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A CARACTERIZAÇÃO DO ÍNDIO DE JOSÉ DE ALENCAR: uma perspectiva 
dialética nas obras O Guarani, Iracema e Ubirajara.

Marluzi Rodrigues Pereira
Aluna do Curso de Especialização em Língua Portuguesa e 
Literatura da FAMA
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RESUMO:Caracterização   do   índio   do   escritor   romântico   José   de   Alencar   nas   obras  O 


Guarani, Iracema e Ubirajara, numa perspectiva dialética. Para isso, percorre­se o movimento 
Romântico   desde   as   suas   origens   européias,   detendo   maior   atenção,   no   entanto,   as   suas 
características aqui no Brasil. Nessa análise, vão sendo percebidas as interferências do modelo 
europeu do homem virtuoso e bom (o “bom selvagem”) na construção do índio brasileiro da 
literatura romântica de José de Alencar, bem como as contradições entre o modelo romântico 
apresentado   e   a   verdadeira   cultura   indígena,   retomada   de   forma   mais   fiel   na   última   obra 
analisada.
Palavras­chave: Literatura Brasileira. Romantismo. José de Alencar. 

1 INTRODUÇÃO

Apesar   de   terem   sido   os   primeiros   habitantes   do   Brasil,   durante   todo   o 


processo de colonização, o índio sempre esteve ausente da vida social e política do país, 
ocupando sempre um lugar inferior na hierarquia da civilização branca.
O presente projeto visa, portanto, à elaboração de um trabalho monográfico 
em que o olhar seja direcionado para a questão das contradições existentes entre os traços 
sócio­culturais do índio brasileiro e aqueles idealizados, presentes na fase indianista do 
Romantismo, produto da influência do modelo europeu, que associava o indígena e seu 
ambiente às figuras e cenas medievais, características daquela, e não desta cultura. 
Aqui, no Brasil, um dos maiores representantes da fase indianista, na prosa, 
foi José de Alencar que, tal qual o fez Gonçalves Dias, na poesia, inspirou­se no mito 
rousseauniano para desenhar os primeiros habitantes do Brasil. O mito do “Bom Selvagem” 
               
               

foi inspirado na tese de que, em sendo a sociedade a grande responsável pela violência do 
homem contra o homem, seria, então, afastado da sociedade, em harmonia com a natureza 
que o homem reencontraria sua bondade natural, corrompida pelos grilhões da sociedade.
Ambos os olhares aqui postos – do índio mitificado e mistificado ao índio 
miscigenado, adulterado pela influência da cultura européia – serão analisados a partir de 
três obras de José de Alencar: O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874), nas 
quais serão verificados os traços evolutivos do índio no que se refere, sobretudo, a sua 
descaracterização   na   literatura   romântica   brasileira,   na   medida   do   envolvimento   dos 
personagens indígenas com personagens brancas.

2. ROMANTISMO: UM MOVIMENTO CULTURAL 

A   palavra   romantismo   significa   uma   maneira   de   se   comportar,   de   agir,   de 


interpretar a realidade. 
O   Romantismo   enquanto   movimento   artístico   surgiu   na   Alemanha,   no   final   do 
século XVIII, designando uma tendência geral da vida e da arte, e, portanto, nomeando um 
sistema, um estilo delimitado no tempo, caracterizado pela valorização do sonho, do devaneio, 
da postura emotiva diante do mundo.
Ele   está,   assim,   diretamente   relacionado   a   dois   acontecimentos   históricos   da 
Europa: a Revolução Francesa e a Revolução Indústria.
A   Revolução   Francesa   foi   responsável   pelo   golpe   definitivo   no   absolutismo   e, 
conseqüentemente, na aristocracia. Revolução Industrial, por sua vez, gerou novos inventos 
com  o   objetivo  de solucionar  os  problemas  técnicos  decorrentes  do aumento de produção, 
provocando a divisão de trabalho e o início da especialização da mão­de­obra.
Mais tarde, o Romantismo aceitou, aplaudiu e divulgou essas idéias, tornando­se 
porta voz da Revolução, divulgando a crença de que surgiria dela um mundo novo, mais justo, 
mais equilibrado. Rebeldia é a palavra que resume esse primeiro momento romântico  pós­
Revolução. Em um segundo momento, essa rebeldia transformou­se em descrença na realidade 
que o espírito revolucionário conseguiu forjar.
               
               

A   rebeldia   romântica   manifesta­se,   na   arte,   através   da   ruptura   com   os   padrões 


clássicos e neoclássicos até então em moda.   Essa rebeldia é sintetizada na frase de Victor 
Hugo (apud FARACO; MOURA, 2000, p.16): “Metamos o martelo nos teóricos. (...) Nada de 
regras nem de modelos, expressa nas mais diversas linguagens”.
Na pintura, por exemplo, o Romantismo se expressa, sobretudo, na liberdade de 
criação;   na   escultura   e   na   arquitetura,   houve   pouca   novidade,   pois   pode­se   observar   a 
permanência   do   estilo   anterior   ­     o   neoclássico..   Na   música,   os   compositores   românticos 
transportam suas paixões, aflições, seu nacionalismo e suas aspirações políticas, carregadas de 
suas próprias individualidades. Pode­se citar compositores românticos como Beethoven, que 
aproxima sua música do gosto popular, e Wagner, que se destacou, sobretudo pelas óperas que 
compôs, algumas das quais expressam um estranho fascínio pela morte, pensamento expresso 
também  em sua fala (apud FARACO& MOURA, 2000, p.18):  Mesmo quando a vida  nos  
sorri, estamos a ponto de morrer. 
Aqui no Brasil, o Romantismo relaciona­se a duas independências: a política e a 
literária. Repleto de desejos de liberdade pessoal, o Romantismo brasileiro deu, com a grande 
participação   de   intelectuais   românticos   no   movimento   de   libertação   da   pátria   do  jugo 
português,   maior   contribuição   no   plano   literário,   pois   é   a   partir   dessa   motivação   que   os 
escritores brasileiros se voltaram para o próprio país em busca de inspiração.
O significado dessa autonomia cultural que se origina com o Romantismo é 
destacado por Coutinho (1980, p. 153):
[...]   de   qualquer   modo,   o   Romantismo   tem   uma   importância 
extraordinária, é a ele que deve o país a sua independência literária, 
conquistando   uma   liberdade   de   pensamento   e   de   expressão   sem 
precedentes, além  de acelerar,  de modo imprevisível, a evolução  do 
processo literário.

D’Onofrio   (2000,   p.   337­338)   reafirma   a   importância   do   movimento   ao 


considerar que a prosa de ficção na literatura brasileira começou a dar seu passo decisivo só a 
partir do Romantismo:
 A estética e a cosmovisão do Romantismo europeu se revestem, no Brasil, de cor  
local, com nítida tendência para a narrativa sertaneja e indianista, destacando José 
de Alencar como o maior expoente da ficção romântica brasileira, por demonstrar  
grande paixão pela terra e pelos homens do Brasil.
               
               

2.1 José de Alencar e o romantismo brasileiro

O status de maior prosador romântico é também conferido a Alencar por Faraco 
e Moura (2000, p.17),  que assinalam quatro tendências na obra do prosador cearense:  prosa 
indianista,  prosa urbana,  prosa regionalista  e  prosa histórica. Do mesmo modo, Romero 
(1980,   p.   1464)   declara   abertamente   que   José   de   Alencar   é   o   principal   representante   da 
literatura brasileira, pois estudou profundamente a história dos nativos, no caso, os índios, 
valorizando   sua   cultura   e   principalmente   sua   língua:  “Estudou   com   os   velhos   cronistas   e 
historiadores; procurou conhecer os costumes dos selvagens, o viver dos colonos, dos escravos, 
das classes dirigentes durante a formação das populações brasileiras”.
Coutinho e Coutinho (2002, p.259) dizem em que José de Alencar criou, com 
base mais lendária do que histórica, o mundo poético e heróico de das origens brasileiras, para 
afirmar   a   nacionalidade,   a   existência   de   raízes   legitimamente   americanas,   inspirado   pelos 
ideais da Independência. Também Cândido (1918, p. 223) confirma que José de Alencar foi o 
único da literatura brasileira a criar um mito heróico, o Peri.             
A   preocupação   com   a   formação   do   povo   brasileiro   é   um   dos   aspectos   que 
ressalta na leitura da obra romântica alencariana. O seu propósito de levantar a gênese do povo 
e   da   cultura   brasileira,   resgatando   raízes   nacionalistas,   é   confirmado   pelo   nascimento   de 
Moacir,   fruto   do   amor   de   Iracema   e   Martim,   celebrando   a   mistura   das   raças   brancas   e 
indígenas no primeiro momento de formação do nosso povo, como tão bem descreve Alencar 
(1995, p. 60):

Nessa   hora   em   que   o   canto   guerreiro   dos   pitiguaras   celebrava   a   derrota   dos 
Guaraciaba, o primeiro filho que o sangue da raça branca gerou nessa terra da 
liberdade via luz nos campos da Porangaba.

O mergulho no passado, muito característico do Romantismo como forma de 
evasão, em Alencar reforça também a questão do nacionalismo, pois vai buscar na história as 
raízes   de   um   perfil   brasileiro   que   a   partir   desse   momento   também   será   valorizado   como 
temática. Esse historicismo é analisado por Coutinho (1980, p.147):
               
               

Assim, Alencar se referirá à colonização, em Iracema, ao tomar como protagonista 
do romance o português Martim Soares Moreno que, de acordo com notas do autor 
(1995,p.66), foi um dos pioneiros na colonização do Ceará, intermediando o contato 
entre índios e portugueses. O mesmo se diga com relação ao guerreiro Poti, outra 
figura real que, no curso do processo de aculturação, veio a ser batizado com o nome 
de Felipe Camarão, herói da guerra dos Emboabas, que resultou  na expulsão dos 
holandeses da Bahia, em 1640.

Como se percebe, do ponto de vista cultural, o lugar do índio brasileiro na obra de 
Alencar aparece secundarizado em favor do registro histórico tendenciosamente nacionalista – 
e romantizado – da colonização e da supremacia da cultura branca e de seus valores (religiosos, 
sobretudo) sobre a indígena  – uma contradição,  se se pensar em José de Alencar como   o 
romancista que valorizou o índio e sua cultura em suas obras. 

                                           
3   O   ÍNDIO   BRASILEIRO   NA   LITERATURA:   DA   RELEITURA   DO   HERÓI 
MEDIEVAL AO ENCONTRO DA COR LOCAL

Coutinho   (1980,   p.   144)   explica   bem   o   gosto   romântico   pelo   passado, 


associando­o ao desejo de evasão. Na Europa, os escritores buscaram o passado medieval, o 
mundo dos magos, fantasmas e feiticeiros. No Brasil, muitos escritores voltaram­se para o 
passado   nacional,   ocupado   pela   cultura   indígena,   que   forneceu   o   ambiente,   os   tipos   e 
argumentos para a literatura romântica.
Assim,   como   afirma   Bosi   (1992,   p.176),   na   ausência   de   heróis   medievais, 
voltam­se os escritores brasileiros para a história das grandes nações indígenas:
Acreditando   nessa   proposição,   arrisco­me   a   revisitar   um   lugar   comum   dos  
comparatistas literários que afinam o indianismo brasileiro pelo diapasão europeu  
da romantização das origens nacionais. Lá, figuras e cenas medievais; cá, o mundo  
indígena tal e qual o surpreenderam os descobridores. Cá e lá, uma operação de 
retorno, um esforço para bem cumprir o voto micheletiano de ressuscitar o passado,  
alvo confesso da historiografia romântica.

O   mito   do   bom   selvagem,   referido,   entre   outros,   por   Bosi   (1994,   P.93), 
Coutinho (1980, p. 170) e Bosi (1992, P. 176), deriva do pensamento de Rousseau. O filósofo 
francês acreditava que o progresso da sociedade européia tinha corrompido a pureza original 
               
               

do   homem,   mas,   em   algum   lugar,   distante   de   uma   sociedade   modificada   pela   Revolução 
Industrial, ainda deveria existir esse homem em estado puro, cheio de nobreza e de bondade. 
Esse   mito   do   gênero   narrativo   segundo   D’Onofrio   (2000,   p.   335)   nasceu   das   idéias   de 
Rousseau:

Na França, as idéias geniais de Jean­Jacques  Rousseau (1712­
1778), mais filósofo do que ficcionista, tiveram o mérito de preparar os adventos do  
Romantismo   e   do   Socialismo.   [...]   Em   Emílio,   apresenta   seu   pensamento  
pedagógico: a tese da bondade natural do homem (o mito do “bom selvagem”) e da  
maldade como conseqüência das exigências da civilização leva Rousseau a propor  
um tipo de educação segundo a natureza de cada um, de forma que a criança possa  
desenvolver suas aptidões espirituais. 

 A exaltação da cultura indígena a partir da concepção nacional desse mito ficou 
conhecida como indianismo, que, ainda segundo D’Onofrio (1980, p. 170), na obra de Alencar, 
está  estreitamente   relacionado   com   a   restauração   do   mito   da   infância   e   do   retorno   à  
inocência infantil característica geral do Romantismo.  Cândido (1975, p. 212) afirma que o 
indianismo   alencariano   contribuiu  para  consolidar   uma  consciência   nacional,   tocada   pelo  
sentimento de inferioridade em face dos padrões europeus. Para Brasil (1980, p. 46), José de 
Alencar está para a prosa indianista assim como Gonçalves Dias está para a poesia.
Segundo Coutinho & Coutinho, (2002, p. 260) nas duas obras  Iracema  e O 
Guarani, o mito do bom selvagem, da pureza do americano, é posto em contraste com a rudeza 
e   ambição   desenfreada   e   sem   escrúpulos   do   branco   europeu.   É   o   próprio   conceito   de 
indianismo e a sua visão do índio que têm, para ele, valor mítico.

3.1. Peri e Iracema: o amor romântico e a amizade do índio pelo colonizador

Em  O Guarani, segundo Antônio Candido (1918, p. 228), a diversidade, mais 
que de posição, é quase de natureza, entre a fidalga loura e o índio selvagem. Segundo Assis 
Brasil (1980, p. 47), tanto em  O Guarani  como em  Iracema  é o índio que deixa a sua vida 
selvagem, seus costumes, para acompanhar o branco, por quem é capaz dos maiores sacrifícios 
em demonstração do seu amor e fidelidade.
               
               

Em  O  Guarani, o convívio com o homem branco exige que o índio abandone 
totalmente   sua   cultura,   o   que   acaba   reforçando   suas   qualidades:   heroísmo,   coragem   e 
fidelidade.   Peri,  o   índio   aculturado   de  O  Guarani,   deixa­se,   inclusive,   batizar,   tornando­se 
cristão. O índio destemido revela­se submisso ao amor:
­ Se tu fosses cristão, Peri!... 
O índio voltou­se extremamente admirado daquelas palavras.
­ Por quê?... perguntou ele.
­ Por quê?... disse lentamente o fidalgo. Porque se tu fosses cristão, eu te confiaria a 
salvação de minha Cecília, e estou convencido de que a levaria ao Rio de Janeiro, à 
minha irmã.
O   rosto   do   selvagem   iluminou­se;   seu   peito   arquejou   de   felicidade;   seus   lábios 
trêmulos mal podiam articular o turbilhão de palavras que lhe vinham do íntimo da 
alma. (p. 254)

Em  Iracema  (2003,   p.40)   não   acontece   diferente.   A   virgem   representa   a 


pureza sagrada, o que a faz depositária do segredo da jurema e guardiã da religiosidade da 
tribo, dever para o qual deve se manter casta. Por amor a Martim, o branco colonizador, ela 
também   abre   mão   de   sua   religiosidade,   um   dos   pontos   fundamentais   do   processo   de 
colonização.   Perfeita   expressão   da   natureza,   com   a   qual   interage   intimamente   e   da   qual 
desponta como a criação mais perfeita, a índia está, assim, envolvida com o sagrado, o que 
aumentará a dramaticidade da sua opção pelo amor do estrangeiro Martim:
Quando   veio   a   manhã,   ainda   achou   Iracema   ali   debruçada,   qual   borboleta   que 
dormiu no seio do formoso cacto. Em seu lindo semblante acendia o pejo vivos 
rubores; e como entre os arrebóis da manhã cintila o primeiro raio do Sol, em suas 
faces incendiadas rutilava o primeiro sorriso da esposa, aurora de fruído amor. 
                                              A jandaia fugira ao romper d’alva e para não tornar mais à cabana.
Vendo  Martim, a virgem  unida ao  seu coração,  cuidou que  o sonho continuava; 
cerrou os olhos para torná­los a abrir.
A pocema dos guerreiros, troando pelo vale, o arrancou ao doce engano: sentiu que 
já não sonhava, mas vivia. Sua mão cruel abafou nos lábios da virgem o beijo que ali 
se espanejava.
­ Os beijos de Iracema são doces no sonho; o guerreiro branco encheu deles sua 
alma. Na vida, os lábios da virgem de Tupã, amargam e doem como o espinho da 
jurema.
A filha de Araquém escondeu no coração a sua ventura. Ficou tímida e inquieta, 
como a ave que pressente a borrasca no horizonte.
                                             Afastou­se rápida, e partiu.
                                             As águas do rio banharam o corpo casto da recente esposa.
                                             Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras.

Peri também é capaz de morrer por amor a Ceci, e por isso é visto como um ser 
corajoso, mas  apenas  no sentido  romântico  do termo, já  que, na comunhão com o branco 
               
               

colonizador, ele um escravo que chega a se orgulhar de sua posição: socialmente, o índio doa 
seu trabalho – e até sua vida – em troca simplesmente de aceitação. No lado afetivo, o índio é 
escravizado pela beleza da mulher branca, Ceci, a quem idolatra como sua “Iara”, que quer 
dizer “senhora”. A ambos, é fiel e submisso:
­ Tu choras, senhora? Disse ele estremecendo.
A menina sorriu­lhe; mas com um sorriso tão triste que partia a alma.
­ Não chora, senhora, disse o índio suplicante; Peri vai te dar o que desejas.
­ O que eu desejo?
­ Sim; Peri sabe.
A moça apontou para o fundo do precipício.
­ Quem te disse? Perguntou a menina admirada.
­ Os olhos de Peri.
­ Tu viste?
­ Sim. 
O índio continuou a descer.
­ Que vais fazer? Exclamou Cecília assustada.
­ Buscar o que é teu.  ( p. 117)

Além da exaltação ao amor romântico, uma outra característica recorrente nos 
romances indianistas de José de Alencar e, aqui, em O Guarani, é a exaltação à natureza, com 
o que procura destacar a identidade da terra brasileira, valorizando a sua cor local:

A vegetação nessas paragens  ostentava outrora todo o seu luxo e vigor; florestas 
virgens se estendiam ao longo das margens do rio, que corria no meio das arcarias de 
verdura e dos capitéis formados pelos leques das palmeiras. (p. 14)

Peri também mostra­se disposto a tudo para ser amigo do colonizador, mesmo 
conhecendo as diferenças culturais que os separam:
Peri, filho de Ararê, primeiro de sua tribo, eu sou um fidalgo português, um 
branco inimigo de tua raça, conquistador de tua terra; mas tu salvaste minha filha; 
ofereço­te minha amizade. (p.89)

Peri, que durante um ano não fora para ela senão um amigo dedicado aprecia­
lhe de repente como um herói; no seio de sua família estimava­o, no meio dessa 
solidão admirava­o. (p.263)         

A doçura da mulher índia é uma temática muito forte em Iracema, a virgem 
dos lábios de mel, personagem que representa a perfeição da mulher, para o romântico uma 
obra­prima da natureza – expressão maior da perfeição divina. 
               
               

Essa   concepção,   por   sua   vez,   é   decorrente   do   processo   de   idealização 


romântico no qual, através da imaginação, nega a exatidão da realidade da qual escapa1, como 
explica COUTINHO (1980, p.146).
O que se vê, no entanto, nas obras  O Guarani e  Iracema,  é uma entrega do 
índio ao branco, e essa entrega se dá por inteiro, isto é, de corpo e alma, implicando sacrifícios 
e abandono da própria origem. Isto significa uma partida sem retorno: o índio, em contato com 
o   branco,  jamais  será o mesmo.  No entanto,  essa mudança  não  parece  ser vista de  forma 
negativa, pois o que acontece é uma associação, também, das características naturais do índio 
aos nobres valores do colonizador. 
D’ONOFRIO (1997, p.338) destaca o idealismo que reveste as personagens, 
acentuando que se trata de um traço que acentua o lirismo do texto:

Além do aspecto formal, o lírico se depreende da exaltação da flora e da  
forma da terra brasileira e do idealismo sentimental com que são retratadas as  
personagens principais, especialmente a índia Iracema.

Percebe­se   assim,   que   o   indianismo   de   José   de   Alencar   é   marcado   pela 


inclusão do selvagem no mundo da nobreza, no qual o índio expressa o seu sentimento de 
devoção. 

3. 2 Ubirajara: um mergulho na história do povo brasileiro pré­colonização

O romântico voltava ao passado para escapar da realidade, para se evadir da 
vida presente, que usualmente magoava o eu sensível e delicado do artista, que, na Europa, 
buscava se refugiar no passado medieval, envolto em mistério, povoado de lendas. No Brasil, 
desprovidos de tradição medieval, os escritores se voltaram para a cultura do índio, primitivo 
habitante da terra – no caso de Alencar, situando a narrativa no instante em que se iniciava a 
colonização portuguesa.
O retorno ao passado é explicado por Coutinho (1980,147):

1
  De acordo com Afrânio (2002, p. 146)  escapismo é o desejo do romântico de fugir da realidade para um 
mundo   idealizado,   criado,   de   novo,   à   sua   imagem,   à   imagem   de   suas   emoções   e   desejos,   e   mediante   a 
imaginação.
               
               

O escapismo romântico traduziu­se em fuga para a natureza e em volta ao passado, 
idealizando   uma   civilização   diferente   da   presente.   Épocas   antigas,   envoltas   em 
mistério,   a   Idade   Média,   o   passado   nacional,   forneciam   o   ambiente,   os   tipos   e 
argumentos   para   a   literatura   romântica.   A   história   era   valorizada   e   estudada 
(historicismo).

Em  Ubirajara,   Alencar   se   debruçou   apenas   sobre   a   cultura   indígena, 


descrevendo a sua organização, seus valores, sua rotina doméstica, abandonando a temática do 
contato índio/colonizador.
  Destacam­se dentre os aspectos importantes abordados pelo autor na obra:
a)  Religiosidade   ­   os   índios   tinham   seus   próprios   deuses,   uma   mitologia 
particular,   cuja   principal   expressão   era   Tupã,   o   deus   criador   do   mundo, 
enriquecida por cerimônias  de evidente caráter religioso, sempre associado  à 
natureza.
­ Jaguaré agradece a Tupã que te fez um grande guerreiro e o chefe 
mais feroz da grande nação tocantim, Pojucâ, matador de gente. (p.39­40)

b) Iniciação do guerreiro ­ tema central de Ubirajara, a iniciação do guerreiro 
marca a passagem da adolescência para a idade adulta, quando o jovem então se afirma como 
ser adulto. O jovem guerreiro precisa demonstrar coragem e valentia, derrotando um guerreiro 
famoso,  cujo valor aumentasse  a  importância  do feito que, de grandioso, seria contado   de 
geração   em  geração.  Só  este  combate   justificava   o ritual  antropofágico,   através  do  qual  o 
vencedor se alimenta das qualidades do vencido.
Não   era   porém   a   vingança   a   verdadeira   razão   da   antropofagia.   O   selvagem   não 
comia o corpo do matador de seu pai ou filho, se acontecia mata­lo em combate. 
Abandonava o cadáver no campo, e apenas cortava­lh a cabeça para espeta­la em um 
poste à entrada da taba, e arrancava´lhe o dente para troféu. (p.61)

c) Papel da mulher ­ a mulher indígena não participa da guerra ou do conselho 
dos anciãos. É, no entanto, responsável pela alimentação da tribo através da caça, da pesca e da 
agricultura, além de preparação dos alimentos. Na cultura indígena mostrada em Ubirajara, a 
mulher indígena é mostrada com esse perfil associado ao perfil romântico da mulher submissa, 
frágil,   dedicada,   que   se   restringe   a   cuidar   dos   filhos   e   do   marido   e   a   embelezar­se   para 
               
               

satisfazer   os   guerreiros,   sendo   muitas   vezes   reduzida   à   condição   de   objeto,   ao   servir   de 
presente para os estrangeiros e de companhia para os prisioneiros:
Neste momento as  mulheres, colocadas  em  duas  filas, com as mãos 
erguidas,   urdiam   os  fios   de  algodão,  passados   pelos  dedos  abertos   em  forma   de 
pente. Itaquê manejava a lançadeira, tão destro como na peleja vibrava o tacape. Sua 
mão ligeira tramava a teia de uma rede, que entretecia das penas douradas do galo­
da­serra. ( p.68)

Alencar igualmente descreve a sociedade indígena:
a)  Organização   social   ­   contra   a   idéia   de   um   primitivo   brutal,   a   sociedade 
indígena é descrita como bem organizada, liderada por um chefe – o guerreiro mais valente; 
conduzida em sua vida mística pelo pajé e orientada pela experiência do conselho de anciãos:
No fundo da ocara, o presidente do conselho dos anciões, que decide da 
paz ou da guerra e governa a valente nação.
Os anciões, sentados no longo jirau, contemplam taciturnos a geração 
de  guerreiros  que  eles  ensinaram   a  combater,   e  têm  saudades   da  passada  glória. 
(p.45)

b) Valores morais­ a organização social indígena cultiva valores extremamente 
positivos como:
• Coragem
Ele vem combater e ganhar um nome de guerra que encha de orgulho a 
sua nação. Torna à taba dos Tocantins e dize aos cem guerreiros cativos de teu amor 
que   Jaguaré,   o   mais   destemido   dos   caçadores   araguais,   os   desafia   ao   combate. 
(Ubirajara, p. 36)

• Hospitalidade
­   O   estrangeiro   veio   à   cabana   de   Itaquê,   grande   chefe   da   nação 
tocantim – disse Ubirajara.
­ Bem­vindo é o estrangeiro à cabana de Itaquê, grande chefe da nação 
tocantim.
Então o tuxava voltou­se para Jacamim, a mãe de seus filhos:
­   Jacamim,   prepara   o   cachimbo   do   grande   chefe,   para   que   ele   e   o 
estrangeiro troquem a fumaça da hospitalidade. (p. 68)

4  A VALORIZAÇÃO DO ÍNDIO NA VALORIZAÇÃO DA LINGUAGEM
               
               

Segundo Brasil (1980, p.45) os escritores românticos, principalmente José de 
Alencar, deram um novo sabor à linguagem literária brasileira, utilizando uma linguagem 
própria, diferente dos padrões europeus.
Alencar é também exaltado por ter sido um inovador no plano da linguagem não 
só pelo aproveitamento do material lingüístico indígena, como também pela utilização de 
uma   prosa   poética   singular,   caracterizada   pela   musicalidade   e   pela   grande   beleza   de 
imagens, aproximando narrativa da poesia, como se pode ver em O Guarani, em Iracema e 
em Ubirajara:

Apesar de ser um pouco mais de duas, o crepúsculo reinava nas profundas e sombrias 
abóbadas   de   verdura:   a   Luz,   coando   entre   a   espessa   folhagem,   decompunha 
inteiramente; nem uma réstia de sol penetrava nessa templo da criação, ao qual serviam 
de colunas os troncos seculares dos acaris e araribás. (p.23)

Retumba a festa na taba dos araguaias.
As fogueiras circulam a vasta ocara e derramam no seio da noite escura as chamas de 
alegria. (p.45)

Coutinho   (1980,   p.174)   afirma   que   o   movimento   Romântico   desempenhou 


papel   revolucionário,   reivindicando   os   direitos   de   um   dialeto   brasileiro   presente   nos 
“desvios” na ordem da fase, na colocação dos pronomes, buscando uma aproximação da 
língua falada com a escrita, da língua coloquial e da literária. Brasil (1980, p.47) acrescenta 
que Alencar enriqueceu esse “vocabulário brasileiro” com termos indígenas:
José de Alencar, por outro lado, como Gonçalves Dias, trazia para a prosa de 
ficção uma série de termos e vocábulos de procedência indígena, ou simplesmente 
inventados a partir dos étimos tupis. (Brasil, Assis 1980. p.47)

A incorporação de palavras de origem tupi como  ará(arara),  uru (cesto de palha), 


crautá  (planta que fornece fibra para tecidos) é referida por Faraco e Moura (1988, p.134), 
como tendo sido uma das maiores contribuições alencarianas à literatura brasileira. 
Beraldo   (1980,   p.44)  explica,   ainda,   que   Alencar   dispensou   um   tratamento 
particular à linguagem do índio, caracterizando­a como baseada em imagens e comparações. E 
é exatamente o que se percebe, por exemplo, em Iracema: Martim seguiu silencioso a viagem, 
que fugia entre as árvores como a selvagem cutia. (2003, p. 143).
               
               

Em O Guarani: 
Como Cecília estava bela nadando sobre as águas límpidas da corrente,... Parecia 
uma dessas garças, ou colhereiras de rósea cor que deslizam mansamente à flor do 
lago, nas tardes serenas , espelhando­se no cristal das águas. (p.58)

E em  Ubirajara:  A filha dos  Tocantins  tem no pé as  asas  do beija­flor; mas  a seta de 


Jaguarê voa como o gavião. (p. 35)
Coelho (1978, p. 33) se refere às contribuições de José de Alencar para a obra 
literária brasileira da seguinte forma:

O estilo de José de Alencar é uma das mais importantes contribuições de sua 
obra   à   literatura   do   Brasil.   Procurando   acomodar   à   melhor   forma   literária   um 
conteúdo   representativo   da   então   nascente   nacionalidade   brasileira,   uma   de   suas 
maiores preocupações foi o problema da língua e do estilo; a esse respeito, defendeu 
a tese que se confirmou com o tempo, segundo a qual os escritores, sem a pretensão 
de   criar   uma   língua   brasileira,   diferente   do   português,   deveriam   adaptar   às 
peculiaridades   nacionais   o   poderoso   instrumento   de   expressão   que   lhe   fora 
transmitido pronto e alicerçado em rica e absorvente tradição. Dessa compreensão é 
que decorre o seu estilo, que atende às exigências da forma narrativa, mas, também, 
traduz   particularidades   sintáticas   e   vocabulares   do   falar   brasileiro;   foi   ele   que 
enriqueceu   a   língua   literária,   acrescentando­lhe   numerosos   tupinismos   e 
brasileirismos.

5 CONSIDERAÇÕES FINA

As contribuições do Romantismo à cultura brasileira deu­se, sobretudo, através 
da criação de um estilo que reflete as peculiaridades sintáticas e vocabulares do português 
falado no país, uma adaptação às particularidades nacionais de uma língua literária recebida 
pronta e alicerçada em rica e absorvente tradição.
Alencar volta­se para o passado não para a destruição das tribos tupis, mas para 
a construção ideal de uma nova nacionalidade: o Brasil que emerge do contexto colonial. Por 
isso, José de Alencar procurou retratar o índio como um ser heróico, incorporando nele o mito 
europeu do bom selvagem, isto é, o índio como um ser generoso, bom e moralmente valoroso.
Nesse   percurso,   percebe­se   claramente   a   evolução   discursa   na   forma   de 
caracterizar   o   índio   brasileiro,   a   princípio   mais   próximo   do   modelo   europeu   e   depois 
conscientemente, mais amadurecido, em harmonia com seu povo e a natureza, distante das 
influências do colonizador.
Nas três obras de José de Alencar,  O Guarani, Iracema e Ubirajara  pode­se 
perceber nitidamente esse percurso, pois nas duas primeiras obras os índios se constituem 
como sujeitos apenas a partir da aproximação com o colonizador, abrindo mão do seu povo de 
sua cultura para se dedicar aos colonizadores. Já na terceira obra, Ubirajara, a preocupação era 
               
               

realmente a de resgatar não só a figura do índio, mas as suas crenças e cultura, pois a obra 
valoriza desde a linguagem tupi­guarani até os rituais das tribos.

ABSTRACT:La caractérization de l’indien de l’écrivain romantique José de Alencar, dans ses 
oeuvres  O Guarani,  Iracema  e  Ubirajara, dans une perspective  dialéthique.  Pour faire  ce 
parcours,   on   part   du   mouvement   Romantique   dès   se   origines   européennes,   et   pourtant   en 
donnant plus d’attention à ses caractéristhiques quand il arrive ici, au Brésil. Dans cet analise, 
on   aperçoit   les   interférences   du   modèle   européen   de   l’homme   virtueux   et   bon   (le   “bon 
sauvage”) dans la construction de l’indien brésilien dans la littérature romantique de José de 
Alencar, tandi que les contradictions entre le modèle romantique présenté et la vraie culture 
indiènne, reprise seulement dans la dernière oeuvre, d’une façon plus fidèle.
Mots­clés: Littérature Brésiliènne. Romantisme. José de Alencar. 

REFERÊNCIAS

ABAURRE, Maria Luiza. Português: língua e literatura. São Paulo: Moderna, 2000.

ALENCAR, de José. Iracema. São Paulo: Martin Claret, 2003.

______________ 0 Guarani. São Paulo: Martin Claret, 2003.

______________ Ubirajara. São Paulo: Martin Claret, 2003.
BERALDO, José Luiz. José de Alencar, seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico 

e crítico. São Paulo: Abril Educação (Literatura Comentada), 1980.

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.

___________ Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das letras, 1992.

COUTINHO,  Afrânio.  Introdução   à   Literatura   no   Brasil.  Rio   de   Janeiro:   Civilização 


brasileira, 1980. 
               
               

D’ONOFRIO, Salvatore  Literatura Ocidental Autores e obras fundamentais.  São Paulo: 


Ática, 1997.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Brasileira através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1997.

_______________ A Literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1968.

_______________ Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1986. 

SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.

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