Você está na página 1de 57

O AMOR DE DEUS,

O PAI NOSSO,
A SANTÍSSIMA TRINDADE,
O SACRIFÍCIO DA MISSA
E OS PADRES VITORINOS

Versão XVII
O AMOR DE DEUS, O PAI NOSSO,
A SANTÍSSIMA TRINDADE,
O SACRIFÍCIO DA MISSA
E OS PADRES VITORINOS

"Tu, pois, quando orares, entra no teu


quarto e, fechando a tua porta, orarás
ao teu Pai no oculto. E o teu Pai, que
vê no oculto, te recompensará."
Mt. 6, 6

Ricardo de São Vitor, falecido em 1173, e Hugo de São Vitor,


seu mestre, falecido em 1141, são mencionados, na obra "Redução
das Ciências à Teologia", do franciscano São Boaventura, entre os
principais teólogos da história da Igreja. A obra de Hugo de São Vitor
encontra-se nos volumes 155 a 157 da Patrologia Latina de Migne, e
a de Ricardo no volume 196.
Entre os escritos de Ricardo de São Vitor há um Tratado sobre
a Santíssima Trindade, dividido em seis livros. No final desta
exposição encontra-se um anexo, contendo seis dos vinte e cinco
capítulos do Livro III do Tratado sobre a Santíssima Trindade. O
anexo é precedido de um preâmbulo, retirado das obras de Hugo,
sobre a natureza da fé. O Tratado foi evidentemente escrito por um
autor que viveu os preceitos da fé, conforme haviam sido ensinados
por Hugo, que derivam dos ensinamentos de Cristo.
O texto de Ricardo de S. Vitor, como anuncia o título, trata
sobre o mistério da Santíssima Trindade. É algo sublime. Exige
muito mais do que uma simples leitura. Uma rápida passada de olhos
não permitirá descortinar toda a sua profundidade.
Mas nossa exposição sobre o assunto começa muito tempo

1
antes. Começa bastante antes do século XII. Começa na época em
que Moisés recebeu de Deus a incumbência de libertar o seu povo do
Egito e avisá-lo que o próprio Senhor estava empenhado em sua
libertação. Naquela ocasião Moisés perguntou ao Senhor: "Se eles
me perguntarem, qual é o teu nome? O que deverei dizer-lhes?" Deus
lhe respondeu: "Dize que o meu nome é: 'Eu sou Aquele que é'. Este
é o meu nome. Tu, Moisés, irás falar ao Faraó e ao meu povo em
nome de 'Aquele que é'. Este é o meu nome. Fala em meu nome".
Moisés então se dirigiu ao Egito para libertar o povo de Deus em
nome de "Aquele que é".
Depois disso, passou-se mais de um milênio. O Verbo se fez
carne e anunciou-nos o Evangelho. Quando estava para subir aos
céus, ordenou aos apóstolos que anunciassem a libertação aos
homens, em todo o mundo. Tratava-se, agora, da verdadeira
libertação. A que havia acontecido no Egito era apenas uma figura.
Tratava-se da libertação que tem origem em um manancial de
verdadeira vida. E, assim como havia acontecido no episódio de
Moisés, Jesus disse então aos Apóstolos: "Ide e ensinai todas estas
coisas". Mas, em nome de quem?
Nessa ocasião Jesus não disse que o deveriam fazer em nome
de "Aquele que é". Seria de se esperar que o tivesse dito. Seria de se
esperar que, assim como Deus outrora havia falado a Moisés, Jesus
também assim o dissesse: "Anunciai a todos que 'Aquele que é'
ordena agora libertar não apenas o seu povo, mas todos os homens".
Mas, em vez disso, Jesus estava dizendo: "Ide e libertai o povo
para a verdadeira vida. Não me refiro à escravidão do Faraó. Estou
falando daquela que é a verdadeira vida. Fazei isto em nome da
Trindade, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo". Jesus não
falou em nome de "Aquele que é". Falou, em vez disso, em nome do
"Pai, do Filho e do Espírito Santo".
Durante a sua vida Jesus também havia falado inúmeras vezes
sobre estas três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

2
Jesus mencionava a todo momento o nome do Pai. Quando
lemos o Evangelho, costumamos pensar que "Pai" é um nome
carinhoso que Jesus usava para se referir a Deus. Pensamos que Ele
talvez quisesse dar a entender que Deus, em vez de ser um Juiz
Implacável, seria um Pai Amoroso. Mas, embora em certos
momentos isto realmente aconteça, na maioria das vezes não é neste
sentido que Jesus está se referindo ao Pai. Quando está falando do
Pai, na maioria das vezes, Jesus não está falando de Deus em sua
unidade, mas está falando da primeira pessoa da Santíssima Trindade.
Ele está se referindo a uma das três pessoas da Santíssima Trindade.
Em outros momentos, quando Jesus fala dele mesmo, não está
se referindo a si mesmo apenas em sua humanidade, mas enquanto
Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Assim é quando Ele diz:
"Eu te agradeço, ó Pai, porque escondeste estes ensinamentos dos
sábios e dos entendidos e os revelaste aos pequeninos, porque
ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai
senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar" (Mt. 11, 25-
27).
Em outro momento, quando Jesus diz ser o caminho, a verdade
e a vida, e que ninguém vai ao Pai a não ser por Ele, também está se
referindo a si mesmo como a uma das pessoas da Trindade, ainda que
o faça sob o manto do mistério da Encarnação.
E quando Jesus diz na Última Ceia: "Eu vou para o Pai,
enviarei o Espírito Santo e vós deveríeis alegrar-vos por eu ir para o
Pai, porque o Pai é maior do que eu" (Jo. 14, 28), o próprio Santo
Tomás de Aquino, no seu Comentário ao Evangelho de São João,
reconhece que Jesus aí está falando de si mesmo não apenas
enquanto homem, mas também enquanto Deus. Jesus está nos
dizendo, diz S. Tomás de Aquino, que o Pai é maior que o Filho não
apenas enquanto homem, mas também, em certo sentido, enquanto
Verbo de Deus. Não obstante o Pai e o Filho serem um só Deus, e
que nisto não haja qualquer superioridade, o Pai é maior do que o

3
Filho no sentido em que o Filho, ou o Verbo, é gerado pelo Pai, mas
o Pai, ele mesmo, não procede de nenhuma outra pessoa [1].
É neste sentido especial, segundo também ensina S. Tomás de
Aquino na Summa Theologiae, que o Pai é princípio da Santíssima
Trindade. E é neste sentido que, apesar do Pai, do Filho e do Espírito
Santo serem todos os três um só Deus e, como ainda explica S.
Tomás, as três pessoas serem iguais "em poder, eternidade e
grandeza", o Pai é maior que o Filho e que o Espírito Santo. É maior,
porém, apenas enquanto o Filho procede do Pai, e enquanto o
Espírito Santo procede do Pai e do Filho [1].
É extraordinária a riqueza de detalhes com que o Novo
Testamento fala das três pessoas da Trindade. E chamo aqui a
atenção que não é apenas Jesus que chama o Pai de Pai. São Paulo
diz, na Epístola aos Romanos, que nós não sabemos como rezar, mas
que o próprio Espírito Santo é quem no-lo ensina, clamando em
nossa alma e chamando-o de Pai (Rom. 8, 15). O próprio Espírito
Santo reconhece, melhor do que nós, o Pai como Pai, e nos ensina
como dirigirmo-nos a Ele. Entre outras coisas, isto significa também
que é o Espirito Santo quem nos ensina como rezar o Pai Nosso.

__________________________________________________________________________________________

[1] Estas são as palavras de S. Tomás de Aquino: "Cristo consola os Apóstolos quando
lhes diz: 'Se me amaram, também vos alegrareis'. Como se dissesse: 'Se me amais, não
deveis entristecer-vos; em vez disso, deveis alegrar-vos por minha partida, pois serei
exaltado, já que vou para o Pai, que é maior do que eu'.
Mas Ário o insulta por meio destas palavras, dizendo que o Pai é maior do que o
Filho. Seu erro pode ser removido pelas próprias palavras do Senhor. Pelo seu próprio
sentido, assim como se deve entender 'vou para o Pai', assim também se deve entender
que 'o Pai é maior do que eu'. O Filho não vai para o Pai, nem vem a nós, enquanto Fiho
de Deus, pois sob este aspecto esteve com o Pai desde toda a eternidade, conforme lemos
no primeiro capítulo [do Evangelho de São João]: 'No princípio era o Verbo, e o Verbo
estava junto de Deus'. Mas é dito ir ao Pai segundo a natureza humana. Assim,
portanto,quando diz que é 'maior do que eu', não o diz enquanto Filho de Deus, mas
enquanto filho do homem, segundo o que não somente é menor do que o Pai e o Espírito
Santo, mas também que os próprios anjos, segundo o que encontramos escrito na

4
Contudo, em todo o Novo Testamento, não existe uma
declaração formal do que seja aquilo que conhecemos hoje pelo
nome de Mistério da Santíssima Trindade. Em nenhum momento o
Novo Testamento se refere a um mistério ao qual é dado o nome de
"Mistério da Santíssima Trindade", e que consiste na existência de
três pessoas em um só Deus, que as pessoas são realmente distintas
mas são um só Deus, e que estas pessoas são o Pai, o Filho e o
Espírito Santo. O Novo Testamento nem sequer declara que o Pai, o
Filho e o Espírito Santo são pessoas. Nem que, enquanto pessoas, a
segunda procede da primeira e a terceira procede das duas primeiras.
Tudo isto realmente pode ser concluído das inúmeras afirmações do
Novo Testamento, mas não há, no Novo Testamento, nenhuma
declaração concisa que contenha esta síntese, embora o mistério seja
mencionado a todo o momento.
Na Epístola aos Efésios, logo no seu início, São Paulo diz:
"Bendito seja o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou
com todo tipo de bênçãos espirituais em Cristo, para sermos santos
e irrepreensíveis diante dele no amor" (Ef. 1, 3-4). Nesta passagem, e
no restante do capítulo, apesar do Apóstolo estar falando de Cristo
em sua humanidade, ele está claramente se referindo ao Pai e ao
Filho como a pessoas distintas.
________________________________________________________________________________

Epístola aos Hebreus: 'Feito, por um pouco, menor que os anjos, vemos Jesus, por ter
padecido a morte, coroado de honra e glória' (Heb. 2, 9). Jesus também era submisso,
quanto a algo, a alguns homens, a saber, aos pais, como se lê no Evangelho de Lucas 2,
51. Assim, portanto, é menor do que o Pai segundo a humanidade; igual, porém, segundo
a divindade. Diz a Epístola aos Filipenses: 'Não considerou o ser igual a Deus, mas
esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de servo' (Fil. 2, 6-7).
Pode-se também dizer, com S. Hilário, que o Pai também segundo a divindade é maior
que o Filho, porém o Filho não é menor, mas igual. O Pai, de fato, é maior que o Filho
não pelo poder, pela eternidade e pela grandeza, mas pela autoridade de doador e de
princípio. Porque o Pai não recebeu nada de outrem. O Filho, porém, recebeu, por assim
dizer, a natureza do Pai pela geração eterna. O Pai, portanto, é maior, porque dá, mas o
Filho não é menor, mas igual, porque tudo o que o Pai possui, Ele o recebe. Diz a
Epístola aos Filipenses: 'Deus o agraciou com o nome que é sobre todo nome' (Fil. 2,
9). De fato, aquele a quem se dá o ser, já não é menor do que o que dá" (S. Thomae
Aquinatis: In Evangelium Sancti Joannis Commentaria, Caput XIV, Lectio VIII).

5
Nas cartas dos primeiros cristãos encontramos passagens
semelhantes. Santo Inácio de Antioquia, que citamos várias vezes em
outras ocasiões, discípulo pessoal de São João, que também conheceu
a Virgem Maria e de cujo encontro com ela teria resultado sua
conversão final a Cristo, deixou escrito, próximo à sua morte, uma
carta à Igreja da Magnésia. Esta e outras cartas de Santo Inácio
podem ser encontradas no site cristianismo.org.br. A Magnésia era
uma cidade situada onde hoje é a Turquia. Os que moravam na
Magnésia eram chamados de magnésios. Na carta aos Magnésios há
uma passagem, aparentemente despretensiosa, mas muito
significativa, onde Inácio diz que "convém, segundo o poder de Deus
Pai, conceder ao bispo todo o respeito, não de fato a ele, mas ao Pai
de Jesus Cristo, o Bispo de todos" (Mag. 3, 1).
Notem o quanto esta passagem é extraordinária. Pelo nosso
modo comum de pensar do século XX e XXI, julgaríamos que Inácio
deveria ter dito que devemos dar todo respeito ao bispo não por causa
dele mesmo, mas "por causa de Jesus, o Bispo de todos". Mas ele
não está se referindo a Jesus como o Bispo de todos, mas ao "Pai de
Jesus Cristo", que é "o Bispo de todos". Está escrito assim:
"Convém, segundo o poder de Deus Pai, conceder ao bispo todo o
respeito, não de fato a ele, mas ao Pai de Jesus Cristo, o Bispo de
todos" (Mag. 3, 1).
É patente também como os primeiros cristãos distinguiam
claramente as pessoas umas das outras. Tinham consciência de quem
eram estas pessoas, por causa da intimidade com que Jesus falava
delas, pois Ele mesmo era uma delas e com elas vivia na Santíssima
Trindade desde toda a eternidade. Hoje faz dois mil anos que a
Segunda Pessoa assumiu uma natureza humana. O Verbo se fez carne
para que, pela obra da Encarnação, nos pudesse trazer de volta para o
consórcio com a Trindade. Veio conversar conosco e viver conosco.
Mas não foi apenas por empréstimo que tomou uma natureza
humana. Assumiu uma natureza humana sem abandonar a divina.
Continua com esta natureza humana e, através dela, quer unir-se a
nós pelas virtudes teologais da fé, da esperança e do amor.

6
E foi por este motivo, inclusive, que no Cristianismo o
matrimônio foi elevado a Sacramento, para que a união entre o
homem e a mulher batizados passasse a significar a união entre
Cristo e a Igreja, união esta que, por sua vez, é expressão da união
entre o Pai e o Verbo. Trata-se, portanto, de uma imagem que torna
visível, entre os homens, o próprio mistério da Trindade.
Tudo isto já havia começado a manifestar-se, na história do
povo judeu, muito antes do Cristianismo, embora aparentemente
Deus tivesse julgado não haver chegado o momento oportuno de
revelar escancaradamente algo tão sublime. No Antigo Testamento
Deus o fez apenas indiretamente para que, quando mais tarde o
revelasse claramente, não pudéssemos dizer que fosse uma novidade.
Já teria sido revelado, escrito e conhecido.
No Antigo Testamento, por exemplo, quando é narrada a
criação do homem, Deus fala no plural e diz: "Façamos o homem à
nossa imagem e semelhança" (Gen. 1, 26). Ele não diz, falando no
singular: "Farei o homem à minha imagem e semelhança". Ele fala
no plural. Mas por que Deus fala no plural? Com quem ele está
falando? É uma referência às pessoas da Trindade.
Mais tarde, depois do homem comer o fruto proibido, Deus diz:
"Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o
mal" (Gen. 3, 22). Deus fala em nome de "um de nós". O "Nós", em
seguida, expulsa o homem do Paraíso e impede o acesso para a
Árvore da Vida (Gen. 3, 24).
Muitos anos mais tarde, lemos que Deus falava com Abraão. A
história diz que, aos setenta e cinco anos de idade, Abraão recebeu
uma visita de Deus. Deus o elogia e lhe diz que terá um filho, apesar
da idade avançada de sua esposa. Impressiona o modo como o
diálogo flui com tão grande espontaneidade. Abraão não se espanta
com a voz de Deus e não lhe faz nenhuma pergunta do tipo: "Quem
está falando? Quem és tu? De onde vieste?" Tudo se dá com uma

7
espontaneidade tão evidente que se deve presumir que Abraão já
deveria ter uma intimidade com Deus que vinha de mais longa data.
Assim também ocorreu com a Virgem Maria, quando lhe apareceu o
anjo Gabriel. Ela não saiu correndo pedindo socorro porque alguém
havia entrado em sua casa. Foi tomada de perplexidade por causa do
conteúdo da saudação angélica, mas não se assustou com o Anjo,
porque certamente já devia estar acostumada com estas visitas.
Abraão, portanto, quando recebeu aquela revelação de Deus, já
devia ser íntimo de Deus. Possivelmente não foi aos setenta e cinco
anos que Deus se lhe havia manifestado pela primeira vez, mas talvez
tenha sido aos setenta e cinco anos a primeira vez que Deus lhe
tivesse prometido um filho. Mesmo assim, este filho só veio quase
vinte e cinco anos depois, quando Abraão completou noventa e nove
anos. Um detalhe importante na história é que Deus aparece várias
vezes a Abraão. E, em cada aparição, embora Deus lhe renove a
promessa do filho, o filho não vem. Abraão nunca duvidou da
promessa. Finalmente, aos noventa e nove anos, sua esposa
engravida. Foi depois disso que se deu o episódio de Sodoma e
Gomorra.
Diz então a Escritura que o Senhor veio visitar a terra para ver o
que estava sucedendo em Sodoma e Gomorra. Antes disso, porém,
passou primeiro pela casa de Abraão. A Escritura narra que eram três
os visitantes, mas que os três foram tratados por Abraão como se
fossem um só Senhor e não como três senhores. Abraão os trata como
"meu Senhor", e não como "meus Senhores". Abraão dirige-se aos
três como se fossem um e, depois que dois deles partem em direção
de Sodoma e Gomorra, Abraão começa a barganhar com o que fica
sobre quantos justos deveria haver nas cidades para que elas não
fossem destruídas. O que se depreende é que Abraão deveria ter tão
grande intimidade com Deus que Ele mesmo já se lhe teria revelado
em sua Trindade.
Mais adiante, quando Deus entrega a Moisés a Tábua dos Dez
Mandamentos, a Escritura diz que era o dedo de Deus quem escrevia

8
com fogo os mandamentos sobre as Tábuas. Não foi Moisés quem
escreveu os mandamentos sobre as tábuas. Era o dedo incandescente
de Deus quem esculpia os mandamentos sobre as tábuas. Santo
Agostinho comenta, no De Trinitate, que isto era uma figura do dia
de Pentecostes, quando línguas de fogo desceriam do céu e
escreveriam a Nova Lei não sobre tábuas de pedra, mas no coração
do homem.
A conclusão a que se pode chegar é que o Antigo Testamento
não quis falar abertamente sobre a Santíssima Trindade, mas quis
dizer o suficiente para que, quando mais tarde Cristo viesse para dela
falar abertamente, o mistério já estivesse anunciado há muito tempo.
Quando se revelou a Moisés, o Senhor não disse: "Eu sou o Pai, o
Filho e o Espírito Santo". Disse, em vez disso: "Eu sou Aquele que
é". Mas, quando veio o tempo da Nova Aliança, Cristo passou a falar
abertamente das pessoas como quem as conhecia desde toda a
eternidade. Meditando o Novo Testamento em sua totalidade,
podemos perceber a grandiosidade do mistério da Trindade.
Podemos, na história da Igreja, notar claramente épocas
distintas em relação ao modo como foi abordado o mistério da
Santíssima Trindade.
A primeira época é a época do testemunho direto de Jesus
quando fala intimamente das pessoas divinas. Jesus não nos deixou
uma teoria sobre a Trindade. Ele nos falava dela como quando nós
falamos de nossa casa e de nossa família. Quando nos referimos à
nossa esposa e a nossos filhos, não costumamos escrever um tratado
ou dar um curso. Simplesmente vamos apresentando quem são eles e
como eles são. É assim que Jesus falava desta realidade, e foi assim
que os primeiríssimos cristãos também o repetiram. Era assim que o
fazia Santo Inácio de Antioquia.
Chegamos, então, à época dos séculos II, III e IV, quando já
havia cessado a era apostólica. Os apóstolos haviam morrido, e
também os que tinham conhecido pessoalmente os apóstolos.

9
Foi a época em que muitos dos novos cristãos começaram a
fazer grande confusão sobre o tema. O que seriam as três pessoas?
Somente uma seria Deus, ou o seriam as três? Mas se fossem as três,
como então seria possível haver apenas um só Deus? E se era um só
Deus, como nEle poderia haver três pessoas? As três existiam desde
toda a eternidade, ou foram geradas no tempo, em algum momento
antes da criação do mundo? Muitos destes cristãos tinham
conhecimento da filosofia grega, o que tornava as perguntas mais
claramente formuladas mas, ao mesmo tempo, complicava esclarecer
as respostas. Mais ainda, até então ninguém havia dito que se tratava
de três pessoas, falava-se apenas de Pai, de Filho e de Espírito Santo.
Quando foi sugerido que poderiam ser três pessoas, começou uma
discussão sobre o que significaria exatamente o termo "pessoa" e se,
na questão da Santíssima Trindade, seria correto utilizar a palavra
"pessoa", já que as próprias Escrituras não a utilizavam.
Entramos, assim, em um tempo onde se iniciou um grande
debate, um dos mais acalorados e prolongados debates que houve na
história, um debate de que podemos ter um primeiro conhecimento
sobre seu desenvolvimento consultando um texto cujo título é "A
Santíssima Trindade nos Santos Padres dos Primeiros Séculos",
encontrado no site cristianismo.org.br. Ali encontramos uma resenha
da polêmica e dos debates sobre a Santíssima Trindade nos séculos
II, III e IV.
O que se pode entender é que, se na época dos Apóstolos o tema
havia sido tão evidente que ninguém o questionava, já não acontecia
mais o mesmo com os recém-convertidos dos séculos seguintes, que
começaram a levantar dúvidas sobre dúvidas a respeito do assunto.
Dúvidas sobre o que o mistério significaria, não sobre a sua
realidade. Sobre esta realidade ninguém duvidava. Tratava-se, em vez
disso, de dúvidas atrozes como esta: "Não se questiona que há um
Pai, um Filho e um Espírito Santo; mas, se há um só Deus, não
estaria evidente que estas três pessoas não podem ser divinas,
porque então haveria três deuses?" Mas neste caso, surgiria outra

10
dúvida: "O que seriam, então, duas das três pessoas? Poderia ser,
talvez, que o Deus do Antigo Testamento tivesse sido apenas o Pai?"
Alguns levantaram a hipótese segundo a qual a segunda e a terceira
pessoa não teriam sempre existido desde toda a eternidade. Teriam
surgido no tempo. Teria havido, então, um tempo em que Deus esteve
sozinho. Nesta época Ele teria sido somente o Pai. Quando o Pai,
finalmente, decidiu criar o mundo, teria então criado primeiro o
Filho, para através dele criar o mundo. Teorias como estas, com
muitas variantes, começaram a se espalhar por toda a cristandade.
Sobre este pano de fundo os santos padres, que mais profundamente
meditavam no Novo Testamento e que conduziam uma vida
espiritual mais elevada, começaram a trazer luz à discussão, sem
deixar de atender às novas exigências de precisão da Filosofia Grega.
Pouco a pouco, começava a ficar claro, para todos, o que o Novo
Testamento realmente queria dizer.
Durante o processo, por volta do ano 250, Orígenes, um
catequista de Alexandria, empreendeu uma longa viagem
percorrendo todas as igrejas mais antigas da cristandade que haviam
sido fundadas pelos apóstolos, inclusive e principalmente a de Roma.
Seu objetivo era investigar o que realmente naquelas igrejas havia
sido ensinado desde a era apostólica. Desta viagem resultou a obra
"Os Princípios", que nos foi conservada em grego e latim, dividida
em quatro livros. Os três primeiros livros tratam basicamente dos
temas que hoje compõem o Credo. O quarto livro trata
exclusivamente do que os apóstolos haviam ensinado, desde os
primórdios do cristianismo, sobre as Sagradas Escrituras e sobre o
papel da sua meditação no desenvolvimento da vida espiritual. A
Igreja, de fato, durante todo o primeiro milênio, foi tomada por um
amor extraordinário à meditação das Sagradas Escrituras, tão
evidente nos escritos de nomes como Santo Agostinho, São João
Crisóstomo, São Ruperto, Hugo e Ricardo de São Vitor, e centenas
de outros. Segundo o testemunho de Orígenes, este amor
extraordinário às Escrituras remonta aos ensinamentos deixados
pelos apóstolos em todas as igrejas diretamente fundadas por eles.

11
Até hoje isto é muitíssimo evidente para todos os que estudam
seriamente os escritos dos Santos Padres do primeiro milênio. É
também um tema que foi recentemente resgatado para a Igreja pela
Constituição "Dei Verbum" do Concílio Vaticano II.
No fim deste longo processo, chegou-se à redação do Credo,
elaborado pelos Concílios de Nicéia e Contantinopla no século IV. É
um Credo claramente trinitário. É o Credo que hoje todos nós
conhecemos e que diz: "Creio em um só Deus, Pai todo poderoso,
criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. E
em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho unigênito de Deus, nascido do
Pai antes de todos os séculos. Deus de Deus, Luz da Luz, Deus
verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não criado, consubstancial
ao Pai, por Ele todas as coisas foram feitas", etc..
Assim, todo este período culminou nos Concílios de Nicéia e
Constantinopla, quando se chegou a um consenso sobre o que
realmente o Novo Testamento quis dizer e que a Igreja havia
cuidadosamente preservado, impedindo que se pervertesse. Desfeitas
todas as posições incompatíveis com o ensinamento neo-
testamentário, a partir daí os santos padres buscaram penetrar mais
profundamente no que se escondia no mistério da Santíssima
Trindade. O Credo havia sido redigido para eliminar os erros mais
evidentes, mas estava claro que o mistério era mais profundo. Em
consequência, através de uma busca sublime e incessante, foram
surgindo grandes luminares na história da Igreja. São Gregório
Nisseno foi, no Oriente, um destes grandes luminares. No Ocidente
surgiu Santo Agostinho, que foi o mais importante de todos os
primeiros santos padres a escrever sobre a Santíssima Trindade. Foi
Agostinho quem escreveu o Tratado sobre a Santíssima Trindade. É
um livro que todos deveríamos ler. Não é um livro fácil. Teríamos
que lê-lo muitas vezes, e várias vezes durante a vida. É uma obra
prima. Santo Agostinho diz que escreveu esse livro porque não podia
recusar-se a atender aos pedidos insistentes dos fiéis que o
assaltavam, querendo que lhes explicasse o mistério da Santíssima

12
Trindade. Por este motivo, por amor aos seus fiéis, além de seu
próprio amor ao mistério da Trindade, Agostinho passou anos e mais
anos meditando para escrever a obra.
Sobre Santo Agostinho e a Santíssima Trindade narra-se a
história de um menininho que, em uma praia, levava água do mar em
um balde para derramá-la em um buraco feito no chão. Não longe
dali, Agostinho meditava na Trindade, quando viu o menino.
Aproximou-se dele e lhe perguntou: "O que estás fazendo? Estás
recolhendo água do mar há bastante tempo, e a derramas neste
buraco feito no chão. O que pensas em fazer?" O menino respondeu:
"Muito simples. Não percebeste? Quero recolher toda a água do
oceano e colocá-la aqui neste buraco". Agostinho replica: "Mas meu
menino, não entendes que é uma tarefa impossível? Nunca
conseguirás encher este buraco com a água do oceano". Neste
momento o menino teria feito um sorriso e treplicado: "É verdade,
tens razão. Todavia, trata-se de algo muito mais simples do que a
inteligência humana compreender a Santíssima Trindade". Ouvindo
isto, e visivelmente surpreendido, Agostinho teria desistido de seu
projeto. Esta é a história.
A história é encantadora e tem muito a nos ensinar. O problema,
porém, é que provavelmente nunca aconteceu. Santo Agostinho não a
menciona nas suas obras. Ele também nunca se envergonhou ou se
arrependeu de ter meditado sobre a Santíssima Trindade. Muito pelo
contrário, só chegou a publicar a obra em vida porque, depois de
catorze anos de meditação, um ladrão que sabia que ele a estava
escrevendo e não podia mais esperar por tantos anos para lê-la,
invadiu a casa do bispo e roubou os rascunhos. Roubou-os para fazer
cópias e distribuí-las, mesmo incompletas, fosse qual fosse o modo
como a obra se encontrasse. Em vista disso, e com medo que o
manuscrito se espalhasse ainda em estado de rascunho e contendo
erros, Santo Agostinho se viu obrigado a concluir a obra mais
rapidamente.
Vamos, então, recapitular nossa narrativa. No Antigo

13
Testamento temos alusões indiretas à Trindade. Depois, no Novo
Testamento, Jesus se refere à Santíssima Trindade como se fosse
alguém falando de sua própria família. Em seguida, temos um
período em que os apóstolos haviam morrido e muitos recém-
convertidos, que não tinham a profundidade dos primeiros tempos,
nem tampouco gozavam do convívio com os apóstolos e com os que
com eles haviam tratado, começaram a especular teorias absurdas
sobre a Trindade, obrigando a Igreja a corrigi-los, até que, por fim,
chegamos aos Concílios de Nicéia e de Constantinopla, os primeiros
concílios ecumênicos da história da Igreja, pelos quais se promulgou
o Credo Niceno Contantinopolitano, para que ficasse claro a todos
qual fosse a autêntica posição da Igreja a este respeito.
A partir daí começou uma nova etapa. Uma vez que os erros
mais evidentes já estavam claramente apontados, passou-se a meditar
mais a fundo no mistério, mergulhando onde os que haviam
introduzido os primeiros erros, já claramente entendidos como
primários, não teriam tido condições de aprofundar. No Oriente São
Gregório Nisseno o fez de maneira brilhante. Santo Agostinho
também o fez no Ocidente. Mais tarde, no Oriente, São João
Damasceno escreveu o livro 'A Fé Ortodoxa', onde introduziu alguns
capítulos extensos sobre a Santissima Trindade que são um primor de
profundidade. São João Damasceno conseguiu sintetizar o que a
Igreja no Oriente havia meditado a esse respeito durante os 800
primeiros anos da era cristã. É uma referência extraordinária do
pensamento cristão sobre a Santíssima Trindade.
Ainda mais tarde, nos anos 1100, surgiram os padres vitorinos,
principalmente Hugo e Ricardo de São Vitor. Hugo de São Vitor
retomou o tema do ponto onde Santo Agostinho havia parado. Hugo
de São Vitor talvez não conhecesse, ou talvez não conhecesse bem
São João Damasceno. Em seus escritos São João Damasceno nunca é
mencionado. Hugo de São Vitor tentou mostrar mais claramente o
que Santo Agostinho havia querido explicar. No Tratado dos Três
Dias, que se encontra disponível no site cristianismo.org.br, Hugo

14
desenvolve, em linguagem mais simples, o conteúdo central do De
Trinitate de Santo Agostinho. Mas, na aparente simplicidade de sua
linguagem, Hugo prossegue para além do ponto onde Agostinho
havia se detido. E, quando Hugo morreu, Ricardo de São Vitor, o
melhor de seus alunos, aprofundou o comentário do Tratado dos Três
Dias de Hugo em duas direções diversas. Uma destas direções está
no Tratado da Arca da Aliança, onde Ricardo, aprofundando o
esquema traçado por Hugo no Tratado dos Três Dias, busca explicar
o que é, e como se dá, a contemplação. A outra direção está no
Tratado da Santíssima Trindade.
O Tratado dos Três Dias de Hugo de São Vitor é um dos
escritos mais belos que já se redigiram na história da humanidade.
Pode ser considerado um protótipo da estética medieval. Para além
da profundidade do conteúdo ali apresentado, pode-se pensar no
Tratado dos Três Dias como um artista que tivesse pintado em tela
ou transformado em sinfonia o De Trinitate de Santo Agostinho, não,
porém, com tinta ou notas musicais, mas com ideias abstratas,
fervilhando em inacreditável harmonia em todas as suas linhas,
imitando a ordem da criação, quando esta nos espelha a grandeza, a
sabedoria e a bondade do Criador.
Foi este Tratado dos Três Dias que posteriormente se bifurcou
na obra de Ricardo de São Vitor.
Hugo de São Vitor havia aprofundado o De Trinitate de Santo
Agostinho no Tratado dos Três Dias. Mas, partindo do Tratado dos
Três Dias, em seguida operou-se uma bifurcação na obra de Ricardo
de São Vitor. No Tratado da Arca da Aliança, Ricardo desenvolve o
conteúdo do Tratado dos Três Dias no que diz respeito à
contemplação. E, no Tratado da Santíssima Trindade, Ricardo faz o
mesmo com o conteúdo do Tratado dos Três Dias no que diz respeito
à Santíssima Trindade. Os dois temas, que estavam unidos no
Tratado no Tratado dos Três Dias, foram abordados separadamente
na obra de Ricardo. Por que motivo? Por que Ricardo de São Vitor
resolveu separá-los?

15
Se os dois temas estavam unidos em Hugo de São Vitor, isto se
deu porque o que a contemplação é para os santos, também é, de um
modo análogo e mais sublime, a Santíssima Trindade para a vida
divina. Não é pouca coisa. O que a contemplação é para os santos, é
a Santíssima Trindade para a vida divina. Mas, se é assim, a partir da
contemplação, pode-se ter um vislumbre da Santíssima Trindade. Os
dois temas, portanto, podem ser vistos como dois aspectos de um
mesmo tema.

Pode-se dizer que nos céus, onde dizemos, no Pai Nosso, que
está o Pai, quando dizemos "Pai Nosso, que estais nos céus", Deus
vive de modo análogo à vida experimentada pelos santos quando
estão em contemplação, e que esta contemplação em Deus é a
Santíssima Trindade. Ou que, vice versa, quando os santos, na quinta
morada descrita por Santa Teresa de Ávila no livro Castelo Interior,
alcançam a contemplação infusa, estão experimentando um ínfimo
fragmento da bem-aventurança da Santíssima Trindade.

No desenvolvimento da vida interior, a contemplação ocorre


depois que é atravessada uma porta estreita, situada logo antes do que
Santa Teresa chama, no mesmo livro, de quartas moradas. "Entrai
pela porta estreita. Estreita é a porta, e apertado é o caminho que
conduz à vida", diz Jesus. "E poucos são os que o encontram" (Mt. 7,
13-14).

Sob outra figura, a mesma porta estreita é descrita por São


Paulo na Epístola aos Hebreus, quando diz que "tomados pela
esperança, firme e segura âncora da alma, entramos para o interior
do véu do tabernáculo, onde Jesus entrou por nós como precursor"
(Hb. 6, 19-20). Segundo São Paulo, esta entrada se dá intermediada
pela esperança, pela qual ele afirma, em outro lugar, que "somos
salvos" (Rom. 8, 24). Trata-se também de uma esperança pela qual,
ainda no dizer de São Paulo, "o amor de Deus é derramado, pelo
Espírito Santo, em nossos corações" (Rom. 5, 5).

16
A entrada nas quartas moradas, descritas por Santa Teresa no
Castelo Interior, se dá quando, por obra da graça do Espírito Santo,
que é dado aos que creem em Cristo, e que Santo Tomás de Aquino
diz que é "o principal que há no Evangelho, e no qual consiste toda
a sua força" (ST, IIa IIae 106 a.1), surgem em nós os rios de água
viva que são mencionados por Jesus no sétimo capítulo do Evangelho
de São João: "Quem crê em mim, como diz a Escritura, de suas
entranhas correrão rios de água viva" (Jo. 7, 38). E o evangelista
acrescenta, explicando: "Jesus falava do Espírito Santo que deviam
receber os que nele cressem" (Jo. 7, 39). A água viva, mencionada no
Evangelho, é uma expressão de um amor superabundante que se
realiza sob a ação dos dons do Espírito Santo. É a este amor que
Jesus se referia quando dizia: "Vim espalhar um fogo sobre a terra, e
que mais desejo eu senão que se acenda?" (Lc. 12, 49).
São também estes rios de água viva aqueles a que São Diádoco
se referia, quando escrevia: "Uma é a caridade natural da alma,
outra aquela que pelo Espírito Santo lhe é infundida. Aquela que
está em nós, quando queremos, se move com moderação pelo afeto
de nossa vontade; a divina, porém, incendeia de tal forma a alma à
caridade, que vence e une entre si, por uma infinita simplicidade e
sinceridade de afeto, todas as partes e as faculdades da alma na
bondade do desejo celeste" (S. Diádoco de Fócia: Capitulos sobre a
Perfeição; Migne, PG 65).
Estes rios de água viva são o amor que é descrito na Epístola
aos Romanos quando São Paulo menciona aquele "amor de Deus que
foi derramado pela esperança em nossos corações, pelo Espírito
Santo que é dado" aos que creem em Cristo (Rom. 5, 5). São Paulo
também diz, no oitavo capítulo da Epístola aos Romanos: "São filhos
de Deus todos aqueles que são movidos pelo Espírito de Deus"
(Rom. 8, 14). É este Espírito Santo que move os filhos de Deus e
produz a contemplação. É uma vivência supereminente da fé unida à
caridade, movida pelo Espírito Santo, que introduz os homens
naquela forma superior de contemplação, associada ao dom de

17
sabedoria, pela qual se lhes manifesta a verdade e se tornam livres
(Jo. 8, 31) [2]
Em Deus ocorre uma coisa análoga, mas muito mais sublime.
Em Deus estes rios de água viva são o Espírito Santo, uma expressão
do amor entre o Pai e o Filho, que procede de ambos e perfaz a
unidade que há na Santíssima Trindade, assim como nos santos a
contemplação é expressão de sua união com Deus. A Santíssima
Trindade é, em Deus, o análogo do que é, nos santos, a
contemplação. E nos santos a contemplação é uma migalha
infinitamente pequena da bem-aventurança da Santíssima Trindade.
A Santíssima Trindade é Deus em contemplação, ou é a
contemplação de Deus.
Quando me refiro aos santos, estou me referindo aqui à
santidade heroica, a que deriva da contemplação. As virtudes
extraordinárias que admiramos nos maiores santos da Igreja não
surgiram porque estes homens se exercitaram dia e noite até adquirir,
_______________________________________________________
[2] Pode-se depreender, pelas expressões de S. Paulo, que o encontro
supereminente da fé e da caridade que se dá na contemplação, através da graça
do Espírito Santo, que é precedido pelos rios de água viva, é precedido, por sua
vez, por uma grande esperança, que é diversa da esperança dos iniciantes. Na
Summa Theologiae, S. Tomás de Aquino distingue entre a esperança na ordem da
geração e a esperança na ordem da perfeição. Na ordem da geração, a
esperança precede o amor mas, na ordem da perfeição, a esperança segue o
amor e é causada por ele (ST., Ia IIae, 82 a.4; IIa IIae, 17 a.8). É esta
esperança que, ensina S. Paulo, atravessa a porta estreita e permite que os rios
de água viva do Espírito Santo nos conduzam à unidade da fé e do amor que se
dá na contemplação. O desenvolvimento desta esperança, "a pressa em conduzir
à plenitude a esperança, até à perfeição" (Heb. 6, 11), é o objetivo do livro do
Apocalipse, como fica evidente em seu último capítulo (Ap. 22). "O testemunho
de Jesus tornou-se firme em vós", diz S. Paulo, "que esperais a revelação (no
original, o 'apocalipse') de Nosso Senhor Jesus Cristo" (I Cor. 1, 7). É a esta
esperança que se refere também a Regra de São Bento, quando diz: "Apodera-se
deles o desejo de caminhar para a vida eterna, por isso lançam-se como que de
assalto ao caminho estreito do qual diz o Senhor que conduz à vida" (Regra de
São Bento, C. 5).

18
apenas pela mera repetição do exercício, aquelas virtudes. Elas foram
alcançadas através da união da fé e da caridade na contemplação. As
virtudes heroicas não podem ser senão consequência da
contemplação. E assim como o homem alcança a plenitude da
filiação divina pela contemplação, assim também Deus é Deus
porque é Trindade. A Trindade e a contemplação são, portanto,
realidades intimamente relacionadas, embora análogas.
Foi para poder mostrar melhor que não eram lados iguais de
uma mesma moeda, vendo o manancial de profundidade que estava
contido no Tratado dos Três Dias de Hugo de São Vitor, que Ricardo
decidiu separar os dois temas. Decidiu tratar, no Tratado da Arca da
Aliança, sobre a contemplação. E tratar, no Tratado da Santíssima
Trindade, sobre a Trindade. Seguiu, porém, em ambos, a linha
traçada no Tratado dos Três Dias. Se Hugo, seu professor, havia
conseguido tratar ambos os temas simultaneamente, Ricardo talvez
não mais conseguisse fazê-lo, se quisesse entrar nos detalhes.
Depois de Hugo e Ricardo de São Vitor, veio Santo Tomás de
Aquino, que foi o maior de todos os que abordaram o tema da
Trindade. Não há como dizer em poucas palavras o que Santo Tomás
fez ao tratar sobre a Santíssima Trindade. É a parte mais complexa de
toda a sua obra e precisaríamos de semanas para começar a explicá-
la. Mas, de pouco em pouco, é possível desenvolver o tema. Santo
Tomás conseguiu unir, em uma síntese, a visão da Santíssima
Trindade que vinha do Ocidente, de parte de Santo Agostinho, com a
que vinha do Oriente, de parte de São João Damasceno. O tema é
muito profundo. A maioria das pessoas que leem a Summa, e mesmo
muitos daqueles que a estudam, não chegam a perceber o alcance do
que diz Santo Tomás.
Espero que estejam acompanhando este breve esquema de
síntese histórica que estamos fazendo.
No Antigo Testamento havia alusões ao mistério da Trindade.
Deus frequentemente fala de si na primeira pessoa do plural e

19
aparece para Abraão como três pessoas. Abraão as trata como se
fossem um. Na confecção das tábuas da lei, o Espírito Santo aparece
veladamente.
Depois, Jesus fala da Santíssima Trindade com tamanha
intimidade que não precisa explicá-la por meio de nenhuma síntese.
Somos nós que precisamos assimilar todas as suas falas e os
testemunhos dos apóstolos para começar a entender o que aquele
conjunto significa. À medida que crescemos na vida espiritual e nos
aproximamos da contemplação e, melhor ainda, se tivermos chegado
a ela, as coisas se tornam muito mais claras, porque a contemplação
é, ela mesma, uma imagem da Santíssima Trindade. Jesus mesmo o
disse: "Quando vier o Paráclito, que vos enviarei de junto do Pai, o
Espírito da verdade, que procede do Pai, ele dará testemunho de
mim. Ele me glorificará, porque receberá do que é meu, e vo-lo
anunciará. Tudo o que o Pai tem é meu. Por isso eu vo-lo disse: ele
receberá do que é meu e vos anunciará" (Jo. 15, 26; 16, 14-5).
Assim como os santos se santificam pela contemplação, que é
"o pão nosso suprassubstancial" que pedimos no Pai Nosso [3],
Deus é Deus por ser Trindade. É aquele manancial de amor que está
na vida trinitária que faz Deus ser Deus. Se Deus não fosse Trindade,
Ele não seria Deus, e não poderia ter criado nem mesmo um grão de
areia. Não seria Deus, não existiria o Universo e nem tampouco
estaríamos vivos para entender que nada teria existido. Até mesmo
para existir
_______________________________________________________________________________

[3] No quarto pedido do Pai Nosso lemos: "O pão nosso suprassubstancial dai-
nos hoje" (Mt. 6,11). Esta passagem costuma ser traduzida para as linguas
modernas como "o pão nosso de cada dia dai-nos hoje". A palavra grega
"epiousios" costuma ser traduzida como "de cada dia", mas
"suprassubstancial" seria uma tradução mais correta. "Epiousios" é uma
palavra composta de "epi" + "ousios". "Ousia" significa "essência" ou
"substância". "Ousios" significa "substancial" e "epi" significa "supra".
"Epiousios" significa, portanto, "suprassubstancial". A Vulgata Latina de São
Jerônimo traduziu "epiousios" como "supersubstantialem": "Panem nostrum
supersubstantialem da nobis hodie".

20
um minúsculo grão de areia, Deus teria que existir e, se Deus não
fosse Trindade, Deus não existiria.
Por isto é que, do mesmo modo como os santos que não
contemplam não se santificam, assim também os homens que não
rezam não se salvam.
Deste pouco que dissemos é possível perceber também como
todas estas coisas estão profundamente interligadas.
Dissemos, então, que depois da época do Antigo Testamento,
houve outra época correspondente ao Novo Testamento. É ainda na
época do Novo Testamento que, em certo sentido, podemos colocar
os escritos de Santo Inácio de Antioquia. Apesar de suas cartas não
fazerem parte do Novo Testamento, de algum modo Santo Inácio
ainda vivia desta época. Inácio havia sido discípulo de São João
Evangelista e conheceu pessoalmente a Virgem Maria.
Seguiu-se, depois, outra época em que todos os que tiveram
acesso direto a Jesus ou aos apóstolos já haviam falecido. Muitos
recém-convertidos, sem ainda ter alcançado a devida estatura
espiritual e, frequentemente, sem a orientação de quem a tivesse,
iniciaram as mais diversas controvérsias sobre a Trindade, das quais,
uma vez iniciadas, não mais conseguiam desvencilhar-se. A Igreja
teve que submeter todas as incongruências que haviam se difundido
sobre a Trindade à sua consideração e, depois de muito trabalho, por
amor à fé da qual tinha recebido o depósito, chegou-se a um
consenso claro sobre as questões fundamentais, do qual resultou o
Credo Niceno-Constantinopolitano.
No período seguinte, já eliminados os erros mais elementares,
iniciou-se uma época de aprofundamento. Uma linha deste
aprofundamento foi a seguida no Oriente por São Gregório de Nissa
e São João Damasceno. Outra linha foi aquela seguida no Ocidente
por Santo Agostinho e os padres vitorinos que, na Idade Média,
seguiram a linha de Santo Agostinho. Já no final da Idade Média,
Santo Tomás de Aquino uniu em seus escritos e na Summa

21
Theologiae ambas as linhas. A profundidade com que Tomás tratou
da Trindade nos seus escritos é algo simplesmente extraordinário. É a
parte mais difícil dos seus escritos.
Lembro que dizia estas coisas para convidá-los a ler os poucos
capítulos do De Trinitate de Ricardo de S. Vitor que se encontram no
final desta exposição. Mas quero convidá-los também a tentar
entender o que ele está dizendo. Para isto pretendo dizer agora
alguma coisa sobre o De Trinitate de Ricardo de São Vitor.
Entre as coisas que Ricardo de São Vitor expõe em seu livro,
uma delas pode ser colocada da seguinte maneira. O mistério da
Trindade afirma que em Deus há três pessoas. Estas três pessoas são
um só Deus. E elas assim o são desde toda eternidade. Nunca
começaram e nunca acabarão. E estas pessoas não se separam. São
mais íntimas umas das outras do que qualquer coisa que possa ser por
nós concebida. São um só Deus, com uma só natureza, uma só
inteligência, uma só vontade, um só poder, uma só consciência.
Apesar de serem três pessoas, não é possível uma unidade maior do
que esta. Então, junto com Ricardo, somos convidados a refletir
sobre o que se segue disto.
Se cada uma dessas três pessoas é Deus, possuem uma
inteligência infinita. Ademais, contemplam-se e conhecem-se umas
às outras. E se nós, quando estivermos no paraíso, seremos felizes
para sempre porque contemplaremos a Deus eternamente face a face,
embora limitadamente, porque somos criaturas limitadas e, não
obstante, isto será a felicidade eterna, imaginem qual não deverá ser a
felicidade das próprias pessoas da Santíssima Trindade. Pois elas se
conhecem mais intimamente do que nós jamais conheceremos a
Deus, mesmo estando no Paraíso. As pessoas da Trindade podem
esgotar a Deus infinitamente e de uma maneira que nós não seremos
capazes de fazer, nem no Paraíso, e muito menos na contemplação.
Portanto, com certeza, a Santíssima Trindade é uma fonte de
felicidade inesgotável para as pessoas divinas.

22
E pode-se dizer ainda mais. Se alguém fosse capaz de ver um
espetáculo como o que é visto pelas pessoas da Trindade, se alguém
pudesse contemplar a extraordinariedade do que é Deus em toda a
sua infinitude, isto, com certeza, causaria um amor das mesmas
proporções. Um amor muito maior do que qualquer amor que nós
jamais concebemos, muito maior do que o amor de que viveram os
maiores santos da Igreja.
Neste ponto Ricardo de São Vitor diz que todos sabem que o
verdadeiro amor é amor por um outro. Não existe amor a si mesmo.
O amor a si mesmo é egoísmo. Hugo de São Vitor reconhece, no
Comentário à Epístola aos Romanos, que o homem recebeu um
preceito de amar a si mesmo, pois é-lhe ordenado amar o próximo
"como a si mesmo" (Lv. 19, 18). Mas amar a si mesmo, continua
Hugo, significa, na verdade, amar a Deus, pois somente pode amar a
si mesmo quem quer o bem para si mesmo, e o bem do homem é
Deus. Portanto, conclui Hugo, amar a si mesmo significa amar a
Deus. Quem não ama a Deus não se ama a si mesmo. É, na verdade,
o seu maior inimigo. Por conseguinte, até amar a si mesmo significa
amar a um outro. O verdadeiro amor é, portanto, por sua natureza,
um dar-se. E mais, o verdadeiro amor é o amor de amizade, que
significa não apenas dar-se a outro, mas também vice versa. Não
existe amor de amizade sem reciprocidade. Todos nós temos
experiência que, para amar, há que se amar outra pessoa e que, para
ser o verdadeiro amor, o amor de amizade, a pessoa amada tem que
amar em retribuição. Então, diz Ricardo, é evidente que se Deus é
uma inteligência tão grande da qual resulta um amor tão
proporcionalmente grande, Deus não poderia ser uma só pessoa,
porque neste caso Deus não experimentaria o verdadeiro amor, o
amor que Ele mesmo exige de suas criaturas como o maior de todos
os mandamentos.
Ricardo acrescenta que Deus não poderia experimentar a
infinitude do amor que, pela sua inteligência e natureza, lhe compete,
se amasse apenas as suas criaturas. Nós somos muito limitados para
esgotar o amor que Deus tem para dar. Por mais que Deus nos

23
amasse, Ele não nos poderia amar infinitamente. Ele não poderia dar-
nos a perfeita divindade. Deus não poderia dar-se infinitamente a
nenhum de nós. Mas no verdadeiro amor as pessoas se dão
inteiramente e de igual para igual. Por mais que alguém ame um
cachorro, um gato ou um passarinho, este nunca será o amor que
alguém poderá chegar a ter por uma esposa que seja digna de seu
marido e vice versa. Portanto, diz Ricardo de São Vitor, para
experimentar o verdadeiro amor, é necessário ter um igual.
É exatamente por este motivo, diz Ricardo de São Vitor, que
existe a Trindade. É porque Deus é amor. É por isso que Deus
preceituou que nós nos amássemos, e é por isso que pelo amor
alcançamos a contemplação. O amor é sempre um amor por um
outro, e o fato de haver um outro que nos corresponda é o que nos
traz a plena felicidade do amor. Seria incoerente que Deus nos tivesse
criado à sua imagem e semelhança e nos tivesse preceituado algo tão
sublime sem que Ele o experimentasse em Si mesmo. Teríamos que
concluir que, talvez Deus chegasse ao absurdo de invejar as criaturas
que Ele mesmo tivesse criado, um simples casal de passarinhos,
porque, elas sim, poderiam experimentar a felicidade de um amor,
ainda que finito, que para o próprio Deus seria inacessível.
Deve, portanto, haver entre as pessoas da Santíssima Trindade
um amor infinito, um amor mútuo, tão extraordinário, tão grande,
que nunca começou, nunca irá acabar, e que as pessoas divinas nunca
se cansarão de viver. As pessoas divinas nunca tiveram férias. Nunca
o Pai dirá ao Filho: "Meu Filho, agora o Pai vai passear. Espírito
Santo, dou-te suas semanas de licença; deixa-me um pouco sozinho
porque já faz uma eternidade que estamos juntos, preciso de um
pouco de descanso". Isto é uma impossibilidade. As pessoas divinas
nunca deixarão de se amar. Este é o verdadeiro amor.
Mas temos aqui alguma coisa ainda mais impressionante. Algo
em que Santo Agostinho não insistiu tanto, mas que vai naquela linha
que vem de São Gregório Nisseno, passa por São João Damasceno e
que depois se une em Santo Tomás de Aquino.

24
Os padres do Oriente ficaram muito impressionados quando
Jesus diz aos Apóstolos que deveriam alegrar-se por Jesus voltar para
o Pai, porque o Pai é maior do que ele. "Se me amaram", diz Jesus,
"terão se alegrado quando eu disse que vou para o Pai, porque o Pai
é maior do que eu" (Jo. 14, 18). E aqui Santo Tomás de Aquino,
quando escreve o Comentário ao Evangelho de São João e considera
o que Jesus queria dizer quando afirma que o Pai é maior que ele,
recolhe do pensamento de São Gregório de Nissa e de São João
Damasceno. Santo Tomás de Aquino diz que Jesus não falava apenas
enquanto homem, mas também porque, em certo sentido, também
enquanto Deus, o Pai era maior do que ele. Não porque o Pai fosse
mais Deus do que o Filho, já que os dois são um só Deus e o Filho
não é sua criatura, mas porque o Filho procede do Pai e, sob este
aspecto, o Pai é princípio da Santíssima Trindade.
Esta afirmação era algo que São João Damasceno havia
sublinhado de uma maneira muito forte em seus escritos. Há um
modo de ordem dentro da Santíssima Trindade. Não há desigualdade
entre as pessoas pela essência ou pela divindade, mas o Filho tem
certamente consciência que é gerado pelo Pai desde toda a eternidade
e o Pai tem consciência que gera o Filho desde toda a eternidade. Isto
faz com que o amor que há entre ambos seja um amor ao modo de
paternidade, por parte do Pai, e ao modo de gratidão filial, por parte
do Filho. A gratidão do Filho para com o Pai é infinita desde toda a
eternidade. O Filho sabe que é Deus e que é o mesmo Deus com o
Pai, e sabe que assim o é porque é gerado pelo Pai desde toda a
eternidade. Não é criado, não é produzido do nada. Sempre é gerado
pelo Pai desde toda a eternidade.
Não é assim que se dá entre os homens. Entre nós primeiro
geramos um filho e, depois de havê-lo gerado, a geração cessa e o
que existe entre ambos é uma relação real entre pai e filho e vice
versa. O ato da geração é diferente da relação que vem depois. Na
Santíssima Trindade ocorre que há esta relação desde toda a
eternidade, sem ter havido um ato criador.

25
Não é algo fácil de entender. As pessoas supõem que são pais
de seus filhos porque um dia conceberam seus filhos e lhes deram a
vida. Mas não é apenas por isto. Depois que o filho foi gerado, passa
a existir para sempre uma relação real entre pai e filho. O pai será
para sempre o pai do seu filho, não apenas durante algum tempo, e
esta relação não é apenas uma convenção humana ou uma categoria
jurídica. O pai é realmente pai, é algo que está inscrito nas células, no
código genético, na psicologia, gravado na alma, inscrito na natureza.
Quando o pai completar cem anos e o filho completar oitenta, ainda
serão pai e filho.
Ocorre em Deus que, desde toda a eternidade, existe a relação
sem ter havido uma criação. O homem não é capaz de compreender o
quanto isto é suficiente, e é mais do que superabundante, para que na
Trindade haja uma distinção real entre as pessoas sem haver
multiplicação das naturezas, e o quanto disto se segue o amor eterno
e infinito de gratidão que o Filho tem para com o Pai. Todos nós
podemos, porém, percebê-lo se meditarmos com cuidado as
palavras do Novo Testamento. Pode-se ali perceber o quão grande
era o amor de Jesus pelo Pai. Ele já o manifestava quando, ainda
criança, foi encontrado no Templo de Jerusalém e testemunhou sobre
o seu Pai. Maria guardou aquelas palavras em seu coração durante
toda a sua vida (Lc. 2, 49), assim como nós deveríamos fazer com
todas as palavras do Novo Testamento [4].
Assim, o amor de Jesus pelo Pai não se explica apenas por Ele
haver assumido uma natureza humana e, enquanto homem, seu Pai
_______________________________________________________

[4] Segundo Jesus, as palavras do Novo Testamento são "tudo aquilo que Ele
ouviu do Pai" (Jo. 15, 15), isto é, não pode ser outra coisa senão a revelação de
sua própria geração: "Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que
faz o seu senhor. Chamo-vos amigos, porque tudo o que eu ouvi de meu Pai,
dei-vos a conhecer" (Jo. 15, 15). Poucas horas depois de ter dito estas
impressionantes palavras, Jesus também as explicou: "Pai, concluí a obra que
me destes para fazer, manifestei o teu nome aos homens que do mundo me
deste. Eles guardaram a tua palavra, e agora conheceram que tudo quanto me

26
ser Deus. Este amor deriva principalmente do fato de que, dentro da
Trindade, a divindade é recebida pelo Filho da parte do Pai, princípio
da Trindade. O Filho e o Espírito Santo têm um amor de gratidão por
Deus Pai porque procedem do Pai, e o Pai tem um amor de doação
pelo seu Filho e pelo Espírito Santo porque dEle procedem. E este
amor é muito maior do que o amor que nós temos por nossos filhos,
porque é infinita a doação que existe por parte do Pai. A processão é
infinita e eterna, e é infinita a gratidão que existe na Santíssima
Trindade para com o Pai por parte do Filho e do Espírito Santo. Este
é e sempre foi o verdadeiro amor, a fonte de onde brota todo o amor
que há, no céu e na terra. É o que fez São Paulo dizer: "Dobro os
joelhos diante do Pai, de quem toma nome toda a paternidade que
há nos céus e sobre a terra" (Ef. 3, 14). É este o amor que faz Deus
ser Deus. E por amor que foi criado o mundo. As pessoas divinas
quiseram compartilhar sua felicidade com outras criaturas e, para
fazê-lo, criaram o céu e a terra. O Universo é uma migalha desta
imensa felicidade. Depois de haverem criado o céu e a terra, criaram
as plantas, os animais e finalmente o homem. Então disseram entre
si: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Ele poderá
crescer, desenvolver-se, chegar à contemplação, alimentar-se da
árvore da vida e ser um espelho daquilo que nós somos. E quando
assim o fizer, compartilharemos com ele a nossa felicidade".

Vendo, porém, que os homens não o haviam entendido e


haviam enlouquecido, o Pai enviou seu Filho ao mundo: "Meu filho,
_________________________________________________________________
deste vem de ti" (Jo. 17, 4-8). Jesus está ensinando que, aos que guardaram as
suas palavras no coração, como o fazia Maria, é-lhes manifestado o nome do
Pai, aquele que é santificado no início do Pai Nosso. E aos que o nome do Pai foi
manifestado, quando estes veem Jesus, também veem o Pai ("agora eles
conheceram que tudo quanto me deste vem de ti"). Não é diferente do que Jesus,
quando criança, havia dito à sua mãe no Templo de Jerusalém: "Não sabíeis que
eu devo estar nas coisas de meu Pai?" (Lc. 2, 49). Esta resposta não era uma
falta de educação de uma criança rebelde. Era uma revelação do que há de mais
profundo na Nova Aliança. Maria o percebeu. Imediatamente. Não repreendeu o
menino. Em vez disso, guardava aquelas palavras em seu coração (Lc. 2, 51).

27
toma carne humana vai falar com os homens como um deles.
Convida-os por meio de um amor ao modo humano. Faze-os
entender por tua humanidade. Através de ti, eu mesmo os amarei.
Dize-lhes que tu os amaste como Eu te amei". E foi precisamente isto
que Jesus veio nos dizer, como lemos no Novo Testamento: "Assim
como o Pai me amou, assim também eu vos amei. Dou-vos um novo
mandamento, que vos ameis uns aos outros como eu vos amei. Eu
vos amei com o amor com que o Pai me amou. E quero que o mundo
conheça que o Pai vos amou como Ele me amou" (Jo. 17, 23).

"Não vos convido", diz Jesus, "a participar desta vida, que é
apenas passageira. A verdadeira vida, vossa verdadeira Pátria, não
será este país onde nasceram, mas a Santíssima Trindade, onde
renascerão. Quero que chegueis até lá conduzidos por mim. Fiz-me
homem para conduzir-vos por mão humana, pelo modo como vós o
fazeis".

E agora seria importantíssimo que percebêssemos que tudo isto


é precisamente o que está acontecendo quando aprendemos a rezar
como Jesus ensinou.

É assim que Jesus nos ensinou a rezar (Mt. 6, 6): "Primeiro


entra no quarto. Depois fecha a porta, em seguida vai para um lugar
escondido dentro deste quarto. Quando terás feito tudo isto, o Pai te
verá e te dará uma recompensa. Em seguida, assim rezarás: 'Pai
nosso, que estais no céu, santificado seja o teu nome, venha o teu
Reino, faça-se a tua vontade, como no céu, assim na terra'", e segue
a oração do Pai Nosso que todos conhecemos. Foi Jesus quem
ensinou este modo de rezar. Apesar de sua aparente simplicidade, ele
é tão extraordinariamente profundo que nos fez pedir a todos, desde o
primeiro momento em que nos conhecemos, que se dirijam todos os
dias a uma igreja ou a uma capela para rezar pelo menos por meia
hora.
Conforme já tivemos a oportunidade de explicar em outras

28
ocasiões, entrar no quarto, fechar a porta e ir para um lugar
escondido dentro do quarto, significa recolher-se, crer em Cristo e
amar a Cristo.

Ir para uma capela, recolher-se, crer em Cristo e amar a Cristo


são os primeiros passos. Jesus acrescenta que, depois destes
primeiros passos, se forem bem feitos, podemos rezar um Pai Nosso.
É o que Jesus nos ensina. Primeiro temos que entrar em uma capela
interior, para depois rezar o Pai Nosso. O que Jesus entende pelo
quarto ou capela interior é a união ao Verbo encarnado, a união com
Cristo em sua humanidade, na unidade da fé e do amor.

Não foi apenas por um breve período de poucos anos que o


Verbo se encarnou há dois mil anos. A fé nos ensina que Cristo
continua até hoje unido à sua natureza humana, por amor a nós, sem
deixar de ser Deus. Sua natureza humana está hipostaticamente unida
à natureza divina. "Hipóstase" em grego significa "pessoa" [5]. Na
pessoa do Verbo, em Cristo, uma natureza humana encontra-se unida
à natureza divina. É por causa desta união hipostática, pela qual sua
natureza humana está unida à natureza divina, que se segue que, onde
Deus estiver, o Verbo Encarnado também poderá agir com
amplíssima liberdade. Santo Tomás de Aquino diz, na Summa contra
Gentiles, que, em virtude da união hipostática, a natureza humana
está em Cristo mais intimamente unida à natureza divina do que em
nós a alma está unida ao corpo, que era a mais perfeita união entre
________________________________________________________________________________

[5] O significado dos termos "hipóstase" e "união hipostática" pode ser


entendido através da história da palavra. Cinco séculos antes de Cristo, a
palavra grega "hipóstase" significava, literalmente, "aquilo que fica embaixo".
Neste sentido, o lodo do fundo de um rio era uma "hipóstase". O significado foi
se aprofundando com o tempo. No início da era cristã, a palavra "hipóstase" já
significava "a realidade individual que está por trás daquilo que os olhos
veem", ou seja, a realidade individual (por contraposição à natureza genérica),
que cada coisa de fato é. Durante o debate sobre a Santíssima Trindade, que
dominou a cristandade no século III, a palavra ganhou novos aprofundamentos.
"Hipóstase" passou a ser entendida praticamente como sinônimo de "pessoa".
Até aquela época a palavra usada para "pessoa", em grego, era "prosopon",

29
todas as que existiam na criação. Esta afirmação está no Capítulo 41
da Quarta Parte da Summa contra Gentiles [6]. Ali Santo Tomás de
Aquino diz que, para que possamos entender algo do mistério da
Encarnação, devemos partir da consideração de como as coisas se
unem na natureza. Quando queremos prender um prego na parede,
tomamos um martelo e fixamos o prego. A mão se une ao martelo,
mas é uma união circunstancial e temporária. Na natureza há outras
coisas mais bem unidas entre si do que uma mão e um martelo. Entre
todas as coisas que estão unidas entre si, o que há de mais
perfeitamente unido, aquela que é a verdadeira obra prima de união, é
________________________________________________________________________________________________________________________

que literalmente significava "face", "rosto" ou até mesmo "máscara". Quando


alguém queria saber quantas "pessoas" havia em uma praça, perguntava
quantas "faces" havia na praça. Mas quando, no século III, os cristãos
entenderam que o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram três "pessoas" distintas,
compreenderam também que não poderiam mais usar a palavra "prosopon",
pois os homens poderiam entender em que Deus haveria três "máscaras"
distintas. Por isso, em vez da palavra "prosopon", passaram a usar a palavra
"hipóstase". Deste modo, depois de quase um milênio, a palavra que
inicialmente significava "o lodo do fundo de um rio", transformou-se primeiro
na "realidade que cada coisa é" para, finalmente, tornar-se sinônimo de
"pessoa" e, de modo especial, de uma "pessoa" da Santíssima Trindade. Passou-
se a dizer que em Deus havia "três pessoas e uma substância" ou, em grego, três
"hipóstases e uma ousia". Por último, cerca de duzentos anos mais tarde, no
século V, o termo "união hipostática" passou a significar a união entre a
natureza humana e divina na "hipóstase" ou pessoa do Verbo.

[6] Assim a expressa S. Tomás de Aquino: "Embora esta união [hipostática] não
possa ser perfeitamente explicada pelo homem, todavia segundo nossa
capacidade podemos tentar dizer algo a respeito. Em todas as coisas criadas
nada se encontra tão semelhante a esta união como a união da alma ao corpo.
Por causa da semelhança entre ambas as uniões é que diz Santo Atanásio:
'Assim como a alma racional e a carne é um só homem, assim Deus e o homem
é um só Cristo'. A alma racional, porém, se une ao corpo como matéria e como
instrumento. Quanto à união como matéria, não pode haver semelhança entre a
união do corpo e da alma no homem e a união da natureza humana e divina em
Cristo. Portanto, a semelhança deve ser considerada apenas segundo que a
alma se une ao corpo como a um instrumento. Os antigos doutores já

30
a união entre a alma e o corpo no homem. Onde houver um corpo
vivo, ali estará uma alma, que utiliza seu corpo muito mais
sofisticadamente do que a mão que se utiliza do martelo. Mas, ao
unir a natureza humana e a divina em Cristo, Deus se superou a si
mesmo na obra da Criação. Na união hipostática o Senhor criou algo
mais perfeitamente unido a outro do que, no homem, a alma ao
corpo. Aquela natureza humana, concebida pelo Espírito Santo no
ventre da Virgem Maria, uniu-se à natureza divina muito mais
perfeitamente do que nossa alma ao corpo.
Ora, sabemos que Deus está em todo lugar. Diz o Evangelho
que não cai um fio de cabelo de nossa cabeça sem que o Pai o
permita. Como é possível entender que Deus esteja em todo lugar? A
primeira resposta diz que isto ocorre porque, ao criar o mundo, Deus
não teria podido dar à criatura o poder de continuar existindo por si
mesma. Só o Senhor é "Aquele que é", e somente Ele tem este nome.
Os demais entes somente "são" porque há um Outro que é "Aquele
______________________________________________________________________________________________________

concordavam que em Cristo a natureza humana é como um órgão da divindade,


assim como o corpo é um órgão da alma. Mas o corpo e suas partes são
instrumentos da alma diversamente de como o podem ser os instrumentos
exteriores. Um martelo, de fato, não é um instrumento próprio, como o é a mão
do homem. Muitas [pessoas diversas] podem usar o martelo, mas a mão só pode
ser utilizada pela operação própria de uma determinada alma. Por este motivo, a
mão é dita um órgão unido e próprio, enquanto que o martelo é dito um
instrumento extrínseco e comum.
O mesmo pode ser considerado na união entre Deus e o homem. Todos os
homens se comparam a Deus como instrumentos pelos quais Deus opera. Mas os
outros homens se equiparam a Deus como instrumentos extrínsecos e separados:
são movidos por Deus, não às operações próprias apenas de Deus, mas às
operações comuns de toda natureza racional, como são o inteligir a verdade,
amar o bem e operar o justo. Mas a natureza humana em Cristo foi assumida
para que opere instrumentalmente coisas que são próprias apenas de Deus, como
são o perdoar os pecados, iluminar as mentes pela graça e introduzi-los na
perfeição da vida eterna. Portanto, a natureza humana de Cristo, compara-se a
Deus como um instrumento próprio e unido, como a mão é instrumento da
alma" (S. Thomae Aquinatis: Summa contra Gentiles, Liber IV, Caput XLI).

31
que é". Existir por si mesmo, independentemente de qualquer causa
externa, é atributo que somente a Deus pertence. O mundo criado
necessita que Deus o sustente na existência não só no momento em
que é criado do nada, mas também para continuar existindo após ter
sido criado. É por este motivo, e é neste sentido, diz S. Tomás de
Aquino, que Deus está presente em todas as coisas.
Mas segue-se daí que, se Deus está presente em todas as coisas
porque as sustenta no ser, e se a natureza humana de Cristo está mais
unida à divina do que nosso corpo está unido à nossa alma, então
onde Deus está, o Verbo Encarnado também pode agir livremente, se
assim o quiser, e muito melhor do que nossa alma pode agir sobre
nosso corpo. E, de fato, sabemos pelas Sagradas Escrituras que é isto
o que acontece quando cremos em Cristo. Na Epístola aos Gálatas,
São Paulo diz que Cristo nele vive por causa da fé que o Apóstolo
tem no Filho de Deus (Gal. 2, 20). E S. Tomás de Aquino diz, na
Terceira Parte da Summa Theologiae, que quando cremos, neste
momento Cristo, em sua natureza humana, age em nós como causa
eficiente instrumental da graça. "A paixão de Cristo", diz Santo
Tomás, "pela divindade que está a si unida, possui uma virtude
espiritual cuja eficácia tem sua origem no contato espiritual que se
dá pela fé e pelos sacramentos da fé" (ST, IIIa. 48 a.6 ad 2). É por
isto que Jesus dizia, inúmeras vezes, aos que concedia um milagre:
"Filho, a tua fé te salvou". E é por isso que São Paulo também diz, na
Epístola aos Romanos: "O Evangelho que eu ensino é uma força de
Deus que age sobre aqueles que creem" (Rom. 1, 17). Esta força nos
chega através do Verbo Encarnado: "Nele estava a vida, e a vida era
a luz dos homens" (Jo. 1, 4).
É por isto que, quando nos recolhemos para rezar, Jesus diz que
Deus Pai nos vê, através de Cristo. Entrar no quarto, trancar a porta e
dirigir-se ao lugar escondido é a primeira parte do modo de rezar que
Jesus nos ensinou. Por ela se dá uma união real com Cristo, através
da fé e do amor.
Entrar no quarto significa recolher-se. Esquecer inteiramente

32
do mundo, morrer para o mundo, dirigir nossa atenção inteiramente
para as coisas do alto.
Fechar a porta significa crer em Cristo. Poderia ser, também,
crer no que Deus nos revela. Sempre que cremos, isto não pode
acontecer sem o auxílio de uma luz que vem do alto. Sabemos que no
momento em que cremos, podemos ter a certeza de estar sendo
iluminados por uma luz que nos vem através da humanidade de
Cristo. Portanto, ao crer em Deus, estamos em contato espiritual com
Cristo. "Nele estava a vida", diz São João no Evangelho, "e a vida
era a luz do dos homens, e a luz brilha nas trevas", isto é, no coração
dos homens, "mas as trevas não a receberam" (Jo. 1, 3-4). "Era a luz
verdadeira, que ilumina todo homem, vinda ao mundo" (Jo. 1, 9). "A
todos, porém, que o receberam, deu-lhes a autoridade se de
tornarem filhos de Deus", isto é, "aos que creem em seu nome" (Jo.
1, 12). Quando nós cremos em ato, isto é, em atual exercício, e não
apenas porque cremos em algum momento do passado, o Novo
Testamento nos ensina que, certamente, neste momento atual, uma
graça está nos iluminando e estamos realmente em contato com
Cristo. Isto dá ao exercício da fé uma importância extraordinária para
que possa se desenvolver em nós a verdadeira vida. Quando os
judeus perguntaram a Cristo: " 'Que faremos para trabalhar a obra
de Deus?', respondeu-lhes Jesus: 'Esta é a obra de Deus, que creiais
naquele que Ele enviou' " (Jo. 6, 29). E Jesus disse também: "Deus
amou tanto o mundo, que lhe deu o seu Filho unigênito, para que
todo o que crê nEle não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo. 3, 16).
Crer é uma coisa realmente extraordinária. "A verdadeira vida se
inicia pela fé, se aperfeiçoa pelo amor e, quando ambas estas coisas
se transformam em unidade, são o próprio Deus", que passa a estar
em nosso espírito de um modo mais sublime do que apenas pela obra
da criação. É o que diz claramente Santo Inácio de Antioquia na
Carta aos Efésios (Ef. 14, 1).
Assim, no momento em que, pelo recolhimento, entramos na
capela interior e cremos, estamos recebendo uma visita de Cristo,

33
como também ocorre, embora de outro modo, quando o recebemos
na Eucaristia. É exatamente o que diz São Paulo, na Epístola aos
Romanos: "O Evangelho que eu ensino é uma força de Deus que age
sobre aqueles que creem" (Rom. 1, 17). O contato espiritual com
Cristo se dá, diz S. Tomás de Aquino, "pela fé e pelos sacramentos
da fé" (ST, IIIa. 48 a.6 ad 2).
O segundo modo descrito por S. Tomás de Aquino, pelo qual é
possível o contato com Cristo, é através da Eucaristia, que é o
principal sacramento da fé. Há dois modos, diz Santo Tomás de
Aquino, pelos quais Cristo pode agir em nós, através de sua
humanidade, como causa eficiente da graça: "pela fé e pelos
sacramentos da fé", e este segundo modo, "pelos sacramentos da fé",
significa, principalmente, pela Eucaristia.
No que diz respeito ao primeiro modo, que é o que se dá na
oração, quando nos recolhemos e, neste recolhimento, exercemos a fé
em ato, podemos ter certeza que recebemos a visita de Cristo. E,
portanto, o que devemos fazer em seguida é o mesmo que fazemos
quando recebemos a Eucaristia. É o momento de amar a Cristo. É
isto o que significa dirigir-se para um lugar escondido, dentro do
quarto. Amar, segundo Tomás de Aquino, significa querer unir-se a
quem amamos (ST, IIa IIae, 82 a.2 ad 1). O amor produz a
experiência de uma união real com Cristo, com o mesmo Cristo que
já estava ali presente pela fé.
Estas três coisas, isto é, entrar no quarto, fechar a porta e
dirigir-se ao lugar escondido, são a primeira parte da oração que
Jesus nos ensinou. Elas têm como finalidade produzir a união pela
fé e amor ao Verbo Encarnado. O entrar no quarto, fechar a porta e
ir para o lugar escondido é a comunhão com Cristo, o que também se
dá quando recebemos a Eucaristia. Assim como na oração, antes da
comunhão será necessário que nos esqueçamos do mundo, porque
senão não estaríamos recebendo dignamente a Eucaristia. Cremos
também que na Eucaristia estamos recebendo a Cristo. E o amamos,
quando nos recolhemos com ele, após receber o pão consagrado,

34
enquanto permanecem em nós as espécies eucarísticas. Ao fazermos
tudo isto bem feito, a própria Eucaristia nos conduz ao amor em
ato (ST, IIIa 79 a.1 ad 2). É ao que também deveria conduzir-nos a
oração.
Na oração, depois de entrar no quarto, fechar a porta e dirigir-se
ao lugar escondido, o próprio Cristo nos dirá, nos inspirará, ou no-lo
ensinará pelas Sagradas Escrituras: "Meu querido irmão, quero
explicar-te algo mais profundo. Eu sou Jesus. Tenho natureza
humana, mas não sou uma pessoa humana. Sou Deus. Sou uma das
pessoas da Trindade. Habito na Trindade, onde hoje, inclusive
corporalmente, estou sentado à direita do Pai. Gostaria que
pudesses entrar e contemplar o que acontece no interior da
Trindade. É o lugar onde será a tua verdadeira casa, quero
apresentá-la para ti".
"Aquilo em que Santo Agostinho tanto meditou, que deu tanto
trabalho para São Gregório de Nissa, que São João Damasceno
reuniu com tanto rigor e paciência, que fez os vitorinos derramarem
rios de tinta, aquilo em que Santo Tomás de Aquino tanto se esforçou
por penetrar, Eu agora gostaria que tu o experimentasses, ao vivo e
a cores. Já que agora estás unido a mim na capela interior, lembras-
te do que um dia falei a Felipe? 'Felipe, quem me vê, vê o Pai'.
Então eu vou te mostrar agora o Pai, o nosso Pai, que agora é meu e
é também teu. É o Pai nosso. Vamos dirigir-nos a Ele, através de
mim. Tu agora estás escondido com Cristo em Deus".
"'Pai Nosso que estás nos Céus'. Estes céus são a Santíssima
Trindade. É o lugar onde Deus Pai está desde toda eternidade. A
Trindade é o Seu ambiente, é a Sua casa. O Pai, o Filho e o Espírito
Santo são o amor infinito que não acaba nunca. Qualquer amor que
tu tenhas tido por tua esposa, por teu filho e até o amor que podes
ter tido por Deus é uma gota d'água no oceano do amor que existe
na Trindade. E eu, Jesus, estou te convidando para, pouco a pouco,
experimentar-lhe o sabor".

35
"Quero então que a primeira coisa que faças, ao te dirigires ao
Pai, seja exatamente aquilo que as pessoas da Trindade fazem nos
céus desde toda a eternidade. Amamos o Pai e o agradecemos por
ter gerado o seu Filho e, dEle e de mim, ter procedido o Espírito
Santo, que completa nossa unidade. Eu e o Espírito Santo somos
Deus porque procedemos do Pai. Ele não nos criou e nunca não
existimos para depois termos existido. Nós somos pessoas por uma
relação eterna, mas são relações de pai e filho e de filho e pai. Assim
como tu amas o teu pai, eu também amo o Pai, mas mesmo que o teu
pai fosse o melhor pai do mundo, tu nunca o terás amado como eu
amo meu Pai ou como o Espírito Santo o ama. E tudo o que existe no
universo somente foi feito porque, desde toda a eternidade, Deus Pai
tem-me gerado".
"Eu, o Verbo Encarnado, que estou falando contigo, estou-te
convidando a agradeceres ao Pai pela sua verdadeira obra prima.
Dize-lhe: 'Pai, santificado seja o teu nome'. Nós o estamos
agradecendo em primeiro lugar, pela geração do Verbo, por ser Pai.
Ao fazeres isto, irás pouco a pouco entendendo quem é o Pai".
O Pai, diz Santo Tomás de Aquino, é princípio da Trindade (ST,
Ia. 33 a.1).
São João Damasceno dizia que o Pai é 'causa' da Trindade.
Santo Tomás de Aquino comenta que no Oriente, quando se fala de
'causa', a palavra não tem completamente o mesmo sentido que lhe
damos quando no ocidente nós falamos de 'causa'. Então, continua S.
Tomás de Aquino, não convém repetir no ocidente que Deus Pai é
'causa' da Trindade, porque no oriente a palavra é entendida
corretamente, mas no ocidente não é assim. Então seria mais correto,
no ocidente, dizer que o Pai é 'princípio' da Trindade. 'Princípio'
reflete melhor o que S. João Damasceno queria dizer. A palavra grega
para 'causa' é 'aitía'. Em grego 'causa' se diz 'aitia'. Em português,
para a maioria de nós, esta palavra não parece significar muita coisa.
Há muitas palavras gregas que são perfeitamente entendidas pelos
ocidentais. Por exemplo, 'biologia', 'telegrama', 'presbítero', 'apatia',

36
'esclerose', 'hipocrisia', 'cinema', 'democracia', 'hipódromo',
'terapia', 'política', 'economia', 'igreja', 'arquidiocese', 'polêmica',
'estratégia', "autocrítica", todas estas são palavras gregas que
passaram para a língua latina e portuguesa, e todos nós as
compreendemos bem, apesar de serem palavras da língua grega. Mas
a palavra 'aitia' é por nós quase desconhecida. Poucos a entenderiam.
Não lhe conhecemos corretamente o significado. Traduzi-la por
'causa', que é o seu significado mais próximo, poderia levar a
confusões. São João Damasceno diz, no livro 'A Fé Ortodoxa', que
Deus Pai é a 'aitia' da Trindade. Mas a palavra 'aitia' não significa
exatamente o mesmo, com todas as suas nuances, que a nossa palavra
'causa'. Então, se a usássemos no ocidente, poderíamos entender
erroneamente o que no oriente é entendido corretamente. Portanto,
diz S. Tomás de Aquino, é melhor dizer aqui que o Pai é 'princípio'
da Trindade (ST, Ia 33 a.1 ad 1).
Mas, voltando ao nosso assunto, o que ocorre quando nos
escondemos com Cristo em Deus naquela cela interior onde vivemos
uma união de fé e amor com Cristo em Deus e começamos a rezar o
Pai Nosso?
O que ocorre é que o Verbo Encarnado nos está convidando
àquele modo de amor de gratidão que há entre as pessoas da
Santissima Trindade. O Filho e o Espírito Santo têm um amor infinito
de gratidão pelo Pai. Eles estão, ao seu modo divino, repetindo desde
toda a eternidade: "Pai, santificado seja o teu nome". E eles nos estão
querendo ensinar a fazer o mesmo. Querem que nós nos unamos a
Eles em seu amor ao Pai.
Mas, depois de tê-lo feito, o Verbo Encarnado nos ensina a
pedir, já diretamente ao Pai, em união com Cristo: "Venha o teu
reino, seja feita a tua vontade".
Ao fazermos isto, o que fazemos é pedir a Deus Pai que Ele nos
ensine a amar a Jesus do modo como Ele, enquanto Pai, também o
ama. O Filho e o Espírito Santo querem que nos unamos ao Pai em
seu amor pelo Filho. Porque na cela interior, quando nos recolhemos,

37
encontramos e amamos a Cristo, o amamos como nós o conhecemos
na terra, como um homem sábio e bondoso, muito unido a Deus, que
fazia milagres, que falava em nome de Deus e que veio sofrer por
nós. Mas, apesar de crermos que Ele era Deus, o amamos ao modo
como um homem ama outro homem. É assim que Jesus nos ensinou a
começar a amá-Lo.

Mas no Pai Nosso nós estamos pedindo um amor muito maior.


Maravilhados com o que vemos no interior da Santíssima Trindade, a
vida íntima de Deus, contemplando o que é a Santíssima Trindade,
uma grande alegria toma conta de nós. Sabemos que aqui nos está
sendo oferecida uma morada para nós. Esta é a casa de nosso Pai.

Não queremos mais, então, amar a Jesus apenas como quando o


conhecemos como homem, ainda que o tivéssemos reconhecido
como Deus. Queremos agora amar a Jesus como o Pai o amou desde
toda a eternidade. Por isto lhe pedimos que venha o seu Reino e seja
feita a sua vontade. A vontade do Pai é a que Ele teve desde toda a
eternidade. Ora, desde toda a eternidade, o Pai nada mais quis a não
ser amar eterna e infinitamente o seu Filho e dar-lhe todo o seu ser e
divindade. Isto é também o que São Paulo diz, no primeiro capítulo
da Epístola aos Efésios, sobre qual é o "mistério da vontade do Pai".
Sua vontade, diz São Paulo, não é que façamos tal ou qual coisa em
específico. Em vez disso, São Paulo diz: "Bendito seja o Deus e Pai
de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos deu a conhecer o mistério de
sua vontade, a de em Cristo recapitular todas as coisas, as que estão
nos céus e as que estão na terra" (Ef. 1, 9-10). Esta recapitulação é
aquela pela qual somos transformados em nova criatura e que se
realiza pela união com Cristo em fé e amor. E isto é também o que o
Pai expressou ao manifestar-se após a transfiguração: "Este é o meu
Filho amado, ouvi-o" (Mc. 9, 7).

Trata-se de um amor que não segue um modelo humano, mas o


Trinitário. Um amor que, na prática, é aprendido por nós aos poucos,
como o raiar da luz do dia. Aqueles que se casam e aprendem a amar

38
o marido ou a esposa como Cristo amou a Igreja, pouco a pouco
começam a entender como Jesus nos ama. Mas também, pouco a
pouco, em seguida, aprendem que este amor vem de mais acima, é o
amor com que o Verbo foi amado pelo Pai. E, ao nos acostumarmos a
rezar o Pai Nosso na cela interior, como Jesus no-lo ensina, pouco a
pouco, também, vamos nos rendendo à evidência. Aquele amor que
existe no interior da Trindade é o verdadeiro amor. Havíamos
pensado que o maior amor fosse aquele que vivemos na Eucaristia,
mas há outro muito maior. O maior amor que jamais existiu é o amor
pelo qual o Verbo é amado pelo Pai no interior da Santíssima
Trindade. Eterno, infinito e sem economias. A mais plena unidade,
ainda maior que a da união hipostática. E o Senhor quer partilhar
conosco este amor. E não é apenas Ele que o quer, pois também nós
passamos a querer partilhar com todos o conhecimento deste amor,
para que a vontade do Pai seja feita "assim na terra como no Céu",
como está escrito no Pai Nosso. É com este sentido e com este desejo
que temos que ir aprendendo a rezar o Pai Nosso. O Pai Nosso
contém todas as coisas que devemos desejar e estabelecer como as
grandes metas de nossa vida, para nos tornarmos dignos de partilhar
do consórcio com a vida divina.

Mais ainda. Enquanto não aprendermos a rezar deste modo,


também não entenderemos verdadeiramente o que seja a missa.

Porque o que vemos na missa é que o próprio Jesus, no


momento da Consagração, está se oferecendo ao Pai.

Jesus é o Cordeiro imolado. A expressão evoca o sacrifício do


cordeiro pascal que Moisés havia prescrito que se realizasse todo
ano, durante a Páscoa. O cordeiro pascal deveria ser morto
derramando todo o seu sangue e sem que lhe fosse quebrado nenhum
osso. Na sexta feira da Páscoa da Paixão, Jesus foi morto desta
mesma maneira. O seu sangue foi todo derramado e não lhe foi
quebrado nenhum osso, ao contrário dos ladrões que haviam sido
crucificados ao seu lado. Na Páscoa daquele ano, Jesus foi o Cordeiro

39
de Deus.

Assim também, no momento central da missa, durante a


consagração, primeiramente o pão se transubstancia no corpo de
Cristo. Permanece o aspecto do pão, mas a substância do pão se
converte no corpo de Cristo. Como, porém, o corpo de Cristo está
realmente unido ao seu sangue, à sua alma e à sua divindade, apesar
da mudança ser apenas do pão para o corpo de Cristo, realizada a
transubstanciação, não só o corpo estará contido sob as aparências do
pão, mas também seu sangue, alma e divindade.

Em seguida, o vinho transubstancia-se no sangue de Cristo.


Permanece o aspecto do vinho, mas a substância do vinho se
converte no sangue de Cristo. Como, porém, o sangue de Cristo está
realmente unido ao seu corpo, à sua alma e à sua divindade, apesar da
mudança se dar apenas do vinho para o sangue de Cristo, realizada a
transubstanciação, não só o sangue estará contido sob as aparências
do vinho, mas também seu corpo, alma e divindade.

Terminada a consagração, temos na patena o pão que se


transubstanciou no corpo de Cristo e, no cálice, o vinho que se
transubstanciou no sangue de Cristo. Cristo se mostra, diante de
nossos olhos, no mesmo estado em que se encontrava o cordeiro
pascal, imolado todo ano pelos judeus, e no mesmo estado também
em que se encontrava Jesus, quando morreu na cruz. O sangue de
Cristo mostra-se como derramado e recolhido separadamente no
cálice. Sem que desta vez ele tivesse sido realmente morto
novamente, o próprio Cristo, que opera a transubstanciação, renova,
através de símbolos incruentos, a sua imolação ao Pai.

Seu sacrifício, em primeiro lugar, foi em reparação ao Pai.


Desde a eternidade, a Segunda Pessoa via como os homens haviam
caído no pecado e na loucura espiritual. Via como os homens se
cegaram e não reconheceram a grandeza da criação e da graça pela
qual Deus quis fazer-nos participar de sua própria vida. Em vez

40
disso, caímos na imoralidade, na pornografia, no ódio, nos desejos da
carne, na dissipação com o mundo visível e em ambições ilusórias.

E Cristo, sendo a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade,


entendeu mais do que ninguém as injustiças e a bestialidade que os
homens estavam e continuam fazendo. Pela infinita gratidão e amor
que tinha pelo Pai, fez-se homem para oferecer-lhe, em sua Paixão,
reparação por tão gigantesca demência. Na missa Cristo continua
repetindo a mesma oferta e pede que nós possamos dela participar. A
nós Ele nos pede que, naquele momento, nos ofereçamos com Ele ao
Pai e abandonemos nossas loucuras e desvarios. Tal como os judeus,
nós também não sabemos o que fazemos, não temos a mínima ideia
das verdadeiras proporções da loucura em que mergulhamos e do
grau de injustiça que isto representa.

É por isto que, terminada a consagração, o sacerdote diz estas


palavras: "Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a vós Deus Pai todo
Poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a
glória, agora e para sempre". Este Pai todo poderoso é, em primeiro
lugar, a Primeira Pessoa da Santíssima Trindade. É na Santíssima
Trindade, na unidade do Espírito Santo, que estamos nos unindo a
Cristo para reparar as maldades que nós e os demais homens estamos
fazendo. Não fomos criados para a bestialidade que vemos neste
mundo. Fomos criados para a santidade.
Em seguida à consagração, somos exortados a rezar, pelo
próprio rito da missa, o Pai Nosso. Muitos de nós, quando ouvimos
isto, não entendemos qual é o papel do Pai Nosso naquele momento.
O Pai Nosso, certamente, é uma bela oração, mas o que ela está
fazendo, inserida naquele ponto da Liturgia? Não haveria outra
oração mais apropriada para ser rezada naquele momento? Afinal,
quando Jesus ensinou o Pai Nosso, não estava celebrando uma missa,
nem consta que durante sua Paixão tenha rezado o Pai Nosso. Estas
perguntas perdem sentido e se desvanecem se tivermos entendido e
vivido o que foi aqui exposto. Será fácil compreender que não haverá

41
lugar melhor, nem mais apropriado, para rezarmos o Pai Nosso do
que na missa, após a consagração. Na verdade, terá sido a cela
interior e o Pai Nosso que nos terão preparado para entender
exatamente o que se passa durante a missa. O que fazemos na cela
interior quando nos unimos a Cristo e, em seguida, junto com Cristo,
através do Espírito Santo, nos associamos à gratidão que a Segunda
Pessoa demonstra eternamente ao Pai na Santíssima Trindade, é
exatamente o que está acontecendo durante a missa.

Enquanto não conseguirmos entrar na cela interior e, depois de


ter alcançado a intimidade com Cristo, não mergulharmos no interior
da vida da Santíssima Trindade através do Pai Nosso, dificilmente
entenderemos o que está acontecendo na missa, mesmo se tivéssemos
sido ordenados sacerdotes.

E, em seguida, vem o mais maravilhoso. É o momento da


Eucaristia, onde o Pai nos oferece uma oportunidade de receber
aquilo que lhe havíamos pedido no Pai Nosso. Durante a Eucaristia
sucede como se Deus Pai nos estivesse dizendo: "Se quiseres
realmente aprender a amar a Cristo como eu o amei, o momento é
agora. Vou conceder-te a oportunidade de estares junto com meu
Filho, mas de um modo mais profundo do que quando apenas
rezavas na cela interior junto com Ele".

Então, assim como aprendemos a rezar através do exemplo da


Eucaristia, agora é o momento de aprender a receber a Eucaristia
através do que aprendemos na oração. Quando comungamos
deveríamos seguir o mesmo roteiro que Jesus nos ensinou na cela
interior. Primeiro nos recolhemos no silêncio. Segundo, cremos com
toda a luz que estamos recebendo a visita de Cristo, e de um modo
mais real do que na oração. Em seguida, o amamos profundamente,
querendo definitivamente unir-nos a Ele, para sempre, em fé e amor.
A Eucaristia, diz S. Tomás de Aquino na Summa Theologiae, "tem
como efeito levar o amor ao ato" (ST, IIIa 79 a.1 ad 2). Isto é a
própria graça que nela está contida. É Deus Pai que nos oferece a

42
oportunidade de experimentar, dentro das possibilidades de nossa
vida espiritual, amar a Cristo como Ele mesmo O amou [7].
É experiência comum, nos que comungam com as devidas
disposições, que a Eucaristia produz uma expressão de amor que não
alcançaríamos de nenhum outro modo, em nenhum outro momento, e
de modo irrepetível fora dela. Esta expressão de amor é o Espírito
Santo. O Espírito Santo é uma expressão do amor com que o Pai ama
o Filho. O Espírito Santo não é o amor de Deus, assim como o Verbo
não é a inteligência divina. O amor e a inteligência divinas, assim
como também o seu poder e a sua existência, coisas que em nós são
distintas, em Deus são o mesmo que a essência divina, comum às três
pessoas. O Verbo não é a inteligência divina, mas uma expressão da
inteligência pela qual o Pai se conhece a si mesmo, uma imagem do
Pai. O Espírito Santo é uma expressão do amor do Pai pelo Filho,
como se o Pai, não contente em apenas amar o Filho, quisesse
demonstrar-lhe este amor através de algo que fosse análogo a um
beijo, a um abraço ou a alguma outra expressão espetacular, como
nós também fazemos em certos momentos quando amamos muito a
alguém e queremos demonstrar-lhe este amor de uma maneira
espetacular. Em Deus, porém, esta expressão é eterna e infinita em
grandeza, e não pode ser senão da mesma substância que o Pai e o
Filho. É o Espírito Santo, pelo qual o Pai manifesta ao Filho seu
amor infinito.
A Eucaristia, ao levar o amor a um ato de que percebemos, pela
própria experiência, sua irrepetibilidade fora dela, nos está
concedendo uma pequena experiência do Espírito Santo, pelo qual o
Pai ama o Filho, um aperitivo dos rios de água viva que nos levarão,
um dia, à contemplação. O Senhor nos está ensinando a amar a Cristo
como o Pai o amou, na unidade do Espírito Santo.
________________________________________________________________________________________________________________________

[7] Assim como no Pai Nosso, na Eucaristia acontece algo semelhante e, em


certo modo, mais profundo, ao que aconteceu durante a transfiguração, quando
Deus Pai apresenta seu Filho aos homens, e lhes diz: "Este é meu Filho amado,
ouvi-o" (Mc. 9,7). Na Eucaristia o Pai nos pede para amá-lo e, de certo modo,
somos também transfigurados junto com Ele.

43
Esta é a oferta que nos é pedida quando, na missa, nos unimos a
Cristo no momento da consagração, que nossa união com Cristo seja
para sempre a nova e eterna aliança. O Pai nos pede para amar seu
Filho com o amor eterno com que Ele mesmo o amou. Para isto é
preciso crucificar, junto com a oferta que Cristo faz na consagração,
todas as nossas paixões, nossa curiosidade e nosso orgulho. Sem isto,
diz São João, "o amor do Pai não pode estar em nós" (I Jo. 2, 15).
Entende-se facilmente ser esta a vontade do Pai, porque amar o Verbo
é o que o Pai sempre fez e nada mais quis desde toda a eternidade.
É isto também o que significam as palavras do Pai Nosso
quando dizemos "seja feita a tua vontade". "Este é o mistério de sua
vontade", diz S. Paulo: "recapitular em Cristo todas as coisas, as
que estão nos céus e as que estão na terra" (Ef. 1, 10) É o que ocorre
na Eucaristia, quando pela graça que está nela contida, ela produz
como seu efeito "levar o amor ao ato" (ST. IIIa, 79 a.1 ad2). É um
aperitivo do Espírito Santo, dos "rios de água viva que serão dados
aos que creem em Cristo" (Jo. 7, 38), que nos faz crescer na
esperança da revelação de Cristo.
E, através da Eucaristia, o Pai quer também nos amar como
amou a Cristo. Este é o motivo pelo qual Jesus diz que "nos deu a
conhecer o nome do Pai e no-Lo dará a conhecer ainda mais, para
que o amor com que o Pai o amou esteja em nós e Ele mesmo esteja
em nós" (Jo. 17, 26).
Mas, se nos unimos assim a Cristo na Eucaristia, convém
lembrar novamente o que Jesus disse ao Apóstolo: "Felipe, quem me
vê vê o Pai. Não crês que eu estou no Pai e o Pai está em mim?" (Jo.
14, 9-10). Portanto, estamos sendo novamente convidados a entrar,
na Santíssima Trindade, tal como acontece no Pai Nosso, e a amar o
Pai, junto com Cristo, na unidade do Espírito Santo.

Todas estas coisas devem ser aprendidas para serem vividas,


não para produzirem um discurso. Poderiam produzir uma tese de
Teologia, mas esta não é a função delas. A Teologia, diz Santo

44
Alberto Magno, o professor de Santo Tomás de Aquino, é uma
"ciência que deve conduzir à eusebéia" (S. Alberto Magno, Summa
Theologiae Tract. I, Q. II) . E Santo Tomás de Aquino diria: "não só
à eusebéia, mas também a Cristo, o caminho pelo qual o homem vai
ao Pai" (ST, Ia Q.2). Sim, diria São Paulo, tanto Santo Alberto como
Santo Tomás tem razão, mas as duas coisas são a mesma coisa. Diz,
de fato, São Paulo na Epístola a Timóteo: "Este é o mistério da
eusebéia: foi manifestado na carne, justificado no Espírito,
contemplado pelos anjos, proclamado às nações, crido no mundo,
exaltado na glória" (I Tim. 3,16) [8]. A tese de Teologia que desejaria
produzir é vê-los rezando e experimentando estas realidades. Se,
estando em estado de graça, não conseguirem enxergar tudo isto
imediatamente na primeira vez, devem saber que é assim mesmo.
Estas coisas não acontecem todas de imediato e logo na primeira vez.
Temos que meditar, simultaneamente com elas, na palavra de Cristo
contida no Novo Testamento, para aprendermos diretamente com Ele,
como no-lo ensinaram os Apóstolos, desde os primórdios do
Cristianismo. Se meditarmos o Novo Testamento com atenção, e
como quem busca um tesouro escondido, pouco a pouco, com o
passar das semanas e dos meses, começamos a entender como todas
estas coisas estão explicadas no Novo Testamento. Depois vieram os
Santos Padres, trabalhando como em uma grande orquestra, tentando
tornar tudo isto claro para os homens. Santo Inácio de Antioquia, que
aprendeu dos próprios apóstolos; depois, São Gregório Nisseno,
Santo Agostinho, São João Damasceno, Hugo de São Vitor, Ricardo
de São Vitor, Santo Alberto Magno, que foi professor de Santo
Tomás de Aquino, e o próprio Santo Tomás de Aquino, escreveram
todas estas coisas para nos ajudar a entender o que Jesus nos estava
____________________________________________________________

[8] "Eusebéia" é uma palavra grega usada no Novo Testamento que, traduzida
para o latim ou o português, corresponderia à palavra "piedade". Mas seu
significado seria mais bem entendido pelo homem moderno se disséssemos que é
a oração do homem que "não está longe do Reino de Deus", segundo a
expressão utilizada por Cristo, no Evangelho de Marcos, ao falar com um escriba
sobre o primeiro mandamento (Mc. 12, 34).

45
ensinando, assim também como tantos outros que não mencionamos
aqui, não porque não houvesse outros, mas porque nesta exposição
nos concentramos principalmente nas questões sobre a Santíssima
Trindade.
Tenham, além disso, a certeza de que todos estes santos, e
outros tantos que houve na Igreja, viveram mergulhados na união
com Cristo e no consórcio com a Santíssima Trindade que vivia
neles. É isto que estamos aprendendo a fazer quando comungamos e
rezamos.
E esta é, em definitivo, a única maneira de libertar o mundo da
Cultura da Morte. Se sobre estas realidades, pouco a pouco,
começarmos a construir famílias espirituais, que devem construir a
base do tecido social da Cidade de Deus, os que são casados
começando pelas suas famílias biológicas e sacramentais, estaremos
fazendo o que se realizou durante o primeiro milênio do
Cristianismo, quando derrotamos o paganismo por meio daquela
verdade pela qual Jesus nos fez pessoas verdadeiramente livres. Só
quem vive desta maneira, não mais pela carne, mas pelo Espírito, é
que é verdadeiramente livre. Isto se dá por meio de uma outra vida
que não é a vida biológica e é a única plena e verdadeira. Trata-se
verdadeiramente de uma outra realidade. Só um povo que vive assim
é que pode ser livre.
Moisés veio libertar o povo judeu da escravidão do Faraó. Jesus
veio nos libertar de algo muito mais profundo. Nos primeiros séculos
o cristianismo teve uma ascensão prodigiosa. Cada geração, dizia
Santo Agostinho no De Vera Religione, tornava-se visivelmente mais
cristã que a geração anterior. O padrão inverteu-se a partir de 1300.
Agora já se vão cerca de 700 anos desde que a humanidade começou
a pretender esquecer-se da obra da Encarnação, e com isto estamos
progressivamente caindo no absurdo que estamos assistindo, a
maioria de nós sem entender claramente o que está acontecendo, nem
por que está acontecendo.

46
Recomendo novamente a leitura dos capítulos do Tratado da
Santíssima Trindade de Ricardo de São Vitor que estão no fim desta
exposição. E que usem desta apresentação para aprenderem pouco a
pouco a rezar sempre mais profundamente. Não deixem a prática da
oração em hipótese alguma. Aprendam a depor, no momento da
oração, todas as demais preocupações que tenham no dia a dia.
Quando começarmos a oração, o mundo deverá ter morrido para nós.
Pode demorar para adquirir a prática de como fazer isto, mas pela
perseverança, pouco a pouco, realmente se aprende, e esta é uma das
coisas mais importantes a serem aprendidas na vida.
Há pessoas que quando ficam estressadas pensam em fazer um
cruzeiro marítimo pela Europa ou pelo Caribe. Mas há um modo
muito melhor de resolver o mesmo problema. Temos que aprender,
iniciando a oração, a esquecer-nos completamente de tudo o mais.
Não importa o que esteja acontecendo, temos que aprender a
recolher-nos para um encontro com o Verbo Encarnado pela fé, e a
unirmo-nos a Ele pelo amor. Mais extraordinário, porém, é que
depois de entrarmos na cela interior junto com Ele, Jesus nos pede
também para rezar o Pai Nosso. O Pai Nosso é o passaporte para a
Trindade. Muito melhor do que o passaporte para a Europa ou o
Caribe. É um passaporte para o modo de vida que existe em Deus.
Para o verdadeiro amor e a fonte de onde teve origem o mundo.
Se fizermos isto hoje, amanhã será melhor, e depois de amanhã
será melhor ainda. No dia seguinte poderá surgir alguma tribulação e
teremos um resultado pior. Mas quando a tribulação acabar, se
tivermos perseverado, voltará a ficar melhor do que antes.
O grande farol neste caminho é a Eucaristia. Se aprendermos a
comungar bem, temos em seguida que aprender a rezar segundo a
experiência que tivermos tido na Eucaristia. Assim como o Pai
Nosso, a Eucaristia foi uma invenção genialíssima de Jesus Cristo.
Um monumento de genialidade. É o próprio Jesus que tenta nos
ensinar algo dificílimo para o ser humano decaído, mas de que Ele
conseguiu dar-nos o aperitivo. Este aperitivo é a Eucaristia.

47
Tudo isto vem em um rito, pelo qual é celebrada a missa, que
tem uma semelhança extraordinária com o Pai Nosso. Basta que
prestem atenção no que ali está sendo dito para o constatarem. O Pai
Nosso é a própria expressão do amor da segunda pessoa da
Santíssima Trindade pela primeira pessoa, segundo o modo como
ocorre dentro da Trindade, que também é o modo como ocorre
durante a missa. É exatamente por isso que, depois da consagração e
antes da comunhão, rezamos o Pai Nosso na liturgia da missa. Não
poderia ser diferente. As coisas estão profundamente interligadas e é
impressionante a sabedoria que nelas existe. Isto é invenção do Verbo
Encarnado. Não foi uma pessoa humana quem as inventou. Carregam
a marca da genialidade divina. Nem Santo Tomás de Aquino teria
inventado duas coisas como estas. Ele não conseguiria escrever um
Pai Nosso, nem conseguiria inventar a missa.
Tudo isto vale, no Rito Romano, tanto para a missa celebrada
segundo o missal promulgado por Pio V, como para o promulgado
por Paulo VI. Pode não ser evidente para todos, mas os elementos
que aqui descrevemos estão presentes em ambos. Mas, para que o
percebamos claramente, é preciso aprender a comungar bem,
aprender a entrar na cela interior e rezar o Pai Nosso como Jesus o
ensinou.

48
Ricardo de São Vitor

TRATADO SOBRE
A SANTÍSSIMA TRINDADE

Livro III, 2-7

Há um gênero de homens para os quais crer significa apenas não


contradizer a fé, aos quais denominamos fiéis mais pelo costume
da vida do que pela virtude de crer.
De fato, dedicados apenas às coisas que passam, nunca elevam a
mente ao pensamento das coisas futuras; embora recebam os
sacramentos da fé cristã juntamente com os demais fiéis, não
atentam para o que significa ser cristão ou que esperança há na
expectativa dos bens futuros. Estes, embora sejam ditos fiéis pelo
nome, de fato e em verdade estão longe da fé.
Segundo o crescimento da fé encontramos três gêneros de
pessoas que creem.
Há alguns fiéis que elegeram crer apenas pela piedade, os quais,
todavia, não compreendem se se deve crer ou não pela razão;
nestes, apenas a piedade faz a eleição.
Há outros que aprovam pela razão o que creem pela fé; nestes a
razão acrescenta a sua aprovação.
Outros, finalmente, pela pureza do coração e da consciência já
começam a saborear interiormente aquilo que creem pela fé;
nestes a pureza da inteligência apreende a certeza.
A fé consiste em uma santa dedicação que, partindo de verdades
que lhe são oferecidas, com o auxílio da graça do Espírito Santo,
inclina decididamente a mente às coisas invisíveis futuras.

Hugo de S. Vitor
De Sacramentis Fidei Christianae
De fructibus carnis et spiritus

49
Aprendemos, pelo que já foi exposto, que no sumo e
plenamente perfeito bem, [que é Deus], encontra-se a plenitude e a
perfeição de toda a bondade. Onde, porém, encontra-se a plenitude de
toda a bondade, não pode faltar a verdadeira e suma caridade. Nada,
efetivamente, é melhor do que a caridade, nada mais perfeito do que
a caridade. Ninguém, porém, é dito propriamente possuir caridade
pelo amor particular e próprio de si mesmo. É necessário, portanto,
que o amor se estenda a outro, para que possa ser caridade. Onde,
portanto, falta a pluralidade das pessoas, a caridade não pode existir
de nenhum modo.

Mas dirás, talvez, que ainda que existisse uma única pessoa
naquela verdadeira divindade, esta poderia, não obstante, possuir
alguma caridade para com a sua criatura, ou melhor, a possuiria com
certeza, porém também com certeza não poderia possuir a suma
caridade para com uma pessoa criada. Seria, de fato, uma caridade
desordenada. Ora, é impossível que na bondade da suma sabedoria
exista a caridade desordenada. A pessoa divina, portanto, não poderia
possuir a suma caridade para com outra pessoa que não fosse digna
do sumo amor. Para que, porém, a caridade possa ser suma e
sumamente perfeita, é necessário que seja tanta que não possa ser
maior, é necessário que seja tal que não possa ser melhor. Ora, na
medida em que alguém não ama mais ninguém do que a si mesmo,
este que possui para consigo mesmo um amor particular tem em si
mesmo a prova de que ainda não apreendeu o sumo grau da caridade.
A pessoa divina, porém, com certeza não teria ninguém que pudesse
amar dignamente como a si mesmo se de nenhum modo tivesse outra
pessoa condigna de si. Nenhuma pessoa, entretanto, seria condigna
da pessoa divina se ela também não fosse Deus. Para que, portanto,
naquela verdadeira divindade a plenitude da caridade possa ter lugar,
é necessário, além da pessoa divina, outra pessoa condigna de modo
que não lhe falte o divino consórcio.

50
Vês, portanto, quão facilmente a razão nos convence que na
verdadeira divindade não pode faltar a pluralidade das pessoas.
Certamente somente Deus é sumamente bom. Somente Deus,
portanto, é sumamente amável. A divina pessoa não poderia, por
conseguinte, exibir o sumo amor a uma pessoa que carecesse de
divindade. A plenitude da divindade, porém, não pode existir sem a
plenitude da bondade. A plenitude da bondade, entretanto, não pode
existir sem a plenitude da caridade, nem a plenitude da caridade sem
a pluralidade das pessoas divinas.

Aquilo, porém, que a plenitude da bondade nos convence a


respeito da plenitude das pessoas, por razões semelhantes demonstra-
o também a plenitude da bem-aventurança. Aquilo de que uma fala, a
outra o comprova. E aquilo que a primeira clama, em uma única e
mesma verdade a segunda aclama.

Interrogue cada um à sua consciência, e sem dúvida e sem


contradição encontrará que assim como nada é melhor do que a
caridade, assim também nada é mais feliz do que a caridade. Isto no-
lo ensina a própria natureza, assim como também a repetida
experiência. Assim como na plenitude da verdadeira bondade não
pode faltar aquilo pelo qual nada pode ser melhor, assim também na
plenitude da suma bem-aventurança não pode faltar aquilo pelo qual
nada pode ser mais feliz. É necessário, portanto, que na suma bem-
aventurança não falte a caridade. Para que, porém, exista a caridade
no sumo bem, é impossível que lhe falte alguém a quem possa ser
oferecida, ou possa ser exibida. É próprio do amor, porém, e sem o
qual não pode de nenhum modo existir, querer ser muito amado por
aquele a quem muito se ama. Não pode, portanto, o amor ser feliz se
não for mútuo. Por conseguinte, naquela verdadeira e suma bem-
aventurança, assim como não pode faltar o amor feliz, assim também
não pode faltar o amor mútuo. No amor mútuo, porém, é
inteiramente necessário que haja quem ofereça o amor e quem
retribua o amor. Um terá que ser aquele que oferece o amor, e outro
terá que ser o que retribui o amor. Onde, porém, nos convencemos

51
que deve haver o um e o outro, depreende-se haver verdadeira
pluralidade. Naquela verdadeira plenitude de felicidade, portanto,
não pode faltar a pluralidade das pessoas. Consta, entretanto, que
nada mais é a suma bem- aventurança do que a própria divindade. A
exibição do amor gratuito e a devida retribuição deste amor nos
convencem, indubitavelmente, que na verdadeira divindade não pode
faltar a pluralidade das pessoas.

Se disséssemos que na verdadeira divindade houvesse apenas


uma única pessoa, assim como também uma única substância, por
causa disto sem dúvida ela não teria a quem poderia comunicar
aquela infinita abundância de sua plenitude.

Mas, pergunto, por que se daria isto? Quereria ela talvez ter a
quem comunicá-la, e não o poderia, apesar de querê-lo? Ou não
quereria fazê-lo, apesar de ter a quem o pudesse? Se, porém, alguém
é sem dúvida alguma onipotente, não poderia ser desculpado,pela
impossibilidade. Mas o que consta não ser por defeito de potência,
poderia sê-lo unica e tão somente por defeito de benevolência?
Considera, pois, eu te peço, qual e quanto seria o defeito de
benevolência se a pessoa divina verdadeiramente pudesse ter,
querendo-o, alguém a quem comunicá-lo e ainda assim de nenhum
modo o quisesse. É certo, conforme dissemos, que nada é mais doce
do que a caridade, nada é mais feliz do que a caridade, nada a vida
racional experimenta como mais doce do que as delícias da caridade.
Nunca nenhuma deleitação foi fruída mais deleitavelmente e destas
delícias careceria por toda a eternidade se, carecendo de consórcio,
permanecesse solitária no trono de sua majestade. Por estas
considerações podemos advertir qual e quanto seria este defeito de
benevolência se preferisse avaramente reter somente para si a
abundância de sua plenitude que poderia, se assim o quisesse, com
tanto cúmulo de bem aventurança, com tanto aumento de delícias,
comunicá-la a um outro. Se assim o fosse, se nela houvesse tanto
defeito de benevolência, merecidamente se envergonharia de
conhecer-se a si mesmo, merecidamente se envergonharia de ser

52
assim visto, merecidamente fugiria de todos os olhares,
merecidamente se envergonharia dos próprios anjos. Mas, que
dizemos? Não é possível que na suprema majestade exista algo pelo
qual não possa gloriar-se e pelo qual não possa ser glorificada. De
outra forma, onde estaria a plenitude de sua glória? Pois ali,
conforme já havíamos demonstrado, não pode faltar nenhuma
plenitude. Porém, o que pode haver de mais glorioso, o que pode
haver de mais magnificente do que nada possuir que não se queira
comunicar? Consta, por conseguinte, que naquele indeficiente bem e
sumamente sábio conselho tanto não pode encontrar-se a avarenta
reserva como não pode haver uma desordenada efusão. Eis, portanto,
que tens a descoberto, como podes vê-lo, que naquela suma e
suprema excelsitude a própria plenitude da glória obriga a que não
falte o consorte da glória.

Eis que ensinamos sobre a pluralidade das pessoas divinas por


razões tão manifestas que se alguém quiser contradizer afirmações
tão evidentes parecerá padecer da doença de insanidade. Quem senão
quem sofre de insanidade dirá que à suma bondade falte aquilo pelo
qual nada é mais perfeito, pelo qual nada é melhor? Quem, pergunto,
senão uma mente pobre contradirá dizendo faltar à suma bem-
aventurança aquilo pelo qual nada é mais feliz, nada é mais doce?
Quem, digo, senão o carente de razão, pode admitir faltar na
plenitude da glória aquilo pelo qual nada é mais glorioso, nada é mais
magnificiente? Nada certamente é melhor, nada certamente é mais
feliz, nada mais magnificente do que a verdadeira, sincera e suma
caridade, a qual se sabe que de nenhum modo pode existir sem a
pluralidade de pessoas. Esta afirmação da pluralidade é confirmada
por um tríplice testemunho, pois aquilo que a suma bondade e a suma
bem-aventurança clamam concordemente sobre este assunto, a
plenitude da glória aclama confirmando, e aclamando confirma. Eis
que temos assim, sobre este artigo de nossa fé, um tríplice
testemunho, sumo entre os sumos, divino entre os divinos, altíssimo
entre os profundos, manifestíssimo entre os ocultos, e sabemos que
na boca de dois ou três está toda a palavra. Eis o tríplice cordel que

53
dificilmente se rompe, pelo qual, concedendo-nos Deus sabedoria,
qualquer impugnador de nossa fé é fortemente atado.

Eis que, conforme podemos manifestamente concluir pelo que


já dissemos, a perfeição de uma pessoa exige o consórcio do outro.
Descobrimos que nada é mais glorioso, nada mais magnificente, do
que nada querer ter que não queiras comunicar. A pessoa que for
sumamente boa não quererá, portanto, carecer do consorte de sua
majestade. Sem dúvida, porém, para aquele cuja vontade for
onipotente, será coisa necessária que seja tal qual quiser sê-lo.
Aquele que, entretanto, tiver uma vontade imutável, irá querer para
sempre o que tiver querido uma só vez. É necessário, portanto, que a
pessoa eterna tenha outra pessoa coeterna, nem uma terá podido
preceder a outra, nem uma suceder a outra; pois naquela eterna e
imutável divindade nada poderá mudar como se se tornasse
antiquado, nem tampouco nada de novo poderá sobrevir-lhe. É
impossível, por conseguinte, que as pessoas divinas não sejam
coeternas. Onde, portanto, existir a verdadeira divindade, ali haverá a
suma bondade, ali haverá a plena bem-aventurança. A suma bondade,
conforme foi dito, não pode existir sem a perfeita caridade, nem a
perfeita caridade sem a pluralidade de pessoas. A plena bem-
aventurança, porém, não pode existir sem a verdadeira
incomutabilidade, nem a verdadeira incomutabilidade sem a
eternidade. A pluralidade das pessoas exige a verdadeira caridade, a
eternidade das pessoas a verdadeira incomutabilidade.

Devemos observar, no entanto, que assim como a verdadeira


caridade exige a pluralidade das pessoas, assim a suma caridade
exige a igualdade das pessoas. Nem é cabível que haja verdadeira
caridade onde o verdadeiramente amado não for sumamente amado.
Não é amor ordenado, porém, aquele no qual se ama sumamente
quem não é sumamente amável. Mas na bondade do sumo sábio a
chama do amor não arde nem diversamente nem mais fortemente do
que o que é ditado pela suma sabedoria. É necessário, portanto, que
seja sumamente amado segundo a abundância da suma caridade

54
aquele que for sumamente amável segundo a medida daquele sumo
discernimento. Mas a propriedade do amor nos mostra que não será
possível existir um sumo amante se o sumamente amado não retribuir
o amor. A plenitude da caridade, deste modo, exige que no amor
mútuo ambos sejam sumamente amados pelo outro e, por
consequência, de acordo com a medida do discernimento de que
acima falamos, que ambos sejam sumamente amáveis. Onde,
portanto, ambos são igualmente amáveis, é necessário que ambos
sejam igualmente perfeitos. É necessário, portanto, que ambos sejam
igualmente poderosos, igualmente sábios, igualmente bons,
igualmente bem-aventurados. Deste modo, nos que se amam
mutuamente a suma plenitude do amor exige a suma igualdade da
perfeição. Assim como, por conseguinte, na verdadeira divindade a
propriedade da caridade exige a pluralidade das pessoas, assim a
integridade da mesma caridade na verdadeira pluralidade exige a
suma igualdade das pessoas. Para que sejam inteiramente iguais,
porém, é necessário que sejam inteiramente semelhantes, pois a
semelhança pode ser possuída sem igualdade, mas a igualdade nunca
pode ser possuída sem mútua semelhança. Aqueles que, de fato, nada
possuem de semelhante na sabedoria, como poderão ser nela iguais?
O que, no entanto, digo da sabedoria, o mesmo afirmo da potência e
o mesmo encontrarás em todas as demais, se as percorreres
singularmente.

Ricardo de S. Vitor
De Trinitate, Livro III, 2-7

55

Você também pode gostar