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In Lilia Moritz Schwarcz, Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello


( Belo Horizonte e São Paulo: Editora UFMG e Editora Fundação Perseu
Abramo,2008), pp. 13-34

Sexteto pernambucano – Evaldo Cabral e a Formação da Consciência


Colonial e Regional no Nordeste

Em um sexteto de monografias inter-relacionadas, Evaldo Cabral de Mello


produziu um dos projetos históricos brasileiros mais ambiciosos e bem sucedidos do fim
do século vinte. Seu estudo da Zona da Mata pernambucana foi concebido como uma
história provincial, mas de escala imperial. Apesar de abordar importantes aspectos
políticos e sociais de um vasto período, que se estende de meados do século dezessete a
inícios do século dezenove, Evaldo sempre manteve a aristocracia açucareira
(açucarocracia) do nordeste como foco principal de seu projeto. Mais especificamente,
procurou mostrar como tal aristocracia, em um ato de nativismo aristocrático,
apropriou-se do mérito da recuperação de Pernambuco em relação ao domínio holandês
como forma de justificar sua dominância política e social –a qual foi utilizada na
formação de uma visão federalista do Brasil independente.1
Como historiador, Evaldo acredita que a melhor maneira de se escrever um
trabalho em sua área de estudos é dividindo-o em uma série de pequenas partes, como
as peças de um quebra-cabeça, uma vez que, encontrando as conexões entre elas e
unindo-as em uma só, consegue-se enxergar o cenário mais amplo e suas implicações. 2
Sua técnica de redigir trabalhos individuais também pode ser útil para a compreensão do
desenvolvimento de sua produção histórica como um todo. A partir de 1975, os livros
de seu projeto começaram a surgir, um a um, e sem qualquer anúncio a respeito de sua
pretendida relação mútua. Logo, foi apenas com a passagem do tempo e a acumulação

1
Evaldo Cabral de Mello, Rubro veio. O imaginário da Restauração pernambucana (Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1986), 100-101.
2
Evaldo declarou: “O bom é ir escrevendo por partes, ou antes, como uma quebra-cabeça que se vai
armando… Não consigo entender como alguém pode pesquisar e aprender tudo sobre um tema, e só então
começar a escrever. Isso é demasiado francês para mim.” Ver a entrevista em José Geraldo Vinci de
Moraes e José Marcio Rego, Conversas com historiadores brasileiros (São Paulo: Editora 34, 2002), 135-
62.
2

dos volumes nas estantes, que sua unidade se tornou evidente, tanto para os leitores
quanto para o próprio autor. O objetivo de Evaldo era escrever uma história com foco e
natureza regionais, mas livre dos usuais pecados do exagero localista e da miopia
provinciana. É uma história que se concentra na realidade e ideologia das elites que
retrata, e em como, como coloca Evaldo, o “tema da restauração como empresa
histórica da ‘nobreza da terra’ passou a constituir, à medida que se aguçava o conflito
entre mazombos e mascates, a justificação do direito que ela se arrogava de dominar
politicamente a capitania”.3 Na realidade, o sertão e o agreste de Pernambuco o
interessavam muito pouco. A história de Evaldo é, essencialmente, a história da posição
política e social de uma classe proprietária provinciana, a nobreza da terra, da zona da
mata pernambucana. É também uma história na qual as questões da autonomia e da
federação são analisadas como alternativas políticas ao tradicional discurso brasileiro da
unidade, nação e império.
Pernambuco, berço das revoltas republicanas e federalistas do século dezenove,
é, obviamente, miradouro para tal estudo. Evaldo Cabral de Mello ficou fascinado com
a ideologia política pernambucana, chegando a afirmar, em concordância implícita com
o comentário de Robert Southey, que “quanto mais aprend[ia] história colonial, melhor
perceb[ia] a tendência natural de todas as colônias para o regime republicano ”.4 O que
Evaldo fez foi buscar as raízes coloniais do nativismo e do federalismo. Para ele, a
identidade nacional era uma invenção, e afirmava sem hesitação: “somos todos
provincianos”.5 Seu projeto sempre fora abertamente regionalista.6
Os seis volumes de Evaldo Cabral sobre a Pernambuco colonial constituem um
ambicioso exercício historiográfico que cobre o período que vai de meados do século
dezessete a meados do dezoito, tendo sido concluído nas primeiras décadas do século
dezenove.7 Eles entrelaçam eventos e personalidades, assim como as representações e

3
Cabral de Mello, Rubro veio, 101.
4
Joaquim de Souza Leão, ed. “Cartas de Robert Southey a Theodore Koster e Henry Koster (anos de
1804-1819), Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 178 (1943), 45, em Evaldo Cabral
de Mello, A fronda dos mazombos (São Paulo: Companhia das Letras, 1995), 490. Ele explorou este tema
em A Outra independência. O federalismo pernambucano de 1817 a 1824 (São Paulo:Editora 34, 2004).
5
Rachel Bertol, “Peripécias de Evaldo Cabral,” www.topbooks.com.br/frEntrevistas. Outra excelente
entrevista, que revela muito de seu pensamento, pode ser encontrada em: “O Saber historiográfico.
Entrevista de Evaldo Cabral de Mello a Pedro Puntoni,” Novos Estudos (CEBRAP), 37 (1993), 103-20.
Ver também, Vinci de Moraes e Marcio Rego, Conversas com historiadores brasileiros, 135-62.
6
Não se incluí, nesta análise, outros escritos de Evaldo Cabral de Mello que tratam de Pernambuco no
século dezenove, tais como O Norte agrário e o império (Rio de Janeiro, 1984) e “O fim das casas-
grandes,” em Fernando A. Novais (coord.) História da vida privada no Brasil. 4 vols. (São Paulo, 1997-
98), 2: 385-438.
7
Evaldo Cabral de Mello, A Outra Independência. O federalismo pernambucano de 1817 e 1824 (São
Paulo: Editora 34, 2004) leva a história a incluir as revoltas pernambucanas da época da independência.
3

mitos que a estes se vinculam. Em certo sentido, o paralelo mais próximo ao projeto de
Cabral de Mello pode ser encontrado nos três magníficos volumes sobre o Brasil
colonial produzidos nos anos 1960 por Charles Boxer. Afinal, Boxer também se ocupa
dos séculos dezessete e dezoito, e dedica grande parte de dois dos três volumes acima
mencionados à batalha contra os holandeses. Assim como Evaldo, Boxer não era um
historiador acadêmico, e possuía o dom de escrever para um público amplo. A trilogia
de Boxer não é tão especificamente regionalista quanto a de Cabral de Mello, tendo sido
escrita em um momento historiográfico distinto e, originalmente, para um público não
brasileiro.8 Contudo, é uma tentativa de cobrir, através de três livros que costuram em
sua narrativa temas de política, economia e história social, a essência da história
colonial brasileira até o período pombalino.9 Da mesma forma que Evaldo, Boxer
também tinha gosto pela narrativa e acreditava ser possível reconstruir o passado de
maneira acurada. Por outro lado, interessava-se menos que seu colega pela criação de
uma consciência histórica, ou imaginário, e na capacidade de tal consciência de
influenciar eventos e ter implicações políticas. Nesse sentido, o projeto de Evaldo
espelhou-se, definitivamente, nas tendências historiográficas das últimas décadas do
século vinte, revelando a influência de historiadores e pensadores franceses como
Fernand Braudel, Georges Duby, Immanuel Le Roy Ladurie, Paul Veyne, e Cornelius
Castoriades, a quem teria sido apresentado.
Diversos comentaristas já afirmaram que Evaldo não é um historiador
acadêmico, mas tal observação é, em certo sentido, errônea. É verdade que ao longo dos
anos ele tem se mostrado pouco afeito às conferências, palestras e à confecção de
resenhas, que compõem grande parte das tarefas na vida de um “historiador acadêmico”.
Ele não gosta de lecionar e chegou a declarar: “Tenho horror da universidade”. 10 Mas,
durante seu treinamento na Europa, trabalhou com historiadores profissionais, e seus
métodos de pesquisa historiográfica e em arquivos certamente satisfazem os mais
exigentes padrões acadêmicos. A carreira de Evaldo é, provavelmente, melhor
Isto deixa uma lacuna em sua cobertura cronológica de Pernambuco na era de Pombal e da Companhia de
Pernambuco e Paraíba, e na do Bispo Azeredo Coutinho.
8
Charles R. Boxer, Salvador de Sá and the Struggle for Brazil and Angola,1602-1686 (London, 1952);
The Dutch in Brazil, 1630-54 (Oxford, 1957); The Golden Age of Brazil, 1697-1750l (Berkeley, 1964).
9
É importante observar que Boxer não foi inicialmente um historiador do império português e que, depois
de 1964, embora continuasse a publicar artigos e capítulos sobre temas brasileiros, seu principal interesse
era o estado português da Índia e da Holanda, e a luta portuguesa pela hegemonia na Ásia. Sobre a
cronologia da vida de Boxer e suas preferências pessoais, ver: Dauril Alden, Charles R. Boxer. An
Uncommon Life (Lisbon: Fundação Oriente, 2001).
10
Rachel Bertol, “Peripécias de Evaldo Cabral,” Evaldo falou: “O grande professor é, no fundo, um
grande ator. Georges Duby foi um ótimo professor que tive, na França. Era impressionante. Parecia um
sujeito da Comédie Française.”
4

compreendida a partir de uma outra tradição da historiografia, com profundas raízes na


vida brasileira. O serviço diplomático, com suas longas estadas em cidades que
abrigavam os arquivos da história brasileira, fora o ponto de partida de outros antes
dele. Em meados do século dezenove, o grande Francisco Adolfo Varnhagen, pai da
historiografia brasileira moderna, convertera seus modestos postos diplomáticos em
molas propulsoras da pesquisa histórica. José da Silva Paranhos, conhecido como o
Barão do Rio Branco, veio a empregar, posteriormente, o gosto pelos arquivos e pela
história, adquirido na juventude, em proveito de sua carreira diplomática. Para Evaldo, a
história era uma vocação e uma paixão que se desenvolveram a partir de sua história
pessoal de pernambucano advindo de um meio social e intelectual particular, de sua
experiência diplomática, e de suas observações a respeito do passado do país.
Apesar de Evaldo não se considerar um historiador econômico ou um
materialista, seu projeto como um todo é apresentado contra o pano de fundo da
realidade econômica, a qual tem constantemente desempenhado importante papel em
sua análise. A produção e o preço do açúcar são para ele as bases de tudo. A grande
expansão da economia açucareira e os altos preços do açúcar no século dezessete
fizeram de Pernambuco a mais rica capitania brasileira, e um alvo natural da Companhia
das Índias Ocidentais em 1630. Mas o declínio do açúcar na década de 1640 fez com
que a Companhia intensificasse as pressões sobre seus devedores, o que acabou
ajudando a precipitar o movimento da “Liberdade Divina”. Ao longo das três décadas
seguintes, os baixos preços do açúcar dificultaram o financiamento da guerra e, ao
mesmo tempo, estimularam os holandeses a abrir mão do dispendioso esforço de
assegurar a posse do nordeste brasileiro. Por volta de 1680, o preço do açúcar brasileiro
correspondia a apenas um terço de seu valor nos anos 1650 e, apesar de ensaiar uma
recuperação a partir dos anos 1690 e nas primeiras décadas do século dezoito, esta foi
apenas modesta. Tempos difíceis contribuíram para gerar as condições que levaram à
crescente rivalidade entre Recife e Olinda.11 Da mesma forma como a história da
Revolução Francesa não se limita aos pedaços de pão de Paris, o açúcar, por si só, não
explica Pernambuco. De toda forma, a realidade do preço e da produção do açúcar está
por detrás do projeto de Evaldo e tem, frequentemente, determinado sua interpretação
sobre eventos e mentalidades.
A complexidade de sua análise remete à complexidade da política do mundo
luso-atlântico. Entre 1580 e 1700, uma série de mudanças políticas alterou o status do
11
O nome e o sangue, p. 39-40;
5

Brasil e sua importância relativa no Sistema Atlântico. A união das Coroas de Portugal
e Espanha, em 1580, precedeu o espetacular crescimento da economia açucareira
brasileira, fornecendo o contexto no qual esta indústria floresceu. Naqueles dias, o
açúcar brasileiro, os escravos africanos ocidentais e a pimenta indiana eram meios para
se obter a prata hispano-americana. Durante sessenta anos (1580-1640), o Brasil tornou-
se uma grande colônia açucareira e, desta forma, atraiu a cobiça dos inimigos dos seus
reis Habsburgos espanhóis. Nesse sentido, os ataques holandeses à Bahia (1624) e,
posteriormente, a Pernambuco e ao nordeste (1630-1654), resultaram diretamente do
sucesso da Colônia e da posição política de Portugal no interior dos reinos unidos dos
Habsburgos espanhóis. Mas a separação de Portugal da Espanha, em 1640, alterou as
relações com os inimigos da Espanha. Nesse sentido, os anos da Restauração
Portuguesa (1640-1688) foram complicados, de guerras e de diplomacia, uma vez que
Portugal tentava, simultaneamente, manter sua independência e reter seu império. Esta
cronologia política sobreposta forma o pano de fundo e contexto dos volumes da Ilíada
Pernambucana que Evaldo nos oferece.
Cronologicamente, o ponto de partida do projeto de Evaldo é Olinda Restaurada
(1975). Em certo sentido, é possível considerar este livro o mais analítico e mais
“acadêmico” do quinteto, uma vez que não é uma narrativa da invasão holandesa e do
subseqüente levante contra os ocupantes (a “Guerra da Liberdade divina”), mas uma
série de ensaios integrados que analisam aspectos específicos da época dos flamengos,
especialmente os dois temas do subtítulo: guerra e açúcar. 12 Em 1969, Charles Boxer
solicitou o fim das publicações a respeito do período holandês, alegando já haver
suficiente material de boa qualidade referente àquele período histórico relativamente
breve.13 Felizmente, Evaldo ignorou sua sugestão. A tese central de seu livro era a de
que haveria, em realidade, duas guerras no nordeste. A primeira, a Guerra da
Resistência, fora uma árdua e fracassada campanha guerrilheira que terminou em 1637,
e a segunda, a Guerra da Restauração (1645-54), obtivera finalmente a vitória. Mas
ambas foram guerras do açúcar; não apenas porque holandeses e portugueses lutaram
pela posse do produto, mas também porque o fizeram, em última instância, nos
engenhos e canaviais de seus rivais, e porque dependiam do açúcar para guerrear. Em
face da taxação, houve confiscações, migrações forçadas, incêndio de engenhos e

Francisco Adolfo de Varnhagen, História das lutas com os holandeses no Brasil (Viena, 1871).
12

C. R. Boxer, “Some Reflections on the Historiography of Colonial Brazil,” em Dauril Alden,(ed.)


13

Colonial Roots of Modern Brazil (Berkeley: University of California Press, 1973), 3-25. Reimpresso em:
Charles Ralph Boxer, Opera minora, 3 vols. Até hoje. (Lisboa: Fundação Oriente, 2002), 55-69.
6

canaviais. Senhores de engenho e lavradores de cana mobilizaram seus recursos,


humanos e econômicos, na guerra. Sua vitória, contudo, incentivou Portugal a demandar
continuamente receitas provenientes da taxação do açúcar, o que impediu a recuperação
do nordeste.
O açúcar permitiu a Portugal recuperar sua colônia, mas impediu-a de se
recuperar. Isso ocorreu devido a uma conjuntura de desvalorização do açúcar após 1650
e ao papel deste produto na luta de Portugal por sua independência frente à Espanha.
Criou-se um círculo fechado. Pouco capital estava disponível para investimento e
expansão da indústria açucareira; consequentemente, a taxação sobre esta indústria teve
que se manter pesada.
O grande tema de Olinda Restaurada é a “Guerra brasílica”. Mas o que mais
fascina Evaldo não é a guerra propriamente dita mas, à sombra de Fernand Braudel, sua
logística: como a guerra era financiada e como os exércitos eram recrutados e mantidos
no campo de batalha. Estes são os temas que permitem a Evaldo explorar as políticas e
limitações de ambos os lados do Atlântico; e é demonstrando a auto-suficiência e os
esforços das forças locais que ele estabelece as bases para a compreensão do orgulho
dos habitantes da colônia em sacrificar seu sangue e fazendas, e de sua frustração em
participar de um sistema de reciprocidade e lealdade para com uma Coroa que
consideravam ingrata e mesquinha. Esse sentimento de traição talvez tenha sido
exagerado. Como argumenta Luis Felipe de Alencastro, muitos dos notáveis
participantes da restauração pernambucana foram recompensados com a obtenção de
cargos, de governador e outras posições de autoridade, em Angola, Pernambuco e outras
partes do Brasil, na criação de um Sistema Sul-atlântico. 14 Contudo, os moradores
acreditavam que a Coroa relutara em reconhecer seus singulares esforços, e tal
percepção tornou-se a causa de contínuas queixas entre os pernambucanos vitoriosos e,
mais tarde, entre seus descendentes.15
Vencer as batalhas contra os holandeses em Tabocas e Guararapes foi apenas
parte da história. A partir de uma perspectiva imperial ou atlântica, uma história mais
acurada, e ainda pouco conhecida no Brasil, precisava ser contada. Em O negócio do
14
Luis Felipe Alencastro, O Trato dos viventes. A formação do Brasil no Atlântico Sul (São Paulo:
Companhia das Letras, 2000).
15
É interessante notar que tais argumentos não eram estratégia exclusiva dos pernambucanos. Em 1753,
os senhores de engenho da Bahia argumentaram que seus ancestrais tinham sacrificado sangue e fortuna
para tomar o Brasil de índios selvagens, e que os senhores de engenho continuaram a confrontar o poder
dos índios em benefício do cetro português. AHU, Bahia, papéis avulsos, caixa 63 (1753)1ª serie não
catalogada. Ver minha discussão em: “Formação de uma identidade colonial,” em Da América
portuguesa ao Brasil (Lisboa: Difel, 2003), 217-71.
7

Brasil (1998), Evaldo situa a restauração pernambucana no contexto da história da


campanha diplomática portuguesa durante a Guerra da Restauração contra a Espanha. 16
Esta notável história fora mostrada anteriormente por acadêmicos, como o historiador
inglês Edgar Prestage, em monografias e volumes editados de correspondência
diplomática, mas jamais ocupara lugar de destaque na historiografia brasileira. 17 Como
pôde Portugal, após 1640, readquirir sua independência e reter seu império, se suas
fronteiras sofriam pressão de Castela, suas colônias eram atacadas pelos holandeses e
rompera relações diplomáticas com Roma e fora manipulado e traído por seus aliados
mais poderosos, França e Inglaterra? Evaldo esclarece que tal fato não foi produto da
genialidade de Bragança nos campos da liderança e engenharia política, tampouco da
peculiar eficiência dos diplomatas portugueses e, sim, de uma fortuita associação entre
vitórias coloniais (como a reconquista de Pernambuco, e a retomada de Luanda por
Salvador Correia de Sá, em 1648), do contexto histórico vivido pela Europa ao fim da
Guerra dos Trinta Anos e da capacidade de Portugal de financiar suas campanhas
militares e diplomáticas durante o período citado. Tal capacidade adveio da receita
adquirida por via do comércio colonial e de seus próprios produtos, tais como o vinho e
o sal. Isso foi o que permitiu a Portugal sobreviver a este difícil período, no qual
Estados como a Catalunha e a Escócia, que não dispunham de semelhantes vantagens,
foram incorporados a ou absorvidos por monarquias compósitas.
O negócio do Brasil deixa claro que guerra e diplomacia atuaram juntas no
sucesso de Portugal e na vitória final dos colonos no nordeste brasileiro. A batalha de
Guararapes foi um elemento crucial na vitória, mas Pernambuco era apenas parte de
uma luta global, e a recuperação de Recife em 1654 poderia ter sido apenas uma vitória
temporária, caso o preço do açúcar no mercado de Amsterdã não houvesse caído, ou se
os portugueses não tivessem sido capazes de comprar a aquiescência holandesa através
de dinheiro, concessões e comércio. Como coloca Evaldo: “Portugal comprou o
Nordeste com Cochim e Cananor e o sal de Setúbal.” Desde esta perspectiva imperial,
as demais conseqüências possíveis para o Nordeste são fascinantes. Nos anos 1640,
como forma de obter sua inclusão na paz geral da Europa, Portugal considerou ceder
Pernambuco à Holanda, torná-lo uma republicazinha, ou mesmo submetê-lo a uma

16
Evaldo Cabral de Mello, O Negócio do Brasil. Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669 (Rio
de Janeiro: Topbooks, 1998).
17
Ver, por exemplo, Edgar Prestage, As relações diplomáticas de Portugal com a França, Inglaterra, e
Holanda de 1640 a 1668 (Coimbra: Universidade de Coimbra, 1928); João Franco Barreto, Relação da
embaixada a França em 1641, Carlos Roma du Bocage and Edgar Prestage, eds. (Coimbra: Academia
das Ciências de Lisboa, 1918).
8

administração luso-holandesa. A despeito de uma historiografia posterior, que fez


parecer natural, quase predestinada, a reunificação do Brasil português, não houve nada
de inevitável na mesma. Nesse contexto, a intransigência dos valentões na corte de
Bragança que, ao contrário de Padre Vieira e outros, argumentaram veementemente
contra qualquer rendição do Nordeste, torna-se tão importante quanto o sangue e suor
dos moradores na restauração pernambucana.
Evaldo certamente não nega a importância da guerra, da revolta e das campanhas
militares no nordeste, mas enfatiza que são apenas partes da história, uma vez que
concessões, dinheiro e diplomacia foram necessários para assegurar e manter o que
havia sido adquirido através das armas. Ao fazer isso, ele questiona as alegações dos
mazombos de que seu sangue e sacrifício teriam sido os únicos responsáveis por
restaurar a integridade da América portuguesa. Seguindo os argumentos deles e a
tendência de grande parte da historiografia brasileira, a visão dos mazombos esteve
limitada à colônia; consequentemente, uma perspectiva mais ampla, que incorporasse
Portugal e o restante do império, não foi possível. O negócio do Brasil fornece as bases
para uma narrativa que se contrapõe ao discurso dos moradores, e contextualiza a
criação de uma mitologia em torno da restauração pernambucana.
Olinda Restaurada e O negócio do Brasil são tentativas de criação de uma base
empírica para o entendimento das dimensões sociais e culturais do nativismo
pernambucano. A guerra e a diplomacia que envolveram o Nordeste constituíram o
contexto de Evaldo. Mas, a despeito de sua cuidadosa análise do financiamento da
guerra e de sua detalhada descrição das idas e vindas da diplomacia portuguesa, seu
principal objeto de estudos, como historiador, sempre foi o imaginário dos
pernambucanos, e a forma como sua luta contra os holandeses tornou-se o leitmotiv de
sua autocompreensão e uma imagem de si próprios que ele desejavam projetar. É por
isso que Rubro veio (1986) pode ser tido como o coração do projeto e, ao mesmo
tempo, em seu entrelaçamento entre história e historiografia, o livro mais sofisticado e
ambicioso de Evaldo.
É impossível, nos dias de hoje, aterrissar no aeroporto Guararapes, no Recife, e
sair de lá sem compreender a importância da permanência holandesa na psique regional.
A ocupação holandesa do nordeste e a expulsão destes invasores marcaram, sem dúvida,
a maneira como esta região passou a entender a si própria. No século dezenove, por
exemplo, cada casa, ponte, forte, rua ou palácio ligado ao “tempo dos flamengos” era
lembrado e codificado na memória da província. Desde a restauração do domínio
9

português, as clássicas crônicas e os casos, as anuais celebrações municipais de vitória,


as igrejas comemorativas, a iconografia das batalhas e heróis, e a nomeação das ruas e
praças combinaram-se na criação de uma mitologia nativista, a qual foi eventualmente
apropriada pela elite açucareira, em sua pretensão de dominação política e aristocrática.
Esta era uma apropriação de claro viés classista, mas a ideologia que expressava foi
desenvolvida e projetada de forma tal que parecia amplamente compartilhada por
diversas classes. A fim de se apossar da liderança local, a açucarocracia teve que aderir
e, ao mesmo tempo, manipular as formas sociais do antigo regime, o qual se baseava na
idéia de que a colaboração entre o povo e a nobreza, ao menos no plano teórico, era
fundamental para garantir a ordem da sociedade. Evaldo demonstra, contudo, que em
uma sociedade escravocrata, na qual a cor era determinante do status, a nobreza da terra
buscou crescentemente separar-se do restante da sociedade enfatizando sua pureza racial
e suas conquistas.18 No século dezoito, o frei Domingos Loreto Couto, porta-voz de sua
classe social, demonstrou a crescente falta de confiança no povo, o qual teria se tornado,
aos olhos da elite, a “plebe”, de origens inferiores, poucas conquistas e princípios
morais duvidosos. Segundo Loreto Couto:
Não he facil determinar nestas Provincias quaes são os homens da Plebe; porque todo
aquelle que he branco na cor, entende estar fora da esfera vulgar. Na sua opinão o mesmo he ser
alvo, que ser nobre, nem porque exercitam officios mecanicos perdem esta presumpção. O vulgo da
cor parda, com a immoderado desejo das honras de que o priva não tanto o accidente, como a
substancia, mal se accomoda com as diferenças. O da cor preta tanto que se vê com a liberdade,
cuida que nada mais lhe falta para ser como os brancos.19

A elite açucareira da Zona da Mata teve que estabelecer sua identidade enquanto
“nobreza da terra”, distinguindo-se, para isso, do povo. A discussão de Evaldo a
respeito deste processo enfatiza fortemente o conflito entre mazombos e reinóis, isto é,
as rivalidades entre brasileiros nativos (ou os que, como o madeirense João Fernandes,
se identificavam como tais) e os moradores nascidos em Portugal. Tal divisão refletia-se
nas alegações de cada um dos grupos a respeito de sua contribuição para a vitória
militar, tornando-se, posteriormente, uma forma de referência à rivalidade entre Olinda
e Recife. Nesse sentido, os defensores dos direitos dos pernambucanos enfatizavam os
sacrifícios da açucarocracia em contraste com a aquiescência de Portugal, ou se uniam
aos senhores de engenho em sua rivalidade com os mascates do Recife. Mas a luta entre
filhos da terra e filhos de fora não era a única clivagem social que definiu a aristocracia

Rubro veio, 166.


18

Domingos de Loreto Couto, Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco, José Antônio Gonsalves de
19

Mello, ed. (Recife, 1981), 226-227


10

açucareira. Esta criou sua própria certidão de bautismo ao separar-se dos índios,
africanos e pessoas de cor que a cercavam. Tal processo de criação genealógica e de
fraude foi central à sua alegação de status. Isso explica os esforços genealógicos e,
posteriormente, historiográficos, que projetaram a nobreza do período duartino, cujos
membros, de fato e em sua maioria, tinham origem humilde. Também explica o modo
como a nobreza enfatizava sua chegada antecipada à colônia como “primeiros
povoadores” – uma espécie de “nobreza por longevidade” –, ou a aceitação de alianças
da terra com mulheres indígenas como algo que não provocava perda de nobreza. 20 Por
meio destas estratégias, a aristocracia colonial procurou eliminar o estigma de
permissividade sexual, acoplado às primeiras gerações, e distinguir-se daqueles que a
rodeavam. Isso a tornou particularmente sensível a distinções de raça, cor e
naturalidade. A hierarquia de pureza religiosa continuou, é claro, a ser essencial no
universo dos países de língua portuguesa, onde as distinções baseadas no status de
cristão-novo ou cristão-velho eram as bases da honraria, ofício e privilégio. De fato, a
açucarocracia da Bahia e de Pernambuco usufruía poucas regalias em comparação com
a nobreza portuguesa – apesar de que seu estilo de vida como proprietária de terras,
rodeada de serviçais e escravos, a fizesse acreditar na nobreza de seu status. No Brasil
não foram criados os títulos de duque ou de conde, e o status de fidalgo podia ser
reclamado, em realidade, por poucas famílias. Morgados não eram concedidos em
grande número e, mesmo após o alistamento militar contra os holandeses, poucos
pedidos para integrar as ordens militares de cavalaria eram contemplados.21 Ao ascender
ao poder, a açucarocracia adquiriu a reputação de “abastada em riquezas e faltos em
mercês e honras”.22 O pedido de privilégios e honrarias, feito pelas elites coloniais,
tornou-se motivo de chacota entre os fidalgos da metrópole, e tema cômico no teatro
português.
Mas a nobreza era um status complexo e, em grande medida, um estilo de vida e
de prestação de serviços tanto quanto uma questão de sangue. Nesse sentido, os
senhores de engenho procuravam demonstrar sua nobreza optando por um estilo de vida
nobre. Nas conhecidas palavras de Antonil: “bem se pode estimar no Brasil o ser senhor

20
Ver Evaldo Cabral de Mello, Um imenso Portugal. História e historiografia (São Paulo, 2002), 69-80.
21
Cabral de Mello, Olinda restaurada, 133. Schwartz. Da América portuguesa, 28-29.
22
Domingos de Abreu e Brito, Um inquérito a vida administrativa e econômica de Angola e do Brasil.
ed. Alfredo de Albuquerque Felner (Coimbra, 1931), 9.
11

do engenho, quanto proporcionalmente se estimam os títulos entre os fidalgos do


reino”.23
Pesquisas recentes vêm, desde a publicação de Rubro veio, contextualizando e
reforçado as observações de Evaldo a respeito das pretensões dos senhores de engenho
pernambucanos e sua autodenominação como nobreza. Apesar de, em meados do século
dezessete, a nobreza metropolitana ser ainda poderosa, seu poder corporativo declinou
face à autoridade monárquica após a Restauração de 1640. Contudo, oligarquias locais
portuguesas passaram a usar os Conselhos ou Câmaras como bases de poder político e a
considerar sua participação nestas instituições um atributo e símbolo de sua própria
nobreza. Como enfatizou Joaquim Romero Magalhães, no mundo português, as únicas
fontes de autoridade secular eram a Coroa e as Câmaras; especialmente após a
Restauração, quando a nobreza titulada passou a ser cada vez mais dependente da corte
em Lisboa.24 Nesse sentido, as pretensões dos membros da Câmara de Olinda e da
classe de onde se originavam não eram de forma alguma peculiares –apesar de sua
sensibilidade às críticas referentes a seu status ter sido aumentada pelas suspeitas em
torno de suas origens raciais, religiosas e de status, e porque seus rivais em Recife
possuíam seus próprios “defeitos” mecânicos ou mercantis. Estudos recentes feitos
sobre o Rio de Janeiro, e outros mais antigos realizados sobre a Bahia, demonstram que
a idéia de uma nobreza de “homens da governança” era amplamente difundida pelo
Brasil.25 Logo, a criação de uma Câmara independente no Recife era um desafio; não
apenas à autoridade política da elite de Olinda, mas também a sua posição como única e
exclusiva nobreza da capitania. Além disso, ela acreditava piamente que sua posição e
status resultavam também de suas ações, dado que nobreza era algo adquirido também
através de feitos. Mais do que outras oligarquias brasileiras, a elite pernambucana do
açúcar poderia usar sua participação no exército, ou a de seus descendentes nas lutas
contra os holandeses, para justificar sua pertença à nobreza, dado que o uso de armas
23
André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Ed. Andrée Mansuy, (Paris,
1965), 84. Sobre a nobreza portuguesa o estudo indispensável é o de Nuno Gonzalo Freitas Monteiro, O
crepúsculo dos grandes )1750-1832 (Lisboa, 1996).
24
Sobre o aumento exibido pela autoridade central em Portugal, ver Antônio Manuel Hespanha, As
vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal- século xvii (Lisboa, 1986). Sobre a nobreza
em geral, ver os importantes estudos de Nuno Gonçalo F. Monteiro, O Crepúsculo dos grandes. A casa e
o patrimônio da aristocracia em Portugal (1755-1832) Lisboa, 1998); Mafalda Soares da Cunha, A Casa
de Bragança 1560-1640. práticas senhoriais e redes clientelares (Lisboa, 2000). Nuno Gonzalo F.
Monteiro, Elites e poder. Entre o antigo regime e o Liberalismo (Lisboa, 2003), 19-137, apresenta uma
excelente visão geral da historiografia recente.
25
Maria Fernanda Bicalho, A cidade e o império. O Rio de Janeiro no século xviii (Rio de Janeiro, 2000)
e “As Câmaras ultramarinas e o governo do império,” em O antigo regime nos trópicos, J. Fragoso, M.
Bicalho, e M Gouvêa, eds. (Rio de Janeiro, 2001), 189-222; e “As Câmaras municipais no império
português: o exemplo do Rio de Janeiro,” Revista Brasileira de História, 18: 251-280.
12

sempre havia sido o principal atributo da nobreza. Os mascates, por sua vez, tinham
suas próprias justificativas para seu status privilegiado, as quais se baseavam em sua
riqueza, sucesso e origens cristãs-velhas.
Rubro Veio entrelaça história e historiografia e capta a mentalidade de uma
classe social. Contudo, diferentemente de muitos estudiosos da mentalité, Evaldo não
cai na armadilha de ignorar a base social do imaginário que recaptura. Sua análise leva
em consideração as ideologias de classe e a manipulação de mito e história ao longo do
tempo. Ele demonstra que, por volta do século dezenove, o que nascera como mito
fundacional da açucarocracia poderia transformar-se na base de ação de um vasto
espectro populacional, movido por sentimentos anticolonialistas e republicanos.
É claro que o sentimento nativista não nasceu somente das pretensões da elite
açucareira. Alguns dos primeiros e mais apaixonados defensores do nativismo eram os
membros de ordens religiosas nascidos no Brasil. Os filhos da terra, como eram
chamados, foram, em sua luta contra os reinóis, filhos de fora, alguns dos pioneiros na
expressão do sentimento antiportuguês e pró-brasileiro. É preciso ter em mente que
grande parte da população, a ínfima plebe, encontrava dificuldades em se fazer escutar.
Nesse sentido, a documentação que revela suas atitudes e esperanças é escassa.
Suspeita-se que, entre eles, um sentimento de diferenciação e identidade como
coloniais, ao invés de portugueses, tenha sido precoce. Para a aristocracia açucareira, a
esperança era de que seus serviços à Coroa pudessem lhe trazer, na qualidade de vassala
do rei, certas vantagens. A petição de Frei Mateus de São Francisco, em 1653, para que
representantes brasileiros participassem nas cortes portuguesas, em reconhecimento a
seu amor ao Brasil e à sua atuação contra os holandeses, evidencia o desejo das elites de
se beneficiar dentro do sistema colonial. Tais idéias e argumentos foram defendidos
pelas elites do Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais; em nenhum lugar, contudo,
apresentaram-se argumentos tão convincentes e apaixonados quanto nesta capitania de
Pernambuco. Apenas muito lentamente tal sentimento transformou-se em idéias
separatistas ou republicanas.26
O terceiro livro da série parece, à primeira vista, desviar-se do projeto de
delinear a história de Pernambuco e sua singularidade. Tal impressão é, contudo,
equivocada. O nome e o sangue (1989) é a história de uma fraude genealógica. Seu foco
é, novamente, local, não imperial. Este volume explora uma característica central do
caráter social de Pernambuco e de todas as sociedades de ancien regime. O tema da
26
AHU, Bahia, Papéis avulsos, caixa 4 (25 de Agosto de 1653).
13

genealogia fascinava os habitantes do jovem Brasil moderno; eles falavam


constantemente de sua própria genealogia, eram obrigados a dar detalhes a respeito da
mesma ao lidarem com a Igreja, o Estado e outras instituições, além de saberem com
freqüência detalhes sobre a genealogia alheia. A voz pública era constantemente tomada
como evidência judicial. Apesar de os historiadores modernos, influenciados pela
ideologia igualitária nascida da Revolução Francesa, tenderem a menosprezar a
genealogia, considerando-a como algo antiquado, ou como esnobismo elitista, na era
colonial ela era um tema de grande importância, tanto para nobres quanto para os
comuns. Numa sociedade onde as origens religiosas, raciais e ocupacionais
determinavam a honra, o valor e o status social, até mesmo os indivíduos humildes eram
bem informados a respeito das origens e posições de seus iguais ou superiores; às vezes,
sabiam recontar, com alto grau de detalhamento, a genealogia familiar de seus vizinhos
e conhecidos. Durante a elaboração de seus outros livros, Evaldo consultara diversas
vezes as genealogias pernambucanas clássicas, de Antônio Borges da Fonseca (1718-
78), considerando-a fonte importante. Mas neste volume, em particular, ele demonstra
que genealogia, e principalmente a genealogia espúria, é um fato de profunda
importância histórica.27 A re-narração de histórias familiares não é um simples exercício
de delusão e auto-engrandecimento das elites –e, portanto, um tópico a ser tratado com
ceticismo e menosprezo –, mas um tema de significado enorme em uma sociedade
colonial na qual ortodoxia religiosa, pureza racial e ausência de origens camponesas e
de passagens pelo trabalho mecânico eram marcadores de status social e indicadores de
sucesso. Genealogia era “conhecimento vital”, com implicações poderosas. Em várias
partes do Brasil, em meados do século dezoito, um gênero bem desenvolvido de
histórias genealógicas foi criado na tentativa de eliminar as deficiências das elites
locais.
Em Pernambuco, houve alegações de nobreza desde a chegada do primeiro
donatário, à medida que a riqueza da capitania crescia. As origens cristãs-novas de
muitos dos primeiros moradores, seus casamentos com mulheres “da terra”, e seu
passado artesão criavam uma história que precisava ser reajustada, negada ou recriada.
Os resultados de tal recriação genealógica eram, às vezes, contra-intuitivos. Como
argumenta Evaldo em Rubro Veio, no início do século dezoito, muitos dos presunçosos
senhores de engenho de Olinda, com suas alegações de nobreza, possuíam, de fato,

27
Antônio José Victoriano Borges da Fonseca, “ Nobiliarchia pernambucana” Anais da Biblioteca
nacional do Rio de Janeiro 47 (1925), 48 (1926).
14

origens cristãs-novas – o que fora confirmado também no trabalho de José Antônio


Gonsalves de Mello. Enquanto isso, os difamados mascates da classe mercantil de
Recife, apesar das origens mecânicas de seu trabalho, eram em sua maioria cristãos-
velhos.28 Os dois lados, portanto, sofriam de diferentes “defeitos” de sangue, e ambos
estavam ansiosos para esconder suas desvantagens sociais e tirar proveito das de seus
rivais. No interior destas disputas políticas, a genealogia tornou-se meio de acesso ao
poder social.
O nome e o sangue examina, especificamente, as origens cristãs-novas de Felipe
Pais Barreto. Ele pertencia à “nobreza de terra”, tendo servido em diversos comandos
militares e se tornado senhor do engenho. Contudo, seu lugar entre os nobres foi
questionado devido à sua atitude durante a Guerra dos Mascates, quando relutou em se
unir aos demais senhores de engenho em sua batalha contra os mercadores recifenses.
Evaldo usa este caso para introduzir o mundo da política e dos segredos familiares e, no
processo de documentação das origens de Pais Barreto e de seus descendentes, ele
acompanha uma complexa rede de famílias – Pais Barreto, Lins, Albuquerque e Sá – ao
longo da história de Pernambuco.
O que O nome e o Sangue explica é que a genealogia, nas mãos dos Borges da
Fonseca, em Pernambuco, ou dos Jaboatão, na Bahia, ou dos Paes Leme, em São Paulo,
era, no século dezoito, uma tentativa de criar histórias regionais das elites coloniais que
se conformassem aos padrões sociais e expectativas de Portugal e, nesse sentido,
fornecessem a uma aristocracia açucareira e escravocrata a pátina da nobreza de
sangue.29 A aristocracia colonial, insegura e defensiva a respeito de suas origens,
impedida pela Coroa de ter acesso aos privilégios concedidos à fidalguia tais como os
morgados ou o pertencimento a ordens militares (geralmente porque sua isenção
significava uma perda de receitas para a Coroa), necessitava de uma patente de nobreza.
Os genealogistas coloniais dedicaram-se a criá-la. Eles atribuíram nobreza a qualidades
como “antiguidade” e longevidade, “perdoaram” as diversas “alianças da terra” e as
misturas raciais que estas implicavam, e nunca relutaram em adotar a idéia de que uma
nobreza de feitos e serviços existia paralelamente à nobreza de sangue. Este era um
processo de autojustificação e, em última instância, de libertação das restrições
metropolitanas. Mas o processo de construção de uma linhagem nobre sempre envolveu
28
José Antônio Gonçalves de Mello, “Nobres e mascates na Câmara do Recife, 1713-38,” Revista do
Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, 53-(1981).
29
Antônio de Santa Maria Jaboatão, “Catalogo genealógico das principaes familias (1768) Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 52 (1889), 5-484; Pedro Taques de Almeida Paes Leme,
Nobiliarquia paulistana histórica e genealógica, 3 vols. 5th ed. (São Paulo, Itatim, 1980).
15

a possibilidade de desconstrução da mesma por parte de rivais políticos, pessoais, ou de


classe.30
Tal desconstrução ou desafio ocorreu nas primeiras décadas do século dezoito.
As batalhas na Guerra dos Emboabas em Minas Gerais, a Revolta Maneta na Bahia, a
reação aos ataques franceses no Rio de Janeiro e a Guerra dos Mascates em Pernambuco
sinalizavam uma crise no regime colonial, ou ao menos um crescente senso de
descontentamento com relação a aspectos do governo e da sociedade. De certa forma,
Fronda dos Mazombos (1995) demonstra como a açucarocracia transformou a mitologia
em torno da expulsão dos holandeses em base ideológica de sua tentativa de controle
local. Evaldo procura organizar a história do nordeste brasileiro, no ocaso do século
dezessete, em torno do conflito entre a loja e o engenho, isto é, entre a classe mercantil e
a aristocracia agrícola que dependia dela. Como ele nos mostra, tal conflito era comum
no Brasil, agudo em Pernambuco e latente na Bahia e no Rio de Janeiro. Contudo, não
era característico de outras zonas produtoras de açúcar nas Américas, nas quais os
senhores de engenho frequentemente serviam como seus próprios agentes comerciais e
eram menos dependentes de capital nas mãos de outros. Em Pernambuco, tal conflito
assumiu a forma de uma disputa municipal entre a decadente Olinda e o dinâmico
Recife. Mas a linhagem portuguesa e cristã-velha dos mercadores e as origens cristãs-
novas (e mamelucas) dos senhores de engenho conferiam à rivalidade uma importante
dimensão social, como uma guerra por status e por hegemonia econômica.
A Guerra dos Mascates durou na realidade apenas dois anos (1710-12), mas
Evaldo aborda-a através da longue durée. De fato, até recentemente, as sombrias
décadas do fim do século dezessete haviam sido quase ignoradas na historiografia
brasileira. Os anos que se seguiram à expulsão dos holandeses teriam sido marcados
pelo declínio nos preços e na produção do açúcar devido à disputa internacional pelas
ilhas do Caribe e, como demonstra Evaldo, às políticas fiscais de Portugal, que
sobretaxaram e descapitalizaram a economia açucareira. De forma similar, o preço dos
escravos no mercado internacional estava aumentando. Após 1700, com a descoberta do
ouro em Minas Gerais, as perspectivas relativas ao futuro da colônia pareciam melhorar
consideravelmente, sendo que, de 1660 até então, o Brasil passaria por um período de
consideráveis dificuldades. A expulsão dos holandeses e as subseqüentes negociações
como os estados gerais haviam restaurado a unidade política dos portugueses no Brasil,
mas a colônia nunca mais foi a mesma. Lutando, até mesmo através de uma campanha
30
Schwartz, “A formação de uma identidade colonial no Brasil,” 238-9.
16

diplomática, para manter sua independência frente à Espanha, e procurando ao mesmo


tempo não abdicar de sua liberdade de ação, Portugal tornou-se cada vez mais
dependente da Inglaterra. Além disso, prejudicado economicamente pela queda nos
preços do açúcar e da pimenta, o estado lusitano iniciou uma forte campanha para
encontrar novas fontes de riqueza em seu império –que se estendia de Monomotapa, na
África Oriental, aos Sertões, na Bahia e em São Paulo. Os escravos poderiam ter sido a
solução do problema, uma vez que o comércio dos mesmos com a América Espanhola
poderia ter dado a Portugal acesso à prata de Potosí. Já a tentativa de integrar Brasil e
Angola em um sistema Sul-atlântico como descrito por Luis Felipe Alencastro, não
remediou a crise.31 Durante o período do Brasil-colônia, estas foram décadas
calamitosas: as ferrenhas guerras contra os Palmares, a Guerra do Açu contra os tapuias
do sertão nordestino, a deposição de governadores, as epidemias em Pernambuco, a
Revolta de Beckman em São Luiz, os ataques franceses no Rio de Janeiro. Foi, como
nos lembra Evaldo, um período de “paz que parecia guerra”, e sua análise da Guerra dos
Mascates é colocada no contexto destes anos difíceis e turbulentos.
Historiadores anteriores a Evaldo haviam sugerido outras interpretações para a
Guerra dos Mascates. Alguns teriam enxergado um precoce nacionalismo no
movimento, outros teriam enfatizado a batalha social entre uma aristocracia semifeudal
e uma burguesia emergente, outros, ainda, teriam se concentrado na emergência de um
poder local em oposição ao Estado. Para Evaldo, todas estas interpretações são
infundadas, uma vez que uma descrição detalhada e cuidadosa dos complexos eventos e
personalidades jamais teria sido feita. Sua tarefa, então, seria a de produzir um livro de
“descrição aprofundada”: uma narrativa detalhada, intencionalmente à moda antiga, dos
eventos que deveriam preceder qualquer tentativa de interpretação.
A mesma preocupação com a narrativa é aparente em A Outra Independência
(2004), obra na qual o autor descreve os movimentos federalistas e às vezes
republicanos em Pernambuco, logo antes e logo após a independência do Brasil, em
1822. Nesse volume, ele mostra como a revolta de 1817 e a Confederação do Equador,
em 1824, foram, em certo grau, frutos de uma ideologia política plantada na batalha
contra os holandeses, cultivada durante a Guerra dos Mascates, e continuamente regada,
no século dezoito, por repetidas referências aos sacrifícios feitos pelos pernambucanos
leais, especialmente aqueles pertencentes à classe política. Mas em Pernambuco –este

Luis Felipe de Alencastro, O trato dos Viventes. A formação do Brasil no Atlântico Sul (São Paulo:
31

Companhia das Letras, 2000).


17

“farol ao espírito público do Brasil inteiro”, nas palavras do baiano Cipriano Barata–,
onde era mais contestado o projeto centralizador do Rio de Janeiro, o conflito social era
previsível. As classes privilegiadas, apesar de sonharem com mais liberdade de ação e
autonomia, e de não se sentirem tão atraídas pela monarquia ou por Dom Pedro I, não
poderiam correr o risco de uma “insubordinação das camadas subalternas.” Numa
cuidadosa descrição dos eventos e personalidades de 1817 e 1824, Evaldo retorna ao
imaginário das elites, a fim de mostrar tanto suas potenciais conseqüências, quanto suas
limitações face à realidade social. No final, o discurso da autonomia era uma coisa, os
moradores e matutos, outra. Mais uma vez, seu método de apresentação é uma
cuidadosa narrativa dos eventos, que lhe dá a oportunidade não apenas de descrever,
mas também de analisar.
Em certo sentido, o sexteto de Evaldo Cabral é um exemplo brasileiro do
“retorno à narrativa” –tendência que o historiador social inglês Lawrence Stone havia
notado, em 1979, entre os historiadores.32 Mas o receio de Stone de que o uso da
narrativa na história poderia resultar em um retorno ao antiquarianismo, numa
celebração do atípico, ou numa rejeição a questões analíticas maiores, de cunho social e
político, não encontra fundamento no trabalho de Evaldo Cabral. O autor adotou este
meio de exposição não porque desconhecesse a teoria nas ciências sociais, ou porque
rejeitasse um modo analítico. De fato, seus livros demonstram familiaridade com um
amplo espectro teórico; mas ele sempre concebeu a teoria e o método como ferramentas,
não como propósitos da análise histórica. Além disso, criticou o que chama de “orgia”
nas ciências humanas e o abuso da interdisciplinaridade entre historiadores. Evaldo
sempre se manteve de certa forma um positivista, e pensa ser possível a recuperação
daquilo que realmente aconteceu no passado. Ele também acredita que a narrativa é a
forma clássica do historiador, e a mais adequada a sua tarefa: a de reconstruir os eventos
do passado e explicá-los aos leitores do presente sem incorrer no pecado do
anacronismo. Além disso, ele confia que a escrita da narrativa é o melhor método a
partir do qual é possível começar a entender as estruturas subjacentes aos eventos e as
conexões entre acontecimentos e estruturas. Ao mesmo tempo, sua abordagem narrativa
também o tornou particularmente sensível a narrativas passadas, às maneiras através das
quais atores históricos no passado representaram a si próprios e a sua realidade,

32
Lawrence Stone, “The Revival of Narrative: Reflections on a New Old History,” Past and Present, 85
(1979), 3-24. Ver também, Peter Burke, What is Cultural History? (Cambridge: Polity Press, 2005), 121-
124l.
18

explicaram eventos e usaram tais narrativas para criar uma mitologia que representa sua
visão do mundo. A ênfase de Evaldo em eventos e personalidades não representa uma
rejeição de abstrações como o “Estado” e as “classes sociais”, tampouco uma negação
das estruturas econômicas, demográficas, sociais e mentais que moldam os eventos
históricos, ao contrário: é um alerta para que mais atenção seja dada à dimensão humana
da história, uma vez que são as pessoas, e não forças incorpóreas que, em última
instância, fazem a história.

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