entender ou explicar o que seria um
sistema de ensino do qual tanto se debatia, Saviani passa ele mesmo a investigar o que este seria.
11

Ele anuncia que o método que irá utilizar para tanto será o “fenomenológico-dialético”. Será
fenomenológico porque observaremos atentamente professores e alunos que tentam sistematizar a
atividade educacional, será dialético porque estas tentativas são movimentos e os movimentos são
submetidos às leis da dialética.

É possível então observar em primeiro lugar que a criança a ser educada é um corpo
submetido a leis físicas. Em seguida, observamos que esta criança também está submetida a leis
biológicas. Não apenas isto. Esta criança possui um mundo interior, é um ente psicológico. E
também pertence a uma comunidade que fala uma determinada língua, tem costumes sociais e tem
uma história: está sujeita à historicidade da sociedade onde nasceu.

Observamos também que quando o educador compreende que a educação da criança


envolve todos estes elementos, é tomado por um estado de desânimo porque compreende que, na
verdade, nestas condições, a educação é impossível. Pois se a criança são todas estas coisas, isto
significa que ela já vem totalmente determinada e não há nada que o professor possa ensinar.

Porém, se observamos um pouco mais atentamente, perceberemos que diante de todas estas
coisas a criança demonstra possuir liberdade. A criança pode rebelar-se contra estas determinações.
Ela pode rejeitar aquilo que tenta determiná-la. A criança, portanto, não tem só determinações
biológicas, psicológicas e sociais. Ela também possui liberdade e, portanto, nós poderemos ajudá-la
neste desejo de autodeterminar-se.

Mas há ainda um outro elemento a ser observado. A partir do momento em que o educador
percebe que a criança quer rejeitar ou transformar os condicionamentos que lhe são impostos, ela
também faz afirmações que pretende que sejam aceitas pelas demais crianças. Ela não diz que são
apenas opiniões pessoais, mas pretende que estas afirmações sejam verdades objetivas, tentando
fazer com que as outras entendam que tais afirmações não são verdades apenas para si, mas também
para todos. Isto mostra que o homem não quer viver no mundo somente para si. Ou seja, no homem
existe também o aspecto intelectual. Este aspecto intelectual se traduz pelo termo “consciência”. E
a partir do momento em que a criança, justamente por ser consciente, quer abrir o seu mundo aos
outros, quer abri-lo também ao educador. É a partir deste momento que o educador pode começar a
trabalhar para sistematizar a educação.

Mas esta concepção, explica Saviani, ainda não percebeu que há níveis de consciência.
Existe um nível de consciência assistemático, irrefletido, que corresponde à filosofia de vida que
cada um tem; e existe um nível de consciência que é o refletido, o que foi trabalhado para se chegar
a uma consciência mais elaborada. Ao contrário da consciência irrefletida, este outro tipo de
consciência refletida é o que surge quando nos deparamos com um problema. No momento em que
no caminho de uma pessoa surge alguma coisa que interrompe o seu curso normal em que utiliza a
sua consciência não-refletida, e esta passa a perceber que a sua consciência, a sua liberdade e as
suas condições não lhe permitem superar aquele obstáculo, ela encontra um problema e passa a
refletir sistematicamente para resolver este problema. Ao fazer isto, é obrigada a fazer o que
chamamos de Filosofia. Para Saviani, Filosofia é o esforço realizado pelo ser humano quando ele se
depara com um problema que não pode resolver e passa a filosofar e a raciocinar para tentar
resolver este problema. E isto é o que pode levar à sistematização.

A ação sistemática é justamente o resultado que surge quando o ser humano encontra um
problema e começa a filosofar. O resultado da Filosofia é o que Saviani chama de ideologia, que se
contrapõe à filosofia de vida. Quando esta ideologia é aplicada para resolver um problema,
transformará o problema de alguma maneira, mas nunca o resolverá completamente. O problema
será transformado, mas não resolvido, o que irá exigir uma nova reflexão e uma nova filosofia. Esta
12

metodologia constante, dialética, de resolução de problemas através da ideologia, é o que se chama


de sistematização.

A ação sistemática necessita de uma ideologia, de uma filosofia, como parte integrante; mas
ela não se resume na ideologia. A ação sistemática exige uma resolução contínua de problemas,
através do uso de ideologias que são filosoficamente elaboradas.

Tendo entendido o que é uma ação sistemática, explica Saviani, agora estamos em condições
de entender o que é um sistema educacional. Podemos entender que pode haver ações sistemáticas
sem haver sistema, assim como pode haver uma atividade educacional sistematizadora, sem haver
um sistema de educação.

Neste ponto Saviani cita um texto de Adolfo Vasquez, mas que contém ideias que foram
originalmente apresentadas pela Filosofia da História de Hegel. O filósofo alemão observou que
tudo o que acontece na história é feito intencionalmente e de modo sistemático. Os grandes
acontecimentos históricos são intencionais e sistemáticos. Quando Júlio César conquistou o poder
em Roma, ele o fez propositalmente, intencionalmente e de maneira sistemática; ele trabalhou, usou
passos e foi resolvendo problemas para chegar a uma determinada resolução. Quando Napoleão
tomou o poder fez a mesma coisa. Porém Hegel observa que na prática, os resultados que decorrem
destas ações sistemáticas e intencionais nunca são o que realmente as pessoas pretendem; a História
se utiliza delas, mas ela tem os seus próprios objetivos. Posteriormente Marx utilizou-se destas
ideias para mostrar que isto ocorre também na sua visão materialista da História: apesar dos
capitalistas, dos feudalistas, dos burgueses terem realizado determinadas ações tendo em vista
objetivos próprios, o que resultou destas ações, na verdade, foram mudanças históricas que não
eram exatamente o que estes personagens pretendiam. Foi assim que ocorreram os acontecimentos
históricos decisivos como a derrocada do feudalismo, o nascimento do capitalismo, a formação dos
estados modernos centralizados, a transformação do capitalismo em capitalismo monopolista, sem
que ninguém jamais se tenha proposto tais resultados. Sujeitos dotados de consciência e vontade,
sem que o proponham conscientemente, mas atuando de acordo com seus próprios objetivos,
produzem algo que escapa às suas consciências e vontades.

Saviani sustenta que o grande problema enfrentado para que se possa construir um sistema
educacional consiste em que as atividades sistemáticas dos educadores são independentes, cada uma
buscando seus próprios fins. Será necessário para isto fazer com que todas essas atividades
sistemáticas se unifiquem em torno de uma única atividade intencional comum. O problema que
Saviani parece não colocar é que, para Hegel, de onde estas ideias foram buscadas, trata-se de uma
impossibilidade. E Marx, a quem Saviani segue mais de perto, nisto também concordaria com
Hegel: a finalidade da História já está determinada. Façamos o que decidamos em nossas atividades
sistematizadoras, a História já tem sua determinação e irá seguir implacavelmente naquela direção.
É a dialética histórico-materialista quem determina o rumo da História, não a intencionalidade
comum dos educadores.

Aceitando as premissas de Marx, portanto, teríamos que concluir que, uma vez não sendo
possível decidirmos nós o rumo da História, porque ele já está determinado pela dialética histórico-
materialista, então o único modo de construir um sistema educacional segundo as premissas de
Saviani será obrigando todas as atividades sistematizadoras a se conformarem ao único sistema
educacional possível, aquele que que já é determinado pela história e que somente pode ser o
imposto pela lógica dialético-materialista descrita por Marx. Ou em outras palavras, somente poderá
haver no Brasil sistema educacional, e não apenas atividades sistematizadoras, se nós estivermos
decididos a aceitar como atividade intencional comum o fim da história determinado por Marx, isto
é, se nos tornarmos todos marxistas.
13

Saviani simplesmente ignora o dilema, ou não quis propositalmente apresentá-lo. Em vez


disso silencia e passa ao argumento seguinte:

“O sistema deverá ser o resultado intencional de uma prática intencional. Mas como as
práticas intencionais individuais conduzem a um produto comum inintencional, o
sistema educacional deverá ser o resultado de uma atividade intencional comum. Mas
como se poderá passar da atividade intencional individual à atividade intencional
comum? É aqui que entra o papel da teoria. Sem uma teoria educacional [comum] será
impossível uma atividade educatoiva intencional comum”.

Assim, segundo Saviani, para que se construa um sistema educacional será necessário acrescentar
às exigências da atividade sistematizadora esta outra: a formulação de uma teoria educacional, que
terá que ser única.

Saviani também silencia este outro dilema: esta teoria educacional única teria que ser imposta.
Isto porque, ao perguntar como surge a filosofia, Saviani responde que ela o faz quando aparece um
problema. Quando o homem se defronta com um problema, ele desenvolve uma filosofia para
resolvê-lo e criar assim uma atividade sistemática. Mas o que se observa é que quando os homens
encontram problemas, os problemas que cada um encontra são diferentes. Portanto, se a Filosofia é
o que Saviani descreve, então não pode haver uma filosofia única. Cada homem terá uma filosofia
diversa de acordo com o problema que estiver enfrentando e que estará sistematizando através de
uma ideologia, que variará de pessoa a pessoa e de local a local.

Neste caso, portanto, a única maneira de construir uma filosofia da educação comum seria
que algum grupo que tenha construído uma filosofia que fosse resolver o problema que o próprio
grupo houvesse identificado por este grupo impusesse esta filosofia a todos os demais grupos, para
que todos os demais grupos fossem obrigados a resolver o problema daquele primeiro grupo e que
agora se tornará o problema comum de todos. Mas se somente existe um único problema possível
capaz de transformar todas as atividades sistemáticas em um verdadeiro sistema, aquele que é
colocado por Marx e que ele afirma ser o problema colocado pela própria História, neste caso a
filosofia da educação que deverá ser imposta a todos é a filosofia Marxista.

Diante destas considerações não é difícil entender por que Saviani chegou à conclusão que
não existe sistema educacional no Brasil. Se sistema educacional é o que Saviani descreve, então
não poderia existir mesmo nenhum sistema educacional no Brasil, e esta conclusão não depende de
qualquer análise mais profunda da Lei de Diretrizes e Bases como faz o autor em sua tese, porque a
própria Constituição brasileira afirma princípios como o que se lê no artigo 206:

“O ensino no Brasil será ministrado com base no pluralismo de idéias e concepções


pedagógicas”.

Este é o verdadeiro motivo pelo qual não pode existir um sistema de ensino no Brasil. Saviani
sugere em sua tese que não existe sistema de ensino porque os parlamentares que discutiram a Lei
de Diretrizes e Bases de 1961 não discutiram o problema do que seria um sistema de ensino nem
sequer superficialmente. Mas não foi este o motivo. Quando discutiram a Lei de Diretrizes e Bases,
os educadores enfatizavam que os problemas educacionais são locais e devem, portanto, dar origem
a soluções locais. Disto, portanto, resultarão concepções pedagógicas diferentes. Então não poderia
ter surgido um sistema de ensino porque a decisão foi tomada de caso pensado. É justamente porque
a Constituição respeita o princípio do pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas que serão
criados não só vários sistemas de ensino em cada Estado como também, a partir da Constituição de
1988, vários sistemas de ensino em cada Município. E a segunda Lei de Diretrizes e Bases que foi
aprovada em 1996 praticamente chega a dizer que deverá haver várias concepções pedagógicas de
14

acordo com cada estabelecimento de ensino. O que deveria ser mais ou menos óbvio, porque se não
for assim, teríamos que impor uma só concepção pedagógica a todos por igual e então não existiria
mais a pluralidade de concepções pedagógicas estabelecida pela Constituição.

A importância da tese de Saviani para a compreensão dos objetivos do projeto de lei


apresentado pelo deputado Octávio Elísio é uma posição sustentada amplamente pela literatura
pedagógica brasileira. Após amplo estudo em que se propôs a investigar a produção educacional
marxista no Brasil, Oswaldo Yamamoto, em seu livro “A educação brasileira e a tradição marxista
de 1970 a 1990”, sustenta que

“O Programa de Doutorado em Filosofia da Educação da Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo, conduzido por Dermeval Saviani, constituiu-se em um
verdadeiro divisor de águas dentro da produção educacional marxista no Brasil. Este
programa de pós-graduação, especialmente com a implantação de seu doutorado,
acabou por se transformar no centro do debate educacional do período (pg. 87). O
empreendimento levado a cabo pelos educadores sob a tutela de Dermeval Saviani
marca o momento decisivo da produção educacional brasileira de inspiração marxista
(pg. 139)”.

Com a aprovação da Constituição de 1988, surgiu a oportunidade de apresentar à sociedade o


projeto de uma nova LDB que viesse a adaptar a legislação existente às exigências da Carta Magna.
Na realidade o projeto da nova LDB não adaptava a educação à nova Constituição, mas às teses do
professor Saviani. A nova Constituição adotava como princípio a pluralidade de concepções
pedagógicas, enquanto Dermeval Saviani exigia uma teoria educacional única a ser aceita ou
imposta a todos, sem querer deixar claro que estava se referindo àquela que havia sido elaborada
por Marx.

8. A tramitação do projeto da nova LDB.

Apresentado em 1988 à Câmara o projeto da nova LDB pelo deputado Octávio Elísio, sua
relatoria foi atribuída em 1989 ao deputado Jorge Hage, que passou a promover audiências públicas
para ouvir a posição de especialistas e entidades. Entre estes, muitos eram ligados ao Fórum
Nacional em Defesa da Escola Pública, entre os quais estava a professora Ivani Rodrigues Pino do
CEDES. Ouvida em audiência pública, a professora Ivani sugeriu que a estrutura do Fórum à qual o
CEDES pertencia fosse incorporada à estrutura do próprio Ministério da Educação. Portanto, dentro
do MEC, além do Conselho Nacional de Educação, deveria haver também um Fórum Nacional da
Educação que, em conjunto com o Conselho, condividisse o papel normativo da educação nacional.
O relator aceitou a sugestão e incluiu no substitutivo do projeto a proposta de um Fórum Nacional
de Educação, mas de caráter exclusivamente consultivo.

Votado o substitutivo, o artigo 8 do texto aprovado previa um Sistema Nacional de


Educação.

O artigo 10 estabelecia que o Sistema Nacional de Educação teria o Conselho Nacional de


Educação como órgão normativo, o Ministério da Educação como órgão executivo e o Fórum
Nacional de Educação como instância de consulta. O que havia sido até então o Conselho Federal
de Educação passaria a chamar-se Conselho Nacional de Educação, porque seria o órgão normativo
não apenas do Sistema Federal de Educação, mas de todo o Sistema Nacional de Educação. Em
nenhum momento estava previsto que as decisões do Conselho, em matéria normativa, teriam que
15

ser homologadas pelo Ministro da Educação. Não se tratava, portanto, apenas de uma simples
mudança de nome.

O Conselho Nacional de Educação seria composto por 34 membros, dos quais apenas 4
indicados pelo Presidente. Os 30 restantes seriam indicados por entidades de classe, nenhuma eleita
pelo povo.

O artigo 25 estabelecia que o Fórum Nacional de Educação seria integrado por um número
de representantes maior que os do Conselho, desta vez todos indicados por entidades.

O projeto aprovado foi enviado ao Senado em 1990.

Empossado em 1991 como Ministro da Educação, José Goldemberg dirigiu-se pessoalmente


à reunião de líderes de bancada no Senado para pedir que os parlamentares reprovassem em bloco o
projeto aprovado pela Câmara porque, em sua opinião, ele engessaria a educação nacional.

O senador Darcy Ribeiro, designado como relator, rejeitou o projeto e apresentou um


substitutivo. Ao rejeitar o projeto o relator alegou a presença de inconstitucionalidades,
principalmente quanto aos dois pontos que Dermerval Saviani havia apresentado em 1988 como
sendo os principais de sua proposta. Em primeiro lugar, o conceito de um Sistema Único Nacional
de Educação. Em segundo lugar, sua concepção sobre o Conselho Nacional de Educação, tema em
que Darcy Ribeiro não discutiu o mérito. Limitou-se a argumentar que a Constituição de 1988
estabelecia que o Legislativo não poderia discutir projetos de lei que alterassem a estrutura dos
órgãos do Poder Executivo a menos que o projeto original tivesse sido apresentado por iniciativa
sdo próprio Poder Executivo, o que não era o caso deste projeto em tramitação.

Aprovado o substitutivo de Darcy Ribeiro, a nova LDB de 1996 extinguia qualquer


referência a um Sistema Nacional de Educação. Indo além da LDB de 61, o artigo 8 da LDB
aprovada em 1996 estabelecia que não somente a União, os Estados e o Distrito Federal
organizariam seus respectivos sistemas de ensino, mas também os Municípios.

E mais ainda, uma novidade coerente com o desenvolvimento da história da educação no


Brasil. Para além dos municípios, o princípio da descentralização passava a apontar para os próprios
estabelecimentos de ensino. O artigo 15 da nova LDB prescrevia que os sistemas de ensino, isto é,
não só o federal e os estaduais, mas até mesmo os municípios, deveriam

“assegurar às unidades escolares públicas de educação básica que os integram


progressivos graus de autonomia pedagógica”.

Para os que conheciam a História, isto significava inequivocamente que aquela autonomia
pedagógica da qual esperava-se que levasse à criação dos sistemas municipais de ensino, que na
LDB de 1961 era apenas uma aspiração, consolidava-se na LDB de 1996 como fato já consumado e
agora a esperança passaria a ser que em um futuro próximo esta autonomia pudesse ser levada já
não mais do Estado para o Município, mas do Município para o próprio estabelecimento de ensino.
O artigo 8 falava em

“progressivos graus de autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira”.

Isto é, ficava claro que se tratava, em primeiro lugar, como indicava a própria ordem dos termos,
não apenas de autonomia administrativa e de gestão financeira, mas principalmente de autonomia
pedagógica.
16

9. O FUNDEF.

A aprovação da LDB de 1996 sinalizou um avanço no processo de descentralização e


democratização da educação do Brasil, que prosseguia na mesma linha em que vinha sendo
planejada desde a época dos Pioneiros da Educação.

Enquanto isto, no plano internacional, os anos 50 haviam assistido à ruptura, dentro dos
partidos marxistas, do movimento socialista com o movimento comunista. O projeto socialista
pretendia alcançar o poder através da via eleitoral, aumentar os impostos progressivamente até que,
quando a arrecadação chegasse a uma fração considerável do Produto Interno Bruto nacional, o
governo passaria a comprar e estatizar as empresas privadas até praticamente eliminar toda a grande
propriedade privada. Graças à ruptura institucional com a vertente comunista havida nos anos 50, o
projeto teve um sucesso espetacular e, nos anos 60 e 70 já se previa que em pouquíssimo tempo o
mundo, seguindo a vertente socialista, estaria na iminência de se tornar marxista.

O sistema financeiro internacional não poderia permanecer alheio a este horizonte. Foi
fundamentalmente para fazer fracassar o projeto socialista que foi criado e disseminado o
neoliberalismo econômico e a globalização da economia. O novo esquema de uma economia
totalmente aberta exigia também uma reforma radical do sistema educacional a nível mundial.
Assistiu-se assim, a partir dos anos 70, a uma ingerência cada vez maior do Banco Mundial na
educação, que passou a ditar as regras das reformas educacionais, utilizando-se como instrumentos
para tanto de outros organismos internacionais inteiramente dedicados à educação como a
UNESCO. O Banco Mundial estava interessado, de modo especial, na universalização do ensino
fundamental. Interesse muito louvável, não há dúvida, mas onde o foco fundamental não era tanto o
próprio homem, mas a reforma econômica, uma diferença que pode parecer pequena no princípio,
mas que se torna gigantesca no final. Foi com este fim que em 1990 foi promovida em Jomtien, na
Tailândia, uma conferência internacional de educação em que foi lançado o lema “Educação para
Todos”. Em seguida, a UNESCO decidiu reunir no final de 1993, na cidade de Nova Delhi, na
Índia, os ministros da educação dos nove países mais populosos do mundo, em uma conferência de
menor envergadura, mas da qual esperava-se maior eficiência. Representando o Brasil ali estava o
professor Murilo Hingel, então Ministro da Educação do governo Itamar Franco.

Entre os nove países participantes da Conferência de Nova Delhi foi o Brasil quem acabou
por encontrar a resposta efetiva à questão da universalização do ensino fundamental, que muito
impressionou as autoridades do Banco Mundial. A idéia partiu de Barjas Negri, um economista da
equipe do MEC, especialista em finanças municipais. Negri ressuscitou, essencialmente, a idéia do
Plano Nacional de Educação elaborado por Anísio Teixeira no início dos anos 60, com algumas
importantes modificações.

Negri propôs que dos impostos que a União, Estados e Municípios deveriam dedicar à
educação, fosse estipulado um valor fixo que deveria ser investido exclusivamente no ensino
fundamental, como exigia o Banco Mundial. A Constituição de 1988 não estabelecia qual parcela
dos impostos destinada à educação devesse ser utilizada no ensino fundamental, secundário, técnico
ou superior.

Foi então criado pelo MEC um fundo contábil ao qual se deu o nome de FUNDEF, que
deveria existir em cada Estado, no qual 15% de toda arrecadação dos Estados e Municípios deveria
ser destinado exclusivamente ao ensino fundamental e, desses 15%, pelo menos 60% deveria ser
destinado ao pagamento de professores. Tanto os recursos arrecadados pelos Municípios quanto os
17

recursos do Estado deveriam ir primeiro para o FUNDEF e só depois serem redistribuídos pelos
municípios, de acordo com o número de alunos efetivamente matriculados em cada escola.

Caberia ao Governo Federal fazer a contagem do número de alunos efetivamente


matriculados. Ao Governo Federal também caberia estabelecer o valor mínimo a ser investido por
aluno. A arrecadação total proveniente de todos os municípios mais a do próprio Estado deveria ser
redistribuída por município de acordo com o número de alunos efetivamente matriculados e
repassada às escolas de acordo com o número de alunos que ela tivesse. Esperava-se que isto fizesse
com que os prefeitos tivessem interesse em que suas escolas tivessem muitos alunos matriculados e
que não houvesse evasão escolar. Se, após a distribuição dos tributos reunidos no FUNDEF, seu
valor não fosse suficiente alcançar o valor mínimo por aluno, o Governo Federal completaria o
valor para poder alcançar o piso.

O problema com o plano arquitetado para o FUNDEF estava em sua inconstitucionalidade.


O plano era muito semelhante ao de Anísio Teixeira, com exceção de um detalhe: no plano original
de Anísio não haveria a reunião prévia dos tributos arrecadados por todos municípios em um fundo
comum, para somente depois os mesmos serem redistribuídos em função do número de alunos, de
acordo com as regras fixadas pelo Governo Federal. Cada município possuía direito integral à
totalidade dos tributos que arrecadassem, os quais não precisariam ser colocados primeiro em um
fundo comum do Estado para depois serem redistribuídos por todos os municípios. No plano
original de Anísio era o Estado quem deveria completar o que faltasse ao Município. Os Municípios
não precisariam colocar primeiro seus recursos em fundo comum para depois recebê-los de volta, às
vezes mais, às vezes menos do que haviam arrecadado. E à União caberia completar aquilo que
faltasse ao Estado. Era isto o que estava estabelecido no artigo 211 da Constituição de 1988, onde
se dizia que

“a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de


colaboração os seus sistemas de educação; a União organizará e financiará o sistema
federal de ensino e dos territórios e, em relação aos sistemas dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, [a União] prestará assistência técnica e financeira”.

Nesta normativa a União nada tiraria dos Municípios nem dos Estados, e os Estados nada tirariam
dos Municípios, para depois redistribuí-los segundo regras estabelecidas pela União. Esta era a idéia
de Anísio Teixeira.

A solução para o impasse do FUNDEF viria através da Emenda Constitucional 14 de 1996,


proposta pelo Poder Executivo, que alterava o artigo 211 da Constituição. Onde a Carta Magna
estabelecia que o

“papel da União em relação aos sistemas de ensino estadual do DF e dos Municípios


era de prestar assistência técnica e financeira”,

a dispositivo teria que passar a ser redigido da seguinte maneira:

“a União financiará as instituições de ensino públicas federais, e exercerá, em relação


aos Municípios e aos Estados, função redistributiva e supletiva de modo a garantir
equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino.”

Esta nova função redistributiva da União, que não existia na Constituição de 1988, apesar dos
resultados obtidos, (de fato, em questão de pouquíssimos anos, o índice de aprovação no ensino
fundamental chegou a quase 100% ), foi um grave precedente pelo qual se começou a se ampliar a
interferência do Governo Federal sobre os sistemas de ensino estaduais e municipais. No início a
18

única exigência para que fosse exercida a função redistributiva da União, e também a supletiva, era
o patamar mínimo inicialmente estabelecido em 300 reais por ano por aluno. Mais adiante, porém,
seriam planejadas e acrescentadas novas e progressivas exigências para que Estados e Municípios
pudessem gozar da função redistributiva e supletiva da União em matéria educacional. Já não mais
seria suficiente apenas garantir o piso de 300 reais por ano por aluno.

A Emenda 14/96 previa que o FUNDEF duraria 10 anos. Em 2006, quando isto veio a
acontecer, o já então presidente Luiz Inácio Lula da Silva propôs uma ampliação do conceito do
FUNDEF para se tornasse o FUNDEB. Tratava-se de uma nova versão do FUNDEF, agora já não
mais apenas para o Ensino Fundamental, mas para todo o ensino básico. E além disso a União
começaria a ampliar as exigências para que Estados e Municípios pudessem gozar da sua função
supletiva e redistributiva.

10. A década perdida.

A partir do momento em que Darcy Ribeiro recebeu a relatoria do projeto da LDB no


Senado os idealizadores do PL 1258/88 se deram conta que não tinham mais esperança e
consideraram a década perdida. Lamenta Saviani, na conclusão de seu estudo sobre “A Nova Lei da
Educação”:

“Mais uma oportunidade perdida. Outra vez deixamos escapar a oportunidade de


traçar as coordenadas e criar os mecanismos que viabilizassem a construção de um
Sistema Nacional de Educação abrangente, sólido e adequado às necessidades da
população brasileira em seu conjunto, um Sistema Único de Educação. Desta vez a
circunstância da elaboração de uma nova LDB propiciada pela Constituição de 1988,
criou novas esperanças que resultaram frustradas pela ofensiva neoconservadora que
logrou-se tornar-se politicamente hegemônica a partir de 1990.”

É então que o professor apresenta uma nova estratégia de ação, com base no fato de que no título
nove da LDB aprovada em 1996 as disposições transitórias estabeleciam o seguinte:

“É instituída década da educação, a iniciar-se um ano a partir da publicação desta lei.


A União, no prazo de um ano a partir da publicação dessa lei, encaminhará ao
Congresso Nacional o Plano Nacional da Educação com diretrizes e metas para os dez
anos seguintes em sintonia com a Declaração Mundial sobre a Educação para Todos”.

Dentro do quadro da história e da legislação vigente, não haveria como não entender um Plano
Nacional de Educação que não se restringisse à parte financeira e ao apoio técnico. Mas Saviani
sustenta que existe uma possibilidade de reverter a situação, justamente porque a nova LDB prevê
esta possibilidade de apresentação um Plano Nacional de Educação. Deveria ser aproveitada a
oportunidade e apresentar paralelamente ao Plano que seria apresentado pelo governo um outro
Plano Nacional de Educação, um Plano Nacional de Educação paralelo mas tomado em seu sentido
mais amplo. Um plano concebido de tal maneira que nele estivesse realmente todo o projeto
educacional da nação, já contendo embrionariamente a estrutura de um Sistema Nacional de
Educação. E isto não apenas agora que as disposições transitórias assim o previam, mas sempre de
agora em diante, de tal modo que toda vez em que o governo apresentasse um novo Plano Nacional
de Educação, deveria paralelamente ser apresentado outro Plano paralelo mais amplo e denunciar
em seguida o governo de não querer aceitá-lo, até surgir um momento político onde houvesse uma
nova correlação de forças diferente da existente em 1997 na qual fosse possível impor o Plano
Nacional de Educação paralelo. É assim que continua conclusão de “A Nova Lei da Educação”:
19

“As resistências às iniciativas de política educacional que estamos adotando, porém,


tem sido formas de resistência puramente passiva. Então propomos a necessidade de se
passar à resistência ativa. Esta resistência ativa não deve manifestar-se apenas
individualmente, mas através de organizações coletivas, galvanizando fortemente
aqueles que são atingidos pelas medidas anunciadas e formulando, através destas
organizações coletivas, alternativas às medidas propostas, sem o que será difícil
mobilizar as pessoas”.

Com o título de “Proposta da Sociedade Brasileira”, o PNE paralelo foi apresentado no II


Congresso Nacional de Educação, realizado em novembro de 1997 em Belo Horizonte, enquanto
que o governo Fernando Henrique apresentava em dezembro a sua versão oficial do PNE.
Aprovado pelo Congresso, este Plano vigorou até 2007, época em que Lula já era presidente. Como
havia previsto Saviani, com a eleição de Lula a correlação de forças tinha se alterado.

Iniciado o novo governo, foi criado o FUNDEB para substituir o antigo FUNDEF que
expiraria em 2006. O novo FUNDEB, em princípio, seria o mesmo antigo FUNDEF, mas incluindo,
além do ensino fundamental, também a educação infantil e o ensino secundário. Mas acrescentava-
se a ideia que a redistribuição de recursos não mais seria feita apenas com base no número de
alunos efetivamente matriculados, mas com o acréscimo de novas exigências. Deste modo, estar-
se-ia abrindo espaço para gradativamente fazer surgir o Sistema Nacional de Educação. Já no
governo Dilma, o deputado federal Carlos Abicalil, do PT do Mato Grosso, especialista em
educação, apresentaria vários estudos para viabilizar uma proposta no sentido de estabelecer um
novo pacto federativo para ser aplicado à educação brasileira. Tratava-se, na verdade, de um
eufemismo para o projeto de construção do Sistema Nacional de Educação.

11. A Emenda Constitucional 59/2009.

Durante o ano de 2009 discutia-se na Câmara o projeto de uma emenda constitucional para a
redução progressiva da Desvinculação de Receitas da União na área da educação. A discussão
havia-se iniciado em 2003 e já durava mais de meia década. No dia 18 de fevereiro de 2009, quando
a tramitação do projeto já estava praticamente concluída, o Ministro da Educação Fernando Haddad
compareceu a uma audiência pública na Câmara e apresentou ao relator do projeto a sugestão de
inserir no documento um artigo que não tinha nenhuma relação com a Desvinculação das Receitas.
Haddad propôs que fosse o projeto também alterando o artigo 214 da Constituição, que prescrevia a
obrigatoriedade de um Plano Nacional de Educação de duração plurianual, o qual passaria a ser
redigido do seguinte modo:

“A lei estabelecerá o Plano Nacional da Educação, de duração decenal, com o objetivo


de articular o Sistema Nacional de Educação em regime de colaboração e definir
diretrizes, objetivos, metas, estratégias de implementação para assegurar o
desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades.”

Haviam-se passado já quase duas décadas desde a época em que o tema do Sistema Nacional de
Educação era discutido durante a tramitação da LDB. O tema já não era objeto de debate há
bastante tempo e os parlamentares já não lembravam mais quais implicações estavam contidas no
conceito de Sistema Nacional de Educação. Neste contexto Fernando Haddad parecia estar
propondo quase uma inocuidade, mas tratava-se da mesma idéia que o professor Demerval Saviani
havia introduzido na Câmara em 1988 e que, ao perderem a votação da Lei de Diretrizes e Base em
1996, o levou a entender os anos 90 como uma década perdida.
20

Em meio às acaloradíssimas discussões sobre a Desvinculação das Receitas da União, um


tema que envolvia, segundo cálculos do deputado Rogério Marinho, somas da ordem de dezenas de
bilhões de reais, a proposta de Haddad foi aprovada praticamente sem nenhuma discussão. Mas com
isto agora o novo Plano Nacional de Educação não teria que definir não mais apenas como os
recursos seriam distribuídos, mas passaria também a ter que definir as metas de toda a atividade
educacional no Brasil, que em sua quase toda a sua extensão deixaria de ser decidida em
localmente, a nível de Município e Estado, passando esta atribuição para a União, como também o
própria União assumiria a competência de elaborar uma lei criando um Sistema Nacional de
Educação.

Logo em seguida foi apresentado o Projeto de Lei Complementar 15/2011 de autoria do


deputado Felipe Bornier, também conhecido como Projeto da Lei da Responsabilidade Educacional.
O PLP 15/11 regulamenta o artigo 211 da Constituição, estabelecendo que a participação da União
no exercício de sua função redistributiva e supletiva em matéria educacional obedecerá a dez
critérios a serem exigidos dos demais entes federativos. Para usufruir da função redistributiva não
bastará mais apresentar apenas o número de alunos matriculados em cada município. Será
necessário comprovar que estejam sendo cumpridos as exigências estipuladas nos dez incisos
enumerados pelo projeto, entre as quais a quarta exige que os Planos Estaduais e Municipais de
Educação tenham sido todos aprovados de acordo com o Plano Nacional da Educação. Este, a partir
da Emenda Constitucional 59/2009 proposta pelo ministro Haddad, não é mais apenas um plano de
redistribuição de recursos, mas uma legislação que estabelece metas e conteúdos educacionais, além
de uma extensa e detalhada Base Nacional Comum Curricular obrigatória para todos os
estabelecimentos de ensino de todos os entes federativos. Se Estados e Municípios não seguirem o
Plano Federal e sua Base Nacional Comum Curricular não poderão receber a ação supletiva e
redistributiva da União. É importante notar que não está sendo cobrada um conceito geral de
responsabilidade educacional por parte de Estados e Municípios: o que está sendo cobrado é a
responsabilidade que agora passa a ser determinada pela União e não mais pelos próprios Estados e
Municípios. Trata-se da perda da autonomia pedagógica dos sistemas estaduais e municipais de
ensino.

No inciso nove do PLP 15/11 exige-se também que Estados e Municípios promovam uma

“avaliação anual do nível de rendimento escolar dos alunos integrados ao Sistema


Nacional da Educação mantido pela União, e realizada por meio de procedimentos
padronizados”.

Ou seja, os alunos serão examinados, a nível de Município e a nível de Estado pelos procedimentos
padronizados que a União irá estabelecer, e não pelos que são estabelecidos pelo próprios Estados,
Municípios ou estabelecimentos de ensino. Ainda que no processo de estabelecimento destes
padrões os Estados e Municípios sejam consultados, não se tratam mais de padrões locais.

12. O Fórum Nacional de Educação.

A Emenda Constitucional 59/2009 foi aprovada pela Câmara em setembro, pelo Senado em
outubro e promulgada por ambas as casas em novembro de 2009. O dispositivo previa a aprovação
de um Plano Nacional de Educação a cada dez anos que articulasse o Sistema Nacional da
Educação,
21

Uma das primeiras medidas que foram encaminhadas nesta direção foi a Portaria 1047/2010,
assinada pelo Ministro Fernando Haddad. O documento criava o Fórum Nacional da Educação
como órgão interno ao Ministério da Educação, constituído por membros indicados por trinta e
quatro organizações e que trabalharia em conjunto com o Conselho Nacional de Educação. A
função do novo Fórum seria a de articular as Conferências Nacionais de Educação que levariam à
elaboração do Plano Nacional da Educação, que depois seria aprovado pelo Congresso Nacional.

Tratava-se exatamente do mesmo Fórum Nacional de Educação que havia sido proposto no
substitutivo de Jorge Hage por ocasião da tramitação do projeto da LDB de 1988 escrito por
Dermeval Saviani. Os representantes do Fórum criado em 2010 não seriam indicados pela
Presidência da República, mas por trinta e quatro organizações, das quais diversas já não eram
educacionais. A Portaria previa a participação no Fórum de representantes de “movimentos sociais
do campo”, “movimentos de afirmação da diversidade” e de “centrais sindicais dos
trabalhadores”. Posteriormente, pela Portaria 502/2012, assinada também por Fernando Haddad, o
Ministro deixou de referir-se a organizações genéricas e designou nominalmente quais seriam estas
entidades. Entre elas estavam a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura -
CONTAG, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, a Comissão Técnica
Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-Brasileiros - CADARA,
o Centro de Estudo das Relações do Trabalho e Desigualdades – CEERT, a Associação Brasileira
de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - ABGLT, a União Brasileira de Mulheres -
UBM, a Central Única dos Trabalhadores - CUT, a União Geral dos Trabalhadores – UGT.

Posteriormente, o Plano Nacional de Educação que, aprovado em 2014, recebeu o nome de


Lei 13.005/14, determinou que a legislação complementar prevista pela Emenda 59/2009, que
deveria criar o Sistema Nacional de Educação, deveria ser aprovada em um prazo máximo de dois
anos. A Lei 13.005/14 estabeleceu também a criação do Fórum Nacional de Educação, que deste
modo deixou de existir apenas em virtude de uma portaria do MEC, passando a existir em virtude
de lei federal aprovada pelo Congresso.

13. A CONAE de 2010.


A Emenda 59/2009 determinava que o Plano Nacional de Educação deveria articular o
Sistema Nacional de Educação. Mas para aprovar o Plano Nacional de Educação, sua proposta
deveria primeiro ser elaborada pelas Conferências Nacionais de Educação (CONAEs). As
Conferências Nacionais de Educação, por sua vez, deveriam ser organizadas pelo Fórum Nacional
de Educação, que havia sido provisoriamente criado para este fim pelas portarias do Ministro
Fernando Haddad.

Assim, na abertura da CONAE de 2010, que deveria elaborar a proposta de PNE, o qual
deveria articular o SNE, o professor Dermeval Saviani foi convidado pelo MEC para apresentar aos
participantes da conferência as linhas gerais a serem seguidas para articular o PNE com o SNE.

O pronunciamento de Saviani, em conjunto com dois outros documentos escritos por Carlos
Roberto Jamil Cury e Carlos Abicalil, foi publicado em 2009, previamente à realização da CONAE,
para orientação dos participantes, através do patrocínio oficial do MEC e do Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).

A apresentação da publicação, assinada pelo INEP, sustenta que as posições defendidas


pelos três documentos e pela própria CONAE
22

“lembram as teses defendidas no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, do qual


um dos seus expoentes foi Anísio Teixeira”,

recomendando, em seguida, que a leitura dos documentos

“possibilite aos delegados à CONAE a apropriação de informações relevantes às


deliberações a serem feitas durante a CONAE”.

O primeiro dos três documentos contidos na publicação é o de autoria do professor Carlos Roberto
Jamil Cury. O autor discorre sobre os desafios envolvidos na construção de um Sistema Nacional de
Educação. Cury sustenta explicitamente que sem um Sistema Nacional Único de Educação não será
possível derrubar o Capitalismo. É o que se pode ler na página 20 do documento:

“É evidente que o desafio de um sistema único de educação se radica no próprio


desafio de uma superação do próprio capitalismo”.

O segundo documento é o de autoria de Dermeval Saviani. Após a publicação foi ligeiramente


modificado para poder ser apresentado pelo próprio autor no Simpósio de Abertura do evento
realizado em Brasília em março de 2010, a convite dos organizadores da CONAE. Na forma em que
foi utilizado no Simpósio de Abertura da CONAE, foi novamente publicado pelo autor na Revista
Brasileira de Educação de maio/agosto de 2010. Em nota de rodapé, o autor agradece aos
coordenadores da CONAE pela autorização para a publicação do documento.

Tal como foi apresentado no Simpósio e posteriormente publicado na RBE, a apresentação


de Saviani leva o título de “Sistema Nacional de Educação articulado ao Plano Nacional de
Educação”. O autor principia o texto comentando a natureza do que deverá ser o Sistema Nacional
de Educação:

“São frequentes o uso de expressões como 'sistema público de educação', 'sistema


particular de ensino' e 'sistema livre de ensino'.

Ora, dessas expressões, quero notar a todos que a expressão 'sistema público de
ensino' é um pleonasmo, porque o sistema só pode ser público, já que uma de suas
características é autonomia e obviamente somente o Estado, isto é, o poder público,
tem a prerrogativa de definir normas que obrigam a todos.

Portanto, a segunda expressão 'sistema particular de ensino' é contraditória, pois os


particulares não podem emitir normas que obrigam a todos.

E finalmente, a expressão 'sistema livre de ensino' não faz sentido, pois o ensino livre é
livre exatamente porque não segue as normas do sistema, logo está fora dela”.

Sobre a autonomia dos municípios, apesar de claramente estabelecida pelo artigo 15 da atual Lei de
Diretrizes e Bases, Saviani sustenta que

“É preciso ter presente que a melhor forma de fortalecer as instâncias locais, seja as
municipais ou mesmo as próprias escolas, não é necessariamente a de conferir-lhes a
autonomia, deixando-as de certo modo à própria sorte.

Na verdade, a melhor maneira de respeitar a diversidade dos diferentes locais e


regiões, é articulá-las no todo e não isoladas. Isso porque, o isolamento tende a fazer
degenerar a diversidade em desigualdade.
23

Portanto, não se trata de entender o Sistema Nacional de Educação como um grande


guarda-chuva com uma mera função de abrigar 27 sistemas estaduais de ensino,
incluindo o do Distrito Federal e o próprio Sistema Federal de Ensino.”

Não se trata, portanto, na verdade de articular, mas de que todos os sistemas estaduais e municipais
deverão obedecer incondicionalmente ao único Sistema Nacional de Educação que irá realmente
existir. Esta era a orientação que estava sendo dada à CONAE.

Mais adiante Saviani ainda comenta:

“Não se pode enfraquecer o caráter público do Sistema Nacional de Educação a


pretexto de que a educação é uma tarefa não apenas do governo, mas de toda
sociedade.

É uma tarefa de toda a sociedade sim, mas na medida em que o Estado, enquanto
guardião do bem público, expressa ou deveria expressar os interesses de toda a
sociedade. Nesta condição, é toda a sociedade que deveria se sentir não apenas
representada no Estado, mas vivenciar o Estado como uma coisa sua.

Portanto, é necessário reverter a tendência hoje em curso de diluir as


responsabilidades educativas do poder público, transferindo-as para iniciativas de
filantropia e de voluntariado. Esta tendência configura um retrocesso diante das
conquistas do Estado moderno, é como se estivéssemos retornando ao início da era
moderna, quando a questão da instrução popular era tratada como um problema de
caridade pública. Essa fase foi ultrapassada e a ela não devemos jamais retornar, sob
pena de anularmos todo o desenvolvimento da sociedade moderna que desembocou na
tese da escola pública universal, gratuita, laica e obrigatória, concebida como um
direito de todos e um dever do Estado”.

Em outras palavras, não haverá liberdade de educação, e todos deverão compreender que nossa
liberdade consistirá em obedecer livremente às diretivas do Estado que representa a todos. Isto será
um direito de todos e um dever do Estado.

Sobre o Conselho Nacional de Educação, Saviani volta a defender as mesmas posições que
sustentou em 1988:

“A instância normativa e deliberativa do Sistema Nacional de Educação deverá ser


exercida por um órgão determinado, que corresponde hoje ao Conselho Nacional de
Educação.

Assim sendo, o Conselho Nacional de Educação deve ser tratado como um órgão de
Estado e não de governo.

Deve, pois, como ocorre com os poderes legislativo e judiciário, gozar de autonomia
financeira e administrativa. E o Conselho Nacional de Educação não pode ficar, como
hoje ocorre, na dependência total do executivo e do Ministro da Educação”.

Saviani quer dizer que o Conselho Nacional de Educação deve ser preparado para tornar-se em um
quarto poder constitucional, paralelo aos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, com completa
autonomia para ditar as normas educacionais. Como afirmou em diversos de seus outros textos,
24

deve não somente ser independente dos demais poderes constitucionais, mas seus representantes
também não devem ser eleitos pelo povo, nem tampouco indicados pelos representantes eleitos por
ele, mas indicados por sociedades de classe.

14. O Projeto de Lei Complementar 413/2014

A Lei 13.05/14, ou Plano Nacional de Educação, estabelecia que no período de 2 anos a


partir de sua publicação, deveria ser aprovada a legislação que estabelecesse o Sistema Nacional de
Educação. O projeto de lei elaborado para tanto, ainda em tramitação, apesar de decorrido o prazo
estabelecido, é o PLP 413/2014.

O artigo 4 §1 do PLP 413/14 estabelece que o Sistema Nacional de Educação compreende o


Sistema Federal, os Sistemas Estaduais e Municipais e o do Distrito Federal. Determina ainda que
caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes sistemas e
exercendo função normativa, distributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais.

Trata-se de uma ampliação de atribuições contidas no artigo 211 da Constituição que em sua
redação original determinava que, em relação aos sistemas estaduais e municipais de ensino, caberia
à União apenas funções de assistência técnica e de ajuda financeira. Posteriormente, para que
pudesse ser criado o FUNDEF, a Emenda Constitucional 14/96 estabeleceu que à União também
caberia as funções redistributiva e supletiva. Mas agora o parágrafo primeiro do PLP 413/14
estabelece que cabe à União exercer, em relação aos demais sistemas de ensino, não apenas as
funções distributiva e supletiva, mas também a normativa. Ou seja, já não cabe mais à União
legislar sobre diretrizes e bases genéricas. Toda a normatização da política nacional de educação
cabe agora à União.

O parágrafo 2 do PLP 413/14 limita a liberdade de organização dos sistemas estaduais e


municipais de ensino. Os demais sistemas de ensino, afirma o parágrafo 2,

“terão liberdade de organização nos termos desta lei e da Lei de Diretrizes e Bases da
educação nacional”.

Ou seja, o sentido da Lei de Diretrizes e Bases teve seu sentido completamente invertido. A LDB
foi criada para limitar o poder normativo da União em termos de educação e dar ampla liberdade e
uma autonomia progressivamente crescente aos Estados, Municípios e às próprias escolas. A função
da Lei de Diretrizes e Bases é a de limitar a um mínimo a normatividade da União em relação a
Municípios e Estados em matéria educacional. Mas aqui, exatamente no sentido contrário, são os
Municípios e os Estados que estão sendo limitados pelos termos desta lei, que será a lei do Sistema
Nacional de Educação. E o que diz o projeto? Cabendo à União a função normativa do Sistema
Nacional de Educação, Estados e Municípios terão liberdade na medida em que a União o permitir,
já que pelo projeto, que não prevê nenhum limite ao poder normativo da União, tudo poderá ser
normatizado por ela.

O parágrafo quarto do PLP 413/14, mais ainda, está incentivando os municípios a abdicarem
do direito que antes era incentivado pela legislação, não só de criar sistemas próprios e autônomos
de ensino, mas também de levarem essa autonomia até aos próprios estabelecimentos escolares.
Aqui o parágrafo 4 convidando a que os municípios, mediante a lei, optem por abdicarem da
construção de um sistema de ensino próprio e em vez disto componham o Sistema Nacional de
Educação. Ou seja, o projeto incentiva a centralização em vez da descentralização, que é
completamente o inverso daquilo que a legislação até o momento não apenas incentivava como
25

preceituava. Veja-se a respeito o artigo 15 da atual Lei de Diretrizes e Bases ainda vigente. Não é
isto o que está estabelecido na na Constituição, não foi o que os constituintes quiseram, não foi o
que os educadores pensaram, isto é o plano da esquerda que está sendo silenciosamente imposto ao
Brasil.

O artigo 6 estabelece que o Sistema Nacional de Educação terá como órgão coordenador o
Ministério da Educação, mas como órgão formulador e normativo o Conselho Nacional de
Educação. Em seguida o PLP 413/14 passa a especificar quais são as atribuições do Conselho
Nacional de Educação. Constitucionalmente não poderia fazê-lo pois o legislativo não pode legisar
sobre o funcionamento de órgãos do Poder Executivo a não ser por projetos de lei de iniciativa do
próprio Poder Executivo, a menos que a intenção do legislador seja avançar o entendimento de que
o Conselho Nacional de Educação não seja mais um órgão do Poder Executivo. É possível que
assim o seja, uma vez que também pode-se verificar que em nenhum momento o PLP 413/14 afirma
que as normas que forem emanadas do Conselho Nacional de Educação dependerão, para terem
eficácia, da homologação do ministro da Educação.

O dispositivo que atualmente regulamenta o funcionamento do Conselho Nacional de


Educação é a Lei 9131/95, na qual é estabelecido que as decisões do Conselho devem ser
homologadas pelo Ministro. Em nenhum momento o PLP 413/14 afirma revogar esta lei. Mas a Lei
9131/95 é uma lei ordinária, enquanto que o PLP 413/14, se aprovado, será Lei Complementar à
Constituição. Portanto, além de se tratar de lei posterior que reformula completamente as
atribuições do Conselho Nacional de Educação, estará também situada em nível hierárquico
superior à atual Lei 9131/95. Em assim sendo, quando vier a estabelecer-se o primeiro conflito
entre o Ministro e o Conselho sobre a validade de uma homologação, a querela será decidida pelo
Judiciário, com os resultados imprevisíveis a que o ativismo judicial submete este Poder. Neste dia
o Ministro talvez tenha que aceitar que ele já não é mais o Ministro, e que o Ministério terá sido
tomado pelo Conselho, o qual não poderá mais ser indicado pelo Presidência, nem escolhido pelo
povo.

O artigo 10 do PLP 413/14 estabelece o Fórum Nacional de Educação. O Fórum Nacional


de Educação, criado inicialmente pelas portarias do Ministro Haddad, posteriormente recriado por
uma lei ordinária, com o PLP 413/14 passará a ser novamente recriado por uma Lei Complementar
à Constituição. Depois disto só lhe faltará ser novamente recriado por uma Emenda Constitucional.
O PLP 413/14 estabelece que será o Fórum Nacional de Educação quem irá acompanhar a execução
do Plano Nacional de Educação e quem irá promover as conferências nacionais de educação que
irão elaborar o PNE. Alterada a concepção do que seja um Plano Nacional de Educação pela
Emenda Constitucional 59/2009, o PLP 413/14 está atribuindo ao Fórum a parte principal do
trabalho que antes era atribuída ao Ministério da Educação. Aprovado o PLP 413/14, todo o
planejamento, a elaboração e o governo da Política Nacional de Educação do Brasil sairá tanto da
órbita do poderes constituídos quanto do próprio povo, passando para as mãos das entidades que
irão apontar os integrantes do Fórum Nacional de Educação que, em última análise, será quem fará
todo o trabalho que será normatizado pelo Conselho Nacional de Educação, sem que haja
necessidade de homologação do Ministro. Este passará a ser apenas uma figura decorativa.

Restará apenas reescrever a Lei de Diretrizes e Bases segundo o Projeto apresentado por
Dermeval Saviani em 1988, conforme já foi proposto nas várias audiências públicas que foram
realizadas na Câmara para debater o tema do Sistema Nacional de Educação. Feito isto, caberá
pensar em reescrever a própria concepção de federação tal como é apresentada pela Constituição de
1988 como cláusula pétrea. O artigo 60 §4 da Constituição Brasileira estabelece que o sistema
federativo será cláusula pétrea e não poderá ser objeto de deliberação a proposta de emenda
constitucional tendente a abolir a forma federativa de estado. Mas os conceitos poderão ser de tal
maneira modificados em seu conteúdo que não será necessário abolir explicitamente por uma lei
26

positiva o sistema federativo. Sem modificar as palavras, mas gradualmente alterando os seus
significados, o Brasil poderá ser convertido, por esta metodologia, em um estado unitário e
centralizado. Poderá asssim ser tomado mais fácilmente por um grupo revolucionário e
estrategicamente organizado.

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