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A MOBILIZAÇÃO DOS EDUCADORES POR UMA EDUCAÇÃO

DEMOCRÁTICA NO PERÍODO DE 1980-1989

Vera Lúcia Casteleins1 - PUCPR


Elston Américo Junior 2 - PUCPR

Grupo de Trabalho – História da Educação


Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

O presente artigo analisa a educação brasileira entre 1980 e 1990. Este período de dez anos,
marcado com o fim da ditadura militar e o início da Nova República, caracterizou-se por
diversas mobilizações em vários setores da sociedade brasileira, dentre elas, a área da
educação. O objetivo do artigo é compreender como se formulou uma nova constituição com
mais direitos na educação que até então não eram tratados pelas leis do Brasil. Analisando a
Carta de Goiânia, publicada após a IV Conferência Brasileira de Educação, e a Constituição
Federal de 1988, foi identificado a grande influência da Carta de Goiânia na Constituição. A
mesma Carta ainda permite compreender o esforço dos educadores em mudar o cenário
político acerca da educação, buscando um ensino democrático, gratuito e laico. A Carta de
Goiânia, além de propor diversas reformas na educação, apresenta um esboço da IV CBE,
apresentando como estavam pensando um grande número de educadores e pesquisadores para
a formulação da Nova Constituição. Estes educadores já estavam aspirando reformas no setor
educacional há algum tempo, se organizando em associações de pesquisas na área de
educação, organizações estas que tiveram grande influência na oportunidade de realização das
CBEs. É concluso que a organização e articulação dos educadores de todo o país foi a
essencial para garantir a educação democrática e de qualidade para a nação, uma vez que
foram estes educadores que discutiram durante anos as melhores formas de educação,
possibilitando a publicação de uma Carta com pontos primordiais para a Constituição Federal
do país.

Palavras-chave: Educação Democrática. Carta de Goiânia. IV CBE. Educação na


Constituição de 1988.

1
Professora do Curso de Pedagogia e Licenciaturas da PUCPR.
2
Discente do Curso de Graduação Licenciatura em História da PUCPR e Bolsista da Fundação Araucária do
Programa Institucional de Iniciação Científica da PUCPR.

ISSN 2176-1396
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Introdução

O presente artigo tem como objetivo analisar o contexto educacional na década de


1980, com maior ênfase na segunda metade desta década, quando o país se unia para
promulgar uma nova constituição. A pergunta que se sucedeu foi “como o país, saindo de um
regime político pouco democrático e com poucas atitudes em relação à educação, promulgou
uma constituição três anos após o fim da ditadura, com grandes mudanças no sentido de
garantias de educação pelo Estado?”
Analisando algumas fontes, como a Carta de Goiânia de 1986, que foi publicada na IV
Conferência Brasileira de Educação, e a própria Constituição Federativa de 1988, foi possível
compreender como estes educadores conseguiram se mobilizar e apresentarem para a
assembleia constituinte suas reivindicações.
As Conferências sobre educação (CBEs), que tem origem desde o início dos anos 80,
foram de grande importância para as discussões em torno da educação em todo o Brasil, bem
como as associações (ANDE, ANPED, CEDES), que contribuíram para a criação destas
conferências e posteriormente dos fóruns, os quais tinham como objetivo o texto da
constituição e a criação da nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB).
A pesquisa toma corpo com o auxílio de autores como Demerval Saviani, o qual
participou deste processo de mobilização da educação, Brezinsk que retrata a influência da
Carta de Goiânia para a Constituição de 1988, e Luiz Antônio Cunha, que também viveu este
período de renovação.

A IV CBE e sua contribuição para a Constituição Federal de 1988

O cenário político durante a década de 1980 era de uma transição democrática, porém
sem grandes mudanças na sua essência, como afirma Brzezinsk (2013). Em âmbito
econômico, a dívida interna e externa aumenta, enquanto o poder do governo militar perde
forças, haja vista que os governos estaduais começam a receber voto direto.
A década de 1980 assinalou um momento de mobilização dos educadores, já com a
existência da ANDE (Associação Nacional de Educação), ANPED (Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação), e a CEDES (Centro de Estudos Educação
Sociedade).
De acordo com Brzezinsk (2013), os anos 1980 marcam, em sua primeira metade, uma
educação tecnocrata-militar e as práticas baseadas na teoria do capital humano e na pedagogia
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tecnicista de educação. Porém, a segunda metade da mesma década, a Nova República


instalou-se. Era este o período de transição de uma ditadura para a república, que prenunciava
a premência de uma nova constituição.
As associações citadas acima foram responsáveis pelas organizações das Conferências
Nacionais de Educação (CBEs), com a primeira realizada no ano de 1980. Destacamos a IV
CBE, que teve como tema Educação na Constituinte, “e na assembleia de encerramento dessa
conferência foi aprovada a “Carta de Goiânia” contendo as propostas dos educadores para o
capítulo da Constituição referido à educação” (SAVIANI, 2003, p. 35).
No texto introdutório da Carta de Goiânia podemos compreender a preocupação dos
educadores com o sistema de ensino nacional, bem como este tema seria tradado na nova
constituição.

Atendendo ao convite das entidades organizadoras – ANDE (Associação Nacional


de Educação), ANPED (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Educação) e CEDES (Centro de Estudos Educação e Sociedade) – seis mil
participantes, vindos de todos os estados do país, debateram temas da problemática
educacional brasileira, tendo em vista a indicação de propostas para a nova Carta
Constitucional. Os profissionais da educação declaram-se cientes de suas
responsabilidades na construção de uma Nação democrática, onde os cidadãos
possam exercer plenamente seus direitos, sem discriminação de qualquer espécie.
Então, por isso, empenhamos em debater, analisar e fazer denúncias dos problemas e
impasses da educação brasileira e, ao mesmo tempo, em colocar sua capacidade
profissional e sua vontade política para a superação dos obstáculos que impedem a
universalização do ensino público de qualidade para todo o povo brasileiro.
(CARTA DE GOIÂNIA, 1986, p. 1239).

A carta nos revela a precariedade no ensino brasileiro, destacando alguns dados que
representam tais problemas:

- Mais de 50% de alunos repetentes ou excluídos ao longo da 1° série do ensino de


1° grau; - Cerca de 30% de crianças e jovens na faixa dos 07 aos 14 anos fora da
escola - 30% de analfabetos adultos e numeroso contingente de jovens e adultos sem
acesso à escolarização básica - 22% de professores leigos;
- Precária formação e aperfeiçoamento profissional de professores de todo o país;
- Salários aviltados em todos os graus de ensino. (CARTA DE GOIÂNIA, 1986, p.
1240).

O descaso com a educação durante a ditadura militar é evidente, como demonstra


Brzezinsk (2013, p. 229):
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Em relação ao analfabetismo, a ditadura transferiu para a nova república 19 milhões


de analfabetos (26% da população), com 32% destes analfabetos situando-se na
faixa etária dos 07 (sete) aos 14 (quatorze) anos, que constitucionalmente tinham
direito à escola de primeiro grau (terminologia da época) obrigatória, pública e
gratuita. Apesar de o analfabetismo ser um mal que perdura no País pelo reiterado
descaso das políticas educacionais, ele foi acentuado durante a ditadura,
notadamente, pela redução dos recursos destinados à educação.

A IV Conferência Brasileira de Educação foi de grande importância para o futuro da


educação nacional, que, segundo Saviani (2003), a Carta de Goiânia teve seus pontos quase
que totalmente abordados na Constituição Federal de 1988. “Desejava-se explicitar
divergências e convergências para estabelecer consensos e organizar a energia política para o
exercício democrático da pressão aos constituintes.” (MENDONÇA, 2000, p. 87).
Vejamos então quais foram estes pontos, quais suas reivindicações e como influenciou
no texto da nova Constituição.
Os primeiros pontos da Carta se referem à obrigatoriedade do ensino público, “1. A
educação escolar é um direito de todos os brasileiros e será gratuita e laica nos
estabelecimentos públicos, em todos os níveis de ensino” (CARTA DE GOIÂNIA, 1986, p.
1242), a carta ainda continua em seu segundo princípio que este direito à educação deverá ser
garantido pelo estado independente de cor, sexo, idade, religião, filiação política ou classe
econômica. Estes princípios estão claramente na Constituição de 1988:

Art.205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será


promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1988, p. 34).

O terceiro princípio apontado pela Carta diz respeito ao ensino fundamental, “o ensino
fundamental, com 08 anos de duração, é obrigatório para todos os brasileiros, sendo permitida
a matrícula a partir do 06 anos de idade” (CARTA DE GOIÂNIA, 1986, p. 1242). O inciso I
do artigo 208 da constituição garante o direito ao ensino fundamental, “ensino fundamental,
obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiverem acesso à idade própria”
(BRASIL, 1988, p. 35).
Mais adiante na Carta de Goiânia, é apresentada a obrigação de o estado oferecer
vagas em creches para as crianças de zero a seis anos de idade, no qual aparece no artigo 208,
inciso IV: “Atendimento em creches e pré-escolas para crianças de zero a seis anos de idade”
(BRASIL, 1988, p. 35). No mesmo artigo da constituição, porém no inciso III assegura outra
abordagem prescrita pela Carta de Goiânia, que se refere ao ensino para os deficientes físicos.
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Já o sétimo tema da carta condiz ao ensino público para os jovens e adultos que não
tiveram acesso na idade apropriada, o qual é a abordagem feita no inciso I do artigo 208 da
Constituição. O mesmo artigo constitucional ainda aborda outros preceitos da Carta de
Goiânia, contido nos incisos II e VII, que tratam, respectivamente, do ensino médio com
duração de 03 anos e merenda escolar, bem como todo auxílio escolar. As duas medidas estão
também apresentadas na Carta de Goiânia.
Ainda podemos observar o artigo 210 da Constituição, que garante a língua portuguesa
como oficial no ensino, exceto em comunidades indígenas, no qual é o décimo ponto da
Carta.
O décimo oitavo ponto da Carta diz respeito às instituições privadas de ensino, que a
Constituição irá tratar em seu artigo 209: “o ensino é livre à iniciativa privada” (BRASIL,
1988, p. 35).
O artigo 211 da Constituição Federal de 1988, do qual trata sobre as verbas para a
educação foi um princípio exposto no décimo quarto ponto da Carta de Goiânia: “A lei
ordinária regulamentará a responsabilidade dos Estados e Municípios na administração de
seus sistemas de ensino e a participação da união para assegurar um padrão básico comum de
qualidade dos estabelecimentos educacionais” (CARTA DE GOIÂNIA, 1986, p. 1243).
É possível reconhecer o efeito que a IV Conferência Brasileira de Educação,
publicando a Carta de Goiânia, teve na Nova Constituição. Em termos de democratização da
escola pública a Carta cita setores que antes não estavam na pauta educacional, como a
educação infantil, a educação dos povos indígenas e a educação de jovens e adultos.
O final da década de 1980 então é marcado pelo novo olhar para a educação, já
pensando em como esta será abordada na Constituição que estaria por vir, e esta deve ser feita
com novos parâmetros, com os princípios de democracia e direitos sociais. Os educadores
visavam cada vez mais que estes direitos fossem garantidos na Constituição.

Ao invés de se referir ao termo genérico da educação, proponho que a futura


Constituição trate de instrução, o objetivo principal da educação escolar. Com isso,
não pretendo diminuir a importância de outras dimensões educativas que se
desenvolvem na escola, mas pertencem ao objetivo principal de outras instituições
educativas como as famílias, as sociedades religiosas e filosóficas, os meios de
comunicação de massa, os partidos políticos e outras. Essa demarcação visa também
evitar a mistura que os privatistas conseguiam imprimir às concepções gerais sobre a
questão da educação, a qual seria dada no lar e na escola, fazendo do ensino uma
questão de opção da família (lar), da mesma natureza que os valores morais e as
crenças religiosas. Desfeita a confusão, fica mais fácil combater a ideia de que o
Estado, que tem deveres com a educação de todos precisa amparar as famílias em
suas escolhas educacionais, mediante a transferência de recursos públicos para
instituições privadas. (CUNHA, 1987, p. 07).
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A Carta de Goiânia explicitou segundo Barreto (1987), as necessidades básicas


populares. O ensino público, de qualidade, laico e gratuito, eram pressupostos que já não
podiam ficar de fora da sociedade brasileira.
Em 1987, um ano após a IV CBE - que gerou a publicação da Carta de Goiânia e um
ano antes da promulgação da nova Constituição Federal – tiveram início os trabalhos na
assembleia constituinte, que, de acordo com Mendonça (2000) os parlamentares foram
distribuídos em comissões temáticas. A comissão de número 08 que tratava da família,
educação, cultura, esportes, ciência, tecnologia e comunicação foram divididas em três
subcomissões: Educação, cultura e esportes. Foi neste momento que as associações da CBE
juntaram-se com outras associações para fundar o Fórum Nacional de Educação na
Constituinte em Defesa do Ensino Público e Gratuito, o qual mais tarde viria ser o Fórum
Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP). “Entidades distintas, com propostas
diferenciadas, foram capazes de promover um movimento de integração que foi penoso,
difícil, mas importantíssimo, conseguido chegar à formulação de uma plataforma educacional
unitária para a constituinte.” (GOHN, 1994, p. 80).
Segundo Batista (2014), o Fórum se baseava nas ideias propostas na Carta de Goiânia,
e começava a partir de então, uma luta pela garantia de qualidade e da gestão democrática de
ensino em todos os níveis. As discussões em torno na educação começaram a cada vez mais
aumentar, como afirma Saviani (2003, p. 35):

Mantida a mobilização no sentido de garantir que os pontos da “Carta de Goiânia”


fossem incorporados ao texto da Constituição, o que se conseguiu quase totalmente,
iniciou-se concomitantemente em 1987 o movimento em torno da elaboração das
novas diretrizes e bases da educação nacional.

Estes últimos anos da década de 1980 demonstraram como foi importante a


mobilização dos educadores em torno de uma escola pública de qualidade e democrática,
sonho aspirado desde o início da mesma década. As propostas que se apresentaram sobre uma
gestão democrática da escola pública, passaram as discussões que foram se acumulando na
década de 1980 acerca do papel político da escola e da educação frente à democratização da
sociedade. Tais lutas por democracia no âmbito educacional puderam dar um impulso a um
desenvolvimento na busca de um ensino igualitário.
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Considerações Finais

Já no início da década de 1980, os profissionais da educação aspiravam por um ensino


de qualidade, público, gratuito e com mais apoio do Estado. A criação de associações como o
ANDE (Associação Nacional de Educação), a ANPED (Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação) e o CEDES (Centro de Estudos Educação e Sociedade),
comprovam esta renúncia à política educacional do período. Tais organizações buscavam um
consenso dentre os educadores para o debate de ideias em torno da educação nacional.
Na primeira metade desta década, esta mobilização ainda não era tão forte, entretanto,
na segunda metade, com o fim do regime militar e um conhecimento de uma nova
constituição em breve, estas associações junto com os educadores se mobilizam o mais rápido
possível para tornar suas reivindicações em realidade. A IV Conferência Brasileira de
Educação, realizada em 1986 teve em seu fim a publicação da Carta de Goiânia, aprovada por
5 mil educadores presentes na conferência. Esta Carta demonstrou notas de repúdio ao
tratamento da educação até então, apresentando um quadro negativo do período, como falta de
acesso ao ensino básico e um alto índice de analfabetos no país.
A Carta continua com suas propostas para uma educação de qualidade, expondo a
garantia de educação para todos, acesso às creches, a responsabilidade dos Estados e
Municípios na administração de seus ensinos com a participação da União. Ainda cita
diversos outros pontos a serem promulgados dois anos depois na Constituição, como o ensino
em língua oficial portuguesa, exceto para as comunidades indígenas, e o direito à educação
para deficientes físicos.
É perceptiva a tamanha contribuição para da Carta de Goiânia para o texto da
Constituição federal de 1988, na qual aborda quase que totalmente os princípios expostos na
carta. O Brasil conseguiu renovar o sistema de ensino, ao menos no que diz respeito
constitucionalmente, por toda esta mobilização por parte dos educadores, ao se organizarem,
discutirem e apresentarem a incômoda situação na qual passava o país e as formas de como
poderia melhorar este tema.

REFERÊNCIAS

BARRETO, E. B. S. Fato: IV Conferência Nacional de Educação. Revista ANDE, ano 6, n.


12, 1987.
11953

BATISTA, Neusa Chaves. O Conselho escolar como instrumento da gestão democrática da


escola pública: uma construção sem fim. Políticas Educativas, Porto Alegre, v. 7, n. 2, p. 71
– 88, 2014. Disponível em: < http://seer.ufrgs.br/index.php/Poled/article/view/51028/31747 >.
Acesso em 12 mar. 2015.

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CARTA DE GOIÂNIA. IV Conferência Brasileira de Educação. 2 a 5 de setembro.


Goiânia, 1986.

CUNHA, Luiz Antônio. A organização do campo educacional: as conferências da educação.


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MENDONÇA, Erastos Fortes. A regra e o jogo: democracia e patrionalismo na educação


brasileira. Campinas: UNICAMP, 2000.

SAVIANI, Demerval. A Nova lei da educação: Trajetórias, limites e perspectivas. 8 ed.


Campinas: Autores Associados, 2003.

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