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RESENHA

98 PERSPECTIVA, Erechim. v. 41, n.156, dezembro/2017


PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva.
Trad. Celina Olga de Souza. São Paulo: Editora 34, 2008.

Alexandre Leidens*
Fabiano Tadeu Grazioli**

*Mestrando em Letras no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Tecnológica


Federal do Paraná, Campus de Pato Branco (UTFPR). Licenciado em Letras (Habilitação
em Língua Portuguesa) pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões - URI Erechim. Orientador de atividades: Letramento, no SESC
de Francisco Beltrão. E-mail: leidens.ale@gmail.com
**Doutorando em Letras na Universidade de Passo Fundo (UPF). Mestre em Letras pela mesma
universidade. Professor do Departamento de Linguística, Letras e Artes da Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI Erechim e da Faculdade Anglicana de Erechim/RS.
E-mail: tadeugraz@yahoo.com.br

Data do recebimento: 23/08/2017 - Data do aceite: 05/09/2017

Michèle Petit é antropóloga e desenvolve e segregação lá ocorridos. Essa pesquisa,


pesquisas relacionadas à leitura no Centre baseada em relatos orais de jovens leitores,
National de la Recherche Scientifique, na entre 15 e 30 anos, e apresentada na forma
França, há mais de 20 anos. É coordenadora de palestras, no México, originou o livro Os
de um programa internacional que focaliza a jovens e a leitura: uma nova perspectiva. A
leitura em espaços de crise, seja em um âm- obra recebeu, em 2009, o Selo de “Altamente
bito de deterioração econômica ou migrações Recomendável”, da Fundação Nacional do
forçadas, seja em uma realidade de violência Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), atestando
social ou guerra. Inicialmente, nos estudos não só a sua pertinência, mas também a
constitutivos da obra resenhada, interessou-se necessidade de uma maior profusão de suas
pelo desenvolvimento da leitura nas zonas reflexões e análises para a discussão e debate
rurais francesas. Ganhando uma amplitude da leitura também em outras realidades, como
maior, sua pesquisa chegou às comunidades a do Brasil.
e bairros marginalizados das grandes cidades A autora apresenta reflexões bastante
da França, onde busca saber qual a relação pontuais sobre vários aspectos que influen-
das bibliotecas públicas, localizadas em tais ciam a leitura, sobretudo a leitura literária
comunidades, com os processos de exclusão na vida de moradores de um meio rural ou

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marginalizado, nos quais os livros são, mui- sentimento de pertencimento e de isolamento
tas vezes, repudiados. A obra é dividida em que a literatura é capaz de causar, principal-
quatro capítulos, nos quais Petit apresenta mente aos imigrantes que vivem segregados
uma visão abrangente do contexto envolvido em bairros afastados dos centros das grandes
tanto no campo, quanto na cidade, utilizando cidades francesas, e fecha o capítulo discor-
vários relatos de leitores entrevistados, que rendo sobre as novas perspectivas de vida
corroboram a discussão. desses jovens que, a partir do momento em
O primeiro capítulo do livro descreve que começaram a ler ou a frequentar uma
duas vertentes da leitura. Baseando-se em biblioteca, conseguiram enxergar novos
pesquisas anteriores, a obra apresenta dados horizontes para suas vidas e sobre como
que revelam que a leitura silenciosa, intros- professores e bibliotecários podem contribuir
pectiva, solitária, é relativamente recente nessa jornada.
nos meios rurais franceses. Essa prática, O segundo capítulo, intitulado O que está
aparentemente, foi posterior à leitura coletiva em jogo na leitura hoje em dia, inicia com
realizada em família, durante o catecismo alguns excertos de entrevistas que explicitam
ou em internatos. Fase essa que é, segundo a visão da leitura por dois jovens imigrantes
a autora, característica da época em que ha- africanos que vivem na França, frequentam
via uma grande manipulação e um controle bibliotecas e concebem a leitura como a pos-
rigoroso dos textos escritos, de modo que os sibilidade de escolherem o próprio destino,
livros, os textos e a escrita demonstrassem poder fazer escolhas individuais, diferentes
domínio, superioridade e poder. Sobre isso, das dos demais em sua comunidade. Ancora-
ainda, a mesma lembra que “manipular a da nessas entrevistas e em outras, posteriores,
escrita permite aumentar o prestígio junto Petit desenvolve uma análise da situação,
a seus semelhantes.” (PETIT, 2008, p. 25). afirmando que “muitas vezes o saber é con-
De outro modo, a pesquisadora menciona siderado como a chave para se alcançar a
que por mais que haja esforços para manter dignidade e a liberdade. E a busca de sentido
a manipulação sobre os demais a partir da também não se encontra muito distante.”
escrita, assim que as pessoas fizerem a lei- (2008, p. 65). Considerando, ainda, que o
tura, indubitavelmente, se apropriarão dos francês é uma segunda ou terceira língua
textos, dando-os outro significado, mudan- para a maioria dos imigrantes entrevistados,
do seu sentido, interpretando-os de outras a autora lembra ser a apropriação do francês
formas. Dessa forma, a leitura passa a ser uma dificuldade comum entre eles. Essa é
uma afirmação de singularidade, podendo uma preocupação nos meios rurais também,
servir, também, como uma fuga do tempo onde a prática desenvolta da língua é um dos
e do espaço em que o leitor se encontra. A maiores objetivos da leitura. Nos dois casos,
autora aborda, assim, uma perspectiva de todavia, há a concordância de que a prática
leitura como independência do ser humano, da cidadania requer um bom desempenho
como autonomia, como construção de si linguístico. Nessa perspectiva, Petit cons-
mesmo, de modo que “mesmo que a leitura tata, ainda, que a leitura difere das outras
não faça de nós escritores, ela pode, por um práticas de lazer, pois propicia ao jovem uma
mecanismo parecido, nos tornar mais aptos identidade mais aberta, em evolução, não
a enunciar nossas próprias palavras, nosso excludente. Além disso, o livro, para os su-
próprio texto, e a ser mais autores de nossas jeitos pesquisados, é mais importante do que
vidas.” (PETIT, 2008, p. 37). Em seguida, a televisão ou outra mídia qualquer porque
Petit desenvolve algumas reflexões como o os permite sonhar, ver outras possibilidades,

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realidades, experimentar outras experiências bibliotecas são uma minoria. Embora suas
e emoções, permitindo que os imigrantes não histórias pessoais e como leitores sejam
se enxerguem como diferentes, excluídos, diversificadas, a autora constata que a influ-
mas percebam a riqueza de sua diversidade ência seja em um professor, bibliotecário,
cultural e valorizem-na. amigo, parente ou contador de histórias é
No terceiro capítulo da obra, O medo do praticamente unânime.
livro, a reflexão inicia com os problemas No último capítulo da obra, intitulado O
enfrentados por leitores em relação ao seu papel do mediador, a pesquisadora observa
grupo social, sobretudo pelo distanciamen- que, muitas vezes, há uma relação afetiva
to que a leitura necessita. Nesse espaço, a entre o mediador e o leitor. Alguns dos jovens
autora cita vários exemplos de preconceito leitores entrevistados relataram um fracasso
sofrido por leitores, tanto nas cidades como escolar; todavia, estavam muito bem consti-
no campo, afirmando que “muitos habitantes tuídos como leitores, pois com o apoio encon-
do campo mencionaram a difícil conquista de trado, sobretudo na biblioteca, muitos deles
um espaço de leitura, um pouco clandestino: conseguiram mudar seu destino, enxergando
quantas recordações de leituras feitas à luz novas perspectivas de vida e possibilidades
de uma lanterna, sob os lençóis, até mesmo para o futuro. Diferentemente da escola,
à luz da lua!”. (PETIT, 2008, p. 107). A lembrada muitas vezes com desdém, cujo
pesquisadora lembra, ainda, que os leitores, sofrimento e a hostilidade ganham espaço,
nesses meios, são vistos como trânsfugas, a biblioteca é um lugar afetuoso, cordial e
principalmente porque “podiam, dessa forma, singular. De modo diverso, a biblioteca pode
sair de um modelo de vínculo social em que ser usada com objetivos para escolares para
o grupo exercia um domínio sobre cada um. muitas crianças e jovens; no entanto, não
Era uma oportunidade de se dizer que pode- poucas são as que deixam essa utilidade do
riam ter uma opinião, em vez de ter sempre espaço para usufruírem, de fato, do acervo
que se submeter aos outros”. (PETIT, 2008, da biblioteca. Outrossim, outro aspecto que
p. 109-110). As próprias culturas de locais preocupa a autora é a passagem de um fase
específicos como o Mali não aceitam a leitu- para a outra, seja da literatura infantil para a
ra. Neste país, o indivíduo que se isola com juvenil, seja da juvenil para a adulta ou na
objetivos de ler ou escrever é chamado de “o mudança de um estilo para outro. Esse é um
mau”. Em consonância, a autora lembra que, momento delicado, pois é necessária uma
muitas vezes, a leitura não é permitida pelos grande sensibilidade do bibliotecário para
poderes constituídos, como os governos. Para que essa travessia seja realizada da forma
comprovar isso, Petit cita algumas proibições mais natural possível. Para isso, a biblioteca
aos livros, como a promovida por Pinochet precisa ter um acervo considerável. Sobre
no Chile dos anos 80, em que D. Quixote foi esse quesito, Petit frisa que em algumas
proibido por ser libertário e ir de encontro bibliotecas essa transposição do leitor é
à autoridade constituída. Além desse caso, impossível. Por fim, a obra é finalizada com
outros são lembrados, como as perseguições alguns relatos dos entrevistados em que fica
e mortes a escritores promovidas em países explícita “a confiança que depositaram nessa
como o Egito, o Irã e a Turquia. Petit não cultura e na biblioteca; a convicção de muitos
termina o capítulo sem antes refletir sobre deles de terem encontrado ali oportunidades
como todos se tornam leitores. Nesse meio, para compensar um pouco as desvantagens
deve-se ressaltar que os sujeitos pesquisados, que marcaram seu trajeto, para se abrir a ou-
os leitores, os frequentadores assíduos de tras possibilidades.” (PETIT, 2008, p. 189).

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A pesquisa de Petit ressalta a relevân- incoerências e, por vezes, a ironia que apa-
cia e a importância da leitura para jovens rece em alguns casos de pseudoincentivo à
desfavorecidos, sobretudo por questões leitura. De fato, a leitura que a autora faz
sociais e familiares, que encontraram outra não só sobre a importância, mas também
perspectiva de vida a partir do momento sobre a necessidade das bibliotecas e da
em que começaram a ler. Não obstante, a leitura para o desenvolvimento cognitivo
autora não se detém apenas nos benefícios e afetivo dos sujeitos pesquisados é, sem
da leitura, ela faz uma análise rigorosa de dúvida, esclarecedora, suscitando inúmeras
uma cadeia de fatores que impedem ou reflexões, seja para professores, pesquisado-
desestimulam a mesma, apontando falhas, res ou bibliotecários.

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