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Evaldo Cabral de Mello, Rubro veio. O imaginário da Restauração pernambucana (Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1986), 100-101.
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Evaldo declarou: “O bom é ir escrevendo por partes, ou antes, como uma quebra-cabeça que se vai
armando… Não consigo entender como alguém pode pesquisar e aprender tudo sobre um tema, e só então
começar a escrever. Isso é demasiado francês para mim.” Ver a entrevista em José Geraldo Vinci de
Moraes e José Marcio Rego, Conversas com historiadores brasileiros (São Paulo: Editora 34, 2002), 135-
62.
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dos volumes nas estantes, que sua unidade se tornou evidente, tanto para os leitores
quanto para o próprio autor. O objetivo de Evaldo era escrever uma história com foco e
natureza regionais, mas livre dos usuais pecados do exagero localista e da miopia
provinciana. É uma história que se concentra na realidade e ideologia das elites que
retrata, e em como, como coloca Evaldo, o “tema da restauração como empresa
histórica da ‘nobreza da terra’ passou a constituir, à medida que se aguçava o conflito
entre mazombos e mascates, a justificação do direito que ela se arrogava de dominar
politicamente a capitania”.3 Na realidade, o sertão e o agreste de Pernambuco o
interessavam muito pouco. A história de Evaldo é, essencialmente, a história da posição
política e social de uma classe proprietária provinciana, a nobreza da terra, da zona da
mata pernambucana. É também uma história na qual as questões da autonomia e da
federação são analisadas como alternativas políticas ao tradicional discurso brasileiro da
unidade, nação e império.
Pernambuco, berço das revoltas republicanas e federalistas do século dezenove,
é, obviamente, miradouro para tal estudo. Evaldo Cabral de Mello ficou fascinado com
a ideologia política pernambucana, chegando a afirmar, em concordância implícita com
o comentário de Robert Southey, que “quanto mais aprend[ia] história colonial, melhor
perceb[ia] a tendência natural de todas as colônias para o regime republicano ”.4 O que
Evaldo fez foi buscar as raízes coloniais do nativismo e do federalismo. Para ele, a
identidade nacional era uma invenção, e afirmava sem hesitação: “somos todos
provincianos”.5 Seu projeto sempre fora abertamente regionalista.6
Os seis volumes de Evaldo Cabral sobre a Pernambuco colonial constituem um
ambicioso exercício historiográfico que cobre o período que vai de meados do século
dezessete a meados do dezoito, tendo sido concluído nas primeiras décadas do século
dezenove.7 Eles entrelaçam eventos e personalidades, assim como as representações e
3
Cabral de Mello, Rubro veio, 101.
4
Joaquim de Souza Leão, ed. “Cartas de Robert Southey a Theodore Koster e Henry Koster (anos de
1804-1819), Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 178 (1943), 45, em Evaldo Cabral
de Mello, A fronda dos mazombos (São Paulo: Companhia das Letras, 1995), 490. Ele explorou este tema
em A Outra independência. O federalismo pernambucano de 1817 a 1824 (São Paulo:Editora 34, 2004).
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Rachel Bertol, “Peripécias de Evaldo Cabral,” www.topbooks.com.br/frEntrevistas. Outra excelente
entrevista, que revela muito de seu pensamento, pode ser encontrada em: “O Saber historiográfico.
Entrevista de Evaldo Cabral de Mello a Pedro Puntoni,” Novos Estudos (CEBRAP), 37 (1993), 103-20.
Ver também, Vinci de Moraes e Marcio Rego, Conversas com historiadores brasileiros, 135-62.
6
Não se incluí, nesta análise, outros escritos de Evaldo Cabral de Mello que tratam de Pernambuco no
século dezenove, tais como O Norte agrário e o império (Rio de Janeiro, 1984) e “O fim das casas-
grandes,” em Fernando A. Novais (coord.) História da vida privada no Brasil. 4 vols. (São Paulo, 1997-
98), 2: 385-438.
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Evaldo Cabral de Mello, A Outra Independência. O federalismo pernambucano de 1817 e 1824 (São
Paulo: Editora 34, 2004) leva a história a incluir as revoltas pernambucanas da época da independência.
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mitos que a estes se vinculam. Em certo sentido, o paralelo mais próximo ao projeto de
Cabral de Mello pode ser encontrado nos três magníficos volumes sobre o Brasil
colonial produzidos nos anos 1960 por Charles Boxer. Afinal, Boxer também se ocupa
dos séculos dezessete e dezoito, e dedica grande parte de dois dos três volumes acima
mencionados à batalha contra os holandeses. Assim como Evaldo, Boxer não era um
historiador acadêmico, e possuía o dom de escrever para um público amplo. A trilogia
de Boxer não é tão especificamente regionalista quanto a de Cabral de Mello, tendo sido
escrita em um momento historiográfico distinto e, originalmente, para um público não
brasileiro.8 Contudo, é uma tentativa de cobrir, através de três livros que costuram em
sua narrativa temas de política, economia e história social, a essência da história
colonial brasileira até o período pombalino.9 Da mesma forma que Evaldo, Boxer
também tinha gosto pela narrativa e acreditava ser possível reconstruir o passado de
maneira acurada. Por outro lado, interessava-se menos que seu colega pela criação de
uma consciência histórica, ou imaginário, e na capacidade de tal consciência de
influenciar eventos e ter implicações políticas. Nesse sentido, o projeto de Evaldo
espelhou-se, definitivamente, nas tendências historiográficas das últimas décadas do
século vinte, revelando a influência de historiadores e pensadores franceses como
Fernand Braudel, Georges Duby, Immanuel Le Roy Ladurie, Paul Veyne, e Cornelius
Castoriades, a quem teria sido apresentado.
Diversos comentaristas já afirmaram que Evaldo não é um historiador
acadêmico, mas tal observação é, em certo sentido, errônea. É verdade que ao longo dos
anos ele tem se mostrado pouco afeito às conferências, palestras e à confecção de
resenhas, que compõem grande parte das tarefas na vida de um “historiador acadêmico”.
Ele não gosta de lecionar e chegou a declarar: “Tenho horror da universidade”. 10 Mas,
durante seu treinamento na Europa, trabalhou com historiadores profissionais, e seus
métodos de pesquisa historiográfica e em arquivos certamente satisfazem os mais
exigentes padrões acadêmicos. A carreira de Evaldo é, provavelmente, melhor
Isto deixa uma lacuna em sua cobertura cronológica de Pernambuco na era de Pombal e da Companhia de
Pernambuco e Paraíba, e na do Bispo Azeredo Coutinho.
8
Charles R. Boxer, Salvador de Sá and the Struggle for Brazil and Angola,1602-1686 (London, 1952);
The Dutch in Brazil, 1630-54 (Oxford, 1957); The Golden Age of Brazil, 1697-1750l (Berkeley, 1964).
9
É importante observar que Boxer não foi inicialmente um historiador do império português e que, depois
de 1964, embora continuasse a publicar artigos e capítulos sobre temas brasileiros, seu principal interesse
era o estado português da Índia e da Holanda, e a luta portuguesa pela hegemonia na Ásia. Sobre a
cronologia da vida de Boxer e suas preferências pessoais, ver: Dauril Alden, Charles R. Boxer. An
Uncommon Life (Lisbon: Fundação Oriente, 2001).
10
Rachel Bertol, “Peripécias de Evaldo Cabral,” Evaldo falou: “O grande professor é, no fundo, um
grande ator. Georges Duby foi um ótimo professor que tive, na França. Era impressionante. Parecia um
sujeito da Comédie Française.”
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Brasil e sua importância relativa no Sistema Atlântico. A união das Coroas de Portugal
e Espanha, em 1580, precedeu o espetacular crescimento da economia açucareira
brasileira, fornecendo o contexto no qual esta indústria floresceu. Naqueles dias, o
açúcar brasileiro, os escravos africanos ocidentais e a pimenta indiana eram meios para
se obter a prata hispano-americana. Durante sessenta anos (1580-1640), o Brasil tornou-
se uma grande colônia açucareira e, desta forma, atraiu a cobiça dos inimigos dos seus
reis Habsburgos espanhóis. Nesse sentido, os ataques holandeses à Bahia (1624) e,
posteriormente, a Pernambuco e ao nordeste (1630-1654), resultaram diretamente do
sucesso da Colônia e da posição política de Portugal no interior dos reinos unidos dos
Habsburgos espanhóis. Mas a separação de Portugal da Espanha, em 1640, alterou as
relações com os inimigos da Espanha. Nesse sentido, os anos da Restauração
Portuguesa (1640-1688) foram complicados, de guerras e de diplomacia, uma vez que
Portugal tentava, simultaneamente, manter sua independência e reter seu império. Esta
cronologia política sobreposta forma o pano de fundo e contexto dos volumes da Ilíada
Pernambucana que Evaldo nos oferece.
Cronologicamente, o ponto de partida do projeto de Evaldo é Olinda Restaurada
(1975). Em certo sentido, é possível considerar este livro o mais analítico e mais
“acadêmico” do quinteto, uma vez que não é uma narrativa da invasão holandesa e do
subseqüente levante contra os ocupantes (a “Guerra da Liberdade divina”), mas uma
série de ensaios integrados que analisam aspectos específicos da época dos flamengos,
especialmente os dois temas do subtítulo: guerra e açúcar. 12 Em 1969, Charles Boxer
solicitou o fim das publicações a respeito do período holandês, alegando já haver
suficiente material de boa qualidade referente àquele período histórico relativamente
breve.13 Felizmente, Evaldo ignorou sua sugestão. A tese central de seu livro era a de
que haveria, em realidade, duas guerras no nordeste. A primeira, a Guerra da
Resistência, fora uma árdua e fracassada campanha guerrilheira que terminou em 1637,
e a segunda, a Guerra da Restauração (1645-54), obtivera finalmente a vitória. Mas
ambas foram guerras do açúcar; não apenas porque holandeses e portugueses lutaram
pela posse do produto, mas também porque o fizeram, em última instância, nos
engenhos e canaviais de seus rivais, e porque dependiam do açúcar para guerrear. Em
face da taxação, houve confiscações, migrações forçadas, incêndio de engenhos e
Francisco Adolfo de Varnhagen, História das lutas com os holandeses no Brasil (Viena, 1871).
12
Colonial Roots of Modern Brazil (Berkeley: University of California Press, 1973), 3-25. Reimpresso em:
Charles Ralph Boxer, Opera minora, 3 vols. Até hoje. (Lisboa: Fundação Oriente, 2002), 55-69.
6
16
Evaldo Cabral de Mello, O Negócio do Brasil. Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669 (Rio
de Janeiro: Topbooks, 1998).
17
Ver, por exemplo, Edgar Prestage, As relações diplomáticas de Portugal com a França, Inglaterra, e
Holanda de 1640 a 1668 (Coimbra: Universidade de Coimbra, 1928); João Franco Barreto, Relação da
embaixada a França em 1641, Carlos Roma du Bocage and Edgar Prestage, eds. (Coimbra: Academia
das Ciências de Lisboa, 1918).
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A elite açucareira da Zona da Mata teve que estabelecer sua identidade enquanto
“nobreza da terra”, distinguindo-se, para isso, do povo. A discussão de Evaldo a
respeito deste processo enfatiza fortemente o conflito entre mazombos e reinóis, isto é,
as rivalidades entre brasileiros nativos (ou os que, como o madeirense João Fernandes,
se identificavam como tais) e os moradores nascidos em Portugal. Tal divisão refletia-se
nas alegações de cada um dos grupos a respeito de sua contribuição para a vitória
militar, tornando-se, posteriormente, uma forma de referência à rivalidade entre Olinda
e Recife. Nesse sentido, os defensores dos direitos dos pernambucanos enfatizavam os
sacrifícios da açucarocracia em contraste com a aquiescência de Portugal, ou se uniam
aos senhores de engenho em sua rivalidade com os mascates do Recife. Mas a luta entre
filhos da terra e filhos de fora não era a única clivagem social que definiu a aristocracia
Domingos de Loreto Couto, Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco, José Antônio Gonsalves de
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açucareira. Esta criou sua própria certidão de bautismo ao separar-se dos índios,
africanos e pessoas de cor que a cercavam. Tal processo de criação genealógica e de
fraude foi central à sua alegação de status. Isso explica os esforços genealógicos e,
posteriormente, historiográficos, que projetaram a nobreza do período duartino, cujos
membros, de fato e em sua maioria, tinham origem humilde. Também explica o modo
como a nobreza enfatizava sua chegada antecipada à colônia como “primeiros
povoadores” – uma espécie de “nobreza por longevidade” –, ou a aceitação de alianças
da terra com mulheres indígenas como algo que não provocava perda de nobreza. 20 Por
meio destas estratégias, a aristocracia colonial procurou eliminar o estigma de
permissividade sexual, acoplado às primeiras gerações, e distinguir-se daqueles que a
rodeavam. Isso a tornou particularmente sensível a distinções de raça, cor e
naturalidade. A hierarquia de pureza religiosa continuou, é claro, a ser essencial no
universo dos países de língua portuguesa, onde as distinções baseadas no status de
cristão-novo ou cristão-velho eram as bases da honraria, ofício e privilégio. De fato, a
açucarocracia da Bahia e de Pernambuco usufruía poucas regalias em comparação com
a nobreza portuguesa – apesar de que seu estilo de vida como proprietária de terras,
rodeada de serviçais e escravos, a fizesse acreditar na nobreza de seu status. No Brasil
não foram criados os títulos de duque ou de conde, e o status de fidalgo podia ser
reclamado, em realidade, por poucas famílias. Morgados não eram concedidos em
grande número e, mesmo após o alistamento militar contra os holandeses, poucos
pedidos para integrar as ordens militares de cavalaria eram contemplados.21 Ao ascender
ao poder, a açucarocracia adquiriu a reputação de “abastada em riquezas e faltos em
mercês e honras”.22 O pedido de privilégios e honrarias, feito pelas elites coloniais,
tornou-se motivo de chacota entre os fidalgos da metrópole, e tema cômico no teatro
português.
Mas a nobreza era um status complexo e, em grande medida, um estilo de vida e
de prestação de serviços tanto quanto uma questão de sangue. Nesse sentido, os
senhores de engenho procuravam demonstrar sua nobreza optando por um estilo de vida
nobre. Nas conhecidas palavras de Antonil: “bem se pode estimar no Brasil o ser senhor
20
Ver Evaldo Cabral de Mello, Um imenso Portugal. História e historiografia (São Paulo, 2002), 69-80.
21
Cabral de Mello, Olinda restaurada, 133. Schwartz. Da América portuguesa, 28-29.
22
Domingos de Abreu e Brito, Um inquérito a vida administrativa e econômica de Angola e do Brasil.
ed. Alfredo de Albuquerque Felner (Coimbra, 1931), 9.
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sempre havia sido o principal atributo da nobreza. Os mascates, por sua vez, tinham
suas próprias justificativas para seu status privilegiado, as quais se baseavam em sua
riqueza, sucesso e origens cristãs-velhas.
Rubro Veio entrelaça história e historiografia e capta a mentalidade de uma
classe social. Contudo, diferentemente de muitos estudiosos da mentalité, Evaldo não
cai na armadilha de ignorar a base social do imaginário que recaptura. Sua análise leva
em consideração as ideologias de classe e a manipulação de mito e história ao longo do
tempo. Ele demonstra que, por volta do século dezenove, o que nascera como mito
fundacional da açucarocracia poderia transformar-se na base de ação de um vasto
espectro populacional, movido por sentimentos anticolonialistas e republicanos.
É claro que o sentimento nativista não nasceu somente das pretensões da elite
açucareira. Alguns dos primeiros e mais apaixonados defensores do nativismo eram os
membros de ordens religiosas nascidos no Brasil. Os filhos da terra, como eram
chamados, foram, em sua luta contra os reinóis, filhos de fora, alguns dos pioneiros na
expressão do sentimento antiportuguês e pró-brasileiro. É preciso ter em mente que
grande parte da população, a ínfima plebe, encontrava dificuldades em se fazer escutar.
Nesse sentido, a documentação que revela suas atitudes e esperanças é escassa.
Suspeita-se que, entre eles, um sentimento de diferenciação e identidade como
coloniais, ao invés de portugueses, tenha sido precoce. Para a aristocracia açucareira, a
esperança era de que seus serviços à Coroa pudessem lhe trazer, na qualidade de vassala
do rei, certas vantagens. A petição de Frei Mateus de São Francisco, em 1653, para que
representantes brasileiros participassem nas cortes portuguesas, em reconhecimento a
seu amor ao Brasil e à sua atuação contra os holandeses, evidencia o desejo das elites de
se beneficiar dentro do sistema colonial. Tais idéias e argumentos foram defendidos
pelas elites do Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais; em nenhum lugar, contudo,
apresentaram-se argumentos tão convincentes e apaixonados quanto nesta capitania de
Pernambuco. Apenas muito lentamente tal sentimento transformou-se em idéias
separatistas ou republicanas.26
O terceiro livro da série parece, à primeira vista, desviar-se do projeto de
delinear a história de Pernambuco e sua singularidade. Tal impressão é, contudo,
equivocada. O nome e o sangue (1989) é a história de uma fraude genealógica. Seu foco
é, novamente, local, não imperial. Este volume explora uma característica central do
caráter social de Pernambuco e de todas as sociedades de ancien regime. O tema da
26
AHU, Bahia, Papéis avulsos, caixa 4 (25 de Agosto de 1653).
13
27
Antônio José Victoriano Borges da Fonseca, “ Nobiliarchia pernambucana” Anais da Biblioteca
nacional do Rio de Janeiro 47 (1925), 48 (1926).
14
Luis Felipe de Alencastro, O trato dos Viventes. A formação do Brasil no Atlântico Sul (São Paulo:
31
“farol ao espírito público do Brasil inteiro”, nas palavras do baiano Cipriano Barata–,
onde era mais contestado o projeto centralizador do Rio de Janeiro, o conflito social era
previsível. As classes privilegiadas, apesar de sonharem com mais liberdade de ação e
autonomia, e de não se sentirem tão atraídas pela monarquia ou por Dom Pedro I, não
poderiam correr o risco de uma “insubordinação das camadas subalternas.” Numa
cuidadosa descrição dos eventos e personalidades de 1817 e 1824, Evaldo retorna ao
imaginário das elites, a fim de mostrar tanto suas potenciais conseqüências, quanto suas
limitações face à realidade social. No final, o discurso da autonomia era uma coisa, os
moradores e matutos, outra. Mais uma vez, seu método de apresentação é uma
cuidadosa narrativa dos eventos, que lhe dá a oportunidade não apenas de descrever,
mas também de analisar.
Em certo sentido, o sexteto de Evaldo Cabral é um exemplo brasileiro do
“retorno à narrativa” –tendência que o historiador social inglês Lawrence Stone havia
notado, em 1979, entre os historiadores.32 Mas o receio de Stone de que o uso da
narrativa na história poderia resultar em um retorno ao antiquarianismo, numa
celebração do atípico, ou numa rejeição a questões analíticas maiores, de cunho social e
político, não encontra fundamento no trabalho de Evaldo Cabral. O autor adotou este
meio de exposição não porque desconhecesse a teoria nas ciências sociais, ou porque
rejeitasse um modo analítico. De fato, seus livros demonstram familiaridade com um
amplo espectro teórico; mas ele sempre concebeu a teoria e o método como ferramentas,
não como propósitos da análise histórica. Além disso, criticou o que chama de “orgia”
nas ciências humanas e o abuso da interdisciplinaridade entre historiadores. Evaldo
sempre se manteve de certa forma um positivista, e pensa ser possível a recuperação
daquilo que realmente aconteceu no passado. Ele também acredita que a narrativa é a
forma clássica do historiador, e a mais adequada a sua tarefa: a de reconstruir os eventos
do passado e explicá-los aos leitores do presente sem incorrer no pecado do
anacronismo. Além disso, ele confia que a escrita da narrativa é o melhor método a
partir do qual é possível começar a entender as estruturas subjacentes aos eventos e as
conexões entre acontecimentos e estruturas. Ao mesmo tempo, sua abordagem narrativa
também o tornou particularmente sensível a narrativas passadas, às maneiras através das
quais atores históricos no passado representaram a si próprios e a sua realidade,
32
Lawrence Stone, “The Revival of Narrative: Reflections on a New Old History,” Past and Present, 85
(1979), 3-24. Ver também, Peter Burke, What is Cultural History? (Cambridge: Polity Press, 2005), 121-
124l.
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explicaram eventos e usaram tais narrativas para criar uma mitologia que representa sua
visão do mundo. A ênfase de Evaldo em eventos e personalidades não representa uma
rejeição de abstrações como o “Estado” e as “classes sociais”, tampouco uma negação
das estruturas econômicas, demográficas, sociais e mentais que moldam os eventos
históricos, ao contrário: é um alerta para que mais atenção seja dada à dimensão humana
da história, uma vez que são as pessoas, e não forças incorpóreas que, em última
instância, fazem a história.