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Ficha Técnica

Título: Anna K. – Uma História de Amor


Título original: Anna K. – A Love Story
Autor: Jenny Lee
Tradução: Tânia Sarmento
Revisão: Isabel Garcia
Capa: adaptação de Rui Rosa/Leya sobre ilustração de capa
de Copyright © Kemi Mai
ISBN: 9789892359199

Gailivro
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Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


Anna
Índice

Ficha Técnica
Quem é quem em Anna K.:
Parte I
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
XXI
XXII
XXIII
XXIV
XXV
XXVI
XXVII
Parte II
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
XXI
XXII
XXIII
XXIV
XXV
XXVI
XXVII
XXVIII
XXIX
Parte III
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
XXI
XXII
XXIII
XXIV
XXV
XXVI
XXVII
XXVIII
XXIX
Epílogo
Nota da Autora
Agradecimentos
Para o meu marido, John – o meu amor, a minha pessoa
favorita, o meu «felizes para sempre».
Este livro não existiria sem ti.
Quem é quem em Anna K.:

LOLLY S.
Dezassete anos, aluna do 11.º ano na Spence School. Namorada de Steven
K., irmã mais velha de Kimmie.
STEVEN K.
Dezoito anos, finalista no Collegiate School.
Irmão mais velho de Anna K., namorado de Lolly.
DUSTIN L.
Dezoito anos, finalista na Stuyvesant High School.
Explicador de Steven, irmão mais novo de Nicholas.
KIMMIE S.
Quinze anos, aluna do 10.º ano na Spence.
Irmã mais nova de Lolly.
ALEXIA VRONSKY – VRONSKY OU CONDE VRONSKY –
Dezasseis anos, aluno do 10.º ano em Collegiate.
Primo de Beatrice.
ANNA K.
Dezassete anos, aluna do 11.º ano na Greenwich Academy.
Irmã mais nova de Steven, namorada de Alexander.
ALEXANDER W. (também conhecido por O ORGULHO DE
GREENWICH / OG)
Dezanove anos, caloiro na Universidade de Harvard.
Namorado de Anna K., meio-irmão mais velho de Eleanor.
ELEANOR W.
Quinze anos, aluna do 10.º ano da Greenwich Academy.
Meia-irmã mais nova de Alexander.
BEATRICE D. (também conhecido por BEA)
Dezassete anos, aluna do 11.º ano na Greenwich Academy.
Prima de Alexia.
NICHOLAS L.
Vinte e um anos.
Irmão mais velho de Dustin, namorado de Natalia.
MURF G.
Dezasseis anos, aluno do 10.º ano na Greenwich High School. Amigo de
infância de Vronsky e tratador de cavalos na Quinta Staugas.
NATALIA T.
Dezoito anos, vive no Arizona.
Namorada de Nicholas.
Parte I
I
Todas as adolescentes felizes são iguais,
enquanto todas as adolescentes infelizes
são miseráveis à sua maneira.

Tudo isto foi um desastre do caraças. Lolly descobriu que o namorado,


Steven, a andava a trair quando foi buscar o Apple Watch dele, equipado
com uma nova bracelete, na loja da Hermès, na Madison Avenue. Steven
nem sequer sabia que ela tinha o seu Apple Watch. Vinte minutos antes, ele
decidiu fazer duas aulas de SoulCycle consecutivas, enquanto Lolly
implorou para não ficar para a segunda aula com ele. A sua nova dieta sem
glúten não tinha os hidratos de carbono suficientes para ela conseguir
aguentar uma sessão dupla sem desmaiar.
Apesar de isso ser verdade, ela também precisava de tempo e de acesso
ao seu Apple Watch para o poder levar à loja e comprar-lhe uma bracelete
nova. Seria o seu presente para ele de «sexaniversário» de dezoito meses,
que por acaso era no dia seguinte. Lolly não gostava de celebrar o primeiro
encontro oficial deles com aquele nome tão rude, mas foi assim que Steve
lhe chamou e ela alinhava porque o amava.
Assim, enquanto Steven estava a subir uma colina imaginária ao ritmo
constante de «IDGAF» de Dua Lipa no estúdio da East 83rd Street, Lolly
encontrava-se a quinze quarteirões para sul, no balcão da Hermès.
Tinha de decidir entre a tradicional bracelete dupla icónica em pele
laranja e outra mais hétero em preto mate. Estava a admirar a cor de laranja
no seu pulso delicado quando o Apple Watch do namorado vibrou e no ecrã
apareceu a imagem de um par de mamas em tamanho pequeno, seguida de
um balão de texto cinzento a dizer:
Queres foder?
Lolly tocou no ecrã para ver a fotografia outra vez, ficando hirta quando
confirmou o pior. Depois o seu impulso finge-ou-foge entrou em ação.
Decidiu fugir, esquecendo-se de devolver a bracelete antes de se dirigir a
correr para a porta, onde foi parada pelo segurança corpulento que se
colocou entre ela e a porta. Lolly, que nunca foi boa a conter as lágrimas,
começou a soluçar, olhando para os seus bonitos ténis Gucci com as cobras
brilhantes – Steven tinha-lhos oferecido no Natal passado. Sem saber o que
fazer, o segurança abraçou a rapariga que chorava.
– É um engano. Tem de ser um engano. Por favor, que seja um maldito
engano – sussurrou ela, encostando o rosto ao casaco de poliéster dele.
Por fim, a elegante vendedora japonesa toda vestida de Hermès que a
tinha estado a ajudar momentos antes tomou conta da situação e levou-a
para a sala das traseiras. Sentou-a num pequeno sofá e obrigou-a a beber
uma água Perrier, o que lhe provocou novos soluços e a fez começar a
chorar com mais força. Toda aquela cena era bastante embaraçosa para
ambas.
Kimiko trabalhava na Hermès há dez anos e estava familiarizada com
este tipo de situações – não era invulgar acontecer na classe social a que
pertenciam muitos dos seus clientes –, mas testemunhar a perda da
inocência desta rapariga de dezassete anos em primeira mão era diferente e
comoveu-a de uma forma inesperada.
Assim que se conseguiu acalmar, Lolly perguntou se ela achava que
devia ver o resto das mensagens do namorado.
– É melhor descobrir tudo agora, quando não está sozinha – respondeu
Kimiko, numa voz baixa.
Em poucos minutos, estavam as duas hipnotizadas com a natureza
terrivelmente gráfica da relação do namorado de Lolly com o misterioso
«Brad». Steven guardara aquele contacto com um nome falso, mas, pela
profusão de fotografias de partes do corpo feminino que tinham sido
enviadas para Steven nas últimas semanas, não havia qualquer hipótese de
«Brad» ser um homem. Havia, inclusive, um vídeo desfocado gravado com
a saia levantada que fez as duas mulheres estremecerem e murmurarem um
bluh enojado em uníssono.
Lolly comprou um cinto azul-safira e azul brighton e uma fivela Hermès
Iris como forma de agradecimento a Kimiko pela sua amabilidade e saiu da
loja quinze minutos depois. Apanhou um Uber diretamente para a enorme
penthouse de quatro assoalhadas dos pais de Steven, que ficava na 15
Central Park West e se encontrava vazia – os pais dele estavam em Aspen a
esquiar –, onde iria esperar pelo traidor do namorado.
Deu uma gorjeta a Gustavo, o porteiro, para que não avisasse Steven de
que ela estava lá em cima, com a desculpa de que tinha uma surpresa para
ele, e acenou com o saco de compras cor de laranja da Hermès como prova.
O porteiro aceitou o dinheiro, mas claro que avisou Steven na mesma,
porque dez minutos depois o namorado apareceu com um ramo de rosas
vermelhas nas mãos ainda suadas.
– Lolly, querida, o que se passa? – perguntou ele. Foi a única coisa que
teve tempo de dizer antes do vaso preferido da sua mãe, um Lalique
Tourbillons cor de âmbar, passar por si a sibilar e se espatifar no chão de
mármore do hall da entrada. Ele olhou em choque para a namorada,
normalmente recatada.
– Diz-me só uma coisa, Steven. Quando é o teu sexaniversário com a
Brad? – interrogou ela num tom de voz furioso, segurando o Apple Watch
dele como prova digital.
Steven olhou para ela e soube que tinha sido irremediavelmente
apanhado. A sua confusão momentânea depressa se transformou numa
expressão envergonhada e alterou o seu comportamento como se rastejasse
aos pés dela.
– Não te aproximes de mim, seu… seu… porco nojento! É verdade, eu vi
todas as fotografias nojentas que a puta da Brad te mandou! – gritou ela.
À menção das fotografias, Steven lembrou-se da fotografia que recebera
depois da aula e não conseguiu conter um ligeiro sorriso lascivo. Afinal de
contas, era um rapaz de dezoito anos.
Infelizmente, Lolly viu o seu sorriso dengoso.
O som gutural que ela fez quando passou por ele a correr, quase o
atirando ao chão, assemelhava-se mais a um animal do que a um humano.
Mas como não tinha para onde correr, exceto para o corredor, Lolly abriu a
porta do quarto principal e bateu com a pesada porta atrás de si. Trancou-se
lá dentro e correu diretamente para o closet da mãe de Steven. Atirou-se de
barriga para baixo na chaise-longue de veludo vermelho-vivo e desatou a
chorar como nunca chorara antes.
Steven tentou falar com ela através da porta, mas as únicas respostas que
recebeu foi o som ocasional de coisas a serem atiradas contra a porta. Uma
hora depois, estava na sala de estar a ver os melhores momentos do
SportsCenter e a comer o seu terceiro Hot Pockets de pepperoni quando
recebeu a seguinte mensagem do seu amigo Kaedon:
Meu, compraste um casaco de peles à tua namorada?!?!
Steven parou o que estava a ver na televisão, pegou no telemóvel e
depressa descobriu que já tinha sido bloqueado em todas as redes sociais de
Lolly. – Lá se iam os seus 453 dias de fotografias no Snapchat! –
Respondeu a Kaedon:
Screenshot?
Segundos depois, Kaedon enviou-lhe uma selfie de Lolly vestida com um
dos casacos de pele da sua mãe, provavelmente sem mais nada por baixo.
Ela era muito mais baixa do que a mãe dele, o que a fazia parecer ridícula
no casaco de vison russo, com os olhos selvagens rodeados de rímel. Fazia
lembrar um guaxinim raivoso… que acabara de descobrir que o namorado a
andava a trair e estava muito zangada. Ele abanou a cabeça, sabia que a
situação estava para além do seu controlo. Depois enviou uma série de
mensagens à irmã, Anna, que estava em Greenwich, Connecticut, a dizer-
lhe que precisava urgentemente da sua ajuda ao vivo e a cores. A irmã era
mais nova, mas muito mais sábia, sobretudo no que dizia respeito a
relacionamentos e a todas as emoções complicadas que lhes estavam
associadas.
Dez minutos depois, recebeu a resposta de Anna que anunciava a sua
chegada a Grand Central às 20h55. Antes de ter tempo de lhe dizer para
apanhar um táxi, caíram outras duas mensagens dela: uma explicava-lhe
que a queda de neve estava a atrasar o trânsito com uma imagem do Google
Maps a mostrar-lhe que o comboio era a maneira mais rápida de chegar a
Manhattan; e a outra dizia que esperava que ele a fosse buscar pessoalmente
à Grand Central, para que ela pudesse ouvir a sua versão de «emergência
com a namorada!»
Steven limitou-se a enviar um «K», pois não havia nenhum emoji que
pudesse demonstrar quão lixado realmente estava.
II
Depois de jogar «Shadow of War» para desanuviar a cabeça e beber um
copo de uísque Glenmorangie Pride 1974 do pai para acalmar os nervos,
Steven tentou mais uma vez falar com Lolly através da porta. Um segundo
depois, recebeu por fim uma indicação do estado de espírito da namorada,
que não era positivo. Lolly empurrou por debaixo da porta a tira de
fotografias a preto e branco que tinham tirado juntos na cabine de
fotografias no bat mitzvah da sua irmã mais nova, Kimmie, há um ano e
meio. Aquelas fotografias foram, em tempos – até quatro horas atrás! –, o
bem mais precioso de Lolly, que as trazia na sua carteira LV[1].
Steven apanhava muitas vezes a namorada a observá-las, mas nessas
alturas estavam num estado bem diferente do atual. Os olhos dele tinham
sido furados em cada uma das quatro fotografias e tinha desenhado pénis
minúsculos na sua testa.
– Lolly, querida, não significou nada. Eu amo-te. Juro. – Quando o disse
em voz alta, soube-o que era verdade. Quando Steven tinha catorze anos, o
pai apanhou-o a meio de um broche de Jenna H., enquanto os pais dela
tinham ido jantar fora. O pai mandou a rapariga humilhada embora, sentou-
se e disse-lhe duas coisas. Primeiro, ele precisava de aprender a esconder-se
melhor se não queria ser apanhado. E segundo, a lição mais importante,
precisava de aprender a diferença entre gostar de fazer sexo com raparigas e
de gostar da rapariga com quem estava a fazer sexo.
Sem saber o que dizer, e como sabia que Lolly gostava imenso de Anna –
todas as raparigas gostavam da sua irmã mais nova assim que a conheciam
–, Steven anunciou que Anna vinha a caminho, esperando que Lolly visse
isso como um sinal de que ele não estava a desistir facilmente. Mas, mais
uma vez, só obteve silêncio como resposta. No entanto, recebeu uma
mensagem do porteiro a avisá-lo de que Dustin L. estava a subir. Steven
suspirou, irritado consigo próprio por se ter esquecido de cancelar a
explicação que tinha três vezes por semana. Dirigiu-se para a porta da
entrada e ficou de pé no corredor.
Pensou na hipótese de falar com Dustin sobre o seu problema atual, uma
vez que ele era um dos tipos mais inteligentes que conhecia, mas Steven
sabia que não havia hipótese de Dustin ficar do seu lado. Dustin era,
tecnicamente, um dos amigos mais antigos de Steven, pois as mães tinham
frequentado a mesma aula de música para mães e filhos, o que significava
que brincaram juntos em bebés todas as terças e quintas-feiras e foram «os
melhores amigos» até aos cinco anos. Mas depois os pais de Dustin
divorciaram-se e ele foi para uma escola pública enquanto Steven foi para
uma privada, o que não lhes permitiu frequentaram os mesmos círculos
sociais durante anos. Só voltaram a entrar em contacto recentemente,
quando Dustin se tornou o explicador de Steven.
Atualmente, Dustin era um finalista que se ia formar com distinção na
Stuyvesant em junho, enquanto Steven era finalista pela segunda vez na
Collegiate. Steven tinha frequentado a Collegiate na primária, mas foi
expulso no quinto ano quando foi apanhado a puxar as calças para baixo a
um colega durante Educação Física. A seguir, foi expulso de Xavier no
sétimo ano por possuir erva e depois de Riverdale, no nono ano, por andar à
pancada. Ainda frequentou o Horace Mann durante alguns semestres, mas
regressou ao Collegiate com rédea curta.
Tinha de agradecer à mãe por ter sido readmitido, pois ela teve de pedir
alguns favores para que isso acontecesse. E, uma vez que uma das
condições da sua liberdade condicional académica era manter uma média
elevada, a mãe contratou uma série de explicadores muito caros para o
ajudarem com os trabalhos de casa, que se demitiram ao fim de uma ou
duas semanas, alegando uma péssima atitude por parte dele – ou seja,
malcriação – e uma ética de trabalho ainda pior. Sem saber o que fazer, a
mãe acabou por ter a brilhante ideia de ligar à mãe de Dustin para saber se o
filho, cujos impressionantes resultados académicos eram sempre referidos
no FB[2], aceitaria ajudar Steven e ser o seu novo explicador. A mãe sabia
que, embora ele tivesse pouco respeito pela autoridade dos adultos,
procurava a aprovação dos seus pares.
Dustin recusara categoricamente o convite quando a mãe lhe falou disso
em outubro, lembrando que só eram «amigos» porque, por acaso, as mães
se tinham conhecido há uns anos, pois não podiam ter tido infâncias mais
diferentes.
– Nós não temos nada em comum! – queixara-se Dustin. – Do que é que
vamos falar?
– Daquilo que estarás a ser pago para falar: dos trabalhos de casa –
respondera-lhe a mãe calmamente.
Dustin deixou escapar um suspiro e revirou os olhos. Steven era um
rapaz bonito e rico, que passava a vida em festas com os amigos e que
frequentava o círculo social mais elevado de Manhattan, e Dustin era o
oposto – um miúdo adotado, que não sabia nada sobre os seus pais
biológicos. Bem, sabia que a mãe biológica ainda era adolescente quando
engravidou e tinha deixado um bilhete a dizer que o bebé devia ser entregue
a Tamar L., «a simpática assistente social, inteligente e bondosa, ao
contrário dela, que era apenas uma criança vinda de um lar completamente
lixado e a viver com a mãe maluca». Ela queria uma vida melhor para o
filho e, por isso, sabia que o devia dar para adoção.
Foi assim, numa sexta-feira à noite, quando ia a caminho do templo para
a sua primeira cerimónia de Shabbat em muito tempo, que Tamar recebeu
uma chamada de uma assistente social do hospital e lhe foi dada uma hora
para decidir se queria ser mãe de um recém-nascido de dois dias. Encarando
aquilo como um teste à piedade que há muito não praticava, inclinou-se
para a frente e deu ao taxista o endereço do St. Luke na 112th Street.
Quando contou ao marido as suas intenções e explicou a epifania que teve
no táxi, o futuro pai adotivo de Dustin não hesitou um momento – apesar de
já terem uma criança de três anos – antes de dizer: «Alinho!», e Tamar foi
inundada por um sentimento de segurança e pela certeza de que tinha
casado com o homem certo. Dezoito anos mais tarde, ela ainda contava esta
história, mas com a ressalva de que, embora tivesse razão ao adotá-lo, tinha
falado cedo demais sobre o seu atual ex-marido.
Dustin cresceu e tornou-se um rapaz calmo e sério, e os pais adotivos
faziam continuamente piadas com os amigos sobre como os seus próprios
genes nunca poderiam ter feito um rapaz tão inteligente, ao que Dustin,
conhecendo a rotina, respondia que tinha a certeza de que os seus pais
biológicos nunca o conseguiriam ter criado para se tornar um jovem judeu
tão bom. Mas só recentemente, com o aumento da popularidade de Drake, é
que o seu tom de pele negro combinado com a educação judaica que
recebeu foi considerado «fixe» pelos colegas em vez de «esquisito». O que
as pessoas não sabiam era que ele também era propenso a ataques de pânico
e que fazia terapia para controlar a ansiedade desde os dez anos – razão pela
qual a ideia de dar explicações a um miúdo «rico e destravado» como
Steven lhe provocava um nó no estômago.
– Nem pensar, mãe. Não posso fazer isso – declarara Dustin. – O Steven
é o epítome da elite privilegiada, e ajudá-lo é como se eu estivesse a passar
para o lado do negro. Não sou um Kylo Ren[3].
A mãe de Dustin, uma mulher muito prática e calma, explicou ao filho
que ele estava a dar demasiada importância ao assunto.
– Estás a ser muito emotivo, Dusty – afirmou ela. – Isto não é a Guerra
das Estrelas, é a vida real, e não é justo da tua parte descartar o Steven só
porque ele nasceu no seio de uma família rica. Ninguém está a dizer que
tens de ser o seu melhor amigo. Isto é um trabalho, estás apenas a prestar
um serviço que é necessário e a ser pago para o fazer bem. Nos próximos
oito meses, vais ganhar mais dinheiro do que eu ganho num ano inteiro.
O preço de um explicador privado em Manhattan chegava facilmente aos
duzentos dólares por hora, e claro que a mãe de Steven oferecia mais, o que
significava que Dustin ia receber mais de dois mil dólares por semana,
juntamente com um bónus de dez mil dólares se Steven terminasse o ano
com uma média superior a 17.
– Não vês como isso é de loucos? – replicou ele. – És uma profissional
qualificada que passa os dias a ajudar os mais desfavorecidos, pessoas que
realmente precisam de apoio. És tu quem está sempre a dizer que os
assistentes sociais e os professores das escolas públicas são as duas
profissões mais nobres que existe e, mesmo assim, são grosseiramente
subvalorizadas no mundo de hoje. Como é que podes, em boa consciência,
incentivar-me a aceitar esta oferta?
– Para de ser tão melodramático! Vais para a universidade no próximo
ano e esta oportunidade vai fazer com que não precises de trabalhar num
part-time da treta para ganhares dinheiro. É assim que eu vejo as coisas e tu
também devias ver.
Dustin achava a opinião da mãe simplista e de visão curta, mas quando
lhe tentou dizer isso, ela recusou-se continuar a debater o assunto e insistiu
que ele falasse com outra pessoa antes de recusar.
Assim, ele decidiu acabar com o assunto rapidamente e foi ter primeiro
com a autoridade máxima: a rabina do seu templo. Para sua grande
surpresa, a rabina Kennison concordava com a mãe dele, dando o seu
próprio exemplo de quando teve de trabalhar no McDonald’s durante o
liceu.
– Perguntei a todos os clientes se queriam o menu grande, será que isso
faz de mim uma responsável pelo problema de obesidade nos Estados
Unidos? – questionou-lhe ela. Antes de Dustin poder responder, ela
acrescentou que ele estaria a fazer um mitzvah ao usar os seus dons
intelectuais dados por Deus para ajudar os outros. – E se o Steven crescer e
se tornar senador porque o ajudaste com os estudos?
Dustin teve vontade de rir ao imaginar o miúdo que certa vez comera um
escaravelho só porque o desafiaram quando tinha quatro anos, se pudesse
vir a tornar senador, mas depois lembrou-se do Presidente que fora a estrela
de um reality-show e que traiu a mulher grávida com uma estrela de filmes
pornográficos, e conteve-se. Em vez disso, agradeceu o conselho e ligou
imediatamente para o Dr. N., a marcar uma sessão de terapia urgente. Após
cinquenta minutos de terapia, Dustin não estava mais perto de tomar uma
decisão. Acabou a pensar que todos os adolescentes, ricos e pobres, tinham
provavelmente a mesma capacidade para fazer o bem ou para o mal, e que a
melhor forma de combater o mal era através da educação – isto é, se não
houvesse um sabre de luz disponível. No final da sessão, o Dr. N.
mencionara casualmente que, se ele recusasse o trabalho, talvez pudesse
recomendar o sobrinho dele, que era um pobre estudante de Direito na
Faculdade de Fordham. Dustin achou esta sugestão eticamente
questionável. Ao fim de uma semana de intensas preocupações, acabou por
aceitar o trabalho como explicador, mas avisou a mãe de que, se sentisse o
mais pequeno conflito interior, se demitiria.
Ao fim do primeiro mês, ele descobriu que as nove horas semanais que
passava a dar explicações a Steven não eram, de facto, uma batalha
aristotélica – ou bíblica, shakespeariana, filosófica ou mesmo ao estilo de
George Lucas – entre o bem e o mal como temera. Até eram bastante
divertidas.
Afinal, o seu amigo de infância não se tornara tão arrogante e
insuportável como achara. É verdade que Steven estava mais velho, mas
continuava a ser muito parecido com a criança que ele conheceu – um rapaz
carismático, com um grande sentido de humor, que gostava de brinquedos
caros e que ficava feliz em partilhá-los com os amigos, e que,
provavelmente, ainda comeria um inseto se fosse desafiado a tal.
No segundo mês, Dustin começou a gostar do tempo que passava com
Steven, embora nunca o admitisse à mãe. Deu por si, em mais do que um
fim de semana, a ansiar pela sessão de estudo de segunda-feira, quando
Steven iria, sem dúvida, presenteá-lo com alguma história bizarra do seu
fim de semana divertido para caraças. Ambos tinham experiências
completamente opostas enquanto estudantes do liceu: Steven passava a vida
a tomar drogas, a ir a discotecas e a engatar miúdas giras, enquanto Dustin
frequentava mais cafés, grupos de estudo e as miúdas inteligentes só o viam
como um amigo.
No final do primeiro semestre, Dustin conseguiu que Steven melhorasse
academicamente, viu-o passar nos exames finais sem copiar e sentiu-se
mais orgulhoso da média de 17 de Steven do que da sua própria média de
19 – apesar de a sua média ter subido depois dos exames finais. Os rapazes
celebraram a vitória de ambos com um enorme jantar no Peter Luger, em
Brooklyn, onde serviam os melhores bifes. Quando Steven fez um brinde e
felicitou Dustin por ter conseguido o impossível – o pai de Steven disse-lhe
pela primeira vez que estava orgulhoso dele –, Dustin apercebeu-se de que
ia sentir a falta dele durante o mês das férias de Natal. Não ficara nada
aborrecido por ter visto que estava completamente errado em relação ao seu
velho amigo. Na verdade, isso encheu-o de alegria. O facto de se sentir
superior aos seus colegas tornava-o muitas vezes solitário, mas, naquela
noite, durante um banquete digno de reis, sentiu uma profunda ligação com
alguém da sua idade e gostou muito dessa sensação.
Foi então que Steven o convidou para a habitual festa de Ano Novo que
dava todos os anos. Embora Dustin não soubesse na altura, essa festa
mudaria para sempre o rumo da sua vida. Nunca fora a sua alma que esteve
em jogo ao reunir-se com Steven, mas sim o seu coração. Isto porque a
namorada do amigo, Lolly, tinha uma irmã mais nova, Kimmie, por quem
Dustin acabou por se apaixonar, tornando-se o amor da sua vida.

III
Ao contrário de Steven, Dustin sempre fora um miúdo intenso e
estudioso, razão pela qual não tinha muitos amigos, mas isso nunca o
incomodou porque não tinha tempo para ter uma vida social. Dedicava
todos os minutos e esforço aos trabalhos da escola, à equipa de debate e à
preocupação com o aquecimento global e a subida do nível do mar. No
entanto, tinha uma fonte de verdadeira alegria: o cinema. Sentado numa sala
de cinema às escuras, podia parar de se preocupar por momentos com a sua
exigente carga horária e apenas respirar. Graças a este seu escape, tinha
visto um número impressionante de filmes, mas o seu prazer secreto eram
as comédias de adolescentes passadas no liceu dos anos oitenta e noventa.
Foram esses mesmos filmes que despoletaram a chama da sua única
fantasia secreta e vergonhosa que nunca admitiu a ninguém em toda a sua
vida, nem mesmo ao seu terapeuta.
A fantasia de Dustin era acabar o liceu e ir ao baile de finalistas não com
o seu grupo de amigos rapazes, ou com uma rapariga inteligente, detentora
de uma média de fim de curso invejável e que ia estudar para uma
universidade da Ivy League. O seu sonho era ir acompanhado por uma
rapariga linda e boazona, completamente fora da sua liga e que não fosse
muito inteligente. Mas não queria uma rapariga bonita qualquer, queria uma
que estivesse na não-tão-secreta Lista das Boazonas das escolas privadas de
Manhattan, que saía todos os anos durante as férias de Natal e que escolhia
as dez raparigas mais giras de cada ano. Ele sabia que a existência de tal
lista era superficial, misógina e humilhante para as raparigas, mas ele não
participava ativamente na elaboração da lista, apenas a via – e depois
odiava-se logo a seguir por o ter feito.
Dustin era esperto o suficiente para saber que este seu devaneio era
alimentado pelos filmes de ficção para adolescentes que ele adorava, onde o
«rapaz simpático» acabava sempre com a «rapariga giraça», mas ele não se
importava. Sonhava com o que sonhava e, apesar de se sentir culpado por
ter um desejo tão fútil – especialmente quando o panorama político era tão
merdoso nos dias que correm –, deixou-se levar e analisou o assunto
cientificamente. O que estava a sentir era um imperativo biológico, que é
uma forma elegante de dizer que tinha tanta testosterona como qualquer
outro adolescente.
A sua fantasia para o baile de finalistas transformou-se numa coisa
completamente diferente seis semanas antes, na noite da festa de Ano Novo
dada por Steven. Esta infame tradição nasceu há quatro anos, quando
Steven não tinha outra opção senão frequentar a Baruch, uma escola pública
de Nova Iorque, durante o primeiro período do 9.º ano, depois de ter sido
expulso da Riverdale Country School no primeiro dia de aulas. Preocupado
com a possibilidade de perder a sua posição social, enquanto esperava que a
mãe o colocasse numa nova escola privada, pediu ao pai que o deixasse
organizar uma festa de Ano Novo, durante as férias dos pais na casa de
praia em Maui, como de costume.
O seu pai, um coreano de raiz, sempre preocupado com a integração do
filho meio-coreano no seio da alta sociedade nova-iorquina, concordou e
deu ao filho o sábio conselho de que, para uma festa ser memorável, não só
precisava de ser luxuosa, mas também exclusiva. Foi ideia dele que Steven
restringisse os convites para a festa à elite endinheirada – alunos e finalistas
das escolas privadas –, apesar do filho ser apenas um caloiro. E para atrair
esses alunos mais velhos e fixes, o pai pagou muito bem a A$AP Rocky[4]
para atuar na festa. A mãe teve a ideia de «apimentar a festa» com vinte
jovens modelos da agência Wilhelmina, pagas para serem convidadas a
fingir, uma ideia que ouviu de um amigo que fez fortuna a investir em
clubes noturnos. A festa original foi um enorme sucesso e a reputação de
Steven como melhor anfitrião ficou lendária.
A última destas festas, que aconteceu há cinco semanas, fora a primeira
para que Dustin tinha sido convidado, embora já tivesse ouvido várias
histórias sobre este evento ao longo dos anos. Quando Dustin chegou nessa
noite, estava convencido de que, provavelmente, as pessoas exageravam
cinquenta por cento quando falavam da festa – tal como faziam quando
falavam em relação à maioria das coisas naquela cidade –, mas assim que
entrou, percebeu que estava enganado. A festa era realmente diferente de
tudo o que já vira antes.
Era como se o Pai Natal tivesse deixado o negócio dos brinquedos e
aberto um clube de striptease. Modelos sensuais vestidas como duendes
circulavam pela festa decorada por profissionais, a servir bolas de macarrão
com queijo com trufas e batatas roxas com caviar. Havia dois bares com
bebidas da melhor qualidade, servidas por empregados vestidos com pouca
roupa – como este era o segundo ano como namorada do anfitrião, Lolly
tinha-se certificado de que também havia empregados de bar masculinos
bonzões. – Uma série de DJs profissionais estavam encarregados da música
e, assim que se entrava no hall da entrada, a primeira coisa que se via era
uma fonte de gelo de dois metros com uma escultura de Rick e Morty[5], em
que o champanhe era derramado na mão de Morty, que estava sentado aos
ombros do Rick, e escorria por ele e saía pelo pénis de Rick, o «Pickle do
Rick», perfeitamente gelado. A fonte era a fotografia da festa mais
partilhada no Instagram.
A única regra nova imposta pelos pais de Steven para este ano era não ser
permitido fumar dentro de casa, por causa do incidente de quinze milhões
de dólares do ano passado – onde fumadores distraídos queimaram o
Matisse. Mas este problema teve uma resolução fácil. Bastou abrirem o
acesso ao terraço no telhado, que se fazia pelas escadas que ficavam ao lado
da porta da entrada. Os pais de Steven partilhavam o andar com apenas uma
outra família e os C. foram presenteados com as chaves do pied-à-terre
parisiense dos K. para passarem as férias, garantindo assim que não
estariam em casa para lidar com mais de trezentos adolescentes a invadir o
terraço.
Depois de deambular de um quarto para o outro na festa, Dustin decidiu
ir espreitar o terraço antes de deixar o seu casaco no quarto da irmã de
Steven. Lá em cima, deparou-se com uma multidão de pessoas a fumar
ganzas e cigarros sob candeeiros que aqueciam, uma mesa de pingue-
pongue, uma mesa de hóquei no gelo em plena ação e uma loja pop-up do
Serendipity 3[6], gerida por alguém vestido de pinguim. Impressionado com
tamanha insanidade, Dustin pegou num chocolate quente e atravessou o
terraço para ir admirar a vista. A imagem do Central Park, ainda coberto de
branco pelo primeiro nevão do inverno, era de tirar o fôlego. Enquanto
Dustin olhava para o parque, não pôde deixar de se perguntar se o pai de
Steven também teria pago para que nevasse.
Virou-se para observar a multidão, mas não viu um único rosto
conhecido, e apercebeu-se de que as únicas pessoas que falaram com ele
desde que chegara foram os empregados que estavam a ser pagos para isso.
Depois de acabar de beber o chocolate quente, decidiu ir-se embora antes de
Steven saber que ele tinha aparecido. Aquela festa não era obviamente a
praia dele e aquelas não eram as suas pessoas. Admiti-lo permitiu que ele
finalmente relaxasse. Quando Dustin olhou para o seu iPhone para ver as
horas, deu de caras com um alerta a lembrá-lo de que a OSIRIS-REx estava
a entrar em órbita em redor do asteroide Bennu e, embora aquilo estivesse a
acontecer a 70 milhões de quilómetros de distância, olhou para cima e deu
por si a achar o céu noturno bastante calmo. Ainda o estava a observar
quando ouviu uma voz doce a perguntar-lhe para onde estava a olhar tão
concentrado.
Quando olhou para baixo para ver quem falara com ele, o primeiro
pensamento que lhe ocorreu foi que se enganara e, em vez de sair para o
terraço, entrara na dispensa da cozinha, que estava ocupada por três
finalistas de Dalton que enchiam o espaço com uma névoa de fumo, e agora
estava mocado. A rapariga diante dele parecia um anjo loiro e etéreo, vinda
de outro mundo, a brilhar num vestido prateado com uma écharpe de
caxemira rosa-pálido à volta dos ombros a cobrir-lhe as asas.
Sendo uma pessoa racional, Dustin não acreditava no fenómeno
conhecido como «amor à primeira vista», mas naquele momento foi isso
mesmo que lhe aconteceu. Ele explicou àquela rapariga linda que recebia os
alertas do Espaço e Astronomia do New York Times no telemóvel e que
acabara de receber uma notificação. Ela respondeu-lhe que nunca percebeu
realmente «aquela coisa toda de observar as estrelas», até ter morado um
ano na costa Oeste dos Estados Unidos, onde não havia prédios altos e o
céu era muito maior do que ela imaginou ser possível, a «abarrotar» com
triliões de estrelas. Dustin adorou que ela tenha usado a expressão
«abarrotar» e que tenha admitido, sem culpa, que não tinha percebido que
eram as luzes da cidade a razão pela qual ela nunca via as estrelas em
Manhattan.
Dustin corrigiu-a gentilmente, explicando-lhe que, numa noite com o céu
limpo, era possível ver algumas constelações desde que se soubesse para
onde olhar. De seguida, contou-lhe por que razão a primeira órbita da nave
espacial OSIRIS-REx em torno do asteroide Bennu era importante e como
era emocionante que algo assim estivesse a acontecer no espaço enquanto
eles estavam ali.
– Consegues imaginar os anos de planeamento que foram necessários
para que isto acontecesse? É um feito incrível para todos os envolvidos.
– Parece que sim – respondeu o anjo, cujo nome ele nem sabia, e de
seguida estremeceu por causa do vento. Aninhou melhor a écharpe em volta
dos ombros, e disse-lhe que precisava de encontrar a irmã, mas que
esperava que pudessem conversar mais tarde. E, assim, foi embora. Se ela
não lhe tivesse tocado no braço e dito como era bom conversar sobre as
estrelas com ele, Dustin ter-se-ia perguntado se ela tinha realmente estado
lá.
Acabou por ficar na festa até um pouco depois da meia-noite, porque
felizmente encontrou duas raparigas que conhecia das aulas de preparação
para os exames e que o deixaram fazer-lhes companhia a noite toda.
Stephanie e Tasha eram amigas da namorada de Steven de Camp Laurel, no
Maine, e ambas admitiram que também era a primeira vez que vinham à
festa. Dustin ficou aliviado por saber que estavam tão impressionadas como
ele com aquele espetáculo, mas elas disseram que iam aguentar
estoicamente até ao fim, pois não sabiam se iam ser convidadas novamente.
Felizmente as duas raparigas eram bastante faladoras, por isso Dustin
ficou calado como sempre, apenas a ouvir, enquanto procurava
secretamente na multidão a rapariga com quem falara no terraço. Foi só
alguns minutos depois de o Ano Novo ter chegado, com gritos de festejos e
chuva de confettis, que ele a voltou a ver. Dustin estava na biblioteca,
sentado num sofá com Tasha e Stephanie, quando a misteriosa rapariga loira
apareceu a correr. Ele indicou-a a Stephanie e ela informou-o com
naturalidade que a beldade angelical era Kimmie, a irmã mais nova da sua
amiga Lolly.
– Não sabia que a Lolly tinha uma irmã. Foi tudo o que ele conseguiu
dizer antes de Stephanie e Tasha começarem a contar-lhe a história toda da
vida de Kimmie. Ela tinha acabado de entrar na Spence para o 10.º ano,
pois tinha feito o 9.º ano no Nevada, a treinar para ser patinadora artística
olímpica. Voltou para casa há seis meses, pois teve um terrível acidente
durante uma competição, quando Gabe – o seu par na patinagem e melhor
amigo gay –, calculou mal o tempo de uma elevação profunda pela borda
externa, perdeu o equilíbrio e caiu para trás, fazendo com que ela caísse
para a frente e partisse a rótula. Passou o verão todo a recuperar de uma
cirurgia e foi informada de que a sua carreira como patinadora artística
tinha chegado ao fim.
– Bem, se eu tivesse de escolher entre ir aos Jogos Olímpicos ou estar na
Lista das Boazonas, sem dúvida que escolhia estar na lista – acrescentou
Tasha.
Dustin engasgou-se com o champanhe com a simples menção da lista,
que se acabou por transformar numa tosse constrangedora. Depois de levar
uma pancada nas costas das duas amigas, ele conseguiu por fim perguntar
em voz rouca:
– Ela está na lista? – Dustin tentou soar o mais casual possível, porque,
na verdade, ainda não sabia que a lista já tinha sido divulgada.
Stephanie assentiu com a cabeça.
– Ficou em terceiro lugar, o que é incrível, visto que nem fez campanha
para isso.
– E não se veste como uma oferecida, como as outras raparigas –
acrescentou Tasha.
– Bem, na escola não – disse Stephanie. – Mas há muitos vídeos da
Kimmie nas suas roupas reduzidas de patinagem artística no YouTube.
– Achas que a Lolls se chateia por ter uma irmã mais nova linda?
– Não. Eu preferia ter um namorado como o Steven do que estar na lista.
– Eu também.
Dustin, assoberbado com tanta informação – e sem querer dar-lhes
motivos para suspeitar –, mudou de assunto discretamente e foi-se embora
da festa vinte minutos mais tarde. Preferiu voltar para casa a caminhar pelo
parque coberto de neve para poder reproduzir a noite na sua cabeça,
maravilhando-se com o facto de que todas as escolhas que fez na vida o
levaram àquele encontro casual no terraço. Por mais que tentasse não
pensar nisso, quando já estava quase a chegar a casa, não conseguiu deixar
de imaginar como seria ir ao baile de finalistas com Kimmie S., a aluna que
ficou em terceiro lugar como a mais gira do 10.º ano em toda a Manhattan.

IV
As aulas tinham começado há quase duas semanas e Dustin viu Steve
seis vezes, mas não teve coragem para lhe perguntar diretamente sobre
Kimmie. Quando tentou perceber o motivo, só lhe veio à cabeça que se
calhar ele não queria ouvir a verdade. Porque se descobrisse que só tinha
hipótese de ficar com ela nos seus sonhos, como será que o seu estado de
espírito ficaria? Mas, à medida que atravessava o parque no final da tarde
para ir dar a explicação, pensou no que tinha acabado de falar na terapia.
Hoje era o seu dia de sorte, com o número sete na data, e ele ia por fim
ganhar coragem e confessar a Steven o seu amor por Kimmie.
Assim que entrou no apartamento, Dustin percebeu que alguma coisa
estava errada. Steven abraçou-o de forma desajeitada e disse:
– Meu, não vais acreditar no meu dia. Entra. Entra. Ainda bem que estás
aqui.
O primeiro pensamento de Dustin foi que Steven estava sob o efeito de
drogas. Enquanto foi buscar um copo de água à cozinha para si, verificou os
olhos do amigo. As pupilas de Steven pareciam normais, dada a quantidade
de luz na divisão. O irmão mais velho de Dustin estava na reabilitação, por
isso tinha alguma experiência com pessoas que consumiam drogas e,
embora soubesse que Steven usava, tinha a certeza de que ele não estava
drogado.
Para surpresa de Dustin, o amigo instalou-se na sala de jantar formal,
numa mesa onde cabiam à vontade vinte e quatro pessoas. Fez um grande
estardalhaço ao abrir o livro de física e disse a Dustin que podiam começar
a resolver os problemas de física a seguir de beberem um shot.
Normalmente, Dustin teria recusado, mas precisava de se acalmar.
A bebida era surpreendentemente suave e, quando Dustin lhe disse isso,
Steven respondeu:
– É bom que seja. Esta merda custa novecentos e cinquenta paus a
garrafa!
Ao ouvir aquilo, Dustin abanou a cabeça, pegou na garrafa e fez uns
cálculos rápidos de cabeça.
– Acabámos de beber de um trago setenta e seis dólares!
– E vamos beber de novo! – disse Steven, servindo-lhes mais duas doses.
Dustin, incapaz de lidar com a ansiedade crescente, deixou escapar:
– É muito improvável a irmã mais nova da Lolly aceitar sair comigo? –
E bebeu de seguida o seu segundo shot antes de o amigo ter tempo de
responder.
Steven recostou-se para trás na cadeira, soltou um longo assobio e disse:
– Dustin, seu lobo gigante depravado. – A obsessão pela Guerra dos
Tronos[7] era uma das poucas coisas que os dois jovens tinham em comum.
Dustin ignorou o assobio e continuou a falar.
– Desde que conheci a Kimmie na festa de Ano Novo, que só consigo
pensar nela. O meu pai apanhou-me a ver os seus vídeos de patinagem
artística no iPad e agora deve estar a perguntar-se se sou gay. Ainda bem
que a conheci depois de entrar no ITM[8], porque ela é uma destruidora de
boas notas.
– Isso é linguagem de nerd para dizer que ela é podre de boa? Estou a
gostar. – Steven riu-se da explosão do amigo, depois bateu com os pés no
chão e disse, num tom mais sério: – Na verdade, acho que a Kimmie ia
gostar de um tipo inteligente como tu. Além disso, as miúdas ficam loucas
com o estatuto que lhes dá andarem com tipos mais velhos. – Steven fez
uma pausa, e Dustin soube instintivamente que aquilo significava
problemas.
– Mas...? – perguntou Dustin.
Steven assentiu e continuou:
– Mas ela também chamou a atenção do Conde Vronsky e, neste
momento, pode estar um pouco enfeitiçada por ele. Tens de aguentar firme,
porque nenhuma rapariga dura muito tempo com ele. – Steven sentiu-se mal
por ter de dar as más notícias ao amigo, mas achou que devia elucidar
Dustin sobre com quem ele estava a competir.
Dustin franziu o sobrolho, ainda a digerir as novidades.
– Por favor, diz-me que «Conde» é uma alcunha e não o título oficial
dele.
Steven confirmou ao amigo que, de facto, era uma alcunha, mas que
nasceu de um boato de que o pai de Vronsky era descendente da realeza
russa. A segunda teoria sobre a origem da alcunha «Conde» era porque ele
demorava, pelo menos, cinco minutos a contar todas as raparigas que
tinham baixado as cuecas para ele, mas Steven guardou essa informação
para si mesmo, e acrescentou:
– Agora a sério, a Lolls acha que o Conde é uma fantasia passageira, e tu
podes ser a tartaruga lenta e constante que no final ganha o prémio.
– A corrida – corrigiu Dustin. – A tartaruga lenta e constante que ganha a
corrida, não o prémio.
– É a mesma coisa! – ripostou Steven muito sério. – Presume-se que, se
venceres a corrida, também ganhas o prémio, certo? Dustin, meu amigo,
tenho outra expressão para ti: anima-te, meu! Estamos a falar da merda da
vida real e não de literatura inglesa!
Foi a vez de Dustin se rir do comentário de Steven e de si mesmo. Fazia
parte da sua natureza ser muito preciso nos detalhes, o que o ajudava muito
na escola, mas o fazia parecer arrogante em situações sociais.
– Ei, como é que a Lolly sabe que eu sou a tartaruga e que estou na
corrida? – interrogou Dustin.
Steven admitiu que já sabia que Dustin estava interessado na Kimmie há
algum tempo. Foi Lolly quem o percebeu depois de se ter juntado aos dois
rapazes numa das sessões de estudo da semana passada. Ela disse a Steven
que Dustin tinha conseguido, de forma estranha, mencionar o nome de
Kimmie três vezes enquanto eles resolviam os trabalhos de casa de cálculo
de Steven, o que só podia significar uma coisa. Ao ouvir aquilo, Dustin
baixou a cabeça e bateu com a testa na mesa algumas vezes. Steven pôs a
mão no ombro do amigo e prometeu-lhe que estava disposto a ajudá-lo a
conquistar Kimmie de todas as formas possíveis. Dustin agradeceu-lhe
profusamente e disse que retribuiria o favor como pudesse.
Steven, encorajado pelo momento de união entre ambos, decidiu que
agora era a sua vez de confessar os seus próprios problemas amorosos.
Dustin ouviu tudo o que Steven lhe contou sem interrupções, levantando
apenas uma sobrancelha quando ele admitiu que Lolly estava no mesmo
apartamento que eles naquele exato momento.
Dustin escolheu com cuidado as palavras antes de dar a sua opinião sobre
aquela situação infeliz, mas por mais que procurasse uma maneira de ficar
do lado do amigo, não conseguia. Ele desaprovava por completo que Steven
estivesse a trair Lolly. Não lhe fazia sentido que um homem argumentasse
que não havia problema em trair a namorada. Segundo via as coisas, não
percebia porque é que alguém assumia um compromisso com outra se não
tinha a intenção de o honrar? Claro, ele sabia que muitos rapazes traíam as
namoradas com a desculpa de que elas eram um terror, mas Lolly não era
assim. Steven tentou explicar a Dustin que ser fiel era mais difícil do que
parecia, mas mesmo quando disse aquilo em voz alta, sabia que as suas
palavras não o iam fazer mudar de ideias. Ele também sabia que, para
Dustin, seria fácil manter-se fiel, pois ele era feito, sem dúvida, de
princípios morais mais fortes do que os dele. E Dustin, que era um novato
quando se tratava de jogos de sedução, provavelmente tinha de lidar com
menos tentações.
– Meu, não é que eu não tenha remorsos, porque tenho – admitiu Steven.
– Mas tens remorsos porque o fizeste ou porque foste apanhado? –
perguntou Dustin.
– Eu diria que é ela por ela.
– E eu diria, obrigado pela tua honestidade – disse Dustin, e estava a falar
a sério.
Uma hora depois, Steven disse a Dustin que tinham de acabar mais cedo
porque ele ia buscar a irmã a Grand Central. Anna estava a chegar para
ajudá-lo a controlar os danos. Dustin, que agora compreendia as razões
atenuantes, ofereceu-se para rever e editar o trabalho de Steven sobre as
falhas do sistema prisional americano por ele. Na verdade, Dustin recebeu
de braços abertos a ideia de ter algum trabalho, pois não tinha nada melhor
para fazer naquela noite a não ser ficar a pensar obsessivamente em
Kimmie, e isso era a última coisa que queria. A ideia de voltar a ver de fio a
pavio o feed do Instagram dela, onde ficaria a olhar para as fotografias
«artísticas» da natureza cheias de filtros, dava-lhe vontade de gritar. Até
agora, a característica mais irritante de Kimmie era que ela, ao contrário da
maioria das adolescentes, raramente postava selfies.
Enquanto Dustin arrumava as suas coisas para se ir embora, Steven teve
uma ideia de como podia ajudá-lo e a ele próprio ao mesmo tempo.
– Devias ir neste momento ao Wollman Rink porque a Kimmie está lá a
patinar. O cirurgião dela deu-lhe luz verde para voltar a patinar e a Lolly
disse que «patinar deixa a Kimmie feliz». E se apareceres quando ela está
no seu lugar feliz, talvez alguma dessa felicidade possa ser transferida para
ti, percebes o que eu quero dizer?
Dustin abanou a cabeça com veemência, perante aquela sugestão.
– Nem pensar, não posso. Por acaso pareço-te um tipo que consegue
fingir estar num encontro encenado? Não, não, não, não!
Steven esperou que Dustin se acalmasse antes de continuar.
– Vá lá, estás-me a fazer um enorme favor se fores falar com ela.
A razão deste pedido era porque ele precisava que Kimmie arranjasse
uma desculpa que justificasse a ausência de Lolly para o pai e a madrasta
delas.
– A Lolly não vai estar em condições de ver os pais esta noite e a Anna
vai precisar de algum tempo para a convencer a acabar com esta loucura!
A última coisa que Dustin queria era meter-se na caótica vida amorosa de
Steven, e lembrou o amigo de que o mensageiro era sempre aquele que
acabava por morrer.
– Manda-lhe uma mensagem.
Steven, agora exasperado, levantou um pouco a voz.
– Vá lá, meu, pensa. O que é que lhe vou dizer na mensagem? «Ei,
Kimmie, traí a tua irmã e agora ela deu numa de Sylvia Plath e trancou-se
no quarto da minha mãe?» Dustin, faz isto por mim. Eu pago-te o Uber,
caramba. A sério, aproveita o momento e leva-a ao Serendipity 3 para
beberem um chocolate quente, que eu também ofereço. Até lhe podes
comprar o sundae de mil dólares, coberto a ouro. Confia em mim, com esta
jogada ela fica no papo! – Steven tirou o telemóvel do bolso. – Tens
MBway? A sério, deixa-me mitigar a minha consciência pesada e ajudar-te
com a Kimmie. Usei uma palavra cara e tudo, vês! Ganhei.
Dustin riu-se e depois fechou os olhos por momentos e tentou imaginar-
se sentado à frente de Kimmie nos acolhedores assentos de cabedal, a
observar a sua boca perfeita a soprar o chocolate quente. Afastou a imagem
da cabeça e interrompeu a conversa sobre dinheiro, saindo porta fora sem
dizer que sim, nem que não. Steven chamou-o e disse-lhe que devia confiar
nele, porque o único assunto em que era melhor do que Dustin era com as
raparigas.
Dustin quase lembrou Steven de que o seu problema atual com as
raparigas deitava esta sua afirmação por terra, mas não o fez. Tinha a
certeza de que o amigo não estava com o estado de espírito certo para lidar
com a dura verdade.

V
Steven estava a olhar para o placard a anunciar as chegadas e as partidas
na Grand Central quando deu por si ao lado de Alexia V. – conhecido na
cidade pela alcunha de Conde, ou apenas Vronsky –, que também observava
o ecrã acima deles.
– Olá, meu, o que te traz por cá?
Vronsky respondeu-lhe com um grande sorriso.
– Acreditas que vim buscar a minha mãe? Partiu o tornozelo e ainda está
a recuperar, por isso tem de usar uma bengala. Foi a um jantar em casa do
meu tio em Greenwich, deu a noite de folga ao motorista e agora vai
apanhar o comboio de volta sozinha. Não me pediu para a vir buscar, mas
porque outra razão me teria enviado uma mensagem a dizer a que horas
chega?
Steven retribuiu o sorriso e decidiu que, agora que o via de perto, o
Conde Vronsky era realmente tão bonito quanto todos afirmavam. Como
ambos eram novos no colégio e Steven era finalista, tudo o que sabia sobre
Vronsky baseava-se na sua reputação.
– Se fosse de fazer apostas, diria que há outra razão. Talvez para
ganhares e acumulares alguns «pontos como bom filho» para o futuro? É o
que faço sempre que posso. Que escolha temos quando somos abençoados
com mulheres formidáveis como mães?
Vronsky soltou uma gargalhada em resposta, deu uma palmada nas costas
de Steven e depois não confirmou ou negou nada. Em vez disso, respondeu
à sua pergunta com outra pergunta.
– E tu? O que te leva a sair numa noite de neve sem um sobretudo
adequado?
Steven olhou para baixo e apercebeu-se de que Vronsky tinha razão.
Tinha estado tão distraído a tentar convencer Dustin a sair e a não se atrasar,
que tinha saído de casa apenas com um casaco de caxemira Loro Piana e o
seu gorro preto de caxemira Burberry.
– Uma rapariga bonita – respondeu Steven, mas depressa se apercebeu de
que não era a altura certa para ser tão altivo e acrescentou: – A minha irmã,
Anna. Ela também está a chegar de Greenwich.
Vronsky franziu o sobrolho.
– Não sabia que tinhas uma irmã?
– Anda no décimo primeiro ano na Greenwich Academy. É a cavaleira da
família e não suporta estar muito tempo longe dos seus preciosos cavalos,
por isso vive quase sempre na casa que temos em Greenwich. Além disso,
tem dois cães gigantes e é obcecada por eles. Ela está sempre a dizer que é
seu dever como mãe dar aos seus bebés peludos um quintal adequado para
brincarem.
– Temos de adorar as raparigas que gostam de montar – declarou
Vronsky com um sorriso malicioso, e depois acrescentou rapidamente: –
A cavalo.
Normalmente, Steven não se importaria com o comentário de Vronsky, e
até acrescentaria as suas próprias piadas vulgares, mas como estavam a
falar da sua irmã, controlou-se.
– Talvez conheças o namorado dela, o Alexander W.?
Agora foi a vez de Vronsky se endireitar e até fez o gesto de apertar uma
gravata imaginária.
– A sério? A tua irmã é a namorada do Orgulho de Greenwich? Que
interessante.
– Nem por isso. – Na verdade, se Steven nunca mais ouvisse uma palavra
sobre o namorado umchina de Anna, seria ótimo. Umchina era uma das
poucas palavras em coreano que Steven tinha aprendido com a sua avó
coreana. Não existe tradução, mas basicamente significa o filho perfeito da
amiga da tua mãe, aquele com quem és constantemente comparado. Para
Steven, o OG era o seu umchina, pois a mãe não parava de enumerar cada
um dos feitos de Alexander na presença de Steven. Uma vez chegou mesmo
a dizer:
– Greenwich tem tanta sorte por ter alguém como o Alexander a
representá-la.
Alexander W. e a irmã namoravam há três anos, e ele ganhou a alcunha
de Orgulho de Greenwich por ser o único jovem branco privilegiado do país
a entrar nas oito escolas da Ivy League no seu último ano. Era um jovem do
Connecticut de boas famílias, tinha publicado o seu primeiro artigo de
opinião no The New York Times aos dezasseis anos, fora o melhor aluno de
Brunswick e passava duas semanas no verão a ensinar jovens
desfavorecidos a velejar – o que, na opinião de Steven, era uma idiotice.
Como se os miúdos pobres andassem a pedir nas ruas para irem velejar.
É provável que seja o candidato democrata à presidência da República
dentro de vinte anos, se o atual Presidente não destruir o sistema
democrático americano para toda a eternidade. Atualmente, Alexander era
caloiro na Universidade de Harvard, mas viajava muitas vezes para
Greenwich para ser um namorado dedicado a Anna. Só o OG conseguia
safar-se com o facto de ser um universitário que ainda tinha uma namorada
do liceu.
Anna tinha dezassete anos e era dois anos mais nova do que Alexander,
mas sempre foi bastante madura para a sua idade. O «encontro memorável»
do casal perfeito aconteceu durante a Páscoa, na Caça ao Ovo da Casa
Branca, quando ela tinha treze anos. Alexander estava lá porque o pai dele
era um grande apoiante do Presidente da altura e ela porque, aos treze anos,
tocava violino num quarteto de cordas premiado, composto por raparigas do
liceu. Segundo as histórias que circulam, conta-se que quando Alexander
viu Anna a tocar sentiu uma enorme sensação de déjà vu, apesar de ter a
certeza de nunca a ter visto antes. A partir desse momento já não se
preocupou em ajudar as crianças a encontrar os ovos da Páscoa. O seu
único objetivo era conhecer a bela rapariga que tocava violino como se
tivesse sido enviada pelos anjos para o fazer.
Alexander apresentou-se a Anna no buffet das sobremesas e ficou tão
impressionado com a sua beleza delicada que deixou cair um pedaço de
tarte de cereja no seu vestido branco. Horrorizado com o acidente, tratou
rapidamente de pedir um vestido emprestado a Sasha, a filha mais nova do
Presidente de quem Anna ainda é muito amiga. Mais tarde, descobriram que
afinal Alexander tinha visto Anna tocar violino no segundo casamento da
sua tia, no Clube de Iate de Saugatuck Harbor, em Westport, no verão
anterior. Completamente apaixonado, Alexander implorou ao pai e à
madrasta que convidassem Anna a voltar para casa com eles no avião
privado da família, em vez de ir de comboio. A madrasta nunca tinha visto
Alexander a comportar-se daquela maneira e, como queria cair nas boas
graças do filho único do marido, telefonou à mãe de Anna e combinou tudo.
Quando Anna chegou a casa, já tinha o seu primeiro namorado
«prometido», pois não tinha autorização para namorar «oficialmente» até
fazer catorze anos. Alexander não teve problemas em esperar e os dois têm
sido o casal perfeito desde então. O plano a longo prazo era o casamento,
claro, mas a ideia para depois do liceu era a Anna ir estudar para Harvard
ou Yale e Alexander mudar-se para a faculdade de Direito da universidade
onde ela entrasse.
Certa vez, Steven perguntou a Anna se era assustador ter toda a sua vida
planeada sendo ainda tão jovem.
– Vivemos nos Estados Unidos, por isso não temos propriamente de
acabar num casamento coreano arranjado para o bem do estatuto da família,
sabes? – declarou ele.
Ela sorriu perante o sarcasmo do irmão.
– O Alexander é uma boa pessoa. Ele precisa de mim e eu fico feliz por
estar lá para ele – respondeu-lhe.
Steven foi rápido a lembrar-lhe que Alexander não era um cão e a
perguntar-lhe sobre as suas próprias vontades, ao que ela retorquiu apenas
que Alexander a amava e que gostava de como a relação deles era fácil
desde o início. Sentia-se aliviada por não ter de lidar com os dramas dos
encontros, para os quais não tinha tempo nem paciência. Alexander era tudo
o que uma rapariga podia querer e, além disso, ajudava que os pais
aprovassem a relação. Eram muito poucos os rapazes a quem o pai confiaria
a sua preciosa filha. De facto, Alexander talvez fosse o único rapaz que se
enquadrava no perfil lineado pelo pai. Na Coreia, o estatuto social era
primordial, e o pai de Alexander estava no topo da elite de Greenwich.
Steven não concordava nada com esta importância que os pais davam à
posição social.
– Linha vinte e sete – disse Vronsky, trazendo Steven de volta ao
presente.
– O que é que disseste? – perguntou Steven.
– O comboio delas está agora a chegar.
Steven acenou com a cabeça e apressou-se a seguir Vronsky, para quem a
multidão parecia abrir-se, enquanto caminhava em direção às escadas
rolantes com o sobretudo camel Brioni, e o cachecol de caxemira Tom Ford
muito comprido a arrastar-se no chão atrás dele.

VI
Anna K. disse à Sra. Geneviève R. que voltaria para se despedir como
deve ser, mas que primeiro precisava de encontrar o irmão, Steven.
– Se o seu filho não estiver aqui, teremos todo o gosto em dar-lhe boleia
até casa. E, se nenhum deles aparecer, eu própria me encarrego disso.
Era raro Geneviève ficar impressionada, mas esta jovem criatura
encantadora era um verdadeiro furacão.
– Não tenho a menor dúvida, minha querida. Acredito piamente que os
homens precisam de nós, mulheres, para lhes mostrar o propósito no
mundo. Como por exemplo vir buscar uma mulher ao comboio a horas.
Anna sorriu ao ouvir as palavras da socialite enquanto espreitava à porta
da carruagem do comboio. Olhou em volta e acabou por avistar o irmão.
Chamou-o, mas ele não a ouviu, por isso ela desceu para a plataforma e
acenou-lhe para chamar a sua atenção.
A primeira coisa em que o Conde Vronsky reparou naquela rapariga
elegante e requintada foram os seus olhos – dois pontos escuros e profundos
a brilhar sob umas pestanas incrivelmente compridas. Parecia uma autêntica
boneca de porcelana, alta e direita no seu casaco de caxemira Max Mara
cinzento-claro. Ele também apreciou o facto de ela não estar a usar muita
maquilhagem, ao contrário da maioria das adolescentes. Enquanto a
observava, viu Steven envolvê-la num abraço de urso. Ah, então esta é que
era a sua irmã mais nova?
O barulho agudo de alguma coisa a bater interrompeu os seus
pensamentos. Virou-se e encontrou a mãe a acenar-lhe, enquanto voltava a
bater com a bengala contra a janela. Sem outra opção, entrou a correr na
carruagem do comboio.
– Querida mãe – cumprimentou ele. Era assim que Geneviève gostava de
ser tratada pelo seu filho favorito.
– Alexia, o teu cachecol. Está a arrastar no chão como se fosses um
animal. – A sua mãe parisiense, uma grande dama da sociedade nova-
iorquina, nunca tinha um fio cabelo fora do sítio, muito menos um cachecol
rebelde. Ele atirou rapidamente a ponta indisciplinada para cima do ombro
e estendeu as mãos para a ajudar a levantar-se. Ela já não precisava de usar
uma bota no pé magoado, mas continuava a tê-lo bem protegido por
segurança.
– Mãe, não devia usar saltos altos.
– Querido, para mim saltos de dois centímetros é o mesmo que estar a
usar sapatos rasos – murmurou ela, beijando o seu belo filho em ambas as
faces.
– Que bom, encontrou-o. – Ao ouvir o som da voz dela, todos os pelos da
nuca se eriçaram. Ele obrigou-se a virar lentamente para a encarar.
– A minha mãe tinha dúvidas de que eu ia aparecer? – perguntou ele, com
um brilho no olhar.
Anna deu por si a corar, não por embaraço, mas por ter ficado tão
surpreendida com a beleza de Vronsky. Os caracóis louros escuros caíam-
lhe sobre o rosto bonito de uma estrela de cinema. Mas havia algo mais do
que a sua aparência: ele exalava a confiança e o magnetismo de um rei da
selva. Ela tinha a certeza de que a sua expressão demonstrava assombro por
se sentir impressionada por tal coisa.
– Nem por sombras. Eu é que provavelmente estava a projetar as minhas
próprias dúvidas sobre se o meu irmão iria aparecer para me vir buscar.
– Anna, apresento-lhe o meu filho Alexia, ou Alex, como ele prefere ser
chamado. Alexia, esta jovem notável teve a amabilidade de manter uma
velha senhora como eu entretida durante toda a viagem. É rapariga muito
especial – elogiou a Sra. R.
Anna estendeu a mão para apertar a que ele já estava a estender.
– É um prazer conhecer-te, Alexia. A tua mãe falou-me tanto de ti que
sinto que já te conheço.
Vronsky suspirou.
– Acredita só nas coisas más. A minha mãe embeleza-me muitas vezes
com uma auréola que eu não mereço.
Antes que ela pudesse responder, a mãe de Vronsky retorquiu:
– Que disparate, és o solteiro mais cobiçado da cidade. É uma pena que a
Anna já esteja comprometida com o OG, senão insistia para que pedisses a
mão dela imediatamente.
Anna e Alexia trocaram sorrisos cúmplices ao ouvirem a mãe dele usar a
alcunha de Alexander W., pois ambos tinham a certeza de que ela não fazia
a mínima ideia do que OG significava «original gangster», e não «Orgulho
de Greenwich», como ela provavelmente supunha.
– Trocámos histórias sobre os nossos filhos, os meus humanos e os dela
de quatro patas. A Anna é uma excelente cavaleira e tem dois cães de raça a
competir em Westminster na próxima semana – continuou a mãe de
Vronsky.
Envergonhada com o elogio, Anna fez questão de a corrigir rapidamente.
– Não sou eu que os vou mostrar. São as minhas treinadoras, a Lee Ann e
a Ali, que vão fazer as honras. Mas é verdade, sou uma rapariga que prefere
a companhia dos animais à das pessoas.
Vronsky observava-lhe o rosto enquanto ela falava, mal prestando
atenção ao que dizia. Era realmente a rapariga mais deslumbrante que
alguma vez vira, uma mistura perfeita de beleza euroasiática: olhos
amendoados e cabelo escuro brilhante e lustroso, com maçãs do rosto altas
e um nariz perfeito arrebitado.
A conversa terminou abruptamente quando se ouviu um alvoroço do lado
de fora do comboio. De repente, escutaram-se gritos e passaram pessoas a
correr junto à janela.
– Esperem aqui, deixem-me ver o que se passa – disse Vronsky. Anna
assentiu, aproximando-se da mãe dele e ajudando-a a sentar-se.
Ele voltou passados alguns minutos, seguido de Steven, e disse-lhes que
já era seguro irem-se embora. Anna perguntou o que se estava a passar. Os
dois rapazes trocaram olhares entre si e ficaram em silêncio, mas Anna
exigiu saber.
– Digam-me, eu quero saber.
Vronsky explicou solenemente que fora um sem-abrigo que iniciara o
tumulto. O homem tinha dois cães e insistia que um deles tinha saltado dos
seus braços para os carris e tinha sido atingido pelo comboio. Anna
sobressaltou-se ao ouvir a notícia.
– O nosso comboio? Meu Deus, é verdade?
Ela já tinha os olhos marejados quando Vronsky, compelido a ser honesto
com ela apesar da sua reação, confirmou a horrível verdade.
– Infelizmente, sim.
– Isso é tão horrível! – gritou Anna, sem se preocupar em enxugar as
lágrimas. Sentiu um nó no estômago. Isto é um mau presságio, pensou ela.
Os quatro estavam na plataforma, a caminho da escada rolante, quando
Anna se virou para ver dois polícias no local, um deles a algemar o sem-
abrigo que ainda gritava. Anna parou de andar.
– Porque é que o estão a prender?
Steven explicou-lhe que o sem-abrigo tinha empurrado o maquinista do
comboio durante a confusão. Depois pôs o braço à volta da irmã e tentou
levá-la para as escadas rolantes, mas ela recusou-se a andar.
– Então, e o segundo cão? Não disseste que ele tinha dois? O que é que
vai acontecer ao outro? – Anna afastou-se de Steven e deu dois passos em
frente, mas Vronsky pôs-lhe a mão no braço e deteve-a gentilmente.
– Não faças isso. Vou certificar-me de que o outro cão é bem tratado.
Podes verificar se a minha mãe chega bem a casa?
Anna olhou-o olhos nos olhos e sentiu um enorme alívio.
– Vais? Isso é muito simpático da tua parte. Claro que sim. Nós levamo-
la a casa.
Geneviève manteve-se em silêncio durante a conversa, orgulhosa do filho
por ter tomado a iniciativa de fazer a coisa certa, mas consciente de que ele
estava muito mais preocupado em fazer a coisa certa por causa da jovem do
que por causa do cão.
A mãe dele gabara-se muito dos feitos do filho – românticos e não só –
no comboio, por isso Anna já estava impressionada, mas este gesto foi
muito além disso. Que rapaz de dezasseis anos tinha o tipo de boa vontade
heroica que ela acabara de testemunhar? Era como se a sua dor se tivesse
tornado também a dele. Naquele momento, sentiu que os olhos azuis
cristalinos dele tinham visto o «eu» interior, o que era ridículo. Como é que
tal coisa podia ser possível quando se tinham acabado de conhecer?

VII
Dustin não teve qualquer problema em encontrar Kimmie no meio da
multidão de patinadores no Wollman Rink. Ela vestia um casaco de pele
sintética roxa com proteções para os ouvidos a condizer e, apesar de o seu
joelho não estar a cem por cento, continuava a ser a melhor patinadora
naquela pista. Movia-se com tanta graça e facilidade que Dustin não
conseguia tirar os olhos dela e ficou envergonhado ao descobrir que tinha
estado a suster a respiração enquanto a observava. Ele caminhou até ao
corrimão, sem saber como chamar a sua atenção, e acabou por decidir que a
ia chamar da próxima vez que ela passasse a patinar. Mas ela passou três
vezes e das três vezes ele não conseguiu dizer nada, enquanto olhava
fixamente para o seu belo rosto. Por fim, dois rapazes que deviam andar no
7.º ou no 8.º ano, a jogar a apanhada com patins em linha, chocaram
nalguns novatos e um rapazinho caiu de barriga para baixo no gelo,
aterrando com tanta força que deu uma volta de 360 graus no seu fato de
neve azul-marinho, mesmo no meio do caminho de Kimmie.
– Kimmie, cuidado! – A voz de Dustin soou tão urgente que várias
pessoas, incluindo Kimmie, olharam na sua direção. Com um movimento
gracioso, Kimmie parou a centímetros do rapazinho estatelado no chão.
Inclinou-se e ajudou a criança a pôr-se de pé e entregou-o aos pais. Dustin,
que observava este seu gesto atencioso, sentiu um aperto no peito que o fez
pensar se haveria algum caso conhecido de adolescentes que morressem de
ataque cardíaco.
Kimmie veio a patinar até ele com uma expressão que Dustin não
conseguiu decifrar, por isso ele tirou rapidamente o gorro, por achar que ela
talvez não o tivesse reconhecido. Acenou-lhe amigavelmente. Kimmie
sorriu e acenou de volta, parando à frente dele com um floreado dramático,
as pontas das lâminas a baterem na grade de proteção de baixo.
– Olá, Dustin. Vieste patinar? – perguntou ela.
– Sou péssimo a patinar. Tenho uns tornozelos da treta – respondeu ele. –
Estou aqui por tua causa. – As palavras saíram-lhe mais depressa do que ele
queria, e estremeceu. – Não estou aqui por tua causa de uma forma
assustadora, nada disso.
– Também não me pareceu. Pareces demasiado sério para seres um
perseguidor e demasiado simpático para seres esquisito.
– Eu acho que todos os tipos de perseguidores são muito sérios –
respondeu ele, ainda incapaz de controlar o que dizia ao pé dela. – Mas eu
não sou um… ainda.
Ela riu-se ao ouvir aquilo e inclinou a cabeça surpreendida com a sua
piada seca.
– Então, agora que tens a minha atenção, o que vais fazer com ela? –
perguntou, e corou de embaraço pois o que pretendia que fosse uma piada
acabou por soar muito mais sedutor do que esperava.
– Desculpa, não quero ser enigmático. Foi o Steven que me mandou.
O Steven da tua irmã...
Ela franziu o sobrolho, interrompendo-o.
– Eu sei de que Steven estás a falar.
– Sim, claro que sabes. – Aquilo estava a ir de mal a pior.
– E que notícias trazes do maléfico do Steven da Casa de K? – perguntou
ela, com uma expressão séria.
– Ehhh… – Dustin hesitou.
Kimmie riu-se da sua confusão.
– Não me digas que és a única pessoa no mundo que nunca viu A Guerra
dos Tronos?
Dustin sorriu de alívio.
– Oh não, sou um mega fã. Já li os livros todos.
– Eu também – admitiu ela, apesar de a mãe lhe ter dito uma vez que os
rapazes nem sempre gostam de raparigas que leem livros. – A sério, o que é
que esse merdoso tem para dizer?
Claro a irmã de Kimmie já lhe tinha contado tudo, o que significava que
Steven o tinha enviado numa missão ridícula com o único objetivo de lhe
dar algum tempo para estar a sós com Kimmie.
– Tu sabes? – perguntou ele, para verificar se era verdade o que ele
suspeitava.
– Eu sei. A Lolly mandou-me uma mensagem a contar sobre a «Brad».
Ela está bem, não está? Eu disse-lhe que a ia buscar, mas ela respondeu a
dizer para não ir.
– Eu não a vi. Mas tenho a certeza de que ela está bem, ou melhor, tão
bem quanto se pode esperar. Sinceramente, não me queria envolver, mas o
Steven pediu-me para vir, como um favor. O rinque fica a caminho de casa.
– Apesar de saber que já tinha dito o suficiente, Dustin continuou mesmo
assim. – Dou explicações ao Steven. Éramos amigos em pequenos por
causa das nossas mães – acrescentou, para a ajudar a perceber por que razão
é que um tipo como ele seria amigo do Steven.
– Eu sei – disse ela simplesmente, o que fez Dustin perguntar-se se ela
sabia porque tinha perguntado sobre ele especificamente depois de se
conhecerem, ou se era porque tinha ouvido Lolly mencionar por acaso. Se
Tasha e Stephanie, as duas raparigas faladoras da festa, lhe tinham ensinado
alguma coisa, era que as adolescentes pareciam falar sobre tudo e mais
alguma coisa umas com as outras. Conversar era como respirar para elas.
– Estás a tremer – disse ele.
– Só porque parei para falar contigo. Não te preocupes, estou habituada
ao frio. Gosto.
– Posso oferecer-te um chocolate quente no Serendipity? – Ele não fazia
ideia de onde lhe vinha a ousadia.
Kimmie parecia confusa.
– O Steven mandou-te levar-me a tomar um chocolate quente?
– Não. Pediu-me para te perguntar se podias arranjar uma desculpa para a
tua irmã com os teus pais esta noite. Ela vai chegar tarde a casa. – Ele
sentiu um alívio imediato, agora que a sua missão tinha terminado. – Eu é
que pergunto se queres ir tomar um chocolate quente comigo. Ou um
chocolate quente gelado, já que gostas do frio.
Ela observou o rosto de Dustin por alguns segundos e depois consultou o
telemóvel, a fingir que via as horas. Quando percebeu que não tinha
mensagens novas, olhou para cima e sorriu.
– Claro, porque não? Mas tens de saber que sou feminista, por isso vou
pagar a minha parte.
– Fixe. Eu também sou feminista, por isso deixo-te pagar o meu.
Kimmie ficou surpreendida por rir-se alto outra vez. Mas ninguém estava
mais surpreendido com a inteligência e o charme de Dustin do que ele
próprio.

VIII
Depois de deixarem a mãe de Vronsky no número 834 da Quinta
Avenida, Steven sentou-se ao lado da irmã no banco de trás do Uber Select.
Anna veio a viagem toda muito calada, e ele sabia que ela ainda estava a
pensar no pobre cão que tinha sido atropelado pelo comboio. E embora isso
fosse verdade, Anna também estava a pensar no rapaz lindo que neste
momento se encontrava a salvar outro cão indefeso. Será que ele adora
cães, como eu?
Steven agarrou na mão da irmã e apertou-a e, como se soubesse o que ela
estava a pensar, disse:
– Ei, obrigado por teres vindo salvar este cão também.
Estavam a atravessar o Central Park e a neve continuava a cair, mais
rápida e mais espessa do que antes.
– Talvez tenhamos um dia de neve? – disse ela, fingindo que estava a
pensar no tempo.
– Minha, era capaz de matar por um – respondeu ele, e olhou para o
telemóvel a ver se havia alguma novidade. – Desculpa, eu sei que não
gostas que te trate por «minha».
Anna ouviu algo na voz do irmão que a fez perceber que estava na altura
de lidar com a asneirada grande dele. Afastou todos os pensamentos de cães
mortos e de heróis de olhos azuis e virou-se para o irmão no escuro do
banco de trás. Não era a primeira vez que ela vinha em seu socorro, e sabia
que estava longe de ser a última. Ela tinha-o protegido desde que eram
crianças.
– Okay, estou pronta – disse Anna. – Conta-me tudo.
E Steven assim fez. Contou-lhe como conheceu «Brad», cujo nome
verdadeiro era Marcella, uma rapariga de dezassete anos que andava numa
escola pública no sul do Bronx, e que o abordou no Starbucks de Union uns
dias antes do Natal, desafiada pelos amigos.
– Aproximou-se de mim, bateu-me no peito com as costas da mão e
disse: «Dá-me vinte dólares.» Quando lhe perguntei porquê eu, ela
respondeu-me porque parecia rico e aborrecido. E depois ela… – Ele
hesitou.
– Preciso de saber tudo Steven. Por isso conta-me. Já não sou um bebé.
Steven continuou:
– Ela disse-me que eu parecia ter EPG[9]. – Ele fez uma pausa e depois
continuou. – Tu sabes, Energia de Pila Grande.
– Eu sabia isso – mentiu Anna, mas depois soltou uma pequena
gargalhada. – Está bem, eu não sabia. Mas ela disse-te mesmo isso sem
sequer te conhecer? – Anna tentou imaginar-se a fazer uma coisa dessas,
mas parecia-lhe impossível.
– A Marcella está-se nas tintas. Diz o que quer a qualquer pessoa.
Os olhos de Anna arregalaram-se ao ouvir o tom de admiração do irmão,
mas não disse nada. Steven continuou a explicar que deu a Marcella uma
nota de vinte para comprar cafés para os amigos, mas que deu por si a
perguntar-lhe se queria ir jantar. Ela aceitou logo, abandonou os amigos, e
os dois acabaram no Joe’s Pizza, onde ele ficou a vê-la comer, com
admiração, metade da dose de pão de alho, duas fatias de piza, tendo ainda
terminado a calzone dele, tudo isto enquanto bebia uma enorme limonada
cor-de-rosa.
– E comeu tudo sem falar uma única vez sobre hidratos de carbono,
calorias, os malefícios do açúcar refinado ou pedir desculpa por ter tanto
apetite. Foi mesmo fixe! – Steven explicou que ficou ainda mais
entusiasmado com Marcella porque ela parecia ser muito mais livre do que
qualquer outra rapariga que ele conhecia. Não era bem-educada nem estava
vestida na perfeição. Ria-se das suas piadas e dizia-lhe que ele era
engraçado para um idiota rico.
– A Lolly também te acha engraçado – lembrou-lhe Anna.
Steven concordou, mas lembrou-a de que a Lolly não se ria das duas
piadas mais porcas, e chamava-o sempre à atenção quando ele dizia
qualquer coisa de mau gosto.
– Eu estou sempre a dizer-lhe que, como metade de mim faz parte de
uma minoria, tenho autorização para dizer coisas de mau gosto.
Anna bateu no irmão, apesar de também já o ter ouvido dizer muitas
vezes este tipo de coisas.
– Vês, tu fazes a mesma coisa. Não consegues parar de me corrigir, mas
vou-te dizer o seguinte: só falo merda por falar. Não sou racista, por isso
qual é o problema? Os comediantes fazem-no a toda a hora. Eu sei que
disse que a Marcella parecia ser tão livre, mas talvez seja eu. Se calhar o
que eu gostei nela foi que ela me deixava sentir livre. Anna, às vezes não
queres ser tu própria? Com defeitos e tudo?
Embora Anna compreendesse os sentimentos do irmão, também não
queria encorajar a sua forma de pensar neste momento. Ela sabia que aquilo
era uma reação à dureza com que o pai o tratava, toda aquela conversa
sobre querer ser livre. O pai deles também a mantinha sob rédea curta, mas
com ela parecia ser superprotetor e quase encantador. Com Steven, era
diferente. Steven nunca falava com ela sobre isso, embora muitas vezes
desejasse que ele o fizesse. Por isso, agora ela manteve-se em silêncio, e
fez-lhe sinal para continuar, porque era óbvio que ele estava preocupado
com mais coisas.
– Estou tão farto de toda a gente ter de ser politicamente correta a toda a
hora – disse Steven. – Porque é que hoje em dia as pessoas se ofendem com
as mais pequenas coisas? Tenho dezoito anos, porque é que não me posso
divertir um pouco de vez em quando? Não pedi para nascer com privilégios.
Foi aqui que Anna interveio, e lembrou ao irmão que divertir-se nunca
tinha sido um problema para ele, embora admitisse que era difícil lidar com
as expetativas elevadas que os pais tinham para eles. E como Steven era o
único filho, o que na cultura coreana significava que a responsabilidade de
tomar conta da família recairia sobre os seus ombros quando fosse mais
velho, Anna sabia que o caminho dele era o mais difícil.
– Sei que estás chateado e sei que é duro para ti a maneira como o pai é
rígido e exigente… Mas estamos a desviar-nos do assunto, Steven. Podes
acabar de me contar o que aconteceu com a rapariga?
Steven explicou-lhe que, depois da piza, tinham ido ao Ace Bar em
Alphabet City e jogado nas máquinas. O primo de Marcella trabalhava no
bar e deixou-os beber. No final da noite, ela arrastou-o para a casa de banho
das raparigas, levou-o para uma das cabinas e…
Anna acenou com a cabeça.
– Tenho quase a certeza de que consigo adivinhar o que aconteceu a
seguir.
Depois disso, o irmão ficou completamente apanhado, e andava a sair
com a rapariga às escondidas há cerca de dois meses.
– Mas sentes alguma coisa pela Marcella? – insistiu ela. – Não estou a
falar de sexo, estou a falar de emoções, de sentimentos reais.
– Anna, eu mal conheço a rapariga. Ela é sexy e está disposta a tudo. Eu
amo a Lolly. Mas, às vezes... bem, tu sabes como pode ser aborrecido
quando se está numa relação há muito tempo.
– Na verdade, não sei – respondeu ela, e olhou pela janela. – Não esperes
simpatia da minha parte. Estou com o Alexander há muito mais tempo do
que tu estás com a Lolly.
– É isso mesmo a que eu me refiro. Vocês devem saber o que eu quero
dizer, ou pelo menos ele deve saber.
Havia tantas coisas naquela afirmação do irmão que a irritavam, que ela
mal sabia por onde começar.
– Estás a insinuar que o Alexander me trai? – perguntou Anna, indo direta
ao assunto.
– Não, por acaso tenho a certeza que não. O teu namorado é demasiado
boa pessoa, enquanto eu sou um tremendo merdoso.
Anna sabia que a mãe deles torturava muitas vezes o irmão com
comparações com o seu namorado aparentemente perfeito.
– Eu sei que isso é mau. Mas para de te desviar do assunto. Se dizes que
amas a Lolly, então porque é que a traíste? – perguntou ela, apesar de saber
que o irmão não tinha uma resposta. Ela podia apostar que raramente o
irmão sabia por que razão fazia a maioria das coisas que fazia.
– Não sei – respondeu ele como se fosse uma razão.
Anna sabia que isto era o melhor que ia conseguir dele e seguiu em
frente. Perguntou a Steven se era a primeira vez que ele traía Lolly e, após
um longo silêncio, ele respondeu que não. Ela lançou-lhe um olhar de
desaprovação de irmã.
– Tens a certeza de que queres ficar com a Lolly? Porque há muitos
rapazes nesta cidade que estão solteiros e engatam uma rapariga diferente
todos os fins de semana. Talvez isso fosse melhor para ti. Porque,
honestamente, não pareces pronto para ter uma relação. De todo.
– Eu sei que é isso que parece. Mas também é por isso que eu sei que
amo a Lolly, porque eu quero ser o namorado dela. Ela é boa pessoa como
tu. E não há ninguém mais doce. Além disso, mantém-me controlado, e
sabes que preciso disso. Ela faz com que me esforce para ser melhor pessoa.
A Marcella não significa nada para mim. Apesar de ter um piercing na
língua fixe...
– Bah. Chega de falar dela. Steven, tens de acabar com isso. – Anna
adorava o irmão, mas naquele momento não gostava muito dele como
pessoa. Ela sabia que os rapazes eram muito diferentes das raparigas, mas
ouvir o irmão falar fê-la sentir que o fosso entre ambos os sexos era muito
maior do que alguma vez imaginara.
– Eu sei. Eu vou acabar. Além disso quando falei no piercing na língua,
não era por nada lascivo. Reparei porque ela se ri muito. Sabes, porque ela
acha que eu…
– Steven, tu és engraçado! Toda a gente acha isso; porque é que és tão
obcecado com isso? – disse Anna num tom exasperado.
– Porque é a minha cena, Anna! Não sou perfeito como tu, e de certeza
que não sou mais do que perfeito, como a merda do teu namorado, está
bem? – Steven raramente levantava a voz para a irmã e sentiu-se logo
envergonhado por o ter feito. Mas Anna não percebia. O pai de Steven tinha
expetativas demasiado elevadas em relação a ele, e não era justo. Ele nunca
tinha contado a Anna, mas em mais de uma ocasião o pai tinha ordenado
que ele fosse ao escritório dele, onde lhe dava um sermão sobre o quanto
ele tinha trabalhado para que a família chegasse onde tinha chegado. Como
imigrante, Edward dizia que tinha trabalhado quatro vezes mais para ser
visto como igual a um branco. Era verdade que ele tinha nascido na riqueza,
tal como Steven, mas o pai coreano de Edward enviou-o para a América
para se formar. Foi para um colégio interno na Costa Leste quando tinha
apenas dez anos. As crianças de qualquer raça e com mais ou menos
educação podem ser cruéis, mas as crianças brancas privilegiadas eram
muitas vezes especialmente cruéis. Os seus colegas de turma não foram
nada acolhedores. Por isso, teve de lutar muito para ganhar o respeito deles,
ter aulas particulares com um professor de inglês para perder o sotaque até
falar um inglês perfeito, destacar-se nos desportos e garantir que era o
melhor aluno da turma em termos académicos. Só conseguia chamar a
atenção das raparigas da sua escola através de planos cuidadosamente
calculados.
O casamento com a mãe de Steven, Greer, não foi só por amor, teve
também que ver com o desejo de Edward de que os seus futuros filhos
percorressem um caminho mais fácil do que ele. Edward tinha o dinheiro e
a inteligência, mas foi o nome da antiga família de Greer que lhes abriu as
portas certas na sociedade. Edward avisou o filho de que, sendo meio
coreano, meio branco, Steven iria ser vítima de racismo, não tão
abertamente como ele, mas de formas mais subtis. Steven precisava de
compreender que o racismo estaria sempre presente. O pai de Steven
explicou-lhe que ele nunca se integraria verdadeiramente entre os coreanos
ou entre os brancos; no entanto, se Steven jogasse bem as suas cartas, a vida
dos seus futuros filhos seria mais fácil. Ele não podia dar-se ao luxo de
fazer asneira, mas, para Edward, Steven era uma desilusão desde o
momento em que foi expulso do Collegiate no quinto ano.
Steven odiava a pressão, sentia-se sempre dividido entre ser a pessoa que
o pai esperava que ele fosse, e descobrir quem é que ele queria ser. Ele
desejava poder dizer a verdade a Anna, mas nunca o conseguia fazer.
– Meu Deus, desculpa. Não queria gritar. Só estou… Sei que estás a
tentar ajudar-me. Sou apenas um idiota inseguro. – Anna ignorou a
explosão do irmão.
– Fico feliz por ajudar, Steven, mas não podes voltar a ver essa Marcella.
E tens de acabar tudo por telefone ou por SMS. És demasiado fraco para o
fazeres pessoalmente. – Anna sabia que estava a ser dura, mas era altura de
um pouco de amor assertivo.
– Achas que a Lolly me vai aceitar de volta? – perguntou ele.
– Tens a certeza absoluta de que queres ficar com ela? – perguntou Anna.
– A sério, pensa bem, Steven. Não lhe podes fazer isto outra vez. Mesmo.
Se houver uma próxima vez, nem penses em ligar-me...
– Eu quero-a de volta. E não vou traí-la. – Steven suspirou. – Mas achas
que ela me aceita de volta?
Anna olhou pela janela, para a neve a cair na noite.
– Não sei. Provavelmente sim... Mas sabes que ela é demasiado boa para
ti, não sabes?
– Eu sei – disse Steven, a sentir o desapontamento da irmã, e a desejar ser
uma melhor pessoa não só para Lolly e para Anna, mas também para o seu
pai. Não parecia justo que fosse assim tão difícil ser bom.

IX
O carro parou à frente do prédio e o porteiro apressou-se a abrir a porta a
Anna. Ela virou-se para o irmão.
– Dá-me uma hora a sós com ela. Vai buscar a sobremesa favorita da
Lolly. – Ela olhou-o fixamente. – Sabes qual é a sobremesa favorita da tua
namorada, não sabes?
– A tarte de banana e natas do Joe Allen. Mas Anna, vá lá, os espetáculos
estão a acabar agora. A Times Square vai estar uma loucura… – Parou de
falar imediatamente, ao sentir o olhar dela a queimá-lo. – Volto dentro de
uma hora.
Anna sorriu para o porteiro, que segurava um guarda-chuva e esperava
que ela saísse do carro. Estendeu-lhe a mão e saiu para o passeio com
determinação.
Já lá em cima no apartamento, ela preparou duas chávenas de café
Dulsão do Brasil e pegou em duas águas de coco antes de caminhar pelo
corredor em direção ao quarto dos pais. Anna só tinha morado naquela casa
quando andava na escola primária, apesar de ainda lá ter um quarto.
Ela adorava a cidade, mas ultimamente preferia tê-la em doses mais
pequenas. Sentia-se mais ela própria quando montava um dos seus cavalos
Warmblood holandeses, Marco António – nome do bulldog dos desenhos
animados e não do político romano – ou Cleo – nome do pequeno gato que
gostava de se aconchegar no pelo de Marco António –, ou quando brincava
no quintal com os seus terra-novas, Gemma e Jon Snow.
Bateu à porta e disse a Lolly que queria falar com ela a sós, e acrescentou
que era melhor que o fizessem enquanto experimentavam as roupas da mãe.
Ela nunca duvidou de que Lolly a ouviria, e estava certa, porque Lolly abriu
logo a porta. Anna entrou e ofereceu a Lolly uma chávena de Nespresso ou
uma água de coco. Lolly estendeu a mão para a água de coco, tirou a tampa,
e bebeu. Chorar durante horas por causa de um namorado que não a
merecia, deixava uma pessoa com sede. Depois de Lolly se acalmar,
vestiram dois roupões de seda japonesa, que nunca tinham sido usados
antes, e que tinham encontrado no fundo do armário da mãe de Anna. Anna
disse a Lolly que podia ficar com o quimono que estava a usar – rosa-pálido
com cerejeiras em flor –, porque tinha a certeza de que a mãe nem se
lembrava de que o tinha. Anna confidenciou-lhe que a mãe lhe disse uma
vez que, embora os pais não se importassem que ela namorasse com o pai
de Anna enquanto estudava direito em Yale, ficaram chocados quando ela
anunciou que estavam noivos. Apesar de os pais serem demasiado classe
média/alta branca e educados para o dizerem, ela sabia que não estavam
muito contentes por ela ir casar com um coreano. Para piorar a situação, os
pais organizaram-lhe uma festa de noivado luxuosa e exagerada, com um
tema asiático. Como se estivessem a anunciar ao mundo: «Vejam todos!
A nossa filha Greer adora tudo o que é asiático. Até os homens! A culpa não
é nossa.»
A mãe de Anna ficou horrorizada com a festa, claro, mas nunca disse aos
pais o que sentia. Entretanto, o pai de Anna, que era quem tinha mais razões
para estar aborrecido com a festa, encarou tudo com descontração. Ele
estava habituado ao racismo em todas as suas formas, mas a mãe de Anna
ficou chocada com aquilo. Durante os primeiros anos da sua vida de
casados, a mãe de Anna estava sempre a receber presentes asiáticos, como
pratos para sushi, pauzinhos de luxo e quimonos japoneses bastante caros.
A mãe de Anna disse que, no início, aquilo a irritava, porque sentia que
eram dados como uma ofensa, mas acabou por ultrapassar isso e perceber
que a maioria das pessoas era só ignorante e não fazia ideia de que a Ásia
era composta por muitos países diferentes, cada um com a sua história e
culturas distintas. Agora, vinte e um anos depois, ela e o pai de Anna ainda
estavam casados, enquanto quase toda a gente do seu círculo de amigos
estava no segundo ou terceiro divórcio. Greer dizia que agora não podia
acreditar que aquilo a perturbasse tanto quando era mais nova, pois
significava que o casamento deles tinha resistido ao escrutínio e ao
ceticismo dos outros durante anos e isso tornara a ligação deles mais forte.
Mas não significava que ela usasse alguma vez os quimonos.
– Bem, eu adoro este roupão e vou usá-lo para sempre, e é uma loucura
que os teus falecidos avós não gostassem do teu pai. Quero dizer, é por
causa dele que o teu irmão é uma brasa do caraças. Toda a gente sabe que a
mistura com asiáticos dá filhos lindos. Olha só para ti! Era capaz de matar
para ter a tua pele. Diz-me a verdade, quando foi a última vez que depilaste
as pernas? – Lolly passou a mão pela canela lisa e sem pelos de Anna. Foi
então que Anna se deu conta de que Lolly não tinha percebido o ponto
principal da sua história, que era o facto de o tempo curar todas as feridas.
Lolly era uma querida, mas não devia muito à inteligência.
Anna deitou-se de costas e olhou para o teto. Por cima da cama dos pais
havia um novo lustre de cristal Baccarat que era deslumbrante quando
estava aceso, mas que era muito sinistro quando estava apagado. Naquele
momento, estava desligado.
– Meu Deus, estou tão cheia de tarte que estou prestes a rebentar – gemeu
Anna, e fechou os olhos. Metade da tarte de banana que Steven tinha
deixado do lado de fora da porta há uma hora já tinha desaparecido.
Lolly também se virou de costas, e soltou um longo e profundo gemido.
– Não sei como é que posso ficar com ele, Anna. Sinto-me tão
humilhada.
Anna não precisou de olhar para a namorada do irmão para saber que ela
estava a chorar outra vez. Foi assim durante a noite inteira: num momento
estavam a rir e a contar histórias uma à outra, no momento seguinte Lolly
estava a chorar e a lamentar por a sua vida estar destruída. Anna não tinha
qualquer problema com raparigas que choravam, porque ela própria tinha
chorado naquela noite por causa de um cão que nunca tinha conhecido. Por
isso, não queria que Lolly se sentisse envergonhada, mas Anna estava
surpreendida com a quantidade de lágrimas que ela conseguia produzir.
Anna perguntava-se como é que a amiga ainda tinha lágrimas. Elas só
vieram reforçar a decisão de Anna de que algo podia ser feito para resolver
esta situação terrível. No entanto, Anna ainda não sabia qual era a solução
perfeita.
Lolly virou-se de barriga para baixo.
– Quero dizer, ele praticamente arruinou a Hermès para mim. Para
sempre. Como é que eu posso lá voltar a ver o «H» deles sem me lembrar
do que me aconteceu lá?
Sempre disseram a Anna que ela tinha um dom para os animais, e
conseguiu acalmar muitos cavalos teimosos. Ela supunha que a razão era
por ser uma pessoa muito paciente por natureza, por isso o seu grande plano
para lidar com Lolly era mantê-la acordada a noite toda, durante o tempo
que fosse necessário. Eventualmente, Lolly acabaria por se cansar e decidir
o que fazer de uma forma ou de outra.
Seguindo a sua intuição, Anna tentou algumas das técnicas que
funcionavam com os cavalos. Teve o cuidado de manter a voz baixa e firme
quando falou. A seguir, lembrando-se do que um dos seus instrutores de
equitação lhe dissera quando escovava um cavalo – «movimentos amplos
para os manter calmos» –, penteou o longo cabelo dourado de Lolly.
Depois, as raparigas procuraram penteados divertidos e, seguindo um vídeo
da Rainha das Tranças do YouTube, Anna recriou em Lolly o look da
princesa Leia, com dois coques laterais. Enquanto brincava com o cabelo de
Lolly, Anna garantiu-lhe que, apesar de ser compreensível ela estar
perturbada, o pior já tinha passado e agora as coisas só podiam melhorar.
Anna não sabia se isso era verdade, mas tinha de acreditar nisso se queria
que ultrapassassem aquela noite juntas.
Claro que muito do que estava a deixar Lolly tão infeliz era o medo.
Medo de ter que tomar uma decisão definitiva sobre a sua vida amorosa.
Medo de tomar a decisão errada. Medo do que ia perder se terminasse com
Steven. Medo de se odiar a si própria se não acabasse com ele. Medo de não
ter namorado e de voltar a ser solteira na selva que era Manhattan. Medo de
ter de procurar um novo namorado e não encontrar ninguém melhor. Mas, o
maior deles, era o medo de morrer sozinha e sem ser amada.
– Então e o medo de amar a pessoa errada? – perguntou Anna.
– Queres dizer o tipo errado porque o teu irmão é um monte de merda? –
perguntou Lolly muito séria.
– Não – disse Anna. – Quero dizer, e se passares a vida inteira a amar o
homem errado?
– Explica-te melhor, por favor – disse Lolly, alcançando de novo a caixa
da tarte.
– Ou seja, eu sei que amo o Alexander, mas e se ele for o tipo errado?
E se houver algum outro rapaz que é suposto eu amar e ele for… melhor?
Para mim. – Assim que disse as palavras em voz alta, arrependeu-se.
Precisava de parar de pensar no momento em que Alexia Vronsky se virou
para ela no comboio. Era impossível ele ser tão lindo como ela se lembrava.
– Isso é impossível – gritou Lolly, a fazer eco dos pensamentos secretos
de Anna. – O Alexander é a melhor pessoa à face da terra. Ele nunca, num
milhão de anos, te faria o que o Steven me fez. Oh não, tu e o Alexander
também estão a ter problemas? Porque se for esse o caso, então é melhor eu
desistir já. – Lolly soltou um suspiro melodramático. – A sério, se o casal
mais perfeito do mundo não consegue fazer com que funcione, então que
esperança há para nós?
Anna sentou-se de repente.
– Não, não. Eu e o Alexander estamos bem. Ele é perfeito. Somos felizes.
Desculpa, não te queria assustar. Nem sei o que me levou a perguntar isso.
Acho que estou apenas cansada. E já que estávamos a falar de medos,
decidi juntar mais um à lista. – Anna raramente se abria com as amigas
sobre a sua relação com Alexander, e quando abordava o assunto, todas
tinham sempre a mesma reação de Lolly: que o namorado era perfeito e que
ela tinha muita sorte em o ter. Quando as outras raparigas se queixavam dos
seus namorados, Anna percebia que raramente partilhava os seus
problemas. A única queixa que tinha sobre a sua relação era ser, por vezes,
um pouco aborrecida, mas presumia que era por estarem juntos há tanto
tempo.
Anna levantou-se e andou pelo quarto para recuperar a concentração.
Precisava de encontrar uma nova abordagem. Agora não era a melhor altura
para começar a questionar o seu próprio coração.

X
Kimmie estava a divertir-se muito mais no Serendipity 3 com Dustin do
que pensava. O seu primeiro encontro na festa de Ano Novo de Steven
tinha-a deixado com uma impressão completamente diferente dele. Só
tinham falado durante alguns minutos no terraço de Steven e ela mal se
lembrava do que tinham dito. Normalmente, ela tinha uma ótima memória
para conversas, mas o facto de se lembrar de muito pouco podia ser
atribuído ao Veuve Clicquot que a tinha deixado bastante descontraída.
No elevador, a caminho da festa, Lolly tinha dito especificamente a
Kimmie:
– Certifica-te de que comes alguma coisa antes de começares a beber
champanhe.
Kimmie ainda não havia experimentado álcool como a maioria dos
miúdos da sua idade, por estar sempre a treinar, por isso não tinha tolerância
nenhuma. Tinha toda a intenção de seguir o conselho da irmã para «não
acabar como a rapariga da cabeça enfiada na sanita a vomitar ou numa pilha
de casacos», como Lolly a tinha avisado, mas tudo naquela noite tinha ido
numa direção que ela nunca poderia ter imaginado.
Não era justo culpar a irmã pelo que aconteceu, mas Kimmie achava que
Lolly podia, pelo menos, ter ficada um pouco com ela na festa, apresentá-la
a algumas pessoas antes de a abandonar para ir ter com Steven assim que
passaram a porta da entrada. A festa já estava ao rubro porque elas tinham
chegado muito mais tarde do que o planeado – Kimmie tinha ficado a ver a
irmã a tirar selfies com diferentes vestidos para ver qual ficava melhor com
as diferentes luzes, durante o que pareceram horas.
Kimmie tentou entrar na sala de estar, mas em vez disso viu-se
encurralada no canto ao lado de uma hedionda fonte esculpida em gelo,
quando um rapaz giro com um carrapito lhe ofereceu uma taça de
champanhe, que ela aceitou logo, ansiosa por fazer um amigo. Porque é que
ela tinha de lhe perguntar quem era o par representado na estátua de gelo?
Mas o rapaz do carrapito não precisava de ser tão estúpido e de se ter rido
na cara dela. Quando ela fecha os olhos ainda consegue ver a expressão de
troça dele e ouvir a sua voz idiota: «Como é que não sabes quem são o Rick
e o Morty?» Não podia acreditar que um estranho tivesse sido tão mau para
ela. Devia ter-lhe atirado com o copo de champanhe à cara, mas em vez
disso bebeu-o de um trago e fugiu para o terraço.
Na esperança de que comer marshmallows do bar de chocolate quente
pudesse minimizar os efeitos do champanhe, Kimmie encheu a boca como
um esquilo a armazenar comida. Foi então que reparou em Dustin, sozinho,
a olhar para o céu estrelado. Gostou imediatamente da cara dele e do facto
de ele não ter um carrapito. Parecia tão sério e deslocado no meio de toda
aquela gente, o que também a fez sentir-se melhor, porque ele espelhava
como ela se sentia: sobrecarregada e com vontade de estar noutro lugar
qualquer.
De repente, Kimmie lembrou-se do que ela e Dustin tinham falado no
terraço: de eventos espaciais que envolviam um meteoro, ou seria um
asteroide? Dustin sabia muito sobre astronomia, e falou sobre isso sem
parar durante algum tempo, mas ela gostava que ele falasse demasiado
quando estava nervoso. Ela presumiu que era por isso que ele estava a
tagarelar, e que ela era a causa do seu nervosismo, o que ela também
gostou.
Ela era o oposto de Dustin. Quando estava nervosa, fechava-se em copas.
Odiava isso nela, sobretudo porque quando estava calada, as pessoas
acusavam-na de ser convencida. Ela tinha ouvido outros patinadores a
falarem dela dessa forma. «A Kimmie é tão snobe. Pensa que é melhor do
que toda a gente, porque é uma cabra rica de Nova Iorque.» Ela já devia
estar habituada, mas ainda não estava.
Quando desceu as escadas para ir procurar a irmã, Kimmie tinha a
intenção de voltar a encontrar-se com Dustin mais tarde para continuar a
conversa. Mas enquanto descia as escadas, encontrou Steven a subir e ele
virou-se e seguiu-a até ao corredor cheio de gente. Havia tanto barulho que
quando ele lhe perguntou se ela queria Molly[10], ela achou que ele lhe tinha
perguntado: «Queres conhecer a Molly?» Por achar que ele se estava a
referir a uma pessoa e não a uma droga, ela disse:
– Claro, adorava.
Steven sacou de um pequeno saco com cristais e disse-lhe para abrir bem.
Kimmie nunca tinha experimentado drogas, pois todos os atletas de alta
competição eram regularmente testados. Mas aquele capítulo da sua vida
tinha acabado, por isso nada a impedia de experimentar agora.
Além disso, não queria parecer um bebé à frente de Steven, sobretudo
desde que a irmã lhe disse que tinha de agradecer a ele por estar na festa.
Lolly não a desejava lá, porque não queria ser responsável por ela, mas
Steven contra-argumentou de volta:
– A Kimmie teve um ano de merda. Merece ter um pouco de diversão.
Lolly acedeu, mais porque deixava Steven fazer sempre o que queria, do
que por ser uma irmã mais velha fixe. Honestamente, ela estava aterrorizada
e não queria fazer aquilo, mas era demasiado fraca para dizer a Steven que
tinha percebido mal. Por isso, fez o que ele lhe disse, inclinou a a cabeça
para trás e abriu bem a boca.
A maior parte da sua primeira experiência com drogas ocorreu quando
estava sozinha, sentada na enorme banheira da mãe de Steven – a suíte
principal era a única divisão proibida na festa, mas Kimmie ignorou o sinal
e entrou na mesma, assumindo que tinha um estatuto especial por ser irmã
da namorada do anfitrião. Durante as duas horas seguintes, esteve numa
bolha de felicidade provocada pelo ecstasy e brincou alegremente com os
sais de banhos mais requintadas e maravilhosamente perfumadas que
alguma vez tinha visto. A mãe de Steven tinha um frasco alto de vidro cheio
deles ao pé da banheira. Eram tão brilhantes que ela estava convencida de
que a família de Steven era tão rica que comprava sais de banho com
diamantes verdadeiros esmagados. O pai dela era sócio de uma grande
firma de advogados, por isso eles também eram ricos, mas Lolly disse-lhe
que não eram tão ricos como a família de Steven. A família dele tinha
dinheiro a dar com um pau, tal como a Beyoncé e o Jay-Z, ou seja, eles
estavam numa liga completamente diferente.
Quando a irmã mais velha a encontrou duas horas mais tarde, Kimmie
estava alheada, sentada na banheira vazia, com o vestido coberto de sais de
banho coloridos e brilhantes. Lolly reparou que as suas pupilas estavam
dilatadas e percebeu imediatamente o que tinha acontecido. A seguir, ela e
Steven – que, para Kimmie, pareciam estar a andar à roda –, olharam-na
como se fosse um pequeno peixe num aquário enorme. Kimmie fechou os
olhos e ouviu Steven dizer à irmã que lhe tinha dado uma porção de menu
infantil, lembrando-a de que era uma festa e que «porra, ela precisava de se
animar». Lolly ficou chateada com Steven por dizer palavrões, mas não
ficou furiosa, porque nunca ficava. Era como se ele exercesse uma espécie
de feitiço sobre a irmã, em que lhe bastava estalar os dedos para ela fazer o
que ele mandava.
O quarto ficou silencioso e Kimmie perguntou-se se a teriam deixado
sozinha, por isso abriu os olhos e viu-os a beijarem-se encostados à parede
da casa de banho. Steven estava a esfregar as mãos por todo o corpo da
irmã e ela fazia uns gemidos nojentos. Steven acabou por pegar em Lolly,
pô-la em cima do ombro e levou-a, a rir, para fora da casa de banho.
À saída, Steven disse a Kimmie que em breve ela se iria sentir bem outra
vez.
Trinta minutos mais tarde, Kimmie já recuperara o suficiente para voltar
a juntar-se à festa e celebrar a passagem de ano. Quando estava a empurrar
a multidão para tentar chegar à cozinha para beber uma água Fiji – sentia a
boca extremamente seca –, alguém atrás de si estendeu a mão e entregou-
lhe um copo de champanhe. Por um segundo, ela pensou que devia ser o
Dustin e ficou contente, mas quando se virou, deu por si a olhar, não para
Dustin, mas para o adolescente mais bonito que alguma vez vira. Rapazes
de cabelo louro e olhos azuis nunca tinham sido o seu género, mas este era
demasiado bonito para ela se preocupar com isso. Lembrava-se de pensar
que ele era como um lindo pedaço de vidro do mar no meio de uma pilha de
conchas velhas e aborrecidas.
– Tens alguém para beijar à meia-noite? – perguntou ele, tentando fazer-
se ouvir por cima da batida da música de dança pulsante do remix de «Bad
and Boujee» dos Migos.
– Não! – gritou ela de volta, surpreendida com a sua própria ousadia.
– Vamos, então? Dá azar entrar no Ano Novo sem o beijo de uma
rapariga bonita.
Quando deu por si, toda a gente à sua volta começou a contagem
decrescente. Kimmie não tardou a gritar juntamente com os outros trezentos
participantes da festa e, quando chegaram ao número um, ela fechou os
olhos e levantou o queixo na direção daquele rapaz bonito, sem nome e
feito de vidro marinho cintilante. Ele beijou-a, e deu-lhe o beijo mais
mágico da sua vida. – Só tinha havido outros três, mas mesmo assim! – Na
sua cabeça, ouviam-se fogos de artifício, tal como nos filmes, mas mais
tarde percebeu que o que tinha ouvido era a televisão. Era a primeira vez
que Kimmie se sentia verdadeiramente feliz desde o seu «acidente», o
acidente que ela estava a tentar tão afincadamente esquecer e enterrar. Foi
esse o conselho que o pai lhe deu depois da operação:
– És jovem, miúda, às vezes os sonhos não resultam. Encontra outro e
segue em frente. Uma rapariga bonita como tu tem muitas opções.
Por isso, era o que ela estava a tentar fazer ultimamente, ser mais como a
sua irmã Lolly, e encontrar a felicidade nos amigos, nas roupas, no
Instagram, ou até mesmo num namorado. Apesar de dar vontade de vomitar
ouvir Lolly a falar de Steven, por vezes Kimmie dava por si a invejar a
relação da irmã. Talvez um rapaz lhe pudesse fazer sentir o mesmo que
quando estava no rinque de patinagem, uma sensação do género isto-é-
mesmo-o-lugar-onde-é-suposto-eu-estar-neste-enorme mundo. E agora
havia um rapaz que a achava bonita e que escolheu beijá-la, quando podia
ter tido qualquer outra rapariga da festa, por isso ela decidiu ceder e
aproveitar.
Depois da meia-noite, o rapaz agradeceu-lhe o beijo, pediu-lhe o iPhone,
gravou o seu número no telemóvel dela, e pediu-lhe que lhe mandasse uma
mensagem para irem beber um chá. A seguir devolveu-lhe o telemóvel,
piscou-lhe o olho e desejou-lhe um Feliz Ano Novo. Depois virou-se e
desapareceu no meio da multidão bêbeda que agora dançava ao som da
versão de Bieber de «Despacito».
Ela não queria ver o nome dele até estar sozinha, por isso voltou a abrir
caminho por entre a multidão embriagada, em direção à sua casa de banho
secreta. Ao passar pela biblioteca, viu Dustin sentado num sofá entre duas
raparigas. Não tinha a certeza se ele a tinha visto, e sabia que era falta de
educação não desejar um Feliz Ano Novo ao único amigo que conhecera na
festa, mas naquele momento não se importava. Estava numa missão para
saber o nome do belo rapaz louro que lhe tinha enfiado a língua na boca à
meia-noite.
«V de Vronsky» foi o que ele escreveu no primeiro nome, nos contactos,
e pôs «Conde» como título. Dez minutos depois, Steven e Lolly
encontraram Kimmie a rodopiar na espaçosa casa de banho com os braços
erguidos e a cantar «V de Vronsky, V de Vronsky, V de Vronsky!» Ela
rodopiou sem parar, sem se aperceber de que Steven e a irmã estavam ali à
porta, a observá-la. A última coisa que se lembrava daquela noite foi de
ouvir a irmã mais velha a gritar para o namorado:
– Meu Deus, Steven! A Kimmie ainda está toda lixada! Kimmie! Para
com isso.
– Kimmie? – disse Dustin, e a voz dele trouxe-a de volta à realidade.
– Sim? – respondeu ela, sentindo-se culpada por estar a pensar noutro
rapaz quando agora estava com um tão simpático.
– Vou à casa de banho – disse ele.
Kimmie sorriu e acenou com a cabeça, mas assim que Dustin se levantou
da mesa, pegou no telemóvel para ver se havia mensagens. Tinha uma nova,
o que a encheu de esperança, mas franziu o sobrolho quando viu que era da
sua amiga Victoria. Kimmie ignorou a mensagem da amiga e, em vez disso,
escreveu a sua própria mensagem, e clicou em «V de Vronsky», que estava
guardado nos seus favoritos. Escreveu: Senti a tua falta esta noite no
rinque. Espero que tenhas tido um bom dia. Ela hesitou por um
segundo, sem saber se o emoji dos patins no gelo seria visto como
redundante ou como engraçado, como ela pretendia. Apagou o par de patins
no gelo, deixou o boneco de neve e carregou em enviar.
Os pontos apareceram imediatamente e a sua pulsação acelerou em
antecipação, mas depressa desapareceram, deixando-a a sentir-se estúpida e
irritada. Agora desejava não ter enviado nenhum emoji. Voltou a guardar o
telemóvel na sua mini mochila Prada e levantou a cabeça, vendo que
Dustin ainda nem sequer tinha ido à casa de banho. Estava a falar com
quatro adolescentes que ela não reconheceu e a mesa inteira começou a rir-
se de algo que Dustin disse.
Que estranho, pensou Kimmie para si própria. Quem diria que os nerds
podiam ser tão engraçados?

XI
Dustin nem sequer tinha de ir à casa de banho, mas precisava de uma
pausa da beleza deslumbrante de Kimmie. Tinha de admitir que a noite
estava a correr muito melhor do que imaginara e esperava terminar em
grande, e era por isso mesmo que estava na casa de banho dos homens a
fazer alguns dos exercícios de respiração que o seu terapeuta lhe
recomendava sempre que se sentia demasiado ansioso e em que podia vir a
ter um dos seus ataques de pânico.
A segunda razão que o levou à casa de banho foi porque tinha de
responder às mensagens da mãe antes que ela tivesse um ataque de pânico,
fizesse uma pesquisa sobre como «rastrear o meu telemóvel», ligasse ao pai
para o localizar e o trazer para casa. Não era nada típico de Dustin
esquecer-se de ligar à mãe a avisar que não ia jantar a casa. Mas agora a
sério, sair com uma loira linda numa quinta-feira à noite é que não era
mesmo nada típico dele; podia bem ter sido possuído por um alien muito
mais fixe do que ele, que estava a viver uma vida muito melhor no seu
corpo. Precisava de telefonar à mãe, mas primeiro tinha de se acalmar.
Quando estava perto de Kimmie, mal conseguia respirar, quanto mais
pensar normalmente, o que o fez lembrar-se que tinha o inalador no bolso.
Há meses que não precisava dele, mas continuava a andar com ele por
segurança. Tirou-o e estava prestes a inalar, quando parou e se olhou ao
espelho.
– Não sejas estúpido. Tu consegues fazer isto – disse ele, apercebendo-se
de que as únicas personagens de filmes que se incentivavam ao espelho
eram os falhados. Exceto talvez John Travolta em Pulp Fiction, mesmo
antes de Uma Thurman ter uma overdose de heroína e ter de levar com uma
injeção de adrenalina diretamente no coração. O que o fez lembrar que
devia voltar para junto de Kimmie. Mandou uma mensagem à mãe a pedir
desculpa e explicou-lhe onde estava e com quem, e decidiu que era melhor
ela passar-se por causa de uma rapariga do que por imaginar que ele estava
a dar nas drogas.
Ficara surpreendido por Kimmie poder sair até tão tarde numa noite de
escola. Quando lhe perguntou, ela disse que ela e a irmã ficavam na casa do
pai nessa semana, e que ele estava a trabalhar até tarde num caso
importante. Kimmie mencionou a seguir que sempre que o pai trabalhava
até tarde, a sua «madrasta monstrosa» aproveitava aquilo como desculpa
para sair com as amigas e beber demasiado. A mãe dela era muito mais
rigorosa em relação às noites de escola, mas estava em Santa Lúcia com o
novo namorado, um chefe de cozinha famoso, que estava a abrir um
restaurante num hotel de luxo, o que significava que ninguém a estava a
supervisionar ou a Lolly.
Quando Dustin ouviu isto, disse a Kimmie que podiam ir jantar primeiro,
se ela preferisse, mas ela disse:
– Chocolate quente congelado é um jantar perfeitamente nutritivo para
mim. – Ele ficou feliz por ela ser gulosa, porque ele também era.
Enquanto esperavam pelo pedido, perguntou-lhe se ela tinha o coração
partido por causa da lesão que pôs fim à sua carreira, e desejou que não
fosse demasiado cedo para uma pergunta tão pessoal. Ela parecia não ter
problemas em falar sobre o assunto, e acrescentou rapidamente que o pai
lhe tinha dito que não valia a pena pensar no que poderia ter acontecido se
ela não se tivesse lesionado no joelho, porque tinha. Mas a mãe continuava
zangada e à procura de culpados, apesar de não ser culpa de ninguém.
Kimmie disse a Dustin que ele era querido por lhe perguntar, e acrescentou
que, desde que tinha voltado para casa, nenhum dos seus supostos amigos
se tinha dado ao trabalho de lhe fazer essa pergunta. Ficou desiludida, mas
não podia dizer que estava de coração partido com tudo isto.
A seguir, Kimmie passou a bola para ele e perguntou-lhe se ele já tinha
tido o coração partido.
– Nem por isso – respondeu ele. A sua relação mais longa até então tinha
durado exatamente uma sessão de cinema no campo de verão de Harvard,
no ano passado. Contou a verdade a Kimmie e disse-lhe que tinha tido a sua
versão de um «romance de verão» com uma rapariga chamada Susie S. de
Filadélfia, mas que nunca chegou a ser nada sério.
– Ambos gostávamos de clássicos do cinema, mas acho que é preciso
mais do que compreender O Último Ano em Marienbad para fazer o meu
coração bater mais depressa. – Kimmie não respondeu durante muito
tempo, e ele começou a ficar preocupado. – É falta de educação falar de
outra rapariga – acrescentou, na esperança de que isso a fizesse dizer
alguma coisa. – Além disso, juntar ainda por cima uma referência
pretensiosa ao cinema francês tornou tudo ainda pior. Desculpa.
– Não peças desculpa. Percebo perfeitamente. Além disso, fui eu que
perguntei – disse ela, mas soou pouco convincente, o que o fez questionar-
se se estaria a ser sincera. O que Dustin não sabia era que Kimmie se
mantinha em silêncio porque estava a rezar silenciosamente para que ele
não lhe perguntasse se já tinha estado com alguém que tinha feito o coração
bater descompassado. Ela não era parva. Sabia que Dustin gostava dela, e
ela também gostava dele. Só não gostava dele o suficiente, ou talvez só
gostasse que ele gostasse dela. Ela só tinha sentido o seu coração a bater
descompassado uma vez na vida e foi na mesma noite em que conheceu
Dustin, mas não foi ele – foi o Conde Vronsky que tocou no ponto certo do
seu coração.
Foi toda esta troca de palavras embaraçosa que fez com que Dustin
pedisse licença para ir à casa de banho. No caminho para lá, parou para
falar com uns rapazes que conhecia do liceu. Era uma mesa com quatro
jovens adolescente, por isso é óbvio que eles repararam com quem é que
Dustin estava e queriam saber mais pormenores. Nerds como ele não
bebiam chocolate quente com as raparigas giras da Lista das Boazonas, a
não ser que ela fosse da família ou precisasse de copiar os trabalhos de casa.
Dustin sabia que podia ter-lhes contado a história que quisesse, mas ele não
era assim. Contou-lhes a verdade, ou seja, que não fazia a mínima ideia do
que se estava a passar. A sua honestidade brutal foi recompensada com
gargalhadas de todos.
Quando Dustin se aproximou da mesa depois de ter ido à casa de banho,
viu que Kimmie tinha um sorriso no rosto e parecia perdida em
pensamentos. Meu Deus, ela é tão bonita, pensou ele. Será que está a
pensar em mim?
– Em que estás a pensar? – perguntou ele, enquanto se sentava à frente
dela.
– Em nada de especial – mentiu Kimmie, e olhou para as suas mãos. –
Acho que estava a pensar no que se estaria a passar do outro lado do parque
com a Lolly e o Steven. – Ao ouvir-se a si própria, percebeu que também
havia alguma verdade naquela afirmação. Lolly era sua irmã, por isso é
óbvio que ela se perguntava se ela estaria bem.
– Achas que eles vão resolver as coisas? – perguntou Dustin. Toda a
situação o estava a deixar bastante consternado. Quer gostasse ou não,
estava pessoalmente envolvido, sobretudo agora que beneficiava com a
situação. Apesar de achar que Lolly devia acabar com Steven depois do que
ele lhe fez, era óbvio o quanto Lolly adorava Steven. E havia uma pequena
parte dele que esperava que eles resolvessem tudo, porque estaria a mentir
se não admitisse que já tinha pensado nos quatro a sair juntos. Talvez Anna
pudesse ajudar a acalmar as coisas.
– Não sei – disse Kimmie. – Mas se fosse ela, dava-lhe um pontapé no
rabo.
– Só para que saibas, apesar de ser amigo do Steven, acho que ele está
completamente errado – disse Dustin. – E se puderes, por favor diz à Lolly
que lamento que ela tenha tido de lidar com tudo isto.
Kimmie observou o rosto sério de Dustin e percebeu que ele estava a
falar a sério. A sua honestidade transparecia, e era por isso que ela se sentia
tão tranquila e segura na presença dele.
Quando a conta chegou, Dustin convenceu Kimmie a deixá-lo pagar,
lembrando-a de que um dos princípios fundamentais do feminismo era o
direito de escolha da mulher, e que se ela escolhesse deixá-lo pagar a
sobremesa, ela continuava a ser uma feminista convicta. Ela riu-se, e
concordou com a lógica dele, o que o deixou feliz, porque isso tornava a
saída deles, se não um encontro real, pelo menos uma espécie de encontro,
o que lhe deu confiança para lhe perguntar se a podia levar a casa, ao que
ela respondeu que sim.
– Acredito que dizes a verdade, Dustin. E eu gosto disso – disse-lhe ela
enquanto passeavam pela Park Avenue.
– Eu digo o que quero dizer, e faço o que digo.
– O que é isso? – perguntou Kimmie.
– É uma citação de um dos meus filmes preferidos. Heat[11] com o Al
Pacino.
– O Al Pacino não entrava no Heat. Era a Sandra Bullock e a Melissa
McCarthy.
– Elas entraram no The Heat[12]. Estou a falar de um filme dos anos
noventa com o Pacino e o De Niro. Escrito e realizado por Michael Mann.
Uma das ex-namoradas do meu pai, que vivia connosco quando eu era mais
novo, adorava o filme e estava sempre a falar-me dele. Até que o meu pai
acabou por deixar-me vê-lo com ela. Foi o segundo filme para adultos que
eu vi na vida. É um filme sobre um assalto a um banco, e perseguições, com
uma das cenas de tiroteio mais famosas de todos os tempos.
Estavam agora apenas a um quarteirão e meio da casa do pai dela na
Madison Avenue, parados na esquina, à espera que o sinal para os peões
mudasse. O seu tempo juntos estava quase a terminar.
– É um filme estranho para uma mulher gostar – disse Kimmie, sem
saber que estava a ser sexista.
– Eu também achei, mas ela era muito mais fixe do que o meu pai.
E apesar de ser um filme de ação dinâmico, também tinha uma história de
amor. Todos os homens no filme amavam as mulheres das suas vidas, o que
ela achava romântico.
Por falar em romântico, estavam agora ambos diante da casa dela, no
meio de uma tempestade de neve. Se Dustin tivesse a capacidade de parar o
tempo, teria corrido para a loja de eletrodomésticos mais próxima para
comprar um drone com câmara 4K e visão noturna, e gravar este momento
para sempre. Se conseguisse colocar uma lente olho-de-peixe na câmara,
tinha a certeza de que conseguiria criar o efeito deslumbrante de um globo
de neve a girar, com os flocos de neve a cair na noite e a bela rapariga com
quem estava, a prova cinematográfica de que esta noite tinha mesmo
acontecido.
– Achaste romântico quando o viste? – perguntou Kimmie.
– Não quando tinha doze anos. Mas voltei a vê-lo no ano passado e
percebi o que ela queria dizer. No entanto, para mim, este filme é mais
sobre uma questão de honra. Honrar os nossos amigos, honrar o trabalho
mesmo que sejas um ladrão, honrar o compromisso com a justiça se fores
um polícia. Acima de tudo, é sobre honrar o código que escolheste para
viver, independentemente de qual for. Mas apesar de os homens do filme
amarem as suas mulheres, não foram capazes de agir bem por elas. Acho
que, por vezes, as pessoas não conseguem evitar fazer escolhas más e
magoar aqueles que amam. – De repente, Dustin sentiu-se parvo por estar a
falar de um filme que ela nunca tinha visto. – Desculpa, sou um nerd do
cinema sem remédio.
Kimmie pegou-lhe no braço e olhou-o diretamente nos olhos.
– Para. Não pareces nada um nerd. Pareces apaixonado, e isso é
maravilhoso. Na verdade, estou com vontade de ver o filme agora mesmo
por tua causa, mas mais pelo lado romântico. Podes chamar-me cínica, mas
com toda a merda que se está a passar com a Lolly e o Steven, não acredito
muito na honra dos homens... – Ela fez uma pausa, pois sabia que Dustin
era, provavelmente, o primeiro homem honrado que ela conheceu em Nova
Iorque até agora. No ano passado, ela teria posto Gabe, o seu parceiro de
patinagem artística, nesta categoria, mas ele tinha-se revelado uma
desilusão nos últimos tempos, raramente lhe telefonava agora que tinha
arranjado um novo par, uma patinadora sueca chamada Maja.
– Não faças isso. Quero dizer, é claro que podes. Não estou a tentar dizer-
te o que podes ou não podes fazer – disse Dustin, atrapalhado. – Mas talvez
pudéssemos vê-lo um dia destes... juntos? Nós os dois ou com mais
pessoas. Meu Deus, pareço um anormal que não se cala a falar com ela.
– Talvez. Mas não esta noite. Já é tarde e tenho de ir. – Kimmie sorriu e
subiu a correr os degraus da porta da frente. Uma vez no cimo das escadas,
virou-se e olhou para ele. – Obrigada pelo chocolate quente gelado e por me
acompanhares até casa – disse ela, e fez uma pequena vénia.
Dustin respondeu-lhe com uma profunda vénia.
– Foi um prazer e uma honra, minha bela Kimmie.
Kimmie entrou em casa e correu para a janela da sala de estar para ver
Dustin a afastar-se na noite escura e a nevar. Será que ela reparou no
pequeno salto que ele deu? Sim, ela reparou certamente.
XII
Anna e Lolly estavam cansadas de falar e fizeram uma pausa para
descansar a ver os videoclips de «Lemonade» da Beyoncé. A ideia foi de
Lolly, que argumentou que a Rainha Bey tinha sido traída pelo seu homem
e que este álbum era a forma de ela ultrapassar a experiência. Anna não
tinha a certeza se aquilo era uma boa ideia, mas estava a ficar desesperada
para que chegassem a algum tipo de solução e estava disposta a tentar
qualquer coisa. Viram tudo em silêncio absoluto, e depois Anna desligou a
televisão e virou-se para a amiga.
– Okay, é a tua vez de enfrentares a música. Estás pronta, Lolly? Tu.
Amas. O Steven?
Da primeira vez que Anna fizera esta pergunta a Lolly, umas horas antes,
a resposta dela tinha sido que não o amava e que, na verdade, o queria ver
morto. Mas depois alterou para:
– Talvez o ame, mas sei que não devia porque ele é um monstro
mentiroso e traidor. – E depois para: – Okay, eu amo-o, mas ainda o quero
ver morto. Não me importo de usar preto durante um ano. – E a seguir para:
– Amo-o, mas também o odeio. – E depois para: – Acho que o amo, mas é
óbvio que ele não me ama.
Anna nunca deixou passar esta afirmação e assegurou Lolly centenas de
vezes que tinha a certeza de que Steven a amava completamente e que lá
porque a tinha traído não significava que não a amava, apenas que era um
adolescente patético e idiota.
Por fim, chegaram a:
– Eu amo-o, mas como é que posso ficar com ele depois de me ter
humilhado desta maneira? – O que Anna viu como um progresso. Em
resposta, Anna replicou que ela não era rapariga de se preocupar com o que
os outros pensavam, pois não tinham nada que ver com isso. Lolly
concordou com Anna, mas sabia que Steven não pensava assim. E para
provar o seu ponto de vista, admitiu a Anna que o «sexaniversário» era uma
farsa.
– Ainda sou virgem – confessou Lolly num murmúrio. – Apenas deixo o
Steven dizer às pessoas que fazemos sexo.
A curiosidade de Anna foi espicaçada.
– De que raio estás a falar?
Lolly fungou e disse que sabia que era confuso, mas ela só concordou em
chamar-lhe isso por causa do estúpido orgulho masculino de Steven. Há um
ano, na altura em que deviam assinalar os seis meses do dia em que
decidiram ser namorados e mudaram o seu estatuto em todas as redes
sociais, Lolly descobriu que Steven não queria celebrar o aniversário. Isto
provocou a primeira grande discussão deles. Steven disse que os
aniversários eram para pessoas casadas e que ele se recusava a fazer algo
tão feminino.
Normalmente, ela alinhava em tudo o que Steven queria, mas desta vez
recusou. Disse-lhe que para ela era importante celebrar e que ele ia fazê-lo
para a deixar feliz. Mas Steven continuava a dizer que não e, então, depois
de andarem às voltas e não chegarem a lado nenhum, ela perguntou-se se
não se estaria a passar mais alguma coisa. Talvez ele estivesse chateado
com alguma coisa que não tinha nada que ver, mas estava a ficar tudo
confuso na sua cabeça.
Anna, impressionada por Lolly ser tão astuta, fez-lhe um gesto para que
continuasse.
– Bem, pelos vistos eu tinha razão. Passava-se outra coisa, e foi quando o
Steven finalmente admitiu que não se importava que eu quisesse esperar até
estar pronta para termos sexo, mas que tinha vergonha que os amigos
descobrissem que ainda não o tínhamos feito.
– Mas porque é que os amigos dele iam descobrir? – perguntou Anna.
– Foi o que eu disse! – exclamou Lolly. – Então ele explicou-me que se
os amigos descobrissem que ele me tinha comprado joias para o nosso
aniversário, quando nem sequer estava a dar uma queca, ia ser gozado até à
morte.
– Isso é a coisa mais estúpida que já ouvi – disse Anna, e estava a falar a
sério.
– Foi o que eu disse! Mas depois ele alegou: «Agora, se estivéssemos a
celebrar o nosso aniversário de seis meses de sexaniversário, eu podia fazê-
lo.» Ele estava a brincar, claro, daquela maneira que ele tem de brincar com
tudo. Por isso, sem pensar, perguntei-lhe se podíamos comemorar o nosso
aniversário se eu concordasse em deixá-lo contar aos amigos que tínhamos
feito sexo na noite em que ele me pediu para ser sua namorada. E ele disse
que sim, e o resto é o que se sabe.
Anna estava um pouco chocada por aquela história ser tão ridícula.
– E resultou? Ou seja, ficou tudo bem depois disso?
– Sim. Os amigos do Steven acham que ele é um garanhão. E ele levou-
me ao Per Se e ofereceu-me os brincos de diamantes da Tiffanys que tu
escolheste para o nosso sexaniversário de seis meses.
Anna sorriu ao ouvir aquilo, porque se tinha esquecido de ter ido com o
Steven escolher os brincos para onde Lolly estava a apontar nas suas
orelhas.
– Ena, e tu realmente não te importas que as pessoas pensem que não és
virgem?
– Achas? Hoje em dia eu ia ser gozada por querer esperar. Ou seja, eu sei
a verdade, e para quem é que estou a guardar a minha virgindade se não
para mim? Acho que foi um dos momentos mais maduros do meu
relacionamento de sempre. Encontrei um compromisso com o qual eu e o
Steven estamos felizes. – Lolly contou a Anna que a mãe dela sempre lhe
disse que a razão principal que a levou a divorciar-se do pai de Lolly foi
porque ele não se comprometia. Por isso, Lolly tinha-se mentalizado que
devia afastar-se de qualquer homem que não o conseguisse fazer, porque
senão as expetativas eram que tinha de ser a mulher a fazer todos os
sacrifícios.
– O que me deixou mesmo piursa ao descobrir hoje que ele é um traidor
de merda, de todos os dias possíveis, foi que o meu presente para ele, além
da estúpida bracelete para o relógio, a minha virgindade. Eu ia oferecê-la
mesmo.
Desta vez, quando Lolly começou a chorar novamente, Anna
compreendeu tudo.
– Meu Deus, Anna, sou um desastre tão grande.
Anna abanou a cabeça e colocou o braço em volta dos ombros de Lolly.
– Tu não és um desastre. Só te apaixonaste por um.
Lolly acenou com a cabeça tristemente.
– É verdade. Eu amo-o. Amo-o muito.
Anna acenou com a cabeça e disse a Lolly que era por isso que estava a
sofrer tanto. Por isso, agora a única questão a que tinha de responder era:
será que Lolly amava Steven o suficiente para o perdoar? Porque se ela o
amava o suficiente, então estava na altura de falar com ele para ver se
podiam ultrapassar isto.
– A culpa foi minha? Por lhe ter negado sexo? Foi por isso que ele me
traiu?
– Não! – Desta vez Anna falou bruscamente. Foi a única altura em que
levantou a voz durante toda a noite. – Nunca te culpes a ti própria, Lolls. Tu
amavas o Steve e querias esperar, e foi essa a tua escolha. Na verdade,
admiro-te por isso. Às vezes penso que eu devia ter esperado mais tempo.
O Alexander não me pressionou, mas quando soube que ele ia para a
universidade senti que tinha de o fazer. Antes de ele partir, sabes?
– Eu percebo. Provavelmente teria feito a mesma coisa. Mas está tudo
bem, certo? Estão juntos há tanto tempo e amam-se, por isso, ao fim de
algum tempo, faz sentido dar o passo seguinte, não achas? É tão espetacular
como dizem? A minha amiga Miley diz que é melhor do que os saldos de
sapatos na Bergdorf.
Anna riu-se e começou a desligar todos os candeeiros do quarto. Não
teria importado de se abrir com Lolly, mas Anna nunca falou com as amigas
sobre a sua vida sexual. Alexander achava que o sexo era algo que devia ser
mantido em privado, e ela tentava respeitar isso, mesmo que não
concordasse totalmente com ele.
– Neste momento, a única coisa em que tens de pensar é se o consegues
perdoar ou não. Porque se conseguires, então vocês os dois podem resolver
o assunto e, quem sabe, talvez a vossa relação melhore com isto. Dorme
sobre o assunto. Acabei de receber um alerta de que amanhã vai nevar, por
isso tu e o Steven têm o dia todo para conversar... se decidirem que é isso
que querem.
Lolly acenou com a cabeça e admitiu que estava com sono; sentia-se
exausta de todo o drama e já não conseguia pensar com clareza.
– Além do mais, o Steven merece sofrer durante mais algum tempo –
disse Anna com um sorriso.
– Sim, merece – concordou Lolly, já a enfiar-se nos lençóis finos e
macios Frette Lux da cama king-size dos pais de Anna.
Anna ficou com Lolly até ela adormecer. Mas não teve de esperar muito.

XIII
Anna deixou Lolly a dormir no quarto dos pais e caminhou descalça pelo
corredor escuro até à cozinha, onde guardou o resto da tarte no frigorífico.
Ouviu vozes vindas da sala de estar, que presumiu ser a televisão, mas
depois de escutar com mais atenção, percebeu que Steven estava a falar
com um tipo. Anna revirou os olhos, irritada, porque enquanto tinha
passado as últimas horas a limpar a porcaria do irmão, este tinha saído e
provavelmente havia-se divertido à grande, como sempre.
O telemóvel vibrou e ela olhou para baixo para ver mais uma mensagem
de Alexander, que estava a tentar contactá-la há horas. Se não é um, é outro.
Ela fez uma careta. Voltou para o quarto, pois sabia que tinha de ligar ao
namorado antes de começar a ter os seus próprios problemas amorosos.
Alexander atendeu ao primeiro toque e, pelo seu tom de voz, era óbvio
que estava aborrecido por ela ter demorado tanto tempo a ligar-lhe.
Alexander não ganhou a alcunha de OG por ser a pessoa mais paciente do
mundo. Mas rapidamente se acalmou quando ela lhe contou a sua noite,
murmurando que ela era demasiado boa para o seu irmão mais velho
imprudente e irresponsável.
– Ele não merece uma irmã como tu – disse ele, e não era a primeira vez
que falava mal do irmão dela. Alexander não era um grande fã de Steven,
mas sabia que não devia criticá-lo muito, pois Anna era rápida a defender o
irmão, apesar dos seus muitos defeitos.
– Não estás a perceber, Alexander. Não é a mim que o Steven não
merece. É a Lolly. Acreditas que eles ainda nem sequer fizeram sexo? Tinha
a certeza absoluta de que já tinham feito, mas agora que sei que ainda não
fizeram, sinto que as ações do Steven não são propriamente desculpáveis,
mas são um pouco mais compreensíveis. Caramba, odeio-me por dizer isto
em voz alta, mas talvez seja verdade. Não me disseste uma vez que se os
homens não fazem, sabes... regularmente, então...?
– Sim, mas isso não lhes dá o direito de traírem. Eles comprometeram-se
e parte desse acordo é estarem apenas um com o outro. O Steven podia ter-
se masturbado no duche como todos os rapazes que eu conheço.
Era raro Alexander falar de sexo com ela de forma tão franca, e Anna
ficou um pouco intrigada.
– É isso que fazes? Tu sabes, quando eu não estou por perto?
– Anna, para. Não vou discutir isso contigo. Ela é uma idiota se não o
deixar. Como é que pode voltar a confiar nele?
– Acho que ela não o vai deixar – respondeu Anna. – A Lolly ama-o.
Tipo, não apenas de uma maneira normal, mas ela ama-o mesmo a sério. Se
não o amasse, não tinha ficado tão zangada. Ela estava completamente
destroçada. Tenho quase a certeza de que o vai perdoar de manhã.
Alexander, já farto do assunto, perguntou a Anna se ela sabia que a escola
dela ia estar fechada no dia seguinte. Ela sabia, mas por alguma razão fingiu
surpresa.
– A sério? Que bom, porque eu tenho medo de apanhar o comboio das
7h02 de volta a Greenwich para estar no Latim às nove. Também tens um
dia de folga por causa da neve?
Alexander riu-se.
– Não, querida, na faculdade não temos dias de folga por causa da neve.
– Anna sentiu-se tola por momentos, mas isso passou depressa porque como
é que ela podia saber como é que a faculdade funcionava quando havia
tempestades de neve? Sem esperar pela resposta dela, Alexander começou a
contar uma história muito aborrecida sobre a sua aula de Globalização e
Governação Privada, por isso ela deixou a sua mente vaguear até ao início
da noite, quando conheceu o Conde Vronsky.
Ela já tinha ouvido falar dele, mas tinha a certeza de que nunca se tinham
encontrado até hoje. No entanto, ela sabia muito sobre a mãe dele, uma
famosa socialite conhecida pela sua beleza, estilo elegante e vários
casamentos. Geneviève R. era agora o seu nome de casada, porque tinha
subido ao altar recentemente com o seu quarto marido, o CEO da terceira
maior empresa farmacêutica do mundo. Normalmente, quando uma mulher
se divorciava várias vezes, era desprezada pela sociedade, mas Geneviève
tinha uma rara posição e ainda era tida em grande consideração – muito
provavelmente porque, de cada vez que se casava, era com alguém mais
rico e poderoso do que o seu anterior marido.
A sua fotografia aparecia frequentemente na Vogue ou na secção de
lifestyle do The New York Times, e Anna reconheceu-a imediatamente assim
que entrou no comboio.
Tanto quanto Anna sabia, a Sra. R. tinha apenas dois filhos, ambos do seu
primeiro casamento com o Sr. Vronsky. Tal como Anna, a Sra. R. também
tinha cães em competições, mas os seus eram wolfhounds russos.
Apaixonou-se pela raça depois de conhecer o pai russo de Vronsky. As duas
mulheres criaram laços no comboio por causa do seu amor por cães de raças
gigantes com uma esperança de vida tragicamente curta. O primeiro terra-
nova de Anna viveu apenas nove anos.
Ela pôs Alexander em alta voz enquanto ele falava monotonamente sobre
como tinha perdido o jogo de ténis nessa manhã por causa do cotovelo, e
disse-lhe que ele precisava de ir a um ortopedista para ser visto, enquanto
enviava uma mensagem a Magda, a governanta da casa de Greenwich, a
informá-la sobre os seus planos para ficar na cidade e a pedir-lhe para lhe
trazer os cães no dia seguinte. Anna tratava os seus dois animais gigantes
como se fossem cães de colo e raramente viajava sem eles. Este luxo só era
possível porque a família tinha motoristas e um avião privado. E porque o
pai adorava a sua única filha. O amor de Anna por todos os animais era algo
que sempre tinham partilhado.
Foi o pai que lhe deu o seu primeiro cachorrinho terra-nova quando ela
tinha apenas cinco anos. Tinha visto um num quadro de um museu em
Londres e não acreditou quando o pai lhe disse que a criatura gigante para
onde estava a apontar era um cão.
– Ele parece o maior animal de peluche da loja! – gritou ela com alegria,
o que era uma piada privada entre ela e o pai. Ele tinha-lhe dito que, sempre
que iam a uma loja de brinquedos, ela conseguia escolher o maior e mais
caro peluche que encontrava e dizia: – Quero aquele. – E como o pai lhe
satisfazia todas as vontades, o seu quarto em Greenwich tinha agora uma
dúzia ou mais de enormes animais de peluche alinhados ao longo de uma
parede que a protegiam enquanto dormia.
O cachorrinho terra-nova foi um presente de aniversário muito especial
tardio, oferecido pelo pai, que faltou à festa quando fez cinco anos porque
estava a viajar na Ásia em trabalho. No regresso a casa, fez uma paragem
em Vermont num criador de terra-nova e escolheu um cachorrinho com dez
semanas de uma linhagem campeã chamado Doozy. O cão preto e gigante
tornou-se no seu fiel companheiro, acompanhando-a até aos estábulos, feliz
por dormir no feno durante as aulas de equitação diárias de Anna, depois da
escola.
Doozy morreu há dois anos, e foi a primeira vez que Anna se sentiu
destroçada. Apesar de agora ter dois outros terra-nova, ainda não
ultrapassou a dor da perda do seu primeiro cão, daí provavelmente ter tido
uma reação tão forte à morte daquele cão no início da noite.
– Anna, ainda aí estás? – A voz impaciente do namorado trouxe-a de
volta à realidade.
– Sim, estou aqui – respondeu ela obediente. – Andas a tomar Adderall?
Sabes que ficas irritado quando tomas demasiado.
Alexander ignorou a pergunta dela, o que significava que era verdade.
Mas Anna estava demasiado cansada para discutir se ele dependia ou não
demasiado das drogas para os seus estudos. A defesa dele era sempre que
tinha uma receita médica e que nunca a tinha comprado ilegalmente como
qualquer outro estudante universitário.
– É tarde e deves estar exausta. Devias ir dormir um pouco. – Depois ele
perguntou: – Tencionas ficar na cidade por causa da neve?
– Bem, como amanhã não há aulas, talvez fique por cá para um fim de
semana prolongado – respondeu ela, pronta para desligar o telemóvel.
O casal disse os seus «amo-te» e «boa noite» da praxe, e de seguida Anna
estava sozinha no silêncio do seu quarto. O quarto que era dela, mas que, no
entanto, não parecia ser, uma vez que ela lá ia tão poucas vezes. Os pais
ficaram surpreendidos quando ela lhes disse, aos catorze anos, que tomara a
decisão de ir estudar para o liceu em Greenwich, em vez de frequentar a
escola privada escolhida para ela em Manhattan. A mãe recusou, sobretudo
porque lhe parecia uma grande dor de cabeça por causa dos horários. Mas o
pai de Anna ouviu a filha e ficou comovido com o apelo dela para estar
mais perto dos seus cavalos e cães e acabou por dizer que iriam encontrar
uma forma de resolver a situação. Quando Anna saiu da sala, ficou a ouvir
junto à porta durante algum tempo, mas as primeiras palavras da mãe
foram:
– Sabes que a culpa é tua, Edward. Se não lhe satisfizesses todos os
desejos, a Anna perceberia que ela é a criança e nós é que somos os pais que
decidem o que é melhor para ela. – Mas o pai respondeu que a filha era
capaz de fazer as suas próprias escolhas e que eles tinham de respeitar isso.
Não queriam criar uma rapariga que não conseguisse pensar por si própria,
pois não?
Anna vestiu o seu pijama de seda da Prada com estampado de batons, e
calçou um par de pantufas de coelhinhos cor-de-rosa que Steven lhe tinha
oferecido nos anos e decidiu ir ver quem era a companhia do irmão a esta
hora tão tardia.
Caminhou pelo corredor escuro e viu que Steven estava de pé no hall de
entrada, de costas para ela. De repente, o próprio Vronsky em pessoa saiu
da cozinha com uma garrafa de Fiji. Ela deu dois passos para trás, chocou
contra uma parede e derrubou um quadro. Além disso, ainda soltou um grito
embaraçoso que fez com que os dois rapazes virassem a cabeça e olhassem
para ela. Com os seus chinelos de coelho.
– Meu Deus, Anna, estás bem? – perguntou Vronsky, e deu um passo em
direção a ela.
– Eu? Sim! Estou ótima. Quero dizer, estou bem. Olá. – Ela deu meia-
volta e entreteve-se a endireitar o quadro.
– Steven, obrigado pela tua hospitalidade, mas fiquei muito mais tempo
do que pretendia – disse Vronsky, sem tirar os olhos de Anna quando ela se
virou e deu um passo em direção a ele. Pigarreou e continuou. – Passei por
cá para vos agradecer por terem garantido que a minha mãe chegava bem a
casa esta noite.
Ele tinha uma voz suave e maravilhosa que combinava na perfeição com
uns olhos lindos, que era exatamente o mesmo que ele estava a pensar
acerca dela. Anna queria responder, mas ficou sem palavras perante a
intensidade do seu olhar. Ele continuou:
– Também queria que soubesses que encontrei o outro cão do senhor. –
Levantou a mão, que tinha um grande penso do Snoopy como prova.
– Oh, não, estás magoado. Ele mordeu-te? – Anna aproximou-se dele.
– Não, não, estou bem. Foi só um arranhão. A tratadora de cães da minha
mãe é que insistiu no penso rápido. – Vronsky arrancou-o, enrolou-o e
meteu-o no bolso do sobretudo. – O cão está com ela agora. Ela acolhe cães
vadios, por isso é uma opção muito melhor do que um abrigo.
Anna ficou impressionada com a amabilidade de Vronsky, e precisou de
todas as suas forças para não o abraçar.
– Meu Deus, és o meu herói. É muito simpático da tua parte. Eu sei que
foi um disparate preocupar-me, mas...
– Nada disso – ele interrompeu-a. – Isso só mostra como és querida,
quero dizer, boa pessoa.
Olharam de novo fixamente um para o outro, e agora Anna sentiu-se
tonta. Obrigou-se a desviar o olhar, e pôs a mão na parede para se
equilibrar.
– Desculpa, hoje não comi quase nada, exceto aquela tarte.
– Ei, ainda sobrou? – perguntou o Steven, levantando os olhos do ecrã do
iPhone, alheio à situação que se desenrolava diante dele.
– A tarte é da Lolly e ela é que decide se podes comer um pedaço – disse
Anna, um pouco mais brusca do que devia. Afinal, ele era o culpado de toda
aquela situação enervante.
Os três ficaram num silêncio incómodo. Anna precisava que Vronsky se
fosse já embora, mas outra parte dela desejava desesperadamente convidá-
lo para ficar e comer tarte, embora não a pudesse oferecer quando tinha
acabado de dizer ao irmão que não podia comer. Oh, o que fazer?!
– Muito obrigada por teres passado por cá... Alexia. Ou devo chamar-te
Vronsky? Ou será Conde? – perguntou ela em tom de brincadeira.
– Podes chamar-me Alexia. Gosto quando o dizes – respondeu-lhe num
tom mais sério do que pretendia. Era como se não se conseguisse controlar
quando estava perto dela. E, verdade seja dita, ele gostava de ouvir o seu
nome quando ela o dizia. – Tenho mesmo de ir andando... – Vronsky
encaminhou-se por fim para a porta da entrada.
– Certo, até breve, meu! Talvez nos encontremos na festa da Jaylen no
sábado? – Steven abriu a porta e Vronsky recuou lentamente até ficar de pé
no corredor, acenando-lhe em despedida. Não conseguiu desviar os olhos de
Anna até que a porta se fechou e ela desapareceu.

XIV
Vronsky estava agitado quando saiu para a noite coberta de neve, depois
de deixar o prédio de Steven e Anna. Ignorou a oferta do porteiro para lhe
chamar um táxi e abotoou o casaco, enrolou o longo cachecol à volta do
pescoço algumas vezes e começou a andar. As ruas estavam praticamente
desertas por causa da tempestade, mas ele mal deu por isso. Só conseguia
pensar numa coisa, e apenas numa coisa.
Anna K.
Nunca, em toda a sua vida, Vronsky se tinha sentido tão atraído por um
membro do sexo oposto. E apesar de ter apenas dezasseis anos, já tinha
muita experiência com raparigas.
O pai de Alexia morreu há três anos, mas, mesmo quando era vivo, nunca
tiveram uma grande relação. A mãe de Alexia ficou com a custódia total
dele e do irmão mais velho, Kiril, depois do divórcio. Passava anos e anos
sem ver o pai, que se mudou para a Tailândia quando Alexia tinha apenas
sete anos. Corria o boato de que o pai não tinha outra opção senão deixar os
Estados Unidos por problemas legais, mas Alexia nunca se interessou o
suficiente para descobrir a verdadeira história. Era Kiril que estava sempre
a exigir que os deixassem ver o pai e a mãe acabou por ceder. Concordou
em deixar os rapazes irem para a Tailândia durante três semanas, nas férias
de verão, com uma ama muito bem paga, que informava a mãe
controladora.
Vronsky tinha poucas recordações das primeiras visitas. Lembrava-se de
ter descoberto os salões de jogos de Banguecoque e de ter gastado lá quase
todo o seu tempo e dinheiro. Mas, pouco tempo depois, o irmão apresentou-
lhe algo que lhe tirou os jogos da cabeça. Da primeira vez que assistiu às
proezas sexuais de Kiril, Vronsky fugiu aterrorizado. Da segunda vez, ficou
a observar até que o irmão reparou nele e lhe gritou para se ir embora. Da
terceira vez, recusou-se a sair até que o irmão se levantou da cama e o
retirou à força. E da última vez ficou a observar durante muito tempo, sem
que o irmão se apercebesse da sua presença. Alexia foi ao armário de Kiril
remexer nos bolsos do irmão à procura de dinheiro para comprar bilhetes
para o último filme de Velocidade Furiosa. Já tinha gastado a sua semanada
e não encontrava o pai em lado nenhum. Saiu-lhe a sorte grande quando
encontrou dez dólares em dinheiro norte-americano e estava prestes a sair
quando ouviu os passos do irmão.
Em pânico, Alexia agachou-se no armário e fechou parcialmente a porta.
Kiril entrou no quarto com uma rapariga atrás dele. Alexia viu o irmão
pegar na rapariga como se ela não pesasse praticamente nada, pousá-la na
cama e começar logo a despi-la. O irmão também se começou a despir, mas
a rapariga pôs-lhe a mão no peito para o impedir. Assumiu o controlo e
desabotoou lentamente a camisa Oxford do irmão, um botão de cada vez.
Por fim, a rapariga viu Alexia a espreitar do armário, mas em vez de
contar ao irmão, sorriu e pôs um dedo nos lábios para que ele soubesse que
o seu segredo estava seguro com ela. Alexia também levou o seu dedo aos
lábios para lhe mostrar que compreendia. Foi nesse momento que percebeu
que a rapariga nua diante dele não era uma das jovens criadas da casa, mas
sim uma das namoradas do pai. Aquela infidelidade incestuosa deixou o
jovem estupefacto.
Alexia ficou, naturalmente, hipnotizado com tudo o que viu e passou a
hora seguinte a ver o irmão e a mulher mais velha a praticarem todo o tipo
de proezas sexuais. Foi esta experiência que fez com que Alexia deixasse de
querer jogar videojogos, pois percebeu que as raparigas eram muito mais
interessantes. Também ele queria sentir o que viu na cara do irmão naquele
dia: êxtase total e arrebatamento.
Perdeu a virgindade aos treze, mas não na Tailândia. Estava em Nova
Iorque e quando chegou a casa encontrou o irmão, que tinha regressado da
faculdade, a dar uma festa porque a mãe deles estava em Canyon Ranch.
Desde o divórcio que passava sempre dois meses num spa. Kiril disse-lhe
que a mãe era como uma cobra, que precisava de mudar a velha pele de
casada por uma nova com escamas bonitas para apanhar o seu próximo
marido. Kiril e a mãe discutiam com frequência, porque eram ambos
teimosos e queriam provar que tinham razão. Este tipo de agressividade
nunca fez parte da maneira de ser de Alexia, principalmente porque a mãe
sempre o mimou, o que ele preferia a que gritasse com ele.
O irmão não o deixava conviver com os amigos, por isso Alexia foi
deitar-se. Quando chegou ao quarto, encontrou uma pilha de casacos a tapar
a cama. Furioso, começou a atirar os casacos dos convidados do irmão para
o chão, mas depressa se apercebeu de que havia alguém a dormir debaixo
da pilha. Era uma ruiva linda com sardas no nariz e na cara, que
provavelmente estava demasiado bêbeda para perceber qual dos casacos de
pelo era o dela e por isso desistiu. Alexia pegou num cobertor e numa
almofada e adormeceu no chão. Antes do amanhecer, acordou e a rapariga
estava em cima dele, a beijar-lhe o pescoço e a dizer-lhe que ele era a coisa
mais bonita que já tinha visto, enquanto tirava a tanga e se deixava cair no
tapete, provocadora.
A partir dessa noite, o seu destino ficou traçado. Decidiu que era o tipo
de rapaz que nunca assentaria. Adorava a forma como as raparigas bonitas o
faziam sentir, e adorava também fazê-las sentirem-se incríveis. Adorava os
jogos de sedução, as danças, os beijos, as carícias, e até ficava feliz por
dormir depois do sexo, o que ele sabia que a maioria dos outros homens
detestava. Para ele, as mulheres eram muito melhores do que os homens.
Cheiravam melhor, vestiam-se melhor e eram tão suaves ao toque.
Foi por isso que ficou tão miserável quando o enviaram para um colégio
interno só de rapazes, em Maryland, para fazer o secundário – o pai e o
irmão tinham-se formado nessa escola de renome, mas ele sentia falta da
companhia das mulheres. Tinha saudades das raparigas ricas e elegantes,
que gostavam de fazer compras e coscuvilhar. Daquelas que adoravam
festas ao fim do dia e espetáculos da Broadway. Das que tinham cães
minúsculos que vestiam com coleiras de cristais brilhantes. Das que
passavam horas e horas – e gastavam centenas de dólares – em salões de
beleza a discutir a cor do cabelo e das unhas.
No seu primeiro ano em Georgetown mal conseguiu aguentar até às
férias de Natal. Quando chegou a casa para passar as férias e viu a mãe,
desatou a chorar nos braços dela e implorou-lhe que não o mandasse de
volta para aquele lugar horrível e deprimente, e ela não mandou. Em vez
disso, deixou que ele fosse para o estrangeiro e se tornasse num faz-tudo
numa estância de esqui durante o resto do ano. Por causa disso e do seu
aniversário tardio, ele estava agora a repetir o décimo ano na Collegiate.
Sabia que muitos o chamavam de menino da mamã, mas não se importava.
Estar de volta a Manhattan e a viver com uma ama a tempo inteiro valia a
pena.
Era por isso que Vronsky estava tão confuso em relação a Anna. Sim, ela
era linda e vestia-se muitíssimo bem, mas havia centenas de raparigas assim
na cidade – ele costumava alternar constantemente entre, pelo menos, três
iguais sempre que queria. Mas havia algo de especial em Anna. Senão
porque é que ele estava tão enfeitiçado por ela se a tinha acabado de
conhecer?
Depois de ter deixado o cão do sem-abrigo no apartamento da treinadora
de cães, foi a casa de Steven, na esperança de poder ver Anna mais algum
tempo. Foi Steven quem lhe abriu a porta e disse que Anna estava ocupada
a tentar salvar-lhe o couro da ira da sua namorada furiosa. Como não tinha
outra escolha, Vronsky fez conversa de circunstância com Steven e esperou.
Devia ter adivinhado que ela ia aparecer mesmo quando ele estava prestes a
ir-se embora, mas por Anna valia a pena esperar. Por tudo quanto era mais
sagrado, ele podia esperar dez mil horas só para passar dez segundos com
ela.
De repente lembrou-se que Beatrice, a sua prima preferida, era colega de
Anna em Greenwich. Parou a meio caminho, sem se importar que o vento
estivesse a aumentar e a neve gelada lhe fustigasse a cara, e enviou uma
mensagem a Bea, que adorava sair à noite e ficava muitas vezes a dormir no
apartamento do SoHo do seu meio-irmão mais velho. Apareceram as
reticências no ecrã, seguido de uma mensagem a dizer-lhe para ir ter com
ela ao seu sítio preferido no Village. Estava com duas modelos boazonas
que eram mesmo o género dele. Entusiasmado, não perdeu tempo a chamar
um táxi. A prima podia, sem dúvida, dar-lhe o que ele desejava:
informações privilegiadas sobre a criatura encantadora que era Anna K.

XV
Vronsky entrou em Beatrice Inn e encontrou a prima sentada no balcão,
com as suas botas Jimmy Choo de cano alto a balançar e a cabeça atirada
para trás em abandono. Atrás dela, um barman hipster extremamente alto
despejava-lhe a tequila mais cara na boca, diretamente da garrafa. A sua
prima Bea sempre foi uma das raparigas mais populares de Greenwich e, no
final do nono ano, já tinha garantido o seu estatuto de abelha-rainha e
rapidamente se tinha fixado em Manhattan.
Vronsky sabia que a chave para o seu sucesso não era fazer parte de uma
das famílias mais antigas de Greenwich, ser bonita de uma forma natural,
ou as resmas de dinheiro da família – metade dos miúdos de Greenwich
tinham tudo isso. Mas Beatrice tinha informação. Nenhum adolescente
consegue guardar um segredo e Bea estava feliz por ser a pessoa a quem os
outros se confessavam. Beatrice nunca julgava ninguém, e como poderia
fazê-lo? Porque Bea já tinha visto tudo, ouvido mais e, provavelmente, feito
ainda pior. A citação no seu anuário de fim de curso seria certamente: «Se
não tens nada de bom para dizer sobre alguém... então vem ter comigo à
hora de almoço.»
Tal como prometido, ela estava a conversar com duas modelos
adolescentes, Daler e Rowney. Não tinham idade suficiente para conduzir,
mas tinham ambas um metro e oitenta de altura e pesavam, em conjunto, 90
quilos. Ambas desfilavam nos principais desfiles de moda por todo o
mundo e estavam na cidade para a Fashion Week. Se Vronsky tivesse tido o
prazer de as conhecer dois dias antes, as coisas teriam corrido de maneira
muito diferente. Mas, esta noite, mal olhou para elas.
– Bea, preciso de falar contigo. – Vronsky bebeu obedientemente o shot
de uísque que o barman lhe deu. – Lá fora – disse ele em voz baixa. –
Sozinhos.
Beatrice olhou para o primo através das pestanas falsas e acenou com a
cabeça. Apesar de Bea estar claramente bêbeda, animou-se logo com a
promessa de uma boa história.
Minutos depois, estavam os dois na rua, encostados à parede, a soprar o
fumo do cigarro para a neve a cair. Bea ouviu Vronsky contar-lhe sobre a
primeira vez que viu Anna na Grand Central, da infidelidade de Steven, e
que por causa disso a irmã veio à cidade, e por fim de como Vronsky se
sentia.
Beatrice abanou o rabo na rua, puxou da sua vape e deu uma longa passa.
Virou-se para o seu belo primo mais novo, e estendeu a mão para tirar um
pouco de neve dos seus caracóis louros, de forma maternal.
– Que estranho, não era nada disto que eu estava à espera – disse ela com
um sorriso malicioso. – Não acredito que só esta noite é que conheceste a
Anna K.
– É tudo o que tens para dizer? – perguntou ele impaciente. – O que é que
preciso de saber?
– Depende. Só a queres foder? Ou é uma doença mais séria? – Beatrice
era muito direta.
Normalmente, ele ter-se-ia rido da crueza da prima, mas deu por si
incapaz de sorrir.
– Receio que a doença possa ser grave.
Ela puxou as lapelas do casaco de pelo para cima e estremeceu.
– Vamos voltar para dentro, embebedar-nos e descobrir.
Vronsky respirou fundo e viu o vapor da sua respiração a voar na noite
fria. Lá dentro, Beatrice dispensou as duas modelos para o resto da noite.
Ficaram ambas amuadas, a fazer beicinho, até que Bea lhes deu um
saquinho com as lembranças da festa. Enquanto os empregados de mesa
limpavam à volta deles, Bea e Vronsky sentaram-se numa cabine forrada a
cabedal a conversar.
Bea disse ao primo que ela e Anna eram amigas por frequentarem a
mesma escola e as mesmas atividades sociais há anos, mas não eram
íntimas.
– Que desperdício – murmurou a prima. – Ela é provavelmente a rapariga
mais bonita de Greenwich, mas nunca tirou grande proveito disso. – Fez
uma pausa e olhou para Vronsky.
– Excluindo a minha companhia atual – acrescentou ele, a elogiar Bea
para que ela continuasse.
Beatrice riu-se alegremente ao ouvir o elogio. Vronsky era um pedaço de
mau caminho e, mais do que uma vez, quando estava num torpor bêbeda e
excitada, pensou em experimentar, mas sempre se conteve porque, por mais
que vivesse para chocar os outros, até ela sabia que seria difícil de recuperar
de ser apanhada envolvida com um membro da família. Ouviu de várias
fontes que ele era bastante hábil com as mulheres, e foi por isso que
começou, com orgulho, o rumor de que a sua alcunha, «o Conde», se referia
ao número de raparigas com quem tinha dormido.
– O problema é o namorado dela, tão espetacular e ridiculamente
perfeito. – Ela explicou-lhe que antes de Alexander ir para a universidade,
certificou-se de que Anna se continuava a dar com os amigos dele, que
faziam parte de um grupo diferente do de Bea. Ela fez com que Anna
parecesse a adorável mascote de um grupo de idosos reprimidos da
Greenwich Academy. – Aqueles religiosos fervorosos e arrogantes não são
tão maus como os psicopatas das mega-igrejas do Midwest, mas são quase
tão quadrados como eles. Eleanor, a meia-irmã do namorado, dá-se com um
bando de ratas da sacristia, as chamadas «boas raparigas», com cintos de
castidade e fitas na cabeça a condizer. A minha teoria é que a Eleanor está
secretamente apaixonada pelo OG e gostava de ter a coragem para se armar
em Cersei Lannister com ele.
Vronsky franziu o sobrolho, mas manteve-se em silêncio. Ninguém
compreendia melhor a intrincada política da sociedade adolescente de
Greenwich e Manhattan do que a prima, mas, como qualquer adolescente,
por vezes, ela era dada a exagerar. Beatrice alimentava-se do choque dos
outros.
– Sabes, a Anna tem a mania dos cavalos e as raparigas da equitação são
sempre tão sérias. A culpa é das botas... embora eu não me importasse de
usar o chicote.
Vronsky ouviu Beatrice explicar a sua teoria rebuscada de como as
raparigas precisavam de gostar de saltos altos para se sentirem confortáveis
com a sua sexualidade, enquanto as jovens que usavam botas de montar
todos os dias acabavam por ficar sexualmente reprimidas e atrofiadas.
A teoria da prima não fazia sentido nenhum, mas ao fim de mais algumas
bebidas, ele começou lentamente a perceber onde é que ela queria chegar.
Só havia três círculos sociais com poder em Greenwich: as raparigas
divertidas da alta-sociedade que gostavam de sair à noite, lideradas pela
Beatrice; o grupo a que ela chamava de CCU, por serem profundamente
católicas, obcecadas com a caridade e com a admissão na universidade que
era o grupo do namorado de Anna.
– E por último... – Bea soluçou, franzindo o sobrolho. – Não me lembro
do terceiro, mas são três.
– O terceiro grupo é constituído pelos miúdos ricos que estudam em
colégios internos e que regressam a casa para passar as férias e o verão –
acrescentou Vronsky. Ele já sabia dos três círculos, tinha ouvido várias
vezes Bea a falar com autoridade sobre isso antes. O seu tema preferido
quando estava pedrada era a política social, e Vronsky tinha passado muitas
noites assim com a sua prima festeira.
– Sim, sim, muito bem – disse Bea, achando cada vez mais graça à
impaciência de Vronsky à medida que os minutos passavam. – A Anna é um
caso fascinante porque sempre flutuou livremente entre os três círculos, sem
nunca se aliar a nenhum grupo. Sempre a achei uma ave misteriosa. É muito
querida, mas é uma espécie de solitária que passa o tempo todo com cavalos
e cães gigantes. Na escola, costuma ler durante o almoço. Livros! Nem
sequer usa o telemóvel. Bea soluçou de novo.
Vronsky empurrou um copo de água gelada na direção de Beatrice, numa
insinuação nada subtil.
– Seu merdoso malcheiroso! – disse ela. – Se eu não te adorasse,
mandava-te à merda. De todas as raparigas por quem te podias apaixonar,
tinha de ser a Anna? O namorado dela é um obstáculo de peso. Apesar de
estar longe, continua a ter muita influência e toda a cidade acha que ele é
extraordinário. O meu pai uma vez chamou-lhe «o orgulho de Greenwich».
Isto não é um fetiche asiático, pois não, querido primo?
Normalmente, Vronsky ter-se-ia rido do comentário ridículo da prima,
mas nessa noite não estava com disposição para o sentido de humor
grosseiro dela. Ela viu os lábios dele apertarem-se e colocou-lhe a mão no
braço.
– Desculpa, foi de mau gosto. Mas só o disse porque tens um padrão.
A tua primeira experiência sexual foi ver o Kiril com aquela rapariga
tailandesa. E já tiveste mais do que a tua quota-parte de boazonas do
Extremo Oriente…
– Bolas, Bea, não estou aqui para analisar psicologicamente a minha vida
sexual! Estou aqui porque eu, eu… – gaguejou, e apercebeu-se de que não
tinha comido quase nada e que estava completamente bêbedo. Bebeu o
copo de água de um trago e limpou a boca. – Estou aqui porque acho que
me apaixonei por ela e não sei o que fazer – disse, baixando a cabeça, não
de vergonha, mas de alívio. A honestidade era difícil, mas também era
entusiasmante dizer o que tinha andado a pensar durante toda a viagem de
táxi até à baixa. Vronsky sabia, sem sombra de dúvida, que nunca tinha
estado apaixonado até ao momento em que viu Anna K. sair do comboio
algumas horas antes.
Beatrice estendeu a mão em cima da mesa e agarrou nas do primo.
– Vai correr tudo bem, V. Eu protejo-te. Vou ajudar-te, prometo. – Ela
bebeu o resto do uísque e olhou Vronsky diretamente nos olhos. – Agora,
tens um pouco de branca para mim? Preciso de uma cena que me estimule
para podermos continuar a beber.

XVI
Anna acordou na manhã seguinte momentaneamente confusa, sem saber
onde estava. Sentou-se na cama, pegou no telemóvel que estava em cima da
mesinha de cabeceira e olhou para as horas. Sendo dona de cães, nunca foi
opção dormir depois das dez. Não se lembrava da última vez que tinha
dormido até tão tarde.
Entrou na cozinha e encontrou Marta, a empregada, a fazer pãezinhos de
canela. Cumprimentaram-se, Anna preparou uma dose dupla de Nespresso e
foi ver se o irmão tinha acordado. A porta de Steven estava fechada e ela
devia ter batido, mas isso nem lhe passou pela cabeça. Entrou no quarto e
parou logo assim que se apercebeu que o irmão não estava sozinho na
cama. Lolly, meio nua, estava a abraçar Steven, o cabelo loiro a cair-lhe
pelas costas, os dois a beijarem-se e a apalparem-se como se o mundo
estivesse a acabar.
Ela desviou o olhar e saiu do quarto, chocada, e fechou rapidamente a
porta. Ficou no corredor, estupefacta, a tentar afastar a imagem de Lolly a
montar o seu irmão. Não tinha a certeza de como se sentia em relação à
cena que tinha acabado de testemunhar, mas não teve tempo de decidir,
porque Marta estava a acenar-lhe no corredor. O porteiro tinha acabado de
ligar. A irmã mais nova de Lolly, Kimmie, estava a subir. Anna dirigiu-se
para a porta sem fôlego, agradecida pela distração.
Kimmie saiu do elevador, olhos fixos no telemóvel, e foi de encontro a
Anna, que estava à espera dela no corredor.
– Meu Deus, peço imensa desculpa! – exclamou, irritada consigo mesma
por ser como uma dessas pessoas que desprezava, as que vagueavam pelos
passeios da cidade, sempre a olhar para os telemóveis como iZombies.
– Estavas à minha espera ou à espera do elevador? – perguntou Kimmie,
verdadeiramente confusa.
Anna sorriu calorosamente para a adorável rapariga loira do 10.º ano.
– Deves ser a Kimmie. Eu sou a Anna, a irmã do Steven. – Anna deu um
abraço rápido a Kimmie e conduziu-a para dentro do apartamento.
Claro que Kimmie sabia quem Anna era, embora só se tivessem
encontrado de passagem uma ou duas vezes.
– É um prazer conhecer-te finalmente – disse Kimmie, enquanto tentava
descalçar as botas de neve Moncler, e se sentia muito constrangida com as
camisolas de SoulCycle que vestiu por preguiça. Agora Kimmie desejava ter
escolhido a roupa com mais cuidado, pois sabia que havia a possibilidade
de se cruzar com a irmã de Steven; Dustin tinha-lhe dito que ela chegava à
cidade na noite anterior. Kimmie já sabia que ela era incrivelmente bonita,
mas na presença de Anna sentia-se totalmente desinteressante.
Depressa as duas raparigas estavam sentadas na sala de jantar; Anna
bebia um segundo Nespresso e Kimmie comia um croissant de chocolate,
enquanto esperava que a empregada lhe trouxesse um chocolate quente.
Assim que Kimmie se sentou, Anna inclinou-se para a frente e contou-lhe,
num tom abafado, o que tinha visto apenas alguns segundos antes dela
chegar. Como não sabia quão próximas eram as irmãs, escolheu as palavras
com cuidado.
– Estavam tão ocupados a beijar-se que não me viram. – E depois
acrescentou com uma pequena gargalhada: – Felizmente!
– Então fizeram as pazes? – perguntou Kimmie.
– Parece que sim – respondeu Anna.
– Por tua causa. – Kimmie pretendia que as suas palavras soassem como
um elogio, mas ao ouvir-se ficou preocupada por parecer que estava a fazer
uma acusação.
– Nem por isso – contrapôs Anna. – Ela ama-o e ama-o de verdade. Foi o
que ela me disse ontem à noite. Eu apenas expliquei à Lolly que só ela tem
o poder de decidir o destino de Steven.
– Como assim? – perguntou Kimmie, surpreendida pelo grau de
intimidade que se tinha criado logo entre ela e Anna. – Quero dizer, achas
que a Lolly deve ficar com ele? Eu sei que é teu irmão, mas... – Ela hesitou
ao lembrar-se de tudo o que a irmã lhe tinha enviado por SMS, e
estremeceu com repulsa.
– Acho o comportamento do Steven repugnante e repreensível. Não
quero ser arrogante ao ponto de dizer que «os rapazes serão sempre
rapazes», mas disse à tua irmã que a única forma de eles ficarem juntos é se
ela o perdoar verdadeiramente. Caso contrário, nunca irá resultar.
– Não sei se era capaz de o fazer – disse Kimmie. – Na verdade, tenho a
certeza que não ia conseguir. Parece-me impossível perdoar o meu
namorado por me ter traído daquela maneira. Não que eu alguma vez tenha
tido um.
– Então nunca tiveste um namorado? – perguntou Anna gentilmente.
– Isso importa? – retorquiu Kimmie levantando o tom de voz, defensiva.
– Claro que não. Só estava curiosa porque tenho namorado há tanto
tempo que é difícil lembrar-me das minhas opiniões quando não o tinha.
Embora tenha quase a certeza de que teria dito o mesmo que tu.
– Então ter um namorado faz-te mudar de opinião? – perguntou Kimmie,
agora intrigada.
– Não propriamente. Sei que parece que estou a desculpar a estupidez
irrefletida deles, mas não estou. Só estou a dizer que os rapazes e as
raparigas não podiam ser mais diferentes nos seus desejos e
comportamentos. E quando, a tudo isto, se juntam as hormonas aos saltos, é
de espantar que não enlouqueçamos todos. – Quando Anna se ouviu,
perguntou-se se estaria a expressar os seus pensamentos para benefício de
Kimmie ou de si própria. Desde o momento em que abriu os olhos naquela
manhã, Anna não parou de pensar em Vronsky. O que não a teria
preocupado, se ele não tivesse sido a última coisa em que pensou antes de
adormecer.
– Então a conclusão é que os rapazes são estúpidos? – perguntou
Kimmie, meio a brincar.
– Sim! – disse Anna, a rir. – O meu trabalho aqui está feito!
Kimmie olhou para cima e viu Marta a chegar com um tabuleiro de prata.
Pousou um pires e uma chávena de chá cheia de chocolate quente
fumegante à frente de Kimmie, junto com um prato com frutas cristalizadas
em forma de coração e vários marshmallows. Colocou metade de uma
toranja cor-de-rosa à frente de Anna, bem com uma colher de toranja, do
género daquelas que Kimmie tinha visto pela primeira vez no hotel
Mandarin Oriental, quando viajou com a mãe para Londres. Lembrava-se
de ter ficado tão fascinada com a bela colher minúscula de bordos
recortados que a meteu na mala no fim da refeição.
– Se estivesses na situação da Lolly, eras capaz de o perdoar? –
perguntou Kimmie. – Sabes, se ele não fosse teu irmão e isso tudo.
– Ou seja, queres saber se eu era capaz de perdoar o meu namorado se ele
me traísse? – perguntou Anna. Ela tinha feito a mesma pergunta a si mesma
ontem à noite, quando estava a aconselhar Lolly.
– Desculpa, fui inconveniente? Não te queria deixar desconfortável.
– Não, não foste nada inconveniente – disse Anna, pensativa. – Tenho de
ser honesta e dizer que não sei. Felizmente, nunca estive numa situação
dessas. Suponho que depende do contexto.
– Mas há alguma situação em que não haja problema em trair? –
perguntou Kimmie.
– Provavelmente não. Mas eu não sou especialista na matéria. Só tive um
namorado. Mas as relações são complicadas, o Steven é meu irmão, e eu
vou apoiar o que a Lolly decidir fazer.
– Eu também – disse Kimmie. Ela desejava desesperadamente que Anna
gostasse dela e não se importava de mudar de tom. – Eu sei que a minha
irmã gosta do Steven. Está sempre a dizê-lo. Se calhar... – fez uma pausa. –
Talvez isto melhore a relação deles? A torne mais forte, quero dizer?
Toda esta conversa sobre amor fez com que Kimmie pensasse em Dustin,
mas afastou-o rapidamente, assumindo que ele só lhe tinha aparecido em
pensamentos por causa do chocolate quente. De seguida pensou em
Vronsky. Desde que o conhecera no Ano Novo, tinha-o visto pelo menos
uma vez por semana; primeiro tinham ido tomar um chá no Plaza, depois
foram dar um passeio no parque e, encontraram-se mais duas vezes, à noite,
para um café.
Anna reparou no sorriso de Kimmie e perguntou-lhe em quem é que
estava a pensar.
– Como é que sabes que estou a pensar numa pessoa? – perguntou
Kimmie, corando de vergonha, mas feliz por ter a oportunidade de falar
sobre o que realmente queria. Ela presumiu que Anna conhecia Vronsky e
estava ansiosa por saber a opinião dela. Kimmie sabia que Anna era a
namorada do OG, o que a tornava basicamente um membro da realeza, a
versão americana de William e Kate. Talvez eu e o Vronsky possamos ser o
Harry e a Meghan.
– Foi só um pressentimento – disse Anna, feliz por ter Kimmie ali para
coscuvilhar. Anna ainda estava a pensar em Vronsky e não estava feliz com
isso. Não era solteira como Kimmie, por isso sabia que era um grande
problema começar a sonhar acordada com rapazes que não eram o seu
namorado.
Kimmie bebeu um gole de chocolate quente.
– Conheci-o na festa da passagem de ano do teu irmão e, desde então, só
o vi algumas vezes.
– Oh, estás a falar do Dustin? Do velho amigo do Steven? – perguntou
Anna inocentemente. – A tua irmã disse qualquer coisa sobre ele ontem à
noite. Ouvi dizer que o MIT praticamente lhe implorou para ir para lá.
Kimmie franziu o sobrolho ao ouvir o nome de Dustin e abanou a cabeça.
– Não, não é ele. Quero dizer, o Dustin é querido e pode ter um fraquinho
por mim. Mas gosto de outra pessoa, embora não tenha a certeza se ele
também gosta de mim.
Anna achou a súbita timidez de Kimmie adorável.
– Claro que ele também gosta de ti! Qualquer homem gostaria. Conta-me
tudo! Quem é esse rapaz misterioso?
– Chama-se Alex. Alex Vronsky, mas talvez já tenhas ouvido falar dele
pela alcunha parva de Conde Vronsky.
Anna arregalou os olhos, mas controlou-se rapidamente.
– Que estranho, conheci-o ontem à noite. Vim de comboio com a mãe
dele e ele foi buscá-la à Grand Central.
Kimmie ficou eufórica. Vronsky não tinha ido ter com ela ao rinque na
noite anterior porque estava com a mãe, e não por estar a perder o interesse,
como ela receava. Ficou tão feliz com a notícia que nem reparou que a
disposição de Anna mudou ligeiramente.
– Como é a mãe dele? O Alex não me contou muito, mas dá para ver que
são chegados. – Kimmie estava entusiasmada por ter finalmente outra
rapariga com quem podia falar sobre Vronsky. Lolly era sempre tão crítica
quando se tratava de rapazes e passava a vida a avisá-la de que Vronsky era
conhecido pelo seu charme e por andar com todas.
– Ela é incrível, tão bonita e elegante. Falou sobretudo dos dois filhos.
Alexia é claramente o seu favorito. – Anna esperava que Kimmie não se
tivesse apercebido o seu deslize ao chamar Alexia pelo nome carinhoso que
a mãe usava para ele, e continuou: – Parece estar muito envolvida na vida
dele.
Kimmie estava interessada na mãe de Vronsky, claro, mas o que ela
queria mesmo era saber a opinião de Anna sobre Alex.
– Não achas que ele é lindo de morrer? Estilo uma estrela de cinema
deslumbrante?
– Sim, ele é bonito. – Anna acenou com a cabeça, pois sabia que era
estanho negar uma coisa tão óbvia. – Vocês iam fazer um casal lindo. –
Anna sabia que Kimmie ia adorar se lhe contasse do ato de heroísmo de
Vronsky com o cão do sem-abrigo, mas não lhe contou de propósito.
Vronsky a sair a correr para encontrar o segundo cão estava de alguma
forma ligado a ela, embora ainda não tivesse passado muito tempo a pensar
porquê.
O telemóvel de Kimmie tocou e ela não pôde deixar de olhar para o ecrã.
Era uma notificação a lembrá-la de que tinha de ir buscar o seu vestido
novo à Bergdorf, que estava a ser feito à medida.
– Anna, ainda vais cá estar amanhã à noite? É a festa de anos da Jaylen S.
Faz dezasseis e o pai dela alugou o clube 1 OAK inteiro. Devias vir!
Adorava que estivesse lá mais alguém de quem gosto.
Anna franziu ligeiramente o sobrolho.
– Não gosto muito de discotecas, mas talvez vá. O Steven falou disso
ontem à noite.
– Estou a ver-te de lavanda. Tens um vestido cor de lavanda? – perguntou
Kimmie.
Anna riu-se em resposta.
– Quem é que não tem? Mas não o tenho aqui. De certeza que consigo
arranjar qualquer coisa para vestir. Se for.
Kimmie levantou-se rapidamente.
– Bem, é óbvio que a Lolly já não precisa de um ombro para chorar, por
isso vou-me embora. Tenho de ir buscar o meu vestido à Bergdorf. Queres
vir comigo?
Normalmente, Anna teria aproveitado a oportunidade para ir à sua loja
favorita, mas sabia que isso só levaria a mais conversas sobre rapazes, e não
lhe apetecia.
– Ohhhhhh, adorava, mas não posso.
Foi nesse momento que a irmã de Kimmie entrou na sala de jantar, a
cantarolar. Vinha com um robe felpudo de homem e tinha o cabelo molhado
do duche.
– Kimmie, o que estás a fazer aqui? – perguntou Lolly.
– Vim ver como estavas, mas ouvi dizer que estás ótima – respondeu
Kimmie, e acrescentou rapidamente: – Quero dizer, depois da tua conversa
com a Anna ontem à noite.
– É isso mesmo – disse Anna casualmente.
Lolly estava com a cabeça noutro planeta, e mal as ouviu. Só sabia que
estava a morrer de fome e que tinha planeado assaltar o frigorífico para
comer alguma coisa com Steven na cama.
– Anna, ainda há tarte? – perguntou Lolly com uma voz sonhadora. –
O Steven quer uma fatia.
Anna assentiu com um sorriso. Aquilo confirmou as suas suspeitas. Lolly
decidiu perdoar o irmão pelas suas transgressões, e pelo meio, também
desistiu da sua carta da virgindade. Anna pensou que aquilo provavelmente
era uma coisa boa, porque agora a data do «sexaniversário» deles era
legítima.
– Lolly, estás pedrada? – perguntou Kimmie à irmã. – Pareces
completamente pedrada.
Lolly sorriu.
– De certa forma... De certa forma…

XVII
Jaylen S. era a filha mais nova da lenda da NBA, Maceo S., que se
reformou e era agora um popular comentador desportivo da ESPN. Corria o
boato de que a festa do seu 16.0 aniversário ia ser uma das maiores do ano,
apesar de ser apenas em fevereiro. O pai dela tinha alugado o 1 OAK no
Meatpacking District. Os adultos ficariam na área VIP enquanto todos os
adolescentes da alta sociedade passariam a noite toda a dançar.
O padrinho de Jaylen S. era um dos antigos colegas de equipa do pai e
agora era um dos proprietários dos Miami Heat. Pelo que se dizia, ele ia
aparecer com os filhos num avião privado cheio de amigos que gostavam de
sair até às tantas de South Beach.
A diferença entre os novos ricos e os ricos tradicionais? Os novos ricos
são muito mais divertidos. Os tradicionais vêm com muita bagagem –
regras de comportamento em sociedade antiquadas e rígidas que
desaprovavam a ostentação do dinheiro herdado. Os novos ricos não tinham
essas restrições. Na verdade, esperava-se que se divertissem e se exibissem
o máximo possível.
O tema da festa da Jaylen era o hip-hop dos anos 90. E o convite era o
mais fixe que Kimmie alguma vez recebera... depois de lhe explicarem.
Entregaram-lhe uma caixinha com um pequeno objeto quadrado de plástico
preto com um ecrã minúsculo e duas pilhas AAA. Quando colocou as
pilhas, o ecrã acendeu-se a verde, mas ficou em branco. Pensou que estava
avariado, por isso mostrou-o a Devon M., o estudante de Direito que
tomava conta dela e de Lolly sempre que a mãe saía até tarde ou viajava.
– Onde é que arranjaste isto? – perguntou Devon, e virou o objeto nas
mãos.
– Acho que é suposto ser um convite para uma festa – disse Kimmie. –
O que é?
Devon explicou-lhe que era um pager, uma forma de comunicação
popular nos anos 90, antes de toda a gente ter telemóveis.
– Nunca ouviste falar de um bip?
Kimmie abanou a cabeça.
– O que é que ele faz?
– As pessoas costumavam usá-lo para enviar números de telefone.
Ligava-se de volta para o número quando se chegava a uma cabina
telefónica. Os médicos usavam-nos sobretudo para poderem ser contactados
fora do hospital. Os traficantes de droga também os usavam, mas os miúdos
fixes acabaram por adotar o visual. Alguns pagers podiam receber
mensagens de texto.
À hora certa, o pager vibrou e emitiu uma série de bips agudos,
assustando-os. Tal como Devon lhe tinha explicado, apareceu uma
mensagem. Os pormenores para a festa de hip-hop dos anos 90 da Jaylen
chegam em bre…ve.
Devon não se calou com o convite nos dez minutos seguintes. Até lhe
tirou uma fotografia para mostrá-lo. Calculou o custo de um convite tão
elaborado e disse que tinha de ser pelo menos cinco mil dólares, se não
mais. Kimmie ficou surpreendida com o interesse de Devon. Ele raramente
entrava em pormenores pessoais com ela, sobretudo porque a mãe lhe tinha
ordenado especificamente que não se tornasse amigo da filha.
– A Kimmie precisa de um explicador de francês e de um modelo
positivo nas noites em que eu saio até tarde, não de um melhor amigo,
percebeste?
Kimmie não conseguiu evitar gabar-se um pouco, e contou a Devon
sobre o pai famoso de Jaylen e os seus amigos muito famosos. Mas, para
ser honesta, não fazia a mínima ideia do que seria uma festa de hip-hop dos
anos 90. Nunca tinha ouvido muito rap; os gostos musicais de Kimmie
eram mais na linha de Lorde, Billie Eilish e Lana Del Rey. Mais tarde
naquela noite, Lolly tentou explicar-lhe o significado do hip-hop dos anos
90, o que fez Kimmie revirar os olhos. Ela sabia que a irmã idolatrava
Taylor Swift, e só conhecia o «rap da velha guarda» porque Steven adorava.
Uma vez, Kimmie apanhou Lolly a fazer uma cábula de «termos de hip-
hop» e disse-lhe que ela teria muito melhores notas se se esforçasse metade
do tempo nos trabalhos de casa. Ao que Lolly respondeu simplesmente:
– Minha, por favor, ter o namorado certo é muito mais importante do que
a escola.
Mais tarde Lolly disse-lhe que muitas raparigas estavam a planear vestir-
se à Fly Girls[13], e Kimmie voltou a precisar que a irmã lhe explicasse o
que significava o conceito. Claro que Lolly ficou horrorizada com a ideia de
as raparigas aparecerem na festa com calças de ganga e camisas
largueironas e disse a Kimmie que ia usar um vestido e que ela devia fazer
o mesmo.
– Certifica-te de que é bastante curto. Esta pode ser a única oportunidade
de te vestires como uma grande cabra até ao Halloween.
Kimmie lembrou-se daquele momento enquanto se olhava ao espelho na
Bergdorf. Perguntava-se se Vronsky aprovaria o seu novo vestido
Zimmermann. Olhou para o seu reflexo, irritada por não o ter pedido um
centímetro mais curto quando teve oportunidade, há três dias. A vendedora
reconheceu o olhar de dúvida de Kimmie e rapidamente lhe sugeriu que
talvez o vestido precisasse de uns sapatos de salto alto novos e sensuais
para o acompanhar. Kimmie sentiu-se aliviada. Era mesmo disso que ela
precisava.
No segundo andar, onde estavam os sapatos, Kimmie experimentou
dezoito pares de salto alto e acabou por escolher uns botins Azzedine Alaïa
em pele branca com um salto de dez centímetros. Custaram mais de mil e
duzentos dólares e ela pagou-os com o cartão de crédito da loja da mãe,
pois sabia que ainda tinha algumas semanas antes de a mãe os ver no
extrato da conta. O raciocínio era simples: a mãe de certeza que ia ficar tão
feliz por a filha ter arranjado um novo namorado, Vronsky, que ela só tinha
de lhe explicar que estes sapatos a tinham ajudado a conquistá-lo. Ainda ia
meter-se em sarilhos, mas Lolly já lhe tinha aberto o caminho para esse tipo
de comportamento, pois era obcecada por moda desde o 7.º ano, e fazia
birras se não tivesse os últimos modelos de estilistas para vestir. Kimmie
nunca se preocupou muito com o que vestia no dia a dia, embora os seus
vestidos de competição fossem sempre Vera Wang.
Desde que Kimmie começou a estudar em Spence, que se preocupava
cada vez mais com o que usava na escola. Principalmente porque Lolly a
pressionava. Aparentemente, se Kimmie se vestisse mal, isso refletia-se
nela. Nas últimas seis semanas, Kimmie tinha realmente melhorado o seu
estilo. Embora não gostasse de o admitir, sabia que isso se devia ao seu
novo interesse por rapazes, ou melhor, à atenção que agora recebia dos
rapazes, desde que aparecera na Lista das Boazonas. Kimmie dizia que não
se importava com aquela lista idiota, em parte porque Lolly nunca tinha
entrado, e parecia foleiro esfregar aquilo na cara da irmã menos aclamada
pela crítica, e em parte porque ela só se importava com a atenção de um
rapaz em particular.
Kimmie queria acreditar que se estava a vestir para a festa de Jaylen por
si, mas sabia que era mentira. Talvez se tudo estivesse perfeito ao mais
ínfimo pormenor, Vronsky se sentisse tão atraído por ela que passariam a
noite inteira a dançar juntos e ele acabaria por lhe pedir para ser sua
namorada. Era óbvio que as coisas estavam a ficar sérias entre eles e, na
outra noite, quando ela lhe disse que gostava dele, ele olhou-a nos olhos e
respondeu que também gostava muito dela.
Agora que já ia ser apanhada pela mãe por causa dos sapatos novos,
Kimmie achou que mais valia ser completamente desobediente, e decidiu
que precisava de um pouco de brilho para mostrar o seu lado divertido. Saiu
da loja da Chanel com uma nova mala de noite, uma edição limitada em
pele envernizada rosa-choque. Se a noite no dia seguinte ia ser a sua noite,
então ela queria estar no seu melhor.

XVIII
Anna passou a tarde daquele dia de neve com Steven e Lolly. Depois de
Kimmie ter ido para a Bergdorf, Lolly perguntou a Anna se podia usar a
casa de banho dela para secar o cabelo e Anna acedeu. Enquanto Lolly
estava ocupada, Anna aproveitou para ir ver como estava o irmão. Ele
estava no quarto com um iPad em cima do peito, a jogar Fortnite. Anna
deitou-se na cama ao lado dele, tendo o cuidado de puxar o edredão
primeiro, e perguntou-lhe se devia mandar vir os cães ou não.
– Vais cá ficar durante o fim de semana? – perguntou ele, com os olhos
fixos no ecrã.
– Talvez. Fala-me mais sobre a festa de amanhã à noite. Consegues pôr-
me na lista dos convidados? – perguntou ela em tom de provocação, pois
sabia perfeitamente que o irmão tinha muito poder por causa da sua
reputação no circuito das festas.
Steven fez uma pausa no jogo e virou-se para a irmã.
– Anna, neste momento podes pedir-me qualquer coisa que eu faço.
A sério, salvaste-me a vida. Não sei o que raio disseste à Lolly, mas ela
acabou por ceder. E voltou a ceder, várias vezes. – Ele não lhe piscou o
olho, mas bem que o podia ter feito.
– Não te gabes, Steven. A sério, é deselegante – respondeu-lhe ela, a
fingir-se muito séria. Estava feliz com a sua boa ação, orgulhosa do papel
que tinha desempenhado na felicidade do irmão. E agora que o irmão e
Lolly estavam a ter relações, talvez conseguissem evitar ter o mesmo
problema no futuro. Todas as revistas que lia diziam que os homens
geralmente traíam à procura de satisfação sexual, enquanto as mulheres
tendiam a trair por razões emocionais. Ela lembrava-se sempre disso para a
sua própria relação, o que explicava, naturalmente, porque é que Alexander
insistia para que nunca passassem mais de três semanas sem se verem.
Anna perdeu a virgindade com Alexander quando viajou com a família
dele para Bora Bora no verão antes de ele ir para a universidade. O pai e a
madrasta de Alexander alugaram-lhes um bungalow com dois quartos e
uma piscina privada, que partilharam com Eleanor, a meia-irmã de
Alexander. Eleanor era caloira na escola de Anna e eram amigas mais por
conveniência do que por qualquer outra razão. Claro que Anna nunca se
atreveria a ser desagradável para Eleanor à frente de Alexander, mas a
verdade é que Eleanor era muito aborrecida.
No segundo dia das suas férias de dez dias, Anna regressou ao bungalow
depois de ter feito uma massagem e viu que Alexander tinha decorado a sala
de estar com velas e flores. Tinha organizado tudo para eles jantarem no
quarto com um chef privado. Alexander era um namorado incrivelmente
atencioso, mas aquele tipo de gestos grandiosos não era bem o seu estilo.
Anna ficou surpreendida.
– Então e a Eleanor? – perguntou ela. Provavelmente não era a melhor
resposta, mas foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
– Ela não se está a sentir bem e decidiu mudar-se para o bungalow do
meu pai e da Whitney. Sabes, para estar perto da mãe – respondeu ele
simplesmente.
Até hoje, não fazia ideia do que Alexander tinha dito a Eleanor para que
ela alinhasse no seu plano para a seduzir, porque quando viu Eleanor no dia
seguinte, não parecia nada doente.
– Mas e se ela entrar no quarto? – perguntou Anna. Eleanor nunca via
filmes para maiores de 18, porque achava abominável a violência e o sexo
gratuitos.
– Não é por acaso que me chamam o OG – disse ele, a abanar a cabeça e
a rir. Alexander mostrou-lhe o cartão de Eleanor, a indicar-lhe que tinha
tudo controlado. – Podemos parar de falar da minha irmã, por favor?
Anna sorriu. Era raro o namorado ter sentido de humor em relação a si
próprio. Sabia que ele achava a sua alcunha ridícula e nunca o tinha ouvido
referir-se a si próprio assim. Mas agora que ele o disse, achou
surpreendentemente sexy.
Nunca perguntou a Alexander se ele também era virgem, sobretudo
porque não sabia se lhe podia perguntar isso, e também porque não tinha a
certeza de querer ouvi-lo falar das raparigas que tinham vindo antes dela.
Na altura em que Anna soube que muitas namoradas interrogavam os
namorados sobre as suas experiêncis passadas, era demasiado tarde para
abordar o assunto com ele. Depois, naquela noite em Bora Bora, durante o
jantar à luz das velas, ele disse-lhe que também ia ser a sua primeira vez.
Ela sabia que devia ficar comovida com isso, feliz por partilharem uma
experiência como casal. Mas, na verdade, ficou desiludida com a notícia.
Enquanto partilhavam um soufflé de chocolate como sobremesa, ela só
conseguia pensar que, se eram ambos virgens, como é que iam saber o que
fazer?
Claro que descobriram, depois de muita confusão e embaraço. Afinal de
contas, não era física quântica. O sexo doeu mais do que ela pensava que ia
doer, mas no segundo dia, ela finalmente relaxou o suficiente para apreciar
um pouco. No entanto, Anna sempre se perguntou se o sexo seria mais do
que aquilo que ela estava a viver. Só naquela fração de segundo em que viu
Lolly em cima do irmão, sentiu mais eletricidade no quarto do que em
qualquer uma das vezes em que tinha estado com Alexander. Questionava-
se se isso era porque o irmão era muito mais experiente e capaz de mostrar
a Lolly o caminho.
– Feito! – A voz do seu irmão trouxe-a de volta à realidade.
– O que é que se passa? – perguntou ela, pois já se tinha esquecido
completamente do que tinham falado.
– Estás na lista para a festa. Estou muito feliz por ires. Vai ser épica.
A música vai ser do caraças. Queres que arranje uma limusina branca para
podermos entrar em grande?
Era por isto que Anna adorava o irmão; ele sabia como divertir-se e
sempre o fizera.
– Podes crer que sim! – respondeu ela e Steven sorriu de volta. – Não é
uma antiga expressão do hip-hop? Será que a usei bem?
– Eu sei que não és uma rapariga branca burra, mas nunca pareceste tanto
uma.
– Ei, retira já o que disseste! Ainda não podes ser mau para mim. Estás
em dívida para comigo, lembras-te? – Anna segurava numa almofada e
estava pronta para lhe dar com ela na cara.
Ele levantou os braços em sinal de rendição.
– Retiro o que disse! Tens razão. Pela minha honra, vou ser simpático
contigo durante… – Fez uma pausa dramática. – Pelo menos mais alguns
dias. Talvez três.
– Oh, por favor, como se tivesses alguma honra. – Anna deu com a
almofada na cara do irmão e levantou-se da cama a rir. – Arranja a limusina.
Porque não? – Sempre disse a si própria que tinha de tentar ser mais como o
irmão, menos cuidadosa e disposta a tudo. Decidiu então enviar uma
mensagem a Magda para que afinal não mandasse vir os cães de
Greenwich. Ela ia a uma festa amanhã à noite e ia ficar fora até tarde, o que
significava que os cães iam ficar sozinhos no apartamento.
Feliz com a sua decisão, focou-se na questão mais importante. O que ia
vestir? O seu armário na cidade tinha imensos vestidos, mas ela sabia que
queria algo muito especial, pois não costumava ir a discotecas.
Talvez merecesse uma roupa nova e divertida como prémio por ser uma
irmã tão boa. Afinal até tinha a tarde para ir às compras. Sorriu, abriu a
aplicação da Uber, clicou em «Para onde?» e escreveu «Bergdorf
Goodman».

XIX
Dustin estava a passar o seu dia de neve a ver filmes. Dividia o tempo
entre as casas dos pais: o pai era médico na NYU Langone e vivia em West
Village com a segunda mulher, enquanto a mãe vivia modestamente em
Upper East Side, num apartamento com dois quartos. Os pais tinham-se
divorciado quando ele tinha quatro anos e sempre foi uma chatice viajar de
um lado para o outro. Mas, quando começou o liceu, aceitou a situação, o
que ajudou.
Durante a semana de aulas, nunca tinha tempo para se divertir por causa
dos trabalhos de casa e, aos fins de semana, a mãe queria sempre passar
«tempo de qualidade» com ele. Sabia que era por estar stressada por ele ir
para a universidade, então tentava ser compreensivo e fazer o que ela
queria. Mas, felizmente, o pai era menos sentimental e deixava-o fazer o
que queria. Ele nunca diria isso à mãe, mas preferia o bairro do pai no
centro da cidade. Tinha acabado de ver dois filmes estrangeiros, uma sessão
dupla de Jean-Luc Godard – Pierrot le Fou e Alphaville – no cinema
Village. Depois foi ao Corner Bistro e comeu um hambúrguer. Estava agora
a tentar decidir qual o próximo blockbuster comercial que devia ver. Dustin
achava que, para se ser um verdadeiro cinéfilo, era preciso ver tanto os
filmes de alto nível como os de baixo nível.
Poucos minutos depois, recebeu uma mensagem de Steven sobre uma
festa numa discoteca no Meatpacking District, no sábado à noite. Dustin
presumiu que o amigo se tinha enganado, uma vez que ele e Steven não
costumavam fazer coisas juntas ao fim de semana. Mas depois recebeu uma
outra mensagem que dizia: Alugar limusina STOP Kimmie vai lá estar
STOP Presença obrigatória! STOP.
Dustin sorriu ao ler a mensagem, pois sabia que os «STOPS» eram em
sua honra. Uma vez disse a Steven, durante uma sessão de estudo de
história americana sobre o uso do telegrama no início do século xx, que um
dos seus maiores arrependimentos era ter nascido na era dos smartphones
em vez de na dos telegramas. Para ele, os telegramas eram muito mais
dramáticos. A resposta de Steven foi:
– És um gajo estranho como a merda, mas eu gosto. Quase que fazes com
que os nerds sejam fixes. Quase. – Na altura, Dustin gostou do elogio e
pensava nele de vez em quando.
Apareceu uma imagem de uma limusina branca foleira, saída de um
filme de John Hughes. Os muito ricos eram simplesmente diferentes.
Podiam fazer coisas por capricho, como alugar limusinas vintage por uma
noite. Por curiosidade, Dustin foi pesquisar o serviço de limusinas no
Google e viu que o aluguer de uma por vinte e quatro horas com motorista
custava a Steven dois mil dólares.
Dustin abanou a cabeça e suspirou. Havia pessoas a morrer à fome,
guerras em todo o mundo, tanta gente a sofrer, mas, no entanto, aqui estava
um jovem de dezoito anos a gastar dois mil dólares numa treta qualquer
como se não fosse nada. Não lhe parecia justo que algumas pessoas
tivessem tanto quando outras tinham tão pouco. Ele sabia que não devia ir
por princípio, mas no que dizia respeito a Kimmie, as convicções de Dustin
iam pelo cano abaixo. Suspirou e respondeu com duas palavras: Conta
comigo.
Na minha casa às 8 para comer, sair às 9 para passear de limusina,
porque vamos curtir à grande esta noite. Dress code: hip hop dos anos 90.
Ao ler a mensagem otimista de Steven, Dustin percebeu que ele e Lolly
tinham feito as pazes. Ele podia adivinhar que a irmã de Steven tinha
aparecido e salvado o dia. Estava feliz pelo amigo, mas não conseguia
deixar de pensar que Lolly o devia ter deixado pelo que ele lhe fez.
Perguntou-se o que devia vestir para uma festa daquelas e a quem podia
perguntar. Pensou em enviar uma mensagem às duas raparigas que tinha
conhecido na festa de Ano Novo de Steven, mas teve receio de que se lhes
perguntasse elas quisessem saber a que festa é que ele ia. E se elas não
tivessem sido convidadas e lhe perguntassem se podiam ir? Além disso, o
que é que duas raparigas brancas em 2019 sabiam sobre o hip-hop dos anos
90? Provavelmente mais do que ele, um facto de que não se orgulhava. As
palmas das mãos de Dustin estavam suadas. Era exatamente por isto que ele
detestava festas. Tantas maquinações e preparativos!
Mandou uma mensagem à única pessoa a quem sabia que podia
perguntar sem se sentir estúpido. O seu irmão mais velho, Nicholas, era um
grande fã de rap, e era só por isso que Dustin sabia alguma coisa sobre o
assunto. O irmão também era a pessoa menos fiável do planeta, o que
significava que provavelmente nem sequer lhe ia responder.
Estava enganado. O irmão respondeu-lhe logo a seguir a perguntar para
que é que Dustin queria saber sobre as roupas do hip-hop dos anos 90.
Dustin hesitou em admitir a verdadeira razão e pensou, por breves
momentos, em mentir e dizer ao irmão que precisava de saber para um
projeto para a escola ou para um conto que estava a escrever. Dustin não via
o irmão há meses e não lhe enviava uma mensagem desde uma troca de três
linhas durante as férias. Desejara ao irmão Feliz Chanukah, mas recebeu
uma resposta de uma linha a dizer-lhe que tinha renunciado a todas as
religiões e que agora não celebrava qualquer feriado. Enviou uma
mensagem a desejar Feliz Ano Novo, mas o irmão nunca respondeu.
Dustin decidiu contar a verdade:

Dustin
Preciso de saber porque vou a uma festa de hip-hop
dos anos 90 com uma rapariga.

Nicholas
Envia fotografia da rapariga.

Dustin
Não.

Nicholas
Dá-me 1 razão para te ajudar.

Dustin fez uma careta ao ler aquilo, e odiou o irmão mais velho por ser
tão imbecil, mas logo a seguir sentiu-se culpado por isso. O seu irmão era
um viciado em heroína em recuperação, a ovelha negra da família, mas
mesmo assim Dustin tentava sempre dar-lhe um desconto.
Dustin
Sou teu irmão.

Nicholas
Tenta de novo.

Dustin
Não interessa, esquece que perguntei.

Nicholas
És tão sensível, porra. Eu digo-te a troco de $$$.

Dustin
Quanto?

Nicholas
100 dólares.

Dustin sabia que aquilo era má ideia, porque tinha ordens específicas dos
pais para nunca dar dinheiro a Nicholas. Sentia-se culpado, mas achava que
não tinha outra opção visto que se tratava de Kimmie.

Dustin
Okay.

Nicholas
Manda-me por MBway.

Dustin enviou cinquenta dólares ao irmão por Mbway e esperou pela


resposta que sabia que ia receber.

Nicholas
Só recebi 50 dólares.

Dustin
Recebes o resto quando me deres as informações.

Nicholas
Parvalhão! Usa calças de ganga largas, camisola com capuz da FUBU, e
calça Air Jordans ou a bomba.
Dustin:
O que é «a
bomba»?

Nicholas:
Ténis Shaq. Vai a 2 lojas de roupa em segunda mão.

Dustin
T-shirt?

Nicholas
T-shirt branca novinha em folha, talvez uma corrente.

Dustin enviou mais cem dólares ao irmão por MBway.

Dustin
Mandei mais 50 dólares. Vai a um restaurate chique
em Minneapollis. Outback Steakhouse?

Nicholas
Vai-te foder.

Dustin
Obrigado. Tem
cuidado para não
escorregares no
gelo.

Nicholas
Não estou em MN[14]. No Bronx.

Aquilo era novidade para Dustin. Da última vez que soube, Nicholas
estava no terceiro mês no centro de reabilitação Hazelden. Era a quarta vez
que passava por aquilo ao longo dos anos.

Dustin
A mãe e o pai
sabem?

Nicholas
O pai sim, a mãe não. Estou limpo. A meio caminho de casa, a trabalhar
numa loja de tacos.

Dustin ficou chocado e, sinceramente, não sabia o que responder.


Felizmente não teve de o fazer porque o irmão voltou a enviar uma
mensagem. Tenho de ir embora, maninho. Até breve.
Dustin procurou no Google lojas de roupa em segunda mão que vendiam
FUBU, encontrou uma loja perto e saiu. Não podia acreditar que o irmão
tinha voltado à cidade e não lhe tinha dito nada. Mas, depois de pensar um
pouco, podia mesmo acreditar.

XX
Quando chegaram à festa, Kimmie sabia que estava no ponto e ficou
contente por ver uma passadeira vermelha à entrada. Os fotógrafos estavam
em fila, à espera de quem chegava. Estava habituada a ser fotografada em
competições de patinagem artística e sabia exatamente como se posicionar:
inclinar a cabeça, torcer o corpo, cruzar os tornozelos, se possível, e um
rosto descontraído. Enquanto mudava de posição e repetia, posando para os
fotógrafos com o seu meio sorriso congelado, só tinha uma coisa em mente:
quanto tempo teria de esperar até o ver.
Ontem não tinha tido notícias de Vronsky durante todo o dia. Tentou ao
máximo não se importar por ter passado um dia inteiro sem notícias, apesar
de achar que um dia a nevar de surpresa era a altura perfeita para saírem
juntos. Mas não aguentou o silêncio e cedeu, mandou-lhe uma mensagem
esta manhã porque precisava de ter a certeza de que ele ia lá estar. Ela sabia
que estava a quebrar a regra não escrita de que as raparigas tinham de
esperar que os rapazes enviassem mensagem primeiro, mas estava a
enlouquecer com a espera. Ele tinha respondido logo e trocaram exatamente
sete mensagens para trás e para a frente. Ela certificou-se de que não
respondia à última. Contou-lhe como Steven tinha alugado de improviso
uma limusina e disse que chegaria com ele, juntamente com Lolly e Anna.
Tentou dizê-lo de maneira que ele soubesse que tinham muito espaço, caso
se quisesse juntar a eles. Mas Vronsky não mordeu o isco. Disse que tinha
coisas para fazer, mas que estaria lá à meia-noite e que ela devia guardar
uma dança para ele.
Só depois de terem trocado mensagens é que soube pela irmã que Steven
tinha convidado Dustin para se juntar a eles na limusina, e ficou aliviada
por Vronsky não ter pedido para ir também. Teria sido horrivelmente
embaraçoso. Ela sabia que alguns rapazes ficariam com ciúmes se
descobrissem que ela tinha despertado o interesse de um finalista, mas
Vronsky não era um desses rapazes. Porque é que ele haveria de ter ciúmes
de alguém quando sabia que era o rapaz mais giro da festa?
A viagem de limusina foi mais divertida do que ela pensava.
Inicialmente, ficou muito desiludida quando entrou no enorme carro
cavernoso e percebeu que Anna não estava. Kimmie estava a desenvolver
uma verdadeira paixão por Anna, e não sabia se estava mais entusiasmada
em ver o que ela ia usar na festa ou por Anna ver o que ela estava a vestir.
Quando perguntou porque é que Anna não estava com eles, o irmão dela
disse que Anna lhes tinha dito para irem sem ela porque tinha ficado ao
telefone com o namorado, Alexander.
Aparentemente, tinha surgido um problema por Anna ter decidido ficar
na cidade durante o fim de semana, porque ia faltar à festa mensal da meia-
irmã mais nova de Alexander. Anna enviou uma mensagem a Eleanor a
desculpar-se e, apesar de Eleanor lhe ter respondido «Okay», era evidente
que não estava okay.
Assim que enviou a mensagem, Eleanor telefonou logo a Alexander, em
Cambridge, e começou a queixar-se por Anna ter cancelado à última da
hora. Alexander não teve alternativa senão telefonar à namorada para ver se
ela reconsiderava.
– Porque não voltas para Greenwich depois da festa em vez de ficares em
Manhattan? – perguntou-lhe ele ao telefone.
Anna respondeu a Alexander que talvez tivesse mudado de ideias se
Eleanor lhe tivesse perguntado diretamente, mas esta treta de conversas por
trás das costas irritava-a.
Quando Steven contou a história na parte de trás da limusina, recriou a
situação com vozes engraçadas, e depressa estavam os quatro a rir tanto que
mal conseguiam manter-se direitos. Agarraram-se às barrigas com dores e a
gritar para que Steven parasse. Depois de Lolly ter soluçado, disse a Steven
que se ele não parasse, ela ia vomitar e depois ia ter de mudar de roupa
outra vez. Como ainda estava a portar-se o melhor possível, e por saber que
ela estava a falar a sério em relação à roupa, obedeceu.
Quando a limusina parou no 1 OAK, os fotógrafos começaram
imediatamente a tirar fotografias, que era exatamente o efeito que Steven
pretendia. Depois de uma rápida discussão, ficou decidido que Steven sairia
primeiro para poder ajudar Lolly a sair do carro. Dustin sairia a seguir,
seguido por Kimmie. Obviamente, ela não podia opor-se quando não tinha
outra alternativa, mas Kimmie perguntou-se se ia parecer que ela e Dustin
eram um casal, por serem quatro, em vez de cinco. Decidiu que, quando
saíssem do carro, ia deixar uma pequena distância entre ela e Dustin para
que os paparazzi não os tomassem por um casal. E se eles pedissem para
tirar uma fotografia dos dois, ela insistiria para que a irmã e Steven se
juntassem a eles. Sentia-se mal por pensar nestas coisas, mas sabia que
Dustin tinha um fraquinho por ela e não era justo dar-lhe falsas esperanças.
Para piorar tudo, a irmã era da equipa de Dustin, e quando estavam lado a
lado na casa de banho a maquilhar-se, Lolly não parava de dizer que Dustin
era um génio e que ia ter de certeza muito sucesso no futuro. Aquele tipo de
argumentos não interessava nada a Kimmie. Ela ainda estava no 10.º ano e
não se importava com essas coisas.
Farta, acabou por dizer que não lhe interessavam as notas perfeitas de
Dustin nos exames, que só gostava dele como amigo e mais nada. Lolly,
como sabia a verdadeira razão por que Kimmie não estava interessada, e
contra-argumentou:
– Para tua informação, o Conde Vronsky comeu metade das raparigas
finalistas do liceu Spence.
Como não queria que a irmã tivesse a última palavra, Kimmie disse:
– Bem, vão ficar cheias de ciúmes quando eu for a nova namorada dele. –
Kimmie arrependeu-se de ter partilhado o seu desejo secreto com a irmã,
mas pelo menos Lolly voltou a pentear-se e não disse mais nada.
O motorista abriu a porta de trás e Kimmie ouviu os gritos dos
fotógrafos. Estava pronta para que a melhor noite da sua vida começasse.

XXI
Enquanto passavam pela segurança e esperavam para dar o nome à porta,
Dustin voltou a dizer a Kimmie como ela estava linda. Isso deixou-a feliz e
retribuiu o elogio, dizendo que também tinha adorado a roupa dele. Ela já
tinha pesquisado no Google «estilo hip-hop dos anos 90» e Dustin estava
vestido exatamente como muitos dos rapazes das fotografias.
– Pareces mesmo autêntico. Como se tivesses acabado de chegar dos
anos 90, ao estilo do Exterminador. – Ela sentiu a necessidade de ser mais
simpática do que o normal com Dustin agora, porque de certeza que ia ser
difícil para ele vê-la dançar a noite toda com Vronsky.
– Bem, na verdade, no filme original, o Schwarzenegger chegou do
futuro todo nu. – Assim que falou, Dustin arrependeu-se. Por que raio é que
ele estava a falar de nudez? Tentou recuperar e acrescentou rapidamente: –
A cena da nudez foi um artifício cómico, algo que o realizador usou para
dar leveza ao tom sério do filme. – Agora arrependia-se de ter soado como
um cromo do cinema. – Ei, queres dançar comigo? Quando ou se alguma
vez entrarmos?
– Estou surpreendida por gostares de dançar – disse Kimmie. – Desculpa,
isto soou mal. Mas acho que quando penso em génios, dançar não é o que
me vem à cabeça.
– Bem, claramente não sou nenhum génio porque quero mesmo dançar
contigo. – Naquele momento Dustin compreendeu o que tornava a cocaína
tão viciante, porque lhe permitia dizer tudo o que pensava sem se preocupar
com isso. Estava hesitante em tomar, mas Steven convenceu-o de que uma
ou duas linhas era exatamente o que ele precisava para se soltar. Sentiu-se
parvo ao sucumbir à pressão dos amigos, mas tinha estado ansioso o dia
todo por ir ver Kimmie e quando chegou a casa de Steven estava
desesperado por sentir outra coisa qualquer. Agora sentia-se
surpreendentemente otimista em relação às suas perspetivas com Kimmie
para a noite, embora suspeitasse que as drogas também contribuíssem muito
para isso.
Kimmie concordou em dançar com ele, e estava a falar a sério. Ela
adorava dançar e não queria ser uma daquelas raparigas que só dançavam
com outras raparigas num círculo. Sentia sempre pena delas. Também
achava que era melhor que, quando Vronsky aparecesse, a visse já a
divertir-se, para que não pensasse que ela tinha ficado à espera dele.
A pista de dança já estava cheia quando entraram e ouvia-se um remix de
«Flava in Ya Ear», de Craig Mack. O bar para adolescentes servia cocktails
sem álcool patrocinados pela Red Bull, mas parecia que todos os miúdos
tinham uma garrafa ou uma caneta vape. As filas para a casa de banho
também eram longas, denunciando aqueles que estavam a consumir coisas
mais pesadas. Steven perguntou a Dustin se ele queria ir com ele à casa de
banho dos homens, mas este abanou a cabeça. A sua missão de dançar com
Kimmie já estava em andamento, por isso sentia que não precisava de mais
ajuda química. Viu Steven a agarrar na mão de Lolly e a levá-la para longe
e quando se virou viu Kimmie a segurar em dois shots de gelatina para eles.
– Vermelho ou verde? – gritou ela por cima da música.
Estava prestes a responder que ficava com o que ela não quisesse, mas
lembrou-se de que as raparigas gostavam de homens assertivos.
– Verde, definitivamente verde. – Pegou no pequeno copo de plástico que
ela lhe estava a oferecer e sugou o conteúdo. – O que é que isto tem?
Kimmie riu-se e encolheu os ombros.
– Não faço ideia. Um tipo da discoteca ofereceu-me – disse ela e bebeu
rapidamente o vermelho. Estava um pouco nervosa, porque não fazia a
mínima ideia do que aquilo continha, mas desde que chegou à festa que
estava mais ansiosa e precisava de alguma coisa que a acalmasse. Havia
tanta gente que ela se perguntava como é que Vronsky ia ser capaz de a
encontrar.
Kimmie pegou na mão de Dustin e levou-o para a pista de dança. Em
breve estavam no centro, a dançar ao som de «Vivrant Thing» de Q-Tip.
A meio da música, Dustin reparou que Vronsky estava a seis metros de
distância, ao lado da pista de dança, a beber de uma garrafinha de bolso de
prata. Reconheceu-o pela pesquisa que tinha feito no Google assim que
Steven lhe falou dele. Dustin sabia que ele era bem-parecido, mas não
estava preparado para a dimensão da sua beleza. A única coisa que o fez
sentir-se melhor foi a quantidade de fotografias de Vronsky com tantas
raparigas bonitas diferentes. Claro que fazia sentido que ele estivesse
interessado em Kimmie, porque Dustin achava-a mais bonita do que
qualquer outra rapariga que viu abraçada a Vronsky, mas esperava que o
Conde fosse o tipo de pessoa que nunca se contenta apenas com uma
rapariga.
Quando viu Vronsky, pensou em bloquear a vista a Kimmie, mas era
tarde demais. Ele já os tinha visto e até levantou a garrafa em jeito de
cumprimento. Dustin susteve a respiração, esperando que o rival não se
aproximasse deles e ficou aliviado ao ver que ele não tinha intenções de o
fazer. Vronsky parecia demasiado ocupado à procura de outra pessoa na
multidão.
Depois de dançarem ao som de «Who You Wit» de Jay-Z e de «Chief
Rocka» de Lords of the Underground, Kimmie fez sinal a Dustin para que a
seguisse porque queria ver se Anna já tinha aparecido. Para garantir que não
a perdia na multidão, deu-lhe a mão, feliz quando ela o deixou segurá-la,
enquanto serpenteavam por entre a multidão em êxtase em direção ao
balcão principal.
– Danças mesmo bem, Kimmie – murmurou ele para o cabelo dela
quando foram obrigados a parar por um grupo de pessoas que observava um
tipo a dançar sem camisa na pista de dança à frente deles.
Ela sorriu e acenou com a cabeça, mas não respondeu enquanto
observava o rapaz que agora fazia de robô. Como não queria perder esta
oportunidade a sós com Kimmie, Dustin continuou:
– Agora que sabes que adoro dançar em segredo, podes imaginar que
tenho andado a pensar muito no meu baile de finalistas. Ainda faltam alguns
meses, mas estava a pensar se querias vir comigo... como amigos, ou
assim... – Honestamente, ele estava apaixonado por Kimmie e não havia
nada que mais quisesse do que começar a namorar com ela a sério, mas
gostava mesmo que ela fosse ao baile de finalistas com ele. Se Kimmie
concordasse em ir com ele como amigos estava tudo bem. Ele passaria os
próximos meses a ficar cada vez mais próximo dela, com o objetivo de que
ela também estivesse apaixonada por ele no baile.
Kimmie virou-se para o encarar, com as faces ligeiramente coradas da
dança.
– Dustin, eu gosto de ti, a sério que gosto, mas há uma coisa que tens de
saber. Eu… estou apaixonada por outra pessoa. E juro que ia ao baile
contigo como amiga, és um querido por me convidares, mas não posso.
Acho que o tipo de quem gosto não ia ficar feliz se eu fosse ao baile com
outra pessoa, percebes?
Dustin ficou chocado com a honestidade dela, o que, de certa forma, só o
fez amá-la ainda mais, apesar do que ela lhe estava a dizer. Que mais
poderia ele fazer senão acenar com a cabeça e tentar manter a calma?
Apesar de estar devastado, conseguiu dizer:
– Percebo perfeitamente. Está tudo bem, só achei que tinha de perguntar.
– Felizmente, já estavam a andar de novo e continuaram a abrir caminho
por entre a multidão que gritava hip-hop, já sem darem as mãos.
Quando Kimmie chegou ao balcão, virou-se e viu que Dustin já não
estava atrás dela. A ausência dele deixou-a triste por momentos, mas sabia
que tinha feito bem em contar-lhe logo o que se passava entre ela e
Vronsky. Kimmie subiu a um banco livre do balcão para poder observar a
multidão, e foi quando finalmente viu Anna a falar com Steven e Lolly do
outro lado da discoteca. Pelo que conseguiu ver, Anna estava a usar um
vestido preto curto e sexy, que lhe ficava tão bem que Kimmie se perguntou
porque é que tinha pensado que Anna devia usar lavanda.
Kimmie fez sinal a um empregado do bar, porque precisava de um Red
Bull para poder voltar a atravessar a pista de dança.

XXII
Anna sentiu-se melhor depois de ter bebido um grande gole da garrafinha
de bolso do irmão. O vodka ardia, mas ela precisava de ultrapassar a sua
frustração e de relaxar um pouco para poder aproveitar a noite. Podia contar
pelos dedos da mão o número de discussões que ela e Alexander tinham
tido nos três anos de namoro. Mas isso foi antes daquela noite. Não estava
certamente à espera de brigar com ele, mas ela achava toda aquela conversa
irritante. Tinham passado de uma discussão calma para uma briga acesa
quando ele exigiu saber porque é que ela estava a ser tão egoísta.
– Tu odeias a cidade. Porque insistes nisto?
– Primeiro, eu não odeio a cidade. Em segundo lugar, é uma estúpida
festa para beber chá. Porque é que não te sentas e bebes chá com a Eleanor
e os seus amigos beatos e irritantes durante três horas no domingo para ver
se gostas? – Ficou tão atónita como ele com a sua explosão e lutou contra a
vontade de lhe pedir desculpa imediatamente. Lamentava ter gritado com
ele, mas não se arrependia do que tinha dito. Era algo que ela já sentia há
algum tempo, mas que nunca tivera coragem de dizer: Eleanor era
simpática, mas conseguia ser insuportavelmente queixinhas e arrogante se
não conseguia o que queria.
Alexander não gritou de volta, porque não era a sua maneira de ser.
Limitou-se a dizer que voltavam a falar sobre o assunto quando ela
chegasse a casa depois da festa.
– Alexander, a festa só começa depois da meia-noite – disse ela, talvez
precipitadamente. – Vou ficar fora até tarde; não esperes por mim. Telefono-
te de manhã.
Ele começou a responder, mas ela interrompeu-o dizendo-lhe que tinha
de ir e desligou-lhe o telefone. Tudo aquilo a deixou um pouco maldisposta,
mas também revigorada. Estava aborrecida por ter perdido a viagem na
limusina, mas achou que o seu Uber solitário era exatamente o que
precisava; um pouco de tempo para si própria.
Quando chegou à festa, Anna encontrou algumas pessoas que conhecia
do verão em que passou seis semanas em Juilliard, uma das quais era a
violoncelista de um quarteto de cordas com quem costumava tocar. Anna
tocava violino desde os cinco anos e, após quase dez anos de aulas e de
prática diária, era uma violinista de sucesso. Tinha despertado a atenção dos
seus professores, que elogiavam o seu talento, mas que se preocupavam
com a sua falta de emoção quando atuava. Estes comentários sempre a
irritaram porque nunca sabia o que queriam dizer quando a aconselhavam a
«sentir a música». Quando era mais nova, gostava de tocar porque gostava
dos elogios e porque fazia o pai dela feliz, mas à medida que foi crescendo
era-lhe difícil perceber se gostava porque era boa a tocar ou se gostava
porque gostava realmente.
Tudo isto culminou no verão a seguir ao 10.º ano, quando lhe pediram
para participar numa pequena digressão europeia com o seu quarteto. Toda
a gente pensou que ela ficaria entusiasmada por ir, mas não ficou. Na
verdade, foi Alexander que a pressionou para falar com o pai sobre os seus
sentimentos e, apesar de ela insistir que os «sentimentos» nunca eram
discutidos em lares coreanos ou da classe alta branca, protestante e
privilegiada, acabou por finalmente ganhar coragem. A resposta do pai foi
tão pragmática como sempre, ou seja, que ela precisava de aprofundar os
seus estudos para poder tomar uma decisão informada. No início do verão,
Anna passou seis semanas a ter aulas privadas com um professor
mundialmente famoso de Kiev e, no final, tocava com mais emoção.
Infelizmente, essa emoção era uma profunda simpatia por todas as outras
raparigas coreanas que seriam obrigadas a continuar a tocar violino quando
o pai lhe desse autorização para parar. O argumento principal era que Anna
teria demasiadas saudades dos seus cães e cavalos para fazer uma digressão.
Na passadeira vermelha, a violoncelista disse-lhe que tinha atuado na
Suécia durante o Natal e Anna ficou aliviada por não ter sentido uma única
pontada de inveja. Pousaram em grupo, mas Anna ficou feliz quando os
fotógrafos lhe pediram para dar um passo em frente, e gritaram o nome
dela. Quando descobriram quem era a sua mãe, houve alguma agitação e,
embora Anna soubesse que aquela atenção era estúpida, também a achou
entusiasmante.
Enquanto esperava para entrar na festa, e todas as outras raparigas
estavam ocupadas a tirar selfies, Anna olhou em volta para ver se via mais
alguém conhecido. Ali, cerca de dez pessoas à sua frente, avistou-o. Estava
com um grande grupo de rapazes e com Beatrice, a rapariga mais popular
da escola dela. Beatrice e Anna tinham sido amigas mais próximas no 7.º e
8.º ano, mas quando Anna começou a andar a cavalo todos os dias, já não
tinha muito tempo para socializar, especialmente com Bea, que passava a
vida em festas e a sair à noite. Beatrice era sempre simpática com ela e
fazia questão de a convidar para todas as festas que dava, mas Anna só tinha
ido a algumas nos últimos dois anos.
Anna não pôde deixar de sentir uma pontada de ciúmes ao ver Vronsky
pôr o braço à volta de Beatrice, enquanto fingia dar-lhe um calduço na
cabeça, um movimento fraternal, de que já tinha sido vítima centenas de
vezes com Steven. De repente, lembrou-se de que Beatrice tinha dois
primos, um dos quais era especialmente próximo dela. Esse primo era
Alexia. Claro, agora fazia sentido! O pai de Beatrice era o irmão mais velho
de Geneviève R. Ela observou com alguma inveja o grupo de Vronsky a
entrar na discoteca. Parecia que já se estavam a divertir imenso.
Não demorou muito para Anna encontrar o irmão. Ela sabia como Steven
se divertia, por isso parou à entrada das casas de banho e encontrou-o
passado pouco tempo. Anna já tinha experimentado algumas drogas aqui e
ali, mas Alexander era completamente contra drogas – exceto o seu
precioso Adderall – e pareceu-lhe que ia dar muito trabalho tentar esconder
esse tipo de coisas dele. Além disso, ela gostava de se manter controlada e
achava um pouco triste as pessoas que acabavam a noite bêbadas e a fazer
figuras tristes.
Depois de beber da bebida dele, Anna decidiu que queria mais.
– Ouça, irmão querido – disse Anna no tom de voz afetado que usava
quando imitava a maneira de falar da mãe, importa-se de ser um amor e de
me ir buscar uma bebida a sério? Algo delicioso e digno do meu apelido?
Steven, que adorava embebedar toda a gente, gostava de ver este lado
brincalhão da irmã, que ela raramente mostrava em público. Fez-lhe uma
vénia exagerada à mordomo, e aceitou o desafio, dizendo que voltaria em
breve. Anna ficou de pé com Lolly, e juntas apontaram para todas as roupas
que gostavam e que odiavam. Kimmie chegou minutos depois, linda de
morrer, e Anna deu-lhe um caloroso abraço de boas-vindas. As duas
rodopiaram nos braços uma da outra e não paravam de gritar:
– Estás fantástica.
– Não, tu é que estás!
– Tu!
– Tu! – E assim continuaram durante algum tempo, até que Steven voltou
com três copos na mão. Anna pegou num e bebeu metade de um trago. Fez
uma careta e gritou:
– Bah, o que é isto?
– Red Bull com vodka sem açúcar! – gritou Steven por cima da música.
Entregou a segunda bebida a Lolly e deu a sua própria bebida a Kimmie,
dizendo-lhe que o cavalheirismo não tinha morrido. Anna terminou a sua
bebida, apesar de a achar nojenta, e Beatrice, vestida de Saint Laurent,
apareceu ao seu lado momentos depois. As duas raparigas abraçaram-se e
seguiram o mesmo ritual de «tu estás incrível, não, tu é que estás», que ela
tinha feito com Kimmie há poucos minutos.
Quando Beatrice convidou Anna para ir dançar com ela e os amigos,
Anna recusou.
– Não danço lá muito bem. Sou mais do género de ficar parada. – Mas
assim que o disse, viu Vronsky a dirigir-se para elas. Desesperada por não
estar presente quando ele convidasse Kimmie para dançar, Anna agarrou na
mão de Beatrice. – Mas que raio! Isto é um baile, por isso vamos dançar. –
Ela afastou Bea assim que Vronsky chegou, mal o cumprimentando quando
passou por ela.
Kimmie reparou no comportamento um pouco estranho de Anna, mas
depressa o ignorou. Vronsky estava agora a inclinar-se para ela para a beijar
em ambas as faces e a sussurrar-lhe como ela estava maravilhosa. Depois
cumprimentou Steven e Lolly, que decidiram que era altura de irem para a
pista de dança. Houve uma estranha pausa e Kimmie susteve a respiração
porque parecia que Vronsky não estava a planear convidá-la para dançar.
A noite inteira passou-lhe diante dos olhos ao pensar nisso, mas depois ele
sorriu e disse:
– Vamos, tu e eu? – Kimmie acenou alegremente com a cabeça e pegou-
lhe na mão.
Junto à saída, Dustin observou toda a cena. Depois de ter ouvido Kimmie
confessar o seu amor por outro há dez minutos, sentiu-se mal e separou-se
dela, dirigindo-se à casa de banho dos homens, onde molhou a cara com
água. Disse a si próprio que se estava a sentir mal por causa das drogas, mas
sabia que não era por isso. Quando Dustin se viu ao espelho, olhou
profundamente para os seus próprios olhos. Sabia que tinha de se mostrar
corajoso, voltar a sair e juntar-se à festa, mas achava que não era capaz de o
fazer. Ele nunca teria vindo a uma festa como esta se não fosse por Kimmie.
Agora que o seu sonho com ela tinha acabado, qual era a razão para ficar?
Ia a caminho para se despedir dos outros, quando reparou que Vronsky se
dirigia para o seu grupo. Como se gostasse de sofrer, Dustin parou para
observar. Não era que ele não achasse que Kimmie era digna de Vronsky.
Mas um tipo como aquele tinha todas as raparigas do mundo aos pés dele,
por isso porque é que tinha de ser ela? De onde estava, Dustin conseguia
ver claramente o rosto de Vronsky enquanto este caminhava na direção de
Kimmie e dos outros. Reconheceu a expressão nos olhos do seu rival, o
mesmo olhar que tinha visto nos seus próprios olhos nas últimas seis
semanas. Vronsky era um homem apaixonado, o que significava que era o
fim para ele. A sua derrota foi confirmada menos de um minuto depois,
quando viu Kimmie pegar na mão de Vronsky, com o rosto iluminado de
prazer.
Nesse momento, Dustin ergueu a cabeça e decidiu que era altura de se ir
embora.
XXIII
Kimmie estava agora a saltar com o Conde Vronsky ao ritmo de «O.P.P.»
dos Naughty by Nature. Ela teria preferido uma canção diferente, depois de
Vronsky lhe ter explicado o que eram os Ps em O.P.P., talvez uma que não
fosse sobre pessoas que querem as propriedades dos outros. Mas tentou
aproveitar a situação e concentrar-se nos aspetos positivos. Gostou do facto
de ele não se ter vestido de acordo com o tema e, em vez disso, estar a usar
umas calças pretas justas e uma camisa e um casaco Gucci que ela podia
dizer que eram muito caros. O único sinal de que estava a seguir o tema dos
anos 90 era um relógio de ouro grosso numa corrente de ouro à volta do
pescoço.
Esta era a segunda vez que dançavam juntos, a primeira tinha sido há
uma semana, quando estavam a comprar a sobremesa para o terceiro
encontro e ele precisou de passar pelo Le Bain para ver um amigo. Só
tinham ficado na discoteca meia hora, mas quando estavam a sair da zona
VIP, depois de se encontrarem com o amigo, pararam para dançar algumas
músicas. Kimmie suspeitava que ele se estava a apaixonar por ela, porque
as mãos dele estavam em cima dela enquanto dançavam.
Os dois estavam no meio da multidão da pista de dança, ao lado de Lolly
e Steven, mas Kimmie tinha-se afastado lentamente para a direita, pois
queria ficar sozinha com Vronsky. Ela estava sempre à espera que ele a
puxasse para perto de si, como fizera antes, mas por alguma razão ele não o
fazia. Parecia distante e Kimmie não tinha a certeza do que se passava.
– Estás bem? – perguntou ela por fim, detestando ter de gritar sempre por
cima da música. Ele abanou a cabeça e pediu desculpa, e explicou que tinha
saído até tarde há duas noites com a sua prima Bea. E que tinha feito o
mesmo na noite anterior com o irmão Kiril, que tinha chegado da
universidade. Só tinha acordado há algumas horas e apercebeu-se de que
tinha dormido o dia todo.
Kimmie forçou um sorriso e acenou com a cabeça, mas não conseguiu
deixar de pensar no que é que ele e o irmão tinham passado a noite toda a
fazer e com quem. Além disso, não conseguia imaginar-se a dormir durante
um dia inteiro. Quando a música acabou, ela esperava que a próxima fosse
melhor, e era: Foxy Brown com Blackstreet, «Get Me Home».
– Adoro esta música! – mentiu Kimmie, tentando parecer fixe. Vronsky
acenou com a cabeça, pegou-lhe na mão e levou-a para junto de Steven e
Lolly, que tinham parado de dançar e estavam apenas a curtir.
– Obrigado pela dança, Kimmie. Procura-me antes de te ires embora –
disse ele, e com isto Vronsky virou-se e abriu caminho através da multidão.
Kimmie ficou estupefacta. Aconteceu tudo tão depressa que ela nem teve
tempo para esconder os seus sentimentos. Vieram-lhe lágrimas quentes aos
olhos, que ela limpou com as mãos com raiva. Olhou para a irmã, que não
se tinha apercebido de nada, e Kimmie sentiu um ligeiro alívio por, pelo
menos, não haver testemunhas da sua humilhação. Uma dança estúpida em
que ele mal tinha olhado para ela? Era daquilo que ela tinha estado à espera
toda a semana? WTF?!
Como não queria estragar a maquilhagem, ela sabia que tinha de se
acalmar, ou, melhor ainda, encontrar uma forma de esquecer. Aproximou-se
de Steven e puxou-o pelo estúpido fato de treino.
– Quero divertir-me – disse ela. – O que é que tens? – Steven olhou para
Lolly para ver a reação dela. – Não olhes para ela, ela não manda em mim.
Lolly encolheu os ombros, pois não queria lidar com a irmã agora.
– Claro, tanto faz. Mas se deixares cair na sanita não venhas pedir-nos
mais a chorar. – Steven pousou algo na mão de Kimmie e fez-lhe um gesto
com a cabeça na direção das casas de banho. Kimmie acenou e abriu
caminho por entre a multidão, passando por Anna, que ainda estava a
dançar num círculo de raparigas, incluindo a prima de Vronsky, Bea.
Enquanto Kimmie esperava na fila para a casa de banho, olhou em volta
para ver se encontrava Dustin. Pensou em enviar-lhe uma mensagem, mas
sabia que não podia. Não agora, depois de lhe ter dito que eram só amigos e
que estava apaixonada por outro. O facto de ter admitido os seus
sentimentos tão abertamente e de ter sido tão ingénua ao ponto de usar a
palavra começada por «A» deu-lhe vontade de chorar. Mas não o fez.
Aguentou-se e esperou pacientemente pela sua vez de ir à casa de banho
para poder ver com que é que Steven a tinha presenteado.
Se ela tivesse enviado uma mensagem a Dustin, ele não a teria recebido.
Naquele momento, estava a apanhar o metro para o Bronx para ir ter com o
irmão. Depois de sair da discoteca e andar sem rumo durante alguns
quarteirões, Dustin enviou uma mensagem a Nicholas e pediu-lhe a sua
morada. Quando o irmão quis saber porquê, Dustin respondeu
simplesmente: Porque vou apanhar o metro agora mesmo e vamos sair
juntos. Dustin só teve de esperar um momento até receber um pin com a
localização do irmão.
Tirando ter ido ao jardim zoológico, quando era mais novo, Dustin nunca
tinha estado no Bronx. Não fazia ideia do tipo de bairro onde o irmão vivia,
nem se era seguro lá ir a estas horas da noite.
Dustin pensou se devia enviar uma mensagem a Kimmie para a avisar de
que se tinha ido embora, mas acabou por decidir que não. Ela era uma
rapariga inteligente que devia saber o que estava a fazer e tinha acabado
com todas as suas esperanças. Dustin sabia que tinha de desistir do seu
sonho, porque ele também era esperto e sabia quando não tinha hipóteses.
O único problema que tinha agora era perceber como podia desligar os
seus sentimentos com um simples toque num interrutor. Perguntou-se
quanto tempo seria preciso para ultrapassar algo que nunca tinha começado.
Esperava que Nicholas tivesse a resposta.

XXIV
Anna não ia muito a discotecas porque não eram a cena do seu
namorado. Claro que tinha ido a alguns bar mitzvahs mega grandiosos e a
festas de aniversários como esta, mas normalmente ficava na zona VIP,
onde se sentava e observava. Estava espantada por se estar a divertir tanto a
dançar com Beatrice e as amigas. Gostava de fazer parte de algo maior do
que ela própria, como se a batida da música fosse o batimento cardíaco de
um organismo maior, e ela fosse apenas uma das células. Estava a suar e
tinha a certeza de que o cabelo estava agora horrivelmente despenteado,
mas era tão bom não se importar.
Quando Anna sentiu alguém a aproximar-se por detrás de si e começar a
dançar um pouco perto demais, deixou que isso acontecesse durante alguns
segundos antes de se virar e confirmar o que já sabia. Era Alexia. Um
sorriso escapou-lhe dos lábios antes que o pudesse impedir e, sem dizer
uma palavra, Vronsky pôs a mão na parte de baixo das costas dela e puxou-
a para junto de si. Ela deixou-o. Ele cheirava incrivelmente bem, como na
altura em que ela visitou o parque de Muir Woods, numa viagem que fez a
São Francisco com os pais e declarou que nunca tinha sentido um ar tão
limpo e puro como o dos pinheiros.
– É a isto que o ar é suposto cheirar? – perguntou ela. Os pais riram-se
em resposta. Agora, a mesma pergunta veio-lhe à cabeça. É a isto que é
suposto os rapazes cheirarem? Fechou os olhos e continuou a dançar,
porque era como se não tivesse outra hipótese senão fazê-lo.
Perdeu a conta ao número de músicas que dançaram juntos, pois cada
uma delas ia de encontro à seguinte. Não reparou quando Beatrice e as
amigas se foram embora, mas acabou por se aperceber de que estavam
sozinhos. Ainda não tinham falado um com o outro, mas na verdade não
havia palavras que pudessem exprimir o que se estava a passar entre eles.
Estavam ambos a suar, mas nenhum deles reparou ou se importou. Por
vezes, Vronsky tinha ambas as mãos nas costas dela, outras ela passava os
dedos pelo cabelo dourado dele. Por vezes, ele girava-a, abraçando-a e
colocando o rosto na sua nuca, e envolvia-lhe a cintura com os braços.
Moviam-se juntos ao ritmo da música. Cada um deles só conseguia
aguentar isto durante algum tempo antes de se afastar ligeiramente, mas
nunca durava muito tempo. Qualquer distância entre eles parecia demasiado
grande e, em breve, estavam encostados um ao outro, a olharem-se nos
olhos. Anna estava desesperada por o beijar, por que ele a beijasse, mas
sabia que esse era o limite que não podia ultrapassar. Por isso, em vez disso,
encostou a cara ao pescoço dele e respirou o seu cheiro.
Se alguém os visse a dançar juntos, veria apenas dois adolescentes
bonitos a divertirem-se na pista de dança. Havia centenas de pessoas à volta
deles em vários estados de embriaguez e ninguém se importava. O que lhes
importava era sentirem-se bem, dançarem com os amigos e qual seria a
próxima música.
Lolly apontou para eles a Steven, mas eles estavam a dançar à séria, por
isso ver Anna a dançar com Vronsky não significava nada. Se perguntassem
a Lolly sobre isso no dia seguinte, não seria capaz de dizer o que tinha
visto, porque embora parecesse que eles estavam a dançar muito e
demasiado perto, ela só se conseguia sentir feliz por isso. Steven também
estava contente, não por Anna estar a dançar com Vronsky, mas porque a
irmã parecia mais feliz do que a tinha visto em muito tempo. Isso era tudo o
que importava, tudo o que Steven queria de uma noite passada na cidade:
toda a gente que ele amava a divertir-se e a aproveitar o bom da vida e a
dizer «que se lixe tudo» por uma noite, tal como ele.
Ao mesmo tempo que isto estava a acontecer, Kimmie estava a ter a sua
própria diversão, pois tinha conhecido algumas raparigas na fila da casa de
banho e, dando uso a todas as capacidades que tinha desenvolvido nos seus
dias de competição de patinagem artística, controlou as emoções, pôs uma
expressão impávida e serena, e decidiu entrar na personagem.
O desempenho tinha tudo que ver com empenho, e esta noite ela estava
empenhada em agir exatamente como aquilo que aparentava ser – a terceira
aluna mais gira do 10.º ano da Lista das Boazonas deste ano. E funcionou,
porque repararam nela e um grupo de outras raparigas lindas perguntou
como é que ela estava. Respondeu que estava bem e que não se importava
de partilhar. E assim, sem mais nem menos, havia quatro pares de saltos
altos de marca à volta de uma casa de banho suja a partilhar um tubinho de
cocaína. O trio era de alunas do 11.º ano em Nightingale e, graças a elas,
Kimmie tinha recuperado completamente da rejeição de Vronsky na pista de
dança.
Quando as raparigas descobriram que ela era a irmã mais nova de Lolly, a
mesma que namorava com Steven K., ficaram muito impressionadas. Só
uma delas tinha conseguido um convite para a festa de Ano Novo de Steven
no ano passado, por isso ela e Kimmie revezaram-se a contar às outras duas
como tinha sido. Agora mocada, Kimmie contou-lhes da primeira vez que
tomou ecstasy, e que acabou na banheira da mãe de Steven. Gritaram todas
de entusiasmo com a história e, por fim, as quatro raparigas foram para a
pista de dança.
Kimmie apercebeu-se de que se tinha enganado em relação a dançar num
grupo só de mulheres. Era muito mais divertido do que dançar com um
rapaz, porque podiam dançar ao som da música sem se preocuparem se
conheciam a canção ou não, ou se o cabelo estava preso ao batom. Depressa
entraram num padrão em que dançavam cinco músicas seguidas e depois
voltavam para a casa de banho das senhoras.
Quando Kimmie voltou a olhar para o telemóvel, já passava das três da
manhã e nem queria acreditar. Decidiu que precisava de ir ver se encontrava
a irmã, e como o tubinho estava vazio, as suas novas amigas começaram a
murmurar que estava na altura de se irem embora. – É melhor partilhar o
êxtase, mas quando se desce lá de cima, é melhor sofrer sozinha. – Kimmie
encontrou Lolly sentada no bar principal, a publicar algumas fotografias da
noite no seu Instagram. As duas abraçaram-se quando se viram e até tiraram
uma rara selfie de irmãs, e depois riram-se, pois sabiam que aquele novo
afeto entre elas era o resultado das drogas.
Lolly disse que Steven queria comer, por isso o plano era ir a um
restaurante. Kimmie disse que não tinha fome, mas que os acompanhava.
Ela começou a contar à irmã sobre as novas amigas que tinha feito e Lolly
disse que estava contente por Kimmie afinal se ter conseguido divertir.
– Como assim? – perguntou Kimmie. – Afinal porquê?
Lolly semicerrou os olhos para o telemóvel, distraída.
– Oh, pensei que talvez te tivesses ido embora por causa dele.
– Ele? Ele quem? – perguntou Kimmie, bastante confusa. – Lolly,
concentra-te.
Lolly levantou os olhos do telemóvel, agora irritada.
– Kimmie, se é assim que ficas depois de algumas linhas, não sei se
gosto.
– Desculpa, mas não sei de quem estás a falar. Aconteceu alguma coisa
com o Dustin?
– Com o Dustin? – Agora foi a vez de Lolly ficar confusa. – Nós não o
vimos desde que chegámos. Acho que já se foi embora há muito tempo.
Estou a falar do Vronsky. – Lolly apontou para a pista de dança, Kimmie
virou-se e viu-os logo. Anna e Vronsky estavam a dançar juntos no meio da
pista, sem um milímetro de espaço entre eles. Parecia que ambos tinham os
olhos fechados.
Kimmie sentiu-se maldisposta, mas não conseguia desviar o olhar.
Estavam a dançar juntinhos como se fossem as únicas pessoas na discoteca,
alheios a tudo o que os rodeava. Mas era mais do que isso – era como se
estivessem ligados magneticamente, incapazes de se separarem. Ela desviou
o olhar apenas quando sentiu as lágrimas quentes a correrem-lhe pelas
faces. Kimmie pegou num guardanapo do balcão, disse a Lolly que tinha de
ir fazer chichi, e correu para a casa de banho. Foi lá, no mesmo cubículo
onde antes se divertiu tanto, que Kimmie deixou sair tudo o que estava a
sentir e chorou sem parar.
Lolly encontrou-a mais tarde e disse à irmã, através da porta da casa de
banho, que estava na hora de se irem embora. Kimmie não suportava a ideia
de encarar ninguém. Queria arranjar a sua própria boleia para casa. Lolly
bateu na porta e recusou. Era demasiado tarde para isso. Kimmie tinha que
«juntar as suas merdas, juntá-las a todas e pô-las numa mochila, todas as
suas merdas, para que ficassem juntas», e encontrar-se com ela à saída daí a
dez minutos.
Enquanto Lolly se afastou, anunciou de forma irreverente que a sua
citação era de Rick and Morty. Aquilo apenas veio deitar mais sal às feridas
abertas de Kimmie e ela gritou:
– Odeio-te! – Mas as palavras perderam-se no som de alguém a vomitar
no compartimento em frente.
Lolly bateu à porta da casa de banho quinze minutos depois,
irritadíssima, e Kimmie viu que não estava sozinha. Reconheceu as botas de
Anna quando olhou para baixo do cubículo. Mesmo sabendo que estava
uma desgraça, Kimmie abriu a porta. Tanto Lolly como Anna ficaram
chocadas com a sua aparência, mas nenhuma disse nada quando Kimmie
passou por elas. Ouviu-as a sussurrar uma para a outra e virou-se na sua
direção.
– Se é para ir, vamos! – sibilou e saiu da casa de banho, sem se importar
com o que elas, ou qualquer outra pessoa, pudesse pensar dela.

XXV
Claro que Anna soube imediatamente o que tinha acontecido quando viu
o rosto manchado de lágrimas de Kimmie, e foi atingida rápida e
furiosamente por um enorme sentimento de culpa pelo seu papel naquilo
tudo. Ficou espantada quando viu que eram quase quatro da manhã, o que
significava que tinha estado a dançar durante horas com Vronsky. Se
alguém lhe tivesse dito que tinham passado apenas dez minutos, ela teria
acreditado; o tempo que passaram juntos tinha voado.
Lolly tentou disfarçar o comportamento da irmã, e atribuiu as culpas ao
facto de Kimmie ter consumido cocaína pela primeira vez e estar
provavelmente a sofrer uma forte depressão. Anna não corrigiu a suposição
de Lolly e, em vez disso, disse-lhe que decidira que não ia para casa com
eles; ia acabar a noite com Beatrice e depois apanhava o comboio das 5h45
da manhã de volta a Greenwich. Anna pediu a Lolly para se despedir de
Steven e Kimmie por ela. Lolly acenou com a cabeça e saiu, secretamente
excitada por ela e Steven terem agora o apartamento todo só para eles, pois
os pais de Steven estavam em Greenwich no fim de semana para uma festa
de caridade no clube. Steven tinha-lhe sussurrado algo sobre «batizar» cada
quarto, e Lolly estava mais do que disposta a fazê-lo.
Anna demorou alguns minutos em frente ao espelho. Estava sem
maquilhagem por causa de toda a dança suada e o seu cabelo frisado à anos
90 estava todo despenteado, mas quando viu o seu reflexo, a rapariga que
olhou de volta para ela não estava uma desgraça. Na verdade, Anna parecia
mais viva e alegre do que alguma vez se tinha sentido antes. Lembrou-se a
si própria que tinha estado basicamente a fazer cardio nas últimas horas, e
essa era provavelmente a razão. Mas enquanto pensava isso, sabia que não
era verdade. Aquele olhar que ela tinha era algo especial.
Ficou na casa de banho durante algum tempo, à espera que os outros
saíssem. A última coisa que ela queria era ter de enfrentar Kimmie de novo,
e ver a angústia e a traição espelhados no seu rosto. Steven, Lolly e Kimmie
já se tinham ido embora quando ela saiu, e a festa estava a acabar.
Encontrou Vronsky a conversar com Jaylen, a aniversariante, sentada ao
lado do pai e dos amigos famosos. Ela observou-o por momentos,
maravilhada com o quão à vontade ele estava, tão confiante em si próprio,
independentemente de com quem estivesse. Ele viu-a e acenou-lhe para que
se aproximasse, estendendo-lhe a mão. Ela aceitou-a e deslizou para o sofá
ao lado dele.
O DJ anunciou que estavam a tocar as últimas músicas. Vronsky olhou
para Anna e ela acenou com a cabeça. Ela nunca tinha fechado um bar,
muito menos uma discoteca, por isso estava mais do que disposta. Além
disso, não se sentia nada cansada.
A pista de dança estava novamente ao rubro com a pista a abarrotar de
gente. Estavam todos a exibir-se uns para os outros, a dançar como um
grupo. Vronsky sussurrou a Anna que ver estas lendas do basquetebol a
dançar ao som de «Rump Shaker» era algo que ele nunca iria esquecer.
Quando a última música tocou, toda a gente começou a gritar e atirou as
mãos ao ar. Era «Now That We Found Love», de Heavy D & The Boyz, e
Vronsky puxou Anna para os seus braços, abraçando-a. Ele sabia a letra de
cor, o que a fez rir, e quando o refrão começou, ela prestou atenção à letra:
Agora que encontrámos o amor, o que vamos fazer… com ele?[15] Não havia
canção mais apropriada para eles do que esta.
Quando a música terminou, foram para o bengaleiro de mãos dadas.
Anna, ainda incapaz de esquecer a expressão de Kimmie, ficou sombria e
Vronsky perguntou-lhe o que se passava.
– Estou triste por a noite estar a acabar – disse-lhe ela.
Ele acenou em concordância e disse:
– Não tem de acabar ainda. Podíamos ir comer panquecas.
Anna abanou a cabeça e disse em voz baixa:
– Não podemos. Acho que nem sequer devíamos ir embora juntos.
Vronsky franziu o sobrolho e disse que nem pensar que a ia deixar ir para
casa sozinha a esta hora. Foi então que ela lhe disse que não ia voltar para o
seu apartamento em Nova Iorque, mas que ia regressar a Greenwich no
primeiro comboio. Vronsky pareceu confuso, mas não fez nenhuma
pergunta. Em vez disso, disse-lhe que precisava de ir à casa de banho e
pediu-lhe que esperasse por ele. Ela disse que sim e ficou a vê-lo afastar-se,
sabendo que, quando Vronsky voltasse, ela já teria partido.
Uma hora depois, já tinha desaparecido qualquer vestígio da sua versão
sexy e arranjada para sair à noite, exceto o brilho persistente no seu olhar.
Ela tinha planeado apanhar um táxi de volta a Greenwich quando saísse da
discoteca, mas em vez disso começou a andar. O pai dela teria ficado
furioso se soubesse que estava a andar sozinha no escuro, mas como eram
cinco da manhã as ruas estavam completamente vazias. Ela nunca tinha
visto a cidade desta forma e achou-a linda no seu silêncio. Agasalhada com
um casaco de caxemira Loro Piana, Anna entrou no primeiro comboio da
manhã, que estava praticamente vazio. Escolheu um lugar à janela, pôs os
pés no banco da frente e bocejou. Quando o comboio saiu do túnel e entrou
na luz do dia, Anna sentiu-se um pouco triste. Pegou no telemóvel, que
tinha ignorado durante toda a noite, e viu que tinha várias chamadas
perdidas de Alexander e duas mensagens de voz, o que rapidamente a
trouxe de volta à realidade. Mandou uma mensagem a Alexander a dizer
que estava no comboio a caminho de Greenwich para ver os cães e ir para a
cama, e que lhe ligava quando acordasse. Normalmente, ela acrescentava
um emoji de um coração às mensagens que lhe enviava, mas desta vez não
acrescentou. Era um pormenor tão pequeno que ela tinha a certeza de que
ele nem iria reparar.
Quando olhou pela janela, viu que estava a nevar outra vez. Encostou a
testa ao vidro frio, observando os flocos de neve até adormecer com um
sorriso sonhador no rosto.
Acordou com um sobressalto quando o comboio parou. Sem saber onde
estava por um momento, Anna olhou pela janela e viu que a neve se tinha
transformado em chuva gelada. Não estavam parados numa estação, mas
sim na linha. A carruagem estava praticamente vazia, exceto uma outra
pessoa que estava a dormir e a ressonar. Ela levantou-se, perguntando-se o
que se estaria a passar, e decidiu ir descobrir. Na carruagem seguinte
encontrou um empregado de farda que a informou que a neve pesada e
húmida tinha provocado a queda de um ramo de árvore nos carris diante
deles e que haveria um ligeiro atraso enquanto esperavam que alguém
limpasse a linha.
Anna voltou a atravessar as carruagens atordoada, a bocejar e com sono.
De repente, sentiu-se esfomeada e decidiu ir comprar um chocolate quente e
um donut ao bar do comboio. Quando estava prestes a pagar, alguém pôs
uma nota de cinquenta no balcão e disse:
– O pequeno-almoço da senhora é por minha conta. – Ela virou-se e viu
Vronsky atrás dela. Arregalou os olhos de surpresa e sentiu uma vaga de
emoções contraditórias. Claro que ela estava feliz por o ver, mais do que
feliz, em êxtase até... mas o que é que ele pensava que estava a fazer? Ele
também pediu um chocolate quente e, passado pouco tempo, estavam os
dois sentados em frente um do outro na primeira carruagem vazia que
encontraram.
– O que é que estás a fazer neste comboio? – perguntou ela.
– Tenho de estar onde tu estiveres, por isso aqui estou. Além disso, nem
sequer te despediste.
Anna corou.
– Não sabia o que dizer.
– Um simples adeus teria funcionado – disse ele, provocador.
– Alexia, isto é uma loucura. Tens de voltar para Manhattan.
– Não posso – disse ele, e abanou a cabeça. – Preciso de estar aqui
contigo.
– Eu tenho namorado. E toda a gente o conhece em Greenwich.
– E eu tenho lá uma tia e um tio que ficam sempre felizes em receber o
sobrinho preferido durante o tempo que ele quiser.
– E a Kimmie? – perguntou Anna, pois estava a começar a sentir-se um
pouco em pânico com as emoções que lhe estavam a passar pela cabeça. –
Ela é tão gira. Podias ficar com ela.
– Agora és tu que estás maluca – disse ele. – A Kimmie é um amor, mas
não estou interessado nela. Estou interessado noutra pessoa. – Ele era
direto, e isso era sexy.
O telemóvel de Anna apitou, o que ela achou estranho dado o adiantado
da hora. Era uma mensagem de Alexander, a perguntar-lhe porque é que o
comboio estava atrasado. Ao olhar para as reticências no ecrã, ela ficou
subitamente assustada com o que ele ia dizer a seguir. E recebeu a pior
notícia possível. Ele disse-lhe que não tinha conseguido dormir depois da
discussão deles e que decidiu conduzir até Manhattan para a ver. Tinha
parado em Greenwich para pôr gasolina e tomar o pequeno-almoço quando
recebeu a mensagem dela a dizer que estava no comboio. Ele disse que
estava agora na estação, que a tinha vindo buscar.
– Meu Deus, o Alexander está na estação à minha espera. Ele veio de
carro porque tivemos um problema... – Ela olhou para cima sem fôlego e
encontrou o olhar de Vronsky. – Não interessa, não é importante. O que
importa é que não podes fazer isto. Não podemos fazer isto.
Vronsky estendeu a mão sobre a mesa e pegou nas mãos dela.
– Anna, sabes que é demasiado tarde. Já aconteceu.
– O que é que aconteceu? Não aconteceu nada! Dançámos juntos numa
discoteca, e depois? Não fizemos nada de mal. – Ela afastou as mãos e
levantou-se rapidamente, entornando acidentalmente o seu chocolate
quente. – Alexia, se gostas de mim, vais esquecer que esta noite aconteceu.
– Anna começou a afastar-se, mas antes de chegar ao fim da carruagem,
parou e virou-se para o encarar. – Peço desculpa por não me ter despedido
mais cedo. Não fui capaz de o fazer, porque significava que o nosso tempo
juntos tinha acabado e eu não estava preparada para isso. – Ela ficou ali a
olhar para ele que a olhava fixamente e forçou-se a continuar. – Mas agora
acabou.
E, com isso, afastou-se dele e dirigiu-se para a carruagem seguinte.
O Conde Vronsky ficou sentado, muito quieto, e o único som que se ouvia
era o pingar do chocolate quente derramado dela, a única prova de que ela
ali tinha estado.

XXVI
Dustin acordou no Bronx, num sofá de couro verde, no quarto minúsculo
do seu irmão Nicholas, na Meyerson Halfway House, por cima da loja de
tacos, antes das seis da manhã de domingo. O sofá cheirava a fumo de
cigarro misturado com mostarda azeda, além do fedor coletivo de todos os
outros que se tinham deitado ali antes dele. Pelas persianas de plástico
partidas brilhavam três raios de luz da manhã, num quarto que, de outra
forma, seria escuro. Dustin sentou-se lentamente porque conseguia ouvir a
respiração rouca de Nicholas.
Quando Dustin chegou na noite anterior, encontrou o irmão numa
minúscula loja chamada Taco Taco! Ele era o único empregado. Quando
entrou pela porta da frente do restaurante, se é que se podia chamar
restaurante a uma sala suja de dois por dois, estava vazio. Tudo se resumia a
um balcão cor de laranja e a três conjuntos de mesas e cadeiras em
diferentes graus de degradação. Verificou novamente o telemóvel, embora
soubesse que estava no sítio certo. Dustin sentou-se e o irmão apareceu
momentos depois, a cheirar a tabaco.
– Iô, ’tá-se bem? – perguntou Nicholas como se Dustin não fosse o seu
irmão três anos mais novo. – Tens fome? – O estômago de Dustin roncou
em sinal afirmativo antes que ele pudesse abrir a boca para falar. Acenou
com a cabeça num sim enfático.
– Continuas a comer carne, certo? Não te tornaste num vegan hipster,
pois não? – Nicholas riu-se com tristeza.
Dustin falou por fim.
– Não. Hei de ser sempre um carnívoro. – Imitou um javali a bufar, para
dar um efeito sonoro à sua afirmação, mas perdeu o fôlego a meio da frase.
Com um meio sorriso no lábio, Nicholas virou as costas a Dustin e
começou a cozinhar. Estava a fazer um prato de tacos porque, bem, era tudo
o que se oferecia no Taco Taco! O silêncio manteve-se durante a maior
parte da refeição, enquanto Nicholas observava Dustin a devorar seis tacos
moles, mal parando para mastigar. Só quando Dustin estava a empurrar a
sua refeição tardia com uma Coca-Cola mexicana, é que Nicholas falou por
fim.
– Meu, estás a comer como se tivesses um buraco dentro de ti que precisa
de ser preenchido. Já devia saber. No entanto, os tacos não resultam
comigo. Tenho a certeza que depois de trabalhar aqui nunca mais vou
comer um taco na vida.
– Há quanto tempo trabalhas aqui? – perguntou Dustin.
– Nem há duas semanas, mas mais parecem dois anos. Trabalho no turno
da noite. Das dez da noite às cinco da manhã. Até às três há um pouco de
movimento, mas as últimas duas horas são a porra da morte lenta.
Dustin acenou com a cabeça, embora fosse difícil sentir empatia pelo
irmão. O único emprego de Dustin até à data era dar explicações a miúdos
ricos em apartamentos de vinte milhões de dólares.
– Pensei que tinhas mais um mês de programa.
Nicholas explicou-lhe que ainda lhe faltavam mais três semanas de
reabilitação, mas que tinha saído em liberdade mais cedo por bom
comportamento. O que isto significava para as outras pessoas era que se
tinham destacado no programa e que lhes era concedida uma saída
antecipada, mas Nicholas raramente se comportava bem.
– Quer dizer que foste expulso? – perguntou Dustin, com cuidado para
não acrescentar a palavra «de novo» no final da pergunta, com medo de que
soasse a um julgamento.
– Ya, arquei com as culpas por outra pessoa. – O tom de Nicholas indicou
que por agora era tudo o que precisava de saber. Pegou no prato de Dustin,
e dirigiu-se de novo à cozinha. – Queres mais?
– Não, obrigado – respondeu Dustin, e estremeceu com a sua boa
educação. A boca ardia-lhe por causa do molho, e agora ansiava por outra
coisa para preencher o seu vazio. – Há alguma coisa doce aí atrás?
– Nada mais doce do que eu – respondeu Nicholas, rindo-se do seu
próprio sarcasmo.
Dustin olhou para cima e viu que o irmão já estava a regressar com um
prato de papel com churros e um frasco de plástico em forma de urso com
mel nas mãos. Nicholas pousou o prato à frente de Dustin com um grunhido
de satisfação.
– Algumas coisas nunca mudam – murmurou ele.
Dustin pegou num churro quente, deu uma dentada e sentiu a sua doçura
açucarada, feliz por o irmão se lembrar de como ele gostava de doces.
– És tu que fazes? – perguntou com a boca cheia.
– Se por fazer queres dizer que os tiro do congelador e os frito em óleo,
então sim. Mas são frescos. Alguém ligou a encomendar, mas não apareceu.
Malditos agarrados, eu já devia saber, certo?
Dustin besuntou mel no segundo churro e continuou a comer até
acabarem todos. Tinha agora os dedos pegajosos, mas impediu-se de os
lamber, ao lembrar-se da longa viagem de metro.
– Posso ir lavar as mãos?
O irmão apontou para trás do balcão e Dustin dirigiu-se à pequena casa
de banho SÓ PARA EMPREGADOS, que também servia de despensa de
mantimentos. Evitou olhar-se ao espelho depois de ter lavado as mãos,
secou-as rapidamente e voltou a sair para encontrar o irmão a olhar para o
telemóvel.
– Por quem é que arcaste com as culpas? – perguntou Dustin, mais
interessado em conversar sobre a vida do irmão do que sobre a sua. O irmão
era muito parco em palavras e era mais do tipo silencioso e taciturno. Ficou
a ver Nicholas a tirar um maço de tabaco e a enrolar um cigarro no tampo
da mesa. A boca de Dustin contorceu-se, embora ele não fumasse quase
nunca. Pensou que as únicas vezes que tinha fumado foi com o irmão e em
grupos de estudo a altas horas da noite, onde os estudantes estavam
dispostos a qualquer coisa que os ajudasse a manterem-se acordados.
– Vamos? – perguntou Nicholas, a segurar em dois cigarros perfeitamente
enrolados.
Fumaram no passeio, Dustin encostado ao portão de metal que cobria a
fachada da loja, enquanto o irmão andava para a frente e para trás no
passeio à frente dele. Dustin olhou para a rua imunda, o lixo preso na lama
suja e derretida. Fortalecido pela nicotina, Nicholas disse a Dustin que tinha
conhecido uma agarrada em anfetaminas do Arizona na reabilitação,
Natalia, e que ela é que foi apanhada com drogas. Eles estavam juntos
quando ela foi apreendida, por isso ele ficou com as culpas. Nicholas
acrescentou que já estava sóbrio há dois meses e meio e que estava pronto
para sair em liberdade de qualquer forma. O pai deles tinha sido informado
e aparecera no dia seguinte e os dois, pai e filho, voaram juntos de volta
para a costa leste em absoluto silêncio. Ele ainda tentou dizer ao pai que a
droga não era dele, mas as palavras caíram em saco roto.
– Nunca confies num agarrado, acho eu – acrescentou Nicholas, dando a
entender que a sua história tinha terminado ao deixar cair a beata no passeio
e ao pisá-la com o sapato.
Dustin acreditou na história do irmão, apesar de Nicholas ser conhecido
por embelezar a verdade para os seus próprios fins. Dustin compreendia
agora até que ponto um homem iria pela rapariga certa.
– Vais voltar a vê-la? – perguntou Dustin, desejando que talvez pudesse
haver um final feliz para pelo menos um deles.
– É suposto ela enviar-me uma mensagem quando sair. Veremos.
A Natalia não é a pessoa mais fiável do mundo – respondeu Nicholas, e
voltou a entrar no restaurante.
– Nunca confies num agarrado, acho eu – repetiu Dustin numa tentativa
de ser jovial. Seguiu o irmão e bocejou, subitamente cansado, agora que
tinha a barriga cheia. Nicholas tirou um molho de chaves das calças de
ganga e entregou-o a Dustin, e fez um gesto a apontar para cima.
– O meu quarto é lá em cima. Não há nada que bata a localização. A casa
de banho é no corredor, mas não faças barulho porque o tipo que dorme no
quarto ao lado da sanita é um verdadeiro idiota se o acordarem. Ele faz o
turno da manhã aqui, por isso tem de se levantar às quatro e meia.
Dustin pegou no prato de papel e atirou-o para o caixote do lixo
encostado à parede, a tentar decidir o que fazer. Tinha enviado uma
mensagem ao pai a dizer que estaria em casa de manhã, por isso não havia
ninguém à espera dele. Dustin pegou nas chaves do irmão e tirou a carteira.
Nicholas abanou a cabeça.
– Eu ofereço, maninho. Vai dormir um pouco e pagas-me o pequeno-
almoço de manhã, quando me levantar, num sítio que não sirva tacos.
Dustin adormeceu poucos minutos depois de se ter enroscado no sofá,
com o desgosto a cobri-lo como um cobertor. Nem sequer se lembrava de
ter ouvido o irmão chegar várias horas depois.
Na manhã seguinte, Dustin levantou-se do sofá e foi até à janela para
olhar para a parede de tijolo manchada de fuligem do outro lado da saída de
ar. Era um novo dia, e ninguém estava mais grato do que ele por o dia de
ontem ter acabado. Pensou se devia contar ao irmão sobre Kimmie durante
o pequeno-almoço. Duvidava que o irmão fosse compreender a sua
situação, mas Dustin não se importava. Não era de conforto que andava à
procura. Dustin só queria livrar-se de qualquer sentimento que ainda tivesse
por ela, e depois não queria voltar a pensar em Kimmie.

XXVII
Passados vinte minutos, os destroços foram removidos da linha do
comboio e os carris ganharam vida e começaram a avançar lentamente.
Anna estava aliviada por estar de novo a caminho, mas ao mesmo tempo
sentia fortes pontadas de ansiedade, sem saber como se sentia em relação ao
sítio para onde se dirigia. Já tinha apanhado o comboio para Greenwich
milhares de vezes na vida, mas esta era a única viagem em que estava cheia
de medo. É engraçado como uma noite pode mudar tudo, pensou para si
própria, mas depressa mudou o curso dos pensamentos. Nada está diferente.
Em breve chegarei à mesma estação onde saio sempre. O meu namorado
vai estar à minha espera, pronto a pedir desculpa pela nossa briga, com
café quente e um croissant de chocolate. Vai levar-me para casa onde os
meus cães estarão à minha espera à janela do foyer da entrada, com os
focinhos molhados a manchar o vidro. Terei de me encostar à porta para
não me derrubarem com o entusiasmo.
Mas, mesmo quando dizia a si própria o que estava por vir, uma parte de
si perguntava-se onde é que ele estaria no comboio. Será que Vronsky
limpou o chocolate quente que ela entornou ou simplesmente afastou-se
dele? Ele limpou-o; ela sabia que sim. Era mimado, como todos eles, com
dinheiro e criados, mas quando estava em público as suas boas maneiras
insistiam para que limpasse qualquer porcaria que fizesse. Tecnicamente, a
confusão era dela, mas era por causa dele. Ele é que lhe tinha dito todas
aquelas coisas, partilhado os seus sentimentos sem pensar nas
consequências. Anna lembrou-se a si própria que nunca tinha concordado,
nunca lhe tinha dito nada em resposta. Ela não tinha feito nada para
encorajar Vronsky a dizer aquelas coisas; na verdade, tinha tentado fazer
com que elas nunca fossem ditas, saindo da festa sem se despedir, como fez.
Se ela tivesse ficado para falar com ele na discoteca, o que teria
acontecido? Teria ele sido mais compreensivo por ela precisar de voltar
para Greenwich? Que ela necessitava da paz da sua própria cama depois de
uma noite a dançar com ele? Anna não se lembrava da última vez que tinha
ficado acordada a noite toda. Mesmo nas festas de pijama, em criança, era a
rapariga que adormecia primeiro. Não tinha medo de perder nada e nunca
hesitava em deixar as outras raparigas a coscuvilhar sobre os professores
giros, roupas novas e todas as festas a que não tinham idade para ir.
Na verdade, este ano nem sequer tinha ido à festa de Ano Novo do seu
próprio irmão. Em vez disso, tinha escolhido ficar em Maui com os pais e
Alexander. Os dois passaram o Ano Novo sozinhos na piscina de água
salgada aquecida do resort de luxo perto da casa de praia dos pais. Agora
lembrava-se que Alexander nem sequer a tinha beijado à meia-noite. Uma
brisa tropical tinha atirado uma bola de praia para a piscina um minuto
antes e Alexander tinha corrido atrás dela. O namorado dela fazia sempre o
que estava certo. Apanhava o lixo e deitava-o fora. Reciclava para salvar o
planeta. Foi ele que fez com que a escola começasse a fazer compostagem
no refeitório, apenas uma das suas muitas decisões como presidente da
associação de estudantes. Quando viu a bola de praia aterrar perto deles, o
seu primeiro pensamento foi o som que faria se ela rebentasse.
Assim, quando o Ano Novo chegou, ela estava de um lado da piscina e
ele do outro. Anna lembrou-se da crença de que dava azar não beijar
ninguém ao bater da meia-noite, tanto que contou a Alexander mais tarde,
quando caminhavam pela praia escura de volta à casa dos pais. Ele
respondeu que não havia azar, mas depois virou-se e perguntou com uma
voz provocadora:
– Alguém precisa de um beijo? – Anna lembrou-se de que desejava que
Alexander a tivesse agarrado e beijado naquele momento, em vez de ter
sempre de falar sobre tudo.
Anna estava surpreendida por Alexander ter decidido vir de Boston para
a ver hoje. A espontaneidade não fazia parte da sua maneira de ser, uma vez
que normalmente tinha o dia agendado ao minuto. Esta viagem de carro
improvisada ia, sem dúvida, perturbar todo o seu fim de semana. Anna
perguntou-se se ele teria detetado alguma coisa na sua voz quando lhe
telefonou antes de ela ter saído para a festa.
Quando o comboio parou em Greenwich, a plataforma estava vazia e
Anna teve esperança de que Alexander tivesse escolhido ficar no carro à
espera dela. Saiu apressadamente do comboio, e pôs o capuz do casaco para
não olhar em volta, como um cavalo que precisa de palas para ser guiado
em frente. Meio a correr, meio a andar, caminhou na direção do parque de
estacionamento quando ouviu Alexander chamar por ela.
– Anna! – Mordeu o lábio e, mantendo o rosto relaxado, virou-se.
Lá estava ele, o seu namorado, vestido com a sua parka Ralph Lauren
azul-marinho por cima das calças de caqui engomadas, a acenar-lhe.
Alexander não estava a usar chapéu, por isso tinha o cabelo molhado da
neve e achatado na cabeça. As orelhas dele, pensou para si mesma, sempre
foram assim tão grandes?
Alexander aproximou-se e abraçou-a, beijando-lhe a face ainda quente
com os lábios frios e finos.
– Chegaste – disse ele, afirmando o óbvio.
Anna lutou para manter a compostura. Sê simpática, disse a si própria,
isto não tem nada que ver com ele. Agarrou-lhe no braço e tentou fazê-lo
avançar, com medo de se demorar mais do que o necessário.
– Trouxe-te café e um croissant. De chocolate, claro – disse Alexander,
sem se mexer. Claro que trouxeste, pensou Anna. Nunca me surpreendes!
– Talvez isso te deixe mais feliz por me veres? – Ele estava a provocá-la,
mas ela não conseguia deixar de sentir que ele a estava a admoestá-la por
não parecer mais satisfeita.
Ela forçou um sorriso.
– Obrigada. Mas estou desesperada por dormir, por isso podes ficar com
o meu café.
– Que surpresa! – Ouviu-se a voz de Vronsky por detrás deles. Anna
fechou os olhos, ao mesmo tempo furiosa por Vronsky se atrever a fazer
isto agora e feliz por poder voltar a ver a cara dele mais uma vez. Virou-se
lentamente e lá estava ele, de pé diante dela, com o seu cachecol
desalinhado a tocar de novo no chão. Se ela estendesse a mão, podia tocar-
lhe no rosto. Ele estava tão perto dela e, no entanto, havia um grande fosso
entre eles.
Alexander olhou confuso para o jovem que estava diante deles e pôs o
braço à volta dos ombros da namorada. Anna deu um passo para o lado,
afastando a mão dele.
– Estávamos no mesmo comboio? – perguntou ela suavemente, dando a
entoação de uma pergunta, para benefício do namorado. – Alexander,
apresento-te o Alex Vronsky. O primo de Beatrice, de Manhattan. Alex, este
é o meu namorado, Alexander. – As palavras saíram-lhe num ápice e ela
esforçou-se por não olhar para Vronsky durante muito tempo, pois sabia que
não seria capaz de manter um sorriso no rosto.
– Oh, sim. Muito prazer em conhecer-te – disse Alexander, e apertou a
mão de Vronsky depois de tirar as luvas. – O que te traz a Greenwich tão
cedo? – A voz dele era baixa e séria, como se sozinho controlasse toda a
gente que entrava na cidade. Anna, que normalmente não era uma rapariga
maliciosa, não conseguiu evitar revirar os olhos ao ver a cena à sua frente.
Que tipo de homem é que usa luvas? Só porque a tua meia-irmã as tricotou
para ti, não significa que tenhas de as usar. Porque é que tens de estar
sempre a fazer as vontades a Eleanor como se ela ainda fosse uma
criança?
– Faltei ao jantar de aniversário do meu tio e decidi fazer-lhe uma
surpresa – respondeu Vronsky, tão casualmente que a própria Anna teve um
momento de dúvida, perguntando-se se não seria essa a razão de ele estar no
comboio, e não ela. – O meu tio levanta-se muito cedo. – Vronsky começou
a imitar dar uma tacada de golfe, em que, se tivesse um taco na mão, teria
convenientemente dado cabo de Alexander.
– Saíste com a mãe e voltaste com o filho – disse Alexander com um
sorriso apertado, satisfeito consigo próprio pela sua inteligência. Olhou para
Anna como um cão orgulhoso que tivesse acabado de lhe deixar um pau aos
seus pés.
Anna acenou com a cabeça e apertou o braço de Alexander, sugerindo
que estava na altura de se irem embora. Ela estava desesperada para que
aquela tortura acabasse. Se não se fosse embora agora, tinha medo do que
poderia fazer. Estava a sentir-se tão estranha, tão diferente de si própria.
Estás apenas cansada. Não dormiste o suficiente. Está tudo bem. Diz adeus
e depois podes esquecer esta noite ridícula.
– Foi bom voltar a ver-te, Alex – gaguejou ela. – Por favor, deseja ao teu
tio um feliz aniversário da minha parte. – Antes de se virar, permitiu-se
olhar para ele mais uma vez, sem desviar o olhar, embora não tivesse
conseguido resistir nem que tentasse. Vronsky olhou para ela intensamente,
e Anna ficou impressionada com o azul dos olhos dele em contraste com o
cinzento nublado do dia. Meu Deus, o que ela daria para mergulhar neles e
nadar para longe.
[1] Abreviatura de Louis Vitton. (N. da T.)

[2] Abreviatura de Facebook. (N. da T.)

[3]Personagem fictícia de Guerra das Estrelas. Filho da princesa Leia com Han Solo, foi
treinado pelo tio Luke Skywalker, mas acabou por ir para o lado negro da Força. (N. da T.)

[4] Rapper norte-americano. (N. da T.)

[5]Série de animação norte-americana para adultos, que estreou em 2013, e acompanha as


aventuras perigosas de um cientista alcoólico, Rick, e do seu neto, Morty. (N. da T.)

[6]Famoso restaurante em Nova Iorque, que abriu em 1954, frequentado por famosos e artistas,
que foi cenário de vários filmes como Feliz Acaso, no original, Serendipity. (N. da T.)

[7] No original, Game of Thrones. Série televisiva da HBO. (N. da T.)

[8]
Instituto de Tecnologia de Massachusetts, é uma universidade privada situada em Cambridge,
Massachusetts. No original, MIT (Massachusetts Institute of Technology). (N. da T.)

[9]Expressão que teve origem no Twitter. Ter BDE (Big Dick Energy), no original, é um estado
de espírito. É ter confiança e presença. Não se refere tanto ao tamanho do órgão sexual masculino.
(N. da T.)

[10] Outra denominação em inglês para Ecstasy. (N. da T.)

[11] Em português, Fogo Contra Fogo, com Al Pacino e Robert De Niro. (N. da T.)

[12] Em português, Armadas e Perigosas. (N. da T.)

[13]Expressão em inglês que descreve uma rapariga que sabe o que quer e vai atrás disso. Não se
importa com o que os outros dizem, e é sexy de qualquer maneira. (N. da T.)
[14] Abreviatura para Manhattan. (N. da T.)

[15] Now that we found love what are we gonna do... with it?, no original. (N. da T.)
Parte II
I
O Dia dos Namorados é uma data repleta de
emoções para toda a gente, mas para as
raparigas adolescentes é o pior de todos.

Era uma data com o único objetivo de chamar a atenção para o amor e o
romance, que torturava as pessoas solteiras, mas que também atormentava
as que tinham relações. De certa forma, era quase mais fácil de passar pelo
dia se uma rapariga fosse solteira, porque podia dizer que tudo aquilo era
uma colossal perda de tempo, apontando o facto de ser uma data arbitrária
inventada pela Hallmark para vender mais cartões de felicitações em 1913.
Claro que isso não era inteiramente verdade. O Dia de São Valentim tinha
raízes bastante mais negras, e a sua origem remonta ao século iii, em Roma,
como um dia de encontros amorosos que implicava o sacrifício sangrento
de animais, bater nas mulheres para aumentar a fertilidade, embebedarem-
se e festejarem nas ruas.
– Bem, a parte de se embebedarem de certeza que é verdade para ti e para
o Steven – disse Kimmie, depois de a sua irmã Lolly ter lido a entrada da
Wikipedia em voz alta para ela e para a mãe ao pequeno-almoço.
– Estamos amargas? – replicou Lolly rapidamente, sabendo que era
melhor não começar uma discussão com Kimmie antes de a mãe terminar o
seu primeiro café expresso Lavazza do dia. Danielle, a mãe delas, não era
uma pessoa matinal, e provavelmente nem sequer tinha ouvido a conversa
de Kimmie.
Kimmie não respondeu, sobretudo porque a irmã tinha acertado. Estava a
sentir-se deprimida e mal se tinha conseguido arrastar até à mesa do
pequeno-almoço nessa manhã, quanto mais tirar o pijama. Kimmie não
tinha ido à escola nos últimos três dias e esperava que o mesmo acontecesse
hoje.
Kimmie nunca fingiu estar doente em criança e, na verdade, sempre foi
um exemplo de saúde, por isso a mãe não tinha motivos para duvidar das
queixas da filha sobre dores de cabeça e dores em geral. Também ajudava o
facto de a mãe de Kimmie estar bastante distraída desde que regressara no
domingo à noite das suas férias em Santa Lúcia com o seu novo namorado,
David. Doze dias de massagens em casal, passeios românticos na praia e
jantares à luz das velas eram quase suficientes para expurgar o sabor
amargo do seu divórcio, ou assim pensava Danielle até que o seu ex-marido
Kurt abriu a porta no domingo à noite quando ela foi buscar as miúdas. Só o
facto de ver a cara bronzeada do ex-marido a sorrir para a sua própria cara
recentemente queimada pelo sol, à porta da entrada, foi suficiente para a
fazer cerrar os dentes. Foi nessa altura que ouviu o pai falar da doença da
filha mais nova, de como ela se tinha queixado toda a semana de não se
sentir bem, acabando por ser mandada para casa mais cedo na sexta-feira.
– Levaste-a ao médico? – perguntou ela, embora já soubesse a resposta.
– Não. Ela não tinha febre, por isso pensei que fosse apenas um vírus.
Deixei-a dormir o fim de semana todo – disse ele.
Como não queria estragar o seu estado de espírito descontraído da ilha,
Danielle não o pressionou mais e levou as raparigas para o seu apartamento
em Beekman Place. Kimmie foi diretamente para a cama depois de a mãe
ter visto se ela tinha febre, e não se sentia sequer com vontade de ouvir a
história da viagem da mãe ou de ver que guloseimas tinha trazido. Lolly
ficou acordada com a mãe, a admirar as fotografias, enquanto se perguntava
se seria este ano que a iam convidar para viajar com a família de Steven
para a casa deles em Maui, nas férias de Natal. Depois de Lolly ter aberto
os presentes – um biquíni novo, um pano para a praia e umas Havaianas
azuis índigo com diamantes Swarovski de duzentos dólares, para usar
depois da pedicura em vez dos chinelos nojentos que elas oferecem. A mãe
perguntou pela festa de aniversário de Jaylen no fim de semana passado,
para descobrir se havia alguma ligação com a doença de Kimmie.
Lolly não era parva, e sabia que seria responsabilizada por qualquer
comportamento questionável da irmã, por isso insinuou sabiamente que
Kimmie estava a ter problemas com rapazes e que era por isso que estava
doente.
– Ela vai ultrapassar isso, mas esta é a pior altura de todas. O Dia dos
Namorados é na quinta-feira.
Já era quinta-feira e, mesmo sendo a pior altura de todas, Danielle sabia
que a filha não podia faltar mais nenhum dia à escola sem um certificado
médico.
– Kimmie, veste-te – disse Danielle, sem levantar os olhos do iPhone. –
Conseguiram-te uma vaga para o doutor Becker, por isso não nos podemos
atrasar.
– Tenho mesmo de ir? – choramingou Kimmie. – Não o posso ver
amanhã?
– Não. Sabes que jogo a pares às sextas-feiras e é demasiado tarde para
arranjar um substituto. Agora despacha-te. – Danielle apontou para a porta.
Com um grande suspiro dramático, Kimmie levantou-se e saiu da cozinha.
– Tens a certeza de que queres que ela saia hoje? – murmurou Lolly. –
Não se pode ir a lado nenhum nesta cidade sem se ver um estafeta a
carregar flores ou balões.
Danielle fez uma careta, mas depois abanou a cabeça.
– Isto tudo não pode ser por causa de um simples rapaz. Quero que lhe
façam o teste para a doença de Lyme. Nunca a devia ter deixado recuperar
da operação ao joelho com o teu pai na cabana do não-sei-quantos em
Vermont, este verão. – Como não queria ignorar a sua outra filha,
perguntou-lhe: – Então, onde é que o Steven te vai levar esta noite?
O rosto de Lolly iluminou-se e abriu-se num enorme sorriso.
– É uma surpresa. Mas eu estava à espera de poder chegar a casa mais
tarde esta noite, mãe, por favor?
Danielle acenou com a cabeça, pois sabia que ela própria ia chegar tarde
do seu encontro do Dia dos Namorados.
– Está bem, mas é bom que estejas em casa à meia-noite. O Devon fica
cá com a Kimmie, por isso eu ligo se ainda não tiver chegado a essa hora.
Para o telemóvel do Devon, não para o teu.
Lolly acenou com a cabeça, feliz por ter de estar em casa à meia-noite, já
que ela esperava que fosse às onze e meia. Lolly tinha mentido à mãe, pois
sabia onde é que ela e Steven iam jantar: serviço de quarto no hotel St.
Regis, onde Steven tinha reservado um quarto para eles naquela noite.
O plano deles era faltar às aulas depois do quarto período e encontrarem-se
lá às duas da tarde, o que lhes daria umas boas dez horas de «tempo para
celebrar». Lolly tinha um conjunto de sutiã e cuecas de renda vermelha
debaixo do vestido Alice e Olivia, como parte do seu presente para Steven.
Ela ia fazer um striptease elaborado ao som de «Love», de Kendrick Lamar,
que tinha coreografado com um chicote de couro vermelho da Agent
Provocateur que tinha trazido por capricho quando comprou a sua nova
lingerie.
Também comprou a Steve um novo Apple Watch, uma vez que tinha
partido o último em mil pedaços na base de mármore da casa de banho dos
pais de Steven. Também comprou um para si, mas escolheu em pele a
condizer em vez de Hermès. Ainda tinha sentimentos contraditórios em
relação ao presente, mas lembrou-se de que o tinha perdoado e podia ser
uma boa lembrança para ele usar todos os dias.
Lolly deu um grande abraço à mãe antes de sair para a escola, e desejou-
lhe um feliz Dia dos Namorados.
– Manda-me uma mensagem quando saírem do médico e diz-me o que se
passa com a Kimmie, está bem? – acrescentou ela, genuinamente
preocupada com sua irmãzinha, pelo menos por um momento. Lolly
suspeitava que não havia hipótese de Kimmie melhorar até este dia ter
terminado. Afinal de contas, que rapariga queria que lhe lembrassem que
não havia um rapaz lá fora a pensar nela da maneira que Lolly sabia que
Steven estava a pensar nela?

II
Anna estava na secretaria da Greenwich Academy antes de ir para a aula,
para entregar a justificação das faltas por ter ido à Exposição Canina de
Westminster, em Manhattan. Tinha faltado a metade das aulas no dia
anterior para poder ver os seus dois cães a participar nas exposições dos
terra-nova, específicos para cada sexo. Gemma, apesar de não ter ganho o
prémio de Melhor Cadela, tinha recebido o prémio de Mérito, o que, apesar
de ser uma honra, significava que não ia avançar mais. Mas o seu irmão,
Jon Snow, diminutivo de «Jon Snow da Muralha», ganhou o prémio de
Melhor Raça. Isso significava que ele avançava para a etapa seguinte e seria
exibido no grupo de Cães de Trabalho, que seria avaliado ao meio-dia. Se
ganhasse, iria participar no evento principal da noite, onde competiria pelo
prémio Melhor da Exposição na televisão nacional. Ela sabia que a
competição era difícil e disse a si própria que não se importava se Jon Snow
não ganhasse, e que se devia considerar uma felizarda por ter ele chegado
até aqui. Ela planeava ficar e assistir ao evento até o último cão ganhar a
taça de estanho polido e ser declarado o Melhor da Exposição.
Entregou os trabalhos de casa a May, a funcionária da secretaria, que
estava vestida de vermelho, desde os sapatos à bandolete de veludo
vermelho.
– Não te esqueças de ir ao teatro...
A Greenwich Academy tinha instituído uma nova política para o Dia dos
Namorados no primeiro ano de Anna, que proibia as raparigas de receberem
presentes durante as aulas. Sendo uma escola sobretudo de raparigas ricas,
havia uma grande pressão sobre os namorados para que enviassem
presentes exagerados. Tornou-se uma competição. Durante anos, os rapazes
de Brunswick brincaram com o facto de o Dia dos Namorados ter mais
baixas do que o Dia D, uma vez que algumas raparigas da escola
terminavam as relações se os seus namorados não lhes oferecessem algo
verdadeiramente deslumbrante ou, pior ainda, oferecessem um presente de
qualidade inferior que não impressionasse o destinatário.
Tudo isto atingiu o seu apogeu há três anos, quando, de repente, oferecer
rosas do Equador às namoradas se tornou obrigatório, apesar de não ser do
conhecimento de alguns dos namorados menos atentos de Brunswick, e
Mavis C. chamou a atenção de Bridget B. para isso:
– Ei, Bridget, ouvi dizer que as tuas rosas nem sequer são do Equador! –
As duas raparigas foram atrás uma da outra com tacos de hóquei em patins
no corredor e a briga resultou num lábio ensanguentado, numa clavícula
partida e em quinze pontos. (Mais tarde, foram vendidas t-shirts e bonés EI,
BRIDGET… e angariou-se dois mil dólares para a viagem de finalistas).
Agora a política para o Dia dos Namorados da escola ditava que as entregas
só podiam chegar às 8h00, ao meio-dia e às 14h00 e eram enviadas para o
centro de artes cénicas da escola. As raparigas podiam ver – mas não
podiam publicar nas redes sociais – o que lhes era enviado, e nada podia ser
retirado do teatro até ao final do dia de aulas.
Quando Anna entrou no teatro da escola com quinhentos lugares, sentiu-
se invadida pelo cheiro a rosas. Como a campainha para o primeiro período
estava quase a tocar, o teatro já não estava muito cheio. Anna foi ter com a
treinadora Sykes, que estava de serviço às flores da manhã e vestia uma t-
shirt lavanda EI, BRIDGET. A treinadora Sykes examinou a sua prancheta e
disse a Anna que tinha duas entregas. Anna explicou que estava de saída,
pelo que as levaria consigo. Ela assinou o seu nome e foi-lhe dito que os
presentes estavam na secção número onze do palco.
Nos últimos dois anos, Alexander tinha enviado a Anna uma caixa com
duas dúzias de rosas vermelhas de haste longa, mas ela tinha-lhe dito
especificamente para não se incomodar quando jantaram no domingo à
noite. Ela tinha apanhado o comboio para Westport para se encontrar com
ele no bistrot francês preferido de ambos para um jantar antes do Dia dos
Namorados e voltariam a celebrar dentro de duas semanas quando ela fosse
a Cambridge visitá-lo. Como de costume, eram as pessoas mais novas no
restaurante e Alexander tinha combinado entregarem-lhe as rosas durante a
sobremesa. Alexander era sempre atencioso, mas por alguma razão os seus
gestos nunca pareciam muito românticos, mas Anna não conseguia explicar
porquê.
Anna não percebia todo o alarido em torno do Dia dos Namorados.
Claro, ela compreendia o apelo das flores e dos presentes, mas aos
dezassete anos já tinha recebido mais bouquets incríveis do que a maioria
das mulheres alguma vez receberia na vida. E a mera obrigatoriedade
daquela data fazia-a sentir-se sempre estranha e um pouco vazia. Além
disso, dependendo do seu humor, cortar flores fazia Anna sentir-se
melancólica. Parecia triste ver algo tão bonito morrer apenas para seu
próprio prazer.
O seu pai também lhe enviava sempre flores, mas esta manhã estavam à
sua espera no balcão da cozinha quando ela desceu as escadas. O cartão
dizia: «Para a minha adorável filha, do único homem que nunca te
desiludirá. Feliz Dia dos Namorados, Anna! Com amor, Papá.» A mãe
tinha-lhe oferecido um vale de oferta para um Dia de Beleza no spa do Four
Seasons.
Ela subiu as escadas até ao palco coberto por dezenas e dezenas de vasos
cheios de rosas, pelo menos quarenta ursos de peluche gigantes e mais de
cem caixas de chocolates. Enquanto observava atentamente os presentes,
perguntou-se se Steven lhe tinha enviado flores este ano. Não era normal
eles trocarem presentes, mas dado a ajuda que dera no fim de semana
passado, não estava fora de questão. O irmão era um tipo incrivelmente
generoso, que gastava dinheiro como um louco. Anna nunca lhe perguntara
quanto é que ele recebia de mesada, mas sabia que era maior do que a dela.
Só que também sabia que o seu orçamento anual para comprar roupa era o
dobro do orçamento do irmão, por isso as coisas equilibravam-se.
Steven justificava o seu consumismo excessivo como sendo genético – os
coreanos tinham a reputação de adorar todos os artigos de marca e objetos
eletrónicos topo de gama. Anna conhecia o estereótipo, mas nunca o usara
como desculpa quando as faturas do cartão de crédito eram demasiado
elevadas – o que era raro nela, mas acontecia todos os meses ao irmão.
A mãe dela tinha sido criada com os costumes dos ricos antigos e
tradicionais, sem nunca lhe ter faltado nada, mas também nunca ostentou,
embora quando conheceu o pai de Anna em Yale, tenha admitido que ele lhe
deu a volta à cabeça. Todos os anos, enquanto andaram na universidade, ele
aparecia com um carro novo e topo de gama e, quando estavam no último
ano e ele andava num Lamborghini cor de laranja, ela dava por si a perder
tempo depois das aulas, pois sabia que ele passaria por lá e lhe ofereceria
boleia. Ela resistira ao seu charme astuto e tinha recusado as boleias dele
durante dois anos seguidos. Não é que não se tivesse interessado por ele
antes, mas conhecia demasiado bem os rapazes ricos para saber que ele
precisava de alguns anos para entrar em campo.
A mãe de Anna tinha sido educada para se preocupar bastante com o seu
apelido e reputação, por isso não havia hipótese de ela se tornar em mais
um nome riscado na lista de «quecas» de um rapaz rico. Quando ele
apareceu naquele dia de outono, do seu último ano em Yale, e lhe perguntou
se ela queria ir ver as folhas a cair com ele, ela surpreendeu-se a si, e a ele,
ao responder:
– Só se me deixares conduzir.
A mãe de Anna foi a primeira e única rapariga a quem foi permitido
conduzir o seu Lamborghini, que até hoje continua a ser o carro preferido
do pai.
Quando Steven fez dezassete anos e tirou a carta de condução, o pai
comprou-lhe um Porsche 911 S descapotável. Ele conduziu-o durante um
mês, recebeu três multas por excesso de velocidade até ter acordado uma
manhã para descobrir que o carro tinha desaparecido e sido substituído por
um BMW M5.
Anna conduzia uma carrinha Mercedes com dez anos, o «carro da ama»
em segunda mão, porque insistiu que não queria um carro vistoso como
presente para o seu 16.º aniversário. Ela sabia que não valia a pena conduzir
nada mais bonito, pois ia ficar coberto de pelo e baba de cão. Para além
disso, só podia conduzir em Connecticut, porque o pai era demasiado
protetor para deixar a sua preciosa menina conduzir com mau tempo ou na
cidade.
– Lembra-te, ainda és metade coreana, o que significa que todos vão
assumir que és, pelo menos, um pouco má a conduzir. – Anna odiava
quando o pai brincava com os estereótipos raciais, mas, como uma boa filha
coreana, sabia que era impossível chamar a atenção ao pai.
Finalmente, encontrou uma caixa em forma de coração dirigida a ela.
Abriu rapidamente o cartão e viu a caligrafia de assassino em série do
irmão: «Feliz Dia dos Namorados, mana. Devo-te muito! Com amor,
Steven.» Depois abriu a caixa e viu que ele lhe tinha enviado uma dúzia dos
seus ratos de chocolate preferidos da Burdick. Ela meteu a caixa na mala e
continuou a procurar. Como não encontrou nada, estava quase a desistir
quando reparou numa caixa de cartão quadrada e simples com o seu nome
escrito a marcador no topo. Só teve tempo de a apanhar, pois tinha acabado
de receber uma mensagem de Thomas, o seu motorista, a dizer que estava lá
fora à espera para a levar para Westminster.
Ao avançar pelo corredor vazio, Anna perguntou-se o que estaria na
caixa. Tinha a sensação de que sabia de quem era e só de pensar nele o seu
coração começou a bater mais depressa. Ela quase esperava que fosse
apenas um presente de rotina do namorado, mas sabia que não era o caso.
Sentiu uma pontada de culpa por estar tão entusiasmada com a
possibilidade de não ser de Alexander, mas apenas ligeira, não o suficiente
para apagar o sorriso gigante do seu rosto.

III
Kimmie estava parada à porta do prédio da mãe, à espera que o motorista
da Uber chegasse, enquanto Danielle voltava a casa a correr para ir buscar o
frasco quase vazio de creme para as olheiras. O itinerário da mãe implicava
uma ida ao consultório médico e depois umas compras na Saks, que ficava
a uma avenida de distância do consultório do Dr. Becker. O plano dela era ir
ao médico, recusar-se a acompanhar a mãe ao Saks e voltar para casa, para
a cama, e continuar a ver «My So-Called Life», uma antiga série de
adolescentes que tinha encontrado depois de mergulho profundo na Netflix.
Ela queria ir médico a usar uma sweatshirt, mas a mãe não deixou.
Segundo ela, as calças de fato de treino com cordão eram o bater no fundo
do poço para qualquer rapariga adolescente. A mãe andava muito vigilante
em relação à sua dieta desde que voltou para casa, e passava a vida a
lembrar a filha de que já não podia comer como alguém que treina sete
horas por dia. Sem dizer uma palavra, Kimmie foi para o quarto e vestiu
umas leggings pretas e a sua camisola Skull Cashmere preta larga, que
combinava com o seu estado de espírito atual. A reação da mãe à sua nova
indumentária não foi a melhor.
– Não estamos em Los Angeles, estamos em Nova Iorque. Aqui as
leggings para fazer SoulCycle não são consideradas vestuário adequado. Vai
mudar de roupa. Talvez para algo um pouco menos sombrio?
Kimmie voltou para o quarto, odiando a sua vida um pouco mais do que
odiava cinco minutos antes. Substituiu as leggings por calças de ganga
pretas, mas manteve a camisola com adornos de caveira.
– A sério? – murmurou para si própria ao ver o quarto lembrete do Dia
dos Namorados nos dois minutos que tinha estado lá fora. Houve uma
carrinha de entrega de flores, um mensageiro de bicicleta com uma caixa de
rosas debaixo do braço, um porteiro a assinar um cesto de tulipas cor-de-
rosa e um carro que acabara de passar com um urso de peluche vermelho
gigante no banco do passageiro. Ao olhar para o estúpido urso, Kimmie não
sabia se queria cuspir no vidro do carro ou sentar-se no passeio e chorar.
Naquele dia, até àquele momento, só tinha chorado duas vezes, o que não
era nada mau.
Que diferença podia fazer duas semanas. Por mais que Kimmie agora
desprezasse esta data ridícula, tinha passado a maior parte do mês anterior a
alimentar grandes fantasias com o Dia dos Namorados. A sua favorita
envolvia Vronsky a aparecer na escola ao fim do dia, para a ir buscar, o que
seria incrível porque todos os colegas iam testemunhar. Imaginou uma cena
parecida com a última cena de 16 Primaveras, o filme preferido da mãe
quando era adolescente. Kimmie nunca tinha ouvido falar dele, claro, uma
vez que era do «século anterior ao dela ter nascido» – uma expressão que
ela adorava dizer, porque deixava a mãe furiosa –, mas viu-o há vários anos,
quando regressou a Nova Iorque, nas férias do campo de treinos, no ano em
que o pai se casou com a sua atual madrasta. A mãe de Kimmie teve seis
meses difíceis a seguir a esse casamento profano.
Kimmie tinha chegado a casa do ginásio ao fim da tarde e encontrou a
mãe ainda na cama, a ver os últimos minutos de 16 Primaveras vezes sem
conta. Mas não estava a ver o filme normalmente; era algo completamente
diferente. Kimmie viu a mãe ver o filme sete vezes seguidas e depois ligou
a Lolly, que estava na escola. A irmã não atendia o telemóvel, por isso
Kimmie ligou para a secretaria da escola e pediu-lhes que encontrassem a
irmã no ensaio da peça de teatro, porque havia uma emergência familiar.
Quando Lolly pegou no telefone na secretaria, estava a chorar histérica,
presumindo que alguém tinha morrido. Kimmie disse à sua irmã mais velha
para parar de chorar e apenas ouvir. Lolly gritou com a irmã mais nova por
a ter assustado e depois deu a Kimmie a sua primeira lição sobre como
reconhecer o estado de estupor dos calmantes. A teoria de Lolly era que, por
vezes, quando a mãe não conseguia dormir mesmo depois de tomar um
Ambien, tomava outro de manhã, mas depois esquecia-se. Tomava então o
seu café Nespresso habitual para evitar uma dor de cabeça provocada pela
cafeína e voltava para a cama. Isto produzia um estado de fuga estranho,
induzido quimicamente, em que a mãe parecia estar acordada, mas na
realidade estava a dormir.
– Deixa-me adivinhar – disse Lolly. – Ela está a ver televisão?
– Sim! – respondeu Kimmie.
– O que é que ela está a ver?
– Um filme qualquer antigo chamado 16 Primaveras – disse Kimmie. –
Mas ela só está a ver os últimos cinco minutos e, quando acaba, levanta o
braço como a ex-mulher do Frankenstein e rebobina para a parte em que a
ruiva sai da igreja com um vestido feio. Ela fez isso umas sete vezes
seguidas. Está a assustar-me.
– Já me aconteceu o mesmo que a ti. Olha, também me passei da cabeça
quando vi a mãe assim pela primeira vez. É estilo «Stranger Things»
encontra a «Atividade Paranormal» num roupão de quatrocentos dólares! –
sussurrou Lolly, porque ela sabia que a secretária intrometida da escola
estava a tentar ouvir a conversa. – Não te preocupes, ela acaba por parar.
Mas uma vez, há anos, sentei-me com ela quando estava a ver a
transformação da Hathaway em O Diabo Veste Prada e ela finalmente
concordou em comprar-me uma mini mochila Prada azul-marinha. Por
isso, também há benes.
– O que são benes? – perguntou Kimmie. Nada a fazia sentir-se tanto a
irmã mais nova do que não perceber o calão cool da irmã mais velha.
– Benefícios, idiota. Okay, tenho de ir. E da próxima vez, sê uma pessoa
normal e manda-me uma mensagem em vez de ligares para a escola e
assustares-me.
Kimmie, que agora compreendia tudo e sentia pena da mãe, sentou-se e
viu o final de 16 Primaveras com ela pelo menos mais dez vezes, e mais
tarde pegou no DVD e viu tudo no portátil. Por causa desse dia, os últimos
cinco minutos do filme ficaram gravados na memória de Kimmie para
sempre.
Na versão atualizada de Kimmie para o Dia dos Namorados, ela estava a
usar roupas diferentes, claro, provavelmente um vestido cor-de-rosa, o que
parecia básico, mas Kimmie não tinha culpa dessa cor cliché ser a que lhe
ficava melhor. Apesar de Kimmie achar a coroa de flores cansativa, tinha
uma como a ruiva, só que não com cores tão nojentas e de certeza sem
hálito de bebé. Assim que a rua ficasse livre, lá estaria ele. O Conde
Vronsky era sem dúvida o seu Jake Ryan, mas em vez de um Porsche
vermelho, estaria encostado a um Maserati preto. Mas Vronsky faria
exatamente o mesmo sorriso tímido e o aceno que Jake Ryan fazia no filme.
Na versão de Kimmie, ela não faria a cena do «quem, eu?», a olhar para trás
em choque, porque Kimmie saberia que ele estava lá para ela. E ele estaria
a segurar uma caixa de marshmallows de chocolate em forma de coração,
porque afinal de contas era o Dia dos Namorados.
Kimmie tinha mesmo acreditado que este seria o primeiro Dia dos
Namorados da sua vida em que ia estar apaixonada e ter um namorado. Mas
isso foi antes do Sábado Nojento, que era como ela chamava àquela noite
agonizante na discoteca.
– Vá lá Kimmie, para de sonhar acordada. Vamos embora! Estamos
atrasadas. – A mãe levou-a para o banco de trás do Uber, que estava à
espera na berma da estrada. Kimmie ficou horrorizada ao descobrir que era
o mesmo carro com o urso de peluche vermelho gigante no lugar do
passageiro da frente que tinha passado por ela mais cedo. Se ela
sobrevivesse a este dia ridiculamente estúpido, seria um verdadeiro milagre.

IV
Anna segurou a caixa de cartão no colo durante alguns minutos antes de a
abrir. Começou conversar um pouco com Thomas, um dos motoristas
habituais do pai. Como já não o via há algum tempo, ele mostrou-lhe
algumas fotografias dos seus netos gémeos, nascidos no dia de Ano Novo,
na Virgínia. Em troca, Anna explicou-lhe o funcionamento interno de
Westminster, o que a fez lembrar-se de que se tinha esquecido de trazer os
brinquedos de peluche em forma de coração que tinha comprado para os
seus dois cães.
Lee Ann e Ali, as treinadoras e tratadoras dos seus cães, tinham ido
buscar Gemma e Jon Snow no domingo à noite, antes de Anna sair para
jantar com Alexander. Ela precisava de os habituar a estarem sem ela e
ambos iam ser lavados e tratados na segunda-feira de manhã na cidade.
Anna podia ter trazido Gemma de volta a Greenwich ontem à noite, mas
decidiu que Jon Snow ficaria mais calmo com a irmã por perto. Isso fez
Anna lembrar-se do seu próprio irmão, que se metia em menos sarilhos
quando ela estava por perto.
Anna reparou que tinha as mãos a tremer quando começou a desapertar a
fita da caixa. Sabia que estava a ser parva, mas não havia nada que pudesse
fazer para se acalmar. Nunca iria arranjar emprego na brigada de minas e
armadilhas, isso era certo.
Desde que se separaram na estação de comboios, há onze dias, que Anna
não o tinha visto. Bem, isso não era propriamente verdade. Um dia, na
semana passada, decidiu sentar-se ao almoço com Beatrice, e conversaram
sobre o quanto se tinham divertido na festa de Jaylen. E como num jogo do
gato e do rato, nenhuma das raparigas mencionou o nome de Vronsky.
Quando Anna perguntou a Beatrice se tinha ficado na cidade nesse fim de
semana, ela disse-lhe que tinha voltado a Greenwich no domingo para estar
com a família. Mostrou a Anna uma fotografia do novo Range Rover
personalizado da mãe, que o pai de Beatrice lhe oferecera como presente do
Dia dos Namorados. Na fotografia, Anna reparou que Vronsky estava no
lugar do condutor, mas não estava virado para a câmara. Ao olhar para a
fotografia, precisou de todas as suas forças para não pegar no telemóvel de
Bea e ampliar a fotografia para poder estudar o perfil dele. Em vez disso,
comentou que sempre adorou os laços vermelhos gigantes que vinham nos
carros novos e que gostava de saber onde é que eles eram feitos.
– Sem dúvida que foram feitos por mãos pequenas na China – disse
Beatrice. Anna não reagiu, embora tenha reparado que Beatrice se
apercebeu do seu erro, mas não pediu desculpa, provavelmente por ter
pensado que Anna não ficaria ofendida por não ser chinesa. Este era
exatamente o tipo de comentário sarcástico que Steven faria, por isso Anna
estava habituada, embora não aprovasse.
– A tua mãe ficou feliz com o carro novo? – perguntou Anna.
– Sim e não. Ela chamou-me à parte e perguntou-me se eu sabia de
alguma razão para o meu pai se sentir culpado suficiente para lhe comprar
um carro novo. Ela tinha comprado um carro novo há dois anos e a minha
mãe raramente conduz. – Beatrice riu-se, mas, mais uma vez, Anna ficou
calada. Não podia deixar de sentir que Bea a estava a testar, por isso queria
ter cuidado com o que revelava.
– O teu pai tinha alguma razão para se sentir culpado? – Anna mordeu o
isco.
– Depende do grau de puritanismo dos valores de cada um – respondeu
Bea com naturalidade. – Para mim, não. Mas será que ele tem alguma
boazona de vinte e poucos anos a saltar-lhe para a pila?
Absolutapositivamente! O meu pai não é nenhum santo.
– Nem seria de esperar que fosse, visto que és a bolota da árvore dele –
disse Anna.
– Caramba, rapariga! Sempre soube que tinhas um pouco de Veronica aí
dentro – gritou Bea.
O primeiro instinto de Anna foi pedir logo desculpa, mas antes de o
poder fazer, Beatrice colocou a unha perfeitamente arranjada sobre os lábios
de Anna para a impedir.
– Não te atrevas a pedir desculpa. As Bettys são très aborrecidas, e eu sei
que tu não és assim. – Anna, satisfeita com o elogio, passou o resto do
almoço com Bea e as amigas, um grupo de raparigas populares cujos
tópicos de conversa iam da moda aos rapazes e aos mexericos, com piadas
secas e muitas gargalhadas. Foi uma mudança bastante divertida para Anna,
que também se sentou com elas mais algumas vezes. Nesse ano, ela passava
os almoços a fazer os trabalhos de casa, agora que Alexander estava na
faculdade e já não almoçava com ele na cantina de Wick.
No carro, Anna tirou a tampa da caixa e olhou para o conteúdo. Dentro
havia um envelope e dois pequenos presentes embrulhados em papel
vermelho e fitas brancas. Na maior das duas caixas, ela encontrou duas
lindas coleiras de couro vermelhas para os cães. Cada uma tinha um
amuleto gravado em forma de coração pendurado na argola de prata com os
nomes dos seus cães de um lado e o seu número de telefone do outro. Havia
um pequeno cartão branco no fundo da caixa que dizia: «Boa sorte para a
Melhor Exibição!» Anna nem se apercebeu de que estava a sorrir até
Thomas comentar do lugar do condutor.
– Alguém parece feliz. Presentes de Alexander W.?
Ao ouvir o nome do namorado, Anna, foi acometida uma onda de
vergonha.
– É do meu irmão. Fiz-lhe um favor há pouco tempo e ele está a
agradecer-me, acho eu. – Anna suspirou. Aqui está. A primeira mentira. Ela
afastou os pensamentos e abriu a outra caixa, que continha uma pequena
bolsa de veludo vermelho presa com um cordão. Abriu-a e tirou o que
parecia ser um amuleto de coleira para cão, mas mais pesado do que os
outros. O berloque era um coração grosso e brilhante, um pouco maior do
que uma moeda. Ela sabia o suficiente sobre joias para reconhecer que este
amuleto era provavelmente de ouro branco ou platina, pois era pesado.
Anna observou com atenção e viu que, de um lado do coração, estava
gravada a palavra TU e, do outro lado, a palavra EU. Ao ler as palavras, ela
ofegou.
– Está tudo bem, Miss K.? – perguntou Thomas.
Ela acenou rapidamente com a cabeça, incapaz de falar, de súbito com a
boca seca. Anna meteu rapidamente o amuleto no bolso, pegou no envelope
e fechou a caixa, e decidiu que, quando chegasse ao Madison Square
Garden, o guardaria na mala de viagem. Tinha planeado dormir nessa noite
na cidade.
Quando enviou uma mensagem a Steven a dizer-lhe os seus planos, ele
contou-lhe como ia ser o seu Dia V, e mencionou que, como Lolly não
podia passar a noite no hotel, ele planeava voltar para casa depois de a
deixar.
Apesar de Steven provavelmente não se lembrar, ele contou-lhe uma vez,
bêbado, sobre o quarto de hotel do pai deles no St. Regis. Era um quarto
alugado pela empresa para qualquer executivo de nível C que estivesse a
trabalhar até tarde e não conseguisse chegar a casa – o escritório do pai
ficava a dois quarteirões –, mas pelo que ela percebeu, a única pessoa que
tinha a chave do quarto era o pai. Steven tinha-lhe pedido autorização para
o usar no Dia dos Namorados, e ela perguntava-se se Steven iria contar a
Lolly que a suíte podia ou não ser usada pelo pai deles para se encontrar
com outras mulheres.
Quando descobriu do quarto de hotel, Anna não soube o que pensar. Aos
seus olhos, o pai era perfeito e não gostava de pensar que ele guardava
segredos da mãe. Confortava-a a ideia de que os pais tinham um casamento
feliz há mais de vinte anos e que talvez a mãe soubesse do quarto. Anna não
era ingénua e tinha lido livros suficientes para saber que o casamento era
complicado e que alguns casais tinham certos «arranjos». Mas custava-lhe a
acreditar que a mãe fosse o tipo de mulher que fechasse os olhos.
Já estavam em Manhattan quando Anna ganhou coragem para abrir o
último envelope. Era mais pequeno do que um cartão de felicitações normal
e também mais fino. Dentro do envelope, estava um desenho a preto e
branco, do tamanho de um postal, de quatro homens de fato e óculos de sol
a posar num conjunto de escadas. O desenho era bastante detalhado, mas
não continha palavras, e Anna não percebeu quem eram esses homens ou o
que era suposto representarem.
Anna adorava um bom mistério, mas estava irritada com o desenho.
Como não o compreendia sentia-se estúpida, e deu voltas à cabeça, a
lembrar-se de tudo o que tinham dito um ao outro, e que era muito pouco.
A maior quantidade de tempo que tinham passado juntos até então tinha
sido na pista de dança, mas mal tinham falado durante horas; a principal
comunicação entre eles naquela noite tinha sido através da dança.
Depois, de repente, fez-se luz. Abriu o telemóvel e escreveu as palavras
«Now that we found love». Carregou para pesquisar. Heavy D & The Boyz
era o nome do grupo que cantava a canção da discoteca. Anna carregou em
«imagens» e apareceram várias fotografias da banda. Uma delas era a pose
exata do postal que tinha na mão. Procurou a letra e leu-a novamente, o que
a levou de volta à última dança da noite.
Agora que encontrámos o amor, o que vamos fazer… com ele?
Anna sorriu, com os olhos a brilhar de felicidade perante a mensagem
secreta. Ficou a olhar para a pequena obra de arte e pensou em Vronsky a
desenhá-la à mão para ela enquanto ouvia a canção, a pensar nela enquanto
desenhava. Que conjunto maravilhoso de presentes de São Valentim, cada
um mais surpreendente e único do que o outro. Estes presentes eram très
românticos! Não podiam ter sido dados a nenhuma outra rapariga; eram
para ela e só para ela.
Foi então que Anna admitiu finalmente que também tinha estado a pensar
nele durante a última semana e meia. Ela tinha-se perguntado se Vronsky se
lembrava que os seus cães iam competir em Westminster, e agora tinha a
confirmação de que ele se lembrava. O coração começou a bater mais
depressa ao pensar que ele talvez lá estivesse. Será que ele se atreveria?
Seria assim tão ousado?
Anna tirou a bolsa de maquilhagem da mala e decidiu que talvez fosse
necessário um retoque. Como a mãe sempre a aconselhou, nunca se sabe
quando é que nos vão convidar para irmos ver as folhas a cair no
Lamborghini de um rapaz giro.

V
Kimmie já não via o Dr. Becker há anos – os atletas de competição
consultam médicos de medicina desportiva e, no ano passado, ela só tinha
falado com cirurgiões ortopédicos por causa do joelho. Mas o Dr. Becker
era o seu pediatra desde que nascera.
Depois de alguns minutos de conversa com a mãe na sala de exames, ele
pediu-lhe que esperasse lá fora enquanto examinava Kimmie. Assim que a
mãe saiu, o seu comportamento mudou. O Dr. Becker era o médico de
eleição de muitos miúdos ricos de Manhattan, por isso era um médico que
já tinha visto e ouvido de tudo. Era incrivelmente bem-sucedido porque
sabia como lidar com os pais das crianças ricas, bem como com as próprias
crianças.
Kimmie contou-lhe que tinha começado a sentir-se misteriosamente
dorida e cansada há uma semana e meia e depois calou-se. O Dr. Becker
olhou para ela com um ar que dizia: «Deixa-te de tretas e conta-me a
verdade.» Havia algo no seu olhar que a fez perceber que tinha de fazer isso
mesmo e foi então que começou a chorar... e a tagarelar. Ele ouviu um
pouco e depois escreveu qualquer coisa no seu iPad. Vê-lo a registar a sua
história de infortúnio deixou-a incrivelmente constrangida, por isso parou
de falar.
– Então, começaste a sentir-te mal depois da festa da tua amiga, no dia
dois, mas tens estado a sentir-te pior nos últimos cinco dias, é isso? –
perguntou o Dr. Becker.
Kimmie acenou com a cabeça.
– Durante essa festa, estavas a beber ou a consumir drogas? – interrogou,
incitando-a a continuar.
Ainda a chorar, ela abanou a cabeça. Como se alguma vez se atrevesse a
admitir tal coisa ao homem que lhe costumava dar chupa-chupas depois de
cada visita.
– Kimmie, o que falamos aqui é confidencial, por isso não vou contar à
tua mãe. Só tenho a obrigação de lhe dizer alguma coisa se achar que és um
perigo para ti mesma ou para os outros. Por isso, diz-me, bebeste ou
consumiste drogas na festa?
Ela decidiu que afinal não se importava com o que ele pensava a seu
respeito e começou a falar, apercebendo-se de que, assim que o fez, já não
podia parar. Sentia-se bem por ter finalmente alguém com quem desabafar.
Contou-lhe como estava a passar um mau bocado agora que era novamente
uma «civil», que já não era uma esperança olímpica, mas apenas uma
adolescente normal. Quem diria que ir para a escola em Spence seria muito
mais difícil do que acordar às 4h30 da manhã e ir para a pista de gelo para
treinar? Ela nunca se importou com a sua rotina matinal, principalmente
porque quando estava sozinha no gelo, tinha muito tempo para pensar.
Kimmie admitiu ter tido insónias durante o primeiro mês de aulas porque
detestava a forma como as outras raparigas cochichavam sobre ela, e sentia-
se demasiado velha para fazer novos amigos. Claro que tinha mais
facilidade do que a maioria dos novos alunos por causa da irmã mais velha,
mas ainda assim era difícil. Normalmente, Lolly estava demasiado ocupada
com os seus amigos da alta sociedade. Kimmie gostava muito dela, mas os
primeiros anos da adolescência de ambas tinham sido bastante diferentes,
porque ela estava sempre a viajar para competições e quase não passava
tempo em casa, o que não lhe permitiu criar uma relação tão próxima com a
irmã como gostaria. Sentia que estava muito atrasada no seu
desenvolvimento social e estava a lutar para recuperar o atraso.
– Não estou habituada a não ter jeito para as coisas – lamentou-se ela. –
As raparigas adolescentes são ainda mais críticas do que os juízes da
patinagem artística!
– Nunca foi feita uma afirmação tão verdadeira – respondeu o Dr. Becker
com simpatia.
Kimmie acabou por lhe contar que tinha experimentado ecstasy na
véspera do Ano Novo e tomado cocaína pela primeira vez na discoteca,
culpando o namorado da irmã por lhe ter dado as drogas. Depois, o Dr.
Becker explicou-lhe como era uma ressaca de cocaína e como, ao consumi-
la, Kimmie tinha rebentado com todas as unidades de armazenamento de
dopamina no cérebro. Era por essa razão que estava tão cansada e precisava
de uns dias para recuperar.
– Mas se esta foi mesmo a tua primeira experiência com cocaína, isso
não explica porque é que ainda te sentes tão mal e choras onze dias depois.
Pergunto-me se há mais alguma coisa? Garanto-te que já ouvi tudo isto
antes. Não quero dizer que a tua infelicidade não seja especial, porque é. Só
estou a dizer que tens de confiar em mim e dizer-me se há algo mais.
Porque, se tivesse de adivinhar, diria que pode haver um rapaz envolvido.
Kimmie acenou com a cabeça, envergonhada, e acabou por contar tudo
sobre a sua humilhação vergonhosa às mãos de Vronsky.
– Pensava que ele estava interessado em mim! – confessou ela, a olhar
para o chão. – E eu... Eu amava-o. Ou, pelo menos, pensava que sim. Ele
usou-me e eu sinto-me tão estúpida!
Quando o Dr. Becker lhe perguntou se ela tinha tido relações sexuais com
Vronsky, ou com qualquer outro rapaz, ela corou que nem um pimentão e
afirmou enfaticamente que não.
– De maneira nenhuma, nunca o faria. Só fizemos... outras coisas. –
E ficou a ver o pediatra a escrever uma frase no iPad. Horas mais tarde, no
táxi a caminho de casa, Kimmie perguntar-se-ia o que é que ele teria escrito
e se seria algo do género «Protesta demasiado».
Depois de terminado o exame físico e de a enfermeira lhe ter tirado
quatro tubos de sangue do braço para os testes que ele tinha pedido, o Dr.
Becker entregou-lhe um chupa-chupa vermelho em forma de coração com a
palavra amor impressa a branco.
– Desculpa, miúda, mas estes são os únicos que tenho hoje – desculpou-
se ele. – Sei que te sentes mal por causa do tal Vronsky, mas tenho a certeza
de que vais encontrar alguém que mereça o teu amor.
Enquanto esperava pelo elevador com a mãe, Kimmie pensou nas últimas
palavras do médico, que ela sabia que ele dissera para a fazer sentir-se
melhor, mas que, em vez disso, a deixaram pior. Porque não era verdade.
Apesar de, neste momento, odiar Vronsky, ela sentia que não havia ninguém
mais merecedor do seu amor que ele em toda a cidade. Olhou para a palavra
AMOR impressa no chupa em forma de coração que tinha na mão e o lábio
inferior começou a tremer. Atirou-o para o caixote do lixo ao lado do
elevador, mas era tarde demais, uma tempestade de lágrimas começou a
cair.
A mãe obrigou-a a ir à Saks de qualquer maneira e, enquanto Kimmie
seguia três passos atrás dela na Quinta Avenida, culpava Lolly pela falta de
atenção da mãe – a irmã era a rainha dos ataques de choro e tinha feito
tantas birras cheias de lágrimas ao longo dos anos que tinha tornado a mãe
imune ao sofrimento de Kimmie. Absteve-se estoicamente de dizer que, nos
seus quinze anos, provavelmente só tinha chorado à frente da mãe um
punhado de vezes, e a maior parte delas tinha sido de raiva por ter perdido
uma competição.
Mas o que realmente a irritava era ser incapaz de controlar o choro.
Tentara e voltara a tentar, sozinha no quarto, no escuro da noite, quando já
não conseguia dormir. Ordenava a si própria que «parasse de chorar como
uma anormal», mas não funcionava. Ela sabia que tinha todo o direito de
chorar pelo que lhe tinha acontecido na festa de Jaylen, porque estava de
coração partido depois da sua experiência com Vronsky. Era difícil saber o
que a magoava mais, o facto de ele não partilhar dos seus sentimentos ou ter
escolhido outra pessoa em vez dela.
Teve muitas horas para pensar em tudo o que aconteceu, e a única coisa
que a fez sentir-se um pouco melhor foi quando tentou afastar-se e olhar
para tudo à distância. Kimmie não era cega. Anna tinha coisas com as quais
ela não podia competir. A beleza dela era exótica, muito mais excitante do
que o seu louro falso; era mais velha e sofisticada do que ela; e, mais
importante, não estava disponível. Anna deu-lhe a volta à cabeça, e todos
homens adoram uma perseguição. Além disso, talvez ter de competir com o
namorado universitário de Anna, que era bem visto, tornasse a situação
demasiado tentadora para Vronsky a deixar passar. A pobre Kimmie não
tinha qualquer hipótese.
Por vezes, Kimmie queria que Anna sofresse o mesmo destino que ela,
que fosse arrastada para a esquerda, assim que o próximo objeto brilhante
chamasse a atenção de Vronsky. Mas, por vezes, esperava que Anna fosse a
rapariga que tinha o poder de o derrubar de uma vez por todas. Se alguém
podia fazer tal coisa, era sem dúvida a perfeitamente invejável Anna K.
Kimmie sabia que estes cenários eram pura especulação. Ela só tinha
visto Vronsky e Anna a dançarem juntos na discoteca por alguns momentos
e não os tinha visto a beijarem-se. Ela até perguntou à irmã se Vronsky e
Anna se tinham beijado na festa, mas Lolly garantiu-lhe que não. Anna
tinha namorado e nunca teria uma atitude de cabra tão básica com o OG. No
entanto, isso não voltou a dar esperanças a Kimmie de estar com Vronsky.
Ela tinha visto a forma como ele olhava para Anna quando estavam a
dançar. Ele nunca tinha olhado para Kimmie daquela maneira.
Kimmie estava agora num ponto em que sabia que, no fundo, o que mais
sentia era aversão de si própria. Como é que ela podia ter sucumbido tão
facilmente ao charme de Vronsky? Como é que ela pôde acreditar que ele a
amava como ela o amava?
Depois de uma paragem no balcão de cosmética SK-II, Kimmie tentou
mais uma vez convencer a mãe a deixá-la ir para casa para poder passar o
dia amuada. Mas, mais uma vez, a mãe manteve-se firme e recusou.
– Precisas de almoçar. Talvez o teu ferro esteja baixo. Quero que comas
um pouco de carne vermelha. Estás com o período? Qual é a intensidade do
teu fluxo? – perguntou a mãe na sua voz normal, como se estivesse a
perguntar-lhe sobre o tempo.
– Mãe! – O lábio inferior de Kimmie tremeu num esforço para não chorar
mais uma vez. – Podias ser menos embaraçosa? Como se a minha vida já
não fosse suficientemente difícil sem teres de falar da minha menstruação
no meio do Saks!
Enquanto Kimmie comia o bife com salada que a mãe pediu para ela,
descobriu o que o médico tinha contado à mãe em privado, depois de a
examinar: o Dr. Becker passara-lhe um atestado a dispensá-la da escola
durante o resto da semana, o que fez Kimmie suspirar de alívio, e
suspeitava que ela ainda não tivesse processado completamente a lesão que
lhe pôs fim à carreira, o que provavelmente era a origem da sua atual
depressão. O Dr. Becker também lhe receitou repouso e recomendou-lhe
alguns terapeutas de topo especializados em adolescentes.
– Ele acha que preciso de ir a um terapeuta?! – exclamou Kimmie, com
os olhos arregalados de horror.
– Para de ser tão melodramática, Kimberly. Metade das raparigas que
andam em Spence fazem terapia. – Era uma mera suposição da parte da
mãe, mas isso não vinha ao caso.
– Por favor, por favor, por favor, podemos não falar sobre isto aqui?
Vamos esperar para ver o que mostram as minhas análises ao sangue. Quer
dizer, se calhar tenho leucemia e estou a morrer. Nesse caso não te sentirias
mal por me obrigares a ir a um psiquiatra? Estou doente, mãe, isto não é
coisa da minha cabeça! – Kimmie sentiu-se um pouco envergonhada por ter
dito tal coisa, mas não importava. Ela sentia-se tão cansada. Quem diria que
se podia sentir tão cansada aos quinze anos? – Mãe, estás a ouvir-me? –
choramingou quando reparou que a mãe estava a enviar mensagens por
baixo da mesa. Quantas vezes ouvira a mãe dizer-lhe e à irmã que era falta
de educação estar ao telemóvel durante as refeições e, agora, ela estava a
fazer o mesmo?
Kimmie sabia que a mãe andava distraída com a sua própria vida
amorosa e, por um momento, desejou que a mãe ainda fosse uma divorciada
triste. Talvez assim fosse mais compreensiva com a situação da filha.
Nesse momento, Kimmie segurava num copo com água – na verdade,
apertava-o com força – e, depois, só se lembra de ter ouvido um estalido
que parecia vir de trás dela. Quando deu por si, tinha o colo encharcado e a
mãe saltara tão depressa que quase derrubou a mesa.
Kimmie não sentiu qualquer dor, mas quando Danielle lhe agarrou na
mão direita e a envolveu num guardanapo, o pano branco ficou vermelho
incrivelmente depressa. De repente, viu-se rodeada pelo gerente do
restaurante e por dois empregados de mesa, todos assustados com a
quantidade de sangue.
Sem mais nem menos, Kimmie estava de volta à sala de exames do Dr.
Becker. Enquanto olhava para a mão envolta em gaze, notou que se sentia
um pouco melhor, embora talvez essa não fosse a palavra certa. De alguma
forma, sentia-se mais calma. Não, também não era isso. O que ela sentia era
a ausência momentânea de infelicidade e a ausência não se parecia a nada, e
por isso estava grata.
O Dr. Becker achou que não precisava de pontos. Em vez disso, usou um
pouco de supercola cirúrgica para selar o mais profundo dos três cortes na
mão dela e colocou pensos rápidos nos restantes. Mandou a mãe dela para a
sala de espera. Queria falar com Kimmie a sós. Pela segunda vez em duas
horas, o Dr. Becker olhou-a fixamente, observando-a por cima dos seus
óculos sem aro.
– O que aconteceu foi mesmo um acidente? – perguntou ele suavemente.
– Olha-me nos olhos e diz-me a verdade.
– Foi um acidente. O vidro estava com defeito – confirmou Kimmie. –
Não é que eu seja a mulher Hulk ou algo do género. Simplesmente…
aconteceu, juro.
O Dr. Becker não respondeu de imediato e Kimmie entrou em pânico.
– Meu Deus, acha que estou maluca? Li que algumas pessoas perdem o
juízo depois de experimentarem drogas uma vez. É isso que me está a
acontecer?
– Kimmie, vais ficar bem – respondeu o Dr. Becker num tom calmo. – És
uma rapariga forte e quero que saibas que, tendo em conta tudo o que me
contaste anteriormente, o que estás a passar é perfeitamente normal. As
raparigas na adolescência têm muita pressão social hoje em dia, e é
perfeitamente saudável teres explosões emocionais e passares-te. Mas
quando o saudável ultrapassa os limites… é nessa altura que o sangue
aparece. A automutilação não é aceitável.
Kimmie encontrou o olhar do Dr. Becker, e também ela estava muito
séria.
– Foi um acidente.
– Ainda bem. Os acidentes acontecem. Eu que o diga. Agora, precisas de
outro chupa-chupa em forma de coração? Normalmente, um é o meu limite,
mas hoje é Dia dos Namorados, por isso... – O Dr. Becker sorriu.
Desta vez, Kimmie não deitou fora o seu chupa-chupa do amor. Em vez
disso, abriu-o no elevador com os dentes, cuspindo a embalagem de
celofane para o chão. De repente, sentiu-se esfomeada, mesmo esfomeada.
Não tinha comido praticamente nada ao almoço e, na verdade, não comia
quase nada há dias. Mas agora sentia-se diferente. Assim que pôs o chupa-
chupa na boca, Kimmie mordeu-o de imediato, apreciando o som crepitante
do rebuçado a partir-se, a estilhaçar-se entre os dentes. Estava tão ocupada a
triturar o rebuçado vermelho-cereja que nem reparou que havia dois
homens da idade do seu pai no elevador a olhar para ela.
– Para onde raio estão a olhar? – explodiu Kimmie estalou. – Não sabem
que hoje e a treta do Dia dos Namorados?!

VI
O irmão de Dustin e a mãe não se falavam há meio ano. Dustin culpava
Nicholas por isso. Há seis meses atrás, a mãe deles chegou a casa do
cinema e encontrou pessoas no apartamento. Presumiu que lhe estavam a
assaltar a casa, saiu a correr e ligou para o 112 do telemóvel. Mas o que a
mãe não sabia era que o arrombamento estava a ser liderado pelo filho mais
velho, Nicholas, que estava a remover a televisão Samsung 4K de cinquenta
e cinco polegadas da parede do quarto com um berbequim elétrico. Era a
mesma televisão que Nicholas tinha instalado apenas dois meses antes, no
Dia da Mãe. A mãe tinha ficado tão comovida com o presente de Nicholas
que quebrou a sua própria regra e deu-lhe algum dinheiro, que Nicholas
usou para comprar drogas, pondo fim aos seus quatro meses sóbrios.
Basicamente, tudo aquilo era uma tragédia grega de proporções épicas, na
opinião de Dustin.
Dustin tinha perdido tudo porque era a semana em que ficava em casa do
pai no centro. Mas, pelo que ouviu, Nicholas e os amigos fugiram assim
que ouviram as sirenes e foram direitos à mãe dele, que estava no corredor à
porta de casa. Quando ela viu que era o filho, agarrou-o pelo braço, mas ele
afastou-a com força, e fez com que ela batesse com a cabeça na parede e
caísse.
Em defesa de Nicholas, ele não deixou a mãe caída no chão e fugiu como
fizeram os seus dois amigos falhados. – Foram detidos no exterior do
edifício. – Quando a polícia entrou no apartamento, dez minutos depois,
encontrou Nicholas sentado no sofá ao lado da mãe, a pôr-lhe um saco de
ervilhas congeladas no galo que ela tinha na nuca. Nicholas implorou à mãe
que mentisse por ele e dissesse aos polícias que ele estava a dormir no
quarto quando os dois homens invadiram o apartamento, mas ela recusou.
– Atirava-me para a frente de um autocarro por ti, mas não vou mentir.
Dustin sabia que aquela afirmação era verdadeira porque foi uma das
coisas que tanto Nicholas como a mãe mencionaram no seu relato dos
acontecimentos dessa noite.
Na altura em que Dustin e o pai chegaram, a mãe tinha tomado uma dose
dupla de Valium, que já tinha começado a fazer efeito. Pediu-lhes que
passassem lá a noite e nenhum deles conseguiu recusar ao ver aquela
mulher devastada e em estado de choque.
Naquela noite, Dustin teve a oportunidade de ter a primeira conversa
franca com o pai. Bem, tinha havido uma não-conversa sobre sexo quando
Dustin tinha treze anos, mas consistiu em o pai ter entrado no seu quarto
quando ele estava a estudar e ter dito:
– A tua mãe pediu-me para vir cá para ter uma conversa contigo sobre
sexo. Precisas dela?
Dustin respondeu que não, e o pai mostrou-se visivelmente aliviado. No
entanto, o pai informou o filho que tinha de continuar ali no quarto durante
a meia hora seguinte para poder dizer à ex-mulher que tinha feito o que lhe
tinha sido pedido. Dustin e o pai viram «A Guerra dos Tronos» no quarto de
Dustin, ambos a olharem em silêncio para a cena lésbica no bordel de Lord
Baelish. Foi um dos momentos mais embaraçosos da sua vida.
Desta vez, falar não era mais fácil, mas muito mais necessário. Os dois
sentaram-se em lados opostos do sofá às flores da mãe, pai e filho sentados
na sala de estar escura, sem luz desde que o candeeiro se partira no caos da
tentativa de assalto. Ali discutiram o elefante na sala que tinham estado a
ignorar nos últimos três anos. Ambos admitiram sentir-se impotentes em
relação ao que fazer e culpados porque ao não fazerem nada, deixaram a
mãe de Dustin a ter que fazer o trabalho pesado no que dizia respeito ao
problema de drogas de Nicholas. Os problemas começaram em agosto,
antes de Dustin entrar para o liceu, quando chegou a casa do acampamento
de robótica e descobriu que Nicholas tinha sido apanhado com drogas no
acampamento de verão judaico onde trabalhava como conselheiro. Os pais
sentaram-se com Dustin e disseram-lhe que tinham internado Nicholas
numa clínica de reabilitação, embora na altura estivessem ambos em fase de
negação e não acreditassem que o filho fosse um verdadeiro
toxicodependente, apenas «precisava de voltar ao bom caminho». Mas,
menos de um ano depois, a história mudou completamente e Dustin
apercebeu-se de que as coisas estavam a agravar-se a um ritmo alarmante.
Agora, a situação já durava há quase quatro anos sem qualquer sinal de
melhoria e tinha-se tornado do conhecimento geral, com as pessoas a
falarem nas costas deles: «Oh, eles? Bem, os pais são divorciados, judeus, e
vejam só, têm um filho negro adotado que é incrivelmente bem-sucedido a
nível académico, enquanto o filho mais velho, o biológico, é
toxicodependente.»
Claramente, o incidente daquela noite significava que estava na altura de
Nicholas ir de novo para a reabilitação, pela quarta vez. Dustin disse ao pai
que, pelo que tinha lido na Internet, os programas de reabilitação de vinte e
oito dias não eram eficazes para obter resultados a longo prazo e que, para
obter melhores resultados, era necessária uma estadia de três meses. O pai
concordou, mas explicou-lhe o enorme custo financeiro da reabilitação.
O seguro pagava uma parte, mas os sítios bons, as clínicas para onde as
pessoas no mesmo escalão de IRS que eles mandavam os filhos para
largarem o vício, normalmente não aceitavam comparticipação do seguro
para estadias superiores a um mês. O pai explicou que tinha de falar com a
sua nova mulher, e que gastaria de bom grado as poupanças para a reforma
se acreditasse por um segundo que o filho sairia da reabilitação e ficaria
limpo para sempre.
Foi nessa altura que Dustin ouviu o pai chorar pela primeira vez.
Felizmente, não o viu. Ouvir o pai chorar, em vez de o ver, foi muito menos
desconfortável para Dustin, mas ao mesmo tempo não menos perturbador.
Dustin perguntava-se se seria a escuridão que lhes permitia falar de forma
tão aberta e honesta. Dustin respirou fundo e disse que queria usar o seu
fundo para a universidade para pagar a reabilitação de Nicholas durante três
meses numa clínica de prestígio. Ele já tinha recebido uma bolsa parcial
para o MIT e podia pedir um empréstimo para pagar o resto. O dinheiro
seria mais bem utilizado para dar ao irmão a ajuda de que ele precisava.
– Ele tentou roubar a televisão da mãe – começou Dustin, e sentiu-se
aliviado por partilhar as emoções que o estavam a assolar. Não tinha outra
hipótese senão dizer o que lhe ia na alma ou arriscava-se a explodir. –
A mesma televisão que ele lhe ofereceu no Dia da Mãe, que eu sei que tu
pagaste, pai. Percebes como isso é distorcido? Ela chorou naquela noite no
meu quarto depois de o Nicholas ter saído, mas não foram lágrimas tristes,
para variar. Foram lágrimas de felicidade. Devias tê-la visto ao jantar, tão
feliz e sorridente. Ela acreditava mesmo que ele ia ficar limpo. Acreditava
mesmo. Estava sempre a dizer-me: «Ele sabe usar um berbequim elétrico;
nem sequer lascou a tinta; usou uma daquelas coisas de nivelamento como
um profissional!» Ela achava que ele podia arranjar um emprego na Best
Buy e ser um daqueles tipos que instalam televisões nas casas das pessoas.
Era por isso que ela chorava de felicidade. Pensa bem, pai, se eu chegasse a
casa e dissesse que tinha conseguido um emprego na Best Buy, ela
arrancava-me a cabeça com uma colher de sopa. Ela agiu como se estivesse
mais orgulhosa do emprego fictício do Nicholas no Esquadrão dos Geek do
que quando o MIT me ligou e basicamente me disse que eu tinha sido aceite
antes mesmo de me candidatar. – Dustin levantou a voz, angustiado, mas
não se importou e não conseguiu parar de falar, de qualquer maneira. –
E pensar que aquele idiota veio cá esta noite para roubar a mesma
televisão? Quem é que faz isso? Não é possível que ele não soubesse o que
estava a fazer. Quero dizer, a mãe nunca fica fora até tarde, por isso ele
provavelmente veio cá, mesmo sabendo que ia ser apanhado. Se isso não é
um pedido de ajuda, então não sei o que é.
Foi nessa altura que Dustin chorou no escuro, sentado a dois metros do
pai. Mais tarde, os dois vasculharam a cozinha à procura de bebidas.
Acabaram por encontrar uma garrafa de Prosecco que a mãe tinha debaixo
do lava-loiça e pai e filho, que não bebiam muito, beberam juntos a garrafa
inteira. No início, beberam-na quente, mas depois acrescentaram gelo, e
contaram piadas como se fossem duas donas de casa sentadas à beira da
piscina num dia quente de verão e, mais tarde, atiraram a garrafa para o lixo
do corredor para esconder as provas.
O pai de Dustin disse que ia telefonar ao seu contabilista para pensar num
plano para a reabilitação de Nicholas. Dustin fez com que o pai jurasse que
nunca ia contar ao irmão ou à mãe que estavam a usar o fundo para a
universidade dele, porque Dustin já tinha falado nisso antes, depois de saber
que o fundo de Nicholas se tinha esgotado, mas a mãe interrompeu-o mal
ele abriu a boca e disse que o dinheiro de Dustin era para ele e só para ele.
E se não precisava dele para a sua educação, então podia investi-lo para
comprar a primeira casa.
– Pai, não te sintas culpado por causa disto. Ambos sabemos que é a
coisa certa a fazer. Por favor, deixa-me ajudar. – Ao ouvi-lo, os olhos do pai
encheram-se de novo de lágrimas, mas nenhum dos dois mencionou isso.
Na manhã seguinte, Dustin acordou no seu quarto com o cheiro a
panquecas e café e com o barulho surrealista das gargalhadas dos pais.
A mãe estava a preparar um grande pequeno-almoço para lhes agradecer a
ambos terem passado lá a noite. Os três comeram juntos, o que era uma
ocorrência rara desde o divórcio, dez anos antes, e falaram de tudo, exceto
da razão pela qual estavam agora sentados juntos. No final da refeição, a
mãe anunciou que precisava de se afastar do filho mais velho. Ela não
queria saber quando é que Nicholas tinha saído da prisão. Não queria saber
para onde é que ele tinha ido depois disso. Estava destroçada e precisava de
tempo. Dustin e o pai concordaram em tomar conta de tudo, o que já era o
plano deles desde o início. Dustin gostava que lhe tivessem podido contar o
plano deles primeiro, o que provavelmente teria aliviado um pouco da culpa
dela por ter de fazer uma pausa na maternidade.
Meses mais tarde, durante um pequeno-almoço de panquecas diferente,
num restaurante no Bronx, Dustin acabou por se sentir mais aliviado e
perguntou ao irmão Nicholas se ele ainda estava limpo, apesar de ter sido
expulso da reabilitação mais cedo. O alívio que sentiu quando o irmão lhe
disse que ainda se estava a aguentar foi enorme. As suas palavras exatas
foram:
– Meu, achas que eu estaria a trabalhar numa loja de tacos se estivesse a
consumir?
A segunda pergunta de Dustin foi se Nicholas sentia que estava pronto
para ver a mãe deles, e Nicholas disse que estava disposto a isso se ela
também estivesse, mas que precisava que Dustin também estivesse lá.
Dustin concordou em falar com a mãe sobre o assunto quando a levasse a
jantar fora no Dia dos Namorados, pois não queria que ela passasse o dia
sozinha, nem ele, já agora.
Dustin estava na fase de negação da dor em relação a Kimmie. Tinha
decidido, naquela manhã do Dia dos Namorados, na florista, quando estava
a comprar flores para a mãe, que era ridículo ter ficado tão obcecado por
uma rapariga que mal conhecia. Sentia-se ainda mais ridículo por se ter
convencido de que estava apaixonado por ela. Dustin tranquilizou-se
dizendo a si próprio que o propósito de Kimmie ter aparecido na sua vida
não tinha nada que ver com ele experimentar o amor pela primeira vez, mas
para o distrair da preocupação interminável com o irmão e com o facto de
ter perdido dois anos de propinas para nada.
Estas eram mentiras que Dustin dizia a si próprio diante de todas as rosas
vermelhas que enchiam a loja. Mas, por vezes, ele sabia que era melhor
acreditar nas histórias que contava a si próprio para aguentar o dia. Afinal
de contas, o princípio-base de uma vida sóbria não pregava que era um dia
de cada vez?

VII
Lolly sabia que havia invejosos por aí que se perguntavam como é que
ela tinha conseguido arranjar um bonzão como o Steven. Bem, não foi
sorte, porque Lolly trabalhou muito duro para conseguir um dos rapazes
mais cobiçados da cidade. Lolly sabia que não era naturalmente bonita, mas
o que lhe faltava em beleza, ela mais do que compensava em esforço. Lolly
era «bonita graças ao dinheiro», e ela sabia isso. O cabelo tinha madeixas
de quatrocentos dólares e era cortado de oito em oito semanas. As unhas
estavam sempre perfeitas e arranjadas de acordo com a última moda. Tinha
feito uma plástica ao nariz no 8.º ano e, apesar de ter pedido o nariz da
Reese Witherspoon e de ter acabado com o nariz um pouco mais fino da
Michelle Williams, ela aceitou-o graciosamente. Lolly fazia dieta desde os
treze anos, ia ao SoulCycle três vezes por semana, fazia cem abdominais
todas as noites antes de dormir e até comprou secretamente um bodywear
que viu anunciado no Instagram que modelava a cintura e supostamente
apertava-lhe a pélvis enquanto dormia.
Todos os elogios que recebia sobre a sua aparência, dos amigos da mãe,
da avó com o corpo em forma de pera, ou até mesmo de homens que lhe
assobiavam na rua, Lolly apreciava. Ela bebia elogios como um camelo,
guardando-os para mais tarde, porque só ela sabia o quanto tinha trabalhado
para os conseguir. Por isso, quando ela chamou a atenção de Steven uma
tarde no SoulCycle, há dois anos – a bicicleta dele estava atrás da dela – ela
nunca se sentiu tão gloriosa em toda a sua vida.
– Caramba, miúda, hoje arrasaste naquelas colinas. – Aquelas foram as
primeiras palavras que Steven lhe disse. Bem, isso não é verdade, porque
duas semanas antes ele lhe tinha dito: – Ei, bicicleta errada, Rabo de
Cavalo. – Na altura Lolly ficou tão envergonhada que quase caiu ao tentar
desapertar a fivela dos sapatos e passar para o lado dele. Para ela, aquelas
palavras não contavam realmente, porque ele teria dito o mesmo a qualquer
pessoa e, por isso, não deviam contar como as primeiras palavras dele
especificamente para ela.
Claro que ela já sabia quem ele era, pois tinha reparado nele há meses nas
aulas e anotado cuidadosamente os seus horários e os professores que ele
preferia. Ela já gostava de praticar exercício físico, mas um pouco de
incentivo extra nunca fez mal a ninguém, pois não? Steven era um dos
rapazes mais bonitos que andava em Collegiate – tinha um metro e oitenta
de altura, abdominais definidos por causa do lacrosse e do ténis, e parecia
uma mistura de John Cho e Ryan Gosling – e, como se isso não bastasse,
também dava uma festa de Ano Novo que era lendária e que o tornou
famoso em quase todas as escolas secundárias de Nova Iorque e arredores.
Lolly, sem saber de onde lhe veio a coragem, respondeu ao seu elogio e
perguntou-lhe se queria ficar e fazer uma aula dupla com ela.
– Caramba, consegues fazer duas aulas seguidas? Hashtag
#miúdamaravilha – respondeu ele. Steven só andava a fazer SoulCycle há
três meses e ainda não conseguia acreditar como era difícil.
– Não faço sempre, mas já fiz algumas vezes. É mais fácil do que parece.
Acho que tem que ver com as endorfinas. – Lolly tinha a certeza de que a
voz lhe estava a tremer enquanto falava com ele, mas felizmente a música
estava alta o suficiente para abafar qualquer tremor. – Queres tentar? –
acrescentou ela, rezando para que o rapaz incrivelmente bonito à sua frente
dissesse que sim.
– Que se lixe, ‘bora lá – disse ele. Steven orgulhava-se de estar pronto
para tudo, e aproveitava qualquer oportunidade para tentar algo novo se isso
lhe desse o direito de se gabar. Além disso, tinha acabado de passar os
últimos quarenta e cinco minutos a olhar para o rabo de Lolly na última
aula, por isso estava bastante entusiasmado.
Durante a sua segunda aula improvisada, Lolly não sentiu qualquer dor.
Na verdade, foi provavelmente a aula mais fácil que ela já tinha feito,
porque estava nas nuvens com toda aquela situação «giro-conhece-gira». E,
por coincidência do destino, Steven tinha acabado de recuperar de uma
farra com cocaína particularmente épica, alguns dias antes, e tinha decidido
relaxar um pouco com as drogas e começar a cuidar mais de si. O momento
era perfeito para todos. Steven era bom com excessos, mas não com o
excesso de tempo livre, por isso perguntou a Lolly se queria ir com ele ao
cinema nesse fim de semana. Lolly sabia que aquela era a sua melhor
oportunidade com Steven, e aproveitou-a com prazer. De cada vez que
Lolly se encontrou com Steven no mês seguinte, passou pelo menos
noventa minutos a preparar-se, por vezes duas horas. Ela já tinha lido todas
as revistas de moda, mas durante esse período intensificou a sua rotina de
beleza, que já era de alta manutenção. Via todos os tutoriais de contornos no
YouTube e agonizava a escolher cada peça de roupa que ia usar à frente
dele. Mas todos os seus esforços valeram a pena, porque Steven,
testemunhando a sua transformação, achou que Lolly estava cada vez mais
bonita sempre que saíam, o que o levou a acreditar que era porque os seus
sentimentos por ela estavam a crescer.
Steven disse-lhe que as mulheres coreanas que viviam em Seul passavam
horas a arranjar-se antes de irem ao supermercado e que a aparência exterior
era de extrema importância. Ele trabalhava arduamente para manter o seu
corpo em forma e vestir-se impecavelmente, e Lolly sentiu que era justo da
parte dele esperar o mesmo da namorada. Quando Steven disse a Lolly que
ela era praticamente coreana na sua preocupação máxima com a aparência,
foi o maior elogio que alguma vez lhe tinha feito e ele estava a falar a sério.
Lolly adorava a frequência com que Steven lhe dizia que ela era bonita, mas
apaixonou-se por ele porque era suficientemente honesto para lhe dizer
quando achava que ela tinha dado um passo em falso com a roupa ou o
cabelo. As suas melhores amigas, Miley e Hannah, achavam que isso fazia
de Steven um idiota, mas Lolly defendia-o e admitia que todas as vezes que
ele dizia algo assim, tinha razão. Lolly estava orgulhosa do olho clínico de
Steven para a moda e por ser um defensor dos pormenores. Ele até
conseguia dizer quando é que Lolly estava a usar pestanas falsas sintéticas,
ou quando ela abria os cordões à bolsa e usava as de marta. Lolly precisou
de três meses de trabalho árduo e extenuante, mas quando Steven K.
finalmente lhe perguntou se queria ser sua namorada, foi o momento de
maior orgulho da sua vida.
Ela não admitiu nenhuma destas coisas superficiais quando falou com
Anna na semana passada, mas isso foi só porque Anna era naturalmente
linda e parecia estar sempre bem sem qualquer esforço. A coisa que mais a
magoou quando descobriu a traição de Steven com «Brad», não foi ele ter
estado com outra rapariga, mas sim ele nem ter tido a decência de ter sexo
com alguém mais bonito do que ela; pelo menos isso ela conseguiria
compreender. Lolly tinha uma boa memória visual e tinha visto fotografias
suficientes de «Brad» nua no Apple Watch de Steven para ver que a sua
rival não era um tamanho S. Mas as fotografias tinham-lhe dado esperança
porque ela sabia como Steven valorizava a aparência de uma mulher. Talvez
a única coisa que ele viu naquela cabra foi que ela era uma oferecida, e
Lolly ainda não tinha sexo com ele.
Assim, na manhã seguinte ao «incidente Brad», quando Lolly passou
cinco minutos a olhar para o seu em-breve-ex-namorado adormecido, numa
reviravolta surpreendente, decidiu que ia ter sexo com ele. Lolly queria que
a sua primeira vez fosse com alguém que amasse – de preferência alguém
que não tivesse dormido com outra pessoa! –, mas agora tinha um novo
plano. Ia virar o jogo contra o namorado, que era um canalha, dar-lhe o que
ele mais desejava, e depois tirar-lho para sempre.
– Come-o e larga-o! – Como Miley gostava de dizer.
Lolly tinha sido a estrela de todas as peças da escola nos últimos cinco
anos e sabia que era uma excelente atriz. Naquela manhã, na cama com
Steven, fez a atuação de uma vida. Despiu-se e deslizou para a cama com o
namorado ainda adormecido, e acordou-o com um beijo suave no pescoço.
Claro, Lolly gostava de brincar com Steven, mas estava sempre preocupada
com a sua aparência, por isso nunca conseguiu relaxar e aproveitar
completamente. No entanto, desta vez Lolly ganhou vida, como se algo
tivesse despertado dentro dela, e ela viu-se pela primeira vez em muito
tempo a divertir-se mesmo. Não pensou uma única vez na sua aparência ou
no que é que Steven estava a achar. Também não se importou se ele estava a
divertir-se ou não. Apenas se sentiu livre e, ao fazê-lo, começou a ficar
superexcitada. Depois disso, Steven ficou tão impressionado com a
reviravolta de Lolly que começou a chorar, implorando-lhe que o perdoasse
e prometendo que nunca mais a trairia.
Ao olhar fixamente para o namorado, Lolly lembrou-se do último
conselho de Anna na noite anterior. A única hipótese que tinham de ter um
futuro juntos era se Lolly amasse Steven o suficiente para o perdoar pelo
que lhe tinha feito. Confiando na sabedoria de Anna, sentiu que o amava o
suficiente, e perdoou-o. Desde então, Lolly e Steven nunca tinham sido tão
felizes juntos.
Uma semana e meia depois de ter decidido ficar com Steven, Lolly
estava a almoçar com as suas duas melhores amigas, que não paravam de a
chatear por causa dos seus planos para o Dia dos Namorados com Steven,
quando surgiu o tema do broche comemorativo.
– A minha mãe estava mal-humorada esta manhã porque tinha um
tratamento dentário marcado e disse que era má altura por causa do BR que
o meu padrasto espera para o Dia dos Namorados – anunciou Miley do
nada. Miley era uma daquelas raparigas que gostava de dizer coisas só para
obter uma reação. – Toda a gente sabe que os namorados e maridos esperam
uma mamada superespecial nas datas principais. O broche de presente de
aniversário é provavelmente o maior negócio do ano, mas o do Dia dos
Namorados é talvez o segundo, já que normalmente é o homem que tem de
fazer a maior parte do trabalho pesado quando se trata de presentes do Dia
dos Namorados e coisas do género. Quer dizer, é justo que eles sejam
recompensados pelo seu bom comportamento. E como sei que não vais
oferecer a tua cereja ao Steven no Dia dos Namorados, como castigo pelo
seu péssimo comportamento com a «Brad», acho que ainda tens a obrigação
de lhe dar um celefellatio! Sabes, visto que ainda és a namorada dele. E sem
dúvida que o «Carradas de Dinheiro» te vai comprar um presente de arrasar.
– Bah, porque é que temos sempre de falar sobre estas coisas? –
perguntou Hannah, que ainda era virgem, a Miley, cujo comboio V já tinha
deixado a estação há muito tempo. – Quer dizer, lá porque eu e a Lolls
ainda somos virgens, não quer dizer que sejamos umas criaturas patéticas e
reprimidas que precisam de ser constantemente bombardeadas pela perícia
sexual do único membro deflorado do nosso trio.
Lolly piscou o olho a Hannah, a quem tinha confidenciado ter perdido a
virgindade com Steven no dia do grande nevão, depois do desastre com a
«Brad», mas ainda não dissera nada a Miley sobre o assunto.
Lolly e Miley eram melhores amigas desde o jardim de infância e sempre
mantiveram um pacto rigoroso de contar tudo uma à outra antes de contar a
Hannah. Aquela fora a primeira vez que Lolly quebrara o pacto, pois sabia
que Hannah a apoiaria muito mais na sua decisão de ficar com Steven.
Hannah era uma apaixonada pelo teatro como ela – sabia a letra de todos os
musicais da Broadway –, o que significava que compreendia melhor que o
amor e os relacionamentos eram complicados e que os finais felizes eram
ainda melhores com algumas baladas de desespero.
Miley revirou os olhos a Hannah.
– Que se lixe, só estou a tentar ajudar as minhas gajas, mas se a minha
ajuda não for desejada, então boa sorte, meninas... – Parou por um
momento, mas depois não se conteve e deu a machadada final. – Só não sei
como é que o podes aceitar de volta depois do que ele fez! Quer dizer, sei
que o amas, mas todas sabemos que ele vai voltar a fazer o mesmo. A minha
mãe diz sempre: «Uma vez um traidor, sempre um traidor.»
Lolly permaneceu calma, apesar de ter dito naquele dia de manhã à
amiga que não queria ouvir mais nada sobre Steven, mas Miley estava
obcecada com seu status de alfa, o que significava que tinha de ter a última
palavra. Naquele momento, no entanto, Lolly simplesmente não queria falar
do assunto. Era importante manter pelo menos uma área da sua vida a
funcionar sem problemas, e como a vida em casa estava cheia de tensões,
ela precisava mesmo que na escola estivesse tudo tranquilo.
Isso não significava que ela ia partilhar com Miley que tinha atravessado
o Rubicão com Steven e que tinha passado de virgitariana a carniputa. Mas
ia certificar-se de que era tão boa na cama como qualquer outra vaca do
Bronx, e até melhor. Então, para se preparar para o Dia dos Namorados,
Lolly escondeu-se no armário quando devia estar a fazer os trabalhos de
casa – embora, de certa forma, também se pudesse chamar a isto trabalho de
casa –, pôs os seus novos auscultadores Beats dourados e digitou as
palavras «melhor broche de sempre» no campo de pesquisa.
VIII
O pai de Steven ligou-lhe de Singapura e pediu-lhe para ir a casa entregar
o seu presente do Dia dos Namorados à mãe. Bem, «pediu» não era a
palavra certa; o pai de Steven não pedia coisas ao seu filho, exigia-as.
Steven, que não conseguia dizer não ao pai, prometeu que o faria, mas sabia
que a única maneira de o fazer, sem se atrasar para o encontro com Lolly às
14h00 no St. Regis, era se fizesse o favor ao pai na hora de almoço. Steven
pediu à Van Cleef & Arpels que enviasse o presente do pai para a escola e
apanhou-o antes de sair.
Nunca passou pela cabeça de Steven que devia enviar uma mensagem à
mãe antes de aparecer em casa, porque, por que razão o faria? Quando
entrou, reparou num par de ténis da marca Big Baller, tamanho 44, de
edição limitada, junto à porta. Ao pensar naquilo mais tarde, Steven
perguntou-se porque é que os ténis não o tinham feito parar, mas por
alguma razão tinha assumido que pertenciam a um dos trabalhadores que
estavam a instalar as novas estantes de madeira de cerejeira na biblioteca.
O que não fazia sentido, porque Steven sabia que custavam seiscentos
dólares na Barneys.
– Mãe! Ei, mãe! – gritou ele, e dirigiu-se à cozinha à procura de alguma
coisa para um almoço rápido, pois ia faltar ao dia da piza na escola.
Como a mãe não respondeu, pôs dois Hot Pockets no micro-ondas e foi à
procura dela. No corredor, ouviu a música que vinha do quarto dos pais.
Quando Steven abriu a porta, a mãe estava deitada de costas na cama
enquanto era montada por um tipo nu com uma enorme tatuagem de um
dragão alado nas costas. O primeiro pensamento de Steven foi que devia
estar a ter o seu primeiro flashback de ácidos, porque não era possível que o
que estava a ver fosse real.
Felizmente, a mãe e o Sr. Tatuagem nas Costas estavam no auge da
paixão e nenhum deles reparou nele à porta. Segundos depois, Steven
estava no corredor com a testa encostada à parede e a boca ainda aberta.
Ficou ali a ouvir «Between the Sheets», dos Isley Brothers, a tocar alto
através da porta. Steven reconheceu logo que era a melodia que The
Notorious B.I.G. tinha sampleado para «Big Poppa», uma das suas músicas
de rap preferidas, o que tornou tudo muito pior. Estupefacto. Aquela era a
única palavra que podia descrever acertadamente o estado de espírito de
Steven. Na verdade, atónito e pasmado também teriam funcionado.
A perplexidade depressa se transformou em náusea e ele mal teve tempo de
chegar à casa de banho do hall de entrada antes de vomitar o leite com
chocolate que tinha acabado de beber minutos antes.
Steven, a tremer e a suar, andava de um lado para o outro no hall da
entrada, a tentar decidir o que fazer. Por fim, delineou um plano de ação,
que era fugir da cena do crime que tinha acabado de testemunhar. Deixou
um post-it à mãe na mesa do hall da entrada, junto com o presente de São
Valentim do marido, e foi-se embora.
Steven pediu ao porteiro que lhe chamasse um táxi, pois sentia-se
incapaz de usar o telemóvel e pedir um Uber. Passado pouco tempo, estava
no banco de trás do carro a dirigir-se para o hotel. O que mais o
impressionou foi a sua incapacidade de processar o que estava a sentir, além
de que precisava urgentemente de elixir para a boca. Steven lembrou-se que
o pai traía regularmente a mãe, por isso não devia ser tão surpreendente
descobrir que a mãe fazia o mesmo, mas era. Parecia-lhe tão errado e
nojento, sobretudo porque se tratava da sua mãe. Ele não conseguia pensar
nela como uma mulher, muito menos como um ser sexual.
A mãe dele era elegante e majestosa, o que claramente não batia certo
com o que ele tinha acabado de ver. Tinha frequentado as melhores escolas,
tinha sido apresentada à alta sociedade de Greenwich e Nova Iorque e era
uma mulher muito poderosa nos círculos sociais mais elevados. Então, que
raio estava ela a fazer com um tipo que tinha uma tatuagem cliché de um
dragão nas costas? Além disso, o tipo devia ser novo, na casa dos vinte e
poucos anos, porque nenhum gajo com mais de trinta anos conhecia os ténis
que tinha visto no corredor. Isso significava que a sua própria mãe andava a
comer um tipo que não era assim tão mais velho do que ele.
A mãe dele recebia cartões de Natal escritos à mão e cestos de fruta da
Anna Wintour. Deixara de usar saias acima do joelho aos quarenta anos,
nunca mostrava o decote a não ser que o estilista a quem encomendava o
vestido o exigisse. Quando ela o avisou para ter cuidado e usar proteção
com Lolly e ele lhe confessou que ela o estava a fazer esperar, ela elogiou
Lolly pela sua educação adequada e comportamento de senhora.
O que ele tinha visto há meia hora não era o comportamento de uma
senhora.
Steven pensou em ligar à irmã para lhe contar. Anna tinha-lhe enviado
uma mensagem nesse dia, a agradecer-lhe os chocolates do Dia dos
Namorados e a lembrá-lo de que estava a caminho da cidade para a
exposição dos cães. Steven, claro, tinha-se esquecido disso. Por momentos
sentiu-se melhor por saber que a irmã estava provavelmente em Manhattan
naquele momento, e que lhe podia contar tudo pessoalmente mais tarde, se
é que lhe ia contar.
Steven chegou ao St. Regis um pouco antes da hora, o que significava
que Lolly provavelmente ainda não estava à espera dele. Queria
desesperadamente ir buscar uma bebida ao King Cole Bar, mas sabia que
era provável que não o servissem. Por outro lado, ainda era cedo e talvez o
barman não achasse que um adolescente teria a audácia de pedir uma
bebida a meio da tarde. Queria contar a Lolly o que tinha visto, mas sabia
que era impossível. Não podia falar do que sentia a sério sobre as pessoas
traírem tão próximo de ter sido apanhado. Ainda nem sequer tinha passado
uma semana.
Sentado no átrio, com o joelho direito a tremer de nervosismo, Steven
enviou uma mensagem a Dustin: Meu, esta tarde não dá por causa do Dia
dos N. Amanhã?
A resposta de Dustin foi imediata. Já imaginava. Sim, amanhã.
Steven respondeu: Estás livre hoje à noite? Depois da meia-noite? Estou
no meio de uma cena.
Sim, liga-me mais tarde.
Feliz Dia dos Namorados.
Para ti tb, mano.
Duvido. O amor é uma merda. A última mensagem de Dustin fê-lo
estremecer, pois Steven tinha-se esquecido dos problemas do amigo com as
raparigas. Quando Dustin apareceu na segunda-feira depois da festa para a
explicação, Steven não sabia se o amigo ia querer falar sobre Kimmie.
Quando Steven abriu a porta, as primeiras palavras de Dustin foram:
– Nunca mais vamos falar dela, okay?
– Mano, nem sequer sei a que mulher te referes – respondeu Steven,
seguindo o código dos manos. Se Dustin não queria falar sobre Kimmie,
quem era ele para ir contra a sua vontade? Steven perguntava-se se Dustin
estaria interessado em saber que o Conde estava fora de cena para Kimmie,
mas Lolly também lhe tinha contado que Kimmie ainda se estava a passar
com aquilo tudo, por isso talvez fosse melhor deixar as coisas acalmarem.
Apesar dos pais terem avisado Steven para não falar de assuntos privados
da família com estranhos, ele sabia que podia confiar em Dustin e contar-
lhe o que tinha visto, e que ele ia guardar segredo. Steven também sabia que
Dustin tinha o seu próprio drama familiar. Toda a gente sabia que o irmão
mais velho de Dustin, Nicholas, tinha entrado e saído da reabilitação
durante anos e, tanto quanto sabia, era lá que ele estava agora. Steven nunca
tinha experimentado heroína, sobretudo porque tinha medo de gostar
demasiado dela. Também não tinha experimentado metanfetamina, mas isso
devia-se mais à sua noção errada de que o MDMA era a droga de eleição
dos pobres.
Steven ainda considerou a possibilidade de o pai saber que a mulher
dormia com outros homens, mas depressa descartou a ideia. O pai de
Steven era orgulhoso, como muitos homens coreanos. Era uma humilhação
para um homem se a mulher tivesse amantes. Os pais não eram certamente
do tipo de ter um casamento aberto. Nem pensar. A privacidade, a proteção
do nome da família e Anna eram as principais prioridades do pai, e Steven
sabia por experiência própria como o pai podia ficar zangado se alguém
pusesse em risco essas coisas. Steven abanou a cabeça, chateado com a mãe
por o ter colocado naquela posição terrível. Aquilo era o tipo de merdas em
que Steven não gostava de pensar. É um assunto que está acima das minhas
capacidades, pensou para si próprio.
Steven sabia muito bem o que o faria esquecer os problemas: cocaína.
Mas não tinha nenhuma com ele, e também não tinha erva. Lolly insistiu
para que tivessem um Dia dos Namorados sem drogas, e disse-lhe que tinha
planeado coisas especiais que deixariam Steven em transe sem precisar de
substâncias que alteram a mente. Steven sorriu pela primeira vez desde que
tudo descambou. Lolly surpreendeu-o por ser bastante selvagem na cama
desde o início. Ele estava com grandes expetativas para as celebrações
desse dia e tinha gasto bastante dinheiro no presente do Dia dos
Namorados, ao comprar-lhe uma pulseira Cartier Love em ouro cor-de-rosa.
Tinha pedido autorização ao pai para pôr no cartão de crédito, e este ao
início tinha dito que não, mas Steven aludiu a um pequeno problema no
paraíso e que precisava mesmo de compensar alguns erros da sua parte.
O pai de Steven gostava que o filho assumisse os seus erros e concordou,
embora Steven soubesse que o pai provavelmente usaria o presente de nove
mil dólares contra ele mais tarde.
O estômago de Steven roncou e foi então que decidiu que iria esperar por
Lolly lá em cima, no quarto, e pedir o serviço de quartos. Precisava de
comida e depressa, e foi precisamente quando se lembrou dos dois Hot
Pockets que tinha deixado no micro-ondas em casa. Steven bateu com o
punho na coxa por causa da sua estupidez. Agora a mãe ia saber que ele
tinha estado em casa mais tempo do que o indicado no bilhete. Steven ainda
pensou em ir a casa e livrar-se deles, mas isso parecia demasiado arriscado.
A última coisa que queria era encontrar a mãe, ou pior ainda, o Sr.
Tatuagem nas Costas.
Se a mãe falasse nos Hot Pockets, ele fazia-se de parvo e esperava que
tudo corresse bem. Sim, que mais podia ele fazer?
Raios, pensou ele, o Dia de São Valentim é mesmo muito marado.

IX
A Exposição Canina de Westminster era uma das poucas competições de
cães que ainda restavam no país. A ideia era que cada animal à espera de ser
avaliado recebesse um lugar designado numa área de espera para que os
participantes pudessem passear e ver os cães de perto enquanto os donos,
treinadores e tratadores lhes davam retoques de última hora. Anna era uma
amante de cães desde que se lembrava e tinha ido a Westminster muitas
vezes quando era criança. A sua parte preferida era passear e observar os
cães antes de entrarem no ringue.
O pai levava-a sempre consigo e foi aqui, na exposição, que ela lhe disse
que, um dia, quando fosse crescida, queria que um cão seu ganhasse um
prémio em Westminster. O pai de Anna disse à filha que tinha a certeza de
que, se ela se empenhasse, o conseguiria. Agora, dez anos mais tarde, Anna
tinha atingido metade do seu objetivo e, embora não o soubesse, era a mais
jovem proprietária na arena.
O pai estava em Singapura em trabalho e não pôde estar ali com ela, mas
acordou a meio da noite e falou com ela pelo FaceTime para lhe desejar a
ela e ao Jon Snow da Muralha boa sorte. O Grupo de Trabalho deveria ser
julgado dentro de uma hora.
Anna amava o pai e sabia o quanto ele tinha pena de não poder partilhar
este momento com ela, mas ele garantiu-lhe que tinha mais do que
merecido o seu lugar como uma entre os mil e duzentos donos que
apresentavam os seus cães nesta competição mundialmente famosa. Ela
ficou comovida com o telefonema dele. O pai tinha-a educado para estar
grata pelos momentos importantes da vida, e ela fez questão de saborear o
dia de hoje.
Por muito que gostasse da relação próxima com o pai, sabia que isso
tinha um preço, que era o efeito que tinha na família como um todo.
A forma como o pai falava com Steven, o seu tom tão severo e exigente, era
chocante para ela. Era verdade que Steven tinha começado a meter-se em
sarilhos logo no quinto ano, mas mesmo antes disso, Anna não conseguia
deixar de reparar na forma diferente como ele os tratava.
A avó coreana de Anna também comentou o facto, dizendo-lhe um dia,
durante o almoço, a sorte que ela tinha em ser tratada como ouro pelo pai.
Explicou, no seu inglês hesitante, que, na cultura coreana, as filhas eram
consideradas dispensáveis e nunca eram tão valorizadas como os filhos. Os
filhos carregavam o nome da família e era seu dever e honra tomar conta
dos pais, enquanto as filhas cresciam e casavam, juntando-se à família do
marido, o que significava que todos os elogios ou vergonhas que
obtivessem nas suas vidas seriam reflexos não do bom nome do pai, mas do
futuro marido.
– O meu pai não pensa assim. Provavelmente porque é mais americano
do que coreano – respondeu Anna sem pensar com quem estava a falar.
– O teu pai é coreano em primeiro lugar, e será sempre – disse a avó com
uma carranca feroz. – Fazias bem em seguir o exemplo dele! – E então a
avó aproximou-se com as suas longas unhas vermelhas e beliscou o braço
da neta. Anna, que na altura tinha apenas dez anos, gritou, mais de surpresa
do que de dor. Não derramou lágrimas à frente da avó, para não lhe dar essa
satisfação. Em vez disso, pediu licença e chorou sozinha na casa de banho
das senhoras.
Anna não fazia tenções de contar ao pai o que tinha acontecido, mas
quando bateu à porta do escritório para lhe dizer boa-noite, como fazia
todas as noites, ele puxou-a para o colo. Perguntou-lhe como tinha sido a
visita à avó e Anna, não querendo mentir-lhe, enterrou a cara na camisa do
pai e disse que tinha sido boa e que tinha gostado muito das batatas fritas
com trufas, que era a única coisa que tinha apreciado durante a visita.
Conhecendo bem a filha, ele pressionou-a para saber mais pormenores e,
com relutância, Anna contou-lhe tudo o que a avó tinha dito. Com mais
coragem, mostrou-lhe a marca cor-de-rosa que tinha ficado do beliscão da
avó. O rosto do pai ficou frio como uma pedra ao ouvi-la. Disse-lhe então,
num tom de voz que prometeu não ser por causa dela, que estava aborrecido
com a mãe; as opiniões dela, disse ele, eram de outra época. O que ele não
partilhou com Anna foi que o mesmo pensamento antiquado da mãe a levou
a ter uma relação terrível com a própria filha. A mãe e a sua irmã mais
nova, Jules, não se falavam há anos e ele estava preso no meio de um
impasse inabalável.
– Tu, minha querida filha, não és dispensável. És a coisa mais preciosa
que tenho no mundo, e nunca te darei a outra família. Todos os teus feitos
serão para o teu próprio apelido quando cresceres. – Depois deu-lhe um
beijo na cabeça e terminou dizendo: – Mas, por agora, és minha, e só
minha!
Anna riu-se, feliz por ouvir as palavras do pai corresponderem a tudo o
que ela própria tinha pensado.
– Isso quer dizer que nunca me vais deixar casar? – perguntou, meio
séria, meio a brincar, porque algumas destas conversas não lhe saíam da
cabeça.
O pai dela riu-se, um som que ela não ouvia com frequência. Ele disse-
lhe que não, mas que ela devia saber que ele nunca permitiria que ela
casasse com alguém que não fosse digno dela. E até agora, em todos os seus
anos de vida, ainda não tinha encontrado uma pessoa que cumprisse esse
critério.
Anna pôs os braços à volta do pescoço do pai e declarou que o amava
muito. Ninguém a fazia sentir-se tão segura e amada como ele. Ela sabia
que tinha sorte em tê-lo como pai, por isso disse-lhe que seria sempre uma
boa menina, da qual ele se poderia orgulhar.
– Em breve vais descobrir que fazer o que está certo raramente é a
escolha mais fácil. Mas prometo-te que vais dormir melhor à noite por
causa disso. – E com isso, deu um beijo de boa-noite à filha favorita e
mandou-a para a cama.
Anna pensou nessa noite bastantes vezes ao longo dos anos, porque todo
o incidente a deixou com muitas emoções contraditórias. No dia seguinte, a
mãe entrou no quarto dela e sentou-se para terem uma conversa. Anna
esperava que ela a apoiasse da mesma forma que o pai, mas não foi isso que
aconteceu.
A mãe contou-lhe que o pai tinha telefonado à avó e gritado com ela por
ter beliscado Anna, e usou um tom de voz que ela nunca o tinha ouvido usar
antes. Obviamente, a avó não gostou de ser tratada daquela forma pelo seu
filho preferido e desligou o telefone na cara dele. A mãe de Anna sempre
teve uma relação difícil com a sogra coreana, que nunca a olhava nos olhos,
porque a considerava indigna do filho. A mãe de Anna disse-lhe que o pai
era um homem importante e muito ocupado e que seria melhor esconder-lhe
estes pequenos assuntos no futuro, porque agora ia demorar algum tempo
até que todos ultrapassassem o que tinha acontecido.
Anna ficou tão surpreendida com a reprimenda da mãe que se limitou a
acenar com a cabeça em silêncio. Depois de a mãe ter saído do quarto,
Anna chorou e escreveu no seu diário que gostava mais do pai do que da
mãe, porque ele era mais simpático e melhor e, obviamente, porque também
a amava mais. Envergonhada por colocar os seus sentimentos no papel e
com medo de que fossem descobertos mais tarde, arrancou a página,
rasgou-a e deitou os restos na sanita.
Há muito tempo que Anna não pensava na segunda parte da lembrança.
Ela e a mãe não eram muito chegadas e, se tivesse de dizer porquê, era
provavelmente por causa desse mesmo incidente. Naquele momento, foi
como se a mãe tivesse declarado a sua fidelidade e mostrado com quem
estava a sua verdadeira lealdade, e não era com a filha, mas sim com o
marido. Por vezes, perguntava-se se a mãe tinha ciúmes da forma como o
pai a adorava. Ela e o pai tinham muito mais em comum, eram parecidos
em muitos aspetos. Eram ambos calmos e tranquilos, embora socialmente
hábeis, calculistas, mas não frios. E, claro, partilhavam a paixão pelos cães,
e admiravam-nos pela sua natureza simples e amor incondicional. Anna viu
as horas e apressou-se a regressar para encontrar Lee Ann, a sua tratadora
de cães, e desejar-lhe felicidades antes da prova... e para dar um beijo de
boa sorte no focinho de Jon Snow, porque nunca era demais.

X
Enquanto Anna percorria os enormes bastidores, uma voz familiar
chamou-a.
– Minha querida, és mesmo tu? – Anna parou, virou-se e viu Geneviève
R., a mãe de Vronsky, junto ao banco onde estava um majestoso Wolfhound
russo chamado Tolstoy, que tinha vencido o prémio de Melhor da Raça e
estava à espera de ser apresentado aos juízes no Grupo de Cães de Caça,
que começaria logo a seguir ao Grupo de Trabalho. Anna sorriu e
cumprimentou calorosamente a encantadora mulher, e observou o seu
elegante fato Tom Ford azul ardósia.
– Olá, senhora R. Que bom vê-la de novo – disse Anna alegremente.
Ficou feliz por ver a mãe de Vronsky, mas o coração começou a bater
mais depressa porque agora tinha ainda mais esperanças de que o filho
também lá estivesse. Geneviève apresentou Anna à dona de Tolstoy, e
explicou-lhe que ele ia ser o garanhão da ninhada do próximo ano e que lhe
estava prometido um dos cachorros. Anna felicitou a proprietária pela
vitória e ficou feliz por a mulher saber exatamente quem ela era, bem como
o seu cão nada pequeno.
– Por falar nisso, tenho de voltar para o pé dele. Mais uma vez, foi um
prazer vê-la. – Mas Anna ainda não se conseguia ir embora.
– Sabes, perguntei ao Alexia por ti – disse Geneviève, como se tivesse
adivinhado os pensamentos de Anna. Acenou com a mão no ar e continuou
com um sorriso sabedor. – Ele está por aqui algures.
Anna pediu a Geneviève que desse os seus cumprimentos ao filho e
começou a afastar-se. Geneviève desejou boa sorte a Anna.
– Vou estar atenta ao Jon Snow.
Ele está cá. Ele está cá. Ele está aqui, pensou Anna enquanto se dirigia
rapidamente para o seu próprio banco. Sentia-se parva por estar tão feliz
com isso, mas não conseguia evitar. Ela tinha sentido a presença dele e
estava contente por saber que podia confiar nos seus instintos quando se
tratava de tais coisas.
Uma hora mais tarde, Jon Snow ficou em segundo lugar no seu grupo, o
que significava que não iria avançar para o evento principal onde seria
coroado o Melhor do Espetáculo. Anna ficou desapontada, claro, mas
lembrou-se de que Jon Snow tinha apenas dois anos e meio, e que era muito
mais novo do que a maioria dos outros cães que competiam. O cão que
tinha vencido o Melhor do Espetáculo no ano anterior era quatro anos mais
velho do que ele, por isso tinha muito tempo para se tornar no verdadeiro
rei de Westminster. O segundo lugar traria uma fita para casa, o que
significava que ela tinha atingido o seu objetivo de exibir um cão e ganhar
uma fita.
Durante a competição, ela tinha percorrido a multidão na esperança de
ver Vronsky e a mãe nas bancadas, mas nunca os viu. Anna sabia que
Geneviève ia dizer ao filho que se tinham cruzado, por isso obrigou-se a ser
paciente e a deixar que ele a encontrasse. Se fosse ela a procurá-lo, daria a
impressão errada, o que ela já estava preocupada de ter feito na discoteca.
Anna deixou o seu lugar na arena principal e começou a dirigir-se para a
zona das bancadas quando recebeu uma chamada. Era Alexander. Estava
prestes a atender, mas ao olhar para a imagem do rosto do namorado no
ecrã, não conseguiu aceitar a chamada. Em vez disso, ignorou-a, e enviou-
lhe rapidamente uma mensagem com as notícias do segundo lugar e a dizer
que lhe ligava mais tarde. Ele respondeu imediatamente:
PARABÉNS!!!!!!!! com balões, mas ela guardou o telemóvel antes de ver a
mensagem.
Quando chegou ao banco vazio de Jon Snow, Alexia Vronsky estava à
sua espera. Estava a admirar o cão seguinte, um Corgi tricolor chamado
Scribbles. Vronsky vestia umas calças de ganga que lhe caíam na perfeição,
uma t-shirt de corte fino e um casaco desportivo Thom Browne azul-
marinho, habilmente adaptado à sua constituição. O cabelo louro parecia
mais curto do que da última vez que o viu, mas ainda era suficientemente
comprido para lhe cair ligeiramente sobre os olhos. Ela observou-o
enquanto ele afastava o cabelo da cara. Os seus olhos azul-bebé eram tão
sonhadores como ela se lembrava.
Anna ficou ali a admirá-lo a uma pequena distância, sem ser notada.
Quando estava prestes a sair do meio da multidão e a cumprimentá-lo,
sentiu algo a dar-lhe um empurrão no traseiro. A saudação favorita de Jon
Snow, para cães e humanos, era encostar o seu focinho gigante a um rabo.
Ele tinha acabado de chegar do círculo dos vencedores e estava
entusiasmado com toda a excitação. Dois fios de baba de cinco centímetros
pendiam da sua boca papuda. Anna virou-se e agachou-se, envolvendo os
braços à volta do seu grande pescoço peludo, e ele retribuiu o seu
entusiasmo derrubando-a. Esta era uma ocorrência comum na relação dono-
animal de estimação, uma vez que Jon Snow pesava mais vinte e sete quilos
do que a dona. Habituada a estas coisas, Anna riu-se e verificou a roupa
para ver se tinha a inevitável mancha de baba.
Depois de se ter desembaraçado da crina de Jon Snow, Anna olhou para
cima e viu Vronsky a observá-la, a sorrir, enquanto lhe oferecia uma mão
para a ajudar a levantar-se.
– Tens a certeza de que aguentas a baba?
– Adoraria aguentar qualquer baba associada a ti – respondeu Vronsky na
sua voz mais encantadora.
Anna riu-se da resposta dele e agarrou-lhe na mão, a palma quente e o
aperto firme. Ele ajudou-a a levantar-se e em breve estavam frente a frente,
onde se esforçaram por dar um meio abraço desajeitado, conseguindo de
alguma forma não se tocarem de todo, traindo todos os instintos e desejos
de fazerem o contrário.
– Conde Vronsky, apresento-te Jon Snow da Muralha, o segundo melhor
do Grupo de Trabalho, apesar de eu discordar – disse Anna. – Jon Snow,
apresento-te o Conde Vronsky, o melhor da sua raça. Abanem-se. – O seu
terra-nova fez como lhe tinha sido ensinado e estendeu a pata, que Vronsky
abanou com um sorriso. Depois ajoelhou-se e cumprimentou o cão gigante.
Anna assistiu a tudo com um sorriso de orelha a orelha até se lembrar de
onde estava, e correu para junto de Lee Ann e felicitou-a pelo bom trabalho.
Lee Ann entregou a Anna a grande fita verde-água, que ela agarrou com
alegria. O seu plano era mandar emoldurá-la para o pai quando ele chegasse
da Ásia.
Jon Snow estava exausto do seu grande dia e com razão. Fez um gemido
ansioso que provavelmente significava que queria ir ver a irmã, Gemma, e
aninhar-se com ela para uma sesta muito necessária. Depois de Vronsky ter
tirado algumas fotografias da feliz ocasião, o assistente de Lee Ann levou
Jon Snow para o seu quarto de hotel. Lee Ann despediu-se e correu para ver
os cães a serem avaliados no grupo seguinte.
E, sem mais nem menos, Anna e Vronsky ficaram sozinhos. Mesmo entre
a multidão de pessoas, parecia que eles eram as únicas pessoas no Garden.
– Posso convidar-te para um almoço tardio? – perguntou Vronsky, com o
ruído da multidão a desvanecer-se com o som da sua voz.
– Sim, claro, parece-me divertido. – Ela sabia que se devia sentir um
pouco culpada, mas tudo o que sentia era fome, sede e felicidade. Qual era
o problema? Era apenas um almoço.

XI
Anna nunca tinha ido ao Keens Steakhouse, mas sabia que era um sítio
que o pai e o irmão frequentavam depois de assistirem aos jogos no Garden,
onde o pai tinha quatro lugares ao lado do campo. Noutros tempos, o
Keens, que existia há mais de cento e trinta anos, tinha uma política
rigorosa que impedia as mulheres de comerem lá. Quando ela entrou na
grande área do bar e observou a decoração masculina – muita madeira e
couro – notou que o lugar ainda não parecia atrair uma clientela feminina.
– Tens a certeza de que não te importas de vir aqui? – perguntou Alexia.
– Podemos ir a outro sítio.
–Não, está ótimo. Sempre tive curiosidade em conhecer este sítio –
respondeu Anna, subitamente nervosa. Estava à espera de ir almoçar a um
sítio muito mais informal, mas quando Vronsky sugeriu o Keens, ela
aceitou logo. – A tua mãe não se quis juntar a nós?
– A minha mãe só toma o pequeno-almoço e janta. Acha o almoço
«trivial» – disse ele com um sorriso. – Dá-me um momento, vou arranjar
uma mesa para nós.
Antes de Anna ter tempo de dizer a Vronsky que ficava bem no bar, e que
se calhar até preferia, ele desapareceu, e só apareceu de novo momentos
depois com o chefe de sala ao seu lado, um homem baixo num fato
castanho com um bigode comicamente grande. Anna seguiu-o
corajosamente para fora do bar, e atravessou a sala de jantar do primeiro
andar, passou pelo pódio do chefe de sala e subiu uma escada de madeira.
Uma vez no segundo andar, atravessaram uma sala de jantar maior e
subiram um pequeno lance de escadas que terminava num pequeno corredor
perto das casas de banho. Por fim, o homem fez um gesto para que Anna
passasse por uma porta aberta, e eles entraram numa pequena sala de
refeições privada com apenas quatro mesas, nenhuma das quais estava
ocupada no momento. Anna virou-se confusa para encarar Vronsky, mas
antes que pudesse perguntar o que estava a acontecer, o chefe de sala, cuja
placa na lapela dizia Remi, falou, com a voz baixa e rouca.
– Bem-vindos à sala Lillie Langtry, que recebeu o nome da nossa
primeira cliente, em mil novecentos e cinco. A senhora Langtry processou-
nos para ter acesso a esta sala porque estava farta de ouvir falar das nossas
famosas costeletas de carneiro e queria prová-las.
Anna riu-se de surpresa e sentou-se na cadeira de uma mesa de quatro
que ele tinha puxado para ela. Vronsky sentou-se na cadeira em frente à sua,
enquanto o senhor de bigode arranjava as outras duas mesas. Entregou a
cada um deles um menu grande e informou-os de que o empregado de mesa
viria em breve. Antes de sair da sala, parou, virou-se para trás como se
quisesse dizer-lhes algo que se tinha esquecido, e declarou:
– Se eu tivesse uma namorada tão bonita como a menina, também a
queria guardar só para mim. Feliz Dia dos Namorados. – Saiu com um
aceno.
Anna olhou para Vronsky, com a boca aberta de surpresa, mas recebeu
apenas um encolher de ombros em resposta.
– Só paguei mais pela sala privada, não pelo elogio. Isso foi tudo dele.
Embora tenha razão. – Anna olhou em silêncio para a sala pitoresca. Não
sabia mesmo o que dizer. Sentia-se lisonjeada com todo aquele alarido, mas
seguiu-se uma preocupação incómoda de que por estarem escondidos
parecia implicar que estavam a fazer algo de errado.
– Estás desconfortável. Desculpa. A sala de refeições principal é
barulhenta, e queria que tivéssemos oportunidade de falar sem gritar. Este
sítio tem várias salas privadas; pensava que íamos ficar numa muito maior e
já lá comi várias vezes com o meu irmão e os amigos dele. Nem sequer
sabia da existência desta – diz ele, levantando-se. – Vou pedir outra mesa.
– Não, não vás. Não faz mal. Eu gosto desta sala. E ainda bem que a
Lillie Langtry defendeu o que queria. É só que... – Anna hesitou.
Vronsky estendeu a mão por cima da mesa e pegou na mão de Anna.
– Diz-me o que queres. Farei tudo para te fazer feliz.
Ao seu toque, Anna corou. Almoçar numa sala privada era bom, mas
estar de mãos dadas não era nada. Ela afastou a mão para fora do seu
alcance.
– Estou feliz – disse ela. – Feliz por o Jon Snow ter ficado em segundo
lugar. É bom ter alguém com quem celebrar.
Estava prestes a dizer a Vronsky que o pai teria estado com ela se
pudesse, mas o empregado de mesa entrou nesse momento, um homem
magro, tão alto como o chefe de sala era baixo, e tão rude como o outro era
amigável. Anna decidiu esperar para agradecer a Vronsky os presentes do
Dia dos Namorados e, em vez disso, os dois acabaram por falar de todos os
animais da família que tinham tido o prazer de conhecer. Vronsky era um
hábil contador de histórias e imitou a voz da mãe na perfeição, mas não de
forma desrespeitosa. A sua melhor história foi sobre a vez em que ele e o
irmão mais velho, Kiril, ficaram encarregados de tomar conta de um dos
cães de colo da mãe, que tinham deixado vaguear num aeroporto em Itália.
Os dois procuraram por todo o lado, tentando freneticamente encontrar o
Yorkie, o que aconteceu poucos minutos antes de embarcarem no avião. Ou
assim pensaram. Depois de terem levantado voo, aperceberam-se de que
tinham o cão errado.
– Como é que descobriram? – perguntou Anna, com a cara iluminada de
tanto rir.
– Quando o cão levantou a pata traseira e fez chichi no sapato do homem
do outro lado do corredor. Sabes, o cão da minha mãe chamava-se Petúnia.
Era uma rapariga!
Anna contou-lhe então a história de como começou a gostar dos terra-
nova, seguido da sua declaração aos seis anos de como ia ter um cão em
Westminster um dia, quando fosse crescida.
– Bem, um brinde a ti que já és crescida! – disse Vronsky, e levantou o
copo de sidra com gás para brindar. Tocaram com os copos alegremente e
passaram ao animal seguinte que tinham em comum: os cavalos. Vronsky
tinha montado muito quando era criança, de facto era possível que se
tivessem cruzado na Quinta Staugas quando eram muito mais novos. Mas
quando andou de mota pela primeira vez, em Itália, aos onze anos, ficou
menos impressionado com a velocidade das quatro patas e, desde então,
nunca mais montou a cavalo; no entanto, o seu gosto por emoções fortes
tornaram-no um grande fã das corridas de cavalos do Maryland Hunt Club.
Anna contou a Vronsky que se sentia menos atraída pelo perigo dos cavalos
e que preferia a companhia e a ligação que eles lhe proporcionavam. Tinha
dois cavalos, e com certeza estavam ambos a pensar que ela tinha morrido,
porque não se lembrava da última vez que tinha passado uma semana
inteira sem montar.
– Não percebo para onde foram as últimas duas semanas – disse ela com
sinceridade, e depois acrescentou: – Bem, agora que Westminster acabou,
acho que posso voltar aos meus velhos hábitos aborrecidos.
– Tu? Aborrecida? Duvido muito!
Anna sorriu e olhou fixamente para ele.
– Talvez estejas a projetar, Alexia. Porque, pelo que ouvi dizer, tu és o
único aqui à mesa que tem uma vida excitante. Tenho a certeza de que sou
muito menos interessante do que as muitas raparigas com quem costumas
andar.
Alexia sorriu e remexeu-se desconfortável na cadeira, mas antes que ele
pudesse responder, inclinou-se e continuou.
– Posso perguntar-te uma coisa?
– Qualquer coisa.
– Porque te chamam «o Conde»?
– Queres mesmo saber? – perguntou ele.
– Não sei, quero?
– Quando eu e a Bea éramos crianças, ela tinha um cobertor roxo que eu
costumava atar ao pescoço. A cor preferida dela era o amarelo e usava
sempre um vestido amarelo. Por isso, os nossos pais puseram-nos as
alcunhas de «Bea Poupas» e «o Conde».
– Queres dizer, tipo, da «Rua Sésamo»?
– Força... ri-te.
– É adorável. Mas sabes... – Anna interrompeu-se, pois não queria ser a
pessoa a repetir o boato.
– As pessoas acham que é porque dormi com demasiadas raparigas para
poder contar. Eu sei e não me importo com isso. É muito melhor do que a
verdade.
– Para mim não.
– Ainda bem, porque és a única pessoa a quem contei.
Anna ficou feliz por ele lhe ter confidenciado algo tão embaraçoso, mas
também estava alarmada. Estavam numa encruzilhada, e ambos a
reconheceram de imediato. Podiam manter a pretensão de uma refeição
amigável, cheia de conversas ligeiras e histórias de família, ou podiam
passar a um assunto mais sério: falar sobre a inegável química entre eles.
Vronsky teria gostado de abordar o assunto, mas não havia nenhuma parte
dele que quisesse falar da sua reputação com Anna, e não podia falar de
uma coisa sem falar da outra.
Não era por ter medo que Anna descobrisse sobre todas as raparigas com
quem ele tinha comido, jantado e feito 69 antes dela. Isso era do
conhecimento geral, e ele tinha a certeza de que ela já tinha ouvido. Não,
ele sentia, com uma certeza absoluta, que o seu passado já não importava.
Desde que a conhecera, Anna era o seu único futuro e nenhuma outra
rapariga lhe interessava. Cada momento que passava com ela parecia um
sonho, e era acompanhado por uma bela, mas desconcertante necessidade
de se sentir poderoso aos olhos dela. Ele achava tudo nela fascinante: a
forma como torcia o guardanapo enquanto falava, a forma como tapava a
boca com as mãos quando se ria demasiado alto, a forma como se inclinava
ligeiramente para a frente quando ele contava uma história divertida. Contra
todas estas coisas, ele era impotente.
– Estava a pensar se achas que lhe devemos devolver o cão, ou não –
disse ele num tom calmo, mas firme. Anna estava confusa e o seu rosto
mostrou-o. Vronsky continuou. – O sem-abrigo da estação de comboios.
Colocou cartazes à procura dos cães. Encontrei um no outro dia e estava a
pensar telefonar-lhe por causa disso. – Vronsky meteu a mão no bolso
interior do casaco e tirou um pedaço de papel dobrado. Entregou-o a Anna
do outro lado da mesa.
Ela pegou no papel e abriu-o, e deu de caras com um panfleto tosco e
caseiro a dizer «Procura-se» com um desenho a carvão feito à mão de um
cão com uma cara grande e quadrada que parecia um cruzamento entre um
pit bull e um rottweiler. O nome do cão era Balboa. Não havia número de
telefone no cartaz, apenas o nome Johnson como proprietário e a morada
Grand Central Station.
– Este é o cão que salvaste no dia em que nos conhecemos? – perguntou
Anna, triste por se lembrar do outro que morreu junto ao comboio na noite
do primeiro encontro deles. Ela olhou para cima e encontrou os olhos de
Alexia, que acenou com a cabeça.
– Ele ainda está com o tratador de cães da minha mãe – informou
Vronsky. – Levei-o ao veterinário e fizeram-lhe um check-up completo.
Pedi que o examinassem para me certificar de que não teve um dono
anterior ao Johnson, mas o Balboa não tinha um chip de identificação. –
Vronsky relatou estes factos num tom difícil de interpretar, mas que se foi
suavizando à medida que prosseguia. – É engraçado ele chamar-se Balboa,
porque eu chamo-o Rocky desde que o encontrei.
Anna acenou com a cabeça, o sorriso a desaparecer e o estado de espítiro
a condizer com o de Vronsky.
– Então estás a perguntar-me se devemos devolver o cão ao seu dono
sem-abrigo? – Anna fez uma pausa, a pensar. – Teria de falar com ele. Com
o homem. Não posso tomar uma decisão enquanto não o conhecer. Vou
tentar encontrá-lo. – Anna dobrou o papel que Alexia lhe entregou e meteu-
o na mala. Depois puxou da carteira.
– Ei. Espera aí. Queres fazer isso agora? – perguntou Vronsky, um pouco
surpreendido com a natureza assertiva de Anna.
– Este cartaz é a coisa mais triste que já vi. Ele deve estar a enlouquecer
neste momento. Eu enlouqueceria se um dos meus cães desaparecesse
durante dois minutos; não sei como estaria ao fim de duas semanas. Sabes
como ele vai ficar feliz por ter o cão de volta? E se podemos dar um final
feliz a esta história, porque não o havemos de fazer num dia que tem tudo a
ver com amor?
Vronsky achou a explosão apaixonada de Anna cativante, embora
desejasse que ela fosse um pouco mais realista.
– Anna, tudo o que acabaste de dizer até pode ser verdade, mas isso não
muda o facto de o tipo ser um sem-abrigo. Não devíamos pensar primeiro
no bem-estar do cão? – Vronsky fez esta pergunta de uma forma que não
pretendia desafiar Anna, mas sim compreendê-la melhor.
– Alexia, a maioria das pessoas não escolhe ser sem-abrigo. Eu sei que os
meus cães preferiam estar comigo na rua do que numa casa com outra
pessoa. Mas também admito que sou louca por cães, por isso talvez me
esteja a precipitar. Olha, vou saber o que fazer quando encontrar o Johnson.
– Tudo bem, mas não vais procurar um sem-abrigo sozinha.
– Bem, então acho que temos de pedir a conta, porque só tenho algumas
horas antes de começar a competição para o Melhor da Exposição.
Vronsky abanou a cabeça com admiração. Talvez ganhar aquela fita e
cumprir o seu objetivo de infância a tivesse catapultado para a idade adulta.
Levantou-se da mesa.
– Vou pedir a conta, mas deves-me uma sobremesa.
Anna olhou para o rapaz lindo que tinha diante de si e acenou com a
cabeça.

XII
O par, um louro de olhos azuis, a outra de cabelo preto azeviche e olhos
cor de carvão, formavam um casal impressionante quando entraram juntos,
a passos largos, na Grand Central. Primeiro, tinham percorrido as ruas à
volta da estação, e mostraram o cartaz a todos os sem-abrigo que
encontraram, como dois detetives das séries de televisão à procura de uma
pista num caso de uma pessoa desaparecida.
– Desculpe, senhor, conhece o Johnson? É um homem que perdeu o cão –
perguntou Anna. As respostas às suas perguntas eram quase sempre olhares
indiferentes, mas depois Vronsky acenava-lhes com dinheiro, o que iniciava
realmente o diálogo. Pelo que puderam perceber, Johnson era um
frequentador assíduo do bairro, e dormia normalmente nos bancos dentro da
estação. Ninguém o tinha visto nos últimos dois dias.
Uma Anna determinada aceitou a notícia com calma e entrou na estação
com a intenção de explorar todas as plataformas até o encontrarem. Juntos
atravessaram o grande átrio. Anna decidiu que deviam começar pela linha
onde o outro cão de Johnson tinha morrido. Se ela estivesse desolada e
desesperada, era lá que estaria.
– Linha vinte e sete – ofereceu Vronsky, sem se importar de estar a
mostrar o seu lado mais vulnerável por lembrar-se do sítio onde se tinham
visto pela primeira vez.
Antes de descerem a escada rolante que levava à linha, Anna deu um
passo para a direita e virou-se para Vronsky.
– Obrigada por teres vindo comigo – disse Anna.
– Está a brincar? Não há ninguém com quem eu preferisse passar o dia...
– Para. Não me deixaste acabar.
– Desculpa. Continua – acrescentou ele rapidamente, deslumbrado com a
beleza extraordinária que tinha à sua frente.
– Também te quero agradecer pelos… – fez uma pausa, à procura das
palavras certas – ... presentes tão atenciosos que me mandaste hoje de
manhã. Adorei-os a todos, mas não posso ficar com eles. A minha mala
ainda está no Garden, por isso posso devolvê-los quando voltarmos.
Vronsky franziu o sobrolho, não estava preparado para isto. Teve o
cuidado de manter a voz calma e casual.
– Mas eu não os quero de volta. São para ti, Anna. Cada um deles é só
para ti.
– Alexia, eu sei que tu sabes, mas neste momento acho que ambos
precisamos de ser lembrados: Eu tenho um namorado. Não é correto eu
aceitar presentes de outro homem. – Ela respirou fundo e forçou-se a dizê-
lo. – Especialmente hoje. Desculpa.
– Não, não peças desculpa, Anna – respondeu Vronsky, e estendeu a mão
para lhe tocar no braço, mas parou a meio. – Eu é que devia pedir desculpa.
Não te queria aborrecer. Mas precisava de te dizer o que sinto. Só penso em
ti desde que nos conhecemos. Juro que nunca me senti assim...
– Alexia, para – interrompeu-o Anna. – Falar sobre isso só vai piorar as
coisas, está bem? – Aquilo não estava a correr como ela queria. – Não
podemos ser só amigos? Amigos que procuram sem-abrigos juntos? – Anna
tentou manter a voz leve e casual.
– Sim, claro – respondeu Vronsky, sem olhar para ela. Ele só disse aquilo
porque tinha de dizer, não porque acreditasse mesmo nisso. Alexia Vronsky
não via, não podia e não queria ver Anna como uma amiga e, francamente,
também não queria que ela o visse dessa forma.
Anna acenou com a cabeça, aliviada por ter feito o que sabia ser o
correto. Deu um passo em frente e desceu as escadas rolantes. Não tinha a
certeza se ele a seguiria, mas esperava que sim. Vronsky entrou nas escadas
rolantes dois degraus atrás dela, para continuarem a sua odisseia juntos.
A intuição de Anna estava certa. Encontraram Johnson deitado num
banco na ponta da plataforma. Aparentava ter quarenta e poucos anos, mas
o cabelo e a barba, ambos grisalhos, davam-lhe a aparência de alguém
muito mais velho.
– Johnson? – perguntou Anna. – Queremos falar consigo sobre o Balboa.
O homem sentou-se tão depressa que Anna se assustou e deu um passo
atrás, enquanto Vronsky avançava, estendendo o braço para proteger Anna.
– Onde é que ele está? – perguntou Johnson, com os olhos marejados. –
Encontrou-o? Procurei pela cidade inteira... – A sua angústia era evidente.
Anna, sem medo, sentou-se ao lado de Johnson e olhou-o nos olhos,
explicando-lhe que estavam lá na noite em que ele foi preso. Vronsky tinha
resgatado Balboa e levado o cão para um local seguro. O alívio de Johnson
foi evidente e ele contou-lhes com entusiasmo como tinha encontrado
Balboa há três anos, quando era um cachorrinho abandonado e a sangrar
num contentor do lixo. Tratou do cão até ficar curado e Balboa retribuiu a
sua bondade e protegeu-o quando foi atacado por um grupo de
universitários bêbedos. A recordação perturbou Johnson, que ficou agitado.
– Vão devolvê-lo. É o meu cão. Meu! É tudo o que tenho agora que o
Scottie se foi embora.
Vronsky irritou-se, mas Anna manteve a calma.
– Sim, vamos devolvê-lo. Mas precisava de o conhecer primeiro.
– Tem a certeza de que é capaz de tomar conta dele? – perguntou
Vronsky.
– Ele come antes de mim. Eu trato-o bem – disse Johnson na defensiva.
Estava a ficar mais ansioso a cada segundo que passava. Continuou a
esfregar as calças sujas com ambas as mãos e depois sussurrou: – Ele é meu
e eu preciso dele. Ele também precisa de mim!
Anna, satisfeita, disse gentilmente a Johnson que lhe iam devolver o
Balboa.
– Agora! Devolvam-mo agora! – O homem levantou-se e agarrou no
braço de Anna.
Vronsky interveio rapidamente, e puxou Anna para longe de Johnson
com um movimento rápido.
– Senhor, precisa de se acalmar imediatamente! Se não fosse a minha
amiga, não voltaria a ver o seu cão. Eu, pessoalmente, pergunto-me se o
Balboa não ficaria melhor onde está.
Johnson pediu desculpas, e assegurou-lhes sem parar que era capaz de
cuidar do cão.
– Sinto muito a falta dele. Por favor, ele é tudo o que tenho. Eu amo-o e
ele ama-me. Devíamos ficar juntos.
Anna prometeu a Johnson que voltariam e ela e Vronsky saíram juntos da
estação. Apanharam o metro para o apartamento do tratador de cães e
depois partilharam um Uber de volta à Grand Central com Balboa sentado
entre eles, e a seguir assistiram ao reencontro entre Johnson e Balboa, que
até Vronsky teve de admitir que foi comovente. Depois disso, passaram o
tempo a conversar sobre assuntos seguros: as aulas que estavam a
frequentar, os amigos que tinham em comum e os programas de televisão
que ambos viam. Nenhum deles voltou a mencionar a festividade, embora
houvesse sinais do Dia dos Namorados por todo o lado. À medida que o céu
escurecia e se tornava noite, viam casais bem vestidos a entrar em
restaurantes de mãos dadas. Havia mulheres na rua que levavam,
orgulhosas, as flores que tinham recebido no trabalho dos seus amados. Até
viram um homem a atravessar a rua à frente deles com um conjunto de
balões gigante em forma de coração, que se agitavam com a brisa do
crepúsculo.
Anna e Vronsky tinham passado metade do dia juntos, horas a caminhar
ao lado um do outro, com as mãos a centímetros de distância, desejosos de
se tocarem. No táxi de volta ao Madison Square Garden, iam ambos
calados, de início, perdidos nos seus pensamentos, e a pensarem no dia
estranho e maravilhoso que tinham tido. A poucos quarteirões do Garden,
Anna virou-se para Vronsky.
– Se achas que não reparei que deste dinheiro ao Johnson para o Balboa,
estás muito enganado.
Incapaz de negar, Alexia olhou Anna nos olhos.
– E se achas que lhe dei o dinheiro só por causa do Balboa, estás muito
enganada. Anna, eu queria que visses, mas não foi um truque. Não quero
fazer jogos contigo. – Ele sabia que era o momento de a beijar, mas não
queria assoberbá-la com a sua intensidade, embora ele próprio já estivesse
assoberbado com ela. – Anna, janta comigo esta noite, agora.
Anna abanou a cabeça.
– Sabes que não posso. – O seu olhar encontrou o dele. – Alexia, não
estou a recusar porque não quero ir. Estou a declinar porque não está certo.
A viagem de táxi foi feita em silêncio depois disso, e quando eles
pararam no Madison Square Garden, Vronsky saiu e segurou a porta aberta
para Anna, que saiu, mas antes perguntou ao taxista se podia esperar.
– Eu vou contigo – disse Vronsky.
– Não podes. O espetáculo é transmitido na televisão; e se formos vistos
juntos? – Anna não disse o nome do namorado, mas era óbvio que era isso
que queria dizer.
– Tenho de recuperar a caixa – lembrou-lhe ele. – Foste tu que disseste
que me querias devolver os presentes.
Anna sabia que tinha sido apanhada.
– Está bem, eu fico com eles. Mas tens de ir. Agora. – Anna não tinha a
certeza se conseguiria aguentar estar perto dele mais um minuto.
Ele não a pressionou.
– Feliz Dia dos Namorados, Anna – disse Vronsky, e abraçou-a antes de
ela ter hipótese de recusar. Anna respirou o seu perfume celestial, embora
soubesse que não o devia fazer.
– Feliz Dia dos Namorados, Alexia – murmurou ela, antes de se afastar
dele e correr para o Garden.
Quando Vronsky voltou a entrar no táxi que o esperava, o condutor olhou
para ele pelo espelho retrovisor.
– Meu, como é que deixaste aquela coisa bonita ir embora?
– Não deixei – respondeu Vronsky, dizendo a única verdade que
conhecia. Vronsky pegou no telemóvel e enviou uma mensagem à prima
Beatrice, a sua próxima jogada, à espera que fosse um xeque-mate. Preciso
de ajuda. De dar uma festa em casa ASAP. Talvez numa casa de campo?
A resposta dela foi imediata. Sem dúvida, Escuteiro. Festa de máscaras?
Ele respondeu: Tu é que mandas.
Como foi o dia dos namorados?
Vronsky suspirou, mais como um gemido, e enviou uma última
mensagem à prima. Au-au.

XIII
Embora Kimmie tivesse passado uma semana inteira na cama, ainda não
se sentia melhor quando ela e Lolly chegaram à casa do pai no domingo à
noite. O pai olhou para a filha mais nova, pálida e magra, puxou
imediatamente do telemóvel, e ligou à ex-mulher para discutir o que se
passava. Kimmie sentou-se nos degraus, com o queixo apoiado nas mãos, e
ouviu a conversa começar a aquecer entre os pais, a mãe a culpá-lo por não
a ter levado ao médico mais cedo. Levantou-se e subiu para o quarto, sem
se importar com o facto de os pais estarem a discutir, sem se importar com
nada.
Uma hora depois, a irmã bateu à porta e perguntou-lhe se podia entrar.
Kimmie não respondeu, então Lolly entrou. Ao ver que Kimmie já estava
na cama, Lolly foi até lá e meteu-se debaixo do edredão.
– A mãe desligou-lhe o telefone duas vezes, mas ele voltou a ligar-lhe das
duas vezes – contou Lolly. – Ela atendeu, o que significa que está mesmo
preocupada contigo. Sabes que uma das coisas que a mãe mais gosta é de
dar desprezo ao pai.
Kimmie limitou-se a acenar com a cabeça, demasiado cansada para se
preocupar com as brigas dos pais, mesmo sendo ela o tema da discussão.
Lolly também estava preocupada com a sua irmãzinha. No início, achou
que era uma manobra de Kimmie para chamar a atenção, e estava
demasiado ocupada com a sua própria vida para se envolver. Mas Kimmie
parecia muito mal-humorada, e agora que estava a chegar à terceira semana,
Lolly tinha mudado de ideias.
– Kimmie, queres falar sobre isso? – Kimmie virou-se, pois não queria
que a irmã visse as lágrimas a caírem-lhe pelo rosto. – Por favor – implorou
Lolly. – Pode fazer com que te sintas melhor. – Mais silêncio. – Olha, eu sei
que não tenho sido a melhor irmã mais velha ultimamente, e sinto muito.
Mas estou preocupada contigo. – Lolly estendeu a mão e tocou no cabelo da
irmã, que costumava invejar porque era muito mais grosso do que o dela.
Agora o cabelo de Kimmie estava mole e precisava de um bom tratamento.
– Se tomares duche, eu faço-te caracóis com o meu novo Dyson Airwrap.
Faço-te na cabeça toda e depois podemos fazer vídeos em câmara lenta para
publicar. E que tal se eu te fizer uma manicura? O Steven trouxe-me umas
capas para as unhas com chamas da Coreia e podes ser a primeira a
escolher.
– Não, obrigada – disse Kimmie, a fungar. – Só quero dormir.
Lolly estava agora oficialmente preocupada. Tinha pedido desculpa, uma
coisa rara para ela, e até ofereceu a Kimmie acesso ao seu kit de
manicura/pedicura, que a irmã mais nova estava sempre a pedir-lhe.
– Diz o que queres, Kimmie, e eu faço. Ou melhor ainda, pergunta-me
qualquer coisa e eu prometo que respondo com sinceridade. A sério, quanto
mais embaraçoso, melhor. – Lolly quase explodiu em lágrimas de alívio
quando isso fez com que a irmã se virasse por fim e a encarasse. Deu um
enorme sorriso de encorajamento a Kimmie. – Ainda bem que funcionou,
porque senão ia ter de tirar o X-Ato da tua caixa de desenho.
– O Vronsky e a Anna andam um com o outro? – perguntou Kimmie,
odiando-se por querer saber.
– O quê? Não! Claro que não! – respondeu Lolly bruscamente. Ela sabia
que o seu tom era demasiado agressivo, por isso continuou mais
suavemente. – Ou seja, tanto quanto sei, eles não se veem desde aquela
noite na discoteca. Ontem perguntei ao Steven pela Anna e ele disse-me que
ela estava em Boston este fim de semana porque tinha ido ver o namorado.
Ela vai lá uma vez por mês.
Kimmie digeriu a notícia, mas não disse nada, aborrecida por ter
perguntado. Já não se importava com o que Vronsky fazia. Nos últimos
dias, nem sequer pensara muito nele. Tinha tomado alguns dos Ambien da
mãe quando Danielle estava nas aulas de Bar Method. Só tomava metade de
cada vez, mas gostava porque lhe dava um sono sem sonhos.
– Lamento que ele te tenha magoado, Kimmie, mas aquele tipo não vale
toda esse sofrimento. – Lolly passou a Kimmie um lenço de papel para
limpar o nariz. – Essas lágrimas todas são mesmo só por causa dele?
– Como assim? – perguntou Kimmie. – Fala de uma vez, Lolly.
Lolly respirou fundo, mas teve o cuidado de manter a voz calma e sem
julgamentos, e explicou que talvez parte da tristeza de Kimmie fosse por
causa de um outro rapaz, além do Vronsky. Ela sabia, por Steven, que
Dustin tinha planeado convidar Kimmie para sair na noite da festa de
Jaylen, mas que o seu objetivo final era convidar Kimmie para o seu baile
de finalistas, o que, apesar de ser um pouco cliché, ela achava adorável.
Dustin saiu da discoteca tão cedo naquela noite que ela e Steven assumiram
que algo se tinha passado entre ele e Kimmie. Só no último dia ou dois é
que Lolly se apercebeu de que talvez parte do sofrimento de Kimmie fosse
por ela ter rejeitado os avanços de Dustin por causa do Vronsky, para depois
ser rejeitada pelo Vronsky logo a seguir. Tamanho azar era suficiente para
deixar qualquer um de rastos. Talvez Kimmie estivesse a lamentar-se pela
oportunidade perdida com Dustin, que não era tão atraente como Vronsky,
mas era muito superior em inteligência e carácter.
Kimmie ouviu a teoria da irmã com interesse, surpreendida por Lolly ter
passado tanto tempo a pensar no seu bem-estar. Lolly passava normalmente
todo o seu tempo livre a decidir como podia ficar mais bonita e quais os
perfumes que a fariam cheirar melhor para o idiota do namorado. Kimmie
perguntava-se se havia algum perfume que impedisse o namorado de a trair.
– Posso fazer-te outra pergunta? – perguntou Kimmie.
– Claro – disse Lolly. – Força.
– O que aconteceu no Dia dos Namorados? Chegaste a casa tão cedo
nessa noite.
Agora era a vez de Lolly estar na berlinda, e não estava nada feliz. Lolly
queria responder a Kimmie que não era da conta dela, mas sabia que não
podia. Tinha concordado em responder a qualquer pergunta da irmã, por
isso precisava de cumprir a sua palavra.
– Que fique registado que eu sei que estás a mudar de assunto porque não
queres admitir que eu estou certa em relação ao Dustin. – Lolly sentou-se e
afagou a almofada por momentos, empatando enquanto decidia se ia contar
a verdade à irmã. Ela nem sequer tinha contado a Miley e a Hannah a
história real, mas pensou que talvez devesse seguir o seu próprio conselho e
expor os seus problemas.
– Okay, o Steven alugou um quarto para nós no St. Regis para o Dia dos
Namorados, para que pudéssemos ter uma noite super-romântica juntos.
Mas quando lá cheguei, ele não se estava a sentir bem. Fiquei desiludida,
mas o que é que eu podia fazer, sabes? Alugámos um filme, mandámos vir
comida para o quarto, abraçámo-nos e foi isso. – Lolly parou, pois não
queria contar o resto da história.
– E depois? – perguntou Kimmie, e mostrou uma pequena centelha do
seu antigo eu.
– Depois começámos a brincar e uma coisa levou à outra e, no meio do
meu presente especial do Dia dos Namorados, ele murchou. – Lolly disse a
última parte muito depressa e corou de vergonha.
– O que é que murchou? – perguntou Kimmie, inocentemente.
– Pensa, Kimmie – insistiu Lolly. – Murchou… – repetiu Lolly esticando
o dedo indicador para cima e depois deixando-o cair lentamente para a
baixo.
– Ohhhhhh! – fez Kimmie. E depois: – Bahhhhh.
– Não digas «Bahhhhh». Ele não teve culpa. Li sobre isso na Internet e
parece que é uma coisa que às vezes acontece aos rapazes. Ele
provavelmente estava assustado com tanta pressão por causa do Dia dos
Namorados.
– Bem, a culpa também não foi tua.
– Eu nunca disse que foi! Claro que a culpa não foi minha. Porque é que
dizes isso?
– Não sei, porque eras tu... não importa, desculpa.
– Porque era eu o quê? A dar para ele? Achas que a culpa é minha?
– Não, não, não, só estava a certificar-me de que o Steven não te culpava,
porque se ele o fizesse eu ia ficar furiosa e dar-lhe uma tareia. – Kimmie
arrependeu-se de ter mostrado o seu recém-descoberto ódio pelos homens à
frente da irmã. Ela vacilava entre a tristeza abjeta e o ódio aos homens há
vários dias.
A última coisa que Lolly queria era começar uma briga, por isso reuniu
todas as suas forças e controlou-se.
– Kimmie, não, o Steven não me culpou. Mas ficou todo esquisito e
fechou-se na casa de banho durante muito tempo a queixar-se do estômago,
mas eu acho que ele se estava a esconder lá dentro.
– Quer dizer que ele estava a chorar na casa de banho como uma menina?
– zombou Kimmie. Isto era o mais próximo que ela tinha estado de sentir
alegria desde que a espiral descendente da sua vida tinha começado.
– Kimmie, para de ser má como as cobras! Não sei o que ele estava a
fazer lá dentro, mas a noite ficou arruinada. Tentei falar com ele sobre isso,
mas ele recusou-se. Então, foi por isso que vim para casa mais cedo! Agora
também estou chateada, mas acho que era isso que querias. Estás feliz
agora? – Lolly não queria gritar com Kimmie, mas o espetáculo de merda
do Dia dos Namorados era algo que ela queria desesperadamente esquecer.
Continuava a dizer a si própria que a culpa não era dela, mas como é que
podia ter a certeza? Embora tentasse não pensar na «Brad», não conseguia
deixar de se questionar se Steven alguma vez teria tido este problema com
ela.
Lolly viu o lábio inferior da sua irmãzinha começar a tremer e uma nova
torrente de lágrimas começou a escorrer-lhe pela cara. Meu Deus, pensou
Lolly consigo mesma, e eu a pensar que era a mais chorona da família!
– Sinto muito. Sinto muito – disse Kimmie a chorar. – Juro que não te
estava a tentar fazer sentir miserável, também. Desculpa-me por ser uma
cabra. Sinto-me tão... tão... infeliz. – Kimmie virou-se de barriga para baixo
e deu um grito desalmado para a almofada.
Lolly esfregou as costas da irmã mais nova e disse-lhe que ia tudo ficar
bem. Ela sabia que Kimmie não tinha intenção de gozar com Steven, e era
normal alguém que estava a sofrer atacar e magoar aqueles que lhe eram
mais próximos.
– Bem, tens muita sorte porque ainda tens tempo antes de teres de lidar
com problemas estúpidos de pénis – disse Lolly, procurando aliviar o
ambiente. – A sério, devias adiar teres relações sexuais o máximo possível.
É tão complicado e confuso. Quer dizer, não temos já preocupações
suficientes como raparigas sem acrescentar o sexo à mistura?
Lolly sentiu as costas de Kimmie ficarem rígidas sob as suas mãos. Não
tinha bem a certeza de como é que sabia, mas sabia. Lolly estava atónita e
incapaz de esconder o seu horror.
– Meu Deus, Kimmie, não fizeste!
Kimmie virou-se de costas, ainda a tapar a cara com a almofada e acenou
com a cabeça para cima e para baixo. Era verdade, a irmã tinha adivinhado
a terrível vergonha secreta que estava a arruinar a sua vida. Não era apenas
o arrependimento de ter rejeitado Dustin momentos antes de ser ela própria
rejeitada. Era também o arrependimento de ter perdido a virgindade com
Vronsky na semana anterior à festa em que ele a trocou por Anna K.
Kimmie teria feito qualquer coisa para voltar atrás, se pudesse. Tudo
mesmo.

XIV
Lolly desejava nunca ter entrado no quarto da irmã. Estava
completamente chocada com a revelação de Kimmie e não fazia a mínima
ideia do que devia fazer ou dizer agora. Era uma chatice ser a irmã mais
velha. Claro que ela tinha mais alguns anos que Kimmie, mas não tinha, de
todo, mais experiência na área do sexo. Na verdade, agora que Lolly
pensava nisso, parecia que a irmã mais nova tinha perdido a virgindade
antes dela. Isso fez com que ela se sentisse pior e melhor alternadamente,
uma montanha-russa de emoções de onde queria sair o mais rápido
possível.
Que fatela a tua irmãzinha ter perdido a virgindade antes de ti!
Que fatela ela tê-la perdido com o Conde Vronsky, de todas as pessoas
possíveis! Embora Lolly soubesse de pelo menos outras quatro raparigas
que estavam no mesmo barco.
Entretanto, ainda escondida debaixo da almofada, e com medo de olhar
para a irmã, os pensamentos de Kimmie sucediam-se uns a seguir aos
outros, numa onda gigante de ansiedade.
Ela acha que eu sou uma vaca.
Provavelmente vai usar isto contra mim para sempre; não lhe devia ter
contado.
Ela vai contar ao Steven. Ele vai contar à Anna e, com sorte, ela vai
achar tão nojento que nunca mais vai falar com o Vronsky.
O Steven vai contar ao Dustin para lhe provar que eu nunca fui
suficientemente boa para ele. Eu sou uma mulher caída em desgraça. Uma
mulher caída em desgraça é uma puta, certo? Nem sequer sei o que é uma
mulher caída em desgraça! Sou tão burra!
Lolly respirou fundo e quebrou o silêncio.
– Kimmie, precisamos de falar sobre isto. – Lolly viu a almofada a
abanar de um lado para o outro. Lolly agarrou na almofada e arrancou-a das
garras da irmã com um puxão rápido. Kimmie ficou tão surpreendida que
gritou, e fez um barulho tão parvo que as duas irmãs olharam uma para a
outra e desataram a rir. Assim que as gargalhadas começaram, não
conseguiram parar, e em breve estavam ambas a rebolar na cama, rindo
tanto que tiveram de se agarrar à barriga. Lolly ficou com soluços e
começou a tossir, e Kimmie teve de se levantar e ir a correr para a casa de
banho antes de fazer chichi na cama.
Quando Kimmie regressou, trouxe um copo de água para a irmã da casa
de banho. Lolly normalmente não bebia água da torneira, mas a garganta
doía-lhe por causa do ataque de tosse. Ou talvez doesse por causa das suas
atividades da semana passada... serviu-lhe de lição por ter ouvido um guru
do sexo online sobre como praticar a sua técnica de sexo oral com uma
cenoura. Agora, o mais importante era lidar com o assunto em questão, o
que, depois do ataque de riso de ambas, podiam fazer aberta e
honestamente. Esta era, de longe, a situação em que as duas irmãs tinham
estado mais próximas nas suas vidas.
– Disseste-lhe que eras virgem? – perguntou Lolly.
– Não. Pensei que ele me ia perguntar. Ou saber, mas ele não percebeu
até ser tarde demais e então pareceu assustado com isso, por isso eu menti e
disse-lhe que tinha feito uma vez antes. No ano passado, quando estava no
Nevada. Com o meu treinador.
– Kimmie! Disseste isso? Estás doida? Merda, é verdade? É mentira,
certo? Acho que não aguento se me disseres que o teu treinador da
patinagem te violou.
– Não, que nojo. Claro que não. O treinador Paul é completamente gay.
Menti. Nem sei porquê. Saiu-me, simplesmente.
– Bem, graças a Deus por isso, não por teres mentido, mas seja como for,
o que está feito, feito está. Meu Deus, Kimmie. Tecnicamente, a tua flor
rebentou antes da minha – disse Lolly, a olhar para as unhas. Ontem,
quando foi fazer a manicura, escolheu a cor de verniz Rosa Como uma
Virgem. Isso fê-la sorrir de tristeza.
– Cala-te! Estás a mentir.
– Porque é que eu havia de mentir sobre uma coisa dessas?
Kimmie estava chocada, pois tinha assumido que Lolly e Steven faziam
sexo regularmente há um ano. Incapaz de travar os seus pensamentos
maldosos, Kimmie pensou: Por que outro motivo um homem como o Steven
ainda estaria com ela se a Lolly não estivesse a dar para ele?
Como se tivesse lido os pensamentos da irmã, Lolly disse:
– Eu sei que é estranho, mas era mais fácil deixar as pessoas pensarem
que estávamos a ir para a cama. Eu ter-te-ia dito a verdade, mas nunca
perguntaste.
– É demasiado tarde para perguntar agora? – perguntou Kimmie
calmamente.
Lolly contou-lhe que tinha esperado até saber que estava emocionalmente
pronta para ter a sua primeira vez. Queria ter a certeza de que estava
loucamente apaixonada pelo rapaz antes de ir até ao fim. Basicamente,
queria que fosse especial, uma vez que era uma coisa do género uma vez na
vida. Enquanto falava, Lolly observava a irmã e estava secretamente feliz
por ver os olhos da irmã a abrirem-se cada vez mais de surpresa, mas assim
que Kimmie recuperou do choque, percebeu que a sua experiência foi a
oposta da de Lolly. Se a primeira vez de Lolly foi sobre amor, então o que é
que isso significava sobre a sua primeira vez?

XV
A biblioteca da Academia de Greenwich era o último lugar onde Vronsky
esperava encontrar a sua prima Beatrice depois das aulas numa segunda-
feira ao fim do dia, mas quando ele contornou as prateleiras das revistas,
viu-a sentada numa mesa encostada à parede, a trabalhar no seu MacBook
dourado. Ao perceber que já não estava sozinha, Beatrice levantou o olhar
do ensaio que estava a plagiar do trabalho de teologia do seu meio-irmão.
De todas as bibliotecas, em todas as cidades, em todo o mundo, ele tinha
de entrar na minha – disse ela ao primo. – Tudo bem, primo? Bela cabeça
de capacete.
Vronsky passou os dedos pelo cabelo e virou-se de costas na brincadeira,
depois sentou-se à frente dela, colocando o capacete da mota na mesa entre
eles.
– Sua marota, não respondeste às mensagens do teu primo favorito
depois de teres publicado uma InstaStory de Amigos Íntimos sobre teres
saído à socapa às duas da manhã, ontem à noite. Tive de vir até aqui para
me certificar de que não estavas a flutuar de barriga para baixo na banheira
de hidromassagem de um traficante de droga.
– Poupa-me! Podia snifar a escola toda debaixo da mesa de vidro –
brincou Beatrice. – Além disso, só me mandaste uma mensagem há umas
horas. Sabes que sou uma gaja ocupada, V.
Vronsky estendeu a mão sobre a mesa, virou o portátil de Beatrice num
movimento rápido e olhou para o ecrã.
– Impressionante. Tinha a certeza de que estarias num site de mexericos a
ver o último lançamento de batom da Kendall.
– A Kylie é a magnata da maquilhagem, seu idiota. A Kendall é a
modelo! – Enquanto dizia isto, percebeu que o primo a estava a provocar de
propósito.
– Deste modo, enquanto Deus se distingue como causa separada do
efeito, a divisão metafísica entre Caim e Abel, antediluviano/pós-diluviano,
ilustra o efeito que precede a causa para o leitor… – recitou Vronsky. – Meu
Deus, não posso acreditar! Afinal, talvez haja um cérebro por baixo de
todas aquelas extensões de cabelo. – Vronsky fechou o portátil e empurrou-
o de novo para o outro lado da mesa. Sabia que só podia provocar Bea até
certo ponto, antes que ela lhe apertasse o pescoço. Precisava dela, e sabia
que ela tinha noção disso.
– Como vai a organização da festa? Ela vem? – perguntou ele. – Estava a
pensar que talvez pudesses fazer uma festa de pijama e convidá-la para vir
cá dormir?
– Claro, talvez se tivéssemos doze anos. – Beatrice revirou os olhos ao
primo mais novo. Nunca tinha visto Vronsky assim desesperado por causa
de uma rapariga. Normalmente, arrancar-lhe-ia os tomates para depois os
assar numa fogueira por ser um pau mandado de uma mulher, mas havia
algo no seu entusiasmo por Anna que ela achava amoroso. Era a primeira
vez que o via esforçar-se assim por alguém. Bea raramente se surpreendia
com as pessoas, mas perguntava-se se Vronsky não estaria mesmo
apaixonado por Anna, como ele dizia. Já o tinha visto entusiasmado com
uma série de raparigas nos últimos dois anos, e não havia caçador que
conseguisse derrubar a presa mais depressa do que ele, mas assim que
acertava no alvo, ia atrás do próximo alvo. Estava muito curiosa para saber
se aconteceria o mesmo com Anna.
– V, estou a tratar disso, okay? – avisou ela. – Ouvi dizer que ela foi a
Boston no fim de semana passado, por isso deve estar livre no próximo
sábado à noite. Os meus espiões de Cambridge estão a vigiar o OG para ver
se ele vem à cidade primeiro. A meia-irmã dele está quase a fazer anos, por
isso, quem sabe quando será a sua triste festa. No ano passado, ela convidou
um crítico de arte que veio dar uma palestra sobre mosaicos bizantinos… na
sua festa de aniversário! Que raio de plano é esse?!
Vronsky ouviu a prima em silêncio, relaxando um pouco porque era
evidente que ela tinha tudo sob controlo. Não é que duvidasse das
capacidades dela como mestre máxima da manipulação, mas o suspense
estava a deixá-lo louco. Não via Anna há quase duas semanas e já sabia que
tinha ido passar o fim de semana a Boston. Sentiu-se tentado a segui-la, mas
decidiu que aparecer noutro comboio onde ela estava poderia fazer com que
parecesse um perseguidor. Além disso, Boston não era uma cidade com a
qual estivesse muito familiarizado e não queria ter a dor de cabeça de ter de
a localizar. Se fosse brutalmente honesto consigo mesmo, tinha de se
perguntar se seria capaz de a ver com o namorado.
– Bela Bea, já te disse o quanto te adoro e como estou agradecido por
tudo o que tens feito por mim ultimamente?
– Tenho de acabar o meu trabalho, por isso tens de ir andando. – Ela
afastou-o como se fosse uma mosca incómoda. – Vai lá para casa, se
quiseres. A mamã vai receber vinte pessoas para jantar, por isso deve haver
muito para comeres. – E acrescentou: – No entanto, se estás à procura de
outro tipo de guloseimas... Acho que a vais encontrar na Quinta Staugas a
terminar a aula de equitação daqui a meia hora.
– Emprestas-me um dos cavalos?
– Vais montar? – Bea bufou. – Estás mesmo desesperado, não estás?
Os olhos dele enevoaram-se com o comentário dela e franziu o sobrolho.
A prima estava com um estado de espírito estranho, por isso ele não tinha a
certeza se devia tentar ser sério ou não. Estava com esperança de que ela lhe
desse a sua opinião honesta, porque ultimamente não se estava a sentir ele
mesmo. Tantas emoções estavam a torná-lo cauteloso. Ela era a única
pessoa em quem confiava para falar dos seus verdadeiros sentimentos, mas,
mesmo assim, estava reticente em abrir-se completamente com ela. Embora
a prima fosse uma mestra da manipulação e ascensão social, quase nunca
partilhava as suas esperanças e sonhos mais íntimos, se é que os tinha.
A única vez que ela se abriu com ele foi há três anos, quando as suas
famílias passaram férias juntas em Bali. Tinham experimentado ayahuasca
juntos, por isso é difícil saber se isso teve influência. Ela sentiu o efeito
primeiro, e ele segurou-lhe o cabelo para trás enquanto ela vomitava na
praia. Depois, Beatrice começou a chorar e a rir ao mesmo tempo, levantou-
se e tropeçou nas ondas quentes. Vronsky, temendo pela sua segurança,
apesar de estar a tropeçar na sua própria cara, conseguiu puxá-la de volta
antes que ela se afastasse demasiado e que o alucinogénio natural a fizesse
esquecer por completo o conceito de realidade.
Ela começou então a soluçar nos braços dele e confessou que não era
suposto ser filha única. A mãe dela tinha tido dificuldades em engravidar, e
os pais recorreram à fertilização in vitro. Após várias tentativas, a mãe
engravidou de trigémeos, mas ficou horrorizada com a ideia de ter três
bebés ao mesmo tempo. Submeteu-se a um procedimento arriscado para um
dos embriões ser extinto, deixando apenas gémeos, mas sofreu uma
complicação e morreram dois, sendo Beatrice a única sobrevivente.
– A minha mãe é uma assassina egoísta! – chorou. – É como se faltasse
uma parte de mim. Devia ter tido duas irmãs, mas não, ela não podia
arruinar a sua maldita figura, por isso matou-as no útero! – Depois virou-se
para Vronsky e, com toda a seriedade, disse: – Enquanto eu assistia!
Vronsky não tinha a certeza se Beatrice se lembrava de lhe ter confessado
isto, porque nunca mais voltaram a falar do assunto. Para ser honesto, ele já
não se lembrava quando acordou vinte e quatro horas mais tarde na rede de
um estranho, a três quilómetros da casa de praia que tinham alugado. Mas
quando as memórias daquela noite lhe voltaram no voo de regresso a casa,
foi atingindo pela tristeza inconsolável dela como uma onda repentina.
Ela tinha chorado durante muito tempo enquanto estavam deitados na
praia a olhar para as estrelas. Por fim, Beatrice anunciou, com uma voz
miserável, que também ela era uma assassina porque já tinha feito dois
abortos.
– Odeio preservativos. Não suporto o cheiro deles – disse ela. – Meu
Deus, isso faz de mim uma pirralha egoísta e mimada, tal como a minha
mãe! Achas que eu seria diferente se tivesse irmãs, Vronsky? Achas que
seria... feliz?
– Elas ficaram a perder por não te ter como família – disse-lhe ele. – Eu
sei que estaria perdido sem ti. – Beatrice era como uma irmã para ele.
Vronsky pensou no que sentia por ela enquanto pegava no capacete que
estava na mesa. Contornou-a e quando chegou ao pé de Beatrice deu-lhe um
abraço sentido e carinhoso por trás.
– Adoro-te, Bea, espero que saibas isso. – Beatrice ficou tensa ao sentir o
toque dele, mas depois relaxou no abraço do primo.
– E eu a ti, bonitão. És a minha pessoa preferida no mundo – murmurou
ela, sem tirar os olhos do ecrã do computador. – Mando-te uma mensagem
quando falar com a tua querida amanhã. Se a vires hoje à noite, não lhe
fales da festa, está bem?
Vronsky piscou-lhe o olho enquanto se afastava, mas Beatrice não viu. Já
estava ocupada no thesaurus.com, a tentar descobrir o número mínimo de
palavras que teria de mudar para tornar o artigo copiado seu.

XVI
Vronsky parou num cruzamento, a caminho dos estábulos onde Anna
tinha aulas de equitação. À frente dele, uma carrinha Mercedes azul de 2010
cedeu-lhe passagem no sinal de stop, e ele agradeceu-lhe, apesar de ter
prioridade. Os motociclistas deixavam os outros condutores nervosos, e a
mãe avisou-o de que se tivesse algum acidente, mesmo que fosse pequeno,
seria a última vez que se sentaria numa mota. A maioria das mães tem
jurisdição sobre os filhos até estes atingirem os dezoito anos, mas os
miúdos ricos cujas famílias têm equipas de advogados para redigir os seus
fundos fiduciários podem ter todo o tipo de restrições incómodas que lhes
condiciona a liberdade, se não tiverem cuidado, por isso, Vronsky mantinha
a sua natureza aventureira sob controlo quando andava na cidade.
Enquanto a carrinha virava à direita à sua frente, Vronsky acelerava o
motor da sua Ducati Monster vermelha, perdido em pensamentos. Era agora
a sua vez de virar à esquerda para a estrada que conduzia à Quinta Staugas,
onde Anna guardava os seus cavalos. Não havia outros carros à espera, por
isso ficou parado por um momento, sem saber o que fazer.
Vais parecer um perseguidor psicopata a aparecer num centro hípico
com uma mota de dez mil dólares. Toda a gente a conhece lá e não podes
aparecer e esperar que ninguém repare. O que é que vais dizer se a
encontrares? «Olá. Passei por cá porque precisava de te ver.» Não faças
isso. Não sejas esse tipo. Tu odeias esse tipo. És o tipo que anda com a
namorada desse tipo. És o tipo que dorme com a namorada desse tipo e
depois com a irmã dele.
Também és o tipo que precisa de estar onde ela está.
Vronsky ligou o motor e virou à esquerda. Foi como se as mãos da
fortuna tivessem carregado no acelerador, levando-o em direção ao seu
destino.
Dois minutos depois, chegou à Quinta Staugas e estacionou a mota entre
dois Range Rovers. Quando tirou o capacete, passou a mão pelo cabelo
algumas vezes, respirou fundo e dirigiu-se aos estábulos.
Há cinco anos que não montava a cavalo e Vronsky apercebeu-se, agora
que estava de novo perto deles, que não tinha saudades nenhumas. Só havia
duas coisas de que tinha gostado na equitação: a nobreza e magnificência
dos cavalos e a atração que sentia pelas raparigas que os montavam. Tudo o
resto era abominável. Odiava o cheiro, não gostava da lama e também não
gostou do olhar que recebeu do empregado do estábulo, extremamente alto,
quando perguntou se Anna K. tinha voltado da aula.
– Quem é que quer saber? – perguntou ele com um ar de desprezo. – Não
estou autorizado a dar informações sobre a nossa clientela a qualquer rapaz
bonito que aqui aparece. – Ele falava com um calão exagerado que soava a
falso a Vronsky. Ao observá-lo mais de perto, Vronsky teve a certeza de que
o tipo à sua frente não era muito mais velho do que ele, apesar de ser mais
alto e de ter a barba de alguém muito mais velho.
– Sou amigo dela – disse Vronsky. Agora arrependia-se de não ter
seguido em frente no cruzamento quando teve oportunidade. – De Nova
Iorque.
– Oh, é suposto eu ficar impressionado? Vens para o campo da cidade
grande e má? – Agora Vronsky sabia que o tipo estava a gozar com ele, e
não achou graça nenhuma.
– Olha, meu, o meu tio é o Richard D. de Pear Lane. Ele joga golfe com
o senhor Staugas. Tipo, todas as semanas.
– Ohhhhhh, bem, acho que isso faz do teu tio o maricas de Pear Lane de
que tanto ouvi falar.
Vronsky moveu-se rapidamente, com o punho no ar e pronto para bater
no homofóbico que se atrevia a manchar o bom nome do tio, mas o rapaz
esquivou-se facilmente do golpe. Dobrou-se e deu uma gargalhada.
Confuso com o som familiar, Vronsky virou-se para encontrar o tipo a sorrir
e de braços abertos.
– Porra, mano! Enganei-te bem, meu. Devias ter visto a tua cara. Estou
surpreendido por não te ter saído fumo do nariz, como aquele dragão dos
desenhos animados de que tanto gostavas. Como é que ele se chamava?
Toothy?
– Toothless[16] – corrigiu-o Vronsky. Abanou a cabeça espantado. Estava
tão concentrado na sua missão de ver Anna que não reconheceu Murf, um
dos seus antigos colegas de equipa de quando jogava na Little League em
Greenwich. – Mas que raio, Murf! Da última vez que te vi, eras do tamanho
do Kevin Hart, mas agora és tão alto como o Draymond Green!
– Sim, eu cresci. Mas só tenho um metro e noventa e dois, o meu amigo
tem dois metros e quatro.
Os dois rapazes abraçaram-se como irmãos.
– Desculpa não te ter reconhecido – disse Vronsky, sentindo-se um pouco
humilhado por ter dito o nome do tio como um idiota. – Já passaram
séculos.
– Demasiado, Menino da Cidade – respondeu Murf. – Vamos pôr a
conversa em dia com uma geladinha, está bem? E antes que me digas que
não podes porque tens de #hashtag: ver uma rapariga, a Anna saiu cinco
minutos antes de esse rabo entrar pela porta do meu estábulo.
Dez minutos mais tarde, ambos estavam sentados em fardos de feno a
beberem latas de cerveja fresquinha como cowboys do Oeste Selvagem.
Murf e os outros trabalhadores da Quinta Staugas tinham escondido uma
grande geleira cheia de cervejas para quando precisassem de uma pausa
«dos ricos para quem trabalhamos», como Murf disse tão eloquentemente.
Murf inclinou um chapéu de cowboy imaginário a Vronsky.
– Quando eu digo «ricos», fica a saber que não estou a falar da tua
querida Anna. Ela não é como as outras. É a preferida de toda a gente.
Tenho parentes em Buffalo, onde no inverno faz um frio de rachar, e tenho a
certeza de que ela derreteria a cidade inteira em janeiro com aquele seu
sorriso.
Vronsky levantou a sua lata em sinal de concordância. Por mais que
estivesse desejoso de falar dela, sabia que tinha de ter cuidado com o que
dizia sobre Anna e a quem dizia.
– Uau, meu, estás a começar a gostar dela? Porque sabes que ela não
podia estar mais comprometida. Desembucha.
– Não há nada para contar – disse Vronsky. – Acabei de tirar uma senha
para entrar na fila e a poder admirar juntamente com toda a gente aqui. –
Vronsky pegou noutra cerveja para si e atirou uma ao amigo, que a apanhou
com uma mão. Murf tinha sido escolhido para os All-Stars quando jogavam
juntos e Vronsky não… até Murf o ter colocado na equipa, dizendo ao
treinador que só jogava se o amigo também jogasse. Vronsky sorriu com ao
lembrar-se disso.
– Por acaso a Anna conduz uma carrinha velha Benz azul?
– Sim, é ela. Todos os outros aparecem neste sítio poeirento em Range
Rovers de edição limitada, novinhos em folha e imaculados, mas ela conduz
a carrinha. Normalmente vem com aqueles cães enormes que parecem ursos
atrás, mas hoje não os vi. Porque é que perguntas?
Vronsky bebeu a cerveja e abanou a cabeça.
– Por nada. – Então era ela, no cruzamento, antes de ele ter chegado à
quinta. Estava mesmo ali à frente dele e ele nem se apercebeu. Será que ela
sabia que era eu na mota? Esperava que não, porque se ela sabia e não
tinha voltado para trás, então isso significava que ele era um tolo por ter
vindo até aqui.
– Okay, se dizes que não há nenhuma razão, então é porque não há. Mas
olha que é muito estranho apareceres assim do nada, quando eu nunca vi as
tuas fuças por aqui antes, e já trabalho cá há anos. Agora que penso nisso, a
Anna e eu começámos a vir para a Quinta Staugas na mesma semana. Claro
que ela vinha para montar puros-sangues de quinhentos mil dólares
enquanto eu recebia o salário mínimo para apanhar a merda deles.
– Não sabia que gostavas de cavalos – disse Vronsky, na esperança de
mudar de assunto.
– Não gostava. Continuo a não gostar. Bem, alguns deles são fixes –
admitiu Murf. – Arranjei este emprego porque foi para onde o juiz me
mandou depois de ter sido apanhado a roubar em lojas. Segundo delito. Era
isto ou o reformatório, e o juiz era amigo do senhor Staugas e perguntou-lhe
se ele tinha algum trabalho para um miúdo rebelde. Ele disse que sim e pôs-
me na linha. Até me acolheu quando a minha mãe foi para a reabilitação.
Agora este buraco de lama fedorento parece a minha casa. É engraçado
como as coisas são, não é?
Algo fez clique na cabeça de Vronsky quando Murf falou. Era como se
esta pequena roda na sua cabeça tivesse estado a girar sem parar, às voltas,
deixando-o louco. Mas Murf acertou em cheio na essência do que ele estava
a sentir. Casa. A razão pela qual ele precisava de estar perto da Anna era
porque algo nela o fazia sentir-se em casa.
– Murf, ela está a matar-me. – Vronsky disse as palavras tão suavemente
que se perguntou se as teria dito em voz alta. – Nunca me senti assim por
nenhuma rapariga antes. Vim de mota até aqui, por amor de Deus. Para um
centro hípico. O que é que se passa comigo?
– Eu sei que tenho uma grande boca, mas não sou mau ouvinte quando
me apanham de bom humor. – Murf ajeitou os fardos de palha para poder
pôr os pés em cima.
Vronsky começou a falar e Murf ouviu. Não importava que os dois
rapazes não se tivessem visto durante metade das suas vidas, ou que
viessem de mundos opostos, Vronsky da elite e Murf da parte pobre de
Greenwich que ninguém sabia que existia. Durante uma época inteira nos
Greenwich Blue Jays, foram inseparáveis: partilharam o mesmo banco de
suplentes, dividiram uma piza de pepperoni com queijo duplo depois de
cada jogo, contaram piadas, segredos e desenvolveram uma amizade capaz
de ultrapassar qualquer diferença superficial entre riqueza e estatuto. E isto
significava muito para ambos, por isso não era difícil voltarem a partilhar as
suas vidas.

XVII
Quando Anna entrou na imponente entrada circular em frente à sua casa,
sentiu um aperto no estômago ao ver o Mini Cooper azul-bebé de Eleanor a
bloquear a vista do jardim. Ela deu voltas à cabeça, a perguntar-se se não se
teria esquecido dos planos para se encontrar com ela. Andava muito
distraída ultimamente, por isso era possível que algo lhe tivesse escapado.
Consultou o calendário do iPhone e ficou aliviada por não encontrar nada.
Desde que faltara à festa de chá de Eleanor depois de ter passado a noite
toda na discoteca 1 OAK, Anna não tinha visto muito a meia-irmã mais
nova do namorado. Anna sabia que Eleanor dizia às pessoas que Anna era a
sua melhor amiga, mas Anna nunca se tinha referido a Eleanor dessa
maneira, pela simples razão de que não era verdade.
A verdade era que Anna passava muito mais tempo com Eleanor do que
queria, mas como ela era filha do pai de Alexander com a sua segunda
mulher, estavam juntas em todas as ocasiões familiares. Por isso, quando
Alexander ainda andava na Brunswick – o equivalente masculino da
Greenwich Academy –, Eleanor tentava sempre acompanhá-lo, sem nunca
pensar em perguntar se estava a incomodar. E agora, quando Alexander
vinha passar um fim de semana a casa uma vez por mês para ver Anna, era
muitas vezes difícil encontrar tempo a sós. Alexander ficava em casa do pai
quando vinha a casa, e Eleanor parecia estar sempre lá.
Nesses fins de semana, se o pai de Anna estivesse a trabalhar na cidade
ou fora e a mãe decidisse passar a noite na cidade, Anna ficava lá. O pai não
gostava que ela passasse a noite em casa do namorado, uma das muitas
coisas em que ele era rigoroso. A mãe tinha tendência a olhar para o lado,
sobretudo porque tinha Alexander em tão alta conta. Quando Alexander era
convidado para ir de férias com eles, tinham de dormir em quartos
separados, o que significava que, se Steven também fosse, os dois rapazes
dormiam juntos. Por isso, Anna nunca deixava o namorado dormir em casa
dos pais, com medo de ser apanhada. Nos fins de semana em que Anna ia a
Boston, o pai esperava que ela ficasse no apartamento da empresa dele em
Copley Plaza, mas ela nunca o fazia. E, felizmente, o pai nunca lhe
perguntou, nem parecia estar a controlá-la da mesma forma que ela sabia
que ele controlava Steven.
– Finalmente, chegaste! Estava à espera há séculos – disse Eleanor assim
que Anna entrou. Eleanor estava sentada na sala de estar formal, muito
quieta, porque não era fã de Gemma e de Jon Snow. Sempre que Eleanor
aparecia, Anna tinha de os impedir de entrar em qualquer divisão onde ela e
Eleanor estivessem, o que deixava Anna louca, porque os cães
simplesmente não percebiam porquê. Eleanor dizia que era ligeiramente
alérgica, mas não era verdade. Ela achava a baba deles nojenta e pouco
higiénica e, como era completamente obsessiva-compulsiva, era mais fácil
para Anna mantê-los separados quando Eleanor fazia uma «visita de
surpresa», o que na linguagem de Eleanor significava uma intrusão
indesejada. Anna detestava as «visitas surpresa» de Eleanor. Porque é que
ela não podia simplesmente avisar antes por mensagem, como qualquer
outro adolescente no mundo?
– Olá, Eleanor – disse Anna, procurando disfarçar para a sua voz não
revelar o que sentia realmente. – A que devo esta visita-surpresa?
– Sinto que não te vejo há uma eternidade, e senti-me mal por isso, tanto
que disse a mim mesma: «Ellie, vai animar a Annie e dizer-lhe que tens
saudades dela!» – Eleanor continuou numa voz doce. – Já não está na altura
dos cães dizerem adeus? Sinto-me muito negligenciada por estar aqui
sentada sozinha. Além disso, o meu nariz está a começar a tremer como o
de um coelho.
Anna suspirou para dentro. Normalmente, os cães sabiam que deviam
desaparecer quando Eleanor aparecia, fugindo pela abertura na porta para a
sala das máquinas, mas desta vez devem ter recusado, pois ainda estavam à
espera que Anna chegasse.
– Gemma! Jon Snow! Lá para fora! – ordenou ela, e os cães gigantes
levantaram-se e dirigiram-se para a cozinha. Anna seguiu-os, para o caso de
Magda, a governanta, já ter começado a fazer o jantar. Jon Snow era um
grande ladrão de comida que, uma vez, destruiu selvaticamente o peru de
Natal, algo que Anna jurava que ele tinha aprendido ao ver Um Conto de
Natal na televisão. Ela deixou sair os cães pelas portas de bater e eles
galoparam para o relvado das traseiras, voltando-se tristemente quando ela
fechou a porta e eles perceberam que ela não vinha brincar com eles.
Desculpem, queridos, a culpa é da Eleanor.
Anna tinha planeado ler durante o jantar, mas agora tinha a sensação de
que Eleanor se ia autoconvidar para ficar, por isso mandou uma mensagem
a Magda a dizer que não podia, de modo algum, servir uma refeição com
vários pratos. Mais tarde, enquanto as duas raparigas comiam juntas uma
lasanha de legumes na sala de jantar, Eleanor falou finalmente do
verdadeiro motivo da sua visita.
– Annie, podemos falar agora a sério? – perguntou Eleanor, usando a sua
melhor voz de adulta, que soava como a de um apresentador de um
programa de televisão com uma grande dose de Adderall. – Por
favoooooooor? – Anna detestava que Eleanor a chamasse Annie e já lhe
tinha pedido várias vezes para não o fazer, chegando mesmo a pedir a
Alexander que a obrigasse a parar com aquilo, mas também não funcionou.
E, como se isso não bastasse, Eleanor passava metade do tempo a falar à
bebé, o que para Anna era como ouvir giz a raspar num quadro negro.
– Claro, o que se passa?
– Ainda estou indecisa sobre o que quero fazer no meu aniversário.
Quero dizer, para além de o passar com a minha melhor amiga, obviamente!
A mamã quer organizar um jantar de família no clube, por isso tenho de
descobrir que data é melhor para ti e para o Alexander. Ele vem cá este fim
de semana?
Anna abanou a cabeça.
– Não, acabei de vir de lá e ele tem um trabalho para entregar.
Eleanor ficou com uma expressão abatida ao ouvir aquilo, e fez o seu ar
mais irritante.
– Bem, acho que podemos fazer o meu jantar de anos de família no fim
de semana a seguir, mas isso é um pouco triste para mim. Sabes, porque o
meu aniversário é tecnicamente um dia mais próximo deste fim de semana
do que do outro. – Esta era a especialidade de Eleanor: fazer beicinho de
forma passivo-agressiva até desgastar uma pessoa emocionalmente e
conseguir o que queria. – Talvez o Alexander pudesse escrever o trabalho
dele aqui? Só acho que o meu jantar de anos em família seria muito melhor
se fosse este domingo à noite no clube.
– Pensei que a tua mãe tinha dito que ia fazer um brunch este ano. –
Anna sabia que isso nunca aconteceria, mas às vezes parecia-lhe justo
torturar Eleanor, já que ela estava sempre a torturá-la a ela e a Alexander.
Bem, não podia falar pelo namorado, porque ele nunca se queixava de
Eleanor. – Ela é minha irmã, Anna – era o que dizia sempre nas poucas
ocasiões em que ela deixava transparecer que Eleanor a tinha aborrecido. –
Família é família.
– Nem pensar, os brunches de aniversário aos domingos são coisas de
velhos. Além disso, há sempre demasiado xarope de ácer num brunch para
que eu possa relaxar. Sabes como eu detesto...
– Coisas pegajosas, sim, eu sei. Tu já falaste com o Alexander sobre
fazeres o jantar este domingo à noite?
– Deixei-lhe montes mensagens, só hoje três. Mas ele ainda não me ligou
de volta. Sei que falam todas as noites, por isso estava a pensar se podias
falar com ele por mim. Ele vem se tu lhe pedires, porque ele amaaaa-te.
Por favor, Annie-banana, a Ellie está a pedir-te por favor.
Anna concordou, só para evitar a dor de cabeça que se estava a formar
nas têmporas, mas lembrou a Eleanor que Alexander já lhe tinha dito que
não várias vezes. Sabia que ele ia ficar chateado por ela se estar a meter,
provavelmente porque estava a ignorar os telefonemas de Eleanor de
propósito, mas neste momento não tinha paciência para as lamúrias de
Eleanor. A dor de cabeça estava a alojar-se atrás do maxilar, e fazia-lhe doer
os ouvidos. Há menos de duas horas estava tão calma e concentrada, a
galopar com Mar Anthony, que tinha saltado particularmente bem durante a
aula de equitação dessa tarde.
Lembrou-se de quando saiu da Quinta Staugas, e estava parada num
cruzamento, diante de um tipo numa mota vestido de preto com um
capacete com uma risca vermelha. Ver uma mota enquanto conduzia
deixava-a sempre nervosa, por isso prestou especial atenção à mota
vermelha e brilhante que tinha à sua frente. A sua mãe chamava-lhes
«veículos de dadores», e proibia Steven de ter uma, apesar de ele lhe ter
implorado durante um ano inteiro. Ele desistiu depois de tirar a carta de
condução, embora Anna soubesse que o irmão andava na mota do amigo
Kaedon na casa dele em Catskills.
No Dia dos Namorados, tinha ficado surpreendida ao saber que a mãe de
Vronsky o deixava andar numa, mesmo que não tivesse carta de condução –
apesar de ter acabado de fazer dezasseis anos, ele ainda não se tinha dado
ao trabalho de a tirar. A justificação era que, em França, onde Geneviève
cresceu, todos os jovens de catorze anos tinham uma mota. Ah, ali estava!
Atualmente, qualquer pensamento que tivesse parecia levá-la diretamente a
Vronsky. A elegante Ducati deixava-a nervosa, fazendo-a pensar em
acidentes de mota, e depois imaginava como seria terrível se Vronsky
alguma vez sofresse um.
– Annie-hoo, estás a ouvir-me? Fiz-te uma pergunta muito importante.
Achas que devemos fazer um bolo Funfetti para o meu jantar de família, ou
para o jantar no meu dia de anos? Também tens de ir. Vamos ter rolos de
lagosta vindos do Maine, acho eu. Bem, pelo menos foi isso que eu disse ao
papá que queria...
– Bolo Funfetti para o teu jantar de aniversário – respondeu Anna em
piloto automático. – Com gelado de baunilha à parte. – Ela mal estava a
ouvir, porque agora estava a fantasiar que o motociclista que tinha visto
antes era Vronsky, e que ele tinha vindo da cidade para a ver. Ele estava a
virar na direção da Quinta Staugas; ela tinha visto pelo espelho retrovisor
quando se afastou dele. Não teria sido tão bonito? Se ele tivesse vindo vê-
la?
– Annie! Annie! – Eleanor estalou os dedos. – Estás a ouvir-me, sequer?
Sim, Eleanor, infelizmente, estou, respondeu na sua cabeça.

XVIII
Dustin ficou surpreendido quando Steven lhe mandou uma mensagem a
dizer que devia trazer o irmão para a explicação. Ele tentara remarcar a
sessão para o dia seguinte, uma vez que tinha planos para passar a tarde
com o irmão, mas Steven respondeu que precisava de ver Dustin hoje, sem
falta, por isso disse para ele e Nicholas irem lá a casa.
Quando Nicholas entrou no apartamento de Steven, assobiou ao ver
como era elegante, o que deixou Dustin embaraçado, embora Steven não
parecesse reparar. Steven sugeriu que Nicholas jogasse na sua PS4 enquanto
eles faziam os trabalhos da escola, e conduziu-o a uma pilha de cópias
antecipadas de novos jogos que só saíriam no próximo ano. O pai de Steven
era amigo de um dos chefes da divisão de jogos da Sony e, por isso, estas
caixas chegavam de poucos em poucos meses com os jogos mais recentes.
Mais uma vantagem dos super-ricos, pensou Dustin para si, enquanto o
seu irmão Nicholas teve de comentar em voz alta:
– Não quero ofender, mas vocês, os privilegiados, têm umas regalias do
caraças.
Steven acenou e concordou.
– Se temos.
Comentários como este deviam fazer Steven parecer um parvalhão, mas,
de alguma forma, tinham o seu quê de encantador. Dustin achava isso
perturbador e fascinante.
Quando Nicholas já estava instalado na sala de estar a jogar Fortnite,
Steven fez sinal para que Dustin o seguisse em vez de irem para o seu local
de trabalho habitual, na sala de jantar. O amigo seguiu-o pelo corredor e
Steven conduziu-o até ao quarto, fechando a porta atrás deles.
Dustin nunca tinha estado no quarto de Steven e, ao entrar, percebeu
porque é que Steven nem pestanejou com a falta de filtro do irmão... porque
era verdade. Tudo no quarto luxuoso e decorado por profissionais era topo
de gama. Sentiu-se como uma personagem de um filme de Hollywood.
Steven ligou o enorme LCD pendurado na parede e ordenou à Siri que
pusesse a tocar «Lifestyles of the Rich and Shameless», dos Lost Boyz.
– Desculpa por estar a ser tão misterioso, mano – começou Steven. – Mas
preciso mesmo de falar contigo a sós.
– Claro – respondeu Dustin. De súbito sentia-se ansioso e começou a
pensar se teria feito alguma coisa mal.
– Já queria ter falado no outro dia, mas não consegui por causa da Lolly.
– Lolly tinha estado presente durante toda a sessão de explicação, dois dias
antes.
Dustin ficara agora ainda mais nervoso, rezando silenciosamente para
que Steven não mencionasse o nome que ele andava a evitar como uma
praga.
– Para de fazer essa cara, meu, isto não tem nada que ver com a Kimmie
– disse Steven.
E lá estava ele: o DJ que morava no peito de Dustin fez o vinil do seu
coração saltar uma batida.
– Tenho tentado esquecer aquilo, a sério. Mas não consigo. É impossível.
Tenho de contar a alguém, e tu és a única pessoa a quem posso confiar um
segredo deste tipo… – Steven andava de um lado para o outro no tapete
felpudo e macio em frente à televisão, enquanto os primeiros acordes de
«Renee» se faziam ouvir pelas colunas Bose de edição especial.
– Steven, diz de uma vez. Vais sentir-te melhor.
– Não podes contar a ninguém. A ninguém mesmo. Pacto de silêncio.
Jura primeiro. Isto é uma merda fodida e repugnante que não pode sair
deste quarto.
– Estás pedrado? – questionou Dustin. – Porque é que estás a agir como
se estivesses. E se estás, eu devia saber porque tenho um viciado na tua sala
de estar neste momento. – Dustin não pôde deixar de se perguntar se o pai
do amigo tinha um cadeado no armário das bebidas.
– Não, não estou pedrado, cheirei só uma linha, mas foi para me acalmar.
Dustin ainda pensou em dizer a Steven que a cocaína era um estimulante,
mas não queria desviar-se do assunto ou arriscar-se a perder a confiança do
amigo.
– Steven – disse Dustin na sua voz mais calma e séria –, eu juro que não
conto nada a ninguém.
Steven parou de andar de um lado para o outro e pôs-se à frente de
Dustin, que estava sentado à secretária de Steven numa cadeira Herman
Miller de malha prateada.
– A minha mãe… No outro dia eu… foda-se! Não sou capaz. Nem sequer
consigo dizer em voz alta.
– Steven! – exclamou Dustin bruscamente.
– No Dia dos Namorados vi um gajo com uma tatuagem nas costas a
fazer sexo oral à minha mãe.
Dustin ouviu as palavras do amigo, mas não as processou.
– Podes repetir?
– Meu, isso não é fixe, não é nada fixe – respondeu Steven, embora
Dustin não estivesse a tentar meter-se com ele. – Era um dragão.
– O que é que era um dragão? – inquiriu Dustin.
– A tatuagem do tipo que estava a comer a minha mãe lá em baixo! –
Steven engasgou-se um pouco. – Tinha asas. Até era fixe se fosse noutro
contexto. Tinha uns olhos prateados iridescentes que pareciam...
– Ninguém quer saber da tatuagem! – Dustin começou a andar de um
lado para o outro. – Eles viram-te?
– Não, meu, ele estava lá em baixo e a minha mãe estava a olhar para o
teto. Tive de vir a casa entregar o presente do Dia dos Namorados do meu
pai, ouvi música a tocar e abri a porta. Porra, porque é que abri a merda da
porta? A minha vida seria completamente diferente se não tivesse aberto a
merda da porta! Foda-se! Até arruinou o meu palavrão preferido!
A porta do quarto do Steven abriu-se. Dustin e Steven olharam para
Nicholas, parado à entrada da porta.
– Meu! – disse o Steven. – Não bates à porta? – O Dustin viu a ironia
disto, mas ficou em silêncio.
– Iô, acabei de receber a skin final, Entropy, e é fixe para caraças! –
declarou Nicholas. – Vi Hot Pockets no teu frigorífico chique, posso comer
alguns?
– Nicholas – admoestou-o Dustin. – Vamos jantar com a mãe assim que
sairmos daqui.
– Come todos os que quiseres – disse Steven rapidamente. – Desculpa,
estamos a falar do meu trabalho de história.
– Na boa, mantém-te nerd – disse Nicholas sem qualquer julgamento. –
Nicholas está no ir. – E fechou a porta atrás de si.
Uma vez que Nicholas já não os podia ouvir, Steven contou a Dustin a
cena toda, com todos os pormenores escabrosos. Era óbvio que Steven
andava a precisar de desabafar há algum tempo e, quanto mais falava, mais
calmo ficava. Dustin, por seu lado, ficava cada vez mais agitado à medida
que a conversa continuava. Era como se Steven estivesse a passar a sua
bagagem psicológica para Dustin como um implante colocado num
espectador inocente de um filme de espionagem.
– Meu, nem consigo imaginar... – disse Dustin ao amigo, se bem que não
se importava de trocar o seu drama pelo da mãe de Steven, se isso
significasse que Nicholas e a mãe iam fazer as pazes. Na verdade, tinha de
pensar melhor.
– Pois não, não podes – concordou Steven. – Tenho andado a evitá-la há
dias, mas ela está a começar a perceber que se passa alguma coisa. Achas
que foram os Hot Pockets que me lixaram? Deixei dois no micro-ondas no
Dia dos Namorados. E se a minha mãe sabe que eu sei sobre o gajo com a
tatuagem de dragão e os seus ténis de merda Big Baller?
Dustin mal conseguia acompanhar o que o amigo dizia.
– Dustin! Diz-me o que devo fazer.
Dustin pensou na situação dos Hot Pockets. A mãe dele teria reparado,
mas isso porque ela era obcecada em ter uma cozinha impecavelmente
limpa e teria encontrado logo os Hot Pockets esquecidos. Ela também não
era o tipo de mãe que era lambida por homens com tatuagens nas costas.
Estas eram as principais diferenças.
– A tua mãe não viu de certeza. Vocês não têm um cozinheiro? Um chef
ou lá o que vocês, ricos, chamam ao vosso pessoal?
Steven olhou para Dustin com admiração.
– Meeeeeeeeeeeeeeeeeeeeu. Porque é que não pensei nisso? Podia ter
perguntado à Marta na semana passada e assim não tinha passado este
tempo todo a dar voltas à cabeça. É por isso que sou teu amigo, seu
inteligente filho de uma… senhora muito simpática.
– Eu percebi, meu – disse Dustin. – Além disso, mesmo que a tua mãe
tenha descoberto que tu a viste, ela nunca iria falar sobre isso. – O alívio era
agora visível na expressão de Steven e Dustin ficou satisfeito por ter sido
útil.
– Um problema resolvido, agora falta outro – disse Steven. – Como é que
esqueço esta merda? Parece que está gravada no meu cérebro.
– O Despertar da Mente – disse Dustin.
– O quê?
– É um filme do Charlie Kaufman com o Jim Carrey e a Kate Winslet em
que há uma empresa que pode apagar as tuas memórias se quiseres mesmo
esquecer alguma coisa.
– C’um caraças – disse Steven. – Isso não é um documentário, pois não?
Podem mesmo fazer isso?
– Poupa-me, se pudessem fazer eu já lá tinha feito – disse Dustin. – Vais
ter de esquecer à moda antiga. Com bebida e drogas, ou GoT pela terceira
vez, no meu caso.
Steven riu-se.
– És um bom amigo, Dustin – disse ele, e bateu nos ombros do amigo
enquanto o olhava diretamente nos olhos. – Obrigado. Sinto-me melhor.
– Melhor o suficiente para fazeres os trabalhos de casa? – perguntou
Dustin.
– Não, mas melhor o suficiente para jogar um torneio de FIFA a três com
o teu irmão.
– ‘Bora – disse Dustin. – Era óbvio que o amigo não estava em condições
de estudar, e Dustin estava nervoso com o jantar do reencontro da mãe com
o irmão, por isso também se queria distrair, além de que sabia que Steven
ainda lhe pagaria as explicações.
Quando os dois amigos entraram no corredor, o cheiro a Hot Pockets
vinha da cozinha, mas nenhum deles disse uma palavra sobre o assunto.

XIX
Todos os fins de semana, por todo o país, há adolescentes a darem festas
em casa. Mas nenhuma delas era comparável a uma festa de Beatrice D. As
suas festas eram de arromba e prolongavam-se sempre até altas horas da
madrugada. A polícia nunca era chamada, porque o seu local preferido para
as festas era uma casa de campo de mil e quinhentos metros quadrados,
com vinte e cinco hectares, logo a seguir à fronteira de Nova Iorque.
Provavelmente não se devia chamar uma festa em casa, mas uma festa num
outro Estado não tinha propriamente o mesmo significado.
Normalmente, Beatrice enviava os convites em papel de carta perfumado,
mas como esta festa era de última hora, foi obrigada a enviá-los por email.
Optou por remeter os convites enquanto estava na escola, para que pudesse
ver a reação da sua convidada de honra quando o recebesse. Embora a
rapariga em questão não fizesse ideia de que era a única razão para a
reunião-de-mais-de-cem-pessoas, era exatamente isso que ela era.
Beatrice encontrou Anna sentada nos degraus sob o sol de inverno,
agasalhada com um casaco Moncler branco com acabamento em pelo, a ler
As Horas Invisíveis, e carregou em enviar. Bea verificou o seu próprio
telemóvel e viu o novo e-mail com o assunto «A FESTA É MINHA E EU
CHORO DE BÊBEDA SE QUISER!» Sorriu com a frase; não era o seu
melhor trabalho criativo, mas mesmo assim divertia-a.
Bea olhou de novo para Anna, que tinha parado de ler e estava agora a
ver o telemóvel. Bea tinha de agir rapidamente.
– Ei, Annabanana, posso contar com a tua presença? – perguntou Bea, e
juntou-se a ela nos degraus, embora detestasse sentar-se no chão. – Quero
que fiques lá a dormir. Tipo, oficialmente, ao contrário dos outros animais
bêbados que, sem dúvida, também vão lá passar a noite. Temos oito quartos
e podes ser a primeira a escolher, porque os teus poros são tão pequenos.
– Eu e os meus poros queremos mesmo ir – disse Anna. – Mas o
aniversário da Eleanor é na próxima semana e está a tornar-se um pesadelo.
Ainda estou à espera de saber quando é que vai ser o jantar de família.
– Jantar de família? Meu Deus, não me digas que fugiste e casaste em
segredo com o OG sem dizer nada a ninguém. Pensa em todos os presentes
caros que estarias a perder!
Anna riu-se. Bea era provavelmente a pessoa mais engraçada que ela
conhecia, mas nunca diria isso ao irmão.
– Não, claro que não! – respondeu Anna, apesar de saber que Bea se
estava apenas a meter com ela. – Achas que eu me tornaria cunhada da
Eleanor de livre vontade? – Assim que as palavras lhe saíram da boca, Anna
arrependeu-se. O que é que Beatrice tinha que fazia sobressair o seu lado
mais assanhado? – Isto foi horrível da minha parte. Retiro o que disse.
– Na vida, não se pode retirar nada, querida. De qualquer forma, tens
garras de gatinho. Acredita em mim, isso não foi nada mau. Olha e aprende
o que é ser-se mau: A Eleanor é uma cabra sem graça, que se acha
moralmente superior a toda a gente, e os seus dramas devem ser verdadeiros
espinhos na tua linda pata com manicura francesa.
– Bea, para! – Anna abafou uma gargalhada. – Ela é a irmã mais nova do
Alexander.
– Meia-irmã – corrigiu Beatrice. – Olha, eu sou irmã por adoção, o que é
ainda mais baixo na pirâmide do que ser meio-irmão, mas se a namorada do
meu irmão adotivo mais velho, Royce, não viesse à minha festa de anos, eu
ultrapassava isso e nós somos muito unidos. A Eleachata é um problema do
teu namorado, não teu. E lembra-te, tudo se resolve se lhe deres dinheiro
suficiente. Arranja-lhe uma PDCPA. – Anna olhou para ela, confusa. – Um
presente de culpa por antecipação... O meu pai é mestre nisso. Eu sabia
sempre que ele ia faltar a um dos meus aniversários porque recebia um
estúpido presente antes do tempo. Ele comprou-me uma alpaca porque ia
faltar ao meu décimo aniversário. Eu rezei para que ele tivesse de ir a
Londres quando fiz dezasseis anos para me comprar um Bentley.
O pai de Anna não fazia o ataque preventivo, mas aparecia sempre com
um presente de culpa depois do facto consumado. Quando regressou de
Singapura, há dois dias, trouxe-lhe uma mala Birkin de avestruz cor de
laranja, porque se sentia mal por ter perdido Westminster.
– Não aceito um não como resposta. Também mereces ter a tua própria
vida. Sei que há muito mais Anna K. do que ser a namorada perfeita do
Alexander W., bolas, ainda na outra noite dancei com ela. Vai fundo e
resgata a tua rapariga interior, porque a minha festa vai ser divertida como o
raio. Eu até te dizia o que o Vronsky vai vestir, mas ele fazia-me como à
Marie Antoinette num instante. – Beatrice deixou cair uma guilhotina
imaginária sobre o pescoço e fez uma careta de rainha-morta-zombie.
À menção do nome de Vronsky, as suspeitas de Anna confirmaram-se.
Quando abriu o convite de Bea, a primeira coisa em que pensou foi que a
altura parecia estranha. Beatrice era conhecida pelas suas festas, mas
normalmente eram planeadas com muito mais antecedência do que esta.
O Alexia pediu à prima para organizar uma festa para me poder ver! Ela
não podia ter a certeza, mas sabia que era verdade.
– Está bem, está bem. Eu vou. Só tenho de pensar em como lidar com a
Eleanor – disse Anna.
Bea tinha razão, ela não era casada com Alexander. Tinha apenas
dezassete anos!
– Que Deus me ajude por dizer isto, mas podes trazer essa viciada em
Jesus que passa a vida a lavar as mãos, se for preciso.
– Não vai ser necessário – disse Anna, levantando as mãos. – Ela é a pior
pessoa para ir a uma festa. O meu irmão chama-a de Rouba-alegria. Por
falar nisso, tu…
– Convidei o teu irmão? Claro que sim – respondeu Bea, feliz por estar
tudo a decorrer como ela planeara. – Sabes... se tu e o meu primo acabarem
por ficar juntos, eu fico muito feliz por te ter a ti e ao teu irmão mais velho
e bonitão na família.
Anna corou perante a frontalidade de Beatrice, mas não o deixou
transparecer enquanto procurava a página do livro que estava a ler.
– Muito bem, linda, volta para a tua vida de totó, que eu vou almoçar –
disse Beatrice, e começou a afastar-se muito satisfeita consigo mesma.
Embora ainda não tivesse a certeza se Anna estava pronta para deixar o mau
para ficar com o herói.
– Ei, Bea, espera! – chamou-a Anna. – Posso juntar-me a ti? Também
estou cheia de fome.
Muito bem, muito bem, pensou Bea para si própria enquanto fazia sinal a
Anna para a acompanhar. Afinal, o Vronsky pode ter apanhado uma bela
mosca na sua teia.

XX
No dia da festa da Bea, havia 70 por cento de hipóteses de nevar. O pai
de Anna insistiu que ela e Steven levassem o Cadillac Escalade, que era o
mais seguro de todos os seus carros – já que Anna se recusava a conduzir o
Hummer. Anna, Steven e Lolly planeavam sair de Greenwich à tarde e
chegar à propriedade da família de Bea muito antes do pôr do Sol. Bea
estava a organizar um jantar pré-festa para os seus amigos da lista VIP –
eles os três e mais doze pessoas que foram convidadas a passar a noite.
– A Kimmie não vem? – perguntou Anna quando viu Lolly e Steven
chegarem de Manhattan sozinhos. – Eu pedi à Bea para a convidar.
Lolly abanou a cabeça.
– A Kimmie tem-se sentido um pouco indisposta ultimamente.
Anna franziu o sobrolho. Esperava que Kimmie viesse para que
pudessem esclarecer as coisas. Anna odiava a ideia de as raparigas
deixarem os rapazes meterem-se entre elas. Mas depois de Kimmie lhe ter
confessado os seus sentimentos por Vronsky, e depois de ter visto Anna a
dançar a noite toda com ele, Kimmie provavelmente pensou o pior dela.
E Anna não a culpava.
– É porque ela me odeia?
– Não sejas parva. A Kimmie nunca te poderia odiar. Aquela coisa toda
com o Vronsky foi só uma paixoneta parva. Nunca quis nem esperei que
desse em alguma coisa. Eles só tinham saído algumas vezes antes da festa
da Jaylen, então ela não tinha o direito de ficar tão chateada.
Anna não sabia que Kimmie e Vronsky tinham passado tempo juntos,
mas não deixou transparecer que a notícia a incomodava.
– Ajudaria se eu lhe telefonasse? Ela ainda tem tempo de vir. Não temos
de ir cedo para o jantar.
– Oh não, Anna, és muito querida – respondeu Lolly. – Na verdade, a
Kimmie tem estado doente há algumas semanas. A minha mãe até a vai
levar para a Costa Oeste para ver um especialista e passar um fim de
semana num spa. Partem amanhã de manhã, por isso, mesmo que ela
quisesse vir, não podia.
Satisfeita com a desculpa, Anna deixou o assunto de lado.
Claro que Lolly estava preocupada com Kimmie, mas acreditava mesmo
que a sua irmã mais nova ia ficar bem, e estava superentusiasmada por estar
incluída no círculo íntimo da lista VIP de Beatrice, mas ela sabia que era
apenas por causa de Anna. Ela tinha visto fotografias da casa de campo de
Beatrice num dos números antigos da Architectural Digest da mãe, e a
propriedade era incrível. Cada um dos oito quartos estava decorado de
acordo com uma época histórica, a começar com os loucos anos vinte e
incluindo todas as décadas divertidas – os anos cinquenta e as donas de casa
submissas; os anos sessenta e a moda; os anos setenta e a música disco; os
anos oitenta e os cabelos armados –, mas saltando as décadas deprimentes
que envolviam a Grande Depressão e as guerras mundiais. Cada quarto
tinha uma jukebox personalizada que fornecia uma banda sonora de música
dessa década.
Normalmente, Beatrice atribuía um número a cada um, e era essa a
ordem pela qual os convidados podiam escolher o seu quarto. Lolly estava
decidida a ficar com o quarto dos anos sessenta «faz o amor, não a guerra»,
que seria o mais adequado para a fantasia que ela tinha escolhido para si,
mas não sabia que número lhes ia calhar. Ela ia vestir-se de Cher jovem e
tinha encontrado um macacão inspirado em Bob Mackie com um fecho que
ia até às virilhas. Queria que Steven fosse de Sonny, claro, mas ele achava
que o grande bigode porno o fazia parecer ridículo, por isso, vestiu-se de
John Wick, com um fato skinny preto de Luca Mosca – o mesmo que Keanu
usou no filme –, completo com buracos de bala, salpicos de sangue e um
cão beagle de peluche.
Durante a viagem de carro, Lolly teve coragem finalmente para perguntar
a Anna o que ela ia vestir para a festa. Não sabia por que se sentia estranha
em perguntar, mas perguntou. Talvez fosse porque Anna era chique e
elegante naturalmente e não precisava de se esforçar muito para parecer
linda e fixe. Anna confessou que ainda não tinha decidido, mas que tinha
algumas opções diferentes e que decidiria quando lá chegassem. Foi
precisamente esta confiança casual que impressionou Lolly. Ela esperava
que Anna lhe dissesse quais eram as opções que estava a ponderar, mas ela
não o fez. Anna parecia estranhamente calada, mas também Lolly nunca
tinha andado de carro com ela, para além de uma viagem de táxi, por isso
talvez fosse sempre assim.
A atenção de Lolly estava agora voltada para Steven, que também estava
invulgarmente calado, mas ele estava a agir de forma estranha desde o Dia
dos Namorados e Lolly começava a habituar-se a isso. No início, insistira
para que ele falasse com ela e lhe dissesse o que se passava. Ele continuava
a dizer que não se passava nada, que estava apenas distraído por causa da
carga horária pesada e que o seu pai estava a bater o chicote sobre a
necessidade de levar a sério as suas candidaturas à universidade. O pai tinha
decidido que Steven precisava de mais um ano para melhorar o seu
currículo para entrar numa universidade da Ivy League, sobretudo com a
repercussão do escândalo do Varsity Blues. Lolly não tinha a certeza se
devia acreditar nele ou não, mas ele disse-lhe que ia aumentar as
explicações com Dustin de três a cinco vezes por semana, o que parecia
confirmar a sua história. Isso deixou Lolly aborrecida, porque normalmente
eles passavam as outras duas tardes da semana juntos, a ir ao SoulCycle ou
a ver um filme.
Ela também estava preocupada que talvez «Brad» estivesse de volta, mas
quando perguntou a Steven sobre isso sem rodeios, ele jurou que nunca
mais a tinha visto ou mandado mensagens. Ele até lhe passou o telemóvel
para que Lolly pudesse ver por si própria, e, embora soubesse que devia
recusar e dizer-lhe que confiava nele, ela não o fez. Pegou no telemóvel
dele e leu todas as mensagens e e-mails, para descobrir apenas que os
rapazes eram muito chatos a mandar mensagens. Ela tinha reparado que o
histórico da troca de mensagens com Dustin tinha apenas um ou dois dias,
mas quando perguntou a Steven sobre isso, ele disse que as tinha apagado
acidentalmente. Aquilo soou plausível a Lolly, até porque sabia que de
todos os amigos de Steven, Dustin era o menos provável de causar
problemas. Lolly estava feliz por Steven e Dustin se estarem a tornar mais
próximos ultimamente. Dustin era uma boa influência para ele, e ela sabia
que Dustin gostava dela, o que a fazia sentir-se bem.
– Steven? – perguntou Lolly. – Convidaste o Dustin?
– Convidei – respondeu Steven, com os olhos na estrada. Ele estava a
conduzir para a casa de Bea enquanto Anna estava encarregada de conduzir
no regresso, pois Steven estaria de ressaca no dia seguinte, como acontecia
sempre depois de uma grande festa.
– E então? Ele vem? – perguntou Lolly, irritada por não obter respostas,
embora ela nunca se atrevesse a chatear-se com ele com a irmã no carro.
– Era suposto ele ir de carro com o irmão esta noite, mas mandou-me
uma mensagem esta manhã a dizer que tinha surgido um imprevisto e que
não podia ir.
– Será que aconteceu alguma coisa ao Nicholas? – perguntou Lolly.
– Espero que não. O Dustin disse-me no outro dia que ele está sóbrio há
quase três meses.
– Devias dizer ao Dustin para apanhar o comboio – disse Anna do banco
de trás. – Eu gosto do Dustin; ele é boa pessoa.
– Eu digo sempre o mesmo! – exclamou Lolly, feliz.
– Isso é porque nós também somos boas pessoas, Lolls. É preciso ser-se
uma para reconhecer outra. – Anna endireitou-se e pôs os braços à volta do
banco do passageiro, dando a Lolly um abraço amigável. – Ei, o Steven
disse-me que estás de olho no quarto dos anos sessenta, e como a Bea me
deu o número um, vou garantir que fico com ele e depois trocamos e eu fico
com o número que vos calhar, combinado?
Lolly ficou tão impressionada com a generosidade de Anna, que até
lacrimejou. Não foi só isso, também achou reconfortante saber que Steven
lhe tinha prestado atenção quando disse que queria aquele quarto em
particular. O facto de ele ter feito um esforço extra para se certificar de que
ela tinha o que queria, deixou-a feliz da vida. Todos os seus pensamentos
paranoicos desapareceram num ápice, e Lolly soltou um profundo suspiro
de alívio.
A música «Sweet but Psycho» de Ava Max tocou na rádio, mas antes que
Steven pudesse mudar de estação, Lolly e Anna gritaram ao mesmo tempo:
– OMD! Eu amo esta música! – As duas riram-se e Steven disse:
– Já não se casam hoje – E depois aumentou o volume e sorriu, feliz por
a namorada e a irmã se estarem a dar tão bem. Steven estava a conduzir
para longe dos seus problemas, ansioso por uma das infames festas de Bea,
mas a respeitar o limite de velocidade por causa do saco de branca que tinha
no bolso.
Esta noite fora de casa ia ser o que o médico receitara para os três.

XXI
Os dezasseis adolescentes estavam sentados à volta de uma mesa
comprida com três candelabros de prata Christofle colocados no centro.
Beatrice sentou-se à cabeceira da mesa. À sua direita estavam Anna;
Vronsky; a sua melhor e mais leal BFF, Adaka, que por acaso era da realeza
nigeriana; Murf; Daler e Rowney, acabados de chegar de um voo de Milão;
e Addison e o seu irmão gémeo, Benjamin, as estrelas adolescentes do
maior programa do Disney Channel desde «Hannah Montana», que estavam
na cidade vindos de Los Angeles. À esquerda de Beatrice estavam Steven;
Lolly; Rooster, o quarterback estrela dos Wick; Brayton, uma bailarina de
Estocolmo e filha da melhor amiga da mãe de Beatrice; LiviX2, uma dupla
de estrelas pop cujos verdadeiros nomes eram Olivia e Livingston, primos
em segundo grau que assinaram recentemente o seu primeiro contrato
discográfico e iam tocar no Coachella dentro de alguns meses; e por último,
mas não menos importante, Dandy Zander, conhecido por DandyZ, o
melhor amigo gay de Beatrice que praticava CrossFit.
Uma lista VIP como esta só funcionava porque ninguém tinha de
competir com mais ninguém. Cada um deles tinha ganhado a lotaria, à
exceção de Murf, mas era por isso que Bea gostava de ter o antigo colega
de basebol do primo no grupo. Ela manteve-se atenta para se certificar de
que ele não parecia estar desconfortável, mas ele parecia à vontade com a
sua atual companhia.
Quando Murf entrou na sala de jantar e viu que estava sentado entre uma
princesa nigeriana e um par de modelos, virou-se para Vronsky e disse:
– Depois desta noite, devias matar-me, para eu poder morrer feliz.
– Eu é que estou feliz – respondeu Vronsky. – Estou mesmo contente por
termos retomado o contacto.
– Gostava de ficar com os louros, mas tenho a sensação de que a
verdadeira razão pela qual estás tão feliz acabou de entrar na sala. – Murf
baixou a voz quando Anna K. deslizou em direção a eles.
Os olhos de Anna arregalaram-se ao ver Murf e ela correu para o abraçar.
Vronsky não pôde deixar de sentir uma ligeira pontada de ciúmes ao vê-la
nos braços de outro homem, embora soubesse que não passava de um
abraço amigável.
– Presumo que já conheces o meu mano, Vronsky – disse Murf,
afastando-se do abraço de Anna.
Anna sorriu para o seu pretendente de olhos azuis.
– Creio que já nos encontrámos uma ou duas vezes.
– Como estás? – perguntou Vronsky formalmente e fez questão de pegar
na mão dela e de lhe dar um beijo delicado enquanto fazia uma vénia.
Murf riu-se para si próprio.
– Se me dão licença, tenho de ir esclarecer os meus colegas de mesa
sobre os inúmeros benefícios contraintuitivos do poliamor. Sim, o senhor S.
deu-me um daqueles calendários de palavras por dia.
Anna e Vronsky riram-se quando Murf se foi embora.
– Então, como é que conheces o Murf? – perguntou ela.
– Ele era um batedor potente quando eu jogava nos Greenwich Blue Jays
– disse-lhe Vronsky. – Tínhamos sete anos. Perdemos o contacto durante
muito tempo, mas voltámos a falar há pouco tempo.
– Sabes que ele trabalha na Quinta Staugas?
– Sim, acho que já ouvi falar disso...
Anna conteve a excitação, pois agora tinha a certeza de que o rapaz na
mota era ele, mas antes que pudesse responder, soou uma campainha e
Beatrice gritou:
– Meus queridos, o jantar está servido!
Anna e Vronsky dirigiram-se para a mesa e ela ficou satisfeita – mas não
surpreendida – ao ver que estavam sentados ao lado um do outro. Anna
olhou em volta da sala, perguntando-se se alguém os estaria a observar, mas
ninguém parecia importar-se. A única pessoa com quem Anna tinha de ser
um pouco cautelosa era com Lolly, mas Lolly estava ocupada a bajular os
LiviX2, e a dizer a Olivia e a Livingston o quanto adorava o seu mais
recente single, «You Only Liv Twice», e que estava mortinha por ir ao
Coachella vê-los atuar ao vivo e, claro, ter a oportunidade de ver a sua atual
cantora favorita Ariana Grande, que era a cabeça de cartaz deste ano. Eles
ofereceram-se para lhe dar alguns passes VIP para convidados dos artistas –
que eram um degrau acima dos passes VIP normais que qualquer pessoa
podia comprar – se ela estivesse disposta a ir até à costa Oeste; ela
perguntou se eles estavam a falar a sério, e eles responderam que «Sim, não
há problema», e Steven disse que tinha a certeza de que podiam combinar
isso durante as férias da primavera, e ao ouvir isso, Lolly atirou os braços à
volta do pescoço do namorado e gritou o quanto o amava para todos
ouvirem. Anna disse a si própria para relaxar: Ninguém aqui quer saber da
tua paixão secreta.
Depois de todos se sentarem, Beatrice bateu com o garfo no copo.
– Antes de comermos, quero começar por apresentar toda a gente, mas
não vou dizer o nome da pessoa. A vossa tarefa, como convidados, é
adivinhar de quem estou a falar. – Foram jogos como este que deram a
Beatrice a reputação de ser a alma de todas as festas. Aqueles que
conheciam bem Beatrice podiam estar preocupados com o que ela iria dizer,
mas a jovem estava a portar-se bem, pois sabia que a chave para uma boa
festa era fazer com que todos se soltassem e se sentissem bem.
– Número um: conhecemo-nos nus num banho de espuma – começou ela,
à espera do primeiro palpite.
DandyZ endireitou-se no seu lugar e gritou:
– O teu primo delicioso, o Conde Vronsky! – DandyZ fez uma garra de
gatinho e rosnou um pouco à maneira de Vronsky.
– Tens razão, amorzinho – disse Bea. – Não fiquem com ciúmes,
meninas, mas quando éramos bebés, o Vronsky e eu tomámos banho juntos
inúmeras vezes. – Ela parou por momentos. – Número dois: conhecemo-nos
e unimo-nos por causa da nossa obsessão pelo Príncipe de Bel-Air.
Anna sabia aquela, mas também achava que Lolly sabia, por isso deixou-
a dizer a resposta.
– Só pode ser a Princesa de Bel-Air – disse Lolly e fez uma vénia a
Adaka, que acenou à mesa com um aceno de rainha.
– Muito bem, querida Lolly, muito bem – disse Beatrice. – Agora vamos
para o número três: conhecemo-nos quando eu entrei «acidentalmente» no
balneário dos rapazes do Wick. Não me meti em sarilhos porque lhe disse
que tinha os olhos dilatados por causa de uma consulta no oftalmologista. –
Ela tapou a boca por um segundo, como se estivesse a contar um segredo. –
Era completamente mentira! Só queria ver como estavam todos…
Murf levantou a mão.
– Não estamos na escola, Murf, não precisas de levantar a mão – disse
Beatrice.
– Oh, que pena – disse Murf. – Aposto que é o meu rapaz, o Rooster, que
está ali.
– Correto! – disse Beatrice. – E ele é um belo pacote. Em cima e em
baixo.
Vronsky lançou um olhar a Murf.
– Como é que sabes isso?
Murf encolheu os ombros.
– Honestamente, ele é o único de vocês que parece praticar desporto.
– Número quatro! – Beatrice voltou a chamar a atenção para ela. –
Conhecemo-nos no desfile do Valentino, em Milão, mas demo-nos bem na
casa de banho, dez minutos depois, quando... Aham... pusemos pó de arroz
nos nossos narizes juntos.
Daler estendeu os braços esguios de modelo para ela e Rowney, e
apontou para baixo, para ambos.
– Éramos nós! Mas não estávamos a maquilhar-nos, estávamos a fazer
um broche...
Rowney espetou o cotovelo pontiagudo na caixa torácica exposta de
Daler.
– Não é suposto dizerem se são vocês e, para que saibam, ela não se
estava a referir a maquilhagem, estava a fazer uma «metafórica».
– Meu Deus, adoro-vos, meus lindos. – Beatrice soprou-lhes um beijo e
continuou. – Número cinco: conhecemo-nos num jogo da Little League
quando ele veio ter comigo e disse: «O teu primo tinha vergonha de te dizer
isto, mas tens merda de pássaro no cabelo».
– Só pode ser o Murf! – Desta vez foi Anna que respondeu.
– Correto! Vocês são demasiado bons neste jogo! – riu-se Bea.
– Não é justo – disse Murf. – Essa pista era demasiado fácil!
– As minhas desculpas, Murf – retorquiu Beatrice. – Posso ser perfeita,
mas não sou infalível... Número seis! Conhecemo-nos numa venda de
sapatos da Bergdorf, quando estávamos as duas a segurar o mesmo sapato e
temos os pés do mesmo tamanho. Felizmente, havia dois pares de sapatos,
por isso comprámos ambos, caso contrário teríamos cicatrizes iguais.
– Lolly! – gritou Steven.
– Steven! – Lolly deu uma cotovelada ao namorado. – Não é suposto...
– O quê? – perguntou Steven. – Eu e tu não somos a mesma pessoa!
– Tudo vale no amor e nos jogos de adivinhas – brincou Beatrice. –
Número sete: conhecemo-nos na «mesa dos miúdos» no casamento da
Chelsea Clinton. Depois de termos comido todos os panados de frango,
roubámos uma garrafa de champanhe do bar e embebedámo-nos à beira da
piscina. Dica: não fui eu que vomitei na parte rasa.
Os gémeos Addison e Benjamin soltaram uma gargalhada ao mesmo
tempo, revelando a resposta.
– A Addison estava tão ressacada no dia seguinte que eu é que fiquei com
dores de cabeça! – disse Benjamin.
– Muito bem, número oito! – Beatrice continuou o jogo. – Conhecemo-
nos porque as nossas mães superficiais nos arrastaram para o Canyon Ranch
em vez da Disneylândia.
– Brayton! – disse Adaka. – Toda a gente sabe que as vossas mães são
siamesas...
– Número nove! – disse Beatrice. – Conhecemo-nos nos bastidores de
um concerto do Justin Bieber. Entrámos e roubámos um par de cuecas do
camarim dele, que agora enviamos por FedEx para lá e para cá como a
Irmandade das Cuecas Viajantes.
– Por exclusão de partes – disse Vronsky. – Deve ser a Olivia e o
Livingston.
– Por falar nisso – disse Olivia. – Fica atenta a uma encomenda da FedEx
nos próximos dias.
Livingston sorriu e disse:
– Sempre que as uso na cama, tenho um sonho erótico com o Bieber.
– Demasiada informação, Livi – disse Olivia à prima.
– Não sejas tão puritana, Olivia – retorquiu Livingston.
– Número dez! Conhecemo-nos quando eu, bêbeda, lhe agarrei na pila e
ele educadamente me informou que não jogávamos na mesma equipa, e
disse-me que se eu fizesse o arco das minhas sobrancelhas de forma
diferente, os meus olhos ficariam mais salientes.
DandyZ bebeu um gole de champanhe, levantou-se e fez uma vénia.
– Declaro-me culpado.
– Número onze! – disse Bea. – Conhecemo-nos a fazer um castelo de
areia nos Hamptons quando tínhamos cinco anos. Ela apareceu com o balde
e eu apareci com a pá.
– A minha irmã, Anna! – disse Steven. – Eu também lá estava. Destruí o
castelo de areia delas e mandei-as embora a correr, a chorar!
– Sim, fizeste isso mesmo, seu grande malvado – brincou Anna.
Bea fez uma careta.
– Esse era o número doze. O Steven a destruir o nosso castelo de areia.
Mas lembras-te de que ele se meteu em sarilhos e nós recebemos uma
banana split do restaurante? Acabou o jogo!
Todos aplaudiram e brindaram a Beatrice, e ela levantou o copo e disse-
lhes que era altura de darem a volta à mesa e dizerem algo simpático sobre
ela.
– Oh, vá lá, Beatrice, não nos obrigues a mentir! – Depois disso, toda a
refeição foi pontuada por brincadeiras divertidas e pelo tilintar de taças de
champanhe cheias de Veuve Clicquot.
O ambiente estava preparado para uma noite memorável.

XXII
Depois de Anna ter ido visitar o quarto de Lolly e Steven, com o tema
dos anos sessenta, caminhou pelo corredor até ao seu quarto, com a mala da
Louis Vuitton a deslizar atrás de si. Estava perdida em pensamentos a tentar
decidir qual das fantasias ia usar. Tinha-as reduzido a três opções diferentes:
calças de cabedal pretas, um corpete de látex preto brilhante, óculos de sol e
cabelo penteado para trás, como Trinity de Matrix; uma peruca loira
platinada, um vestido de seda preto e uma gabardina curta branca com botas
de cano alto, à la Atomic Blonde; ou a Sra. Smith do filme da Angelina e do
Brad Pitt, em que usaria uma das camisas brancas do pai e um par de botas
vermelhas Wellington até ao joelho. Cada fantasia era distinta, mas ela
estava com vontade de se vestir como uma heroína do cinema forte e
destemida, que não aceitava merdas de ninguém.
Quando chegou à última porta no fim do corredor, encontrou Vronsky
encostado à parede, à sua espera.
– Ei, tu – disse Vronsky. – Estava só a certificar-me de que não te tinhas
perdido.
Anna mostrou o mapa que Beatrice lhe tinha desenhado num guardanapo.
– Eu tenho um mapa – disse ela, e ficou imediatamente de guarda. –
Embora nunca tenha precisado de um numa residência privada. Esta casa é
de loucos.
– Sim – admitiu ele. – Eu, o Kiril e a Bea costumávamos brincar às
escondidas, mas nunca nos encontrávamos, por isso não era muito
divertido. Posso mostrar-te o teu quarto? Eu disse à Bea para te pôr neste.
É o meu preferido.
Anna acenou com a cabeça enquanto Vronsky abria a porta e a segurava
para que ela pudesse entrar à frente dele. Anna entrou no quarto e olhou à
sua volta para a decoração exagerada, mas ainda assim de bom gosto, dos
anos oitenta. Havia muito néon brilhante, e ela adorou-o imediatamente.
Vronsky seguiu-a, tendo o cuidado de não deixar a porta fechar-se com
receio de parecer menos cavalheiro.
– Não achava que fosses um tipo que gosta de música dos anos oitenta –
disse Anna. Começou a levantar a mala para a pôr em cima da cama king-
size, coberta por uma colcha de cetim rosa-choque brilhante, mas Vronsky
apressou-se a ajudá-la.
– Não é pesada, eu consigo.
Percebendo a dica, ele deu dois passos para trás.
– Desculpa. Estou feliz por estares aqui, é só isso.
Anna não respondeu, sobretudo porque a única coisa que podia dizer que
não era mentira era que também estava feliz por o ver. Tinha acabado de ter
um dos jantares mais divertidos da sua vida. Durante a refeição, não parava
de pensar se tinha perdido anos de vida com o Alexander, porque com ele os
jantares eram totalmente diferentes. Alexander e os amigos só falavam de
trabalhos da escola, política e ambiente. O namorado dela era muito ativo
no que dizia respeito a questões ambientais e ativismo político. Mas as
conversas durante o jantar desta noite foram mais sobre arte, atividades
criativas, moda e mexericos de celebridades, que ela sabia que o namorado
teria achado frívolos e sem importância. Só tenho dezassete anos... não é
altura de ser tonta?
– Anna? – disse Vronsky, interrompendo os seus pensamentos. – Terra
chama Anna. Responde, responde.
Anna riu-se, envergonhada por se ter distraído diante de Vronsky.
– Desculpa. Não estou habituada a este tipo de festa. É como se
estivéssemos todos a brincar ao faz de conta num castelo maluco. O jantar
foi tão, tão… – Ela hesitou, pois não queria parecer uma simplória de olhos
esbugalhados na frente dele. – Foi tão divertido. Adorei. A Beatrice é
incrível.
– É mesmo – respondeu ele. Vronsky estava agora sentado na cama. –
Ela é como Las Vegas: só diversão, a toda a hora. Mas tens de saber quando
sair, ou acabas na reabilitação ou num podcast de crimes reais.
Tudo o que Anna queria fazer era desatar a correr e atirar-se para a cama
ao lado de Vronsky, mas sabia que não podia. Era o tipo de coisa que se
fazia com um namorado, e ela já tinha um. Não tinha a certeza de qual
deveria ser o seu próximo passo.
– Devo ir-me embora? – Vronsky levantou-se e alisou a colcha.
– Não! – gritou ela. – Só não sei o que vou vestir esta noite. Gostavas de
ser júri num desfile de moda? – Estava farta de se preocupar tanto com o
que era correto e não era. Ela não estava a fazer nada de errado; tinha-lhe
dito que só queria ser amiga dele. Os amigos podiam pedir uns aos outros
para os ajudarem a decidir o que vestir numa festa de máscaras, certo?
– Nada me faria mais feliz – disse ele, com os olhos a brilhar. Acenou na
direção da porta da casa de banho e ordenou: – Vá, que comece o
espetáculo!
– Precisamos de música, por favor. A Lolly disse-me que cada quarto tem
a sua própria jukebox?
Vronsky rolou na cama até ao outro lado e levantou-se.
– Os teus desejos são ordens – disse ele. – Uma música de dança dos
anos oitenta a sair! – Ele encaminhou-se em direção ao que pareceu ser a
Anna uma escultura de um robô maluco no canto mais distante do quarto. –
Reconheces este tipo?
– Não – disse Anna. – Deveria?
– Anna K., deixa-me apresentar-te o Johnny 5 do filme Curto-Circuito.
A Beatrice era obcecada com este filme quando tinha sete anos e sempre
disse que queria ter o Johnny 5 como melhor amigo. Quando o pai dela se
estava a separar da mãe dela, fez o que qualquer pai rico faz...
– Eu sei! Eu sei! – Anna levantou a mão como uma aluna demasiado
ansiosa. – Ele deu-lhe uma PDCPA! – Tapou a boca com as mãos. – Oh,
isso não soou bem. Ele deu-lhe uma Prenda de Culpa por Antecipação, o
Johnny 5.
– Muito bem, minha menina. Alguém andou a estudar a lista de
definições do dicionário-Bea. Uma estrela de ouro para ti. – Vronsky
carregou num botão na parte de trás da cabeça do robô e o Johnny 5 ganhou
vida. – A Bea ficou triste quando o adereço chegou e não falava nem se
mexia, por isso o pai dela pediu a alguém que o transformasse num sistema
de som e acrescentou algumas luzes. O Johnny 5 toca músicas dos anos
oitenta através de um iPod bem escondido.
– Incrível! – Anna bateu palmas com admiração quando o clássico de
1983 de Madonna, «Holiday», encheu a sala e ela começou a dançar
espontaneamente. Vronsky acenou-lhe e ela pegou na mala e apressou-se
para a casa de banho para mudar de roupa.
Depois de Vronsky a obrigar a mostrar-lhe todas as roupas duas vezes,
ele acabou por votar que Anna devia ir como a estrela de Atomic Blonde.
– Com a tua cara e essa peruca, podias ter derrubado o Muro de Berlim
sozinha! – Anna concordou que a peruca loira fazia com que parecesse mais
do que uma fantasia. Olhou para si no espelho de corpo inteiro, quase sem
se reconhecer na agente secreta sexy que a olhava de volta.
– Eu sei como podemos ter a certeza – disse Vronsky. – Temos de a
testar. – Saltou da cama e começou a dançar na direção de Anna, e em breve
estavam os dois a mostrar os seus melhores passos de dança dos anos
oitenta no meio do quarto ao som de «I Wanna Dance with Somebody» de
Whitney. A música que veio a seguir foi o slow dos Foreigner, de 1984, «I
Want to Know What Love Is», e os dois adolescentes congelaram
momentaneamente, como um par de alunos nervosos do sexto ano no seu
primeiro baile da escola. Vronsky recuperou rapidamente e puxou-a para os
seus braços antes que ela tivesse tempo de se opor. Anna fechou os olhos e
pensou em resistir, mas em vez disso aninhou-se ainda mais perto dele.
Quando ele pôs a mão na parte de baixo das costas dela, deu-lhe um
choque, tal era a eletricidade que havia entre eles.
Dançaram durante apenas dez segundos antes de uma leve pancada na
porta interromper o momento. Anna virou a cabeça e viu Lolly, vestida
como uma Cher de vinte e poucos anos, parada diante da porta aberta, a
segurar num grande estojo de maquilhagem. Anna e Vronsky separaram-se
rapidamente.
– Desculpa! – guinchou Lolly. – Só vim porque me pediste para te ajudar
com a maquilhagem. Não queria interromper...
– Não interrompeste nada! – disse Anna. – Estávamos só a divertir-nos.
Começou a dar esta música e…
– E eu estava a mostrar à Anna como dancei no meu primeiro baile da
escola, no quinto ano. Convidei a rapariga mais bonita da turma, sem me
aperceber de que ela era muito mais alta do que eu – disse Vronsky, vindo
em socorro de Anna. – O nome dela era Sally W. – Anna olhou para Lolly, e
perguntou-se se ela estava a acreditar na história de Vronsky, um pouco
perturbada com a facilidade com que ele conseguia inventar uma mentira e
arranjar uma desculpa.
– OMD – respondeu Lolly com simpatia. – Eu também era a rapariga
mais alta do quinto ano! Claro que, nessa altura, não fazia ideia que iria
parar de crescer no ano seguinte. – Lolly entrou no quarto, a sorrir. – O teu
quarto é tão fixe, Anna! E tu estás incrível. A Charlize teria ciúmes se te
visse. Estou a pensar que uns olhos esfumados e uns lábios claros dariam o
toque perfeito.
Anna conseguiu voltar a falar por fim.
– Não, tu é que estás linda, Lolly. Esse fato é de morrer. Sabes que a
minha mãe tem um Bob Mackie original enterrado algures no armário?
Tenho de te mostrar.
– Bem, minhas senhoras, vou-me embora – disse Vronsky. – É a minha
vez de me ir vestir. Anna, deixo-te em boas mãos. – Ele acenou e saiu
quando a música «Tainted Love» dos Soft Cell começou a tocar. «Tenho de
me afastar da dor que me provocas no coração. O amor que partilhamos
parece não ir a lado nenhum…»

XXIII
Dustin percorreu o Instagram de Lolly e olhou para os seus posts mais
recentes. Podia ver por si mesmo a grande farra que ia perder por não ir à
festa. Provavelmente ainda poderia ir se quisesse, mas isso implicava uma
logística tão complicada em termos de transportes que ele não estava pronto
para lidar com isso. O dia de hoje tinha-o esgotado e, embora uma festa
pudesse ajudar algumas pessoas a sentirem-se melhor, Dustin tinha a
certeza de que só o iria deixar ainda pior. Além disso, estava a sentir-se
rabugento, o que não era a melhor vibração para levar para uma festa.
A única coisa que realmente o impressionava nas fotografias de Lolly era a
mota do Easy Rider estacionada no canto do quarto inspirado nos anos
sessenta. Dustin tinha visto o filme pela primeira vez no Film Forum com
Nicholas. E a segunda vez sozinho, durante a segunda passagem do irmão
pela reabilitação.
Steven tinha convidado Dustin para ir à festa há dois dias. Dustin recusou
assim que soube que era fora da cidade, mas Steven acabou por persuadir
Dustin a ir, dizendo-lhe que podia trazer Nicholas, e que podiam levar o
Beemer dele emprestado e virem juntos de Nova Iorque, porque Steven ia
mais cedo com Anna e Lolly num dos carros do pai. O que finalmente o
convenceu foram três coisas. Primeiro, Steven disse-lhe que Kimmie não ia
lá estar. Em segundo lugar, quando Dustin pesquisou a casa no Google, por
insistência de Steven, viu que parecia um museu de cinema cheio de
adereços de filmes famosos, incluindo um Johnny 5 do Curto-Circuito, que
era um dos filmes antigos preferidos de Nicholas. Por último, Dustin
gostava que ele e Steven se estivessem a tornar amigos, não amigos de
infância, e não amigos por conveniência, mas amigos que queriam passar
tempo juntos porque queriam mesmo estar juntos. Dustin e Steven eram
opostos em muitas coisas, mas as diferentes perspetivas que ofereciam um
ao outro eram sem dúvida positivas. Steven era uma das poucas pessoas
capazes de fazer com que Dustin saísse da sua própria cabeça e deixasse de
estar obcecado com tudo, e Dustin sentia que era útil para ensinar Steven a
ser mais ponderado quando se tratava das suas ações.
Na manhã da festa, Dustin acordou com um telefonema do pai, a pedir
para se encontrar com ele para tomarem o pequeno-almoço. Ele não
explicou por que razão o queria ver, uma vez que era o fim de semana de
Dustin em casa da mãe, mas o pai disse-lhe que era importante. Dustin
apanhou o metro para a baixa e encontrou-se com o pai no restaurante
Silver Spurs, perto de Houston. Assim que se sentou na mesa, o pai contou-
lhe que tinha recebido uma chamada da casa de reintegração do Bronx de
manhã, informando-o de que Nicholas não tinha aparecido para trabalhar.
O emprego a tempo inteiro era uma condição obrigatória para que Nicholas
pudesse viver ali.
– Disse-lhes que o Nicholas estava doente. Mas o máximo que ele pode
faltar são dois dias. – O pai fez sinal à empregada, apontou para a vitrina de
donuts no balcão e pediu dois com cobertura de chocolate. Dustin e o pai
partilhavam o mesmo gosto por doces. Algumas das recordações favoritas
da infância de Dustin eram as idas ao sábado de manhã com o pai e
Nicholas para comprar bagels. O pai comprava sempre duas bolachas pretas
e brancas para os três partilharem e, por muito infantil que isso parecesse,
Dustin sempre sentiu que a famosa bolacha de Nova Iorque representava a
sua vida familiar: ele era a parte de chocolate necessária para equilibrar a
baunilha. Sorriu com tristeza ao lembrar-se da sua inocência infantil.
– Quando é que falaste com ele pela última vez? – perguntou o pai.
Dustin consultou o telemóvel.
– Há dois dias. Foi só uma mensagem a dizer porque é que ele achava
que o rap de hoje em dia era estúpido, porque os gajos só repetem coisas e
rimam palavras exatamente com a mesma palavra, o que nem sequer é uma
rima. E nem sequer o faças começar a falar do mumble rap.
– Ele disse-te que ia sair da cidade?
– Não – respondeu Dustin. – Pai, estás a precipitar-te. Se calhar ele está
doente.
– Fui lá esta manhã e parecia que ele não tinha dormido lá a noite
passada.
Antes que Dustin pudesse responder, o pai recebeu um telefonema de
Marcy, a madrasta de Dustin. Jason levantou-se da mesa e saiu para atender
a chamada. Enquanto Dustin esperava, a empregada passou por ele e
colocou os dois donuts à sua frente. Dustin pegou num deles, nervoso, e deu
uma dentada no bolo de chocolate.
Quando o pai regressou, não se sentou, mas colocou uma nota de vinte
dólares em cima da mesa.
– Era a Marcy. Ela ia visitar a irmã a New Jersey hoje, até que deu por
falta do carro na garagem. Anda, temos de voltar para casa.
Enquanto os dois caminhavam para oeste, o pai de Dustin continuou a
contar a sua história. Marcy pensou que tinham voltado a estacionar o carro
no lugar errado, o que já tinha acontecido antes, mas quando o tipo que
trabalhava lá verificou o registo, dizia que tinha sido retirado anteontem.
– Queres dizer que foi roubado? – perguntou Dustin.
– Não foi roubado – continuou o pai. – A pessoa que o levou tinha a
chave suplente e um bilhete. A Marcy e eu somos as únicas pessoas que o
pode levar sem um bilhete.
Quando Dustin regressou a casa do pai, as peças foram-se encaixando
aos poucos, uma a uma. Marcy estava aborrecida porque tinha de admitir
que tudo aquilo podia ter sido culpa dela. Nicholas tinha aparecido sem
avisar quando o pai estava a trabalhar, e explicou-lhe que Dustin tinha dito
que lhe podia emprestar algumas roupas. Nicholas passou alguns minutos
no quarto de Dustin, mas antes de sair ela fez-lhe uma sandes e sopa para o
almoço. Enquanto ele estava a comer, Marcy recebeu uma chamada da irmã
e deixou Nicholas sozinho na cozinha durante cinco minutos. Quando ela
voltou, Nicholas estava sentado no mesmo sítio e tinha acabado de comer.
Ele agradeceu-lhe e saiu. O pai de Dustin perguntou a Marcy porque é que
ela não lhe tinha contado e ela replicou que tencionava fazê-lo, mas que
estava a dormir quando ele chegou a casa do trabalho nessa noite e que ele
já tinha saído quando ela se levantou no dia seguinte. Depois, esqueceu-se.
– Ele parecia completamente normal – acrescentou ela. – Na verdade, foi
a vez em que vi o Nicholas melhor. Estava mais falador do que dantes. Pelo
menos comigo. – Sendo que a nova esposa do pai, Marcy tinha uma boa
relação com Dustin porque ele vivia com eles a tempo parcial, mas mal
conhecia Nicholas.
A chave sobresselente do carro estava pendurada num gancho junto à
porta, e parecia que Nicholas tinha usado um dos muitos blocos de notas
farmacêuticos gratuitos espalhados pela cozinha para forjar um bilhete para
a garagem, para que parecesse legítimo. Dustin foi verificar o seu quarto.
Era difícil dizer o que faltava, uma vez que as roupas de Dustin estavam
espalhadas pelas casas dos pais, uma das desvantagens de se ser filho de
divorciados. As únicas coisas que Nicholas tinha levado eram as roupas que
Dustin tinha usado na festa de hip-hop e talvez uma mochila. No entanto,
quando Dustin abriu a caixa de pensos na gaveta das meias, o seu coração
afundou-se. Tinha lá dentro mais de três mil dólares em dinheiro, mas agora
estava vazia, exceto um pedaço de papel dobrado. Este bilhete estava
escrito num papel que fazia publicidade a um novo medicamento para o
coração e tinha no centro a ilustração desbotada de um coração anatómico.
Nicholas tinha escrito o recado dentro do coração: «D, tive de ir ver uma
rapariga. N.»
Dustin sorriu, mas foi agridoce. O bilhete que o irmão lhe deixou era uma
referência ao filme O Bom Rebelde. Foi Nicholas quem lhe mostrou o filme
há três anos, na primeira noite do Chanukah, em casa dos avós, em Boston.
Fora o último Chanukah que Nicholas e Dustin haviam passado juntos, e
tinha sido um ótimo momento. Nicholas nunca tinha falado muito sobre a
relação deles, mas nessa noite disse que Dustin era a personagem de Matt
Damon e que ele era a personagem de Ben Affleck. Não entrou em
pormenores, mas Dustin sabia que Nicholas estava a dizer que admirava
Dustin pela sua inteligência e que sabia que ele iria fazer coisas fantásticas.
Procurando manter-se calmo, Dustin não disse nada, exceto «Sim». Mas por
causa desse momento, Dustin adorou o filme e já o tinha visto
provavelmente cinquenta vezes. Sempre que passava as noites a estudar,
punha o filme no quarto para o confortar enquanto estudava.
Dustin olhou para o bilhete e percebeu tudo. Na semana passada, durante
o jantar de reencontro com a mãe, Nicholas recebeu uma chamada a meio
que disse ter de atender. Dustin ficou chateado na altura, sobretudo porque a
mãe estava preocupada, e quando Nicholas não voltou ao fim de cinco
minutos, mandou Dustin ir procurá-lo. O irmão estava lá fora a fumar um
cigarro e a falar ao telefone. Quando terminou, Nicholas disse a Dustin que
era a Natalia, a rapariga que ele tinha conhecido no centro de reabilitação.
Ela tinha acabado de sair do centro e recuperado o telemóvel. Na altura,
Dustin ficou feliz pelo irmão, porque via na cara de Nicholas como ele
estava contente por ter tido notícias dela. Pelo menos um de nós ainda tem
hipóteses no amor, pensou ele.
Quando Nicholas regressou à mesa, pediu desculpa à mãe, mas quando
ela lhe perguntou com quem estava a falar ao telefone, ele mentiu e disse
que era uma coisa de trabalho. Dustin não disse nada, claro, mas presumiu
que o irmão não tinha contado a verdade à mãe, porque sabia que ela era
muito rigorosa no cumprimento das regras da sobriedade, e uma das mais
importantes aconselhava a pessoa a não ter uma relação romântica no
primeiro ano de recuperação, sobretudo com outro toxicodependente.
O jantar correu bem, apesar de ter havido alguns momentos tensos, e
Dustin acompanhou Nicholas até à estação de metro, altura em que o irmão
lhe disse que Natalia estava no Arizona. Ela estava a ir para um centro de
bem-estar afiliado ao programa deles. Tratava-se de um programa
ambulatório destinado a ajudá-la a reerguer-se. Ela tinha-lhe pedido para a
visitar, mas Nicholas disse-lhe que não era possível até conseguir poupar o
suficiente para lá ir. O Taco Taco! não oferecia férias pagas. Dustin disse a
Nicholas que teria todo o gosto em ir com ele, assim que se graduasse
dentro de alguns meses. Até se ofereceu para pagar os bilhetes de avião e o
hotel com o dinheiro das explicações. O irmão respondeu-lhe que preferia
atravessar o país de carro, como fez Matt Damon em O Bom Rebelde.
Dustin ficou comovido por ele e o irmão idolatrarem o mesmo filme, pois
nunca tinham falado antes sobre isso. Mas agora estava menos feliz, pois o
irmão tinha obviamente decidido roubá-lo e deixá-lo para trás.

XXIV
Na mesma mesa da cozinha onde Nicholas se tinha sentado três dias
antes, Dustin preencheu os espaços em branco para Marcy e para o pai: a
rapariga da reabilitação, o dinheiro roubado, a referência ao Bom Rebelde.
O pai ouviu a história sem interrupções, e deixou o filho falar até ao fim,
algo que a mãe nunca fazia. Jason ficou aliviado por terem uma pista sobre
o paradeiro de Nicholas; roubar um carro e dinheiro para atravessar o país
para ver uma rapariga era muito melhor do que roubar um carro e dinheiro
para comprar drogas e ficar pedrado. Tendo sido enfermeira nas urgências,
Marcy disse que tinha a certeza de que Nicholas não estava pedrado quando
apareceu lá em casa.
Marcy desculpou-se várias vezes por se ter esquecido de lhes contar
sobre a visita de Nicholas, mas o pai confortou-a e explicou-lhe que não
teria feito qualquer diferença. Ele tinha a certeza de que, assim que
Nicholas saiu do apartamento, tendo ido diretamente à garagem e
embarcado na sua viagem de carro pelo país.
A decisão seguinte era se deviam contar ou não à mãe o que se estava a
passar. Dustin votou que não, e lembrou ao pai que tinham concordado em
ser eles a tratar de Nicholas durante algum tempo. Claro que o jantar de
reencontro entre mãe e filho tinha corrido bem, mas seria uma pena destruir
a reconstrução da relação deles por causa deste último acontecimento.
– Desculpa, Dustin, mas não concordo – disse Marcy. – Sei que não me
cabe a mim envolver-me, mas como mulher que vai ser mãe, gostava de
saber.
Dustin demorou um momento a perceber que Marcy estava grávida.
Dustin não fazia ideia de que o pai tinha planeado ter filhos com ela, mas
fazia sentido. Marcy tinha apenas trinta e poucos anos, porque é que não
havia de querer ter uma família? Dustin deu-lhes os seus sinceros parabéns,
embora a alegre notícia tenha sido ofuscada pelo atual fiasco com Nicholas.
O pai de Dustin deu o voto decisivo, e disse que compreendia tanto o
ponto de vista do filho como o da mulher. A mãe de Dustin tinha o direito
de saber, mas ele achou melhor esperar até terem mais informações.
– Liga-lhe – disse Jason. – Vê se ele atende. Se ele te disser a verdade,
partimos daí.
Dustin teria preferido fazer a chamada sozinho, mas percebeu que o pai
não ia a lado nenhum. De qualquer modo, Nicholas não atendeu, por isso
Dustin deixou uma mensagem de voz simples e pediu ao irmão que lhe
voltasse a ligar. Tentou manter a voz neutra para que o irmão não pensasse
que ele estava zangado por causa dos três mil dólares. Honestamente,
Dustin não se importava nada com o dinheiro, mas estava assustado por o
irmão ter levado o carro. Nicholas tinha feito algumas coisas mesmo loucas
quando estava sob a influência de drogas, mas tanto quanto Dustin sabia,
Nicholas estava sóbrio quando fez isto, o que levou Dustin a pensar se o
amor seria a droga mais poderosa de todas.
Desde o desastre com Kimmie, Dustin tinha feito questão de deixar de se
interessar por assuntos do coração. Parecia muito dramático e doloroso, e
ele não sabia bem qual era o objetivo, embora se as coisas tivessem corrido
de forma diferente entre ele e Kimmie, provavelmente estaria a dançar nas
ruas e a gritar o oposto do alto de todos os telhados.
Dustin pensou no seu irmão a conduzir vinte e sete mil quilómetros num
carro roubado por causa de uma viciada em anfetaminas chamada Natalia e
perguntou-se se a sua viagem também acabaria em desilusão e
desapontamento como a sua com Kimmie. Acabou por concluir que todos
precisavam de descobrir a verdade sobre o amor por si mesmos. Dustin
amava o irmão e queria acreditar na fantasia de que talvez esta rapariga
fosse o que o irmão tinha procurado a vida toda, e que ela poderia preencher
o vazio que ele antes preenchera com drogas.
Dustin olhou para o telemóvel e viu a mais recente selfie que Lolly tinha
postado. Ela e Steven tinham-se vestido para a festa de Cher e John Wick.
Eles pareciam tão bonitos e felizes juntos. Mais do que isso, parecia que as
vidas deles eram melhores do que as de todos os outros.
Dustin tinha lido que havia uma tendência crescente para ansiedade e
depressão nos adolescentes que tinham crescido com smartphones. Toda a
gente estava viciada em olhar para o fluxo interminável de fotografias de
pessoas bonitas a viver vidas fabulosas. Parecia que a única razão para se
fazer qualquer coisa hoje em dia era apenas para postar fotos de toda a
diversão que se estava a ter, tal como Lolly e Steven estavam a fazer.
Mas Dustin conhecia o lado negro da imagem. Ele sabia que Steven
estava destroçado com a infidelidade recente da mãe, e que possivelmente
tinha um problema com drogas. E se os acontecimentos recentes eram um
indicador, ele estava a seguir os passos do pai e traía a mulher com quem
supostamente estava comprometido. E apesar de Lolly ter retirado o post
em que usava o casaco de pele da mãe de Steven na noite em que descobriu
sobre a «Brad», Dustin tinha feito um print screen da foto. Não o fez com
nenhuma intenção assustadora. Na verdade, não sabia ao certo porque é que
o tinha feito. Talvez fosse um lembrete para si próprio das muitas faces
surpreendentes da humanidade. Ela parecia um demónio de um filme de
terror japonês, com os olhos negros, a maquilhagem esborratada, a
expressão petrificada pela dor.
Fazia-lhe lembrar O Grito, o famoso quadro de Edvard Munch que tantos
livros e filmes referenciavam. Quando era mais novo, sempre se perguntou
porque é que aquele quadro em particular tinha capturado a imaginação
popular. Agora, depois de ter testemunhado como a mãe sofreu por causa do
irmão, o seu próprio sofrimento por causa de Kimmie, o sofrimento de
Steven por causa da mãe, e o sofrimento de Lolly por causa de Steven,
Dustin compreendia porque é que as pessoas gostavam do quadro. Era
reconfortante saber que havia outros que tinham sofrido como nós.
Percorreu as suas fotos e encontrou a imagem de Lolly, hipnotizado pelo
forte contraste entre a Lolly que ele conhecia, a Lolly vestida de Cher, e a
Lolly de casaco de peles na fotografia. Era quase inimaginável que elas
fossem a mesma pessoa.

XXV
Na mansão de Bea, uma tenda enorme atravessava o relvado desde o
pátio das traseiras, feito de pedras importadas da Escócia, até ao jardim zen
japonês concebido pelo melhor arquiteto de jardins zen japoneses do mundo
– curiosamente, um argentino chamado Manolo. Não se tratava de uma
tenda branca normal, utilizada para casamentos ao ar livre ou reuniões de
liceu. Bea tinha alugado uma grande tenda de circo com riscas vermelhas e
brancas que podia facilmente acomodar um elefante a fazer equilibrismo
nas patas traseiras. Quando Anna entrou na tenda, esperava ver um circo em
ação.
A tenda estava dividida em áreas distintas. Uma pista de dança a preto e
branco ocupava a parte central direita, com uma cabine de DJ elevada no
canto e um bar de serviço completo no outro. Na ponta oposta da tenda,
havia outro bar e uma área de estar com mesas altas e bancos de bar
giratórios em pele vermelha. Vários sofás grandes formavam um quadrado
à volta de um enorme tapete persa em tamanho real, com pufes coloridos e
almofadas marroquinas espalhadas. Havia também três grandes narguilés e
uma taça com a melhor erva da Califórnia que LiviX2 tinha comprado para
a ocasião, e que estavam numa mesa baixa ao lado dos sofás. Basicamente,
esta festa tinha uma opção para todos os gostos.
À meia-noite, já havia perto de uma centena de convidados. Como a
tenda e a propriedade eram tão grandes, não se sentia o número de pessoas,
e mantinha um ambiente íntimo e descontraído. Vários grupos de pessoas
fantasiadas e cheias de cor espalhavam-se por todas as áreas, mas o coração
pulsante da festa era Beatrice, que estava agora vestida com um biquíni
branco e asas de anjo vermelhas, um cupido com pouca roupa a receber a
sua corte no tapete Gabbeh turco na zona dos sofás. Beatrice não era uma
anfitriã que gostasse de circular, sobretudo porque ou estava descalça ou
usava saltos de quinze centímetros. Preferia sentar-se e deixar que a festa
viesse até ela. Sentados ao lado dela estavam Adaka, vestida de Serena
Williams, apesar de ser duvidoso que a lenda do ténis alguma vez tenha
usado uma tanga rosa sensual por baixo da saia de ténis; Livingston, cujo
fato consistia numa mistura eclética de acessórios aleatórios: uma cartola,
um cinto de ferramentas de couro, uma t-shirt vintage dos Sex Pistols e um
tutu, ela era a sua própria versão da Mulher Maravilha, do género «quem
será que ela é?»; Rooster, pobre em imaginação, que vestia a sua camisola
de futebol; e um casal vestido com um emoji de fogo e um emoji de cocó,
que significava que eram «merda escaldante».
John Wick e Cher estavam na pista de dança com mais duas dúzias de
pessoas a mostrarem os seus passos extravagantes ao som de «Tear in My
Heart» dos Twenty One Pilots. Lolly, já bêbeda com o que quer que fosse
que estava na taça de ponche de Beatrice e pedrada depois de uma passa no
narguilé, viu-o primeiro. O seu primeiro pensamento foi: Uau, aquele tipo
ali está vestido como o meu pai, o que a fez começar a rir-se, e a mulher
com quem ele estava vestia um vestido de manga comprida às bolas de
Alessandra Rich, o que a tornava a única mulher na festa a tentar cobrir o
corpo em vez de o exibir. Isto lembrou-a que queria voltar a entrar na casa e
espreitar os outros quartos antes que ficassem cheios de casais bêbedos a
curtir.
– Steven, aquele gajo não se parece com o meu pai? – perguntou Lolly,
ainda a rir-se. – Desculpa, quero dizer, John Wick, aquele gajo não se
parece com o meu pai? – Ela virou Steven para que ele pudesse ver o
homem para quem ela apontou rudemente.
Steven parou de dançar, e fez uma expressão séria.
– Foda-se! – disse ele em voz baixa. – É o Alexander e a Eleanor.
Lolly estava a dançar às voltas com as mãos no ar, e não processou o que
Steven tinha acabado de dizer. Ele pôs os braços nos ombros dela e
inclinou-se para perto, por isso ela assumiu que ele estava prestes a beijá-la
e inclinou o queixo para cima em antecipação.
– Querida – sussurrou ele. – Tens de te concentrar. Precisamos de
encontrar a Anna antes deles. Vou falar com o Alexander e tu vais procurar
a Anna. Consegues fazer isso por mim?
Nesse momento, começou a tocar o remix de «Dreamlover», da Mariah
Carey e Lolly saltou para se juntar a uma tríade de gays com DandyZ no
centro, que estavam a gritar a sua aprovação pela escolha da música.
Steven praguejou, zangado consigo próprio por ter desperdiçado um
tempo precioso. Lolly não estava em condições de o ajudar, mas depois
Steven viu Murf, vestido de Kanye West, entre Daler e Rowney, as duas
únicas raparigas da festa suficientemente altas para ele – ambas vestidas de
verde, pareciam um par de feijões-verdes Versace e D&G. Steven foi a
dançar até Murf e agarrou-o pelo braço, afastando-o das modelos que
dançavam.
– Meu – disse Steven. – Preciso da tua ajuda. – Apontou para Alexander
e Eleanor, que estavam agora junto ao bar.
– Grande porra, isto não é nada bueno – murmurou Murf e pegou no
telemóvel. – Vou mandar uma mensagem ao Vronsk, mas não sei se o kilt
dele tem bolsos.
Os rapazes decidiram rapidamente que Steven ia distrair os dois,
enquanto Murf ia à procura de Anna e Vronsky. Antes de terem tempo de se
separar, uma Beatrice descalça apareceu ao lado deles.
– Estou a ver com o meu olhinho... problemas com P maiúsculo.
– Estamos a tratar disso – respondeu Steven. Murf acenou com a cabeça
e começou a abrir caminho pela pista de dança.
– Senhor Wick, vamos? – perguntou Bea, e pôs a mão no braço de
Steven. Os dois saíram da pista de dança e caminharam juntos até à boca do
leão, aproximando-se de Alexander e Eleanor, que seguravam copos de
água com gás.
– Meu, tudo bem? – Steven cumprimentou Alexander, num tom de voz
casual. – Não sabia que estavas na cidade este fim de semana. Olá, Eleanor.
– Olá, Beatrice. – Alexander ignorou Steven para cumprimentar Beatrice,
pois era isso que ditava as regras da boa educação. Uma senhora deve ser
cumprimentada primeiro. – Já conheces a minha irmã, Eleanor, certo?
– Claro – respondeu Beatrice de forma ríspida. Detestava pessoas que
diziam o óbvio como se isso pudesse passar por uma conversa. Beatrice
inclinou-se para dar um beijo no ar a Eleanor, mas esta deu um passo atrás.
– Oh, desculpa – disse Eleanor, sem parecer nada arrependida. – Não
gosto de tocar em estranhos. Não tens frio? Porque é que estás tão
brilhante? Isso é purpurina?
– Brilho corporal – respondeu Beatrice. – Daquele que as strippers usam.
– Onde está a Anna? – perguntou Alexander, tão desconfortável com a
roupa de Beatrice como a sua meia-irmã, embora disfarçasse melhor. – Ela
está cá, certo?
– Claro – disse Beatrice. – Provavelmente está a esvoaçar por aí algures.
Afinal de contas, isto é uma festa. – Não se deu ao trabalho de disfarçar a
irritação, provavelmente por causa das três linhas gordas de coca que já
tinha snifado.
Os quatro estavam tão ocupados a enfrentarem-se uns aos outros da
maneira errada, que não repararam quando Anna e Vronsky entraram na
tenda com Ben e Addison, que como tinham acesso ao departamento de
fatos das Disney estavam vestidos de Tico e Teco. Foram logo para a pista
de dança, sem se aperceberem de que muitos das outras pessoas na festa já
tinham ouvido falar da situação que se desenrolava a seis metros de
distância. Havia muita gente na festa que não conheciam Anna, mas todos
conheciam o OG de vista.
Anna e Vronsky estavam a dançar ao som de «Truth Hurts» de Lizzo. Só
tinham olhos um para o outro, e toda a gente já tinha reparado nisso, mas
eles eram os amigos da Beatrice, por isso ninguém se importava. Quase
toda a gente do grupo já tinha traído os namorados e namoradas, ou pelo
menos pensado seriamente nisso. Anna tinha perdido a gabardina branca há
uma hora e o vestido preto de seda estava a colar-se ao corpo de forma
bastante apelativa. Uma das alças finas tinha-lhe caído pelo ombro e
Vronsky não se conseguiu controlar, bêbado como estava. Inclinou-se para
a frente, pegou na alça com os dentes e puxou-a para cima, fazendo-a
deslizar pelo ombro dela. O hálito quente dele na sua pele nua fez Anna
estremecer, apesar de não estar frio dentro da tenda aquecida.
– Ei, Anna! – gritou Lolly. Ela estava ao pé de uma coluna, mas por
causa das aulas de representação sabia como colocar a voz para se fazer
ouvir na outra ponta da casa. Metade da festa esticou os pescoços na
direção de Anna e Vronsky. Enfeitiçada pelo seu parceiro de dança, Anna
demorou a reagir ao grito de Lolly alguns segundos mais do que deveria.
Lolly apontou e continuou:
– O Alexander está aqui. No início pensei que ele era o meu pai. Eles
usam as mesmas calças caqui.
Anna e Vronsky pararam de dançar. Anna cruzou as mãos no peito e
ficou a olhar para a pista de dança. Alexander, Eleanor, Steven e Beatrice
olharam de volta. Lolly reparou na expressão de Steven, e percebeu que ele
estava irritado com ela. Ups, pensou ela enquanto via Anna sair da pista de
dança, sozinha. Lolly olhou em volta e reparou que muitos dos convidados
também estavam a assistir. Foi só quando Alexander pegou no braço de
Anna e a conduziu para fora da tenda que Lolly teve um lampejo de clareza.
Ela teria baixado a cabeça de vergonha, mas o remix de «Wrecking Ball» de
Miley Cyrus distraiu-a.
– Ooooh! – gritou ela, e começou de novo a mover os pés ao ritmo da
batida. – Eu adorooooo esta música! – Atirou a cabeça para trás e começou
a cantar: – Eu entrei como uma bola de demolição… –, alheia a como a
letra era apropriada ao drama atual em andamento. Eu nunca quis começar
uma guerra…

XXVI
Anna vestiu o casaco Burton de esqui de Alexander por cima do vestido
minúsculo, sem saber onde tinha deixado a gabardina branca. Tinha frio nas
pernas, mas atravessou o relvado escuro em direção à piscina, e Alexander
seguiu-a de perto.
– Onde é que vamos? Porque é que não entramos em casa? – perguntou
ele, irritado.
Anna não respondeu, porque não o podia fazer sem mentir. Não queria
entrar na casa com Alexander, porque ela agora era o cenário de algumas
das suas melhores e mais recentes recordações, que não queria estragar com
as mais feias que tinha a certeza que estavam por vir.
– Há aquecedores cá fora. E privacidade. – Ela começou a andar mais
depressa, e chegou às sebes altas que rodeavam a piscina oval de fundo
preto. – O que estás aqui a fazer?
– Vim buscar-te – disse Alexander. – É suposto nevar esta noite.
– Viemos no Escalade do papá, tem tração às quatro rodas. Mas não era
isso que eu queria dizer. Não sabia que vinhas este fim de semana.
– O jantar da Eleanor é amanhã à noite – respondeu ele. – Ela estava
sempre a telefonar e a implorar-me para vir, Anna. Sabes como ela é. Que
mais podia eu fazer?
– Dizer-lhe que o mundo não para só porque ela faz anos. – Anna queria
manter-se calma, mas não conseguiu. Estava zangada.
– Anna – disse ele.
– Não me venhas com essa de «Anna», Alexander. Tu não és meu pai. Eu
posso dizer o que quiser. Houve dez mil e-mails sobre esse estúpido jantar.
Sabes que não sou eu que tenho laços familiares com ela, não sabes?
– Estiveste a beber?
– Sim, estive. Sabes porquê? Porque é uma festa! É isso que as pessoas
fazem nas festas, bebem e divertem-se. Mas talvez não saibas isso, porque
nós nunca vamos a festas.
– Porque estás a falar comigo nesse tom? Não percebo o que se passa
contigo. O que é que eu fiz para ficares assim? – Agora ele elevou a voz.
– Assim como?
– Mal tens roupa vestida e está um gelo. O Steven deu-te drogas?
Anna ignorou a última pergunta dele e continuou.
– Sabes que é um baile de máscaras? Porque é que não estás a usar uma?
– Não estou aqui pela festa, estou aqui por ti.
– Mas porquê? Eu disse-te que ia passar cá a noite e que voltava amanhã.
– A Eleanor estava preocupada que ficasses presa na neve e o Steven não
é a pessoa mais responsável...
– Eu não sou responsabilidade tua. Sou tua namorada! – gritou Anna.
– Anna. – A voz dele estava agora calma. – Tu és a minha namorada e eu
amo-te. É por isso que estou aqui.
– Ótimo. Então vamos juntar-nos à festa e divertir-nos um pouco.
– Anna. – Alexander olhou para o seu Rolex de ouro. – Não posso. Está a
ficar tarde e o meu trabalho não se vai escrever sozinho.
– Meu Deus! Se quiseres ficar, ótimo. Mas se queres ir escrever o teu
estúpido trabalho, então vai. – Anna levantou-se. – Porque eu vou voltar
para a festa. – Ela precisava mesmo de se ir embora, porque não fazia ideia
do que poderia dizer ou fazer se não o fizesse. Era como se as portas do
celeiro tivessem sido abertas e os cavalos estivessem todos a correr
livremente, tentando escapar a um incêndio terrível.
– E o tipo com quem estavas a dançar? – perguntou Alexander e Anna
parou. – Foi aquele que conheci na estação de comboios?
Anna não se podia virar para encarar o namorado, por isso, em vez disso,
falou para as sebes diante dela.
– O Vronsky. Ele é primo da Bea.
– Confio em ti totalmente – começou Alexander. – Mas não pude deixar
de reparar que as pessoas parecem estar a falar de vocês os dois de uma
forma que é... perturbadora.
– Estás a acusar-me de alguma coisa? – perguntou Anna, virando-se no
escuro para o encarar. – As pessoas gostam de coscuvilhar, Alexander. Esta
é a malta da Bea, é como um desporto para eles. Não fiz nada de mal.
Estávamos a dançar, e depois? Dancei com muitas pessoas diferentes a
noite toda. – Ela olhou para Alexander diretamente nos olhos pela primeira
vez desde que ele chegou.
– Tu és linda – disse Alexander com uma voz suave. – Tão bonita que
quando entras numa sala, todos os rapazes reparam em ti. Claramente, o
Vronsky sente-se atraído por ti, e eu não o culpo. Não estou a dizer que o
estás a seduzir de propósito, mas o que estou a dizer é que se o fizeres,
mesmo que seja inocentemente, seria indecente. Para ele e para mim.
Devias ter cuidado para não o deixares interpretar mal os teus sinais de
amizade como algo mais. Não gosto de ser alvo de mexericos.
Anna encurtou a distância entre eles em quatro passos, e ficou a
milímetros do rosto dele.
– Então devias estar a usar uma máscara – disse ela. – Vou voltar para a
tenda, ou podemos ir nadar nus juntos. Vá lá, eu até me dispo primeiro. –
Ela sabia que o seu desafio ia ser recebido com silêncio, o que aconteceu. –
Já imaginava. – Anna virou-se e dirigiu-se para a casa. O suspiro
exasperado de Alexander formou uma nuvem no ar frio e ele depois seguiu-
a.
Quando estavam a meio caminho do relvado, uma figura aproximou-se
deles no escuro.
– Alexander? Annie? – A voz de Eleanor ouviu-se estridente na
escuridão. – Onde estiveram? Não tens frio, Anna? Estou a congelar. Devia
ter vestido o meu casaco comprido como a mamã me disse. Um tipo
esquisito vestido como o Monstro das Bolachas entornou o vinho no meu
vestido e agora três das bolinhas estão cor de vinho!
– Vou voltar para a festa – disse Anna ao passar por Eleanor no escuro.
– Mas, mas... – choramingou Eleanor, e olhou confusa para Alexander. –
É quase uma da manhã, não devíamos ir embora? Sabes que tenho
tendência a ficar com olheiras quando não durmo o suficiente.
– A Anna fica – respondeu Alexander, e pôs o braço à volta dos ombros
da irmã. – Vamos, preciso de beber um café para aquecer antes de sairmos.
Eleanor não se mexeu.
– Como assim, ela fica? Fizemos este caminho todo para a vir buscar.
Isto não é justo para mim.
– Foi um erro. Um erro meu – respondeu Alexander. Esperou mais um
pouco e depois também ele continuou a caminhar em direção à tenda.
– Alexander! – gritou Eleanor, e bateu com o pé na relva molhada. –
Espera por mim!
Quando Alexander e Eleanor entraram na tenda, Anna estava sentada no
chão ao lado de Beatrice, que estava ao colo de Rooster. Dispostos à volta
deles, como um círculo de carroças antigamente, estavam Olivia, Brayton, a
bailarina vestida como Bela da Bela e o Monstro, e Adaka. Alexander
passou por eles em direção à máquina de café, junto às sobremesas, e
preparou um expresso duplo, pois precisava de fazer a longa viagem de
regresso a Greenwich, sobretudo com uma infeliz Eleanor no banco dos
passageiros. Voltou para a zona dos sofás e pôs-se atrás de Anna, que não se
virou para o cumprimentar.
– Beatrice, obrigado pela festa adorável, mas eu e a Eleanor vamos
embora agora – disse ele em voz baixa. Estava prestes a virar-se e a ir
embora, pois tinha cumprido o seu dever ao agradecer à anfitriã, mas parou.
– Também peço desculpa. Foi má educação da minha parte não ter
aparecido mascarado.
– Não precisas de pedir desculpa – disse Beatrice, que tinha acabado de
dar uma passa no cachimbo de água, que continha uma mistura híbrida de
erva chamada Crunchberry. Ela expirou uma enorme nuvem de fumo que se
ergueu e envolveu Alexander num nevoeiro momentâneo. Beatrice sorriu, o
sorriso com os olhos desfocados dos mocados. – Se alguém perguntar, diz
apenas que vieste de pila gigante.

XXVII
Vronsky e Murf estavam empoleirados em dois ramos diferentes e
robustos de um carvalho centenário no meio da entrada circular. Não tinha
sido fácil trepar àquela árvore, mas eles conseguiram, depois de terem
carregado uma enorme urna decorativa dos degraus da entrada da casa.
A urna pesava pelo menos noventa quilos, mas entre os dois, conseguiram
levá-la até à base da árvore.
Murf estava a enrolar um charro no colo, enquanto Vronsky olhava para
o lado, com um ar desanimado. Estás a ser um verdadeiro escocês aí em
baixo, chefe? – perguntou Murf, e acenou com a cabeça para o kilt de
Vronsky.
– Esta noite não há bolas ao ar livre – disse ele. – Tenho de manter a
classe. A Anna está cá, quer dizer... estava.
– Bem, já tivemos um idiota a aparecer na festa – riu-se Murf. – Só que
não foi o da tua miúda. – Acendeu o charro acabado de enrolar e passou-o a
Vronsky, que deu uma passa e aguentou o fumo o mais que pôde, na
esperança de acalmar a sua mente perturbada. Esta noite era a sua grande
oportunidade com Anna, e não tinha corrido bem.
– Alexander... – murmurou com desdém, e expirou o fumo.
Murf tirou o charro de Vronsky e abanou a cabeça.
– Esse gajo é tudo o que eu mais odeio em Greenwich. Não sei como é
que não foste às trombas daquele idiota que entrou aqui como se fosse o
dono da Anna.
– A ideia passou-me pela cabeça – disse Vronsky.
– Se eu fosse a ti, tinha ensinado boas maneiras ao rapaz, mas se o meu
rabo preto olha para um tipo como o Alexander da maneira errada… Ui, até
consigo ouvir as sirenes da polícia só de pensar nisso…
– Então, estás a chamar-me maricas.
– Sim, basicamente. – Vronsky riu-se e abanou a cabeça.
– Esta rapariga não sai da minha cabeça, meu.
Murf deu uma grande passa no charro e deixou sair uma enorme
quantidade de fumo para os ramos.
– Talvez queiras esquecer essa obsessão que tens pela Anna K. Nunca vi
tanto talento num só lugar como aqui esta noite e tenho a certeza de que
todas aquelas baixinhas fariam fila para te fazer esquecer os teus problemas.
Quero dizer, a Anna é ótima, mas é apenas uma rapariga.
– Quem me dera que fosse assim tão simples.
– Diz-me lá porque é que não é.
– Como é que te posso explicar se nem sequer eu entendo? É como se,
sempre que a vejo, não houvesse nada mais que importasse a não ser ela,
como se eu quisesse estar sempre ao pé dela e estivesse obcecado com tudo
o que ela diz e faz e, quando ela está longe de mim, sinto-me
completamente vazio, como se fosse um fantasma ou assim.
– Sabes o que é que tu pareces?
– O quê?
– Todas as raparigas que alguma vez se apaixonaram por ti. – Murf riu-
se. – Estou a brincar! Mas, na verdade, meu amigo, estás metido numa
grande alhada – disse Murf. – O que significa que só te resta uma jogada.
– Qual?
– Tens de ir atrás dela com tudo o que tens. Acabaram-se as tretas e as
festas de arromba que a tua prima dá só para vocês estarem no mesmo sítio.
– Eu sei, eu sei, só gostava que ela não se tivesse ido embora com aquele
idiota...
Murf interrompeu Vronsky e levou o dedo aos lábios seguido de um
silencioso «chiu», e apagou o charro na casca da árvore no exato momento
em que Alexander e Eleanor saíram pela porta da frente da casa e desceram
apressadamente os degraus. No cimo da árvore, Vronsky e Murf
conseguiam ouvi-los perfeitamente.
– Isto é ridículo! – A voz chorosa de Eleanor ouviu-se na noite fria de
inverno. – Volta lá para dentro e obriga-a a vir para casa connosco.
– E o que sugeres que eu faça? Que lhe bata na cabeça e a atire para cima
do ombro como um homem das cavernas?
– Ela é tua namorada! – gritou Eleanor. – Não devias deixá-la aqui com
todos estes idiotas bêbados a brincar como se estivessem num bacanal da
Grécia antiga!
– Entra no carro. Quero ir para casa. – Alexander abriu a porta do lado do
passageiro do seu Range Rover verde-seco para Eleanor, mas ela não
entrou.
– Vou voltar para a ir buscar – disse ela, mas o meio-irmão agarrou-a
pelo braço.
– Não, não vais – disse Alexander com firmeza.
Ainda a escutarem tudo, sem fôlego, no alto da árvore, Vronsky e Murf
olharam um para o outro com as sobrancelhas erguidas.
– Larga-me o braço – disse Eleanor, com as narinas a tremer de raiva.
Alexander soltou-lhe o braço e Eleanor entrou no banco da frente, e bateu
com a porta atrás de si. Ele deu a volta ao Range Rover e levou as mãos à
cabeça antes de se recompor e entrar no lado do condutor.
– Caramba. – Murf respirou finalmente enquanto o SUV se afastava. –
Pelo menos aquela rapariga branca deu alguma luta, que é mais do que
posso dizer do rabo cobarde dele. – Sabes o que te digo? Ele foi banido.
A Anna merece melhor.
Vronsky ficou em silêncio, com a cabeça a andar à roda, tanto por causa
dos novos acontecimentos como por causa da ganza.
– Ela ainda aqui está…
– Parece que é a tua noite de sorte... se calhar é a nossa noite de sorte.
Aquelas duas miúdas modelos amigas da tua prima andam a atirar-se a mim
desde o jantar.
Murf desceu da árvore e olhou para Vronsky.
– Queres ir para a pista e deixar que o velho Murf te mostre como se
dança?
– Tenho de encontrar a Anna – disse Vronsky.
– Podes crer que tens – disse Murf. – Está na altura de dares alguma luta
ao OG. – Murf começou a saltar na relva gelada como um pugilista a
aquecer-se para o ringue.
Vronsky deixou-se cair no chão por baixo da árvore com um suave salto
de gato. Os primeiros flocos de neve começaram a cair no ar gelado da
noite. – Ei, Murf.
– O que foi, mano?
– E se ela não sentir o mesmo por mim?
O amigo parou de saltar e ficou a pensar por um momento. Aproximou-se
de Vronsky, pôs-lhe a mão no ombro e olhou-o bem nos olhos.
– Então, pelo menos ficas a saber…
Vronsky inspirou profundamente, e a moca da marijuana envolveu-o e
protegeu-o de todos os pensamentos negativos de que os seus sentimentos
por Anna podiam não ser correspondidos. Na sua cabeça, isso era uma
impossibilidade.
– Sim – disse ele. – Tens razão.
– Vamos lá, Romeu. O último a chegar à tenda é um ovo podre – disse
Murf e começou a correr.
Vronsky desatou a correr também.

XXVIII
Depois de pôr Lolly na cama, Steven encontrou a irmã na cozinha,
sentada no chão da despensa, a atacar um balde gigante de gelado de
morango com uma colher enorme. Não demorou muito tempo a descobrir
onde ela estava na casa enorme, porque sabia exatamente onde a procurar.
Muitas vezes tinha encontrado a irmã sentada na despensa da sua própria
casa, a comer um lanche. Fazia-o por necessidade, por não poder saborear a
comida enquanto dois cães babosos a olhavam. Procurava um pequeno
espaço com uma porta onde se pudesse esconder e comer sem distrações.
A porta da despensa da sua casa em Greenwich tinha sido pintada duas
vezes para remover as marcas dos arranhões.
Anna, que já não usava a peruca loira platinada, olhou para Steven com
expetativa, como se tivesse estado sempre à espera dele. A despensa era
maior do que a maioria dos apartamentos estúdio de Manhattan e cabia
facilmente uma mobília de quarto. Ele entrou e fechou a porta atrás de si, e
juntou-se a Anna no chão. Ela estendeu a mão e entregou ao irmão uma
segunda colher, o que confirmava que estava à espera dele.
Steven, elétrico de toda a coca que tinha consumido, pegou na colher e
comeu.
– A Lolly colapsou. Ela vai-se passar quando descobrir o que fez. Sem
querer, claro.
– Não lhe digas nada – pediu Anna. – A culpa não foi dela. Só me posso
culpar a mim própria. E à Eleanor, claro.
Steven concordou. Por muito que não fosse fã do namorado de Anna,
desprezava ainda mais a arrogância de Eleanor. Eram as miúdas mimadas e
choronas como ela que davam má fama aos jovens ricos. Uma vez, ele viu
Eleanor a passar-se completamente num brunch de domingo no clube,
porque contrataram um novo pasteleiro que acrescentou passas ao bolo de
cenoura.
– Quem é que raio aparece assim? Normalmente, os penetras das festas
vêm para se divertirem, mas eles pareciam mais desmancha-prazeres.
– Ela estava preocupada que ficássemos presos na neve e eu perdesse o
seu estúpido jantar de aniversário amanhã à noite. – Anna não achava que
valesse a pena contar ao irmão que o namorado também não confiava muito
em Steve para a ir levar a horas, uma vez que Steven estava sempre
atrasado.
– Está a nevar agora – disse Steven. – Mas só é suposto nevar alguns
centímetros.
Anna acenou distraidamente com a cabeça.
– A Bea disse-me que o Alexander se foi embora logo a seguir à vossa
conversa – disse ele, à procura de mais informações, mas sem querer
pressioná-la.
– Queres dizer depois da nossa discussão? – corrigiu-o Anna. – Como é
que ele se atreve a aparecer aqui para me vir buscar como se eu fosse uma
criança? Mas, em sua defesa, tenho a certeza de que ele não teria vindo se a
Eleanor não tivesse insistido.
– Talvez ele só tenha vindo para a calar. Eu iria a conduzir até ao Brasil
se isso a mantivesse de boca fechada – disse Steven. Ele tinha a certeza de
que Alexander também o tinha culpado, por ele não ser fiável o suficiente
para levar a irmã a casa com um pouco de neve. Mas ele sabia que Anna
nunca iria confirmar as suas suspeitas. – Como é que ficaram as coisas com
ele?
Anna encolheu os ombros.
– Não sei. Ele entrou e despediu-se da Bea, mas eu recusei-me a olhar
para ele. Não me despedi de nenhum deles. – Anna afastou o gelado,
subitamente farta de tanto açúcar. – Ele teve a lata de me avisar para não
dar falsas esperanças ao Vronsky. Disse que não gostava de ser alvo de
mexericos e era óbvio que as pessoas estavam a falar de nós. – Anna
observou o irmão enquanto dizia isto, estudando a sua reação.
Steven afastou o cabelo dos olhos e abanou a cabeça.
– Esse gajo – disse ele – é mesmo um idiota chapado.
Anna desatou-se a rir. Ela sabia que o irmão não gostava do namorado,
mas Steven nunca tinha falado mal dele à sua frente.
– Não sei se é um idiota chapado, mas ele consegue mesmo ser difícil –
concordou ela. – As pessoas estavam a falar de nós, Steven? Quero dizer,
antes do Alexander aparecer e fazer com que toda a gente falasse de nós? –
Ela viu o irmão acenar com a cabeça.
– As pessoas falam mal de toda a gente, Anna – disse ele. – O que tu e o
Vronsky fazem não é da conta de ninguém, a não ser da vossa.
– É muito simpático da tua parte dizeres isso. – Anna abanou a cabeça
com tristeza. – Mas ambos sabemos que não é verdade. Claro que a minha
vida é só minha, mas também sou a namorada do Alexander. Por isso, as
pessoas com quem me dou também são um pouco da conta dele. Tal como a
Lolly tinha todo o direito de estar chateada por causa da Marcella.
– Isso foi diferente – disse Steven, que escolheu defender a honra da irmã
em vez da sua. – Eu fui um canalha. Tu e o Vronsky estavam apenas a
dançar.
Anna agarrou na mão do irmão.
– Adoro-te por me defenderes, mas foi mais do que dançar. Quero dizer,
não foi mais do que isso. Mas, é mais como… bem, tu sabes.
Steven desviou o olhar, pois não queria que Anna visse a sua expressão.
Claro que Steven tinha reparado na forma como Vronsky e Anna tinham
estado a olhar um para o outro durante o jantar, como se fossem as únicas
pessoas à mesa. Lolly tinha-lhe contado antes que tinha ido ao quarto de
Anna e encontrado Vronsky lá. Lolly fez questão de dizer que a porta estava
bem aberta, por isso não era como se eles se estivessem a esconder. As
palavras exatas de Lolly foram:
– Senti-me como se tivesse entrado no set de uma comédia romântica.
Ele parecia tão deslumbrado por ela! – Lolly tinha achado tudo inocente, e
era isso que Steven adorava nela. Claro, Vronsky era lindo e tudo mais, mas
Anna tinha um namorado, e não corria mais perigo de se perder do que
Lolly.
– Anna, sabes que só tens dezassete anos, certo? – disse Steven
finalmente, pois decidiu que a irmã precisava de um conselho honesto, sem
paninhos quentes, como os que ela lhe dava. – Se gostas do Vronsky, e sim,
é óbvio que vocês estão loucos um pelo outro, então vai em frente. Deixa o
OG e sê uma adolescente normal e sai com rapazes, vai a festas, solta-te.
Temos a vida toda para casar e formarmos o casal perfeito na sociedade,
para quê começar agora? Por amor de Deus, conheceste o Alexander
quando tinhas catorze anos, o que eu pessoalmente sempre achei um pouco
suspeito da parte dele. Que gajo de dezasseis anos se atira a uma miúda de
catorze?
– Duas das raparigas do meu quarteto eram da idade dele, por isso ele
pensou que eu também era...
– Isso é o que ele diz, mas tanto faz. Estou-me a cagar para ele –
respondeu Steven. – O que estou a dizer é porque não tentas agir de acordo
com a tua idade e vês se gostas? Olha, não sei o que pensar do Vronsky,
porque ele é um cão de caça, mas sei que és capaz de lidar com rapazes
mais desafiantes. Teres de lidar comigo a toda a hora deve ter servido para
alguma coisa. Mas vejo como o Vronsky olha para ti, e não é o típico vou-
comê-la-e-adeus. Eu percebo destas coisas.
– Steven! – gritou Anna. – Por favor, para.
– Sabes o que quero dizer – respondeu ele.
Anna acenou com a cabeça, porque sabia exatamente o que ele estava a
dizer. Ela tinha pensado o mesmo. No início, achava que Vronsky só estava
interessado nela porque queria ir para a cama com ela. Mas agora que
tinham passado mais tempo juntos, Anna acreditava que os sentimentos de
Vronsky eram muito mais profundos do que uma fantasia passageira
alimentada por um desejo básico.
– O gelado está a derreter-se – disse Steven e levantou-se. Anna pegou na
mão do irmão e pôs-se de pé. Juntos saíram da despensa e voltaram à
cozinha escura.
– A festa ainda continua? – perguntou ela. Olhou para o relógio da
cozinha e viu que já passava das duas da manhã.
– Sim – disse ele. – Vou-te dizer, esta Bea está a dar-me uma abada como
melhor-anfitrião-do-pedaço. Se calhar vou ter de me superar no próximo
Ano Novo. Vou voltar para a tenda, queres vir comigo?
– Quero. – Anna não estava com sono, por isso por que razão havia de
deixar Alexander estragar-lhe a diversão? – Obrigada, Steven. És um grande
irmão mais velho. – Ela deu um passo em frente e abraçou-o. – Vou
continuar a abraçar-te até me abraçares de volta! – avisou ela, a sorrir.
Steven envolveu a irmã com os braços e beijou-a no topo da cabeça, algo
que tinha visto o pai fazer-lhe um milhão de vezes. Quando era mais novo,
para ser completamente honesto, costumava ter um pouco de ciúmes do
quanto o pai adorava Anna, mas tinha aprendido a esquecer e a não deixar
que isso o incomodasse demasiado. Anna esforçava-se realmente por ser a
melhor pessoa que podia ser. Se alguém era o orgulho de Greenwich, era a
irmã, e não o seu namorado convencido.
Os olhos de Steven ficaram enevoados, enquanto o amor entre irmãos o
dominava. Ele sabia que tinha sorte em ter uma irmã como Anna, e tudo o
que mais queria era que ela fosse feliz. Ao jantar, Anna brilhou com uma
alegria que ele nunca lhe tinha visto antes. E se era Vronsky quem a fazia
assim tão feliz, então que assim fosse. Além disso, ele tinha a certeza de que
poderia dar uma grande sova a Vronsky se ele alguma vez se atrevesse a
magoar a sua irmã mais nova.

XXIX
Quando Vronsky e Murf regressaram à festa, depois de terem visto
Alexander e Eleanor partirem, Anna não estava em lado nenhum. Vronsky
voltou à casa principal para a procurar e até bateu à porta do quarto dela,
mas quando abriu a porta, o quarto estava vazio. Felizmente, a Tahoe Alien
Indica que tinha fumado com Murf ajudou-o a manter-se calmo em relação
à possível desaparecença dela, uma palavra que ele decidiu que era real,
apesar de não ser. Ele estava mesmo pedrado. O que precisava de fazer era
sentar-se num sofá na tenda, descansar os olhos e esperar por ela. Desde
que conhecera a Anna, sempre que fechava os olhos, via a cara dela. Ela
estava a assombrá-lo, mas Murf tinha razão quando disse que estava na
altura de dar tudo por tudo, ou desistir, pois não teria paz de espírito
enquanto não estivessem juntos. Quando ouviu a voz de Anna a chamar o
seu nome, a flutuar por cima dele, pensou que estava a sonhar. Sorriu
perante o som celestial, extasiado por ouvir o seu nome nos lábios do seu
amor.
– Ele não está a dormir porque está a sorrir como um idiota. – Ouviu-se a
voz de Beatrice. – Um louro bonito. Acorda, V!
Ele abriu os olhos e viu Anna inclinada sobre si, a olhar para ele. Ela era
realmente a rapariga mais bonita que ele alguma vez tinha visto.
– Alexia, temos de acabar a nossa dança – disse ela em voz baixa. –
A última foi interrompida.
Ele sentou-se imediatamente e esfregou os olhos para se certificar de que
estava de facto acordado. Anna estendeu-lhe a mão e ele pegou nela
imediatamente. Voltaram para a pista de dança, de mãos dadas, sem se
aperceberem de que toda a gente os observava. Quando começaram a
dançar, a pista tinha apenas algumas pessoas. Aproximando-se de Anna e
Vronsky numa demonstração de apoio, todos os membros da festa que
ainda se conseguiam manter de pé juntaram-se a eles na pista de dança.
Como um vulcão adormecido que entra em erupção sem aviso, a festa
ganhou de novo vida numa questão de segundos. Um segundo vento
poderoso soprou através da tenda, quer estivessem preparados para ele ou
não. A festa continuou durante muitas músicas, mas às três da manhã o DJ
fez as malas e foi para casa feliz com os seus cinco mil dólares, mais o
saquinho de branca que Beatrice lhe meteu no bolso das calças como
gorjeta, e em breve só restava um casal na pista de dança, abraçados um ao
outro.
Nos braços de Vronsky, Anna sentia que podia ficar acordada para
sempre. Estava tão concentrada nele – na sua respiração, nas suas mãos, no
seu cheiro – que, quando finalmente olhou em volta, ficou surpreendida por
ver que estavam sozinhos a dançar ao som das músicas de uma play-list que
ele tinha compilado secretamente em honra dela. Sinceramente, nem sequer
se lembrava de o DJ ter saído ou de Vronsky ter colocado o iPhone dentro
de um copo grande, que serviu de amplificador, para que pudessem
continuar a dançar.
Só quando soprou uma grande rajada de vento às quatro da manhã é que
Anna estremeceu um pouco, o que fez com que Vronsky parasse de dançar,
embora o que estivessem a fazer realmente fosse mais duas pessoas a
agarrarem-se desesperadamente uma à outra enquanto se balançavam para
trás e para a frente.
Quando abriram a porta da tenda, viram que o chão estava coberto por
dois centímetros de neve. Anna tinha posto de lado os saltos há horas e
estava descalça, por isso Vronsky pegou nela ao colo e carregou-a pelo
jardim, deixando o rasto de um par de pegadas na neve a mostrar a sua nova
união.
Ele levou-a ao colo pela casa escura sem se cruzar com vivalma, embora
a propriedade gigante estivesse cheia de outras pessoas também bem
acordadas atrás de portas fechadas. Lolly acordou, vomitou, lavou os dentes
e, ao abrir a porta para ir ter com Steven, encontrou-o a entrar com uma
garrafa de Cristal vintage que tinha roubado do frigorífico. Estavam agora a
ter a noite romântica que ela queria ter tido com Steven desde o Dia dos
Namorados.
Beatrice tinha-se fartado das palhaçadas de Rooster e estava agora na sua
cama com uma das empregadas do bar, Dália, uma antiga aluna da escola de
palhaços francesa École Phillipe Gaulier. Entretanto, o DJ, que todos
pensavam ter ido para casa, estava na verdade a snifar linhas de coca com
Adaka num espelho antigo que custava mais do que um carro. Uma das
Livis estava a pintar as unhas dos pés de Rooster com Russian Navy, a sua
cor de verniz caraterística, enquanto compunha uma nova canção pop na
cabeça. Murf tinha conseguido um grande prémio, e estava a partilhar uma
cama de casal com Daler e Rowney. Clement e DandyZ estavam a
organizar uma pequena festa de dança no seu quarto dos anos setenta.
Tinham partilhado o seu stock de ecstasy com Ben, Addison e a segunda
Livi, e os cinco estavam a dançar ao som de «You Sexy Thing» dos Hot
Chocolate, como os seus pais tinham feito no Limelight. Brayton tinha
descoberto o salão de baile no lado mais afastado da casa, ligou os
candelabros e estava a fazer um ballet privado para alguns retardatários da
festa que ainda não podiam ir para casa porque não tinham regressado da
sua viagem à terra dos cogumelos.
Naquele momento glorioso, todos os adolescentes da casa estavam
felizes, a criar memórias que nunca esqueceriam, mas ninguém estava mais
feliz do que Vronsky. Quando abriu a porta do quarto de Anna, parou por
um momento no limiar, dando-lhe a oportunidade de o afastar. Em vez
disso, Anna enterrou o rosto no seu pescoço, e ele atravessou a soleira e
entrou no quarto dela, fechando a porta com um pontapé.
Ele não queria deixá-la ir, mas deitou-a suavemente na cama.
Anna era agora a única que se sentia como se estivesse a acordar de um
sonho mágico. A sua expressão denotava preocupação.
– O que se passa? – perguntou-lhe ele suavemente.
– Não quero que esta noite acabe. Não quero que te vás embora. Não
quero adormecer porque não quero acordar para o que vier amanhã. – Se
antes controlava o que dizia na presença dele, agora já não era o caso. Anna
sentiu-se compelida a contar-lhe tudo, como ele a fazia sentir, como ele a
excitava e assustava ao mesmo tempo.
– Anna – disse ele, tomando-lhe o rosto entre as mãos –, minha Anna, a
noite ainda não acabou, e eu não vou a lado nenhum. – Ela olhou para ele,
com os olhos escuros a brilhar de esperança, como se ele fosse o único
rapaz no mundo que a podia alimentar, salvando-a de morrer à fome. Ele já
não se conseguia controlar mais, ser paciente, lento ou cuidadoso, nem por
mais um momento. Era ele que estava a morrer de fome, e só ela o podia
salvar.
Vronsky beijou-lhe os lábios macios, suave e lentamente no início. Mas
ela respondeu-lhe imediatamente e, em breve, os dois estavam a beijar-se
ávidos, com a verdade a vir por fim ao de cima: isto, eles, aqui e agora, era
a única coisa que importava, a única coisa que alguma vez tinha importado.
Anna afastou-se, com o coração a bater descontrolado no peito, os olhos
selvagens de desejo. Nem sequer se tinha apercebido de que estavam
deitados nos braços um do outro na cama.
– Temos de parar – disse ela ofegante e sentou-se. – Não pode ser assim.
Não é certo. Eu quero-te, mas tu não és meu para te ter.
– Isso não é verdade – replicou Vronsky rapidamente, sentando-se e
beijando-a de novo. – Sou todo teu.
– Não – disse Anna, e afastou-se, levantando-se e endireitando o vestido.
– Não consigo pensar direito, quis dizer que não sou tua para me teres. Não
podemos fazer isto agora. Não é justo para ele. Vou sentir-me mal amanhã.
– Ela olhou pela janela. O sol estava quase a nascer e o dia seguinte estava à
porta.
– Não me obrigues a ir embora – disse Vronsky com a voz rouca. – Não
posso. Não vou. Eu durmo no chão.
Anna sabia que seria impossível vê-lo sair pela porta sem correr atrás
dele.
– Eu sei que agora depende de mim – disse ela. – Preciso de fazer a coisa
certa. Dá-me algum tempo para resolver as coisas como deve ser, está bem?
– Quando Vronsky não respondeu de imediato, ela foi ter com ele e beijou-
o. Queria provar que lhe estava a dizer a verdade e lembrar a si própria
porque o queria tanto. Vronsky acenou com a cabeça, resignando-se a
obedecer-lhe. Ele agora tinha esperança, esperança de que em breve
estariam juntos, enquanto ela o aconchegava na almofada da chaise-longue
ao lado da janela, debaixo da colcha cor-de-rosa. Não tinha a certeza de
conseguir adormecer com Alexia a três metros de distância, mas acabou por
conseguir.
Acordou com um sobressalto, totalmente desorientada, com alguém a
bater à porta. Esta abriu-se e Beatrice entrou, embrulhada apenas num
lençol, e parecendo um pouco grogue. Beatrice avaliou imediatamente a
situação; viu Anna ainda com o vestido da noite anterior e Vronsky, vestido
com um kilt, na chaise-longue junto à janela, a passar os dedos pelo cabelo.
– Desculpem por vos acordar assim – disse Beatrice, com o rosto numa
máscara sombria. – A tua mãe acabou de me telefonar porque não atendias
o telemóvel. É o Alexander. Teve um acidente.
[16] Desdentado, em inglês. (N. da T.)
Parte III
I
A vida não é uma merda, é mesmo um caralho.
Temos de nos erguer e dar-lhe um pontapé nos
tomates.

Foi com estes pensamentos que Kimmie acordou de manhã. Era uma
adaptação de uma citação mais longa de Maya Angelou: «Adoro ver uma
jovem a sair e a agarrar o mundo pelas lapelas. A vida é uma merda. Tens de
te erguer e quebrar tudo» que estava impressa e emoldurada por cima da
cama de Kimmie no seu quarto privativo no Desert Vista Wellness Center.
Ela reduziu o texto e acrescentou o expletivo para lhe dar mais força
quando o escreveu num post-it cor-de-rosa e o colou no espelho da casa de
banho. Todas as manhãs, enquanto lavava os dentes, olhava para o post-it.
Era suposto ser inspirador, e era: inspirava-a a manter aceso o fogo da sua
raiva contra os homens.
Quando Kimmie chegou ao Desert Vista Wellness Center, no Arizona,
com a mãe, há três semanas, pensou que o local era um spa onde iriam fazer
tratamentos de beleza e relaxar ao sol junto à piscina. O que ela depressa
descobriu foi que, embora o centro de bem-estar tivesse uma piscina, não
havia tratamentos de beleza para fazer. Este spa era mais para a mente do
que para o corpo.
Kimmie não se opôs, nem sequer chorou, quando soube que a mãe lhe
tinha mentido para a levar até lá, pois isso só lhe dava razão. Alguma coisa
tinha de estar muito mal com ela para a mãe fazer algo tão drástico. O que
ela não sabia, e o que a mãe não lhe disse, era que as semanas que se
seguiram à festa, em que Kimmie estava deprimida e se recusava a ir à
escola, tinham disparado alguns sinais de alerta na escola dela, a Spence.
A única forma de recuperar as propinas do semestre era se Kimmie ficasse
de baixa médica e se inscrevesse num programa. Danielle receava que a
escola achasse que Kimmie se tinha envolvido em drogas ou álcool, mas o
Dr. Becker e o novo terapeuta, que ela visitara por sugestão dele, alertaram
a escola para o facto de os problemas de Kimmie serem emocionais e não
comportamentais. Kimmie apresentava todos os sinais clássicos de
depressão: choro, perda de apetite, passar dias inteiros a dormir. Falou-se
logo em dar-lhe medicação, mas o pai de Kimmie recusou e exigiu ouvir
outras opções.
O programa do centro de bem-estar não era tão intenso como o da
reabilitação de toxicodependentes. Ela não ficava fechada numa enfermaria
à noite porque a sua inscrição era voluntária. Mas era uma paciente interna,
o que significava que o preço era muito mais alto do que o dos adolescentes
que vinham apenas algumas vezes por semana para participar nos
programas de ambulatório que o centro também oferecia. Os dias de
Kimmie eram preenchidos com aconselhamento privado, terapia de grupo,
terapia artística e exercício físico. No início, Kimmie sentia-se entorpecida,
limitando-se a cumprir o seu programa de atividades diárias, que era
impresso num pequeno cartão e colocado debaixo da sua porta. Mas havia
algo no anonimato do lugar que a atraía. Ninguém a conhecia, e ela não
conhecia mais ninguém. Além disso, estava feliz por estar a quase vinte e
cinco mil quilómetros de distância de Nova Iorque.
Tinham-lhe tirado o telemóvel, mas ela não se importou, pois não queria
ser lembrada do que se passava com as raparigas da escola, ou mesmo com
a irmã. As últimas fotos que ela tinha visto foram as do Instagram de Lolly,
no aeroporto na manhã antes de ela e a mãe partirem. Ela tinha recebido o
convite para o baile de máscaras de Beatrice pela Anna, mas não havia
qualquer hipótese de ela ter ido, pois tinha a certeza de que Vronsky ia lá
estar. Lolly sabia que não devia postar nenhuma foto com ele, mas havia
muitas fotos de Lolly, Steven e Anna mascarados, e a divertirem-se à
grande com uma série de outros adolescentes lindos, alguns dos quais
Kimmie reconheceu da televisão e das revistas.
Continuou a ver as fotos vezes sem conta no aeroporto, mas isso
começou a deixá-la ansiosa, por isso desligou o telemóvel e guardou-o na
mala. Decidiu então que ia apagar todas as suas contas nas redes sociais.
Não era muito ativa nas redes sociais, sobretudo porque nunca tivera tempo
para isso quando treinava e, quando voltou para casa depois da lesão no
joelho, nunca quis publicar fotografias da sua vida aborrecida e presa na
fisioterapia. No entanto, quando começou a estudar, ficou obcecada como
toda a gente e pouco depois estava a seguir centenas de pessoas: raparigas
da escola, celebridades, até os seus antigos amigos do mundo da patinagem
artística, mas, aos poucos, olhar para os posts das outras pessoas começou a
fazê-la sentir-se estranha. Ela perguntava-se se toda a gente se estava a
divertir tanto como parecia. #YOLO #FOMO #JOMO #NÃOMEIMPORTO
Ter de entregar o telemóvel no centro de bem-estar foi a primeira pista de
que a mãe a tinha enganado. A segunda pista foi quando chegaram ao
quarto, onde só havia uma cama de solteiro. Foi nessa altura que a mãe de
Kimmie confessou tudo, pois tinha tido demasiado medo de o fazer mais
cedo no avião, como havia planeado. Ficou extremamente aliviada quando
Kimmie se aproximou da pequena citação emoldurada por cima da cama, a
leu e disse:
– Está tudo bem, mãe. Eu gosto deste quarto. – A mãe começou a chorar
e abraçou a filha, dizendo-lhe que tudo iria melhorar em breve. Danielle
explicou que estava hospedada num hotel próximo e que a visitaria todos os
dias, e que ia assistir às primeiras sessões de terapia para se certificar de que
Kimmie gostava dos seus novos terapeutas, antes de ir para Canyon Ranch
para se encontrar com alguns amigos.
– Preciso que saibas que não és uma prisioneira aqui, Kimmie –
explicou-lhe a mãe. – Se quiseres ir ao cinema ou comer num restaurante,
podes apanhar um Uber e ir. Só tens de assinar à saída e voltar antes da hora
de recolher. – Tirou do bolso o folheto sobre o Desert Vista Wellness Center
e deixou-o para Kimmie ler à vontade. – O doutor Becker disse que este
programa é maravilhoso e que os pacientes que ele mandou para cá
voltaram sempre recuperados e prontos para enfrentar a vida de novo.
Kimmie acenou com a cabeça e garantiu à mãe, mais uma vez, que queria
sentir-se melhor e que estava pronta a trabalhar para atingir esse objetivo.
Na última semana em casa, tinha-se sentido tão em baixo que até pesquisou
«automutilação» no Google. Os vídeos que viu na Internet eram muito
perturbadores, mas o que a inquietou ainda mais foi que, quando leu os
blogues de raparigas que se cortavam, muitas delas disseram que o faziam
para deixar de sentir dor, em vez de a infligir. Quando Kimmie pensava em
como se estava a sentir, não era propriamente dor o que sentia, era mais
uma dormência difusa, como se estivesse debaixo de água, ou presa atrás de
um vidro grosso.
– A Lolly sabe que vou ficar aqui durante um mês? – perguntou Kimmie.
A mãe disse que ainda não tinha contado à irmã, mas que lhe explicaria
tudo quando voltasse para casa. O único pedido de Kimmie era que ela
dissesse a Lolly para não a atualizar com notícias de casa. A mãe concordou
que Kimmie precisava de uma pausa total.
Durante a primeira semana de terapia, Kimmie ficou a saber que, muito
provavelmente, sofria de uma depressão ligeira desde que regressara a casa
após a lesão que lhe pusera fim à carreira, e que a primeira vez que voltou a
sentir alguma alegria foi quando Vronsky a beijou na festa de Steven, e por
isso agarrou-se a ele como uma pessoa a afogar-se a um salva-vidas.
Desesperada por manter estes sentimentos bons, convenceu-se erradamente
de que ele era a única razão da sua felicidade. Se isso fosse verdade, então o
que ela achava ser amor não era amor de todo. O seu cérebro estava apenas
a tentar encontrar uma forma de a fazer sentir melhor.
Esta revelação foi um grande alívio para Kimmie. Talvez ela não fosse a
culpada pelo seu erro de julgamento ao precipitar-se e ter sexo com
Vronsky. Na verdade, foi ele que se aproveitou do seu delicado estado
mental. Ela era a vítima de tudo aquilo, tal como todas as raparigas que ele
tinha seduzido antes dela, os Capuchinhos Vermelhos deste Lobo Mau. Na
sua segunda semana de terapia, ela aproveitou a oportunidade para mudar a
narrativa. Se ela não queria ser a vítima, então estava ao seu alcance fazer
alguma coisa. A vida tinha sido uma merda para ela, mas agora já não era.
Estava na altura de agir e de lhe dar um pontapé nos tomates.

II
Kimmie tinha terapia de grupo uma vez por dia, normalmente de manhã,
mas por vezes também ia a uma segunda sessão à noite. Havia algo em
ouvir as vidas problemáticas de outros adolescentes que a fazia parar de
analisar os seus próprios problemas. Tudo o que ela andava a fazer era
dissecar a sua própria mente há semanas e, francamente, estava farta de si
própria. Além disso, havia uma rapariga que ia várias vezes às sessões de
grupo à noite e por quem Kimmie tinha uma paixoneta. Quando Natalia lhe
chamou a atenção na semana anterior, Kimmie sentiu admiração por ela, um
sentimento parecido ao que sentiu por Anna na primeira vez que a
conheceu. Não era nada romântico, era uma coisa completamente diferente.
Ela não a «queria». Ela queria ser como ela.
Natalia tinha provavelmente a mesma idade de Lolly, mas podia
facilmente passar por mais velha. Kimmie sabia que Natalia não podia ter
mais de dezoito anos, porque se tivesse, teria que frequentar um grupo
diferente. Apesar de ser alta, magra, ter ancas estreitas e praticamente não
ter peito, exalava uma sexualidade crua que explodia dela como fogo de
artifício. Kimmie detestava raparigas com cabelos curtos, mas Natalia tinha
o cabelo verde e azul brilhante, artisticamente desgrenhado, que acentuava
na perfeição os seus olhos cor de esmeralda. Empoleirada na sua cadeira
desdobrável de metal, parecia uma criatura felina alienígena enviada à Terra
para dizer à raça humana o que cada coisa era exatamente.
Durante as cinco vezes que falou em grupo, Kimmie descobriu o
seguinte: Natalia tinha crescido em Las Vegas com uma mãe solteira que
trabalhava como empregada de mesa num casino de baixa categoria e se
prostituía quando o dinheiro era escasso; Natalia tinha doze anos quando
experimentou anfetaminas pela primeira vez – foram dadas pelo namorado
traficante de droga da mãe – e a única coisa que sabia sobre o pai era que
ele era um jogador degenerado que não tinha qualquer interesse na filha,
para além de enviar dinheiro sempre que ganhava muito, o que não era
muito frequente. Natalia disse que tinha experimentado muitas outras
drogas, mas o que ela gostava nas anfetaminas era que a faziam sentir-se
invencível. Uma vez, correu a maratona de Las Vegas pedrada com
anfetaminas, em quatro horas, numas sapatilhas All-Star, calças de ganga e
biquíni.
Ela tinha acabado de sair de um centro de reabilitação de luxo – tinha
vindo de um internamento que fora pago por um dos antigos clientes ricos
da mãe, como caso de caridade, onde fora selecionada para fazer parte de
um estudo de investigação ambulatório sobre viciados em anfetaminas,
acabando assim no Desert Vista – e estava limpa há dois meses, um recorde
para ela desde que tinha começado a consumir. O que Kimmie mais gostava
em Natalia era que ela parecia não se importar com o que as outras pessoas
pensavam dela e dizia tudo o que lhe passava pela cabeça quando era a sua
vez de partilhar. Achava que estar sóbria era uma seca, e a única coisa que a
impedia de voltar a consumir era o seu novo namorado que tinha conhecido
na reabilitação.
– Acordo e penso em anfetaminas, mas vou para o trabalho. Depois do
trabalho, penso em anfetaminas, mas venho para aqui. Depois do grupo,
penso em anfetaminas, mas o meu namorado vem buscar-me e vamos
jantar. Depois do jantar, penso em anfetaminas, mas vamos para casa e
fodemos até adormecermos os dois. Ah, e se o desejo se torna
particularmente mau, ponho um piercing ou acrescento outra tatuagem à
minha coleção.
Normalmente, Kimmie preferia sentar-se em frente a Natalia no
semicírculo, para poder olhar para ela, mas quando ela apareceu hoje no
grupo, o único lugar disponível era ao lado dela.
– Ei – sussurrou Natalia. – O Cuecas Malcheirosas tentou sentar-se aqui,
mas disse-lhe que estava a guardar o lugar para ti. Ainda bem que
apareceste!
Kimmie corou de entusiasmo antes de o Dr. Rodriguez começar a sessão.
Mal conseguia concentrar-se enquanto Dougie Que Não Vale um Chavo se
queixava da sua experiência traumática no liceu, por estar tão feliz por ter
Natalia como aliada. A mãe de Kimmie tinha-a aconselhado a não fazer
amigos porque estava ali para trabalhar nela própria.
– A miséria adora companhia, e eu não quero que te envolvas nos
problemas dos outros, está bem? – Na altura, o que a mãe disse fazia
sentido, mas agora que Kimmie tinha aprendido mais sobre psicologia,
achava que a mãe estava errada. Na verdade, ouvir os problemas e as
perspetivas dos outros estava a ajudá-la a compreender-se melhor a si
própria.
Quando era patinadora artística de competição, Kimmie não tinha tempo
para se analisar, concentrando-se antes no seu trabalho de pés e na
competição seguinte. Mas quando tudo acabou, ela sentiu um enorme vazio,
com tempo e energia mal geridos. O terapeuta pessoal de Kimmie, o Dr.
Park, disse-lhe que ela precisava de explorar coisas que lhe interessavam.
– Mas como é que eu sei? – perguntou Kimmie. – E se nada me
interessar?
O Dr. Park assegurou-lhe de que a grande luta na adolescência era
descobrir essas coisas por si própria, e não apenas seguir o grupo.
– Confia em mim, vais saber do que gostas quando vires – disse o Dr.
Park. – E não faz mal experimentar coisas novas para ver se gostas, e se ao
fim de algum tempo perceberes que não gostas, também não há problema.
Tu decides quem queres ser, Kimmie.
Kimmie pensou nestas palavras quando se virou para Natalia, depois de a
terapia de grupo ter terminado, e disse:
– Posso ir jantar contigo e com o teu namorado? Eu ofereço e podemos ir
a um sítio muito caro. Tenho o cartão de crédito platina da minha mãe.
– Claro – respondeu Natalia. – Devíamos ir vestidas à putéfias e ser
superarrogantes naquele sítio francês snobe onde o meu namorado lava
pratos.
Natalia mandou uma mensagem ao namorado a dizer que ia sair em
breve e depois foi com Kimmie ao quarto para ela ir buscar a mala. Kimmie
não tinha trazido nenhuma roupa elegante, mas Natalia disse que tinha
algumas peças que lhe podia emprestar.
– Já pensaste em pintar o cabelo? – perguntou Natalia quando Kimmie se
despediu. Há um mês que Kimmie não arranjava o cabelo e tinha raízes
escuras, mas, enquanto em Manhattan era rejeitada por isso, aqui ninguém
parecia importar-se.
– Eu sei, as minhas raízes estão horríveis, não estão? – começou Kimmie,
mas foi interrompida por Natalia.
– Não, desculpa, eu não me estava a meter contigo por causa das tuas
raízes. Estava a perguntar se já pensaste em pintar o cabelo de uma cor
diferente? Já és linda de morrer, mas com um pouco de cor ias ficar sexy à
brava.
Kimmie nunca tinha pensado em pintar o cabelo de outra cor que não
fosse loiro mel para sempre. Mas essa era a antiga Kimmie, uma pessoa que
ela queria desesperadamente enterrar.
– Até gostava. Sabes de alguém que me possa pintar?
– Estás a olhar para ela – gabou-se Natalia. – Mudei de cor de cabelo de
dois em dois meses nos últimos dois anos, por isso sou uma profissional, se
estiveres disposta a isso. Juro que vais adorar.
Kimmie acenou alegremente com a cabeça.
– Sim. Mas eu quero uma coisa radical. A Maya deixou-me em modo
lutadora. – Kimmie não se importava que Natalia nunca tivesse ouvido falar
de Maya Angelou; na verdade, ela achava isso refrescante. Estava farta de
raparigas de colégios privados que fingiam ler a New Yorker pelos artigos e
não apenas pelos cartoons; o que ela adorava em Natalia era ela ser tão real.
O namorado de Natalia estava encostado a um Volvo SUV castanho a
fumar um cigarro quando as duas raparigas saíram do edifício. Havia algo
de familiar na camisola preta com capuz que ele tinha vestida, mas Kimmie
achou que devia ser uma marca popular.
Natalia deu um beijo de língua profundo ao namorado, e Kimmie viu-o
apalpar-lhe o rabo em troca.
– Sou a Kimmie – disse ela, assim que os pombinhos se afastaram para
apanhar ar.
– Fixe – disse o rapaz com um sorriso. – Chama-me Nick.
– Olá, Nick – disse Kimmie, retribuindo o sorriso. – Gostas dos mesmos
carros que o meu pai. – Nick e Natalia riram-se com o comentário dela e,
quando Kimmie perguntou qual era a piada, Natalia disse que também
gozava sempre com o «carro do pai» do Nick.
Natalia tirou um maço de cigarros do blusão de ganga e ofereceu um a
Kimmie. Sem hesitar, Kimmie pegou nele, mesmo sabendo que podia fazer
figura de parva. Por isso, decidindo assumir a verdade, como a sua nova
amiga fazia sempre no grupo, Kimmie anunciou:
– Nunca fumei antes, por isso...
– Não te preocupes. Eu protejo-te. – Natalia entrelaçou o braço no de
Kimmie, algo que Lolly fazia com frequência quando eram mais novas. –
Deixa-me mostrar-te como se fuma como uma durona.
Kimmie não se lembrava de ter desejado tanto uma coisa.

III
Quando Anna chegou a casa dos pais de Alexander depois das aulas, foi
informada pela empregada que a enfermeira privada tinha chegado tarde e
que, por isso, ele estava «indisponível» durante mais meia hora. Anna ficou
irritada por ele não lhe ter enviado uma mensagem, pois sabia que ela tinha
aula de equitação nessa tarde. Sentiu-se envergonhada por estar irritada, e
lembrou-se de que tinha a sorte de ainda poder fazer essas coisas, enquanto
o namorado estava de cama a recuperar de uma fratura na bacia e na perna
esquerda.
Ela disse à empregada para avisar Alexander que voltaria nessa noite,
depois do jantar. Ao sair pela porta da frente, suspirou. As visitas depois do
jantar não tinham fim, o que significava que ela teria de ficar mais tempo.
Durante a última semana, ela tinha-o visitado depois da escola, pois tinha as
desculpas perfeitas das aulas de equitação ou dos planos para o jantar.
– Annie! – gritou Eleanor da porta da entrada. – Onde raio é que vais? –
A mão de Anna estava na maçaneta da porta do carro, mas ela afastou-a e
virou-se.
– Olá, Eleanor – disse ela, mas não fez qualquer movimento para
regressar a casa. – Volto depois do jantar.
– Só porque o Alexander está ocupado não quer dizer que te devas ir
embora – respondeu Eleanor. – Sabes, talvez eu também precise que me
animes um pouco?
Eleanor tinha saído do acidente com um pulso torcido e algumas
lacerações faciais, uma das quais ainda estava tapada com um penso por
ordem do seu cirurgião plástico. Mas, como era Eleanor, continuava a
retirar simpatia do acontecimento traumático. Quando estavam a apenas
oito quilómetros de casa, um veado atravessou-se na estrada e Alexander
travou. Como a estrada estava escorregadia por causa da neve, o carro
derrapou, virou de lado e embateu numa árvore. Eleanor estava a dormir,
por isso não viu o que aconteceu, o que provavelmente explica o facto de
não ter sofrido tantos ferimentos, uma vez que não se protegeu contra o
impacto.
– Tenho aula de equitação. É demasiado tarde para cancelar – disse Anna
rapidamente. – Quando voltar à noite, talvez te vá buscar um gelado, está
bem?
– Que bom para ti – interrompeu Eleanor. – Poderes continuar com a tua
vida, enquanto o meu pobre irmão está acamado e cheio de dores.
Anna já estava a lidar com estes comentários passivo-agressivos de
Eleanor há tempo suficiente.
– Eleanor, se tens alguma coisa para me dizer, gostava de ouvir.
Eleanor nem pestanejou e enfrentou o olhar de Anna.
– Se não fosse por tua causa não teríamos estado na estrada tão tarde. Se
tivesses vindo connosco, não teríamos apanhado a neve.
– A sério? – disse Anna, com frieza. – Corrige-me se estiver enganada,
mas o Alexander disse-me que foste tu quem quis ir a casa da Beatrice
buscar-me porque estavas preocupada com o teu aniversário.
Eleanor ofegou perante a frontalidade de Anna, abriu a boca para
responder, mas voltou a fechá-la, sem saber o que dizer.
– Diz ao Alexander que volto mais tarde para o visitar – disse Anna. – Ou
não digas nada. – Entrou no carro e arrancou, enquanto Eleanor permanecia
no pátio a olhar para ela.
O júbilo de Anna pela sua vitória durou pouco tempo e, quando chegou à
Quinta Staugas, arrependeu-se. Ela sabia que Eleanor se iria queixar a
Alexander e a última coisa de que ele precisava durante a recuperação, que
já o estava a fazer perder seis semanas de aulas, era ter de fazer de árbitro
entre a irmã e a namorada. Ela tinha muita pena dele e, claro, queria ajudá-
lo a recuperar de todas as formas possíveis, como faria com qualquer um
dos seus amigos chegados. Mas Alexander não era apenas um amigo, era o
namorado dela. E ela era a namorada dele.
Namorada, pensou Anna. Continuo a ser namorada dele, mesmo que já
não o sinta.
A manhã em que Beatrice a acordou com a notícia do acidente de viação
de Alexander foi uma confusão total. Vronsky quis acompanhá-la ao
hospital, mas ela recusou. Em vez disso, acordou Steven. Lolly, que estava
demasiado ressacada para ir a qualquer lado, ficou para trás e Vronsky deu-
lhe boleia de volta à cidade. Anna e Steven conduziram de regresso a
Greenwich em silêncio, mas quando Steven viu vestígios do acidente na
estrada, uma árvore destruída e marcas de pneus na lama, disse o que ambos
estavam a pensar:
– É assim que os acidentes acontecem... quando as pessoas vão para onde
não devem.
Anna não reagiu na altura, mas partilhava do sentimento do irmão. Olhou
para as mãos no colo, as mesmas mãos que tinham percorrido as madeixas
douradas de Vronsky apenas algumas horas antes. Pensou em dizer ao
irmão que tinha decidido seguir o seu conselho e acabar com Alexander,
mas não via razão para isso. A mãe garantiu-lhe que Alexander e Eleanor
iam ficar bem, mas Alexander ia ser operado assim que o melhor cirurgião
de Yale chegasse para tratar do seu paciente VIP. Anna sabia que os seus
planos para acabar com Alexander teriam de ser adiados indefinidamente,
até que ela tivesse mais informações, não havia alternativa.
Sentia-se estranha em relação ao seu papel no acidente, porque Alexander
e Eleanor nunca teriam estado na estrada àquela hora se não fosse ela,
embora Anna se sentisse reconfortada por ter sido Eleanor a pressionar
Alexander para a ir buscar naquela noite de neve. Embora se absolvesse
dessa culpa em particular, não conseguia perdoar-se tão facilmente pelo que
acontecera entre ela e Vronsky. Chamar-lhe um beijo inofensivo seria como
chamar ao Titanic um acidente de barco.
Vronsky, ainda de kilt vestido, tinha levado a mala de Anna para o
Escalade. Steven não perguntou porque é que Vronsky se tinha levantado
tão cedo. Entrou no carro e programou o GPS para os guiar até ao Hospital
Greenwich.
– Por favor, manda-me uma mensagem mais tarde, está bem? – pediu-lhe
Vronsky suavemente.
Ela só conseguiu acenar com a cabeça, com medo de começar a chorar.
E não queria chorar porque não saberia porquê. As lágrimas eram por
Alexander ou por ela, porque tudo se tinha tornado infinitamente mais
complicado? No entanto, abraçou Vronsky em jeito de despedida, e deu-lhe
um beijo rápido no pescoço antes de se afastar. Não queria fazer a Vronsky
o que tinha feito a Alexander na noite anterior, ou seja, deixá-lo partir –
embora desta vez fosse ela a ir embora – sem que ele soubesse qual era a
sua posição em relação a ela. Podia não ter dito as palavras em voz alta,
mas estava apaixonada por Vronsky e não havia volta a dar.
Quando chegaram ao hospital, Alexander já estava a ser operado, por isso
Anna, Steven, a mãe deles e o pai de Alexander sentaram-se juntos na sala
de espera. Eleanor já tinha tido alta das urgências e estava com a mãe no
Hospital Lenox Hill, onde o cirurgião plástico, que tratara do aumento do
queixo da mãe, trabalhava para se certificar de que os cinco cortes que
Eleanor sofrera eram suturados para minimizar qualquer cicatriz. Depois de
Anna e Steven contarem a sua versão dos acontecimentos da noite anterior,
todos se sentaram e olharam para os telemóveis.
Durante esse tempo, Anna recebeu uma notificação de que um novo
jogador, HeavyV, queria começar um jogo de Words with Friends com ela.
Quase recusou o convite, mas houve alguma coisa no timing do pedido que
a fez hesitar, por isso aceitou. Quando abriu a aplicação, sorriu pela
primeira vez desde que saíra da casa de Beatrice. Olhou para a palavra com
três letras, «NÓS», que ele tinha escolhido e viu que havia uma mensagem:
EU + TU = NÓS. Anna enviou-lhe uma mensagem de volta: EU-TU = :(
Agora, semanas depois daquele momento no hospital, Anna chegou aos
estábulos e começou a espairecer a cabeça, depois do confronto com
Eleanor. Tocou na aplicação WWF, e selecionou o único jogo que tinha em
curso. Sem sequer olhar para o tabuleiro – que se tinha transformado num
cruzamento de palavras de baixa pontuação: NÓS, TU, AMOR, EU, SEXY
–, foi diretamente para as mensagens. Mas, antes de ter escrito duas
palavras, bateram-lhe à janela. Assustada, viu Vronsky a sorrir-lhe através
da janela.

IV
Vronsky e Murf ficaram nos estábulos enquanto Anna montava Marco
António, mas de vez em quando ele consultava o telemóvel para ver as
horas.
– Talvez devesses praticar um pouco – disse Murf. – Ou és
suficientemente convencido para achar que andar a cavalo é como andar de
bicicleta? As bicicletas não conseguem sentir a energia nervosa e, agora a
sério, todos os cavalos estão a ficar irritados com o teu nervosismo.
– Está bem, está bem – respondeu Vronsky, tentando parecer casual, mas
falhando. – A Beatrice prometeu-me que o Bunny Hop é o mais calmo dos
cavalos da mãe dela, por isso vou ficar bem.
– É bom que fiques, porque a última coisa de que aquela rapariga precisa
é de andar por aí a tomar conta do teu rabo magricela, também. – Murf saiu
do estábulo para o sol da tarde, e esperou que o seu amigo o seguisse.
Enquanto os dois caminhavam para o estábulo seguinte, onde a mãe de
Beatrice guardava os cavalos, Murf assobiou uma melodia que Vronsky não
conseguiu identificar.
– Que música é essa? – perguntou ele. – Parece demasiado animada para
os teus gostos.
Murf abanou a cabeça envergonhado e depois admitiu que era o novo
single dos LiviX2. Daler e Rowney tinham-lhe oferecido no iTunes, e ele
ficou surpreendido por gostar tanto da música.
– Quando perguntei ao senhor Staugas se podia tirar férias na primavera
para ir ao Coachella, ele fingiu estar a ter um ataque cardíaco e depois riu-
se às gargalhadas quando eu estava prestes a ligar para o 112. Em todos os
anos que aqui trabalhei, nunca pedi dias de folga.
– Ele disse que sim? – perguntou Vronsky, feliz por ouvir falar da vida
amorosa menos complicada de outra pessoa.
– Não só disse que sim, como ainda acrescentou que queria pagar o meu
bilhete de avião. É difícil ver um negro a corar, mas eu corei quando lhe
disse que não era preciso, porque eu ia num avião privado. Tu também
vens, certo?
– Ainda não sei – respondeu Vronsky. Ele queria juntar-se a eles, mas não
ia de maneira nenhuma, a não ser que, por milagre, Anna também pudesse
ir.
– Olha, eu sei que é insensível dar um pontapé num cão quando ele está
no chão com a pélvis partida – disse Murf. – Mas toda esta espera até ele
ficar melhor é uma treta. Ele não vai ficar bem de qualquer maneira, por
isso se ela lhe desse um pontapé no rabo agora pelo menos ele teria
Percocet para aliviar a dor.
Vronsky não respondeu, porque não queria dizer mal de Anna, embora
tivesse a mesma opinião de Murf. De cada vez que tentava falar de
Alexander com Anna, ela irritava-se e recusava-se a discutir o assunto com
ele. Hoje em dia, mal a via, embora trocassem mensagens de texto todos os
dias, por isso não ia desperdiçar os preciosos minutos que tinha com ela a
falar do falhado do seu namorado. O facto de estar a montar um cavalo para
poder passar algum tempo sozinho com ela mostrava até onde estava
disposto a ir.
Montar a cavalo era muito mais assustador do que andar de bicicleta,
porque se estava bem no alto. Bunny Hop era uma égua com seis anos, mas
sabia reconhecer um cavaleiro inexperiente. Vronsky recorreu à sua voz
mais tranquilizadora, a que costumava usar para seduzir as raparigas e
convencê-las a irem com ele para casa, mas Bunny Hop não estava a gostar
nada disso. Ele não conseguia fazer com que ela fosse mais depressa, por
isso, quando chegou à macieira onde tinham combinado encontrar-se, Anna
já tinha dado duas maçãs a Marco António e comido uma. Assim que
chegou, desmontou da Bunny Hop antes que ela parasse completamente,
pegou no rosto de Anna e beijou-a.
– Sabes a maçã – murmurou ele.
Ela riu-se e afastou-o, e passou-lhe uma maçã que ele pegou com
gratidão e mordeu com um estalido.
– Isso não é para ti – disse Anna, apontando para a égua dele. – É para
ela. – Tirou-lhe a maçã das mãos e deu-a a Bunny Hop. A égua mastigou-a
com prazer e depois encostou o focinho gigante à bochecha de Anna.
Anna e Vronsky estiveram exatamente vinte e três minutos juntos
debaixo da macieira, e quando se sentaram após o minuto vinte e dois,
estavam ambos sem fôlego e mais excitados do que uma manada de
antílopes. Anna nunca tinha sido beijada como Vronsky a beijou, e ela
própria nunca tinha desejado tanto beijar alguém. Ela tinha dito que iria
visitar Alexander mais tarde, mas quando se levantou e limpou a sujidade
do rabo, já havia mudado de ideias. Talvez fosse a altura de deixar de pôr as
necessidades de todos à frente das suas.
– Quero ver-te esta noite, mas não podemos ter-te a ti e a essa mota a
rugir pela vizinhança. O Murf pode levar-te a algum lado? – perguntou ela.
– Ou podes levar a carrinha dele emprestada?
– Estás a pensar em quê? – perguntou Vronsky, sem se atrever a ter
esperanças demasiado cedo.
– A minha mãe voltou para a cidade e eu tenho a casa só para mim esta
noite, por isso talvez possas passar por lá mais tarde quando escurecer? –
Vronsky concordou logo e prometeu ser discreto. Deixou que Anna
regressasse primeiro ao estábulo, não tirando os olhos dela até ela e Marco
António serem apenas uma pequena mancha a galopar ao longe.

V
A combinação de Percocet com o relaxante muscular Soma é conhecida
nas ruas como o cocktail de Las Vegas. Alexander sabia disto porque não
era fã de tomar qualquer medicamento sujeito a receita médica – exceto
Adderall, claro – e foi fazer uma pesquisa online sobre os inúmeros
comprimidos que lhe foram receitados após a cirurgia. Descobriu que o
cocktail farmacêutico recomendado pelo seu cirurgião era bastante popular.
Detestava admiti-lo, mas estava a gostar dele. Talvez até demais. Fazia-o
esquecer-se de estar a ficar para trás nos estudos, de ter uma perna partida e
de poder vir a coxear para sempre, de a sua namorada estar mal-humorada e
distante e, o mais importante neste momento, mantinha-o calmo durante o
seu décimo sétimo jogo de Scrabble com Eleanor.
– T-O-M-M-O-U, pontuação de seis letras... então isso dá... – Eleanor fez
uma pausa e contou a sua pontuação com os dedos.
– Não se escreve com dois Ms, Eleanor.
– Escreve-se sim. O Senhor deu, e o Senhor tomou. Jó 1:20. São vinte e
um pontos para a Eli-doce! Ooooh, estou a ganhar agora.
Se Alexander não estivesse a flutuar num rio preguiçoso de opiáceos, ele
tê-la-ia contestado, mas em vez disso ele apenas disse:
– Se tu o dizes. – Reorganizou as suas próprias letras, estudando-as.
Reparou que podia soletrar Anna se quisesse, embora, claro, os nomes
próprios não fossem permitidos, mas se Eleanor fazia batota, ele também
podia, certo? Alexander ligou dois Ns e o A à última palavra que tinha
jogado, ENGANAR.
– Bah. Não tem piada. – Eleanor começou imediatamente a apanhar as
suas pedras para lhe entregar.
– Para! Se tu podes quebrar as regras, eu também posso – disse num tom
choramingas que lhe soou estranho aos ouvidos.
– O que quer que seja que te deu, não me agrada – disse Eleanor num
tom de voz que parecia o da mãe dela. Mas voltou a pôr as pedras dele no
tabuleiro.
– Ela vai voltar? – perguntou ele.
– Quem?
– A Anna.
Eleanor suspirou.
– Não a tens achado estranha ultimamente? É como se ela fosse uma
pessoa totalmente diferente.
– Por favor, não comeces com isso outra vez.
– Só estou a dizer que, se eu fosse tua namorada, nunca, mas nunca,
sairia do teu lado quando estás assim indefeso – disse Eleanor.
– Eu não diria que estou propriamente indefeso.
– Sabes o que quero dizer! Isto foi por causa dela! Foi ela que fez isto.
A tua pobre perna, a minha cara!
– O teu médico disse que não vais ficar com cicatrizes visíveis.
– Mas eu vejo-as. Eu vou saber sempre onde elas estão. Ela podia ter-nos
matado aos dois.
– Está a exagerar. Além disso, a Anna não estava a conduzir o carro.
Atropelámos um veado numa noite de neve. Foi um acidente.
– Foi? Porque é que ela não se veio embora connosco? E aquele tipo
louro com quem ela estava a dançar? Não finjas que não os viste. Eu pensei
que ele era gay por ser tão bonito, mas um dos meus amigos disse-me que
ele não só não é nada gay, como é um fodilhão bastante conhecido na
cidade.
– Eleanor! – Alexander achava que nunca tinha ouvido Eleanor dizer um
palavrão antes, e havia algo tão cómico em ouvir a sua irmãzinha beata a
dizer a palavra fodilhão que ele se desatou a rir. Era absurdo. Tudo era
absurdo. A raiva de Eleanor. Ele quase ter perdido o baço. Sempre que
fechava os olhos, ainda conseguia ver a imagem assombrosa de um veado a
sair do bosque e a correr para a estrada. O brilho das suas pupilas sob a luz
dos faróis e os olhos da pobre criatura a arregalarem-se tanto de medo que,
por um momento, ele sentiu que eram um portal para outra dimensão, como
um túnel que ele podia atravessar. Ainda se lembrava do estalido, embora o
médico dissesse que talvez fosse o som da sua perna a partir-se, e não o som
da morte de um animal inocente.
Anna costumava fazer-lhe lembrar um veado inocente, com os seus
grandes olhos e a sua expressão doce. Mas não ultimamente. O que Eleanor
estava a dizer não era mentira, embora ele se recusasse a admiti-lo. Anna
andava irritável e distante, as suas visitas eram superficiais e queria sempre
ler para ele em vez de conversarem. Embora, em defesa dela, ele não fosse
capaz de manter uma conversa interessante sob o efeito dos analgésicos, e a
parte mais excitante do seu dia era quando Jimela lhe trazia uma gelatina de
lima.
– Preciso de dormir, Eleanor. Podes acordar-me quando ela chegar?
A Jimela disse que a Anna voltava mais tarde.
– Fui eu que disse isso – retorquiu Eleanor. – Porque foi o que a Anna me
disse há bocado. Ela disse que ia trazer um gelado para mim. Achas que se
vai lembrar?
– Sim, acho – respondeu Alexander suavemente. – Tens de deixar de
estar zangada com ela, Eleanor. Pensa em todas as coisas maravilhosas que
a Anna fez por ti no passado; não estás sempre a dizer que foi ela que te
ofereceu todas as tuas bandoletes preferidas?
– Ninguém está a pôr em causa o seu bom gosto. Olha, eu percebo. Ela é
linda e perfeita e blá, blá, blá, mas tem de se comportar bem contigo. Tem
de perceber a sorte que tem em estar contigo, só isso. Por favor, odeio
quando estás zangado comigo. Prometo que, quando ela vier cá esta noite,
eu a perdoo e podemos ultrapassar isto, está bem?
– Isso é muito nobre da tua parte. – Alexander disse aquilo em tom de
brincadeira, mas sabia que Eleanor ia levar a sério, pois ela não tinha
sentido de humor.
– Acho que já não temos o chantilly de que gosto. Achas que mande uma
mensagem à Anna e pedir-lhe para me ir buscar? Ou talvez a Jimela possa ir
lá fora comprar para mim?
– Acho que a Jimela já tem trabalho suficiente. Talvez devesses sair e ir
comprar o teu próprio chantilly?
– Estás a ver? – gritou Eleanor. – É mesmo isto que eu quero dizer. És tão
bom, Alexander. Claro que eu própria devia ir comprar. – Ela aproximou-se
e ajustou a camisola de caxemira que o cobria e inclinou-se, dando-lhe um
beijo na cara. Ele odiava quando ela fazia aquilo. Fazia o mesmo em
público, pequenos beijos de olá e de adeus. Também o fazia à frente dos
amigos dele que gozavam com ele e o chamavam Jaime Lannister.
Enquanto Eleanor se afastava, o cheiro do seu perfume de baunilha fê-lo
engasgar-se ligeiramente, ou seria o cocktail de Las Vegas que lhe fazia
sentir o estômago como um buraco oco?

VI
Vronsky estacionou a carrinha de Murf com o logótipo da quinta ao lado
da casa, em vez de a deixar na entrada. Ainda era visível, mas parecia um
veículo de trabalho, por isso podia ser que os vizinhos não achassem
estranho. E não conseguiam ver a entrada longa, protegida por muros, que
dava acesso à casa. Vronsky não saiu logo da carrinha, e deu um momento a
si próprio. Murf não tinha ficado propriamente entusiasmado por emprestar
a carrinha nova, ainda que em segunda mão, a alguém sem carta de
condução, mas Vronsky continuou a aumentar o valor que lhe pagaria até
Murf ceder, não sem antes o chamar de miúdo branco, rico e privilegiado
que não tinha noção do mundo real e concordar em alugar-lhe a carrinha
por uma nota de cem.
Vronsky pensou no charro de emergência que Murf tinha escondido na
caixa do CD The Chronic, de Dr. Dre, guardada no porta-luvas da carrinha,
e pensou se não seria melhor dar uma passa para acalmar os nervos. Tinha
estado à espera de receber uma mensagem de Anna a dizer que tinha
mudado de ideias e que era melhor ele não vir, mas não chegou nenhuma
mensagem. Abriu a aplicação Words with Friends, e olhou para as suas
letras. Podia jogar a palavra HERÓI, com o H num quadrado de pontuação
dupla.
Que herói que eu sou, pensou para si próprio. Demasiado cobarde para
sair da carrinha.
Ao longo do seu passado sexual, e a lista era longa e impressionante para
alguém da sua idade, nunca se tinha sentido tão nervoso. Claro que já tinha
estado demasiado excitado, mas um adolescente a atravessar a puberdade
fica excitado com quase tudo.
Ele e Anna nunca tinham contado um ao outro as suas experiências
sexuais, embora ela o tivesse provocado sobre todas as suas conquistas
passadas em mais do que uma ocasião. Ela fazia-o por insegurança,
provavelmente porque só tinha estado com um homem. Mas ele nunca tinha
estado apaixonado antes por nenhuma das raparigas com quem tinha ido
para a cama, e agora que sabia o que era o amor, todos os seus engates
anteriores eram completamente insignificantes.
Anna tinha visto a carrinha a descer a estrada, mas ele ainda não tinha
entrado em casa. Tinha deixado a porta da sala de estar destrancada, como
dissera que faria. Estava sozinha, o que era raro, porque Magda e o marido
viviam numa pequena casa na propriedade e, quando o marido estava fora
da cidade, Magda dormia num quarto ao lado da cozinha. Fazia-o por Anna,
ou pelo menos era o que dizia, mas Anna sabia que era Magda quem tinha
medo de estar sozinha à noite. Anna nunca se preocupava, pois tinha a
Gemma e o Jon Snow. Não havia qualquer hipótese de alguém que eles não
conhecessem conseguir passar pelos cento e cinquenta quilos de terra-nova
a vir na direção deles de ambos os lados.
Nem passou pela cabeça de Anna que Vronsky podia estar nervoso e
sentado na carrinha de Murf, demasiado assustado para entrar. Se alguém
devia estar nervosa, era ela. O que é que eu estou a fazer? Porque é que o
convidei para vir cá?
Ela fez estas perguntas a si própria para salvar o seu orgulho, porque o
seu «eu» secreto sabia muito bem porque é que lhe tinha pedido para ele ir.
A casa estava vazia, e ela nunca tinha desejado nada como desejava
Vronsky.
Nas últimas semanas, ela andava sempre irritada, como se tivesse a pele
demasiado apertada. Estava sensível ao mais pequeno toque, e notava cada
textura em que tocava, que lhe provocava novas sensações que nunca tinha
experimentado: a forma como as roupas lhe caíam sobre o corpo, ou como
os lençóis de algodão egípcio lhe davam uma sensação suave e fresca à
pele. Ultimamente, tomava duches longos na esperança de que a água
quente a acalmasse. Mas nada estava a resultar. Quando fechava os olhos,
só conseguia imaginar o rosto dele, e conseguia evocar o cheiro de Vronsky
sem qualquer esforço. Quando Vronsky a beijava, tudo o que ela queria era
afundar-se no chão com ele. Ainda hoje, na quinta, quando estavam a curtir,
a camisa dela tinha-se desapertado e quando ele enfiou a mão por baixo e
ela sentiu as mãos dele na sua pele nua, teve de morder o lábio para não
gemer.
Foi então que ela decidiu que precisava de o ver. Se não passasse mais
tempo com ele, enlouqueceria. Não se conseguia concentrar nas aulas.
Distraía-se em casa. Esta manhã, tinha deitado sumo de toranja nos cereais,
a achar que era leite.
Anna sabia que o que estava a fazer era errado. Alexander ainda era o seu
namorado, mas, de alguma forma, ela já não se importava. Se não tivesse
sido o acidente de carro, ela já teria acabado com ele, e estaria livre para
amar Vronsky e para ser amada por ele.
Os cães estavam a ladrar, a uivar de excitação e a correr pelo chão de
mármore escorregadio do hall de entrada. Ela perguntava-se se deveria ir
salvá-lo dos seus beijos babosos. Não, seria um bom treino para ele. Os
cães eram uma brincadeira de crianças em comparação com o que ela
planeava fazer-lhe. Ela queria comê-lo como se fosse uma taça de gelado.
Queria pôr-lhe os dedos na boca e obrigá-lo a chupar-lhe as pontas. Queria
metê-lo na sua cama de infância e assustar todos os monstros que se
escondiam debaixo dela. Um terramoto, pensariam eles. O fim do mundo,
pensariam eles. Era isso que ela mais queria, ser barulhenta, descontrolada,
sem ninguém em casa. Anna estava farta de ser silenciosa, educada e
recatada.
Ela não o ouvia a subir as escadas, mas sabia que ele vinha aí, porque os
cães estavam a subir os degraus a galope. Olhou para cima e ele estava à
porta. Havia algum nervosismo nele? Se havia, desapareceu num instante.
Ele atravessou o quarto e juntou-se a ela na cama. Os beijos dele eram
como oxigénio para Anna, como se tivesse estado a suster a respiração
sempre que estavam separados, e agora que ele estava ali, ela pudesse por
fim respirar e absorver o máximo dele.
O roupão caiu para o chão numa questão de segundos, o sutiã foi
esquecido, as cuecas mantidas como uma mera formalidade. Ela riu-se,
tentando desabotoar os pequenos botões da camisa dele e beijando-o com
avidez. Ele cheirava tão bem, uma mistura de lilás selvagem e madeira
acabada de cortar. Ela podia dizer que ele estava duro, podia senti-lo a
pressionar contra ela. Ela queria vê-lo por inteiro, queria saborear cada
centímetro dele.
Com receio de se vir cedo demais por causa do corpo nu dela a roçar-se
no seu, ele sabia que tinha de abrandar o ritmo.
– Anna… Anna – murmurou enquanto ela lhe desapertava o cinto.
Agarrou nas mãos dela para a deter, e ela olhou para ele, com olhos
selvagens, animalescos, e então percebeu. Ele era a presa. Era o peixe que
tinha visto o objeto brilhante a cintilar na água, e ela tinha-o atingido no
coração com tal precisão que, quando ele subiu à superfície, sentiu-se como
se estivesse a ser levantado pelas mãos de Deus… olha para mim, eu
consigo voar!
Ela tinha-o na boca, e ele agarrou-se ao edredão, como se este o pudesse
salvar. Mas era demasiado tarde para ele, tinha caído no precipício como
um gato dos desenhos animados, agarrado a um malmequer, a que ia
arrancando as pétalas uma a uma. Mal-me-quer, bem-me-quer, muito, pouco
ou nada? Eu amo-a, amá-la-ei para sempre...
Agora ela estava por cima dele, com o rosto próximo do de Vronsky. Ao
baixar-se lentamente sobre ele, olhou-o fixamente nos olhos, e ele podia
dizer que ela também estava perdida em êxtase. Agora que ele estava
completamente dentro dela, ela parou por um momento, esta bela e
misteriosa criatura que o tinha apanhado, e ele sabia que no segundo em
que ela começasse de novo, ele iria explodir.
Num movimento rápido, virou-a de costas, empurrou as ancas para a
frente, e ela gemeu o nome dele.
– Alexia!
Aquilo foi a sua ruína, ouvir o nome nos lábios dela. Ele penetrou-a de
novo, uma e outra vez, e ela gritou bem alto quando ele os levou ao limite,
gritando o seu nome.
– Anna!
Se era isto que significava ser a presa, então ele queria morrer preso nos
dentes e nas garras dela vezes sem conta. Vronsky saiu de cima dela e olhou
para o teto, com pequenos pontos brilhantes a brilhar nos olhos como se
tivesse acabado de olhar diretamente para o sol.
– Alexia… – sussurrou ela, e virou-se de lado para o poder observar, com
as mãos a acariciar os pelos louros que lhe subiam pela barriga.
Ele virou-se de lado para que ficassem de frente um para o outro. As
palavras já não importavam; nada importava, exceto eles estarem agora a
apreciar a magia da sua primeira vez. Ele tocou-lhe no rosto e beijou-a,
porque isso era a única coisa que conseguia fazer.
Ela adorava a forma como ele a beijava, a sua fome sempre presente, e
sentia a mesma fome quando o beijava de volta, como se não fizesse ideia
de qual dos dois estava a devorar o outro, tão igual era a paixão que
sentiam. Ela já tinha feito sexo antes, mas não assim. Ela nem sequer sabia
de onde lhe vinha a ousadia quando subiu para cima dele, o desejo a latejar.
Era a forma mais pura de luxúria que alguma vez sentira, e a onda que se
seguiu quando ele a virou e penetrou, libertando tudo o que ela alguma vez
tinha retido, foi como um maremoto que dividiu a sua vida em dois
períodos de tempo separados, A.V. (Antes de Vronsky) e D.V. (Depois de
Vronsky).
E depois ele voltou a agarrá-la.
VII
Dustin queria ir ao Arizona com o pai e ajudá-lo a trazer Nicholas de
volta, mas este disse-lhe que não. Não havia maneira de Dustin faltar às
aulas sem que a mãe descobrisse do desaparecimento de Nicholas, que eles
tinham conseguido manter em segredo.
– Mas se conduzirmos a meias, podemos guiar toda a noite e regressar
em dois dias – disse Dustin. – É o meu último ano. Posso compensar
facilmente.
– Eu não vou regressar de carro. Vou apanhar um avião para voltar para
casa com ele – disse Jason, apesar de não fazer ideia se conseguiria
convencer o filho mais velho a regressar a casa. – Posso enviar o carro de
volta.
Dustin não insistiu mais, porque era óbvio que o pai já estava decidido.
Ele tinha-se fartado de telefonar e de enviar mensagens a Nicholas, mas
nunca obteve resposta. Estava preocupado, mas esperava que o silêncio do
irmão significasse que tinha encontrado a rapariga, Natalia, em vez do seu
outro amor, a heroína.
Dustin também estava aliviado por não ter de deixar Steven desamparado
com os trabalhos de casa. Atualmente, Dustin dava-lhe explicações todos os
dias, porque os exames estavam a aproximar-se rapidamente. Lolly juntava-
se a eles muitas vezes, mas nunca falava de Kimmie, provavelmente porque
Steven lhe tinha dito para não o fazer. Ele ainda pensava nela, embora
desejasse não o fazer. A dor da rejeição doía menos com o passar do tempo,
mas quando Kimmie lhe vinha à cabeça, ele ainda sentia um vazio dentro
de si, como se a sua paixão fosse alimentada por coelhos que escavaram
uma toca dentro dele e fugiram, deixando para trás um abrigo abandonado
onde outrora o seu coração palpitava por ela. Ele tentou compor poesia e
escrever um diário para a tirar da cabeça, mas até agora não estava a
funcionar.
Soltou um grande suspiro, ao ouvir o som de lápis a rabiscar e de páginas
a virar, mas nem Steven nem Lolly pareceram notar. Dustin estava a fazer
os seus trabalhos de casa e tinha acabado de ler o mesmo parágrafo de
O Monte dos Vendavais três vezes. Porque é que quando ele se preocupava
com o irmão, Kimmie lhe vinha sempre à cabeça?
– Lolly, posso perguntar-te uma coisa? – A voz de Dustin soou-lhe
estranha na grande sala de jantar do apartamento de Steven. – Não tem
importância, esquece.
Lolly pousou o lápis, tirou o elástico do cabelo, e voltou a atar o rabo-de-
cavalo. Ela tinha chegado há vinte minutos de uma aula de SoulCycle, e as
bochechas só agora estavam a perder o tom rosado.
– Pergunta lá, Dustin.
Ele abanou a cabeça, já arrependido de abrir a lata de vermes que tinha
querido manter fechada.
– Como está a tua irmã? – perguntou ele, incapaz de dizer o nome dela. –
Da última vez que soube dela, estava doente. Está melhor?
Steven levantou-se abruptamente.
– Tenho fome... quem quer lanchar?
Ele viu Lolly e Dustin levantarem as mãos sem olharem para ele, pois
estavam concentrados um no outro. Steven sabia que Dustin não ia gostar
do que ia ouvir, e não queria estar lá quando Lolly lhe contasse tudo. Steven
tinha por fim encontrado um pouco de paz nos últimos dias, depois do
drama do Dia dos Namorados e da confusão com o acidente de carro do
namorado de Anna, por isso saiu em busca de comida reconfortante.
– A Kimmie tem estado fora, Dustin – disse Lolly. – A minha mãe levou-
a para um centro de bem-estar no Arizona. Eu pensei que elas iam fazer
uma viagem para ir a um spa, porque ela estava tão... em baixo. Mas depois
a minha mãe voltou sozinha e contou-me que a Kimmie estava num
programa para obter ajuda.
Dustin acenou com a cabeça, embora não percebesse bem do que Lolly
estava a falar. Ele estava confuso, preocupado, e a amaldiçoar-se por ter
deixado a sua curiosidade levar a melhor sobre ele.
– Que tipo de programa? – perguntou ele. – Claro que não é da minha
conta, por isso, se não me quiseres dizer, tudo bem.
– A minha mãe disse que a Kimmie está deprimida. O meu pai não lhe
quis dar medicação, por isso este programa é bastante intensivo, acho eu.
Sinceramente, não sei. A minha mãe disse-me que a Kimmie não quer saber
nada do que se passa, por isso, quando falo com ela, só conversamos de
como ela se sente. Falei com ela ontem e ela pareceu-me melhor. Mais
forte. – Lolly estava a dizer a verdade, porque Kimmie tinha soado mais
confiante e segura ao telefone, mas continuava a parecer-lhe estranha.
Kimmie disse a Lolly que tinha pintado o cabelo de roxo, mas que não
podia enviar uma foto porque não tinha permissão para ter telemóvel. Lolly
ficou chocada ao ouvir isso, mas a mãe disse-lhe para ser positiva quando
falasse com a irmã mais nova, por isso disse: «Isso parece espetacular,
Kimmie. Tenho a certeza de que te fica muito bem.»
Kimmie contou-lhe que tinha conhecido uma rapariga na terapia de
grupo, e que as duas se tinham tornado amigas. Ela também lhe disse para
não contar nada à mãe, porque Danielle não ia aceitar muito bem a notícia
de que a filha mais nova estava a sair com uma ex-agarrada. A outra coisa
que Lolly reparou foi que havia um tom duro na voz de Kimmie, e que ela
usava frases polvilhadas com a linguagem da terapia. Empoderamento.
Vitimização. Autoestradas emocionais. Honestamente, tudo aquilo soava
disparatado a Lolly, por isso ela manteve um refrão constante de adjetivos
positivos, a desejar ansiosamente poder desligar o telefone. O mais
perturbador foi quando Kimmie disse que tencionava confrontar Vronsky
pelo que lhe tinha feito.
– Ele tem de assumir a responsabilidade pelos seus atos, e eu não vou
deixar de sofrer enquanto ele não me pedir as desculpas que mereço.
Nada do que Kimmie estava a dizer fazia sentido. Sim, Vronsky era
culpado por a ter seduzido e dado com os pés, mas ele não tinha
propriamente obrigado Kimmie a fazer sexo. Foi ela que lhe mentiu e fingiu
que não era virgem, por isso como é que o podia culpar por ser insensível
quando ela era tão insegura? Tudo aquilo deixou Lolly desconfortável, mas
ela não podia dizer o que pensava. Talvez aquela raiva fizesse parte do
processo da terapia de Kimmie, um dos estágios por que tinha de passar.
Aquela rapariga ao telefone não se parecia nada com a sua irmã mais nova,
e isso deixou-a triste.
– Estou preocupada com ela, Dustin – disse Lolly, com a voz a tremer. –
Espero que os médicos saibam o que estão a fazer.
– Sinto muito, Lolly – disse Dustin, num murmúrio. – Não fazia ideia de
que estavas a lidar com tudo isso. E lamento que a Kimmie esteja a passar
um mau bocado.
– Queres que lhe diga que perguntaste por ela? – perguntou Lolly. –
Quando falar com ela da próxima vez?
Dustin detestou-se pela sua frieza, mas precisava de se manter em modo
de sobrevivência quando se tratava de Kimmie. Ele já sabia mais acerca
dela do que pretendia. Abanou a cabeça.
– Não, por favor, não o faças. Estou a tentar esquecê-la. Já segui em
frente.
Lolly sabia que ele estava a mentir a si mesmo, e incapaz de se controlar,
decidiu que estava na hora de dizer a verdade a Dustin.
– Sei que aconteceu alguma coisa entre vocês na noite da festa da Jaylen,
mas a Kimmie nunca me contou o que foi.
– Não foi nada. Eu convidei-a para sair e ela disse que não – respondeu
Dustin, num tom mais duro do que pretendia. – Ela escolheu o Vronsky.
Fim da história.
– Dustin, vá lá. Não sejas assim. É verdade, na altura ela estava
completamente apanhada pelo Vronsky, mas ele não estava interessado
nela. Não aconteceu nada entre eles naquela noite. – Lolly não estava
propriamente a mentir, porque não tinha acontecido nada entre Vronsky e
Kimmie na noite da festa. O infeliz encontro deles foi na semana anterior e
não era da conta de Dustin.
– Ela disse que estava apaixonada por ele – replicou Dustin. – Isso
parece-me alguma coisa. Por favor, Lolly, não quero falar sobre isso. Não
posso ir por aí.
– Só vou dizer mais uma coisa e depois prometo que esta conversa acaba,
está bem? Por favor?
Ele suspirou e acenou com a cabeça, pois sabia que merecia isto, uma vez
que tinha sido ele a falar no assunto.
– A Kimmie é muito nova e, por causa da patinagem artística, era muito
mais ingénua do que a maioria das raparigas da idade dela. Ela não sabia do
que estava a falar quando disse que o amava. Ela tinha uma paixoneta.
O amor não é um interrutor que se pode ligar e desligar. Não é justo da tua
parte usar a inexperiência dela contra ela. És demasiado inteligente para
isso. Vá lá, eu sei que ela tem uma grande estima por ti, por isso talvez se a
voltasses a ver...
Dustin levantou-se tão abruptamente que a cadeira voou para trás e bateu
no chão com um estrondo, o que fez com que Steven voltasse a correr para
a sala. Dustin esforçou-se por pegar na cadeira e depois começou
imediatamente a guardar os livros na mochila. Precisava de se ir embora.
Sentiu que não havia oxigénio suficiente na sala. Precisava de apanhar ar.
– Desculpem, malta – murmurou. – Steven, tenho de ir. Manda-me uma
mensagem se precisares que eu reveja alguma coisa para ti. Lolly, sei que
tens boas intenções e desculpa estar a agir como um bebé, mas não posso
voltar a falar com a tua irmã. Espero que ela se sinta melhor e, claro, só lhe
desejo o melhor.
Dustin saiu pela porta a correr e teve um ligeiro ataque de pânico no
elevador. Usou o inalador que trazia sempre consigo, pela primeira vez em
meses. Deu duas grandes baforadas, o que o ajudou a recuperar o fôlego,
mas não fez nada pelo seu coração, que doía pela rapariga que amava e que
não o tinha amado de volta.

VIII
Tinham passado quinze dias desde que Kimmie chorara pela última vez e
ela sentia que merecia alguma coisa para comemorar a ocasião, tal como
Natalia recebera a sua ficha laranja de trinta dias dos Narcóticos Anónimos,
e tal como o namorado, Nick, tinha um medalhão vermelho de noventa dias
que guardava no porta-chaves. Desde a sua primeira saída, há pouco mais
de uma semana, os três tinham-se visto quase todos os dias. Kimmie e
Natalia criaram uma ligação nessa primeira noite com as suas refeições
italianas requintadas, depois de o namorado as ter impedido de comer no
Raoul’s, onde ele trabalhava. Nick disse que gostava de manter as diferentes
partes da sua vida separadas e achou que aparecer como cliente iria enviar
uma mensagem estranha aos tipos com quem trabalhava.
Depois do jantar, cumprindo com a sua palavra, Natalia passou as duas
horas seguintes a pintar o longo cabelo louro de Kimmie de um roxo
elétrico que se transformou em lavanda nas pontas. Kimmie adorou o seu
novo cabelo e disse a Natalia que também queria fazer uma tatuagem.
Natalia respondeu que conhecia um tipo que lhe faria uma, apesar de,
legalmente, ela precisar de ter dezoito anos. Nick, que estava a jogar
Fortnite no computador em segunda mão que tinham no minúsculo
apartamento de uma assoalhada, interveio de forma incisiva e disse que não.
– O que é que te interessa se a Kimmie faz uma tatuagem? – perguntou
Natalia ao namorado.
– Ela é demasiado nova – disse ele. – As tatuagens são para sempre, não
é o mesmo que mudar a cor do cabelo.
– Fiz a minha primeira tatuagem quando era mais nova do que ela – disse
Natalia.
– Isso é porque a tua mãe não presta e não soube cuidar de ti – replicou
Nick, com os olhos fixos no ecrã do computador. – Queres que a mãe dela
faça um escândalo lá no centro? Aquelas pessoas têm sido boas para ti.
– Oh, por favor – gritou Natalia. – Não sabes o que vai acontecer! Por
acaso tens uma bola de cristal onde consegues ver o futuro e essas merdas?
– Acredita em mim, eu conheço o género dela. Cresci com raparigas ricas
como ela.
A discussão subiu de tom rapidamente a partir daí. Kimmie pensou em
intervir, mas não se atreveu a falar, sobretudo porque tudo o que Nick disse
era verdade. Se ela chegasse a casa com uma tatuagem, a mãe passava-se da
cabeça. Não era só por ela ser judia e ter uma tatuagem impediria que fosse
enterrada num cemitério judeu, mas porque a mãe sempre disse que as
tatuagens eram vulgares e da ralé. Há dois meses atrás, se tivessem
perguntado a Kimmie se alguma vez faria uma tatuagem, ela ter-se-ia rido
da ideia. Mas isso foi há dois meses, e Kimmie estava decidida a voltar para
casa como uma rapariga totalmente diferente. Era como o hit de Taylor
Swift: «Lamento, mas a antiga Kimmie não pode atender o telefone agora.
Porquê? Oh, porque está morta!»
A coisa mais fascinante de ver Natalia e Nick a discutir foi a subida de
tom e a paragem abrupta. No auge, estavam os dois de pé, à frente um do
outro, a largar bombas de palavrões como duas potências nucleares à beira
do fim do mundo. Falavam tão alto que a Kimmie teve medo de que alguém
chamasse a polícia. A certa altura, Natalia deu um empurrão no peito de
Nick com ambas as mãos e ele pareceu irritado o suficiente para lhe bater.
Mas não o fez. Na verdade, foi o empurrão dela que o pareceu acordar e a
seguir ele disse:
– Desculpa, querida. Sou um parvalhão. Amo-te mesmo. – Natalia seguiu
o exemplo dele e os dois começaram a curtir como loucos, o que acabou por
se tornar um pouco físico quando ele a pegou ao colo e a sentou no balcão
da cozinha, o que fez com que um monte de latas vazias de Red Bull
caíssem ao chão. Kimmie ficou hipnotizada com o espetáculo e triste
quando eles levaram a sua festa de amor para o quarto, regressando dez
minutos depois como se nada tivesse acontecido.
A única coisa que Natalia disse mais tarde sobre o assunto foi que talvez
Nick tivesse razão e que Kimmie devia esperar para fazer uma tatuagem,
porque já tinha feito algumas das quais se tinha arrependido. Kimmie
acenou com a cabeça e agradeceu-lhe pelo novo cabelo e disse que ia
apanhar um Uber para chegar antes da hora de recolher. Natalia deu a
Kimmie um forte abraço de despedida e deu-lhe meio maço de cigarros de
mentol e um isqueiro para ela poder praticar a sua técnica. Fez questão de
se despedir também de Nick, mas ele já tinha voltado ao jogo de
computador e só lhe acenou distraído.
Enquanto esperava pelo Uber à porta do pequeno apartamento, Kimmie
encostou-se ao Volvo de Nick e acendeu um cigarro. Não conseguia deixar
de pensar no que Nick tinha dito sobre ter crescido com raparigas como ela.
Dissera-o de forma tão desdenhosa que, normalmente, ela teria ficado
ofendida, mas, naquela noite em particular, não ficou. Ela também estava a
odiar o tipo de rapariga que costumava ser. Natalia e Nick pareciam-lhe tão
fixes e reais, sempre a dizer o que queriam, quando queriam e no volume
que queriam. Admirava especialmente a forma como Natalia não deixava
que Nick lhe dissesse o que fazer ou pensar e como estava disposta a ir ter
com ele e a dizer-lhe que ele não mandava nela. Natalia era uma durona do
caraças e Kimmie estava fascinada por ela.
Depois disso, Kimmie e Natalia tornaram-se inseparáveis. Certa vez,
quando Nick fez um turno duplo no restaurante, deu as chaves do carro a
Natalia e as duas raparigas foram ao centro comercial local, compraram
piza e acabaram por furar as orelhas uma à outra com gelo e uma agulha
que desinfetaram com um isqueiro Bic, usando uma técnica que a melhor
amiga de Natalia em Las Vegas, a Sarah, lhe tinha ensinado. Kimmie tinha
agora três piercings no lóbulo da orelha direita, enquanto Natalia tinha sete.
Foi nessa noite que Kimmie finalmente confessou a Natalia o que lhe
aconteceu em Nova Iorque e como foi parar ao Arizona. Natalia era uma
boa ouvinte e, depois de escutar a história, concordou que Kimmie devia ir
para a frente com o seu plano de confrontar Vronsky e dizer-lhe tudo o que
pensava. Natalia disse a Kimmie que adorava ser rapariga, mas que muitas
vezes sentia que para os rapazes era tudo muito mais fácil. Eles podiam
fazer asneiras à vontade e ser elogiados pelos amigos como verdadeiros
heróis. Mas se uma rapariga andasse por aí a foder e, Deus nos livre,
gostasse de sexo, então era rotulada de puta. Não era justo. A única forma
de lutar contra a desigualdade de género era não dar a mínima e não pedir
desculpa.
– Se o Nick grita comigo, eu grito mais alto. Se ele me bater, vou bater-
lhe com mais força.
– C’um caraças, o Nick bateu-te? – perguntou Kimmie. – Porque isso não
é nada bom, Natalia.
Natalia jurou que Nick nunca lhe tinha tocado com um dedo, e era a
primeira vez que ela tinha um namorado que não lhe batia.
– O Nick está sóbrio há algum tempo, mas os drogados são
imprevisíveis. Por isso, quem sabe como é que ele é quando se passa. Não
vou baixar a minha guarda de maneira nenhuma. Mas algo me diz que ele
não é assim.
– Ele parece amar-te de verdade – disse Kimmie, sem se importar que a
sua voz soasse sonhadora e melancólica. Ela tinha visto a forma como Nick
olhava para Natalia e, apesar de ela estar a fazer um grande esforço para
seguir em frente, havia algo que lhe fazia lembrar a forma como Dustin
tinha olhado para ela quando foram ao Serendipity 3 beber chocolate
quente. Parecia ter sido há muito tempo, mas a memória era tão clara como
o sino de uma igreja a tocar numa tranquila manhã de domingo.
O terapeuta dela tinha-lhe dito que não era bom rotular as memórias
como boas ou más, mas sim ser capaz de as ver de um ponto de vista
objetivo, em que algo podia ser positivo e negativo ao mesmo tempo. Por
isso, apesar de ter classificado aquela noite em que foi beber chocolate
quente com Dustin como uma má recordação por causa de Vronsky, agora
era capaz de ver que não havia problema em recordá-la também como algo
bom. Contou a Natália sobre Dustin, maravilhando-se por ter sido tão
ignorante em relação aos rapazes, mas sabendo que era inútil querer «voltar
atrás».
– Não te martirizes. Nem queiras saber o número de idiotas com quem já
andei. E tive imensos rapazes que me disseram que me amavam, mas o
Nicky foi o único em quem acreditei realmente. Acordo a meio da noite e
apanho-o a olhar para mim. É querido, mas também um pouco psicótico. Eu
acho isso excitante. Não se pode culpar uma rapariga por qualquer coisa
que ela ache romântica. Há raparigas que gostam de flores e chocolates,
enquanto outras gostam que o namorado faça a melhor pontuação no jogo
do Pac-Man numa pizaria de merda e que escreva NAN, «Nick ama
Natalia», em vez das suas próprias iniciais.
Kimmie riu-se com Natalia e apercebeu-se de que há muito tempo que
não se ria com uma amiga e de como tinha saudades disso.

IX
O pai de Kimmie devia apanhar um avião para a ir buscar e trazer para
casa, mas na noite anterior à sua partida, a madrasta-monstro de Kimmie
partiu um salto à saída de um restaurante e caiu de cara no passeio,
rebentando os lábios de colagénio e partindo vários dentes.
Quem me dera poder ir buscar-te, querida, mas não posso mandar o
David ver os Guns N’ Roses sozinho quando fui eu que lhe ofereci os
bilhetes – disse a mãe de Kimmie ao telefone. – Compreendes, não
compreendes? Reservei-te um voo que parte hoje às onze da noite. O papá
vai buscar-te ao aeroporto. Era suposto ficares com ele na tua primeira
semana de regresso, mas agora que a tua madrasta-monstro partiu a cara,
vais ficar comigo.
Kimmie estava na receção do Desert Vista a falar com Danielle. Ela
ainda não tinha recebido alta oficialmente, por isso ainda não recuperara o
telemóvel.
– Mãe, não me podes reservar um quarto de hotel e eu fico aqui até o pai
me vir buscar? Odeio voos noturnos.
– Toda a gente odeia voos noturnos, Kimmie – respondeu a mãe com um
tom inabalável. – Mas fiz-te um upgrade para primeira classe, por isso acho
que vais sobreviver. Manda-me uma mensagem mais tarde do aeroporto.
Amo-te.
Kimmie devolveu o auscultador do telefone à secretária e foi fazer a
mala. Terminou à pressa, deixou a sua única mala na receção e avisou que
regressaria ao fim da tarde para apanhar um táxi para o aeroporto. Já se
tinha despedido de Natalia e Nick na noite anterior, mas agora que tinha
seis horas livres para matar, havia uma coisa que queria fazer. Na outra
noite, quando ela e Natalia passeavam pelo centro comercial, Natalia tinha
visto um blusão de cabedal preto de motociclista que adorara na montra de
uma loja. Ficou tão maravilhada com ele que encostou o corpo todo à
vidraça e beijou o vidro, deixando marcas de língua húmidas e sujas.
– Se gostas dele, compra-o – dissera-lhe Kimmie.
– Claro, como se eu alguma vez pudesse comprar um casaco destes –
disse Natalia. – Por favor, este menino deve custar pelo menos duzentos
dólares, se não mais. É mais caro do que todas as minhas roupas juntas.
Kimmie quis comprar o casaco para a amiga naquele momento. Duzentos
dólares não era nada de especial no mundo de Kimmie, Lolly gastava mais
do que isso em extensões de pestanas todos os meses, mas ela não tinha a
certeza se Natalia iria ficar ofendida ou não. Os humores e opiniões de
Natalia pareciam flutuar a cada minuto. O casaco custava trezentos e vinte
dólares e Kimmie comprou dois com o cartão de crédito do pai, um para
Natalia e outro para si. O casaco de cabedal não era bem ao gosto de
Kimmie, mas ela sabia que Natalia o usaria sempre, por isso queria ter um
para se lembrar da amiga.
Natalia tinha acabado de arranjar um novo emprego numa loja de pneus
baratos, por isso Kimmie não a queria incomodar no trabalho. Ela sabia que
deixavam a porta de correr das traseiras destrancada, pois Natalia estava
sempre a perder as chaves de casa. O plano de Kimmie era deixar o casaco
no quarto deles com um bilhete e o seu número de telefone. Ela não queria
ser presunçosa e assumir que Natalie e Nick iam pôr de lado os seus planos
para lhe fazerem companhia no aeroporto, sobretudo porque ambos lhe
tinham oferecido um jantar de despedida surpresa no seu apartamento na
noite anterior. Nick tinha feito uns tacos fantásticos – apesar de,
estranhamente, ele próprio não ter comido nenhum – e Natalia preparou-
lhes cocktails divertidos com Hawaiian Punch, Red Bull e garrafas de
vinho. Kimmie ficou surpreendida com o vinho, porque não era suposto
eles beberem, mas não disse nada sobre isso e eles também não.
Tinha acabado de deixar o casaco de Natalia em cima da cama e de enfiar
a carta no bolso quando ouviu Nick a gritar da sala de estar. Em pânico,
correu para o armário para se esconder. Passados alguns segundos,
apercebeu-se de que quem estava a discutir não era Nick e Natalia, mas sim
Nick e outra pessoa, um homem mais velho.
As paredes eram finas e de má qualidade, e ela conseguia escutar quase
tudo o que eles diziam. Ao ouvir, percebeu que a segunda voz era a do pai
de Nick. Agora sabia porque é que o Nick tinha um carro tão caro: tinha
roubado o carro do pai e tinha-o levado para o outro lado do país. Nick não
parava de gritar para o pai levar o raio do carro, que ele não precisava dele.
O pai perguntou-lhe se ele tinha um emprego. Sim. Andava a consumir
drogas? Não. E quem é esta rapariga, a Natasha? Natalia, e não vou deixar o
amor da minha vida para voltar para Nova Iorque quando não há nada lá
para mim.
Nova Iorque?, pensou Kimmie. Nick nunca mencionou que tinha vivido
lá. O pai dele disse-lhe que a única coisa em que ele se devia concentrar
agora era na sua sobriedade. Nick jurou vezes sem conta que não estava a
consumir drogas, mas o pai deve ter encontrado as garrafas de vinho na
cozinha, porque agora estavam a discutir por causa disso. Tudo aquilo era
horrível e Kimmie estava desesperada por se ir embora, mas sabia que não
tinha outra alternativa senão esperar. Tentou deixar de os ouvir e pensar
noutra coisa, mas era difícil. O pai de Nick não parava de dizer que estava
farto e que se Nicholas não voltasse com ele agora, ia lavar as mãos do
assunto, e ele escusava de lhe voltar a ligar a pedir dinheiro ou ajuda. Nick
disse ao pai para se ir foder, e foi então que o pai se passou e lhe gritou que
a sua última passagem pela reabilitação tinha custado cem mil dólares que
tinham saído do fundo para a faculdade do irmão Dustin, e:
– Sabes porquê? – perguntou ele ao Nicholas, com a voz a tremer. –
Porque o teu irmão mais novo gosta de ti, Nicholas. O Dustin gosta tanto de
ti que prefere gastar o dinheiro dele a tentar salvar-te do que ir para a
universidade de graça!
Esta notícia não só calou Nick, como também fez Kimmie ofegar tão alto
que teve de pôr a mão na boca para se manter calada. Nick é o irmão mais
velho de Dustin, Nicholas!
Esta revelação abalou tanto Kimmie que ela soube que não podia ficar
mais tempo à espera para ver o que acontecia. Precisava de sair dali naquele
instante. Rastejou para fora do armário, abriu a janela do quarto, deu um
pontapé na portada e saltou. Os pés bateram no pavimento da entrada da
garagem e ela começou a correr. E não olhou para trás.
X
Quando Anna chegou à corrida de beneficência anual de hipismo de
Greenwich e Murf lhe contou que Vronsky se tinha inscrito para ser um dos
jóqueis da Quinta Staugas, pensou que ele estava a gozar. Vronsky tinha ido
ter com ela à macieira nas suas últimas três aulas, mas quatro passeios a
cavalo num campo plano e relvado não o qualificavam para correr ao lado
de jóqueis que tinham treinado para o evento durante meses.
– É uma loucura. Ele não pode fazer isso. – Anna olhou para Murf, que
estava a dar o seu melhor para arranjar um laço torto amarrado ao lado das
bancadas de metal. Ela afastou-o e recolocou a fita de cetim azul na
perfeição.
– Foi o que eu lhe disse! – disse Murf. – E não se limitou a inscrever-se
para correr em pista, não aquele branco doido varrido. Tinha de arriscar e
inscrever-se na corrida de obstáculos.
Anna ficou chocada ao ouvir aquilo. As corridas de obstáculos eram um
desporto muito rigoroso e perigoso que se praticava há cem anos, embora
tivesse tido origem e fosse muito mais conhecido na Irlanda e no Reino
Unido. A Maryland Hunt Cup era basicamente a Super Bowl do desporto e
consistia num percurso de seis quilómetros e meio com vinte e dois
obstáculos – vedações geralmente feitas de madeira – de alturas variáveis,
tendo o mais alto 1,5 metros. Mas esta corrida era um evento muito mais
pequeno que se realizava anualmente em Greenwich para angariar fundos
para o hospital pediátrico. Tinha um quarto do comprimento e apenas sete
obstáculos, tendo o mais alto 0,75 centímetros. Foi criada a pensar nos
jóqueis adolescentes, mas, mesmo assim, todos os anos alguém se magoava.
O pai superprotetor de Anna tinha-a proibido de participar no evento de
Greenwich, dizendo que era ridículo que qualquer idiota se pudesse
inscrever e que a maioria dos acidentes acontecia não por causa de
cavaleiros treinados como Anna, mas porque rapazes estúpidos procuravam
impressionar raparigas de pestanas compridas. Anna ficou tão perturbada
com a notícia que telefonou a Vronsky, algo que nunca tinha feito antes.
A única forma de comunicação entre eles continuava a ser através de
mensagens de texto no Words with Friends, embora Vronsky brincasse
muitas vezes com a possibilidade de lhes comprar telemóveis descartáveis.
Vronsky não atendeu a chamada, o que irritou Anna, e embora ela
quisesse deixar-lhe uma mensagem para ele desistir da corrida, dizendo que
o seu cavalo teria de saltar por cima do cadáver dela se fosse essa a intenção
dele, absteve-se de o fazer. Em vez disso, desligou o telefone e apagou o
registo da chamada do seu telemóvel. Pensou em mudar o nome de Vronsky
nos seus contactos para outra coisa qualquer, mas isso fê-la pensar no irmão
e no infame «Brad», e foi incapaz. Sem saber o que fazer, abriu o jogo da
WWF e mandou-lhe uma mensagem a dizer que tinha de lhe ligar
imediatamente. Depois, perguntou a Murf se não se importava de o ir
procurar, mas quando ele lhe perguntou onde devia dizer a Vronsky para se
encontrar com ela, ela não conseguiu pensar num sítio. Todos os presentes
no evento sabiam quem ela era, e todos sabiam também que era a namorada
de Alexander, o que significava que não podia ser vista com Vronsky sem
levantar suspeitas.
O que é que faço agora?, pensou ela. Isto é o que ganhas por mentir.
Anna sabia que estava a ter um caso nas costas do namorado, mas
justificava-se continuamente dizendo a si própria que ia acabar com
Alexander assim que ele já se pudesse levantar da cama, daí a menos de um
mês.
Muitas vezes recriminava-se por não ter dito a Vronsky que tinham de
esperar. Mas sempre que pensava em acabar tudo, sentia-se incapaz de o
fazer. A chama do desejo deles não era assim tão fácil de extinguir, como
uma vela traiçoeira que não se consegue apagar.
Ela acreditava piamente que a razão para terem sexo tão incrível era
porque estavam loucamente apaixonados. Era como se a química entre eles
precisasse de ser misturada e composta, para que não se instalasse e se
tornasse tóxica. Nunca se sentira tão viva e feliz como quando estava
envolvida nos braços de Vronsky. O único inconveniente era que quanto
mais se envolviam, mais se desejavam, como se fossem viciados um no
outro. Todas as manhãs, quando ela pegava no telemóvel e procurava
mensagens no WWF, via a mensagem dele: «Bom dia, linda! Quero-te,
quero-te, quero-te.» Vronsky tinha o cuidado de nunca falar do seu passado
com outras raparigas, mas disse a Anna, sem rodeios, que o que estava a
acontecer entre eles não se assemelhava a nada que ele tivesse
experimentado antes. Aquilo não era conversa da boca para fora de
Vronsky. Era verdade – o seu amor por Anna não tinha precedentes.
Desde a primeira vez que estiveram juntos em casa dela, tinham
conseguido ver-se quase todos os dias, mesmo que fosse apenas uma hora
de manhã cedo, antes de irem para a escola. Vronsky tinha passado a dormir
em casa de Beatrice, e regressava a Manhattan de bicicleta depois de a ver,
enquanto Anna dizia à mãe que ia para a escola mais cedo para pôr os
trabalhos de casa em dia. Ela ia buscá-lo no início da longa entrada para a
casa de Beatrice. Como não podiam ser vistos em público, andavam de
carro por Greenwich à procura de um sítio isolado onde estacionar.
Da primeira vez, estacionaram nas traseiras de uma igreja, o que não
agradou a Anna, mas depressa se esqueceu de onde estava quando a mão de
Vronsky desceu para as suas calças de ganga. Ontem, Anna foi buscá-lo e
acabaram por entrar num parque de estacionamento subterrâneo,
conduzindo até ao nível mais baixo, onde ela passou por cima da alavanca
de velocidades antes mesmo de os faróis se apagarem. Desta vez, ela tinha
planeado melhor e vestido uma saia. Anna confessou que nunca na vida
tinha saído de casa sem roupa interior, e explicou que tinha um par de
cuecas lavado guardado na mochila.
O facto de Anna o querer tanto enchia Vronsky de um desejo que não
conseguia controlar. Normalmente, ele teria ficado mortificado por ser
aquilo a que os seus amigos chamariam de «ejaculador precoce», mas Anna
achava a sua incapacidade para se controlar inebriante. E, por causa da
idade dele, isso nem sequer importava. Ela ficava em cima dele e, em
poucos minutos, ele voltava a ficar duro dentro dela, e a segunda vez durava
muito mais tempo do que a primeira. Ela adorava a deliciosa tortura de o
cavalgar lentamente, e tentava aguentar o máximo de tempo possível, mas
muitas vezes dava por si a gritar o nome dele mais cedo do que queria.
Fizeram três vezes e Anna acabou por se atrasar para a aula de Latim.
Coitus, coituum, coitibus...
– Anna, para de olhar para o telemóvel – disse Beatrice, com um sorriso
malicioso. – Se eu soubesse que ser tão melosa me faria parecer tão
sonhadora como tu, já o teria tentado há muito tempo.
Estavam sentadas juntas na arquibancada montada para os espectadores
da corrida, que estava prestes a começar a qualquer momento. Anna corou
de vergonha com as palavras de Bea.
– Desculpa – disse ela baixinho. – Só não sei porque é que ele ainda não
me respondeu. Não achas que é doido por entrar na corrida de obstáculos?
– Não te passes, amiga – disse Beatrice. – O meu primo era ótimo a saltar
obstáculos no seu tempo. A mãe dele conta sempre que o instrutor lhe disse
que o Alexia tinha a confiança e o talento de um futuro atleta olímpico. Se
isto fosse uma corrida de motas, eu estaria nervosa. Claro que ele é doido
em participar, mas sempre foi viciado em adrenalina. Se nos devemos
preocupar com alguma coisa, deve ser com o cavalo da minha mãe.
O Vronsky está a tentar ganhar, e vai montar a Frou Frou com mais força
do que ela está habituada. Mas tenho a certeza de que sabes tudo isto...
quando se trata do V.
Anna tentou não reagir ao comentário de Bea, que era demasiado
aguçado para o seu gosto. Talvez Bea nem sequer se apercebesse de que
estava a ser dura com ela. Se calhar estava só com um pouco de inveja do ar
feliz e resplandecente de Anna. Vronsky tinha-lhe contado em confidência
que o caso amoroso secreto de Bea com Dahlia, a rapariga do circo do baile
de máscaras da prima, tinha terminado abruptamente, quando, depois de
uma noite de copos na cidade, a prima encontrou Dahlia a mostrar as suas
habilidades acrobáticas ao meio-irmão de Bea, Royce, depois de terem
ficado a dormir em casa dela na noite anterior. Bea não aceitou bem a
situação e Dahlia foi expulsa para as ruas do SoHo, com apenas um sapato.
Sem revelar o que sabia, Anna pegou na mão de Bea e disse:
– Estou tão feliz por podermos passar o dia juntas. Desculpa ter andado
um pouco desaparecida ultimamente, mas quero que saibas que estou muito
grata por toda a tua ajuda com... bem, tu sabes.
Beatrice, feliz com a demonstração de gratidão que sentia merecer, sorriu
para Anna.
– És uma querida. Eu faria qualquer coisa pelo V. Se ele está feliz, eu
também estou. – Bea abraçou Anna, mas quando se afastou o seu sorriso
desapareceu, substituído por uma careta. – Bem, lá se vai o nosso dia
divertilhoso – murmurou ela. – Não olhes agora, mas tens problemas a
dobrar às seis horas.
Anna esperou um momento e depois virou lentamente a cabeça para
olhar para trás. O seu coração bateu como um relógio a dar a meia-noite,
assinalando o fim da noite mágica da Cinderela. Eleanor, com um ridículo
chapéu cor-de-rosa, empurrava Alexander numa cadeira de rodas. Como as
cadeiras de rodas não foram concebidas para a relva, era uma visão patética.
Toda a gente na cidade tinha ouvido falar do acidente de Alexander e, em
breve, havia uma grande multidão a correr em seu auxílio. Momentos
depois, alguns dos maiores homens presentes estavam a carregar Alexander
pelo campo como se ele fosse um rei.
Ouviu-se uma buzina e, por uma fração de segundo, Anna pensou se teria
imaginado aquilo, mas depois apercebeu-se de que era um homem a usar
uma buzina de ar para assinalar que a corrida começava dentro de dez
minutos.
O telemóvel de Anna vibrou com uma mensagem de Murf. Anna, eu
disse-lhe que não querias que ele corresse, mas ele respondeu que não te
devias preocupar com ele. E passo a citar, «porque eu trato disto» e ele
queria que soubesses.
Ela ficou a olhar para o balão da mensagem incompleta, à espera do
resto, mas não apareceu nada. Ela respondeu: Então? O que é que ele
queria que eu soubesse? ????? Apareceram mais pontos e Anna teve
vontade de abanar o telemóvel, como se isso ajudasse. Enquanto esperava,
usou os binóculos para observar a linha de partida e viu Vronsky montado
no cavalo da mãe de Beatrice, Frou Frou, a tentar estabilizar-se na sela. Oh,
meu amor, pensou ela, porquê, mas porque é que estás a fazer isto?
O telemóvel de Anna vibrou e ela viu a mensagem de Murf. Desculpa,
deixei cair o telemóvel! Ele queria que soubesses que te vai dar aquele
troféu! .

XI
Como não queria deixar o seu lugar ao lado de Beatrice, Anna fingiu
durante o máximo de tempo possível que não tinha visto Alexander chegar.
Ficou a olhar para a pista com os binóculos, à espera que a corrida
começasse e que ela pudesse lidar com ele depois. Parecia uma forma
draconiana de castigo ter de cuidar do namorado enquanto o seu verdadeiro
amor estava prestes a tentar ultrapassar sete obstáculos num cavalo
desconhecido.
Agarrou na mão de Bea e apertou-a nervosa.
– Respira – sussurrou Bea à amiga. – O irmão mais novo de Adaka vai
competir hoje e só tem onze anos. O Vronsky vai ficar bem. – Bea sentou-se
feliz, a saborear a tensão do momento, sempre calma em situações de
grande stresse.
Anna baixou os binóculos e viu o irmão parado em frente às bancadas.
Ela queria fazer-lhe sinal para o avisar de que o perigo estava próximo, mas
antes de ter tempo de o fazer, viu Lolly a correr e a murmurar algo ao seu
ouvido. Anna podia ver pela expressão de Steven que Lolly tinha acabado
de lhe dizer que Alexander e Eleanor tinham chegado. Ele olhou para Anna
e ela fez-lhe um rápido aceno de cabeça para lhe confirmar que sabia.
Steven agarrou na mão de Lolly e os dois começaram a dirigir-se para as
bancadas. Só subiram dois degraus quando Eleanor apareceu atrás deles, e
bateu nas costas de Lolly. A pobre Lolly não teve outra escolha senão virar-
se e fingir-se simpática. Anna baixou os binóculos e pôs os óculos de sol,
agradecida por estar um dia radioso e ninguém conseguir estabelecer
contacto visual através dos seus óculos de aviador Oliver Peoples Benedict.
Lolly apontou para Anna e Beatrice, e Eleanor acenou-lhes com
entusiasmo.
– Anna! – gritou ela, a sua voz estridente era uma seta a atingir
diretamente os nervos de Anna. – Desce daí! O Alexander está cá.
– Achas que posso fingir que não a ouvi? – perguntou Anna com os
dentes cerrados, e fez sinal a Eleanor para que viesse ter com elas.
– Desculpa, querida – respondeu Bea. – Acho que tens de ir lá para baixo,
porque eu não me vou sentar ao lado daquela idiota de chapéu hediondo.
Anna sabia que Bea tinha razão. A multidão estava à espera que ela
fizesse alguma coisa. Levantou-se e começou a descer. Quando passou por
Steven e Lolly, ofereceu-lhes o lugar dela, e Steven apertou-lhe a mão com
simpatia. Alexander estava de volta à sua cadeira de rodas e alguém tinha
trazido um fardo de feno para ele apoiar a perna, que estava envolta numa
bota de fibra de vidro. Usava um boné de basebol de Harvard e tinha um
sorriso plácido no rosto que Anna reconheceu como o seu sorriso dos
opiáceos. Quando chegou ao pé da cadeira dele, estava furiosa, mas
cumprimentou-o com um sorriso, pois sabia que estavam todos a ver.
– Olá – disse Anna. – Pensei que tinhas decidido que isto era demasiado
incómodo para a tua primeira aparição pública.
– A ideia foi minha – disse Eleanor, com a voz a raspar como giz num
quadro negro. – Toda a gente tem telefonado para casa a pedir para o ver.
Pensei, porque não levar a montanha até eles? Além disso, há dias que mal
te vemos e o meu irmão tem saudades da namorada. Por isso, aqui.
Estamos. Nós.
– Eleanor, passei lá por casa esta manhã – disse a Anna. – Quando
estavas na aula de zumba.
– Sim, mas o Alexander disse que ficaste cinco minutos e depois fugiste,
como tens feito a semana toda.
Antes que Anna pudesse dizer mais uma palavra, ouviu-se o tiro de
partida e a corrida começou. Anna olhou através dos binóculos. Havia vinte
e cinco cavalos a participar na prova, distribuídos em grupos de cinco com
intervalos de cinco segundos. Anna sabia que cinco segundos não era nada
para um cavalo rápido e em breve estavam todos agrupados numa cavalaria.
O coração começou a bater tão depressa como os cascos que ribombavam
na relva.
– Anna, Anna? – choramingou Eleanor. – Esqueci-me dos meus
binóculos, posso usar os teus?
– Não – respondeu Anna. – Devias ter trazido os teus. – Ouviu Eleanor
afastar-se à procura de outra pessoa para chatear.
– Anna – disse Alexander, calmamente. – Posso usar os teus binóculos?
Dei os meus à Eleanor, mas acho que ela os deixou no carro.
Sem dizer nada, Anna entregou os binóculos a Alexander, mas não
desviou os olhos dos cavalos, que estavam agora a contornar o primeiro
mastro e em breve estariam de novo à frente deles. Pelo que ela podia ver,
Vronsky tinha feito os três primeiros saltos com facilidade. Talvez Beatrice
tivesse razão e Alexia tivesse um talento natural. O cavalo que estava a
montar era um saltador experiente e sabia o que fazia.
Segundos depois, os três primeiros cavalos estavam à frente deles, e
todos saltaram a vedação baixa de madeira com facilidade. A multidão
aplaudiu, tal como Anna, encantada por ver que o seu Alexia estava em
quarto lugar e a ganhar terreno ao jóquei à sua frente. Anna desejava poder
gritar o nome de Vronsky alto o suficiente para que ele ouvisse, mas era
impossível. Alexander tinha-lhe agarrado na mão e puxou-a para perto de si
até ela ficar mesmo ao lado da cadeira.
– Posso ter os binóculos de volta? – perguntou ela, sabendo que não
devia. – Por favor.
– Claro, desculpa. Deves ter vários amigos a competir.
Anna estava concentrada na corrida, mas reparou no tom descontente de
Alexander.
A multidão ficou expetante quando um dos cavalos derrubou a viga de
madeira à sua frente, mas como era um dos últimos cavalos, não houve
colisão e o jóquei endireitou o cavalo, e pôde continuar, para alívio de
todos. Anna viu Murf correr para colocar o poste de volta no lugar. Ela
desviou o olhar da linha de chegada por um momento, quando ouviu os
gritos.
As lentes do binóculo ampliaram a cena caótica. Anna podia ver que no
último salto, o mais alto, pelo menos três cavalos tinham caído num
amontoado desajeitado de pernas equinas torcidas. Anna ofegou, e observou
todos os cavalos, à espera, desesperada, que o cavalo de Vronsky não
estivesse no meio da confusão. Incapaz de se conter, Anna saltou as
divisórias de feno e correu para o campo.
– Murf! – gritou ela. – Foi ele? Ele está bem?
Murf, que já corria em direção ao caos, parou ao som da voz de Anna e
virou-se para encarar a figura solitária no campo, com o rosto abatido.
– Volta para trás, Anna! – gritou Murf. – Digo-te assim que souber.
Steven, que tinha visto a irmã a correr para o campo, desceu das
bancadas, saltou por cima da divisória e estava ao lado dela em poucos
segundos. Pôs o braço à volta dela enquanto a escoltava de volta às
bancadas. Anna escondeu o rosto, mas era tarde demais; todos já tinham
testemunhado o que ela tinha feito.
– Tragam-na para aqui – disse Alexander, a voz mais forte do que nunca
desde o acidente. Sem saber o que fazer, Steven pensou em levá-la embora
dali, mas sabia que ela nunca se iria embora até saber o que acontecera a
Vronsky, e por isso levou-a para o pé do OG.
Anna sentou-se no fardo de feno onde a perna de Alexander estava
apoiada e pegou logo no telemóvel, à espera de notícias.
O telemóvel apitou e ela viu a mensagem de Murf. Ele está bem. Mas a
Frou Frou deslindou-se. Desculpa, desviou-se. Não ligues, é o corretor
automático. Anna começou a chorar de felicidade por Vronsky estar bem.
– O que te disseram? – perguntou Alexander severamente.
– Um dos cavalos que caiu está gravemente ferido. É terrível. Vou lá
abaixo.
– Não vais fazer nada disso – respondeu ele. – Quero ir-me embora agora
e tu vens comigo.
Anna olhou para ele chocada.
– Como se eu fosse um de animal de estimação que obedece a ordens
segundo os caprichos do dono?
– Anna – disse Alexander em voz baixa. – Não me sinto bem. É óbvio
que estás perturbada e toda a gente está a ver. Vamos para casa agora.
Steven, podes ajudar-me e empurrar a minha cadeira?
Steven olhou para a irmã e ela acenou-lhe com a cabeça para ele ir à
frente. Anna sabia que teria de ir com Alexander. A sua única consolação
era que, com toda a confusão e pressa de levar Alexander para casa, se
tinham esquecido de Eleanor, e Anna sorriu ao pensar na meia-irmã do
namorado a olhar para eles com o seu hediondo chapéu cor-de-rosa.

XII
Uma cama de hospital tinha sido montada no solário, pois Alexander
ainda não conseguia subir as escadas até ao quarto. Anna sentou-se na
cadeira de baloiço junto à janela e ficou a olhar para o enorme jardim.
A viagem de carro foi feita em silêncio, e depois de os empregados terem
ajudado Alexander a deitar-se, Steven saiu para ir buscar Lolly. Antes de
partir, deu um grande abraço à irmã e disse-lhe que esperaria em casa até
ela voltar. Anna limitou-se a acenar com a cabeça, pois sabia que se falasse,
começaria a chorar.
Alexander sabia que tinha de perguntar, mas não queria. Ele queria
esperar até que a perna parasse de latejar e o Percocet começasse a fazer
efeito, mas sabia que o comprimido não o ajudaria na dor que estava por
vir. Por isso, ficaram sentados em silêncio.
Há semanas que Eleanor andava desconfiada, mas Alexander mandava-a
calar sempre que ela mencionava o comportamento disparatado de Anna
nos últimos tempos. Sim, ele tinha estado dopado, mas não era idiota. Tinha
reparado em tudo aquilo de que Eleanor se queixava, mas não podia ou não
queria acreditar que fosse verdade. A rapariga que ele conhecia e amava, a
rapariga com quem planeava casar, tinha-se tornado rabugenta e distante
durante as suas visitas, mas ele não conseguia perguntar-lhe porquê.
Simplesmente porque temia uma resposta honesta. Mas agora as coisas
eram diferentes. Ela tinha aberto o jogo em frente a toda a cidade, e ele só
se sentia arrependido. Arrependido por não ter lidado com a situação mais
cedo. Arrependido por ter concordado em ir à corrida de cavalos.
Arrependido por ter conduzido até à festa para a ir buscar naquela noite de
neve. E arrependido por se ter ido embora sem ela quando sabia que não
deveria.
Ele não podia acreditar que Anna se tivesse apaixonado por um tipo
como Vronsky. Parecia impossível que um rapaz bonito, de olhos azuis e
cabelo loiro, lhe estivesse a causar tanto sofrimento. Dava até vontade de
rir. Mas ninguém se estava a rir agora, sobretudo Alexander.
– Anna? – disse ele, com a sua voz rouca e a estalar. – Queres começar,
ou começo eu?
– É verdade – respondeu ela calmamente.
– O que é que é verdade? – perguntou ele.
– As tuas suspeitas sobre mim e o Vronsky. Nós estivemos... – Ela
hesitou. – Eu tenho sido infiel. Devia ter-te dito mais cedo. Tinha toda a
intenção de te contar sobre os meus sentimentos por ele, mas… – Anna
tinha a boca seca de vergonha. Não conseguia continuar. Só desejava que o
chão debaixo dos seus pés se abrisse e a engolisse toda, com cadeira e tudo.
Mas porque é que não acabei com ele antes? Agora é tudo um desastre.
E só me posso culpar a mim.
– Mas...? – perguntou ele, recusando-se a facilitar-lhe a vida.
– Mas tu tiveste o acidente de carro e eu esperei. Só que depois não
consegui esperar com ele, por isso… por isso nós… por favor, não me
obrigues a dizê-lo.
– Deves-me isso – disse ele, com a voz firme e fria como gelo. –
Continua.
– Eu dormi com ele! – gritou ela, zangada com ele por a obrigar a dizê-
lo, embora soubesse que não tinha o direito de estar. – Enganei-te nas tuas
costas enquanto estavas deitado numa cama de hospital, está bem? É errado,
mas fi-lo na mesma. Sabia que não devia, mas não consegui evitar. Não tive
escolha.
– Não tiveste escolha? – gritou Alexander. – Ele segurou-te? Ameaçou-
te? Claro que tiveste escolha! Toda a gente tem uma escolha. O que tu
tiveste foi um lapso grotesco de julgamento, um… um… buraco negro
moral que sugou tudo o que era bom e decente em ti.
Foi preciso uma grande força de vontade para não desatar a fugir, sem
olhar para trás. Anna estava prestes a chorar, mas recusou-se a derramar
uma única lágrima. Em vez disso, mordeu o interior do lábio inferior até lhe
doer.
– Agi mal. Não merecias aquilo que te fiz. Mas agora é demasiado tarde.
Aconteceu. Fi-lo e só te posso confessar tudo.
– Gostas dele? – perguntou Alexander, sabendo que precisava de saber o
máximo possível sobre aquilo, antes de decidir como agir.
– Claro que sim – disse ela. – Ou esperavas que eu estivesse a fazer isto
só pelo sexo? Achas que faria uma coisa destas se não gostasse dele? Tens-
me em tão pouca consideração?
– Isso não é justo, Anna. Não sabia que eras tão infeliz. Foi por não
termos ido ao meu baile de finalistas?
– O quê? – Anna tentou esconder a sua exasperação, mas não conseguiu.
– Achas que isto é por causa de um baile de finalistas? Isso é absurdo.
– É? – perguntou ele, numa voz agora triste. – Porque talvez se
tivéssemos ido e tivesses dançado comigo como... – A voz vacilou-lhe, e ele
não conseguiu continuar. Ele tinha visto a maneira como eles olhavam um
para o outro na pista de dança na festa de Bea, e tinha optado por tentar
esquecer. Dizer a si próprio que não significava nada quando ele sabia que
significava. – Estou cansado. Preciso de dormir – disse ele. – A minha perna
está a matar-me. Podemos conversar amanhã?
– Alexander, acho que não há mais nada para conversarmos. Lamento
que tenha acabado assim, mas acabou. Acabou. – Anna levantou-se,
aliviada por ter dito o que tinha a dizer e poder ir-se embora. Queria ir para
casa, enroscar-se e dormir.
– Não, Anna – interrompeu-a Alexander. – Não podes deitar fora os
últimos três anos como se não tivessem sido nada. Nós tínhamos planos, um
futuro juntos. Não vais ter a decência de falar comigo sobre isso? Ajuda-me
a entender o que aconteceu! Não podes pensar que tens um futuro com ele!
Ele é uma criança, pelo amor de Deus.
Anna voltou a sentar-se. A tristeza no rosto dele magoava-a. Parecia tão
indefeso naquela cama de hospital, com a perna partida, num quarto
rodeado de vasos feios e cestos baratos com flores murchas a desejar-lhe as
melhoras. As últimas palavras de Alexander atingiram-na com força, e o seu
tom lembrou-lhe o pai e a forma como ele por vezes falava com Steven
quando estava desiludido com ele. Ela fechou os olhos quando a
enormidade da situação a atingiu como uma enorme chuvada a cair sem
aviso. A mãe e o pai iam descobrir o que ela tinha feito. O pai e a madrasta
de Alexander também iriam saber. Anna tinha uma ótima relação com os
pais dele, e o pai sempre lhe dissera que a amava como a uma filha. As
vidas de ambos estavam totalmente interligadas, na verdade, tão próximas
do casamento como dois adolescentes podiam estar. Ela era uma tola se
achava que podia simplesmente dizer-lhe que estava tudo acabado e sair
porta fora, como numa comédia romântica estúpida em que o rapaz não fica
com a rapariga e aceita o seu destino.
– Está bem, tens razão – admitiu ela. – Porque não dormes uma sesta e eu
volto amanhã?
– Não te encontres com ele – disse Alexander, e olhou-a diretamente nos
olhos. – Podes fazer isso por mim? Não o vejas nem fales com ele até
termos tempo para conversar amanhã. Deves-me isso, pelo menos.
Anna não era mentirosa, e, na verdade, tinha-se esforçado muito para não
mentir nas últimas semanas, mesmo que tivesse sido vaga e contado meias
verdades sobre os seus planos e o seu paradeiro. Por isso, quando Anna
disse a Alexander que não iria ver ou falar com Vronsky até que eles
conversassem no dia seguinte, estava a falar a sério. Tinham passado três
anos juntos, e ela amava-o, ou pelo menos achava que o amava. Só agora,
depois de se apaixonar por Vronsky, é que ela compreendia a diferença
entre «gostar de alguém» e «amar alguém».
Anna manteve a sua palavra a Alexander e não respondeu às mensagens
de Vronsky, nem atendeu o telefone quando ele lhe ligou. Também não
respondeu às chamadas ou mensagens de Beatrice, pois não queria explorar
uma lacuna na sua honestidade e torná-la numa intermediária. Em vez
disso, foi para a cama e dormiu durante mais tempo e um sono mais
profundo do que o que tinha dormido nas últimas semanas.
Na manhã seguinte, regressou a casa de Alexander e conversaram durante
horas, dando voltas e voltas, chorando e gritando em vários momentos.
Alexander disse a Anna que ainda a amava e que queria resolver as coisas.
Ele acreditava que, apesar de Anna ter dito que amava Vronsky, isso não era
verdade, que ela tinha sido enganada pela sua aparência e maneira de ser
divertida. Mas ele estava errado de tantas formas. Alexander também
assumiu parte da culpa. Ele tinha estado demasiado envolvido na sua
própria vida e, claro, ela merecia divertir-se e dançar e ele queria ser a
pessoa que lhe proporcionava isso tudo. Implorou a Anna que tirasse algum
tempo, pelo menos algumas semanas, para pensar bem em tudo e considerar
dar-lhes mais uma oportunidade. Se ela fizesse isso por ele, e se mesmo
assim continuasse decidida a acabar tudo, ele faria o possível para garantir
que a sua reputação não era prejudicada e nunca falaria mal dela a ninguém.
Ele iria ao ponto de negar a verdade e de dizer às pessoas que Anna não o
tinha traído com Vronsky.
Meio a contragosto, Anna concordou em tirar umas semanas, mas disse a
Alexander que iria ver Vronsky pelo menos uma vez para lhe explicar os
seus planos, embora não fosse acontecer nada entre eles. Ela disse que, nas
duas semanas seguintes, Alexander não a devia considerar mais sua
namorada. Ela estava livre de todas as obrigações. Alexander concordou
com as condições, mas implorou-lhe que evitasse passar tempo sozinha com
Vronsky, pois isso só iria toldar o seu discernimento. Quando acabaram de
negociar numa moeda emocional pesada, já estava escuro e chovia
torrencialmente, mas isso não importava. Ela estava demasiado esgotada
para se ralar com isso.

XIII
Kimmie passou a manhã com a mãe na PS 137, uma escola pública onde
se estava a matricular como nova aluna. Danielle não estava contente com a
decisão da filha de deixar Spence, mas tinha demasiado medo de
argumentar com ela. O regresso de Kimmie a casa, com o seu novo cabelo
roxo, casaco de cabedal preto, Doc Martens e verniz escuro nas unhas,
tinha-a deixado nervosa. Kimmie ouvira os pais a discutir na manhã em que
o pai a foi buscar ao aeroporto. Foi diretamente para o quarto e o pai ficou
com a mãe a conversar na cozinha. Durante a viagem, ela contou ao pai a
sua decisão de deixar Spence e pediu-lhe que dissesse à mãe. Ele não queria
fazê-lo, mas Kimmie obrigou-o, lembrando-o casualmente de que ele nunca
a tinha ido visitar ao Arizona e que nem sequer se tinha dado ao trabalho de
a ir buscar.
– Tenho quinze anos, pai, queres mesmo que te culpe por tudo quando
tiver a tua idade?
Os pais concordaram em inscrevê-la na escola pública, embora a
avisassem que talvez tivesse de repetir o 10º ano, mas Kimmie iria fazer os
testes necessários para ver se conseguia entrar na Stuyvesant ou na Bronx
Science no ano seguinte, duas das escolas públicas mais competitivas da
cidade. Lembrava-se de ter ouvido Dustin contar-lhe o quanto adorou o
tempo que passou na Stuyvesant e, embora não tivesse a certeza se era tão
inteligente como ele, queria tentar.
Ela pensou em Dustin sem parar no voo de regresso a casa, sem
conseguir dormir. Ela não conseguia tirar aquilo da cabeça, quando ouviu o
pai dizer a Nicholas que Dustin tinha desistido do seu fundo para a
faculdade para pagar a reabilitação do irmão. Ela duvidava que Lolly
tivesse feito o mesmo por ela, e sabia que a antiga Kimmie também não o
teria feito. Kimmie desejou poder voltar atrás no tempo e perguntar a
Dustin mais sobre a sua relação com o irmão, e já que pensava nisso,
perguntar-lhe mais sobre como era ser adotado. À primeira vista, parecia
que Dustin tinha uma boa vida, porque era inteligente e estava a preparar-se
para o sucesso, depois de ter entrado na faculdade da sua escolha e, claro,
os pais eram divorciados, mas todos eram, embora devesse ser difícil para
ele ser um dos únicos membros negros do seu templo. Mas ela sabia porque
é que não tinha feito nenhuma daquelas perguntas: tinha sido egoísta,
preocupando-se apenas com coisas fúteis como festas e se o rapaz errado
lhe ia ou não mandar uma mensagem.
Kimmie mal podia acreditar em tudo o que tinha acontecido durante o
mês em que esteve fora: o acidente de carro de Alexander, cavalos mortos e
corações partidos. Mas em vez de sentir que tinha perdido alguma coisa,
estava feliz por ter estado fora, o que reforçou a sua decisão de se afastar de
todo este mundo disparatado das escolas privadas e dos miúdos ricos. Se a
escola pública era boa o suficiente para Natalia e Dustin, então era boa o
suficiente para ela.
No final da reunião, quando o diretor da sua nova escola, o Sr. Kriesky,
lhe disse que a veria no dia seguinte, Kimmie ficou chocada. Ela tinha
assumido que teria de começar nesse mesmo dia. Ele explicou-lhe que a
escola pública era um pouco mais descontraída e que achava que seria
melhor ela começar de manhã. Quando ele lhe disse:
– Vai lá fora buscar um Mister Softee[17], a primavera chegou! – Kimmie
sorriu, e soube que tinha tomado a decisão certa em relação à escola.
Depois disso, a mãe foi fazer uma aula de Orangetheory e perguntou a
Kimmie se queria ir com ela. Kimmie disse que não pois queria ir ao
Central Park e aproveitar o seu último dia de liberdade antes de começar na
nova escola. A mãe pareceu aliviada com a resposta, e Kimmie sabia que
era porque a mãe ainda não se sentia à vontade com a «nova Kimmie».
Quase chamou a atenção da mãe para isso, mas decidiu deixar passar. Claro
que, hoje em dia, ela tinha mais poder e estava mais em contacto com a sua
raiva, mas não queria transformar-se numa enorme cabra. Por mais durona
que a Natalia fosse, também era incrivelmente atenciosa. Antes de Kimmie
sair, Natalia tinha roubado um par de brincos de argola de ouro baratos no
Walmart para ela e outro par para Kimmie. Kimmie tocou no seu brinco
roubado e pensou na amiga.
Natalia tinha adorado o casaco de cabedal que Kimmie lhe deixara de
presente, e tinha tirado várias fotografias a usá-lo. Ficava-lhe melhor a ela,
mas Kimmie sempre soube que ficaria. Tinham trocado mensagens várias
vezes por dia durante o primeiro dia após o seu regresso, mas de repente as
mensagens diminuíram e, três dias depois, a amizade delas à distância tinha
caído no profundo silêncio. Kimmie pensou por momentos se isso seria um
mau sinal, mas decidiu ser positiva, e decidiu que Natalia e Nicholas
estavam ocupados a planear as suas novas carreiras como influenciadores
do Insta. Durante o jantar de despedida de Kimmie, Nick revelou o novo
plano do casal, em que Natalia seria a apresentadora de vídeos onde
ensinava a pintar cabelos fixes a qualquer pessoa interessada em obter o
look de miúda roqueira alternativa. Nick planeava realizar e filmar os
vídeos no apartamento deles, pois sabia muito sobre cinema, graças à sua
extensa leitura sobre realizadores famosos. Pelos vistos, Nick teve esta ideia
depois de ter visto Natalia pintar o cabelo de Kimmie na primeira noite em
que saíram juntos. Mais tarde, na cama, ele disse-lhe que ela não só era
extremamente carismática – uma verdade –, como também era uma
instrutora nata, e que ele reparou nisso quando ela explicou a sua técnica,
passo a passo, de forma clara e concisa a Kimmie.
Ele tinha tudo planeado. Ia fazer alguns turnos extra para ganhar mais
dinheiro, ou talvez se tornasse motorista da Uber, para poder comprar
algum equipamento de iluminação em segunda mão e uma câmara digital, e
assim poder captar devidamente a sensualidade da sua namorada. «Nada
dessa treta de filmar com o iPhone» seria bem aceite por ele. Kimmie achou
a ideia brilhante e ofereceu-se para ser uma das modelos de cabelo do
«Antes e Depois» de Natalia. Disse que, assim que tivessem tudo pronto,
ela apanharia o avião e viria durante uma semana para os ajudar, talvez nas
férias de verão. Natalia e Kimmie brindaram a Nick pela sua ideia brilhante,
e ele fez aquela coisa de homem em que lhes disse para se irem lixar,
embora fosse óbvio que estava feliz da vida. Foi a única vez que Kimmie
viu Nick entusiasmado com outra coisa que não o Fortnite e o rabo de
Natalia. Kimmie não falou da boca para fora, ela achava mesmo que era
uma ótima ideia.
Quando se foi deitar na sua última noite em Desert Vista, pensou em
como seria bom ter um namorado que acreditasse nela como Nick
acreditava em Natalia, e Kimmie anotou esse desejo na secção «objetivos
de vida a longo prazo» no seu diário.
Era nestes objetivos de vida a longo prazo que Kimmie estava a pensar
enquanto caminhava pelo parque com uma missão, pois só tinha de riscar
mais uma coisa da sua lista de «lidar com as tretas do passado».
Kimmie tinha quase desistido da ideia de ligar a Vronsky, e achou que
talvez fosse melhor deixar o passado no passado. Tudo o que ela queria
pensar era no futuro, mas então Lolly contou-lhe todo o drama
Anna/Alexander, e a raiva de Kimmie pelo Conde Vronsky renovou-se. Não
só ele quase a destruiu, como agora estava a arrastar Anna para baixo.
Quando o porteiro tocou e a governanta atendeu, Kimmie explicou que
tinha os trabalhos de casa de Vronsky para lhe entregar, pois assumiu que
ele estivesse em casa a recuperar do acidente na corrida de cavalos. Foi
logo atendida e perguntou-se se a governanta teria anunciado a sua chegada.
Mas, quando entrou no apartamento e a empregada fardada estava a falar ao
telefone, Kimmie percebeu que estava por sua conta.
Encontrou o quarto dele e bateu à porta, fazendo-se anunciar através da
porta fechada. Ele disse que precisava de um minuto e, uns instantes depois,
abriu a porta, vestindo uma camisola por cima do tronco enfaixado.
Vronsky ficou claramente surpreendido ao vê-la, e ela estava prestes a pedir
desculpa por não ter ligado primeiro, mas mordeu a língua, lembrando-se
do que Natalia dissera sobre as desculpas serem o último refúgio dos
maricas sem coragem. Kimmie não era maricas, pelo menos não hoje.
Kimmie entrou no quarto pouco iluminado de Vronsky e virou a cadeira
da secretária para o encarar enquanto ele se sentava na cama por fazer.
Vronsky ofereceu-lhe uma bebida e sugeriu que falassem na cozinha, mas
ela recusou. O que ela tinha para lhe dizer não demoraria muito tempo. Ele
fez-lhe um gesto para que começasse e ela começou.
Ela contou-lhe sobre o tempo que passou no Arizona e as suas muitas e
exaustivas sessões de terapia. Explicou-lhe como tinha aprendido muito
sobre si própria e que, quando regressou a Nova Iorque, depois de os seus
sonhos na patinagem artística terem sido destruídos, nunca tinha lidado
realmente com a perda. A teoria do terapeuta era que ela estava a sofrer de
uma depressão ligeira por causa disso. Disse-lhe então que quando ele a
beijou na véspera de Ano Novo foi a primeira vez que se sentiu feliz desde
que o regresso a Nova Iorque.
Continuou, dizendo que não tinha muita experiência com rapazes e que
costumava ter vergonha de o admitir, mas que agora já não se importava.
Tinha apenas quinze anos, na verdade era ainda um bebé, e agora sabia que
era uma estupidez fingir que era mais mundana do que era. Contou-lhe
então como ele a tinha magoado quando não lhe telefonou no dia a seguir a
terem feito sexo e admitiu-lhe que tinha mentido sobre ter dormido com o
treinador e que era virgem, o que fazia daquela a sua «primeira vez».
– Sabias? – perguntou ela. – Sabias que eu estava a mentir?
Vronsky não tentou fugir à verdade e admitiu que suspeitava disso, mas
que ignorou. Perguntou-lhe se ela se tinha sentido pressionada a fazer sexo
com ele, e ela disse-lhe que, embora ele não a tivesse pressionado física ou
verbalmente de uma forma assustadora, ela tinha sentido uma espécie de
pressão, por estar tão desesperada para que ele gostasse dela. Sentiu mesmo
que não tinha outra hipótese senão entregar-se, por assim dizer. Ele
convidou-a para ir a casa dele e sentaram-se na sala de estar, fazendo
questão de dizer que não estava ninguém em casa. Claramente, ele queria
festa e, na altura, ela também queria.
Mas ele moveu-se tão depressa, e ela ficou chocada quando ele a despiu e
tirou as suas próprias roupas. Ele parecia tão natural, tão confiante de que as
pernas dela se abririam para ele, que ela seguiu o seu exemplo e pensou que
era assim que as coisas aconteciam.
Não se tratou de uma questão de consentimento, mas quando ela gritou
de dor, quis saber porque é que ele não lhe perguntou se ela estava bem,
porque é que ele não perguntou… se era a sua primeira vez. Em vez disso,
ele tinha-se mostrado horrorizado e tinha-a feito sentir-se uma completa
idiota. Talvez se ele tivesse sido mais meigo, ela tivesse encontrado forças
para lhe contar a verdade, e então talvez tivessem decidido que não era uma
boa ideia. Mas não foi assim que aconteceu. E agora aquela noite no sofá
com ele seria a sua primeira vez para sempre. E como se diz, nunca se
esquece a primeira vez, mesmo que se queira.
Ela exigiu saber de novo porque é que ele não lhe tinha telefonado no dia
seguinte e ele, timidamente, afirmou que pensava que tinha telefonado. Mas
Kimmie mostrou-lhe as capturas de ecrã do telemóvel, a provar que não só
ele não lhe tinha ligado, como também nem sequer se tinha dado ao
trabalho de lhe enviar uma mensagem. Perguntou-lhe como é que se sentiria
se alguém de quem gostava muito o fodesse e depois nunca mais lhe
dissesse nada. Contou-lhe como esperou por ele no rinque, mas que ele
nunca apareceu. Lembrou-lhe de que tinham trocado mensagens no dia da
festa de Jaylen e que ele tinha dito que estava entusiasmado por a ver, mas
que isso era claramente uma mentira. Disse-lhe que tinha comprado roupa
nova para a festa porque pensava que ia perguntar-lhe se queria ser sua
namorada nessa noite. Mas ele mal olhou para ela na pista de dança, de tão
ocupado que estava a tentar encontrar a sua preciosa Anna.
Vronsky, de olhos pregados no chão, começou por dizer que lamentava
muito, mas Kimmie replicou que não estava à espera de um pedido de
desculpas dele. Ela assumia toda a responsabilidade pelo papel que tinha
tido naquilo tudo. Nunca devia ter ido a casa dele. Devia ter sido mais
explícita e ter-lhe dito que não estava confortável com a situação. Tinha
escolhido dizer-lhe a verdade sobre o quanto a magoara e que o
comportamento dele provava que ele não era o tipo simpático que fingia ser.
Mas, por estranho que parecesse, ela quase não se importava com a maneira
como tudo tinha acontecido, porque a jovem mulher que hoje se encontrava
perante ele era muito mais forte e menos ingénua do que a rapariguinha
insegura que ele deflorou no luxuoso sofá de cabedal italiano da mãe.
Ela disse-lhe para não se preocupar porque não ia contar a ninguém que
tinha vindo aqui hoje. Estava a fazer aquilo por ela, e ele já não lhe
interessava nada. Não se importava se nunca mais o visse, mas se isso
acontecesse, seria educada e esperava que ele a respeitasse o suficiente para
fazer o mesmo. Kimmie disse que tinha vindo a casa dele contar-lhe tudo
isto porque era a sua forma de seguir em frente, de dizer adeus ao passado,
de tirar a máscara de ovelha ao lobo e de revelar como ele realmente era.
Ela esperava que, a partir de agora, por causa dela, ele tratasse as suas
conquistas com um pouco mais de respeito, porque as raparigas bonitas,
mesmo que ele as visse como o seu brinquedo pessoal, também tinham
sentimentos. Perguntou-lhe se ele lhe queria dizer alguma coisa, agora que
ela já tinha acabado, mas ele só disse que lamentava tê-la magoado.
Acrescentou que, dantes, era egoísta, mas que, agora, era um homem
diferente, embora não tenha acrescentado qualquer explicação.
– Um homem a sério não encara o sexo como um desporto; e um homem
a sério não anda por aí a roubar as namoradas dos outros.
As narinas tremeram quando ele se levantou para a acompanhar à saída,
mas ela impediu-o. Ela era mais do que capaz de encontrar o caminho.
Enquanto descia o elevador, não tinha a certeza de se sentir melhor, mas
sabia que se sentia orgulhosa de si mesma por ter cumprido o seu novo
mantra de não aceitar merdas de ninguém, especialmente de um homem.

XIV
Vronsky sentou-se na cama em silêncio, chocado com a bomba de
Kimmie que lhe explodiu na cara. Não sabia o que fazer, por isso recostou-
se na cama e olhou para o teto, a tentar absorver tudo o que fora dito, não só
por Kimmie, mas também por Anna, que tinha aparecido vinte minutos
antes de Kimmie para lhe contar o que acontecera com Alexander.
De seguida, Anna saiu do armário de Vronsky e, ao fazê-lo, ele lembrou-
se de como se tinha escondido uma vez no armário do irmão, para o que
considerou ter sido o seu despertar sexual. Mas agora ocorreu-lhe que ver o
irmão a fazer sexo foi o que deu início à sua própria odisseia sexual e não
foi tão fixe como ele pensava. Talvez tenha sido aí que ele aprendeu a tratar
as mulheres da forma como o fazia.
A expressão de Anna era difícil de ler, mas o seu choque e consternação
eram óbvios. Ela não fazia ideia que Vronsky tinha tido relações sexuais
com Kimmie e ouvi-la partilhar como tudo a tinha magoado partiu-lhe o
coração e deixou-a com uma sensação de náusea. Sentada no armário a
ouvir, perguntou-se se Alexander não teria razão, que se calhar ela não
conhecia Vronsky tão bem como pensava. Como é que ele podia ter tratado
uma rapariga doce como Kimmie de forma tão sacana? Que tipo de homem
tira a virgindade a uma rapariga e nem sequer lhe liga no dia seguinte?
Claro, ela sabia que não estava em posição de julgar depois do que tinha
feito a Alexander, mas sabia que tinha agido mal e estava profundamente
arrependida. Não parecia ser esse o caso de Vronsky em relação a Kimmie.
Anna disse a Vronsky que ia fazer o que Alexander lhe tinha pedido.
Precisava de tempo para pensar e a intimidade entre eles estava a toldar o
que restava do seu bom senso. Anna estava particularmente magoada
porque, antes da interrupção de Kimmie, e apesar de ter dito a si própria e a
Alexander que não ia para a cama com Vronsky, tinha estado à beira de
dormir com ele de novo.
– Eu disse-te que fiz uma promessa a Alexander e quero cumpri-la –
disse ela numa voz tão baixa que ele teve de se inclinar para a frente para a
ouvir. – Só tivemos de esperar duas semanas, mas mesmo assim tentaste
fazer sexo comigo. Será que não vale a pena esperar por mim?
Vronsky deslizou da cama e ajoelhou-se. Implorou a Anna que não o
deixasse assim. Disse-lhe que estava arrependido, que ela tinha de o
perdoar. Ele mal conseguia resistir-lhe, tal como ela mal conseguia resistir-
lhe. Ele amava-a, amá-la-ia sempre, só a ela, para sempre. Admitiu que
tinha tratado todas as raparigas antes dela como lixo, e que agora via como
o seu comportamento estava errado. Ela era a coisa mais preciosa do mundo
para ele. Implorou-lhe uma segunda oportunidade.
– Tu conheces-me, Anna – disse ele, abatido, sem sequer se preocupar em
limpar as lágrimas que lhe caíam pelo rosto bonito. – Sabes que me
conheces. Tal como eu te conheço.
– Eu já não sei nada, Alexia – disse Anna, e estendeu involuntariamente a
mão para lhe tocar na cara, mas depois parou. – Não, isso não é verdade.
Sei uma coisa, a Kimmie tem o direito de estar magoada contigo, e agora
sei exatamente como ela se sente. Vou-me embora agora e, por favor, não
me ligues.
Anna saiu da casa de Vronsky atordoada. Estava fora de si e não sabia o
que fazer. Como é que a sua vida se tinha tornado tão complicada? E como
é que tudo aconteceu tão depressa? Os últimos dias tinham sido um
pesadelo, mas há meses que as coisas estavam descontroladas.
Anna ouviu um tilintar familiar e virou-se para ver uma carrinha da
Mister Softee estacionada em frente. Com um sorriso que provavelmente
era o seu primeiro sorriso em dias, ela acelerou o passo e foi buscar um
cone de gelado com molho de cereja.
Ela e Steven eram obcecados pelos gelados da Mister Softee quando eram
crianças e até fizeram um plano de negócios para o pai, chamado «Porque
precisamos de uma carrinha de gelados e como arranjar uma!»
Anna sentou-se num banco, tirou uma fotografia ao cone meio comido e
enviou-a a Steven com a mensagem: Quem me dera que fôssemos miúdos
outra vez! A vida era tão mais fácil! Ela ficou a ver as bolas a aparecer e
depois chegou a mensagem do irmão: Onde estás? Respondeu que estava a
passear sem rumo pelo Central Park. Vem para casa, escreveu ele.
Quando Anna entrou no apartamento, Steven estava à espera dela e, sem
sequer dizer olá, dirigiu-se logo para ele, abraçou o irmão e desatou a
chorar. Steven abraçou-a e disse-lhe que ia ficar tudo bem.
– Está tudo uma grande confusão – disse ela, limpando as lágrimas. – Já
não sei quem sou.
– Bem-vinda ao meu mundo – respondeu o irmão. – Devíamos ir ver um
filme da Marvel.
– Qual? – perguntou ela.
– Não sei, mas há sempre algum a passar.
Depois, a mãe deles chegou a casa e disse a Steven que precisava de falar
com Anna a sós. Anna abanou a cabeça e disse que tudo o que a mãe tinha
para dizer, Steven também podia ouvir.
A mãe concordou relutante e começou a falar, dizendo-lhes que tinha
recebido um telefonema da escola de Anna a dizer que ela tinha faltado às
aulas e que as suas notas, normalmente perfeitas, tinham caído a pique nas
últimas semanas. Sem dar à filha a oportunidade de responder, continuou a
dizer que também tinha ouvido uns rumores sobre Anna, Vronsky e
Alexander e exigia saber o que se estava a passar. Anna contou tudo à mãe,
deixando de fora a parte do sexo, e admitiu que estava completamente
desorientada e que, sinceramente, não sabia o que fazer.
– Bem, eu sei – respondeu a mãe de Anna de forma brusca. – Vais deixar
de perder o teu tempo com esse tal Vronsky e vais implorar ao Alexander
que te perdoe. A sério, Anna, não sei bem o que se passou e não quero
saber, mas estou muito desiludida contigo. O Alexander tem sido tão bom
para ti e não merece o que lhe fizeste. Só espero que o teu pai não saiba
disto; ficaria destroçado ao saber que a sua preciosa filha não é aquilo que
ele pensava que era.
Anna piscou os olhos muito depressa para manter as lágrimas à distância.
Estava chocada. A mãe raramente falava num tom tão cáustico com ela.
Dizer-lhe que o pai ia ficar desapontado era um tiro certeiro. Anna baixou a
cabeça e viu duas lágrimas caírem em simultâneo e molharem a ganga preta
das suas calças de marca. Ela queria dizer alguma coisa, mas não sabia o
quê.
– Estás a gozar com a minha cara? – disse Steven, com a voz a tremer de
fúria. – A Anna vale dez milhões de Alexanders! Implorar pelo perdão
daquele idiota? Só por cima do meu cadáver. O que quer que a Anna tenha
feito só lhe diz respeito a ela e a mais ninguém.
A mãe deles nunca foi grande fã de ripostar, mas aquilo era algo
completamente diferente.
– Aqui a mãe sou eu e posso falar com a minha filha como quiser. Sabes
o que é entrar no salão e descobrir que as pessoas andam a sussurrar sobre a
nossa filha? Que ela traiu o Orgulho de Greenwich quando ele estava de
cama com uma perna partida? Ela não é uma rapariga normal do liceu que
pode agir como uma cabra como se isso não importasse. Ela é a filha desta
família e tem de saber que as suas ações afetam toda a gente, tal como as
tuas nos afetaram quando foste expulso de todas as escolas da cidade!
– Achas que eu sou uma cabra? – perguntou Anna, incapaz de esconder
como aquilo a magoou. – Mãe, eu ia acabar com o Alexander, mas depois
não consegui, porque quem é que consegue acabar com um tipo que precisa
de uma arrastadeira? Eu… Eu… Eu não estou com o Vronsky só por
diversão. Nós amamo-nos!
– Oh, Anna, vê lá se cresces. Já ouvi muito sobre esse rapaz. Já se
apaixonou por metade das raparigas de Manhattan, da mesma forma que a
mãe dele «ama» todos os homens ricos a quem consegue deitar as mãos
arranjadas. É claro que ele te diz que és especial, é o que todos os homens
dizem quando te querem saltar para cima.
Anna abraçou os joelhos contra o peito e encostou a cara aos joelhos.
O que se está a passar? Como é que ela pode falar comigo desta maneira?
Não é suposto uma mãe proteger-nos?
– Diz-me, mãe – começou Steven, e agora a voz já não lhe tremia, estava
bastante calma e ponderada. – É isso que o gajo com a tatuagem do dragão
te diz quando te quer saltar para cima?
Anna levantou a cabeça e olhou para o irmão. Não fazia ideia do que ele
estava a falar.
– É isso mesmo, mãe – continuou Steven. – Eu sei como passaste o teu
Dia dos Namorados. O pai comprou-te um colar de diamantes de quarenta
mil dólares, mas acho que querias uma pérola… É assim que mostras o teu
respeito pelo pai?
A mãe levantou-se, com a cara pálida do choque. Alisou os vincos da saia
lápis preta e, sem dizer uma palavra, pegou na sua mala Birkin de pele de
crocodilo que estava em cima da mesinha no hall de entrada e saiu pela
porta da entrada, fechando-a atrás de si.
Anna olhou para o irmão com os olhos arregalados de espanto.
– O que raio é que aconteceu?
Steven sentou-se no sofá ao lado da irmã e abanou a cabeça. Abriu a
boca, mas antes que pudesse falar, o telemóvel começou a tocar. Steven
tirou o telemóvel do bolso e atendeu.
– Oh, meu Deus! – murmurou. – Quando?
– O que é que aconteceu? Quem era? – Anna agarrou no braço de Steven.
– Conta-me. – Apesar de estar chateada com Vronsky, a ideia de lhe ter
acontecido alguma coisa de mal enchia-a de pavor.
– Já te ligo. – Steven desligou e voltou a sentar-se no sofá.
– Estás a assustar-me, Steven! – gritou Anna. – O que é que aconteceu?
– O irmão do Dustin, o Nicholas… – disse Steven em voz baixa. –
Overdose de heroína. Morreu.

XV
Dustin não tinha um fato preto para usar no funeral do irmão, por isso
Steven e Anna levaram-no à Goodman Men e compraram-lhe um. Dustin
olhou para o seu reflexo no espelho triplo, a vestir um fato preto da Theory
e a camisa cinzenta que Steven tinha escolhido para ele. Por cima do
ombro, no espelho, viu Anna e Steven parados na porta atrás dele, cada um
deles com uma opção diferente de gravata escura na mão. Ver o irmão e a
irmã juntos fê-lo ter consciência da sua nova e fria realidade, e começou a
soluçar.
Dois dias depois, o funeral realizou-se no mesmo templo onde Dustin e
Nicholas tinham tido o seu bar mitzvah e o lugar estava novamente lotado.
Dustin não gostava muito de falar em público, mas na manhã da cerimónia
disse aos pais que queria dizer algumas palavras. O pai disse-lhe que não
era preciso, mas Dustin insistiu.
Ao olhar para o mar de pessoas vestidas de preto, Dustin demorou um
pouco antes de começar o discurso. Não era por causa da sua dor, embora
ela fosse enorme, era porque tinha visto Kimmie no meio da multidão,
sentada ao lado de Lolly, que estava sentada junto a Steven e Anna.
E apesar de Kimmie parecer pálida e triste e de ter um cabelo roxo meio
louco e selvagem, e apesar de o irmão ter tido uma overdose há três dias e
ter partido para sempre, o seu coração ainda batia com mais força por
Kimmie.
– O Nicholas era mais velho do que eu três anos. Todos os que nos
conheciam comentavam sempre como éramos diferentes, não só por eu ser
negro e adotado, mas também pelas nossas personalidades. Mas hoje estou
aqui para vos dizer que também somos muito parecidos. Foi o meu irmão
que me incutiu o amor pelo cinema e por isso estou-lhe eternamente grato.
Vi o meu primeiro filme para maiores de dezoito com ele quando tinha nove
anos. Estava a dar Dias de Loucura na HBO e os meus pais tinham ido a
um casamento, por isso ficámos sozinhos o dia todo. Não percebi grande
parte do filme, mas rimo-nos imenso na altura em que o Luke Wilson se
embebeda no casamento do amigo depois de apanhar a mulher a traí-lo e
começa a fazer um discurso hilariante sobre o porquê de o amor ser uma
porcaria, mas o seu outro amigo, Vince Vaughn, impede-o. Nada disto é
importante, mas o que é importante é que o meu irmão e eu passámos o
resto da tarde a inventar discursos engraçados que faríamos no casamento
um do outro quando fossemos grandes.
»O Nicholas ameaçou-me que ia contar a toda a gente que eu costumava
dormir com um garfo debaixo da almofada porque tinha mais medo de me
cortar do que de ter uma arma eficaz contra os monstros que pensava
estarem debaixo da minha cama. E eu disse-lhe que ia contar a toda a gente
que ele usava um pijama verde da Tigger até as unhas dos pés sujas lhe
rebentarem os pés, como se fosse o Hulk.
«Quando crescemos, ameaçávamo-nos sempre um ao outro com isso.
Dizíamos: “É melhor teres cuidado ou conto a toda a gente o que fizeste
quando fizer o brinde do teu casamento.” Eu sei que é uma coisa absurda,
nós os dois tão novos a falarmos dos nossos futuros casamentos, mas era
algo que fazíamos e é importante para mim que todos saibam que o meu
irmão era mais do que um drogado que teve uma overdose no Arizona.
»Tinha um discurso preparado que escrevi na noite em que soube que ele
tinha morrido. Era bastante épico, se é que o posso dizer, mas decidi não o
ler hoje. Porque estava demasiado zangado, porque estou mesmo furioso
com o meu irmão por se ter deixado levar pelo vício. Era demasiado
autocomiserativo, porque estou infinitamente mais triste por o meu irmão
ter partido. E era um manifesto completo sobre os perigos das drogas. Se
quiserem mais informações sobre a crise dos opiáceos, podem ler sobre isso
no The New York Times. Mas não se vai a um funeral para falar da tragédia
de uma vida. Num funeral, fala-se da sua beleza.
»A outra razão por que não vou fazer esse discurso é porque esta manhã
recebi uma carta do Nicholas, que ele me escreveu antes de morrer, e vou
partilhá-la convosco…
Dustin tirou um pedaço de papel dobrado do bolso interior do casaco,
desdobrou-o e começou a ler:
«Querido maninho, também conhecido como Desmiolado Fedorento,
estou a escrever-te esta carta numa folha do melhor papel de carta do
Holiday Inn com uma caneta muito barata que roubei na receção. Sei que
atualmente já ninguém escreve cartas por causa do e-mail e das
mensagens, mas sabes que eu odeio toda essa merda da tecnologia, por isso
estou a fazer a coisa retro e a enviar-te isto pelo correio, embora nem
sequer saiba onde arranjar um selo ou quanto custa.
Porque é que eu tenho papel de carta do Holiday Inn, perguntas tu? Boa
pergunta, espertalhão, sempre foste o génio da família. Bem, é porque estou
a usar o último dinheiro que te roubei (desculpa lá, sabes que to vou
devolver, mano) para celebrar o aniversário de um mês com a minha
namorada, a Natalia. Sim, a rapariga que conheci na reabilitação. Ela está
agora no duche e espero que lá fique a curtir durante algum tempo porque
a pressão da água na nossa casa é uma merda.
Tenho uma coisa muito importante para te dizer. Lembras-te do pequeno-
almoço de panquecas que tomámos no Bronx quando me vieste ver? Bem,
eu falei-te da Natalia, embora na altura não soubesse se ela me ia ligar,
por isso estava a fazer as coisas com calma. E contaste-me que uma
rapariga te partiu o coração. Estavas zangado e magoado e disseste-me
que o amor era sobrevalorizado e uma perda de tempo, e eu concordei e
depois tentei fazer-te sentir melhor dizendo que qualquer rapariga que não
visse como és fantástico era obviamente estúpida e que estarias melhor sem
ela.
Bem, estou a escrever para te dizer que não podia estar mais enganado
naquele dia. O amor não é sobrevalorizado ou uma perda de tempo. Acho
que toda a gente diz isso quando não está apaixonada, nunca esteve
apaixonada, ou esteve apaixonada e não correu bem. Porquê? Porque uma
vida sem amor é, na minha humilde opinião, uma vida sem nada. Eu era um
miúdo de merda e a mãe e o pai mereciam um filho melhor do que eu, mas
graças a Deus, literalmente graças a Deus, que te entregou a eles, porque
tu és o filho que qualquer pai teria muita sorte em ter. És como aquele filho
dos filmes que é mais sábio do que os pais e mais inteligente do que todos
os seus amigos estúpidos. Devíamos escrever um filme juntos, mano! Tenho
tantas ideias...
Seja como for, sei que tenho sido um falhado e quero que saibas que o
dinheiro das tuas propinas não foi um desperdício total, sim, o pai contou-
me o que fizeste por mim, gastando as tuas poupanças da faculdade para
mandar o meu cu estúpido para a reabilitação outra vez. Significa muito
para mim que tenhas acreditado em mim, e adoro-te pelo teu otimismo.
O que me leva ao meu próximo ponto. Vou ficar completamente lixado esta
noite, já a tenho comigo. Desculpa, meu, mas preciso de um último grito
antes de me endireitar para sempre. Sabes, não me conseguia lembrar da
última vez... da última vez que usei, e isso pareceu-me estranho, e por isso
quis fazer disso um acontecimento. Sei que parece que estou a dar
desculpas, e talvez esteja. Lembra-te do que dizem, nunca confies num
drogado, mas esta é a minha história e vou mantê-la.
O plano é o seguinte. Hoje vou celebrar com a minha miúda num hotel
como um verdadeiro chulo real, mas antes de o fazer vou dizer-lhe, como te
estou a dizer a ti, que é a minha última vez porque quero casar com ela e
passar o resto dos meus dias a lavar pratos com ela. Tu ias gostar dela,
meu. Ela é boa, sexy, engraçada como o raio, e o melhor de tudo é que me
chama à razão, e tu bem sabes que eu preciso. Amo-a. Ela fez-me acreditar
que há algo melhor para mim do que as drogas. Mal posso esperar para a
conheceres. Ela e eu temos grandes planos, que incluem comprar um carro
velho e atravessar o país para ir visitar um rapaz... e esse rapaz és tu.
O meu irmão mais novo. Porque eu amo-te e se aprendi alguma coisa sobre
a vida com os filmes, é que quando sentimos algo grande e sabemos algo
maior, devemos partilhá-lo com o mundo.
O teu irmão para sempre, Nicholas.
P.S. Oh sim, começa a escrever o teu brinde de casamento porque tenho
quase a certeza de que vou ser o primeiro de nós a precisar de um. E tira o
discurso do padrinho de merda da gaveta!
P.S.2: Lembras-te de eu ter dito que não estava a gostar do Kendrick
Lamar? A Natalia gosta dele, por isso estou a dar-lhe outra oportunidade.
Se isso não prova o meu amor, nada o fará.»
Dustin dobrou a carta e voltou a guardá-la no bolso interior e, quando
olhou para a multidão, viu que as pessoas estavam a chorar, mas também
estavam a sorrir.
– Bem, isto era tudo o que o Nicholas tinha para dizer, e por isso resume
tudo. Nicholas, foi uma honra ser teu irmão e vou sentir a tua falta todos os
dias. Muito bem, Rabino Kennison, pode continuar…

XVI
Fiel à sua palavra, Anna não enviava mensagens a Vronsky há mais de
uma semana. Não foi tão difícil como poderia ter sido, porque depois da
cerimónia fúnebre de Nicholas, a família de Dustin fez shivah durante sete
dias, alternando entre as casas da mãe e do pai. Anna e Steven foram no
primeiro dia e acabaram por ir todos os dias durante essa semana. O amigo
deles precisava claramente de apoio e, verdade seja dita, ambos precisavam
de tempo para refletir sobre as suas próprias vidas bem lixadas. Felizmente,
não havia espelhos que refletissem a tristeza deles, pois era costume judaico
que, quando se fazia o shivah, todos os espelhos da casa tinham de ser
tapados. O espelho era um meio de aceitar a importância social através da
aparência e, durante um período de luto, esses pensamentos superficiais
eram malvistos, por isso todos os espelhos permaneciam escondidos para
dissuadir as pessoas de se distraírem com a sua própria importância, quando
deviam estar a usar o tempo para refletir sobre o ente querido que tinha
falecido.
Dustin manteve-se quase sempre em silêncio, mas de vez em quando
exprimia os seus sentimentos em voz alta, alternando entre a tristeza
profunda por não voltar a ver o irmão e a raiva.
– Não faz sentido – disse Dustin. – Encontramos uma rapariga que
amamos e com quem queremos passar o resto da vida, e essa rapariga ama-
nos de verdade, então para quê consumir a droga mais viciante do planeta
outra vez? Será que ele não pensou que talvez o seu último grito pudesse
ser literalmente o seu último grito de vida? Que idiota de merda.
– Ele não sabia – disse Steven gentilmente. – Provavelmente avaliou mal
a quantidade que tomou, uma vez que já estava limpo há algum tempo. Ele
cometeu um erro. As pessoas cometem erros.
– E agora está morto – disse Dustin. – Foi um erro e tanto.
– Tiveste notícias dela? – perguntou Anna. – Da namorada do Nicholas?
– Não – respondeu Dustin. – Encontrámos o número dela no telemóvel
do meu irmão, mas está desligado.
– Se ela o amava, porque é que não veio ao funeral? – perguntou Steven.
– Culpa?
– A culpa não foi dela – disse Anna rapidamente. – Foi um acidente.
Talvez ela tenha medo que toda a gente a culpe.
– A minha mãe culpa-a – disse Dustin. – Também culpa o meu pai por
não o ter trazido de volta. Além de que está zangada por não lhe termos
contado que gastámos o meu dinheiro da faculdade na reabilitação do
Nicholas, ou do carro roubado, ou de tudo o resto. Ela odeia praticamente
toda a gente neste momento. É capaz de ficar presa na fase da «raiva» de
Kübler-Ross[18] durante algum tempo.
– Dustin, a tua mãe vai acabar por cair em si – disse Anna. – Quer dizer,
eu sei que também perdeste o teu irmão, mas um pai perder um filho é
suposto ser a pior coisa do mundo. Mas o que é que eu sei? Não sei nada de
nada. – Anna olhou para o chão.
Steven pôs a mão nas costas da irmã e fez-lhe uma festa.
– Está tudo lixado – disse ele. Steven e a mãe mal se falavam há dias e
ele não sabia o que fazer em relação a isso. Felizmente, o pai estava numa
viagem de negócios prolongada, por isso não estava por perto para reparar
que a mulher já não reconhecia nenhum dos filhos. Para Steven, a única
coisa positiva da morte do irmão de Dustin era que lhe dava a oportunidade
de se preocupar com os problemas de outra pessoa, problemas esses que
eram muito maiores do que os seus.
Dois dias depois do funeral de Nicholas, Steven apareceu à porta do
quarto de Anna. Disse-lhe que ia buscar a Lolly e que a seguir ia para o
centro da cidade, à casa do pai de Dustin, para o segundo dia de shivah, e
que ela também devia ir. Quando estavam do lado de fora da casa da mãe de
Lolly, Anna perguntou-se se Kimmie também viria, mas Lolly desceu
sozinha. Estava vestida com um simples vestido Prada preto, e segurava
dois pacotes embrulhados em papel de alumínio.
– Olá, malta – disse ela ao entrar no banco de trás. – Fiz pão de banana
para a família do Dustin. Um sem glúten e outro normal.
– É muito simpático da tua parte, Lolls – respondeu Anna. – A Kimmie
não quis vir?
– Ela disse que irá quando estiver pronta – explicou Lolly. Ela tinha
tentado explicar à irmã mais nova que era muito mais importante ser uma
boa amiga para Dustin num momento em que ele precisava tanto, do que as
coisas estúpidas que tinham acontecido entre ela, Anna e Vronsky. Mas
Kimmie disse que não era disso que se tratava.
Lolly estava apenas feliz por Kimmie ter parado de chorar a toda a hora e
por ter voltado a parecer muito mais saudável, embora continuasse
preocupada porque Kimmie parecia ter-se passado demasiado para o outro
lado. A mãe de Lolly tinha-lhe dito que não podiam julgá-la e que deviam
simplesmente oferecer o seu apoio incondicional até Kimmie se acalmar.
De acordo com o terapeuta, Kimmie estava a trabalhar nalgumas questões
emocionais complicadas, e o seu novo visual e atitude faziam parte do
processo.
Anna acenou com a cabeça, mas não disse nada. Há dois dias que
pensava no discurso fúnebre de Dustin sem parar. A carta do irmão sobre o
amor ser o sentido da vida, e como ele tinha finalmente aprendido isso por
causa de uma rapariga que tinha conhecido por acaso na reabilitação, era
simplesmente alucinante. Foi horrivelmente trágico Nicholas ter encontrado
a única coisa que lhe faltava na vida, mas ter morrido logo a seguir. Anna
não conseguia deixar de pensar que, se as coisas tivessem corrido de forma
diferente para Vronsky durante a corrida de obstáculos, podia ser ela a estar
de luto. Encontrei o amor da minha vida, mas neste momento estou a
escolher não estar com ele. Porquê? O que é que estou a tentar provar? E a
quem estou a tentar prová-lo? Eu ainda o amo; pergunto-me se ele ainda
me ama.
– Já falaste com a tua mãe? – perguntou Lolly. Steven tinha sido sincero
e contara-lhe o que tinha acontecido no Dia dos Namorados, bem como a
razão por que escondera isso dela. Lolly não ficou feliz, mas compreendia-
o. Foi um alívio para ela saber que o namorado andava tão estranho no
último mês e meio por causa do caso da mãe, e não por outra razão.
Estranhamente, Lolly sentiu que o que aconteceu com a mãe de Steven a
beneficiou a ela, mas nunca disse isso ao namorado. Tiveram uma longa
conversa sobre os sentimentos de Steven em relação à traição, e debateram
porque é que ele achava mais errado a mãe fazê-lo do que o pai. Lolly
salientou que ele tinha dois pesos e duas medidas, e ele concordou logo e
disse que estava a esforçar-se muito para compreender a raiz do seu
pensamento sexista. Ele também admitiu que ficaria devastado se
descobrisse que Lolly andava com outro homem nas suas costas e pediu-
lhe, não, implorou-lhe, que o avisasse se estivesse infeliz na relação ou com
ele, antes de se sentir tentada por outro homem. Lolly não lhe disse que
nunca se sentiu atraída por outro homem desde que estava com ele, mas a
verdade é que nunca se sentiu.
Mas o que foi ainda mais chocante para ela do que o caso da mãe de
Steven foi Anna ter traído Alexander com Vronsky. Esta revelação abalou o
mundo de Lolly. Ela viu Anna, completamente fora de si e em pânico,
desatar a correr para o campo como uma lunática depois do acidente de
cavalo, e o seu rosto espelhava o medo atroz de Vronsky poder estar ferido,
que ela parecia estar possuída. Era como aquelas lendas urbanas de mães
cheias de adrenalina que levantam veículos de novecentos quilos para
salvar os filhos. Lolly nunca tinha visto Anna a perder a calma antes, e
achou isso extremamente romântico. O que Anna fez não foi correto,
traindo Alexander pelas costas, mas Lolly compreendia a decisão de Anna
de esperar até Alexander estar melhor e independente antes de terminar com
ele. Lolly sabia que se ela estivesse numa posição semelhante, poderia ter
feito o mesmo. Ou teria feito?
Lolly descobriu que passar um dia sentada no shivah era mais do que
suficiente para ela. Ver a mãe de Dustin a definhar era demasiado para Lolly
aguentar durante quatro horas, quanto mais dias a fio, como Steven e Anna
estavam a fazer. Ela podia ver que tanto Steven como Anna estavam em
negação quanto às suas vidas problemáticas, e achou triste que tivesse sido
necessária a morte de alguém para levá-los a refletir nisso.

XVII
Quando Vronsky saiu da escola, ficou surpreendido ao ver o motorista de
longa data da mãe, Leonard, sentado na sua Ducati estacionada nas traseiras
da escola.
– É uma bela mota – disse Leonard, quando Vronsky se aproximou para o
cumprimentar. – A que velocidade chega? – Leonard já era motorista da
mãe antes de Vronsky nascer e, por isso, sentia-se como se fosse parte da
família. No entanto, Vronsky tinha cuidado com o que dizia ao pé dele,
porque sabia que a mãe pagava a lealdade de Leonard com a assinatura nos
cheques do seu ordenado (e também tinha pagado os estudos universitários
dos seus filhos).
– Pelo que ouvi dizer, atinge facilmente aos duzentos e trinta – respondeu
Vronsky com um sorriso. – Mas, pessoalmente, nunca ultrapassei o limite
de velocidade.
Leonard riu-se à gargalhada, passou a perna por cima do assento e
sentou-se na mota. Depois, informou Vronsky que a mãe queria vê-lo e que
o esperava no Hotel Pierre para tomar o chá das cinco com ela. Vronsky
disse educadamente ao motorista da mãe que tinha outros planos e pediu
que Leonard enviasse as suas desculpas à mãe.
– Não pode ser, senhor Vronsky – disse ele. – Desta vez, ela não está a
pedir.
– Tudo bem – respondeu Vronsky casualmente, com cuidado para não
deixar transparecer o seu aborrecimento. – Vou lá agora. – Deu um passo
em direção à mota, mas Leonard não fez qualquer movimento para descer.
– É suposto vir comigo, ou se tiver outro capacete posso ir consigo –
disse Leonard. – Não vale a pena discutir. Sabe bem como ela é. – Leonard
desceu cuidadosamente da mota.
Vronsky estava furioso e sentia-se tentado a saltar para cima da mota e
sair do parque, e que se lixassem Leonard e a mãe. Mas ele já tinha visto
como a mãe tornava a vida do irmão num inferno quando ele saía da linha.
Ao fim de um semestre na universidade, Kiril disse à mãe que ia desistir,
porque achava a faculdade uma perda de tempo. No dia seguinte, acordou e
viu os seus cartões de crédito cortados e a sua conta bancária vazia.
Aguentou dois dias antes de telefonar à mãe a pedir-lhe a opinião sobre se
devia tirar macro ou microeconomia no semestre seguinte; ela disse macro,
e Kiril tirou um A na disciplina como pedido de desculpas.
No banco de trás do Mercedes Maybach prateado da mãe, Vronsky
manteve-se em silêncio. Normalmente, não teria ficado ressentido com
Leonard, porque sabia que o homem estava apenas a fazer o seu trabalho,
mas não estava com disposição para conversa fiada. Há semanas que
Vronsky estava à espera que a mãe o repreendesse e até estava surpreendido
por ter demorado tanto tempo a chamá-lo. Desde que ficara obcecado por
Anna, sabia que tinha ignorado todas as outras áreas da sua vida. Só no
último mês, tinha cancelado as visitas à mãe meia dúzia de vezes e, de cada
vez que o fazia, esperava um telefonema dela, mas nenhum tinha chegado.
Vronsky calculou que a mãe estivesse envolvida num drama qualquer
pessoal e sentiu-se um sortudo por ela estar ocupada com outra coisa.
Fazia mais de uma semana que não tinha notícias de Anna e ele mal se
aguentava. Todos os dias, depois das aulas, ele percorria os quarenta
minutos até à Quinta Staugas na esperança de a ver, mas Anna não tinha
aparecido durante toda a semana. Então, em vez disso, ficava com Murf. No
início bebiam cervejas e Vronsky amuava, mas ao fim de dois dias de
queixas e reclamações, Murf pôs o amigo a trabalhar. Tinha acabado de ser
construído um novo barracão de armazenamento e Vronsky ajudou Murf a
organizá-lo. As costas de Vronsky ainda estavam magoadas da queda na
corrida de obstáculos, mas as nódoas negras eram agora amarelas e verdes,
em vez do roxo e vermelho furioso do início. Murf ensinou Vronsky a
manusear um berbequim elétrico, e guiou-o pacientemente enquanto
montava a primeira das oito prateleiras de aço industrial de dez por dez que
ocupariam duas paredes da unidade. Vronsky achou o trabalho monótono e
relaxante, embora continuasse sempre a pensar em Anna. O trabalho dava-
lhe algo para fazer, e era uma boa forma de voltar a cair nas boas graças do
Sr. Staugas, depois do desastre na corrida de obstáculos.
O que aconteceu não foi culpa dele. Foi o cavalo em segundo lugar, cujo
casco dianteiro cortou a tábua e a fez voar no ar. Frou Frou calculou mal o
salto por causa da tábua voadora e caiu sobre a vedação, fazendo com que
tudo se desmoronasse. A queda de Frou Frou provocou a colisão dos dois
cavalos que estavam atrás dele. Felizmente, Vronsky foi atirado do dorso de
Frou Frou antes que a égua caísse em cima dele e esmagasse todos os ossos
do seu corpo. Se não tivesse tido tanta sorte, poderia ter acabado como Frou
Frou, a debater-se no chão com as costas partidas, a gritar e a relinchar, com
as narinas dilatadas e os olhos selvagens e negros. A visão daquele animal
magnífico a contorcer-se de dor abalou Vronsky até ao âmago. Não
conseguia esquecer os últimos minutos de vida da égua desde o acidente, e
suspeitava que a imagem o iria assombrar para sempre. Sentiu-se tão
impotente enquanto tudo acontecia e recusou-se a ser examinado pelos
paramédicos até descobrir o destino da égua. Quando o Dr. Khurana, o
veterinário de animais de grande porte que estava presente, chegou ao local
segundos após a queda, e olhou para o animal que se contorcia no chão,
abanou a cabeça. Não era preciso ser um veterinário treinado para ver que
Frou Frou nunca mais se levantaria.
Vronsky queria confortar a pobre criatura, mas só conseguiu aproximar-
se depois de o médico ter dado um dardo tranquilizante à égua. Os gritos de
Frou Frou pararam quase de imediato, mas continuou a respirar
ruidosamente e com dificuldade, e os olhos ficaram baços por causa do
forte sedativo. Por fim, Vronsky aproximou-se do animal gigante e
acariciou-lhe o focinho, enquanto o veterinário administrava a injeção que
lhe poria fim à vida. Ele nem se apercebeu que estava a soluçar até que
Beatrice e Murf o afastaram do animal morto e o obrigaram a ser
examinado pelos paramédicos. Queriam dar a Vronsky uma injeção para as
dores nas costas, provavelmente provocadas pelas costelas partidas, mas ele
não deixou. Vronsky aceitou a dor como um castigo, porque estava coberto
de arrependimento. Honestamente, ele esperava ganhar tudo, e o seu plano
era dar a Anna a taça de prata da vitória. Murf tinha-o encontrado mesmo
antes da corrida e disse-lhe que Anna achava que era demasiado perigoso,
mas isso só o fez querer ainda mais. Ele era movido pela necessidade de
manter Anna a olhar para ele com o mesmo deslumbramento com que ele a
olhava ultimamente. Não só estava apaixonado por ela, como também
estava apaixonado pela forma como o respeito e a admiração dela o faziam
sentir. Ela fazia-o acreditar que podia fazer qualquer coisa e, como nunca
lhe faltara confiança, agora fazia-o sentir-se invencível. Quando ouviu o
estalido agudo do casco do outro cavalo a bater no obstáculo, reagiu
imediatamente, puxando as rédeas de Frou Frou para a esquerda. Vronsky
perguntou a si próprio, vezes sem conta, porque é que não tinha deixado a
experiência de Frou Frou guiar o caminho em vez do seu próprio medo. Se
o tivesse feito, será que Frou Frou ainda hoje estaria viva?
A primeira coisa em que pensou quando caiu ao chão foi em Anna. Se ela
estava a ver, que ele sabia que estava, e se ainda o amaria depois de ter
testemunhado a loucura da sua teimosia. Só mais tarde, depois de as
radiografias não revelarem qualquer hemorragia interna e de as costelas
terem sido ligadas pelo médico das urgências, é que Murf e Beatrice lhe
contaram o que tinha acontecido com Anna. Como toda a gente ali a tinha
visto correr para o campo em pânico, desesperada para saber se ele estava
bem. Quando o ouviu, sorriu pela primeira vez desde o acidente, mas
Beatrice continuou a contar-lhe que Alexander e Eleanor tinham aparecido
minutos antes da corrida começar e testemunhado todo aquele fiasco
espetacular.
– Anna conseguiu fazer o impensável – disse Beatrice. – Nunca tinha
visto o imperturbável OG tão, enfim... abananado.
Vronsky enviou-lhe mensagens através da aplicação WWF vezes sem
conta nessa noite, mas ela nunca lhe respondeu.

XVIII
Vronsky adorava o chá das cinco, embora jamais o admitisse a nenhum
dos seus amigos homens. Adorava a beleza dos pormenores, os tabuleiros
de prata com três andares, os petits fours maravilhosamente esculpidos no
andar de cima, as delicadas sanduíches sem côdea no andar do meio e o
calor crocante dos scones no fundo. Adorava as taças de leite creme e as
compotas aromatizadas, mas acima de tudo adorava o sabor doce e azedo da
mousse de limão, a sua preferida. Tinha tomado inúmeras vezes o chá das
cinco com a mãe um pouco por todo o mundo, mas os seus chás preferidos
continuavam a ser depois de ter ido a uma matiné de um espetáculo da
Broadway no fim de semana.
Este chá com Geneviève foi, de longe, o pior de todos. Assim que se
sentou à frente da mãe, ela fez uma careta.
– Estás horrível, Alexia – disse ela. – Precisas de cortar o cabelo e de
apanhar sol, a tua cor é assustadora.
– Também é um prazer ver-te, mãe – respondeu ele, e olhou em volta da
sala para ver se reconhecia alguém na multidão que o pudesse salvar da
situação. Voltou a olhar para a mãe quando ela bateu com a palma da mão
com força suficiente para fazer a porcelana de Limoges saltar e chocalhar.
– Vou arrancar-te esse sarcasmo da boca se não tiveres cuidado – sibilou
ela. – Hoje não é o dia para testares a minha paciência, não estou de bom
humor.
– Bem, então já somos dois – disse ele. – Vamos lá.
Apesar de o tornozelo de Geneviève estar curado, ela tinha comprado na
Sotheby’s uma bengala antiga com o topo em ouro que pertencera a um
imperador russo e ainda não se tinha cansado da sua beleza. Agora, usou-a
para bater nas pernas da cadeira do filho. O barulho fez com que todos os
clientes das mesas à volta se virassem boquiabertos, incluindo Vronsky, que
se sentou direito na cadeira, e respirou profundamente, o que não ajudou em
nada as suas costelas doridas.
– Mãe, estás a fazer uma cena – sussurrou ele. – Por favor.
– Alexia – disse a mãe alto, para marcar a sua posição. – Tu é que devias
ter vergonha de fazer cenas, não eu. – Continuou a dizer ao filho mais novo
que já tinha sido paciente o suficiente com os seus disparates por causa das
raparigas, mas que agora estava zangada a sério e que por isso decidira
intervir. Ela sabia que Beatrice nunca trairia a confiança do primo e lhe
contaria o que estava a acontecer, por isso Geneviève exigiu que Kiril
descobrisse o que pudesse sobre o que se estava a passar ultimamente com
o irmão.
– Acredito piamente que os homens devem fazer os seus disparates
quando são jovens – continuou ela. – Mas fazeres figura de parvo por causa
de uma jovem da alta sociedade que está comprometida é tão inaceitável
como repugnante. Em Greenwich só se fala de que andas atrás da Anna K.
como um cachorrinho ofegante atrás de um brinquedo estridente, e agora o
boato chegou a Manhattan.
– Eu amo-a – disse Vronsky sem pudores, e encontrou o olhar
desaprovador da mãe. – E a culpa não é minha.
– E de quem é a culpa? – perguntou ela. – É culpa do filho favorito de
Greenwich que, enquanto ele convalesce de um terrível acidente de carro, a
sua outrora leal namorada esteja a andar pela cidade toda contigo? Podias
ter-te matado durante aquela corrida, mas em vez disso mataste o cavalo!
À menção de Frou Frou, Alexia baixou os olhos envergonhado. Sabia
que a mãe tinha ouvido falar da tragédia na corrida de obstáculos porque, na
altura, estava a viajar com a mãe de Beatrice, a sua cunhada. Como não lhe
ligou, ele esperava que ela estivesse tão aliviada por ele ter saído ileso que
não fosse castigado.
– Vou comprar um cavalo novo para a Penelope – informou-o a mãe. –
Com o teu dinheiro, claro.
– Foi um acidente e já pedi desculpa à minha tia milhares de vezes –
disse ele, incapaz de olhar para a mãe quando o assunto não era a sua
amada Anna. – Sinto-me muito mal por causa da Frou Frou.
– E devias sentir-te – disse ela. – Mas não estamos aqui para falar disso.
Estamos aqui para que me digas que paraste de andar atrás da Anna e que
vais seguir em frente. Porque não vais visitar o Kiril à faculdade? Tenho a
certeza de que uma jovem universitária poderia devolver alguma cor à tua
cara.
Vronsky abanou a cabeça lentamente, horrorizado com a sugestão da
mãe. A ideia de outra rapariga que não fosse Anna era ridícula e tinha sido
assim desde o momento em que a viu pela primeira vez na estação de
comboios. Pegou numa sanduíche de pepino e queijo creme e enfiou-a na
boca.
– Esquece, mãe. Tenho zero interesse noutra pessoa.
A mãe suspirou e recostou-se na cadeira, e olhou para o filho mais novo.
Ele parecia terrivelmente triste e muito mais patético do que ela esperava, o
que a magoava. Ela conhecia demasiado bem a dor de casos amorosos que
correram mal. Já tinha traído e sido traída demasiadas vezes.
– Como conheci a rapariga, compreendo a atração – disse ela
suavemente. Geneviève não tinha problemas em zangar-se com o filho mais
velho, mas havia algo no seu filho mais novo, que saía completamente a ela
na beleza e no espírito travesso, que fazia com que ela não o conseguisse
repreender como devia. Tinha-lhe sido enviado um vídeo de Anna K.,
enlouquecida, a correr para o campo depois da queda de Vronsky do cavalo
e, embora não conseguisse ver a cara da jovem, a angústia de Anna
transparecia na sua postura e andar angustiados.
Geneviève sempre soube que Alexia ia ser um destruidor de corações,
mas nunca esperara que ele se tornasse um sedutor tão bem-sucedido aos
dezasseis anos. Anna K. era um troféu e tanto para a coleção dele e, embora
ela respeitasse o quanto lhe devia ter custado consegui-la, era seu dever
como mãe certificar-se de que ele entendia que o seu deslize devia ficar
gravado na cabeceira de uma cama e não no seu coração.
Ouvir o filho usar a palavra «amor» por outra mulher não lhe agradou
nada. Ela queria ser a única dona dos seus afetos mais profundos durante a
vida toda, e não tinha planos para o deixar ir tão facilmente. Geneviève
sabia que o devia mandar para um colégio interno e que a distância
geográfica era o que se impunha neste caso, mas ao olhar para o filho do
outro lado da mesa, sabia que ele não iria. O irmão mais velho, Kiril, só
aguentou dois dias sem dinheiro, mas ela sabia que Alexia era mais forte do
que o irmão e suficientemente astuto para aguentar muito mais tempo.
Precisava de lidar com a situação com muita delicadeza, e usar toda a
sabedoria e experiência que tinha acumulado ao longo da vida. Um passo
em falso da sua parte podia criar um fosso entre ela e o seu filho favorito, e
não era isso que desejava.
– Alexia, querido, toda esta situação desagradável tornou-se demasiado
pública. Deixa de a ver por uns tempos e, se daqui a um ano ainda sentires o
mesmo por ela, serei a primeira a dar-vos a minha bênção.
– Já não a vejo há nove dias, mãe – disse ele, como se nove dias fossem
nove anos.
– É um ótimo começo! Só faltam trezentos e cinquenta e seis...
– Isto está a matar-me! – continuou Vronsky, ignorando a mãe. – E não é
porque eu queira. Ela prometeu ao Alexander que ia tirar algum tempo para
decidir o que quer.
– Tu és sem dúvida o melhor homem, meu querido – admitiu a mãe. –
Mas ela é uma jovem mulher e Alexander W. podia assegurar o futuro dela.
Ele seria um primeiro marido maravilhoso. – Geneviève estava cansada de
tanto mau humor, e demasiada conversa fazia o seu chá arrefecer. Estava na
altura de trazer um pouco de leveza à discussão.
– E eu não lhe posso dar nada? – perguntou ele. Só de pensar que a mãe
estava do lado de Alexander fez-lhe ter vontade de passar o braço por cima
da mesa e fazer com que os tabuleiros de prata e a porcelana fina caíssem
ao chão, dando algo suculento aos clientes para se banquetearem mais tarde
com os amigos coscuvilheiros.
– Ainda és uma criança, Alexia – disse a mãe. – Porque haverias de
querer ter uma namorada agora com as dores de cabeça que isso traz? Tens
o mundo inteiro aos teus pés e há muitas outras raparigas por aí que te vão
fazer perguntar: «Anna quem?»
– Não, mãe! – interrompeu ele. – Ela é a única que eu quero. Não há
outra rapariga para mim.
– Está bem, mas se ela não te escolher, meu querido, não venhas chorar
no meu ombro. Estou a oferecer-te agora a oportunidade de ires para
qualquer escola em qualquer parte do mundo. A oferta expira assim que
acabarmos o chá.
– Obrigado, mas não – disse ele, e bebeu o último gole do seu chá de
rosa-mosqueta.
– Muito bem... – disse ela.
Vronsky esperou que a mãe terminasse o chá e ficou aliviado por não ter
havido mais nenhuma discussão sobre a sua vida amorosa. Em vez disso, a
mãe de Vronsky descreveu-lhe todas as peças de alta-costura que tinha
acabado de comprar na Europa, enquanto Alexia a ouvia obedientemente.
Só mais tarde, quando estavam na rua à espera que Leonard desse a volta
com o carro, é que Geneviève falou ao filho de Claudine, a filha do seu
amigo parisiense, que, informou o filho, ele iria acompanhar ao Coachella.
– Já falei dela à Beatrice e sei que há lugar no avião.
– Ainda não sei se vou, e mesmo que vá, não sou uma ama seca – disse
Vronsky, furioso de novo por a mãe se voltar a intrometer na vida dele.
– Vais, e vais fazer com que a Claudine se divirta muito – disse a mãe. –
Precisas de apanhar sol, e vai fazer bem distraíres-te. Acredita em mim, sei
muito bem como é a agonia de esperar que o nosso amado se decida. É o
nosso próprio inferno pessoal.

XIX
Kimmie ficou do lado de fora, no escuro, a fumar um cigarro do outro
lado da rua da casa da mãe de Dustin, enquanto esperava que Steven e Anna
saíssem. Lolly tinha-lhe contado que Steven e Anna iam fazer o shivah com
Dustin e a sua família todos os dias depois das aulas. Kimmie também
queria lá estar, mas primeiro queria ver Dustin sozinho. Por isso, esperou.
Colocou o pequeno cato num vaso de terracota no chão, junto aos pés, e
olhou para a planta espinhosa redonda que tinha escolhido. Tinha planeado
comprar flores, mas quando estava na florista, nenhuma das flores
brilhantes e perfumadas lhe pareceu o presente certo para a ocasião. Um
cato estava provavelmente no extremo oposto, mas havia qualquer coisa
nele que lhe transmitia algo e, nestes dias, ela estava a viver com base nos
seus instintos.
Por fim, Kimmie viu Steven e Anna a saírem e escondeu-se na sombra,
sem querer ser vista. Vestia o seu casaco à Natalia, calças de ganga e botas
pretas, e um gorro preto por cima do seu novo corte de cabelo curto. Tinha
passado cinco horas no cabeleireiro da mãe, depois da escola, e o cabelo
tinha voltado ao tom louro normal. Insistiu em manter um toque de cor e,
por isso, pintou duas madeixas cor-de-rosa de cada lado da risca. Depois de
pintar o cabelo, disse a Angela que também queria cortar o cabelo. Algo
curto, rebelde e fácil de cuidar. Mostrou à cabeleireira uma fotografia de
Molly Ringwald em A Garota do Vestido Cor-de-Rosa, mas Angela insistiu
em mandar uma mensagem à mãe dela antes de fazer uma mudança tão
drástica. A mãe de Kimmie mandou-lhe uma mensagem de volta a dizer que
não queria o corte de Ringwald e enviou-lhe algumas fotografias aprovadas
para escolher. Kimmie apontou para uma loira gira com um corte
desgrenhado pelos ombros.
– Quem é essa? – perguntou Kimmie. – Parece-me familiar, mas não sei
o nome dela.
– É a namoradinha da América – disse Angela. – Meg Ryan. Um Amor
Inevitável? Meu Deus, sinto-me velha neste momento.
Kimmie não gostou de como soava «namoradinha da América», mas
gostou do ar feliz de Sally. «Ser feliz» era o novo objetivo de Kimmie,
porque tinha começado a perceber que, enquanto Natalia tinha uma atitude
de «que se lixe o mundo» com naturalidade e desenvoltura, em Kimmie
parecia apenas que ela estava a fazer uma cara de pisei-bosta-de-cão 24
horas por dia, sete dias por semana.
Quando Kimmie recebeu a mensagem de Lolly a dizer que Nicholas
tinha morrido, a primeira coisa que fez foi ligar a Natalia, mas o número de
telefone estava súbita e suspeitosamente fora de serviço. De seguida,
verificou as contas do Instagram e do Snapchat de Natalia, mas também
tinham desaparecido. Claramente, o vinho no seu jantar de despedida tinha
sido um sinal sinistro dos problemas que estavam por vir. Perguntou-se se
Natalia teria experimentado a heroína com Nicholas, e ficou preocupada
que ela também tivesse tido uma overdose, mas achava que já teria ouvido
falar disso. Além disso, Natalia tinha dito a Kimmie que a heroína era a
droga que ela mais temia. A mãe tinha-lhe dito que, se alguma vez
apanhasse a filha a espetar uma agulha no braço, lhe raparia a cabeça como
castigo. Como o passatempo preferido de Natália era pintar madeixas, isso
era razão suficiente para levar a sério as ameaças da mãe.
Kimmie apagou o cigarro no passeio, abriu um pacote de pastilhas
elásticas e meteu várias na boca de uma só vez. Esperou na esquina que o
semáforo ficasse verde e depois atravessou a rua, com calma. O que é que
vou dizer à mãe do Dustin? O que é que vou dizer quando vir o pai dele?
«Olá, o senhor não sabe, mas estávamos no mesmo apartamento da última
vez que viu o seu filho mais velho vivo. Eu ouvi-o gritar com ele. Ouvi-o
contar-lhe algo que o seu outro filho lhe pediu para não contar. Ouvi-o
dizer que estava farto dele e, mesmo que não fosse a sério, disse essas
palavras e nunca terá a oportunidade de as retirar.» O que é que eu vou
dizer ao Dustin? Ela sabia que tinha de contar a Dustin que tinha estado no
Arizona, que a conhecia Natalia e o irmão dele, mas não queria nada. Isto
nunca teria acontecido se o Vronsky não me tivesse lixado. Meu Deus,
porque é que estás a pensar naquele sacana neste momento?
Kimmie estava a esforçar-se muito para assumir as suas próprias merdas,
mas era tão fácil voltar ao seu hábito infantil de culpar os outros pelos seus
problemas. Porque era tão difícil ser a pessoa que queria ser? Tinha-se
sentido muito melhor depois de ter dito tudo o que pensava a Vronsky
naquele dia. O terapeuta tinha ficado orgulhoso dela por ter dito o que
precisava de dizer sem grande drama e, honestamente, não tinha pensado
em Vronsky desde então, o que era um alívio, porque isso só provava que
ela nunca tinha estado realmente apaixonada por ele como achava. O amor
verdadeiro durava muito mais do que apenas dois meses, certo?
Respirou fundo.
Dustin estava sozinho na sala de estar quando a campainha tocou. Olhou
para o relógio da cozinha e viu que já passava das oito, o que significava
que o shivah tinha oficialmente terminado. Mas quando se dirigiu para o
intercomunicador, uma calma apoderou-se dele. Ele sabia quem estava à
porta.
Quando Kimmie disse quem era, Dustin sorriu ao premir o botão. Ficou
feliz por ela ter cumprido a palavra de o vir visitar durante a semana. Só
tinha dito quatro palavras a Kimmie depois do funeral: «Obrigado por teres
vindo.» Foi o que ele disse a toda a gente nesse dia. Tinha ficado tão
esgotado com toda a situação que não foi capaz de dizer mais nada, nem
mesmo a ela.
Lembrava-se do cabelo roxo de Kimmie no funeral, mas quando abriu a
porta e ela tirou o gorro, revelou o seu louro normal, só que o cabelo estava
muito mais curto. Deve ter ficado a olhar, porque ela anunciou logo que o
tinha pintado naquele dia e que tinha decidido fazer um novo corte de
cabelo de improviso.
– Pareces a Meg Ryan no meu filme preferido dela – disse Dustin. – Ela
era…
– A namoradinha da América? – disse Kimmie com um sorriso, não o que
tinha estado a praticar no elevador, mas um sorriso verdadeiro. Estava feliz
por ver Dustin e agradecida por não ter sido tão embaraçoso como temia. –
Tenho de admitir que não sei quem ela é. A minha mãe enviou a fotografia
dela à minha cabeleireira.
– Nunca viste o filme Um Amor Inevitável? – perguntou Dustin. –
A minha mãe arrastou-me a mim e ao Nicholas uma vez para... – Ele parou
abruptamente, a sua expressão era um misto de surpresa e tristeza por ter
mencionado de forma casual o irmão. Era a primeira vez, desde a morte de
Nicholas, que ele falava dele e não se lembrava que ele tinha morrido.
Respirou fundo e continuou. – Uma vez ela obrigou-nos a ver o filme com
ela no dia da Mãe. Depois disso, eu e o Nicholas víamos sempre que
passava na televisão, mas nunca admitíamos que gostávamos, e dizíamos
que só o estávamos a ver por respeito à mulher que nos criou.
– Vamos vê-lo – disse Kimmie de rompante. – Quer dizer, se não
estiveres ocupado ou assim.
– Um Amor Inevitável? – perguntou Dustin. – Não tens aulas amanhã?
– Tenho, mas já fiz os trabalhos de casa – disse Kimmie. – A escola
pública é muito mais fácil. A minha mãe saiu com o namorado, e a Lolly
está em casa a fazer compras online para o Coachella, por isso ela cobre-
me. Mas se não quiseres, não temos de o fazer.
– Sim, vamos ver – disse Dustin. – Tenho a certeza de que a minha mãe
tem na Apple Tv. É um dos filmes preferidos dela. Já o deve ter visto mais
de cem vezes.
Kimmie contou a Dustin como a mãe via 16 Primaveras enquanto
tomava Ambien e a sua imitação da mãe fez com que Dustin se risse pela
primeira vez desde que descobrira que já não tinha um irmão mais velho.
Sentiu-se culpado por uma fração de segundo, por se estar a divertir e a
passar um bom bocado quando Nicholas estava morto, pois nunca mais se
iria rir de novo, mas depois lembrou-se do conselho do irmão na carta que
lhe escreveu: o mais importante na vida era o amor, e se um tipo durão e
amante de rap como o irmão podia ficar todo lamechas por estar
apaixonado, então ele devia dar outra oportunidade ao amor.
E a única rapariga com quem isso era possível estava diante dele. Quando
ela olhou para ele, havia algo nos seus olhos que ele não conseguiu decifrar.
Ela parou por momentos e depois respirou fundo.
– Preciso de te contar uma coisa.
– O que é? – disse ele e olhou para Kimmie; o rosto dela mostrava culpa
ou vergonha, ou ele não sabia o que era. – Está tudo bem, podes contar-me
tudo.
Ele viu-a a ganhar coragem. Ela hesitou e depois começou a contar:
– Quando eu estava no Arizona…
Ela só precisou de dizer isto antes de ele saber exatamente do que se
tratava. Ele tinha andado a pensar em falar com ela pessoalmente sobre
isso, mas tinha decidido não o fazer, pelo menos por agora.
– Já sei o que vais dizer.
– Sabes? – perguntou ela, esperançosa e assustada ao mesmo tempo.
Dustin meteu a mão no bolso de trás, tirou a carta que Nicholas lhe tinha
escrito e desdobrou-a.
– Havia mais um P.S. na carta que eu não li no funeral – disse ele e
recitou as últimas palavras do irmão em voz alta: – «P.S. Conheci a tua
miúda Kimmie aqui. O raio do mundo é mesmo pequeno, não é? Ela não
sabia que eu era teu irmão e eu não lhe contei. Não sei porquê, mas não
disse. Ela é uma querida, um pouco perdida, mas não estamos todos?
A Natalia disse que ela lhe falou de um rapaz, aquele que fugiu… e claro
que eu pensei que era o rapaz bonito que a roubou de ti, mas não era. Eras
tu. Ela disse que eras o rapaz mais inteligente que ela já tinha conhecido, e
quando a Natalia lhe perguntou porque é que ela não tinha ficado contigo,
ela disse que era porque ainda não estava preparada. Meu! Devias ir em
frente. Ouve-me, sei do que estou a falar, porque sou teu irmão, o que
significa que alguma da tua inteligência deve ter passado para mim
também...» – Ele fez uma pausa e olhou para ela, os olhos de ambos a
brilharem com lágrimas. – Mas tu não sabias quem ele era, pois não?
Kimmie acenou com a cabeça.
– Sabia, mas só no fim. Odeias-me? Por favor, não me odeies...
– Porque te haveria de odiar?
– Porque se calhar podia ter feito alguma coisa, ter contado a alguém, ter-
lhe arranjado ajuda. Podia ter ficado, mas fui-me embora. Mas nunca o vi a
consumir, Dustin, juro que ele estava a tentar portar-se bem. Ele amava a
Natalia. Eles eram meus amigos. Sinto-me tão estúpida. Por favor, não me
odeies.
Sem pensar, Dustin pegou nas mãos dela e olhou-a intensamente.
– Kimmie, já te tentei odiar uma vez. Não resultou.
Ela largou-lhe as mãos e agarrou-lhe a cara, esmagando os lábios na boca
dele e deslizando a língua entre os lábios de ambos. Ela tinha os olhos
fechados; os dele estavam bem abertos. Ele queria recordar o momento para
sempre, mas enquanto se beijavam, deixou que as pálpebras se fechassem,
apercebendo-se de que esta memória não era sobre a imagem dela. Tratava-
se da sensação do seu toque, do seu sabor, do seu cheiro. Naquele momento,
ele estava cego.
Mais tarde, sentados no sofá da mãe, na sala de estar, Kimmie e Dustin
viram Um Amor Inevitável. Lembrou-se de como ele e o pai se tinham
sentado juntos no sofá e chorado por causa de Nicholas, meses antes, mas
nessa altura estavam sentados em pontas opostas do sofá de dois metros;
agora Dustin e Kimmie estavam sentados no centro, com a cabeça dela
apoiada no ombro dele. Ela estava a adorar o filme. Quando o filme acabou,
Kimmie virou-se para ele e disse:
– Adorei. É uma história maravilhosa.
– A sério? – perguntou Dustin. – De que é que mais gostaste?
– Gostei de eles terem sido amigos primeiro. E depois já não eram
amigos. E depois ele amava-a. E depois ela amava-o. E depois ele perdeu-a,
e depois apercebeu-se do seu erro e correu pelas ruas para lhe dizer que
tinha cometido um erro. E por ter acabado na véspera de Ano Novo, que foi
quando nos encontrámos pela primeira vez. Sabes, eu sou o Harry.
– Como assim?
– Sou aquele que não sabia o que tinha quando estava mesmo à frente do
meu nariz. Sou aquele que cometeu um erro e deixou uma coisa boa escapar
por entre os dedos.
Dustin ficou a olhar para Kimmie na sala de estar pouco iluminada.
A mãe nunca tinha substituído o candeeiro partido, mesmo ao fim de todos
estes meses.
– Eu não sabia – disse Kimmie em voz baixa. – Não me conhecia a mim
mesma. Não sabia o que queria. Na altura não sabia nada.
Dustin acenou lentamente com a cabeça.
– Está bem, então, eu sou a Meg Ryan e tu és o Billy Crystal? De que é
que estamos a falar exatamente?
Kimmie sorriu.
– Estou a dizer que quero que me convides de novo para ir ao baile
contigo. Agora que sou uma feminista de mão cheia, eu própria te
convidava. Mas o baile não é meu.
– Kimmie – disse Dustin, a desejar que o céu existisse e que o irmão
estivesse lá em cima a ver o momento saído de uma comédia romântica do
seu irmão mais novo, Um Amor Inevitável entre Kimmie e Dustin. – Queres
ir ao baile de finalistas comigo?
– Podes crer que sim – disse ela e voltou a aconchegar-se a ele,
entrelaçando os dedos nos dele e apertando-os com força.
Ela saiu pouco tempo depois e eles combinaram ir ao cinema no dia
seguinte. Ela recusou que ele a acompanhasse até à porta, e insistiu que
agora era uma pessoa diferente.
– Não estou a dizer que já sei quem sou – disse-lhe ela. – Mas estou a
tentar perceber. – Depois dela sair e de a ver, pela janela, entrar num táxi,
Dustin encostou a cabeça à porta e, olhando para o teto, falou em voz alta
para o irmão.
– Fico a dever-te uma, meu. À séria.

XX
Era a véspera do dia em que se deviam encontrar no aeroporto de
Greenwich para embarcar no Gulfstream G500, recentemente comprado
pelo pai de Beatrice, com destino a Coachella. A viagem de Spring Beak era
suposto ser uma mini reunião para os convidados da lista VIP do baile de
máscaras de Beatrice. Iam ver o concerto dos LiviX2 e tinham passes VIP
de artista, o que significava que podiam ver todos os concertos e podiam
percorrer os caminhos secretos nas zonas dos bastidores. Iam todos, exceto
o Rooster, que estava numa viagem de recrutamento de futebol.
Anna já tinha enviado uma mensagem a Beatrice a dizer-lhe que não ia;
no entanto, não resistiu muito quando o irmão argumentou que uma viagem
destas era precisamente o que eles precisavam.
– Temos de nos pirar – disse Steven à irmã. – Quem sabe que merda se
vai passar entre a mãe e o pai este fim de semana? – Depois de um longo
tratamento de gelo, Steven acordou para ir para a escola e encontrou a mãe
sentada na cama dele. Ela disse ao filho que tinha terminado o caso com o
Gajo com a Tatuagem do Dragão e que ia contar o seu erro ao pai quando
ele regressasse da Alemanha, dentro de dois dias. Quando Steven perguntou
à mãe porque é que ia contar ao marido sobre o caso se já tinha terminado
tudo, ficou surpreendido ao ouvir o raciocínio dela por detrás da decisão.
Ela explicou-lhe que há muito que sabia das infidelidades do marido e
que optou por fazer vista grossa. Dizia a si própria que era algo que todos
os homens poderosos faziam e que ia aceitar desde que nunca manchasse o
nome da família. Mas o padrão duplo dos homens infiéis que esperavam
que as esposas lhe fossem leais tinha começado lentamente a apodrecer
dentro dela. Pensou várias vezes em confrontá-lo, mas nunca encontrou a
força ou a coragem. Contou ao filho que só tinha sido infiel ao pai dos
filhos com aquela pessoa e que a humilhação de ser apanhada pelo próprio
filho a deixava profundamente envergonhada. Ela ia confessar tudo ao
marido como forma de iniciar a conversa. Se ele queria a liberdade de ter
amantes fora do casamento, então tinha de lhe dar os mesmos direitos, ou
era altura de se separarem.
Steven sentiu empatia pela mãe e, embora normalmente não gostasse de
discutir a sua vida sexual com a mulher que o deu à luz, decidiu que talvez
a sua experiência recente com Lolly pudesse ser útil.
– Se não fosse a Anna a convencer a Lolly a perdoar-me, e se a Lolly não
tivesse encontrado dentro dela o amor para o fazer, eu ia tornar-me como o
pai. Mas as coisas entre mim e a Loll estão melhores do que nunca. Agora
estamos mesmo felizes.
– Fico feliz por ti, Steven – respondeu ela. – Vês? Até uma miúda tão
novinha como a Lolly se respeita o suficiente para não tolerar maus
comportamentos. Eu tenho de bater o pé com um marido que diz que me
ama.
Steven garantiu à mãe que se via o quanto o pai a amava e que tinha a
certeza de que tudo se iria resolver. Era fácil para ele falar, mas era mais
difícil de acreditar. Steven desejava que a mãe confrontasse o marido com
as traições dele, sem lhe contar as suas. O orgulho do pai de Steven era
feroz e a sua herança coreana estava profundamente enraizada. Na cultura
coreana, os homens eram tidos em muito maior consideração do que as
mulheres e os padrões de comportamento eram bastante diferentes. Steven
sugeriu-lhe que passassem o fim de semana fora, sobretudo porque ele e
Anna iam estar na Califórnia.
A segunda e mais importante razão que fez Anna decidir ir ao Coachella
foi porque decidiu por fim o que fazer em relação a Alexander e Vronsky.
Alexander já não estava acamado e partiria para Cambridge nesse fim de
semana, na esperança de recuperar pelo menos alguns créditos naquele
semestre. Já se tinha matriculado nas aulas de verão, e contrataram um
fisioterapeuta particular para o ajudar até ele recuperar completamente.
Anna tinha visto Alexander apenas três vezes nas últimas semanas, desde
que ele lhe pedira um tempo para ela pensar na relação deles, e as visitas
tinham sido uma tortura para ela. Não ajudava que Eleanor lhe fizesse uma
emboscada de cada vez que saía, exigindo saber se Anna já se tinha
decidido.
Eleanor tinha ordens estritas do irmão mais velho para ser simpática com
Anna, por isso fingia o mais que podia, mas o seu desprezo transparecia em
cada sílaba que pronunciava. Uma vez, Eleanor não se conseguiu conter
depois de se terem despedido.
– Ele é D-B-P-T – sussurrou Eleanor.
Anna sabia que devia continuar a andar para o carro, mas cerrou os
punhos e virou-se para enfrentar a sua némesis de bandolete.
– O que foi isso, Eleanor?
– Demasiado. Bom. Para. Ti – repetiu Eleanor. – Eu sempre soube disso.
Estar disposto a dar-te uma segunda oportunidade faz dele um santo.
Anna nem se deu ao trabalho de responder, e sabia que isso ia deixar
Eleanor a contorcer-se, preocupada que Anna a denunciasse a Alexander.
Mas, quando entrou no carro, as suas mãos traíram-na ao apertar o volante
com demasiada força. Encostou o carro à berma da estrada assim que
desapareceu de vista e chorou. Durante as últimas duas semanas, Anna tinha
passado em revista os últimos três anos com Alexander. E embora ele nunca
tivesse sido o namorado mais excitante, tinha-a colocado num pedestal e
tratava-a como a uma rainha, por isso a sua lista de queixas não era tão
longa como ela gostaria.
Estranhamente, foram as palavras de Eleanor que ajudaram Anna a
decidir-se na manhã seguinte, quando acordou. Anna não concordava que
Alexander fosse demasiado bom para ela, pois ele tinha defeitos como toda
a gente. Concordava, sim, que Alexander seria aclamado santo por a aceitar
de volta, e a ideia de ser a namorada de um santo dava-lhe vontade de
encher os bolsos de pedras e atirar-se a um rio como Virginia Woolf. Já era
suficientemente difícil ser a namorada do filho preferido de Greenwich, por
que razão haveria ela de querer ser a namorada do Santo de Greenwich?
Depois do último exame, Anna foi até lá para contar a Alexander a sua
decisão. Ele recebeu a notícia com calma e admitiu que não tinha muitas
esperanças de uma reconciliação. Ela disse-lhe que esperava que um dia ele
a perdoasse pelo seu comportamento, mas também queria agradecer-lhe por
a ter pressionado a tirar o tempo necessário para pensar realmente no que
queria para a sua vida.
– Vou ver como é ser a Anna K. durante algum tempo, sem rótulos –
disse ela. – Não quero que o meu nome seja associado a nenhum rapaz. Vou
passar algum tempo sozinha.
Quando disse aquilo, estava a falar a sério. Mas também sabia que estava
pronta para ver Vronsky novamente. Tinha sentido imenso a falta dele. Se
decidissem começar a namorar, também seria maravilhoso, mas ela não ia
ser «a namorada do Vronsky». Se tinha aprendido alguma coisa fechada
dentro de um armário a ouvir Kimmie dizer-lhe das boas pela forma como
ele a tinha tratado, era que Vronsky ainda não estava pronto para ser
namorado dela ou de qualquer outra pessoa.
Foi bom para ela estar separada de Vronsky. Ajudou-a a clarear as ideias
e o corpo dos sentimentos avassaladores que tinha sentido durante o tempo
em que tiveram um caso secreto. Passou os dias a estudar, a dormir e a sair
com Dustin, que sempre a fez sentir-se a pessoa que queria ser. Claro que
houve milhares de vezes em que quis enviar mensagens a Vronsky, ou
telefonar-lhe, ou mesmo conduzir até à cidade a meio da noite para o ver
dormir, mas não o fez. Cada dia que passava tornava-se um pouco mais
fácil, os sintomas físicos da abstinência diminuíam, embora fosse
impossível para ela deixar de pensar nele. Como os seus sentimentos por ele
se mantinham verdadeiros, ela tinha a certeza de que estava mesmo
apaixonada pela primeira vez na vida e queria ver o que acontecia quando
conseguissem passar algum tempo genuíno juntos.
Decidiu não contactar Vronsky para lhe dizer que tinha acabado com
Alexander, e, em vez disso, deu a si própria mais um dia ou dois livres de
dramas de rapazes. Ela dar-lhe-ia a notícia no avião para Coachella. Um
festival de música do outro lado do país parecia ser o lugar perfeito para
começar a sua nova vida como rapariga solteira que podia dançar ou beijar
qualquer rapaz que escolhesse, embora só houvesse um rapaz com quem ela
queria fazer qualquer uma destas coisas. Anna perguntou a Steven se ele
tinha convencido Dustin a vir também, mas o irmão disse que achava que
era demasiado cedo para ele deixar a mãe.
– Não te preocupes, o Dustin não vai estar sozinho. A Kimmie apareceu
no sétimo dia do shivah, depois de termos partido, e os dois têm passado
algum tempo juntos.
Anna sentiu uma incrível onda de calor ao ouvir a notícia. Talvez, afinal
de contas, algo de bom se erguesse das cinzas da morte de Nicholas.
A coincidência de Kimmie ter passado algum tempo com Nicholas e a
namorada nas semanas antes da sua morte prematura, bem como a carta que
Nicholas escrevera a Dustin, tinham inspirado Anna e influenciado a sua
decisão. Ela acreditava que o amor era um poder maior do que tudo o resto,
e que quem estava sob o seu feitiço não tinha outra opção senão submeter-
se aos seus caprichos mágicos e excêntricos.
Anna também tinha um interesse egoísta em torcer por Kimmie e Dustin.
Se ela alguma vez decidisse começar a namorar com Vronsky, seria muito
menos embaraçoso agora que Kimmie e Dustin estavam juntos. Enquanto
terminava de fazer a mala para o Coachella, Anna sentiu uma centelha de
esperança dentro de si de que, afinal, talvez tudo fosse dar certo para todos.

XXI
Vronsky pediu a Beatrice para dizer a Anna que ia ao Coachella, mas que
voltaria para vir ter com ela a qualquer momento. Beatrice revirou os olhos
e disse ao primo que era a última vez que se envolvia naquilo. Em toda a
sua vida, sempre tinha gostado de um bom «drama», mas aquilo estava a
tornar-se um pouco ridículo. O caso sórdido deles e a subsequente
separação não só o estavam a aborrecer a ele, como estavam a aborrecer
Beatrice, o que, sinceramente, era inaceitável.
Beatrice chegou cedo ao avião, pois queria certificar-se de que estava
bem abastecido com a comida e as bebidas que tinha encomendado
especialmente para os amigos. Ela adorava a Califórnia e queria que todos
estivessem bem-dispostos para as miniférias de quatro dias em Indio, a
conviver com a elite de Hollywood. Beatrice estava farta dos suspeitos do
costume da Costa Leste e estava desejosa de ficar a par das histórias
devassas da La La Land e das pessoas bonitas da Costa Oeste.
Quando Vronsky e Claudine chegaram, Beatrice estava de bom humor e
feliz por ver o seu primo lamechas com melhor aspeto do que da última vez
que o vira. Mas estava muito mais entusiasmada por conhecer a sua
companheira de viagem. Quando Vronsky apresentou a prima a Claudine,
ela apercebeu-se de que já a tinha visto uma vez, quando as suas famílias
viajaram de Viena para Paris no Venice-Simplon Orient Express, quando
eram crianças. Claudine era dois anos mais nova do que ela e estava a
passar por uma fase estranha e pouco divertida, fazendo com que a beleza
de Beatrice se tornasse mais evidente, o que, por sua vez, levou a que
Beatrice gostasse imediatamente de Claudine. Agora, anos mais tarde,
Claudine entrou no avião e estava totalmente irreconhecível. Todos os
resquícios da sua fase desengonçada tinham desaparecido, substituídos por
curvas que faziam a adolescente parecer ainda mais velha do que Beatrice.
Claudine exibia os seus avantajados atributos de uma forma que só uma
mulher parisiense conseguia, com uma voluptuosidade tão elegante quanto
sedutora.
Vronsky não tinha qualquer interesse no isco que a mãe tinha
graciosamente posto diante dele. Mas nem mesmo ele tinha sido
completamente imune aos atributos de Claudine. A rapariga francesa estava
mais do que feliz por ser enviada para os Estados Unidos no avião privado
do marido de Geneviève, para distrair o filho destroçado de Geneviève da
rapariga que o tinha abandonado num mar de indecisão. Claudine tinha a
certeza de que seria bem-sucedida, pois nunca nenhum rapaz tinha
conseguido resistir aos seus encantos. Mas Claudine tinha também outro
objetivo para a sua viagem. A sua atenção estava virada para um troféu
ainda mais agradável do que o rapaz conhecido como Conde Vronsky.
Adaka, DandyZ e Clemente chegaram a seguir, o que significava que
estavam apenas à espera de Murf, Steven e Lolly para completar a festa.
Beatrice recebeu uma mensagem de Steven a dizer que chegavam daí a
cinco minutos e que Anna tinha decidido ir. Bea não ficou triste com a
mudança de opinião de Anna, como teria ficado há quinze minutos. Agora
estava entusiasmada. Beatrice tinha sentido o interesse de Claudine por ela
desde o momento em que a abraçou e lhe sussurrou ao ouvido que estava a
contar os dias até a voltar a ver.
– Nunca me esqueci que me deixaste praticar a forma certa de beijar no
teu pulso – disse Claudine, sem se importar que Beatrice não se lembrasse.
Agora Steven e Lolly subiam as escadas do avião privado com Anna
atrás. Beatrice bloqueou a visão de Vronsky da porta enquanto Claudine lhe
ensinava como os parisienses faziam os seus martinis. Assim que Anna
entrou, sorrindo com a antecipação de ver Vronsky, Beatrice saiu do
caminho mesmo a tempo de o ver comer a cereja que Claudine lhe estava a
pôr na boca. Bea adorou estar na primeira fila para ver o lampejo de ciúmes
a faiscar nos olhos de Anna, e por segundos acreditou que a amiga se ia
virar e fugir. Em vez disso, Anna gritou para Claudine:
– Achas que me podes fazer um também?
Ao ouvir a voz de Anna, Vronsky engasgou-se imediatamente com a
cereja. Anna ficou a ver Claudine levantar Vronsky do lugar, agarrá-lo por
trás e fazer a manobra de Heimlich até a cereja sair da boca de Vronsky e
cair aos pés de Anna. Claudine esfregou as costas de Vronsky e disse:
– Pronto, meu menino. A cereja grande e má já não te vai magoar. Anna
reprimiu uma gargalhada, o seu momento de ciúmes eclipsado pela gratidão
por esta francesa voluptuosa ter salvo o seu amor de um destino muito
embaraçoso.
– Estás aqui – balbuciou Vronsky numa voz rouca.
– Então, quem é a tua nova amiga? – perguntou Anna.
– Chamo-me Claudine. Deves ser a Anna – disse Claudine, e apertou-lhe
a mão. – Este pobre rapaz não para de falar em ti.
– Prazer em conhecer-te, Claudine.
Logo atrás deles, apareceu Murf com um cachimbo enorme que usou
como microfone na sua própria interpretação de «California Gurls», de
Katy Perry, que cantou como «California Kush» para deleite de todo o
avião.
Vronsky puxou Anna de lado e disse-lhe que estava muito feliz por a ver.
Anna olhou-o até ele terminar.
– Estás com ela?
– Anna, ela não é ninguém. É a filha de uma amiga da minha mãe, de
Paris. A minha mãe insistiu para que eu a trouxesse.
– Então a tua mãe agora odeia-me? – perguntou Anna muito séria. Mal
conseguia esconder a desilusão pela forma como o reencontro entre eles
estava a decorrer até agora. – É uma pena, porque eu achava que ela, de
entre todas as pessoas, seria a que não ia apontar os meus erros.
Vronsky não ficou feliz por Anna ter feito referência ao passado da mãe,
pois era indigno dela, mas disse a si próprio que ela tinha todo o direito de
estar chateada por a mãe dele os estar a tentar sabotar. Lembrou-se do que
Anna lhe tinha dito da última vez em que se viram, no dia em que Kimmie
apareceu e deitou mais achas na fogueira da insegurança dela. Anna tinha
dito que queria acreditar nele quando lhe dizia que ela era diferente de todas
as outras raparigas com quem tinha estado, e ele tinha jurado de joelhos que
era a única para ele.
– Por favor – disse Vronsky. – Tem sido uma tortura não te ver. Não nos
podemos focar no agora? Agora estás aqui. Agora estamos juntos. Não
quero desperdiçar nem mais um segundo. Amo-te, Anna.
Era a primeira vez que ele lhe dizia isto pessoalmente, e teria preferido
dizer-lho numa altura em que não estivesse sob pressão, mas era demasiado
tarde para isso. Ele precisava que ela soubesse o que significava para ele,
por isso disse-lhe a verdade.
– Amo-te para caraças, Anna. Amo-te mesmo à séria, amo-te como o
raio.
Anna sorriu.
– Bem, isso é bom, Alexia – disse ela. – Porque se te volto a apanhar a
olhar para a prateleira da Claudine, mato-te e enterro-te numa cova pouco
funda e deserta.
Ele riu-se, surpreendido com a súbita mudança de atitude de Anna, e
reparou que ela não lhe respondeu com a palavra começada por «A». Ele
sabia que não a merecia, dada a situação, mas queria ouvi-la na mesma.
– Então perdoaste-me? – perguntou ele.
– Não há nada para perdoar. Tu próprio o disseste – respondeu Anna e
depois passou por ele no avião. Pôs a cabeça de fora da porta e estendeu-lhe
a mão. – Precisamos de te levar para a Califórnia; estás a precisar
desesperadamente de te bronzeares.
Na parte da frente do avião, Beatrice não tirava os olhos do primo e
abanava a cabeça enquanto ele e Anna se aconchegavam um ao lado do
outro no assento de pele italiana cosido à mão.

XXII
A viagem de avião foi uma tortura para Anna e Alexia. Davam as mãos e
sussurravam um ao outro nos seus lugares na frente do avião, e ignoravam o
resto do grupo lá atrás, que estava a jogar uma versão de Marry, Fuck, Kill
que envolvia bebidas e todas as celebridades que se dizia estarem a
caminho do Coachella. Incapaz de se conter, Vronsky começou a beijar
Anna, e em breve estavam presos num abraço quente e pesado que fazia os
assentos deles abanarem de uma forma que se tornou demasiado ridícula
para os outros ignorarem.
– Por amor de Deus! – gritou Beatrice. – Arranjem um quarto, vocês os
dois!
Anna não precisou que lhe dissessem duas vezes. Levantou-se primeiro,
estendeu a mão a Alexia, que a agarrou com toda a força, e juntos
caminharam pelo corredor central em direção à parte de trás do avião, onde
havia um grande quarto com uma cama de casal. Anna não se importou com
a opinião dos outros – embora evitasse olhar para o irmão – e sorriu quando
toda a gente desatou a bater palmas em aprovação. Pela primeira vez na
vida, era uma rapariga solteira.
No quarto maravilhosamente decorado, Anna trancou a porta e ordenou a
Alexia que se despisse. Depois de ele se ter despido, ela tirou lentamente as
suas roupas e ficou fora do alcance dele. Quando ele se tocou, ela ordenou-
lhe que parasse, e disse-lhe que a única pessoa que podia tocar nele era ela.
Quando ela se moveu para cima da cama, provocou-o até ele se contorcer e
implorar por mais. Ela sentia-se poderosa e livre. Já não tinha medo que a
paixão deles se tivesse extinguido com a recente separação. Se alguma
coisa a incomodava, era o facto de estar ainda mais encantada com o belo
rapaz que jazia nu debaixo dela.
Forçou-se a ir devagar, querendo que durasse o máximo de tempo
possível, oferecendo uma parte do seu prazer aos deuses que os tinham
posto no caminho um do outro, destinados a encontrarem-se, a beijarem-se,
a foderem em segredo, e que tinham achado por bem separá-los, para que
pudessem corrigir os seus caminhos devassos e juntarem-se de novo como
duas pessoas que podiam pertencer uma à outra sem que nada se
interpusesse no caminho deles.
Quando ele estava dentro dela, ela recusou-se a deixá-lo mover-se e, em
vez disso, enterrou o rosto no seu pescoço, sussurrando que queria liderar
aquela dança. Começou a mover as ancas por cima dele e sentiu-o ofegar
por baixo dela.
– Alexia, meu Alexia – sussurrou ela, enquanto se afundava nele. Ela já
estava no auge da excitação e queria que eles atingissem o orgasmo juntos.
– Agora, agora, agora – gritou ela.
– Oh, meu Deus, eu amo-te Anna, só a ti! – gritou ele, enquanto se
vinham ao mesmo tempo. Imaginou o avião a cair, disposto a aceitar a
morte neste momento de felicidade, pois era melhor morrer abraçado à
rapariga que amava do que morrer sozinho num futuro distante.
Ficaram deitados nos braços um do outro durante a hora seguinte, a
saborear o êxtase da sua nova vida juntos. Anna disse-lhe que não ia ser
namorada dele, porque precisava de ser ela própria por uns tempos.
Explicou que não tinha interesse em mais ninguém além dele e que, se ele
estivesse interessado em mais alguém, bem, azar o dele. Ele riu-se e
concordou logo com as condições dela. Agora estavam juntos e era só isso
que lhe interessava. Ele não precisava de rotular o que tinham. Ela não era
dele para a possuir. E ele trabalharia de bom grado todos os dias para
ganhar o amor dela, se fosse preciso. Fizeram amor mais uma vez e
adormeceram, embalados pelo rugido dos motores, não acordando até o
avião aterrar no Aeroporto Internacional de Palm Springs, no deserto da
Califórnia.
Anna e Vronsky vestiram-se rapidamente e decidiram sair pela porta e
fingir que nada tinha acontecido. Quando Anna entrou na cabina principal,
viu toda a gente sentada nos seus lugares a olhar para os telemóveis em
silêncio. Apesar de estar envergonhada por ter de encarar o irmão mais
velho depois do que tinha acabado de acontecer, quando o viu, ficou
surpreendida por ver que o seu rosto era uma máscara de pura raiva.
– Steven? – perguntou ela, assustada. – O que se passa?
Steven desapertou o cinto de segurança e levantou-se num segundo.
Empurrou a irmã para fora do caminho e agarrou na camisa de Vronsky,
com a cara vermelha de fúria.
– Seu idiota de merda! – gritou ele.
Anna tentou agarrar o braço do irmão antes que ele desse um murro em
Vronsky, mas era demasiado tarde. O punho de Steven bateu na cara de
Vronsky e fê-lo cambalear para trás, atravessando a porta e caindo no chão
do quarto.
– Para com isso! – gritou Anna, mas a sua voz perdeu-se no meio do
caos. Murf puxou Steven de cima de Vronsky antes que ele lhe desse um
segundo murro, lutando para impedir o irmão de Anna de dar uma coça em
Vronsky.
Todos ficaram em silêncio quando o avião parou.
– O que se passa? – exigiu saber Anna. Ela estava agora ao lado do
assento de Lolly no corredor, e Lolly mostrou o telemóvel a Anna, que
olhou para ele. Era um vídeo, mas a iluminação era fraca, por isso Anna
demorou algum tempo a perceber o que estava a ver.
– Oh Anna – ouviu a voz de Vronsky gemer nas colunas do telefone, e os
seus olhos arregalaram-se de incredulidade. O vídeo fez zoom na sua
própria cara e tudo se tornou horrivelmente claro.
O vídeo mostrava Vronsky e ela a fazerem sexo no quarto dela. A cabeça
de Vronsky estava cortada na imagem, mas era o seu rabo nu que estava a
penetrá-la entre as pernas abertas dela com uma luxúria crua que a fez
estremecer. O vídeo tinha chegado num e-mail em massa para destinatários
não revelados, proveniente de um remetente: CountV1219@gmail.com.
Anna deixou cair o telemóvel no chão.
Não sabia para onde olhar, nem o que fazer, por isso virou-se e viu
Vronsky ainda esparramado no chão. Ele estava a ver o mesmo vídeo no
telemóvel de Murf. Ela desviou o olhar, não queria voltar a ver a cara dele.
Quem mais, senão ele, poderia ter filmado os seus momentos mais íntimos?
Anna sentou-se no lugar vazio ao lado de Lolly e olhou para Beatrice e
Claudine, que estavam sentadas uma ao lado da outra na parte da frente do
avião. Claudine teve o bom senso de desviar o olhar, mas Beatrice olhou
para Anna e disse num murmúrio:
– Não faço ideia... – O que era verdade, Beatrice não fazia a mínima
ideia de quem tinha divulgado o vídeo pornográfico de vingança para todos
verem. Ela já tinha enviado mensagens a vários amigos em Greenwich e
descobriu que tinha sido enviado para toda a escola. Não era óbvio, pelo
ângulo, que o tipo no vídeo fosse Vronsky, embora toda a gente no avião
soubesse que era ele. Mas era, sem dúvida, o rosto de Anna K., com os
olhos semicerrados de desejo, em pleno ato.
Beatrice tinha o poder de corrigir muitos erros sociais, mas algo como
aquilo estava para além do seu controlo. Mesmo que Beatrice quisesse, e
ela ainda não sabia se era esse o caso, não havia como salvar Anna K.
Anna começou-se a rir, o que não era a reação que ninguém no avião
esperava. Começou como uma risada, de uma menina da escola que acabou
de receber um bilhete sexy de um amigo na sala de aula, mas cresceu, até se
transformar num ataque de riso louco e descontrolado. Ela parecia uma
louca transtornada, sentada ao lado de uma Lolly aterrorizada, que olhava
para Steven, implorando-lhe com os olhos que fizesse alguma coisa. Steven
cuspiu em Vronsky, que ainda estava no chão com a cabeça entre as mãos, e
depois encaminhou-se para o corredor.
– Lolly! – gritou ele. – Vai buscar a mala da Anna, vamos sair deste
avião. – Anna levantou-se quando Steven lhe agarrou no braço e seguiu-o
enquanto ele saía pela porta aberta.
Ainda a rir-se como uma psicopata, Anna pegou numa garrafa de vodka
Tito e de um balde de gelo que estava no bar quando passou por ele.
– Acho que preciso mais disto do que tu, Bea! – disse ela, e desatou de
novo a rir às gargalhadas. – Paz! – E Anna saiu do avião…

XXIII
Steven estava aliviado por ter deixado Lolly convencê-lo semanas antes a
aceitar o convite de um dos amigos da mãe, que tinha uma casa em
Lexington Club, em vez de ficarem na moradia de seis assoalhadas que
Beatrice tinha arrendado para aquela semana, que também ficava no
condomínio fechado do clube de campo. A casa deles, um bungalow com
dois quartos, basicamente uma vivenda de piscina atrás do edifício
principal, ficava ao fundo da rua onde Beatrice e o resto do grupo estavam
alojados. A raiva dele ainda não tinha diminuído e Steven queria manter
Anna o mais longe possível de Vronsky.
Anna tentou ao máximo embebedar-se durante o trajeto no Uber, mas o
motorista ameaçou deixá-los na berma da estrada se ela não guardasse a
bebida. Steven arrancou a garrafa de vodka da mão da irmã e deu-a a Lolly
para guardar. Lolly colocou a garrafa na mala, feliz por ter alguma coisa
para fazer, porque ela estava a passar-se em silêncio. Não podia acreditar
que estava diante e no meio de um escândalo de um vídeo de sexo ao vivo!
Anna poderia tornar-se a próxima Paris H. ou Kim K.! – E havia rumores de
que a própria Kim K. estava hospedada a algumas casas da deles, o que era
mesmo de loucos; Kanye estava a fazer o seu serviço dominical da Páscoa.
Lolly olhava pela janela para a paisagem árida do deserto. Ela mal podia
acreditar como já tinha a pele seca, apesar de eles só estarem no deserto há
vinte minutos. Estava superfeliz por se ter lembrado de levar as suas loções
extra-hidratantes Creme de Corps.
Lolly tinha tantas perguntas para fazer a Anna, mas manteve-se calada e
decidiu dar-lhe algum espaço. Ela nunca tinha visto Steven bater em
ninguém e perguntou-se se a casa da piscina teria uma máquina de gelo, já
que mão dele devia estar inchada. Lolly não conseguia compreender por
que razão Vronsky teria tornado público um vídeo de sexo dele com Anna.
Qualquer pessoa podia ver que aquele gato estava mais do que apaixonado
por ela. Porque é que iria estragar tudo ao divulgar um vídeo de sexo? Ela
tinha tentado dizer isto a Steven, assim que o avião aterrou e os telemóveis
de todos começaram a apitar feitos loucos com todas as mensagens sobre o
assunto. Ela tinha mais de uma centena de mensagens perdidas, um novo
recorde, embora no início aquilo a tivesse assustado, porque presumiu que
alguém tinha morrido. Honestamente, parecia que os adolescentes se
preocupavam muito mais com um vídeo de sexo do que com a morte de
alguém. Mas Steven já estava louco de raiva nessa altura.
Pobre Anna, pensou Lolly. Anna estava mesmo a brilhar de felicidade
quando abriu a porta do quarto, apenas para encontrar toda a gente no avião
incapaz de olhar para ela. Bem, se houvesse algum consolo, o que
provavelmente não havia, Anna estava deslumbrante no vídeo e ela
obviamente tinha sido bem atendida. Lolly questionou-se como é que
ficaria quando estava a ter sexo com Steven. Talvez devessem filmar-se
para que ela pudesse descobrir. No entanto, teriam de apagar o vídeo logo
em seguida.
Quem poderá ter feito isto? Lolly preocupou-se por breves instantes que
Kimmie pudesse estar envolvida de alguma forma, pois a irmã tinha contas
para ajustar com Vronsky, sobretudo quando se tratava de Anna. Pensar
nisso fê-la ter suores frios, mas quando viu o vídeo pela segunda vez,
percebeu que eles estavam no quarto de Anna na casa de Greenwich, e não
no seu quarto em Central Park – onde Anna tinha uma cama antiga de
mogno com mais de cem anos. A cama dela em Greenwich era um dossel de
ferro forjado com acabamento fosco. Tanto quanto Lolly sabia, desde que
Kimmie voltara do Arizona, ela não teve tempo de viajar até Greenwich,
filmá-los a fazer sexo, e voltado sem que ela ou a mãe se apercebessem.
Anna vestiu um biquíni Valentino camuflado assim que chegaram ao
bungalow. Depois encheu um copo com gelo, pegou na sua garrafa de
vodka e instalou-se à beira da piscina com os auscultadores. Lolly ficou
impressionada por Anna não estar a chorar histérica. Se lhe tivesse
acontecido uma coisa daqueles, de certeza que estaria a chorar baba e
ranho.
– O que é que vamos fazer? – murmurou Lolly para Steven. – Devemos
voltar para casa?
– Não precisas de sussurrar, Lolls – disse Steven. – Ela não nos consegue
ouvir com a Adele a tocar. Ainda não tive notícias dos meus pais, o que
significa que eles ainda não descobriram, mas é só uma questão de tempo.
O meu pai vai passar-se da marmita quando souber. Vai ficar mais chateado
com isto do que com a traição da minha mãe. É a sua Anna, a menina
perfeita do papá.
– De certeza que há algum controlo de danos que possamos fazer – disse
Lolly.
– A Internet é para sempre, Lolly – lembrou-lhe Steven. – Todos os
adolescentes de Manhattan e do Connecticut já viram o vídeo. Ainda estás
no TMZ, certo?
Lolly acenou com a cabeça.
– Até agora tudo o que estão a cobrir são as chegadas ao Coachella, e eu
estava a pensar nisso. Eles não podem publicar o vídeo porque a Anna é
menor de idade. É tecnicamente pornografia infantil.
Steven ficou entusiasmado com a notícia. Pegou imediatamente no
telemóvel e respondeu ao misterioso e-mail, alertando todos os destinatários
que a publicação do vídeo era um crime federal por causa da idade de Anna
e Vronsky. Ele não sabia se isto iria melhorar a situação, mas tinha de tentar
alguma coisa.
– Podes ir a casa da Beatrice para ver como estão os ânimos? – perguntou
Steven. – Vou tentar falar com a Anna para ver se ela quer ficar ou ir para
casa. Duvido que consigamos arranjar um voo esta noite, a não ser que
aluguemos um avião privado. Não posso fazer um pagamento tão grande
com o meu cartão de crédito sem a aprovação do pai, e nem pensar que vou
ser o mensageiro que é morto ao dar-lhe a notícia de que a sua filha
preferida é a nova estrela de um filme pornográfico.
Lolly disse que iria assim que trocasse de roupa. Tinha feito uma grande
mala cheia de roupas novas e bonitas para o Coachella, e se eles iam
regressar no dia seguinte, ela queria pelo menos usar alguns visuais
diferentes antes de irem. Perguntou-se se Steven ficaria zangado com ela se
publicasse uma selfie do Coachella agora mesmo. Decidiu tirar algumas
fotos no quarto, e adiar a publicação até a fumaça passar.
Vinte minutos depois, Lolly entrou no quintal árido da moradia que
Beatrice arrendou, pois ninguém lhe abriu a porta quanto tocou à
campainha. Encontrou Beatrice e Claudina a nadarem nuas na enorme
piscina. Beatrice acenou-lhe amigavelmente, como se fosse um dia normal,
e disse alegremente a Lolly que estavam a matar tempo até que o ecstasy
que tinham tomado fizesse efeito.
– Junta-te a nós! – convidou Beatrice. – A água está superquente. É como
uma grande banheira de água salgada.
Nenhuma das raparigas nuas falou da questão de Anna e Vronsky, o que
obrigou Lolly a perguntar a Bea onde poderia encontrar o primo.
– Usa o teu nariz – gritou Beatrice da piscina. – Segue o rasto do fumo.
O V e o Murf estão algures por aqui, a tentar tratar da carra esmurrada dele.
O teu namorado bonzão sabe mesmo dar um murro, embora me surpreenda
que o Steven não o tenha arrumado com um golpe de karaté.
Lolly torceu o nariz ao comentário vagamente racista de Bea, mas deixou
passar. Talvez Bea estivesse chateada por causa do vídeo de sexo de Anna,
porque se havia rapariga do secundário que estava pronta para ficar famosa
com um, era Beatrice.
– O Steven não lhe devia ter batido – respondeu Lolly calmamente. – Eu
sei que não foi ele que mandou o e-mail. Quero dizer, ele não podia ter
enviado, pois não?
– Não sei, nem quero saber, Lolly fofinha, os vídeos de sexo são tão dez
anos atrás – disse Beatrice num tom cortante. – Não vês que estou ocupada
com a minha nova BBFF Claudine? O primeiro B é de Boazona, o segundo
B é de Bonita e o primeiro F é para o que estamos prestes a fazer uma à
outra depois do X entrar em ação.
Lolly acenou com a cabeça e entrou em casa. Podia ter sido a Bea a
divulgar o vídeo de sexo? Ela gabava-se de ter o seu próprio informático.
Talvez ela tenha agendado o lançamento para quando eles estavam a voar
para garantir que ninguém suspeitava dela. Mas porque faria ela isso ao
primo? Não fazia sentido. Vronsky parecia ser a única pessoa no planeta
com quem Beatrice se preocupava genuinamente, e ele nunca a perdoaria se
perdesse Anna por causa disto.
Lolly vagueou pela casa enorme, e espreitou em cada divisão, até que por
fim encontrou Vronsky e Murf sentados numa pequena varanda no andar de
cima. Tal como Beatrice previu, os dois rapazes estavam a partilhar um
charro bem gordo, e Vronsky segurava um pacote de vegetais congelados
contra a cara.
– Devias pôr um pano à volta do pacote, tolo – disse Lolly e tirou-o das
mãos de Vronsky. Ela pegou num lenço seu, embrulhou o pacote de
vegetais e devolveu-o. O olho direito dele já estava a ficar negro, mas não
parecia ter o nariz partido, e ainda bem, porque ele tinha um nariz perfeito.
Se o contexto fosse outro, Lolly ter-lhe-ia perguntado se o seu nariz era
natural ou se tinha sido esculpido por algum médico.
– Não mandaste o e-mail, pois não? Desculpa, mas tenho de perguntar. –
Lolly pegou no charro que Murf lhe estendeu e deu uma grande passa
enquanto aguardava pela resposta. Vronsky abanou a cabeça a dizer que
não, e ela acreditou nele, apesar de não conseguir ver os seus olhos por
causa dos vegetais congelados.
– Ele não mandou de certeza, Lolly – disse Murf. – Mas e a Kimmie?
O Vronsky disse que a tua irmã apareceu na casa dele sem avisar como uma
perseguidora quando voltou à cidade.
Lolly não reagiu, porque não queria que nenhum deles soubesse que esta
informação era nova para ela, embora estivesse magoada por Kimmie não
se ter dado ao trabalho de lhe contar.
– Também pensei no mesmo – admitiu Lolly, já a sentir os efeitos da
erva. – Mas não pode ter sido ela. Ela nunca esteve na casa da Anna em
Greenwich. Aquele vídeo foi feito em Greenwich, não foi?
Vronsky tirou o pacote de legumes congelados da cara e acenou com a
cabeça.
– Sim, era o quarto da Anna. Juro, Lolly, não fui eu que filmei. Nunca
faria isso à Anna, nem a ninguém! – Vronsky olhou para Lolly para ver se
ela acreditava nele e percebeu que sim. Ele sabia que não devia perguntar,
mas precisava de saber. – Como é que ela está?
– Nada bem, óbvio. Ela estava junto à piscina, a beber vodka diretamente
da garrafa quando eu saí, o que não faz nada o género da Anna. O Steven
disse que ia tentar falar com ela enquanto eu estivesse aqui. Ele está
furibundo. Mas já sabes isso.
– Não achas que isto vai passar daqui a uma semana ou duas? –
perguntou Murf. – Vocês, os miúdos ricos, têm sempre um drama do outro
mundo a acontecer, certo? Talvez apareça outro vídeo de sexo e toda a gente
se esqueça da Anna. Raios, eu tenho alguns vídeos no meu telemóvel que
podem funcionar.
Lolly abanou a cabeça.
– Estás a ser demasiado positivo, Murf. Isto é enorme. A Anna não é uma
rapariga normal. Ela é como a realeza de Nova Iorque e isto é uma grande
queda do topo. Aquele e-mail foi enviado uma hora depois de termos
descolado e, enquanto sobrevoávamos o país, chegou a todos os miúdos das
escolas privadas do país.
– Malta, acham que foi o OG? Quero dizer, ele ficou bastante queimado.
Mas usar isto para se vingar de uma miúda era muito chunga da parte dele.
E aquela miúda, a tal Eleanor?
– Nem pensar que o Alexander fez isto – disse Lolly. – Ele é demasiado
correto. Se as pessoas descobrissem, ele estaria também arruinado. Quero
dizer, não arruinado como a Anna, porque é sempre pior para as raparigas.
Ele nunca arriscaria a sua futura carreira de advogado. E a Eleanor? Nem
pensar, ela é demasiado boazinha.
– Ooooh, miúda – disse Murf. – Estás a dar uma de investigadora nesta
merda! És uma detetive chique e sexy, adoro isso. – Começou a rir-se e
deitou-se, olhando para o céu sem nuvens.
– Não ligues ao Murf, ele está todo frito – disse Vronsky. – Se eu
descobrir que o Alexander está por detrás disto, vou a Boston e mato-o com
as minhas próprias mãos.
– Álibi! – gritou Murf a plenos pulmões para toda a vizinhança ouvir. –
Estou disposto a ser o teu Kato Kaelin[19] preto, meu!
Apesar do assunto ser sério, desataram os três a rir às gargalhadas. Lolly
teve de se sentar, de tanto rir. Ela sabia que era a erva que estava a tornar
aquela situação terrível engraçada, mas sabia bem libertar a tensão. Nos
últimos tempos, tinha sido uma coisa atrás da outra.
– Como é que se chama esta coisa? – perguntou Lolly a Murf. – É tão
forte.
– Sonho Californiano, mas temos que renomeá-la para Pesadelo
Californiano – disse Murf. – Ei, esperem aí. – E virou-se para Vronsky. –
É a primeira vez que não quero estar na tua pele, sobretudo porque tens uns
sapatos Bertolucci brancos de que tenho inveja, mas também porque estás
mesmo fodido... e não no bom sentido, meu amigo, não no bom sentido.
Vronsky pousou o saco dos legumes congelados e tirou os óculos de sol
Thom Browne, recostando-se enquanto lhe mostrava o dedo do meio e
virava as costas ao mundo inteiro.
XXIV
Anna acordou na manhã seguinte com uma gigante dor de cabeça.
Arrastou-se até uma casa de banho estranha que não reconheceu e obrigou-
se a vomitar, o que não foi difícil. Não saiu muita coisa, apenas uma bílis
amarelada, que cheirava a ranço. Ela só queria voltar para a cama e dormir.
Perguntou-se se o irmão teria comprimidos para dormir ou Xanax. Lolly e
Steven estavam enroscados no quarto mais pequeno, e Anna sentiu uma
pontada de culpa por ter ficado com a grande cama de casal para si, embora
não se lembrasse de como tinha ido lá parar. Ver o irmão aninhado
pacificamente na namorada fê-la pensar na sesta que fez com Vronsky no
avião de Beatrice ainda no dia anterior, e a lembrança deu-lhe vontade de
vomitar outra vez.
Ela sabia que Steven guardava as drogas no fundo de uma bonita caixa de
joias em pele cor de laranja que ela lhe tinha oferecido há dois Natais. Era
um sítio especial para guardar os botões de punho e os relógios quando ele
viajava. Ela tinha mandado gravar as iniciais dele na pele fina e havia uma
fotografia na parte de dentro dos dois em criança a comer gelados num
banco de jardim. Por baixo de um fundo de couro falso, feito para esconder
as coisas mais valiosas, ela encontrou uma variedade de comprimidos, um
saco de cocaína e um pedaço de papel com duas filas de autocolantes de
emojis. Quando ela pegou nos autocolantes para os examinar mais de perto,
lembrou-se de que Steven lhe tinha dito que ele e Lolly iam tomar ácido
juntos no Coachella.
Steven já tinha tomado LSD algumas vezes no campo de férias do ténis
com um amigo de Los Angeles e tinha adorado, mas disse que a moca
durava tanto tempo que era impraticável tomá-lo muitas vezes. Ácido e
cogumelos eram drogas para eventos, tinha dito. Anna tinha ficado
surpreendida por Lolly estar disposta a experimentar um psicadélico, mas
como Lolly seguiria o irmão até aos confins da terra, fazia sentido que
quisesse fazer também uma viagem alucinogénia de doze horas com ele.
Doze horas pareciam uma eternidade para Anna, e quando Steven lhe
perguntou se queria juntar-se a eles, ela recusou educadamente. Mas agora,
no primeiro dia do resto da sua vida destruída pós-vídeo de sexo, parecia
uma fuga perfeita. Tirou um autocolante, fez uma careta ao ver a estúpida
carinha amarela a piscar, e colocou-o na língua. Ela estava à espera que
tivesse algum tipo de sabor, mas não sabia a nada. Deixou o autocolante na
língua até começar a dissolver-se e depois acordou o irmão para lhe contar
o que tinha feito.
Steven recebeu a notícia com calma e fez sinal para que Anna lhe levasse
a caixa de pele. Ele disse que ela precisava de um guia para a acompanhar
na viagem, e que por isso também ia tomar um. Lolly acordou e quando
Steven lhe explicou o que estavam a fazer, ela bocejou e depois pôs a sua
linda língua cor-de-rosa de fora. Nem pensar que ela ia ser deixada para
trás.
– O que é que vamos fazer agora? – perguntou Lolly.
– Vamos fazer aquilo por que viemos – respondeu Steven, e sentou-se na
cama. – Vamos curtir no Coachella.
Esta era a primeira vez de Steven, Lolly e Anna no Coachella, embora,
como todos os adolescentes americanos, eles tivessem visto vídeos e fotos
do festival durante anos. Estava mais quente, mais poeirento e mais cheio
do que eles pensavam, mas eles não eram os narradores mais fiáveis, pois
os três já estavam com uma moca descomunal quando chegaram ao
controlo de segurança VIP.
Depois de atravessarem a zona VIP principal, decidiram ir ver os palcos
mais pequenos e talvez andar na roda gigante antes que ficasse demasiado
cheio. Assim que passaram a vedação branca do relvado VIP, Anna agarrou-
se ao braço do irmão e disse-lhe que estava demasiado cheio. Steven
respondeu-lhe que estavam quase a chegar à zona VIP do Jardim das Rosas
e que aí ela ia ter sombra outra vez. Segurou firmemente em Anna e Lolly
enquanto o trio de pupilas dilatadas avançou lentamente através da multidão
animada que tinha ido ver os concertos, muitos deles vestidos com roupas
extravagantes e a tripar tanto ou mais do que eles. Havia sessenta e seis
atuações musicais diferentes no primeiro dia e os LiviX2 estavam
programados para atuar ao pôr do Sol no palco Mojave. A prioridade
número um de Steven era ver Anderson Paak e The Free Nationals,
enquanto Lolly e Anna estavam mortinhas por ver Billie Eilish.
Steven parou numa banca e comprou três águas, e aconselhou Anna e
Lolly a manterem-se hidratadas. Lolly anunciou que precisava de ir à casa
de banho e Steven disse que deviam esperar até chegarem à zona VIP, mas
Lolly disse que não podia. Steven apontou para a fila de raparigas à porta da
casa de banho e disse que ficaria ali por perto. Enquanto estavam na fila,
Lolly e Anna não falaram e deram as mãos para não se separarem
acidentalmente. Havia pessoas de todas as idades no Coachella, algumas
vestidas com o mesmo estilo chique-boémio do deserto da Califórnia, um
mar de calções de ganga rasgados e tops, botas de cowboy, chapéus e lenços
na cabeça, enquanto outros foram o mais extravagante possível, sendo que o
mais extremo era um com calças sem rabo e botas à motoqueiro, e a
rapariga com cabelo platinado à frente delas tinha calças à boca de sino cor-
de-rosa com padrão de leopardo e um top sem costas a condizer. Lolly
disse-lhe que gostava da roupa dela, e a rapariga anunciou com orgulho que
a mãe a tinha feito para ela usar no Coachella.
– É a minha terceira vez – disse a rapariga. – Está cada vez melhor, mas
as filas da casa de banho estão cada vez mais longas.
Quando Anna lhe perguntou como se chamava, a rapariga respondeu
Eleanor, e Lolly disse-lhe que gostava do seu nome, apesar de conhecerem
uma rapariga na costa Leste chamada Eleanor, que era muito diferente dela.
A rapariga riu-se e pôs um par de óculos de sol cor-de-rosa em forma de
coração.
Assim que ela pôs os óculos de sol, Anna foi invadida por uma onda de
pânico, como um fantasma indesejado que tinha acabado de possuir o seu
corpo. Os óculos de sol pareciam distorcidos e enormes, e os corações
estavam esticados e a latejar como órgãos humanos de verdade.
– Lolly, eu não posso estar aqui – sussurrou Anna. – Vou procurar o
Steven. Sinto-me estranha. – Lolly acenou com a cabeça e perguntou à
Eleanor de Los Angeles se podia ficar com ela, porque tinha tomado ácidos
pela primeira vez e estava um pouco assustada. A rapariga sorriu e disse que
tinha tomado cogumelos, mas que era mais do que capaz de a ajudar
enquanto esperavam.
Anna andou de um lado para o outro à procura de Steven, mas não o
conseguia encontrar, apesar de ele estar a usar um boné de basebol
vermelho brilhante dos Hey Bridget. O problema era que todas as cores se
misturavam, por isso, olhar para a multidão para encontrar Steven era como
tentar resgatar o lápis de cera da cor certa numa caixa com noventa e seis
antes que se derretessem numa mancha de cera multicolorida, porque tinha
posto a caixa na máquina de secar por acidente enquanto tripava. O sol
estava demasiado forte e ela estava a sentir-se a arder. Um tipo com uma
peruca de palhaço aproximou-se dela e perguntou-lhe o nome dela.
– Porque é que queres saber? – perguntou Anna, de súbito assustada. –
Conheces-me? – A voz dela estava a ficar aterrorizada, e o palhaço levantou
as grandes mãos de luvas brancas e afastou-se lentamente, dizendo-lhe que
tinha pensado que ela era outra pessoa.
– Pensavas que eu era quem? – gritou ela. – Quem? Diz-me!
O palhaço gritou:
– Julieta. Pensei que eras a minha Julieta.
Aquilo deixou Anna tão triste, um Romeu com uma peruca de palhaço
tinha perdido a sua Julieta. Como é que ele a vai encontrar aqui? O chão
parecia estar a tremer e a inclinar-se sob os seus pés. Oh, meu Deus! pensou
ela. É um terramoto! Ela avistou uma tenda branca ao longe e, lembrando-
se do que Steven tinha dito sobre a tenda VIP, correu em direção a ela,
deixando cair a garrafa de água pelo caminho.
Quando chegou ao portão de segurança, pôs a pulseira amarela no sensor
e apareceu uma luz verde. Deu por si a caminhar por um belo jardim de
rosas e quase se sentou num banco, mas como as rosas balançavam com a
brisa do deserto, sentiu que as flores lhe estavam a sussurrar, por isso
continuou a andar, pois queria evitar quaisquer conversas alucinogénias.
A zona VIP estava menos cheia, e toda a gente tinha melhor aspeto, estava
menos suada e não estava vestida de palhaço. Encontrou uma pequena área
com um sofá, onde um casal estava de mãos dadas e a fumar, e espremeu-
se, murmurando um pedido de desculpas. Sentiu-se enjoada, e o chão
parecia estar a mexer-se. Não é um terramoto. Estás só a tropeçar. Está
tudo bem.
Havia uma zona pequena ao lado onde as pessoas estavam de pé junto a
uma vedação a ouvir o grupo que atuava no palco mais próximo. Anna
ficou paralisada pela multidão que dançava, observando os rastos de cores
que se desprendiam das roupas de todos. Foi então que o viu. Alexia estava
a dançar, rodeada por três raparigas, cada uma com uma peruca cor-de-rosa.
As raparigas riam-se e davam as mãos, num círculo cor-de-rosa com
Vronsky no centro.
Ele já se esqueceu de mim. Ele seguiu em frente e substituiu-me por três
raparigas asiáticas com cabelo de algodão-doce. Anna odiava as raparigas
e as suas estúpidas perucas cor-de-rosa. Odiava as suas caras e as suas
pernas longas bronzeadas. Odiava o casaco de ganga cor-de-rosa e as botas
curtas de cowboy azul-turquesa e vermelhas que a mais bonita das três
usava. Queria bater no rapaz louro que dançava. Queria arrancar todos os
caracóis da sua cabeça estúpida, mas não conseguia mexer-se. Sentia-se
como se fizesse parte do sofá, como se estivesse sentada num relógio
derretido de um quadro de Dali. O tempo está a derreter. Estou a derreter a
Anna, tique-taque, e em breve vou desaparecer. Ela ergueu a mão, e os seus
dedos pareciam mais compridos do que deviam. Alexia é o flautista que
toca a sua flauta e atrai todas as raparigas bonitas a dançar até à sua
cama, onde as vai penetrar e filmar, penetrar e filmar, tal como me fez a
mim…
Anna olhou novamente e viu que as três raparigas de cabelo cor-de-rosa
se tinham transformado numa só, e já não tinha a certeza se o rapaz louro
afinal era Vronsky. Como queria ver melhor, Anna levantou-se, mas perdeu
imediatamente o equilíbrio e caiu no chão. Mordeu o lábio e, quando tocou
na cara, ficou com os dedos cheios de sangue. A minha vida está a sair de
mim. Aterrorizada, Anna levantou-se e procurou a saída. Um segurança viu-
a a sangrar e aproximou-se para lhe perguntar se estava bem.
– Não, não estou – gritou ela.
Anna passou o resto do dia numa das tendas médicas, onde confessou à
enfermeira que tinha tomado LSD. Deram-lhe água, um saco de gelo e uma
cama. Passou as cinco horas seguintes enrolada numa pequena bola, a
apertar os olhos, vendo redemoinhos de cores que se moviam demasiado
depressa e eram demasiado brilhantes, mas quando voltou a abrir os olhos
viu uma rapariga japonesa ao seu lado a vomitar para uma arrastadeira de
plástico.
– Como é que te chamas? – perguntou Anna à rapariga depois de ela ter
parado de vomitar. – Sou a Anna.
– Eu sou a Julieta – disse a rapariga, a fungar. Tinha rebentado um vaso
sanguíneo por ter vomitado e tinha agora um olho vermelho de sangue.
Anna pensou em dizer à rapariga que o seu Romeu de peruca arco-íris
andava à sua procura, mas não o fez. Porque é que eu havia de os ajudar a
encontrarem-se um ao outro? A história do Romeu e Julieta tinha acabado
mal. Porque é que as pessoas lhe chamam uma história de amor quando os
dois acabam mortos? Não faz sentido. Porque é que nada faz sentido?

XXV
Já estava escuro e Murf tinha passado as últimas três horas à procura de
Anna, mas com mais de cem mil pessoas e pouca rede no telemóvel, era
uma tarefa impossível. Steven, que estava a tripar à séria, cruzou-se com ele
e explicou-lhe que tinha perdido a irmã e que não a conseguia encontrar.
Murf disse a Daler e a Rowney que se encontraria com eles mais tarde e
enviou uma mensagem a Vronsky a contar o que se passava. Vronsky, que
tinha decidido faltar aos concertos do dia, estava em casa a embebedar-se
na piscina e, quando apareceu no recinto do festival, estava podre de
bêbado. Murf teve de o ameaçar com um segundo olho negro antes de ele
concordar em ir-se embora, e explicou-lhe que não tinha tempo para tomar
conta dele naquele estado. Vronsky acenou com a cabeça e começou uma
longa e solitária caminhada de volta à saída, mas só depois de implorar ao
amigo que lhe enviasse uma mensagem quando encontrasse Anna.
Quando Murf encontrou Anna na tenda médica, ela estava a tremer com o
ar da noite, apesar de ter um cobertor à volta dos ombros. A enfermeira não
queria dar alta a Anna e deixá-la ir com ele, e explicou-lhe que precisava de
telefonar aos pais de Anna. Murf disse que os pais de Anna tinham morrido
e, apesar de Anna estar quase a voltar ao normal, quando ouviu a mentira de
Murf começou a chorar. A enfermeira disse-lhes que não lhe pagavam o
suficiente para lidar com aquele tipo de tretas e pediu-lhes que se fossem
embora.
O Coachella depois de escurecer tinha um aspeto totalmente diferente e,
se Anna não estivesse tão infeliz, teria achado tudo glorioso e magicamente
belo. O céu era iluminado por instalações artísticas gigantescas, mas a
escuridão tornava difícil de ver. Murf pôs uma máscara na cara para o
proteger do pó, pois o vento tinha aumentado, e eles abriram caminho por
entre a multidão em direção à zona VIP onde Steven disse que ia estar. De
repente, Anna parou de andar, recusando-se a continuar.
– Vamos, estamos quase lá – disse Murf.
Anna apontou para um ecrã próximo que brilhava com chamas
vermelhas. – Escuta! Ela está a falar de mim.
Murf olhou para o ecrã gigante para onde Anna apontava, mas não
conhecia a jovem de dezassete anos que cantava no palco: «Não digas que
não te avisei. Todas as boas raparigas vão para o inferno...»
– Anna, estás a passar-te. É só uma canção. Tu não vais para o inferno.
Anna começou a chorar, sentou-se na relva e pôs a cara entre as mãos, e
foi então que o Murf não teve outra alternativa senão pegar em Anna ao
colo e levá-la como a uma criança.
Murf levou Anna de volta para o bungalow e esperou com ela até Steven
e Lolly voltarem depois do concerto de Childish Gambino. Lolly, que ainda
estava a tripar, entrou a dançar e declarou que o Coachella era uma religião
e que ela era a sua mais recente discípula. Nunca na vida tinha tido um
momento tão mágico e louco.
Murf disse-lhes que Anna estava a fazer as malas para partir, o que fez
com que Lolly começasse a chorar com a ideia de não ficar para ver o
espetáculo de Ariana Grande no domingo à noite. Steven disse a Lolly que
tinha de fazer o que era melhor para a irmã e, embora ela tenha
compreendido racionalmente as palavras dele, irracionalmente não
conseguiu deixar de fazer beicinho e de andar de um lado para o outro. Ao
ouvir a confusão, Anna saiu a correr do quarto e disse que não conseguia
aguentar mais infelicidade e concordou em ficar o resto do fim de semana.
Incapaz de controlar as emoções, Lolly correu para Anna e abraçou-a com
tanta força e durante tanto tempo que Murf teve de a afastar. Lolly, outra
vez a chorar, jurou que as lágrimas eram lágrimas de gratidão por todas as
coisas boas que lhe estavam a acontecer ultimamente. De seguida, fez a
roda na sala de estar e correu para o quarto para trocar de novo de roupa.
– Então, presumo que o que acabei de testemunhar é uma boa viagem
com ácidos? – perguntou Anna com um sorriso triste. Steven explicou que
as drogas psicadélicas se alimentam da energia psíquica interna e do estado
emocional da pessoa, e que por isso era quase inevitável a viagem infeliz de
Anna, tendo em conta tudo o que se estava a passar. Disse à irmã que se ela
ainda se quisesse ir embora do Coachella, ele iria com ela e que não se
devia preocupar com Lolly.
Anna abanou a cabeça e disse que não valia a pena ir-se embora porque,
sinceramente, já não havia lugar para se esconder. Abraçou o irmão e disse-
lhe que se ia deitar e que o veria de manhã.
Murf seguiu Anna até ao quarto e tentou mais uma vez falar sobre
Vronsky, mas assim que mencionou o seu nome, Anna tapou os ouvidos e
cantarolou: «Lalalalalalalala», até ele se calar. Antes de sair, Murf garantiu
a Anna que tinha a certeza absoluta de que Alexia não tinha nada que ver
com o vídeo de sexo. Anna não fez qualquer comentário e apenas lhe
agarrou na cara com as mãos e disse:
– Salvaste-me, Murf. Eu estava perdida e tu salvaste-me.
Quando Murf regressou a casa de Beatrice, sabia duas coisas: uma, que
não ia experimentar LSD no dia seguinte, como tinha planeado, porque os
ácidos pareciam estúpidos como a merda, e duas, que não ia ver Anna no
dia seguinte. De manhã, quando acordou entre Daler e Rowney, a primeira
coisa que pensou foi: Ela foi-se embora.
Mais tarde, no Coachella, Steven confirmou as suspeitas de Murf e disse-
lhe que acordou com um bilhete de Anna, a informá-lo de que precisava de
sair de Dodge e que ia para a praia. Incapaz de dormir, decidiu que não
fazia sentido deixar a música no meio do deserto para a enfrentar a música
em Nova Iorque, embora de um tipo muito diferente. Como sabia que a sua
vida em casa nunca mais seria a mesma depois de confessar aos pais que
tinha aparecido num vídeo de sexo, decidiu que mais valia tirar o resto do
fim de semana para si própria. Disse ao irmão para não se preocupar; não
estaria sozinha.
A irmã mais nova do pai, Jules, vivia em Los Angeles e trabalhava na
indústria cinematográfica e, por impulso, Anna ligou-lhe e perguntou-lhe se
podia ir para lá. Anna não conhecia muito bem a sua tia Jules, porque ela
não se dava com a mãe, a avó de Anna, e quando foi obrigada a escolher um
lado, o pai de Anna ficou do lado da mãe dele. Tanto quanto Anna sabia, o
pai só falava com a irmã algumas vezes por ano, e Anna só a tinha
conhecido quando era pequena. Anna e Steven recebiam presentes de
aniversário da tia, normalmente alguma coisa de Hollywood ou um par de
óculos de sol de edição limitada, mas não havia qualquer outro contacto
entre eles.
Jules não pareceu perturbada ao receber o telefonema de Anna às quatro
da manhã e enviou-lhe uma mensagem com a sua morada em Malibu.
Quando Anna chegou, ficou espantada ao ver que a tia tinha um terra-nova
castanho gigante que, quando se pôs de pé nas patas traseiras junto à
vedação de madeira que rodeava a casa, era tão alto como Anna.
– Como é que eu não sabia que também tinhas um terra-nova? –
perguntou Anna. – Porque é que o pai não me disse?
A tia de Anna contou-lhe que foi o pai de Anna que lhe ofereceu o seu
primeiro terra-nova há doze anos. Este era o segundo cão dela. Disse a
Anna que o irmão lhe tinha enviado a fotografia do cão de Anna a ganhar o
prémio em Westminster.
– Parecias tão feliz nessas fotografias!
A tia Jules disse-lhe que o marido ainda estava a dormir, por isso instalou
Anna no quarto de hóspedes, uma garagem convertida com uma pesada
porta de madeira deslizante. Quando Anna se deitou na cama, sorriu porque
conseguia ouvir o mar ao fundo da rua.
Anna passou todo o dia seguinte debaixo de um guarda-sol em Broad
Beach, sentada ao lado da tia, que estava a ler um livro e não lhe tinha feito
qualquer pergunta sobre o motivo da sua presença ali, exceto para saber se o
pai sabia onde ela estava. Anna explicou que os pais pensavam que ela
estava no Coachella e que só a esperavam em casa na segunda-feira à noite.
– Está bem, não me vou intrometer – disse-lhe a tia Jules. – Quando
estiveres pronta para falar, falamos.
Anna estava tão grata pela atitude descontraída da tia que os olhos se
encheram de lágrimas, mas antes que uma lágrima caísse, Kimba, o terra-
nova castanho da tia, sentou-se e lambeu-lhe a cara. Anna nunca tinha
nadado com um terra-nova, mas naquele dia nadou. Mandou uma
mensagem a Steven a dizer que estava em Malibu e que se encontraria com
ele e Lolly no aeroporto de Los Angeles na segunda-feira, para apanharem o
avião juntos para casa. Ela pediu desculpas por ter saído às escondidas, mas
o que ela queria, não, o que ela precisava, era de algum tempo sozinha.
Steven ficou feliz por ter notícias dela e pediu desculpa por não ser o
melhor guia de viagens com ácidos, mas prometeu ajudá-la a lidar com a
fúria dos pais, já que ele tinha muita experiência nesse departamento.
Anna passou o dia seguinte na praia, desde o momento em que acordou
até ao anoitecer. Não eram permitidos cães na praia e a polícia marítima
aparecia duas vezes por dia para multar os infratores, mas assim que eles se
iam embora, Kimba era bem-vinda. Anna enviou uma mensagem à tia Jules
quando a costa ficou livre, e ela e Kimba apareceram dez minutos depois.
Havia algo de mágico em ver um cão gigante a navegar no poderoso
oceano Pacífico, e Anna sentiu que podia ficar ali sentada a fazer aquilo
para sempre. Depois de escurecer, Anna e a tia caminharam pela praia e
Anna contou-lhe toda a história. Era bom falar sobre o assunto com um
adulto que não era o pai ou a mãe e, como a tia Jules escrevia para televisão
e cinema, Anna achou que não era do género de a julgar.
Quando Anna terminou, a tia perguntou-lhe se queria conselhos ou se
apenas precisava de desabafar. Nunca tinham feito essa pergunta a Anna,
mas quando pensou nisso, disse que se tinha sentido bem por ter falado de
tudo aberta e honestamente e que talvez ainda precisasse de mais algum
tempo a sós com os seus pensamentos. A tia concordou que isso parecia
sensato e explicou que ela e o marido viviam na zona oeste de Los Angeles,
mas que acabaram por se mudar para Malibu, porque sentia que o mar a
ajudava a pensar nas coisas com clareza, o que para uma escritora era
importante.
Nessa noite, o marido da tia Jules, Wilson, grelhou quatro filet mignons e
oito maçarocas de milho, e comeram juntos no terraço, com Kimba a
receber o seu próprio bife no final da refeição, que comeu com uma só
dentada hilariante. Anna adorava ouvir as histórias de Hollywood que não
tinham nada que ver com ela. Nessa noite, não pensou uma única vez nos
seus problemas e, quando foi para a cama, Kimba juntou-se a ela. Os cães
de Anna nunca podiam dormir na cama, mas a tia Jules disse que eles
viviam de acordo com as regras da casa da praia, o que significava que ia
ficar areia em todo o lado, por isso que se lixassem as regras.
Na manhã seguinte, a tia Jules levou Anna ao aeroporto, mas não falaram
muito. Anna olhava para o oceano Pacífico à sua direita e fantasiava sobre
nunca mais voltar para a costa Leste e viver na praia para sempre. Quando
chegaram ao terminal, Anna sentiu a ansiedade a subir como a maré e disse:
– Pronto, estou assustada. Acho que agora preciso de um conselho.
– Confia no teu instinto, Anna – disse a tia. – Sei que soa mal, mas pelo
que ouvi, tomaste todas as decisões certas que podias tomar nos últimos
meses. Apaixonaste-te, lixaste as coisas um pouco, mas vai-se tudo resolver.
Mantém a cabeça baixa, e eventualmente vais conseguir passar pelo tubo de
merda em direção à liberdade.
– Está bem... – Anna respondeu timidamente. – O que é isso?
– A sério que nunca viste o filme Os Condenados de Shawshank?
Tim Robbins interpreta um homem injustamente acusado do assassínio
da mulher e, depois de anos e anos a raspar a parede da cela com uma
pequena picareta de geologia, consegue finalmente sair da prisão e tem de
rastejar meticulosamente, através de um longo cano de esgoto cheio de
merda. E quando sai, nunca se sentiu tão feliz. É um dos finais mais
incríveis da história do cinema. É isso que te espera no teu regresso a casa:
o teu cano de merda pessoal. Por isso, aceita-o e segue em frente,
centímetro a centímetro, e vais conseguir ultrapassá-lo. A cena do vídeo de
sexo? Isso foi apenas um azar da tua parte, por teres crescido na era dos
smartphones em que há zero privacidade. Aposto que não foi o Vronsky.
Aquele vídeo foi feito para te lixar. É vingança sexual.
Vingança sexual, pensou Anna, eram duas das palavras mais feias da
língua inglesa.
Anna e a tia abraçaram-se durante muito tempo no passeio, com Kimba a
pôr a cabeça de fora da janela de trás, ofegante.
– Vais ficar bem – disse a tia Jules mais uma vez. – Prometo. Ser
adolescente é uma treta, mas torna-se mais fácil à medida que se envelhece.
Na verdade, isso é mentira. Torna-se mais fácil quando nos estamos nas
tintas para o que os outros pensam de nós. Ah, não te esqueças de dizer ao
teu pai que lhe mando cumprimentos, está bem?
– Tia Jules, posso pedir-lhe um favor? – perguntou Anna. – Podes
telefonar-lhe e contar-lhe o que aconteceu? Não sei se sou capaz de o fazer.
Por favor?
– Acho que é para isso que servem as tias afastadas – disse ela. – «Ei,
maninho, eu sei que não nos vemos há cinco anos, mas nada une mais uma
família do que um vídeo de sexo!» Estou a brincar! Passa-me o vídeo e eu
mando-lho por SMS... Estou a brincar! Eu telefono-lhe. Agora vai, não
percas o teu voo.
Quando Anna atravessou as portas automáticas do aeroporto de Los
Angeles, sentiu-se tão preparada quanto possível para rastejar pelo cano de
esgoto até à salvação.

XXVI
Uma vez que estavam quase no fim do ano, e dadas as circunstâncias
atenuantes, a Greenwich Academy concordou em deixar Anna trabalhar
com um tutor e terminar o semestre em casa. Após uma investigação
exaustiva por parte dos funcionários da escola, não foi possível determinar
a origem do vídeo, e o caso foi entregue ao FBI, uma vez que a distribuição
de um vídeo de menores a ter relações sexuais é um crime federal. Em todas
as escolas privadas dos três Estados da zona, os alunos que tinham recebido
inicialmente o e-mail – e eram muitos – tiveram de verificar se a gravação
estava no telemóvel deles. Todas as cópias encontradas do vídeo de sexo de
Anna K. foram apagadas – apesar de ainda existirem muitas cópias a
circular se se soubesse a quem pedir.
Como prometido, a tia Jules, telefonou ao pai enquanto Anna estava a
voar para casa. Jules contou ao irmão mais velho o que tinha acontecido,
deixando de fora a história do ácido, e acabou por terminar com o vídeo de
sexo da filha que agora tinha sido visto por praticamente todos os
adolescentes da Costa Leste. Edward ouviu a irmã contar o que se passou
com a filha enquanto olhava para o oceano Atlântico do alpendre da casa
que ele e a mulher tinham alugado para passar o fim de semana em
Portland, Maine.
– Ela telefonou-te? – perguntou Edward a Jules, com quem não falava
desde o Natal, e apenas por breves instantes. – Porque é que ela não veio ter
comigo?
– Não estás a perceber, Eddie. Ultrapassa o teu estúpido orgulho! Se
fosses a Anna e descobrisses que alguém divulgou um vídeo teu a fazer
sexo, contavas? Fica contente por a Anna saber que precisava de ajuda e ter
vindo ter com um adulto.
– Oh, é isso que tu és agora? – disse Edward, irritado por nenhum dos
seus supostos amigos, que sem dúvida já tinham ouvido a notícia, se ter
dado ao trabalho de entrar em contacto.
– Eu vi o vídeo. É mau. Sabes, se ela quiser vir para Los Angeles e
acabar o liceu aqui, é muito bem-vinda.
– Eu mandava-a para Marte antes de a mandar para a terra dos frutos e
nozes.
– Meu Deus, continuas a ser um idiota. É um milagre teres conseguido
criar uma filha tão boa. Olha, ela pediu-me para te ligar. Eu liguei. Mas
agora tenho de ir ao meu frigorífico fazer uma sandes. Até logo, Eddie.
Eddie não demorou muito tempo a localizar o vídeo da filha em êxtase
com um rapaz. Fez pausa numa imagem da cara da rapariga. Era Anna, sem
dúvida. O grande plano granulado deixou-o enjoado, mas essa sensação foi
rapidamente substituída pela fúria.
Se fosse Steven, ele não teria ficado surpreendido. Mas Anna? Ela tinha
apenas dezassete anos. Depois do fim de semana em que a mulher lhe
confessara a traição, Edward já estava de mau humor. No seu escritório, em
casa, o pai de Anna olhava para a moldura Jay Strongwater, um coração
incrustado com joias vermelho e roxo, que mantinha na sua secretária. Há
dois anos, Anna tinha-lha oferecido no Dia do Pai. Vinha com uma
fotografia dos quatro sentados no alpendre da casa deles em Maui, uma
imagem rara em que toda a família parecia feliz por estar junta. Ficou a
olhar para a fotografia, para esta família aparentemente perfeita. Bonita,
rica, uma família que parecia ter tudo a seu favor. Atirou a moldura para o
outro lado da sala e viu-a esmagar-se contra um vaso coreano antigo que
estava na sua família há duzentos anos, o mesmo que tinha planeado
oferecer a Anna um dia.
Quando Anna e Steven chegaram do aeroporto, Edward mandou Anna
para o quarto sem olhar para ela e pediu ao filho que viesse ao seu
escritório. Anna fugiu para o quarto a chorar e Steven seguiu o pai. Eduardo
descarregou toda a sua raiva no filho, apesar de saber que era injusto.
Steven suportou a culpa do pai com um estoicismo que aprendeu com ele.
Aguentaria a ira do pai para proteger Anna. Steven esperou, sabendo que
não devia dizer uma palavra até que lhe fizessem uma pergunta direta.
– Devo mandá-la para um colégio interno? – perguntou o pai.
– Não sei – disse Steven. – Talvez devesses perguntar à Anna o que é que
ela quer.
– Ela é uma miúda – disse o pai. – Não sabe o que é melhor para ela. Não
pode compreender o alcance disto…
– A culpa não foi dela, pai. Simplesmente aconteceu – disse Steven,
sabendo que o pai estava demasiado zangado para ouvir a razão.
– As coisas não acontecem só por acontecer. As coisas acontecem por
outras razões. Falhei com ela como pai e tu falhaste com ela como irmão.
Porque não tomaste conta dela, ou estavas demasiado ocupado a divertir-te
com os teus amigos e a gastar o meu dinheiro? Achas que não sei o que se
está a passar?
Steven engoliu em seco e reparou que o pai não incluía a mãe no jogo das
culpas, apesar de ter a certeza de que ela estava provavelmente no topo da
lista.
– Talvez um colégio interno não seja uma ideia assim tão má. A Anna
podia ir para Deerfield comigo no próximo ano.
– Desde que eles a aceitem depois do que aconteceu.
– Pai, não estamos no século xix. Eu sei que estás sempre a dizer que ela
está arruinada, mas não está. Ela é a vítima aqui. Alguém lhe fez isto, e
claro, talvez já não tenha uma reputação imaculada, mas há tantos miúdos
nesta cidade que fizeram coisas muito piores do que…
– Não me interessam os filhos dos outros! – gritou Edward, e bateu com
o punho na secretária. – Só me importo com os meus.
Bateram à porta e Anna espreitou, com os olhos postos no chão e a voz a
tremer.
– Posso falar contigo, por favor? Podemos conversar?
– Não consigo olhar para ti neste momento, quanto mais falar… –
respondeu Edward, e desviou o olhar da filha, que saiu de novo para o
corredor. O peito de Steven doía pela irmã.
Mais tarde, o irmão disse-lhe que o pai tinha decidido que ela iria ficar
em Nova Iorque, de castigo, indefinidamente. Mandaram trazer os cães
dela, e Anna sentiria falta dos seus cavalos, mas estava feliz por voltar a
viver na mesma casa com Steven. E, pelo menos, os cães tratavam-na
exatamente da mesma maneira, apesar de ela não os poder ir passear. No dia
seguinte ao seu regresso, a mãe chamou Steven e Anna ao seu quarto e
disse-lhes que ela e o pai tinham decidido passar algum tempo separados.
Por agora, ela iria viver em Greenwich, enquanto ele ficaria em Nova
Iorque com eles. Quando Anna perguntou se aquilo era por sua causa, a mãe
respondeu que a vida dela não era a única que tinha explodido. Tudo o que
disse foi que o Maine não tinha corrido bem. A separação foi decidida antes
de saberem do que acontecera à filha.
– É óbvio – disse ela – que as tuas tretas não estão a ajudar.
– Vão divorciar-se? – perguntou Steven.
– Não sei – foi a resposta dela.
Dustin recebia agora a dobrar para dar explicações a Steven e a Anna e
para ajudá-los com os trabalhos da escola, mas Lolly já não tinha
autorização para se juntar a eles. Ela não levou isso a peito, pois estava
ocupada todos os dias depois da escola com os ensaios. Cada escola privada
da cidade tinha sido convidada a selecionar um número musical da sua peça
escolar para ser apresentado num grande concerto de fim de ano no Lincoln
Center. As receitas da venda dos bilhetes reverteriam para causas sociais.
Lolly foi a aluna escolhida para representar Spence, uma vez que tinha
interpretado Eliza na produção feminina de Hamilton da sua escola. Em
breve, ela faria a sua estreia no Lincoln Center diante de mil pessoas que
pagaram quinhentos dólares por bilhete para financiar a educação artística
dos jovens necessitados da cidade.
O mês passou mais depressa do que Anna pensava. Não sabia a extensão
das consequências do seu vídeo de sexo, porque não tinha visto ninguém do
mundo exterior para falar sobre o assunto. Passava os dias a ler livros, a
tocar muitas canções tristes no violino e a aprender a pintar cães e cavalos
vendo vídeos no YouTube. Estava feliz por ver Dustin e tinha reparado logo
na mudança dele. Ele tinha uma leveza, o brilho do amor recém-descoberto,
que ela reconheceu pois era igual ao olhar que ela tinha quando se olhava
ao espelho durante a sua história com Vronsky. O seu momento de
felicidade foi demasiado breve, mas pelo menos sabia que era possível
sentir-se algo tão grandioso. Dustin e Kimmie eram agora um casal e,
embora Dustin fosse demasiado educado para falar disso à frente dela, Anna
estava feliz por ele e fazia questão de lho dizer. Confortava-a saber que pelo
menos algumas pessoas, como Dustin e Kimmie, e o irmão e Lolly, podiam
ter uma hipótese de encontrar a felicidade juntos, mesmo que não tivesse
resultado para ela.
XXVII
Na noite do concerto de Lolly no Lincoln Center, Anna arranjou-se e
estava no hall de entrada quando o pai e Steven saíram dos seus quartos
vestidos a rigor para o espetáculo.
– Eu também vou – disse Anna. – Ou ainda sou prisioneira na minha
própria casa?
Antes que o pai pudesse responder, a mãe entrou, com os seus saltos altos
a fazer um som suave no chão de mármore. Os pais de Anna e Steven não
tinham contado a ninguém dos seus problemas conjugais e continuavam a
manter as aparências nos eventos sociais, com a maioria das pessoas a
assumir que a sua escassa presença se devia aos problemas com Anna.
Os quatro ficaram parados, incomodados, por um momento, até que o pai
de Anna abriu a porta de casa e os quatro seguiram no carro em silêncio.
Anna não fazia ideia de como seria a sua primeira aparição pública em
Nova Iorque desde o vídeo de sexo. De certeza que todo o alarido já teria
passado. Steven contara-lhe que todas as escolas de Manhattan tinham
trabalhado em conjunto para apagar o maior número possível de vídeos,
graças ao pai deles ter pedido alguns favores em Washington e ter oferecido
donativos como se fossem doces de Halloween. O solucionador de
problemas da mãe de Vronsky também fez o que podia, mas o culpado
continuava à solta e toda a gente especulava quem seria a pessoa que tinha
derrubado a grande Anna K. Muitos achavam que tinha sido o OG, pois era
quem tinha mais motivos para se querer vingar. Anna tinha ouvido de
Steven sobre os vários rumores, mas não acreditava que fosse obra de
Alexander. Claro que ele era um suspeito provável, mas aquilo não era nada
o estilo dele e, por isso, ela aceitou o mistério da sua queda como isso
mesmo, um mistério. Porque, afinal de contas, o que é que isso importava?
Quando a família de Anna chegou ao Lincoln Center, a multidão animada
ficou em silêncio. Os pais receberam cumprimentos educados, mas Anna
não pôde deixar de notar que ninguém olhava para ela. Ela e Steven
sentaram-se à frente, com os outros estudantes presentes no evento, e Anna
ficou feliz, a achar que os seus colegas seriam mais brandos com ela do que
os pais desiludidos, que não queriam ser lembrados de que se uma rapariga
como Anna podia ser apanhada num escândalo de um vídeo de sexo, então
só Deus sabia o que poderia acontecer à sua própria descendência.
Mas não foi mais fácil, nem de perto, nem de longe.
Todas as raparigas se afastaram de Anna, mas isso não era nada
comparado com os olhares que ela recebia dos rapazes quando passava:
risinhos, olhares de soslaio e gestos grosseiros, quando sabiam que Steven
não os podia ver. O que mais magoou Anna foi o sussurro que começou no
momento em que ela passou. Anna manteve a cabeça erguida e mordeu a
língua para manter as lágrimas à distância, mas quando viu Vronsky sentado
com Beatrice e Claudine, vacilou. Vronsky levantou-se logo para a
cumprimentar, genuinamente emocionado por a ver. Ele estava prestes a
estender-lhe a mão, mas Anna deu um passo atrás, olhou para os seus
Louboutin Mary Janes e abanou a cabeça.
– Por favor, Alexia – disse Anna em voz baixa. – Não faças isso.
Vronsky ficou atónito, mas respeitou a vontade de Anna e voltou a
sentar-se, sem tirar os olhos dela quando ela se sentou ao lado do irmão,
duas filas à frente deles.
– Podias tê-la cumprimentado – sussurrou ele com raiva para Beatrice. –
Seria a coisa mais simpática a fazer. Podias tê-la ajudado. Estão todos a ser
tão cretinos.
– Querido primo, não há ajuda possível para aquela rapariga – ripostou
Beatrice. – E tu, mais do que ninguém, devias saber que não sou simpática.
Além disso, tenho coisas mais importantes para fazer com a minha boca. –
Ela sorriu para Claudine e soprou-lhe um beijo, lambendo os lábios.
Anna sentou-se hirta ao lado do irmão, tentando processar o que tinha
acabado de acontecer. Nenhuma pessoa a tinha cumprimentado para além
de Vronsky. Era como se ela fosse um fantasma no seu próprio funeral,
invisível para toda a gente e, no entanto, objeto de mexericos.
– Queres ir embora? – perguntou Steven. – Não faz mal se quiseres.
– Não – disse Anna. – Este é o tubo de merda por onde tenho de rastejar,
e tenho de começar um dia.
– O que é que isso quer dizer? – perguntou Steven.
– É dos Condenados de Shawshank – disse Dustin, aparecendo ao lado
deles. – Steven, preciso mesmo de investir na tua formação
cinematográfica. É patética.
Anna sorriu para Dustin, que estava agachado ao lado dela na coxia.
Levantou-se para o abraçar e, quando recuou, viu Kimmie atrás dele. Era a
primeira vez que Anna e Kimmie se encontravam frente a frente desde a
noite na discoteca, há tantos meses. Anna estava assustada, sem saber se o
seu frágil ego conseguiria aguentar outro golpe, mas o medo desvaneceu-se
imediatamente quando Kimmie deu um passo em frente e abraçou Anna
calorosamente.
– Sempre a rapariga mais bonita da sala – disse Kimmie. – Não admira
que todos te odeiem.
Anna podia ter-se rido ou chorado, mas o riso venceu, porque percebeu
que Kimmie estava a brincar, mesmo que fosse verdade.
– Kimmie, quero mesmo pedir desculpa por…
Kimmie interrompeu Anna.
– Por favor, não o faças. Eu conhecia os riscos. Não precisava de lá estar.
Quem anda à chuva, molha-se.
Dustin explicou:
– É uma citação de Heat: Cidade Sob Pressão. Vimos o filme este fim de
semana.
As luzes acenderam-se e apagaram-se, a indicar que o espetáculo estava
prestes a começar. Kimmie e Dustin correram para os seus lugares,
entusiasmados por ver a atuação de Lolly. Quando as luzes se apagaram,
Anna sentiu-se melhor, aliviada por ter um momento sem todos a olharem
para ela com desdém. Estava a tentar não ter pensamentos negativos nestes
dias, mas não conseguia evitar a raiva crescente pela injustiça de tudo o que
lhe estava a acontecer. Sim, ela aparecia num vídeo de sexo. Aconteceu, e
depois? Toda a gente sabia que era Vronsky quem estava com ela, mas isso
não parecia importar. Como é que ele podia continuar a andar por aí sem
que ninguém pestanejasse?
A canção de Lolly foi o número final do primeiro ato, antes do intervalo.
Ela subiu ao palco, num lindo vestido Monique Lhuillier lavanda que tinha
visto no Rent the Runway, e que Steven mais tarde comprou para ela,
porque ela nunca lhe tinha parecido tão bela. Deu um passo em frente em
direção ao microfone, apresentando-se a si própria e à escola que estava a
representar. Depois olhou para baixo, prestes a começar a cantar, mas em
vez disso inclinou-se para o microfone e disse:
– Gostaria de dedicar a minha canção desta noite à irmã do meu
namorado e minha grande amiga, Anna K. Escolhi esta canção para ti. – A
multidão murmurou no escuro, mas Lolly não se importou. Ela tinha falado
do fundo do coração e queria fazer aquilo por Anna, porque, aos seus olhos,
ninguém precisava mais daquela música.
Lolly começou a cantar «It’s Quiet Uptown», a canção de Hamilton, que
contava a história de Eliza e do marido a lidar com as consequências
desoladoras da morte trágica do filho num duelo sem sentido. Falava de
duas pessoas que aprendiam a perdoar-se mutuamente pelos erros que
tinham cometido. Era também uma canção de redenção e perdão, sobre
como Eliza aprendeu a esquecer o passado e a perdoar o marido pelo seu
caso com outra mulher. O marido e a mulher enlutados uniram-se pela
morte do filho e aprenderam a amar-se de novo, apesar de todas as
probabilidades contra eles.
Afastamos o que nunca poderemos compreender
Afastamos o inimaginável.
Steven nunca amou Lolly tanto como quando ela dedicou a música à
irmã. Anna nunca se sentiu tão tocada por outra rapariga, a falar
corajosamente em seu nome perante uma multidão de hipócritas
desaprovadores. Kimmie nunca se sentiu tão orgulhosa da sua bela irmã,
que outrora pensara ser superficial e pouco profunda, mas que a
surpreendeu por ser tudo menos isso. E Dustin nunca se sentiu tão feliz por
estar sentado no teatro escuro, a segurar na mão da rapariga que amava.
E Vronsky? Vronsky olhava para a nuca de Anna no escuro e perguntava-se
se ela estaria a pensar nele da mesma forma que ele estava a pensar nela.
Apesar de não ver Anna há um mês, ela continuava a ser a primeira coisa
em que pensava quando acordava todas as manhãs e a última em que
pensava antes de adormecer.
Lolly foi aplaudida de pé e, quando as luzes se acenderam, Anna e Steven
repararam que os pais deles estavam a enxugar as lágrimas. Lolly foi ter
com Steven e Anna durante o intervalo e ficou emocionada por eles terem
ficado tão comovidos com a sua atuação. Anna deu a Lolly um abraço feroz
e agradeceu-lhe pela sua incrível demonstração de bondade.
– Lolly, espero não ter destruído a tua reputação.
– Oh, Anna, para com isso! – respondeu Lolly. – Costumava preocupar-
me com o que toda a gente pensava de mim, mas já não. Agora só me
preocupo com o que as pessoas que amo pensam de mim, e todos os outros
podem apodrecer no inferno! Se não fosses tu a incentivar-me a encontrar
no meu coração o perdão para Steven, não estaria aqui agora. Sou uma
pessoa melhor por isso, e nunca esquecerei o que fizeste por mim. Por nós.
Sou-te eternamente agradecida por me teres mostrado o caminho.
As duas raparigas abraçaram-se novamente e Steven, emocionado,
envolveu as suas duas miúdas preferidas com os braços. Anna estava agora
a chorar, mas as suas lágrimas eram de alegria. Pela primeira vez em muito
tempo, sentiu-se grata pelas pessoas que a rodeavam. Ela tinha passado pelo
inimaginável e ainda estava a rastejar na merda, mas agora tinha esperança
de que um dia, eventualmente, sairia do outro lado e seria livre de novo.
Pediu licença para ir à casa de banho e ficou sentada durante algum tempo
na cabina a secar os olhos. Quando se levantou para sair da casa de banho,
parou ao ouvir a voz de algumas raparigas a conversarem junto aos
espelhos.
– Acreditam que ela teve a lata de aparecer aqui? Se eu fosse ela, já tinha
saído da cidade. Ela merece tudo o que lhe…
– Veio toda aperaltada como uma senhora, mas continua a ser uma puta
com uma vida dupla, tal como a mãe. Ouviste? Eles estão separados e a
mãe está a viver sozinha em Greenwich.
– Viste? O pobre Alexander está aqui com a Eleanor. Ele deve odiar-se
por todos os anos que desperdiçou com aquele pedaço de lixo mestiço.
Anna esperou que a casa de banho se esvaziasse para sair. Sentia-se
péssima, mas estava demasiado atordoada para chorar. Saiu da casa de
banho, lavou as mãos e olhou para si própria ao espelho durante muito
tempo. Não gostou do que viu e sabia o que tinha de fazer. Saiu da casa de
banho e deu de caras com Alexander, que estava encostado à parede à
espera dela.
– Olá. – Foi tudo o que ela conseguiu dizer com a sua surpresa. Ela
reparou que os olhos dele pareciam vidrados e perguntou-se se ele se estaria
a sentir bem.
– Estás bem? – perguntou ele antes que ela lhe pudesse perguntar o
mesmo.
Anna estava prestes a dizer que sim, mas isso seria uma mentira.
– Nem por isso – admitiu.
– Sim, posso imaginar – respondeu ele. – Na verdade, não consigo.
Anna esperou que ele dissesse mais alguma coisa, mas ele não disse. Ela
não sabia ao certo o que ele queria dela e não tinha a certeza se queria saber.
– Há alguma coisa que me queiras perguntar?
– Alguma vez me amaste? – Ele odiava-se por ser tão patético, mas era
algo que precisava de saber desesperadamente. Embora já não sentisse
tantas dores, continuava a tomar Percocet. E apesar de o médico ter dito que
estava na altura de parar, ainda não tinha sido capaz de o fazer. Continuava
a sentir dores todos os dias, mas talvez não fosse na perna, talvez fosse o
seu orgulho. Não conseguia deixar de se sentir como um animal ferido por
Anna o ter deixado por outro. Grande OG que ele era. Passava em revista a
relação deles na cabeça, vezes sem conta, sempre arrependido das coisas
que devia ter feito de forma diferente.
– Estás melhor sem mim – respondeu ela. Havia tanta coisa que lhe
queria dizer. Porque foi preciso aquilo tudo acontecer para que eles
falassem abertamente um com o outro? Por momentos, ela desejou poder
voltar atrás no tempo, começar de novo, pedir para voltar atrás, voltar à sua
antiga vida quando tudo fazia sentido. Seria essa a melhor versão de si
própria? Seria aquela a rapariga que se conseguiria olhar ao espelho sem
sentir vergonha? – Desculpa, Alexander. Por te ter magoado. Cometi tantos
erros. – E com isso ela virou-se e afastou-se, atravessou o átrio amplo do
Alice Tully Hall, e saiu pela entrada principal para a noite escura e chuvosa.

XXVIII
Quando Alexander W. se sentou na parte de trás do teatro, ao lado de
Eleanor, sentiu-se péssimo. Tinha visto Anna a entrar com a família e foi
invadido por um tsunami de tristeza. Estava zangado e magoado quando ela
acabou tudo com ele antes de ele partir para Cambridge, mas só sentiu pena
quando soube do vídeo. Ela tinha cometido alguns erros, sim, mas
certamente não merecia um destino tão terrível. Ele queria dizer alguma
coisa, mas quando teve a oportunidade, apercebeu-se de que não sabia o
que dizer. Em vez disso, deu por si a olhar bem para ela, pelo que parecia
ser a primeira vez. Ele sabia que ela era bonita e bem-sucedida, mas talvez
nunca tivesse tido tempo para a conhecer realmente. Tinha-a amado desde o
primeiro momento em que a viu, mas o que é que isso significava? Eleanor
estava a remexer-se no assento.
– Não a vi regressar. E tu? Se calhar foi-se embora. Não acredito que ela
teve a coragem de mostrar a cara em público.
– Eleanor, por favor, cala-te –, disse Alexander. – Esquece isso.
– Porque é que ainda a estás a defender? – sibilou Eleanor. – Ela fez
pouco de ti e da nossa família. Estou feliz por ela ter sido desonrada.
Mereceu-o, e não me arrependo. A vingança é minha; eu retribuirei, diz o
Senhor.
Demorou mais tempo do que devia até as palavras da meia-irmã lhe
fazerem clique. Eleanor citar referências obscuras da Bíblia não era
novidade, mas o que é que ela estava a dizer exatamente? E foi então que
ele soube. Embora a segunda parte do espetáculo já tivesse começado,
levantou-se e saiu do teatro. Quando ficou sozinho no átrio, tentou ordenar
as ideias, mas não sabia o que fazer. Ouviu uma porta a fechar-se e olhou
para cima para ver Vronsky a vir da rua. Ele tinha saído à procura de Anna,
porque tinha reparado que ela não tinha voltado depois do intervalo.
Vronsky viu Alexander sozinho e o encontro entre ambos foi inevitável.
– Alexander – disse ele, e acenou com a cabeça, cortês.
– Vronsky – respondeu Alexander.
Vronsky estava à porta do teatro, prestes a entrar, quando ouviu
Alexander falar.
– Espera. – Ele virou-se e caminhou de volta para o homem que, em
tempos, foi o seu maior rival.
– Foi a Eleanor que divulgou o vídeo – disse Alexander sem rodeios, a
voz estrangulada pela atrocidade do ato da irmã. – Pensei que tinhas sido tu,
mas estava enganado.
Vronsky olhou para Alexander, sem palavras. Ele tinha assumido que
tinha sido Alexander, para se vingar de Anna por o ter deixado.
– Vi a Anna a sair. Ela não parecia estar bem.
– Se calhar foi para casa – disse Vronsky.
– Se a amas, tens de a encontrar. Ela precisa de ti – disse Alexander,
embora a verdade o magoasse. Alexander viu Vronsky a sair a correr pela
entrada principal para a escuridão de Manhattan. Alexander decidiu que
também não queria ficar. Não podia certamente voltar e sentar-se ao lado de
Eleanor depois do que ela tinha feito. Alexander sabia algo que Eleanor
ainda não sabia. O pai dele estava a planear divorciar-se da mãe dela.
A notícia ia deixar Eleanor devastada, pois significava que já não iam morar
na mesma casa, e uma parte dele queria entrar e dar-lhe a notícia, para a
magoar da mesma forma que ela tinha magoado injustamente Anna, a
rapariga que ele ainda amava. Mas Alexander fez a escolha certa de não
agir por raiva e, com a ajuda da sua bengala, coxeou lentamente pelo átrio e
saiu do edifício. Estava a chover e ele não tinha um guarda-chuva. Mas não
se importava nem um pouco.
Nas ruas de Nova Iorque, Anna estava encharcada até aos ossos, mas
depois de sair do Lincoln Center, não queria ir para casa, por isso começou
a andar a pé. Tal como na canção que Lolly cantou tão bem há apenas
quinze minutos para uma sala lotada, Anna percorreu as mesmas avenidas
que Alexander Hamilton fez há mais de dois séculos, lamentando-se pelo
seu amor, por um objeto de ouro transformado em pó nas suas mãos, como
se ela fosse um Rei Midas ao contrário.
Durante os primeiros vinte quarteirões, ziguezagueou com as luzes, mas
ao caminhar pelo bairro dos teatros estranhamente vazio, percebeu que só
havia um lugar para onde ir.
Quando entrou na Grand Central, parecia uma louca desgrenhada.
Afastou o cabelo molhado da cara e continuou com determinação, passando
por todos os que não conseguiam deixar de parar e ficar a olhar para a bela
rapariga, com um vestido de noite de seda castanho que arrastava atrás de si
um rasto de água escura como uma aparição ou o vestígio de um fantasma.
Apanhou a escada rolante para a linha 27. Foi ali que ela o encontrou
pela primeira vez. A plataforma estava vazia, e ela caminhou até à ponte
onde Johnson, o sem-abrigo, jazia no Dia dos Namorados, lamentando a
perda dos seus cães.
Pelo menos eu tive um bom Dia dos Namorados, pensou ela com
amargura. Como é que vim aqui parar? O que devo fazer? O que vai ser de
mim? Os seus pensamentos rodopiavam. Não conseguia parar de ouvir as
vozes das raparigas na casa de banho. Elas chamaram-me puta. Acham que
mereço tudo o que me aconteceu. Odeiam-me. Desgracei a minha família.
Desgracei-me a mim própria. Nunca mais ninguém me vai amar. Sou um
bem danificado, uma libertina da alta sociedade.
Anna não sabia há quanto tempo estava ali sentada no silêncio, mas tinha
frio e estava molhada e nunca se tinha sentido tão infeliz em toda a sua
vida. Quando ouviu a voz dele, pensou: Estou a ficar louca. Agora sou uma
rapariga a delirar que ouve vozes.
– Anna?
Anna virou-se e viu Vronsky parado à sua frente. Também ele estava
molhado, mas tinha vestido um impermeável, que despiu imediatamente e
deixou cair no chão. Tirou o casaco desportivo e correu para a rapariga com
ar deplorável que estava no banco à sua frente, e cobriu-lhe os ombros.
– O que estás aqui a fazer? – perguntou Anna.
– Vim à tua procura – disse ele, incapaz de lhe dizer outra coisa que não
fosse a verdade.
– Bem, estou aqui – disse ela. – Agora, por favor, vai-te embora.
– Não fui eu, Anna. Não fui eu que fiz o vídeo e não fui eu que o
divulguei. Foi a Eleanor.
Anna ficou parada a olhar para ele.
– O quê? Como é que sabes?
– Alexander – respondeu Vronsky. – Ele contou-me. Acabou de
descobrir.
– Aquela cabra intriguista – sussurrou Anna. – Eu devia ter adivinhado!
– Lamento imenso, Anna – disse Vronsky. – Estava desesperado por te
ver. Telefonei-te todos os dias e deixei cartas com o teu porteiro. Os teus
pais disseram-te?
Anna abanou a cabeça.
– Tenho estado em prisão domiciliária. Ninguém me diz nada. De
qualquer modo, não interessa, Alexia. Ainda não ouviste dizer? Como diz o
meu pai, estou arruinada nesta cidade.
– Isso não interessa – disse Vronsky. – Amo-te, Anna!
– O meu pai quer mandar-me embora para que eu possa começar de novo
– disse Anna, com a voz a tremer por causa do frio. – Mas eu disse-lhe que
não ia. Queres saber porquê?
– Sim, diz-me…
– Porque, tal como precisas de estar onde eu estou, eu também preciso de
estar onde tu estás – disse Anna, respondendo por fim à súplica nos olhos
azuis de Vronsky. – Eu também te amo. Embora fosse mais fácil odiar-te.
Mas tal como diz o meu pai, embora o caminho mais fácil seja sempre o
mais tentador, o caminho mais difícil acaba por ser o melhor. É irónico que
as palavras dele me levem a tomar a última decisão do mundo que ele
quereria que eu tomasse.
Vronsky não conseguia conter a esperança que crescia dentro dele. Anna
nunca lhe tinha dito aquelas palavras, nem uma única vez lhe dissera que o
amava de volta. Ouvi-la a dizê-lo era como escutar todos os anjos do céu a
cantarem só para ele. Ele aproximou-se dela e tentou sentar-se ao seu lado,
mas ela deu um salto, e recuou ao toque dele.
– Afasta-te de mim! – gritou ela, angustiada. – Isto não pode resultar!
É demasiado tarde para nós. É tudo uma merda!
– Mas não tem de ser assim – replicou ele. – Anna, quem é que se
importa com o que os outros pensam? Eu não me importo! Que se lixem
todos menos nós. Amamo-nos um ao outro.
– Não, o meu pai nunca permitiria. E eu não vou voltar a andar às
escondidas e a mentir outra vez. Não posso. Foi assim que tudo isto
começou, com mentiras e traições. Estávamos condenados desde o início!
– Estás enganada! – disse Vronsky. – Nós não traímos ninguém. Fomos
leais, Anna, leais ao nosso amor um pelo outro. E não estamos condenados,
raios! Não temos de estar condenados se não quisermos. Não vivemos no
século xix. Que se lixem todas estas estúpidas regras de conduta da
sociedade. Temos escolhas, temos livre-arbítrio, podemos fazer o que
quisermos.
Mais uma vez, ele aproximou-se dela. Tudo o que ele queria era abraçar
aquela rapariga encharcada pela chuva. Ela deixou que ele a abraçasse, mas
só por um segundo, antes de começar a bater-lhe no peito com os punhos, a
chorar histericamente:
– Não, não, não! É demasiado tarde, Alexia!
De repente, Vronsky sentiu-se a ser afastado de Anna. Nem sequer tinha
ouvido alguém a aproximar-se, mas um par de mãos estava a puxá-lo para
longe do seu único e verdadeiro amor.
– Deixa-a em paz! – gritou um homem. – Ela é boa! Ela é boa! – Anna
reconheceu-o imediatamente. Johnson, o sem-abrigo a quem devolveram o
cão perdido, também estava encharcado, com a cara imunda cheia de lama.
– Não! Espera, não estás a perceber! – gritou Anna.
Vronsky contorceu-se perante o aperto temível de Johnson, e não teve
outra alternativa senão dar uma cotovelada no estômago do homem mais
velho para se libertar. Balboa, o cão que tinham resgatado e que tinha
estado a observar à distância, veio a correr, a rosnar e a ladrar. O cão atacou
Vronsky, o homem que tinha batido no seu dono. Vronsky gritou de dor
quando os dentes do cão lhe rasgaram a perna e deu um pontapé no cão, que
ganiu, recuou e voltou a atacar, desta vez saltando para as costas do rapaz
que se tinha agachado, agarrado à perna a sangrar. Vronsky rodopiou,
movendo-se pela plataforma, tentando evitar que a fera furiosa lhe rasgasse
o pescoço. Anna agarrou na pata traseira do cão, puxou-a com toda a força,
e Balboa voou para longe de Vronsky, deslizando pelo chão e caindo na
linha do comboio, desaparecendo de vista.
Anna gritou e correu para a beira da plataforma, e Vronsky ficou a ver,
horrorizado, enquanto ela saltava atrás do cão.
– Anna! Volta aqui! – gritou Vronsky, e correu enquanto ela tentava
aproximar-se do cão que rosnava, que parou de mostrar os dentes ao
perceber que Anna era uma amiga.
Vronsky sentiu um vento vindo do túnel e olhou para a esquerda, para os
faróis distantes de um comboio que se aproximava. Num instante, saltou
para os carris e agarrou Anna pela cintura, mas ela debateu-se contra ele, e
gritou histericamente.
– Ele caiu por minha causa! Quantos animais têm de morrer por nós? Um
cão, um veado, um cavalo! Nem mais um!
– Vem aí o comboio – gritou Vronsky. – Eu apanho-o, prometo-te. – Ele
arrastou Anna para o lado onde Johnson estava à espera. O sem-abrigo
baixou-se, e puxou Anna para um lugar seguro. Vronsky viu o seu casaco,
que antes estava nos ombros de Anna, agora amarrotado nos carris. Atirou-o
para cima do focinho do cão e, num movimento rápido, atirou-se a Balboa,
meteu o seu corpo contorcido no casaco e passou-o ao dono.
O comboio estava perto e o condutor invisível apitou e encheu a
plataforma com um ruído ensurdecedor. Vronsky saltou para a borda da
linha do comboio, mas pouco antes de pegar na mão estendida de Johnson,
viu caído o amuleto de prata brilhante em forma de coração que tinha dado
a Anna no Dia dos Namorados, com as palavras «tu e eu» gravadas de cada
lado. O seu coração encheu-se de alegria, ao aperceber-se de que Anna tinha
estado sempre agarrada ao seu coração, mesmo durante o mês em que ele se
perguntava se ela teria desistido dele. Ela andava sempre com o amuleto de
prata. Anna amava-o. Sempre o amara. Ele precisava de o ir buscar para ela.
Voltou para trás, estendeu a mão e agarrou no primeiro presente que lhe
tinha dado, depois correu de volta para a beira da linha, onde Johnson ainda
estava a estender a mão quando o comboio saiu do túnel. Vronsky agarrou
na mão de Johnson, mas quando Johnson se levantou para o tirar do perigo,
a mão de Vronsky escorregou da do homem, que estava molhada e
escorregadia da chuva.
– Anna! – foi a última palavra que Vronsky disse, enquanto caía para trás
em frente ao comboio.

XXIX
Dustin passou pelo apartamento para ver Anna um dia antes de ela partir
para o estrangeiro para o funeral de Vronsky com Steven, Lolly e o pai
deles. Não a via desde a morte trágica de Vronsky, há uma semana, na
Grand Central, embora tivesse falado com Steven diariamente para saber
como ela se estava a aguentar. Dustin quis ir dar-lhe os pêsames
pessoalmente, sobretudo por Anna ter sido tão simpática para ele após a
morte do irmão, alguns meses antes. Encontrou-a no quarto a fazer uma
mala grande. Quando ele entrou, ela recebeu-o com um sorriso triste e,
quando ele a abraçou, ela começou a chorar.
– É bom ver-te, Dustin – disse Anna.
– Anna, tinha de te vir dizer pessoalmente, e embora tenha a certeza de
que não queres falar sobre isso, mas preciso que saibas que lamento muito a
tua perda – disse Dustin. – Sei o quanto o amavas.
– Obrigada. Amava, amo. Eu amava-o muito – disse Anna. – Mas, por
favor, não posso falar sobre isso agora. Não consigo. Vamos falar de outra
coisa. Quando é o baile de finalistas?
Dustin abanou a cabeça.
– Se calhar não vamos. Parece-me uma coisa tão parva, tendo em conta
tudo o que aconteceu.
Anna interrompeu-o com uma ferocidade que o apanhou de surpresa.
– Não! – gritou ela. – Se tu e a Kimmie não forem, vão estar apenas a
perpetuar o ciclo de infelicidade. Por favor, sejam felizes e dancem juntos.
O amor precisa de uma vitória.
Dustin não sabia o que dizer. As palavras de Anna eram tão incrivelmente
tristes. Em vez disso, acenou com a cabeça, respirou fundo e disse:
– Nós vamos. Tens razão. O amor precisa mesmo de uma vitória.
– Ótimo. – Anna sentou-se na cama, subitamente cansada por causa da
sua explosão.
– Por favor, envia-me uma fotografia. Tenho a certeza de que a Kimmie
vai ser a rapariga mais bonita de todas.
Dustin acenou com a cabeça em sinal de concordância, enquanto se
lembrava de como tinha sido parvo com o seu sonho infantil de ir ao baile
de finalistas com uma rapariga da Lista das Boazonas, como se algo tão
superficial tivesse alguma importância para a sua vida. Na altura ele era um
miúdo, com noções estúpidas sobre a vida e o amor, e apesar de terem
passado apenas cinco meses desde então, agora a sua visão do mundo era
completamente diferente. Ele era um homem novo, que sabia o que era
realmente importante. Não se tratava de conquistar o amor de uma rapariga,
mas sim de encontrar alguém que nos compreende e que nos recebe de
volta. Não se tratava de lamentar as perdas, mas sim de celebrar a vida
daqueles que perdemos, vivendo bem a nossa própria vida.
– Então, vais-te embora amanhã? – perguntou Dustin, e apontou para a
mala de Anna.
– Sim, vamos a Itália para o funeral – disse Anna baixinho. – A mãe dele
não me queria deixar ir, mas mudou de ideias depois de ter encontrado no
quarto do Alexia muitos esboços meus e alguns poemas que ele me tinha
escrito. Decidiu que o Alexia ia querer que eu lá estivesse, por isso passou
cá por casa e convidou-me ela própria. Chorámos muito juntas quando ela
me deu cópias dos poemas dele. – Anna baixou o olhar e ficou a observar as
suas mãos, mãos que nunca mais tocariam nos caracóis dourados do seu
amado. – Mas não me vou despedir, porque não posso. Vou amá-lo para
sempre. – Ela estava novamente a chorar, mas sabia que Dustin não se
importava, pois ela tinha-se sentado ao lado dele enquanto ele chorava
muitas vezes pela perda de Nicholas.
Dustin olhou para Anna, com o coração a torcer-se no peito por ela. Não
conseguia sequer imaginar o que ela tinha vivido, embora Steven lhe tenha
dito que Anna repetia que não queria estar noutro lugar.
– Pelo menos consegui dizer-lhe que o amava antes... antes... Só gostava
de lhe ter dito mais cedo. Gostava de lhe ter dito todos os dias...
– O importante era que ele sabia – consolou-a Dustin.
– A culpa foi minha, Dustin – sussurrou Anna. – Nunca disse isto a
ninguém, mas vou contar-te. Fui eu que insisti em salvar aquele maldito
cão. Ele fê-lo por mim. Se o tivéssemos deixado para trás, o Alexia ainda
estaria vivo.
– Não podes pensar assim – disse Dustin, e sentou-se ao lado dela. – Foi
um acidente terrível. O tal Johnson tinha-o agarrado, mas não o conseguiu
puxar a tempo. A culpa não foi tua. Como é que podias saber? Tu também
estavas lá em baixo a tentar salvar o cão. Não lhe pediste para o fazer
enquanto ficavas a ver.
– Mas ele morreu a salvar-me a vida.
– E eu morreria de bom grado para salvar a da Kimmie. Isso é amor,
Anna. Dá-nos um objetivo e força. O Vronsky não tinha outra escolha senão
salvar-te. Ele não conseguiria viver com ele próprio se alguma coisa te
acontecesse.
– Mas agora sou eu que estou sozinha. Como é que vou continuar sem
ele?
Dustin pôs o braço à volta dos ombros de Anna e apertou-a.
– Nós simplesmente conseguimos. Podias ter sido tu a morrer atropelada
por aquele comboio, mas o Vronsky deu a vida dele para que isso não
acontecesse. Ele fê-lo porque te amava, o que, como o meu irmão me disse,
é a única razão para se fazer seja o que for. Tens de honrar o seu amor e
viver a vida que te foi destinada.
Anna mordeu o lábio, tentando em vão conter as lágrimas. Ela queria
mudar de assunto.
– Ouvi dizer que adiaste a entrada no MIT para poderes estar com a
Kimmie mais um ano – disse Anna.
– Sim, por isso, mas também quero ficar na cidade para cuidar da minha
mãe. Ela ajudou-me a encontrar um emprego num centro juvenil
especializado em toxicodependência.
Anna olhou pela janela.
– Vou ter muitas saudades de Nova Iorque, e de todos vocês, do Steven e
da Lolly...
Dustin franziu as sobrancelhas.
– Pensei que o Steven e a Lolly iam contigo.
– E vão, mas quero dizer depois. O Steven não te contou? Eu não vou
voltar com eles depois da viagem. O meu pai acha que é melhor eu terminar
o liceu no estrangeiro. Sabes, começar de novo. Ele vai trabalhar no seu
escritório em Seul e eu vou para uma escola privada de raparigas.
Dustin ficou chocado.
– Não percebo, quando é que decidiram isso? E a tua mãe e o Steven?
– Esta manhã. A minha mãe fica cá. Eles ainda não me disseram que se
vão divorciar, mas as coisas entre eles não estão nada bem. E o Steven vai
para Deerfield. Mas como Nova Iorque é muito mais perto do que o sítio
onde vou estar, conto contigo para tomares conta do meu irmão por mim,
está bem?
– Tens a certeza disto tudo? – perguntou Dustin, e olhou para Anna,
sentindo-se subitamente inquieto. Agora tinha as mãos húmidas.
– O meu pai acha que é o melhor.
– Mas o que é que tu queres, Anna?
Ela olhou para ele durante muito tempo.
– Acho que, neste momento, não quero nada. – Parou por momentos e
depois continuou: – De facto, isso não é verdade. Quero uma coisa. Que tu
e a Kimmie se divirtam no baile de finalistas.
Quando Dustin e Kimmie saíram para o baile de finalistas ainda era de
dia, porque depois de tirarem fotografias em casa da mãe de Kimmie,
tiveram de ir a casa da mãe dele, onde os pais e uma Marcy visivelmente
grávida estavam à espera para tirar também algumas fotografias com o casal
feliz. Normalmente, Dustin não se teria dado a tanto trabalho e ao
incómodo extra, mas a mãe tinha finalmente saído da cama e pedido para
partilhar a ocasião, e ele não pôde recusar. Ficou surpreendido quando ela
lhe disse que o pai e Marcy também viriam, mas fazia sentido. A perda do
filho tinha-lhes permitido pôr de lado algumas das suas diferenças passadas,
pelo menos por algum tempo. A vida dava a tragédia com a mesma mão que
dava a alegria, e a ida de Dustin e da sua linda namorada ao baile de
finalistas era um momento de alegria que iriam guardar com carinho. Os
pais estavam reunidos com ele e Kimmie, e a primavera tinha chegado à
cidade, uma estação de renascimento e renovação.
Enquanto Dustin e Kimmie dançavam ao som de «Better Be Good to
Me», de Tina Turner, no salão de baile do hotel St. Regis, Kimmie ouvia a
letra com um sorriso, porque sabia que não era algo com que tivesse de se
preocupar quando se tratava de Dustin. Só esperava que todas as outras
raparigas que dançavam à sua volta levassem a sério as palavras de Tina em
relação ao rapaz com quem estavam a dançar.
– Em que estás a pensar? – perguntou ela ao rapaz dos seus sonhos,
aquele que ela agora sabia ser o seu primeiro e único amor verdadeiro,
enquanto ele a fazia rodopiar na pista de dança. Tinha deixado de lado a
raiva, o verniz preto e as botas de combate e estava de volta à cor que lhe
ficava melhor: o rosa. Não havia problema em ser feminina, desde que
fosse uma escolha dela. Ultimamente, tinha estado a ensinar Dustin a
patinar no gelo, o que era um processo lento porque ele tinha tornozelos
fracos, mas ela não se importava. Tinham muito tempo, agora que ele só ia
para a universidade no ano seguinte.
Ele olhou para a bela rapariga nos seus braços e disse-lhe a verdade, a
sua verdade.
– Estou a pensar em… nós.
[17] Marca de gelados. (N. da T.)

[18]Psiquiatra que criou o Modelo de Kübler-Ross em que descreve os cinco estágios por que as
pessoas passam durante o luto. (N. da T.)

[19]É um ator e apresentador de televisão norte-americano, que foi uma testemunha-chave no


caso do assassinato de OJ Simpson. (N. da T.)
Epílogo

Demorou algum tempo até Jon Snow e Gemma se instalarem no avião.


Tinham voado algumas vezes antes em aviões privados para o Maine,
Havai, e uma vez de Terra Nova, no Canadá, que era onde tinham nascido.
Depois da morte de Doozy, o seu primeiro terra-nova, Anna tinha metido na
cabeça que não podia ter outro depois de já ter tido o cão perfeito, mas ao
fim de algumas noites sem dormir depois da morte de Doozy, estava sentada
na sala de estar escura do apartamento em Central Park, quando o pai
chegou tarde do trabalho. Ele nem sequer a viu aninhada no sofá, mas ela
viu-o entrar na sala escura e preparar uma bebida. Ela tinha medo de o
assustar, por isso ficou muito quieta. Mas ela estava a chorar e a fungar, e o
pai ouviu.
– Anna? – perguntou ele. – És tu?
Ela acenou com a cabeça no escuro, embora ele não a conseguisse ver.
O pai aproximou-se e sentou-se ao lado dela. Ela deitou a cabeça no colo
dele como se ainda fosse uma menina pequena e chorou, dizendo ao pai que
aquilo não fazia sentido. Doozy tinha acabado de comemorar o seu nono
aniversário – todos os anos ela fazia uma festa de aniversário para Doozy,
com direito a bolo com cobertura de creme de manteiga. Quando voltou do
parque dos cães, dois meses depois, ele coxeava ligeiramente e, sete dias
depois, desapareceu, sem mais nem menos. O pai lembrou a Anna que ela
só tinha treze anos, por isso teria muitos mais cães durante a vida, e que a
morte fazia tanto parte da vida como aprender a amar de novo. O amor não
pode durar para sempre, senão não seria especial.
– Essa é a coisa mais parva que já ouvi, papá – disse ela. – Sem ofensa.
Contou então ao pai que tinha decidido que o Doozy seria o seu último
terra-nova e que já estava a tentar escolher qual seria a raça do seu próximo
cão.
– Como gostavas tanto do Doozy – disse ele – arranjas outro, ou até dois.
Não penses que estás a substituir o Doozy, mas sim que estás a honrar tudo
o que ele tinha de bom. Amá-lo, com baba e tudo, só fará com que ames
ainda mais o teu próximo terra-nova.
Anna adormeceu e o pai levou-a para o quarto, embora ela fosse
demasiado grande para ser levada para a cama como um bebé. Na manhã
seguinte, sentiu que tinha sonhado com tudo aquilo, mas quando olhou para
a mesinha de cabeceira, o pai tinha posto lá um papel a mencionar um
criador que vivia na ilha Terra Nova e que estava à espera de uma ninhada
de cachorros de linhagem campeã a qualquer momento.
«Apanhamos o avião até lá daqui a alguns meses e poderás escolher dois.
Talvez um irmão e uma irmã como tu e o Steven», dizia a letra manuscrita
do pai no topo da página.
Jon Snow estava deitado aos seus pés e Gemma estava deitada no
corredor à esquerda, a barricar literalmente Anna no seu lugar com os seus
cento e cinquenta quilos de cão. Ela tinha tomado a decisão certa ao
comprá-los, ou melhor, o pai tinha-a ajudado a tomar a decisão certa.
Anna olhou para o pai, que estava a ler o Financial Times do outro lado
do corredor. Sentindo o olhar da filha, Edward virou-se, estendeu a mão e
apertou a dela, mas não disse nada. Depois da morte de Vronsky,
apareceram seguranças e polícias por todo o lado. Um agente da polícia
perguntou a Anna a quem é que ela queria que ele telefonasse e, apesar de o
pai mal conseguir olhar para ela desde o escândalo do vídeo de sexo e de só
lhe ter dito algumas frases, ela disse:
– Por favor, telefone ao meu pai. Ele virá buscar-me.
E ele foi. Desde aquela noite trágica na estação Grand Central, o pai de
Anna estava a fazer o que podia para restabelecer a relação com a filha.
Tinha-se apercebido de que a tinha tratado horrivelmente depois do
escândalo do vídeo e envergonhava-se por ter sido necessário testemunhar
outro pai a perder um filho para o fazer ver como tinha agido mal. Todas as
noites, depois do acidente, ele entrava no quarto dela e pedia-lhe desculpa.
Anna dizia que o perdoava. Que ele nem sequer devia pedir desculpa, que
nada disto era culpa dele. Ele era um bom pai. Havia algo na voz da filha
que o assustava quando ela dizia isto. Uma semana depois, um dia antes de
partirem para o funeral de Vronsky, ela acordou e encontrou o pai sentado
na sua cama. Ele disse-lhe que, depois da viagem a Itália, tinha decidido
que iam ficar no estrangeiro. Ele achava que o que ambos precisavam era
de um novo começo, e uma mudança de cenário seria boa para ambos. Ela
ouviu enquanto ele lhe falava de uma famosa escola para raparigas na
Coreia do Sul, onde ela poderia terminar o liceu.
– Só tens dezassete anos, querida – sussurrou ele. – Tens a vida toda pela
frente e sei que é muito cedo para dizer isto, mas vais voltar a amar.
Ela não concordou verbalmente com os planos do pai, mas acenou com a
cabeça, o que o satisfez. Não disse que sim, porque não queria que uma das
suas últimas palavras para o pai fosse uma mentira. Desde o momento em
que perdeu Alexia na linha 27 da Grand Central, Anna sabia o que ia fazer.
Não havia maneira de continuar a viver sem ele, mesmo sabendo que
deixaria de ser Anna K., a rapariga rica da alta sociedade, estrela de um
vídeo de sexo, e passaria a ser uma Julieta dos tempos modernos, que
morreu pelo seu Romeu.
Fez as malas para a viagem, mesmo sabendo que nunca entraria no avião.
Tinha escondido bem as suas intenções, embora estivesse nervosa que
Dustin pudesse ter sentido que alguma coisa estava errada quando passou
por lá mais cedo para se despedir dela. Quando a mãe entrou para lhe
desejar as boas-noites, abraçou-a e disse-lhe que a amava. Anna respondeu-
lhe em voz baixa, embora não se lembrasse da última vez que tinham dito
aquelas palavras uma à outra.
À meia-noite levantou-se, acordando os cães e mandando-os calar,
vestiu-se e saiu do apartamento, deixando uma carta para o pai e outra para
Steven debaixo da almofada. Tinha planeado ir a pé até à Grand Central,
mas estava cansada e parecia muito longe, por isso chamou um táxi, entrou
e disse-lhe:
– Por favor, leve-me à Grand Central.
O taxista perguntou-lhe onde ia tão tarde e ela respondeu-lhe:
– Vou encontrar-me lá com o rapaz que amo. O nome dele é Alexia.
Quando chegou à linha 27, teve vontade de chorar. Aquela plataforma era
agora a sítio onde tinha sido mais feliz e mais infeliz. Parecia correto que
ambos morressem no mesmo lugar e ela esperava que, se houvesse vida
depois da morte, ela pudesse encontrá-lo mais facilmente se morressem no
mesmo sítio. Mas as lágrimas não chegaram, porque ficou surpreendida ao
ver alguém sentado no banco ao fundo da plataforma. Aquilo não fazia
parte dos seus planos, ter de lidar com um estranho na sua última noite na
Terra. Anna estava demasiado assustada para se atirar para a frente de um
comboio, o que lhe parecia ser um pouco confuso e extremo demais para o
seu gosto. Tinha pesquisado no Google a dose certa de comprimidos para
dormir de que precisaria para fazer o trabalho e tinha ido procurá-los em
casa. A mãe tinha um sono agitado, por isso havia todo o tipo de
medicamentos por lá. O seu plano era tomá-los e adormecer no banco,
como se estivesse à espera que o comboio do seu amado chegasse.
Anna pensou em ir-se embora e voltar lá para cima, enquanto esperava
que a pessoa que estava no banco saísse, mas antes de o fazer, uma voz
feminina chamou-a.
– Ei, tu aí. Tens lume?
Anna tinha um isqueiro na mala, porque também tinha trazido uma vela,
que tinha planeado acender em honra de Alexia. Ela queria fazer uma
cerimónia fúnebre rápida, uma vez que sentiria a falta dele, e tinha trazido
os poemas que ele escrevera para ela, para poder ler um em voz alta.
Anna aproximou-se e passou à rapariga no banco o seu isqueiro cor-de-
rosa. A rapariga tinha cabelo escuro, que Anna pensou ser preto como o seu.
Mas quando se aproximou, apercebeu-se de que na verdade era verde-
esmeralda escuro. Tinha muitos piercings a subir-lhe pelas duas orelhas e
uma série de rosas tatuadas à volta do tornozelo. Estava vestida de preto e
usava um blusão preto de motociclista que lhe parecia familiar, embora não
conseguisse situá-lo.
– Obrigada pelo lume. Queres um? – perguntou a rapariga, e estendeu-lhe
um cigarro.
Anna só tinha fumado meia dúzia de cigarros na vida, embora ela e
Alexia tivessem partilhado alguns após o coito uma vez, o que a fez sorrir,
porque na altura sentiu que eram crianças a fingir que eram adultos, a fumar
na cama depois do sexo.
– Claro, obrigada – disse Anna, pegou no Marlboro Light que ela lhe
estendia e acendeu-o com o seu isqueiro cor-de-rosa.
Anna sentou-se ao lado da rapariga e as duas fumaram um pouco.
– Eu sei porque estás aqui.
Aquilo assustou Anna completamente, e ela perguntou-se se, por acaso,
já tinha tomado os comprimidos e estava agora a alucinar. Ou talvez já
estivesse morta, um fantasma preso no purgatório, como naquele famoso
filme sobre o miúdo que via pessoas mortas, e esta rapariga era o seu guia.
– Leste aquela história marada no jornal, não foi? – perguntou ela,
exalando o fumo pelo nariz como o dragão Drogon da Khaleesi. – E eu que
pensava que estava mal. Aquela pobre rapariga teve de ver o namorado ser
atropelado por um comboio! Pum! – Bateu palmas para dar ênfase, o que
chocou Anna pela sua vulgaridade, dado o assunto em causa. – A sério,
deve ter sido uma grande merda. Eu sei bem o que isso é, porque também
perdi o homem que amava. Há dois meses, no Arizona. Não foi tão
romântico, porque ele não estava a salvar a minha vida e a morrer no
processo, mas eu estava com ele quando tudo se passou.
– O que aconteceu? – perguntou Anna. – Como é que ele morreu?
– Overdose. Droga. Bomba H. Cavalo. Heroína. Ele é apenas mais uma
estatística da crise dos opiáceos na América, acho eu. Mas ele está aqui
enterrado e eu só precisava de estar perto dele, sabes?
Anna sabia que a rapariga estava a tentar ser dura, mas conseguia ouvir a
tristeza na sua voz.
Eu preciso de estar onde tu estás.
As palavras de Alexia assombraram-na. Ele tinha-lhas dito tantas vezes e,
no início, ela nem sempre as compreendia, a achar que se tratava de uma
frase feita dele. Mas depois de ele ter morrido, compreendeu-as
perfeitamente. Teve de ser puxada aos gritos e aos pontapés pelo pai quando
ele tentou obrigá-la a sair da plataforma na noite em que ele morreu. Ela
não o queria deixar. Precisava de estar onde ele estava. Recusou-se a sair
até ao momento em que o levaram no saco preto com fecho de correr, mas
isso foi muitas horas de fotografias e perguntas da polícia. O pai deixou-a
ficar porque não tinha alternativa. Na altura, ela disse que se ele não a
deixasse ficar, ela matar-se-ia. As suas palavras assustaram tanto o pai que
ele a deixou com um polícia e correu para uma casa de banho no andar de
cima, onde vomitou só de pensar nisso.
– Enfim, estou aqui na cidade, a minha primeira vez na famosa Big
Apple. Estou a passear no Union Square Park e um jornal cai-me em cima
dos pés. Quero dizer, quem é que ainda lê jornais? Mas quando tento afastá-
lo, vejo o título «História de amor trágica de adolescentes: o comboio da
desgraça», ou uma merda assim, e pego nele porque, raios, tenho dezoito
anos e também tenho uma história de amor trágica. Então, li esta história
maluca, e fiquei obcecada. E se dantes eu era toda «Coitadinha de mim, o
meu namorado morreu de uma overdose acidental como um idiota»,
naquele momento senti mesmo pena daquela rapariga, cujo namorado foi
atropelado por um comboio. Já agora, mesmo que eu chame o meu
namorado morto de idiota, digo-o com amor. Eu adorava aquele gajo.
Imagina que o único tipo que era bom para mim, que realmente me amava,
vai desta para melhor depois de me pedir em casamento.
– Ele pediu-te em casamento? – Anna perguntou.
– Sim, o parvo. Eu disse-lhe que éramos demasiado novos para casar e
que tínhamos de esperar alguns anos, mas respondi que sim. Foi muito
romântico.
– E tu amava-lo – disse Anna.
– E eu amava-o – confirmou a rapariga. – Mas ele gostava mais de mim,
o que eu sei que é mau da minha parte dizer, mas é verdade. A minha mãe
sempre me disse que é mais importante o rapaz gostar mais da rapariga,
porque se for ao contrário, acaba sempre mal para ela.
– O que queres dizer com isso? – perguntou Anna, genuinamente
interessada agora.
– Olha, nós, raparigas, ficamos com a pior parte em quase tudo. Os
homens ganham mais dinheiro do que nós. Os homens são mais fortes do
que nós, fisicamente; sabes, com músculos e essas merdas. Eles deixam
sempre as mulheres quando elas envelhecem, enquanto se diz que eles
ficam melhores como o vinho quando envelhecem, o que é uma grande
treta, sabes? É como se os homens tivessem sempre tido todos os direitos e
poder, e nós, raparigas, tivéssemos de ficar com os restos. Mas a minha
mãe, e ela é inteligente em relação aos homens, burra como uma pedra em
relação a dinheiro e a educar filhos, mas conhece os gajos... bem, ela disse
que a única área em que nós mulheres temos uma vantagem sobre os
homens é no amor. Porque a única coisa que pode derrubar um homem
grande e forte lá de cima é quando ele ama uma mulher, estilo, ama-a-
mesmo-à-séria. É a única altura em que nós, raparigas, podemos ganhar à
grande. É por isso que é melhor que o homem goste mais da rapariga,
porque se ela o amar mais, nunca será bom para ela. Eu sei que pareço
maluca, a minha mãe explica isto melhor do que eu.
– Não, eu percebo – disse Anna suavemente. – As mulheres têm sofrido
ao longo da história às mãos dos homens. Porque é que também havemos
de sofrer no amor? Ou seja, se não temos de o fazer.
– Exatamente! É isso mesmo, irmã. – Ela olhou para Anna, um lampejo
de reconhecimento passou-lhe pelo rosto, mas Anna não vacilou. A sua
fotografia não tinha saído nos jornais, porque ela era menor de idade e o pai
tinha-se certificado de que isso não acontecia. – Então, qual é o teu
problema? Porque é que estás aqui, na linha vinte e sete, a meio da noite?
– O mesmo que tu – respondeu Anna. – Ouvi falar da história e achei-a
triste. Queria vir aqui e… não sei... ver onde aconteceu. Tentar
compreender.
– É simples. Este rapaz amava tanto a namorada que lhe salvou a vida,
puxando-a literalmente para fora dos carris, depois salvou o cão de um sem-
abrigo, mas não conseguiu sair a tempo. Ele é um maldito herói romântico.
– Sim, mas e a rapariga? – perguntou Anna. – Como é que ela vai
continuar a viver quando um rapaz a amava assim tanto? Ele está morto, e a
vida dela está arruinada para sempre.
– Sim, é uma maneira de ver as coisas – disse a rapariga. – Olha, sem
dúvida que ela vai ficar lixada para sempre por causa disso. Mas pensa
assim: ela agora vai viver a vida toda sabendo que um rapaz a amava tanto
que morreu por ela! Quero dizer, se isso não é poder, então não sei o que é.
Ela pode ser como uma super-heroína com poderes mágicos de amor ou
algo do género, sabes? Assim que o fumo se dissipar e ela deixar de se
sentir mal com isso, vai sentir-se bem para sempre. Porque ela saberá
sempre que é digna de um amor do caraças. Miúda, desculpa, não sei o que
me tem dado ultimamente. Normalmente, sou uma pessimista total em
relação ao amor e a essas merdas. Mas esta história, não sei... faz-me ter
esperança. Sobre o amor, sabes?
– Sim, sei o que queres dizer – declarou Anna, levantando-se e apagando
o cigarro. – Tenho de ir para casa. Mas foi ótimo conversar contigo.
E lamento a tua perda. Sei que o teu namorado também te amava muito.
– Ai, sim? – perguntou a rapariga. – Nem sequer o conhecias, por isso
como é que sabes isso?
Anna encolheu os ombros e depois sorriu.
– Simplesmente sei. É um dos meus superpoderes, acho eu.
– Fixe – disse ela. – Ei, então devias ficar com isto. Eu ia ficar com ele
porque o encontrei, mas um super-herói do amor devia ficar com ele. Pode
ser o teu logótipo, como o «S» do Super-Homem.
A rapariga atirou-lhe algo brilhante e prateado. Anna pensou que era uma
moeda, a girar, e ficou a ver como ela se movia no ar antes de estender a
mão e de a agarrar.
– Está um pouco amassada. Acho que foi atropelada por um comboio,
mas é mais fixe por não ser perfeita, porque o amor nunca é perfeito – disse
ela. – Ainda dá para ler.
Anna olhou, maravilhada, para o objeto que segurava agora na palma da
mão. Estava dobrado e arranhado, mas ainda tinha a forma de um coração.
Era o amuleto de prata que Alexia lhe tinha dado no Dia dos Namorados,
aquele que ele tinha na mão quando morreu. Ela ficou a olhar para a palavra
«EU» impressa de um lado, depois virou-a para o outro lado e sorriu para a
palavra «TU».
– Obrigada – agradeceu Anna. – Prometo guardá-lo para sempre – disse e
acenou à rapariga enquanto se dirigia para as escadas, a caminho de casa,
para a cama, com o coração dele no bolso.
Precisava de chegar a casa, rasgar as cartas e ir dormir, porque amanhã ia
apanhar um avião para começar a sua nova vida, agora mais forte, porque o
rapaz que ela amava com todo o coração a tinha amado mais. E ela merecia-
o.
Nota da Autora

Um Amor Inevitável entre Jenny e Anna

Li Anna Karenina de Leo Tolstoy pela primeira vez quando tinha quinze
anos. Na altura, tinha sido apanhada a sair de casa com a minha amiga
Angela e a levar «emprestado» o carro da família para dar uma volta pela
nossa pequena cidade de Paris, Tennessee, com onze mil habitantes e onde
se realiza o maior festival de peixe frito do mundo, o World’s Biggest Fish
Fry. Fiquei de castigo durante três meses, sem televisão, música, e, para
cúmulo, o meu pai ligou ao gerente do McDonald’s local e arranjou-me um
emprego a trabalhar no drive-in.
A minha única fonte de prazer enquanto estava de castigo era a leitura.
A minha irmã mais velha, Helen, tinha acabado de estudar Literatura Russa
em Brown e enviou-me o seu exemplar de Anna Karenina com um bilhete:
«Toda a gente comete erros. Os de Anna Karenina foram muito piores.»
Um livro de 864 páginas passado na Rússia era um pouco assustador,
mas sem mais nada para fazer, decidi tentar. Dizer que adorei Anna
Karenina foi um eufemismo. Devorei-o, adorei o enorme elenco de
personagens e todos os dramas familiares. Enquanto adolescente, a minha
história preferida era, naturalmente, o caso de amor condenado entre Anna e
o Conde Vronsky, e chorei quando ela se atirou para a frente do comboio,
porque sabia que o amor de Vronsky por ela era verdadeiro, mesmo que ela
não o conseguisse ver. Ao terminar Anna Karenina, elegi-o como o meu
novo livro favorito.
Li Anna Karenina pela segunda vez quinze anos mais tarde, quando vivia
em Cambridge, Massachusetts, então casada com o meu primeiro marido,
um médico. Com o meu marido a trabalhar a toda a hora, e eu a sentir
desesperadamente a falta dos meus amigos e de Nova Iorque, onde tinha
passado os meus vinte e poucos anos, estava a precisar urgentemente de um
escape. Durante a segunda leitura, fiquei mais uma vez hipnotizada. Desta
vez, no entanto, não fiquei apenas encantada com o romance de Anna e
Vronsky, mas também com a história de amor de Kitty e Levin e com o
casamento de Dolly e Stiva.
Cinco anos mais tarde, estava divorciada e a viver em Los Angeles, a
trabalhar como guionista de televisão. Solteira de novo, passei as férias de
Natal em Manhattan com a minha mãe coreana, muito rigorosa, que não
estava nada feliz comigo por me ter divorciado do meu marido médico
perfeito. A minha mãe também tinha lido Anna Karenina duas vezes, uma
em coreano e outra em inglês, e fomos ver a adaptação ao cinema com a
Keira Knightley no Ziegfeld Theater. Depois, voltámos a pé para o hotel St.
Regis, onde tivemos uma conversa franca sobre o filme e o livro. A minha
mãe e eu raramente concordamos com alguma coisa e também não
costumamos ter conversas sinceras, mas esta foi uma das raras ocasiões em
que encontrámos um pequeno pedaço de terreno comum.
A minha mãe tinha nascido, crescido e casado antes de se mudar da
Coreia do Sul para os Estados Unidos, aos vinte e oito anos, com o meu pai.
Raramente falava do seu passado, mas nessa noite contou-me como as
mulheres coreanas ainda não tinham o mesmo estatuto na sociedade que os
homens. Perguntei-lhe se isso a irritava e ela respondeu que não, porque
tinha sido educada a acreditar que as mulheres eram valorizadas pelo seu
papel como esposas e mães, razão pela qual não se conformava com a
minha decisão de acabar com o meu casamento por causa de uma coisa
aparentemente sem importância, do ponto de vista dela, como a minha
carreira. Fiquei perturbada ao ouvir que, claramente, não tinha havido
muitos progressos para as mulheres na Coreia nos 150 anos desde que Anna
Karenina foi publicada. Eu, por minha vez, partilhei com ela que estava
eternamente grata por ter nascido e crescido nos Estados Unidos, onde,
como mulher, me foi concedido o direito de viver a minha vida como
pretendesse. Para mim, isto significava que, se eu quisesse deixar o meu
casamento e seguir as minhas ambições profissionais, era um direito meu.
Nessa noite, acordei às três da manhã e dirigi-me para o átrio com o meu
computador portátil. Sentada no silêncio da noite, ao lado de uma árvore de
Natal do hotel maravilhosamente decorada, tive uma daquelas epifanias:
como seria Anna Karenina num romance para jovens adultos?
Entusiasmada com a ideia, enviei um e-mail a Sally, a minha agente
literária, e depois voltei para cima para me deitar. O meu último
pensamento antes de adormecer foi que, na minha versão para adolescentes,
Anna seria meio-coreana, em honra à herança da minha mãe e dos filhos
meio-coreanos do meu irmão. Acordei com um e-mail da Sally a dizer:
«Adorei a ideia! Escreve-o já!»
Fiz algumas tentativas, mas bati sempre num muro e acabei por me
ocupar com o programa de televisão em que estava a trabalhar na altura.
Depois, alguns anos mais tarde, conheci o meu futuro segundo marido,
John, numa digressão literária em Naperville, em fevereiro de 2014.
O nosso encontro amoroso, tal como o de Anna e Vronsky, também ocorreu
durante um inverno com neve. Quando nos conhecemos, eu vivia em Los
Angeles e ele em Brooklyn. Eu pensava que era apenas uma aventura, mas
ele afirma que soube imediatamente que estávamos destinados a muito mais
(muito Vronsky da parte dele!) Embarcámos numa história de amor à
distância que atravessou o país e, apesar de eu ter dito que nunca mais me
casaria (ser «esposa» não parecia fazer o meu género), fugimos para Las
Vegas no ano seguinte e temos sido extremamente felizes desde então.
No Natal, enquanto eu e o meu marido conduzíamos de Los Angeles para
Nashville com o nosso cachorro gigante terra-nova, com mais de cinquenta
e cinco quilos, falámos de ideias para livros que esperávamos escrever no
ano seguinte. Foi nessa altura que contei ao John a minha ideia para Anna
K. O meu marido disse: «Devias escrevê-lo agora. Estás pronta.» Quando
lhe perguntei o que queria dizer com estar «pronta», respondeu: «A melhor
altura para se escrever uma grande história de amor é quando se está a viver
uma.» Ri-me, lembrando-lhe que a história de amor de Anna e Vronsky não
acabou muito bem, embora, ao dizê-lo, já estivesse a pensar se poderia
haver um destino diferente para a minha Anna K. Comecei a reler Anna
Karenina pela terceira vez nessa noite no meu Kindle, num hotel nos
arredores de Oklahoma City.
Afinal, o meu marido tinha razão. A melhor altura para se escrever uma
história de amor é quando se está apaixonado.
Agradecimentos

Há tantas pessoas que merecem o meu agradecimento por terem


contribuído para o meu primeiro romance para jovens adultos, Anna K.
A lista é longa, e não vou enumerar por ordem de importância; em vez
disso, vou mencionar com base na altura... ESTOU A BRINCAR. Estou a
brincar porque tenho um enorme medo de deixar alguém de fora sem
querer. Se por acaso isso acontecer, devem telefonar-me e fazer com que eu
me sinta culpada para sempre e vos ofereça presentes e sobremesas – eu não
brinco em serviço quando se trata de sobremesas.
Pronto, agora já percebem porque é que o meu livro é tão longo, certo?
Sou um pouco tagarela e sempre fui assim. O livro é dedicado ao meu
marido, John G. Kloepfer, e ele bem merece, porque não consigo nem
começar por dizer quantos elogios e amor lhe devem ser dedicados por tudo
o que fez pelo livro e por mim como ser humano. Ele é mesmo o melhor
marido e o melhor primeiro leitor que alguma vez conheci. Ele foi a
primeira pessoa a ler cada página deste livro… e as suas sugestões e
inteligência melhoraram-no imenso. A minha segunda leitora foi a
espantosa Jenna Hensel, cuja atitude incansável e otimista me ajudou tanto
e estou-lhe eternamente grata por todo o seu amor e apoio à minha escrita.
A única coisa mais soalheira do que o sol aqui em L.A. és tu. Eleanor Bray,
és a próxima… porque, uau, foste mesmo fabulosa durante todo este
processo. Obrigada por toda a tua pesquisa e pela tua vontade de mergulhar
a fundo em todos os tópicos que eu te atirava, quer fosse o Coachella ou a
discoteca certa que as personagens frequentavam em Manhattan. Trocámos
inúmeras mensagens sobre a maneira de falar atual dos adolescentes e tu
respondeste a todas as minhas perguntas neuróticas com elegância e
desenvoltura.
Os primeiros leitores são sempre uma parte muito necessária do processo
de escrita e, com tantas páginas, foi um grande pedido. Agradeço o tempo e
o esforço de todos. Obrigada Hannah Kloepfer, a minha incrível cunhada;
obrigada à minha melhor amiga, Stephanie Staal; obrigada Erika Kelley,
por leres num avião; obrigada Diana Snyder, por tudo o que diz respeito a
Greenwich; e Dustin Morris, és tão especial que tens uma personagem
principal nomeada em tua honra.
Não sou nada sem os meus amigos: todo o meu amor para Laura
Clement, Tasha Blaine, Jenner Sullivan, Christine Zander, David Holden e
Nadine Morrow – todos vocês aceitaram de bom humor os meus
telefonemas neuróticos e o vosso apoio contínuo e atitudes positivas de «tu
consegues fazer» foram muito apreciados. Um grande abraço e
agradecimentos à minha família: Haekyong Lee, John Lee, Susan
Stonehouse Lee, Benjamin, Addison e Olivia. Aos meus adoráveis sogros:
Deborah e George Kloepfer, Sarah e Bob McLynn, Brayton e Livingston.
Também tenho de mencionar o meu falecido pai e a minha irmã mais velha;
o meu pai por me ter posto de castigo por sair às escondidas e a Helen por
me ter enviado o meu primeiro exemplar de Anna Karenina para me ajudar
a passar o tempo. E se vamos por aí, muito obrigado Leo Tolstoy, porque és
o verdadeiro OG do mundo literário.
Sally Wofford-Girand, minha agente literária e minha amiga. Foste
fundamental desde o início, precedendo todos os outros desde que tive a
ideia de uma versão adolescente de Anna Karenina em 2012, depois de ver
o filme em Nova Iorque. Obrigada pela tua mente brilhante que sabia que
esta era uma ótima ideia e pelos teus e-mails ao longo dos anos a lembrar-
me de começar a escrever o livro. Tens sido um rochedo em todo este
processo, e estou muito grata não só pelo teu conhecimento do mundo
editorial, mas também por toda a tua perspicácia no que diz respeito à
história e às personagens. Tenho muita sorte em ter-te como agente e estou
muito feliz por estarmos juntas nesta viagem. E um grande agradecimento
para Taylor Curtin da Union Literary... Apreciei todas as nossas muitas
conversas telefónicas durante este processo e obrigada por seres tão
generosa com o teu entusiasmo e apoio.
Tenho muitas pessoas a quem agradecer na Flatiron Books, mas tenho de
começar pelas duas mulheres que tornaram tudo isto possível: as minhas
fantásticas editoras Sarah Barley e Caroline Bleeke – é raro ter um editor
fabuloso; ter tido dois foi uma verdadeira alegria em todo este processo.
Senti imediatamente que ambas compreenderam a minha visão, como eu
queria que o livro fosse bajulador, divertido, feminino e excitante, ao
mesmo tempo que transmitia uma mensagem feminista forte sem sacrificar
o romance e o amor. As vossas edições brilhantes e astutas e o apoio
contínuo à Anna K. têm sido excecionais e, para ser honesta, tem sido muito
divertido trabalhar com ambas. Tenho muita sorte em ter duas mulheres tão
inteligentes e fixes que partilham as minhas esperanças e sonhos para a
Anna e para todas as personagens deste livro. Um agradecimento especial
aos meus editores Bob Miller e Amy Einhorn; a Keith Hayes e Anna
Gorovoy pela fantástica capa e design; a Lena Shekhter e Lauren Hougen
pela produção; e a Cat Kenney e Marlena Bittner, Katherine Turro e Nancy
Trypuc pelas incríveis campanhas de publicidade e marketing. E obrigado à
nossa modelo de capa, Moon Choi. Adoro o facto de o seu aniversário ser
no mesmo dia da data de publicação!
Por fazerem chegar Anna K ao mundo, gostaria de agradecer aos meus
agentes internacionais e aos que estão a publicar as edições estrangeiras:
Anthea Townsend, Michael Bedo, Harriet Venn, Claudia Young, Paul Sebes
e Lester Hekking, Txell Torrent, Monica Martin, Ines Planells, Nynke de
Groot e Luna Wong.
E eu não seria uma boa escritora e produtora-executiva de Hollywood se
não agradecesse a todos os que contribuíram para que Anna K passasse do
papel para o ecrã. À minha fantástica equipa de produtores-executivos, que
me apoiou muito e foi fantástica: Scooter Braun, James Shin, Drew Comins
e Scott Manson; um agradecimento especial a Jake Eagle e Chloe
Borenstein-Lawee. Entertainment One, o meu estúdio: Jacqueline Sacerio,
Pete Micelli, Pancho Mansfield, Mark Gordon, Kristen Barnett, Amanda
Gerisch, Greg Clayman, Gary Gradinger, Sam Grodsky e Michael Kagan.
A minha equipa Paradigm: Zac Simmons, Doug Fronk, Kim Yau, Martin
To, Sam Fischer, Tyler Mathews, Aja Marshall e Courtney Jackson.
A minha equipa de advogados de entretenimento: Jonathan Gardner e Molly
Fenton, Roxana Soroudi e Maddie Silver.
Tal como comecei com o meu querido marido, vou terminar esta longa
lista dizendo que um escritor não tem melhor companhia do que um cão, e a
minha cadela, Gemma Bunny Kloepfer, é a melhor. Tu e o Doozy foram a
inspiração para a Anna ter terra-nova, porque tornam a minha vida tão rica
e grandiosa.
Contents
1. Ficha Técnica
2. Quem é quem em Anna K.:
3. Parte I
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
8. VIII
9. IX
10. X
11. XI
12. XII
13. XIII
14. XIV
15. XV
16. XVI
17. XVII
18. XVIII
19. XIX
20. XX
21. XXI
22. XXII
23. XXIII
24. XXIV
25. XXV
26. XXVI
27. XXVII
4. Parte II
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
8. VIII
9. IX
10. X
11. XI
12. XII
13. XIII
14. XIV
15. XV
16. XVI
17. XVII
18. XVIII
19. XIX
20. XX
21. XXI
22. XXII
23. XXIII
24. XXIV
25. XXV
26. XXVI
27. XXVII
28. XXVIII
29. XXIX
5. Parte III
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
8. VIII
9. IX
10. X
11. XI
12. XII
13. XIII
14. XIV
15. XV
16. XVI
17. XVII
18. XVIII
19. XIX
20. XX
21. XXI
22. XXII
23. XXIII
24. XXIV
25. XXV
26. XXVI
27. XXVII
28. XXVIII
29. XXIX
6. Epílogo
7. Nota da Autora
8. Agradecimentos

Landmarks
1. Cover
2. Title-Page
3. Table of Contents
4. Acknowledgments

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