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NO FIM, SOMOS TODOS CULPADOS! UMA LEITURA DE A QUEDA DE


ALBERT CAMUS

Por Kauê Vinícius de A. Silva1

1.0 – Introdução

“Meu senhor, posso oferecer-lhe meus préstimos, sem correr o risco de ser
inoportuno? Receio que não consiga fazer entender pelo amável gorila que
preside os destinos deste estabelecimento. Na verdade ele só fala holandês...”
É assim que se inicia a obra A queda (La chute), de Albert Camus (1913-1960),
escrita em 1956: uma oferta de atenção e companhia de um desconhecido para
outro desconhecido, em um bar de marinheiros em Amsterdã, com uma gratuita
ofensa à um balconista. Logo após se inclinar oferecendo-se como companhia,
o interlocutor se apresenta pelo nome de Jean-Baptiste Clamence, um advogado
de origem francesa que, ao buscar dialogar com um outro do qual nada diz, inicia
um diálogo, que, na verdade, torna-se uma confissão sobre sua vida de sucessos
e bonanças até sofrer situações transformadoras. Tais situações colocam o
personagem em uma posição de isolamento, autorreflexão e autocrítica que
transborda para além de uma posição subjetivista.

Vale resgatar que A queda expressa um determinado olhar e uma


determinada posição diante dos valores e condições humanas em um pós-
segunda guerra mundial. Um contraste, uma oposição à um mundo em que os
horrores e terrores gerados pelos homens fazem-se presentes como condição
de um mundo fraturado. Neste sentido, Albert Camus não apenas fala por meio
da personagem mas, sobretudo, nos chama para avaliarmos e assumirmos uma
reflexão e posição diante da condição humana vivida, ou como alguns preferem,
diante da experiência trágica da vida, como podemos ver em seu discurso à
Academia Sueca, em Estocolmo, no ano de 1957, ao receber o prêmio Nobel.
Camus diz:

1
Possui graduação e pós-graduação em História (UNIBAN/PUC-SP) e graduação em Filosofia (UJST).
Atualmente leciona na rede municipal de São Paulo e em escolas particulares da mesma cidade. Escreve
regularmente para o blog https://diantedeespelhos.blogspot.com/ E-mail de contato:
kauevini@hotmail.com
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“A arte não é, a meu ver, um divertimento solitário. É um meio de comover


o maior número de homens, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada
do sofrimento e das alegrias comuns. Ela, pois, obriga o artista a não se
isolar, ela o submete à verdade mais humilde e mais universal. E aqueles
que muitas vezes escolhem seu destino de artista porque se sentem
diferentes logo aprendem que alimentam sua arte, e sua diferença, ao
admitir sua semelhança com todos”[2]

Há, portanto, no discurso do escritor um engajamento artístico e filosófico


em que a obra literária torna-se uma espécie de plataforma comum em que autor
e leitor compartilham dessas experiências, representadas em textos, discursos
e narrativas, possibilitando fluir das agruras compartilhadas em tempos difíceis,
resgatando o que há de necessário a ser dito ou como diz o professor Horácio
González:

“A literatura dever ser revelação. Surge de uma dor obscura. Se não


diz o que já se sabe, mas não se compreendia, nunca poderá ser um
órgão da própria experiência. Fica, então, tolhida. Ela é a tradução de um
silêncio, e daí todas as suas possibilidades e dificuldades”. (GONZÁLEZ,
1983, p. 15)

Este engajamento literário é pautado na perspectiva dramática da


existência, pois como se sabe, Albert Camus, apesar de não intitular-se um
filósofo existencialista ipsis litteris, compartilhava questões propriamente
existencialistas. Assim, A queda traça muito do pensamento do autor sobre
questões importantes que encontram-se em outras de suas obras: o absurdo da
vida, o suicídio, os valores estabelecidos em contradições concretas, a crítica e
a revolta sobre a vida como meio de sentido possível. Citando novamente
González, “dramas terríveis convertidos em fatos miúdos; pequenas ações
tornadas oportunidade de um balanço completo da vida” (Idem, Ibidem, p. 25).

2.0 – Jean-Baptiste Clamence: de um próspero advogado à um juiz-


penitente
Jean-Baptiste Clamence era um famoso e próspero advogado francês,
especialista em “causas nobres”. Considerava-se estar do “lado certo” no que se
tratava de suas atividades profissionais, de modo que era o que lhe bastava para
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exercer paz em sua consciência. Em suas palavras: “o sentimento do direito, a


satisfação de ter razão, a alegria de nos estimarmos a nós próprios são impulsos
poderosos para nos manter de pé ou nos fazer avançar”. Clamence dizia possuir
uma fama não só em sua profissão mas, sobretudo, por sua cortesia,
generosidade, sabedoria e sensualidade. Julgava-se acima da ambição vulgar e
dos desejos mesquinhos. Buscava estar longe das “formigas humanas”, no mais
alto dos topos, lugar em que os “sermões, as pregações decisivas, os milagres
de fogo ocorrem em alturas acessíveis”, achando-se, com “tanta
plenitude”, quase como um “super-homem”.

Era tamanho o contentamento consigo próprio e seu deleite em gozar da


felicidade de um homem especial que acreditava ser um “escolhido”. Jean-
Baptiste, ao fazer suas digressões sobre suas bonanças ao oculto ouvinte, dizia
não ser tão abastado apenas por conta própria, senão por uma espécie de dom,
uma (falsa) modéstia que perpassa toda narrativa de sigo próprio. Assim, ao criar
sua narrativa sobre si, Clamence perpassa de anedotas à máximas filosóficas,
num tom intenso e fluído em que um certo hermetismo não deixa espaço para
que contrapontos façam parte desse movimento.

Contudo, Clamence, ao discorrer sobre sua vida de vitórias e sucesso, não


o fala desta mesma condição. O advogado bem sucedido tornou-se juiz-
penitente. Sua fala, por mesmo que esteja em um diálogo com um oculto
interlocutor (do qual penso que tomamos seu lugar ao ler), torna-se um monólogo
dramático em que, ao rememorar seu passado glorioso, olha para trás de um
ponto de vista mais denso, um ponto de vista de um pobre arrependido
atormentado. Eis a queda!

Essa passagem, a queda de um determinado ponto à outro, de uma dada


condição à outra, dá-se por meio de situações e ações incontornáveis. Podemos
dizer que não há uma queda, mas sim três que configuram-se na dimensão
existencial de Jean-Baptiste. O protagonista presencia, numa determinada noite,
um ato de suicídio de uma mulher que se joga no rio Sena e não faz nada para
conter tal ato. Sua falta de ação, ou uma ação em negativo – Clamence apenas
observou o suicídio – o torna transtornado. Toda aquela volúpia criada de si para
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si é desmoronada após essa triste noite. Camus, já em O mito de Sísifo, de 1942,


discorria que “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio”[3]. Há,
portanto, no suicídio – um ato limite da liberdade de dar fim a si, que rompe em
contradições com a própria liberdade em ação – um corte que abate o
personagem fazendo-o revirar em seu estado de pujança moral para um
abatimento assombroso sem freios, do qual, ao julgar aos outros, julga a si em
um constante fluxo de argumentações profundas.

Além do trágico incidente, em presenciar um suicídio, Clamence, em outro


episódio, se envolve em uma briga de trânsito nas ruas de Paris. Discute com
um motociclista que deixara sua moto “morrer” em sua frente, atrapalhando o
trânsito. O protagonista, que outrora era tido como imbatível, sofre agressões
físicas de um terceiro que se envolve na discussão, de modo que Clamence
apanha sem exercer nenhuma reação, “fraquejando em público”. Tal
constrangimento lhe resultou um “ressentimento venenoso”. A partir deste
episódio, Jean-Baptiste diz que “já não era possível acariciar esta bela imagem
de mim mesmo”. Tal violência sofrida, assim como sua queda diante do suicídio,
quebra a imagem do Jean-Baptiste Clamence “super-homem”. Quebra a
máscara de Adão que vivera num paraíso imaginário.

Uma terceira faceta da queda é quando Clamence, que outrora em Paris


era rico e não repartia nada com ninguém, “perde tudo”, e muda-se para
Amsterdã, cidade que possui anéis concêntricos que “parecem círculos do
inferno burguês”. Camus faz uma interessante relação entre um primeiro estado
de queda, e o deslocamento do protagonista da França para Holanda. A
simbologia cristã se faz representada também neste caso: Paris, em sua
superfície topográfica é mais elevada que Amsterdã, e isso nos remete ao
paraíso, já que Amsterdã, a capital dos Países Baixos (Holanda), por ter sua
superfície abaixo do nível do mar, nos remete à um purgatório, senão ao próprio
inferno. Nesta possível interpretação a queda dá-se também numa esfera
geográfica. Vale ressaltar que Jean-Baptiste, ao encontrar-se em Amsterdã,
frequentava um bar de marinheiros e de pessoas de “índole duvidosa”, de modo
que não mais defende as “causas nobres” de outrora, pois agora vive de
defender juridicamente pobres malandros e gatunos, o que nos faz pensar que
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sua queda dá-se tanto no campo existencial, quanto na esfera geográfica e


profissional.

Ao discorrer sobre o país em que se passa a história, o personagem lhe


considera como um estranho sonho: “de dia, um sonho de ouro e de fumaça,
mais esfumaçado de dia, mais dourado à noite”. Um sonho povoado por
Lohengrins[4], dos quais seus cisnes são “negras bicicletas de guidons altos”.
Ora, essa Holanda dos círculos concêntricos como um inferno, para aqueles que
vêm de fora, tornam seus crimes mais “espessos, mais obscuros”. Há uma
densidade maior na esfera em Amsterdã, da qual nosso protagonista
compartilha. Uma densidade da qual ele captura como um dado objetivo e que
lhe consome como um elemento não mais estranho, mas como uma espécie de
sombra que se projeta diante do “sonho de ouro e fumaça”. Essas densas
sombras lhe motivavam a, por exemplo, não passar à noite por pontes, uma vez
que remetera ao triste episódio do suicídio.

Apesar de Albert Camus se definir ateu, a obra A queda vem ao encontro


com alguns elementos e símbolos do cristianismo, como o autor deixa sugerido
não só no título do romance, mas, sobretudo, no nome do advogado. Jean-
Baptiste Clamence nos rememora ao profeta João Batista, filho de Zacarias e
Isabel, que batizou Jesus Cristo. Na tradição cristã, João Batista é reconhecido
por ser um pregador do arrependimento, como podemos ver na passagem em
que diz “arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus” (Mateus 3:1-17).
Sua tarefa seria de “preparar ao Senhor um povo bem disposto” (Lucas 1:17) e,
neste sentido, suas mensagens aos fiéis eram enérgicas e duras, de modo a
criticar radicalmente os fariseus e líderes religiosos de sua época. Camus, ao
nomear o protagonista do romance com um nome bíblico, o faz reforçando seu
signo pelo nome composto de Clemence (clemência), a disposição para o
perdão. Clemence, como um juiz-penitente, se julga diante de um mundo em que
não há valores à priori, e ao se julgar o faz não só a si, mas, sobretudo, à todos.
Sua posição em relação ao mundo e aos valores dá-se por meio de um cinismo
corrosivo e inconfortável. Trata-se de um arrependido que, em suas digressões,
vê-se não mais como um senhor de si, mas sim como um pobre diabo que vive
em uma relação mal resolvida consigo e com a sociedade em que está inserido.
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Daí em se lançar como um juiz-penitente! Uma atitude, a princípio contraditória,


de julgar a si e a todos, ao mesmo tempo em que reconhece sua pobre condição
de um errante em um mundo onde Deus está morto. Nesta perspectiva, para
Clamence, todos são réus e acusadores ao mesmo tempo. Não há salvação,
não há arrebatamento, de modo que criamos e retroalimentamos a condição de
sermos réus em um mundo onde os valores humanos, no fundo, nunca foram
realmente considerados.

Uma outra ação simbólica de Jean-Baptiste é a de adquirir parte do


políptico[5] “Adoração do Cordeiro Místico”, de 1432, dos irmãos Jan van Eyck e
Hubert van Heyck, que estava no bar México-city, estabelecimento em que
confessava com seu interlocutor. A parte da obra em que pega para si é o painel
intitulado “Os juízes justos”. Clamence, mesmo sabendo que aquele lugar não
era o lugar original da obra, acaba por recolher para si num ato de reforço da
não aceitação da recolha da obra pelas instituições juridicamente responsáveis.
Simbolicamente trata-se de uma parte da pintura em que são representados
“juízes íntegros”, da qual nosso personagem faz a crítica de não existirem de
fato, já que todos compartilham das mesmas agruras das vaidades e de
sentimentos de falsas superioridades. O fato de Clamence apropriar-se de parte
da obra de arte roubada, faz coro ao seu estado de espírito de autocrítica e de
queda à dita condição superiora de vida.

2.1 – O rir como “antiga queda” - uma consideração sobre o riso em Clamence

Em uma das passagens de Clamence sobre as ruas e pontes de Amsterdã


que merece nossa atenção é quando este, ao caminhar, escuta entre seus
ouvidos risos soltos e de intensa expressão. Não sabemos ao certo se tais risos
são de possíveis pessoas próximas ou se são frutos de sua imaginação. O fato
é que tais risos mexem com o protagonista assim como os outros processos de
queda do personagem que descrevi acima. Um sentimento ambíguo lhe toma ao
escutar tais risadas e isso se repete em outros momentos, em outros risos.

Charles Baudelaire, em um de seus escritos sobre arte, nos remonta uma


análise do riso e do risível que vale dialogar com a condição de Jean-Baptiste
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após o caso das risadas na ponte. O poeta francês resgata considerações


ortodoxas sobre o rir, de modo a exemplificar que o Sábio (aquele que é animado
pelo espírito do Senhor), não ri. Ele diz: “o sábio treme por ter rido; o sábio teme
o riso assim com teme os espetáculos mundanos, a concupiscência.” Ora, o
sentimento que abate Clamence, ao deparar-se com os estranhos risos a sua
volta, o faz sentir um ser menor, um ser pequeno e frágil diante do cômico. Há,
neste sentido, uma espécie de medo diante do riso. Seria ele um ser risível?
Baudelaire diz que o riso humano está “intimamente ligado ao acidente de
uma queda antiga, de uma degradação física e moral”[6], de modo que “no
paraíso terrestre, em que todas as coisas criadas eram boas, a alegria não se
encontrava no riso.”[7] Se o riso é, nesta perspectiva, uma queda, um “signo
satânico” nos termos do autor das Flores do Mal, reforçando a tese de que Jean-
Baptiste encontra-se num estado infernal. Os risos que perseguem sua atenção
sinalizam o estado de ruptura com o que havia de celestial em sua vida. Trata-
se de uma condição satânica por excelência.

3.0 – A queda, uma literatura existencialista: considerações finais

Como já apontado acima, Albert Camus apesar de não definir-se um filósofo


existencialista, compartilhava das questões de sua época sob as lentes do
existencialismo. A queda, que faz parte de uma trilogia – O Estrangeiro (1942)
e A Peste (1947) – nos remete à questões de ordem subjetiva de Jean Baptiste
Clamence, mas que nos convida a pensar junto com o protagonista suas
angústias, de modo a nos colocarmos também sob a ótica do juiz-penitente.

Camus, nos convida a pensar sobre o sentimento de perda dos valores de


pujança, da ruptura com a representação falsificada de um ser pleno, da não
conformação com o mundo a sua volta e do mal-estar com a verdade sobre si,
que assusta até mesmo aqueles que dizem conhecedores de suas próprias
sombras. Seria por assim dizer, uma face da vida como um relâmpago que nos
corta e nos faz descer ao mais profundo dos mundos sobre o que de fato somos.

Neste sentido, a literatura de Camus faz parte de um rol de obras que nos
leva às mais profundas inquietações, fazendo de uma história simples e banal
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tornar-se uma imagem da condição conflitante humana, ou como escreveu certa


vez Walter Benjamin:

“(...) todos os grandes contadores de história têm em comum a


facilidade com a qual descem e sobem os degraus de sua experiência,
como numa escada. Uma escada cuja base desce até as profundezas da
terra e cujo topo se perde nas nuvens é a imagem de uma experiência
coletiva para a qual o mais profundo choque de cada experiência
individual, a morte, não representa nem escândalo nem barreira.”
(BENJAMIN, 2018, p.47)

É nesta escada, entre as profundezas e as nuvens, que andamos com o


autor e escutamos a voz do protagonista que nos convida a realizar um difícil
exercício: reconhecer por meio dele nossas quedas, nossos infernos e nossa
parte da culpa sob o que fazemos com nossa realidade.

Referências

BAUDELAIRE, Charles. Da essência do riso, e de um modo geral, do cômico


nas artes plásticas. In: Escritos sobre arte. Organização e tradução: Plínio
Augusto Coelho. São Paulo: Imaginário; Edusp, 1991.

BENJAMIN, Walter. O contador de histórias. In: A arte de contar histórias.


Organização e posfácio: Patrícia Lavelle; Tradução de Georg Otte, Marcelo
Backes e Patrícia Lavelle. São Paulo: Hedra, 2018.

CAMUS, Albert. A queda. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro:


Record, 2017.

____________. O mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch.


Rio de Janeiro: Record, 2004.

GONZÁLEZ, Horácio. Albert Camus. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.


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[1] Possui graduação e pós-graduação em História (UNIBAN/PUC-SP) e graduação em


Filosofia (UJST). Atualmente leciona na rede municipal de São Paulo e em escolas
particulares da mesma cidade. Escreve regularmente para o
blog https://diantedeespelhos.blogspot.com/ E-mail de contato: kauevini@hotmail.com
[2] Discurso de posse do prêmio Nobel, de Albert Camus, no ano de 1957.
Fonte: https://blogdo.yurivieira.com/2009/06/discurso-albert-camus/
[3] CAMUS, 2004, p. 17
[4] Lohebgrin, um cavaleiro do Santo Graal que é conduzido por um cisne à buscar por
seu grande amor, é o personagem de uma ópera homônima de Richard Wagner,
estreada em 1850, na cidade de Weimar, sob a direção de Franz Liszt.
[5] Trata-se de um retábulo com painéis fixos ou móveis de madeira em que geralmente
formam narrativas imagéticas de cenas míticas e bíblicas.
[6] BAUDELAIRE, Charles. 1991, p. 29.
[7] Idem, Ibidem.

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