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A SANTÍSSIMA TRINDADE,
O SACRIFÍCIO DA MISSA
E OS PADRES VITORINOS
1
O texto de Ricardo de S. Vitor, como anuncia o
título, trata sobre o mistério da Santíssima Trindade. É
algo sublime. Exige muito mais do que uma simples
leitura. Uma rápida passada de olhos não permitirá
descortinar toda a sua profundidade.
Mas nossa exposição sobre o assunto começa muito
tempo antes. Começa bastante antes do século XII,
quando viveram Hugo e Ricardo. Começa na época em
que Moisés recebeu de Deus a incumbência de libertar o
seu povo do Egito e avisá-lo que o próprio Senhor estava
empenhado em sua libertação. Naquela ocasião Moisés
perguntou ao Senhor: "Se eles me perguntarem, qual é o
teu nome? O que deverei dizer-lhes?" Deus lhe
respondeu: "Dize que o meu nome é: 'Eu sou Aquele
que é'. Este é o meu nome. Tu, Moisés, irás falar ao
Faraó e ao meu povo em nome de 'Aquele que é'. Este
é o meu nome. Fala em meu nome". Moisés então se
dirigiu ao Egito para libertar o povo de Deus em nome de
"Aquele que é".
Depois disso, passou-se mais de um milênio. O
Verbo se fez carne e anunciou-nos o Evangelho. Quando
estava para subir aos céus, ordenou aos apóstolos que
anunciassem a libertação aos homens, em todo o mundo.
Tratava-se, agora, da verdadeira libertação. A que havia
acontecido no Egito era apenas uma figura. Tratava-se,
agora,da libertação que tem origem em um manancial de
verdadeira vida. E, assim como havia acontecido no
episódio de Moisés, Jesus disse então aos Apóstolos: "Ide
e ensinai todas estas coisas". Mas, em nome de quem?
Nessa ocasião Jesus não disse que o deveriam fazer
em nome de "Aquele que é". Seria de se esperar que o
tivesse dito. Seria de se esperar que, assim como Deus
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outrora havia falado a Moisés, Jesus também assim o
dissesse: "Anunciai a todos que 'Aquele que é' ordena
agora libertar não apenas o seu povo, mas todos os
homens".
Mas, em vez disso, Jesus estava dizendo: "Ide e
libertai o povo para a verdadeira vida. Não me refiro à
escravidão do Faraó. Estou falando daquela que é a
verdadeira vida. Fazei isto em nome da Trindade, em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo". Jesus
não falou em nome de "Aquele que é". Falou, em vez
disso, em nome do "Pai, do Filho e do Espírito Santo".
Durante a sua vida Jesus também havia falado
inúmeras vezes sobre estas três pessoas: o Pai, o Filho e o
Espírito Santo.
Jesus mencionava a todo momento o nome do Pai.
Quando lemos o Evangelho, costumamos pensar que
"Pai" é um nome carinhoso que Jesus usava para se
referir a Deus. Pensamos que Ele talvez quisesse dar a
entender que Deus, em vez de ser um Juiz Implacável,
seria um Pai Amoroso. Mas, embora em certos momentos
isto realmente aconteça, na maioria das vezes não é neste
sentido que Jesus está se referindo ao Pai. Quando está
falando do Pai, na maioria das vezes, Jesus não está
falando de Deus em sua unidade, mas está falando da
primeira pessoa da Santíssima Trindade. Ele está se
referindo a uma das três pessoas da Santíssima Trindade.
Em outros momentos, quando Jesus fala dele
mesmo, não está se referindo a si mesmo apenas em sua
humanidade, mas enquanto Segunda Pessoa da
Santíssima Trindade. Assim é quando Ele diz: "Eu te
agradeço, ó Pai, porque escondeste estes ensinamentos
dos sábios e dos entendidos e os revelaste aos
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pequeninos, porque ninguém conhece o Filho senão o
Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a
quem o Filho o quiser revelar" (Mt. 11, 25-27).
Em outro momento, quando Jesus diz ser o
caminho, a verdade e a vida, e que ninguém vai ao Pai a
não ser por Ele, também está se referindo a si mesmo
como a uma das pessoas da Trindade, ainda que o faça
sob o manto do mistério da Encarnação.
E quando Jesus diz na Última Ceia: "Eu vou para o
Pai, enviarei o Espírito Santo e vós deveríeis alegrar-vos
por eu ir para o Pai, porque o Pai é maior do que eu"
(Jo. 14, 28), o próprio Santo Tomás de Aquino, no seu
Comentário ao Evangelho de São João, reconhece que
Jesus aí está falando de si mesmo não apenas enquanto
homem, mas também enquanto Deus. Jesus está nos
dizendo, diz S. Tomás de Aquino, que o Pai é maior que o
Filho não apenas enquanto homem, mas também, em
certo sentido, enquanto Verbo de Deus. Não obstante o
Pai e o Filho serem um só Deus, e que nisto não haja
qualquer superioridade, o Pai é maior do que o Filho no
sentido em que o Filho, ou o Verbo, é gerado pelo Pai,
mas o Pai, ele mesmo, não procede de nenhuma outra
pessoa [1].
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[1] Estas são as palavras de S. Tomás de Aquino: "Cristo consola os
Apóstolos quando lhes diz: 'Se me amaram, também vos
alegrareis'. Como se dissesse: 'Se me amais, não deveis
entristecer-vos; em vez disso, deveis alegrar-vos por
minha partida, pois serei exaltado, já que vou para o Pai,
que é maior do que eu'.
Mas Ário o insulta por meio destas palavras, dizendo que o Pai é
maior do que o Filho. Seu erro pode ser removido pelas próprias
palavras do Senhor. Pelo seu próprio sentido, assim como se deve
entender 'vou para o Pai', assim também se deve entender que ...
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É neste sentido especial, segundo também ensina
Santo Tomás de Aquino na Summa Theologiae, que o
Pai é princípio da Santíssima Trindade. E é neste sentido
que, apesar do Pai, do Filho e do Espírito Santo serem
todos os três um só Deus e, como ainda explica Santo
Tomás, as três pessoas serem iguais "em poder,
eternidade e grandeza", o Pai é maior que o Filho e que
o Espírito Santo, mas apenas enquanto o Filho procede
do Pai, e enquanto o Espírito Santo procede do Pai e do
Filho [1].
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isto significa também que é o Espirito Santo quem nos
ensina como rezar o Pai Nosso.
Contudo, em todo o Novo Testamento, não existe
uma declaração formal do que seja aquilo que
conhecemos hoje pelo nome de Mistério da Santíssima
Trindade. Em nenhum momento o Novo Testamento se
refere a um mistério ao qual é dado o nome de "Mistério
da Santíssima Trindade", e que consiste na existência de
três pessoas em um só Deus, em que as pessoas são
realmente distintas mas são um só Deus, e em que estas
pessoas são o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O Novo
Testamento nem sequer declara que o Pai, o Filho e o
Espírito Santo são pessoas. Nem que, enquanto pessoas,
a segunda procede da primeira e a terceira procede das
duas primeiras. Tudo isto realmente pode ser concluído
das inúmeras afirmações do Novo Testamento, mas não
há, no Novo Testamento, nenhuma declaração concisa
que contenha esta síntese, embora o mistério seja
mencionado a todo o momento.
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... porém, segundo a divindade. Diz a Epístola aos Filipenses: 'Não
considerou o ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si
mesmo, e assumiu a condição de servo' (Fil. 2, 6-7).
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Na Epístola aos Efésios, logo no seu início, São
Paulo diz: "Bendito seja o Pai de Nosso Senhor Jesus
Cristo, que nos abençoou com todo tipo de bênçãos
espirituais em Cristo, para sermos santos e
irrepreensíveis diante dele no amor" (Ef. 1, 3-4). Nesta
passagem, e no restante do capítulo, apesar do Apóstolo
estar falando de Cristo em sua humanidade, ele está
claramente se referindo ao Pai e ao Filho como a pessoas
distintas.
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Pelo nosso modo comum de pensar do século XX e XXI,
julgaríamos que Inácio deveria ter dito que devemos dar
todo respeito ao bispo não por causa dele mesmo, mas
"por causa de Jesus, o Bispo de todos". Mas ele não está
se referindo a Jesus como o Bispo de todos, mas ao "Pai
de Jesus Cristo", que é "o Bispo de todos". Está escrito
assim: "Convém, segundo o poder de Deus Pai, conceder
ao bispo todo o respeito, não de fato a ele, mas ao Pai de
Jesus Cristo, [Pai que é] o Bispo de todos" (Mag. 3, 1).
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torna visível, entre os homens, o próprio mistério da
Trindade.
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"Quem está falando? Quem és tu? De onde vieste?" Tudo
se dá com uma espontaneidade tão evidente que se deve
presumir que Abraão já deveria ter uma intimidade com
Deus que vinha de mais longa data. Assim também
ocorreu com a Virgem Maria, quando lhe apareceu o anjo
Gabriel. Ela não saiu correndo pedindo socorro porque
alguém havia entrado em sua casa. Foi tomada de
perplexidade por causa do conteúdo da saudação
angélica, mas não se assustou com o Anjo, porque
certamente já devia estar acostumada com estas visitas.
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Gomorra, Abraão começa a barganhar com o que fica
sobre quantos justos deveria haver nas cidades para que
elas não fossem destruídas. O que se depreende é que
Abraão deveria ter tão grande intimidade com Deus que
Ele mesmo já se lhe teria revelado em sua Trindade.
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A primeira época é a época do testemunho direto de
Jesus quando fala intimamente das pessoas divinas.
Jesus não nos deixou uma teoria sobre a Trindade. Ele
nos falava dela como quando nós falamos de nossa casa e
de nossa família. Quando nos referimos à nossa esposa e
a nossos filhos, não costumamos escrever um tratado ou
dar um curso. Simplesmente vamos apresentando quem
são eles e como eles são. É assim que Jesus falava desta
realidade, e foi assim que os primeiríssimos cristãos
também o repetiram. Era assim que o fazia Santo Inácio
de Antioquia.
Chegamos, então, à época dos séculos II, III e IV,
quando já havia cessado a era apostólica. Os apóstolos
haviam morrido, e também os que tinham conhecido
pessoalmente os apóstolos.
Foi a época em que muitos dos novos cristãos
começaram a fazer grande confusão sobre o tema. O que
seriam as três pessoas? Somente uma seria Deus, ou o
seriam as três? Mas se fossem as três, como então seria
possível haver apenas um só Deus? E se era um só Deus,
como nEle poderia haver três pessoas? As três existiam
desde toda a eternidade, ou foram geradas no tempo, em
algum momento antes da criação do mundo? Muitos
destes cristãos tinham conhecimento da filosofia grega, o
que tornava as perguntas mais claramente formuladas
mas, ao mesmo tempo, complicava esclarecer as
respostas. Mais ainda, até então ninguém havia dito que
se tratava de três pessoas, falava-se apenas de Pai, de
Filho e de Espírito Santo. Quando foi sugerido que
poderiam ser três pessoas, começou uma discussão sobre
o que significaria exatamente o termo "pessoa" e se, na
questão da Santíssima Trindade, seria correto utilizar a
palavra "pessoa", já que as próprias Escrituras não a
utilizavam.
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Entramos, assim, em um tempo onde se iniciou um
grande debate, um dos mais acalorados e prolongados
debates que houve na história, um debate de que
podemos ter um primeiro conhecimento sobre seu
desenvolvimento consultando um texto cujo título é "A
Santíssima Trindade nos Santos Padres dos Primeiros
Séculos", encontrado no site cristianismo.org.br. Ali
encontramos uma resenha da polêmica e dos debates
sobre a Santíssima Trindade nos séculos II, III e IV.
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meditavam o Novo Testamento e que conduziam uma
vida espiritual mais elevada, começaram a trazer luz à
discussão, sem deixar de atender às novas exigências de
precisão da Filosofia Grega. Pouco a pouco, começava a
ficar claro, para todos, o que o Novo Testamento
realmente queria dizer.
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No fim deste longo processo, chegou-se à redação
do Credo, elaborado pelos Concílios de Nicéia e
Contantinopla no século IV. É um Credo claramente
trinitário. É o Credo que hoje todos nós conhecemos e
que diz: "Creio em um só Deus, Pai todo poderoso,
criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e
invisíveis. E em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho
unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os
séculos. Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de
Deus verdadeiro, gerado não criado, consubstancial ao
Pai, por Ele todas as coisas foram feitas", etc..
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explicasse o mistério da Santíssima Trindade. Por este
motivo, por amor aos seus fiéis, além de seu próprio amor
ao mistério da Trindade, Agostinho passou anos e mais
anos meditando para escrever a obra.
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distribuí-las, mesmo incompletas, fosse qual fosse o
modo como a obra se encontrasse. Em vista disso, e com
medo que o manuscrito se espalhasse ainda em estado de
rascunho e contendo erros, Santo Agostinho se viu
obrigado a concluir a obra mais rapidamente.
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o que a Igreja no Oriente havia meditado a esse respeito
durante os 800 primeiros anos da era cristã. É uma
referência extraordinária do pensamento cristão sobre a
Santíssima Trindade.
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Agostinho, não, porém, com tinta ou notas musicais, mas
com ideias abstratas, fervilhando em inacreditável
harmonia em todas as suas linhas, imitando a ordem da
criação, quando esta nos espelha a grandeza, a sabedoria
e a bondade do Criador.
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Pode-se dizer que nos céus, onde dizemos, no Pai
Nosso, que está o Pai, quando dizemos "Pai Nosso, que
estais nos céus", Deus vive de modo análogo à vida
experimentada pelos santos quando estão em
contemplação, e que esta contemplação em Deus é a
Santíssima Trindade. Ou que, vice versa, quando os
santos, na quinta morada descrita por Santa Teresa de
Ávila no livro Castelo Interior, alcançam a contemplação
infusa, estão experimentando um ínfimo fragmento da
bem-aventurança da Santíssima Trindade.
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principal que há no Evangelho, e no qual consiste toda a
sua força" (ST, IIa IIae 106 a.1), surgem em nós os rios de
água viva que são mencionados por Jesus no sétimo
capítulo do Evangelho de São João: "Quem crê em mim,
como diz a Escritura, de suas entranhas correrão rios de
água viva" (Jo. 7, 38). E o evangelista acrescenta,
explicando: "Jesus falava do Espírito Santo que deviam
receber os que nele cressem" (Jo. 7, 39). A água viva,
mencionada no Evangelho, é uma expressão de um amor
superabundante que se realiza sob a ação dos dons do
Espírito Santo. É a este amor que Jesus se referia quando
dizia: "Vim espalhar um fogo sobre a terra, e que mais
desejo eu senão que se acenda?" (Lc. 12, 49).
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supereminente da fé unida à caridade, movida pelo
Espírito Santo, que introduz os homens naquela forma
superior de contemplação, associada ao dom de
sabedoria, pela qual se lhes manifesta a verdade e se
tornam livres (Jo. 8, 31) [2].
22
santos, a contemplação. E nos santos a contemplação é
uma migalha infinitamente pequena da bem-aventurança
da Santíssima Trindade. A Santíssima Trindade é Deus
em contemplação, ou também, é a contemplação de Deus.
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Santíssima Trindade. É a parte mais complexa de toda a
sua obra e precisaríamos de semanas para começar a
explicá-la. Mas, de pouco em pouco, é possível
desenvolver o tema. Santo Tomás conseguiu unir, em
uma síntese, a visão da Santíssima Trindade que vinha do
Ocidente, de parte de Santo Agostinho, com a que vinha
do Oriente, de parte de São João Damasceno. O tema é
muito profundo. A maioria das pessoas que leem a
Summa, e mesmo muitos daqueles que a estudam, não
chegam a perceber o alcance do que diz Santo Tomás.
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Assim como os santos se santificam pela
contemplação, que é "o pão nosso supra-substancial" que
pedimos no Pai Nosso, Deus é Deus por ser Trindade. É
aquele manancial de amor que está na vida trinitária que
faz Deus ser Deus. Se Deus não fosse Trindade, Ele não
seria Deus, e não poderia ter criado nem mesmo um grão
de areia. Não seria Deus, não existiria o Universo e nem
tampouco estaríamos vivos para entender que nada teria
existido. Até mesmo para existir um minúsculo grão de
areia, Deus teria que existir e, se Deus não fosse
Trindade, Deus não existiria [3].
25
em certo sentido, podemos colocar os escritos de Santo
Inácio de Antioquia. Apesar de suas cartas não fazerem
parte do Novo Testamento, de algum modo Santo Inácio
ainda vivia desta época. Inácio havia sido discípulo de
São João Evangelista e conheceu pessoalmente a Virgem
Maria.
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os poucos capítulos do De Trinitate de Ricardo de S. Vitor
que se encontram no final desta exposição. Mas quero
convidá-los também a tentar entender o que ele está
dizendo. Para isto pretendo dizer agora alguma coisa
sobre o De Trinitate de Ricardo de São Vitor.
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inesgotável para as pessoas divinas.
28
proporcionalmente grande, Deus não poderia ser uma só
pessoa, porque neste caso Deus não experimentaria o
verdadeiro amor, o amor que Ele mesmo exige de suas
criaturas como o maior de todos os mandamentos.
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mas que para o próprio Deus seria inacessível.
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dois são um só Deus e o Filho não é sua criatura, mas
porque o Filho procede do Pai e, sob este aspecto, o Pai é
princípio da Santíssima Trindade (Summa Theologiae,
Ia. Q. 33 a.1)
31
sempre o pai do seu filho, não apenas durante algum
tempo, e esta relação não é apenas uma convenção
humana ou uma categoria jurídica. O pai é realmente pai,
é algo que está inscrito nas células, no código genético, na
psicologia, gravado na alma, inscrito na natureza.
Quando o pai completar cem anos e o filho completar
oitenta, ainda serão pai e filho.
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Assim, o amor de Jesus pelo Pai não se explica
apenas por Ele haver assumido uma natureza humana e,
enquanto homem, seu Pai ser Deus. Este amor deriva
principalmente do fato de que, dentro da Trindade, a
divindade é recebida pelo Filho da parte do Pai, princípio
da Trindade. O Filho e o Espírito Santo têm um amor de
gratidão por Deus Pai porque procedem do Pai, e o Pai
tem um amor de doação pelo seu Filho e pelo Espírito
Santo porque dEle procedem. E este amor é muito maior
do que o amor que nós temos por nossos filhos, porque é
infinita a doação que existe por parte do Pai. A processão
é infinita e eterna, e é infinita a gratidão que existe na
Santíssima Trindade para com o Pai por parte do Filho e
do Espírito Santo. Este é e sempre foi o verdadeiro amor,
a fonte de onde brota todo o amor que há, no céu e na
terra. É o que fez São Paulo dizer: "Dobro os joelhos
diante do Pai, de quem toma nome toda a paternidade
que há nos céus e sobre a terra" (Ef. 3, 14). É este o amor
que faz Deus ser Deus. E foi por este amor que foi criado
o mundo. As pessoas divinas quiseram compartilhar sua
felicidade com outras criaturas e, para fazê-lo, criaram o
céu e a terra. O Universo é uma migalha desta imensa
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... ensinando que, aos que guardaram as suas palavras no coração,
como o fazia Maria, ser-lhes-á manifestado o nome do Pai, aquele
que dizemos, no início do Pai Nosso, que seja santificado. E aos que
o nome do Pai foi manifestado, quando estes veem Jesus, também
veem o Pai ("agora eles conheceram que tudo quanto me
deste vem de ti"). Isto não é diferente do que Jesus, quando
criança, havia dito à sua mãe no Templo de Jerusalém: "Não
sabíeis que eu devo estar nas coisas de meu Pai?" (Lc. 2,
49). Esta resposta não era uma falta de educação de uma criança
rebelde. Era uma revelação do que há de mais profundo na Nova
Aliança. Maria o percebeu. Imediatamente. Não repreendeu o
menino. Em vez disso, guardava aquelas palavras em seu coração
(Lc. 2, 51).
33
felicidade. Depois de haverem criado o céu e a terra,
criaram as plantas, os animais e finalmente o homem.
Então disseram entre si: "Façamos o homem à nossa
imagem e semelhança. Ele poderá crescer, desenvolver-
se, chegar à contemplação, alimentar-se da árvore da
vida e ser um espelho daquilo que nós somos. E quando
assim o fizer, compartilharemos com ele a nossa
felicidade".
34
É assim que Jesus nos ensinou a rezar (Mt. 6, 6):
"Primeiro entra no quarto. Depois fecha a porta, em
seguida vai para um lugar escondido dentro deste
quarto. Quando terás feito tudo isto, o Pai te verá e te
dará uma recompensa. Em seguida, assim rezarás: 'Pai
nosso, que estais no céu, santificado seja o teu nome,
venha o teu Reino, faça-se a tua vontade, como no céu,
assim na terra'", e segue a oração do Pai Nosso que todos
conhecemos. Foi Jesus quem ensinou este modo de rezar.
Apesar de sua aparente simplicidade, ele é tão
extraordinariamente profundo que nós, que estamos
fazendo esta exposição, estamos pedindo a todos, desde o
primeiro momento em que nos conhecemos, que se
dirijam todos os dias a uma igreja ou a uma capela para
rezar, pelo menos por meia hora, deste modo.
35
Para entender melhor o significado deste modo de
oração, é preciso compreender um de seus principais
pressupostos. Não foi apenas por um breve período de
poucos anos que, há dois mil anos, o Verbo se encarnou.
A fé nos ensina que Cristo continua até hoje unido à sua
natureza humana, por amor a nós, sem deixar de ser
Deus. Sua natureza humana está hipostaticamente unida
à natureza divina. "Hipóstase" em grego significa
"pessoa" [5]. Na pessoa do Verbo, em Cristo, uma
natureza humana encontra-se unida à natureza divina. É
por causa desta união hipostática, pela qual sua natureza
humana está unida à natureza divina que, por
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consequência, onde Deus estiver, o Verbo Encarnado
também poderá agir como instrumento da divindade.
Santo Tomás de Aquino diz, na Summa contra Gentiles,
que, em virtude da união hipostática, a natureza humana
está em Cristo mais intimamente unida à natureza divina
do que em nós a alma está unida ao corpo, que era, antes
da união hipostática, a mais perfeita união entre todas as
que existiam na criação. Esta afirmação está no Capítulo
41 da Quarta Parte da Summa contra Gentiles [6]. Ali
Santo Tomás de Aquino diz que, para que possamos
entender algo do mistério da Encarnação, devemos partir
da consideração de como as coisas se unem na natureza.
Assim, quando queremos prender um prego na parede,
tomamos um martelo e fixamos o prego. A mão se une ao
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... que cada coisa é" para, finalmente, tornar-se sinônimo de
"pessoa" e, de modo especial, de uma "pessoa" da Santíssima
Trindade. Passou-se a dizer que em Deus havia "três pessoas e
uma substância" ou, em grego, "três hipóstases e uma
ousia". Por último, cerca de duzentos anos mais tarde, no século V,
o termo "união hipostática" passou a significar a união entre a
natureza humana e divina na "hipóstase" ou pessoa do Verbo.
37
martelo, mas é uma união circunstancial e temporária.
Na natureza há outras coisas mais bem unidas entre si do
que uma mão e um martelo. Entre todas as coisas que
estão unidas entre si, o que há de mais perfeitamente
unido a outro, naquela que é a verdadeira obra prima de
união, é a alma humana em sua união com o corpo. Onde
houver um corpo vivo, ali estará uma alma, que utiliza
seu corpo muito mais sofisticadamente do que a mão que
se utiliza do martelo. Nesta linha, ao unir a natureza
humana e a divina em Cristo, Deus se superou a si mesmo
na obra da Criação. Na união hipostática, o Senhor uniu
algo mais perfeitamente a outro do que, no homem, a
alma está unida ao corpo. Aquela natureza humana,
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... instrumento. Os antigos doutores já concordavam que em
Cristo a natureza humana é como um órgão da divindade, assim
como o corpo é um órgão da alma. Mas o corpo e suas partes são
instrumentos da alma diversamente de como o podem ser os
instrumentos exteriores. Um martelo, de fato, não é um
instrumento próprio, como o é a mão do homem. Muitas [pessoas
diversas] podem usar o martelo, mas a mão só pode ser utilizada
pela operação própria de uma determinada alma. Por este motivo,
a mão é dita um órgão unido e próprio, enquanto que o
martelo é dito um instrumento extrínseco e comum.
38
concebida pelo Espírito Santo no ventre da Virgem Maria,
uniu-se à natureza divina muito mais perfeitamente do
que nossa alma ao nosso corpo.
39
Parte da Summa Theologiae, que quando cremos, neste
momento Cristo, em sua natureza humana, age em nós
como causa eficiente instrumental da graça. "A paixão de
Cristo", diz Santo Tomás, "pela divindade que está a si
unida, possui uma virtude espiritual cuja eficácia tem
sua origem no contato espiritual que se dá pela fé, e
pelos sacramentos da fé" (ST, IIIa. 48 a.6 ad 2). É por
isto que Jesus dizia, inúmeras vezes, aos que concedia um
milagre: "Filho, a tua fé te salvou". E é por isso que São
Paulo também diz, na Epístola aos Romanos: "O
Evangelho que eu ensino é uma força de Deus que age
sobre aqueles que creem" (Rom. 1, 17). Esta força nos
chega através do Verbo Encarnado: "Nele estava a vida, e
a vida era a luz dos homens" (Jo. 1, 4).
40
vida", diz São João no Evangelho, "e a vida era a luz do
dos homens, e a luz brilha nas trevas", isto é, no coração
dos homens, "mas as trevas não a receberam" (Jo. 1, 3-
4). "Era a luz verdadeira, que ilumina todo homem,
vinda ao mundo" (Jo. 1, 9). "A todos, porém, que o
receberam, deu-lhes a autoridade se de tornarem filhos
de Deus", isto é, "aos que creem em seu nome" (Jo. 1, 12).
Quando nós cremos em ato, isto é, em atual exercício, e
não apenas porque cremos em algum momento do
passado, o Novo Testamento nos ensina que, certamente,
neste momento, uma luz nos está iluminando e estamos
realmente em contato com Cristo. Isto dá ao exercício da
fé uma importância extraordinária para que possa, em
nós, desenvolver-se a verdadeira vida. Quando os judeus
perguntaram a Cristo: " 'Que faremos para trabalhar a
obra de Deus?', respondeu-lhes Jesus: 'Esta é a obra de
Deus, que creiais naquele que Ele enviou' " (Jo. 6, 29). E
Jesus disse também: "Deus amou tanto o mundo, que lhe
deu o seu Filho unigênito, para que todo o que crê nEle
não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo. 3, 16). Crer é
algo realmente extraordinário. "A verdadeira vida se
inicia pela fé", diz Santo Inácio de Antioquia na Carta
aos Efésios (Ef. 14, 1), "aperfeiçoa-se pelo amor e,
quando ambas estas coisas se transformam em unidade,
são o próprio Deus", que passa a estar em nosso espírito
de um modo mais sublime do que apenas pela obra da
criação.
41
contato espiritual com Cristo se dá, diz S. Tomás de
Aquino, "pela fé, e pelos sacramentos da fé" (ST, IIIa. 48
a.6 ad 2).
42
quando recebemos a Eucaristia. Assim como na oração,
antes da comunhão será necessário que nos esqueçamos
do mundo, porque senão não estaríamos recebendo
dignamente a Eucaristia. Cremos também que na
Eucaristia estamos recebendo a Cristo. E o amamos,
quando nos recolhemos com ele, após receber o pão
consagrado, enquanto permanecem em nós as espécies
eucarísticas. Ao fazermos tudo isto bem feito, a própria
Eucaristia nos conduz ao amor em ato (ST, IIIa 79
a.1 ad 2). É ao que também deveria conduzir-nos a
oração.
43
agora é meu e é também teu. É o Pai nosso. Vamos
dirigir-nos a Ele, através de mim. Tu agora, no spírito
Santo, estás escondido com Cristo em Deus".
44
santificado seja o teu nome'. Nós o estamos
agradecendo em primeiro lugar, pela geração do Verbo,
por ser Pai. Ao fazeres isto, irás pouco a pouco
entendendo quem é o Pai".
45
confusões. São João Damasceno diz, no livro 'A Fé
Ortodoxa', que Deus Pai é a 'aitia' da Trindade. Mas a
palavra 'aitia' não significa exatamente o mesmo, com
todas as suas nuances, que a nossa palavra 'causa'. Então,
se a usássemos no ocidente, poderíamos entender
erroneamente o que no oriente é entendido corretamente.
Portanto, diz S. Tomás de Aquino, é melhor dizer entre
nós que o Pai é 'princípio' da Trindade (ST, Ia 33 a.1 ad
1).
46
na terra, como um homem sábio e bondoso, muito unido
a Deus, que fazia milagres, que falava em nome de Deus e
que veio sofrer por nós. Mas, apesar de crermos que Ele
era Deus, o amamos ao modo como um homem ama
outro homem. É assim que Jesus nos ensinou a começar a
amá-Lo.
47
"Este é o meu Filho amado, ouvi-o" (Mc. 9, 7).
48
Porque o que vemos na missa é que o próprio Jesus,
no momento da Consagração, está se oferecendo ao Pai.
49
Terminada a consagração, temos na patena o pão
que se transubstanciou no corpo de Cristo e, no cálice, o
vinho que se transubstanciou no sangue de Cristo. Cristo
se mostra, diante de nossos olhos, no mesmo estado em
que se encontrava o cordeiro pascal, imolado todo ano
pelos judeus, e no mesmo estado também em que se
encontrava Jesus, quando morreu na cruz. O sangue de
Cristo mostra-se como derramado e recolhido
separadamente no cálice. Sem que desta vez ele tivesse
sido realmente morto novamente, o próprio Cristo, que
opera a transubstanciação, renova, através destes
símbolos incruentos, a sua imolação ao Pai.
50
loucura em que mergulhamos e do grau de injustiça que
isto representa.
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ao Pai na Santíssima Trindade, é exatamente o que está
acontecendo durante a missa.
52
possibilidades de nossa vida espiritual, amar a Cristo
como Ele mesmo O amou. Ele O amou através do Espírito
Santo [7].
53
A Eucaristia, ao levar o amor a um ato de que
percebemos, pela própria experiência, sua
irrepetibilidade fora dela, nos está concedendo uma
primeira experiência do Espírito Santo, pelo qual o Pai
ama o Filho, um aperitivo dos rios de água viva que nos
levarão, um dia, à contemplação. Santo Inácio de
Antioquia dizia, nos primeiríssimos anos do cristianismo,
que a Eucaristia era o "fármaco da imortalidade" (Ef. 20,
2). A força da expressão provinha da realidade da
experiência. Através dela o Senhor nos está ensinando a
amar a Cristo como o Pai o amou, na unidade do Espírito
Santo.
54
(Jo. 7, 38), que nos faz crescer na esperança da revelação
de Cristo.
55
justificado no Espírito, contemplado pelos anjos,
proclamado às nações, crido no mundo, exaltado na
glória" (I Tim. 3,16). E logo em seguida acrescenta: "Se
alguém ensina diversamente, não se aproximando com
palavras sadias, as de Nosso Senhor Jesus Cristo, e com
um ensinamento que não conduz à eusebéia, é um
alienado que nada entendeu" (I Tim. 6, 3-4) [8].
56
para os homens. Santo Inácio de Antioquia, que
aprendeu dos próprios apóstolos; depois, São Gregório
Nisseno, Santo Agostinho, São João Damasceno, Hugo de
São Vitor, Ricardo de São Vitor, Santo Alberto Magno,que
foi o professor de Santo Tomás de Aquino, e o próprio
Santo Tomás de Aquino, escreveram para nos ajudar a
entender o que Jesus nos estava ensinando, assim
também como tantos outros que aqui não mencionamos,
não porque não houvesse outros, mas porque nesta
exposição nos concentramos principalmente nas questões
sobre a Santíssima Trindade.
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Moisés veio libertar o povo judeu da escravidão do
Faraó. Jesus veio nos libertar de algo muito mais
profundo. Nos primeiros séculos o cristianismo teve uma
ascensão prodigiosa. Cada geração, dizia Santo Agostinho
no De Vera Religione, tornava-se visivelmente mais cristã
que a geração anterior. O padrão inverteu-se a partir de
1300. Agora já se vão cerca de 700 anos desde que a
humanidade começou a pretender esquecer-se da obra da
Encarnação, e com isto estamos progressivamente caindo
no absurdo que estamos assistindo, a maioria de nós sem
entender claramente o que está acontecendo, nem por
que está acontecendo.
58
interior junto com Ele, Jesus nos pede também para rezar
o Pai Nosso. O Pai Nosso é o passaporte para a Trindade.
Muito melhor do que o passaporte para a Europa ou o
Caribe. É um passaporte para o modo de vida que existe
em Deus. Para o verdadeiro amor e a fonte de onde teve
origem o mundo.
59
e é impressionante a sabedoria que nelas existe. stas
coisas são invenção do Verbo Encarnado. Não foi uma
pessoa humana quem as inventou. Carregam a marca da
genialidade divina. Nem Santo Tomás de Aquino teria
inventado duas coisas como estas. Ele não conseguiria
escrever um Pai Nosso, nem conseguiria inventar a
missa.
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Ricardo de São Vitor
TRATADO SOBRE
A SANTÍSSIMA TRINDADE
Livro III, 2-7
Hugo de S. Vitor
De Sacramentis Fidei Christianae
De fructibus carnis et spiritus
61
62
Aprendemos, pelo que já foi exposto, que no sumo
e plenamente perfeito bem, [que é Deus], encontra-se a
plenitude e a perfeição de toda a bondade. Onde, porém,
encontra-se a plenitude de toda a bondade, não pode
faltar a verdadeira e suma caridade. Nada, efetivamente,
é melhor do que a caridade, nada mais perfeito do que a
caridade. Ninguém, porém, é dito propriamente possuir
caridade pelo amor particular e próprio de si mesmo. É
necessário, portanto, que o amor se estenda a outro, para
que possa ser caridade. Onde, portanto, falta a
pluralidade das pessoas, a caridade não pode existir de
nenhum modo.
63
Nenhuma pessoa, entretanto, seria condigna da pessoa
divina, se ela também não fosse Deus. Para que, portanto,
naquela verdadeira divindade, a plenitude da caridade
possa ter lugar, é necessário, além da pessoa divina, outra
pessoa condigna, de modo que não lhe falte o divino
consórcio.
64
necessário, portanto, que na suma bem-aventurança não
falte a caridade. Para que, porém, exista a caridade no
sumo bem, é impossível que lhe falte alguém a quem
possa ser oferecida, ou possa ser exibida. É próprio do
amor, porém, e sem o qual não pode de nenhum modo
existir, querer ser muito amado por aquele a quem muito
se ama. Não pode, portanto, o amor ser feliz se não for
mútuo. Por conseguinte, naquela verdadeira e suma bem-
aventurança, assim como não pode faltar o amor feliz,
assim também não pode faltar o amor mútuo. No amor
mútuo, porém, é inteiramente necessário que haja quem
ofereça o amor e quem retribua o amor. Um terá que ser
aquele que oferece o amor, e outro terá que ser o que
retribui o amor. Onde, porém, nos convencemos que deve
haver o um e o outro, depreende-se haver verdadeira
pluralidade. Naquela verdadeira plenitude de felicidade,
portanto, não pode faltar a pluralidade das pessoas.
Consta, entretanto, que nada mais é a suma bem-
aventurança do que a própria divindade. A exibição do
amor gratuito e a devida retribuição deste amor nos
convencem, indubitavelmente, que na verdadeira
divindade não pode faltar a pluralidade das pessoas.
65
potência, poderia sê-lo unica e tão somente por defeito de
benevolência? Considera, pois, eu te peço, qual e quanto
seria o defeito de benevolência se a pessoa divina
verdadeiramente pudesse ter, querendo-o, alguém a
quem comunicá-lo e ainda assim de nenhum modo o
quisesse. É certo, conforme dissemos, que nada é mais
doce do que a caridade, nada é mais feliz do que a
caridade, nada a vida racional experimenta como mais
doce do que as delícias da caridade. Nunca nenhuma
deleitação foi fruída mais deleitavelmente e destas
delícias careceria por toda a eternidade se, carecendo de
consórcio, permanecesse solitária no trono de sua
majestade. Por estas considerações podemos advertir
qual e quanto seria este defeito de benevolência se
preferisse avaramente reter somente para si a abundância
de sua plenitude que poderia, se assim o quisesse, com
tanto cúmulo de bem-aventurança, com tanto aumento
de delícias, comunicá-la a um outro. Se assim o fosse, se
nela houvesse tanto defeito de benevolência,
merecidamente se envergonharia de conhecer-se a si
mesmo, merecidamente se envergonharia de ser assim
visto, merecidamente fugiria de todos os olhares,
merecidamente se envergonharia dos próprios anjos.
Mas, que dizemos? Não é possível que na suprema
majestade exista algo pelo qual não possa gloriar-se e
pelo qual não possa ser glorificada. De outra forma, onde
estaria a plenitude de sua glória? Pois ali, conforme já
havíamos demonstrado, não pode faltar nenhuma
plenitude. Porém, o que pode haver de mais glorioso, o
que pode haver de mais magnificente do que nada possuir
que não se queira comunicar? Consta, por conseguinte,
que, naquele indeficiente bem e sumamente sábio
conselho, tanto não pode encontrar-se a avarenta reserva,
como não pode haver uma desordenada efusão. Eis,
portanto, que tens a descoberto que, como podes vê-lo,
66
naquela suma e suprema excelsitude, a própria plenitude
da glória obriga a que não falte o consorte da glória.
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ter que não queiras comunicar. A pessoa que for
sumamente boa não quererá, portanto, carecer do
consorte de sua majestade. Sem dúvida, porém, para
aquele cuja vontade for onipotente, será coisa necessária
que seja tal qual quiser sê-lo. Aquele que, entretanto,
tiver uma vontade imutável, irá querer para sempre o que
tiver querido uma só vez. É necessário, portanto, que a
pessoa eterna tenha outra pessoa coeterna, nem uma terá
podido preceder a outra, nem uma suceder a outra; pois
naquela eterna e imutável divindade nada poderá mudar
como se se tornasse antiquado, nem tampouco nada de
novo poderá sobrevir-lhe. É impossível, por conseguinte,
que as pessoas divinas não sejam coeternas. Onde,
portanto, existir a verdadeira divindade, ali haverá a
suma bondade, ali haverá a plena bem-aventurança. A
suma bondade, conforme foi dito, não pode existir sem a
perfeita caridade, nem a perfeita caridade sem a
pluralidade de pessoas. A plena bem-aventurança,
porém, não pode existir sem a verdadeira
incomutabilidade, nem a verdadeira incomutabilidade
sem a eternidade. A pluralidade das pessoas exige a
verdadeira caridade, a eternidade das pessoas a
verdadeira incomutabilidade.
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caridade aquele que for sumamente amável segundo a
medida daquele sumo discernimento. Mas a propriedade
do amor nos mostra que não será possível existir um
sumo amante se o sumamente amado não retribuir o
amor. Dste modo, a plenitude da caridade exige que, no
amor mútuo, ambos sejam sumamente amados pelo
outro e, por consequência, de acordo com a medida do
discernimento de que acima falamos, que ambos sejam
sumamente amáveis. Onde, portanto, ambos são
igualmente amáveis, é necessário que ambos sejam
igualmente perfeitos. É necessário, portanto, que ambos
sejam igualmente poderosos, igualmente sábios,
igualmente bons, igualmente bem-aventurados. Deste
modo, nos que se amam mutuamente, a suma plenitude
do amor exige a suma igualdade da perfeição. Assim
como, por conseguinte, na verdadeira divindade a
propriedade da caridade exige a pluralidade das pessoas,
assim a integridade da mesma caridade na verdadeira
pluralidade exige a suma igualdade das pessoas. Para que
sejam inteiramente iguais, porém, é necessário que sejam
inteiramente semelhantes, pois a semelhança pode ser
possuída sem igualdade, mas a igualdade nunca pode ser
possuída sem mútua semelhança. Aqueles que, de fato,
nada possuem de semelhante na sabedoria, como
poderão ser nela iguais? O que, no entanto, digo da
sabedoria, o mesmo afirmo da potência e o mesmo
encontrarás em todas as demais, se as percorreres
singularmente.
Ricardo de S. Vitor
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