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Sobre a obra:
Sobre nós:
Como Roma, Somerville foi construída sobre sete colinas. O apartamento que
Louis havia encontrado para dividir ficava em Clarendon Hill, a mais a oeste das
sete colinas e, por falta de concorrência, a mais verde de todas. Em outros pontos
da cidade, as árvores tendiam a ficar escondidas atrás de casas ou confinadas em
buracos quadrados nas calçadas, onde crianças arrancavam seus ramos.
No início do século, Somerville havia sido a cidade mais densamente povoada
do país, uma façanha demográfica realizada construindo-se ruas estreitas e
dispensando-se parques públicos e gramados na frente das residências. A
topografia era incrustada de casas de três andares, com fachadas revestidas de
ripas de madeira. Tinham janelas salientes de formatos poligonais ou varandas
precárias que se empilhavam umas sobre as outras nos três andares, e eram
pintadas em combinações de cores como azul e amarelo, branco e verde,
marrom e marrom.
As ruas de Somerville estavam sempre cheias de densas filas de carros que se
pareciam menos com carros do que com sapatos sem par. Eles se punham em
marcha pesadamente para o trabalho de manhã ou se moviam para a frente e
para trás sobre as calçadas, pressionados pela limpeza quinzenal das ruas. Mesmo
no início da década de oitenta, quando a economia de Massachusetts estava
vivenciando um Milagre, com bilhões de dólares fluindo do Pentágono para as
antigas cidades fabris do estado, Somerville continuou a abrigar principalmente
os membros mais modestos da hierarquia dos calçados. Havia botinas
manchadas de sal e surrados escarpins bicolores de cores infelizes estacionados
em frente às portas da classe média irlandesa e italiana; Adidas gastos na entrada
das casas de mulheres solteiras; botas punks e ofertas especiais do Exército da
Salvação perto dos espaços habitados por aqueles que acreditavam que a cidade
tinha uma rebeldia chique; Keds sem cadarço e avariados nos quintais dos fundos
da contracultura decadente; calçados informais largos e confortáveis de
materiais macios e enrugados e solas de espuma de borracha marcando as
residências de corretores de imóveis e aposentados; maltratados sapatos de
camurça estudantis sob os beirais de maltratadas casas de estudantes; alguns
mocassins Gucci com borlas no estacionamento da prefeitura e lustrosas botas
tacheadas, delicadas sapatilhas e tênis estilo Flash Gordon nas entradas das casas
de pais que ainda tinham filhos de dezoito e vinte anos morando com eles.
Perto do fim dos anos oitenta, pouco antes de a expansão armamentista da
nação desacelerar, de os bancos de Massachusetts começarem a falir e de se
descobrir que o Milagre era menos um Milagre que uma ironia e uma fraude,
uma nova casta de carros invadiu Somerville. A nova casta parecia
impermeabilizada. Pois, assim como a Reebok e seus imitadores haviam
finalmente conseguido fazer couro de verdade parecer inteiramente artificial,
Detroit e seus equivalentes estrangeiros haviam conseguido tornar metal e vidro
de verdade indistinguíveis de plástico. O que era interessante na nova casta,
contudo, era o fato de ela ser nova em folha. Numa cidade onde fazia décadas
que, quando um carro vinha para casa pela primeira vez, quase sempre seu
preço estava escrito com giz de cera amarelo no para-brisa, de repente as
pessoas começaram a ver restos de adesivos grudados nas janelas traseiras. Não
sendo burros, os senhorios locais começaram a duplicar o preço dos aluguéis nas
renovações de contrato; e Somerville, próxima demais de Boston e de Cambridge
para ser o paraíso dos inquilinos para sempre, atingiu a maioridade.
Louis tinha um quarto num apartamento de dois quartos na Belknap Street,
alugado a um aluno de pós-graduação em psicologia da universidade de Tufts. O
estudante, que se chamava Toby, havia prometido a Louis: “Os nossos caminhos
nunca vão se cruzar”. A porta do quarto de Toby sempre estava aberta quando
Louis chegava do trabalho, continuava aberta quando ele ia dormir e estava
fechada quando ele saía de casa no escuro pouco antes de amanhecer. As
prateleiras da geladeira de Toby eram divididas ao meio, verticalmente, por
tábuas de pinho. O tapete do banheiro também era feito de madeira de pinho, boa
para prevenir fungos e para dar topadas com os dedos dos pés. A sala tinha duas
poltronas de assento largo e um sofá, todos bege, e ainda uma estante bege
completamente vazia salvo por alguns catálogos de telefone, uma caixa de
Scrabble, um lustroso vaso de flores bege feito de genuína cinza vulcânica do
monte santa helena sobre uma base de plástico e recibos de compra da estante e
dos outros móveis no total de US$ 1758,88.
Louis ficava a maior parte do tempo em seu quarto. O casal de trinta e poucos
anos que morava no apartamento em frente a sua janela tinha um piano e com
frequência praticava arpejos na hora em que ele estava fazendo sua refeição
noturna de sanduíches, cenouras, maçãs, cookies e leite. Mais tarde os arpejos
cessavam e ele lia cuidadosamente o Globe ou a Atlantic, de cabo a rabo, sem
pular nada. Ou sentava-se de pernas cruzadas na frente de sua televisão e assistia
a partidas de beisebol com tanta concentração e o cenho tão franzido — até
mesmo durante os comerciais de cerveja — quanto assistiria a noticiários sobre
guerra. Ou se plantava sob a luz forte do lustre do teto e estudava as paredes
bege, o teto ladrilhado e o piso de madeira de seu quarto de todos os ângulos
possíveis. Ou fazia a mesma coisa no quarto de Toby .
Na sexta-feira à noite, depois que a polícia de Ipswich terminou de colher as
informações que queria dele pelo telefone, Louis voltou para Somerville e ligou
para Eileen. “Você não vai acreditar no que eu acabei de ver nas notícias”, disse
ela. O que Eileen acabara de ver num flash ao vivo era a ambulância que estava
transportando o corpo da avó postiça dos dois. Eileen achava que tinha sentido o
terremoto quando estava estudando, mas pensara que fossem caminhões. Disse
que aquele era o segundo pequeno terremoto que ela sentia em Boston em dois
anos.
Louis disse que não tinha sentido nada.
Eileen contou que os pais deles, por causa da morte de Rita, viriam de avião
para Boston no domingo e ficariam hospedados num hotel.
“Eles vão gastar dinheiro com hotel?”, Louis perguntou.
Na manhã seguinte, ele foi até a farmácia da esquina comprar jornal. Tinha
chovido a noite inteira e as nuvens ainda continuavam bastante carregadas, mas o
céu havia clareado momentaneamente e a iluminação fluorescente dentro da
farmácia tinha a mesma cor e intensidade que a luz do lado de fora. O Herald de
sábado estampava na primeira página:
TERREMOTO!
DESTRUIÇÃO E
MORTE EM IPSWICH
Guru new age é vítima
As notas fundamentais da soprano ficavam cada vez altas, uma lenta espiral
ascendente de histeria. Louis franzia o cenho, com o dedo mindinho apoiado na
ponte de seus óculos, o polegar no queixo e a ponta dos outros dedos na testa. A
coisa para a qual ele não conseguia parar de olhar era o nome de sua mãe. Não
porque o Globe a tinha posto em Cleveland, mas pela simples presença pessoal e
ressonante do nome impresso no papel. Melanie Holland: aquela era a mãe dele,
estranhamente reduzida. Duas palavras num jornal de Boston.
Ainda de cenho franzido e começando a tremer, como se, quando os pingos da
chuva batiam nas vidraças atrás dele, a friagem imediatamente invadisse o
quarto, Louis examinou de novo o artigo em destaque sobre o reverendo Philip
Stites. “Os manifestantes subiram a Tremont Street e atravessaram o Boston
Common até a entrada do prédio da Assembleia Legislativa”, dizia o artigo. A
descrição dos fatos era compatível com o que Louis tinha visto da passeata —
compatível de um modo profundo, pois o artigo, como a memória, como os
sonhos, reduzia o ocorrido a uma ideia, iluminada não pelo sol poente nem pelos
postes de iluminação pública, mas por sua própria luz, na escuridão da cabeça de
Louis: ele viu a ideia porque sabia que era aquilo que tinha acontecido, porque
sabia que era assim que as coisas haviam se passado. E, portanto, pareceu-lhe
que só poderia estar chovendo naquela manhã. A chuva tinha de estar ali para
tornar o dia de hoje diferente, para impedir qualquer retorno a ontem à tarde e às
condições específicas de atmosfera e luz nas quais aqueles manifestantes haviam
marchado, a azulada claridade do norte sobre a Grande Boston quando o
terremoto aconteceu. A chuva tornava aquela manhã real, tão inabalavelmente
presente que era difícil acreditar que de fato tinha acontecido um terremoto, que
aqueles incidentes haviam de fato ocorrido em algum lugar que não os jornais.
Contra uma das paredes do quarto estavam empilhadas as caixas de papelão
com o equipamento de rádio de Louis, que ele havia lealmente transportado de
Evanston para Houston e de Houston para Boston e jamais desempacotado.
Enfiou a unha por baixo da grossa fita adesiva cinza que mantinha fechada a
caixa que estava no alto da pilha. Faltaram-lhe forças. Cambaleou até o futon,
um pé escorregando no Globe aberto, desabou pesadamente e ali ficou, de
barriga para baixo, até bem depois de os arpejos cessarem.
Na noite de domingo jantou com sua família num restaurante de frutos do mar
no porto. Ficou surpreso ao saber que sua mãe e Eileen não tinham a menor
dúvida de que a queda que causara a morte de Rita Kernaghan se devia menos
ao terremoto do que ao fato de ela estar completamente bêbada na ocasião. De
qualquer modo, elas a conheciam e ele não. Corria à boca miúda que ela havia
caído de uma banqueta do bar, o que, embora parecesse uma piada de mau
gosto, aparentemente era a verdade literal. Ela seria cremada em cerimônia
reservada na manhã de quarta-feira, suas cinzas atiradas ao mar de um píer de
Rockport na tarde do mesmo dia e sua vida celebrada no dia seguinte num
serviço fúnebre, ao qual para comparecer Louis deveria tirar uma folga do
trabalho. Sua mãe, obviamente impaciente com todo o processo de descarte da
falecida, se referia ao serviço fúnebre como “a coisa na quinta-feira”.
Foi só um pouco antes da “coisa” que Louis voltou a ver seus pais. Tinha
operado a mesa para Dan Drexel até as dez da manhã e depois, possivelmente
um pouco magoado por sua mãe não ter planejado nenhum outro encontro
familiar nem demonstrado qualquer interesse em saber onde ele estava morando
e trabalhando (embora “mágoa” talvez não fosse a palavra certa para descrever
o que ele sentia em relação a uma família cujos membros raramente tinham os
recursos necessários para se interessar ou fingir se interessar pela vida de alguém
que não eles próprios, sendo “decepção”, “amargura” ou “tristeza vaga”
palavras talvez mais próximas), foi direto para o hotel onde eles estavam
hospedados, um prédio mais ou menos novo, mais ou menos alto em frente ao rio
em Cambridge, logo depois da Harvard Square. Mais tarde viria à tona que sua
mãe havia feito seu pai passar duas tardes na biblioteca Widener para que eles
pudessem pedir reembolso pela parte dele nas despesas com a viagem. Em
frente ao quarto deles, no final de um corredor silencioso, Louis levantou a mão,
mas não bateu. Abaixou a mão de novo.
“Eileen, essa não é a questão.”
“Então qual é a questão?”
“A questão é demonstrar um pouco de consideração pelos meus sentimentos e
tentar entender as coisas do meu ponto de vista. Essa foi uma semana
extremamente difícil — Foi sim! Foi sim! — extremamente difícil! Então você
poderia pelo menos ter tido a consideração de esperar...”
“Você está feliz por ela ter morrido! Você está feliz!”
“Isso é uma coisa muito (murmúrios) pra qualquer pessoa, (murmúrios) pra
sua mãe. Uma coisa bem pouco cristã.”
“É verdade.”
“Eu agora tenho que me arrumar.”
“É verdade. Você está feliz!”
“Eu preciso me arrumar. Embora eu não consiga deixar de pensar que... bom,
(murmúrios) um rapaz que faria uma namoradinha casual...”
“Uma o quê?!” A voz estridente de Eileen ficou duas vezes mais estridente.
“Uma namoradinha casual chegar ao ponto...”
“Uma...!? Do que é que você está falando? Isso não tem nada a ver com o
Peter. E pra sua informação...”
“Ah, Eileen.”
“Pra sua informação...”
Nesse momento, Louis, com um gesto de desdém, deu duas ou três pancadas
na porta. Eileen o deixou entrar. Lágrimas haviam borrado o traço de delineador
embaixo dos olhos.
“Quem é?”, a mãe perguntou de dentro do banheiro.
“É o Louis”, disse Eileen, amuada.
“Oi, Louis, eu estou me vestindo.”
Eileen foi para perto da janela, pela qual ela via, para lá do rio, a sua
faculdade de administração. Ela estava usando o mesmo suéter grosso da última
vez em que Louis a vira. A julgar pela aparência do suéter agora, ela devia estar
dormindo com ele.
“Cadê o papai?”, Louis perguntou.
“Está na piscina. O que você veio fazer aqui tão cedo?”
Louis pensou um instante. “O que você veio fazer aqui tão cedo?”
Eileen fez uma medonha careta adolescente para ele, língua e gengivas à
mostra, e se virou de frente para a janela. Louis coçou a orelha, pensativo.
Depois, mudando de estratégia, começou a perambular pelo quarto,
bisbilhotando. Em cima de uma das muitas superfícies de bagagem do quarto de
hotel, largado como correspondência inútil com molhos de chaves e embalagens
abertas de Trident, ele encontrou um par de documentos de aparência oficial, o
relatório da polícia e o relatório do médico-legista, em cujos versos sua mãe
vinha anotando nomes e números de telefone. Ele examinou a face oficial dos
documentos, enquanto Eileen esfregava cuidadosamente a pele em volta dos
olhos e a mãe pontuava longos silêncios de banheiro com ruídos de quem está se
vestindo e se arrumando. O relatório da polícia consistia principalmente no
depoimento da empregada haitiana de Rita Kernaghan, que morava na casa e se
chamava Thérèse Mougère.
Com mais pressa, porque sua mãe agora estava fazendo ruídos de quem está
prestes a sair do banheiro (cliques de estojos se fechando, a água da torneira
sendo aberta e fechada bruscamente), Louis correu os olhos pelo relatório do
médico-legista do condado de Essex, que apontava como causa da morte um
“extenso trauma de contragolpe” e atribuía o trauma a um acidente no qual a
falecida, que media 1,58 m, caíra de um banco de 97 cm de altura, resultando
numa queda com altura total de 2,55 m, uma queda suficiente, em combinação
com o piso de mármore, para achatar a parte frontal esquerda do crânio e
extinguir imediatamente toda atividade cerebral. A perda de sangue ocasionada
por cortes provocados por cacos de vidro não foi considerada um fator relevante.
O teor de álcool no sangue da falecida era de 0,06 por cento, equivalendo a um
nível “moderado” de intoxicação.
Louis cobriu o documento com um livro e virou de costas para ele. Sua mãe
estava saindo do banheiro.
Era óbvio que ela vinha gastando dinheiro. Gastando dinheiro e (foi a
impressão que Louis teve) dormindo, pois parecia ter rejuvenescido uns quinze
anos desde o jantar de domingo. A pele de seu rosto estava dourada, lustrosa e
tão esticada junto ao contorno de sua mandíbula que parecia repuxar seus olhos
escuros, deixando-os arregalados. Ela tinha cortado o cabelo em estilo Chanel
curto — e pintado também? O que antes era, se não falhava a memória de Louis,
um grisalho escuro e uniforme havia se transformado em preto e prateado. Ela
estava usando um vestido de linho amarelo-claro com um arremate de veludo
preto na barra, que estava uns dois dedos acima dos joelhos. A gola alta estava
fechada com um broche contendo uma pérola do tamanho de uma moeda de
cinco centavos. Diante do espelho, com as narinas dilatadas de concentração, ela
ajeitou fios de cabelo invisíveis e possivelmente inexistentes em torno de suas
têmporas. Depois foi até o closet e, com a mesma fluidez de movimento vertical
que Eileen herdara, se ajoelhou e tirou uma caixa de sapatos de dentro de uma
sacola plástica da Ferragamo.
“Tá bonita, hein, mãe.”
“Obrigada, Louis. O seu pai ainda não voltou?”
Com as sobrancelhas levantadas, ele ficou observando a mãe tirar um par de
sapatos de um acolchoado de papel de seda escarlate. Olhou para Eileen,
perguntando-se se ela também teria levantado as sobrancelhas diante daquele
espetáculo de uma mãe transformada por um repentino poder de compra. Mas
Eileen também estava transformada. Com olhos avermelhados de mágoa e ódio
e um rosto em que todos os músculos pareciam ter adormecido, ela observava a
mãe deslizar seus pés pequenos num par de sapatos tão aerodinâmicos quanto
Jaguars. Não tinha como Louis capturar o olhar dela. Ela precisava que sua
tristeza fosse notada pela mãe, não por ele. Então, enquanto Eileen sofria ao pé
da janela (chuva fria caindo entre ela e a faculdade de administração) e a mãe
prendia com ar complacente um par de rosas brancas à faixa preta de um
chapéu branco de abas moles, ele se sentou na cama e abriu o caderno de
esportes de um Globe que estava convenientemente à mão. Poderia
tranquilamente ser ele e não sua irmã sofrendo ao pé da janela, mas o que pensa
um cão de matilha, o que se passa atrás de seus olhos amarelos, quando ele vê
um de seus companheiros ser levado para um canto por um explorador polar
para ter a garganta cortada e ser transformado em jantar para seus irmãos?
“O seu pai vai ter uns três minutos para tomar banho e se arrumar”, disse a
mãe. “Talvez um de vocês pudesse...”
“Não”, disse Eileen.
“Não”, disse Louis. O pai nadava com tampões nos ouvidos e óculos de
natação, e só atingindo-o fisicamente era possível fazê-lo sair de dentro de uma
piscina.
“Bem.” De chapéu na cabeça, a mãe se levantou, ajeitou o vestido sobre os
quadris e deu uma voltinha, rodopiando sobre a ponta dos pés. “Como eu estou?”
Fez-se silêncio; Eileen nem sequer olhou para a mãe.
“Como um milhão de dólares”, disse Louis.
Eileen deu uma risada forçada: “Rá rá rá!”.
Sem nenhuma expressão no rosto, a mãe começou a botar suas coisas dentro
de uma bolsa de mão preta com aparência de nova. “Louis”, disse, “eu preciso
ter uma conversa com você.”
“Bom, eu já ouvi essa conversa”, disse Eileen e atravessou o quarto pisando
firme. “Então, vejo vocês no serviço fúnebre.” Puxou sua capa de chuva de um
cabide, abriu a porta e deu um passo para trás ao dar de cara com o pai, que,
com uma toalha enrolada na cintura e óculos de natação aninhados no tufo
grisalho de pelos encharcados abaixo de seu pescoço, avançava quarto adentro
como uma lagosta interessada, dizendo para Eileen: “Ora, ora, se não é a infanta
Elena! Estrela escura de Aragão! Detentora do cetro de esmeralda!”. Ela
retrocedeu até bater as costas nos cabides de roupa, as mãos espalmadas, os
dedos abertos e rígidos perto das orelhas, enquanto a lagosta a agarrava pela
cintura com o gancho de sua garra robusta. Ela recuou, se contorcendo. “Não!
Não! Não! Ah, você ainda está molhado!” Suas bochechas estavam recuperando
a cor. O pai beijou uma delas e depois soltou Eileen, bateu continência para Louis
do outro lado do quarto e se enfiou no banheiro. A mãe não tinha testemunhado
nada disso.
Quinze minutos depois, os quatro membros da família Holland estavam
sentados no Mercury de duas portas alugado pelos pais, Melanie ao volante, os
meninos no banco de trás. Os carros dos meninos tinham ficado no
estacionamento do hotel porque Bob Holland considerava automóveis uma
abominação e tinha ameaçado ir a pé se eles levassem mais de um carro.
Sentindo um princípio de enjoo, Louis estava encolhido feito uma mesa dobrável,
a cabeça meio careca apoiada na janela fria e embaçada, um gosto de chuva
forte e fumaça de óleo diesel na garganta. O chapéu da mãe estava preso em
suas canelas. Alguém que não era Louis e provavelmente também não era
Eileen vinha peidando regularmente. Bob, parecendo diminuído num terno de
trinta anos, dardejava através da sua janela para os carros que iam ficando para
trás no trânsito intenso do meio da manhã na Memorial Drive. Ele achava que
dirigir um carro era um ato de imoralidade pessoal.
Louis empurrou para fora a janela de dobradiça ao seu lado e encostou o nariz
e a boca na superfície plana do ar mais frio do lado de fora. Estava começando a
relacionar seu enjoo com achatar a parte frontal esquerda do crânio e extinguir
imediatamente toda atividade cerebral, a imaginação da morte tendo avançado
oculta e autonomamente, penetrando em sua consciência apenas agora.
Conseguiu inspirar uma revigorante lufada de ar pelo vão da janela. “Vocês
acham que ela percebeu que estava tendo um terremoto?”
Eileen olhou para ele com uma cara feia e mal-humorada, depois se
ensimesmou de novo.
“Quem?”, Melanie perguntou.
“A Rita. Você acha que ela se deu conta de que era um terremoto que estava
fazendo o chão tremer?”
“Ao que parece, ela estava bêbada demais para se dar conta do que quer que
fosse”, disse Melanie.
“É meio triste, vocês não acham?”, tornou Louis.
“Existem maneiras piores de morrer. Melhor morrer assim do que de cirrose
numa cama de hospital.”
“Ela te deixou aquele dinheiro todo. Você não acha que é meio triste?”
“Ela não me deixou dinheiro nenhum. A única coisa que ela me deixou foi
uma dívida de 250 mil dólares contraída ilegalmente, se você quer saber a
verdade.”
“Ah, pelo amor de Deus, Mel.”
“Mas foi o que ela fez, Bob. Ela hipotecou uma casa que não era dela. O banco
de Ipswich que fez o empréstimo a ela não estava ciente desse pequeno detalhe,
que...”
“O pai da sua mãe”, disse Bob, “deixou tudo o que ele tinha num fundo...”
“Bob, isso não interessa ao Louis.”
“Claro que interessa”, disse Louis.
“E também não é exatamente da conta dele.”
“Hum, sei.”
“Mas a questão básica”, Melanie continuou, “é que, quando o meu pai morreu,
ele já tinha uma boa ideia do tipo de mulher com quem tinha se casado e,
embora tivesse o dever de deixá-la numa situação confortável, ele também não
queria que ela dilapidasse um patrimônio que um dia ele gostaria que fosse para
as filhas dele...”
Bob gargalhou com gosto. “O que quer dizer que ele não deixou nem um
centavo para a sua mãe e nem para a sua tia Heidi! Ele escreveu exatamente o
tipo de testamento rancoroso, arrogante, autoritário, de um advogado de
advogados que você esperaria de alguém como ele. Todo mundo na miséria,
todo mundo fulo da vida, e um comitê de três advogados do Banco de Boston que
se reúnem duas vezes por ano para preencher cheques para si mesmos com o
dinheiro do fundo.”
“Eu gosto da maneira como vocês honram os mortos.”
“Dá para abrir um pouco a janela?”
“E agora a Mel vai corrigir algumas injustiças, não vai, Mel? Sabe, Lou, depois
que a Heidi morreu, a sua mãe ficou sendo a única herdeira. A herança deveria
ser transmitida para as filhas que ainda estivessem vivas. A sua mãe agora está
exatamente na mesma posição em que o seu avô estava dez anos atrás. Só que os
ricos ficaram mais ricos, não foi? A sua mãe está em posição de construir
algumas escolas e hospitais, talvez doar um ginásio para o Wellesley College. Ou
ajudar os sem-teto, hein, Mel?”
Melanie inclinou a cabeça para trás, retirando-se da discussão. Eileen deu um
sorriso amargo. Louis pediu de novo que alguém abrisse uma janela.
O serviço fúnebre, que deveria se realizar numa campina do condado de Essex
se o sol estivesse brilhando, havia sido transferido para o salão de recepção do
Roy al Sonesta, um hotel de luxo com vista para a foz do rio Charles, na ponta
nordeste de Cambridge. Ao cruzar a porta atrás de seus pais, Louis por um
momento achou que eles tivessem entrado no salão errado; rondando por entre
tristes ajuntamentos sociais, estavam, lhe pareceu, as mesmas pessoas que ele
vira na passeata contra o aborto na Tremont Street uma semana antes — os
mesmos inflexíveis rostos femininos de meia-idade, os mesmos parcos homens
de olhos vazios, as mesmas roupas cor de cortina e sapatos baixos. Mas depois,
alertado pela reta que Eileen estava traçando em direção a um determinado
ponto do salão, ele viu Peter Stoorhuy s.
Peter estava ligeiramente afastado de um grupo de três homens de ar inquieto
e com ternos elegantes, três óbvios executivos ou profissionais liberais. De pernas
afastadas, ombros para trás e mãos nas beiradas dos bolsos, Peter tinha o ar de
alguém a quem o mundo pode recorrer se for realmente necessário. Eileen,
colidindo com ele, encostou a orelha numa das lapelas de seu blazer xadrez,
pousou uma mão em sua barriga e a outra em seu ombro.
Louis ficou onde estava e olhou para aquele abraço com as mãos nos quadris.
Em seguida, alterando sua trajetória como se um campo repulsivo agora
cercasse Eileen, ele apertou o passo para alcançar Bob e os dois seguiram,
hesitantes, atrás de Melanie, cuja chegada estava fazendo os três cavalheiros de
terno abrirem sorrisos de alívio. Ela cumprimentou dois deles com beijos no rosto
e trocou um aperto de mão com o terceiro. Peter se desvencilhou de Eileen e
veio na direção de Melanie com o braço estendido, mas de repente ela achou por
bem guardar suas mãos para si. Deu um sorriso glacial. “Olá, Peter.” Como um
reserva agradecido, Bob Holland reivindicou a mão solta no ar e a apertou
vigorosamente, mas a desfeita de Melanie não havia escapado à atenção de
Eileen, que olhou vermelha para Louis. Louis respondeu com um sorriso
satisfeito. Achou interessante ver que, em algum momento daquela semana, seus
pais haviam sido apresentados a Peter.
“Esse é o nosso filho, Louis”, disse Melanie. “Louis, esses são o senhor Aldren,
o senhor Tabscott, o senhor Stoorhuy s...”
Senhor quem, senhor quem, senhor...?
“Muito prazer, Louis”, eles disseram em coro, apertando a mão dele. As
mesmas cortesias foram estendidas a Eileen.
“Pai do Peter”, o sr. Stoorhuy s acrescentou para a informação de Louis,
fazendo um gesto na direção do filho, com quem guardava uma semelhança
inequívoca e ao mesmo tempo nada lisonjeira para si próprio. Visto de perto, o
sr. Stoorhuy s não combinava realmente com seus dois companheiros. O sr.
Aldren e o sr. Tabscott pareciam ser Homens de verdade, homens com os rostos
carnudos e as narinas de touro raivoso dos que comem carne vermelha com
frequência, homens que definitivamente não eram “rapazes” e mais
definitivamente ainda não eram “mulheres”. Tinham correntes de ouro sobre os
nós das gravatas e uma dura astúcia rubra nos olhos.
O sr. Stoorhuy s era mais nervoso e franzino. Uns sete centímetros de punho de
camisa apareciam debaixo de ambas as mangas de seu paletó. Seu cabelo
crescia em meia dúzia de direções e meia dúzia de tonalidades de cinza; uma
franja comprida estilo anos setenta caía-lhe sobre as sobrancelhas polvilhadas de
caspa. Ele tinha bochechas encovadas e esburacadas, dentes tão grandes que
pareciam não permitir que ele unisse os lábios sobre eles, e olhos vivos e
inteligentes que pareciam ocupados em olhar por cima de seus ombros mesmo
enquanto ele fitava Louis, com uma das mãos levantada para mantê-lo na
expectativa.
“Louis”, chamou Melanie. Ao se virar, ele viu a mãe apoiada num pé só,
inclinando-se por entre outros corpos. “Será que você pode pegar uma xícara de
café para mim?”
“Na verdade...”, disse o sr. Tabscott, beliscando o punho do paletó de Louis,
“eu acho que o... hã... serviço já vai começar.”
“É, vai sim”, disse o sr. Aldren. “Nós vamos nos sentar com a sua mãe, se
você não se importa.”
“Prazer em conhecê-lo, filho.”
“Prazer em conhecê-lo... hã... Louis.”
O sr. Stoorhuy s seguiu atrás deles, escapando da conversa natimorta com
Louis da maneira mais fácil: indo embora.
A melancólica multidão estava se dirigindo em rebanho para as fileiras de
cadeiras dispostas diante de um atril e de um piano de cauda, no qual um japonês
de rabo de cavalo e ombros expressivos havia começado a tocar o Cânone de
Pachelbel. O pai de Louis, com seu respeito acadêmico por atris, já tinha se
sentado. Eileen continuava afagando o peito de Peter. E, então, um quadro vivo
se apresentou: o sr. Aldren conduzindo Melanie para a plateia, de braço dado
com ela, e Melanie deixando claro que não precisava ser conduzida, mas
caminhando com ele tão naturalmente quanto se eles fossem um casal de
namorados passeando por um calçadão; o sr. Stoorhuy s seguindo atrás com a
mão no outro braço dela, sorrindo o seu sorriso que não era um sorriso e ficando
para trás por um momento para olhar por cima do ombro por entre os tufos
rebeldes de cabelo que lhe caíam nos olhos; e o sr. Tabscott formando a
retaguarda, de costas para os três, claramente disposto a afugentar quem quer
que fosse idiota o bastante para tentar ir atrás deles. Um chapéu branco e um
vestido de linho amarelo — uma senhora que tinha tão pouco de homem quanto
pelo menos dois daqueles homens tinham de mulher — cercados de riscas de giz
escuras.
Louis, olhando fixamente para aquilo, esticou um dedo e cravou a ponta dele
na ponte de seus óculos.
O Cânone havia se tornado ensurdecedor. Melanie se sentou entre o sr. Aldren
e o sr. Tabscott, com o sr. Stoorhuy s se aconchegando a eles pelo lado do sr.
Aldren, seu braço magro quase longo o bastante para envolver as costas dos três,
agora com doze centímetros de punho branco à mostra. Louis eriçou um pedaço
do tapete peludo com um sapato pesado. Perguntar a Eileen quem e o que eram
aqueles homens estava fora de cogitação; ela estava com o rosto encostado na
gravata de Peter e apalpava as costas dele por debaixo do paletó como se
procurasse a chave para lhe dar corda. Os lábios dos dois estavam se mexendo:
eles estavam conversando num tom inaudível. Eles e Louis eram agora os únicos
enlutados que ainda permaneciam de pé. Uma mulher de rosto cinzento usando
um caftan havia se posicionado atrás do atril e, com um cotovelo apoiado nele,
observava o pianista com ar grave. O pianista tinha começado a travar uma
visível peleja com o Cânone, tentando impor um ritardando enquanto corria com
os laboriosos acordes, tentando encontrar um momento respeitável para
interromper a música. O Cânone estava mostrando sua fibra e parecia estar
longe de se render.
Louis foi andando até o jovem casal de namorados em sua bolha invisível de
esquecimento, e postou-se, por assim dizer, diante da porta dos dois. “Oi, Peter”,
disse.
Peter parecia ter algum problema de reflexo. Três ou quatro segundos se
passaram antes que ele se virasse e dissesse: “Oi, tudo bem?”.
“Tudo. Será que eu poderia falar com a minha irmã um instante?”
Eileen se desgrudou de Peter e deu uma ajeitada no cabelo. Ao olhar quase,
mas nunca exatamente nos olhos de Louis, ela conseguia parecer inteiramente
ausente.
“Eu não fiz nada com você”, disse Louis.
“Eu não disse que você fez.”
“A mamãe te deu uma dura, foi isso?”
“Eu não estou a fim de falar sobre isso.”
“Sei.”
“Eu vou sentar com o Peter, tudo bem?”
Ela o deixou sozinho no meio do salão, dez passos atrás da última fileira de
cadeiras. As luzes incidiam com mais intensidade sobre ele do que sobre as cerca
de cinquenta pessoas reunidas na plateia, com mais intensidade até do que sobre
a moderadora cinzenta, que, depois de balançar a cabeça em agradecimento ao
suado e vitorioso pianista, olhou bem na direção de Louis e disse: “Todos podem
se sentar”.
Louis se manteve firme onde estava, de braços cruzados. A mulher fechou os
olhos e levantou as sobrancelhas. Em seguida, ajeitou um par de óculos que
estava pendurado por uma corrente ao seu pescoço.
“Nós estamos reunidos aqui hoje”, disse ela, lendo no atril, “para honrar a
memória de Rita Damiano Kernaghan, uma mentora para muitos de nós e uma
amiga para todos. Vocês estão conseguindo me ouvir na última fileira?”
A única pessoa sentada na última fileira, Bob Holland, fez uma continência
para a mulher.
“Meu nome é Geraldine Briggs. Eu era amiga de Rita Kernaghan. Eu a
conhecia muito bem. Por vezes, nós éramos como irmãs uma para a outra.
Ríamos juntas, chorávamos juntas. Parecíamos garotinhas, às vezes.”
Os pálidos enlutados ouviam embevecidos, suas cabeças como agulhas de
bússola apontando para o atril. Os homens ao lado de Melanie, incluindo o sr.
Stoorhuy s, pressionavam os dedos contra as têmporas.
“Quando eu conheci Rita, em 1983, no Centro de Empoderamento de Danvers,
ela havia acabado de escrever um livro intitulado Começando a vida aos 60, que
muitos de vocês com certeza conhecem, e parecia, parecia mesmo, a perfeita
encarnação dos princípios delineados nele. Rita tinha aprendido que a alma é
jovem e eterna, alegre e radiante, cheia de jubilosas melodias. A idade não é um
impedimento para a alma. De fato, nem sequer a própria morte é um
impedimento. Rita tinha sido uma simples camponesa, uma colhedora de flores e
ervas aromáticas, nos tempos de Napoleão. Por que então não haveria ela de
fazer jubilosas melodias agora que, como uma viúva já fatigada de suas aflições,
não havia nada a fazer da vida, nada de fato, a não ser começá-la de novo? Por
que não haveríamos todos nós de fazer o mesmo? Na oficina de Rita, nós
escutamos a mensagem dela. Nós aprendemos. Nós crescemos. Nós rimos. Nós
nos tornamos jovens de novo. Nós fomos curados, curados não no sentido em que
o mundo moderno entende a cura, mas sim espiritualmente. Sim,
espiritualmente. Ela abriu um novo mundo para nós.”
Louis, rígido como uma rocha, viu o sr. Tabscott enterrar o rosto nas duas
mãos. Seu relógio ornado de pedras preciosas faiscava.
“Mas, de fato, o que é o novo senão aquilo que é mais antigo? E o que, o que é
a morte senão o começo de uma nova vida? Outra volta no ciclo eterno? Um
novo bebê que nasce? Vamos, portanto, contar histórias felizes hoje. Cada um de
nós que assim desejar, que se levante e celebre com histórias felizes a vida
eterna de Rita Damiano Kernaghan e, de fato, de todos nós!”
Nesse momento, Geraldine Briggs fez uma pausa e uma mulher que estava
sentada na primeira fila saltou da cadeira. Ela imediatamente tornou a se sentar,
desestimulada por um olhar.
“Eu vejo entre nós”, Geraldine Briggs continuou, lendo, “amigos de Rita.
Familiares de Rita. Amigos da época em que ela trabalhava como secretária.
Amigos e pessoas queridas de todas as fases da vida dela. E então, amigos, o
Centro de Empoderamento, que eu tenho o orgulho de dirigir, solicita, de acordo
com o desejo expresso de Rita, que em lugar de flores sejam feitas doações em
nome de Rita ao Centro de Empoderamento. O nome do fundo é Fundo Rita
Damiano Kernaghan. E o número é 1145. Envelopes para doações ainda se
encontram disponíveis ao lado da garrafa térmica de café. Mas, enfim, vamos
agora, vamos agora ouvir histórias felizes!”
A primeira história feliz foi contada pelo sr. Aldren, que se ergueu
parcialmente de sua cadeira e falou com uma voz cautelosa e monocórdia. “Rita
Kernaghan foi nossa funcionária nas Indústrias Sweeting-Aldren durante vinte e
quatro anos e foi também, hã, esposa do principal arquiteto daquela que é
considerada uma das maiores histórias de sucesso do nosso estado no mundo da
alta tecnologia e dos grandes empreendimentos das, hã, duas últimas décadas, e
eu e alguns outros membros da direção viemos aqui para, hã, prestar o nosso
respeito. Ela era uma grande... uma grande mulher.”
O sr. Aldren se recostou de novo em sua cadeira e Geraldine Briggs, de olhos
fechados, balançou a cabeça lentamente. Em seguida, a mulher ansiosa da
primeira fila saltou e se virou de frente para a congregação. Uma vez, disse ela,
depois de uma aula no Centro de Empoderamento, Rita Kernaghan tinha lhe dado
um amuleto de bronze para usar no pescoço. O amuleto havia curado um quisto
enorme que ela tinha no peito. Em gratidão, a mulher havia mandado para Rita
uma caixa de peras da Harry and David. Seis meses depois, numa celebração do
equinócio da primavera realizada na propriedade de Rita, a mulher foi conduzida
à sala de estar. Durante seis meses, a caixa de peras tinha ficado guardada perto
do foco de poder da pirâmide da casa de Rita. Rita e a mulher arrancaram os
grampos da caixa, que eram de cobre e resistentes. E as peras não estavam
podres. A mulher e Rita dividiram uma pera, alternando mordidas. Estava
gostosa. A mulher se sentou.
Geraldine Briggs deu um sorriso constrangido e tossiu um pouco.
Um homem com uma dentadura cujo formato lembrava dentes de carpa se
levantou e desdobrou um recorte de jornal. Era um editorial do Chronicle de
Ipswich. Invocando explicitamente o deus judaico-cristão, o editorial dava graças
a Deus por não terem ocorrido danos mais graves no recente terremoto e
observava que a famosa pirâmide de Rita, que tanto espaço ocupara na mídia nos
últimos anos, não fora capaz de protegê-la na hora H; os danos ocorridos na
propriedade de Kernaghan (mesmo leves) estavam entre os mais graves de que
se tinha notícia. O homem dobrou o recorte. Disse que havia feito duas das
oficinas de Rita. Disse que ela jamais afirmara que a pirâmide oferecia vida
eterna nesta existência. Essa não era a questão. Na opinião do homem, a
pirâmide tinha na verdade servido para concentrar as forças da Terra naquela
área...
“Sim”, disse Geraldine Briggs. “Sim, talvez. Outras histórias?”
Uma mulher se levantou para descrever uma ocasião em que Rita havia
chorado ao saber da morte de uma jovem.
Outra mulher se levantou para contar que Rita uma vez se recusara a aceitar
dinheiro de uma pessoa que teria dificuldade para pagar uma oficina.
Outra mulher se levantou e falou da amizade que ela tivera com Rita no tempo
da dinastia Ming.
Não estava claro que tipo de história, além da do sr. Aldren, teria agradado
Geraldine Briggs; certamente poucas daquelas agradaram. Mas, tendo aberto a
porta, ela agora estava impotente para fechá-la. Os relatos se seguiam um atrás
do outro, indo do sentimental até as raias da insanidade, e o peso acumulado deles
foi aos poucos acabrunhando Louis, descruzando seus braços, arqueando seus
ombros, até que por fim ele foi se sentar ao lado do pai. O pai parecia estar se
divertindo a valer, jogando a cabeça para trás de prazer, deliciando-se com
aquelas confissões deprimentes como se elas fossem pipoca. Chegou até a olhar
de cara feia para Geraldine Briggs quando ela disse pela terceira vez: “Bem, se
ninguém tem mais nenhuma...”. Ela esperou. Parecia que finalmente não
haveria mesmo mais nenhuma. “Se ninguém tem mais nenhuma história a
contar, eu acho que nós podemos...” Mas mais uma vez ela foi obrigada a parar,
pois Melanie havia se posto de pé.
Melanie deu um sorriso simpático, virando a cabeça de um lado para o outro
para angariar o máximo de olhares possível, inclinando-se para trás para
capturar mais alguns. Os únicos olhares que evitou foram os de sua família.
“Eu também conhecia Rita Kernaghan”, disse ela. “E queria dizer a vocês que
acredito com toda a convicção que ela já reencarnou! Eu acredito que ela agora
é... um periquito! Não é maravilhoso?” Ela entrelaçou as mãos na frente do
corpo e as balançou de um lado para o outro como uma garotinha feliz. “Eu só
queria dizer a todos vocês o quanto eu acho maravilhoso que ela agora seja um
periquito, simplesmente maravilhoso. Isso é tudo o que eu tenho a dizer!”
Com um leve e lastimável requebro dos quadris e uma das mãos pousada
sobre o chapéu para evitar que ele caísse, Melanie se sentou de novo entre seus
protetores, o sr. Aldren e o sr. Tabscott. Os protetores trocaram sorrisinhos.
Enchendo-se de indignação, a desenxabida multidão se virou para Geraldine
Briggs em busca de orientação, mas ela parecia ter alguma coisa urgente a dizer
ao pianista. Eileen e Peter estavam cochichando e balançando a cabeça, fingindo
prudentemente não ter prestado muita atenção ao que Melanie dissera. A
multidão começou a murmurar: Respeite os mortos! Respeite os mortos!
Louis olhava para o pai, que por sua vez olhava para a esposa. Depois que a
surpresa desapareceu, não havia nada divertido ou afetuoso ou mesmo
aborrecido na expressão de Bob. Ela era pura desaprovação decepcionada. E,
como tal, uma expressão que só o amor poderia sustentar. Ele teria feito
exatamente a mesma cara se Melanie tivesse dito: “Eu estou te traindo. Isso é
tudo o que eu tenho a dizer!”.
O pianista havia começado a tocar uma música new age, cósmica e
borbulhante. “gente!”, Geraldine Briggs gritou. “Gente, gente, gente. Nós agora
ouvimos os dois lados, o feliz e o não iluminado. Então vamos agora partir para o
mundo com corações alegres e mentes equilibradas. lembrem-se dos envelopes.
amém!”
Os homens e mulheres desenxabidos se levantaram. Conforme se dirigiam à
mesa de comes e bebes, eles diminuíam o passo e andavam em semicírculo em
torno de Melanie como cães de caça carrancudos e abatidos. Ela sorriu e acenou
com a cabeça para todos eles enquanto conversava com os senhores Tabscott,
Aldren e Stoorhuy s, aqueles cães de caça privilegiados que se aglomeravam em
volta dela. Logo Louis e seu pai eram as únicas pessoas que ainda continuavam
sentadas.
“Sweeting-Aldren?”, disse Louis.
“Os ajudantes da natureza. Herbicidas, pigmentos, produtos têxteis.”
“A mamãe tem alguma coisa a ver com eles agora?”
“Pode-se dizer que sim.”
“Ela foi tão grossa.”
“Não a julgue, Lou. Não há nada que eu possa dizer a você que justifique o
que ela fez, mas por favor não a julgue. Você me faz esse favor?”
Coqueteria era a única palavra para descrever o jeito como Melanie estava
aceitando uma simples xícara de café do sr. Stoorhuy s, fingindo estar cedendo a
uma tentação apesar de saber que não deveria. “Eu pensei que eu fosse gritar”,
ela disse ao sr. Aldren. Por um breve momento, na fixa intensidade do sorriso
que o sr. Aldren dirigiu a ela, o lobo sorridente por trás do cachorro sorridente se
deixou entrever, o animal cruel e faminto que espera o momento certo para agir.
Ele disse: “Você almoça conosco, não?”. Ao que Melanie respondeu: “Eu acho
que posso arranjar um tempinho para vocês”.
“Olha para ela”, disse Bob. “Você alguma vez já viu a sua mãe tão feliz? Você
não sabe quanto tempo ela teve que esperar. É difícil negar a ela algumas horas
de felicidade.”
“É, mas...”
Bob fixou o olhar na direção do atril vazio. “Eu estou te pedindo para não
julgá-la.”
3.
Do serviço fúnebre, Louis levou seu pai de carro a uma hamburgueria barata
na Harvard Square, um lugar com o ar de uma instituição constrangida, e foi lá,
numa mesa próxima à porta, que ele foi apresentado a uma cifra que estragou
seu já minguado apetite. O pai revelou a cifra enquanto segurava na palma da
mão, como se fosse uma calculadora, a metade de cima de seu pão de
hambúrguer e a besuntava com mostarda. A cifra era vinte e dois milhões de
dólares e correspondia ao valor líquido aproximado do novo patrimônio da mãe
de Louis.
Cachecóis e mangas de casaco roçavam em sua cabeça à medida que
diferentes horários de almoço iam terminando e o restaurante ia se esvaziando.
Ar frio entrava pelas portas que não tinham descanso. Louis perguntou o que a
mãe ia fazer com tanto dinheiro.
O pai parecia um pouco com um mendigo, com aquele seu terno velho, as
lapelas estreitas se sobrepondo quando ele se debruçava sobre seu hambúrguer.
“Eu não sei”, ele respondeu.
Louis perguntou se eles iam continuar morando na casa de Evanston.
“Onde mais nós iríamos morar?”, disse o pai.
Ele estava pensando em se aposentar?
“Quando eu fizer sessenta e cinco anos”, respondeu o pai.
Sem disposição para fazer mais perguntas, Louis ficou observando em silêncio
o pai esvaziar o próprio prato e depois o dele, pagar a conta com uma nota de dez
dólares e deixar uma gorjeta em moedas de dez e de vinte e cinco centavos.
Já eram mais de três horas quando Louis voltou para a wsne. As nuvens
estavam escurecendo cada vez mais, se avolumando e se preparando para deixar
cair uma senhora chuva mais tarde, e dentro dos estúdios era como se já fosse
meia-noite. Todas as luzes estavam acesas, os diversos sistemas circulatórios do
prédio zumbiam nitidamente, os telefones do departamento de publicidade, como
sempre, guardavam silêncio. Pela janela do estúdio A, Louis viu o locutor da
tarde, um veterano com aparência de alcoólatra chamado Bud Evans, cujos
frágeis e escassos fios de cabelo estavam cuidadosamente esticados sobre sua
careca crestada pelo frio. Detrás do microfone de mesa, Evans olhava com ar
apreensivo para seu convidado, um cavalheiro com cachos louros que lhe
desciam até os ombros e uma camisa havaiana. Durante cinco ou seis segundos,
nenhum dos dois disse nada. Era como uma pausa pensativa no meio de uma
conversa, só que eles estavam no ar e a pausa estava sendo transmitida. Ainda
enjoado da viagem de carro, Louis entrou no banheiro dos homens e se inclinou
sobre o mictório, encostando a testa na parede azulejada. Sua urina desmanchou
um montinho alcatroado de bitucas de cigarro. Movimentando-se como uma
pessoa de ressaca, Louis se sentou diante do terminal de computador em seu
cubículo e começou a digitar relatórios de mensagens publicitárias. Fez isso
durante três horas, o que, ao valor do ordenado que estava ganhando, lhe renderia
pouco menos que doze dólares, pressupondo que algum dia ele viesse a ser pago.
Quando saiu de Waltham, caía uma chuva de um céu da cor da tela de um
televisor que acabou de ser desligado. Chegando em Clarendon Hill, foi direto
para o banheiro e vomitou um líquido claro e viscoso no vaso sanitário bege.
Aos vinte e três anos, Louis não era uma pessoa inteiramente livre de
angústias. Sua relação com dinheiro era particularmente atormentada. E, no
entanto, o que ele percebeu, quando começou a se dar conta da significação
daquela cifra, foi que, até o momento em que se sentou com o pai naquela
hamburgueria, ele se sentia basicamente satisfeito com sua vida e suas
circunstâncias. Afinal, uma pessoa se acostuma a ser o que é e, se tiver sorte,
acaba aprendendo a ter mais ou menos em pouca conta todas as outras maneiras
de ser, a fim de não passar a vida inteira as invejando. Louis vinha aprendendo a
apreciar a liberdade que uma pessoa conquista ao abrir mão de dinheiro e a
sentir pena ou mesmo franco desprezo pelos ricos — uma classe representada
em sua cabeça, com justiça ou não, pelos vários namorados de pele bronzeada e
nariz fino que Eileen tivera ao longo dos anos, incluindo Peter Stoorhuy s. Mas
agora o alvo da piada era Louis, pois ele era filho da dona de uma fortuna de
vinte e dois milhões de dólares.
Naquela noite, ele teve um sonho lúcido e desagradável. O cenário era uma
sala de reuniões com paredes de lambri e cadeiras de couro vermelho. Sua mãe
se reclinou numa das cadeiras e, levantando a barra de seu vestido amarelo,
deixou que o sr. Aldren, inteiramente vestido, se postasse entre suas pernas e
injetasse sêmen dentro dela, enquanto o sr. Tabscott e o sr. Stoorhuy s
observavam. Depois que o sr. Aldren terminou, foi a vez de o sr. Stoorhuy s
montar nela, só que o sr. Stoorhuy s tinha virado um setter irlandês e estava tendo
de se esforçar para conseguir ficar empinado sobre as patas traseiras e manter
uma posição de cruza eficaz. O sr. Aldren e o sr. Tabscott ficaram observando
enquanto ela esticava os braços para firmar o ávido cachorro entre suas pernas.
No sábado, Louis deixou duas mensagens na secretária eletrônica de Eileen.
Como ela não ligou de volta, ele telefonou para os pais no hotel e descobriu que
eles iam de carro na manhã seguinte para a casa dos Kernaghan, a mãe para
passar talvez uma semana por lá e o pai apenas um dia, já que as aulas na
Northwestern recomeçavam na segunda-feira. “Eu vou estar muito ocupada”,
disse a mãe. “Mas, se quiser me fazer um favor, você pode levar o seu pai para o
aeroporto. O voo dele sai às sete.”
Ignorando a indireta, Louis saiu de casa com destino a Ipswich às dez da
manhã de domingo. Somerville estava tomada de umidade e estagnação. À noite
a chuva tinha finalmente cessado, mas beirais, para-lamas e árvores começando
a dar folhas ainda estavam carregados dela, pois não havia nem sinal de vento.
Nos lugares onde se abriam vistas, ao longo de ruas transversais ou através dos
estreitos espaços entre uma casa e outra, a umidade significava um
empalidecimento da distância, uma perda de nitidez dos contornos que afetava
até o dobre do sino de uma igreja distante, cujas badaladas independentes quase
se perdiam na confusão dos ecos intermediários. Louis penou para contornar dois
carros de patrulha de Somerville que haviam parado no meio de um cruzamento,
janela de motorista com janela de motorista, como se fossem insetos que
cruzassem daquela forma e a necessidade deles fosse urgente. Pelo portão de
uma igreja vazia e iluminada, ele entreviu canteiros de palmas-de-são-josé.
As estradas estavam desertas. Do alto de trechos em aclive, passando por
Chelsea, Revere e Saugus, ele avistou lá embaixo uma intricada colcha de
retalhos de bairros em que ruas e pistas de entrada de residências tinham a
hegemonia. Muitas delas estavam semialagadas agora, com carros estacionados
enviesados em suas margens como se tivessem sido arrastados por uma
enxurrada.
Uma enxurrada diferente, uma enxurrada de dólares em refluxo, havia
deixado inúmeros condomínios novos encalhados no meio de campos
lamacentos, estéreis e sulcados de lagartas de trator. Os condomínios de casas só
se diferenciavam uns dos outros pela localização; todos, sem exceção, tinham
fachadas revestidas de ripas de madeira pintadas em tons pastel e semicírculos e
triângulos pós-modernos interrompendo as linhas dos telhados. Já os edifícios
vinham em duas variedades: o tipo que tinha janelas de madeira compensada e o
tipo que tinha banners pendentes do telhado anunciando incríveis ofertas de
apartamentos de 1 & 2 qts.
Espinheiros e árvores mirradas cobriam o solo plano e esgotado ao norte de
Danvers. Na neblina que se instalara nas cercanias de Ipswich, perto de uma
concessionária Ford, Louis teve de frear para deixar um bêbado desgrenhado que
não devia ter mais do que trinta anos atravessar a Route 1A. Saindo do centro da
cidade pela Argilla Road, ele passou por casas esparsas com bmws, Volvos e
carvalhos gigantescos plantados em frente. Não demorou muito, ele chegou a um
portão de pedra onde se lia kernaghan. Uma pista de entrada ladeada de pinheiros
serpenteava colina acima, cortando pastos ondulantes cobertos de grama alta. No
alto da colina havia uma elegante casa branca com alas simétricas, pórtico
abobadado e, assentada entre suas lucarnas, uma pirâmide feita de placas de
alumínio branco. A pirâmide devia ter, fácil, uns cinco metros de altura. O efeito
era o de uma mulher bem vestida com um balde de plástico na cabeça.
Louis ficou parado alguns instantes em cima de um capacho de cânhamo com
um símbolo de y in e y ang gravado em preto e espiou por uma janela estreita ao
lado da porta da frente. Viu um hall de entrada ladrilhado e uma sala de estar que
se estendia até os fundos da casa. Em teoria pelo menos, já que a casa agora
pertencia à sua mãe, aquele lugar era um segundo lar para ele. Louis abriu a
porta e entrou.
A mesa de jantar, à sua esquerda, estava coberta de pastas de arquivo e
portfólios. Um homem de ombros largos, vestindo uma camisa branca, estava
sentado à mesa, de costas para o hall, e na cabeceira, lendo um documento
grampeado, estava Melanie.
“Oi, mãe, tudo bem?”, disse Louis.
Ela ergueu os olhos para ele com uma expressão severa. Só a ponta branca de
seu nariz comprido impedia seus óculos de meia lente de caírem. Usava um
vestido de seda escarlate, batom escarlate e brincos feitos de grandes pedras
pretas. Seu cabelo escuro estava preso com firmeza atrás das orelhas. “Oi,
Louis”, disse ela, voltando a olhar para o documento. “Feliz Páscoa.”
Seu companheiro tinha virado para trás, apoiando uma axila no encosto da
cadeira e revelando um rosto corado e afável com olhos de um azul gredoso e
um hirsuto bigode arruivado. Seu colarinho estava aberto, o nó da gravata
afrouxado. Parecia estar tão contente em ver Louis que Louis imediatamente
apertou a mão dele.
“Henry Rudman”, disse o homem. Por pouco ele não falou Henwy Wudman.
“Você deve ser o filho que mora em Sumvull. Na Belknap Street, eu acho que a
sua mãe me disse, não é?”
“Isso mesmo.”
Henry Rudman balançou a cabeça vigorosamente. “Eu pergunto porque cresci
em Sumvull, sabe. Você conhece a Vinal Avenue?”
“Não, desculpe”, disse Louis. Em seguida, se inclinou por cima do ombro da
mãe. “O que é que você está lendo aí, mãe?”
Melanie virou uma página em incisivo silêncio.
“É uma súmula judicial antiga”, Wudman respondeu, recostando-se
confortavelmente em sua cadeira e sacudindo sua caneta como se ela fosse uma
baqueta. “Nós temos um ornamento arquitetônico lá em cima que já não é mais
bem-vindo. A cidade de Ipswich tinha se proposto alguns anos atrás a pagar os
custos da retirada dele, mas agora parece que eles estão querendo tirar o corpo
fora.”
“E que ornamento”, disse Louis.
“Bom, gosto não se discute. Mas eu entendo o que você quer dizer. Eu soube
que você morava no Texas antes de vir para cá. O que você está achando do
clima?”
“Uma bosta!”
“É, espera só até ele ficar assim de novo em pleno mês de junho. Me diga
uma coisa, você já virou fã dos Sox ou ainda não?”
“Não, ainda não”, disse Louis. Ele estava gostando da atenção. “Eu torço pelos
Cubs.”
Com uma manzorra do tamanho de uma luva de beisebol, o advogado rebateu
as palavras de Louis de volta na direção dele. “Mesma coisa. Se você gosta dos
Cubs, você tem tudo o que é preciso pra ser fã dos Sox. Por exemplo, quem nos
fez perder uma Série em 86, o Bill Buckner. Quem nos fez o favor de fazer uma
troca conosco e levar o Bill Buckner, os Chicago Cubs. É como se fosse uma
espécie de conspiração. Quais foram os dois times que jogaram mais anos sem
ganhar o grande título? Você já entendeu, os Sox e os Cubs. Escuta, você quer ver
um jogo? Eu posso mandar um par de ingressos pra você, sou assinante há
dezenove anos. É pouco provável que você consiga ingressos como esses pelos
canais normais.”
Surpreso, Louis jogou a cabeça para trás, totalmente desarmado agora. “Ia ser
o máximo.”
Melanie pigarreou, fazendo um barulho de motor dando partida.
“Ei, não tem de quê”, disse Rudman. “Eu sou um corruptor da juventude. Mas
você vai ter que nos dar licença agora. Nós estamos encarando um ninho de
cobra aqui.”
Louis se virou para a mãe. “Cadê o papai?”
“Lá fora. Por que você não procura no quintal? Como eu disse a você no
telefone, o senhor Rudman e eu temos muitos assuntos a discutir a sós.”
“Não se incomode... comigo”, Louis disse para a mãe com sua voz de
Nembutal.
Na cozinha, ele encontrou um bolo de café, uma garrafa térmica de café com
capacidade para servir uma multidão e, numa bancada comprida, outros
produtos de padaria em caixas brancas com o nome “Holland” escrito com giz
de cera azul. Seus olhos se arregalaram quando ele abriu a geladeira. Havia patês
e saladas de frutos do mar em embalagens de plástico transparente, frutas
graúdas envoltas em papel de seda decorado, uma lata de caviar russo, meio
presunto defumado, queijos estrangeiros em peças inteiras, iogurtes de qualidade
de sabores incomuns, alcachofras e aspargos frescos, picles condimentados
kosher, uma intrigante pilha de pacotes de delicatéssen, garrafas de cerveja
alemã e holandesa, refrigerantes de vários tipos, sucos em garrafas de vidro,
champanhes caras...
“Louis”, a mãe chamou da sala de jantar.
“Que é, mãe.”
“O que você está fazendo aí?”
“Estou olhando para a comida.”
Silêncio.
“Não há como você ser considerada legalmente responsável”, disse Henry
Rudman. “O sujeito estaciona o Jaguar dele na rua, outro sujeito chega e oferece
o Jaguar como garantia num empréstimo, não existe a menor possibilidade do
sujeito A ser responsabilizado por isso. É uma fraude clara, não envolve você de
forma alguma. Também não dá pra culpar o banco. Ela está morando na casa e
a escritura que ela mostra pra eles é uma falsificação de primeira, tão boa que
faz você se perguntar se ela fez mesmo isso tudo sozinha, eu aposto que não. Foi
um trambique bem-feito. Ela toma um empréstimo no valor de duzentos mil
dando a casa como garantia, gasta setenta e dois na tal da pirâmide que ela
meteu na cabeça que tem que ter, que não pode viver sem ela, e investe o resto
do dinheiro em outro banco. Os juros vão cobrir os pagamentos sobre o
empréstimo durante uns dez, quinze anos, e ela ainda pode dar festas na casa de
vez em quando. Trambique bem-feito. Ela morre e o banco se ferra. Quer dizer,
supondo que os administradores do fundo ainda tenham a escritura verdadeira. O
seu pai devia saber o que estava fazendo. Quatro mil por mês livre de impostos,
mais uma casa de graça com todas as despesas de manutenção pagas e nem
assim ela conseguia viver dentro do orçamento, nem sequer pagava o salário da
coitada da escrava haitiana. Eu não posso dizer que goste desse negócio de mão-
morta (você entende que isso é só uma opinião profissional), mas, sinceramente,
se fosse casado com uma mulher daquelas, eu mesmo não ia deixar que ela
chegasse perto do patrimônio. Se não, quando desse por mim, eu ia estar com o
monte Fuji no meu quintal.”
“Louis.”
“Que é, mãe.”
“Seria possível você não ficar na cozinha?”
“Tá, só um segundo.”
Um corredor escuro e frio que tinha início nos fundos da cozinha terminava
em três portas, uma delas dando acesso à área externa e as outras duas a um
banheiro e um quarto. Sentado na cama, Louis engoliu café e devorou um
pedaço de bolo. Todos os cabides do armário estavam vazios. Levou algum
tempo para ele notar que estava faltando uma vidraça na janela. Foi o único
estrago causado pelo terremoto que ele notou a manhã toda.
Saindo para o quintal dos fundos, ele não viu nem sinal do pai, embora o ar
estivesse tão parado e denso que quase parecia que, se alguém o atravessasse,
deixaria um rastro. Louis cruzou um pátio e resolveu tentar abrir uma das portas
envidraçadas da parte de trás da sala de estar. A porta abriu na mesma hora.
A sala de estar era ampla o suficiente para conter quatro conjuntos separados
de móveis. Em cima da lareira estava pendurada uma grande pintura a óleo do
avô de Louis, um retrato formal pintado em 1976, quando John Kernaghan tinha
por volta de setenta e cinco anos. Suas sobrancelhas ainda eram escuras. Com
sua cabeça quase inteiramente calva, pele firme e crânio elegante e compacto,
ele parecia imune à velhice. Ele era, Louis se deu conta, o responsável por sua
queda de cabelo. A imagem pintada ganhava ainda mais vida com a filha viva
sentada a alguns metros dali na sala de jantar, lendo documentos com os mesmos
inabordáveis olhos escuros faiscantes do pai.
“Quando se reunirem no dia 30”, disse Henry Rudman em voz baixa, “eles
vão ter que repassar o patrimônio todo. É o patrimônio todo, está claríssimo, eles
não têm escolha. A transferência completa pode levar de quatro a seis semanas,
mas vai ter que ser feita até, no máximo, 15 de junho.”
Que a sala de estar ainda não pertencia inteiramente a Melanie estava claro
pelo material de leitura new age presente nas mesas de centro, pelas pinturas
acrílicas feiosas e fantasmagóricas penduradas nas paredes e pelos exemplares
de Princesa Itaray, Começando a vida aos 60 e Filhos das estrelas que
abarrotavam a única estante. Para não falar no cheiro que emanava do bar, um
cheiro de bebida alcoólica derramada e desinfetante com fragrância de tutti-
frutti. O bar se projetava da parede, perto de um dos cantos do fundo da sala, e
era feito da mesma madeira clara que as duas banquetas esbeltas dispostas diante
dele. Prateleiras que chegavam quase até o teto exibiam algumas centenas de
garrafas diferentes — licores e digestivos com rótulos escritos em alfabetos
estrangeiros, alguns com imagens de legumes insólitos. Louis se ajoelhou perto
do piso de mármore cinza atrás do bar. Havia espaço mais que suficiente ali para
uma mulher pequena jazer morta, com a cabeça achatada. Não era difícil ver
manchas de um marrom esmaecido da bebida que tinha espirrado na parede. E
também não era difícil ver sangue. Havia vestígios dele nas fissuras entre as
placas de mármore, ainda mal começando a escurecer, o vermelho de esmalte
de unha particularmente visível nos pontos em que as beiradas das placas
estavam lascadas. Quem tinha limpado a sujeira? A empregada, antes de ser
deportada? Com a ponta dos dedos, Louis apertou o mármore frio e inflexível,
botando o peso do corpo em cima dele, ouvindo claramente o uóc! da cabeça
rachando.
“Louis. Pelo amor de Deus. O que você está fazendo?”
Ele se levantou rapidamente. A mãe estava se aproximando do bar. “Deixei
cair uma moeda”, disse ele.
“Você tem um interesse mórbido?”
“Não, não, eu só entrei por acaso por esse lado.”
“Você entrou...?” Melanie sacudiu a cabeça na direção das portas
envidraçadas, como se elas a tivessem decepcionado profundamente. “Esta casa
não tem segurança alguma”, disse. “Imagino que ela achava que a pirâmide
oferecia proteção também contra ladrões. É muito lógico e racional, você não
acha? É exatamente o que se poderia esperar dela.”
Louis ouviu um leve ruído de água correndo num banheiro atrás de uma
parede.
“Bem, você está vendo o lugar onde ela morreu.” A mãe cruzou os braços e
olhou com satisfação para as garrafas de bebida. “Eu pessoalmente não consigo
pensar em nada mais chinfrim do que botar um bar enorme como esse na sala
de estar. Ou você não concorda? Talvez você ache que todo mundo deveria ter
um botequim na sala de estar. E um barril de chope?”
Ela olhou para Louis como se de fato esperasse que ele respondesse. “E o
pior”, continuou, “é que ela provavelmente mandou instalar essa porcaria com
um dinheiro que não lhe pertencia. Imagino que você tenha ouvido o que o
senhor Rudman estava dizendo. Que ela forjou uma escritura para fazer um
empréstimo dando a casa como garantia. O que você acha disso, Louis? Você
acha que isso é correto? Você acha que isso é coisa que uma pessoa de bem
faça?”
Com o bico de um belo sapato, ela virou para cima uma das pontas de um
tapete chinês, inclinou a cabeça para ler a etiqueta e virou a ponta do tapete para
baixo de novo. Depois, dirigiu um sorriso sarcástico para uma mesa de centro.
“Estilos de vida harmônicos. Divindades fenícias. A volta do orgônio.” Ela fez
uma cara de nojo e desprezo. “O que você acha disso tudo, Louis?”
“Eu acho que vou gritar se você me fizer mais uma pergunta dessas.”
“Cada pequena coisa que eu vejo aqui me dá engulho. Engulho.” Ela disse isso
para o retrato pendurado em cima da lareira.
“Mas a casa é sua agora, certo?”
“Na verdade, sim.”
“E o que você vai fazer com ela?”
“Não faço ideia. Eu vim aqui para dizer que você está deixando a mim e ao
senhor Rudman muito nervosos nos rondando desse jeito. Você não conseguiu
encontrar o seu pai?”
“Não.”
“Bem, se você quiser ficar, eu sugiro que você vá para o quarto dos fundos,
tem uma televisão lá, talvez esteja passando algum jogo. Tem muita comida na
geladeira, você pode pegar o que quiser. Ou você poderia varrer o pátio para
mim, e eu tenho várias outras pequenas tarefas para lhe passar, se você quiser,
mas eu só não quero é que você fique nos rondando. Você não está na sua casa,
sabe.”
Louis olhou para ela com uma expressão neutra de expectativa, como se ela
fosse uma adversária de xadrez que tivesse acabado de fazer uma jogada e ele
quisesse ter certeza de que ela não ia mudar de ideia. Depois que expirou o
período arbitrário de tolerância, ele disse: “Foi bom o seu almoço na quinta-
feira?”.
“Foi um almoço de negócios. Eu pensei que tivesse explicado isso a você na
quinta.”
“O que foi que você comeu?”
“Eu não me lembro, Louis.”
“Não lembra? Isso foi três dias atrás! Um peixe? Um sanduíche?”
Eles agora ouviam o sr. Rudman mexendo em pratos na cozinha, enquanto
assobiava uma música de um programa de televisão.
“O que é que você quer, hein?”, Melanie perguntou num tom calmo.
“Eu quero saber o que você comeu no almoço de quinta-feira.”
Ela respirou fundo, tentando controlar sua irritação. “Eu não lembro.”
Ele franziu o rosto. “Você está falando sério?”
“Louis...” Ela abanou a mão, tentando sugerir algum prato genérico, algo que
não valia a pena mencionar. “Eu não lembro. Sim, um peixe. Filé de linguado. Eu
estou extremamente ocupada.”
“Filé de linguado. Filé de linguado.” Ele meneou a cabeça tão enfaticamente
que quase parecia uma mesura. De repente, ficou imóvel, sem nem mesmo
soltar o ar. “Grelhado? Cozido?”
“Eu vou voltar para a sala de jantar agora”, disse Melanie, permanecendo
plantada no centro de um tapete chinês. “Eu tive uma semana muito difícil...” Ela
fez uma pausa para deixar que Louis questionasse essa afirmação. “Uma
semana muito difícil. Tenho certeza de que você é capaz de entender isso e
demonstrar um pouco de consideração.”
“É, bem, nós todos estamos sofrendo do nosso jeito, obviamente. É só que eu
ouvi um boato louco sobre você ter herdado vinte e dois milhões de dólares.” Ele
tentou olhar nos olhos dela, mas ela tinha se virado para o lado, apertando os
polegares dentro dos punhos cerrados. “Louco, né? Mas voltando ao almoço,
vejamos, o senhor Aldren e o senhor sei lá das quantas, Tweedledum, eles
comeram um bom filé de carne vermelha, não foi? E o senhor Stoorhuy s...” Ele
estalou os dedos. “Coelho. Meio coelho, assado. Ou... como é que chama?
Marinado.”
“Eu vou voltar para a sala de jantar agora.”
“Só me diz se eu acertei, vai. Foi isso que ele comeu? Ele comeu coelho?”
“Sei lá, eu não reparei...”
“Você não reparou num coelho? Meio que estendido na travessa? Talvez com
um pouco de molho de cranberry ? Ou com repolho roxo? Ou panqueca de
batata? Que tipo de restaurante era? Me ajuda a formar a imagem, mãe. Era um
restaurante carérrimo?”
Melanie respirou fundo de novo. “Nós fomos a um restaurante chamado La
Côte Américaine. Eu comi um filé de linguado e o senhor Aldren, o senhor
Tabscott e o senhor Stoorhuy s tomaram sopa e comeram filés de carne
vermelha grelhados ou costeletas, eu realmente não me lembro o que foi
exatamente...”
“Mas não coelho. Você se lembraria de um coelho.”
“Não, ninguém comeu coelho, Louis. Você está sendo bem menos engraçado
do que pensa.”
Louis apertou os olhos. “Está bom. Vamos voltar aos vinte e dois milhões,
então. O que você vai fazer com eles?”
“Não faço ideia.”
“Que tal um iate? Dá um bom presente.”
“Isso não tem graça nenhuma.”
“Então é verdade?”
Melanie sacudiu a cabeça. “Não, não é verdade.”
“Ah, não é verdade. Então quer dizer que é falso. Então quer dizer que é,
digamos, vinte e um vírgula nove? Vinte e dois vírgula um?”
“Quer dizer que não é da sua conta.”
“Ah, sei, não é da minha conta. Então vamos esquecer isso, vamos deixar isso
pra lá. Afinal de contas, pessoas herdam vinte e dois milhões de dólares todos os
dias. O que você fez no trabalho hoje? Ah, eu herdei vinte e dois milhões de
dólares, me passa a manteiga?”
“Você pode fazer o favor de parar de mencionar esse número?”
“Vinte e dois milhões de dólares? Você quer que eu pare de falar vinte e dois
milhões de dólares? Está bem, eu vou parar de falar vinte e dois milhões de
dólares. Vamos chamar de alfa, então.” Ele começou a andar em volta da
beirada de um tapete. “Alfa é igual a vinte e dois milhões de dólares, vinte e dois
milhões de dólares é igual a alfa, alfa não é nem maior que vinte e dois milhões
de dólares, nem menor que vinte e dois milhões de dólares.” Ele estacou. “Como
é que o seu pai ficou tão rico?”
“Louis, por favor, eu pedi pra você parar de mencionar esse número e estou
falando sério. É muito doloroso pra mim.”
“É, eu estou vendo. Foi por isso que eu sugeri que a gente passasse a chamá-lo
de alfa, apesar de achar que alfa não chega realmente a captar o impacto. Que
coisa mais dolorosa herdar esse dinheiro todo. Você sabe que o papai está
dizendo que não vai nem sequer parar de dar aula?”
“Por que ele haveria de parar de dar aula?”
“Não vai me dizer que você vai precisar do salário dele quando tem vinte e
dois... opa.”
“Eu ficaria grata se você não tentasse me dizer o que eu preciso ou não
preciso.”
“Você ficaria grata se eu simplesmente fosse embora daqui agora e nunca
mais voltasse a tocar nesse assunto.”
O rosto de Melanie se iluminou como se Louis fosse um aluno dela que tivesse
inesperadamente dado a resposta certa. “Sim, está absolutamente correto. É o
que eu mais queria de você neste momento.”
Louis apertou os olhos mais ainda e disse: “Vinte e dois milhões de dólares,
vinte e dois milhões de dólares, vinte e dois milhões de dólares.” Continuou
repetindo cada vez mais rápido, até que sua língua se embolou e a coisa acabou
virando vindólas, vindólas. “Que grana violenta. Quer dizer que você está rica,
rica, rica, rica, rica.”
A mãe tinha virado de frente para a lareira e tapado os ouvidos com as mãos,
aplicando uma pressão isométrica tão forte contra a própria cabeça que seus
braços chegavam a tremer. Isso era a coisa mais próxima de uma luta a que ela
e Louis já haviam chegado; e não era realmente luta. Era como o que acontece
com um par de ímãs quando você tenta forçar os polos norte a se encostarem.
Sempre tinha sido assim. Mesmo quando ele era um garotinho de três ou quatro
anos e ela tentava ajeitar o cabelo dele, ou limpar sua boca suja de comida, ele
virava a cabeça para o lado com seu pescoço firme e teimoso. Se ele estava
doente na cama e ela botava a mão fria em sua testa, ele tentava se afundar com
toda a força no travesseiro e no colchão, tão cega e obstinadamente resistente ao
toque dela quanto o ímã, cujo campo de força invisível e permanente jamais
poderá conhecer o alívio da ruptura ou da descarga. Agora ela levantou a
cabeça, seus dedos brancos achatados contra as bochechas, os cotovelos apoiados
no consolo da lareira, e olhou para o pai. Da parte de trás da casa veio o barulho
de uma televisão ligada, ribombos e colisões: boliche.
“Eu estou pagando o senhor Rudman por tempo, Louis.”
“Certo. Quanto um advogado ganha, uns duzentos dólares por hora? Digamos
que sejam 220 por hora, então vinte e dois milhões (ah, me desculpe, eu falei de
novo) divididos por 220, dez elevado a sete divididos por dez elevado ao
quadrado, isso dá cem mil horas; pressupondo dez horas de trabalho por dia,
duzentos e cinquenta dias por ano, santo Deus, você tem razão. Isso dá só
quarenta anos. Eu vou tentar ser rápido.”
“O que é que você quer, Louis?”
“Bem, deixe-me ver, eu tenho um emprego, um apartamento barato e um
carro que já está pago, não sou casado, não tenho hábitos caros e, caso você não
tenha notado, não peço coisa alguma a você e ao papai desde que tinha dezesseis
anos, então provavelmente não é dinheiro que eu quero, você não acha, mãe?”
“E eu sou muito grata a você por isso, Louis.”
“Não precisa agradecer.”
“Não, eu preciso sim. Eu nunca cheguei a dizer a você o quanto eu me orgulho
da sua independência.”
“Eu já disse que não precisa agradecer.”
Ela se virou de frente para ele. “Eu tenho uma ideia”, disse ela. “Eu sugeri
algo nesse sentido para a Eileen e ela pareceu achar que era uma boa ideia.
Espero que o seu pai também concorde. Eu acho que nós todos deveríamos agir
como se isso nunca tivesse acontecido.”
“Esses vinte e dois milhões de dólares.”
“Por favor, por favor, por favor. Eu acho que nós todos deveríamos
simplesmente continuar a tocar as nossas vidas como se nada tivesse mudado.
Agora, pode ser que com o passar do tempo venham a acontecer algumas
mudanças, pequenas mudanças e talvez grandes mudanças também. Por
exemplo, eu provavelmente vou estar em condições de fazer com que se torne
muito fácil para você voltar a estudar, se algum dia você resolver voltar a
estudar. E eu não estou prometendo nada, mas é possível que, se você ou a Eileen
quiserem dar entrada numa casa, eu possa dar uma ajuda com isso também.
Mas todas essas coisas são para o futuro, e eu acho que o melhor que nós quatro
temos a fazer agora é simplesmente tirar isso da cabeça.”
Louis coçou o pescoço. “Você disse que a Eileen achou que isso era uma boa
ideia?”
“Achou.”
“Então por que ela estava chorando na quinta-feira?”
“Porque...” Os olhos da mãe se fixaram no vazio e depois começaram a
cintilar, as lágrimas parecendo brotar diretamente das íris castanhas, da mesma
forma como açúcar-cande fica molhado por si só. “Porque, Louis, ela tinha ido
até lá para me pedir dinheiro.”
Ele riu. Aquela era a Eileen que deixava carros caírem dentro de lagos. “E
daí? Dê um cheque para ela. Ou não dê um cheque para ela.”
“Ah!” As mãos da mãe se ergueram de novo em direção ao rosto, os dedos
dobrados com força. “Ah! Eu não vou permitir que você fale comigo assim!”
“Assim como?”
“Eu não vou mais discutir esse assunto. A gente precisa tirar isso da cabeça. Eu
quero que você saia daqui agora. Você está entendendo? Eu pedi a você várias
vezes para não fazer piada com essas coisas, e você não me ouve. Você é pior
que o seu pai, que eu sei que você considera muito engraçado. Mas isso que você
está fazendo não é nem um pouco engraçado, é só uma demonstração de falta de
consideração... E não revire os olhos para mim! NÃO REVIRE OS OLHOS PARA
MIM! Você está entendendo? Eu quero que você saia desta casa agora.”
“Está bem, está bem.” Louis foi andando até o hall de entrada. “Mas vê se
manda um postal de Mônaco pra gente, está bom?”
Melanie foi atrás dele. O volume da televisão tinha sido diplomaticamente
aumentado. “Retire o que você disse!”
“Está bem. Não mande um postal de Mônaco pra gente.”
“Você realmente não faz ideia do quanto está sendo insensível, não é?”
Quando Louis ficava com raiva, em contraposição a quando apenas se sentia
coberto de razão, ele estufava o peito, levantava o queixo e olhava de cima do
nariz como um marinheiro ou um valentão querendo comprar briga. Fazia isso de
uma maneira inteiramente inconsciente; ficava com a cara mais séria do mundo.
E quando encarou a mãe, que afinal não era alguém que se pudesse imaginar
que fosse empurrá-lo ou lhe acertar um murro na cara, ele parecia tão
incongruentemente beligerante que a expressão dela se suavizou. “Você vai me
bater, Louis?”
Ele abaixou o queixo, sentindo mais raiva ainda por perceber que estava
apenas fazendo a mãe achar graça.
“Vai, me dá um abraço”, disse a mãe. Ela botou a mão no braço dele e a
manteve ali com firmeza quando ele tentou se soltar. Ela disse: “Eu não sou
egoísta. Você está entendendo?”.
“Claro.” A mão dele estava na maçaneta. “Você só está passando por um
momento difícil.”
“Exato. E ainda vai levar um tempo até mesmo para eu ver a cor desse
dinheiro.”
“Claro.”
“E quando o dinheiro chegar às minhas mãos, eu não sei quanto vai ser. A
quantia que você mencionou, e que deve ter sido o seu pai que disse pra você,
pode mudar muito. É uma situação muito complicada e desagradável. É uma
situação muito... muito desagradável.”
“Claro.”
“Mas seja lá quanto for, a gente vai poder fazer algumas coisas legais.”
“Claro.”
Ela não conseguiu mais controlar sua irritação. “Para de dizer isso!”
Uma bola de boliche atingiu vários pinos. A torcida vibrou. “Claro”, disse
Louis.
Ela soltou o braço dele. Sem olhar para a mãe, Louis saiu porta afora e a
fechou silenciosamente atrás de si. Ainda olhando fixamente para a frente, ele
foi andando com passos largos, passou pelo seu carro e começou a descer a pista
de entrada, com as pernas duras, deixando a gravidade fazer o trabalho,
deprimido do mesmo jeito como tinha ficado quando leu as notícias sobre o
terremoto oito dias antes, a depressão um isótopo da raiva: mais lenta e menos
violenta em sua dissipação, mas quimicamente idêntica. Quando o pai surgiu em
seu campo de visão, numa curva perto do final da pista, Louis mal reparou que
ele estava ali.
“E aí, Lou.” A cabeça de Bob estava incandescente em um ninho de Gore-Tex
e lã escocesa. Ele cheirava a maconha queimada.
“Oi”, disse Louis, sem diminuir o passo. Bob sorriu enquanto via o filho se
afastar e imediatamente esqueceu que o tinha visto.
A leste da casa dos Kernaghan, a área ficava ainda mais parecida com um
parque, os quintais cedendo espaço a propriedades com obstáculos para cavalos
nos pastos e trailers para transporte de cavalos nas pistas de entrada. Uma
aerodinâmica bota de esqui de fabricação japonesa passou zunindo por Louis.
Colado a uma janela estava o rosto de uma menina que usava um vestido cor-de-
rosa de ir à igreja. A bota freou, fez uma curva e desbotou um pouco no ar
branco ao subir uma colina. A menina saltou correndo pela porta corrediça,
carregando alguma coisa na mão, talvez um livro, uma Bíblia.
Dos seis aos quinze anos, Louis também havia voltado da igreja em
aproximadamente trezentas e cinquenta manhãs de domingo. Emergia do banco
traseiro do carro meio zonzo e com a sensação de ter perdido uma manhã inteira
de lazer, desperdiçada em salas de escola dominical subterrâneas que tinham a
mobília desarranjada e o cheiro de umidade de lugares frequentados apenas de
passagem. Nos primeiros anos, claro, foram feitos esforços para encobrir a
trapaça. Havia potes de cola e tesouras enferrujadas, figuras mimeografadas
retiradas de um livro de colorir e gizes de cera marrons para colorir o jumento
no qual Jesus estava montado. (Esses gizes de cera foram uma das primeiras
coisas a contribuírem para que Louis adquirisse uma noção da vastidão do
passado e da estranheza da história, seus formatos inusitados e envoltórios
encardidos e ressecados sugerindo que esse negócio de colorir jumentos era uma
atividade consideravelmente mais antiga do que sua própria vida e do que
qualquer coisa na escola de verdade, onde os materiais sempre eram novos.)
Havia música — em especial uma canção sobre como Jesus amava as
criancinhas do mundo, que tinham cores de giz de cera: vermelhas, amarelas,
pretas e brancas. Havia fabricação de artigos artesanais, como guirlandas de
isopor para o domingo do Advento, palmas de cartolina, objetos de cerâmica
para o Dia das Mães e (na manhã em que Louis deixou bambo o dente da frente
de um menino que estava usando sua tinta guache azul e milagrosamente não foi
punido por isso) estatuetas de gesso das figuras do presépio. Louis, porém, não se
deixava enganar por esse verniz de diversão, assim como não se deixava enganar
pelo gosto doce da pasta com que o dentista polia seus dentes. E, quando ele
chegou à sétima série, o verniz se dissolveu por completo. Ele ganhou uma Bíblia
com capa vermelha de couro falso e com o seu nome completo gravado em
letras douradas na frente: louis francis holland; além disso, passou a ter as aulas
das manhãs de domingo numa ala diferente da igreja e num cubículo ainda
menor e mais vazio do que os antigos, tendo a turma, por alguma razão,
diminuído muitíssimo de tamanho na transferência. Todos os seus amigos do sexo
masculino tinham ido embora e podiam agora passar as manhãs assistindo aos
desenhos animados de domingo dos quais ele próprio havia se tornado um grande
fã durante as férias de verão, de forma que ele ocupava sem concorrência a
posição de pior aluno de uma turma majoritariamente feminina na qual, não
havendo notas, ele deduzia sua colocação pelo fato de que, diferentemente de
todas as outras Bíblias, a sua havia imediatamente — e sem nenhuma ação
consciente da sua parte — adquirido uma lombada preta e esfiapada e um rasgão
num canto da quarta capa, para não falar no fato de ele ser convocado a ler
trechos da Bíblia em voz alta com uma frequência três vezes maior do que a de
qualquer outro aluno da turma e de ser constantemente aconselhado, num tom de
voz excessivamente gentil por um pai chamado sr. Hope, a participar mais da
aula e não ser tão tímido. Numa ocasião, a turma foi solicitada a descrever Jesus,
o homem, e uma menina disse que ele tinha sido frágil e gentil — uma
caracterização da qual o sr. Hope discordou, argumentando que esse filho de
carpinteiro precisava ser fisicamente forte a fim de derrubar as mesas dos
vendilhões do templo; Louis achou que, pela primeira vez, o frágil e gentil sr.
Hope tinha razão.
Muito embora o pai deles dedicasse as manhãs de domingo à natação e não ao
culto religioso, a escola dominical nunca pareceu ser algo opcional para as
crianças da família Holland. Durante nove meses por ano, Melanie pastoreava os
dois, na frente dela, do estacionamento até o alto da escada dos fundos da igreja,
dando um empurrão final nas costas deles em direção às suas respectivas salas
de aula, enquanto ela tomava o caminho do templo, para lá ocupar um banco
próximo ao púlpito, não porque essa proximidade fizesse dela uma cristã melhor
(isso cabia a Deus decidir), mas porque gostava que suas roupas fossem notadas.
Continuou a frequentar a igreja mesmo depois que os dois filhos alcançaram a
idade de quinze anos e se mostraram inconfirmáveis — Eileen porque garotas
que tinham vida social precisavam dormir até tarde no domingo e Louis porque
ele tinha choques de personalidade com absolutamente todas as pessoas da
igreja. Apesar dos dez anos de escola dominical, a única coisa que ele precisou
fazer para se livrar permanentemente de qualquer responsabilidade religiosa foi
simplesmente dizer: não, eu não acredito nisso. Era a prova final de que a
autoridade da Igreja simplesmente não se comparava com a da Secretaria de
Educação.
Tendo deixado para trás as fazendas de criação de cavalos, Louis agora estava
andando entre campos pantanosos e moitas densas e pretas de sarça.
Abandonado no meio de juncos mortos, parecendo grave e profético, estava um
balde de ferro completamente enferrujado. Como se tivessem acabado de bicar
os últimos nacos de carne de seu esqueleto, duas gaivotas se afastavam dele em
círculos. Louis ficou observando-as até suas asas se dissolverem na brancura do
céu e seus corpos se reduzirem à condição de moscas volantes na visão dele.
A estrada que levava à praia parecia se elevar rumo ao horizonte e evaporar.
Ela se estendia tão longa e reta que Louis começou a correr, livrando-se aos
poucos da rigidez de suas pernas e aumentando a velocidade progressivamente.
Pouco depois, enquanto ouvia sua respiração cada vez mais pesada e via o capim
e as plantas aquáticas dos charcos subirem e descerem com o movimento de sua
cabeça, começou a ter a sensação de estar assistindo a um filme, a uma cena de
um psicopata correndo atrás de uma moça vestida só com roupas de baixo, em
que o ponto de vista do assassino é filmado com uma câmera de mão em
movimento e muitos ruídos brônquicos na sonoplastia. Essa sensação foi ficando
tão forte e perturbadora, e o barulho de sua respiração tão alto em seus ouvidos,
que para recuperar o autocontrole Louis pôs-se a bradar: “Ah! Ah! Ei! Eu! Aqui!
Aqui! Ei!”. Isso resolveu o problema, mas alguma outra coisa devia estar
acontecendo, pois, quando passou por uma guarita e de repente estacou,
começando a andar em vez de correr, ele teve a impressão de que havia deixado
para trás não só o pântano, mas o próprio domingo, indo parar nas dunas de
algum obscuro oitavo dia da semana, de cuja existência ele era a única pessoa no
mundo que tinha conhecimento.
Uma sirene ecoava dentro de sua cabeça. O céu (se céu era a palavra para
designar uma coisa que começava imediatamente adiante de seus olhos) ainda
continuava tomado pela mesma brancura uniforme, mas agora parecia que o sol
estava pairando logo além do limiar da visibilidade, à distância de um voo de
flecha e em tamanho de porção individual, e que, quando a neblina se
dispersasse, as fronteiras adjacentes de um mundo em miniatura iriam se
revelar, um pacífico vácuo em forma de regato agora se estendendo atrás de
Louis na direção de onde ele tinha vindo, a direção do domingo, de sua mãe e da
riqueza dela.
Louis adentrou um estacionamento cujo perímetro estava sendo guardado por
um destacamento de barris verdes, nos quais se lia uma única palavra: favor.
Mais perto do mar, moitas de capim de praia pareciam suspensas no ar, as dunas
que as sustentavam, invisíveis. Ele tinha a impressão de sentir em seus pés o
impacto das ondas, o leve tremor. A sirene saiu de sua cabeça e se localizou num
solitário Chry sler Le Baron em forma de tamanco, estacionado no canto oposto
do estacionamento. O alarme contra roubo tinha disparado. Pouco depois o
alarme parou de tocar, mas tinha distendido alguma coisa dentro da cabeça de
Louis, algum aparato semelhante a um músculo que continuou a latejar depois
que o barulho cessou.
Louis ainda estava tentando descobrir em que tipo de lugar estava quando um
animal preto surgiu detrás de um barril de lixo e veio correndo em sua direção.
Era uma cadela labrador, com tamanho de adulta. Ela passou por ele derrapando
e parou numa postura brincalhona, com a cabeça mais baixa do que o rabo. Em
seguida, pulou em cima dele. Louis tirou as patas dela de cima de seu peito, mas
era como tentar se livrar de uma bola de borracha: as patas quicavam de volta
para as mãos dele assim que tocavam o chão. Numa das plaquinhas penduradas
em sua coleira, havia um número de telefone com código de área de
Massachusetts e o nome jackie. Não havia nenhum dono à vista. Ela o seguiu,
companheira, por um passadiço de madeira e depois até a areia, farejando as
pegadas que ele ia deixando.
A praia estava encharcada de chuva e deserta. Ondas marrons paravam no
meio do caminho, cada uma delas como uma fracassada jogada de quarterback,
as forças opostas se confundindo e morrendo sem surtir efeito algum. Bem longe
do estacionamento, num ponto em que a praia se alargava e um córrego
arrastava lama rica em ferro detrás das dunas, a cadela de repente disparou a
correr. Virou a cabeça com força para o lado como se quisesse olhar para trás
na direção de Louis, mas também não quisesse diminuir a velocidade, e então,
sem dar nem mesmo essa pequena mostra de hesitação, pôs-se a correr mais
rápido ainda pela praia afora e desapareceu.
Louis sentiu uma pontada de genuína solidão nesse momento. Sentou numa
pedra e apoiou o queixo na mão. O mar arfava como uma pessoa enferma; um
longo tempo se passava entre o impacto de uma onda e o som tranquilizador da
onda seguinte. A espuma das ondas quebradas era escura, saturada de areia
suspensa e matéria orgânica. Olhando na direção em que a cadela havia corrido,
tudo o que Louis conseguia ver era areia, água e neblina.
Embora ele tivesse rido, não fora nenhuma surpresa para Louis saber que
Eileen já havia tentado tirar proveito dos novos recursos da mãe. Desde bem
nova, Eileen desenvolvera a capacidade de implorar coisas de Melanie e
conseguir conviver consigo mesma depois. Quando os dois eram adolescentes,
era comum Louis passar por Eileen na escada e vê-la dobrando uma ou mais
notas de vinte e, depois, na sala de jantar, encontrar outros indícios de que uma
transação fora realizada, a bolsa materna ocupando um novo lugar na mesa e sua
dona visivelmente empenhada em se recompor e com uma mensagem para ele
nos olhos: A carteira já foi guardada, então nem pense em vir me pedir alguma
coisa você também. O que era curioso, porque ele nunca realmente pedia nada,
nem mesmo quando tinha uma necessidade mais premente do que a necessidade
de Eileen de comprar mais uma roupa da Benetton ou mais uma entrada para
um show. E nunca pedia porque de alguma forma sempre parecia que Eileen
havia sido mais rápida que ele e pedido antes. Mas, na verdade, não devia ser
uma questão de timing, uma vez que, sempre que lhe ocorria pedir, ele sempre
achava que seria melhor esperar mais um pouco, já que Eileen tinha pedido fazia
tão pouco tempo, e, enquanto ele esperava, ela ia lá e pedia de novo e recebia de
novo. Estava claro que, se de fato havia chegado mais rápido que Louis ao
dinheiro da mãe, Eileen fizera isso muito tempo atrás e de forma definitiva.
Fatalmente chegaria o dia em que eles se cruzariam no corredor e não
passariam um pelo outro em silêncio. Esse dia chegou no mesmo verão em que
Eileen deixou o carro cair no lago. Louis acabara de cortar a grama e, no
corredor de cima, viu Eileen com as costumeiras notas de vinte na mão,
dobradas em quatro e carregadas com o ar blasé de um cachorro vitorioso que
sai de uma briga com o disputado pedaço de carne assada nos dentes. O
ressentimento acumulado e a feia imagem dos dedos apertando as notas de vinte
fizeram Louis perguntar: “Quanto é que você tem aí?”. Ela disse: “Quanto é que
eu tenho onde?”. E ele respondeu: “Na sua mão. Talvez você queira dar uma
dessas notas de vinte pra mim”. Ela olhou para Louis como se ele tivesse
sugerido que ela tirasse a blusa. “Nem pensar! Por que é que você não pede pra
você? Eu pedi esse dinheiro pra mim.” Ele disse: “Pois é, você acabou de pedir,
então o que é que eu faço agora?”. Ela disse: “Eu pedi esse dinheiro pra mim.
Você pode ir lá e pedir pra você”. E ele disse: “Eu não estou a fim de pedir. Eu
gosto de ganhar o meu dinheiro”.
Era como se ela tivesse sabido a vida inteira que aquele momento chegaria.
Seu rosto ficou vermelho de ódio, ela jogou as notas envenenadas nos pés do
irmão e bateu a porta do quarto dela atrás de si. Mais tarde, de seu próprio quarto,
Louis ouviu a mãe dizer: “Eileen? Eileen, meu bem, você deixou o seu dinheiro
cair aqui no chão”.
Na verdade, Melanie talvez tivesse preferido ser mais igualitária,
principalmente se isso não significasse ter de desembolsar mais dinheiro. Com
certeza ela aproveitava os pedidos de Eileen como oportunidades para criticar o
egoísmo da filha e sugerir que ela tomasse Louis e seu espírito independente
como modelo. Mas, como um de seus filhos não fazia absolutamente exigência
nenhuma, tornou-se não só financeiramente viável, mas também pessoalmente
mais cômodo simplesmente dar à outra filha tudo o que ela queria. Eileen tinha
uma capacidade fora do normal para ficar muda e má quando alguma coisa lhe
era negada. Sentava-se à mesa de jantar e ficava olhando fixamente para as
roupas e para as joias de Melanie durante tanto tempo e com tanta raiva que
conseguia envenenar até os prazeres mais simples da mãe. E não desistia até que
uma quantia em dinheiro ou o equivalente em mercadorias lhe fosse oferecido.
Era uma coisa desagradável, essa conspiração entre mãe e filha, mas
funcionava. O objetivo da conspiração era não deixar que o dinheiro fosse
envenenado e, para atingir tal objetivo, bastava manter tudo longe das vistas de
Louis, já que o pai podia satisfazer seus poucos desejos pessoais por meio de
saques diretos e, afora isso, deixava todo o resto para Melanie. Só Louis — o
esquisitão e rabugento do Louis — tinha o poder de envenenar o dinheiro. O
conforto dos outros membros da família dependia da contenção dele. E ele
exercia essa contenção e permitia deliberadamente que Eileen fosse mimada, e
só uma vez, quando a confrontou no corredor de cima, veio à tona algum sinal de
todo o veneno que vinha se acumulando dentro dele.
Eileen estudou no Bennington College. Era a melhor das faculdades em que ela
fora aceita e era a faculdade que Judd, seu namorado de Lake Forest, escolhera
cursar. Era também a instituição de ensino de graduação mais cara do país.
Eileen e Judd terminaram o namoro antes mesmo de chegarem à orientação
oferecida aos alunos novos.
Dois anos depois, Louis entrou para a Universidade Rice. A Rice era barata e
tinha oferecido a ele um bom pacote de auxílio financeiro. Louis trabalhava
dezessete horas por semana atrás do balcão de empréstimos da biblioteca, o que
teve o estranho efeito de tornar seu rosto amplamente conhecido no campus.
Também jogava pôquer avidamente e registrava suas perdas e ganhos num
caderno; ao fim de seu penúltimo ano de faculdade, sua média semanal de
ganhos ao longo daqueles três anos eram respeitáveis US$ 0,384. Mesmo assim,
ele ainda continuava acumulando dívidas e, então, quando surgiu uma
oportunidade de cortar despesas drasticamente durante seu último ano de curso,
ele a agarrou primeiro e só parou para pensar se a decisão era sensata ou não
depois, quando seus problemas já haviam começado.
O pai o havia posto em contato com um antigo conhecido seu da época da pós-
graduação, um homem chamado Jerry Bowles, que lecionava na Rice e morava
com a mulher numa casa situada alguns quarteirões a oeste do campus, na
Dry den Street, ao sul da Shakespeare e ao norte da Swift. O sr. Bowles havia
descoberto que tinha um problema cardíaco e estava à procura de um estudante
que se dispusesse a fazer trabalhos pesados de jardinagem durante a primavera e
o outono em troca de hospedagem e comida. Louis parecia ser o candidato ideal
para o posto. Quando ele voltou para Houston no final de agosto, os Bowles foram
buscá-lo no aeroporto.
Durante a entrevista que fizeram com ele na primavera anterior, os Bowles
tinham sido sucintos e objetivos, mas agora que Louis havia chegado, como um
brinquedo encomendado por catálogo, eles pareciam crianças afoitas para
desembrulhá-lo e ver se ele funcionava do jeito como elas esperavam. Eles
tinham um brinquedo de fabricação própria, uma filha única, mas ela estava
cursando uma universidade longe de casa e, ao que parecia, já não era mais tão
divertida de brincar. Louis era o novo alvo do entusiasmo dos dois. Na primeira
noite, durante o jantar, eles ficaram editando as declarações um do outro:
“A Mary Ann vai ter muito prazer em fazer o seu almoço...”
“Jerry , não existe possibilidade de eu não fazer almoço, nós oferecemos a ele
pensão completa...”
“Você tem algum tipo de pote de plástico em que você possa...”
“Louis, eu estou sempre em casa. Eu estou sempre em casa, então, sempre que
você quiser vir para casa, não faz absolutamente diferença alguma...”
“Só em relação à hora do jantar é que nós podemos ser um pouco mais
rigorosos...”
“Jerry , por que, Jerry , por que você...”
Sentado entre os dois à mesa, Louis comeu sua costeleta de porco e ficou na
dele, como costumava fazer no trem de Chicago quando algum maníaco resolvia
discursar. Ele cometera um erro, percebia isso agora. Tinha entrado no vagão
errado. Mas não estava fazendo aquela viagem por prazer, mas sim para
economizar dinheiro.
O sr. Bowles tinha uma barba branca bem aparada e um cachimbo que ele
mastigava com frequência e de vez em quando ainda fumava. Quando não
estava dando aula de linguística, ele vistoriava sua propriedade à procura de
ervas daninhas, galhos secos, pedras de calçamento soltas, torneiras gotejantes,
tábuas de assoalho rangentes, portas emperradas, telas de mosquito rasgadas e
janelas sujas. Seus martelos, serrotes e alicates ficavam pendurados num painel
perfurado no qual o contorno de cada ferramenta fora desenhado com caneta
hidrocor preta. Ele não parecia ter nem amigos nem hobbies. Gostava de
explicar a Louis como as coisas eram feitas na casa dele. Racionalizava em
detalhes todos os aspectos da maneira como sua mulher cozinhava, relatando
como ela havia passado a preparar os legumes no vapor em vez de cozê-los,
como conseguira descobrir o segredo para fazer um purê de batata mais
cremoso e como, com o passar dos anos e com as informações que ele lhe
trouxera, ela chegara à decisão de não servir carne mais que duas vezes por dia.
Descrevia métodos ergonômicos de guardar as louças e ler jornal. Um tema
recorrente era o depurador de água e os inúmeros benefícios que ele trazia. Louis
ouvia essas explanações com uma pena que beirava o horror.
“Veja a cara com que ele está olhando para você”, Mary Ann dizia. “Jerry,
repare no jeito como o Louis está olhando para você.”
“Tem alguma coisa errada?”, perguntava um sr. Bowles potencialmente
amuado.
“Talvez ele já tenha ouvido o suficiente sobre água depurada por hoje”, dizia
Mary Ann.
“Desculpe”, dizia Louis, sacudindo a cabeça como se tentasse livrá-la de teias
de aranha. “Eu estava pensando em... outra coisa.”
Mary Ann piscava os olhos. “Talvez numa torta de blueberry com sorvete?”
Mary Ann era mais nova que o marido. Usava xales, sandálias e vestidos de
estampas florais com decotes generosos para realçar seus seios grandes e
riscados de veias azuis. Podia ser encontrada com frequência, em absoluto
silêncio, num canto da reluzente lavanderia onde ela passava camisas, fronhas e
roupas de baixo. A casa era cheia de lugares em que Mary Ann sentava e
descansava. Ela mantinha livros perto de todos esses lugares e podia às vezes ser
vista pousando um deles (Sigrid Undset, Edith Wharton, D. H. Lawrence), mas os
marcadores de página pareciam estar sempre no mesmo lugar. Os almoços que
ela preparava e embalava para Louis levar para a faculdade eram de um
capricho extremo: sanduíches de pão de centeio integral, palitinhos de cenoura,
melancia em conserva, peras suculentas, fatias de bolo caseiro. Os almoços que
ele preparava para si em Evanston geralmente consistiam num sanduíche de
mortadela no pão branco, uma banana, um pacote de Twinkies quando havia
algum na despensa e um saco de batata frita Del-Mark. Em toda a sua vida, Louis
nunca tinha visto batatas fritas Del-Mark em lugar algum, a não ser na cozinha de
sua mãe.
Procurando agir com tato, ele esperou quatro dias inteiros antes de informar a
Mary Ann que não pretendia jantar na Dry den Street. Disse que seria melhor se
ele embrulhasse tanto o almoço como o jantar para levar para a faculdade.
Mary Ann claramente já estava esperando por isso. “Eu embrulho tudo”, disse
ela, com tristeza. “Embora eu não tenha como alimentá-lo muito bem com
pacotinhos.”
Louis esclareceu que não era que ele não fosse gostar de jantar em casa, mas
precisava se dedicar à sua dissertação de final de curso e às suas tarefas como
diretor da ktru.
“Bem”, disse Mary Ann, “quem sabe se aos domingos não daria para você
jantar aqui com a gente? Ou qualquer outro dia que lhe der vontade.”
Essa não seria a última vez que ele revisaria a lógica: (1) ele precisava ser
gentil porque (2) estava fazendo um bom negócio morando ali e, (3) portanto,
evitando contrair dívidas. “Aos domingos dá sim, claro”, disse ele.
Fazia quinze anos que ninguém preparava o café da manhã para Louis
regularmente, e ele nunca na vida tinha visto nada parecido com os cafés da
manhã que Mary Ann preparava. Ela lhe servia pãezinhos frescos, muffins de
aveia frescos, muffins de milho frescos, bacon fatiado. Servia panquecas de
framboesa, salsichas de vitela temperada com funcho, rabanadas, suflê de queijo
e bife com ovos. Servia ovos mexidos com cebolinha e creme de leite azedo,
ovos Benedict, cereais integrais com leite quente, creme e açúcar mascavo,
toranja assada, pão caseiro com canela e passas, pêssegos em calda com sorvete
de creme, fatias de melão com morangos por cima. Depois de servir a comida,
Mary Ann se sentava e tomava café em silêncio, virada de lado para Louis,
mostrando-lhe seu perfil, seus seios protuberantes. Os termos do problema moral
ficavam muito nítidos para Louis toda vez que ele vinha para a mesa: Seria
melhor não aceitar essa comida. Mas ele estava com fome e a comida parecia
deliciosa. Ele continuou a tomar os cafés da manhã mesmo depois que a pena
que ele sentia de Mary Ann começou a dar lugar a algo mais próximo da aflição.
Foi um mau momento aquele em que ele descobriu que ela vinha cerzindo suas
meias. E foi um momento pior ainda quando um dj da ktru abriu o saco onde
estava o jantar de Louis e encontrou o pote de plástico em forma de fatia de torta
que ele já tinha dito inúmeras vezes que não queria levar e um bilhete de
Mary Ann dizendo: Que tal você comprar um pouco de sorvete para acompanhar
a torta?
Numa noite de sexta-feira em janeiro, ele voltou para casa à meia-noite com
a cabeça cheia de tequila e encontrou Mary Ann ajoelhada na sala de jantar,
tirando sua coleção de xícaras e pires de porcelana inglesa de dentro do
aparador. “Como vai o meu coroinha?”, ela disse. Ela achava que o seu eterno
uniforme de calça preta com camisa branca fazia com que ele parecesse um
coroinha. Ela disse para ele sentar. Ele sentou, com o corpo inclinado na direção
para onde ele queria ir: escada acima. Ela tirou peça por peça de dentro do
armário, murmurando que devia se livrar daquilo tudo, vender tudo, aquela
quantidade estúpida de xícaras, ela nem sabia quantas. Por fim, ficou ajoelhada
no meio da coleção inteira, as borlas de seu xale espalhadas em leque em volta
dela. “Leve algumas”, ela disse com raiva, depositando uma xícara e um pires
no colo de Louis. “Leve duas, leve quatro. Quem no mundo ia querer essas
xícaras? Você não quer essas xícaras.”
“Claro que quero.” Louis suava, pálido. “Elas são bonitas.”
“Sabe, eu era apaixonada pela Inglaterra”, disse ela. “Pelo país inteiro. Eu
achava que seria considerada bonita lá, ou que a beleza não iria importar. Como
se lá fosse uma espécie de segunda divisão antiga e maravilhosa onde eu iria
brilhar.”
“Você é bonita”, a tequila disse.
Mary Ann sacudiu a cabeça. “Quando terminei o meu mestrado em literatura
inglesa, eu estava morando em Nova York e fui trabalhar na Duncan McGriff
Agency, que era uma grande agência literária. Suponho que nós tivéssemos
alguns clientes famosos, mas a forma como a agência realmente ganhava
dinheiro era cobrando taxas para ler originais. Eu não era uma leitora. Eu era a
pessoa que pegava os relatórios dos leitores e os transformava em cartas
personalizadas do próprio Duncan. Eu tinha uma folha com umas vinte maneiras
diferentes de personalizar as cartas, por exemplo, dizendo que ele tinha lido o
manuscrito sentado em casa à beira da piscina, onde os seus três filhos queridos
brincavam. Ou que ele tinha lido o manuscrito no alto de uma montanha,
enquanto testemunhava um glorioso pôr do sol. Isso é literalmente o que eu tinha
que escrever. Mas o mais triste era que, não importava o quanto um manuscrito
fosse ruim, eu sempre tinha que dizer que a obra era muito promissora, mas
ainda não estava numa forma comercialmente vendável. E existiam várias
gradações nisso, porque havia pessoas dos mais diversos lugares do país —
pessoas inocentes do Nebraska — que mandavam os manuscritos delas para nós
uma porção de vezes e pagavam sempre a taxa inteira, e nós nunca podíamos
dizer nem sim, nem não. O que era exatamente o que o Duncan fazia comigo,
mas isso é outra história. Eu trabalhei lá cinco anos. E ainda estava lá sentada na
minha cadeirinha, atrás da minha mesinha, no dia em que o Departamento de
Justiça foi até lá e fechou a agência por uma coisa pior ainda que nós estávamos
fazendo. E, Louis, eu tinha vinte e oito anos quando isso aconteceu. Foi como se
eu tivesse levado uma punhalada! É engraçado, mas até hoje vinte e oito anos
me parece a idade de uma pessoa velha, como se eu nunca tivesse sido tão velha
e solteirona quanto fui naquele ano. Eu não conseguia acreditar, quer dizer, o que
tinha acontecido com aqueles anos? Mas, enfim, depois eu me casei com o Jerry
e foi aí que eu realmente comecei a entrar em pânico, porque a sensação não foi
embora. A sensação de que eu tinha perdido a minha chance de ter a vida que
queria. Eu continuava sem saber o que fazer, só que agora era pior, porque agora
eu estava casada. Não era tanto porque o Jerry... bem, você conhece o Jerry.
Não era culpa dele. Eu sabia como ele era e me casei com ele. A culpa era
minha. E você sabe que, depois que você se convence de uma coisa, depois que
você bota na cabeça que tem insônia, fica ainda mais difícil pegar no sono?”
Louis estava rodando lentamente em direção ao centro de sua xícara de chá
vazia. Mary Ann lhe lançou um olhar cheio de tristeza e preocupação, como se
fosse dele, e não dela, que ela sentia pena. “Bem”, ela disse com uma voz mais
baixa, “quando vi que nada tinha mudado depois que me casei, eu botei na
cabeça que nada nunca ia mudar. Fiz o Jerry me odiar e aí disse pra mim
mesma: eu tenho um marido que me odeia. Você entende? Existe uma solidão
que você pode pegar como uma doença e da qual você nunca se livra. Um
desacerto — um desacerto que você nunca consegue consertar. E foi a mesma
coisa quando nós adotamos a Lauren. Como sempre, a ideia foi minha. Eu queria
parar de desmoronar, e se tinha uma coisa que eu sabia era que eu nunca tinha
visto uma mulher que não amasse o seu bebê. Mas Louis...” Lágrimas vieram
aos seus olhos e à sua voz, mas depois recuaram. “Eu não tinha fé! Eu não tinha
fé! Durante todo o processo na agência de adoção, eu me sentia fria, morta por
dentro. Eu tentava racionalizar. Dizia pra mim mesma: tudo vai mudar assim que
eu segurar a minha neném no colo (ou o meu neném, nós não sabíamos). Mas no
fundo, no fundo, só o que eu pensava era: talvez isso também não dê certo. Talvez
eu seja a única mulher no mundo que nem a maternidade consegue modificar.
Era isso que eu sentia, no fundo do meu coração, mas nem assim eu interrompi o
processo. Mesmo sentindo um embrulho no estômago cada vez que a gente se
comunicava com a agência. Mesmo ficando embrulhada uma semana inteira, de
culpa e da tensão de fingir sentir uma coisa que eu não sentia. E aí, quando ela
veio... bem, já foi uma certa decepção saber que ela tinha oito meses. Sabe, é
óbvio que o bebê de oito meses ia calhar justo pra mim.”
Ela apertou os braços cruzados contra os seios e balançou o corpo de leve.
Louis se perguntava vagamente o que haveria de tão errado no fato de um bebê
ter oito meses, mas...
“Mas era isso ou nada, e você sabe que eu e o Jerry não discutimos as coisas,
só culpamos um ao outro depois. Mas isso não foi o pior. O pior era que a Lauren
sabia. Mesmo quando ainda era bem pequenininha, ela já sentia a minha
insegurança. Ela sentia que eu não acreditava realmente que era a mãe dela.
Não importava o quanto me esforçasse, eu não conseguia fazer com que nós
acreditássemos em mim. E como eu poderia culpá-la depois por todas as coisas
que ela me fez? Por me morder que nem um bicho? Pelos palavrões horrendos?
Pela preocupação e pelo pânico que eu sentia quando ela não voltava para casa?
Como eu poderia sentir qualquer outra coisa senão culpa? A culpa, Louis, era
maior que tudo. Saber que essa era a nossa vida, a nossa única vida, e que aquilo
era o que eu tinha feito dela. Eu não ia ter outra chance. Você entende?”
Ela ergueu os olhos para ele com uma expressão de súplica, inclinando-se para
a frente, parecendo querer depositar os seios aos pés dele. Devia ter esquecido
com quem estava falando. Devia de algum modo ter imaginado que, quando
erguesse o rosto para olhar para ele, Louis iria tomá-la nos braços e salvá-la. Mas
só o que viu foi um garoto, um universitário bêbado tentando engolir um bocejo.
“Ah, meu Deus.” Ela desviou os olhos, furiosa consigo mesma. “Por que, por que
eu ainda insisto em abrir a minha boca?”
Depois daquela noite, as coisas entre eles passaram a ser mais diretas, mais
como eram entre Louis e a mãe, mais realistas. Mary Ann não ficava mais
observando Louis tomar café; tendo se explicado a ele, ela agora podia se dar ao
luxo de ficar em qualquer lugar da casa. Ele era parte da família agora —
família querendo dizer ação à distância, campos de força invisíveis que
atravessam paredes. Louis começou a contar as semanas que faltavam para se
ver livre da Dry den Street.
Durante os feriados da Páscoa, os Bowles insistiram para que ele trouxesse
alguém para jantar, a fim de ajudá-los a acabar com a bandeja de carne de rena
que um colega do sr. Bowles havia trazido para eles da ilha Ellesmere. Louis
convidou uma amiga sua, uma dj da ktru com quem ele vinha aprendendo coisas
sobre Wagner e Richard Strauss e com quem, numa conveniência mútua, vinha
passando algumas tardes numa cama de dormitório. Mary Ann parecia ter intuído
essa circunstância. Enquanto eles comiam a carne de rena assada, Mary Ann
tratou a garota com uma condescendência implacável, enaltecendo em especial
a beleza do cabelo dela, como se estivesse subentendido que, em termos de
aparência, o cabelo era o único trunfo de que ela dispunha. Mais tarde, quando
ele a acompanhou a pé até o dormitório, a amiga comentou que não tinha ido
muito com a cara da sra. Bowles. “Ela é maluca”, Louis disse. “Os dois são
malucos.” Mesmo assim, tinha sido plantada na cabeça de Louis a ideia de que a
amiga talvez não estivesse à altura dele e, em pouco tempo, ele próprio começou
a tratá-la com condescendência e depois a evitá-la completamente.
Na manhã seguinte, Louis acordou bem tarde e com um enjoo que ele
associou ao gosto questionável da carne de rena. Quando saiu do quarto para o
corredor, vestindo seu short de ginástica e sua camiseta cinza, ele levou alguns
instantes para notar a garota que estava encostada numa parede do quarto depois
da escada. Foi como aquele momento em que você se dá conta de que há um
pássaro dentro da sua casa e que ele, por acaso, está parado agora, mas poderia
voar de encontro a sua cara a qualquer instante. O ponto do quarto em que a
garota estava parada era exatamente o tipo de insignificante ponto arbitrário onde
um pássaro desorientado poderia pousar e onde o próprio Louis, em Evanston,
podia ser encontrado com frequência. A garota estava usando uma camiseta
regata preta e justa e uma minissaia xadrez cinza e branca; tinha um cúmulo-
nimbo de cabelo louro-escuro de loura burra, longas pernas nuas, meias três-
quartos verdes e sapatos lustrosos. Seus punhos estavam cerrados e sua
mandíbula retesada. Seu peito arfava com o que parecia ser fúria. Ela lançou um
olhar fuzilante em direção a Louis, e o coração dele saltou com tanta violência
quanto teria saltado se, de repente, asas estivessem batendo nas paredes e duas
garras e um bico estivessem vindo na direção de seus olhos.
Ele fugiu para o banheiro. Lavou o cabelo no chuveiro, mas esqueceu de lavar
o resto. Ficou parado, nu, olhando para o Waterpik dos Bowles durante alguns
minutos e depois começou mecanicamente a tomar outro banho. Lavou o cabelo
de novo e novamente esqueceu de lavar qualquer outra coisa. Era como se ele
tivesse subitamente se visto à beira de um lago escuro e fundo denominado
lauren, dito “dane-se” e se deixado cair lá dentro.
Uma hora depois, descendo os últimos degraus da escada, ele trocou ois com
outro rosto novo, o de um rapaz texano com uma fisionomia franca e aberta e
cabelo cortado em estilo militar, que estava lendo o jornal na sala de estar.
“O seu almoço está na mesa, Louis”, Mary Ann disse em voz baixa na cozinha.
Louis ficou olhando para ela. Como alguém tão irrelevante podia existir? Onde
estava Lauren? Ele ia ter de almoçar com Lauren? Apontando vagamente para
leste, ele disse: “Eu tenho que ir para a estação”.
“Você quer que eu embale a sua comida? Nós já íamos nos sentar pra
comer.”
Louis sentiu uma mão entre as suas omoplatas: o sr. Bowles o empurrando de
leve em direção à mesa da cozinha. “Dez minutos não vão fazer diferença.
Sente-se um instante e abasteça o motor.”
“A estação não vai ficar fora do ar essa semana?”, perguntou Mary Ann.
Cortado ao meio diagonalmente, um sanduíche de carne de rena esperava por
Louis. Os dois Bowles mais velhos atacaram seus respectivos sanduíches com um
apetite atípico, ignorando as vozes que vinham da sala de estar e os ruídos de
passos pesados na escada, mastigando com força e de cabeça torta, como
animais famintos e nervosos levados a se esconder num canto da casa por uma
filha que, com um andar relaxado e sem nenhum indício aparente de
constrangimento, entrou na cozinha justo na hora em que um naco duro de carne
de caça deslizou rumo à terra de ninguém entre o sanduíche de Louis e sua boca.
“Lauren, esse é o Louis. Louis, essa é a nossa filha, Lauren.”
“Humpf”, disse Louis.
“Oi, prazer em te conhecer”, Lauren disse num tom monocórdio. Ela estava
longe de ser o caos e o terror que Mary Ann havia levado Louis a imaginar. Seu
bronzeado eterno, seus brincos de turquesa, seu relógio do Mickey e o jeito
preguiçoso como ela inclinava o quadril para o lado, tudo a marcava como uma
típica universitária rebelde e farrista do Texas. Ela tinha pele macia, uma boca
larga e olheiras cor de iodo que pareciam permanentes. Havia escrito alguma
coisa com caneta nas costas da mão. Disse aos pais que ela e Emmett iam de
carro até Galveston passar a tarde na praia. Antes de sair da cozinha, ela parou
para olhar Louis de cima a baixo — seus óculos de aviador, seus cachos de
cabelo ralo, seu sanduíche desmantelado, seu rubor abrasador. O rosto dela ficou
simplesmente vazio.
“Nós temos uma relação muito aberta com a Lauren”, o sr. Bowles explicou
depois que ela foi embora.
“O Emmett é noivo dela”, o sr. Bowles acrescentou.
“Nós não sabíamos que ela vinha para cá”, o sr. Bowles esclareceu.
“Ela é um espírito inquieto”, disse o sr. Bowles.
“Nossa! Cheia de energia. Cheia de vida”, o sr. Bowles refletiu.
Mary Ann enterrou os dentes em seu último pedaço de sanduíche.
“Espero que o Emmett não a deixe dirigir”, o sr. Bowles concluiu.
Quando Louis voltou para casa naquela noite, os três Bowles e Emmett
estavam tomando sorvete na sala de jantar. Em silêncio, Mary Ann se levantou
para ir buscar o jantar dele na cozinha. “Eu já comi”, disse Louis, já na escada.
Chegando ao topo dela, ele parou por tempo suficiente para ouvir Lauren dizer:
“Imagino que ele estude o tempo todo, não é?”
“Ele é um rapaz aplicado”, o sr. Bowles declarou.
“Puxa, isso é ótimo”, disse Lauren.
Isso foi só o que ele ouviu. De boca aberta, olhos arregalados, ele fechou a
porta de seu quarto, desabou no chão e se estendeu ali mesmo. Não tinha vontade
de sair dali. Em sua febre, ouviu Lauren e Emmett saírem para ir ao cinema e
voltarem à meia-noite. Ouviu uma cama de armar sendo aberta para Emmett no
escritório do sr. Bowles e, depois, um sonho febril de vozes, música, passos e
portas se abrindo e se fechando que pareceu durar a noite inteira e envolver
dezenas de pessoas.
No dia seguinte, numa loja de discos da Main Street, Louis estava examinando
os lps de Thelonious Monk a serviço da estação quando se deu conta de que
Lauren Bowles estava no corredor ao lado. Ela estava de costas para ele. Ela
estava usando uma camisa de homem e movendo de leve a cabeça no ritmo da
batida drum machine do brit-pop otimista que vinha do stereo da loja. Pôs um par
de cds de volta na prateleira, entre artistas de jazz –b–, e correu os dedos por
Coleman, Coltrane, Corea. Depois, se debruçou de novo sobre os Bs. Por duas
vezes fez um movimento curto e brusco com o ombro, como se, de costas para
Louis, estivesse torcendo o pescoço de pequenos animais, e logo em seguida foi
andando em direção à porta da loja, dando uma olhada nos engradados de
lançamentos perto das caixas registradoras, e saiu.
Do lado de fora, Louis a viu apoiar um joelho no chão e amarrar o cadarço de
um de seus tênis entre dois carros estacionados. Presas raramente deixam um
caçador chegar tão perto quanto ele chegou dela naquele momento. Ele estava
uns cinco metros atrás dela quando Lauren abriu o último botão de sua camisa e
deu à luz dois cds roubados, que caíram em cheio dentro de sua bolsa. Ela fechou
a aba da bolsa sobre os cds e atravessou a rua no meio do trânsito.
Era o sábado antes da Páscoa. Todos os prédios da Rice estavam fechados.
Louis voltou para a Dry den Street com suas compras e encontrou Mary Ann
fazendo toffee, uma enorme panela de sopa de toffee, que enchia a casa com
um cheiro cáustico de manteiga e açúcar. No seu quarto, Louis abriu o segundo
volume das cartas reunidas de Flaubert em cima de sua mesa. Não tinha lido
nem uma única palavra do livro quando, uns quinze minutos depois, a porta atrás
dele se abriu e logo depois se fechou.
Lauren estava parada com uma mão esquecida na maçaneta, o último botão
de sua camisa ainda aberto, seus olhos vasculhando o quarto com o ar pensativo
de quem maquina alguma coisa. Depois de alguns instantes, ela se sentou em
cima da mesa de Louis e, dobrando o corpo lateralmente, se apoiou no Flaubert.
A lombada do livro rachou de modo audível. “É senhor cê-de-efe”, disse ela. “É
esse o seu nome, não é?” Por um momento, ela monitorou Louis atentamente, à
espera de reações.
“Cadê o Emmett?”, ele perguntou.
Ela se inclinou para trás sobre os braços esticados, derrubando um pote de
canetas. “Foi visitar o avô em Bay City. Ele me perguntou se eu queria ir, o que
foi, sabe, um convite muito tentador, já que eles ficam o tempo inteiro falando
sobre como o avô dele está da cor de uma cenoura. Ele tem uma doença, sei lá
qual.”
“Icterícia.”
“Uau. Você sabe tudo mesmo, hein.”
Louis mantinha os olhos fixos nos dela e os dela evitavam os dele.
“Viu o meu anel?” Ela botou a mão esquerda na frente da cara dele. “Custou
três mil dólares. É um diamante de 0,75 quilate. Gostou?”
“Não.”
“Não? Por quê? O que é que tem de errado com ele?”
“Essas garrinhas feiosas, pra começar.”
“Ah.” Ela recolheu a mão e, impassível, examinou o anel de vários ângulos
pouco esclarecedores. Seus dentes eram separados uns dos outros por pequenos
espaços regulares. “É, elas são meio feiosas mesmo, não são? Você é um cara
muito observador, imagino.”
Esquecendo o anel, ela girou o corpo para pegar um livro de uma prateleira,
seus joelhos se erguendo para equilibrar o peso. “Que livro é este?” Ela
escancarou um estudo crítico a ponto de a primeira e a quarta capas se
encostarem e um maço de folhas cair no colo de Louis. “Ui! Desculpe. Ei, isso é
francês! Você lê francês? Você pode dizer alguma coisa pra mim em francês?”
“Não.”
“Por favor?” Sua voz tinha passado do tom de zombaria para o tom
monocórdio típico de uma garota que acha que um cara está sendo babaca e
quer saber se não dá para ele, tipo, parar? Por favor?
“Je ne veux pas parler français avec toi. Je veux commettre crimes avec toi.”
“Nossa”, ela disse com profundo sarcasmo. “Você é bom!”
O cheiro de toffee fazia o nariz e os olhos de Louis arderem. O cansaço da
noite mal dormida o assaltou de repente. Ele não tinha nada a dizer. Lauren
levantou uma perna e saltou com leveza da mesa para o chão. “Você gosta
daqui?”, ela perguntou. “Você gosta dos meus pais?”
“Imagino que você ache que eu gosto, não acha?”
Ela não respondeu. Seus ombros tinham ficado tensos; ela estava olhando para
a porta; tinha ouvido algum barulho no corredor. Tocou na cama de Louis como
se fosse se sentar nela, mas mudou de ideia e foi correndo na ponta dos pés até a
porta. Em seguida, se ajoelhou no tapete, encostou a orelha no buraco da
fechadura e ficou ouvindo.
“Lauren?”
Mary Ann tinha chamado do meio da escada. Lauren fez cara de idiota e
mexeu os lábios, articulando silenciosamente o próprio nome.
“Lauren?”
Mary Ann tinha subido o resto da escada e agora vinha avançando pelo
corredor. Parou em frente à porta do quarto. Na mesma hora, Lauren fechou os
olhos e deu um grito agudo. Repetiu: um grito físico, um grito de agradável
surpresa. Em seguida, começou a arfar e soltar gemidos fingidos de prazer,
arrastando as solas de seus sapatos pelo tapete. Olhava com ódio para a cama de
Louis, e o movimento que estava fazendo com os pés era raivoso também.
Louis deixou sua cabeça cair sobre o Flaubert rachado e riu sem achar graça.
Mary Ann estava descendo a escada de novo. Lauren se levantou e lançou um
sorriso maligno para o chão, como se tivesse visão de raio X e pudesse ver a mãe
entrando na sala de jantar e desabando numa das cadeiras próximas à parede.
Depois, a cama de Louis atraiu sua atenção. Ela subiu na cama, ficou em pé e
começou a pular. Logo as molas estavam rangendo, enquanto a perna da cama
que era ligeiramente mais curta que as outras batia com força no chão.
“Pra cima, pra baixo, pra cima, pra baixo”, ela disse, entoando as palavras no
ritmo das molas. “Pra dentro, pra fora, pra dentro, pra fora. Pra cima, pra baixo,
pra cima, pra baixo. Pra dentro, pra fora, pra dentro, pra fora...”
“Para”, disse Louis, mais irritado do que qualquer outra coisa. “Ela já
entendeu.”
Lauren parou. “Eu estou te chateando?”
“Você é perturbada”, ele disse sem olhar para ela. “Você é completamente
perturbada. E você fez uma ideia errada de mim.”
“Mas você gosta de mim, não gosta?”, ela perguntou a ele da porta.
“Claro que gosto. Eu gosto de você.”
O novo cd do Eury thmics de Lauren estava tocando no aparelho de som para
audiófilos do pai dela quando Louis saiu sorrateiramente de dentro do quarto,
desceu a escada correndo e escapuliu pela porta da frente para um ar que não
cheirava a toffee. Quando voltou de noitinha, de uma longa caminhada para
lugar nenhum, deu duas voltas em torno da casa e não viu nenhum sinal de gente
jovem. Do lado de dentro, o sr. Bowles lhe disse que Lauren e Emmett tinham
ido para Beaumont para passar o domingo de Páscoa com a família de Emmett.
Mary Ann passou uma semana inteira sem lhe dirigir a palavra.
A cadela labrador tinha voltado. Louis, gelado e rígido, ficou vendo como ela
corria em curvas na frente dele, tangentes ligeiras ao longo das linhas de espuma
que avançavam e recuavam. Pouco depois, ele ouviu vozes vindo da direção do
estacionamento. Passado algum tempo, o ar branco liberou três silhuetas jovens
ou joviais que avançavam em leque ao longo da praia, dando a impressão de
estar esquadrinhando metodicamente a faixa de areia. Uma delas, a que passou
bem na frente de Louis, era um oriental alto, que vestia um grosso casaco
forrado e calça branca larga. Ele olhou para Louis com uma expressão taciturna,
disse “oi” e seguiu arrastando os pés, tirando nacos de areia por revolta ou algum
impulso vândalo.
A pessoa mais próxima à água estava tendo problemas com a cadela. Era um
caucasiano barbudo cujos óculos estavam presos por uma tira preta de elástico.
Jackie tentava morder os cotovelos erguidos do sujeito. “Sai! Sai! Sai! Vai
embora!”, ele bradou, enquanto Jackie latia e tentava encurralá-lo no meio de
um par de ondas que vinham subindo pela areia em direções opostas. O homem
deu um chute ameaçador no ar e então a cadela se afastou. Enquanto isso, a
terceira pessoa, uma mulher de cabelo preto curto, já estava bem adiante, sua
capa de chuva e sua calça jeans sumindo na neblina. Foi ela que, quando o grupo
voltou em bloco alguns minutos depois, disse “eu vou perguntar àquele cara”,
com uma voz baixa, mas não baixa o bastante para evitar que Louis ouvisse. Ela
veio subindo pela areia em direção a ele. Tinha um rosto delicado e agradável,
com nariz pequeno e olhos castanhos bonitos. Sua expressão estava fixa num
sorriso intenso e congelado. “Desculpe incomodar, mas já faz tempo que você
está aqui na praia?”, ela perguntou.
O caucasiano barbudo estacou logo atrás do ombro dela, e passou pela cabeça
de Louis que aquelas pessoas eram tiras à paisana; elas pareciam ter intenções
muito bem definidas.
“Já”, ele disse. “Vocês estão procurando alguma coisa?”
Antes que ela pudesse responder, Jackie pulou em cima do caucasiano barbudo
e enganchou as unhas das patas da frente no cinto dele, sendo arrastada na ponta
das patas traseiras quando ele tentou se afastar. Com as mãos levantadas, o
homem olhou para Louis com ar de reprovação.
“Não é minha cachorra”, Louis disse.
“Nós estamos procurando alterações na areia”, disse a mulher com um
sorrisão. Em seguida, estendeu um braço para o lado e estalou os dedos algumas
vezes, tentando atrair a atenção da cadela, mas sem tirar os olhos de Louis. Ela
era uns poucos centímetros mais baixa que ele e pelo menos uns poucos anos
mais velha; havia alguns fios brancos em seu cabelo escuro. “Nós estávamos
pensando que talvez você pudesse ter visto alguma coisa, se já estava aqui
quando houve o terremoto.”
Ele olhou para ela com ar atarantado.
“Nós somos do departamento de geofísica de Harvard”, explicou o caucasiano
barbudo com uma voz áspera e impaciente. “Nós detectamos o terremoto e
conseguimos uma localização aproximada. Como foi um tremor razoavelmente
forte, a gente achou que podia haver algum efeito superficial na areia.”
Louis franziu o cenho. “De que terremoto vocês estão falando?”
A mulher olhou de relance para o caucasiano. Jackie estava lambendo os
dedos dela. “Do que aconteceu uma hora e meia atrás”, a mulher respondeu.
“Teve um terremoto uma hora e meia atrás?”
“Teve.”
“Aqui?”
“Sim, aqui.”
“E vocês sentiram lá de Cambridge?”
“Sentimos!” O sorriso da mulher tinha se tornado um sorriso de prazer genuíno
com a perplexidade de Louis.
“Merda.” Louis se levantou às pressas, rígido. “Eu não senti nada! Mas, espera
aí, será que foi mesmo tão forte assim?”
Soltando um suspiro alto, o caucasiano barbudo revirou os olhos e saiu
andando, seguindo de volta em direção à outra ponta da praia.
“Fraco não foi”, disse a mulher. “A magnitude deve ficar em torno de 5,3
graus. A cidade não está em ruínas nem nada, mas um tremor de 5,3 é detectado
no mundo inteiro. O nosso colega Howard” — ela dirigiu um esboço de sorrisão
para o oriental, que estava pulando de uma pedra a outra entre ondas — “está
bem contente com isso, como você pode ver. Significa um bocado de
informação.”
Louis pensou no carro com o alarme disparado.
“E você realmente não sentiu nada?”, ela perguntou.
“Nada.”
“Que pena.” Ela deu um sorriso estranho, olhando bem nos olhos de Louis.
“Foi um bom terremoto.”
Ele olhou em volta, ainda desorientado. “Vocês imaginavam que a praia fosse
estar toda revirada?”
“Nós só estávamos curiosos. Às vezes a areia cede e forma rachaduras.
Também pode se liquefazer e borbulhar até a superfície. Já houve um terremoto
aqui, por volta de uns duzentos e cinquenta anos atrás, que causou sérios estragos.
Nós estávamos com esperança de ver alguma coisa assim, mas...” Ela estalou a
língua. “Não vimos.”
Perto da beira da água, seu colega Howard estava brincando com a cadela,
cutucando-a atrás das orelhas alternadamente de um lado e de outro, enquanto
ela virava a cabeça para lá e para cá. Louis ainda não acreditava que tinha
mesmo havido um terremoto. “Pode ter havido algum estrago nas casas aqui das
redondezas?”
“Depende do que você entende por estrago”, disse a mulher. “Você tem uma
casa nas redondezas?”
“A minha mãe tem. Na verdade, era a casa da minha avó, que... bom, isso
provavelmente não lhe interessa em nada, mas ela foi a pessoa que morreu no
terremoto da semana passada.”
“Puxa! É mesmo?” A mulher ficava mais bonita pesarosa do que quando
estava achando graça. “Eu sinto muito.”
“Sente? Eu não. Mal a conhecia.”
“Eu lamento de verdade.”
“Lamenta o quê?”, Howard perguntou a ela, vindo da água.
A mulher fez um gesto na direção de Louis. “A avó desse... rapaz foi a pessoa
que morreu no tremor do dia 6 de abril.”
“Que azar”, disse Howard. “Geralmente ninguém morre em terremotos
pequenos assim.”
“O Howard é especialista em sismos rasos”, disse a mulher.
Howard apertou os olhos para o céu branco, como que desejando que aquela
descrição dele não fosse exata. Seu corte de cabelo lembrava um coco cortado
ao meio.
“E você?”, Louis perguntou à mulher.
Ela virou para o lado e não respondeu. Howard deu um tapa no focinho da
cadela e saiu correndo, fazendo manobras evasivas malucas enquanto a cadela
labrador corria atrás dele. A mulher deu um passo para trás, se afastando de
Louis, seu sorrisão assumindo uma frieza de despedida. Quando ela percebeu que
Louis estava indo atrás dela, um breve espasmo de susto atravessou seu rosto e
ela começou a andar bem rápido. Louis enfiou as mãos nos bolsos e igualou o
ritmo de seus passos ao dos passos dela. Sentia um leve interesse predatório por
aquela mulher de ossos pequenos, mas queria principalmente informações.
“Teve mesmo um terremoto?”
“Arrã. Teve mesmo um terremoto.”
“Como vocês sabem que foi aqui?”
“Ah... por instrumentos e também por um palpite calculado.”
“E o que é que está causando esses terremotos?”
“Rupturas em rochas sob pressão ao longo de uma falha alguns quilômetros
abaixo de nós.”
“Você poderia ser um pouco mais específica?”
Ela abriu seu sorrisão e sacudiu a cabeça. “Não.”
“Vai ter mais algum terremoto?”
Ela deu de ombros. “Definitivamente sim, se você estiver disposto a esperar
cem anos. Provavelmente sim, se você esperar dez anos. Provavelmente não, se
você for embora daqui a uma semana.”
“O fato de ter havido dois terremotos, um logo depois do outro, não significa
nada?”
“Não. Não necessariamente. Na Califórnia poderia significar alguma coisa,
mas não aqui. Quer dizer, claro que significa alguma coisa, mas nós não sabemos
o quê.”
Ela falou como se quisesse ser exata só por ser exata, não por causa dele. “Em
geral”, continuou, “se você sente um terremoto nesta área, ele está acontecendo
numa falha que ninguém nem sequer sabia que existia, em alguma profundidade
específica, no contexto de pressões localizadas que ninguém tem como saber
quais são. Você teria que ser um pastor fundamentalista para fazer previsões
neste momento.”
Os fios de cabelo branco que ela tinha pendiam na direção contrária dos fios
mais escuros, ficando em cima deles em vez de se misturar a eles. Sua pele era
cor de creme.
“Quantos anos você tem?”, ele perguntou.
Um par de olhos surpresos e sérios veio pousar em Louis. “Trinta. E você?”
“Vinte e três”, ele disse franzindo o cenho, como se um cálculo seu tivesse
dado um resultado inesperado. Ele perguntou o nome dela.
“Renée”, ela respondeu, carrancuda. “Renée Seitchek. E o seu?”
No estacionamento, Howard estava passando o pé na barriga de uma
contentíssima Jackie e o caucasiano barbudo estava encostado num carro
ridículo, um sedã rebaixado, de fins da década de setenta, com uma capota de
vinil desbotada e descascada, laterais brancas onduladas, remendos cinzentos e
sem nenhuma calota. Era um amc Matador. O caucasiano barbudo tinha um
rosto comprido e lábios vermelhos. As lentes de seus óculos eram do formato de
telas de televisão, e as barras de sua calça jeans estavam enfiadas dentro do cano
de botinas marrons de sola grossa. Só porque ela havia parado ao lado dele, o
copo semicheio da beleza de Renée ficou parecendo semivazio.
O Matador aparentemente pertencia a Howard. “Você quer uma carona pra
algum lugar?”, ele perguntou a Louis.
“Quero sim. Talvez para a minha casa.”
“Se fosse você”, disse o caucasiano barbudo, “eu iria para casa agora mesmo
para ver se está tudo bem.”
Renée apontou para Louis. “É isso que ele está fazendo, Terry. Ele está indo
para casa agora mesmo.”
“Foi o que eu falei”, disse Terry . “Foi só isso que eu falei.”
Renée olhou para o outro lado e fez uma careta. Howard destrancou o carro, e
Louis e Terry entraram no banco de trás, afundando as canelas em embalagens
de pizza, latas de coca-cola e roupas esportivas. O rádio do carro ligou ao mesmo
tempo que o motor. Estava transmitindo um jogo dos Red Sox.
“Cadê a cachorra?”, perguntou Renée.
Howard deu de ombros e engatou a marcha a ré.
“Howard, espera. Você vai atropelar a cachorra.”
Os quatro olharam por suas respectivas janelas, tentando localizar a cadela.
Louis tomou a iniciativa de descer e olhar atrás do carro, cujo cano de descarga
estava soltando nuvens negras da fumaça mais fedorenta que ele já tinha visto
um carro produzir. A fumaça cobriu suas vias respiratórias como uma espécie de
açúcar venenoso. Ele voltou para dentro do carro e informou não ter visto nem
sinal da cadela.
“Esse é o Louis, aliás”, Renée disse a Terry do banco da frente. “Louis, esses
são Terry Snall e Howard Chun.”
“E vocês todos são sismólogos”, disse Louis.
Terry fez que não. “A Renée e o Howard são sismólogos. Eles são
bambambãs.” Parecia haver uma mensagem ambígua ali: ou Terry não
acreditava realmente que os outros dois fossem bambambãs, ou queria dar a
entender que ser um bambambã não era o mesmo que ser uma pessoa digna de
admiração. “A Renée me falou que a sua avó morreu no terremoto da semana
passada”, disse ele. “Isso é horrível.”
“Ela já era velha.”
“O Howard e a Renée acharam que foi um terremoto de nada. Disseram que
foi muito mixuruca. Eles queriam que tivesse sido maior. É assim que sismólogos
pensam. Eu achei um horror o que aconteceu com a sua avó.”
“Já nós não, não é, Terry ? Nós achamos ótimo ela ter morrido.”
“Não é isso que eu estou dizendo.”
“O que você acha que ele está dizendo, Howard?”
Alheio, Howard girou o volante, enquanto o carro estalava e roncava feito uma
barca velha. Louis olhou pela janela de trás, esperando ver a cadela, mas o
terreno que os barris de lixo guardavam estava completamente vazio agora.
...Duas bolas e dois strikes, disse o locutor que estava narrando o jogo de
beisebol.
“Duas bolas e um strike”, disse Renée.
...O lançamento dois-dois...
“O lançamento dois-um”, disse Renée.
Bola três, três e dois. Roger tinha zero e dois e agora foi para uma contagem
completa.
“Um strike, imbecil. Três bolas e um strike.”
...O placar está indicando três bolas e um strike.
...Bob, disse o comentarista, eu acho que é três e um.
Renée desligou o rádio, irritada, e Terry comentou, supostamente para Louis:
“Nunca nada é bom o bastante para a Renée.”
No banco da frente, Renée se virou para Howard e fez um gesto de absoluta
perplexidade.
“Será que eles sentiram o terremoto no estádio?”, disse Terry .
“Arrã, é bem provável”, disse Renée, “já que eles estão jogando em
Minnesota.”
“Vira à esquerda na placa”, Louis disse para Howard. Mal reconhecia a
estrada onde eles estavam como aquela que ele descera correndo.
“Pra onde vocês querem ir depois?”, Howard perguntou. “Dar uma olhada em
Plum Island?”
“É melhor a gente voltar”, disse Terry .
“Que sem graça”, disse Renée.
“Ah, é, a gente não vai ver morte, não vai ver destruição...”, Terry disse.
“A gente não vai ver marcas na areia, foi o que eu quis dizer. Embora seja
verdade”, ela disse para Louis, “que a gente sente uma certa ambivalência em
relação a terremotos destrutivos. Eles são como cadáveres, cheios de
informação.”
A eloquência professoral dela estava começando a dar nos nervos de Louis.
Ele apontou para o portão de pedra da casa dos Kernaghan, e Howard começou
a fazer a curva praticamente sem reduzir a velocidade. Em seguida, pisou no
freio e virou o volante com toda a força para a direita, fazendo o carro derrapar
quase de volta para a estrada. Um Mercedes preto saiu desembestado portão
afora, guinou ao redor deles e seguiu a toda na direção de Ipswich. Atrás do
volante do Mercedes estava um homem que Louis reconheceu como o sr.
Aldren. Com muito atraso, Howard cravou a mão na buzina.
“Você quer me matar, não é?”, disse Renée, apoiando a mão no para-brisa e
deslizando de volta para o acolchoado do banco do qual ela havia sido
arremessada.
Uma sensação estranha, nova e não de todo desagradável tomou conta de
Louis enquanto eles subiam a ladeira e ele viu, como aqueles estudantes estavam
vendo, o dinheiro que aquela propriedade representava. Era uma sensação de
exposição, mas também de satisfação. Dinheiro: leia-se: eu não sou um qualquer.
O silêncio reverente dentro do carro se manteve até que a casa e seu chapéu de
festa ficaram à vista e Renée riu. “Ah, meu Deus.”
“Vocês têm que entrar”, Louis disse, num impulso de homem rico. “Comer
alguma coisa, ver alguns estragos.”
Terry mais que depressa sacudiu a cabeça. “Não, obrigado.”
“Não, sério”, Louis insistiu. “Vamos lá.” Ele estava pensando em como sua
mãe ia ficar incomodada com aquelas visitas. “Quer dizer, se é que vocês estão
curiosos.”
“Ah, nós estamos curiosos”, disse Renée. “Não estamos, Howard? Ser curioso
é a nossa profissão.”
“Eu só espero que ninguém tenha se machucado”, disse Terry .
Só depois de abrir a porta e mandar todo mundo entrar foi que Louis se deu
conta de como, no fundo, não tinha acreditado que ocorrera um terremoto. E a
sensação mais forte que teve, quando estacou no meio do hall de entrada, foi de
estar olhando para a obra de uma mão zangada. O pastor que dissera que Deus
estava zangado com Massachusetts; a haitiana que acreditara que havia um
espírito zangado na casa: Louis entendeu o que eles queriam dizer, pois uma
força tinha entrado na casa enquanto ele estava na rua e a atacado, arrancando
um pedaço de gesso do teto da sala de jantar e o atirando em cima da mesa,
onde a água derramada de vasos quebrados encharcara o gesso, deixando-o
marrom. A força também tinha aberto as portas do aparador, derrubado tudo que
fosse mais vertical do que horizontal e espalhado poliedros de porcelana pelo
chão. Tinha posto abaixo quadros da sala de estar, destruído o bar e aberto
rachaduras nas paredes e no teto. O cheiro da sala era como o de uma república
de estudantes numa manhã de domingo.
“Você realmente quer a gente aqui?”, Renée perguntou a Louis.
“Claro.” Ele tinha seus deveres de anfitrião a considerar. “Vamos dar uma
olhada na cozinha.”
Howard ficou apoiado num pé só e se inclinou para espiar a sala de estar, sua
outra perna pairando no hall de entrada para dar equilíbrio. Terry , extremamente
constrangido, se mantinha perto de Renée, que disse em voz baixa: “Você está
vendo o que acontece com quem mora no epicentro”.
Os estragos eram menos evidentes na cozinha: alguns potes quebrados,
algumas lascas de tinta e gesso no chão. Encostado na pia, o pai de Louis ficou
encantado de conhecer os três estudantes. Apertou a mão dos três e pediu que
eles repetissem seus nomes.
“Cadê a mamãe?”, Louis perguntou.
“Você não cruzou com ela? Ela está tirando fotos para a Prudential. Eu te
aconselho a não tentar limpar nada antes que ela termine. Na verdade, Lou”, Bob
acrescentou a meia-voz, “eu acho que ela nem se deu conta do que estava
fazendo, mas eu a vi derrubando alguns objetos das prateleiras na sala de estar.
Coisas feias, sabe.”
“Claro”, disse Louis. “Boa ideia.”
“Mas que dia!”, o pai continuou em voz mais alta. “Que dia! Vocês todos
sentiram o terremoto, não sentiram?” Ele se dirigiu aos quatro e todos fizeram
que sim, menos Louis. “Eu estava no quarto dos fundos e pensei que fosse o fim
do mundo. Contei doze segundos de tremor forte no meu relógio.” Ele apontou
para seu relógio de pulso. “Quando começou, eu senti a casa inteira ficar tensa,
como se ela tivesse captado alguma coisa no ar.” As mãos de Bob se ergueram e
giraram no ar, como pombos voando em círculos. “Depois eu ouvi um longo
estrondo, como se um trem de carga estivesse passando logo adiante das janelas.
E tinha uma sensação de peso, um peso tremendo. Eu ouvia milhares de
barulhinhos de coisas pequenas caindo dentro das paredes e aí, enquanto estava lá
sentado, olhando — não é para me gabar não, mas eu não senti nem um pingo de
medo, porque, sabe, parecia uma coisa tão natural, tão inevitável —, enfim, eu
estava lá sentado e vi uma janela simplesmente se estilhaçar. E aí, justo quando
eu pensei que tinha acabado, a coisa toda se intensificou, foi maravilhoso,
maravilhoso, esse clímax final. Era como se ela estivesse gozando! Como se a
Terra inteira estivesse gozando!”
Bob Holland olhou para os rostos ao seu redor. Os três estudantes estavam
ouvindo o seu relato, sérios. Louis parecia uma estátua branca olhando para o
chão.
“Imagino que vocês saibam que existe toda uma história de terremotos na
Nova Inglaterra”, continuou Bob. “Vocês sabiam que os índios norte-americanos
pensavam que os terremotos causavam epidemias? Isso fez muito sentido pra
mim hoje, essa ideia de doença, de distúrbio na Terra. Eles também eram
cientistas, sabe. Cientistas de uma forma muito profunda e muito diferente. Se
vocês querem falar de superstição, eu vou contar pra vocês que tinha uma
mulher nessa região em 1755, o nome dela era Elizabeth Burbage. Filha de
pastor, uma solteirona. Pois bem, os cidadãos tementes a Deus de Marblehead —
rá-rá! Marblehead! — chegaram à conclusão de que ela era uma feiticeira e a
expulsaram da cidade porque três vizinhos dela afirmaram que ela tinha previsto
o grande terremoto que atingiu Cambridge em 18 de novembro. Sessenta e três
anos depois dos julgamentos de Salem! Porque ela tinha presciência de um ato
de Deus! Marblehead! Maravilhoso!”
Louis estava envergonhado demais para acompanhar a reação das pessoas nos
minutos que se seguiram. Abriu a geladeira e convenceu Renée e Howard a
aceitarem maçãs. O pai começou a contar sua história de novo e, só para tirá-lo
dali, Louis o acompanhou até o quarto onde sua aventura havia transcorrido. Lá,
Bob reconstruiu os doze segundos de terremoto segundo a segundo, epifania a
epifania. Estava mais doidão do que nunca. O vidro da janela se estilhaçando, em
especial, tinha lhe parecido um momento transcendental, que sintetizava toda a
história do homem e da natureza.
Quando finalmente conseguiu se livrar do pai, Louis descobriu que Terry e
Howard tinham ido lá para fora, Terry para se sentar no banco traseiro do carro
e Howard para se sentar no capô, comendo sua maçã ruidosamente. Renée?
Howard deu de ombros. Ainda lá dentro.
Louis a encontrou na sala de estar, conversando com a mãe dele. Ela lhe
dirigiu o seu agora familiar sorrisão, enquanto a mãe, com uma câmera
fotográfica pendurada no pescoço, lhe transmitiu o seu agora igualmente familiar
desejo de não ser incomodada. “Será que você pode nos dar licença um instante,
Louis.”
Ele executou um ostentoso giro de cento e oitenta graus, saiu da sala e foi se
sentar no meio da escada. Sua mãe e Renée continuaram conversando por quase
cinco minutos. Só o que ele conseguiu captar foram cadências — longas
enunciações sussurrantes de sua mãe, sons mais breves, claros e repetitivos de
Renée. Quando finalmente apareceu no hall de entrada, Renée ergueu os olhos
para a escada. Louis estava curvado e imóvel, como uma aranha esperando uma
mosca cair em sua teia. “Acho que nós já vamos indo então”, disse ela.
“Obrigada por nos convidar para entrar.”
Ela se virou para ir embora, e Louis desceu a escada feito um relâmpago,
teleguiado para a mosca emaranhada. Pôs a mão no braço dela e o segurou.
“Sobre o que é que você e a minha mãe estavam conversando?”
Os olhos de Renée se dirigiram da mão no braço dela para a pessoa a quem a
mão pertencia. Ela não parecia nem um pouco contente com aquela mão.
“Ela está preocupada com os terremotos. Eu disse a ela o que eu sei.”
“Eu vou te ligar.”
Ela deu de ombros de um jeito quase imperceptível e disse: “Está bom”.
Quando Louis voltou para dentro da casa, depois de ver o carro fumacento
descer a pista de entrada, sua mãe estava fotografando a sala de jantar. Por um
instante ela abaixou a câmera. “Essa Renée Seitchek é uma moça muito
impressionante”, ela disse. Focalizou a câmera no teto, apertou um botão e, por
um momento, a sala inteira ficou branca.
4.
Em algum momento entre uma e duas horas da tarde, ele começou a esperar
por um terremoto. Estava sentado em seu quarto sem fazer nada mesmo; esperar
não exigia muito esforço extra. Tentou ficar tão preparado para sentir o próximo
tremor, se ele viesse, quanto ficava para ouvir o trovão quando via um
relâmpago riscar o céu: de prontidão, com a sua consciência sintonizada com o
instante. Infelizmente, isso envolvia manter os olhos abertos, e seus olhos volta e
meia escorregavam em alguma superfície lisa e notavam irregularidades, como,
por exemplo, a folha de papel de parede cujas bordas tinham se desgrudado do
reboco, deixando à mostra algumas das listras de cola que estavam embaixo.
Passado um tempo, essa cola produzia uma espécie de bolha em seu nervo
óptico, e então a bolha arrebentava e começava a sangrar; por outro lado, não
havia mais nada na parede em que seus olhos pudessem se segurar.
Só de olhar para as caixas de papelão fechadas onde estava seu equipamento
de rádio ele já ficava exausto. Era quase como se as caixas estivessem
empilhadas em cima de seu peito, comprimindo sua garganta e dificultando sua
respiração.
O teto era revestido com placas de cor gelo, feitas de algum triste produto de
papelão. Ele verificou que todas as placas apresentavam o mesmo padrão de
furinhos, as aparentes diferenças devendo-se apenas a diferentes
posicionamentos. Das cinco até mais ou menos seis horas da tarde, ele averiguou
com absoluta certeza que a distância entre as fileiras de quadrados numa
extremidade de cada fileira era idêntica à distância na outra extremidade.
Ocorreu-lhe que se um grupo de pessoas na área de Boston se revezasse para
fazer o que ele estava fazendo, durante todas as horas do dia e da noite, ou seja,
se houvesse sempre pelo menos um bom cidadão esperando de maneira
absolutamente consciente que a terra tremesse, então talvez nunca houvesse
outro terremoto, tão arredios à consciência humana são os aleatórios fenômenos
da natureza. (Esse é o axioma fundamental da superstição.) Mas talvez a
natureza, estando grandemente necessitada de aliviar aquelas tensões
subterrâneas, fosse levada a recorrer ao expediente radical, ao estilo do Velho
Testamento, de provocar um sono sobrenatural na consciência específica que
estivesse de plantão quando chegasse o momento em que não desse mais para
adiar a ruptura. O menino cujo dedo estava tapando o lendário buraco na represa
falando mais tarde de uma maravilhosa e irresistível sonolência? Obviamente
esse momento fatídico ainda não havia chegado, pois Louis conseguiu se manter
em perfeito estado de vigília e, assim, evitar os sismos até a hora em que os Red
Sox entraram no ar.
***
Na quinta à noite, um amador sério que tinha posto um anúncio no Globe veio
e levou todo o equipamento de rádio numa caminhonete, por 380 dólares em
espécie. Louis havia pedido seiscentos inicialmente.
Passou o sábado e o domingo discando, mais ou menos de duas em duas horas,
os números de telefone da casa e do trabalho de Renée. Ninguém atendia em
nenhum dos dois lugares, e ele resolveu que ela não estava mais interessada em
vê-lo. Essa ideia o enfurecia, e ele começou a deixar de gostar de Renée, porque
queria usar seu corpo e estava totalmente preparado para gostar dela, se era isso
que era preciso para usá-lo.
Nos estúdios da wolo-am no centro de Boston, numa torre de vidro em frente
às linhas de trem que partiam da North Station, um sujeito com pinta de capitão
do mar usando um macacão de brim branco e um lenço vermelho estava sendo
conduzido pela porta do vestíbulo. Instantes depois, ele surgiu no monitor interno,
anunciando esfuziantemente uma corrida de balões programada para o fim de
semana.
A recepcionista da wolo voltou para sua mesa atrás do balcão, repeliu Louis
com um braço e batucou em seu teclado. Era uma moça tamanho gigante, de
cabelo preto, mais ou menos da mesma idade que ele e absurdamente bonita.
Suas coxas estavam cruzadas e sua saia justa tinha se franzido em excitantes
ondinhas. Passado um tempo, ela parou de digitar, examinou a tela com os olhos
apertados e pressionou delicadamente uma tecla de função. A tela ficou vazia. A
recepcionista bateu com as mãos nas bochechas, aterrorizada, e ficou olhando
para a tela. Virou-se para Louis, olhos e boca redondos. “Eu não sei para onde
foi! Eu não sei para onde foi!”
“Escuta, eu tenho hora marcada com um tal de senhor Pincus.”
“Ele estava aqui.” Ela pousou o dedo em outra tecla e mais que depressa o
levantou, como se tivesse levado uma ferroada. “Mas saiu.”
“Ele vai voltar?”
“Você é Holland, Louis, certo? Por que você não deixa o seu nome? Eu não
posso falar com você no momento. O manual dessa impressora foi gerado na
mesma impressora por, abre aspas, razões heurísticas, fecha aspas, e a única
frase para a qual eu não estou pouco me lixando termina com as palavras, eu
memorizei, ‘não para o não para’. Termina assim.”
“Eu achei que tinha uma entrevista marcada com ele às onze.”
“As chances de ver o senhor Pincus hoje definitivamente não estão parecendo
boas.”
“Você sabe quando ele volta?”
“Por que você não pergunta primeiro para onde ele foi? Hum? Resposta: ele
foi para o aeroporto. E eu diria que é pouco provável que o aeroporto seja o
destino final dele. Qual é o destino final dele? ‘Não para o não para.’ Você está
me entendendo?”
“Talvez eu possa marcar uma hora com ele outro dia, então.”
“Eu adoraria remarcar a sua entrevista com ele, mas em virtude do vazio da
tela e da total falta de resposta aos comandos de tecla, isso não será possível. Por
que você não escreve o seu nome e o seu telefone num papel e aí eu passo o
recado para ele, está bom assim, Holland, Louis? Eu prendo o papel com durex
na tela do computador dele.” Ela cortou um pedaço de uns vinte centímetros de
fita adesiva e colou uma das pontas no papel de Louis e a outra na porta do
cubículo dela. De uma gaveta de sua mesa, ela tirou uma maçã vermelha do
tamanho de uma manga e fez um minúsculo talho branco nela com os dentes.
“Você quer almoçar comigo?”, Louis perguntou.
Ela levantou a maçã e a sacudiu. “Não para o não para!”
“Que tal um drinque depois do expediente?”
Ela fez que não com a cabeça, tirou uma dentada maior da maçã e ficou
mastigando com cara de ausência e enfado, com o olhar fixo numa tomada.
Britadeiras ribombavam à distância, em algum ponto inconjecturável da rosa dos
ventos; carros buzinavam aflitos, como se chamassem seus filhotes. Com um
estalido, a garota arrancou mais um naco da maçã. Estava claro que ela ia levar
mais uns cinco minutos para chegar até o miolo (cada mordida reforçando que
podia dispensar o almoço) e outros três para chupar os dentes e reajustar a boca,
checando o perímetro dos lábios com a ponta da língua e depois secando com as
costas da mão. Sua tela continuava vazia.
“Você está livre no fim de semana?”, Louis insistiu.
“Essa pessoa”, ela disse em tom de queixa.
“Nós podíamos sair pra jantar.”
“Eu conheço essa pessoa? Por que é que eu estou falando com essa pessoa?”
Na Pleasant Avenue, uma bicicleta de dez marchas presa com uma corrente a
uma sinalização de trânsito tinha sido derrubada no chão sem se soltar. As
abelhas que rondavam a madressilva eram como aglutinações do calor amarelo
e zangado daquele dia. O ruído de insetos de asa dura era como o zumbido de
transformadores de alta voltagem danificados, sobrecarregados, por aquele
calor; como os espíritos monótonos e despersonalizados de índios exterminados
volatilizados por aquele calor.
Ao entrar pela porta da frente num hall impregnado de odor corporal canino e
de hálito de ração de cachorro inacreditavelmente intensos e quentes, Louis viu
flores laranja desabrochando e teve de se esforçar para conseguir subir as
escadas, como um mergulhador quase sem ar tentando chegar à tona. Seus
óculos escorregavam de sua cara suada. Ninguém atendeu quando ele bateu na
porta, embora o apartamento de Renée fosse traiçoeiro, acolhendo de bom grado
os olhos da memória e da imaginação de Louis.
Foi uma caminhada de vinte e cinco minutos até Harvard. Com a ajuda de
alguns estranhos prestativos, Louis conseguiu localizar o Laboratório Hoffman de
Ciências Geológicas, que era um sanduíche de cinco andares de tijolo e janela
em fatias de concreto branco. O interior era refrigerado e tinha o mesmo cheiro
que o interior asséptico de computadores. A sala da dra. Seitchek ficava no
térreo, em frente a uma sala de computação, e continha duas mesas. Howard
Chun estava sentado com os pés em cima da que ficava mais perto da porta,
atirando energicamente um elástico na parede em frente e depois capturando-o
no ar. A outra mesa, perto da janela, estava vazia salvo por uma pilha de cartas
ainda fechadas.
“Ela não está aqui.”
“Você sabe onde ela está?”
Howard se esticou para pegar o elástico antes que ele caísse entre seus tênis.
“O que você quer com ela?”
“Ela é minha amiga.”
“Ah, sei.”
“Você sabe onde ela está?”
“Acho que em casa.”
“Eu acabei de vir de lá.”
Howard começou a estalar o elástico furiosamente contra os próprios dedos,
olhando de cenho franzido para a pele cada vez mais vermelha. De repente,
olhou para o chão por sobre o braço da cadeira. “Quer ver uma coisa?” Ele
atirou o elástico numa folha de papel pregada na parede. “Esses foram os
terremotos que nós tivemos desde março.”
Os círculos pareciam ser epicentros, graduados em escala linear de acordo
com a magnitude. “O que são as linhas pontilhadas?”, Louis perguntou.
“Falhas mapeadas perto de Ipswich. A linha tracejada é uma grande feição
aeromagnética, pode ser uma sutura antiga, pode não ser nada. Tem uns dez
quilômetros de profundidade, ou talvez nove ou oito. As falhas mapeadas são
rasas. O único problema é que a série de Ipswich é funda, mais para oito ou dez
quilômetros.”
“E o que isso quer dizer?”
“Que provavelmente tem outras falhas. Ou que as falhas não foram mapeadas
direito. Não parece certo. Duas séries de terremotos sem relação uma com a
outra, tão perto no tempo e no espaço. A probabilidade é pequena.”
“Pequena quanto?”
Howard cruzou os braços e franziu o nariz. “Tipo muito, muito pequena. Eu
nunca vi acontecer.”
“Hum.” Louis olhou de novo para a pilha de cartas na mesa de Renée. Do lado
de fora da janela, turistas japoneses andavam em fila por um caminho de asfalto
entre os carvalhos.
Howard se inclinou para trás perigosamente em sua cadeira giratória e,
esticando bem os dedos, alcançou seu elástico no chão. “Quer ver outra coisa?”
Com os pés ainda em cima da mesa, ele endireitou o corpo, abriu a gaveta de
cima e entregou a Louis uma fotografia 10 × 15 num papel amarelado que um
dia já fora lustroso. Era uma foto de uma adolescente vestida com uniforme de
banda de desfile e segurando um clarinete junto ao peito. O casaco do uniforme
era azul-escuro, com remate creme e botões dourados; o quepe tinha uma pala
preta de plástico e uma trança dourada na copa. O cabelo comprido e lambido,
com um corte típico de meados dos anos setenta, emoldurava seu rosto e se
esforçava para esconder (mas na verdade realçava e ampliava) as zonas de acne
de suas bochechas e sua testa. Ela tinha nos lábios o sorrisinho rígido e
autossabotador dos adolescentes que detestam seus rostos e para quem ser
fotografado é uma crueldade sem tamanho, e olhava fixamente para um infinito
localizado em algum ponto a sua esquerda, como se ao não encarar a câmera ela
pudesse fazer com que a câmera não a visse. Folhas de árvore amarelas e
pentagonais jaziam no gramado entre ela e uma caminhonete fora de foco e
uma porta de garagem.
“Você sabe quem é?”
“Onde você conseguiu isso?”
“É a Renée.”
“Onde você conseguiu isso?”
Howard bateu com as costas várias vezes no encosto de vinil de sua cadeira.
Depois, empurrou a mesa com os pés e foi deslizando até a metade da sala. “Eu
encontrei.”
“Onde?”
“Eu só peguei.”
Louis tentou devolver a foto.
“Pode ficar”, disse Howard. “Você quer?”
“Por que você está me dando isso?”
Howard deu de ombros. Tinha feito sua última oferta.
“Você roubou essa foto?”
“Eu só peguei. Se quiser, leva. Eu não quero.”
***
Ao entardecer, pela janela aberta, ele ouviu John Mullins contar à soprano e ao
marido dela que aquele rapaz bonito do prédio ao lado — acabou de se mudar,
um garoto bonito — tinha sido despedido. Ele disse para eles que não acreditava
em Jesus e eles o botaram no olho da rua.
Prezada Vaca,
Eu espero que você morra de Aids.
Atenciosamente,
Um inimigo.
“Vai direto ao ponto”, ela disse com voz animada. “Aqui tem outra bem
carinhosa.”
“Essa é aquela sobre adoção, não é? Dá uma olhada nessa aqui. O cara
mandou junto uma parte da carta da corrente.”
-2-
tem impacto, mas às vezes você não consegue fazer contato. Às vezes o
número do telefone é trocado temporariamente por outro que não consta da
lista telefônica. Às vezes você liga e só dá sinal de ocupado, ou ninguém
atende, ou a secretária eletrônica atende. Se o número comercial foi
alterado, você pode obter o número novo pelo serviço de auxílio à lista (555-
1212). Lembre-se que clínicas e médicos particulares não podem se dar ao
luxo de não constar da lista telefônica. Insistir é importante — durante uma,
duas, até três semanas. Porém, também é importante acompanhar cada
ligação de uma carta de primeira categoria. Se a corrente não for quebrada,
estima-se que cada aborteiro da lista vá receber mais de 1600 cartas até as
nove caixas da página 1 terem sido preenchidas. A união faz a força!
Imagine o impacto de 1600 veementes apelos pessoais! E de 1600
telefonemas! Mas se você quebrar a corrente, esse número vai cair pela
metade, e se outro amigo quebrar a corrente, o número vai cair pela metade
de novo.
Jesus alimentou 5000 com cinco pães e dois peixes. Você pode ter o
mesmo poder se enviar seis cópias desta carta. Se esta cópia estiver borrada
demais, datilografe o texto de novo antes de enviar.
Observação: Ligações de longa distância são mais baratas entre 5 da tarde
e 8 da manhã (hora local), mas não esqueça que a maioria das clínicas
funciona em horário comercial (isto é, de 9 às 5).
como escolher
não escolha nomes da lista ao acaso. Comece com o dia do mês em que
você nasceu — você vai ver que há 31 nomes na lista — e vá subindo a lista
se você nasceu num mês de número ímpar (por exemplo, janeiro = 1;
fevereiro = 2 etc.) ou descendo a lista se você nasceu
“Eu vou comer mais uva”, disse Renée. “Você quer?” A geladeira dela tinha
ombros arredondados e um puxador que travava. O logotipo de cromo na porta
dizia fiat.
Louis estava sacudindo a cabeça, atônito. “Isso é mil vezes pior do que o que
aconteceu comigo.”
“Tem certeza de que você não quer? Uva?”
“Quem botou o seu nome na lista?”
“O Stites ou alguém da organização dele, eu tenho quase absoluta certeza.
Todos os endereços são da área de Boston. O detalhe do ‘Laboratórios Hoffmann’
foi um toque de mestre. Essas pessoas não são nada burras.”
“Você tem que reclamar com alguém.”
“Eu falei por telefone com um cara do Globe. Ele me pediu que mandasse
cópias de algumas das cartas pra ele, e eu mandei. Imagino que eles queiram ver
quem mais está recebendo essas cartas antes de publicarem qualquer coisa a
respeito. Ele disse que ia me ligar de volta através da secretaria do departamento,
mas ainda não ligou.”
“E com os Correios, você falou? Com a companhia telefônica?”
“Eu achei que não ia adiantar nada. Eu não quero processar essas pessoas, só
quero que o mundo saiba o quanto elas são inacreditavelmente babacas.”
O telefone em cima da mesa começou a tocar. Louis botou a mão em cima
dele e olhou para Renée, que deu de ombros.
“A...eh... dra. Seechek está?”
“Sou eu.”
“Ah, o senhor é homem, eu não sabia que...”
“Não, meu senhor”, disse Louis. “Eu tenho voz grossa.”
Renée lhe lançou um olhar dúbio.
“Eu me chamo John. Eh, Doe. John Doe. Eu fui informado de que... eh... a
senhora trabalha nos Laboratórios Hoffmann e...” — a voz do sr. Doe foi ficando
fina e estrangulada — “e que lá são realizados abortos?”
“É, eu estou sabendo que o senhor foi informado disso.”
“Eu gostaria de conversar com a senhora um instante sobre o seu trabalho, se
fosse possível, doutora Seechek. A senhora tem um instante?”
Louis estava se divertindo, mas Renée tirou o telefone da tomada, pegou o fone
da mão dele e falou para a linha muda: “Vai se foder, vai se foder, vai se foder”.
A sacola do DeMoula’s se rasgou quando Renée começou a enfiar as cartas de
ódio de volta dentro dela, enquanto vagas sombras de palavras se desenhavam
em seus lábios. Ele ficou surpreso ao notar áreas vermelhas e ásperas infiltradas
em sua tez pálida. Ficou se perguntando se aquilo era uma alteração recente ou
se, auxiliado pelas pistas fornecidas pela velha fotografia, ele estava vendo coisas
nela que até então ela havia conseguido esconder. Seus poros tinham se tornado
evidentes. Havia uma faixa de acne suavizada, mas não erradicada, na parte de
cima de uma de suas bochechas e também manchas em volta de sua boca que
davam a impressão de que ela estava borrada de batom. Ela lhe pareceu mais
nova e um pouco mais suja, mais como o tipo de garota com a qual era fácil
você fazer o que quisesse — o tipo que tem mais paixão do que autoestima.
“Eu odeio quando mulheres falam palavrão”, disse ela.
“Por quê?”
Ela estava na cabeceira da mesa. “Acho que é porque existe essa ideia, na
imaginação popular, de que isso seria sexy. Na imaginação popular masculina
sancionada. Mesmo quando uma mulher diz ‘vai se foder’ com raiva, mesmo
quando uma feminista radical diz isso, as pessoas acham um tesão. Toda vez que
eu ouço uma mulher dizer isso, eu me transporto...” Ela se dirigiu a Louis
diretamente. “Eu me transporto para a estação do metrô da Central Square. Tem
uma mulher raivosa lá, cheia de bolsas e de jornais. É como se o rosto dela fosse
o rosto de Todas as Mulheres Dizendo ‘vai se foder’. Aquela raiva insana contra
todo mundo, que para mim fica particularmente feia numa mulher, embora isso
não seja politicamente correto da minha parte e, portanto, me faz perguntar qual
exatamente é o meu problema. E eu não posso deixar de mencionar”, ela
continuou, agora falando consigo mesma, “uma coisa que eu esqueci de falar
outro dia, quando você me perguntou o que eu tinha contra Boston, eu esqueci de
falar do jeito como as pessoas chamam o metrô de T. As pessoas, quer dizer, as
pessoas em questão, elas não dizem ‘eu vou pegar o metrô’, elas dizem ‘eu vou
pegar o T’. O que é doentio — pra mim, o que eu considero doentio — é que é
como se fosse uma palavra-código, que toda vez que eu escuto me dá raiva,
porque eu ouço a história inteira na minha cabeça, a garotada toda aprendendo a
dizer ‘T’ em vez de ‘metrô’. Eles escrevem para os pais falando sobre pegar o T.
Eles explicam que aqui as pessoas chamam de T, o que é meio fofo. Ai, meu
Deus, o que é que eu estou dizendo?” Ela se afastou, dando socos na própria
cabeça. “Você queria saber por que eu não te liguei.”
Impaciente, Louis dava golpes de caratê no tampo da mesa. “Tem cerveja
aí?”
“Porque eu não estou conseguindo me controlar.”
“Ou qualquer outro tipo de bebida ou de droga que a gente possa consumir?
Nós dois?”
O zumbido do circulador de ar na janela, seu ronco plácido e oleado, era o
som de todas as horas da noite durante uma onda de calor. A hora em que a
conversa escasseia. A hora em que um reflexo da luz da rua paira num
determinado ponto em que as hélices passam. A hora em que o amanhecer força
passagem pelas cortinas cansadas. O zumbido e as horas sendo a mesma coisa, a
monotonia do calor úmido, e os pacientes queimados dizem: Não aumente a
velocidade. Não diminua. Deixe exatamente como está.
“Você tem amigos?”, Louis perguntou, abrindo garrafas. “Pessoas pra quem
você possa ligar?”
“Claro. Quer dizer, eu tinha.” Sentada em frente a ele do outro lado da mesa,
Renée não demonstrou nenhuma intenção de tomar a cerveja que ele lhe deu.
“Eu dividia esse apartamento com uma amiga de quem eu gostava muito, mas
ela está casada agora. Imagino que eu não tenha sido muito previdente na hora
de escolher amizades pra cultivar. Eu fiz amizade com pessoas dois ou três anos
mais velhas que eu no trabalho, pessoas nascidas na segunda metade da década
de sessenta que não gostavam da primeira metade da década de oitenta, como eu
também não gostava. Então, acho que o que eu tenho agora é uma
correspondência interessante e alguns lugares pra ficar no Colorado e na
Califórnia.” Com as unhas dos polegares, ela empurrou para cima, como quem
empurra uma cutícula, o papel que envolvia o gargalo de sua garrafa de cerveja
suada, tentando com atraso sondar a intenção por trás da pergunta dele. “Eu saio
com pessoas, se é isso que você está querendo saber.” Os olhos dela
acompanharam o dedo indicador de sua mão direita enquanto ela o arrastava ao
longo da beirada da mesa. Depois, trouxe sua mão de volta e apoiou a palma em
um dos lados da garrafa cheia, apoiando em seguida a outra palma no outro lado.
Ficou absolutamente imóvel nessa posição durante alguns instantes, olhando para
a garrafa. Depois, com violenta determinação, como se ficar sentada daquele
jeito tivesse sido um tormento físico desde o início, ela se levantou sem nem
afastar a cadeira da mesa. Teve de cambalear num pé só para não perder o
equilíbrio e empurrar a cadeira para trás para se remover dali; grudada no chão
úmido, a cadeira tombou para trás.
Renée voltou de seu quarto trazendo algumas pastas de arquivo.
“Eu tenho ficado na biblioteca”, ela disse, endireitando a cadeira. “Na sexta
passada, duas pessoas apareceram na minha sala pra serem desagradáveis
pessoalmente e, desde então, eu não voltei mais lá.”
“O Howard me falou.”
Ela fez que sim, bocejando. “Eu fiquei pensando naquilo que o namorado da
sua irmã disse e me lembrei de uma coisa, ou achei que me lembrava. Eu tinha a
impressão de que estava na página da direita, ao lado de uma outra coisa que eu
estava lendo. E... eu estava certa.” Da pasta de cima, ela tirou um maço de
fotocópias grampeadas. “Isso é um artigo que saiu no Boletim da Sociedade
Geológica da América, em julho de 69. Você pode ler só o resumo e o que eu
sublinhei.”
“Pra quê?”, Louis disse.
“Porque é interessante.”
A. F. Krasner
Setor de pesquisa química, Indústrias Sweeting-Aldren
Iunderstandall... iseeno...
destructiveurges... iseeno...
Itseemssoperfect... iseeno...
i see... i see no… i see no evil*
Por quinze dias, depois da noite dos dois terremotos, as pastas de arquivo com
os textos sobre a Sweeting-Aldren e os microssismos de Peabody permaneceram
intocadas no espaço ao lado da geladeira. Algo parecido com superstição
impediu a habitualmente ordeira Renée de guardá-las quando ela limpou o
apartamento — superstição e talvez também um certo asco, como o que Louis
sentiu quando seus olhos por acaso pousaram nelas, ou como o que ele sentiu em
relação a seu equipamento de rádio nas semanas antes de vendê-lo, ou como o
que os dois sentiram durante vários dias só de pensar em álcool depois de terem
se embebedado tanto.
Renée deu muita importância ao “fato” de que, embora Louis tenha se
recuperado rapidamente e passado a manhã seguinte arrumando o apartamento,
ele havia vomitado antes dela. Louis tinha suas dúvidas em relação a essa
cronologia e ficou surpreso com a veemência com que, ainda pálida e incapaz de
ficar em pé por muito tempo, ela defendeu sua versão. Pareceu-lhe que ela
estava sendo meio mesquinha a respeito disso.
No sábado, acordado pelo cheiro de muffins ingleses torrados, ele encontrou
uma chave do apartamento em cima da mesa da cozinha. Girou-a e girou-a no
aro do chaveiro. Foi de carro até seu apartamento e pegou alguns suprimentos e
utensílios. À tarde, foi a pé até o apartamento de sua amiga Bery l Slidowsky, em
East Cambridge, e passou um tempo lá com ela. Quando a conversa enveredou
para os terremotos de quinta-feira, que Louis soubera pelo Globe que haviam
ocorrido nas cercanias de Peabody, ele não só conseguiu não dizer nada a
respeito da teoria de Renée, como declarou, absurdamente, não ter sentido nada.
Bery l estava trabalhando como voluntária na wgbh agora. Não tinha nenhuma
ajuda a oferecer a Louis em termos de emprego, mas ficou condizentemente
indignada com o fato de Stites ter comprado a wsne. Culpou Libby Quinn por
isso. Libby — ou alguém — havia realmente lhe dado uma úlcera; ela lhe
mostrou seu frasco de Tagamet.
Louis estava ouvindo um disco dos Sugarcubes em volume alto quando Renée
chegou do trabalho, trazendo uma sacola de compras de mercado. “Isso é o
jantar?”, ele perguntou.
Ela atirou um pacote do DeMoula’s com cheiro de peixe na direção dele.
“Peixe! Eu como peixe?” Ele ficou observando Renée guardar as compras
num armário da cozinha. “Eu comi coquilles Saint-Jacques com purê de batata
quando os meus pais estavam aqui. Pedi isso pra deixar a minha mãe
impressionada com o meu francês. Eles serviram purê de batata instantâneo,
uma coisa meio acampamento de verão, sabe? Mas é um restaurante muito
famoso.”
Ela resolveu sair do silêncio. “Você quer que eu fale sobre restaurantes de
peixes famosos de Boston? Eu posso fazer isso se você quiser. Tenho muita coisa
pra dizer.”
“Que tipo de peixe é esse?”
“É bacalhau fresco.”
“Foi você mesma que comprou isso?” Louis passou o dedo pelos filés ásperos.
“Ninguém te obrigou a comprar? Foi você que decidiu: hoje eu vou comer
bacalhau?”
“Sim, fui eu que decidi.”
“Você estava a fim de comer bacalhau. Você viu o bacalhau no mercado e
sentiu vontade de comprar.”
Ela fungou.
“Você por acaso também comprou fígado pra gente comer amanhã?”
“Na verdade, eu estava pensando que você podia fazer as compras amanhã.”
“Merda”, ele se desculpou. “Claro. Eu faço as compras amanhã. Já podia ter
feito hoje, mas não tinha como falar com você.”
“O que eu disse foi: você faz as compras amanhã. Eu reclamei?”
“Não, você não reclamou.”
Ela se agachou para guardar os legumes e as verduras nas gavetas de plástico
amareladas da geladeira Fiat. “Eu não sei se é boa ideia você se mudar pra cá
assim. Pelo menos, não antes de nós discutirmos algumas coisas.”
“A questão da idade. O nosso relacionamento de... uh.... três semanas, do
Memorial Day ao Dia da Bandeira.”
Ela riu.
“Você me acha um babacão”, ele disse. “Eu não sou o seu tipo.”
“Não, na verdade, eu acho você muito atraente e gosto da sua companhia. Não
é disso que eu estou falando de forma nenhuma.” Ela franziu o cenho. “É assim
que você se vê? Por que você se vê desse jeito?”
Louis não respondeu; tinha recuado em direção ao hall, dando socos no ar.
Nunca na vida alguém tão confiável quanto a dra. Seitchek havia lhe dito que ele
era muito atraente. Ele voltou para a cozinha andando de peito inflado.
“Então, o que é que a gente precisa discutir?”
“Nada. Tudo. Eu tenho a sensação de que as coisas estão... fora de controle.”
Ela olhou nos olhos dele como se quisesse que ele a ajudasse a falar. Depois,
ficou assustada, como se tivesse acabado de se dar conta de que não havia
ninguém ali a não ser ele e ela. Descarregou sua impotência no toca-fitas,
desligando-o, tirando-o da tomada e removendo a fita.
“Se você quer que eu vá embora, é só falar”, disse Louis.
“Eu não quero que você vá embora. É isso que eu estou dizendo.”
Ele assumiu a expressão abstraída de um francês que está ouvindo uma
americana não conseguir se expressar em francês.
“Eu só quero esclarecer as coisas”, ela disse.
“Você não quer que eu vá embora; eu não quero ir embora; o que poderia ser
mais claro?”
“Tem razão.” Um daqueles seus sorrisões. Ela começou a descascar uma
cebola. “Está tudo muito claro.”
Louis olhou com tristeza para o toca-fitas emudecido. “O que você vai fazer
com esse bacalhau?”
“Eu vou fazer um refogado com azeite, alho, cebola, vinho, açafrão, tomate e
azeitona, depois botar o peixe e deixar cozinhar em fogo brando um tempinho.”
“Tem alguma coisa que eu possa fazer?”
“Você sabe fazer arroz?”
“Não.”
“Talvez você possa fazer uma salada.”
“Ou você pode me ensinar a fazer arroz.”
“Por que você não faz a salada?”
“Você quer dizer para eu não foder com o arroz?”
“Exatamente.” Com golpes cortantes, ela começou a fatiar azeitonas pretas.
Louis tinha certeza de que ela ia se cortar e, quando ela largou a faca de repente,
ele achou que fosse isso que havia acontecido, mas ela só estava zangada.
“Você acha que eu quero que você fique me vendo fazer o jantar? Mulher
mais velha banca a mãe de homem mais jovem? Homem mais jovem
adoravelmente inepto? Prepara pra ele a primeira boa refeição que ele come em
meses? Ensina a ele como se faz arroz? Se você quer aprender a fazer arroz, leia
as instruções no pacote, como eu fiz dez anos atrás.”
Ela atacou as azeitonas de novo. Louis ficou observando músculos e tendões
irem e virem sob a pele de seus braços finos e pálidos.
“Então onde é que está esse pacote?”
“Onde a maioria das pessoas guarda comida?”
Ele suspirou. No terceiro dos três armários de cozinha de Renée, Louis
encontrou um pacote de arroz do Star Market. “Não tem instrução nenhuma
aqui.”
“Ferva uma xícara e meia de água e meia colher de chá de sal, misture uma
xícara de arroz, tampe a panela, deixe cozinhar em fogo baixo por dezessete
minutos e veja se ficou pronto.”
Ela ficou vendo Louis passar quase um minuto tentando medir exatamente
meia xícara de água, enchendo demais, esvaziando demais, enchendo demais,
esvaziando demais. “Ah, pelo amor de Deus.”
“Eu estou tentando seguir as suas instruções.”
“Você não está fazendo uma bomba, você está fazendo arroz.”
“Eu estou tentando fazer direito.”
“Você está tentando me irritar. Está tentando ser engraçadinho.”
“Não estou não!”
Mais tarde, eles foram para a cama dela e viram os Red Sox jogarem contra
os Rangers no canal 38, enquanto folheavam o Globe. Durante um bom tempo,
Louis ficou estudando um anúncio de página inteira que mostrava um homem de
negócios usando equipamentos ibm em seu escritório em casa. “Os livros nas
estantes que servem de pano de fundo nesses anúncios... Como esse aqui. Isso é
Mein Kampf?” Ele entortou a cabeça. “Isso é Mein Kampf! O cara tem um
exemplar de Mein Kampf na estante dele! E um computador de dez mil dólares.
E essas revistas, aposto que é tudo revista de mulher pelada.”
“Deixa eu ver.” Renée esquadrinhou a fotografia. “É Main Street.”
“É Mein Kampf!”
“Isso é um S. É o livro do Sinclair Lewis, Main Street.”
“Aposto que ele guarda o Hitler dele dentro do armário.”
“Eu vi que você estava lendo uma matéria sobre a Sweeting-Aldren.”
“Daí a minha hostilidade? É. Era uma análise especulativa. Eles comparam a
empresa a uma formiga.” Louis voltou para a matéria. “‘Wall Street continua a
observar enquanto a formiga ferida rasteja em círculos lentamente, tentando
fazer com que suas pernas voltem a funcionar. Ela obviamente está machucada,
mas é possível que absorva os danos e comece a se mexer de novo. Longos
minutos se passam; ela pode estar morta; ou pode estar prestes a retomar sua
missão. Ninguém sabe que tipo de dor ela pode estar sentindo. Se muito tempo se
passar e a Sweeting-Aldren continuar sem se mexer, ela será dada como morta.
Mas Wall Street já viu muitas formigas feridas ao longo dos anos e sabe que
ainda não é hora de perder as esperanças.’ Blá-blá-blá. Blá-blá-blá... O analista
David Blá de Blá-Blá Emerson atribui boa parte da queda de dezessete por cento
no preço das ações desde março de blá ao reconhecimento de que as ações
estavam supervalorizadas. Os ganhos com ações blá blá. No entanto, os
investidores não se sentiram encorajados pelas declarações feitas pelo dr.
Axelrod na sexta-feira, segundo o qual, à luz da significativa atividade sísmica
que continua a ser registrada nas cercanias de Peabody, ‘nós simplesmente não
sabemos o que esperar no que diz respeito a terremotos futuros’. Quem é esse dr.
Axelrod?”
“Sismólogo do mit. Ele é bom. Ele é... bacana.”
“Preocupações se concentram na interrupção de linhas de produção. Empresa
operando perto da capacidade máxima, blá blá... Se toda a produção fosse
interrompida durante mais de três semanas, os prejuízos ficariam perto de um
milhão de dólares por dia. Preocupações também em relação a ações judiciais
em virtude da emissão de efluente esverdeado contendo bifenilos e outros
hidrocarbonetos halogenados... suspeita de que resíduos perigosos estão sendo
armazenados e não incinerados como empresa afirma. (Rá.) Temor também de
vazamento caso venha a ocorrer um grande terremoto... incluindo cloro,
benzeno, triclorofenol e outras substâncias altamente voláteis e venenosas ou
carcinogênicas. Segurada contra danos patrimoniais, empresa está ‘examinando
os detalhes’ de sua cobertura de danos a terceiros, o que sem dúvida significa que
a cobertura é insuficiente. No entanto, considerando o histórico de receita forte e
a carga moderada das dívidas de longo prazo da empresa, bem como o
relativamente baixo risco de ocorrer um terremoto de grandes proporções, três
em cada quatro analistas consultados na sexta-feira consideraram as ações da
Sweeting-Aldren uma boa compra ao preço de fechamento de quinta.”
Renée tirou os óculos de Louis e se juntou a ele na seção de negócios.
Enquanto eles se beijavam, ele começou a passar o dedo na costura grossa entre
as pernas da calça jeans de Renée, abaixo do zíper.
Duas rápidas eliminações no sétimo inning.
“Eu não sei de onde você veio. Você simplesmente apareceu.”
“Eu te achei interessante. Eu fui atrás de você.”
“Foi isso que aconteceu?” Ela levantou a cabeça do peito dele, um rosto de
deus aparecendo numa nuvem acima do horizonte da caixa torácica de Louis. “O
que a gente fez no hall, depois do terremoto. Aquilo foi exatamente como tem
que ser.”
“Que sorte eu ter vindo aqui, não?”
“Eu adoro sexo. É quase a única coisa que eu não tenho vergonha de gostar.”
Bom esforço de Greenwell para não deixar que ele passasse de uma rebatida
simples.
“Você me faz querer ser mulher”, disse Louis.
Depois do fim de semana, o calor cedeu lugar a um clima canadense. O ar
tinha um cheiro limpo e doce, cheio de oxigênio, e as árvores da Pleasant
Avenue vergavam sob a repentina exuberância de suas folhagens. A biblioteca
pública, na última colina de Somerville, era como o passadiço de um veleiro, o
vazio do céu oceânico começando logo além do estacionamento; um ar salpicado
com o barulho de martelos e empilhadeiras soprava no rosto de Louis enquanto
ele e sua namorada olhavam por sobre telhados chatos e armazéns de tijolos para
a extensão azul-celeste da ponte Tobin e, além dela, para a névoa cor de
anoitecer que cobria Ly nn e Peabody e para a proa do cabo Ann.
A música ao som da qual ele gostava de comer sanduíches e a tv debaixo da
qual ele gostava de enterrar as noites começaram a parecer estridentes e
irrelevantes. Havia um silêncio na Pleasant Avenue que pertencia a Renée, e ele
queria estar nesse silêncio. Uma manhã, Louis pegou emprestada a carteira de
Harvard dela e, por duas horas, assumiu a identidade de René Seitchek, francês
visitante. Voltou da biblioteca Widener com uma mochila cheia de Balzacs e
Gides. Tinha a sensação de ter sido arremessado sismicamente de uma carreira
no rádio, uma carreira que poderia muito bem ter lhe proporcionado satisfação e
um senso de propósito e segurança, para um estado em que ele não só não sabia
o que fazer da vida, como duvidava que isso importasse muito. Sublevações e
subsidências semelhantes estavam acontecendo no terreno de sua memória, com
marcos geográficos familiares sumindo de vista, substituídos por cenas
recordadas de uma natureza tão radicalmente diferente que ele quase ficava
espantado ao se dar conta de que aquelas coisas também haviam tido lugar em
sua vida. Um gentil e sarcástico ex-aluno da Rice fazendo um discurso de
formatura que Louis, como todos os outros formandos, tivera de ouvir até o final
e lembrando os formandos de uma coisa chamada justiça social. O semestre
inteiro que ele havia passado em Nantes, o cuscuz que ele tinha comido lá com
um grupo de estudantes argelinos, os estudantes lhe dizendo: as coisas estão muito
ruins no país onde nós nascemos e, como cidadãos franceses, nós nos sentimos
divididos. Seu aniversário de catorze anos, a faca de caçador, com bainha e tudo,
que Eileen havia comprado e lhe dado de presente. E também Marcel Proust,
para quem ele havia mantido uma porta mental aberta por tempo suficiente para
ficar felicíssimo ao descobrir que Swann estava casado com Odette e que o
pobre pintor do salão dos Verdurin se transformara no grande artista Elstir; a
porta tinha se fechado sob a pressão de ter de produzir quatro trabalhos de cinco
páginas, em francês, mas não antes que uma lasca de felicidade tivesse se
esgueirado, uma lasca que, estava claro agora, ainda continuava dentro dele,
como um djim reservado e assustador.
Todo fim de tarde, quando ouvia os passos da verdadeira Seitchek na escada,
Louis sentia uma expectativa e uma curiosidade crescentes que não eram,
contudo, de modo algum satisfeitas pela pessoa que, depois de fazer alguns ruídos
na cozinha, entrava no quarto em que ele estivera lendo. Ele a via com uma
clareza onírica que era a mesma coisa que uma incapacidade onírica de vê-la de
verdade. Em vez de um rosto, ele via uma máscara, um signo captado
diretamente: a imagem da mulher com quem ele dormia. Ela tinha basicamente
a mesma aparência estivesse ele de olhos fechados ou abertos. Estranhamente,
ou não, a presença dele no apartamento dela parecia perturbá-la cada vez
menos. Ela ouvia as fitas dele enquanto fazia o jantar e o hipnotizava com os
movimentos precisos e metódicos com que cozinhava; mais tarde, enquanto ele
lavava a louça, ela assistia à televisão dele, lia o jornal e não parecia notar
nenhuma mudança nele, nem mesmo no modo como ele secava toda a louça,
guardava-a no armário, varria o chão e depois, durante uns quinze ou vinte
minutos, ficava na cozinha sem fazer absolutamente nada a não ser adiar o
momento em que se juntaria a ela na cama. Em termos nucleares, era como se
a configuração de forças tivesse mudado e ele não fosse mais uma partícula de
carga oposta atraída por ela de uma grande distância, mas sim uma partícula de
mesma carga, um próton repelido por outro próton até que eles ficassem bem
perto um do outro e a intensa força nuclear se fizesse valer e os unisse.
“Você pode me machucar um pouco.”
“O quê?”
“Você pode me dar uns tapas, ou me morder. Um pouco. Pode me beliscar.
São coisas que você pode fazer, se quiser.”
Ela estava deitada em cima dele, o campo que emanava da fixidez de seus
olhos arregalados exercendo pressão de cima para baixo. “Você faria isso?”
Ele virou a cabeça para o lado. “Não!”
“Por que não?”
“Porque eu não acho que um homem deva bater numa mulher.”
“Nem mesmo na cama, se a mulher pedir?”
“Melhor não.”
“Tá bem.”
A voz dela saiu tão fraca que só deu para ouvir o “bem”. Ela rolou para o lado
e ficou olhando para a parede; o ombro dela enxotou a mão dele para longe
quando Louis tocou nele. Houve silêncios. Objeções e ressalvas, silêncios. Levou
horas para fazer o relógio retroceder trinta segundos. Muito tempo depois de o
último carro passar pela Pleasant Avenue, numa altura da noite em que ações e
sensações tinham a irrelevância moral de sonhos, ele finalmente fez o que ela
queria.
Na noite seguinte, pela primeira vez, ela voltou para o trabalho depois do
jantar. Ele teve permissão para ir junto. Na sala de computação, consoles com
chassis em forma de bolha, feito bustos de astronautas, estavam dispostos em fila
dupla num banco com tampo de fórmica abarrotado de manuais de
equipamentos e papéis usados. Uma janela de vidro laminado dava vista para
uma sala bem iluminada, cheia de peças de hardware do tamanho de máquinas
de lavar e de um latejante ruído branco de vigilância estilo norad que funcionava
a noite toda. Mapas oceânicos como o que havia no apartamento de Renée
estavam presos às paredes, alguns com os cantos superiores pendentes, marcados
com quadrados de alguma substância adesiva. O telefone, que estava em cima
de um radiador de calefação, tinha sido desconectado da tomada, e a atmosfera
de transitoriedade ou abandono da sala era acentuada pela falta de coisas onde
fosse possível se sentar. Renée disse que não estava presente quando uma leva de
cadeiras novas chegou e que alunos e professores assistentes do resto do prédio
tinham passado por lá, pegado as que queriam e jogado as cadeiras velhas fora,
porque ela não estava presente.
“Eu fiz a maior parte do meu trabalho nessa sala. O computador é um Data
General. Nós temos vários Suns agora também. Eles falam unix.”
Louis estava perto de um mapa do Atlântico Sul. “Tantos pontos, tantas linhas.”
“Os pontos são terremotos.”
“Tem milhões.”
“É, são milhares todos os meses. A maioria no mar.”
Ele encontrou um mapa que mostrava a maior parte da América do Norte,
uma enorme massa bege entre mares apinhados de pontos coloridos de vida
geológica. Havia pontos vermelhos espalhados esparsamente ao longo do litoral
leste, também esparsamente pelo norte do planalto Ozark e mais densamente nas
montanhas do oeste. Havia uma alarmante massa vermelha deles na Califórnia.
“A crosta terrestre”, disse Renée, “está fragmentada em cerca de uma dúzia
de placas gigantescas que, por razões já razoavelmente bem compreendidas
relacionadas à convecção de rochas derretidas abaixo da crosta, está em
constante movimento. Elas se chocam umas contra as outras, roçam umas nas
outras e se afastam umas das outras. Em alguns casos, uma se enfia debaixo da
outra. Algumas delas chegam a se deslocar uns cinco centímetros por ano, o que
com o passar das eras faz uma grande diferença. Por volta de noventa e cinco
por cento de todos os terremotos acontecem perto de fronteiras de placas. Você
pode ver nos mapas.”
“Mas no Arkansas e, que estado é esse, Wy oming? E na Nova Inglaterra...?”
“E em Nova York e no Quebec e em todo o litoral leste e lá no meio do
oceano, bem longe de qualquer fronteira de placa? Nessa área aqui, isso está
relacionado em parte ao fato de que o Atlântico está se alargando, o que põe uma
pressão nas placas dos dois lados da estria central. A rocha da Nova Inglaterra é
muito antiga e tem uma história acidentada. Há falhas se abrindo em tudo quanto
é profundidade e em diferentes direções. Mas se você analisa os terremotos que
aconteceram aqui...”
Ela escarafunchou os papéis que estavam pousados entre dois consoles e
encontrou um mapa como aquele que Howard havia mostrado a Louis, com o
acréscimo de mais epicentros e quatro balões:
* “Eu entendo tudo... não vejo.../ impulsos destrutivos... não vejo.../ Parece tão
perfeito... não vejo.../ não vejo... não vejo... não vejo nenhum mal.” (N. T.)
** “Eu vou fazer loucuras com a pessoa que eu amo/ Não vejo mal nenhum/ Eu
vou fazer loucuras com as pessoas de um olho só/ Não vejo mal nenhum/
Destrua o futuro com a pessoa que você ama.” (N. T.)
*** “Adoro o som de vidro se quebrando/ Principalmente quando estou me
sentindo só./ Preciso dos ruídos da destruição./ Quando não há nada de novo.” (N.
T.)
6.
De acordo com o texto do boxe, o fato de Stites ter “previsto com sucesso” os
recentes terremotos havia atraído dezenas de novos seguidores para sua igreja,
que ainda continuava alojada no instável prédio de Chelsea. A igreja garantia não
ter sofrido “nenhum dano significativo” desde que se transferiu para lá, embora a
essa altura não haja praticamente nenhuma residência ao norte de Cambridge
que não tenha tido algumas louças quebradas ou paredes rachadas.
De fato, estimava-se que o valor acumulado dos danos à propriedade já havia
atingido a marca dos cem milhões de dólares, dos quais mais de oitenta por cento
se deviam ao mais recente par de terremotos perto de Peabody. Numa folha de
papel que trazia o título culpa deles, Louis escreveu:
A anglicização de Howard Chun começou quando ele tinha nove anos e sua
família o matriculou na Queen Victoria Academy, um posto avançado da Igreja
Anglicana num subúrbio de Taipei, onde as letras do alfabeto inglês, cada qual
segurando pela mão sua filha minúscula, desfilavam ao redor da sala de aula da
terceira série entre os quadros-negros e os retratos em cores de Jesus, e onde as
aulas de chinês eram eletivas nas séries mais adiantadas. Pelo certo, Howard
deveria ter se tornado o Henry de sua turma, já que seu prenome era Hsing-hai,
mas aconteceu que também havia na turma um menino chamado Ho-kwang,
cujos pais tinham sido mais eficientes do que a mãe de Howard na tarefa de pré-
programar o filho para reivindicar os direitos que lhe cabiam em troca dos trinta
mil dólares taiwaneses que um ano de estudos na escola primária da Queen
Victoria Academy então custava. Ho-kwang se apoderou de Henry quando os
nomes ingleses estavam sendo distribuídos, e Hsing-hai, piscando os olhos para
afugentar as lágrimas enquanto olhava com raiva para o mesquinho Henry,
nascido Ho-kwang, recebeu o menos agradável e menos régio Howard, a
usurpação sofrida por ele oficializada e selada pela Igreja da Inglaterra antes
mesmo que ele tivesse tido a chance de entender o que estava acontecendo.
A mãe de Howard era atriz de cinema. Tivera uma daquelas vidas fascinantes
geradas pela união de guerra e dinheiro. Não tinha nenhum grande talento
dramático, mas, quando jovem, havia feito certo furor no cinema burguês de
Pequim, principalmente no papel-título de A garota da árvore, um filme bastante
esquecível, salvo por uma sequência imortal em que a tal garota da árvore é
perseguida por um comerciante de tapetes com objetivos imorais durante a
grande enchente de Wuhan, ocorrida em 1931; onze estupendos minutos daquela
beldade casta correndo, trôpega, por águas cada vez mais fundas e sujas e
lugares cada vez mais ameaçadores, segurando junto ao pescoço sua blusa
rasgada, seus olhos redondos irradiando um terror e uma angústia incessantes no
decorrer de todos os quinze mil fotogramas. Em meados da década de quarenta,
a srta. Chun e um diretor com idade para ser seu pai viveram um exílio elegante
em Singapura e dilapidaram o considerável pé-de-meia que ela havia juntado, o
que a forçou a voltar com os três filhos pequenos para perto de seus parentes em
Taipei assim que os nacionalistas voltaram à indústria do cinema. Por algum
tempo, foi bastante requisitada por diretores de elenco que precisavam de uma
“irmã mais velha não tão bonita” e, posteriormente, passou muitos anos
lucrativos fazendo o papel de uma madrasta má numa novela chamada Reféns
do amor. Pelo menos uma vez em cada capítulo, a câmera a focalizava
arreganhando os dentes e revirando os olhos, para lembrar aos espectadores que
ela era perversa e maquiavélica. Na vida real, ela era vaga, afável e egoísta, e
vivia basicamente para comer doces. Quando voltava da Queen Victoria
Academy para casa em dias em que ela não estava gravando, Howard a
encontrava sentada na cama, mastigando em câmera lenta um pedaço de fruta
cristalizada, franzindo o cenho como se o sabor da fruta fosse uma mensagem
que estivesse chegando a sua cabeça via telégrafo e ela tivesse de se esforçar
para conseguir captar cada palavra.
Howard era seu quinto filho, o caçula, e o único que ela tivera com um
homem acerca do qual ninguém na família, incluindo ela, conseguia oferecer
um relato satisfatório. Ela dizia por alto que o homem tinha sido um herói de
guerra, “um espírito nobre que comandava tropas na batalha pela liberdade”,
muito embora quando Howard ouviu essa história os nacionalistas já estivessem
fora de combate fazia uns vinte anos. De vez em quando, ele tentava imaginar
seu pai lá em cima, em alguma parte do céu, um marechal nas nuvens tropicais
de quilômetros de espessura acima do mar Amarelo, numa altitude em que as
hostilidades ainda não haviam cessado, mas a imagem era ridícula e ele se
forçava a pensar em outras coisas.
As tias e tias-avós de Howard eram um bando filosófico, disposto a fechar os
olhos aos lapsos morais da vida pessoal da mãe dele pelo bem da renda que ela
proporcionava à família. Elas se juntavam para cochichar nos corredores,
administrando o orçamento; nunca dava para saber ao certo na bolsa de brim de
quem a caderneta das economias dela se encontrava. Howard preferia o
realismo das tias aos devaneios da mãe e, consequentemente, cresceu se sentindo
mais como um hóspede paparicado do que como uma criança. Nunca adolesceu
de verdade. Depois que sua mãe morreu, ele adotou um comportamento
relaxado e confiado com as matriarcas da família, fazendo companhia a elas na
cozinha como um homem de meia-idade desempregado, o tipo de amigo da
família ou parente distante que aparece para filar o jantar todas as noites durante
um ano, depois some e nunca mais dá notícias. No cômputo geral, embora fosse
a criança mais inteligente da casa e nenhuma despesa razoável fosse poupada
em sua educação, Howard desperdiçava uma quantidade boçal de tempo; e
sempre que alguma tia discorria sobre o futuro brilhante que o aguardava, ele lhe
dirigia um estranho olhar de soslaio, como se esse Hsing-hai de quem ela estava
falando fosse um patético constructo imaginário que só ele, Howard, tinha o
privilégio de saber que não tinha a menor intenção de habitar o futuro que ela
previa.
Um dia ele anunciou que pretendia estudar numa universidade americana. Seu
meio-irmão mais velho era capitão da Força Aérea Nacionalista e poderia ter
aberto portas para ele lá, mas Howard não via nenhuma razão para doar três
anos de sua vida às Forças Armadas se isso pudesse ser evitado. Ele tinha pernas
compridas e, quando pensava em voos tripulados, as imagens que lhe vinham à
cabeça eram de garrafinhas de uísque de uma dose só, de mexedores de bebida
em formato de hélice e de espaçosos assentos de primeira classe.
Por questões legais, o pacifismo de Howard exigia que, ao sair de Taipei aos
dezoito anos de idade, ele não voltasse por pelo menos dezessete anos. Qualquer
arrependimento que ele pudesse sentir em relação a sua decisão não sobreviveu
a sua primeira viagem de ônibus na América. Uma espiada em garotas com
botas de caubói, uma olhadela para uma colina salpicada de outdoors e uma boa
examinada na rodovia U.S. 36 ao norte de Denver — com suas lanchonetes
Denny ’s, Arby ’s e Wendy ’s, seus carros de homem alto nas pistas de gente
grande — foram suficientes para que ele se tranquilizasse: Aquele era o lugar
para ele. Reclinou-se em seu banco até o ângulo máximo permitido e cochilou
até o ônibus chegar a Boulder.
Ninguém poderia amar mais a vida na América do que Howard Chun. Um
mês depois de chegar aos Estados Unidos, ele já tinha um MasterCard; um
semestre depois, tinha um carro. Aonde quer que fosse, em seu primeiro ano de
faculdade, os Bee Gees estavam no ar, e ele foi um dos primeiros a pegar a
febre e um dos últimos a debelá-la. Adorava dizer “disco music”. E adorava
dançar esse tipo de música. Adorava ficar congelado na luz estroboscópica e
esticar o braço com o punho cerrado. Com relação a arranjar garotas, ele até
que se saía relativamente bem; com certeza não era seletivo a ponto de ter de se
conformar com muita frequência a passar sem elas. Gostava de fast food não
porque era fast, mas porque tinha um gosto bom. Diversos governos financiaram
seus estudos, e o de que mais precisava para manter suas contas correntes em
boas condições chegava até ele via golpes de sorte, que geralmente tomavam a
forma de uma transação de exportação, importação ou revenda, já que ele vivia
viajando e sempre havia amigos ou parentes dispostos a pagar um ágio sobre o
valor de produtos portáteis. Levava regularmente para o correio uma braçada de
discos e fitas cassete recém-lançados, no valor de trezentos dólares, escrevia
“discos, fitas” na declaração alfandegária e seis meses depois recebia um
cheque administrativo no valor de seiscentos dólares americanos enviado por um
primo mais velho de Taipei. No que dizia respeito a sua vida noturna, esses
cheques eram uma tremenda mão na roda. Isso que ele fazia talvez fosse meio
ilegal, mas, como nunca foi pego, ele nunca soube ao certo.
No todo, ele estava se divertindo tanto no Colorado que foram necessários
cinco anos e constantes ameaças da Secretaria de Auxílio Financeiro para que
ele concluísse seu bacharelado. No entanto, assim como suas dívidas financeiras
nunca o impediram de dividir pizzas, pagar cervejas e oferecer caronas, seus
percalços acadêmicos também nunca atrapalharam de forma alguma a
generosa ajuda acadêmica que ele costumava oferecer a alunos mais jovens
(principalmente a alunas mais jovens e louras) e seu papel como uma das peças
centrais da vida social do departamento de geologia. No segundo semestre de seu
quarto ano na universidade, ele teve a boa sorte de quebrar ambas as pernas
numa pista de esqui. A monografia que ele escreveu enquanto esteve de molho
foi boa o bastante para permitir que ele ganhasse uma bolsa de pós-graduação de
Harvard.
Em Harvard, ele decidiu se proteger academicamente dominando os
meandros do computador do departamento. Dessa forma, a máquina podia fazer
o trabalho por ele e ele só tinha de dar uma passada no laboratório uma vez por
dia, antes de ir jogar squash ou depois de pegar um cineminha na Harvard
Square, para apanhar o trabalho concluído e dar novas instruções ao computador.
Ser um perito em computação permitia que ele matasse uma aula ou seminário
de vez em quando e discutisse os textos dos cursos com seus professores em
horários que não afetassem seu sono nem sua programação social. O único
professor que se opôs a esse modus operandi foi o orientador dele, que, no
segundo semestre do terceiro ano de Howard em Cambridge, elevou a voz a
novas alturas e disse que achava improvável que Howard passasse no exame de
qualificação. Demonstrando grande falta de tato, o professor também
conjecturou em voz alta como era possível que Howard tivesse conseguido
avançar muito menos em três anos de trabalho do que Renée Seitchek, por
exemplo, em dois. Renée Seitchek havia passado sem esforço em seu próprio
exame de qualificação e estava expandindo sua dissertação de mestrado para
transformá-la numa tese de doutorado.
Embora estivesse oficialmente um ano atrás dele, Seitchek era da mesma
idade que Howard ou um pouco mais velha. Ao contrário dele, ela costumava
trabalhar o verão inteiro e só ia a um congresso por ano. Quando cientistas de
outras instituições telefonavam para o laboratório, eles pediam para falar com
ela mesmo quando as perguntas que tinham a fazer diziam respeito à área de
Howard. Ela ia a festas e jantares oferecidos por professores e outros alunos; só
não ia às festas e aos jantares que Howard dava. No primeiro ano dela em
Harvard, ele a tinha convidado várias vezes para jogar squash ou almoçar ou
jantar com ele, e ela sempre recusava de um jeito tão educado e sorridente que
ele tinha levado um semestre inteiro para captar a mensagem.
Sempre que passava no laboratório para checar seu trabalho (coisa que fazia
em pé, debruçado sobre um teclado, sem tirar o casaco nem desenrolar o
cachecol do pescoço), Howard via Seitchek trabalhando implacavelmente em
seus projetos, os músculos de seus braços perdendo o tônus juvenil mês após
mês, fios brancos surgindo em seu cabelo, a pele adquirindo o tom acinzentado
das lâmpadas fluorescentes, enquanto ele, que jogava squash todo dia e tirava
férias com frequência, continuava em forma e corado. Foi Seitchek quem notou
que os programas de Howard estavam consumindo tempo demais da cpu e
assoberbando o processador vetorial todas as manhãs (enquanto Howard
dormia). Ela levantou a voz e assumiu o mesmo tom de “Howard, você já foi
avisado várias e várias e várias vezes” que o orientador dele tinha assumido.
Quando a renovação do financiamento para sua pesquisa não saiu, Howard teve
de abandonar seu trabalho sobre strong motion, embora todo mundo concordasse
que suas inversões de registros de aceleração poderiam ter vindo a mostrar
resultados interessantes um dia, se Howard tivesse seu próprio supercomputador
particular. Ele foi obrigado a sair desesperado à cata de um novo projeto,
enquanto Seitchek chegava cada vez mais perto de concluir seu doutorado.
Até que, um verão — o verão antes de os terremotos locais começarem —,
todo mundo começou a deixar de gostar dela. Talvez tenha sido porque o último
de seus amigos mais antigos saiu do departamento, ou talvez porque seu novo
orientador de tese, o diretor do departamento, saiu de licença por um ano, mas o
fato é que em questão de semanas ela conseguiu se indispor com praticamente
todos os alunos e pós-doutorandos que restavam. Terry Snall dizia ter entreouvido
Seitchek usar uma palavra ofensiva em referência ao jeito dele; segundo boatos,
a palavra era “afrescalhado”. Uma manhã, usuários do computador descobriram
que valiosos documentos seus tinham sido jogados no lixo tão somente por se
encontrarem nas pilhas de quase meio metro de papéis acumulados que
engolfavam os consoles nas salas do sistema. Pouco depois, houve um arranca-
rabo quando alguns alunos descobriram que Seitchek estava reduzindo a
prioridade dos trabalhos deles para que seus próprios programas rodassem mais
rápido, enquanto os deles marcavam passo. Ela fez uma moça chorar e deixou
um petrólogo imaturo tão irado que ele jogou um cesto de lixo no telefone e
quebrou uma luminária de mesa. Quando Terry Snall tomou as dores do
petrólogo, Seitchek ficou furiosa. Disse que setenta por cento das verbas que
bancavam o computador vinham dos financiamentos concedidos ao orientador
dela. Disse que fazia três anos que ela vinha cuidando pessoalmente de mais da
metade da manutenção diária do sistema e que, se alguém queria discutir com
ela, essa pessoa deveria antes ligar para o diretor do departamento na Califórnia
para ver na opinião de quem ele confiava e para perguntar o que ele achava, se
ele achava que ela não tinha o direito de reduzir as prioridades, se ele achava que
o petrólogo que não contribuía em nada para o sistema nem para a conservação
dele tinha qualquer direito que fosse ali. Howard entrou no laboratório para
checar seus programas no exato momento em que Seitchek estava saindo,
colérica, corredor afora. Encontrou Snall incitando o petrólogo a reduzir a
prioridade de Seitchek, agora que ela já não estava mais na sala.
A vez de Howard chegou alguns dias depois, quando ele estava prestes a pegar
um avião para Londres para ir ao casamento de um primo e depois passar uma
semana de férias na Irlanda. Ele tinha passado no laboratório para pôr algumas
centenas de tarefas de lote de vinte minutos para rodar enquanto ele estivesse
fora e para pegar suas mensagens. Sem ter realmente a menor intenção de fazer
isso, ele havia se envolvido com uma engenheira americana de ascendência
chinesa chamada Sally Go, que parecia acreditar que ele tinha lhe prometido
alguma coisa e caía em prantos sempre que ele tentava descobrir o quê. Ele tinha
quase certeza de que ela achava que ele havia prometido se casar com ela na
primavera seguinte, mas como ela se recusava a dizer o que ele prometera,
insistindo em vez disso em chorar e repetir “Você sabe o que me prometeu”, ele
por sua vez se sentia justificado em perguntar “O quê? O quê? O que foi que eu
prometi? O quê?”. Na ocasião, fazia umas três semanas e meia que ele vinha
conseguindo não se encontrar com Sally, e as mensagens diárias que ela deixava
na mesa dele tinham começado a tratar de temas como “covardia”,
“cachorrada” e “desgraça”. Ele estava lendo a última mensagem deixada por
ela, o nariz franzido de desagrado, quando ouviu do corredor Seitchek falando
dentro da sala de computação.
“Qualquer um imaginaria que, depois de dez anos, ele já teria tido tempo de
sobra pra aprender a fazer o som do r”, ela estava dizendo. “Eu vou ter um troço
se tiver que ouvir mais uma vez ele dizer ‘poglama de computô’. Poglama de
computô. Poglama de computô.” A voz dela era atrevida e ressoava maldade.
“Eu vou esclevê um poglama de computô pá calcurá os mínimos quadlados.”
Os olhos de Howard se encheram d’água. Ele se abalou de sua sala piscando os
olhos violentamente, franzindo as sobrancelhas e sacudindo a cabeça como que
para se livrar de uma alucinação inconveniente. Mas não era alucinação, e ele
sabia. Seus mais de dez anos de Estados Unidos pouco tinham feito para corrigir a
mutilação que suas habilidades linguísticas haviam sofrido na Queen Victoria
Academy. A professora de inglês das séries mais adiantadas, sra. Hennahant,
ensinava fonética fiando-se no princípio de que ela era contagiosa, e era
curiosamente surda à imunidade que seus alunos demonstravam. Dia após dia ela
repetia frases como “Hilary toca clarinete”, e depois balançava judiciosamente a
cabeça no ritmo da voz dos alunos, enquanto eles diziam, um de cada vez, algo
como “Hiry toca crarenete”. Depois que todos já tinham falado, ela balançava a
cabeça de novo, andava empertigada pela sala e tentava mais uma vez martelar
o prego irremediavelmente torto na cabeça deles: “Hilary toca clarinete. Hilary
toca clarinete. O canal—alimentar. O canal—alimentar. Henry ?”.
Ao voltar de Londres dez dias depois, Howard só teve tempo para dar uma
rápida passada no laboratório antes de pegar um avião para San Francisco, onde
um outro primo ia se casar. Tirou pilhas e pilhas de papel impresso da cesta da
impressora de linha e da bancada ao lado dela. A ciência tinha ficado cinquenta
quilos mais rica enquanto ele estivera passeando por Dublin e pelo condado de
Cork, e ele adicionou mais uma centena de tarefas ao arquivo de lote para
garantir que sua temporada na Califórnia fosse igualmente produtiva.
Seitchek estava sentada na sala deles, com os pés apoiados em cima de uma
mala. Ele lhe perguntou se alguém tinha telefonado para ele. O “não” dela não o
abateu. Às vezes ela respondia não e depois, quando já tinha se resignado com o
fato de ter sido interrompida, mudava de ideia e desfiava vários recados
telefônicos interessantes.
“O Edward está te procurando”, ela disse por fim. “Ele soube que você tinha
voltado de Londres.”
Edward era o nome do orientador ultrarrigoroso de Howard.
“Ah, sei”, disse ele. O bilhete que estava no alto da pilha de Sally em cima da
mesa dele dizia: esquece!!
“Ele quer te ver na segunda-feira”, disse Seitchek. “De manhã cedo. Parece
que surgiu alguma informação nova sobre o Alan Grubb, acho.”
Howard abriu um sorriso radiante. “Na segunda eu não posso. Estou indo pra
San Francisco.” Apontou com o queixo para a mala de Seitchek. “E você?”
“Los Angeles”, disse ela. “Ou melhor, Condado de Orange. Estou indo ver os
meus pais e as minhas... sobrinhas. De três em três anos eu faço uma visitinha a
eles.”
“Ah, sei.” Ele teve a desagradável desconfiança de que isso significava que
Seitchek havia concluído a tese dela enquanto ele estava na Irlanda. “Três anos é
muito tempo”, murmurou, tentando ser educado.
“Nem tanto.”
“Quer uma carona até o aeroporto?”
“Não, obrigada.”
“Quer uma carona até a Square?”
“Você quer muito que eu ande no seu carro, não?”
Ele deu de ombros. “Eu estou parado em fila dupla.”
Na Califórnia, grandes lesões de um fogo laranja e oleoso estavam devorando
as matas de Eureka até as montanhas de San Gabriel. Até na cidade o ar cheirava
a casas queimadas. Pela primeira vez em muito, muito tempo, Howard se
arrependeu de ter viajado. Nem o casamento, no sábado à tarde, nem o banquete
mais tarde em Chinatown se comparavam às festividades nupciais de Londres.
Para começar, porque a idade média dos convidados não chegava a doze anos.
Howard usava um terno risca de giz largo e comprido, estilo anos quarenta, e
dock-sides, sem meias; era a pessoa mais alta ali presente. Como seus parentes
mais importantes já o haviam encurralado em Londres para saber das novidades
de sua brilhante carreira, ele passou um bom tempo sozinho, tomando cerveja
em lata e exibindo no rosto uma expressão de dignidade e de leve desconforto
enquanto olhava para as cabeças murchas de tias-bisavós e para os penteados
sofisticados das pré-adolescentes. Estava ficando de saco cheio de casamentos.
No domingo de manhã, pegou seu carro alugado e seguiu para leste, rumo às
colinas, onde planejava acampar e fazer uma inspeção informal de escarpas de
falha. Na região onde ele estava entrando, o céu estava tomado de uma névoa
cor de bromo, e logo ele começou a passar por bombeiros pretos de fuligem, que
tinham se jogado no banco de terra à beira da estrada e estavam dormindo.
Pouco depois, ele se viu cercado de fogo de todos os lados. Mudando de ideia,
tomou o caminho da costa de novo, perguntando-se se não haveria chegado a
hora de enfrentar Alan Grubb. Grubb era um aluno da Scripps Institution, em San
Diego, cuja tese, segundo diziam, era idêntica à de Howard em conteúdo e
estava dois anos mais adiantada que a dele. Howard já tinha sido avisado várias e
várias e várias vezes, por Edward, Seitchek e outros que volta e meia assumiam o
papel de sua consciência, que ele devia telefonar para Grubb ou tentar se
encontrar com ele em algum congresso, mas até agora Howard só havia feito
ignorar suas sugestões.
Num supermercado ao norte de Santa Barbara, ele comprou um pacote de três
fitas de música de discoteca latina e, por volta de meia-noite, estava dormindo no
banco do carro numa rua transversal do centro de San Diego. Às nove da manhã
seguinte, tomou o rumo da Scripps Institution. O lugar estava morto ao sol do Dia
do Trabalho. Um vigia lhe indicou um laboratório onde, de uma janela de frente
para a praia, um sorumbático pós-doutorando lhe disse que Allan Grubb estava
na Itália e só ia voltar no dia 23 de setembro. A moral da história era tão óbvia
que poderia estar estampada num letreiro oficial na entrada do laboratório: vale a
pena telefonar antes.
Mais tarde, depois de uma produtiva sessão de bronzeamento, Howard se
convidou para visitar alguns amigos de sua meia-irmã mais velha, que morava
ali perto, em Linda Vista. Lá, traçou um churrasco bem decente. À medida que a
tarde avançava, ele afundava em sua cadeira de plástico e observava as
migrações, laboriosas como as de placas tectônicas, dos blocos de gelo com que
seus anfitriões esfriavam a água da piscina, seu rosto quase roxo por causa dos
martínis que haviam lhe dado, seu ânimo esmorecendo diante da ideia de passar
mais um minuto que fosse dentro de um carro alugado, de entrar em mais um
Wendy ’s ou de acrescentar mais uma milha ao seu programa de milhagem.
Sementes queimadas de gergelim caíam dos queixos dos filhos dos anfitriões.
Agora, quando conversava sobre amenidades em mandarim, sua própria voz
soava birrenta e ranheta ao seu ouvido americanizado. Poglama de computô,
poglama de computô. Ele pediu para usar o telefone e seus anfitriões o
conduziram até o aparelho, insistindo para que ele se sentisse à vontade para ficar
em Linda Vista por quanto tempo quisesse; eles esperavam (na verdade,
planejavam) levá-lo para pescar em mar aberto e para o Sea World.
A operadora do serviço de auxílio à lista telefônica só encontrou um Seitchek
listado em Newport Beach. Assim que ouviu a voz dela, Howard começou a
sacudir a cabeça, arrependido. Seitchek, porém, parecia contente por ele tê-la
procurado. Ela perguntou como ele estava.
“Tá tudo bem”, disse ele. “Vi uns amigos — tenho uns amigos em Los Angeles
—, aluguei um carro, tá tudo bem. Estão sendo boas férias.”
“Você vai vir aqui me visitar?”
O tom de convite na voz dela era tão carinhoso que ele ficou meio ressabiado.
Investiu contra as cortinas da janela que dava para a rua e viu um carro
passando. Era só um carro comum, sem nenhuma relação com ele.
“Não, sério”, disse Seitchek. “Você ligou por que queria combinar alguma
coisa?”
“Claro, por que não?”, disse Howard, como se a ideia tivesse partido
inteiramente dela.
O céu que pairava sobre Newport Beach, na tarde seguinte, era de um branco
brutal, e sua simples visão, pela janela ampla do quarto de Seitchek, negava o
efeito do ar-condicionado e trazia para dentro do quarto o torpor das palmeiras
jovens e altas em frente à janela, o fogo branco nos telhados de terracota além
das palmeiras e a monotonia ofuscante das praias ao longe. As paredes do quarto
estavam nuas salvo por um pôster do Magic Johnson fazendo uma enterrada e
uma grande pintura acrílica de uma paisagem marítima em cores brandas de
estofado. A porta do closet estava aberta e dos dois lados dela havia sacos de lixo
grandes e pilhas de caixas de papelão amarelas da empresa de mudanças
May flower.
Do corredor, Howard deu uma discreta examinada no quarto, inclinando-se
para dentro dele como se houvesse uma corda de veludo no vão da porta. Seu
pescoço estava cheio de pequenos cortes e áreas de irritação, cuja vermelhidão
cumulativa lhe dava um ar imaturo, mal-humorado e culpado. Antes de sair de
San Diego, ele havia se barbeado impiedosamente, o convite cordial de Seitchek
o tendo levado a crer que ela fosse apresentá-lo à família e talvez convidá-lo
para um almoço servido à mesa. Quando ele chegou, porém, a casa estava vazia
e Seitchek não lhe ofereceu sequer um copo d’água. Ela subiu a escada que,
quando ainda estava do lado de fora, ele a ouvira descer e deixou que ele a
acompanhasse. Parecia não estar reconhecendo de verdade nenhuma das coisas
em que seus olhos pousavam, incluindo Howard. Tinha a aparência de uma
criança abandonada, o rosto encovado e pálido como o de uma pessoa muito
gripada.
“Você está se sentindo bem?”, ele perguntou.
Ela não respondeu. Em cima de uma mesa perto da janela, havia um frasco
de xampu Nexxus e cerca de uma dúzia de bibelôs de porcelana. Ela empurrou
os bibelôs até que eles ficassem alinhados com a parede.
“Eu fiquei espantada quando você ligou”, ela disse de repente, de costas para
ele. “Fiquei espantada porque estava deitada aqui no chão”, apontou com o
queixo para um espaço entre uma cama de solteiro e uma parede, “fazia umas
cinco horas, me perguntando o que poderia fazer com que eu viesse a me
levantar de novo algum dia na vida, e obviamente a resposta foi: minha mãe
batendo na porta e dizendo que tinha alguém no telefone querendo falar comigo.
Fiquei espantada quando ela me disse quem era.”
Ela empurrou os bibelôs de novo, certificando-se de que não havia como
deixá-los mais retos do que já estavam. Virou-se para Howard e perguntou num
tom neutro: “Você foi até a Scripps? Falou com o Alan Grubb?”.
“Fui, mas ele não estava lá. Vocês têm um banheiro?”
“Um banheiro? Se nós temos um banheiro?” Ela esperou que ele saísse do
quarto.
No espelho do banheiro, Howard puxou sua camisa para baixo, tentando
desamassá-la, e tirou parte do sangue seco de seu pescoço. Olhou pela janela e
examinou a piscina. Quando ele voltou para o quarto, Seitchek estava ajoelhada
perto do closet, passando livros de uma caixa de papelão cheia para outra menos
cheia. Um chiclete que já tinha sido verde estava alojado na sola de seu tênis
esquerdo. Entre o cós de sua calça jeans e a pele branca da parte inferior de suas
costas havia espaço suficiente para enfiar um braço. “Eu parei o meu carro na
sua entrada, tudo bem?”, Howard perguntou.
“Claro.” Ela ergueu rapidamente os olhos dos livros. “Você pode botar o seu
calo onde quiser.”
Botar o calo dele? Botar o calo dele? Ela tinha dito aquilo tão casualmente, mas
mesmo assim... Howard se sentou na cama e deu pancadinhas no colchão, até as
pancadinhas se tornarem estilizadas e irrelevantes. “Você quer sair? Comer
alguma coisa?”
“Não”, disse ela. “Você quer?”
“Talvez. Talvez comer fish and chips. Eu vi uma lanchonete de fish and chips
aqui perto. Você quer ir lá?”
Ignorando-o, ela continuou jogando livros dentro da caixa, A Separate Peace,
Franny e Zooey, Zen e a arte da manutenção de motocicletas, The Women’s
Room, O jogo das contas de vidro, The Sot-Weed Factor , uma pilha de livros de
Kurt Vonnegut, alguns de Frank Herbert e de Robert Heinlein, Watership Down ,
Medo de voar, The Sunlight Dialogues, uma caixa com uma coleção de Tolkien,
mais livros de Salinger, alguns de P. D. James, The Bell Jar, 1984. Ela endireitou
as costas e disse:
“A minha mãe saiu especialmente para comprar frios, pães e cerveja
Heineken preta, antes de ir jogar golfe. Eu disse a ela que você vinha aqui.”
Debruçando-se sobre as caixas de novo, ela folheou The Bell Jar rapidamente
e depois o botou de volta na caixa dos descartados. Um livro de D. T. Suzuki, The
World According to Garp e Ragtime foram para a caixa em seguida. Ela se virou
para Howard. “Quer uns livros?” Com um vigoroso empurrão, ela deslizou a
caixa pelo tapete.
Howard selecionou dois livros de Heinlein. “Posso pegar esses?”
“Pode pegar tudo o que você quiser. Sério. Eu vou me desfazer de todos eles.
Que tal alguns sapatos? Você tem irmãs mais novas?” Ela levantou um par de
sandálias-plataforma com salto de cortiça, um par de Earth Shoes, um par de
tamancos com margaridas gravadas no couro marrom, um par de botas brancas
de cano alto tamanho infantil. Desdobrou uma calça boca de sino de poliéster,
cujo tecido tinha um enorme padrão quadriculado em verde e branco. “As
pessoas esperam que eu me sinta bem comigo mesma, sabendo que houve uma
época em que eu era vista em público usando isso?” Ela escarafunchou outra
caixa. “O meu paletó Nehru. Alguém se interessa por paletós Nehru hoje em dia
em Taiwan?” Ela enfiou o paletó num saco de lixo.
“Frios”, disse Howard, dando uma indireta.
“É. Carne de porco, carne de vaca. Meu tipo preferido de comida.”
Ele fez um barulho de aprovação, mas estava claro que ela não estava levando
aquela ideia de almoço a sério. Ela afastou o cabelo dos olhos e abriu uma nova
caixa. “Quer ver a minha turma de primeira série?”, perguntou, entregando a ele
uma folha de papel fotográfico com várias fotos. “Aqui, você quer isso? Você
quer umas quinhentas fotos minhas?” Ela deslizou a caixa inteira na direção dele.
Enquanto ele espiava dentro da caixa, levantando os cantos de algumas
fotografias, ela desencavou outros tesouros — uma faixa de feltro do Peanuts
declarando que a felicidade é um cãozinho quentinho; discos de Walter Carlos,
discos da Three Dog Night, discos de Cat Stevens, discos de Janis Ian, discos da
Moody Blues, discos de Paul Simon; pôsteres de Peter Max; um tabuleiro de The
Game of Life; coletâneas das tirinhas Doonesbury; uma almofada forrada com
um tecido que imitava pele de zebra; uma luminária feita com uma lata de 7up.
Ela desenrolou um pôster de corpo inteiro de Mark Spitz. “Eu ganhei isso”, disse.
“Ganhei na escola de dança. E o mais espantoso é que eu pendurei isso. Pendurei
na porta do meu armário e ele ficou olhando para mim um ano inteiro, com as
sete medalhas de ouro dele. Os olhos dele me seguiam.”
Howard estava tentando mostrar algum interesse pelo pôster quando ela deixou
que o pôster se enrolasse de novo e o enfiou bem no fundo de um saco de lixo.
Ela soltou um suspiro e se largou de qualquer jeito, olhando para o chão. “Eu não
tinha nada pra fazer com nenhuma dessas coisas quando vinha pra cá. A última
vez que vim aqui, eu passei uns dois dias vendo todas as fotos e folheando todos os
meus trabalhos e cadernos antigos. Cada um dos programas de shows de bandas
em que pus meu nome. Todos os prêmios de primeiro lugar que ganhei, todas as
cartas de aceitação que recebi, todos os testes que fiz e cada pequeno trabalho
que escrevi na vida. Mesmo que eu jogue tudo fora, é como se fosse um fardo
colossal de coisas comprometedoras, e como é que eu vou me livrar disso,
como?”
Os olhos dela pousaram numa apostila de capa azul-clara, de preparação para
exames de ingresso em universidades, que estava perto dos pés dela, no chão. Ela
enfiou a apostila no saco de lixo. “Os meus pais se mudaram pra cá no ano em
que eu entrei pra faculdade. Compraram uma boa casa de quatro quartos, com
um quarto pra cada um de nós, filhos, e um quarto grande pra eles. O meu é
também o quarto de hóspedes, não é ótimo? O décor? Tem tudo a ver comigo.
Mas essa é que é a questão: tem tudo a ver comigo. É isso que eu tento esquecer.”
Howard olhou para o pôster do Magic Johnson e para os bibelôs de porcelana.
Saltitou de leve sentado na cama. “Pra que você vem pra cá então, se não gosta
daqui?”
“Pra jogar coisas fora.”
Um lampejo fez os olhos dele cintilarem maldosamente. “Eu pensei que você
tinha vindo pra ver as suas sobrinhas.”
“Ah, sim, as minhas sobrinhas.” Ela lançou um sorriso de escárnio na direção
da porta aberta. “Você acredita que eu nunca tinha visto as minhas sobrinhas
antes? Nenhuma delas?”
“Claro.”
“Embora, da última vez em que estive aqui, eu tenha tido o prazer de ver uma
cunhada grávida. Como você pode ver, nós não estamos vivendo na pobreza.
Poderíamos perfeitamente ter bancado uma viagem minha pra cá. Obviamente,
fui eu que não quis vir.”
“Eu nunca vou pra casa”, disse Howard.
Isso a interessou. “Pra onde, pra Taiwan?”
“Não posso ir. Não quero ir.”
Ela sacudiu a cabeça, esquecendo-se dele de novo. “Eu começo pensando que
pode ser bom pra mim vir pra cá. Que eu posso vir pra casa, posso beber, posso
comer, posso dormir, posso ficar aqui e levar uma vida de rica como eles levam,
posso dirigir o bmw, conhecer os bebês da família e simplesmente ser desse jeito,
sabe, por uma semana. Começo até a ficar ansiosa pra vir. Me mato tentando
terminar a tese pra poder pegar o avião e vir pra cá, e é simplesmente uma
estupidez tão grande minha me botar nessa situação. Quando eu chego aqui, a
minha família inteira está na sala, os meus dois irmãos mais novos, as minhas
duas cunhadas, todas as minhas sobrinhas. Eu finalmente vim conhecer os bebês!
Estou vindo com muito atraso, mas ainda não é tarde demais. O suspense deve
ser insuportável pra mim. É impensável que eu possa não estar absolutamente
louca pra pegar as minhas sobrinhas no colo. E o simples fato de que é
impensável já é suficiente pra matar o meu interesse na mesma hora.”
Ela sorriu, vendo que Howard estava correndo os olhos pelas fotos dela. “O
negócio é que eu não consigo demonstrar interesse e prazer assim no abstrato. Eu
preciso falar com essas meninas. Preciso estabelecer uma relação com elas.
Com aquela menina de dois anos e meio e aquelas duas bebês que ainda não
falam uma palavra. Eu penso em dizer alguma coisa espirituosa, como se
estivesse falando com um cachorro ou sei lá com o quê, mas aí percebo que está
todo mundo prestando atenção em mim e então tento pensar em alguma coisa
carinhosa pra dizer, o que é pior ainda porque, sabe, é só uma criança, e o que é
que você pode dizer, o que é que você pode dizer...?”
Ela se calou e ficou olhando fixamente para a parede do fundo do closet.
Howard se inclinou para dar uma espiada lá dentro, quase acreditando que havia
alguém ali, ouvindo o que ela estava dizendo.
“Só o que eu ouço é a incrível estupidez e canhestrice das coisas que eu estou
dizendo. E as meninas sabem disso. A mais velha, pelo menos, definitivamente
sabe. Ela sabe que eu não sou uma daquelas mulheres que acham que não há
nada melhor no mundo do que ter uma filha como ela, e então é claro que ela
não gosta de mim, por que ela haveria de gostar? E aí há uma certa ceninha
porque ela se recusa a chegar perto de mim, e eu fico com ódio dela e ela com
ódio de mim, e a razão disso é que eu sou mais parecida com ela do que com
qualquer um daqueles quatro pais, e ela sabe disso.” Ela balançou a cabeça,
categórica. “Eu tenho quase trinta anos e sou mais parecida com ela do que com
eles. E uma coisa é você ter três anos e ser criança, mas ter a idade que eu tenho
e ainda ser tão travada... Ainda assim, eu poderia ter suportado a coisa toda se
eles todos não estivessem tão obviamente com pena de mim. Eles olham para
mim com uma cara de pena tão grande e ainda têm o desplante de me dizer que
eu não faço ideia de como é a vida de adulto, que eu não faço ideia da
trabalheira que é, não faço ideia do que é não ter tempo pra nada, nem pra ler o
jornal, porque eu não tenho filhos. Mas quando tiver filhos, eu vou entender. E o
que eu tenho vontade de dizer é: Que tal eu dizer pra vocês algumas das coisas
que vocês não sabem a respeito da vida e nunca vão saber? Mas aquelas
mulheres, é como se elas tivessem ficado a vida inteira esperando pela chance
de ignorar uma pessoa como eu e, agora que têm filhos, elas podem. Elas podem
ser completamente autocentradas e extremamente indelicadas comigo, porque
elas têm filhos. Depois que tem filhos, você pode virar uma pessoa de cabeça
fechada. E ninguém pode dizer que você não é adulta. E qualquer tipo de vida
que eu possa ter, qualquer tipo diferente de vida, qualquer tipo de vida que possa
causar inveja... isso obviamente não está dando certo, porque eu continuo sendo
essa adolescente incrivelmente constrangedora. Eu simplesmente não tenho
como competir com aqueles pais de vinte e quatro anos, com todo aquele
narcisismo e aquela respeitabilidade básica deles. Simplesmente não há como
competir.”
Ela ficou em silêncio, sacudindo a cabeça e olhando para dentro do closet.
Howard tinha começado a saltar na ponta dos pés com as mãos dentro dos bolsos
e os cotovelos abanando. Ergueu uma perna para se equilibrar e deu uma espiada
no corredor, como se tivesse ouvido algum barulho. Mas não tinha havido barulho
nenhum. Quando ele se virou, Seitchek estava olhando para ele.
“E é isso que eu vejo”, ela disse com amargura. “Na minha vida livre e
excitante na Costa Leste. É isso que eu vejo, quando olho por cima da tela do
computador. Essa é a grande alternativa.”
Ele saltou na ponta dos pés. “Acho que eu tenho que ir agora”, disse. “Ainda
tenho que ver umas pessoas, acho melhor eu ir.”
Ela lhe deu um sorriso terrível. “Mas e os seus flios? Você não quer os seus
flios? Não quer botar o seu calo na entlada?” Ela virou o rosto, enojada. “Está
vendo? Eu já nem me importo mais com o que digo. Nem ligo mais pra quem
está ouvindo.”
Howard continuava a saltitar, rodando e tombando para o lado como um pião
nos últimos estágios de suas revoluções, as vibrações de seu corpo expulsando
suas mãos de dentro dos bolsos. Na última volta que deu, parou perto de Seitchek.
Quando ela ergueu os olhos para ele, ele lhe deu um tapa com tanta força que ela
caiu para trás, apoiada sobre os cotovelos.
Eles se encararam. Houve um estranho e silencioso momento de descoberta.
Era como se a fase do dia tivesse mudado de repente. Então, o rosto de Seitchek
se contorceu e ela o cobriu com as mãos. “Ah, meu Deus. Ah, meu Deus, que
vergonha.”
Howard já estava se abaixando, suas mãos perto da cabeça dela. Passou a
mão na bochecha dela, tocou em suas orelhas, depois deu tapinhas nos ombros
dela com as duas mãos, não com remorso, mas com impaciência, como se
tivesse esbarrado numa mesa e estivesse levantando às pressas a porcaria dos
vasos que tinham caído. “Desculpa”, disse. “Desculpa, desculpa, desculpa.”
Ela golpeou o queixo dele com as unhas. “Sai de perto de mim! Sai de perto de
mim! Pega o seu calo e vai embola, vai. Sai de perto de mim.” Ela o enfrentou, e
ele teve de segurar seus pulsos e imobilizá-los cruelmente, enquanto ela lutava
tentando se soltar. Ela se debatia debaixo dele, arfando e rompendo no que ele
achou que fossem soluços, mas acabou revelando ser algo mais parecido com
uma gargalhada, porque as coisas não estavam de forma alguma no pé em que
ele achou que elas estivessem. Ela estava enterrando os dedos no cabelo dele.
Estava apertando o rosto dele contra o dela, e ele fechou os olhos com força, os
cílios curtos se entrecruzando como os pontos que servem de olhos para as
bonecas de pano, porque ainda não estava preparado para olhar para a pessoa
debaixo dele e acreditar na sorte que estava tendo de pegar uma garota como
aquela, numa casa como aquela, com quatro quartos enormes, uma piscina de
dez metros e um bar na sala de estar.
8.
Terremotos não são um homem que mata a esposa grávida. Não são a
proibição da segregação racial por decreto judicial. Não são os Kennedy. Por
algumas semanas, depois que as últimas equipes de repórteres de televisão
arrumaram as malas e foram embora de Boston, dava para sentir no ar a
decepção da cidade com a terra. Claro que ninguém estava ansioso para ser
pessoalmente esmagado por vigas em queda nem para ver seus bens pegarem
fogo, mas durante alguns dias, na primavera, a Natureza havia mexido com as
expectativas da cidade, e as pessoas haviam rapidamente adquirido apetites
velados por imagens televisionadas de corpos debaixo de folhas de polietileno,
pela sensação de montanha-russa de ser arremessado de um lado para o outro da
sala, por uma experiência californiana, por números de vulto. Cem mortos teria
sido algo realmente digno de nota. Mil mortos: histórico. Mas a terra havia
voltado atrás em suas promessas, recusando-se mudamente a reduzir edifícios a
impressionantes e fotogênicas pilhas de escombros; e a contagem de mortos
nunca chegou a sair do rés do chão. Apesar de todo o impacto que os números
tiveram nas vísceras locais, os trinta e sete ferimentos relacionados aos
terremotos poderiam ter sido causados por monótonos acidentes de carro, os cem
milhões de dólares de prejuízo em danos materiais por falta de manutenção e a
morte de Rita Kernaghan por um corriqueiro ataque cardíaco. Os abalos
jornalísticos se reduziram a uma ou duas matérias por semana. Repórteres locais
ainda continuavam vasculhando o condado de Essex à procura de vidas
arruinadas pelo desastre, mas, para seu desalento, não conseguiam encontrar
uma sequer. Proprietários de casas estavam consertando paredes e tetos.
Estruturas questionáveis estavam sendo inspecionadas e reabertas. Era tudo tão
moralmente neutro, tão sensato.
Felizmente para todos, os Red Sox iniciaram o mês de junho ganhando uma
série inteira contra os Yankees no Fenway Park e levando sete vitórias
consecutivas na mala ao viajar para enfrentar a divisão oeste da Liga
Americana. Ninguém em seu juízo perfeito acreditava que os Sox fossem de fato
conseguir se sagrar campeões de sua divisão, mas no momento não havia como
acusá-los de estar perdendo terreno, e o que o torcedor poderia fazer? Vaiar de
antemão? Mais para o fim do verão, haveria oportunidades de sobra para reviver
o velho ódio e a velha inveja — os corações dos bostonianos bateriam forte e
suas gargantas ficariam apertadas só de pensar nos campeões do beisebol, com
seus times de arremessadores soporiferamente eficientes, nos arrogantes
superbatedores com bochechas de neném que Deus inacreditavelmente permitia
que marcassem um home run atrás do outro e nos medonhos torcedores das
horas boas, euforia barata besuntada na cara como os fluidos de sexo e pêssegos,
que achavam que a essência do beisebol era isso, era vencer e vencer fácil —,
mas, enquanto a boa fase durasse, a cidade estava cheia de abastados idólatras
jubilosamente indiferentes aos desvalidos do mundo dos esportes. E, na ausência
de novos tremores, o medo da morte e do sofrimento físico havia se recolhido ao
seu devido lugar, bem lá no fundo da consciência das pessoas.
Isso não quer dizer, contudo, que o condado de Essex tivesse parado de
estremecer por completo. Sismógrafos portáteis instalados cooperativamente
pelo Boston College, pelo Serviço Geológico dos Estados Unidos e pela Weston
Geophy sical Corporation vinham registrando cerca de vinte tremores por dia nas
cercanias de Peabody e, vez por outra, um pontinho luminoso perto de Ipswich.
As magnitudes na escala Richter raramente ultrapassavam 3,0; no entanto, e
embora não houvesse qualquer consenso entre os cientistas em relação ao que
exatamente estava acontecendo, tais atividades vinham sendo, de modo geral,
consideradas réplicas dos terremotos de abril e maio. É verdade que réplicas de
terremotos moderados costumam se dissipar rapidamente, coisa que as réplicas
em Peabody não estavam fazendo, mas, em vista dos abalos premonitórios
estranhamente fortes que antecederam os eventos de 10 de maio, Larry Axelrod
e outros sismólogos levantaram a hipótese de que a ruptura de rocha sob
Peabody tinha sido, por alguma razão, “incompleta”. Como Axelrod explicou ao
Globe, quando uma galinha tem a cabeça totalmente decepada, seu corpo se
convulsiona por alguns instantes, mas logo para; já uma galinha com o pescoço
parcialmente cortado pode estrebuchar durante uma hora, ainda que de forma
cada vez mais fraca.
Praticamente ninguém da área de sismologia se arriscava a garantir com
absoluta certeza que Boston não seria mais atingida por movimentos fortes. A
única exceção era a Mass Geostudy, uma empresa de pesquisa privada
patrocinada pelo Corpo de Engenheiros do Exército e pela indústria de energia
nuclear. Ignorada em matérias jornalísticas, a Mass Geostudy enviou uma carta
irritada ao Globe e informou aos leitores que “a probabilidade de a grande Boston
vir a sofrer um terremoto tão intenso quanto os tremores de 10 de maio nos
próximos 85-120 anos é nula”. Muitos outros cientistas concordavam que a
liberação de tensão ocorrida em 10 de maio havia, de fato, diminuído o risco de
acontecerem grandes terremotos no futuro próximo, mas uma minoria
substancial, que incluía o respeitado Axelrod, continuava a advertir que “as coisas
só acabam quando terminam”. Essa minoria chamava a atenção para o padrão
atípico das réplicas e para indícios da existência de estruturas semelhantes a
falhas, bastante profundas, nos cerca de vinte quilômetros que separavam
Ipswich de Peabody. Embora não existissem razões para supor que viesse a se
dar uma ruptura ao longo de toda a extensão desses vinte quilômetros (o que seria
um terremoto de grandes proporções), também não era possível descartar o risco
de vir a ocorrer uma pequena ruptura.
A expressão do momento, aplicada a torto e a direito a todas as coisas
geofísicas no leste dos Estados Unidos, era “não bem compreendido”.
Em vez de gastar um bilhão de dólares para tornar Massachusetts tão resistente
a catástrofes quanto a Califórnia, os legisladores do estado optaram por alocar
um milhão de dólares para pesquisas sismológicas imediatas. (E até mesmo um
milhão parecia muito para um estado que enfrentava sérios problemas
orçamentários.) Boa parte do dinheiro foi para o Boston College, para financiar
um mapeamento sísmico completo do condado de Essex. Falhas expostas foram
inspecionadas em busca de indícios de deslocamentos recentes (nenhum foi
encontrado) e fontes sísmicas do tipo Vibroseis foram postas em operação.
Estudantes levavam um desses caminhões vibradores para locais selecionados e
instalavam ao redor uma malha de instrumentos de captação acústica chamados
geofones. Em momentos cuidadosamente cronometrados, o vibrador transmitia
pulsos para dentro da terra e, a partir das refrações, reflexões e dilatações
sofridas pelos pulsos no subsolo e registradas pelos geofones, estruturas profundas
podiam ser mapeadas de uma forma muito semelhante ao mapeamento de um
feto por ultrassom.
Resultados preliminares do mapeamento com vibradores revelavam que um
emaranhado de descontinuidades entrecruzava o condado de Essex e atingia
profundidades bem maiores do que se supunha antes. As incertezas cresceram
ainda mais quando sismólogos começaram a tentar correlacionar os hipocentros
dos terremotos às estruturas mapeadas. Os novos dados serviram de apoio a
vários modelos discordantes. E deram origem a novos modelos que contradiziam
não só uns aos outros, mas também todos os modelos anteriores.
No dia 7 de junho, um aluno do Boston College que estava instalando um
geofone num bosque de Topsfield encontrou o corpo nu de um adolescente de
Danvers que estava desaparecido fazia um mês, e os Red Sox conquistaram uma
vitória apertada contra os Seattle Mariners em dez innings.
O resto do dinheiro do estado estava sendo gasto com estudos de previsão de
terremotos a curto prazo, organizados por pesquisadores de diversos lugares,
inclusive da distante Califórnia. Um grupo instalou sensores no leito de rocha para
medir alterações ocorridas na condutividade elétrica. Outro estava monitorando
campos magnéticos e tentando captar ondas de rádio de frequência
extremamente baixa. Quatro grupos independentes estavam estudando
indicadores menos glamorosos, mas igualmente bem aceitos: alterações na
profundidade e na clareza da água de poços, vazamento de metano e outros gases
de buracos profundos, comportamentos estranhos em animais e sequências de
tremores semelhantes a abalos premonitórios.
Um pequeno escândalo eclodiu quando o Channel 4 descobriu que o estado
havia dado quinze mil dólares a um pós-doutorando do Michigan para que ele
importasse um aquário de bagres japoneses e os observasse num quarto de
motel, à meia-luz, nas cercanias de Salem. Alguns estudos haviam indicado que
essa espécie de bagre ficava agitada na véspera de terremotos, mas o pós-
doutorando do Michigan era tímido e não se saiu muito bem falando diante das
câmeras. A repórter do Channel 4, Penny Spanghorn, chamou o experimento de
“talvez o cúmulo da tapeação”.
De maneira geral, a mídia e o público acreditavam que os grupos de pesquisa
iam emitir alertas urgentes caso um grande terremoto parecesse ser iminente;
afinal, era para isso que eles tinham vindo para Boston. Já os grupos em si não
tinham nenhum plano nesse sentido. Eles eram cientistas e estavam ali para
colher dados e aprofundar o entendimento que tinham da Terra. Sabiam, de todo
modo, que o governador jamais tomaria a medida economicamente
desestabilizante de emitir um alerta geral, a menos que a maioria das previsões
concordasse que um grande tremor estava a caminho. No passado, jamais havia
acontecido de os métodos concordarem quanto à data, à intensidade e à
localização de grandes terremotos. Era por isso que os métodos ainda estavam
sendo testados. Quando os grupos davam esses esclarecimentos, no entanto, o
público tomava isso como modéstia e continuava a acreditar que de alguma
forma, caso um desastre assomasse no horizonte, um alerta seria emitido.
Tirando a história dos bagres, a cobertura midiática dos esforços de previsão
estava sendo entusiástica, e as instalações experimentais tornaram-se locais
muito procurados pela população jovem local. A notícia de que a água de dois
poços de Beverly ficara turva foi mais tarde desmentida, quando um adolescente
confessou ter jogado terra e cascalho dentro deles “de brincadeira”. Pouco
depois disso, um numeroso grupo de jovens de Somerville que haviam se
espremido dentro de um carro para fazer uma visita a uma das instalações foi
detido pela polícia de Salem quando “fazia vandalismo” num lugar ermo. Os
jovens tinham imaginado que seria divertido enganar um sismógrafo portátil
pulando no chão e simulando tremores, mas acabou que não foi tão divertido
quanto eles achavam que ia ser e, então, eles resolveram atacar o sismógrafo
com tacos de beisebol.
Na primeira semana de junho, todas as residências do leste de Massachusetts
receberam um folheto intitulado dicas de como proceder em caso de terremoto.
O folheto, que tinha sido impresso na Califórnia, era ilustrado com palmeiras e
casas em estilo colonial espanhol e recomendava que crianças se abrigassem
debaixo de suas carteiras na escola, que se evitasse chegar perto de cabos
elétricos caídos, que vazamentos de gás fossem imediatamente comunicados às
autoridades e que um estoque de alimentos enlatados e água mineral fosse
comprado com antecedência. Supermercados e magazines responderam com
display s especiais de “Kits de Sobrevivência para Terremotos”, e vendedores de
armas de toda a região diziam estar registrando um salto nas vendas.
Companhias de seguros haviam voltado a vender seguro contra terremoto,
embora admitissem abertamente que, com preços a partir de trinta dólares por
mil dólares de cobertura, quase ninguém estava comprando. Embusteiros que
vendiam seguros de porta em porta, no entanto, vinham faturando alto com falsas
políticas de descontos. As ações de empresas e bancos com grandes
investimentos de capital na área de Boston continuavam em baixa, assim como o
mercado de imóveis no condado de Essex e em áreas de terreno baixo mais ao
sul, incluindo Back Bay e boa parte de Cambridge. (Prédios construídos sobre
pântanos aterrados e outros tipos de aterro eram particularmente suscetíveis a
trepidações sísmicas.) Municípios ricos tinham receio de gerar um pânico
generalizado se promovessem simulações de evacuação; comunidades pobres
tinham outras preocupações; e, assim, nenhuma simulação era feita.
Num editorial da wsne, o reverendo Philip Stites observou num tom contido
que não acreditava que Deus já tivesse terminado de dar Seu recado ao estado de
Massachusetts e nem terminaria até que a última clínica de aborto do estado
tivesse fechado as portas. Em seguida, Stites condenou as bombas recentemente
detonadas em clínicas de Lowel, dizendo que cabia a Deus, e não ao homem,
impor castigos. Desde 8 de junho, cinquenta e oito membros da Igreja da Ação
em Cristo estavam mofando em celas de cadeia em Boston e Cambridge. Eles
haviam se recusado a pagar fiança depois de terem sido presos por bloquear as
entradas de diversas clínicas. Cartunistas e colunistas retratavam Stites como um
dândi rico que não estava disposto a sujar as mãos participando de ações que
pudessem levá-lo a ser preso junto com suas tropas. Zombavam da maneira
escancarada como ele cortejava políticos conservadores locais e detectavam
“um cheiro de hipocrisia” em tudo que ele fazia.
Do outro lado da cerca, uma coalizão de grupos partidários do direito de
escolha estava prometendo lotar o Boston Common com cem mil pessoas numa
manifestação marcada para 14 de julho. Uma das organizadoras havia escrito
para Renée, pedindo permissão para incluí-la numa lista de figuras públicas que
apoiavam a manifestação. Renée telefonou para a organizadora e perguntou:
“Por que você me quer na sua lista?”.
“Você é a geóloga. Você apareceu na televisão.”
“Muita gente aparece na televisão.”
“Você está dizendo que não quer ser incluída na lista?”
“Não, não, tudo bem. Pode me incluir.”
“Está bem, então.” A voz da organizadora soou meio irritada. “Nós vamos pôr
o seu nome na lista.”
Durante três semestres, ela tinha dividido seu apartamento com uma sismóloga
chamada Claudia Guarducci, uma romana magra, ranzinza, entediada e muito
inteligente que estava fazendo pós-doutorado em Harvard. Elas cozinhavam
juntas, iam ao cinema juntas, malhavam colegas juntas, aceitavam ou
recusavam convites para jantares juntas. Claudia comprou uma motocicleta e
dava carona para Renée até o trabalho. Elas nunca partilhavam segredos.
Quando Claudia voltou para a Itália, elas mantiveram contato através de
cartões-postais lacônicos. Sentindo falta do cheiro dos Merit Ultra Lights de
Claudia, Renée fazia questão de ficar perto de fumantes. Indagou a respeito de
pós-doutorados em Roma, pensando que, se fosse para lá, ela poderia telefonar
para Claudia e mencionar, apenas mencionar, seu atual paradeiro. O futuro que
ela queria iria começar de verdade se ela pudesse morar na Itália e ser a melhor
amiga de uma mulher romana.
Olhando para trás, ela tinha a sensação de que não havia feito outra coisa na
vida senão lançar as bases para futuras torres de vergonha e de ódio a si mesma.
Algum lado crédulo e autônomo seu teimava em construir sonhos chinfrins de
garota do Meio-Oeste: noites europeias na companhia de Claudia Guarducci;
cenas de tranquilidade doméstica com Louis Holland; um caloroso tapinha nas
costas da epa e dos cidadãos de Boston.
Estava terminando sua dissertação de mestrado quando Claudia a informou,
num cartão-postal de duas linhas, que havia se casado com seu antigo namorado
do Istituto Nazionale.
Renée ficou espantada com o quanto se sentiu traída. Não conseguia ter ânimo
para escrever para Claudia de novo, e os meses foram se passando e Claudia
também não escreveu mais. O que doía era saber que ela não estava com ciúme
do homem por ter Claudia, mas de Claudia por ter um homem. Isso e também
saber a diferença que fazia o fato de ela ser mulher.
Tinha certeza de que se isso tivesse acontecido entre um René e um Claudio,
dois bons amigos heterossexuais, René não teria se sentido tão traído. Homens
que se casavam ou arranjavam namoradas não se afastavam de seus amigos
solteiros, pelo menos não com tanta frequência quanto mulheres se afastavam de
suas amigas solteiras. Obviamente, homens eram espíritos mais nobres do que
mulheres. Era uma das consequências de pertencer ao gênero padrão. Se tanto os
homens quanto as mulheres consideravam seus relacionamentos com homens
invioláveis, então os homens inevitavelmente se mantinham fiéis ao seu gênero,
enquanto as mulheres, também inevitavelmente, traíam o seu. A superioridade
moral dos homens estava estruturalmente garantida.
No entanto, Renée não queria ser homem.
Um homem, se tinha sido seu namorado na faculdade, ainda “queria continuar
sendo seu amigo” depois de dar um fora em você. Sua fé masculina na amizade
era tão inabalável, na verdade, que ele chegava a acreditar que você ficaria
contente em receber um convite para o casamento dele.
Um homem, se era seu irmão mais novo, recém-saído da universidade, dava
uma declaração realista à mesa do jantar sobre como “as mulheres
simplesmente não são iguais aos homens, elas têm prioridades diferentes”,
falando com leviandade e em proveito próprio essa verdade que você tinha
levado trinta anos para aprender, incentivado em sua arrogância por uma esposa
de vinte e três anos que tinha “decidido não adiar ter filhos” e, por isso, se
considerava mais madura que você.
Um homem era uma criatura que acreditava estar passando uma imagem de
pessoa sensível ao dizer “eu amo as mulheres”.
Um homem era alguém que não conseguia admitir para uma mulher que
estava errado e continuar sendo homem. Era mais fácil ele chorar, se humilhar e
implorar perdão como uma criancinha do que admitir um erro como um
homem.
Um homem achava mais que natural uma mulher compreender seu pênis,
mas se achava o máximo por entender o clitóris e sua importância. Sorria por
dentro ao pensar em sua superioridade em relação a todos os homens, do passado
e do presente, que não haviam desvendado esse segredo feminino. Sentia orgulho
de seu esclarecimento e de sua gentileza quando perguntava a uma mulher se ela
tinha gozado. O presente perfeito para um homem que tinha tudo era um vidrinho
de oito mililitros de feminismo.
Inescapavelmente imerso numa história feita por pessoas de seu próprio sexo,
um homem jamais poderia se sentir tão pouco à vontade no mundo quanto uma
mulher: jamais poderia sentir tanta vergonha. Por mais sensível que um homem
fosse, faltava a ele aquela consciência radical de que havia sido apenas a sorte,
um emparelhamento de X e Y, que tornara a sua vida descomplicada. Em algum
nível de sua consciência, ele sempre acreditaria que a facilidade de sua vida
implicava uma superioridade moral; essa crença o tornava ridículo.
Mulheres sabiam que seus maridos eram ridículos. Portanto, mulheres
casadas, principalmente as que tinham filhos, podiam ser amigas umas das
outras. A vergonha de estar casada com um instrumento rombudo, uma criatura
cativante porém limitada, e de gerar filhos seus e de suportar sua superioridade,
era amenizada pelo contato com outras mulheres com igual fardo ou com
mulheres cujo mais ardoroso desejo era carregar tal fardo.
Renée, contudo, não era casada. Também acreditava que, mesmo que fosse, a
irmandade de genitoras não a acolheria de bom grado. Tinha a impressão de que
os membros mais bem-sucedidos da irmandade — mulheres que conseguiam ser
profissionais competentes e ainda criar uma família —, lutando para fazer frente
a sua vida, construíam uma tal couraça para seus egos que pouca imaginação
lhes sobrava para gastar num caso complicado como ela. Mães com empregos
não tão exigentes tendiam a ficar na defensiva e a temer e desprezar alguém
como ela, por causa da ambição que ela tinha. Mães que não tinham emprego
algum a atraíam — ela sentia, na verdade, um carinho especial por mulheres
sem afetações —, mas ela também não podia ser amiga delas, porque elas não a
entendiam e, como não a entendiam, ficariam confusas e magoadas com o fato
de ela se recusar a ser como elas.
Sem amigas, Renée via estereótipos onde quer que olhasse. Sua cabeça estava
cheia de imagens de mulheres, e ela odiava mais aquelas que mais se pareciam
com ela.
A acadêmica bem-falante, socialmente preocupada, sem humor e defensiva.
A mulher solteira magra, vulnerável, ensimesmada, de ar vagamente
atormentado que é ou uma pessoa em busca espiritual ou simplesmente uma
fracassada. Provavelmente uma fracassada.
A profissional de trinta anos insatisfeita que vê o equívoco da opção de vida
que fez e começa a ansiar por ter um bebê.
A cientista maçante que vive enfiada numa sala de computação, mas se
considera menos maçante do que outras pessoas como ela porque dez anos atrás
ia a shows do Clash.
A menina que, não tendo amigas, cresceu lendo livros de ficção científica, de
ciências e de filosofia popular e que, já adulta, ainda continua a ser romântica a
ponto de acreditar em coisas como má-fé empresarial e heróis que fazem a
diferença.
A acadêmica medianamente atraente que, em sua busca por se sentir muito
atraente, adquire a reputação de fácil.
A mulher que não consegue se dar com outras mulheres, que costuma andar
com homens e que, com o passar do tempo, acaba dormindo com vários deles e
que, sendo uma traidora de seu próprio sexo, só é respeitada pelos homens na
medida em que é como um homem.
A acadêmica bem-falante e medianamente atraente da qual ninguém gosta,
mas que mesmo assim se considera extremamente especial, interessante e
incomum e costuma ter no rosto um certo sorriso que mostra isso, o que faz com
que ela seja mais odiada ainda.
Conforme os abomináveis estereótipos iam se aproximando cada vez mais
dela, a única coisa que a impedia de concluir que só o que ela realmente odiava
era a si mesma era seu autopatrulhamento. O autopatrulhamento era um anjo da
guarda que a acompanhava aonde quer que ela fosse. Em supermercados, ele
lhe dizia como escolher alimentos — maçãs, ovos, peixe, pão, manteiga, brócolis
— que ela podia confiar que não iriam botar palavras em sua boca. Palavras
como Eu sou uma yuppie ou Eu estou me esforçando muito para não ser uma
yuppie ou Veja como eu sou original ou Veja como eu sou tímida enquanto tento
evitar ser como as pessoas que não quero ser, incluindo aquelas que fazem um
esforço consciente para serem originais. Era necessária uma vigilância diária
para não se permitir cozinhar como pessoas cultas de trinta anos retratadas na
televisão, ou como gastrônomos que tinham orgasmos com um bom prato de
massa, ou como mulheres que seguiam dietas de revista, ou como homens que
achavam que cozinhar usando alcaparras e rir gulosamente diante de um
Richebourg 71 os tornava sexy e sofisticados. Ou, ao contrário, como pessoas que
nunca paravam um segundo para pensar no que comiam. Porque infelizmente
comer porcaria não era uma opção. No futuro que imaginava para si, ela não iria
comer porcarias. Mal conseguia engolir porcarias.
Da mesma forma, ela não conseguia se dispor a usar roupas feias ou a
mobiliar seu apartamento com lixo. Na verdade, quando fazia compras em lojas
de departamentos, as roupas e utensílios que lhe pareciam menos
comprometedores acabavam invariavelmente se revelando os mais caros de sua
espécie. Claramente, se você tinha dinheiro bastante, a transparência podia ser
comprada. Não sendo rica, ela se via diante do desafio de encontrar coisas
bonitas e não muito caras e evitar todo aquele comprometedor estilo
contemporâneo massificado. Essa busca por camisetas neutras, sapatos neutros,
casacos neutros e cadeiras neutras consumia um tempo imenso e a deixava ainda
mais dolorosamente consciente de si mesma.
Ela odiava coisas novas “inspiradas em” coisas antigas — produtos
conspurcados pela nostalgia de um designer moderno pelos anos cinquenta ou
vinte. Nas coisas antigas propriamente ditas ela podia confiar, desde que não
tivessem passado pelas mãos poluentes de uma consciência como a dela. Tinha
sido um prazer decorar seu apartamento com coisas de um ingênuo mercado das
pulgas realizado semanalmente no estacionamento da biblioteca de Somerville.
Mas quando entrava numa loja de roupas “vintage”, mesmo que fosse uma loja
com artigos bonitos, ela sentia uma espécie de fraqueza, um enjoo, e logo fugia
de lá. Só num brechó ingênuo, como os que o Exército da Salvação mantinha, ela
podia ter esperança de conseguir aguentar as pontas por tempo suficiente para
encontrar alguma coisa, e mesmo assim só se ela não estava em Boston, porque
em Boston essas lojas eram assiduamente frequentadas por outros jovens
caçadores de pechinchas perigosamente parecidos com ela.
Uma vez a cada um ou dois meses, ano após ano, ela pensava nas roupas que
sua mãe não quisera lhe dar.
Essas roupas tinham vindo à luz no último ano que sua família passou em Lake
Forest, quando todo mundo menos Renée estava se preparando para se mudar
para a Califórnia. Ela as encontrou num quarto abarrotado de coisas que seriam
doadas para a caridade. Estava resgatando uma última braçada delas — algumas
saias justas clássicas, um casaco com uma gola de veludo verde-esmeralda, um
vestido vermelho-cereja de cintura alta, um casaco de lã xadrez, um par de
sapatos bicolores marrons e pretos — quando sua mãe a flagrou.
“O que você está fazendo com isso?”
“Desculpe. Desculpe. Eu pensei que você fosse dar essas roupas.”
“Eu vou dar essas roupas.”
“Bom, então eu posso ficar com elas?”
“Eu vou doá-las para a caridade. Por favor, ponha de volta onde você as
encontrou.”
“Por que eu não posso ficar com elas?”
“Meu amor, você tem tantas roupas no seu armário que você nem sequer
chegou a usar. Para que você quer essas coisas velhas?”
“Elas são bonitas. Eu quero essas roupas. Por favor, me deixa ficar com elas.”
A mãe fez que não, com ar triste. “Eu lamento muito se você ficou encantada
com elas, mas eu não quero que você use essas roupas.”
“Mas por que não? Por que não?”
“Eu só não quero ver você com elas. Elas trazem associações pra mim.”
“Mas eu estou indo morar em outro estado. Você não vai me ver.”
“Você sabe que eu estou disposta a comprar qualquer coisa que você queira.
Coisas iguais a essas. Coisas novas, melhores que essas. Mas imagine que você
tivesse tido um namorado e que você rompeu com ele. Você daria o seu ex-
namorado para a sua melhor amiga?”
“Mas isso são roupas.”
“Para mim é a mesma coisa”, disse a mãe.
Renée saiu de seu próprio quarto meio trôpega, os olhos cheios d’água. A mãe
não cedeu. As roupas foram doadas para a caridade. Na memória de Renée, elas
continuavam sendo as roupas mais bonitas que ela já tinha visto na vida, as
roupas mais perfeitas para ela que se poderia imaginar. Ela poderia desconfiar
de sua memória, não fosse o fato de que existiam fotos daquelas roupas nos
álbuns de fotografia da família — fotos da jovem Beth Macaulay num tour pela
Europa que acabou se estendendo por um ano e meio. Fotos do casaco xadrez no
Bois de Bologne. O casaco xadrez em Dublin. O vestido de verão listrado na
Berck-Plage. Beth Macaulay em Arles, sua pele perfeita, seus óculos de sol de
lentes pretas, seus avançados sapatos bicolores, seu diário. O vestido vermelho
em preto e branco em Roma. O casaco xadrez em Veneza.
Ela estava grávida de três meses quando se casou com Daniel Seitchek, um
jovem cardiologista de uma família do West Side, composta de atacadistas e
intelectuais de meia-tigela. Como parecia dolorida e abatida a jovem e bela
Elizabeth em preto e branco (o preto fuliginoso do sul de Chicago, o branco da
neve fresca, o preto e branco do casaco xadrez) ao levantar sua bebê
embrulhadinha para a câmera.
Como era difícil conciliar aquelas imagens com as roupas de golfe e de tênis
brancas, verdes e rosa usadas pela mulher que Renée cresceu conhecendo como
sua mãe. A mulher que mais tarde, na Califórnia, conduziria um carro em cuja
placa se lia moms jag, Jaguar da mamãe, para jogos escolares de beisebol e se
sentaria nas arquibancadas junto com outras mães tão bronzeadas quanto
egípcias e berraria quando os filhos fizessem boas jogadas e gemeria
risonhamente e tamparia os olhos quando eles dessem mancadas. A mulher que
uma vez, numa conversa que a filha entreouviu, se descreveu como “uma
espécie de Polly ana” e confessou ser “viciada” nos romances de Tom Clancy.
As fotos de Beth Macaulay na Europa, vestida com aquelas roupas lindas,
pareciam dizer que um dia ela já tinha sido mais como Renée — mais
romântica, mais independente — do que poderia imaginar quem quer que a visse
correndo de um lado para o outro numa quadra de tênis com seus saiotes
balançantes. Tendo medo da morte, Renée queria acreditar que, apesar das
diferentes circunstâncias das duas, ela e a mãe tinham almas idênticas. E era
tentador deixar que a probabilidade da identidade, o senso comum da
pressuposição, passasse por certeza. Infelizmente, ela também era racional e se
recusava a acreditar que fosse igual àquela Polly ana festeira do condado de
Orange sem ter alguma espécie de prova. E, por acaso, os anos em que sua mãe
havia sido uma pessoa diferente e presumivelmente mais parecida com Renée
eram justamente os anos em que ainda não existia essa pessoa chamada Renée.
Enquanto isso, ela era autoconsciente demais para não perceber as ironias:
Que enquanto se vigiava para não virar uma pessoa superficial como a mãe, ela
estava gastando quantidades boçais de tempo se preocupando com decoração,
roupas e comida. Que tinha desenvolvido uma obsessão burguesa com
mercadorias e aparências muito mais profunda que a de sua mãe. E que os tipos
femininos inteligentes e confiantes em relação aos quais ela sentia uma
animosidade virulenta e defensiva eram exatamente os tipos em relação aos
quais a mãe também sentia uma animosidade, embora não tão virulenta e
defensiva quanto a dela, já que a mãe tinha os filhos e as netas para distraí-la e
confortá-la.
Renée sabia que, se simplesmente desistisse de sua busca por uma vida
perfeita, se assentasse a cabeça e aceitasse ter filhos como a mãe tivera na idade
dela, ela também poderia conquistar certo grau de contentamento e de
esquecimento. Mas não havia ninguém que quisesse se casar com ela e, de
qualquer forma, ela odiava gente que era obcecada pelos pais. Uma família era
uma arapuca para quem estava nela, um tédio para quem estava fora dela. Ela
odiava a palavra “obcecada”. Odiava gente que odiava tanta coisa como ela
odiava. Odiava a vida que a fazia odiar tanta coisa. Mas não se odiava por
completo ainda.
9.
Ela só tinha um vestido que lhe parecia apropriado para usar num almoço com
Melanie Holland, um estampadinho de algodão sem cinto de dez anos de idade.
As sapatilhas rasteiras que ela escolheu para combinar com o vestido já estavam
encharcadas quando o ônibus que ia até a estação Lechmere parou para ela num
ponto da Highland Avenue. Uma chuva fina, mas intensa, ocupava por completo
o espaço aéreo acima do Charles. O rio estava tão cheio que parecia mais alto
que as ruas em volta.
Na Boy lston Street, em frente ao hotel, a porta de um táxi se abriu e um par de
pernas dentro de uma calça jeans justíssima e de botas estilo caubói se lançou
porta afora, seguido de um guarda-chuva, uma sacola de compras da Filene’s e,
por fim, agasalhado por uma jaqueta larga de pele de foca, o resto de Melanie.
Ela bateu a porta e quase trombou com Renée, que estava parada ali perto,
olhando para ela.
No restaurante, grandes apetites estavam em evidência. Turistas sorriam e
mulheres de cabelo branco cochichavam sobre investimentos, cada par com um
ar de ser o mais importante do salão. Melanie parecia cansada. Tinha apanhado
sol recentemente, mas sua pele estava enrugada e lustrosa, feito esmalte velho; o
bronzeado parecia não querer grudar na pele. O forro de seda de sua jaqueta,
que ela havia deixado escorregar de seus ombros para a almofada do banco, a
envolvia tão delicadamente quanto o papel de seda em que presentes finos
costumam ser embrulhados. Ela examinou Renée. “Minha nossa”, disse. “Você
está toda molhada!”
“É, eu estou um pouco molhada.”
“Você veio de trem.”
“Trem e ônibus.”
“Você mora... vamos ver se eu adivinho.” Ela juntou as mãos na forma de
uma caderneta e as levou aos lábios. “Você mora... numa daquelas casas antigas
do lado da Harvard Square onde fica o Radcliffe.”
Renée fez que não.
“Mais para perto da Inman Square?”
“Eu moro em Somerville.”
“Ah.” Melanie sorriu vagamente e desviou os olhos. “Somerville.” Um
garçom veio atendê-las. “Você me acompanha num drinque?”
“Campari com soda?”, Renée disse ao garçom.
“Me parece a pedida perfeita”, disse Melanie. “Tão vermelho, tão chique.”
O garçom assentiu. Tão vermelho. Tão chique.
“Que bom que você pôde aceitar esse meu convite feito tão em cima da
hora”, disse Melanie. “Infelizmente, a coisa chegou num ponto que seria mais
fácil eu comprar passagem de Boston para Chicago e vice-versa logo de uma
vez. Se vou para uma cidade numa semana, invariavelmente tenho que ir à outra
na semana seguinte. Mas é assim que as coisas são, às vezes. É assim que as
coisas são. Você costuma viajar muito a trabalho?”
Renée abriu a boca para responder, mas perdeu o ânimo. Empurrou sua colher
de chá um pouco para o lado sobre a toalha de mesa. “Não”, disse, “e talvez
fosse melhor você me dizer logo o que você quer.”
“O que eu quero? Eu quero que a gente relaxe, se divirta e se conheça um
pouco melhor. Quero ser sua amiga.”
“Você quer informação.”
“Também, mas...”
“Então por que você não pergunta de uma vez o que você quer me perguntar?
Porque eu não vou poder ajudar você, então seria melhor acabar logo com isso.”
Melanie inclinou a cabeça para o lado e apertou os olhos, exatamente como o
filho dela às vezes fazia. “Tem alguma coisa errada? Hoje não é um bom dia?
Ah, meu Deus!” Ela se debruçou sobre a mesa. “Você está parecendo tão triste.
Hoje não foi um bom dia?”
Renée pôs a colher de chá de volta onde estava antes. “Eu não estou triste.”
“Você acha que eu não tenho nenhum interesse pessoal por você. Você acha
que eu só a convidei para almoçar a fim de bajular você e fazer com que você
se sinta na obrigação de responder as minhas perguntas. É isso que você acha? É
ou não é?”
“É.”
“Você está sendo honesta comigo. Eu admiro isso. Mas você está enganada, e
eu quero saber como posso lhe provar que você está enganada. Você pode me
dizer?”
“Imagino...” Renée parecia não saber o que dizer. “Imagino que se você não
me fizesse pergunta alguma, nunca, eu seria forçada a concluir que você tem
algum outro interesse.”
“Mas você jamais iria acreditar que eu quero ser sua amiga. Hum. Bom,
suponho que seja compreensível, de certa forma.” Melanie vasculhou sua bolsa
enquanto o garçom punha na mesa os drinques das duas. Ela puxou lá de dentro
uma caixa rasa e aveludada e a empurrou até o outro lado da mesa. “Isso é pra
você.”
Renée olhou para a caixa como se seus olhos tivessem pousado ali por acaso
enquanto ela estava pensando em outra coisa.
“Vai, abre.”
Renée sacudiu a cabeça. “Acho melhor não.”
“Ah, Renée, por favor, eu estou quase perdendo a paciência com você. Você
não precisa recusar um presente só pra me mostrar que é uma pessoa honesta.
Chega uma hora que acaba ficando ofensivo pra mim. Não vamos fingir que as
nossas circunstâncias são iguais. Uma mulher mais velha que gosta de fazer
compras dá um presente pra uma mulher mais jovem em sinal de respeito e
afeição, eu realmente não vejo nenhuma razão pra você ser tão doentiamente
escrupulosa. Isso. Ótimo.” Os olhos de Melanie brilharam quando Renée
subitamente pegou a caixa e, depois de certa hesitação, tirou de dentro dela um
colar de pérolas.
“É lindo.”
“Com as suas cores, o seu cabelo, a sua pele. Pérolas, platina, prata,
diamantes. Eu sei por ter experiência semelhante. Agora põe, põe o colar. Isso.
Claro que a gente tem que levar em conta que esse não é exatamente o vestido
ideal...” Melanie pôs seu estojo de pó compacto em cima da mesa, perto de
Renée, com o espelho levantado. “Você teria tempo para fazer umas comprinhas
depois do almoço? Eu detestaria que você não usasse o colar por não ter nada que
combine com ele.”
Renée guardou o colar de volta na caixa. “Na verdade, eu não sei se ele faz
muito o meu estilo.”
“Ah, é? E qual é o seu estilo?”
“Sei lá. Estilo Somerville.”
“Você! Você não tem nada a ver com Somerville, qualquer um vê. A menos
que Somerville tenha mudado muito desde que eu era criança, o que eu não
acredito.”
“O que a faz pensar que eu não tenho nada a ver com Somerville?”
“Os seus modos.”
“Os meus modos são horríveis. Eu estou ofendendo você a torto e a direito.”
“Você está me ofendendo ao modo de uma jovem muito bem criada, muito
culta e muito consciente de si. E você sabe disso.”
Mesmo fraco, o Campari tinha ido direto para as bochechas de Renée. Ela era
imune a muitas coisas, mas não ao álcool e não a uma expressão como
“consciente de si”, que, quando usada em referência a ela, sempre provocava
um pequeno estremecimento em seu corpo, um espasmo de amor-próprio. E,
depois do espasmo, um calor no rosto, uma leve dormência nos braços. Ela riu,
olhando para as pérolas. “Quanto foi que isso custou?”
“Isso, continue tentando. Mas você vai me achar uma pessoa muito difícil de
ofender hoje.”
Renée botou o colar no pescoço de novo e pegou o estojo de pó compacto. O
espelho lhe mostrou um salão partido em fragmentos escurecidos e sem
profundidade — lustres flagrados no ato de existir, mesas apoiadas num chão que
se inclinava de um lado para o outro, flashes subliminares dela própria, um
pescoço branco. Ela falou de um jeito estudado: “Talvez eu fique com ele afinal.
Se não fizer diferença pra você”.
“Não, na verdade, nada me deixaria mais contente.”
“Então, ótimo pra nós duas.”
“Você está sorrindo, e você tem razão: que importância tem uma joia para
uma mulher que é uma profissional?” A joia de pulso de Melanie tilintou quando
ela levantou seu copo. Ela bebeu inclinando o corpo e girando a mão de um jeito
teatral. “Mas, sabe, eu sou só uma dona de casa boba. Não tenho nenhum feito
particularmente nobre de que me orgulhar. E, na minha idade, é possível uma
pessoa ter a sensação de que só o que ela fez na vida foi trazer infelicidade para o
mundo. Talvez você não possa realmente imaginar como é isso a menos que
tenha tido filhos, mas...
“Eu posso imaginar.”
“Eu acredito que sim, Renée. Eu acredito que você possa. E talvez você
também possa imaginar como você se sente quando percebe que seus próprios
filhos a consideram uma pessoa egoísta e que não há nada que você possa fazer
pra mudar isso. Eles podem estar redondamente enganados ao seu respeito. Eles
estão redondamente enganados ao seu respeito. Mas, mesmo assim, o fato é que
eles estão convencidos de que você é uma bruxa má e egoísta, e isso dói tanto,
mas tanto que você não consegue nem explicar pra eles por que eles estão
errados.”
Só o que restava do drinque de Renée era gelo e água rosa. “Você sabe que eu
conheço o seu filho, não sabe?”
“Você...? Ah, sim, claro. Eu fiquei muito irritada com ele naquele dia. Fiquei
irritada por ele ter convidado pessoas para entrar, com a casa naquele estado,
embora em retrospecto eu suponha que tenha sido até bom ele ter feito isso.”
Melanie afagou seu copo, dando cada vez mais a impressão de estar falando
consigo mesma. “Porque há coisas que eu quero dizer — coisas que eu preciso
dizer — para alguém. E se eu pudesse pelo menos aliviar alguns receios que eu
tenho — se você pudesse me dar um conselho, ou um conforto, para nós
podermos tirar isso do nosso caminho —, eu gostaria imensamente de passar um
tempo com você. Eu quero fazer alguém feliz. E você em particular, eu nem sei
por quê.”
“Que conselho?”
“A gente não precisa discutir isso agora.”
Renée se inclinou para a frente, como quem vai fazer uma confidência. Havia
um brilho novo e meio alucinado em seu rosto, como se ela estivesse se dando
conta de grandes ironias. “Eu acho que a gente deveria discutir isso agora
mesmo. Assim a gente pode virar essa página, certo?”
Melanie ia começar a falar, mas reparou no copo vazio de Renée e atraiu a
atenção do garçom. Quando o novo drinque chegou, ela ficou observando Renée
tomar vários goles sôfregos.
“Eu tenho uma casa”, ela disse com voz rouca, “que eu não posso segurar
contra terremotos e não conseguiria vender por mais de oitenta por cento do
valor que ela tinha em janeiro. Será que eu devo vender a casa agora e investir o
dinheiro de outra forma, pra ter dez por cento de juros? Ou será que os preços
vão voltar a subir em menos de dois anos? Essa é a minha primeira pergunta. Eu
também tenho, por conta da burrice e da teimosia do meu pai, trezentas mil
ações de uma companhia cujas ações perderam, desde 1o de abril, um quarto do
valor que elas tinham antes, principalmente por causa da ameaça de terremotos.
Eu estou prestes a adquirir o controle dessas ações e o que eu quero saber é: será
que eu devo vender as ações logo para evitar perder mais dinheiro ainda, ou será
que os terremotos vão parar? É isso. Agora você sabe mais sobre a minha
situação do que qualquer outra pessoa no mundo sabe, salvo o meu advogado.
Está claro? Eu abri o meu coração, Renée, e ele está nas suas mãos. Você pode
julgar por conta própria se eu estou só desesperada ou se estou confiando em
você porque sinto que existe uma afinidade entre nós.”
Com súbita energia, Melanie pegou seus óculos de leitura de dentro de sua
bolsa. Franzindo o cenho, examinou o cardápio durante exatamente três segundos
antes de perguntar a Renée, cujo cardápio parecia estar escrito em árabe, se ela
já havia escolhido o que ia pedir. Ela estava inclinada a pedir um filé de
vermelho com salada da casa. O que Renée achava?
“Eu preciso ler o cardápio”, disse Renée.
Melanie largou o seu de lado e ficou olhando para um ponto distante do salão.
Por fim, Renée desistiu de tentar entender os pratos listados no cardápio. Tomou
o resto de seu Campari com soda. “O que a faz pensar que eu possa ter algum
conselho para lhe dar? Você lê os jornais. Eu leio os jornais.”
“Eu estou me lixando para o que sai nos jornais.”
“Por quê?”
“Porque qualquer pessoa pode ler os jornais. Logo, o que sai neles se torna
automaticamente inútil como informação em que basear seus investimentos. Os
mercados estão em baixa agora por causa de toda essa incerteza que a gente está
vendo nos jornais. Eles dizem que é provável que não haja mais nenhum grande
terremoto. Mas também dizem que pode muito bem haver.”
“Arrã.”
“Você não entende? Probabilidades não me servem de nada. Eu tenho que
tomar uma decisão.”
“Eu sei. Eu entendo. Mas por que você não supõe que haja cinquenta por cento
de chance de ocorrerem novos terremotos e então vende cinquenta por cento das
suas ações? Ou então vende vinte por cento, se acha que há vinte por cento de
chance.”
“Não! Não!” Melanie se remexeu com veemência na sua cadeira. “Você não
está me entendendo. Eu estou dizendo que já perdi um quarto do que eu tinha três
meses atrás, quando ainda não podia fazer nada a respeito. Eu estou dizendo que
não quero perder mais nada, que eu não vou, eu não vou perder mais nada. Se
vender cinquenta por cento dessas ações e elas voltarem daqui a algum tempo a
ter o preço que tinham em março, eu vou ter perdido muito dinheiro nesses
cinquenta por cento.”
“Mas você não tinha como evitar essa perda”, Renée disse num tom sensato.
“Então por que você simplesmente não parte do princípio de que o que você
herdou foi só o valor que você vai ter quando assumir o controle de tudo? É esse
valor que é o seu ponto de partida, e você pode vender tudo e considerar que foi
isso que você recebeu e é o que você vai ter. Ainda deve ser muito dinheiro
mesmo assim, não?”
Melanie fechou os olhos. “É isso que eu vivo discutindo com o meu advogado.
É isso que o meu marido me diz. Eu tinha esperança de que uma mulher pudesse
entender por que eu me recuso, eu me recuso a aceitar que isso é tudo que eu
vou ter. Não é ganância, Renée. É uma questão de não querer fazer papel de
burra. Se acabar tomando a decisão errada, eu pelo menos quero ter a
consciência de que a tomei baseada na orientação de alguém. Porque eu
simplesmente não ia conseguir viver carregando essa culpa.”
“Culpe o seu pai”, sugeriu Renée.
“Se isso ajudasse em alguma coisa. Eu posso culpar o meu pai por me botar
nessa situação, mas ainda continuo sendo eu que estou nessa situação.”
“Sabe o Larry Axelrod? Do mit? Eu posso botar você em contato com ele.”
Melanie se inclinou para a frente, sacudindo a cabeça e sorrindo da
ingenuidade de Renée. “Você não vê? Todos os investidores de Boston estão indo
falar com ele ou com outras pessoas como ele. Eles já tiveram o impacto deles
no mercado. Eu não levo vantagem nenhuma seguindo o conselho deles e, além
do mais, eu não acredito no que eles dizem. Não acho que eles possam dizer a
verdade, porque sabem que todos os mercados estão ouvindo. É por isso que eles
dizem cinquenta por cento isso, cinquenta por cento aquilo.”
“Então você acha que, como eu não sei nada sobre os terremotos da Nova
Inglaterra, eu sou a pessoa perfeita a quem perguntar.”
“Acho.”
“É muito racional da sua parte.”
“Que bom que você pensa assim. Sabe, um dos motivos pelos quais resolvi
procurar você foi que eu notei que, de todas as instituições de Boston, Harvard é a
única que não está dizendo nada a respeito dos terremotos. E eu tenho que me
perguntar por quê.”
“Não tem ninguém em Harvard trabalhando com estudos locais no momento.
Nós trabalhamos principalmente com teoria, com estudos globais e com pesquisa
com redes globais.”
“E você, como uma sismóloga inteligente, não consegue olhar para o trabalho
que está sendo feito localmente e tirar conclusões independentes?”
“Eu posso tirar conclusões, mas não sei por que você acha que elas seriam
mais valiosas do que as do Larry Axelrod.”
“Renée, eu passei metade da minha vida entre acadêmicos e já vi esses
Larry s Axelrods na televisão. Eu sei reconhecer um intelecto especial quando
encontro um. Não vai adiantar nada tentar me convencer a não confiar em você,
porque eu não vou lhe dar ouvidos. Eu vou confiar em você e você vai me dizer
de que forma eu posso recompensá-la. Porque eu pretendo recompensar você.”
Melanie tinha posto sua bolsa no colo e pousado a mão no fecho. Renée já
estava esperando por isso. “Você quer saber se deve vender a casa e se deve
vender as ações. Duas respostas simples.”
“Exato.”
“E se eu estiver errada?”
“Bom, você deve saber que, se estiver certa, eu vou ficar muito grata a você.
E se eu ficar grata a você, você vai ficar muito, muito contente de ser minha
amiga.”
“Você está falando de dinheiro.”
Melanie olhou para sua bolsa como se estivesse decepcionada de encontrá-la
em seu colo. “De preferência, não. Mas, se esse for o seu estilo, tudo bem. Eu
não iria querer lhe dar alguma coisa que você não achasse útil.”
“Mas e se eu errar nas minhas conclusões?”
“Eu não creio que você vá errar, mas se isso acontecer eu vou saber que você
fez o possível para acertar. E que eu fiz tudo que podia para tomar a decisão
certa, que me aconselhei com uma pessoa em quem eu confiava e que nós
simplesmente não demos sorte. Como eu disse, não é por ganância. É que eu não
suporto a responsabilidade.”
“As ações são da Sweeting-Aldren, não são?”
“Sim, são.” Melanie deu uma risadinha nervosa. “Espero que você não tenha
ficado sabendo disso pelo Louis. Ele adora ser indiscreto.”
“Eu acho que posso te ajudar”, disse Renée.
“Você não se encontrou com ele de novo, se encontrou?”
“Como?”
“Você disse que conhecia o meu filho. Você estava se referindo ao dia do
terremoto. Você não viu o Louis depois daquele dia.”
“Na verdade, eu vi sim. Ele me convidou para ir a uma festa na casa da sua
filha.”
“Ah.” Melanie empalideceu e levou a mão à boca. “Sei. E você foi?”
“Fui.”
“Você não me disse isso.”
“Eu tentei.”
“Você não me disse isso.” Ela se remexeu em seu banco, virando meio de
lado e tocando cada parte do seu rosto com os dedos, como se estivesse na dúvida
se estava tudo lá. “E isso... isso era para ter sido a primeiríssima coisa para você
me falar.” Melanie balançou a cabeça, concordando consigo mesma. “A
primeiríssima coisa.”
“Eu tentei falar.”
Ela se virou com violência para encarar Renée. “Você está envolvida com o
meu filho?”
“Não!”
“Você já esteve envolvida com ele?”
“Não. Não! Eu fui a uma festa com ele. E algumas semanas atrás eu... fui
jantar na casa da sua irmã. Quer dizer, da sua filha. Ele parecia achar que
precisava levar uma acompanhante. Ele foi muito educado comigo.”
“Vocês conversaram sobre mim?”
“Não, de forma alguma.”
“Então por que as suas mãos estão tremendo?”
“Porque você está me assustando.”
“Você contou a ele que eu tinha ligado para você?”
“Eu comentei com ele sim.”
“Quantas horas?”
“Como?”
“Quantas horas você passou com ele?”
Renée deu de ombros. “Umas dez. Oito. Sei lá.”
Melanie se debruçou sobre a mesa e examinou o rosto de Renée, tocando-o
com o olhar como tinha tocado seu próprio rosto com os dedos, seu medo
crescendo conforme deitava raízes cada vez mais profundas na lacuna entre a
meiguice do rosto e a possibilidade subjacente de que Renée estivesse mentindo.
Estava pateticamente óbvio o quanto ela queria confiar em Renée, mas não
estava conseguindo extrair uma resposta definitiva do rosto e já tinha depositado
tanta esperança nele que não suportou continuar vasculhando-o, temendo
encontrar indícios que confirmassem suas suspeitas. “Ah, meu Deus.”
Novamente ela se virou de lado na cadeira. “Ah, meu Deus, eu não sei o que
fazer.”
“Por que você não liga para o Louis e pergunta para ele? Se isso é tão
importante para você.”
“Dez minutos atrás você estava tentando me convencer a não confiar em
você. Agora você está fazendo o oposto. Foi porque eu falei de dinheiro. Foi por
isso, não foi?”
“O que aconteceu foi que agora você parece achar que eu tenho alguma razão
pra mentir para você.”
“Você não é mais aquela pessoa com quem eu conversei dois meses atrás. E
agora eu estou entendendo por quê. Agora eu estou entendendo por quê. Como
foi que isso não me ocorreu? Ah, por que você não me contou?”
“Prontas para pedir, senhoras?” Com um floreio, o garçom sacou uma caneta
esferográfica.
Olhando bem no fundo dos olhos dele, Melanie pôs seus óculos e fez seu
pedido. Depois, enquanto Renée fazia o pedido dela, tirou os óculos e os segurou
com o punho cerrado, apertando-os com tanta força que o plástico chegava a
ranger, e ficou olhando com ar desconsolado para o outro lado do salão. Renée
pousou a mão no punho cerrado de Melanie. Estava fazendo um esforço tão
grande para pensar que seus lábios se agitaram de leve. “Eu disse que podia te
ajudar”, falou. “Eu sei o que você deve fazer com as suas ações, e você vai ficar
muito contente por ter me consultado. Eu vou te ajudar.”
Melanie inclinou a cabeça para trás e engoliu em seco.
“Eu vou dizer a você o que fazer”, disse Renée. “E estou tão convicta de que
estou certa que vou lastrear as minhas conclusões com todo o dinheiro que eu
tiver.”
O brilho no rosto dela tinha adquirido uma implacabilidade cintilante e
embriagada. Ela afagou a mão de Melanie. De repente, unhas se enterraram em
seu pulso. Um rosto se lançou em sua direção; ele cheirava a hálito, perfume e
creme hidratante. “Você está tendo um caso com o meu filho?”
“Não!”
“E o que você quer de mim é dinheiro.”
“É.”
“Você quer fazer um acordo.”
“Quero.”
Melanie se recostou de novo em seu banco. “Está bem.” Um minuto inteiro se
passou sem que ela fizesse nada a não ser morder o lábio, seus temores
obviamente ainda não dissipados. Por fim, Renée perguntou se ela queria vinho.
“Não, obrigada. Mas pode pedir uma taça para você, se quiser.”
“Eu posso pedir uma garrafa?”
“Pede o que você quiser.”
“Por que a gente não relaxa e se diverte?”
Melanie sacudiu a cabeça, desconsolada. “Teria sido melhor evitar o assunto
de dinheiro. Teria sido melhor esperar. Você pode zombar de mim agora, mas
eu realmente tinha esperança de que esse fosse um tipo diferente de almoço.”
“Eu vou lhe dar bons conselhos. Você não vai se arrepender.”
“Eu já estou arrependida. Estou arrependida de ter envolvido você nisso. E
arrependida de estar envolvida nisso.”
“Vamos acabar logo com isso, então. Vamos tratar dos últimos ajustes de uma
vez. E aí depois a gente pode relaxar.”
Melanie enrijeceu ao ouvir essa menção aos “últimos ajustes”. Hesitou por
longos instantes, até que por fim pegou uma carteirinha de fósforos de dentro da
bolsa, escreveu um número na parte de dentro e a fez deslizar pela toalha.
Renée leu o número, pegou a caneta e calmamente acrescentou um zero. “Eu
posso querer mais”, disse. “Se eu estiver certa. Você vai ter que me dar alguns
dias. Mas eu definitivamente não vou aceitar menos, a não ser que...” Ela
refletiu. “Por que eu não pego o dinheiro que eu tiver no banco e dou como
garantia no acordo? Assim nós teríamos uma... como se chama? Uma escala
móvel. Quanto menos eu acertar, menos dinheiro você me dá. Se eu errar, você
fica com a garantia.”
“Eu não vou discutir isso com você. A gente se encontra na terça-feira.”
“Enquanto isso, você vê se consegue um acordo melhor.”
“É possível que eu faça isso mesmo.”
“Arrã. Fala com o Larry Axelrod.”
“Talvez.”
Renée comeu um carpaccio encharcado de um óleo amarelo. Esvaziava sem
parar sua taça de vinho, até que começou a reluzir feito um objeto dentro de uma
fornalha, seu retraimento metamorfoseado em volubilidade enquanto ela fazia o
seu número “Por que eu odeio Boston” e depois o “A Califórnia é pior ainda”.
Era como se Melanie estivesse ouvindo uma filha de quem ela gostava e por cuja
conversa tinha todos os motivos do mundo para se interessar, mas só estivesse
conseguindo ver nela coisas que a faziam se lembrar de sua própria melancolia,
de sua relativa proximidade da morte, de sua incapacidade de relaxar e curtir um
almoço, de seu distanciamento do mundo das coisas sobre as quais os jovens
falavam. Isso de fato acontece com pais que estão infelizes, mesmo com aqueles
que amam seus filhos.
A ponta de sua língua veio para fora enquanto ela escrevia números num
cheque. Renée estava reluzindo como se tivesse acabado de atravessar uma
nevasca. De volta ao planeta do incessante tráfego de carros, em frente ao hotel,
ela pediu dinheiro para pegar um táxi. Melanie abriu sua bolsa sobre o quadril e
puxou lá de dentro uma nota de vinte. “Eu sei que você deve estar me achando
uma boba por perguntar toda hora. Talvez isso nem tenha importância. Mas...”
Os dedos de Renée se fecharam sobre a nota. “Mas?”
“Bom, eu só queria saber se você e o Louis têm algum tipo de envolvimento.”
Ela segurou Melanie pelos ombros. “O que você acha?”
“Eu acho que ainda estou inclinada a pensar que sim.”
“Jura?” Ela puxou Melanie mais para perto e lhe deu um beijo na boca, como
qualquer mulher poderia beijar a pessoa que a tinha cortejado durante um
almoço regado a vinho e pérolas.
Melanie se desvencilhou dela e se recompôs. “Eu vou ter que reconsiderar
essa nossa conversa, Renée. Vou partir do princípio de que você tenha bebido um
pouco além da conta. Mas, mesmo assim, eu vou ter que reconsiderar.”
“Escala móvel. Garantia. Acerto imediato.”
“Eu falo com você na terça de manhã.”
“Até lá, então.”
A chuva tinha se transformado numa neblina fina e quente, agradável para a
pele. Assim que entrou no táxi, Renée se estendeu no banco de trás.
“Tá tudo bem aí?”, o taxista haitiano perguntou.
“Tá”, ela disse alto.
Pingos de água escorriam e formavam lentes na janela diante de Renée, um
aspecto distorcido da cidade em cada gota. As fachadas encharcadas e de
cabeça para baixo, os cabos de energia e de telefone afundando e se dividindo.
Ela estava descontrolada. Três da tarde, bêbada feito um gambá e deitada no
banco de trás de um táxi. Romance, romance. Três da tarde, a chuva quente, ela
volta para casa de um encontro consigo mesma. Ainda sente o calor dela dentro
de si, em sua pele. Sente o cheiro de seu próprio nariz, sente o gosto de sua
própria boca.
“São doze dólares e sessenta centavos.”
“Sobe a ladeira aqui na Walnut.”
Com o estômago embrulhado pelo carpaccio e pelo vinho, ela ficou deitada na
cama até as janelas pararem de escurecer e ficarem um pouco mais claras e a
chuva se transformar em vapor e silêncio. Era como se uma tenda tivesse
descido sobre a rua, suas abas de lona úmida indo pousar atrás das casas; como
se a rua fosse um cenário cinematográfico molhado com mangueira para uma
tomada noturna, com um mundo barulhento e agitado além das casas. Um
vizinho de uma casa próxima estava fazendo waffles. Na varanda da casa em
frente, alguns meninos e meninas botaram uma música de heavy metal para
tocar. Parecia estar tocando no quarto ao lado, não do lado de fora. Renée ligou o
aparelho de telefone na tomada e discou um número. “Eu posso falar com o
Howard Chun, por favor?”
“Ere não tá”, foi a resposta.
Ela trocou de roupa e desceu para a rua. Uma das meninas que estavam na
varanda — a gorda; também havia duas magrinhas — aumentou o volume da
música. Talvez achassem que Renée estava indo reclamar do barulho. Ela subiu
a escada. “Alguém aqui tem um baseado pra me vender?”
Eles abaixaram o volume do rádio, e ela repetiu a pergunta, olhando de um
rosto incrédulo para o outro. O menino mais novo tinha uns dez ou onze anos.
“Você é judia?”, ele perguntou, prosaicamente.
“Não.”
“Qual é o seu sobrenome?”
Ela sorriu. “Smith.”
“É Bernstein”, o menino retrucou.
“Greenstein”, disse uma menina.
“Shalom!”
Renée esperou.
“Há quanto tempo você mora naquela casa?”, a menina gorda perguntou.
“Cinco anos”, ela disse. “Você mora aqui há quanto tempo?”
“Cadê o seu namorado chinês?”
“Ela tem um namorado careca.”
“Ei. Ei. Você tem cerveja em casa?”
Ela cruzou os braços. “Quantos anos vocês têm?”
O garoto mais velho, que estivera calado até então, se levantou rigidamente de
uma espreguiçadeira de madeira quebrada. Seus tênis balofos de cano alto
estavam cuidadosamente desamarrados. “Você tem que comprar umas cervejas
pra nós”, ele disse.
“Tá bom. Quantas?”
As meninas confabularam, o garoto mais velho fazendo questão de parecer
não estar envolvido. “Dez, mas tem que ser da latona”, a menina gorda anunciou,
enfática.
“Tem que ser o quê?”
“Da latona.”
“Da latona?” Renée sorriu, sem entender.
“a latona. aquela lata grande.”
“A lata de 470 mililitros!”
“A porra da latona de cerveja!”
“Dããã.”
“Você sabe o que é fazer sessenta e nove?”
“Steven, cala a boca, seu babaquinha.”
“Dããã.”
Afastado do resto do grupo, o garoto mais velho revirou os olhos. Renée desceu
a escada ao som de gritos de Shalom! Um cheiro de infraestrutura vinha do meio
dos arbustos, e ela ouviu seu próprio telefone tocar: outro ativista pró-vida
ligando.
Quando ela voltou da Highland Avenue, o garoto mais velho a conduziu ao
cômodo da frente do apartamento do primeiro andar, tirou duas latas de uma das
embalagens de seis que ela tinha trazido e depois as botou de volta na sacola de
papel. Mostrou a maconha para ela. “Tá fresquinha”, disse, com ar sincero.
“Steven, fecha essa porra dessa porta!” A porta se fechou. “Qual você quer?
Pega o grande. O meu nome é Doug.”
“Quantos anos você tem?”
“Quase dezesseis. Eu vou tirar carteira de motorista. Você topa sair comigo
um dia?”
“Acho que não.”
Em cima da mesa de sua cozinha, Renée botou o baseado, uma caixa de
fósforos e um pires. Posicionou uma cadeira diante deles e apagou todas as luzes,
menos uma. Ela tinha uma fita cassete identificada como para dançar que estava
quebrada fazia cinco anos. Mirando a luz de sua luminária de mesa na fita, ela a
abriu e remendou a parte estropiada usando fita durex e uma tesourinha de unha.
A maconha tinha gosto de abril na faculdade; como a música gravada na fita.
Ela dançou ao som de “London’s Burning”, “Spinning Top” e “I Found That
Essence Rare”, seus braços e pernas espalhando as últimas nuvens de fumaça
numa névoa. Achou que estava chorando quando tocou “Beast of Burden”, mas
quando abriu os olhos não havia lágrima nenhuma e parecia que tinha sido só sua
imaginação.
Do lado de fora da janela da cozinha, ela se deitou no telhado molhado e
inclinado. As telhas eram feitas de ardósia de verdade.
De manhã, ela foi atrás de um professor de mineralogia que gostava dela e já
tinha lhe emprestado um de seus carros várias vezes. Também se apropriou de
uma câmera do departamento, com lente teleobjetiva e zoom. O sol estava
torrando na Route 128. Da forma mais metódica que pôde, ela percorreu todas as
estradas e ruas de Danvers, do oeste de Peabody, do norte de Ly nn e do sul de
Ly nnfield, parando com frequência para traçar sua rota com lápis vermelho
num mapa. Não havia absolutamente carro algum no estacionamento da sede da
Sweeting-Aldren, uma estrutura branca inspirada no palácio Monticello, no alto
de uma colina verde. De uma ponte da ferrovia Boston & Maine, dos fundos de
um prédio de escritórios ainda em construção e dos fundos de um cemitério, ela
examinou as instalações da empresa — regimentos de tanques horizontais que
lembravam gigantescas cápsulas de remédio, torres com videiras e gavinhas de
ferro se enroscando por elas acima. O revestimento corrugado dos prédios
principais era de um tom pálido de azul que ela achava que nunca tinha visto;
numa tabela de cores, os tons em torno dele provavelmente seriam agradáveis,
mas aquele tom específico de azul não era. Vagas exalações de acetona eram
nativas do lugar.
Na segunda-feira, o calor tinha atingido plena força branca. Renée vestiu uma
bermuda, ou melhor, uma calça jeans velha com as pernas cortadas, uma
camiseta regata que ela só usava para dormir e calçou sandálias. Na prefeitura
de Peabody, em frente à sala da Secretaria Municipal de Fazenda, no térreo, ela
encontrou registros de oito terrenos não contíguos de propriedade da Sweeting-
Aldren. Os seis que ela conseguiu percorrer de carro não tinham nada mais
interessante do que cavalos; ela não tentou chegar aos outros dois. Estava
dirigindo o mais rápido a que se atrevia e, mesmo assim, já eram quase quatro
horas quando chegou ao aeroporto de Beverly .
A moça da lanchonete estava tirando do óleo quente um cesto de arame cheio
de batatas fritas. Ela disse para Renée procurar um homem chamado Kevin no
hangar.
“Eu posso simplesmente ir entrando?”
“Pode. Ele vai estar lá.”
Assim que ela entrou pela porta do hangar, alguém assobiou para ela, mas só o
que ela conseguiu enxergar a princípio foi um quadrado ofuscante de céu branco
no final do galpão. Perto de onde ela estava, havia um Piper Cherokee e um
avião turbo-hélice de oito lugares e fuselagem quadrada, ambos com o motor à
mostra. Duas duplas de mecânicos de macacão azul e sujos de graxa estavam
trabalhando nas entranhas reluzentes das aeronaves, mexendo lá dentro com
ferramentas. Quando ela lhes perguntou sobre o tal Kevin, eles apontaram para
um rapaz em cima de uma escada perto de um jatinho parado mais adiante. Ele
estava aspergindo um limpador aerossol no para-brisa do jatinho.
“É você que é o Kevin?”
“Sou.” Ele tinha vinte e poucos anos, olhos azul-celeste, cabelo tosado e postura
ereta. Do outro lado do corredor, alguém estava passando aspirador de pó no
interior de outro jatinho, de cuja porta pendia um fio de extensão e de onde
vinham vagos sons de música country .
“Eu queria fazer um voo e me disseram que eu tinha que falar com você.”
“Pra onde é que você quer ir?”
“Só aqui pelos arredores mesmo.”
Ele desceu da escada prontamente, o que a fez pensar que em questão de
minutos eles estariam no ar, mas na verdade ela ainda teve de passar quase uma
hora respirando fumaça de combustível queimado. Nesse meio-tempo, ela pagou
o voo e preencheu e assinou uma dispensa de seguro. Kevin desapareceu durante
algum tempo e voltou sem o macacão, passou uns dez minutos resolvendo que
havia alguma coisa que não estava lhe agradando no primeiro avião que
experimentou, e que parecia estranhamente de cabeça para baixo, depois passou
mais alguns minutos mexendo e remexendo num avião comum, um Cessna, e
por fim estacionou o Cessna do lado de fora da porta do hangar. Tinha posto
óculos escuros. “Pra onde nós vamos?”
“Eu queria só sobrevoar Peabody umas duas ou três vezes. Tem umas coisas
lá que eu gostaria de ver.”
Ele levou o microfone à boca e murmurou coisas incompreensíveis para os
sulcos de plástico. Havia um pequeno bloco de espiral num compartimento
embaixo do painel de instrumentos. Ele virou as folhas plastificadas do bloco uma
a uma, levantando e abaixando flapes, acelerando o motor até as hélices ficarem
invisíveis, murmurando coisas no microfone de novo, apertando botões. A
temperatura da cabine subiu uns dez ou quinze graus. O barulho do motor atingiu
alturas ensurdecedoras enquanto o avião avançava, sacolejante, pelo asfalto
amolecido e pelo concreto firme e depois fazia a curva para pegar a pista de
decolagem, o nariz do avião perfeitamente alinhado com a faixa central da pista.
Ar aquecido e tufos de capim eram as únicas coisas que se mexiam nos acres de
vazio em volta deles.
Eles tombavam para a direita e para a esquerda e quicavam no ar feito um
jipe subindo uma ladeira.
“Tem um espaço aéreo controlado bem aqui a sudeste”, Kevin gritou. “Eu vou
fazer a volta pelo norte de Danvers, se você não se importar.”
“Tudo bem.”
Nenhum ruído em particular se destacava, mas era difícil ouvir. Kevin beijou
o microfone e o pendurou no painel. “Você pode virar aquela alavanca ali agora,
pegar um pouco de ar.”
Estava um dia horrível para voar, os rios turvos e amarelados, a claridade
ofuscante e inescapável. A sopa atmosférica se estendia até bem acima da
altitude que eles estavam mantendo, e tudo no chão se dissolvia numa massa azul,
a menos que Renée olhasse bem para baixo. Lagos e rios pareciam reluzentes
vazamentos de chumbo na terra negro-azulada, estendendo-se em direção a um
horizonte marrom-azulado. Toda vez que eles sobrevoavam uma extensão de
água, o avião descia feito um ioiô. Cada mergulho era seguido de um ricochete
ascendente que era possível prever, mas para o qual era impossível se preparar.
Kevin botou um saco de papel em cima do joelho de Renée.
“Você é bonito”, ela arriscou, gritando.
“Você também. Mas não tanto quanto a minha mulher.”
Ela balançou a cabeça sensatamente. “Em que você trabalha?”
“Eu trabalho como piloto pra uma fábrica de ferramentas de Ly nn. Eles têm
três aviões, um deles jato. Eu sou o número dois, então não piloto muito o jato.
Levo muito o presidente da empresa para o Maine. Pra casa de férias que ele
tem lá. Os convidados dele também. E você?”
“Eu sou fotógrafa.”
“Do...?” Ele apontou para a etiqueta na câmera dela. “Departamento de
geofísica de Harvard?”
“É.”
“Você se interessa por terremotos?”
“Não”, ela gritou. “Formações geológicas.”
“Eu pensei que você estivesse procurando falhas ou coisa parecida. Tem muito
sismólogo por aqui. Um cara que eu conheço fez um voo com um sismólogo no
mês passado, contornando a costa pra cima e pra baixo.”
“Eu posso te mostrar onde eu quero ir?” Ela estendeu um mapa, no qual ela
havia circulado de vermelho a principal propriedade da Sweeting-Aldren e os
dois terrenos menores que ela ainda não tinha visto. Kevin pôs o mapa no colo,
ficou estudando-o por alguns instantes e depois olhou bem para a frente pelo
para-brisa. O avião deu outro solavanco contra mais uma térmica. O barulho do
motor mudou e assim ficou.
“Pode ser?”, ela gritou.
Ele demorou um tempo para responder. “O que é que você quer ver lá na
Sweeting-Aldren?”
Ela entortou o pescoço, fingindo checar o mapa. “Ah, é isso que tem lá?”
“Você tem alguma razão especial pra querer ir lá?”
“Eu estou procurando formações geológicas.”
“Eu não vou poder voar mais baixo que três mil pés.”
“Qual é a nossa altitude agora?”
“Três mil pés.”
“Por que não?”
“Porque eles não gostam. Eles são uma empresa. Eles têm segredos.”
“E se eu encontrar uma coisa que eu quero ver?”
“A Sweeting-Aldren é responsável por mais ou menos metade dos negócios
empresariais feitos no município de Beverly. Eles têm seis jatos lá. Você está
entendendo o que eu estou dizendo?”
“Não.”
“Eu estou dizendo que é lá que eu trabalho.”
“Você trabalha pra Sweeting-Aldren?”
“Eu trabalho pra Barnett Die. Mas eu fico no aeroporto. Você está
entendendo?”
Ele apontou para as duas propriedades menores, um par de terrenos separados
por estradas de terra. O avião sacolejou de novo. O motor engasgou quando eles
se inclinaram para o lado, o sol se derramando no colo de Renée e saindo pela
outra janela. Uma colina vomitava carros amassados e coágulos de sucata
enferrujada. Orgulhosas mansões abriam suas saias de veludo verde numa
extensão de terra encravada entre os velhos falos de tijolo da indústria e as
fábricas mais novas — retângulos chatos com cascalho no telhado e caminhões
se amontoando para encher a pança em gamelas nos fundos. A mais permeável
das membranas separava um country club de acres de pilhas de escória cor de
osso listradas de amarelo sulfúrico, como as mijadas de um cachorro de quatro
andares de altura. Condomínios de prédios baixos com estacionamentos novos
em folha e filiais do Bay Bank se empoleiravam em sumidouros repletos de algas
e resíduos indestrutíveis. Em toda parte, riqueza e sujeira conviviam lado a lado.
Antes de ceder lugar à propriedade da Sweeting-Aldren, a paisagem parecia
hesitar, empreendimentos imobiliários degenerando em bairros subnutridos de
residências pequenas e chatas, algumas casas pré-fabricadas, tabernas solitárias
e ruas não pavimentadas contornando bosques e morrendo diante de uma ou duas
casas inúteis, semiacabadas, com lixo cascateando barrancos abaixo. No lado da
mata que pertencia à empresa, tubos e trilhos montados sobre pilares baixos
cruzavam pântanos em linha reta, atravessando subúrbios industriais feitos de
estruturas circulares idênticas, passando por cima de estradas de tubos
emaranhados, mergulhando rumo ao centro da cidade e depois avançando por
entre bairros-satélite. Veículos passavam em meio às fileiras de barris com
códigos de dez mil cores; línguas de fumaça escapavam do alto de charutos
prateados. O conjunto passava uma impressão de boa administração; havia uma
lógica nos códigos e no movimento. O oceano escuro cintilava logo adiante.
Kevin baixou uma asa para que Renée pudesse tirar algumas fotos. “Já viu o
bastante?”
“Não”, ela gritou. “Você tem que descer mais.”
“Você está parecendo meio pálida.”
“Você tem que descer mais.”
“Eu faço um sobrevoo a mil e quinhentos pés e aí a gente vai embora.”
“Dois sobrevoos a mil pés.”
Ele sacudiu a cabeça. O avião subiu feito um balão de hélio.
“O que eu posso te oferecer?” Ela fez o melhor que pôde para sorrir de um
jeito simpático. O avião deu um mergulho tão brusco que os dentes dela bateram.
“Você não está entendendo”, disse Kevin. “Eles são muito, muito cheios de
frescura.”
“Eu te dou mais dinheiro.”
Ele fez que não. “Um sobrevoo a mil e quinhentos. E eu quero ver a sua
carteira de motorista ou de estudante ou de alguma coisa. Algum documento que
tenha foto.”
Ele pegou a carteira de motorista de Renée e conferiu o nome e a imagem
dela enquanto eles faziam uma curva em sentido anti-horário. “Você tem trinta
anos”, ele disse.
Ela fez que sim, abaixando a cabeça entre os joelhos. Conseguiu abrir o saco
de papel uma fração de segundos antes que uma onda de movimento lhe subisse
pelas costas e lhe sacudisse os ombros. O saco enrijeceu com o novo peso dentro
dele. Kevin entregou a ela um saco novo.
“Joga isso no banco de trás. Nós vamos subir pelo lado oeste, cortar pelo leste e
depois tomar o rumo de casa. Vai ficar tudo virado pra sua janela. Com o sol
atrás de você. Você acha que vai sobreviver?”
A única coisa que a mantinha erguida era estar apoiada na câmera, com a
lente encostada na janela. Ela fotografava tudo, usando o zoom. Eles já tinham
passado da instalação central quando ela se deu conta de que não estava vendo
nada, de que devia estar simplesmente olhando.
Eles tiveram de circundar Wenham enquanto um jato pousava na frente deles
e outro decolava. Renée mantinha os olhos fechados e o rosto colado nas frestas
de ventilação. Cada sacolejo, por menor que fosse, aumentava enormemente seu
mal-estar. Estava chocada com o fato de Kevin continuar lhe dando informações
para digerir. Fatos, àquela altura, eram tão pouco bem-vindos quanto um
sanduíche de salada de atum.
“A gente já está na hora do rush. Eles acabaram de autorizar um jato da
Sweeting-Aldren a pousar e tem outro vindo logo atrás. Eles deviam era ter uma
linhazinha aérea particular.”
O avião subia e descia. O motor zumbia.
“Só mais três minutos e você vai poder botar os pés no chão de novo. Um dia
como esse acaba com quase qualquer um.”
Com um olho, Renée viu a pista de pouso se estendendo diante deles. Só tornou
a abrir os olhos depois que eles já tinham taxiado e parado. “Dá só uma olhada”,
disse Kevin, apontando com o queixo para o hangar. Dois homens de terno, um
deles com um capacete na cabeça, estavam parados na porta do hangar.
“Você não acreditou em mim, não foi?”
“Espera espera espera.” Ela estava rebobinando o filme.
“Eu não estou vendo isso. Estou saindo lentamente pela porta.”
De cabeça baixa, ela botou um filme novo na câmera e tirou vinte fotos de
nada. Os homens agora estavam esperando no pátio de manobra. Quando ela
desceu do avião, um deles entrou para revistar o interior da aeronave, enquanto o
outro a conduzia até o hangar.
“Você precisa deixar que ela se sente”, disse Kevin. “Ela está muito enjoada.”
Sem dizer nada, ela se encostou numa parede de um corredor enquanto, atrás
dela, sua bolsa era revistada. Na lanchonete, ela recebeu permissão para se
sentar numa mesa em cujo tampo havia uma mancha fina e comprida de
ketchup. O homem de capacete estava com a bolsa dela no colo; seu rosto era
vermelho, achatado e espantado, uma nuca com olhos de botão. Ele ficou calado
a entrevista inteira, esquadrinhando incansavelmente os seios e os ombros de
Renée.
O outro homem tinha uma tonsura, cabelo grosso e liso cor de grafite que se
amontoava em cima da gola de sua camisa, e cenho inteligente de águia. Estava
revirando as carteiras de identificação de Renée entre os dedos. “Renée Seitchek,
Pleasant Avenue número 7, Somerville. Universidade Harvard.” Cravou os olhos
nela. “Renée, nós soubemos que você andou tirando fotos de algumas instalações
industriais. E, sinceramente, estamos loucos pra saber o que motivou você a
fotografar aquelas instalações específicas.”
“Eu posso tomar um copo d’água?”
“Tá enjoadinha? Talvez um Sprite ajude. Bruce?” Ele fez um gesto com a mão
na direção do balcão e Bruce se levantou. “Mas continue.”
“Eu sou fotógrafa.”
“Fotógrafa! Que tipo de coisas você gosta de fotografar, Renée?”
“Coisas... interessantes, coisas bonitas.”
“Ah, você é fotógrafa artística. Que coisa fascinante!” O interrogador olhou
para ela com ar de admiração. “Mas, sabe, eu não estou conseguindo resistir à
tentação de perguntar: o que há de tão bonito numa instalação industrial? Você
quer tentar me explicar isso? Considerando que é uma coisa que mais ou menos
contraria as nossas ideias preconcebidas.”
“Quem é você?”, perguntou Renée.
“Rod Logan, gerente de segurança operacional das Indústrias Sweeting-
Aldren. Meu assistente, Bruce Feschting. Nós fizemos uma viagenzinha especial
até aqui pra conhecer você, Renée. Ah, olha só pra isso. O Bruce se superou de
novo. Sprite e água e um guardanapo. Por falar em guardanapo, Renée, talvez
você queira limpar um pouquinho o seu queixo.”
Um grupo de homens usando sapatos sociais marchou lanchonete adentro,
trocando saudações com Logan e Feschting. Pastas 007 balançavam em suas
mãos enquanto eles se dirigiam à porta que dava acesso ao estacionamento.
“Mas essas fotografias artísticas”, disse Logan. “Como é que é o mercado pra
elas, hein? Você tem um patrocinador rico? Tem muita empresa comprando arte
hoje em dia.”
“É só pra mim.”
“Só pra você! Você não se importa se eu perguntar o que a atraiu para aquelas
instalações em particular, se importa?”
“Eu vi as instalações da estrada.”
“Você estava só passando de carro por lá, não é? Mas teve alguma coisa
específica que lhe pareceu interessante e bonita nas nossas instalações?”
“Não. Foi o conjunto todo. A aparência dele.”
“Caramba, o mundo realmente deixa a gente de queixo caído às vezes.” Logan
sacudiu a cabeça. “Simplesmente de queixo caído. Sabe, em algum lugar do
vasto universo eu tenho certeza de que existe uma Terra em que uma menina de
Harvard realmente vai até o aeroporto mais próximo de nós e faz um voo em
plena luz do dia num avião bem identificado, querendo apenas tirar algumas fotos
pelo puro prazer que isso dá a ela. Universo infinito, uma infinidade de mundos.
Mas, sabe, em que mundo eu estou? Nesse? Ou será que é num mundo mais
como esse aqui?” Ele deu golpes no ar com as mãos, sugerindo galáxias em
movimento. “Mas escuta, Renée, eu sou um cara razoável. E legalmente,
legalmente, eu não posso te impedir de sair por aí tirando fotos até enjoar. Você
sabia disso? Que eu não posso legalmente te impedir? Mas, sabe, eu estou
segurando a sua câmera no meu colo agora e o Bruce está segurando o outro rolo
de filme que estava na sua bolsa...”
“Esse filme está virgem.”
“Está virgem, Bruce? É, parece que está. Então você vai ficar feliz em vender
esse filme pra gente por dez dólares. E quanto ao que está dentro da câmera,
falando em termos práticos, eu gostaria de lhe oferecer revelação e impressão
grátis, com o compromisso de enviar as fotos para o seu endereço de Somerville
assim que elas ficarem prontas. Eu sinceramente não consigo imaginar um
acordo mais amigável. Porque, sabe, Renée, nós levamos os nossos segredos
comerciais muito a sério e temos guardas armados na nossa propriedade e um
fundo de um milhão de dólares especialmente reservado para processar espiões
industriais com o máximo rigor que a lei permite. Então por que você não nos
deixa revelar esse filme e depois mandar as fotos pra você, arcando com todas
as despesas? Não parece uma proposta razoável, Bruce?”
“Essas fotos são particulares”, Renée disse.
“Ah, elas são particulares, sim. Mas por uma questão prática, considerando
quem está com a câmera no colo, eu sou forçado a dizer que a sua única outra
alternativa seria me permitir abrir a câmera e expor o filme inteiro à luz.”
Ela cravou as mãos na cabeça, arrasada. “Vai em frente. Só me deixa em
paz.”
“Tem certeza?”, Logan perguntou, já abrindo a máquina.
Um novo contingente de executivos havia entrado na lanchonete. Feschting se
levantou, sem jeito, e saiu de trás da mesa. “Sr. Tabscott”, disse. “Sr. Stoorhuy s.”
“Oi, Dave. Dick.” Logan acenou para os recém-chegados, as mãos ocupadas
com o filme.
“Rod, Bruce. De onde vocês estão vindo?”
“De lugar nenhum. Nós tivemos um incidentezinho aqui.”
Tabscott saiu da lanchonete, mas Stoorhuy s parou e se debruçou sobre a mesa,
as mangas de seu paletó se engelhando nos cotovelos, dez centímetros de punho à
mostra. Ele acenou com a cabeça, mas estava olhando para Renée, de esguelha.
Seus lábios se franziram, deixando os dentes à mostra.
“Essa aqui é a Renée Seitchek”, disse Logan. “A nossa última sobrevoante.
Fotógrafa artística. Aluna do departamento de geofísica de Harvard. A lividez do
rosto se deve a um violento caso de enjoo aéreo.”
Os lábios separados, Stoorhuy s a examinou mais de perto. “O sr. Logan
explicou a você o motivo da nossa precaução?”
“Explicou.”
“Nós vamos providenciar para que você seja reembolsada pelo seu filme.”
Ela balançou a cabeça, os olhos voltados para baixo.
“Ela gosta de fotografar coisas bonitas e interessantes”, Logan comentou.
“Ela própria é uma coisa bonita e interessante”, disse Stoorhuy s, com patente
insinceridade. Parecia ter perdido o interesse. Seus dedos ossudos apertaram o
ombro de Logan. “Pega leve.”
“Deixa comigo, Dave.”
Instantes depois, ela foi deixada sozinha na mesa. Tomou sua água, deitou a
cabeça, encheu os pulmões. Uma nota de vinte dólares estava pousada perto de
sua orelha. De repente, um saco de papel caiu em cima da mesa. Renée deu um
pulo.
“Está aí o seu vômito”, disse Kevin.
Ela pegou um punhado de guardanapos antes de sair da lanchonete. Rodou
vinte minutos e, por fim, parou no estacionamento de uma agência do Shawmut
Bank. Escondendo-se atrás de uma lixeira feito um guaxinim, ela rasgou o saco
de vômito e recuperou o rolo de filme debaixo do conteúdo de seu estômago. As
luzes da autoestrada reluziram em seus olhos quando ela lançou uma olhadela
furtiva por cima do ombro.
Estava ficando claro que ela não ia conseguir ver as fotos antes de se encontrar
com Melanie. De qualquer forma, duvidava que as fotos fossem revelar muita
coisa. Se a Sweeting-Aldren mantinha um poço de injeção perto de suas
principais instalações, ele muito provavelmente estava escondido sob um galpão.
Renée voltou para Cambridge, devolveu o carro e ficou na biblioteca Widener
até a campainha que anunciava o horário de fechamento tocar.
Na manhã seguinte, ela tomou café da manhã e pouco depois botou tudo para
fora. Fumou o resto do baseado e tomou um segundo café da manhã no Au Bon
Pain antes de voltar para as máquinas de microfilme da Widener. À uma e
quinze da tarde, fez uma cópia de uma foto que saíra no Globe em 9 de março de
1970. A foto mostrava uma filial bancária recém-aberta num edifício comercial
de quatro andares na Andover Street, em Peabody ; por entre as árvores peladas
ao fundo, era possível ver a parte de cima de uma estrutura que lembrava,
parecia-lhe, uma torre de perfuração.
Depois, foi ao banco levando seu título de poupança da série E, um “war bond”
que ganhara de presente de uma avó já falecida. O funcionário do banco
observou que ainda faltavam dois anos para o vencimento do título.
“Quanto é que ele vale agora?”
Ela tinha oitenta notas de cem dólares no bolso da frente de sua calça jeans
quando desceu do trem em Salem, com a primeira leva de pessoas que voltavam
do trabalho. O endereço que tinham lhe dado a levou à sede do condado, em
frente à qual, numa casa antiga reformada, revestida de fasquias brancas e com
uma placa em que se lia 1753, ficavam os escritórios de Arger, Kummer &
Rudman.
“Senhorita Seitchek”, disse Henry Rudman, afável, botando sua mão larga no
meio das costas de Renée. Fez com que ela se sentasse numa cadeira posicionada
bem em frente à mesa dele e parou a seu lado, solícito, perguntando se ela
aceitava alguma coisa para beber.
“Água gelada, por favor.”
Atrás da mesa dele, num canto da sala situado entre um computador e um ar-
condicionado de janela que parecia prestes a pedir arrego, Melanie estava
sentada de cabeça baixa, com as mãos entrelaçadas sobre o colo. Lançou um
único e rápido olhar para Renée, cheio de mágoa, como uma mulher num
tribunal que não espera mais nada do marido, a não ser uma parte do patrimônio
dele e de sua futura renda. O amor tinha morrido. Tudo se reduzira àquilo.
Renée cruzou os braços e jogou a cabeça para o lado, com indiferença. Em
cima da mesa de Rudman havia pequenas fotografias de uma esposa e de três
menininhas, mas em termos ornamentais a sala era dominada por três
ampliações em preto e branco na parede, todas autografadas: Ted Williams num
cruzeiro, com o braço em volta dos ombros de um Rudman mais jovem;
Rudman e Yastrzemski de rosto colado, numa mesa de banquete; Rudman e Jim
Rice, de tacos em punho, num campo de golfe com palmeiras ao fundo. Renée
riu. Seus olhos estavam vermelhos, seu queixo pontilhado de novas espinhas. Seu
cabelo vinha crescendo fazia meses e agora, de repente, estava quase batendo
nos ombros — sujo, um emaranhado de ondas duras. Ela cheirava a suor e couro
cabeludo. De alto a baixo ela estava melada de oleosidade; melada, suja,
animalesca e sexy. Lançou um súbito olhar de relance para Melanie, que
abaixou os olhos de novo.
Rudman trouxe o copo d’água e se plantou atrás de sua mesa. “Então,
senhoras, estamos todos prontos?” Ele não esperou uma resposta. “Senhorita
Seitchek, a senhora Holland me disse que a senhorita a abordou a respeito de uma
aposta quanto ao desempenho de um certo imóvel e de ações de uma certa
empresa. Sendo o imóvel em questão a propriedade da senhora Holland em
Ipswich e as ações em questão as da empresa Sweeting-Aldren. As informações
estão corretas?”
“Não”, disse Renée. “Não fui eu que a abordei. Foi ela que me abordou. Além
disso, eu não tenho nada a dizer a respeito do imóvel. Se ela quiser tirar
conclusões com base no que eu disser a respeito das ações, isso é com ela.”
Rudman e Melanie trocaram olhares. “A senhorita é sismóloga, senhorita
Seitchek.”
“Sou.”
“Nós podemos pressupor que a senhorita esteja baseando a sua previsão na sua
interpretação de dados sismológicos. Mas a previsão se aplica apenas às ações, é
isso?”
“Peabody e Ipswich ficam a quase dezoito quilômetros de distância uma da
outra.”
“Isso é novidade?”
“O que eu estou dizendo é que não existe uma conexão óbvia.”
Rudman se virou. “Senhora Holland?”
Melanie apertou os lábios um contra o outro, aparentemente contando até
cinco. “Eu gostaria de lembrar a você, Renée, que, embora seja verdade que fui
eu que a abordei, foi você quem mencionou dinheiro e sugeriu um acordo.
Também gostaria de lembrá-la que você a princípio omitiu deliberadamente que
tinha informações que poderiam me ajudar, e você não me disse que essas
informações não se aplicariam ao imóvel.”
Renée deu um de seus sorrisões. “Você quer que eu vá embora?”
“Senhoras, senhoras.”
“Eu agradeceria se você dissesse a verdade”, disse Melanie, num tom neutro.
“É só isso que eu estou dizendo.”
“Pode ser, senhorita Seitchek? A senhorita pode tentar dizer a verdade para nós
podermos seguir adiante? Isso vale para a senhora também, senhora Holland.”
Melanie fez uma pose de mulher íntegra.
“Pois bem, senhorita Seitchek, hã...” Rudman coçou o bigode. “A senhora
Holland relatou que a senhorita esperava que ela botasse na aposta... hã...
cinquenta mil dólares, que nós podemos deduzir que...”
“Não”, disse Renée, enfática. “Não. Eu disse que queria no mínimo cinquenta
mil dólares. E disse também que, quanto mais certa eu estivesse, maior deveria
ser a minha recompensa.”
“Em momento algum eu concordei com essa condição.”
“Eu disse que você tinha concordado?”
“Senhoras.”
“Eu também disse que apostaria todo o dinheiro que eu conseguisse levantar
nesse arranjo. O que eu estou pronta para fazer.” Ela tirou o bolo de notas do
bolso e o jogou em cima da mesa de Rudman.
“Dinheiro!”, ele exclamou, como um Fausto horrorizado, levantando-se
parcialmente de sua cadeira.
“Guarde isso”, disse Melanie.
“Senhorita Seitchek, por favor, hã... Isso é muito tocante, como gesto, mas
sinceramente isso é uma coisa para se manter num lugar seguro. Não é uma
coisa para se pôr na mesa de outras pessoas, sem elástico, sem nada. Eu estava
para dizer à senhorita, aliás, que a senhora Holland respeitosamente recusa a sua
oferta de uma garantia e de uma escala móvel. Em contrapartida, ela insiste em
fixar como teto os cinquenta mil que a senhorita propôs.”
Renée se levantou e enfiou o bolo de dinheiro de volta no bolso. “Nada feito.”
“Senhora Holland?”
Melanie inclinou a cabeça para o lado mecanicamente, como um pássaro.
“Que tipo de teto você tinha em mente, Renée? Ou você não queria teto algum?
Será que a sua ideia era pedir trinta por cento logo de uma vez?”
“Um milhão de dólares.”
Melanie soltou um bufo de desdém.
“Quanto dinheiro tem aí no seu bolso, senhorita Seitchek? Se é que eu posso
perguntar?”
Ignorando-o, Renée deu um passo na direção de Melanie e se dirigiu a ela
diretamente. “Eu vou lhe dizer o que vai acontecer com essas ações específicas
nos próximos três ou seis meses, o que você preferir. Você vai ou comprar mais
ações ou vender a sua participação na empresa de acordo com a minha
recomendação. Se você ganhar quinhentos mil dólares porque eu lhe dei o
conselho certo, eu quero cinquenta mil. Se você ganhar dez milhões, eu quero um
milhão. São dez por cento até um milhão. Se não ganhar nada ou se perder
dinheiro, você fica com o dinheiro que eu tenho aqui no meu bolso agora. São
oito mil dólares.”
Rudman estava balançando a cabeça e agitando os braços, como um árbitro
tentando apitar um impedimento. Melanie encarou Renée com um olhar
alucinado. “É o Louis!”, disse. “Não é você de jeito nenhum. Você... você nem
sequer está aqui! É o Louis!”
“Ah, meu Deus, senhora Holland. Sinceramente.”
“Você está enganada”, disse Renée, tremendo de ódio. “Você está
completamente enganada.”
Rudman acenou para ela. “Está vendo? Ela diz que a senhora está enganada.
Está vendo? Mas... hã... senhorita Seitchek, a senhorita vai precisar nos dar
licença um instante.”
Ele conduziu Melanie em direção ao fundo da sala, onde havia uma porta que
dava para uma sala de reuniões, forrada de sentenças. Ouvindo o trinco estalar,
Renée se sentou, fechou os olhos e respirou. Cinco minutos se passaram antes que
Rudman saísse lá de dentro. “Dez por cento até chegar a duzentos mil, oito mil de
garantia.”
Ela não se virou. “Não”, disse. E acrescentou, como se fosse uma palavra
estrangeira que ela não tinha certeza se havia pronunciado corretamente: “Não”.
Rudman se retirou. Dessa vez, ele voltou em menos de um minuto. “Última
oferta, senhorita Seitchek. Trezentos e cinquenta mil.”
“Não.”
Novamente o trinco estalou. Ela pensou que estivesse sozinha, até que sentiu a
mão dele em seu ombro e viu o bigode dele se aproximando obliquamente. “A
senhorita disse não?”
“Disse.”
“Deixe-me lhe fazer uma pergunta, senhorita Seitchek. Só uma perguntinha,
está bom? Que merda é essa que você acha que está fazendo?”
Ela ficou olhando fixamente para a frente.
“Claro que Harvard é uma excelente universidade, e talvez você seja uma
excelente aluninha de pós-graduação, mas... uh... trezentos e cinquenta mil
dólares...”
“Sem descontar os impostos.”
“Será que não estamos nos deixando levar por uma certa avidez, não? Você já
ouviu falar numa coisa chamada moderação? De parar enquanto se está
ganhando? Em compaixão por uma senhora que obviamente não está batendo
muito bem da bola? Eu tenho certeza de que não preciso lhe dizer que ela está lá
naquela sala me dizendo pra aceitar as suas condições. Você sabe o que ela
acabou de me dizer? Ela me disse que você é o Demônio, Demônio com D
maiúsculo, e eu juro pra você que ela quis dizer literalmente o Demônio, juro por
Deus. Com a cara mais séria do mundo! É esse o tipo de pessoa que você está
imprensando contra a parede. Mas só aqui entre nós dois, garotinha, você não é o
Demônio. Você é uma estudantezinha de pós-graduação sebenta que só Deus
sabe como conseguiu botar as garras numa senhora fina como a senhora
Holland. E quer saber de mais uma coisa? Você não vai levar mais do que
trezentos e cinquenta mil nessa. Eu não preciso lhe dizer que nós estamos lidando
com uma pessoa que perdeu a perspectiva das coisas. Por ela, você levaria o
milhão todo, mas eu não vou deixar que ela faça isso. Eu não vou deixar. Ela
pode ficar burra de pedra e ir parar num manicômio no que depender de mim,
mas eu não vou deixar que ela dê um milhão de dólares de mão beijada pra uma
vigaristazinha que está vendendo segredos por trás das costas do chefe. Eu estou
lhe dizendo o que eu penso de você, senhorita Seitchek. Eu acho que você é uma
merdinha de uma golpista sebenta. Você está me ouvindo?”
Ela estava absolutamente imóvel.
“É, e pra sua informação, você não vai encontrar muitos caras mais mansos
do que eu por aí não.”
“Descontando os impostos”, ela disse em voz baixa. “Seiscentos é trezentos e
cinquenta, mais ou menos, descontando os impostos. E eu vou embora se você
não aceitar.”
“Ei, grande ideia. Por que você não vai embora agora logo de uma vez? Ou
você precisa que eu lhe explique como é vender blocos de ações? Talvez você
queira uma aula sobre ganhos de capital? Você já ouviu falar nisso? E em
comissão do corretor? Não, o que é que eu estou dizendo, você provavelmente
decorou a tabela do imposto.”
Ela se levantou de um salto e, antes que ele pudesse impedi-la, entrou na sala
de reuniões. Melanie estava debruçada sobre a mesa oval, chorando.
“Seiscentos mil”, disse Renée, enquanto se desvencilhava das mãos de
Rudman. “Seiscentos mil.”
“Cala a boca! Cala a boca!”
Melanie segurou a mão de Rudman, num gesto de súplica. “Henry , aceita!”
“Senhora Holland...”
“Aceita. Eu disse pra aceitar. Aceita e a gente acaba com isso.”
10.
A certa distância dali, uma porta se fechou e os ruídos dos passos de alguém
parecem estar ficando cada vez mais baixos, mas de repente começam a ficar
mais altos, ecoando no poço da escada, e continuam aumentando cada vez mais
à medida que descem os degraus sem pressa, tornando-se altíssimos ao chegar
ao patamar diante das salas do sistema. Não fazem sequer uma pausa ali: passam
direto. O corredor já havia contado vinte e quatro passos quando a porta de
enrolar foi aberta; o último som é o som da porta descendo até o chão e travando.
Os diodos do mostrador da cpu tremeluzem, cônscios.
***
***
O sistema pode ficar irritadiço quando está sobrecarregado. Pode levar uma
eternidade para executar tarefas simples. Pode enviar mensagens frustrantes
para o seu console. Pode fingir-se de morto.
Se você se esquecer de dizer ao sistema para não esperar alguma coisa, ele vai
ficar esperando. De tantos em tantos minutos, ele vai cuspir uma mensagem no
papel no console do sistema, informando ao mundo que, embora você tenha
esquecido o seu compromisso, ele não esqueceu. E vai ficar cuspindo essas
mensagens por horas a fio.
Quando não tem nada para fazer, o sistema dorme. Acorda sabendo que horas
são com uma precisão de centésimos de segundo.
Às vezes o sistema se torna irracional, e um moço vestindo um uniforme
apertado demais tem de vir com suas pastas de alumínio e examiná-lo. A cpu é
aberta e sofre a indignidade de ter suas placas removidas, uma atrás da outra, até
que a que está com defeito seja encontrada. Depois fica tudo bem de novo.
***
É de manhã: o corniso está sendo fotografado. O jornal diz: Comida pode não
ser amor, mas também dá prazer e tem suas utilidades.
Todas as luzes estão acesas. Latas de refrigerante boiam de lado num mar de
papel amassado. O hemisfério de plástico rachado que pertence ao globo da sala
tem cascas de amendoim dentro dele, e o painel da frente do radiador, de cujo
ventilador também pode sair ar frio, está jogado no chão, com sua apodrecida
lâmina de espuma isolante para cima. Na sala do mainframe, uma embalagem
de Twinkies e o papelão pegajoso que vem embaixo do bolinho estão largados
em cima da cpu, perto dos modems.
Nos sete anos que se passaram desde que ele começou, o ruído só parou uma
vez. Era mais de meia-noite num sábado de agosto quando uma correia do ar-
condicionado arrebentou. Um alarme alertou a Segurança do Campus de que
algo havia acontecido, mas não havia nenhum sinal de arrombamento e o ar-
condicionado estava fazendo seu ruído habitual, então os seguranças desligaram o
alarme. A temperatura na sala do mainframe subiu a cinquenta e quatro graus
antes que Renée chegasse para trabalhar e, devidamente horrorizada, desligasse
o sistema.
Que silêncio se instalou ali naquele dia. Era como estar diante de um oceano
do qual toda a água tivesse sido retirada.
***
compras
desejo = desejo + desinc
leia pequenasnecessidades/grandesnecessidades/grandesvontades
vásub tiponecessidade: necessidades.temp; dinheiro;
DIRIJAPARAESTACIONAR Shopping(n,)
ANDEPARA Shopping(n,necessidades(1))
em prodquente vásub compraimpulsiva
em deslumbre vásub compraimpulsiva
COMPRE necessidades(1)
se dinheiro < 6i saiasub
se desejo(2) < .5 então 80
SINTA desejo(2)
vásub jantarfora
80 próximas necessidades
jantarfora
10 vásub escolhacomida
jcompatível Shopping(n, c(1))
em incompatível vásub escolhacomida
ANDEPARA Shopping(n,c(1))
se álcool então alc = (0,1) se não alc = (1,0)
COMPRECOMA c(1), [j(1a, 1b) *alc]
em gostosa 3200
desejo(2) = desejo(2) – [valorj(c1)]
se desejo(2) < .5 saia se não 10
[paquera
DIGA “Oi”
em esnobada saiasub
conheçaela = ela/10
110 leia $eladiz
busca assuntoconv
pcompatível $eladiz $responda
rem: valp atribuído em pcompatível
DIGA $resposta
em esnobada saiasub
conheçaela = conheçaela + valp
vásub avaliaela
se ela *desejo < .5 saiasub
se conheçaela < .67 então 110
DIGA “Escuta, se você estiver livre, talvez a gente
possa”;$linha(n)
leia $eladiz
...
[escolhacomida
randomize
comida = int(md*10)
crie b1 {a,b}
se comida = 1 então c1 = {pizza} b1 = {pepsi, cerveja} saiasub
se comida = 2 então c1 = {nachos} b1 = {sprite, cerveja} saiasub
se comida = 3 então c1 = {nuggets}...
3150 assistanoticiário
ligue bib :papoquente
...
...
Talvez você queira objetar: Por acaso a inteligência artificial é capaz de ler
um livro com compreensão? Ela é capaz de pintar um quadro genuinamente
original ou compor uma sinfonia? É capaz de distinguir fatos de meras imagens e
tomar decisões políticas responsáveis com base nessa distinção?
O sistema salienta que o programa simula a inteligência do americano médio
na década de 1990.
Você pode argumentar ainda que nenhuma máquina, por mais sofisticada que
seja, será jamais capaz de sentir subjetivamente a cor azul ou saborear o gosto
de canela ou ter consciência de si enquanto pensa.
O sistema considera isso uma perigosa irrelevância. Pois, a partir do momento
em que você permite que a subjetividade entre numa discussão lógica, a partir do
momento em que você confere realidade a fenômenos que jamais poderão ser
verificados por uma máquina ou uma reação química, a partir do momento em
que você diz que a interpretação subjetiva que uma pessoa dá a moléculas de
canela como Ah! Canela! tem uma significação, você abre uma caixa de
Pandora. Quando você der por si, a pessoa vai estar lhe dizendo que ela interpreta
o silêncio no cume de uma montanha como Ah! Existe uma presença eterna ao
meu redor, e a escuridão no quarto dela no meio da noite como Ah! Eu tenho uma
alma que transcende sua clausura física; e é por aí que se chega à loucura.
É muito mais sábio viver racionalmente, como uma máquina faz. Votar no
candidato que se opõe mais ferrenhamente aos chefões do tráfico de drogas.
Sustentar que o que existe de real no sabor da canela são as informações nela
contidas: ela diz a seu cérebro — e isso por puro acidente químico, já que canela
não tem nutrientes — me coma, eu faço bem para você. É certamente mais sábio
rir da pessoa que lhe diz que sem a sua experiência subjetiva da canela você teria
se enforcado aos treze anos de idade, ou que sem a sua experiência subjetiva do
cheiro da neve derretendo a sua atitude em relação a sua mãe ou a sua mulher
ou a sua filha se resumiria a O que eu posso fazer para que ela me dê o que eu
quero? E como algumas pessoas não têm paladar e como o líder de uma nação
de daltônicos mora em sua negra Berlim ou em sua cinzenta Tóquio ou em sua
Casa Branca e zomba daqueles que dizem que têm sentimentos em relação à cor
azul, você precisa aprender a zombar daqueles que estiveram nas montanhas e
dizem ter sentido a presença de um Deus eterno, e a rejeitar quaisquer
conclusões que eles tirem dessa experiência.
Se não — se deixar que a emoção o engane e o faça acreditar que existe algo
único ou transcendente na subjetividade humana — você pode acabar se
perguntando por que organizou a sua vida como se você não passasse de uma
máquina voltada para a desprazerosa produção e o prazeroso consumo de
mercadorias. E por que, a pretexto de uma educação responsável, está incutindo
em seus filhos o mesmo éthos consumista, se o aspecto material não é a essência
da humanidade: por que está garantindo que a vida deles seja tão entulhada de
mercadorias quanto a sua, com tarefas, loops, input e output, de modo que eles
vivam sem qualquer outro propósito a não ser o de perpetuar o sistema e morram
sem qualquer outra razão a não ser a de estarem exaustos. Você pode começar a
recear que, a cada aparelho que compra, a cada objeto de plástico que joga fora,
a cada galão de água quente que desperdiça, a cada ação da Bolsa que negocia, a
cada quilômetro que roda, você está apressando o dia em que não haverá mais
terra nem ar nem água no mundo que não tenha sido modificado, o dia em que a
primavera terá cheiro de ácido clorídrico e uma chuva de verão terá sabor de
paradiclorobenzeno, e a água que sai da sua torneira terá um tom vivo de
vermelho e um gosto igualzinho ao da Pepsi, e os únicos pássaros no mundo vão
ser pardais amestrados que piam “Simplesmente diga não!”, gaios-azuis que
gritam “Sexo!” e galinhas que cacarejam “Carne branca!”, e você vai comer
carne vermelha numa noite, frango na noite seguinte e carne vermelha na outra,
e todas as florestas vão estar plantadas com o mesmo tipo de pinheiro ou o
mesmo tipo de bordo, e mesmo a mil e tantos quilômetros de distância da costa o
fundo do oceano vai estar coberto de escória enferrujada e garrafas de plástico,
e apenas atuns, sardinhas e camarões graúdos vão nadar por lá, e mesmo à noite,
no alto de uma montanha remota, o vento terá o cheiro do ar que sai da chaminé
de um McDonald’s e você ouvirá alarmes de carro, barulho de televisão e o
ronco dos jatos, no interior dos quais estará sendo oferecida aos passageiros a
opção entre Frango... ou carne? — e a natureza em que todas as pessoas,
conscientemente ou não, um dia sentiram a imanência da eternidade estará
morta, e o jornal que você pode ler na tela de um computador que você comprou
com o dinheiro que ganhou trabalhando arduamente em outra tela irá lhe dizer
que O homem é livre e todos somos iguais e que Minigolfe é o novo jogo urbano. E
como poderia ser perturbador achar tal mundo insatisfatório! Então, pelo bem da
sua própria paz de espírito, já que de qualquer forma nada pode ser provado nem
refutado — uma vez que a sua ciência se abstém de responder justamente
aquelas perguntas que dizem respeito à capacidade da mente humana de sentir
aquilo que, num sentido absoluto e verificável, não está lá —, será que não é
infinitamente mais seguro pressupor que as máquinas tenham sua própria alma e
seus próprios sentimentos virtuais?
Renée tinha voltado para casa do escritório de Arger, Kummer & Rudman
com uma dor de cabeça alucinante, um contrato de duzentas e setenta palavras
autenticado e suas oitenta notas de cem dólares. Melanie, irracional até o fim,
havia se recusado a aceitar o dinheiro como garantia. Renée respondeu a um
anúncio de uma pessoa que estava vendendo um Mustang 74 conversível,
vermelho-fogo. Deu uma nota de cem dólares para o mecânico que avaliou o
carro e mais trinta e oito para o zoólogo de invertebrados que estava vendendo o
carro.
Depois, rumou para as badaladas lojas de roupas da Harvard Square, lugares
que eram filiais de lojas da parte sul da Broadway, em Manhattan. Comprou
saias curtas e justas, sapatos lustrosos, batons, camisetas de verão que custavam 3
dólares o grama, um par de óculos escuros. Comprou uma jaqueta de couro e
bijuterias de plástico.
Na manhã seguinte, voltou para a Square, cortou o cabelo e fez mais algumas
compras. Estava parada em frente ao espelho de uma loja de roupas, vendo se
tinha corpo para usar uma saia verde-limão com um corte para lá de justo,
quando seus olhos refletidos encontraram seus olhos de verdade e de repente lhe
ocorreu que só o que ela estava fazendo era tentar imitar o estilo de Lauren
Bowles.
Decidiu que já tinha comprado o bastante por ora.
O Mustang virava cabeças enquanto ela rumava para o norte com a capota
abaixada, cruzando Cambridge e Somerville. Pegou a pista do meio da i-93. A
única coisa desanimadora era que ela não suportava nenhuma das músicas que
tocavam no rádio.
O ar em Peabody tinha cheiro de alga marinha. Na Main Street, no quarteirão
seguinte ao do Warren Five Cents Savings Bank, ela bateu duas vezes na janela da
sede do Peabody Times antes de reparar no aviso que dizia fechado esta sexta.
Encostou-se num para-lama, sentindo a quentura do metal através do tecido fino
de sua saia, e roeu três unhas até o limite do aconselhável.
Na Andover Street, localizou o prédio bancário de meia-idade que ela tinha
visto fotografado quando recém-nascido num exemplar do Globe de 1970. A
ferrugem agora carcomia os painéis que revestiam a fachada; a calçada estava
rachada, crestada e cheia de tufos de capim. Do outro lado da rua havia uma
lavanderia, uma videolocadora e uma “lanchonete” que vendia cerveja e artigos
de mercearia. O homem atrás do balcão da lanchonete era um português, que
lhe disse que era dono do estabelecimento fazia seis anos. Ela jogou a garrafa de
Pepsi que tinha comprado no banco de trás do Mustang.
Circulou de carro pelo bairro operário que ficava atrás do prédio do banco,
passando por casebres brancos que pareciam à beira da condenação,
atravessando diferentes concentrações de vapores de acetona, subindo e
descendo todas as ruas que terminavam na cerca alta da empresa, com suas
placas que diziam entrada expressamente proibida. Parou em frente a uma casa
em cuja varanda havia um senhor de cabelos brancos. Ele veio mancando pelo
gramado, poupando um quadril problemático, e ficou olhando para ela como se
ela fosse o Anjo da Morte que havia chegado em seu Mustang vermelho mais
cedo do que ele esperava. Ela disse que seu nome era Renée Seitchek e que era
sismóloga da Universidade Harvard e perguntou se podia lhe fazer algumas
perguntas. Aí ele teve certeza absoluta de que ela era o Anjo da Morte, capengou
de volta até a varanda e, dessa posição relativamente segura, gritou: “Cuida da
tua vida!”.
Ela tentou outras ruas e abordou outros velhinhos. Ficou se perguntando se
haveria alguma coisa na água dali que fazia com que eles fossem todos tão
bizarros.
Uma mulher atarracada, que estava revolvendo a terra em volta de algumas
roseiras aparentemente mortas, viu Renée passar de carro pela terceira vez e
perguntou o que ela estava procurando. Renée disse que estava procurando
pessoas que morassem ali no bairro pelo menos desde 1970. A mulher pousou
sua pá. “Eu ganho algum tipo de prêmio se disser que moro?”
Renée estacionou o carro. “Eu poderia lhe fazer algumas perguntas?”
“Bom, se é pela ciência.”
“Você se lembra de ter visto, mais ou menos uns vinte anos atrás, uma... uma
estrutura particularmente alta naquela propriedade ali, meio parecida com uma
torre de petróleo?”
“Claro que lembro”, a mulher respondeu na mesma hora.
“Você se lembra em que ano foi isso?”
“O que é que isso tem a ver com terremotos?”
“Bom, eu acho que a Sweeting-Aldren pode ser responsável por eles.”
“Não diga? Então talvez eles queiram consertar o teto da minha cozinha.” A
mulher riu. Ela tinha uma boca larga, pintada de batom laranja, e um físico que
lembrava um pouco uma caixa de correio. “Deus do céu, eu não acredito nisso.”
“A minha outra pergunta é se você teria alguma foto antiga em que apareça
a... hã... estrutura.”
“Foto? Entra aqui um instante.”
O nome da mulher era Jurene Caddulo. Ela mostrou a cratera cinza no teto de
sua cozinha e não descansou enquanto Renée não encontrou a combinação certa
de frases para expressar sua solidariedade e indignação. Jurene contou que
trabalhava como secretária na escola secundária ali perto e ficara viúva fazia
oito anos. Numa gaveta da cozinha, ela tinha umas cinco mil fotografias, enfiadas
ali sem nenhuma espécie de organização.
“Você aceita um licor?”
“Não, obrigada”, disse Renée, enquanto garrafas de Amaretto, de licor de
damasco e de cereja eram postas em cima da mesa. Jurene voltou de outro
cômodo da casa trazendo um par de taças de cristal lapidado
extraordinariamente feias.
“Você acredita que só me sobraram duas dessas taças? Eu tinha oito antes dos
terremotos. Você acha que eu posso processar a fábrica? Essas taças são
antiguidades, não existem mais por aí não. Você gosta de Amaretto? Toma aqui.
É bom, não é?”
Cupons de desconto expirados pontuavam a desordenada história fotográfica
da família Caddulo. A filha de Jurene que morava em Revere e a outra filha, que
morava em Ly nn, tinham posto no mundo crianças de variados formatos e
tamanhos; ela examinava intrigada as fotos de grupo, tentando acertar os nomes
e as idades. Renée se pegou dizendo: “Esse deve ser o Michael Junior”, o que fez
com que Jurene examinasse de novo as outras fotos, pois sabia que aquele não
era Michael Junior e, portanto, a criança que ela havia acabado de identificar
como Michael Junior devia ser o Petey, e aí tudo fez sentido novamente. O filho
mais novo de Jurene tocava guitarra. Havia dezenas de cópias de uma foto da
banda dele tocando a missa heavy metal que ele havia composto aos dezessete
anos e para a qual o padre havia negado uma apresentação na igreja e, então,
eles tinham tocado ali mesmo, no porão, sem os sacramentos. O filho agora
tocava em outra banda e dirigia uma picape 4 x 4 personalizada. O filho mais
velho apareceu já adulto em San Francisco, de bigode e colete de couro, e
também como um borrão de beca em fotos em tons de azul de uma formatura
de escola secundária num dia sombrio. Jurene disse que ele era cabeleireiro.
Renée balançou a cabeça. Jurene disse que seus dois filhos ainda estavam
procurando a moça certa. Renée balançou a cabeça de novo. Na escola ginasial
e na escola secundária, as filhas costumavam usar seus cabelos de cor indefinida
arrumados em fantásticos penteados armados. Numa foto, seus corpos estavam
deformados feito brinquedos de piscina pelos afetuosos tentáculos esmagadores
do pai, que morrera de câncer. Toda a tristeza dos anos setenta estava na gaveta
de Jurene, todos os anos em que Renée não fora feliz e não tinha tido o que
queria, mas, em vez disso, tivera espinhas e amigos que a constrangiam; anos
cujos colarinhos imensos, sapatos plataforma, bocas de sino e cabeleiras
gigantescas (Não é verdade que pessoas com problemas mentais costumam
parar de cortar o cabelo?) agora lhe pareciam ser tanto os símbolos quanto os
paramentos literais da infelicidade.
Jurene ainda continuava a passar as férias na mesma casa que vinha alugando
fazia vinte anos em Barnstable, Cape Cod. Estava indo para lá no domingo.
“Quando volto do Cape, eu sinto o cheiro daqui durante uns dois dias, antes de me
acostumar de novo. Mas sabe o que é mais estranho? Às vezes, lá no Cape, eu
sinto esse mesmo cheiro na praia.”
“É como se fosse uma vibração no seu ouvido, só que no seu nariz.”
“Não, eu estou falando do cheiro. Ah, olha aqui.” Jurene pegou um punhado de
fotos de baixa resolução de um boneco de neve, de uma fortaleza de neve e de
uma guerra de bola de neve no pequeno quintal da frente de sua casa. No fundo
de todas elas, bem atrás das casas do outro lado da rua, estava a torre de
perfuração da Sweeting-Aldren. Não havia mais nada que aquilo pudesse ser;
nenhum processo químico que Renée conhecesse precisava de uma estrutura
como aquela. A data estava carimbada no verso das fotos: fevereiro de 1970.
“Eu posso pegar uma delas emprestada?”
“Claro, pode pegar todas. Deixa ver se eu encontro os negativos.”
Ela abriu uma gaveta tão abarrotada de negativos que alguns pularam para
fora e caíram no chão. Ela os deixou lá enquanto, pensando melhor, abriu uma
lata de biscoitos amanteigados e os arrumou num prato pintado. Renée segurou
sua taça de Amaretto contra a luz cinzenta que entrava da janela. Uma etiqueta
colada na garrafa dizia: A Secretaria Nacional de Saúde adverte que mulheres
grávidas não devem ingerir bebidas alcoólicas devido ao risco de causar defeitos
congênitos.
“Eu tenho que ir”, disse Renée.
Ela foi mais uma vez até a Square, deu uma passada na clínica do Holy oke
Center e depois deixou os negativos da família Caddulo numa loja de revelação,
para ampliar. O resto do fim de semana ela passou trabalhando num console do
laboratório, até altas horas nas duas noites. Ninguém atrapalhou seu sossego até
domingo à tarde, quando alguns alunos apareceram por lá, disseram oi,
executaram Diane etc. Ninguém se interessou em olhar o que ela estava
escrevendo.
No resumo do trabalho, ela dizia:
Durante todo o trajeto até a Park Street, um cão-guia ficou olhando para Renée
com uma expressão apaixonada. Bebe lançava olhares de desdém para todos os
passageiros que estavam no metrô — até o cego recebeu um, e cada pessoa
negra recebeu vários —, mas Renée desconfiava que isso fosse mais um produto
da insegurança típica do Meio-Oeste do que um sinal de arrogância.
“Você tem uma caneta aí?”, ela perguntou em voz baixa, apontando com o
queixo para um pôster sobre planejamento familiar que estava na faixa
publicitária acima dos bancos. “Por que você não rabisca aquele anúncio ali?
Não, espera. Por que você não arranca logo de uma vez aquilo dali?”
“Isso não seria certo.”
“Ah, vai”, sussurrou Renée. “Arranca, vai. É um crime menor para evitar um
crime maior.”
“Não é certo.”
“Você tem medo do que as pessoas vão dizer. Isso quer dizer que a sua fé não
é forte o bastante.”
“A minha fé”, disse Bebe, botando a mão na margarida marrom em seu peito,
“é problema meu.”
Era uma longa caminhada da estação de metrô de Wood Island até a Igreja da
Ação em Cristo. A Chelsea Street cruzava uma vizinhança de cilindros gigantes
marcados com números vermelhos dentro de círculos brancos. Atravessava uma
ponte levadiça cuja superfície de grade vibrava sob os pneus do tráfego pesado.
Renée olhou para o contrapeso de concreto sólido suspenso acima dela (ele era
do tamanho de um trailer grande) e ficou pensando em como a riqueza vítrea do
centro de Boston precisava de um contrapeso naquelas áreas industriais, onde
terrenos baldios colecionavam folhas de jornal apodrecidas trazidas pelo vento,
as ruas transversais eram cheias de crateras e os trabalhadores tinham rostos do
mesmo tom de vermelho-nitrito de salsichas de cachorro-quente. Um Ford
Escort com limpadores de para-brisa verde-fosforescentes atravessou a ponte,
seguido de perto por um Chevrolet Corvette que se identificava como Carro-
Madrinha Oficial, 70a Indianápolis 500, 27 de maio de 1985.
Bebe andava com uma lentidão inacreditável. Contou que estava na igreja
fazia cinco meses. Seu dia começava ao nascer do sol, com preces e cânticos
comunais, seguidos pelo café da manhã. O trabalho missionário, que era
“voluntário, mas esperado”, começava às oito e meia. Havia uma infinidade de
lugares a serem cobertos pelas ações da igreja, e os membros eram incentivados
a fazer manifestações em sistema de rodízio, em grupos de três a seis pessoas.
“Grupos de Doze” eram formados quando o espírito percorria a comunidade e
doze membros Escolhidos espontaneamente decidiam evitar a cota de um dia de
assassinatos em uma das várias famigeradas clínicas. Bebe ainda não tinha
tomado parte de um Grupo de Doze, embora tivesse testemunhado a prisão de
um deles e participado das visitas diárias à cadeia. Ela disse a Renée que os
últimos cinco meses tinham sido o período mais significativo e cheio de luz de sua
vida.
Deus é... Pró-vida!, dizia a faixa pendurada na entrada do edifício. O prédio
era o último de um conjunto de cubos de tijolo, com janelas pequenas e
quadradas. Como se o arquiteto tivesse antevisto o futuro do prédio como igreja,
o clerestório central era seccionado verticalmente por janelas estreitas que
lembravam catedrais.
Várias dezenas de mulheres trabalhavam no salão principal, um cômodo de
teto rebaixado e piso de linóleo que provavelmente um dia já fora um centro
comunitário ou uma creche. Havia um alegre cheiro de tinta guache no ar. “A
minha irmã vai se juntar a nós amanhã”, disse uma artesã idosa que estava
dando os toques finais num cartaz, que Renée virou a cabeça para ler:
“Eu já tinha quase desistido, mas aí ela me ligou e disse que estava vindo.”
“Louvado seja o Senhor, glória a Jesus.”
“Amém.”
O que é conveniente para você é homicídio. Jesus nasceu de uma gravidez não
planejada. OBRIGADA MÃE EU ♥ A VIDA.
Bebe tinha desaparecido, deixando Renée sozinha no meio do salão, com suas
roupas pretas e seus óculos escuros, cercada de mulheres das mais diversas
idades, todas com roupas em tons pastel e penteados agressivamente castos. Um
número cada vez maior delas olhava para Renée. Apenas duas semanas antes,
aqueles olhares a examiná-la de alto a baixo poderiam ter aniquilado seu
autocontrole, mas ela se sentia capaz de enfrentá-los agora.
Na frente do salão, uma mulher de conjunto de moletom branco com um apito
e uma cruz pendurados no pescoço estava batendo palmas. Ela era como todas as
professoras de educação física que Renée tivera na escola secundária. “Muito
bem, pessoal, hora de arrumar a bagunça. Nós agora vamos ver um vídeo.
Vamos lá! Todo mundo arrumando a bagunça!” Ela deu uma volta pela sala,
puxando para baixo as surradas persianas opacas, enquanto as pintoras fechavam
obedientemente seus potes de tinta. Renée se plantou no fundo da sala, encostada
à parede. Havia homens ali, um triste grupinho de gatos-pingados, sentados de
pernas cruzadas, olhando para as próprias mãos.
As mulheres se sentaram amontoadas, feito bandeirantes, diante de um
carrinho com equipamento de vídeo. As luzes foram apagadas. O programa
começou.
Ao som de uma música californiana de três acordes, uma égua amamenta seu
potro num campo de verão, com a cordilheira Teton ao fundo. Adoráveis filhotes
de raposa correm atrás da mãe por uma trilha de floresta. Passarinhos cantam e
põem comida nos bicos abertos de seus filhotinhos. Corta para uma boate em
TriBeCa, guitarras guinchando, luz estroboscópica piscando. Uma mulher de
óculos escuros e batom roxo ri, mostrando os dentes, e diz: “Atos antinaturais”. De
volta à cordilheira Teton, uma mãe sardenta de vestido de algodão xadrez
observa os filhos pequenos colherem flores do campo. O sol reluz em seu cabelo
ruivo. “Mamãe!”, uma das criancinhas grita. Ao longe, sob uma luz difusa, o pai
corta lenha com um machado. Vê-se o volume de uma nova gestação sob o
vestido xadrez. Guitarras berram do lado de fora da porta de um banheiro
feminino high-tech, onde duas moças negras de salto agulha arqueiam as costas,
como atrizes pornô, para cheirar uma carreira de cocaína. Um zoom vacilante
penetra num cubículo vazio: um feto de vinte e quatro semanas, vermelho feito
tomate, boia dentro do vaso sanitário. O acelerado desabrochar de uma flor de
genciana. Filhotinhos de cão-da-pradaria andam rebolando. Um bezerro entorta o
pescoço para pegar a teta da mãe. Patinhos em Jackson Hole. Ao pé de uma
fogueira bruxuleante, atrás de uma lente besuntada de vaselina, Nossa Senhora
do Vestido Xadrez segura uma criança em cada joelho e as enche de beijos.
Guitarras mais estridentes ainda. Mãos brancas, mãos negras, mãos cheias de
joias apertam furiosamente o botão da descarga, mas o feto é como um daqueles
cagalhões que teimam em não descer. Luzes estroboscópicas piscam.
Contrariadas, as mãos se contorcem de raiva. Uma criança nina uma boneca.
Égua e potro galopam em câmera lenta...
Os membros da igreja oriundos do interior do Arkansas, do interior do
Missouri, da Carolina do Norte, da Carolina do sul, de Buffalo, de Indianápolis e
de Shreveport permaneciam tão calmos quanto pacientes hospitalizados,
enquanto recebiam essa dose de sofisticação cinematográfica. As portas do
fundo da sala volta e meia se abriam, deixando entrar a luz do sol e missionários
cansados, que pousavam seus cartazes no chão e engrossavam o reverente
círculo em volta da tela de tv. Renée estava boquiaberta, pensando na sorte que
tinha sido ela ter ido até ali, com que incrível facilidade ela poderia não ter ido.
“...Na Sunnyvale Farms você não vai encontrar pornografia em exposição atrás
do balcão. Não vai encontrar contraceptivos nas prateleiras, ao fácil alcance de
seus filhos. A Sunnyvale Farms é mais que uma loja de conveniência, é uma casa
longe de casa — a sua casa. E lembre-se: a cada dez dólares de compras que
você fizer na Sunnyvale Farms, nós faremos uma contribuição para a guerra
contra as drogas, para ajudar a transformar o mundo num lugar mais ensolarado
para seus filhos. Sunnyvale Farms: a loja de conveniência da família.”
“Então, de que revista você é?”, um homem jovem de sotaque sulista
perguntou a Renée, parando ao lado dela. Ele tinha um rosto liso e rechonchudo e
cabelo louro escorrido; tinha também uma postura decidida e um jeito meio
atrevido de olhar para você por trás dos óculos e de virar a cabeça num
determinado ângulo que a fizeram lembrar de Louis Holland. Era Philip Stites.
“De revista nenhuma”, ela respondeu.
“Jornal, canal de televisão, emissora de rádio?”
“Não.”
“Droga. Você estragou o meu recorde.”
“O meu nome é Renée Seitchek.”
Stites chegou o rosto mais perto do dela, obliquamente, como um
oftalmologista. “Claro! Claro. O que você está fazendo aqui?”
“Vendo... os vídeos mais repulsivos que eu já vi na vida.”
“É bem pesado, não é. Escuta, Renée, eu adoraria conversar com você. Será
que você pode voltar um pouco mais tarde? Ou você pode ficar aqui se quiser. Eu
vou estar ocupado até mais ou menos umas seis e meia.”
“Vamos ver por mais quanto tempo eu vou conseguir aguentar isso.”
“Combinado. Ei.” Ele a fez olhar para ele. Seu blazer azul-marinho estava um
pouco amarrotado e ele tinha afrouxado o nó de sua gravata amarela. “Eu estou
muito contente por você ter vindo aqui. De verdade.”
Ele atravessou a sala escura, serpenteando por entre seu rebanho, e saiu por
uma porta lateral. Alguns fiéis se levantaram e foram atrás dele. O resto
continuou assistindo ao vídeo, que ainda levou quase uma hora para terminar.
Quando as persianas finalmente foram abertas, a luz nas janelas estava dourada.
Três mulheres de avental branco entraram pela porta do fundo, seguidas
discretamente por um aroma de carne de porco e feijão. A professora de
educação física que tinha posto o vídeo pediu silêncio a todos e, com uma
prancheta na mão, começou a ler anúncios.
Ela estava feliz em receber de volta June, Ruby, Amanda, Susan Dee,
Stephanie, sr. Powers, sra. Moran, sr. DiConstanzo, Susan H., Allan, Irene e sra.
Flathead, todos liberados hoje da prisão municipal de Cambridge. Os vinte dias
que eles passaram atrás das grades haviam custado à cidade um valor estimado
de 11 mil dólares, sem contar os custos judiciais, que o município estava abrindo
processo para recuperar.
O Grupo de Doze se levantou e recebeu uma salva de palmas.
Outra boa notícia era que o serviço de atendimento familiar de Braintree tinha
suspendido a partir de hoje e por tempo indeterminado seus procedimentos
homicidas. “A todos aqueles que os ajudaram a tomar essa decisão consciente”,
disse a professora de educação física, “eu estendo a minha gratidão, a gratidão
de toda a nossa igreja e, acima de tudo, a gratidão de todas as incontáveis doces
criancinhas a quem vocês proporcionaram a dádiva da vida. Louvado seja o
Senhor, glória a Jesus.”
Outra salva de palmas.
Novos membros ali presentes pela primeira vez eram a sra. Jerome
Shumacher de Trumbull, Connecticut, a sra. Libby Fulton de Wallingford,
Pensilvânia, a srta. Anne Dinkins de Sparta, Carolina do Norte, e a srta. Lola
Corcoran de Lexington, Massachusetts. Depois de aplaudi-las, a congregação foi
instada a fazer as recém-chegadas se sentirem parte da família.
“Bebe Wittleder”, continuou a professora de ginástica, “me informou que nós
também temos conosco esta noite uma visitante da Universidade Harvard, a
doutora Renée Seitchek, uma geóloga que talvez vocês se lembrem de ter visto no
noticiário...”
A congregação se virou para olhar, boquiaberta, para Renée. Uma imagem de
sua figura franzina se formou em seiscentas retinas.
“Paz e boa vontade para a senhora, doutora Seitchek, em nome de Jesus Cristo.
Sinta-se à vontade para celebrar conosco e partilhar da nossa refeição. Nós
somos uma igreja aberta.”
Stites voltou a tempo de ouvir os últimos anúncios. Quando eles acabaram, ele
imediatamente iniciou uma oração, que finalizou convidando a todos a rezarem
juntos, em voz alta, o Pai Nosso. Sentada diante de um piano vertical, uma
mulher tocou e cantou três hinos religiosos, acompanhada por toda a
congregação. Stites também cantou, mas era impossível distinguir sua voz entre
as demais. Em seguida, sentou-se informalmente na beirada de uma mesa de
refeitório escolar, as pontas de suas meias de losango aparecendo, e olhou para
seu rebanho, deixando a expectativa crescer. Quando finalmente falou, sua voz
encheu a sala inteira.
“Vocês já ouviram: Deus é amor. Gente, Deus é amor. Deus é duas coisas:
amor e sabedoria.
“Gente, eu quero que vocês tentem imaginar Deus. Imaginem um ser que é
tão cheio de Amor que Ele é mais forte que os átomos ou que qualquer outra
coisa. Ele é puro e pleno amor. Pois bem, no início, Deus tinha tanto amor dentro
Dele que isso criou o universo, simplesmente através da força do amor. Ele criou
o universo para que existisse alguma coisa para Ele amar. E havia um Vazio? E o
Vazio, o livro do Gênesis nos diz, o Vazio se tornou o universo, mas o universo
ainda continuava sendo apenas uma massa de nada, só matéria. E Ele amou o
universo e era mais sábio que ele, e a razão por que o universo tomou forma...
“Agora prestem atenção. A razão por que o universo tomou a forma que
tomou foi a dor que existia no coração de Deus.”
Stites olhou para o lado com um estranho sorriso no rosto, como se Deus fosse
um sujeito que ele tinha conhecido lá na Carolina e que fazia umas coisas do
arco-da-velha.
“Vocês sabem”, ele continuou, “mesmo antes de criar o universo, Ele amava
e era sábio. E porque era sábio, Ele sabia que o que quer que Ele amasse iria
saber menos do que Ele sabia. Ele é supremo, e o fato de ser supremo faz com
que Ele sofra muito. Ele é um Deus que sofre e um Deus zangado. Ele sabe mais
do que qualquer pessoa e Ele ama todo mundo mais do que qualquer pessoa ama
o que quer que seja, e então quando nós pecamos ou quando temos ideias — até
mesmo quando os filósofos mais inteligentes do mundo têm ideias — Ele sabe
mais que todos. Ele sabe que nós temos que virar pó de novo e Ele nunca
esquece. E Ele está triste porque nos ama mesmo na nossa sórdida existência
terrena. Na verdade, Ele nos ama ainda mais.
“E então tudo isso que vocês veem aqui — as paredes, essa mesa, esse
videocassete, essa caneca de café” — ele levantou uma caneca de café para
todos verem —, “tudo tem forma por causa dessa dor. É por isso que eu posso
apertar essa caneca de café aqui e sentir que ela é dura. Ela é dura porque Deus
está triste. Se Deus estivesse feliz, não haveria resistência nenhuma no mundo, a
mão de vocês passaria através de tudo. Não existiria dor, nem sofrimento, nem
morte. Vocês entendem o que eu estou dizendo? Se estivesse tudo bem com
Deus, não existiria universo algum. Só existe um universo porque Ele sabe.
Porque Ele sofre porque sabe.
“Vocês já ouviram aquela frase que diz que é solitário estar no topo? Então,
com Deus é exatamente assim. E não é verdade que isso nos dá um certo
conforto? Saber que, por pior que você se sinta, você nunca vai poder se sentir tão
mal quanto Ele se sente, porque você não tem a real noção do quanto as coisas
estão ruins. Foi por isso que Ele deixou que crucificassem Seu único filho. Porque
Ele queria que nós soubéssemos o quanto dói. E, sabe, quando eu fico pensando
que o mundo talvez acabe um dia e começo a me sentir triste porque tem tanta
coisa no mundo que eu amo tanto, por mais triste que eu fique, eu não entro em
desespero, e vocês sabem por quê? Porque eu sei que esse sentimento de tristeza
é sagrado. E se houver um Armagedom, então haverá Deus para prantear a
todos nós quando tivermos partido, e todas as coisas que eu amo e que não
existem mais, Ele não esqueceu nenhuma delas, Ele as amou o tempo todo —
amou-as como eu e vocês nunca seremos capazes — e Ele não vai se esquecer
delas nunca, Ele vai se lembrar delas por toda a eternidade, e é isso que é o céu:
o céu é continuar a viver no amor de Deus para sempre.”
A expressão “para sempre” ficou pairando no ar como uma peteca de
badminton no topo de seu arco.
“Este é o sermão desta noite. Eu agradeço a todos vocês.”
Um hino final foi cantado, e então Stites atravessou a sala caminhando
novamente por entre a congregação, ajoelhando-se duas vezes para pegar as
mãos de mulheres na sua e trocar algumas palavras com elas. Foi parar diante de
Renée. “Está com fome?”
“Na verdade, não.”
“Bom, eu estou sinceramente faminto.”
Um apartamento no térreo, atrás do salão, tivera algumas de suas paredes
demolidas, ampliando a cozinha já existente. Três fogões velhos adicionais
tinham sido instalados e havia lugares à mesa para talvez cinquenta pessoas. Stites
recebeu um prato cheio de feijão, servido de uma enorme panela de refeitório.
De um bufê, ele pegou quatro fatias de pão branco e uma laranja, enquanto
explicava a Renée que, a menos que algum patrocinador rico o convidasse para
almoçar, ele só fazia duas refeições por dia, o café da manhã e o jantar ali.
Em seguida, subiu com ela uma escada mal iluminada e a conduziu por um
corredor cheio de pedaços de reboco no chão. Numa das paredes, enfileirados
um ao lado do outro, encontravam-se vários exemplares idênticos do que
pareciam ser aparelhos artesanais de exercício, feitos com tábuas e canos
galvanizados, num formato que lembrava pelourinhos. “O que é isso?”, Renée
perguntou.
“Isso? Isso são pelourinhos.”
“Ah, meu Deus.”
“Calma, eu vou te mostrar.” Stites pousou seu prato no chão. “O reboco está
solto por causa do terremoto. A gente toda hora varre, mas parece que basta
olhar pras paredes que já cai um monte de pedaços de novo.” Ele botou a cabeça
e os pulsos em entalhes abertos na tábua inferior de um dos pelourinhos. “Você
pode abaixar a tábua de cima com o pé. Assim, está vendo?” Enfiando o pé
dentro de uma argola, ele desenganchou uma corrente, o que fez com que a
tábua de cima descesse sobre sua nuca, prendendo-o ali. “Ou você pode pedir
pra alguém fazer isso pra você.”
Ele ficou ali curvado, mas relaxado, com sua calça cáqui e seus mocassins
marrons, de frente para a parede, uma carteira fazendo volume num dos bolsos
de trás de sua calça.
“E aí?”, Renée perguntou.
“Aí você fica aqui. Eu acho que todo mundo devia fazer isso de vez em
quando. Eu faço isso toda hora, provavelmente mais que todo mundo. Não que eu
me orgulhe disso. É que eu tenho uma necessidade especial de ficar aqui, sabe,
principalmente quando passo o dia inteiro em Weston, na casa de pessoas ricas.
Você fica aqui e olha pra parede. Você reza, ou então só relaxa. Isso deixa você
mais humilde. É muito bom. Fisicamente, machuca um pouco depois de algum
tempo. Mas isso é bom também.”
Com traquejo, ele pisou na argola de novo, ergueu a tábua de cima e se
libertou. Olhou para Renée, com um sorrisinho congelado. “Você quer
experimentar?”
“Não, obrigada.”
“Tem certeza? Você meio que parece que quer.”
“Não, não quero!”
“Você ia gostar se experimentasse.”
“Eu não quero.”
“Tudo bem, como quiser. As pessoas se sentem vulneráveis quando não
conseguem ver o que está acontecento atrás das costas delas e não conseguem se
mexer. Eu acredito muito que a vulnerabilidade seja algo que a gente deve
cultivar.”
Ele saiu andando pelo corredor com passadas largas e altas, como se estivesse
atravessando um charco. Seu escritório não tinha porta. Havia livros empilhados
sobre o tapete vermelho felpudo, que tinha manchas de tinta branca e estava
coberto de pedaços de reboco caído. Uma mensagem impressa pregada numa
das paredes dizia: Sucederá nos últimos dias, diz o Senhor, que derramarei do meu
Espírito sobre toda carne. A janela dava para um pátio do edifício, onde alguns
fiéis estavam fazendo piquenique e a professora de educação física organizava
uma partida de vôlei.
“O resto é banheiro e cozinha”, disse Stites. “Eu divido esse espaço com dois
dos homens. Peguei esse cômodo externo todo pra mim porque tenho essa
montanha de livros e papéis. Você pode ficar na mesa. Eu sento no chão.”
“Não, quem está comendo é você.”
“Bom, nós dois sentamos no chão, então. Eu peço desculpas pelo reboco. Está
assim em tudo quanto é lugar.”
Ele começou imediatamente a pôr garfadas de feijão na boca. Renée estava
acostumada a sentar com as pernas cruzadas à moda indiana, mas a saia curta a
obrigou a dobrar as pernas num duplo Z. “Foi sorte sua o prédio inteiro não ter
desmoronado em cima de vocês.”
Ele fez que sim, mastigando.
“Você realmente acredita que Deus possa salvar um prédio instável de um
terremoto?”
Ele partiu um pedaço de pão. “Não, e eu nunca disse que acreditava. Eu
comprei esse prédio porque estava barato. Nós estamos aqui pra ter um teto.”
“E você não se preocupa com o fato de que, se ele cair, você vai ser o
responsável por todas as pessoas que morrerem ou se ferirem?”
“Elas sabem dos riscos, tanto quanto eu.”
“Mas você é o líder, é você que dá o exemplo.”
“Tem razão.” Ele segurava o garfo como manda a boa educação, bem na
ponta do cabo. Parecia ter prática em falar de boca cheia. “Eu como, durmo e
trabalho nesse prédio pela graça de Deus. Tenho plena consciência de que, se
Deus quiser assim, a minha vida vai acabar. E é assim para todo ser vivente, só
que a maioria das pessoas prefere gastar seu tempo tentando ignorar isso. Mas se
você mora no que as autoridades chamam de uma armadilha letal, você está
permanentemente ciente de que a sua vida está nas mãos de Deus. E isso é uma
coisa positiva. Certamente me parece uma coisa mais positiva do que morar, sei
lá, em Weston, e se sentir imortal na sua mansão de um milhão de dólares. Aqui
eu valorizo cada dia. Eu costumava ficar desesperado porque nunca tinha tempo
pra fazer as coisas que eu queria. Eu achava que a vida ia ser curta demais. Pra
você ver como o meu amor por Deus era pequeno. Agora eu estou mais ocupado
ainda, mas, desde que vim pra esse prédio, de repente eu estou conseguindo
alcançar tudo o que eu quero alcançar, incluindo pessoas como você. Isso é o
mais perto da felicidade que eu acho que uma pessoa pode chegar. Eu posso
viver sem medo porque sinto claramente que estou à beira da morte, nas mãos
de Deus. Se você bota a sua vida em equilíbrio com a sua morte, você para de
entrar em pânico. A vida deixa de ser apenas o status quo que você espera que
não mude tão cedo.”
Ele se debruçou sobre seu prato para juntar os últimos grãos de feijão num
montinho. Depois, empurrou os óculos para cima com o dedo do meio e passou a
língua pelos dentes para limpá-los, olhando para Renée de cabeça baixa e com
uma curiosidade penetrante. “Você veio até aqui pra me dizer que o meu prédio
não é um lugar seguro.”
“Eu vim porque uma das suas mulheres foi lá me perturbar no meu trabalho.”
“A senhora Wittleder.”
“Eu disse uma coisa na televisão da qual você discorda e desde então a minha
vida virou um inferno.”
“Você está recebendo telefonemas. Cartas. Visitas.”
“Telefonemas, cartas e visitas muito ofensivos e muito invasivos.”
“Sim, eu entendo. São coisas da ala lunática, digamos assim. Pessoas que são
só raiva e nenhum amor. Eu não sei se você viu as notícias hoje, aquele atentado
a tiros em Alston? Algum imbecil resolveu passar de carro na frente de uma
clínica ontem e sair dando tiro em todas as janelas. Aquelas janelinhas
minúsculas, sabe? Vou te contar, é muita estupidez. A mesma coisa com aquelas
bombas em Lowell. Raiva eu entendo, mas violência não.”
“A única coisa que eu fiz naquela entrevista foi criticar você”, disse Renée.
“Quem mais além de você iria se importar com o que eu disse?”
“Como é que eu vou saber? Alguém viu a entrevista e não gostou de você. Eu
pessoalmente nem me importei com o que você disse, sabe. Você foi honesta,
você expressou o ponto de vista contrário muito bem. Você está completamente
errada, mas eu sei ver a diferença entre uma geofísica e uma aborteira. E,
sinceramente, tenho coisas mais úteis a fazer do que protestar na frente do seu
laboratório. E a Bebe Wittleder é uma boa pessoa, que eu não consigo acreditar
que tenha sido desagradável com você.”
“Ela não foi desagradável. Não propositalmente.”
“Bom, então. Mas de alguma forma ela ainda deixou você irritada o bastante a
ponto de você vir até aqui.”
“Não. Eu só fiquei irritada depois que vi os vídeos.”
Stites raspou seu prato com uma fatia de pão. “O que foi que irritou você nos
vídeos?”
“Mulheres que fazem abortos são vadias abjetas que não fazem outra coisa da
vida senão cheirar cocaína. Mulheres que têm bebês são doces e lindas esposas
que adoram seus filhos.”
“Entenda que o que você viu não é jornalismo. É propaganda.”
“Que pessoas de pouca instrução engolem como se fosse a verdade.”
“Ah.” O pão, dobrado em quatro, desapareceu dentro da boca de Stites. “Então
você quer que eu — eu, que acredito que a vida humana é um mistério e não um
processo químico, que acredito que aos olhos de Deus um indivíduo começa a
existir a partir do momento em que é concebido —, você quer que eu mostre à
congregação imagens de mães maltratando os filhos? E de mulheres santas
fazendo abortos? Uma espécie de retrato equilibrado, é isso? Eu acho que você
não entende a essência da propaganda.”
“Um filme nazista que mostra arianos deslumbrantes e judeus imundos é só
uma propaganda.”
“Bom, a diferença é que eu não estou defendendo um genocídio. Estou
defendendo o oposto, não?”
“A perseguição a mulheres grávidas.”
Ele fez que sim. “Perseguição, claro, na sua maneira de entender. Mas não
deportação e assassinato. Sabe, eu acho que o que incomoda você nesses vídeos é
que eles são eficientes. Eles afetaram você. Mas há várias propagandas mais
eficientes ainda na televisão para convencer você a comprar jeans ou a comprar
cerveja. Propagandas que usam o sexo, que é a arma mais poderosa e mais
desonesta de todas. Sabe, se tomar Budweiser Light, eu vou conquistar uma
daquelas gatas gostosas da praia para dar uns amassos. Isso sim é que é
desonesto, manipulador e nocivo. E se está tentando combater uma coisa
perniciosa dessas, você precisa se armar de imagens poderosas também. E a
verdade é que existe sim algo de muito bonito numa mãe com seu bebê e existe
sim algo de muito feio num aborto. Só o que eu quero é uma oportunidade
equivalente de atingir o mercado. E a questão é que não me dão essa
oportunidade. Não existe um único canal comercial de televisão na América que
aceite passar esses vídeos. Eu tenho um certo espaço no rádio, um pequeno
espaço, mas você não consegue fazer nada só com o rádio, não em comparação
com o que você consegue com o vídeo. É muito irônico que você ache que nós
somos os perseguidores. Nós somos a minoria perseguida.”
“Que está tentando impor suas opiniões à maioria.”
“Nenhuma rede de televisão na América aceita transmitir um único vídeo
nosso. Todo santo dia, todos os americanos assistem a meia hora de anúncios que
estimulam o sexo pelo sexo e outra meia hora de anúncios que estimulam o
consumo egoísta de bens materiais. Todos os jornais impressos e todos os
noticiários de alcance nacional têm uma clara tendência antirreligiosa e antivida.
Você vai negar isso? O mesmo vale para os programas do horário nobre. E isso
acontece todo santo dia, sete dias por semana, ano após ano: transe, transe,
compre, compre, aborte, aborte. E mesmo assim quarenta por cento dos
americanos são contra o aborto, salvo em casos de estupro ou incesto. Essa é a
nossa minoria. Nós estamos assistindo ao mais gigantesco esforço de propaganda
de toda a história da humanidade, e mesmo assim apenas pouco mais da metade
das pessoas está convencida.”
Um apito estridente soou no pátio. A professora de educação física gritou:
Vamos lá! Eu quero ver um bom vôlei cristão!
Renée riu. “Você é assustador.”
Stites ofereceu a ela metade da laranja. “Por quê?”
Ela aceitou a metade da laranja. “Porque você é inteligente e tem absoluta
certeza de que está certo. Você tem absoluta certeza de que tudo é muito
simples.”
“Você está invertendo as coisas. É o seu mundo que acha que tudo é muito
simples: pegue o que quiser, faça o que quiser e não haverá consequência
alguma. Porque, veja bem, existem dois tipos de certeza: a positiva e a negativa.
A Bíblia nos ensina que é errado ter certeza de uma forma positiva, por exemplo
ter certeza de que você está certo ou de que está salvo. Mas a Bíblia está cheia de
gente que tem o outro tipo de certeza: a minha certeza de que esta sociedade está
errada. Eu estou cheio dessa certeza negativa.”
“Ela está errada em relação a muita coisa, mas não em relação ao direito das
mulheres à privacidade”, disse Renée. “E eu não acho que a sociedade de fato
persiga vocês. Passar os seus anúncios é simplesmente um mau negócio para um
canal de televisão. Se a maioria das pessoas realmente não estivesse satisfeita
com a vida que leva, elas procurariam a religião. O fato de elas não fazerem isso
parece indicar que elas estão satisfeitas.”
“Você não é a primeira pessoa a provar que a revolução é logicamente
impossível: o fato de as pessoas ainda não terem se revoltado significa que elas
estão satisfeitas. Nossa, isso é muito convincente.”
“Eu acho que o que as pessoas querem é basicamente que você não se meta
na vida particular delas.”
“E eu não me meteria se não achasse que há vidas em jogo. Mas, do jeito
como as coisas estão, eu me sinto moralmente obrigado a me meter. Você acha
que a raiva da minha igreja é feia e que os meus métodos são radicais, mas
pense só em como os manifestantes hippies deviam parecer feios e radicais para
os conservadores em 1969, muito embora eles tivessem um bom argumento
moral, exatamente como eu tenho hoje. Além do mais, uma coisa seria se a
sociedade cultuasse abertamente o dinheiro e dissesse sim, nós estamos dispostos
a destruir vidas inocentes pelo bem do sexo fácil. O que me irrita é a hipocrisia.
A ideia de que você pode transformar a vida das pessoas numa busca infernal de
prazer e dizer que está fazendo um favor a elas. É difícil entender um mundo que
encara a crença religiosa como uma forma de psicose, mas acha que o desejo
de possuir um forno de micro-ondas melhor é o sentimento mais natural do
mundo. Pessoas que mandam dinheiro para um pregador da televisão porque
sentem um vazio em suas vidas estão sob o efeito de um feitiço maligno, mas
pessoas que acham que precisam ter um casaco de pele para se exibirem com
ele no supermercado são apenas pessoas normais, feito eu e você. É como se a
coisa mais sagrada que existe neste país fosse a Constituição dos Estados Unidos.
A raça humana nunca viveu sem sofrimentos em toda a sua história, mas de
repente o senhor Boston Globe e o senhor senador de Massachusetts são mais
inteligentes que todo mundo que já fez parte da história humana. Eles têm certeza
de que têm a resposta, e a resposta é o estatuto disso e o estatuto daquilo e os
estudos acadêmicos sobre o comportamento humano e a Constituição dos Estados
Unidos. Mas eu lhe digo, Renée, eu lhe digo, a única razão pela qual alguém pode
imaginar que a Constituição americana seja a maior invenção da história
humana é que Deus deu à América tantas riquezas fantásticas que, mesmo
tomado pela mais completa idiotia, o país conseguiria fazer sucesso no curto
prazo, se você não levar em conta trinta milhões de pobres, nem a sistemática
dilapidação de todas as riquezas que Deus nos deu, nem o fato de que para a
maioria dos povos oprimidos do mundo a palavra América é sinônimo de
ganância, armas e imoralidade.”
“E liberdade.”
“Uma palavra-código para riqueza e decadência. Pode acreditar em mim. O
que a maioria dos russos acha que é maravilhoso na América é o McDonald’s e
os videocassetes. Só políticos e âncoras de telejornal são burros ou desonestos o
bastante para agir como se não fosse assim. Primeiros-ministros vêm a
Washington e nós dizemos pra eles: bem-vindos à terra da liberdade. Os
primeiros-ministros dizem: nos deem mais dinheiro. Eu tenho certeza de que nós
somos alvo de chacota do mundo inteiro. Do que é que você está rindo?”
“É que você me faz lembrar um cara cínico que eu conheci.”
“Cínico? Você acha que é cinismo reconhecer que todos os seres humanos,
inclusive eu, querem gratificar seus sentidos sem ter que assumir a
responsabilidade por isso? Por que não me chamar de cristão em vez disso, ou de
honesto, ou de realista? Porque o que eu vejo do outro lado é puro
sentimentalismo e vontade de moldar a realidade aos próprios desejos. Essa ideia
de que os seres humanos são essencialmente bons e altruístas. De que você pode
curar a tristeza, a solidão, a gula, a luxúria, a falsidade, a raiva e o orgulho com
pleno emprego e bons psicólogos. Sabe qual é a minha fábula moderna favorita?”
“Qual?”
“A de Chappaquiddick. O perfeito liberal vê o que um ser humano realmente é
e sai correndo. Passa o resto da vida negando que o que ele viu tenha qualquer
significação e dizendo para todas as outras pessoas o que há de errado com elas.
O liberalismo é tão desonesto que nem sequer admite que tudo o que há de bom
nele, a suposta compaixão que está no centro dele — e que é irracional, diga-se
de passagem, exatamente como toda religião é — vem diretamente da tradição
de dois mil anos do cristianismo. Mas pelo menos o liberalismo tem essa
compaixão. Ele é inocente, como uma criança de seis anos de idade. Mas Deus
tem um fraco por inocentes e um lugar reservado no coração para todos os
inocentes do mundo. Então, o que eu mais odeio é o político conservador. O lado
conservador é só puro e cínico interesse econômico. Tudo bem, eu admito que
ele é bem realista em relação à ganância humana, então ele é razoavelmente
maduro, sabe; está mais ou menos no nível de um garoto de treze anos de idade
metido a esperto. Mas ele é mais culpado ainda que o liberalismo por substituir
Deus pela busca da riqueza. E eu acho isso imperdoável.”
“E é por isso que você mora nesse prédio caindo aos pedaços. Com um bando
de mulheres de classe média raivosas.”
“Exato.”
“Imagino que você seja uma pessoa bastante admirável.”
“Foi você que disse isso. Não eu. Porque é claro que esse é um risco que todo
mundo corre quando tenta fazer algo de bom. A ideia de que, se você sabe que
está fazendo o bem, então o que você faz não conta de verdade. Mas eu pergunto:
qual é a alternativa? Ser um babaca só para ter a certeza de que não vai cair no
pecado do orgulho?”
“Não é uma má alternativa. Você deveria tentar.”
“Você é meio cínica também, não? Por que foi que você veio aqui?”
No pátio em frente à janela aberta, um silêncio acompanhava as pancadas da
bola de vôlei. Pedaços de casca de laranja jaziam com a parte branca para cima
no prato vazio de Stites. Renée sorriu. “Por nada.”
“Ninguém vem aqui por nada.”
“Eu vim porque eu estava entediada.”
A luz da sala tinha ficado pessoal, tornando as expressões faciais mais
ambíguas e o contato olho no olho menos seguro. “Você é casada?”
“Não.”
“Tem namorado?”
“Não.”
“Nem filhos, imagino.”
Ela fez que não.
“Você quer ter filhos?”
Ela fez que não de novo.
“Por que não?”
“Porque eu não gosto do que acontece com as mulheres quando elas têm
filhos.”
“O que acontece com elas?”
“Elas simplesmente viram mulheres.”
“Você quer dizer que elas se tornam adultas.”
A bola de vôlei batia e batia. Tênis arranhavam o chão de terra batida e caíam
sobre ele. O padrão do tapete começou a se rearranjar enquanto Renée olhava
fixamente para ele. “Você quer dormir comigo?”, ela perguntou.
“Rá.” Stites sorriu, aparentemente achando mais graça do que qualquer outra
coisa. “Acho que não.”
“Porque você tem medo que eu conte pra alguém”, ela disse, com uma voz
cruel. “Ou você tem medo de ir pro inferno. Ou você tem medo que isso abale a
sua fé. Ou porque eu não sou atraente o bastante.”
“Se uma pessoa tenta encontrar razões para dizer não, ela está perdida. Ela
tem que simplesmente dizer não, um não que venha lá do fundo do coração.”
“Por quê?”
“Porque se você faz isso, você sente o seu amor por Deus crescer.”
“Mas e se você não ama Deus? E se você nem sequer acredita que exista um
Deus?”
“Então você tem que procurar Deus.”
“Por quê?”
“Porque, só de estar aqui sentado com você, eu acho que você ficaria feliz se
fizesse isso. Porque eu acho que você é uma pessoa de verdade, e eu sinto amor
por você, e a sua felicidade me deixaria feliz.”
“Você sente amor por mim.”
“Um amor cristão.”
“Só isso?”
“Eu não sou mais perfeito do que você.”
Ela deslizou para mais perto dele. “Você poderia me deixar feliz bem rápido.”
A única coisa que dava expressão ao rosto dele era um par de retângulos
tremulantes, reflexos da luz que entrava pelo vão da porta. Ele cruzou os braços.
“Me diga como você se sente depois que faz sexo.”
“Eu me sinto bem.” Ela se sentou mais ereta, orgulhosa. “Me sinto como se
soubesse alguma coisa a respeito de mim mesma. Como se eu tivesse um fundo
e soubesse como eu sou bem lá no fundo. Como se eu soubesse que o bem e o
mal não têm nada a ver com isso. Como se eu fosse um animal, no bom sentido.”
Os retângulos nos óculos de Stites pareceram assumir um ar pensativo e
melancólico. “Imagino que você seja uma pessoa de sorte”, disse ele.
“Eu não acho que eu seja diferente de nenhuma outra mulher. Quer dizer, de
nenhuma outra mulher que não tenha tido a cabeça fodida pela religião dos
homens.”
“Hum, palavras de briga.”
Ela chegou ainda mais perto dele. “Briga comigo.”
“Se você jogar limpo e chegar um pouco pra trás, eu brigo com você.”
Ela recuou. “Então?”
Ele entrelaçou as mãos sobre as canelas, logo acima das meias de losango.
“Bom, imagino que a questão seja por que Deus fez o sexo ser tão prazeroso.
Você obviamente considera isso irrelevante, mas o que acontece se você gerar
uma criança no decorrer dessa sua busca por se sentir bem?”
“Engraçado você perguntar isso.”
“O que você quer dizer com isso?”
“Que é engraçado você perguntar isso.”
“Bom, e qual é a resposta?”
“Você sabe qual é a minha resposta. Se eu estiver numa situação razoável
emocional e financeiramente, eu tenho a criança. Se não, eu faço um aborto.”
“Mas e quanto à potencialidade que você destrói fazendo um aborto?”
“Sei lá. E quanto às potencialidades que eu destruí quando terminei com o cara
que eu namorei na escola secundária? Nós já poderíamos ter tido uns oito filhos a
essa altura. Isso quer dizer que eu cometi oito assassinatos?”
“Está bem. Mas você já conheceu alguém que tenha sido concebido fora do
casamento?”
“Bom, eu, pra começar.”
“Você?”
“Sim, eu. Eu tenho certeza de que sou o exemplo perfeito. Tenho certeza de
que teria sido abortada, se isso tivesse sido mais conveniente pra minha mãe.”
“E como você se sente em relação a isso?”
“Completamente indiferente”, disse ela. Seus olhos pousaram na passagem
bíblica pregada na parede; ela achou o tipo da fonte feio. “A minha vida
começou aos cinco anos. Se alguma coisa tivesse acontecido antes disso, eu não
teria perdido nada. Não existia nenhum ‘eu’.”
“Você não pode se amar, se é tão indiferente. Não pode amar o mundo. Você
deve odiar o mundo. Você deve odiar a vida.”
“Eu me amo, eu me odeio. No fim das contas, o resultado é zero.”
Uma longa sequência de passes de vôlei estava em andamento no pátio, a
quietude e o suspense em torno dela aumentando à medida que ela se estendia.
Então, os jogadores soltaram um suspiro de lamentação. Stites falou em voz
baixa: “Você não sabe o quanto me entristece ouvir você dizer isso”.
“Dormir comigo pode ser bem divertido.”
“Você acha que tem o direito de jogar a sua vida fora.”
“A ideia já me passou pela cabeça.”
“Eu acho que você está muito infeliz. Acho que você deve ter ficado muito
magoada com alguma coisa.”
Renée levantou o rosto na direção do teto esburacado, apoiando o peso do
corpo nas mãos, a imagem de uma pessoa curtindo o sol na praia. Ela estava
sorrindo e continuou a sorrir, mas depois de um tempo sua respiração foi ficando
áspera, como uma bomba d’água que a princípio só puxa ar. “Eu...” Sua
respiração se tranformou num tremor. “Eu estou muito magoada com uma
pessoa. Estou profundamente magoada. Estou tão magoada que quero morrer.”
Stites se levantou e foi até o banheiro. Voltou trazendo um copo d’água, mas
Renée já não estava mais lá. Tinha ido para o corredor.
“Eu acho que vou embora”, ela disse.
“Eu quero te ajudar.”
“Você não pode me ajudar.”
Ele pousou o copo na tábua de um pelourinho e pôs as mãos nos braços nus de
Renée. “Você é você”, ele disse. “Você é só você. E você tem sido você desde o
instante em que foi concebida. Toda a sua história já estava lá quando você tinha
um minuto de idade. A dor que você está sentindo é sagrada. E está a um
centímetro de se transformar na mais verdadeira felicidade.”
O rosto dela estava a um centímetro do dele. Ela subiu na ponta dos pés e abriu
a boca, pousando a parte mais macia de seus lábios nos tocos duros de barba em
volta da boca de Stites. Quando ela deu por si, um copo inteiro de água tinha sido
despejado em sua cabeça.
“Porra!”, ela exclamou, saltando e cuspindo água no chão. Recuou para o
corredor, os punhos cerrados apoiados nos quadris. “Vai se foder!”
Stites se enfiou em seu escritório. Algumas pessoas estavam subindo pela
escada atrás de Renée, e logo alguns dos pelourinhos já estavam ocupados,
grandes traseiros femininos vestidos de moletom virados para cima, pneus de
banha aparecendo acima de alguns dos cós das calças. Rangidos metálicos
ecoavam pela sala conforme outros pelourinhos eram acionados.
Stites tinha se sentado atrás de sua mesa e começado a ler a Bíblia, à luz de
uma lâmpada nua que pendia do teto. A janela atrás do ombro dele estava escura
agora. Ele não levantou os olhos quando Renée apareceu no vão da porta, com
um lado do cabelo bagunçado, rímel dissolvido empoçando debaixo de um dos
olhos.
“Eu odeio você”, disse ela. “Odeio a sua igreja, odeio a sua religião. E você
próprio é cheio de ódio. É exatamente como você disse. É tudo negativo. Você
odeia as mulheres, odeia sexo e odeia o mundo tal como ele é.”
Havia lâmpadas nuas nos olhos de Stites. “Eu sinto amor por você, Renée.
Você não é uma pessoa fria. Você é cheia de emoções e de carências, e você
veio até aqui, e só de passar uma hora com você, eu sinto um amor por você. É
um amor cristão, mas a Luz é filtrada pelo fato de que eu sou um homem, então
eu adoraria ter você nos meus braços. Eu gostaria de dormir com você. Está
bem? Eu estou dizendo isso porque você parece achar que é fácil pra mim. Eu
quero que você saiba: eu sou um homem. Eu não sou feito de pedra. E eu acho
bom você tratar de me respeitar.”
“Eu te respeitaria se você fosse em frente e transasse comigo.”
Ele fechou a Bíblia e se recostou em sua cadeira. “Sabe, todo dia eu leio algum
texto que fala sobre como a vida das mulheres é dura na sociedade de hoje.
Sobre como elas têm que fazer uma porção de escolhas difíceis, sobre todas as
responsabilidades que elas têm que assumir com relação a suas famílias. Elas
têm que ser mães e têm que trabalhar como homens também, se é para a
sociedade liberal funcionar.”
“Não são só as mulheres”, disse Renée. “Os homens também têm que
mudar.”
“Ah, sim, supostamente é assim que funciona. Só que a gente não ouve falar
tanto sobre homens que se queixam e homens que se sentem num beco sem
saída, ouve? Os homens ainda têm a possibilidade de escolha, certo? Eles podem
se realizar profissionalmente e, se quiserem, podem se realizar também como
pais. É como se a vida estivesse melhorando para os homens, eles estão tendo
opções num sentido positivo, enquanto as mulheres estão tendo todas essas opções
extras num sentido negativo. Você não acha que isso é o grande paradoxo da
nossa era? Que quanto mais as coisas melhoram para as mulheres no sentido
político-liberal, piores as coisas ficam para elas na realidade?”
“O fato de eu mais ou menos concordar com você só me deixa com mais
raiva ainda, porque eu sei o que você vai dizer.”
“O quê? Que a única coisa da qual as pessoas nunca parecem desconfiar é que
é a política em si que está errada? Porque é claro que essa sociedade não entende
coisas como ‘júbilo’. O júbilo que uma mãe sente. Essa sociedade só entende
coisas como ‘empregos’, ‘estatutos’ e, principalmente, ‘dinheiro’.”
“E que as mulheres são cidadãs de primeira classe. Esse júbilo não vale muita
coisa se é algo que é imposto a você. E que é melhor ter escolhas dolorosas do
que não ter escolha nenhuma.”
“Eu só ia dizer que eu não nego que existam mulheres como você. O nosso
Senhor nos diz que algumas pessoas nascem eunucos e outras se tornam eunucos
ao longo do caminho.”
“Arrã, vai se foder você também.”
“Mas o fato é que a maioria das mulheres quer ter filhos. Só que a sociedade
precisa delas pra outras coisas, sabe, pra ganhar mais dinheiro e pra ter mais
lucro, então a sociedade tem que fisgar as mulheres pela vaidade, pelo orgulho e
pela ganância delas. Coisas que, aliás, as mulheres têm tanto quanto os homens.”
“É, eu reparei.”
“Mas se uma mulher tem liberdade para seguir os seus melhores instintos, ela
não precisa de um emprego importante para se sentir bem consigo mesma.”
“O legítimo lugar dela é o lar.”
“Exato. A igreja entende isso a respeito das mulheres. Ela entende o júbilo da
maternidade.”
“Bom, então me diga uma coisa sobre esse seu Deus.” Renée deu um passo na
direção de Stites. “Só uma coisinha. Se as mulheres supostamente não têm que
ter o mesmo tipo de vida que os homens têm, então por que o seu Deus nos deu o
mesmo tipo de consciência?”
Stites pulou para a frente feito uma boca de armadilha se fechando. “Ele não
deu! Ele deu a todas as pessoas o mandamento: Crescei e multiplicai-vos! E foi
você mesma quem disse que essa ‘consciência’ não sobrevive ao nascimento do
primeiro filho de uma mulher. Que ela vira ‘só uma mulher’ depois, não foi o que
você disse? Você entende o que eu estou dizendo? A mulher que se sente infeliz
porque tem uma consciência de homem é a mulher que desobedeceu o
mandamento do Senhor. O Senhor promete que vai nos salvar se nós
obedecermos a palavra Dele. E esse tipo de problema de consciência de que
você está falando desaparece numa mulher que tem um bebê, exatamente como
está dito nas Escrituras. Ela se torna uma mãe instintiva, exatamente como você
disse e exatamente como a igreja sabe que ela vai se tornar. É um fato!”
Ela balançou a cabeça, impaciente. “Mas, ainda assim, permanece o fato de
que as mulheres recebem uma consciência só para que ela lhes seja tomada
depois. Elas têm uma amostra do que elas poderiam ter — se fossem homens —
e depois isso lhes é negado. E você pode até dizer que a maior parte das mulheres
não é como eu, mas mesmo que fosse só eu que pensasse assim, o que não
acredito de forma alguma, o fato é que eu estou diante de uma escolha
horrorosa, e a única forma como você pode justificar isso é dizer que nós
estamos pagando pelo pecado de Eva ou alguma outra baboseira do tipo. E eu
estou dizendo a você que tem um furo na sua religião, um furo por onde poderia
passar um caminhão: o fato de que a vida é basicamente uma merda para as
mulheres e sempre foi.”
“E sempre vai ser, Renée. Como é basicamente uma merda para todas as
pessoas na face na Terra. Então a verdadeira escolha que você tem é ou sofrer
para nada, sofrer e ser uma pessoa amarga e fazer mal para as pessoas ao seu
redor, ou encontrar um caminho para Deus através do seu sofrimento. E eu acho
que a Bíblia talvez concorde comigo quando eu digo que há muito mais mulheres
no céu do que homens. Só pelo sofrimento que elas suportaram e pelo orgulho
que elas engoliram. Porque os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os
últimos.”
“Se existir um céu.”
“Ele existe e está ao seu alcance. Ele está bem na sua cara. É pra isso que
você está aqui. Você sabia que o seu nome significa ‘renascida’?”
“Ah, meu Deus”, disse Renée, completamente enojada.
Stites se levantou e deu a volta em sua mesa. “Você me promete pelo menos
que vai voltar aqui outro dia? Eu não vou perguntar se posso rezar por você,
porque você não pode me impedir. Mas eu posso telefonar pra você?”
Ela sacudiu a cabeça bem devagar. Estava com os olhos fixos em Stites,
gravando a imagem dele na memória para poder sempre encontrá-la ali quando
quisesse: os olhos cansados atrás dos óculos redondos de casco de tartaruga, a
gravata amarela que agora tinha uma mancha de caldo de feijão, os quadris
masculinos, o princípio de barba em suas bochechas.
“Você já me ajudou o bastante”, ela disse. “Você me ajudou à beça.”
11.
Pois eu pergunto: Que valor um homem daria a dez mil ou cem mil acres de
excelente Terra, já cultivada e bem fornida também de Gado, no meio do
interior da América, onde ele não tinha esperança alguma de fazer Comércio
com outras partes do Mundo, para obter Dinheiro para si através da Venda
da Produção? De nada lhe valeria o cercamento, e nós veríamos o homem
devolver ao selvagem Território Comum da Natureza tudo o que fosse além
do necessário para suprir os Confortos Materiais da Vida lá obtidos por ele e
sua Família.
John Locke
Não notando nenhuma fumaça fresca, Louis bateu de leve na porta e a abriu.
O pai estava sentado em frente à janela, fazendo carinho na cabeça de Drake e
olhando para as hélices do ventilador que soprava ar em cima dele. Metade do
chão nu estava ocupada por instáveis pilhas de fotocópias repletas de folhinhas
autoadesivas de anotação. Uma fotografia em preto e branco de Eileen estava
pendurada na parede acima do Macintosh. Eileen devia ter por volta de quatro
anos, tinha cabelo curto, jeito delicado e olhos enormes e estava usando uma
coroa de margaridas no cabelo.
“Olha”, disse Louis. “Você não precisa falar nada. Eu só quero dizer que estou
fazendo o melhor que posso e não estou a fim de que fiquem me dizendo como
eu sou mau. Isso realmente não está me ajudando muito no momento, sabe,
porque eu já estou me sentindo o maior babaca do mundo.”
Drake lhe lançou um olhar satisfeito, tingido de ciúme. Bob falou para o
ventilador. “Eu nunca disse que você era mau. Eu sou a última pessoa no mundo
que teria o direito de dizer isso. Você não sabe a grande admiração que eu tenho
por você.”
Louis estremeceu. “Você também não precisa dizer isso. Quer dizer, vamos
ficar por aqui que assim está bom.”
“E eu suponho que a minha grande admiração acabe gerando expectativas
insensatas. Eu tinha esperança de que, mesmo estando chateado com a sua mãe,
você pudesse entender o que está se passando com ela, se eu conversasse com
você. Você não pode me culpar por tentar. Eu não posso ficar parado de braços
cruzados enquanto essa loucura do seu avô destrói a família. Eu preciso fazer
alguma coisa.”
“Arrã. Como o quê, por exemplo?”
“Como, por exemplo, te dizer que nós te amamos.”
Parecia que Louis não tinha ouvido o que o pai dissera. Ele se virou para uma
prateleira e passou a mão pelas lombadas dos livros da biblioteca que estavam
ali. Depois, cerrou o punho e deu um murro nas lombadas. Com os dedos
dobrados, deu safanões nos braços e no peito como se eles estivessem cobertos
de sujeira. “Não diga isso!” Sua voz parecia um ganido estrangulado, muito
diferente de qualquer som que ele já tivesse produzido. “Não diga isso!”
O pai virou sua cadeira giratória na direção de Louis, o que fez Drake pular de
seu colo e sair do quarto em disparada. “Lou...”
“Foda-se o amor. Foda-se o amor.” Louis bateu a cabeça com força na
moldura da porta. Cambaleou porta afora e desabou no chão do hall, segurando a
cabeça e dividido entre o que estava sentindo e o que sabia ser uma capacidade
ainda opcional de se controlar. Abriu os olhos e experimentou um momento de
absoluto vazio, todas as ondas em seu cérebro simultaneamente zeradas. Então, o
pai se ajoelhou e pôs os braços em volta dele, e seus olhos queimavam e terríveis
coágulos de uma dor cortante lhe subiam do peito. Ele estava chorando, e não
havia mais caminho de volta para o amor-próprio e o orgulho que ele tinha
sentido antes de começar a chorar. Estava chorando porque a ideia de parar de
chorar e ver que aquele eu do qual ele costumava gostar tanto estava chorando
nos braços do pai era insuportável. Parecia que existia um órgão específico em
seu cérebro que, sob estímulos extremos, produzia uma sensação de amor, mais
intensa que qualquer orgasmo, mas mais perigosa também, porque era ainda
menos discriminada. Uma pessoa podia se pegar amando inimigos, mendigos
sem-teto e pais ridículos, pessoas das quais tinha sido tão fácil viver à distância e
em relação às quais, se num momento de fraqueza se permitisse amá-las, ela
então adquiria uma responsabilidade eterna.
Sem nenhum motivo aparente, Bob tirou os braços de cima de Louis. Havia
uma expressão de desespero em seus olhos. Ele desceu para a cozinha,
arrebentou o selo de metal de uma garrafa de Johnnie Walker e a emborcou.
Teve de chupar a garrafa, enfiando o gargalo bem dentro da boca, para evitar
que o bico de plástico fizesse o uísque escorrer pelo seu queixo. Os gatos
tentavam subir pelas suas pernas, cobiçando a garrafa. Ele encheu a tigela deles
de água. Ouvia o filho soluçar dois andares acima.
Subindo a escada, encontrou Louis com a cabeça encostada na coluna do
corrimão, torto, sem os óculos, seus olhos pequenos e vermelhos, a gola de sua
camiseta distendida. Apertou os olhos com uma expressão estúpida na direção do
pai, que estava parado contra a luz.
“Você está se sentindo um pouco melhor?” Bob chutou Louis de brincadeira,
com um pé e depois com o outro.
“Por que você está me chutando? Para de me chutar.”
“Desculpe.”
Louis soltou um suspiro. Sentia-se prostrado, como se tivesse se livrado de uma
tensão ou de um veneno que vinha se acumulando em seu organismo fazia muito
tempo. O caos em que seus pensamentos estavam não chegava realmente a
incomodá-lo. “Tem uma coisa que eu queria dizer.”
“Tudo o que você quiser.”
“Certo. Obrigado.” Louis fungou um enorme volume de muco. “É sobre a
empresa da mamãe, a Sweeting-Aldren. Eu só queria avisar que são eles que
estão causando os terremotos.”
“O que você quer dizer?”
“Eu quero dizer que eles estão literalmente causando os terremotos em Boston.
Essa mulher com quem eu estou morando... A mulher com quem eu estava
morando... A mulher pra quem eu fiz uma coisa horrível...” Louis ficou olhando
fixamente para a frente, seus olhos novamente se enchendo de lágrimas. “Ela é
sismóloga. E é uma pessoa realmente maravilhosa, pra quem eu fiz uma coisa
muito, muito escrota. Eu basicamente perdi essa mulher. E eu nem sei por que
isso aconteceu. Quer dizer, eu sei por que, é porque ela é bem mais velha que
eu... porque eu a amava muito. Pai. Porque eu a amava muito. E essa outra
pessoa que é da minha idade e que é alguém por quem eu... Essa pessoa viajou
de Houston pra me ver.”
Ele olhou desconsolado para o pai. Depois, apertou os olhos, seu rosto se
franzindo inteiro.
Bob se agachou na frente dele. “Liga pra ela.”
Ele sacudiu a cabeça. “É complicado. Ela não está atendendo o telefone, e eu
nem sei se quero falar com ela. Acho que não iria conseguir.” Ele chegou um
pouco para o lado, temendo que Bob o abraçasse de novo. “Eu não quero falar
sobre isso. Eu só tinha uma coisa pra dizer, que era que a empresa está causando
os terremotos e que eu vou ferrar com eles de alguma forma, e eu sei que a
mamãe tem muitas ações. Eu não ia nem contar pra você, mas agora eu contei,
e você pode contar pra ela se quiser. Era só isso.”
“Causando. Você disse causando?”
“Disse.”
“Ela tem certeza?”
“Tem.”
Agora Bob tinha de saber de tudo. Como um frenético treinador de boxeador,
ele trouxe para Louis um punhado de papel higiênico para que ele assoasse o
nariz, levou-o para a cozinha, fez com que ele se sentasse, serviu-o de água
gelada e Johnnie Walker e o metralhou com perguntas. Tentando explicar a coisa
sem a ajuda de Renée, Louis achou que a teoria toda soava vaga e improvável,
mas Bob estava rindo enquanto picava legumes e carne e os fritava à moda
oriental, pontuando cada etapa lógica com um “Ótimo!” ou um “Excelente!”.
Não havia como não admirar a maneira metódica como ele se empenhava em
adquirir o pleno domínio da argumentação. Sentado à mesa, a cada bocado de
comida que punha na boca com seus pauzinhos (Louis usou um garfo), ele
encaixava mais um fato no quebra-cabeça.
“Ninguém desconfia da empresa”, disse ele, botando um pedaço de cenoura
na boca, “porque os terremotos são fundos demais.”
“Isso.”
“E os terremotos de Ipswich não têm relação nenhuma.” Uma tirinha de carne
agora. “Eles são o disfarce.”
“Isso.”
“Exatamente como em Nova Jersey, quando o vento sopra na direção do mar,
todas as empresas duplicam as emissões de gás, porque aí ninguém consegue
pegá-las em flagrante. Os terremotos de Ipswich são o vento soprando para o
mar.”
“Isso.”
“Maravilhoso! Sensacional!” Uma fava de ervilha. “E como ela vai provar
que o tal buraco profundo existe?”
Louis gostaria que o pai não insistisse em considerar isso a teoria “dela”. “Ela...
a gente está procurando fotos ou alguma coisa assim. Mas, até agora, só o que a
gente tem mesmo são os dois artigos.”
De seu prato manchado de molho de soja, Bob pegou um pedaço de brócolis e
o levantou na altura dos olhos, revolvendo-o como um pensamento e franzindo o
cenho. “Isso é um problema”, disse ele. “Se ela não tiver como provar com
certeza que o buraco foi perfurado.”
“A gente está trabalhando nisso.”
“Não, não. Isso realmente é um problema.” Bob se virou e olhou de cenho
franzido para a porta que levava ao porão. Depois de alguns instantes, ele se
levantou e desceu. Voltou trazendo uma Atlantic Monthly.
“Come, come”, disse Bob, sentando-se. Sacudiu a poeira da revista e mostrou
a capa para Louis: a origem do petróleo. Fevereiro de 1986. “A sua mãe assina”,
disse ele. “E eu leio.”
Louis olhava apreensivo para a revista. A matéria da capa era sobre o cientista
que Renée havia mencionado, aquele de sobrenome Gold, que acreditava que o
petróleo se originava nas profundezas do planeta. O fato de Louis estar com
medo de abrir a revista — com medo de encontrar algo que contradissesse a
teoria de Renée — revelava algo não muito lisonjeiro acerca de seu amor pela
verdade. Se Renée estava errada, ele preferia não saber.
Bob pegou a revista e passou os olhos pela matéria da capa, correndo o dedo
pelas colunas. Quando chegou ao fim da matéria, ele sacudiu a cabeça.
“Não tem nada aqui sobre a Sweeting-Aldren. Se tivesse, pode acreditar, eu
teria reparado quando li. Mas... olha, eu não quero que você pense que eu
pessoalmente não estou convencido, porque eu estou, eu conheço aquelas pessoas
e o que você falou faz muito sentido. Mas a impressão que dá lendo esse artigo é
que você simplesmente não escava um buraco em qualquer lugar. É preciso que
haja uma geologia muito especial pra que o petróleo que sobe fique acumulado
num determinado lugar. Eu estou mais que disposto a acreditar que a empresa
tenha perfurado um poço para injetar resíduos, mas eu não creio que eles fossem
escavar um buraco de seis mil metros de profundidade quando um buraco de
dois mil já bastaria. E, infelizmente, parece que a teoria da sua amiga só
funciona se o buraco for muito fundo. Se a geologia do oeste de Massachusetts
era a geologia correta, faz sentido que eles tenham escavado um buraco
profundo lá. Mas se eles acabaram escavando o buraco em Peabody, o buraco
só pode ser raso.”
Louis tinha certeza de que Renée teria uma resposta para dar a isso. “Imagino
que eles tenham achado que encontrariam petróleo de qualquer forma.”
“Ah, pelo amor de Deus, Lou.” Bob se inclinou para a frente, numa postura
desafiadora. “A coisa tem que fazer sentido nos detalhes também. Se você me
manda esse negócio como um artigo para ser avaliado, eu vou cair de pau em
cima de você. O petróleo era barato em 1969. Escavar um buraco profundo é
caríssimo. Um buraco raso já resolveria o problema se o objetivo era descartar
resíduos. A teoria da sua amiga requer que o buraco seja fundo. A Atlantic —
que, eu admito, não é nenhuma Bíblia, mas de qualquer maneira —, a Atlantic
me diz que a teoria do petróleo profundo só foi desenvolvida em fins da década
de setenta, baseada em dados obtidos por sondas espaciais do início da década.
Mesmo que alguém tivesse uma teoria nesse sentido em 1969 — quando
ninguém estava muito preocupado com petróleo e a Sweeting-Aldren, diga-se de
passagem, estava tendo lucros de mais de quatro dólares por ação anualmente —
só poderia ser uma teoria mal fundamentada.”
“Bom, foi exatamente isso que a Renée disse. Ela disse que era um trabalho
ruim, mas que, mesmo assim, ele meio que antecipou a teoria que surgiu
depois.”
“Mas um trabalho ruim é um trabalho ruim. Como é que a empresa ia saber
que a teoria tinha futuro?”
Louis se contorceu feito um aluno que não sabe a matéria. “Sei lá. Mas o resto
todo faz sentido.”
“Você lembra o nome do autor? Não era Gold, era?”
“Ah, por favor”, disse Louis, empurrando seu prato. “Eu sei quem é esse Gold.
O autor do trabalho era um tal de Krasner. Ele publicou esse trabalho e depois
nunca mais publicou nada, e a gente não faz a menor ideia de onde ele se
enfiou.” Ele olhou para o pai. “O que foi?”
Bob tinha se levantado da cadeira. Estava olhando fixamente para o armário
de bebidas, gravitando na direção dele. Tinha ficado muito pálido de repente.
“O que é que foi?”
Bob se virou como se estivesse respondendo apenas ao som da voz de Louis,
não ao teor da frase. Olhou para ele com uma expressão vazia. “Krasner.”
“Você está brincando. Vai me dizer que você conhece esse cara?”
“Não é um cara, é uma mulher.”
“Uma mulher?” Uma semente de medo brotou no estômago de Louis.
“Anna Krasner. Ela foi namorada do seu avô.”
“Como é que você sabe disso?”
Bob respondeu devagar, falando consigo mesmo. “Porque o velho Jack fez
questão de que eu soubesse. Não tinha uma única coisa que ele possuísse que ele
não fizesse questão de que eu soubesse que era dele.”
“Quando foi isso?”
“Em 69.”
“Ele já estava casado com a Rita?”
Bob sacudiu a cabeça. “Ainda não. Ele só se casou uns três anos depois.” Bob
estava lendo mensagens na parede que Louis não conseguia ver — mensagens
preocupantes, mensagens amargas. Depois, de repente, ele voltou a si e se
sentou. “Você está se sentindo bem?”
“Estou. Só estou meio bêbado.”
“Eu acho que posso encontrá-la pra você, se você quiser.”
“Seria ótimo.”
“Você não lembra muito bem do Jack, lembra?”
“Não lembro absolutamente nada.”
“Ele não era um... um ser humano comum. Por exemplo, a Anna era uma
mulher muito bonita, acho que uns quarenta e cinco anos mais nova que ele.
Quando a gente soube que ele tinha se casado de novo, eu estava certo de que
tinha sido com ela. Mas aí, quando acaba, ele tinha se casado com a Rita, que
todo mundo concordava que não era uma mulher particularmente atraente. Pra
não dizer que ela era um verdadeiro tribufu, embora isso fosse só a minha
opinião. Nós a conhecemos quando ela ainda era só a namorada, quando ela
ainda era secretária dele, mas isso foi anos antes. Eu tinha deduzido que ela já
tivesse saído de cena fazia tempo. E tem muitos homens que não causariam
espanto algum se casassem com uma mulher como a Rita, mas não era o caso
do Jack. Ele dava muita importância à aparência de uma mulher, à aparência e à
idade dela. Dava mais importância pra isso do que pra qualquer outra coisa.”
“Arrã.”
Uma mariposa se chocou contra a tela da porta dos fundos, impossibilitada de
seguir o cheiro de pradaria que vinha lá de fora. Algum pequeno animal fez o
capim alto farfalhar. Os gatos atravessaram a cozinha, em fila única, e
encostaram os bigodes na tela. Bob perguntou o que Louis e Renée planejavam
fazer com as informações que haviam levantado.
“Imagino que garantir que a empresa pague pelo que fez”, disse Louis. “Mas
nós discordamos em relação a quando botar a boca no trombone.”
“Você precisa avisar a sua mãe com antecedência.”
“Está bom.”
“Você tinha pensado nisso?”
“Eu estava tentando não pensar.”
Bob balançou a cabeça. “Isso foi outra coisa que o Jack fez que foi muito
esquisita. Por que ele investiu o dinheiro todo dele em ações da Sweeting-Aldren?
Porque não foi como se ele tivesse recebido tudo em ações e depois feito a
besteira de não diversificar. Os registros mostram que ele tinha um portfólio bem
equilibrado até o início da década de setenta, que foi quando ele fez um novo
testamento — suponho que depois que ele se casou com a Rita. Aí, ele se
aposentou e começou a comprar ações da empresa sistematicamente, até
transformar o portfólio dele inteiro em ações da Sweeting-Aldren. Uma
maluquice que já custou muito dinheiro à sua mãe.”
“Coitadinha.”
“O que a gente não consegue entender é por que o Jack fez isso. Tudo bem, ele
era um cara que vestia a camisa da empresa, foi lá que ele fez a fortuna dele, e
eu nem sei quantas vezes ele me falou que a Sweeting-Aldren era a empresa
mais bem administrada do país. Provavelmente, o mesmo número de vezes que
eu o vi na vida. Uma dúzia de vezes, mais ou menos. Só que ele era tão vidrado
em dinheiro quanto era em mulheres, e ele era tudo menos burro. Eu
simplesmente não consigo imaginar o Jack tomando decisões de forma
emocional. Tem que haver algum motivo ganancioso por trás do que ele fez, em
algum lugar que eu não estou conseguindo enxergar. Teve um canadense um
tempo atrás, um sujeito chamado Campeau, aquele que era dono de lojas de
departamentos, sabe? Ele investiu todo o dinheiro dele na própria empresa e todo
o dinheiro dos filhos também, coisa de uns quinhentos milhões. Aí, quando ele foi
ver, as ações não estavam mais valendo praticamente nada. Se você é
ganancioso e tem confiança em si mesmo, imagino que você pense: Por que é
que eu vou investir um tostão que seja em coisas que não vão me dar o máximo
retorno?”
“É, por que não?”, disse Louis.
“Eu vou te dizer por que não. Porque o Jack comprava ações estivessem elas
no preço e na cotação que estivessem. Toda vez que o prazo de alguma aplicação
dele vencia, ele convertia o montante em ações ordinárias da Sweeting-Aldren,
não importava a que preço elas estivessem sendo vendidas, e isso depois que ele
já tinha se aposentado. Você não diria que isso é meio irracional?”
“Imagino que sim, se eu entendesse de ações.”
Bob se inclinou para a frente de repente, apoiando os cotovelos nos joelhos, e
focalizou seus olhos vermelhos e entusiásticos em Louis.
“A namorada do Jack trabalha na empresa como química”, disse ele. “A
empresa escava um poço de injeção de resíduos três ou quatro vezes mais
profundo do que seria necessário. A química desaparece. O Jack se casa com um
tribufu. Depois, ele converte todo o ativo dele em ações da empresa, não importa
a que custo. Quando morre, ele deixa as ações num fundo fiduciário para o
tribufu. Você não está vendo nada aí não?”
Se essa pergunta tivesse sido feita a Louis por qualquer outra pessoa, ou em
qualquer outro momento dos últimos dez anos, ele só teria ficado irritado,
pensando que, se a pessoa tinha algo a dizer, ela devia dizer de uma vez, em vez
de ficar torrando a sua paciência. O que ele sentia agora, porém, era vergonha
por não estar vendo o que o pai via. Ficou envergonhado por ter de sacudir a
cabeça.
“Não”, disse ele. “Você vai ter que me dizer.”
13.
O avô de Melanie, Samuel Dennis iii, tinha uma casa elegante na Marlborough
Street, uma casa de veraneio no leste de Ipswich, um Dusenberg Roadster e
algumas dívidas corriqueiras, e estava comandando uma família de seis filhas, só
uma delas já casada, quando um demônio do período o fez instalar um
registrador automático de cotações da Bolsa em seu escritório na Liberty Square.
Havia décadas, o escritório vinha sendo pouco mais que um lugar para fumar
charutos e preencher cheques para sobrinhos e sobrinhas cujos fundos Dennis
administrava. Era também o desaguadouro de várias correntes de renda que
nasciam nas cidades fabris ao norte de Boston — correntes que, em 1920,
estavam mostrando uma tendência a assorear e secar — e o depósito de dólares
muito, muito antigos: dólares sujos do sangue de castores (e do sangue de visons e
do sangue de bacalhaus), dólares que tinham cheiro de pimenta-do-reino e de
rum jamaicano, que tinham o cheiro dos pinheiros das terras desmatadas dos
Dennis, enferrujados dólares de guerra, dólares acres e úmidos do suor das
mulheres que operavam teares, velhos dólares de proveniência obscura que em
algum ponto do caminho tinham resolvido pegar carona na enxurrada, todos os
dólares incrustados com juros sobre juros sobre juros, e nenhum dólar, por mais
embolorado que fosse, de forma alguma menos valioso do que qualquer outro.
Por certo o mercado de ações de uma nação democrática não fazia distinção
entre riqueza velha e riqueza nova.
Rezava a história oral da família, disse Bob, que Dennis havia demorado muito
a perceber que suas especulações o estavam levando à ruína. Num inverno de
fins da década de vinte, ele começou a voltar para sua casa na Marlborough
Street exibindo no rosto uma expressão de perplexidade que ia ficando mais
carregada a cada semana que passava. E então, uma noite, ele morreu.
Seu corpo ainda mal havia atingido a temperatura ambiente quando sua
família descobriu que estava falida. Dennis havia penhorado, ou assim afirmou a
família mais tarde, até as louças de porcelana e as toalhas de linho. Tanto as
filhas como a viúva se viram diante da perspectiva de ter de viver sob a tutela de
tias e tios moralistas, e no entanto (ou assim afirmou a família mais tarde) não
era por si próprias que elas lastimavam, mas pela casa da Marlborough Street e
pela casa de Ipswich. Quem mais cuidaria daquelas casas com o capricho e o
empenho com que os Dennis haviam cuidado?
As mulheres da família Dennis estavam à beira do desespero quando o
advogado da família lhes informou que Sam Dennis, um mês antes de morrer,
havia discretamente transferido a escritura da casa da Marlborough Street para
sua filha casada, Edith — ou, mais precisamente, para o marido de Edith, John
Kernaghan. Embora privada de sua mobília e aprestos, a amada casa fora salva.
Anos mais tarde, ninguém sabia dizer exatamente como Kernaghan havia
adquirido a casa. Era possível que ele próprio tivesse advertido o patriarca do
desastre iminente e o ajudado. Mas por mais que “gostassem” de Kernaghan, as
mulheres da família Dennis relutavam em lhe conceder tamanho
reconhecimento. Desde que Edith se casara com ele, rezava a história oral da
família, as meninas da família Dennis só faziam dar risadinhas espremidas e
sacudir a cabeça com ar complacente diante da figura daquele jovem advogado
moreno, taciturno e meio baixote que provinha da obscuridade dos bosques do
Maine e ficava tão intimidado com os ilustres Dennis que só acompanhava Edith
em visitas à casa dos pais em dias festivos e, mesmo assim, mal abria a boca.
Mas, de alguma forma, esse mesmo Jack Kernaghan — claro que graças à
carinhosa orientação e ao apoio do patriarca caído — havia conseguido resgatar
a fachada de tijolo da grandeza dos Dennis e, depois, ainda sustentou a sogra e as
cinco cunhadas durante as agruras da Grande Depressão. Ele era um sujeito
esquisito, dizia a história oral da família. Era tão obcecado por trabalho que nunca
tirava uma única semana de férias, coisa que só foi fazer depois de terminar de
financiar os estudos da última de suas cunhadas numa escola particular. Sabendo
da importância que uma casa de veraneio tinha para a saúde mental das Dennis,
todo verão ele alugava para elas uma casa em Newport durante seis semanas,
mas, como não ligava muito para água, ele próprio ficava em Boston,
trabalhando. Podia bancar o salário de uma empregada para a sogra, mas era tão
fanático por ar fresco (sem dúvida porque vinha dos bosques do Maine) que
andava quase dois quilômetros todo dia para ir para o trabalho. Todo mundo sabia
que ele tinha sempre exatamente três ternos, um molambento, um para o uso
diário e um bom. Ele era realmente um homem muito, muito esquisito, dizia a
história oral da família, mas tinha feito uma coisa maravilhosa pelas mulheres
Dennis, e elas eram gratas a ele, sim: gratas.
“E ele tinha um ressentimento horrendo delas”, disse Louis.
“Não. Pelo menos, na época em que eu o conheci, com certeza não. Eu acho
que ele desprezava demais as Dennis para se ressentir delas como iguais. Ele só
era absurdamente frio. Com a sua mãe, com a sua tia Heidi, com a sua avó, na
verdade, com todo mundo da família, menos comigo. Eu o conheci pouco antes
de a Edith finalmente se divorciar dele. Ele me perguntou o que eu fazia. Eu disse
que era estudante. Ele me perguntou o que eu planejava fazer depois que tirasse
o meu diploma e, quando eu disse que pretendia ser professor, ele jogou a
cabeça pra trás e começou a rir e saiu da sala rindo. Eu achei que tinha sido o
fim da nossa relação. Mas aí, alguns anos depois, ele apareceu no nosso
casamento, sem ter sido convidado, de braço dado com a Rita, e ele estava rindo
como se não tivesse parado de rir desde aquele dia em que saiu da sala rindo.
Depois a sua mãe me disse que aquela tinha sido a primeira vez em quase vinte
anos que ele lhe dava um beijo. Foi bem constrangedor pra mim, porque metade
das pessoas que estavam na recepção olhavam pra ele como se quisessem fuzilá-
lo, e ele fez questão de deixar claro que só estava ali porque gostava de mim: de
mim especificamente. E ele ficou me bajulando, sabe, fazia perguntas sobre o
meu trabalho como professor e depois ria das minhas respostas. Mas havia
alguma coisa genuína no interesse dele por mim, eu sentia que havia. Era como
se ele estivesse bêbado, quase como se estivesse encantado comigo e soubesse
que não devia, mas não conseguisse evitar.
“Depois nós começamos a receber cartões de Natal dele. E uma caixa de
Dom Pérignon todo ano, no dia 22 de dezembro. Uma vez ele veio pra Chicago a
negócios e me levou pra almoçar, depois pra outro lugar pra tomar mais drinques
e depois pra dar uma volta pelo Lincoln Park. Ele me perguntou: ‘Você está
cuidando bem da minha garotinha?’. (Ela não era nenhuma garotinha e também
não era dele, e foi por isso que ele riu. Ela tinha pavor dele, vivia me dizendo pra
tomar cuidado com ele e se recusava a falar comigo porque eu era boa-praça
demais e cretino demais pra devolver a champanhe dele e recusar os convites
dele.) ‘Você já conseguiu estabilidade na universidade? Conseguiu? Ah, isso é
ótimo, assim você pode pregar a revolução oito dias por semana e não sentir nem
o cheiro de insegurança financeira até a revolução de fato acontecer, e mesmo
aí você vai ter posição garantida como Comissário da História Marxista.’ E ele
estava falando sério: ele realmente achava ótimo. É muito estranho, Lou, estar
com um homem que obviamente se importa muito com você, mas por algum
motivo completamente obscuro. Um homem que, por algum razão, você deixa
quase zonzo de emoções contraditórias. Ele me fez prometer que cuidaria bem
da garotinha dele e que nós iríamos lá visitá-los algum dia. E nós fomos, porque a
sua mãe não conseguiu me impedir. Você não se lembra, mas você passou uns
dias lá em Ipswich no verão de 69, você, a Eileen e até a sua mãe, por um
tempinho. Ela passou a maior parte do tempo visitando amigas em Boston...”
“Tinha cavalos lá?”
“Cavalos? Talvez, na casa em frente. Mas, enfim, quando eu voltei pra lá em
novembro, o tapete vermelho estava estendido pra mim. Quando eu desci do
avião, tinha um funcionário da Sweeting-Aldren esperando por mim num carro
da empresa, e almoço pro Jack e pra mim na casa da Argilla Road — ostra,
lagosta, champanhe. Eu queria começar a trabalhar à tarde, mas o Jack disse:
‘Você tem estabilidade, pra que que você precisa trabalhar?’. Não exatamente
debochando de mim, mas mais me sugerindo uma maneira de pensar que ele
não sabia se eu era esperto o bastante pra descobrir por conta própria. Aí ele me
mostrou a adega nova dele, o carro novo dele, a televisão em cores nova dele
num móvel de madeira de lei. Ele me levou de carro até a praia, que mais
parecia a praia particular dele, porque estava completamente vazia, depois se
sentou no capô do Jaguar dele, acendeu um cigarro e ficou soprando a fumaça
para o mar, enquanto as ondas quebravam aos pés dele servilmente. Depois me
levou até a marina e me mostrou o barco novo dele, que ele tinha batizado de
Manipulável. Estava pintado na proa! Manipulável! A gente voltou pro carro e ele
me levou até uma casa numa colina, uma mansão vitoriana imensa mais perto
do cabo Ann. Ele parou o carro atravessado na frente da pista de entrada, desceu
e ficou parado, de costas para mim, e aí eu me dei conta de que ele estava
mijando no cascalho branco. Ele mija metade de uma garrafa de Dom
Pérignon, um riacho espesso e cinzento descendo pelo meio das pernas dele. Aí
ele dá um pulinho pra botar o negócio dele de volta pra dentro da cueca e diz que
aquela era a casa que ele realmente queria, mas que os donos tinham se
recusado a vender. Ele fica parado na frente da pista de entrada, olhando pra
colina lá em cima, e diz que imagina que a Melanie tenha me falado que o avô
dela faliu no crash de 29. Eu respondo que sim, que foi o que ela me falou. E aí
ele diz: ‘É, só que não foi em 29 coisa nenhuma, foi na primavera de 28’. Todos
os mercados inflados, todo mundo ficando mais rico, ninguém ficando mais
pobre. Ele diz: ‘Era preciso ser um tipo muito raro de homem pra conseguir ir à
bancarrota na primavera de 28’. Diz que um amigo passou no escritório dele no
inverno de 27 pra 28 e comentou que o Sam Dennis tinha posto as casas dele
como garantia em empréstimos que ele tinha feito pra pagar os prejuízos dele na
Bolsa. ‘E Bob’, ele diz, ‘nem assim o homem conseguiu enxergar o que estava pra
acontecer. Eu tive que ficar lá esbravejando das três da tarde até as dez da noite
pra conseguir convencer aquele imbecil a me deixar tentar salvar a casa da
Marlborough Street. A dívida já tinha chegado a um valor tal que saldar a
hipoteca daquela casa custou a minha própria casa e mais todos os dólares que eu
consegui tomar de empréstimo empenhando a minha palavra. Três semanas
depois, o homem morre. E a família ainda achava que o dinheiro crescia feito
limo em cofres de banco. Elas teriam ficado na rua, olhando embasbacadas pra
porra do trânsito, feito um bando de animais de zoológico, se não fosse por mim.
Elas eram tão obtusas que você não ia conseguir acreditar, Bob, e elas nunca
nem souberam o quanto eram obtusas, por minha causa. Pode acreditar: eu fui o
cavaleiro montado em cavalo branco daquela família.’
“Eu pergunto a ele: ‘Por quê?’
“Ele volta pra dentro do carro e diz: ‘Porque eu tinha medo de Deus’.
“E eu: ‘Arrã, claro’.
“E ele: ‘Acredite, Bob, eu tinha medo de Deus. Eu tinha medo do velho de
vestes esvoaçantes’.
“No caminho de volta, nós vemos uma garota na beira da estrada, tentando
pegar carona. Cabelo comprido, jaqueta de couro franjada, um violão ao lado. O
Jack reduz a velocidade e encosta o carro perto dela. Ela já estava pegando o
violão quando ele mete o pé no acelerador e vai embora. Eu deduzi que fosse
uma brincadeira de mau gosto, que ele fosse um daqueles caras que gostam de
gozar da cara de caroneiros, mas aí eu vi que ele estava sacudindo a cabeça.
‘Tábua’, ele diz. E eu: ‘O quê?’. E ele: ‘Ela é lisa. Não tem peito’. A gente segue
em frente e aí, depois de um tempo, ele diz: ‘Não tem uma só delas que não entre
no carro’. A gente volta pra Argilla Road e aí o cardápio agora é caviar de
beluga, faisão, trufas, tudo o que havia de mais caro. A Anna vai de Peabody pra
lá, depois do trabalho. Ele já tinha me falado antes que tinha uma pessoa que ele
queria que eu conhecesse...”
“Olha, eu sinto muito”, disse Louis. “Mas não sei como você pode ter passado
cinco minutos com esse cara.”
“Como eu podia não ter ódio dele? Claro que eu tinha ódio dele. À noite eu
ficava pensando se não ia acabar matando o desgraçado, em nome do povo. Mas
quando você estava com ele, a história era outra. Havia um magnetismo. Ele se
vestia como um aristocrata inglês; eu lembro especificamente de um terno de
fumar que ele tinha, de veludo castanho. Ele tinha sessenta e nove anos, mas a
pele dele era toda lisinha ainda e sem mancha nenhuma. Ele era rijo, lustroso e
elegante, como a morte, e eu acho que não há ninguém que não encontre algo
que o atraia num cara daqueles — no assassino sedutor, no modo como ele
conseguia se manter distanciado dos corpos que estavam se empilhando no
sudeste da Ásia. Aquela carnificina toda pode ser tão sexy à distância quanto é
repulsiva de perto. E quando estava com Jack Kernaghan, você sentia que essa
distância era mantida com absoluto rigor. Era como estar numa interminável
máscara da morte rubra, naquele castelo no alto da colina. Ele era a minha prova
de que realmente havia algo lá — lá nas salas de reunião de diretoria, lá no
complexo industrial-militar — que inquestionavelmente merecia o nosso ódio.
Você sabe como é fácil a gente se deixar iludir pelo nosso idealismo: como é
fácil pensar que a honestidade intelectual exige que você perdoe esses caras e os
veja como seres humanos como você, como marionetes nas mãos da história. O
Jack era uma magnífica prova do contrário. Ele era contumaz. Tinha um prazer
enorme de ser um canalha. E eu o provocava de propósito, sabe, porque que eu
era um jovem cretino exatamente como você, e ele não tinha como me atingir.
Ou assim eu pensava.”
Jack contou que seu pai era professor de escola, “um bunda-mole ridículo”, o
que você deduzia que quisesse dizer que ele fosse um homem correto e altruísta,
que procurava ensinar aos filhos o que era certo e o que era errado. Suponha que
o jovem Jack acreditasse nos ensinamentos que recebeu. Suponha que ele tivesse
uma enorme admiração pela integridade do pai. Suponha que ao sair de casa aos
dezesseis anos para ir para a universidade Jack acreditasse que vivendo
honestamente ele ganharia uma passagem para o paraíso, e que vivendo de
maneira desonesta ele iria direto para os tanques de enxofre. Suponha que ele
comungasse aos domingos e acreditasse que a hóstia era o corpo do Salvador.
Suponha que ele amasse o Salvador como seu pai amava.
Ele trabalhava durante os verões numa firma de advocacia de Orono.
Candidatou-se para estudar na faculdade de direito de Harvard, foi aceito, teve
um excelente desempenho acadêmico no curso e, em seguida, associou-se a
uma firma de advocacia de Boston, sempre mantendo o hábito de comungar aos
domingos. Com tamanho crédito tanto na sua folha de balanço celestial quanto na
terrena, ele deve ter ficado atônito com a veemência com que a família da moça
que ele queria para esposa o rejeitou. O senhor Dennis, tendo mais cinco filhas
para casar além de Edith, não chegou a ser muito vigoroso em sua oposição, mas
a senhora Dennis compensou essa tibieza considerando inadequados todos os
aspectos concebíveis da pessoa de Kernaghan, não só o fato de ele ser católico,
não só o fato de ele advir de uma família pobre “dos bosques do Maine”, não só o
fato de ele ter ludibriado a todos eles cortejando Edith fora da casa da família
dela, mas também o fato de ele ser moreno e baixinho. Ela confidenciou a Edith
que tinha tido de engolir o riso na primeira vez em que a viu ao lado de
Kernaghan. Era como um show de aberrações! Era inconcebível! Uma giganta e
um anão! Uma duquesa e seu costureiro! (Na verdade, a diferença de altura
entre os dois não chegava a quatro centímetros.) Ela expressou sua firme
intenção de boicotar a cerimônia de casamento e imediatamente cortou relações
com a família em cuja casa os pombinhos haviam se conhecido.
O fato de eles terem se casado mesmo assim, sabendo que isso frustraria
qualquer ambição social que um ou outro pudesse ter acalentado, parece indicar
que realmente havia amor entre os dois. Será que Kernaghan poderia ter vindo a
odiar Edith de forma tão passional se não tivesse a consciência de que um dia já
a havia amado? Um homem odeia em sua esposa aqueles traços que odeia na
família dela; odeia a prova de quão profundamente os traços estão enraizados, de
como a hereditariedade é inelutável. Vivendo durante quatro anos quase sem
contato algum com os Dennis e tendo tão raramente a mãe ou as irmãs à mão
para comparar com Edith, Kernaghan só tinha como vê-la em sua singularidade,
sua beleza, sua paixão por ele. E, mais ainda, deve ter formado uma imagem
igualmente esperançosa da família dela.
De que outra forma explicar a gigantesca boa ação que ele fez para a família
Dennis? De que outra forma explicar por que ele quase se arruinou
financeiramente para comprar a casa da família e em seguida tomou para si a
tarefa de sustentar aquelas mesmas mulheres que o tinham considerado tão
desprezível a ponto de se recusarem a ir a seu casamento? Se ele acalentasse
desejos de vingança em 1928, cruzar os braços e rir da ruína delas teria sido a
coisa mais fácil do mundo. Qualquer pessoa com um nível normal de força
moral consideraria que ele tinha todo o direito do mundo de fazer isso.
Ele ainda devia estar tentando conquistar o amor delas. Ele as tinha visto tão
poucas vezes nos quatro anos anteriores que devia de fato acreditar que, se as
salvasse, elas passariam a amá-lo ou, pelo menos, a respeitá-lo. (Porque, de
novo, ele jamais poderia ter passado a odiá-las tão intensamente mais tarde se
elas não tivessem sido importantes para ele um dia.)
Em sua nova vida, as mulheres da família Dennis eram, por necessidade,
civilizadas com seu benfeitor. Quatro anos antes, Kernaghan teria se contentado
de bom grado em ser tratado com civilidade. Mas agora — considerando os
riscos que ele havia corrido para salvá-las, considerando o dispêndio gigantesco
de altruísmo que ele fizera — ele precisava de mais que isso. Agora havia
chegado a hora em que elas tinham de amá-lo. Uma pessoa melhor que ele não
teria esperado menos.
Mas claro que as mulheres da família Dennis não podiam amá-lo. Mesmo que
ele não as tivesse visto no momento mais degradante da vida delas, mesmo que
ele não tivesse cometido a temeridade de salvá-las, elas eram apaixonadas
demais por seus egos brâmanes e sentiam-se seguras demais em sua absoluta
maioria feminina para precisar de qualquer outra coisa dele além de dinheiro.
Pedidos de pagamento de mensalidades escolares, de roupas, de viagens de
férias de verão, de enxovais de noiva eram comunicados a Kernaghan através de
Edith, que tentou durante algum tempo mediar entre sua família e o comandante
da casa ocupada por ela, mas que, inevitavelmente, agora que elas moravam
todas juntas, acabou desertando para o lado das Dennis. Elas eram tantas e ele só
um. As mulheres tinham o dia inteiro para contaminar Edith com suas
pretensões, preconceitos e desejos artificiais. Os filhos de Kernaghan tinham sete
mães e um pai; o pai era o homenzinho que trabalhava sessenta horas por
semana para fazer a casa funcionar.
Mesmo assim, ele levava uma vida íntegra. Melanie se lembrava de um tempo
em que o pai ia direto do trabalho para casa todas as noites e lia para ela e para
seu irmão Frank (sendo Frank o único homem além do pai numa casa de nove
mulheres), tomava um conhaque e fumava cigarros em seu escritório,
engraxava seus próprios sapatos e escovava seu próprio paletó antes de ir para a
cama. Ela se lembrava de vê-lo chegar de sua igreja diferente aos domingos,
mais tarde que o resto da família, de forma que até o domingo era como um
barco de passeio que ele sempre chegava tarde demais para pegar. Ele
acompanhava o barco andando pela praia, cuidando de sua própria vida a menos
que um filho resolvesse descer do barco e atrapalhar sua leitura dos jornais que
vinham se acumulando desde o domingo anterior. Ela dizia se lembrar de um
afeto, da época em que ela era pequena. Talvez ele já odiasse a esposa, a sogra e
as cunhadas, mas alguma coisa o mantinha a serviço delas, e talvez só pudesse
ser mesmo o tal medo do inferno. Ele praticamente admitia isso para você: ele
estivera tentando, em 1928 e pelos dez anos seguintes, conquistar as boas graças
não só das Dennis, mas também de Deus, e embora claramente estivesse
fracassando com as Dennis, ele ainda tinha esperança de ter sucesso com Deus.
Então Deus matou Frank.
Aconteceu num daqueles meses de agosto em que a família estava em
Newport, tomando banho de mar de manhã e indo a chás à tarde, Kernaghan
estava redigindo testamentos e contratos em Boston e a meningite bacteriana
podia matar um menino de pouca sorte em noventa e seis horas. Melanie ainda
se lembrava do estado em que Jack chegou a Newport. Nenhuma tristeza visível,
só uma raiva descomunal. Raiva da esposa, da sogra, da filha e da cunhada mais
nova por não levarem a sério a febre de Frank, por não terem telefonado para ele
(Jack) antes, por obedecerem às ordens do médico, por deixarem Frank aos
cuidados do hospital atrasado de Newport, por deixarem Frank morrer, por
matarem Frank com a burrice delas, por serem Dennis, por transformarem a
vida dele num inferno. Melanie, que tinha seis anos na época, foi retirada às
pressas da casa, como se a raiva do pai representasse um perigo físico para ela.
Foi um choque do qual ninguém se recuperou, um choque que fez Jack trepidar
feito um sino, feito um planeta atingido por um meteoro e que ainda continuava
vibrando trinta anos depois, de modo que ele lhe dizia, por cima do foie gras em
sua casa em Ipswich:
“Aquela família me mostrou como este país seria se fosse gerido por
mulheres. É simples: você gasta o dinheiro alheio. Vamos gastar cem bilhões
com os pobres, vamos gastar cem bilhões com os negros. Os sentimentos são
todos muito bonitos, mas de onde é que vai vir esse dinheiro? É a indústria que
bota o pão na mesa das pessoas, mas já vai ser sorte sua se elas encararem você
como um mal necessário. Elas olham pra você, elas olham pra indústria como se
você fosse lixo, como se você fosse torpe, imundo, desprezível, elas riem de você
pelas suas costas. O futuro inteiro delas podia estar morrendo que elas não iam
nem saber, a não ser quando os cortes as atingissem.”
Ele nunca mencionou o nome de Frank na presença de Bob, mas adorava falar
sobre o que tinha feito com as mulheres da família Dennis no ano em que “caiu
em si”. Sobre como a cozinha começou a feder que nem um aterro sanitário
depois que ele dispensou a empregada e as mulheres ficaram esperando,
enquanto os dias iam virando semanas, que alguém, qualquer pessoa que não
fosse elas, lavasse as panelas e levasse o lixo para a rua. Sobre como elas
encontraram uma menina negra disposta a trabalhar em troca de três refeições
por dia e alguns mantimentos extras, e como ele então cortou pela metade o
dinheiro que dava a elas para as compras do mercado (enquanto ele próprio
almoçava magnificamente bem em restaurantes e trazia regalos elaborados e
nutritivos para sua garotinha, Melanie) e corrompeu a menina negra com doces,
uísque e cigarros e trepou com ela na despensa. Sobre como deixou que duas
cunhadas iniciassem um novo ano letivo no Smith College e depois mandou uma
carta informando à faculdade que não tinha nenhuma intenção de pagar as
mensalidades delas. Sobre como fez a mesma coisa com a sogra, cortando
discretamente o crédito dela na Jordan Marsh e na Stearns e provocando cenas
em que ela era humilhada por funcionários. Sobre como cancelou a cerimônia
de casamento de outra cunhada em cima da hora, com a justificativa de que o
noivo dela era um banana. E sobre como, para si próprio, no espaço de um ano,
comprou vinte ternos, cem camisas, abotoaduras de diamante, sapatos italianos.
Sobre como levava mulheres vulgares, uma mulher diferente a cada semana,
para jantar no Ritz-Carlton, no Statler ou em outros lugares chiques onde era
certo encontrar uma plateia de amigas das Dennis. Sobre como fez as Dennis
pagarem.
No mesmo ano em que Frank morreu, um empresário bigodudo chamado
Alfred Sweeting estava comprando terras em Peabody para construir a primeira
fábrica de nitrato de amônio em escala comercial da Nova Inglaterra. Num
processo desenvolvido pelos alemães, o nitrogênio, o oxigênio e o hidrogênio do
ar limpo e da água limpa eram transformados em nitrato de amônio para a
fabricação de altos explosivos. A produção começou em 1938 e, em 1942,
Sweeting se uniu à empresa J. R. Aldren Pigmentos, sua vizinha imediata em
Peabody, uma fabricante de tintas e pigmentos que desejava aumentar seus
contatos com os militares. Durante três anos e meio, navios de guerra pintados
com as tintas cinza de Aldren e aviões B-17 camuflados com os marrons e
verdes-oliva de Aldren bombardearam fascistas com incessantes cargas dos
nitratos de Sweeting.
A fusão Sweeting/Aldren havia sido agenciada pela Troob, Smith, Kernaghan
& Lee; e Kernaghan, um especialista em legislação empresarial, tornou-se não
só o advogado como o grande conselheiro da empresa. Ele supervisionou a
aquisição das patentes e das pequenas empresas que permitiram que a Sweeting-
Aldren, quando a guerra terminou, se remodelasse e se diversificasse. No funeral
de Kernaghan, em 1982, panegiristas atribuíram a ele o mérito de ter
influenciado a empresa a se expandir precoce e vigorosamente na direção dos
pesticidas — uma decisão que, dada a obsessão dos anos cinquenta por maçãs e
tomates de boa aparência e por exterminar todas as infestações de pragas dentro
de casa e de ervas daninhas fora de casa, por mais vagamente que fizessem
lembrar comunistas, acabou por se tornar a mais lucrativa de toda a história da
empresa. Em 1949, Kernaghan e uma equipe de quatro funcionários da Troob,
Smith, Kernaghan & Lee estavam trabalhando exclusivamente com patentes,
responsabilidade civil e legislação contratual para a Sweeting-Aldren, e ele
estava comprando ações ordinárias com desconto num ritmo tal que resultou em
sua entrada para o conselho de acionistas em 1953. Mais tarde, ele contaria a Bob
que em 1956, o último ano de seu casamento e o último ano em que atuou como
advogado privado, ele trepou com trinta e uma mulheres diferentes em mais de
duzentas e vinte ocasiões e ganhou, sozinho, cento e oitenta e quatro mil dólares
em honorários da Sweeting-Aldren, já descontados os impostos. Um anúncio
publicado na Fortune em 1957 bravateava que, de acordo com confiáveis
estimativas científicas, as linhas de produtos Green Garden™ e Saf-tee-tox™ da
Sweeting-Aldren haviam matado, no ano anterior, 21 bilhões de lagartas, 26,5
bilhões de baratas, 37 bilhões de mosquitos, 46,5 bilhões de pulgões e 60 bilhões
de diversas outras pragas domésticas e econômicas apenas nos Estados Unidos.
Enfileiradas umas atrás das outras, as pragas exterminadas pelas linhas de
produtos Green Garden™ e Saf-tee-tox™ dariam vinte e quatro voltas em torno
da Terra na linha do Equador.
Kernaghan tinha cinquenta e seis anos quando se tornou vice-presidente sênior
da Sweeting-Aldren. Aqueles foram tempos dourados para o patriarcado, quando
todos os executivos da América usavam calças com um zíper na frente e cada
um deles tinha uma secretária que usava uma saia com um zíper do lado e que,
embora fosse com frequência mais inteligente, era sempre fisicamente mais
fraca que seu chefe (seus pulsos delicados arqueados sobre as teclas de uma
máquina ibm), e que se sentava numa cadeirinha projetada para revelar o
máximo possível de seu corpo pelo maior número possível de ângulos, e que
usava uma maquiagem de esposa, tinha sempre um alegre sorriso no rosto,
obedecia às ordens de seu homem e falava baixinho. Explorada pela indústria, a
energia de todos esses milhões de pares heterossexuais transformou os Estados
Unidos, no espaço de alguns anos, na maior força econômica da história do
mundo. A secretária de Kernaghan na Sweeting-Aldren era uma veterana
chamada Rita Damiano, que já se divorciara duas vezes e era vinte e poucos
anos mais nova que ele. Não sendo alta, nem jovem, nem bonita, Rita estava
longe de corresponder à mulher ideal da imaginação barata e monomaníaca de
Kernaghan. Mesmo assim, foi sua acompanhante regular durante mais de três
anos e, mais tarde, ele até se casou com ela, de modo que ela deve ter realmente
decifrado o homem. Deve ter intuído que um católico frustrado como ele
precisava que o sexo fosse sujo. Deve ter sabido como graduar a intensidade do
caso deles, como manter Kernaghan desarmado, como fazê-lo se comprometer,
como dosar as liberdades que lhe dava, mostrando-se friamente enojada diante
da ideia de fazer sexo anal na Páscoa, implorando mais sexo anal no Dia da
Árvore e, na manhã seguinte, transpirando autocontrole e eficiência ao servir
café para Aldren pai e Sweeting, que traçavam linhas dúbias entre ela e
Kernaghan com o olhar, como quem pergunta “Algum interesse ali?”, ao que
Kernaghan respondia sacudindo a cabeça com ar blasé: não. Ela representava
um papel estranho e transparente, deixando claro para ele que o achava um
velho depravado e só tolerava suas intimidades porque queria dinheiro. Porque
com um homem como ele, era mais inteligente não fingir. Era mais inteligente
ser uma puta, deixar-se escravizar unicamente pela promessa do dinheiro dele.
Ela foi ao casamento de Bob e Melanie e esnobou as ex-cunhadas de Kernaghan
antes que elas tivessem a chance de esnobá-la. Bebia com ele. Debochava da
instituição do casamento, debochava do prazer e, com o tempo, Kernaghan foi se
afeiçoando a ela e começou a traí-la com as mesmas gostosonas tapadas cuja
hipocrisia eles costumavam ridicularizar quando estavam juntos e, então, fez
com que ela fosse transferida para outro executivo. E esse foi o fim de Rita, pelo
menos por algum tempo.
Enquanto isso, graças novamente às intuições estratégicas de Kernaghan, os
investimentos que a empresa fizera na tecnologia de novos processos
começavam a render frutos. A princípio alvo do desdém de analistas, que a
consideraram uma aposta de alto risco, a Linha M da Sweeting-Aldren, um
processo contínuo em sistema fechado capaz de produzir cem toneladas de
qualquer um dentre vários hidrocarbonetos clorados por dia, estava operando a
toda capacidade desde que as Forças Armadas dos Estados Unidos tinham
descoberto centenas de milhares de quilômetros quadrados de selva no sudeste
asiático que necessitavam urgentemente ser desfolhados. O resto da indústria
levou quatro anos para conseguir atender à demanda e, nesse ínterim, a
Sweeting-Aldren nunca soube o que era ter um crescimento anual de
faturamento menor que trinta e cinco por cento. Sua nova Linha G, que produzia
elastano para uma nação cujo apetite por roupas de banho reveladoras, sutiãs
leves e outros artigos colantes havia se tornado insaciável, também estava indo de
vento em popa. Foi Kernaghan quem convenceu Aldren pai a duplicar a
capacidade da Linha G em 1956, quando ela ainda estava na prancha de
desenho, Kernaghan cujos dedos elegantes testaram as virtudes do elastano em
incontáveis peças de roupa feminina entre 1958 e 1969, década durante a qual a
capacidade extra da Linha G rendeu à empresa coisa de trinta milhões de
dólares, no mínimo, já descontados os impostos, e tudo por causa dele. Adicione
a isso as vigorosas vendas de tinta e altos explosivos em períodos de guerra, o
florescente mercado do novo pigmento alerta laranja de Aldren e os estáveis
lucros de todos os produtos mais mundanos da empresa e começa a parecer um
espanto que Kernaghan tenha saído dos anos sessenta com um patrimônio de
apenas seis ou sete milhões.
Mas a empresa era administrada de modo conservador — olhando para o
futuro, evitando contrair dívidas, investindo vultosas somas em pesquisa e
desenvolvimento. A jovem Anna Krasner, mestre em físico-química pelo Rose
Poly technic Institute, foi uma das beneficiárias do método de contratação amplo
e aleatório da empresa. Kernaghan mais tarde diria que já havia ficado de olho
em Anna desde o primeiro dia de trabalho dela na empresa, quando a vira no
meio da multidão que atravessava o estacionamento. Mas nenhum dos dois
gostava de falar sobre aqueles primeiros dias; quando o assunto surgia, eles se
calavam e faziam uma certa cara de asco; e Bob achava isso curioso, pelo
menos no caso de Kernaghan, já que é tão comum um macho vitorioso gostar de
lembrar à sua amante como ela não suportava sequer olhar para as fuças dele no
início. Talvez a ferroada da rejeição ainda estivesse fresca demais na memória
dele, ou talvez ele não estivesse muito seguro de ter saído vitorioso, ou talvez se
sentisse desconfortável ao pensar no preço que tivera de pagar para fazê-la
mudar de ideia.
Fosse como fosse, Rita com certeza estaria à espreita. Teria sabido, em
primeira mão ou através de bochichos, que Kernaghan estava caído pela química
bonita recém-contratada pelo departamento de pesquisa e que a química vinha
esmagando fragorosamente as investidas dele, enfiando as rosas de talo
comprido em balões de Erlenmey er com ácido sulfúrico, dando as trufas de
chocolate suíço para ratos albinos comerem. Numa hora em que tem de sair de
sua sala para cumprir uma tarefa para seu novo chefe, Rita passa pela sala de
Kernaghan e diz: “Você não sabia? Chega uma idade em que você só parece
medonho pra uma garota que nem ela. Em que a única coisa que ela pensa
quando olha pra você é em problemas de próstata”.
Solta em seu próprio laboratório com um gordo orçamento, Anna toma ao pé
da letra a declaração da empresa de que nenhuma ideia é estapafúrdia demais
para ser perseguida. Lê alguns relatos criativos sobre a origem do sistema solar,
cozinha água, amônia e carbono em estado livre num forno de alta pressão e
obtém petróleo. Por acaso, ela é o tipo de pessoa que prefere enfrentar leões
famintos num coliseu a admitir que está errada. Ela acredita que haja um zilhão
de galões de petróleo e zilhões e zilhões de metros cúbicos de gás natural no
interior da Terra, a partir de uma profundidade de cerca de seis mil metros, e
nenhum químico sênior com cabeça de bigorna, cabelo tosado e mau hálito irá
conseguir convencê-la de que está enganada. Ela vai direto ao vice-presidente
mais próximo, o jovem sr. Tabscott, e diz: “Vamos perfurar um poço de petróleo
nas montanhas Berkshire!”.
O sr. Tabscott, mais suscetível à beleza feminina do que o pesquisador sênior
de cabeça de bigorna, diz: “Nós vamos pensar com muito cuidado na sua
proposta, Anna, mas talvez enquanto isso você devesse reinvestir as suas energias
numa direção totalmente nova e se dar um merecido descanso depois dessa
pesquisa tão interessante e especulativa que você fez”.
Ele ainda está rindo sozinho e sacudindo a cabeça quando a obstinada Anna
começa a escrever o trabalho que acaba sendo publicado no Bulletin of the
Geological Society of America e Jack Kernaghan fica sabendo das dificuldades
dela. Ele entra sorrateiramente no laboratório de Anna, olha por cima do ombro
dela para as atrocidades ortográficas que ela está cometendo em seu caderno e
diz: “Você é muito idiota se acha que nós vamos perfurar um buraco de seis
quilômetros no granito pra você”.
Ela nem levanta a cabeça. “Eles vão perfurar.”
“Não tem a menor chance, menina.”
“Não?” Ela levanta os olhos na direção da tabela periódica pendurada na
parede a sua frente. Infla as narinas. “Então, se eles não perfurarem, vai ser
porque você não deixou. E se eles perfurarem é porque eles gostam mais de
mim do que de você.”
Ele olha para os balões com suas rosas enegrecidas e os talos estropiados. “O
Tabscott só estava sendo gentil com você”, diz Kernaghan. “Ele vai deixar o
assunto morrer. Quando ele deixar, você vai lá e pergunta pra ele se eu tive
alguma coisa a ver com isso. E aí, antes de tomar qualquer atitude precipitada,
você me procura.”
Anna joga seu lindo cabelo de um ombro para o outro e continua a escrever.
Mas acontece exatamente o que Kernaghan tinha dito que ia acontecer. Vários
cientistas sensatos são consultados e todos são da opinião de que a teoria dela tem
99,9 por cento de probabilidade de ser furada. Tabscott diz a Anna que a empresa
não vai gastar cinco milhões de dólares numa coisa que tem uma chance em mil
de estar correta, e Anna diz: “Então, eu me demito! Isso é boa teoria”.
“Nós gostaríamos que você ficasse, Anna. Mas se... eh... você insiste...”
Kernaghan a encontra no laboratório dela, esvaziando sua mesa, furiosa.
“Publicações acadêmicas aceitam meu trabalho”, diz ela. “E vocês se recusam a
perfurar o poço!”
“Cheques de cinco milhões não nascem em árvores.”
“Lá, lá, lá, quem se importa? Vocês não são dignos das minhas pérolas.”
“Raciocine um pouco”, ele diz. “As suas credenciais acadêmicas são ínfimas.
Você jamais vai conseguir trabalhar pra uma empresa tão endinheirada quanto a
nossa. Em qualquer outro lugar que você trabalhe, eles vão fazer você pesquisar
borracha vulcanizada. Fique com a gente, use os seus trunfos de maneira
inteligente e talvez um dia você consiga perfurar o seu buraco.”
Ela solta um bufo de desdém. “Você é um porco mesmo.”
Ele ri, afável, sai do laboratório e vai conversar com Aldren pai e Tabscott.
“Ah, claro, Jack”, dizem eles. “Nós vamos gastar cinco milhões pra te ajudar a
dar uma bimbada na Krasner.”
“Senhores”, diz ele, com um risinho torto, “tal acusação me ofende. O fato é
que é uma teoria interessante. E também é fato que, se a Krasner estiver certa
em relação à existência de gás e petróleo nas Berkshires, provavelmente também
há gás e petróleo bem aqui, debaixo dos nossos pés, em Peabody. O mais
importante, porém, é que eu estou sentindo uma mudança de ventos, e eu
pergunto a vocês: eu já não acertei outras vezes quando previ mudanças de
ventos? Talvez até, quem sabe, tenha acertado tanto a ponto de fazer com que
cinco milhões pareçam uma quantia insignificante? Eu sinto que o nosso fluxo de
resíduos vai se tornar um problema para nós, digamos, nos próximos três ou
quatro anos. Um novo problema, um problema regulatório. Estou pensando
especificamente na Linha M, nas dioxinas. Não vai ser surpresa pra mim se os
custos do descarte dos resíduos da Linha M triplicarem nos próximos cinco anos.”
“É uma questão de opinião, Jack.”
“Suponhamos que nós perfuremos esse buraco. Eu não descarto a possibilidade
de nós encontrarmos quantidades comercialmente interessantes de gás e de
petróleo, talvez até a profundidades menores. Mas se nós não encontrarmos, e se
nós perfurarmos o buraco aqui, vocês sabem o que nós ganhamos como prêmio
de consolação? Um poço de injeção. Um poço tão mais profundo que o lençol
aquífero que nós podemos injetar nele os nossos resíduos desde agora até o Juízo
Final e ainda continuarmos sendo bons vizinhos.”
“E a legalidade disso?”
“Eu não sei de nenhum estatuto que possa interferir”, ele responde com
absoluta tranquilidade.
Então, um estudo de viabilidade é realizado. Quanto mais a diretoria pensa no
plano de Kernaghan, mais ela gosta dele. Alguns funcionários que trabalham na
Linha M estão sendo acometidos por cloracne, um apodrecimento desfigurador e
irreversível da pele causado por exposição a dioxinas. Do Vietnã, começam a
chegar relatos alarmantes acerca de soldados que usaram os herbicidas da
Sweeting-Aldren e ficaram com dores no fígado, sarcomas intestinais e outros
horrores mais inomináveis. Metade das cobaias que estavam num caminhão de
entregas que ficou insensatamente estacionado durante uma hora ao lado do
tanque de evaporação da Linha M entrou em convulsão; a outra metade morreu.
Como a única forma de reduzir a quantidade de dioxinas no fluxo de resíduos é
duplicar a temperatura da reação, o custo da eletricidade necessária para
bombear os resíduos para o fundo da terra começa a parecer razoável. E quando
a diretoria olha para todos os efluentes gerados por todas as suas outras linhas de
produção e sente os ventos da regulação e da opinião pública mudarem, a
decisão é tomada.
Kernaghan faz outra visita a Anna, que andava cozinhando petróleos sintéticos
cada vez mais fedorentos em seu forno; ela parece uma camareira suíça com
seu avental branco de química. Ele mostra a ela o contrato de aluguel do
equipamento necessário para perfurar um buraco de oito quilômetros de
profundidade — as ordens de serviço, as autorizações para o uso de energia.
Anna dá de ombros. “Por que você demorou tanto?”
“Você será a responsável pela perfuração. Nós estamos acrescentando dez mil
ao seu salário.”
“Lá, lá, lá.”
“Você tem direitos exclusivos de publicação. Direitos exclusivos às amostras
do núcleo do buraco mais fundo do leste da América do Norte.”
“Claro. Obrigada, senhor Jack Kernaghan. De verdade. Mais alguma coisa?”
Ele sorri, sem demonstrar surpresa. “Eu não sei se você sabe, mas eu precisei
de todo o prestígio que conquistei em vinte e cinco anos de empresa pra
conseguir esse papel pra você. Vinte e cinco anos de serviços prestados.”
“Ai, ai, isso está tão chato.”
“Chato?” Ele ergue o contrato de aluguel e começa a rasgá-lo ao meio. Ela
não consegue se conter e segura a mão dele. Depois diz: “Você acha que pode
me comprar”.
“Digamos que eu estou dando uma prova do meu amor.”
“Você rasga contrato de aluguel para dar uma prova do seu amor?”
“Se não há esperança para o meu amor, o que mais eu posso fazer?”
Ela pega o contrato e o lê cuidadosamente. “Minhas Berkshires. O que
aconteceu com minhas Berkshires?”
“Eu fiz o melhor que pude.”
Em cima da mesa dela, há um béquer com petróleo sintético. Anna mergulha
um mexedor de vidro refratário no béquer e em seguida o levanta, deixando um
filete do líquido preto e viscoso escorrer da ponta. Depois, deixa-se desabar para
trás e sua cadeira a segura, rolando de encontro a uma parede com o impacto.
“Você quer perfurar meu buraco? Ótimo! Você quer tocar em mim? Tudo bem!
Você pode tocar em mim. Mas você nunca vai me tocar.”
“Veremos.”
Anna se levanta e anda em círculos em volta dele, abrindo a boca ao máximo
e dizendo “Lá, lá, lá, lá, lá”. Ela ri. Ele a agarra, enfia um joelho entre as pernas
dela, dá vazão à urgência que tão bem lhe serviu no passado.
“Então, tá”, diz ela, se desvencilhando dele, “o lixo ambulante tem joelhos
safados.”
Ele fica lá parado, ofegante, enfurecido. “Não pense que eu não seria capaz de
matar você.”
“Lá, lá, lá”, abanando a língua. “Você nunca vai me tocar!”
E esse era o pé em que as coisas estavam no outono de 69. Bob Holland,
obviamente, não podia entender por que Anna só tinha dois modos de tratar
Kernaghan — o desdenhoso e o vampe — e por que Kernaghan se sujeitava a
ser acintosamente ignorado por ela por um minuto que fosse, enquanto, com voz
gutural, ela cobria Bob de perguntas sobre o trabalho dele. Os “amantes”
trocavam frases breves e cortantes e depois se enfrentavam em longas disputas
pela atenção de Bob, as quais Anna invariavelmente ganhava e das quais
Kernaghan se retirava recostando-se em sua cadeira para encarar Anna
fixamente, seus olhos dois feixes de ódio, minuto após minuto, enquanto Bob
falava sobre a história do país e Anna falava sobre sua história pessoal, a
primeira infância em Paris e depois o resto da infância e a adolescência no norte
do estado de Nova York. Ela segurava seu cigarro verticalmente, na altura da
boca, e virava o rosto para o outro lado, apertando os olhos e entortando os lábios
enquanto soprava a fumaça para cima. Disse a Bob que ela era como ele no
amor ao conhecimento pelo conhecimento, que a mentalidade empresarial era
grotesca e desalmada, que abandonaria seu emprego sem pestanejar se não a
deixassem perseguir o conhecimento com total liberdade. Disse que os jovens
tinham vida, energia e ideais, enquanto os velhos eram carentes de seiva e
tinham mais amor ao dinheiro do que à beleza ou qualquer outra coisa. E
Kernaghan era um fingidor tão astuto que, quando ele saiu de repente da mesa de
jantar, como se estivesse com ódio de Anna por flertar — como se não tivesse
nenhum poder para fazê-la parar —, Bob achou que estava sendo um mau
hóspede e foi correndo atrás do sogro, não querendo servir de instrumento para a
tortura que ela lhe impingia. Quando Bob se virou, Anna já tinha vestido seu
casaco de pele de raposa e estava com as chaves do carro na mão.
Uma hora depois, quando estava em seu quarto datilografando anotações, ele
ouviu os gritos de Anna, altos o bastante para tê-lo acordado se ele estivesse
dormindo. Não tinha ouvido o carro dela voltar.
No dia seguinte, encontrou os dois fumando cigarrinhos matinais à mesa do
café da manhã, de mãos dadas, numa intimidade de dar gosto. Eles olharam para
Bob como se ele fosse o diabo de quem eles estavam falando.
Como era domingo e todos os arquivos estavam fechados, eles o levaram para
dar uma volta. Guardas armados fizeram sinal para que o carro atravessasse os
portões da principal instalação da Sweeting-Aldren, e Kernaghan avançou pelas
avenidas que serpenteavam por entre as diversas linhas de produção a tal
velocidade que o carro chegava a derrapar nas curvas.
“Você está me fazendo ficar com dor de cabeça”, disse Anna.
“Eu estou mostrando pro Bob a dimensão da coisa.”
Os três puseram capacetes na cabeça e fizeram um tour pela estrutura que
abrigava a novíssima Linha ab, em cujos intestinos entravam cloro e etileno e de
cujo ânus saíam grânulos brancos de policloreto de vinila. A estrutura era uma
orgia de formas metálicas, vinte módulos do tamanho de casebres trepando uns
nos outros, se encostando uns nos outros e abraçando uns aos outros com força,
cada qual com sua própria voz de êxtase termodinâmico e todos com seus
grossos apêndices enfiados bem no fundo de orifícios bordejados de aço; mas era
uma orgia rígida, cheia de força e propósito, incessante. Naquelas estruturas,
químicos transformavam os verbos de sua imaginação nos substantivos de suas
realizações acrescentando -dor, -.dora ou -or. Havia misturadores de dois braços
e cinco mil galões de capacidade, trituradores com lâminas de aço-carbono, um
reator de parede tripla e tipo físico igual ao de Charles Atlas, um resfriador de
duas fases e capacidade de oitenta toneladas, um turbomisturador contínuo com
revestimento isolante, um trepidante alimentador de rosca, bicos concentradores,
evaporadores de triplo efeito, barras intensificadoras, um secador cônico de dez
metros cúbicos, um granulador de concreto cilíndrico, um transferidor térmico
com tubos inoxidáveis e estrutura de aço-carbono, um condensador vertical de
quinhentos e oitenta metros quadrados, um classificador de cone duplo e mais
uma dúzia de compressores rotativos. O mais assustador era sentir tantos cheiros
que não faziam lembrar absolutamente nada que existisse no mundo. Eles eram
como ideias alienígenas se impingindo diretamente na sua consciência, sem a
mediação de nenhum gosto. Era essa a sensação que você teria quando invasores
do espaço chegassem e assumissem o controle do seu cérebro, uma coisa
insidiosa que não era nem espírito nem carne invadindo os sínus da sua face e
enevoando seus olhos...
Bob percebeu que estava sozinho. Um manto de chuva caía sobre Peabody,
tapando as vistas entre as estruturas das linhas de produção ao seu redor, pondo o
lugar em quarentena. Kernaghan e Anna estavam encostados num dos para-
lamas dianteiros do carro. Eles trocaram olhares. Por fim, Anna disse: “Eu e o
Jack estávamos pensando se você teria um pouco de fumo”.
“Fumo?”
“Maconha.”
Bob riu. Por acaso ele tinha, lá na casa da Argilla Road. Naquela época, um
pacotinho de trinta gramas durava meses na mão dele.
Dentro do carro, rumando para o norte ao longo da costa, com a mão de Anna
pousada no ombro dele, o impacto de todos aqueles ésteres e cetonas ainda
fresco em seu cérebro, Bob viu as cercas de pedra que coleavam pela mata
emaranhada e raquítica e teve de se forçar a não imaginar os primeiros colonos
numa paisagem como aquela. Sabia que fora só no século xviii que a erosão e
aradura constante haviam começado a encher os campos de pedregulhos
glaciais, e que os agricultores, carecendo de madeira, haviam recorrido às
pedras para construir suas cercas. E só depois que o canal de Erie e as ferrovias
abriram caminho para a região central foi que a agricultura na Nova Inglaterra
foi finalmente abandonada, seus campos retomados por troncos e espinhos. As
águas estéreis e os monótonos bosques de árvores esqueléticas e sem copa
estavam tão longe de ser um retrato do século xix quanto do século xviii; eram
tão alienígenas quanto os ésteres em seu nariz, quanto a mão de Anna em seu
ombro, as unhas em seu pescoço, as pontas dos dedos no lóbulo de sua orelha.
Ele também era um menino dos bosques, da floresta ainda virgem do oeste de
Oregon. Tinha sido apenas no ano anterior, pouco antes da visita mais recente
que ele fizera à mãe, que a Wey erhaeuser havia desmatado a colina atrás da
casa dela, arrancando de uma vez só um lucro que jamais iria se repetir e depois
deixando a terra nua para desabar dentro do rio feito um lobo tosado e morto. Na
próxima vez em que fosse à casa da mãe, ele veria a colina depois do
“reflorestamento”: a sortida e enevoada floresta de pinheiros-de-sitka, cicutas,
cedros e sequoias suplantada pelo mato, por galhos secos e pelos abetos-de-
douglas idênticos que brotavam a intervalos geométricos da terra solta e
revolvida por escavadeiras. A mesma onda de extração de lucro que varrera o
cabo Ann em 1630 ainda continuava a se espraiar pela costa do Pacífico,
carregando consigo as últimas matas virgens do continente.
Anna segurava um baseado como se fosse um cigarro, batendo a cinza com
uma longa unha vermelha, expelindo a fumaça pelo nariz, encarapitando-se na
beira do sofá com as pernas cruzadas. Kernaghan não conseguia parar de sorrir.
Parecia mais interessado em simplesmente segurar um baseado, curtindo sua
ilegalidade e simbolismo, do que em tragá-lo. Quando ficou cheia de fumaça, a
sala de estar se transformou, como quando um rolo de filme está chegando ao
fim, numa sala de cinema vagabunda, quadros e cenas inteiras sendo engolidos,
vozes e rostos saindo de sincronia, pontos brilhantes e rabiscos pretos surgindo de
repente, o cômodo inteiro pulando e depois assumindo o tom alaranjado da nova
lâmpada do projetor; Bob percebeu que, até então, o mundo na tela esférica ao
seu redor vinha sendo projetado por uma luz azulada demais. A luz cinza nas
janelas parecia a luz do sol. As três pessoas de barato se amontoaram em volta
da geladeira e levantaram pedaços de papel laminado, vendo o que a cozinheira
havia deixado. No corredor, Anna encostou a barriga na barriga de Bob e o
beijou, desabotoou sua camisa e depois foi andando para trás pelo corredor,
inclinando o corpo e fazendo gestos com as mãos para chamá-lo, como se ele
fosse um cachorrinho que ela queria que pulasse nos braços dela.
Em Beverly, numa rua insignificante, ele entrou atrás de Anna na casinha
comum onde ela morava. A poeira acumulada nos móveis estofados, os retratos
de família com suas molduras douradas baratas, a aparência chinfrim de tudo, o
mau gosto, deixaram Bob louco por ela e tão certo de sua conquista quanto estava
da maciez de colchão do corpo dela quando se afundasse em seus braços. Ela
estava selecionando lps de um suporte de metal que fazia lembrar um escorredor
de louça. Kernaghan, que tinha sido deixado no carro, estava rindo baixinho no
meio dos arbustos, espiando pela janela, enquanto a chuva escorria pela sua
careca lisa.
Eles não o tinham visto de novo, mas ele devia estar no banco de trás do carro
quando voltaram para a Argilla Road, devia tê-los seguido quando entraram na
casa, rindo baixinho feito um duende, e podia até ter ficado observando os dois o
tempo inteiro na sala de estar, talvez no canto onde vinte anos mais tarde Rita
racharia a cabeça. Observando Anna carregar a haste do toca-discos com lps do
Frank Sinatra, observando-a tirar a blusa estampada e o sutiã de Silcra,
observando a pele branca da barriga dela se preguear quando ela se inclinou para
a frente para tirar as botas de cano alto e puxar a minissaia amarela e a calcinha
branca de elastano pelas pernas abaixo. Observando os músculos dos ombros de
Bob ondularem e se arredondarem, observando seu bumbum jovem se contrair,
observando o movimento de seus quadris. Ouvindo o estalo dos seios pesados de
Anna contra o peito liso de Bob, observando a respiração acelerada secar a saliva
nos cantos da boca de Anna, ouvindo Bob gemer, ouvindo Anna dizer a Bob: “Ele
só consegue trepar... com garrafas de Dom Pérignon!”. Observando Bob
levantar os quadris de Anna do tapete e arar de novo a terra morna, úmida e
trêmula. Observando as idas e vindas, vendo o peito dos dois latejar e suas bocas
se enviesarem para cobrir uma a outra, como se eles fossem nadadores
semiafogados fazendo ressuscitação mútua. Observando a carne dela balançar e
a dele estremecer, observando Bob se estender no meio das pernas abertas de
Anna, observando Bob arfar de cara vermelha e esquecido do mundo, até que
finalmente tivesse observado o bastante e pudesse vacilar através da sala e tocar
no ombro de Bob.
“Bob, Bob, Bob!”, disse ele, rindo, de olhos semicerrados. Bob viu o pênis dele,
intumescido e perpendicular, um instrumento escuro e rosado.
“Ai meu Deus!”, Anna gritou, gargalhando. “Ai meu Deus!”
Enquanto vestia seu sobretudo e calçava suas botas, Bob ouvia Anna rir,
guinchar, berrar. Saiu no meio da chuva, atravessou o gramado e se embrenhou
na mata estéril e alterada. Sentia cheiro de fumaça de madeira queimada e de
folha molhada, ouvia o vento sendo penteado por centenas de estreitos troncos de
árvore, a água que caía dos galhos batendo nas folhas molhadas que cobriam o
chão. Faltava pouco para o dia de Ação de Graças. A penumbra e os cheiros e
sons molhados eram como os que um dia o tinham feito tremer quando ele saiu
de sua casa para pegar lenha e o fizeram voltar correndo para dentro, onde era
quente e ele podia esquecer o vento que gemia, pranteando o passado morto da
terra, se arrastando nos telhados duros, com ciúme da vida lá dentro.
Embrenhado de tal forma na mata atrofiada que o vulto escuro da casa de
Kernaghan poderia ser apenas a noite apontando no horizonte, Bob se ajoelhou
sobre as folhas e ali ficou até a chuva parar, até sua cabeça se desanuviar, até o
céu se congelar em cristais cintilantes na forma de Órion e Perseu, até ele ouvir
o carro de Anna arrancar.
Sob a luz branca da manhã, ou melhor, do início da tarde, Bob botou a garrafa
de uísque vazia na caixa de reciclagem para Vidro Claro, entre Plástico Mole e
Alumínio, e despejou um pouco de suco de laranja numa tigela cheia de cereal.
Abelhas polinizavam flores roxas de cardo do lado de fora da janela. Os gatos
estavam se refrescando no porão. No andar de cima, uma porta se abriu e pouco
depois Louis apareceu, franzindo o cenho por causa da luz. Seu rosto tinha
marcas vermelhas de travesseiro — os intrigantes hieróglifos do sono, que toda
manhã significavam nada de uma forma diferente. “Você ligou pra ela?”
Bob não respondeu. Continuou de cabeça baixa, botando colheradas de cereal
na boca, enquanto Louis vasculhava a geladeira, tomava alguns goles de um
refrigerante sabor de cereja que já perdera o gás e, depois, postava-se de braços
cruzados diante da mesa, como um pai cuja paciência já se esgotou. “Você quer
que eu ligue pra ela?”
“Eu posso terminar de tomar o meu café da manhã primeiro?”
Louis ficou parado mais algum tempo, ainda de braços cruzados. Saiu da
cozinha em implacável silêncio.
Bob afastou sua tigela de cereal para o lado. Começou a telefonar para todos
os Krasner de Albany, contando com a gentileza do serviço de auxílio à lista
telefônica. Em sua quarta tentativa, ouviu uma voz grossa de mulher com sotaque
russo que ele já sabia que era da mãe de Anna antes mesmo de perguntar.
“Não. Não”, disse ela. “Ela não está aqui. Ela está no estrangeiro.”
“A senhora tem o número do telefone dela?”
“O que você quer. Me diga.”
Bob deu a ela uma versão reduzida da verdade.
“Ela não sabe nada sobre Sweeting-Aldren”, disse madame Krasner. “Nada.
Eu não vou dar número dela para você.”
“A senhora poderia dar o meu número para ela?”
“Quem é você? Me diga. Quem é você? O que você quer, de fato.”
“Eu era um bom amigo dela.”
“Uh. Ela tem tantos bons amigos. Ela mora em Londres. Tem marido
maravilhoso. Três filhos. O que você quer, que ela não tem. Não. Não. Eu não
vou dar número dela para você. Você tenta outra pessoa.”
“A senhora daria o meu número para ela?”
“Ela mora em Londres. Número dela não está listado. Eu sinto muito.”
Bob quase arrancou os cabelos. Então, a madame Krasner lhe deu o número
de Anna. “Muito caro ligar para lá”, disse ela. “Não é como ligar para cá. Muito
caro. Sabe, ela tem dinheiro. Uh, se tem. O que você pode dar que ela não tem?”
Era hora do jantar em Londres. Pelas janelas da sala de jantar, Bob viu Louis
parado no meio dos pinheiros, o sol forte transformando em sombras os olhos
atrás de seus óculos. Os buraquinhos do bocal do telefone estavam sujos do
batom vermelho de Melanie. Ele discou o número de Anna e, depois de três
toques, a própria Anna atendeu. Ele disse o nome dele. Ela disse:
“Quem?”
“Bob Holland.”
“... Ah, sim, Bob, como vai você?”
“Anna, escuta, eu estou tentando descobrir se a Sweeting-Aldren perfurou um
poço muito profundo em Peabody em 1970. Você por acaso se lembra?”
O silêncio sibilante do outro lado da linha se estendeu por tanto tempo que Bob
começou a achar que já não havia mais ninguém lá. Por trás do sibilo, ele ouviu
sons fantasmáticos de uma sequência de números sendo discada. Em algum
continente, um telefone tocou uma, duas vezes. Então, ele ouviu uma explosão de
risadas masculinas e femininas, uma animada confusão em algum lugar bem
perto de onde Anna estava. “Desculpe, Bob”, ela disse. “O que é que você queria
saber?”
Ele repetiu a pergunta. Novamente veio o silêncio e depois novamente uma
explosão de risadas. “Eu... não sei, Bob. Eu... não posso responder essa pergunta”,
Anna disse.
“Como assim você não pode responder? Você acha que é possível que exista
um poço?”
“Bob, nós estamos recebendo alguns amigos. Eu sinto muito.”
“Eu vi o seu artigo”, disse Bob. “Você sabe que o poço existe. Eles vêm
injetando resíduos nesse poço há anos e isso está provocando terremotos. Você
precisa me dizer o que você sabe. Eu não vou usar o seu nome, mas você tem
que me dizer.”
“Bob, eu realmente preciso desligar agora.”
“Só diz sim ou não. Eles escavaram um poço?”
“Eu sinto muito.”
“Por que você não me responde? Você prefere falar com a imprensa? Ou
com a polícia?”
Não havia mais sibilo na linha; Bob estava falando com um telefone mudo. Ele
discou de novo.
“Anna...”
“Bob, eu estou ocupada e não quero falar com você.” Ela falou com uma voz
firme, controlada, zangada. “É melhor você não me ligar mais.”
“Só diz sim ou não. Por favor.”
“Sinto muito, Bob. Eu tenho que ir.”
“Anna...”
“Tchau, Bob.”
iv. no azul
14.
Como prêmio por ter concluído seu mba e como consolo por ter de começar a
trabalhar no Banco de Boston, Eileen estava tirando umas férias na Côte d’Azur
com Peter. Eles haviam alugado um Peugeot no aeroporto de Nice e se
encantado com Mônaco, sido esnobados em Cannes, se embebedado em St.-
Tropez e se submetido a uma extração indolor de seu dinheiro nas cidades
menores ao longo do caminho. Pelo menos uma vez por dia, esbarravam com
ex-colegas de turma de Eileen. Subiam uma ladeira de pedra ladeada de lojinhas
onde molhos de alfazema seca e echarpes provençais balançavam e tremulavam
ao mistral, topavam com uma ruína romana cercada de cafés e, do meio das
ofuscantes cadeiras de alumínio, vinha um coro de vozes femininas que entoava:
“Eileen! Eileen!”. Peter trincava os dentes, resmungava um “Meu Deus” e
revirava os olhos invisivelmente atrás de seus Ray -Bans, porque ele achava que
americanos na França deviam se comportar como camaleões mudos, mas
Eileen se dirigia na mesma hora para a sombra do guarda-sol de plástico com
logotipo da Cinzano ou da Pernod, onde os rapazes estavam sentados de lábios
franzidos, praticando seus olhares Ray -Ban em ciprestes distantes ou numa baía
azul-celeste — exatamente como Peter — e as moças estavam ansiosas para
trocar informações sobre todas as colegas de turma que já haviam encontrado
até então (até o fim da viagem, Eileen viu ou ouviu falar de um total de trinta e
cinco delas, de modo que a Côte d’Azur foi um prêmio muito popular entre os
formandos do mba de Harvard naquele ano), enquanto Peter, tendo se dirigido a
um canto distante da praça, se banhava ao sol encostado num bloco de mármore
talhado por escravos romanos.
Peter parecia, de fato, muito europeu, e Eileen sabia que ele falava francês
muito bem. Mas quando eles se sentavam num café e um garçom aparecia,
Peter erguia os olhos e mexia ligeiramente os lábios, mas nenhum som saía, e o
garçom, não sendo paranormal, virava-se para Eileen, que dizia “Uncaffay poor
moi, ay oon Pernod poor lum” e, em seguida, para Peter, com uma voz
sussurrante e ao mesmo tempo estridente de irritação, depois que o garçom ia
embora: “Você tem que dizer pra ele o que você quer!”. Em resposta o rosto de
Peter se congelava num sorriso tão furioso, zombeteiro e amedrontado que, no
fim, ela acabava ficando com pena dele. Dava um beijo em sua orelha,
bagunçava seu cabelo, passava a mão em sua coxa e dizia que o amava. Seguia-
se então um silêncio, no decorrer do qual o rosto dela se anuviava. “Você me
ama?”
Ele sorria mais furiosamente ainda, se debruçava na mesa e lhe dava um beijo
francês que não chegava a obter uma recepção exatamente calorosa, ainda sem
ter dito uma palavra desde a chegada ao café.
À tarde, eles iam à praia. A questão na praia era sempre: ela faria ou não
faria? Eileen era uma ilha de recato suburbano de Chicago num mar de carne
europeia — mamas normandas, genitálias belgas sombreadas por pneus de
banha belga, seios holandeses que eram minúsculos mas balançavam, pênis
parisienses incircuncisos, que ela estudava com um fascínio dissimulado e
irreprimível. Peter se deitava apoiado sobre os cotovelos, olhando para as ondas
cor de esmeralda por cima de seu calção de surfista e dedos dos pés bronzeados,
enquanto Eileen tentava se decidir. “Eu vou fazer”, disse ela por fim.
Peter bocejou. “Foi o que você disse ontem.”
“É, mas hoje eu vou.”
Ele ficou olhando para as ondas.
Levando as duas mãos às costas, ela segurou o gancho da parte de cima de seu
biquíni. Ficou nessa posição uns cinco segundos. “Será que eu devo?”
“Pense bem”, ele disse. “É uma decisão importante.”
Ela fez biquinho. “Eu vou fazer.”
Ele ficou olhando para as ondas. Ela jogou areia nele. Peter se limpou dando
leves espanadinhas com os dedos, como se sua pele fosse um disco que ele não
queria arranhar. Quando ele olhou para Eileen de novo, ela estava sentada ereta
em sua toalha, com o queixo virado para o sol e a parte de cima do biquíni na
areia ao lado dela. Eles mal se falaram até voltar para o hotel, mas lá ele apalpou
e apertou o corpo dela ardentemente, lambendo seus seios e montando nela,
estremecendo de tesão feito um cachorro, enquanto ela sorria para o teto, sem
conseguir imaginar uma felicidade mais perfeita.
Na tarde seguinte ela anunciou: “Eu não vou fazer”. Clarões brancos dos
cromados dos carros, das colheres de cafés e dos Ray -Bans de certa pessoa
vinham perfurando sua cabeça desde o café da manhã. A cama do hotel era
quente e exalava bafejos de bebidas alcoólicas vencidas; e Eileen tinha quase
certeza de que havia pegado uma infecção urinária.
“Você que sabe”, disse Peter, olhando para as ondas.
Ela roeu uma unha e piscou os olhos, mal-humorada. Como a mãe, por mais
cansada que estivesse, Eileen sempre tinha uma energia ilimitada para a
hesitação. “Você acha que eu devo?”
Nos Estados Unidos, Peter era um comprador ávido e tarimbado, mais seguro
que Eileen em relação a como uma mescla de setenta por cento poliéster e trinta
por cento algodão se comportava e com mais paciência que ela para peregrinar
de loja em loja até a camisa perfeita ou o sapato ideal aparecerem. Na Europa,
contudo, ele considerava fazer compras apenas a pior das muitas formas de dar
pinta de turista. Quando Eileen entrava numa loja, ele esperava um minuto
inteiro antes de entrar atrás dela e, depois, se ajoelhava perto da porta para
amarrar e reamarrar os sapatos, como se só tivesse entrado porque seus
cadarços estavam soltos. Folheava edições em francês de guias de viagem.
(Achava que isso o fazia parecer francês.) Perguntas diretas de Eileen
provocavam vazios olhares Ray -Ban de não reconhecimento. Ele olhava para a
rua pela porta aberta da loja como se acreditasse que os pensamentos de
qualquer francês que tivesse entrado por aquela porta fossem imediatamente se
voltar para a ideia de ir embora. (Mas as lojas estavam com frequência cheias
de franceses seriamente empenhados em relacionar suvenires mal-ajambrados
a batalhas históricas ou à antropologia da Provença e gastando profusamente.)
“Está ótimo”, ele resmungava, com os olhos na porta, referindo-se a um
potencial presente selecionado por Eileen.
“Você nem olhou!”
“Eu confio no seu gosto”, os lábios mal chegando a se mexer, os olhos na
porta.
O único presente que deu realmente trabalho para Eileen foi o de Louis. No
início do mês, quando recebeu Louis e a namorada para comer uma mussacá na
casa dela, Eileen não havia mencionado que ela e Peter estavam prestes a viajar
para a França. A verdade era que ela habitualmente evitava informar a Louis os
planos e aquisições de propriedade que andava fazendo; sempre tinha esperança
de que ele nunca viesse a descobri-los; mas claro que sabia que ele sempre
acabava descobrindo. Louis descobriria que, enquanto ele estava procurando
emprego e suando em Somerville com uma namorada que Eileen pessoalmente
achava velha demais para ele, a irmã estivera degustando fantásticos jantares de
cinco pratos no Sul da França. Assim, ela se sentia obrigada a levar alguma coisa
bacana para ele. Ao mesmo tempo, já estava imaginando Louis fazendo-a se
sentir uma idiota fosse o que fosse que ela decidisse comprar, porque, afinal, ele
tinha morado na França.
“Conhaque”, Peter sugeriu.
“Tem que ser alguma coisa da Provença.”
“Vinho”, disse Peter.
“Não sei, eu tenho que pensar. Eu tenho que pensar.”
Mas os dias estavam passando cada vez mais rápido, meio-dia virando meia-
noite, meia-noite virando meio-dia, e parecia que ela nunca conseguia pensar.
Por fim, no caminho para o aeroporto de Nice, ela entrou correndo numa loja de
departamentos e comprou uma grande faca de cozinha para ele.
Em Back Bay, havia uma mensagem de Louis na secretária eletrônica,
pedindo que ela ligasse para o número antigo dele. Uma pessoa antipática no
antigo apartamento dele deu a ela um novo número, que ela descobriu, ao ligar
para lá, ser da casa de uma amiga de Louis, Bery l Slidowsky, em cujo sofá,
segundo o próprio Louis, ele vinha dormindo fazia algumas noites.
“O que aconteceu com a Renée?”, Eileen perguntou, mais inocente que
maldosa, embora não tenha chegado a ficar triste com a notícia de que ele não
estava mais morando com ela.
“É um problema em que eu estou trabalhando”, disse Louis.
“Ah. Vocês estão tentando reatar.”
“Eu estou tentando reatar.”
“Ah. Bom, então boa sorte.”
Louis disse que sua presença estava sendo um transtorno na casa de Bery l e
perguntou a Eileen se ela se importaria se ele passasse algumas noites na casa
dela. De uma forma ou de outra, disse ele, não seria por muito tempo.
“Hum”, disse Eileen. “Acho que tudo bem. Mas se você e o Peter ficarem se
bicando, não vai ser muito agradável.”
“Confie em mim”, disse Louis.
Ele foi para lá na noite do primeiro dia de trabalho de Eileen no banco. Ela
tinha tomado meia garrafa de Pouilly -Fumé enquanto esperava por Peter, que
ainda não chegara do trabalho. Quando abriu a porta para Louis entrar, Eileen
imediatamente recuou, tombando para trás como se o chão tivesse ficado
íngreme de repente. Não conseguia acreditar no quanto seu irmão havia mudado
em três semanas. Ele estava usando seu jeans preto e camisa branca de sempre,
mas parecia mais alto, mais velho e mais largo nos ombros. Tinha cortado o
cabelo tão curto que o que sobrara era escuro e aveludado e, por alguma razão,
ele estava sem os óculos. Seu rosto estava encovado e escurecido por uma barba
de uma semana, seus olhos vazios e brilhantes por causa da ausência das lentes,
com olheiras cinzentas e acetinadas de cansaço embaixo.
“Eu...eu peguei esse bronzeado na França”, disse Eileen, com uma voz alta
demais. Foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
“É, eu soube que você foi pra lá”, Louis disse, sem nenhum sinal de interesse.
“O que houve com os seus óculos?”
“Uma pessoa pisou em cima.”
“Você já jantou?”
“Se você não se importar, eu acho que vou um pouco pro quarto”, disse ele.
“Mais tarde eu saio, se você quiser.”
Eram onze horas e ele ainda não tinha saído do quarto. Eileen deixou Peter
vendo o noticiário na cama do quarto deles e bateu na porta do segundo quarto.
Louis, sem camisa, estava debruçado sobre a escrivaninha que eles tinham lá,
escrevendo num caderno. No alto da folha do caderno, ela leu as palavras
Querida Renée. Ele não tentou escondê-las.
“Eu trouxe uma coisa pra você da França”, disse Eileen. O jet lag, o vinho e os
terrores de um primeiro dia num novo emprego haviam conspirado para fazer
seus olhos incharem e sua pele adquirir um lustre vermelho. Ela entregou a Louis
a caixa com a faca dentro.
Ele franziu o cenho. “Muito legal. Você comprou isso pra mim?”
“É pra sua cozinha. Você tem que me pagar um centavo por ela. É uma
superstição. Se você não me pagar, ela vai te dar azar.”
Obedientemente, sem pressa, ele tirou um centavo do bolso e o estendeu para
ela. Mas ela tinha se virado de frente para o futon. Estava olhando para a
pequena bolsa de náilon de Louis, que agora aparentemente estava do tamanho
de todos os pertences que importavam para ele. “Você realmente está arrasado
por causa dela, não está?”
“Estou”, disse Louis.
“Você quer me contar o que aconteceu?”
“Acho que não.”
“Você quer que eu faça alguma coisa? Eu posso tentar falar com ela, se você
quiser.”
“Não precisa não.”
Ela fez que sim, mas era mais como se sua cabeça pesada estivesse apenas
caindo para a frente. Olhando para o chão, ela disse com voz baixa e trêmula:
“Sabe, você é muito, muito bonito, Louis. Tem um monte de garotas que
achariam você um gato. E você é inteligente, independente, forte, você é um
cara superinteressante e você vai fazer o que quiser da sua vida. Vai ter uma fila
de meninas querendo sair com você. Você vai pra Europa de novo e vai se sentir
superconfiante. Você vai ter uma vida muito boa, Louis. Você sabia disso?”. Ela
lhe lançou um olhar acusador. “Eu costumava sentir pena de você. Mas não sinto
mais. Eu sei que você está completamente arrasado agora por causa dela, mas
eu não estou com pena nenhuma. Então se anime, está bom? Quer dizer, eu
espero que você consiga reatar com ela e tudo, mas não vai ser o fim do mundo
se você não conseguir.”
Louis olhou para ela com a tristeza submissa de um cachorro que sabe que
causou estrago, mas nunca teve a intenção de fazer isso. Eileen pôs a mão na
maçaneta da porta, mas, em vez de girá-la, ficou segurando-a como se fosse a
mão de uma mãe. “Eu não sei por que você sempre faz com que eu me sinta tão
mesquinha.”
“Eu não estou tentando fazer nada”, disse Louis.
“Você faz com que eu me sinta tão mesquinha”, ela insistiu. “Você faz com
que eu me sinta tão culpada. Você sempre fez isso, a minha vida inteira, inteira”,
ela tinha começado a chorar. “E eu não quero mais me sentir assim. Eu não
quero que você fique aqui. Eu quero que você procure outro lugar pra ficar. Eu
vou ter que trabalhar todo dia agora. Vou ter que ir todo santo dia pra aquela
droga daquele banco horrível, sem poder tirar férias pelos próximos dez meses e,
se quiser ter alguma chance de ser promovida, ainda vou ter que trabalhar à noite
e aos sábados. E eu simplesmente não quero que você faça com que eu me sinta
tão mal. Você pode ficar aqui por quanto tempo quiser, mas eu queria que você
soubesse disso.”
“Eu vou embora agora”, ele disse com voz calma.
“Não. Você tem que ficar. Eu vou me sentir culpada se você for. Mas eu não
quero você aqui. Eu não sei o que eu quero.” Ela bateu o pé no chão. “Por que eu
estou me sentindo tão infeliz de repente? Por que você faz isso comigo?”
“Eu vou embora.”
Ela deu meia-volta e, com o rosto roxo, se inclinou sobre ele e disse: “Você vai
ficar aqui, você vai ficar aqui, você não vai a lugar nenhum! Você não pode ir.
Você não tem nenhum outro lugar pra ir. Você vai ficar aqui porque você é meu
irmão e eu não quero que você vá embora. Se você for, eu não vou te perdoar
nunca, nunca”.
A porta bateu com força e Louis ficou sozinho no quarto, apertando a moeda
que não tinha dado a ela.
Durante três dias, eles ficaram fora do caminho um do outro. Ela saía de
manhã antes de Louis acordar, e ele só voltava para o apartamento — ela
supunha que depois de passar o dia procurando emprego — por volta de oito ou
nove horas da noite e ia direto para o quarto. Na quinta à tarde, ela estava se
sentindo atraente e cheia de remorso de novo. Voltou para casa com sua nova
sacola francesa cheia de compras de supermercado e ficou surpresa ao
encontrar Louis na sala de estar. Seria possível que ele não estivesse passando os
dias procurando emprego, mas sim vendo televisão? Tinha recuperado seus
óculos e estava sentado de cabeça baixa e mãos entrelaçadas no sofá em frente
ao equipamento de vídeo, que estava desligado.
“Espero que você ainda não tenha jantado”, disse ela.
Ele não deu nenhum sinal de que a tivesse ouvido. Ficou olhando para a tela
cinza da televisão e esfregou os polegares um no outro.
“Algum problema?”, ela perguntou, reprimindo uma onda de irritação.
Ele abriu a boca, mas só se ouviu o silêncio.
“Bom, eu vou fazer um jantar caprichado hoje”, ela disse. “Então espero que
você esteja com apetite.”
Assim que foi para a cozinha, Eileen ouviu a porta da frente se abrir e em
seguida se fechar. Ligou a televisão da cozinha e botou um frango no forno (tinha
aprendido na França que você podia comer carne quente nas saladas — poulet,
canard ou outra carne do tipo). E, então, por alguns minutos, esqueceu por
completo onde estava e o que estava fazendo, por causa da notícia que viu no
Channel 4.
... foi tragicamente baleada no que a polícia classificou como o mais violento
ataque já praticado pelo movimento pró-vida. A repórter Penny Spanghorn fala,
ao vivo, da cena desse trágico incidente. Penny?
Jerry, esta tarde Renée Seitchek foi à clínica New Cambridge Health Associates
em Cambridge, onde membros da chamada Igreja da Ação em Cristo estavam
realizando mais uma de sua série de ações ilegais para obstruir o acesso a
clínicas. A polícia prendeu doze manifestantes por tentarem impedir a entrada de
Seitchek. Por volta de cinco horas, Seitchek saiu da clínica e falou com repórteres
no que foi descrito como uma confrontação extremamente emocional. Ela
declarou que havia feito um... que havia interrompido uma gravidez. Ao que
parece agora, tragicamente, ela pode ter pagado com a própria vida por essa
declaração. Por volta de cinco e meia, ela voltou para sua casa aqui na Pleasant
Avenue, em Somerville, onde foi recebida a tiros por um agressor ainda não
identificado que se encontrava dentro de um carro estacionado do outro lado da
rua. Pouco antes das seis horas, a redação do Channel 4 News recebeu um
telefonema anônimo de um grupo extremista, assumindo a autoria do trágico
atentado e dando a seguinte declaração: “Olho por olho, dente por dente”. A
polícia de Somerville diz ter recebido um telefonema semelhante por volta da
mesma hora...
Eileen ficou olhando, chocada, para Penny Spanghorn. Estava chorando sobre
as folhas de rúcula e de chicória que pusera no escorredor de salada — chorando
não só por Renée e Louis, mas por si mesma também — quando Peter chegou do
trabalho. Contou a ele que Renée tinha sofrido graves ferimentos no peito e no
abdome e estava internada no hospital em estado crítico.
“Puta merda”, disse ele, empalidecendo. “Que coisa horrível, não?”
“Um horror, um horror. Um horror de verdade.”
“É realmente uma coisa horrível.”
A Igreja da Ação em Cristo, declarou Philip Stites, condena o atentado cruel e
covarde praticado esta tarde contra a vida de Renée Seitchek. Nós, membros da
igreja, deploramos todas as formas de violência humana, seja contra um bebê não
nascido, seja contra qualquer cidadão. Renée Seitchek é uma mulher de
consciência e uma criatura de Deus. Nós lamentamos os ferimentos que ela sofreu
e queremos estender os nossos mais profundos sentimentos à família e aos amigos
de Renée e nos juntarmos a eles rezando por ela com todo o nosso amor.
Já passava de meia-noite quando Eileen e Peter, que estavam vendo mas não
ouvindo o programa do Arsenio Hall em seu quarto refrigerado, ouviram Louis
entrar. Eileen saiu do quarto para ir falar com ele. Usava sua camisola de verão
preferida, uma camiseta leve de algodão do Bennington College tamanho gg.
Louis estava sentado no chão de seu quarto, passando um lenço de papel
dobrado nas várias bolhas estouradas e sanguinolentas que cobriam seus dois pés.
Sua camisa ensopada de suor tinha gotas de sangue e estava colada em seu peito.
Seus sapatos pretos, sujos e surrados, estavam pousados ao lado dele. Ao que
parecia, ele não andava usando meias.
“Você se machucou?”, Eileen perguntou.
“Tentaram matar a Renée”, ele respondeu com voz rouca.
“Eu sei, eu sei. Eu não consigo parar de chorar.”
“Tentaram matar a Renée.”
“Mas ela está bem, Louis. Eu ouvi no noticiário que ela está bem”, embora não
fosse exatamente isso que ela ouvira. O Channel 4 dissera apenas que Renée
ainda não havia morrido.
Louis não parava de futucar a carne viva de seus pés, puxando a pele solta
com a ponta dos dedos. Vendo aquilo, Eileen se sentiu como se tivesse caído e
ninguém tivesse vindo ajudá-la. Muito embora eles estivessem sofrendo muito
mais que ela, a sensação que tinha era que Louis e Renée haviam se unido para
lhe tomar uma herança. Sentiu uma centelha de ciúme e de raiva e, sob a luz
dessa centelha, viu que havia um padrão absoluto de bondade no mundo, um
ideal que ela estava infinitamente longe de alcançar. Louis continuava a enfiar as
unhas dos polegares em seus machucados cor-de-rosa, sem nenhum outro
objetivo a não ser a dor que isso lhe causava. Ela sabia que tinha de ficar com ele
e tentar confortá-lo, mas não conseguia suportar ver o que ele estava fazendo
com os próprios pés. Então, fugiu de lá, foi se deitar ao lado de Peter e deixou
que a culpa e a escuridão a engolissem.
Ele foi acordado de manhã pela secretária eletrônica ao lado de sua cama. Sua
mãe amplificada estava vociferando com Eileen a respeito de alguma regra da
empresa financeira: E EU PRECISO DO NÚMERO DO SEU TRABALHO,
ENTÃO...
“Oi, mãe”, ele disse por cima dos grunhidos que a secretária eletrônica deu
quando ele a desativou.
“Louis? Onde você está?”
Ele tossiu. “Onde você acha que eu estou?”
“Ah, sim, claro, pergunta idiota a minha. Como... como você está?”
“Bem. Tirando o fato de que a minha namorada levou vários tiros pelas costas
ontem e quase morreu...”
Houve um silêncio. Ele ouviu passarinhos chilreando na Argilla Road do outro
lado da linha.
“Sua namorada”, disse Melanie.
“Você deve ter visto ontem nas notícias. O nome dela é Renée. Seitchek.
Lembra dela?”
“Sua namorada. Sei.”
“Ela fez um aborto, e alguém tratou de atirar nela. E você sabe quem era o pai
da criança?”
“Louis, eu...”
“Era eu.”
“Bom, Louis, isso é... isso é muito interessante. É interessante você me dizer
isso. Mas, segundo o que eu li no jornal, ela não tinha muita certeza...”
“Ela só disse aquilo pra assumir toda a responsabilidade.”
“Imagino que isso possa ser verdade, Louis, mas você não devia...”
“Ela só disse aquilo porque é uma pessoa conscienciosa que assume a
responsabilidade por tudo o que faz.”
“É, eu sei bem como a Renée é conscienciosa.”
Ele se sentou. Girou o corpo e apoiou os pés cheios de curativos no chão.
“Como assim? Você andou falando com ela?”
“Pra falar a verdade”, disse Melanie, “eu estive com ela na semana retrasada
e depois novamente na semana passada. Mas isso agora não é importante.”
“Você esteve com ela?”
“O importante é que ela se recupere. É nisso que você tem que pensar.”
“Você esteve com ela?”
“Estive, mas isso agora não importa.”
“A minha namorada está no hospital e quase morreu, e você se recusa a me
dizer o que está acontecendo?”
“Louis, ela me deu alguns conselhos.”
“Conselhos. Conselhos. Ela disse pra você vender as suas ações, foi isso?”
Não houve resposta alguma, a não ser o canto dos passarinhos. Os passarinhos
podiam estar pousados no ombro de sua mãe, tão próximos pareciam estar.
“Ela disse pra você vender as suas ações”, Louis insistiu. “Não foi?”
“Bem, sim, disse. Estou vendo que o seu pai pintou um quadro completo pra
você do dilema extremamente pessoal que eu estava enfrentando. E, sim, foi
exatamente como você disse: ela me aconselhou a vender as minhas ações.”
Louis foi mancando até a escrivaninha e se sentou. “Ela te deu esse conselho,
ou ela vendeu?”
“Pergunte isso a ela própria, Louis. Eu não vou responder.”
“Ela ficou quatro horas numa sala de cirurgia ontem à noite. O estado dela é,
sabe, gravíssimo. E você quer que eu pergunte a ela?”
“Eu não consigo conceber que diferença isso pode fazer pra você. A única
coisa que eu vou dizer é que eu não me lembro como foi exatamente o acordo
que nós fizemos.”
“Ou seja, ela vendeu o conselho.”
Nenhuma resposta.
“Ela falou pra você que me conhecia?”
“Ela me disse que você e ela não estavam envolvidos.”
“Bom, não estamos, a rigor.”
“Ela também disse que você e ela nunca estiveram envolvidos.”
“Bom, ela mentiu.”
“É, eu já imaginava. Na verdade, eu acho que já sabia disso desde o início.”
Louis desligou o telefone e apertou os dedos contra a testa, que tinha começado
a doer. O banheiro ainda conservava o vapor e a fragrância de ervas dos banhos
de Eileen e Peter. Além dos produtos para a pele franceses de Peter (“poor
lum”) e da enorme variedade de lápis, pincéis e estojos de maquiagem que Louis
havia ficado um pouco surpreso de descobrir que Eileen usava, ele viu a toalha
manchada de sangue, a caixa de gaze esterilizada vazia, o cesto de lixo cheio de
lenços de papel sujos de sangue e de iodo, os indícios do quarto de hora que ele
havia passado ali antes de ir para a cama. Viu o sol na janela. Imaginou o
Somerville Hospital à luz do dia, a luz de um dia de feriado — o dia de Ação de
Graças, o Quatro de Julho — que tivesse caído num dia de semana, quando se
desliga a tomada das atividades normais, e as horas vazias da manhã se estendem
rumo ao obrigatório peru do final da tarde, aos fogos de artifício da noite ou, no
presente caso, à visita vespertina ao hospital. Tinham lhe dito que era possível que
os médicos permitissem que ele visse Renée brevemente. Ele levantou a tampa
do vaso, que, como toda e qualquer superfície horizontal do banheiro, estava
polvilhada com o talco de neném que Eileen vinha usando nas manhãs de verão
fazia pelo menos uns doze anos. Estava prestes a começar a mijar quando o
telefone tocou de novo. Ele voltou para o quarto.
Alô, aqui é Lauren Bowles...
Ele esticou a mão na direção do telefone, mas seus dedos se dobraram num
punho cerrado. Ele se sentiu como um objeto, uma cadeira, deve se sentir, as
fibras de seus membros de madeira tensionadas, seus braços e pernas paralisados
pela geometria de forças iguais e opostas. Ver seus dedos mesmo assim se
esticarem e pegarem o fone foi como ver uma cadeira se mexer num terremoto.
“Alô?”, disse Lauren. “Alô?... Alô? Tem alguém aí?”
“Sou eu, Lauren.”
“Ah, Louis, a sua voz está tão longe. Você está sozinho? Eu posso falar com
você?”
Agora seus lábios eram o objeto estacionário.
“Você está aí?”, disse Lauren. “Eu ia ficar um tempo sem ligar, como você
me falou pra fazer, mas eu estava assistindo Good Morning America e eu vi ela.
Foi tão ruim, Louis, foi muito, muito ruim, porque eu estava justamente pensando
em como eu queria que ela não existisse. Mas eles disseram que ela está viva.
Ela está, não está?”
“Está.”
“Você sabe do que é que eles estão chamando ela? De heroína. Sabe, a
namorada do Louis é uma pessoa tão boa e tão incrível que eles exibem uma foto
dela na televisão e dizem que ela é uma heroína. Como se ela fosse uma das
pessoas mais admiráveis do país ou coisa assim. E eu sou tão boa pessoa que
estou lá sentada, torcendo pra que ela morra, até que eu vejo a cara dela na
minha frente.”
“É, Lauren”, ele disse, ríspido. “Você não deve dar ouvidos ao que eles dizem.
Ela só fez aquele aborto pra se vingar. Ela usa os homens pra fazer sexo. Ela é
muito mais mesquinha que você.”
Lauren ficou magoada. “Eu não acredito em você”, disse ela. Era a primeira
vez, desde que a conhecera, que ele tentava magoá-la. Ele queria que ela ficasse
com ódio dele e o esquecesse. Mas não era agradável ser odiado, pelo menos não
por Lauren, cujo cuidado para com ele sempre fora um mistério que fazia o
mundo parecer um lugar para o qual ainda havia esperança. Ele ficaria muito
triste de viver sem esse cuidado. Perguntou a Lauren onde ela estava.
“Eu estou em casa. Quer dizer, com o Emmett. Mas eu não deixei ele me
beijar.”
“Ele deve estar felicíssimo com a sua volta.”
“É, nós temos tido umas conversas superdivertidas.”
Louis estava em pé, apoiado em seus pés doloridos e latejantes. À medida que
se prolongava, o silêncio na linha ia adquirindo o gosto especialmente salgado das
tarifas de ligações interurbanas diurnas.
“A gente não vai mais se ver, não é, Louis?”
“Não”, disse ele.
“Você tinha reatado com ela?”
“Não.”
“Mas você queria reatar?”
“Queria.”
“Que merda”, disse Lauren com tristeza. “Eu estou com tanto ciúme dela que
não dá pra acreditar. Você ia me achar uma monstra se soubesse o ciúme que eu
estou sentindo. Mas eu juro que estou torcendo pra que ela fique boa, Louis, juro
por Deus. Você acredita em mim?”
“Acredito.”
Ela refletiu sobre isso alguns instantes. “Está bom”, disse ela. “A gente se vê,
então. Quer dizer... a gente não se vê. Acho que... acho que eu vou deixar o
Emmett me beijar agora.”
“Que bom.”
“Você está com ciúme dele?”
“Não.”
“Nem um pouquinho de ciúme?”
“Não.”
“Louis.” Havia uma urgência no modo como ela disse a palavra. “Diz que sim.
Diz que sim que eu desligo e nunca mais te procuro. Por favor, diz que sim.”
“Eu não estou com ciúme dele, Lauren.”
“Por que não? Me diz, por que não?” Ela parecia uma criança contrariada. “Eu
não sou bonita? Eu não faria qualquer coisa no mundo por você? Eu não amo
você?” Entre o momento em que um copo é irremediavelmente derrubado de
uma prateleira e o momento em que ele cai no chão, há um silêncio carregado e
de limites muito precisos. “Eu quero que ela morra!”, disse Lauren. “Eu quero
que ela morra neste exato instante!”
Louis sabia que, se estivesse no mesmo cômodo que Lauren, ele teria fugido
com ela e ido viver com ela; sabia disso do mesmo modo como sabia seu próprio
nome. Mas ele estava falando com ela pelo telefone, que tinha aquela pequena
guilhotina de plástico para decepar conversas. Alguma força providencial o havia
arrastado de Chicago de volta para Boston, o havia arrastado antes para Chicago,
onde seu pai tinha lhe dito: Deixe-me lhe contar uma dura verdade sobre as
mulheres: elas não ficam mais bonitas quando envelhecem; elas não ficam menos
malucas quando envelhecem; e elas envelhecem muito rápido.
“Olha o que você me fez dizer”, disse Lauren.
“Desliga.”
“Está bem. Eu vou desligar.”
“Eu estou desligando.”
Quando tirou o fone do ouvido, Louis ouviu Lauren dizer: “Eu queria você!”.
Ele se sentou na cama e ficou olhando para as cadeiras e as paredes imóveis
até que percebeu que a luz na janela não era mais a luz da manhã e decidiu que
já estava tarde o bastante para tentar visitar Renée. Ele teria preferido ver
Lauren. Ele se vestiu e afrouxou os cadarços dos sapatos até conseguir enfiar os
pés dentro deles. Bateu um pé no chão e depois o outro, para acomodá-los em
sua dor. Forçou-se a mastigar e engolir duas bananas.
No Somerville Hospital, havia uma atendente nova na recepção. Ela tinha um
pescoço comprido e uma cabeça minúscula. “Não há nenhuma Seitchek na nossa
lista.”
“Como assim não há nenhuma Seitchek na lista?”
“É aquela pobre moça de Harvard? Deixe-me ver o que eu consigo achar
aqui.” Ela examinou de novo seu imenso fichário giratório. “Não, ela realmente
não está aqui.”
“Você está me dizendo que ela morreu?”
“Bom...” A mulher pediu informações pelo telefone e, em seguida, transmitiu-
as a Louis: “Ela está no Brigham & Women’s Hospital. Acabaram de transferi-la
para lá”.
O Brigham ficava bem na área de Eileen, atrás do Fenway Park, numa
verdadeira cidade dos adoentados e convalescentes, onde edifícios hospitalares
de tijolo e concreto haviam crescido como fungo, botando alas e mais alas em
ângulos fortuitos, alimentados pelo que obviamente era um estoque infinitamente
crescente de pessoas com problemas de saúde. Não havia estacionamento grátis.
Louis subiu por um elevador, atravessou um interminável corredor principal,
passou por um saguão e desceu por outro elevador. Então, disse a uma
enfermeira que estava atrás do balcão octogonal da uti que queria visitar Renée
Seitchek. A enfermeira lhe informou que Renée estava sendo operada. “Você é
parente dela, Louis?”
“Eu sou namorado dela.”
A enfermeira dirigiu os olhos para uma pilha de pastas com linguetas
vermelhas e as virou e revirou de um jeito nervoso. “Infelizmente, só a família
imediata está autorizada a visitá-la.”
“E se eu dissesse que sou marido dela?”
“Mas você não é marido dela, Louis. A sra. Seitchek está na sala dos
funcionários, à esquerda, no final do corredor, se você quiser falar com ela.”
Não havia ninguém na sala dos funcionários salvo uma mulher pequena, de
calça azul-marinho e blusa rosa, que estava botando café num copo de isopor.
Seu cabelo era curto, frisado e tingido com luzes. Ela usava joias de ouro pesadas
de design simples em suas mãos e pulsos bronzeados. Na televisão perto dela
estava passando uma novela.
“Senhora Seitchek?”
Quando a mulher se virou, ele viu a exata expressão de leve surpresa de
Renée. Ele estava olhando para uma Renée que havia envelhecido vinte e cinco
anos; que tinha deixado o sol lhe torrar a pele até ela ficar da cor da côdea de pão
branco; que tinha tirado as sobrancelhas e passado um batom rosa cintilante; que
tinha passado a noite anterior em claro; e que tinha nascido muito bonita. Seu
primeiro impulso foi se apaixonar por ela.
“Eu sou Louis Holland”, ele disse.
A sra. Seitchek olhou para ele com ar de dúvida. “Sim?”
“O namorado da Renée.”
“Ah”, disse ela. Ele a viu correr os olhos pelo seu cabelo ralo, sua camisa
branca, sua calça preta. Um vestígio de um daqueles sorrisos implacáveis de
Renée curvou os lábios dela. “Sei.” Ela se virou novamente para o carrinho de
café e adoçou seu café com um pacotinho rosa. “Você é de Harvard, Louis?”
“Não. De Chicago, originalmente. Mas eu queria saber como ela está e quando
eu posso vê-la.”
“Ela está sendo operada de novo, na perna agora. A bala atingiu o osso.” Os
ombros da sra. Seitchek caíram e ela apoiou as mãos no carrinho de café. “Ela
vai ficar num respirador por um tempo e fortemente sedada. Você pode entrar
em contato comigo daqui a uma semana ou dez dias, quando ela já tiver saído da
uti e nós tivermos alguma ideia de quem ela gostaria que nós deixássemos visitá-
la. Talvez ela queira ver você então.”
“Eu não posso vê-la antes disso?”
“Por enquanto, ela só pode receber visitas de parentes imediatos, Louis. Eu
sinto muito.”
“Eu sou namorado dela.”
“Sim.”
“Bom, eu gostaria de vê-la assim que fosse possível.”
A sra. Seitchek sacudiu a cabeça, ainda de costas para ele. “Louis, eu não sei
se você tem alguma ideia de como é o nosso relacionamento com a Renée. Eu
certamente nunca tive nenhuma informação sobre você, não sabia nem o seu
nome. Então, eu gostaria de esclarecer a você que a Renée não me conta nada a
respeito da vida dela. Nós a amamos muito, mas, por alguma razão, ela optou por
se manter distante. Eu não sei por quê. Talvez você saiba me dizer?” Ela se virou
para Louis. “Quantos namorados a Renée tem?”
“Ela tem um namorado: eu”, disse Louis. “Só que...”
“Só que o quê?”
“Bom, nós brigamos.”
De novo ele viu um vestígio do sorriso amargo de Renée. “E aquele rapaz
chinês. Howard. Ele não é namorado dela?”
“Não exatamente.”
“Não exatamente. Sei. E o rapaz que esteve aqui pouco antes de você? Terry .”
“Definitivamente não.”
“Definitivamente não. Está bem. Essa não foi bem a impressão que ele me
passou, mas se você diz...”
Louis tentou pensar em alguém que soubesse com certeza que ele e Renée
haviam morado juntos, em alguma prova concreta de que eles haviam tido um
relacionamento. Pensou em dizer: O seu filho Michael é corretor de imóveis e o
seu filho Danny está fazendo residência em radiologia. Mas ele já estava ouvindo
a resposta óbvia: Se você é namorado dela, onde estava ontem à tarde?
A sra. Seitchek jogou um mexedor de plástico num cesto de lixo. “Você está
vendo o problema, não está? A minha filha foi vítima de um crime, e eu não faço
a mínima ideia de quem é o responsável. Nós não sabíamos absolutamente nada
sobre a vida pessoal dela, até virmos para cá. E devo dizer que as coisas não
estão muito mais claras agora. Então, considerando as circunstâncias, eu acho
que é melhor nós simplesmente esperarmos.”
“Mas da próxima vez que a senhora falar com ela... talvez a senhora possa
pelo menos dizer a ela que o Louis está... sabe... por perto?”
“Vamos ver.”
“Por que isso seria um problema?”
“Eu disse vamos ver. Eu não quero correr o risco de deixá-la nervosa se...”
“Eu sou o namorado dela, sra. Seitchek. Eu vou morrer de tristeza se ela
morrer. Eu...”
“Eu também, Louis. E o pai dela e os irmãos dela também. Nós todos a
amamos e queremos que ela viva.”
“Bom, então diga a ela.”
“Eu vou pensar.”
“Desculpe a minha estupidez, mas...”
“Por favor, vá embora.” Os olhos da sra. Seitchek tinham ficado cheios d’água.
“Por favor, vá embora.”
Louis queria abraçá-la. Queria beijá-la e tirar suas roupas, queria fazer com
que ela fosse Renée e enterrar seu rosto no colo dela. Subitamente à beira das
lágrimas também, ele saiu da sala correndo.
Do lado de fora, quando estava passando pelo balcão octogonal, ele viu um
homem que achou reconhecer de uma foto de família que Renée lhe mostrara.
O homem tinha a pele muito vermelha e cabelo branco e ralo, todo penteado
para trás, e usava um par de óculos muito assustador — grossos trifocais, com
lentes extragrandes e uma armação de plástico resistente. Ele estava lendo as
letrinhas miúdas de um frasco de remédio líquido.
“Desculpe, o senhor é o doutor Seitchek?”
Os olhos do homem se moveram em direção à faixa do meio dos trifocais e
cravaram-se em Louis. “Sou.”
“Eu sou amigo da sua filha. E, bom, eu estava pensando se o senhor poderia
dar um recado a ela em algum momento nos próximos... dias. Estava pensando
se o senhor poderia dizer a ela que o Louis a ama.”
O dr. Seitchek dirigiu novamente os olhos para o frasco de remédio. Ele tinha
sido reitor da faculdade de medicina da Northwestern e, embora Renée fosse tão
reticente em relação a ele quanto era em relação a todos os outros membros de
sua família, Louis ficara com a impressão de que ele era algo como um figurão
da cardiologia nacional. A voz dele era baixa, contida, profissional. “Você falou
com a minha mulher?”
“Falei.”
“Ela explicou a você o nosso receio?”
“Mais ou menos.”
Os olhos agigantados pelas lentes fincaram mais um olhar em Louis. “A Renée
interrompeu uma gravidez ontem. Você tinha conhecimento disso?”
“Sim. Na verdade, eu era o... eh... parceiro.”
“O seu nome é Louis.”
“É. Louis Holland.”
“Eu dou o recado a ela.”
“Muito, muito obrigado.” Ele tocou no ombro do dr. Seitchek, mas sua mão
poderia ser uma mosca que tivesse por acaso pousado ali, a julgar pela reação
que ela obteve. “Eu poderia perguntar só mais uma coisa?. . . Quem ela acha que
pode ter feito isso? Alguém perguntou a ela?”
O dr. Seitchek mais uma vez ergueu os olhos do frasco de remédio. “Acho que
ela não faz a menor ideia.”
“Foi isso que ela disse? Que não faz a menor ideia?”
“Ela não disse nada.”
“Ela está podendo falar?”
“Ela estava consciente e alerta hoje de manhã. Mas ela não parece ter
nenhuma memória de ontem à tarde. De qualquer forma, eu não creio que ela
tenha visto nada.”
“Mas o que exatamente ela disse?”
O dr. Seitchek estudou Louis como se houvesse letrinhas miúdas no rosto dele.
“Tem alguma coisa específica que você esperava que ela tivesse dito?”
“Não, sei lá.”
“Alguma coisa que você queira me dizer?”
“Não.”
“Eu vou lhe dar o cartão do investigador que está cuidado do caso. Você sabe
que estamos oferecendo uma recompensa, não?”
***
Uma família estava reunida em volta de uma picape, ouvindo o rádio à luz de
um lampião apoiado na capota. Eram dois casais jovens, um casal mais velho e
um bebê. A mulher mais velha viu Louis andando em direção a eles com a
máscara de gás e fez cara de espanto. Ele disse que havia uma pessoa morta do
outro lado da rua.
Agora todo mundo estava fazendo cara de espanto para ele. “Tem alguma
coisa... errada?”
“Bom, sim”, ele respondeu. “Acho que existe uma preocupação em relação a
uma fábrica de produtos químicos em Peabody .”
Ele já sabia que teria de contar a eles, mas estava na dúvida se fora um erro.
A família começou a metralhá-lo com perguntas, duas ou três de cada vez. Ele
tentou trazer a discussão de volta para o homem morto do outro lado da rua, mas,
quando deu por si, já tinha sido deixado sozinho na pista de entrada da casa,
enquanto as pessoas disparavam em todas as direções, algumas sumindo dentro
da casa, outras correndo para avisar os vizinhos.
O rádio disse: Há relatos agora de que pelo menos dezoito pessoas morreram, a
maioria delas no condado de Essex. Esse número certamente irá crescer e é
provável que existam dezenas se não centenas de feridos no que claramente foi a
pior tragédia natural que já atingiu a grande Boston.
“Você quer uma carona?”, a mulher mais velha perguntou a Louis. Ela e o
marido estavam botando sacolas do Star Market com comida e garrafas de água
na carroceria da picape.
“Não...” Louis fez um gesto vago. “Obrigado, de qualquer forma.”
“Acho que é melhor a gente ir indo, você não acha?”
“É, mas...” Ele apontou com cabeça na direção da rua.
“Esquece o homem.”
Louis caminhou sem ânimo pela pista de entrada, embrenhou-se por entre os
arbustos e urtigas e ficou parado, em silêncio, diante do carro capotado, olhando
para aquela vítima sem rosto que tinha se tornado dele. A notícia sobre um
possível vazamento químico estava vazando por toda a rua. Os ruídos de carros
dando partida se multiplicavam, e novamente a terra estava tremendo.
Quanto tempo uma pessoa levava para ir da Filadélfia até Pittsburgh quando
estava vivendo no azul? Quanto tempo uma pessoa levava para ir simplesmente
de Ly nnfield até Boston quando as vias expressas estavam fechadas e não havia
eletricidade? Louis calculava que ele e seu Civic estavam avançando mais ou
menos na velocidade média de um cavalo a galope enquanto rumavam para o
sul por Wakefield, Stoneham, Melrose. Ele parava para consultar seu mapa,
parava diante de pontes danificadas e era obrigado a fazer um contorno. Parou
para ajudar um cambojano a tirar seu carro carcomido de ferrugem de dentro
de uma vala e botá-lo na estrada que levava a Peabody, onde sua mulher e seus
filhos estavam. Louis deu sua máscara de gás para o cambojano quando eles se
despediram.
As ruas, com seus meios-fios, calçadas e bueiros, não estavam ancoradas no
chão. Dez bombeiros de Melrose se afastavam do local de um incêndio já
apagado com o andar relaxado de pessoas que saem de uma igreja, suas costas
voltadas para as vigas pretas que haviam se erguido, vitoriosas, da terra. O prédio
de uma biblioteca tivera uma diarreia de tijolos, e a proximidade do movimento
forte, a aleatoriedade irradiante e persistente daquilo tudo, fazia com que a
imobilidade dos destroços deixasse de ser uma qualidade elementar e passasse a
ser uma espécie de dor, uma imanência.
O século xviii assombrava as inescrutáveis ruas transversais, tão latente na
escuridão que Louis quase esperava ouvir os golpes de cascos de cavalo no barro.
Imaginou como deviam ser negras as noites no centro de uma cidade duzentos
anos atrás, antes de existir iluminação a gás e muito antes de a insônia da época
atual ter espalhado alucinações insones em pistas ao longo dos limites das cidades
e trazido o mundo externo para o interior das casas: como as próprias casas
deviam descansar, tão invisíveis e aparentemente mortas quanto as pessoas que
dormiam dentro delas. Como deviam ser assustadoras e bonitas aquelas noites.
Como deviam tornar algum tipo de repouso verdadeiro e de solidão verdadeira
uma possibilidade.
Mas aquela época era só um eco agora, um eco que morria se você chegasse
perto demais, e, sempre que passava por pessoas — elas não estavam nos bairros
empresariais nem nos centros comerciais, mas sim nas ruas residenciais —, elas
estavam coladas a automóveis com faróis, rádios e motores ligados, e ele não
podia negar que esses pequenos quadros vivos, repetidos inúmeras vezes
enquanto ele seguia para o sul, eram as únicas coisas naquela noite que pareciam
genuínas. Os faróis estacionários lançavam feixes de realidade sobre o suposto
fato do terremoto e iluminavam pedaços da vegetação real e das casas reais que
sobreviviam, indiferentes, à escuridão. E o rádio, embora Louis tivesse mantido o
seu desligado a maior parte do tempo, era a voz da época dele, a única voz na
noite que ele compreendia. As janelas quebradas, os fios partidos, as
ambulâncias e os rostos feridos que assomavam no meio da noite eram coisas
sem sentido. Sem sentido porque ele podia olhar para elas e, de alguma forma,
não sentir nenhum desejo de vingança, nenhum mesmo. Nem mesmo naquela
estrada de Ly nnfield, quando estava diante da primeira pessoa morta com que se
deparara, tinha havido algum espaço no coração dele para a raiva. Não
conseguia relacionar a coisa morta pelo terremoto a seus pés a quaisquer ações
dentro de um esquema de certo ou errado, não conseguia pensar: a empresa é
responsável por isso e eles têm de pagar. Como você podia acreditar em
responsabilidade se a responsabilidade tem limites? E, no entanto, como podia um
terremoto causado pela cupidez e pela desonestidade de homens reais e
específicos mesmo assim virar simplesmente um ato de Deus, com a vacuidade
inumana e impalpável de um ato de Deus? Lembrando-se dos braços enroscados
e da cabeça aninhada do homem morto, Louis não conseguia sequer sentir
horror. O corpo agora parecia algo como os furtos que ele testemunhara em
Chicago, ou como o homem maltrapilho que ele vira uma vez se masturbando,
de calça arriada, entre os arbustos do Hermann Park, em Houston, uma imagem
tão irreal quanto tudo mais a respeito daquele terremoto, tão irreal quanto
reportagens sobre guerras ou tomadas de assassinatos na televisão, exceto que
irrealidade não era exatamente a palavra para o que ele tinha sentido lá, pisando
em urtigas na última década do século xx, cercado pelas consequências da
catástrofe e pensando por que ele vivia e do que era realmente feito um mundo
que abarcava a morte. A palavra era mistério.
Ele estava percorrendo uma avenida de Everett ou Medford (não sabia ao
certo qual das duas) quando as luzes se acenderam e ficou claro que a cidade de
Boston e seus arredores imediatos estavam longe de estar completamente
arruinados. Algumas casas tinham ficado de joelhos ou perdido paredes, mas
mesmo as piores ruas tinham uma aparência melhor do que um típico quarteirão
de gueto. Um grupo de jovens irlandeses zanzava no telhado de um abrigo de um
campo de beisebol, tomando cerveja. Crianças brincavam na luz restaurada
como crianças do deserto brincam na chuva. Louis se permitiu relaxar um pouco
e imediatamente sentiu um enjoo de cansaço e o odioso arrependimento que
passar uma noite em claro sempre lhe causava.
O céu estava rosa e amarelo quando ele chegou a Back Bay. A irrealidade
ainda resistia nos vários pontos de onde a destruição tinha emanado — na calçada
desmantelada, na rachadura molhada que atravessava obliquamente a
Marlborough Street, nos tijolos soltos, remates de concreto e pedaços de
alvenaria que jaziam na grama ou na calçada com incisiva e dissimulada
imobilidade, como se quisessem passar por fragmentos de um templo romano ou
penedos no fundo de um penhasco, coisas que não tinham se movido por séculos.
O prédio de Eileen e Peter, porém, continuava de pé, exatamente como Louis o
havia deixado.
No Brigham & Women’s algumas pessoas avulsas, a maioria delas idosas,
permaneciam imóveis do lado de fora da sala de emergência, tentando ser
apenas objetos, até que um médico pudesse transformá-las de novo em pessoas
com testemunhos, histórias. Garrafas quebradas e ladrilhos caídos tinham sido
juntados em pilhas caprichadas, e as enfermeiras eram enérgicas e estavam
imunes ao pânico. Uma delas, que já conhecia Louis, guiou-o até a cama onde
Renée, ele viu, estava dormindo.
17.
Cara Renée,
Meu marido e eu estamos rezando pela sua rápida recuperação. Nossos
corações estão com você. Por favor, use o cheque incluso da forma que
você quiser.
Atenciosamente,
Sandy e Roy Hurwitz
Querida Renée,
Lembra de mim? Eu soube que você estava no hospital e lembrei da boa
conversa que nós tivemos. Espero que você já esteja se sentindo melhor
agora. Eu perdi dois amigos e tudo que eu tinha no terremoto. Estou
morando com a minha filha agora e não posso voltar pra casa. Parece que
você tinha razão a respeito daquela empresa. Espero que você venha me
visitar quando ficar boa.
“Atenciosamente,”
Jurene Caddulo
Renée,
Você não me conhece, mas você deixou uma marca indelével em mim.
Eu acho que as pessoas da televisão não entenderam o que você falou e os
meus pais também não, mas acho que eu entendi. Ninguém me entende
porque eu odeio ser menina, mas também não quero ser menino. Eu tenho
dezessete anos e nunca conheci nenhum garoto que tivesse uma cabeça que
eu conseguisse respeitar. Eu tive uma briga com os meus pais por sua causa.
Acho que eles admiravam você, mas aí eu disse pra eles que admirava você
e eles mudaram de ideia. Eu vou embora dessa casa daqui a dois meses pra
ir pra faculdade. A minha cabeça está sempre confusa e eu não conheço
ninguém que seja como eu. Mas eu acho que poderia ser como você, se
conseguisse ser corajosa. Eu nunca escrevi uma carta como essa antes.
Você provavelmente vai achar muito ridículo, mas às vezes eu fico
acordada na cama imaginando que levei um tiro por causa do que eu sou. A
gente provavelmente nunca vai se conhecer, mas eu queria que você
soubesse que eu te adoro e te desejo tudo de bom. fique boa!
Com carinho,
Alexandra Adams
Louis sentia ciúme de todas as pessoas que haviam escrito para ela, pessoas
que não lhe deviam nada e cujo interesse por ela estava, portanto, acima de
qualquer suspeita. Sentia ciúme dos homens que iam visitá-la e ele era obrigado a
deixar sozinhos no quarto com ela — Howard Chun, diversos professores e
colegas, até Terry Snall (embora Terry só tenha ido uma vez e deixado Renée
lívida e fervendo de raiva quando tentou fazer uma “brincadeira” a respeito de
toda a atenção pública que ela estava recebendo). Sentia ciúme especialmente de
Peter Stoorhuy s. Depois que a enxurrada de visitas e o extravasamento de
solidariedade das primeiras semanas passaram, Peter foi a única pessoa, além de
Louis e da sra. Seitchek, que continuou a ir ao hospital quase todos os dias. O pior
em relação às visitas de Peter era que Louis sentia que não havia nenhum motivo
escuso por trás delas — que Peter simplesmente gostava de Renée, sentia
admiração por ela, lamentava que ela estivesse sofrendo e que o pai dele fosse o
responsável por isso. Não fazia a mínima ideia de que Louis sentia ciúme dele,
simplesmente não podia conceber tal coisa. Trazia jornais e recortes de revista
para Renée, trazia fitas para ela ouvir no walkman, trouxe a mãe para conhecê-
la. Às vezes trazia Eileen, embora ela ainda continuasse absurdamente tímida na
presença de Renée. Louis zanzava pelos corredores, descia e subia em
elevadores, folheava revistas como Glamour e Good Housekeeping com os
dentes trincados, voltava para o quarto 833 e encontrava Renée e Peter ainda
conversando baixinho. Ela raramente parecia tão relaxada ou autoconfiante
como ficava depois de receber uma visita de Peter.
Aos olhos de Peter, Louis havia deixado de ser o irmão mais novo de Eileen e
passara a ser o namorado de Renée Seitchek — o parceiro dela no ataque à
Sweeting-Aldren e o homem que havia ajudado a expor David Stoorhuy s como a
fraude que Peter já sabia fazia muito tempo que ele era. Peter dava roupas para
Louis, inclusive algumas peças de que ele ainda gostava, e chegou sozinho à
extraordinária descoberta de que Louis jamais seria um vendedor de espaço
publicitário nem de coisa nenhuma. Eileen preparava o jantar para os três
quando Louis voltava do hospital para casa. Sempre que ele parecia triste, ela lhe
perguntava o que havia de errado e tentava bravamente animá-lo.
O que havia de errado era que ele se sentia completamente sem rumo. Agora
que Eileen estava sendo um doce e que Peter tinha parado de tratá-lo de forma
condescendente, Louis não tinha outra escolha senão ser sincero com eles. Mas
sinceridade implicava algum tipo de fé em alguma coisa — o tipo de fé que
Eileen e Peter tinham em relação a viver na América e em construir uma vida
boa para si próprios, ou que Renée tinha no poder das mulheres. Louis ainda
continuava achando aquele país uma porcaria e ainda tinha suas dúvidas sobre se
era bom ou não ser homem. Se algum dia ele já soubera como acreditar em
alguma coisa, já havia esquecido fazia tempo.
Tinha ciúme das pessoas com motivos puros que traziam prazeres para Renée
— prazeres que ela partilhava com ele porque ele estava sempre com ela,
prazeres que eram pequenos, discretos e pelos quais era mais fácil sentir gratidão
do que qualquer outro que pudesse ser proporcionado pelo homem que fazia
coisas como observá-la dormir, ou ajudá-la a andar para cima e para baixo pelo
corredor, ou lhe pedir desculpa. Também tinha ciúme das pessoas com motivos
impuros que ela recebia, sorridente, porque se divertir com aquilo doía menos do
que ficar com raiva. Essa última classe de pessoas não incluía jornalistas (esses
ela simplesmente se recusava a receber), mas incluía os caça-talentos de
Holly wood que queriam comprar a história dela para fazer uma adaptação para
o horário nobre; os ativistas pró-escolha que estavam pensando se ela poderia
dizer algumas palavras ao público pelo telefone durante uma manifestação; e,
pouco antes de ela ser liberada do Brigham & Women’s, a própria mãe dela, que
uma tarde, às três horas, se encontrou com Louis em frente à porta do quarto 833
e lhe pediu que a ajudasse a convencer Renée a ir para Newport Beach com ela
para terminar de se recuperar. O pai de Renée já tinha voltado para lá, e a mãe
argumentou que, quando saísse do hospital, Renée ainda iria precisar de cuidados
especiais em casa. O problema, a sra. Seitchek disse a Louis, era que a filha só
sorria e sacudia a cabeça diante da ideia de voltar para a Califórnia. Ela tinha
dezenove mil dólares e insistia que ia contratar uma enfermeira, ideia que, para a
sra. Seitchek, parecia uma coisa tão fria, tão errada, tão...
Louis disse: “Eu não posso ajudá-la nisso, senhora Seitchek”.
Depois, deixou-a no corredor e entrou no quarto 833. Renée disse: “Você sabe
por que ela me quer lá com ela?”.
“Ela quer cuidar de você.”
“Sim, tá, ela quer cuidar de mim”, Renée admitiu. “Mas a esperança dela é
que, ficando lá, eu acabe tomando gosto por golfe. E por saiotes verde-
esmeralda. E conheça um dos jovens médicos de quem ela não consegue parar
de falar e me case com ele.”
“Eu não acredito nisso.”
“Você não conhece a minha mãe.”
Ele esperou um tempo. “Você não vai realmente contratar uma enfermeira,
vai?”
“Me aguarde.”
“Mas eu posso cuidar de você.”
“Eu não quero que você cuide de mim.”
“Por favor, me deixe cuidar de você.”
“Eu não quero.”
“Você tem que me deixar.”
Ela fechou os olhos. “Eu sei que tenho.”
Mais que tudo, ele tinha ciúme dos ferimentos dela. Era como se eles fossem
um bebê que fosse em parte dele, mas só habitasse o corpo dela. Ouvi-los e
aprender seus segredos absorvia a maior parte da atenção dela todos os dias.
Sempre que ele achava que estava começando a entendê-los — quando achava
que ela não sentia mais dor quando ria, ou que ela ainda precisava que ele
pegasse alguma coisa de cima da mesa para ela — Renée se virava para ele e o
corrigia. Ele tinha suposições; ela tinha certezas. Ele supunha que fosse possível
que ela ainda o amasse, mas, mesmo se o amasse, ela não tinha tempo para ele.
O jeito distante dela e a fragilidade de seus sentimentos por ele faziam com que
Louis se lembrasse dos sonhos que tivera em que ela era fria com ele, em que o
amor não estava mais lá, em que existia outro homem que ela estava escondendo
dele.
Mas o bebê também era dele. A dor no corpo dela — a dor nos músculos de
suas costas que uma das balas rasgara, a dor no diafragma perfurado e na costela
e no fêmur lascados, a dor das incisões cirúrgicas — tinha um jeito de passar
para o corpo dele e fazer com que ele sentisse dificuldade de respirar. Ele se
lembrava do tempo em que Renée era móvel e inquebrável; em que ele podia se
deitar em cima dela no chão duro e ela podia rir; em que eles podiam tomar
cerveja Rolling Rock e ouvir os Stones; em que podiam ser cruéis um com o
outro e isso não tinha importância; em que ele podia odiar o mundo e isso não
tinha importância. O que doía nele era o sentimento de responsabilidade. Queria
ainda estar trabalhando na wsne, ainda estar dirigindo seu carro na Route 2 sob a
luz azulada do crepúsculo de uma manhã de primavera, ainda estar em seu carro
com Renée antes de beijá-la. Queria ter deixado que ela entregasse suas pastas
sobre a Sweeting-Aldren para Larry Axelrod e para a epa. Queria ter conseguido
prestar atenção em todos os nove innings do jogo dos Red Sox que eles tinham
visto das cadeiras de Henry Rudman, queria conseguir se lembrar quem tinha
ganhado e como, ter conseguido reter uma informação tão clara, permanente e
inconsequente quanto a de um placar. Não entendia como podia ter deixado uma
pequena parte de sua vida — sua ganância? sua mágoa? sua indignação? —
torná-lo responsável pela dor e pela devastação que tinham se abatido sobre ele,
sobre ela e sobre boa parte de Boston. Mas ele era responsável, e sabia disso.
Um Lincoln Town Car com uma placa personalizada que dizia provida 7
estava estacionado em frente à casa de Renée quando ele voltou para a Pleasant
Avenue. Louis entrou e subiu a escada devagar, ainda um pouco zonzo com o
enjoo que a visita à Cruz Vermelha lhe causava.
Philip Stites estava em pé no meio do quarto de Renée, ao lado da cadeira que
ele havia puxado da escrivaninha e na qual obviamente estivera sentado. Renée
estava sentada em sua poltrona, com um suéter grosso, uma calça de moletom e
os óculos que ela agora precisava usar o tempo todo. Ela tinha subido na balança
naquela manhã e pesado quarenta e quatro quilos, meio quilo a mais do que na
sexta anterior, mas ainda sete quilos abaixo do peso que tinha em junho. A rigidez
febril de seu rosto empanava suas expressões. O único sinal que seu rosto emitiu
quando ela olhou para Louis foi o reflexo do sol em suas lentes. Ele entrou
correndo no outro quarto, o quarto onde ele dormia, e pousou os livros que
comprara no chão.
“Louis”, Renée chamou.
Ele voltou para o corredor. “Oi.”
“O Philip já estava de saída.”
“Ah. Tchau.”
Com um sorriso inescrutável no rosto, Stites acenou para ele. Renée estava
olhando para Louis atentamente. “Eu não sabia que vocês dois tinham se
conhecido”, ela disse.
“Eu devo ter esquecido de comentar.”
“Nós nos conhecemos num momento infeliz”, disse Stites. “Nós estamos num
momento bem mais feliz agora.”
Renée manteve seu olhar de desaprovação fixo em Louis mesmo quando Stites
pegou sua mão e lhe desejou felicidades. Louis abriu a porta para o pastor.
“Bom, Philip”, disse ele. “Obrigado pela visita. Eu tenho certeza de que significou
muito pra ela.”
Stites começou a descer a escada, fez um gesto casual para que Louis o
seguisse, como se não tivesse dúvida de que Louis iria obedecê-lo, e parou no
patamar fedendo a cachorro do segundo andar. Louis lançou um rápido olhar na
direção de Renée, cuja expressão não havia se alterado, e desceu a escada.
“Por que eu estou sentindo uma certa hostilidade?”, Stites perguntou a um raio
de luz do sol cheio de partículas de poeira.
“Eu soube que você está indo embora da cidade”, disse Louis.
“Amanhã de manhã. Você já foi a Omaha, no Nebraska? Acho que a única
coisa que Omaha tem em comum com Boston é o céu amplo.”
“Você concluiu que já fez estragos suficientes por aqui.”
Stites não esboçou nenhuma reação a esse estímulo. Desembrulhou uma tira
de chiclete sem açúcar e a enfiou delicadamente na boca. “Hostilidade,
hostilidade”, disse ele. “Eu vim para pedir desculpas a Renée por qualquer
sofrimento que eu tenha causado a ela. E vou lhe dizer, Louis, eu fiquei muito
feliz em saber o que você tem feito por ela.”
“Fico feliz em saber que fiz você ficar feliz, Philip.”
“Está bem, diga o que você tiver que dizer. Você nunca mais vai me ver. Mas
você sabe muito bem que o que você está fazendo é uma coisa muito boa.”
“Certo”, disse Louis. “Eu sou um sujeito fantástico. Está vendo o meu band-
aid? Eu doei sangue. É a minha penitência, não é isso? Porque eu pequei, não é?”
Ele encarou Stites, estremecendo. “Eu debochei de Jesus e não fui fiel à minha
namorada e deixei que ela matasse o nosso bebê, mas agora eu botei a cabeça no
lugar. Estou cuidando da minha namorada e tentando viver uma vida cristã. Nós
vamos nos casar e ter filhos e todos nós vamos cantar hinos na televisão. Só que
eu sou tão bom cristão que se alguém tentar dizer que eu estou fazendo o que é
certo, eu nego, porque se eu não negasse, isso seria orgulho, e sentir orgulho é
pecado, certo? E a fé é uma coisa dentro de você. Então, não só eu sou um
sujeito fantástico, como sou profundo e verdadeiro, certo?”
Stites mascava seu chiclete com mordidas suaves e lentas. “Nada que você
disser vai me fazer deixar de amar a Deus.”
“Vá em frente. Vá em frente.”
“Eu espero que você encontre alguma felicidade.”
“É, você também. Divirta-se em Omaha.”
Stites olhou para Louis com a cumplicidade e o prazer de uma pessoa que
acabou de ouvir alguém lhe contar uma piada. Riu, expondo seu pequeno bolo de
chiclete. Não foi um riso forçado nem cruel, mas o riso de alguém que esperava
ser entretido e foi. Lançou um último e sagaz olhar para Louis e desceu a escada
trotando. Pela janela imunda do hall do segundo andar, Louis viu Stites se desviar
dos ramos ávidos da madressilva e entrar no carro. Sentiu um vazio enorme, mas
estranhamente indolor, dentro do peito, como quando caía no blefe de um
adversário no pôquer.
Quando voltou, assumiu um ar casual. “Eu posso preparar o seu almoço?”
Sentada em sua poltrona, Renée olhou para ele. A poltrona ocupava uma
sombra no meio de dois trechos de reflexo solar no piso de tábua corrida. Seu
silêncio era funesto ao extremo.
“Eu posso preparar o seu almoço?”, ele repetiu.
“Você me conseguiu de volta fácil, fácil, não foi?”
Ele ponderou as consequências de ignorar que ela dissera aquilo. Encostou-se
na moldura da porta. “O que você quer dizer com isso?”
“Eu quero dizer que um dia eu estou morando sozinha, morrendo de ódio de
você pelo que você fez comigo, e aí no instante seguinte eu acordo e você está
morando comigo de novo e a gente está agindo como se nada tivesse
acontecido.”
“Você já acordou faz tempo.”
“Não, eu não acordei faz tempo. Presta atenção no que estou dizendo. Eu estou
dizendo que acabei de acordar.”
“Está bom. Você acabou de acordar.”
“Então, o que você vai fazer a respeito disso?”
“Disso o que exatamente?”
“Do fato de que você está morando comigo e nós estamos agindo como se
nada tivesse acontecido.”
“Bom, eu estava pensando em fazer o seu almoço.”
“Eu estou dizendo que você me conseguiu de volta fácil demais.”
“O que você queria que eu fizesse? Que eu ficasse longe de você? Enquanto
você estava no hospital? Quer dizer, quantas vezes eu já pedi desculpa? E você
disse que era pra eu parar de...”
“Bom, eu estava me sentindo péssima.”
“Então só o que eu posso fazer é te mostrar o quanto eu estou arrependido e o
quanto eu te amo.”
Ela se retraiu como se a frase “eu te amo” fosse um dardo. “Eu estou dizendo
que nunca tive a chance de pensar no que eu de fato queria. As coisas
simplesmente foram acontecendo. E eu realmente não sei se quero isso.”
“Você não sabe se quer que eu more aqui.”
“Sim, isso é uma das coisas.”
“Você não sabe nem mesmo se quer me ver.”
“Isso também. Quer dizer, eu quero te ver, mas as coisas estão todas
emboladas umas nas outras e eu não tenho espaço pra pensar. Eu quero
conseguir te conhecer, de alguma forma. Eu não quero que a gente fique junto só
por ficar. Eu quero começar de novo.”
“E o primeiro passo é eu me mudar daqui.”
“Eu não sei, eu não sei.”
“Você quer que eu vá embora. E está tentando dizer isso de um jeito gentil.”
Ela fechou os olhos e mordeu o lábio. Louis não conhecia aquela pessoa,
aquela mulher esquelética de rosto febril, cabelo sem corte e óculos de aro de
metal. Uma hábil troca tinha sido feita, sem que houvesse nisso nenhum embuste
— a mulher era claramente quem parecia ser. Só não era mais o fantasma feito
de memórias e expectativas que ele tinha visto no café da manhã. Ela abriu os
olhos e olhou para um ponto fixo à sua frente. “Sim, eu quero que você vá
embora.”
Ele pegou um envelope ainda fechado de cima da mesa do hall e o levou para
o quarto dela. “É esse o problema?”
Ela nem sequer olhou para o envelope. “Não me subestime tanto.”
“Responde a pergunta.”
“Tá, tá bem. Isso é parte do problema. Me chateia saber que você recebeu
uma carta dela aqui. Me chateia pensar que eu só soube da existência dessa carta
porque você não estava aqui e foi outra pessoa que trouxe a correspondência pra
mim. Porque, até onde eu sei, você pode estar recebendo cartas como essa todos
os dias...”
“Eu não estou.”
“E só eu é que não sei. Isso é parte do problema. Mas não é...”
“Você acha que ela me manda cartas e eu escondo de você. Você acha que
eu estou mantendo toda uma outra relação...”
“Cala a boca. Não é isso que eu estou dizendo. O que eu estou dizendo é que é
um total absurdo ela mandar cartas pra você aqui, e cabe a você deixar isso claro
pra ela, porque ela obviamente não vê nada de errado nisso.”
O pronome pessoal — ela — foi pronunciado com um ódio que Louis nunca
tinha ouvido na voz dela antes. Lauren não odiava Renée tanto assim.
“Eu vou comunicar isso a ela.”
Renée sacudiu a cabeça. “Eu não posso viver com você.”
“Eu te falei que nem sequer penso mais nela. Eu te disse que só o que eu quero
é uma chance de consertar o que eu fiz. Eu sei que fui muito, muito escroto com
você. Mas eu nem transei com ela e eu nem penso mais nela agora.”
“E foi muita burrice sua, porque pra mim não faz a menor diferença se você
transou ou não transou com ela. Não faz absolutamente diferença nenhuma.”
“Bom, eu teria transado, mas ela não quis.”
Renée olhou para o teto com uma expressão de nojo e incredulidade. “Isso é
doente. Isso é inacreditavelmente doente. Ela vai de mala e cuia pro seu
apartamento e depois se recusa a transar com você, porque... deixe-me
adivinhar. Porque ela é muito melhor do que eu, porque ela te ama de verdade e
só quer trepar com você depois de casar. Isso realmente me faz sentir muito
bem, ouvir isso.”
“Eu fiquei com pena dela”, disse Louis, bem baixinho, botando a carta de
Lauren em cima da escrivaninha.
“Bom, aqui tem outra pessoa de quem você pode ficar com pena. Eu faço o
melhor que posso com autopiedade, mas não dá pra eu fazer tudo sozinha. Aqui
tem uma pessoa que tem febre todo dia, que ainda sente muita dor nas costas,
que está com o peito todo cheio de cicatrizes, que não consegue mais enxergar
direito, que tem que viver e ser feia e saber que é feia a cada minuto do dia, se
você precisa de alguém de quem sentir pena.”
Ele franziu o cenho. “Eu nunca senti pena de você. Eu sofro junto com você,
mas eu te admiro e te amo. E você é linda.”
Ela nem tentou conter as lágrimas. “Eu não posso viver com você. Eu não
posso viver com você e eu não consigo me livrar de você.”
“É muito fácil se livrar de mim.”
“Bom, então, vai de uma vez. Vai embora. Porque isso que você está vendo é
o que eu sou de verdade. É assim que eu sou por dentro. Eu sou uma megera
ciumenta, insegura e feia. E é isso que eu vou ser sempre, e você pode continuar
vivendo comigo porque se sente culpado e pode me ver transformar a sua vida
num inferno, ou você pode ir embora daqui e ir morar com ela neste exato
instante, porque eu certamente não quero viver com você se é pra gente brigar
desse jeito, ou então você pode ser bondoso comigo...”
“Bondoso com você?”
“Mais bondoso do que você já tem sido. Bondoso comigo neste instante. Você
pode me dizer que não pensa nela o tempo todo. Pode dizer que eu posso não ser
tão jovem quanto ela e posso estar toda ferrada e cheia de cicatrizes, mas que
mesmo assim eu não estou tão feia assim. E você tem que me dizer isso toda
hora. Você tem que me dizer que não escreve cartas pra ela, que não telefona
pra ela e que gosta de mim como eu sou. Você tem que pegar todas as coisas que
você já disse e dizer tudo de novo com uma frequência cem vezes maior. Porque
eu estou tentando ter energia, estou tentando voltar a ser uma pessoa de novo,
mas não estou conseguindo fazer isso com a rapidez que eu gostaria.”
Por um momento, Louis ficou vendo Renée tremer e chorar em sua poltrona.
Depois se abaixou, pôs as mãos embaixo de suas axilas e a levantou. Ela estava
muito leve. As lentes de seus óculos tinham, cada uma, um único fio de lágrima
no meio. Ele beijou seus lábios inertes sem nem um traço da cautela e do carinho
consciente dos beijos que eles trocavam antes de dormir, quando acordavam ou
se despediam. Beijou-a porque estava faminto daquela mulher.
“Não faça isso.”
“Por que não?”
“Você só está fazendo isso porque... ai. Ai!”
Ele a estava apertando com força, uma das mãos apoiada bem em cima da
cicatriz do ferimento que a bala fizera ao penetrar em suas costas, a outra mão
em seu bumbum, por baixo da calça de moletom e da calcinha, a coxa dele
enfiada com firmeza entre suas pernas. Ela encostou a boca na orelha dele e
disse: “Não aperte”.
Ela estava tremendo quando ele a despiu na cama. Quando ele se levantou
para tirar suas próprias roupas, ela se cobriu com um lençol.
“Nunca mais use esse suéter”, ela disse.
Ele se ajoelhou perto dela e puxou o lençol para baixo. Encostou o rosto em
sua barriga branca e a base da palma da mão no oco de sua pelve. Queria encher
aquele oco de sêmen. O fluido morno, que esfriava tão rápido, a faria sentir
cócegas, faria sua barriga pinotear como uma colina nas vascas de uma
catástrofe. Ele sabia disso porque já tinha visto acontecer, no longínquo mês de
maio.
Ela se sentou e tentou puxá-lo para cima dela.
“Eu preciso olhar pra você”, ele disse.
“Tá, mas anda rápido, tá bom?”
A boceta dela lhe parecia uma coisa de insuportável beleza. Sua prontidão, sua
sutileza, seu canteiro de pelos escuros. Não mais cobertos por tecido adiposo,
cada um dos músculos de suas pernas e braços estava visível em sua pequena e
esguia glória. A cicatriz retroperitonial era um grande círculo de ferida curada
que se estendia de um ponto abaixo do esterno, contornava suas costelas e ia até o
meio de suas costas. Fosse isso bom ou ruim, o pau dele estremeceu e endureceu
por completo quando ele virou o corpo dela e acompanhou o avanço irregular da
cicatriz, suas runas roxas e vermelhas, passando pelos lugares em que ela
engelhava a pele e pelos lugares de aparência mais tenra em que ela parecia
esticá-la. Louis não conseguiu deixar de pensar na fotografia aérea da falha de
Santo André que vira num dos livros de Renée, a longa costura saliente
atravessando a pele lisa do deserto da Califórnia, o sulco estreito no meio cortado
por hachuras que lembravam suturas. Sentiu-se feliz por estar vivo e naquela
cama. Não havia mais nenhuma dúvida em sua cabeça de que a coisa para a
qual estava olhando era Renée Seitchek. O foco do amor de Louis havia migrado
de sua imaginação para o corpo dela e levara sua imaginação junto, a
inescapável junção das pernas dela agora encarnando alguma convergência
necessária de emoções dentro dele, a tepidez da pele dela idêntica ao calor que
os olhos dele sentiam quando as pálpebras se fechavam para cobri-los. Ele
lambeu a cicatriz fria da toracotomia. Beijou a estrela irregular do ferimento que
a bala fizera ao sair, abaixo do seio direito. Uma bala havia saído por ali, levando
pedaços da costela e do tecido pulmonar de Renée, mas ela estava respirando
sem dor agora. Ela brincou com o pau dele, abrindo e fechando o dedo indicador
e o polegar, puxando fios do puxa-puxa transparente que o pênis secretava.
Depois, se inclinou para o lado e chupou-o, brevemente.
Ele espremeu um pouco de gel espermicida no centro do diafragma dela,
lubrificou a borda, dobrou-o ao meio e o empurrou para dentro da vagina dela
até ele se desdobrar lá dentro. O procedimento lembrava, de uma forma
estranha e interessante, o preparo de uma ave para assar.
Ela parecia ter medo quando ele se deitou em cima dela. Ele resistiu à ideia de
que era “importante” eles estarem fazendo amor naquele momento, mas
infelizmente meio que parecia de fato importante. Ela estava de olhos
arregalados e piscava rapidamente, como se fosse a Morte e não Louis que
estivesse pesando em cima de seu peito e introduzindo um pedaço duro da carne
dele numa abertura estreita do corpo dela e invadindo de forma mais
generalizada a cidadela onde ela havia guardado seu eu, sua alma, durante os
meses em que estivera mais só do que estava agora. Ele botou a perna esquerda
para cima, por cima do quadril dela, para evitar fazer peso no fêmur
osteomielítico de Renée. A posição era incômoda, e Renée estava tão inerte —
não por escolha sua — que Louis teve a sensação de estar se agarrando a uma
pedra escorregadia, com poucos pontos de apoio.
“Me avise se eu estiver te machucando.”
“Bom, está doendo um pouco em vários lugares.”
“Eu quis dizer se estiver doendo muito.”
De olhos fechados, ela o puxou para dentro dela o mais fundo que ele podia ir.
Começou a respirar daquela maneira ruidosa e arrebatada que fazia um homem
se sentir como um rei e que tornava a ejaculação dele um acontecimento de
imensa doçura. Ele se deitou ao lado dela e massageou a extremidade anterior de
seus lábios vaginais com a palma da mão até ela gozar. Segurou o pau e
depositou sêmen no oco pélvico que era seu fetiche. Ela se debateu um pouco e
esfregou o oco por um bom tempo até parar de sentir cócegas. Eles fizeram
declarações ridículas e sentimentais sobre respiração, atuais condições genitais e
amor. Repetiram o ato principal, arfando e suando, até que ela ficou agitada e
disse a ele que estava se sentindo muito enjoada. Ele se levantou imediatamente
e a cobriu com o lençol. “Eu vou preparar um almoço pra você.”
Ela sacudiu a cabeça. Parecia exausta e arrasada.
“Um chá com torradas.”
“Não há a menor possibilidade de eu sair hoje à noite. Você vai ter que ligar
pra ela.”
“Você pode dormir a tarde inteira. A gente vê como você vai estar se sentindo
mais tarde.”
“Eu estou tão cansada de me sentir cansada.”
“Come alguma coisa. Tira um cochilo.”
Quando a porta do quarto dela estava fechada e ele sabia que ela estava
dormindo, ele se sentou diante da mesa da cozinha e abriu o envelope de Lauren.
Dentro, havia uma carta escrita com sua letra bonita e atrapalhada.
20 de setembro
Querido Louis,
Eu tenho que escrever pra você hoje porque tenho. Fico pensando que se
eu tivesse escrito pra você no outono passado tudo teria sido muito diferente.
Eu tenho que escrever pra você por mim, não por você, então espero que
você não se importe muito. Você não precisa responder.
Bom, a grande notícia é: eu estou grávida! E ainda bem, porque eu já
estou com uma boa barriguinha. As pessoas me perguntam pra quando é o
bebê e quando eu digo que é pra abril elas não acreditam. Elas pensam que
eu vou dizer dezembro. Eu passo boa parte do dia nas nuvens. Nem sei se
você ia me reconhecer, de tão diferente que eu estou. Eu tenho a sensação
de que encontrei o meu verdadeiro eu. Já amo o meu bebê loucamente e
converso com ele o tempo todo. Bom, essa é a grande notícia.
Louis, às vezes eu sinto tanta falta de você que começo a chorar. Sinto
falta das coisas engraçadas que você dizia e da consideração que você tinha
por mim. Mas agora eu sei que Deus não queria que nós ficássemos juntos.
Deus queria que eu e o Emmett ficássemos juntos. Eu me sinto muito, muito
grata por ter uma vida e um bom marido e (em breve) um neném pra eu
amar. Eu ainda te amo (pronto, eu disse!), mas de um jeito diferente. Mas
você sabe do que é que eu tenho vontade às vezes? Eu tenho vontade de me
encontrar com a Renée, só eu e ela. Queria dar um beijo na bochecha dela
porque ela tem você, e você é um doce de menino. Ela já ficou boa? Espero
que sim. Espero de verdade, Louis, de todo o coração.
Bom, essas são as notícias do Texas. Eu ainda não contei pra Mary Ann
que estou grávida. Só quero contar depois que souber que está tudo bem. Eu
agora sou amiga da mãe do Emmett. Ela me levou pro grupo dela da igreja.
Eu achava as pessoas de lá muito estranhas, mas agora eu sou amiga delas
também. Enfim.
Louis, você sempre vai ser meu amigo, mesmo que a gente nunca mais
se veja. “O rei morreu, vida longa ao rei.” É o que as pessoas dizem na
Inglaterra quando o rei morre. Entendeu?
Da sua amiga,
Lauren
Ele deixou a carta em cima da mesa para que Renée pudesse ler, se quisesse.
Estava se sentindo vagamente maculado ou comprometido, e se perguntava se
tinha feito uma ideia errada de Lauren desde o início. No momento, pelo menos,
ela parecia não chegar aos pés da mulher com quem ele tinha acabado de
transar.
Tendo almoçado, ele se defrontou com o problema da tarde. De manhã ele
fazia compras, dava um trato no carro, limpava a casa e, até uns dias atrás,
levava Renée à clínica para tomar a injeção diária de antibiótico; à noite, eles
comiam e iam ao cinema ou viam televisão. Mas à tarde ele dava de frente com
a mesma desesperança que o afligia desde que perdera o emprego na wsne. Só o
que conseguia encontrar para fazer enquanto Renée descansava era ler livros.
Tinha devorado os romances de Thomas Hardy um atrás do outro, não
exatamente gostando da leitura, mas continuando assim mesmo até traçar
inclusive Judas, o obscuro. Desde então, tinha passado para Henry James, para o
qual o seu atual espírito de paciência e suspensão de julgamento o tornava o leitor
ideal. Gostou particularmente de Os bostonianos, pois descobriu que a Boston de
1870 de James também era habitada pelas mesmas eternas feministas com
quem Louis havia marchado na grande passeata pró-escolha em julho, pelas
mesmas pessoas malucas e sonhadoras que tinham patrocinado Rita Kernaghan e
ido ao tributo em sua memória, os mesmos jornalistas ardilosos que ainda
continuavam tentando se infiltrar no apartamento de Renée pelo telefone. Louis
começou a perdoar a gelidez daquela cidade do norte. Pensou no sangue
brâmane que corria em suas próprias veias. Observava-se sendo consolado pela
literatura e pela história e, percebendo o quanto tinha mudado em um ano,
perguntava-se em que tipo de pessoa acabaria se transformando. Mas ainda
havia aquela desesperança ou tristeza logo abaixo da pele de suas tardes.
Acordou Renée às cinco e meia. A temperatura dela estava baixa o bastante
para que ela considerasse a ideia de sair e, às seis, eles já estavam a caminho de
Ipswich. Os dourados da estação e da hora estavam visíveis nas árvores refletidas
nos vidros abaulados dos carros que avançavam pela i-93. Pelas poucas janelas
que não eram de vidro fumê para proteger a privacidade dos ocupantes, podiam-
se ver motoristas solitários debruçando-se agressivamente sobre volantes ou
falando sobre suas vidas em telefones.
“Ela quer me dar um beijo na bochecha”, disse Renée.
“Ah, você leu.”
“Essa é uma espécie do sul que eu não entendo.”
“Ela é boa pessoa. Só tem uma cabecinha muito confusa.”
“Alongue-se sobre esse assunto por sua própria conta e risco. Você deve saber
que eu ficaria mais feliz se você me dissesse que ela é uma completa cretina. Ela
e a barriguinha dela.”
“O que é que eu posso dizer? Eu estou constrangido.”
Era noite quando eles chegaram a Ipswich. A armação da pirâmide ainda
continuava empoleirada em cima da casa da Argilla Road, sua silhueta
desenhada sobre um fundo de céu esbranquiçado pelo luar, mas a maior parte
das placas de alumínio já tinha sido removida. Elas estavam amontoadas,
retorcidas, ao lado da pista de entrada circular. Escadas de obra prendiam dois
pedaços de lona que cobriam ferramentas e pilhas de tábuas de construção perto
da porta da frente.
A mulher esguia e sofisticada de ascendência brâmane que era a mãe de
Louis conduziu o filho e Renée até a sala de estar e serviu bebidas para os dois no
bar. Mais uma vez, baldes de dinheiro tinham sido gastos para consertar a casa,
demonstrando que a riqueza era mais forte que qualquer terremoto. O vestido
azul-marinho de Melanie tinha botões azul-marinho e ombreiras e ajustava-se ao
contorno dos quadris, das coxas e dos joelhos. Ela havia feito uma única visita a
Renée no hospital e não a vira mais desde então. Não a cobriu de atenções dessa
vez. Coube a Louis tomar a iniciativa de acomodar Renée no sofá.
“Antes que as nossas cabeças fiquem zonzas demais, nós temos alguns assuntos
de negócio a discutir”, disse Melanie, pegando um envelope de cima do consolo
da lareira. “Isso é para você, Renée. Acho que você vai concordar que está tudo
certo, não?”
Em silêncio, Renée mostrou a Louis o conteúdo do envelope. Era um cheque
pessoal, nominal a ela, no valor de seiscentos mil dólares, e um recibo de mesmo
valor preenchido com o nome de Melanie Holland.
“Você vai reparar que eu botei a data do dia 30”, disse Melanie. “Como você
deve se lembrar, esse foi o prazo que nós combinamos. Louis, você testemunhou
que ela está de posse do cheque?”
“Testemunhei, mãe.”
“Você pode então assinar o recibo, Renée?” Melanie lhe estendeu uma caneta,
para a qual Renée olhou com um rosto sem expressão. “Ou tem alguma coisa
que você ache que não está correta?”
Ainda em silêncio, Renée pegou a caneta e assinou o recibo. Melanie dobrou o
recibo ao meio, enfiou-o no bolso do peito de seu vestido e soltou um enorme
suspiro. “Muito bem, isso já está resolvido. Agora nós podemos relaxar um
pouco. Como você está, Renée?”
Renée levantou o queixo. Estava segurando o cheque no colo como se ele fosse
um lenço que ela vinha usando. “Eu estou melhorando”, respondeu.
“Ah, isso é fantástico. Você está realmente com uma aparência bem melhor
do que da última vez que eu a vi. O Louis está cuidando bem de você, espero?”
Renée virou a cabeça e olhou para Louis como se tivesse se esquecido dele até
essa menção ao seu nome. Abriu a boca, mas acabou não dizendo nada.
“Louis, isso me fez lembrar o outro assunto de negócios que eu queria discutir.
Vai ser o último da noite, prometo.” Melanie deu uma risadinha falsa. “Imagino
que você saiba que eu ainda não consegui vender esta casa. Tenho consciência
de que não é por uma infelicidade exclusivamente minha que não se possa
encontrar uma única pessoa daqui até Nova Jersey que esteja disposta a comprar
uma casa pelo preço do ano passado. Estou disposta a aceitar a depressão do
mercado na região nordeste e qualquer prejuízo que isso acarrete a mim.
Infelizmente, nós tivemos outro pequeno tremor aqui na terça passada. Creio que
ninguém pode me culpar por ficar surpresa. Eu sei que eu não era a única que
pensava que nós já tínhamos deixado isso tudo para trás. Mas não, houve outro
tremor. Tudo bem. Talvez ainda venham outros. Tudo bem. Mas enquanto isso...”
“Fico feliz em saber que você já está tranquila em relação a isso, mãe.”
“Enquanto isso, Louis, eu estava pensando se você — e a Renée também,
claro, se ela quiser — teria algum interesse em ficar nesta casa. Você teria um
lugar muito confortável para ficar e não teria que pagar aluguel. Se você vier
também, Renée, e ainda quiser continuar a trabalhar em Harvard, eu tenho
consciência de que isso implicaria uma viagem um pouco longa do seu trabalho
para casa e vice-versa. Mas as vantagens, acho eu, são óbvias. Eu também posso
pagar um salário de caseiro, principalmente se você estiver disposto a mostrar a
casa para potenciais compradores. Sabe, eu não consigo deixar de pensar que
sair de Somerville poderia levantar o ânimo de vocês. E claro que a renda extra e
a economia com o aluguel, Louis, já que você está sem trabalho e não tem muita
certeza do que quer fazer...”
Louis olhou para a sala em volta. Mesmo sem querer, ele tinha alimentado a
expectativa de sentir a presença de fantasmas ali — um espírito chamado Rita,
um espírito chamado Jack; os espíritos de Anna Krasner e de seu próprio pai.
Todos eles haviam assombrado aquela sala de estar quando ele estava longe dela,
principalmente quando ele estava em Evanston. Mas agora, quando olhava para
as monótonas paredes reparadas e para os móveis impassíveis, ele sabia que
podia esperar o quanto quisesse que só veria mesmo o vazio do tempo presente.
“Você não precisa decidir agora”, disse Melanie.
“O quê?” Ele olhou para a mãe como se ela fosse um fantasma. “Hum, acho
que não. Mas obrigado.”
“Bom, pense no assunto.” Ela pediu licença e foi para a cozinha.
Um silêncio se instalou na sala desassombrada.
“Eu estou surpreso”, disse Louis. “Pensei que ela fosse estar diferente.”
Renée puxou as duas extremidades do cheque, fazendo o papel estalar. “Eu
não.” Havia uma caixa de fósforos do hotel Four Seasons dentro do cinzeiro
pousado numa ponta da mesa. Renée acendeu um fósforo e ficou segurando-o
diante dos olhos até a chama lamber seus dedos. Apagou o fósforo e acendeu
outro. Segurou-o em cima do cinzeiro e encostou uma ponta do cheque na
chama, no mesmo momento em que Melanie voltava da cozinha. Quando viu o
que Renée estava fazendo, Melanie instintivamente fez menção de correr para
detê-la. Mas, num piscar de olhos, mudou de ideia. Cruzou os braços e ficou
observando, com o ar impessoal de quem testemunha uma cena divertida, o
cheque pegar fogo e se reduzir a uma cinza preta empenada.
“Bem”, disse ela, com as sobrancelhas levantadas. “Imagino que isso seja um
gesto e tanto.”
“Vamos esquecer isso.”
“É, o que é que tem pro jantar?”, disse Louis.
Crédito das canções mencionadas: “Marie Provost” (N. Lowe) copy right © 1977
Rock Music Company Limited; “I love the sound of breaking glass” (N. Lowe, A.
Bodner, S. Golding) copy right © 1978 Rock Music Company Limited; “See no
evil” (T. Verlaine) copy right © 1978 Double exposure Music, Inc.
Título original
Strong Motion
Capa
Elisa v. Randow
Imagem de capa
Scientifica/ Getty Images
Preparação
Ana Cecília Agua de Melo
Revisão
Jane Pessoa
Adriana Cristina Bairrada
ISBN 978-85-8086-497-7