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(1964)
Luís Bernardo Honwana
I – Sobre o Autor
Em 1942, nasce Luís Bernardo Honwana na cidade de Lourenço Marques, atual Maputo, capital de
Moçambique.
Durante a Guerra de Independência, o escritor filia-se à FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e é
preso em 1964, ficando encarcerado por três anos. Em 1970, vai para Portugal fazer faculdade de Direito.
Após a independência, Honwana ocupa cargos de confiança do primeiro presidente de Moçambique, Samora
Machel, da FRELIMO. Chega a ser Ministro da Cultura de Moçambique e, em 1987, passa a ser membro da
Unesco.
II – Sobre a Obra
O livro Nós matamos o Cão Tinhoso! foi publicado em 1964, em uma edição do próprio autor, sendo sua primeira obra, no ano em
que foi preso. Em 1969, ainda em plena guerra pela libertação de Moçambique, esse livro será publicado em língua inglesa, dando ao escritor
reconhecimento internacional.
A obra em estudo, que é uma coletânea de contos, foi classificada entre os “Cem melhores livros africanos do século XX”, em 2002.
Em meio à guerra de independência, Honwana publica esse livro, sendo muito criticado por aqueles que simpatizavam com o regime
salazarista.
Seu livro, em 1964, reacende a produção literária moçambicana, que se encontrava inerte desde os anos 50. Sua literatura é
considerada como uma forma de protesto contra o jugo colonial português.
IV – Resumo
1 – Nós matamos o cão tinhoso!
O foco narrativo é de1ª pessoa, marcado pela figura de uma criança negra de nome Ginho, embora sua nomeação só apareça em
meados do conto.
2
“A Senhora Professora perguntou se os nossos pais não nos davam educação lá em casa e nós nunca mais falamos sobre o
Cão Tinhoso, mesmo quando estávamos no Sá”.
Depois de atirar no cão, Ginho vê Isaura aparecendo e agarrando o cão, gemendo. Quim dá a ordem para Ginho tirar a menina porque
eles precisam terminar o serviço. Ele tenta dizer-lhe que foi ordem do Senhor Duarte e a tira do local, afastando-a do cão. Enquanto os meninos
apontam para o cão contando até três, Ginho tenta convencer Isaura que a morte para o Cão Tinhoso seria o melhor remédio, já que era
desprezado, excluído. Para Ginho, como o cão pedia alguma coisa sem querer dizer, essa alguma coisa poderia ser o fim dessa existência doída,
sofrida.
Foram tantos os tiros que Ginho, abraçando Isaura, pediu para ela tapar-lhe seus ouvidos.
Os meninos começam a se gabar dos tiros dados, banalizando seus atos, como se fossem corriqueiros.
Isaura se desvencilha de Ginho e ocorre para as árvores.
No próximo momento da narrativa, os meninos se encontram no recreio escolar e Quim conversa com Ginho persuadindo-o para que
passe as respostas da prova, com que Ginho concorda. E tudo volta à normalidade.
Conclusão:
1. Note que o cão é qualificado pelo adjetivo “tinhoso”.
Tinhoso significa teimoso, persistente, ou então nojento, repelente, asqueroso. No caso em questão, o cão, que é a grande alegoria
do conto, é teimoso por tentar sobreviver em meio a tantas adversidades da vida. São tantos os problemas, obstáculos ou inimigos em
sua volta que só a persistência faz com que ele não desista da vida.
O cão também é pestilento, sarnento, está todo machucado, fedido, sendo desprezado por quase todos. Podemos afirmar, portanto,
que os dois significados cabem bem ao personagem.
Além deles, não se esqueça que a identidade denominada diabo, também é conhecida por cão ou por tinhoso. Isso nos leva a
crer que o cachorro é tão desprezível pelas pessoas como o próprio diabo.
Em suma, ele poderia representar os seres marginalizados que compõem uma sociedade marcada por desigualdades. Ele pode
metaforizar o negro, o colonizado, o pobre, o mendigo, entre outros.
2. O cão poderia representar a fatia oprimida em meio à Guerra de Independência de Moçambique em seu início, guerra essa que ainda
não está em vias de acabar com a libertação do povo moçambicano.
Sendo assim, o cão é o moçambicano que fora colonizado por séculos, maltratado, sem acesso a uma educação de qualidade, ou
mesmo a um programa de prevenção ou de tratamento de doenças, um moçambicano carente, sofrido, visto de maneira inferiorizada,
oprimido pelo colonizador branco, passando por problemas de racismo e subjugação.
O fato de o cão ter olhos azuis, embora opacos, sem vida, talvez metaforize o processo compulsório de aculturação a que os
moçambicanos foram submetidos por séculos. Segundo Santos, esses olhos podem representar a “... aceitação da ideologia da classe
dirigente, que explora e recusa tudo o que é relacionado ao colonizado, indivíduo que há décadas confronta-se com uma imagem
negativa de si mesmo”
3. No conto, temos a dicotomia mundo adulto versus mundo infantil. No mundo adulto, os personagens não são nomeados e vão
representar os aparelhos ideológicos que dominam o universo colonial. Por exemplo:
Senhora Professora → representa o campo da intelectualidade, agindo de maneira autoritária, tratando Isaura
desrespeitosamente, uma vez que não se preocupa com a sua inclusão no meio escolar, sendo conivente ao “ bullying”
sofrido por ela. Essa personagem é a representação do signo do poder, punindo as crianças com castigos físicos e
humilhações.
Senhor Administrador → representa o Governo, que deveria se preocupar com o bem-estar dos cidadãos, porém seu maior
intuito é acumular riquezas e essa é a razão de se envolver em jogatinas.
Doutor Veterinário ou Senhor Duarte → este personagem é nomeado e reproduz o discurso das classes dominantes, uma
vez que seduz as crianças a matarem o Cão Tinhoso utilizando-se de um discurso manipulador.
Esses três adultos, em vez de se preocuparem com as crianças, são exemplos de pessoas opressoras, tiranizando-as com
“reguadas no rabo”, como a professora, ou induzindo-as a cometerem um assassinato, como os outros dois.
Note que são três personagens letrados, que tiveram acesso ao saber.
4. Quando havia jogo de futebol, Ginho sempre ia ao clube, mesmo sabendo que os meninos não iriam permitir que jogasse e, de maneira
passiva, ficava na varanda aguardando o jogo acabar, ao lado do Cão Tinhoso. Note o ponto comum entre eles: são excluídos. Uma
prova disso é a cusparada do Senhor administrador que cai entre Ginho e o cão. Ele conclui: “Está-se mesmo a ver que o cuspe tanto
era para mim como para o Cão Tinhoso”.
5. Quando os meninos decidem matar o Cão Tinhoso, vão até o galinheiro para se certificarem de que o cão estaria ali. Nesse momento,
o Cão Tinhoso se encosta em Ginho e se senta, lambendo os seus sapatos. Faruk acha nojento o fato de o cão se encostar em Ginho
e Quim, justificando, fala: “Deixa lá, é preto e basta, deixa lá...”.
Note o racismo: o preto é sujo; portanto, é natural deixar o cão se encostar nele.
6. Veja os nomes dos meninos: Telmo, Isaura, Ginho, Quim, Gulamo, Faruk, Narotamo. Esses nomes são de procedência variada
(mestiços, asiático, europeu, indiano, africano). Ginho era tratado como “preto de merda”.
7. Segundo Gonçalves, o conto pode sugerir duas leituras para a figura alegórica do Cão Tinhoso, a saber:
1ª leitura: O Cão é o sistema colonial, é o colonialismo português marcado pelos olhos azuis, mas já ruindo, já carcomido e prestes a
morrer. Para essa leitura, os meninos representariam a força moçambicana contra séculos de dominação, dominação essa já fadada
ao insucesso. Para Gonçalves, “... as crianças são as responsáveis pela condução da liberdade de Moçambique, já que se tornam
participantes fulcrais no estabelecimento de uma nova ordem política”.
2ª leitura: O Cão é o moçambicano, o africano colonizado, escorraçado, incompreendido e injustiçado. O Cão é “... a condição do
sujeito colonizado perante a situação da discriminação sofrida em decorrência da situação colonial”.
3
O Cão é um ser gangrenado, sem brilho nos olhos, sofrendo calado. Ele, ferido e fedido, representa as chagas criadas ao povo
moçambicano, em razão do sistema autoritário e desumano do colonialismo português. Na época no ultracolonialismo na África,
Portugal representou uma máquina de guerra agindo com repressão e violência.
8. O Cão Tinhoso expõe suas chagas, suas pústulas, metaforizando as feridas do sistema colonial. É Moçambique ferida, com a carne
putrefata, sofrendo humilhações e desprezo. Ele é o signo do sujo e do impuro, contrário ao que era dado como certo pelo colonizador,
ou seja, o limpo, o asseado e branco.
9. Isaura tinha dificuldades no aprendizado, não tinha facilidade na socialização e era desprezada pelas outras meninas da escola. No
entanto, a sua sensibilidade era tão aguçada que fez com que se aproximasse do Cão Tinhoso, tendo atitudes marcadas por altruísmo
e benevolência.
Isaura exercita o estado de alteridade ao se condoer pelo cão. Note que ela é tão excluída como ele, humilhada e ridicularizada,
também.
10. A qualificação do Cão talvez justifique a sua força, a sua vontade de resistir diante de tantas adversidades. Tinhoso é aquele que não
desiste facilmente, mesmo depois de tanta violência. Esse é o exemplo de Moçambique sofrida, desprezada pela cultura branca,
condenada a uma subjugação atroz.
11. A violência praticada pelos meninos, no conto, pode ser entendida como um modelo a ser assimilado pelos moçambicanos depois de
séculos de dominação calcada na violência.
12. O racismo, denunciado no conto, provém de relações sociais marcadas por uma pseudosuperioridade racial por parte dos
colonizadores, impondo a sua supremacia sobre os negros colonizados.
13. Isaura fica, durante todo o conto, ao lado do cão. Os dois se abraçam na mesma dor. Já, o Ginho fica no intermédio; ele é o “entre”.
Ginho oscila entre defender o cão ou matá-lo; entre participar da malta ou optar pela exclusão, já que moralmente seria mais viável;
entre cometer a contravenção de passar as respostas da prova para o Quim ou se arriscar a ser desprezado pelos meninos. No final,
temos o Ginho narrando o episódio do assassinato do Cão Tinhoso, como sendo uma confissão da sua covardia. Não podemos nos
esquecer que ele era negro, mais inteligente que Quim, que deveria ser branco em razão de seus dizeres racistas, mas tentando não
desabar para o escanteio social.
14. Isaura diz ao Ginho que todos são maus com o Cão Tinhoso. Essa crueldade não é dirigida apenas ao cão, senão a ela, aos mais
fracos, debilitados. Segundo Daie, todos são maus “... da mesma maneira que os colonos portugueses são com os colonizados. É a
opressão realizada por aqueles que são, eles mesmos, oprimidos”, ou seja, em alguma circunstância, o oprimido se torna opressor
diante de um mais fragilizado.
Ginho fica entre os opressores (o administrador, o veterinário, a professora, os amigos) e oprimidos (Isaura e o Cão Tinhoso). No
final, sendo chamado de medroso e correndo o risco de ser excluído do grupo, Ginho decide pela sua sobrevivência e atira no animal,
tornando-se um opressor. Segundo Facco, “essa atrocidade é vivida pelos moçambicanos, que assistem ou são obrigados a fazerem
parte da opressão dos seus irmãos. Os detalhes descritos nos remetem à angústia de cada colonizado que traz no corpo as marcas
do sofrimento tipificada pelo Cão Tinhoso: ‘pele velha, cheia de pelos brancos, cicatrizes e muitas feridas. Ninguém gostava dele,
porque era um cão feio’.”
15. O final do conto é marcado pela violência. A dedicação de Isaura ao cão, ou mesmo a frustrada tentativa de Ginho em poupar o cão
do assassinato foram em vão. O fuzilamento se dá e, nos dias posteriores, tudo segue a sua rotina, com a violência banalizada. Quim
continua manipulando Ginho por meio de um discurso persuasivo para tirar proveito próprio das suas “colas”.
Talvez Ginho não seja mais o mesmo depois da morte do cão, pois ele vai fazer uma confissão da sua cumplicidade no crime,
narrando esse episódio que, talvez, o esteja atormentando. Segundo Facco, “... o conto assume pleno caráter confessional. Não só
porque se confessa um crime, mas também porque se fala em clima interiorizado, uma espécie de desabafo de um ato insano e injusto
cometido. Continuar guardando para si, a brutalidade cometida o sufocaria ainda mais. Por isso, ele pede emprestados os ouvidos do
leitor e procura retirar da sua memória todos os detalhes possíveis para que nada fique encoberto”.
16. Não esqueça de que Honwana publicou esse conto em 1964, no início da Guerra pela Independência e, portanto, o cenário ainda era
incerto e sombrio, sem nenhuma certeza de vitória. Talvez esse ambiente de medos e incertezas possa ser metaforizado na figura de
Ginho, um menino negro desprezado por outros, embora fosse mais capacitado, como nos estudos, e mais humano.
No conto, temos personagens que têm certeza da necessidade de extermínio do cão; temos Isaura, que o defende fielmente e
temos Ginho, novamente, no intermédio. Segundo Moraes, Ginho pode ser exemplo do “... conflito entre o desejo pela liberdade e o
receio de não saber o que está reservado para a nação caso ela se torne livre. O que vejo é uma situação de séculos de dominação
portuguesa, em que o discurso transforma o colonizador em ‘salvação da colônia’, impondo uma ideia de respeito, subserviência e
incerteza que impede os indivíduos pós-coloniais de acreditar que possam andar com suas próprias pernas depois de tanto tempo ‘sob
proteção e cuidado’ de Portugal”.
Ginho encontra-se em uma encruzilhada: pertencer ao grupo, matando o cão e provando que é homem ou protegendo o animal e
romper com a relação social tóxica que tinha com o grupo. Segundo Moraes, “... a hesitação presente na fala de Ginho demonstra o
conflito vivido pelo indivíduo pós-colonial, dividido entre o desejo de ser independente e tomar conta da sua própria narrativa e os anos
de servilidade ao colonizador”.
4
Os componentes da família são: o pai, a mãe, Tina, Gita, Lolota, Nelita, Nandito, Joãozinho, Carlinha e o narrador, que desconhecemos
seu nome. Joãozinho e Carlinha são os menores, dividindo o berço.
Em razão da discrição do narrador, o leitor tem poucos detalhes desse quadro familiar. É sabido que o pai fora presidiário e, em razão
disso, por um período, a família deve ter passado por apuros, pois uma das irmãs usou cortinas para fazer uma saia para usar.
A casa é composta de duas salas, uma de jantar e outra de visitas, dois quartos e um banheiro. A cozinha é fora da casa, em uma
palhoça. A mesa de jantar possui sete cadeiras, uma diferente da outra. Com isso, podemos concluir que foram compradas aos poucos, de
acordo com a necessidade diante do crescimento da família, ou aceitas como doação. Mesmo assim, essas cadeiras são poucas para a
quantidade de filhos.
O pai do narrador encontra-se acamado em razão de alguma doença.
O leitor percebe que o narrador está descrevendo a sua casa deitado na sua cama, à noite, porque as janelas e as portas estão todas
fechadas (o pai não gostava de dormir com elas abertas); ele usa os pronomes demonstrativos “neste”, “desta” quando se trata do quarto e da
cama e o conto termina com o seguinte período: “É por isso que não tenho assim tanta vontade de sair da cama...”
Conclusão:
1. Esse é o conto da estagnação, da imobilização. Os móveis são imóveis e as pessoas também o são. Não há ação no conto e parece
estar o narrador deitado, sem ter o que fazer e, diante dessa apatia, vão discorrendo em sua memória detalhes dos móveis que
compõem a casa, como a família se dispõe nela e sua arquitetura.
2. O conto é extremamente descritivo, sem nenhum tipo de ação. O único momento que mostra um pouco de atitude é quando ele julga
que uma das irmãs, que comia sentada no chão, enjoada, ou seja, cansada da modorra cotidiana, escreve no armário o nome “Elvis”.
Ele acha “...que devia ter sido assim, porque a inscrição está num ponto tal do armário que forçosamente foi feita por alguém sentado
no nível do chão”.
Note que essa criança, apesar de mostrar atitude ao se manifestar pela escrita, não se levanta do chão e, comodamente, rabisca o
móvel na altura possível.
3. As crianças dormem em colchões de palha e o único colchão de paina é o de casal, dos pais. As crianças disputam esse espaço entre
si, parecendo ser o único lazer delas: deitarem-se.
4. Na casa, temos a presença de livros e de revistas. As revistas estão espalhadas pelos móveis da sala e os livros ficam em caixotes
embaixo da cama ou em prateleiras no corredor cobertas com uma cortina. Note que o saber está guardado, escondido e sem
manuseio.
“ Na mesa do centro está o ‘Reader’s’ mas talvez nem lhe tocasse porque parece que não é grande coisa”. Ele talvez nem colocasse
a mão na revista; parece que não é grande coisa. Ele não tem certeza de nada porque não experimenta a leitura. Passivamente, deixa
de fazer algo para o seu próprio crescimento intelectual em razão da sua apatia.
5. Essa família vive de maneira acomodada, aceitando o que lhe é imposto, sem atitude alguma para mudar a rotina, ou mesmo a situação
precária em que se encontra.
Poderíamos comparar essa família com Moçambique, sem ímpeto de transformar sua história depois de quatro séculos de
dominação portuguesa, apática e conformada com as migalhas sociais e econômicas que lhe sobram. A casa é, portanto, o
microrganismo da realidade moçambicana.
6. O tema deste conto é a imobilidade. Essa inércia, no início da Guerra pela independência, talvez fizesse parte da vida de muitos
colonizados que se recusavam a ver a necessidade da conscientização e de mobilização para mudar a realidade moçambicana.
O narrador relata que as portas e janelas ficam fechadas, sem contato com o mundo exterior. Para Mendes, essa imagem de
isolamento metaforiza “... a ausência de liberdade e o aprisionamento proposto pelo colonialismo. Diante desse quadro, muitos
africanos se acomodaram diante da situação política vivida por eles, uma vez que não viam mudanças em relação a esse sistema”.
7. Esse conto é denominado a alegoria da imobilidade social.
3 – Dina
O conto é narrado em 3ª pessoa e se passa em uma região interiorana de Moçambique, caracterizada por atividades agropecuárias.
O protagonista é um negro, já idoso, e que ainda trabalha no roçado, lavrando a terra, de sol a sol, sem qualquer recurso tecnológico
que pudesse facilitar o seu trabalho. Em um milharal, Madala, é assim denominado, limpa o solo eliminando as ervas daninhas de cócoras, por
horas, correndo risco de morte em razão da existência de cobras, escorpiões e lacraias.
Juntamente com Madala, há outros trabalhadores rurais que sofrem da mesma maneira que ele, seguindo um modelo de trabalho
escravo, sem descanso, apenas com o direito de parar para almoçar.
Um homem idoso, com necessidade de trabalhar para o seu sustento, pondera toda vez que vai se pronunciar para não correr risco de
perder o emprego e é por esse motivo que Madala, antes de responder a uma pergunta, repete a mesma pergunta mentalmente para si mesmo
para dar tempo de processar uma resposta da qual não se arrependeria mais tarde.
O capataz, branco, trata os empregados com rispidez e xingamentos, tais como “cabrões”, “cachorros”, “filhos da puta”.
Num dado momento, já na hora do almoço e apresentando dor nos rins, na coluna, nos joelhos, Madala para para descansar,
juntamente com seus amigos de trabalho. Por ser idoso, é respeitado por todos os trabalhadores. Dentre eles, há um jovem que é mais
enfrentador e que começa a opinar afirmando o quanto que o capataz branco é cruel com os trabalhadores negros, mas Madala, cauteloso, não
se manifesta.
Nesse momento, Maria, a filha de Madala, surge no acampamento e Djimo, trabalhador como Madala, sugere que eles conversem na
sombra. Djimo parece gostar de Maria, mas o pai sabe que, por ela dormir com muitos homens, ninguém iria se casar com ela, nem mesmo
Djimo, seu amigo.
Madala percebe que os homens olham para o corpo da filha com interesse, mas Maria sempre direciona os seus olhos para o chão. O
capataz vê Maria e, maliciosamente, pergunta se ela está querendo conquistar Madala, porém, como é velho, é capaz de ela querer se acertar
5
com Djimo. Maria tenta falar em português com o capataz dizendo não ter interesse em homem algum, mas ele continua ofendendo-a. Djimo
tenta afastar Madala do local para não mais ter de presenciar essa cena vexatória e a filha fala ao pai para ele ir comer. Como Madala percebe
a intenção da filha em ver o pai longe dali, ele cede e se afasta.
Do lugar em que ele se senta, Madala vê o capataz conversando com Maria e ambos se dirigindo à machamba (terra de cultivo). O
jovem atiça Madala com uma expressão maliciosa, dizendo que a filha estava indo atrás do branco, mas os demais ficam em silêncio, respeitando
o constrangimento do velho. Todos percebem o que poderia estar acontecendo no milharal.
Madala, não podendo se revoltar, busca uma planta perto da sua perna e, com a mão, arranca-a da terra “com uma explosão surda”.
Ele transfere a sua raiva para o arbusto arrancado.
Djimo condói-se pelo amigo e pergunta se pode fazer algo por ele. Madala parece pegar uma planta imaginária e começa a macerá-la.
Djimo pede para o amigo não olhar para o milharal e, em respeito, ninguém o olhava diretamente e o silêncio tomava conta do local.
Esmagando a planta imaginária com as mãos, Madala solta um soluço de dor e o amigo pede para ele não chorar. Todos os demais
ficam ao seu redor, em um ato de solidariedade.
Depois da relação sexual terminada, Maria, por meio de um português africanizado, reclama ao capataz dizendo que ela foi ao local
para combinar com o capataz o encontro que teriam à noite. Ela se envergonha porque Madala viu a cena. O casal volta ao acampamento e
todos os homens, em silêncio, olham para o chão. O jovem se dói pelo velho e pergunta a Madala o que ele quer que faça, pois eles podem
morrer, mas não têm medo da morte. Bastaria um aceite de Madala e estaria instalado um motim contra o capataz, mas Madala se silencia. O
jovem está movido por um ímpeto de vingança, mas Madala não se manifesta.
O capataz joga uma moeda no peito de Maria para pagar pelo encontro e ela, envergonhada, retrai-se e desvia o rosto, recusando a
moeda. O capataz, ironicamente, pergunta-lhe: “Não queres o dinheiro? ...Tens medo que os rapazes descubram que és uma puta? ”
Maria, chorando, responde que Madala é seu pai, fato que o capataz desconhecia.
O capataz diz que não sabia disso, e que já era amigo antigo dela e, para reparar o ocorrido, deixaria Madala livre do trabalho à tarde
para conversar com a filha. Chega a oferecer dinheiro a Madala para gastar em um passeio com a filha, mas o negro não fala nada, escondendo
“... no chão o seu olhar triste”.
O jovem levanta a voz: “Madala, todos nós vimos o que ele fez a tua filha mesmo diante de ti! ”.
O capataz retorna com uma garrafa de vinho, mandando todos voltarem ao trabalho, mas ninguém se mobiliza, olhando para Madala.
O branco oferece o vinho a Madala que o toma até o final, devolvendo a garrafa vazia. Madala pega o caminho do roçado e o jovem passa por
ele, cospe e o insulta: “Cão! ”. O capataz bate no jovem, continuando a maltratar os trabalhadores que seguem o caminho da machamba.
Conclusão:
1. Esse conto é provido de uma tendência denunciativa, documentando a exploração e a humilhação dos trabalhadores nas machambas,
nos roçados.
2. Note que as terras cultiváveis de Moçambique são riquíssimas, porém quem as explora são os brancos utilizando a mão de obra nativa,
dos negros, que seriam os proprietários autênticos dessas terras.
3. O capataz representa o branco que, além de explorar a terra, escraviza o negro sugando-lhe a sua energia e explora sexualmente a
mulher negra.
4. Madala é idoso, provido de cautela e de moderação. Pelas experiências de vida, sabe que não tem força para enfrentar o sistema e,
em razão disso, prefere o silêncio.
O jovem é marcado pelo afoito, pela ousadia, já querendo enfrentar o inimigo de maneira ansiosa. O jovem não consegue entender a
passividade de Madala, chegando a considerá-lo covarde. No final, o jovem recebe uma surra comprovando a fragilidade em que se
encontrava o colonizado diante do colonizador.
5. A falta de reação de Madala não implica indiferença diante dos fatos. A sua revolta é silenciosa, manifestada por meio da metáfora da
erva daninha. Madala passava o dia todo eliminando as pragas. Na hora de sua revolta não verbalizada, a praga para Madala seria o
capataz representando o branco colonizador. Como ele não tem forças para aniquilar essa erva daninha, esmaga uma em seus dedos,
mas que é imaginária.
Não esqueça que os contos foram escritos quase que uma década antes da Independência de Moçambique. O momento era
marcado por inseguranças, fragilidades e incertezas por parte dos moçambicanos.
Madala é um oprimido e aceita a imposição branca por ter certeza de sua fragilidade, mas tem plena consciência da usurpação dos
seus direitos por parte dos colonizadores. Ele não é um alienado diante da sua realidade, só não está fortalecido o suficiente para se
rebelar (é velho, doente, pobre e necessitado de um prato de comida).
6. O conto se aproxima do Neorrealismo. Madala é um personagem fictício, porém é verossímil, podendo representar qualquer negro
moçambicano explorado no seu trabalho que segue o modo escravagista.
7. O conto é dotado de minúcias, como se o narrador em terceira pessoa tivesse uma câmera na mão filmando um episódio da vida como
ela realmente é. Esse é o motivo de De Paula classificar o conto como “... uma espécie de travelling cinematográfico”.
8. O autor se utiliza de termos próprios de línguas africanas misturados à língua portuguesa.
Esse confronto cultural se instala no conto quando Maria,a filha de Madala, conversa com o capataz branco, usando a língua
portuguesa com algum nível de dificuldade. Eis alguns exemplos que mostram o esforço da moça ao tentar se comunicar:
“De noite é mais melhor!”
“Eu não está a engatar Djimo...”
“Madala é minha pai!...”
4 – A velhota
O narrador do conto é um homem jovem que, depois de uma surra, ergue-se e se dirige, com muita raiva por ter caído, para casa, onde
encontra a mãe, denominada “velhota” e os irmãos menores.
6
A casa é humilde e a comida é pouca. A velhota não esperava o narrador e o que sobrou na panela foi a raspa do arroz queimado.
Ambos dizem que não estão com fome para um deixar a comida para o outro.
A mãe percebe que o filho não está bem e o abraça, calorosamente, o que não era costumeiro acontecer. Ela lhe pergunta se bateram
nele e o rapaz não confirma. Ele tenta não falar, mas desabafa: “eles destruíram tudo, eles roubaram, eles não querem...”
Ele não quer contar os detalhes e as crianças querem saber de tudo. A velhota aconselha-o dizendo que o tempo é o remédio e que
“tudo há de mudar, tudo há de melhorar...”.
De maneira pessimista, o narrador não acredita na melhoria das coisas e acha que os irmãos menores crescerão no sofrimento, na
tragédia, mas ele não pode destruir os sonhos das crianças; a própria vida os destruirá.
É capaz que a geração dos pequenos seja diferente da dele, seja mais calma, menos rebelde.
Assim que as crianças dormem, ele confessa à mãe que apanhou, mas a dor física não é tudo e ele diz: “ Sim, isso (dor física) não é
tudo. E até não é nada. Eles fizeram-me pequenino e conseguem que eu me sinta pequenino”.
Essa dor interior, marcada pela humilhação, é a que mais dói. Os dois continuam abraçados, silenciosos e talvez a velhota quisesse
dizer muita coisa, mas só falou: “meu filho...”.
Conclusão:
1. O conto não é provido de confirmações, senão alusões. São referências vagas sobre episódios ocorridos nos anos 60 em Moçambique,
com as Forças Armadas de Portugal tentando combater a FRELIMO.
O protagonista não é nomeado; ele representa qualquer moçambicano que sonha com a libertação de seu país. A velhota o chama
de “meu filho”, ou seja, ele é filho de Moçambique, é o filho de muitos pais que perderam seus jovens à época da perseguição da PIDE
(Polícia Internacional de Defesa do Estado), prendendo-os, torturando-os ou matando-os.
Esse personagem não precisa, necessariamente, ser alterego de Honwana, que foi preso em 1964, mas qualquer moçambicano
integrante da FRELIMO, desejoso em transformar a realidade de seu país.
2. Quando o protagonista afirma que a surra não foi tudo, quer dizer que a dor física não foi nada importante se levarmos em conta a
perda da sua dignidade, sentindo-se pequeno, ínfimo.
No começo, ele quis poupar a mãe e não partilhar com ela a cena vexatória em que ele se apresentou, mas a dor interior era tão
grande que não conseguiu esconder da mãe e se abriu com ela. Ele buscou o abraço, o calor maternal depois de uma experiência
dilacerante.
3. As alusões continuam no decorrer do conto. Mãe e filho conversam sem muita clareza de detalhes. Ele se lembra de um homem de
calças escuras e um cinto de fivela de metal que seria o seu agressor. O que dói no jovem é a perda de sua identidade, de seus projetos
e sonhos. De maneira pessimista, acredita que os irmãos também terão seus sonhos destruídos e ficarão com o peito carregado de
raiva, como ele. A velhota acredita no tempo como sendo um agente de transformação. Para o rapaz, a opressão não terá fim.
4. O desmoronamento emocional do protagonista é tão intenso que a velhota sabe que não há palavras para amenizá-lo.
Eis um comentário de Facco a respeito desse momento em Moçambique: “ O estado psíquico-emocional em que os colonizadores
colocavam os colonizados era o pior. A situação de humilhação em que eles eram postos não era digna a nem um animal; todavia, era
dessa forma que eram vistos: menores do que um ser irracional. Da mesma forma que na prisão lhes era dado comer somente farinha,
osso, carne podre, etc, a Velhota só tem para preparar ‘arroz com caril de amendoim’. Os portugueses não estavam preocupados com
a situação econômica e social dos moçambicanos”.
5. O racismo se faz presente de maneira flagrante: o narrador é expulso do bar, leva uma surra e não adiantaria bater porque o agressor
“...era todos os outros”. Ele sabe que, se um branco s aproximar de um negro é por necessidade, porque a igualdade nunca será
alcançada.
6. O narrador é jovem, mas com responsabilidades. Passa por agressões racistas, porém retorna para as suas preocupações com a mãe
e com os irmãos. Na ausência do pai, resta a ele a condição de provedor, tornando-se adulto por necessidade. No entanto, em um
momento de fragilidade, sentindo-se menosprezado, procura o colo da mãe, o seu abraço e o seu calor.
5 – Papá, Cobra e Eu
Nesse conto, temos a explanação do ponto de vista infantil na pessoa do menino Ginho, que será o narrador.
A casa é humilde, mas não vivem em extrema pobreza. Há dois empregados na casa, Santina e Madunana. Ginho possui vários irmãos
menores e uma mãe mais severa que o pai.
Os pais detectam a presença de uma cobra no galinheiro, uma vez que as galinhas aparecem mortas e os pintinhos somem. O pai
avisa a esposa que, no dia seguinte, arranjará alguém para matá-la.
Ginho ouve a conversa dos pais e, mais tarde, com o pai saindo para trabalhar e com a mãe indo visitar uma amiga, vai ao galinheiro
para procurar a cobra. O irmão mais novo o acompanha, mas ficam distantes em razão de uma discussão.
Depois de muito procurar no meio de pilhas de materiais diversos, Ginho vê a cobra. Num dado momento, o cão da família, Totó, e o
cão do vizinho Sr. Castro, o Lobo, entram no galinheiro.
Lobo vê a cobra e avança para ela, ladrando muito. A cobra se prepara e, em segundos, ataca o cão, mordendo-o. Lobo foge ganindo,
desesperadamente. Nandito foge e Madunana pega um pano, atirando-o sobre a cobra. Ginho dá pauladas nela, matando-a.
Os pais, chegando a casa, vão ver a cobra e, logo depois, recebem a visita do Sr. Castro alegando que o seu melhor perdigueiro fora
vítima na casa de Ginho, morrendo. Em razão disso, exige uma indenização pela perda ou ameaça denunciá-lo à Administração. Sr. Castro
estabelece um valor e dá um prazo para o pai de Ginho pagar a quantia determinada por ele.
O pai de Ginho alega os anos de boa vizinhança entre eles, porém o Sr. Castro nem considera isso.
Após o jantar, o pai afasta a Bíblia e faz uma oração em ronga, uma das línguas moçambicanas. Ginho indaga a razão de o pai rezar
quando está bravo e ele diz que Deus lhe dá forças para continuar. O pai fala que hoje é igual a ontem e amanhã também será igual. Humilhações,
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abusos, explorações estarão presentes em todos os dias da existência: “Ainda hoje viste o Sr. Castro a enxovalhar-me! Isso foi só um bocadinho
da ração de hoje ... Não, meu filho, mesmo que isto tudo só O negue, Ele tem de existir!...”.
A uma pessoa que não tem direitos como os demais, que é estigmatizada em uma sociedade desigual e racista, que não tem a máquina
do Estado neutra para defendê-la, o que resta é a esperança.
Conclusão:
1. Quando o Sr. Castro ameaçou o pai de Ginho com a indenização e processo, assim que ele deixou a casa do Tchembene, pai de
Ginho, este proferiu um xingamento na frente do filho. Ginho perguntou por que o pai não o xingou presencialmente. A resposta só
vem no final do conto, quando o pai fala que, nessa vida, temos de aprender a aceitar sujeições, mesmo que doa. Eis sua fala:
“A gente cresce com muita coisa cá dentro, mas depois é difícil gritar, tu sabes...”.
O pai diz à mulher que não pode mentir para o filho. Ele gostaria que não fosse verdade, mas cavalo manso é assassinado um
pouco por dia, até quando não mais aguentar em pé.
Essa é a sociedade desigual denunciada no conto, sociedade essa exemplar para qualquer cenário em que uns têm mais direitos
que outros.
2. O nome do pai de Ginho é Tchembene; o vizinho que ameaça com uma queixa é Castro. Só pelos sobrenomes percebemos a presença
de uma família negra (representando o colonizado) e uma branca (representando o colonizador).
O cavalo manso é o negro subjugado; o branco é o ser superior na hierarquia racial.
3. A desigualdade social dá-se entre a família Tchembene e Castro, porém, dentro da família Tchembene, há uma outra desigualdade.
Nela, temos a dicotomia:
negro patrão x negro empregado
Papá, Mamã x Santina, Madunana
almoço na sala x almoço no quintal
domínio da língua portuguesa x domínio no ronga
ordem x obediência
O fato de Ginho dominar a língua portuguesa faz dele um menino assimilado, ou seja, está em uma fase intermediária entre condição
indígena e a de cidadão. O mesmo ocorre com seus pais.
4. A mãe de Ginho, no decorrer do conto, é bilíngue: usa o ronga para conversar com os empregados da casa e o português com a
família, quando não quer que os empregados saibam o conteúdo.
Conclusão:
1. A mãe, com a sua explicação, celebra a igualdade entre os homens.
2. O professor, ao dar a sua explicação, rebaixa o negro à sua condição animalesca.
3. O padre é exemplo da opressão religiosa do Catolicismo na África.
4. A denúncia do racismo permeia todo o conto, até na fala do padre. Note que, quando ele quer dar bronca nas crianças da catequese,
diz que “... até os pretos são melhores...” do que as crianças. A preposição surpreende o teor estigmatizador do seu discurso.
5. Segundo Gonçalves, a ideia de que o africano está mais próximo do animal advém do Darwinismo Social, teoria essa utilizada para
justificar o imperialismo europeu no continente africano durante o século XIX. Essa teoria considerava os africanos como “raças não
evoluídas” sendo dominados em razão da seleção natural.
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6. A explicação do livro, ou seja, o cultivo do algodão fez as palmas das mãos dos negros serem brancas, vai justificar em razão do
espalhamento da mão de obra africana em outros continentes, como nos Estados Unidos, na Virgínia. Foi graças ao cultivo agrícola
com mão de obra escrava, que houve a expansão da economia norte-americana no século XIX.
7 – Nhinguitimo
“As rolas”
Nesse episódio do conto, o narrador se preocupa em explanar o trabalho das rolas na ambientação rural de Moçambique.
As rolas são aves pragmáticas e suas atividades são simplesmente úteis para si.
Antes de iniciar a colheita do milho, elas aparecem demarcando o caminho e preparando o ataque ao milharal nas machambas.
Assim que os roçados ficam amarelos, com os grãos maduros, pode haver um vendaval qualquer, afugentando as rolas, porém elas
logo retornam com o fim do vento. É com o milho maduro que chega o Nhinguitimo, ou seja, o vento que vem do Sul, varrendo a poeira,
derrubando pés de milho, amedrontando animais e fazendo as rolas fugirem, acompanhado por tempestades.
Conclusão:
1. No conto em questão, temos a presença marcante da dicotomia:
colonizador x colonizado
branco x preto
direitos x deveres
riqueza x pobreza
crescimento x estagnação
2. Vírgula Oito representa o negro não assimilado, com intenção de crescer por meio do trabalho, porém o branco cria empecilhos, levando
o negro à morte para que os outros não se inspirem no seu modelo.
3. A grande metáfora do conto está concentrada no nhinguitimo, um vento que vem do Sul levantando a poeira e anunciando a chegada
de grandes tempestades. Vírgula Oito julgava que o nhinguitimo só devastaria as plantações dos brancos, uma vez que as grandes
árvores protegeriam as pequenas lavouras. O vento, portanto, representa a transformação social, o tumulto da natureza que ordenaria
a sociedade com a desordem, acabando com a hegemonia branca e instaurando a emancipação econômica do colonizado.
4. Nesse conto, temos a denúncia dos problemas agrários, como a má distribuição de terras ou mesmo a usurpação das terras dos
nativos, terras essas produtivas. É tirado do nativo qualquer direito de emancipação ou de crescimento socioeconômico.
5. Segundo Gonçalves, “... os ventos representam os novos tempos, moldados pelos atos de resistência que arruinariam o projeto dos
colonizadores”. No entanto, Vírgula Oito, que poderia representar tal resistência, tem suas terras tomadas, convoca os amigos a
resistirem e enfrentarem o sistema, mas é abocanhado por ele, sendo marcado para morrer.
6. As rolas são aves ousadas, pragmáticas, enfrentam o perigo para a sua sobrevivência, acauteladas quando o inimigo cresce, que é o
nhinguitimo. Elas são a representação da resistência moçambicana diante da violência vigente no imperialismo português.
7. Os pequenos produtores temiam as rolas, mal sabendo que o seu grande inimigo, o branco, tira-lhes tudo, não apenas uns bagos do
milharal.
8. . O narrador, no final, passa por um “insight” e toma consciência de sua alienação. As injustiças estiveram sempre à sua frente e nunca
deu conta delas. Termina dizendo que “...aquilo tinha que mudar!...”
V- Não esquecer
1. Note que a sensação de uma subjugação líquida e certa na vida dos negros moçambicanos se faz presente em Ginho (“Nós matamos
o cão Tinhoso”), que aceita passar as respostas da prova para o colega para não ser excluído do grupo, que é rejeitado no jogo de
futebol e que tem de emprestar sua arma para outro menino; em Madala (“Dina”) que engole seco a humilhação sofrida com a filha e
o capataz; no rapaz que leva uma surra (“A velhota”), mas não pode revidar porque uma velha e crianças são de sua responsabilidade;
no pai Tchembene (“Papá, cobra e eu”) que admite a ameaça desproposital do vizinho branco, mesmo sendo um assimilado e os
amigos de Vírgula Oito (“Nhinguitimo”) que se veem impotentes.
2. A marginalização humilhante sofrida por moçambicanos, quer assimilados ou não, faz-se presente em quase todos os contos do livro
de Honwana.
3. A escravidão durante séculos legitimou o sentimento de inferiorização dos negros, não só na África, como em qualquer continente que
tenha aderido ao tráfico de negros. No Brasil, em 1895, foi publicada uma matéria na Gazeta de Piracicaba que desqualificava o negro
de maneira por demais preconceituosa. Eis um fragmento da matéria editada no jornal, no século XIX:
“No Brasil, alguns negros acreditam ter sido esta a sua origem: Quando Deus formou o primeiro homem, Satanás movido de
inveja quis também formar um homem de barro. Porém como tudo que ele toca se faz negro, resolveu Satanás ir lavar o seu homem
no Jordão para branquear, mas, à sua chegada, o rio, horrorizado, retirou as suas águas e o espírito maligno não teve mais tempo que
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depor o seu homem sobre a areia ainda molhada e é por isso que as palmas das mãos, as únicas partes com que a criatura de Satanás
tocou na água, se fizeram brancas. O demônio, irritado com isto, deu tão grande punhada no rosto do seu homem, que lhe esborrachou
o nariz, d’ahi vem terem os negros o nariz achatado. Agarrou-se depois pelos cabelos para o arrastar após de si; e o calor das suas
mãos ardentes encrespou-lhe de tal modo o cabelo, que lhe ficou encarrapichado (...)”
Se a origem do negro está atrelada ao mal, ao Diabo, então o branco é o Bem, é produto de Deus. Se o cão, no primeiro
conto do livro, é denominado “Cão Tinhoso”, representando o excluído, o marginalizado, “tinhoso” é o Satanás. A postura racista é
encontrada nesse pensamento cristão.
4. No conto “Nós matamos o Cão Tinhoso!”, o sofrimento de Ginho ao ser pressionado pelos colegas a matar o cão, advém da sua certeza
de que o cão é inofensivo, porém a pressão sofrida é grande demais.
Quando Ginho fala para Quim e para o cão que ele tem medo, é o medo de fazer a coisa errada, de ser injusto, e medo de ser
ridicularizado e desprezado pelo grupo ao qual pertence.
5. A cidade natal de Honwana chamava-se Lourenço Marques, sendo capital de Moçambique. Após a independência deste país, o nome
foi trocado para Maputo. Essa mudança, segundo Santos, é justificada “... pelo fato de Lourenço Marques ter sido uma figura associada
à colonização portuguesa. A escolha do nome Maputo homenageia um rio local.”
6. Honwana, em uma certa manifestação, justifica o fato de inserir termos africanos ao seu texto, escrito em português: “Eu sou uma
pessoa bilíngue, tenho esta questão complicada comigo: eu falo ronga e falo português. Tenho a pretensão de poder explorar os limites
da expressividade e da elaboração mental quer de uma língua, quer de outra”.
7. Nos contos, Honwana denuncia uma sociedade envenenada pela ideologia da supremacia branca, como em “Nhinguitimo” ou “Papá,
Cobra e eu”, a destruição do patriarcado negro diante da masculinidade da dita “civilização europeia”, como em “Dina” e a
marginalização dos valores da coragem, dignidade e hombridade, como em “Nós matamos o Cão Tinhoso!”
Essa era a visão colonialista diante da África: o colonizador teria a função de civilizar o negro. O negro assimilado, mesmo
dominando a língua portuguesa e já se adequando à máquina colonial, é subordinado ao branco, passando por exclusões e
discriminações.
9. Em quais contos temos a presença de moçambicanos não-brancos, classificados como “assimilados” ou “civilizados”?
“Nós matamos o Cão Tinhoso”: Ginho é negro e frequenta a escola onde há brancos. Ele fala em língua portuguesa,
perfeitamente. Note que, ao se dirigirem para o mato para matar o cão, os meninos se encontraram com os moleques do
Costa, que não dominam a língua portuguesa.
“Inventário de Imóveis e jacentes”: há revistas e livros na casa e algumas revistas são estrangeiras. O autor denuncia o
espalhamento da cultura norte-americana pela África. O personagem-narrador é Ginho, novamente.
“Papá, Cobra e eu”: a família está estabelecida em uma boa casa, possui empregadas e o pai lê jornal, mas passam pela
injustiça racista. Novamente, Ginho é o narrador.
“As mãos dos pretos”: o narrador tem contato com a igreja, com a escola e com os livros.
10. Exemplos de negros conscientes de sua realidade e, em razão disso, tornando-se pacientes, impotentes e resistentes:
Madala, de “Dina” (um jovem trabalhador quer reagir diante dos abusos do capataz, mas ele sabe que será em vão porque
nada mudaria).
O narrador de “A velhota” (apanha em um bar por ser negro e sabe que sempre estará à margem da sociedade).
O pai do narrador de “Papá, Cobra e eu” (reconhece ser injustiçado, porém sabe que uma injustiça é parte de uma vida de
muitas e constantes injustiças).
Matchumbutana e Maguiguana, em “Nhinguitimo” (tentam convencer Vírgula Oito a aceitar a derrota diante do branco).
Nesses casos, o silêncio é uma estratégia de sobrevivência.
11. O Cão tinhoso sofreu um linchamento por ser diferente e, portanto, insuportável para os detentores do poder ou mesmo para a
sociedade em geral.
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12. Em “Dina”, temos a presença do pai africano marcado pela idoneidade e dignidade. Ele, sabedor, não enfrenta o inimigo fisicamente,
mas deixa a filha enfrentá-lo moralmente, não aceitando a moeda.
Ao aceitar o vinho do capataz, bebe-o até o final, não o devolvendo ao branco como sinal de amizade.
Madala tem integridade moral, amor-próprio, mas isso não impede que seja agredido moralmente.
VII - Bibliografia
1. DAIE, Fábio Salem. Nós ainda não matamos ninguém – Opressão e violência em O Cão Tinhoso, de Honwana. Revista Crioula,
2014, nº 14, Universidade de São Paulo.
2. DE MORAES, Lidiana de. A violência do não-dizer em Nós matamos o Cão Tinhoso!, de Luís Bernardo Honwana. Anais do XV
Congresso Internacional da Abralic: Experiências Literárias, Textualidades Contemporâneas. UERJ, Rio de Jnaeiro, 2017.
3. DE PAULA, Júlio César Machado. Luís Bernardo Honwana. Nós matamos o cão tinhoso! Resenha, revista Mulemba. Rio de
Janeiro, UFRJ, volume 10, nº 18, 2018.
4. FACCO, Édson Reinaldo. Aspectos discursivos e linguísticos do texto moçambicano. Dissertação de Mestrado – Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2006.
5. GONÇALVES, Leonardo Mendes. Resistência, intertextualidade e memória em Nós matamos o cão tinhoso!, de Luís Bernardo
Honwana e Nós choramos pelo Cão Tinhoso, de Ondjaki. UFJF, 2018, MG.
6. HONWANA, Luís Bernardo. Nós matamos o cão tinhoso!. São Paulo, Kapulana, 2017.
7. SANTOS, Zidelmar Alves. Cicatrizes da Colonização Portuguesa em Moçambique: uma breve análise de Nós matamos o cão
tinhoso!, de Luís Bernardo Honwana. Revista Inventário, nº 23, 2019, BA.
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