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CONSIDERAÇÕES SOBRE

AS BASES NACIONAIS
CURRICULARES COMUNS

Pe. Dr. José Eduardo de Oliveira e Silva

A noção da Base Nacional Comum já estava na LDB de 1996, e o CNE já


homologou diversas vezes Bases Nacionais Comuns; estivemos aqui discutindo
conteúdos, mas seria interessante também discutir a arquitetura dessa Base
particular.

Em que medida esta Base é coerente com o edifício da nossa legislação


educacional? Em que medida esta Base é desenvolvimento da tradição educacional
brasileira? Quais as verdadeiras intenções que a motivam?

A ideia desta BNCC surgiu a partir do conceito introduzido na “Emenda


Constitucional” 59 de 2009, quando se referiu à construção de um Sistema
Nacional de Educação, termo que ainda não havia sido acolhido em nossa
legislação educacional.

Saliento que o objeto inicial dessa PEC, que se transformou na Emenda 59,
não era a educação propriamente dita, mas os financiamentos que se lhe deveriam
reservar no orçamento do governo. Essa emenda, a propósito, tem uma história…

Proposta a PEC no Senado em 2003, ao chegar a esta casa como revisora, o


então Ministro da Educação, Fernando Haddad, participou de uma Audiência
pública em que se debatia a “Desvinculação das Receitas da União de incidentes
sobre os recursos destinados à manutenção e desenvolvimento do ensino” [1]. Era o
dia 18 de fevereiro de 2009.

Logo em seguida à audiência, o próprio Ministro Haddad, em conformidade


com suas posições na referida audiência, apresentou uma sugestão para a PEC, em
que se estabelecia que:

“Art. 4º O caput do art. 214 da Constituição Federal passa a vigorar


com a seguinte redação, acrescido do inciso VI:

'Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração


decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em
regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e
estratégias de implementação para assegurar a manutenção e
desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e
modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das
diferentes esferas federativas que conduzam a:

'VI - estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em


educação como proporção do produto interno bruto." [2]

Como se vê, incluiu-se uma menção a um “Sistema Nacional de Educação”, sem,


porém, definir em que consistisse. Esta omissão, a propósito, não é desimportante.
Passo a explicar o porquê.

O “Sistema Nacional de Educação” tinha sido já proposto no Projeto inicial,


apresentado em 1988, para a “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional” -
LDB, aprovado em 1996. A versão inicial, que continha o conceito do “Sistema
Nacional de educação”, foi muito veementemente rejeitada por esta casa.

A ideia de um “Sistema Nacional de Educação” foi proposta pelo Prof.


Dermeval Saviani, numa conferência publicada na Revista da Associação Nacional
de Educação (ANDE, ano 7, n. 13, 1988): “Contribuição à elaboração da nova LDB:
um início de conversa" [3]. Nessa conferência, o Prof. Saviani apresentava um
eventual texto para a LDB.

O Deputado Octávio Elísio apresentou quase exatamente a redação da LDB


escrita pelo Prof. Dermeval Saviani como o PL 1.258/1988. No texto, não mais se
mencionavam vários sistemas educacionais, como nas Constituições brasileiras
anteriores e na LDB de 1961, mas um sistema único de serviços educacionais, que
substituía os sistemas federal, estaduais e municipais.

No artigo 5º, diz:

“haverá no país um sistema nacional de educação, constituído


pelos vários serviços educacionais desenvolvidos no território
nacional, intencionalmente reunidos de modo a formar um conjunto
coerente, conforme o disposto na presente lei”. [4]

Os deputados perceberam que essa proposição contradizia um elemento pétreo de


nossa Constituição: nossa natureza federativa! Não havia possibilidade de adotar
um sistema único porque as escolas pertencem aos diferentes entes federados, e
não poderiam ser uniformizadas sem os deformar.

Obviamente, o Projeto de Lei 1.258/1988 foi rejeitado e assumiu-se o


substitutivo do Deputado Jorge Hage, apresentado em agosto de 1989.
A ideia de um sistema federal fortemente centralizado, contudo, não era
nova. O primeiro a apresentá-la no Brasil foi o Presidente Getúlio Vargas que, logo
após dar o Golpe que instituiu o “Estado Novo” em 1937, governou ditatorialmente
o Brasil até 1945.
Vargas começou a centralizar o país desde a Revolução de 1930, quando
criou, com a ajuda de Francisco Campos, criou o Ministério da Educação,
nomeando-o seu primeiro ministro. Nessa época, Getúlio pediu aos educadores que
organizassem a educação brasileira (1931).

No ano seguinte, eminentes educadores brasileiros escreveram o


famoso “Manifesto dos pioneiros da educação nova” (1932), cujos relatores
principais foram os expressivos pedagogos Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e
Lourenço Filho, em que rechaçavam de modo decidido a uniformidade
educacional no Brasil.

“A organização da educação brasileira unitária sobre a base e os


princípios do Estado, no espírito da verdadeira comunidade popular e
no cuidado da unidade nacional, não implica um centralismo estéril e
odioso, ao qual se opõem as condições geográficas do país e a
necessidade de adaptação crescente da escola aos interesses e às
exigências regionais. Unidade não significa uniformidade. A unidade
pressupõe multiplicidade. Por menos que pareça, à primeira vista, não
é, pois, na centralização, mas na aplicação da doutrina federativa e
descentralizadora, que teremos de buscar o meio de levar a cabo, em
toda a República, uma obra metódica e coordenada, de acordo com um
plano comum, de completa eficiência, tanto em intensidade como em
extensão. À União, na capital, e aos estados, nos seus respectivos
territórios, é que deve competir a educação em todos os graus, dentro
dos princípios gerais fixados na nova constituição, que deve conter, com
a definição de atribuições e deveres, os fundamentos da educação
nacional”. [5]

Com o advento do “Estado Novo”, porém, em 1937, os propósitos centralizadores


de Vargas se tornaram tão grandes, que tentaram afastar Gustavo Capanema do
Ministério da Educação, pois o consideravam demasiadamente democrático. Não
conseguiram quem o pudesse substituir e, mesmo sendo considerado pouco
centralizador, criou ainda 11 leis orgânicas para regular o ensino em todo o
território nacional [6].

Quando derrubamos a ditadura do “Estado Novo”, fez-se a Constituição de


1946 e definiu-se novamente que haveria vários sistemas de educação,
reestabelecendo-se o conceito de “Diretrizes e Bases”: a União apenas fornecia
normas genéricas e deixava aos Estados o encargo de estabelecerem seus próprios
sistemas.

“Os Estados e o Distrito Federal organizarão os seus sistemas de


ensino” (art. 171).

Começou-se, então, uma ampla discussão sobre o que viriam a ser as tais “diretrizes
e bases”: aquela unidade na multiplicidade.

Após a queda da ditadura, Getúlio Vargas elegeu-se senador e Gustavo Capanema,


deputado federal. Em 1949, o Ministro Clemente Mariani, do governo de Eurico
Gaspar Dutra, apresentou um ante-projeto da Lei de Diretrizes e Bases, mas o
Deputado Federal Gustavo Capanema foi escolhido como relator e decidiu pelo
arquivamento, pelo motivo de que o PL não era tão centralizador quanto ele
gostaria.

“Vemos, com tão persuasivos exemplos, que a educação do nosso tempo


apresenta uma tendência bem viva: é tomar, em todos os países, o
ritmo e o acento nacional. Essa nacionalização não se oferece somente
sob o aspecto substancial, como um movimento no sentido de conferir
unidade de concepções e sentimentos, de propósitos e objetivos ao
programa educativo das escolas. Mas tem também um aspecto formal,
porque se traduz, ao mesmo tempo, num esforço de unificação dos
planos, regimes e métodos da organização educacional. (...)
Descentralizado na administração, o ensino não poderá deixar de ser,
entretanto, acentuadamente nacional no plano, na estrutura e no
regime. Sob estes aspectos, que interessam propriamente à formação
da cultura, toda dispersão será maléfica”. [7]

O grande argumentador contra as alegações de Capanema foi nada mais, nada


menos que Anísio Teixeira, um dos principais signatários do Manifesto dos
pioneiros de 1932. Seus argumentos foram incisivos e cortantes.

“Ora, francamente, o sr. Capanema está a brincar. Mesmo que a


tendência das federações fosse a de fortalecer os poderes federais, isto
nunca significaria transferir poderes locais para o centro, mas
simplesmente fortalecer os poderes que ficasse assentado, em face da
federação, dever pertencer ao centro. Do contrário, seria extrapolar e
raciocinar à doida, pois nada, absolutamente nada no mundo resistiria
a esse tipo de lógica.

Examina o sr. Capanema, no quarto capítulo, a questão do caráter


nacional da educação. Ninguém põe em dúvida essa tendência, mas daí
partir para uma legislação única de ensino é mais um caso da lógica
em parafuso do sr. Deputado. A legislação única longe de nacionalizar
o ensino pode desnacionalizá-lo. [...] Esta confusão entre federal e
nacional na cabeça do sr. Capanema é velha. Para ele só é nacional o
que nascer da cabeça de uma autoridade federal. O município, o estado,
as regiões são antinacionais, nacional só mesmo o escriturário federal,
o burocrata federal, o diretor federal, o ministro federal e, por certo, o
deputado federal. Quando, na realidade, o nacional é o país todo e o que
precisa e tem dificuldade e corre o perigo de se desnacionalizar é o
funcionário federal que, queira ou não queira, é um funcionário
especializado e que trabalha em órbita mais alta do que a da substância
nacional que está nos municípios, nos estados e nas regiões.

Por último, fala o sr. Capanema em dispersão de ordem pedagógica. E


pelo título do capitulo já se pode ver até onde quer ir. Com essa
antinomia de dispersão da ordem ele poderá destruir o que quiser e
impor a sua ordem única, rígida, uniforme, porque se não for assim,
haverá dispersão e ai de nós! se houver dispersão. O Brasil inteirinho
se dissolverá. Este Napoleão de Minas é um terrível unificador e com
quem é impossível qualquer discussão, pois, pode não ganhar batalhas,
mas, em sua cabeça os termos ganham elasticidades e retrações
incríveis. É uma inteligência borracha e pode-se lá discutir com uma
borracha?!” [8]

Embora Anísio Teixeira tenha espinafrado Gustavo Capanema com tanta


veemência, convenhamos: nunca havia passado pela cabeça de Capanema, nem
mesmo quando foi Ministro da Educação e podia mexer à vontade na legislação
nacional, como o fez, compor uma base curricular detalhada, ano a ano, matéria
por matéria, que fosse obrigatória para todas as escolas do Brasil.

Em 1952, o Projeto de Lei das LDB foi desarquivado. Capanema não era
mais o relator, mas era o líder da maioria, e tentou evitar que o PL fosse votado.
Não conseguiu e, depois de uma década de muita discussão, tivemos a LDB de
1961.

Quando, mais tarde, conseguimos, enfim, derrubar a ditadura militar e se fez


a Constituição de 1988, o Prof. Dermeval Saviani escreveu o texto da proposta para
a nova LDB, já mencionado, em que coloca claramente, no art. 4, que haveria
apenas um Sistema Nacional de Educação (SNE).

O Prof. Saviani (UNICAMP), juntamente com Carlos Roberto Jamil Cury


(UFMG), foi um dos principais desenvolvedores da “pedagogia crítica”, uma
abordagem pedagógica profundamente alinhada com os pensadores neomarxistas
da Escola de Frankfurt.
Esta casa derrubou, logo no início das longas tramitações da LDB, a redação
do Prof. Saviani e, com esta, o conceito de um sistema nacional único de educação.
Por fim, em 1996, criaram a nova LBD, tal como estava claramente definido na
proposta. Em 2009, o termo foi novamente apresentado à consideração desta casa.
Agora, porém, sem definições.

Assim, para interpretarmos o seu significado temos que buscar a sua


coerência com a Constituição e a LDB vigente, e as determinações do CNE, pois não
consta que, pela Emenda 59/2009, o legislador tenha revogado qualquer uma
dessas normas.

Consideremos, pois, o art. 211 da mesma Constituição:


“Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino”,

e a LDB de 1996, art. 8:

“a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão,


em regime de colaboração, os respectivos sistemas de ensino”.

Em outras palavras, a União não possui um sistema de ensino nacional próprio, o


que se depreende de nossa própria natureza federativa.

Portanto, nos dizeres no § 1,

“§ 1º Caberá à União a coordenação da política nacional de educação,


articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função
normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias
educacionais”.

Ademais, o art. 15 da mesma LDB, afirma que

“os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de


educação básica que os integram progressivos graus de
autonomia pedagógica e administrativa”.

Em outras palavras, é proibido restringir a autonomia pedagógica das unidades


escolares e isto não é consentido nem aos Estados que, pela lei, estes, sim, possuem
um Sistema de Educação.

Conforme o Parecer 15/98 do CNE, que tem valor normativo e fundamentou a


resolução que estabeleceu as Bases Comuns Nacionais do 2o. Grau em 1998, “a
autonomia das escolas é mais do que uma Diretriz, é um mandamento
da LDB”.
Ora, as novas Bases Nacionais Curriculares Comuns, apresentadas pelo MEC
como exigência do Sistema Nacional de Educação, não obedecem ao preceito da
LDB de um progressivo grau de autonomia pedagógica.

Ao invés disso, restringem a autonomia hoje existente e mais: determinam


com exatidão o quê e como será ensinado uniformemente em todo o território
nacional, como se o governo federal fosse o diretor de cada uma destas escolas que,
na prática, passariam a fazer parte do sistema nacional único do governo federal,
ainda que no papel se diga outra coisa.

Abusivamente, o Ministro Janine Ribeiro afirmou, em um artigo publicado


na Folha de São Paulo [9], que o MEC está se inspirando no documento do
Manifesto dos pioneiros, quando eles próprios por muito menos execraram a
ditadura de Getúlio Vargas.

O alegado Sistema Nacional de Educação, ao oferecer uma Base Curricular


detalhadíssima, não está mais assumindo uma posição de coordenação, mas uma
função do Sistema Educacional que nem o próprio Sistema Educacional Estadual
como tal possui.

Se o conceito das “Diretrizes e Bases” é antigo no Brasil, o conceito das Bases


Nacionais Comum é mais novo.

Elas apareceram pela primeira vez na Constituição de 1988, no art. 210:

“Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de


maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores
culturais e artísticos, nacionais e regionais”.

Em 1995, foi instituído o Conselho Nacional de Educação, pela lei 9.131/95 (já
existia um Conselho Federal de Educação), e este tinha como meta:

“deliberar sobre as diretrizes curriculares propostas pelo


Ministério da Educação e do Desporto” (art. 9, p. 1o., c).

A LDB 1996, também, no art. 26, estabelece que

“os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino


médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em
cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma
parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da
sociedade, da cultura, da economia e dos educandos” (a redação foi
modificada pela Lei 12.796/2013, acrescentando-se também a
educação infantil).

Entendeu-se sempre que essas diretrizes curriculares devessem ser gerais,


especificando pontos de chegada, não de partida (Parecer da CNE, 15/1998).

O Parecer 38/2006, o CNE, é claro:

“A atual LDB não contempla mais a existência de currículos mínimos


com disciplinas estanques, como muito bem explicitam os pareceres e
resoluções desta Câmara de Educação Básica, que definiram Diretrizes
Curriculares Nacionais para os vários níveis e modalidades da
Educação Básica. É importante compreender que a Base Nacional
Comum não pode constituir uma camisa-de-força que tolha a
capacidade dos sistemas, dos estabelecimentos de ensino e do educando
de usufruírem da flexibilidade que a lei não só permite, como estimula.
Essa flexibilidade deve ser assegurada, tanto na organização dos
conteúdos mencionados em lei, quanto na metodologia a ser
desenvolvida no processo de ensino-aprendizagem e na avaliação.”

O MEC parece ignorar hoje, em seus documentos, que já existiam Bases Comuns
Nacionais!

No documento de junho de 2015, intitulado “Instituir um Sistema Nacional de


Educação. Agenda obrigatória para o país”, o MEC afirma “hoje, a falta de uma Base
Nacional Comum, inviabiliza uma regulação mais enérgica do setor privado”, como
se Bases Nacionais Comuns não existissem. O que acontece é que as Bases
Nacionais Comuns hoje existentes não servem para a regulação mais enérgica dos
sistemas educacionais; elas, de fato, se limitam às suas finalidades legais, que são a
de oferecer metas e orientações a serem concretizadas em cada Estado e até nas
realidades locais.

O Parecer 15/98 do CNE, por exemplo, que precedeu a Reforma do Ensino


Médio de 1998, consta de 53 páginas e é dividido em seis partes. Este apresenta,
nas páginas 48 e 49, isto é, em apenas duas páginas, a descrição das “três áreas
que devem estar presentes na base nacional comum dos currículos das escolas de
ensino médio”. As três áreas, “Linguagens”, “Ciências da Natureza e Matemática” e
“Ciências Humanas”, são descritas principalmente pelas metas que deverão ser
atingidas, “os pontos de chegada”, deixando o detalhamento de seu conteúdo, “os
pontos de partida”, às instâncias mais próximas do alunado.

Pois bem, hoje, estamos diante de uma proposta de Base Nacional Curricular
Comum que, na sua primeira versão, contava com 302 páginas e agora conta com
676 páginas!
Isso quer dizer que o Sistema Nacional de Educação não está sendo
interpretado como coordenação, mas como a interferência avassaladora de um
sistema que, na prática, já é o único. Dizer que isso é fruto da inspiração do
Manifesto dos pioneiros da educação nova é absurdo e contradiz toda a legislação
educacional que realmente cresceu sobre as bases daquele Manifesto.

A partir do momento em que a União especifica um currículo tão detalhado e


deixa que os sistemas façam acréscimos estipulados em 40%, sendo que, na
prática, não há quase mais o que acrescentar, estabeleceu-se o sistema único de
educação, que já havia sido rejeitado pelo Congresso Nacional.

Mas qual é a intenção em criar este sistema tão incisivo?

Na abertura do CONAE 2010, o Prof. Jamil Cury, num texto muito citado,
muito comentado, fala sobre a importância de construir um Sistema Único de
Educação, pois este seria o único modo de se destruir o capitalismo. É isso mesmo
que se vê nas bases:

“É evidente que o desafio de um sistema único de educação se


radica no próprio desafio de uma superação do próprio
capitalismo. Mas esse desafio não impede a consecução de valores,
princípios e normas comuns, além de normas específicas, afirmados no
ordenamento jurídico atual”. (p. 13) [10]

Ora, eu sinceramente acho que o capitalismo é um sistema tão perverso quanto o


socialismo. Eu acredito que precisamos construir uma sociedade humana. Mas isso
não está em discussão. O que não podemos fazer é instrumentalizar o sistema
educacional, nem para implantar o socialismo nem para implantar o capitalismo
selvagem da globalização. Estamos diante de duas forças opostas que querem
dominar o sistema educacional: um quer criar a revolução, outro quer transformar
a educação num instrumento macroeconômico para a implantação da economia
globalizada. Contudo, só não se está pensando aqui é na própria pessoa do aluno!

Que no caso das Bases Curriculares apresentadas isto seja assim, basta abrir
o documento. Além de ferir a legalidade e ir contra a tradição pedagógica
construída nessa terra, que não se constrói da noite para o dia e que não é a de um
Sistema único, até por causa da extensão do nosso território, o texto do documento
das Bases está promovendo uma ideologia.

Vou citar a primeira versão das Bases, pois é necessário tempo para analisar
a segunda.

Podem dizer que estou desatualizado, mas isso não vem ao caso. Quero
apenas mostrar a intenção ideológica da redação. De modo geral, as Bases omitem
muito conteúdo importante. Quando há oportunidade de ligar o conteúdo à
ideologia, então, elas aprofundam os temas além do que é costume, orientando os
professores a não perderem a oportunidade de entrar nos temas.

Quando falam sobre a Matemática, as Bases chegam a dizer que “os


estudantes começam a compreender a incerteza como objeto de estudo da
Matemática e o seu papel na compreensão de questões sociais, por exemplo, em
que nem sempre a resposta é única e conclusiva” (p. 120).

Em relação às Ciências naturais, afirmam que as mesmas devem ser


ensinadas com o objetivo de “apropriar-se da cultura científica como permanente
convite à dúvida, considerando os princípios científicos como sínteses provisórias
de uma construção ininterrupta” (p. 186).

O Currículo de História prescreve que, no 1º ano do Ensino Fundamental,


isto é, para crianças, que elas compreendam que “as normas de convivência nas
relações familiares são construídas e reconstruídas temporal e espacialmente”.
Que o aluno se reconheça “como membro de um grupo social que tem uma
história constituída e reconstituída nas relações sociais” e que ele possa
“reconhecer as relações de trabalho presentes nas diferentes organizações
familiares”. Ora, isto não é história, isto é introduzir a criança na “Teoria Crítica”
da família que lemos no Tratado escrito por Max Horkheimer, da Escola de
Frankfurt, “Autoridade e Família”.

Ademais, afirmam que “uma questão central para o componente curricular


de História são os usos das representações sobre o passado, em sua
intersecção com a interpretação do presente e a construção de expectativas para
o futuro. (…) O componente curricular História, portanto, tem papel relevante na
problematização das questões identitárias que são tematizadas pelas redes
sociais, pela TV, pelo cinema, pelo rádio e por toda a série de meios
potencializados ou inventados com o advento da revolução tecnológica do século
XX” (p. 241).

As exemplificações poderiam estender-se às centenas. Toda a Base


Curricular apresentada está construída dessa forma. Não caberia nessa
apresentação detalhá-las em sua totalidade. Apenas quero mostrar que é isso que
explica o motivo para a insistência no Sistema Único de Educação. Trata-se de um
processo revolucionário para induzir todo o alunado brasileiro à construção de
representações flagrantemente ideológicas.

Para concluir, a Constituição estabelece que o Poder Executivo não tem


autoridade para instituir uma política de governo diversa da estabelecida pelo
Poder Legislativo.
Ao apresentar estas Bases Nacionais Curriculares Comuns, o Poder
Executivo está indo contra as normas já estabelecidas pelo Poder Legislativo. O
próprio Documento do MEC já citado, “Instituir um Sistema Nacional de
Educação. Agenda obrigatória”, assim se expressa: “Portanto, será
imprescindível uma releitura da LDB à luz do Sistema Nacional da
Educação a ser configurado”. Segundo o MEC, é o Legislativo que deverá
adaptar-se ao que representa uma nova política não autorizada, inventada pelo
Executivo.

Em nome da pluralidade, da diversidade, da liberdade, do federalismo,


reconhecemos a autonomia dos plurais sistemas de ensino que temos, sem
passarmos por cima deles? Não parece mais coerente com nossa história
educacional?

A ideia de se criarem Bases Curriculares Comuns que sigam o modelo das


que somente agora foram apresentadas está ligada a uma interpretação
profundamente autoritária do sistema de educação, na medida em que o considera
único e uniforme para todo o país, como um instrumento para incutir-se uma
ideologia que, além de colocar-se a serviço de um esquema de poder, passa por
cima do objetivo mais importante da educação: a formação integral do ser humano.

NOTAS

[1] http://www2.camara.leg.br/documentos-e
pesquisa/fiquePorDentro/temas/temas-anteriores-desativados-com-texto da
consultoria/financiamento_da_educacao/pec27708nt180209%20aud%20p
u b.pdf

[2]
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc59.
h tm

[3] Saviani, D., "Contribuição a elaboração da nova LDB: um início de


conversa", in ANDE (1988- ano 7), n. 13, pp.
[4]
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessioni
d=3D8373BFFDA3F0D96D71AA2F159D39E2.proposicoesWeb2?codteor=115
4 749&filename=Dossie+-PL+1258/1988

[5] Manifesto dos pioneiros da educação nova, descentralização.

[6] Decreto-lei n. 4.073, de 30 de janeiro de 1942, que organizou o ensino


industrial; Decreto-lei n. 4.048, de 22 de janeiro de 1942, que instituiu o
SENAI; Decreto-lei n.4.244 de 9 de abril de 1942, que organizou o ensino
secundário em dois ciclos: o ginasial, com quatro anos, e o colegial, com três
anos; Decreto-lei n.6.141, de 28 de dezembro de 1943, que reformou o ensino
comercial. Em 1946, já no fim do Estado Novo e durante o Governo
Provisório, a Lei Orgânica do Ensino Primário organizou esse nível de ensino
com diretrizes gerais, que continuou a ser de responsabilidade dos estados;
organizou o ensino primário supletivo, com duração de dois anos, destinado a
adolescentes a partir dos 13 anos e adultos; a legislação de ensino organizou
também o ensino normal e o ensino agrícola e criou o Serviço Nacional de
Aprendizagem Comercial - SENAC. Decreto-lei n. 8.529, de 02 de janeiro de
1946, que organizou o ensino primário a nível nacional; Decreto-lei 8.530, de
02 de janeiro de 1946, que organizou o ensino normal; Decretos-lei n 8.621 e
8.622, de 10 de janeiro de 1946, que criaram o SENAC; Decreto-lei n. 9.613 de
20 de agosto de 1946, que organizou o ensino agrícola.

[7] Capanema, G., Parecer, in Baia Horta, J. S., Gustavo Capanema,


Fundação Joaquim Nabuco & Editora Massangana, Recife: 2010, p. 90.

[8] Ibidem, p. 94.

[9] http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2015/08/1664546-a-agenda
urgente-do-brasil.shtml

[10] Cury, J., Os desafios da Construção de um Sistema Nacional de


Educação, in conae.mec.gov.br/images/stories/pdf/jamil_cury.pdf.

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