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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I – SALVADOR


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

O LUGAR DA LITERATURA NOS ANOS FINAIS DO ENSINO


FUNDAMENTAL
Humbelina Santos da Silva1

[...] Mas para onde vamos quando queremos saber de nós mesmos? Nós, os leitores,
vamos à ficção para tentar compreender, para conhecer algo mais acerca de nossas
contradições, nossas misérias e nossas grandezas, ou seja, acerca do mais
profundamente humano. É por essa razão, creio eu, que a narrativa de ficção continua
existindo como produto da cultura, porque vem para nos dizer sobre nós de um modo
que as ciências ou as estatísticas ainda não podem fazer. Uma narrativa é uma viagem
que nos remete ao território de outro ou de outros, uma maneira, então, de expandir
os limites de nossa experiência, tendo acesso a um fragmento que não é o nosso.
Reflete uma necessidade muito humana: a de não nos contentarmos em viver uma
única vida e, por isso, o desejo de suspender um pouco o transcurso monocórdio da
própria existência para ter acesso a outras vidas e outros mundos possíveis, o que
produz, por um lado, certo descanso ante a fadiga de viver e, por outro, o acesso a
aspectos sutis do humano que até então nos haviam sido alheios (ANDRUETTO,
2012, p.54).

A longa reflexão poética da escritora argentina María Teresa Andruetto, que abre esta
escritura, faz parte da compilação de escritos apresentados em seminários e congressos, Por
uma literatura sem adjetivos (2012), em que tece considerações acerca do texto ficcional para
crianças e adolescentes. O trecho do ensaio homônimo tenta responder a indagações de que
outros já se ocuparam: “para que serve a ficção?”; “a ficção tem alguma funcionalidade, alguma
utilidade na formação de um indivíduo?”, apontando para o caráter humano do literário, ora
visto como necessidade, ora como uma percepção da sensibilidade.
A ficção, ao dialogar com o humano, proporciona pensar sobre si e sobre o mundo, como
afirma Roland Barthes (2007 [1977]). Uma das forças da literatura, segundo o autor, é que ela
“assume muitos saberes” e que a literatura “sabe de alguma coisa; ou melhor; que ela sabe algo
das coisas - que sabe muito sobre os homens”. Para Rildo Cosson, que atribui a leitura literária
a função de tornar o mundo compreensível, a ficção tem o papel “de construir e reconstruir a
palavra que nos humaniza” (2016, p. 23).
Antonio Candido (2004), em artigo profusamente citado, um pouco antes, amplia e
consolida essa discussão. Assinala a importância da literatura enquanto arte, destacando-a como

1
Aluna do Curso de Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens/PPGEL, vinculado
ao Departamento de Ciências Humanas do Campus I da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Escreveu o
paper para a Disciplina Seminário de Tese I, como requisito final de avaliação, orientado pela professora Sayonara
Amaral no primeiro semestre de 2022.
um direito do ser social, inalienável e incompressível (o que não pode ser negado a ninguém),
uma necessidade para o cidadão. Assim, dentro do processo de representação artística, a
literatura tem seu papel, o seu lugar. É uma necessidade que gera um direito, que deveria ser
garantido para todos. Logo, seria a escola uma das agências responsáveis por proporcionar seu
estudo, que é essencial em sua formação, garantindo o processo de humanização2, de cidadania.
Essas primeiras palavras destacam a importância da ficção, localizando-a dentro do
tecido social. Mais do que isso, ao refletir sobre o caráter humanizador da literatura e ao destacar
a arte e, consequentemente, a literatura como um bem, um direito que precisa ser assegurado,
coloca-se em questão a presença da literatura em espaços educacionais, principalmente na
escola pública que atende à classe trabalhadora. Esse direito tem sido assegurado? Como? Qual
seria o lugar da literatura na escola? Mais especificamente, qual é o lugar da literatura na escola
pública, no segmento dos anos finais do ensino fundamental (6º ao 9 ano)?
Em busca dessas respostas ou de apenas levantar outros questionamentos que caminhará
essa escrita preliminar.
Nos últimos anos observa-se um crescimento das discussões sobre a literatura e seu
ensino, principalmente, quando o foco são os anos iniciais do ensino fundamental (primeiro ao
quinto ano) e o ensino médio. Por outro lado, se percebe que as pesquisas voltadas para o ensino
de literatura nos anos finais do ensino fundamental não acompanham o mesmo movimento
ascendente, mostrando-se ínfimas. É o que revela uma breve consulta3 aos repositórios de
universidades públicas e o banco de dados da CAPES.
A primazia de interesse na pesquisa científica sobre ensino de literatura por esses
segmentos da educação básica não é uma mera coincidência e coaduna com o que é encontrado
em sala de aula na escola pública. Isto é, há um espaço reduzido para o literário nas aulas de
Língua Portuguesa nos anos finais do fundamental e, como consequência dessa “ausência”, há
um menor interesse nas pesquisas sobre esse tema.
Outra hipótese que pode ser analisada é a de que no Ensino Médio, assim como nos
Anos Iniciais do Fundamental, segmentos em que a literatura tem maior destaque, seja como

2
Importante não cair na “armadilha” da crítica literária à cultura de massa, nem na visão simplista e moralizante
de que ler Literatura torna os indivíduos automaticamente seres melhores, como observa Abreu (2006). Ao referir-
se ao aspecto humanizador, se considera que todo texto literário, o canônico ou best-seller, é capaz de promover
“reflexão e autoaprimoramento” e reitera-se o direito à literatura como direito à arte, um direito universal a
qualquer indivíduo (CANDIDO, 2004). Prazer, fuga da realidade, introspecção ou reflexão sobre si e sobre o
mundo, qualquer que seja as intenções ou necessidades desse leitor, serão necessidades humanas, que o
caracterizam como humano.
3
A consulta das teses, dissertações e artigos em repositórios da UFBA (Letras e Educação) e UNEB refere-se a
uma atividade da disciplina Seminários de Tese I. Como resultado do levantamento, percebe-se uma produção
científica significativa nos últimos doze anos sobre ensino de literatura, predominantemente localizada no ensino
médio e anos inicias do fundamental. Pouca produção centrada no segmento dos anos finais do fundamental.
uma disciplina, seja como conteúdo, os objetivos bem delineados justificariam a sua presença
no processo formativo. Deste modo, o docente percebe claramente a relevância da leitura
literária nos Anos Iniciais como uma ferramenta para consolidar aspectos da alfabetização e do
letramento, da mesma maneira, que reconhece a importância do literário no Ensino Médio como
instrumento que prepara o estudante para provas externas como o ENEM, desenvolvendo sua
criticidade.
Situação oposta é vivenciada nas séries finais do fundamental. Há uma lacuna, um vazio
acerca de que leituras e conhecimentos precisariam ser efetivados nesse segmento, exatamente,
no momento da formação em que poderiam ser construídas as bases e as pontes necessárias
para um trabalho consistente e mais complexo com o literário no Ensino Médio.
O menor espaço para a leitura literária no segmento dos Anos Finais é analisado pelo
pesquisador Celdon Fritzen:
[...] a partir da entrada no Ensino Fundamental II, a identificação com a leitura literária
por parte dos estudantes se vê comprometida e o consenso sobre seus préstimos no
que se refere aos professores se dissolve. Curiosamente, ainda é nesse estágio do
sistema formal de ensino que pesquisas apontam a perda do interesse pela leitura de
forma geral (2017, p. 115).

Ao discutir os problemas enfrentados para o ensino da literatura na Educação Básica,


Fritzen (2017) alerta também acerca do desapego com a tradição literária e com as
Humanidades observado na contemporaneidade, enquanto, por outro lado, há uma valorização
do pragmatismo e do tecnicismo. Dessa forma, a presença do literário na formação precisaria
ser o tempo todo negociada justificada para garantir, assim, a sua existência.
Ainda, para o autor, um dos possíveis motivos para o estreitamento do literário nos Anos
Finais deve-se a não clareza nos currículos no que se refere aos objetivos da leitura literária. E
problematiza que os documentos oficiais (BNCC e PCN) são, em muitos aspectos, controversos
acerca do papel da literatura na formação humana, não oferecendo nenhuma estratégia que
articule o uso artístico da linguagem com o uso instrumental de comunicação.
Faz-se mister lembrar de que as práticas de ensino de literatura nas escolas consistem
em um direito, constituindo uma exigência curricular, regulamentada por documentos oficiais
como os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (1998), pela Base Nacional Comum
Curricular – BNCC (2018) e pela própria lei de Diretrizes e Bases. Embora esses documentos
não descrevam exatamente como deve acontecer a abordagem do literário.
Salienta-se também que o não-lugar da literatura na Educação Básica e a perda do seu
prestígio de outrora deve-se, decerto, as aulas de Língua Portuguesa que ainda não privilegiam
como objeto de ensino a prática de leitura e de escrita. Se a leitura e a escrita não ocupam lugar
de destaque no ensino, a leitura do texto literário aparecerá como um adendo, subutilizada,
apertada, espremida e, por vezes, até esquecida entre tantas outras demandas.
Nas aulas de português, precisamente no segmento dos Anos Finais (Fundamental II),
ainda “impera” a “ditadura” do ensino prescritivo da gramática normativa, como se apenas este
conhecimento garantisse o “aprendizado” da língua. O que se vê é o predomínio de atividades
metalinguísticas descoladas de qualquer contexto e, muitas vezes, a partir de análises de frases
e palavras soltas, sem relação alguma com textos.
Outro pesquisador que traz uma reflexão sobre o literário na escola é Rildo Cosson, que
observa uma certa “falência no ensino de literatura” (2016 p. 23). Para o autor, existem alguns
indícios que comprovam o desaparecimento e/ou “estreitamento” da literatura na escola: a
adaptação, fragmentação e condensação dos textos literários no livro didático, que os fazem
concorrer com outros gêneros; a recusa da leitura de obras clássicas ou do cânone por
oferecerem “dificuldades” quanto ao vocabulário, sintaxe, temas e padrões distantes dos
interesses imediatos dos alunos; a representação do literário em outros veículos, não apenas o
livro, desta forma, o texto escrito/oral vem sendo substituído pela novela, filme, programa de
televisão, entre outros (2018, p. 13-14). Destarte, a explicação para o estreitamento da literatura
na escola seria a de que a noção do que é literatura ampliou-se de tal modo, a partir da
concorrência das novas tecnologias, mídias e influência da globalização, que não sabemos que
literário é esse. Logo, não sabemos também incorporá-lo na escola nem o usar como ponte para
dialogar com outros textos tradicionais.
A análise de Cosson encontra coro na pergunta: Se a literatura é importante e necessária,
sendo, outrora componente importante de ensino, por que vem sendo “esquecida”?
Se, no passado, a escola apoiava-se fortemente no ensino da literatura e, mesmo sem
ter como meta formar leitores, acabava, às vezes, contribuindo para isso, no presente,
dá as costas para a tradição e termina por privar os alunos de qualquer história. A
lógica que chamamos de retroativa é abandonada, sendo substituída por um
argumento perverso, conforme o qual, na falta da literatura consagrada, devemos ficar
sem nada. (ZILBERMAN, 2009)

No que se refere ao ensino de literatura no Fundamental, Cosson, cirúrgico, amplia


discussão:
[...], a literatura tem um sentido tão extenso que engloba qualquer texto escrito que
apresente parentesco com a ficção ou poesia. O limite, na verdade, não é dado por
esse parentesco, mas sim pela temática e pela linguagem: ambas devem ser
compatíveis com os interesses da criança, do professor e da escola, preferencialmente
na ordem inversa. Além disso, esses textos precisam ser curtos, contemporâneos e
“divertidos”. Não é sem razão, portanto que a crônica é um dos gêneros favoritos da
leitura escolar. Aliás, como se registra nos livros didáticos, os textos literários ou
considerados como tais estão cada vez mais restritos às atividades de leitura
extraclasse ou atividades especiais de leitura (2016, p.21).
O retrato apressado da educação literária nos anos finais construído até aqui não
contempla as especificidades de cada região do país, de cada estado, de cada município ou de
cada escola. Não capta também os outros diversos fatores que estão implicados na ausência da
literatura nas salas de aula como: políticas públicas contínuas para a valorização da
leitura/leitura literária; investimento ininterrupto em bibliotecas públicas e escolares; falta de
livros/materiais de leitura para todos os alunos; tempo/espaço para os professores lerem e
prepararem suas aulas; falta de formação continuada; maior espaço na academia para a
formação para a educação literária, entre outros.
É uma questão política pensar a educação na escola, principalmente quando pensamos
na escola pública. Educação é um direito ou um privilégio? A literatura é um direito ou um
privilégio? A quem interessa a não existência daquilo que é um direito incompressível para a
parcela mais pobre da população?
Segundo a pesquisadora e professora Maria Amélia Dalvi, para se pensar em uma
educação literária possível é imprescindível, no contexto brasileiro de tantas exclusões e de
tantos desrespeitos aos direitos, entendê-la como uma educação literária de resistência, aquela
que “precisa assumir a estreita relação entre literatura e sociedade”, (2021, p.35),
compreendendo-a dentro de um sistema econômico, político, social e cultural.
Se não existe respostas prontas e acabadas para o ensino de literatura na escola, há,
entretanto, muita coisa a se fazer.
Primeiramente, é preciso garantir a literatura na escola, em todos os segmentos. E que
essa literatura seja compreendida como uma experiencia leitora. O aluno experimenta a leitura
literária, dialoga sobre suas leituras, comenta, compara, apreende sobre o mundo, sobre si e os
outros.
Entender, em segundo lugar, que é política a sua ausência nas salas de aula, assim como
é política a escolha/seleção da obra a ser trabalhada. Mais do que pensar no livro ou qualquer
obra apenas pensando na tradição, no cânone, é preciso pensar no que o texto pode proporcionar
à formação de leitores.
É necessário pensar a literatura em todo seu potencial de transgressão. Desse modo,
pensar literatura é compreendê-la enquanto deslocamento, jogo de sentidos, ressignificação e
desvio. Distinto da perspectiva que fez da escolarização do estudo literário, baseado em listas
e exercícios com respostas, o modo de leitura literária na escola.
REFERÊNCIAS

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experimental. Trad. Gênese Andrade. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

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adjetivos. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012. P. 52-70.

BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio da


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Paulo: Cultrix, 2007.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base nacional comum


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Acesso em: dez. 2018.

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curriculares nacionais: Língua Portuguesa. Brasília: MEC, SEF, 1998.

CANDIDO, Antônio. “O direito à Literatura”. In:_____. Vários escritos. São Paulo: Duas
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COLOMER, Teresa. Andar entre livros: A leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007.

COSSON, Rildo. Letramento literário: Teoria e prática. São Paulo: Editora Contexto, 2016.

COSSON, Rildo. A formação do professor de literatura – uma reflexão interessada. In:


PINHEIRO, Alexandra Santos; RAMOS, Flávia Brocchetto (Orgs.). Literatura e formação
continuada de professores: desafios da prática educativa. Campinas: Mercado de Letras,
2013. p. 11-26. Disponível em: < https://www.mercado-de-letras.com.br/resumos/pdf-27-08-
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DALVI, Maria Amélia. Educação, literatura e resistência. In: MACEDO, Maria S. A. N.


(Org.). A função da literatura na escola: resistência, mediação e formação leitora. São Paulo:
Parábola, 2021. p 17-41.

FRITZEN, Celdon. O entorno da pergunta “o que significa ensinar literatura?”: reflexões


sobre seu lugar e papel na Educação Básica. In: CECHINEL, Andre; SALES, Cristiano de.
(Org.). O que significa ensinar literatura? Florianópolis: EdUFSC; Criciúma: Ediunesc,
2017.

ZILBERMAN, Regina. Qual literatura para escola? Revista do Programa de Pós-Graduação


em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 5 - n. 1 - 9-20 - jan./jun. 2009.

ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da Literatura. São Paulo: Ática, 1989.

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