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O AMOR DE DEUS, O PAI NOSSO,

A SANTÍSSIMA TRINDADE,
O SACRIFÍCIO DA MISSA
E OS PADRES VITORINOS

"Tu, pois, quando orares,


entra no teu quarto e,
fechando a tua porta, orarás
ao teu Pai no oculto. E o teu
Pai, que vê no oculto, te
recompensará."
Mt. 6, 6

Ricardo de São Vitor, falecido em 1173, e Hugo de


São Vitor, seu mestre, falecido em 1141, estão entre os
principais teólogos da história da Igreja. São
mencionados como tais na obra "Redução das Ciências à
Teologia", do franciscano São Boaventura. Suas obras
podem ser encontradas na Patrologia Latina de Migne, a
de Hugo de São Vitor nos volumes 175 a 177, e a de
Ricardo de São Vitor no volume 196.

Entre os escritos de Ricardo de São Vitor há um


Tratado sobre a Santíssima Trindade, dividido em seis
livros. No final desta exposição encontra-se um anexo,
contendo seis dos vinte e cinco capítulos do Livro III do
Tratado sobre a Santíssima Trindade. O anexo é
precedido de um preâmbulo, retirado das obras de Hugo,
sobre a natureza da fé. O Tratado foi evidentemente
escrito por um autor que viveu os preceitos da fé,
conforme haviam sido ensinados por Hugo, que derivam
dos ensinamentos de Cristo.

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O texto de Ricardo de S. Vitor, como anuncia o
título, trata sobre o mistério da Santíssima Trindade. É
algo sublime. Exige muito mais do que uma simples
leitura. Uma rápida passada de olhos não permitirá
descortinar toda a sua profundidade.
Mas nossa exposição sobre o assunto começa muito
tempo antes. Começa bastante antes do século XII,
quando viveram Hugo e Ricardo. Começa na época em
que Moisés recebeu de Deus a incumbência de libertar o
seu povo do Egito e avisá-lo que o próprio Senhor estava
empenhado em sua libertação. Naquela ocasião Moisés
perguntou ao Senhor: "Se eles me perguntarem, qual é o
teu nome? O que deverei dizer-lhes?" Deus lhe
respondeu: "Dize que o meu nome é: 'Eu sou Aquele
que é'. Este é o meu nome. Tu, Moisés, irás falar ao
Faraó e ao meu povo em nome de 'Aquele que é'. Este
é o meu nome. Fala em meu nome". Moisés então se
dirigiu ao Egito para libertar o povo de Deus em nome de
"Aquele que é".
Depois disso, passou-se mais de um milênio. O
Verbo se fez carne e anunciou-nos o Evangelho. Quando
estava para subir aos céus, ordenou aos apóstolos que
anunciassem a libertação aos homens, em todo o mundo.
Tratava-se, agora, da verdadeira libertação. A que havia
acontecido no Egito era apenas uma figura. Tratava-se,
agora,da libertação que tem origem em um manancial de
verdadeira vida. E, assim como havia acontecido no
episódio de Moisés, Jesus disse então aos Apóstolos: "Ide
e ensinai todas estas coisas". Mas, em nome de quem?
Nessa ocasião Jesus não disse que o deveriam fazer
em nome de "Aquele que é". Seria de se esperar que o
tivesse dito. Seria de se esperar que, assim como Deus

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outrora havia falado a Moisés, Jesus também assim o
dissesse: "Anunciai a todos que 'Aquele que é' ordena
agora libertar não apenas o seu povo, mas todos os
homens".
Mas, em vez disso, Jesus estava dizendo: "Ide e
libertai o povo para a verdadeira vida. Não me refiro à
escravidão do Faraó. Estou falando daquela que é a
verdadeira vida. Fazei isto em nome da Trindade, em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo". Jesus
não falou em nome de "Aquele que é". Falou, em vez
disso, em nome do "Pai, do Filho e do Espírito Santo".
Durante a sua vida Jesus também havia falado
inúmeras vezes sobre estas três pessoas: o Pai, o Filho e o
Espírito Santo.
Jesus mencionava a todo momento o nome do Pai.
Quando lemos o Evangelho, costumamos pensar que
"Pai" é um nome carinhoso que Jesus usava para se
referir a Deus. Pensamos que Ele talvez quisesse dar a
entender que Deus, em vez de ser um Juiz Implacável,
seria um Pai Amoroso. Mas, embora em certos momentos
isto realmente aconteça, na maioria das vezes não é neste
sentido que Jesus está se referindo ao Pai. Quando está
falando do Pai, na maioria das vezes, Jesus não está
falando de Deus em sua unidade, mas está falando da
primeira pessoa da Santíssima Trindade. Ele está se
referindo a uma das três pessoas da Santíssima Trindade.
Em outros momentos, quando Jesus fala dele
mesmo, não está se referindo a si mesmo apenas em sua
humanidade, mas enquanto Segunda Pessoa da
Santíssima Trindade. Assim é quando Ele diz: "Eu te
agradeço, ó Pai, porque escondeste estes ensinamentos
dos sábios e dos entendidos e os revelaste aos

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pequeninos, porque ninguém conhece o Filho senão o
Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a
quem o Filho o quiser revelar" (Mt. 11, 25-27).
Em outro momento, quando Jesus diz ser o
caminho, a verdade e a vida, e que ninguém vai ao Pai a
não ser por Ele, também está se referindo a si mesmo
como a uma das pessoas da Trindade, ainda que o faça
sob o manto do mistério da Encarnação.
E quando Jesus diz na Última Ceia: "Eu vou para o
Pai, enviarei o Espírito Santo e vós deveríeis alegrar-vos
por eu ir para o Pai, porque o Pai é maior do que eu"
(Jo. 14, 28), o próprio Santo Tomás de Aquino, no seu
Comentário ao Evangelho de São João, reconhece que
Jesus aí está falando de si mesmo não apenas enquanto
homem, mas também enquanto Deus. Jesus está nos
dizendo, diz S. Tomás de Aquino, que o Pai é maior que o
Filho não apenas enquanto homem, mas também, em
certo sentido, enquanto Verbo de Deus. Não obstante o
Pai e o Filho serem um só Deus, e que nisto não haja
qualquer superioridade, o Pai é maior do que o Filho no
sentido em que o Filho, ou o Verbo, é gerado pelo Pai,
mas o Pai, ele mesmo, não procede de nenhuma outra
pessoa [1].
______________________________________________
[1] Estas são as palavras de S. Tomás de Aquino: "Cristo consola os
Apóstolos quando lhes diz: 'Se me amaram, também vos
alegrareis'. Como se dissesse: 'Se me amais, não deveis
entristecer-vos; em vez disso, deveis alegrar-vos por
minha partida, pois serei exaltado, já que vou para o Pai,
que é maior do que eu'.
Mas Ário o insulta por meio destas palavras, dizendo que o Pai é
maior do que o Filho. Seu erro pode ser removido pelas próprias
palavras do Senhor. Pelo seu próprio sentido, assim como se deve
entender 'vou para o Pai', assim também se deve entender que ...

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É neste sentido especial, segundo também ensina
Santo Tomás de Aquino na Summa Theologiae, que o
Pai é princípio da Santíssima Trindade. E é neste sentido
que, apesar do Pai, do Filho e do Espírito Santo serem
todos os três um só Deus e, como ainda explica Santo
Tomás, as três pessoas serem iguais "em poder,
eternidade e grandeza", o Pai é maior que o Filho e que
o Espírito Santo, mas apenas enquanto o Filho procede
do Pai, e enquanto o Espírito Santo procede do Pai e do
Filho [1].

É extraordinária a riqueza de detalhes com que o


Novo Testamento fala das três pessoas da Trindade. E
chamo aqui a atenção que não é apenas Jesus que chama
o Pai de Pai. São Paulo diz, na Epístola aos Romanos, que
nós não sabemos como rezar, mas que o próprio Espírito
Santo é quem no-lo ensina, clamando em nossa alma e
chamando-o de Pai (Rom. 8, 15). O próprio Espírito
Santo reconhece, melhor do que nós, o Pai como Pai, e
nos ensina como dirigirmo-nos a Ele. Entre outras coisas,
_____________________________
… 'o Pai é maior do que eu'. O Filho não vai para o Pai, nem
vem a nós, enquanto Fiho de Deus, pois sob este aspecto esteve com
o Pai desde toda a eternidade, conforme lemos no primeiro capítulo
[do Evangelho de São João]: 'No princípio era o Verbo, e o
Verbo estava junto de Deus'. Mas é dito ir ao Pai segundo a
natureza humana. Assim, portanto,quando diz que é 'maior do
que eu', não o diz enquanto Filho de Deus, mas enquanto filho do
homem, segundo o que não somente é menor do que o Pai e o
Espírito Santo, mas também que os próprios anjos, segundo o
que encontramos escrito na Epístola aos Hebreus: 'Feito, por
um pouco, menor que os anjos, vemos Jesus, por ter
padecido a morte, coroado de honra e glória' (Heb. 2, 9).
Jesus também era submisso, quanto a algo, a alguns homens, a
saber, aos pais, como se lê no Evangelho de Lucas 2, 51. Assim,
portanto, é menor do que o Pai segundo a humanidade; igual, ...

5
isto significa também que é o Espirito Santo quem nos
ensina como rezar o Pai Nosso.
Contudo, em todo o Novo Testamento, não existe
uma declaração formal do que seja aquilo que
conhecemos hoje pelo nome de Mistério da Santíssima
Trindade. Em nenhum momento o Novo Testamento se
refere a um mistério ao qual é dado o nome de "Mistério
da Santíssima Trindade", e que consiste na existência de
três pessoas em um só Deus, em que as pessoas são
realmente distintas mas são um só Deus, e em que estas
pessoas são o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O Novo
Testamento nem sequer declara que o Pai, o Filho e o
Espírito Santo são pessoas. Nem que, enquanto pessoas,
a segunda procede da primeira e a terceira procede das
duas primeiras. Tudo isto realmente pode ser concluído
das inúmeras afirmações do Novo Testamento, mas não
há, no Novo Testamento, nenhuma declaração concisa
que contenha esta síntese, embora o mistério seja
mencionado a todo o momento.
____________________________________
... porém, segundo a divindade. Diz a Epístola aos Filipenses: 'Não
considerou o ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si
mesmo, e assumiu a condição de servo' (Fil. 2, 6-7).

Pode-se também dizer, com S. Hilário, que o Pai também


segundo a divindade é maior que o Filho, porém o Filho não é
menor, mas igual. O Pai, de fato, é maior que o Filho não pelo
poder, pela eternidade e pela grandeza, mas pela autoridade de
doador e de princípio. Porque o Pai não recebeu nada de outrem. O
Filho, porém, recebeu, por assim dizer, a natureza do Pai pela
geração eterna. O Pai, portanto, é maior, porque dá, mas o Filho
não é menor, mas igual, porque tudo o que o Pai possui, Ele o
recebe. Diz a Epístola aos Filipenses: 'Deus o agraciou com o
nome que é sobre todo nome' (Fil. 2, 9). De fato, aquele a
quem se dá o ser, já não é menor do que o que dá" (S. Thomae
Aquinatis: In Evangelium Sancti Joannis Commentaria,
Caput XIV, Lectio VIII).

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Na Epístola aos Efésios, logo no seu início, São
Paulo diz: "Bendito seja o Pai de Nosso Senhor Jesus
Cristo, que nos abençoou com todo tipo de bênçãos
espirituais em Cristo, para sermos santos e
irrepreensíveis diante dele no amor" (Ef. 1, 3-4). Nesta
passagem, e no restante do capítulo, apesar do Apóstolo
estar falando de Cristo em sua humanidade, ele está
claramente se referindo ao Pai e ao Filho como a pessoas
distintas.

Nas cartas dos primeiros cristãos encontramos


passagens semelhantes, onde há uma clara distinção
entre as pessoas. Santo Inácio de Antioquia, discípulo
pessoal de São João, que citamos várias vezes em outras
ocasiões, que também conheceu a Virgem Maria e de
cujo encontro com ela teria resultado sua conversão final
a Cristo, deixou escrito, próximo à sua morte, sete cartas,
uma das quais à Igreja de Magnésia. Esta e as outras
cartas de Santo Inácio podem ser encontradas no site
cristianismo.org.br. Magnésia era uma cidade situada
onde hoje é a Turquia. Na carta aos magnésios há uma
passagem, aparentemente despretensiosa, mas muito
significativa, onde Inácio diz que "convém, segundo o
poder de Deus Pai, conceder ao bispo todo o respeito,
não de fato a ele, mas ao Pai de Jesus Cristo, o Bispo de
todos" (Mag. 3, 1). No original grego fica mais evidente
que Inácio se refere, como "o Bispo de todos", ao Pai, e
não a Jesus Cristo. No grego, a palavra "Pai" e a palavra
"Bispo" estão ambos no caso dativo, enquanto que o
nome "Jesus Cristo" está no caso genitivo. Se Inácio
estivesse se referindo a Jesus Cristo como ao "Bispo de
todos", e não ao Pai, a palavra "Bispo" teria que estar no
genitivo.

Notem o quanto esta passagem é extraordinária.

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Pelo nosso modo comum de pensar do século XX e XXI,
julgaríamos que Inácio deveria ter dito que devemos dar
todo respeito ao bispo não por causa dele mesmo, mas
"por causa de Jesus, o Bispo de todos". Mas ele não está
se referindo a Jesus como o Bispo de todos, mas ao "Pai
de Jesus Cristo", que é "o Bispo de todos". Está escrito
assim: "Convém, segundo o poder de Deus Pai, conceder
ao bispo todo o respeito, não de fato a ele, mas ao Pai de
Jesus Cristo, [Pai que é] o Bispo de todos" (Mag. 3, 1).

É patente, a partir destas e de inúmeras outras


passagens, como os primeiros cristãos distinguiam
claramente as pessoas umas das outras. Tinham
consciência de quem eram estas pessoas, por causa da
intimidade com que Jesus falava delas, pois Ele mesmo
era uma delas e com elas vivia na Santíssima Trindade
desde toda a eternidade. Hoje faz dois mil anos que a
Segunda Pessoa assumiu uma natureza humana. O Verbo
se fez carne para que, pela obra da Encarnação, nos
pudesse trazer de volta para o consórcio com a Trindade.
Veio conversar conosco e viver conosco. Mas não foi
apenas por empréstimo e provisoriamente
que tomou uma natureza humana. Assumiu uma
natureza humana sem abandonar a divina. Continua com
esta natureza humana e, através dela, quer unir-se a nós
pelas virtudes teologais da fé, da esperança e do amor
para, através de sua humanidade, apresentar-nos ao Pai e
introduzir-nos na vida trinitária.

E foi por este motivo, inclusive, que no Cristianismo


o matrimônio foi elevado a Sacramento, para que a união
entre o homem e a mulher batizados passasse a significar
a união entre Cristo e a Igreja, união esta que, por sua
vez, é expressão da união entre o Pai e o Verbo no
Espírito Santo. Trata-se, portanto, de uma imagem que

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torna visível, entre os homens, o próprio mistério da
Trindade.

Tudo isto já havia começado a manifestar-se, na


história do povo judeu, muito antes do Cristianismo,
embora aparentemente Deus tivesse julgado não haver
chegado o momento oportuno de revelar
escancaradamente algo tão sublime. No Antigo
Testamento Deus o fez apenas indiretamente para que,
quando mais tarde o revelasse claramente, não
pudéssemos dizer que fosse uma novidade. Já teria sido
revelado, escrito e conhecido.

No Antigo Testamento, por exemplo, quando é


narrada a criação do homem, Deus fala no plural e diz:
"Façamos o homem à nossa imagem e semelhança"
(Gen. 1, 26). Ele não diz, falando no singular: "Farei o
homem à minha imagem e semelhança". Ele fala no
plural. Mas por que Deus fala no plural? Com quem ele
está falando? É uma referência às pessoas da Trindade.

Mais tarde, depois do homem comer o fruto


proibido, Deus diz: "Eis que o homem se tornou como um
de nós, conhecendo o bem e o mal" (Gen. 3, 22). Deus fala
em nome de "um de nós". O "Nós", em seguida, expulsa o
homem do Paraíso e impede o acesso para a Árvore da
Vida (Gen. 3, 24).

Muitos anos mais tarde, lemos que Deus falava com


Abraão. A história diz que, aos setenta e cinco anos de
idade, Abraão recebeu uma visita de Deus. Deus o elogia e
lhe diz que terá um filho, apesar da idade avançada de
sua esposa. Impressiona o modo como o diálogo flui com
tão grande espontaneidade. Abraão não se espanta com a
voz de Deus e não lhe faz nenhuma pergunta do tipo:

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"Quem está falando? Quem és tu? De onde vieste?" Tudo
se dá com uma espontaneidade tão evidente que se deve
presumir que Abraão já deveria ter uma intimidade com
Deus que vinha de mais longa data. Assim também
ocorreu com a Virgem Maria, quando lhe apareceu o anjo
Gabriel. Ela não saiu correndo pedindo socorro porque
alguém havia entrado em sua casa. Foi tomada de
perplexidade por causa do conteúdo da saudação
angélica, mas não se assustou com o Anjo, porque
certamente já devia estar acostumada com estas visitas.

Abraão, portanto, quando recebeu aquela revelação


de Deus, já devia ser íntimo de Deus. Possivelmente não
foi aos setenta e cinco anos que Deus se lhe havia
manifestado pela primeira vez, mas talvez tenha sido aos
setenta e cinco anos a primeira vez que Deus lhe tivesse
prometido um filho. Mesmo assim, este filho só veio
quase vinte e cinco anos depois, quando Abraão
completou noventa e nove anos. Um detalhe importante
na história é que Deus aparece várias vezes a Abraão. E,
em cada aparição, embora Deus lhe renove a promessa do
filho, o filho não vem. Abraão nunca duvidou da
promessa. Finalmente, aos noventa e nove anos, sua
esposa engravida. Foi depois disso que se deu o episódio
de Sodoma e Gomorra.

Diz então a Escritura que o Senhor veio visitar a


terra para ver o que estava sucedendo em Sodoma e
Gomorra. Antes disso, porém, passou primeiro pela casa
de Abraão. A Escritura narra que eram três os visitantes,
mas que os três foram tratados por Abraão como se
fossem um só Senhor e não como três senhores. Abraão
os trata como "meu Senhor", e não como "meus
Senhores". Abraão dirige-se aos três como se fossem um
e, depois que dois deles partem em direção de Sodoma e

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Gomorra, Abraão começa a barganhar com o que fica
sobre quantos justos deveria haver nas cidades para que
elas não fossem destruídas. O que se depreende é que
Abraão deveria ter tão grande intimidade com Deus que
Ele mesmo já se lhe teria revelado em sua Trindade.

Mais adiante, quando Deus entrega a Moisés a


Tábua dos Dez Mandamentos, a Escritura diz que era o
dedo de Deus quem escrevia com fogo os mandamentos
sobre as Tábuas. Não foi Moisés quem escreveu os
mandamentos sobre as tábuas. Era o dedo incandescente
de Deus quem esculpia os mandamentos sobre as tábuas.
Santo Agostinho comenta, no De Trinitate, que isto era
uma figura do dia de Pentecostes, quando línguas de fogo
desceriam do céu e escreveriam a Nova Lei não sobre
tábuas de pedra, mas no coração do homem.

A conclusão a que se pode chegar é que o Antigo


Testamento não quis falar abertamente sobre a
Santíssima Trindade, mas quis dizer o suficiente para
que, quando mais tarde Cristo viesse, para dela falar
abertamente, o mistério já tivesse sido anunciado há
muito tempo. Quando se revelou a Moisés, o Senhor não
disse: "Eu sou o Pai, o Filho e o Espírito Santo". Disse,
em vez disso: "Eu sou Aquele que é". Mas, quando veio o
tempo da Nova Aliança, Cristo passou a falar
abertamente das pessoas como quem as conhecia desde
toda a eternidade. Meditando o Novo Testamento em sua
totalidade, podemos perceber a grandiosidade do
mistério da Trindade.

Podemos, na história da Igreja, notar claramente


épocas distintas em relação ao modo como foi abordado o
mistério da Santíssima Trindade.

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A primeira época é a época do testemunho direto de
Jesus quando fala intimamente das pessoas divinas.
Jesus não nos deixou uma teoria sobre a Trindade. Ele
nos falava dela como quando nós falamos de nossa casa e
de nossa família. Quando nos referimos à nossa esposa e
a nossos filhos, não costumamos escrever um tratado ou
dar um curso. Simplesmente vamos apresentando quem
são eles e como eles são. É assim que Jesus falava desta
realidade, e foi assim que os primeiríssimos cristãos
também o repetiram. Era assim que o fazia Santo Inácio
de Antioquia.
Chegamos, então, à época dos séculos II, III e IV,
quando já havia cessado a era apostólica. Os apóstolos
haviam morrido, e também os que tinham conhecido
pessoalmente os apóstolos.
Foi a época em que muitos dos novos cristãos
começaram a fazer grande confusão sobre o tema. O que
seriam as três pessoas? Somente uma seria Deus, ou o
seriam as três? Mas se fossem as três, como então seria
possível haver apenas um só Deus? E se era um só Deus,
como nEle poderia haver três pessoas? As três existiam
desde toda a eternidade, ou foram geradas no tempo, em
algum momento antes da criação do mundo? Muitos
destes cristãos tinham conhecimento da filosofia grega, o
que tornava as perguntas mais claramente formuladas
mas, ao mesmo tempo, complicava esclarecer as
respostas. Mais ainda, até então ninguém havia dito que
se tratava de três pessoas, falava-se apenas de Pai, de
Filho e de Espírito Santo. Quando foi sugerido que
poderiam ser três pessoas, começou uma discussão sobre
o que significaria exatamente o termo "pessoa" e se, na
questão da Santíssima Trindade, seria correto utilizar a
palavra "pessoa", já que as próprias Escrituras não a
utilizavam.

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Entramos, assim, em um tempo onde se iniciou um
grande debate, um dos mais acalorados e prolongados
debates que houve na história, um debate de que
podemos ter um primeiro conhecimento sobre seu
desenvolvimento consultando um texto cujo título é "A
Santíssima Trindade nos Santos Padres dos Primeiros
Séculos", encontrado no site cristianismo.org.br. Ali
encontramos uma resenha da polêmica e dos debates
sobre a Santíssima Trindade nos séculos II, III e IV.

O que se pode entender é que, se na época dos


Apóstolos o tema havia sido tão evidente que ninguém o
questionava, já não acontecia mais o mesmo com os
recém-convertidos dos séculos seguintes, que começaram
a levantar dúvidas sobre dúvidas a respeito do assunto.
Dúvidas sobre o que o mistério significaria, não sobre a
sua realidade. Sobre esta realidade ninguém duvidava.
Tratava-se, em vez disso, de dúvidas atrozes como esta:
"Não se questiona que há um Pai, um Filho e um
Espírito Santo; mas, se há um só Deus, não estaria
evidente que estas três pessoas não podem ser divinas,
porque, neste caso, haveria três deuses?" Mas neste caso,
surgiria outra dúvida: "O que seriam, então, duas das
três pessoas? Poderia ser, talvez, que o Deus do Antigo
Testamento tivesse sido apenas o Pai?" Alguns
levantaram a hipótese segundo a qual a segunda e a
terceira pessoa não teriam sempre existido desde toda a
eternidade. Teriam surgido no tempo. Teria havido,
então, um tempo em que Deus esteve sozinho. Nesta
época Ele teria sido somente o Pai. Quando o Pai,
finalmente, decidiu criar o mundo, teria então criado
primeiro o Filho, para através dele criar o mundo. Teorias
como estas, com muitas variantes, começaram a se
espalhar por toda a cristandade. Sobre este pano de
fundo os santos padres, que mais profundamente

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meditavam o Novo Testamento e que conduziam uma
vida espiritual mais elevada, começaram a trazer luz à
discussão, sem deixar de atender às novas exigências de
precisão da Filosofia Grega. Pouco a pouco, começava a
ficar claro, para todos, o que o Novo Testamento
realmente queria dizer.

Durante o processo, por volta do ano 250, Orígenes,


um catequista de Alexandria, empreendeu uma longa
viagem percorrendo todas as igrejas mais antigas da
cristandade que haviam sido fundadas pelos apóstolos,
inclusive e principalmente a de Roma. Seu objetivo era
investigar o que realmente naquelas igrejas havia sido
ensinado desde a era apostólica. Desta viagem resultou a
obra "Os Princípios", que nos foi conservada em grego e
latim, dividida em quatro livros. Os três primeiros livros
tratam basicamente dos temas que hoje compõem o
Credo. O quarto livro trata exclusivamente do que os
apóstolos haviam ensinado, desde os primórdios do
cristianismo, sobre as Sagradas Escrituras e sobre o papel
da sua meditação no desenvolvimento da vida espiritual.
A Igreja, de fato, durante todo o primeiro milênio, foi
tomada por um amor extraordinário à meditação das
Sagradas Escrituras, tão evidente nos escritos de nomes
como Santo Agostinho, São João Crisóstomo, São
Ruperto, Hugo e Ricardo de São Vitor, e centenas de
outros. Segundo o testemunho de Orígenes, este amor
extraordinário às Escrituras remonta aos ensinamentos
deixados pelos apóstolos em todas as igrejas diretamente
fundadas por eles. Até hoje isto é muitíssimo evidente
para todos os que estudam seriamente os escritos dos
Santos Padres do primeiro milênio. É também um tema
que foi recentemente resgatado para a Igreja pela
Constituição "Dei Verbum" do Concílio Vaticano II.

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No fim deste longo processo, chegou-se à redação
do Credo, elaborado pelos Concílios de Nicéia e
Contantinopla no século IV. É um Credo claramente
trinitário. É o Credo que hoje todos nós conhecemos e
que diz: "Creio em um só Deus, Pai todo poderoso,
criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e
invisíveis. E em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho
unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os
séculos. Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de
Deus verdadeiro, gerado não criado, consubstancial ao
Pai, por Ele todas as coisas foram feitas", etc..

Assim, todo este período culminou nos Concílios de


Nicéia e Constantinopla, quando se chegou a um
consenso sobre o que realmente o Novo Testamento quis
dizer e que a Igreja havia cuidadosamente preservado,
impedindo que se pervertesse. Desfeitas todas as posições
incompatíveis com o ensinamento neo-testamentário, a
partir daí os santos padres buscaram penetrar mais
profundamente no que se escondia no mistério da
Santíssima Trindade. O Credo havia sido redigido para
eliminar os erros mais evidentes, mas estava claro que o
mistério era mais profundo. Em consequência, através de
uma busca sublime e incessante, foram surgindo grandes
luminares na história da Igreja. São Gregório Nisseno foi,
no Oriente, um destes grandes luminares. No Ocidente
surgiu Santo Agostinho, que foi o mais importante de
todos os primeiros santos padres a escrever sobre a
Santíssima Trindade. Foi Agostinho quem escreveu o
Tratado sobre a Santíssima Trindade. É um livro que
todos deveríamos ler. Não é um livro fácil. Teríamos que
lê-lo muitas vezes, e várias vezes durante a vida. É uma
obra prima. Santo Agostinho diz que escreveu esse livro
porque não podia recusar-se a atender aos pedidos
insistentes dos fiéis que o assaltavam, querendo que lhes

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explicasse o mistério da Santíssima Trindade. Por este
motivo, por amor aos seus fiéis, além de seu próprio amor
ao mistério da Trindade, Agostinho passou anos e mais
anos meditando para escrever a obra.

Sobre Santo Agostinho e a Santíssima Trindade


narra-se a história de um menininho que, em uma praia,
levava água do mar em um balde para derramá-la em um
buraco feito no chão. Não longe dali, Agostinho meditava
na Trindade, quando viu o menino. Aproximou-se dele e
lhe perguntou: "O que estás fazendo? Estás recolhendo
água do mar há bastante tempo, e a derramas neste
buraco feito no chão. O que pensas em fazer?" O menino
respondeu: "Muito simples. Não percebeste? Quero
recolher toda a água do oceano e colocá-la aqui neste
buraco". Agostinho replica: "Mas meu menino, não
entendes que é uma tarefa impossível? Nunca
conseguirás encher este buraco com a água do oceano".
Neste momento o menino teria feito um sorriso e
treplicado: "É verdade, tens razão. Todavia, trata-se de
algo muito mais simples do que a inteligência humana
compreender a Santíssima Trindade". Ouvindo isto, e
visivelmente surpreendido, Agostinho teria desistido de
seu projeto. Esta é a história.

A história é encantadora e tem muito a nos ensinar.


O problema, porém, é que provavelmente nunca
aconteceu. Santo Agostinho não a menciona nas suas
obras. Ele também nunca se envergonhou ou se
arrependeu de ter meditado sobre a Santíssima Trindade.
Muito pelo contrário, só chegou a publicar a obra em vida
porque, depois de catorze anos de meditação, um ladrão,
que sabia que ele a estava escrevendo, e não podia mais
esperar por tantos anos para lê-la, invadiu a casa do bispo
e roubou os rascunhos. Roubou-os para fazer cópias e

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distribuí-las, mesmo incompletas, fosse qual fosse o
modo como a obra se encontrasse. Em vista disso, e com
medo que o manuscrito se espalhasse ainda em estado de
rascunho e contendo erros, Santo Agostinho se viu
obrigado a concluir a obra mais rapidamente.

Vamos, então, recapitular nossa narrativa. No


Antigo Testamento temos alusões indiretas à Trindade.
Depois, no Novo Testamento, Jesus se refere à
Santíssima Trindade como se fosse alguém falando de sua
própria família. Em seguida, temos um período em que os
apóstolos haviam morrido e muitos recém-convertidos,
que não tinham a profundidade dos primeiros tempos,
nem tampouco gozavam do convívio com os apóstolos e
com os que haviam tratado com eles, começaram a
especular teorias absurdas sobre a Trindade, obrigando a
Igreja a corrigi-los, até que, por fim, chegamos aos
Concílios de Nicéia e de Constantinopla, os primeiros
concílios ecumênicos da história da Igreja, pelos quais se
promulgou o Credo Niceno-Contantinopolitano, para que
ficasse claro a todos qual fosse a autêntica posição da
Igreja a este respeito.

A partir daí começou uma nova etapa. Uma vez que


os erros mais evidentes já estavam claramente apontados,
passou-se a meditar mais a fundo no mistério,
mergulhando onde os que haviam introduzido os
primeiros erros, já claramente entendidos como
primários, não teriam tido condições de aprofundar. No
Oriente São Gregório Nisseno o fez de maneira brilhante.
Santo Agostinho também o fez no Ocidente. Mais tarde,
no Oriente, São João Damasceno escreveu o livro 'A Fé
Ortodoxa', onde introduziu alguns capítulos extensos
sobre a Santissima Trindade, que são um primor de
profundidade. São João Damasceno conseguiu sintetizar

17
o que a Igreja no Oriente havia meditado a esse respeito
durante os 800 primeiros anos da era cristã. É uma
referência extraordinária do pensamento cristão sobre a
Santíssima Trindade.

Ainda mais tarde, nos anos 1100, surgiram os


padres vitorinos, principalmente Hugo e Ricardo de São
Vitor. Hugo de São Vitor retomou o tema do ponto onde
Santo Agostinho havia parado. Hugo de São Vitor talvez
não conhecesse, ou talvez não conhecesse bem São João
Damasceno. Em seus escritos São João Damasceno nunca
é mencionado. Hugo de São Vitor tentou mostrar mais
claramente o que Santo Agostinho havia querido explicar.
No Tratado dos Três Dias, que se encontra disponível no
site cristianismo.org.br, Hugo desenvolve, em linguagem
mais simples, o conteúdo central do De Trinitate de
Santo Agostinho. Mas, na aparente simplicidade de sua
linguagem, Hugo prossegue para além do ponto onde
Agostinho havia se detido. E, quando Hugo morreu,
Ricardo de São Vitor, o melhor de seus alunos,
aprofundou o comentário do Tratado dos Três Dias de
Hugo em duas direções diversas. Uma destas direções
está no Tratado da Arca da Aliança, onde Ricardo,
aprofundando o esquema traçado por Hugo no Tratado
dos Três Dias, busca explicar o que é, e como se dá, a
contemplação. A outra direção está no Tratado da
Santíssima Trindade.

O Tratado dos Três Dias de Hugo de São Vitor é um


dos escritos mais belos que já se redigiram na história da
humanidade. Pode ser considerado um protótipo da
estética medieval. Para além da profundidade do
conteúdo ali apresentado, pode-se pensar no Tratado dos
Três Dias como um artista que tivesse pintado em tela ou
transformado em sinfonia o De Trinitate de Santo

18
Agostinho, não, porém, com tinta ou notas musicais, mas
com ideias abstratas, fervilhando em inacreditável
harmonia em todas as suas linhas, imitando a ordem da
criação, quando esta nos espelha a grandeza, a sabedoria
e a bondade do Criador.

Foi este Tratado dos Três Dias que posteriormente


se bifurcou na obra de Ricardo de São Vitor.

Hugo de São Vitor havia aprofundado o De


Trinitate de Santo Agostinho no Tratado dos Três Dias.
Mas, partindo do Tratado dos Três Dias, em seguida
operou-se uma bifurcação na obra de Ricardo de São
Vitor. O primeiro ramo da bifurcação se dá no Tratado
da Arca da Aliança, onde Ricardo desenvolve o conteúdo
do Tratado dos Três Dias no que diz respeito à
contemplação. O segundo ramo da bifurcação se dá no
Tratado da Santíssima Trindade, onde Ricardo
desenvolve o conteúdo do Tratado dos Três Dias no que
diz respeito à Santíssima Trindade. Os dois temas,
portanto, que estavam unidos no Tratado dos Três Dias,
foram abordados separadamente na obra de Ricardo. Por
que motivo? Por que Ricardo de São Vitor resolveu
separá-los?

Se os dois temas estavam unidos em Hugo de São


Vitor, isto se deu porque o que a contemplação é para os
santos, também é, de um modo análogo e mais sublime, a
Santíssima Trindade para a vida divina. Não é pouca
coisa. O que a contemplação é para os santos, é a
Santíssima Trindade para a vida divina. Mas, se é
assim, a partir da contemplação, pode-se ter um
vislumbre da Santíssima Trindade. Os dois temas,
portanto, podem ser vistos como dois aspectos de um
mesmo tema.

19
Pode-se dizer que nos céus, onde dizemos, no Pai
Nosso, que está o Pai, quando dizemos "Pai Nosso, que
estais nos céus", Deus vive de modo análogo à vida
experimentada pelos santos quando estão em
contemplação, e que esta contemplação em Deus é a
Santíssima Trindade. Ou que, vice versa, quando os
santos, na quinta morada descrita por Santa Teresa de
Ávila no livro Castelo Interior, alcançam a contemplação
infusa, estão experimentando um ínfimo fragmento da
bem-aventurança da Santíssima Trindade.

No desenvolvimento da vida interior, a


contemplação ocorre depois que é atravessada uma porta
estreita, situada logo antes do que Santa Teresa chama,
no mesmo livro, de quartas moradas. "Entrai pela porta
estreita. Estreita é a porta, e apertado é o caminho que
conduz à vida", diz Jesus. "E poucos são os que o
encontram" (Mt. 7, 13-14).

Sob outra figura, a mesma porta estreita é descrita


por São Paulo na Epístola aos Hebreus, quando diz que
"tomados pela esperança, firme e segura âncora da
alma, entramos para o interior do véu do tabernáculo,
onde Jesus entrou por nós como precursor" (Hb. 6, 19-
20). Segundo São Paulo, esta entrada se dá intermediada
pela esperança, pela qual ele afirma, em outro lugar, que
"somos salvos" (Rom. 8, 24). Trata-se também de uma
esperança pela qual, ainda no dizer de São Paulo, "o
amor de Deus é derramado, pelo Espírito Santo, em
nossos corações" (Rom. 5, 5).

A entrada nas quartas moradas, descritas por Santa


Teresa no Castelo Interior, se dá quando, por obra da
graça do Espírito Santo, que é dado aos que creem em
Cristo, e que Santo Tomás de Aquino diz que é "o

20
principal que há no Evangelho, e no qual consiste toda a
sua força" (ST, IIa IIae 106 a.1), surgem em nós os rios de
água viva que são mencionados por Jesus no sétimo
capítulo do Evangelho de São João: "Quem crê em mim,
como diz a Escritura, de suas entranhas correrão rios de
água viva" (Jo. 7, 38). E o evangelista acrescenta,
explicando: "Jesus falava do Espírito Santo que deviam
receber os que nele cressem" (Jo. 7, 39). A água viva,
mencionada no Evangelho, é uma expressão de um amor
superabundante que se realiza sob a ação dos dons do
Espírito Santo. É a este amor que Jesus se referia quando
dizia: "Vim espalhar um fogo sobre a terra, e que mais
desejo eu senão que se acenda?" (Lc. 12, 49).

São também estes rios de água viva aqueles a que


São Diádoco se referia, quando escrevia: "Uma é a
caridade natural da alma, outra aquela que pelo
Espírito Santo lhe é infundida. Aquela que está em nós,
quando queremos, se move com moderação pelo afeto de
nossa vontade; a divina, porém, incendeia de tal forma
a alma à caridade, que vence e une entre si, por uma
infinita simplicidade e sinceridade de afeto, todas as
partes e as faculdades da alma na bondade do desejo
celeste" (S. Diádoco de Fócia: Capitulos sobre a
Perfeição; Migne, PG 65).

Estes rios de água viva são o amor que é descrito na


Epístola aos Romanos quando São Paulo menciona
aquele "amor de Deus que foi derramado pela esperança
em nossos corações, pelo Espírito Santo que é dado" aos
que creem em Cristo (Rom. 5, 5). São Paulo também diz,
no oitavo capítulo da Epístola aos Romanos: "São filhos
de Deus todos aqueles que são movidos pelo Espírito de
Deus" (Rom. 8, 14). É este Espírito Santo que move os
filhos de Deus e produz a contemplação. É uma vivência

21
supereminente da fé unida à caridade, movida pelo
Espírito Santo, que introduz os homens naquela forma
superior de contemplação, associada ao dom de
sabedoria, pela qual se lhes manifesta a verdade e se
tornam livres (Jo. 8, 31) [2].

Em Deus ocorre uma coisa análoga, mas muito mais


sublime. Em Deus, estes rios de água viva são o Espírito
Santo, uma expressão do amor entre o Pai e o Filho, que
procede de ambos e perfaz a unidade que há na
Santíssima Trindade, assim como nos santos a
contemplação é a realização de sua união com Deus. A
Santíssima Trindade é, em Deus, o análogo do que é, nos
______________________________________________________________________________________________________

[2] Pode-se depreender, pelas expressões de S. Paulo, que o


encontro supereminente da fé e da caridade que se dá na
contemplação, através da graça do Espírito Santo, que é precedido
pelos rios de água viva, é precedido, por sua vez, por uma grande
esperança, que é diversa da esperança dos iniciantes. Na Summa
Theologiae, S. Tomás de Aquino distingue entre a esperança na
ordem da geração, ou dos principiantes, e a esperança na ordem da
perfeição. Na ordem da geração, a esperança precede o amor mas,
na ordem da perfeição, a esperança segue o amor e é causada por
ele (ST., Ia IIae, 82 a.4; IIa IIae, 17 a.8). É esta esperança que,
ensina S. Paulo, atravessa a porta estreita e permite que os rios de
água viva do Espírito Santo nos conduzam à unidade da fé e do
amor que se dá na contemplação. O desenvolvimento desta
esperança, "a pressa em conduzir à plenitude a esperança,
até à perfeição" (Heb. 6, 11), é o objetivo do livro do Apocalipse,
como fica evidente em seu último capítulo (Ap. 22). "O
testemunho de Jesus tornou-se firme em vós", diz S. Paulo,
"que esperais a revelação (no original, o 'apocalipse') de
Nosso Senhor Jesus Cristo" (I Cor. 1, 7). É a esta esperança que
se refere também a Regra de São Bento, quando diz: "Apodera-se
deles o desejo de caminhar para a vida eterna, por isso
lançam-se como que de assalto ao caminho estreito do
qual diz o Senhor que conduz à vida" (Regra de São Bento, C.
5).

22
santos, a contemplação. E nos santos a contemplação é
uma migalha infinitamente pequena da bem-aventurança
da Santíssima Trindade. A Santíssima Trindade é Deus
em contemplação, ou também, é a contemplação de Deus.

Quando me refiro aos santos, estou me referindo


aqui à santidade heroica, a que deriva da contemplação.
As virtudes extraordinárias que admiramos nos maiores
santos da Igreja não surgiram porque estes homens se
exercitaram dia e noite até adquirir, apenas pela mera
repetição do exercício, aquelas virtudes. Elas foram
alcançadas através da união da fé e da caridade na
contemplação. As virtudes heroicas não podem ser senão
consequência da contemplação. E assim como o homem
alcança a plenitude da filiação divina pela contemplação,
assim também Deus é Deus porque é Trindade. A
Trindade e a contemplação são, portanto, realidades
intimamente relacionadas, embora análogas.

Foi para poder mostrar melhor que não eram lados


iguais de uma mesma moeda, vendo o manancial de
profundidade que estava contido no Tratado dos Três
Dias de Hugo de São Vitor, que Ricardo decidiu separar
os dois temas. Decidiu tratar, no Tratado da Arca da
Aliança, sobre a contemplação. E tratar, no Tratado da
Santíssima Trindade, sobre a Trindade. Seguiu, porém,
em ambos, a linha traçada no Tratado dos Três Dias. Se
Hugo, seu professor, havia conseguido tratar ambos os
temas simultaneamente, Ricardo, se quisesse entrar nos
detalhes, talvez não mais conseguisse fazê-lo.

Depois de Hugo e Ricardo de São Vitor, veio Santo


Tomás de Aquino, que foi o maior de todos os que
abordaram o tema da Trindade. Não há como dizer em
poucas palavras o que Santo Tomás fez ao tratar sobre a

23
Santíssima Trindade. É a parte mais complexa de toda a
sua obra e precisaríamos de semanas para começar a
explicá-la. Mas, de pouco em pouco, é possível
desenvolver o tema. Santo Tomás conseguiu unir, em
uma síntese, a visão da Santíssima Trindade que vinha do
Ocidente, de parte de Santo Agostinho, com a que vinha
do Oriente, de parte de São João Damasceno. O tema é
muito profundo. A maioria das pessoas que leem a
Summa, e mesmo muitos daqueles que a estudam, não
chegam a perceber o alcance do que diz Santo Tomás.

Neste esquema de síntese histórica que estamos


fazendo, mostramos que no Antigo Testamento havia
alusões ao mistério da Trindade. Deus frequentemente
fala de si na primeira pessoa do plural e aparece para
Abraão como três pessoas. Abraão as trata como se
fossem um. Na confecção das tábuas da lei, o Espírito
Santo aparece veladamente.

Depois, Jesus fala da Santíssima Trindade com


tamanha intimidade que não precisa explicá-la por meio
de nenhuma síntese. Somos nós que precisamos assimilar
todas as suas falas e os testemunhos dos apóstolos para
começar a entender o que aquele conjunto significa. À
medida que crescemos na vida espiritual e nos
aproximamos da contemplação e, melhor ainda, se
tivermos chegado a ela, as coisas se tornam muito mais
claras, porque a contemplação é, ela mesma, uma
imagem da Santíssima Trindade. Jesus mesmo o disse:
"Quando vier o Paráclito, que vos enviarei de junto do
Pai, o Espírito da verdade, que procede do Pai, ele dará
testemunho de mim. Ele me glorificará, porque receberá
do que é meu, e vo-lo anunciará. Tudo o que o Pai tem é
meu. Por isso eu vo-lo disse: ele receberá do que é meu e
vos anunciará" (Jo. 15, 26; 16, 14-5).

24
Assim como os santos se santificam pela
contemplação, que é "o pão nosso supra-substancial" que
pedimos no Pai Nosso, Deus é Deus por ser Trindade. É
aquele manancial de amor que está na vida trinitária que
faz Deus ser Deus. Se Deus não fosse Trindade, Ele não
seria Deus, e não poderia ter criado nem mesmo um grão
de areia. Não seria Deus, não existiria o Universo e nem
tampouco estaríamos vivos para entender que nada teria
existido. Até mesmo para existir um minúsculo grão de
areia, Deus teria que existir e, se Deus não fosse
Trindade, Deus não existiria [3].

Por isto é que, do mesmo modo como os santos que


não contemplam não se santificam, assim também os
homens que não rezam não se salvam.

Deste pouco que dissemos é possível perceber


também como todas estas coisas estão profundamente
interligadas.

Dissemos, então, que depois da época do Antigo


Testamento, houve outra época correspondente ao Novo
Testamento. É ainda na época do Novo Testamento que,
_______________________________________________
[3] No quarto pedido do Pai Nosso lemos: "O pão nosso supra-
substancial dai-nos hoje" (Mt. 6,11). Esta passagem costuma
ser traduzida para as linguas modernas como "o pão nosso de
cada dia dai-nos hoje". A palavra grega "epiousios" costuma-
se traduzir como "de cada dia", mas "supra-substancial"seria
uma tradução mais correta. "Epiousios" é uma palavra composta
de "epi" e "ousios". "Ousia" significa "essência" ou
"substância". "Ousios" significa "substancial" e "epi"
significa "supra". "Epiousios" significa, portanto, "supra-
substancial". A Vulgata Latina de São Jerônimo traduziu
"epiousios" como "supersubstantialem": "Panem nostrum
supersubstantialem da nobis hodie".

25
em certo sentido, podemos colocar os escritos de Santo
Inácio de Antioquia. Apesar de suas cartas não fazerem
parte do Novo Testamento, de algum modo Santo Inácio
ainda vivia desta época. Inácio havia sido discípulo de
São João Evangelista e conheceu pessoalmente a Virgem
Maria.

Seguiu-se, depois, outra época em que todos os que


tiveram acesso direto a Jesus ou aos apóstolos já haviam
falecido. Muitos recém-convertidos, sem ainda ter
alcançado a devida estatura espiritual e, frequentemente,
sem a orientação de quem a tivesse, iniciaram as mais
diversas controvérsias sobre a Trindade, das quais, uma
vez iniciadas, não mais conseguiam desvencilhar-se. A
Igreja teve que submeter todas as incongruências que
haviam se difundido sobre a Trindade à sua consideração
e, depois de muito trabalho, por amor à fé da qual tinha
recebido o depósito, chegou-se a um consenso claro sobre
as questões fundamentais, do qual resultou o Credo
Niceno-Constantinopolitano.

No período seguinte, já eliminados os erros mais


elementares, iniciou-se uma época de aprofundamento.
Uma linha deste aprofundamento foi a seguida no
Oriente por São Gregório de Nissa e São João
Damasceno. Outra linha foi aquela seguida no Ocidente
por Santo Agostinho e os padres vitorinos que, na Idade
Média, seguiram a linha de Santo Agostinho. Já no final
da Idade Média, Santo Tomás de Aquino uniu em seus
escritos e na Summa Theologiae ambas as linhas. A
profundidade com que Tomás tratou da Trindade nos
seus escritos é algo simplesmente extraordinário. É a
parte mais difícil dos seus escritos.

Lembro que dizia estas coisas para convidá-los a ler

26
os poucos capítulos do De Trinitate de Ricardo de S. Vitor
que se encontram no final desta exposição. Mas quero
convidá-los também a tentar entender o que ele está
dizendo. Para isto pretendo dizer agora alguma coisa
sobre o De Trinitate de Ricardo de São Vitor.

Entre as coisas que Ricardo de São Vitor expõe em


seu livro, uma delas pode ser colocada da seguinte
maneira. O mistério da Trindade afirma que em Deus há
três pessoas. Estas três pessoas são um só Deus. E elas
assim o são desde toda eternidade. Nunca começaram e
nunca acabarão. E estas pessoas não se separam. São
mais íntimas umas das outras do que qualquer coisa que
possa ser por nós concebida. São um só Deus, com uma
só natureza, uma só inteligência, uma só vontade, um só
poder, uma só consciência. Apesar de serem três pessoas,
não é possível uma unidade maior do que esta. Então,
junto com Ricardo, somos convidados a refletir sobre o
que se segue disto.

Se cada uma dessas três pessoas é Deus, possuem


uma inteligência infinita. Ademais, contemplam-se e
conhecem-se umas às outras. E se nós, quando
estivermos no paraíso, seremos felizes para sempre
porque contemplaremos a Deus eternamente face a face,
embora limitadamente, porque somos criaturas limitadas
e, não obstante, isto será a felicidade eterna, imaginem
qual não deverá ser a felicidade das próprias pessoas da
Santíssima Trindade. Pois elas se conhecem mais
intimamente do que nós jamais conheceremos a Deus,
mesmo estando no Paraíso. As pessoas da Trindade
podem esgotar a Deus infinitamente e de uma maneira
que nós não seremos capazes de fazer, nem no Paraíso, e
muito menos na contemplação. Portanto, com certeza, a
Santíssima Trindade é uma fonte de felicidade

27
inesgotável para as pessoas divinas.

E pode-se dizer ainda mais. Se alguém fosse capaz


de ver um espetáculo como o que é visto pelas pessoas da
Trindade, se alguém pudesse contemplar a
extraordinariedade do que é Deus em toda a sua
infinitude, isto, com certeza, causaria um amor das
mesmas proporções. Um amor muito maior do que
qualquer amor que nós jamais concebemos, muito maior
do que o amor de que viveram os maiores santos da
Igreja.

Neste ponto Ricardo de São Vitor diz que todos


sabem que o verdadeiro amor é amor por um outro. Não
existe amor a si mesmo. O amor a si mesmo é egoísmo.
Hugo de São Vitor reconhece, no Comentário à Epístola
aos Romanos, que o homem recebeu um preceito de
amar a si mesmo, pois é-lhe ordenado amar o próximo
"como a si mesmo" (Lv. 19, 18). Mas amar a si mesmo,
continua Hugo, significa, na verdade, amar a Deus, pois
somente pode amar a si mesmo quem quer o bem para si
mesmo, e o bem do homem é Deus. Portanto, conclui
Hugo, amar a si mesmo significa amar a Deus. Quem não
ama a Deus não se ama a si mesmo. Quem não ama a
Deus é, na verdade, o seu maior inimigo. Por conseguinte,
até amar a si mesmo significa amar a um outro. O
verdadeiro amor é, portanto, por sua natureza, um dar-
se. E mais, o verdadeiro amor é o amor de amizade, que
significa não apenas dar-se a outro, mas também vice
versa. Não existe amor de amizade sem reciprocidade.
Todos nós temos experiência que, para amar, há que se
amar outra pessoa e que, para ser o verdadeiro amor, o
amor de amizade, a pessoa amada tem que amar em
retribuição. Então, diz Ricardo, é evidente que se Deus é
uma inteligência tão grande da qual resulta um amor tão

28
proporcionalmente grande, Deus não poderia ser uma só
pessoa, porque neste caso Deus não experimentaria o
verdadeiro amor, o amor que Ele mesmo exige de suas
criaturas como o maior de todos os mandamentos.

Ricardo acrescenta que Deus não poderia


experimentar a infinitude do amor que, pela sua
inteligência e natureza, lhe compete, se amasse apenas as
suas criaturas. Nós somos muito limitados para esgotar o
amor que Deus tem para dar. Por mais que Deus nos
amasse, Ele não nos poderia amar infinitamente. Ele não
poderia dar-nos a perfeita divindade. Deus não poderia
dar-se infinitamente a nenhum de nós. Mas, no
verdadeiro amor, as pessoas se dão inteiramente e de
igual para igual. Por mais que alguém ame um cachorro,
um gato ou um passarinho, este nunca será o amor que
alguém poderá chegar a ter por uma esposa que seja
digna de seu marido e vice versa. Portanto, diz Ricardo de
São Vitor, para experimentar o verdadeiro amor, é
necessário ter um igual.

É exatamente por este motivo, diz Ricardo de São


Vitor, que existe a Trindade. É porque Deus é amor. É por
isso que Deus preceituou que nós nos amássemos, e é por
isso que, pelo amor, alcançamos a contemplação. O amor
é sempre um amor por um outro, e o fato de haver um
outro que nos corresponda é o que nos traz a plena
felicidade do amor. Seria incoerente que Deus nos tivesse
criado à sua imagem e semelhança e nos tivesse
preceituado algo tão sublime sem que Ele o
experimentasse em Si mesmo. Teríamos que concluir
que, talvez Deus chegasse ao absurdo de invejar as
criaturas que Ele mesmo tivesse criado, como um simples
casal de passarinhos, porque, elas sim, poderiam
experimentar a felicidade de um amor, ainda que finito,

29
mas que para o próprio Deus seria inacessível.

Deve, portanto, haver entre as pessoas da


Santíssima Trindade um amor infinito, um amor mútuo,
tão extraordinário, tão grande, que nunca começou, que
jamais irá acabar, e que as pessoas divinas nunca se
cansarão de viver. As pessoas divinas nunca tiveram
férias. Nunca o Pai dirá ao Filho: "Meu Filho, agora o Pai
vai passear. Espírito Santo, dou-te suas semanas de
licença; deixa-me um pouco sozinho porque já faz uma
eternidade que estamos juntos, preciso de um pouco de
descanso". Isto é uma impossibilidade. As pessoas
divinas nunca deixarão de se amar. Este é o verdadeiro
amor.

Mas temos aqui alguma coisa ainda mais


impressionante. Algo em que Santo Agostinho não
insistiu tanto, mas que vai naquela linha que vem de São
Gregório Nisseno, passa por São João Damasceno e que
depois se une em Santo Tomás de Aquino.

Os padres do Oriente ficaram muito impressionados


quando Jesus diz aos Apóstolos que deveriam alegrar-se
por Jesus voltar para o Pai, porque o Pai é maior do que
ele. "Se me amaram", diz Jesus, "terão se alegrado
quando eu disse que vou para o Pai, porque o Pai é
maior do que eu" (Jo. 14, 18). E aqui Santo Tomás de
Aquino, quando escreve o Comentário ao Evangelho de
São João e considera o que Jesus queria dizer quando
afirma que o Pai é maior que ele, recolhe do pensamento
de São Gregório de Nissa e de São João Damasceno.
Santo Tomás de Aquino diz que Jesus não falava apenas
enquanto homem, mas também porque, em certo sentido,
também enquanto Deus, o Pai era maior do que ele. Não
porque o Pai fosse mais Deus do que o Filho, já que os

30
dois são um só Deus e o Filho não é sua criatura, mas
porque o Filho procede do Pai e, sob este aspecto, o Pai é
princípio da Santíssima Trindade (Summa Theologiae,
Ia. Q. 33 a.1)

Esta afirmação era algo que São João Damasceno


havia sublinhado de uma maneira muito forte em seus
escritos. Há um modo de ordem dentro da Santíssima
Trindade. Não há desigualdade entre as pessoas pela
essência ou pela divindade, mas o Filho tem certamente
consciência que é gerado pelo Pai desde toda a eternidade
e o Pai tem consciência que gera o Filho desde toda a
eternidade. Isto faz com que o amor que há entre ambos
seja um amor, por parte do Pai, ao modo de paternidade,
e, por parte do Filho, ao modo de gratidão filial. A
gratidão do Filho para com o Pai é infinita desde toda a
eternidade. O Filho sabe que é Deus e que é o mesmo
Deus com o Pai, e sabe que assim o é porque é gerado
pelo Pai desde toda a eternidade. Não é criado, não é
produzido do nada. Sempre é gerado pelo Pai desde toda
a eternidade.

Mas não é assim que se dá entre os homens. Entre


nós primeiro geramos um filho e, depois de havê-lo
gerado, a geração cessa e o que existe entre ambos é uma
relação real entre pai e filho e vice versa. O ato da geração
é diferente da relação que vem depois. Na Santíssima
Trindade ocorre que há esta relação desde toda
a eternidade, sem ter havido um ato criador.

Não é algo fácil de entender. As pessoas supõem que


são pais de seus filhos porque um dia conceberam seus
filhos e lhes deram a vida. Mas não é apenas por isto.
Depois que o filho foi gerado, passa a existir, para
sempre, uma relação real entre pai e filho. O pai será para

31
sempre o pai do seu filho, não apenas durante algum
tempo, e esta relação não é apenas uma convenção
humana ou uma categoria jurídica. O pai é realmente pai,
é algo que está inscrito nas células, no código genético, na
psicologia, gravado na alma, inscrito na natureza.
Quando o pai completar cem anos e o filho completar
oitenta, ainda serão pai e filho.

Ocorre em Deus que, desde toda a eternidade, existe


a relação sem ter havido uma criação. O homem não é
capaz de compreender o quanto isto é suficiente, e é mais
do que superabundante, para que na Trindade haja uma
distinção real entre as pessoas sem haver multiplicação
das naturezas, e o quanto disto se segue o amor eterno e
infinito de gratidão que o Filho tem para com o Pai.
Todos nós podemos, porém, percebê-lo se
meditarmos com cuidado as palavras do Novo
Testamento. Pode-se ali perceber o quão grande era o
amor de Jesus pelo Pai. Ele já o manifestava quando,
ainda criança, foi encontrado no Templo de Jerusalém, e
testemunhou sobre o seu Pai. Maria guardou aquelas
palavras em seu coração durante toda a sua vida (Lc. 2,
49), assim como nós deveríamos fazer com todas as
palavras do Novo Testamento [4].
______________________________________
[4] Segundo Jesus, as palavras do Novo Testamento são "tudo
aquilo que Ele ouviu do Pai" (Jo. 15, 15), isto é, não pode ser
outra coisa senão a revelação de sua própria geração: "Já não
vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu
senhor. Chamo-vos amigos, porque tudo o que eu ouvi de
meu Pai, dei-vos a conhecer" (Jo. 15, 15). Poucas horas depois
de ter dito estas impressionantes palavras, Jesus também as
explicou: "Pai, concluí a obra que me destes para fazer,
manifestei o teu nome aos homens que do mundo me
deste. Eles guardaram a tua palavra, e agora conheceram
que tudo quanto me deste vem de ti" (Jo. 17, 4-8). Jesus está ...

32
Assim, o amor de Jesus pelo Pai não se explica
apenas por Ele haver assumido uma natureza humana e,
enquanto homem, seu Pai ser Deus. Este amor deriva
principalmente do fato de que, dentro da Trindade, a
divindade é recebida pelo Filho da parte do Pai, princípio
da Trindade. O Filho e o Espírito Santo têm um amor de
gratidão por Deus Pai porque procedem do Pai, e o Pai
tem um amor de doação pelo seu Filho e pelo Espírito
Santo porque dEle procedem. E este amor é muito maior
do que o amor que nós temos por nossos filhos, porque é
infinita a doação que existe por parte do Pai. A processão
é infinita e eterna, e é infinita a gratidão que existe na
Santíssima Trindade para com o Pai por parte do Filho e
do Espírito Santo. Este é e sempre foi o verdadeiro amor,
a fonte de onde brota todo o amor que há, no céu e na
terra. É o que fez São Paulo dizer: "Dobro os joelhos
diante do Pai, de quem toma nome toda a paternidade
que há nos céus e sobre a terra" (Ef. 3, 14). É este o amor
que faz Deus ser Deus. E foi por este amor que foi criado
o mundo. As pessoas divinas quiseram compartilhar sua
felicidade com outras criaturas e, para fazê-lo, criaram o
céu e a terra. O Universo é uma migalha desta imensa
_______________________________________
... ensinando que, aos que guardaram as suas palavras no coração,
como o fazia Maria, ser-lhes-á manifestado o nome do Pai, aquele
que dizemos, no início do Pai Nosso, que seja santificado. E aos que
o nome do Pai foi manifestado, quando estes veem Jesus, também
veem o Pai ("agora eles conheceram que tudo quanto me
deste vem de ti"). Isto não é diferente do que Jesus, quando
criança, havia dito à sua mãe no Templo de Jerusalém: "Não
sabíeis que eu devo estar nas coisas de meu Pai?" (Lc. 2,
49). Esta resposta não era uma falta de educação de uma criança
rebelde. Era uma revelação do que há de mais profundo na Nova
Aliança. Maria o percebeu. Imediatamente. Não repreendeu o
menino. Em vez disso, guardava aquelas palavras em seu coração
(Lc. 2, 51).

33
felicidade. Depois de haverem criado o céu e a terra,
criaram as plantas, os animais e finalmente o homem.
Então disseram entre si: "Façamos o homem à nossa
imagem e semelhança. Ele poderá crescer, desenvolver-
se, chegar à contemplação, alimentar-se da árvore da
vida e ser um espelho daquilo que nós somos. E quando
assim o fizer, compartilharemos com ele a nossa
felicidade".

Vendo, porém, que os homens não o haviam


entendido e haviam enlouquecido, o Pai enviou seu Filho
ao mundo: "Meu filho, toma carne humana, vai falar
com os homens como um deles. Convida-os por meio de
um amor ao modo humano. Faze-os entender, por meio
de tua humanidade. Através de ti, eu mesmo os amarei.
Dize-lhes que tu os amaste como Eu te amei". E foi
precisamente isto que Jesus veio nos dizer, como lemos
no Novo Testamento: "Assim como o Pai me amou,
assim também eu vos amei. Dou-vos um novo
mandamento, que vos ameis uns aos outros como eu vos
amei. Eu vos amei com o amor com que o Pai me amou.
E quero que o mundo conheça que o Pai vos amou como
Ele me amou" (Jo. 17, 23).

"Não vos convido", diz Jesus, "a participar desta


vida, que é apenas passageira. A verdadeira vida, a
vossa verdadeira Pátria, não será este país onde
nascestes, mas a Santíssima Trindade, onde renascereis.
Quero que chegueis até lá conduzidos por mim. Fiz-me
homem para conduzir-vos por mão humana, pelo modo
como o fazeis entre vós".

E agora seria importantíssimo que percebêssemos


que tudo isto é precisamente o que está acontecendo
quando aprendemos a rezar como Jesus ensinou.

34
É assim que Jesus nos ensinou a rezar (Mt. 6, 6):
"Primeiro entra no quarto. Depois fecha a porta, em
seguida vai para um lugar escondido dentro deste
quarto. Quando terás feito tudo isto, o Pai te verá e te
dará uma recompensa. Em seguida, assim rezarás: 'Pai
nosso, que estais no céu, santificado seja o teu nome,
venha o teu Reino, faça-se a tua vontade, como no céu,
assim na terra'", e segue a oração do Pai Nosso que todos
conhecemos. Foi Jesus quem ensinou este modo de rezar.
Apesar de sua aparente simplicidade, ele é tão
extraordinariamente profundo que nós, que estamos
fazendo esta exposição, estamos pedindo a todos, desde o
primeiro momento em que nos conhecemos, que se
dirijam todos os dias a uma igreja ou a uma capela para
rezar, pelo menos por meia hora, deste modo.

Conforme já tivemos a oportunidade de explicar em


outras ocasiões, entrar no quarto, fechar a porta e ir para
um lugar escondido dentro do quarto, significa recolher-
se, crer em Cristo e amar a Cristo.

Ir para uma capela, recolher-se, crer em Cristo e


amar a Cristo são os primeiros passos. Jesus acrescenta
que, depois destes primeiros passos, se forem bem feitos,
receberemos uma recompensa. Esta recompensa é o
Espírito Santo, que é dado pelo Pai, aos que se unem, em
fé e amor, a seu Filho Jesus. É o Espírito Santo que nos
dará a inteligência para compreender quem é o Pai. E
então, em união com Cristo, podemos nos dirigir ao Pai e
rezar o Pai Nosso. É o que Jesus nos ensina. Primeiro
temos que entrar em uma capela interior, onde
recebemos o Espírito Santo, para depois rezar o Pai
Nosso. O que Jesus entende pelo quarto ou capela
interior é a união ao Verbo encarnado, a união com Cristo
em sua humanidade, na unidade da fé e do amor.

35
Para entender melhor o significado deste modo de
oração, é preciso compreender um de seus principais
pressupostos. Não foi apenas por um breve período de
poucos anos que, há dois mil anos, o Verbo se encarnou.
A fé nos ensina que Cristo continua até hoje unido à sua
natureza humana, por amor a nós, sem deixar de ser
Deus. Sua natureza humana está hipostaticamente unida
à natureza divina. "Hipóstase" em grego significa
"pessoa" [5]. Na pessoa do Verbo, em Cristo, uma
natureza humana encontra-se unida à natureza divina. É
por causa desta união hipostática, pela qual sua natureza
humana está unida à natureza divina que, por

____________________________________________________________________

[5] O significado dos termos "hipóstase" e "união hipostática"


pode ser entendido através da história da palavra. Cinco séculos
antes de Cristo, a palavra grega "hipóstase" significava,
literalmente, "aquilo que fica embaixo". Neste sentido, o lodo do
fundo de um rio era uma "hipóstase". O significado foi se
aprofundando com o tempo. No início da era cristã, a palavra
"hipóstase" já significava "a realidade individual que está
por trás daquilo que os olhos veem", ou seja, a realidade
individual (por contraposição à natureza genérica), que cada coisa
de fato é. Durante o debate sobre a Santíssima Trindade, que
dominou a cristandade no século III, a palavra ganhou novos
aprofundamentos. "Hipóstase" passou a ser entendida
praticamente como sinônimo de "pessoa". Até aquela época a
palavra usada para "pessoa", em grego, era "prosopon", que
literalmente significava "face", "rosto" ou até mesmo
"máscara". Quando alguém queria saber quantas "pessoas"
havia em uma praça, perguntava quantas "faces" havia na praça.
Mas quando, no século III, os cristãos entenderam que o Pai, o Filho
e o Espírito Santo eram três "pessoas" distintas, compreenderam
também que não poderiam mais usar a palavra "prosopon", pois
os homens poderiam entender em que Deus haveria três
"máscaras" distintas. Por isso, em vez da palavra "prosopon",
passaram a usar a palavra "hipóstase". Deste modo, depois de
quase um milênio, a palavra que inicialmente significava "o lodo
do fundo de um rio", transformou-se primeiro na "realidade ...

36
consequência, onde Deus estiver, o Verbo Encarnado
também poderá agir como instrumento da divindade.
Santo Tomás de Aquino diz, na Summa contra Gentiles,
que, em virtude da união hipostática, a natureza humana
está em Cristo mais intimamente unida à natureza divina
do que em nós a alma está unida ao corpo, que era, antes
da união hipostática, a mais perfeita união entre todas as
que existiam na criação. Esta afirmação está no Capítulo
41 da Quarta Parte da Summa contra Gentiles [6]. Ali
Santo Tomás de Aquino diz que, para que possamos
entender algo do mistério da Encarnação, devemos partir
da consideração de como as coisas se unem na natureza.
Assim, quando queremos prender um prego na parede,
tomamos um martelo e fixamos o prego. A mão se une ao
___________________________________________
... que cada coisa é" para, finalmente, tornar-se sinônimo de
"pessoa" e, de modo especial, de uma "pessoa" da Santíssima
Trindade. Passou-se a dizer que em Deus havia "três pessoas e
uma substância" ou, em grego, "três hipóstases e uma
ousia". Por último, cerca de duzentos anos mais tarde, no século V,
o termo "união hipostática" passou a significar a união entre a
natureza humana e divina na "hipóstase" ou pessoa do Verbo.

[6] Assim a expressa S. Tomás de Aquino: "Embora esta união


[hipostática] não possa ser perfeitamente explicada pelo homem,
todavia segundo nossa capacidade podemos tentar dizer algo a
respeito. Em todas as coisas criadas nada se encontra tão
semelhante a esta união como a união da alma ao corpo.Por
causa da semelhança entre ambas as uniões é que diz Santo
Atanásio: 'Assim como a alma racional e a carne é um só
homem, assim Deus e o homem é um só Cristo'. A alma
racional, porém, [segundo um aspecto], se une ao corpo como
matéria e, [segundo outro aspecto], como instrumento. Quanto à
união como matéria, não pode haver semelhança entre a união do
corpo e da alma no homem e a união da natureza humana e divina
em Cristo. Portanto, a semelhança deve ser considerada
apenas segundo que a alma se une ao corpo como a um ...

37
martelo, mas é uma união circunstancial e temporária.
Na natureza há outras coisas mais bem unidas entre si do
que uma mão e um martelo. Entre todas as coisas que
estão unidas entre si, o que há de mais perfeitamente
unido a outro, naquela que é a verdadeira obra prima de
união, é a alma humana em sua união com o corpo. Onde
houver um corpo vivo, ali estará uma alma, que utiliza
seu corpo muito mais sofisticadamente do que a mão que
se utiliza do martelo. Nesta linha, ao unir a natureza
humana e a divina em Cristo, Deus se superou a si mesmo
na obra da Criação. Na união hipostática, o Senhor uniu
algo mais perfeitamente a outro do que, no homem, a
alma está unida ao corpo. Aquela natureza humana,
_______________________________________
... instrumento. Os antigos doutores já concordavam que em
Cristo a natureza humana é como um órgão da divindade, assim
como o corpo é um órgão da alma. Mas o corpo e suas partes são
instrumentos da alma diversamente de como o podem ser os
instrumentos exteriores. Um martelo, de fato, não é um
instrumento próprio, como o é a mão do homem. Muitas [pessoas
diversas] podem usar o martelo, mas a mão só pode ser utilizada
pela operação própria de uma determinada alma. Por este motivo,
a mão é dita um órgão unido e próprio, enquanto que o
martelo é dito um instrumento extrínseco e comum.

O mesmo pode ser considerado na união entre Deus e o homem


[em Cristo]. Todos os homens se comparam a Deus como
instrumentos pelos quais Deus opera. Mas os outros homens se
equiparam a Deus como instrumentos extrínsecos e separados: são
movidos por Deus, não às operações próprias apenas de Deus, mas
às operações comuns de toda natureza racional, como são o
inteligir a verdade, amar o bem e operar o justo. Mas a natureza
humana em Cristo foi assumida para que opere instrumentalmente
coisas que são próprias apenas de Deus, como são o perdoar os
pecados, iluminar as mentes pela graça e introduzi-los na perfeição
da vida eterna. Portanto, a natureza humana de Cristo,
compara-se a Deus como um instrumento próprio e unido,
como a mão é instrumento da alma" (S. Thomae Aquinatis: Summa
contra Gentiles, Liber IV, Caput XLI).

38
concebida pelo Espírito Santo no ventre da Virgem Maria,
uniu-se à natureza divina muito mais perfeitamente do
que nossa alma ao nosso corpo.

Uma das razões por que Deus realizou este prodígio


depende do fato de que Deus está em todo lugar. Diz o
Evangelho que não cai um fio de cabelo de nossa cabeça
sem que o Pai o permita. É possível entender que Deus
esteja em todo lugar porque, ao criar o mundo, Deus não
teria podido dar à criatura o poder de continuar existindo
autonomamente, por si mesma. Existir por si mesmo,
independentemente de qualquer causa externa, é atributo
que somente a Deus pertence. Só o Senhor é "Aquele que
é", e somente Ele tem este nome. Os demais entes
somente "são" porque há um Outro que é "Aquele que é".
O mundo criado necessita que Deus o sustente na
existência, não só no momento em que é criado do nada,
mas também para continuar existindo, após ter sido
criado. É por este motivo, e é neste sentido, diz S. Tomás
de Aquino, que Deus está presente em todas as coisas.
Deus está presente em todos os entes, na medida em que
sustenta ininterruptamente todos os entes na existência.

Mas segue-se daí que, se Deus está presente em


todas as coisas porque as sustenta no ser, e se a natureza
humana de Cristo está mais unida à divina do que nosso
corpo está unido à nossa alma, então onde Deus está, o
Verbo Encarnado também pode agir como instrumento
da divindade, se assim o quiser, e muito mais
perfeitamente do que nossa alma pode agir
sobre nosso corpo. E, de fato, sabemos pelas Sagradas
Escrituras que é isto o que acontece quando cremos em
Cristo. Na Epístola aos Gálatas, São Paulo diz que Cristo
vive nele "por causa da fé que o Apóstolo tem no Filho de
Deus" (Gal. 2, 20). E S. Tomás de Aquino diz, na Terceira

39
Parte da Summa Theologiae, que quando cremos, neste
momento Cristo, em sua natureza humana, age em nós
como causa eficiente instrumental da graça. "A paixão de
Cristo", diz Santo Tomás, "pela divindade que está a si
unida, possui uma virtude espiritual cuja eficácia tem
sua origem no contato espiritual que se dá pela fé, e
pelos sacramentos da fé" (ST, IIIa. 48 a.6 ad 2). É por
isto que Jesus dizia, inúmeras vezes, aos que concedia um
milagre: "Filho, a tua fé te salvou". E é por isso que São
Paulo também diz, na Epístola aos Romanos: "O
Evangelho que eu ensino é uma força de Deus que age
sobre aqueles que creem" (Rom. 1, 17). Esta força nos
chega através do Verbo Encarnado: "Nele estava a vida, e
a vida era a luz dos homens" (Jo. 1, 4).

É por isto que, quando nos recolhemos para rezar,


Jesus diz que Deus Pai nos vê, em nossa união com
Cristo. Entrar no quarto, trancar a porta e dirigir-se ao
lugar escondido é a primeira parte do modo de rezar que
Jesus nos ensinou. Por ela se dá uma união real com
Cristo, através da fé e do amor. E daí nos vem a
recompensa que é mencionada, que é o Espírito Santo.

Entrar no quarto significa recolher-se.


Esquecer inteiramente do mundo. Morrer para o mundo,
dirigir nossa atenção inteiramente para as coisas do alto.

Fechar a porta significa crer em Cristo.


Poderia ser, também, crer no que Deus nos revela.
Sempre que cremos, a fé não pode dar-se sem o auxílio de
uma luz que vem do alto. Sabemos, portanto, que no
momento em que cremos, podemos ter a certeza de estar
sendo iluminados por uma luz que nos vem através da
humanidade de Cristo. Portanto, ao crer em Deus,
estamos em contato espiritual com Cristo. "Nele estava a

40
vida", diz São João no Evangelho, "e a vida era a luz do
dos homens, e a luz brilha nas trevas", isto é, no coração
dos homens, "mas as trevas não a receberam" (Jo. 1, 3-
4). "Era a luz verdadeira, que ilumina todo homem,
vinda ao mundo" (Jo. 1, 9). "A todos, porém, que o
receberam, deu-lhes a autoridade se de tornarem filhos
de Deus", isto é, "aos que creem em seu nome" (Jo. 1, 12).
Quando nós cremos em ato, isto é, em atual exercício, e
não apenas porque cremos em algum momento do
passado, o Novo Testamento nos ensina que, certamente,
neste momento, uma luz nos está iluminando e estamos
realmente em contato com Cristo. Isto dá ao exercício da
fé uma importância extraordinária para que possa, em
nós, desenvolver-se a verdadeira vida. Quando os judeus
perguntaram a Cristo: " 'Que faremos para trabalhar a
obra de Deus?', respondeu-lhes Jesus: 'Esta é a obra de
Deus, que creiais naquele que Ele enviou' " (Jo. 6, 29). E
Jesus disse também: "Deus amou tanto o mundo, que lhe
deu o seu Filho unigênito, para que todo o que crê nEle
não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo. 3, 16). Crer é
algo realmente extraordinário. "A verdadeira vida se
inicia pela fé", diz Santo Inácio de Antioquia na Carta
aos Efésios (Ef. 14, 1), "aperfeiçoa-se pelo amor e,
quando ambas estas coisas se transformam em unidade,
são o próprio Deus", que passa a estar em nosso espírito
de um modo mais sublime do que apenas pela obra da
criação.

Assim, no momento em que, pelo recolhimento,


entramos na capela interior e cremos, estamos recebendo
uma visita de Cristo, como também ocorre, embora de
outro modo, quando o recebemos na Eucaristia. É
exatamente o que diz São Paulo, na Epístola aos
Romanos: "O Evangelho que eu ensino é uma força de
Deus que age sobre aqueles que creem" (Rom. 1, 17). O

41
contato espiritual com Cristo se dá, diz S. Tomás de
Aquino, "pela fé, e pelos sacramentos da fé" (ST, IIIa. 48
a.6 ad 2).

O segundo modo descrito por S. Tomás de Aquino,


pelo qual é possível o contato com Cristo, é através da
Eucaristia, que é o principal sacramento da fé. Há dois
modos, diz Santo Tomás de Aquino, pelos quais Cristo
pode agir em nós, através de sua humanidade, como
causa eficiente da graça: "pela fé, e pelos sacramentos da
fé", e este segundo modo, "pelos sacramentos da fé",
significa, principalmente, pela Eucaristia.

No que diz respeito ao primeiro modo, que é o que


se dá na oração, quando nos recolhemos e, neste
recolhimento, exercemos a fé em ato, podemos ter certeza
que recebemos a visita de Cristo. E, portanto, o que
devemos fazer em seguida é o mesmo que fazemos
quando recebemos a Eucaristia. É o momento de
amar a Cristo. É isto o que significa dirigir-se
para um lugar escondido, dentro do quarto.
Amar, segundo Tomás de Aquino, significa querer
unir-se a quem amamos (ST, IIa IIae, 82 a.2 ad 1). O
amor produz a experiência de uma união real com Cristo,
com o mesmo Cristo que já estava ali presente pela fé.
Este amor já é o principal fruto do Espírito Santo,
enumerados na Epístola aos Gálatas 5, 22.

Estas três coisas, isto é, entrar no quarto,


fechar a porta e dirigir-se ao lugar escondido,
são a primeira parte da oração que Jesus nos
ensinou. Elas têm como finalidade produzir a
união pela fé e amor ao Verbo Encarnado. O
entrar no quarto, fechar a porta e ir para o lugar
escondido é a comunhão com Cristo, o que também se dá

42
quando recebemos a Eucaristia. Assim como na oração,
antes da comunhão será necessário que nos esqueçamos
do mundo, porque senão não estaríamos recebendo
dignamente a Eucaristia. Cremos também que na
Eucaristia estamos recebendo a Cristo. E o amamos,
quando nos recolhemos com ele, após receber o pão
consagrado, enquanto permanecem em nós as espécies
eucarísticas. Ao fazermos tudo isto bem feito, a própria
Eucaristia nos conduz ao amor em ato (ST, IIIa 79
a.1 ad 2). É ao que também deveria conduzir-nos a
oração.

Na oração, depois de entrar no quarto, fechar a


porta e dirigir-se ao lugar escondido, o próprio Cristo nos
dirá, com o auxílio do Espírito Santo, o que já nos havia
ensinado pelas Sagradas Escrituras: "Meu querido
irmão, quero explicar-te algo mais profundo. Eu sou
Jesus. Tenho natureza humana, mas não sou uma
pessoa humana. Sou Deus. Sou uma das pessoas da
Trindade. Habito na Trindade, onde hoje, inclusive
corporalmente, estou sentado à direita do Pai. Gostaria
que pudesses entrar e contemplar o que acontece no
interior da Trindade. É o lugar onde será a tua
verdadeira casa, quero apresentá-la para ti".

"Aquilo em que Santo Agostinho tanto meditou,


que deu tanto trabalho para São Gregório de Nissa, que
São João Damasceno reuniu com tanto rigor e
paciência, que fez os vitorinos derramarem rios de tinta,
aquilo em que Santo Tomás de Aquino tanto se esforçou
por penetrar, Eu agora gostaria que tu o
experimentasses presencialmente. Já que agora estás
unido a mim na capela interior, lembras-te do que um
dia falei a Felipe? 'Felipe, quem me vê, vê o Pai'.
Então eu vou te mostrar agora o Pai, o nosso Pai, que

43
agora é meu e é também teu. É o Pai nosso. Vamos
dirigir-nos a Ele, através de mim. Tu agora, no spírito
Santo, estás escondido com Cristo em Deus".

"'Pai Nosso que estás nos Céus'. Estes céus são


a Santíssima Trindade. É o lugar onde Deus Pai está
desde toda eternidade. A Trindade é o Seu ambiente, é a
Sua casa. O Pai, o Filho e o Espírito Santo são o amor
infinito que não acaba nunca. Qualquer amor que tu
tenhas tido por tua esposa, por teu filho e até o amor que
podes ter tido por Deus é uma gota d'água no oceano,
diante do amor que existe na Trindade. E eu, Jesus,
estou te convidando para, pouco a pouco, experimentar-
lhe o sabor".

"Quero então que a primeira coisa que faças, ao te


dirigires ao Pai, seja exatamente aquilo que as pessoas
da Trindade fazem nos céus desde toda a eternidade.
Amamos o Pai e O agradecemos por ter gerado o seu
Filho e, dEle e de mim, ter procedido o Espírito Santo,
que completa nossa unidade. Eu e o Espírito Santo
somos Deus porque procedemos do Pai. Ele não nos
criou e nunca não existimos para depois termos existido.
Nós somos pessoas por uma relação eterna, mas são
relações de pai e filho e de filho e pai. Assim como tu
amas o teu pai, eu também amo o Pai, mas mesmo que o
teu pai fosse o melhor pai do mundo, tu nunca o terás
amado como eu amo meu Pai ou como o Espírito Santo
o ama. E tudo o que existe no universo somente foi feito
porque, desde toda a eternidade, Deus Pai tem-me
gerado".

"Eu, o Verbo Encarnado, que estou falando


contigo, estou-te convidando a agradeceres ao Pai pela
sua verdadeira obra prima. Dize-lhe: 'Pai,

44
santificado seja o teu nome'. Nós o estamos
agradecendo em primeiro lugar, pela geração do Verbo,
por ser Pai. Ao fazeres isto, irás pouco a pouco
entendendo quem é o Pai".

O Pai, diz Santo Tomás de Aquino, é princípio da


Trindade (ST, Ia. 33 a.1).

São João Damasceno usava uma palavra mais forte


para expressar esta verdade. Ele dizia que o Pai é 'causa'
da Trindade. Santo Tomás de Aquino comenta que no
oriente, quando se fala de 'causa', a palavra não tem
alguma das conotações que lhe damos quando no
ocidente falamos de 'causa'. Então, continua S. Tomás de
Aquino, não convém repetir no ocidente que Deus Pai é
'causa' da Trindade, porque no oriente a palavra é
entendida corretamente, mas no ocidente não seria
assim. Então seria mais correto, no ocidente, dizer que o
Pai é 'princípio' da Trindade. 'Princípio' refletiria melhor
o que S. João Damasceno queria dizer. A palavra grega
para 'causa' é 'aitía'. Em grego 'causa' se diz 'aitia'. Em
português, para a maioria de nós, a palavra 'aitia' não
parece significar muita coisa. Há muitas palavras gregas
que são perfeitamente entendidas pelos ocidentais. Por
exemplo, 'biologia', 'telegrama', 'presbítero', 'apatia',
'esclerose', 'hipocrisia', 'cinema', 'democracia',
'hipódromo', 'terapia', 'política', 'economia', 'igreja',
'arquidiocese', 'polêmica', 'estratégia', "autocrítica",
todas estas são palavras gregas que passaram para a
língua latina e portuguesa, e todos nós as
compreendemos bem, apesar de serem palavras da língua
grega. Mas a palavra 'aitia' é por nós quase desconhecida.
Poucos a entenderiam. Não lhe conhecemos
corretamente o significado. Traduzi-la por 'causa', que é
o seu significado mais próximo, poderia levar a

45
confusões. São João Damasceno diz, no livro 'A Fé
Ortodoxa', que Deus Pai é a 'aitia' da Trindade. Mas a
palavra 'aitia' não significa exatamente o mesmo, com
todas as suas nuances, que a nossa palavra 'causa'. Então,
se a usássemos no ocidente, poderíamos entender
erroneamente o que no oriente é entendido corretamente.
Portanto, diz S. Tomás de Aquino, é melhor dizer entre
nós que o Pai é 'princípio' da Trindade (ST, Ia 33 a.1 ad
1).

O fato do Pai ser "aitia", ou princípio, da Trindade,


nos ajuda a entender o que ocorre quando nos
escondemos naquela cela interior onde vivemos uma
união de fé e amor com Cristo em Deus e começamos a
rezar o Pai Nosso.

O que ocorre é que o Verbo Encarnado nos está


convidando àquele modo de amor de gratidão que há
entre o Verbo e o Pai no spírito Santo. O Filho e o Espírito
Santo têm um amor infinito de gratidão pelo Pai. Eles
estão, ao seu modo divino, repetindo desde toda a
eternidade: "Pai, santificado seja o teu nome". E eles nos
estão querendo ensinar a fazer o mesmo. Querem que nós
nos unamos a Eles em seu amor ao Pai.

Mas, depois de tê-lo feito, o Verbo Encarnado nos


ensina a pedir, já diretamente ao Pai, em união com
Cristo: "Venha o teu reino, seja feita a tua vontade".

Ao fazermos isto, estamos pedindo a Deus Pai que


Ele nos ensine a amar Jesus do modo como Ele, enquanto
Pai, também o ama. O Filho e o Espírito Santo querem
que nos unamos ao Pai em seu amor pelo Filho. Porque,
ao entrar na cela interior, quando nos recolhemos,
encontramos e amamos a Cristo, como nós o conhecemos

46
na terra, como um homem sábio e bondoso, muito unido
a Deus, que fazia milagres, que falava em nome de Deus e
que veio sofrer por nós. Mas, apesar de crermos que Ele
era Deus, o amamos ao modo como um homem ama
outro homem. É assim que Jesus nos ensinou a começar a
amá-Lo.

Mas no Pai Nosso nós estamos pedindo um amor


muito maior. Maravilhados com o que vemos no interior
da Santíssima Trindade, que é a vida íntima de Deus,
uma grande alegria toma conta de nós. Sabemos que na
Trindade nos está sendo oferecida uma morada para nós.
Esta é a casa de nosso Pai.

Não queremos mais, então, amar a Jesus apenas


como quando o conhecemos como homem, ainda que o
tivéssemos reconhecido como Deus. Queremos agora
amá-Lo como o Pai o amou desde toda a eternidade. Por
isto lhe pedimos que venha o seu Reino e seja feita
a sua vontade. A vontade do Pai é a que Ele teve desde
toda a eternidade. Ora, desde toda a eternidade, o Pai
nada mais quis a não ser amar eterna e infinitamente o
seu Filho e dar-lhe todo o seu ser e divindade. Isto é
também o que São Paulo diz, no primeiro capítulo da
Epístola aos Efésios, sobre qual é o "mistério da vontade
do Pai". Sua vontade, diz São Paulo, não é que façamos
tal ou qual coisa em específico. Em vez disso, São Paulo
diz: "Bendito seja o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus
Cristo, que nos deu a conhecer o mistério de sua
vontade, a de em Cristo recapitular todas as coisas, as
que estão nos céus e as que estão na terra" (Ef. 1, 9-10).
Esta recapitulação é aquela pela qual somos
transformados em nova criatura e que se realiza pela
união com Cristo em fé e amor. E isto é também o que o
Pai expressou ao manifestar-se após a transfiguração:

47
"Este é o meu Filho amado, ouvi-o" (Mc. 9, 7).

Trata-se de um amor que não segue um modelo


humano, mas o Trinitário. Um amor que, na prática, é
aprendido por nós aos poucos, como o raiar da luz do dia.
Aqueles que se casam e aprendem a amar o marido ou a
esposa como Cristo amou a Igreja, pouco a pouco
começam a entender como Jesus nos ama. Mas também,
pouco a pouco, em seguida, aprendem que este amor vem
de mais acima, é o amor com que o Verbo foi amado pelo
Pai. E, ao nos acostumarmos a rezar o Pai Nosso na cela
interior, como Jesus no-lo ensina, pouco a pouco,
também, vamos nos rendendo a outra evidência. Aquele
amor que existe no interior da Trindade é o verdadeiro
amor. Havíamos pensado que o maior amor fosse aquele
que vivemos na Eucaristia, mas há outro muito maior. O
maior amor que jamais existiu é o amor pelo qual o Verbo
é amado pelo Pai no interior da Santíssima Trindade.
Eterno, infinito e sem economias. A mais plena unidade,
ainda maior que a da união hipostática. E o Senhor quer
partilhar conosco este amor. E não é apenas Deus que o
quer, pois também nós passamos a querer partilhar com
todos o conhecimento deste amor, para que a vontade do
Pai seja feita "como no céu, também sobre a terra",
como está escrito no Pai Nosso. É com este sentido e com
este desejo que temos que ir aprendendo a rezar o Pai
Nosso. O Pai Nosso contém todas as coisas que devemos
desejar e estabelecer como as grandes metas de nossa
vida, para nos tornarmos dignos de partilhar do
consórcio com a vida divina.

Mais ainda. Enquanto não aprendermos a rezar


deste modo, também não entenderemos verdadeiramente
o que seja a missa.

48
Porque o que vemos na missa é que o próprio Jesus,
no momento da Consagração, está se oferecendo ao Pai.

Jesus é o Cordeiro imolado. Esta expressão evoca o


sacrifício do cordeiro pascal que Moisés havia prescrito
que se realizasse todo ano, durante a Páscoa. O cordeiro
pascal deveria ser morto derramando todo o seu sangue e
sem que lhe fosse quebrado nenhum osso. Na sexta feira
da Páscoa da Paixão, Jesus foi morto desta mesma
maneira. O seu sangue foi todo derramado e não lhe foi
quebrado nenhum osso, ao contrário dos ladrões que
haviam sido crucificados ao seu lado. Na Páscoa daquele
ano, Jesus foi o Cordeiro de Deus.

Assim também, no momento central da missa,


durante a consagração, primeiramente o pão se
transubstancia no corpo de Cristo. Permanece o aspecto
do pão, mas a substância do pão se converte no corpo de
Cristo. Como, porém, o corpo de Cristo está realmente
unido ao seu sangue, à sua alma e à sua divindade, apesar
da transformação ser apenas do pão para o corpo de
Cristo, realizada a transubstanciação, não só o corpo
estará contido sob as aparências do pão, mas também seu
sangue, alma e divindade.

Em seguida, o vinho transubstancia-se no sangue de


Cristo. Permanece o aspecto do vinho, mas a substância
do vinho se converte no sangue de Cristo. Como, porém,
o sangue de Cristo está realmente unido ao seu corpo, à
sua alma e à sua divindade, apesar da mudança se dar
apenas do vinho para o sangue de Cristo, realizada a
transubstanciação, não só o sangue estará contido sob as
aparências do vinho, mas também seu corpo, alma e
divindade.

49
Terminada a consagração, temos na patena o pão
que se transubstanciou no corpo de Cristo e, no cálice, o
vinho que se transubstanciou no sangue de Cristo. Cristo
se mostra, diante de nossos olhos, no mesmo estado em
que se encontrava o cordeiro pascal, imolado todo ano
pelos judeus, e no mesmo estado também em que se
encontrava Jesus, quando morreu na cruz. O sangue de
Cristo mostra-se como derramado e recolhido
separadamente no cálice. Sem que desta vez ele tivesse
sido realmente morto novamente, o próprio Cristo, que
opera a transubstanciação, renova, através destes
símbolos incruentos, a sua imolação ao Pai.

Seu sacrifício, em primeiro lugar, foi em reparação


ao Pai. Desde a eternidade, a Segunda Pessoa via como os
homens haviam caído no pecado e na loucura espiritual.
Via como os homens se cegaram e não reconheceram a
grandeza da criação e da graça, pela qual Deus quis fazer-
nos participar de sua própria vida. Em vez disso, caímos
na imoralidade, na pornografia, no ódio, nos desejos da
carne, na dissipação com o mundo visível e em ambições
ilusórias.

E Cristo, sendo a Segunda Pessoa da Santíssima


Trindade, entendeu mais do que ninguém as injustiças e a
bestialidade que os homens estavam e continuam
fazendo. Pela infinita gratidão e amor que tinha pelo Pai,
fez-se homem para oferecer-lhe, em sua Paixão,
reparação por tão gigantesca demência. Na missa Cristo
continua repetindo a mesma oferta, e pede que nós
possamos dela participar. A nós Ele nos pede que,
naquele momento, nos ofereçamos com Ele ao Pai e
abandonemos nossas loucuras e desvarios. Tal como os
judeus, nós também não sabemos o que fazemos, não
temos a mínima ideia das verdadeiras proporções da

50
loucura em que mergulhamos e do grau de injustiça que
isto representa.

É por isto que, terminada a consagração, o


sacerdote diz estas palavras: "Por Cristo, com Cristo e em
Cristo, a vós Deus Pai todo Poderoso, na unidade do
Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e
para sempre". Este Pai todo poderoso é, em primeiro
lugar, a Primeira Pessoa da Santíssima Trindade. É na
Santíssima Trindade, na unidade do Espírito Santo, que
estamos nos unindo a Cristo para reparar as maldades
que nós e os demais homens estamos perpretando. Não
fomos criados para a bestialidade que vemos neste
mundo. Fomos criados para a santidade.

Depois da consagração, somos exortados a rezar,


pelo próprio rito da missa, o Pai Nosso. Muitos de nós,
quando ouvimos isto, não entendemos qual é o papel do
Pai Nosso naquele momento. O Pai Nosso, certamente, é
uma bela oração, mas o que ela está fazendo, inserida
naquele ponto da Liturgia? Não haveria outra oração
mais apropriada para ser rezada naquele momento?
Afinal, quando Jesus ensinou o Pai Nosso, não estava
celebrando uma missa, nem consta que durante sua
Paixão tenha rezado o Pai Nosso. Estas perguntas
perdem sentido e se desvanecem se tivermos entendido e
vivido o que foi aqui exposto. Será fácil compreender que
não haverá lugar melhor, nem mais apropriado, para
rezarmos o Pai Nosso do que na missa, após a
consagração. Na verdade, terá sido a cela interior e o Pai
Nosso que nos terão preparado para entender exatamente
o que se passa durante a missa. O que fazemos na cela
interior quando nos unimos a Cristo e, em seguida, junto
com Cristo, através do Espírito Santo, nos associamos à
gratidão que a Segunda Pessoa demonstra eternamente

51
ao Pai na Santíssima Trindade, é exatamente o que está
acontecendo durante a missa.

Enquanto não conseguirmos entrar na cela interior


e, depois de ter alcançado a intimidade com Cristo, não
mergulharmos no interior da vida da Santíssima
Trindade através do Pai Nosso, dificilmente
entenderemos o que estará acontecendo na missa, mesmo
se tivéssemos sido ordenados sacerdotes.

E, em seguida, vem o mais maravilhoso. É o


momento da Eucaristia, onde o Pai nos oferece uma
oportunidade de receber aquilo que lhe havíamos pedido
no Pai Nosso. Durante a Eucaristia sucede como se Deus
Pai nos estivesse dizendo: "Se quiseres realmente
aprender a amar a Cristo como eu o amei, o momento é
agora. Vou conceder-te a oportunidade de estares junto
com meu Filho, mas de um modo mais profundo do que
quando apenas rezavas na cela interior junto com Ele".

Então, assim como aprendemos a rezar através do


exemplo da Eucaristia, agora é o momento de aprender a
receber a Eucaristia através do que aprendemos na
oração. Quando comungamos deveríamos seguir o
mesmo roteiro que Jesus nos ensinou na cela interior.
Primeiro nos recolhemos no silêncio. Segundo, cremos
com a luz de que fala o Evangelho de São João, que
estamos recebendo a visita de Cristo, e de um modo mais
real do que na oração. Em seguida, o amamos
profundamente, querendo unir-nos definitivamente a
Ele, para sempre, em fé e amor. A Eucaristia, diz S.
Tomás de Aquino na Summa Theologiae, "tem como
efeito levar o amor ao ato" (ST, IIIa 79 a.1 ad 2). Isto é a
própria graça que nela está contida. É Deus Pai que nos
oferece a oportunidade de experimentar, dentro das

52
possibilidades de nossa vida espiritual, amar a Cristo
como Ele mesmo O amou. Ele O amou através do Espírito
Santo [7].

É experiência comum, nos que comungam com as


devidas disposições, que a Eucaristia produz uma
expressão de amor que não alcançaríamos de nenhum
outro modo, em nenhum outro momento, e de modo
irrepetível fora dela. Esta expressão de amor é o Espírito
Santo. O Espírito Santo é uma expressão do amor com
que o Pai ama o Filho. O Espírito Santo não é o amor de
Deus, assim como o Verbo não é a inteligência divina. O
amor e a inteligência divinas, assim como também seu
poder e sua existência, coisas que em nós são distintas,
em Deus são o mesmo que a essência divina, comum às
três pessoas. O Verbo não é a inteligência divina, mas
uma expressão da inteligência pela qual o Pai se conhece
a si mesmo, uma imagem do Pai. O Espírito Santo é uma
expressão do amor do Pai pelo Filho, como se o Pai, não
contente em apenas amar o Filho, quisesse demonstrar-
lhe este amor através de algo que fosse análogo a um
beijo, um abraço ou alguma outra expressão especial,
como nós também fazemos em certos momentos quando
amamos muito a alguém e queremos demonstrar-lhe este
amor de uma maneira especial. Em Deus, porém, esta
expressão é eterna e infinita em grandeza, e não pode ser
senão da mesma substância que o Pai e o Filho. É o
Espírito Santo, pelo qual o Pai manifesta ao Filho seu
amor infinito.
____________________________________________________________________

[7] Assim como no Pai Nosso, na Eucaristia acontece algo


semelhante e, em certo modo, mais profundo, ao que aconteceu
durante a transfiguração, quando Deus Pai apresenta seu Filho aos
homens, e lhes diz: "Este é meu Filho amado, ouvi-o" (Mc. 9,7).
Na Eucaristia o Pai nos pede para amá-lo e, de certo modo, somos
também transfigurados junto com Ele.

53
A Eucaristia, ao levar o amor a um ato de que
percebemos, pela própria experiência, sua
irrepetibilidade fora dela, nos está concedendo uma
primeira experiência do Espírito Santo, pelo qual o Pai
ama o Filho, um aperitivo dos rios de água viva que nos
levarão, um dia, à contemplação. Santo Inácio de
Antioquia dizia, nos primeiríssimos anos do cristianismo,
que a Eucaristia era o "fármaco da imortalidade" (Ef. 20,
2). A força da expressão provinha da realidade da
experiência. Através dela o Senhor nos está ensinando a
amar a Cristo como o Pai o amou, na unidade do Espírito
Santo.

Quando, na missa, nos unimos a Cristo, no


momento da consagração, esta é a oferta que nos é
pedida: que nossa união com Cristo seja para sempre a
nova e eterna aliança. O Pai nos pede para amar seu
Filho com o amor eterno com que Ele mesmo o amou.
Para isto é preciso crucificar, em união com a oferta que
Cristo faz de si mesmo na consagração, todas as nossas
paixões, nossa curiosidade e nosso orgulho. Sem isto, diz
São João, "o amor do Pai não pode estar em nós" (I Jo. 2,
15). Entende-se facilmente ser esta a vontade do Pai,
porque amar o Verbo é o que o Pai sempre fez e nada
mais quis desde toda a eternidade.

É isto também o que significam as palavras do Pai


Nosso quando dizemos "seja feita a tua vontade". "Este é
o mistério de sua vontade", diz S. Paulo: "recapitular em
Cristo todas as coisas, as que estão nos céus e as que
estão na terra" (Ef. 1, 10) É o que ocorre na Eucaristia,
quando, pela graça que está nela contida, o sacramento
produz como seu efeito "levar o amor ao ato" (ST. IIIa,
79 a.1 ad2). É um aperitivo do Espírito Santo, dos "rios
de água viva que serão dados aos que creem em Cristo"

54
(Jo. 7, 38), que nos faz crescer na esperança da revelação
de Cristo.

E, através da Eucaristia, não só o Pai nos concede


ama a Cristo como o amor com que Ele O amou, mas o
Pai quer também nos amar como amou a Cristo. Este é o
motivo pelo qual Jesus diz que "nos deu a conhecer o
nome do Pai e no-Lo dará a conhecer mais ainda, para
que o amor com que o Pai O amou esteja em nós e Ele
mesmo esteja em nós" (Jo. 17, 26).

Mas, se nos unimos assim a Cristo na Eucaristia,


convém lembrar novamente o que Jesus disse ao
Apóstolo: "Felipe, quem me vê vê o Pai. Não crês que eu
estou no Pai e o Pai está em mim?" (Jo. 14, 9-10).
Portanto, estamos sendo novamente convidados a entrar,
na Santíssima Trindade, tal como acontece no Pai Nosso,
e a amar o Pai, junto com Cristo, na unidade do Espírito
Santo.

Todas estas coisas devem ser aprendidas com o


objetivo de ser vividas, não de produzir um discurso.
Poderiam produzir uma tese de Teologia, mas esta não é
para isto que foram escritas. A Teologia, diz Santo
Alberto Magno, o professor de Santo Tomás de Aquino, é
uma "ciência que deve conduzir à eusebéia" (S. Alberto
Magno, Summa Theologiae Tract. I, Q. II). E Santo
Tomás de Aquino diria: "não só à eusebéia, mas também
a Cristo, que é o caminho pelo qual o homem vai ao Pai"
(ST, Ia Q.2). São Paulo diria que entre a sentença de
Santo Alberto e a de Santo Tomás não haveria tanta
diferença. No fundo, ambas são o mesmo. Conduzir à
eusebéia e conduzir a Cristo são a mesma meta. De fato, é
o que diz São Paulo na Primeira Epístola a Timóteo:
"Este é o mistério da eusebéia: foi manifestado na carne,

55
justificado no Espírito, contemplado pelos anjos,
proclamado às nações, crido no mundo, exaltado na
glória" (I Tim. 3,16). E logo em seguida acrescenta: "Se
alguém ensina diversamente, não se aproximando com
palavras sadias, as de Nosso Senhor Jesus Cristo, e com
um ensinamento que não conduz à eusebéia, é um
alienado que nada entendeu" (I Tim. 6, 3-4) [8].

A tese de Teologia que queremos produzir deveria


conduzí-los à oração e à experiência destas realidades. Se
esta exposição que estamos fazendo for uma tese, seu
objetivo será incentivá-los à oração e à experiência destas
realidades. Se estiverem em estado de graça, não
conseguirem experimentar tudo isto imediatamente na
primeira vez, devem saber que é assim que as coisas se
dão. Não acontecem todas de imediato e logo na primeira
vez. Temos que meditar nesta exposição,
simultaneamente com a palavra de Cristo, contida no
Novo Testamento, para aprendermos diretamente com
Ele, como, desde os primórdios do Cristianismo, nos
ensinaram os Apóstolos. Se meditarmos o Novo
Testamento com atenção, como quem busca um tesouro
escondido, pouco a pouco, com o passar das semanas e
dos meses, começaremos a entender como tudo o que
aqui está exposto está explicado no Novo Testamento.
Depois vieram os Santos Padres, trabalhando como em
uma grande orquestra, tentando tornar tudo isto claro
____________________________________________________________________________

[8] "Eusebéia" é uma palavra grega usada no Novo Testamento


que, traduzida para o latim ou o português, corresponderia à
palavra "piedade". Mas seu significado seria mais bem entendido
pelo homem moderno se disséssemos que é a oração do homem que
"não está longe do Reino de Deus", segundo a expressão
utilizada por Cristo, no Evangelho de Marcos, ao falar com um
escriba sobre o primeiro mandamento (Mc. 12, 34).

56
para os homens. Santo Inácio de Antioquia, que
aprendeu dos próprios apóstolos; depois, São Gregório
Nisseno, Santo Agostinho, São João Damasceno, Hugo de
São Vitor, Ricardo de São Vitor, Santo Alberto Magno,que
foi o professor de Santo Tomás de Aquino, e o próprio
Santo Tomás de Aquino, escreveram para nos ajudar a
entender o que Jesus nos estava ensinando, assim
também como tantos outros que aqui não mencionamos,
não porque não houvesse outros, mas porque nesta
exposição nos concentramos principalmente nas questões
sobre a Santíssima Trindade.

Tenham, além disso, a certeza de que todos estes


santos, e outros tantos que houve na Igreja, viveram
mergulhados na união com Cristo e no consórcio com a
Santíssima Trindade que neles habitava. É isto que
estamos aprendendo a fazer quando comungamos e
rezamos.

E esta é, em definitivo, a única maneira de libertar


o mundo da Cultura da Morte. Se, sobre estas realidades,
pouco a pouco, começarmos a construir famílias
espirituais, que devem construir a base do tecido social
da Cidade de Deus, os que são casados começando pelas
suas famílias biológicas e sacramentais, estaremos
fazendo o que se realizou durante o primeiro milênio do
Cristianismo, quando derrotamos o paganismo por meio
daquela verdade pela qual Jesus nos fez pessoas
verdadeiramente livres. Só quem vive desta maneira, não
mais pela carne, mas pelo Espírito, é que é
verdadeiramente livre. Isto se dá por meio de uma outra
vida que não é a biológica, e é a única plena e verdadeira.
Trata-se verdadeiramente de uma outra realidade. Só um
povo que vive assim é que pode ser livre.

57
Moisés veio libertar o povo judeu da escravidão do
Faraó. Jesus veio nos libertar de algo muito mais
profundo. Nos primeiros séculos o cristianismo teve uma
ascensão prodigiosa. Cada geração, dizia Santo Agostinho
no De Vera Religione, tornava-se visivelmente mais cristã
que a geração anterior. O padrão inverteu-se a partir de
1300. Agora já se vão cerca de 700 anos desde que a
humanidade começou a pretender esquecer-se da obra da
Encarnação, e com isto estamos progressivamente caindo
no absurdo que estamos assistindo, a maioria de nós sem
entender claramente o que está acontecendo, nem por
que está acontecendo.

Recomendo novamente a leitura dos capítulos do


Tratado da Santíssima Trindade de Ricardo de São Vitor
que estão no fim desta exposição, e que usem desta
apresentação para aprenderem a rezar sempre mais
profundamente. Não deixem a prática da oração em
hipótese alguma. Aprendam a depor, no momento da
oração, todas as demais preocupações que tenham no dia
a dia. Quando começarmos a oração, o mundo deverá ter
morrido para nós. Pode demorar para adquirir a prática
de fazer isto, mas, pela perseverança, pouco a pouco,
realmente se aprende, e esta é uma das coisas mais
importantes a serem aprendidas na vida.

Há pessoas que quando ficam estressadas pensam


em fazer um cruzeiro marítimo pela Europa ou pelo
Caribe. Mas há um modo muito melhor de resolver o
mesmo problema. Temos que aprender, iniciando a
oração, a esquecer-nos completamente de tudo o mais.
Não importa o que esteja acontecendo, temos que
aprender a recolher-nos para um encontro com o Verbo
Encarnado pela fé, e a unirmo-nos a Ele pelo amor. Mais
extraordinário, porém, é que depois de entrarmos na cela

58
interior junto com Ele, Jesus nos pede também para rezar
o Pai Nosso. O Pai Nosso é o passaporte para a Trindade.
Muito melhor do que o passaporte para a Europa ou o
Caribe. É um passaporte para o modo de vida que existe
em Deus. Para o verdadeiro amor e a fonte de onde teve
origem o mundo.

Se fizermos isto hoje, amanhã será melhor, e depois


de amanhã será melhor ainda. No dia seguinte poderá
surgir alguma tribulação e talvez tenhamos um resultado
pior. Mas quando a tribulação acabar, se tivermos
perseverado, o fruto obtido voltará e se tornará melhor do
que antes.

O grande farol neste caminho é a Eucaristia. Se


aprendermos a comungar bem, temos em seguida que
aprender a rezar segundo a experiência que tivermos tido
na Eucaristia. Assim como o Pai Nosso, a Eucaristia foi
uma invenção genialíssima de Jesus Cristo. Um
monumento de genialidade. É o próprio Jesus que tenta
nos ensinar algo dificílimo para o ser humano decaído,
mas de que Ele conseguiu dar-nos o aperitivo. Este
aperitivo é a Eucaristia.

Tudo isto vem em um rito, pelo qual é celebrada a


missa, que tem uma semelhança extraordinária com o
Pai Nosso. Para constatá-lo, basta que prestem atenção
no que ali está sendo dito. O Pai Nosso é a própria
expressão do amor da segunda pessoa da Santíssima
Trindade pela primeira pessoa, no Espírito Santo, que é o
modo como isto ocorre dentro da Trindade, que também
é o modo como ocorre durante a missa. É exatamente por
isso que, depois da consagração e antes da comunhão,
rezamos o Pai Nosso na liturgia da missa. Não poderia
ser diferente. As coisas estão profundamente interligadas

59
e é impressionante a sabedoria que nelas existe. stas
coisas são invenção do Verbo Encarnado. Não foi uma
pessoa humana quem as inventou. Carregam a marca da
genialidade divina. Nem Santo Tomás de Aquino teria
inventado duas coisas como estas. Ele não conseguiria
escrever um Pai Nosso, nem conseguiria inventar a
missa.

Tudo isto vale, no Rito Romano, tanto para a missa


celebrada segundo o missal promulgado por Pio V, como
para o promulgado por Paulo VI. Pode não ser evidente
para todos, mas os elementos que aqui descrevemos estão
presentes em ambos. Mas, para que o percebamos
claramente, é preciso aprender a comungar bem,
aprender a entrar na cela interior e rezar o Pai Nosso
como Jesus o ensinou.

60
Ricardo de São Vitor

TRATADO SOBRE
A SANTÍSSIMA TRINDADE
Livro III, 2-7

Há um gênero de homens para os quais crer significa apenas


não contradizer a fé, aos quais denominamos fiéis mais pelo
costume da vida do que pela virtude de crer.
De fato, dedicados apenas às coisas que passam, nunca
elevam a mente ao pensamento das coisas futuras; embora
recebam os sacramentos da fé cristã juntamente com os
demais fiéis, não atentam para o que significa ser cristão ou
que esperança há na expectativa dos bens futuros. Estes,
embora sejam ditos fiéis pelo nome, de fato e em verdade
estão longe da fé.
Segundo o crescimento da fé encontramos três gêneros de
pessoas que creem.
Há alguns fiéis que elegeram crer apenas pela piedade, os
quais, todavia, não compreendem se se deve crer ou não pela
razão; nestes, apenas a piedade faz a eleição.
Há outros que aprovam pela razão o que creem pela fé;
nestes a razão acrescenta a sua aprovação.
Outros, finalmente, pela pureza do coração e da consciência
já começam a saborear interiormente aquilo que creem pela
fé; nestes a pureza da inteligência apreende a certeza.
A fé consiste em uma santa dedicação que, partindo de
verdades que lhe são oferecidas, com o auxílio da graça do
Espírito Santo, inclina decididamente a mente às coisas
invisíveis futuras.

Hugo de S. Vitor
De Sacramentis Fidei Christianae
De fructibus carnis et spiritus

61
62
Aprendemos, pelo que já foi exposto, que no sumo
e plenamente perfeito bem, [que é Deus], encontra-se a
plenitude e a perfeição de toda a bondade. Onde, porém,
encontra-se a plenitude de toda a bondade, não pode
faltar a verdadeira e suma caridade. Nada, efetivamente,
é melhor do que a caridade, nada mais perfeito do que a
caridade. Ninguém, porém, é dito propriamente possuir
caridade pelo amor particular e próprio de si mesmo. É
necessário, portanto, que o amor se estenda a outro, para
que possa ser caridade. Onde, portanto, falta a
pluralidade das pessoas, a caridade não pode existir de
nenhum modo.

Mas dirás, talvez, que ainda que existisse uma única


pessoa naquela verdadeira divindade, esta poderia, não
obstante, possuir alguma caridade para com a sua
criatura, ou melhor, a possuiria com certeza. Porém
também, com certeza, não poderia possuir, para com uma
pessoa criada, a suma caridade. Seria, de fato, uma
caridade desordenada. Ora, é impossível que na bondade
da suma sabedoria exista a caridade desordenada. A
pessoa divina, portanto, não poderia possuir a suma
caridade para com outra pessoa que não fosse digna do
sumo amor. Para que, porém, a caridade possa ser suma e
sumamente perfeita, é necessário que seja tanta que não
possa ser maior, é necessário que seja tal que não possa
ser melhor. Ora, na medida em que alguém não ama mais
ninguém do que a si mesmo, este, que possui para
consigo mesmo um amor particular, tem em si mesmo a
prova que ainda não apreendeu o sumo grau da caridade.
A pessoa divina, porém, com certeza não teria ninguém
que pudesse amar dignamente, como a si mesmo, se de
nenhum modo tivesse outra pessoa condigna de si.

63
Nenhuma pessoa, entretanto, seria condigna da pessoa
divina, se ela também não fosse Deus. Para que, portanto,
naquela verdadeira divindade, a plenitude da caridade
possa ter lugar, é necessário, além da pessoa divina, outra
pessoa condigna, de modo que não lhe falte o divino
consórcio.

Vês, portanto, quão facilmente a razão nos convence


que na verdadeira divindade não pode faltar a pluralidade
das pessoas. Certamente somente Deus é sumamente
bom. Somente Deus, portanto, é sumamente amável. A
divina pessoa não poderia, por conseguinte, exibir o
sumo amor a uma pessoa que carecesse de divindade. A
plenitude da divindade, porém, não pode existir sem a
plenitude da bondade. A plenitude da bondade,
entretanto, não pode existir sem a plenitude da caridade,
nem a plenitude da caridade sem a pluralidade das
pessoas divinas.

Aquilo, porém, que a plenitude da bondade nos


convence a respeito da plenitude das pessoas, por razões
semelhantes demonstra-o também a plenitude da bem-
aventurança. Aquilo de que uma fala, a outra o comprova.
E aquilo que a primeira clama, em uma única e mesma
verdade a segunda aclama.

Interrogue cada um à sua consciência, e sem dúvida


e sem contradição encontrará que, assim como nada é
melhor do que a caridade, assim também nada é mais
feliz do que a caridade. Isto no-lo ensina a própria
natureza, assim como também a repetida experiência.
Assim como na plenitude da verdadeira bondade não
pode faltar aquilo pelo qual nada pode ser melhor, assim
também, na plenitude da suma bem-aventurança, não
pode faltar aquilo pelo qual nada pode ser mais feliz. É

64
necessário, portanto, que na suma bem-aventurança não
falte a caridade. Para que, porém, exista a caridade no
sumo bem, é impossível que lhe falte alguém a quem
possa ser oferecida, ou possa ser exibida. É próprio do
amor, porém, e sem o qual não pode de nenhum modo
existir, querer ser muito amado por aquele a quem muito
se ama. Não pode, portanto, o amor ser feliz se não for
mútuo. Por conseguinte, naquela verdadeira e suma bem-
aventurança, assim como não pode faltar o amor feliz,
assim também não pode faltar o amor mútuo. No amor
mútuo, porém, é inteiramente necessário que haja quem
ofereça o amor e quem retribua o amor. Um terá que ser
aquele que oferece o amor, e outro terá que ser o que
retribui o amor. Onde, porém, nos convencemos que deve
haver o um e o outro, depreende-se haver verdadeira
pluralidade. Naquela verdadeira plenitude de felicidade,
portanto, não pode faltar a pluralidade das pessoas.
Consta, entretanto, que nada mais é a suma bem-
aventurança do que a própria divindade. A exibição do
amor gratuito e a devida retribuição deste amor nos
convencem, indubitavelmente, que na verdadeira
divindade não pode faltar a pluralidade das pessoas.

Se disséssemos que na verdadeira divindade


houvesse apenas uma única pessoa, assim como também
uma única substância, por causa disto, sem dúvida, ela
não teria a quem poderia comunicar aquela infinita
abundância de sua plenitude.

Mas, pergunto, por que se daria isto? Quereria ela


talvez ter a quem comunicá-la, e não o poderia, apesar de
querê-lo? Ou não quereria fazê-lo, apesar de ter a quem o
pudesse? Se, porém, alguém é sem dúvida alguma
onipotente, não poderia ser desculpado pela
impossibilidade. Mas o que consta não ser por defeito de

65
potência, poderia sê-lo unica e tão somente por defeito de
benevolência? Considera, pois, eu te peço, qual e quanto
seria o defeito de benevolência se a pessoa divina
verdadeiramente pudesse ter, querendo-o, alguém a
quem comunicá-lo e ainda assim de nenhum modo o
quisesse. É certo, conforme dissemos, que nada é mais
doce do que a caridade, nada é mais feliz do que a
caridade, nada a vida racional experimenta como mais
doce do que as delícias da caridade. Nunca nenhuma
deleitação foi fruída mais deleitavelmente e destas
delícias careceria por toda a eternidade se, carecendo de
consórcio, permanecesse solitária no trono de sua
majestade. Por estas considerações podemos advertir
qual e quanto seria este defeito de benevolência se
preferisse avaramente reter somente para si a abundância
de sua plenitude que poderia, se assim o quisesse, com
tanto cúmulo de bem-aventurança, com tanto aumento
de delícias, comunicá-la a um outro. Se assim o fosse, se
nela houvesse tanto defeito de benevolência,
merecidamente se envergonharia de conhecer-se a si
mesmo, merecidamente se envergonharia de ser assim
visto, merecidamente fugiria de todos os olhares,
merecidamente se envergonharia dos próprios anjos.
Mas, que dizemos? Não é possível que na suprema
majestade exista algo pelo qual não possa gloriar-se e
pelo qual não possa ser glorificada. De outra forma, onde
estaria a plenitude de sua glória? Pois ali, conforme já
havíamos demonstrado, não pode faltar nenhuma
plenitude. Porém, o que pode haver de mais glorioso, o
que pode haver de mais magnificente do que nada possuir
que não se queira comunicar? Consta, por conseguinte,
que, naquele indeficiente bem e sumamente sábio
conselho, tanto não pode encontrar-se a avarenta reserva,
como não pode haver uma desordenada efusão. Eis,
portanto, que tens a descoberto que, como podes vê-lo,

66
naquela suma e suprema excelsitude, a própria plenitude
da glória obriga a que não falte o consorte da glória.

Eis que ensinamos sobre a pluralidade das pessoas


divinas por razões tão manifestas que se alguém quiser
contradizer afirmações tão evidentes parecerá padecer da
doença de insanidade. Quem, senão quem sofre de
insanidade, dirá que à suma bondade falte aquilo pelo
qual nada é mais perfeito, pelo qual nada é melhor?
Quem, pergunto, senão uma mente pobre, contradirá
dizendo faltar à suma bem-aventurança aquilo pelo qual
nada é mais feliz, nada é mais doce? Quem, digo, senão o
carente de razão, pode admitir faltar na plenitude da
glória aquilo pelo qual nada é mais glorioso, nada é mais
magnificiente? Nada certamente é melhor, nada
certamente é mais feliz, nada é mais magnificente do que
a verdadeira, sincera e suma caridade, a qual se sabe que
de nenhum modo pode existir sem a pluralidade de
pessoas. Esta afirmação da pluralidade é confirmada por
um tríplice testemunho, pois aquilo que a suma bondade
e a suma bem-aventurança clamam concordemente sobre
este assunto, a plenitude da glória aclama confirmando e,
aclamando, confirma. Eis que temos, assim, sobre este
artigo de nossa fé, um tríplice testemunho, sumo entre os
sumos, divino entre os divinos, altíssimo entre os
profundos, manifestíssimo entre os ocultos, e sabemos
que na boca de dois ou três está toda a palavra. Eis o
tríplice cordel que dificilmente se rompe, pelo qual,
concedendo-nos Deus sabedoria, qualquer impugnador
de nossa fé é fortemente atado.

Eis que, conforme podemos manifestamente


concluir pelo que já dissemos, a perfeição de uma pessoa
exige o consórcio do outro. Descobrimos que nada é mais
glorioso, nada é mais magnificente do que nada querer

67
ter que não queiras comunicar. A pessoa que for
sumamente boa não quererá, portanto, carecer do
consorte de sua majestade. Sem dúvida, porém, para
aquele cuja vontade for onipotente, será coisa necessária
que seja tal qual quiser sê-lo. Aquele que, entretanto,
tiver uma vontade imutável, irá querer para sempre o que
tiver querido uma só vez. É necessário, portanto, que a
pessoa eterna tenha outra pessoa coeterna, nem uma terá
podido preceder a outra, nem uma suceder a outra; pois
naquela eterna e imutável divindade nada poderá mudar
como se se tornasse antiquado, nem tampouco nada de
novo poderá sobrevir-lhe. É impossível, por conseguinte,
que as pessoas divinas não sejam coeternas. Onde,
portanto, existir a verdadeira divindade, ali haverá a
suma bondade, ali haverá a plena bem-aventurança. A
suma bondade, conforme foi dito, não pode existir sem a
perfeita caridade, nem a perfeita caridade sem a
pluralidade de pessoas. A plena bem-aventurança,
porém, não pode existir sem a verdadeira
incomutabilidade, nem a verdadeira incomutabilidade
sem a eternidade. A pluralidade das pessoas exige a
verdadeira caridade, a eternidade das pessoas a
verdadeira incomutabilidade.

Devemos observar, no entanto, que assim como a


verdadeira caridade exige a pluralidade das pessoas,
assim a suma caridade exige a igualdade das pessoas.
Nem é cabível que haja verdadeira caridade onde o
verdadeiramente amado não for sumamente amado. Não
é amor ordenado, porém, aquele no qual se ama
sumamente quem não é sumamente amável. Mas na
bondade do sumo sábio a chama do amor não arde nem
diversamente nem mais fortemente do que o que é ditado
pela suma sabedoria. É necessário, portanto, que seja
sumamente amado segundo a abundância da suma

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caridade aquele que for sumamente amável segundo a
medida daquele sumo discernimento. Mas a propriedade
do amor nos mostra que não será possível existir um
sumo amante se o sumamente amado não retribuir o
amor. Dste modo, a plenitude da caridade exige que, no
amor mútuo, ambos sejam sumamente amados pelo
outro e, por consequência, de acordo com a medida do
discernimento de que acima falamos, que ambos sejam
sumamente amáveis. Onde, portanto, ambos são
igualmente amáveis, é necessário que ambos sejam
igualmente perfeitos. É necessário, portanto, que ambos
sejam igualmente poderosos, igualmente sábios,
igualmente bons, igualmente bem-aventurados. Deste
modo, nos que se amam mutuamente, a suma plenitude
do amor exige a suma igualdade da perfeição. Assim
como, por conseguinte, na verdadeira divindade a
propriedade da caridade exige a pluralidade das pessoas,
assim a integridade da mesma caridade na verdadeira
pluralidade exige a suma igualdade das pessoas. Para que
sejam inteiramente iguais, porém, é necessário que sejam
inteiramente semelhantes, pois a semelhança pode ser
possuída sem igualdade, mas a igualdade nunca pode ser
possuída sem mútua semelhança. Aqueles que, de fato,
nada possuem de semelhante na sabedoria, como
poderão ser nela iguais? O que, no entanto, digo da
sabedoria, o mesmo afirmo da potência e o mesmo
encontrarás em todas as demais, se as percorreres
singularmente.

Ricardo de S. Vitor

De Trinitate, Livro III, 2-7

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