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Título original:

El reino de este mundo

Tradução:
João Olavo Saldanha

Apresentação de:
Otto Maria Carpeaux

Copyright © 1985 — Espólio de Alejo Carpentier, representado por


AGENCIA LITERÁRIA LATINOAMERICANA, Havana, Cuba

Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela


EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
Av. Beira Mar, 262 — Sala 802
20021-060 — Castelo — Rio de Janeiro — RJ
que se reserva a propriedade desta tradução

Para esta edição:


DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA, S.A.
Rua Argentina, 171 — 20921-380
Rio de Janeiro, RJ — Tel. 585 20 00 e
EDICIONES ALTAYA, S.A.

ISBN: 85-01-15484-9
Sumário

Nota dos Editores


Apresentação
Prefácio

Primeira Parte
As cabeças de cera
A poda
O que a mão encontrava
A contagem
De Profundis
As metamorfoses
A vestimenta do homem
O grande salto

Segunda Parte
A filha de Minos e Pasifaé
O grande Pacto
O chamado dos búzios
Dogón dentro da arca
Santiago de Cuba
A nave dos cães
São Transtorno

Terceira Parte
Os signos
Sans-Souci
O sacrifício dos touros
O emparedado
Crônica do dia 15 de agosto
Ultima Ratio Regum
A porta única

Quarta Parte
Noite das estátuas
A casa real
Os agrimensores
Agnus Dei
NOTA DOS EDITORES

SEM QUALQUER jactância, mas com muita alegria por ter cumprido um dever cultural, a
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA foi pioneira no lançamento, há 20 anos, de importantes
autores latino-americanos, numa coleção intitulada NOSSA AMÉRICA, dirigida pelo poeta Thiago
de Mello.
Ela não teve o êxito comercial que esperávamos, pois os leitores brasileiros somente anos
depois começaram não apenas a tomar consciência de sua inescapável e indispensável integração
no complexo dos problemas e aspirações continentais, mas a constatar que, nas décadas mais
recentes, a literatura latino-americana se vem firmando universalmente como o celeiro de
grandes talentos criativos e inovadores.
Muitos dos autores que pela primeira vez publicamos no Brasil são hoje nomes consagrados
em toda parte, tanto pela crítica quanto pelos leitores, como é o caso de Alejo Carpentier, cujo
extraordinário romance O REINO DESTE MUNDO reeditamos agora.
Thiago de Mello, amigo pessoal do grande autor cubano, que faleceu em 1980, e constante
paladino dos povos da América Latina, escreveu novo texto para os complementos de capa; Otto
Maria Carpeaux, o sábio europeu que o Brasil teve a boa sorte de receber e adotar, já faleceu
também. Em homenagem à sua imperecível memória, e como prêmio extra aos leitores deste
livro, reproduzimos sem alteração o texto da Apresentação (de Alejo Carpentier) que ele, a nosso
pedido, escreveu em 1966.
APRESENTAÇÃO

O CUBANO ALEJO CARPENTIER é um dos escritores latino-americanos mais famosos destes


nossos tempos. É, ao lado do guatemalteco Miguel Ángel Asturias e dos mexicanos Juan Rulfo e
Carlos Fuentes, um dos grandes romancistas modernos deste continente e já conquistou a atenção
e a admiração do mundo inteiro, através das traduções de suas obras para o francês, inglês, russo,
italiano, alemão e outras línguas.
É expressão típica da mentalidade nacionalista e revolucionária da América Latina de hoje.
No entanto, embora natural de Havana onde nasceu em 1904, não é latino-americano de origem:
é filho de pai francês e mãe russa e é homem de formação europeia. Mas abraçou sua Cuba
nativa com todo o amor de filho que volta a casa paterna. Repudiou seu passado de esteta
requintado. Colocou seu talento a serviço da causa do novo mundo, e conseguiu fazer ouvir a voz
dessa causa no velho continente. É um vencedor da vida. A única coisa que não conseguiu é esta:
rebaixar sua arte para o nível do panfleto. Esse revolucionário autêntico também é um grande
artista.
Carpentier — o nome de família é francês, o prenome Alejo é russo, a língua é a espanhola
e o coração é cubano é homem de sete instrumentos. Estudou arquitetura. Já foi assistente teatral,
na companhia de Louis Jouvet. De profissão, é músico. Seus estudos de harmonia e contraponto
no Conservatório de Paris deram como resultado uns bailados, música de coro e para filmes
(também é cineasta). Escreveu um livro importante sobre música cubana, abrindo aos europeus
os ouvidos para a arte original e bárbara de compositores como Estebán Salas, Amadeo Roldán e
Alejandro García Caturla. Foi o primeiro livro especificamente latino-americano de Alejo
Carpentier.
Até então tinha vivido, em Paris, em companhia dos Aragon, Tzara, Éluard, Picasso e,
sobretudo, dos surrealistas, à cuja maneira chegara a escrever poesias e contos. Mas agora
renegou esse seu passado. Voltou para Cuba, onde o surpreendeu a crise.
Os pais de Carpentier, o francês e a russa, embora pessoas de inclinações artísticas, tinham-
se fixado em Havana, levados pela prosperidade açucareira. Mas a grande crise econômica de
1929 destruiu os fundamentos desse bem-estar artificial. Foi então que despertou a consciência
social, precariamente reprimida pela ditadura de Gerardo Machado. Cuba mudou de mentalidade
e o cubano repatriado Alejo Carpentier também passou pela crise de tomada de consciência,
social e nacional. Então nasceu, assim como no mesmo momento nos Estados Unidos do New
Deal, uma nova literatura latino-americana, da qual Alejo Carpentier estava destinado a ser um
dos protagonistas.
Começou a escrever poesia negra, à maneira de Nicolás Guillén e Ramón Guirao.
Participou de conspirações contra a ditadura. Foi preso. Na prisão começou a escrever o romance
social Écue-Yamba-Ó, que foi terminado e publicado em Madri, onde Carpentier frequentava o
círculo de García Lorca. Passou anos de exílio em Caracas, agora conspirando contra a ditadura
de Batista. Voltou para Cuba depois da vitória de Fidel Castro, sob cujo regime é hoje a
personalidade cultural de primeiro plano.
Personalidade de muitas facetas: homem de cultura europeia e americana, nacionalista
latino-americano e revolucionário. O choque de duas civilizações, dentro da alma de Carpentier e
em seu ambiente, é o tema do romance Los Pasos Perdidos, ao qual o escritor deve o primeiro
sucesso internacional: é a história de uma expedição musicológica que, a serviço de um museu
nos Estados Unidos, procura colecionar instrumentos musicais folclóricos na região das fontes
do Orinoco e descobre, lá, uma civilização arcaica, bárbara, mágica.
A deterioração desse mundo primitivo pela moderna economia exploradora é o tema
daquele romance Écue-Yamba-Ó, romance social e naturalista da vida dos negros pobres nos
slums de Havana e nas plantações de açúcar — pensar-se-ia em nosso romance nordestino, se
não fosse o estilo personalíssimo de Carpentier, barroco, metafórico, febril, uma linguagem
enriquecida por expressões dialetais e neologismos técnicos que lembra o caso do grande
romancista italiano Carlo Emilio Gadda.
Carpentier é escritor abundante. Por isso mesmo é o supremo objetivo do seu esforço
artístico a concentração. É curta a novela El Acoso, episódio meio autobiográfico de história das
conspirações cubanas contra a ditadura de Gerardo Machado. Agora, aquele choque de duas
civilizações é simbolizado pela situação do revolucionário procurado pela polícia que se esconde
numa sala de concertos, durante uma execução da sinfonia Eroica de Beethoven.
A experiência revolucionária de Carpentier transforma o tema: o nacionalista latino-
americano reconhece que as ideias de libertação chegaram do velho mundo. É preciso estudar o
impacto da Revolução Francesa sobre as populações escravizadas do Caribe. Descrevendo-o em
romances históricos que se passam no fim do século XVIII e no começo do século XIX,
Carpentier escreve, ao mesmo tempo, alegorias do impacto da outra revolução, de nossos dias,
sobre aquelas populações, ainda não libertadas. Os símbolos dessa libertação são, no romance
histórico El Siglo de Luces, o Livro e a Guilhotina. A esse ciclo de romances históricos pertence
a presente obra: El Reino de Este Mundo. É a história de uma ditadura libertadora dos pretos de
Haiti, de um ditador-libertador como Toussaint L’Ouverture.
Carpentier conhece Haiti. Esteve lá como assistente teatral da companhia de Louis Jouvet
que, em viagem pela América Latina, deu representações naquela República de pretos de língua
francesa. Seria do maior interesse comparar El Reino de Este Mundo com obras parecidas da
própria literatura haitiana, de Jacques Roumain ou Jacques Alexis. Mas, sendo quase
desconhecida no Brasil essa literatura, é mais reveladora para nós a comparação com Emperor
Jones, de O’Neill. Como este, Carpentier observa e destaca os traços grotescos e bárbaros da
pitoresca e desoladora história haitiana. Mas em vez do misticismo ou pseudomisticismo teatral
do dramaturgo norte-americano, eleva-se a voz clara da consciência social e o que ela nos diz,
em El Reino de Este Mundo, permite determinar e definir a posição de Carpentier e dos seus
contemporâneos como Asturias, Rulfo, Fuentes, Rodríguez Monegal, Ernesto Sabato, Julio
Ramón Ribeyro.
Depois de 1929, o romance social norte-americano foi, durante um momento histórico, a
voz da consciência do mundo, assim como o fora no século XIX a literatura russa. Hoje a
literatura latino-americana assumiu esse papel.
Necessário é observar as diferenças. O romance social norte-americano dos anos de 1930,
de Dreiser, Farrel, Caldwell, Steinbeck, foi, assim como o romance latino-americano dos
mesmos anos, neonaturalista. O estilo de um Carpentier, de um Asturias, é barroco e moderno,
abundante, febril e metafórico. Mas essa riqueza estilística não obscurece, antes intensifica a
clareza de consciência social e a grande piedade com a criatura torturada. El Reino de Este
Mundo evoca irresistivelmente os versos que, naquela mesma época, o grande poeta inglês
Wordsworth dedicou ao desgraçado Toussaint L’Ouverture, “the most unhappy man of men”,
consolando-o no seu calabouço e lembrando-lhe “os grandes aliados que lhe ficam: seus amigos
Exultação, Agonia, Amor e o invencível espírito humano”.
“... thou hast great allies, Thy friends are exultations, agonies, And love, and man’s
unconquerable mind.”

OTTO MARIA CARPEAUX


PREFÁCIO

... Entender-se-á com isso de se transformarem em lobos que existe uma enfermidade à qual
os médicos chamam mania lupina...

(DE “OS TRABALHOS DE PERSILES E SIGISMUNDA”)

EM FINS DE 1943 tive a sorte de visitar o reino de Henri Christophe — as ruínas, tão poéticas, de
Sans-Souci; a grandeza imponente da Cidadela La Ferrière, intacta apesar dos raios e dos
terremotos — e de conhecer a ainda normanda Cidade do Cabo, o Cap Français da antiga
colônia, onde uma rua cercada por longuíssimos balcões conduz ao palácio de pedras brancas
habitado antigamente por Paulina Bonaparte. Depois de sentir o tão bem propalado sortilégio das
terras do Haiti, de ter encontrado as advertências mágicas pelas estradas de terra vermelha da
Meseta Central, de ter ouvido os tambores de Petro e Rada, fui tentado a aproximar aquela
maravilhosa realidade recém-vivida à exaustiva pretensão de suscitar o maravilhoso que
caracterizou certa literatura europeia nestes últimos trinta anos. Aquele maravilhoso, revivido
através dos velhos clichês da Floresta de Brocelianda, dos Cavaleiros da Távola Redonda, do
feiticeiro Merlin e do Ciclo do Rei Artur, O maravilhoso, parcamente sugerido por ofícios e
deformidades de personagens de feira. Não se cansam nunca os jovens poetas franceses dos
mostrengos e palhaços da fête foraine, dos quais Rimbaud já se despedira na sua Alquimia do
Verbo? O maravilhoso, obtido com truques de prestidigitação, reunindo objetos sem finalidade
alguma: a velha e embusteira história do encontro fortuito do guarda-chuva e da máquina de
costura em cima de uma mesa de dissecação, gerador das colheres de arminho; os caracóis no
táxi chuvoso; a cabeça de leão no pélvis da viúva, exibidos amiúde nas exposições surrealistas.
Ou ainda, o maravilhoso em literatura: o rei, da Julieta, de Sade; o supermacho, de Jarry, o
monge, de Lewis, e o tétrico instrumental da novela negra inglesa, com seus fantasmas,
sacerdotes emparedados, licantropias e mãos cravadas na porta de um castelo.
Mas à força de suscitar o maravilhoso a todo transe, os taumaturgos tornaram-se burocratas.
Invocado através de fórmulas arquissabidas — que transformam certas pinturas num monótono
armarinho de relógios derretidos, manequins de costureira e vagos monumentos fálicos — o
maravilhoso resulta apenas num guarda-chuva, numa lagosta, numa máquina de costura, ou o
que seja, sobre uma mesa de dissecação, no interior de um quarto triste ou num deserto de
pedras. Aprender códigos de memória é pobreza de imaginação, já dizia Unamuno. E hoje
existem códigos para o fantástico, baseados no princípio do burro devorado por um figo,
proposto nos Cantos de Maldoror como suprema inversão da realidade, aos quais devemos
tantos “meninos ameaçados por rouxinóis” ou “cavalos devorando pássaros”, de André Masson.
Entretanto, convém observar que quando André Masson quis desenhar a selva da ilha da
Martinica, com o incrível entrelaçamento de suas plantas e a obscena promiscuidade de certas
frutas, a maravilhosa verdade do tema devorou o pintor, deixando-o pouco menos que impotente
frente ao papel em branco. E foi preciso um pintor da América, o cubano Wilfredo Lam, para nos
ensinar a magia da vegetação tropical, a desenfreada Criação de Formas da nossa natureza —
com todas suas metamorfoses e simbioses — em quadros monumentais que ocupam hoje uma
posição ímpar na pintura contemporânea. Ante a desconcertante pobreza de imaginação de um
Tanguy, por exemplo, que há vinte e cinco anos pinta as mesmas larvas pétreas sob o mesmo céu
cinzento, tenho ganas de repetir aquela frase que enchia de orgulho os surrealistas da primeira
fornada: “Vous qui ne voyes pás, pensez a ceux qui voient.” Ainda existem, porém, muitos
adolescentes que encontram prazer em violentar cadáveres de mulheres recém-mortas
(Lautréamont), sem se darem conta do maravilhoso que seria violentá-las vivas. Acontece que
muitos esquecem — disfarçados de mágicos baratos — que o maravilhoso começa a sê-lo, de
maneira inequívoca, quando surge de uma inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma
revelação privilegiada da realidade, de um destaque incomum ou singularmente favorecedor das
inadvertidas riquezas da realidade, ou de uma ampliação das escalas e categorias da realidade,
percebidas com particular intensidade, em virtude de uma exaltação do espírito, que o conduz até
um tipo de “estado limite”. Antes de tudo, para sentir o maravilhoso é necessário ter fé. Aqueles
que não acreditam em santos não se podem curar com milagres de santos, como também não
podem entrar de corpo, alma e posses no mundo de Amadis de Gaula ou de Tirante, o Branco,
aqueles que não são quixotescos. Prodigiosamente fidedignas resultavam certas frases de Rutilio,
nos Trabalhos de Persiles e Sigismunda, sobre homens que se transformavam em lobos, porque,
na época de Cervantes, era crença geral existirem pessoas atacadas pela mania lupina. E da
mesma forma a viagem do personagem, desde Toscana até a Noruega, sobre o manto de uma
bruxa. Marco Polo admitia a existência de aves que voavam carregando elefantes nas garras, e
Lutero viu o Demônio de frente, em cuja cabeça atirou um tinteiro. Victor Hugo, tão explorado
pelos colecionadores de livros sobre o maravilhoso, acreditava em aparições, porque estava
seguro de ter falado, em Guernesey, com o fantasma de Leopoldina. Para Van Gogh, bastava ter
fé no girassol para fixá-lo numa tela. Eis a razão por que o maravilhoso invocado sem fé —
como o fizeram os surrealistas durante tantos anos — nunca foi senão uma artimanha literária,
tão aborrecida, ao prolongar-se demasiadamente, quanto certa literatura onírica “arranjada” e
certos elogios à loucura, tão comuns hoje em dia. Entretanto, nem por isso vamos dar a razão a
determinados partidários do regresso ao realismo — termo que adquire, então, um significado
gregariamente político — que não fazem senão substituir os truques de prestidigitação pelos
lugares-comuns do literato “arrolado”, ou pelo escatológico deleite de certos existencialistas.
Mas é indubitável que pouco se pode dizer em defesa dos poetas e artistas que louvam o sadismo
sem praticá-lo, que admiram o supermacho por impotência; que invocam espectros sem acreditar
que respondam a seus cânticos; que fundam sociedades secretas, seitas literárias e grupos
vagamente filosóficos, com santos, senhas e misteriosas finalidades — nunca alcançadas — sem
que sejam capazes de conceberem uma mística válida ou de abandonarem hábitos mesquinhos
para se atirarem de corpo e alma na fatalidade de uma crença.
Tudo isso ficou particularmente evidente durante minha permanência no Haiti, quando vivi
em contato diário com aquilo que poderíamos chamar de Realidade Maravilhosa. Pisava eu
numa terra onde milhares de homens ansiosos pela liberdade acreditaram nos poderes
licantrópicos de Mackandal, a tal ponto, que essa fé produziu um milagre no dia da sua
execução. Conhecia já a história prodigiosa de Bouckman, o iniciado jamaicano. Tinha já estado
na Cidadela La Ferrière, obra sem antecedentes arquitetônicos, apenas vagamente anunciada nas
Prisões Imaginárias, de Piranese. Tinha também respirado a atmosfera criada por Henri
Christophe, monarca de incrível tenacidade, muito mais surpreendente que todos os reis cruéis
inventados pelos surrealistas, muito chegados às tiranias imaginárias, embora nunca padecidas. A
cada passo encontrava a Realidade Maravilhosa. Pensava também que essa presença e vigência
da Realidade Maravilhosa não era privilégio único do Haiti, senão um patrimônio de toda a
América, onde ainda não se concluiu, por exemplo, um inventário de cosmogonias. Encontramos
a Realidade Maravilhosa em cada passo das vidas dos homens que assinalaram as datas
importantes da história do Continente e que deixaram nomes ainda lembrados: desde aqueles que
buscavam a Fonte da Juventude Eterna ou a Áurea Cidade de Manoa, até os primeiros rebeldes,
aqueles heróis modernos de nossas guerras de independência, de tão mitológica atitude, como
aquela Coronela Juana de Azurduy. Sempre me pareceu muito significativo que em 1780 um
punhado de espanhóis prudentes, embarcados em Angostura, ainda se lançassem em busca do
Eldorado; e mais, que na época da Revolução Francesa — Viva a Razão e o Ser Supremo! —
Francisco Menéndez, de Santiago da Compostela, andasse pelas terras da Patagônia buscando a
Cidade Encantada dos Césares! Sintonizando outro aspecto da questão, veríamos, por exemplo,
que na Europa Ocidental o folclore de danças perdeu todo o seu caráter de magia e de evocação;
e na América, por outro lado, rara é a dança coletiva que não encerre um profundo sentido ritual,
criando-se em torno deste, todo um processo iniciado: assim, temos as festas de santos, em Cuba,
e a prodigiosa versão dada pelos negros à festa de Corpus Christi, que pode ainda ser vista no
povoado de São Francisco de Yare, na Venezuela.
Em determinado momento, o herói (no canto sexto do Maldoror), perseguido por toda a
polícia do mundo, escapa de um “exército de agentes e espiões” adotando a aparência de
diversos animais e fatendo uso de seu poder de transportar-se instantaneamente para Pequim,
Madri ou São Petersburgo. Isso é literatura maravilhosa na sua plenitude. Na América, porém,
onde nunca se escreveu nada semelhante, existiu um Mackandal, dotado desses mesmos poderes
pela fé de seus contemporâneos, que deu alento, com esse mesmo sortilégio, a uma das
sublevações mais estranhas e dramáticas da História. Maldoror — confessa o próprio Ducasse —
não passava de um Rocambole poético, e dele não ficou mais que uma escola literária de vida
efêmera. De Mackandal, o americano, por outro lado, resta toda uma mitologia, acompanhada de
mágicos cânticos, conservados por uma aldeia inteira, e que ainda hoje são cantados nas
cerimônias do Vodu. (Também é uma estranha casualidade que Isidoro Ducasse, homem que
possuía excepcional instinto do fantástico-poético, tivesse nascido na América e que se jactasse
tão enfaticamente, no final de um dos seus cantos, ser de Montevidéu). É evidente, pela
virgindade da paisagem, pela sua formação, pela ontologia, pela afortunada presença do índio e
do negro, pela Revelação que constituiu seu recente descobrimento, pelas fecundas mestiçagens
que propiciou, que a América ainda está muito longe de ter esgotado seu caudal de mitologias.
Sem que me propusesse sistematicamente, o texto que se segue responde a essa ordem de
preocupações. Nele se narra uma sucessão de fatos extraordinários, ocorridos na ilha de São
Domingos, numa época determinada, que não alcança o período de uma vida humana, deixando-
se que o maravilhoso emane livremente de uma realidade estritamente seguida em todos os seus
detalhes. Porque é mister advertir que o relato que se segue foi estabelecido com base numa
documentação extremamente rigorosa, que respeita a verdade histórica dos fatos, dos nomes dos
personagens — incluindo os secundários — dos lugares e até das ruas, e que oculta também, sob
sua aparente intemporalidade, um minucioso cotejo de datas e cronologias. Entretanto — pela
dramática singularidade dos acontecimentos, pela fantástica presença dos personagens que se
encontraram em determinado momento na encruzilhada mágica da Cidade do Cabo — tudo é
maravilhoso, nessa história impossível de situar na Europa, e que, todavia, é tão real como
qualquer jeito exemplar daqueles consignados, para edificação pedagógica, nos manuais
escolares. Mas o que é a História da América senão toda uma crônica da Realidade Maravilhosa?

A. C.
PRIMEIRA PARTE
DEMÔNIO
Peço licença para entrar...
PROVIDÊNCIA
Quem és?
DEMÔNIO
O rei do Ocidente.
PROVIDÊNCIA
Já sei quem és, maldito. Entra!
(Entra agora)
DEMÔNIO
Oh tribunal bendito,
eterna Providência!
Aonde Colombo envias
para os meus sofrimentos renovar?
Não sabes que já muito tempo faz
aquelas são terras minhas?

LOPE DE VEGA
AS CABEÇAS DE CERA

ENTRE OS vinte garanhões transportados para o Cabo Francês pelo capitão do barco, que era
intermediário de um criador normando, Ti Noel escolhera sem vacilação aquele reprodutor
grandalhão, de garupa redonda, bom para a remonta das éguas que estavam parindo potros cada
vez menores. Conhecedor da perícia do escravo em matéria de cavalos, Monsieur Lenormand de
Mezy, sem reconsiderar a escolha, pagara em sonantes luíses. Depois de fazer um freio de
cordas, Ti Noel gozava toda a largura do sólido animal de pelo mosqueado, sentindo nas coxas a
saboeira de um suor que pronto transformar-se-ia em espuma ácida sobre o espesso pelame
percherão. Seguindo o amo, que cavalgava um alazão de patas mais finas, atravessara o bairro do
porto — com seus armazéns recendendo a salmoura, com suas lonas retesadas pela umidade e
suas bolachas duras de partir a soco — antes de sair na Calle Mayor, plena de tonalidades
cambiantes naquela hora matinal, pelos lenços quadriculados de cores vivas das empregadas
negras que voltavam do mercado. A passagem da rica carruagem do governador, toda enfeitada
de contas douradas, arrancou ampla saudação a Monsieur Lenormand de Mezy. Em seguida, o
amo e o escravo amarraram os animais em frente à barbearia, que recebia a Gazeta de Leyde,
para distração de seus fregueses mais cultos.
Enquanto o amo fazia a barba, Ti Noel pôde contemplar a seu gosto as quatro cabeças de
cera que adornavam a estante da entrada. O ondulado das perucas enquadrava os semblantes
imóveis, antes de se espalhar, num remanso de crespos cachos, sobre um tapete encarnado.
Aquelas cabeças pareciam tão reais — embora tão mortas, pela fixidez dos olhos — quanto a
cabeça falante que um charlatão de passagem pelo Cabo tinha trazido, anos atrás, para ajudá-lo a
vender um elixir contra dor de dente e reumatismo. Por graciosa casualidade, o açougue ao lado
exibia cabeças de terneiro, esfoladas, com um raminho de salsa sobre a língua, que também
tinham o mesmo tom de cera, e estavam como que adormecidas entre rabos escarlates, patas em
gelatina e panelas de tripas à moda de Caen. Apenas um tabique de madeira separava os dois
mostruários, e Ti Noel se divertia pensando que ao lado das cabeças de terneiro descoradas,
serviam-se, na toalha da mesma mesa, cabeças de brancos senhores. Assim como se costuma
guarnecer as aves com suas plumagens para apresentá-las aos comensais de um banquete, um
cozinheiro hábil e ogro adornara as cabeças de cera com suas melhores perucas. Não lhes faltava
mais que uma orla de folhas de alface ou de rabanetes cortados em flor. No mais, os potes de
goma-arábica, os vidros de água de lavanda e as caixas de talco, vizinhas às caçarolas de miúdos
e às bandejas de rins, completavam, com singulares coincidências de frascos e recipientes, aquele
quadro de um abominável banquete.
Havia abundância de cabeças naquela manhã, já que, ao lado do açougue, o livreiro tinha
pendurado num arame, com prendedores de roupa, as últimas estampas recebidas de Paris. Em
quatro delas, pelo menos, ostentava-se o rosto do rei de França, moldurado de sóis, espadas e
lauréis. Mas havia muitas outras cabeças emperucadas, provavelmente de altos personagens da
corte. Os guerreiros eram identificáveis pelas atitudes de quem vai partir para o ataque. Os
magistrados, pela carranca de meter medo. Os poetas de talento, porque sorriam, sobre duas
plumas, encimando versos que nada diziam a Ti Noel, já que os escravos não sabiam ler. Havia
também gravuras em cores, de confecção mais ligeira, onde se podiam ver os fogos de artifício
dos festejos da tomada de alguma cidade; bailados com médicos armados de enormes seringas;
uma partida de cabra-cega num parque; jovens libertinos mergulhando a mão no decote de uma
camareira; ou, a inevitável astúcia de um apaixonado que, recostado na relva, descobre,
arrebatado, os íntimos recessos da dama que se embala inocentemente num balanço. Mas Ti Noel
fora atraído naquele momento por uma gravura em cobre, última da série, que se diferenciava das
demais pelo assunto e pela confecção. Representava ela uma espécie de embaixador ou almirante
francês sendo recebido por um negro rodeado de leques de plumas e sentado sobre um trono
adornado de figuras de macacos e lagartos.
— Que gente é essa? — perguntou atrevidamente ao livreiro, que acendia um comprido
cachimbo de barro na soleira de sua loja.
— É um rei do teu país.

Não teria sido necessária a confirmação daquilo que já pensara, porque o jovem escravo havia
recordado, de pronto, aquelas histórias que Mackandal cantava em salmos, na moenda de cana,
naquelas horas em que o cavalo mais velho da fazenda de Lenormand de Mezy fazia girar os
cilindros. Com voz fingidamente cansada, para melhor preparar certos efeitos, o mandinga
referia-se a feitos que tinham ocorrido nos grandes reinos de Popo, de Arada, dos nagôs e dos
fulas. Falava de grandes migrações de povos inteiros, de guerras seculares, de prodigiosas
batalhas nas quais os animais tinham ajudado os homens. Conhecia a história de Adonhueso, do
rei da Angola, do Rei Da, encarnação da serpente, o eterno princípio do retorno infinito, o qual
se divertia misticamente com uma rainha, a rainha do Arco-íris, senhora da água e de todos os
partos. Mas sobretudo era prolixo na narração das façanhas de Kankán Muza, o feroz Muza,
construtor do invencível império dos mandingas, cujos cavalos eram enfeitados com moedas de
prata e caronas bordadas, e relinchavam mais alto que o fragor das armas, levando o trovão na
pele dos tambores suspensos ao cangote. Além disso, aqueles reis carregavam de lança, à frente
de suas hordas, invulneráveis pela ciência dos Preparadores, e só caíam feridos se de alguma
maneira ofendessem as divindades do Raio ou as divindades da Forja. Reis eram, reis de
verdade, e não esses soberanos cobertos de cabelos alheios, que jogavam a bula e só sabiam
imitar os deuses nos palcos de seus teatros da corte, exibindo a perna amaricada ao compasso de
uma contradança. Esses soberanos brancos ouviam mais as sinfonias de suas rabecas, as arengas
dos libelos, os mexericos de suas favoritas e os cantos de seus pássaros de cordas, do que os
estampidos dos canhões disparando sobre o contraforte da meia-lua dos baluartes. Embora não
tivesse cultura, Ti Noel tinha sido instruído nessas verdades pelo profundo saber de Mackandal.
Na África, o rei era guerreiro, caçador, juiz e sacerdote; seu sêmen precioso engrossava em
centenas de ventres uma vigorosa estirpe de heróis. Na França, na Espanha, no entanto, o rei
enviava seus generais para o combate; era incompetente para dirimir litígios e era repreendido
por qualquer frade confessor. E quanto à virilidade, não ia além de gerar um príncipe debiloide,
incapaz de abater um veado sem a ajuda de seus batedores, a quem chamavam, com inconsciente
ironia, pelo nome de um peixe tão inofensivo e frívolo como o delfim. Além, no Grande Além,
existiam príncipes rijos como a bigorna, príncipes-leopardos, príncipes que conheciam a
linguagem das árvores, príncipes que mandavam nos quatro pontos cardeais, donos das nuvens,
da semente, do bronze e do fogo.
Ti Noel ouviu a voz do amo, que saía da barbearia com o rosto branco pelo excesso de
talco. Seu rosto agora se assemelhava surpreendentemente às quatro caras de cera que se
alinhavam na estante, sorrindo estupidamente. De passagem, Monsieur Lenormand de Mezy
comprou uma cabeça de terneiro no açougue, entregando-a ao escravo. Montado no reprodutor já
impaciente por pastar, Ti Noel apalpava aquele crânio branco e frio, pensando que deveria
oferecer ao tato um contorno parecido ao da calva que o amo ocultava embaixo da peruca.
Entretanto, a rua agora estava cheia de gente. As senhoras que saíam da missa das dez ocupavam
agora o lugar das negras que antes voltavam do mercado. Uma mestiça, concubina de algum
funcionário enriquecido, fazia-se seguir por uma empregada de cor tão desmaiada quanto ela, e
que levava o leque de folha de palmeira, o breviário e o guarda-sol de borlas douradas. Numa
esquina bailavam os fantoches de um teatro ambulante. Mais adiante, um marinheiro oferecia às
damas um macaquinho do Brasil, vestido à espanhola. Nas tabernas, desarrolhavam-se as
garrafas de vinho, refrescadas em barris cheios de sal e areia molhada. O Padre Cornejo, cura de
Limonade, acabava de chegar à igreja principal montado na sua mula cinzenta.
Monsieur Lenormand de Mezy e seu escravo saíram da cidade pelo caminho que seguia à
beira-mar. Do alto da fortaleza soaram canhonaços. La Courageuse, da Armada Real, acabava de
aparecer no horizonte, de volta da Ilha de Tortuga. Na sua borda, brancas nuvens de fumo faziam
eco aos estampidos. Assaltado pelas recordações de seus tempos de oficial pobre, o amo
começou a assobiar uma marcha para flauta. Ti Noel, em contraponto, tatareou para si mesmo
uma quadra marinheira, muito cantada pelos tanoeiros do porto, na qual se mandava à merda o
rei da Inglaterra. Disso estava seguro, embora a letra não estivesse em créole. Por isso mesmo
sabia. E de mais a mais, para ele era pouca coisa o rei da Inglaterra, como o da França ou o da
Espanha, que mandava na outra metade da ilha, e cujas mulheres — segundo afirmava
Mackandal — avermelhavam as faces com sangue de boi e enterravam fetos de criancinhas num
convento cujos subterrâneos estavam cheios de esqueletos rechaçados pelo verdadeiro Céu, onde
não se queriam mortos ignorantes dos deuses verdadeiros.
A PODA

TI NOEL sentara em cima de uma gamela virada, deixando que o velho cavalo fizesse girar a
moenda num passo que o hábito fazia absolutamente regular. Mackandal agarrava os feixes de
cana, enfiando-os pelas pontas, a empurrões, entre os cilindros de ferro. Com os olhos sempre
injetados, o tronco possante, a delgadíssima cintura, o mandinga exercia estranha fascinação
sobre Ti Noel. Corria fama que sua voz grave e surda tudo conseguia das negras. E que suas
manhas de narrador, caracterizando seus personagens com caretas horríveis, impunham silêncio
aos homens, sobretudo quando recordava uma viagem que fizera, anos atrás, como cativo, antes
de ter sido vendido aos negreiros de Serra Leoa. O moço compreendia, ao escutá-lo, que o Cabo
Francês — com seus campanários, seus prédios de pedra talhada, suas casas normandas
adornadas com longos balcões cobertos — era bem pouca coisa em comparação às cidades da
Guiné. Lá, as cúpulas de barro vermelho assentavam sobre grandes fortalezas recortadas de
ameias. Os mercados eram famosos muito além dos limites do deserto; além dos povos sem
terras. Naquela cidade, os artífices eram hábeis em temperar os metais, forjando espadas que
cortavam como navalhas sem pesar mais que uma pétala na mão do guerreiro. Rios caudalosos,
nascidos no Céu, lambiam os pés dos homens, e não era necessário trazer o sal do País do Sal.
Em depósitos muito grandes, guardava-se o trigo, o sésamo, o milho, e de reino a reino
efetuavam-se trocas que alcançavam o azeite de oliva e os vinhos de Andaluzia. Sobre tetos de
folhas de palmeira dormiam os tambores gigantes, os tambores-mãe, que tinham os pés pintados
de vermelho e semblantes humanos. As chuvas obedeciam aos conjuros dos sábios, e nas festas
da Circuncisão, quando as adolescentes dançavam com as coxas laqueadas de sangue, golpeavam
as lajes sonoras que produziam uma música parecida com a queda das grandes cascatas
represadas. Na cidade sagrada de Widah, rendia-se culto à Cobra, mística representação do
eterno círculo, assim como também aos deuses que governavam o reino vegetal, que surgiam,
molhados e reluzentes, entre os juncais que aquietavam as margens dos lagos salobros.
O cavalo, extenuado, tombou, sobre os joelhos. Escutou-se um urro tão dilacerante e
prolongado, que foi ouvido nas fazendas vizinhas, alvoroçando os pombais. Agarrada pelos
cilindros que, de repente, giraram com inesperada rapidez, a mão esquerda de Mackandal tinha
ido junto com as canas, arrastando o braço até o ombro. No tacho de garapa ia aumentando uma
mancha de sangue. Pegando um facão, Ti Noel cortou as correias que sujeitavam o cavalo ao
varão da moenda. Os escravos do curtume invadiram o engenho, correndo atrás do amo.
Também vinham chegando os trabalhadores do defumadouro de carne e do secadouro de cacau.
Mackandal puxava agora seu braço triturado, fazendo girar os cilindros em sentido contrário.
Com a mão direita tentava mover o cotovelo, o pulso, que haviam deixado de lhe obedecer. Com
o olhar aturdido, parecia não compreender o que lhe havia sucedido. Começaram a apertar-lhe
um torniquete de cordas sobre as axilas, para conter a hemorragia. O amo ordenou que se
trouxesse a pedra de amolar para afiar o facão que seria utilizado na amputação.
O QUE A MÃO ENCONTRAVA

INÚTIL PARA trabalhos maiores, Mackandal foi designado para guardar o gado. Tirava as vacas
dos estábulos antes de raiar o dia, levando-as para a montanha, em cujos lados de sombra crescia
um pasto compacto que conservava o orvalho até alta manhã. Ao observar a lenta dispersão dos
animais que pastavam mergulhados no trevo até o ventre, começara a despertar nele um estranho
interesse por certas plantas sempre desprezadas pelo gado. Recostado à sombra de uma
algarobeira, apoiando-se no cotovelo de seu braço inteiro, procurava com sua única mão, entre as
ervas conhecidas, em busca de todos os produtos da terra cuja existência tinha desdenhado até
então. Descobria com surpresa a vida secreta de espécies singulares, afeiçoadas à dissimulação, à
confusão, à camuflagem, amigas dos pequenos seres couraçados que evitavam o caminho das
formigas. A mão colhia alpistes desconhecidos, cápsulas sulfurosas, pimentas minúsculas;
cipoais que teciam redes entre as pedras; plantas solitárias, de folhas peludas, que transpiravam à
noite; sensitivas que se encolhiam ao mero som da voz humana; cápsulas que estalavam ao meio-
dia, fazendo o barulhinho de unha esmagando uma pulga; lianas rasteiras, que se entrelaçavam,
longe do Sul, formando úmidos emaranhados. Havia uma trepadeira que provocava ardências e
outra que inchava a cabeça de quem descansasse à sua sombra. Porém, agora, Mackandal estava
mais interessado pelos cogumelos. Cogumelos que fediam a caruncho, a redoma, a porão, a
doença; que provocavam inchação nas orelhas, línguas-de-vaca e carnosidades rugosas; que se
cobriam de exsudações ou abriam seus guarda-sóis riscados sobre frios recônditos, morada de
sapos que miravam ou dormiam sem um piscar de olho. O mandinga desmanchava a polpa de
um cogumelo entre os dedos, subindo-lhe às narinas um cheiro de veneno. Em seguida fazia uma
vaca farejar sua mão. Quando o animal afastava a cabeça, com olhar assustado, respirando fundo,
Mackandal procurava mais cogumelos da mesma espécie, guardando-os numa bolsa de couro cru
que levava pendente ao pescoço.
A pretexto de banhar os cavalos, Ti Noel costumava afastar-se da fazenda de Lenormand de
Mezy durante longas horas, para reunir-se ao maneta. Ambos então se encaminhavam até os
confins do vale, onde o terreno era acidentado, e as encostas dos morros eram escavadas por
grutas profundas. Detinham-se na casa de uma velha que vivia só, embora recebesse visitas de
gente que vinha de muito longe. Vários sabres pendiam das paredes entre bandeiras encarnadas,
pesadas lanças, ferraduras, meteoritos e colheres enferrujadas, presas com arame em forma de
cruz, para afugentar o Barão Samedi, o Barão Piquant, o Barão La Croix e outros senhores dos
cemitérios. Mackandal mostrava a Mamãe Loi as folhas, as ervas, os cogumelos e os símplices
que trazia na bolsa. Ela os examinava cuidadosamente, apertando e cheirando uns e jogando fora
outros. Às vezes, falavam de animais notáveis que tinham tido descendência humana. E também
de homens que certos cânticos dotavam de poderes licantrópicos. Sabia-se de mulheres violadas
por grandes felinos, que tinham trocado durante a noite, a palavra pelo rugido. Certa vez, Mamãe
Loi emudeceu de maneira estranha justo quando ia chegando à melhor parte de um relato. E
obedecendo a uma ordem misteriosa, correu à cozinha, mergulhando os braços dentro de uma
panela cheia de azeite fervendo. Ti Noel observou que o seu rosto refletia a mais completa
indiferença, e, o que era mais estranho: seus braços, quando ela os retirou do azeite, não
apresentavam nem bolhas nem sinais de queimadura, apesar do pavoroso chiado de fritura que se
ouvira pouco antes. Como Mackandal parecia aceitar o fato com a mais absoluta calma, Ti Noel
fez um esforço para ocultar seu assombro. E a conversa prosseguia calmamente entre o
mandinga e a bruxa, com prolongadas pausas, quando ambos ficavam com o olhar perdido ao
longe.
Um dia pegaram um cão no cio, que pertencia às matilhas de Lenormand de Mezy.
Enquanto Ti Noel montado sobre ele sujeitava sua cabeça pelas orelhas, Mackandal esfregou-lhe
no focinho uma pedra tingida de amarelo claro pelo sumo de um cogumelo. O cão contraiu os
músculos e seu corpo foi sacudido por violentas convulsões, caindo em seguida sobre o lombo,
com as patas retesadas e as presas de fora. Naquela tarde, ao regressar à fazenda, Mackandal
deteve-se longo tempo contemplando as moendas, os secadouros de cacau, de café, a anilaria, as
forjas, as cisternas, os defumadouros de carne, e disse:
— Chegou o momento.
No dia seguinte o chamaram em vão. O amo organizou uma batida, para mera edificação
dos escravos, sem se dar muito trabalho. Pouco valia um escravo com um braço a menos. De
mais a mais, todo mandinga — era coisa sabida — ocultava um fugitivo em potencial. Dizer
mandinga era dizer desordeiro, revoltado e demônio. Por isso a gente desse reino era tão mal
cotada nos mercados de escravos. Todos sonhavam com a fuga para as montanhas. E além disso,
com tantas propriedades vizinhas, o maneta não iria muito longe. Quando fosse devolvido à
fazenda, seria submetido a suplícios na frente do pessoal, para servir de exemplo. Mas um
maneta não é mais que um maneta. Teria sido uma tolice correr o risco de perder um par de
mastins de boa raça, caso Mackandal tivesse a ideia de fazê-los calar com um facão.
A CONTAGEM

TI NOEL estava profundamente deprimido pelo desaparecimento de Mackandal. Tivesse este


proposto uma evasão, teria aceito com júbilo a missão de servir ao mandinga. Pensava agora que
o maneta o considerava muito pouca coisa para pô-lo a par de seus projetos. Nas noites longas,
quando o moço sofria com esse pensamento, levantava-se do pesebre do estábulo onde dormia e
abraçava, chorando, o pescoço do garanhão normando, afundando o rosto nas crinas mornas que
cheiravam a cavalo lavado. A partida de Mackandal levava com ele todo aquele mundo evocado
em suas narrativas. Com ele se foram também Kankán Muza, Adonhueso, os reis verdadeiros e o
Arco-íris de Widah. Perdida a razão de viver, Ti Noel aborrecia-se nas batucadas dominicais:
vivia com seus animais, cujas orelhas e períneos mantinha sempre livres de carrapatos. E assim
transcorreu toda a estação das chuvas.
Um dia, quando as águas dos rios baixaram, Ti Noel encontrou a velha da montanha nas
imediações das cavalariças. Ela lhe trazia uma mensagem de Mackandal. Por isso, ao raiar do
dia, o moço penetrou numa caverna de entrada estreita, cheia de estalagmites que desciam até
uma cova mais funda, coberta de morcegos suspensos pelas patas. O solo estava coberto por uma
espessa camada de folhas de palmeira que aprisionava utensílios de pedra e espinhas de peixe
petrificadas. Ti Noel observou que várias vasilhas de barro ocupavam o centro da cova e que
delas emanava, naquela úmida penumbra, um cheiro acre e pesado. Sobre folhas de cincho
amontoavam-se couros de lagarto. Uma laje grande e várias pedras redondas e lisas tinham sido
utilizadas, sem dúvida alguma, num recente trabalho de maceração. Sobre um tronco aparado a
fio de facão em todo seu comprimento, estava um livro de contabilidade, roubado do caixa da
fazenda, em cujas páginas se alinhavam grossos signos traçados a carvão. Ti Noel não pôde
deixar de pensar nas lojas que vendiam ervas e drogas no Cabo, com seus morteiros, suas
receitas guardadas nas estantes, seus potes de noz-vômica, de goma amarga e seus pacotes de
raiz de malvaísco para curar as gengivas. Faltavam apenas alguns escorpiões conservados em
álcool, as rosas maceradas no azeite e o viveiro de sanguessugas.
Mackandal emagrecera. Seus músculos moviam-se agora ao nível da ossamenta, esculpindo
o tronco com pujantes relevos. Seu semblante, que apresentava reflexos oliváceos à luz do
lampião, demonstrava, porém, tranquila alegria. Tinha a testa cingida por um lenço escarlate,
enfeitado com fieiras de contas. O que mais assombrou Ti Noel foi a evidência de um longo e
paciente trabalho realizado pelo mandinga desde a noite de sua fuga. Dir-se-ia que tinha
percorrido todas as fazendas da Planície, uma a uma, tratando diretamente com todos os que
nelas trabalhavam. Sabia, por exemplo, que na anilaria de Dondón podia contar com Olain, o
hortelão, com Romaine, a cozinheira dos barracões, e com o caolho Jean-Pierrot. Na fazenda de
Lenormand de Mezy, enviara mensagens aos três irmãos Pongué, aos congoleses recém-
chegados, ao fula cambaio e a Marinette, a mulata que em outros tempos havia dormido na cama
do amo, antes de ser devolvida à lixívia, pela chegada de certa Mademoiselle de la Martinière,
desposada por procuração num convento do Havre, ao embarcar para a colônia. Tinha também
entrado em contato com os dois angoleses que trabalhavam além do Barrete do Bispo, cujas
nádegas riscadas conservavam as marcas do ferro em brasa, aplicado como castigo por um roubo
de aguardente. Com caracteres que só ele era capaz de decifrar, consignara em seu registro o
nome do Feiticeiro de Millot, e até de condutores de bestas de carga, úteis para cruzar as
cordilheiras e estabelecer contato com o pessoal das margens do Artibonite.
Ti Noel ficou sabendo nesse dia o que o maneta esperava dele. Naquele domingo, quando
voltava da missa, o amo soube que as duas melhores vacas leiteiras da fazenda — aquelas de
rabo branco, trazidas de Ruão — agonizavam sobre suas bostas, babando fel pelos beiços. Ti
Noel explicou ao amo que os animais vindos de outros países costumavam enganar-se nos pastos
que comiam, tomando às vezes por saborosas leguminosas certos renovos que lhes envenenavam
o sangue.
DE PROFUNDIS

O VENENO SE espalhou pela Planície do Norte, invadindo os potreiros e os estábulos. Não se


sabia como se introduzira entre as gramas e as alfafas, entre os fardos de ferragem, e nem como
alcançava as mangedouras. O fato é que as vacas, os bois, os novilhos, os cavalos e as ovelhas
morriam às centenas, cobrindo a comarca inteira com um infindável fedor de carniça. Nos
crepúsculos acendiam-se grandes fogueiras, que desprendiam uma fumaça baixa e gordurenta,
antes de se extinguirem sobre montões de caveiras negras, de costelas carbonizadas e de cascos
embrasados pelas chamas. Os maiores entendidos em ervas do Cabo buscavam em vão a folha, a
resina, a seiva, provável portadora da calamidade. Os animais continuavam tombando, com os
ventres inchados, envoltos pelo zumbido das moscas varejeiras. Os telhados estavam cobertos de
grandes aves negras, de cabeça pelada, que esperavam a hora de caírem em cima e romperem os
couros, estourando de inchados, com uma bicada que liberaria novas podridões.
Logo se soube com espanto que o veneno entrara nas casas. Uma tarde quando merendava
um bolo, o dono da fazenda Coq-Chante caíra subitamente, sem ter sentido nada antes,
arrastando consigo um relógio de parede, no qual estava dando corda. Antes que a notícia se
espalhasse pelas propriedades vizinhas, outros proprietários tinham sido fulminados pelo veneno
que espreitava, para atacar melhor, escondido nas bacias dos veladores, nas terrinas de sopa, nos
vidros de remédio, no pão, no vinho, nas frutas e no sal. Escutava-se agora constantemente o
martelar dos ataúdes. Na curva de cada caminho aparecia um enterro. Nas igrejas do Cabo não se
cantavam senão missas pelos mortos, e as extrema-unções chegavam sempre muito tarde,
escoltadas por sinos distantes que dobravam por novas mortes. Os sacerdotes tiveram de abreviar
o latim para atenderem a todas as famílias enlutadas. E na Planície soavam, lúgubres, as mesmas
orações fúnebres, o grande hino do terror. Porque o terror emagrecia os rostos e apertava as
gargantas. À sombra das cruzes de prata que iam e vinham pelas estradas, o veneno verde, o
veneno amarelo ou o veneno que não tingia a água, continuava rastejando, descendo pelas
chaminés, infiltrando-se pelas fendas das portas fechadas, como uma incontida trepadeira que
buscasse as sombras para fazer dos corpos sombras também. Prosseguiam os Misereres e os De
Profundis em todas as horas, na sinistra antífona dos chantres.
Exasperados pelo medo, bêbedos de vinho por não se atreverem mais a provar a água dos
poços, os colonos açoitavam seus escravos, em busca de uma explicação. O veneno, porém,
seguia dizimando famílias, acabando com as pessoas e com os animais, sem que as rezas, os
conselhos médicos, as promessas aos santos, as cantigas ineficientes de um marinheiro bretão,
necromante e curandeiro, conseguissem deter a marcha subterrânea da morte. Com pressa bem
involuntária de ocupar a última cova que restava no cemitério, Madame Lenormand de Mezy
morreu no domingo de Pentecostes, pouco depois de provar uma laranja particularmente bela que
um ramo complacente colocara ao alcance de suas mãos. Foi decretado estado de sítio na
Planície. Todo aquele que andasse pelos campos ou pelas cercanias das casas depois do pôr do
sol seria morto a tiros de mosquetão sem aviso prévio. A guarnição do Cabo desfilara pelas
estradas numa ridícula ameaça de morte ao inimigo inatingível. Mas o veneno continuava
alcançando as bocas pelos caminhos mais inesperados. Um dia, os oito membros da família Du
Periguy o encontraram num barril de sidra que eles mesmos tinham trazido, nos braços, da adega
de um barco recém-ancorado. A carniça havia tomado conta de toda a comarca.
Certa tarde em que o ameaçavam de meter-lhe uma carga de pólvora no traseiro, o fula
cambaio acabou confessando. O maneta Mackandal, ogã do ritual Rada, investido de poderes
extraordinários, porque vários deuses maiores tinham baixado nele, era o Senhor do Veneno.
Dotado de suprema autoridade pelos Mandatários da Outra Costa, tinha proclamado a cruzada de
extermínio, eleito, como ele havia sido, para acabar com os brancos e criar um grande império de
negros livres em São Domingos. Milhares de escravos eram leais a ele. Já ninguém poderia deter
a marcha do veneno. Essa revelação provocou na fazenda uma tempestade de chicotadas. E tão
logo a pólvora — botaram fogo de pura raiva — estraçalhara os intestinos do negro falador, um
mensageiro foi enviado ao Cabo. Naquela mesma tarde foram mobilizados todos os homens
disponíveis para dar caça a Mackandal. A Planície — exalando a carne podre, os cascos mal
queimados e a pestilência dos vermes — ressoava agora latidos e blasfêmias.
AS METAMORFOSES

DURANTE várias semanas, os soldados da guarnição do Cabo e as patrulhas formadas pelos


colonos, contadores e feitores, revistaram a comarca, arvoredo por arvoredo, barranca por
barranca, juncal por juncal, sem achar o rastro de Mackandal. Por outro lado, o veneno, sabida
agora sua procedência, tinha detido a ofensiva, retornando às talhas que o maneta enterrara
nalgum lugar, transformando-se em espuma na grande noite dentro da terra, que noite de terra já
era para tantas vidas. Os cães e os homens voltavam dos montes ao entardecer, suando o cansaço
e o despeito por todos os poros. Agora que a morte recobrara seu ritmo normal, numa época do
ano em que só a aceleravam certas intempéries de janeiro ou certas febres peculiares originadas
pelas chuvas, os colonos entregavam-se à aguardente e ao jogo, corrompidos por uma forçada
convivência com a soldadesca. Entre canções obscenas e trapaças, bolinando de passagem os
seios das negras que traziam os copos limpos, recordavam as façanhas de avôs que tinham
tomado parte no saque de Cartagena das Índias, ou haviam afundado as mãos no tesouro da
Coroa espanhola quando Piet Hein, o perna de pau, levara a cabo em águas cubanas a fabulosa
façanha tão sonhada por todos os corsários durante séculos. Sobre mesas manchadas de vinho
tinto, entre um lance e outro de dados, propunham brindes a l’Esnambuc, a Bertrand d’Oregon, a
Du Rausset e aos homens de cabelo no peito que tinham estabelecido a colônia por sua conta e
risco, fazendo leis para homens, sem nunca se deixarem intimidar pelos editais publicados em
Paris e nem pelas brandas convenções do Código Negro. Adormecidos embaixo dos bancos, os
cães descansavam das coleiras armadas de pontas. Conduzidas agora com grandes vagares, com
sestas e merendas à sombra das árvores, as batidas contra Mackandal iam diminuindo. Vários
meses haviam passado sem que se soubesse nada do maneta. Alguns acreditavam que tivesse se
refugiado no centro do País, nas alturas nubladas da Grande Meseta, lá onde os negros dançavam
o fandango ao som das castanholas. Outros afirmavam que o ogã, transportado por uma escuna,
estava agindo na região de Jacmel, onde muitos homens que haviam morrido trabalhavam a terra
enquanto não tivessem a oportunidade de retornar à vida. Apesar disso, os escravos
demonstravam um desafiante bom humor. Nunca tinham batido em seus tambores com tanto
ímpeto os encarregados de ritmar a pisadura do milho ou o corte da cana. De noite, em suas
barracas e moradas, os negros comunicavam uns aos outros as mais estranhas notícias: um
lagarto verde se aquecera ao sol no teto do secadouro de tabaco; alguém tinha visto voar, em
pleno meio-dia, uma mariposa noturna; um enorme cão, de pelo eriçado, havia atravessado a
casa a toda brida, levando um pernil de veado; um pelicano se livrara dos piolhos — tão longe do
mar! — ao sacudir as asas no parreiral do pátio interno.

Todos sabiam que o lagarto verde, a mariposa noturna, o cachorro desconhecido e o incrível
pelicano não eram senão simples disfarces. Dotado do poder de transformar-se em animal de
cascos, em ave, peixe ou inseto, Mackandal visitava constantemente as fazendas da Planície para
vigiar seus seguidores e saber se ainda confiavam no seu regresso. De metamorfose em
metamorfose, o maneta estava em toda parte; tinha recuperado sua integridade corporal sob a
vestimenta de animais. Com asas um dia, guelras no outro, galopando ou rastejando, era dono
dos rios subterrâneos, das cavernas da costa, da copa das árvores e reinava agora em toda a ilha.
Seus poderes eram ilimitados. Tanto podia cobrir uma égua como descansar ao frescor de uma
cisterna; pousar nos raminhos de uma acácia ou enfiar-se pelo buraco da fechadura. Os cachorros
não latiam contra ele, e mudava de sombra segundo lhe convinha. Por obra sua, uma negra parira
um menino com cara de javali. De noite costumava aparecer pelas estradas na pele de um cabrito
negro com brasas nos chifres. Um dia, daria o sinal para a grande revolta, e os Senhores do
Além, tendo à frente Damballah, o Amo das Estradas e o Ogum das Armas, trariam o raio e o
trovão para desencadear o ciclone que completaria a obra dos homens. Nesse grande momento
— dizia Ti Noel — o sangue dos brancos correria pelos arroios, onde os Loas, ébrios de júbilo,
iriam bebê-lo de bruços, até encher os pulmões.
Quatro anos durou a ansiosa espera, sem que ouvidos atentos desesperassem de escutar, a
qualquer momento, a voz dos grandes búzios, que deveria soar na montanha para anunciar a
todos que Mackandal encerrara seus ciclos de metamorfoses, novamente assentado, possante e
rijo, com testículos como pedras, sobre suas pernas de homem.
A VESTIMENTA DO HOMEM

DEPOIS DE ter instalado em sua casa, por certo tempo, a lavadeira Marinette, Monsieur
Lenormand de Mezy, incitado pelo pároco de Limonade, tornara a casar-se, agora com uma
viúva rica, coxa e devota. Por esse motivo, quando sopraram os primeiros ventos norte naquele
mês de dezembro, as domésticas da casa, dirigidas pelo bastão da patroa, começaram a colocar
santos e pastores em torno de uma gruta feita de trapos, ainda cheirando a cola, que seria
iluminada no Natal, sob a aba do pórtico. Toussaint, o marceneiro, tinha esculpido em madeira
uns reis magos grandes demais para o conjunto e que nunca ficavam bem colocados, sobretudo
por causa das incríveis córneas brancas de Baltazar — particularmente realçadas pelo pincel —
que pareciam destacar-se da madeira negra com tétricas acusações de afogado. Ti Noel e os
demais escravos da casa assistiam ao progresso dos preparativos do Natal, recordando que se
aproximavam os dias dos presentes e das Missas do Galo, quando, com as visitas e os
convidados dos patrões, a disciplina relaxava um pouco, não sendo difícil arranjar na cozinha
uma orelha de porco, beber uma boca-cheia na torneira de um tonel de vinho, ou enfiar-se
durante a noite no barracão das angolesas, recém-compradas, que o amo pretendia acasalar, sob a
proteção do sagrado sacramento cristão, logo depois das festas. Mas desta vez Ti Noel sabia que
não estaria presente quando acendessem as velas e brilhassem as imagens douradas do presépio.
Calculava estar longe nessa noite, escapando-se para uma batucada organizada pelos escravos da
fazenda Dufrené, que tinham recebido licença para festejar com uma malga de aguardente
espanhola por cabeça o nascimento do primeiro filho varão do amo.

Roulé, roulé, Congoa roulé!


Roulé, roulé, Congoa roulé!
A fort ti fille ya dansé congo ya-ya-ró!

Há mais de duas horas que os tambores troavam sob a luz das tochas e que as mulheres
marcavam o compasso com os ombros, sem cessar, como se estivessem lavando roupa, quando
um estremecimento interrompeu por um instante a voz dos cantores. Atrás do tambor-mãe
erguia-se a figura humana de Mackandal. O mandinga Mackandal. Mackandal, o Homem. O
Maneta. O Restituído. O Acontecido. Ninguém o saudou, mas seu olhar encontrou todos os
olhos. E as malgas de aguardente começaram a correr, de mão em mão, até sua única mão, que
trazia longa-sede. Ti Noel o revia pela primeira vez depois de suas metamorfoses. Parecia ter
ficado nele alguma coisa de suas permanências em misteriosos abrigos; alguma coisa das suas
sucessivas vestes de escamas, de pelos, de lanugem. Sua barba alongava-se em pontas felinas, e
seus olhos deviam ter esticado um pouco até as têmporas, como os olhos de certas aves cuja pele
tivesse vestido. As mulheres passavam e tornavam a passar em frente dele, requebrando o corpo
ao ritmo da dança. Mas havia tanta expectativa no ambiente que, de repente, sem prévia
combinação, todas as vozes se uniram num yanvalú solene, tão frenético, que dominava os
tambores. Ao cabo de uma espera de quatro anos, o canto representava o quadro de infinitas
misérias:
Yenvalo moin Papa!
Moin pas mangé q’m bambó
Yenvalou, Papá, yanvalou moin!
Ou vlai moin lavé chaudier;
Yenvalo moin?

Terei de seguir lavando as caldeiras? Terei de continuar comendo bambu? Como se saídas das
entranhas, as perguntas insistiam, adquirindo, em coro, o pungente gemer dos povos levados para
o exílio a fim de construírem mausoléus, torres ou intermináveis muralhas. Oh pai, oh meu pai,
como é longo o caminho! Oh pai, oh meu pai, como é longo o padecer! E de tanto se lamentar,
Ti Noel esquecera que os brancos também têm ouvidos. E por isso, no pátio da mansão Dufrené,
nesse mesmo momento, carregavam de pólvora todos os mosquetões, trabucos e pistolas, que
tinham sido baixados nas panóplias do salão. E, pelo que pudesse acontecer depois, foi feita uma
reserva de facas, estoques e cacetes, que ficariam sob os cuidados das mulheres, já entregues às
suas rezas e rogos pela captura do mandinga.
O GRANDE SALTO

NUMA SEGUNDA-FEIRA de janeiro, pouco antes do raiar do dia, todos os escravos da Planície do
Norte começaram a entrar na Cidade do Cabo. Conduzidos por seus amos e feitores montados a
cavalo e escoltados por guardas com armamento de campanha, os escravos iam lentamente
enegrecendo a praça principal, onde as caixas militares redobravam com solene compasso.
Vários soldados amontoavam achas de lenha ao pé de um poste de quebracho, enquanto outros
atiçavam o lume de um braseiro. No átrio da igreja principal, junto ao governador, aos juízes e
funcionários do rei, estavam as autoridades eclesiásticas, instaladas em altas poltronas
encarnadas, à sombra de um toldo fúnebre, armado sobre postes e travessas. Como se fossem
flores alegres que a brisa alvoroçasse sobre o parapeito das janelas, agitavam-se nos balcões
finas sombrinhas. E as damas de leques e luvas compridas charlavam aos gritos, umas com as
outras, suas vozes deliciosamente alteradas pela emoção do momento. Parecia até que a praça era
um vasto teatro. Aquelas damas cujas janelas davam para a praça tinham mandado preparar para
seus convidados refrescos de limão e orchatas. Os negros, cada vez mais apertados e suarentos,
esperavam um espetáculo que havia sido organizado para eles: um espetáculo de gala para
negros, cuja pompa custara o sacrifício de todos os créditos necessários. Porque desta vez a lição
seria dada com fogo e não com sangue, e certas iluminações, acesas para que não fossem
esquecidas, resultavam sumamente dispendiosas.
De repente, todos os leques se fecharam ao mesmo tempo. As caixas militares fizeram um
grande silêncio. Com a cintura cingida por um calção riscado, coberto de cordas e nós, lustroso
de feridas recentes, Mackandal avançava em direção ao centro da praça. Os amos examinavam
com o olhar os rostos de seus escravos. Os negros, porém, demonstravam irritante indiferença.
Que sabiam os brancos das coisas dos negros? Em seus ciclos de metamorfoses Mackandal
muitas vezes penetrara no mundo secreto dos insetos, compensando-se da falta de um braço
humano com a posse de vários membros, de quatro carapaças ou de longas antenas. Tinha sido
mosca, bruxa, cupim, tarântula, carneirinho-do-pau e até vaga-lume de grandes luzes verdes. No
momento decisivo, as cordas que atavam o mandinga, privados de um corpo para sujeitarem,
desenhariam durante um segundo o contorno de um homem etéreo, antes de resvalarem ao longo
do poste. E Mackandal, transformado em mosquito zumbidor, pousaria no próprio tricórnio do
chefe das tropas, para gozar o desapontamento dos brancos. Isso era o que os amos ignoravam; e
haviam jogado fora tanto dinheiro organizando aquele espetáculo inútil, que revelaria a sua
impotência total para lutar contra um homem ungido pelos grandes Loas. Mackandal já estava
amarrado com as costas coladas ao poste de tortura. O verdugo tinha presa uma brasa nas
tenazes. Repetindo um gesto que ensaiara na véspera em frente ao espelho, o governador
desembainhou o sabre e deu ordem para que se cumprisse a sentença. O fogo começou a subir
até o maneta, chamuscando-lhe as pernas. Nesse momento, Mackandal agitou o coto, que não
tinham podido amarrar, num gesto ameaçador, que nem por minguado era menos terrível,
urrando conjuros desconhecidos e jogando o torso violentamente para a frente. As cordas caíram,
e o corpo do negro esticou-se no ar, voando sobre as cabeças, antes de mergulhar nas ondas do
negro mar de escravos. Um só grito ressoou na praça:
— Mackandal sauvé!
Seguiram-se a confusão e a balbúrdia. Os guardas lançaram-se a coronhadas sobre a
negrada que urrava e que parecia já não caber mais entre as casas e trepava agora em direção aos
balcões. Chegou a tal ponto o estrépito, a gritaria, o tumulto da multidão, que muito poucos
viram que Mackandal, agarrado por dez soldados, era enfiado de cabeça no fogo, e que uma
labareda alimentada pelo cabelo em chamas abafava seu último grito. Quando os escravos se
acalmaram, a fogueira ardia normalmente, como qualquer fogueira de boa lenha, e a brisa do mar
levantava uma boa fumaça na direção dos balcões onde mais de uma senhora desmaiada voltava
a si. Já não havia mais nada que ver.
Naquela tarde os escravos regressaram para as fazendas rindo durante todo o trajeto.
Mackandal tinha cumprido sua promessa, permanecendo no reino deste mundo. Uma vez mais os
brancos eram batidos pelos Altos Poderes da Outra Costa. E enquanto Monsieur Lenormand de
Mezy, de touca de dormir, comentava com sua beata esposa a insensibilidade dos negros ante o
suplício de um semelhante — tirando disso certas considerações filosóficas sobre a desigualdade
das raças humanas, que pretendia desenvolver num discurso cheio de citações latinas — Ti Noel
engravidou de gêmeos uma das criadas da cozinha, cobrindo-a três vezes, dentro de um dos
pesebres da cavalariça.
SEGUNDA PARTE
“... je lui dis qu’elle serait reine là-bas; qu’elle irait en palanquin; qu’une esclave serait attentive
au moindre de ses mouvements pour exécuter sa volonté; qu’elle se promènerait sous les orangers
en fleur; que les serpents ne devraient lui faire aucune peur, attendu qu’il n’y en avait pas dans les
Antilles; que les sauvages n’étaient plus à craindre ; que ce n’était pas là que la broche était mise
pour rôtir les gens; enfin j’achevais mon discours en lui disant qu’elle serait bien jolie mise en
créole.”

MADAME D’ABRANTÈS
A FILHA DE MINOS E PASIFAÉ

POUCO DEPOIS da morte da segunda esposa de Monsieur Lenormand de Mezy, Ti Noel teve a
oportunidade de ir ao Cabo para receber uns arreios de cerimônia encomendados em Paris.
Durante aqueles anos a cidade tinha progredido assombrosamente. Quase todas as casas eram de
dois andares, com balcões de largos beirais em ângulo e altas portas em arco, ornados com
elegantes ferrolhos ou dobradiças trifólias. Aumentara o número de alfaiates, chapeleiros,
cabeleireiros e vendedores de plumas; numa loja vendiam violas e flautas, assim como partituras
de contradanças e sonatas. O livreiro exibia o último número da Gazette de Saint Domingue,
impressa em papel fino, com suas páginas emolduradas por vinhetas e filetes duplos. E para
cúmulo do luxo, um teatro de drama e ópera tinha sido inaugurado na Rua Vandreuil. Essa
prosperidade favorecia muito particularmente à Rua dos Espanhóis, atraindo os forasteiros mais
ricos para o albergue La Corona, que Henri Christophe, o mestre-cuca, acabara de comprar de
sua antiga patroa, Mademoiselle Monjeon. Os guisados do negro eram elogiados pelo tempero
no justo ponto — quando servia um freguês vindo de Paris — ou pela abundância de
ingredientes nos refogados de carne, quando queria satisfazer o apetite de um espanhol sisudo,
daqueles que vinham do outro lado da ilha com trajes tão fora de moda, que mais pareciam
vestimentas de antigos piratas. Também era certo que Henri Christophe, que desaparecia com seu
gorro branco dentro da fumaça da cozinha, tinha um dom privilegiado para assar ao forno um
pastel de carne de tartaruga ou para condimentar uma pomba selvagem. E quando punha a mão
na masseira, fazia massas dignas de um rei, cujo perfume se sentia muito além da Rua dos Três
Rostos.
Novamente só, Monsieur Lenormand de Mezy não tinha a menor consideração pela
memória da falecida, fazendo-se conduzir cada vez mais frequentemente ao teatro do Cabo, onde
verdadeiras atrizes vindas de Paris cantavam áreas de Jean Jacques Rousseau, ou mediam com
nobreza trágicos alexandrinos, secando o suor ao marcar um hemistíquio. Um libelo anônimo,
em versos, flagelando certos viúvos, revelou a todo o mundo, naqueles dias, que um rico
proprietário da Planície costumava consolar suas noites na abundante beleza flamenga de certa
Mademoiselle Floridor, má intérprete de papéis de confidente, sempre relegada às partes
inferiores, porém hábil nas artes do amor. Decidido por ela, no final de uma temporada, o amo
partira para Paris, inesperadamente, deixando a administração da fazenda nas mãos de um
parente. Aconteceu então algo muito surpreendente: ao cabo de poucos meses, uma crescente
nostalgia do sol, de espaço, de abundância, de domínio, de negras derrubadas nas bordas das
azinhagas, revelaram-lhe que esse “regresso à França”, para o qual vinha trabalhando há longos
anos, já não era, para ele, a chave da felicidade. E depois de tanto maldizer a colônia, de tanto
renegar seu clima, de tanto criticar os modos rudes dos colonos de estirpe aventureira, regressava
à fazenda, trazendo consigo a atriz, rechaçada pelos teatros de Paris por causa de seu escasso
talento dramático. E era por isso que aos domingos, duas magníficas carruagens novamente
adornavam a Planície, a caminho da igreja, com seus postilhões vestidos de libré de gala.
Dominando a berlinda de Mademoiselle Floridor — a cômica insistia em ser chamada pelo seu
nome de teatro — inquietas no assento traseiro, dez mulatas em anáguas azuis tagarelavam a
todo pano, num grande rebuliço de fêmeas ao vento.
Vinte anos se passaram sobre tudo isso. Ti Noel tinha doze filhos com uma das cozinheiras.
A fazenda florescia mais que nunca, com suas estradas margeadas de ipecas, com suas parreiras
já produzindo vinho agraz. Entretanto, com a idade, Monsieur Lenormand de Mezy tornara-se
um bêbedo, e era cheio de manias. Um erotismo constante o mantinha espreitando, a toda hora,
as escravas adolescentes, cujo cheiro o excitava. Cada vez gostava mais de impor castigos
corporais aos homens, sobretudo quando os surpreendia fornicando fora do matrimônio. Por seu
lado, maltratada e picada pelo impaludismo, a comediante vingava-se de seu fracasso artístico
mandando chicotear por qualquer motivo as negras que lhe davam banho e penteavam. Certas
noites entregava-se à bebida. Não era raro então que fizesse levantar todo o pessoal, com a lua
alta no céu, para declamar para os escravos, entre arrotos de malvasia, aqueles grandes papéis
que nunca pudera interpretar. Envolta no seus véus de confidente, a tímida coadjuvante atacava
com voz desmaiada os grandes trechos de bravura do repertório:

Mes crimes désormais ont comblé la mesure


Je respire à la fois l’ inceste el l’imposture
Mes homicides mains, promptes à me venger,
Dans le sang innocent brûlent de se plonger.

Estupefatos, sem entender nada, sabendo, porém, por certas palavras, que também em créole se
referiam a faltas cujo castigo ia de uma simples surra à decapitação, os negros terminaram por
acreditar que aquela senhora devia ter cometido muitos delitos em outros tempos e que,
provavelmente, estava na colônia para escapar à Polícia de Paris, como tantas outras prostitutas
do Cabo, que tinham contas a ajustar na metrópole. A palavra “crime” era parecida, no jargão da
ilha; todo mundo sabia como se chamavam os juízes em francês; e, quanto a inferno com diabos
vermelhos, bastava o que lhes dissera dele a segunda esposa de Monsieur Lenormand de Mezy,
feroz censora de toda concupiscência. Nada do que confessava aquela mulher, vestida com uma
bata branca, transparente à luz dos archotes, deveria ser muito edificante:

Minos, juge aux enfers tous les pâles humains.


Ah, combien frémira son ombre épouvantée,
Lorsqu’il verra sa fille a ses yeux présentée,
Contrainte d’avouer tant de forfaits divers,
Et des crimes peut-être inconnus aux enfers!

Diante de tantas imoralidades, os escravos da fazenda de Lenormand de Mezy seguiam


reverenciando a Mackandal. Ti Noel transmitia as narrativas do mandinga a seus filhos,
ensinando-lhes cantigas muito simples que compusera em sua glória, naquelas horas em que
penteava e escovava os cavalos. Ademais, era bom recordar o maneta frequentemente, porque
ele, embora afastado destas terras por tarefas de importância, regressaria a elas quando menos se
esperasse.
O GRANDE PACTO

OS TROVÕES pareciam romper-se numa avalancha sobre os penhascos do Morne Rouge, rolando
prolongadamente pelo fundo dos barrancos, quando os representantes dos escravos da Planície
do Norte alcançaram a mata cerrada do Bois Caïman, sujos de lodo até a cintura, trêmulos sob as
camisas encharcadas. E para cúmulo, aquela chuva de agosto, que passava de tíbia a fria
conforme mudava o vento, aumentava cada vez mais desde que soara o toque de recolher para os
escravos. Com as calças coladas na virilha, Ti Noel cuidava de cobrir a cabeça embaixo de um
saco de juta dobrado em forma de capuz. Apesar da escuridão, era garantido que nenhum espião
tivesse penetrado na reunião. O aviso havia sido dado à última hora por homens de confiança.
Embora se falasse em voz baixa, o rumor da conversação enchia todo o bosque, confundindo-se
com o constante chiado do aguaceiro caindo na folhagem das árvores.
Súbito, uma voz potente alçou-se no meio daquele congresso de sombras. Uma voz, cuja
faculdade de passar sem transição do registro grave ao agudo, dava uma estranha ênfase às
palavras. Havia muito de evocação e de salmos naquele discurso cheio de gritos e de inflexões
coléricas. Era Bouckman, o jamaicano, quem falava dessa maneira. Embora o trovão
ensurdecesse frases inteiras, Ti Noel acreditou entender que algo havia ocorrido na França, e que
uns senhores muito influentes haviam declarado que se devia dar liberdade aos negros. Os ricos
proprietários do Cabo, porém, que eram uns monarquistas filhos da puta, negavam-se a obedecer.
Chegando nesse ponto, Bouckman deixou cair a chuva sobre as árvores durante alguns segundos,
como para esperar por um raio que se lançara no mar. Então, passado o ruído do trovão, declarou
que um Pacto havia sido selado entre os iniciados daqui e os grandes Loas da África, para que a
guerra fosse iniciada sob os signos propícios. E das aclamações que agora retumbavam em torno
brotou a admonição final:
— O Deus dos brancos ordena o crime. Nossos deuses pedem vingança. Eles guiarão nossos
braços e nos darão ajuda. Rebentem a imagem do Deus dos Brancos, que tem sede das nossas
lágrimas; escutemos dentro de nós mesmos o apelo da liberdade!
Os delegados tinham esquecido a chuva que lhes escorria pela barba até o ventre,
endurecendo o couro dos cinturões. Estourou um alarido em meio à tormenta. Junto a
Bouckman, uma negra ossuda, de longos membros, dançava fazendo gestos circulares com um
facão ritual:

Fai Ogún, Fai Ogún, Fai Ogún, oh!


Damballah m’ap tiré canon!
Fai Ogún, Fai Ogún, Fai Ogún, oh!
Damballah m’ap tiré canon!

Ogum das armas, Ogum guerreiro, Ogum das forjas, Ogum Marechal, Ogum das lanças, Ogum-
Xangô, Ogum-Kankanikã, Ogum-Batala, Ogum-Panamá, Ogum-Bakulê, eram invocados agora
pela sacerdotisa do Rada, em meio ao clamor das sombras:

Ogún Badagrí,
General sanglant
Saizi z’orage
Ou scell’orage
Ou fait Kataonn z’ eclai?

O facão penetrou subitamente no ventre de um porco negro, que botou para fora, em três urros,
as tripas e os pulmões. Então, chamados pelos nomes de seus amos, já que não tinham mais
sobrenome, os delegados desfilaram, um a um, para untarem os lábios com o sangue espumoso
do porco, recolhido numa enorme tigela de madeira. Em seguida, caíram de bruços sobre o chão
molhado. Ti Noel, como os demais, jurou que obedeceria sempre a Bouckman. O jamaicano
abraçou então Jean François, Biassou e Jeannot, que não voltariam mais para suas fazendas. O
estado-maior da sublevação estava formado. O sinal seria dado oito dias depois. Era muito
provável que conseguissem a ajuda dos colonos espanhóis do outro lado da ilha, inimigos
irreconciliáveis dos franceses. Tendo em vista que seria necessário redigir uma proclamação, e
ninguém sabia escrever, pensou-se na flexível pena de ganso do Abade de La Haye, pároco de
Dondón, sacerdote voltariano que dava mostras inequívocas de simpatia pelos negros desde que
tinha tido conhecimento da Declaração de Direitos do Homem.
Como a chuva houvesse transbordado os rios, Ti Noel teve de atravessar a nado a garganta
verde para chegar na cavalariça antes que o feitor despertasse. O Angelus o surpreendeu ao posto
e cantando, enterrado até a cintura num montão de esparto fresco, que cheirava a sol.
O CHAMADO DOS BÚZIOS

MONSIEUR LENORMAND de Mezy achava-se de péssimo humor desde sua última visita ao Cabo.
O Governador Blanchelande, monarquista como ele, estava muito contrariado com as incômodas
divagações de utopistas idiotas que se apiedavam, em Paris, do destino dos negros escravos. Oh,
era muito fácil, no Café de La Regence, nas arcadas do Palais Royal, entre duas partidas de faraó,
sonhar com a igualdade dos homens de todas as raças. Ora, vendo as gravuras de vistas dos
portos da América, embelezadas pela rosa dos ventos e pelos tritões de bochechas inchadas;
olhando quadros de mulatas indolentes, de lavadeiras nuas, de sestas sob as bananeiras, gravadas
por Abraham Brunias e exibidas na França entre versos de Du Parny e a profissão de fé do
vigário da Saboia — ora, era muito fácil imaginar São Domingos como um paraíso vegetal de
Paulo e Virgínia, onde os melões só não nasciam pendurados nos galhos das árvores apenas
porque matariam os transeuntes ao caírem de tão alto. Já em maio, a Assembleia Constituinte,
integrada por uma chusma de liberais e enciclopedistas, tinha decidido conceder direitos políticos
aos negros filhos de escravos libertos. E agora, ante o fantasma da guerra civil, invocado pelos
proprietários, esses ideólogos à Estanislau de Wimpffen respondiam: “Pereçam as colônias antes
que um princípio!”
Seriam dez horas da noite quando Monsieur Lenormand de Mezy, amargurado pelos seus
pensamentos, saiu em direção ao galpão de tabaco com vontade de violentar qualquer das
adolescentes que a essa hora enrolavam as folhas de tabaco que dariam depois para seus pais
mascarem. Muito longe soou uma trompa feita de búzio. E o que agora resultava surpreendente
era que o lento mugido dessa concha era respondido por outros nas montanhas e nas selvas. E
outros, rentes ao chão, mais para os lados do mar, na direção das granjas de Millot. Era como se
todas as conchas da costa, todos os moluscos indígenas, todos os búzios que serviam para
sujeitar as portas, todos os caracóis que jaziam, solitários e petrificados, no cume dos montes, se
pusessem a cantar em coro. Subitamente, mais outro búzio alçou sua voz no barracão principal
da fazenda. Outros, mais aflautados, responderam da anilaria, do secadouro de tabaco, do
estábulo. Alarmado, Monsieur Lenormand de Mezy escondeu-se atrás de uma moita de
buganvília.
Todas as portas dos barracões caíram de uma só vez, derrubadas pelo lado de dentro.
Armados de paus, os escravos cercaram as casas dos feitores, apoderando-se das ferramentas. O
contador, que aparecera com uma pistola na mão, foi o primeiro a cair, com a garganta aberta de
cima a baixo por uma colher de pedreiro. Depois de empaparem os braços no sangue do branco,
os negros correram para a vivenda principal, gritando que morressem os amos, o governador, o
bom Deus e todos os franceses do mundo! A maioria, impulsionada por instintos e apetites mais
prementes, precipitou-se para a adega em busca de bebida. A golpes de picareta destriparam os
barris de escabeche. Com as tábuas abertas, os tonéis deixaram escapar o vinho tinto aos
borbotões, tingindo as saias das mulheres. Arrebatados entre gritos e empurrões, os garrafões de
aguardente e as garrafas de rum despedaçavam-se nas paredes. Rindo e brigando, os negros
resvalavam numa saboeira formada por orégãos esmigalhados, tomates temperados, azeitonas e
ovas de arenque, que um filetezinho de azeite rançoso que caía de um barril ia clareando, sobre o
chão de tijolos. Um negro nu meteu-se numa barrica de banha de porco. Duas velhas brigavam,
em congolês, por uma panela de barro. Do teto pendiam presuntos e rabos de bacalhau. Sem se
meter na multidão desenfreada, Ti Noel grudou a boca, durante muito tempo e muitos goles,
numa torneira de um barril de vinho espanhol. Depois, subiu ao primeiro andar da vivenda,
acompanhado por seus filhos maiores, pois fazia muito tempo já que sonhava violentar
Mademoiselle Floridor, que, nas suas noites de tragédia, exibia, sob a túnica ornada de lacinhos,
um par de seios em nada maltratados pelo irreparável ultraje dos anos.
DOGÓN DENTRO DA ARCA

AO CABO de dois dias de espera no fundo de um poço seco, que nem por ser pouco profundo era
menos lúgubre, Monsieur Lenormand de Mezy, pálido de medo e de fome, botou a cara,
lentamente, sobre um canto do parapeito. Tudo estava em silêncio. A horda tinha partido em
direção ao Cabo, incendiando propriedades cujo nome se podia dizer localizando a base das
colunas de fumaça que se espalhavam pelo céu. Um pequeno paiol acabava de voar pelos ares lá
para os lados da Encruzilhada dos Padres. O amo aproximou-se da casa, passando ao lado do
cadáver inchado do contador. Um fedor horrível exalava dos canis queimados, porque ali os
negros tinham saldado uma velha conta pendente, untando as portas de breu para que não ficasse
um animal vivo. Monsieur Lenormand de Mezy entrou em sua casa. Mademoiselle Floridor
jazia, de pernas abertas, sobre uma almofada, com uma foice cravada na barriga. Sua mão morta
agarrava ainda um pé da cama, num gesto que evocava cruelmente a atitude lasciva de uma
cortesã adormecida duma gravura licenciosa que adornava a alcova, cujo título era “O Sonho”.
Monsieur Lenormand de Mezy, afogado em soluços, caiu ao seu lado. Em seguida, pegou um
rosário e rezou todas as orações que conhecia, sem esquecer aquela que lhe tinham ensinado em
criança para curar as frieiras. E assim passou vários dias, aterrado, sem se atrever a sair da casa
abandonada, de portas abertas à própria ruína, até o dia em que um emissário a cavalo sofreou o
animal tão bruscamente sobre as lajes do pátio interno que a besta se foi de ventas contra uma
janela, levantando chispas ao resvalar. As notícias, dadas aos berros, arrancaram Monsieur
Lenormand de Mezy do seu estupor. A horda estava vencida. A cabeça do jamaicano Bouckman
já se achava cheia de vermes, esverdeada e boquiaberta, no mesmíssimo lugar onde se tinha
transformado em cinza fétida a carne do maneta Mackandal. Estava sendo organizado o
extermínio total dos negros, mas, todavia, ainda restavam grupos armados que saqueavam as
vivendas solitárias. Sem poder se atrasar para sepultar o cadáver da esposa, Monsieur
Lenormand de Mezy montou na garupa do cavalo do mensageiro, que partiu em disparada,
barriga rente ao chão, a caminho do Cabo. Ao longe soou uma descarga de fuzis. O mensageiro
cravou as esporas.
O amo chegou a tempo de impedir que Ti Noel e outros doze escravos, marcados pelo seu
ferro, fossem degolados a facão no pátio do quartel, onde os negros, amarrados de dois a dois,
costas com costas, esperavam a morte na lâmina das armas, pois era mais prudente economizar
pólvora. Eram os únicos escravos que lhe restavam, e valiam, ao todo, pelo menos seis mil e
quinhentos pesos espanhóis no mercado de Havana. Monsieur Lenormand de Mezy clamou pelos
mais terríveis castigos corporais, mas pediu que adiassem a execução até que falasse com o
Governador. Trêmulo pelo nervosismo, pela insônia, pelo excesso de café, Monsieur
Blanchelande andava de uma ponta à outra do seu gabinete, onde se via um retrato de Luís XVI e
Maria Antonieta com o Delfim. Era difícil tirar uma conclusão mais precisa do seu desordenado
monólogo, onde os insultos contra os filósofos se alternavam com citações de trechos agourentos
de cartas suas enviadas a Paris, e às quais nem sequer haviam respondido. A anarquia
entronizara-se no mundo. Os negros tinham violentado quase todas as moças das famílias
distintas da Planície. Depois de terem rasgado tantas camisolas rendadas, de terem refocinhado
sobre tantos lençóis de linho, degolado tantos feitores, já não havia mais como contê-los.
Monsieur Blanchelande era pelo extermínio total e absoluto dos escravos, assim como também
dos negros e mulatos livres. Todo aquele que tivesse sangue africano nas veias, fosse ele uma
quarta, uma terça, fosse mameluco, bastardo ou marabu, devia ser passado pelas armas. E que
ninguém se deixasse enganar pelos gritos de admiração lançados pelos escravos, quando se
acendia, na Páscoa, a iluminação dos presépios. Bem que tinha prevenido o Padre Labat, logo
que chegou à ilha na sua primeira viagem: os negros comportavam-se como filisteus, adorando
Dogón dentro da Arca. O governador pronunciou então uma palavra que Monsieur Lenormand
de Mezy não tinha até então prestado a menor atenção: o Vaudoux. Recordava agora que, anos
atrás, aquele rubicundo e voluptuoso advogado do Cabo, que se chamava Moreau de Saint Mery,
havia colhido alguns dados referentes às práticas selvagens dos feiticeiros das montanhas, e
anotara que alguns negros eram adoradores de cobras. Esse fato, que agora recordava, o deixou
inquieto. Compreendia então que um tambor podia significar, em certos casos, algo mais que
uma simples pele de cabrito esticada sobre um tronco oco. Tinham, pois, os escravos uma
religião secreta que os encorajava e os mantinha unidos nas suas rebeliões. Talvez que durante
anos e anos, ali mesmo, a um palmo de sua cara, vinham observando as práticas dessa religião,
comunicando-se através dos tambores dos batuques, sem que ele suspeitasse! Mas acaso haveria
de preocupar-se uma pessoa culta com as crenças selvagens de gente que adorava uma serpente?
Profundamente deprimido pelo pessimismo do governador, Monsieur Lenormand de Mezy
andou sem destino, até ao anoitecer, pelas ruas da cidade. Contemplou demoradamente a cabeça
de Bouckman, enchendo-a de insultos, até cansar de repetir as mesmas grosserias. Esteve algum
tempo na casa da gorda Louison, cujas pensionistas, vestidas de musselina branca bem justa no
corpo, abanavam os seios nus no pátio cheio de taiobas plantadas em potes de barro. Mas em
todos os lugares o ambiente estava pesado. Por isso se dirigiu à Rua dos Espanhóis, com vontade
de beber na hospedaria La Corona. Ao ver a casa fechada, lembrou que o cozinheiro Henri
Christophe tinha deixado o negócio, pouco tempo antes, para vestir o uniforme de artilheiro da
colônia. E desde que levara consigo a coroa de latão dourado, que durante tanto tempo fora o
emblema do albergue, não restava no Cabo um lugar onde um cavalheiro pudesse comer com
gosto. Um pouco reconfortado por um copo de rum bebido num balcão qualquer, Monsieur
Lenormand de Mezy pôs-se a conversar com o patrão de uma barca carvoeira, atracada já há
muitos meses, e que levantaria ferros novamente, rumo a Santiago de Cuba, assim que
terminasse a calafetação.
SANTIAGO DE CUBA

A BARCA DOBRARA o cabo da Cidade do Cabo, e atrás ficava a cidade sempre ameaçada pelos
negros, sabedores já do auxílio armado oferecido pelos espanhóis e do calor com que certos
jacobinos humanitários começavam a defender sua causa. Enquanto Ti Noel e seus
companheiros, encerrados no porão, suavam sobre os sacos de carvão, os passageiros de
categoria, reunidos na popa, respiravam a brisa fresca do Estreito dos Ventos. Viajava também
uma cantora da nova companhia que representava no Cabo, que estivera hospedada numa
estalagem incendiada na noite da revolta e que só ficara com o vestido que usava no papel de
Dido Abandonada; um músico alsaciano que tinha conseguido salvar o seu clavicórdio, o qual, já
desafinado pela maresia, interrompia, às vezes, num trecho de uma sonata de Juan Federico
Edelman, para ver um peixe voador saltar sobre um bando de amêijoas amarelas. Completavam o
número de passageiros da embarcação um marquês monarquista, dois oficiais republicanos, uma
rendeira e um padre italiano que salvara o ostensório da Igreja.
Na noite da sua chegada a Santiago, Monsieur Lenormand de Mezy foi diretamente ao
Tívoli, o teatro de folhas de palmeira construído recentemente pelos primeiros refugiados
franceses, pois lhe repugnavam os armazéns cubanos, com seus mata-moscas e seus burricos
amarrados na entrada. Depois de tantas angústias, de tantos pavores, de tão grandes mudanças,
encontrou naquele café-concerto um ambiente reconfortador. As melhores mesas estavam
ocupadas por velhos amigos seus, proprietários, que, como ele, tinham fugido dos facões afiados
no melaço. Porém, o mais estranho era que, embora arruinados, despojados de suas fortunas,
com meia família extraviada, as filhas convalescendo depois de violentadas pelos negros — o
que não era pouca coisa — os antigos colonos, longe de se lamentarem, estavam até
rejuvenescidos. Enquanto uns, mais previdentes, haviam conseguido tirar seu dinheiro de São
Domingos e estabeleciam-se agora em Nova Orleans, ou fomentavam novos cafezais em Cuba,
outros — que nada tinham podido salvar — divertiam-se na desordem, em viver o dia de hoje, na
sua falta de obrigações, tratando, no momento, de encontrar o prazer em todas as coisas e em
toda parte. O viúvo descobria novamente as vantagens do celibato; a esposa respeitável
entregava-se ao adultério com entusiasmos de inventara; os militares divertiam-se por não terem
de obedecer ao toque da alvorada; as senhoritas protestantes conheciam a atração do cenário,
exibindo-se com rouge e lunares no rosto. Todas as hierarquias burguesas da colônia tinham
caído. O que mais importava agora era tocar a trombeta, executar com elegância um trio de
minueto ao oboé, ou até bater o triângulo no compasso, tudo, para dar mais brilho à orquestra do
Tívoli. Os notários de antes copiavam agora as partituras musicais, e os coletores de impostos
decoravam uma tela de pano de doze palmos, nela pintando vinte colunas salomônicas. Nas
horas de ensaio, quando toda Santiago dormia a sesta atrás de grades de madeira e portas
tranqueadas, próximas às tarascas cobertas de pó da última procissão de Corpus Christi, não era
raro ouvir uma matrona, ontem famosa por sua devoção, cantando com gestos lânguidos:

Sous ses lois l’amour veut qu’on jouisse,


D’un bonheur qui jamais ne finisse!…
Anunciavam agora um grande baile à fantasia, fantasia de pastores, já fora de moda em Paris, e
para o qual colaboraram em comum todos os baús salvos da pilhagem dos negros. Os camarins
de folhas de palmeira real propiciavam deliciosos encontros, enquanto algum marido barítono,
muito compenetrado do seu papel, era retido em cena pela ária de bravura do Desertor, de
Monsigny. Pela primeira vez se ouvia em Santiago de Cuba músicas de passa-pé e contradança.
As filhas dos colonos, usando as últimas perucas do século, dançavam ao som de alegres
minuetos, que já anunciavam a valsa. Um vento de licenciosidade, de fantasia, de desordem,
soprava na cidade. Os jovens cubanos começavam a copiar a moda dos emigrados, deixando para
os conselheiros municipais o uso das vestimentas espanholas, sempre tão fora de moda. Certas
damas cubanas tomavam aulas de urbanidade com as francesas, às escondidas de seus
confessores, adestrando-se na arte de mostrar o pé para exibir o primoroso sapato. À noite,
quando assistia ao final do espetáculo, já com muitos copos a mais na cabeça, Monsieur
Lenormand de Mezy levantava-se, como os demais, para cantar — segundo o costume
estabelecido pelos próprios refugiados — o Hino a São Luís e a Marselhesa.
Ocioso, impossibilitado de ocupar o espírito com algum negócio, Monsieur Lenormand de
Mezy começou a repartir o seu tempo entre o baralho e a oração. Desfazia-se de seus escravos,
um atrás do outro, para jogar o dinheiro em qualquer baiuca, pagar as contas atrasadas no Tívoli,
ou pegar uma negra daquelas que faziam a vida no porto com flores de nardo enfiadas na
carapinha. Mas vendo também que o espelho o envelhecia dia a dia, começava a temer o
iminente chamado de Deus. Maçom em outros tempos, desconfiava agora dos triângulos tão em
moda. Por isso, acompanhado por Ti Noel, costumava passar longas horas gemendo e rezando
fervorosamente na catedral de Santiago. O negro, entretanto, dormia embaixo do retrato de um
bispo ou assistia ao ensaio de algum cântico, dirigido por um ancião gritador seco e arroxeado, a
quem chamavam Dom Estêvão Salas. Era realmente impossível compreender porque esse
maestro de capela, que, todavia, todos pareciam respeitar, empenhava-se tanto em obrigar os
coristas a iniciar o cântico por turnos, cantando um grupo a estrofe que outro grupo já tinha
começado a cantar, resultando uma algazarra capaz de indignar a qualquer um. Mas aquilo era,
sem dúvida, do agrado do pertigueiro, personagem a quem Ti Noel atribuía grande autoridade
eclesiástica, já que andava armado e usava calças como os homens. Apesar das sinfonias
desencontradas que Dom Estêvão Salas enriquecia com fagotes, trompas e os agudos dos
meninos do coro, o negro encontrava nas igrejas espanholas um calor de Vodu que nunca havia
encontrado nos templos sulpicianos do Cabo. O ouro do barroco, as cabeleiras humanas dos
Cristos, o mistério dos confessionários primorosamente trabalhados, o cão dos dominicanos, os
dragões esmagados por santos pés, o porco de Santo Antão, a cor morena de São Benedito, as
Virgens Negras, os São Jorge, de borzeguins e gibão de ator de tragédia francesa, os
instrumentos pastoris que tocavam nas noites de Páscoa, tinham uma força envolvente e um
poder de sedução — o fausto, os símbolos, as peculiaridades e os signos — semelhantes àquele
que emanava dos altares dos houmforts consagrados a Damballah, o Deus Serpente. Além disso,
São Tiago é Ogum Fai, o marechal das tormentas, e em conjura com ele tinham-se levantado os
homens de Bouckman. Por isso Ti Noel, à guisa de oração, amiúde recitava para ele um velho
canto aprendido com Mackandal:

São Tiago, sou filho da guerra:


São Tiago,
Não vês que sou filho da guerra?
A NAVE DOS CÃES

CERTA MANHÃ o porto de Santiago se encheu de latidos. Acorrentados uns aos outros, furiosos e
ameaçadores por trás das focinheiras, procurando morder o guarda e morderem-se mutuamente,
lançando-se contra as pessoas que olhavam atrás do gradil das janelas, tentando morder sem
poder morder, centenas de cachorros eram empurrados, a chicote, dentro do porão de um veleiro.
E chegavam outros cachorros, e outros mais, conduzidos pelos feitores dos sítios, por
camponeses brancos e por batedores de botas de cano alto. Ti Noel, que acabava de comprar um
peixe por encomenda do amo, aproximou-se da estranha embarcação, na qual continuavam a
entrar mastins às dúzias, contados, de passagem, por um oficial francês, que movia rapidamente
as bolinhas de um ábaco.
— Para onde os levam? — gritou Ti Noel para um marinheiro mulato que desdobrava uma
rede a fim de fechar uma escotilha.
— Para comerem os negros! — gargalhou o outro, por cima dos latidos.
Essa resposta, dada em créole, foi uma revelação para Ti Noel. Largou a correr, ruas acima,
até a catedral, em cujo átrio costumavam ficar os outros negros franceses que aguardavam que
seus amos saíssem da missa. Nem mais nem menos que a família Dufrené — depois de perdida
toda a esperança de conservar suas terras — tinha chegado a Santiago há três dias, depois de
abandonada a fazenda que ficara famosa pela captura de Mackandal. Os negros de Dufrené
traziam grandes notícias do Cabo.
Desde o momento do embarque, Paulina sentira-se um pouco rainha a bordo daquela fragata
repleta de tropas que navegava agora em direção às Antilhas, marcando no rangido dos cabos o
compasso cadenciado de ondas de amplo regaço. Seu amante, o ator Lafont, tinha familiarizado
Paulina com os papéis de rainha, rugindo para ela os versos mais régios do Bayaceto e do
Mitríades. Muito esquecida, Paulina recordava Vagamente qualquer coisa do “Helesponto
branqueando sob nossos remos”, que rimava bem com a espuma que ia deixando El Océano, de
velas enfunadas sob o tremular das flâmulas. E agora, cada mudança da brisa levava também
vários alexandrinos. Depois de haver atrasado a partida de um exército inteiro com seu inocente
capricho de viajar de Paris a Brest numa liteira, tinha agora de pensar em coisas mais
importantes. Em canastras lacradas estavam guardados lenços vindos das ilhas Maurício,
corpetes à pastora, saias de musselina riscada, que iria estrear no primeiro dia de calor, pois
estava bem instruída quanto à moda na colônia pela Duquesa de Abrantès. Em suma, aquela
viagem não estava tão aborrecida. A primeira missa rezada pelo capelão no alto do castelo da
proa, depois do mau tempo no golfo de Gasgonha, tinha reunido todos os oficiais em uniforme
de gala em redor do General Leclerc, seu esposo. Havia alguns de esplêndida aparência, e
Paulina, boa conhecedora de homens, apesar de sua juventude, sentia-se deliciosamente
lisonjeada pelo crescente desejo acobertado pelas reverências e cuidados dos quais era objeto.
Sabia que quando as lanternas balançavam no alto dos mastros nas noites mais estreladas, nos
porões, nos camarotes, nos castelos, centenas de homens sonhavam com ela. Por esse motivo,
gostava tanto de fingir que meditava, cada manhã, na proa da fragata, junto à armação da vela
grande do mastro de proa, deixando-se despentear pelo vento que lhe colava o vestido ao corpo,
revelando a soberba postura de seus seios.
Alguns dias depois de passar pelo canal das ilhas Açores e de contemplar à distância as
brancas capelas das aldeias portuguesas, Paulina descobriu que o mar se renovava. Enfeitava-se
agora de cachos de uvas amarelas que derivavam em direção ao este; de peixes-agulha que
pareciam feitos de cristal verde; águas-vivas semelhantes a bexigas azuis, que arrastavam longos
fios encarnados; peixes ferozes, de dentes afiados, e calamares que pareciam véus de noiva de
contornos vaporosos. Mas já se sentia um calor que desabotoava os brilhantes oficiais, aos quais
Leclerc, para poder fazer o mesmo, permitia que andassem com os casacos abertos, de peito à
mostra. Uma noite particularmente sufocante, Paulina abandonou seu camarote, envolta numa
camisola, e foi deitar-se sobre a coberta do castelo da popa, que tinha sido reservado para suas
longas sestas. Estranhas fosforescências davam ao mar reflexos verdes. Aumentava dia a dia um
frescor que parecia descer das estrelas. Ao raiar do dia, o vigia descobriu com grata inquietação a
presença de uma mulher nua, dormindo sobre uma vela dobrada, à sombra da bujarrona do
mastro da ré. Acreditando que se tratava de uma camareira, esteve quase para deslizar até ela por
um cabo. Porém um gesto dela, anunciando o seu despertar, revelou ao vigia que contemplava o
corpo de Paulina Bonaparte. Ela esfregou os olhos, rindo como uma criança, toda arrepiada pela
brisa matinal, e, acreditando-se protegida dos olhares pelas lonas das velas que lhe ocultavam o
resto da coberta esvaziou vários baldes de água doce sobre os ombros. Daquela noite em diante
dormiu sempre ao ar livre, e de tantos ficou conhecido seu generoso descuido que até o seco
Monsieur d’Esmenard, encarregado de organizar a polícia de São Domingos, chegou a sonhar
acordado ante suas esplêndidas formas, evocando em sua honra a Galateia dos gregos.
A vista da Cidade do Cabo e da Planície do Norte, com suas montanhas ao fundo um pouco
difusas pela bruma úmida que emanava das plantações de cana-de-açúcar, encantou Paulina, que
tinha lido os amores de Paulo e Virgínia e conhecia uma linda contradança antilhana, de ritmo
estranho, publicada em Paris, na Rue du Saumon, cujo título era A Insular. Sentindo-se um
pouco ave-do-paraíso e um pouco pássaro-lira sob suas saias de musselina, Paulina descobria a
delicadeza dos rebentos novos, o sumo pardo do sapoti e a quantidade de folhas de palmeira que
podiam ser usadas como leque. À noite, Leclerc lhe falava, com o cenho franzido, da sublevação
dos escravos, das dificuldades com os colonos monarquistas e das ameaças de toda sorte.
Prevendo maiores perigos, mandara comprar uma casa na ilha de Tortuga. Paulina, porém, não
lhe prestava muita atenção. Enternecia-se com a leitura da lacrimosa novela de Joseph Lavalée
Um Negro como Poucos e gozava despreocupada aquele luxo e aquela abundância que não
conhecera em sua meninice, toda ela de figos secos, queijos de leite de cabra e azeitonas
rançosas. Morava numa grande casa de pedras brancas, rodeada de frondoso jardim, não muito
longe da igreja principal, onde mandara fazer uma piscina, revestida de azulejos, à sombra dos
pés de tamarindo, na qual tomava banho nua. Sua massagem, a princípio era aplicada por suas
criadas francesas; imaginando, contudo, que as mãos de um homem seriam bem mais vigorosas,
contratou os serviços de Solimán, antigo empregado de uma casa de banhos, que além de cuidar
de seu corpo, friccionava-o com creme de amêndoas, depilava-o e polia-lhe as unhas dos pés.
Quando Solimán lhe banhava o corpo, Paulina sentia um prazer maligno ao roçar-se, dentro da
água da piscina, nos rijos flancos daquele servidor que sabia eternamente atormentado pelo
desejo e que a olhava sempre de soslaio, com aquela falsa mansidão de cachorro exasperado pelo
chicote. Costumava Paulina bater-lhe com um ramo verde, sem machucá-lo, rindo de seus ares
de fingida dor. Na verdade, agradava-lhe a apaixonada solicitude que Solimán revelava para com
tudo que se referia aos cuidados de sua beleza. Por esse motivo, como recompensa de alguma
incumbência cumprida com presteza, ou de um recado bem dado, permitia que o negro, de
joelhos, beijasse suas pernas, num gesto que Bernardino de Saint-Pierre teria interpretado como
um símbolo da nobre gratidão de uma alma simples para com os generosos esforços das
personalidades ilustres.
E assim passava seu tempo entre sestas e bocejos, achando-se um pouco Virgínia, um pouco
Atalá, embora às vezes, quando Leclerc andava pelo Sul, buscasse consolo no ardor juvenil de
algum guapo oficial. Uma tarde, porém, o cabeleireiro francês que penteava seu cabelo, ajudado
por quatro auxiliares negros, tombou ali mesmo, em frente dela, vomitando sangue fétido e já
meio coagulado. Com seu minúsculo corpo salpicado de prata, um horrível desmancha-prazeres
começara a zumbir no sonho tropical de Paulina Bonaparte.
SÃO TRANSTORNO

NA MANHÃ seguinte, instada por Leclerc, que acabava de atravessar vilarejos inteiros dizimados
pela praga, Paulina fugiu para Tortuga, seguida pelo negro Solimán e pelas criadas de quarto,
carregadas de trouxas. Nos primeiros dias distraía-se tomando banho numa enseada arenosa e
folheando as memórias do cirurgião Alejandro Oliverio Oexmelin, que tão bem conhecia os
hábitos e as atrocidades dos corsários e bucaneiros da América, de cuja vida turbulenta ainda
restavam na ilha as ruínas de uma feia fortaleza. Punha-se a rir quando o espelho de sua alcova
lhe revelava que sua pele, bronzeada pelo sol, estava igual a de uma esplêndida mulata. Mas
aquele descanso foi de curta duração. Uma tarde, Leclerc desembarcou no porto de Tortuga presa
de sinistros calafrios. O médico militar que o acompanhava providenciou para que lhe
administrassem fortes doses de ruibarbo.
Paulina estava apavorada. À sua mente retornavam imagens pouco precisas de uma
epidemia de cólera em Ajaccio. Lembrava os ataúdes que saíam sob os ombros de homens
negros; as viúvas cobertas de negros véus que gritavam desesperadas ao pé das figueiras; as
filhas, vestidas de negro, que queriam se atirar na cova dos pais e eram levadas de rastros para
fora do cemitério. De repente, ficava angustiada, sentindo-se prisioneira, como se sentira muitas
vezes na infância. Nessas ocasiões, Tortuga — com sua terra ressequida, seus penhascos
rochosos, seus desertos de cactos onde cantavam as cigarras, seu mar sempre à vista — lembrava
muito sua ilha natal. Mas não havia fuga possível. Atrás daquela porta agonizava um homem que
cometera a estupidez de trazer a morte escondida sob os bordados dourados de sua farda.
Convencida do fracasso dos médicos, Paulina passou a escutar os conselhos de Solimán, que
recomendava uma defumação preparada com incenso, anil e casca de limão, e orações que
tinham poderes tão extraordinários como aquelas do Grande Juiz, de São Jorge e de São
Transtorno. Deixou que lavassem a casa com plantas aromáticas e restos de tabaco. Ajoelhou-se
aos pés do crucifixo de madeira escura, com aparatosa devoção de camponesa, gritando junto
com o negro, ao final de cada oração: “Malo, Presto, Pasto, Effacio, Amém”. De mais a mais,
aqueles crânios, aqueles pregos cravados em cruz no tronco de limoeiro, revolviam em seu
sangue a origem corsa, muito mais próxima da viva cosmogonia do negro do que das mentiras do
Diretório, nas quais sabia agora não acreditar. E arrependia-se também de ter mofado tão amiúde
das coisas santas, só para acompanhar a moda. A agonia de Leclerc, aumentando seu medo, fez
com que ela avançasse mais ainda ao encontro do mundo de poderes que Solimán invocava em
seus conjuros, agora o verdadeiro senhor da ilha, única proteção possível contra o flagelo da
outra margem, único médico provável em face da inutilidade das receitas prescritas. Para evitar
que os invasores malignos atravessassem o mar, o negro punha a vogar pequenos barcos, feitos
da metade de um coco, todo enfeitado de fitas tiradas da caixa de costura de Paulina, e que
representavam tributos a Aguaçu, Senhor do Mar. Certa manhã, Paulina encontrou na bagagem
de Leclerc uma maquete de um barco de guerra. Correndo, levou-a para a praia para que Solimán
acrescentasse às suas oferendas aquela obra de arte. Era necessário defender-se da peste com
todos os meios possíveis: promessas, penitências, cilícios, jejuns e invocações a quem quisesse
ouvir, se bem que às vezes o Falso Inimigo de sua infância apertasse a pontinha da orelha peluda
para ela. Subitamente Paulina começou a andar pela casa de maneira estranha, evitando pisar na
interseção das lajes, talhadas em quadrados — coisa sabida — por ímpia instigação dos franco-
maçons, desejosos que os homens pisassem na cruz em todas as horas do dia. Já não eram mais
essências perfumadas e a refrescante água de menta que Solimán derramava sobre seu peito, e
sim unguentos de aguardente, sementes esmagadas, sumo gordurosos e sangue de aves. Certa
manhã, as camareiras francesas descobriram com espanto que o negro executava estranha dança
em torno de Paulina, ajoelhada no chão, com os cabelos soltos. Sem outra vestimenta exceto um
lenço branco preso por um cinturão cobrindo-lhe o sexo e com o pescoço adornado de colares
azuis e vermelhos, Solimán saltava como um pássaro, brandindo um facão enferrujado. Ambos
lançavam longos gemidos, arrancados do fundo do peito, e que mais pareciam uivos de cão em
noite de lua. Um galo degolado ainda batia as asas sobre um rastilho de grãos de milho. Ao ver
que uma das criadas contemplava a cena, o negro furioso, fechou a porta a pontapé. Várias
imagens de santos apareceram naquela tarde pendentes das vigas do teto, de cabeça para baixo.
Solimán não se separava de Paulina, dormindo em sua alcova, sobre uma almofada encarnada.
Com a morte de Leclerc, vitimado pelo Vômito Negro, Paulina esteve às portas da loucura.
O trópico agora lhe parecia abominável, com seus pacientes abutres instalados no telhado das
casas onde alguém agonizava banhado em suor. Logo depois de ter mandado colocar o cadáver
do marido, vestido em uniforme de gala, dentro de um caixão de cedro, Paulina embarcou
apressadamente a bordo do Switshure, fraca, com acentuadas olheiras, o peito coberto de
escapulários. Mas logo o vento este, a sensação de que Paris crescia adiante da proa, a maresia
que roía as argolas do ataúde, aliviaram o peso da sua dor. Numa tarde em que o mar picado
fazia ranger assustadoramente o madeirame da quilha, seus véus de luto enredaram-se nas
esporas de um jovem oficial, especialmente encarregado de guardar e prestar homenagem aos
restos do General Leclerc. Na canastra onde levava suas roupas de haitiana, já bem deterioradas,
viajava também um amuleto de Papá Legba, trabalhado por Solimán, e destinado a abrir para
Paulina Bonaparte todos os caminhos que a conduziriam a Roma.

Com a partida de Paulina desapareceu o bom senso na colônia. Sob o governo de Rochambeau,
os últimos proprietários da Planície, perdida toda a esperança de retornarem ao bem-estar de
antes, entregaram-se a uma orgia brutal, sem fim nem tréguas. Ninguém fazia caso das horas, e
nem as noites terminavam porque amanhecesse. Era necessário acabar com o vinho, extenuar a
carne, regressar do prazer antes que alguma catástrofe terminasse com a possibilidade de gozo. O
governador concedia favores em troca de mulheres. As senhoras do Cabo mofavam do edital do
falecido Leclerc, que dispunha que “todas as mulheres brancas que se prostituíssem com os
negros fossem devolvidas à França, não importando sua condição social”. Muitas fêmeas se
entregaram ao hermafroditismo, exibindo-se nos bailes com mulatas a quem chamavam suas
cocottes. As filhas dos escravos eram violentadas em plena infância. Por esse caminho logo se
chegou ao terror. Nos dias de festa, Rochambeau fazia seus cães devorarem os negros, e quando
suas presas não se decidiam a dilacerar um corpo humano na presença de tantas personalidades
ilustres vestidas de seda, feria-se a vítima à espada, para que o sangue jorrasse, bem apetitoso.
Calculando que com isso os negros se aquietassem, o governador mandou buscar em Cuba
centenas e centenas de mastins.
— On leur fera bouffer du noir!
No dia em que a nave avistada por Ti Noel entrou na enseada do Cabo, emparelhou com ela
um veleiro que vinha da Martinica, carregado de serpentes venenosas que o general queria soltar
na Planície para que mordessem os camponeses que viviam em casas isoladas e davam ajuda aos
negros evadidos, escondidos nas montanhas. Mas as serpentes, criaturas de Damballah,
morreriam sem ter desovado, desaparecendo ao mesmo tempo que os últimos colonos do antigo
regime. Os Grandes Loas agora favoreciam as armas dos negros. Ganhava as batalhas quem
tivesse deuses guerreiros para invocar.
Ogum Badagri guiava a carga de arma branca contra as últimas trincheiras da Deuza Razão.
E, como em todos os combates que realmente mereceram ser recordados — porque alguém
detivera o Sol ou derrubara muralhas com uma trombeta — lutaram, naqueles dias, homens que
obstruíram com o peito nu as bocas dos canhões inimigos e homens que tiveram o poder para
afastar de seus corpos o chumbo dos fuzis. Foi quando então apareceram na Planície aqueles
sacerdotes negros, sem tonsura nem ordenação eclesiástica, chamados Padres da Savana. Para
rezar em latim junto à enxerga de um agonizante eram tão sábios quanto os padres franceses. E
eram entendidos melhor porque quando recitavam o Padre-Nosso ou a Ave-Maria sabiam dar ao
texto inflexões semelhantes àquelas de outros hinos que todos conheciam. Finalmente, certos
assuntos entre vivos e mortos começaram a ser tratados em família.
TERCEIRA PARTE
“Em todas as partes se encontravam coroas reais, de ouro, entre as quais havia algumas tão
grandes que mal se podia levantá-las do chão.”

KARL RITTER
testemunha do saque de Sans-Souci
OS SIGNOS

UM NEGRO, velho mas ainda firme sobre seus pés calejados e cheios de joanetes, abandonou a
escuna recém-atracada no cais de São Marcos. Muito longe, na direção do Norte, a crista das
montanhas desenhava, num azul pouco mais carregado que o azul do céu, um perfil conhecido.
Sem esperar mais, Ti Noel agarrou um grosso bastão de pau-santo e saiu da cidade. Já iam longe
os dias em que um proprietário de Santiago, num lance de cartas, ganhara Ti Noel a Monsieur
Lenormand de Mezy, morto pouco depois na mais extrema miséria. Sob o jugo de seu amo
cubano conhecera uma vida mais tolerável do que aquela que os franceses da Planície do Norte
impunham a seus escravos, tempos atrás. E assim, guardando durante anos e anos as moedas que
o amo lhe dava pelo Natal, conseguira juntar o suficiente para pagar a quantia exigida pelo patrão
de um barco pesqueiro pela viagem na coberta. Sim, porque embora marcado pelo ferro em
brasa, Ti Noel era um homem livre. Vivia agora numa terra onde a escravidão tinha sido abolida
para sempre.
No seu primeiro dia de marcha alcançou as margens do Artibonite, deitando-se ao abrigo de
uma árvore para dormir à noite. Ao amanhecer recomeçou a caminhada, por uma estrada que se
estendia entre bambuais e parreiras silvestres. O pessoal que banhava os cavalos lhe gritava
coisas que ele não entendia muito bem, e a que respondia a seu modo, dizendo aquilo que lhe
dava vontade. Além disso, Ti Noel nunca estava sozinho, embora andasse só. Há muito tempo
aprendera a arte de falar com as cadeiras, com as panelas, ou então com uma vaca, um violão ou
com sua própria sombra. Mas, na curva de um caminho estreito, as árvores e as plantas como que
secavam, transformando-se em esqueletos de árvores e de plantas, sobre uma terra que passara de
vermelha e granulosa a pó, pó estéril de subterrâneo, de masmorra. Já não se avistavam mais os
alvos cemitérios com seus pequeninos sepulcros de gesso branco parecendo templos gregos do
tamanho de uma casinha de cachorro. Aqui os mortos eram enterrados à beira da estrada, numa
planície silenciosa e hostil, invadida por cactos e acácias. Às vezes, um teto de palha,
abandonado sobre suas quatro estacas, revelava a fuga de seus moradores expulsos por mórbidos
miasmas. Toda a vegetação que ali crescia era cortante, armada de espinhos, de esporões e
exsudava um leite maligno. As poucas pessoas que cruzavam por Ti Noel não respondiam ao seu
cumprimento, seguindo de cabeça baixa, olhar fixo no chão, como o focinho de seus cães. De
repente, o negro se deteve, respirando profundamente. Um cabrito enforcado pendia de uma
árvore coberta de espinhos. No chão, várias advertências: três pedras em semicírculo, com um
raminho de oliveira quebrado, formando uma ogiva, a modo de porta. Mais adiante, vários
frangos pretos, pendurados por uma das patas, embalançavam, de cabeça para baixo, ao longo de
um galho gordurento. Por fim, terminados os signos, uma árvore particularmente maléfica, de
tronco eriçado de espinhos negros, achava-se rodeada de oferendas. Entre suas raízes tinham
encaixado — retorcidas, sarmentosas e fendidas — várias Muletas de Legba, o Senhor dos
Caminhos. Ti Noel caiu de joelhos e deu graças aos Céus por lhe concederem a graça de
regressar à terra dos Grandes Pactos. Porque ele sabia — e o sabiam todos os negros franceses de
Santiago de Cuba — que o triunfo de Dessalines era fruto de uma tremenda preparação na qual
tinham intervido Loco, Petro, Ogum Ferraille, Brise-Pimba, Caplaou-Pimba, Mariette Brois-
Cheche e todas as divindades da pólvora e do fogo, baixando seu santo com tanta violência que
certos homens possuídos haviam sido lançados ao ar ou jogados ao chão pelos conjuros. Depois,
amassaram sangue, pólvora, farinha de trigo e pó de café, até formar um fermento capaz de
reviver os antepassados, enquanto rugiam os tambores consagrados e cruzavam-se os ferros dos
iniciados sobre uma fogueira. No ápice da exaltação, um inspirado montara às costas de dois
homens que relinchavam, entrelaçados em garboso perfil de centauro, descendo a galope, em
direção ao mar, aquele mar que além da noite, mais além de muitas noites, banhava as fronteiras
do mundo dos Altos Poderes.
SANS-SOUCI

AO CABO de vários dias de marcha Ti Noel começou a reconhecer certos lugares. Pelo sabor da
água sabia que tinha tomado banho, não ali, porém um pouco mais abaixo, naquele arroio que
serpenteava em direção à costa. Passou perto da caverna onde Mackandal fizera macerar suas
plantas venenosas. Cada vez mais impaciente, desceu pelo estreito vale de Dondón até
desembocar na Planície do Norte. Então seguiu pela orla do mar, tomando o rumo da antiga
fazenda de Lenormand de Mezy.
Pelas três sumaúmas que formavam um triângulo compreendeu que tinha chegado. Mas não
restava mais nada da fazenda: nem a anilaria ou os secadouros, os estábulos e nem os
defumadouros de carne. Da casa, restava uma chaminé de tijolos coberta pela mesma trepadeira
que longe da sombra o sol queimara. Dos armazéns, restavam algumas lajes encaixadas no barro;
da capela, o galo de ferro do cata-vento. Aqui e ali, pedaços de parede ainda erguidos, parecendo
enormes letras quebradas. Os pinheiros, as parreiras, as plantas trazidas da Europa, tinham
desaparecido, assim como também a horta, onde, em outros tempos, começavam a branquear os
aspargos, a engrossar os corações das alcachofras, entre um tufo de menta e um canteirinho de
manjerona. A fazenda toda não passava de um charrascal atravessado pela estrada. Ti Noel
sentou-se sobre uma das pedras de esquina da antiga vivenda, agora uma pedra como outra
qualquer para quem não recordasse tanto. Conversava Ti Noel com as formigas, quando um
ruído inesperado lhe chamou a atenção. Em direção a ele vinham, a trote largo, vários ginetes, de
uniformes resplandescentes, com jaquetas azuis cobertas de alamares e cordões dourados, as
golas bordadas de fios de ouro e prata, os galões cheios de franjas reluzentes, as calças de
camurça com vistosas faixas, as barretinas com penachos de plumas azul-celeste e as botas à
hussardo. Habituado aos uniformes simples da colônia espanhola, Ti Noel descobria de repente,
com assombro, a pompa do estilo napoleônico que os homens de sua raça tinham elevado a um
grau de ostentação ainda ignorado pelos próprios generais do corso. Os oficiais passaram por ele
como se cavalgassem numa nuvem de pó dourado, afastando-se em direção a Millot. O velho,
fascinado, seguiu o rastro deixado pelos cavalos na terra da estrada.
Ao sair de um arvoredo, teve a impressão de que penetrava num suntuoso pomar. Todas as
terras que circundavam o povoado de Millot estavam cuidadosamente cultivadas como a horta de
uma granja, com seus canais de rega formando quadriláteros e com seus canteiros verdes de
plantios recém-desabrochados. Muita gente trabalhava nesses campos, sob vigilância de soldados
armados de chicotes, que, de quando em vez, jogavam uma pedra nalgum preguiçoso.
“Prisioneiros”, pensou Ti Noel ao ver que os guardas eram negros e que os trabalhadores
também eram negros, o que contrariava certas noções que tinha adquirido em Santiago de Cuba,
naquelas noites em que pudera assistir a alguma festa nos bosques, quando batucavam os
tambores nas Assembleias dos Negros Franceses. Mas agora, o velho estacara de súbito,
maravilhado pelo espetáculo mais inesperado, mais imponente que jamais vira em sua longa
existência. Contra o fundo de montanhas estriadas de roxo por gargantas profundas, erguia-se um
palácio rosado, uma fortaleza de janelas arqueadas, como que flutuando no espaço, sustentada
pela base elevada de uma imponente escadaria de pedra. Em um dos lados estavam situados
compridos alpendres cobertos de telhas, que deveriam ser as dependências do palácio, os quartéis
e as cavalariças. No outro lado, uma construção circular, coroada por uma cúpula assentada
sobre colunas brancas, da qual saíam vários sacerdotes de sobrepeliz. À medida que se
aproximava, Ti Noel descobria terraços, estátuas, arcadas, jardins, pérgulas, arroios artificiais e
labirintos de buxo aparado. Leões de bronze montavam guarda ao pé de pilastras maciças que
sustentavam um grande sol de madeira negra. Pelo pátio de honra iam e vinham, num intenso
tráfego, militares vestidos de branco, jovens capitães de bicórneo, aureolados de reflexos,
batendo com ruído o sabre nas coxas. Uma janela aberta deixava ouvir uma orquestra de baile
em pleno ensaio. Às janelas do palácio assomavam senhoras coroadas de plumas, com o busto
farto soerguido pelo talhe demasiadamente alto dos vestidos em moda. No pátio, dois cocheiros
de libré passavam a esponja em uma grande carruagem, coberta de sóis em relevo,
completamente dourada. Ao passar em frente à construção circular da qual tinham saído os
sacerdotes, Ti Noel reparou que se tratava de uma igreja, cheia de cortinas, dosséis e estandartes,
que abrigava uma gigantesca imagem da Imaculada Conceição.
Porém o que mais assombrava Ti Noel era a revelação de que esse mundo tão prodigioso,
como nunca tinham visto os governadores franceses do Cabo, era um mundo de negros. Porque
negras eram aquelas formosas senhoras de nádegas firmes que agora brincavam de roda em volta
de uma fonte adornada de tritões; negros, aqueles dois ministros de meias brancas, que desciam
as escadarias de honra, com suas pastas de couro de bezerro embaixo do braço; negro, aquele
cozinheiro, cujo gorro tinha uma borla de arminho e que recebia um veado dos ombros de vários
campônios conduzidos pelo chefe dos batedores; negros, aqueles hussardos que trotavam no
picadeiro; negro, aquele copeiro-chefe, de corrente de prata em volta do pescoço, que
contemplava, na companhia do chefe da falcoaria, os ensaios dos atores negros no teatro de
verdura da cozinha; negros, aqueles lacaios de peruca branca, cujos botões dourados eram
contados pelo mordomo de jaqueta verde; negra, enfim, e bem negra, era a Imaculada Conceição,
erguida sobre o altarmor da capela, sorrindo com doçura para os músicos negros que ensaiavam
uma oração à Virgem. Ti Noel compreendeu que se encontrava em Sans-Souci, a residência
predileta do Rei Henri Christophe, o mesmo que tinha sido cozinheiro na Rua dos Espanhóis,
dono do albergue La Carona, que hoje fundia moedas com suas iniciais, sobre a orgulhosa divisa:
“Deus, minha causa e minha espada.”
O velho recebeu tremenda paulada nas costas. Antes que pudesse protestar, uma guarda o
conduzia a pontapés pelo traseiro até um dos quartéis. Quando se viu encerrado numa cela, Ti
Noel começou a gritar que conhecia pessoalmente Henri Christophe e acreditava até que ele
ainda estivesse casado com Maria Luísa Coidavid, sobrinha de uma rendeira liberta que amiúde
ia na residência de Lenormand de Mezy. Mas ninguém fez caso. À tarde o levaram, junto com
outros presos, até o pé do Barrete do Bispo, onde se via grande quantidade de material de
construção. Entregaram-lhe um tijolo:
— Leva lá em cima! E volta para buscar outro!
— Estou muito velho.
Como resposta Ti Noel recebeu uma cacetada no crânio. Sem objetar mais nada, iniciou a
subida da empinada montanha, colocando-se numa grande fila de crianças, de moças grávidas, de
mulheres e de velhos, que também levavam um tijolo na mão. O velho olhou em direção a
Millot. À tardinha o palácio parecia ainda mais rosado que antes. Junto ao busto de Paulina
Bonaparte, que antigamente adornara sua casa no Cabo, as princesinhas Atenais e Amatista, de
vestidos cor-de-rosa enfeitados com alamares, brincavam de argola. Um pouco além, o capelão
da rainha — o único de pele clara em todo o cenário — lia para o príncipe herdeiro as Vidas
Paralelas, de Plutarco, sob o olhar condescendente de Henri Christophe, que passeava seguido
por seus ministros, pelo jardim da rainha. De passagem, Sua Majestade apanhava distraidamente
uma rosa branca, recém-desabrochada, entre os buxos aparados em forma de coroa e fênix, ao pé
de uma alegoria de mármore.
O SACRIFÍCIO DOS TOUROS

NO ALTO do Barrete do Bispo, cercada de andaimes, erguia-se aquela segunda montanha —


montanha sobre montanha — a Cidadela La Ferrière. Uma prodigiosa geração de cogumelos
vermelhos, como um denso e lustroso brocado, subia pelos flancos da torre principal — depois
de cobrir completamente os alicerces e os contrafortes — parecendo monstruoso polvo a
envolver a muralha de tijolo. Naquele colosso de tijolos cozidos, construído acima das nuvens,
em tais proporções que suas perspectivas desafiavam a vista mais habituada, submergiam túneis,
corredores, caminhos secretos e chaminés. Vinda do alto, das bombardeiras e dos respiradouros,
uma luz de aquário, diáfana, verdosa, tingida por fetos que se uniam no próprio vácuo, descia
sobre uma bruma de umidade. As escadarias do Inferno comunicavam as três baterias principais
com o paiol, com o abrigo dos artilheiros, com as cozinhas, com as cisternas, com as forjas, com
a fundição e com as masmorras. No centro do pátio das armas, vários touros eram degolados,
todos os dias, para amassar com seu sangue uma argamassa que faria a fortaleza invulnerável.
No lado que dava para o mar, dominando o vertiginoso panorama da Planície, os operários
caiavam os aposentos da Família Real, as dependências das mulheres, os refeitórios e os bilhares.
Sobre eixos de carretas montados no topo das muralhas apoiavam-se as pontes volantes que
transportavam os tijolos e as pedras para os terraços da crista, construídos entre dois abismos, um
interno e outro externo, tão profundos que provocavam vertigens nos operários. Amiúde um
negro desaparecia no vácuo, levando consigo uma gamela de argamassa. Em seguida chegava
outro, e ninguém mais pensava naquele que caíra. Centenas de homens trabalhavam naquela
imensa construção, sempre vigiados pelo chicote e pelo fuzil, concluindo obras até então apenas
imaginadas na arquitetura de sonho do Piranese. Içados por cordas pelas escarpas da montanha,
chegavam os primeiros canhões, logo montados em carretas de cedro, ao longo de salas
abauladas, eternamente na penumbra, cujas bombardeiras dominavam todas as passagens e
desfiladeiros da região. Ali estavam Cipião, Aníbal, Amílcar, bem lisos, de bronze quase
dourado, ao lado de outros, fundidos depois de 89, e com a divisa ainda insegura de Liberdade,
Igualdade. Havia também um canhão espanhol, em cujo corpo estava gravada a melancólica
inscrição: “Fiel mas infeliz!” E vários outros de boca mais larga, mais elaborados, cunhados com
a insígnia do Rei Sol, apregoando insolentemente sua Ultima Ratio Regum.
Quando Ti Noel depositou seu tijolo ao pé da muralha era cerca de meia-noite. O trabalho,
porém, continuava sob a luz das fogueiras e archotes. Os homens dormiam pelos caminhos,
sobre grandes blocos de pedra, apoiados em canhões caídos, ou ao lado das mulas esfoladas de
tanto caírem na subida. Esgotado pelo cansaço, o velho tombou num fosso embaixo da ponte
levadiça. Ao raiar da aurora o acordaram com uma chicotada. Em cima, bramiam os touros que
seriam degolados às primeiras luzes do dia. Novos andaimes tinham crescido à passagem das
nuvens frias antes que a montanha inteira vibrasse com os relinchos, os gritos, os toques de
corneta, as chicotadas e o estalar de cordas inchadas pelo orvalho. Ti Noel começou a descer em
direção a Millot em busca de outro tijolo. Pelo caminho observou que por todos os lados da
montanha subiam compactas fileiras de mulheres, de crianças, de velhos, carregando cada um
seu tijolo, para deixá-lo ao pé da fortaleza, que ia sendo construída como um cupinzeiro, com
aqueles grãos de barro cozido que subiam até ela, sem tréguas, com o sol ou com chuva, de
Páscoa a Páscoa. Em breve Ti Noel soube que aquilo durava há mais de doze anos e que toda a
população do Norte tinha sido mobilizada pela força para trabalhar naquela obra inverossímil.
Toda tentativa de protesto fora silenciada com sangue. Caminhando, caminhando, de cima para
baixo e de baixo para cima, o negro começou a pensar que a orquestra de câmara de Sans-Souci,
o fausto dos uniformes, e as estátuas de brancas despidas, aquecidas ao sol sobre seus pedestais
de pedra ornada de laços, entre canteiros de buxo aparado, tudo isso custara uma escravidão tão
abominável como aquela que conhecera na fazenda de Monsieur Lenormand de Mezy. Pior
ainda, pois era infinitamente mais doloroso receber uma paulada de um negro, tão negro como
nós; tão beiçudo e encarapinhado, com o nariz tão achatado como o nosso; tão igual, tão
malnascido, tão marcado a ferro, provavelmente, como nós. Era como se, no mesmo lar, os filhos
batessem nos pais, o neto na avó, as noras na mãe que cozinha. Ademais, antigamente, os
colonos franceses evitavam matar seus escravos — a menos que perdessem o controle — pois a
morte de um escravo abria um rombo em suas bolsas. Enquanto que agora a morte de um negro
nada custava ao tesouro público. Havendo negras que parissem — e sempre havia e sempre
haveria — nunca faltariam trabalhadores para carregarem os tijolos até o cume da montanha do
Barrete do Bispo.
Frequentemente o Rei Christophe subia à Cidadela, escoltado por seus oficiais a cavalo,
para verificar os progressos da obra. Baixo, muito forte, peito um pouco abaulado, nariz
abatatado e com a barba sumida dentro da gola bordada da casaca, o monarca percorria as
baterias, as forjas e as oficinas, fazendo retinir as esporas no topo das intermináveis escadarias.
No seu bicórneo napoleônico abria-se o olho de ave da insígnia bicolor. Às vezes, com um
simples gesto de seu chicote, ordenava a morte de um preguiçoso surpreendido em plena folga,
ou a execução de alguns peões demasiado vagarosos ao içar um bloco de pedra talhada ao longo
de uma encosta muito abrupta. E terminava sempre por mandar colocar uma poltrona no terraço
superior, que dava vista para o mar, na borda de um abismo que obrigava a fechar os olhos aos
mais acostumados. Então, sem nada que pudesse fazer sombra nem pesar sobre ele, por cima de
tudo, erguido sobre sua própria sombra, media toda a extensão de seu poder. Caso a França
tentasse reconquistar a ilha, ele, Henri Christophe, “Deus, minha causa e minha espada”, poderia
resistir ali, sobre as nuvens, durante tantos anos quantos fossem necessários, com toda sua corte,
seu exército, seus capelães, seus músicos, seus pajens africanos e seus bufões. Quinze mil
homens viveriam com ele, entre aquelas paredes ciclópicas, sem carecerem de nada. Alçada a
ponte levadiça da Porta Única, a Cidadela La Ferrière seria o próprio país, com sua
independência, seu monarca, suas finanças e sua pompa real. Porque embaixo, esquecendo os
padecimentos que custara sua construção, os negros da Planície levantariam os olhos para a
fortaleza repleta de milho, de pólvora, de ferro, de ouro, pensando que nela, mais alto que as
aves, lá, onde a vida cá debaixo soaria remotamente através dos sinos e dos cantos de galo, um
rei, de sua mesma raça, esperaria junto do Céu, que é o mesmo em toda parte, que troassem os
canhões de bronze dos dez mil cavalos de Ogum. Para alguma coisa aquelas torres tinham
crescido sobre o vasto gramido dos touros degolados, dessangrados, com os testículos ao sol, por
construtores conscientes do profundo significado do sacrifício, embora dissessem aos ignorantes
que se tratava de um simples progresso na técnica da alvenaria militar.
O EMPAREDADO

QUANDO OS trabalhos da Cidadela estavam prestes a terminar, e os operários especializados se


fizeram mais necessários à obra do que os carregadores de tijolos, a disciplina relaxou um pouco,
e embora ainda fossem transportados morteiros e columbinas até os altos penhascos da
montanha, muitas mulheres puderam voltar às suas panelas, brancas de teias de aranha. Entre
aqueles que deixaram ir embora por serem menos úteis, estava Ti Noel, que escapou certa
manhã, sem voltar a cabeça para olhar a fortaleza, já sem andaimes no flanco da Bateria das
Princesas Reais. As toras que agora rolavam, ladeira acima, à força de alavancas, serviriam para
assoalhar as dependências. Mas nada disso interessava mais a Ti Noel, que somente ansiava por
se instalar nas antigas terras de Lenormand de Mezy, para as quais regressava agora como a
enguia retorna ao lodo onde nasceu. De volta ao solar, sentindo-se um pouco proprietário
daquela terra cujos acidentes só tinham um significado para ele, começou a limpar, com o facão,
aqui e ali, desimpedindo algumas ruínas. Dois pés de acácia, ao cair, trouxeram à luz um pedaço
de parede. Sob as folhas de uma aboboreira silvestre apareceram os ladrilhos azuis do refeitório
da fazenda. Cobrindo com folhas de palmeira a chaminé da antiga cozinha — já meio demolida
— o negro ficou com uma alcova, na qual entrava engatinhando, e que forrou com espigas de
barba-de-índio, para descansar das pancadas recebidas nos caminhos do Barrete do Bispo.
Ali viveu durante os ventos do inverno e as chuvas que se seguiram, e viu chegar o verão
com a barriga inchada de tanto comer frutas verdes, mangas aguadas, sem se atrever a sair pelas
estradas, com medo da gente de Christophe que andava buscando homens, quem sabe para
construir algum novo palácio, talvez esse muito comentado, erguido às margens do Artibonite,
que tinha tantas janelas quanto os dias que somam um ano. Entretanto, como transcorressem
vários meses sem maiores novidades, Ti Noel, cansado da miséria, partiu para a Cidade do Cabo,
andando sem se afastar do mar, pela vereda — agora quase desaparecida — que seguira tantas
vezes antigamente, atrás do amo, quando regressava para a fazenda montado num cavalo novo,
desses que mordem o freio e trotam com rangido de couro dobrado, cujo pescoço ainda conserva
as graciosas dobras do potro. E na cidade, um galho comprido com um gancho na ponta sempre
encontra o que botar dentro do saco que se leva ao ombro. Numa cidade sempre existem
prostitutas de coração generoso que dão esmolas aos velhos; e mercados com bandas de música,
animais amestrados, bonecos que falam e cozinheiras que se divertem com quem não fala em
fome e aponta um copo de aguardente. Ti Noel sentia que um frio intenso lhe ia entrando pela
medula dos ossos. Sentia muita saudade daqueles frascos de antigamente — aqueles da adega da
fazenda — quadrados, de vidro grosso, cheios de cascas, ervas, de amoras e folhas de agrião
maceradas em álcool, que irradiavam delicados matizes de perfume muito suave.
Ti Noel, porém, encontrou a cidade inteira à espera de uma morte. Parecia que todas as
janelas e portas das casas, todas as gelosias, todas as claraboias estivessem voltadas na direção
da esquina do Arcebispado, numa expectativa de tal intensidade que deformava as fachadas em
caretas humanas. Os telhados esticavam suas abas, as esquinas aguçavam suas arestas, e a
umidade só desenhava ouvidos nas paredes. Na esquina do Arcebispado acabara de secar um
retângulo de cimento, dentro da própria muralha, deixando apenas uma pequena goteira aberta.
Daquele buraco, negro como uma boca desdentada, brotavam de repente gritos tão aterradores
que punham toda a cidade a tremer de medo, fazendo as crianças chorar. Quando os gritos
começavam, as mulheres grávidas seguravam seus ventres assustadas, e alguns transeuntes
disparavam a correr sem nem terminarem o sinal da cruz. E prosseguiam na esquina do
Arcebispado aqueles urros, aquela gritaria sem sentido, até que a garganta já ensanguentada, se
dilacerava em maldições tenebrosas, ameaças, profecias e palavrões. Em seguida, ouvia-se um
choro, um choro arrancado das profundezas da alma, como se fosse uma criancinha
choramingando com voz de velho, muito pior, mais intolerável ainda que a gritaria de antes. Por
fim, as lágrimas transformavam-se num estertor que ia morrendo numa lenta cadência de
asmático até se perder num tênue suspiro. E isso se repetia dia e noite, na esquina do
Arcebispado. Ninguém dormia na cidade do Cabo. Ninguém se atrevia a passar nas ruas
vizinhas. Dentro das casas, nos quartos mais retirados, rezava-se em voz baixa, e ninguém teria a
audácia sequer de comentar o que estava acontecendo. Porque aquele capuchinho que estava
emparedado na muralha do Arcebispado, sepultado vivo, dentro de seu oratório de cimento, era
Corneille Breille, Duque de Anse, confessor de Henri Christophe. Tinha sido condenado a
morrer ali, dentro da parede recém-rebocada, pelo crime de querer voltar para a França,
conhecendo todos os segredos do rei, todos os segredos da Cidadela, sobre cujas torres o raio já
havia caído várias vezes. E podia a Rainha Maria Luísa implorar em vão, abraçada às botas de
seu esposo. Henri Christophe, que acabara de insultar São Pedro por ter mandado nova
tempestade sobre sua fortaleza, não ia assustar-se com as inúteis excomunhões de um
capuchinho francês. E ainda, para o caso de dúvida, Sans-Souci tinha novo favorito: um capelão
espanhol, de chapéu comprido — tão dado à intriga quanto a rezar a missa com sua bela voz de
baixo — a quem todos chamavam Padre Juan de Dios. O astuto frade, cansado já do feijão com
carne-seca dos rudes espanhóis do outro lado da ilha, estava agora muito bem instalado na corte
haitiana, onde as senhoras o obsequiavam continuamente com frutas cristalizadas e vinhos de
Portugal. Corria o rumor de que certas frases suas, ditas muito despreocupadamente na presença
de Henri Christophe, num dia em que este ensinava seus galgos a avançarem à simples menção
do rei da França, eram a causa da terrível desgraça de Corneille Breille.
Depois de uma semana de encerramento dentro da muralha, a voz do capuchinho
emparedado tornara-se quase imperceptível, morrendo num estertor mais adivinhado que
propriamente ouvido. E a seguir, fora o silêncio, na esquina do Arcebispado. Um silêncio
demasiadamente prolongado, numa cidade que tinha deixado de crer no silêncio e que somente
um recém-nascido se atrevera a romper — com um vagido ignorante — fazendo retornar a vida à
sua sonoridade habitual, como o pregão dos vendedores, os adeuses, as conversas de comadres e
as canções ao estender a roupa molhada ao sol. Foi somente então que Ti Noel pode colocar
alguma coisa dentro da sua sacola, tendo conseguido de um marinheiro bêbado a quantidade de
moedas suficiente para beber cinco copos de aguardente, um atrás do outro. Cambaleando à luz
da Lua, tomou o caminho de volta, recordando vagamente uma canção dos velhos tempos, que
cantava sempre que regressava da cidade. Uma canção na qual se diziam grosserias a um rei. E
isso era importante: a um rei. E assim, insultando Henri Christophe, já cansado de defecações
imaginárias sobre sua coroa e sobre sua prosápia, achou a caminhada tão curta que quando se
jogou sobre sua enxerga de barba-de-índio chegou até a perguntar a si mesmo se tinha ido
realmente à Cidade do Cabo.
CRÔNICA DO DIA 15 DE AGOSTO

QUASI PALMA exaltata sum in Cades, et quasi plantatio rosae in Jericho. Quasi oliva speciosa in
campis, et quasi platanus exaltata sum juxta aquam in plateis. Sicut cinnamonum et balsamum
aromatizans odorem dedi: quasi myrrah electa dedi suavitatem odoris.
Sem entender o latim pronunciado por Juan de Dios Gonzáles com suas inflexões de
barítono de resultado sempre garantido, a Rainha Maria Luísa percebia naquela manhã uma
misteriosa harmonia entre o perfume do incenso e a fragrância das laranjeiras de um jardim
próximo com certas palavras da lição de liturgia que aludiam a perfumes conhecidos cujos
nomes estavam rotulados nos potes de porcelana do boticário de Sans-Souci. Henri Christophe,
entretanto, não conseguia acompanhar a missa com a devida atenção, pois sentia o coração
opresso por inexplicável desassossego. Contra a opinião de todos, ordenara que a missa da
Assunção fosse cantada na igreja de Limonade, cujos mármores acizentados, de delicados veios,
davam uma deliciosa impressão de frescor, permitindo que se suasse um pouco menos sob as
casacas abotoadas e sob o peso das condecorações. Apesar disso, o rei sentia-se cercado por
forças hostis. O povo, que à sua chegada o aclamara, estava cheio de más intenções. Não
esqueciam nunca suas colheitas perdidas, numa terra fértil, porque seus homens se achavam
ocupados na construção da Cidadela. Nalguma casa mais retirada — suspeitava ele — lá estaria
uma imagem sua toda espetada de alfinetes ou pendurada de cabeça para baixo com uma faca
cravada no coração. Às vezes ouvia-se ao longe o batuque dos tambores, que não estariam,
provavelmente, pedindo a Deus que lhe desse longa vida. Entretanto, já começava o ofertório.
— Assumpta est Maria, in caelum; gaudent Angeli, laudantes benedicunt Dominum,
alleluia!
De repente, Juan de Dios Gonzáles começou a recuar em direção às poltronas reais,
tropeçando desajeitadamente nos três degraus de mármore. A rainha deixou cair o rosário. O rei
levou a mão à empunhadura da espada. Em frente ao altar, de rosto voltado para os fiéis, erguera-
se outro sacerdote, como que nascido do próprio ar, com pedaços, de ombros e braços ainda mal
corporizados. Enquanto o rosto ia adquirindo firmeza e expressão, de sua boca sem lábios, sem
dentes, negra como o buraco de uma gateira, surgia uma voz tétrica, que vibrava na nave como
um órgão a todo fole, fazendo tremer os vitrais nos seus encaixes de chumbo.
— Absolve Domine, animas ominum fidelium defunctorum ab omni vinculo delictorum…
O nome de Corneille Breille ficou entalado na garganta de Christophe, deixando-o sem fala.
Porque era o arcebispo emparedado, que todos sabiam morto e apodrecendo, quem estava ali, em
frente ao altar-mor, paramentado com toda sua pompa clerical, clamando a Dies Irae. Quando,
sob o trovão do redobre dos tímbales, soaram as palavras: Coget omnes ante thronus, Juan de
Dios Gonzáles caiu, gemendo, aos pés da rainha. Henri Christophe, com os olhos esbugalhados,
resistiu até o Rex tremendae majestatis. Nesse momento, um raio que só a ele ensurdeceu, caiu
sobre a torre da igreja, fendendo de uma só vez todos os sinos. Os chantres, os incensórios, o
facistol, o púlpito, desapareceram da vista do rei que jazia estendido de costas no chão, com os
olhos fixos nas vigas do teto. E então, num grande salto, o espectro sentou-se numa dessas vigas,
exatamente onde Christophe pudesse vê-lo, com os braços e as pernas abertas em cruz, como
para exibir completamente o brecado sangrento. Em seus tímpanos avultava uma cadência que
tanto podia ser o latejar de suas próprias veias como o ritmo da batida dos tambores na
montanha. Retirado da igreja nos braços de seus oficiais, o rei resmungava vagas maldições,
ameaçando de morte a todos os habitantes de Limonade se os galos cantassem. Enquanto recebia
os primeiros cuidados de Maria Luísa e das princesas, os camponeses, apavorados com o delírio
do monarca, começaram a baixar galos e galinhas, dentro de canastras, para as trevas de
profundos poços, onde esqueceriam o cacarejo e as fanfarronadas. Os burros eram tocados a
pauladas morros abaixo, e os cavalos eram amordaçados para evitar um relincho mal
interpretado.
Naquela tarde a pesada carruagem real entrou no pátio de honra de Sans-Souci a galope,
puxada por seis cavalos. Com a camisa aberta, levaram o rei para os seus aposentos. Caiu na
cama como um saco cheio de correntes. Mais córnea que íris, seus olhos exprimiam uma fúria
inaudita, por não poder mover nem os braços e nem as pernas. Os médicos friccionaram-lhe o
corpo inerte com uma mistura de aguardente, pólvora e pimenta vermelha. Em todo o palácio, os
medicamentos, as tisanas, os sais e os unguentos exalavam seus odores pelos salões abafados,
repletos de funcionários e cortesãos. As princesas Atenais e Amatista choravam no regaço da
preceptora norte-americana. A rainha, pouco preocupada com a etiqueta em tais momentos,
estava agachada num canto da antecâmara, vigiando um preparado de ervas que fervia sobre um
fogareiro a carvão de lenha, cujo reflexo de chama verdadeira dava estranho realismo ao colorido
de um gobelino que adornava a parede, mostrando Vênus nas forjas de Vulcano. Sua Majestade
pediu um leque para avivar as chamas. Respirava-se mal naquele crepúsculo sombrio há muito
impaciente para tudo envolver. Não se sabia se realmente soavam os tambores nas montanhas.
Porém, às vezes, um ritmo vindo de alturas distantes se harmonizava singularmente com as Ave-
Marias que as mulheres rezavam no Salão de Honra, encontrando ressonâncias inconfessadas em
mais de um coração.
ULTIMA RATIO REGUM

NO DOMINGO seguinte, ao pôr do sol, Henri Christophe teve a impressão de que seus joelhos e
seus braços, ainda intumescidos, responderiam a um grande esforço de sua vontade. Virando-se
pesadamente para sair da cama, deixou cair os pés no chão, permanecendo ainda, dobrado na
cintura, meio recostado sobre o leito. Seu lacaio Solimán ajudou-o a vestir-se. Pôde então o rei
andar até a janela, com passos medidos, como um grande autômato. Chamadas pelo servidor, a
rainha e as princesas entraram silenciosamente no aposento, colocando-se num canto escuro,
embaixo do retrato equestre de Sua Majestade. Elas sabiam que estavam bebendo muito em
Haut-le-Cap e que nas esquinas, cozinheiras suarentas, tamborilando sobre as mesas com suas
escumadeiras e colheres, serviam, em grandes caldeirões, sopa e carne-seca. Aos gritos e risadas,
dançavam numa ruela os lenços de uma festa.
O rei respirava o ar da tarde que aos poucos aliviava aquele peso que lhe oprimia o peito. A
noite surgia agora na encosta das montanhas sombreando o contorno das árvores e dos labirintos.
De repente, Christophe reparou que os músicos da capela real atravessavam o pátio levando seus
instrumentos, cada um acompanhado por sua deformação profissional. O harpista estava
curvado, como um corcunda, pelo peso da harpa; aquele outro, tão magro, parecia grávido, com
um bombo pendente dos ombros; outro se abraçava ao bombardino. Encerrava a fileira um anão
quase oculto pelo pavilhão de um porta-campanas, e a cada passo tilintavam todas as suas
sinetas. O rei começava a achar estranho que àquela hora seus músicos saíssem assim, em
direção à montanha, como se fossem dar um concerto ao pé de alguma sumaúma solitária,
quando rufaram ao mesmo tempo oito caixas militares. Estava na hora de render a guarda. Sua
Majestade ficou observando cuidadosamente seus granadeiros para verificar se durante sua
enfermidade observavam a rígida disciplina à qual ele os tinha habituado. Subitamente, porém, a
mão do monarca se alçou num gesto de colérica surpresa. As caixas abandonavam o toque
regulamentar por outro, um compasso de três batidas distintas, produzidas não mais pelas
baquetas, mas pelos dedos que batucavam sobre o couro.
— Estão tocando o manducumán! — gritou Christophe atirando o bicórneo no chão.
Nesse instante, a guarda rompeu as fileiras atravessando em desordem o pátio de honra.
Oficiais correram com os sabres desembainhados. Das janelas dos quartéis desprendiam-se
pencas de homens, com as túnicas abertas e as calças por cima das botas. Dispararam tiros para o
ar. Um porta-bandeira estraçalhou um estandarte de coroas e delfins do regimento do Príncipe
Real. No meio da confusão, um pelotão de Cavalaria Ligeira abandonou o Palácio a todo galope,
seguido por uma carroça fechada, puxada por mulas, carregada de arreios e armaduras. Era uma
debandada geral de uniformes, sempre incitada pelas caixas militares, golpeadas com os punhos.
Um soldado impaludado, surpreendido pelo motim, saiu da enfermaria envolto num lençol,
ajustando a fivela da correia da barretina. Ao passar por baixo da janela de Christophe, fez um
gesto obsceno e fugiu, a toda pressa. Depois, foi a calma do entardecer, ouvindo-se ao longe o
queixume de um pavão real. O rei virou o rosto. Nas trevas do aposento, a Rainha Maria Luísa e
as princesas Atenais e Amatista choravam. Agora se sabia porque tinham bebido tanto naquele
dia em Haut-le-Cap.
Christophe começou a andar pelo seu palácio, apoiando-se nos corrimões, nas cortinas e no
espaldar das cadeiras. A ausência dos cortesãos, dos lacaios, dos guardas, dava uma horrível
impressão de vazio aos corredores e dependências. As paredes pareciam mais altas, e as lajes
mais largas. O Salão dos Espelhos não refletia mais que a figura do rei, multiplicada até o
infinito de seus cristais mais longínquos. E depois aquele zumbido, aquele roçar, aqueles grilos
no forro do teto, que nunca se havia escutado antes e que agora, com suas pausas e
intermitências, davam ao silêncio toda uma escala de profundidade. As velas derretiam-se
lentamente nos candelabros. Uma mariposa noturna voava em círculos na Sala do Conselho. Os
insetos, depois de se atirarem contra a guarnição dourada das janelas, caíam no chão, aqui e ali,
com o inconfundível estalido das carapaças dos escaravelhos voadores. No grande salão de
recepção, com suas janelas abertas sobre as duas fachadas, Christophe, ao caminhar, ouvia o som
cavo de suas próprias botas, aumentando a impressão de absoluta solidão. Desceu por uma porta
de serviço para a cozinha, onde o fogo morria sob as grelhas sem carne. Perto de uma mesa de
trinchar, várias garrafas de vinho vazias estavam caídas no chão. Tinham levado as réstias de
alho, que se achavam penduradas na parede da chaminé, e as fileiras de cogumelos dión-dión e
os presuntos, postos ali para defumar. O palácio estava deserto, entregue à noite sem lua. E a
quem quisesse tomá-lo, pois haviam levado até os cães de caça. Henri Christophe retornou ao
andar que ocupava. A escadaria branca parecia sinistramente fria e lúgubre à luz baça dos lustres.
Um morcego entrou pela claraboia da cúpula, dando voltas, desnorteado, sob o ouro velho do
forro do teto. O rei apoiou-se na balaustrada, buscando a solidez do mármore.
Lá embaixo, sentados no último degrau da escadaria de honra, cinco moços negros voltaram
para ele seus rostos ansiosos. Naquele instante Christophe sentiu que os amava. Eram os bobos
da corte: Delivrance, Valentín, La Couronne, John e Bien Aimé, os africanos que o rei comprara
de um mercador de escravos para devolver-lhes a liberdade e para que aprendessem o lindo
ofício de pajem. Christophe mantivera-se sempre à margem da mística africanista dos primeiros
caudilhos da independência haitiana, tentando dar à sua corte um aspecto europeu. Mas agora
que estava só, que seus duques, barões, generais e ministros o tinham atraiçoado, os únicos que
permaneciam leais eram aqueles cinco africanos, aqueles cinco moços congoleses, fulas ou
mandingas, que aguardavam sentados como cães fiéis, com as nádegas assentadas no mármore
frio da escadaria, na Ultima Ratio Regum, que já não se podia mais impor pela voz dos canhões.
Christophe contemplou demoradamente seus pajens; fez-lhes um gesto de carinho, ao qual
responderam com uma triste reverência, e encaminhou-se para a sala do trono.
Deteve-se em frente ao dossel que ostentava suas armas. Dois leões coroados sustentavam
um brasão, o emblema do Fênix Coroado, com a divisa: “De minhas cinzas renascerei.” Em
volta de uma bandeira pregueada, a frase: “Deus, minha causa e minha espada”. Christophe
abriu um cofre pesado, oculto pelas borlas da tapeçaria, e tirou um punhado de moedas de prata,
cunhadas com suas iniciais. Depois, atirou ao chão, uma após a outra, várias coroas de ouro
maciço, de vários tamanhos. Uma delas alcançou a porta, rolando escadaria abaixo, com um
estrépito que ressoou em todo o palácio. O rei sentou-se no trono contemplando as velas
amarelas de um candelabro, já completamente derretidas e prestes a se apagarem.
Maquinalmente, recitou o texto que encabeçava todos os atos públicos de seu governo: “Henri,
pela graça de Deus e a Lei Constitucional do Estado, Rei do Haiti, Soberano das Ilhas de
Tortuga, Gonave e outras adjacentes, Destruidor da Tirania, Regenerador e Benfeitor da Nação
Haitiana, Criador de Suas Instituições Morais, Políticas e Bélicas, Primeiro Monarca Coroado do
Novo Mundo, Defensor da Fé, Fundador da Ordem Real e Militar de Saint-Henri, a todos
presentes e por chegar saúdo...”. Súbito, Christophe lembrou-se da Cidadela de La Ferrière, de
sua fortaleza construída lá em cima, sobre as nuvens.
Mas nesse momento retumbaram os tambores dentro da noite. Chamando-se uns aos outros,
respondendo-se de montanha em montanha, subindo pelas praias, saindo das cavernas, correndo
sob as árvores, descendo pelas ravinas e pelos leitos dos rios, troavam os tambores radas, os
tambores congoleses, os Tambores dos Grandes Pactos, todos os tambores do Vodu. Era uma
vasta percussão que avançava em torno de Sans-Souci, apertando o cerco. Um horizonte de
trovões que se acercava. Uma tormenta cujo centro era, naquele instante, um trono, sem arautos,
sem maceiros. O rei voltou ao seu quarto e à sua janela. Já tinham começado a incendiar suas
hortas, suas granjas e seus canaviais. Agora, adiante dos tambores corria o fogo, saltando de casa
em casa, de cultivo em cultivo. As chamas invadiram o armazém de cereais, lançando lascas de
madeira incandescentes no depósito de ferragem. O vento norte levantava as palhas de milho em
chamas, aproximando-as cada vez mais do palácio sobre cujos terraços já caíam cinzas ardentes.
Henri Christophe tornou a pensar na Cidadela. Ultima Ratio Regum. Mas aquela fortaleza,
única no mundo, era demasiadamente grande para um homem só, e o monarca nunca pensara que
um dia pudesse ficar só. O sangue dos touros que aquelas paredes tinham bebido era um recurso
infalível contra os brancos. Mas esse sangue jamais fora dirigido contra os negros, que aos gritos
— já bem perto — à frente das chamas em marcha, invocavam esses mesmos poderes para os
quais foram oferecidos os sacrifícios de sangue. Christophe, o reformador, quisera ignorar o
Vodu, formando, à chicotada, uma casta de senhores católicos. E agora compreendia que os
verdadeiros traidores da sua causa, naquela noite, foram São Pedro com sua chave, os
capuchinhos de São Francisco, o negro São Benedito, a Virgem do semblante escuro com o
manto azul, e os Evangelistas, cujos livros fizera beijar em cada juramento de fidelidade. E todos
os mártires para os quais mandava acender velas com treze moedas de ouro. Depois de lançar
uma mirada de ira sobre a cúpula branca da capela repleta de imagens que lhe voltavam as
costas, de signos que se tinham passado para o lado do inimigo, o rei pediu roupa limpa e
perfumes. Fez sair as princesas e vestia sua roupa de cerimônia mais imponente, cingindo em
diagonal sobre o peito a larga faixa bicolor, insígnia de sua investidura, prendendo-a na
empunhadura da espada. Os tambores estavam já tão próximos que pareciam percutir ali mesmo,
atrás das grades das janelas que davam para o pátio de honra, ao pé da grande escadaria de pedra.
Nesse momento pegaram fogo os espelhos do palácio, as molduras de vidro, as molduras de
cristal, o cristal dos copos e das lanternas, os vasos, o nácar dos consolos. As chamas estavam
em todas as partes sem que se pudesse saber quais eram verdadeiras e quais eram seus reflexos.
Todos os espelhos de Sans-Souci ardiam ao mesmo tempo. O edifício todo desaparecera nesse
fogo frio, que penetrava dentro da noite, transformando cada parede num poço de chamas
encrespadas.
Quase não se ouviu o disparo, porque os tambores batiam já muito perto. A mão de
Christophe soltou a arma. Tinha a fronte aberta. O corpo ainda se levantou, ficando suspenso,
como se pretendesse dar um passo, antes de cair, cara contra o chão, com todas as suas
condecorações. Os pajens surgiram no umbral da sala. O rei morria, de bruços em seu próprio
sangue.
A PORTA ÚNICA

OS PAJENS africanos saíram correndo a toda pressa por uma porta traseira que dava para a
montanha, levando aos ombros, à moda primitiva, um varapau aparado a facão, do qual pendia
uma rede esticada, cujo tecido rasgado deixava passar as esporas do monarca. Atrás deles,
olhando para trás assustadas, tropeçando na escuridão com as raízes dos flomboyants, vinham as
princesas Atenais e Amatista — calçadas para menor estorvo com as sandálias de suas criadas —
e a rainha, que jogara fora os sapatos logo ao quebrar o primeiro salto nas pedras do caminho.
Solimán, o lacaio do rei, que antigamente fora massagista de Paulina Bonaparte, vinha por
último, com um fuzil a tiracolo e um podão na mão. À medida que penetravam na escuridão das
matas do alto da montanha, o incêndio abaixo parecia mais denso, mais compactas as chamas,
embora já se extinguissem nos limites dos pátios do palácio. Entretanto, num dos lados de Millot,
o fogo incendiara os fardos de alfafa das cavalariças. De longe se ouviam os relinchos que mais
pareciam urros de crianças torturadas, quando uma parede de tábuas caía inteira num redemoinho
de fagulhas incandescentes, deixando passar um cavalo enlouquecido, com as crinas e os rabos
chamuscados. De repente, uma multidão de luzes começou a correr dentro do palácio. Era um
baile de tochas que ia da cozinha ao sótão, filtrando-se pelas janelas abertas, subindo as
balaustradas superiores, correndo pelas goteiras, como se uma incrível nuvem de pirilampos
tivesse invadido os andares superiores. A pilhagem havia começado. Os pajens estugaram o
passo, sabendo que isso deteria por algum tempo os amotinados. Solimán travou o ferrolho do
fuzil, colocando a culatra em baixo do sovaco.
Os fugitivos chegaram às imediações da Cidadela La Ferrière quase ao raiar do dia. A
marcha era agora mais fatigante por causa das encostas mais empinadas e da quantidade de
canhões que jaziam no estreito caminho, sem terem chegado às suas carretas, e que ali
permaneceriam para sempre, até se desmancharem em ferrugem. No mar, já clareava o dia para
os lados da Ilha de Tortuga, quando as correntes da ponte levadiça correram com sinistro ruído
sobre as pedras. Lentamente foram abertos os batentes engastados da Porta Única. E o cadáver
de Henri Christophe entrou em seu Escurial, botas à frente, sempre envolto na rede transportada
pelos pajens negros. Subiram com ele, escadas acima, cada vez mais pesado, encharcado pelas
gotas frias que caíam das falsas abóbadas. O toque da alvorada rompeu ao amanhecer, sendo
respondido em todos os extremos da fortaleza. Completamente coberta de cogumelos
encarnados, ainda escura, a Cidadela emergia — cor de sangue nos altos e ferrugenta na base —
das nuvens cinzentas engrossadas pelos incêndios na Planície.
No meio do pátio das armas os fugitivos narravam sua grande desgraça ao governador da
fortaleza. Logo em seguida, a notícia baixou pelos respiradouros, pelos túneis e corredores, até as
câmaras e dependências da fortaleza. Soldados começaram a aparecer por todos os lados,
empurrados por novos uniformes que saíam das escadas, desertando as baterias, descendo das
torres de vigia, abandonando os postos. Uma gritaria de júbilo ecoou no pátio da torre principal:
os presos, liberados por seus guardas, saíam dos calabouços, subindo com alegria desafiadora até
o pátio onde se encontrava a família real. Cada vez mais acossados pela multidão, os pajens de
toucas desfeitas, a rainha descalça, as princesas timidamente defendidas das mãos insolentes por
Solimán, foram retrocedendo em direção a um montão de argamassa fresca destinada aos
trabalhos ainda não concluídos, no qual estavam cravadas várias pás recém-abandonadas pelos
pedreiros. Vendo que a situação se tornava difícil de controlar, o governador deu ordem que
evacuassem o pátio. Seu comando provocou uma gargalhada geral. Um preso, tão esfarrapado
que o sexo lhe aparecia por fora do calção, esticou o dedo em direção ao pescoço da rainha:
— Na terra dos brancos, quando morre um chefe, corta-se a cabeça da sua mulher.
O governador, compreendendo que o exemplo dado quase há trinta anos pelos idealistas da
Revolução Francesa ainda se achava presente à memória de seus homens, acreditou que tudo
estava perdido. Mas nesse exato momento, o rumor de que a companhia do corpo da guarda tinha
escapado, rápida e dissimuladamente, ladeiras abaixo, mudou subitamente o desenrolar dos
acontecimentos. Correndo, os homens atropelavam-se pelas escadas e pelos túneis, a fim de
chegarem primeiro à Grande Porta da Cidadela. Aos pulos, resvalando, caindo, rolando,
lançaram-se pelos estreitos caminhos da montanha, procurando atalhos para chegarem o quanto
antes a Sans-Souci. O exército de Henri Christophe dispersara-se numa avalancha. Pela primeira
vez a imensa construção ficou deserta, adquirindo, no vasto silêncio de seus salões, uma fúnebre
solenidade de sepultura real.
O governador entreabriu a rede para contemplar o rosto de Sua Majestade. Com uma
cutilada cortou um dedo mínimo do cadáver entregando-o à rainha, que o guardou no decote,
sentindo-o descer pelo ventre com gélidas contorções de verme. Depois, obedecendo a uma
ordem, os pajens colocaram o cadáver sobre o montão de argamassa, no qual este começou a
afundar lentamente, de costas, como se fosse puxado por mãos viscosas. O cadáver ficara um
pouco arqueado na subida, por ter sido colocado na rede ainda morno. Por isso, desapareceram
primeiro seu ventre e suas coxas. Os braços e as botas continuaram flutuando, indecisos, na
movediça mistura cinzenta. Em seguida, só ficou de fora o rosto, apoiado pelas saliências do
bicórneo, atravessado de orelha a orelha. Temendo que a argamassa endurecesse sem ter
absorvido completamente a cabeça, o governador apoiou a mão na testa do rei para afundá-la
mais rapidamente, num gesto de quem toma a temperatura a um doente. Por fim, a argamassa
cobriu os olhos de Henri Christophe, que prosseguia agora sua lenta viagem descendente, nas
entranhas de uma umidade que se fazia menos envolvente.
Por fim o cadáver se deteve, integrado na pedra que o aprisionava. Depois de ter escolhido
sua própria morte, Henri Christophe ignoraria a podridão de sua carne, confundido com a própria
massa da fortaleza, inscrito dentro de sua arquitetura, incorporado na maciça base dos
contrafortes. A montanha do Barrete do Bispo, toda ela, transformara-se no mausoléu do
primeiro rei do Haiti.
QUARTA PARTE
Medo dessas visões eu tive, mas depois
que vi estas outras mais medo lhes tenho.

CALDERÓN
NOITE DAS ESTÁTUAS

DEDILHANDO, com retinir de braceletes e miçangas, o teclado de um pianoforte recém-


adquirido, Mademoiselle Atenais acompanhava sua irmã Amatista, cuja voz um pouco áspera
enriquecia de lânguidos transportes uma ária do Tancredo, de Rossini. Usando um vestido
inteiriço, branco, a cabeça envolta num lenço amarrado conforme o costume no Haiti, a Rainha
Maria Luísa bordava um tapete para o convento de Pisa, aborrecida com um gato que brincava
com os novelos de linha. Desde os trágicos dias da execução do delfim Victor, desde a partida de
Port-au-Prince, providenciada por comerciantes ingleses, antigos fornecedores da Família Real,
as princesas conheciam pela primeira vez na Europa um verão de verdade. Roma vivia de portas
abertas sob um sol que rebrilhava em todos os mármores, dissipando o odor dos monges e
fazendo gritar seus pregões os vendedores de refresco. Os mil sinos da cidade repicavam com
langor fora do comum, sob um céu sem nuvens, que lembrava a Planície em janeiro. Enfim,
cobertas de suor, felizes, vibrando novamente ao calor, Atenais e Amatista, descalças no lajeado,
as saias soltas, passavam os dias jogando dados, preparando limonadas, remexendo a estante dos
romances em moda, cujas capas, em estilo novo, eram adornadas com gravuras em cobre que
mostravam cemitérios à meia-noite, lagos da Escócia, sílfides em volta de um jovem caçador e
donzelas que depositavam uma carta de amor dentro de uma cavidade oca de um velho carvalho.
Também Solimán se sentia feliz naquela Roma estival. Quando apareceu pelas ruelas
populares — úmidas de roupas estendidas, sujas de repolhos, de restos de comida e borra de café
— promovera verdadeiro alvoroço. Os lazzaroni mais cegos com o golpe abriram os olhos para
melhor verem o negro, deixando em suspenso os mandolins e os realejos. Outros mendigos
agitavam furiosamente seus cotos, mostrando todo um patrimônio de chagas e misérias, como se
o negro fosse algum embaixador de além-mar. Os garotos o seguiam agora por todos os lugares,
chamando-o de Rei Baltazar e formando bandinhas de flautas de taquara e berimbaus.
Ofereciam-lhe copos de vinho nas tabernas. À sua passagem, os comerciantes saíam de suas
lojas, oferecendo-lhe um tomate ou um punhado de nozes. Fazia muito tempo que um perfil de
homem, um negro verdadeiro, não se destacava sobre uma fachada de Flamínio Ponzio ou um
pórtico de Antonio Labacco. Por isso, pediam que lhes contasse sua história, história que
Solimán floreava com as maiores mentiras, fazendo-se passar por sobrinho de Henri Christophe,
que escapara milagrosamente à carnificina do Cabo, na noite em que o pelotão de execução teve
de liquidar a baioneta um dos filhos naturais do monarca, porque várias descargas de fuzil não
conseguiram derrubá-lo. Os simplórios que o escutavam não tinham uma ideia muito precisa do
lugar onde haviam ocorrido esses feitos. Alguns pensavam em Madagascar, na Pérsia ou na terra
dos bérberes. Quando suava, sempre havia alguém que quisesse passar-lhe um lenço no rosto
para ver se largava tinta. Uma tarde o levaram, por brincadeira, a um daqueles teatros pequenos e
fétidos onde se cantavam óperas bufas. Ao terminar a música, final de uma peça de italianos na
Argélia, empurraram Solimán para o palco. Sua entrada imprevista causou tal alvoroço na plateia
que o empresário da companhia o convidou a repetir a cena sempre que lhe desse vontade.
Agora, para cúmulo da boa sorte, era amante de uma das criadas que serviam no Palácio
Borguese, uma piamontesa reforçada que não gostava de homens de feições delicadas. Nos dias
muito quentes, Solimán costumava dormir longas sestas na relva do Fórum, onde sempre
pastavam rebanhos de ovelhas. As ruínas projetavam acolhedora sombra sobre o abundante
pasto, e não era raro, cavando a terra, encontrar uma orelha de mármore, um adorno de pedra ou
uma moeda oxidada. Aquele lugar era escolhido às vezes por uma prostituta da rua para exercer
seu ofício com algum seminarista. Mas era visitado principalmente por pessoas estudiosas —
clérigos de guarda-chuvas verdes, ingleses de mãos delicadas — que frequentemente ficavam
extasiadas ante uma coluna partida, tomando notas de claudicantes inscrições. À tardinha, o
negro entrava pela escada de serviço do Palácio Borguese e punha-se a beber garrafas de vinho
em companhia da piamontesa. De mais a mais, com os patrões ausentes, reinava a maior
desordem na mansão. As lanternas da entrada estavam manchadas pelas moscas, as librés todas
sujas, os cocheiros sempre bêbedos, a carruagem precisando de verniz, e sabia-se que eram
tantas as teias de aranha na biblioteca que ninguém se atrevia a entrar ali, há muitos anos, para
não sentir os abomináveis insetos correrem pela nuca ou ficarem presos no corpinho. Não fora
um jovem abade, sobrinho do príncipe, que morava num dos aposentos superiores, a criadagem
já estaria instalada nos aposentos do primeiro andar, dormindo nas antigas camas dos cardeais.
Uma noite em que Solimán e a piamontesa tinham ficado a sós na cozinha — pelo
adiantado da hora — o negro, bem bêbedo, quis aventurar-se além das dependências destinadas
aos empregados. Depois de seguirem por um longo corredor, saíram num imenso pátio de
mármore, azulado pela luz da Lua. Duas colunatas, sobrepostas, enquadravam o pátio,
projetando, à meia altura na parede, o contorno dos capiteis. Levantando e abaixando a lanterna
— dessas utilizadas para andar na rua à noite — a piamontesa foi revelando a Solimán um
mundo de estátuas que povoavam uma das galerias laterais. Eram todas estátuas de mulheres
nuas, embora quase sempre cobertas por véus que uma brisa imaginária colocava onde a
decência reclamasse. Havia também muitos animais, pois algumas dessas senhoras aninhavam
cisnes nos braços, ou enlaçavam o pescoço de um touro, ou saltavam ao lado de galgos esguios,
ou fugiam de homens com chifres na cabeça e patas de cabra, que deveriam ter algum parentesco
com o Diabo. Era um mundo todo branco, frio, imóvel, cujas sombras, porém, se animavam e
cresciam à luz da lanterna, como se todas aquelas criaturas, de olhos cheios de trevas, que
olhavam sem ver, girassem em torno dos visitantes da meia-noite. Com aquele dom que têm os
bêbados de ver coisas com o rabo dos olhos, Solimán acreditou que tivesse visto uma das
estátuas abaixar um pouco o braço. Um tanto inquieto, arrastou a piamontesa para uma escadaria
que conduzia aos andares superiores. Agora eram as pinturas que pareciam saltar da parede,
ganhando vida. De repente, parecia que um jovem sorridente alçava uma cortina; um
adolescente, coroado com um ramo de parreira, levava aos lábios um flautim silencioso, ou
selava a própria boca com o dedo indicador. Depois de atravessar uma galeria adornada de
espelhos sobre cujas molduras tinham pintado a óleo várias flores, a camareira, fazendo um gesto
maroto, abriu uma estreita porta de nogueira, abaixando a lanterna.
No fundo daquele pequeno gabinete havia somente uma estátua, de uma mulher
completamente despida, recostada ao leito, e que parecia oferecer uma maçã. Tentando
recuperar-se da embriaguez do vinho, Solimán aproximou-se da estátua com passos inseguros. A
surpresa dissipara um pouco os vapores do vinho. Ele conhecia aquele rosto; e também o corpo,
o corpo todo lhe recordava alguém. Apalpou o mármore ansiosamente, o olfato e a vista
auxiliando o fato, sentindo os seios. Passou a palma da mão em torno do ventre, detendo o dedo
mínimo no lugar do umbigo. Acariciou a suave reentrância dos rins como se fosse revirar a
estátua. Seus dedos buscaram a polpa das ancas, a maciez da barriga da perna, a firmeza dos
peitos. Aquele percorrer de mãos lhe refrescara a memória, trazendo imagens de lugares
distantes. Ele conhecera em outros tempos aquele contato. Com o mesmo movimento circular
tinha aliviado a dor desse tornozelo que uma torção imobilizara. A matéria era diferente, mas as
formas eram as mesmas. Recordava agora as noites de medo, na Ilha de Tortuga, quando um
general francês agonizava atrás de uma porta fechada. Recordava aquela que fazia cocar sua
cabeça para dormir. E, de repente, impulsionado por uma imperiosa recordação física, Solimán
começou a imitar os movimentos do massagista, apalpando ao longo dos músculos, das
saliências dos tendões, friccionando as costas de dentro para fora, tenteando os peitorais com o
polegar, percutindo aqui e ali. Mas, subitamente, a frialdade do mármore prendeu-lhe os pulsos
como tenazes mortais. Um grito o estrangulou, deixando-o imobilizado. O vinho lhe subiu à
cabeça. Aquela estátua, tingida de amarelo pela luz da lanterna, era o cadáver de Paulina
Bonaparte. Um cadáver enrijecido há pouco, que há pouco palpitava, cujos olhos há pouco
tinham vida, um cadáver que talvez ainda fosse possível restituir à vida. Com um urro terrível,
como se estivessem dilacerando seu peito, o negro começou a clamar, a invocar, a chamar aos
gritos na vastidão do Palácio Borguese. Seu aspecto tornara-se tão selvagem, e tanto bateu com o
taco das botas no chão, fazendo retumbar como um tambor a capela que ficava embaixo, que a
piamontesa, apavorada, fugiu escadas abaixo, deixando Solimán cara a cara com a Vênus de
Canova.
O pátio ficou cheio de candeias e lanternas. Acordados pela voz que ressoava tão
terrivelmente no segundo andar, os lacaios e os cocheiros saíam de seus quartos em mangas de
camisa, segurando as calças. A aldrava do portão ressoou com eco, dando passagem aos
gendarmes da ronda, que entraram em fila, seguidos de vários vizinhos alarmados. Ao ver os
espelhos cheios de luzes, o negro virou-se bruscamente. Aquelas luzes, aquelas pessoas
aglomeradas no pátio entre as brancas estátuas de mármore, a nítida silhueta dos bicórneos, os
uniformes refletindo os bordados, a fria curvatura de um sabre desembainhado, tudo isso lhe
recordou, com um calafrio, num segundo, a noite de morte de Henri Christophe. Solimán
desencaixou uma janela com uma cadeirada e pulou para a rua. Os primeiros toques das matinas
o encontraram tremendo de febre — pois tinha contraído o impaludismo dos Pântanos Pontinos
— invocando Papá Legba, para que abrisse seu caminho de volta a São Domingos. Sentia na
mão uma insuportável sensação de pesadelo. Parecia-lhe que tinha caído em transe sobre o gesso
de uma sepultura, como lá acontecia com certos inspirados, ao mesmo tempo temidos e
reverenciados pelos camponeses, porque se entendiam melhor do que ninguém com os Senhores
dos Cemitérios. De nada adiantou que a Rainha Maria Luísa tentasse acalmá-lo com um chá de
ervas amargas, daquelas que recebia do Cabo, via Londres, por especial favor do Presidente
Boyer. Solimán sentia frio. Uma neblina inesperada umedecia os mármores de Roma. O verão
esmorecia a cada hora que passava. Procurando aliviar o criado, as princesas mandaram buscar o
Dr. Antommarchi, que tinha sido médico de Napoleão em Santa Helena, a quem alguns
atribuíam grandes méritos profissionais, sobretudo como homeopata. As pílulas receitadas,
porém, não saíram da caixa. Virado de costas para todos, choramingando contra a parede de
papel verde pintado de flores, Solimán tentava alcançar um deus que se encontrava no distante
Dahomey, nalguma umbrosa encruzilhada, com o pênis encarnado descansando sobre uma
muleta, que para isso levava consigo:

Papa Legba, l’ouvri barrié-a pou moin, agó yé,


Papa Legha, ouvri barrié-a pou moin, pou moin, passé.
A CASA REAL

TI NOEL fora um dos que tinham iniciado o saque ao palácio de Sans-Souci. Por isso mobiliara
de tão estranha maneira a antiga vivenda de Lenormand de Mezy. Esta, continuava sem um
telhado possível pela falta de dois pontos de apoio onde assentar uma viga ou uma travessa
comprida. O facão do velho, porém, liberava outras pedras sem par, fazendo aparecer pedaços
dos alicerces, um peitoril de janela, três degraus, um pedaço de parede que ainda mostrava presa
ao tijolo a parte superior da cornija do antigo refeitório em estilo normando. Na noite em que a
Planície fervilhara de homens, mulheres e crianças que levavam à cabeça relógios de pêndulo,
cadeiras, dosséis, girândolas, genuflexórios, lâmpadas e bacias, Ti Noel tinha regressado várias
vezes a Sans-Souci. Assim possuía uma mesa de Boulle em frente à chaminé coberta de palha
que lhe servia de alcova, indevassável agora, protegida por um biombo de Coromandel decorado
com personagens já desbotados sobre um fundo de ouro velho. Um peixe-lua embalsamado,
presente da Real Sociedade Científica de Londres ao Príncipe Victor, jazia sobre as últimas lajes
do chão — quebradas pelas raízes e pelas ervas — ao lado de uma caixinha de música e de um
garrafão, cujo grosso vidro verde aprisionava borbulhas das cores do arco-íris. Também levara
consigo uma boneca vestida de pastora, uma poltrona com sua almofada atapetada e três volumes
da Grande Enciclopédia, sobre os quais costumava sentar-se para chupar cana-de-açúcar.
Porém o que fazia o velho mais feliz era a posse de uma casaca de Christophe, de seda
verde, com punhos rendados de cor salmão, que exibia a toda hora, realçando seu régio aspecto
com um chapéu de palha trançada, achatado e dobrado em forma de bicórneo, no qual colocava
uma flor encarnada à guisa de insígnia. Podia-se vê-lo, às tardes, entre seus móveis plantados ao
ar livre, brincando com uma boneca que abria e fechava os olhos, ou dando corda na sua
caixinha de música, que repetia de sol a sol o mesmo ländler alemão. Ti Noel agora falava
constantemente. Falava no meio dos caminhos, abrindo os braços; falava com as lavadeiras,
ajoelhadas, de seios nus, nos arroios arenosos; falava com as crianças que brincavam de roda.
Mas, sobretudo, falava quando sentava atrás de sua mesa, empunhando um galho de goiabeira, à
guisa de cetro. À sua mente retornavam confusas reminiscências das coisas contadas pelo maneta
Mackandal, há tantos anos, que já não sabia dizer quando havia sido. Naqueles dias começava a
ter a certeza de que tinha uma missão a cumprir, embora nenhuma advertência, nenhum sinal,
tivesse lhe revelado a natureza dessa missão. Em todo o caso seria algo de grande, algo digno
dos direitos adquiridos por quem vivera tantos anos neste mundo e que fizera nascer, deste e do
outro lado do mar, tantos filhos sem memória, preocupados tão-somente com seus próprios
filhos. E era evidente, ademais, que ia se viver grandes momentos. Logo que Ti Noel aparecia
pelos caminhos, as mulheres agitavam seus lenços claros, em sinal de reverência, como as
palmas que num domingo festejaram Jesus. Quando passava em frente a uma choupana, as
velhas o convidavam a sentar, trazendo-lhe um pouco de rum bem clarinho numa xícara, ou um
charuto recém-enrolado. Levaram Ti Noel a uma batucada, e lá baixara nele o rei da Angola, que
pronunciou longo discurso cheio de profecias e promessas. Em seguida, nasceram rebanhos em
suas terras. Porque aquelas reses que pastavam entre suas ruínas eram, sem dúvida, presentes de
seus súditos. Instalado em sua poltrona, a casaca entreaberta, bem assentado o chapéu de palha e
cocando lentamente a barriga, Ti Noel ditava ordens ao vento. Mas, eram editais de um governo
tranquilo, já que nenhuma tirania de Brancos ou de Negros parecia ameaçar sua liberdade. O
velho ia colocando coisas lindas nos espaços existentes entre os restos de paredes, nomeando
qualquer transeunte ministro, qualquer cortador de pasto general, outorgando baronatos,
presenteando grinaldas, abençoando meninas, impondo flores por serviços prestados. Assim
nasceram a Ordem da Acácia, a Ordem do Cipó do Natal, a Ordem do Mar Pacífico, a Ordem do
Galã da Noite. Porém aquela que todos pediam era a Ordem do Girassol, a mais vistosa. E como
o meio lajeado que lhe servia de Sala de Audiências era muito apropriado para dançar, seu
palácio costumava ficar repleto de camponeses que traziam suas flautas de bambu, seus chachás
e seus tambores. Encaixavam os archotes de lenha nas forquilhas, e Ti Noel, mais orgulhoso que
nunca na sua casaca verde, presidia a festa, sentado entre um Padre da Savana, representando a
igreja dos homens livres, e um velho veterano, daqueles que tinham derrotado Rochambeau em
Vertières e que conservava seu uniforme de campanha para as grandes solenidades, com seus
azuis desbotados e seus vermelhos já da cor de morango, por causa das chuvaradas que entravam
em sua casa.
OS AGRIMENSORES

CERTA MANHÃ, porem, apareceram os agrimensores. É necessário ter visto os agrimensores em


plena atividade para compreender melhor o espanto que pode causar a presença desses seres que
parecem insetos trabalhando. Os agrimensores que tinham descido na Planície, vindos da
longínqua Port-au-Prince, além das serras cobertas de nuvens, eram homens calados, de pele
muito clara, vestidos — era preciso reconhecer — de maneira bastante comum, e que
desenrolavam longas fitas sobre o solo, fincavam estacas, carregavam chumbadas, olhavam
através de certos tubos e por qualquer motivo se eriçavam de réguas e esquadros. Quando Ti
Noel percebeu que esses personagens iam e vinham através de seus domínios, falou-lhes com
energia. Mas os agrimensores não lhe fizeram caso. Andavam de cá para lá, insolentemente,
medindo tudo e anotando coisas em seus livros cinzentos com grossos lápis de carpinteiro. O
velho verificou com terror que falavam o idioma dos franceses, aquela língua já esquecida por
ele desde os tempos em que Lenormand de Mezy apostara sua posse num jogo de cartas em
Santiago de Cuba. Tratando-os de filhos de uma cadela, Ti Noel os intimou a retirarem-se,
gritando de tal maneira que um dos agrimensores terminou por agarrá-lo pelo cangote, tirando-o
do campo de visão de sua objetiva com um forte reguaço na barriga. O velho escondeu-se dentro
da sua chaminé, só botando a cabeça por trás do biombo de Coromandel para ladrar palavrões.
No dia seguinte, porém, andando pela Planície em busca de alguma coisa para comer, observou
que os agrimensores estavam em toda parte e que uns mulatos a cavalo, usando camisas de
colarinho aberto, cintos de seda e botas militares, dirigiam a demarcação e os trabalhos de
imensas lavouras, executados por centenas de negros sob guarda constante. Muitos camponeses,
montados em seus burricos, carregando galinhas e porcos, abandonavam suas choupanas, entre
os gritos e as lágrimas das mulheres, para refugiarem-se nas montanhas. Ti Noel soube por um
fugitivo que as tarefas agrícolas eram agora obrigatórias e que o chicote estava na mão dos
Mulatos Republicanos, os novos donos da Planície do Norte.
Mackandal não previra o trabalho obrigatório. Tampouco Bouckman, o jamaicano. Isso de
mulatos era novidade que não poderia ter imaginado nem José Antônio Aponte, decapitado pelo
Marquês de Someruelos, cuja rebelião era história conhecida por Ti Noel desde seus dias de
escravidão em Cuba. Seguramente que nem Henri Christophe teria suspeitado que as terras de
São Domingos iriam patrocinar essa aristocracia perplexa e cheia de dúvidas, essa casta de
mestiços, que agora se apoderava das antigas fazendas, dos privilégios e da autoridade. O velho
levantou os olhos velados em direção à Cidadela de La Ferrière, mas sua vista já não alcançava
tão longe. A palavra de Henri Christophe se transformara em pedra e já não morava entre nós.
De sua pessoa prodigiosa só restava, em Roma, um dedo que flutuava num frasco de cristal de
rocha cheio de água vulnerária. E para melhor seguir aquele exemplo, a Rainha Maria Luísa,
depois de levar suas filhas às águas de Carlsbad, dispusera em testamento que seu pé direito
fosse conservado em álcool pelos capuchinhos de Pisa, em uma capela que fora construída
graças à sua munificência. Por mais que pensasse, Ti Noel não via uma maneira de ajudar seus
súditos, novamente de cabeça baixa sob o chicote de alguém. O velho começava a desesperar
ante esse infindável renovar de cadeias, esse renascer de grilhões, essa proliferação de misérias,
que os mais resignados terminavam por aceitar como prova da inutilidade de qualquer rebeldia.
Ti Noel temia que também a ele fizessem trabalhar na lavoura apesar de sua idade. E a
lembrança de Mackandal voltou a impor-se à sua memória. Já que a pele do homem, costumava
trazer tanta calamidade, mais valia livrar-se dela por algum tempo, acompanhando os
acontecimentos na Planície sob uma aparência que chamasse menos a atenção. Tomada essa
decisão, Ti Noel surpreendeu-se da facilidade em transformar-se em animal quando se tinha
poderes para isso. Como prova, trepou numa árvore — quis ser uma ave — e num instante foi
ave. Olhou para os agrimensores do alto de um galho, bicando a polpa violácea de um caimito.
No dia seguinte quis ser garanhão e foi garanhão. Teve, porém, de fugir apressadamente de um
mulato que queria pegá-lo a laço para castrá-lo com uma faca de cozinha. Como abelha, logo se
cansou da monótona geometria da colmeia de cera. Transformado em formiga — má ideia sua —
foi obrigado a carregar pesadas cargas, por intermináveis caminhos, sob a vigilância de uns
cabeçudos que muito lhe recordavam os feitores de Lenormand de Mezy, os guardas de
Christophe e os mulatos de agora. Às vezes, os cascos de um cavalo destroçavam uma coluna de
trabalhadores matando centenas de formigas. Terminado o incidente, os cabeçudos voltavam a
colocar em ordem a fileira, o caminho era restabelecido, e tudo prosseguia como antes, no mais
penoso vaivém. Como Ti Noel era um disfarçado, que de modo algum se considerava solidário à
Espécie, refugiou-se, sozinho, embaixo de sua mesa, que foi, àquela noite, seu abrigo contra uma
chuvinha persistente que espalhou pelos campos um palhento aroma de esparto molhado.
AGNUS DEI

O DIA SERIA quente, com nuvens baixas. Mal começava a evaporar-se o orvalho da noite nas
teias de aranha, quando um grande alvoroço baixou dos céus sobre as terras de Ti Noel.
Correndo e tropeçando ao caírem, chegavam os gansos da antiga criação da Sans-Souci — salvos
da pilhagem porque os negros não gostavam de sua carne — e que tinham vivido à vontade,
durante todo esse tempo, nos vales da montanha. O velho os acolheu com grandes demonstrações
de afeto, feliz com a visita, pois conhecia como poucos a inteligência e a alegria dos gansos, já
que observara a vida exemplar dessas aves quando Monsieur Lenormand de Mezy tentara,
antigamente, uma aclimatação ingrata. Como não eram criaturas afeitas ao calor, as fêmeas
punham somente cinco ovos cada dois anos. Essa postura, porém, dava motivo a uma série de
ritos cujo cerimonial era transmitido de geração em geração. Os preâmbulos nupciais realizavam-
se nas margens pouco profundas e em presença de todo o clã de gansas e gansos. Um jovem
macho unia-se à sua companheira para toda a vida, cobrindo-a sob um coro de grasnidos de
júbilo, acompanhado por uma coreografia giratória em torno da fêmea, patadas e complicados
arabescos com o pescoço. Em seguida, todo o clã procedia à acomodação do ninho. Durante a
incubação, a desposada era protegida pelos machos, alerta durante a noite, embora colocassem o
olho redondo embaixo das asas. Quando um perigo ameaçava os desajeitados filhotes, cobertos
de pelugem cor de canário, o ganso mais velho dirigia as cargas de peito e bico, que não
vacilavam ante um mastim, um cavaleiro ou uma carroça. Os gansos eram gente de ordem, de
princípios e bem organizados, e não admitiam a submissão a indivíduos da mesma espécie. O
princípio de autoridade personificado pelo Ganso Chefe era apenas o necessário para manter o
clã em ordem, à maneira do rei ou do capataz das antigas assembleias africanas. Cansado já de
licantropias azaradas, Ti Noel fez uso de seus poderes extraordinários a fim de se transformar em
ganso e conviver com as aves que tinham-se estabelecido em seus domínios.
Mas quando quis ocupar um lugar no clã, viu-se hostilizado, ao lado do potreiro, por longos
pescoços armados de bicos bordados de dentes, que o mantinham à distância, erguendo-se uma
muralha de plumas brancas em torno das fêmeas indiferentes. Ti Noel tratou então de ser
discreto, de não impor demasiadamente sua presença e de aprovar o que os outros diziam. Só
encontrou desprezo e encolher de asas. De nada adiantou que revelasse às fêmeas o esconderijo
de certos agriões de raízes muito tenras. Os rabos cinzentos agitavam-se com desgosto, e os
olhos amarelos miravam com altiva desconfiança — o que era reiterado pelo olho que ficava do
outro lado da cabeça. O clã manifestava-se agora como uma comunidade aristocrática fechada a
qualquer indivíduo de outra casta. O Ganso Chefe de Sans-Souci não queria o menor contato
com o Ganso Chefe de Dondón. Se acaso se encontrassem frente à frente, teria rebentado uma
guerra. Ti Noel compreendeu então que embora insistisse durante anos, jamais teria acesso às
funções e ritos do clã. Deram a entender claramente a Ti Noel que não lhe bastava ser ganso para
que acreditasse que todos os gansos fossem iguais. Nenhum ganso conhecido havia cantado no
bailado do dia de suas núpcias. Ninguém entre os vivos o tinha visto nascer. Ti Noel
apresentava-se ante quatro gloriosas gerações sem o menor documento de limpeza de seu sangue.
Em suma, era um pária.
Ti Noel compreendeu vagamente que aquele repúdio dos gansos era um castigo por sua
covardia. Mackandal disfarçara-se de animal, durante anos, para servir aos homens, e não para
abandoná-los. Naquele momento, de volta à sua condição humana, o velho teve um supremo
instante de lucidez. Viveu, no espaço de tempo de uma batida de coração, os momentos capitais
de sua vida. Via de novo os heróis que lhe tinham revelado a força e a prosperidade de seus
longínquos antepassados africanos, fazendo-o acreditar num futuro melhor. Sentiu-se velho,
velho de séculos incontáveis. Um cansaço cósmico, de planeta que o tempo fizera deserto de
pedras, caía sobre seus ombros descarnados por tantos golpes, suores e revoltas. Ti Noel gastara
sua herança, e apesar de ter chegado à extrema miséria, deixava a mesma herança recebida. Era
um corpo de carne já vivida. E compreendia, agora, que o homem nunca sabe por quem sofre e
espera. Sofre, espera e trabalha para pessoas que nunca conhecerá e que, por sua vez, sofrerão e
esperarão e trabalharão por outros que também não serão felizes, pois o homem deseja sempre
uma felicidade muito além da porção que lhe foi outorgada. Mas a grandeza do homem consiste
precisamente em querer melhorar a si mesmo, a impor-se Tarefas. No Reino dos Céus não há
grandeza a conquistar, pois lá toda a hierarquia já está estabelecida, a incógnita solucionada, o
viver sem fim, a impossibilidade do sacrifico, do repouso, do deleite. Por isso, esmagado pelos
sofrimentos e pelas Tarefas, belo na sua miséria, capaz de amar em meio às calamidades, o
homem poderá encontrar sua grandeza, sua máxima medida, no Reino deste Mundo.
Ti Noel subiu sobre sua mesa, castigando o móvel com seus pés calejados. Para os lados da
Cidade do Cabo o céu estava negro, de um negror de fumaça de incêndio, como naquela noite
em que tinham cantado todos os búzios da montanha e da costa. O velho lançou seu grito de
guerra aos novos senhores, dando ordem a seus súditos que atacassem as obras insolentes dos
mulatos investidos no poder. E naquele instante um poderoso vento verde, vindo do oceano, caiu
sobre a Planície do Norte, enfiando-se pelo vale de Dondón, rugindo furiosamente. E enquanto
no alto do Barrete do Bispo bramiam os touros degolados, a poltrona, o biombo, os volumes da
Grande Enciclopédia, a caixinha de música, a boneca e o peixe-lua voaram pelos ares de um só
golpe, do desmoronamento das últimas ruínas da antiga fazenda. Todas as árvores reclinaram as
copas na direção do Sul, desgarrando suas raízes da terra. Durante toda a noite, o mar,
transformado em chuva, deixou rastros de sal nos flancos das montanhas.
E desde então ninguém mais soube de Ti Noel e nem de sua casaca de seda verde, com
punhos rendados, cor de salmão salvo talvez aquele abutre molhado que esperava o Sol com as
asas abertas: cruz de penas que terminou por encolher-se e mergulhar nas profundezas do Bois
Caïman.

Caracas, 16 de março de 1948


Digitalizado por
Renato Sant’Ana
em dezembro de 2007.

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