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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando


por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo
nível."
Para Valerie
Uma pedra se projetava para fora da água, irregular
e pontiaguda, coberta de limo — uma remanescente
da Era do Gelo e do glaciar que um dia abriu aquela
bacia na Terra. Ela havia resistido a chuvas,
nevascas, geadas, calor. Não tinha medo de
ninguém. Não precisava de redenção, já estava
redimida.
I. B. Singer
i. gênero padrão
1.

Quando as pessoas lhe perguntavam se tinha irmãos, Eileen Holland às vezes


precisava pensar alguns instantes antes de responder.
Na escola primária, ela e as amigas costumavam jogar bobinho durante o
recreio e, quando acontecia de estourar alguma briga no outro lado do pátio,
geralmente a cara que estava sendo arrebentada no chão áspero era a de seu
irmão mais novo, Louis. Ela e as amigas olhavam para aquilo e continuavam a
jogar a bola umas para as outras. Estavam pulando corda no dia em que Louis
brigou com um menino na trave mais alta do velho trepa-trepa infestado de
tétano e machucou uma parte diferente do corpo em cada uma das traves em
que foi batendo enquanto despencava lá de cima, lascando os dois dentes da
frente no terceiro andar, fazendo um hematoma nas costelas no segundo,
sofrendo uma concussão por impacto e uma torção no pescoço no primeiro e
paralisando o diafragma no choque com o piso de asfalto. As amigas de Eileen
correram para ver o menino possivelmente morto. Ela ficou sozinha, segurando
uma ponta da corda e se sentindo como se tivesse caído e ninguém tivesse vindo
ajudá-la.
Eileen era uma imagem fiel e bonita de sua mãe, com olhos escuros e
espantados, sobrancelhas finas como um risco de lápis, testa alta, maçãs do rosto
salientes e cabelo liso e escuro. Tinha braços que lembravam os galhos de um
salgueiro, e às vezes ela até balançava como um salgueiro, de olhos fechados,
quando ficava tão feliz por estar com suas amigas que até esquecia que elas
estavam lá.
Louis, como o pai, era menos ornamental. Dos dez anos em diante, passou a
usar óculos estilo aviador, com uma armação de metal que combinava
vagamente com seu cabelo, que era cacheado e da cor de parafuso velho, e já
estava começando a ficar ralo quando ele concluiu a escola secundária. O corpo
troncudo era outro traço genético que ele herdara do pai. Na escola ginasial e na
escola secundária, os novos colegas de Eileen esperavam que ela lhes
respondesse “Não, não tem nada a ver” quando lhe perguntavam se Louis
Holland era seu irmão. Para Eileen, essas perguntas eram como aplicações de
vacina. O reconfortante chumaço de algodão embebido em álcool que se seguia
à espetada da agulha era o reconhecimento, por parte dos colegas, de que seu
irmão não se parecia nem um pouco com ela.
“É”, ela concordava, “a gente é muito diferente mesmo.”
Os jovens Holland cresceram em Evanston, no Illinois, à sombra da
Northwestern University, onde o pai deles trabalhava como professor de história.
De vez em quando, à tarde, Eileen via Louis de longe numa mesa do
McDonald’s, cercado dos garotos desajustados com quem ele andava, suas
refeições fajutas, seus cigarros, suas caras brancas feito cera e suas roupas
militares. A negatividade que emanava daquela mesa fazia com que ela temesse
não conseguir abrir um espaço para si na concorrida rodinha de seus pares. Ela
era, ou assim dizia a si mesma, muito diferente de Louis. Mas nunca estava
inteiramente a salvo dele. Mesmo no meio da espremeção e das risadas de um
banco traseiro, Eileen sempre calhava de olhar pela janela no momento exato de
avistar o irmão andando apressado pelo acostamento imundo de alguma estrada
suburbana de seis pistas, sua camisa branca cinza de suor, seus óculos brancos
com o fulgor da estrada. Ela sempre tinha a impressão de que ele estava lá só
para que ela o visse, uma aparição vinda daquele mundo privado paralelo no qual
ela não vivia mais desde que passara a ter amigos, mas que Louis obviamente
ainda habitava: aquele mundo onde você estava sozinho.
Um dia, no verão, antes de ela começar a faculdade, Eileen precisou de
repente usar o carro da família para ir à casa de Judd, seu namorado na época,
que morava mais ao norte na margem do lago Michigan, em Lake Forest.
Quando Louis argumentou que já tinha pedido uma semana antes para usar o
carro naquele dia, Eileen ficou furiosa com ele, mais ou menos como uma
pessoa fica furiosa com um objeto inanimado que ela toda hora deixa cair ou não
consegue usar direito. Por fim, ela convenceu a mãe a pedir a Louis que fosse
generoso, só daquela vez, e deixasse a irmã usar o carro para ir visitar o
namorado. Quando chegou à casa de Judd, ela ainda estava tão furiosa que
acabou esquecendo a chave na ignição. O carro foi prontamente roubado.
Os policiais de Lake Forest não foram particularmente gentis com ela. A mãe
foi menos gentil ainda no telefone. E Louis, quando ela finalmente chegou em
casa, desceu as escadas usando uma máscara de mergulhador.
“Eileen”, disse a mãe. “Minha querida, você deixou o carro rodar pra dentro
do lago. Ninguém roubou o carro. Acabei de receber um telefonema da sra.
Wolstetter. Você esqueceu de puxar o freio de mão e de deixar o câmbio no ‘p’.
O carro desceu pelo gramado da casa dos Wolstetter e caiu dentro do lago.”
“Sabe aquele ‘P’ que fica lá no alto, do lado esquerdo da marcha, Eileen?” A
voz de Louis soou abafada e nasalada. “P de Parado? N de Neutro? Sabe?”
“Louis”, a mãe disse.
“Ou será que é N de Não e P de... Prosseguir? D de Desistir?”
Depois desse trauma, Eileen não conseguiu mais reter nenhuma informação
sobre onde Louis estava, nem sobre o que estava fazendo. Sabia que ele tinha ido
para uma universidade em Houston e estava estudando algo como engenharia
elétrica, mas quando a mãe fez menção ao irmão numa conversa telefônica,
talvez para comentar que ele havia trocado de curso, a sala de onde Eileen estava
telefonando ficou barulhenta de repente. Ela não conseguia se lembrar do que a
mãe havia acabado de dizer. Teve de perguntar: “Então, ele está estudando... o
quê, agora?”. E a sala ficou barulhenta de novo! Ela não conseguia se lembrar do
que a mãe estava dizendo nem enquanto a mãe falava! E, então, ela nunca ficou
sabendo o que Louis estava estudando. Quando cruzou com ele nas férias de
Natal no segundo ano da sua pós-graduação — ela estava fazendo mba em
Harvard —, Eileen teve de se arriscar a tentar adivinhar o que ele vinha fazendo
desde que se formara em Rice: “Mamãe me disse que você está trabalhando
com algo como design de microchips, é isso?”.
Ele ficou olhando para ela.
Ela sacudiu a cabeça, não, não, não, apague o que eu disse. “Me conte o que
você está fazendo”, disse humildemente.
“Eu estou olhando para você atônito.”
Mais tarde a mãe lhe contou que ele estava trabalhando numa emissora de
rádio fm em Houston.
Eileen morava perto da Central Square em Cambridge. Seu apartamento
ficava no oitavo andar de um arranha-céu moderno, uma torre de concreto que
pairava acima das construções de tijolo e madeira que o cercavam como uma
coisa que por algum motivo tivesse escapado da erosão, com lojas e um
restaurante de frutos do mar no subsolo. Numa noite de fins de março, ela estava
em casa fazendo brownies com calda tripla de chocolate quando Louis, a quem
vira pela última vez do lado da árvore de Natal em Evanston lendo um romance
policial, telefonou para ela para contar que tinha se mudado de Houston para a
cidadezinha de Somerville, a vizinha pobre de Cambridge, ao norte. Ela
perguntou o que o tinha trazido a Somerville. Microchips, ele disse.
A pessoa que adentrou o apartamento dela alguns dias depois, numa noite
úmida e gelada de fim de inverno, era definitivamente um estranho. Aos vinte e
três anos, Louis estava quase careca no alto da cabeça, os fios restantes sendo o
estritamente necessário para capturar fragmentos de neve. Seus grosseiros
sapatos pretos de cadarço guinchavam no linóleo de Eileen enquanto ele
passeava pela cozinha como se quisesse traçar uma estrela com seus passos,
ricocheteando lentamente de uma bancada para outra. Seu nariz e suas
bochechas estavam vermelhos e seus óculos, brancos de tão embaçados.
“Isso é tão contemporâneo”, ele disse, referindo-se ao apartamento.
Eileen pressionou os cotovelos contra o corpo e cruzou os pulsos sobre o peito.
As quatro bocas do fogão estavam acesas na altura máxima e, em cima de uma
delas, havia uma panela de água fervente. “Eu não estou conseguindo esquentar
esse apartamento”, ela disse. Estava usando um suéter grosso, pantufas e uma
minissaia. “Acho que desligam a calefação em 1o de abril.”
O interfone tocou. Eileen apertou o botão para abrir a porta lá embaixo. “É o
Peter”, ela disse.
“Peter.”
“O meu namorado.”
Logo depois eles ouviram uma batida na porta, e Eileen conduziu o namorado,
Peter Stoorhuy s, até a cozinha. Os lábios de Peter estavam roxos de frio e sua
pele, que estava bronzeada, tinha adquirido um tom chumbo. Com as mãos
enfiadas nos bolsos de sua calça de sarja, Peter saltitava para se esquentar,
enquanto Eileen fazia as apresentações, às quais ele evidentemente não estava
conseguindo prestar a menor atenção, congelado como estava. “Porra, está frio
lá fora”, ele disse, indo para perto do fogão.
Havia um cansaço no rosto de Peter que nenhum bronzeado seria capaz de
esconder. Era um daqueles rostos urbanos que já tinham sido reinventados tantas
vezes que a pele, como um papel manchado e desgastado por múltiplas rasuras,
havia perdido sua capacidade de manter uma imagem nítida. Sob os sombreados
de seu atual jeitão de neopublicitário de Los Angeles, havia vestígios visíveis de
y uppie, punk, mauricinho e maconheiro. Repetidas mudanças de estilo, como
pentear-se demais, haviam tirado o viço de seu cabelo louro e comprido. Para se
proteger do frio, ele usava um blazer xadrez e uma camisa sem gola.
“Eu e o Peter fomos para São Cristóvão e Nevis mês passado”, Eileen explicou
a Louis. “Ainda não nos reajustamos.”
Peter estendeu suas mãos de nós brancos sobre duas das bocas do fogão e
esquentou-as, investindo esse processo de aquecimento de tanta importância que
Eileen e Louis não tiveram outra escolha senão ficar olhando para ele.
“E ele fica parecendo um pateta de chapéu”, disse Eileen.
“Eu costumo achar casacos muito úteis nesse aspecto”, disse Louis, largando o
casaco forrado de fibras sintéticas num canto. Ele envergava seu uniforme dos
últimos oito anos: camisa branca e jeans preto.
“Pois é, mas aí é que tá”, disse Eileen. “O casaco preferido dele está na
lavanderia. Ou seja, o pior lugar possível.”
Foram necessários mais outros cinco minutos para que Peter degelasse o
suficiente para permitir que os três se transferissem para a sala. Eileen se sentou
no sofá com as pernas encolhidas, puxando a beirada do suéter para baixo para
cobrir os joelhos nus e apoiando um braço nas costas do sofá no exato momento
de receber o copo de uísque que Peter havia servido para ela. Louis perambulava
pela sala, parando de vez em quando para aproximar miopiamente o rosto de
livros e outros bens de consumo. Todos os móveis e objetos do apartamento eram
novos, a maioria deles uma combinação de superfícies brancas, cilindros pretos e
peças de plástico vermelho-cereja.
“Então, Louis”, disse Peter, sentando ao lado de Eileen com um copo de uísque
na mão. “Fale um pouco de você pra gente.”
Louis estava examinando o controle remoto do aparelho de videocassete. Nas
janelas grandes e embaçadas, as luzes distantes da Harvard Square formavam
halos cor de madrepérola.
“Você é da área de comunicação”, Peter deu a deixa.
“Eu trabalho numa estação de rádio”, disse Louis, com uma voz muito lenta e
muito uniforme. “A wsne... conhece? Notícias com algo a mais...?”
“Conheço, claro”, disse Peter. “Não que eu ouça, mas já tratei de negócios
com eles umas duas ou três vezes. Na verdade, soube que eles estão passando um
perrengue, financeiramente. Não que isso não seja a norma para uma estação de
mil watts. Uma coisa que eu sugiro é que você tente receber o seu pagamento ao
fim de cada semana e, faça o que fizer, não deixe que eles convençam você a
entrar em nenhum daqueles esquemas com título de propriedade...”
“Ah, não, eu não vou deixar não”, disse Louis, com uma veemência que
deixaria qualquer pessoa observadora desconfiada.
“Quer dizer, você faz o que quiser”, continuou Peter. “Mas... quem avisa,
amigo é.”
“O Peter vende espaço publicitário para a revista Boston”, disse Eileen.
“Entre outras coisas”, disse Peter.
“Ele está pensando em se inscrever para o mestrado em administração no
outono. Não que ele precise aprender coisa alguma. Ele sabe um monte de
coisas, Louis. Sabe muito mais que eu.”
“Você sabe ouvir?”, Louis perguntou de repente.
Peter apertou os olhos. “Como assim?”
“Você sabe ouvir o que as pessoas dizem quando você faz uma pergunta a
respeito delas?”
Peter se virou para Eileen, consultando o que os olhos dela tinham a lhe dizer
sobre aquela pergunta. Parecia ter dúvidas quanto à significação do comentário.
Eileen se levantou de salto. “Ele só estava te dando um conselho, Louis. Nós todos
temos muito tempo para ouvir uns aos outros. Estamos todos muito interessados...
uns nos outros! Eu vou pegar uns biscoitos.”
Assim que ela saiu da sala, Louis se sentou no sofá e botou a mão no ombro de
Peter, seu rosto vermelho bem perto da orelha de Peter. “Ei, amigo”, disse. “Eu
também tenho um conselho pra te dar.”
Peter olhava fixamente para a frente, seus olhos se arregalando um pouco sob
a pressão de um sorriso reprimido. Louis se inclinou, chegando ainda mais perto
dele. “Você não quer ouvir o meu conselho?”
“Você só pode ter algum problema”, Peter observou.
“Use casaco!”
“Louis”, Eileen chamou da cozinha. “Você está bancando o esquisito com o
Peter?”
Louis deu um tapinha no joelho de Peter e foi para trás do sofá. No chão, em
cima de uma folha de jornal, havia uma gaiola com um gerbo, que estava
usufruindo de uma roda de exercício. O gerbo corria hesitantemente, tropeçando
de vez em quando com suas unhas microscópicas numa barra, depois galopando
de novo de cabeça erguida e pescoço virado para o lado. Não parecia estar se
divertindo muito.
“Seu pateta.” Eileen tinha voltado da cozinha com uma caneca de cerveja
cheia de biscoitos-palito. Entregou a caneca a Peter. “Eu vivo dizendo para o
Peter que a nossa família é maluca. Estou avisando desde o dia em que a gente
se conheceu que não é pra ele levar para o lado pessoal.” De repente, com uma
fluidez de movimentos de tirar o fôlego, ela se ajoelhou e, abrindo a porta da
gaiola, extraiu o gerbo lá de dentro, puxando-o pelo rabo. Depois, levantou-o
acima de sua cabeça e ficou observando o bichinho franzir o nariz. Agitando as
patas dianteiras, o gerbo tentava inutilmente agarrar o ar. “Não é verdade, Milton
Friedman?” Ela abriu a boca feito uma loba, como se fosse dar uma dentada na
cabeça do bicho. Em seguida, pousou-o na palma de sua mão, e então o gerbo
saiu correndo pela manga do suéter acima até o ombro dela, onde Eileen o
recapturou, fechando-o dentro das duas mãos e deixando só a cara pontuda e
bigoduda para fora. “Dá oi para o tio Louis”, disse ela, botando a cara do gerbo
perto da de Louis. A cabeça do bicho parecia um pênis peludo e com olhos.
“Olá, roedor”, disse Louis.
“O quê?” Eileen trouxe o gerbo para perto de seu ouvido e fingiu escutar. “Ele
disse ‘olá, pessoa’. Olá para o tio Louis.” Depois, botou o bicho de volta na gaiola
e fechou a porta. Ainda antropomorfizado, mas agora livre, o gerbo parecia
imbecil ou bronco quando correu para o tubo onde ficava sua garrafa de água e
sorveu uma gotinha. Eileen continuou ajoelhada por mais alguns instantes, com
as mãos apoiadas nos joelhos e a cabeça inclinada para o lado, como se estivesse
com água no ouvido. Depois, com a agilidade fluida que estava deixando Louis
visivelmente espantado, ela voltou rapidamente para perto de Peter no sofá. “O
Peter e o Milton Friedman estão meio de mal um com o outro no momento”,
disse ela. “O Milton Friedman fez um pipizinho numa calça de popeline que o
Peter amava de paixão.”
“Que engraçado”, disse Louis. “Isso é muito, muito engraçado.”
“Eu acho que já vou indo”, disse Peter.
“Ah, Peter, por favor, tenha um pouquinho de paciência”, disse Eileen. “O
Louis só está sendo protetor. Você é meu namorado, mas ele é meu irmão. E
vocês vão ter que se entender, nem que eu tenha que botar os dois juntos na
mesma gaiola. Você pode ficar com a roda pra se exercitar, Louis, e eu boto um
pouco de Chivas na garrafinha para o meu pateta pinguço. Rá, rá, rá!”, Eileen
riu. “E aí a gente compra uma calça de popeline pro Milton Friedman!”
Peter esvaziou seu copo e se levantou. “Eu vou embora.”
“Está bom, eu estou sendo meio chata”, Eileen disse com uma voz
completamente diferente. “Eu vou parar. Vamos relaxar um pouco. Vamos ser
adultos.”
“Sejam adultos vocês”, disse Peter. “Eu tenho que trabalhar.”
Sem olhar para trás, ele saiu da sala e do apartamento.
“Ah, que ótimo”, disse Eileen. “Obrigada.” Ela deixou a cabeça cair para trás
sobre o encosto do sofá e olhou para Louis de cabeça para baixo. Suas
sobrancelhas finas eram como lábios selados e, sem sobrancelhas acima deles,
os olhos tinham uma expressão alheia ao vocabulário humano, uma estranheza
oracular. “O que foi que você falou pra ele?”
“Eu disse que ele devia usar casaco.”
“Que gracinha você é, Louis.” Ela se levantou e calçou as botas. “Qual é o seu
problema, hein?” Em seguida, atravessou o hall correndo e saiu porta afora.
Louis observou a saída dela sem muito interesse. Abriu um claro na
condensação da janela e ficou vendo a neve fina, rosada pelas luzes dos para-
choques, cair sobre a Massachusetts Avenue. O telefone tocou.
Louis foi até o complexo aparelho de comunicação, que tinha sua própria
mesinha, e correu os olhos por ele como se o aparelho fosse um bufê onde nada
lhe apetecia. Por fim, depois do quinto toque, como a secretária eletrônica não
atendeu, ele pegou o fone. “Alô.”
“Peter?”, disse uma senhora com voz trêmula. “Eu tenho tentado
desesperadamente...”
“Não, não é o Peter.”
Houve um farfalhar inquieto. Murmurando um pedido de desculpas, a mulher
pediu para falar com Eileen. Louis perguntou se ela queria deixar recado.
“Quem está falando?”, a mulher perguntou.
“É o irmão da Eileen. Louis.”
“Louis? Meu Deus do céu, aqui é a vovó.”
Ele ficou olhando para a janela um bom tempo. “Quem?”, perguntou por fim.
“Rita Kernaghan. Vovó.”
“Ah. Oi. Vovó. Oi.”
“Eu não acredito que nós só nos vimos uma vez.”
Com certo atraso, Louis se lembrou de uma imagem, a imagem de uma
mulher barriguda, com uma cara de gatinha muito pintada, que já estava
instalada numa mesa do Berghoff quando ele, seus pais e Eileen entraram juntos
no restaurante, numa noite de nevasca em Chicago. Isso tinha sido uns sete anos
antes — cerca de um ano depois que a mãe dele tinha viajado para Boston para
ir ao enterro do pai. Do jantar no Berghoff, Louis só se lembrava de uma
travessa de coelho assado com panquecas de batata. E de Rita Kernaghan
mexendo no cabelo de Eileen e a chamando de boneca? Ou será que isso tinha
sido em algum outro jantar, com outra mulher idosa? Ou quem sabe um sonho?
Avó, não: avó postiça.
“É”, ele disse. “Eu me lembro. Você mora por aqui, não é?”
“Sim, eu moro nos arredores de Ipswich. Você está visitando a sua irmã?”
“Não, eu trabalho aqui. Trabalho numa estação de rádio.”
Essa informação pareceu interessar a Rita Kernaghan. Ela quis saber mais
detalhes. Ele era locutor? Conhecia o diretor de programação? Ela propôs que
eles se encontrassem para tomar um drinque. “Assim a gente pode se conhecer
um pouco melhor. Que tal na sexta-feira, depois do trabalho? Eu vou estar na
cidade no final da tarde.”
“Está bem”, disse Louis.
Assim que eles combinaram a hora e o lugar, Rita Kernaghan se despediu e
desligou. Instantes depois Eileen voltou para o apartamento, molhada e zangada,
e se enfiou na cozinha. “Eu só vou servir o jantar se você me pedir desculpas!”,
falou.
Louis franziu o cenho, pensativo, comendo biscoitos-palito.
“Você foi muito infantil e muito grosso”, disse Eileen. “Eu quero que você me
peça desculpa.”
“Eu não vou pedir desculpa. Ele nem apertou a minha mão quando chegou.”
“Ele estava gelado!”
Louis revirou os olhos diante da sinceridade da irmã. “Está bom”, disse.
“Desculpe ter estragado o seu jantar.”
“Bom, não faça isso de novo. Pra sua informação, eu gosto muito do Peter.”
“Você o ama?”
A pergunta fez Eileen vir da cozinha para a sala com uma expressão de
espanto no rosto. Louis jamais havia feito a ela uma pergunta sequer
remotamente tão pessoal quanto essa. Ela se sentou perto dele no sofá e ficou
mexendo nos dedos do pé, numa posição de quem vai raspar a perna, a ponta do
nariz apoiada de leve num joelho. “Às vezes eu acho que sim”, disse ela. “Mas
eu não faço o tipo super-romântica, sabe. O Milton Friedman é mais o meu
pique. Engraçado você perguntar isso.”
“Não é a pergunta óbvia?”
Ainda inclinada sobre o joelho, ela fechou um olho e ficou estudando Louis.
“Você parece diferente”, disse.
“Diferente do quê?”
Ela sacudiu a cabeça, sem vontade de admitir que nunca lhe ocorrera que seu
irmão mais novo, aos vinte e três anos de idade, poderia já estar familiarizado
com o conceito de amor. Pôs-se a examinar cuidadosamente seus tornozelos,
passando o dedo pelos ossos salientes e arredondados, beliscando os tendões na
parte de trás e balançando o corpo de leve para a frente e para trás. Seu rosto já
estava perdendo a graciosidade. O tempo, o sol e o mestrado em administração
tinham tornado sua cor mais desbotada, uma concebível Eileen de meia-idade
começando de repente a se deixar entrever, como papel de parede velho sob
uma demão de tinta nova. Levantando o rosto, ela olhou para Louis timidamente.
“Legal a gente estar morando na mesma cidade de novo.”
“É.”
Ela ficou mais cautelosa ainda. “Você gosta do seu emprego?”
“Ainda é cedo pra dizer.”
“Dá uma chance pro Peter, Louis. Ele pode parecer um pouco arrogante às
vezes, mas ele é no fundo um cara superfrágil.”
“Por falar nisso”, disse Louis, “ligaram para ele enquanto você estava lá
embaixo. Ela disse que era a vovó, e eu fiquei, sabe, vovó? Que vovó?”
“Ah. A Rita. Ela também tentou me fazer chamá-la de vovó.”
“Eu nem lembrava que ela existia.”
“Isso é porque ela e a mamãe são meio... arggggg.” Botando as duas mãos no
pescoço, Eileen fingiu se estrangular. “Você está sabendo alguma coisa sobre
isso?”
“Sabe quando foi a última vez que eu tive uma conversa de verdade com a
mamãe? O Ferguson Jenkins ainda estava no Chicago Cubs.”
“Bom, parece que o vovô ganhou rios de dinheiro numa determinada época e
aí, quando morreu, ele não deixou nada nem pra mamãe nem pra tia Heidi,
porque estava casado com a Rita. A Rita ficou com tudo.”
“Essa definitivamente não é a melhor forma de conquistar a mamãe.”
“Só que o Peter diz que a Rita na verdade também não ficou com nada. Está
tudo num fundo fiduciário.”
“O que é que o Peter tem a ver com isso?”
“Ele era o agente da Rita. Foi assim que eu o conheci.” Eileen se levantou e foi
até a estante. “A Rita virou new age depois que o vovô morreu. Mandou até
construir uma pirâmide no alto da casa. Agora ela guarda os vinhos no celeiro,
porque acha que eles não vão envelhecer debaixo da pirâmide. Esse aqui é o
livro novo dela.” Eileen entregou a Louis um volume fino, de capa rosa-choque.
“Ela publica numa editora fajuta de Worcester, que manda os exemplares pra
ela todos de uma vez só, num único carregamento, naquelas chatas enormes. Na
última vez em que eu fui à casa dela, os livros estavam todos no celeiro, com os
vinhos. Era como um imenso muro de livros. É por isso que ela precisa de um
agente, e por causa das palestras dela também. Mas, escuta, você quer tortellini
com molho de tomate ou linguine com molho de marisco?”
“O que for mais fácil.”
“Bom, os dois já vêm prontos.”
“Tortellini, então”, disse Louis. O título do livro rosa-choque era Princesa
Itaray: o histórico do caso de uma atlante. Na folha de rosto, a autora havia
escrito: Para Eileen, minha bonequinha, com amor, da vovó. Louis folheou o livro,
que era dividido em capítulos, subcapítulos e sub-subcapítulos, com títulos em
negrito e numerados:

4.1.8 Implicações do desaparecimento do apêndice


externo: uma expulsão reversível do Éden?
Louis leu o texto da orelha. Neste trabalho inventivo, mas erudito, a dra.
Kernaghan defende a hipótese de que a pedra angular da sociedade atlante era a
gratificação universal do desejo sexual e propõe que o apêndice humano, hoje um
órgão vestigial, era nos atlantes não só externo, como altamente funcional. A partir
da regressão hipnótica de uma menina de catorze anos, Mary M., de Beverly,
Massachusetts, a dra. Kernaghan embarca numa instigante exploração da
psicologia atlante, das origens históricas da repressão sexual e do potencial de que
dispõe o mundo moderno para retornar a uma era dourada...
“Ela escreveu dois outros livros antes desse”, disse Eileen.
“Ela é doutora?”
“Ela tem um título honorífico. O Milton Friedman acha que é a coisa mais
idiota que ele já viu na vida, não é verdade, Milton Friedman? O Peter a ajudou
muito, cavou umas duas ou três entrevistas pra ela no rádio e na televisão. Ele
tem contatos em tudo quanto é lugar, e olha que ele só trabalha com isso meio
expediente. Mas depois de um tempo ele teve que dizer pra ela arranjar outra
pessoa. Primeiro porque ela bebe horrores. E depois porque ela fala do vovô
como se ele estivesse vivo e falasse com ela o tempo todo. Você não sabe se é
pra rir ou se é pra levar a sério.”
Louis não mencionou que havia marcado um encontro com a mulher.
“Mas, enfim, foi assim que eu conheci o Peter. Ela tem uma casa linda. Você
provavelmente não lembra, mas nós passamos uma ou duas semanas lá quando
éramos pequenos. Você lembra?”
Louis fez que não.
“Nem eu, na verdade. A Rita ainda não estava na jogada. Quer dizer, ela ainda
era só secretária do vovô. Às vezes eu fico pensando o que nós acharíamos dele
se ele ainda estivesse vivo.”
Louis se sentou em diversas cadeiras e Eileen orbitou em torno dele o resto da
noite. Um prato de comida era algo em relação ao qual ela não demonstrava ter
um senso de responsabilidade particularmente apurado; levantava da mesa e
voltava, depois levantava de novo; sua comida estava a sua mercê. Quando Louis
vestiu o casaco para ir embora, ela, meio sem jeito, deu tapinhas no braço dele e,
mais sem jeito ainda, o abraçou. “Te cuida, tá bom?”
Louis se desvencilhou do abraço. “Como assim ‘te cuida’? Pra onde você acha
que eu vou? Eu estou morando a quatro quilômetros daqui.”
Ela só tirou a mão do ombro dele quando ele saiu porta afora. Pouco depois,
quando ela estava ligando a tv para ver as notícias, alguém bateu na porta. Louis
estava parado no hall, compenetrado, olhando para o lado de cenho franzido. “Eu
acabei de me lembrar de uma coisa”, ele disse. “Acabei de me lembrar da casa
de Ipswich, a casa do pai da mamãe. Nós jogamos pedras...”
“Ah!” O rosto de Eileen se iluminou. “Nos cavalos.”
“Nós jogamos pedras nos cavalos...”
“Para salvá-los!”
“Pra não deixar que eles morressem. Então você também lembra. Nós
achávamos que eles iam morrer se ficassem parados.”
“Foi assim mesmo.”
“Era só isso.” Os ombros curvos de Louis se afastaram dela. “Até mais.”

Na escola secundária, Louis nunca chegou a se tornar tão desencantado a


ponto de sentir vergonha por ter paixão pelo rádio. O rádio era como um animal
de estimação aleijado ou um irmão retardado para o qual ele sempre arranjava
tempo, sem se importar — sem nem sequer perceber — se as pessoas riam dele.
Quando Eileen o via andando em longínquos terrenos baldios, geralmente ele
estava indo ou voltando de lojas de equipamentos eletrônicos refrigeradas e
quase vazias em algum centro comercial semidesativado, onde o único outro
estabelecimento ainda em funcionamento era um restaurante chinês na última de
suas sete vidas, e talvez uma loja de animais despovoada. Da parede de artigos
pré-embalados onde ficavam expostos circuitos integrados, conectores de rf,
micropotenciômetros, garras-jacaré, cabos de extensão e diversos capacitores,
ele selecionava itens do topo de sua lista de objetos de desejo, somava os preços
mentalmente, fazia uma estimativa de quanto teria de pagar de imposto,
entregava os artigos selecionados ao triste funcionário bigodudo que preferia
vender aparelhos de som e, por fim, pagava por eles com as notas miúdas que
recebera de vizinhos em pagamento por pequenos serviços: caiar paredes; lavar
pincéis; cuidar de cachorros. Louis tinha dez anos quando adquiriu um rádio
galena, doze quando comprou um Heathkit e montou seu rádio de ondas curtas,
quatorze quando se tornou wc9hdd e dezesseis quando obteve sua licença geral de
radioamador. O rádio era sua praia, seu interesse. Um garoto tira uma satisfação
que rivaliza com a sexual, ou que talvez se conecte a ela por obscuras vielas
mentais, quando junta alguns simples objetos de metal e cerâmica — objetos que
ele sabe serem simples porque já destruiu experimentalmente vários deles com
chave de fenda e alicate —, liga-os a uma bateria e ouve vozes distantes em seu
quarto. Havia resistores perdidos em cima da colcha de sua cama — resistores
cujo código de cores ele já conhecia de cor um ano antes de aprender sobre
esperma e óvulos — na tarde em que ele perdeu a virgindade. “Ai! O que é
isso?” (Era um resistor de 220 ohms, de filme metálico, com faixa de tolerância
dourada.) Louis também era um dos poucos radioamadores da grande Chicago
dispostos a falar ou codificar em francês e, então, quando as manchas solares
estavam intensas, ele podia ficar ocupado durante metade da noite trocando
medições de temperatura e informações autobiográficas com operadores de
todos os cantos nevosos do Quebec. Coisa que não o tornava um aluno
participativo nas aulas de francês, mas apenas entediado, já que tinha o hábito de
manter em segredo tudo o que sabia fazer realmente bem.
Entrou na Universidade Rice com a intenção de estudar engenharia elétrica e
acabou saindo de lá com um diploma de licenciatura em francês, tendo nesse
meio-tempo gerenciado a ktru, a estação de rádio do campus, durante três
semestres. Uma semana depois de se formar, começou a trabalhar numa
estação de música country local, desempenhando tarefas relativamente atraentes
para cujo abrupto abandono depois de apenas oito meses ele não teria nenhuma
justificativa mais satisfatória a dar a Eileen do que a pergunta: “Por que uma
pessoa sai de um emprego?”.
Os estúdios da wsne, sua nova empregadora, ficavam no subúrbio de
Waltham, num edifício comercial que dava para um trecho dos quarenta acres
dedicados à interseção da Route 128 (“A estrada da tecnologia da América”)
com a Massachusetts Turnpike. O nome do cargo de Louis era operador de mesa,
um trabalho de peão que envolvia operar o leitor de cartuchos, posicionar a
agulha em faixas de discos e fazer a contagem regressiva dos boletins de notícias
da Associated Press, mas ele fazia isso só das seis às dez da manhã, porque só o
locutor do programa da manhã, Dan Drexel, era considerado insubstituível o
bastante para fazer jus a seu próprio operador. Louis sabia que o resto de seu
horário de trabalho, que terminava às três da tarde, deveria ser dedicado a
tarefas estimulantes como digitar informações sobre o trânsito num teclado,
transferir de rolos para cartuchos os comerciais que vinham de agências, redigir
comunicados de utilidade pública e avaliar as respostas enviadas pelos cada vez
mais escassos ouvintes da emissora na tentativa de ganhar uma variedade de
prêmios mixurucas. Sabia também que receberia como pagamento o salário
mínimo federal.
Uma das razões pelas quais ele não tivera de enfrentar muitos concorrentes ao
se candidatar àquele emprego era a expectativa de que o pedido de renovação de
licença que a wsne teria de fazer em junho não seria tratado como uma simples
questão rotineira. Cheques de pagamento de salários eram emitidos com
instruções precisas a respeito de quando tentar e quando não tentar descontá-los.
A insaciável folha de pagamento havia atacado o principal estúdio de produção,
arrancando equipamentos de som, painéis acústicos e tudo mais que tivesse valor
de revenda e deixando ásperos retângulos vazios de madeira compensada
expostos nos móveis de fórmica e manchas de cola cor de caramelo nas paredes.
Uma nova estação fm universitária havia comprado toda a coleção de discos da
wsne, salvo a seção juvenil (as obras completas dos Ursinhos Carinhosos em lp;
os Muppets; a trilha sonora original do filme do ursinho Pooh da Disney ; os
Flintstones recitando tabuadas) e os discos de humor. Os sulcos destes últimos
estavam sendo rapidamente desgastados pelo matinal “Notícias com algo a
mais” da wsne, que intercalava notícias e comentários com “os números
humorísticos mais engraçados de todos os tempos”.
O dono e diretor da wsne era um homem chamado Alec Bressler. Alec era
um emigrado russo de ascendência germânica que supostamente tinha remado
num bote de borracha de Caliningrado até a Suécia em meados da década de
sessenta. Embora a única tarefa oficial de que se incumbisse fosse gravar o
editorial diário, ele estava sempre zanzando pelos estúdios, observando com
imensa satisfação que a eletricidade estava fluindo por todos os circuitos
necessários, que aquela emissora que pertencia a ele estava de fato funcionando
e transmitindo os programas escolhidos por ele. Cinquentão e ligeiramente
barrigudo, Alec tinha um cabelo que era como o Bloco do Leste, meio
depauperado e lento para crescer, e a pele acinzentada por um vício em cigarro
ao qual ele tentava resistir apenas a ponto de também se viciar em pastilhas de
nicotina. Usava suéteres finos e calças desbotadas, justas nas coxas e curtas
demais, todas aparentando ser velhas o bastante para terem fugido com ele no
lendário bote de borracha.
Louis logo percebeu que uma das funções que se esperava que ele cumprisse
era servir de plateia particular para Alec Bressler. “Você gosta de expressar
opiniões?”, o dono lhe perguntou em seu segundo dia de trabalho, quando Louis
estava imprimindo declarações para patrocinadores. “Eu acabei de expressar
uma ótima. Comentei sobre um acontecimento recente. Você consegue
adivinhar qual foi?”
O rosto de Louis adquiriu uma expressão atenta, de quem está pronto para ser
entretido. “Me conte”, disse.
Alec se sentou no ar e, esticando os braços para trás, apalpou o vazio até
encontrar uma cadeira para puxar. “Aquele acidente de avião horrível que
aconteceu no fim de semana. Esqueci em qual estado do Meio-Oeste, começa
com ‘I’. Duzentos e dezenove mortos, nenhum sobrevivente. A fuselagem
completamente de-sin-te-gra-da. Eu questionei o valor de notícia desse
acontecimento. Com todo o respeito pelas famílias dos mortos, por que nós temos
que ver isso na televisão? Nós já vimos no mês passado, por que ver de novo? Se
as pessoas querem ver acidentes, por que nós não mostramos mísseis da Marinha
e aviões da Força Aérea, que caem toda vez que são testados? Se as pessoas
querem ver mortes, então vamos levar as câmeras para os hospitais, hã? Vamos
ver como a maioria das pessoas morre. Eu disse o que nós poderíamos ver em
vez dos noticiários de tv, que deviam ser boicotados. Tem M*A*S*H, no mesmo
horário, e também Cheers, Caras & Caretas e Matt Houston. E melhores
comerciais também. Vamos ver esses programas. Ou vamos ler um livro, mas
eu não enfatizei isso não. Já falo demais para as pessoas lerem livros.”
“Isso não é meio que uma causa perdida?”, disse Louis.
Alec segurou os braços da cadeira em que estava sentado e deslizou o traseiro
mais para trás, para melhor poder se inclinar para a frente e apelar para
qualquer minúscula parte da atenção de Louis a que porventura ainda não tivesse
apelado. “Eu comprei esta emissora faz oito anos”, disse. “Ela tinha uma
cobertura muito forte de notícias locais, tocava muita música popular e cobria
também os jogos dos Boston Bruins. Nesses oito anos eu tenho tentado tirar a
política da wsne. É o meu ‘sonho americano’, uma estação de rádio onde as
pessoas falem o dia inteiro (nada de música, isso é trapacear!) e não digam uma
palavra sobre política. Esse é o meu sonho americano. Rádio com gente falando
o tempo inteiro e sem ideologia. Vamos falar sobre arte, filosofia, humor, vida.
Vamos falar sobre ser um ser humano. E quanto mais perto eu chego do meu
objetivo — você pode ver isso no gráfico, Louis —, quanto mais perto eu chego
do meu objetivo, menos gente me ouve! Agora nós temos pela manhã uma hora
no total dedicada a acontecimentos recentes, e as pessoas ouvem por causa dessa
uma hora de notícias. Todo mundo sabe que Jack Benny é mais divertido que os
discursos sobre armas feitos em Genebra. Mas tire Genebra e as pessoas param
de ouvir Jack Benny. É assim que as pessoas são. Eu sei disso. Tracei num
gráfico.”
Juntando os dedos, ele extraiu um cigarro de dentro de um maço de Benson &
Hedges. “Quem é a garota?”, perguntou, curvando-se na direção de um
instantâneo guardado dentro de uma gaveta semiaberta. A jovem da foto tinha
olheiras escuras e cabeça raspada.
“Uma pessoa que eu conheci em Houston”, disse Louis.
Alec inclinou a cabeça para a frente uma vez e depois outra, como quem diz:
“Está certo. Já não está mais aqui quem perguntou”. Em seguida, repetiu o gesto
de novo, enfaticamente, e saiu da sala sem dizer mais uma palavra.
Na sexta-feira, depois do trabalho, Louis entrou no seu Civic de seis anos de
idade, desceu a Massachusetts Turnpike até Boston e estacionou no último andar
de uma garagem que tinha as dimensões e o perfil de um porta-aviões. Um vento
leste conferia um ar funesto de gesto derradeiro ao ritual que Louis cumpria ao
sair do carro e que incluía olhar para dentro do carro pela janela do motorista,
apalpar as chaves no bolso da calça, levantar a alavanca da porta trancada do
motorista, contornar lentamente o carro e checar a porta do passageiro, apalpar
as chaves de novo e lançar um último, cuidadoso e preocupado olhar para o
carro. Louis iria se encontrar com Rita Kernaghan no Ritz-Carlton dali a duas
horas.
Uma frente quente que avançava em direção à cidade havia começado a
coalhar o azul límpido do céu. No bairro de North End, uma esguia bota de neon
chamada itália chutava uma enorme pedra de neon chamada sicília. Era
impossível escapar às palavras mercado humano. Os italianos que moravam ali
— velhinhas que estacavam nas calçadas como insetos em pausas irracionais,
seus vestidos estampados com golas frouxas; jovens donos de carros com
penteados que lembravam peles de marta — pareciam acossados por um vento
que os turistas e intrusos endinheirados não podiam sentir, um vento sociológico
carregado da poeira úmida da renovação, tão frio quanto o interesse da
sociedade por molhos vermelhos com orégano e Frank Sinatra, tão intenso quanto
a fome de Boston por imóveis em bairros brancos e bem localizados. mercado
humano. mercado humano. Turistas do Meio-Oeste galgavam o alto da colina.
Um par de jovens japoneses passou correndo por Louis, seus dedos dentro de
guias Michelin verdes, enquanto ele se aproximava da Old North Church, cujo
cenário entulhado aniquilou imediata e silenciosamente o quadro mais arborizado
que ele havia formado antes de vê-lo. Ao circundar um cemitério antigo, Louis
pensou em Houston, onde o verão já tinha chegado, onde as ruas do centro
cheiravam a pântanos de ciprestes e onde os carvalhos deitavam folhas verdes no
chão, e se lembrou de uma conversa que tivera lá numa noite úmida — Você vai
dar sorte da próxima vez. Eu prometo que vai. Nos prédios em frente ao
cemitério, ele viu interiores brancos, aparelhos de entretenimento tão
espalhafatosos quanto equipamentos de uti, enormes brinquedos de cores
primárias no meio de salas desertas.
Na Commercial Street eram centenas e centenas de janelas, todas austeras,
quadradas e sem enfeites, elevando-se até onde a vista se dispusesse a alcançar.
Todas verdes, opacas, vigilantes e excludentes. Não havia lixo no chão para o
vento carregar, nada em que os olhos pudessem pousar a não ser paredes de
tijolo novas, calçadas de concreto novas e janelas novas. Parecia que a única
cola que impedia aquelas paredes e ruas de desabarem, a única força que
preservava aquelas superfícies limpas, impenetráveis e sem inspiração, eram
escrituras e aluguéis.
De dentro do Faneuil Hall, um refúgio de sentido e propósito para turistas
cansados, soprava um cheiro de gordura: de hambúrguer, marisco frito, croissant
fresco, pizza quente, cookies de chocolate, batata frita, carne de caranguejo com
queijo derretido, feijão cozido, pimentão recheado, quiches, nuggets orientais
crocantes com molho tamari. Louis entrou e saiu de uma das galerias para se
apropriar de um guardanapo e assoar o nariz. A caminhada e o ar frio o haviam
entorpecido de tal forma que ele tinha a sensação de que ao anoitecer a cidade
inteira não passava de uma dura projeção da solidão de um indivíduo, uma
solidão tão profunda que abafava os sons — exclamações de alerta, motores de
caminhão, até os alto-falantes do lado de fora de lojas de eletrodomésticos — a
ponto de ele mal conseguir ouvi-los.
Na Tremont Street, sob o olhar de janelas agora transparentes o bastante para
revelar cômodos despovoados cheios da tecnologia da riqueza e da mobília da
riqueza, Louis se viu penando para abrir caminho no meio de uma multidão em
passeata contra o aborto. Transbordando das calçadas para a rua, os
manifestantes marchavam em direção ao prédio da Assembleia Legislativa.
Todos pareciam à beira de lágrimas raivosas. As mulheres, algumas vestidas
como aeromoças e outras como professoras de ginástica, seguravam as hastes de
seus cartazes rigidamente na vertical, como que para envergonhar a leveza com
que outros tipos de manifestantes carregavam cartazes. Os poucos homens na
multidão seguiam ao lado delas arrastando os pés, de mãos e olhos vazios, seus
próprios cabelos desorientados pelo vento. Pelo modo como tanto homens quanto
mulheres se mantinham colados uns aos outros enquanto marchavam,
esquivando-se carrancudamente de outros pedestres, estava claro que eles
tinham vindo para o Boston Common esperando sofrer uma perseguição ativa, o
equivalente moderno de leões famintos e uma turba embrutecida de
espectadores ímpios. Interessante, então, que aquele vale da sombra fosse
ladeado de restaurantes, hotéis de luxo, lojas de malas, janelas frias.
Louis emergiu do fim da passeata com sua gravata no pescoço. Tinha dado o
nó nela enquanto se desviava dos emblemas de parem com a chacina.
Ele precisou de mais de uma hora na meia-luz do bar do Ritz, sentado numa
mesa em que todo mundo esbarrava, para se convencer de que Rita Kernaghan
tinha lhe dado o cano. O gim-tônica que ele havia pedido deixou sua cara
instantaneamente vermelha, e a única conversa que vinha à tona com certa
frequência no mar de vozes concorrentes dizia respeito a eunucos. Apesar de não
ter demorado muito a se dar conta de que a palavra era unix, ele continuou
ouvindo eunucos: a vantagem de usar eunucos, com eunucos você pode, eu
odiava eunucos, eu tinha uma resistência a eunucos, o crescente monopólio dos
eunucos. “Eu estou tão enjoado”, Louis murmurava em voz alta de dez em dez
minutos. “Eu estou tão enjoado.” Por fim, pagou a conta e saiu para o lobby,
com a intenção de procurar um telefone. Teve de contornar um trio de
executivos que mais pareciam trigêmeos idênticos. Suas bocas se mexiam como
as bocas de bonecos de látex.
Você está sentindo?
Não daria pra sentir aqui.
Você está me chamando de mentiroso?
Eram sete e dez. Louis ligou para o serviço de informações e, quando a
telefonista lhe perguntou qual era a cidade, ele disse: Ipswich. O aparelho de
telefone estava impregnado de um perfume ao qual ele talvez fosse alérgico, tão
nocivo foi o efeito sobre suas membranas nasais. Ligou para o número de Rita
Kernaghan, deixou o telefone tocar oito vezes e estava prestes a desligar quando
um homem atendeu e disse com uma voz baixa, mortiça e institucional: “Aqui
fala o oficial Dobbs”.
Louis pediu para falar com a sra. Kernaghan.
Eunucos, perfume, fetos. Dobbs. “Quem está falando?”
“É o neto dela.”
Louis ouviu o ruído abafado de uma mão tapando o bocal do outro lado da
linha e uma voz ao fundo, depois silêncio. Por fim, um outro homem veio ao
telefone, um tal sargento Akins. “Nós vamos precisar que você nos dê algumas
informações”, disse ele. “Como você já deve saber, houve um terremoto aqui. E
não será possível você falar com a sra. Kernaghan, porque ela foi encontrada
morta algumas horas atrás.”
Nesse momento, uma voz gravada começou a exigir mais moedas, que Louis,
atrapalhado, pôs-se a catar nos bolsos.
2.

Como Roma, Somerville foi construída sobre sete colinas. O apartamento que
Louis havia encontrado para dividir ficava em Clarendon Hill, a mais a oeste das
sete colinas e, por falta de concorrência, a mais verde de todas. Em outros pontos
da cidade, as árvores tendiam a ficar escondidas atrás de casas ou confinadas em
buracos quadrados nas calçadas, onde crianças arrancavam seus ramos.
No início do século, Somerville havia sido a cidade mais densamente povoada
do país, uma façanha demográfica realizada construindo-se ruas estreitas e
dispensando-se parques públicos e gramados na frente das residências. A
topografia era incrustada de casas de três andares, com fachadas revestidas de
ripas de madeira. Tinham janelas salientes de formatos poligonais ou varandas
precárias que se empilhavam umas sobre as outras nos três andares, e eram
pintadas em combinações de cores como azul e amarelo, branco e verde,
marrom e marrom.
As ruas de Somerville estavam sempre cheias de densas filas de carros que se
pareciam menos com carros do que com sapatos sem par. Eles se punham em
marcha pesadamente para o trabalho de manhã ou se moviam para a frente e
para trás sobre as calçadas, pressionados pela limpeza quinzenal das ruas. Mesmo
no início da década de oitenta, quando a economia de Massachusetts estava
vivenciando um Milagre, com bilhões de dólares fluindo do Pentágono para as
antigas cidades fabris do estado, Somerville continuou a abrigar principalmente
os membros mais modestos da hierarquia dos calçados. Havia botinas
manchadas de sal e surrados escarpins bicolores de cores infelizes estacionados
em frente às portas da classe média irlandesa e italiana; Adidas gastos na entrada
das casas de mulheres solteiras; botas punks e ofertas especiais do Exército da
Salvação perto dos espaços habitados por aqueles que acreditavam que a cidade
tinha uma rebeldia chique; Keds sem cadarço e avariados nos quintais dos fundos
da contracultura decadente; calçados informais largos e confortáveis de
materiais macios e enrugados e solas de espuma de borracha marcando as
residências de corretores de imóveis e aposentados; maltratados sapatos de
camurça estudantis sob os beirais de maltratadas casas de estudantes; alguns
mocassins Gucci com borlas no estacionamento da prefeitura e lustrosas botas
tacheadas, delicadas sapatilhas e tênis estilo Flash Gordon nas entradas das casas
de pais que ainda tinham filhos de dezoito e vinte anos morando com eles.
Perto do fim dos anos oitenta, pouco antes de a expansão armamentista da
nação desacelerar, de os bancos de Massachusetts começarem a falir e de se
descobrir que o Milagre era menos um Milagre que uma ironia e uma fraude,
uma nova casta de carros invadiu Somerville. A nova casta parecia
impermeabilizada. Pois, assim como a Reebok e seus imitadores haviam
finalmente conseguido fazer couro de verdade parecer inteiramente artificial,
Detroit e seus equivalentes estrangeiros haviam conseguido tornar metal e vidro
de verdade indistinguíveis de plástico. O que era interessante na nova casta,
contudo, era o fato de ela ser nova em folha. Numa cidade onde fazia décadas
que, quando um carro vinha para casa pela primeira vez, quase sempre seu
preço estava escrito com giz de cera amarelo no para-brisa, de repente as
pessoas começaram a ver restos de adesivos grudados nas janelas traseiras. Não
sendo burros, os senhorios locais começaram a duplicar o preço dos aluguéis nas
renovações de contrato; e Somerville, próxima demais de Boston e de Cambridge
para ser o paraíso dos inquilinos para sempre, atingiu a maioridade.
Louis tinha um quarto num apartamento de dois quartos na Belknap Street,
alugado a um aluno de pós-graduação em psicologia da universidade de Tufts. O
estudante, que se chamava Toby, havia prometido a Louis: “Os nossos caminhos
nunca vão se cruzar”. A porta do quarto de Toby sempre estava aberta quando
Louis chegava do trabalho, continuava aberta quando ele ia dormir e estava
fechada quando ele saía de casa no escuro pouco antes de amanhecer. As
prateleiras da geladeira de Toby eram divididas ao meio, verticalmente, por
tábuas de pinho. O tapete do banheiro também era feito de madeira de pinho, boa
para prevenir fungos e para dar topadas com os dedos dos pés. A sala tinha duas
poltronas de assento largo e um sofá, todos bege, e ainda uma estante bege
completamente vazia salvo por alguns catálogos de telefone, uma caixa de
Scrabble, um lustroso vaso de flores bege feito de genuína cinza vulcânica do
monte santa helena sobre uma base de plástico e recibos de compra da estante e
dos outros móveis no total de US$ 1758,88.
Louis ficava a maior parte do tempo em seu quarto. O casal de trinta e poucos
anos que morava no apartamento em frente a sua janela tinha um piano e com
frequência praticava arpejos na hora em que ele estava fazendo sua refeição
noturna de sanduíches, cenouras, maçãs, cookies e leite. Mais tarde os arpejos
cessavam e ele lia cuidadosamente o Globe ou a Atlantic, de cabo a rabo, sem
pular nada. Ou sentava-se de pernas cruzadas na frente de sua televisão e assistia
a partidas de beisebol com tanta concentração e o cenho tão franzido — até
mesmo durante os comerciais de cerveja — quanto assistiria a noticiários sobre
guerra. Ou se plantava sob a luz forte do lustre do teto e estudava as paredes
bege, o teto ladrilhado e o piso de madeira de seu quarto de todos os ângulos
possíveis. Ou fazia a mesma coisa no quarto de Toby .
Na sexta-feira à noite, depois que a polícia de Ipswich terminou de colher as
informações que queria dele pelo telefone, Louis voltou para Somerville e ligou
para Eileen. “Você não vai acreditar no que eu acabei de ver nas notícias”, disse
ela. O que Eileen acabara de ver num flash ao vivo era a ambulância que estava
transportando o corpo da avó postiça dos dois. Eileen achava que tinha sentido o
terremoto quando estava estudando, mas pensara que fossem caminhões. Disse
que aquele era o segundo pequeno terremoto que ela sentia em Boston em dois
anos.
Louis disse que não tinha sentido nada.
Eileen contou que os pais deles, por causa da morte de Rita, viriam de avião
para Boston no domingo e ficariam hospedados num hotel.
“Eles vão gastar dinheiro com hotel?”, Louis perguntou.
Na manhã seguinte, ele foi até a farmácia da esquina comprar jornal. Tinha
chovido a noite inteira e as nuvens ainda continuavam bastante carregadas, mas o
céu havia clareado momentaneamente e a iluminação fluorescente dentro da
farmácia tinha a mesma cor e intensidade que a luz do lado de fora. O Herald de
sábado estampava na primeira página:

TERREMOTO!
DESTRUIÇÃO E
MORTE EM IPSWICH
Guru new age é vítima

O terremoto também era a principal manchete do Globe (tremor sacode cabo


ann; uma morte), que Louis começou a ler enquanto caminhava de volta para
casa. Absorto, demorou a notar um senhor alto, de cardigã e botas de borracha
desafiveladas, que estava polindo seu sapatênis de quatro portas, de fabricação
nacional, com uma toalha de mão. Avistando Louis, ele veio para o meio da
calçada, bloqueando o caminho. “Lendo o jornal, não é?”
Louis não negou.
“John”, o velho arregalou os olhos. “John Mullins. Você mora aqui ao lado, não
é? Eu vi você se mudando pra cá. Eu moro bem aqui, no primeiro andar, moro
aqui há vinte e três anos. Nasci em Somerville. Meu nome é John. John Mullins.”
“Louis Holland.”
“Louis? Lou? Você se importa que eu chame você de Lou? Você está lendo
sobre o terremoto, não é?” De repente, o velho parecia ter mordido um limão ou
um ovo podre, tão feia foi a careta que ele fez. “Terrível o que aconteceu com
aquela senhora. Terrível. Eu senti o chão se mexer, sabe. Eu estava no
Foodmaster, sabe, ali no outro quarteirão, é um bom mercado o Foodmaster.
Você faz compras lá? É um bom mercado, mas o que eu estava... o que eu
estava... ah, sim, eu estava dizendo que senti o chão tremer. Até pensei que fosse
eu, sabe, pensei que fossem os meus nervos. Mas depois eu fui ver as notícias e
aí, veja você, tinha sido um tremor. É assim que eles chamam, sabe, tremor.
Graças a Deus não foi mais grave. Graças a Deus. Mas você é o quê, você é
estudante?”
“Não, eu trabalho numa estação de rádio”, Louis respondeu devagar.
“Tem muito estudante que mora por aqui. Alunos da Tuff, na maioria.
Também, a universidade fica pertinho daqui, é só subir a rua. É uma garotada até
tranquila, eu acho. O que você acha? Você está gostando daqui? Está gostando de
Somerville? Eu acho que você vai gostar daqui. Eu falei pra você que senti o
terremoto?”
John Mullins deu um tapa na própria testa. “Claro que falei. Claro que falei.” O
encontro estava obviamente se tornando demais para ele. “Está bem então, Lou.”
Ele apertou o ombro de Louis e foi cambaleando na direção do carro.
Ao entrar em casa, Louis ouviu os arpejos de sua vizinha soprano começarem,
enquanto as notas fundamentais eram tocadas no piano numa escala cromática
ascendente. Sentou-se no chão nu de seu quarto e abriu o jornal. “Que droga”,
ouviu nitidamente John Mullins dizer a algum outro vizinho. “Eles tinham dito que
não ia mais chover.”
Nem o Globe nem o Herald conseguiam esconder sua satisfação por ter uma
morte — a de Rita Kernaghan — para justificar as manchetes em letras
garrafais para um pequeno tremor local. O sismo, com magnitude de 4,7 graus e
epicentro a sudeste de Ipswich, havia ocorrido às 16h48 e durara menos de dez
segundos. Os danos a propriedades tinham sido tão insignificantes que a
fotografia de um morador de Ipswich apontando para uma rachadura na parede
de sua copa havia recebido uma reprodução de tamanho considerável em ambos
os jornais. Sendo o jornal mais intelectualizado dos dois, o Globe também trazia
textos sobre a história dos terremotos em Boston, sobre a história dos terremotos e
sobre a história de Boston, incluindo uma linha do tempo especial que revelava
(entre outras coisas) que os dois últimos tremores significativos sofridos pela
cidade haviam coincidido com o fim do segundo (1944) e do terceiro (1953)
mandatos de Henry Cabot Lodge Jr. no Senado americano.
Outro artigo na página 16 relatava as últimas movimentações de um pastor
protestante chamado Philip Stites, que seis meses antes, segundo o Globe, havia
transferido sua Igreja da Ação em Cristo de Fay etteville, na Carolina do Norte,
para Boston, com a intenção expressa de “erradicar o aborto no estado de
Massachusetts”. Os seguidores de Stites vinham combatendo o assassinato de
fetos se plantando diante das portas de clínicas. No final da tarde de sexta-feira,
pessoas de consciência oriundas de trinta e um estados e territórios haviam
realizado a terceira marcha de protesto do grupo no centro de Boston; numa
subsequente entrevista concedida à televisão, Stites declarou que o terremoto por
pouco não havia acertado “o epicentro da carnificina”, querendo se referir à
Assembleia Legislativa. Deus (ele deu a entender) estava zangado com
Massachusetts. Como a Igreja da Ação em Cristo, Ele não descansaria enquanto
a chacina de não nascidos não tivesse cessado. “Procurem por mim em todos os
lugares”, Stites disse.
“Eu estava no Foodmaster”, John Mullins disse por cima da chuva e dos
arpejos. “Pensei que fossem os meus nervos velhos.”

Vítima era escritora


Rita Damiano Kernaghan, cuja morte foi a única registrada no terremoto de
ontem em Ipswich, era uma palestrante popular no circuito new age local e
autora de três livros sobre temas inspiradores. Tinha 68 anos.
Kernaghan, no entanto, talvez fosse mais conhecida pela batalha que
vinha travando desde 1986 com o município de Ipswich em virtude da
estrutura piramidal que erigiu no telhado de sua residência, uma antiga casa
de fazenda construída dentro dos limites de Ipswich em 1765 e ampliada em
1823 sob a supervisão de George Stonemarsh, um dos mais importantes
arquitetos da era pós-revolucionária.
Em 1987, a assembleia dos eleitores de Ipswich admitiu que um erro de
transcrição havia resultado na concessão de uma licença para a construção
da pirâmide e tomou medidas para garantir retroativamente o cumprimento
do código local relativo à preservação de prédios históricos, ordenando a
remoção da pirâmide. Kernaghan entrou com uma ação contra a cidade em
1988 e mais tarde rejeitou um acordo extrajudicial segundo o qual o
município se comprometia a arcar com as despesas da retirada da pirâmide
e da restauração da casa ao seu traçado original de 1823.
Kernaghan sustentava que seu direito de construir a pirâmide — uma
forma geométrica que alguns acreditam ser capaz de exercer influências
curativas e preservadoras — era uma questão concernente à Primeira
Emenda à Constituição, fundamentada na separação entre Igreja e Estado.
O caso, ainda em julgamento, tornou-se uma causa célebre na comunidade
new age dos subúrbios do norte.
Kernaghan, cujas obras publicadas incluem Começando a vida aos 60,
Filhos das estrelas e o recém-lançado Princesa da Itália, era viúva do
advogado John Alfred Kernaghan, de Boston, e deixa uma enteada, Melanie
Holland, de Cleveland.

As notas fundamentais da soprano ficavam cada vez altas, uma lenta espiral
ascendente de histeria. Louis franzia o cenho, com o dedo mindinho apoiado na
ponte de seus óculos, o polegar no queixo e a ponta dos outros dedos na testa. A
coisa para a qual ele não conseguia parar de olhar era o nome de sua mãe. Não
porque o Globe a tinha posto em Cleveland, mas pela simples presença pessoal e
ressonante do nome impresso no papel. Melanie Holland: aquela era a mãe dele,
estranhamente reduzida. Duas palavras num jornal de Boston.
Ainda de cenho franzido e começando a tremer, como se, quando os pingos da
chuva batiam nas vidraças atrás dele, a friagem imediatamente invadisse o
quarto, Louis examinou de novo o artigo em destaque sobre o reverendo Philip
Stites. “Os manifestantes subiram a Tremont Street e atravessaram o Boston
Common até a entrada do prédio da Assembleia Legislativa”, dizia o artigo. A
descrição dos fatos era compatível com o que Louis tinha visto da passeata —
compatível de um modo profundo, pois o artigo, como a memória, como os
sonhos, reduzia o ocorrido a uma ideia, iluminada não pelo sol poente nem pelos
postes de iluminação pública, mas por sua própria luz, na escuridão da cabeça de
Louis: ele viu a ideia porque sabia que era aquilo que tinha acontecido, porque
sabia que era assim que as coisas haviam se passado. E, portanto, pareceu-lhe
que só poderia estar chovendo naquela manhã. A chuva tinha de estar ali para
tornar o dia de hoje diferente, para impedir qualquer retorno a ontem à tarde e às
condições específicas de atmosfera e luz nas quais aqueles manifestantes haviam
marchado, a azulada claridade do norte sobre a Grande Boston quando o
terremoto aconteceu. A chuva tornava aquela manhã real, tão inabalavelmente
presente que era difícil acreditar que de fato tinha acontecido um terremoto, que
aqueles incidentes haviam de fato ocorrido em algum lugar que não os jornais.
Contra uma das paredes do quarto estavam empilhadas as caixas de papelão
com o equipamento de rádio de Louis, que ele havia lealmente transportado de
Evanston para Houston e de Houston para Boston e jamais desempacotado.
Enfiou a unha por baixo da grossa fita adesiva cinza que mantinha fechada a
caixa que estava no alto da pilha. Faltaram-lhe forças. Cambaleou até o futon,
um pé escorregando no Globe aberto, desabou pesadamente e ali ficou, de
barriga para baixo, até bem depois de os arpejos cessarem.
Na noite de domingo jantou com sua família num restaurante de frutos do mar
no porto. Ficou surpreso ao saber que sua mãe e Eileen não tinham a menor
dúvida de que a queda que causara a morte de Rita Kernaghan se devia menos
ao terremoto do que ao fato de ela estar completamente bêbada na ocasião. De
qualquer modo, elas a conheciam e ele não. Corria à boca miúda que ela havia
caído de uma banqueta do bar, o que, embora parecesse uma piada de mau
gosto, aparentemente era a verdade literal. Ela seria cremada em cerimônia
reservada na manhã de quarta-feira, suas cinzas atiradas ao mar de um píer de
Rockport na tarde do mesmo dia e sua vida celebrada no dia seguinte num
serviço fúnebre, ao qual para comparecer Louis deveria tirar uma folga do
trabalho. Sua mãe, obviamente impaciente com todo o processo de descarte da
falecida, se referia ao serviço fúnebre como “a coisa na quinta-feira”.
Foi só um pouco antes da “coisa” que Louis voltou a ver seus pais. Tinha
operado a mesa para Dan Drexel até as dez da manhã e depois, possivelmente
um pouco magoado por sua mãe não ter planejado nenhum outro encontro
familiar nem demonstrado qualquer interesse em saber onde ele estava morando
e trabalhando (embora “mágoa” talvez não fosse a palavra certa para descrever
o que ele sentia em relação a uma família cujos membros raramente tinham os
recursos necessários para se interessar ou fingir se interessar pela vida de alguém
que não eles próprios, sendo “decepção”, “amargura” ou “tristeza vaga”
palavras talvez mais próximas), foi direto para o hotel onde eles estavam
hospedados, um prédio mais ou menos novo, mais ou menos alto em frente ao rio
em Cambridge, logo depois da Harvard Square. Mais tarde viria à tona que sua
mãe havia feito seu pai passar duas tardes na biblioteca Widener para que eles
pudessem pedir reembolso pela parte dele nas despesas com a viagem. Em
frente ao quarto deles, no final de um corredor silencioso, Louis levantou a mão,
mas não bateu. Abaixou a mão de novo.
“Eileen, essa não é a questão.”
“Então qual é a questão?”
“A questão é demonstrar um pouco de consideração pelos meus sentimentos e
tentar entender as coisas do meu ponto de vista. Essa foi uma semana
extremamente difícil — Foi sim! Foi sim! — extremamente difícil! Então você
poderia pelo menos ter tido a consideração de esperar...”
“Você está feliz por ela ter morrido! Você está feliz!”
“Isso é uma coisa muito (murmúrios) pra qualquer pessoa, (murmúrios) pra
sua mãe. Uma coisa bem pouco cristã.”
“É verdade.”
“Eu agora tenho que me arrumar.”
“É verdade. Você está feliz!”
“Eu preciso me arrumar. Embora eu não consiga deixar de pensar que... bom,
(murmúrios) um rapaz que faria uma namoradinha casual...”
“Uma o quê?!” A voz estridente de Eileen ficou duas vezes mais estridente.
“Uma namoradinha casual chegar ao ponto...”
“Uma...!? Do que é que você está falando? Isso não tem nada a ver com o
Peter. E pra sua informação...”
“Ah, Eileen.”
“Pra sua informação...”
Nesse momento, Louis, com um gesto de desdém, deu duas ou três pancadas
na porta. Eileen o deixou entrar. Lágrimas haviam borrado o traço de delineador
embaixo dos olhos.
“Quem é?”, a mãe perguntou de dentro do banheiro.
“É o Louis”, disse Eileen, amuada.
“Oi, Louis, eu estou me vestindo.”
Eileen foi para perto da janela, pela qual ela via, para lá do rio, a sua
faculdade de administração. Ela estava usando o mesmo suéter grosso da última
vez em que Louis a vira. A julgar pela aparência do suéter agora, ela devia estar
dormindo com ele.
“Cadê o papai?”, Louis perguntou.
“Está na piscina. O que você veio fazer aqui tão cedo?”
Louis pensou um instante. “O que você veio fazer aqui tão cedo?”
Eileen fez uma medonha careta adolescente para ele, língua e gengivas à
mostra, e se virou de frente para a janela. Louis coçou a orelha, pensativo.
Depois, mudando de estratégia, começou a perambular pelo quarto,
bisbilhotando. Em cima de uma das muitas superfícies de bagagem do quarto de
hotel, largado como correspondência inútil com molhos de chaves e embalagens
abertas de Trident, ele encontrou um par de documentos de aparência oficial, o
relatório da polícia e o relatório do médico-legista, em cujos versos sua mãe
vinha anotando nomes e números de telefone. Ele examinou a face oficial dos
documentos, enquanto Eileen esfregava cuidadosamente a pele em volta dos
olhos e a mãe pontuava longos silêncios de banheiro com ruídos de quem está se
vestindo e se arrumando. O relatório da polícia consistia principalmente no
depoimento da empregada haitiana de Rita Kernaghan, que morava na casa e se
chamava Thérèse Mougère.

Às 15h45 do dia 6 de abril, Mougère terminou suas tarefas da tarde e botou


três laranjas e um romance em francês para moças dentro de sua bolsa. Ela
estava incumbida de levar a falecida de carro até o centro de Boston às 17h
e declarou que estava levando o romance para ler enquanto estivesse à
espera no estacionamento. Como tinha permissão para assistir à televisão de
16h às 17h todas as tardes, Mougère se recolheu aproximadamente às 15h50
ao seu quarto, localizado no final de um pequeno corredor contíguo à
cozinha. A falecida estava falando ao telefone da cozinha quando Mougère a
viu pela última vez viva. Pouco antes do fim do programa a que Mougère
estava assistindo (apurou-se que o programa era Jornada nas Estrelas, que
termina às 16h58), a casa começou a tremer. A janela do quarto de
Mougère chacoalhou e uma das vidraças quebrou. Mougère ouviu “um
estrondo”. As luzes piscaram e a televisão ficou sem imagem por alguns
instantes. Mougère foi até a cozinha e viu que vasos tinham caído da mesa e
que as portas dos armários estavam abertas. Na sala de jantar, um prato e
alguns vasos haviam caído do aparador. Mougère foi até a sala de estar.
Pequenos objetos haviam caído das mesas e de trás do bar vinha um cheiro
de uísque. Mougère subiu a escada chamando o nome da falecida. Como
não ouviu nada, ficou assustada e vasculhou todos os cômodos de cima.
Desceu, vasculhou novamente a sala de estar e encontrou o corpo da
falecida atrás do bar. Sangue, cacos de vidro e uma grande poça de uísque
estavam presentes. Uma banqueta do bar estava caída de lado no chão.
Mougère telefonou para a polícia. Dobbs e Akins chegaram ao local às
17h35. Verificou-se que Mougère não havia tocado no corpo. Quando se
conjecturou que a falecida tivesse caído da banqueta enquanto tentava
alcançar uma garrafa, Mougère declarou que costumava guardar as
garrafas de uísque das marcas preferidas da falecida numa prateleira alta
para desencorajar o consumo. Mougère declarou também que um espírito
familiar chamado Jack habitava a casa e havia causado a morte e a
destruição. Essa e outras teorias sobrenaturais foram descartadas. A morte
parece ter sido de natureza acidental, com toda a probabilidade causada pelo
moderado terremoto ocorrido às 16h48. Perguntas relativas à condição de
residente ilegal de Mougère e ao modo como ela obteve uma carteira de
motorista válida no estado de Massachusetts foram encaminhadas ao serviço
de imigração. O serviço de imigração foi informado de que o médico-
legista não mais requer a presença de Mougère no estado.

Com mais pressa, porque sua mãe agora estava fazendo ruídos de quem está
prestes a sair do banheiro (cliques de estojos se fechando, a água da torneira
sendo aberta e fechada bruscamente), Louis correu os olhos pelo relatório do
médico-legista do condado de Essex, que apontava como causa da morte um
“extenso trauma de contragolpe” e atribuía o trauma a um acidente no qual a
falecida, que media 1,58 m, caíra de um banco de 97 cm de altura, resultando
numa queda com altura total de 2,55 m, uma queda suficiente, em combinação
com o piso de mármore, para achatar a parte frontal esquerda do crânio e
extinguir imediatamente toda atividade cerebral. A perda de sangue ocasionada
por cortes provocados por cacos de vidro não foi considerada um fator relevante.
O teor de álcool no sangue da falecida era de 0,06 por cento, equivalendo a um
nível “moderado” de intoxicação.
Louis cobriu o documento com um livro e virou de costas para ele. Sua mãe
estava saindo do banheiro.
Era óbvio que ela vinha gastando dinheiro. Gastando dinheiro e (foi a
impressão que Louis teve) dormindo, pois parecia ter rejuvenescido uns quinze
anos desde o jantar de domingo. A pele de seu rosto estava dourada, lustrosa e
tão esticada junto ao contorno de sua mandíbula que parecia repuxar seus olhos
escuros, deixando-os arregalados. Ela tinha cortado o cabelo em estilo Chanel
curto — e pintado também? O que antes era, se não falhava a memória de Louis,
um grisalho escuro e uniforme havia se transformado em preto e prateado. Ela
estava usando um vestido de linho amarelo-claro com um arremate de veludo
preto na barra, que estava uns dois dedos acima dos joelhos. A gola alta estava
fechada com um broche contendo uma pérola do tamanho de uma moeda de
cinco centavos. Diante do espelho, com as narinas dilatadas de concentração, ela
ajeitou fios de cabelo invisíveis e possivelmente inexistentes em torno de suas
têmporas. Depois foi até o closet e, com a mesma fluidez de movimento vertical
que Eileen herdara, se ajoelhou e tirou uma caixa de sapatos de dentro de uma
sacola plástica da Ferragamo.
“Tá bonita, hein, mãe.”
“Obrigada, Louis. O seu pai ainda não voltou?”
Com as sobrancelhas levantadas, ele ficou observando a mãe tirar um par de
sapatos de um acolchoado de papel de seda escarlate. Olhou para Eileen,
perguntando-se se ela também teria levantado as sobrancelhas diante daquele
espetáculo de uma mãe transformada por um repentino poder de compra. Mas
Eileen também estava transformada. Com olhos avermelhados de mágoa e ódio
e um rosto em que todos os músculos pareciam ter adormecido, ela observava a
mãe deslizar seus pés pequenos num par de sapatos tão aerodinâmicos quanto
Jaguars. Não tinha como Louis capturar o olhar dela. Ela precisava que sua
tristeza fosse notada pela mãe, não por ele. Então, enquanto Eileen sofria ao pé
da janela (chuva fria caindo entre ela e a faculdade de administração) e a mãe
prendia com ar complacente um par de rosas brancas à faixa preta de um
chapéu branco de abas moles, ele se sentou na cama e abriu o caderno de
esportes de um Globe que estava convenientemente à mão. Poderia
tranquilamente ser ele e não sua irmã sofrendo ao pé da janela, mas o que pensa
um cão de matilha, o que se passa atrás de seus olhos amarelos, quando ele vê
um de seus companheiros ser levado para um canto por um explorador polar
para ter a garganta cortada e ser transformado em jantar para seus irmãos?
“O seu pai vai ter uns três minutos para tomar banho e se arrumar”, disse a
mãe. “Talvez um de vocês pudesse...”
“Não”, disse Eileen.
“Não”, disse Louis. O pai nadava com tampões nos ouvidos e óculos de
natação, e só atingindo-o fisicamente era possível fazê-lo sair de dentro de uma
piscina.
“Bem.” De chapéu na cabeça, a mãe se levantou, ajeitou o vestido sobre os
quadris e deu uma voltinha, rodopiando sobre a ponta dos pés. “Como eu estou?”
Fez-se silêncio; Eileen nem sequer olhou para a mãe.
“Como um milhão de dólares”, disse Louis.
Eileen deu uma risada forçada: “Rá rá rá!”.
Sem nenhuma expressão no rosto, a mãe começou a botar suas coisas dentro
de uma bolsa de mão preta com aparência de nova. “Louis”, disse, “eu preciso
ter uma conversa com você.”
“Bom, eu já ouvi essa conversa”, disse Eileen e atravessou o quarto pisando
firme. “Então, vejo vocês no serviço fúnebre.” Puxou sua capa de chuva de um
cabide, abriu a porta e deu um passo para trás ao dar de cara com o pai, que,
com uma toalha enrolada na cintura e óculos de natação aninhados no tufo
grisalho de pelos encharcados abaixo de seu pescoço, avançava quarto adentro
como uma lagosta interessada, dizendo para Eileen: “Ora, ora, se não é a infanta
Elena! Estrela escura de Aragão! Detentora do cetro de esmeralda!”. Ela
retrocedeu até bater as costas nos cabides de roupa, as mãos espalmadas, os
dedos abertos e rígidos perto das orelhas, enquanto a lagosta a agarrava pela
cintura com o gancho de sua garra robusta. Ela recuou, se contorcendo. “Não!
Não! Não! Ah, você ainda está molhado!” Suas bochechas estavam recuperando
a cor. O pai beijou uma delas e depois soltou Eileen, bateu continência para Louis
do outro lado do quarto e se enfiou no banheiro. A mãe não tinha testemunhado
nada disso.
Quinze minutos depois, os quatro membros da família Holland estavam
sentados no Mercury de duas portas alugado pelos pais, Melanie ao volante, os
meninos no banco de trás. Os carros dos meninos tinham ficado no
estacionamento do hotel porque Bob Holland considerava automóveis uma
abominação e tinha ameaçado ir a pé se eles levassem mais de um carro.
Sentindo um princípio de enjoo, Louis estava encolhido feito uma mesa dobrável,
a cabeça meio careca apoiada na janela fria e embaçada, um gosto de chuva
forte e fumaça de óleo diesel na garganta. O chapéu da mãe estava preso em
suas canelas. Alguém que não era Louis e provavelmente também não era
Eileen vinha peidando regularmente. Bob, parecendo diminuído num terno de
trinta anos, dardejava através da sua janela para os carros que iam ficando para
trás no trânsito intenso do meio da manhã na Memorial Drive. Ele achava que
dirigir um carro era um ato de imoralidade pessoal.
Louis empurrou para fora a janela de dobradiça ao seu lado e encostou o nariz
e a boca na superfície plana do ar mais frio do lado de fora. Estava começando a
relacionar seu enjoo com achatar a parte frontal esquerda do crânio e extinguir
imediatamente toda atividade cerebral, a imaginação da morte tendo avançado
oculta e autonomamente, penetrando em sua consciência apenas agora.
Conseguiu inspirar uma revigorante lufada de ar pelo vão da janela. “Vocês
acham que ela percebeu que estava tendo um terremoto?”
Eileen olhou para ele com uma cara feia e mal-humorada, depois se
ensimesmou de novo.
“Quem?”, Melanie perguntou.
“A Rita. Você acha que ela se deu conta de que era um terremoto que estava
fazendo o chão tremer?”
“Ao que parece, ela estava bêbada demais para se dar conta do que quer que
fosse”, disse Melanie.
“É meio triste, vocês não acham?”, tornou Louis.
“Existem maneiras piores de morrer. Melhor morrer assim do que de cirrose
numa cama de hospital.”
“Ela te deixou aquele dinheiro todo. Você não acha que é meio triste?”
“Ela não me deixou dinheiro nenhum. A única coisa que ela me deixou foi
uma dívida de 250 mil dólares contraída ilegalmente, se você quer saber a
verdade.”
“Ah, pelo amor de Deus, Mel.”
“Mas foi o que ela fez, Bob. Ela hipotecou uma casa que não era dela. O banco
de Ipswich que fez o empréstimo a ela não estava ciente desse pequeno detalhe,
que...”
“O pai da sua mãe”, disse Bob, “deixou tudo o que ele tinha num fundo...”
“Bob, isso não interessa ao Louis.”
“Claro que interessa”, disse Louis.
“E também não é exatamente da conta dele.”
“Hum, sei.”
“Mas a questão básica”, Melanie continuou, “é que, quando o meu pai morreu,
ele já tinha uma boa ideia do tipo de mulher com quem tinha se casado e,
embora tivesse o dever de deixá-la numa situação confortável, ele também não
queria que ela dilapidasse um patrimônio que um dia ele gostaria que fosse para
as filhas dele...”
Bob gargalhou com gosto. “O que quer dizer que ele não deixou nem um
centavo para a sua mãe e nem para a sua tia Heidi! Ele escreveu exatamente o
tipo de testamento rancoroso, arrogante, autoritário, de um advogado de
advogados que você esperaria de alguém como ele. Todo mundo na miséria,
todo mundo fulo da vida, e um comitê de três advogados do Banco de Boston que
se reúnem duas vezes por ano para preencher cheques para si mesmos com o
dinheiro do fundo.”
“Eu gosto da maneira como vocês honram os mortos.”
“Dá para abrir um pouco a janela?”
“E agora a Mel vai corrigir algumas injustiças, não vai, Mel? Sabe, Lou, depois
que a Heidi morreu, a sua mãe ficou sendo a única herdeira. A herança deveria
ser transmitida para as filhas que ainda estivessem vivas. A sua mãe agora está
exatamente na mesma posição em que o seu avô estava dez anos atrás. Só que os
ricos ficaram mais ricos, não foi? A sua mãe está em posição de construir
algumas escolas e hospitais, talvez doar um ginásio para o Wellesley College. Ou
ajudar os sem-teto, hein, Mel?”
Melanie inclinou a cabeça para trás, retirando-se da discussão. Eileen deu um
sorriso amargo. Louis pediu de novo que alguém abrisse uma janela.
O serviço fúnebre, que deveria se realizar numa campina do condado de Essex
se o sol estivesse brilhando, havia sido transferido para o salão de recepção do
Roy al Sonesta, um hotel de luxo com vista para a foz do rio Charles, na ponta
nordeste de Cambridge. Ao cruzar a porta atrás de seus pais, Louis por um
momento achou que eles tivessem entrado no salão errado; rondando por entre
tristes ajuntamentos sociais, estavam, lhe pareceu, as mesmas pessoas que ele
vira na passeata contra o aborto na Tremont Street uma semana antes — os
mesmos inflexíveis rostos femininos de meia-idade, os mesmos parcos homens
de olhos vazios, as mesmas roupas cor de cortina e sapatos baixos. Mas depois,
alertado pela reta que Eileen estava traçando em direção a um determinado
ponto do salão, ele viu Peter Stoorhuy s.
Peter estava ligeiramente afastado de um grupo de três homens de ar inquieto
e com ternos elegantes, três óbvios executivos ou profissionais liberais. De pernas
afastadas, ombros para trás e mãos nas beiradas dos bolsos, Peter tinha o ar de
alguém a quem o mundo pode recorrer se for realmente necessário. Eileen,
colidindo com ele, encostou a orelha numa das lapelas de seu blazer xadrez,
pousou uma mão em sua barriga e a outra em seu ombro.
Louis ficou onde estava e olhou para aquele abraço com as mãos nos quadris.
Em seguida, alterando sua trajetória como se um campo repulsivo agora
cercasse Eileen, ele apertou o passo para alcançar Bob e os dois seguiram,
hesitantes, atrás de Melanie, cuja chegada estava fazendo os três cavalheiros de
terno abrirem sorrisos de alívio. Ela cumprimentou dois deles com beijos no rosto
e trocou um aperto de mão com o terceiro. Peter se desvencilhou de Eileen e
veio na direção de Melanie com o braço estendido, mas de repente ela achou por
bem guardar suas mãos para si. Deu um sorriso glacial. “Olá, Peter.” Como um
reserva agradecido, Bob Holland reivindicou a mão solta no ar e a apertou
vigorosamente, mas a desfeita de Melanie não havia escapado à atenção de
Eileen, que olhou vermelha para Louis. Louis respondeu com um sorriso
satisfeito. Achou interessante ver que, em algum momento daquela semana, seus
pais haviam sido apresentados a Peter.
“Esse é o nosso filho, Louis”, disse Melanie. “Louis, esses são o senhor Aldren,
o senhor Tabscott, o senhor Stoorhuy s...”
Senhor quem, senhor quem, senhor...?
“Muito prazer, Louis”, eles disseram em coro, apertando a mão dele. As
mesmas cortesias foram estendidas a Eileen.
“Pai do Peter”, o sr. Stoorhuy s acrescentou para a informação de Louis,
fazendo um gesto na direção do filho, com quem guardava uma semelhança
inequívoca e ao mesmo tempo nada lisonjeira para si próprio. Visto de perto, o
sr. Stoorhuy s não combinava realmente com seus dois companheiros. O sr.
Aldren e o sr. Tabscott pareciam ser Homens de verdade, homens com os rostos
carnudos e as narinas de touro raivoso dos que comem carne vermelha com
frequência, homens que definitivamente não eram “rapazes” e mais
definitivamente ainda não eram “mulheres”. Tinham correntes de ouro sobre os
nós das gravatas e uma dura astúcia rubra nos olhos.
O sr. Stoorhuy s era mais nervoso e franzino. Uns sete centímetros de punho de
camisa apareciam debaixo de ambas as mangas de seu paletó. Seu cabelo
crescia em meia dúzia de direções e meia dúzia de tonalidades de cinza; uma
franja comprida estilo anos setenta caía-lhe sobre as sobrancelhas polvilhadas de
caspa. Ele tinha bochechas encovadas e esburacadas, dentes tão grandes que
pareciam não permitir que ele unisse os lábios sobre eles, e olhos vivos e
inteligentes que pareciam ocupados em olhar por cima de seus ombros mesmo
enquanto ele fitava Louis, com uma das mãos levantada para mantê-lo na
expectativa.
“Louis”, chamou Melanie. Ao se virar, ele viu a mãe apoiada num pé só,
inclinando-se por entre outros corpos. “Será que você pode pegar uma xícara de
café para mim?”
“Na verdade...”, disse o sr. Tabscott, beliscando o punho do paletó de Louis,
“eu acho que o... hã... serviço já vai começar.”
“É, vai sim”, disse o sr. Aldren. “Nós vamos nos sentar com a sua mãe, se
você não se importa.”
“Prazer em conhecê-lo, filho.”
“Prazer em conhecê-lo... hã... Louis.”
O sr. Stoorhuy s seguiu atrás deles, escapando da conversa natimorta com
Louis da maneira mais fácil: indo embora.
A melancólica multidão estava se dirigindo em rebanho para as fileiras de
cadeiras dispostas diante de um atril e de um piano de cauda, no qual um japonês
de rabo de cavalo e ombros expressivos havia começado a tocar o Cânone de
Pachelbel. O pai de Louis, com seu respeito acadêmico por atris, já tinha se
sentado. Eileen continuava afagando o peito de Peter. E, então, um quadro vivo
se apresentou: o sr. Aldren conduzindo Melanie para a plateia, de braço dado
com ela, e Melanie deixando claro que não precisava ser conduzida, mas
caminhando com ele tão naturalmente quanto se eles fossem um casal de
namorados passeando por um calçadão; o sr. Stoorhuy s seguindo atrás com a
mão no outro braço dela, sorrindo o seu sorriso que não era um sorriso e ficando
para trás por um momento para olhar por cima do ombro por entre os tufos
rebeldes de cabelo que lhe caíam nos olhos; e o sr. Tabscott formando a
retaguarda, de costas para os três, claramente disposto a afugentar quem quer
que fosse idiota o bastante para tentar ir atrás deles. Um chapéu branco e um
vestido de linho amarelo — uma senhora que tinha tão pouco de homem quanto
pelo menos dois daqueles homens tinham de mulher — cercados de riscas de giz
escuras.
Louis, olhando fixamente para aquilo, esticou um dedo e cravou a ponta dele
na ponte de seus óculos.
O Cânone havia se tornado ensurdecedor. Melanie se sentou entre o sr. Aldren
e o sr. Tabscott, com o sr. Stoorhuy s se aconchegando a eles pelo lado do sr.
Aldren, seu braço magro quase longo o bastante para envolver as costas dos três,
agora com doze centímetros de punho branco à mostra. Louis eriçou um pedaço
do tapete peludo com um sapato pesado. Perguntar a Eileen quem e o que eram
aqueles homens estava fora de cogitação; ela estava com o rosto encostado na
gravata de Peter e apalpava as costas dele por debaixo do paletó como se
procurasse a chave para lhe dar corda. Os lábios dos dois estavam se mexendo:
eles estavam conversando num tom inaudível. Eles e Louis eram agora os únicos
enlutados que ainda permaneciam de pé. Uma mulher de rosto cinzento usando
um caftan havia se posicionado atrás do atril e, com um cotovelo apoiado nele,
observava o pianista com ar grave. O pianista tinha começado a travar uma
visível peleja com o Cânone, tentando impor um ritardando enquanto corria com
os laboriosos acordes, tentando encontrar um momento respeitável para
interromper a música. O Cânone estava mostrando sua fibra e parecia estar
longe de se render.
Louis foi andando até o jovem casal de namorados em sua bolha invisível de
esquecimento, e postou-se, por assim dizer, diante da porta dos dois. “Oi, Peter”,
disse.
Peter parecia ter algum problema de reflexo. Três ou quatro segundos se
passaram antes que ele se virasse e dissesse: “Oi, tudo bem?”.
“Tudo. Será que eu poderia falar com a minha irmã um instante?”
Eileen se desgrudou de Peter e deu uma ajeitada no cabelo. Ao olhar quase,
mas nunca exatamente nos olhos de Louis, ela conseguia parecer inteiramente
ausente.
“Eu não fiz nada com você”, disse Louis.
“Eu não disse que você fez.”
“A mamãe te deu uma dura, foi isso?”
“Eu não estou a fim de falar sobre isso.”
“Sei.”
“Eu vou sentar com o Peter, tudo bem?”
Ela o deixou sozinho no meio do salão, dez passos atrás da última fileira de
cadeiras. As luzes incidiam com mais intensidade sobre ele do que sobre as cerca
de cinquenta pessoas reunidas na plateia, com mais intensidade até do que sobre
a moderadora cinzenta, que, depois de balançar a cabeça em agradecimento ao
suado e vitorioso pianista, olhou bem na direção de Louis e disse: “Todos podem
se sentar”.
Louis se manteve firme onde estava, de braços cruzados. A mulher fechou os
olhos e levantou as sobrancelhas. Em seguida, ajeitou um par de óculos que
estava pendurado por uma corrente ao seu pescoço.
“Nós estamos reunidos aqui hoje”, disse ela, lendo no atril, “para honrar a
memória de Rita Damiano Kernaghan, uma mentora para muitos de nós e uma
amiga para todos. Vocês estão conseguindo me ouvir na última fileira?”
A única pessoa sentada na última fileira, Bob Holland, fez uma continência
para a mulher.
“Meu nome é Geraldine Briggs. Eu era amiga de Rita Kernaghan. Eu a
conhecia muito bem. Por vezes, nós éramos como irmãs uma para a outra.
Ríamos juntas, chorávamos juntas. Parecíamos garotinhas, às vezes.”
Os pálidos enlutados ouviam embevecidos, suas cabeças como agulhas de
bússola apontando para o atril. Os homens ao lado de Melanie, incluindo o sr.
Stoorhuy s, pressionavam os dedos contra as têmporas.
“Quando eu conheci Rita, em 1983, no Centro de Empoderamento de Danvers,
ela havia acabado de escrever um livro intitulado Começando a vida aos 60, que
muitos de vocês com certeza conhecem, e parecia, parecia mesmo, a perfeita
encarnação dos princípios delineados nele. Rita tinha aprendido que a alma é
jovem e eterna, alegre e radiante, cheia de jubilosas melodias. A idade não é um
impedimento para a alma. De fato, nem sequer a própria morte é um
impedimento. Rita tinha sido uma simples camponesa, uma colhedora de flores e
ervas aromáticas, nos tempos de Napoleão. Por que então não haveria ela de
fazer jubilosas melodias agora que, como uma viúva já fatigada de suas aflições,
não havia nada a fazer da vida, nada de fato, a não ser começá-la de novo? Por
que não haveríamos todos nós de fazer o mesmo? Na oficina de Rita, nós
escutamos a mensagem dela. Nós aprendemos. Nós crescemos. Nós rimos. Nós
nos tornamos jovens de novo. Nós fomos curados, curados não no sentido em que
o mundo moderno entende a cura, mas sim espiritualmente. Sim,
espiritualmente. Ela abriu um novo mundo para nós.”
Louis, rígido como uma rocha, viu o sr. Tabscott enterrar o rosto nas duas
mãos. Seu relógio ornado de pedras preciosas faiscava.
“Mas, de fato, o que é o novo senão aquilo que é mais antigo? E o que, o que é
a morte senão o começo de uma nova vida? Outra volta no ciclo eterno? Um
novo bebê que nasce? Vamos, portanto, contar histórias felizes hoje. Cada um de
nós que assim desejar, que se levante e celebre com histórias felizes a vida
eterna de Rita Damiano Kernaghan e, de fato, de todos nós!”
Nesse momento, Geraldine Briggs fez uma pausa e uma mulher que estava
sentada na primeira fila saltou da cadeira. Ela imediatamente tornou a se sentar,
desestimulada por um olhar.
“Eu vejo entre nós”, Geraldine Briggs continuou, lendo, “amigos de Rita.
Familiares de Rita. Amigos da época em que ela trabalhava como secretária.
Amigos e pessoas queridas de todas as fases da vida dela. E então, amigos, o
Centro de Empoderamento, que eu tenho o orgulho de dirigir, solicita, de acordo
com o desejo expresso de Rita, que em lugar de flores sejam feitas doações em
nome de Rita ao Centro de Empoderamento. O nome do fundo é Fundo Rita
Damiano Kernaghan. E o número é 1145. Envelopes para doações ainda se
encontram disponíveis ao lado da garrafa térmica de café. Mas, enfim, vamos
agora, vamos agora ouvir histórias felizes!”
A primeira história feliz foi contada pelo sr. Aldren, que se ergueu
parcialmente de sua cadeira e falou com uma voz cautelosa e monocórdia. “Rita
Kernaghan foi nossa funcionária nas Indústrias Sweeting-Aldren durante vinte e
quatro anos e foi também, hã, esposa do principal arquiteto daquela que é
considerada uma das maiores histórias de sucesso do nosso estado no mundo da
alta tecnologia e dos grandes empreendimentos das, hã, duas últimas décadas, e
eu e alguns outros membros da direção viemos aqui para, hã, prestar o nosso
respeito. Ela era uma grande... uma grande mulher.”
O sr. Aldren se recostou de novo em sua cadeira e Geraldine Briggs, de olhos
fechados, balançou a cabeça lentamente. Em seguida, a mulher ansiosa da
primeira fila saltou e se virou de frente para a congregação. Uma vez, disse ela,
depois de uma aula no Centro de Empoderamento, Rita Kernaghan tinha lhe dado
um amuleto de bronze para usar no pescoço. O amuleto havia curado um quisto
enorme que ela tinha no peito. Em gratidão, a mulher havia mandado para Rita
uma caixa de peras da Harry and David. Seis meses depois, numa celebração do
equinócio da primavera realizada na propriedade de Rita, a mulher foi conduzida
à sala de estar. Durante seis meses, a caixa de peras tinha ficado guardada perto
do foco de poder da pirâmide da casa de Rita. Rita e a mulher arrancaram os
grampos da caixa, que eram de cobre e resistentes. E as peras não estavam
podres. A mulher e Rita dividiram uma pera, alternando mordidas. Estava
gostosa. A mulher se sentou.
Geraldine Briggs deu um sorriso constrangido e tossiu um pouco.
Um homem com uma dentadura cujo formato lembrava dentes de carpa se
levantou e desdobrou um recorte de jornal. Era um editorial do Chronicle de
Ipswich. Invocando explicitamente o deus judaico-cristão, o editorial dava graças
a Deus por não terem ocorrido danos mais graves no recente terremoto e
observava que a famosa pirâmide de Rita, que tanto espaço ocupara na mídia nos
últimos anos, não fora capaz de protegê-la na hora H; os danos ocorridos na
propriedade de Kernaghan (mesmo leves) estavam entre os mais graves de que
se tinha notícia. O homem dobrou o recorte. Disse que havia feito duas das
oficinas de Rita. Disse que ela jamais afirmara que a pirâmide oferecia vida
eterna nesta existência. Essa não era a questão. Na opinião do homem, a
pirâmide tinha na verdade servido para concentrar as forças da Terra naquela
área...
“Sim”, disse Geraldine Briggs. “Sim, talvez. Outras histórias?”
Uma mulher se levantou para descrever uma ocasião em que Rita havia
chorado ao saber da morte de uma jovem.
Outra mulher se levantou para contar que Rita uma vez se recusara a aceitar
dinheiro de uma pessoa que teria dificuldade para pagar uma oficina.
Outra mulher se levantou e falou da amizade que ela tivera com Rita no tempo
da dinastia Ming.
Não estava claro que tipo de história, além da do sr. Aldren, teria agradado
Geraldine Briggs; certamente poucas daquelas agradaram. Mas, tendo aberto a
porta, ela agora estava impotente para fechá-la. Os relatos se seguiam um atrás
do outro, indo do sentimental até as raias da insanidade, e o peso acumulado deles
foi aos poucos acabrunhando Louis, descruzando seus braços, arqueando seus
ombros, até que por fim ele foi se sentar ao lado do pai. O pai parecia estar se
divertindo a valer, jogando a cabeça para trás de prazer, deliciando-se com
aquelas confissões deprimentes como se elas fossem pipoca. Chegou até a olhar
de cara feia para Geraldine Briggs quando ela disse pela terceira vez: “Bem, se
ninguém tem mais nenhuma...”. Ela esperou. Parecia que finalmente não
haveria mesmo mais nenhuma. “Se ninguém tem mais nenhuma história a
contar, eu acho que nós podemos...” Mas mais uma vez ela foi obrigada a parar,
pois Melanie havia se posto de pé.
Melanie deu um sorriso simpático, virando a cabeça de um lado para o outro
para angariar o máximo de olhares possível, inclinando-se para trás para
capturar mais alguns. Os únicos olhares que evitou foram os de sua família.
“Eu também conhecia Rita Kernaghan”, disse ela. “E queria dizer a vocês que
acredito com toda a convicção que ela já reencarnou! Eu acredito que ela agora
é... um periquito! Não é maravilhoso?” Ela entrelaçou as mãos na frente do
corpo e as balançou de um lado para o outro como uma garotinha feliz. “Eu só
queria dizer a todos vocês o quanto eu acho maravilhoso que ela agora seja um
periquito, simplesmente maravilhoso. Isso é tudo o que eu tenho a dizer!”
Com um leve e lastimável requebro dos quadris e uma das mãos pousada
sobre o chapéu para evitar que ele caísse, Melanie se sentou de novo entre seus
protetores, o sr. Aldren e o sr. Tabscott. Os protetores trocaram sorrisinhos.
Enchendo-se de indignação, a desenxabida multidão se virou para Geraldine
Briggs em busca de orientação, mas ela parecia ter alguma coisa urgente a dizer
ao pianista. Eileen e Peter estavam cochichando e balançando a cabeça, fingindo
prudentemente não ter prestado muita atenção ao que Melanie dissera. A
multidão começou a murmurar: Respeite os mortos! Respeite os mortos!
Louis olhava para o pai, que por sua vez olhava para a esposa. Depois que a
surpresa desapareceu, não havia nada divertido ou afetuoso ou mesmo
aborrecido na expressão de Bob. Ela era pura desaprovação decepcionada. E,
como tal, uma expressão que só o amor poderia sustentar. Ele teria feito
exatamente a mesma cara se Melanie tivesse dito: “Eu estou te traindo. Isso é
tudo o que eu tenho a dizer!”.
O pianista havia começado a tocar uma música new age, cósmica e
borbulhante. “gente!”, Geraldine Briggs gritou. “Gente, gente, gente. Nós agora
ouvimos os dois lados, o feliz e o não iluminado. Então vamos agora partir para o
mundo com corações alegres e mentes equilibradas. lembrem-se dos envelopes.
amém!”
Os homens e mulheres desenxabidos se levantaram. Conforme se dirigiam à
mesa de comes e bebes, eles diminuíam o passo e andavam em semicírculo em
torno de Melanie como cães de caça carrancudos e abatidos. Ela sorriu e acenou
com a cabeça para todos eles enquanto conversava com os senhores Tabscott,
Aldren e Stoorhuy s, aqueles cães de caça privilegiados que se aglomeravam em
volta dela. Logo Louis e seu pai eram as únicas pessoas que ainda continuavam
sentadas.
“Sweeting-Aldren?”, disse Louis.
“Os ajudantes da natureza. Herbicidas, pigmentos, produtos têxteis.”
“A mamãe tem alguma coisa a ver com eles agora?”
“Pode-se dizer que sim.”
“Ela foi tão grossa.”
“Não a julgue, Lou. Não há nada que eu possa dizer a você que justifique o
que ela fez, mas por favor não a julgue. Você me faz esse favor?”
Coqueteria era a única palavra para descrever o jeito como Melanie estava
aceitando uma simples xícara de café do sr. Stoorhuy s, fingindo estar cedendo a
uma tentação apesar de saber que não deveria. “Eu pensei que eu fosse gritar”,
ela disse ao sr. Aldren. Por um breve momento, na fixa intensidade do sorriso
que o sr. Aldren dirigiu a ela, o lobo sorridente por trás do cachorro sorridente se
deixou entrever, o animal cruel e faminto que espera o momento certo para agir.
Ele disse: “Você almoça conosco, não?”. Ao que Melanie respondeu: “Eu acho
que posso arranjar um tempinho para vocês”.
“Olha para ela”, disse Bob. “Você alguma vez já viu a sua mãe tão feliz? Você
não sabe quanto tempo ela teve que esperar. É difícil negar a ela algumas horas
de felicidade.”
“É, mas...”
Bob fixou o olhar na direção do atril vazio. “Eu estou te pedindo para não
julgá-la.”
3.

Do serviço fúnebre, Louis levou seu pai de carro a uma hamburgueria barata
na Harvard Square, um lugar com o ar de uma instituição constrangida, e foi lá,
numa mesa próxima à porta, que ele foi apresentado a uma cifra que estragou
seu já minguado apetite. O pai revelou a cifra enquanto segurava na palma da
mão, como se fosse uma calculadora, a metade de cima de seu pão de
hambúrguer e a besuntava com mostarda. A cifra era vinte e dois milhões de
dólares e correspondia ao valor líquido aproximado do novo patrimônio da mãe
de Louis.
Cachecóis e mangas de casaco roçavam em sua cabeça à medida que
diferentes horários de almoço iam terminando e o restaurante ia se esvaziando.
Ar frio entrava pelas portas que não tinham descanso. Louis perguntou o que a
mãe ia fazer com tanto dinheiro.
O pai parecia um pouco com um mendigo, com aquele seu terno velho, as
lapelas estreitas se sobrepondo quando ele se debruçava sobre seu hambúrguer.
“Eu não sei”, ele respondeu.
Louis perguntou se eles iam continuar morando na casa de Evanston.
“Onde mais nós iríamos morar?”, disse o pai.
Ele estava pensando em se aposentar?
“Quando eu fizer sessenta e cinco anos”, respondeu o pai.
Sem disposição para fazer mais perguntas, Louis ficou observando em silêncio
o pai esvaziar o próprio prato e depois o dele, pagar a conta com uma nota de dez
dólares e deixar uma gorjeta em moedas de dez e de vinte e cinco centavos.
Já eram mais de três horas quando Louis voltou para a wsne. As nuvens
estavam escurecendo cada vez mais, se avolumando e se preparando para deixar
cair uma senhora chuva mais tarde, e dentro dos estúdios era como se já fosse
meia-noite. Todas as luzes estavam acesas, os diversos sistemas circulatórios do
prédio zumbiam nitidamente, os telefones do departamento de publicidade, como
sempre, guardavam silêncio. Pela janela do estúdio A, Louis viu o locutor da
tarde, um veterano com aparência de alcoólatra chamado Bud Evans, cujos
frágeis e escassos fios de cabelo estavam cuidadosamente esticados sobre sua
careca crestada pelo frio. Detrás do microfone de mesa, Evans olhava com ar
apreensivo para seu convidado, um cavalheiro com cachos louros que lhe
desciam até os ombros e uma camisa havaiana. Durante cinco ou seis segundos,
nenhum dos dois disse nada. Era como uma pausa pensativa no meio de uma
conversa, só que eles estavam no ar e a pausa estava sendo transmitida. Ainda
enjoado da viagem de carro, Louis entrou no banheiro dos homens e se inclinou
sobre o mictório, encostando a testa na parede azulejada. Sua urina desmanchou
um montinho alcatroado de bitucas de cigarro. Movimentando-se como uma
pessoa de ressaca, Louis se sentou diante do terminal de computador em seu
cubículo e começou a digitar relatórios de mensagens publicitárias. Fez isso
durante três horas, o que, ao valor do ordenado que estava ganhando, lhe renderia
pouco menos que doze dólares, pressupondo que algum dia ele viesse a ser pago.
Quando saiu de Waltham, caía uma chuva de um céu da cor da tela de um
televisor que acabou de ser desligado. Chegando em Clarendon Hill, foi direto
para o banheiro e vomitou um líquido claro e viscoso no vaso sanitário bege.
Aos vinte e três anos, Louis não era uma pessoa inteiramente livre de
angústias. Sua relação com dinheiro era particularmente atormentada. E, no
entanto, o que ele percebeu, quando começou a se dar conta da significação
daquela cifra, foi que, até o momento em que se sentou com o pai naquela
hamburgueria, ele se sentia basicamente satisfeito com sua vida e suas
circunstâncias. Afinal, uma pessoa se acostuma a ser o que é e, se tiver sorte,
acaba aprendendo a ter mais ou menos em pouca conta todas as outras maneiras
de ser, a fim de não passar a vida inteira as invejando. Louis vinha aprendendo a
apreciar a liberdade que uma pessoa conquista ao abrir mão de dinheiro e a
sentir pena ou mesmo franco desprezo pelos ricos — uma classe representada
em sua cabeça, com justiça ou não, pelos vários namorados de pele bronzeada e
nariz fino que Eileen tivera ao longo dos anos, incluindo Peter Stoorhuy s. Mas
agora o alvo da piada era Louis, pois ele era filho da dona de uma fortuna de
vinte e dois milhões de dólares.
Naquela noite, ele teve um sonho lúcido e desagradável. O cenário era uma
sala de reuniões com paredes de lambri e cadeiras de couro vermelho. Sua mãe
se reclinou numa das cadeiras e, levantando a barra de seu vestido amarelo,
deixou que o sr. Aldren, inteiramente vestido, se postasse entre suas pernas e
injetasse sêmen dentro dela, enquanto o sr. Tabscott e o sr. Stoorhuy s
observavam. Depois que o sr. Aldren terminou, foi a vez de o sr. Stoorhuy s
montar nela, só que o sr. Stoorhuy s tinha virado um setter irlandês e estava tendo
de se esforçar para conseguir ficar empinado sobre as patas traseiras e manter
uma posição de cruza eficaz. O sr. Aldren e o sr. Tabscott ficaram observando
enquanto ela esticava os braços para firmar o ávido cachorro entre suas pernas.
No sábado, Louis deixou duas mensagens na secretária eletrônica de Eileen.
Como ela não ligou de volta, ele telefonou para os pais no hotel e descobriu que
eles iam de carro na manhã seguinte para a casa dos Kernaghan, a mãe para
passar talvez uma semana por lá e o pai apenas um dia, já que as aulas na
Northwestern recomeçavam na segunda-feira. “Eu vou estar muito ocupada”,
disse a mãe. “Mas, se quiser me fazer um favor, você pode levar o seu pai para o
aeroporto. O voo dele sai às sete.”
Ignorando a indireta, Louis saiu de casa com destino a Ipswich às dez da
manhã de domingo. Somerville estava tomada de umidade e estagnação. À noite
a chuva tinha finalmente cessado, mas beirais, para-lamas e árvores começando
a dar folhas ainda estavam carregados dela, pois não havia nem sinal de vento.
Nos lugares onde se abriam vistas, ao longo de ruas transversais ou através dos
estreitos espaços entre uma casa e outra, a umidade significava um
empalidecimento da distância, uma perda de nitidez dos contornos que afetava
até o dobre do sino de uma igreja distante, cujas badaladas independentes quase
se perdiam na confusão dos ecos intermediários. Louis penou para contornar dois
carros de patrulha de Somerville que haviam parado no meio de um cruzamento,
janela de motorista com janela de motorista, como se fossem insetos que
cruzassem daquela forma e a necessidade deles fosse urgente. Pelo portão de
uma igreja vazia e iluminada, ele entreviu canteiros de palmas-de-são-josé.
As estradas estavam desertas. Do alto de trechos em aclive, passando por
Chelsea, Revere e Saugus, ele avistou lá embaixo uma intricada colcha de
retalhos de bairros em que ruas e pistas de entrada de residências tinham a
hegemonia. Muitas delas estavam semialagadas agora, com carros estacionados
enviesados em suas margens como se tivessem sido arrastados por uma
enxurrada.
Uma enxurrada diferente, uma enxurrada de dólares em refluxo, havia
deixado inúmeros condomínios novos encalhados no meio de campos
lamacentos, estéreis e sulcados de lagartas de trator. Os condomínios de casas só
se diferenciavam uns dos outros pela localização; todos, sem exceção, tinham
fachadas revestidas de ripas de madeira pintadas em tons pastel e semicírculos e
triângulos pós-modernos interrompendo as linhas dos telhados. Já os edifícios
vinham em duas variedades: o tipo que tinha janelas de madeira compensada e o
tipo que tinha banners pendentes do telhado anunciando incríveis ofertas de
apartamentos de 1 & 2 qts.
Espinheiros e árvores mirradas cobriam o solo plano e esgotado ao norte de
Danvers. Na neblina que se instalara nas cercanias de Ipswich, perto de uma
concessionária Ford, Louis teve de frear para deixar um bêbado desgrenhado que
não devia ter mais do que trinta anos atravessar a Route 1A. Saindo do centro da
cidade pela Argilla Road, ele passou por casas esparsas com bmws, Volvos e
carvalhos gigantescos plantados em frente. Não demorou muito, ele chegou a um
portão de pedra onde se lia kernaghan. Uma pista de entrada ladeada de pinheiros
serpenteava colina acima, cortando pastos ondulantes cobertos de grama alta. No
alto da colina havia uma elegante casa branca com alas simétricas, pórtico
abobadado e, assentada entre suas lucarnas, uma pirâmide feita de placas de
alumínio branco. A pirâmide devia ter, fácil, uns cinco metros de altura. O efeito
era o de uma mulher bem vestida com um balde de plástico na cabeça.
Louis ficou parado alguns instantes em cima de um capacho de cânhamo com
um símbolo de y in e y ang gravado em preto e espiou por uma janela estreita ao
lado da porta da frente. Viu um hall de entrada ladrilhado e uma sala de estar que
se estendia até os fundos da casa. Em teoria pelo menos, já que a casa agora
pertencia à sua mãe, aquele lugar era um segundo lar para ele. Louis abriu a
porta e entrou.
A mesa de jantar, à sua esquerda, estava coberta de pastas de arquivo e
portfólios. Um homem de ombros largos, vestindo uma camisa branca, estava
sentado à mesa, de costas para o hall, e na cabeceira, lendo um documento
grampeado, estava Melanie.
“Oi, mãe, tudo bem?”, disse Louis.
Ela ergueu os olhos para ele com uma expressão severa. Só a ponta branca de
seu nariz comprido impedia seus óculos de meia lente de caírem. Usava um
vestido de seda escarlate, batom escarlate e brincos feitos de grandes pedras
pretas. Seu cabelo escuro estava preso com firmeza atrás das orelhas. “Oi,
Louis”, disse ela, voltando a olhar para o documento. “Feliz Páscoa.”
Seu companheiro tinha virado para trás, apoiando uma axila no encosto da
cadeira e revelando um rosto corado e afável com olhos de um azul gredoso e
um hirsuto bigode arruivado. Seu colarinho estava aberto, o nó da gravata
afrouxado. Parecia estar tão contente em ver Louis que Louis imediatamente
apertou a mão dele.
“Henry Rudman”, disse o homem. Por pouco ele não falou Henwy Wudman.
“Você deve ser o filho que mora em Sumvull. Na Belknap Street, eu acho que a
sua mãe me disse, não é?”
“Isso mesmo.”
Henry Rudman balançou a cabeça vigorosamente. “Eu pergunto porque cresci
em Sumvull, sabe. Você conhece a Vinal Avenue?”
“Não, desculpe”, disse Louis. Em seguida, se inclinou por cima do ombro da
mãe. “O que é que você está lendo aí, mãe?”
Melanie virou uma página em incisivo silêncio.
“É uma súmula judicial antiga”, Wudman respondeu, recostando-se
confortavelmente em sua cadeira e sacudindo sua caneta como se ela fosse uma
baqueta. “Nós temos um ornamento arquitetônico lá em cima que já não é mais
bem-vindo. A cidade de Ipswich tinha se proposto alguns anos atrás a pagar os
custos da retirada dele, mas agora parece que eles estão querendo tirar o corpo
fora.”
“E que ornamento”, disse Louis.
“Bom, gosto não se discute. Mas eu entendo o que você quer dizer. Eu soube
que você morava no Texas antes de vir para cá. O que você está achando do
clima?”
“Uma bosta!”
“É, espera só até ele ficar assim de novo em pleno mês de junho. Me diga
uma coisa, você já virou fã dos Sox ou ainda não?”
“Não, ainda não”, disse Louis. Ele estava gostando da atenção. “Eu torço pelos
Cubs.”
Com uma manzorra do tamanho de uma luva de beisebol, o advogado rebateu
as palavras de Louis de volta na direção dele. “Mesma coisa. Se você gosta dos
Cubs, você tem tudo o que é preciso pra ser fã dos Sox. Por exemplo, quem nos
fez perder uma Série em 86, o Bill Buckner. Quem nos fez o favor de fazer uma
troca conosco e levar o Bill Buckner, os Chicago Cubs. É como se fosse uma
espécie de conspiração. Quais foram os dois times que jogaram mais anos sem
ganhar o grande título? Você já entendeu, os Sox e os Cubs. Escuta, você quer ver
um jogo? Eu posso mandar um par de ingressos pra você, sou assinante há
dezenove anos. É pouco provável que você consiga ingressos como esses pelos
canais normais.”
Surpreso, Louis jogou a cabeça para trás, totalmente desarmado agora. “Ia ser
o máximo.”
Melanie pigarreou, fazendo um barulho de motor dando partida.
“Ei, não tem de quê”, disse Rudman. “Eu sou um corruptor da juventude. Mas
você vai ter que nos dar licença agora. Nós estamos encarando um ninho de
cobra aqui.”
Louis se virou para a mãe. “Cadê o papai?”
“Lá fora. Por que você não procura no quintal? Como eu disse a você no
telefone, o senhor Rudman e eu temos muitos assuntos a discutir a sós.”
“Não se incomode... comigo”, Louis disse para a mãe com sua voz de
Nembutal.
Na cozinha, ele encontrou um bolo de café, uma garrafa térmica de café com
capacidade para servir uma multidão e, numa bancada comprida, outros
produtos de padaria em caixas brancas com o nome “Holland” escrito com giz
de cera azul. Seus olhos se arregalaram quando ele abriu a geladeira. Havia patês
e saladas de frutos do mar em embalagens de plástico transparente, frutas
graúdas envoltas em papel de seda decorado, uma lata de caviar russo, meio
presunto defumado, queijos estrangeiros em peças inteiras, iogurtes de qualidade
de sabores incomuns, alcachofras e aspargos frescos, picles condimentados
kosher, uma intrigante pilha de pacotes de delicatéssen, garrafas de cerveja
alemã e holandesa, refrigerantes de vários tipos, sucos em garrafas de vidro,
champanhes caras...
“Louis”, a mãe chamou da sala de jantar.
“Que é, mãe.”
“O que você está fazendo aí?”
“Estou olhando para a comida.”
Silêncio.
“Não há como você ser considerada legalmente responsável”, disse Henry
Rudman. “O sujeito estaciona o Jaguar dele na rua, outro sujeito chega e oferece
o Jaguar como garantia num empréstimo, não existe a menor possibilidade do
sujeito A ser responsabilizado por isso. É uma fraude clara, não envolve você de
forma alguma. Também não dá pra culpar o banco. Ela está morando na casa e
a escritura que ela mostra pra eles é uma falsificação de primeira, tão boa que
faz você se perguntar se ela fez mesmo isso tudo sozinha, eu aposto que não. Foi
um trambique bem-feito. Ela toma um empréstimo no valor de duzentos mil
dando a casa como garantia, gasta setenta e dois na tal da pirâmide que ela
meteu na cabeça que tem que ter, que não pode viver sem ela, e investe o resto
do dinheiro em outro banco. Os juros vão cobrir os pagamentos sobre o
empréstimo durante uns dez, quinze anos, e ela ainda pode dar festas na casa de
vez em quando. Trambique bem-feito. Ela morre e o banco se ferra. Quer dizer,
supondo que os administradores do fundo ainda tenham a escritura verdadeira. O
seu pai devia saber o que estava fazendo. Quatro mil por mês livre de impostos,
mais uma casa de graça com todas as despesas de manutenção pagas e nem
assim ela conseguia viver dentro do orçamento, nem sequer pagava o salário da
coitada da escrava haitiana. Eu não posso dizer que goste desse negócio de mão-
morta (você entende que isso é só uma opinião profissional), mas, sinceramente,
se fosse casado com uma mulher daquelas, eu mesmo não ia deixar que ela
chegasse perto do patrimônio. Se não, quando desse por mim, eu ia estar com o
monte Fuji no meu quintal.”
“Louis.”
“Que é, mãe.”
“Seria possível você não ficar na cozinha?”
“Tá, só um segundo.”
Um corredor escuro e frio que tinha início nos fundos da cozinha terminava
em três portas, uma delas dando acesso à área externa e as outras duas a um
banheiro e um quarto. Sentado na cama, Louis engoliu café e devorou um
pedaço de bolo. Todos os cabides do armário estavam vazios. Levou algum
tempo para ele notar que estava faltando uma vidraça na janela. Foi o único
estrago causado pelo terremoto que ele notou a manhã toda.
Saindo para o quintal dos fundos, ele não viu nem sinal do pai, embora o ar
estivesse tão parado e denso que quase parecia que, se alguém o atravessasse,
deixaria um rastro. Louis cruzou um pátio e resolveu tentar abrir uma das portas
envidraçadas da parte de trás da sala de estar. A porta abriu na mesma hora.
A sala de estar era ampla o suficiente para conter quatro conjuntos separados
de móveis. Em cima da lareira estava pendurada uma grande pintura a óleo do
avô de Louis, um retrato formal pintado em 1976, quando John Kernaghan tinha
por volta de setenta e cinco anos. Suas sobrancelhas ainda eram escuras. Com
sua cabeça quase inteiramente calva, pele firme e crânio elegante e compacto,
ele parecia imune à velhice. Ele era, Louis se deu conta, o responsável por sua
queda de cabelo. A imagem pintada ganhava ainda mais vida com a filha viva
sentada a alguns metros dali na sala de jantar, lendo documentos com os mesmos
inabordáveis olhos escuros faiscantes do pai.
“Quando se reunirem no dia 30”, disse Henry Rudman em voz baixa, “eles
vão ter que repassar o patrimônio todo. É o patrimônio todo, está claríssimo, eles
não têm escolha. A transferência completa pode levar de quatro a seis semanas,
mas vai ter que ser feita até, no máximo, 15 de junho.”
Que a sala de estar ainda não pertencia inteiramente a Melanie estava claro
pelo material de leitura new age presente nas mesas de centro, pelas pinturas
acrílicas feiosas e fantasmagóricas penduradas nas paredes e pelos exemplares
de Princesa Itaray, Começando a vida aos 60 e Filhos das estrelas que
abarrotavam a única estante. Para não falar no cheiro que emanava do bar, um
cheiro de bebida alcoólica derramada e desinfetante com fragrância de tutti-
frutti. O bar se projetava da parede, perto de um dos cantos do fundo da sala, e
era feito da mesma madeira clara que as duas banquetas esbeltas dispostas diante
dele. Prateleiras que chegavam quase até o teto exibiam algumas centenas de
garrafas diferentes — licores e digestivos com rótulos escritos em alfabetos
estrangeiros, alguns com imagens de legumes insólitos. Louis se ajoelhou perto
do piso de mármore cinza atrás do bar. Havia espaço mais que suficiente ali para
uma mulher pequena jazer morta, com a cabeça achatada. Não era difícil ver
manchas de um marrom esmaecido da bebida que tinha espirrado na parede. E
também não era difícil ver sangue. Havia vestígios dele nas fissuras entre as
placas de mármore, ainda mal começando a escurecer, o vermelho de esmalte
de unha particularmente visível nos pontos em que as beiradas das placas
estavam lascadas. Quem tinha limpado a sujeira? A empregada, antes de ser
deportada? Com a ponta dos dedos, Louis apertou o mármore frio e inflexível,
botando o peso do corpo em cima dele, ouvindo claramente o uóc! da cabeça
rachando.
“Louis. Pelo amor de Deus. O que você está fazendo?”
Ele se levantou rapidamente. A mãe estava se aproximando do bar. “Deixei
cair uma moeda”, disse ele.
“Você tem um interesse mórbido?”
“Não, não, eu só entrei por acaso por esse lado.”
“Você entrou...?” Melanie sacudiu a cabeça na direção das portas
envidraçadas, como se elas a tivessem decepcionado profundamente. “Esta casa
não tem segurança alguma”, disse. “Imagino que ela achava que a pirâmide
oferecia proteção também contra ladrões. É muito lógico e racional, você não
acha? É exatamente o que se poderia esperar dela.”
Louis ouviu um leve ruído de água correndo num banheiro atrás de uma
parede.
“Bem, você está vendo o lugar onde ela morreu.” A mãe cruzou os braços e
olhou com satisfação para as garrafas de bebida. “Eu pessoalmente não consigo
pensar em nada mais chinfrim do que botar um bar enorme como esse na sala
de estar. Ou você não concorda? Talvez você ache que todo mundo deveria ter
um botequim na sala de estar. E um barril de chope?”
Ela olhou para Louis como se de fato esperasse que ele respondesse. “E o
pior”, continuou, “é que ela provavelmente mandou instalar essa porcaria com
um dinheiro que não lhe pertencia. Imagino que você tenha ouvido o que o
senhor Rudman estava dizendo. Que ela forjou uma escritura para fazer um
empréstimo dando a casa como garantia. O que você acha disso, Louis? Você
acha que isso é correto? Você acha que isso é coisa que uma pessoa de bem
faça?”
Com o bico de um belo sapato, ela virou para cima uma das pontas de um
tapete chinês, inclinou a cabeça para ler a etiqueta e virou a ponta do tapete para
baixo de novo. Depois, dirigiu um sorriso sarcástico para uma mesa de centro.
“Estilos de vida harmônicos. Divindades fenícias. A volta do orgônio.” Ela fez
uma cara de nojo e desprezo. “O que você acha disso tudo, Louis?”
“Eu acho que vou gritar se você me fizer mais uma pergunta dessas.”
“Cada pequena coisa que eu vejo aqui me dá engulho. Engulho.” Ela disse isso
para o retrato pendurado em cima da lareira.
“Mas a casa é sua agora, certo?”
“Na verdade, sim.”
“E o que você vai fazer com ela?”
“Não faço ideia. Eu vim aqui para dizer que você está deixando a mim e ao
senhor Rudman muito nervosos nos rondando desse jeito. Você não conseguiu
encontrar o seu pai?”
“Não.”
“Bem, se você quiser ficar, eu sugiro que você vá para o quarto dos fundos,
tem uma televisão lá, talvez esteja passando algum jogo. Tem muita comida na
geladeira, você pode pegar o que quiser. Ou você poderia varrer o pátio para
mim, e eu tenho várias outras pequenas tarefas para lhe passar, se você quiser,
mas eu só não quero é que você fique nos rondando. Você não está na sua casa,
sabe.”
Louis olhou para ela com uma expressão neutra de expectativa, como se ela
fosse uma adversária de xadrez que tivesse acabado de fazer uma jogada e ele
quisesse ter certeza de que ela não ia mudar de ideia. Depois que expirou o
período arbitrário de tolerância, ele disse: “Foi bom o seu almoço na quinta-
feira?”.
“Foi um almoço de negócios. Eu pensei que tivesse explicado isso a você na
quinta.”
“O que foi que você comeu?”
“Eu não me lembro, Louis.”
“Não lembra? Isso foi três dias atrás! Um peixe? Um sanduíche?”
Eles agora ouviam o sr. Rudman mexendo em pratos na cozinha, enquanto
assobiava uma música de um programa de televisão.
“O que é que você quer, hein?”, Melanie perguntou num tom calmo.
“Eu quero saber o que você comeu no almoço de quinta-feira.”
Ela respirou fundo, tentando controlar sua irritação. “Eu não lembro.”
Ele franziu o rosto. “Você está falando sério?”
“Louis...” Ela abanou a mão, tentando sugerir algum prato genérico, algo que
não valia a pena mencionar. “Eu não lembro. Sim, um peixe. Filé de linguado. Eu
estou extremamente ocupada.”
“Filé de linguado. Filé de linguado.” Ele meneou a cabeça tão enfaticamente
que quase parecia uma mesura. De repente, ficou imóvel, sem nem mesmo
soltar o ar. “Grelhado? Cozido?”
“Eu vou voltar para a sala de jantar agora”, disse Melanie, permanecendo
plantada no centro de um tapete chinês. “Eu tive uma semana muito difícil...” Ela
fez uma pausa para deixar que Louis questionasse essa afirmação. “Uma
semana muito difícil. Tenho certeza de que você é capaz de entender isso e
demonstrar um pouco de consideração.”
“É, bem, nós todos estamos sofrendo do nosso jeito, obviamente. É só que eu
ouvi um boato louco sobre você ter herdado vinte e dois milhões de dólares.” Ele
tentou olhar nos olhos dela, mas ela tinha se virado para o lado, apertando os
polegares dentro dos punhos cerrados. “Louco, né? Mas voltando ao almoço,
vejamos, o senhor Aldren e o senhor sei lá das quantas, Tweedledum, eles
comeram um bom filé de carne vermelha, não foi? E o senhor Stoorhuy s...” Ele
estalou os dedos. “Coelho. Meio coelho, assado. Ou... como é que chama?
Marinado.”
“Eu vou voltar para a sala de jantar agora.”
“Só me diz se eu acertei, vai. Foi isso que ele comeu? Ele comeu coelho?”
“Sei lá, eu não reparei...”
“Você não reparou num coelho? Meio que estendido na travessa? Talvez com
um pouco de molho de cranberry ? Ou com repolho roxo? Ou panqueca de
batata? Que tipo de restaurante era? Me ajuda a formar a imagem, mãe. Era um
restaurante carérrimo?”
Melanie respirou fundo de novo. “Nós fomos a um restaurante chamado La
Côte Américaine. Eu comi um filé de linguado e o senhor Aldren, o senhor
Tabscott e o senhor Stoorhuy s tomaram sopa e comeram filés de carne
vermelha grelhados ou costeletas, eu realmente não me lembro o que foi
exatamente...”
“Mas não coelho. Você se lembraria de um coelho.”
“Não, ninguém comeu coelho, Louis. Você está sendo bem menos engraçado
do que pensa.”
Louis apertou os olhos. “Está bom. Vamos voltar aos vinte e dois milhões,
então. O que você vai fazer com eles?”
“Não faço ideia.”
“Que tal um iate? Dá um bom presente.”
“Isso não tem graça nenhuma.”
“Então é verdade?”
Melanie sacudiu a cabeça. “Não, não é verdade.”
“Ah, não é verdade. Então quer dizer que é falso. Então quer dizer que é,
digamos, vinte e um vírgula nove? Vinte e dois vírgula um?”
“Quer dizer que não é da sua conta.”
“Ah, sei, não é da minha conta. Então vamos esquecer isso, vamos deixar isso
pra lá. Afinal de contas, pessoas herdam vinte e dois milhões de dólares todos os
dias. O que você fez no trabalho hoje? Ah, eu herdei vinte e dois milhões de
dólares, me passa a manteiga?”
“Você pode fazer o favor de parar de mencionar esse número?”
“Vinte e dois milhões de dólares? Você quer que eu pare de falar vinte e dois
milhões de dólares? Está bem, eu vou parar de falar vinte e dois milhões de
dólares. Vamos chamar de alfa, então.” Ele começou a andar em volta da
beirada de um tapete. “Alfa é igual a vinte e dois milhões de dólares, vinte e dois
milhões de dólares é igual a alfa, alfa não é nem maior que vinte e dois milhões
de dólares, nem menor que vinte e dois milhões de dólares.” Ele estacou. “Como
é que o seu pai ficou tão rico?”
“Louis, por favor, eu pedi pra você parar de mencionar esse número e estou
falando sério. É muito doloroso pra mim.”
“É, eu estou vendo. Foi por isso que eu sugeri que a gente passasse a chamá-lo
de alfa, apesar de achar que alfa não chega realmente a captar o impacto. Que
coisa mais dolorosa herdar esse dinheiro todo. Você sabe que o papai está
dizendo que não vai nem sequer parar de dar aula?”
“Por que ele haveria de parar de dar aula?”
“Não vai me dizer que você vai precisar do salário dele quando tem vinte e
dois... opa.”
“Eu ficaria grata se você não tentasse me dizer o que eu preciso ou não
preciso.”
“Você ficaria grata se eu simplesmente fosse embora daqui agora e nunca
mais voltasse a tocar nesse assunto.”
O rosto de Melanie se iluminou como se Louis fosse um aluno dela que tivesse
inesperadamente dado a resposta certa. “Sim, está absolutamente correto. É o
que eu mais queria de você neste momento.”
Louis apertou os olhos mais ainda e disse: “Vinte e dois milhões de dólares,
vinte e dois milhões de dólares, vinte e dois milhões de dólares.” Continuou
repetindo cada vez mais rápido, até que sua língua se embolou e a coisa acabou
virando vindólas, vindólas. “Que grana violenta. Quer dizer que você está rica,
rica, rica, rica, rica.”
A mãe tinha virado de frente para a lareira e tapado os ouvidos com as mãos,
aplicando uma pressão isométrica tão forte contra a própria cabeça que seus
braços chegavam a tremer. Isso era a coisa mais próxima de uma luta a que ela
e Louis já haviam chegado; e não era realmente luta. Era como o que acontece
com um par de ímãs quando você tenta forçar os polos norte a se encostarem.
Sempre tinha sido assim. Mesmo quando ele era um garotinho de três ou quatro
anos e ela tentava ajeitar o cabelo dele, ou limpar sua boca suja de comida, ele
virava a cabeça para o lado com seu pescoço firme e teimoso. Se ele estava
doente na cama e ela botava a mão fria em sua testa, ele tentava se afundar com
toda a força no travesseiro e no colchão, tão cega e obstinadamente resistente ao
toque dela quanto o ímã, cujo campo de força invisível e permanente jamais
poderá conhecer o alívio da ruptura ou da descarga. Agora ela levantou a
cabeça, seus dedos brancos achatados contra as bochechas, os cotovelos apoiados
no consolo da lareira, e olhou para o pai. Da parte de trás da casa veio o barulho
de uma televisão ligada, ribombos e colisões: boliche.
“Eu estou pagando o senhor Rudman por tempo, Louis.”
“Certo. Quanto um advogado ganha, uns duzentos dólares por hora? Digamos
que sejam 220 por hora, então vinte e dois milhões (ah, me desculpe, eu falei de
novo) divididos por 220, dez elevado a sete divididos por dez elevado ao
quadrado, isso dá cem mil horas; pressupondo dez horas de trabalho por dia,
duzentos e cinquenta dias por ano, santo Deus, você tem razão. Isso dá só
quarenta anos. Eu vou tentar ser rápido.”
“O que é que você quer, Louis?”
“Bem, deixe-me ver, eu tenho um emprego, um apartamento barato e um
carro que já está pago, não sou casado, não tenho hábitos caros e, caso você não
tenha notado, não peço coisa alguma a você e ao papai desde que tinha dezesseis
anos, então provavelmente não é dinheiro que eu quero, você não acha, mãe?”
“E eu sou muito grata a você por isso, Louis.”
“Não precisa agradecer.”
“Não, eu preciso sim. Eu nunca cheguei a dizer a você o quanto eu me orgulho
da sua independência.”
“Eu já disse que não precisa agradecer.”
Ela se virou de frente para ele. “Eu tenho uma ideia”, disse ela. “Eu sugeri
algo nesse sentido para a Eileen e ela pareceu achar que era uma boa ideia.
Espero que o seu pai também concorde. Eu acho que nós todos deveríamos agir
como se isso nunca tivesse acontecido.”
“Esses vinte e dois milhões de dólares.”
“Por favor, por favor, por favor. Eu acho que nós todos deveríamos
simplesmente continuar a tocar as nossas vidas como se nada tivesse mudado.
Agora, pode ser que com o passar do tempo venham a acontecer algumas
mudanças, pequenas mudanças e talvez grandes mudanças também. Por
exemplo, eu provavelmente vou estar em condições de fazer com que se torne
muito fácil para você voltar a estudar, se algum dia você resolver voltar a
estudar. E eu não estou prometendo nada, mas é possível que, se você ou a Eileen
quiserem dar entrada numa casa, eu possa dar uma ajuda com isso também.
Mas todas essas coisas são para o futuro, e eu acho que o melhor que nós quatro
temos a fazer agora é simplesmente tirar isso da cabeça.”
Louis coçou o pescoço. “Você disse que a Eileen achou que isso era uma boa
ideia?”
“Achou.”
“Então por que ela estava chorando na quinta-feira?”
“Porque...” Os olhos da mãe se fixaram no vazio e depois começaram a
cintilar, as lágrimas parecendo brotar diretamente das íris castanhas, da mesma
forma como açúcar-cande fica molhado por si só. “Porque, Louis, ela tinha ido
até lá para me pedir dinheiro.”
Ele riu. Aquela era a Eileen que deixava carros caírem dentro de lagos. “E
daí? Dê um cheque para ela. Ou não dê um cheque para ela.”
“Ah!” As mãos da mãe se ergueram de novo em direção ao rosto, os dedos
dobrados com força. “Ah! Eu não vou permitir que você fale comigo assim!”
“Assim como?”
“Eu não vou mais discutir esse assunto. A gente precisa tirar isso da cabeça. Eu
quero que você saia daqui agora. Você está entendendo? Eu pedi a você várias
vezes para não fazer piada com essas coisas, e você não me ouve. Você é pior
que o seu pai, que eu sei que você considera muito engraçado. Mas isso que você
está fazendo não é nem um pouco engraçado, é só uma demonstração de falta de
consideração... E não revire os olhos para mim! NÃO REVIRE OS OLHOS PARA
MIM! Você está entendendo? Eu quero que você saia desta casa agora.”
“Está bem, está bem.” Louis foi andando até o hall de entrada. “Mas vê se
manda um postal de Mônaco pra gente, está bom?”
Melanie foi atrás dele. O volume da televisão tinha sido diplomaticamente
aumentado. “Retire o que você disse!”
“Está bem. Não mande um postal de Mônaco pra gente.”
“Você realmente não faz ideia do quanto está sendo insensível, não é?”
Quando Louis ficava com raiva, em contraposição a quando apenas se sentia
coberto de razão, ele estufava o peito, levantava o queixo e olhava de cima do
nariz como um marinheiro ou um valentão querendo comprar briga. Fazia isso de
uma maneira inteiramente inconsciente; ficava com a cara mais séria do mundo.
E quando encarou a mãe, que afinal não era alguém que se pudesse imaginar
que fosse empurrá-lo ou lhe acertar um murro na cara, ele parecia tão
incongruentemente beligerante que a expressão dela se suavizou. “Você vai me
bater, Louis?”
Ele abaixou o queixo, sentindo mais raiva ainda por perceber que estava
apenas fazendo a mãe achar graça.
“Vai, me dá um abraço”, disse a mãe. Ela botou a mão no braço dele e a
manteve ali com firmeza quando ele tentou se soltar. Ela disse: “Eu não sou
egoísta. Você está entendendo?”.
“Claro.” A mão dele estava na maçaneta. “Você só está passando por um
momento difícil.”
“Exato. E ainda vai levar um tempo até mesmo para eu ver a cor desse
dinheiro.”
“Claro.”
“E quando o dinheiro chegar às minhas mãos, eu não sei quanto vai ser. A
quantia que você mencionou, e que deve ter sido o seu pai que disse pra você,
pode mudar muito. É uma situação muito complicada e desagradável. É uma
situação muito... muito desagradável.”
“Claro.”
“Mas seja lá quanto for, a gente vai poder fazer algumas coisas legais.”
“Claro.”
Ela não conseguiu mais controlar sua irritação. “Para de dizer isso!”
Uma bola de boliche atingiu vários pinos. A torcida vibrou. “Claro”, disse
Louis.
Ela soltou o braço dele. Sem olhar para a mãe, Louis saiu porta afora e a
fechou silenciosamente atrás de si. Ainda olhando fixamente para a frente, ele
foi andando com passos largos, passou pelo seu carro e começou a descer a pista
de entrada, com as pernas duras, deixando a gravidade fazer o trabalho,
deprimido do mesmo jeito como tinha ficado quando leu as notícias sobre o
terremoto oito dias antes, a depressão um isótopo da raiva: mais lenta e menos
violenta em sua dissipação, mas quimicamente idêntica. Quando o pai surgiu em
seu campo de visão, numa curva perto do final da pista, Louis mal reparou que
ele estava ali.
“E aí, Lou.” A cabeça de Bob estava incandescente em um ninho de Gore-Tex
e lã escocesa. Ele cheirava a maconha queimada.
“Oi”, disse Louis, sem diminuir o passo. Bob sorriu enquanto via o filho se
afastar e imediatamente esqueceu que o tinha visto.
A leste da casa dos Kernaghan, a área ficava ainda mais parecida com um
parque, os quintais cedendo espaço a propriedades com obstáculos para cavalos
nos pastos e trailers para transporte de cavalos nas pistas de entrada. Uma
aerodinâmica bota de esqui de fabricação japonesa passou zunindo por Louis.
Colado a uma janela estava o rosto de uma menina que usava um vestido cor-de-
rosa de ir à igreja. A bota freou, fez uma curva e desbotou um pouco no ar
branco ao subir uma colina. A menina saltou correndo pela porta corrediça,
carregando alguma coisa na mão, talvez um livro, uma Bíblia.
Dos seis aos quinze anos, Louis também havia voltado da igreja em
aproximadamente trezentas e cinquenta manhãs de domingo. Emergia do banco
traseiro do carro meio zonzo e com a sensação de ter perdido uma manhã inteira
de lazer, desperdiçada em salas de escola dominical subterrâneas que tinham a
mobília desarranjada e o cheiro de umidade de lugares frequentados apenas de
passagem. Nos primeiros anos, claro, foram feitos esforços para encobrir a
trapaça. Havia potes de cola e tesouras enferrujadas, figuras mimeografadas
retiradas de um livro de colorir e gizes de cera marrons para colorir o jumento
no qual Jesus estava montado. (Esses gizes de cera foram uma das primeiras
coisas a contribuírem para que Louis adquirisse uma noção da vastidão do
passado e da estranheza da história, seus formatos inusitados e envoltórios
encardidos e ressecados sugerindo que esse negócio de colorir jumentos era uma
atividade consideravelmente mais antiga do que sua própria vida e do que
qualquer coisa na escola de verdade, onde os materiais sempre eram novos.)
Havia música — em especial uma canção sobre como Jesus amava as
criancinhas do mundo, que tinham cores de giz de cera: vermelhas, amarelas,
pretas e brancas. Havia fabricação de artigos artesanais, como guirlandas de
isopor para o domingo do Advento, palmas de cartolina, objetos de cerâmica
para o Dia das Mães e (na manhã em que Louis deixou bambo o dente da frente
de um menino que estava usando sua tinta guache azul e milagrosamente não foi
punido por isso) estatuetas de gesso das figuras do presépio. Louis, porém, não se
deixava enganar por esse verniz de diversão, assim como não se deixava enganar
pelo gosto doce da pasta com que o dentista polia seus dentes. E, quando ele
chegou à sétima série, o verniz se dissolveu por completo. Ele ganhou uma Bíblia
com capa vermelha de couro falso e com o seu nome completo gravado em
letras douradas na frente: louis francis holland; além disso, passou a ter as aulas
das manhãs de domingo numa ala diferente da igreja e num cubículo ainda
menor e mais vazio do que os antigos, tendo a turma, por alguma razão,
diminuído muitíssimo de tamanho na transferência. Todos os seus amigos do sexo
masculino tinham ido embora e podiam agora passar as manhãs assistindo aos
desenhos animados de domingo dos quais ele próprio havia se tornado um grande
fã durante as férias de verão, de forma que ele ocupava sem concorrência a
posição de pior aluno de uma turma majoritariamente feminina na qual, não
havendo notas, ele deduzia sua colocação pelo fato de que, diferentemente de
todas as outras Bíblias, a sua havia imediatamente — e sem nenhuma ação
consciente da sua parte — adquirido uma lombada preta e esfiapada e um rasgão
num canto da quarta capa, para não falar no fato de ele ser convocado a ler
trechos da Bíblia em voz alta com uma frequência três vezes maior do que a de
qualquer outro aluno da turma e de ser constantemente aconselhado, num tom de
voz excessivamente gentil por um pai chamado sr. Hope, a participar mais da
aula e não ser tão tímido. Numa ocasião, a turma foi solicitada a descrever Jesus,
o homem, e uma menina disse que ele tinha sido frágil e gentil — uma
caracterização da qual o sr. Hope discordou, argumentando que esse filho de
carpinteiro precisava ser fisicamente forte a fim de derrubar as mesas dos
vendilhões do templo; Louis achou que, pela primeira vez, o frágil e gentil sr.
Hope tinha razão.
Muito embora o pai deles dedicasse as manhãs de domingo à natação e não ao
culto religioso, a escola dominical nunca pareceu ser algo opcional para as
crianças da família Holland. Durante nove meses por ano, Melanie pastoreava os
dois, na frente dela, do estacionamento até o alto da escada dos fundos da igreja,
dando um empurrão final nas costas deles em direção às suas respectivas salas
de aula, enquanto ela tomava o caminho do templo, para lá ocupar um banco
próximo ao púlpito, não porque essa proximidade fizesse dela uma cristã melhor
(isso cabia a Deus decidir), mas porque gostava que suas roupas fossem notadas.
Continuou a frequentar a igreja mesmo depois que os dois filhos alcançaram a
idade de quinze anos e se mostraram inconfirmáveis — Eileen porque garotas
que tinham vida social precisavam dormir até tarde no domingo e Louis porque
ele tinha choques de personalidade com absolutamente todas as pessoas da
igreja. Apesar dos dez anos de escola dominical, a única coisa que ele precisou
fazer para se livrar permanentemente de qualquer responsabilidade religiosa foi
simplesmente dizer: não, eu não acredito nisso. Era a prova final de que a
autoridade da Igreja simplesmente não se comparava com a da Secretaria de
Educação.
Tendo deixado para trás as fazendas de criação de cavalos, Louis agora estava
andando entre campos pantanosos e moitas densas e pretas de sarça.
Abandonado no meio de juncos mortos, parecendo grave e profético, estava um
balde de ferro completamente enferrujado. Como se tivessem acabado de bicar
os últimos nacos de carne de seu esqueleto, duas gaivotas se afastavam dele em
círculos. Louis ficou observando-as até suas asas se dissolverem na brancura do
céu e seus corpos se reduzirem à condição de moscas volantes na visão dele.
A estrada que levava à praia parecia se elevar rumo ao horizonte e evaporar.
Ela se estendia tão longa e reta que Louis começou a correr, livrando-se aos
poucos da rigidez de suas pernas e aumentando a velocidade progressivamente.
Pouco depois, enquanto ouvia sua respiração cada vez mais pesada e via o capim
e as plantas aquáticas dos charcos subirem e descerem com o movimento de sua
cabeça, começou a ter a sensação de estar assistindo a um filme, a uma cena de
um psicopata correndo atrás de uma moça vestida só com roupas de baixo, em
que o ponto de vista do assassino é filmado com uma câmera de mão em
movimento e muitos ruídos brônquicos na sonoplastia. Essa sensação foi ficando
tão forte e perturbadora, e o barulho de sua respiração tão alto em seus ouvidos,
que para recuperar o autocontrole Louis pôs-se a bradar: “Ah! Ah! Ei! Eu! Aqui!
Aqui! Ei!”. Isso resolveu o problema, mas alguma outra coisa devia estar
acontecendo, pois, quando passou por uma guarita e de repente estacou,
começando a andar em vez de correr, ele teve a impressão de que havia deixado
para trás não só o pântano, mas o próprio domingo, indo parar nas dunas de
algum obscuro oitavo dia da semana, de cuja existência ele era a única pessoa no
mundo que tinha conhecimento.
Uma sirene ecoava dentro de sua cabeça. O céu (se céu era a palavra para
designar uma coisa que começava imediatamente adiante de seus olhos) ainda
continuava tomado pela mesma brancura uniforme, mas agora parecia que o sol
estava pairando logo além do limiar da visibilidade, à distância de um voo de
flecha e em tamanho de porção individual, e que, quando a neblina se
dispersasse, as fronteiras adjacentes de um mundo em miniatura iriam se
revelar, um pacífico vácuo em forma de regato agora se estendendo atrás de
Louis na direção de onde ele tinha vindo, a direção do domingo, de sua mãe e da
riqueza dela.
Louis adentrou um estacionamento cujo perímetro estava sendo guardado por
um destacamento de barris verdes, nos quais se lia uma única palavra: favor.
Mais perto do mar, moitas de capim de praia pareciam suspensas no ar, as dunas
que as sustentavam, invisíveis. Ele tinha a impressão de sentir em seus pés o
impacto das ondas, o leve tremor. A sirene saiu de sua cabeça e se localizou num
solitário Chry sler Le Baron em forma de tamanco, estacionado no canto oposto
do estacionamento. O alarme contra roubo tinha disparado. Pouco depois o
alarme parou de tocar, mas tinha distendido alguma coisa dentro da cabeça de
Louis, algum aparato semelhante a um músculo que continuou a latejar depois
que o barulho cessou.
Louis ainda estava tentando descobrir em que tipo de lugar estava quando um
animal preto surgiu detrás de um barril de lixo e veio correndo em sua direção.
Era uma cadela labrador, com tamanho de adulta. Ela passou por ele derrapando
e parou numa postura brincalhona, com a cabeça mais baixa do que o rabo. Em
seguida, pulou em cima dele. Louis tirou as patas dela de cima de seu peito, mas
era como tentar se livrar de uma bola de borracha: as patas quicavam de volta
para as mãos dele assim que tocavam o chão. Numa das plaquinhas penduradas
em sua coleira, havia um número de telefone com código de área de
Massachusetts e o nome jackie. Não havia nenhum dono à vista. Ela o seguiu,
companheira, por um passadiço de madeira e depois até a areia, farejando as
pegadas que ele ia deixando.
A praia estava encharcada de chuva e deserta. Ondas marrons paravam no
meio do caminho, cada uma delas como uma fracassada jogada de quarterback,
as forças opostas se confundindo e morrendo sem surtir efeito algum. Bem longe
do estacionamento, num ponto em que a praia se alargava e um córrego
arrastava lama rica em ferro detrás das dunas, a cadela de repente disparou a
correr. Virou a cabeça com força para o lado como se quisesse olhar para trás
na direção de Louis, mas também não quisesse diminuir a velocidade, e então,
sem dar nem mesmo essa pequena mostra de hesitação, pôs-se a correr mais
rápido ainda pela praia afora e desapareceu.
Louis sentiu uma pontada de genuína solidão nesse momento. Sentou numa
pedra e apoiou o queixo na mão. O mar arfava como uma pessoa enferma; um
longo tempo se passava entre o impacto de uma onda e o som tranquilizador da
onda seguinte. A espuma das ondas quebradas era escura, saturada de areia
suspensa e matéria orgânica. Olhando na direção em que a cadela havia corrido,
tudo o que Louis conseguia ver era areia, água e neblina.
Embora ele tivesse rido, não fora nenhuma surpresa para Louis saber que
Eileen já havia tentado tirar proveito dos novos recursos da mãe. Desde bem
nova, Eileen desenvolvera a capacidade de implorar coisas de Melanie e
conseguir conviver consigo mesma depois. Quando os dois eram adolescentes,
era comum Louis passar por Eileen na escada e vê-la dobrando uma ou mais
notas de vinte e, depois, na sala de jantar, encontrar outros indícios de que uma
transação fora realizada, a bolsa materna ocupando um novo lugar na mesa e sua
dona visivelmente empenhada em se recompor e com uma mensagem para ele
nos olhos: A carteira já foi guardada, então nem pense em vir me pedir alguma
coisa você também. O que era curioso, porque ele nunca realmente pedia nada,
nem mesmo quando tinha uma necessidade mais premente do que a necessidade
de Eileen de comprar mais uma roupa da Benetton ou mais uma entrada para
um show. E nunca pedia porque de alguma forma sempre parecia que Eileen
havia sido mais rápida que ele e pedido antes. Mas, na verdade, não devia ser
uma questão de timing, uma vez que, sempre que lhe ocorria pedir, ele sempre
achava que seria melhor esperar mais um pouco, já que Eileen tinha pedido fazia
tão pouco tempo, e, enquanto ele esperava, ela ia lá e pedia de novo e recebia de
novo. Estava claro que, se de fato havia chegado mais rápido que Louis ao
dinheiro da mãe, Eileen fizera isso muito tempo atrás e de forma definitiva.
Fatalmente chegaria o dia em que eles se cruzariam no corredor e não
passariam um pelo outro em silêncio. Esse dia chegou no mesmo verão em que
Eileen deixou o carro cair no lago. Louis acabara de cortar a grama e, no
corredor de cima, viu Eileen com as costumeiras notas de vinte na mão,
dobradas em quatro e carregadas com o ar blasé de um cachorro vitorioso que
sai de uma briga com o disputado pedaço de carne assada nos dentes. O
ressentimento acumulado e a feia imagem dos dedos apertando as notas de vinte
fizeram Louis perguntar: “Quanto é que você tem aí?”. Ela disse: “Quanto é que
eu tenho onde?”. E ele respondeu: “Na sua mão. Talvez você queira dar uma
dessas notas de vinte pra mim”. Ela olhou para Louis como se ele tivesse
sugerido que ela tirasse a blusa. “Nem pensar! Por que é que você não pede pra
você? Eu pedi esse dinheiro pra mim.” Ele disse: “Pois é, você acabou de pedir,
então o que é que eu faço agora?”. Ela disse: “Eu pedi esse dinheiro pra mim.
Você pode ir lá e pedir pra você”. E ele disse: “Eu não estou a fim de pedir. Eu
gosto de ganhar o meu dinheiro”.
Era como se ela tivesse sabido a vida inteira que aquele momento chegaria.
Seu rosto ficou vermelho de ódio, ela jogou as notas envenenadas nos pés do
irmão e bateu a porta do quarto dela atrás de si. Mais tarde, de seu próprio quarto,
Louis ouviu a mãe dizer: “Eileen? Eileen, meu bem, você deixou o seu dinheiro
cair aqui no chão”.
Na verdade, Melanie talvez tivesse preferido ser mais igualitária,
principalmente se isso não significasse ter de desembolsar mais dinheiro. Com
certeza ela aproveitava os pedidos de Eileen como oportunidades para criticar o
egoísmo da filha e sugerir que ela tomasse Louis e seu espírito independente
como modelo. Mas, como um de seus filhos não fazia absolutamente exigência
nenhuma, tornou-se não só financeiramente viável, mas também pessoalmente
mais cômodo simplesmente dar à outra filha tudo o que ela queria. Eileen tinha
uma capacidade fora do normal para ficar muda e má quando alguma coisa lhe
era negada. Sentava-se à mesa de jantar e ficava olhando fixamente para as
roupas e para as joias de Melanie durante tanto tempo e com tanta raiva que
conseguia envenenar até os prazeres mais simples da mãe. E não desistia até que
uma quantia em dinheiro ou o equivalente em mercadorias lhe fosse oferecido.
Era uma coisa desagradável, essa conspiração entre mãe e filha, mas
funcionava. O objetivo da conspiração era não deixar que o dinheiro fosse
envenenado e, para atingir tal objetivo, bastava manter tudo longe das vistas de
Louis, já que o pai podia satisfazer seus poucos desejos pessoais por meio de
saques diretos e, afora isso, deixava todo o resto para Melanie. Só Louis — o
esquisitão e rabugento do Louis — tinha o poder de envenenar o dinheiro. O
conforto dos outros membros da família dependia da contenção dele. E ele
exercia essa contenção e permitia deliberadamente que Eileen fosse mimada, e
só uma vez, quando a confrontou no corredor de cima, veio à tona algum sinal de
todo o veneno que vinha se acumulando dentro dele.
Eileen estudou no Bennington College. Era a melhor das faculdades em que ela
fora aceita e era a faculdade que Judd, seu namorado de Lake Forest, escolhera
cursar. Era também a instituição de ensino de graduação mais cara do país.
Eileen e Judd terminaram o namoro antes mesmo de chegarem à orientação
oferecida aos alunos novos.
Dois anos depois, Louis entrou para a Universidade Rice. A Rice era barata e
tinha oferecido a ele um bom pacote de auxílio financeiro. Louis trabalhava
dezessete horas por semana atrás do balcão de empréstimos da biblioteca, o que
teve o estranho efeito de tornar seu rosto amplamente conhecido no campus.
Também jogava pôquer avidamente e registrava suas perdas e ganhos num
caderno; ao fim de seu penúltimo ano de faculdade, sua média semanal de
ganhos ao longo daqueles três anos eram respeitáveis US$ 0,384. Mesmo assim,
ele ainda continuava acumulando dívidas e, então, quando surgiu uma
oportunidade de cortar despesas drasticamente durante seu último ano de curso,
ele a agarrou primeiro e só parou para pensar se a decisão era sensata ou não
depois, quando seus problemas já haviam começado.
O pai o havia posto em contato com um antigo conhecido seu da época da pós-
graduação, um homem chamado Jerry Bowles, que lecionava na Rice e morava
com a mulher numa casa situada alguns quarteirões a oeste do campus, na
Dry den Street, ao sul da Shakespeare e ao norte da Swift. O sr. Bowles havia
descoberto que tinha um problema cardíaco e estava à procura de um estudante
que se dispusesse a fazer trabalhos pesados de jardinagem durante a primavera e
o outono em troca de hospedagem e comida. Louis parecia ser o candidato ideal
para o posto. Quando ele voltou para Houston no final de agosto, os Bowles foram
buscá-lo no aeroporto.
Durante a entrevista que fizeram com ele na primavera anterior, os Bowles
tinham sido sucintos e objetivos, mas agora que Louis havia chegado, como um
brinquedo encomendado por catálogo, eles pareciam crianças afoitas para
desembrulhá-lo e ver se ele funcionava do jeito como elas esperavam. Eles
tinham um brinquedo de fabricação própria, uma filha única, mas ela estava
cursando uma universidade longe de casa e, ao que parecia, já não era mais tão
divertida de brincar. Louis era o novo alvo do entusiasmo dos dois. Na primeira
noite, durante o jantar, eles ficaram editando as declarações um do outro:
“A Mary Ann vai ter muito prazer em fazer o seu almoço...”
“Jerry , não existe possibilidade de eu não fazer almoço, nós oferecemos a ele
pensão completa...”
“Você tem algum tipo de pote de plástico em que você possa...”
“Louis, eu estou sempre em casa. Eu estou sempre em casa, então, sempre que
você quiser vir para casa, não faz absolutamente diferença alguma...”
“Só em relação à hora do jantar é que nós podemos ser um pouco mais
rigorosos...”
“Jerry , por que, Jerry , por que você...”
Sentado entre os dois à mesa, Louis comeu sua costeleta de porco e ficou na
dele, como costumava fazer no trem de Chicago quando algum maníaco resolvia
discursar. Ele cometera um erro, percebia isso agora. Tinha entrado no vagão
errado. Mas não estava fazendo aquela viagem por prazer, mas sim para
economizar dinheiro.
O sr. Bowles tinha uma barba branca bem aparada e um cachimbo que ele
mastigava com frequência e de vez em quando ainda fumava. Quando não
estava dando aula de linguística, ele vistoriava sua propriedade à procura de
ervas daninhas, galhos secos, pedras de calçamento soltas, torneiras gotejantes,
tábuas de assoalho rangentes, portas emperradas, telas de mosquito rasgadas e
janelas sujas. Seus martelos, serrotes e alicates ficavam pendurados num painel
perfurado no qual o contorno de cada ferramenta fora desenhado com caneta
hidrocor preta. Ele não parecia ter nem amigos nem hobbies. Gostava de
explicar a Louis como as coisas eram feitas na casa dele. Racionalizava em
detalhes todos os aspectos da maneira como sua mulher cozinhava, relatando
como ela havia passado a preparar os legumes no vapor em vez de cozê-los,
como conseguira descobrir o segredo para fazer um purê de batata mais
cremoso e como, com o passar dos anos e com as informações que ele lhe
trouxera, ela chegara à decisão de não servir carne mais que duas vezes por dia.
Descrevia métodos ergonômicos de guardar as louças e ler jornal. Um tema
recorrente era o depurador de água e os inúmeros benefícios que ele trazia. Louis
ouvia essas explanações com uma pena que beirava o horror.
“Veja a cara com que ele está olhando para você”, Mary Ann dizia. “Jerry,
repare no jeito como o Louis está olhando para você.”
“Tem alguma coisa errada?”, perguntava um sr. Bowles potencialmente
amuado.
“Talvez ele já tenha ouvido o suficiente sobre água depurada por hoje”, dizia
Mary Ann.
“Desculpe”, dizia Louis, sacudindo a cabeça como se tentasse livrá-la de teias
de aranha. “Eu estava pensando em... outra coisa.”
Mary Ann piscava os olhos. “Talvez numa torta de blueberry com sorvete?”
Mary Ann era mais nova que o marido. Usava xales, sandálias e vestidos de
estampas florais com decotes generosos para realçar seus seios grandes e
riscados de veias azuis. Podia ser encontrada com frequência, em absoluto
silêncio, num canto da reluzente lavanderia onde ela passava camisas, fronhas e
roupas de baixo. A casa era cheia de lugares em que Mary Ann sentava e
descansava. Ela mantinha livros perto de todos esses lugares e podia às vezes ser
vista pousando um deles (Sigrid Undset, Edith Wharton, D. H. Lawrence), mas os
marcadores de página pareciam estar sempre no mesmo lugar. Os almoços que
ela preparava e embalava para Louis levar para a faculdade eram de um
capricho extremo: sanduíches de pão de centeio integral, palitinhos de cenoura,
melancia em conserva, peras suculentas, fatias de bolo caseiro. Os almoços que
ele preparava para si em Evanston geralmente consistiam num sanduíche de
mortadela no pão branco, uma banana, um pacote de Twinkies quando havia
algum na despensa e um saco de batata frita Del-Mark. Em toda a sua vida, Louis
nunca tinha visto batatas fritas Del-Mark em lugar algum, a não ser na cozinha de
sua mãe.
Procurando agir com tato, ele esperou quatro dias inteiros antes de informar a
Mary Ann que não pretendia jantar na Dry den Street. Disse que seria melhor se
ele embrulhasse tanto o almoço como o jantar para levar para a faculdade.
Mary Ann claramente já estava esperando por isso. “Eu embrulho tudo”, disse
ela, com tristeza. “Embora eu não tenha como alimentá-lo muito bem com
pacotinhos.”
Louis esclareceu que não era que ele não fosse gostar de jantar em casa, mas
precisava se dedicar à sua dissertação de final de curso e às suas tarefas como
diretor da ktru.
“Bem”, disse Mary Ann, “quem sabe se aos domingos não daria para você
jantar aqui com a gente? Ou qualquer outro dia que lhe der vontade.”
Essa não seria a última vez que ele revisaria a lógica: (1) ele precisava ser
gentil porque (2) estava fazendo um bom negócio morando ali e, (3) portanto,
evitando contrair dívidas. “Aos domingos dá sim, claro”, disse ele.
Fazia quinze anos que ninguém preparava o café da manhã para Louis
regularmente, e ele nunca na vida tinha visto nada parecido com os cafés da
manhã que Mary Ann preparava. Ela lhe servia pãezinhos frescos, muffins de
aveia frescos, muffins de milho frescos, bacon fatiado. Servia panquecas de
framboesa, salsichas de vitela temperada com funcho, rabanadas, suflê de queijo
e bife com ovos. Servia ovos mexidos com cebolinha e creme de leite azedo,
ovos Benedict, cereais integrais com leite quente, creme e açúcar mascavo,
toranja assada, pão caseiro com canela e passas, pêssegos em calda com sorvete
de creme, fatias de melão com morangos por cima. Depois de servir a comida,
Mary Ann se sentava e tomava café em silêncio, virada de lado para Louis,
mostrando-lhe seu perfil, seus seios protuberantes. Os termos do problema moral
ficavam muito nítidos para Louis toda vez que ele vinha para a mesa: Seria
melhor não aceitar essa comida. Mas ele estava com fome e a comida parecia
deliciosa. Ele continuou a tomar os cafés da manhã mesmo depois que a pena
que ele sentia de Mary Ann começou a dar lugar a algo mais próximo da aflição.
Foi um mau momento aquele em que ele descobriu que ela vinha cerzindo suas
meias. E foi um momento pior ainda quando um dj da ktru abriu o saco onde
estava o jantar de Louis e encontrou o pote de plástico em forma de fatia de torta
que ele já tinha dito inúmeras vezes que não queria levar e um bilhete de
Mary Ann dizendo: Que tal você comprar um pouco de sorvete para acompanhar
a torta?
Numa noite de sexta-feira em janeiro, ele voltou para casa à meia-noite com
a cabeça cheia de tequila e encontrou Mary Ann ajoelhada na sala de jantar,
tirando sua coleção de xícaras e pires de porcelana inglesa de dentro do
aparador. “Como vai o meu coroinha?”, ela disse. Ela achava que o seu eterno
uniforme de calça preta com camisa branca fazia com que ele parecesse um
coroinha. Ela disse para ele sentar. Ele sentou, com o corpo inclinado na direção
para onde ele queria ir: escada acima. Ela tirou peça por peça de dentro do
armário, murmurando que devia se livrar daquilo tudo, vender tudo, aquela
quantidade estúpida de xícaras, ela nem sabia quantas. Por fim, ficou ajoelhada
no meio da coleção inteira, as borlas de seu xale espalhadas em leque em volta
dela. “Leve algumas”, ela disse com raiva, depositando uma xícara e um pires
no colo de Louis. “Leve duas, leve quatro. Quem no mundo ia querer essas
xícaras? Você não quer essas xícaras.”
“Claro que quero.” Louis suava, pálido. “Elas são bonitas.”
“Sabe, eu era apaixonada pela Inglaterra”, disse ela. “Pelo país inteiro. Eu
achava que seria considerada bonita lá, ou que a beleza não iria importar. Como
se lá fosse uma espécie de segunda divisão antiga e maravilhosa onde eu iria
brilhar.”
“Você é bonita”, a tequila disse.
Mary Ann sacudiu a cabeça. “Quando terminei o meu mestrado em literatura
inglesa, eu estava morando em Nova York e fui trabalhar na Duncan McGriff
Agency, que era uma grande agência literária. Suponho que nós tivéssemos
alguns clientes famosos, mas a forma como a agência realmente ganhava
dinheiro era cobrando taxas para ler originais. Eu não era uma leitora. Eu era a
pessoa que pegava os relatórios dos leitores e os transformava em cartas
personalizadas do próprio Duncan. Eu tinha uma folha com umas vinte maneiras
diferentes de personalizar as cartas, por exemplo, dizendo que ele tinha lido o
manuscrito sentado em casa à beira da piscina, onde os seus três filhos queridos
brincavam. Ou que ele tinha lido o manuscrito no alto de uma montanha,
enquanto testemunhava um glorioso pôr do sol. Isso é literalmente o que eu tinha
que escrever. Mas o mais triste era que, não importava o quanto um manuscrito
fosse ruim, eu sempre tinha que dizer que a obra era muito promissora, mas
ainda não estava numa forma comercialmente vendável. E existiam várias
gradações nisso, porque havia pessoas dos mais diversos lugares do país —
pessoas inocentes do Nebraska — que mandavam os manuscritos delas para nós
uma porção de vezes e pagavam sempre a taxa inteira, e nós nunca podíamos
dizer nem sim, nem não. O que era exatamente o que o Duncan fazia comigo,
mas isso é outra história. Eu trabalhei lá cinco anos. E ainda estava lá sentada na
minha cadeirinha, atrás da minha mesinha, no dia em que o Departamento de
Justiça foi até lá e fechou a agência por uma coisa pior ainda que nós estávamos
fazendo. E, Louis, eu tinha vinte e oito anos quando isso aconteceu. Foi como se
eu tivesse levado uma punhalada! É engraçado, mas até hoje vinte e oito anos
me parece a idade de uma pessoa velha, como se eu nunca tivesse sido tão velha
e solteirona quanto fui naquele ano. Eu não conseguia acreditar, quer dizer, o que
tinha acontecido com aqueles anos? Mas, enfim, depois eu me casei com o Jerry
e foi aí que eu realmente comecei a entrar em pânico, porque a sensação não foi
embora. A sensação de que eu tinha perdido a minha chance de ter a vida que
queria. Eu continuava sem saber o que fazer, só que agora era pior, porque agora
eu estava casada. Não era tanto porque o Jerry... bem, você conhece o Jerry.
Não era culpa dele. Eu sabia como ele era e me casei com ele. A culpa era
minha. E você sabe que, depois que você se convence de uma coisa, depois que
você bota na cabeça que tem insônia, fica ainda mais difícil pegar no sono?”
Louis estava rodando lentamente em direção ao centro de sua xícara de chá
vazia. Mary Ann lhe lançou um olhar cheio de tristeza e preocupação, como se
fosse dele, e não dela, que ela sentia pena. “Bem”, ela disse com uma voz mais
baixa, “quando vi que nada tinha mudado depois que me casei, eu botei na
cabeça que nada nunca ia mudar. Fiz o Jerry me odiar e aí disse pra mim
mesma: eu tenho um marido que me odeia. Você entende? Existe uma solidão
que você pode pegar como uma doença e da qual você nunca se livra. Um
desacerto — um desacerto que você nunca consegue consertar. E foi a mesma
coisa quando nós adotamos a Lauren. Como sempre, a ideia foi minha. Eu queria
parar de desmoronar, e se tinha uma coisa que eu sabia era que eu nunca tinha
visto uma mulher que não amasse o seu bebê. Mas Louis...” Lágrimas vieram
aos seus olhos e à sua voz, mas depois recuaram. “Eu não tinha fé! Eu não tinha
fé! Durante todo o processo na agência de adoção, eu me sentia fria, morta por
dentro. Eu tentava racionalizar. Dizia pra mim mesma: tudo vai mudar assim que
eu segurar a minha neném no colo (ou o meu neném, nós não sabíamos). Mas no
fundo, no fundo, só o que eu pensava era: talvez isso também não dê certo. Talvez
eu seja a única mulher no mundo que nem a maternidade consegue modificar.
Era isso que eu sentia, no fundo do meu coração, mas nem assim eu interrompi o
processo. Mesmo sentindo um embrulho no estômago cada vez que a gente se
comunicava com a agência. Mesmo ficando embrulhada uma semana inteira, de
culpa e da tensão de fingir sentir uma coisa que eu não sentia. E aí, quando ela
veio... bem, já foi uma certa decepção saber que ela tinha oito meses. Sabe, é
óbvio que o bebê de oito meses ia calhar justo pra mim.”
Ela apertou os braços cruzados contra os seios e balançou o corpo de leve.
Louis se perguntava vagamente o que haveria de tão errado no fato de um bebê
ter oito meses, mas...
“Mas era isso ou nada, e você sabe que eu e o Jerry não discutimos as coisas,
só culpamos um ao outro depois. Mas isso não foi o pior. O pior era que a Lauren
sabia. Mesmo quando ainda era bem pequenininha, ela já sentia a minha
insegurança. Ela sentia que eu não acreditava realmente que era a mãe dela.
Não importava o quanto me esforçasse, eu não conseguia fazer com que nós
acreditássemos em mim. E como eu poderia culpá-la depois por todas as coisas
que ela me fez? Por me morder que nem um bicho? Pelos palavrões horrendos?
Pela preocupação e pelo pânico que eu sentia quando ela não voltava para casa?
Como eu poderia sentir qualquer outra coisa senão culpa? A culpa, Louis, era
maior que tudo. Saber que essa era a nossa vida, a nossa única vida, e que aquilo
era o que eu tinha feito dela. Eu não ia ter outra chance. Você entende?”
Ela ergueu os olhos para ele com uma expressão de súplica, inclinando-se para
a frente, parecendo querer depositar os seios aos pés dele. Devia ter esquecido
com quem estava falando. Devia de algum modo ter imaginado que, quando
erguesse o rosto para olhar para ele, Louis iria tomá-la nos braços e salvá-la. Mas
só o que viu foi um garoto, um universitário bêbado tentando engolir um bocejo.
“Ah, meu Deus.” Ela desviou os olhos, furiosa consigo mesma. “Por que, por que
eu ainda insisto em abrir a minha boca?”
Depois daquela noite, as coisas entre eles passaram a ser mais diretas, mais
como eram entre Louis e a mãe, mais realistas. Mary Ann não ficava mais
observando Louis tomar café; tendo se explicado a ele, ela agora podia se dar ao
luxo de ficar em qualquer lugar da casa. Ele era parte da família agora —
família querendo dizer ação à distância, campos de força invisíveis que
atravessam paredes. Louis começou a contar as semanas que faltavam para se
ver livre da Dry den Street.
Durante os feriados da Páscoa, os Bowles insistiram para que ele trouxesse
alguém para jantar, a fim de ajudá-los a acabar com a bandeja de carne de rena
que um colega do sr. Bowles havia trazido para eles da ilha Ellesmere. Louis
convidou uma amiga sua, uma dj da ktru com quem ele vinha aprendendo coisas
sobre Wagner e Richard Strauss e com quem, numa conveniência mútua, vinha
passando algumas tardes numa cama de dormitório. Mary Ann parecia ter intuído
essa circunstância. Enquanto eles comiam a carne de rena assada, Mary Ann
tratou a garota com uma condescendência implacável, enaltecendo em especial
a beleza do cabelo dela, como se estivesse subentendido que, em termos de
aparência, o cabelo era o único trunfo de que ela dispunha. Mais tarde, quando
ele a acompanhou a pé até o dormitório, a amiga comentou que não tinha ido
muito com a cara da sra. Bowles. “Ela é maluca”, Louis disse. “Os dois são
malucos.” Mesmo assim, tinha sido plantada na cabeça de Louis a ideia de que a
amiga talvez não estivesse à altura dele e, em pouco tempo, ele próprio começou
a tratá-la com condescendência e depois a evitá-la completamente.
Na manhã seguinte, Louis acordou bem tarde e com um enjoo que ele
associou ao gosto questionável da carne de rena. Quando saiu do quarto para o
corredor, vestindo seu short de ginástica e sua camiseta cinza, ele levou alguns
instantes para notar a garota que estava encostada numa parede do quarto depois
da escada. Foi como aquele momento em que você se dá conta de que há um
pássaro dentro da sua casa e que ele, por acaso, está parado agora, mas poderia
voar de encontro a sua cara a qualquer instante. O ponto do quarto em que a
garota estava parada era exatamente o tipo de insignificante ponto arbitrário onde
um pássaro desorientado poderia pousar e onde o próprio Louis, em Evanston,
podia ser encontrado com frequência. A garota estava usando uma camiseta
regata preta e justa e uma minissaia xadrez cinza e branca; tinha um cúmulo-
nimbo de cabelo louro-escuro de loura burra, longas pernas nuas, meias três-
quartos verdes e sapatos lustrosos. Seus punhos estavam cerrados e sua
mandíbula retesada. Seu peito arfava com o que parecia ser fúria. Ela lançou um
olhar fuzilante em direção a Louis, e o coração dele saltou com tanta violência
quanto teria saltado se, de repente, asas estivessem batendo nas paredes e duas
garras e um bico estivessem vindo na direção de seus olhos.
Ele fugiu para o banheiro. Lavou o cabelo no chuveiro, mas esqueceu de lavar
o resto. Ficou parado, nu, olhando para o Waterpik dos Bowles durante alguns
minutos e depois começou mecanicamente a tomar outro banho. Lavou o cabelo
de novo e novamente esqueceu de lavar qualquer outra coisa. Era como se ele
tivesse subitamente se visto à beira de um lago escuro e fundo denominado
lauren, dito “dane-se” e se deixado cair lá dentro.
Uma hora depois, descendo os últimos degraus da escada, ele trocou ois com
outro rosto novo, o de um rapaz texano com uma fisionomia franca e aberta e
cabelo cortado em estilo militar, que estava lendo o jornal na sala de estar.
“O seu almoço está na mesa, Louis”, Mary Ann disse em voz baixa na cozinha.
Louis ficou olhando para ela. Como alguém tão irrelevante podia existir? Onde
estava Lauren? Ele ia ter de almoçar com Lauren? Apontando vagamente para
leste, ele disse: “Eu tenho que ir para a estação”.
“Você quer que eu embale a sua comida? Nós já íamos nos sentar pra
comer.”
Louis sentiu uma mão entre as suas omoplatas: o sr. Bowles o empurrando de
leve em direção à mesa da cozinha. “Dez minutos não vão fazer diferença.
Sente-se um instante e abasteça o motor.”
“A estação não vai ficar fora do ar essa semana?”, perguntou Mary Ann.
Cortado ao meio diagonalmente, um sanduíche de carne de rena esperava por
Louis. Os dois Bowles mais velhos atacaram seus respectivos sanduíches com um
apetite atípico, ignorando as vozes que vinham da sala de estar e os ruídos de
passos pesados na escada, mastigando com força e de cabeça torta, como
animais famintos e nervosos levados a se esconder num canto da casa por uma
filha que, com um andar relaxado e sem nenhum indício aparente de
constrangimento, entrou na cozinha justo na hora em que um naco duro de carne
de caça deslizou rumo à terra de ninguém entre o sanduíche de Louis e sua boca.
“Lauren, esse é o Louis. Louis, essa é a nossa filha, Lauren.”
“Humpf”, disse Louis.
“Oi, prazer em te conhecer”, Lauren disse num tom monocórdio. Ela estava
longe de ser o caos e o terror que Mary Ann havia levado Louis a imaginar. Seu
bronzeado eterno, seus brincos de turquesa, seu relógio do Mickey e o jeito
preguiçoso como ela inclinava o quadril para o lado, tudo a marcava como uma
típica universitária rebelde e farrista do Texas. Ela tinha pele macia, uma boca
larga e olheiras cor de iodo que pareciam permanentes. Havia escrito alguma
coisa com caneta nas costas da mão. Disse aos pais que ela e Emmett iam de
carro até Galveston passar a tarde na praia. Antes de sair da cozinha, ela parou
para olhar Louis de cima a baixo — seus óculos de aviador, seus cachos de
cabelo ralo, seu sanduíche desmantelado, seu rubor abrasador. O rosto dela ficou
simplesmente vazio.
“Nós temos uma relação muito aberta com a Lauren”, o sr. Bowles explicou
depois que ela foi embora.
“O Emmett é noivo dela”, o sr. Bowles acrescentou.
“Nós não sabíamos que ela vinha para cá”, o sr. Bowles esclareceu.
“Ela é um espírito inquieto”, disse o sr. Bowles.
“Nossa! Cheia de energia. Cheia de vida”, o sr. Bowles refletiu.
Mary Ann enterrou os dentes em seu último pedaço de sanduíche.
“Espero que o Emmett não a deixe dirigir”, o sr. Bowles concluiu.
Quando Louis voltou para casa naquela noite, os três Bowles e Emmett
estavam tomando sorvete na sala de jantar. Em silêncio, Mary Ann se levantou
para ir buscar o jantar dele na cozinha. “Eu já comi”, disse Louis, já na escada.
Chegando ao topo dela, ele parou por tempo suficiente para ouvir Lauren dizer:
“Imagino que ele estude o tempo todo, não é?”
“Ele é um rapaz aplicado”, o sr. Bowles declarou.
“Puxa, isso é ótimo”, disse Lauren.
Isso foi só o que ele ouviu. De boca aberta, olhos arregalados, ele fechou a
porta de seu quarto, desabou no chão e se estendeu ali mesmo. Não tinha vontade
de sair dali. Em sua febre, ouviu Lauren e Emmett saírem para ir ao cinema e
voltarem à meia-noite. Ouviu uma cama de armar sendo aberta para Emmett no
escritório do sr. Bowles e, depois, um sonho febril de vozes, música, passos e
portas se abrindo e se fechando que pareceu durar a noite inteira e envolver
dezenas de pessoas.
No dia seguinte, numa loja de discos da Main Street, Louis estava examinando
os lps de Thelonious Monk a serviço da estação quando se deu conta de que
Lauren Bowles estava no corredor ao lado. Ela estava de costas para ele. Ela
estava usando uma camisa de homem e movendo de leve a cabeça no ritmo da
batida drum machine do brit-pop otimista que vinha do stereo da loja. Pôs um par
de cds de volta na prateleira, entre artistas de jazz –b–, e correu os dedos por
Coleman, Coltrane, Corea. Depois, se debruçou de novo sobre os Bs. Por duas
vezes fez um movimento curto e brusco com o ombro, como se, de costas para
Louis, estivesse torcendo o pescoço de pequenos animais, e logo em seguida foi
andando em direção à porta da loja, dando uma olhada nos engradados de
lançamentos perto das caixas registradoras, e saiu.
Do lado de fora, Louis a viu apoiar um joelho no chão e amarrar o cadarço de
um de seus tênis entre dois carros estacionados. Presas raramente deixam um
caçador chegar tão perto quanto ele chegou dela naquele momento. Ele estava
uns cinco metros atrás dela quando Lauren abriu o último botão de sua camisa e
deu à luz dois cds roubados, que caíram em cheio dentro de sua bolsa. Ela fechou
a aba da bolsa sobre os cds e atravessou a rua no meio do trânsito.
Era o sábado antes da Páscoa. Todos os prédios da Rice estavam fechados.
Louis voltou para a Dry den Street com suas compras e encontrou Mary Ann
fazendo toffee, uma enorme panela de sopa de toffee, que enchia a casa com
um cheiro cáustico de manteiga e açúcar. No seu quarto, Louis abriu o segundo
volume das cartas reunidas de Flaubert em cima de sua mesa. Não tinha lido
nem uma única palavra do livro quando, uns quinze minutos depois, a porta atrás
dele se abriu e logo depois se fechou.
Lauren estava parada com uma mão esquecida na maçaneta, o último botão
de sua camisa ainda aberto, seus olhos vasculhando o quarto com o ar pensativo
de quem maquina alguma coisa. Depois de alguns instantes, ela se sentou em
cima da mesa de Louis e, dobrando o corpo lateralmente, se apoiou no Flaubert.
A lombada do livro rachou de modo audível. “É senhor cê-de-efe”, disse ela. “É
esse o seu nome, não é?” Por um momento, ela monitorou Louis atentamente, à
espera de reações.
“Cadê o Emmett?”, ele perguntou.
Ela se inclinou para trás sobre os braços esticados, derrubando um pote de
canetas. “Foi visitar o avô em Bay City. Ele me perguntou se eu queria ir, o que
foi, sabe, um convite muito tentador, já que eles ficam o tempo inteiro falando
sobre como o avô dele está da cor de uma cenoura. Ele tem uma doença, sei lá
qual.”
“Icterícia.”
“Uau. Você sabe tudo mesmo, hein.”
Louis mantinha os olhos fixos nos dela e os dela evitavam os dele.
“Viu o meu anel?” Ela botou a mão esquerda na frente da cara dele. “Custou
três mil dólares. É um diamante de 0,75 quilate. Gostou?”
“Não.”
“Não? Por quê? O que é que tem de errado com ele?”
“Essas garrinhas feiosas, pra começar.”
“Ah.” Ela recolheu a mão e, impassível, examinou o anel de vários ângulos
pouco esclarecedores. Seus dentes eram separados uns dos outros por pequenos
espaços regulares. “É, elas são meio feiosas mesmo, não são? Você é um cara
muito observador, imagino.”
Esquecendo o anel, ela girou o corpo para pegar um livro de uma prateleira,
seus joelhos se erguendo para equilibrar o peso. “Que livro é este?” Ela
escancarou um estudo crítico a ponto de a primeira e a quarta capas se
encostarem e um maço de folhas cair no colo de Louis. “Ui! Desculpe. Ei, isso é
francês! Você lê francês? Você pode dizer alguma coisa pra mim em francês?”
“Não.”
“Por favor?” Sua voz tinha passado do tom de zombaria para o tom
monocórdio típico de uma garota que acha que um cara está sendo babaca e
quer saber se não dá para ele, tipo, parar? Por favor?
“Je ne veux pas parler français avec toi. Je veux commettre crimes avec toi.”
“Nossa”, ela disse com profundo sarcasmo. “Você é bom!”
O cheiro de toffee fazia o nariz e os olhos de Louis arderem. O cansaço da
noite mal dormida o assaltou de repente. Ele não tinha nada a dizer. Lauren
levantou uma perna e saltou com leveza da mesa para o chão. “Você gosta
daqui?”, ela perguntou. “Você gosta dos meus pais?”
“Imagino que você ache que eu gosto, não acha?”
Ela não respondeu. Seus ombros tinham ficado tensos; ela estava olhando para
a porta; tinha ouvido algum barulho no corredor. Tocou na cama de Louis como
se fosse se sentar nela, mas mudou de ideia e foi correndo na ponta dos pés até a
porta. Em seguida, se ajoelhou no tapete, encostou a orelha no buraco da
fechadura e ficou ouvindo.
“Lauren?”
Mary Ann tinha chamado do meio da escada. Lauren fez cara de idiota e
mexeu os lábios, articulando silenciosamente o próprio nome.
“Lauren?”
Mary Ann tinha subido o resto da escada e agora vinha avançando pelo
corredor. Parou em frente à porta do quarto. Na mesma hora, Lauren fechou os
olhos e deu um grito agudo. Repetiu: um grito físico, um grito de agradável
surpresa. Em seguida, começou a arfar e soltar gemidos fingidos de prazer,
arrastando as solas de seus sapatos pelo tapete. Olhava com ódio para a cama de
Louis, e o movimento que estava fazendo com os pés era raivoso também.
Louis deixou sua cabeça cair sobre o Flaubert rachado e riu sem achar graça.
Mary Ann estava descendo a escada de novo. Lauren se levantou e lançou um
sorriso maligno para o chão, como se tivesse visão de raio X e pudesse ver a mãe
entrando na sala de jantar e desabando numa das cadeiras próximas à parede.
Depois, a cama de Louis atraiu sua atenção. Ela subiu na cama, ficou em pé e
começou a pular. Logo as molas estavam rangendo, enquanto a perna da cama
que era ligeiramente mais curta que as outras batia com força no chão.
“Pra cima, pra baixo, pra cima, pra baixo”, ela disse, entoando as palavras no
ritmo das molas. “Pra dentro, pra fora, pra dentro, pra fora. Pra cima, pra baixo,
pra cima, pra baixo. Pra dentro, pra fora, pra dentro, pra fora...”
“Para”, disse Louis, mais irritado do que qualquer outra coisa. “Ela já
entendeu.”
Lauren parou. “Eu estou te chateando?”
“Você é perturbada”, ele disse sem olhar para ela. “Você é completamente
perturbada. E você fez uma ideia errada de mim.”
“Mas você gosta de mim, não gosta?”, ela perguntou a ele da porta.
“Claro que gosto. Eu gosto de você.”
O novo cd do Eury thmics de Lauren estava tocando no aparelho de som para
audiófilos do pai dela quando Louis saiu sorrateiramente de dentro do quarto,
desceu a escada correndo e escapuliu pela porta da frente para um ar que não
cheirava a toffee. Quando voltou de noitinha, de uma longa caminhada para
lugar nenhum, deu duas voltas em torno da casa e não viu nenhum sinal de gente
jovem. Do lado de dentro, o sr. Bowles lhe disse que Lauren e Emmett tinham
ido para Beaumont para passar o domingo de Páscoa com a família de Emmett.
Mary Ann passou uma semana inteira sem lhe dirigir a palavra.

A cadela labrador tinha voltado. Louis, gelado e rígido, ficou vendo como ela
corria em curvas na frente dele, tangentes ligeiras ao longo das linhas de espuma
que avançavam e recuavam. Pouco depois, ele ouviu vozes vindo da direção do
estacionamento. Passado algum tempo, o ar branco liberou três silhuetas jovens
ou joviais que avançavam em leque ao longo da praia, dando a impressão de
estar esquadrinhando metodicamente a faixa de areia. Uma delas, a que passou
bem na frente de Louis, era um oriental alto, que vestia um grosso casaco
forrado e calça branca larga. Ele olhou para Louis com uma expressão taciturna,
disse “oi” e seguiu arrastando os pés, tirando nacos de areia por revolta ou algum
impulso vândalo.
A pessoa mais próxima à água estava tendo problemas com a cadela. Era um
caucasiano barbudo cujos óculos estavam presos por uma tira preta de elástico.
Jackie tentava morder os cotovelos erguidos do sujeito. “Sai! Sai! Sai! Vai
embora!”, ele bradou, enquanto Jackie latia e tentava encurralá-lo no meio de
um par de ondas que vinham subindo pela areia em direções opostas. O homem
deu um chute ameaçador no ar e então a cadela se afastou. Enquanto isso, a
terceira pessoa, uma mulher de cabelo preto curto, já estava bem adiante, sua
capa de chuva e sua calça jeans sumindo na neblina. Foi ela que, quando o grupo
voltou em bloco alguns minutos depois, disse “eu vou perguntar àquele cara”,
com uma voz baixa, mas não baixa o bastante para evitar que Louis ouvisse. Ela
veio subindo pela areia em direção a ele. Tinha um rosto delicado e agradável,
com nariz pequeno e olhos castanhos bonitos. Sua expressão estava fixa num
sorriso intenso e congelado. “Desculpe incomodar, mas já faz tempo que você
está aqui na praia?”, ela perguntou.
O caucasiano barbudo estacou logo atrás do ombro dela, e passou pela cabeça
de Louis que aquelas pessoas eram tiras à paisana; elas pareciam ter intenções
muito bem definidas.
“Já”, ele disse. “Vocês estão procurando alguma coisa?”
Antes que ela pudesse responder, Jackie pulou em cima do caucasiano barbudo
e enganchou as unhas das patas da frente no cinto dele, sendo arrastada na ponta
das patas traseiras quando ele tentou se afastar. Com as mãos levantadas, o
homem olhou para Louis com ar de reprovação.
“Não é minha cachorra”, Louis disse.
“Nós estamos procurando alterações na areia”, disse a mulher com um
sorrisão. Em seguida, estendeu um braço para o lado e estalou os dedos algumas
vezes, tentando atrair a atenção da cadela, mas sem tirar os olhos de Louis. Ela
era uns poucos centímetros mais baixa que ele e pelo menos uns poucos anos
mais velha; havia alguns fios brancos em seu cabelo escuro. “Nós estávamos
pensando que talvez você pudesse ter visto alguma coisa, se já estava aqui
quando houve o terremoto.”
Ele olhou para ela com ar atarantado.
“Nós somos do departamento de geofísica de Harvard”, explicou o caucasiano
barbudo com uma voz áspera e impaciente. “Nós detectamos o terremoto e
conseguimos uma localização aproximada. Como foi um tremor razoavelmente
forte, a gente achou que podia haver algum efeito superficial na areia.”
Louis franziu o cenho. “De que terremoto vocês estão falando?”
A mulher olhou de relance para o caucasiano. Jackie estava lambendo os
dedos dela. “Do que aconteceu uma hora e meia atrás”, a mulher respondeu.
“Teve um terremoto uma hora e meia atrás?”
“Teve.”
“Aqui?”
“Sim, aqui.”
“E vocês sentiram lá de Cambridge?”
“Sentimos!” O sorriso da mulher tinha se tornado um sorriso de prazer genuíno
com a perplexidade de Louis.
“Merda.” Louis se levantou às pressas, rígido. “Eu não senti nada! Mas, espera
aí, será que foi mesmo tão forte assim?”
Soltando um suspiro alto, o caucasiano barbudo revirou os olhos e saiu
andando, seguindo de volta em direção à outra ponta da praia.
“Fraco não foi”, disse a mulher. “A magnitude deve ficar em torno de 5,3
graus. A cidade não está em ruínas nem nada, mas um tremor de 5,3 é detectado
no mundo inteiro. O nosso colega Howard” — ela dirigiu um esboço de sorrisão
para o oriental, que estava pulando de uma pedra a outra entre ondas — “está
bem contente com isso, como você pode ver. Significa um bocado de
informação.”
Louis pensou no carro com o alarme disparado.
“E você realmente não sentiu nada?”, ela perguntou.
“Nada.”
“Que pena.” Ela deu um sorriso estranho, olhando bem nos olhos de Louis.
“Foi um bom terremoto.”
Ele olhou em volta, ainda desorientado. “Vocês imaginavam que a praia fosse
estar toda revirada?”
“Nós só estávamos curiosos. Às vezes a areia cede e forma rachaduras.
Também pode se liquefazer e borbulhar até a superfície. Já houve um terremoto
aqui, por volta de uns duzentos e cinquenta anos atrás, que causou sérios estragos.
Nós estávamos com esperança de ver alguma coisa assim, mas...” Ela estalou a
língua. “Não vimos.”
Perto da beira da água, seu colega Howard estava brincando com a cadela,
cutucando-a atrás das orelhas alternadamente de um lado e de outro, enquanto
ela virava a cabeça para lá e para cá. Louis ainda não acreditava que tinha
mesmo havido um terremoto. “Pode ter havido algum estrago nas casas aqui das
redondezas?”
“Depende do que você entende por estrago”, disse a mulher. “Você tem uma
casa nas redondezas?”
“A minha mãe tem. Na verdade, era a casa da minha avó, que... bom, isso
provavelmente não lhe interessa em nada, mas ela foi a pessoa que morreu no
terremoto da semana passada.”
“Puxa! É mesmo?” A mulher ficava mais bonita pesarosa do que quando
estava achando graça. “Eu sinto muito.”
“Sente? Eu não. Mal a conhecia.”
“Eu lamento de verdade.”
“Lamenta o quê?”, Howard perguntou a ela, vindo da água.
A mulher fez um gesto na direção de Louis. “A avó desse... rapaz foi a pessoa
que morreu no tremor do dia 6 de abril.”
“Que azar”, disse Howard. “Geralmente ninguém morre em terremotos
pequenos assim.”
“O Howard é especialista em sismos rasos”, disse a mulher.
Howard apertou os olhos para o céu branco, como que desejando que aquela
descrição dele não fosse exata. Seu corte de cabelo lembrava um coco cortado
ao meio.
“E você?”, Louis perguntou à mulher.
Ela virou para o lado e não respondeu. Howard deu um tapa no focinho da
cadela e saiu correndo, fazendo manobras evasivas malucas enquanto a cadela
labrador corria atrás dele. A mulher deu um passo para trás, se afastando de
Louis, seu sorrisão assumindo uma frieza de despedida. Quando ela percebeu que
Louis estava indo atrás dela, um breve espasmo de susto atravessou seu rosto e
ela começou a andar bem rápido. Louis enfiou as mãos nos bolsos e igualou o
ritmo de seus passos ao dos passos dela. Sentia um leve interesse predatório por
aquela mulher de ossos pequenos, mas queria principalmente informações.
“Teve mesmo um terremoto?”
“Arrã. Teve mesmo um terremoto.”
“Como vocês sabem que foi aqui?”
“Ah... por instrumentos e também por um palpite calculado.”
“E o que é que está causando esses terremotos?”
“Rupturas em rochas sob pressão ao longo de uma falha alguns quilômetros
abaixo de nós.”
“Você poderia ser um pouco mais específica?”
Ela abriu seu sorrisão e sacudiu a cabeça. “Não.”
“Vai ter mais algum terremoto?”
Ela deu de ombros. “Definitivamente sim, se você estiver disposto a esperar
cem anos. Provavelmente sim, se você esperar dez anos. Provavelmente não, se
você for embora daqui a uma semana.”
“O fato de ter havido dois terremotos, um logo depois do outro, não significa
nada?”
“Não. Não necessariamente. Na Califórnia poderia significar alguma coisa,
mas não aqui. Quer dizer, claro que significa alguma coisa, mas nós não sabemos
o quê.”
Ela falou como se quisesse ser exata só por ser exata, não por causa dele. “Em
geral”, continuou, “se você sente um terremoto nesta área, ele está acontecendo
numa falha que ninguém nem sequer sabia que existia, em alguma profundidade
específica, no contexto de pressões localizadas que ninguém tem como saber
quais são. Você teria que ser um pastor fundamentalista para fazer previsões
neste momento.”
Os fios de cabelo branco que ela tinha pendiam na direção contrária dos fios
mais escuros, ficando em cima deles em vez de se misturar a eles. Sua pele era
cor de creme.
“Quantos anos você tem?”, ele perguntou.
Um par de olhos surpresos e sérios veio pousar em Louis. “Trinta. E você?”
“Vinte e três”, ele disse franzindo o cenho, como se um cálculo seu tivesse
dado um resultado inesperado. Ele perguntou o nome dela.
“Renée”, ela respondeu, carrancuda. “Renée Seitchek. E o seu?”
No estacionamento, Howard estava passando o pé na barriga de uma
contentíssima Jackie e o caucasiano barbudo estava encostado num carro
ridículo, um sedã rebaixado, de fins da década de setenta, com uma capota de
vinil desbotada e descascada, laterais brancas onduladas, remendos cinzentos e
sem nenhuma calota. Era um amc Matador. O caucasiano barbudo tinha um
rosto comprido e lábios vermelhos. As lentes de seus óculos eram do formato de
telas de televisão, e as barras de sua calça jeans estavam enfiadas dentro do cano
de botinas marrons de sola grossa. Só porque ela havia parado ao lado dele, o
copo semicheio da beleza de Renée ficou parecendo semivazio.
O Matador aparentemente pertencia a Howard. “Você quer uma carona pra
algum lugar?”, ele perguntou a Louis.
“Quero sim. Talvez para a minha casa.”
“Se fosse você”, disse o caucasiano barbudo, “eu iria para casa agora mesmo
para ver se está tudo bem.”
Renée apontou para Louis. “É isso que ele está fazendo, Terry. Ele está indo
para casa agora mesmo.”
“Foi o que eu falei”, disse Terry . “Foi só isso que eu falei.”
Renée olhou para o outro lado e fez uma careta. Howard destrancou o carro, e
Louis e Terry entraram no banco de trás, afundando as canelas em embalagens
de pizza, latas de coca-cola e roupas esportivas. O rádio do carro ligou ao mesmo
tempo que o motor. Estava transmitindo um jogo dos Red Sox.
“Cadê a cachorra?”, perguntou Renée.
Howard deu de ombros e engatou a marcha a ré.
“Howard, espera. Você vai atropelar a cachorra.”
Os quatro olharam por suas respectivas janelas, tentando localizar a cadela.
Louis tomou a iniciativa de descer e olhar atrás do carro, cujo cano de descarga
estava soltando nuvens negras da fumaça mais fedorenta que ele já tinha visto
um carro produzir. A fumaça cobriu suas vias respiratórias como uma espécie de
açúcar venenoso. Ele voltou para dentro do carro e informou não ter visto nem
sinal da cadela.
“Esse é o Louis, aliás”, Renée disse a Terry do banco da frente. “Louis, esses
são Terry Snall e Howard Chun.”
“E vocês todos são sismólogos”, disse Louis.
Terry fez que não. “A Renée e o Howard são sismólogos. Eles são
bambambãs.” Parecia haver uma mensagem ambígua ali: ou Terry não
acreditava realmente que os outros dois fossem bambambãs, ou queria dar a
entender que ser um bambambã não era o mesmo que ser uma pessoa digna de
admiração. “A Renée me falou que a sua avó morreu no terremoto da semana
passada”, disse ele. “Isso é horrível.”
“Ela já era velha.”
“O Howard e a Renée acharam que foi um terremoto de nada. Disseram que
foi muito mixuruca. Eles queriam que tivesse sido maior. É assim que sismólogos
pensam. Eu achei um horror o que aconteceu com a sua avó.”
“Já nós não, não é, Terry ? Nós achamos ótimo ela ter morrido.”
“Não é isso que eu estou dizendo.”
“O que você acha que ele está dizendo, Howard?”
Alheio, Howard girou o volante, enquanto o carro estalava e roncava feito uma
barca velha. Louis olhou pela janela de trás, esperando ver a cadela, mas o
terreno que os barris de lixo guardavam estava completamente vazio agora.
...Duas bolas e dois strikes, disse o locutor que estava narrando o jogo de
beisebol.
“Duas bolas e um strike”, disse Renée.
...O lançamento dois-dois...
“O lançamento dois-um”, disse Renée.
Bola três, três e dois. Roger tinha zero e dois e agora foi para uma contagem
completa.
“Um strike, imbecil. Três bolas e um strike.”
...O placar está indicando três bolas e um strike.
...Bob, disse o comentarista, eu acho que é três e um.
Renée desligou o rádio, irritada, e Terry comentou, supostamente para Louis:
“Nunca nada é bom o bastante para a Renée.”
No banco da frente, Renée se virou para Howard e fez um gesto de absoluta
perplexidade.
“Será que eles sentiram o terremoto no estádio?”, disse Terry .
“Arrã, é bem provável”, disse Renée, “já que eles estão jogando em
Minnesota.”
“Vira à esquerda na placa”, Louis disse para Howard. Mal reconhecia a
estrada onde eles estavam como aquela que ele descera correndo.
“Pra onde vocês querem ir depois?”, Howard perguntou. “Dar uma olhada em
Plum Island?”
“É melhor a gente voltar”, disse Terry .
“Que sem graça”, disse Renée.
“Ah, é, a gente não vai ver morte, não vai ver destruição...”, Terry disse.
“A gente não vai ver marcas na areia, foi o que eu quis dizer. Embora seja
verdade”, ela disse para Louis, “que a gente sente uma certa ambivalência em
relação a terremotos destrutivos. Eles são como cadáveres, cheios de
informação.”
A eloquência professoral dela estava começando a dar nos nervos de Louis.
Ele apontou para o portão de pedra da casa dos Kernaghan, e Howard começou
a fazer a curva praticamente sem reduzir a velocidade. Em seguida, pisou no
freio e virou o volante com toda a força para a direita, fazendo o carro derrapar
quase de volta para a estrada. Um Mercedes preto saiu desembestado portão
afora, guinou ao redor deles e seguiu a toda na direção de Ipswich. Atrás do
volante do Mercedes estava um homem que Louis reconheceu como o sr.
Aldren. Com muito atraso, Howard cravou a mão na buzina.
“Você quer me matar, não é?”, disse Renée, apoiando a mão no para-brisa e
deslizando de volta para o acolchoado do banco do qual ela havia sido
arremessada.
Uma sensação estranha, nova e não de todo desagradável tomou conta de
Louis enquanto eles subiam a ladeira e ele viu, como aqueles estudantes estavam
vendo, o dinheiro que aquela propriedade representava. Era uma sensação de
exposição, mas também de satisfação. Dinheiro: leia-se: eu não sou um qualquer.
O silêncio reverente dentro do carro se manteve até que a casa e seu chapéu de
festa ficaram à vista e Renée riu. “Ah, meu Deus.”
“Vocês têm que entrar”, Louis disse, num impulso de homem rico. “Comer
alguma coisa, ver alguns estragos.”
Terry mais que depressa sacudiu a cabeça. “Não, obrigado.”
“Não, sério”, Louis insistiu. “Vamos lá.” Ele estava pensando em como sua
mãe ia ficar incomodada com aquelas visitas. “Quer dizer, se é que vocês estão
curiosos.”
“Ah, nós estamos curiosos”, disse Renée. “Não estamos, Howard? Ser curioso
é a nossa profissão.”
“Eu só espero que ninguém tenha se machucado”, disse Terry .
Só depois de abrir a porta e mandar todo mundo entrar foi que Louis se deu
conta de como, no fundo, não tinha acreditado que ocorrera um terremoto. E a
sensação mais forte que teve, quando estacou no meio do hall de entrada, foi de
estar olhando para a obra de uma mão zangada. O pastor que dissera que Deus
estava zangado com Massachusetts; a haitiana que acreditara que havia um
espírito zangado na casa: Louis entendeu o que eles queriam dizer, pois uma
força tinha entrado na casa enquanto ele estava na rua e a atacado, arrancando
um pedaço de gesso do teto da sala de jantar e o atirando em cima da mesa,
onde a água derramada de vasos quebrados encharcara o gesso, deixando-o
marrom. A força também tinha aberto as portas do aparador, derrubado tudo que
fosse mais vertical do que horizontal e espalhado poliedros de porcelana pelo
chão. Tinha posto abaixo quadros da sala de estar, destruído o bar e aberto
rachaduras nas paredes e no teto. O cheiro da sala era como o de uma república
de estudantes numa manhã de domingo.
“Você realmente quer a gente aqui?”, Renée perguntou a Louis.
“Claro.” Ele tinha seus deveres de anfitrião a considerar. “Vamos dar uma
olhada na cozinha.”
Howard ficou apoiado num pé só e se inclinou para espiar a sala de estar, sua
outra perna pairando no hall de entrada para dar equilíbrio. Terry , extremamente
constrangido, se mantinha perto de Renée, que disse em voz baixa: “Você está
vendo o que acontece com quem mora no epicentro”.
Os estragos eram menos evidentes na cozinha: alguns potes quebrados,
algumas lascas de tinta e gesso no chão. Encostado na pia, o pai de Louis ficou
encantado de conhecer os três estudantes. Apertou a mão dos três e pediu que
eles repetissem seus nomes.
“Cadê a mamãe?”, Louis perguntou.
“Você não cruzou com ela? Ela está tirando fotos para a Prudential. Eu te
aconselho a não tentar limpar nada antes que ela termine. Na verdade, Lou”, Bob
acrescentou a meia-voz, “eu acho que ela nem se deu conta do que estava
fazendo, mas eu a vi derrubando alguns objetos das prateleiras na sala de estar.
Coisas feias, sabe.”
“Claro”, disse Louis. “Boa ideia.”
“Mas que dia!”, o pai continuou em voz mais alta. “Que dia! Vocês todos
sentiram o terremoto, não sentiram?” Ele se dirigiu aos quatro e todos fizeram
que sim, menos Louis. “Eu estava no quarto dos fundos e pensei que fosse o fim
do mundo. Contei doze segundos de tremor forte no meu relógio.” Ele apontou
para seu relógio de pulso. “Quando começou, eu senti a casa inteira ficar tensa,
como se ela tivesse captado alguma coisa no ar.” As mãos de Bob se ergueram e
giraram no ar, como pombos voando em círculos. “Depois eu ouvi um longo
estrondo, como se um trem de carga estivesse passando logo adiante das janelas.
E tinha uma sensação de peso, um peso tremendo. Eu ouvia milhares de
barulhinhos de coisas pequenas caindo dentro das paredes e aí, enquanto estava lá
sentado, olhando — não é para me gabar não, mas eu não senti nem um pingo de
medo, porque, sabe, parecia uma coisa tão natural, tão inevitável —, enfim, eu
estava lá sentado e vi uma janela simplesmente se estilhaçar. E aí, justo quando
eu pensei que tinha acabado, a coisa toda se intensificou, foi maravilhoso,
maravilhoso, esse clímax final. Era como se ela estivesse gozando! Como se a
Terra inteira estivesse gozando!”
Bob Holland olhou para os rostos ao seu redor. Os três estudantes estavam
ouvindo o seu relato, sérios. Louis parecia uma estátua branca olhando para o
chão.
“Imagino que vocês saibam que existe toda uma história de terremotos na
Nova Inglaterra”, continuou Bob. “Vocês sabiam que os índios norte-americanos
pensavam que os terremotos causavam epidemias? Isso fez muito sentido pra
mim hoje, essa ideia de doença, de distúrbio na Terra. Eles também eram
cientistas, sabe. Cientistas de uma forma muito profunda e muito diferente. Se
vocês querem falar de superstição, eu vou contar pra vocês que tinha uma
mulher nessa região em 1755, o nome dela era Elizabeth Burbage. Filha de
pastor, uma solteirona. Pois bem, os cidadãos tementes a Deus de Marblehead —
rá-rá! Marblehead! — chegaram à conclusão de que ela era uma feiticeira e a
expulsaram da cidade porque três vizinhos dela afirmaram que ela tinha previsto
o grande terremoto que atingiu Cambridge em 18 de novembro. Sessenta e três
anos depois dos julgamentos de Salem! Porque ela tinha presciência de um ato
de Deus! Marblehead! Maravilhoso!”
Louis estava envergonhado demais para acompanhar a reação das pessoas nos
minutos que se seguiram. Abriu a geladeira e convenceu Renée e Howard a
aceitarem maçãs. O pai começou a contar sua história de novo e, só para tirá-lo
dali, Louis o acompanhou até o quarto onde sua aventura havia transcorrido. Lá,
Bob reconstruiu os doze segundos de terremoto segundo a segundo, epifania a
epifania. Estava mais doidão do que nunca. O vidro da janela se estilhaçando, em
especial, tinha lhe parecido um momento transcendental, que sintetizava toda a
história do homem e da natureza.
Quando finalmente conseguiu se livrar do pai, Louis descobriu que Terry e
Howard tinham ido lá para fora, Terry para se sentar no banco traseiro do carro
e Howard para se sentar no capô, comendo sua maçã ruidosamente. Renée?
Howard deu de ombros. Ainda lá dentro.
Louis a encontrou na sala de estar, conversando com a mãe dele. Ela lhe
dirigiu o seu agora familiar sorrisão, enquanto a mãe, com uma câmera
fotográfica pendurada no pescoço, lhe transmitiu o seu agora igualmente familiar
desejo de não ser incomodada. “Será que você pode nos dar licença um instante,
Louis.”
Ele executou um ostentoso giro de cento e oitenta graus, saiu da sala e foi se
sentar no meio da escada. Sua mãe e Renée continuaram conversando por quase
cinco minutos. Só o que ele conseguiu captar foram cadências — longas
enunciações sussurrantes de sua mãe, sons mais breves, claros e repetitivos de
Renée. Quando finalmente apareceu no hall de entrada, Renée ergueu os olhos
para a escada. Louis estava curvado e imóvel, como uma aranha esperando uma
mosca cair em sua teia. “Acho que nós já vamos indo então”, disse ela.
“Obrigada por nos convidar para entrar.”
Ela se virou para ir embora, e Louis desceu a escada feito um relâmpago,
teleguiado para a mosca emaranhada. Pôs a mão no braço dela e o segurou.
“Sobre o que é que você e a minha mãe estavam conversando?”
Os olhos de Renée se dirigiram da mão no braço dela para a pessoa a quem a
mão pertencia. Ela não parecia nem um pouco contente com aquela mão.
“Ela está preocupada com os terremotos. Eu disse a ela o que eu sei.”
“Eu vou te ligar.”
Ela deu de ombros de um jeito quase imperceptível e disse: “Está bom”.
Quando Louis voltou para dentro da casa, depois de ver o carro fumacento
descer a pista de entrada, sua mãe estava fotografando a sala de jantar. Por um
instante ela abaixou a câmera. “Essa Renée Seitchek é uma moça muito
impressionante”, ela disse. Focalizou a câmera no teto, apertou um botão e, por
um momento, a sala inteira ficou branca.
4.

Louis havia conseguido o emprego na wsne através de Bery l Slidowsky, uma


antiga amiga sua da Rice que tivera um programa de sucesso na ktru tocando
músicas de bandas como Dead Kennedy s e Jane’s Addiction. Em fevereiro, num
momento em que os currículos e fitas-demo que ele enviara para estações de
rádio em uma dúzia de cidades do norte tinham lhe rendido um total de duas
respostas, ambas categoricamente negativas, Louis ligou para Bery l e perguntou
como andavam as coisas nas rádios de Boston. Ela estava trabalhando na wsne
fazia uns três meses e, por acaso, estava prestes a pedir demissão. O dono, ela se
apressou em dizer, era ótimo sujeito, mas a pessoa que gerenciava a estação
estava literalmente lhe dando uma úlcera. De qualquer forma, se ele quisesse,
ela recomendaria com prazer Louis para o lugar dela. Ele não era uma pessoa,
assim, bastante tolerante em geral? Não tinha conseguido aguentar aqueles
insuportáveis dos Bowles um ano inteiro?
A causa do mal-estar péptico de Bery l, Louis veio a saber, era uma mulher de
trinta e muitos anos chamada Libby Quinn. Libby havia começado a trabalhar na
wsne como recepcionista dezoito anos antes, quando a emissora ainda era
sediada em Burlington, e, embora nunca tivesse concluído a escola secundária,
ela conseguira com o passar dos anos se tornar indispensável para a estação.
Cuidava de toda a programação e de boa parte da administração, redigia e
gravava spots para anunciantes locais que não dispunham de agência publicitária
e, com Alec Bressler, arranjava convidados para os programas de entrevista.
Tinha bochechas rosadas de irlandesa e cabelo louro-escuro, que usava sempre
preso numa trança ou num coque. Gostava de vestir roupas no estilo típico inglês
— saias em tons de rosa arroxeado, cardigãs, meias até os joelhos, sapatos de
cadarço — e raramente era vista sem uma caneca de chá verde a seu lado. Para
Louis, ela parecia uma pessoa totalmente inofensiva.
No início da segunda semana de trabalho de Louis na emissora, Libby
apareceu na porta de seu cubículo e fez sinal para ele usando só o dedo indicador.
“Vem comigo até a minha sala?”
Ele foi andando atrás dela pelo corredor. A sala de Libby era repleta de fotos
de duas garotas louras já no fim da adolescência; embora fossem velhas demais
para serem suas filhas, as duas eram idênticas a ela.
Ela mostrou a Louis uma pilha de papéis impressos com orelhas nas pontas.
“Aqui tem uns noventa e cinco mil dólares em pagamentos pendentes. Só de
pessoas que já não fazem mais negócios com a gente. O que você acharia de
tentar receber alguns deles?”
“Eu adoraria.”
“Eu mesma me encarregaria disso, mas realmente isso é mais um trabalho
para um homem.”
“Hum.”
“É fácil. Só o que você tem que fazer é ligar para eles e dizer: ‘Olha, vocês
estão nos devendo dinheiro. Paguem’. Você faria isso para mim?”
Ele pegou a pilha de papéis e Libby sorriu. “Obrigada, Louis. Só mais uma
coisa, se você não se importar, eu gostaria que isso ficasse só entre nós dois. Um
segredinho nosso. Tudo bem?”
No ramo do rádio, principalmente num mercado concorrido como o de
Boston, não existe algo como um emprego interessante ou gratificante para quem
está começando. Mesmo num lugar como a wsne, Louis sabia que teria de passar
vários anos fazendo trabalhos sacais antes que lhe dessem a chance de passar um
tempo significativo no ar. Assim, ele ficou grato por Libby ter lhe pedido para
cuidar das cobranças. Era, de longe, bem mais divertido do que qualquer coisa
que ele havia feito na kilt, em Houston, e lhe permitia ser o mais irritante e
desagradável que ele ousava ser. Louis passou a dedicar cada minuto que lhe
sobrava a isso.
Alguns dias depois da Páscoa, Alec Bressler entrou por acaso no cubículo de
Louis quando ele estava imprimindo cartas ameaçadoras. O dono da emissora
olhou com seus óculos genéricos para as folhas que estavam saindo da
impressora e franziu o cenho. “O que é isso?”
“Contas atrasadas”, disse Louis.
A curiosidade de Alec se transformou em preocupação. “Você está tentando
receber pagamentos atrasados?”
“Sim, tentando.”
“Mas você não está botando... pressão nas cobranças, está?”
“Na verdade, estou sim.”
“Ah, não faça isso.”
“Ordens da Libby .”
“Você não deve fazer isso.”
“Não era para você saber.”
Justo nesse momento, Libby passou em frente ao cubículo. Alec a deteve. “O
Louis me disse que está fazendo cobranças usando pressão. Eu pensava que nós
não fazíamos isso.”
Libby abaixou a cabeça, pesarosa. “Desculpe, Alec.”
“Eu pensava que nós não fazíamos isso. Sério, eu estou errado?”
“Não, claro que você está certo.” Ela deu uma piscada cúmplice para Louis.
“Nós vamos ter que parar.”
“Se vocês me permitem um aparte”, disse Louis. “Elas nos renderam uns
quatro mil e quinhentos dólares nos últimos dez dias.”
“Vocês, homens, discutam esse assunto”, disse Libby. “Eu tenho que entrar no
ar daqui a noventa segundos.”
“Como assim? Cadê o Bud?”
“O Bud está com um probleminha com o contracheque dele. Agora, se você
me dá licença, Alec, eu tenho que ir.”
“Um probleminha? Que probleminha?” Alec foi até o corredor atrás dela.
“Que problema é esse? Que problema é esse?” Eles ouviram a porta do estúdio
no fim do corredor se fechar. Alec enfiou todos os dedos no cabelo, entrando
rapidamente em frenesi. “Eu pago essa mulher! E ela se recusa a me dizer qual
é o problema!”
Ele continuou olhando para o corredor vazio. Louis o viu localizar, chamuscar
e por fim acender um Benson & Hedges inteiramente por tato. “Então, sim”, ele
continuou, capturando fios arredios de fumaça com inalações fortes e hábeis,
“você não faz mais cobranças com pressão. Pra que se indispor com as pessoas?
É importante deixar sempre uma porta aberta. Guarde essas coisas. Você avaliou
as respostas que os ouvintes mandaram para o concurso? A Inez recebeu
centenas delas. Pense nisso: centenas!”
Em Somerville, enquanto isso, era primavera. Num dia de sol, quando
ninguém estava olhando, capim alto havia surgido em todas as sete colinas, tufos
desgrenhados dele ocupando de repente todos os gramados e canteiros de rua.
Era como se um chamativo lixo cor de clorofila tivesse sido despejado em cima
da cobertura vegetal mais típica da cidade, cobertura essa que, quando os últimos
vestígios de neve derreteram, atingiu seu pico de riqueza e variedade. Como
sempre, havia folhas pretas, guimbas de cigarro e fezes de cachorro. Mas, em
qualquer canteiro de rua mais longo, mesmo o transeunte ocasional poderia
esperar encontrar também lenços umedecidos secos; sobras de cinzas espalhadas
pelas ruas durante planos de emergência contra nevascas; agulhas de pinheiros
de Natal e vestígios de festões; luvas desparelhadas; cacos de vidro azulados de
janelas de carro arrombadas; folhetos de propaganda amassados dos
supermercados Johnny Foodmaster e do Assembly Square Mall; enormes bolotas
de chiclete mastigado; garrafas de vinho e de bebidas alcoólicas diversas; folhas
de papel pautado com frases simples toscamente escritas a lápis contendo Ps e hs
virados para o lado contrário; lenços de papel em decomposição que faziam
lembrar ricota; lâminas de borracha de limpadores de para-brisa e filtros de
carburador sujos; isqueiros gastos; refugos alimentícios caídos de sacos de lixo
rasgados na transferência para caminhões de lixo, cascas de laranja, latas de
atum e tampas de embalagens de ketchup depositadas no chão por montes de
neve derretidos; e talvez, se o transeunte desse sorte, também alguns dos
espécimes mais singulares de Somerville, como a magnífica estante que durante
vários meses havia jazido de bruços num dos canteiros centrais da Alewife Brook
Parkway, ou o suprimento de dinheiro de Banco Imobiliário que vinha se
espalhando de seu ponto de distribuição na College Avenue para ruas transversais
— notas de dez amarelas, notas de cinquenta azuis. Esse era o tipo de profusão
aprazível e mutável de objetos que a Natureza, essa “grande porcalhona”, havia
mais uma vez lançado fora junto com ervas mirradas, narcisos que pareciam de
plástico e, por fim, num momento em que ninguém estava olhando, milhares de
células de capim verde alienígena. Nenhuma força estrangeira poderia ter sido
mais sorrateira e aplicada do que a primavera ao se infiltrar na cidade da noite
para o dia. As novas plantas se destacavam com uma desfaçatez comparável à
do agente que, quando sente que sua vida está em perigo, adota um
comportamento ainda mais nativo do que o de seus interrogadores nativos.
Ao voltar para casa, Louis encontrou seu vizinho John Mullins lavando o carro
com uma enorme esponja de banho marrom. O carro nunca parecia ultrapassar
o final da pista de entrada, onde Mullins o lavava. Também nunca parecia sujo.
Viçosas tulipas agora enchiam o canteiro embaixo da varanda da casa de três
andares onde o velho morava; suas pesadas cabeças roxas e amarelas se
inclinavam para o lado em diferentes ângulos casuais, como que evitando
especificamente os olhos de Louis.
“Olá, Louie, meu rapaz”, disse Mullins, largando a esponja no para-brisa e
bloqueando o caminho de Louis. “Como vão as coisas? Você está gostando daqui?
Está gostando de Somerville? O que você está achando desse tempo? Eu acho que
não vai durar. Acabei de escutar a previsão do tempo, sempre escuto às 5h35.
Me diga uma coisa, você sentiu o terremoto no domingo?”
Louis vinha fazendo que não com a cabeça em resposta a essa pergunta havia
vários dias.
“Nossa, que susto que eu levei. Você acha que nós ainda vamos ter outros? Eu
espero sinceramente que não. Eu tenho um probleminha no coração, sabe — um
probleminha no coração. Probleminha no coração.” Mullins deu alguns tapinhas
rápidos no peito, chamando a atenção de Louis para o coração que havia ali
dentro. “Eu não posso me assustar desse jeito.” Ele deu uma risada oca, com um
medo genuíno nos olhos. “Eu tentei vir cá pra fora e acabei caindo de traseiro no
chão, você acredita? Eu não conseguia me levantar! Meu Deus, que susto que eu
levei. A menina ali do andar de cima, aquela que canta — simpática, ela. Ela me
disse que nem sentiu.”
“Se houver outro terremoto, o senhor deve tentar ficar embaixo do batente de
uma porta”, disse Louis.
O velho fez uma careta de surdo. “O que é que foi?”
“Eu disse que o senhor deve tentar ficar embaixo do batente de uma porta
interna, ou então se enfiar debaixo de uma mesa. Dizem que esses são os lugares
mais seguros para se ficar.”
“Ah, sim, sei. Está bem, Louie, meu rapaz.” Trôpego, Mullins voltou para sua
esponja. “Está muuuito bem, Louie, meu rapaz.”
Na caixa do correio, havia um envelope da firma de advocacia de Arger,
Kummer & Rudman. O envelope continha dois ingressos para um jogo do Red
Sox e um cartão comercial de Henry Rudman. Na janela de trás do quarto de
Louis, um florescente arbusto branco havia aparecido e estava
impressionantemente aceso pela luz do sol, a eclíptica tendo se deslocado bem
para o norte desde a última aparição do sol na hora do jantar. Louis fez um
sanduíche de ovo frito e viu um episódio de Hogan’s Heroes. Fez outro sanduíche
de ovo frito e viu o noticiário da nbc. No meio de sua meia hora informativa, a
nbc fez uma viagem a Boston e descobriu, para seu espanto, que um par de
terremotos havia ocorrido nas imediações da cidade. Foram exibidas imagens de
vidraças quebradas e de corredores de supermercados em que funcionários
solitários limpavam com esfregões poças de suco e de geleia de frascos
espatifados. O correspondente relatou fatos coerentes com as informações
transmitidas pelos boletins de notícias que Louis estivera ouvindo de hora em hora
na wsne: o terremoto da Páscoa, que atingira magnitude 5,2 na escala Richter e
fora seguido de vários pequenos tremores, havia causado danos no valor
estimado de doze milhões de dólares em três condados e deixado catorze pessoas
feridas. (Quase todos os ferimentos, como Louis havia notado ao ler o Globe,
deviam-se ao pânico: um número surpreendente de pessoas havia se cortado ou
se contundido seriamente enquanto fugia de suas casas sacolejantes, um
pescador que se encontrava numa ponte ao norte de Ipswich tinha enfiado um
anzol em sua pálpebra enquanto corria para terra firme e um motorista guiara
seu carro para dentro de uma vala.) Depois, os espectadores da nbc foram
brindados com um gostinho de história (“terremotos não são inéditos na Nova
Inglaterra”) e com uma rápida tomada aérea da usina nuclear de Seabrook,
seguida de palavras tranquilizadoras do porta-voz de uma companhia de energia
elétrica, de uma declaração colérica de um comerciante de vinho (para ele, ao
que parecia, a natureza era só mais um morador local que não sabia dar o devido
valor a safras de boa qualidade) e, por fim, um relato enternecedoramente
inarticulado do terremoto feito por um adolescente de Ipswich e acompanhado
de muitas sacudidas incrédulas de cabeça: “Começou devagar. E aí bum!”. O
correspondente conquistou o direito de dizer seu próprio nome com uma voz
grave e séria dizendo antes, com uma voz grave e séria, que aquele terremoto
“pode não ter sido o último”. Houve uma breve tomada a meia distância do
âncora da nbc com um sorrisinho oblíquo no rosto (ele recebia trinta e quatro mil
dólares por semana para não bocejar durante essas tomadas) antes de surgir na
tela a imagem de uma farmácia à moda antiga, com um afável farmacêutico
com cara de tio atrás do balcão. A América assistiu impotente ao desenrolar do
drama publicitário. Não fazia muito tempo, Louis tinha visto esse tipo de anúncio
ser parodiado num programa de tv noturno. O preocupado consumidor voltava à
farmácia e, em vez de agradecer ao farmacêutico com cara de tio pela
indicação que ele lhe dera, listava vários distúrbios grotescos e desequilíbrios
hormonais provocados pelo remédio recomendado e acabava (talvez de forma
um pouco previsível?) por dar um tiro no farmacêutico. Essa cáustica sátira da
nbc tinha sido seguida por um anúncio de verdade, de preservativos.
Depois do noticiário veio o beisebol, que Louis vinha acompanhando na base
de nove a dezoito innings por noite. Enquanto os Red Sox abriam uma vantagem
de oito a zero no placar, ele folheou o Globe e, pela segunda vez em duas
semanas, experimentou uma estranha sensação ao correr os olhos pelas páginas
do jornal. Parecia uma edição tipo pegadinha de aniversário, cheia de nomes
familiares. A matéria principal da seção de negócios era intitulada “Ações da
Sweeting-Aldren sofrem nova queda”. As agruras que vinham subitamente
atingindo a segunda maior fábrica de produtos químicos da Nova Inglaterra eram
tão numerosas que o leitor era solicitado a saltar para a página 67. O último
relatório trimestral da companhia, divulgado naquela manhã, mostrava uma forte
queda nos lucros, já que as vendas permaneciam estagnadas, enquanto os preços
crescentes da energia e uma escassez cíclica de várias matérias-primas
essenciais aumentavam os custos de produção. À luz desse relatório, investidores
de Wall Street continuavam a reagir de forma extremamente negativa à notícia
que veio à baila na terça-feira de que as instalações da Sweeting-Aldren em
Peabody pareciam ter sofrido danos significativos por causa do terremoto de
domingo; o preço das ações da companhia já havia caído 4,875 pontos, chegando
a 64,5 — a maior queda em pontos num período de dois dias já registrada nos
quarenta e oito anos da história da companhia, e a maior queda percentual num
período de dois dias desde 11 de agosto de 1972. O assessor de imprensa da
Sweeting-Aldren, Ridgely Holbine, negou enfaticamente que qualquer linha de
produção da companhia tivesse sido prejudicada pelo terremoto, mas a
descoberta na última segunda-feira de grandes quantidades de um efluente
esverdeado num canal de escoamento que atravessa um complexo residencial
situado a cerca de quatrocentos metros de uma instalação da Sweeting-Aldren
continuava a alimentar especulações. Holbine declarou que a companhia estava
investigando a “possibilidade extremamente remota” de existir alguma conexão
entre a fábrica e o efluente; de acordo com um analista, essas declarações foram
interpretadas de imediato em Wall Street como “praticamente um mea-culpa”.
Holbine enfatizou que a Sweeting-Aldren era conhecida por ter “talvez o melhor
histórico ambiental entre todos os concorrentes do ramo” e explicou que os gastos
da empresa com energia eram altos em virtude do compromisso que ela
assumira de “reciclar os refugos tóxicos em vez de descartá-los”. Observou
também que fazia bem pouco tempo, mais exatamente em janeiro último, a
revista Forbes citara “o estável desempenho da Sweeting-Aldren como a
fabricante de produtos químicos mais lucrativa da América”. Mesmo assim, o
preço das ações da empresa caiu ontem em mais de um ponto nos últimos trinta
minutos de negociações da Bolsa de Valores de Nova York. O temor de que
pudessem ocorrer novos terremotos destrutivos na região ao norte de Boston e,
não menos importante, o receio de que a empresa pudesse vir a ser alvo de ações
judiciais por conta da descoberta do efluente estavam se combinando para...
Louis olhou para a tela da televisão a tempo de ver uma bola de beisebol voar
na direção da área de aquecimento do time visitante no Fenway Park. A
vantagem dos Red Sox tinha sido cortada pela metade. Na cozinha, o telefone
tocou.
Era Eileen. Quase uma semana tinha se passado desde que Louis deixara uma
série de mensagens cada vez mais sarcásticas na secretária eletrônica de Eileen,
mas ela não estava ligando para se desculpar. Ela só queria dizer que ela e Peter
iam dar uma grande festa na casa de Peter no dia 28. “O tema da festa é
desastre”, disse ela. “Você tem que estar fantasiado pra entrar, está bom? Tem
que. E tem que ter alguma coisa a ver com desastres. Não vai ter a menor graça
se as pessoas não se fantasiarem, então a fantasia é obrigatória.”
Louis estava olhando para o Globe da véspera, que ele tinha posto na pilha de
jornais que iria para o lixo depois de separar a seção de quadrinhos. A manchete
da primeira página estava escrita em letras garrafais: Rastros do terremoto:
Grande vazamento químico em Peabody.
“Vê se vai, tá bom?”, disse Eileen. “Você pode levar outras pessoas se quiser,
mas elas também têm que estar fantasiadas. Anota o endereço.”
Louis anotou o endereço. “Por que você quer que eu vá a essa festa?”
“Você não quer ir?”
“Ah, definitivamente... talvez. Eu só não sei por que você resolveu me
convidar.”
“Porque vai ser divertido e um monte de gente vai.”
“Você está dizendo que você gosta da minha companhia?”
“Olha, se você não quiser ir, não vai, mas eu tenho que desligar agora, tá bom?
Então a gente se vê no dia 28, talvez.”
De acordo com o Globe, o efluente esverdeado tinha sido notado pela primeira
vez por moradores de uma subdivisão de Peabody na manhã de segunda-feira,
dezoito horas depois do terremoto de domingo, pouco mais de vinte quilômetros a
nordeste. Um menino de quatro anos e sua irmã de dois estavam brincando perto
de uma vala adjacente a essa subdivisão e voltaram para casa com as roupas
sujas de “uma substância que parecia anticongelante Prestone”. No decorrer da
tarde, moradores observaram que a vala, ainda cheia devido às fortes chuvas
recentes, estava ficando verde. Um odor orgânico enjoativo, “como de tinta de
caneta hidrocor”, foi notado. Na noite de quarta-feira, o odor já havia
praticamente se dissipado. Até então, funcionários da Secretaria de Meio
Ambiente do estado ainda não haviam conseguido localizar a origem do efluente,
mas estavam concentrando suas investigações numa propriedade cercada e
arborizada pertencente às Indústrias Sweeting-Aldren e num pântano adjacente
de cinco acres de extensão drenado pela vala poluída. Ridgely Holbine, da
Sweeting-Aldren, voltou a dizer que a empresa não despejava quantidades
significativas de refugos industriais em Peabody fazia quase vinte anos. Ele
informou que a propriedade em questão abrigava um moinho e alguns pequenos
tanques de contenção para “processos intermediários”, nenhum dos quais
apresentava qualquer sinal de ter sido danificado pelo terremoto. Enquanto isso,
uma moradora de Peabody, Doris Mulcahey, contou a repórteres que seu
marido e sua filha mais velha haviam, ambos, morrido de leucemia nos últimos
sete anos e que ela desconhecia, até aquele momento, que a propriedade
arborizada situada a cerca de quatrocentos metros de distância de sua casa
pertencia à Sweeting-Aldren. “Eu não estou dizendo que eles causaram a morte
dos dois, mas com certeza também não descarto essa possibilidade”, disse
Mulcahey .
A partida de beisebol terminou de forma triste para a torcida dos Red Sox.
Na manhã seguinte, bem cedo, minutos antes da hora em que seu despertador
teria tocado, Louis sonhou de novo. Uma porta da casa dos Bowles na Dry den
Street o conduziu de volta à sala com as cadeiras de couro vermelho e, lá, ele
descobriu que sua mãe não havia arredado o pé dali todos aqueles dias. Ela
continuava reclinada numa cadeira, seu vestido amarelo ainda levantado até
quase a altura dos quadris. Agora, porém, só havia um homem na sala. Louis o
reconheceu pelo retrato pendurado em cima da lareira. O crânio bem feito e
calvo, os negros olhos lascivos. Avistando Louis, ele imediatamente se virou de
costas e fez alguma coisa com sua calça, ajeitou alguma coisa na parte da frente.
Foi então que Louis percebeu que a sala inteira estava coberta de sêmen, uma
camada de sêmen branco-esverdeado suficiente para cobrir as solas de seus
sapatos, e então ele acordou tremendo violentamente. Conseguiu não analisar
esse sonho mais tarde, embora também não tenha conseguido esquecê-lo de
todo.
Passarinhos estavam acordando enquanto ele comia seu cereal. Como
acontecia todas as manhãs, quando ele passou pelos conjuntos de móveis bege de
Toby — o grande sofá e as grandes poltronas emergindo da noite inabitada para
mais um dia de serem estacionários, grandes, pesados e ocuparem espaço —,
sua sensação da irrealidade da vida atingiu um pico agudo.
O tempo que ele levava para ir de carro até o trabalho, descendo a Alewife
Brook Parkway, pegando a Route 2, passando pelo restaurante chinês Haiku
Palace e pelo motel Susse Chalet, subindo a ladeira de um quilômetro e meio que
todos os dias deixava dois ou três carros em más condições parados no meio do
caminho, atravessando subúrbios históricos onde a claridade cada vez mais forte
da manhã fazia os faróis dos carros e caminhões que seguiam para leste
parecerem fúnebres, era o mesmo tempo que seu suco e seu café precisavam
para serem filtrados por rins e bexiga abaixo e forçá-lo a ir direto para o
banheiro dos homens ao chegar à wsne. Alec Bressler estava se barbeando em
frente ao espelho, seu decrépito nécessaire equilibrado na beira da pia. “Você
passou a noite aqui de novo”, Louis comentou enquanto mijava.
Alec apalpava seu pescoço cinzento. “Hum-hum.”
No estúdio, Louis se sentou diante da mesa de som com uma rosca de
chocolate que tinha comprado de Dan Drexel e correu os olhos pelo papel
impresso contendo o roteiro do horário de seis às sete. Drexel, usando a palma da
mão para empurrar um arco de cento e cinquenta graus de donut para dentro da
boca, trocou de lugar com o locutor da noite dentro da cabine e correu os olhos
pela sua cópia do roteiro. A barba de lenhador de Drexel ia ficar polvilhada de
açúcar até a hora de seu intervalo para ir ao banheiro, às oito. (Para os ouvintes,
poucos locutores de rádio soam barbudos, mas muitos deles são.) Louis carregou
o Cartucho 1 com um spot de trinta segundos da Cumberland Farms, soltou o som
às 5h59min30 e deu a deixa para Drexel. A edição matinal das “Notícias com
algo a mais na hora do rush” começou.
Eles estavam no meio de um Festival Bob Newhart. “Nós vamos executar
todas as gravações de números cômicos que o Button-Down Mind algum dia fez
e a wsne algum dia comprou”, Drexel lembrou aos ouvintes. “Em apenas alguns
instantes nós vamos ouvir o que com certeza é um dos números de Newhart mais
admirados de todos os tempos, mas antes um resumo das principais notícias do
mundo.”
Louis posicionou a agulha na quarta faixa do lado B de Behind the Button-Down
Mind, enquanto Davidson Chevy -Geo falava sobre planos de financiamento.
“Tem açúcar na sua barba”, Louis avisou a Drexel.
Como sempre, Drexel passou a mão do lado errado. O comercial estava
terminando, e Drexel se aconchegou ao microfone com um sorrisinho
inconsciente de gato lascivo. “Mil novecentos e sessenta e três”, disse com voz
melodiosa. “E Button-Down Mind descobre o mundo surpreendente da tv
infantil.” Na palavra “tv”, o dedo indicador de Drexel pousou em Louis, que
então tirou o polegar do prato do toca-discos, deixando-o girar.
Quatro horas depois, Kim Alexander, o locutor do programa de entrevistas,
assumiu a mesa do estúdio. Do lado de fora, sob o sol do meio da manhã, Louis
se sentou embaixo de um salgueiro na parte do terreno gramado que fazia do
Crossroads Office Park um parque. O gramado era um daqueles lugares
suburbanos familiares onde o concreto das bordas circundantes ainda não perdeu
a película branca de cal, um cheiro forte e agradavelmente penetrante de
juníperos paira no ar, não se vê lixo algum, nem mesmo filtros de cigarro (ou
talvez uma única peça artística de lixo, em estilo japonês), e ninguém, mas
ninguém mesmo, jamais faz piqueniques. Louis não entendia esses espaços. Por
que não usavam grama sintética e árvores de plástico de uma vez.
Ficou observando um Lincoln Town Car novo, com janelas de vidro fumê, dar
a volta no cul-de-sac e parar na calçada do lado oposto da entrada da wsne para
o Edifício iii. A placa personalizada do Lincoln dizia provida 7. Libby Quinn
saltou do carro pelo lado do passageiro e entrou correndo nos estúdios. O motor
do Lincoln arrancou como um homem poderoso suspirando: provida 7. Louis deu
de ombros e se deitou na grama nova e quente, deixando o sol saturar de cor de
laranja seus nervos ópticos.
Uma pessoa pode ficar zonza deitada no sol quente. Por alguns segundos, Louis
achou que a coisa esquisita que estava acontecendo com ele devia-se a algum fio
solto em seu sistema nervoso, alguma sinapse estabanada, e não, como o coro de
alarmes de carro que veio de repente do estacionamento indicava ser o caso, a
um terremoto.
Ele gastou vários segundos tentando se levantar. Quando finalmente conseguiu
ficar de pé, o terremoto já estava acabando e o chão agora se mexia quase
imperceptivelmente, como um trampolim quando uma pessoa fica parada bem
na ponta, olhando para a piscina lá embaixo.
O trânsito da 128 fluía tranquilamente. Louis olhou desafiador para o ar a sua
volta, como que incitando o mundo físico a fazer isso de novo quando ele não
estivesse distraído, se é que tinha coragem. Mas a única perturbação que restava
era a instabilidade marginal de seu próprio corpo, a oscilação de pernas ao longo
das quais o sangue estava sendo bombeado com menos suavidade do que seria
desejável (nem mesmo grandes mímicos ou guardas de palácio conseguem ser
estátuas). O chão em si estava imóvel.
Do lado de dentro, ao se aproximar da sala de Alec, Louis ouviu o dono da
emissora discutindo com Libby na saleta interna. Alguém com menos atração
por brigas provavelmente teria recuado, mas Louis se plantou no limiar da porta
da sala externa, que continha uma Zenith preta e branca de dez polegadas e um
sofá em cujo braço havia uma pilha de roupas de cama dobradas e camisas
amassadas.
“Eu não retorno as ligações desse sujeito”, disse Alec. “Eu me recuso a
conhecer esse sujeito. Mas a minha diretora de produção toma café da manhã
com ele? A minha diretora de produção a quem eu disse, não, nós não fazemos
negócio com esse tipo de gente? Eu sei que ele é um rapaz muito bonito. Muito
ético, muito ca-ris-má-ti-co. É comprometedor você almoçar com o sujeito, sim,
ou tomar drinques com ele, ou jantar com ele. Mas café da manhã... café da
manhã é uma refeição muito ética!”
“Fechar os olhos não vai fazer com que ele desapareça, Alec. A não ser que
você também consiga arranjar uns duzentos ou trezentos mil dólares para se
livrar dele. Ele já enviou uma petição contra a renovação.”
“E daí? Da última vez que nós renovamos...”
“Da última vez que nós renovamos ninguém se manifestou contra e a emissora
não estava depenada.”
“Eles não confiscam licenças assim com essa facilidade.”
“E mais: o Philip Stites não tinha contratado a Ford & Rothman para fazer um
estudo da nossa audiência.”
“Então... é chantagem! Uma coisa muito ética!”
“Encare os fatos. Ele quer uma emissora.”
“E você vai trabalhar para esse sujeito? Você vai ser a diretora de produção
dele?”
“Quando você se recusa a cobrar os atrasados de ex-clientes? Quando só o que
você consegue botar no ar nos horários de rush são notícias sobre a guerra da
Somália e Phy llis Diller?”
“As pessoas adoram a Phy llis Diller!”
“Um vírgula sete por cento da audiência às oito da manhã. Esse foi o número
de março. Eu acho que ele fala por si só.”
“Está bom, vamos cobrir notícias locais então. Vamos cobrir a guerra às
drogas. Vamos cobrir acidentes de avião. Tudo bem. De hoje em diante, nós
vamos ter uma programação novinha em folha. E a gente avisa para a Comissão
das Comunicações: nova programação, toda dedicada a notícias...”
“Alec, não tem ninguém para redigir as notícias, só eu.”
“Talvez a Slidowsky tope voltar...”
“Você sabe muito bem o que eu penso daquela moça.”
“Eu posso redigir. O Louis pode redigir. A gente ouve o que as outras
emissoras estão transmitindo e copia. A gente pode contratar um estagiário, um
estudante. Eu posso vender...”
“Vender o quê?”
“O meu carro. Quando é que eu uso esse carro? Eu não preciso de carro.”
“Eu não sei se rio ou se choro.”
“Mas pensa um pouco. Libby. Pensa um pouco. Eu vendo a minha emissora
para o Philip Stites, contra os meus princípios. Você ia me respeitar?”
“Eu respeito um homem que toma atitudes responsáveis. E eu acho que a
atitude responsável que você tem a tomar agora é vender a emissora enquanto
ainda tem como sair dessa sem deixar dívidas.”
Alec resmungou alguma coisa vaga, algo sobre pensar um pouco.
“Você quer alguma coisa de mim?”, Libby perguntou a Louis, saindo para a
sala externa.
Louis fez uma cara preocupada. “Você sentiu o terremoto?”
Ela apalpou seu coque e deu um sorriso reticente. “Suponho que não.”
“Terremoto?” Alec tinha no rosto a expressão de satisfação metafísica que
chupar uma pastilha de nicotina suscita. “Agora?”
“É, agora há pouco. Você sentiu?”
“Não... eu estava ocupado.” Ele fez sinal para que Louis entrasse em sua
saleta, onde dois cigarros de diferentes comprimentos queimavam num cinzeiro
abarrotado. Seu rádio de ondas curtas estava instalado perto da janela e havia
caixas de papelão empilhadas junto à parede. Estava começando a parecer que
aquelas salas eram o único lugar que Alec tinha para morar.
“Duas coisas”, disse ele. “Senta, por favor. Primeiro, eu pensei melhor e acho
que talvez não seja tão má ideia fazer aquelas cobranças. Se eles não quiserem
pagar, você diz que nós estamos dispostos a dar a dívida por liquidada se eles
pagarem a metade imediatamente. Tem que ser imediatamente.” Ele pegou o
mais curto dos cigarros acesos, apagou e deu um trago no mais comprido, ainda
girando a pastilha na boca. “Outra coisa: responda honestamente. Empregados
respeitam um patrão que fuma?”
“Ué, claro. Por que não?”
“Eles passam uma impressão de fraqueza. Os fumantes.”
“Você está falando de mim ou da Libby ?”
Detrás de um véu de fumaça, Alec fez uma coisa estranha com o lábio
superior, franzindo-o como um vampiro prestes a dar uma dentada. “Da Libby .”
“Eu tenho certeza de que ela te respeita. Por que ela não respeitaria?”
Alec meneou a cabeça bem devagar, o lábio ainda franzido, os olhos fixos
num canto distante da sala. “Faz lá aquelas cobranças”, disse.
Louis voltou para seu cubículo e reabriu os arquivos, mas a primeira ligação
que fez foi para o telefone geral de Harvard. Depois de um toque, ele se viu
falando com Howard Chun, que, com um resmungo pouco promissor, foi tentar
encontrar Renée Seitchek. Quando a voz dela surgiu do outro lado da linha, ela
não soou nem surpresa nem contente.
“Eu senti o terremoto”, disse Louis.
“É, nós também.”
“Onde é que foi? Foi forte?”
“Nos arredores de Peabody. Foi mais fraco que o de domingo. Coisa, aliás,
que nós ficamos sabendo pelo rádio.”
“Eu estou ligando porque queria saber se você gostaria de ir a uma festa que a
minha irmã vai dar no dia 28. Não que seja uma ideia que eu pessoalmente
endosse, mas é pra ser uma festa com temática de terremoto. Uma festa a
fantasia. Se vai ser divertida, eu não faço a mínima ideia. Mas é pra isso que eu
estou ligando.”
Ele abaixou a cabeça e ficou ouvindo com extrema atenção qualquer ruído
que saísse do fone.
“Dia 28.”
“É.”
“Bom... está bom. Mas eu não vou me fantasiar.”
Ele soltou o ar dos pulmões, que estivera prendendo. “Eu poderia sugerir que
você usasse algum tipo de fantasia simbólica? Como um Band-aid ou algo assim?
Não que eu pessoalmente...”
“Está bem. Eu vou usar uma fantasia simbólica. Onde é que vai ser essa
festa?”
Ele combinou ir buscá-la no carro dele. Por coincidência, ela também morava
em Somerville. Ela lhe deu o número do telefone de sua casa e disse que seria
melhor ele não ligar para ela no trabalho. Louis desligou o telefone com um gosto
ruim na boca, se sentindo indesejado.
Seguiu-se uma semana de ansiedade. Depois de duas ou três cobranças bem-
sucedidas, Louis começou a esbarrar em recepcionistas irredutíveis, assistentes
embromadores e alguns indisfarçados grosseirões. Também estava tendo
dificuldade para arranjar dinheiro para as despesas de postagem. Depois de
esgotar os pequenos estoques de selos de um, dois e cinco centavos escondidos
em gavetas de diferentes mesas abandonadas, ele teve de recorrer à caixinha
para pequenas despesas, que ficava guardada na carteira do dono da estação.
Era cada vez mais comum encontrar Alec assistindo à pequena Zenith em sua
sala. Na hora do jantar, estando sozinho ou não, ele fazia adendos orais ao texto
de noticiários e comerciais de tv; fora isso, gostava de ver faroestes e filmes de
guerra.
“Noticiários de tv e jornais são o inimigo”, ele disse a Louis. “Durante oito
anos nós tivemos nos Estados Unidos um presidente com uma inteligência
subnormal. Todo dia ele faz um mal horrível à língua, ao futuro, à verdade.
Todos os seres pensantes deste país sabem disso, menos as redes de televisão e os
jornais. É suspeito, não? Ou será que talvez as pessoas burras agora também são
uma minoria de quem ninguém pode falar mal? Eu proponho então que a gente
vá até o fim e eleja logo um presidente retardado. Aí, na coletiva de imprensa, o
presidente está lá urrando e babando, e os assessores dele dizem, ah, ele tem um
novo programa interessante, e a cbs diz que o presidente babou essa noite e nós
temos aqui cinco analistas para falar sobre o interessante novo programa do
presidente e talvez também sobre se ele estava babando menos hoje do que da
última vez, que tal? E o New York Times publica a íntegra da coletiva e é só baba,
baba, urro, urro, e também uma frase coerente, e aí na primeira página eles
publicam a única frase coerente! Imagino que eles não queiram ofender as
pessoas retardadas dizendo que é ruim ter um presidente retardado.
“Mesmo assim, está bom, tudo bem, é prerrogativa deles. Mas também não é
responsabilidade de todo ser pensante do país dizer para as redes de televisão e
para os jornais: vocês são meus inimigos agora. Vocês me traíram. Vocês não
estão realmente do meu lado. Vocês estão do lado do dinheiro e eu estou vendo
muito bem como vocês são e não quero mais saber de vocês. Chega! Eu vou
procurar uma boa revista e uma boa estação de rádio, muito obrigado!
“Mas este é um mundo horrível, um mundo venal. As pessoas que pensam —
artistas, intelectuais, os bons repórteres — têm que escrever para o Times e têm
que falar na cbs, senão são os inimigos deles que vão escrever e falar. E então,
com chantagem, os grandes veículos de notícias compram os escritores e os
intelectuais. Pessoalmente, os grandes veículos estão cagando, Louis, eles estão
cagando para a verdade. Eles são simplesmente empresas que têm que estar
sempre ganhando dinheiro, nunca podem parar de ganhar dinheiro e nunca
podem ofender nenhum grupo.
“Agora o senhor Pró-vida quer comprar a minha estação porque não tem
gente suficiente nos ouvindo. Eu estou com raiva? Sim, eu estou com raiva. Mas
não é uma raiva política. Eu não vou dizer: ‘Eu discordo da política dessas
pessoas’. Porque toda política é igual. Esquerda, direita, é tudo a mesma coisa!
Exatamente a mesma coisa! Mas jornais têm que ter leitores e redes de televisão
têm que ter espectadores, e sem política todo mundo ia ver que esse imperador
da cultura está nu, então tudo é política! A extrema-direita não ia conseguir
chegar a lugar nenhum se a mídia falasse do que é belo, do que é verdadeiro e do
que é justo, em vez de falar do que é politicamente viável. A extrema-direita não
é bela, não é verdadeira e não é justa. A sorte deles é justamente só serem vistos
politicamente...”
Embora só fosse pago para trabalhar oito horas por dia, Louis raramente
deixava Waltham antes das seis horas. E foi uma surpresa para ele, numa noite
do fim daquela semana, encontrar Libby Quinn sentada no sofá diante da
televisão, respirando a fumaça de Alec. Normalmente, àquela hora, Libby já
estava em casa com as filhas.
“Louis”, disse Alec, chamando-o. “Nós temos uma programação especial esta
noite. Um perfil do homem que...”
“Sh, sh, sh, sh, sh”, disse Libby .
“Eu só ia dizer para o Louis...”
Louis o ignorou. Estava hipnotizado pela televisão. Chegou mais perto dela.
Aumentou o volume.
“Trata-se de um edifício”, a imagem da dra. renée seitchek estava dizendo,
“que foi condenado três anos atrás pela Secretaria Municipal de Urbanismo de
Chelsea e que está assentado sobre um aterro sanitário totalmente inconsolidado.
É difícil imaginar um edifício mais propenso a desmoronar num terremoto e,
para mim, é simplesmente uma loucura permitir que duzentos e cinquenta
membros de uma igreja morem aqui, mesmo que todos eles tenham assinado
termos de renúncia.”
“Então a senhora acredita que possam ocorrer outros terremotos?”, perguntou
um entrevistador que não estava aparecendo na tela.
“Não dá para descartar a possibilidade, principalmente depois do que
aconteceu em Peabody na sexta-feira.”
“O doutor Axelrod do mit me disse que acha que a probabilidade de um
terremoto destrutivo atingir a Grande Boston nos próximos doze meses ainda é
menor que uma em mil.”
“Podia ser uma em um milhão e ainda assim não deveria haver ninguém
morando naquele prédio.”
“Imagino que a senhora não concorde com o reverendo Stites no que diz
respeito à questão do aborto.”
Enquanto a dra. renée seitchek pensava em que resposta dar a essa pergunta
irrelevante, a câmera deu um zoom em seu rosto até as minúsculas sardas ao
redor de suas pálpebras ficarem visíveis. Em sua orelha direita, ela usava três
pequenas argolas de prata em três furos contíguos. Fora de foco, folhas de árvore
e raios de sol bruxuleavam numa janela atrás dela.
“Eu não creio que uma mulher que interrompe uma gravidez precise que
Philip Stites lhe diga a significação do que ela fez.”
“Você que pensa”, murmurou Libby . “Você que pensa.”
A dra. renée seitchek piscou os olhos sob as luzes ofuscantes, seu rosto ainda
enchendo a tela, enquanto o entrevistador fazia a pergunta final: “Se não é certo o
estado interferir na decisão de uma mulher de fazer um aborto, por que seria
certo interferir na decisão dos membros da igreja de morar no edifício da
Central Avenue?”.
“Porque foi Philip Stites quem tomou essa decisão por eles.”
A resposta da dra. renée seitchek aparentemente tinha se estendido além disso,
mas o som foi cortado quando o repórter levou os espectadores de volta à Central
Avenue, onde uma fiel da Igreja da Ação em Cristo estava saindo de um soturno
edifício de tijolos amarelos, cujas janelas estavam tampadas com tábuas de
madeira compensada já desbotadas pelas intempéries.
“A razão por que eu moro aqui nesse prédio”, disse a mulher, “é que eu
acredito mais em Deus do que nos cientistas e nos engenheiros. Esse prédio aqui
é um lugar sem proteção. Os não nascidos são criaturas sem proteção. Mas se
Deus tem o poder de me proteger aqui, eu tenho o poder de proteger os não
nascidos.”
“Uma cientista com quem eu conversei”, disse o repórter, “afirmou que foi o
poder de persuasão do reverendo Stites que fez com que vocês assinassem o
termo de renúncia, não a livre e espontânea vontade de vocês.”
A mulher empunhava um cartaz onde se lia obrigada mãe eu ♥ a vida. “A
vontade que me move”, ela disse para a câmera, “é a mesma que move o
reverendo Stites, e essa vontade é a vontade de Deus.”
“Como a senhora se sente ao ir para a cama à noite sabendo que até mesmo
um pequeno terremoto pode fazer esses tijolos todos desabarem em cima de
vocês?”
“Não tem ninguém neste mundo que acorde de manhã que não seja pela
graça do nosso Senhor.”
A reação da televisão a essa declaração foi um comercial de perfume. Libby
Quinn se remexeu no sofá, olhando em volta constrangida, como se achasse que
Louis e Alec esperassem que ela se justificasse. De repente, ela se levantou. “Eu
sou mãe, Louis. Você sabe que eu tenho duas filhas na escola secundária. E o que
aquela mocinha de Harvard não entende é que, para muitas dessas adolescentes,
fazer um aborto é como ir ao dentista. Eu sei com absoluta certeza que não há
ninguém dizendo a essas meninas que o que elas estão despejando na enseada de
Boston são minúsculos bebês.”
“Ah, sim”, disse Louis. “Só que esse pessoal pró-vida não está só tentando
orientar adolescentes.”
“Esse pessoal pró-vida”, disse Libby com veemência, “acha que é importante
você assumir a responsabilidade pelo seu comportamento sexual.”
“O que você acha, Louis?”, perguntou Alec. Era como se Libby fosse um
filme controverso que eles tivessem acabado de ver. “Você concorda com ela?
Responda com calma! O seu futuro nesta emissora pode estar em jogo.”
“Deixe-me lhe perguntar uma coisa, Louis”, disse Libby. “Por que você acha
que as pessoas que odeiam a ganância econômica estão sempre dispostas a
perdoar a ganância sexual? Qual você acha que é a razão disso?”
Alec olhou para Louis com expectativa, chupando sua pastilha de satisfação, as
sobrancelhas levantadas.
“A ganância econômica prejudica outras pessoas”, disse Louis.
Os olhos de Alec seguiram a bola de volta para o campo de Libby .
“Certo”, disse ela, com um sorriso descontente. “Já a ganância sexual não
prejudica ninguém. A menos que você considere o feto uma vítima.”
Era uma fala final; Libby saiu da sala.
“E o que a Vanna White tem a dizer sobre isso?”, perguntou Alec, mudando de
canal. “Não, não, a Vanna está acima dessas preocupações.”
Louis estava tremendo. Não fazia ideia do que tinha feito para que Libby
ficasse contra ele.
Alec se recostou confortavelmente no sofá para absorver os raios da Roda da
fortuna. “A Libby é uma pessoa infeliz”, disse ele. “Você a perdoa, não é? Ela
criou duas meninas sozinha, sem marido. O homem não valia nada. Ele voltou e
casou com ela quando a menina mais velha estava com dois anos, depois se
mandou de novo. Ela tem uma vida dura, Louis. Cometeu o mesmo erro duas
vezes. Uma vez, tudo bem, mas duas, é difícil de aceitar.”
“Ela está te traindo”, disse Louis.
Alec deu de ombros. “Eu estou devendo a ela meses de salário. Ela é
ambiciosa. Devia ter feito faculdade, mas teve os bebês. É difícil para ela agora
ver moças fazendo aborto. Você a perdoa, não é?”
Louis sacudiu a cabeça. Saiu do prédio para o estacionamento, onde já estava
escurecendo. “Ei, Libby ”, chamou. Ela estava entrando no carro dela. “Libby !”,
ele chamou de novo, mas ela tinha fechado a porta. Ele ficou vendo o carro de
Libby se afastar.
É possível que compreender seja perdoar, mas Louis já estava cansado de
compreender. Quase todo mundo que ele conhecia parecia ter boas razões para
não ser gentil ou educado com ele e, embora ele entendesse essas razões, não lhe
parecia justo que fosse sempre ele que tivesse que compreender e perdoar, e
nunca as outras pessoas. Parecia que o mundo estava estruturado de modo que as
pessoas infelizes que faziam maldades — a criança abusada que virava um
abusador de crianças, a ferida Libby que feria Louis e Alec — sempre pudessem
ser perdoadas porque não tinham como evitar fazer as maldades que faziam,
enquanto as pessoas infelizes que ainda se recusavam a fazer maldades eram
mais e mais feridas pelas maldades das outras, até terem sido feridas tantas vezes
que também paravam de se importar se estavam ou não ferindo outras pessoas, e
então não havia saída.
“Por que você não está falando comigo?”, ele tinha perguntado a Mary Ann
Bowles uma semana depois da Páscoa do ano anterior. Ela estava fazendo
beterrabas em conserva no meio de uma névoa de vinagre.
“Eu estou surpresa que você tenha que me perguntar isso”, ela disse.
“Ah, eu tenho uma teoria, mas queria checar.”
Ela enfiou um garfo num pedaço roxo de beterraba. “Bem, Louis”, disse ela,
“eu sei que a culpa não é sua, mas acho que você precisa saber que eu estou
muito, muito, muito magoada.” O som de sua própria voz a deixou com um nó na
garganta e o rosto cheio de pregas. “Tudo o que eu posso dizer é que isso não tem
nada a ver com você. Ela só estava tentando me machucar. E como você pode
ver” — suas palavras continuavam a afetá-la violentamente — “ela teve muito
sucesso.”
Louis desprezava aquela mulher. Odiava seu rosto empoado, seus seios
pesados, seu patente desespero. E, quanto mais a odiava, mais tinha a sensação
— uma sensação vaga e cafeinada — de que Lauren realmente o seduzira no
chão de seu quarto. Não tinha vontade nenhuma de desfazer o engano. Virou um
mau filho, subsistindo de sanduíches de manteiga de amendoim e comida de
festa, passando as noites no apartamento de colegas de faculdade e voltando para
a Dry den Street apenas quando precisava dormir doze horas seguidas. Os Bowles
não levantaram nenhuma objeção; não gostavam mais dele.
Depois que fez suas provas finais, Louis se mudou para um apartamento de
dois quartos num bairro negro pobre, para lá da Holman Street, e começou a
trabalhar na kilt-fm, operando a mesa nos horários de rush e apertando teclas no
restante do tempo. Um dia depois de sua formatura, voltou à Dry den Street pela
última vez, para pegar seus livros. Era uma viagem que ele vinha adiando na
esperança de esbarrar com Lauren, e se sentiu recompensado quando viu um
Beetle Volkswagen branco parado na pista de entrada da casa, com um adesivo
de estacionamento da Universidade do Texas no para-brisa.
Entrou na casa silenciosa, refrigerada e ensolarada. Viu a porta da lavanderia
entreaberta e deduziu que Mary Ann estivesse passando roupas de baixo lá dentro.
No andar de cima, quase passou direto pelo quarto de Lauren, já que o quarto
parecia estar exatamente igual a quando ele o vira pela última vez. Mas naquele
dia havia um elemento extra, uma mulher com um vestido branco de verão
sentada de pernas cruzadas na cama, lendo. Ela olhou por cima do livro,
semicerrando as pálpebras porque o sol estava batendo em seus olhos. Louis se
preparou para levar uma chibatada de zombaria, mas, assim que o reconheceu,
Lauren abaixou a cabeça de novo, mordendo o lábio e olhando para o livro com
o cenho franzido.
“É, que surpresa, não?”, disse Louis.
O livro no colo dela era uma Bíblia. Lauren se debruçou sobre ela com
determinação e fingiu ler, obviamente torcendo para que Louis fosse embora.
Ele permaneceu no vão da porta.
“Eu pensei que você já não estivesse mais morando aqui”, ela murmurou.
“Eu estou indo embora agora.”
“Ah. Arrã. Sorte sua.”
Parecia que alguém tinha tirado da tomada a mulher elétrica que ele
conhecera dois meses antes. Sem maquiagem e sem hostilidade, o rosto dela
parecia uma página em branco. Seu cabelo estava preso do lado com uma
presilha, no estilo de uma menina de dez anos arrumada para ir para a igreja.
“Você quer alguma coisa?”, ela perguntou.
Ele entrou no quarto e fechou a porta. “Eu posso falar com você?”
“Você não está zangado comigo?”
“Não.”
Ela abaixou ainda mais a cabeça. “Eu pensei que você estivesse. Imagino que
você seja um cara legal.” Estendeu o braço esquerdo, esticando os dedos como
se os estivesse admirando. Tinha amarrado um pedaço de barbante, fino e
branco, em volta do pulso. “Sabe, eu devolvi o anel pro Emmett. Ele não tira
você da cabeça. Acho que ele quer te matar.”
Louis ficou olhando fixamente para ela.
“Tá, isso é mentira”, ela admitiu, ainda de cabeça baixa. “Mas ele não
pareceu achar você muito boa coisa. Ele também não me achava muito boa
coisa. Eu achei tudo muito engraçado. Você sabe o que Mary Ann fez? Ela me
disse que achava que eu estava precisando de terapia. Eu disse que ela estava era
com ciúme, mas ela fez que não entendeu o que eu quis dizer.” Lauren franziu o
lábio de um jeito maligno.
“O que você vai fazer nesse verão?”, Louis perguntou.
“Não sei ainda. Ficar em casa. Tentar ser boazinha.”
“Eu posso te chamar pra sair?”
Ela levantou a cabeça e olhou para ele com uma espécie de pavor. “Pra que é
que você quer sair comigo?”
“Por que uma pessoa quer sair com outra?”
“Eu não posso.”
“Por que não?”
“Porque eu disse pro Emmett que não ia sair com ninguém. Ele está
trabalhando com o pai dele em Beaumont.”
“Então você está noiva, mas não está noiva. Arranjo engraçado.”
Ela sacudiu a cabeça. “É só que eu já aprontei tanto com ele. O Emmett
realmente é um cara legal, sabe, não tão inteligente quanto você.”
“Isso é outra coisa. De onde você tirou essa ideia de que eu sou tão
inteligente?”
“Ah, eu só passei as férias de Natal inteiras aqui. Só ouvi umas duzentas e
cinquenta vezes como você é inteligente. E você viu como eu encarei isso bem,
não foi?” Ela se calou, parecendo refletir sobre o que acabara de dizer. “Mas
sabe de uma coisa? Nesse último semestre, eu tirei no mínimo B em todas as
matérias. E nadei todos os dias e estudei até sábado à noite. Eu tinha ficado com
C.R. abaixo da média durante o meu segundo ano inteiro. Eu ia pra aula e tinha a
sensação de estar mentindo o tempo todo. Mentindo, mentindo, mentindo.” Ela
olhou para Louis de novo, viu o ceticismo dele e tornou a abaixar os olhos.
“Enfim, agora eu estou tentando ler a Bíblia.”
“Parabéns?”
“Eu ainda estou mais naquele estágio em que gosto de como me sinto quando
estou aqui sentada lendo, do que no estágio de estar realmente lendo. Eu li as leis
todas e aí cheguei nas leis sexuais. O castigo é sempre apedrejar a pessoa até ela
morrer. É isso que você recebe por praticar a sodomia. Sodomia é bom! Mas é
uma abominação para o Senhor.”
Louis soltou um suspiro. “Qual é a do novo figurino?”
“Como assim?”
“Esse vestido branco. Esse... uh, troço estilo Shirley Temple no seu cabelo.”
“O que é que tem de errado com ele?”
“Nada, não tem nada de errado com ele. É só que, sabe, não me leve a mal
não, mas você está tomando algum remédio?”
Ela sacudiu a cabeça e deu um sorriso sem graça. “Não.”
“Lítio? Valium?”
As palavras dele calaram fundo. Os olhos de Lauren se turvaram e ela
endireitou as costas. “Que tipo de pergunta é essa?”
“É que você está muito diferente”, disse Louis.
“Eu estou como quero estar. Agora me deixa em paz, tá bom? Sai do meu
quarto!”
Satisfeito com a reação dela, Louis ia pedir desculpas quando foi atingido na
orelha pela lombada de uma Bíblia voadora. Encostou a cabeça na porta e pôs a
mão na orelha machucada. Lauren saltou da cama, pegou a Bíblia de capa mole
por uma ponta, como se fosse uma luva, e se sentou com ela de novo. “Você está
bem?”
“Estou.”
“Eu não fui muito legal com você, não é? Imagino que eu tenha algum
problema com você. Vai ver eu não gosto de você ou sei lá.”
Ele deu uma risada triste.
“Não é nada pessoal. Você obviamente é um cara legal. Mas é melhor você
ficar longe de mim, você não acha? Então tchau, tá bom?”
Louis se sentiu exatamente como um amante casual sendo dispensado.
Mais tarde, porém, depois de ter chegado em casa com seus livros e tomado
uma cerveja, ele resolveu que a única explicação para o modo como Lauren
tinha agido era que ela não era indiferente a ele e que ele devia despertar algum
tipo de sentimento forte nela. Sua hipótese foi confirmada empiricamente na
semana seguinte, quando Lauren telefonou para ele. Mais uma vez, houve uma
curiosa falta de conexão entre o presente e o passado imediato. Ela simplesmente
começou a lhe contar o que andava fazendo, que era basicamente que tinha se
inscrito em dois cursos de verão na Universidade de Houston. Disse que queria
tentar se formar em Austin no semestre seguinte e que, por isso, ia fazer um
curso sobre os incas e os astecas e também um curso de introdução à química,
este porque ela tinha ficado com um F em química na escola e queria tentar
fazer algo realmente difícil agora, como penitência. Não perguntou a Louis o que
ele andava fazendo, mas a certa altura parou de falar por tempo suficiente para
que ele sugerisse que eles se encontrassem alguma hora. Houve um silêncio.
“Claro”, ela disse. “Tanto faz, desde que não seja na minha casa”.
Ele estava esperando em frente ao prédio de ciências físicas da Universidade
de Houston na hora em que terminaria a primeira aula de química de Lauren.
Centenas de iraúnas tagarelavam na praça, e havia um elemento estranho, uma
aberração, entre os alunos que saíam do prédio. Era Lauren. Ela tinha raspado a
cabeça.
Estava fuzilando todo estudante que olhava para ela. Sua cabeça era pequena e
muito branca, quase tão branca quanto o seu vestido, e suas olheiras arroxeadas
pareciam mais escuras. Ela perguntou a Louis, com voz hostil, como ela tinha
ficado com o novo visual.
“Como uma menina bonita que raspou a cabeça.”
Ela virou o rosto, enojada. “Você acha que eu ligo pro que você acha?”
Enquanto eles estavam caminhando rumo ao estacionamento, Louis quase
torcia para que algum homem que passasse fosse grosseiro com ela para ele
poder dar um murro na cara do sujeito. Quando eles entraram no Beetle de
Lauren, ela não ligou o carro imediatamente. Virou a cabeça de um lado para o
outro, como se precisasse sentir a nudez de seu couro cabeludo. Os nós de seus
dedos no volante estavam brancos. “Você ainda quer dormir comigo?”
“Quando você coloca a coisa desse jeito?”
“Era o que você queria, não era? Eu transo com você, se você quiser. Mas tem
que ser agora.”
“Eu só quero se você quiser.”
“Bom, eu não vou querer nunca. Então essa é a sua chance.”
“Bom, então, acho que isso quer dizer não.”
Ela fez que sim, sem tirar os olhos do para-brisa. “Mas não esqueça, tá bom?
Você teve a sua chance.”
No bairro que ficava ao norte da Universidade de Houston, a menos de dois
quilômetros do centro, homens de meia-idade tomavam cerveja direto da
garrafa sentados nas escadas da frente das casas e ouviam hip-hop em volume
baixo em rádios transistores de vinte anos de idade. De capota arriada e
carcomidos de ferrugem, sapatos de malandro amarelos, verdes e cor de laranja
repousavam nas pistas de entrada dos casebres de um único cômodo assentados
na lama arenosa. O ar do início da noite estava parado e tinha o cheiro dos
vilarejos negros ao fim de estradinhas de cascalho nos fundões do Mississippi.
Num restaurante vietnamita a alguns metros da igreja evangélica do Rei da
Glória, Louis pediu carne de porco com capim-limão. O prato vinha com
panquecas de arroz grudentas e translúcidas que, quando enroladas em volta da
carne, da alface, do hortelã e dos brotos de feijão, apresentavam uma
assombrosa semelhança com camisinhas. Lauren olhou para elas com uma cara
de impiedosa zombaria. Tinha pedido um café, que não estava tomando. Rasgou
pacotinhos de açúcar e ficou olhando para eles. Por fim, com relutância,
perguntou, desconsolada: “O que é um elétron?”.
“Um elétron?” Era como se ela tivesse mencionado o nome do melhor amigo
de Louis. “É uma partícula subatômica. É a menor unidade de carga elétrica
negativa.”
“Ah, obrigada.” Ela estava enojada de novo. “Isso me ajuda muito. Eu tenho
um dicionário.”
“Você também pode pensar nele como um construto imaginário...”
“Esquece. Eu já me arrependi de ter perguntado.” Ela olhou em volta inquieta,
como se quisesse ir embora e deixá-lo ali. “Qual é a desse negócio, hein? É como
se as pessoas inteligentes não estivessem realmente aprendendo ciências, elas só
estão aprendendo a falar feito imbecis.”
“O que exatamente você não entende?”, Louis perguntou num tom calmo.
“Eu não entendo o que esse troço é. Não entendo como ele é. Pra que serve?”
Ela empurrou a caneca para o lado, derramando um bocado de café na mesa.
“Eu não consigo nem explicar. Só achei que talvez você pudesse me ajudar um
pouco. É muito difícil pra mim, e não é porque eu sou burra. Eu só não consigo
ficar lá sentada balançando a cabeça e fazendo cara de inteligente como todo
mundo faz, quando o professor começa a falar de prótons e elétrons. Eu quero
entender esse troço.”
“Eu posso te ajudar a entender.”
Ela deu um risinho de escárnio. “Sei.”
“A gente pode se encontrar pra conversar sobre isso, se você quiser.”
Ela revirou sua bolsa à procura de cigarro, sacudindo a cabeça. “Era pra ser só
eu”, disse ela. “Eu ia ler bastante e ia estudar um negócio que é superdifícil pra
mim. E agora você quer se meter e estragar tudo.”
“É, mas... quem foi que ligou pra quem? Quem acabou de perguntar o que é
um elétron?”
“Eu estava feliz. Achava que você se importava comigo. Eu tinha tido uma
ideia e queria contar pra alguém. Mas você só está nessa por você mesmo. Você
vai ficar achando que eu te devo alguma coisa. Vai ficar achando que pode botar
o braço em volta do meu ombro, quando eu já disse que não quero nada com
você.”
“Eu só quero te ver. É só isso que eu quero.”
Ela tinha tragado um quinto do cigarro e agora parecia que o êxodo de fumaça
de suas narinas não ia parar nunca.
“Está certo”, disse ela. “Você é um cara legal, eu vivo me esquecendo disso.
Mas não esqueça, tá bom? Eu não vou ficar te devendo nada.”
Conforme os dias iam ficando mais quentes e as noites mais longas, Louis via o
cabelo de Lauren crescer de novo e o barbante em seu pulso ficar cada vez mais
cinza e lustroso. Ela não tinha vergonha de lhe pedir ajuda. Uma noite, passou
quase quatro horas na cozinha dele se recusando a entender o que é molécula-
grama. Cada afirmação contida em seu livro de química era como um nerd por
quem ela sentia um particular desprezo, e feria o seu orgulho ter de aceitá-lo
como uma reflexão verdadeira e acurada da realidade física. O que ela odiava
mais que tudo, no entanto, eram as explicações de Louis. Não queria nem ouvir
falar na página 61 ou na página 59, se o problema que ela estava tendo era na
página 60. Dizia ter entendido tudo, menos aquela única coisa que não estava
entendendo naquele determinado momento. Só queria que ele lhe dissesse a
resposta. Quando estava particularmente atacada, acusava Louis de falar igual ao
pai dela. Mas sempre acabava lhe agradecendo pela ajuda e, à medida que o
verão avançava, Louis tinha a impressão de que era cada vez mais difícil para
ela ir embora do apartamento dele sem tocar em sua mão ou lhe dar um beijo de
despedida. Ela tinha de morder o lábio e sair às pressas porta afora.
Uma noite no fim de julho, ele foi se encontrar com ela em frente ao
laboratório de química, que tinha um cheiro forte de picles, e quase teve de
correr para acompanhá-la quando ela disparou para o carro e abriu a porta com
um puxão violento. Quando eles chegaram ao apartamento dele, ela vasculhou os
depauperados armários da cozinha e abriu a garrafa de gim de Louis.
“Você está chateada”, ele arriscou do vão da porta.
Ela soltou um ruidoso arroto e tomou um copo d’água. “A gente teve que fazer
aspirina hoje na aula.”
“Eu me lembro de fazer aspirina.”
“Acredito. Só que o palhaço do professor resolveu fazer uma
competiçãozinha.” Ela secou a boca com as costas da mão. “Todo mundo
recebeu uma determinada quantidade de substâncias químicas e aí no final nós
íamos pesar os nossos produtos e quem tivesse o maior produto ganhava.
Simplesmente ganhava, sabe, seja lá o que for que isso signifique. Esses
professores, Louis, eles fazem as coisas de um jeito que é ótimo pra pessoas que
nem você e uma merda pra todo o resto. O melhor aluno ganha, os alunos do
meio não ganham e os piores perdem. Bom, a Jorry n e eu sempre somos as
últimas a terminar, de qualquer maneira. Mas nós seguimos as instruções com o
maior cuidado, mesmo já sabendo que vamos ser as piores, porque é pra isso que
nós estamos lá. Enquanto isso, os outros alunos todos estão levando a aspirina
deles em papel-filtro pro professor — é uma espécie de massa, como uma batata
depois que você mastiga, sabe? Aí eles pesam, e o palhaço escreve os nomes das
pessoas e as porcentagens no quadro-negro, e aí vai ficando uma barulheira cada
vez maior na sala. A galera está toda vibrando, sabe, por causa de uma diferença
de meio por cento: U-hu! U-hu!” Lauren arremedou loucamente a galera. “E aí
vem a hora em que você tem que resfriar o troço e filtrar, e aí você tem a sua
aspirina. Bom, nós fizemos isso, Louis. Nós seguimos as instruções. E o que
acontece é que tudo desce pelo papel-filtro. Não sobra nada lá. E aí depois vem a
Inquisição, tipo: o que foi que vocês fizeram de Errado dessa vez? Fica todo
mundo lá parado, olhando pra gente, enquanto o palhaço lê as anotações que eu
fiz no meu caderno. E ele não consegue descobrir! Ele pergunta: vocês
observaram o aumento de temperatura? E nós dizemos: arrã! E vocês rasparam
o frasco pra fazer a mistura cristalizar? E nós dizemos: arrã! E eu estou pensando
que ele vai dizer que tudo bem, não tem problema, que não é pra gente se sentir
tão mal por causa disso. Eu já estou me sentindo péssima, embora a Jorry n
esteja lá parada com a mão assim, sabe, meio que não é problema meu, cara.”
Lauren riu pensando em Jorry n. “Mas você sabe o que o palhaço fez? Ele ficou
todo emputecido e começou a dar chilique. Disse que alguma coisa nós tínhamos
que ter feito errado, porque não era possível juntar aquelas três coisas, aquecer e
depois esfriar e não-obter-aspirina. E a Jorry n e eu jogamos as mãos pro alto e
falamos: Mas nós fizemos tudo isso! Nós fizemos! E não deu aspirina nenhuma!
Simplesmente não funcionou dessa vez! Mas o palhaço, todo nervosinho, diz que
a gente vai ficar com F em laboratório, a menos que refaça a experiência e
mostre pra ele pelo menos três gramas de aspirina. Diz que vai deixar o
laboratório aberto até a meia-noite, se for preciso. Bom, a Jorry n começa a
sacudir a cabeça, meio que se foda essa merda, e vai embora. Mas nem isso eu
fiz, eu não tive coragem nem de sair da sala. Só fiquei lá sentada, enquanto o
resto da turma escrevia o relatório final, só fiquei lá sentada atrás da mesa do
laboratório, sozinha, só sentada lá sozinha, sendo castigada porque não consegui
fazer a porra da aspirina. E eu segui as instruções. e não deu nada.”
Apoiando as duas mãos na mesinha dobrável da cozinha de Louis, Lauren
começou a chorar mais alto do que ele imaginava ser possível uma pessoa
chorar. Gordos soluços de dor sacudiam seu peito e lhe escapavam pela boca. A
voz era a dela, voz como ela é antes de se tornar palavra: um banho de som
vermelho. Louis a abraçou e a fez encostar a cabeça em seu ombro. A cabeça
cabia nas mãos dele. Era como se ela se resumisse àquilo, àquela cabeça que
chorava. Ele não sabia por que a amava tanto, só sabia que queria ter acesso
àquela dor, a todo o ser ferido de Lauren, como quisera desde a primeira vez que
a vira. Deu um beijo em seu cabelo espetado e depois outro atrás de sua orelha.
Por tomar essa liberdade, ela lhe deu um tapa tão forte que os óculos dele se
entortaram e o reforço de plástico cortou seu nariz e contundiu o osso.
Ele ficou lá um tempo, tentando endireitar a armação.
“Desculpe pelo tapa”, ela disse quando saiu do banheiro, com um bolo de
papel higiênico na mão. “Mas você disse que não ia fazer isso. Não é justo.”
Ela assoou o nariz.
À meia-noite, eles ainda estavam vendo televisão na cozinha de Louis. Quando
Lauren finalmente desligou o aparelho, houve um delicioso momento em que
Louis não sabia o que ia acontecer. O que aconteceu foi que ela abriu uma janela
e disse: “Refrescou”.
Eles saíram para caminhar. De alguma forma, uma suave brisa úmida vinda
do golfo tinha empurrado o verão para o norte, devolvendo abril. Parecia que era
a brisa, e não a hora, que havia esvaziado as ruas e calçadas de tudo, menos das
folhas rastejantes. Os poucos carros que passavam se pareciam menos com
carros do que com ondas quebrando mansamente, ou com lufadas de vento; a
umidade os sorvia de volta para dentro dela assim que eles acabavam de passar.
Em Houston, uma cidade que acomodava a natureza, qualquer pequeno pedaço
de terra podia ter cheiro de praia ou de charco. Louis adorava os carvalhos
densos e cheios de vida, onde iraúnas-macho arroxeadas e iraúnas-fêmea
marrons cantavam músicas irresponsáveis, gritavam, gemiam e riam. Também
adorava os esquilos, que eram como os esquilos de Evanston com longas orelhas
falsas, um disfarce tão transparente que chegava a ser insultante.
No Herman Park, ele e Lauren subiram a colina artificial e contornaram o
lago artificial, que tinha uma grade em volta. Sentaram-se nos trilhos de algum
trenzinho recreativo, que cortavam uma campina. Lauren acendeu um cigarro,
acordando uma iraúna que começou a falar em línguas.
“Louis”, disse Lauren. “Você me ama de verdade?”
“Isso é algum tipo de pergunta capciosa?”
“Responde, vai.”
“Sim, eu te amo de verdade.”
Ela abaixou a cabeça. “É por causa daquela coisa que eu fiz?”
“Não. É por causa do jeito como você é.”
“Você quer dizer do jeito como eu supostamente sou. Você acha que eu sou
como você de alguma forma. Mas eu não sou. Eu sou burra.”
“Isso é besteira.”
“Você estuda na Rice e só tira A, eu estudo na Austin e vivo tirando D, mas eu
não sou burra. Eu sou exatamente como você.”
“É.”
Ela sacudiu a cabeça. “Não, porque na verdade eu sou mais inteligente que
você. Eu nunca amei ninguém de verdade, então não tenho como levar muito em
conta essa coisa de amor. E se o amor não estiver te deixando ver o que é melhor
pra mim? O Emmett também me ama, aliás, e ele não acha nada bom que eu
saia com você. Então é como se o amor não necessariamente dissesse a verdade.
Eu não posso confiar em ninguém a não ser em mim. E a questão é que só
existem duas opções.”
Ela se levantou. “Eu tenho tentado encontrar uma maneira de explicar isso
sem ficar parecendo uma completa imbecil até pra mim mesma. Eu quero
tentar de verdade explicar isso, Louis. Digamos que você tivesse que estudar para
uma prova, mas aí você diz: antes de estudar eu vou ver só um inning do Cubs.”
Louis sorriu. O exemplo se aplicava perfeitamente a ele.
“Bom, só existem duas opções. Ou você desliga a televisão depois de um
inning e meio, ou você vê o jogo inteiro e depois se sente péssimo. Mas vamos
dizer que você está supertriste naquele dia, superinfeliz, e você realmente adora
beisebol. Isso quer dizer que as suas duas opções são ou ver o jogo inteiro, ou não
ver absolutamente nada, porque você sabe que, estando tão infeliz, você vai
acabar vendo o jogo inteiro se começar a assistir. E é muito difícil conseguir
resistir à tentação de ligar a televisão, porque você pensa: pô, eu já estou tão
infeliz, será que eu não posso pelo menos me dar o direito de ver o jogo de
beisebol? Mas você não sabe que se tentar de verdade não ver o jogo, nem que
seja por cinco minutos, você vai sentir uma coisa boa dentro de você? E você
pode imaginar: pô, eu ia me sentir superbem se conseguisse dizer não sempre.
Mas você nunca consegue, porque está tão infeliz que sempre acaba dizendo: ah,
dane-se. Ou então: ah, amanhã eu paro de ver beisebol. E aí a mesma coisa
acontece no dia seguinte? Por que eu não consigo explicar isso direito?”
Com dedos rígidos, ela tentou arrancar alguma substância do ar na frente dela.
“Porque, sabe, parece tão careta você se privar de uma coisa. As outras
pessoas não se privam, então por que é que você iria se privar? Ou as pessoas que
se privam são babacas e só resolveram se privar de alguma coisa porque nunca
gostaram daquilo pra começar. A impressão que dá é que todas as pessoas
realmente interessantes e atraentes que existem no mundo simplesmente fazem o
que têm vontade de fazer e pronto. Parece que é assim que o mundo funciona.
Além do mais, lembra, é superdifícil se privar de uma coisa. E é por isso que
você vai a tudo quanto é lugar hoje em dia e a impressão que dá é que não
existem realmente duas opções, só existe uma. Talvez de vez em quando você
ainda tenha leves sensações cintilantes de como é ser uma boa pessoa, mas
aquela coisa grande, aquela coisa brilhante simplesmente não parece ser uma
opção de verdade. Eu costumava fazer coisas boas porque gostava da sensação
que isso me dava, mas aí o resto de mim só queria usar essa sensação boa como
um motivo pra sair e me embebedar. Eu comecei a ter a sensação de que me
sentir limpa era só mais uma sensação útil, que nem ficar bêbada ou ter dinheiro.
Mas sabe de uma coisa? Sabe o que eu percebi um dia? Foi antes do Natal. Eu
estava com um pessoal lá em Austin que eu tinha conhecido e me toquei que em
vez de passar o dia inteiro sem beber, como eu tinha prometido a mim mesma na
véspera que ia fazer, eu estava tomando uma dose de Seagram’s no almoço. E aí
eu pensei: era literalmente possível não beber hoje. Ou trepar. Ou até fumar.”
“Como a Nancy Reagan”, disse Louis. “Simplesmente diga não.”
Lauren sacudiu a cabeça. “Isso é asneira. Faz parecer fácil, quando é a coisa
mais difícil do mundo. Mas não foi isso que eu percebi. O que eu percebi foi:
você tem que ter fé. Era isso que eu nunca tinha entendido antes. Que fé não é
aquela coisa idiota de estatueta de Buda, nem de vitral colorido, nem de Salmo. A
fé está dentro de você! E ela é branca e tênue, é essa coisa... essa coisa...” Ela
agarrou o ar. “Que o milagre de fazer uma coisa tão impossível... seria tão
lindo... tão lindo. O motivo de eu não conseguir explicar, Louis, é que é uma coisa
tão tênue que eu vivo perdendo de vista. É que não existe truque pra conseguir
largar coisas ruins. Não existe fórmula. Você não pode depender da força de
vontade, porque nem todo mundo tem isso, o que quer dizer que, se você tem
alguma força de vontade, não é realmente mérito seu, é só sorte. A única
maneira de realmente conseguir largar uma coisa é sentir como isso é
completamente impossível, e então ter esperança. É sentir como seria lindo, o
quanto você poderia amar Deus, se esse milagre acontecesse. Então, você pode
imaginar como eu fui popular no semestre passado, que foi quando... Ei! Ei!
Porra, Louis, eu não acredito que você vai me deixar falando sozinha. Porra...”
Andando aos arrancos, o corpo se inclinando para a frente, as pernas
avançando para tirar a desvantagem, Lauren alcançou Louis num tropel de
passos e arquejos, parou, depois começou a correr de novo, porque ele não
parava. “Louis, deixa só eu terminar...”
“Eu já captei a ideia.”
“Ah, aí é que tá, aí é que tá. As pessoas te odeiam se você tenta ser certinha...”
“É, ódio, é esse que é o problema aqui.”
“Eu não sabia que ia ser assim. Eu pensei que nós pudéssemos ser amigos.
Louis. Eu pensei que nós pudéssemos ser amigos! E você disse que eu não ia
ficar te devendo nada! Por que eu sou tão burra? Por que eu fiz isso com você?
Eu não devia ter te ligado, eu só fiz piorar tudo. Eu sou tão burra, tão burra.”
“Não tanto quanto eu.”
“É, mas você também não está sendo muito bonzinho, não. Você está tentando
me fazer sentir culpada pra eu acabar fazendo uma coisa que eu não quero fazer,
porque estou tentando parar de me sentir tão merda. A gente não pode só
combinar que você não deu sorte?”
“Arrã, claro, tá ótimo.”
“Você vai dar sorte da próxima vez. Eu juro pra você. Ninguém tem a cabeça
tão ferrada quanto eu.” Ela estava chorando. “Eu sou um lixo absoluto. Eu não
valho a pena.”
Parecia injusto que tivesse de ser Louis, que não queria nada além de estar
com ela, quem teria de se calar e ir embora; injusto que Lauren fosse tão neutra
em relação a ele que até a tarefa de se livrar dele tivesse de ser feita por Louis.
Mas, como um ato final de generosidade e mesmo sabendo que ela nunca iria lhe
agradecer por isso, Louis deixou que ela tivesse a última palavra. Deixou que ela
dissesse que ela não valia a pena. Eles caminharam para fora do parque e para
dentro do verão, que estava se reagrupando tão repentinamente como quando
havia batido em retirada duas horas antes, e de novo aglutinava em sua matriz
úmida as milhares de vozes de aparelhos de ar-condicionado. Lauren entrou em
seu carro e arrancou. No silêncio antes do amanhecer, Louis pôde ouvir o motor
crepitante do Beetle e as trocas de marcha durante talvez uns vinte segundos, e já
nesses vinte segundos sentiu dificuldade de aceitar que ela estava se virando sem
ele, que estava trocando as marchas e apertando os pedais de um carro e tocando
uma vida que não o incluía; que ela não tinha simplesmente deixado de existir
depois que saiu do campo de visão dele.
Enquanto os dias passavam e ele ia trabalhar na kilt e voltava para casa para
ver beisebol, Louis estava consciente de que cada hora que passava para ele
também estava passando para ela em algum lugar; e quando os dias viraram
semanas e ele continuava tão consciente quanto antes de como as horas estavam
se acumulando, começou a lhe parecer cada vez mais inacreditável que nunca,
em todas aquelas centenas de horas, em todos aqueles milhões de segundos, ela
tivesse telefonado para ele.
Veio outubro, veio novembro, e ele ainda continuava acordando de manhã à
procura de alguma brecha na lógica de sua autocoibição que pudesse justificar
que ele telefonasse para ela. Sentia uma vontade terrível de estar com ela; tinha
sido bom para ela; como ela podia não querer estar com ele? Tinha a sensação
de que havia um rasgo no tecido do universo através do qual ele tivera o azar de
passar, sem possibilidade de volta, de modo que, mesmo que quisesse amar outra
pessoa agora, ele não poderia; como se o amor, como a eletricidade, fluísse em
direção ao menor potencial e, ao entrar em contato com a profunda neutralidade
de Lauren, ele tivesse ficado preso para sempre.
O Natal em Evanston foi ridículo. Eileen achava que ele era um cientista da
computação. Assim que voltou para Houston, Louis fez uma fita-demo e
começou a enviar cartas à procura de emprego. Tinha sido a única coisa que ele
havia conseguido pensar em fazer quando, no meio da correspondência que se
acumulara durante sua ausência, ele encontrou um comunicado de casamento,
no qual Jerome e Mary Ann Bowles anunciavam formalmente que na sexta-
feira, depois do dia de Ação de Graças, sua filha Lauren havia se casado com
Emmett Andrew Osterlitz, de Beaumont. No verso do cartão, a remetente havia
anotado em caneta azul: Feliz Natal! Não deixe de mandar notícias. — MaryAnn
B.

Para chegar à casa de Renée Seitchek, Louis teve de atravessar toda a


extensão do eixo leste-oeste de Somerville. Sob a luz mortiça do anoitecer, ele
passou por um banco que parecia um mausoléu, por um hospital que parecia um
banco, por um quartel que parecia um castelo e por uma escola que parecia um
presídio. Passou também pelo salão de beleza Panaché e pela prefeitura de
Somerville. O gênero mais notável de garotas adolescentes nas calçadas tinha
cabelo louro frisado, testa enorme e cintura de quarenta centímetros; o outro
gênero mais notável tinha excesso de peso e usava roupas de tricô pretas ou em
tom pastel que lembravam pijamas de criança. Por duas vezes Louis levou uma
buzinada do carro de trás por parar para permitir que pedestres surpresos e
desconfiados atravessassem a rua na frente dele.
Com a ajuda de alguns exemplares recentes do Globe, ele havia se inteirado
das movimentações e declarações do reverendo Philip Stites. As “ações” de
Stites em Boston vinham atraindo centenas de cidadãos preocupados de todo o
país e, para abrigar esses cidadãos que desejavam participar de futuras “ações”,
ele havia adquirido (por US$ 146.001,75) um edifício de apartamentos de
quarenta anos na cidade de Chelsea, localizado bem ao norte do centro de Boston,
do lado oposto do rio, e perto da linha de metrô de Wonderland. O edifício, que
Stites imediatamente batizou de sede mundial da Igreja da Ação em Cristo, havia
sido condenado três anos antes, e tão logo o rebanho de Stites se mudou para lá e
pendurou cartazes com a frase aborto é assassinato nas janelas, a polícia de
Chelsea foi até lá fazer uma visita. Stites dizia ter convertido os policiais na hora,
mas tal afirmação foi contestada mais tarde. Sob circunstâncias obscuras,
chegou-se a um acordo conciliatório segundo o qual todo membro da igreja que
entrasse no prédio teria de assinar um termo de renúncia de três páginas, cujo
intuito era blindar a cidade contra ações judiciais. (Um editorial do Globe sugeria
que o prefeito de Chelsea estaria em fundamental(ista) concordância com Stites.)
O prédio condenado, ao que parecia, não tinha quase nenhuma estabilidade
lateral e estava sujeito a cair mesmo sem a ajuda de um terremoto.
“O que o Estado condenou”, disse Stites, “o Senhor salvará.”
Uma charge do Globe mostrava uma banca de jornal onde só se vendiam
duvidosos termos de renúncia.
Renée morava numa rua estreita chamada Pleasant Avenue, na colina de
Somerville que ficava mais a leste. A casa onde ficava o apartamento dela tinha
três andares, paredes externas revestidas de ripas de madeira e telhado de
mansarda coberto de telhas de ardósia. Os ramos do que parecia ser uma
madressilva tinham engolfado a grade de arame em frente à casa, e Louis já
estava quase entrando pelo portão quando viu Renée. Ela estava sentada na
escada de concreto da casa, inclinada para a frente com as mãos entrelaçadas,
abraçando as canelas por cima da barra de um vestido preto com jeito de antigo.
A pala de renda do vestido, que tinha um generoso decote redondo, estava
parcialmente coberta pelo cardigã preto que ela estava usando.
“Oi”, disse Louis.
Ela inclinou a cabeça para o lado. “Escuta.”
“O quê?”
“O vento. Escuta.”
Louis não ouviu vento nenhum. Um Camaro cuspindo música se aproximou,
meteu seu murro sônico na cara de Louis e dobrou uma esquina. Louis olhou
para a rua repleta de carros estacionados, no fim da qual, acima dos galhos
partidos de árvores tortas, ainda havia um resto de turquesa no céu e uma estrela
brilhante, talvez Vênus. A noite já havia caído nos quintais vizinhos, que eram
pequenos e estavam cheios de brinquedos de plástico, pilhas escuras de tralhas e
mais carros. Aquela parte de Somerville parecia ao mesmo tempo mais distante
dos subúrbios e mais perto da natureza do que o bairro de Louis. As árvores eram
mais altas ali, as casas mais caquéticas e a quietude menos amistosa e mais
vigilante e intimidadora.
“Ah, faz favor”, Renée disse para o vento relutante.
E ele fez. Louis o ouviu primeiro no fim da rua e viu os galhos de lá
corcovearem de repente. Depois, ouviu-o resvalando pelos telhados mais
próximos e assobiando nos beirais e nas antenas, aproximando-se como um
mensageiro meticuloso e discreto ou um anjo. Então, ele atingiu Louis, uma mão
invisível que levantou sua gola e deixou a madressilva em rebuliço, antes de as
árvores também entrarem na bagunça e a tornarem geral. Quando o vento enfim
serenou, a rua parecia mais próxima do céu.
“Bom, parece que acabou.” Renée se levantou e bateu na parte de trás do
vestido para tirar a poeira. “Cadê a sua fantasia?”
“Está no meu bolso.” Louis estava usando um chamativo paletó de tweed por
cima de uma camisa xadrez de flanela; do pescoço para baixo, ele parecia um
siciliano. “E a sua?”
“É isso que você está vendo.”
“Você está de luto.”
“Exato.”
Outra lufada de vento veio assobiando ao longo da rua e achatou o cabelo de
Renée, repartindo-o acima da orelha. Havia algo faltando nela, algo que ela não
estava usando. Uma bolsa, Louis pensou; mas era mais que isso. No carro, ela
afrouxou a faixa do cinto de segurança e se afastou o mais que pôde de Louis,
encostando-se no vão entre o banco e a janela. Apoiou as mãos espalmadas no
assento do banco, uma ao lado de cada perna, e pareceu fazer um esforço para
manter os ombros eretos, como se estivesse lutando contra a inclinação de
arquear as costas e cruzar os braços, como se estivesse num consultório médico,
sentada nua sobre a mesa de exame forrada de papel e lutando contra essa
inclinação. Mas claro que ela estava completamente vestida. Louis disse que a
tinha visto na tv.
“Ah, é?” Ela levantou o braço devagar, tentando apoiar o cotovelo no encosto
do banco, mas o encosto era alto demais. Ainda mais devagar, pousou a mão no
assento de novo. “Foi horrível, não foi?”
“Você não viu?”
“Eu não tenho televisão.”
“Por que você acha que foi horrível?”
“Bom, porque o babaca do repórter ficou me fazendo perguntas sobre o Philip
Stites. Que, pelo que eu soube, foi justamente o que eles botaram no ar.”
A voz dela, que já estava estranhamente animada, tinha ficado definitivamente
alegre em palavras como “babaca” e “horrível”.
“O diretor do departamento onde eu trabalho está de licença na Califórnia e,
dos dois outros sismólogos que poderiam falar pelo departamento, um está
internado num hospital desde fevereiro e o outro é uma pessoa meio espantosa,
que consegue a proeza de nunca estar disponível, apesar de morar em
Cambridge e trabalhar o tempo inteiro. Então, quando o Channel 4 ligou para lá
querendo marcar uma entrevista para saber a opinião de Harvard sobre os
acontecimentos” — isso dito com uma alegre ênfase — “acabou sobrando pra
mim. Eles obviamente já vieram com a intenção de abordar a coisa sob o ângulo
ciência versus religião, só que não tinha ficado tão óbvio de início. Além do mais,
eu sou mulher, então foi a combinação perfeita para o objetivo deles. Eu nunca
tinha estado na frente de uma câmera antes. Simplesmente não me ocorreu na
hora que eu podia não responder. Os outros sismólogos com quem ele falou não
só de fato sabem alguma coisa sobre a sismicidade da Nova Inglaterra (coisa que
eu não sei), como, pelo que me disseram, foram inteligentes o bastante para não
morder a isca das perguntas sobre o Stites.”
“Bom, mas alguém tem que dizer essas coisas”, disse Louis, guiando o carro
em direção à i-93.
“É tão revoltante isso. Essa ideia de uma igreja fundada com um único
propósito, a Igreja do Ódio às Mulheres, à qual, tipicamente, são sobretudo as
mulheres que estão aderindo. E eles estão todos se entocando naquele buraco
fedido daquele prédio de Chelsea, que, como você deve saber, já é em si um
buraco fedido.” Ela abaixou a cabeça e, com um desdém refletido, ficou
acompanhando o movimento dos carros que mudavam de pista, olhando para
eles como quem olha para inimigos. Uma forte rajada de vento fez o Civic
rebolar de leve e uma fina camada de areia antiderrapante deslizar obliquamente
sob a luz dos faróis dianteiros.
“Eu falei com a sua mãe de novo”, disse Renée, como que para mudar de
assunto.
Louis se concentrou na estrada. Uma matilha de faróis tinha enchido o espelho
retrovisor e agora começava a ultrapassá-lo pela direita; o carro rebolou de novo
com o vento. Renée demorou um pouco a entender que Louis estava ignorando o
que ela dissera. Lentamente, com um dedo, ela tirou uma língua escura e
pontuda de cabelo da testa. “Eu disse que falei com a sua mãe de novo.”
“Sim. Eu não tenho nenhum comentário a fazer.”
“Ah. Sei.” Ela fez uma careta. “Foi ela que me ligou, sabe.”
“Para pedir conselhos profissionais.”
“É.”
“Você devia cobrar pelos seus conselhos.” Louis olhou por cima do ombro,
pisando de leve no freio. Havia um carro no seu ponto cego do lado direito,
carros ultrapassando-o pela esquerda e embicando na frente dele, carros se
aglomerando e mergulhando feito lemingues numa rampa em curva logo
adiante. Sem que Louis tivesse tido praticamente nenhuma participação nisso, o
Civic entrou numa rotatória e desembocou na Storrow Drive.
Renée perguntou se ele era estudante. Para a surpresa de Louis, ela não só já
tinha ouvido falar na wsne, como até já a tinha ouvido, uma vez ou outra. Ela
disse que a wsne era como uma rádio universitária perdida na faixa am.
“É exatamente isso que nós somos”, disse Louis.
“Você está gostando de morar em Boston?”
“Eu tenho um vizinho que vive me fazendo essa pergunta. É um velhinho meio
patético, sabe. Ele está muito preocupado em saber se eu estou gostando de
Somerville. Toda hora ele me pergunta se eu acho que vou gostar de morar
aqui.”
“E o que é que você diz pra ele?”
“Eu digo: Ah, vai se foder, velho. Rá-rá.”
“Rá-rá.”
“Mas e você?”, Louis perguntou. “Você gosta daqui? Você gosta de Boston?”
“Claro.” Renée sorriu de alguma ironia obscura. “É onde eu sempre quis
morar. A Costa Leste em geral, Boston em particular.”
“Isso foi durante a sua infância em Waco?”
“Durante a minha infância em Chicago. Infância e adolescência.”
“Em que lugar de Chicago?”
“Lake Forest.”
“Ah, Lake Forest, Lake Forest.” As palavras tiveram um efeito pavloviano na
pressão arterial de Louis. “Era lá que eu queria morar quando era criança e
morava em Evanston. Você morava numa daquelas casas bem de frente para o
lago?”
“Você é de Evanston?”
“Eu perguntei se você morava numa daquelas casas bem de frente para o
lago.”
“Não, não.”
“Aquilo é que eu chamo de vida. Uma daquelas casas bem de cara para o
lago. Vocês tinham barco?”
Renée cruzou os braços e ficou de boca fechada. Claramente não estava
gostando da companhia de Louis.
“Mas nós estávamos falando de Boston”, disse ele.
Ela olhou pela sua janela com ar de cansaço. Não pareceu ter sido só por
sociabilidade que ela depois se virou e disse: “Squantum. Mashpee. Peebiddy.
Athol. Braintree. Swumpscutt. Quinzee”.
“Parece que você tem um problema com os nomes dos lugares.”
“É ridículo, eu sei. Mas tem alguma coisa nesse lugar... uma frieza, uma
feiura. Toda semana algum crime inacreditavelmente doentio acontece aqui e,
de alguma forma, todas as pessoas que acham que Boston é um centro de cultura
e de educação conseguem ignorar o que aconteceu. Elas veem uma cidade
bonitinha, manejável e segura, sabe, que não é tão assustadora quanto Nova
York. É como Nova York, só que melhor. Mas eu olho e vejo racismo
escancarado, um clima horroroso, taxas de câncer altíssimas, motoristas
horrorosos, uma enseada cheia de esgoto e todas aquelas jovens mães com seus
Saabs em Cambridge, em êxtase por estarem em Cambridge, e quem não ficaria
revoltado?”
Louis estava rindo.
“Você ri”, disse Renée. “Obviamente é um problema que eu tenho. Eu sempre
quis morar aqui, mas aí eu descobri que a parte de mim que fazia esse lugar
parecer atraente, a parte de mim que eu compartilhava com as outras pessoas
que queriam realmente estar aqui, era uma parte de mim da qual eu não gostava
mais. E o fato de eu ainda continuar aqui depois de seis anos é um lembrete
terrível de um traço meu que eu preferia ter esquecido seis anos atrás. Eu me
sinto tão cúmplice. As pessoas vêm pra cá, aproveitam a experiência durante
alguns anos, depois se mudam para lugares de verdade, e então passam o resto
da vida falando sobre esse período romântico que elas passaram numa cidade
que elas eram jovens demais para perceber que não era lá essas coisas, e aí o
país inteiro compra essa imagem de Boston como uma cidade divertida, e o que
é mais revoltante é que a própria Boston compra essa imagem mais do que
ninguém. E, depois de seis anos, fica pressuposto que eu também comprei.”
“Por que você não se muda daqui?”
“Eu vou me mudar, em setembro. Mas antes eu tenho que terminar o meu
doutorado.”
Louis estava procurando números de prédios numa rua chamada Marlborough.
“Além do mais, eu odeio mais a ideia do lugar do que o lugar em si. E eu não
odeio Somerville nem um pouco. Estranhamente. Qual é o número que a gente
está procurando?”
“Esse aqui”, disse Louis, apontando para um prédio antigo com fachada de
tijolos. Só tinha se dado conta naquele momento de que encontrar uma vaga para
estacionar o carro poderia ser um problema. Durante os vinte e cinco minutos
seguintes, Louis e Renée passaram pelo prédio de Peter Stoorhuy s oito vezes. O
trânsito estava intenso e anormal, os carros se arrastando pelos quarteirões
aburguesados num cakewalk invertido, todos esperando que um espaço vagasse.
Louis dava voltas e mais voltas, a cada uma delas se afastando mais do prédio de
Peter. Ignorava vagas que lhe pareciam distantes demais e depois, quando
voltava a elas com uma ideia mais bem informada de seu valor, elas já tinham
sido ocupadas. (Era como aprender da forma mais difícil em que momentos
comprar ações da Bolsa.) Tentava fazer o carro entrar em vagas que ele já sabia
que eram pequenas demais. Metia o pé no freio quando passava em frente a
hidrantes e em seguida metia o pé no acelerador. Furou sinais vermelhos. E
quando, mais perto das dez horas do que das nove, encontrou uma vaga livre a
um quarteirão de distância do prédio de Peter, quase ficou desconfiado demais
para pegá-la. Três carros na frente dele haviam passado por ela com o júbilo dos
insiders. Não parecia haver nenhum hidrante, nem entrada de garagem, nem
placa informando ser vaga exclusiva do morador, e, embora devesse ter acabado
de aparecer, o espaço de alguma forma não parecia fresco. Louis entrou de ré na
vaga, franzindo o cenho ressabiado, como um tigre na floresta faria se
encontrasse uma picanha crua embrulhada em papel encerado. Seu quadril
estava molhado do suor que tinha escorrido de suas axilas.
“Parecia boa a festa lá.”
“Que droga. Que droga.”
Em frente à porta do apartamento do primeiro andar, Louis vestiu sua fantasia.
Era uma máscara de proteção que ele tinha usado na escola secundária para
cortar grama no tempo seco. Ela dispunha de dois respiradores protuberantes em
forma de focinho, para os quais ele ainda tinha alguns filtros de papel. “Isso é
muito... perturbador”, disse Renée.
“Obrigado.”
Eileen abriu a porta com uma garrafa de cerveja na mão. Tinha prendido o
cabelo e estava usando um terno xadrez de homem e uma gravata larga cor de
abóbora. Suas bochechas estavam vermelhas. “É você, Louis?” Pelo tom de voz
dela, parecia que Louis era um garoto de seis anos. Ela sorriu hesitantemente
para Renée.
“Essa é a minha irmã, Eileen”, Louis bufou, apontando para ela seu focinho
esquerdo. Renée terminou a apresentação ela própria, e então Eileen engatou
numa superficialidade frenética, digna de uma mulher com o dobro da sua idade.
Borboleteou em volta dos recém-chegados, explicando a festa e mostrando os
prazeres disponíveis. Louis reparou que Peter tinha um sofá e uma mesa de
centro idênticos aos do apartamento de Eileen. Na sala de estar de pé-direito alto,
que tinha o teto sem ornamentos e as paredes lisas de apartamentos recém-
reformados, cerca de metade dos convidados estava fantasiada. O prêmio de
melhor fantasia ia para uma pessoa com uma roupa de película de poliéster
My lar, com direito a capacete, visor espelhado e um sistema pendular de
filtragem de ar que botava o de Louis no chinelo. Cercando essa figura estava um
grupo de rapazes com roupas de fim de semana. A julgar pelos movimentos
satisfeitos que fazia com a cabeça, a figura parecia estar recebendo ininterruptos
elogios dos colegas. Grandes amigos seus da faculdade, Eileen explicou. Outro
grande amigo seu estava sentado ao lado do equipamento de som, com o braço
pendurado em cima do componente mais alto, os dedos num botão de controle, a
cabeça balançando no ritmo de um reggae metálico em tom maior. Seu outro
braço estava pendurado numa tipoia. No meio da sala, uma horda de jovens
mulheres com cabelos curtos de executivas levantavam e abaixavam os pés
naquele tipo de dança semiconsciente que uma pessoa faz quando está pisando
em areia quente. Algumas usavam curativos em diferentes partes do corpo; todas
usavam vestidos de cintura baixa. “Você está fantasiada de quê?”, Louis
perguntou a Eileen.
“Você não adivinha?”
“Microempresário que sofreu um megaprejuízo.”
Ela lhe dirigiu um olhar angustiado. “Eu sou um perito de companhia de
segurooooos! Não está vendo a minha trena, o meu bloquinho, a minha
calculadora...” Ela parou. Parecia um gato quando percebe de repente estar
sendo observado. Puxou a cabeça um pouco para trás e seus olhos ficaram indo
de um lado para o outro, se alternando entre Louis e Renée, que estavam parados
a meio metro de distância, olhando para ela atentamente. A questão era que ela
nunca tinha visto o irmão acompanhado de uma mulher.
Houve uma nota estranhamente compassiva na voz de Renée. “O que você ia
dizer?”
“Nada, nada”, Eileen foi ficando atarantada. “Era só isso, só um perito, só
imperito de seguradora. Tem muita, muita comida, então... sirvam-se.”
Renée continuou olhando com uma compaixão mais perceptível ainda quando
Eileen se enfiou no meio do grupo das mulheres que dançavam, que, duas a duas,
olharam por cima do ombro na direção dos recém-chegados. Antes que eles
tivessem tido tempo de se aventurar um pouco mais festa adentro, uma coisa
desagradável aconteceu.
A figura da roupa de My lar veio andando na direção deles, fingindo estar se
locomovendo sob gravidade lunar. Eles tentaram ignorá-la, mas ela se enfiou no
meio dos dois e, espiando pelo seu visor espelhado, examinou o rosto de Louis,
que viu uma imagem mascarada e bem bronzeada do mau humor. O séquito de
amigos da figura ficou observando com expectativa e deleite enquanto ela
contorcia seus braços e pernas em elaborada câmera lenta para espiar agora o
rosto de Renée. Depois, tocou na cabeça de Louis com dedos tortos e
emborrachados. Tocou na orelha de Renée, enquanto guinchos e estalidos
robóticos emergiam de seus respiradores. Seus amigos gargalhavam. Louis temia
que Renée resolvesse entrar na brincadeira e ser “bizarra” também, mas ela se
manteve impassível. Quando a figura de novo se atreveu a tentar tocar na cabeça
de Louis, ele segurou seu pulso, olhou para ela de cima e a apertou com toda a
força através da luva de borracha, até ouvir um guincho de dor dentro da
máscara.
“Porra!”, a figura resmungou, voltando para perto dos amigos, que já não
estavam mais rindo. Um quarentão de vinte e dois anos de idade e calça verde
saiu do meio do grupo. Com terrível maturidade paternal, ele disse para Louis:
“A gente está lidando com uma roupa alugada aqui, cara”.
“A gente está lidando com um babaca. Cara.”
“É, e eu tenho a impressão que é você.”
Louis sorriu dentro da máscara, agradavelmente fora de controle. “Uuuii.”
“Não sejamos imbecis”, Renée interveio. “Foi o seu amigo da roupa de
proteção quem começou essa história.”
O inimigo teve autocontrole suficiente para generalizar. “Imagino que certas
pessoas não saibam aceitar uma brincadeira.”
Eu vou te matar, Louis pensou. Eu vou estraçalhar essa porra desse teu nariz.
“Tem razão”, Renée disse num tom amável. “Nós não temos senso de
humor.”
O inimigo olhou para Louis, que projetou a cabeça convidativamente. “Eu não
vou brigar com você, cara”, disse o outro.
Louis entendeu então que estava perdendo, já tinha perdido, na verdade.
“Adorei a sua calça”, disse inutilmente, enquanto o inimigo se afastava.
Ao que parecia, Eileen não tinha visto nada disso. Estava fazendo uma
dancinha perto de um dos alto-falantes, sua garrafa de cerveja balançando para
a frente e para trás, seu traseiro ondulando para o resto da sala. Era como a
dança codificada de uma abelha-operária ao dar boas notícias, muito
autocentrada e ao mesmo tempo muito pública: madressilva significativa a norte-
noroeste. Quando ele e Renée passaram pelas mulheres de curativo, ocorreu a
Louis que, em seu próprio círculo, Eileen provavelmente era considerada uma
pessoa de espírito livre e até excêntrica.
“Rapaz encantador”, disse Renée.
Louis abaixou o ombro e deu um encontrão nela com tanta força que ela teve
de dar um passo para o lado para se equilibrar. Ela não pareceu gostar muito
disso.
O apartamento era enorme. As únicas pessoas no cômodo contíguo à sala de
estar eram três garotas extremamente bonitas, três garotas tamanho gigante,
daquelas que têm pernas compridas, braços compridos e cabelo comprido. (No
mundo de Homero, um deus misturado a pessoas comuns podia ser reconhecido
por sua beleza e altura incomuns.) Renée de repente começou a agir como se
não soubesse para onde ir; quase chegou a voltar para a sala de estar.
Evidentemente, não havia escapado a sua atenção que uma das garotas tamanho
gigante vestia um luto primoroso, um conjunto que incluía um xale de seda, um
chapeuzinho petulante e um diáfano véu preto. A garota examinou Renée com
interesse ínfimo e depois abaixou a cabeça para confabular com as amigas, que
estavam pegando comida metodicamente de uma mesa bem fornida e botando
em suas bocas perfeitas.
As pessoas que estavam na cozinha eram claramente amigas de Peter. Braços
pálidos de notívagos miravam cinzas de cigarro em receptáculos diversos.
Drinques eram erguidos em direção a rostos urbanos palimpsésticos — híbridos
de punk com y uppie, mulheres-duende com fantasias temáticas, um Homo
nautilus de camiseta regata e cabelo com gel penteado para trás. Três bigodudos
de meia-idade e pinta de nativos da Nova Inglaterra estavam sentados à mesa
tomando Jack Daniel’s, e o próprio Peter, com uma camisa desbotada da banda
Blondie e um quepe da polícia de Boston, estava sentado na beira da pia. Sua
cabeça tinha desabado sobre o peito.
“Um bom exemplo”, disse ele, levantando-a com esforço, “é a empresa do
meu velho, a velha Sweet-Ass S. A.” Olhou de relance na direção da porta.
Vendo Louis com sua máscara, Peter revirou os olhos.
Louis piscou os olhos inocentemente. Renée lhe ofereceu uma garrafa
gotejante de Popular Import, que ele recusou. Tinha quase certeza de que a mesa
e as cadeiras ali eram de Eileen.
“Há cinquenta anos”, Peter continuou, para uma plateia aparentemente
receptiva, “eles vêm fazendo as contribuiçõezinhas deles para o pib e, não por
acaso, vêm fazendo também algumas merdas pra lá de suspeitas com o meio
ambiente. Eu poderia contar um ou dois fatos que vocês simplesmente não iam
acreditar, repito, não iam acreditar. E aí de repente são os anos noventa, e aquele
meio ambiente que eles sempre acharam que fosse aquele negócio bonzinho e
inofensivo que eles podiam foder como bem entendessem surpreende e faz um
estragozinho na propriedade deles em Ly nn e ainda mantém a pressão por tempo
suficiente pra que o preço das ações deles caia, e aí eles já não sabem mais se
devem continuar mantendo aquela fábrica em funcionamento com todos os
subprodutos medonhos dela porque o que é que eles vão fazer se um dia aquela
porra rachar de verdade...” Peter sorveu ar pela boca para tomar fôlego. “E aí é
aquela coisa: Ah, que ultraje! Mãe Natureza, meu amor, mãezinha querida, o
que foi que nós fizemos pra você pra merecer uma coisa dessas! Eu disse pro
meu velho: Ei, vai ver vocês fizeram por onde, e ele não gostou nem um pouco
desse ponto de vista. Ele me falou: Nós somos um patrimônio do estado de
Massachusetts. Sem brincadeira, foi assim mesmo que ele falou: um patrimônio
do estado de Massachusetts!”
Vieram alegres ruídos da sala de estar quando o reggae cedeu lugar a uma
música de Bruce Springsteen de quinze anos atrás. Detrás de Louis, alguém
perguntou a Peter em voz alta e clara: “Do que é que você está falando?”.
Era Renée. Peter balançou a cabeça bebadamente e sorriu como quem diz: O
que nós temos aqui?
“Da Sweeting-Aldren”, uma mulher de capacete de peão e vestido chemisier
transparente respondeu por ele.
A boca de Renée formou a palavra “ah”.
“Isso mesmo”, disse Peter. “A empresa de onde emanam todas as bênçãos.
Nós somos abençoados com frutas e legumes que não têm manchas marrons.
Somos abençoados com etiquetas de preço alerta laranja, cones de trânsito alerta
laranja, meias de ginástica alerta laranja. Somos abençoados com selvas
asiáticas sem folhagem.” Ele estalou os dedos. “Você... qual é o seu nome?”
“Renée. Qual é o seu?”
“Renée.” Peter revirou o nome, brincando com ele. “Me diga uma coisa,
Renée, você comprou algum biquíni nos últimos dez anos? Fique calma, eu não
estou de sacanagem. Você deve ter comprado algum. E certo, você está
ofendida, tudo bem, mas muito provavelmente o biquíni que você comprou era
feito com o tecido mágico, aquele que não aperta nem faz papo. Um negócio
chamado Silcra.”
“Elastano”, disse um cavaleiro do apocalipse.
“Elastano Silcra”, disse Peter. “O miraculoso tecido das roupas de banho. Ele é
mais uma das bênçãos da Sweeting-Aldren. É isso que o meu pai quer dizer,
sabe, quando fala que eles são um patrimônio de Massachusetts. Não deforma,
não faz papo. E ei, olha, eu estou meio bêbado, está bom? Tudo bem?”
Renée o encarou sem expressão alguma no rosto.
“Mas, sabe”, Peter continuou, dirigindo-se à plateia de modo geral, “o que eu
estou aguardando ansiosamente mesmo é a catástrofe pra valer, aquela de nove
ponto zero de magnitude na escala Richter, que vai deixar a empresa toda na
ruína. E puta merda — eu acabei de ter uma visão — deixa só...” Seu rosto
envelhecido estava iluminado pelo brilhantismo da ideia diante de seus olhos. “Eu
acabei de ter uma visão de praias nuas, depois do grande terremoto. Nada de
Silcra, nada de roupa de banho, nada de prédios. Só a natureza nua — vocês
conseguem ver? Alguém imagina isso?”
“Eu estou vendo”, disse o cavaleiro.
“Ah, isso sim. Isso é que é praia”, disse Peter.
“Mas eles devem estar segurados até a raiz dos cabelos, Peter”, um dos
bebedores de uísque observou.
“O quê?” Peter ficou mais sensato de repente. “Não, não é disso que eu estou
falando. Eu não estou falando de dinheiro. Aqueles executivos todos, que nem o
meu pai, estão totalmente protegidos, eles mal iam chegar a sentir o tranco. E os
acionistas até perderiam alguma coisa, mas ia ser só uma parte do portfólio
deles, um bom investimento de risco que acabou não compensando. Quer dizer,
eu sei perfeitamente que está todo mundo com o rabo bem protegidinho. Mas eu
estou falando é de justiça poética. Estou falando de como essas pessoas são
fervorosas. Pode acreditar, não existe ninguém mais fervoroso do que esse
pessoal da indústria química. Claro que eles são podres de ricos, mas não é pra
isso que eles estão no ramo. Eles estão no ramo pra prestar um serviço público.
Estão fazendo do mundo um lugar melhor pra se viver. Estão fazendo todas as
coisas de maneiras que a natureza não pode fazer sozinha. E quem se importa
com um milhão de galões de efluentes tóxicos por ano, quando você nunca
encontra nenhuma lagartinha na sua alface? É disso que eu estou falando. É por
isso que eu estou só esperando a grande catástrofe, só pra fazer esses caras
engolirem essas merdas todas que eles falam.” Peter se virou para Louis, que
tinha descoberto os pratos de Eileen num armário ao lado da geladeira. “Está
procurando alguma coisa?”
“Já encontrei”, disse Louis. Segurou Renée pelos ombros e a tirou de seu
caminho. Quando estava saindo da cozinha, ele ouviu Peter dizer: “Ei, Renée.
Você não está zangada comigo, está? Você entende”.
“Por que eu estaria zangada com você?”
“Exatamente. Que motivo você teria pra ficar zangada? Exatamente.”
As garotas tamanho gigante tinham desaparecido, com certeza rumo a pastos
mais verdes. A porta do banheiro estava fechada e, quando não conseguiu
encontrar Eileen na sala de estar, Louis se plantou perto da mesa de comida para
esperar por ela. Na parede atrás da mesa estava pendurada como um festão uma
faixa amarela e preta em que se lia ultrapasse bloqueio policial não. Algumas das
comidas não pareciam estar ali para serem consumidas. Havia um mapa da
Grande Boston preso a um pedaço de papelão e decorado com cogumelos
brancos e inteiros postos em pé, os maiores deles — um par de gêmeos siameses
— erguendo-se do centro da cidade. Havia também uma travessa de legumes
crus selecionados por suas deformidades, tomates com protuberâncias que
lembravam línguas, cenouras rachadas, pimentões retorcidos. E também um
bolo liso, coberto de glacê e com arame farpado estilizado desenhado com um
creme cor de café. E uma tigela de cristal cheia de um ponche da cor de água de
radiador velha, com uma película iridescente por cima e uma folhinha de papel
autoadesiva em que se lia: Ponche do canal do amor. Experimente!! E também
uma travessa de cookies de chocolate quebrados e empilhados feito escombros,
com um trator de brinquedo no alto da pilha e braços e cabeças de homenzinhos
de plástico saindo do meio dos pedaços de biscoito. E ainda uma travessa de bolas
de fogo atômicas de canela.
Quando a porta do banheiro começou a se abrir, Louis foi mais que depressa
para diante dela para não deixar que Eileen escapasse. Então, viu-se cara a cara
com a figura da roupa de My lar.
A porta se fechou defensivamente. Louis dobrou o corredor e encontrou dois
quartos e outra porta de banheiro fechada. Malas estavam abertas feito
sanduíches no chão do quarto maior. Empoleirada em cima de um cesto de
palha, cintilando sob a luz da rua que as Levolor deixavam entrar, estava a gaiola
de Milton Friedman.
Louis bateu na porta do banheiro, expulsando ar com força pelos respiradores
de sua máscara. A porta se entreabriu e Eileen espiou, nervosa. “Será que você
pode me ajudar?” Ela o deixou entrar e trancou a porta. “Eu não estou
conseguindo desentupir a privada.”
“Você tem um desentupidor?”
Ela pôs o desentupidor nas mãos de Louis avidamente. A ponta da gravata dela
estava molhada. “Você tem que conseguir uma boa pressão”, disse ele,
comprimindo o desentupidor na água turva e rosada. O problema parecia ter sido
causado por um absorvente interno. Eileen ficou assistindo à operação com as
mãos entrelaçadas e, quando a água subitamente escoou e fez aquele barulho
familiar de descarga, disse “Muito, muito obrigada” e destrancou a porta. Louis
prendeu a maçaneta.
“Que foi?”, ela perguntou, se afastando dele.
“Hora de conversar.”
Foi interessante ver a superficialidade de Eileen cair, como uma casca de cola
seca se desprendendo, e expor um rosto cansado e vazio. Ela tentou um sorriso.
“Você está se divertindo?”
“Você sabe do que foi que eu acabei de me tocar?” Ele cruzou os braços e
apoiou as costas na porta. “Da razão por que você não retornou as minhas
ligações. Você não retornou as minhas ligações porque não está mais morando
no seu apartamento. Você está morando aqui.”
“Sim, Louis, eu estou morando aqui”, ela disse num tom de voz diferente. “Eu
já até devolvi as chaves daquele apartamento. A minha secretária eletrônica está
bem aqui. Quando foi a última vez que você tentou me ligar?”
“E você não achou que fosse importante me avisar.”
“Eu sabia que você vinha aqui hoje, então eu achei que podia te contar hoje.”
“Mas você não me contou hoje. Fui eu que tive que perguntar.”
“É, foi você que teve que perguntar.”
“Então quer dizer que você está morando com ele agora.”
Ela riu. “Acho que sim.”
“Você acha. Você só está dormindo na mesma cama que ele.”
“Era sobre isso que você queria falar comigo? Sobre em que cama eu estou
dormindo?” Ela tirou uma toalha torcida do porta-toalhas e começou a dobrá-la e
alisá-la. “O meu irmão mais novo quer falar comigo sobre com quem eu estou
dormindo. Imagino que ele ache que é para isso que os irmãos servem.” Ela
pendurou a toalha de volta. “Você pode me deixar sair, por favor?”
“Eileen, o cara é uma víbora.”
“Ah, é?” O tom da voz dela alcançou um agudo próximo do limite da audição
humana. “O meu noivo é uma víbora? Isso é muito amável da sua parte, Louis. É
muita gentileza sua me dizer isso.”
“Ah, ele é seu noivo.” Ele não conseguia entender as mulheres e seus
“noivos”. Elas brandiam aquela palavra como se fosse uma arma; não parecia
natural. “Por que você não me disse isso antes? Eu na verdade quis dizer que ele
é um príncipe!”
Ela esticou o braço e puxou a máscara de Louis para debaixo de seu queixo.
“Você é tão detestável. Você nunca deu chance nenhuma pro Peter! Você é tão,
tão detestável.”
“É o que a mamãe também me diz.”
“E tão imperturbável também. Você sempre tem resposta pra tudo.”
“Eu tenho culpa se ele é uma víbora?”
“Ele não é uma víbora. Ele é uma pessoa superfrágil e sensível.”
“Que, quando eu vi pela última vez, estava fazendo comentários sugestivos pra
minha... pra pessoa que eu trouxe pra sua festa.”
“Bom, talvez ele seja menos travado que você. Talvez ele seja menos travado
do que todo mundo na nossa família. É sério, Louis, eu conheço o Peter e você
não. E eu não sei por que você acha que pode simplesmente chegar aqui e
chamar alguém de quem eu gosto de...de... de víbora!”
“Ah, ‘alguém de quem você gosta’. Você ‘gosta’ dele e você vai...”
“você é que é uma víbora. você é que é uma víbora!”
“Você ‘gosta’ dele e vai se casar com ele. Faz sentido, eu tenho certeza de que
ele também gosta de você, Eileen. Mas eu me pergunto se você não estaria
sendo, talvez, sei lá, engrupida. Me responde uma coisa, essa propriedadezinha
aqui, vocês estão alugando ou vocês compraram?”
“Isso não é da sua conta.”
Louis jogou a cabeça para trás, de encontro à porta. “Ou seja, você acabou
conseguindo. Você ficou no pé dela até ela não aguentar mais e ceder, até ela te
dar sei lá quanto que você precisava pra comprar esse apartamento. Não é
verdade? Não é verdade? Você é tão mesquinha que a forçou a desembolsar um
dinheiro que ela diz que ainda não tem. Não é verdade?”
Eileen olhou para ele com tanta raiva que Louis estava certo de que ela ia lhe
bater. Mas, em vez disso, ela abriu a porta de vidro do boxe, entrou e fechou a
porta. Sua voz ecoou abafada lá de dentro. “Eu não vou sair daqui enquanto você
não for embora.”
Louis estava perto demais das lágrimas para dizer qualquer coisa naquele
momento. Era o dinheiro, o dinheiro. Ele ficou pensando na transferência
daqueles fundos e sentiu uma coluna de lágrimas fazendo pressão dentro de sua
cabeça, da garganta em direção aos olhos. Atrás da porta do boxe, o vulto de sua
irmã tinha se ajoelhado. O som molhado e oco do choro dela parecia alguma
coisa passando dentro dos canos. Louis só pensava que nunca devia ter saído de
Houston.
“No que você pensa quando pensa em mim?”, ele perguntou a ela, olhando
para seus próprios olhos no espelho. “Você pensa num inimigo? Você pensa
numa pessoa que te conhece e que costumava brincar com você? Ou você
simplesmente nunca pensa em mim?”
Eileen fungou e arfou. “Ele não é uma víbora.”
“Sabe, eu nem tenho nada contra ele mais. Quer dizer, você tem razão, eu não
conheço o cara. E, de qualquer forma, não importa. Eu não vou mais te chatear
com isso.”
Em resposta, Eileen só chorou. Louis fez menção de sair do banheiro, mas
alguma coisa que ele tinha visto sem ver no espelho foi registrada. Ele soltou a
máscara caída e a guardou no bolso. O rosto que ele estava vendo era ao mesmo
tempo mais suave e mais velho, mais sensual, do que o rosto que ele considerava
seu. Ele pensou: Até que eu não sou tão feio. Por alguma razão, esse pensamento
fez uma onda de medo invadir sua cabeça e seu coração, o medo que você sente
quando se apaixona; quando joga o carro para o lado para ultrapassar o carro da
frente numa estrada estreita; quando alguém pega você numa mentira.
Renée estava parada no vão da porta da cozinha, com as costas um pouco
arqueadas de modo a apoiar o pescoço e os ombros no umbral. Sua garrafa de
cerveja estava vazia. Quando Louis apareceu, ela lhe dirigiu um leve sorriso
irônico, como que para indicar não só tédio, mas também uma fé diminuída na
capacidade dele de aliviá-lo. Ele lhe perguntou: “Você quer ficar aqui?”.
Ela deu de ombros. “Quero. Você não?”
“Não, mas você pode ficar se quiser. Ou a gente pode ir comer alguma coisa
ou sei lá.”
Nenhuma das duas alternativas pareceu agradá-la muito. “Vamos então”, ela
disse.
A última coisa que eles viram da festa foi o sujeito da roupa de My lar
dançando feito um gorila para a diversão dos outros convidados.
Do lado de fora, havia luar. A maciez prateada da rua era interrompida aqui e
ali por tampas de bueiro e peludos restos mortais de esquilos. “Tem alguma coisa
errada?”, Renée perguntou.
“É, várias coisas, na verdade. Mas a principal é que eu estou me sentindo mal
por ter te arrastado pra essa festa.”
“Não se sinta. Foi interessante. Apesar...”
“Apesar do desperdício de uma boa vaga para estacionar.”
No carro, Louis dividiu sua atenção igualmente entre a rua e sua passageira
silenciosa. Quanto mais Renée não olhava para ele, mais ele se virava para olhar
para ela. Para seu nariz arrebitado, suas bochechas pálidas, toda a sua cabeça de
trinta anos de idade, da qual a camada simples e cuneiforme de cabelo escuro,
com sua cobertura de solitários e sinuosos fios brancos, parecia ser a parte mais
verdadeira. Manchas laranja da luz dos postes de rua passavam sem parar pelo
vestido dela, transformando-o num laranja que era preto no contexto laranja.
“O seu cabelo é bonito”, ele ensaiou.
Ela se remexeu vigorosamente no banco, reposicionando pernas e ombros
como uma pessoa com dor de estômago.
“Porra”, disse Louis, “deixa pra lá. Mas eu realmente gosto do seu cabelo.”
“Eu também”, ela disse, lançando de relance um olhar sorridente para ele.
Quando eles chegaram à Pleasant Avenue, Louis puxou o freio e desligou o
motor. Renée olhava fixamente para a janela traseira do carro parado na frente
deles, para a moldura de cromo corroída, o decalque dos Boston Celtics. Na
calçada à esquerda de Louis, havia um fogão cor de cobre, com a porta do forno
pousada na parte de cima e crivada de fezes de pássaro. “Essa festa te deixou
completamente deprimida, não foi?”
Uma lufada de vento balançou o carro.
“Eu ia perguntar”, ela disse, ignorando a pergunta dele, “se você acha que é
verdade o que aquele cara estava dizendo sobre a Sweeting-Aldren. Aquilo sobre
um milhão de galões de efluentes por ano.”
“Eu nem estava ouvindo o que ele estava dizendo.”
“Porque definitivamente não é isso que eles estão dizendo no jornal. No jornal
eles falam em zero galões.”
“A minha irmã quer se casar com aquele cara.”
“Ele é o namorado?” Outra lufada balançou o carro. “Eu não me dei conta.”
“Na riqueza e na pobreza.”
“Mas na verdade eu até que gostei dele. Não seria a minha primeira opção
para cunhado, mas ele não é um cara burro. É só gênero.”
Louis se inclinou sobre o freio de mão e a beijou.
Ela deixou que ele entrasse no vestíbulo morno de sua boca. Poderia ter sido
um minuto de viagem do canal esmaltado entre seus dentes da frente até um dos
dois becos sem saída elásticos onde seus lábios iam dar; uma hora de viagem até
sua garganta. Louis pegou o cabelo dela nas mãos, pressionando com os lábios a
cabeça dela de encontro ao encosto do banco.
Faróis surgiram no início da rua. Ela se desvencilhou, ajeitando com uma das
mãos o cabelo que ele tinha bagunçado. “Eu estava para dizer que detesto ficar
sentada em carros parados.”
Dentro da casa, eles foram recebidos por uivos dos potentes pulmões dos
cachorros do apartamento térreo. “Dobermanns”, disse Renée. O ar era quente e
canino. Ficou mais fresco no segundo andar e, quando ela parou para pegar uma
chave de cima de uma saliência na parede, Louis a beijou de novo, fazendo-a
encostar numa parede revestida com um papel que tinha cheiro de livro velho.
Os uivos lá embaixo se reduziram a rosnados frustrados, e ela tentava se
desvencilhar ao mesmo tempo que continuava a apertar a boca contra a dele. De
repente, um bebê começou a chorar, ao que parecia logo atrás da porta ao lado
deles. Eles subiram um lance mais íngreme de escadas até o apartamento dela.
Era um lugar despojado e limpo. Não havia nada na bancada da cozinha a não
ser um rádio/toca-fita, nada no escorredor de louça a não ser um prato, um copo,
um garfo e uma faca. O fato de a luz ser quente e de as quatro cadeiras em volta
da mesa parecerem confortáveis de alguma forma tornava a cozinha ainda
menos convidativa. Era como a cozinha do tipo de pessoa que tinha o cuidado de
lavar a louça do jantar e passar um pano nas bancadas antes de ir para o quarto e
dar um tiro nos miolos.
Um cômodo amplo em frente ao banheiro continha uma cama e uma
escrivaninha. Outro cômodo amplo continha uma poltrona, estantes de livros e
vários metros quadrados de tábuas corridas claras. Quando saiu do banheiro,
Renée ficou parada de costas para a parede revestida de madeira entre as portas
desses dois cômodos e de frente para a cozinha, com as mãos unidas atrás do
corpo. “Você quer comer ou beber alguma coisa?”
“Legal o seu apartamento”, Louis disse ao mesmo tempo.
“Eu costumava dividir com uma amiga.”
Ela não se mexeu, nem sequer se inclinou um pouco para o lado, quando ele
entrou no quarto. Louis pisava no chão da maneira mais silenciosa de que era
capaz. Tudo naquele lugar fazia com que ele se sentisse um intruso, como se até
passos mais ruidosos pudessem tirar as coisas do lugar. (Quando chegam à cena
de um crime, detetives de polícia não guardam muitas vezes alguns minutos de
respeito e reflexão, antes de dirigirem sua atenção para o corpo caído?) A
luminária da escrivaninha tinha sido deixada acesa, iluminando uma pilha de
formulário contínuo de computador; na folha de cima, um programa em Fortran
estava sendo revisado com caneta preta. (Até o momento do crime, sim, havia
um trabalho em andamento, tinha sido uma tarde normal...) Na parede acima da
escrivaninha estava pendurado um mapa batimétrico da região sudoeste do
oceano Pacífico. O mapa estava salpicado com milhares de pontos de cores
diferentes, muitos agrupados em extensos enxames, como colunas de formigas
legionárias; abaixo deles, segmentos de linha farpados tinham sido aplicados no
oceano feito uma pintura de guerra. Ainda pisando com cuidado, como tinha
feito quando entrou pela primeira vez na sala de estar de Rita Kernaghan, Louis
voltou para a cozinha. Renée continuava parada, com as mãos atrás das costas.
Parecia uma missionária pronta a ser sacrificada, com as mãos atadas, sem
poder cobrir sua nudez, sem poder se benzer nem proteger o rosto das labaredas
que logo começariam a subir, mas, tal como essa missionária, olhava fixamente
para um ponto à sua frente. Ela vacilou visivelmente quando Louis tocou seus
ombros (mesmo os grandes santos devem ter vacilado quando as primeiras
chamas lamberam sua pele) e, apesar do modo como ela o tinha beijado no hall,
ele ficou surpreso com seu ar indisfarçado de carência.
No quarto, o vento assobiava nas janelas da água-furtada. Soprava sem parar,
desgastando cada vez mais o telhado, encontrando mais vigas na casa para
vergar, mais vidraças para sacudir, mais extensões de parede em que se apoiar.
Parecia estar fazendo o trabalho por Louis quando ele separou e levantou os dois
lados do cardigã de Renée, que deslizou com facilidade pelos ombros dela abaixo
e, caindo no chão, desatou suas mãos. Ela pôs os braços em volta do pescoço
dele.
Ainda estava escuro quando Louis acordou. A dra. renée seitchek, cuja
anatomia interna ele imaginava ter sido rearranjada na escalada de violência que
caracterizou a união dos dois e cujas mãos haviam se mostrado tão eloquentes
quanto o resto dela na hora de comunicar para as mãos dele como melhor lhe
proporcionar as descargas que, de outro modo, ele não teria lhe proporcionado
(ele gostou do modo silencioso, perspirante e possesso como ela gozou e a
admirou por isso), agora estava deitada ao lado dele, dormindo tão
profundamente que parecia ter desfalecido em consequência de uma bordoada
na cabeça. Havia chusmas esparsas de sardas em seus ombros. Por uma fresta
entre uma persiana e uma moldura de janela, Louis via galhos de árvore
balançando ao vento, iluminados de baixo pela luz da rua e cobertos por uma
manta de escuridão. O vento daquela noite, Renée lhe dissera durante um
intervalo, a fizera lembrar um terremoto que ela tinha visto uma vez nas
montanhas. Ela estava fazendo uma excursão em Serra Nevada com um grupo
da escola secundária. “De repente, nós percebemos que algo estava acontecendo
com a terra do lado leste. Nós tínhamos uma vista de uns setenta ou oitenta
quilômetros de extensão, e foi como quando você está diante de um lago
absolutamente tranquilo e vê o vento se aproximar, como nós ouvimos hoje o
vento vindo pela rua, e aí as primeiras lufadas encrespam a água quando
chegam. Foi exatamente assim que aquele terremoto foi. Era uma coisa vindo
através das montanhas, como uma onda visível avançando, e aí de repente nós
estávamos no meio dela. Nós sabíamos que estávamos nela porque aconteceram
alguns pequenos deslizamentos de pedras e o chão tremeu. Mas não foi como os
outros terremotos que eu senti, porque houve essa conexão visual.” Ela havia de
fato visto a onda que eles estavam sentindo. Não tinha vindo do nada. Não tinha
sido igual a nada neste mundo. E Louis quis então, de novo, tomar possuir ter
tomar possuir possuir o corpo no qual essa memória residia.
O despertador marcava vinte para as quatro. Louis saiu da cama e foi para o
banheiro. Quando ele voltou, Renée estava ajoelhada no centro da cama. Ele
disse “oi” e ela recuou em direção ao pé da cama, arrastando o lençol com ela.
Parecia aterrorizada.
“O que foi?”
Ela saiu da cama e correu para o canto mais distante do quarto, com a mão
vagamente estendida para mantê-lo à distância. De pé, ela mostrou toda a
complexidade de sua nudez, como as pernas tinham de se conectar com o tronco,
como era curiosamente estreita a cintura feminina, como os ombros eram tão
mais delicados que os quadris, como eram soltos e exigiam atenção os seios de
uma mulher. “Não está comigo”, ela disse para ele com uma voz alta que não
era nem animada nem alegre.
Louis mal notou a ereção que, rapidamente e bem na frente dela, ele estava
readquirindo. “Você está sonhando”, ele disse.
“Me deixa em paz. Me deixa em paz.”
“Sh-sh-sh.” Ele se sentou na cama, mostrando a ela as palmas vazias de suas
mãos. Isso pareceu deixá-la mais apavorada ainda. Sem tirar os olhos dele, ela
foi andando de lado encostada à parede. De repente, fugiu para a porta, mas se
curvou na direção dele enquanto corria, os braços esticados como se estivesse
caindo, e ele viu como, pouco antes de alcançá-lo, ela pareceu estraçalhar com o
corpo uma vidraça ou alguma outra descontinuidade planar. Ela se segurou nos
ombros de Louis e disse: “Ah, eu estava tendo um sonho tão ruim”.
A casa oscilava ao vento. Renée se sentou nas coxas de Louis e se deixou
abraçar. Exalações fortes de pH baixo se desprendiam do meio deles.
Experimentalmente, Louis tentou botar seu pênis dentro dela de novo.
Ela apertou os ombros dele, a dor abrindo talhos em seu rosto. “Isso é um
pouco demais.”
“Desculpe.”
“Você não está dolorido?”
“O que você acha?”
“Bom, nesse caso.” Ela usou todo o peso do corpo para se empalar nele. Os
nervos de Louis gritavam isso dói! isso dói! Ela mexia os quadris com raiva.
“Dói?”
“Sim!”
Depois de um tempo, a dor se disseminou numa ampla zona de desconforto,
uma piscina de enxofre derretido com pequenas chamas azuis de prazer riscando
a superfície. Depois, as chamas foram ficando mais escassas e então
desapareceram por completo, enquanto o enxofre começava a se cristalizar
numa coluna de pedaços duros, secos e cortantes. Era como se ele estivesse se
esfregando em cacos de osso. Os olhos e as bochechas de Renée estavam
molhados, mas ela não emitiu som algum.
Quando eles pararam, Louis estava sangrando o bastante para deixar marcas
nos lençóis. Renée se sentou na beira da cama e ficou se balançando de leve para
a frente e para trás com os joelhos unidos. Louis se limitou a pensar que não ia
morrer por causa disso, alguns anos mais adiante.
5.

Ele foi à casa da pirâmide no telhado. O gramado da frente era agora de um


verde-metálico e a grama se inclinava e tremia como que sob uma correnteza,
algum fluxo intenso de matéria invisível relacionado à luz brilhante e errada
daquele dia, uma luz que bagunçava as cores, jogando um pouco do preto do
tronco das árvores no azul do céu e um pouco do branco das nuvens nas árvores.
Para quem passou a noite em claro, o que torna o novo dia estranho e o enche de
maus presságios é que o sol poente está no leste e não está se pondo; o dia inteiro
a luz fica igual à luz dos sonhos, que não vem de direção nenhuma.
“Santo Deus, Louis”, disse Melanie, apertando as lapelas de seu penhoar e
espiando para fora por cima de uma corrente de porta nova. “São nove horas da
manhã, eu nem me levantei ainda. E tenho que pegar um avião daqui a pouco.”
“Dá pra tirar a corrente da porta?”
“Você não avisou que vinha! Se tivesse chegado umas duas horas mais
tarde...”
“Dá pra tirar a corrente da porta?”
Um teclado numérico de sistema de alarme tinha sido instalado perto da porta.
Nas salas de estar e de jantar o gesso quebrado tinha sido consertado, e os livros e
objetos decorativos de Rita Kernaghan, incluindo o retrato do pai de Melanie,
haviam cedido lugar a uma opulência mais convencional, própria de uma suíte
de luxo de hotel — litografias japonesas, cortinas diáfanas, brocados dourados.
“Eu tinha a intenção de ligar para você”, disse Melanie. “Só cheguei na quinta-
feira e tive tanta coisa pra fazer.”
“Imagino”, disse Louis. Ele entrou na sala de estar e subiu num sofá revestido
de seda e ficou andando de uma ponta até a outra, pisoteando bem o estofado e
escutando os ruídos dos ferimentos internos que estava causando.
“Louis! Pelo amor de Deus!”
Ele saltou para a mesinha de centro. Em bom estilo futebolístico, usando o
peito do pé, chutou um vaso de cristal lapidado para dentro da lareira, como
quem cobra um pênalti. “Eu soube que você está distribuindo dinheiro para os
seus filhos”, disse, voltando para o sofá. “Estou aqui pra pegar a minha parte.”
“Você quer fazer o favor de descer do sofá? Esse sofá não é seu.”
“Você acha que eu faria isso num sofá que fosse meu?”
“Eu já disse, eu não vou falar sobre dinheiro. Se você quer falar de outra coisa,
tudo bem, mas...”
“Dois milhões.”
“Mas não de dinheiro. Eu nunca pensei que eu ia ter que...”
“Dois milhões.”
Melanie botou a mão no lado da testa onde ela costumava ter dor de cabeça.
“Quanto foi que você deu pra Eileen?”
“Nada, Louis. Eu não dei nada pra ela.”
“Então como foi que ela comprou aquele apartamento?”
“Foi um empréstimo.”
“Ah, sei. Então que tal você me emprestar dois milhões?”
A mão de Melanie deslizou até cobrir o rosto, a ponta de dois dedos apertando
as pálpebras.
“Eu nunca mais vou te atormentar, mãe. Prometo. Dois milhões e nós ficamos
quites. Me parece um ótimo negócio, você não acha? De repente eu até te pago
um dia.”
“Eu não posso mais considerar isso uma brincadeira.”
“Quem é que está brincando? Eu preciso do dinheiro. Tem uma emissora de
rádio que eu tenho que comprar. Dois milhões é o valor que eu tinha em mente,
mas com duzentos mil já daria pra eu fazer uma bondade bem razoável. Daria
pra estabilizar as coisas até você arranjar o resto.”
“Do que você está falando?”
“Eu estou falando do Philip Stites. Você sabe quem é, é o cara das passeatas
contra o aborto. Eu quero dar duzentos mil dólares de presente pra ele. Só para
colaborar com a causa dele, sabe. Desde que nós todos ficamos podres de ricos,
eu virei uma pessoa muito cristã, sabe, mãe? Não, você não sabe, claro, porque
você nunca liga pra mim nem...”
“E você nunca liga pra mim!”
“Ah, e a Eileen liga, e é por isso que ela é recompensada com presentes em
dinheiro?” Louis subiu no encosto do sofá e o fez tombar para trás, saltando para
o chão instantes antes do baque. “Por que é que todo mundo menos você percebe
que ela só te procura quando quer arrancar dinheiro de você? Você acha que ela
gosta de você? Ela te odeia até você dar dinheiro pra ela e aí ela te recompensa
deixando de te odiar até ela precisar de dinheiro de novo. Você nunca reparou
nisso não? Chama-se ser mimada.”
A mãe virou para o lado como se a conversa não lhe interessasse. O agudo
tremor repentino que fez seu corpo inteiro se contrair e trouxe lágrimas a seus
olhos pareceu pegar até ela própria de surpresa. Ela fez um barulho parecido
com uma tosse. Louis poderia ter sentido mais pena se não achasse que as
lágrimas dela e as lágrimas de Eileen sempre vinham às custas dele e se não
desconfiasse que, na sua ausência, as duas eram basicamente felizes.
“Eu estou tentando te fazer um grande favor, mãe”, disse ele. “Quer dizer,
pensa só. Você me dá dois milhões e aí, pelo resto da vida, você vai poder me
considerar um cretino egoísta. Você nunca mais vai precisar sentir culpa.
Lágrimas nunca mais, evasivas nunca mais. E ainda vai ter os seus outros vinte
milhões pra fazer os seus joguinhos com a Eileen.”
A mãe estava sacudindo a cabeça. “Você não entende. Você não entende. Eu
perdi...” Um forte abalo sacudiu seus ombros. “Eu perdi...” Outro abalo. “Eu
perdi...”
“Dinheiro?”
Ela fez que sim.
“Quanto?”
Ela sacudiu a cabeça; não sabia dizer.
“Então você perdeu dinheiro. Impressionante. A Eileen consegue chegar até
você a tempo de abiscoitar um apartamento disso tudo, já eu cheguei um pouco
atrasado. É impressionante a maneira como essas coisas funcionam.”
Ainda tremendo, Melanie abriu uma cortina diáfana e ficou olhando lá para
fora, para a luz em falsa cor, para as nuvens inofensivas que roçavam o topo da
última colina antes do oceano. “O seu pedido não é razoável.”
Louis sentiu o peso de um objeto de cristal que pegou de cima de uma mesa de
canto. “Você está dizendo que o apartamento da Eileen custou substancialmente
menos que duzentos mil dólares?”
“O seu pedido não é razoável”, ela repetiu. “A Eileen vai começar num ótimo
emprego no Banco de Boston assim que se formar, em junho. Ela vai ter uma
renda excelente e vai me pagar juros sobre o empréstimo. Não que isso seja da
sua conta. Eu só estou lhe dizendo isso pra que você entenda. O apartamento era
um investimento razoável para nós duas. Simplesmente não dá pra comparar a
situação financeira dela com a sua.”
“Claro, se você é um banco. Mas e quanto ao valor social do que ela vai fazer
em oposição ao valor social do que eu vou fazer? Ela vai ajudar os
grotescamente ricos a ficarem grotescamente mais ricos. Você acha que ela
realmente precisa da sua ajuda? Eu estou tentando salvar uma boa estação de
rádio das garras de alguns fanáticos.”
“E que jeito educado você tem de pedir. Andando em cima do meu sofá.”
“Ah, entendi. Se eu não tivesse andado em cima do seu sofá, você teria me
dado o dinheiro.”
Melanie se virou para encará-lo. Seu cabelo despenteado pendia na forma de
um keffiyeh. “A resposta é não, Louis. Não. Eu não vou dar mais dinheiro
nenhum pra ninguém, incluindo a Eileen. Você pode me odiar, mas eu não posso.
Não tenho como. Você entende? Por favor, não piore ainda mais as coisas.”
Ela o deixou parado embaixo do lugar onde o retrato de seu avô costumava
ficar pendurado. Ouviu uma porta se fechar no andar de cima. Cobriu o rosto
com as mãos e sentiu o cheiro da vagina de Renée Seitchek.

Na segunda-feira de manhã, Alec Bressler vendeu a wsne-am para a Igreja


da Ação em Cristo do reverendo Philip Stites por uma quantia não revelada por
nenhuma das duas partes, mas, segundo rumores, na faixa de quarenta mil
dólares, dadas as dívidas acachapantes da emissora.
Louis estava esvaziando sua mesa quando Stites e seus advogados, uma dupla
de rosto curtido e unhas bem-feitas, pararam no vão da porta para avaliar seu
cubículo. Stites era mais ou menos da mesma altura que Louis e não mais que
dois ou três anos mais velho. Tinha um daqueles rostos sulistas bonitos e
rechonchudos, óculos redondos de tartaruga e cabelo louro escorrido e ultrafino
de criança pequena. Estava usando uma calça cáqui, um blazer azul e uma
gravata listrada amarrada com um nó simples. “Como vai você?”, ele perguntou
a Louis com voz simpática e sotaque da Carolina do Sul.
“Bem, até. Para o Anticristo.”
O jovem pastor deu uma risadinha afável. “Você já se demitiu, não foi?” Ele
voltou para o corredor. “Olá, Libby, você tem um minuto pra nos mostrar as
coisas por aqui? Você já conheceu o senhor Hambree. Esse aqui é o senhor
Niebling. O nome dessa senhora bonita é Libby Quinn.”
Louis teria preferido não receber por suas duas últimas semanas de trabalho a
incomodar Alec naquela manhã. Felizmente para suas finanças, o ex-dono da
emissora veio até ele. Estava com um bolo de notas de vinte na mão e, com
movimentos vigorosos, contou vinte e cinco delas.
“Isso é mais do que você me deve.”
“É um presente da Previdência Social. Você precisa de uma carta de
recomendação? Eu mando pra você.”
“Eu não consigo acreditar que isso aconteceu.”
“É, eu sei, foi ruim pra você. Você precisa de um emprego. Mas o livre
mercado decide: audiência insuficiente. Enquanto isso, eu fiz quatrocentos e vinte
e cinco editoriais. Tenho cartas para mostrar que pessoas ouviram. Talvez uma
delas tenha mudado de opinião por minha causa. Oito anos pra mudar uma
opinião, uma cabeça. Mas você não pode pensar em resultados. Você faz o que
tem que fazer, sem ligar para os resultados. É uma questão de fé.”
“Quem tem fé é o Stites”, disse Louis, com ódio na voz.
“Então outras pessoas têm uma fé detestável. Isso quer dizer que você não
pode ter fé? Não pode ter esperança nenhuma? Se a fé de todo mundo é igual à
sua, você não precisa de fé.”
Louis tamborilou na mesa. “O que você vai fazer agora?”
“O mesmo que vinte anos atrás”, disse Alec. “Ganhar muito dinheiro.”

Em algum momento entre uma e duas horas da tarde, ele começou a esperar
por um terremoto. Estava sentado em seu quarto sem fazer nada mesmo; esperar
não exigia muito esforço extra. Tentou ficar tão preparado para sentir o próximo
tremor, se ele viesse, quanto ficava para ouvir o trovão quando via um
relâmpago riscar o céu: de prontidão, com a sua consciência sintonizada com o
instante. Infelizmente, isso envolvia manter os olhos abertos, e seus olhos volta e
meia escorregavam em alguma superfície lisa e notavam irregularidades, como,
por exemplo, a folha de papel de parede cujas bordas tinham se desgrudado do
reboco, deixando à mostra algumas das listras de cola que estavam embaixo.
Passado um tempo, essa cola produzia uma espécie de bolha em seu nervo
óptico, e então a bolha arrebentava e começava a sangrar; por outro lado, não
havia mais nada na parede em que seus olhos pudessem se segurar.
Só de olhar para as caixas de papelão fechadas onde estava seu equipamento
de rádio ele já ficava exausto. Era quase como se as caixas estivessem
empilhadas em cima de seu peito, comprimindo sua garganta e dificultando sua
respiração.
O teto era revestido com placas de cor gelo, feitas de algum triste produto de
papelão. Ele verificou que todas as placas apresentavam o mesmo padrão de
furinhos, as aparentes diferenças devendo-se apenas a diferentes
posicionamentos. Das cinco até mais ou menos seis horas da tarde, ele averiguou
com absoluta certeza que a distância entre as fileiras de quadrados numa
extremidade de cada fileira era idêntica à distância na outra extremidade.
Ocorreu-lhe que se um grupo de pessoas na área de Boston se revezasse para
fazer o que ele estava fazendo, durante todas as horas do dia e da noite, ou seja,
se houvesse sempre pelo menos um bom cidadão esperando de maneira
absolutamente consciente que a terra tremesse, então talvez nunca houvesse
outro terremoto, tão arredios à consciência humana são os aleatórios fenômenos
da natureza. (Esse é o axioma fundamental da superstição.) Mas talvez a
natureza, estando grandemente necessitada de aliviar aquelas tensões
subterrâneas, fosse levada a recorrer ao expediente radical, ao estilo do Velho
Testamento, de provocar um sono sobrenatural na consciência específica que
estivesse de plantão quando chegasse o momento em que não desse mais para
adiar a ruptura. O menino cujo dedo estava tapando o lendário buraco na represa
falando mais tarde de uma maravilhosa e irresistível sonolência? Obviamente
esse momento fatídico ainda não havia chegado, pois Louis conseguiu se manter
em perfeito estado de vigília e, assim, evitar os sismos até a hora em que os Red
Sox entraram no ar.

***

A terça-feira amanheceu quente, as fornalhas solar e convectiva já


alimentadas e roncando às nove horas da manhã. A fita adesiva fez um barulho
igual ao de roupas se rasgando quando Louis abriu suas caixas. Ele mexeu em
tudo. Tirou a tampa do receptor de doze faixas que havia montado aos quinze
anos e mal conseguiu acreditar em como soldava bem naquele tempo. Teve de
procurar muito para encontrar aqueles respingos, cortes remendados e parafusos
tortos que na época o haviam feito se odiar tanto.
À tarde, ouviu música na faixa fm, girando o dial para escapar de comerciais.
Quando a noite caiu em todos os espectros, o visível e o de rádio, ele trocou para
ondas curtas. Ouviu o gorjeio de radioteletipo, rápido, frio e de tom neutro, tão
monocórdio quanto sueco falado. O código enviado à mão ele destrinchava
melhor — na escola secundária, ele tinha sido um homem de vinte e quatro
palavras por minuto —, mas consistia principalmente em números e
abreviaturas, sendo mais prazeroso como ruído do que como comunicação. Uma
enfática e incansável assuada vinha de cargueiros e faróis espalhados pela noite
do Atlântico. Birdies e misteriosos ruídos estridentes da cor de dor na coluna. Um
inflamado comentarista eslavo esbravejando acima de uma ruidosa onda sônica
e afundando, parecendo protestar de forma mais estridente ainda que não estava
afundando e, então, afundando de vez.
A Voz da África do Sul, chamando de Johannesburgo. Rádio Havana. Rádio
Coreia, o serviço ultramarino do Sistema de Radiodifusão Coreano, indo até você
em inglês direto de Seul, a capital da República da Coreia. Deutsche Welle, Radio
France Internationale. Rádio Mundo Adventista oferecendo orientações para
devotos distantes, enquanto leves assobios faziam modulações no ar, como
moscas voando ao redor do púlpito. Inja Tehra ast, seda-y e jomhuri-y e eslami-
y e Iran. O Leste é Vermelho, o Leste é Vermelho... A Rádio Bagdá informou
que forças de ocupação sionistas haviam assassinado hoje três jovens palestinos
no sul do Líbano; apesar de sua pronúncia britânica, essa Voz da República do
Povo do Iraque não parecia entender o que estava dizendo. “A agência Reuters
informou que no domin. Go após a tenta. Tiva abor. Tada de golpe. Em Mali três
oficiais graduados da força. Aérea nacional tinham sido executados na praça em
frente ao.” Mas então as cordas começaram a planger e, em sua própria língua
agora, a Voz, a mesma informada Voz feminina, cantou uma balada carregando
o refrão de uma languidez sexy e irônica, como se todos nós conhecêssemos be-
em-em-em-em essa história e já a tivéssemos ouvido mu-u-u-u-uitas vezes, e as
cordas concordaram. O sol já estava nascendo no Islã. Jipes e mulheres
entrouxadas nas ruas, mais um dia de orações e atrocidades em andamento. Em
Somerville, um vento noturno partiu a sombra escura de um galho em várias
sombras menos escuras, que se curvaram, se cruzaram e se cancelaram nos
losangos que a luz da rua projetava no papel de parede.

“Olá, Louis, meu rapaz. Tirando o dia de folga?”


“É.”
“Está certo. Que bom para você.”
“Eu fui demitido do meu emprego.”
John Mullins ficou chocado. “Eles te despediram? Por quê?”
“Porque eu não sou cristão o bastante.”
“Sabe que, por um instante, eu bem que acreditei em você.”
“Mas é verdade.”
“Rá. Por um instante, você me enganou direitinho.”
Até a hora de o correio fechar, Louis havia preparado onze cartas de
apresentação. Só tinha mais duas cópias de sua fita-demo e esperava não ter de
pagar para fazer outras. Suas despesas mensais giravam em torno de setecentos e
vinte dólares, incluindo aluguel, comida, contas de luz, gás e telefone, despesas
com o carro e o pagamento de um empréstimo universitário. Com os quinhentos
que Alec lhe dera, suas economias totalizavam mil quinhentos e trinta e cinco
dólares.
À noitinha, ele se plantou ao lado da janela e ficou olhando para fora por cima
do ombro, como um homem sob cerco. Casais de trinta e poucos anos estavam
tocando a campainha da casa ao lado e emergindo na sala de estar cheia de luz
amarela que ficava em frente à sua janela. A soprano carregava uma jarra de
água gelada e usava um vestido de alças largas. Tinha cabelo acaju, sardas da
mesma cor e braços brancos e carnudos. Louis imaginou estar vendo a marca de
vacina no braço dela, funda, despigmentada e em forma de anel. Ao piano,
encontrava-se o marido, um francês louro e atlético, com boca de quem está
cantarolando. Todos os visitantes homens usavam camisa de gola e manga curta;
todas as mulheres estavam com panturrilhas à mostra e sapatos de dança. Eles
começaram a cantar. Era como uma daquelas antigas festas em que as pessoas
se reuniam para cantar juntas, salvo pelo fato de que todas as vozes eram
treinadas. Eles sorriam enquanto suavam, os olhos se encontrando através da sala
e brilhando a cada encontro, como um flash fotográfico distante ou um diamante
refletindo luz. Louis fechou sua janela para deixar do lado de fora o calor de
todos aqueles corpos.

Na quinta à noite, um amador sério que tinha posto um anúncio no Globe veio
e levou todo o equipamento de rádio numa caminhonete, por 380 dólares em
espécie. Louis havia pedido seiscentos inicialmente.
Passou o sábado e o domingo discando, mais ou menos de duas em duas horas,
os números de telefone da casa e do trabalho de Renée. Ninguém atendia em
nenhum dos dois lugares, e ele resolveu que ela não estava mais interessada em
vê-lo. Essa ideia o enfurecia, e ele começou a deixar de gostar de Renée, porque
queria usar seu corpo e estava totalmente preparado para gostar dela, se era isso
que era preciso para usá-lo.
Nos estúdios da wolo-am no centro de Boston, numa torre de vidro em frente
às linhas de trem que partiam da North Station, um sujeito com pinta de capitão
do mar usando um macacão de brim branco e um lenço vermelho estava sendo
conduzido pela porta do vestíbulo. Instantes depois, ele surgiu no monitor interno,
anunciando esfuziantemente uma corrida de balões programada para o fim de
semana.
A recepcionista da wolo voltou para sua mesa atrás do balcão, repeliu Louis
com um braço e batucou em seu teclado. Era uma moça tamanho gigante, de
cabelo preto, mais ou menos da mesma idade que ele e absurdamente bonita.
Suas coxas estavam cruzadas e sua saia justa tinha se franzido em excitantes
ondinhas. Passado um tempo, ela parou de digitar, examinou a tela com os olhos
apertados e pressionou delicadamente uma tecla de função. A tela ficou vazia. A
recepcionista bateu com as mãos nas bochechas, aterrorizada, e ficou olhando
para a tela. Virou-se para Louis, olhos e boca redondos. “Eu não sei para onde
foi! Eu não sei para onde foi!”
“Escuta, eu tenho hora marcada com um tal de senhor Pincus.”
“Ele estava aqui.” Ela pousou o dedo em outra tecla e mais que depressa o
levantou, como se tivesse levado uma ferroada. “Mas saiu.”
“Ele vai voltar?”
“Você é Holland, Louis, certo? Por que você não deixa o seu nome? Eu não
posso falar com você no momento. O manual dessa impressora foi gerado na
mesma impressora por, abre aspas, razões heurísticas, fecha aspas, e a única
frase para a qual eu não estou pouco me lixando termina com as palavras, eu
memorizei, ‘não para o não para’. Termina assim.”
“Eu achei que tinha uma entrevista marcada com ele às onze.”
“As chances de ver o senhor Pincus hoje definitivamente não estão parecendo
boas.”
“Você sabe quando ele volta?”
“Por que você não pergunta primeiro para onde ele foi? Hum? Resposta: ele
foi para o aeroporto. E eu diria que é pouco provável que o aeroporto seja o
destino final dele. Qual é o destino final dele? ‘Não para o não para.’ Você está
me entendendo?”
“Talvez eu possa marcar uma hora com ele outro dia, então.”
“Eu adoraria remarcar a sua entrevista com ele, mas em virtude do vazio da
tela e da total falta de resposta aos comandos de tecla, isso não será possível. Por
que você não escreve o seu nome e o seu telefone num papel e aí eu passo o
recado para ele, está bom assim, Holland, Louis? Eu prendo o papel com durex
na tela do computador dele.” Ela cortou um pedaço de uns vinte centímetros de
fita adesiva e colou uma das pontas no papel de Louis e a outra na porta do
cubículo dela. De uma gaveta de sua mesa, ela tirou uma maçã vermelha do
tamanho de uma manga e fez um minúsculo talho branco nela com os dentes.
“Você quer almoçar comigo?”, Louis perguntou.
Ela levantou a maçã e a sacudiu. “Não para o não para!”
“Que tal um drinque depois do expediente?”
Ela fez que não com a cabeça, tirou uma dentada maior da maçã e ficou
mastigando com cara de ausência e enfado, com o olhar fixo numa tomada.
Britadeiras ribombavam à distância, em algum ponto inconjecturável da rosa dos
ventos; carros buzinavam aflitos, como se chamassem seus filhotes. Com um
estalido, a garota arrancou mais um naco da maçã. Estava claro que ela ia levar
mais uns cinco minutos para chegar até o miolo (cada mordida reforçando que
podia dispensar o almoço) e outros três para chupar os dentes e reajustar a boca,
checando o perímetro dos lábios com a ponta da língua e depois secando com as
costas da mão. Sua tela continuava vazia.
“Você está livre no fim de semana?”, Louis insistiu.
“Essa pessoa”, ela disse em tom de queixa.
“Nós podíamos sair pra jantar.”
“Eu conheço essa pessoa? Por que é que eu estou falando com essa pessoa?”

Nos classificados, havia milhares de empregos chatos e nem um único


emprego interessante. Até você abrir os classificados, era possível esquecer a
essência do emprego da pessoa média, que era: você executa essas tarefas de
“inserção de dados”, “telemarketing” ou “digitação de textos” que vão matar a
sua alma aos poucos e nós relutantemente lhe daremos dinheiro.
Os anúncios de emprego conseguiam ser ainda mais tristes que os anúncios
pessoais. “Atraente pacote de benefícios”, alguns prometiam. (mulher branca,
solteira, maravilhosa, olhos azuis, quarenta e poucos mas parece vinte e cinco,
procura...) Será que existia mesmo alguma pessoa no mundo que fosse
independente, altamente motivada, criativa e tivesse no mínimo cinco anos de
exp c/ T-1s, sdlc, hdlc e 3270 bisy nc? E se esse candidato ou candidata dos sonhos
de fato existisse, não seria extremamente suspeito que ele ou ela estivesse
procurando emprego? Anúncios como esses pareciam ser postos no jornal como
amargos lembretes ritualísticos, para que ninguém ficasse pensando que
empresas não tinham, como todo mundo, necessidades e desejos que não podiam
ser satisfeitos.
Na outra ponta da escala ficavam os lacônicos anúncios de uma linha que
procuravam vigias ou recepcionistas e não mencionavam nem benefícios nem
salário; anúncios que eram como prostitutas feias que, em contrapartida, não
exigiam muito.
Claramente, administrar um negócio não passava de um tremendo abacaxi. As
empresas queriam bons funcionários e não queriam maus funcionários, mas os
maus funcionários eram loucos para ficar e tomar o dinheiro da empresa,
enquanto os bons funcionários eram loucos para sair e trabalhar para
concorrentes. Para Louis, todos os milhares de empregos listados no jornal
pareciam efluentes nocivos dos quais as empresas estavam tentando se livrar
pagando pessoas para tirá-los de suas mãos. Como eles odiavam ter de pagar
tanto e oferecer “benefícios” tão sedutores para se verem livres dessas tarefas
nocivas! Como eles queriam que não fosse assim! Louis podia sentir a raiva deles
por terem de se desfazer de todo esse lixo. Os altos executivos empurravam o
problema para o departamento pessoal, e as pessoas do departamento pessoal
usavam roupas plásticas facilmente confundíveis com rostos e personalidades. A
missão delas era lidar com os venenosos mas inevitáveis subprodutos
empregatícios, sem deixar que eles entrassem em contato com a pele delas. A
cordialidade delas era garantidamente não aderente e cem por cento
impermeável.

“Ué, você está de férias, Lou?”


“Não, eu já disse ao senhor. Eu fui despedido.”
“Você não me disse que tinha sido despedido.”
“Na verdade, disse sim.”
“Puxa, que chato. Não dá pra acreditar. Parece que todo mundo está sendo
mandado embora ultimamente.”
“Pois é, ainda que isso obviamente não possa ser verdade.”
“O que eu não entendo é por que alguém ia querer despedir um bom rapaz que
nem você.”
“Bom, porque eu não acredito que Jesus Cristo seja o meu salvador pessoal. Eu
não acredito na verdade literal da Bíblia.”
Mullins franziu o cenho. “Mas o que é que isso tem a ver?”
“O lugar onde eu trabalhava foi comprado por fundamentalistas antiaborto e
todo mundo que não era cristão teve que ir embora.”
“Ah, Lou. Ah, Lou. Você não devia ter feito isso.” Mullins balançou a cabeça.
“Agora você está, você está, você está o quê? Procurando outro emprego?”
“Agora, agora eu estou procurando uma mulher com quem eu saí dez dias
atrás e gostaria de sair de novo.”
“Você não é casado, é?”
“Não.”
“Você precisa de um emprego, Lou.”

Na Pleasant Avenue, uma bicicleta de dez marchas presa com uma corrente a
uma sinalização de trânsito tinha sido derrubada no chão sem se soltar. As
abelhas que rondavam a madressilva eram como aglutinações do calor amarelo
e zangado daquele dia. O ruído de insetos de asa dura era como o zumbido de
transformadores de alta voltagem danificados, sobrecarregados, por aquele
calor; como os espíritos monótonos e despersonalizados de índios exterminados
volatilizados por aquele calor.
Ao entrar pela porta da frente num hall impregnado de odor corporal canino e
de hálito de ração de cachorro inacreditavelmente intensos e quentes, Louis viu
flores laranja desabrochando e teve de se esforçar para conseguir subir as
escadas, como um mergulhador quase sem ar tentando chegar à tona. Seus
óculos escorregavam de sua cara suada. Ninguém atendeu quando ele bateu na
porta, embora o apartamento de Renée fosse traiçoeiro, acolhendo de bom grado
os olhos da memória e da imaginação de Louis.
Foi uma caminhada de vinte e cinco minutos até Harvard. Com a ajuda de
alguns estranhos prestativos, Louis conseguiu localizar o Laboratório Hoffman de
Ciências Geológicas, que era um sanduíche de cinco andares de tijolo e janela
em fatias de concreto branco. O interior era refrigerado e tinha o mesmo cheiro
que o interior asséptico de computadores. A sala da dra. Seitchek ficava no
térreo, em frente a uma sala de computação, e continha duas mesas. Howard
Chun estava sentado com os pés em cima da que ficava mais perto da porta,
atirando energicamente um elástico na parede em frente e depois capturando-o
no ar. A outra mesa, perto da janela, estava vazia salvo por uma pilha de cartas
ainda fechadas.
“Ela não está aqui.”
“Você sabe onde ela está?”
Howard se esticou para pegar o elástico antes que ele caísse entre seus tênis.
“O que você quer com ela?”
“Ela é minha amiga.”
“Ah, sei.”
“Você sabe onde ela está?”
“Acho que em casa.”
“Eu acabei de vir de lá.”
Howard começou a estalar o elástico furiosamente contra os próprios dedos,
olhando de cenho franzido para a pele cada vez mais vermelha. De repente,
olhou para o chão por sobre o braço da cadeira. “Quer ver uma coisa?” Ele
atirou o elástico numa folha de papel pregada na parede. “Esses foram os
terremotos que nós tivemos desde março.”
Os círculos pareciam ser epicentros, graduados em escala linear de acordo
com a magnitude. “O que são as linhas pontilhadas?”, Louis perguntou.
“Falhas mapeadas perto de Ipswich. A linha tracejada é uma grande feição
aeromagnética, pode ser uma sutura antiga, pode não ser nada. Tem uns dez
quilômetros de profundidade, ou talvez nove ou oito. As falhas mapeadas são
rasas. O único problema é que a série de Ipswich é funda, mais para oito ou dez
quilômetros.”
“E o que isso quer dizer?”
“Que provavelmente tem outras falhas. Ou que as falhas não foram mapeadas
direito. Não parece certo. Duas séries de terremotos sem relação uma com a
outra, tão perto no tempo e no espaço. A probabilidade é pequena.”
“Pequena quanto?”
Howard cruzou os braços e franziu o nariz. “Tipo muito, muito pequena. Eu
nunca vi acontecer.”
“Hum.” Louis olhou de novo para a pilha de cartas na mesa de Renée. Do lado
de fora da janela, turistas japoneses andavam em fila por um caminho de asfalto
entre os carvalhos.
Howard se inclinou para trás perigosamente em sua cadeira giratória e,
esticando bem os dedos, alcançou seu elástico no chão. “Quer ver outra coisa?”
Com os pés ainda em cima da mesa, ele endireitou o corpo, abriu a gaveta de
cima e entregou a Louis uma fotografia 10 × 15 num papel amarelado que um
dia já fora lustroso. Era uma foto de uma adolescente vestida com uniforme de
banda de desfile e segurando um clarinete junto ao peito. O casaco do uniforme
era azul-escuro, com remate creme e botões dourados; o quepe tinha uma pala
preta de plástico e uma trança dourada na copa. O cabelo comprido e lambido,
com um corte típico de meados dos anos setenta, emoldurava seu rosto e se
esforçava para esconder (mas na verdade realçava e ampliava) as zonas de acne
de suas bochechas e sua testa. Ela tinha nos lábios o sorrisinho rígido e
autossabotador dos adolescentes que detestam seus rostos e para quem ser
fotografado é uma crueldade sem tamanho, e olhava fixamente para um infinito
localizado em algum ponto a sua esquerda, como se ao não encarar a câmera ela
pudesse fazer com que a câmera não a visse. Folhas de árvore amarelas e
pentagonais jaziam no gramado entre ela e uma caminhonete fora de foco e
uma porta de garagem.
“Você sabe quem é?”
“Onde você conseguiu isso?”
“É a Renée.”
“Onde você conseguiu isso?”
Howard bateu com as costas várias vezes no encosto de vinil de sua cadeira.
Depois, empurrou a mesa com os pés e foi deslizando até a metade da sala. “Eu
encontrei.”
“Onde?”
“Eu só peguei.”
Louis tentou devolver a foto.
“Pode ficar”, disse Howard. “Você quer?”
“Por que você está me dando isso?”
Howard deu de ombros. Tinha feito sua última oferta.
“Você roubou essa foto?”
“Eu só peguei. Se quiser, leva. Eu não quero.”

***

Ao entardecer, pela janela aberta, ele ouviu John Mullins contar à soprano e ao
marido dela que aquele rapaz bonito do prédio ao lado — acabou de se mudar,
um garoto bonito — tinha sido despedido. Ele disse para eles que não acreditava
em Jesus e eles o botaram no olho da rua.

“Eu estou há dias tentando ligar pra você”, Louis disse.


Renée estava comendo uvas roxas sem caroço, sentada diante da mesa de sua
cozinha. Segurava a tigela de vidro na altura do peito e usava apenas o pulso para
levá-las à boca, dobrando-o para trás e para a frente com eficiência. “Péssima
semana pra isso.”
“Numa das vezes que eu liguei, quem atendeu foi o... qual é o nome dele?
Terry , e ele desligou na minha cara.”
“As pessoas estão zangadas comigo, por uma coisa que não é culpa minha.”
Descalça e silenciosa, ela se levantou e pôs o esqueleto de um cacho de uvas na
pia. O suor colava seu cabelo ao pescoço e à testa em lâminas finas e curvas. Na
janela atrás de Louis, um circulador de ar zumbia em baixa velocidade,
proporcionando conforto com o barulho e não com o vento que produzia.
(Enquanto seus curativos estão sendo trocados, pacientes vítimas de queimaduras
preferem ouvir algum ruído monótono e constante a ouvir música.)
“Eu vou só te dar uma ideia do que está acontecendo.” Ela mostrou a ele o
plugue do telefone desconectado e, em seguida, o enfiou na tomada; depois, virou
de cabeça para baixo uma sacola de papel do DeMoula’s Market, despejando
algo entre sessenta e oitenta envelopes em cima da mesa da cozinha. “Aqui tem
uma simpática.” Ela lhe entregou um envelope sem endereço de remetente.
Dentro do envelope, havia um bilhete escrito à máquina:

Prezada Vaca,
Eu espero que você morra de Aids.
Atenciosamente,
Um inimigo.

“Vai direto ao ponto”, ela disse com voz animada. “Aqui tem outra bem
carinhosa.”

Prezada “srta.” Seichek,


Eu vi você na televisão e a sua postura me dá nojo. A sua postura é faça
sexo e mate o bebê depois. Qual é a diferença entre aborto e infanticídio? Só
tem uma diferença. O aborto é legal em Massachusetts e infanticídio é
crime. Agora você me explica isso. Você disse que tudo bem meninas de 14
anos fazerem aborto quando precisam. Mas e os pais? Outra coisa é que
você nunca fala de adoção nem de orfanato. Nesse pobre mundo não existe
esse negócio de bebê não desejado. Talvez você vá querer ter filhos um dia
e não possa porque é estéril. Eu acho que deviam levar em conta a opinião
da pessoa sobre aborto quando ela vai adotar. Você não ia poder. Você por
acaso já segurou um bebê no colo? Talvez você nunca tenha a chance agora
por causa do que você falou. Talvez Deus tenha Misericórdia se você rezar.
Você sabe rezar? Eu não posso rezar por você.
Sra. Axel Hardy
Front Drive, 68
Hingham, Mass.

“Essa é aquela sobre adoção, não é? Dá uma olhada nessa aqui. O cara
mandou junto uma parte da carta da corrente.”

Dra. Renee Scheik


Laboratórios Hoffmann
Oxford Street, 20
Cambridge, Mass. 02138

Prezada dra. Scheik,


Junto com chefes do tráfico condenados não existe nada mais disprezível
no mundo que aborteiros. Metade das pessoas que entram em clínicas de
aborto não saem de lá vivas. Como você consegue dormir à noite sabendo
de todas as vida que você tirou no trabalho? Ou você toma drogas pra dormir
(ra ra). Eu espero que a sua clínica seja fechada e que você vá pra cadeia.
Ainda bem que eles separam os homens das mulheres na prizão. Eu torso
que você sofra bastante lá.
Assinado,
Um anônimo
Isso tinha sido datilografado no verso de uma cópia de uma cópia de uma
cópia xérox onde se lia:

-2-

tem impacto, mas às vezes você não consegue fazer contato. Às vezes o
número do telefone é trocado temporariamente por outro que não consta da
lista telefônica. Às vezes você liga e só dá sinal de ocupado, ou ninguém
atende, ou a secretária eletrônica atende. Se o número comercial foi
alterado, você pode obter o número novo pelo serviço de auxílio à lista (555-
1212). Lembre-se que clínicas e médicos particulares não podem se dar ao
luxo de não constar da lista telefônica. Insistir é importante — durante uma,
duas, até três semanas. Porém, também é importante acompanhar cada
ligação de uma carta de primeira categoria. Se a corrente não for quebrada,
estima-se que cada aborteiro da lista vá receber mais de 1600 cartas até as
nove caixas da página 1 terem sido preenchidas. A união faz a força!
Imagine o impacto de 1600 veementes apelos pessoais! E de 1600
telefonemas! Mas se você quebrar a corrente, esse número vai cair pela
metade, e se outro amigo quebrar a corrente, o número vai cair pela metade
de novo.
Jesus alimentou 5000 com cinco pães e dois peixes. Você pode ter o
mesmo poder se enviar seis cópias desta carta. Se esta cópia estiver borrada
demais, datilografe o texto de novo antes de enviar.
Observação: Ligações de longa distância são mais baratas entre 5 da tarde
e 8 da manhã (hora local), mas não esqueça que a maioria das clínicas
funciona em horário comercial (isto é, de 9 às 5).

como escolher
não escolha nomes da lista ao acaso. Comece com o dia do mês em que
você nasceu — você vai ver que há 31 nomes na lista — e vá subindo a lista
se você nasceu num mês de número ímpar (por exemplo, janeiro = 1;
fevereiro = 2 etc.) ou descendo a lista se você nasceu

“Eu vou comer mais uva”, disse Renée. “Você quer?” A geladeira dela tinha
ombros arredondados e um puxador que travava. O logotipo de cromo na porta
dizia fiat.
Louis estava sacudindo a cabeça, atônito. “Isso é mil vezes pior do que o que
aconteceu comigo.”
“Tem certeza de que você não quer? Uva?”
“Quem botou o seu nome na lista?”
“O Stites ou alguém da organização dele, eu tenho quase absoluta certeza.
Todos os endereços são da área de Boston. O detalhe do ‘Laboratórios Hoffmann’
foi um toque de mestre. Essas pessoas não são nada burras.”
“Você tem que reclamar com alguém.”
“Eu falei por telefone com um cara do Globe. Ele me pediu que mandasse
cópias de algumas das cartas pra ele, e eu mandei. Imagino que eles queiram ver
quem mais está recebendo essas cartas antes de publicarem qualquer coisa a
respeito. Ele disse que ia me ligar de volta através da secretaria do departamento,
mas ainda não ligou.”
“E com os Correios, você falou? Com a companhia telefônica?”
“Eu achei que não ia adiantar nada. Eu não quero processar essas pessoas, só
quero que o mundo saiba o quanto elas são inacreditavelmente babacas.”
O telefone em cima da mesa começou a tocar. Louis botou a mão em cima
dele e olhou para Renée, que deu de ombros.
“A...eh... dra. Seechek está?”
“Sou eu.”
“Ah, o senhor é homem, eu não sabia que...”
“Não, meu senhor”, disse Louis. “Eu tenho voz grossa.”
Renée lhe lançou um olhar dúbio.
“Eu me chamo John. Eh, Doe. John Doe. Eu fui informado de que... eh... a
senhora trabalha nos Laboratórios Hoffmann e...” — a voz do sr. Doe foi ficando
fina e estrangulada — “e que lá são realizados abortos?”
“É, eu estou sabendo que o senhor foi informado disso.”
“Eu gostaria de conversar com a senhora um instante sobre o seu trabalho, se
fosse possível, doutora Seechek. A senhora tem um instante?”
Louis estava se divertindo, mas Renée tirou o telefone da tomada, pegou o fone
da mão dele e falou para a linha muda: “Vai se foder, vai se foder, vai se foder”.
A sacola do DeMoula’s se rasgou quando Renée começou a enfiar as cartas de
ódio de volta dentro dela, enquanto vagas sombras de palavras se desenhavam
em seus lábios. Ele ficou surpreso ao notar áreas vermelhas e ásperas infiltradas
em sua tez pálida. Ficou se perguntando se aquilo era uma alteração recente ou
se, auxiliado pelas pistas fornecidas pela velha fotografia, ele estava vendo coisas
nela que até então ela havia conseguido esconder. Seus poros tinham se tornado
evidentes. Havia uma faixa de acne suavizada, mas não erradicada, na parte de
cima de uma de suas bochechas e também manchas em volta de sua boca que
davam a impressão de que ela estava borrada de batom. Ela lhe pareceu mais
nova e um pouco mais suja, mais como o tipo de garota com a qual era fácil
você fazer o que quisesse — o tipo que tem mais paixão do que autoestima.
“Eu odeio quando mulheres falam palavrão”, disse ela.
“Por quê?”
Ela estava na cabeceira da mesa. “Acho que é porque existe essa ideia, na
imaginação popular, de que isso seria sexy. Na imaginação popular masculina
sancionada. Mesmo quando uma mulher diz ‘vai se foder’ com raiva, mesmo
quando uma feminista radical diz isso, as pessoas acham um tesão. Toda vez que
eu ouço uma mulher dizer isso, eu me transporto...” Ela se dirigiu a Louis
diretamente. “Eu me transporto para a estação do metrô da Central Square. Tem
uma mulher raivosa lá, cheia de bolsas e de jornais. É como se o rosto dela fosse
o rosto de Todas as Mulheres Dizendo ‘vai se foder’. Aquela raiva insana contra
todo mundo, que para mim fica particularmente feia numa mulher, embora isso
não seja politicamente correto da minha parte e, portanto, me faz perguntar qual
exatamente é o meu problema. E eu não posso deixar de mencionar”, ela
continuou, agora falando consigo mesma, “uma coisa que eu esqueci de falar
outro dia, quando você me perguntou o que eu tinha contra Boston, eu esqueci de
falar do jeito como as pessoas chamam o metrô de T. As pessoas, quer dizer, as
pessoas em questão, elas não dizem ‘eu vou pegar o metrô’, elas dizem ‘eu vou
pegar o T’. O que é doentio — pra mim, o que eu considero doentio — é que é
como se fosse uma palavra-código, que toda vez que eu escuto me dá raiva,
porque eu ouço a história inteira na minha cabeça, a garotada toda aprendendo a
dizer ‘T’ em vez de ‘metrô’. Eles escrevem para os pais falando sobre pegar o T.
Eles explicam que aqui as pessoas chamam de T, o que é meio fofo. Ai, meu
Deus, o que é que eu estou dizendo?” Ela se afastou, dando socos na própria
cabeça. “Você queria saber por que eu não te liguei.”
Impaciente, Louis dava golpes de caratê no tampo da mesa. “Tem cerveja
aí?”
“Porque eu não estou conseguindo me controlar.”
“Ou qualquer outro tipo de bebida ou de droga que a gente possa consumir?
Nós dois?”
O zumbido do circulador de ar na janela, seu ronco plácido e oleado, era o
som de todas as horas da noite durante uma onda de calor. A hora em que a
conversa escasseia. A hora em que um reflexo da luz da rua paira num
determinado ponto em que as hélices passam. A hora em que o amanhecer força
passagem pelas cortinas cansadas. O zumbido e as horas sendo a mesma coisa, a
monotonia do calor úmido, e os pacientes queimados dizem: Não aumente a
velocidade. Não diminua. Deixe exatamente como está.
“Você tem amigos?”, Louis perguntou, abrindo garrafas. “Pessoas pra quem
você possa ligar?”
“Claro. Quer dizer, eu tinha.” Sentada em frente a ele do outro lado da mesa,
Renée não demonstrou nenhuma intenção de tomar a cerveja que ele lhe deu.
“Eu dividia esse apartamento com uma amiga de quem eu gostava muito, mas
ela está casada agora. Imagino que eu não tenha sido muito previdente na hora
de escolher amizades pra cultivar. Eu fiz amizade com pessoas dois ou três anos
mais velhas que eu no trabalho, pessoas nascidas na segunda metade da década
de sessenta que não gostavam da primeira metade da década de oitenta, como eu
também não gostava. Então, acho que o que eu tenho agora é uma
correspondência interessante e alguns lugares pra ficar no Colorado e na
Califórnia.” Com as unhas dos polegares, ela empurrou para cima, como quem
empurra uma cutícula, o papel que envolvia o gargalo de sua garrafa de cerveja
suada, tentando com atraso sondar a intenção por trás da pergunta dele. “Eu saio
com pessoas, se é isso que você está querendo saber.” Os olhos dela
acompanharam o dedo indicador de sua mão direita enquanto ela o arrastava ao
longo da beirada da mesa. Depois, trouxe sua mão de volta e apoiou a palma em
um dos lados da garrafa cheia, apoiando em seguida a outra palma no outro lado.
Ficou absolutamente imóvel nessa posição durante alguns instantes, olhando para
a garrafa. Depois, com violenta determinação, como se ficar sentada daquele
jeito tivesse sido um tormento físico desde o início, ela se levantou sem nem
afastar a cadeira da mesa. Teve de cambalear num pé só para não perder o
equilíbrio e empurrar a cadeira para trás para se remover dali; grudada no chão
úmido, a cadeira tombou para trás.
Renée voltou de seu quarto trazendo algumas pastas de arquivo.
“Eu tenho ficado na biblioteca”, ela disse, endireitando a cadeira. “Na sexta
passada, duas pessoas apareceram na minha sala pra serem desagradáveis
pessoalmente e, desde então, eu não voltei mais lá.”
“O Howard me falou.”
Ela fez que sim, bocejando. “Eu fiquei pensando naquilo que o namorado da
sua irmã disse e me lembrei de uma coisa, ou achei que me lembrava. Eu tinha a
impressão de que estava na página da direita, ao lado de uma outra coisa que eu
estava lendo. E... eu estava certa.” Da pasta de cima, ela tirou um maço de
fotocópias grampeadas. “Isso é um artigo que saiu no Boletim da Sociedade
Geológica da América, em julho de 69. Você pode ler só o resumo e o que eu
sublinhei.”
“Pra quê?”, Louis disse.
“Porque é interessante.”

uma teoria da gênese subcrustal do petróleo

A. F. Krasner
Setor de pesquisa química, Indústrias Sweeting-Aldren

resumo: Emissões significativas de metano e petróleo em regimes não


fossilíferos (Siljan, Wellingby Hills, Tay lorsville) puseram em questão o
pressuposto de que depósitos subterrâneos de hidrocarboneto derivariam
principalmente da decomposição de matéria orgânica aprisionada.
Estimativas mais precisas da composição química de cometas e dos grandes
planetas sugerem que os níveis de carbono no interior da Terra sejam entre
102 e 105 vezes maiores do que se estimava anteriormente. Um estudo
laboratorial demonstra a possibilidade de sintetizar petróleo a partir de
hidrocarbonetos elementares sob pressões próximas às do interior da Terra.
Um modelo de captura de hidrocarboneto durante a planetogênese prevê a
formação e o acúmulo de metano e de outros hidrocarbonetos mais
complexos na fronteira superior da astenosfera e explica as emissões
observadas em Wellingby Hills. Propõe-se um programa de perfuração
profunda para melhor testar o modelo.

O único trecho sublinhado que Louis conseguiu encontrar no artigo estava no


último parágrafo. Renée havia feito o sublinhado com régua, um hábito de
trabalho que sempre tinha dado nos nervos de Louis. Avanços na tecnologia de
poços profundos tornaram viável a perfuração de buracos estreitos com
profundidade superior a sete mil metros. Dois sítios no sinclinório das montanhas
Berkshire, incluindo o plúton de Brixwold (nas cercanias do qual há indícios de
lenta emissão de metano) 31, foram escolhidos para a implementação de um
programa de perfuração iniciado pelas Indústrias Sweeting-Aldren, o qual deverá,
a depender de financiamento final, entrar em execução em dezembro de 1969, e
espera-se alcançar a profundidade crítica de sete mil metros na primavera de
1971. Caso quantidades significativas de metano ou petróleo sejam encontradas
nessa profundidade, sob um plúton granítico altamente metamorfizado sobreposto a
xistos pré-Cambrianos, isso representaria uma forte confirmação do modelo da
camada aprisionada.
“Tem muita palavra difícil aqui”, disse Louis.
“Na verdade é um artigo seminal, à maneira dele.” Com deselegante
possessividade, Renée manteve uma mão estendida até Louis lhe devolver o
artigo. “Os indícios na época eram tão frágeis que o trabalho jamais deveria ter
sido publicado, mas essa é uma ideia que ainda continua pairando. A ideia de que
existiria um imenso oceano de petróleo e gás natural empoçado logo abaixo da
crosta terrestre, e de que todo esse combustível seria derivado da matéria
primordial de que o planeta foi feito, e de que todas as reservas dos chamados
combustíveis fósseis não passariam de uma gota no oceano comparadas a tudo o
que está lá embaixo. Não faz muito tempo, o governo sueco gastou dez milhões
de dólares perfurando um poço numa bacia do lago Siljan, que acabou não dando
em nada. A ideia não morreu. Mas não tem muita gente que a leve a sério.”
“Arrã.”
“Bom, depois tem isso aqui que saiu na Nature, em janeiro de 70.”
Ela havia circulado meticulosamente, com caneta vermelha, um parágrafo da
seção de notícias. A nota dizia que a empresa química americana Sweeting-
Aldren havia começado a perfurar um poço profundo num local não revelado no
leste de Massachusetts, com a intenção de testar a hipótese de A. F. Krasner
acerca da origem não fóssil de boa parte do petróleo e do gás natural do mundo.
A perfuração estava prosseguindo num ritmo de trinta metros por dia e, já
levando em conta os habituais atrasos e falhas de equipamento, esperava-se que
o poço atingisse sete mil metros — “a profundidade crítica, no entender de
Krasner” — no final da próxima primavera.
“Você notou alguma coisa estranha aí?”
Louis abanou a mão, com ar de cansaço. “Esse negócio de desvendar
enigmas...”
“As Berkshires não ficam no leste de Massachusetts.”
“Ah.” Ele balançou a cabeça. “Eu não sabia disso. Então, eu não teria sacado
de qualquer forma. Que bom que você me disse.”
Renée fechou uma pasta e abriu outra. A caligrafia nas linguetas das pastas era
tão disciplinada quanto a de um escrivão. “Dia 25 de fevereiro de 1987”, disse
ela. “Boston Globe: ‘Tremores no condado de Essex persistem’.” Ela entregou a
Louis a fotocópia de um recorte de jornal. “Dia 12 de abril de 1987. Boston
Globe de novo. ‘Série de terremotos em Peabody intriga cientistas’.” Ela tirou da
pasta um terceiro artigo. “Earthquake Notes, 1988, número 2, ‘Os microssismos
registrados em Peabody de janeiro a abril de 1987 e seu ambiente tectônico’.
Penúltimo parágrafo: ‘A distribuição espacial e temporal dos microssismos
guarda uma marcada semelhança com exemplos conhecidos de sismicidade
induzida nas cercanias de poços de injeção’. A ênfase é minha. ‘No entanto, a
profundidade relativamente grande dos tremores de Peabody (em média, três
quilômetros mais profundos que os poços comerciais mais fundos de injeção de
resíduos) parece excluir tal mecanismo. Além disso, não há nenhum poço de
injeção licenciado operando num raio de vinte quilômetros ao redor do local da
atividade.’”
Ela ficou encarando sua garrafa de cerveja por alguns instantes e depois
tomou um longo gole. Estava definitivamente conseguindo se controlar agora.
“Eu me lembro de quando essa série começou em Peabody . Esse tipo de coisa
acontece em alguns outros lugares da Nova Inglaterra com certa regularidade.
Você tem vários tremores minúsculos, a maior parte deles pequenos demais pra
serem sentidos. Pode ir de um até algumas centenas de tremores por dia, durante
dias, semanas ou meses. Ninguém sabe realmente o que provoca esses
microssismos. A série de Peabody despertou interesse porque nunca tinha
acontecido nada parecido lá antes.”
“Eu entendi direito? Poços de injeção provocam terremotos?”
“Provocam. É o que se chama sismicidade induzida. Acontece quando uma
quantidade muito grande de líquido é injetada no subsolo, e a explicação básica é
que as rochas lá embaixo ficam escorregadias por causa de todo o líquido extra.
O exemplo clássico é o que aconteceu no início dos anos sessenta na Rocky
Mountain Arsenal, nas cercanias de Denver. O exército estava fabricando armas
químicas, produzindo milhões de galões de resíduos líquidos tóxicos e injetando
tudo num poço de três mil e seiscentos metros de profundidade. Denver sempre
tinha sido bem sossegada sismicamente, mas, por volta de um mês depois que as
injeções começaram, vários terremotos começaram a ser registrados. Cerca de
um por dia em média, nenhum deles com magnitude maior que 4,5 ou perto
disso. Sempre que eles interrompiam as injeções, os terremotos paravam, e
sempre que eles recomeçavam, os terremotos também recomeçavam. Era
praticamente como abrir e fechar uma torneira. O gs fez um estudo...”
“O o quê?”
Renée piscou os olhos. “Geological Survey, o serviço geológico dos Estados
Unidos. Eles injetaram água em poços de petróleo secos do oeste do Colorado.
Sempre que a pressão da água no leito de rocha ultrapassava 260 quilos por
centímetro quadrado, os terremotos começavam. Quando já existe algum tipo de
tensão no subsolo, a água nas falhas lubrifica as coisas e interfere no equilíbrio de
forças. O mesmo acontece quando você constrói uma barragem e forma um
reservatório. O peso do novo lago faz com que a água penetre na rocha
subjacente. Houve uma longa série de eventos em Nevada, atrás da represa
Hoover, depois que ela encheu. A mesma coisa aconteceu no Egito, atrás da
represa de Assuã. E também na Zâmbia, na China e na Índia. Eu acho que o que
teve na Índia foi de intensidade bem considerável. Matou por volta de duas
centenas de pessoas.”
“Pelo que eu estou percebendo, você não passa as suas noites vendo beisebol
na televisão.”
Ela abriu uma terceira pasta, ignorando o comentário dele. “O curioso é que,
depois desse artigo, o Krasner some da literatura. Ele não aparece em nenhum
periódico de química nem de geofísica e nunca constou do American Men and
Women of Science . Um artigo completo, um parágrafo na Nature e só. A teoria
dele foi reinventada de modo independente no final dos anos setenta por um cara
chamado Gold, de Cornell. Nos trabalhos que eu consegui encontrar, o Gold cita
o Krasner uma vez, o chama de ‘presciente’. E é isso.”
“Você leu essas coisas todas.”
“Eu passei os últimos dias presa na biblioteca.”
“E você sublinhou as partes importantes e organizou os textos em arquivos,
mesmo não sendo um trabalho pra nota.”
“É.”
“Por que você faz isso?”
“Por quê?” A pergunta pareceu quase ofendê-la. “Porque eu estou curiosa.”
“Você está curiosa. Você faz isso tudo porque está curiosa.”
“Exato.”
“E você não vai ganhar nada com isso.”
“Não que eu saiba.”
“Você faz isso por pura e simples curiosidade.”
“Quantas vezes eu vou ter que repetir?”
Louis soltou uma lufada de ar pela boca. Tamborilou no tampo da mesa. Soltou
mais um pouco de ar. “Você andou falando com a minha mãe de novo.”
“O que te faz pensar que eu andei falando com ela?”
“O simples fato de que ela tem uma grande participação financeira na
Sweeting-Aldren.”
“Eu não sabia disso. Na verdade, isso é muito interessante. Mas eu não andei
falando com ela e definitivamente não tinha conhecimento disso.” Ela
estremeceu um pouco, tentando se livrar das vagas acusações de Louis.
“Continua, então”, ele disse.
“Eu não tenho mesmo nada a ganhar com isso. É só... Sei lá. É como você
disse. O meu pequeno seminário.”
“Olha, desculpa. Eu quero ouvir o resto. Toma mais um pouco de cerveja e
me conta o resto.”
Ela respirou fundo e começou a falar para o tampo da mesa, gesticulando
muito, como se estivesse se dirigindo diretamente a Louis; mas claramente
estava além de sua capacidade sustentar ao mesmo tempo a eloquência
professoral e o contato olho no olho.
“Em 1969 a Sweeting-Aldren está nadando em dinheiro, principalmente por
conta da Guerra do Vietnã. Eles estão com uma penca de cientistas na folha de
pagamento, e essa pessoa, o Krasner, aparece com a teoria de que Massachusetts
está boiando num oceano de petróleo bruto. A empresa decide financiar a
perfuração de um buraco pra ver se ele tem razão, só que alguma coisa acontece
que faz com que eles mudem de ideia em relação ao lugar onde perfurar o
buraco. Sabe-se lá o quê. Talvez eles tenham chegado à conclusão de que, se
havia uma piscina gigantesca de petróleo debaixo do oeste de Massachusetts,
também devia haver uma debaixo do leste de Massachusetts, onde eles tinham
propriedades. A única razão pra fazer a perfuração naquele lugar do oeste de
Massachusetts era que a geologia do local supostamente era incompatível com
depósitos de petróleo. Mas que importa pra eles a teoria do Krasner? Eles estão
preocupados é em encontrar uma forma de ganhar algum dinheiro com o
buraco, caso ele acabe revelando não ser um poço jorrante. E o que acontece é
que, em 1969, as pessoas já estão começando a ficar nervosas com os estragos
ao meio ambiente, principalmente com a poluição da água, e o que eu acho que
eles decidiram foi que, se o poço profundo acabasse se mostrando seco, eles iam
injetar resíduos industriais no buraco. Enquanto isso, o Krasner se aposenta, ou
morre, ou abre uma loja de antiguidades. Ou não passava de um pseudônimo,
pra começar.”
“E eles injetam resíduos industriais no buraco...”
“E aí o que o namorado da sua irmã estava dizendo” — o som da voz de Louis
fez com que ela se concentrasse ainda mais no tampo da mesa — “é que ainda
hoje a empresa despeja um milhão de galões de efluentes todo ano. Mas no
jornal, praticamente todo dia ao longo dessas duas últimas semanas” — ela abriu
outra pasta, que Louis viu que estava cheia de recortes do Globe — “tanto a
Sweeting-Aldren quanto a epa, a Agência de Proteção Ambiental, vêm dizendo
que a empresa não despeja nada no rio Danvers, a não ser água quente
ligeiramente oleosa, mas limpa. Eles são um modelo de fábrica não poluente.”
Louis pensava: E eles injetam resíduos industriais no buraco...
“Então, onde foi que eles perfuraram? Obviamente, eles perfuraram num raio
de uns três quilômetros da fábrica de Peabody. E o negócio é que você pode
passar um bom tempo injetando líquido num buraco até que alguma coisa
aconteça. É preciso muito líquido para fazer o que é chamado de pressão de
poros atingir o nível crítico em que a rocha começa a liberar as tensões internas e
rompe sismicamente. Não é implausível que a Sweeting-Aldren tenha injetado
efluentes do início dos anos setenta até meados dos anos oitenta sem que nada
tenha acontecido. Mas de repente eles chegam ao nível crítico, digamos, em
janeiro de 87, e aí começam a acontecer pequenos terremotos. A série de
tremores dura uns quatro meses e depois para, o que pra mim sugere que a
empresa ficou assustada e parou de injetar. Então, durante uns dois anos, tudo
fica calmo, e aí, por volta de duas semanas depois do primeiro evento de
Ipswich, de repente começam a acontecer tremores em Peabody de novo — os
jornais falam de Ly nn também, mas a área do epicentro é a mesma da série de
87 —, tremores que ninguém consegue relacionar com os eventos de Ipswich, a
não ser como uma coincidência pouco provável. Mas o que vinha sendo feito
com todos aqueles resíduos que a empresa normalmente teria injetado no
subsolo? Eles tiveram que parar de injetar em 87, então presume-se que tenham
sido forçados a armazenar esse líquido em algum lugar, coisa que, tenho certeza,
não estava deixando a empresa nada contente. E, talvez, o que eles estivessem
esperando fosse um terremoto local de boa intensidade, para poderem começar
a injetar resíduos em Peabody de novo, a toda velocidade, com a ideia de que
qualquer novo tremor seria associado aos eventos de Ipswich. Talvez aquilo que
vazou na Páscoa tenha sido parte dos resíduos que eles vinham armazenando
desde 87. Talvez eles tenham decidido que tinham que tentar injetar o máximo
de material no subsolo o mais rápido possível, não importava o que acontecesse.
E aí, claro, uma ou duas semanas depois, nós começamos a ter tremores em
Peabody .”
Tendo por fim terminado, Renée tirou o cabelo da testa e tomou outro longo
gole de cerveja, recolhendo-se em si mesma, tomando cuidado para não esperar
nenhuma reação. Louis estava com o olhar fixo no frasco de Joy ao lado da
torneira da pia funda e branca. A cozinha tinha ficado menor e mais clara. Ele se
recostou em sua cadeira, enchendo a área central de seu campo de visão com a
imagem de Renée. “Aquilo sobre o negócio de 1987, a explicação de por que não
podia ser por causa de um poço. Você pode ler de novo?”
Obedientemente, ela abriu a devida pasta. “‘No entanto, a profundidade
relativamente grande’, é isso?”
“Isso! Isso! Isso prova, não prova?”
“ ‘...(em média, três quilômetros mais profundos que os poços comerciais mais
fundos de injeção de resíduos) parece excluir tal mecanismo. Além disso, não há
nenhum poço de injeção licenciado operando...’ ”
“Aqueles escrotos! Aqueles escrotos! Isso é ótimo.” Louis se inclinou por cima
da mesa, pôs as mãos sobre as orelhas de Renée e lhe deu um beijo na boca.
Depois, começou a zanzar pela cozinha, socando a palma da mão.
“Você sabe alguma coisa sobre essas pessoas?”, ela perguntou.
“Eles são uns escrotos!”
“Você conhece essas pessoas?”
“Eu te falei, a minha mãe virou uma grande acionista de repente. Eu conheci
esses caras no funeral da minha avó. Eles são aquele tipo clássico de empresário
canalha.” Segurando Renée pelas axilas, ele a levantou da cadeira para poder
apertá-la e beijá-la de novo. “Você é incrível. Eu não acredito que você
simplesmente sentou e desvendou esse troço todo. Você é fantástica.”
Ele a levantou do chão e depois a pousou de volta. Ela olhou para ele como se
esperasse que ele nunca mais fizesse isso.
“É ilegal, não é?” Os óculos de Louis tinham escorregado pelo seu nariz suado,
e ele os empurrou de volta para o lugar. “Injetar resíduos no subsolo sem
licença?”
“Imagino que sim. Se não, pra que as pessoas iriam tirar licenças?”
“Rá! E se esses terremotos causam estragos, a empresa é responsável, certo?”
“Não sei. Em teoria, sim. Pelo menos, por danos ocorridos perto de Peabody.
Eles foram absurdamente negligentes. Mas seria uma coisa bem mais difícil de
provar, se fosse uma questão de um terremoto grande a certa distância e você
tivesse que especular se o que eles fizeram em Peabody acabou provocando
uma liberação de tensão mais generalizada.”
“Quer dizer que é possível? Isso pode acontecer? Coisas assim podem ser
provocadas? Boston é varrida do mapa e a empresa tem que pagar por isso?”
Louis estava ficando mais eufórico a cada segundo que passava.
“É muito pouco provável que Boston seja varrida do mapa”, disse Renée. “E
embora se fale muito em eventos desencadeadores, é muito difícil provar uma
relação de causalidade estrita. Você pode supor que o terremoto de 6 de abril em
Ipswich teria ‘desencadeado’ o tremor da Páscoa, mas se você não sabe o que
faz com que os terremotos ocorram no momento específico em que eles
ocorrem, e nós não sabemos, só o que você pode dizer com certeza é que ele
‘precedeu’, não que ele ‘desencadeou’ o tremor da Páscoa.”
“Mas se o primeiro tremor é provocado por injeção de resíduos e depois você
tem um grande terremoto...”
“Sim, você teria argumentos para abrir um processo, mas não argumentos
irrefutáveis.”
“Mas em relação ao que acontecesse perto do lugar onde eles estão injetando,
você teria argumentos fortes nesse caso?”
“Acho que sim. Para uma ação civil. Provavelmente instaurada por
companhias de seguros.”
“Então a única dúvida é: nós ferramos os caras agora por desrespeitarem a lei
esses anos todos, ou será que é melhor nós esperarmos pra ver se algo pior
acontece e aí nós ferramos os caras por isso também.”
“Você quer dizer esperar pra ver se mais gente morre?”
“É!”
“Bom”, Renée juntou suas pastas e as apertou contra o peito, “você parece ter
uma birra com essas pessoas, coisa que eu obviamente não tenho, embora, se a
minha teoria estiver certa, eu concordo que o que eles fizeram foi asqueroso.
Mas eu ainda não decidi o que vou fazer em relação a isso.” A primeira pessoa
do singular falava por si só. “Os terremotos de Peabody são de interesse geral
para a comunidade científica. Talvez eu pesquise mais um pouco e depois fale
com pessoas do mit e do Boston College. Também seria bom falar com a epa e
com a imprensa. Se a Sweeting-Aldren de fato vier a induzir um terremoto
destrutivo, eu não quero ter essa culpa pesando na minha consciência.”
“Por que isso iria pesar na sua consciência?”
“Porque eu poderia ter conseguido evitar.”
A surpresa de Louis era genuína. “Você realmente acredita nisso? Nesse
negócio de prestar um serviço à humanidade e essa coisa toda?”
Nos serenos andares superiores do rosto de Renée, uma poderosa fornalha se
acendeu de repente, uma sucessão de jatos brancos de raiva. “Eu não teria dito
se não acreditasse.”
“É, mas quem sabe dizer o que é prestar um serviço à humanidade? Se a gente
corta o barato da empresa antes que algo pior aconteça, talvez a gente salve
algumas vidas. Mas se a gente espera, algo pior acontece e só então a gente bota
a boca no trombone, aí sim isso vira uma mensagem. Aí talvez as pessoas
finalmente vejam os tubarões que estão comandando o país, o que poderia
realmente ser um serviço à humanidade.”
“Está bem, Louis.” O fato de ela ter dito o nome dele e assumido de repente
aquela sua expressão sorridente fez com que Louis sentisse um frio na espinha.
Aquela era uma pessoa cuja desaprovação ele temia. Ela estava entregando a
pilha de pastas nas mãos dele. “São todas suas. Eu acho que você deve mostrar
isso para um homem chamado Larry Axelrod, do mit, e também para a epa.
Você está ouvindo? Eu estou dizendo o que é a coisa certa a fazer e, se você não
quiser fazer, é problema seu, não meu. Está bem assim?”
“Espera aí, espera aí.” Ele riu, tentando contemporizar. “Nós somos amigos,
não somos?”
“Eu dormi com você, uma vez.”
“E se a gente começa a espalhar a notícia, o que é que a empresa vai fazer?
Vai negar tudo, vai sair destruindo todas as provas e provavelmente vai começar
a fazer alguma coisa pior ainda com aqueles resíduos todos. E aí você não vai ter
nada, nem mesmo a satisfação de estar certa.”
“A decisão é sua.”
“A gente investiga mais um pouco, conversa com o meu grande amigo Peter.
A gente vai até Peabody e dá uma olhada por lá. Tira umas fotos, talvez. Aí a
gente vai ter provas concretas pra mostrar pra quem você achar que a gente
deve mostrar.”
“Eu fiz esse trabalho sozinha, sabe. A minha ideia não era necessariamente
que você viesse aqui e inventasse de virar um sócio igualitário.”
“E eu disse o quanto você foi fantástica...?”
“Como um cachorro obediente? Eu sei ir buscar o pauzinho?”
“Ah, tá, tá bom.” Ele jogou as pastas no espaço entre a geladeira e a parede,
onde as sacolas de papel extras de Renée estavam cuidadosamente dobradas.
“Fica com elas. E fica com o seu cabelo transadinho também. E com os seus
brinquinhos, os seus sorrisinhos, o seu apartamento arrumadinho. E com as suas
pastinhas. E com as suas teorias, os seus escrúpulos, a sua antiga companheira de
apartamento e os seus velhos amigos. Sabe, com toda essa sua vidinha perfeitinha
e arrumadinha. Fica com ela.”
O barulho do circulador de ar na janela era o som da infelicidade em seu
movimento rotatório, sempre em progresso e ao mesmo tempo sempre igual, um
som que marcava cada segundo dos minutos e das horas em que uma melhora
não estava acontecendo. O tempo fluía ao longo de um eixo que passava pelo
centro do ventilador, e as pontas das hélices traçavam intermináveis espirais ao
redor desse eixo.
“Eu nem sequer te conheço”, disse Renée. “E você acabou de me magoar.
Você não tinha razão nenhuma pra me magoar. Eu não fiz absolutamente nada
para você, a não ser não te ligar.”
“E me mandar passear.”
“E te mandar passear. É verdade. Eu mandei você passear. Tudo o que você
disse é verdade, mas isso não quer dizer que você seja melhor do que eu. Você
só está menos exposto. E eu estou com muita vergonha.” Ela manteve os ombros
rígidos enquanto saía da cozinha, cambaleando de leve e repetindo: “Eu estou
com muita vergonha”.
Louis tomou outra cerveja e ficou ouvindo o ventilador. Depois de mais ou
menos meia hora, ele bateu na porta do quarto. Quando ela não respondeu, ele
abriu a porta e entrou junto com a fresta de luz no quarto escuro e abafado. Não
viu Renée em lugar nenhum. Só depois de procurar atrás da cama, da
escrivaninha e das persianas fechadas, foi que ele notou a luz atrás da porta do
closet, vinda de um fio conectado a um bocal de lâmpada. Ele bateu.
“Que é?”
Ela estava sentada de pernas cruzadas no chão do closet, debruçada sobre um
abajur. As páginas da New York Times Magazine que ela estava lendo estavam
salpicadas de grandes gotas engelhadas do suor que caía de sua cabeça. Ela
levantou os olhos para ele. “O que você quer?”
Agachando-se, ele pegou as mãos quentes e frouxas de Renée nas suas.
Passarinhos piavam furiosamente lá fora. “Eu não quero ir embora”, ele disse.
Sentiu seu estômago subir à boca e atribuiu isso ao esforço nauseante da
sinceridade. No entanto, o verdadeiro problema era o chão, que estava se
mexendo. A expressão de pânico que invadiu o rosto de Renée era tão caricatural
que Louis quase riu. Então, o lado esquerdo da moldura da porta se inclinou de
repente na direção dele, e Louis tentou sair da posição agachada em que estava,
como um surfista que acabou de pegar uma onda, mas aí o lado esquerdo da
moldura o abandonou e o lado direito lhe deu um encontrão, derrubando-o de
traseiro no chão. Renée estava lutando com as roupas e cabides no meio dos
quais tinha se enfiado quando ficou de pé. Pisou em Louis, que não era uma base
muito estável, e tropeçou para fora do closet. Coisas tinham caído nesse meio-
tempo, e agora lápis e canetas rolavam pelo chão, vagando, vibrando e saltando
como gotas de água em óleo quente. Havia também um som profundo, que era
menos um som do que uma ideia de som, um afogamento do humano no físico.
E, depois, só o estrondo em miniatura, límpido e estranhamente pessoal, de uma
garrafa de cerveja rolando pelo chão da cozinha.
“Desculpe ter pisado em você”, disse Renée.
“Você pisou em mim?”
Eles ficaram zanzando pelo apartamento em desordem, esquecidos um do
outro. O bebê do andar de baixo estava chorando, mas os dobermanns do
primeiro andar ou estavam muito quietos, ou tinham saído e estavam comendo
costelas em algum lugar. Louis pegou duas garrafas de cerveja do chão e,
esquecendo que tinha a intenção de botá-las em cima da mesa da cozinha, ficou
carregando-as de um cômodo para o outro, até por fim pousá-las no assento de
uma poltrona. Estava zonzo e sem dignidade, como que sob o efeito de um
primeiro beijo. Renée segurava um porta-lápis na mão quando ele topou com ela
no corredor. “É como se tivessem me feito tantas cócegas”, disse ela, se
esquivando do braço com que Louis tentava envolvê-la, “que se você tocar em
mim...” Ela o repeliu com o cotovelo...
O porta-lápis saiu voando pelo corredor, o vidro se espatifou e os lápis
desabaram no chão melodiosamente. Louis fazia cócegas na barriga convulsa de
Renée, enquanto ela esmurrava os braços e as costelas dele, sem machucá-lo
nem um pouco e gritando praticamente sem parar. Roupas foram parcialmente
removidas, partes do corpo expostas, pescoços dobrados, o chão duro xingado.
Eles se beijavam com a cabeça inteira, como cabras-montesas. O que estava
acontecendo não era tanto sexo, mas algo mais parecido com um estrondo
conjunto, como mãos do tamanho de corpos batendo palmas e se entrelaçando,
uma recriação de um terremoto, em busca de algo que não era bem satisfação.
Louis gozou violentamente e mal percebeu, tão concentrado estava no modo
como ela pinoteava debaixo dele. Parecia que ela estava tentando se livrar dele
ao mesmo tempo em que os dois continuavam colidindo, até que colidiram com
tanta força que acabaram de fato se separando e, ainda vibrando feito sinos,
ficaram encostados em paredes opostas, em obsceno desalinho, algemados nos
tornozelos por jeans embolados e roupas de baixo. Mais adiante no corredor,
havia cacos de vidro e um absorvente interno inchado, no fim de uma marca de
derrapagem sangrenta.
Renée franziu o cenho. “Eu cortei a mão.”
Louis encontrou seus óculos e foi engatinhando até ela para ver. Na palma da
mão dela havia um semicírculo de pele solta, uma escama de peixe azulada
cercada de riscos vermelhos e borrões laranja. “Está doendo?”
“Não.”
“Você está bem, fora isso?”
Ela olhou na direção dos próprios tornozelos. “Eu não consigo imaginar uma
posição mais degradante para estar, mas, fora isso, tudo bem.”
Um de cada vez, eles foram se lavar no banheiro, que estava em condições
antissépticas, salvo pelo fato de que, ao fazer um curativo na mão, Renée havia
inexplicavelmente deixado uma embalagem de band-aid em cima da pia. Louis
abriu o armário de remédios de Renée e encontrou cremes caros de limpeza
facial, as drogas básicas, gel espermicida, fio dental.
Ela estava abrindo cervejas na cozinha. O circulador de ar tinha caído da
janela, desconectando-se da tomada, e ainda estava no chão. Louis fez menção
de ligar o rádio. “Não faça isso”, ela disse.
“Onde você ouve música?”
“No rádio. Mas eu não quero ouvir nada sobre o terremoto. Nem mesmo...
nem mesmo nada.”
“Você não tem nenhuma fita?”
Ela se encostou na mesa e bebeu. “Eu... não tenho nenhuma fita.”
“O que é isso?” Ele levantou a mão, segurando uma fita.
Ela olhou para a fita com ar sério. “Isso é uma fita.”
“Mas não tem música?”
Ela tentou várias vezes dizer alguma coisa, mas desistiu todas as vezes. “Você
é meio intrometido, sabia?”
“Esquece que eu perguntei.”
“Tem uma música. Que eu nunca ouço. Não tem significação nenhuma nisso,
é só uma música. Você quer que eu passe vergonha?”
“Quero. Quero muito.”
Ela se sentou de pernas cruzadas numa cadeira e abraçou o próprio corpo,
cobrindo a nudez que as roupas não escondiam. “É só que, quando eu tinha
dezessete anos...”
“Eu tinha dez!”
“Obrigada por chamar a minha atenção pra isso.”
Louis se perguntava qual seria a terrível confissão que ela tinha a fazer.
“Eu era fã de música punk”, disse ela. “Ou será que eu deveria dizer new
wave? Essas palavras...” Ela se abraçou com mais força. “Eu mal consigo me
fazer dizer essas palavras. Mas eu era muito feliz na época. E ainda quero que as
pessoas saibam que eu vi o show do Elvis Costello quatro vezes em 78 e 79. Mas é
tão difícil explicar como ele era diferente e eu era diferente. Eu quero que as
pessoas fiquem impressionadas, mas não é nada de impressionante na verdade.
A saliva do David By rne respingou em mim, antes de ele ficar esfuziante. Eu
estava colada no palco. Eu ganhei uma palheta do Graham Parker, peguei da
mão dele.”
“Sério? Eu posso ver?”
“Era empolgante. Realmente era. Eu vi o Clash, os Buzzcocks, a Gang of Four.
Eu fico envergonhada só de dizer esses nomes agora, mas eu via os shows deles e
sabia a letra das músicas, e eles eram todos tão bons, antes de acabarem todos
ficando tão ruins depois.”
“Eles eram sensacionais”, disse Louis. “Eu era radioamador, sabe?, na época
da escola secundária. E eu costumava trocar letras de músicas do Nick Lowe
com uma pessoa de Eau Claire, Wisconsin, em código Morse. ‘She was a winner/
That became the doggie’s dinner’? Di-di-dit, di-di-di-dit…?”
Renée pareceu achar que ele estava brincando. “Eu gostava da atitude”, ela
disse. “Mas eu não era realmente punk. Os punks de verdade me davam medo.
Eles eram violentos e sexistas e mal ouviam as músicas.”
“Você teve uma daquelas jaquetas de motoqueiro?”
“De camurça”, ela disse, com tristeza. “Que na época me deixava muito feliz
e hoje é uma fonte de vergonha que não tem fim. Uma jaqueta de camurça é
uma síntese perfeita de mim. Tinha muita gente como eu nos shows, mas acho
que a diferença básica entre mim e as outras pessoas era que eu achava que
aquilo era tudo. Eu amava as músicas. E aplicava as letras à minha vida, mas de
uma forma... qual é a palavra... recôndita. O lugar onde tudo acontecia era o
meu quarto no dormitório, onde eu guardava as letras todas. Me dói pensar em
como eu era feliz e inocente, muito embora na época eu achasse que a
mensagem toda era humor negro, raiva e apocalipse. É possível ser muito feliz e
inocente acreditando nessas coisas também. E parecia tão mais seguro gostar
daquela música do que da música dos anos sessenta e setenta, porque ela não era
realmente alegre, nem inocente, nem esperançosa de forma nenhuma. Era
agressiva e simples. Eu guardava todos os discos e gostava deles cada vez mais. E
continuei me vestindo como as bandas se vestiam em 78. O mesmo jeito como
eu me visto agora, que é como nada, sabe, jeans e camiseta. Mas aí veio 1985, e
eu comecei a achar meio patético só ouvir esses discos velhos e mais nada. Mas
eu não gostava das músicas novas ou então, sei lá, as coisas boas não estavam
chegando ao meu conhecimento, porque eu já não estava mais na faculdade.”
Ela tirou as duas últimas garrafas de cerveja da geladeira. Louis vinha
observando que, toda vez que ele bebia de sua garrafa, ela bebia da dela
também.
“Nesse meio-tempo, eu passei a só ouvir uma ou duas músicas de cada vez.
Imagino que eu tenha feito isso, em parte, porque estava tentando não enjoar das
músicas que eu adorava e, em parte, porque elas me afetavam tanto, que era
dispersante demais ouvir um disco inteiro; eu não conseguia me concentrar no
trabalho, sabe, porque aquele tipo de música foi projetado pra te deixar pilhado,
inquieto e com raiva, então é uma música muito ruim pra se ouvir quando você
está tentando tocar a vida, porque ela simplesmente não funciona como música
de fundo. Mas o motivo principal mesmo era a vergonha que eu sentia por ainda
estar ouvindo aquilo.”
“Você gosta dos Kinks?”
“Nunca me amarrei muito.”
“Lou Reed? Roxy Music? Waitresses? xtc? Banshees? O Bowie do início?
Warren Zevon?”
“Alguns deles, sim, gosto. Eu nunca comprei muitos discos, na verdade, porque
parei de aceitar dinheiro dos meus pais. Mas...”
“Mas?”
“Eu comecei a reduzir a minha coleção. Me desfiz das coisas mais velhas,
coisas que eu tinha desde a época da escola secundária, e me desfiz dos discos
que só tinham uma ou duas músicas boas. Depois comecei a gravar os discos
medianos em fitas, selecionando as partes boas. Aí eu cheguei à conclusão de
que era estupidez ter um aparelho de som grande, quando eu conseguia o mesmo
efeito com o meu toca-fitas pequeno. Sabe, você é a primeira pessoa com quem
eu falo sobre essas coisas. Eu só queria dizer isso.”
Eles olharam um para o outro. A geladeira estremeceu e depois ficou
silenciosa. “Eu também gosto de você”, disse Louis.
Ela empurrou o cabelo para o lado, tentando com sucesso parecer não se
importar. “Mas, então, eu acabei ficando com umas vinte fitas, que eu ouvia
cada vez menos, só uma ou duas músicas de vez em quando, quando estava
precisando me sentir melhor. Elas costumavam fazer com que eu me sentisse
melhor, porque faziam com que me sentisse durona, enfezada e sozinha de um
jeito bom. Mas aí, sem que eu nem sequer me desse conta, elas começaram a
fazer com que eu me sentisse melhor porque faziam com que eu me sentisse
jovem, como ‘Alice’s Restaurant’ faz quarentões se sentirem jovens. Quando
finalmente me toquei disso, eu passei a ter menos vontade ainda de ouvir as fitas.
E, bom, será que eu precisava mesmo ouvir ‘Red Shoes’ de novo?”
“Quanto a essa daí, eu não tenho o que discutir.”
“Ou qualquer das músicas de Give ’Em Enough Rope? Ou mesmo qualquer
música dos Pretenders?”
“Bons discos. Fique com eles.”
“Eu me desfiz de todos eles. Reduzi a minha coleção a uma única música,
mais ou menos arbitrária, que eu não escuto faz pelo menos uns seis meses, se
não for mais para um ano. Eu não escuto nunca. Mas também não consigo jogar
fora.”
“Eu posso botar pra tocar?”
Ela fez que sim. “Pode. Mas seja piedoso comigo. Eu sei que você é do ramo
do rádio.”
De dentro do pequeno toca-fitas, veio a linha de guitarra inicial do primeiro
disco do Television.
“Ah.” Louis disse, aumentando o volume. “Bela música. Você dança?”
“Está brincando?”
“Nem eu.”
“Eu dançava quando tinha vinte anos.”

Iunderstandall... iseeno...
destructiveurges... iseeno...
Itseemssoperfect... iseeno...
i see... i see no… i see no evil*

“Você pode desligar?”


“Espera, você não acha que o Verlaine faz um riff perfeito aqui? Teria sido
bom ver esses caras no palco antes deles se separarem. Ou você viu?”
“Não.”
“Dizem que eles eram muito bons.”
“Tudo virou uma competição. Eu parei de tentar ir a shows porque parecia que
eu só estava tentando acumular credenciais como frequentadora de shows. Coisa
que, de qualquer forma, não estava funcionando muito bem. Eu encontrava gente
que ia a shows todo fim de semana. Gente que tinha visto o Clash antes de mim.
Gente que conhecia os irmãos da Tina Wey mouth. Gente que vivia no cbgb e
podia investir muito mais tempo que eu no projeto de ser descolado. Talvez fosse
só pra me proteger, mas eu comecei a sentir desprezo por aquelas pessoas e pela
maneira como elas ficavam constantemente se engalfinhando pra descobrir
coisas novas. Comecei a achar aquilo simplesmente patético. Mas eu ainda tinha
medo daquelas pessoas. Tinha medo de que elas descobrissem o quanto eu
amava a música com a qual eu havia crescido. Então, me pareceu que a única
forma de competir com aquela originalidade toda delas, a única forma de
manter o meu amor seguro, era passar a odiar música. O que também não era
uma solução particularmente original, mas pelo menos eu estava protegida. E
realmente é muito fácil odiar o rock and roll.”
“Já odiar jazz e música clássica não é tão fácil.”
“Pra mim é. É só pensar na personalidade das pessoas que ouvem jazz ou
música clássica enquanto tomam brunch ou, pior ainda, nas pessoas que
realmente amam esse tipo de música. Em como elas se sentem bem consigo
mesmas por saberem quem tocou bateria para o Charlie Parker em mil
novecentos e sei lá quanto, ou como são as árias d’A flauta mágica. Eu acho um
estresse tremendo ser responsável pelos meus gostos e ser conhecida e definida
por eles. Se você não é uma pessoa artística, e eu não sou nem um pouco, e
mesmo assim você tem que tomar essas decisões estéticas... É por isso que o
punk era tão bom pra mim. Foi um estilo que eu adotei antes de ficar cheia de
neuras com relação a estilos. Eu não precisava me justificar, pra mim mesma.
Mas aí eu fiquei mais velha e, de repente, isso começou a me definir de qualquer
jeito e de uma forma muito patética. Além disso, de repente todas as pessoas
com menos de quarenta anos tinham uma jaqueta de couro e óculos escuros
estilo anos cinquenta e roupas meio punks, e todas elas se sentiam
superdescoladas. Nessa altura o jazz poderia ter sido uma boa alternativa, só que
o problema é que jazz é arte, e assim que uma coisa vira arte, começam a existir
os experts, e eu lá quero ser um desses experts que vivem tentando ser mais
entendidos do que os outros? Mas se você não vira um expert, você corre o risco
de ouvir alguma coisa e gostar e depois descobrir que aquilo de que você gostou é
considerado sentimental ou pouco original ou sei lá o quê. E eu sei por
experiência que as pessoas são tão inseguras que nunca hesitam em deixar que
você saiba que aquilo de que elas gostam é muito melhor e mais original do que
aquilo de que você gosta, ou que elas gostavam do que você gosta anos antes de
você gostar... Eu nem sequer tenho tempo pra isso. E é a mesma coisa com a
música africana ou com a música latina. Eu tenho pavor de me deixar envolver
por essa multidão de experts pedantes. Disso ou de descobrir que os meus gostos
não são bons ou não são originais. O rádio seria a solução perfeita, não fosse pelo
fato de que a maior parte das músicas que tocam no rádio ser ruim.”

I’m running wild with the one I love


I see no evil
I’m running wild with the one-ey ed ones
I see no evil
Pull down the future with the one y ou love **

Louis desligou o toca-fitas. “Vamos pegar umas coisas lá no meu


apartamento.”
“Você está em condição de dirigir?”
“A pergunta de uma verdadeira punk.”
Na escada, Renée disse: “O momento pra ser punk foi quinze anos atrás.
Querer ser punk agora é absolutamente constrangedor”.
“Anarquia é uma ideia muito velha”, disse Louis, respirando pela boca na zona
canina.
Do lado de fora, na Pleasant Avenue, não era mais feriado, mas sim uma noite
morta de quinta-feira. A noite estava fria, com um antegosto de orvalho no ar.
Louis dirigia com toda a velocidade a que se atrevia e, em sua embriaguez, só
registrava um de cada três ou quatro segundos que passavam. Sirenes distantes e
fantasmagóricas na noite formavam um colchão de ruído sobre o qual os pneus
pareciam deslizar e quicar como esquis aquáticos. Logo a leste da Davis Square,
o Civic adentrou um túnel de escuridão provocado por uma queda de energia, nas
profundezas do qual era possível ver luzes de alerta azuis girando. Dois vultos
iluminados apenas por nuvens urbanas esbraseadas se esforçavam para
empurrar o que pareciam ser caixas de bebidas ao longo de uma rua transversal.
“Saqueadores! Eram saqueadores? Eles eram saqueadores!”
As luzes estavam acesas no apartamento de Louis. Os móveis maiores não
tinham saído do lugar, mas o vaso feito com cinza do monte Santa Helena havia
caído de cima da estante e se partido em dois, e algumas das cadeiras da sala de
jantar haviam se afastado da mesa. Atrás da porta fechada do quarto de Toby,
uma impressora matricial arquejava e estridulava. Renée desabou em U no futon
de Louis. Ele teve de pousar no chão as cervejas, o gim e as fitas que havia
pegado para arrancá-la de lá.
Quando eles voltaram para o apartamento dela, Renée abriu garrafas de
cerveja vigorosamente. “Qual é o seu tipo favorito de música?”, ela perguntou.
“Eu não acredito em favoritos. Não tenho nenhum. Essa aqui é a minha
música favorita, espera só um instante.” Ele aumentou o volume do toca-fitas.

I love the sound of breaking glass.


Especially when I’m lonely .
I need the noises of destruction.
When there’s nothing new.***

“Isso é bom. Quem é?”


“Isso? Meu Deus. O grande Nick Lowe? É um clássico.”
“É muito velho?”
“Idade do bronze. Tá.” Louis interrompeu a música. “Vamos ouvir uma coisa
que é quase tão velha quanto eu. Todo mundo gosta desse disco. É um clássico.
Nunca envelhece. Não é isso que um clássico é?”
“Eu não consigo pensar em nada mais patético do que estações de rádio que
tocam ‘rock clássico’.”
“Isso é patético?”
Era Exile on Main Street.
“Não”, disse Renée. “Mas eu acho que você não me entendeu.”
“Eu podia ficar uma semana aqui botando coisas pra você ouvir que são
velhas, mas não são patéticas.”
“Sem dúvida. Porque você é uma daquelas pessoas. Quer dizer, você é do
rádio. É a sua área.”
“Então não reclame. Daqui pra frente, eu me responsabilizo pela música que
você vai ouvir. Eu me sinto um velho babaca quando ouço isso? Isso não é James
Tay lor. Isso é tosco, é básico, é bom.”
“Bom pra você, talvez. Pra mim é só retrô. O que está sendo muito gostoso de
ouvir agora, mas não vai durar. Nenhuma dessas sensações dura.”
Ela continuou a acompanhá-lo cerveja a cerveja. Passava um pouco das três
quando tocou “Soul Survivor” e a fita enfim terminou. Eles tomaram gim,
passando a garrafa um para o outro nos últimos goles, até que Louis matou o
resto. Um guaxinim apareceu na janela, encostou seu nariz borrachudo na tela e
enfiou uma pata por um buraco na tela. “O meu guaxinim!”, Renée exclamou,
andando trôpega em direção à janela. “É o meu guaxinim, o guaxinim que vem
me visitar. Ele vem aqui... às vezes. Ah!” Ela exclamou tragicamente. “Ele está
machucado! Olha, ele está machucado. Eu estou dizendo olha. Ele está
machucado. Está vendo? Ele cortou o rosto. Ele sobe por um cano de escoamento
e vem pra janela. Ele gosta de batata, mas eu estou sem nenhuma. E ele é fofo,
mas, minha nossa... a minha cabeça está rodando.”
Fazia cinco minutos, Louis estava sentado de boca aberta e cenho franzido
diante da mesa.
“Tá, não é meu guaxinim, mas ele vem aqui... com frequência. Deve morar
aqui por perto. Eu tenho uma maçã”, ela disse ao bicho, que tinha se agarrado à
parte de cima da tela e estava botando cuidadosamente uma pata traseira no furo
que havia na rede, enquanto seu focinho se mexia e farejava, intimidado pela
perpendicularidade da parede acima da janela. “Já estou chegando com a
maçã”, disse Renée, se precipitando com dois quartos de uma maçã deliciosa em
cima de um pires e levantando um pouco a tela. “Ele foi embora!”, disse. “Ele
foi embora. Ele foi...”
Seu rosto estava cinza. Ela se inclinou sobre a pia, expeliu dentro dela o
conteúdo de seu estômago e depois desabou de joelhos no chão, as mãos ainda
agarradas à beira da pia. Louis estava ocupado de maneira semelhante no
banheiro. Algum tempo depois disso, Renée estava deitada na mesa da cozinha e
Louis estava correndo atrás de um rolo de papel-toalha que ia se desenrolando
até um canto do quarto, onde ele havia vomitado de novo. Algum tempo depois
disso, ele estava dormindo no chão do hall, usando o capacho como travesseiro, e
ela estava debaixo da escrivaninha, com o rosto virado para a parede e as pernas
esticadas para fora. As listras refletoras de seus tênis brilhavam sob a luz das
lâmpadas que estavam acesas no banheiro e na cozinha. A privada estava
imóvel. A pia estava imóvel. As paredes estavam imóveis. A geladeira parou de
fazer barulho e o escopo do som ambiente cresceu muitíssimo, abarcando vias
expressas de onde algumas ondas de baixa frequência conseguiram por pouco
chegar à Pleasant Avenue antes de se extinguirem, vagões-tanque passando
ruidosamente por um trecho de ferrovia em algum subúrbio do norte e o
minúsculo vestígio sonoro do ronco de um carro envenenado na ponta leste de
Somerville, na McGrath Highway, rumando para fora de Boston. O fogão
estalou, uma vez. As luzes ficaram quarenta lúmens mais fracas, uma vez. A
parede do leste encarava a parede do oeste e a parede do norte encarava a do
sul, sem piscar. Uma pasta de arquivo tinha escorregado no meio das sacolas de
papel e as outras estavam boquiabertas; não havia nem uma mísera brisa para
balançar as folhas de papel fotocopiadas nem mover a hélice do circulador de ar
onde ele jazia, perto da janela. A mesa estava sobre o chão. Uma taça de vinho
tinha se estilhaçado em cima da bancada. Todos os cacos de vidro ainda
continuavam exatamente nos mesmos lugares onde tinham pousado, como se a
taça ainda estivesse inteira e pudesse voltar a ser vista inteira se a quebra no
tempo fosse consertada. Livros estavam espalhados pelo chão do quarto extra.
Duas garrafas de cerveja se aninhavam na poltrona. A poltrona imóvel. As
imóveis prateleiras de livros sustentavam sua carga em silêncio. As paredes
sustentavam o peso do teto. O teto imóvel. Onze garrafas de cerveja no peitoril
da janela da cozinha, verdes sob a luz incandescente. Onze garrafas se agitando,
tilintando. Elas tombaram do peitoril da janela numa onda verde e cintilante,
algumas caindo em cima do circulador, outras se quebrando. Baques dentro dos
armários da cozinha, a mesa chacoalhando, uma porta se mexendo sozinha. Uma
torre de fitas cassete desabou. Migalhas dançaram atrás do fogão. A água da
privada se agitou. Vidraças zumbiram.
O corpo no hall imóvel. O corpo debaixo da escrivaninha imóvel. Tudo imóvel.

Por quinze dias, depois da noite dos dois terremotos, as pastas de arquivo com
os textos sobre a Sweeting-Aldren e os microssismos de Peabody permaneceram
intocadas no espaço ao lado da geladeira. Algo parecido com superstição
impediu a habitualmente ordeira Renée de guardá-las quando ela limpou o
apartamento — superstição e talvez também um certo asco, como o que Louis
sentiu quando seus olhos por acaso pousaram nelas, ou como o que ele sentiu em
relação a seu equipamento de rádio nas semanas antes de vendê-lo, ou como o
que os dois sentiram durante vários dias só de pensar em álcool depois de terem
se embebedado tanto.
Renée deu muita importância ao “fato” de que, embora Louis tenha se
recuperado rapidamente e passado a manhã seguinte arrumando o apartamento,
ele havia vomitado antes dela. Louis tinha suas dúvidas em relação a essa
cronologia e ficou surpreso com a veemência com que, ainda pálida e incapaz de
ficar em pé por muito tempo, ela defendeu sua versão. Pareceu-lhe que ela
estava sendo meio mesquinha a respeito disso.
No sábado, acordado pelo cheiro de muffins ingleses torrados, ele encontrou
uma chave do apartamento em cima da mesa da cozinha. Girou-a e girou-a no
aro do chaveiro. Foi de carro até seu apartamento e pegou alguns suprimentos e
utensílios. À tarde, foi a pé até o apartamento de sua amiga Bery l Slidowsky, em
East Cambridge, e passou um tempo lá com ela. Quando a conversa enveredou
para os terremotos de quinta-feira, que Louis soubera pelo Globe que haviam
ocorrido nas cercanias de Peabody, ele não só conseguiu não dizer nada a
respeito da teoria de Renée, como declarou, absurdamente, não ter sentido nada.
Bery l estava trabalhando como voluntária na wgbh agora. Não tinha nenhuma
ajuda a oferecer a Louis em termos de emprego, mas ficou condizentemente
indignada com o fato de Stites ter comprado a wsne. Culpou Libby Quinn por
isso. Libby — ou alguém — havia realmente lhe dado uma úlcera; ela lhe
mostrou seu frasco de Tagamet.
Louis estava ouvindo um disco dos Sugarcubes em volume alto quando Renée
chegou do trabalho, trazendo uma sacola de compras de mercado. “Isso é o
jantar?”, ele perguntou.
Ela atirou um pacote do DeMoula’s com cheiro de peixe na direção dele.
“Peixe! Eu como peixe?” Ele ficou observando Renée guardar as compras
num armário da cozinha. “Eu comi coquilles Saint-Jacques com purê de batata
quando os meus pais estavam aqui. Pedi isso pra deixar a minha mãe
impressionada com o meu francês. Eles serviram purê de batata instantâneo,
uma coisa meio acampamento de verão, sabe? Mas é um restaurante muito
famoso.”
Ela resolveu sair do silêncio. “Você quer que eu fale sobre restaurantes de
peixes famosos de Boston? Eu posso fazer isso se você quiser. Tenho muita coisa
pra dizer.”
“Que tipo de peixe é esse?”
“É bacalhau fresco.”
“Foi você mesma que comprou isso?” Louis passou o dedo pelos filés ásperos.
“Ninguém te obrigou a comprar? Foi você que decidiu: hoje eu vou comer
bacalhau?”
“Sim, fui eu que decidi.”
“Você estava a fim de comer bacalhau. Você viu o bacalhau no mercado e
sentiu vontade de comprar.”
Ela fungou.
“Você por acaso também comprou fígado pra gente comer amanhã?”
“Na verdade, eu estava pensando que você podia fazer as compras amanhã.”
“Merda”, ele se desculpou. “Claro. Eu faço as compras amanhã. Já podia ter
feito hoje, mas não tinha como falar com você.”
“O que eu disse foi: você faz as compras amanhã. Eu reclamei?”
“Não, você não reclamou.”
Ela se agachou para guardar os legumes e as verduras nas gavetas de plástico
amareladas da geladeira Fiat. “Eu não sei se é boa ideia você se mudar pra cá
assim. Pelo menos, não antes de nós discutirmos algumas coisas.”
“A questão da idade. O nosso relacionamento de... uh.... três semanas, do
Memorial Day ao Dia da Bandeira.”
Ela riu.
“Você me acha um babacão”, ele disse. “Eu não sou o seu tipo.”
“Não, na verdade, eu acho você muito atraente e gosto da sua companhia. Não
é disso que eu estou falando de forma nenhuma.” Ela franziu o cenho. “É assim
que você se vê? Por que você se vê desse jeito?”
Louis não respondeu; tinha recuado em direção ao hall, dando socos no ar.
Nunca na vida alguém tão confiável quanto a dra. Seitchek havia lhe dito que ele
era muito atraente. Ele voltou para a cozinha andando de peito inflado.
“Então, o que é que a gente precisa discutir?”
“Nada. Tudo. Eu tenho a sensação de que as coisas estão... fora de controle.”
Ela olhou nos olhos dele como se quisesse que ele a ajudasse a falar. Depois,
ficou assustada, como se tivesse acabado de se dar conta de que não havia
ninguém ali a não ser ele e ela. Descarregou sua impotência no toca-fitas,
desligando-o, tirando-o da tomada e removendo a fita.
“Se você quer que eu vá embora, é só falar”, disse Louis.
“Eu não quero que você vá embora. É isso que eu estou dizendo.”
Ele assumiu a expressão abstraída de um francês que está ouvindo uma
americana não conseguir se expressar em francês.
“Eu só quero esclarecer as coisas”, ela disse.
“Você não quer que eu vá embora; eu não quero ir embora; o que poderia ser
mais claro?”
“Tem razão.” Um daqueles seus sorrisões. Ela começou a descascar uma
cebola. “Está tudo muito claro.”
Louis olhou com tristeza para o toca-fitas emudecido. “O que você vai fazer
com esse bacalhau?”
“Eu vou fazer um refogado com azeite, alho, cebola, vinho, açafrão, tomate e
azeitona, depois botar o peixe e deixar cozinhar em fogo brando um tempinho.”
“Tem alguma coisa que eu possa fazer?”
“Você sabe fazer arroz?”
“Não.”
“Talvez você possa fazer uma salada.”
“Ou você pode me ensinar a fazer arroz.”
“Por que você não faz a salada?”
“Você quer dizer para eu não foder com o arroz?”
“Exatamente.” Com golpes cortantes, ela começou a fatiar azeitonas pretas.
Louis tinha certeza de que ela ia se cortar e, quando ela largou a faca de repente,
ele achou que fosse isso que havia acontecido, mas ela só estava zangada.
“Você acha que eu quero que você fique me vendo fazer o jantar? Mulher
mais velha banca a mãe de homem mais jovem? Homem mais jovem
adoravelmente inepto? Prepara pra ele a primeira boa refeição que ele come em
meses? Ensina a ele como se faz arroz? Se você quer aprender a fazer arroz, leia
as instruções no pacote, como eu fiz dez anos atrás.”
Ela atacou as azeitonas de novo. Louis ficou observando músculos e tendões
irem e virem sob a pele de seus braços finos e pálidos.
“Então onde é que está esse pacote?”
“Onde a maioria das pessoas guarda comida?”
Ele suspirou. No terceiro dos três armários de cozinha de Renée, Louis
encontrou um pacote de arroz do Star Market. “Não tem instrução nenhuma
aqui.”
“Ferva uma xícara e meia de água e meia colher de chá de sal, misture uma
xícara de arroz, tampe a panela, deixe cozinhar em fogo baixo por dezessete
minutos e veja se ficou pronto.”
Ela ficou vendo Louis passar quase um minuto tentando medir exatamente
meia xícara de água, enchendo demais, esvaziando demais, enchendo demais,
esvaziando demais. “Ah, pelo amor de Deus.”
“Eu estou tentando seguir as suas instruções.”
“Você não está fazendo uma bomba, você está fazendo arroz.”
“Eu estou tentando fazer direito.”
“Você está tentando me irritar. Está tentando ser engraçadinho.”
“Não estou não!”
Mais tarde, eles foram para a cama dela e viram os Red Sox jogarem contra
os Rangers no canal 38, enquanto folheavam o Globe. Durante um bom tempo,
Louis ficou estudando um anúncio de página inteira que mostrava um homem de
negócios usando equipamentos ibm em seu escritório em casa. “Os livros nas
estantes que servem de pano de fundo nesses anúncios... Como esse aqui. Isso é
Mein Kampf?” Ele entortou a cabeça. “Isso é Mein Kampf! O cara tem um
exemplar de Mein Kampf na estante dele! E um computador de dez mil dólares.
E essas revistas, aposto que é tudo revista de mulher pelada.”
“Deixa eu ver.” Renée esquadrinhou a fotografia. “É Main Street.”
“É Mein Kampf!”
“Isso é um S. É o livro do Sinclair Lewis, Main Street.”
“Aposto que ele guarda o Hitler dele dentro do armário.”
“Eu vi que você estava lendo uma matéria sobre a Sweeting-Aldren.”
“Daí a minha hostilidade? É. Era uma análise especulativa. Eles comparam a
empresa a uma formiga.” Louis voltou para a matéria. “‘Wall Street continua a
observar enquanto a formiga ferida rasteja em círculos lentamente, tentando
fazer com que suas pernas voltem a funcionar. Ela obviamente está machucada,
mas é possível que absorva os danos e comece a se mexer de novo. Longos
minutos se passam; ela pode estar morta; ou pode estar prestes a retomar sua
missão. Ninguém sabe que tipo de dor ela pode estar sentindo. Se muito tempo se
passar e a Sweeting-Aldren continuar sem se mexer, ela será dada como morta.
Mas Wall Street já viu muitas formigas feridas ao longo dos anos e sabe que
ainda não é hora de perder as esperanças.’ Blá-blá-blá. Blá-blá-blá... O analista
David Blá de Blá-Blá Emerson atribui boa parte da queda de dezessete por cento
no preço das ações desde março de blá ao reconhecimento de que as ações
estavam supervalorizadas. Os ganhos com ações blá blá. No entanto, os
investidores não se sentiram encorajados pelas declarações feitas pelo dr.
Axelrod na sexta-feira, segundo o qual, à luz da significativa atividade sísmica
que continua a ser registrada nas cercanias de Peabody, ‘nós simplesmente não
sabemos o que esperar no que diz respeito a terremotos futuros’. Quem é esse dr.
Axelrod?”
“Sismólogo do mit. Ele é bom. Ele é... bacana.”
“Preocupações se concentram na interrupção de linhas de produção. Empresa
operando perto da capacidade máxima, blá blá... Se toda a produção fosse
interrompida durante mais de três semanas, os prejuízos ficariam perto de um
milhão de dólares por dia. Preocupações também em relação a ações judiciais
em virtude da emissão de efluente esverdeado contendo bifenilos e outros
hidrocarbonetos halogenados... suspeita de que resíduos perigosos estão sendo
armazenados e não incinerados como empresa afirma. (Rá.) Temor também de
vazamento caso venha a ocorrer um grande terremoto... incluindo cloro,
benzeno, triclorofenol e outras substâncias altamente voláteis e venenosas ou
carcinogênicas. Segurada contra danos patrimoniais, empresa está ‘examinando
os detalhes’ de sua cobertura de danos a terceiros, o que sem dúvida significa que
a cobertura é insuficiente. No entanto, considerando o histórico de receita forte e
a carga moderada das dívidas de longo prazo da empresa, bem como o
relativamente baixo risco de ocorrer um terremoto de grandes proporções, três
em cada quatro analistas consultados na sexta-feira consideraram as ações da
Sweeting-Aldren uma boa compra ao preço de fechamento de quinta.”
Renée tirou os óculos de Louis e se juntou a ele na seção de negócios.
Enquanto eles se beijavam, ele começou a passar o dedo na costura grossa entre
as pernas da calça jeans de Renée, abaixo do zíper.
Duas rápidas eliminações no sétimo inning.
“Eu não sei de onde você veio. Você simplesmente apareceu.”
“Eu te achei interessante. Eu fui atrás de você.”
“Foi isso que aconteceu?” Ela levantou a cabeça do peito dele, um rosto de
deus aparecendo numa nuvem acima do horizonte da caixa torácica de Louis. “O
que a gente fez no hall, depois do terremoto. Aquilo foi exatamente como tem
que ser.”
“Que sorte eu ter vindo aqui, não?”
“Eu adoro sexo. É quase a única coisa que eu não tenho vergonha de gostar.”
Bom esforço de Greenwell para não deixar que ele passasse de uma rebatida
simples.
“Você me faz querer ser mulher”, disse Louis.
Depois do fim de semana, o calor cedeu lugar a um clima canadense. O ar
tinha um cheiro limpo e doce, cheio de oxigênio, e as árvores da Pleasant
Avenue vergavam sob a repentina exuberância de suas folhagens. A biblioteca
pública, na última colina de Somerville, era como o passadiço de um veleiro, o
vazio do céu oceânico começando logo além do estacionamento; um ar salpicado
com o barulho de martelos e empilhadeiras soprava no rosto de Louis enquanto
ele e sua namorada olhavam por sobre telhados chatos e armazéns de tijolos para
a extensão azul-celeste da ponte Tobin e, além dela, para a névoa cor de
anoitecer que cobria Ly nn e Peabody e para a proa do cabo Ann.
A música ao som da qual ele gostava de comer sanduíches e a tv debaixo da
qual ele gostava de enterrar as noites começaram a parecer estridentes e
irrelevantes. Havia um silêncio na Pleasant Avenue que pertencia a Renée, e ele
queria estar nesse silêncio. Uma manhã, Louis pegou emprestada a carteira de
Harvard dela e, por duas horas, assumiu a identidade de René Seitchek, francês
visitante. Voltou da biblioteca Widener com uma mochila cheia de Balzacs e
Gides. Tinha a sensação de ter sido arremessado sismicamente de uma carreira
no rádio, uma carreira que poderia muito bem ter lhe proporcionado satisfação e
um senso de propósito e segurança, para um estado em que ele não só não sabia
o que fazer da vida, como duvidava que isso importasse muito. Sublevações e
subsidências semelhantes estavam acontecendo no terreno de sua memória, com
marcos geográficos familiares sumindo de vista, substituídos por cenas
recordadas de uma natureza tão radicalmente diferente que ele quase ficava
espantado ao se dar conta de que aquelas coisas também haviam tido lugar em
sua vida. Um gentil e sarcástico ex-aluno da Rice fazendo um discurso de
formatura que Louis, como todos os outros formandos, tivera de ouvir até o final
e lembrando os formandos de uma coisa chamada justiça social. O semestre
inteiro que ele havia passado em Nantes, o cuscuz que ele tinha comido lá com
um grupo de estudantes argelinos, os estudantes lhe dizendo: as coisas estão muito
ruins no país onde nós nascemos e, como cidadãos franceses, nós nos sentimos
divididos. Seu aniversário de catorze anos, a faca de caçador, com bainha e tudo,
que Eileen havia comprado e lhe dado de presente. E também Marcel Proust,
para quem ele havia mantido uma porta mental aberta por tempo suficiente para
ficar felicíssimo ao descobrir que Swann estava casado com Odette e que o
pobre pintor do salão dos Verdurin se transformara no grande artista Elstir; a
porta tinha se fechado sob a pressão de ter de produzir quatro trabalhos de cinco
páginas, em francês, mas não antes que uma lasca de felicidade tivesse se
esgueirado, uma lasca que, estava claro agora, ainda continuava dentro dele,
como um djim reservado e assustador.
Todo fim de tarde, quando ouvia os passos da verdadeira Seitchek na escada,
Louis sentia uma expectativa e uma curiosidade crescentes que não eram,
contudo, de modo algum satisfeitas pela pessoa que, depois de fazer alguns ruídos
na cozinha, entrava no quarto em que ele estivera lendo. Ele a via com uma
clareza onírica que era a mesma coisa que uma incapacidade onírica de vê-la de
verdade. Em vez de um rosto, ele via uma máscara, um signo captado
diretamente: a imagem da mulher com quem ele dormia. Ela tinha basicamente
a mesma aparência estivesse ele de olhos fechados ou abertos. Estranhamente,
ou não, a presença dele no apartamento dela parecia perturbá-la cada vez
menos. Ela ouvia as fitas dele enquanto fazia o jantar e o hipnotizava com os
movimentos precisos e metódicos com que cozinhava; mais tarde, enquanto ele
lavava a louça, ela assistia à televisão dele, lia o jornal e não parecia notar
nenhuma mudança nele, nem mesmo no modo como ele secava toda a louça,
guardava-a no armário, varria o chão e depois, durante uns quinze ou vinte
minutos, ficava na cozinha sem fazer absolutamente nada a não ser adiar o
momento em que se juntaria a ela na cama. Em termos nucleares, era como se
a configuração de forças tivesse mudado e ele não fosse mais uma partícula de
carga oposta atraída por ela de uma grande distância, mas sim uma partícula de
mesma carga, um próton repelido por outro próton até que eles ficassem bem
perto um do outro e a intensa força nuclear se fizesse valer e os unisse.
“Você pode me machucar um pouco.”
“O quê?”
“Você pode me dar uns tapas, ou me morder. Um pouco. Pode me beliscar.
São coisas que você pode fazer, se quiser.”
Ela estava deitada em cima dele, o campo que emanava da fixidez de seus
olhos arregalados exercendo pressão de cima para baixo. “Você faria isso?”
Ele virou a cabeça para o lado. “Não!”
“Por que não?”
“Porque eu não acho que um homem deva bater numa mulher.”
“Nem mesmo na cama, se a mulher pedir?”
“Melhor não.”
“Tá bem.”
A voz dela saiu tão fraca que só deu para ouvir o “bem”. Ela rolou para o lado
e ficou olhando para a parede; o ombro dela enxotou a mão dele para longe
quando Louis tocou nele. Houve silêncios. Objeções e ressalvas, silêncios. Levou
horas para fazer o relógio retroceder trinta segundos. Muito tempo depois de o
último carro passar pela Pleasant Avenue, numa altura da noite em que ações e
sensações tinham a irrelevância moral de sonhos, ele finalmente fez o que ela
queria.
Na noite seguinte, pela primeira vez, ela voltou para o trabalho depois do
jantar. Ele teve permissão para ir junto. Na sala de computação, consoles com
chassis em forma de bolha, feito bustos de astronautas, estavam dispostos em fila
dupla num banco com tampo de fórmica abarrotado de manuais de
equipamentos e papéis usados. Uma janela de vidro laminado dava vista para
uma sala bem iluminada, cheia de peças de hardware do tamanho de máquinas
de lavar e de um latejante ruído branco de vigilância estilo norad que funcionava
a noite toda. Mapas oceânicos como o que havia no apartamento de Renée
estavam presos às paredes, alguns com os cantos superiores pendentes, marcados
com quadrados de alguma substância adesiva. O telefone, que estava em cima
de um radiador de calefação, tinha sido desconectado da tomada, e a atmosfera
de transitoriedade ou abandono da sala era acentuada pela falta de coisas onde
fosse possível se sentar. Renée disse que não estava presente quando uma leva de
cadeiras novas chegou e que alunos e professores assistentes do resto do prédio
tinham passado por lá, pegado as que queriam e jogado as cadeiras velhas fora,
porque ela não estava presente.
“Eu fiz a maior parte do meu trabalho nessa sala. O computador é um Data
General. Nós temos vários Suns agora também. Eles falam unix.”
Louis estava perto de um mapa do Atlântico Sul. “Tantos pontos, tantas linhas.”
“Os pontos são terremotos.”
“Tem milhões.”
“É, são milhares todos os meses. A maioria no mar.”
Ele encontrou um mapa que mostrava a maior parte da América do Norte,
uma enorme massa bege entre mares apinhados de pontos coloridos de vida
geológica. Havia pontos vermelhos espalhados esparsamente ao longo do litoral
leste, também esparsamente pelo norte do planalto Ozark e mais densamente nas
montanhas do oeste. Havia uma alarmante massa vermelha deles na Califórnia.
“A crosta terrestre”, disse Renée, “está fragmentada em cerca de uma dúzia
de placas gigantescas que, por razões já razoavelmente bem compreendidas
relacionadas à convecção de rochas derretidas abaixo da crosta, está em
constante movimento. Elas se chocam umas contra as outras, roçam umas nas
outras e se afastam umas das outras. Em alguns casos, uma se enfia debaixo da
outra. Algumas delas chegam a se deslocar uns cinco centímetros por ano, o que
com o passar das eras faz uma grande diferença. Por volta de noventa e cinco
por cento de todos os terremotos acontecem perto de fronteiras de placas. Você
pode ver nos mapas.”
“Mas no Arkansas e, que estado é esse, Wy oming? E na Nova Inglaterra...?”
“E em Nova York e no Quebec e em todo o litoral leste e lá no meio do
oceano, bem longe de qualquer fronteira de placa? Nessa área aqui, isso está
relacionado em parte ao fato de que o Atlântico está se alargando, o que põe uma
pressão nas placas dos dois lados da estria central. A rocha da Nova Inglaterra é
muito antiga e tem uma história acidentada. Há falhas se abrindo em tudo quanto
é profundidade e em diferentes direções. Mas se você analisa os terremotos que
aconteceram aqui...”
Ela escarafunchou os papéis que estavam pousados entre dois consoles e
encontrou um mapa como aquele que Howard havia mostrado a Louis, com o
acréscimo de mais epicentros e quatro balões:

“Bolas de praia”, disse ela. “Elas representam o que é chamado de


mecanismo focal do terremoto, que basicamente reflete a orientação das falhas
e a direção do movimento ao longo delas quando elas se rompem. Você desenha
uma esfera imaginária ao redor do hipocentro. Ela é preta nas áreas em que a
Terra foi comprimida em direção a um observador que se encontra na esfera. E
branca onde a Terra foi afastada de um observador. E como você pode ver aqui,
todos os quatro eventos grandes o bastante para serem analisados tiveram mais
ou menos o mesmo mecanismo.”
“Você quer dizer que eles são todos pretos no meio?”
“Exatamente. E são razoavelmente condizentes com uma tensão compressiva
numa falha que se estende de sudoeste para nordeste, o que também aconteceu
na maioria dos outros eventos que foram analisados na Nova Inglaterra. Isso
indica que a placa está sendo comprimida pelo alargamento do oceano.”
“H.C. É o Howard?”
Ela bocejou. “É.”
“Ele é bom?”
“É. Mas não é muito de trabalhar. E ele também desperdiçou um ano inteiro
brincando com movimento forte.”
“O que é isso?”
“É aquilo que você sentiu na quinta à noite. É o termo que a gente usa para se
referir ao tremor de terra que é sentido perto de um epicentro, em oposição aos
sinais mais fracos que normalmente só são registrados por sensores sísmicos.
Você pode fazer leituras de movimentos fortes, mas infelizmente o contexto
geológico local complica tanto as coisas que é difícil extrair muita informação a
respeito do terremoto propriamente dito.” Ela bocejou de novo. “O Howard
tentou bravamente.”
Na periferia da visão de Louis, dentes cintilaram no meio de uma barba; Terry
Snall, silencioso feito um caçador, tinha aparecido no vão da porta e estava
parado ali. Olhou para Louis. Olhou para Renée. Olhou para Louis.
“Ah”, disse em voz alta, como se tudo tivesse ficado claro para ele agora.
“Não se incomodem comigo.”
“Pode entrar à vontade”, disse Renée.
“Eu botei um trabalho para imprimir e estou só esperando.” Terry sacudiu a
cabeça em sinal de total e absoluta autoabsolvição. “Só vou demorar um
segundo.”
“Por mim, você pode demorar o quanto quiser.”
“Vai ser só um segundo”, disse ele, dando tapinhas impacientes na tampa da
impressora a laser. “Eu vou embora já, já.”
Ficou esperando teatralmente que a impressora soltasse seu trabalho. Verificou
o cabo de entrada, verificou o cabo de saída, tamborilou na bandeja de entrada
de papel, soltou um longo suspiro, botou as mãos nos quadris, soltou outro longo
suspiro, inspecionou a impressora inteira e sacudiu a cabeça. “Só um
segundinho”, disse. “Eu não quero atrapalhar vocês.”
Louis teve de se apressar para acompanhar Renée enquanto ela subia com
passadas firmes a rampa que levava à sala contígua, onde ficava a maquinaria
pesada. A sala era refrigerada, com o chão revestido de quadrados cor de gelo, a
ausência de um dos quais, perto da unidade principal de processamento, revelava
um ninho de cobras de cabos embaixo. Na longa parede, havia prateleiras
contendo milhares de rolos de fita magnética. Havia também modems de olhos
vermelhos, enormes drives carregados com fitas que estremeciam
nervosamente e várias telas de gráficos.
“Ele é tão babaca”, disse Renée, tirando um par de óculos de armação de
metal fina de dentro do bolso da camisa e sentando-se diante de um console.
“Ele está com ciúme”, Louis disse.
“Talvez.”
“Talvez não, é óbvio que ele está.”
“Bem, se está, isso é extremamente humilhante pra mim. E também meio
estranho, considerando que ele parece ter resolvido que a missão dele na vida é
me informar que eu sou muito metida.” Ela apertou os olhos diante da tela e
digitou alguma coisa rapidamente, por tato. Louis achou os óculos dela muito
tocantes e charmosos. “Ele está tendo um caso com uma moça aqui da cidade
faz uns quatro anos. Você viu aquela janela ao lado da porta? A tal moça vive
aparecendo lá e batendo no vidro. Se o Terry está aqui quando ela faz isso, ele sai
correndo pelo corredor pra ir se encontrar com ela lá fora. Ele tem medo de que
alguém deixe a moça entrar e acha que a gente não percebe.” Na tela de
gráficos à direita de Renée, uma imagem colorida estava se formando. Ela olhou
rapidamente pela janela de vidro laminado para ver se Terry não estava de
alguma forma escutando a conversa deles, apesar do barulho. “Dois anos atrás,
ele comprou um carro novo e acabou com o carro quase que imediatamente.
Não queria contar pra gente de jeito nenhum como isso tinha acontecido. Uma
noite, a namorada dele veio aqui e o Howard a convidou pra entrar. Ele
perguntou a ela como tinha sido o acidente e, ao que parece, o que aconteceu foi
que o Terry estava passando de carro em frente a uma loja onde ele tinha
comprado um ar-condicionado que não o agradou por algum motivo e onde ele
tinha sido destratado quando foi reclamar; então, ele se inclinou sobre o banco do
passageiro para mostrar o dedo do meio pra loja — para o prédio da loja — e,
enquanto estava fazendo isso, acabou subindo com o carro na calçada e batendo
numa árvore. A namorada achou graça do que tinha acontecido, como a gente
também achou — ela na verdade é bem simpática. E, desde então, o Terry não
deixa que ela chegue nem perto da sala de computação. O que faz com que a
gente fique se perguntando o que mais ela pode ter pra contar a respeito dele.”
“Quem é que cuida desse equipamento todo?”
“Supostamente, todo mundo que usa o equipamento tem que ajudar a cuidar
dele, mas na prática...” Renée não gostou do que viu na tela colorida. Seus dedos
voaram pelo teclado e uma nova imagem começou a se formar. “Pra começar,
nós estamos com menos dois professores este semestre. E algumas pessoas,
como o Terry, se recusam a ajudar porque acham que já fizeram demais. Ele
fez bastante coisa no sistema em 88 e acha que isso o exime de qualquer outra
responsabilidade, visão que ele defende com unhas e dentes, embora, pelo que eu
saiba, só o que ele fez foi instalar coisas de que ele ia precisar pra tocar seus
próprios projetos. E tem também as pessoas que estrategicamente se ausentam
quando chegam aqueles momentos em que se torna absolutamente necessário
fazer coisas como um despejo de memória, que leva a noite inteira. E, por fim,
tem também, acho, algumas pessoas que até eu prefiro que não ajudem porque
tenho medo que elas acabem...”
“Fodendo com tudo.”
“Exatamente.”
“As pessoas devem te odiar.”
“É, quase todo mundo, até certo ponto. Mas eu compenso isso com amor-
próprio. Por que você não puxa uma cadeira pra cá?”
Ela pôs filme numa câmera que estava num tripé, apagou as luzes e começou
a tirar fotos de imagens, enquanto o segundinho de Terry com a impressora a
laser ia se prolongando por uma hora diante de um console bem do outro lado da
janela de vidro laminado. Como qualquer bom bisbilhoteiro, ele fingia estar
cuidando da própria vida. Louis ouvia valentemente as explicações que Renée
estava dando das imagens, que tinham as cores do arco-íris e consistiam
basicamente de cortes transversais reconstruídos de uma “fatia” de rocha de três
mil quilômetros de comprimento, seiscentos e cinquenta quilômetros de largura e
talvez cinquenta quilômetros de espessura que estava descendo para o interior da
Terra, embaixo de uma cadeia de ilhas que ia do sul das ilhas Fiji, passando por
Tonga e pelas ilhas Kermadec, até um ponto não muito distante da Nova
Zelândia. Terremotos de diversas intensidades e orientações tinham
acompanhado a descida da fatia de rocha em todas as profundidades, e a tese de
Renée, como ela explicou a Louis, havia “contribuído para o estudo” do que
acontecera com a rocha quebradiça à medida que ela mergulhava cada vez mais
fundo na lama derretida e pressurizada do manto, e do que finalmente se dera
com ela na profundidade de seiscentos quilômetros, abaixo da qual nenhum
terremoto jamais havia sido registrado em lugar algum.
“Você foi até essas ilhas?”
“Eu achava que a geofísica ia me permitir passar mais tempo ao ar livre do
que se eu fizesse matemática ou outra coisa assim. Seis anos depois, eu percebo
que mal saí dessa sala.”
“Você tem muita sorte.”
“Você acha?” Ela apertou o botão do cabo que acionava a câmera fotográfica.
“Você tem uma profissão em que você é extremamente competente e que é
superinteressante e que não prejudica ninguém.”
“É, vendo por esse ângulo, imagino que sim. Mas tem as suas frustrações.”
“Eu queria poder ser um acadêmico.”
“Quem disse que você não pode?”
“Eu queria poder ser qualquer coisa.”
“Quem disse que você não pode?”
“Eu odeio esse país. Odeio a canalhice. Eu só vejo canalhas pra todo lado.”
O olhar que Renée lançou para Louis sob a luz azulada era hesitante, ou triste;
distanciado, como o de uma mãe. “Nem todo mundo é canalha”, disse ela.
“Pense nas pessoas que fazem o metrô funcionar. Pense nos enfermeiros. Nos
carteiros. Nos lobistas de boas causas. Eles não são todos canalhas.”
“Mas eu não posso ser que nem essas pessoas. Só o que eu sinto em relação a
elas é pena. Elas parecem otárias. As coisas estão tão fodidas que é patético
tentar ser um cidadão útil. Sabe, se você vai jogar o jogo, por que não ir logo até
o fim e compactuar de uma vez? Mas, se você está enojado demais pra
compactuar, as únicas opções que sobram são ou fugir ou tentar destruir tudo que
puder. E eu nem posso fugir pra vida acadêmica, porque tive que assistir a vida
inteira ao meu pai sendo professor universitário. Todo marxista que eu conheço
tem uma vida que é pensar de dia e encher a cara de noite. Como é que eu podia
escolher uma coisa dessas? Eu fico olhando para os seus dedos e para os seus
olhos e eu sinto tanta inveja. Você está nessa posição em que você é boa pra
valer no que faz. Mas eu estou aqui e não consigo me imaginar saindo do lugar.”
“Nós vamos ter que fazer alguma coisa a respeito de você.”
“Uma ilha. Uma ilha.”

Uma forte luz dourada iluminava os telhados de Boston e formava um espaço


claro e livre no ar acima deles, uma arena limitada a leste por uma concha de
névoa marítima de fim de tarde e no interior da qual, por uma distância de
quilômetros, estavam visíveis com absoluta nitidez outdoors, árvores verdes e
viadutos tomados pelo frenesi da hora e pequenas nuvens da cor e do formato de
sinais de pele. Aviões acima de Nahant pairavam sem fazer nenhum movimento
discernível no firmamento azul-cinzento, no qual seus próprios motores
despejavam suas contribuições. Na Lansdowne Street, fiéis estavam entrando na
sombra do templo, passando em silêncio por carrocinhas que vendiam ícones e
livros inspiracionais e pelas gastas fachadas de santuários ao longo do caminho,
com suas ofertas especiais pré-jogo, seus enormes cifrões e minúsculos ,95
centavos.
Do lado de dentro do portão, Renée fez uma pequena contribuição verde ao
Jimmy Fund e sua batalha contra o câncer infantil e não demonstrou nenhum
sinal de constrangimento quando seu companheiro mais cético reagiu olhando
para ela com cara de espanto. Uma carga branca de luz era visível através do
portal acima deles e, conforme eles subiam a escada, a claridade branca foi se
transformando num campo verde cercado de trinta mil torcedores, todos com
tons de pele de atores. Homens uniformizados alisavam a terra com ancinhos.
Roy als e Red Sox em suas respectivas áreas de aquecimento. Cheiros penetrantes
de cigarro e mostarda. Os lugares de Henry Rudman, em frente ao meio da linha
da terceira base e na décima fileira, eram mais que satisfatórios. Ao lado de
cada um dos dois, indivíduos rudmanescos transbordando de prazer dobravam os
cartões onde anotavam os resultados dos jogos. Às sete e meia, quando todas as
pessoas presentes no Fenway Park se levantaram, os olhos de Renée correram o
estádio atentamente, e Louis, vendo-se pela primeira vez na situação de não
poder mudar de canal, trincou os dentes e aguentou o hino.
Poucas coisas trazem tanta felicidade quanto bons lugares. Os dois
somervillianos estavam sentados com os braços em volta dos ombros um do
outro, Renée alegre e radiante como Louis nunca a tinha visto. Ela havia trazido
sua luva de beisebol e estava com a mão dentro dela. Mais cedo naquele mesmo
dia, eles tinham brincado de apanhar bolas, e Louis descobrira que Renée era
capaz de maltratar os dedos dele, através da luva de couro, com seus arremessos.
Durante cinco innings, o placar se manteve 1 a 1. Havia uma corpulência, uma
plenitude, uma prazerosa carência de abstração no movimento da bola quando,
golpeada por um bastão, ela saiu zunindo pela grama do infield, encontrou o
centro da luva do homem da terceira base, recebeu nova carga de energia
cinética e alcançou o corredor na primeira base. Mais tarde, Louis não teve
nenhuma dificuldade de entender por que havia demorado tanto a ver a outra
coisa que estava se passando na frente dele, a coisa três fileiras abaixo e alguns
assentos à sua esquerda.
O que ele notou primeiro foi a mão. Uma mão de homem, grande e vermelha.
Com um empenho que beirava a urgência, a mão massageava um ombro
feminino nu e também o pescoço bronzeado acima dele, a área atrás da orelha e
a própria orelha, pegando a pele e a carne em seus dedos, pegando com o
objetivo de ter. Voltando ao ombro. Avançando com contrações de cobra sob a
alça estreita do vestido preto da mulher, os nós dos dedos empurrando lentamente
a alça por sobre o globo macio do ombro e um pouco pelo braço abaixo, as
almofadas dos dedos denteando a pele ali, as palmas amassando, apertando,
possuindo. Languidamente, com a mão que não estava ocupada segurando sua
cerveja, a moça puxou a alça de volta para cima do ombro. Sacudiu sua
cabeleira escura e virou para trás, olhando por acaso bem na direção de Louis.
Tinha uns vinte anos e era ao mesmo tempo delicada e durona, o tipo de beldade
equina e cabeça oca que costuma atrair outfielders badalados. A mão a capturou
de novo, seu cabelo, seus ombros, sua atenção, depois se enfiou por dentro das
costas do vestido dela e lá ficou. Só então foi que Louis percebeu que a mão
pertencia a um cinquentão cujo rosto ele conhecia.
Renée estava com o tronco inclinado para a frente, roendo uma unha. A
etiqueta de sua camiseta estava para fora, sobre seu pescoço sardento. Ao que
parecia, coisas estavam acontecendo no campo, coisas boas para os Roy als e
ruins para os Sox. Louis acompanhava o avanço rastejante da mão sob o tecido
preto e pela parte interna do braço da garota e viu a ponta dos dedos estacarem o
mais próximo do seio dela que a decência permitia, talvez até um centímetro
mais perto. A garota sussurrou no ouvido de seu acompanhante, a boca se
demorando ali, os lábios roçando pela bochecha dele até encontrarem a boca. A
obscena mão vermelha a apertou e depois soltou. O árbitro de home plate urrou e
pôs um batedor para fora. Os canalhas vibraram. O organista pôs-se a
improvisar. Louis viu, vagamente, o sorriso de sua namorada grisalha sumir e sua
boca se abrir: “O que houve?”.
“Houve alguma coisa?”
“Você não vai me dizer o que é que você tem?”
Ele imitou um revólver com uma das mãos, retesou o pulso e apontou para a
cabeça do homem. “O diretor executivo da Sweeting-Aldren. Bem ali.”
Era possível que, apesar do barulho da torcida, essas palavras tivessem
chegado aos ouvidos do sr. Aldren, pois ele se virou para trás e esquadrinhou
rapidamente todos os assentos não tão bons quanto o dele, permitindo que seu
rosto inchado e com bolsas de gordura e seus olhos apertados produzissem
alguma impressão em Renée.
“Calhorda”, disse Louis, seu braço recuando com o coice do tiro que ele havia
acabado de dar.
“Acho que entendo o que você quer dizer.”
“Sente só o anel no dedo mindinho dele.”
Suas próprias mãos estavam frias e brancas, todo o seu sangue concentrado no
coração e nas têmporas. Nem mesmo os pontos que os Sox marcaram e um
emocionante oitavo inning conseguiram arrancar os olhos de Louis do espetáculo
de bolinação que estava se desenrolando três fileiras abaixo. Talvez por mérito
dela, talvez por parvoíce, a garota parecia alheia às liberdades que a mão estava
tomando e ao olhar cúpido que Aldren dirigia alternadamente a ela e aos
jogadores a seus pés. Ela estava acompanhando o jogo. E não era implausível,
Louis pensou, que ela conseguisse manter um parcial domínio de si mesma mais
tarde também, quando Aldren a levasse para algum quarto empetecado para
penetrar em seus mornos orifícios em privacidade, a mesma privacidade com
que, muito provavelmente, mesmo naquele exato momento, seus outros efluentes
estavam sendo injetados na submissa terra.
“Ele realmente não consegue tirar as mãos de cima dela”, observou Renée.
“Parece mais que ela não consegue tirar as mãos dele de cima dela.”
“Mas escuta.” Ela tocou no rosto de Louis e o fez olhar para ela. “Não fique
com tanta raiva. Eu não gosto quando você fica com raiva.”
“Eu não consigo evitar.”
“Eu gostaria que você tentasse, nem que fosse só por mim.”
Era uma declaração. Louis olhou para o rosto da pessoa que a havia feito, o
rosto dos olhos bonitos, do nariz arrebitado, da acne, e percebeu que aquela
pessoa, de alguma forma, tinha se transformado literalmente na única coisa no
mundo com a qual ele podia contar.
“Eu te amo”, ele disse de modo inesperado, mas sincero. Como não viu o
torcedor atrás dele sorrir e piscar para Renée, Louis não entendeu muito bem por
que ela se esticou de novo daquele jeito tão abrupto e dirigiu sua atenção para o
jogo, que estava terminando.

* “Eu entendo tudo... não vejo.../ impulsos destrutivos... não vejo.../ Parece tão
perfeito... não vejo.../ não vejo... não vejo... não vejo nenhum mal.” (N. T.)
** “Eu vou fazer loucuras com a pessoa que eu amo/ Não vejo mal nenhum/ Eu
vou fazer loucuras com as pessoas de um olho só/ Não vejo mal nenhum/
Destrua o futuro com a pessoa que você ama.” (N. T.)
*** “Adoro o som de vidro se quebrando/ Principalmente quando estou me
sentindo só./ Preciso dos ruídos da destruição./ Quando não há nada de novo.” (N.
T.)
6.

Existe um cheiro úmido específico, antigo e melancólico, que se espalha por


Boston depois que o sol se põe, quando o tempo está frio e sem vento. A
convecção o desprende da superfície das águas ecologicamente desequilibradas
dos rios My stic e Charles e dos lagos. Os moinhos fechados e as fábricas
desativadas de Waltham o exalam. Ele é o hálito que sai da boca de velhos túneis,
o espírito que se evola de pilhas de cacos de vidro cobertos de fuligem, do
balastro de antigos leitos de ferrovia, de todos os lugares silenciosos onde se acha
ferro fundido enferrujando, pedaços de concreto ficando quebradiços e podres
feito roquefort inorgânico, destilados de petróleo se infiltrando de volta dentro da
terra. Numa cidade onde não há nenhum pedaço de terra que não tenha sido
modificado, esse é o cheiro que acabou se tornando primevo, o cheiro da
natureza que tomou o lugar da natureza. Flores ainda desabrocham; grama
aparada, folhas que caem das árvores e neve fresca ainda alteram o ar
periodicamente. Mas seus cheiros são sobrepostos; sentimentais; mais novos do
que aquelas emanações pacientemente duradouras que vêm do lado de baixo das
pontes, do entulho de uma centena de aterros, de píeres creosotados em cursos de
água manchados de óleo, das folhas de Globe e Herald enroladas em volta de
pedras lodosas em canais de escoamento e do interior de toda guarita de metal
enegrecida ainda restante em vias abandonadas, propósito e símbolos de
propriedade apagados pelo tempo, fechadura corroída de ferrugem: o cheiro da
infraestrutura.
Ele estava bem forte quando Louis e Renée subiram a Dartmouth Street, vindo
da estação de Copley Square da linha verde do metrô. A noite de vento,
pontilhada por luzes de freio, em que eles haviam circulado por aquelas ruas à
procura de uma vaga para estacionar parecia enterrada no passado por muito
mais do que o mês que havia de fato transcorrido. De novo era uma noite de fim
de semana, mas dessa vez o bairro estava tranquilo, sóbrio e sem tráfego, como
se, por alguma coincidência circadiana, todos os moradores tivessem ido passar o
fim de semana fora ou resolvido ficar em casa com a família. O céu do
anoitecer era como um pano de fundo pintado de azul pendurado logo atrás das
fileiras de casas e suas amareladas luzes domésticas.
Eileen tinha ficado desconfiada quando Louis telefonou. Ele sentira
necessidade de metralhá-la com pedidos de desculpa, atribuindo sua recente
agressividade ao fato de ter perdido o emprego. Seu remorso era autêntico o
bastante, ainda que por pouco, para despertar o lado sentimental de Eileen. Ela
disse que era “muito chato mesmo” ele estar desempregado e expressou um
vago interesse em combinar uma ida dele até lá qualquer dia desses, um não
convite ao qual ele imediatamente respondeu: “Ótimo! Que tal sexta à noite?”.
Ela disse que teria de falar com Peter primeiro. Ele disse que ele e Renée iam
tentar chegar por volta das oito. Ela disse: “Mas eu ainda preciso falar com o
Peter”. Ele disse que uma coisa que seria bom ele mencionar era que Renée não
comia carne vermelha nem frango. “Ah, tudo bem”, disse Eileen, com voz mais
animada. “Eu faço alguma coisa vegetariana.”
Uma vez marcado o encontro, ficou claro que o mais difícil seria convencer
Renée a mentir.
“Você quer que eu diga que sou matemática?” Ela olhou para ele
embasbacada. “Essa é a coisa mais idiota que eu já ouvi de você.”
“É, mas o que o Peter vai pensar quando uma sismóloga começar a fazer
perguntas a ele sobre descarte de resíduos? Ele vai pensar em terremotos. E a
gente quer que ele pense em terremotos? A gente quer que ele comente com o
pai que tem uma sismóloga que está curiosa em relação à empresa? Você disse
para mim que queria estudar matemática, antes de optar pela geofísica.”
“Eu não vou nem discutir isso com você.”
“Por quê? Por quê? Só o que você tem que fazer é dizer e pronto. Quer dizer,
supondo que alguém seja educado o bastante para perguntar no que você
trabalha, o que eu duvido que eles façam. É só você dizer que trabalha, sei lá,
com matemática aplicada. E não é isso que a sismologia é afinal?”
“Isso é uma mentira. Eu fico vermelha quando minto.”
“Uh! Você é tão exemplar que eu não acredito.”
“É, e eu estou começando a me perguntar se você dá algum valor a isso. Estou
realmente começando a me perguntar.”
“Mentir é uma habilidade social”, ele disse num tom paciente. “Todo mundo
tem que mentir. E essa mentira em particular é, sabe, totalmente benigna.”
“Fingir ser uma coisa que eu não sou, manipular duas pessoas que nos
convidaram pra jantar de boa-fé, tentar passar um tempo a sós com uma delas
para poder extrair informações sob o pretexto de simples curiosidade, isso é uma
mentira benigna?”
Era em momentos de frustração como esse que Louis pensava em Lauren.
Tinha certeza de que Lauren teria mentido por ele. Lauren teria sabido o que
fazer.
“Olha”, disse Renée. “Se o assunto surgir naturalmente durante a conversa e
eu não tiver que mentir, tudo bem. Caso contrário, não. Eu sei que você está com
raiva dessas pessoas, eu sei que você está se sentindo passado pra trás. Mas elas
continuam sendo pessoas, e ir lá com total cinismo, que é o que você está
querendo fazer... Eu acho muito preocupante até que você cogite em fazer isso.”
“Ah, pelo amor de Deus.” Ela estava lhe dando nos nervos. “As coisas não são
tão preto no branco assim. Pra começar, eu tive uma conversa até bem razoável
com a Eileen. Não é como se eu a culpasse como culpo a minha mãe. Sabe, ela
é uma vítima também. Você acha que eu iria lá com total cinismo?”
“O que eu estou dizendo é que consigo imaginar você começando a pensar que
pode tratar as pessoas como bem entender, só porque está tão cheio de raiva. E a
razão por que isso importa para mim é que eu gosto de você.”
Ele encheu os pulmões de ar. Deixou o ar sair lentamente. A ideia de que
Renée entendia tão bem os defeitos dele era algo quase insuportável para Louis.
“Está bem, está bem, você tem razão”, ele disse, mais sobriamente. “Mas eu
também acho que você está estragando tudo pensando demais. Eu não estou
pedindo pra você ser diabólica. Eu só estou dizendo vamos lá, vamos passar uma
noite agradável e vamos tentar conseguir também as informações que nós
queremos. Mas é como se você pensasse tanto que acabasse ficando impossível
pra você jantar com outras pessoas sob qualquer circunstância. A única forma de
você poder continuar sendo exemplar é ficar sozinha. Porque você nunca vai
respeitar realmente as pessoas com quem você está, as músicas de que elas
gostam, a comida que elas comem, as roupas que elas usam, os pensamentos
menos que profundos que elas têm...”
“Eu disse que iria.”
“E isso é moralmente errado, não é? É uma enganação. Agir como se você
estivesse no mesmo nível que elas, quando por dentro você se sente mais
exemplar e mais consciente e mais tudo. Isso faz de você uma pessoa falsa, com
um falso sorriso e sem amigos, o que no fim das contas...”
“Vai se foder, Louis. Você realmente gosta de me maltratar.”
“O que no fim das contas é muito triste, porque no fundo você é uma pessoa
muito cativante, e você quer que as pessoas gostem de você e quer se divertir.”
Ele estava espantado com a teimosia dela. Acreditava sinceramente que ela
seria uma pessoa mais feliz se relaxasse um pouco; mas só o que conseguiu com
seus esforços foi se sentir um Macho execrável. Claro que era possível que ele
fosse um Macho execrável. Um Macho execrável que está tentando dominar
uma mulher virtuosa e difícil não tem escrúpulos em explorar toda e qualquer
fraqueza que consiga encontrar nela — sua idade, seus maneirismos, sua
insegurança e, acima de tudo, sua solidão. Ele pode ser tão covarde e cruel
quanto quiser, desde que a lógica esteja a seu lado. E a mulher, sucumbindo à
lógica dele, não pode fazer mais nada para salvar seu orgulho a não ser exigir
que ele lhe seja fiel. Ela diz: “Você me humilhou e me ganhou, então agora acho
bom você não me magoar”. Mas magoá-la é exatamente o que o homem se
sente tentado a fazer, pois, agora que ela sucumbiu, ele sente desprezo por ela e
também sabe que, se magoá-la, ela vai se tornar virtuosa e difícil de novo... Esses
arquétipos forçaram entrada no apartamento da Pleasant Avenue como parentes
vulgares. Louis queria mandá-los embora, mas não é fácil bater a porta na cara
de parentes.
Na casa de tijolos da Marlborough Street, na porta da residência de Stoorhuy s
e Holland, Louis viu a tensão fazer coisas extremas e dolorosas nos rostos de
Eileen e Renée enquanto elas tentavam atravessar com dignidade a hora dos
cumprimentos. Depois, entregou uma sacola com garrafas de cerveja para a
irmã. Eileen estava usando uma roupa de caratê preta grande demais para ela,
com o cabelo solto espalhado sobre as costas e os ombros. O efeito era estiloso e
fez Louis se lembrar dos borzóis, cachorros que sempre lhe davam a impressão,
quando ele passava por algum deles na rua, de que estariam mais felizes
correndo por aí de jeans e tênis, mas não podiam porque seus donos eram ricos.
Louis supunha que Eileen estivesse recebendo os dois naquela noite porque não
tivera a habilidade necessária para escapar do autoconvite dele, mas era possível
que também estivesse curiosa em relação a Renée. Ela os conduziu à sala de
estar — sem festeiros, a sala estava mais digna agora, menos parecida com uma
estação de trem e mais com uma sala de verdade — e explicou que Peter tinha
ido ajudar uma de suas irmãs mais novas a instalar um computador novo e já
devia estar chegando. Perguntou se “vocês dois” haviam tido dificuldade de
encontrar vaga para estacionar. Disse que esperava que “vocês dois” não se
importassem de jantar tão tarde. Perguntou se “vocês dois” queriam cerveja ou
vinho ou cerveja ou... sei lá. Disse esperar que “vocês dois” gostassem de
mussacá. Tendo assim esgotado as possibilidades de se dirigir a eles
coletivamente, ela saltou de sua poltrona e disse: “Cadê esse garoto?”.
Eles a ouviram telefonar da cozinha, sua voz de menininha ficando cada vez
mais fina à medida que sua irritação crescia. Quando voltou para a sala,
acomodou-se silenciosamente em sua poltrona como se não quisesse interromper
a conversa. Só que não havia conversa nenhuma. Seus convidados simplesmente
ficaram olhando para ela e, passado um tempo, ela fingiu estar despertando de
um transe. “Ele já vem”, garantiu.
Renée puxou conversa. “Você... Você está fazendo mestrado em
administração?”
Eileen fez que sim com a cabeça e com o corpo, sem olhar para Renée.
“Arrã. Arrã.”
“Mas você já deve estar terminando, não?”, disse Louis.
“É, estou.” Ela balançou a cabeça e o corpo, algum aspecto do aparelho de
som prendendo sua atenção. “Já terminei, na verdade.”
“Onde é que você vai trabalhar?”, perguntou Renée.
“Hum.” Ela balançou o corpo. “No Banco de Boston?”
Fez-se um longo silêncio. A timidez havia paralisado Eileen, uma timidez do
tipo que faz crianças de cinco anos enterrarem o rosto nos braços da mãe quando
uma pessoa estranha faz perguntas demais.
“Que tipo de coisas você vai fazer lá?”, Renée perguntou num tom gentil.
“Hum... empréstimos comerciais?”
“E... que tipo de coisa isso envolve?”
Com olhar vazio, Eileen se virou para Louis, que fez sinais frenéticos para
indicar que quem tinha de responder aquela pergunta era ela, não ele.
“Financiamento comercial”, disse ela. “É, sabe, ajudar empresas a financiar
coisas. Melhorias patrimoniais. Aquisições. Incorporações. Expansões. Não é
nada assim... muito interessante.”
“Parece bem interessante”, disse Renée.
“É, bom, é interessante. Pra mim, é muito interessante. Mas, se eu não estou
enganada, o Louis me falou que você é cientista?”
“Sou.”
“Então, pois é, não é interessante nesse sentido, entende. É mais um trabalho
de tratar com gente, sabe, você tem que lidar com vários tipos diferentes de
pessoas. É mais ou menos aí que está o interesse.”
Nesse momento, Eileen travou. Por mais que Renée tentasse estimulá-la a
falar, ela não conseguia pensar em mais nada para dizer sobre as funções que
iria desempenhar no Banco de Boston. O que deixou Louis intrigado foi que ela
não tomou a rota de fuga óbvia, que teria sido perguntar a Renée sobre o trabalho
dela, ou a ele sobre a falta de trabalho dele. Ela só se contorcia de
constrangimento e deixava os medonhos silêncios se multiplicarem.
Eram quase nove horas quando Peter deu o ar da graça no apartamento,
vestindo um suéter de moletom de Harvard e carregando duas caixas de
disquetes. Na mesma hora, Eileen recuperou a fala e pôs-se a fazer um relato
mais detalhado do dia de Peter, começando pela ida da irmã dele à Computer
Factory. Quando ele voltou da cozinha, com um copo de uma bebida âmbar na
mão, ela tentou atraí-lo para a narrativa sorrindo na direção dele, como quem
diz: está aqui o meu namorado, o tema da minha conversa, as minhas próprias
palavras encarnadas. “Você instalou tudo?”, ela perguntou.
Peter deixou a pergunta ficar no chão alguns segundos antes de esmagá-la
com um impaciente “Arrã”. Para Louis, ele ofereceu a migalha de um oco e
quase inaudível “e aí”. Quanto a Renée, ele se sentou ao lado dela no sofá e a
brindou com uma longa e meticulosa inspeção de sua cabeça, seus braços, seu
colo, sua cabeça de novo, sorrindo marotamente o tempo todo, como se eles
compartilhassem algum segredo. Em seguida, prendeu seu copo de uísque entre
os joelhos, debruçou-se sobre ele e ficou espiando o interior do copo, como um
pescador de regiões glaciais espia seu buraco no gelo. Disse que era bom vê-la
ali de novo. Lembrou que ela tinha vindo para a festa vestida de luto, muito
maneiro. Lamentou que eles não tivessem tido a chance de conversar mais na
festa. Concentrou sua atenção em Renée, fazendo um comentário atrás do outro,
sempre só para ela, como se Louis e Eileen estivessem conversando
separadamente e não estivessem ouvindo. Ou como se ele fosse o apresentador
do Tonight Show, esquecendo-se da plateia em sua fascinação com aquela
convidada especial, apropriando-se de nossas fantasias de chegar bem pertinho
dela. Totalmente confusa, Renée começou a sorrir para seus joelhos daquele
jeito como uma pessoa sorri de uma boa piada contada por alguém de quem ela
não sabe muito bem se gosta. Não deu absolutamente resposta alguma quando
Peter perguntou se ela tinha visto o Globe do dia anterior.
“Está brincando”, disse ele. “Você não viu?”
Ela fez que não, ainda sorrindo. Peter olhou por cima do ombro na direção de
Eileen. “A gente ainda está com o jornal de ontem aí, não está?”
Eileen deu de ombros, emburrada.
“Deve estar na cozinha”, disse ele. “Você pode pegar?”
Louis ficou muito triste de ver sua irmã se desacomodar de sua poltrona e
obedecer à ordem em silêncio. Quando ela voltou, Peter pegou o jornal de suas
mãos sem olhar para ela.
“Está vendo isso?” Peter deixou o jornal inteiro escorregar até o chão, menos o
caderno de notícias locais. “Bem aqui? Matéria principal? ‘Defensores do direito
de escolha na questão do aborto denunciam assédio postal e telefônico’. E uma
pequena e charmosa foto sua? Cortesia do noticiário do Channel 4. E aqui e aqui e
aqui?” Inevitavelmente, um tom de condescendência havia se insinuado na voz
dele. “O que você acha disso? Você está em tudo quanto é lugar.”
“Nós não compramos o jornal ontem”, Renée disse vagamente para Louis,
como se tivesse sido por culpa dele.
“Doutora Renée Seitchek, sismóloga da Universidade Harvard...”
Ela se virou para Louis, com o olhar sombrio de uma pessoa que se sente
vingada.
“Esse programa de tv, isso eu não vi. Parece ter sido bem interessante.”
“Não foi interessante. Foi ridículo.”
“Certo.” Peter balançou a cabeça, como se ele próprio tivesse dito aquilo.
“Ridículo é pouco. Você expressa uma opinião e, quando vai ver, está recebendo
uma enxurrada de cartas iradas e não pode nem usar o próprio telefone. Quer
saber?” Ele botou a mão no quadril e se inclinou para trás para poder vê-la
melhor. “Eu acho que você está sendo muito corajosa. De dizer o que pensa
assim. Acho uma puta atitude de coragem, sabe. Uma cidadã comum taxada de
abortista por expressar uma opinião na televisão? Isso é o pior dos pesadelos.”
Renée se inclinou em direção ao colo dele, apertando os olhos para examinar o
jornal. Louis ficou consternado ao ver com que facilidade ela tolerou as atenções
de Peter, o quanto ela tinha ficado bonita com as bochechas ruborizadas e o
quanto o pescoço e os ombros dela estavam perto do rosto de Peter. Por mais
defeitos que tivesse, Peter sabia reconhecer a pessoa interessante, sexy e
corajosa que Renée era; já o execrável e imaturo Louis só sabia lhe dizer coisas
desagradáveis e lhe fazer críticas. Como ela poderia deixar de notar o contraste?
E o pior era que o próprio Louis não sabia o que queria, se preferia ter uma
namorada triste e complicada que precisava tanto dele que ele podia dizer o que
quisesse para ela, ou estar envolvido com uma mulher de verdade, que era capaz
de atrair outros homens, enchê-lo de insegurança e se esquecer dele.
Eileen parecia ainda menos contente que Louis. Enquanto os dois trintões de
jeans desbotados se espremiam no sofá, ela permanecia sentada na poltrona com
seu pijama de seda ridículo e dirigia a Renée o mesmo olhar fuzilante que vinha
usando fazia vinte anos sempre que algo que ela acreditava ser seu por direito lhe
era negado, mesmo que momentaneamente.
“Quer ajuda com o jantar?”, Louis perguntou a ela com uma voz de
personagem de desenho animado.
Ele a seguiu rumo à cozinha, onde ela continuou a lançar olhares malignos na
direção de Renée e Peter.
“Então você já terminou tudo”, disse Louis. “Já passou em todas as provas.”
“Já.” Da geladeira, ela tirou um pote de molho russo e uma salada verde
grande o bastante para servir doze pessoas. “Mistura pra mim?”
Eileen botou a cabeça no forno. Sem perceber nenhum ruído vindo da sala ao
lado a não ser o farfalhar de folhas de jornal, Louis imaginou que as bocas de
Peter e Renée já haviam se encontrado, Peter apertando os seios e abafando os
gemidos de Renée... Os sentimentos de Louis haviam adquirido tal intensidade
física que ele mal conseguia acreditar que já tivesse transado com aquela mulher
algum dia, que já havia provado ou tocado qualquer coisa de Renée além da
simples ideia dela: uma voz, uma disposição, uma cabeça, uma pessoa mais
velha — tudo menos a mulher que ele agora imaginava na sala ao lado. E era
uma coisa fantástica, o ciúme. Era uma droga que eletrizava as terminações
nervosas e provocava um barato e tanto. Pelo lado negativo, o ciúme também
prejudicava o seu controle sobre a salada que ele estava misturando, a qual,
aguilhoada por garfo e colher, estava transbordando da tigela, rodelas de pepino
se estatelando na bancada; e por trás do barato (que era ótimo), Louis
desconfiava que não estava se sentindo nada bem.
Com as mãos enfiadas em luvas térmicas, Eileen olhava indiferente para a
porcalhada que ele estava fazendo. “Eu te contei o que aconteceu na noite que
nós saímos pra comemorar o resultado das nossas provas finais?”
“Não.”
Ela pôs o cabelo atrás das orelhas com tenazes acolchoadas. “Foi tão
engraçado, mas foi tão, tão engraçado. O pai da minha amiga Sandi é dono de
uma empresa de limusines e ele tinha dito que ia nos emprestar três daquelas
bem compridonas, sabe, como presente de formatura. A nossa ideia era
comemorar passeando de limusine até Manhattan, depois jantar e ir dançar no
Rainbow Room, sabe?”
“Arrã.”
“Então as limusines vieram apanhar a gente, e todo mundo estava superbem
vestido e produzido, sabe, só que estava chovendo e, em vez de virem três
limusines, só vieram duas, sabe? E nós éramos dezoito pessoas!” Ela chegou a
dobrar o corpo por um instante de tanta graça que estava achando de suas
lembranças. “Mas aí todo mundo se espremeu pra caber dentro das duas
limusines e então nós começamos a tomar champanhe e comer caviar e a ver
um vídeo que uma outra amiga minha tinha encontrado na biblioteca e que era
sobre treinamento de gerentes da indústria de laticínios, sabe? Com todas aquelas
vaquinhas e máquinas de ordenhar e os caras com pranchetinhas na mão e corte
de cabelo tipo escovinha, sabe, conversando com os caras que operam as
máquinas? E dando palmadas nas vacas e examinando os queijos, e aí depois eles
vão pra Washington pra fazer lobby, sabe? Era totalmente anos cinquenta. Tinha
uma longa tomada do Capitólio, pra onde eles todos estavam indo pra fazer lobby
em prol dos subsídios ao leite, sabe?”
“Arrã.”
“Huá rá rá”, ela gargalhou. “Mas aí a gente estava em algum lugar de
Connecticut, no meio do nada, e uma coisa horrível aconteceu com a outra
limusine — não a limusine em que eu estava, a outra. De alguma forma, todo o
fluido do radiador foi parar no asfalto e não sobrou nenhuma gota no radiador e
aí o motorista diz que não pode mais continuar a dirigir o carro assim. Sendo que
nós somos dezoito pessoas e chove a cântaros e agora só sobrou uma limusine pra
levar todo mundo pra Nova York e aí o outro motorista diz que só pode levar dez
e é claro que ninguém quer se oferecer pra não ir.”
“Claro.”
“Mas aí, no meio daquela chuvarada que não deixa a gente enxergar quase
nada, a gente consegue avistar uma parada de caminhão lá embaixo, no meio do
vale. É um troço gigantesco, com uns cinco mil caminhões parados na frente e
mais nada em volta, só mato. E aí então nós todos decidimos: quem precisa de
Manhattan? Nós vamos fazer a nossa festa aqui mesmo. E aí a gente vai até lá e
lá dentro tem, sei lá, uns mil daqueles caminhoneiros enormes, de cara vermelha
e braço tatuado, e eles estão fumando e comendo aquela comida toda
gordurenta, sabe? E a gente está toda arrumada, os rapazes todos de black-tie, e a
Sandi com um vestido do Oscar de la Renta com um decote meio assim...!” O
decote que Eileen desenhou no peito indicava que o vestido de Sandi deixava
parte dos mamilos à mostra. “Mas a gente entrou assim mesmo e claro que todo
mundo ficou olhando pra gente. E nós com as nossas taças de champanhe na
mão, daquelas altas, sabe, e os rapazes carregando as garrafas...”
“O Peter estava lá?”
“Não, era só a nossa turma, a gente teve que limitar o número de pessoas. Mas
aí a gente foi pra uma sala que tinha um jukebox e, bom, foi muito divertido. A
gente estava lá cercada por aquele bando de caminhoneiros, fazendo uma piada
atrás da outra e ouvindo um monte de velharias e música country. A Sandi ligou
pro pai dela e pediu pra ele mandar outra limusine, mas já era, sei lá, mais de
meia-noite quando a limusine chegou e àquela altura o outro motorista já tinha
ido pra Hartford pra comprar mais champanhe. A Sandi ficou dançando com um
caminhoneiro e aí depois ela enlaçou o braço no braço dele e eles tomaram
champanhe juntos, sabe? Todo mundo realmente entrou no clima. Foi muito
divertido. Nós voltamos pra casa umas seis da manhã, completamente bêbados.
Todo mundo ficou perguntando como tinha sido em Nova York e, quando a gente
contava onde tinha ido, ninguém acreditava. Eles simplesmente não conseguiam
acreditar que a gente tinha passado a noite numa parada de caminhão.”
“É inacreditável mesmo”, disse Louis.
Ela fez que sim, tirando um pão de alho do forno. “Você pode dizer pra eles
que o jantar está saindo?”
Louis foi para a sala de estar. O olhar que Renée lhe dirigiu ao rumar para a
sala de jantar não era nem amistoso nem hostil; era apenas um olhar de quem
está a quilômetros de distância.
“Alguma coisa está cheirando muito bem”, ela disse para Eileen em tom de
incentivo quando os quatro se sentaram à mesa. Louis concordou, grunhindo. Isso
foi pouco antes de ele perceber que o molho que escorria de dentro de sua fatia
de mussacá estava cheio de carne moída. Chocado, ele olhou através da mesa
para Renée, mas ela agora estava a léguas de distância, enchendo seu prato de
salada. Levantando uma fatia de berinjela com o garfo, ele encontrou um
verdadeiro formigueiro de grãos de carne.
“Eu contei pra vocês o que aconteceu na noite do último terremoto?” Eileen
ficou alguns instantes em silêncio e, com os olhos, fez uma conexão entre o prato
de Renée e a própria Renée em busca de aprovação. Renée, contudo, estava
ocupada erigindo fortalezas, movimentando mãos e talheres com tanta
concentração e voluntária discrição que, embora ela estivesse tão exposta quanto
os outros três, Louis podia olhar diretamente para ela e mesmo assim não ser
capaz de ver o que estava acontecendo com a fatia de mussacá dela ou o que ela
estava sentindo em relação àquela comida. Ele interpretou isso como um sinal de
que ela não queria que ele tocasse no assunto.
“Foi tão engraçado”, disse Eileen. “O cara que ganhou o Nobel de economia
no ano passado deu uma palestra lá na faculdade e depois um professor meu
ofereceu um jantar pra ele na casa dele e convidou alguns alunos. Ele tem uma
casa ma-ra-vi-lho-sa em Nahant, com uns três acres de terreno de frente para a
água...”
“Nahant”, disse Peter. “Tremendo refúgio da máfia.”
Renée fez que sim e sorriu, os olhos fixos em seu guardanapo.
“Não pode ser tudo da máfia, Peter. Porque o Seton mora lá, e ele não é da
máfia.”
“Como é que você sabe? Você já teve algum tipo de prova disso?”
“Ele não é! Ele não é da máfia. Ele é... é professor de Harvard!”
“Ahhh”, disse Peter, dirigindo um sorrisinho sarcástico para Renée. “Sei.”
“Ele não é da máfia”, Eileen garantiu a Louis. “Ele é professor adjunto. Mas o
cara do Nobel, ele é japonês. Eu nunca consigo lembrar o nome dele direito. Eu
reconheço quando eu ouço, mas não consigo lembrar. Você... lembra?”
O queixo de Louis caiu. “Você está perguntando pra mim se eu lembro o
nome do ganhador do prêmio Nobel de economia do ano passado?”
“Pois é, eu também não lembro. Mas, enfim, ele é um homenzinho engraçado,
de óculos redondos, e a gente estava tomando conhaque depois do jantar na sala
de estar do Seton, as pessoas já estavam até começando a ir embora, e aí de
repente começa o terremoto. Eu estava parada perto da lareira e comecei a
gritar, porque era realmente um terremoto, quer dizer, foi forte de verdade,
sabe.” Ela corou um pouco ao se dar conta de que a atenção de todos estava
voltada para ela, até a de Peter. “As coisas estavam caindo de cima do consolo
da lareira, e o chão era como... era como estar no T, Peter, era assim que era.
Era como quando você está viajando em pé no metrô e tem que se segurar em
alguma coisa, senão você cai. Só durou uns dois ou três segundos, mas todo
mundo gritava e copos quebravam e as luzes piscavam. Mas aí parou e, então,
todo mundo que estava lá aos poucos começou a notar que o... Hakasura? Haka...?
Hakanaka? Droga. Mas, enfim, nós todos começamos a notar que ele ainda
continuava sentado no mesmo cantinho do sofá e ainda continuava falando sobre
inversões econométricas. Ele não tinha sequer notado o terremoto! Ou tinha, mas
continuou falando assim mesmo. Ele estava segurando o braço da menina com
quem ele estava falando, pra que ela não levantasse, e aí finalmente ele percebe
que nós estamos todos lá parados, olhando pra ele. Aí ele termina uma frase, olha
pra cima e pergunta: ‘Alguém se machucou?’ (mas com aquele sotaque dele, que
eu não sei imitar), e nós respondemos ‘Não, não’. E aí ele vai e diz: ‘Que bom.
Nós temos um ditado no Japão...’”
Ela franziu o cenho. “Droga. Droga.” Olhou para Peter. “Você lembra como
era?”
“Você também não conseguiu lembrar quando me contou.”
“Era meio que, ‘Se você... Se você...’ ” Ela olhou em volta, envergonhada. “Eu
não consigo me lembrar. Achei que lembrava, mas não lembro. Era algo
como...”
“Eles já captaram a ideia”, disse Peter.
Louis começou a ter a impressão de que era o único ali que estava sobrando.
Aos poucos, Renée foi saindo de trás de suas fortalezas para responder perguntas
sobre terremotos, como sempre naquele seu tom de quem está fazendo um
seminário; e era Peter, não Louis, quem parecia tomar posse do que ela dizia; era
o rosto de Peter que brilhava com a radiância refletida do conhecimento
especializado de Renée.
Depois do consumo ritual de Häagen-Dazs, Louis deixou altruisticamente os
dois trintões sozinhos na sala de estar, pensando que Renée talvez precisasse de
mais tempo para extrair informações de Peter.
“Você está parecendo meio deprimido”, Eileen disse a ele na cozinha,
enquanto ele a observava botar as louças dentro da lavadora. “Problemas no
trabalho?”
“Que trabalho? Eu estou desempregado.”
“Então você ainda não encontrou nada.”
“Eu não estou nem procurando.”
“Mas você não era meio que apaixonado por rádio?”
Louis escrupulosamente reconheceu que Eileen marcara um ponto
“demonstrando preocupação” com ele daquela forma. Achou graça, por um
instante, da ideia de que ele era apaixonado por rádio.
“Você tem dinheiro pra pagar o seu aluguel e as suas despesas?”, ela
perguntou.
“Não. Mas eu vou me mudar pra casa da Renée essa semana, então.”
O espanto a deixou sem voz. “Vai?”
“Vou.”
“Ah. Eu não sabia.” Ela virou os cantos da boca para cima. “Legal.”
“É.”
Ela fez um vigoroso segundo esforço. “Ela é superinteligente, não é? Ela é
inteligente à beça. E ela tem, assim... a sua idade?”
Ele encarou a irmã. “É. A minha idade.”
“Como foi que vocês se conheceram?”
“Nós nos conhecemos na praia. Ela tinha uma bola de praia.”
“Arrã. Não esquece de me passar o seu endereço novo depois, está bom?”
Eileen raspou o prato de Renée, jogando a carne moída que ela não tinha comido
no lixo, onde havia duas caixas vazias de mussacá congelada, e depois botou o
prato na lavadora. “E sabe, se você estiver muito apertado de dinheiro, talvez
você possa pedir pra mamãe...”
“Puxa, boa ideia...”
“Embora ela esteja meio chateada no momento. Eu não sei se você soube,
mas está acontecendo uma coisa horrível. Ela vai receber aquela grana toda,
mas uns noventa por cento desse dinheiro estão aplicados em ações da empresa
do vovô, a Sweeting-Aldren, sabe, onde o pai do Peter trabalha?”
“Ah, sim. É uma empresa de produtos químicos, não é?”
“Isso. Só que a mamãe só vai ter realmente o controle dessas ações a partir do
mês que vem, e você provavelmente não tem lido os jornais, mas a empresa está
numa situação péssima, por causa dos terremotos e de um vazamento químico
que teve perto de uma fábrica deles. O pai do Peter é o vice-presidente de
operações, sabe; é ele que é o responsável por essas coisas todas. Mas, então,
durante um tempo, o preço das ações da empresa ficou caindo, meio que um
ponto por dia, o que é muito, muito ruim, e a mamãe está lá com aquelas ações
todas, vendo o valor das ações diminuir em uns dois milhões de dólares e sem
poder fazer absolutamente nada. Você acredita nisso? Sabe, dois milhões de
dólares? E ela sem poder fazer nada? Pra piorar, a maior parte do resto da
herança é em imóveis, acho que principalmente a casa da Rita, e de repente o
valor dos imóveis lá começa a sofrer uma queda brutal, por causa dos
terremotos. Então, a mamãe está realmente superchateada. Ela vem pra cá, vê
que não pode fazer nada e aí volta pra casa, só que lá ela também não consegue
parar de se preocupar e então ela volta pra cá de novo. Ela já nem telefona mais
pra mim quando vem pra cá, o que por mim tudo bem, sabe; eu sei que ela não
está no normal dela. Ela liga pra você?”
“Eu raramente estou perto de um telefone, então não sei se ela liga ou não.”
“Eu estou com muita pena dela, estou mesmo. Sabe, caramba! Dois milhões
de dólares!”
“É um mundo duro e cruel”, disse Louis.
Eileen ligou a lavadora e olhou em volta para ver quais pratos tinham ficado de
fora da seleção final. “A família do Peter teve a maior sorte”, disse ela. “O
último terremoto fez um senhor estrago na casa deles. Nós fomos lá outro dia e
vimos. Uma parte da casa meio que afundou, sabe? Eles tinham construído um
anexo novo e agora vão ter que derrubar tudo pra fazer uma fundação nova, e as
portas da casa não fecham mais. Eles moram em Ly nnfield, numa casa
maravilhosa e aí, quando foram ver, eles tinham seguro contra terremoto,
acredita? Foi muita sorte deles. Você pode contratar esse tipo de seguro como
uma cláusula adicional, sabe, só que normalmente ninguém se interessava em
fazer isso, até este ano. Imagino que os Stoorhuy s tenham feito porque queriam
ficar completamente cobertos, sei lá, e então agora eles não vão precisar pagar
nada. Um dos vizinhos deles vai ter que gastar uns vinte mil dólares pra consertar
a casa dele. E você não pode mais contratar essa cláusula adicional agora, a
menos que espere um ano pra ela entrar em vigor.”
Louis pensou no sr. Stoorhuy s, na franja dele, nas mangas curtas de seu paletó.
Em seu rabo peludo, se sacudindo. “Vocês se encontram muito com eles? Com a
família do Peter?”
O rosto de Eileen se anuviou. “O Peter não se dá muito bem com o pai. Mas a
mãe dele é muito gente boa, então a gente se encontra com eles de vez em
quando. Ele tem quatro irmãs e um irmão. Ele é o mais velho.” Ela olhou para
Louis de soslaio; havia um grumo de espuma de sabão em sua lapela de seda.
“Sabe, ele realmente é um cara legal. É um ótimo irmão mais velho. Está
sempre fazendo coisas para as irmãs.”
Louis não sabia o que dizer. “Eu vou fazer um esforço.”
Ele foi convocado a fazer esse esforço quase que imediatamente. Eileen o
levou para a sala de estar e perguntou a Peter se ele tinha alguma ideia de onde
Louis poderia arranjar um emprego. Peter examinou Louis de alto a baixo, como
se suas qualificações profissionais estivessem escritas em seu corpo. Renée
também estava olhando para ele, emitindo sinais lampejantes de vamos embora.
Peter perguntou que tipo de pretensão salarial mínima ele tinha em mente.
Louis respondeu com sua voz de zumbi. “Eu não diria não para cinco mil por
mês, mais benefícios e licença de saúde paga. Eu digito trinta e cinco palavras
por minuto.”
“Sinceramente”, disse Peter, “com pretensões assim, eu acho que você vai
ficar muuuito tempo procurando emprego. Agora, o que eu ia sugerir era que
você procurasse um tipo de arranjo como o que eu fiz com a revista Boston
alguns anos atrás. Nós provavelmente somos a melhor publicação em que você
poderia conseguir trabalhar nesse estágio. Nós estamos com uma certa fartura de
mão de obra no momento, então eu não me encheria de esperanças, mas... eh....
eu poderia recomendar você, se você quiser.”
Eileen abriu um enorme sorriso para Louis: ali estava uma grande
oportunidade para ele! Peter poderia conseguir fazer alguma coisa por ele de
imediato!
Peter girou o líquido avermelhado em seu copo. “O que eles podem fazer”,
disse ele, “é te oferecer, pra começar, um arranjo só na base da comissão. Não
parece grande coisa, não é? Mas se você não deixar que eles ponham um teto,
isso pode funcionar a seu favor. Eu mesmo comecei assim, e você sabe quanto
eu tirei no meu primeiro mês?”
Durante os instantes que foram concedidos a Louis para que ele chutasse um
valor, Renée adernou no sofá como que passando mal, vencida pela alta
voltagem de mal-entendidos no ambiente.
“Dois mil e cem dólares”, disse Peter. “E isso foi três anos atrás. Tudo bem, eu
já tinha alguma experiência na época, então talvez não sejam situações
equivalentes. É provável que você tenha que ralar muito uns dois ou três meses.
Mas, se conseguir segurar o rojão, daqui a uns dois anos no máximo você vai
estar bem perto de onde eu estou agora.”
“Obrigado pelo conselho”, disse Louis. “Eu vou pensar no assunto e depois te
dou um retorno. Você tem um número de fax?”
“Basta você me ligar”, disse Peter.
“Pensa mesmo, hein, Louis?” Eileen pôs a mão no braço dele, zelosa. “Ele
realmente pode te ajudar.”
Renée tinha se teletransportado para a porta. De novo as grotescas contorções
fisionômicas enquanto ela e Eileen trocavam agradecimentos e votos de
felicidade, tentando atravessar com dignidade a hora da despedida.
“Ei, Renée”, Peter chamou do outro lado da sala. “Te cuida, tá bom?”
Do lado de fora, a cidade fazia seus ruídos farfalhantes, soltava seus suspiros e
murmúrios, suas oferendas sonoras para o céu indiferente que a cobria. Em
algum lugar, as rodas de um trem de metrô guincharam num trilho, tão longe que
o som foi diminuto. Os vingadores caminhavam pela rua sem dizer nada,
marcando compassos três por dois com os pés, os passos de Louis mais longos e
os de Renée mais rápidos. Ela estava mordendo o lábio e piscando muito os olhos,
como que tentando conter as lágrimas.
“Você teve uma noite ruim”, disse Louis.
“É. Eu tive uma noite ruim. Tive uma noite muito ruim, mas foi culpa minha.”
“Foi culpa sua a minha irmã servir um prato com carne?”
“Eu posso comer um pouco de carne. Não vai me matar. Quer dizer, sim, isso
vai me matar: eu não posso comer carne. Mas não é como se comer carne me
fizesse passar mal nem nada. A questão sou eu. É o meu problema com isso.”
“Fui eu”, ele discordou devagar, “que fiz você ir lá. A coisa toda foi ideia
minha.”
“Você sabe por que eu parei de comer carne?” Ela estava olhando fixamente
para a frente. Uma brisa úmida, prenhe de infraestrutura, arrastava foices de
cabelo pela testa dela. “Não é por... superioridade moral. Só pra você saber. É só
porque eu não quero esquecer. Eu me recuso a dizer: tá, eu vou esquecer que isso
é uma vaca. Não é nada de nobre, nada de compassivo. Sou só eu e os meus
problemas.”
Do outro lado da rua, um Toy ota Camry tinha encontrado uma vaga e estava
se enfiando nela alegremente, primeiro a traseira. Louis decidiu que aquele era
um bom momento para não dizer nada.
O trem serpenteava e gemia debaixo do centro da cidade. Passageiros
falavam baixinho e, lisonjeado com a deferência deles, o envolvente silêncio ia
ficando empanzinado e despótico. Eles já estavam quase em Lechmere quando
Louis reuniu coragem para perguntar a Renée se ela tinha conseguido extrair
alguma informação de Peter.
Ela fez que não. “Ele foi muito cauteloso, quando eu toquei no assunto. E
pareceu ficar surpreso quando eu disse a ele o que ele tinha falado na festa. Disse
que devia estar muito bêbado. Eu disse que devia ser verdade, mesmo assim, o
que ele tinha dito. Ele disse que sim, que o pai dele jurava que a empresa não
descartava resíduo nenhum, mas que ele tinha quase certeza de que eles
descartavam sim. Eu perguntei por que ele achava isso, e ele disse que tinha
ouvido algumas coisas, mas que não era nada que ele pudesse provar. E isso foi
tudo que eu consegui arrancar dele, sem dar bandeira de estar superinteressada.”
“Ele te perguntou o que está causando os terremotos? Eu percebi que você...”
“É. Eu menti, exatamente como você queria que eu fizesse. Eu me sentei lá e
contei uma mentira pra ele.”
Louis a segurou pela gola da camisa e lhe deu um puxão de orelha, mas ela
estava infeliz demais. Só depois que eles já tinham atravessado a Cambridge
Street e entrado no carro dele foi que ele perguntou: “Você não vai me perguntar
o que eu descobri conversando com a Eileen?”.
“Você descobriu alguma coisa?”
“Não. Só que os pais do Peter tinham feito seguro contra terremoto pra casa
deles. Parece que era uma cláusula especial.”
Ele ficou observando suas palavras surtirem efeito. “Está brincando”, disse
Renée.
“Ela que me contou. Eu nem perguntei nada.”
“Ninguém, absolutamente ninguém que mora aqui nessa área paga seguro
contra terremoto.”
“Pois é, foi o que eu soube.”
“Caramba.” Ela apertou a cabeça contra o encosto do banco. “Caramba.”
Pegou a mão dele e a apertou com força, depois bateu com ela em sua própria
coxa. Ele lhe deu um beijo, que ela recebeu como quem arranca uma uva do
cacho.
“Você é minha?”, ele perguntou.
“Sou!”
Eles voltaram para a Pleasant Avenue. Em cima da mesa da cozinha estavam
as passagens da United Airlines que tinham chegado pelo correio naquela manhã.
Ao que parecia, o pai de Louis havia comprado uma passagem de ida e volta de
Boston para Chicago em nome de Louis, sem avisar a ele, depois de uma
discussão que eles tiveram pelo telefone no fim de semana anterior.
“Isso”, disse Louis, cansado.
“Ainda não consegui entender por que ele te mandou essas passagens.”
Louis tomou um copo d’água. “É o lado von Clausewitz dele. A gente teve uma
discussão que terminou comigo praticamente batendo o telefone na cara dele, e
aí ele vai e compra uma passagem de avião pra mim. Porque agora vai ser culpa
minha se eu não for e fizer com que ele desperdice trezentos dólares.”
“Você pode dizer que não pode ir porque tem que trabalhar.”
“Você quer dizer contar uma mentira? Engraçado você sugerir isso.
Infelizmente, eu já contei pra ele que estou desempregado. E a questão é que foi
um gesto generoso. Eu fui absolutamente grosseiro com ele, e aí ele oferece a
outra face e me manda uma passagem que custa trezentos dólares, porque, na
lógica maconhada do meu pai, ele está tentando manter a família unida. Eu te
contei que ele me ligou porque soube da minha pequena contenda com a minha
mãe, lá na casa de Ipswich. Ele disse pra mim: Você quer estragar o sofá da sua
mãe? Tudo bem, Lou, mas você também tem que levar em consideração os
sentimentos dela. O que tem sido o refrão dele há uns vinte anos, sabe, que eu
também tenho que levar em consideração os sentimentos dela. E que é
exatamente o que ele vai me dizer se eu for até lá. Então, pra que ir lá? Eu já
ouvi isso cinquenta milhões de vezes.”
Renée pôs o queixo no ombro dele, a mão na sua virilha e o apertou. “Eu é que
não vou me opor se você não for.”
“Quem devia ir era você, não eu. Você e o meu pai iam se entender
superbem.” Ele desabou numa cadeira, e Renée se sentou no colo dele. Ele
deslizou as mãos por baixo da camiseta dela. “Bom, vamos ver como nós vamos
estar nos sentindo no próximo domingo.”
“Quando é que a gente vai fazer a sua mudança?”
“Sei lá. Algum dia antes disso. Quarta?”
“E enquanto isso?”
“Enquanto isso...” Ele puxou a camiseta dela para cima devagar, deixando-a
amontoada acima do sutiã preto.
“Eu tenho umas coisas de trabalho pra fazer. E também tenho que fazer o
backup do sistema na segunda-feira, que vai levar a noite inteira.”
Ele desenganchou o sutiã dela e libertou seus seios, aquelas coisas femininas
que, naquela noite, ele tinha tido a sensação de nunca ter visto antes. Eles eram
como bolinhos macios e vivos. Louis estava só começando a dar uma boa e
cuidadosa olhada neles, quando...
“Mm!”
Ela se levantou de um salto, puxando a camiseta para baixo, cruzou os braços e
virou para a parede. Ele achou que ela tinha ficado emaranhada em suas
neuroses de novo, mas, depois de ajeitar o sutiã, ela pediu desculpas e disse que
era só o guaxinim, o guaxinim na janela, que ela o tinha visto lá, olhando bem
para ela.
Louis ainda não tinha visto o tal guaxinim. Foi até a janela, mas, com as luzes
da cozinha acesas, só o que conseguiu enxergar através da tela foram algumas
luzes dos quintais dos fundos dos prédios vizinhos em meio às árvores e uma
extensão de calha branca na ponta do pedaço de telhado visível da janela.
“Escuta”, disse Renée.
Louis ouviu umas fungadelas estranhas, tão leves que ele ficou na dúvida se
estava ouvindo mesmo.
“Ele está logo atrás da quina do telhado”, disse ela. “Ele fica nervoso e corre
para lá, mas depois fica curioso e volta. Eu estou dizendo ‘ele’, mas não sei se é
macho ou fêmea. O que é interessante, se você para pra pensar: quando não sei o
sexo de um bicho, eu sempre digo ‘ele’. Gênero padrão: macho. Mas a gente tem
que sair de perto da janela. Ele...”
“Eu sei o que você vai dizer.”
“O quê?”
“Ele é que nem um terremoto. Só vem se você não está olhando.”
“Exatamente.”
“Mas ele vem? Quer dizer, existe mesmo um guaxinim?”
“Claro que existe! Você acha que eu estou mentindo pra você?”
Eles se sentaram diante da mesa. Louis trapaceou, fingindo não estar vigiando
a janela, mas volta e meia dando uma espiada furtiva. Mesmo assim, foi uma
completa surpresa quando ele percebeu que a tela não estava mais vazia. Em que
momento, exatamente, o focinho castanho, o nariz perspicaz que parecia de
couro e os olhos reluzentes tinham aparecido ali?
Dessa vez, quando Louis foi até a janela, o guaxinim recuou só até a calha. De
lá, lançou um olhar magoado para Louis, por cima do ombro, como um suicida
indeciso na beira de um terraço. Era um bicho grande, de rabo listrado e olhos
mascarados, maior que um gato. Assim que Louis se virou para olhar para
Renée, o guaxinim voltou para perto da janela. Ficou andando de um lado para o
outro, um borrão escuro de pelo a maior parte do tempo, mas de vez em quando
(e sempre de maneira surpreendente) ele encostava o nariz na tela e olhava para
Renée.
“Ah, ele ainda está machucado”, ela disse, preocupada.
“Isso é incrível. Você costuma dar comida pra ele?”
“Às vezes eu ponho alguma coisa do lado de fora. Ele geralmente não come
muito. Não é sempre que ele vem aqui. Às vezes ele aparece duas ou três noites
seguidas e depois some durante um mês. Uma vez, ficou três meses sem
aparecer. Eu achei que ele tinha morrido, pego por um cachorro ou atropelado
por um carro. Ou de raiva.”
Louis ficou observando o guaxinim escalar um cano de escoamento,
arqueando os ombros fortes e peludos como um gato, estendendo um braço
como um macaco e depois, ao apoiar o queixo na calha e içar o corpo para cima
do telhado, parecendo mais uma pessoa do que qualquer outra coisa. O teto
rangeu, uma vez, sob o peso dele. Com um sorriso, Louis se virou para comentar
alguma coisa com Renée, mas a cozinha estava vazia.
Foi encontrá-la nua, entre os lençóis. Cheio de desejo, tirou a roupa e foi até
ela, mas mesmo em meio a sua ansiedade, mesmo enquanto engatinhava pela
cama para os braços dela, pousava o peso do corpo sobre o corpo dela, sentia o
calor uniforme da pele dela e segurava a cabeça dela entre as mãos, ele se
perguntava como era possível que ela sempre desse um jeito de fazer com que
ele fosse até ela, e nunca o contrário. E se perguntava também por que tinha de
se sentir tão sozinho quando eles faziam amor, tão sozinho com o prazer dela
enquanto ele impulsionava a longa sequência de ondas que levava à satisfação
dela (na tela de plotagem verde, na sala de computação, ela havia lhe mostrado a
aparência que um terremoto grande e distante assumia ao ser registrado pelo
sismógrafo digital do departamento: uma linha plana e brilhante levemente
encrespada pela onda primária, sossegando por um momento, depois
ziguezagueando com mais violência quando a onda secundária chegava e com
mais violência ainda à medida que mais e mais ondas de choque ricocheteavam
no núcleo externo, no núcleo interno e na crosta da Terra, as ondas ss, scs, ss, pp
e pkikp, até que por fim a linha enlouquecia de vez sob o efeito de ondas de
superfície colossais, as ondas Love e Ray leigh, que demoliam pontes,
derrubavam prédios e rasgavam a terra por toda parte). Não era que eles não
combinassem ou não gozassem o bastante; era só que parecia que nunca, nem
mesmo naquele ato mais típico entre os sexos, ela se apresentava ou se dava ou
sequer deixava que ele a visse como uma mulher. Mesmo antes de o ciúme ter
aguçado seu interesse, Louis vinha dizendo a si mesmo para parar e olhar para
aquela mulher na próxima vez que eles fizessem amor, e toda vez que eles
faziam amor, ele esquecia e só lembrava tarde demais. Havia algo como a
própria timidez de um terremoto na maneira como ela enganava os olhos dele,
de modo que ele podia estar com ela e sentir a presença de tudo, menos daquelas
exatas qualidades que sua imaginação evocava quando ele estava sozinho e
formava a imagem mental de uma Mulher. Ele sempre tinha a impressão de que
fazer parecer que os dois eram do mesmo sexo, excitáveis por meio de nervos
equivalentes e saciáveis por meio de estímulos equivalentes, convinha a algum
obscuro propósito dela. Algum princípio de sedução, algum reconhecimento da
diferença, estava faltando. E parecia que, sempre que intuía que ele sentia uma
ausência, ela começava a falar, com uma voz bêbada de orgasmo e envolvente
como um acalanto — pró-ele, pró-eles, pró-sexo.
Então, ele acendeu as luzes. Eram duas da manhã. “Eu quero olhar pra você”,
disse.
Ela apertou os olhos na claridade. “A gente não precisa de todas essas luzes
acesas.”
Ele acendeu mais uma luz e ficou de pé ao lado da cama olhando para Renée,
determinado a, de uma vez por todas, realmente ver aquela mulher. O jogo tinha
acabado; ela não podia se esconder; nem tentou. No clarão das luzes, ele viu: o
negrume do cabelo e das pálpebras. A mancha vermelha da boca e dos mamilos.
Lábios vaginais oblíquos distendidos e salpicados de espuma. Uma orelha
transpassada de objetos de metal. A moleza dos músculos relaxados sob a pele
cinzenta. Áreas opacas e enrugadas de sêmen seco ou quase seco. Penugem
escura no lábio superior e nos pulsos. A aparência amassada e fetal de um rosto
cansado. Todas as qualidades expostas como órgãos à venda na vitrine de um
açougue francês. Era aquele o corpo quente que ele estivera abraçando? Era
aquela a sua namorada, Renée?
Ele tinha sido enganado mais uma vez. Vira um anjo planando nas correntes
termais bem acima de sua cabeça e, sem acreditar no que via, dera um tiro nele,
acabando por descobrir que ele não passava de um pedaço de carne emplumado
e desajeitado. O estrondo do tiro ecoou espaço afora como a risada do anjo que
havia escapado.
Com uma suspeita falta de curiosidade em relação ao que ele estava fazendo
ali em pé, Renée puxou o lençol até os ombros. Louis supôs que fosse possível
que ela estivesse só com muito sono. Voltou para a cama, ansiando
desesperadamente por ela.
No domingo, o Globe publicou um artigo interminável sobre os terremotos
recentes, as longas colunas ladeadas pela costumeira escolta de fotos, gráficos e
boxes. Renée não era mencionada no texto principal, mas era citada num boxe
que trazia o título: terremotos: vontade de deus, espíritos da terra ou fenômenos
fortuitos?

Para a sismóloga Renée Seitchek, da Universidade Harvard, a linha que


separa ciência e religião mostrou-se particularmente tortuosa. Seitchek, que
numa entrevista concedida à televisão em 27 de abril denunciou os esforços
empreendidos por Stites para associar a questão do aborto aos tremores,
virou alvo de um assédio telefônico e postal ilegal dirigido a clínicas e
médicos que realizam abortos e a outros defensores do direito de escolha na
Grande Boston.
Stites e outros líderes da Igreja da Ação em Cristo negam qualquer
responsabilidade pelo assédio, mas Seitchek acredita que a avalanche de
cartas iradas que recebeu constitui uma tentativa por parte da direita
religiosa de reprimir a livre e acurada expressão de opiniões científicas.
“A ciência dos terremotos é uma ciência de incertezas”, disse Seitchek.
“Ao admitir essa incerteza nós corremos o risco de parecer estar abrindo
espaço para a superstição. No entanto, se uma cientista tenta se antecipar a
isso e traçar uma linha clara entre o debate científico e o debate moral, ela
aparentemente está correndo o risco de ser molestada por Philip Stites.”

De acordo com o texto do boxe, o fato de Stites ter “previsto com sucesso” os
recentes terremotos havia atraído dezenas de novos seguidores para sua igreja,
que ainda continuava alojada no instável prédio de Chelsea. A igreja garantia não
ter sofrido “nenhum dano significativo” desde que se transferiu para lá, embora a
essa altura não haja praticamente nenhuma residência ao norte de Cambridge
que não tenha tido algumas louças quebradas ou paredes rachadas.
De fato, estimava-se que o valor acumulado dos danos à propriedade já havia
atingido a marca dos cem milhões de dólares, dos quais mais de oitenta por cento
se deviam ao mais recente par de terremotos perto de Peabody. Numa folha de
papel que trazia o título culpa deles, Louis escreveu:

20 de abril, Peabody $3.400.000


10-11 de maio, Peabody $80.000.000+

Fazer aqueles zeros todos lhe deu uma grande satisfação.


Em seu tempo livre, Renée continuava a desenvolver os argumentos científicos
para embasar uma acusação contra a Sweeting-Aldren, estudando todos os casos
documentados de sismicidade induzida. Louis ficava contente de vê-la
trabalhando, mas não estava com a menor pressa que ela terminasse. Quanto
mais eles demorassem a tomar providências contra a empresa, mais tempo a
terra teria para tremer de novo debaixo de Peabody, causar mais estragos e
elevar a conta do prejuízo da empresa a alturas ainda mais gratificantes. Na
visão dele, os executivos da Sweeting-Aldren eram calhordas e inimigos da
natureza, e ele queria vê-los falidos, se não na cadeia. Sentia um suspense de
uma intensidade quase erótica enquanto esperava, dia após dia, o próximo grande
terremoto. Para se ocupar, começou a ler textos básicos de sismologia enquanto
Renée estava no trabalho.
No fim da tarde de quarta-feira, ela voltou para o apartamento com uma nova
pasta de arquivo cheia de fotocópias. Tinha estado na biblioteca Widener, lendo
jornais velhos.
“Tem algumas coisas interessantes aí”, disse ela.
Ele abriu a pasta avidamente, mas Renée não deixou que ele começasse a ler.
“Vamos buscar as suas coisas. Depois eu te falo o que eu encontrei.”
Era verão novamente. O calor subia em espirais das capotas dos carros na
terra de ninguém da Davis Square, o toldo do Somerville Theater tremendo no
volúvel torvelinho da fumaça de canos de descarga. Louis e Renée frequentando
aquele cinema à noite por causa das sessões duplas baratas e do ar-condicionado
de graça.
Na Belknap Street, a soprano estava com as janelas abertas e cantava como se
estivesse à beira da morte. A voz parecia vir de todos os lados. Era um som tão
amplo que era difícil acreditar que saísse de uma coisa tão estreita quanto uma
boca humana. “Eu gostaria de fazer essa pessoa passar vergonha”, disse Renée.
Louis a botou para trabalhar na cozinha, o cômodo mais distante do inferno de
tormentos melodiosos. A soprano berrava e berrava. O ouvido torturado não
conseguia acreditar que nenhuma autoridade fosse aparecer com uma agulha ou
uma arma para acabar com aquele desespero, pelo bem da humanidade. Louis
manteve aberta a porta da frente do prédio com um calço e pegou uma corda de
dentro do Civic. O futon ia viajar na capota do carro.
“Ei, Lou. Lou! Por onde você andava, Lou?” John Mullins desceu os degraus
de sua varanda, zangado. Plantou os pés na pista de entrada com a cabeça
projetada para a frente, como um profeta do deserto. Uma gota de suor em
forma de cisto pendia de seu queixo. “Teve gente aqui te procurando, Lou”, disse
ele, todo reprovação. “Onde é que você andava? Onde é que você andava? Ah,
meu Deus, você não está se mudando, está? Lou? Você não está se mudando
daqui? Qual é o problema, você não, você não, você não gosta daqui?”
“Gosto. Adoro”, disse Louis por cima da ária. “Eu só estou vendo se as minhas
coisas cabem todas no meu carro.”
“Ah, o pequeno Honda Civic. Você gosta desse carro? Ah, ei, Lou, aquela
menina que esteve aqui te procurando, ela conseguiu te encontrar? Você sabe de
quem eu estou falando? Uma menina bonita.”
A parte instintiva de Louis, a parte relacionada com pressão sanguínea e
estômago, não a parte cognitiva, perguntou a Mullins: “Quando foi isso?”.
“Hoje de manhã. Por volta de nove, nove e meia. Eu estava lendo o jornal. Eu
disse pra ela que você não costuma aparecer muito por aqui durante o dia.”
“Como ela era?”
“Uma moça alta. Disse que estava procurando você.”
“Gordinha, de óculos?”
“Não, não. Uma moça bonita. Estava carregando uma mala.”
Louis entrou no prédio. Quase na mesma hora, tornou a voltar para a rua e
ficou olhando para o carro, tentando se lembrar do que tinha de fazer. Tocou no
carro uma vez, na capota, voltou para o apartamento, foi direto para o seu quarto
e ficou andando em círculos. Renée empacotava coisas ruidosamente na cozinha,
talheres batendo na frigideira, a caixa de papelão grunhindo enquanto suas abas
eram dobradas umas sob as outras. Ele deveria pegar as coisas e levá-las para o
carro. No entanto, tudo que ele olhava com a ideia de levar para o carro parecia
não ser a coisa certa para levar naquele exato momento. Ele continuava
zanzando pelo quarto. Parecia uma pessoa que vê que sua casa está pegando fogo
e não consegue decidir qual de seus pertences é o mais precioso e então não
consegue salvar coisa alguma. A única coisa de que ele tinha certeza era que
queria matar a soprano, que tinha começado a dar longos agudos e a exagerar no
tremolo. Mas aquela voz persistente, incessante, lhe parecia agora uma
propriedade fundamental do mundo que ele não tinha como mudar. Parou diante
de sua janela e ficou olhando na direção de onde a soprano cantava, atrás de
telas opacas. Não se sentia nem infeliz nem feliz. A frente de onda avançava
pelas montanhas, alterando a paisagem quando chegava, e então ele estava
dentro dela, dentro dela. E isso era tudo.
Mais cedo do que esperava, ele ouviu vozes na parte da frente do apartamento.
Vozes femininas. Passos. Renée apareceu, com a caixa de papelão nos braços.
Ela falou como a mãe imperfeitamente enganada de um fugitivo, quando a
polícia aparece na sua porta.
“Tem uma pessoa aqui querendo falar com você.”
Deu um passo para o lado, abrindo caminho para ele passar, claramente
tirando o time de campo para não criar embaraços. Quando, em vez de sair, ele
olhou para ela e tentou dizer alguma coisa, ela se sentiu impelida a acrescentar:
“É a sua amiga Lauren”.
“Ah”, ele disse. “Ah.”
Ele sentiu os olhos de Renée sobre ele enquanto ele atravessava o corredor,
sentiu todo o peso da possessão dela, de modo que não chegou a ser nenhuma
grande surpresa que a garota parada perto da porta da frente, ao lado de uma
pequena mala cor de palha sobre a qual estava pousada uma jaqueta de couro
preta, lhe parecesse uma visão da libertação. Lauren estava bronzeada, com o
cabelo loiro e mais alta do que ele se lembrava. Bastou ele bater os olhos em
Lauren para que ficasse claro com que afinco sua mente vinha se treinando para
apreciar Renée — a se concentrar naquelas partes dela que eram bonitinhas e
jovens e ignorar o fato maior, qual seja, que ela tinha trinta anos e não era linda.
Ele era capaz de reconhecer uma conta de grande valor sem precisar ler os
números escritos nela e era capaz de reconhecer a beleza de Lauren sem
precisar examinar suas pernas compridas e musculosas de uma mulher de vinte
e dois anos, sua pele dourada de uma mulher de vinte e dois anos, seu cabelo
sedoso, que agora chegava até os ombros, de uma mulher de vinte e dois anos.
Ela estava usando a mesma minissaia xadrez plissada que vestia quando ele a viu
pela primeira vez, sapatos pretos e meias três-quartos parecidos com os daquele
dia e uma camiseta regata branca úmida de suor entre seus seios.
A soprano, que tinha parado de cantar, deixara uma inoportuna quietude.
“Oi, Louis”, disse Lauren, com uma voz neutra e instável, sem olhar para ele.
“Oi, hã... O que houve?”
“Nada. Eu só vim te ver.”
“Onde é que está o Emmett?”
Ela não deu nenhum sinal de ter ouvido a pergunta.
“Não está aqui, obviamente”, disse Louis.
Ela mordeu os lábios, ainda sem olhar para ele.
“Onde é que ele está, Lauren?”
Ela levantou o queixo e disse: “Nós não estamos mais juntos”.
“Ah, sei. Você o deixou. Ele deixou você. Vocês estão separados.
Divorciados.”
Essas palavras lhe causaram grande desconforto. Ela olhou para seus sapatos,
inspecionando os dois lados de um deles. “Sei lá. Eu posso entrar?”
“Talvez não.”
“Eu cometi um erro terrível, Louis, um erro terrível. Posso entrar?”
“O que é que você quer?”
“Eu quero saber se estou chegando tarde demais. Se já for tarde demais, eu
não vou entrar. Eu posso entrar?”
Renée agora estava parada no vão da porta entre a sala de jantar e a cozinha,
de onde não podia ver Lauren e nem Lauren a ela, mas Louis estava vendo as
duas.
“Aquela era a sua namorada, não era?”, Lauren perguntou.
Ele se virou para Renée, como se tivesse que perguntar a ela antes de
responder. A cara de Renée deixava claro que ela achava que ele já devia ter se
livrado da visita àquela altura. Fez gestos impacientes: Então? O que é que você
está esperando! Mas, como ele continuou sem dizer nada, a impaciência dela foi
cedendo lugar ao espanto, depois o espanto cedeu lugar à dor e, por fim, a dor
cedeu lugar a uma acachapante incredulidade, sendo cada um desses estágios
visíveis e distintos.
“Ah, ela está aí?”, disse Lauren, se fingindo de burra.
Você pode me machucar. Um pouco. Pode me morder ou...
Ele tinha consciência de que estava cometendo um erro, mas não tinha
controle. Ficou fascinado com a dor no rosto de Renée. Estava finalmente
conseguindo vê-la. Ela finalmente estava nua, e ele continuou a olhar para ela,
pensando: Eu sou um estuprador também. Eu sou um sádico também, enquanto a
machucava para o seu próprio prazer, fazendo isso com o seu silêncio e
entendendo agora o que as pessoas queriam dizer quando falavam que um pênis
pode comandar um homem, porque era exatamente assim que ele estava se
sentindo. Mas ela era uma pessoa, era só uma pessoa decente, e não estava
interessada em aceitar esse tipo de coisa. Com terrível dignidade, ela atravessou
a sala de jantar e a sala de estar. Quando passou por Lauren, que se afastou
como quem evita trombar com um estranho na calçada, ela derrubou no chão a
jaqueta de couro que estava em cima da mala e por pouco não tropeçou nela
enquanto saía às pressas porta afora.
“Putz”, Louis murmurou para o espaço vazio que ela deixou atrás de si. Não
conseguia acreditar naquele sangue todo em suas mãos.
Lauren fechou a porta e pendurou a jaqueta na maçaneta. “Ela era sua
namorada, não era? Pode falar.”
“Putz”, ele murmurou de novo. Não estava sóbrio o bastante antes para se dar
conta de que o que tinha feito com Renée era a pior coisa que alguém poderia
fazer com ela. Mas ele a conhecia e sabia que aquilo era a pior coisa. Era
justamente a pior coisa. E embora não tivesse “se dado conta”, ele sabia muito
bem.
“Eu imaginei que você pudesse ter uma namorada”, disse Lauren,
esparramando-se quase na horizontal no sofá bege. “Era um risco que eu estava
correndo. Mas eu sabia que, se fosse preciso, podia dar meia-volta e voltar direto
pra casa.”
O fato de que ela teria de voltar a pé para casa agora. O orgulho com que ela
andaria aqueles quatro quilômetros. E os cachorros não iam uivar, e ela subiria as
escadas galgando dois degraus de cada vez com aquele seu uniforme de tênis,
jeans e camiseta, e trancaria a porta atrás de si, e será que ia chorar? Ele só a
vira chorar uma vez e tinha sido por causa de uma dor física. E assim que ela
trancou a porta, nos olhos da imaginação de Louis, ficou difícil continuar a vê-la.
“Você quer que eu vá embora?”, Lauren perguntou. “Ela vai te perdoar, se
você explicar as coisas. É só você falar a verdade que ela vai te perdoar.” Ela
abriu os dedos e examinou suas unhas. “Porque, sabe, eu não quero me
intrometer, se ela for sua namorada. Ela é sua namorada, não é? Eu vi pelo jeito
como ela olhou pra mim. Ela é sua namorada.”
“É.”
“E você ama a sua namorada?” Lauren virou a cabeça para o lado, nervosa,
sem querer ouvir a resposta. “Eu posso ir embora agora mesmo.”
“Não! Não. Eu só... vou lá embaixo trancar o meu carro.”
Renée não estava esperando ao lado do carro nem em nenhum lugar por perto.
Louis olhou para o ar vazio acima da calçada, por onde necessariamente ela
tinha de ter passado, já que não estava mais à vista. A lógica ditava que Renée
tinha vencido aquela distância, mesmo que ninguém a tivesse visto fazer isso.
Ditava também que, naquele exato momento, ela estava em algum lugar entre
aquela calçada e o apartamento dela, não simplesmente em qualquer quarteirão,
mas num quarteirão específico, seguindo em frente, à vista de todos. Ditava
ainda que um observador dentro de um balão poderia ter acompanhado cada
passo que ela deu desde o momento em que saiu dali até a hora em que chegou à
Pleasant Avenue, subiu os quatro degraus de concreto desmantelados até a porta
de sua casa e desapareceu porta adentro.
Louis pensou: Eu odeio essa mulher.
Assim que ele entrou no apartamento, Lauren se levantou, esticou os braços
para cima com volúpia e sorriu, como se fosse de manhã e ela tivesse dormido
divinamente bem e soubesse que ele, mais que ninguém, ficaria feliz em saber
disso. Liberto do fardo de ver Lauren pelos olhos de Renée, ele agora estava
devidamente pasmo de ver no apartamento bege de Toby aquela menina linda e
complicada que ele tinha amado tanto. Ela veio até ele e encostou o rosto no dele,
inclinando-se para trás por um momento para tirar-lhe os óculos. Sem beijá-lo,
mas com os olhos fixos nos dele com o espanto e a expressão vazia e parva que
olhos assumem quando focalizam alguma coisa de muito perto, e com o nariz
apoiado no dele e suas palavras fazendo os lábios dele vibrarem, ela disse: “Eu
estou apaixonada por você, Louis, penso em você todos os minutos do dia, eu
estou apaixonada por você, eu te amo, eu te amo, eu te amo, eu te amo, eu te
amo”.
Tomou fôlego, suas pupilas e suas íris de um verde-acinzentado leitoso ainda
centradas na visão dele. Beijou-o, botando as mãos dele em partes diversas de
seu corpo, cerrando os punhos e apertando o peito dele com os nós dos dedos.
Virava a cabeça de um lado para o outro debaixo da boca de Louis, como se ele
fosse uma ducha que ela estava tomando. Seu perfume estava tão integrado ao
cheiro de seu rosto suado que o nariz dele não conseguia encontrar a fronteira
entre os dois, era tudo um cheiro bom de Lauren.
“Eu juro pra você”, disse ela. “Eu faço o que você quiser. Eu fico, eu vou
embora, eu volto pro Emmett, eu largo o Emmett, eu me caso com você, eu
tenho filhos com você, eu trabalho pra você, eu me caso com você ou moro com
você sem estar casada com você. Eu faço qualquer coisa. Eu fico enquanto você
me quiser e vou embora quando você mandar, você pode ser o meu dono, pode
me botar pra fora ou ficar comigo, pode fazer qualquer coisa comigo menos me
vender, qualquer coisa, qualquer coisa, qualquer coisa.”
Ele a abraçou, lembrando as dimensões específicas dela e a sensação de tocar
em suas costas quando ela chorou na cozinha dele em Houston, e ele pôs os
braços em volta dela.
“Ah, Louis”, ela disse, chorando e sorrindo. “Você foi tão bom pra mim e eu
fui tão má com você. Mas agora eu vou compensar o que fiz. Se você deixar, eu
vou compensar.”
“Embora, claro, você esteja casada agora.”
“Ah, isso.” Uma expressão culpada, melancólica, familiar a Louis, surgiu no
rosto dela. “Eu ainda continuo tentando ser uma boa pessoa, sabe. Eu estou
tentando amar a Deus e ser uma boa cristã, e estou aqui em Boston me
encontrando com você. O casamento é um santo sacramento e eu estou aqui me
encontrando com você. É como se eu fosse a mesma pessoa de sempre, não é?
Tudo que eu toco vira lixo. E o negócio é que você é a única pessoa que eu já
conheci na vida que acha que eu valho alguma coisa. A única. Lembra quando
eu te falei que nunca tinha amado ninguém de verdade?”
“Lembro.”
“Bom, isso era verdade. Era verdade. Mas agora não é mais, porque assim que
eu não pude mais te ver, eu comecei a sentir uma coisa. Acho que eu imaginava
que fosse culpa ou alguma coisa assim, mas eu queria muito te ver e falar com
você, só pra ouvir um pouco a sua voz, mas eu já tinha te dito que a gente não ia
poder, e eu achei que você devia estar com ódio de mim e não ia acreditar, de
qualquer maneira.”
Ela se sentou no sofá e franziu o cenho, como se alguma coisa não estivesse
fazendo muito sentido. “Mas, sabe, tinha o Emmett também”, disse ela. “Eu
sentia pena dele, porque ele sempre foi inacreditavelmente paciente comigo e,
além disso, a família dele realmente parecia gostar de mim. Eles me deram um
monte de coisas quando eu e o Emmett ficamos noivos, a avó dele me deu um
colar de pérolas lindo e a mãe dele me deu uma caixa de joias incrustada que
tinha tipo uns cento e cinquenta anos e estava na família sei lá desde quando. Mas
aí eu dormi com alguns outros caras e também disse pra você naquele dia que
dormiria com você, bem debaixo do nariz dele, e então eu devolvi o anel de
noivado pra ele, mas nunca nem tive a coragem de devolver as outras coisas. E
aí, quando nós começamos a namorar de novo, todo mundo da família dele
continuou sendo inacreditavelmente gentil comigo. Eles me tratavam como se eu
tivesse andado doente, mas agora já estivesse melhor, e eu sentia tanta pena
deles e me sentia muito grata também, sabe. E aí eu pensei: Esse é o sacrifício
que eu vou fazer, sabe. Porque tudo o que eu queria era ser uma boa pessoa. E é
óbvio que pra ser uma boa pessoa você tem que sacrificar algumas coisas. Além
do mais, eu pensei, eles são tão legais comigo que nem é tanto sacrifício assim. E
os meus pais queriam que eu me casasse, porque eles acham que o Emmett é
um rapaz maravilhoso, e ele é, imagino, só que eu não amo o Emmett. Eu só
amo você.”
Louis fechou os olhos.
“Mas, enfim. Nós nos casamos.” Lauren ficou mordendo o lábio, os olhos fixos
no vazio, provavelmente lembrando alguma cena ou cerimônia. Louis pensou
que ela fosse continuar, mas aparentemente isso era tudo o que ela tinha a dizer.
“E depois? Você acabou descobrindo que ele é um monstro, foi isso?”
Ela sacudiu a cabeça.
“Sim? Não?”
Empoleirada na beira do sofá, ela olhava com ar sombrio para um radiador
prateado. Jogou a cabeça para trás, afastando o cabelo dos ombros. Sua
expressão era dura e indiferente. “Eu traí o Emmett.”
“Arrã. Claro.”
“Eu não sou uma ótima pessoa, Louis? Eu não sou, assim, a melhor pessoa que
você conhece? É que tinha um cara que eu conhecia antes, e era como se eu
tivesse tão mais a ver com ele do que com o Emmett, sabe. Ele transava com
todo mundo, sabe esse tipo de pessoa? E eu simplesmente não estava nem aí. Eu
sabia que tinha feito um sacrifício grande demais, e era como se eu precisasse
fazer alguma coisa muito escrota pra compensar, sabe, pra equilibrar as coisas.
Sei lá. Eu não sei o que passou pela minha cabeça. Acho que eu acabei me
tocando que queria que o Emmett me desse um chute na bunda de novo, porque
eu estava com essa coisa dentro de mim. E essa coisa era que eu estava
apaixonada por outro cara, um cara que era apaixonado por mim até que eu o
magoei, e agora eu estava sentindo muita falta dele e percebi que o amava
muito.” Lágrimas brotaram em seus olhos de novo e ela abaixou o queixo, como
que tentando arrotar, os olhos ainda fixos no radiador. “Quer dizer, o Emmett é
supercarinhoso e tudo, mas ele me trata como se eu fosse uma criancinha
doente, e aí depois de um tempo eu fico de saco cheio e vou e faço uma coisa
escrota dessas com ele, mas isso só deixa mais claro ainda que eu sou mesmo
uma criancinha doente, sabe. E aí acaba que eu não consigo mais acreditar que
em algum lugar lá dentro dele, por trás de toda aquela gentileza, ele não sinta na
verdade um ódio profundo de mim e queira que eu morra.”
Houve um longo silêncio. Louis sentiu pânico ao pensar em Renée, que durante
aqueles minutos em que ele não estivera pensando nela sem dúvida devia ter
percorrido todo o caminho de volta até seu apartamento. O tempo estava
passando na vida dela, mesmo que estivesse estagnado na dele. Ela estava tendo
todo aquele tempo para pensar, e ele não.
Uma pergunta em voz baixa atravessou a sala: “Qual é o nome dela?”.
“De quem? Ah. Renée.”
“É um nome bonito.”
“Ela detesta.”
“Detesta?”
“É o que ela diz.”
“Ela está apaixonada por você?”
“Eu não sei.”
“Vocês são mesmo namorados?”
“Eu não sei.”
“O que você acha da ideia de sair comigo? Eu quis dizer hoje, agora.”
“Você não está cansada?”
“Estou, mas eu quero sair com você. Era o que eu estava com vontade de
fazer o dia inteiro. Eu só preciso ir ao banheiro.”
Eles estavam entrando no carro de Louis quando John Mullins veio de trás da
casa capengando e tropeçando pela pista de entrada. Mirou seu rosto lívido em
Louis, sua boca feito um buraco de bala, e ficou olhando fixamente para ele sem
dar nenhum sinal de reconhecimento.
“Você já tinha vindo aqui antes?”, Louis perguntou.
Lauren fez que não. “É bonito. É tão diferente. A gente soube dos terremotos
todos. Você sentiu a terra tremer? Ficou com medo?”
“Nã.”
Os polígonos de terra entre as trilhas de pedestres do Harvard Yard tinham sido
semeados e cercados com cordas para engordar a grama em benefício do prazer
de pisotear de alunos, pais de alunos e ex-alunos, quando eles acorressem à
universidade em fins de junho. Por alguma razão, um pequeno grupo de
mulheres da Igreja da Ação em Cristo estava fazendo uma manifestação em
frente ao Holy oke Center, carregando enormes fotografias de fetos abortados. As
cores das fotos eram berrantes e oleosas, como picles coreanos. As mensagens
centravam-se nos assuntos do momento: terremotos são a ira de deus. cambridge
= epicentro do massacre. salmo 139.
Ao lado das escadas rolantes da Red Line, jovens punks bebiam vodca e
chutavam bolas de meia. Hare Krishnas com túnicas da cor de sorvete de laranja
tocavam tambores e faziam malabarismos em frente à Coop. Lauren mexia os
ombros enquanto andava, nem de longe intimidada pela cena. Os pedestres nas
ruas transversais, os homens de rostos lisos e sapatinhos estreitos, as mulheres de
cabelo escorrido, boca pequena e óculos escuros sexy não representavam
nenhuma ameaça a sua confiança. Ela botou a mão no bolso de trás da calça de
Louis. Um ano atrás isso era tudo o que ele queria, andar com ela pela rua e ser
seu namorado.
Eles pararam em frente a um restaurante Tex-Mex ligeiramente decadente.
Louis queria recuar da porta — a clientela era o que Renée teria chamado de
“pessoas por dentro” e que ele considerava “o tipo de gente que é amiga da
Eileen” —, mas Lauren o rebocou lá para dentro. Ela escolheu uma mesa na
seção de fumantes, explicando em voz baixa que ainda fumava e bebia um
pouco, porque tinha se dado conta de que era impossível virar uma pessoa
perfeita de uma hora para a outra. “A única época que eu não fiz merda foi no
verão passado, quando estava me encontrando com você. Foi a única vez na
minha vida inteira que eu não me senti uma merda. Você me ajudou tanto. E eu
fui tão má com você.”
Ela se encostou na cadeira para abrir espaço em seu colo para o cardápio.
Louis perguntou de onde ela estava tirando o dinheiro para pagar suas despesas e
ela disse que estava usando seu cartão American Express, cujas faturas eram
pagas pelos pais de Emmett. “É muita sacanagem minha, não é? Pegar um avião
pra vir pra cá desse jeito.”
“Você vai dar o dinheiro pra eles depois?”
Ela deu de ombros. “Eles são cheios da grana.”
“Mesmo assim, eu acho que você deve pagar pra eles assim que puder.”
Ela fez que sim, com ar de menina obediente. “Está bem.”
Louis lançou um sorriso benigno para os estudantes barulhentos nas mesas
vizinhas. Que coisa sociável e prazerosa poder ser uma pessoa normal e comer
num restaurante animado, cercado de outras pessoas jovens que estão fazendo a
mesma coisa, e como seria particularmente prazeroso fazer isso na companhia
de uma garota bonita que acabou de declarar o amor dela por você. O
ressentimento monumental de Louis contra gente da laia do todo-asqueroso sr.
Aldren se reduziu a uma irritação que ele podia pegar ou largar. Era verdade
que, quando Lauren o deixou sozinho com as fajitas por alguns míseros instantes,
para ir ao banheiro, as brasas dentro dele se reacenderam, e ele começou a
fuzilar com os olhos um grupo de moças e rapazes estudantes de direito de uma
mesa próxima, que volta e meia forçavam a atribulada garçonete a trocar
provocações zombeteiras com eles. Um bolo com velas foi levado para a tal
mesa e, sendo muito originais, quatro dos cinco rapazes cantaram “Parabéns pra
você” fazendo a harmonia em vez da melodia. Quando estavam cantando muitas
felicida-ades, o quinto rapaz resolveu ser criativo e original também, e então só
sobraram as moças para fazer a melodia. Mas quando Lauren voltou e sugeriu
que eles fossem a algum lugar para dançar, Louis se acalmou na mesma hora.
Ele lançou um olhar cobiçoso para o cartão de crédito dela. Estava quase na
miséria.
Gramados frescos e fumaça de cigarro, uma noite quente de junho. Fazia
cinco horas que Renée tinha ido embora; ela agora já havia tido cinco horas para
ficar pensando, sozinha. Louis comprou um Boston Phoenix e Lauren descobriu
nele uma boate do outro lado do rio; quando eles chegaram lá, Louis ficou
assombrado ao pensar que aquela boate provavelmente vinha funcionando todas
as noites desde que ele chegara a Boston, oferecendo diversão para uma
multidão cuja idade média era mais ou menos a dele. Eles estenderam as mãos
para que fossem carimbadas, as fivelas e tiras da jaqueta de Lauren balançando.
Louis não mencionou que a única vez na vida em que ele havia topado dançar
tinha sido numa festa de Primeiro de Maio em Nantes, no meio de argelinos.
Felizmente, a boate já estava lotada e dançar ali era basicamente uma questão de
dar trombadas e amassos, de qualquer forma. Além do mais, com exceção de
algumas faixas de rap, a música era horrorosa e difícil de acompanhar com
movimentos, o ritmo “raso”, como críticos de restaurantes às vezes dizem ao
descrever o tempero de um chili, com “um calor fugidio e superficial” em lugar
do “calor profundo e picante” que advém de um preparo cuidadoso e de bons
ingredientes. Mas com Lauren em seus braços, Louis podia experimentar as
alegrias de ser acrítico.
No carro, eles vararam a Soldiers Field Road com as janelas abertas, o cabelo
de Lauren se encapelando e migrando para o ombro que estava mais distante da
janela, o rio deslizando contra as luzes do mit e de Harvard, as luzes deslizando
contra as seis estrelas boreais visíveis na noite mormacenta. O fato de ser uma e
meia significava que Renée havia tido agora quase oito horas para ficar sozinha,
pensando, mas Louis só computou esse número por hábito, porque não estava
mais conseguindo imaginá-la muito bem.
No apartamento dele, os dois se deitaram vestidos no futon e Lauren
experimentou os óculos de Louis. “É assim que você é”, disse ela, se arrastando
para ele, os óculos escorregando até a ponta de seu nariz e seu cabelo caindo
sobre as orelhas de Louis. Fazia muito tempo que ele não via alguém tão feliz
como ela estava. Não parava de fazer gracinhas, e a verdade era que convinha
às necessidades de ambos agir como adolescentes, curtindo as roupas que os
mantinham separados, dando passos bem pequenos pela estrada carnal,
apreciando a paisagem ao longo da estrada, seu clima e seus cheiros, e se
lembrando de quando uma estação do ano era tão longa que você esquecia que
outras estações vinham depois, e um cheiro era um cheiro e um som era um
som, sensações ainda não contaminadas por lembranças. Por fim, quando
ouviram a impressora de Toby começar a trabalhar, eles tiraram algumas peças
de roupa. Lauren ofereceu seus seios casualmente, como encantos extras que ela
ficava contente em doar aos necessitados. Mas quando ele pôs a mão em sua
calcinha, ela o deteve, dizendo: “Para”.
“Você não...?”
“Eu não preciso disso”, ela disse, com uma voz muito rouca.
Ele deitou de barriga para cima, precisando demais daquilo.
“Se nós fizéssemos isso agora”, ela disse, se inclinando por cima dele e
roçando o peito no dele. “Nós seríamos canalhas.”
Louis imaginou Renée sozinha no apartamento dela e pensou que, àquela
altura, não faria muita diferença se ele já tivesse sido um canalha.
“Você não acha?”, Lauren sussurrou. “Você não acha que a gente devia
começar desde já a tentar ser forte e fazer o que é certo? Você não acha que há
certas coisas que nós não deveríamos fazer se não vamos ficar juntos? Será que a
gente não pode só ficar feliz desse jeito?”
Louis duvidava muito que houvesse algum jeito de ele ficar feliz. Sabia que, se
prometesse amá-la, ela tiraria a calcinha e deixaria que ele gozasse dentro dela,
e que de algum modo seria fácil para ele depois dar um fora nela e voltar para
Renée. O que o deteve não foi o medo de magoá-la. Foi o fato de que ele sempre
tinha sido bom para ela e de que acreditava que ela realmente o amava agora, e
ele não conseguia suportar a ideia de matar a precária fé de Lauren na bondade
de um ser humano. Só o que ele podia fazer era ficar ali quieto e torcer para que
ela trepasse com ele assim mesmo, sem fé, movida por uma pena que ele não
merecia. Depois ele podia se livrar dela.
“Você não acredita que eu te amo?” Ela apoiou o queixo na coxa dele. “Você
tem que acreditar. Você tem que me dar um tempo pra eu te mostrar o quanto
eu te amo. Você tem que me dar uma chance, porque eu realmente te amo,
Louis. Eu te adoro. Eu te adoro.” Por cima da cueca, ela deu um beijo no pau
dele, que estremeceu violentamente. “Eu faço o que você quiser, se você me der
uma chance. Mas se você realmente acha que é possível que você ainda me
ame, mas não tem certeza, você não vai me pedir pra fazer certas coisas ainda.”
“A sua passagem”, ele disse. “A volta é com data aberta?”
“Eu só comprei a passagem de ida.”
“Nossa, os Osterlitz vão realmente ficar contentíssimos com o que você fez.”
“Não, eu comprei uma passagem de stand-by. Eu vim de stand-by.”
“Bom, eu acho que você deve tentar pegar um voo de volta no domingo.”
“E onde eu vou ficar quando chegar lá?”
“Você não pode ficar na casa de alguma amiga sua?”
“Eu não posso ir pra Chicago com você?”
“Não. Eu tenho que pensar.”
“Mas depois você vai voltar pra cá, e ela vai estar aqui. E mesmo que você só
se encontre com ela pra dizer que quer terminar o namoro, você vai me
esquecer e vai querer ficar com ela. E eu vou estar lá em Austin, esperando
alguma notícia sua, e daí eu vou ter que vir pra cá de novo, mas não vai adiantar
nada porque você já vai ter resolvido que gosta mais dela do que de mim.”
Ele não sabia o que dizer em resposta a isso.
“Mas você tem razão”, disse Lauren. “Você tem razão, mas você vai ter que
olhar nos meus olhos e jurar por Deus que não vai se esquecer de mim. Você
tem que prometer que vai pensar em mim.”
“Sem problema.”
“Porque eu não quero você se você não me quiser de verdade. Não quero que
você fique o tempo inteiro pensando que tomou a decisão errada, como eu fiquei.
Eu não quero que você se sinta infeliz. Eu vou, Louis. Eu vou pra Austin, porque
eu te amo demais. Mas você tem que me prometer que vai pensar em mim.”
“Isso não vai ser um problema.”
“Eu te amo tanto. Eu te amo tanto. Eu te amo tanto...”
Várias e várias vezes no decorrer daquela noite Louis sonhou que estava
perdendo o voo. Estava na sala de espera do aeroporto com Lauren, que o tratava
com frieza, enquanto ele implorava um sorriso e uma palavra gentil. Várias e
várias vezes ele se deu conta de que era um dia antes do que ele achava que
fosse e de que não tinha perdido o voo coisa nenhuma. Mas isso acabava sempre
se revelando uma ilusão. Era domingo, sim, e ele olhava para um relógio de
parede e se tocava de que tinha três segundos para chegar até a outra ponta do
aeroporto. Já estava até vendo o avião saindo do portão de embarque.
Eles foram acordados pelo zumbido de insetos vespertinos. Dias de verão,
quando você acorda no meio deles, ficam zangados com você, galhos e folhas
poeirentas se debatendo sob o jugo de um vento quente do sul, ares-
condicionados trabalhando sem parar. Louis estava falando com Toby pelo
telefone quando Lauren emergiu do banheiro, onde tinha tomado uma
chuveirada. “Parece Houston”, disse ela. “Eu pensava que aqui fosse mais frio.”
No final da tarde, eles foram de carro até a Pleasant Avenue. Embora
soubesse que era maldade, Louis deixou que Lauren descartasse as objeções dele
e fosse com ele até lá. Ela ficou esperando no carro enquanto ele subia. Os
dobermanns se atiraram com força contra a porta do apartamento térreo, mas a
tranca aguentou firme. Lá em cima, preso com um pedaço de fita adesiva na
porta de Renée, aguardava-o um envelope com o seu nome escrito na caligrafia
íntegra dela. Dentro do envelope, ele encontrou as passagens de avião e mais
nada. Duas sacolas do DeMoula’s estavam pousadas ao lado da porta, uma delas
com as roupas sujas de Louis. As roupas limpas tinham sido dobradas e postas
dentro da outra sacola junto com as fitas cassete e outros objetos dele. Sua
televisão estava ao lado das sacolas.
Pela janela do hall, ele viu um enorme amc Matador branco estacionado do
outro lado da rua. Era o carro de Howard Chun. Nuvens de fumaça de cigarro,
fantasmagóricas sob a luz cor de fumaça da rua, saíam de dentro do Civic de
Louis.
Ele espiou pelo buraco da fechadura; a luz da cozinha estava acesa. Encostou a
orelha na porta; não ouviu som algum a não ser o de sua própria orelha roçando
na madeira. Então, a buzina do Civic soou, e ele pegou as sacolas e a televisão e
desceu as escadas correndo, quase se esquecendo de deixar sua chave dentro da
caixa do correio.
ii. eu ♥ a vida
7.

A anglicização de Howard Chun começou quando ele tinha nove anos e sua
família o matriculou na Queen Victoria Academy, um posto avançado da Igreja
Anglicana num subúrbio de Taipei, onde as letras do alfabeto inglês, cada qual
segurando pela mão sua filha minúscula, desfilavam ao redor da sala de aula da
terceira série entre os quadros-negros e os retratos em cores de Jesus, e onde as
aulas de chinês eram eletivas nas séries mais adiantadas. Pelo certo, Howard
deveria ter se tornado o Henry de sua turma, já que seu prenome era Hsing-hai,
mas aconteceu que também havia na turma um menino chamado Ho-kwang,
cujos pais tinham sido mais eficientes do que a mãe de Howard na tarefa de pré-
programar o filho para reivindicar os direitos que lhe cabiam em troca dos trinta
mil dólares taiwaneses que um ano de estudos na escola primária da Queen
Victoria Academy então custava. Ho-kwang se apoderou de Henry quando os
nomes ingleses estavam sendo distribuídos, e Hsing-hai, piscando os olhos para
afugentar as lágrimas enquanto olhava com raiva para o mesquinho Henry,
nascido Ho-kwang, recebeu o menos agradável e menos régio Howard, a
usurpação sofrida por ele oficializada e selada pela Igreja da Inglaterra antes
mesmo que ele tivesse tido a chance de entender o que estava acontecendo.
A mãe de Howard era atriz de cinema. Tivera uma daquelas vidas fascinantes
geradas pela união de guerra e dinheiro. Não tinha nenhum grande talento
dramático, mas, quando jovem, havia feito certo furor no cinema burguês de
Pequim, principalmente no papel-título de A garota da árvore, um filme bastante
esquecível, salvo por uma sequência imortal em que a tal garota da árvore é
perseguida por um comerciante de tapetes com objetivos imorais durante a
grande enchente de Wuhan, ocorrida em 1931; onze estupendos minutos daquela
beldade casta correndo, trôpega, por águas cada vez mais fundas e sujas e
lugares cada vez mais ameaçadores, segurando junto ao pescoço sua blusa
rasgada, seus olhos redondos irradiando um terror e uma angústia incessantes no
decorrer de todos os quinze mil fotogramas. Em meados da década de quarenta,
a srta. Chun e um diretor com idade para ser seu pai viveram um exílio elegante
em Singapura e dilapidaram o considerável pé-de-meia que ela havia juntado, o
que a forçou a voltar com os três filhos pequenos para perto de seus parentes em
Taipei assim que os nacionalistas voltaram à indústria do cinema. Por algum
tempo, foi bastante requisitada por diretores de elenco que precisavam de uma
“irmã mais velha não tão bonita” e, posteriormente, passou muitos anos
lucrativos fazendo o papel de uma madrasta má numa novela chamada Reféns
do amor. Pelo menos uma vez em cada capítulo, a câmera a focalizava
arreganhando os dentes e revirando os olhos, para lembrar aos espectadores que
ela era perversa e maquiavélica. Na vida real, ela era vaga, afável e egoísta, e
vivia basicamente para comer doces. Quando voltava da Queen Victoria
Academy para casa em dias em que ela não estava gravando, Howard a
encontrava sentada na cama, mastigando em câmera lenta um pedaço de fruta
cristalizada, franzindo o cenho como se o sabor da fruta fosse uma mensagem
que estivesse chegando a sua cabeça via telégrafo e ela tivesse de se esforçar
para conseguir captar cada palavra.
Howard era seu quinto filho, o caçula, e o único que ela tivera com um
homem acerca do qual ninguém na família, incluindo ela, conseguia oferecer
um relato satisfatório. Ela dizia por alto que o homem tinha sido um herói de
guerra, “um espírito nobre que comandava tropas na batalha pela liberdade”,
muito embora quando Howard ouviu essa história os nacionalistas já estivessem
fora de combate fazia uns vinte anos. De vez em quando, ele tentava imaginar
seu pai lá em cima, em alguma parte do céu, um marechal nas nuvens tropicais
de quilômetros de espessura acima do mar Amarelo, numa altitude em que as
hostilidades ainda não haviam cessado, mas a imagem era ridícula e ele se
forçava a pensar em outras coisas.
As tias e tias-avós de Howard eram um bando filosófico, disposto a fechar os
olhos aos lapsos morais da vida pessoal da mãe dele pelo bem da renda que ela
proporcionava à família. Elas se juntavam para cochichar nos corredores,
administrando o orçamento; nunca dava para saber ao certo na bolsa de brim de
quem a caderneta das economias dela se encontrava. Howard preferia o
realismo das tias aos devaneios da mãe e, consequentemente, cresceu se sentindo
mais como um hóspede paparicado do que como uma criança. Nunca adolesceu
de verdade. Depois que sua mãe morreu, ele adotou um comportamento
relaxado e confiado com as matriarcas da família, fazendo companhia a elas na
cozinha como um homem de meia-idade desempregado, o tipo de amigo da
família ou parente distante que aparece para filar o jantar todas as noites durante
um ano, depois some e nunca mais dá notícias. No cômputo geral, embora fosse
a criança mais inteligente da casa e nenhuma despesa razoável fosse poupada
em sua educação, Howard desperdiçava uma quantidade boçal de tempo; e
sempre que alguma tia discorria sobre o futuro brilhante que o aguardava, ele lhe
dirigia um estranho olhar de soslaio, como se esse Hsing-hai de quem ela estava
falando fosse um patético constructo imaginário que só ele, Howard, tinha o
privilégio de saber que não tinha a menor intenção de habitar o futuro que ela
previa.
Um dia ele anunciou que pretendia estudar numa universidade americana. Seu
meio-irmão mais velho era capitão da Força Aérea Nacionalista e poderia ter
aberto portas para ele lá, mas Howard não via nenhuma razão para doar três
anos de sua vida às Forças Armadas se isso pudesse ser evitado. Ele tinha pernas
compridas e, quando pensava em voos tripulados, as imagens que lhe vinham à
cabeça eram de garrafinhas de uísque de uma dose só, de mexedores de bebida
em formato de hélice e de espaçosos assentos de primeira classe.
Por questões legais, o pacifismo de Howard exigia que, ao sair de Taipei aos
dezoito anos de idade, ele não voltasse por pelo menos dezessete anos. Qualquer
arrependimento que ele pudesse sentir em relação a sua decisão não sobreviveu
a sua primeira viagem de ônibus na América. Uma espiada em garotas com
botas de caubói, uma olhadela para uma colina salpicada de outdoors e uma boa
examinada na rodovia U.S. 36 ao norte de Denver — com suas lanchonetes
Denny ’s, Arby ’s e Wendy ’s, seus carros de homem alto nas pistas de gente
grande — foram suficientes para que ele se tranquilizasse: Aquele era o lugar
para ele. Reclinou-se em seu banco até o ângulo máximo permitido e cochilou
até o ônibus chegar a Boulder.
Ninguém poderia amar mais a vida na América do que Howard Chun. Um
mês depois de chegar aos Estados Unidos, ele já tinha um MasterCard; um
semestre depois, tinha um carro. Aonde quer que fosse, em seu primeiro ano de
faculdade, os Bee Gees estavam no ar, e ele foi um dos primeiros a pegar a
febre e um dos últimos a debelá-la. Adorava dizer “disco music”. E adorava
dançar esse tipo de música. Adorava ficar congelado na luz estroboscópica e
esticar o braço com o punho cerrado. Com relação a arranjar garotas, ele até
que se saía relativamente bem; com certeza não era seletivo a ponto de ter de se
conformar com muita frequência a passar sem elas. Gostava de fast food não
porque era fast, mas porque tinha um gosto bom. Diversos governos financiaram
seus estudos, e o de que mais precisava para manter suas contas correntes em
boas condições chegava até ele via golpes de sorte, que geralmente tomavam a
forma de uma transação de exportação, importação ou revenda, já que ele vivia
viajando e sempre havia amigos ou parentes dispostos a pagar um ágio sobre o
valor de produtos portáteis. Levava regularmente para o correio uma braçada de
discos e fitas cassete recém-lançados, no valor de trezentos dólares, escrevia
“discos, fitas” na declaração alfandegária e seis meses depois recebia um
cheque administrativo no valor de seiscentos dólares americanos enviado por um
primo mais velho de Taipei. No que dizia respeito a sua vida noturna, esses
cheques eram uma tremenda mão na roda. Isso que ele fazia talvez fosse meio
ilegal, mas, como nunca foi pego, ele nunca soube ao certo.
No todo, ele estava se divertindo tanto no Colorado que foram necessários
cinco anos e constantes ameaças da Secretaria de Auxílio Financeiro para que
ele concluísse seu bacharelado. No entanto, assim como suas dívidas financeiras
nunca o impediram de dividir pizzas, pagar cervejas e oferecer caronas, seus
percalços acadêmicos também nunca atrapalharam de forma alguma a
generosa ajuda acadêmica que ele costumava oferecer a alunos mais jovens
(principalmente a alunas mais jovens e louras) e seu papel como uma das peças
centrais da vida social do departamento de geologia. No segundo semestre de seu
quarto ano na universidade, ele teve a boa sorte de quebrar ambas as pernas
numa pista de esqui. A monografia que ele escreveu enquanto esteve de molho
foi boa o bastante para permitir que ele ganhasse uma bolsa de pós-graduação de
Harvard.
Em Harvard, ele decidiu se proteger academicamente dominando os
meandros do computador do departamento. Dessa forma, a máquina podia fazer
o trabalho por ele e ele só tinha de dar uma passada no laboratório uma vez por
dia, antes de ir jogar squash ou depois de pegar um cineminha na Harvard
Square, para apanhar o trabalho concluído e dar novas instruções ao computador.
Ser um perito em computação permitia que ele matasse uma aula ou seminário
de vez em quando e discutisse os textos dos cursos com seus professores em
horários que não afetassem seu sono nem sua programação social. O único
professor que se opôs a esse modus operandi foi o orientador dele, que, no
segundo semestre do terceiro ano de Howard em Cambridge, elevou a voz a
novas alturas e disse que achava improvável que Howard passasse no exame de
qualificação. Demonstrando grande falta de tato, o professor também
conjecturou em voz alta como era possível que Howard tivesse conseguido
avançar muito menos em três anos de trabalho do que Renée Seitchek, por
exemplo, em dois. Renée Seitchek havia passado sem esforço em seu próprio
exame de qualificação e estava expandindo sua dissertação de mestrado para
transformá-la numa tese de doutorado.
Embora estivesse oficialmente um ano atrás dele, Seitchek era da mesma
idade que Howard ou um pouco mais velha. Ao contrário dele, ela costumava
trabalhar o verão inteiro e só ia a um congresso por ano. Quando cientistas de
outras instituições telefonavam para o laboratório, eles pediam para falar com
ela mesmo quando as perguntas que tinham a fazer diziam respeito à área de
Howard. Ela ia a festas e jantares oferecidos por professores e outros alunos; só
não ia às festas e aos jantares que Howard dava. No primeiro ano dela em
Harvard, ele a tinha convidado várias vezes para jogar squash ou almoçar ou
jantar com ele, e ela sempre recusava de um jeito tão educado e sorridente que
ele tinha levado um semestre inteiro para captar a mensagem.
Sempre que passava no laboratório para checar seu trabalho (coisa que fazia
em pé, debruçado sobre um teclado, sem tirar o casaco nem desenrolar o
cachecol do pescoço), Howard via Seitchek trabalhando implacavelmente em
seus projetos, os músculos de seus braços perdendo o tônus juvenil mês após
mês, fios brancos surgindo em seu cabelo, a pele adquirindo o tom acinzentado
das lâmpadas fluorescentes, enquanto ele, que jogava squash todo dia e tirava
férias com frequência, continuava em forma e corado. Foi Seitchek quem notou
que os programas de Howard estavam consumindo tempo demais da cpu e
assoberbando o processador vetorial todas as manhãs (enquanto Howard
dormia). Ela levantou a voz e assumiu o mesmo tom de “Howard, você já foi
avisado várias e várias e várias vezes” que o orientador dele tinha assumido.
Quando a renovação do financiamento para sua pesquisa não saiu, Howard teve
de abandonar seu trabalho sobre strong motion, embora todo mundo concordasse
que suas inversões de registros de aceleração poderiam ter vindo a mostrar
resultados interessantes um dia, se Howard tivesse seu próprio supercomputador
particular. Ele foi obrigado a sair desesperado à cata de um novo projeto,
enquanto Seitchek chegava cada vez mais perto de concluir seu doutorado.
Até que, um verão — o verão antes de os terremotos locais começarem —,
todo mundo começou a deixar de gostar dela. Talvez tenha sido porque o último
de seus amigos mais antigos saiu do departamento, ou talvez porque seu novo
orientador de tese, o diretor do departamento, saiu de licença por um ano, mas o
fato é que em questão de semanas ela conseguiu se indispor com praticamente
todos os alunos e pós-doutorandos que restavam. Terry Snall dizia ter entreouvido
Seitchek usar uma palavra ofensiva em referência ao jeito dele; segundo boatos,
a palavra era “afrescalhado”. Uma manhã, usuários do computador descobriram
que valiosos documentos seus tinham sido jogados no lixo tão somente por se
encontrarem nas pilhas de quase meio metro de papéis acumulados que
engolfavam os consoles nas salas do sistema. Pouco depois, houve um arranca-
rabo quando alguns alunos descobriram que Seitchek estava reduzindo a
prioridade dos trabalhos deles para que seus próprios programas rodassem mais
rápido, enquanto os deles marcavam passo. Ela fez uma moça chorar e deixou
um petrólogo imaturo tão irado que ele jogou um cesto de lixo no telefone e
quebrou uma luminária de mesa. Quando Terry Snall tomou as dores do
petrólogo, Seitchek ficou furiosa. Disse que setenta por cento das verbas que
bancavam o computador vinham dos financiamentos concedidos ao orientador
dela. Disse que fazia três anos que ela vinha cuidando pessoalmente de mais da
metade da manutenção diária do sistema e que, se alguém queria discutir com
ela, essa pessoa deveria antes ligar para o diretor do departamento na Califórnia
para ver na opinião de quem ele confiava e para perguntar o que ele achava, se
ele achava que ela não tinha o direito de reduzir as prioridades, se ele achava que
o petrólogo que não contribuía em nada para o sistema nem para a conservação
dele tinha qualquer direito que fosse ali. Howard entrou no laboratório para
checar seus programas no exato momento em que Seitchek estava saindo,
colérica, corredor afora. Encontrou Snall incitando o petrólogo a reduzir a
prioridade de Seitchek, agora que ela já não estava mais na sala.
A vez de Howard chegou alguns dias depois, quando ele estava prestes a pegar
um avião para Londres para ir ao casamento de um primo e depois passar uma
semana de férias na Irlanda. Ele tinha passado no laboratório para pôr algumas
centenas de tarefas de lote de vinte minutos para rodar enquanto ele estivesse
fora e para pegar suas mensagens. Sem ter realmente a menor intenção de fazer
isso, ele havia se envolvido com uma engenheira americana de ascendência
chinesa chamada Sally Go, que parecia acreditar que ele tinha lhe prometido
alguma coisa e caía em prantos sempre que ele tentava descobrir o quê. Ele tinha
quase certeza de que ela achava que ele havia prometido se casar com ela na
primavera seguinte, mas como ela se recusava a dizer o que ele prometera,
insistindo em vez disso em chorar e repetir “Você sabe o que me prometeu”, ele
por sua vez se sentia justificado em perguntar “O quê? O quê? O que foi que eu
prometi? O quê?”. Na ocasião, fazia umas três semanas e meia que ele vinha
conseguindo não se encontrar com Sally, e as mensagens diárias que ela deixava
na mesa dele tinham começado a tratar de temas como “covardia”,
“cachorrada” e “desgraça”. Ele estava lendo a última mensagem deixada por
ela, o nariz franzido de desagrado, quando ouviu do corredor Seitchek falando
dentro da sala de computação.
“Qualquer um imaginaria que, depois de dez anos, ele já teria tido tempo de
sobra pra aprender a fazer o som do r”, ela estava dizendo. “Eu vou ter um troço
se tiver que ouvir mais uma vez ele dizer ‘poglama de computô’. Poglama de
computô. Poglama de computô.” A voz dela era atrevida e ressoava maldade.
“Eu vou esclevê um poglama de computô pá calcurá os mínimos quadlados.”
Os olhos de Howard se encheram d’água. Ele se abalou de sua sala piscando os
olhos violentamente, franzindo as sobrancelhas e sacudindo a cabeça como que
para se livrar de uma alucinação inconveniente. Mas não era alucinação, e ele
sabia. Seus mais de dez anos de Estados Unidos pouco tinham feito para corrigir a
mutilação que suas habilidades linguísticas haviam sofrido na Queen Victoria
Academy. A professora de inglês das séries mais adiantadas, sra. Hennahant,
ensinava fonética fiando-se no princípio de que ela era contagiosa, e era
curiosamente surda à imunidade que seus alunos demonstravam. Dia após dia ela
repetia frases como “Hilary toca clarinete”, e depois balançava judiciosamente a
cabeça no ritmo da voz dos alunos, enquanto eles diziam, um de cada vez, algo
como “Hiry toca crarenete”. Depois que todos já tinham falado, ela balançava a
cabeça de novo, andava empertigada pela sala e tentava mais uma vez martelar
o prego irremediavelmente torto na cabeça deles: “Hilary toca clarinete. Hilary
toca clarinete. O canal—alimentar. O canal—alimentar. Henry ?”.
Ao voltar de Londres dez dias depois, Howard só teve tempo para dar uma
rápida passada no laboratório antes de pegar um avião para San Francisco, onde
um outro primo ia se casar. Tirou pilhas e pilhas de papel impresso da cesta da
impressora de linha e da bancada ao lado dela. A ciência tinha ficado cinquenta
quilos mais rica enquanto ele estivera passeando por Dublin e pelo condado de
Cork, e ele adicionou mais uma centena de tarefas ao arquivo de lote para
garantir que sua temporada na Califórnia fosse igualmente produtiva.
Seitchek estava sentada na sala deles, com os pés apoiados em cima de uma
mala. Ele lhe perguntou se alguém tinha telefonado para ele. O “não” dela não o
abateu. Às vezes ela respondia não e depois, quando já tinha se resignado com o
fato de ter sido interrompida, mudava de ideia e desfiava vários recados
telefônicos interessantes.
“O Edward está te procurando”, ela disse por fim. “Ele soube que você tinha
voltado de Londres.”
Edward era o nome do orientador ultrarrigoroso de Howard.
“Ah, sei”, disse ele. O bilhete que estava no alto da pilha de Sally em cima da
mesa dele dizia: esquece!!
“Ele quer te ver na segunda-feira”, disse Seitchek. “De manhã cedo. Parece
que surgiu alguma informação nova sobre o Alan Grubb, acho.”
Howard abriu um sorriso radiante. “Na segunda eu não posso. Estou indo pra
San Francisco.” Apontou com o queixo para a mala de Seitchek. “E você?”
“Los Angeles”, disse ela. “Ou melhor, Condado de Orange. Estou indo ver os
meus pais e as minhas... sobrinhas. De três em três anos eu faço uma visitinha a
eles.”
“Ah, sei.” Ele teve a desagradável desconfiança de que isso significava que
Seitchek havia concluído a tese dela enquanto ele estava na Irlanda. “Três anos é
muito tempo”, murmurou, tentando ser educado.
“Nem tanto.”
“Quer uma carona até o aeroporto?”
“Não, obrigada.”
“Quer uma carona até a Square?”
“Você quer muito que eu ande no seu carro, não?”
Ele deu de ombros. “Eu estou parado em fila dupla.”
Na Califórnia, grandes lesões de um fogo laranja e oleoso estavam devorando
as matas de Eureka até as montanhas de San Gabriel. Até na cidade o ar cheirava
a casas queimadas. Pela primeira vez em muito, muito tempo, Howard se
arrependeu de ter viajado. Nem o casamento, no sábado à tarde, nem o banquete
mais tarde em Chinatown se comparavam às festividades nupciais de Londres.
Para começar, porque a idade média dos convidados não chegava a doze anos.
Howard usava um terno risca de giz largo e comprido, estilo anos quarenta, e
dock-sides, sem meias; era a pessoa mais alta ali presente. Como seus parentes
mais importantes já o haviam encurralado em Londres para saber das novidades
de sua brilhante carreira, ele passou um bom tempo sozinho, tomando cerveja
em lata e exibindo no rosto uma expressão de dignidade e de leve desconforto
enquanto olhava para as cabeças murchas de tias-bisavós e para os penteados
sofisticados das pré-adolescentes. Estava ficando de saco cheio de casamentos.
No domingo de manhã, pegou seu carro alugado e seguiu para leste, rumo às
colinas, onde planejava acampar e fazer uma inspeção informal de escarpas de
falha. Na região onde ele estava entrando, o céu estava tomado de uma névoa
cor de bromo, e logo ele começou a passar por bombeiros pretos de fuligem, que
tinham se jogado no banco de terra à beira da estrada e estavam dormindo.
Pouco depois, ele se viu cercado de fogo de todos os lados. Mudando de ideia,
tomou o caminho da costa de novo, perguntando-se se não haveria chegado a
hora de enfrentar Alan Grubb. Grubb era um aluno da Scripps Institution, em San
Diego, cuja tese, segundo diziam, era idêntica à de Howard em conteúdo e
estava dois anos mais adiantada que a dele. Howard já tinha sido avisado várias e
várias e várias vezes, por Edward, Seitchek e outros que volta e meia assumiam o
papel de sua consciência, que ele devia telefonar para Grubb ou tentar se
encontrar com ele em algum congresso, mas até agora Howard só havia feito
ignorar suas sugestões.
Num supermercado ao norte de Santa Barbara, ele comprou um pacote de três
fitas de música de discoteca latina e, por volta de meia-noite, estava dormindo no
banco do carro numa rua transversal do centro de San Diego. Às nove da manhã
seguinte, tomou o rumo da Scripps Institution. O lugar estava morto ao sol do Dia
do Trabalho. Um vigia lhe indicou um laboratório onde, de uma janela de frente
para a praia, um sorumbático pós-doutorando lhe disse que Allan Grubb estava
na Itália e só ia voltar no dia 23 de setembro. A moral da história era tão óbvia
que poderia estar estampada num letreiro oficial na entrada do laboratório: vale a
pena telefonar antes.
Mais tarde, depois de uma produtiva sessão de bronzeamento, Howard se
convidou para visitar alguns amigos de sua meia-irmã mais velha, que morava
ali perto, em Linda Vista. Lá, traçou um churrasco bem decente. À medida que a
tarde avançava, ele afundava em sua cadeira de plástico e observava as
migrações, laboriosas como as de placas tectônicas, dos blocos de gelo com que
seus anfitriões esfriavam a água da piscina, seu rosto quase roxo por causa dos
martínis que haviam lhe dado, seu ânimo esmorecendo diante da ideia de passar
mais um minuto que fosse dentro de um carro alugado, de entrar em mais um
Wendy ’s ou de acrescentar mais uma milha ao seu programa de milhagem.
Sementes queimadas de gergelim caíam dos queixos dos filhos dos anfitriões.
Agora, quando conversava sobre amenidades em mandarim, sua própria voz
soava birrenta e ranheta ao seu ouvido americanizado. Poglama de computô,
poglama de computô. Ele pediu para usar o telefone e seus anfitriões o
conduziram até o aparelho, insistindo para que ele se sentisse à vontade para ficar
em Linda Vista por quanto tempo quisesse; eles esperavam (na verdade,
planejavam) levá-lo para pescar em mar aberto e para o Sea World.
A operadora do serviço de auxílio à lista telefônica só encontrou um Seitchek
listado em Newport Beach. Assim que ouviu a voz dela, Howard começou a
sacudir a cabeça, arrependido. Seitchek, porém, parecia contente por ele tê-la
procurado. Ela perguntou como ele estava.
“Tá tudo bem”, disse ele. “Vi uns amigos — tenho uns amigos em Los Angeles
—, aluguei um carro, tá tudo bem. Estão sendo boas férias.”
“Você vai vir aqui me visitar?”
O tom de convite na voz dela era tão carinhoso que ele ficou meio ressabiado.
Investiu contra as cortinas da janela que dava para a rua e viu um carro
passando. Era só um carro comum, sem nenhuma relação com ele.
“Não, sério”, disse Seitchek. “Você ligou por que queria combinar alguma
coisa?”
“Claro, por que não?”, disse Howard, como se a ideia tivesse partido
inteiramente dela.
O céu que pairava sobre Newport Beach, na tarde seguinte, era de um branco
brutal, e sua simples visão, pela janela ampla do quarto de Seitchek, negava o
efeito do ar-condicionado e trazia para dentro do quarto o torpor das palmeiras
jovens e altas em frente à janela, o fogo branco nos telhados de terracota além
das palmeiras e a monotonia ofuscante das praias ao longe. As paredes do quarto
estavam nuas salvo por um pôster do Magic Johnson fazendo uma enterrada e
uma grande pintura acrílica de uma paisagem marítima em cores brandas de
estofado. A porta do closet estava aberta e dos dois lados dela havia sacos de lixo
grandes e pilhas de caixas de papelão amarelas da empresa de mudanças
May flower.
Do corredor, Howard deu uma discreta examinada no quarto, inclinando-se
para dentro dele como se houvesse uma corda de veludo no vão da porta. Seu
pescoço estava cheio de pequenos cortes e áreas de irritação, cuja vermelhidão
cumulativa lhe dava um ar imaturo, mal-humorado e culpado. Antes de sair de
San Diego, ele havia se barbeado impiedosamente, o convite cordial de Seitchek
o tendo levado a crer que ela fosse apresentá-lo à família e talvez convidá-lo
para um almoço servido à mesa. Quando ele chegou, porém, a casa estava vazia
e Seitchek não lhe ofereceu sequer um copo d’água. Ela subiu a escada que,
quando ainda estava do lado de fora, ele a ouvira descer e deixou que ele a
acompanhasse. Parecia não estar reconhecendo de verdade nenhuma das coisas
em que seus olhos pousavam, incluindo Howard. Tinha a aparência de uma
criança abandonada, o rosto encovado e pálido como o de uma pessoa muito
gripada.
“Você está se sentindo bem?”, ele perguntou.
Ela não respondeu. Em cima de uma mesa perto da janela, havia um frasco
de xampu Nexxus e cerca de uma dúzia de bibelôs de porcelana. Ela empurrou
os bibelôs até que eles ficassem alinhados com a parede.
“Eu fiquei espantada quando você ligou”, ela disse de repente, de costas para
ele. “Fiquei espantada porque estava deitada aqui no chão”, apontou com o
queixo para um espaço entre uma cama de solteiro e uma parede, “fazia umas
cinco horas, me perguntando o que poderia fazer com que eu viesse a me
levantar de novo algum dia na vida, e obviamente a resposta foi: minha mãe
batendo na porta e dizendo que tinha alguém no telefone querendo falar comigo.
Fiquei espantada quando ela me disse quem era.”
Ela empurrou os bibelôs de novo, certificando-se de que não havia como
deixá-los mais retos do que já estavam. Virou-se para Howard e perguntou num
tom neutro: “Você foi até a Scripps? Falou com o Alan Grubb?”.
“Fui, mas ele não estava lá. Vocês têm um banheiro?”
“Um banheiro? Se nós temos um banheiro?” Ela esperou que ele saísse do
quarto.
No espelho do banheiro, Howard puxou sua camisa para baixo, tentando
desamassá-la, e tirou parte do sangue seco de seu pescoço. Olhou pela janela e
examinou a piscina. Quando ele voltou para o quarto, Seitchek estava ajoelhada
perto do closet, passando livros de uma caixa de papelão cheia para outra menos
cheia. Um chiclete que já tinha sido verde estava alojado na sola de seu tênis
esquerdo. Entre o cós de sua calça jeans e a pele branca da parte inferior de suas
costas havia espaço suficiente para enfiar um braço. “Eu parei o meu carro na
sua entrada, tudo bem?”, Howard perguntou.
“Claro.” Ela ergueu rapidamente os olhos dos livros. “Você pode botar o seu
calo onde quiser.”
Botar o calo dele? Botar o calo dele? Ela tinha dito aquilo tão casualmente, mas
mesmo assim... Howard se sentou na cama e deu pancadinhas no colchão, até as
pancadinhas se tornarem estilizadas e irrelevantes. “Você quer sair? Comer
alguma coisa?”
“Não”, disse ela. “Você quer?”
“Talvez. Talvez comer fish and chips. Eu vi uma lanchonete de fish and chips
aqui perto. Você quer ir lá?”
Ignorando-o, ela continuou jogando livros dentro da caixa, A Separate Peace,
Franny e Zooey, Zen e a arte da manutenção de motocicletas, The Women’s
Room, O jogo das contas de vidro, The Sot-Weed Factor , uma pilha de livros de
Kurt Vonnegut, alguns de Frank Herbert e de Robert Heinlein, Watership Down ,
Medo de voar, The Sunlight Dialogues, uma caixa com uma coleção de Tolkien,
mais livros de Salinger, alguns de P. D. James, The Bell Jar, 1984. Ela endireitou
as costas e disse:
“A minha mãe saiu especialmente para comprar frios, pães e cerveja
Heineken preta, antes de ir jogar golfe. Eu disse a ela que você vinha aqui.”
Debruçando-se sobre as caixas de novo, ela folheou The Bell Jar rapidamente
e depois o botou de volta na caixa dos descartados. Um livro de D. T. Suzuki, The
World According to Garp e Ragtime foram para a caixa em seguida. Ela se virou
para Howard. “Quer uns livros?” Com um vigoroso empurrão, ela deslizou a
caixa pelo tapete.
Howard selecionou dois livros de Heinlein. “Posso pegar esses?”
“Pode pegar tudo o que você quiser. Sério. Eu vou me desfazer de todos eles.
Que tal alguns sapatos? Você tem irmãs mais novas?” Ela levantou um par de
sandálias-plataforma com salto de cortiça, um par de Earth Shoes, um par de
tamancos com margaridas gravadas no couro marrom, um par de botas brancas
de cano alto tamanho infantil. Desdobrou uma calça boca de sino de poliéster,
cujo tecido tinha um enorme padrão quadriculado em verde e branco. “As
pessoas esperam que eu me sinta bem comigo mesma, sabendo que houve uma
época em que eu era vista em público usando isso?” Ela escarafunchou outra
caixa. “O meu paletó Nehru. Alguém se interessa por paletós Nehru hoje em dia
em Taiwan?” Ela enfiou o paletó num saco de lixo.
“Frios”, disse Howard, dando uma indireta.
“É. Carne de porco, carne de vaca. Meu tipo preferido de comida.”
Ele fez um barulho de aprovação, mas estava claro que ela não estava levando
aquela ideia de almoço a sério. Ela afastou o cabelo dos olhos e abriu uma nova
caixa. “Quer ver a minha turma de primeira série?”, perguntou, entregando a ele
uma folha de papel fotográfico com várias fotos. “Aqui, você quer isso? Você
quer umas quinhentas fotos minhas?” Ela deslizou a caixa inteira na direção dele.
Enquanto ele espiava dentro da caixa, levantando os cantos de algumas
fotografias, ela desencavou outros tesouros — uma faixa de feltro do Peanuts
declarando que a felicidade é um cãozinho quentinho; discos de Walter Carlos,
discos da Three Dog Night, discos de Cat Stevens, discos de Janis Ian, discos da
Moody Blues, discos de Paul Simon; pôsteres de Peter Max; um tabuleiro de The
Game of Life; coletâneas das tirinhas Doonesbury; uma almofada forrada com
um tecido que imitava pele de zebra; uma luminária feita com uma lata de 7up.
Ela desenrolou um pôster de corpo inteiro de Mark Spitz. “Eu ganhei isso”, disse.
“Ganhei na escola de dança. E o mais espantoso é que eu pendurei isso. Pendurei
na porta do meu armário e ele ficou olhando para mim um ano inteiro, com as
sete medalhas de ouro dele. Os olhos dele me seguiam.”
Howard estava tentando mostrar algum interesse pelo pôster quando ela deixou
que o pôster se enrolasse de novo e o enfiou bem no fundo de um saco de lixo.
Ela soltou um suspiro e se largou de qualquer jeito, olhando para o chão. “Eu não
tinha nada pra fazer com nenhuma dessas coisas quando vinha pra cá. A última
vez que vim aqui, eu passei uns dois dias vendo todas as fotos e folheando todos os
meus trabalhos e cadernos antigos. Cada um dos programas de shows de bandas
em que pus meu nome. Todos os prêmios de primeiro lugar que ganhei, todas as
cartas de aceitação que recebi, todos os testes que fiz e cada pequeno trabalho
que escrevi na vida. Mesmo que eu jogue tudo fora, é como se fosse um fardo
colossal de coisas comprometedoras, e como é que eu vou me livrar disso,
como?”
Os olhos dela pousaram numa apostila de capa azul-clara, de preparação para
exames de ingresso em universidades, que estava perto dos pés dela, no chão. Ela
enfiou a apostila no saco de lixo. “Os meus pais se mudaram pra cá no ano em
que eu entrei pra faculdade. Compraram uma boa casa de quatro quartos, com
um quarto pra cada um de nós, filhos, e um quarto grande pra eles. O meu é
também o quarto de hóspedes, não é ótimo? O décor? Tem tudo a ver comigo.
Mas essa é que é a questão: tem tudo a ver comigo. É isso que eu tento esquecer.”
Howard olhou para o pôster do Magic Johnson e para os bibelôs de porcelana.
Saltitou de leve sentado na cama. “Pra que você vem pra cá então, se não gosta
daqui?”
“Pra jogar coisas fora.”
Um lampejo fez os olhos dele cintilarem maldosamente. “Eu pensei que você
tinha vindo pra ver as suas sobrinhas.”
“Ah, sim, as minhas sobrinhas.” Ela lançou um sorriso de escárnio na direção
da porta aberta. “Você acredita que eu nunca tinha visto as minhas sobrinhas
antes? Nenhuma delas?”
“Claro.”
“Embora, da última vez em que estive aqui, eu tenha tido o prazer de ver uma
cunhada grávida. Como você pode ver, nós não estamos vivendo na pobreza.
Poderíamos perfeitamente ter bancado uma viagem minha pra cá. Obviamente,
fui eu que não quis vir.”
“Eu nunca vou pra casa”, disse Howard.
Isso a interessou. “Pra onde, pra Taiwan?”
“Não posso ir. Não quero ir.”
Ela sacudiu a cabeça, esquecendo-se dele de novo. “Eu começo pensando que
pode ser bom pra mim vir pra cá. Que eu posso vir pra casa, posso beber, posso
comer, posso dormir, posso ficar aqui e levar uma vida de rica como eles levam,
posso dirigir o bmw, conhecer os bebês da família e simplesmente ser desse jeito,
sabe, por uma semana. Começo até a ficar ansiosa pra vir. Me mato tentando
terminar a tese pra poder pegar o avião e vir pra cá, e é simplesmente uma
estupidez tão grande minha me botar nessa situação. Quando eu chego aqui, a
minha família inteira está na sala, os meus dois irmãos mais novos, as minhas
duas cunhadas, todas as minhas sobrinhas. Eu finalmente vim conhecer os bebês!
Estou vindo com muito atraso, mas ainda não é tarde demais. O suspense deve
ser insuportável pra mim. É impensável que eu possa não estar absolutamente
louca pra pegar as minhas sobrinhas no colo. E o simples fato de que é
impensável já é suficiente pra matar o meu interesse na mesma hora.”
Ela sorriu, vendo que Howard estava correndo os olhos pelas fotos dela. “O
negócio é que eu não consigo demonstrar interesse e prazer assim no abstrato. Eu
preciso falar com essas meninas. Preciso estabelecer uma relação com elas.
Com aquela menina de dois anos e meio e aquelas duas bebês que ainda não
falam uma palavra. Eu penso em dizer alguma coisa espirituosa, como se
estivesse falando com um cachorro ou sei lá com o quê, mas aí percebo que está
todo mundo prestando atenção em mim e então tento pensar em alguma coisa
carinhosa pra dizer, o que é pior ainda porque, sabe, é só uma criança, e o que é
que você pode dizer, o que é que você pode dizer...?”
Ela se calou e ficou olhando fixamente para a parede do fundo do closet.
Howard se inclinou para dar uma espiada lá dentro, quase acreditando que havia
alguém ali, ouvindo o que ela estava dizendo.
“Só o que eu ouço é a incrível estupidez e canhestrice das coisas que eu estou
dizendo. E as meninas sabem disso. A mais velha, pelo menos, definitivamente
sabe. Ela sabe que eu não sou uma daquelas mulheres que acham que não há
nada melhor no mundo do que ter uma filha como ela, e então é claro que ela
não gosta de mim, por que ela haveria de gostar? E aí há uma certa ceninha
porque ela se recusa a chegar perto de mim, e eu fico com ódio dela e ela com
ódio de mim, e a razão disso é que eu sou mais parecida com ela do que com
qualquer um daqueles quatro pais, e ela sabe disso.” Ela balançou a cabeça,
categórica. “Eu tenho quase trinta anos e sou mais parecida com ela do que com
eles. E uma coisa é você ter três anos e ser criança, mas ter a idade que eu tenho
e ainda ser tão travada... Ainda assim, eu poderia ter suportado a coisa toda se
eles todos não estivessem tão obviamente com pena de mim. Eles olham para
mim com uma cara de pena tão grande e ainda têm o desplante de me dizer que
eu não faço ideia de como é a vida de adulto, que eu não faço ideia da
trabalheira que é, não faço ideia do que é não ter tempo pra nada, nem pra ler o
jornal, porque eu não tenho filhos. Mas quando tiver filhos, eu vou entender. E o
que eu tenho vontade de dizer é: Que tal eu dizer pra vocês algumas das coisas
que vocês não sabem a respeito da vida e nunca vão saber? Mas aquelas
mulheres, é como se elas tivessem ficado a vida inteira esperando pela chance
de ignorar uma pessoa como eu e, agora que têm filhos, elas podem. Elas podem
ser completamente autocentradas e extremamente indelicadas comigo, porque
elas têm filhos. Depois que tem filhos, você pode virar uma pessoa de cabeça
fechada. E ninguém pode dizer que você não é adulta. E qualquer tipo de vida
que eu possa ter, qualquer tipo diferente de vida, qualquer tipo de vida que possa
causar inveja... isso obviamente não está dando certo, porque eu continuo sendo
essa adolescente incrivelmente constrangedora. Eu simplesmente não tenho
como competir com aqueles pais de vinte e quatro anos, com todo aquele
narcisismo e aquela respeitabilidade básica deles. Simplesmente não há como
competir.”
Ela ficou em silêncio, sacudindo a cabeça e olhando para dentro do closet.
Howard tinha começado a saltar na ponta dos pés com as mãos dentro dos bolsos
e os cotovelos abanando. Ergueu uma perna para se equilibrar e deu uma espiada
no corredor, como se tivesse ouvido algum barulho. Mas não tinha havido barulho
nenhum. Quando ele se virou, Seitchek estava olhando para ele.
“E é isso que eu vejo”, ela disse com amargura. “Na minha vida livre e
excitante na Costa Leste. É isso que eu vejo, quando olho por cima da tela do
computador. Essa é a grande alternativa.”
Ele saltou na ponta dos pés. “Acho que eu tenho que ir agora”, disse. “Ainda
tenho que ver umas pessoas, acho melhor eu ir.”
Ela lhe deu um sorriso terrível. “Mas e os seus flios? Você não quer os seus
flios? Não quer botar o seu calo na entlada?” Ela virou o rosto, enojada. “Está
vendo? Eu já nem me importo mais com o que digo. Nem ligo mais pra quem
está ouvindo.”
Howard continuava a saltitar, rodando e tombando para o lado como um pião
nos últimos estágios de suas revoluções, as vibrações de seu corpo expulsando
suas mãos de dentro dos bolsos. Na última volta que deu, parou perto de Seitchek.
Quando ela ergueu os olhos para ele, ele lhe deu um tapa com tanta força que ela
caiu para trás, apoiada sobre os cotovelos.
Eles se encararam. Houve um estranho e silencioso momento de descoberta.
Era como se a fase do dia tivesse mudado de repente. Então, o rosto de Seitchek
se contorceu e ela o cobriu com as mãos. “Ah, meu Deus. Ah, meu Deus, que
vergonha.”
Howard já estava se abaixando, suas mãos perto da cabeça dela. Passou a
mão na bochecha dela, tocou em suas orelhas, depois deu tapinhas nos ombros
dela com as duas mãos, não com remorso, mas com impaciência, como se
tivesse esbarrado numa mesa e estivesse levantando às pressas a porcaria dos
vasos que tinham caído. “Desculpa”, disse. “Desculpa, desculpa, desculpa.”
Ela golpeou o queixo dele com as unhas. “Sai de perto de mim! Sai de perto de
mim! Pega o seu calo e vai embola, vai. Sai de perto de mim.” Ela o enfrentou, e
ele teve de segurar seus pulsos e imobilizá-los cruelmente, enquanto ela lutava
tentando se soltar. Ela se debatia debaixo dele, arfando e rompendo no que ele
achou que fossem soluços, mas acabou revelando ser algo mais parecido com
uma gargalhada, porque as coisas não estavam de forma alguma no pé em que
ele achou que elas estivessem. Ela estava enterrando os dedos no cabelo dele.
Estava apertando o rosto dele contra o dela, e ele fechou os olhos com força, os
cílios curtos se entrecruzando como os pontos que servem de olhos para as
bonecas de pano, porque ainda não estava preparado para olhar para a pessoa
debaixo dele e acreditar na sorte que estava tendo de pegar uma garota como
aquela, numa casa como aquela, com quatro quartos enormes, uma piscina de
dez metros e um bar na sala de estar.
8.

Terremotos não são um homem que mata a esposa grávida. Não são a
proibição da segregação racial por decreto judicial. Não são os Kennedy. Por
algumas semanas, depois que as últimas equipes de repórteres de televisão
arrumaram as malas e foram embora de Boston, dava para sentir no ar a
decepção da cidade com a terra. Claro que ninguém estava ansioso para ser
pessoalmente esmagado por vigas em queda nem para ver seus bens pegarem
fogo, mas durante alguns dias, na primavera, a Natureza havia mexido com as
expectativas da cidade, e as pessoas haviam rapidamente adquirido apetites
velados por imagens televisionadas de corpos debaixo de folhas de polietileno,
pela sensação de montanha-russa de ser arremessado de um lado para o outro da
sala, por uma experiência californiana, por números de vulto. Cem mortos teria
sido algo realmente digno de nota. Mil mortos: histórico. Mas a terra havia
voltado atrás em suas promessas, recusando-se mudamente a reduzir edifícios a
impressionantes e fotogênicas pilhas de escombros; e a contagem de mortos
nunca chegou a sair do rés do chão. Apesar de todo o impacto que os números
tiveram nas vísceras locais, os trinta e sete ferimentos relacionados aos
terremotos poderiam ter sido causados por monótonos acidentes de carro, os cem
milhões de dólares de prejuízo em danos materiais por falta de manutenção e a
morte de Rita Kernaghan por um corriqueiro ataque cardíaco. Os abalos
jornalísticos se reduziram a uma ou duas matérias por semana. Repórteres locais
ainda continuavam vasculhando o condado de Essex à procura de vidas
arruinadas pelo desastre, mas, para seu desalento, não conseguiam encontrar
uma sequer. Proprietários de casas estavam consertando paredes e tetos.
Estruturas questionáveis estavam sendo inspecionadas e reabertas. Era tudo tão
moralmente neutro, tão sensato.
Felizmente para todos, os Red Sox iniciaram o mês de junho ganhando uma
série inteira contra os Yankees no Fenway Park e levando sete vitórias
consecutivas na mala ao viajar para enfrentar a divisão oeste da Liga
Americana. Ninguém em seu juízo perfeito acreditava que os Sox fossem de fato
conseguir se sagrar campeões de sua divisão, mas no momento não havia como
acusá-los de estar perdendo terreno, e o que o torcedor poderia fazer? Vaiar de
antemão? Mais para o fim do verão, haveria oportunidades de sobra para reviver
o velho ódio e a velha inveja — os corações dos bostonianos bateriam forte e
suas gargantas ficariam apertadas só de pensar nos campeões do beisebol, com
seus times de arremessadores soporiferamente eficientes, nos arrogantes
superbatedores com bochechas de neném que Deus inacreditavelmente permitia
que marcassem um home run atrás do outro e nos medonhos torcedores das
horas boas, euforia barata besuntada na cara como os fluidos de sexo e pêssegos,
que achavam que a essência do beisebol era isso, era vencer e vencer fácil —,
mas, enquanto a boa fase durasse, a cidade estava cheia de abastados idólatras
jubilosamente indiferentes aos desvalidos do mundo dos esportes. E, na ausência
de novos tremores, o medo da morte e do sofrimento físico havia se recolhido ao
seu devido lugar, bem lá no fundo da consciência das pessoas.
Isso não quer dizer, contudo, que o condado de Essex tivesse parado de
estremecer por completo. Sismógrafos portáteis instalados cooperativamente
pelo Boston College, pelo Serviço Geológico dos Estados Unidos e pela Weston
Geophy sical Corporation vinham registrando cerca de vinte tremores por dia nas
cercanias de Peabody e, vez por outra, um pontinho luminoso perto de Ipswich.
As magnitudes na escala Richter raramente ultrapassavam 3,0; no entanto, e
embora não houvesse qualquer consenso entre os cientistas em relação ao que
exatamente estava acontecendo, tais atividades vinham sendo, de modo geral,
consideradas réplicas dos terremotos de abril e maio. É verdade que réplicas de
terremotos moderados costumam se dissipar rapidamente, coisa que as réplicas
em Peabody não estavam fazendo, mas, em vista dos abalos premonitórios
estranhamente fortes que antecederam os eventos de 10 de maio, Larry Axelrod
e outros sismólogos levantaram a hipótese de que a ruptura de rocha sob
Peabody tinha sido, por alguma razão, “incompleta”. Como Axelrod explicou ao
Globe, quando uma galinha tem a cabeça totalmente decepada, seu corpo se
convulsiona por alguns instantes, mas logo para; já uma galinha com o pescoço
parcialmente cortado pode estrebuchar durante uma hora, ainda que de forma
cada vez mais fraca.
Praticamente ninguém da área de sismologia se arriscava a garantir com
absoluta certeza que Boston não seria mais atingida por movimentos fortes. A
única exceção era a Mass Geostudy, uma empresa de pesquisa privada
patrocinada pelo Corpo de Engenheiros do Exército e pela indústria de energia
nuclear. Ignorada em matérias jornalísticas, a Mass Geostudy enviou uma carta
irritada ao Globe e informou aos leitores que “a probabilidade de a grande Boston
vir a sofrer um terremoto tão intenso quanto os tremores de 10 de maio nos
próximos 85-120 anos é nula”. Muitos outros cientistas concordavam que a
liberação de tensão ocorrida em 10 de maio havia, de fato, diminuído o risco de
acontecerem grandes terremotos no futuro próximo, mas uma minoria
substancial, que incluía o respeitado Axelrod, continuava a advertir que “as coisas
só acabam quando terminam”. Essa minoria chamava a atenção para o padrão
atípico das réplicas e para indícios da existência de estruturas semelhantes a
falhas, bastante profundas, nos cerca de vinte quilômetros que separavam
Ipswich de Peabody. Embora não existissem razões para supor que viesse a se
dar uma ruptura ao longo de toda a extensão desses vinte quilômetros (o que seria
um terremoto de grandes proporções), também não era possível descartar o risco
de vir a ocorrer uma pequena ruptura.
A expressão do momento, aplicada a torto e a direito a todas as coisas
geofísicas no leste dos Estados Unidos, era “não bem compreendido”.
Em vez de gastar um bilhão de dólares para tornar Massachusetts tão resistente
a catástrofes quanto a Califórnia, os legisladores do estado optaram por alocar
um milhão de dólares para pesquisas sismológicas imediatas. (E até mesmo um
milhão parecia muito para um estado que enfrentava sérios problemas
orçamentários.) Boa parte do dinheiro foi para o Boston College, para financiar
um mapeamento sísmico completo do condado de Essex. Falhas expostas foram
inspecionadas em busca de indícios de deslocamentos recentes (nenhum foi
encontrado) e fontes sísmicas do tipo Vibroseis foram postas em operação.
Estudantes levavam um desses caminhões vibradores para locais selecionados e
instalavam ao redor uma malha de instrumentos de captação acústica chamados
geofones. Em momentos cuidadosamente cronometrados, o vibrador transmitia
pulsos para dentro da terra e, a partir das refrações, reflexões e dilatações
sofridas pelos pulsos no subsolo e registradas pelos geofones, estruturas profundas
podiam ser mapeadas de uma forma muito semelhante ao mapeamento de um
feto por ultrassom.
Resultados preliminares do mapeamento com vibradores revelavam que um
emaranhado de descontinuidades entrecruzava o condado de Essex e atingia
profundidades bem maiores do que se supunha antes. As incertezas cresceram
ainda mais quando sismólogos começaram a tentar correlacionar os hipocentros
dos terremotos às estruturas mapeadas. Os novos dados serviram de apoio a
vários modelos discordantes. E deram origem a novos modelos que contradiziam
não só uns aos outros, mas também todos os modelos anteriores.
No dia 7 de junho, um aluno do Boston College que estava instalando um
geofone num bosque de Topsfield encontrou o corpo nu de um adolescente de
Danvers que estava desaparecido fazia um mês, e os Red Sox conquistaram uma
vitória apertada contra os Seattle Mariners em dez innings.
O resto do dinheiro do estado estava sendo gasto com estudos de previsão de
terremotos a curto prazo, organizados por pesquisadores de diversos lugares,
inclusive da distante Califórnia. Um grupo instalou sensores no leito de rocha para
medir alterações ocorridas na condutividade elétrica. Outro estava monitorando
campos magnéticos e tentando captar ondas de rádio de frequência
extremamente baixa. Quatro grupos independentes estavam estudando
indicadores menos glamorosos, mas igualmente bem aceitos: alterações na
profundidade e na clareza da água de poços, vazamento de metano e outros gases
de buracos profundos, comportamentos estranhos em animais e sequências de
tremores semelhantes a abalos premonitórios.
Um pequeno escândalo eclodiu quando o Channel 4 descobriu que o estado
havia dado quinze mil dólares a um pós-doutorando do Michigan para que ele
importasse um aquário de bagres japoneses e os observasse num quarto de
motel, à meia-luz, nas cercanias de Salem. Alguns estudos haviam indicado que
essa espécie de bagre ficava agitada na véspera de terremotos, mas o pós-
doutorando do Michigan era tímido e não se saiu muito bem falando diante das
câmeras. A repórter do Channel 4, Penny Spanghorn, chamou o experimento de
“talvez o cúmulo da tapeação”.
De maneira geral, a mídia e o público acreditavam que os grupos de pesquisa
iam emitir alertas urgentes caso um grande terremoto parecesse ser iminente;
afinal, era para isso que eles tinham vindo para Boston. Já os grupos em si não
tinham nenhum plano nesse sentido. Eles eram cientistas e estavam ali para
colher dados e aprofundar o entendimento que tinham da Terra. Sabiam, de todo
modo, que o governador jamais tomaria a medida economicamente
desestabilizante de emitir um alerta geral, a menos que a maioria das previsões
concordasse que um grande tremor estava a caminho. No passado, jamais havia
acontecido de os métodos concordarem quanto à data, à intensidade e à
localização de grandes terremotos. Era por isso que os métodos ainda estavam
sendo testados. Quando os grupos davam esses esclarecimentos, no entanto, o
público tomava isso como modéstia e continuava a acreditar que de alguma
forma, caso um desastre assomasse no horizonte, um alerta seria emitido.
Tirando a história dos bagres, a cobertura midiática dos esforços de previsão
estava sendo entusiástica, e as instalações experimentais tornaram-se locais
muito procurados pela população jovem local. A notícia de que a água de dois
poços de Beverly ficara turva foi mais tarde desmentida, quando um adolescente
confessou ter jogado terra e cascalho dentro deles “de brincadeira”. Pouco
depois disso, um numeroso grupo de jovens de Somerville que haviam se
espremido dentro de um carro para fazer uma visita a uma das instalações foi
detido pela polícia de Salem quando “fazia vandalismo” num lugar ermo. Os
jovens tinham imaginado que seria divertido enganar um sismógrafo portátil
pulando no chão e simulando tremores, mas acabou que não foi tão divertido
quanto eles achavam que ia ser e, então, eles resolveram atacar o sismógrafo
com tacos de beisebol.
Na primeira semana de junho, todas as residências do leste de Massachusetts
receberam um folheto intitulado dicas de como proceder em caso de terremoto.
O folheto, que tinha sido impresso na Califórnia, era ilustrado com palmeiras e
casas em estilo colonial espanhol e recomendava que crianças se abrigassem
debaixo de suas carteiras na escola, que se evitasse chegar perto de cabos
elétricos caídos, que vazamentos de gás fossem imediatamente comunicados às
autoridades e que um estoque de alimentos enlatados e água mineral fosse
comprado com antecedência. Supermercados e magazines responderam com
display s especiais de “Kits de Sobrevivência para Terremotos”, e vendedores de
armas de toda a região diziam estar registrando um salto nas vendas.
Companhias de seguros haviam voltado a vender seguro contra terremoto,
embora admitissem abertamente que, com preços a partir de trinta dólares por
mil dólares de cobertura, quase ninguém estava comprando. Embusteiros que
vendiam seguros de porta em porta, no entanto, vinham faturando alto com falsas
políticas de descontos. As ações de empresas e bancos com grandes
investimentos de capital na área de Boston continuavam em baixa, assim como o
mercado de imóveis no condado de Essex e em áreas de terreno baixo mais ao
sul, incluindo Back Bay e boa parte de Cambridge. (Prédios construídos sobre
pântanos aterrados e outros tipos de aterro eram particularmente suscetíveis a
trepidações sísmicas.) Municípios ricos tinham receio de gerar um pânico
generalizado se promovessem simulações de evacuação; comunidades pobres
tinham outras preocupações; e, assim, nenhuma simulação era feita.
Num editorial da wsne, o reverendo Philip Stites observou num tom contido
que não acreditava que Deus já tivesse terminado de dar Seu recado ao estado de
Massachusetts e nem terminaria até que a última clínica de aborto do estado
tivesse fechado as portas. Em seguida, Stites condenou as bombas recentemente
detonadas em clínicas de Lowel, dizendo que cabia a Deus, e não ao homem,
impor castigos. Desde 8 de junho, cinquenta e oito membros da Igreja da Ação
em Cristo estavam mofando em celas de cadeia em Boston e Cambridge. Eles
haviam se recusado a pagar fiança depois de terem sido presos por bloquear as
entradas de diversas clínicas. Cartunistas e colunistas retratavam Stites como um
dândi rico que não estava disposto a sujar as mãos participando de ações que
pudessem levá-lo a ser preso junto com suas tropas. Zombavam da maneira
escancarada como ele cortejava políticos conservadores locais e detectavam
“um cheiro de hipocrisia” em tudo que ele fazia.
Do outro lado da cerca, uma coalizão de grupos partidários do direito de
escolha estava prometendo lotar o Boston Common com cem mil pessoas numa
manifestação marcada para 14 de julho. Uma das organizadoras havia escrito
para Renée, pedindo permissão para incluí-la numa lista de figuras públicas que
apoiavam a manifestação. Renée telefonou para a organizadora e perguntou:
“Por que você me quer na sua lista?”.
“Você é a geóloga. Você apareceu na televisão.”
“Muita gente aparece na televisão.”
“Você está dizendo que não quer ser incluída na lista?”
“Não, não, tudo bem. Pode me incluir.”
“Está bem, então.” A voz da organizadora soou meio irritada. “Nós vamos pôr
o seu nome na lista.”

Os escritórios administrativos regionais da Agência de Proteção Ambiental


ficavam no oitavo andar de um prédio de granito do período pré-guerra, em
frente ao Tribunal de Justiça Federal, naquela parte antiga do centro onde, se
você ficasse um tempo olhando para a fachada dos prédios e depois olhasse para
a rua de novo, teria a sensação de que iria ver todos os homens usando chapéu
diplomata, gravatas finas escuras e óculos estilo Buddy Holly .
Diante do Tribunal, seis mulheres manifestantes, com as mãos dentro de
grossas luvas de tricô, tinham envolvido suas fotografias de fetos em filmes de
pvc transparente. Lençóis de água escorregavam das ladeiras que levavam à
zona de combate, a chuva listrando as janelas verde-cinza da cidade e ensopando
os volantes de propaganda de sexo por telefone enfiados debaixo de todo
limpador de para-brisa que não estivesse em movimento. Era uma peça que
Renée já tinha visto os verões da Nova Inglaterra pregarem várias vezes: uma
máxima de doze graus hoje e a previsão de mais do mesmo para o fim de
semana.
As cadeiras de plástico duro do vestíbulo das salas da epa desestimulavam
qualquer vontade de sentar. Algumas estavam dispostas num semicírculo que
sugeria sociabilidade, apesar de as cadeiras estarem vazias; as restantes estavam
isoladas perto das paredes, em ângulos fortuitos. Quando a vice-diretora regional,
Susan Carver, veio até o vestíbulo para recebê-la, Renée deixou marcas de chuva
no chão perto do pôster que estava lendo, a respeito da lei que garantia
oportunidades iguais de emprego.
Carver era uma mulher alta e corpulenta, com bochechas brancas carnudas e
sobrancelhas grossas. Seus óculos tinham aros redondos cor de cereja e lentes
enevoadas pela iluminação padrão das instituições federais. Ela parecia um
coelho branco inteligente apertado dentro de um tailleur tamanho 48. Estava
conduzindo Renée a sua sala, quando uma bolinha de papel saiu voando pelo vão
da porta de uma das salas e quicou em seu ombro massudo. Ela agarrou a
bolinha no ar com surpreendente destreza e parou diante do vão da porta. Quatro
administradores de meia-idade, usando cores como ferrugem e cinza-azulado,
ergueram os olhos de suas mesas com uma culpa que era mais um deleite
contido. Sem dizer nada, Carver arremessou a bolinha de papel bem no meio de
um aro de basquete cor de laranja preso à parede e voltou sua atenção de novo
para Renée, enquanto os homens vibravam.
“Você queria falar comigo sobre a Sweeting-Aldren.”
“Sim.”
“Isso diz respeito aos terremotos de Peabody .”
“Sim.”
Obviamente satisfeita consigo mesma por ter acertado a cesta, Carver se
sentou atrás de sua mesa e entrelaçou suas manzorras brancas sobre o tampo,
esticando as riscas de giz de seu casaco nos cotovelos e nos ombros. No peitoril
da janela atrás de sua cadeira havia porta-retratos com fotos de sua família: uma
adolescente gorducha de nariz pequeno e rosto achatado e ávido, com jeito de
quem é fera em computador, um menino balofo de oito ou nove anos e um
marido magricela e sorridente. Havia uma pistola d’água, no formato de um
revólver 38, ao lado de seu fichário de mesa giratório. Com um ar ressabiado
maternal e bem-humorado, como se a empresa fosse mais um de seus filhos, ela
perguntou: “O que foi que a Sweeting-Aldren fez, na sua opinião?”.
Renée fez menção de pegar a bolsa de ombro onde estavam seus papéis, mas
recolheu lentamente a mão, sem nem chegar a tocar na bolsa. “Existem alguns
indícios”, disse, “de que eles vêm injetando líquidos num poço muito profundo já
faz alguns anos, se não décadas, e de que isso pode ter provocado os terremotos
que aconteceram em Peabody .”
As sobrancelhas de Carver subiram e desceram quase imperceptivelmente.
“Continue.”
Renée abriu sua bolsa e fez uma apresentação equilibrada e cautelosa. Só
ergueu os olhos de seus papéis depois que terminou. Carver tinha um leve e
abstraído sorriso no rosto, como se ainda estivesse saboreando a cesta que havia
feito.
“Deixe-me ver se eu entendi a sua cronologia”, disse ela. “Primeiro a
Sweeting-Aldren começa a cavar um poço profundo em algum lugar, em fins da
década de sessenta. Depois, em 1987, há um enxame de pequenos terremotos
perto de Peabody , que dura uns três meses...”
“E se dissipa com uma rapidez incomum.”
“E se dissipa rapidamente. Depois, há um vazamento líquido em Peabody, não
particularmente grande — no máximo, o acúmulo de uns dois anos de efluentes
que não podem ser lançados no meio ambiente. E, por fim, não muito depois do
vazamento ser descoberto, os terremotos em Peabody começam de novo,
aparentemente em conexão com os terremotos de Ipswich, mas na verdade sem
conexão nenhuma, segundo você.”
“Não só eu. Ninguém da área de sismologia conseguiu formular um modelo
convincente relacionando os eventos de Peabody aos de Ipswich.”
Carver balançou a cabeça para cima e para baixo. Pegou sua pistola d’água e
ficou mordiscando a alça de mira. “Entendo. Embora a impressão que eu tenha é
que tem muita coisa que os sismólogos não sabem a respeito do que faz os
terremotos acontecerem, quando e onde eles acontecem, principalmente
terremotos na Costa Leste.”
“Um modelo de sismicidade induzida explica perfeitamente o enxame de
terremotos de Peabody .”
“Sim, eu entendo. Embora, mais uma vez, tudo dependa do seu pressuposto de
que um buraco tenha sido de fato perfurado e perfurado perto de Peabody.
Como podem existir outros ‘modelos’ que sejam igualmente convincentes...”
“Quais, por exemplo?”
Carver deu de ombros. “Talvez uma causa natural de terremotos em Peabody ,
e depois um ‘modelo’ de demanda cíclica que explique o vazamento que
aconteceu lá em abril. Sabe, eu não sei até onde vai o seu conhecimento do
funcionamento da indústria química. O armazenamento tanto de matérias-primas
quanto de resíduos não tratados é uma coisa muito comum. A Sweeting-Aldren
armazena resíduos incineráveis até que a demanda pelos produtos que eles fazem
nos reatores de alta temperatura aumente. E então nesse meio-tempo, no mês
passado, um terremoto danificou um dos tanques de armazenamento deles.”
Renée fez que sim. Já esperava que Carver bancasse o advogado do diabo; na
verdade, até torcia para isso. “Eu posso perguntar se vocês, se a epa já esteve
dentro da fábrica de Peabody para verificar se eles realmente estão tratando
esses resíduos todos da forma como dizem que estão?”
“Claro que você pode perguntar. A resposta é não. Nós não temos lançado
sondas dentro dos tanques deles. Não temos vigiado os processos internos deles.
Nós não temos nem pessoal nem direito legal para sair por aí verificando cada
cano e cada válvula de cada fábrica que existe nos Estados Unidos.”
“Ainda que, obviamente, esse seja meio que um caso suspeito.”
“Ah, sim. Um caso suspeito.” Carver se apoiou nos braços de sua cadeira e,
com considerável esforço, se reposicionou no assento. “Deixe-me explicar uma
coisa a você, Renée. Como uma sobrevivente dos anos oitenta que ainda continua
trabalhando para a epa. A razão pela qual nós estamos fazendo um trabalho
minimamente aceitável no sentido de proteger o meio ambiente deste país é que
nós somos realistas e estabelecemos prioridades. Nós estamos lidando com o
mundo real, e no mundo real não há como investigar a veracidade de toda
hipótese concebível. Você tem que se concentrar no que está saindo dos canos de
esgoto e das chaminés, e isso significa ocasionalmente aceitar certas coisas de
boa-fé. Se uma empresa como a Sweeting-Aldren não está poluindo o ar nem a
água...”
“Até o vazamento do mês passado.”
Carver sorriu. O sorriso queria dizer: Você vai me deixar terminar? “A
Sweeting-Aldren é uma empresa administrada de forma responsável. Talvez, se
não tivesse mais ninguém com que me preocupar, eu pudesse ir lá verificar isso
tudo. Mas eu tenho que lidar com empresas que estão despejando meia tonelada
de sais de cádmio e de mercúrio por hora em estuários. Tenho que lidar com
empresas de gestão de resíduos que estão pegando óleo com níveis de pcb na
proporção de uma parte por mil e níveis de tolueno e de cloreto de vinila na
proporção de uma parte por dez e despejando em tanques de cinquenta anos
debaixo de postos de gasolina abandonados. Tenho que lidar com aterros
sanitários que estão à beira de contaminar lençóis freáticos praticamente no
estado inteiro, daqui até Springfield. Tenho que lidar com empresas que” —
Carver contou os itens usando as pontas dos dedos — “ignoram os nossos
regulamentos, ignoram as multas que nós aplicamos, ignoram ordens judiciais e,
por fim, vão à falência, deixando para trás terras de centenas de acres
contaminadas pelo resto da eternidade. Do outro lado, nós temos uma população
propensa ao pânico e presidentes que, a cada dois anos, se comprometem com
orgulho a não cortar ainda mais a nossa verba.”
“Mas o vazamento de Peabody ...”
“Sim, havia pcbs no vazamento. Eu sei o que você quer dizer. E a empresa
enganou a população durante uns dois dias, não que Wall Street não tenha sacado
perfeitamente que era mentira. Por outro lado, é uma reação extremamente
humana negar algo quando se está envergonhado. Oi, Stan.” Carver mirou sua
pistola d’água em direção ao vão da porta, onde um homem de blazer verde-
ervilha segurava uma pasta de arquivo. “Eu já vou falar com você. Me dá só uns
minutinhos.”
Renée franziu o cenho. Uns minutinhos?
“Esse seu buraco”, disse Carver. “Se é que ele chegou de fato a ser feito,
supostamente ele teria sido perfurado nas cercanias de Hereford, Massachusetts.
Para fazer o seu ‘modelo’ funcionar, você não deslocou de forma mais ou menos
arbitrária um buraco de oito mil metros de profundidade para uns duzentos e
cinquenta quilômetros a leste?”
“O que está dito na Nature é leste de Massachusetts. É a única localização que
eles dão: leste de Massachusetts.”
“Você encontrou alguma outra referência a isso?’
“Não. Ainda não.”
“E a Nature é uma publicação... inglesa. Sabe, eu detesto ter que dizer isso,
mas não me sinto particularmente confortável com uma teoria que depende do
conhecimento que o editor de uma revista inglesa tinha da geografia americana.”
Renée apertou os olhos.
“Outras objeções que me vêm à cabeça agora. Por que alguém iria gastar
milhões e milhões de dólares num poço profundo em busca de petróleo em 1969?
Você sabe quanto custava um barril de petróleo naquela época?”
“Sim, eu sei. Mas não acredito que não houvesse ninguém na América capaz
de antever o que iria acontecer em 1973. Eles estavam tendo lucros
astronômicos. É provável que tenham ficado até contentes com a ideia de arcar
com um prejuízo que poderia representar uma dedução de impostos.”
“Ninguém ganha dinheiro com dedução de impostos. E uma empresa com
tanta antevisão também já não teria ouvido falar em sismicidade induzida?
Qualquer um que abra um livro básico de sismologia certamente encontra
alguma coisa sobre o assunto. Mas, segundo você, eles foram pegos de surpresa
pelos terremotos de 1987.”
“Eu imagino que eles tenham visto os estudos sobre o que aconteceu em
Denver”, disse Renée. “Denver já tinha registrado terremotos antes, e o maior
evento induzido teve magnitude de 4,6. Em Peabody não havia nenhum caso de
terremoto e nenhuma razão para crer que terremotos pudessem vir a acontecer.
Além disso, eles só estavam injetando uma pequena fração da quantidade de
resíduos que o Exército injetou em Denver. E tem mais uma coisa, na verdade,
que eu esqueci de mencionar. O vice-presidente de operações da Sweeting-
Aldren fez seguro contra terremotos na casa dele.”
Carver encostou a ponta do cano de sua pistola nos lábios, como se estivesse
assoprando a fumaça. Sorriu para Renée serenamente. Seria possível que ela
tivesse sido corrompida pela Sweeting-Aldren? Renée descartou a ideia. Sentia
que o problema ali era que Carver simplesmente não tinha ido com a cara dela.
“Imagino que você não tenha casa própria”, disse Carver.
“Não, eu não tenho casa própria.”
“Não que haja nada de errado com isso, obviamente. Mas talvez você não
tenha muita noção do quanto as pessoas que têm casa própria receiam perdê-la.
E talvez também não tenha lhe ocorrido que pessoas que passaram a vida inteira
em Boston podem se lembrar dos terremotos dos anos quarenta e cinquenta.
Você está falando de quem, do Dave Stoorhuy s?”
Ela falou o nome dele de um jeito que parecia que ele era alguém com quem
ela saía para tomar chope.
“Exato.”
Carver balançou a cabeça. “Ele é a precaução em pessoa. Você o conhece?”
“Eu conheço o filho dele.”
“Sei, mas, sabe, eu de fato lido com essas empresas quase que diariamente. E,
por mais estranho que possa parecer, realmente existem algumas pessoas muito
decentes e bem-intencionadas na indústria. Na verdade, em se tratando de visar
interesses próprios e querer se autopromover, eu posso dizer que já encontrei isso
tanto do lado acadêmico da cerca quanto do lado comercial, talvez até mais do
lado acadêmico. Era isso que você queria ouvir? Claro que não. Mas eu estaria
mentindo se não lhe dissesse que acho que você está gastando a sua munição à
toa mirando o Dave Stoorhuy s e a Sweeting-Aldren.”
“E se eu mesma procurasse o poço de injeção e lhe trouxesse fotos?”
“Você quer permissão para espionar e invadir propriedades alheias? Quer a
aprovação da mamãe?” Os olhos de Carver cintilaram. “Suponho que, se você
me apresentasse algo mais concreto do que uma conjectura acadêmica, eu
mandaria alguém até lá para averiguar. Embora, sinceramente, existam várias
coisas bem piores que uma empresa pode fazer com essas substâncias químicas
do que injetá-las mais de seis mil metros abaixo do lençol aquífero.”
“E se eles tivessem procurado você para pedir uma licença para injetar os
resíduos deles no subsolo. Você teria dado a licença para eles?”
“Se está falando de responsabilidade legal por danos causados pelos
terremotos, você deveria estar falando com outra pessoa.”
“Com quem, por exemplo?”
“A imprensa sempre adora boas histórias.” Carver olhou para seu relógio de
pulso e se levantou. “Eu reparei que eles gostam muito de você também.”
“Isso é responsabilidade sua”, disse Renée. “Se eles estão injetando resíduos, a
única coisa que eles estão violando são os regulamentos da epa. Eu acho que
alguém devia pelo menos ir até lá ver se eles têm um poço na propriedade deles.
E, se tiverem, o poço devia ser interditado antes que eles tenham a chance de
tapá-lo.”
“Eu vou dar uma olhada nos nossos registros.” Carver estava andando em
direção à porta agora, forçando sua visitante a se levantar. Todo funcionário
público sabe que as pessoas que fazem queixas às agências do governo
invariavelmente se consideram especiais e ficam aturdidas quando finalmente se
dão conta de que as agências não parecem considerá-las especiais. Se quem
estava fazendo a queixa era uma pessoa orgulhosa e retraída como Renée, deixá-
la aturdida e se livrar dela eram tarefas particularmente fáceis. Foi, portanto,
uma inequívoca maldade da parte de Carver ter se dado ao trabalho de
acrescentar: “Eu preciso lhe dizer, eu já ouvi isso tudo antes. E, sinto muito, mas
acho que você está viajando um pouco nessa sua história romântica”.
“O quê?”
“Você sabe... uma viagem. Quantos anos você tem?”
“Eu sei o que a palavra significa.”
“Dois meses atrás um entomologista veio aqui nos dizer que o spray que o
estado usa para combater a mariposa-cigana contém dioxinas. Ele também tinha
uma bela teoria. O único problema é que não tem dioxina nenhuma no spray. No
ano passado veio outro acadêmico, um cara de Harvard — Thetford?
Oceanógrafo? —, falando de mercúrio na plataforma continental. De má-fé e de
conspiração. Imagino que eu mesma também pensava assim, muitos e muitos
anos atrás. É muito gratificante, muito romântico. Mas 99,9 por cento do tempo,
não é como o mundo realmente funciona. Talvez você devesse tentar se lembrar
disso.”
De volta à rua, Renée segurava seu guarda-chuva logo abaixo das varetas e
usava a outra mão para evitar que sua bolsa escorregasse de seu ombro enquanto
o vento soprava e a chuva caía. Naturalmente, estava louca de vontade de fazer
xixi. Pessoas se esquivavam irracionalmente umas das outras a céu aberto ou em
lugares fechados. Um rapaz negro que estava parado no último degrau da escada
do metrô apontou para uma mancha de água em sua calça e perguntou: “O que é
que se diz?”.
Renée saiu andando rápido na diagonal.
Ele foi atrás dela. “O que é que se diz? Você diz desculpe. Você diz por favor,
me desculpe.”
“Desculpe”, ela disse.
“Por favor, me desculpe. Eu lamento ter espirrado água em você. Lamento ter
molhado a sua calça.”
“Eu lamento ter espirrado água em você.”
“Obrigado”, ele gritou atrás dela, do outro lado das roletas. “Obrigado pelo seu
pedido de desculpas.”
Esse diálogo ficou ecoando na cabeça de Renée até o trem chegar.
Um exemplar do Globe tinha explodido no carro em que ela entrou, cobrindo o
chão e se amontoando debaixo dos bancos. Na primeira página, uma manchete
carimbada com uma pegada molhada dizia: atentado a bomba atinge segunda
clínica de aborto em lowell.
Na Central Square, a Mulher Raivosa local, forçada pelo mau tempo a ir para
o subterrâneo, estava xingando os filhos da puta dos homens que mandavam no
mundo. Um senhor chinês carregando dois peixinhos dourados dentro de um saco
cheio de água se sentou ao lado de Renée, que lhe dirigiu um sorriso amável.
“Chuva chuva chuva”, disse ele.
“É, chuva chuva chuva.”
Esse diálogo ficou ecoando na cabeça dela o caminho inteiro até Harvard.
O andar térreo do laboratório Hoffman estava calmo, as grandes telas brancas
na sala dos computadores Sun cuspindo silenciosamente pequenas declarações
em preto enquanto programas rodavam para alunos e pós-doutorandos que
estavam almoçando tarde na praça, as telas pretas menores das salas do sistema
aguardando nomes e senhas de usuário ou exibindo caracteres verdes em
movimento. Renée foi direto do banheiro das mulheres para uma das telas pretas.
Enquanto ela trabalhava, o telefone em cima do radiador tocou até cansar
diversas vezes. Àquela altura, até mesmo usuários infrequentes do computador já
tinham sido informados de que a vida humana começa na concepção. Ninguém
atendia mais, mas o telefone continuava tocando.
Por volta das três horas, Howard Chun e um amigo seu de Pequim voltaram do
almoço, exalando alho. Com sua parca de náilon gotejando, Howard estacionou
atrás de uma plotadora Tektronix. Da última vez que Renée o vira, ao sair de casa
depois de tomar café da manhã, ele estava esparramado na cama dela, roncando
intermitentemente.
“Por que essa máquina está tão lenta?”, ela perguntou a sua tela.
“O disco B está cheio”, disse o pequinês, franzindo sua testa larga e
incrivelmente expressiva. Ele era um bom cientista e Renée gostava dele.
“O disco B está cheio. Sei. Quatro dias atrás, eu fiquei até de madrugada
fazendo o backup dele.”
Ela entrou no diretório do Operador, assumiu a identidade superuser e viu que,
em menos de uma semana, usuários com o nome de terry, ts, tbs, dnc1 e dnc2
tinham ocupado 375 megaby tes de memória do disco B e mais 65 megaby tes de
memória do disco A. Todos esses usuários eram Terry Snall. O tema de sua tese
era deformação não coaxial. dnc1, uma conta temida e odiada nas salas do
sistema, ocupava sozinha 261 megaby tes; isso era o quádruplo do espaço
ocupado pelos arquivos de qualquer outro aluno; era quase metade de um disco.
superuser assumiu a identidade superop. “Você sabe o que o Terry fez?”, ela
perguntou.
No canto do equipamento Tektronix, atrás de divisórias, o teclado de Howard
clicava, indiferente. A sala estava ficando saturada de odores de alho. superop se
dirigiu ao pequinês. “Ele trouxe de volta todos os arquivos de programa dele,
todos, todos, todos. Tem setenta megaby tes de arquivos de programa nesse disco.
Eu estou levando vinte minutos para conseguir rodar um programa de um minuto
e ele tem setenta megaby tes de arquivos de programa.”
“Cancela todos eles”, o pequinês recomendou.
“É exatamente o que eu vou fazer.”
Arquivos de programa só eram necessários quando um programa estava de
fato sendo rodado e podiam ser recriados em questão de minutos. superop
apagou todos os arquivos de programa de Terry .
“Ah, muito melhor”, disse o pequinês.
“Oito megaby tes livres num disco de seiscentos mega. Será que ele não sabe?
Será que ele não entende?”
Howard saiu do canto onde estava e foi indo de console em console, se
conectando em cada um deles. Mesmo quando só ia trabalhar durante alguns
minutos, ele não se sentia confortável se não estivesse conectado em pelo menos
três ou quatro. Quando trabalhava tarde da noite, às vezes se conectava em dez
deles. Todos, menos o que ele estava usando, automaticamente se obscureciam
para evitar o desgaste dos pixels.
Numa nova mensagem a ser exibida a todos os usuários que estivessem se
conectando nos consoles, superop enfatizou que arquivos que não fossem
imediatamente necessários não deveriam ser instalados no disco. Como todo
mundo sabia quem escrevia essas mensagens, ela não assinou. Em seguida,
assumiu a identidade rs de novo.
“Você viu o recado que deixaram para você?”, o pequinês perguntou a ela.
“Alguém se deu ao trabalho de anotar um recado para mim?”
“O Charles.”
“Ah.”
Na sala do outro lado do corredor, debaixo de sua bolsa de ombro e de sua
jaqueta jeans úmida, ela encontrou um número de telefone e o recado: sra.
holland telefonou. você pode ligar para ela a cobrar.
Renée jogou o recado no lixo e voltou para seu console. O pequinês tinha saído
da sala. “Howard?”, ela chamou.
Uma parca farfalhou, mas Howard não respondeu. Atrás da divisória, Renée o
encontrou esparramado numa cadeira, os olhos fixos num cintilante espectro
sísmico verde, os pés cruzados em cima de um ninho de cabos, o teclado no colo.
“Você ainda tem contato com aquele cara que tem licença de piloto?”, ela
perguntou.
Howard sacudiu a cabeça e digitou alguma coisa no teclado.
“Você não tinha um amigo que levava você pra voar?”
Um novo espectro desabrochou na tela. Howard sacudiu a cabeça. Renée
franziu o cenho. “Você está zangado comigo?”
Ele sacudiu a cabeça.
Ela lançou um olhar cauteloso na direção da porta que dava para o corredor.
“Ah, vai”, ela sussurrou. “Não fique zangado comigo. Eu realmente preciso que
você não fique zangado comigo.”
Howard piscou os olhos ainda fixos na tela, determinado a ignorar Renée.
Dando mais uma olhada de relance para o corredor, ela se ajoelhou e pôs as
mãos no peito dele. “Vai. Por favor. Você não pode ficar zangado comigo agora.
Por favor.”
Ele tentou fazer sua cadeira deslizar para longe dela.
Renée segurou a mão de Howard e encostou o rosto em seu peito. Era a
primeira vez que ela tocava nele dentro do laboratório e, assim que fez isso, ouviu
um farfalhar de roupas bem atrás dela. Uma sensação de inevitabilidade a
invadiu, como um pavor, quando ela se virou e viu Terry Snall dando meia-volta
e saindo de novo pelo corredor.
Ela se levantou de salto. “Merda!” Fez menção de ir atrás de Terry, mas
voltou para o Tektronix. “Merda! Merda!” Puxou o cabelo para trás. “O que foi
que eu fiz pra você ficar assim?”
Howard digitava casualmente em seu teclado.
“Ah, meu Deus, isso vai acabar comigo. Isso realmente vai me destruir.” Ela
agachou ao lado de Howard de novo. “Pelo menos me diz o que foi que eu fiz.”
Ele fez uma careta horrenda, toda gengivas e narinas dilatadas. “O que eu fiz
pla você?”, ele caçoou. “O que eu fiz pla você? O que eu fiz pla você?”
“Eu deixo você transar comigo”, ela sussurrou, furiosa. “Eu deixo você transar
comigo, muito.”
“Eu deixo você tlansar comigo eu deixo você tlansar comigo.”
Ela ficou olhando para ele, a boca trêmula.
“Rouis, Rouis”, disse Howard. “Pode me beriscar um pouquinho, me bate, me
bate.”
“Ai, meu Deus.” Ela saiu de perto dele e procurou um lugar para onde fugir,
mas não havia lugar nenhum. Ao sair para o corredor, quase colidiu com
Charles, um dos secretários do departamento. Ele era alto e calvo e estava
escrevendo um romance nas horas vagas. Usava suspensórios em vez de cinto.
“Melanie Holland”, ele disse. “Ela está no telefone de novo.”
“Diz que eu já fui embora.”
“Ela quer saber pra onde ligar pra falar com você.”
“Diz pra ela tentar a minha casa.”
“Ela já tentou várias vezes.”
“Diz que eu viajei.”
“Ah, Renée”, Charles sacudiu a cabeça. “Eu não sou pago pra mentir pras
pessoas. Se você não quer falar com ela, a coisa honesta a fazer é dizer isso a ela.
Assim ela não vai mais ficar ligando pra cá toda hora e me interrompendo, e eu
não vou ter mais que ficar descendo dois lances de escada toda hora pra vir aqui
perturbar você.”
Renée apontou para a porta da rua. “Eu estou indo.”
“Olha, Renée, eu te aconselho a não fazer isso. Não se você quiser voltar a
usar a minha copiadora algum dia ou quiser que eu anote recados de outras
instituições pra você ou quiser pedir emprestado o meu cortador de papel. Você
está interessada em usar o meu cortador de papel de novo algum dia?”
Sem dizer uma palavra, ela saiu andando empertigada pelo corredor em
direção à escada. “Não pense que eu estou chantageando você”, disse Charles,
andando atrás dela. “Isso é uma questão de gentileza e de profissionalismo. Eu
deixo você usar o meu cortador de papel por gentileza. Eu não sou obrigado a
deixar você usar o meu cortador, sabe.”
A voz dela ecoou no poço de concreto da escada. “É sim.”
Ele a seguiu escada acima. “Você costumava ser tão gentil, Renée. Você era a
pessoa mais gentil deste prédio. Você sabe quantas cópias eu já deixei você tirar
na copiadora? A copiadora que é para uso exclusivo da secretaria do
departamento? Renée? Você está me ouvindo? Seis mil e quinhentas cópias,
Renée!”
Ela entrou na sala do diretor do departamento, que estava ausente, e fechou a
porta na cara de Charles. A sala estava escura, fresca e agradavelmente inodora.
Renée sempre tinha gostado de ficar ali. As estantes continham volumes
encadernados de todos os principais periódicos da área publicados desde a
década de quarenta. Havia armários de arquivo abarrotados de artigos, brochuras
de propostas de projetos de pesquisa multinacionais úteis e interessantes, pacotes
inteiros e ainda fechados de canetas coloridas e mais um ou outro suprimento de
escritório. Dali a alguns anos ela também teria uma sala como aquela, e algum
jovem trouxa como ela cuidaria de um sistema computacional para ela, e as
pessoas teriam de incluí-la em todas as discussões de grandes eventos
sismológicos. Importaria que ela havia estudado com X, Y e Z em Harvard —
uma universidade que, como ela sempre lembrava quando entrava naquela sala,
podia se gabar de ter um pequeno, mas excelente programa em geofísica. Más
recordações das salas de computação sumiriam. Árvores balançariam ao vento
para além da sua janela.
“Renée? Aqui é Melanie Holland. Escuta, eu não quero tomar o seu tempo
enquanto você está trabalhando, mas eu gostaria muito de conversar com você
de novo e estava pensando se você aceitaria um convite meu para almoçar
amanhã. Já que é sábado. Tem um restaurante muito agradável no Four Seasons,
eu adoraria levar você lá.”
“Para quê?”, Renée perguntou, grosseira. “Quer dizer... é muita gentileza sua
me convidar.”
“Ótimo. Então você vai.”
“Não. Não, eu não vou. Quer dizer, eu não posso.”
“Bom, não precisa ser necessariamente um almoço amanhã, se você tem
outros planos. Nós podemos tomar um brunch no domingo ou jantar amanhã à
noite. Ou mesmo hoje à noite. Seria tão bom se você pudesse.”
“Sobre o que você quer conversar comigo?”
“Sobre tudo e sobre nada. Eu acho que seria muito bom para nós duas se
pudéssemos nos conhecer melhor. Eu estou ligando para você como uma amiga.
Por favor, almoce comigo, Renée.”
Ela franziu o cenho com tanta força que chegou a doer. “Mas para quê?”
“Ah, por favor, vamos deixar de bobagem. Eu posso levar você para almoçar
amanhã ou não posso? Sim ou não. Significaria muito para mim. Me dê um bom
motivo para você não aceitar o meu convite.”
Melanie sabia fazer uma voz linda quando queria. Era como um riacho
correndo num vale, às vezes ao sol, às vezes à sombra, e formando piscininhas
entre os salgueiros; aquele tipo límpido de riacho que faz você querer mergulhar
as mãos e beber a água dele e esquecer as carcaças de cervo e os criadouros de
gado perto da nascente, que de qualquer forma podiam até já nem estar mais lá.
“Eu ligo para você depois para dar a resposta, está bem?”, disse Renée.
“Eu sei. Você está muito, muito ocupada. Eu preciso ser indelicada? Não há
ninguém no mundo mais interessado em falar com você do que eu. Ninguém no
mundo. Por favor, almoce comigo.”
Renée zanzava, tonta, em volta da cadeira do diretor, apertando o telefone.
“Você não pode me dizer qual é a razão desse interesse?”
“Amanhã. Meio-dia e meia está bom para você? O nome do restaurante é
Aujourd’hui.”
Atrás de finos fios de chuva, que se juntavam, se separavam e desciam pela
janela, um grupo de turistas japoneses debaixo de guarda-chuvas idênticos se
aproximava da entrada do Peabody Museum, cuja deslumbrante coleção de
flores de vidro, criada cem anos antes por vidreiros alemães para revelar a
estrutura e a variedade da flora do mundo a estudantes de botânica de Harvard,
era a atração turística mais popular de Cambridge. Renée nunca a tinha visto. Os
guarda-chuvas japoneses se inclinaram na direção do aviso pregado na porta do
museu; dando voltas hesitantes, eles se juntaram para confabular e depois se
separaram. Outros chegaram perto do aviso, que dizia que, devido aos danos
causados pelos terremotos recentes, as flores de vidro ficariam guardadas até
que uma forma mais segura de exibi-las fosse encontrada. Para se consolar, os
japoneses fotografaram uns aos outros ao lado do aviso, o branco de seus flashes
iluminando o asfalto molhado e as árvores mais próximas. Duas manchas de
vapor em forma de pulmões e, acima delas, o contorno mais tênue de uma testa
permaneceram na janela do diretor durante alguns minutos depois que Renée
voltou lá para baixo.

Durante três semestres, ela tinha dividido seu apartamento com uma sismóloga
chamada Claudia Guarducci, uma romana magra, ranzinza, entediada e muito
inteligente que estava fazendo pós-doutorado em Harvard. Elas cozinhavam
juntas, iam ao cinema juntas, malhavam colegas juntas, aceitavam ou
recusavam convites para jantares juntas. Claudia comprou uma motocicleta e
dava carona para Renée até o trabalho. Elas nunca partilhavam segredos.
Quando Claudia voltou para a Itália, elas mantiveram contato através de
cartões-postais lacônicos. Sentindo falta do cheiro dos Merit Ultra Lights de
Claudia, Renée fazia questão de ficar perto de fumantes. Indagou a respeito de
pós-doutorados em Roma, pensando que, se fosse para lá, ela poderia telefonar
para Claudia e mencionar, apenas mencionar, seu atual paradeiro. O futuro que
ela queria iria começar de verdade se ela pudesse morar na Itália e ser a melhor
amiga de uma mulher romana.
Olhando para trás, ela tinha a sensação de que não havia feito outra coisa na
vida senão lançar as bases para futuras torres de vergonha e de ódio a si mesma.
Algum lado crédulo e autônomo seu teimava em construir sonhos chinfrins de
garota do Meio-Oeste: noites europeias na companhia de Claudia Guarducci;
cenas de tranquilidade doméstica com Louis Holland; um caloroso tapinha nas
costas da epa e dos cidadãos de Boston.
Estava terminando sua dissertação de mestrado quando Claudia a informou,
num cartão-postal de duas linhas, que havia se casado com seu antigo namorado
do Istituto Nazionale.
Renée ficou espantada com o quanto se sentiu traída. Não conseguia ter ânimo
para escrever para Claudia de novo, e os meses foram se passando e Claudia
também não escreveu mais. O que doía era saber que ela não estava com ciúme
do homem por ter Claudia, mas de Claudia por ter um homem. Isso e também
saber a diferença que fazia o fato de ela ser mulher.
Tinha certeza de que se isso tivesse acontecido entre um René e um Claudio,
dois bons amigos heterossexuais, René não teria se sentido tão traído. Homens
que se casavam ou arranjavam namoradas não se afastavam de seus amigos
solteiros, pelo menos não com tanta frequência quanto mulheres se afastavam de
suas amigas solteiras. Obviamente, homens eram espíritos mais nobres do que
mulheres. Era uma das consequências de pertencer ao gênero padrão. Se tanto os
homens quanto as mulheres consideravam seus relacionamentos com homens
invioláveis, então os homens inevitavelmente se mantinham fiéis ao seu gênero,
enquanto as mulheres, também inevitavelmente, traíam o seu. A superioridade
moral dos homens estava estruturalmente garantida.
No entanto, Renée não queria ser homem.
Um homem, se tinha sido seu namorado na faculdade, ainda “queria continuar
sendo seu amigo” depois de dar um fora em você. Sua fé masculina na amizade
era tão inabalável, na verdade, que ele chegava a acreditar que você ficaria
contente em receber um convite para o casamento dele.
Um homem, se era seu irmão mais novo, recém-saído da universidade, dava
uma declaração realista à mesa do jantar sobre como “as mulheres
simplesmente não são iguais aos homens, elas têm prioridades diferentes”,
falando com leviandade e em proveito próprio essa verdade que você tinha
levado trinta anos para aprender, incentivado em sua arrogância por uma esposa
de vinte e três anos que tinha “decidido não adiar ter filhos” e, por isso, se
considerava mais madura que você.
Um homem era uma criatura que acreditava estar passando uma imagem de
pessoa sensível ao dizer “eu amo as mulheres”.
Um homem era alguém que não conseguia admitir para uma mulher que
estava errado e continuar sendo homem. Era mais fácil ele chorar, se humilhar e
implorar perdão como uma criancinha do que admitir um erro como um
homem.
Um homem achava mais que natural uma mulher compreender seu pênis,
mas se achava o máximo por entender o clitóris e sua importância. Sorria por
dentro ao pensar em sua superioridade em relação a todos os homens, do passado
e do presente, que não haviam desvendado esse segredo feminino. Sentia orgulho
de seu esclarecimento e de sua gentileza quando perguntava a uma mulher se ela
tinha gozado. O presente perfeito para um homem que tinha tudo era um vidrinho
de oito mililitros de feminismo.
Inescapavelmente imerso numa história feita por pessoas de seu próprio sexo,
um homem jamais poderia se sentir tão pouco à vontade no mundo quanto uma
mulher: jamais poderia sentir tanta vergonha. Por mais sensível que um homem
fosse, faltava a ele aquela consciência radical de que havia sido apenas a sorte,
um emparelhamento de X e Y, que tornara a sua vida descomplicada. Em algum
nível de sua consciência, ele sempre acreditaria que a facilidade de sua vida
implicava uma superioridade moral; essa crença o tornava ridículo.
Mulheres sabiam que seus maridos eram ridículos. Portanto, mulheres
casadas, principalmente as que tinham filhos, podiam ser amigas umas das
outras. A vergonha de estar casada com um instrumento rombudo, uma criatura
cativante porém limitada, e de gerar filhos seus e de suportar sua superioridade,
era amenizada pelo contato com outras mulheres com igual fardo ou com
mulheres cujo mais ardoroso desejo era carregar tal fardo.
Renée, contudo, não era casada. Também acreditava que, mesmo que fosse, a
irmandade de genitoras não a acolheria de bom grado. Tinha a impressão de que
os membros mais bem-sucedidos da irmandade — mulheres que conseguiam ser
profissionais competentes e ainda criar uma família —, lutando para fazer frente
a sua vida, construíam uma tal couraça para seus egos que pouca imaginação
lhes sobrava para gastar num caso complicado como ela. Mães com empregos
não tão exigentes tendiam a ficar na defensiva e a temer e desprezar alguém
como ela, por causa da ambição que ela tinha. Mães que não tinham emprego
algum a atraíam — ela sentia, na verdade, um carinho especial por mulheres
sem afetações —, mas ela também não podia ser amiga delas, porque elas não a
entendiam e, como não a entendiam, ficariam confusas e magoadas com o fato
de ela se recusar a ser como elas.
Sem amigas, Renée via estereótipos onde quer que olhasse. Sua cabeça estava
cheia de imagens de mulheres, e ela odiava mais aquelas que mais se pareciam
com ela.
A acadêmica bem-falante, socialmente preocupada, sem humor e defensiva.
A mulher solteira magra, vulnerável, ensimesmada, de ar vagamente
atormentado que é ou uma pessoa em busca espiritual ou simplesmente uma
fracassada. Provavelmente uma fracassada.
A profissional de trinta anos insatisfeita que vê o equívoco da opção de vida
que fez e começa a ansiar por ter um bebê.
A cientista maçante que vive enfiada numa sala de computação, mas se
considera menos maçante do que outras pessoas como ela porque dez anos atrás
ia a shows do Clash.
A menina que, não tendo amigas, cresceu lendo livros de ficção científica, de
ciências e de filosofia popular e que, já adulta, ainda continua a ser romântica a
ponto de acreditar em coisas como má-fé empresarial e heróis que fazem a
diferença.
A acadêmica medianamente atraente que, em sua busca por se sentir muito
atraente, adquire a reputação de fácil.
A mulher que não consegue se dar com outras mulheres, que costuma andar
com homens e que, com o passar do tempo, acaba dormindo com vários deles e
que, sendo uma traidora de seu próprio sexo, só é respeitada pelos homens na
medida em que é como um homem.
A acadêmica bem-falante e medianamente atraente da qual ninguém gosta,
mas que mesmo assim se considera extremamente especial, interessante e
incomum e costuma ter no rosto um certo sorriso que mostra isso, o que faz com
que ela seja mais odiada ainda.
Conforme os abomináveis estereótipos iam se aproximando cada vez mais
dela, a única coisa que a impedia de concluir que só o que ela realmente odiava
era a si mesma era seu autopatrulhamento. O autopatrulhamento era um anjo da
guarda que a acompanhava aonde quer que ela fosse. Em supermercados, ele
lhe dizia como escolher alimentos — maçãs, ovos, peixe, pão, manteiga, brócolis
— que ela podia confiar que não iriam botar palavras em sua boca. Palavras
como Eu sou uma yuppie ou Eu estou me esforçando muito para não ser uma
yuppie ou Veja como eu sou original ou Veja como eu sou tímida enquanto tento
evitar ser como as pessoas que não quero ser, incluindo aquelas que fazem um
esforço consciente para serem originais. Era necessária uma vigilância diária
para não se permitir cozinhar como pessoas cultas de trinta anos retratadas na
televisão, ou como gastrônomos que tinham orgasmos com um bom prato de
massa, ou como mulheres que seguiam dietas de revista, ou como homens que
achavam que cozinhar usando alcaparras e rir gulosamente diante de um
Richebourg 71 os tornava sexy e sofisticados. Ou, ao contrário, como pessoas que
nunca paravam um segundo para pensar no que comiam. Porque infelizmente
comer porcaria não era uma opção. No futuro que imaginava para si, ela não iria
comer porcarias. Mal conseguia engolir porcarias.
Da mesma forma, ela não conseguia se dispor a usar roupas feias ou a
mobiliar seu apartamento com lixo. Na verdade, quando fazia compras em lojas
de departamentos, as roupas e utensílios que lhe pareciam menos
comprometedores acabavam invariavelmente se revelando os mais caros de sua
espécie. Claramente, se você tinha dinheiro bastante, a transparência podia ser
comprada. Não sendo rica, ela se via diante do desafio de encontrar coisas
bonitas e não muito caras e evitar todo aquele comprometedor estilo
contemporâneo massificado. Essa busca por camisetas neutras, sapatos neutros,
casacos neutros e cadeiras neutras consumia um tempo imenso e a deixava ainda
mais dolorosamente consciente de si mesma.
Ela odiava coisas novas “inspiradas em” coisas antigas — produtos
conspurcados pela nostalgia de um designer moderno pelos anos cinquenta ou
vinte. Nas coisas antigas propriamente ditas ela podia confiar, desde que não
tivessem passado pelas mãos poluentes de uma consciência como a dela. Tinha
sido um prazer decorar seu apartamento com coisas de um ingênuo mercado das
pulgas realizado semanalmente no estacionamento da biblioteca de Somerville.
Mas quando entrava numa loja de roupas “vintage”, mesmo que fosse uma loja
com artigos bonitos, ela sentia uma espécie de fraqueza, um enjoo, e logo fugia
de lá. Só num brechó ingênuo, como os que o Exército da Salvação mantinha, ela
podia ter esperança de conseguir aguentar as pontas por tempo suficiente para
encontrar alguma coisa, e mesmo assim só se ela não estava em Boston, porque
em Boston essas lojas eram assiduamente frequentadas por outros jovens
caçadores de pechinchas perigosamente parecidos com ela.
Uma vez a cada um ou dois meses, ano após ano, ela pensava nas roupas que
sua mãe não quisera lhe dar.
Essas roupas tinham vindo à luz no último ano que sua família passou em Lake
Forest, quando todo mundo menos Renée estava se preparando para se mudar
para a Califórnia. Ela as encontrou num quarto abarrotado de coisas que seriam
doadas para a caridade. Estava resgatando uma última braçada delas — algumas
saias justas clássicas, um casaco com uma gola de veludo verde-esmeralda, um
vestido vermelho-cereja de cintura alta, um casaco de lã xadrez, um par de
sapatos bicolores marrons e pretos — quando sua mãe a flagrou.
“O que você está fazendo com isso?”
“Desculpe. Desculpe. Eu pensei que você fosse dar essas roupas.”
“Eu vou dar essas roupas.”
“Bom, então eu posso ficar com elas?”
“Eu vou doá-las para a caridade. Por favor, ponha de volta onde você as
encontrou.”
“Por que eu não posso ficar com elas?”
“Meu amor, você tem tantas roupas no seu armário que você nem sequer
chegou a usar. Para que você quer essas coisas velhas?”
“Elas são bonitas. Eu quero essas roupas. Por favor, me deixa ficar com elas.”
A mãe fez que não, com ar triste. “Eu lamento muito se você ficou encantada
com elas, mas eu não quero que você use essas roupas.”
“Mas por que não? Por que não?”
“Eu só não quero ver você com elas. Elas trazem associações pra mim.”
“Mas eu estou indo morar em outro estado. Você não vai me ver.”
“Você sabe que eu estou disposta a comprar qualquer coisa que você queira.
Coisas iguais a essas. Coisas novas, melhores que essas. Mas imagine que você
tivesse tido um namorado e que você rompeu com ele. Você daria o seu ex-
namorado para a sua melhor amiga?”
“Mas isso são roupas.”
“Para mim é a mesma coisa”, disse a mãe.
Renée saiu de seu próprio quarto meio trôpega, os olhos cheios d’água. A mãe
não cedeu. As roupas foram doadas para a caridade. Na memória de Renée, elas
continuavam sendo as roupas mais bonitas que ela já tinha visto na vida, as
roupas mais perfeitas para ela que se poderia imaginar. Ela poderia desconfiar
de sua memória, não fosse o fato de que existiam fotos daquelas roupas nos
álbuns de fotografia da família — fotos da jovem Beth Macaulay num tour pela
Europa que acabou se estendendo por um ano e meio. Fotos do casaco xadrez no
Bois de Bologne. O casaco xadrez em Dublin. O vestido de verão listrado na
Berck-Plage. Beth Macaulay em Arles, sua pele perfeita, seus óculos de sol de
lentes pretas, seus avançados sapatos bicolores, seu diário. O vestido vermelho
em preto e branco em Roma. O casaco xadrez em Veneza.
Ela estava grávida de três meses quando se casou com Daniel Seitchek, um
jovem cardiologista de uma família do West Side, composta de atacadistas e
intelectuais de meia-tigela. Como parecia dolorida e abatida a jovem e bela
Elizabeth em preto e branco (o preto fuliginoso do sul de Chicago, o branco da
neve fresca, o preto e branco do casaco xadrez) ao levantar sua bebê
embrulhadinha para a câmera.
Como era difícil conciliar aquelas imagens com as roupas de golfe e de tênis
brancas, verdes e rosa usadas pela mulher que Renée cresceu conhecendo como
sua mãe. A mulher que mais tarde, na Califórnia, conduziria um carro em cuja
placa se lia moms jag, Jaguar da mamãe, para jogos escolares de beisebol e se
sentaria nas arquibancadas junto com outras mães tão bronzeadas quanto
egípcias e berraria quando os filhos fizessem boas jogadas e gemeria
risonhamente e tamparia os olhos quando eles dessem mancadas. A mulher que
uma vez, numa conversa que a filha entreouviu, se descreveu como “uma
espécie de Polly ana” e confessou ser “viciada” nos romances de Tom Clancy.
As fotos de Beth Macaulay na Europa, vestida com aquelas roupas lindas,
pareciam dizer que um dia ela já tinha sido mais como Renée — mais
romântica, mais independente — do que poderia imaginar quem quer que a visse
correndo de um lado para o outro numa quadra de tênis com seus saiotes
balançantes. Tendo medo da morte, Renée queria acreditar que, apesar das
diferentes circunstâncias das duas, ela e a mãe tinham almas idênticas. E era
tentador deixar que a probabilidade da identidade, o senso comum da
pressuposição, passasse por certeza. Infelizmente, ela também era racional e se
recusava a acreditar que fosse igual àquela Polly ana festeira do condado de
Orange sem ter alguma espécie de prova. E, por acaso, os anos em que sua mãe
havia sido uma pessoa diferente e presumivelmente mais parecida com Renée
eram justamente os anos em que ainda não existia essa pessoa chamada Renée.
Enquanto isso, ela era autoconsciente demais para não perceber as ironias:
Que enquanto se vigiava para não virar uma pessoa superficial como a mãe, ela
estava gastando quantidades boçais de tempo se preocupando com decoração,
roupas e comida. Que tinha desenvolvido uma obsessão burguesa com
mercadorias e aparências muito mais profunda que a de sua mãe. E que os tipos
femininos inteligentes e confiantes em relação aos quais ela sentia uma
animosidade virulenta e defensiva eram exatamente os tipos em relação aos
quais a mãe também sentia uma animosidade, embora não tão virulenta e
defensiva quanto a dela, já que a mãe tinha os filhos e as netas para distraí-la e
confortá-la.
Renée sabia que, se simplesmente desistisse de sua busca por uma vida
perfeita, se assentasse a cabeça e aceitasse ter filhos como a mãe tivera na idade
dela, ela também poderia conquistar certo grau de contentamento e de
esquecimento. Mas não havia ninguém que quisesse se casar com ela e, de
qualquer forma, ela odiava gente que era obcecada pelos pais. Uma família era
uma arapuca para quem estava nela, um tédio para quem estava fora dela. Ela
odiava a palavra “obcecada”. Odiava gente que odiava tanta coisa como ela
odiava. Odiava a vida que a fazia odiar tanta coisa. Mas não se odiava por
completo ainda.
9.

Ela só tinha um vestido que lhe parecia apropriado para usar num almoço com
Melanie Holland, um estampadinho de algodão sem cinto de dez anos de idade.
As sapatilhas rasteiras que ela escolheu para combinar com o vestido já estavam
encharcadas quando o ônibus que ia até a estação Lechmere parou para ela num
ponto da Highland Avenue. Uma chuva fina, mas intensa, ocupava por completo
o espaço aéreo acima do Charles. O rio estava tão cheio que parecia mais alto
que as ruas em volta.
Na Boy lston Street, em frente ao hotel, a porta de um táxi se abriu e um par de
pernas dentro de uma calça jeans justíssima e de botas estilo caubói se lançou
porta afora, seguido de um guarda-chuva, uma sacola de compras da Filene’s e,
por fim, agasalhado por uma jaqueta larga de pele de foca, o resto de Melanie.
Ela bateu a porta e quase trombou com Renée, que estava parada ali perto,
olhando para ela.
No restaurante, grandes apetites estavam em evidência. Turistas sorriam e
mulheres de cabelo branco cochichavam sobre investimentos, cada par com um
ar de ser o mais importante do salão. Melanie parecia cansada. Tinha apanhado
sol recentemente, mas sua pele estava enrugada e lustrosa, feito esmalte velho; o
bronzeado parecia não querer grudar na pele. O forro de seda de sua jaqueta,
que ela havia deixado escorregar de seus ombros para a almofada do banco, a
envolvia tão delicadamente quanto o papel de seda em que presentes finos
costumam ser embrulhados. Ela examinou Renée. “Minha nossa”, disse. “Você
está toda molhada!”
“É, eu estou um pouco molhada.”
“Você veio de trem.”
“Trem e ônibus.”
“Você mora... vamos ver se eu adivinho.” Ela juntou as mãos na forma de
uma caderneta e as levou aos lábios. “Você mora... numa daquelas casas antigas
do lado da Harvard Square onde fica o Radcliffe.”
Renée fez que não.
“Mais para perto da Inman Square?”
“Eu moro em Somerville.”
“Ah.” Melanie sorriu vagamente e desviou os olhos. “Somerville.” Um
garçom veio atendê-las. “Você me acompanha num drinque?”
“Campari com soda?”, Renée disse ao garçom.
“Me parece a pedida perfeita”, disse Melanie. “Tão vermelho, tão chique.”
O garçom assentiu. Tão vermelho. Tão chique.
“Que bom que você pôde aceitar esse meu convite feito tão em cima da
hora”, disse Melanie. “Infelizmente, a coisa chegou num ponto que seria mais
fácil eu comprar passagem de Boston para Chicago e vice-versa logo de uma
vez. Se vou para uma cidade numa semana, invariavelmente tenho que ir à outra
na semana seguinte. Mas é assim que as coisas são, às vezes. É assim que as
coisas são. Você costuma viajar muito a trabalho?”
Renée abriu a boca para responder, mas perdeu o ânimo. Empurrou sua colher
de chá um pouco para o lado sobre a toalha de mesa. “Não”, disse, “e talvez
fosse melhor você me dizer logo o que você quer.”
“O que eu quero? Eu quero que a gente relaxe, se divirta e se conheça um
pouco melhor. Quero ser sua amiga.”
“Você quer informação.”
“Também, mas...”
“Então por que você não pergunta de uma vez o que você quer me perguntar?
Porque eu não vou poder ajudar você, então seria melhor acabar logo com isso.”
Melanie inclinou a cabeça para o lado e apertou os olhos, exatamente como o
filho dela às vezes fazia. “Tem alguma coisa errada? Hoje não é um bom dia?
Ah, meu Deus!” Ela se debruçou sobre a mesa. “Você está parecendo tão triste.
Hoje não foi um bom dia?”
Renée pôs a colher de chá de volta onde estava antes. “Eu não estou triste.”
“Você acha que eu não tenho nenhum interesse pessoal por você. Você acha
que eu só a convidei para almoçar a fim de bajular você e fazer com que você
se sinta na obrigação de responder as minhas perguntas. É isso que você acha? É
ou não é?”
“É.”
“Você está sendo honesta comigo. Eu admiro isso. Mas você está enganada, e
eu quero saber como posso lhe provar que você está enganada. Você pode me
dizer?”
“Imagino...” Renée parecia não saber o que dizer. “Imagino que se você não
me fizesse pergunta alguma, nunca, eu seria forçada a concluir que você tem
algum outro interesse.”
“Mas você jamais iria acreditar que eu quero ser sua amiga. Hum. Bom,
suponho que seja compreensível, de certa forma.” Melanie vasculhou sua bolsa
enquanto o garçom punha na mesa os drinques das duas. Ela puxou lá de dentro
uma caixa rasa e aveludada e a empurrou até o outro lado da mesa. “Isso é pra
você.”
Renée olhou para a caixa como se seus olhos tivessem pousado ali por acaso
enquanto ela estava pensando em outra coisa.
“Vai, abre.”
Renée sacudiu a cabeça. “Acho melhor não.”
“Ah, Renée, por favor, eu estou quase perdendo a paciência com você. Você
não precisa recusar um presente só pra me mostrar que é uma pessoa honesta.
Chega uma hora que acaba ficando ofensivo pra mim. Não vamos fingir que as
nossas circunstâncias são iguais. Uma mulher mais velha que gosta de fazer
compras dá um presente pra uma mulher mais jovem em sinal de respeito e
afeição, eu realmente não vejo nenhuma razão pra você ser tão doentiamente
escrupulosa. Isso. Ótimo.” Os olhos de Melanie brilharam quando Renée
subitamente pegou a caixa e, depois de certa hesitação, tirou de dentro dela um
colar de pérolas.
“É lindo.”
“Com as suas cores, o seu cabelo, a sua pele. Pérolas, platina, prata,
diamantes. Eu sei por ter experiência semelhante. Agora põe, põe o colar. Isso.
Claro que a gente tem que levar em conta que esse não é exatamente o vestido
ideal...” Melanie pôs seu estojo de pó compacto em cima da mesa, perto de
Renée, com o espelho levantado. “Você teria tempo para fazer umas comprinhas
depois do almoço? Eu detestaria que você não usasse o colar por não ter nada que
combine com ele.”
Renée guardou o colar de volta na caixa. “Na verdade, eu não sei se ele faz
muito o meu estilo.”
“Ah, é? E qual é o seu estilo?”
“Sei lá. Estilo Somerville.”
“Você! Você não tem nada a ver com Somerville, qualquer um vê. A menos
que Somerville tenha mudado muito desde que eu era criança, o que eu não
acredito.”
“O que a faz pensar que eu não tenho nada a ver com Somerville?”
“Os seus modos.”
“Os meus modos são horríveis. Eu estou ofendendo você a torto e a direito.”
“Você está me ofendendo ao modo de uma jovem muito bem criada, muito
culta e muito consciente de si. E você sabe disso.”
Mesmo fraco, o Campari tinha ido direto para as bochechas de Renée. Ela era
imune a muitas coisas, mas não ao álcool e não a uma expressão como
“consciente de si”, que, quando usada em referência a ela, sempre provocava
um pequeno estremecimento em seu corpo, um espasmo de amor-próprio. E,
depois do espasmo, um calor no rosto, uma leve dormência nos braços. Ela riu,
olhando para as pérolas. “Quanto foi que isso custou?”
“Isso, continue tentando. Mas você vai me achar uma pessoa muito difícil de
ofender hoje.”
Renée botou o colar no pescoço de novo e pegou o estojo de pó compacto. O
espelho lhe mostrou um salão partido em fragmentos escurecidos e sem
profundidade — lustres flagrados no ato de existir, mesas apoiadas num chão que
se inclinava de um lado para o outro, flashes subliminares dela própria, um
pescoço branco. Ela falou de um jeito estudado: “Talvez eu fique com ele afinal.
Se não fizer diferença pra você”.
“Não, na verdade, nada me deixaria mais contente.”
“Então, ótimo pra nós duas.”
“Você está sorrindo, e você tem razão: que importância tem uma joia para
uma mulher que é uma profissional?” A joia de pulso de Melanie tilintou quando
ela levantou seu copo. Ela bebeu inclinando o corpo e girando a mão de um jeito
teatral. “Mas, sabe, eu sou só uma dona de casa boba. Não tenho nenhum feito
particularmente nobre de que me orgulhar. E, na minha idade, é possível uma
pessoa ter a sensação de que só o que ela fez na vida foi trazer infelicidade para o
mundo. Talvez você não possa realmente imaginar como é isso a menos que
tenha tido filhos, mas...
“Eu posso imaginar.”
“Eu acredito que sim, Renée. Eu acredito que você possa. E talvez você
também possa imaginar como você se sente quando percebe que seus próprios
filhos a consideram uma pessoa egoísta e que não há nada que você possa fazer
pra mudar isso. Eles podem estar redondamente enganados ao seu respeito. Eles
estão redondamente enganados ao seu respeito. Mas, mesmo assim, o fato é que
eles estão convencidos de que você é uma bruxa má e egoísta, e isso dói tanto,
mas tanto que você não consegue nem explicar pra eles por que eles estão
errados.”
Só o que restava do drinque de Renée era gelo e água rosa. “Você sabe que eu
conheço o seu filho, não sabe?”
“Você...? Ah, sim, claro. Eu fiquei muito irritada com ele naquele dia. Fiquei
irritada por ele ter convidado pessoas para entrar, com a casa naquele estado,
embora em retrospecto eu suponha que tenha sido até bom ele ter feito isso.”
Melanie afagou seu copo, dando cada vez mais a impressão de estar falando
consigo mesma. “Porque há coisas que eu quero dizer — coisas que eu preciso
dizer — para alguém. E se eu pudesse pelo menos aliviar alguns receios que eu
tenho — se você pudesse me dar um conselho, ou um conforto, para nós
podermos tirar isso do nosso caminho —, eu gostaria imensamente de passar um
tempo com você. Eu quero fazer alguém feliz. E você em particular, eu nem sei
por quê.”
“Que conselho?”
“A gente não precisa discutir isso agora.”
Renée se inclinou para a frente, como quem vai fazer uma confidência. Havia
um brilho novo e meio alucinado em seu rosto, como se ela estivesse se dando
conta de grandes ironias. “Eu acho que a gente deveria discutir isso agora
mesmo. Assim a gente pode virar essa página, certo?”
Melanie ia começar a falar, mas reparou no copo vazio de Renée e atraiu a
atenção do garçom. Quando o novo drinque chegou, ela ficou observando Renée
tomar vários goles sôfregos.
“Eu tenho uma casa”, ela disse com voz rouca, “que eu não posso segurar
contra terremotos e não conseguiria vender por mais de oitenta por cento do
valor que ela tinha em janeiro. Será que eu devo vender a casa agora e investir o
dinheiro de outra forma, pra ter dez por cento de juros? Ou será que os preços
vão voltar a subir em menos de dois anos? Essa é a minha primeira pergunta. Eu
também tenho, por conta da burrice e da teimosia do meu pai, trezentas mil
ações de uma companhia cujas ações perderam, desde 1o de abril, um quarto do
valor que elas tinham antes, principalmente por causa da ameaça de terremotos.
Eu estou prestes a adquirir o controle dessas ações e o que eu quero saber é: será
que eu devo vender as ações logo para evitar perder mais dinheiro ainda, ou será
que os terremotos vão parar? É isso. Agora você sabe mais sobre a minha
situação do que qualquer outra pessoa no mundo sabe, salvo o meu advogado.
Está claro? Eu abri o meu coração, Renée, e ele está nas suas mãos. Você pode
julgar por conta própria se eu estou só desesperada ou se estou confiando em
você porque sinto que existe uma afinidade entre nós.”
Com súbita energia, Melanie pegou seus óculos de leitura de dentro de sua
bolsa. Franzindo o cenho, examinou o cardápio durante exatamente três segundos
antes de perguntar a Renée, cujo cardápio parecia estar escrito em árabe, se ela
já havia escolhido o que ia pedir. Ela estava inclinada a pedir um filé de
vermelho com salada da casa. O que Renée achava?
“Eu preciso ler o cardápio”, disse Renée.
Melanie largou o seu de lado e ficou olhando para um ponto distante do salão.
Por fim, Renée desistiu de tentar entender os pratos listados no cardápio. Tomou
o resto de seu Campari com soda. “O que a faz pensar que eu possa ter algum
conselho para lhe dar? Você lê os jornais. Eu leio os jornais.”
“Eu estou me lixando para o que sai nos jornais.”
“Por quê?”
“Porque qualquer pessoa pode ler os jornais. Logo, o que sai neles se torna
automaticamente inútil como informação em que basear seus investimentos. Os
mercados estão em baixa agora por causa de toda essa incerteza que a gente está
vendo nos jornais. Eles dizem que é provável que não haja mais nenhum grande
terremoto. Mas também dizem que pode muito bem haver.”
“Arrã.”
“Você não entende? Probabilidades não me servem de nada. Eu tenho que
tomar uma decisão.”
“Eu sei. Eu entendo. Mas por que você não supõe que haja cinquenta por cento
de chance de ocorrerem novos terremotos e então vende cinquenta por cento das
suas ações? Ou então vende vinte por cento, se acha que há vinte por cento de
chance.”
“Não! Não!” Melanie se remexeu com veemência na sua cadeira. “Você não
está me entendendo. Eu estou dizendo que já perdi um quarto do que eu tinha três
meses atrás, quando ainda não podia fazer nada a respeito. Eu estou dizendo que
não quero perder mais nada, que eu não vou, eu não vou perder mais nada. Se
vender cinquenta por cento dessas ações e elas voltarem daqui a algum tempo a
ter o preço que tinham em março, eu vou ter perdido muito dinheiro nesses
cinquenta por cento.”
“Mas você não tinha como evitar essa perda”, Renée disse num tom sensato.
“Então por que você simplesmente não parte do princípio de que o que você
herdou foi só o valor que você vai ter quando assumir o controle de tudo? É esse
valor que é o seu ponto de partida, e você pode vender tudo e considerar que foi
isso que você recebeu e é o que você vai ter. Ainda deve ser muito dinheiro
mesmo assim, não?”
Melanie fechou os olhos. “É isso que eu vivo discutindo com o meu advogado.
É isso que o meu marido me diz. Eu tinha esperança de que uma mulher pudesse
entender por que eu me recuso, eu me recuso a aceitar que isso é tudo que eu
vou ter. Não é ganância, Renée. É uma questão de não querer fazer papel de
burra. Se acabar tomando a decisão errada, eu pelo menos quero ter a
consciência de que a tomei baseada na orientação de alguém. Porque eu
simplesmente não ia conseguir viver carregando essa culpa.”
“Culpe o seu pai”, sugeriu Renée.
“Se isso ajudasse em alguma coisa. Eu posso culpar o meu pai por me botar
nessa situação, mas ainda continuo sendo eu que estou nessa situação.”
“Sabe o Larry Axelrod? Do mit? Eu posso botar você em contato com ele.”
Melanie se inclinou para a frente, sacudindo a cabeça e sorrindo da
ingenuidade de Renée. “Você não vê? Todos os investidores de Boston estão indo
falar com ele ou com outras pessoas como ele. Eles já tiveram o impacto deles
no mercado. Eu não levo vantagem nenhuma seguindo o conselho deles e, além
do mais, eu não acredito no que eles dizem. Não acho que eles possam dizer a
verdade, porque sabem que todos os mercados estão ouvindo. É por isso que eles
dizem cinquenta por cento isso, cinquenta por cento aquilo.”
“Então você acha que, como eu não sei nada sobre os terremotos da Nova
Inglaterra, eu sou a pessoa perfeita a quem perguntar.”
“Acho.”
“É muito racional da sua parte.”
“Que bom que você pensa assim. Sabe, um dos motivos pelos quais resolvi
procurar você foi que eu notei que, de todas as instituições de Boston, Harvard é a
única que não está dizendo nada a respeito dos terremotos. E eu tenho que me
perguntar por quê.”
“Não tem ninguém em Harvard trabalhando com estudos locais no momento.
Nós trabalhamos principalmente com teoria, com estudos globais e com pesquisa
com redes globais.”
“E você, como uma sismóloga inteligente, não consegue olhar para o trabalho
que está sendo feito localmente e tirar conclusões independentes?”
“Eu posso tirar conclusões, mas não sei por que você acha que elas seriam
mais valiosas do que as do Larry Axelrod.”
“Renée, eu passei metade da minha vida entre acadêmicos e já vi esses
Larry s Axelrods na televisão. Eu sei reconhecer um intelecto especial quando
encontro um. Não vai adiantar nada tentar me convencer a não confiar em você,
porque eu não vou lhe dar ouvidos. Eu vou confiar em você e você vai me dizer
de que forma eu posso recompensá-la. Porque eu pretendo recompensar você.”
Melanie tinha posto sua bolsa no colo e pousado a mão no fecho. Renée já
estava esperando por isso. “Você quer saber se deve vender a casa e se deve
vender as ações. Duas respostas simples.”
“Exato.”
“E se eu estiver errada?”
“Bom, você deve saber que, se estiver certa, eu vou ficar muito grata a você.
E se eu ficar grata a você, você vai ficar muito, muito contente de ser minha
amiga.”
“Você está falando de dinheiro.”
Melanie olhou para sua bolsa como se estivesse decepcionada de encontrá-la
em seu colo. “De preferência, não. Mas, se esse for o seu estilo, tudo bem. Eu
não iria querer lhe dar alguma coisa que você não achasse útil.”
“Mas e se eu errar nas minhas conclusões?”
“Eu não creio que você vá errar, mas se isso acontecer eu vou saber que você
fez o possível para acertar. E que eu fiz tudo que podia para tomar a decisão
certa, que me aconselhei com uma pessoa em quem eu confiava e que nós
simplesmente não demos sorte. Como eu disse, não é por ganância. É que eu não
suporto a responsabilidade.”
“As ações são da Sweeting-Aldren, não são?”
“Sim, são.” Melanie deu uma risadinha nervosa. “Espero que você não tenha
ficado sabendo disso pelo Louis. Ele adora ser indiscreto.”
“Eu acho que posso te ajudar”, disse Renée.
“Você não se encontrou com ele de novo, se encontrou?”
“Como?”
“Você disse que conhecia o meu filho. Você estava se referindo ao dia do
terremoto. Você não viu o Louis depois daquele dia.”
“Na verdade, eu vi sim. Ele me convidou para ir a uma festa na casa da sua
filha.”
“Ah.” Melanie empalideceu e levou a mão à boca. “Sei. E você foi?”
“Fui.”
“Você não me disse isso.”
“Eu tentei.”
“Você não me disse isso.” Ela se remexeu em seu banco, virando meio de
lado e tocando cada parte do seu rosto com os dedos, como se estivesse na dúvida
se estava tudo lá. “E isso... isso era para ter sido a primeiríssima coisa para você
me falar.” Melanie balançou a cabeça, concordando consigo mesma. “A
primeiríssima coisa.”
“Eu tentei falar.”
Ela se virou com violência para encarar Renée. “Você está envolvida com o
meu filho?”
“Não!”
“Você já esteve envolvida com ele?”
“Não. Não! Eu fui a uma festa com ele. E algumas semanas atrás eu... fui
jantar na casa da sua irmã. Quer dizer, da sua filha. Ele parecia achar que
precisava levar uma acompanhante. Ele foi muito educado comigo.”
“Vocês conversaram sobre mim?”
“Não, de forma alguma.”
“Então por que as suas mãos estão tremendo?”
“Porque você está me assustando.”
“Você contou a ele que eu tinha ligado para você?”
“Eu comentei com ele sim.”
“Quantas horas?”
“Como?”
“Quantas horas você passou com ele?”
Renée deu de ombros. “Umas dez. Oito. Sei lá.”
Melanie se debruçou sobre a mesa e examinou o rosto de Renée, tocando-o
com o olhar como tinha tocado seu próprio rosto com os dedos, seu medo
crescendo conforme deitava raízes cada vez mais profundas na lacuna entre a
meiguice do rosto e a possibilidade subjacente de que Renée estivesse mentindo.
Estava pateticamente óbvio o quanto ela queria confiar em Renée, mas não
estava conseguindo extrair uma resposta definitiva do rosto e já tinha depositado
tanta esperança nele que não suportou continuar vasculhando-o, temendo
encontrar indícios que confirmassem suas suspeitas. “Ah, meu Deus.”
Novamente ela se virou de lado na cadeira. “Ah, meu Deus, eu não sei o que
fazer.”
“Por que você não liga para o Louis e pergunta para ele? Se isso é tão
importante para você.”
“Dez minutos atrás você estava tentando me convencer a não confiar em
você. Agora você está fazendo o oposto. Foi porque eu falei de dinheiro. Foi por
isso, não foi?”
“O que aconteceu foi que agora você parece achar que eu tenho alguma razão
pra mentir para você.”
“Você não é mais aquela pessoa com quem eu conversei dois meses atrás. E
agora eu estou entendendo por quê. Agora eu estou entendendo por quê. Como
foi que isso não me ocorreu? Ah, por que você não me contou?”
“Prontas para pedir, senhoras?” Com um floreio, o garçom sacou uma caneta
esferográfica.
Olhando bem no fundo dos olhos dele, Melanie pôs seus óculos e fez seu
pedido. Depois, enquanto Renée fazia o pedido dela, tirou os óculos e os segurou
com o punho cerrado, apertando-os com tanta força que o plástico chegava a
ranger, e ficou olhando com ar desconsolado para o outro lado do salão. Renée
pousou a mão no punho cerrado de Melanie. Estava fazendo um esforço tão
grande para pensar que seus lábios se agitaram de leve. “Eu disse que podia te
ajudar”, falou. “Eu sei o que você deve fazer com as suas ações, e você vai ficar
muito contente por ter me consultado. Eu vou te ajudar.”
Melanie inclinou a cabeça para trás e engoliu em seco.
“Eu vou dizer a você o que fazer”, disse Renée. “E estou tão convicta de que
estou certa que vou lastrear as minhas conclusões com todo o dinheiro que eu
tiver.”
O brilho no rosto dela tinha adquirido uma implacabilidade cintilante e
embriagada. Ela afagou a mão de Melanie. De repente, unhas se enterraram em
seu pulso. Um rosto se lançou em sua direção; ele cheirava a hálito, perfume e
creme hidratante. “Você está tendo um caso com o meu filho?”
“Não!”
“E o que você quer de mim é dinheiro.”
“É.”
“Você quer fazer um acordo.”
“Quero.”
Melanie se recostou de novo em seu banco. “Está bem.” Um minuto inteiro se
passou sem que ela fizesse nada a não ser morder o lábio, seus temores
obviamente ainda não dissipados. Por fim, Renée perguntou se ela queria vinho.
“Não, obrigada. Mas pode pedir uma taça para você, se quiser.”
“Eu posso pedir uma garrafa?”
“Pede o que você quiser.”
“Por que a gente não relaxa e se diverte?”
Melanie sacudiu a cabeça, desconsolada. “Teria sido melhor evitar o assunto
de dinheiro. Teria sido melhor esperar. Você pode zombar de mim agora, mas
eu realmente tinha esperança de que esse fosse um tipo diferente de almoço.”
“Eu vou lhe dar bons conselhos. Você não vai se arrepender.”
“Eu já estou arrependida. Estou arrependida de ter envolvido você nisso. E
arrependida de estar envolvida nisso.”
“Vamos acabar logo com isso, então. Vamos tratar dos últimos ajustes de uma
vez. E aí depois a gente pode relaxar.”
Melanie enrijeceu ao ouvir essa menção aos “últimos ajustes”. Hesitou por
longos instantes, até que por fim pegou uma carteirinha de fósforos de dentro da
bolsa, escreveu um número na parte de dentro e a fez deslizar pela toalha.
Renée leu o número, pegou a caneta e calmamente acrescentou um zero. “Eu
posso querer mais”, disse. “Se eu estiver certa. Você vai ter que me dar alguns
dias. Mas eu definitivamente não vou aceitar menos, a não ser que...” Ela
refletiu. “Por que eu não pego o dinheiro que eu tiver no banco e dou como
garantia no acordo? Assim nós teríamos uma... como se chama? Uma escala
móvel. Quanto menos eu acertar, menos dinheiro você me dá. Se eu errar, você
fica com a garantia.”
“Eu não vou discutir isso com você. A gente se encontra na terça-feira.”
“Enquanto isso, você vê se consegue um acordo melhor.”
“É possível que eu faça isso mesmo.”
“Arrã. Fala com o Larry Axelrod.”
“Talvez.”
Renée comeu um carpaccio encharcado de um óleo amarelo. Esvaziava sem
parar sua taça de vinho, até que começou a reluzir feito um objeto dentro de uma
fornalha, seu retraimento metamorfoseado em volubilidade enquanto ela fazia o
seu número “Por que eu odeio Boston” e depois o “A Califórnia é pior ainda”.
Era como se Melanie estivesse ouvindo uma filha de quem ela gostava e por cuja
conversa tinha todos os motivos do mundo para se interessar, mas só estivesse
conseguindo ver nela coisas que a faziam se lembrar de sua própria melancolia,
de sua relativa proximidade da morte, de sua incapacidade de relaxar e curtir um
almoço, de seu distanciamento do mundo das coisas sobre as quais os jovens
falavam. Isso de fato acontece com pais que estão infelizes, mesmo com aqueles
que amam seus filhos.
A ponta de sua língua veio para fora enquanto ela escrevia números num
cheque. Renée estava reluzindo como se tivesse acabado de atravessar uma
nevasca. De volta ao planeta do incessante tráfego de carros, em frente ao hotel,
ela pediu dinheiro para pegar um táxi. Melanie abriu sua bolsa sobre o quadril e
puxou lá de dentro uma nota de vinte. “Eu sei que você deve estar me achando
uma boba por perguntar toda hora. Talvez isso nem tenha importância. Mas...”
Os dedos de Renée se fecharam sobre a nota. “Mas?”
“Bom, eu só queria saber se você e o Louis têm algum tipo de envolvimento.”
Ela segurou Melanie pelos ombros. “O que você acha?”
“Eu acho que ainda estou inclinada a pensar que sim.”
“Jura?” Ela puxou Melanie mais para perto e lhe deu um beijo na boca, como
qualquer mulher poderia beijar a pessoa que a tinha cortejado durante um
almoço regado a vinho e pérolas.
Melanie se desvencilhou dela e se recompôs. “Eu vou ter que reconsiderar
essa nossa conversa, Renée. Vou partir do princípio de que você tenha bebido um
pouco além da conta. Mas, mesmo assim, eu vou ter que reconsiderar.”
“Escala móvel. Garantia. Acerto imediato.”
“Eu falo com você na terça de manhã.”
“Até lá, então.”
A chuva tinha se transformado numa neblina fina e quente, agradável para a
pele. Assim que entrou no táxi, Renée se estendeu no banco de trás.
“Tá tudo bem aí?”, o taxista haitiano perguntou.
“Tá”, ela disse alto.
Pingos de água escorriam e formavam lentes na janela diante de Renée, um
aspecto distorcido da cidade em cada gota. As fachadas encharcadas e de
cabeça para baixo, os cabos de energia e de telefone afundando e se dividindo.
Ela estava descontrolada. Três da tarde, bêbada feito um gambá e deitada no
banco de trás de um táxi. Romance, romance. Três da tarde, a chuva quente, ela
volta para casa de um encontro consigo mesma. Ainda sente o calor dela dentro
de si, em sua pele. Sente o cheiro de seu próprio nariz, sente o gosto de sua
própria boca.
“São doze dólares e sessenta centavos.”
“Sobe a ladeira aqui na Walnut.”
Com o estômago embrulhado pelo carpaccio e pelo vinho, ela ficou deitada na
cama até as janelas pararem de escurecer e ficarem um pouco mais claras e a
chuva se transformar em vapor e silêncio. Era como se uma tenda tivesse
descido sobre a rua, suas abas de lona úmida indo pousar atrás das casas; como
se a rua fosse um cenário cinematográfico molhado com mangueira para uma
tomada noturna, com um mundo barulhento e agitado além das casas. Um
vizinho de uma casa próxima estava fazendo waffles. Na varanda da casa em
frente, alguns meninos e meninas botaram uma música de heavy metal para
tocar. Parecia estar tocando no quarto ao lado, não do lado de fora. Renée ligou o
aparelho de telefone na tomada e discou um número. “Eu posso falar com o
Howard Chun, por favor?”
“Ere não tá”, foi a resposta.
Ela trocou de roupa e desceu para a rua. Uma das meninas que estavam na
varanda — a gorda; também havia duas magrinhas — aumentou o volume da
música. Talvez achassem que Renée estava indo reclamar do barulho. Ela subiu
a escada. “Alguém aqui tem um baseado pra me vender?”
Eles abaixaram o volume do rádio, e ela repetiu a pergunta, olhando de um
rosto incrédulo para o outro. O menino mais novo tinha uns dez ou onze anos.
“Você é judia?”, ele perguntou, prosaicamente.
“Não.”
“Qual é o seu sobrenome?”
Ela sorriu. “Smith.”
“É Bernstein”, o menino retrucou.
“Greenstein”, disse uma menina.
“Shalom!”
Renée esperou.
“Há quanto tempo você mora naquela casa?”, a menina gorda perguntou.
“Cinco anos”, ela disse. “Você mora aqui há quanto tempo?”
“Cadê o seu namorado chinês?”
“Ela tem um namorado careca.”
“Ei. Ei. Você tem cerveja em casa?”
Ela cruzou os braços. “Quantos anos vocês têm?”
O garoto mais velho, que estivera calado até então, se levantou rigidamente de
uma espreguiçadeira de madeira quebrada. Seus tênis balofos de cano alto
estavam cuidadosamente desamarrados. “Você tem que comprar umas cervejas
pra nós”, ele disse.
“Tá bom. Quantas?”
As meninas confabularam, o garoto mais velho fazendo questão de parecer
não estar envolvido. “Dez, mas tem que ser da latona”, a menina gorda anunciou,
enfática.
“Tem que ser o quê?”
“Da latona.”
“Da latona?” Renée sorriu, sem entender.
“a latona. aquela lata grande.”
“A lata de 470 mililitros!”
“A porra da latona de cerveja!”
“Dããã.”
“Você sabe o que é fazer sessenta e nove?”
“Steven, cala a boca, seu babaquinha.”
“Dããã.”
Afastado do resto do grupo, o garoto mais velho revirou os olhos. Renée desceu
a escada ao som de gritos de Shalom! Um cheiro de infraestrutura vinha do meio
dos arbustos, e ela ouviu seu próprio telefone tocar: outro ativista pró-vida
ligando.
Quando ela voltou da Highland Avenue, o garoto mais velho a conduziu ao
cômodo da frente do apartamento do primeiro andar, tirou duas latas de uma das
embalagens de seis que ela tinha trazido e depois as botou de volta na sacola de
papel. Mostrou a maconha para ela. “Tá fresquinha”, disse, com ar sincero.
“Steven, fecha essa porra dessa porta!” A porta se fechou. “Qual você quer?
Pega o grande. O meu nome é Doug.”
“Quantos anos você tem?”
“Quase dezesseis. Eu vou tirar carteira de motorista. Você topa sair comigo
um dia?”
“Acho que não.”
Em cima da mesa de sua cozinha, Renée botou o baseado, uma caixa de
fósforos e um pires. Posicionou uma cadeira diante deles e apagou todas as luzes,
menos uma. Ela tinha uma fita cassete identificada como para dançar que estava
quebrada fazia cinco anos. Mirando a luz de sua luminária de mesa na fita, ela a
abriu e remendou a parte estropiada usando fita durex e uma tesourinha de unha.
A maconha tinha gosto de abril na faculdade; como a música gravada na fita.
Ela dançou ao som de “London’s Burning”, “Spinning Top” e “I Found That
Essence Rare”, seus braços e pernas espalhando as últimas nuvens de fumaça
numa névoa. Achou que estava chorando quando tocou “Beast of Burden”, mas
quando abriu os olhos não havia lágrima nenhuma e parecia que tinha sido só sua
imaginação.
Do lado de fora da janela da cozinha, ela se deitou no telhado molhado e
inclinado. As telhas eram feitas de ardósia de verdade.
De manhã, ela foi atrás de um professor de mineralogia que gostava dela e já
tinha lhe emprestado um de seus carros várias vezes. Também se apropriou de
uma câmera do departamento, com lente teleobjetiva e zoom. O sol estava
torrando na Route 128. Da forma mais metódica que pôde, ela percorreu todas as
estradas e ruas de Danvers, do oeste de Peabody, do norte de Ly nn e do sul de
Ly nnfield, parando com frequência para traçar sua rota com lápis vermelho
num mapa. Não havia absolutamente carro algum no estacionamento da sede da
Sweeting-Aldren, uma estrutura branca inspirada no palácio Monticello, no alto
de uma colina verde. De uma ponte da ferrovia Boston & Maine, dos fundos de
um prédio de escritórios ainda em construção e dos fundos de um cemitério, ela
examinou as instalações da empresa — regimentos de tanques horizontais que
lembravam gigantescas cápsulas de remédio, torres com videiras e gavinhas de
ferro se enroscando por elas acima. O revestimento corrugado dos prédios
principais era de um tom pálido de azul que ela achava que nunca tinha visto;
numa tabela de cores, os tons em torno dele provavelmente seriam agradáveis,
mas aquele tom específico de azul não era. Vagas exalações de acetona eram
nativas do lugar.
Na segunda-feira, o calor tinha atingido plena força branca. Renée vestiu uma
bermuda, ou melhor, uma calça jeans velha com as pernas cortadas, uma
camiseta regata que ela só usava para dormir e calçou sandálias. Na prefeitura
de Peabody, em frente à sala da Secretaria Municipal de Fazenda, no térreo, ela
encontrou registros de oito terrenos não contíguos de propriedade da Sweeting-
Aldren. Os seis que ela conseguiu percorrer de carro não tinham nada mais
interessante do que cavalos; ela não tentou chegar aos outros dois. Estava
dirigindo o mais rápido a que se atrevia e, mesmo assim, já eram quase quatro
horas quando chegou ao aeroporto de Beverly .
A moça da lanchonete estava tirando do óleo quente um cesto de arame cheio
de batatas fritas. Ela disse para Renée procurar um homem chamado Kevin no
hangar.
“Eu posso simplesmente ir entrando?”
“Pode. Ele vai estar lá.”
Assim que ela entrou pela porta do hangar, alguém assobiou para ela, mas só o
que ela conseguiu enxergar a princípio foi um quadrado ofuscante de céu branco
no final do galpão. Perto de onde ela estava, havia um Piper Cherokee e um
avião turbo-hélice de oito lugares e fuselagem quadrada, ambos com o motor à
mostra. Duas duplas de mecânicos de macacão azul e sujos de graxa estavam
trabalhando nas entranhas reluzentes das aeronaves, mexendo lá dentro com
ferramentas. Quando ela lhes perguntou sobre o tal Kevin, eles apontaram para
um rapaz em cima de uma escada perto de um jatinho parado mais adiante. Ele
estava aspergindo um limpador aerossol no para-brisa do jatinho.
“É você que é o Kevin?”
“Sou.” Ele tinha vinte e poucos anos, olhos azul-celeste, cabelo tosado e postura
ereta. Do outro lado do corredor, alguém estava passando aspirador de pó no
interior de outro jatinho, de cuja porta pendia um fio de extensão e de onde
vinham vagos sons de música country .
“Eu queria fazer um voo e me disseram que eu tinha que falar com você.”
“Pra onde é que você quer ir?”
“Só aqui pelos arredores mesmo.”
Ele desceu da escada prontamente, o que a fez pensar que em questão de
minutos eles estariam no ar, mas na verdade ela ainda teve de passar quase uma
hora respirando fumaça de combustível queimado. Nesse meio-tempo, ela pagou
o voo e preencheu e assinou uma dispensa de seguro. Kevin desapareceu durante
algum tempo e voltou sem o macacão, passou uns dez minutos resolvendo que
havia alguma coisa que não estava lhe agradando no primeiro avião que
experimentou, e que parecia estranhamente de cabeça para baixo, depois passou
mais alguns minutos mexendo e remexendo num avião comum, um Cessna, e
por fim estacionou o Cessna do lado de fora da porta do hangar. Tinha posto
óculos escuros. “Pra onde nós vamos?”
“Eu queria só sobrevoar Peabody umas duas ou três vezes. Tem umas coisas
lá que eu gostaria de ver.”
Ele levou o microfone à boca e murmurou coisas incompreensíveis para os
sulcos de plástico. Havia um pequeno bloco de espiral num compartimento
embaixo do painel de instrumentos. Ele virou as folhas plastificadas do bloco uma
a uma, levantando e abaixando flapes, acelerando o motor até as hélices ficarem
invisíveis, murmurando coisas no microfone de novo, apertando botões. A
temperatura da cabine subiu uns dez ou quinze graus. O barulho do motor atingiu
alturas ensurdecedoras enquanto o avião avançava, sacolejante, pelo asfalto
amolecido e pelo concreto firme e depois fazia a curva para pegar a pista de
decolagem, o nariz do avião perfeitamente alinhado com a faixa central da pista.
Ar aquecido e tufos de capim eram as únicas coisas que se mexiam nos acres de
vazio em volta deles.
Eles tombavam para a direita e para a esquerda e quicavam no ar feito um
jipe subindo uma ladeira.
“Tem um espaço aéreo controlado bem aqui a sudeste”, Kevin gritou. “Eu vou
fazer a volta pelo norte de Danvers, se você não se importar.”
“Tudo bem.”
Nenhum ruído em particular se destacava, mas era difícil ouvir. Kevin beijou
o microfone e o pendurou no painel. “Você pode virar aquela alavanca ali agora,
pegar um pouco de ar.”
Estava um dia horrível para voar, os rios turvos e amarelados, a claridade
ofuscante e inescapável. A sopa atmosférica se estendia até bem acima da
altitude que eles estavam mantendo, e tudo no chão se dissolvia numa massa azul,
a menos que Renée olhasse bem para baixo. Lagos e rios pareciam reluzentes
vazamentos de chumbo na terra negro-azulada, estendendo-se em direção a um
horizonte marrom-azulado. Toda vez que eles sobrevoavam uma extensão de
água, o avião descia feito um ioiô. Cada mergulho era seguido de um ricochete
ascendente que era possível prever, mas para o qual era impossível se preparar.
Kevin botou um saco de papel em cima do joelho de Renée.
“Você é bonito”, ela arriscou, gritando.
“Você também. Mas não tanto quanto a minha mulher.”
Ela balançou a cabeça sensatamente. “Em que você trabalha?”
“Eu trabalho como piloto pra uma fábrica de ferramentas de Ly nn. Eles têm
três aviões, um deles jato. Eu sou o número dois, então não piloto muito o jato.
Levo muito o presidente da empresa para o Maine. Pra casa de férias que ele
tem lá. Os convidados dele também. E você?”
“Eu sou fotógrafa.”
“Do...?” Ele apontou para a etiqueta na câmera dela. “Departamento de
geofísica de Harvard?”
“É.”
“Você se interessa por terremotos?”
“Não”, ela gritou. “Formações geológicas.”
“Eu pensei que você estivesse procurando falhas ou coisa parecida. Tem muito
sismólogo por aqui. Um cara que eu conheço fez um voo com um sismólogo no
mês passado, contornando a costa pra cima e pra baixo.”
“Eu posso te mostrar onde eu quero ir?” Ela estendeu um mapa, no qual ela
havia circulado de vermelho a principal propriedade da Sweeting-Aldren e os
dois terrenos menores que ela ainda não tinha visto. Kevin pôs o mapa no colo,
ficou estudando-o por alguns instantes e depois olhou bem para a frente pelo
para-brisa. O avião deu outro solavanco contra mais uma térmica. O barulho do
motor mudou e assim ficou.
“Pode ser?”, ela gritou.
Ele demorou um tempo para responder. “O que é que você quer ver lá na
Sweeting-Aldren?”
Ela entortou o pescoço, fingindo checar o mapa. “Ah, é isso que tem lá?”
“Você tem alguma razão especial pra querer ir lá?”
“Eu estou procurando formações geológicas.”
“Eu não vou poder voar mais baixo que três mil pés.”
“Qual é a nossa altitude agora?”
“Três mil pés.”
“Por que não?”
“Porque eles não gostam. Eles são uma empresa. Eles têm segredos.”
“E se eu encontrar uma coisa que eu quero ver?”
“A Sweeting-Aldren é responsável por mais ou menos metade dos negócios
empresariais feitos no município de Beverly. Eles têm seis jatos lá. Você está
entendendo o que eu estou dizendo?”
“Não.”
“Eu estou dizendo que é lá que eu trabalho.”
“Você trabalha pra Sweeting-Aldren?”
“Eu trabalho pra Barnett Die. Mas eu fico no aeroporto. Você está
entendendo?”
Ele apontou para as duas propriedades menores, um par de terrenos separados
por estradas de terra. O avião sacolejou de novo. O motor engasgou quando eles
se inclinaram para o lado, o sol se derramando no colo de Renée e saindo pela
outra janela. Uma colina vomitava carros amassados e coágulos de sucata
enferrujada. Orgulhosas mansões abriam suas saias de veludo verde numa
extensão de terra encravada entre os velhos falos de tijolo da indústria e as
fábricas mais novas — retângulos chatos com cascalho no telhado e caminhões
se amontoando para encher a pança em gamelas nos fundos. A mais permeável
das membranas separava um country club de acres de pilhas de escória cor de
osso listradas de amarelo sulfúrico, como as mijadas de um cachorro de quatro
andares de altura. Condomínios de prédios baixos com estacionamentos novos
em folha e filiais do Bay Bank se empoleiravam em sumidouros repletos de algas
e resíduos indestrutíveis. Em toda parte, riqueza e sujeira conviviam lado a lado.
Antes de ceder lugar à propriedade da Sweeting-Aldren, a paisagem parecia
hesitar, empreendimentos imobiliários degenerando em bairros subnutridos de
residências pequenas e chatas, algumas casas pré-fabricadas, tabernas solitárias
e ruas não pavimentadas contornando bosques e morrendo diante de uma ou duas
casas inúteis, semiacabadas, com lixo cascateando barrancos abaixo. No lado da
mata que pertencia à empresa, tubos e trilhos montados sobre pilares baixos
cruzavam pântanos em linha reta, atravessando subúrbios industriais feitos de
estruturas circulares idênticas, passando por cima de estradas de tubos
emaranhados, mergulhando rumo ao centro da cidade e depois avançando por
entre bairros-satélite. Veículos passavam em meio às fileiras de barris com
códigos de dez mil cores; línguas de fumaça escapavam do alto de charutos
prateados. O conjunto passava uma impressão de boa administração; havia uma
lógica nos códigos e no movimento. O oceano escuro cintilava logo adiante.
Kevin baixou uma asa para que Renée pudesse tirar algumas fotos. “Já viu o
bastante?”
“Não”, ela gritou. “Você tem que descer mais.”
“Você está parecendo meio pálida.”
“Você tem que descer mais.”
“Eu faço um sobrevoo a mil e quinhentos pés e aí a gente vai embora.”
“Dois sobrevoos a mil pés.”
Ele sacudiu a cabeça. O avião subiu feito um balão de hélio.
“O que eu posso te oferecer?” Ela fez o melhor que pôde para sorrir de um
jeito simpático. O avião deu um mergulho tão brusco que os dentes dela bateram.
“Você não está entendendo”, disse Kevin. “Eles são muito, muito cheios de
frescura.”
“Eu te dou mais dinheiro.”
Ele fez que não. “Um sobrevoo a mil e quinhentos. E eu quero ver a sua
carteira de motorista ou de estudante ou de alguma coisa. Algum documento que
tenha foto.”
Ele pegou a carteira de motorista de Renée e conferiu o nome e a imagem
dela enquanto eles faziam uma curva em sentido anti-horário. “Você tem trinta
anos”, ele disse.
Ela fez que sim, abaixando a cabeça entre os joelhos. Conseguiu abrir o saco
de papel uma fração de segundos antes que uma onda de movimento lhe subisse
pelas costas e lhe sacudisse os ombros. O saco enrijeceu com o novo peso dentro
dele. Kevin entregou a ela um saco novo.
“Joga isso no banco de trás. Nós vamos subir pelo lado oeste, cortar pelo leste e
depois tomar o rumo de casa. Vai ficar tudo virado pra sua janela. Com o sol
atrás de você. Você acha que vai sobreviver?”
A única coisa que a mantinha erguida era estar apoiada na câmera, com a
lente encostada na janela. Ela fotografava tudo, usando o zoom. Eles já tinham
passado da instalação central quando ela se deu conta de que não estava vendo
nada, de que devia estar simplesmente olhando.
Eles tiveram de circundar Wenham enquanto um jato pousava na frente deles
e outro decolava. Renée mantinha os olhos fechados e o rosto colado nas frestas
de ventilação. Cada sacolejo, por menor que fosse, aumentava enormemente seu
mal-estar. Estava chocada com o fato de Kevin continuar lhe dando informações
para digerir. Fatos, àquela altura, eram tão pouco bem-vindos quanto um
sanduíche de salada de atum.
“A gente já está na hora do rush. Eles acabaram de autorizar um jato da
Sweeting-Aldren a pousar e tem outro vindo logo atrás. Eles deviam era ter uma
linhazinha aérea particular.”
O avião subia e descia. O motor zumbia.
“Só mais três minutos e você vai poder botar os pés no chão de novo. Um dia
como esse acaba com quase qualquer um.”
Com um olho, Renée viu a pista de pouso se estendendo diante deles. Só tornou
a abrir os olhos depois que eles já tinham taxiado e parado. “Dá só uma olhada”,
disse Kevin, apontando com o queixo para o hangar. Dois homens de terno, um
deles com um capacete na cabeça, estavam parados na porta do hangar.
“Você não acreditou em mim, não foi?”
“Espera espera espera.” Ela estava rebobinando o filme.
“Eu não estou vendo isso. Estou saindo lentamente pela porta.”
De cabeça baixa, ela botou um filme novo na câmera e tirou vinte fotos de
nada. Os homens agora estavam esperando no pátio de manobra. Quando ela
desceu do avião, um deles entrou para revistar o interior da aeronave, enquanto o
outro a conduzia até o hangar.
“Você precisa deixar que ela se sente”, disse Kevin. “Ela está muito enjoada.”
Sem dizer nada, ela se encostou numa parede de um corredor enquanto, atrás
dela, sua bolsa era revistada. Na lanchonete, ela recebeu permissão para se
sentar numa mesa em cujo tampo havia uma mancha fina e comprida de
ketchup. O homem de capacete estava com a bolsa dela no colo; seu rosto era
vermelho, achatado e espantado, uma nuca com olhos de botão. Ele ficou calado
a entrevista inteira, esquadrinhando incansavelmente os seios e os ombros de
Renée.
O outro homem tinha uma tonsura, cabelo grosso e liso cor de grafite que se
amontoava em cima da gola de sua camisa, e cenho inteligente de águia. Estava
revirando as carteiras de identificação de Renée entre os dedos. “Renée Seitchek,
Pleasant Avenue número 7, Somerville. Universidade Harvard.” Cravou os olhos
nela. “Renée, nós soubemos que você andou tirando fotos de algumas instalações
industriais. E, sinceramente, estamos loucos pra saber o que motivou você a
fotografar aquelas instalações específicas.”
“Eu posso tomar um copo d’água?”
“Tá enjoadinha? Talvez um Sprite ajude. Bruce?” Ele fez um gesto com a mão
na direção do balcão e Bruce se levantou. “Mas continue.”
“Eu sou fotógrafa.”
“Fotógrafa! Que tipo de coisas você gosta de fotografar, Renée?”
“Coisas... interessantes, coisas bonitas.”
“Ah, você é fotógrafa artística. Que coisa fascinante!” O interrogador olhou
para ela com ar de admiração. “Mas, sabe, eu não estou conseguindo resistir à
tentação de perguntar: o que há de tão bonito numa instalação industrial? Você
quer tentar me explicar isso? Considerando que é uma coisa que mais ou menos
contraria as nossas ideias preconcebidas.”
“Quem é você?”, perguntou Renée.
“Rod Logan, gerente de segurança operacional das Indústrias Sweeting-
Aldren. Meu assistente, Bruce Feschting. Nós fizemos uma viagenzinha especial
até aqui pra conhecer você, Renée. Ah, olha só pra isso. O Bruce se superou de
novo. Sprite e água e um guardanapo. Por falar em guardanapo, Renée, talvez
você queira limpar um pouquinho o seu queixo.”
Um grupo de homens usando sapatos sociais marchou lanchonete adentro,
trocando saudações com Logan e Feschting. Pastas 007 balançavam em suas
mãos enquanto eles se dirigiam à porta que dava acesso ao estacionamento.
“Mas essas fotografias artísticas”, disse Logan. “Como é que é o mercado pra
elas, hein? Você tem um patrocinador rico? Tem muita empresa comprando arte
hoje em dia.”
“É só pra mim.”
“Só pra você! Você não se importa se eu perguntar o que a atraiu para aquelas
instalações em particular, se importa?”
“Eu vi as instalações da estrada.”
“Você estava só passando de carro por lá, não é? Mas teve alguma coisa
específica que lhe pareceu interessante e bonita nas nossas instalações?”
“Não. Foi o conjunto todo. A aparência dele.”
“Caramba, o mundo realmente deixa a gente de queixo caído às vezes.” Logan
sacudiu a cabeça. “Simplesmente de queixo caído. Sabe, em algum lugar do
vasto universo eu tenho certeza de que existe uma Terra em que uma menina de
Harvard realmente vai até o aeroporto mais próximo de nós e faz um voo em
plena luz do dia num avião bem identificado, querendo apenas tirar algumas fotos
pelo puro prazer que isso dá a ela. Universo infinito, uma infinidade de mundos.
Mas, sabe, em que mundo eu estou? Nesse? Ou será que é num mundo mais
como esse aqui?” Ele deu golpes no ar com as mãos, sugerindo galáxias em
movimento. “Mas escuta, Renée, eu sou um cara razoável. E legalmente,
legalmente, eu não posso te impedir de sair por aí tirando fotos até enjoar. Você
sabia disso? Que eu não posso legalmente te impedir? Mas, sabe, eu estou
segurando a sua câmera no meu colo agora e o Bruce está segurando o outro rolo
de filme que estava na sua bolsa...”
“Esse filme está virgem.”
“Está virgem, Bruce? É, parece que está. Então você vai ficar feliz em vender
esse filme pra gente por dez dólares. E quanto ao que está dentro da câmera,
falando em termos práticos, eu gostaria de lhe oferecer revelação e impressão
grátis, com o compromisso de enviar as fotos para o seu endereço de Somerville
assim que elas ficarem prontas. Eu sinceramente não consigo imaginar um
acordo mais amigável. Porque, sabe, Renée, nós levamos os nossos segredos
comerciais muito a sério e temos guardas armados na nossa propriedade e um
fundo de um milhão de dólares especialmente reservado para processar espiões
industriais com o máximo rigor que a lei permite. Então por que você não nos
deixa revelar esse filme e depois mandar as fotos pra você, arcando com todas
as despesas? Não parece uma proposta razoável, Bruce?”
“Essas fotos são particulares”, Renée disse.
“Ah, elas são particulares, sim. Mas por uma questão prática, considerando
quem está com a câmera no colo, eu sou forçado a dizer que a sua única outra
alternativa seria me permitir abrir a câmera e expor o filme inteiro à luz.”
Ela cravou as mãos na cabeça, arrasada. “Vai em frente. Só me deixa em
paz.”
“Tem certeza?”, Logan perguntou, já abrindo a máquina.
Um novo contingente de executivos havia entrado na lanchonete. Feschting se
levantou, sem jeito, e saiu de trás da mesa. “Sr. Tabscott”, disse. “Sr. Stoorhuy s.”
“Oi, Dave. Dick.” Logan acenou para os recém-chegados, as mãos ocupadas
com o filme.
“Rod, Bruce. De onde vocês estão vindo?”
“De lugar nenhum. Nós tivemos um incidentezinho aqui.”
Tabscott saiu da lanchonete, mas Stoorhuy s parou e se debruçou sobre a mesa,
as mangas de seu paletó se engelhando nos cotovelos, dez centímetros de punho à
mostra. Ele acenou com a cabeça, mas estava olhando para Renée, de esguelha.
Seus lábios se franziram, deixando os dentes à mostra.
“Essa aqui é a Renée Seitchek”, disse Logan. “A nossa última sobrevoante.
Fotógrafa artística. Aluna do departamento de geofísica de Harvard. A lividez do
rosto se deve a um violento caso de enjoo aéreo.”
Os lábios separados, Stoorhuy s a examinou mais de perto. “O sr. Logan
explicou a você o motivo da nossa precaução?”
“Explicou.”
“Nós vamos providenciar para que você seja reembolsada pelo seu filme.”
Ela balançou a cabeça, os olhos voltados para baixo.
“Ela gosta de fotografar coisas bonitas e interessantes”, Logan comentou.
“Ela própria é uma coisa bonita e interessante”, disse Stoorhuy s, com patente
insinceridade. Parecia ter perdido o interesse. Seus dedos ossudos apertaram o
ombro de Logan. “Pega leve.”
“Deixa comigo, Dave.”
Instantes depois, ela foi deixada sozinha na mesa. Tomou sua água, deitou a
cabeça, encheu os pulmões. Uma nota de vinte dólares estava pousada perto de
sua orelha. De repente, um saco de papel caiu em cima da mesa. Renée deu um
pulo.
“Está aí o seu vômito”, disse Kevin.
Ela pegou um punhado de guardanapos antes de sair da lanchonete. Rodou
vinte minutos e, por fim, parou no estacionamento de uma agência do Shawmut
Bank. Escondendo-se atrás de uma lixeira feito um guaxinim, ela rasgou o saco
de vômito e recuperou o rolo de filme debaixo do conteúdo de seu estômago. As
luzes da autoestrada reluziram em seus olhos quando ela lançou uma olhadela
furtiva por cima do ombro.
Estava ficando claro que ela não ia conseguir ver as fotos antes de se encontrar
com Melanie. De qualquer forma, duvidava que as fotos fossem revelar muita
coisa. Se a Sweeting-Aldren mantinha um poço de injeção perto de suas
principais instalações, ele muito provavelmente estava escondido sob um galpão.
Renée voltou para Cambridge, devolveu o carro e ficou na biblioteca Widener
até a campainha que anunciava o horário de fechamento tocar.
Na manhã seguinte, ela tomou café da manhã e pouco depois botou tudo para
fora. Fumou o resto do baseado e tomou um segundo café da manhã no Au Bon
Pain antes de voltar para as máquinas de microfilme da Widener. À uma e
quinze da tarde, fez uma cópia de uma foto que saíra no Globe em 9 de março de
1970. A foto mostrava uma filial bancária recém-aberta num edifício comercial
de quatro andares na Andover Street, em Peabody ; por entre as árvores peladas
ao fundo, era possível ver a parte de cima de uma estrutura que lembrava,
parecia-lhe, uma torre de perfuração.
Depois, foi ao banco levando seu título de poupança da série E, um “war bond”
que ganhara de presente de uma avó já falecida. O funcionário do banco
observou que ainda faltavam dois anos para o vencimento do título.
“Quanto é que ele vale agora?”
Ela tinha oitenta notas de cem dólares no bolso da frente de sua calça jeans
quando desceu do trem em Salem, com a primeira leva de pessoas que voltavam
do trabalho. O endereço que tinham lhe dado a levou à sede do condado, em
frente à qual, numa casa antiga reformada, revestida de fasquias brancas e com
uma placa em que se lia 1753, ficavam os escritórios de Arger, Kummer &
Rudman.
“Senhorita Seitchek”, disse Henry Rudman, afável, botando sua mão larga no
meio das costas de Renée. Fez com que ela se sentasse numa cadeira posicionada
bem em frente à mesa dele e parou a seu lado, solícito, perguntando se ela
aceitava alguma coisa para beber.
“Água gelada, por favor.”
Atrás da mesa dele, num canto da sala situado entre um computador e um ar-
condicionado de janela que parecia prestes a pedir arrego, Melanie estava
sentada de cabeça baixa, com as mãos entrelaçadas sobre o colo. Lançou um
único e rápido olhar para Renée, cheio de mágoa, como uma mulher num
tribunal que não espera mais nada do marido, a não ser uma parte do patrimônio
dele e de sua futura renda. O amor tinha morrido. Tudo se reduzira àquilo.
Renée cruzou os braços e jogou a cabeça para o lado, com indiferença. Em
cima da mesa de Rudman havia pequenas fotografias de uma esposa e de três
menininhas, mas em termos ornamentais a sala era dominada por três
ampliações em preto e branco na parede, todas autografadas: Ted Williams num
cruzeiro, com o braço em volta dos ombros de um Rudman mais jovem;
Rudman e Yastrzemski de rosto colado, numa mesa de banquete; Rudman e Jim
Rice, de tacos em punho, num campo de golfe com palmeiras ao fundo. Renée
riu. Seus olhos estavam vermelhos, seu queixo pontilhado de novas espinhas. Seu
cabelo vinha crescendo fazia meses e agora, de repente, estava quase batendo
nos ombros — sujo, um emaranhado de ondas duras. Ela cheirava a suor e couro
cabeludo. De alto a baixo ela estava melada de oleosidade; melada, suja,
animalesca e sexy. Lançou um súbito olhar de relance para Melanie, que
abaixou os olhos de novo.
Rudman trouxe o copo d’água e se plantou atrás de sua mesa. “Então,
senhoras, estamos todos prontos?” Ele não esperou uma resposta. “Senhorita
Seitchek, a senhora Holland me disse que a senhorita a abordou a respeito de uma
aposta quanto ao desempenho de um certo imóvel e de ações de uma certa
empresa. Sendo o imóvel em questão a propriedade da senhora Holland em
Ipswich e as ações em questão as da empresa Sweeting-Aldren. As informações
estão corretas?”
“Não”, disse Renée. “Não fui eu que a abordei. Foi ela que me abordou. Além
disso, eu não tenho nada a dizer a respeito do imóvel. Se ela quiser tirar
conclusões com base no que eu disser a respeito das ações, isso é com ela.”
Rudman e Melanie trocaram olhares. “A senhorita é sismóloga, senhorita
Seitchek.”
“Sou.”
“Nós podemos pressupor que a senhorita esteja baseando a sua previsão na sua
interpretação de dados sismológicos. Mas a previsão se aplica apenas às ações, é
isso?”
“Peabody e Ipswich ficam a quase dezoito quilômetros de distância uma da
outra.”
“Isso é novidade?”
“O que eu estou dizendo é que não existe uma conexão óbvia.”
Rudman se virou. “Senhora Holland?”
Melanie apertou os lábios um contra o outro, aparentemente contando até
cinco. “Eu gostaria de lembrar a você, Renée, que, embora seja verdade que fui
eu que a abordei, foi você quem mencionou dinheiro e sugeriu um acordo.
Também gostaria de lembrá-la que você a princípio omitiu deliberadamente que
tinha informações que poderiam me ajudar, e você não me disse que essas
informações não se aplicariam ao imóvel.”
Renée deu um de seus sorrisões. “Você quer que eu vá embora?”
“Senhoras, senhoras.”
“Eu agradeceria se você dissesse a verdade”, disse Melanie, num tom neutro.
“É só isso que eu estou dizendo.”
“Pode ser, senhorita Seitchek? A senhorita pode tentar dizer a verdade para nós
podermos seguir adiante? Isso vale para a senhora também, senhora Holland.”
Melanie fez uma pose de mulher íntegra.
“Pois bem, senhorita Seitchek, hã...” Rudman coçou o bigode. “A senhora
Holland relatou que a senhorita esperava que ela botasse na aposta... hã...
cinquenta mil dólares, que nós podemos deduzir que...”
“Não”, disse Renée, enfática. “Não. Eu disse que queria no mínimo cinquenta
mil dólares. E disse também que, quanto mais certa eu estivesse, maior deveria
ser a minha recompensa.”
“Em momento algum eu concordei com essa condição.”
“Eu disse que você tinha concordado?”
“Senhoras.”
“Eu também disse que apostaria todo o dinheiro que eu conseguisse levantar
nesse arranjo. O que eu estou pronta para fazer.” Ela tirou o bolo de notas do
bolso e o jogou em cima da mesa de Rudman.
“Dinheiro!”, ele exclamou, como um Fausto horrorizado, levantando-se
parcialmente de sua cadeira.
“Guarde isso”, disse Melanie.
“Senhorita Seitchek, por favor, hã... Isso é muito tocante, como gesto, mas
sinceramente isso é uma coisa para se manter num lugar seguro. Não é uma
coisa para se pôr na mesa de outras pessoas, sem elástico, sem nada. Eu estava
para dizer à senhorita, aliás, que a senhora Holland respeitosamente recusa a sua
oferta de uma garantia e de uma escala móvel. Em contrapartida, ela insiste em
fixar como teto os cinquenta mil que a senhorita propôs.”
Renée se levantou e enfiou o bolo de dinheiro de volta no bolso. “Nada feito.”
“Senhora Holland?”
Melanie inclinou a cabeça para o lado mecanicamente, como um pássaro.
“Que tipo de teto você tinha em mente, Renée? Ou você não queria teto algum?
Será que a sua ideia era pedir trinta por cento logo de uma vez?”
“Um milhão de dólares.”
Melanie soltou um bufo de desdém.
“Quanto dinheiro tem aí no seu bolso, senhorita Seitchek? Se é que eu posso
perguntar?”
Ignorando-o, Renée deu um passo na direção de Melanie e se dirigiu a ela
diretamente. “Eu vou lhe dizer o que vai acontecer com essas ações específicas
nos próximos três ou seis meses, o que você preferir. Você vai ou comprar mais
ações ou vender a sua participação na empresa de acordo com a minha
recomendação. Se você ganhar quinhentos mil dólares porque eu lhe dei o
conselho certo, eu quero cinquenta mil. Se você ganhar dez milhões, eu quero um
milhão. São dez por cento até um milhão. Se não ganhar nada ou se perder
dinheiro, você fica com o dinheiro que eu tenho aqui no meu bolso agora. São
oito mil dólares.”
Rudman estava balançando a cabeça e agitando os braços, como um árbitro
tentando apitar um impedimento. Melanie encarou Renée com um olhar
alucinado. “É o Louis!”, disse. “Não é você de jeito nenhum. Você... você nem
sequer está aqui! É o Louis!”
“Ah, meu Deus, senhora Holland. Sinceramente.”
“Você está enganada”, disse Renée, tremendo de ódio. “Você está
completamente enganada.”
Rudman acenou para ela. “Está vendo? Ela diz que a senhora está enganada.
Está vendo? Mas... hã... senhorita Seitchek, a senhorita vai precisar nos dar
licença um instante.”
Ele conduziu Melanie em direção ao fundo da sala, onde havia uma porta que
dava para uma sala de reuniões, forrada de sentenças. Ouvindo o trinco estalar,
Renée se sentou, fechou os olhos e respirou. Cinco minutos se passaram antes que
Rudman saísse lá de dentro. “Dez por cento até chegar a duzentos mil, oito mil de
garantia.”
Ela não se virou. “Não”, disse. E acrescentou, como se fosse uma palavra
estrangeira que ela não tinha certeza se havia pronunciado corretamente: “Não”.
Rudman se retirou. Dessa vez, ele voltou em menos de um minuto. “Última
oferta, senhorita Seitchek. Trezentos e cinquenta mil.”
“Não.”
Novamente o trinco estalou. Ela pensou que estivesse sozinha, até que sentiu a
mão dele em seu ombro e viu o bigode dele se aproximando obliquamente. “A
senhorita disse não?”
“Disse.”
“Deixe-me lhe fazer uma pergunta, senhorita Seitchek. Só uma perguntinha,
está bom? Que merda é essa que você acha que está fazendo?”
Ela ficou olhando fixamente para a frente.
“Claro que Harvard é uma excelente universidade, e talvez você seja uma
excelente aluninha de pós-graduação, mas... uh... trezentos e cinquenta mil
dólares...”
“Sem descontar os impostos.”
“Será que não estamos nos deixando levar por uma certa avidez, não? Você já
ouviu falar numa coisa chamada moderação? De parar enquanto se está
ganhando? Em compaixão por uma senhora que obviamente não está batendo
muito bem da bola? Eu tenho certeza de que não preciso lhe dizer que ela está lá
naquela sala me dizendo pra aceitar as suas condições. Você sabe o que ela
acabou de me dizer? Ela me disse que você é o Demônio, Demônio com D
maiúsculo, e eu juro pra você que ela quis dizer literalmente o Demônio, juro por
Deus. Com a cara mais séria do mundo! É esse o tipo de pessoa que você está
imprensando contra a parede. Mas só aqui entre nós dois, garotinha, você não é o
Demônio. Você é uma estudantezinha de pós-graduação sebenta que só Deus
sabe como conseguiu botar as garras numa senhora fina como a senhora
Holland. E quer saber de mais uma coisa? Você não vai levar mais do que
trezentos e cinquenta mil nessa. Eu não preciso lhe dizer que nós estamos lidando
com uma pessoa que perdeu a perspectiva das coisas. Por ela, você levaria o
milhão todo, mas eu não vou deixar que ela faça isso. Eu não vou deixar. Ela
pode ficar burra de pedra e ir parar num manicômio no que depender de mim,
mas eu não vou deixar que ela dê um milhão de dólares de mão beijada pra uma
vigaristazinha que está vendendo segredos por trás das costas do chefe. Eu estou
lhe dizendo o que eu penso de você, senhorita Seitchek. Eu acho que você é uma
merdinha de uma golpista sebenta. Você está me ouvindo?”
Ela estava absolutamente imóvel.
“É, e pra sua informação, você não vai encontrar muitos caras mais mansos
do que eu por aí não.”
“Descontando os impostos”, ela disse em voz baixa. “Seiscentos é trezentos e
cinquenta, mais ou menos, descontando os impostos. E eu vou embora se você
não aceitar.”
“Ei, grande ideia. Por que você não vai embora agora logo de uma vez? Ou
você precisa que eu lhe explique como é vender blocos de ações? Talvez você
queira uma aula sobre ganhos de capital? Você já ouviu falar nisso? E em
comissão do corretor? Não, o que é que eu estou dizendo, você provavelmente
decorou a tabela do imposto.”
Ela se levantou de um salto e, antes que ele pudesse impedi-la, entrou na sala
de reuniões. Melanie estava debruçada sobre a mesa oval, chorando.
“Seiscentos mil”, disse Renée, enquanto se desvencilhava das mãos de
Rudman. “Seiscentos mil.”
“Cala a boca! Cala a boca!”
Melanie segurou a mão de Rudman, num gesto de súplica. “Henry , aceita!”
“Senhora Holland...”
“Aceita. Eu disse pra aceitar. Aceita e a gente acaba com isso.”
10.

Meia-noite nas salas do sistema computacional. O ronco de ventiladores e


aparelhos de ar-condicionado as preenche por completo, sem deixar a salvo a
mínima brecha, como ar num colchão inflável. Todos os monitores tinham se
obscurecido. Em seu closet particular, a impressora de linha martela números
em folhas de papel. O New York Times do dia está pousado ao lado da impressora
a laser. Uma manchete diz:

estudo revela que chave da felicidade está na profundidade,


não no número de relacionamentos

A certa distância dali, uma porta se fechou e os ruídos dos passos de alguém
parecem estar ficando cada vez mais baixos, mas de repente começam a ficar
mais altos, ecoando no poço da escada, e continuam aumentando cada vez mais
à medida que descem os degraus sem pressa, tornando-se altíssimos ao chegar
ao patamar diante das salas do sistema. Não fazem sequer uma pausa ali: passam
direto. O corredor já havia contado vinte e quatro passos quando a porta de
enrolar foi aberta; o último som é o som da porta descendo até o chão e travando.
Os diodos do mostrador da cpu tremeluzem, cônscios.

***

A impressora já encheu seu cesto de metal, e a cena retangular na única


janela que dá para a rua já passou do azul do mar profundo ao verde do mar raso
e depois aos amarelos gotejantes e enevoados de uma manhã de verão, quando
os primeiros estudantes começam a chegar. Eles carregam copos de café e se
movem com cautela, como se estivessem patinhando, com água até a cintura, na
marola da noite.
Em frente ao prédio, diante do Peabody Museum e de sua coleção de flores de
vidro, há um arbusto pouco atraente, um corniso. Turistas se fotografam em
frente a esse arbusto trinta ou quarenta vezes por dia, envolvendo-o em suas vidas
como um observador acusado de crimes imaginários e disparando suas câmeras
contra ele como se o executassem sumariamente. Existem fotos desse corniso
em álbuns de Tóquio, Yokohama, Hokkaido, Stuttgart, Pádua, Riade e Malmö.
Na varanda que circunda a sala de lazer dos alunos, na cobertura do prédio, o
sol ainda não evaporou o orvalho sobre a série de churrasqueiras hemisféricas, a
garrafa quadrada de fluido combustível e as enormes pinças de laboratório que
os estudantes usam para mexer o carvão. Um saco de carvão está encostado na
grade, exausto. Dentro da sala de lazer, numa mesa perto do elevador, fatias
desbotadas de melão e um pedaço de maçã com a casca soltando boiam numa
tigela de plástico transparente. Howard Chun dorme num sofá, com as mãos
entrelaçadas sobre o peito, um cadáver sereno. Fragmentos triangulares de batata
frita estão espalhados pelo carpete marrom.

Onda P residual, heterogeneidade lateral, fronteira núcleo-manto, momento


tensor, propagação da ruptura, penetração da placa, enxame de eventos,
resistência ao cisalhamento, sismicidade intraplaca, deconvolução, funções
fonte-tempo, modos normais, deslizamento assísmico, migração dos polos. Um
aluno chama seus programas por nomes como “Kelly ”, “Diane” e “Martha”.
São nomes de mulheres de quem ele já esteve ou está a fim. Ele gosta de dizer
seus comandos favoritos em voz alta: “Abra Martha. Rode Kelly. Execute
Diane”.
O jornal diz: Parece que faz séculos que os homens diziam coisas grosseiras e
cheias de empáfia para mulheres crédulas.

***

O sistema pode ficar irritadiço quando está sobrecarregado. Pode levar uma
eternidade para executar tarefas simples. Pode enviar mensagens frustrantes
para o seu console. Pode fingir-se de morto.
Se você se esquecer de dizer ao sistema para não esperar alguma coisa, ele vai
ficar esperando. De tantos em tantos minutos, ele vai cuspir uma mensagem no
papel no console do sistema, informando ao mundo que, embora você tenha
esquecido o seu compromisso, ele não esqueceu. E vai ficar cuspindo essas
mensagens por horas a fio.
Quando não tem nada para fazer, o sistema dorme. Acorda sabendo que horas
são com uma precisão de centésimos de segundo.
Às vezes o sistema se torna irracional, e um moço vestindo um uniforme
apertado demais tem de vir com suas pastas de alumínio e examiná-lo. A cpu é
aberta e sofre a indignidade de ter suas placas removidas, uma atrás da outra, até
que a que está com defeito seja encontrada. Depois fica tudo bem de novo.

A janela está escura quando Renée aparece. As cadeiras foram reunidas em


grupos, um perto do telefone e outro no canto perto da tela Tektronix. Ela as
empurra de volta a seus devidos lugares, joga cinco latas de refrigerante na lata
de lixo reciclável e desconecta consoles para as pessoas que não se deram ao
trabalho de fazer isso. Depois, sobe a rampa que leva à sala interna e se senta
enviesada diante do console ao lado da jukebox de disco óptico, com as pernas de
um dos lados da cadeira. Está tão sozinha e tão imóvel no rumor da sala clara, tão
técnica em sua coloração, que, mesmo estando totalmente visível pela janela de
vidro laminado, um sedimentólogo que passa por ali e enfia a cabeça pelo vão da
porta tem certeza de que a sala está vazia.
Uma imagem da terra abaixo de Tonga surge na tela colorida. Renée olha
para cada objeto estacionário dentro da sala, o console do sistema, os discos de
armazenamento, as paredes, a cpu, as unidades de fita, a caixa de força, o
processador vetorial, o digitalizador, as prateleiras de fitas, seu próprio corpo, as
paredes, a jukebox. Sente a vigilância e a perpetuidade. Ouve atentamente o
ruído, tentando encontrar nele algum sentido, padrão ou alusão, sabendo que não
vai encontrar nada. Por trás do ruído existem, porém, fantasmas de ruídos — o
alvoroço, o risinho abafado, de elétrons fazendo cálculos.

***

Howard Chun entra na sala vazia à meia-noite, carregando um milk-shake e


seu aparelho de som portátil, que é do tamanho de um arquivo de duas gavetas.
Conecta-se ao sistema a partir de seis consoles e escuta a Eroica enquanto
trabalha.
Mais tarde, depois que ele já foi embora, um vento noturno arrasta um copo de
papel pela calçada em frente à janela. O ruído do sistema abafa o suspiro do
vento, mas não os estalidos do copo.
Mais tarde ainda, o canto de um mapa oceânico se desprende da parede e se
dobra. Três semanas depois, outro canto também irá se desprender, e a primeira
pessoa a entrar na sala no dia seguinte vai encontrar o mapa caído no chão.

É de manhã: o corniso está sendo fotografado. O jornal diz: Comida pode não
ser amor, mas também dá prazer e tem suas utilidades.
Todas as luzes estão acesas. Latas de refrigerante boiam de lado num mar de
papel amassado. O hemisfério de plástico rachado que pertence ao globo da sala
tem cascas de amendoim dentro dele, e o painel da frente do radiador, de cujo
ventilador também pode sair ar frio, está jogado no chão, com sua apodrecida
lâmina de espuma isolante para cima. Na sala do mainframe, uma embalagem
de Twinkies e o papelão pegajoso que vem embaixo do bolinho estão largados
em cima da cpu, perto dos modems.

Nos sete anos que se passaram desde que ele começou, o ruído só parou uma
vez. Era mais de meia-noite num sábado de agosto quando uma correia do ar-
condicionado arrebentou. Um alarme alertou a Segurança do Campus de que
algo havia acontecido, mas não havia nenhum sinal de arrombamento e o ar-
condicionado estava fazendo seu ruído habitual, então os seguranças desligaram o
alarme. A temperatura na sala do mainframe subiu a cinquenta e quatro graus
antes que Renée chegasse para trabalhar e, devidamente horrorizada, desligasse
o sistema.
Que silêncio se instalou ali naquele dia. Era como estar diante de um oceano
do qual toda a água tivesse sido retirada.

***

O sistema acredita que os últimos vinte anos eliminaram qualquer diferença


significativa entre a inteligência humana e a inteligência artificial na América. O
sistema acredita que todas as funções vitais da inteligência média americana
podem agora ser simuladas por um programa de onze mil linhas suportado por
seis bibliotecas de Frases e uma biblioteca de Opiniões, totalizando juntas menos
de oito megaby tes. Um laptop com disco rígido de preço mediano consegue
rodar esse programa, que pode realizar exatamente as mesmas tarefas mentais
operadas por um americano selecionado aleatoriamente: pode simular
realisticamente seus padrões de gasto, seus mecanismos de reação a crises, seu
comportamento político.
O segmento do programa referente ao horário das 17h às 18h30 de um dia de
semana para um homem seria algo mais ou menos assim:

3080 desejo = desejo + desinc


3090 fimtrabalho
3100 ANDEPARA carro
3110 desejo = desejo + desinc
3115 se desejo(1) < .67 então 3120
DIRIJAPARAESTACIONAR Bar(n)
vásub escolhabebida
em gostosa 3200
3120 se dinheiro > 6i se tempo > 1 se desejo(6) > .5 vásub compras
3130 se combustível > .5 se tempo > .05 vásub abasteça
3140 DIRIJAPARAESTACIONAR Casa
...

compras
desejo = desejo + desinc
leia pequenasnecessidades/grandesnecessidades/grandesvontades
vásub tiponecessidade: necessidades.temp; dinheiro;
DIRIJAPARAESTACIONAR Shopping(n,)
ANDEPARA Shopping(n,necessidades(1))
em prodquente vásub compraimpulsiva
em deslumbre vásub compraimpulsiva
COMPRE necessidades(1)
se dinheiro < 6i saiasub
se desejo(2) < .5 então 80
SINTA desejo(2)
vásub jantarfora
80 próximas necessidades

jantarfora
10 vásub escolhacomida
jcompatível Shopping(n, c(1))
em incompatível vásub escolhacomida
ANDEPARA Shopping(n,c(1))
se álcool então alc = (0,1) se não alc = (1,0)
COMPRECOMA c(1), [j(1a, 1b) *alc]
em gostosa 3200
desejo(2) = desejo(2) – [valorj(c1)]
se desejo(2) < .5 saia se não 10

3200 SINTA desejo(1)


vásub avalieela
se (ela *desejo(1)) < .5 saialoop
desejo(1) = 2*desejo(1)
ligue bib :assuntoconv/;bompapo
vásub paquera

[paquera
DIGA “Oi”
em esnobada saiasub
conheçaela = ela/10
110 leia $eladiz
busca assuntoconv
pcompatível $eladiz $responda
rem: valp atribuído em pcompatível
DIGA $resposta
em esnobada saiasub
conheçaela = conheçaela + valp
vásub avaliaela
se ela *desejo < .5 saiasub
se conheçaela < .67 então 110
DIGA “Escuta, se você estiver livre, talvez a gente
possa”;$linha(n)
leia $eladiz
...

[escolhacomida
randomize
comida = int(md*10)
crie b1 {a,b}
se comida = 1 então c1 = {pizza} b1 = {pepsi, cerveja} saiasub
se comida = 2 então c1 = {nachos} b1 = {sprite, cerveja} saiasub
se comida = 3 então c1 = {nuggets}...

se (margemgasto*dinheiro) < mcrit então casa

3150 assistanoticiário
ligue bib :papoquente
...
...

Talvez você queira objetar: Por acaso a inteligência artificial é capaz de ler
um livro com compreensão? Ela é capaz de pintar um quadro genuinamente
original ou compor uma sinfonia? É capaz de distinguir fatos de meras imagens e
tomar decisões políticas responsáveis com base nessa distinção?
O sistema salienta que o programa simula a inteligência do americano médio
na década de 1990.
Você pode argumentar ainda que nenhuma máquina, por mais sofisticada que
seja, será jamais capaz de sentir subjetivamente a cor azul ou saborear o gosto
de canela ou ter consciência de si enquanto pensa.
O sistema considera isso uma perigosa irrelevância. Pois, a partir do momento
em que você permite que a subjetividade entre numa discussão lógica, a partir do
momento em que você confere realidade a fenômenos que jamais poderão ser
verificados por uma máquina ou uma reação química, a partir do momento em
que você diz que a interpretação subjetiva que uma pessoa dá a moléculas de
canela como Ah! Canela! tem uma significação, você abre uma caixa de
Pandora. Quando você der por si, a pessoa vai estar lhe dizendo que ela interpreta
o silêncio no cume de uma montanha como Ah! Existe uma presença eterna ao
meu redor, e a escuridão no quarto dela no meio da noite como Ah! Eu tenho uma
alma que transcende sua clausura física; e é por aí que se chega à loucura.
É muito mais sábio viver racionalmente, como uma máquina faz. Votar no
candidato que se opõe mais ferrenhamente aos chefões do tráfico de drogas.
Sustentar que o que existe de real no sabor da canela são as informações nela
contidas: ela diz a seu cérebro — e isso por puro acidente químico, já que canela
não tem nutrientes — me coma, eu faço bem para você. É certamente mais sábio
rir da pessoa que lhe diz que sem a sua experiência subjetiva da canela você teria
se enforcado aos treze anos de idade, ou que sem a sua experiência subjetiva do
cheiro da neve derretendo a sua atitude em relação a sua mãe ou a sua mulher
ou a sua filha se resumiria a O que eu posso fazer para que ela me dê o que eu
quero? E como algumas pessoas não têm paladar e como o líder de uma nação
de daltônicos mora em sua negra Berlim ou em sua cinzenta Tóquio ou em sua
Casa Branca e zomba daqueles que dizem que têm sentimentos em relação à cor
azul, você precisa aprender a zombar daqueles que estiveram nas montanhas e
dizem ter sentido a presença de um Deus eterno, e a rejeitar quaisquer
conclusões que eles tirem dessa experiência.
Se não — se deixar que a emoção o engane e o faça acreditar que existe algo
único ou transcendente na subjetividade humana — você pode acabar se
perguntando por que organizou a sua vida como se você não passasse de uma
máquina voltada para a desprazerosa produção e o prazeroso consumo de
mercadorias. E por que, a pretexto de uma educação responsável, está incutindo
em seus filhos o mesmo éthos consumista, se o aspecto material não é a essência
da humanidade: por que está garantindo que a vida deles seja tão entulhada de
mercadorias quanto a sua, com tarefas, loops, input e output, de modo que eles
vivam sem qualquer outro propósito a não ser o de perpetuar o sistema e morram
sem qualquer outra razão a não ser a de estarem exaustos. Você pode começar a
recear que, a cada aparelho que compra, a cada objeto de plástico que joga fora,
a cada galão de água quente que desperdiça, a cada ação da Bolsa que negocia, a
cada quilômetro que roda, você está apressando o dia em que não haverá mais
terra nem ar nem água no mundo que não tenha sido modificado, o dia em que a
primavera terá cheiro de ácido clorídrico e uma chuva de verão terá sabor de
paradiclorobenzeno, e a água que sai da sua torneira terá um tom vivo de
vermelho e um gosto igualzinho ao da Pepsi, e os únicos pássaros no mundo vão
ser pardais amestrados que piam “Simplesmente diga não!”, gaios-azuis que
gritam “Sexo!” e galinhas que cacarejam “Carne branca!”, e você vai comer
carne vermelha numa noite, frango na noite seguinte e carne vermelha na outra,
e todas as florestas vão estar plantadas com o mesmo tipo de pinheiro ou o
mesmo tipo de bordo, e mesmo a mil e tantos quilômetros de distância da costa o
fundo do oceano vai estar coberto de escória enferrujada e garrafas de plástico,
e apenas atuns, sardinhas e camarões graúdos vão nadar por lá, e mesmo à noite,
no alto de uma montanha remota, o vento terá o cheiro do ar que sai da chaminé
de um McDonald’s e você ouvirá alarmes de carro, barulho de televisão e o
ronco dos jatos, no interior dos quais estará sendo oferecida aos passageiros a
opção entre Frango... ou carne? — e a natureza em que todas as pessoas,
conscientemente ou não, um dia sentiram a imanência da eternidade estará
morta, e o jornal que você pode ler na tela de um computador que você comprou
com o dinheiro que ganhou trabalhando arduamente em outra tela irá lhe dizer
que O homem é livre e todos somos iguais e que Minigolfe é o novo jogo urbano. E
como poderia ser perturbador achar tal mundo insatisfatório! Então, pelo bem da
sua própria paz de espírito, já que de qualquer forma nada pode ser provado nem
refutado — uma vez que a sua ciência se abstém de responder justamente
aquelas perguntas que dizem respeito à capacidade da mente humana de sentir
aquilo que, num sentido absoluto e verificável, não está lá —, será que não é
infinitamente mais seguro pressupor que as máquinas tenham sua própria alma e
seus próprios sentimentos virtuais?

Renée tinha voltado para casa do escritório de Arger, Kummer & Rudman
com uma dor de cabeça alucinante, um contrato de duzentas e setenta palavras
autenticado e suas oitenta notas de cem dólares. Melanie, irracional até o fim,
havia se recusado a aceitar o dinheiro como garantia. Renée respondeu a um
anúncio de uma pessoa que estava vendendo um Mustang 74 conversível,
vermelho-fogo. Deu uma nota de cem dólares para o mecânico que avaliou o
carro e mais trinta e oito para o zoólogo de invertebrados que estava vendendo o
carro.
Depois, rumou para as badaladas lojas de roupas da Harvard Square, lugares
que eram filiais de lojas da parte sul da Broadway, em Manhattan. Comprou
saias curtas e justas, sapatos lustrosos, batons, camisetas de verão que custavam 3
dólares o grama, um par de óculos escuros. Comprou uma jaqueta de couro e
bijuterias de plástico.
Na manhã seguinte, voltou para a Square, cortou o cabelo e fez mais algumas
compras. Estava parada em frente ao espelho de uma loja de roupas, vendo se
tinha corpo para usar uma saia verde-limão com um corte para lá de justo,
quando seus olhos refletidos encontraram seus olhos de verdade e de repente lhe
ocorreu que só o que ela estava fazendo era tentar imitar o estilo de Lauren
Bowles.
Decidiu que já tinha comprado o bastante por ora.
O Mustang virava cabeças enquanto ela rumava para o norte com a capota
abaixada, cruzando Cambridge e Somerville. Pegou a pista do meio da i-93. A
única coisa desanimadora era que ela não suportava nenhuma das músicas que
tocavam no rádio.
O ar em Peabody tinha cheiro de alga marinha. Na Main Street, no quarteirão
seguinte ao do Warren Five Cents Savings Bank, ela bateu duas vezes na janela da
sede do Peabody Times antes de reparar no aviso que dizia fechado esta sexta.
Encostou-se num para-lama, sentindo a quentura do metal através do tecido fino
de sua saia, e roeu três unhas até o limite do aconselhável.
Na Andover Street, localizou o prédio bancário de meia-idade que ela tinha
visto fotografado quando recém-nascido num exemplar do Globe de 1970. A
ferrugem agora carcomia os painéis que revestiam a fachada; a calçada estava
rachada, crestada e cheia de tufos de capim. Do outro lado da rua havia uma
lavanderia, uma videolocadora e uma “lanchonete” que vendia cerveja e artigos
de mercearia. O homem atrás do balcão da lanchonete era um português, que
lhe disse que era dono do estabelecimento fazia seis anos. Ela jogou a garrafa de
Pepsi que tinha comprado no banco de trás do Mustang.
Circulou de carro pelo bairro operário que ficava atrás do prédio do banco,
passando por casebres brancos que pareciam à beira da condenação,
atravessando diferentes concentrações de vapores de acetona, subindo e
descendo todas as ruas que terminavam na cerca alta da empresa, com suas
placas que diziam entrada expressamente proibida. Parou em frente a uma casa
em cuja varanda havia um senhor de cabelos brancos. Ele veio mancando pelo
gramado, poupando um quadril problemático, e ficou olhando para ela como se
ela fosse o Anjo da Morte que havia chegado em seu Mustang vermelho mais
cedo do que ele esperava. Ela disse que seu nome era Renée Seitchek e que era
sismóloga da Universidade Harvard e perguntou se podia lhe fazer algumas
perguntas. Aí ele teve certeza absoluta de que ela era o Anjo da Morte, capengou
de volta até a varanda e, dessa posição relativamente segura, gritou: “Cuida da
tua vida!”.
Ela tentou outras ruas e abordou outros velhinhos. Ficou se perguntando se
haveria alguma coisa na água dali que fazia com que eles fossem todos tão
bizarros.
Uma mulher atarracada, que estava revolvendo a terra em volta de algumas
roseiras aparentemente mortas, viu Renée passar de carro pela terceira vez e
perguntou o que ela estava procurando. Renée disse que estava procurando
pessoas que morassem ali no bairro pelo menos desde 1970. A mulher pousou
sua pá. “Eu ganho algum tipo de prêmio se disser que moro?”
Renée estacionou o carro. “Eu poderia lhe fazer algumas perguntas?”
“Bom, se é pela ciência.”
“Você se lembra de ter visto, mais ou menos uns vinte anos atrás, uma... uma
estrutura particularmente alta naquela propriedade ali, meio parecida com uma
torre de petróleo?”
“Claro que lembro”, a mulher respondeu na mesma hora.
“Você se lembra em que ano foi isso?”
“O que é que isso tem a ver com terremotos?”
“Bom, eu acho que a Sweeting-Aldren pode ser responsável por eles.”
“Não diga? Então talvez eles queiram consertar o teto da minha cozinha.” A
mulher riu. Ela tinha uma boca larga, pintada de batom laranja, e um físico que
lembrava um pouco uma caixa de correio. “Deus do céu, eu não acredito nisso.”
“A minha outra pergunta é se você teria alguma foto antiga em que apareça
a... hã... estrutura.”
“Foto? Entra aqui um instante.”
O nome da mulher era Jurene Caddulo. Ela mostrou a cratera cinza no teto de
sua cozinha e não descansou enquanto Renée não encontrou a combinação certa
de frases para expressar sua solidariedade e indignação. Jurene contou que
trabalhava como secretária na escola secundária ali perto e ficara viúva fazia
oito anos. Numa gaveta da cozinha, ela tinha umas cinco mil fotografias, enfiadas
ali sem nenhuma espécie de organização.
“Você aceita um licor?”
“Não, obrigada”, disse Renée, enquanto garrafas de Amaretto, de licor de
damasco e de cereja eram postas em cima da mesa. Jurene voltou de outro
cômodo da casa trazendo um par de taças de cristal lapidado
extraordinariamente feias.
“Você acredita que só me sobraram duas dessas taças? Eu tinha oito antes dos
terremotos. Você acha que eu posso processar a fábrica? Essas taças são
antiguidades, não existem mais por aí não. Você gosta de Amaretto? Toma aqui.
É bom, não é?”
Cupons de desconto expirados pontuavam a desordenada história fotográfica
da família Caddulo. A filha de Jurene que morava em Revere e a outra filha, que
morava em Ly nn, tinham posto no mundo crianças de variados formatos e
tamanhos; ela examinava intrigada as fotos de grupo, tentando acertar os nomes
e as idades. Renée se pegou dizendo: “Esse deve ser o Michael Junior”, o que fez
com que Jurene examinasse de novo as outras fotos, pois sabia que aquele não
era Michael Junior e, portanto, a criança que ela havia acabado de identificar
como Michael Junior devia ser o Petey, e aí tudo fez sentido novamente. O filho
mais novo de Jurene tocava guitarra. Havia dezenas de cópias de uma foto da
banda dele tocando a missa heavy metal que ele havia composto aos dezessete
anos e para a qual o padre havia negado uma apresentação na igreja e, então,
eles tinham tocado ali mesmo, no porão, sem os sacramentos. O filho agora
tocava em outra banda e dirigia uma picape 4 x 4 personalizada. O filho mais
velho apareceu já adulto em San Francisco, de bigode e colete de couro, e
também como um borrão de beca em fotos em tons de azul de uma formatura
de escola secundária num dia sombrio. Jurene disse que ele era cabeleireiro.
Renée balançou a cabeça. Jurene disse que seus dois filhos ainda estavam
procurando a moça certa. Renée balançou a cabeça de novo. Na escola ginasial
e na escola secundária, as filhas costumavam usar seus cabelos de cor indefinida
arrumados em fantásticos penteados armados. Numa foto, seus corpos estavam
deformados feito brinquedos de piscina pelos afetuosos tentáculos esmagadores
do pai, que morrera de câncer. Toda a tristeza dos anos setenta estava na gaveta
de Jurene, todos os anos em que Renée não fora feliz e não tinha tido o que
queria, mas, em vez disso, tivera espinhas e amigos que a constrangiam; anos
cujos colarinhos imensos, sapatos plataforma, bocas de sino e cabeleiras
gigantescas (Não é verdade que pessoas com problemas mentais costumam
parar de cortar o cabelo?) agora lhe pareciam ser tanto os símbolos quanto os
paramentos literais da infelicidade.
Jurene ainda continuava a passar as férias na mesma casa que vinha alugando
fazia vinte anos em Barnstable, Cape Cod. Estava indo para lá no domingo.
“Quando volto do Cape, eu sinto o cheiro daqui durante uns dois dias, antes de me
acostumar de novo. Mas sabe o que é mais estranho? Às vezes, lá no Cape, eu
sinto esse mesmo cheiro na praia.”
“É como se fosse uma vibração no seu ouvido, só que no seu nariz.”
“Não, eu estou falando do cheiro. Ah, olha aqui.” Jurene pegou um punhado de
fotos de baixa resolução de um boneco de neve, de uma fortaleza de neve e de
uma guerra de bola de neve no pequeno quintal da frente de sua casa. No fundo
de todas elas, bem atrás das casas do outro lado da rua, estava a torre de
perfuração da Sweeting-Aldren. Não havia mais nada que aquilo pudesse ser;
nenhum processo químico que Renée conhecesse precisava de uma estrutura
como aquela. A data estava carimbada no verso das fotos: fevereiro de 1970.
“Eu posso pegar uma delas emprestada?”
“Claro, pode pegar todas. Deixa ver se eu encontro os negativos.”
Ela abriu uma gaveta tão abarrotada de negativos que alguns pularam para
fora e caíram no chão. Ela os deixou lá enquanto, pensando melhor, abriu uma
lata de biscoitos amanteigados e os arrumou num prato pintado. Renée segurou
sua taça de Amaretto contra a luz cinzenta que entrava da janela. Uma etiqueta
colada na garrafa dizia: A Secretaria Nacional de Saúde adverte que mulheres
grávidas não devem ingerir bebidas alcoólicas devido ao risco de causar defeitos
congênitos.
“Eu tenho que ir”, disse Renée.

O céu estava escurecendo como se a Terra estivesse numa ladeira,


escorregando em direção a um precipício. No estacionamento de um conjunto
de prédios de escritório do qual se tinha uma boa vista da Sweeting-Aldren,
Renée se sentou no capô do Mustang com as fotos da família Caddulo e um mapa
topográfico do Serviço Geológico dos Estados Unidos, comparando perspectivas
numa torre de resfriamento, tentando calcular por triangulação a localização da
torre de perfuração. Milhares de pedregulhos do tamanho de porcos e de vacas,
alguns deles possivelmente glaciais e nativos, escoravam a colina onde ficava o
complexo.
Uma voz falou bem de trás dela: “Que crianças feias”.
Ela se virou e estrangulou um espasmo de medo. Rod Logan estava parado
perto do carro, segurando uma foto que pegara de cima do capô.
“Me dá isso”, Renée disse.
Atrás dela, no estacionamento, jovens executivos andavam em direção a seus
carros lustrosos. Para não correr o risco de que ela fizesse uma cena, Logan
preferiu devolver a foto. Depois, foi andando até a beira do asfalto e olhou lá
para baixo, para o lago amarelado abaixo dos pedregulhos.
“Sabe, nos velhos tempos, pessoas que nem você apareciam por aqui, eram
avisadas das coisas e, se insistissem em continuar aparecendo, levavam umas
boas porradas e ninguém pensava em denunciar nem em dar queixa nem em
coisa nenhuma, porque era só parte do modo como o jogo era jogado. Mas, de
uns tempos pra cá, todo mundo inventou de ficar tão bonzinho e gentil que é uma
praga, sabe. A coisa chegou a um ponto que só o que eu posso realmente fazer é
pedir educadamente a você que dê o fora, e se por acaso você se recusar, o que
acontece é que nós entramos num terreno pantanoso, se é que você me entende.
Nós não sabemos que tipo de procedimentos são necessários. Ainda não existe
material de consulta sobre o tema.”
Renée entrou no carro.
“Que carro incrementado você arrumou, hein. Roupas bacanas, também.
Parece que você encontrou um patrocinador rico, afinal.”
Ela deu partida no carro. Logan se inclinou para ela, olhando bem para o colo
dela.
“Tchau, Renée.”

Ela foi mais uma vez até a Square, deu uma passada na clínica do Holy oke
Center e depois deixou os negativos da família Caddulo numa loja de revelação,
para ampliar. O resto do fim de semana ela passou trabalhando num console do
laboratório, até altas horas nas duas noites. Ninguém atrapalhou seu sossego até
domingo à tarde, quando alguns alunos apareceram por lá, disseram oi,
executaram Diane etc. Ninguém se interessou em olhar o que ela estava
escrevendo.
No resumo do trabalho, ela dizia:

Recentes atividades sísmicas em Peabody, Mass., e a prolongada sequência


de 1987 apresentaram a forma de enxames de eventos encontrada em casos
conhecidos de sismicidade induzida. Até o momento, a semelhança vem
sendo desconsiderada em função das profundidades focais relativamente
grandes dos terremotos (3-8 km) e da inexistência de reservatórios e poços
de injeção na área focal. No entanto, evidências fotográficas e documentais
indicam que em 1969-70 as Indústrias Sweeting-Aldren de Peabody
perfuraram um poço exploratório de mais de 6 km de profundidade e que,
posteriormente, esse poço foi utilizado para o descarte de resíduos. A
presente pesquisa atribui a atividade observada a um abrupto “mergulho” de
uma falha do embasamento de direção so-ne. Também propõe modelos de
migração dos fluidos e ativação da falha, explica a distribuição temporal da
sismicidade observada e discute brevemente as implicações legais do papel
da Sweeting-Aldren.

Ela descreveu o ambiente tectônico dos terremotos de Peabody. Marcou


prováveis localizações para o poço em suas melhores fotos aéreas. Em notas de
rodapé, mencionou Peter Stoorhuy s e David Stoorhuy s pelo nome. Fez desenhos:
Escreveu que a ausência de terremotos entre 1971 e 1987 indicava que não
existiam falhas sob pressão nas cercanias imediatas do poço de injeção. Tinham
sido necessários dezesseis anos para que o fluido fosse empurrado fundo o
bastante na rocha circunvizinha para atingir a(s) falha(s) onde os terremotos
estavam ocorrendo. Isso indicava que um volume bastante significativo de
resíduos fora injetado e que a formação rochosa presente numa profundidade de
4 km era porosa o suficiente para aceitar esse volume a uma pressão de
bombeamento baixa o bastante para ser comercialmente atraente. As
convenções da prosa científica contribuíam para evidenciar e realçar a paixão
com que ela escrevia. Estava tão absorta em sua argumentação que ficou
chocada ao ver, no espelho do banheiro feminino do segundo andar, as roupas
caras e provocantes que estava usando.

Na segunda à tarde, depois de dormir a manhã inteira, ela pegou as


ampliações dos Caddulo, comprou um esmalte vermelho e passou no Holy oke
Center de novo. Quando voltou para o laboratório Hoffman, viu uma mulher
gorducha e queimada de sol parada no hall em frente à sua sala, com cara de
quem está completamente perdida. Margaridas de feltro marrom estavam
costuradas no peito de seu casaco de moletom amarelo e nas coxas de sua calça
de moletom amarelo; um bóton preso perto do ombro dela dizia: aborto não!
adoção! Renée sabia que pessoas assim ainda continuavam a aparecer no
laboratório de vez em quando, mas não via uma delas pessoalmente desde a
semana em que o assédio postal e telefônico a ela começara.
A mulher veio andando até ela e falou num tom confidencial, com sotaque
interiorano: “Eu estou procurando uma doutora Seitchek?”.
“Ah”, disse Renée, com indiferença. “Ela morreu.”
“Morreu!” A mulher chegou a cabeça para trás feito uma galinha afrontada.
“Eu sinto muito.”
“Eu estou brincando. Ela não morreu não. Ela está bem na sua frente.”
“Ela está? Ah, é você. Por que é que você disse que tinha morrido?”
“Foi só uma brincadeira. Deixe-me adivinhar por que você está aqui. Você
veio à minha clínica de aborto para protestar contra mim pessoalmente.”
“Isso mesmo.”
“Eu sou clarividente”, disse Renée, tocando com o dedo na testa. Ela viu que
Terry Snall tinha descido a escada e estacado no último degrau. Ele estava com
as mãos nos quadris, olhando embasbacado para o modo como ela estava
vestida. Renée deu as costas para ele. “Me responda uma coisa”, ela disse para a
visitante. “Você acha que esse lugar parece uma clínica de aborto?”
“Sabe, eu estava agora mesmo me perguntando isso.”
“Pois é, sabe, isso aqui não é uma clínica de aborto. E eu não sou médica. Eu
sou geóloga.” Num impulso, girou o corpo e apontou para Terry. “Já aquele
rapaz ali, o Terry , ele faz abortos. Como bico, não é, Terry ?”
“Não tem graça, Renée. Não tem graça nenhuma.”
“Ele nega porque não quer que vocês o assediem, sabe”, ela explicou. “Mas
ele faz parte de toda essa... conspiração do aborto.”
Renée abraçou o próprio corpo com força, girando um sapato sobre o salto.
Instalou-se um silêncio constrangido, interrompido apenas pelos resmungos da
impressora de linha atrás de uma porta fechada.
“Bom”, disse a visitante. “Ela já mentiu pra mim uma vez. Ela disse que tinha
morrido!”
“A Renée é assim mesmo”, disse Terry. “Ela acha que pode fazer tudo que
quer. Acha que é melhor que todo mundo.”
Renée girou de novo, ainda abraçada ao próprio corpo. “Mas isso é porque eu
posso fazer tudo que quero. E eu vou fazer, Terry ! Espera só pra ver.” Ela se
aproximou da mulher, que, embora fosse maior e mais alta, deu um passo
cauteloso para trás. “De onde você é?”
“Você quer saber onde eu nasci? Eu sou de Herculaneum, Missouri. Mas moro
em Chelsea agora.”
“Você é da igreja do Stites.”
“Do reverendo Stites.”
“Aquele mesmo reverendo Stites que diz não ter nada a ver com o assédio
telefônico e postal.”
“Ah, mas ele não tem mesmo não, sabe.” Sem se dar conta de que havia
deixado a palavra “assédio” passar, a mulher abriu o zíper de sua inchada bolsa
bege. “Esta carta aqui, ela foi reenviada pra mim lá de Herculaneum.”
Renée se virou para lançar um olhar zombeteiro para Terry, mas ele já não
estava mais lá. “Qual é o seu nome?”, ela perguntou à mulher.
“O meu nome? Senhora Jack Wittleder.”
“Prazer em conhecê-la, Jack.”
“Ah, não. Jack é o nome do meu marido.”
“Ah. Então, qual é o seu nome de verdade?”
“Os meus amigos e os irmãos da igreja me chamam de Bebe. Mas esse não é
o meu nome de verdade, o meu nome legal. Sabe, dra. Seitchek, eu não sei como
é com você, mas, na parte do mundo onde eu vivo, quando uma mulher se
casa...”
“Sei sei sei.”
A sra. Jack Wittleder ficou magoada. Soltou um suspiro, piscando os olhos. “Eu
não sei o que o seu nome está fazendo na minha lista, se o que você diz é
verdade. Aqui é o numero 20 da Oxford Street, não é? Não tem como ser
engano, se aqui é o laboratório Hoffman e você é a doutora Seitchek. Eu já liguei
pra você um montão de vezes e nunca ninguém atende. O telefone toca e você
não atende, é isso?”
“É, geralmente é assim que funciona.”
“Mas tem que ter alguma razão pra você estar na minha lista. Você por
acaso...? Me diga uma coisa, quando você acredita que a vida humana começa?”
“Aos trinta.”
A sra. Jack Wittleder sacudiu a cabeça. “Caçoar do Senhor é um pecado muito
mais grave do que ser ateu, doutora Seitchek. Eu não sou uma mulher culta, não
em comparação com uma doutora da Universidade Harvard, mas a Bíblia nos
diz que não é com o intelecto que nós conhecemos Deus, mas sim com o
coração, e também não é com os olhos que nós vemos Deus, mas sim com o
coração, e pode ser que o meu coração saiba distinguir o certo do errado melhor
do que o cérebro de uma professora universitária.”
“Sem dúvida. Mas, sabe, eu estou meio ocupada agora.”
“Ocupada demais pra pensar no que é certo e no que é errado.”
Renée sorriu. “Exato, você entendeu direitinho.”
“Bom, pelo menos você é franca. Isso eu posso dizer a seu favor. Imagino que
você não tenha o hábito de ler a Bíblia?”
“Não, não tenho.”
“Você sabia que o único lugar onde se pode encontrar a verdade a respeito da
vida humana na Terra é a Bíblia?”
“Olha, eu entendo, você quer me converter, mas...”
“Não, doutora Seitchek, eu não quero te converter. Eu quero te levar ao lugar
onde eu encontrei a felicidade.”
“E onde é isso?”
“É na igreja que é a noiva de Cristo. A igreja do reverendo Stites.”
“Ah. Sei. A noiva de Cristo mora num edifício de Chelsea.”
“Isso mesmo.”
“E você sai por aí visitando clínicas que nem essa pra tentar recrutar novos
membros entre todos os simpatizantes que vocês têm nesses lugares.”
“Não. Só quando eu encontro uma oportunidade de plantar algumas sementes
nas pessoas.”
“Sei. Bom, eu já fui semeada.”
A sra. Jack Wittleder olhou para um e outro lado do hall, querendo se certificar
de que elas estavam sozinhas. Ela abaixou a voz. “O que exatamente você quer
dizer com isso, doutora Seitchek?”
O rosto de Renée perdeu a expressão de bom humor. “Nada. Absolutamente
nada.”
“Por que você não vai até lá comigo?”, a sra. Jack Wittleder sugeriu. “O
reverendo Stites é um rapaz muito gentil e muito erudito. Ele me ajudou tanto. Eu
tenho certeza que ele vai poder ajudar você também.”
“Eu não preciso da ajuda dele.”
“Você está conversando comigo. Nenhuma das outras pessoas com quem eu
já tentei falar me deu um pingo de atenção. Vamos até lá comigo e você vai
ver.”
Renée saiu andando pelo hall e parou diante de uma enorme imagem da Terra
na profundidade de mil e quinhentos quilômetros. Voltou toda sorrisões. “Está
bem, senhora Wittleder.”
“Pode me chamar de Bebe.”
“Eu adoraria ir até lá com você, Bebe. Isso a deixa feliz? Eu vou com você
conhecer a sua encantadora igreja. Terry !”, ela chamou. “Terry !”
Uma barba, lábios vermelhos e um par de óculos apareceram no vão de uma
porta. “Que é?”
“Quer dar um pulo lá em Chelsea comigo? Conhecer a famosa igreja? Você
pode falar com as pessoas que andam obstruindo o seu telefone. Dizer umas
verdades pra elas.”
Terry balançou a cabeça ominosamente. “Se fosse você”, ele disse para Bebe,
“eu não levaria essa moça lá. Ela só quer fazer você passar vergonha.”
“Ah, obrigada”, disse Renée.
“Ela só quer se vingar”, disse Terry .
“Nossa, esse cara é mesmo um encanto de pessoa.”
“Bom, a verdade é que você já mentiu pra mim duas vezes”, refletiu Bebe.
“Mas eu não estou mentindo agora. Me espera só um segundo que eu já
venho.” Renée entrou na sala dos terminais e copiou seu novo trabalho numa fita,
inseriu um anel de proteção no carretel da fita e a guardou dentro de uma gaveta.
As fotos ampliadas, ela guardou separadamente.
Depois, foi com Bebe para Chelsea.

Durante todo o trajeto até a Park Street, um cão-guia ficou olhando para Renée
com uma expressão apaixonada. Bebe lançava olhares de desdém para todos os
passageiros que estavam no metrô — até o cego recebeu um, e cada pessoa
negra recebeu vários —, mas Renée desconfiava que isso fosse mais um produto
da insegurança típica do Meio-Oeste do que um sinal de arrogância.
“Você tem uma caneta aí?”, ela perguntou em voz baixa, apontando com o
queixo para um pôster sobre planejamento familiar que estava na faixa
publicitária acima dos bancos. “Por que você não rabisca aquele anúncio ali?
Não, espera. Por que você não arranca logo de uma vez aquilo dali?”
“Isso não seria certo.”
“Ah, vai”, sussurrou Renée. “Arranca, vai. É um crime menor para evitar um
crime maior.”
“Não é certo.”
“Você tem medo do que as pessoas vão dizer. Isso quer dizer que a sua fé não
é forte o bastante.”
“A minha fé”, disse Bebe, botando a mão na margarida marrom em seu peito,
“é problema meu.”
Era uma longa caminhada da estação de metrô de Wood Island até a Igreja da
Ação em Cristo. A Chelsea Street cruzava uma vizinhança de cilindros gigantes
marcados com números vermelhos dentro de círculos brancos. Atravessava uma
ponte levadiça cuja superfície de grade vibrava sob os pneus do tráfego pesado.
Renée olhou para o contrapeso de concreto sólido suspenso acima dela (ele era
do tamanho de um trailer grande) e ficou pensando em como a riqueza vítrea do
centro de Boston precisava de um contrapeso naquelas áreas industriais, onde
terrenos baldios colecionavam folhas de jornal apodrecidas trazidas pelo vento,
as ruas transversais eram cheias de crateras e os trabalhadores tinham rostos do
mesmo tom de vermelho-nitrito de salsichas de cachorro-quente. Um Ford
Escort com limpadores de para-brisa verde-fosforescentes atravessou a ponte,
seguido de perto por um Chevrolet Corvette que se identificava como Carro-
Madrinha Oficial, 70a Indianápolis 500, 27 de maio de 1985.
Bebe andava com uma lentidão inacreditável. Contou que estava na igreja
fazia cinco meses. Seu dia começava ao nascer do sol, com preces e cânticos
comunais, seguidos pelo café da manhã. O trabalho missionário, que era
“voluntário, mas esperado”, começava às oito e meia. Havia uma infinidade de
lugares a serem cobertos pelas ações da igreja, e os membros eram incentivados
a fazer manifestações em sistema de rodízio, em grupos de três a seis pessoas.
“Grupos de Doze” eram formados quando o espírito percorria a comunidade e
doze membros Escolhidos espontaneamente decidiam evitar a cota de um dia de
assassinatos em uma das várias famigeradas clínicas. Bebe ainda não tinha
tomado parte de um Grupo de Doze, embora tivesse testemunhado a prisão de
um deles e participado das visitas diárias à cadeia. Ela disse a Renée que os
últimos cinco meses tinham sido o período mais significativo e cheio de luz de sua
vida.
Deus é... Pró-vida!, dizia a faixa pendurada na entrada do edifício. O prédio
era o último de um conjunto de cubos de tijolo, com janelas pequenas e
quadradas. Como se o arquiteto tivesse antevisto o futuro do prédio como igreja,
o clerestório central era seccionado verticalmente por janelas estreitas que
lembravam catedrais.
Várias dezenas de mulheres trabalhavam no salão principal, um cômodo de
teto rebaixado e piso de linóleo que provavelmente um dia já fora um centro
comunitário ou uma creche. Havia um alegre cheiro de tinta guache no ar. “A
minha irmã vai se juntar a nós amanhã”, disse uma artesã idosa que estava
dando os toques finais num cartaz, que Renée virou a cabeça para ler:
“Eu já tinha quase desistido, mas aí ela me ligou e disse que estava vindo.”
“Louvado seja o Senhor, glória a Jesus.”
“Amém.”
O que é conveniente para você é homicídio. Jesus nasceu de uma gravidez não
planejada. OBRIGADA MÃE EU ♥ A VIDA.
Bebe tinha desaparecido, deixando Renée sozinha no meio do salão, com suas
roupas pretas e seus óculos escuros, cercada de mulheres das mais diversas
idades, todas com roupas em tons pastel e penteados agressivamente castos. Um
número cada vez maior delas olhava para Renée. Apenas duas semanas antes,
aqueles olhares a examiná-la de alto a baixo poderiam ter aniquilado seu
autocontrole, mas ela se sentia capaz de enfrentá-los agora.
Na frente do salão, uma mulher de conjunto de moletom branco com um apito
e uma cruz pendurados no pescoço estava batendo palmas. Ela era como todas as
professoras de educação física que Renée tivera na escola secundária. “Muito
bem, pessoal, hora de arrumar a bagunça. Nós agora vamos ver um vídeo.
Vamos lá! Todo mundo arrumando a bagunça!” Ela deu uma volta pela sala,
puxando para baixo as surradas persianas opacas, enquanto as pintoras fechavam
obedientemente seus potes de tinta. Renée se plantou no fundo da sala, encostada
à parede. Havia homens ali, um triste grupinho de gatos-pingados, sentados de
pernas cruzadas, olhando para as próprias mãos.
As mulheres se sentaram amontoadas, feito bandeirantes, diante de um
carrinho com equipamento de vídeo. As luzes foram apagadas. O programa
começou.
Ao som de uma música californiana de três acordes, uma égua amamenta seu
potro num campo de verão, com a cordilheira Teton ao fundo. Adoráveis filhotes
de raposa correm atrás da mãe por uma trilha de floresta. Passarinhos cantam e
põem comida nos bicos abertos de seus filhotinhos. Corta para uma boate em
TriBeCa, guitarras guinchando, luz estroboscópica piscando. Uma mulher de
óculos escuros e batom roxo ri, mostrando os dentes, e diz: “Atos antinaturais”. De
volta à cordilheira Teton, uma mãe sardenta de vestido de algodão xadrez
observa os filhos pequenos colherem flores do campo. O sol reluz em seu cabelo
ruivo. “Mamãe!”, uma das criancinhas grita. Ao longe, sob uma luz difusa, o pai
corta lenha com um machado. Vê-se o volume de uma nova gestação sob o
vestido xadrez. Guitarras berram do lado de fora da porta de um banheiro
feminino high-tech, onde duas moças negras de salto agulha arqueiam as costas,
como atrizes pornô, para cheirar uma carreira de cocaína. Um zoom vacilante
penetra num cubículo vazio: um feto de vinte e quatro semanas, vermelho feito
tomate, boia dentro do vaso sanitário. O acelerado desabrochar de uma flor de
genciana. Filhotinhos de cão-da-pradaria andam rebolando. Um bezerro entorta o
pescoço para pegar a teta da mãe. Patinhos em Jackson Hole. Ao pé de uma
fogueira bruxuleante, atrás de uma lente besuntada de vaselina, Nossa Senhora
do Vestido Xadrez segura uma criança em cada joelho e as enche de beijos.
Guitarras mais estridentes ainda. Mãos brancas, mãos negras, mãos cheias de
joias apertam furiosamente o botão da descarga, mas o feto é como um daqueles
cagalhões que teimam em não descer. Luzes estroboscópicas piscam.
Contrariadas, as mãos se contorcem de raiva. Uma criança nina uma boneca.
Égua e potro galopam em câmera lenta...
Os membros da igreja oriundos do interior do Arkansas, do interior do
Missouri, da Carolina do Norte, da Carolina do sul, de Buffalo, de Indianápolis e
de Shreveport permaneciam tão calmos quanto pacientes hospitalizados,
enquanto recebiam essa dose de sofisticação cinematográfica. As portas do
fundo da sala volta e meia se abriam, deixando entrar a luz do sol e missionários
cansados, que pousavam seus cartazes no chão e engrossavam o reverente
círculo em volta da tela de tv. Renée estava boquiaberta, pensando na sorte que
tinha sido ela ter ido até ali, com que incrível facilidade ela poderia não ter ido.
“...Na Sunnyvale Farms você não vai encontrar pornografia em exposição atrás
do balcão. Não vai encontrar contraceptivos nas prateleiras, ao fácil alcance de
seus filhos. A Sunnyvale Farms é mais que uma loja de conveniência, é uma casa
longe de casa — a sua casa. E lembre-se: a cada dez dólares de compras que
você fizer na Sunnyvale Farms, nós faremos uma contribuição para a guerra
contra as drogas, para ajudar a transformar o mundo num lugar mais ensolarado
para seus filhos. Sunnyvale Farms: a loja de conveniência da família.”
“Então, de que revista você é?”, um homem jovem de sotaque sulista
perguntou a Renée, parando ao lado dela. Ele tinha um rosto liso e rechonchudo e
cabelo louro escorrido; tinha também uma postura decidida e um jeito meio
atrevido de olhar para você por trás dos óculos e de virar a cabeça num
determinado ângulo que a fizeram lembrar de Louis Holland. Era Philip Stites.
“De revista nenhuma”, ela respondeu.
“Jornal, canal de televisão, emissora de rádio?”
“Não.”
“Droga. Você estragou o meu recorde.”
“O meu nome é Renée Seitchek.”
Stites chegou o rosto mais perto do dela, obliquamente, como um
oftalmologista. “Claro! Claro. O que você está fazendo aqui?”
“Vendo... os vídeos mais repulsivos que eu já vi na vida.”
“É bem pesado, não é. Escuta, Renée, eu adoraria conversar com você. Será
que você pode voltar um pouco mais tarde? Ou você pode ficar aqui se quiser. Eu
vou estar ocupado até mais ou menos umas seis e meia.”
“Vamos ver por mais quanto tempo eu vou conseguir aguentar isso.”
“Combinado. Ei.” Ele a fez olhar para ele. Seu blazer azul-marinho estava um
pouco amarrotado e ele tinha afrouxado o nó de sua gravata amarela. “Eu estou
muito contente por você ter vindo aqui. De verdade.”
Ele atravessou a sala escura, serpenteando por entre seu rebanho, e saiu por
uma porta lateral. Alguns fiéis se levantaram e foram atrás dele. O resto
continuou assistindo ao vídeo, que ainda levou quase uma hora para terminar.
Quando as persianas finalmente foram abertas, a luz nas janelas estava dourada.
Três mulheres de avental branco entraram pela porta do fundo, seguidas
discretamente por um aroma de carne de porco e feijão. A professora de
educação física que tinha posto o vídeo pediu silêncio a todos e, com uma
prancheta na mão, começou a ler anúncios.
Ela estava feliz em receber de volta June, Ruby, Amanda, Susan Dee,
Stephanie, sr. Powers, sra. Moran, sr. DiConstanzo, Susan H., Allan, Irene e sra.
Flathead, todos liberados hoje da prisão municipal de Cambridge. Os vinte dias
que eles passaram atrás das grades haviam custado à cidade um valor estimado
de 11 mil dólares, sem contar os custos judiciais, que o município estava abrindo
processo para recuperar.
O Grupo de Doze se levantou e recebeu uma salva de palmas.
Outra boa notícia era que o serviço de atendimento familiar de Braintree tinha
suspendido a partir de hoje e por tempo indeterminado seus procedimentos
homicidas. “A todos aqueles que os ajudaram a tomar essa decisão consciente”,
disse a professora de educação física, “eu estendo a minha gratidão, a gratidão
de toda a nossa igreja e, acima de tudo, a gratidão de todas as incontáveis doces
criancinhas a quem vocês proporcionaram a dádiva da vida. Louvado seja o
Senhor, glória a Jesus.”
Outra salva de palmas.
Novos membros ali presentes pela primeira vez eram a sra. Jerome
Shumacher de Trumbull, Connecticut, a sra. Libby Fulton de Wallingford,
Pensilvânia, a srta. Anne Dinkins de Sparta, Carolina do Norte, e a srta. Lola
Corcoran de Lexington, Massachusetts. Depois de aplaudi-las, a congregação foi
instada a fazer as recém-chegadas se sentirem parte da família.
“Bebe Wittleder”, continuou a professora de ginástica, “me informou que nós
também temos conosco esta noite uma visitante da Universidade Harvard, a
doutora Renée Seitchek, uma geóloga que talvez vocês se lembrem de ter visto no
noticiário...”
A congregação se virou para olhar, boquiaberta, para Renée. Uma imagem de
sua figura franzina se formou em seiscentas retinas.
“Paz e boa vontade para a senhora, doutora Seitchek, em nome de Jesus Cristo.
Sinta-se à vontade para celebrar conosco e partilhar da nossa refeição. Nós
somos uma igreja aberta.”
Stites voltou a tempo de ouvir os últimos anúncios. Quando eles acabaram, ele
imediatamente iniciou uma oração, que finalizou convidando a todos a rezarem
juntos, em voz alta, o Pai Nosso. Sentada diante de um piano vertical, uma
mulher tocou e cantou três hinos religiosos, acompanhada por toda a
congregação. Stites também cantou, mas era impossível distinguir sua voz entre
as demais. Em seguida, sentou-se informalmente na beirada de uma mesa de
refeitório escolar, as pontas de suas meias de losango aparecendo, e olhou para
seu rebanho, deixando a expectativa crescer. Quando finalmente falou, sua voz
encheu a sala inteira.
“Vocês já ouviram: Deus é amor. Gente, Deus é amor. Deus é duas coisas:
amor e sabedoria.
“Gente, eu quero que vocês tentem imaginar Deus. Imaginem um ser que é
tão cheio de Amor que Ele é mais forte que os átomos ou que qualquer outra
coisa. Ele é puro e pleno amor. Pois bem, no início, Deus tinha tanto amor dentro
Dele que isso criou o universo, simplesmente através da força do amor. Ele criou
o universo para que existisse alguma coisa para Ele amar. E havia um Vazio? E o
Vazio, o livro do Gênesis nos diz, o Vazio se tornou o universo, mas o universo
ainda continuava sendo apenas uma massa de nada, só matéria. E Ele amou o
universo e era mais sábio que ele, e a razão por que o universo tomou forma...
“Agora prestem atenção. A razão por que o universo tomou a forma que
tomou foi a dor que existia no coração de Deus.”
Stites olhou para o lado com um estranho sorriso no rosto, como se Deus fosse
um sujeito que ele tinha conhecido lá na Carolina e que fazia umas coisas do
arco-da-velha.
“Vocês sabem”, ele continuou, “mesmo antes de criar o universo, Ele amava
e era sábio. E porque era sábio, Ele sabia que o que quer que Ele amasse iria
saber menos do que Ele sabia. Ele é supremo, e o fato de ser supremo faz com
que Ele sofra muito. Ele é um Deus que sofre e um Deus zangado. Ele sabe mais
do que qualquer pessoa e Ele ama todo mundo mais do que qualquer pessoa ama
o que quer que seja, e então quando nós pecamos ou quando temos ideias — até
mesmo quando os filósofos mais inteligentes do mundo têm ideias — Ele sabe
mais que todos. Ele sabe que nós temos que virar pó de novo e Ele nunca
esquece. E Ele está triste porque nos ama mesmo na nossa sórdida existência
terrena. Na verdade, Ele nos ama ainda mais.
“E então tudo isso que vocês veem aqui — as paredes, essa mesa, esse
videocassete, essa caneca de café” — ele levantou uma caneca de café para
todos verem —, “tudo tem forma por causa dessa dor. É por isso que eu posso
apertar essa caneca de café aqui e sentir que ela é dura. Ela é dura porque Deus
está triste. Se Deus estivesse feliz, não haveria resistência nenhuma no mundo, a
mão de vocês passaria através de tudo. Não existiria dor, nem sofrimento, nem
morte. Vocês entendem o que eu estou dizendo? Se estivesse tudo bem com
Deus, não existiria universo algum. Só existe um universo porque Ele sabe.
Porque Ele sofre porque sabe.
“Vocês já ouviram aquela frase que diz que é solitário estar no topo? Então,
com Deus é exatamente assim. E não é verdade que isso nos dá um certo
conforto? Saber que, por pior que você se sinta, você nunca vai poder se sentir tão
mal quanto Ele se sente, porque você não tem a real noção do quanto as coisas
estão ruins. Foi por isso que Ele deixou que crucificassem Seu único filho. Porque
Ele queria que nós soubéssemos o quanto dói. E, sabe, quando eu fico pensando
que o mundo talvez acabe um dia e começo a me sentir triste porque tem tanta
coisa no mundo que eu amo tanto, por mais triste que eu fique, eu não entro em
desespero, e vocês sabem por quê? Porque eu sei que esse sentimento de tristeza
é sagrado. E se houver um Armagedom, então haverá Deus para prantear a
todos nós quando tivermos partido, e todas as coisas que eu amo e que não
existem mais, Ele não esqueceu nenhuma delas, Ele as amou o tempo todo —
amou-as como eu e vocês nunca seremos capazes — e Ele não vai se esquecer
delas nunca, Ele vai se lembrar delas por toda a eternidade, e é isso que é o céu:
o céu é continuar a viver no amor de Deus para sempre.”
A expressão “para sempre” ficou pairando no ar como uma peteca de
badminton no topo de seu arco.
“Este é o sermão desta noite. Eu agradeço a todos vocês.”
Um hino final foi cantado, e então Stites atravessou a sala caminhando
novamente por entre a congregação, ajoelhando-se duas vezes para pegar as
mãos de mulheres na sua e trocar algumas palavras com elas. Foi parar diante de
Renée. “Está com fome?”
“Na verdade, não.”
“Bom, eu estou sinceramente faminto.”
Um apartamento no térreo, atrás do salão, tivera algumas de suas paredes
demolidas, ampliando a cozinha já existente. Três fogões velhos adicionais
tinham sido instalados e havia lugares à mesa para talvez cinquenta pessoas. Stites
recebeu um prato cheio de feijão, servido de uma enorme panela de refeitório.
De um bufê, ele pegou quatro fatias de pão branco e uma laranja, enquanto
explicava a Renée que, a menos que algum patrocinador rico o convidasse para
almoçar, ele só fazia duas refeições por dia, o café da manhã e o jantar ali.
Em seguida, subiu com ela uma escada mal iluminada e a conduziu por um
corredor cheio de pedaços de reboco no chão. Numa das paredes, enfileirados
um ao lado do outro, encontravam-se vários exemplares idênticos do que
pareciam ser aparelhos artesanais de exercício, feitos com tábuas e canos
galvanizados, num formato que lembrava pelourinhos. “O que é isso?”, Renée
perguntou.
“Isso? Isso são pelourinhos.”
“Ah, meu Deus.”
“Calma, eu vou te mostrar.” Stites pousou seu prato no chão. “O reboco está
solto por causa do terremoto. A gente toda hora varre, mas parece que basta
olhar pras paredes que já cai um monte de pedaços de novo.” Ele botou a cabeça
e os pulsos em entalhes abertos na tábua inferior de um dos pelourinhos. “Você
pode abaixar a tábua de cima com o pé. Assim, está vendo?” Enfiando o pé
dentro de uma argola, ele desenganchou uma corrente, o que fez com que a
tábua de cima descesse sobre sua nuca, prendendo-o ali. “Ou você pode pedir
pra alguém fazer isso pra você.”
Ele ficou ali curvado, mas relaxado, com sua calça cáqui e seus mocassins
marrons, de frente para a parede, uma carteira fazendo volume num dos bolsos
de trás de sua calça.
“E aí?”, Renée perguntou.
“Aí você fica aqui. Eu acho que todo mundo devia fazer isso de vez em
quando. Eu faço isso toda hora, provavelmente mais que todo mundo. Não que eu
me orgulhe disso. É que eu tenho uma necessidade especial de ficar aqui, sabe,
principalmente quando passo o dia inteiro em Weston, na casa de pessoas ricas.
Você fica aqui e olha pra parede. Você reza, ou então só relaxa. Isso deixa você
mais humilde. É muito bom. Fisicamente, machuca um pouco depois de algum
tempo. Mas isso é bom também.”
Com traquejo, ele pisou na argola de novo, ergueu a tábua de cima e se
libertou. Olhou para Renée, com um sorrisinho congelado. “Você quer
experimentar?”
“Não, obrigada.”
“Tem certeza? Você meio que parece que quer.”
“Não, não quero!”
“Você ia gostar se experimentasse.”
“Eu não quero.”
“Tudo bem, como quiser. As pessoas se sentem vulneráveis quando não
conseguem ver o que está acontecento atrás das costas delas e não conseguem se
mexer. Eu acredito muito que a vulnerabilidade seja algo que a gente deve
cultivar.”
Ele saiu andando pelo corredor com passadas largas e altas, como se estivesse
atravessando um charco. Seu escritório não tinha porta. Havia livros empilhados
sobre o tapete vermelho felpudo, que tinha manchas de tinta branca e estava
coberto de pedaços de reboco caído. Uma mensagem impressa pregada numa
das paredes dizia: Sucederá nos últimos dias, diz o Senhor, que derramarei do meu
Espírito sobre toda carne. A janela dava para um pátio do edifício, onde alguns
fiéis estavam fazendo piquenique e a professora de educação física organizava
uma partida de vôlei.
“O resto é banheiro e cozinha”, disse Stites. “Eu divido esse espaço com dois
dos homens. Peguei esse cômodo externo todo pra mim porque tenho essa
montanha de livros e papéis. Você pode ficar na mesa. Eu sento no chão.”
“Não, quem está comendo é você.”
“Bom, nós dois sentamos no chão, então. Eu peço desculpas pelo reboco. Está
assim em tudo quanto é lugar.”
Ele começou imediatamente a pôr garfadas de feijão na boca. Renée estava
acostumada a sentar com as pernas cruzadas à moda indiana, mas a saia curta a
obrigou a dobrar as pernas num duplo Z. “Foi sorte sua o prédio inteiro não ter
desmoronado em cima de vocês.”
Ele fez que sim, mastigando.
“Você realmente acredita que Deus possa salvar um prédio instável de um
terremoto?”
Ele partiu um pedaço de pão. “Não, e eu nunca disse que acreditava. Eu
comprei esse prédio porque estava barato. Nós estamos aqui pra ter um teto.”
“E você não se preocupa com o fato de que, se ele cair, você vai ser o
responsável por todas as pessoas que morrerem ou se ferirem?”
“Elas sabem dos riscos, tanto quanto eu.”
“Mas você é o líder, é você que dá o exemplo.”
“Tem razão.” Ele segurava o garfo como manda a boa educação, bem na
ponta do cabo. Parecia ter prática em falar de boca cheia. “Eu como, durmo e
trabalho nesse prédio pela graça de Deus. Tenho plena consciência de que, se
Deus quiser assim, a minha vida vai acabar. E é assim para todo ser vivente, só
que a maioria das pessoas prefere gastar seu tempo tentando ignorar isso. Mas se
você mora no que as autoridades chamam de uma armadilha letal, você está
permanentemente ciente de que a sua vida está nas mãos de Deus. E isso é uma
coisa positiva. Certamente me parece uma coisa mais positiva do que morar, sei
lá, em Weston, e se sentir imortal na sua mansão de um milhão de dólares. Aqui
eu valorizo cada dia. Eu costumava ficar desesperado porque nunca tinha tempo
pra fazer as coisas que eu queria. Eu achava que a vida ia ser curta demais. Pra
você ver como o meu amor por Deus era pequeno. Agora eu estou mais ocupado
ainda, mas, desde que vim pra esse prédio, de repente eu estou conseguindo
alcançar tudo o que eu quero alcançar, incluindo pessoas como você. Isso é o
mais perto da felicidade que eu acho que uma pessoa pode chegar. Eu posso
viver sem medo porque sinto claramente que estou à beira da morte, nas mãos
de Deus. Se você bota a sua vida em equilíbrio com a sua morte, você para de
entrar em pânico. A vida deixa de ser apenas o status quo que você espera que
não mude tão cedo.”
Ele se debruçou sobre seu prato para juntar os últimos grãos de feijão num
montinho. Depois, empurrou os óculos para cima com o dedo do meio e passou a
língua pelos dentes para limpá-los, olhando para Renée de cabeça baixa e com
uma curiosidade penetrante. “Você veio até aqui pra me dizer que o meu prédio
não é um lugar seguro.”
“Eu vim porque uma das suas mulheres foi lá me perturbar no meu trabalho.”
“A senhora Wittleder.”
“Eu disse uma coisa na televisão da qual você discorda e desde então a minha
vida virou um inferno.”
“Você está recebendo telefonemas. Cartas. Visitas.”
“Telefonemas, cartas e visitas muito ofensivos e muito invasivos.”
“Sim, eu entendo. São coisas da ala lunática, digamos assim. Pessoas que são
só raiva e nenhum amor. Eu não sei se você viu as notícias hoje, aquele atentado
a tiros em Alston? Algum imbecil resolveu passar de carro na frente de uma
clínica ontem e sair dando tiro em todas as janelas. Aquelas janelinhas
minúsculas, sabe? Vou te contar, é muita estupidez. A mesma coisa com aquelas
bombas em Lowell. Raiva eu entendo, mas violência não.”
“A única coisa que eu fiz naquela entrevista foi criticar você”, disse Renée.
“Quem mais além de você iria se importar com o que eu disse?”
“Como é que eu vou saber? Alguém viu a entrevista e não gostou de você. Eu
pessoalmente nem me importei com o que você disse, sabe. Você foi honesta,
você expressou o ponto de vista contrário muito bem. Você está completamente
errada, mas eu sei ver a diferença entre uma geofísica e uma aborteira. E,
sinceramente, tenho coisas mais úteis a fazer do que protestar na frente do seu
laboratório. E a Bebe Wittleder é uma boa pessoa, que eu não consigo acreditar
que tenha sido desagradável com você.”
“Ela não foi desagradável. Não propositalmente.”
“Bom, então. Mas de alguma forma ela ainda deixou você irritada o bastante a
ponto de você vir até aqui.”
“Não. Eu só fiquei irritada depois que vi os vídeos.”
Stites raspou seu prato com uma fatia de pão. “O que foi que irritou você nos
vídeos?”
“Mulheres que fazem abortos são vadias abjetas que não fazem outra coisa da
vida senão cheirar cocaína. Mulheres que têm bebês são doces e lindas esposas
que adoram seus filhos.”
“Entenda que o que você viu não é jornalismo. É propaganda.”
“Que pessoas de pouca instrução engolem como se fosse a verdade.”
“Ah.” O pão, dobrado em quatro, desapareceu dentro da boca de Stites. “Então
você quer que eu — eu, que acredito que a vida humana é um mistério e não um
processo químico, que acredito que aos olhos de Deus um indivíduo começa a
existir a partir do momento em que é concebido —, você quer que eu mostre à
congregação imagens de mães maltratando os filhos? E de mulheres santas
fazendo abortos? Uma espécie de retrato equilibrado, é isso? Eu acho que você
não entende a essência da propaganda.”
“Um filme nazista que mostra arianos deslumbrantes e judeus imundos é só
uma propaganda.”
“Bom, a diferença é que eu não estou defendendo um genocídio. Estou
defendendo o oposto, não?”
“A perseguição a mulheres grávidas.”
Ele fez que sim. “Perseguição, claro, na sua maneira de entender. Mas não
deportação e assassinato. Sabe, eu acho que o que incomoda você nesses vídeos é
que eles são eficientes. Eles afetaram você. Mas há várias propagandas mais
eficientes ainda na televisão para convencer você a comprar jeans ou a comprar
cerveja. Propagandas que usam o sexo, que é a arma mais poderosa e mais
desonesta de todas. Sabe, se tomar Budweiser Light, eu vou conquistar uma
daquelas gatas gostosas da praia para dar uns amassos. Isso sim é que é
desonesto, manipulador e nocivo. E se está tentando combater uma coisa
perniciosa dessas, você precisa se armar de imagens poderosas também. E a
verdade é que existe sim algo de muito bonito numa mãe com seu bebê e existe
sim algo de muito feio num aborto. Só o que eu quero é uma oportunidade
equivalente de atingir o mercado. E a questão é que não me dão essa
oportunidade. Não existe um único canal comercial de televisão na América que
aceite passar esses vídeos. Eu tenho um certo espaço no rádio, um pequeno
espaço, mas você não consegue fazer nada só com o rádio, não em comparação
com o que você consegue com o vídeo. É muito irônico que você ache que nós
somos os perseguidores. Nós somos a minoria perseguida.”
“Que está tentando impor suas opiniões à maioria.”
“Nenhuma rede de televisão na América aceita transmitir um único vídeo
nosso. Todo santo dia, todos os americanos assistem a meia hora de anúncios que
estimulam o sexo pelo sexo e outra meia hora de anúncios que estimulam o
consumo egoísta de bens materiais. Todos os jornais impressos e todos os
noticiários de alcance nacional têm uma clara tendência antirreligiosa e antivida.
Você vai negar isso? O mesmo vale para os programas do horário nobre. E isso
acontece todo santo dia, sete dias por semana, ano após ano: transe, transe,
compre, compre, aborte, aborte. E mesmo assim quarenta por cento dos
americanos são contra o aborto, salvo em casos de estupro ou incesto. Essa é a
nossa minoria. Nós estamos assistindo ao mais gigantesco esforço de propaganda
de toda a história da humanidade, e mesmo assim apenas pouco mais da metade
das pessoas está convencida.”
Um apito estridente soou no pátio. A professora de educação física gritou:
Vamos lá! Eu quero ver um bom vôlei cristão!
Renée riu. “Você é assustador.”
Stites ofereceu a ela metade da laranja. “Por quê?”
Ela aceitou a metade da laranja. “Porque você é inteligente e tem absoluta
certeza de que está certo. Você tem absoluta certeza de que tudo é muito
simples.”
“Você está invertendo as coisas. É o seu mundo que acha que tudo é muito
simples: pegue o que quiser, faça o que quiser e não haverá consequência
alguma. Porque, veja bem, existem dois tipos de certeza: a positiva e a negativa.
A Bíblia nos ensina que é errado ter certeza de uma forma positiva, por exemplo
ter certeza de que você está certo ou de que está salvo. Mas a Bíblia está cheia de
gente que tem o outro tipo de certeza: a minha certeza de que esta sociedade está
errada. Eu estou cheio dessa certeza negativa.”
“Ela está errada em relação a muita coisa, mas não em relação ao direito das
mulheres à privacidade”, disse Renée. “E eu não acho que a sociedade de fato
persiga vocês. Passar os seus anúncios é simplesmente um mau negócio para um
canal de televisão. Se a maioria das pessoas realmente não estivesse satisfeita
com a vida que leva, elas procurariam a religião. O fato de elas não fazerem isso
parece indicar que elas estão satisfeitas.”
“Você não é a primeira pessoa a provar que a revolução é logicamente
impossível: o fato de as pessoas ainda não terem se revoltado significa que elas
estão satisfeitas. Nossa, isso é muito convincente.”
“Eu acho que o que as pessoas querem é basicamente que você não se meta
na vida particular delas.”
“E eu não me meteria se não achasse que há vidas em jogo. Mas, do jeito
como as coisas estão, eu me sinto moralmente obrigado a me meter. Você acha
que a raiva da minha igreja é feia e que os meus métodos são radicais, mas
pense só em como os manifestantes hippies deviam parecer feios e radicais para
os conservadores em 1969, muito embora eles tivessem um bom argumento
moral, exatamente como eu tenho hoje. Além do mais, uma coisa seria se a
sociedade cultuasse abertamente o dinheiro e dissesse sim, nós estamos dispostos
a destruir vidas inocentes pelo bem do sexo fácil. O que me irrita é a hipocrisia.
A ideia de que você pode transformar a vida das pessoas numa busca infernal de
prazer e dizer que está fazendo um favor a elas. É difícil entender um mundo que
encara a crença religiosa como uma forma de psicose, mas acha que o desejo
de possuir um forno de micro-ondas melhor é o sentimento mais natural do
mundo. Pessoas que mandam dinheiro para um pregador da televisão porque
sentem um vazio em suas vidas estão sob o efeito de um feitiço maligno, mas
pessoas que acham que precisam ter um casaco de pele para se exibirem com
ele no supermercado são apenas pessoas normais, feito eu e você. É como se a
coisa mais sagrada que existe neste país fosse a Constituição dos Estados Unidos.
A raça humana nunca viveu sem sofrimentos em toda a sua história, mas de
repente o senhor Boston Globe e o senhor senador de Massachusetts são mais
inteligentes que todo mundo que já fez parte da história humana. Eles têm certeza
de que têm a resposta, e a resposta é o estatuto disso e o estatuto daquilo e os
estudos acadêmicos sobre o comportamento humano e a Constituição dos Estados
Unidos. Mas eu lhe digo, Renée, eu lhe digo, a única razão pela qual alguém pode
imaginar que a Constituição americana seja a maior invenção da história
humana é que Deus deu à América tantas riquezas fantásticas que, mesmo
tomado pela mais completa idiotia, o país conseguiria fazer sucesso no curto
prazo, se você não levar em conta trinta milhões de pobres, nem a sistemática
dilapidação de todas as riquezas que Deus nos deu, nem o fato de que para a
maioria dos povos oprimidos do mundo a palavra América é sinônimo de
ganância, armas e imoralidade.”
“E liberdade.”
“Uma palavra-código para riqueza e decadência. Pode acreditar em mim. O
que a maioria dos russos acha que é maravilhoso na América é o McDonald’s e
os videocassetes. Só políticos e âncoras de telejornal são burros ou desonestos o
bastante para agir como se não fosse assim. Primeiros-ministros vêm a
Washington e nós dizemos pra eles: bem-vindos à terra da liberdade. Os
primeiros-ministros dizem: nos deem mais dinheiro. Eu tenho certeza de que nós
somos alvo de chacota do mundo inteiro. Do que é que você está rindo?”
“É que você me faz lembrar um cara cínico que eu conheci.”
“Cínico? Você acha que é cinismo reconhecer que todos os seres humanos,
inclusive eu, querem gratificar seus sentidos sem ter que assumir a
responsabilidade por isso? Por que não me chamar de cristão em vez disso, ou de
honesto, ou de realista? Porque o que eu vejo do outro lado é puro
sentimentalismo e vontade de moldar a realidade aos próprios desejos. Essa ideia
de que os seres humanos são essencialmente bons e altruístas. De que você pode
curar a tristeza, a solidão, a gula, a luxúria, a falsidade, a raiva e o orgulho com
pleno emprego e bons psicólogos. Sabe qual é a minha fábula moderna favorita?”
“Qual?”
“A de Chappaquiddick. O perfeito liberal vê o que um ser humano realmente é
e sai correndo. Passa o resto da vida negando que o que ele viu tenha qualquer
significação e dizendo para todas as outras pessoas o que há de errado com elas.
O liberalismo é tão desonesto que nem sequer admite que tudo o que há de bom
nele, a suposta compaixão que está no centro dele — e que é irracional, diga-se
de passagem, exatamente como toda religião é — vem diretamente da tradição
de dois mil anos do cristianismo. Mas pelo menos o liberalismo tem essa
compaixão. Ele é inocente, como uma criança de seis anos de idade. Mas Deus
tem um fraco por inocentes e um lugar reservado no coração para todos os
inocentes do mundo. Então, o que eu mais odeio é o político conservador. O lado
conservador é só puro e cínico interesse econômico. Tudo bem, eu admito que
ele é bem realista em relação à ganância humana, então ele é razoavelmente
maduro, sabe; está mais ou menos no nível de um garoto de treze anos de idade
metido a esperto. Mas ele é mais culpado ainda que o liberalismo por substituir
Deus pela busca da riqueza. E eu acho isso imperdoável.”
“E é por isso que você mora nesse prédio caindo aos pedaços. Com um bando
de mulheres de classe média raivosas.”
“Exato.”
“Imagino que você seja uma pessoa bastante admirável.”
“Foi você que disse isso. Não eu. Porque é claro que esse é um risco que todo
mundo corre quando tenta fazer algo de bom. A ideia de que, se você sabe que
está fazendo o bem, então o que você faz não conta de verdade. Mas eu pergunto:
qual é a alternativa? Ser um babaca só para ter a certeza de que não vai cair no
pecado do orgulho?”
“Não é uma má alternativa. Você deveria tentar.”
“Você é meio cínica também, não? Por que foi que você veio aqui?”
No pátio em frente à janela aberta, um silêncio acompanhava as pancadas da
bola de vôlei. Pedaços de casca de laranja jaziam com a parte branca para cima
no prato vazio de Stites. Renée sorriu. “Por nada.”
“Ninguém vem aqui por nada.”
“Eu vim porque eu estava entediada.”
A luz da sala tinha ficado pessoal, tornando as expressões faciais mais
ambíguas e o contato olho no olho menos seguro. “Você é casada?”
“Não.”
“Tem namorado?”
“Não.”
“Nem filhos, imagino.”
Ela fez que não.
“Você quer ter filhos?”
Ela fez que não de novo.
“Por que não?”
“Porque eu não gosto do que acontece com as mulheres quando elas têm
filhos.”
“O que acontece com elas?”
“Elas simplesmente viram mulheres.”
“Você quer dizer que elas se tornam adultas.”
A bola de vôlei batia e batia. Tênis arranhavam o chão de terra batida e caíam
sobre ele. O padrão do tapete começou a se rearranjar enquanto Renée olhava
fixamente para ele. “Você quer dormir comigo?”, ela perguntou.
“Rá.” Stites sorriu, aparentemente achando mais graça do que qualquer outra
coisa. “Acho que não.”
“Porque você tem medo que eu conte pra alguém”, ela disse, com uma voz
cruel. “Ou você tem medo de ir pro inferno. Ou você tem medo que isso abale a
sua fé. Ou porque eu não sou atraente o bastante.”
“Se uma pessoa tenta encontrar razões para dizer não, ela está perdida. Ela
tem que simplesmente dizer não, um não que venha lá do fundo do coração.”
“Por quê?”
“Porque se você faz isso, você sente o seu amor por Deus crescer.”
“Mas e se você não ama Deus? E se você nem sequer acredita que exista um
Deus?”
“Então você tem que procurar Deus.”
“Por quê?”
“Porque, só de estar aqui sentado com você, eu acho que você ficaria feliz se
fizesse isso. Porque eu acho que você é uma pessoa de verdade, e eu sinto amor
por você, e a sua felicidade me deixaria feliz.”
“Você sente amor por mim.”
“Um amor cristão.”
“Só isso?”
“Eu não sou mais perfeito do que você.”
Ela deslizou para mais perto dele. “Você poderia me deixar feliz bem rápido.”
A única coisa que dava expressão ao rosto dele era um par de retângulos
tremulantes, reflexos da luz que entrava pelo vão da porta. Ele cruzou os braços.
“Me diga como você se sente depois que faz sexo.”
“Eu me sinto bem.” Ela se sentou mais ereta, orgulhosa. “Me sinto como se
soubesse alguma coisa a respeito de mim mesma. Como se eu tivesse um fundo
e soubesse como eu sou bem lá no fundo. Como se eu soubesse que o bem e o
mal não têm nada a ver com isso. Como se eu fosse um animal, no bom sentido.”
Os retângulos nos óculos de Stites pareceram assumir um ar pensativo e
melancólico. “Imagino que você seja uma pessoa de sorte”, disse ele.
“Eu não acho que eu seja diferente de nenhuma outra mulher. Quer dizer, de
nenhuma outra mulher que não tenha tido a cabeça fodida pela religião dos
homens.”
“Hum, palavras de briga.”
Ela chegou ainda mais perto dele. “Briga comigo.”
“Se você jogar limpo e chegar um pouco pra trás, eu brigo com você.”
Ela recuou. “Então?”
Ele entrelaçou as mãos sobre as canelas, logo acima das meias de losango.
“Bom, imagino que a questão seja por que Deus fez o sexo ser tão prazeroso.
Você obviamente considera isso irrelevante, mas o que acontece se você gerar
uma criança no decorrer dessa sua busca por se sentir bem?”
“Engraçado você perguntar isso.”
“O que você quer dizer com isso?”
“Que é engraçado você perguntar isso.”
“Bom, e qual é a resposta?”
“Você sabe qual é a minha resposta. Se eu estiver numa situação razoável
emocional e financeiramente, eu tenho a criança. Se não, eu faço um aborto.”
“Mas e quanto à potencialidade que você destrói fazendo um aborto?”
“Sei lá. E quanto às potencialidades que eu destruí quando terminei com o cara
que eu namorei na escola secundária? Nós já poderíamos ter tido uns oito filhos a
essa altura. Isso quer dizer que eu cometi oito assassinatos?”
“Está bem. Mas você já conheceu alguém que tenha sido concebido fora do
casamento?”
“Bom, eu, pra começar.”
“Você?”
“Sim, eu. Eu tenho certeza de que sou o exemplo perfeito. Tenho certeza de
que teria sido abortada, se isso tivesse sido mais conveniente pra minha mãe.”
“E como você se sente em relação a isso?”
“Completamente indiferente”, disse ela. Seus olhos pousaram na passagem
bíblica pregada na parede; ela achou o tipo da fonte feio. “A minha vida
começou aos cinco anos. Se alguma coisa tivesse acontecido antes disso, eu não
teria perdido nada. Não existia nenhum ‘eu’.”
“Você não pode se amar, se é tão indiferente. Não pode amar o mundo. Você
deve odiar o mundo. Você deve odiar a vida.”
“Eu me amo, eu me odeio. No fim das contas, o resultado é zero.”
Uma longa sequência de passes de vôlei estava em andamento no pátio, a
quietude e o suspense em torno dela aumentando à medida que ela se estendia.
Então, os jogadores soltaram um suspiro de lamentação. Stites falou em voz
baixa: “Você não sabe o quanto me entristece ouvir você dizer isso”.
“Dormir comigo pode ser bem divertido.”
“Você acha que tem o direito de jogar a sua vida fora.”
“A ideia já me passou pela cabeça.”
“Eu acho que você está muito infeliz. Acho que você deve ter ficado muito
magoada com alguma coisa.”
Renée levantou o rosto na direção do teto esburacado, apoiando o peso do
corpo nas mãos, a imagem de uma pessoa curtindo o sol na praia. Ela estava
sorrindo e continuou a sorrir, mas depois de um tempo sua respiração foi ficando
áspera, como uma bomba d’água que a princípio só puxa ar. “Eu...” Sua
respiração se tranformou num tremor. “Eu estou muito magoada com uma
pessoa. Estou profundamente magoada. Estou tão magoada que quero morrer.”
Stites se levantou e foi até o banheiro. Voltou trazendo um copo d’água, mas
Renée já não estava mais lá. Tinha ido para o corredor.
“Eu acho que vou embora”, ela disse.
“Eu quero te ajudar.”
“Você não pode me ajudar.”
Ele pousou o copo na tábua de um pelourinho e pôs as mãos nos braços nus de
Renée. “Você é você”, ele disse. “Você é só você. E você tem sido você desde o
instante em que foi concebida. Toda a sua história já estava lá quando você tinha
um minuto de idade. A dor que você está sentindo é sagrada. E está a um
centímetro de se transformar na mais verdadeira felicidade.”
O rosto dela estava a um centímetro do dele. Ela subiu na ponta dos pés e abriu
a boca, pousando a parte mais macia de seus lábios nos tocos duros de barba em
volta da boca de Stites. Quando ela deu por si, um copo inteiro de água tinha sido
despejado em sua cabeça.
“Porra!”, ela exclamou, saltando e cuspindo água no chão. Recuou para o
corredor, os punhos cerrados apoiados nos quadris. “Vai se foder!”
Stites se enfiou em seu escritório. Algumas pessoas estavam subindo pela
escada atrás de Renée, e logo alguns dos pelourinhos já estavam ocupados,
grandes traseiros femininos vestidos de moletom virados para cima, pneus de
banha aparecendo acima de alguns dos cós das calças. Rangidos metálicos
ecoavam pela sala conforme outros pelourinhos eram acionados.
Stites tinha se sentado atrás de sua mesa e começado a ler a Bíblia, à luz de
uma lâmpada nua que pendia do teto. A janela atrás do ombro dele estava escura
agora. Ele não levantou os olhos quando Renée apareceu no vão da porta, com
um lado do cabelo bagunçado, rímel dissolvido empoçando debaixo de um dos
olhos.
“Eu odeio você”, disse ela. “Odeio a sua igreja, odeio a sua religião. E você
próprio é cheio de ódio. É exatamente como você disse. É tudo negativo. Você
odeia as mulheres, odeia sexo e odeia o mundo tal como ele é.”
Havia lâmpadas nuas nos olhos de Stites. “Eu sinto amor por você, Renée.
Você não é uma pessoa fria. Você é cheia de emoções e de carências, e você
veio até aqui, e só de passar uma hora com você, eu sinto um amor por você. É
um amor cristão, mas a Luz é filtrada pelo fato de que eu sou um homem, então
eu adoraria ter você nos meus braços. Eu gostaria de dormir com você. Está
bem? Eu estou dizendo isso porque você parece achar que é fácil pra mim. Eu
quero que você saiba: eu sou um homem. Eu não sou feito de pedra. E eu acho
bom você tratar de me respeitar.”
“Eu te respeitaria se você fosse em frente e transasse comigo.”
Ele fechou a Bíblia e se recostou em sua cadeira. “Sabe, todo dia eu leio algum
texto que fala sobre como a vida das mulheres é dura na sociedade de hoje.
Sobre como elas têm que fazer uma porção de escolhas difíceis, sobre todas as
responsabilidades que elas têm que assumir com relação a suas famílias. Elas
têm que ser mães e têm que trabalhar como homens também, se é para a
sociedade liberal funcionar.”
“Não são só as mulheres”, disse Renée. “Os homens também têm que
mudar.”
“Ah, sim, supostamente é assim que funciona. Só que a gente não ouve falar
tanto sobre homens que se queixam e homens que se sentem num beco sem
saída, ouve? Os homens ainda têm a possibilidade de escolha, certo? Eles podem
se realizar profissionalmente e, se quiserem, podem se realizar também como
pais. É como se a vida estivesse melhorando para os homens, eles estão tendo
opções num sentido positivo, enquanto as mulheres estão tendo todas essas opções
extras num sentido negativo. Você não acha que isso é o grande paradoxo da
nossa era? Que quanto mais as coisas melhoram para as mulheres no sentido
político-liberal, piores as coisas ficam para elas na realidade?”
“O fato de eu mais ou menos concordar com você só me deixa com mais
raiva ainda, porque eu sei o que você vai dizer.”
“O quê? Que a única coisa da qual as pessoas nunca parecem desconfiar é que
é a política em si que está errada? Porque é claro que essa sociedade não entende
coisas como ‘júbilo’. O júbilo que uma mãe sente. Essa sociedade só entende
coisas como ‘empregos’, ‘estatutos’ e, principalmente, ‘dinheiro’.”
“E que as mulheres são cidadãs de primeira classe. Esse júbilo não vale muita
coisa se é algo que é imposto a você. E que é melhor ter escolhas dolorosas do
que não ter escolha nenhuma.”
“Eu só ia dizer que eu não nego que existam mulheres como você. O nosso
Senhor nos diz que algumas pessoas nascem eunucos e outras se tornam eunucos
ao longo do caminho.”
“Arrã, vai se foder você também.”
“Mas o fato é que a maioria das mulheres quer ter filhos. Só que a sociedade
precisa delas pra outras coisas, sabe, pra ganhar mais dinheiro e pra ter mais
lucro, então a sociedade tem que fisgar as mulheres pela vaidade, pelo orgulho e
pela ganância delas. Coisas que, aliás, as mulheres têm tanto quanto os homens.”
“É, eu reparei.”
“Mas se uma mulher tem liberdade para seguir os seus melhores instintos, ela
não precisa de um emprego importante para se sentir bem consigo mesma.”
“O legítimo lugar dela é o lar.”
“Exato. A igreja entende isso a respeito das mulheres. Ela entende o júbilo da
maternidade.”
“Bom, então me diga uma coisa sobre esse seu Deus.” Renée deu um passo na
direção de Stites. “Só uma coisinha. Se as mulheres supostamente não têm que
ter o mesmo tipo de vida que os homens têm, então por que o seu Deus nos deu o
mesmo tipo de consciência?”
Stites pulou para a frente feito uma boca de armadilha se fechando. “Ele não
deu! Ele deu a todas as pessoas o mandamento: Crescei e multiplicai-vos! E foi
você mesma quem disse que essa ‘consciência’ não sobrevive ao nascimento do
primeiro filho de uma mulher. Que ela vira ‘só uma mulher’ depois, não foi o que
você disse? Você entende o que eu estou dizendo? A mulher que se sente infeliz
porque tem uma consciência de homem é a mulher que desobedeceu o
mandamento do Senhor. O Senhor promete que vai nos salvar se nós
obedecermos a palavra Dele. E esse tipo de problema de consciência de que
você está falando desaparece numa mulher que tem um bebê, exatamente como
está dito nas Escrituras. Ela se torna uma mãe instintiva, exatamente como você
disse e exatamente como a igreja sabe que ela vai se tornar. É um fato!”
Ela balançou a cabeça, impaciente. “Mas, ainda assim, permanece o fato de
que as mulheres recebem uma consciência só para que ela lhes seja tomada
depois. Elas têm uma amostra do que elas poderiam ter — se fossem homens —
e depois isso lhes é negado. E você pode até dizer que a maior parte das mulheres
não é como eu, mas mesmo que fosse só eu que pensasse assim, o que não
acredito de forma alguma, o fato é que eu estou diante de uma escolha
horrorosa, e a única forma como você pode justificar isso é dizer que nós
estamos pagando pelo pecado de Eva ou alguma outra baboseira do tipo. E eu
estou dizendo a você que tem um furo na sua religião, um furo por onde poderia
passar um caminhão: o fato de que a vida é basicamente uma merda para as
mulheres e sempre foi.”
“E sempre vai ser, Renée. Como é basicamente uma merda para todas as
pessoas na face na Terra. Então a verdadeira escolha que você tem é ou sofrer
para nada, sofrer e ser uma pessoa amarga e fazer mal para as pessoas ao seu
redor, ou encontrar um caminho para Deus através do seu sofrimento. E eu acho
que a Bíblia talvez concorde comigo quando eu digo que há muito mais mulheres
no céu do que homens. Só pelo sofrimento que elas suportaram e pelo orgulho
que elas engoliram. Porque os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os
últimos.”
“Se existir um céu.”
“Ele existe e está ao seu alcance. Ele está bem na sua cara. É pra isso que
você está aqui. Você sabia que o seu nome significa ‘renascida’?”
“Ah, meu Deus”, disse Renée, completamente enojada.
Stites se levantou e deu a volta em sua mesa. “Você me promete pelo menos
que vai voltar aqui outro dia? Eu não vou perguntar se posso rezar por você,
porque você não pode me impedir. Mas eu posso telefonar pra você?”
Ela sacudiu a cabeça bem devagar. Estava com os olhos fixos em Stites,
gravando a imagem dele na memória para poder sempre encontrá-la ali quando
quisesse: os olhos cansados atrás dos óculos redondos de casco de tartaruga, a
gravata amarela que agora tinha uma mancha de caldo de feijão, os quadris
masculinos, o princípio de barba em suas bochechas.
“Você já me ajudou o bastante”, ela disse. “Você me ajudou à beça.”
11.

O guaxinim acordou faminto e nada revigorado. Havia apenas um leve reflexo


de luz na água parada abaixo da mureta onde ele tinha dormido. Ratos
peregrinavam ao longo das paredes e pelo meio da sujeira nos bancos de terra
estreitos e pedregosos, migrando, como faziam todo fim de tarde, da prefeitura
para as enormes lixeiras de metal da Union Square. O guaxinim se levantou,
bocejou e se espreguiçou, o queixo perto do chão, como um muçulmano
rezando.
Às vezes, quando descia de sua mureta, ele corria de um lado para o outro pela
água, confuso, assustando os ratos e sendo assustado por eles; às vezes, corria um
quarteirão ou mais e depois parava, bigodes tremelicando, olhava para a
escuridão negra e gotejante a sua frente e então, como se a escuridão fosse uma
barreira de concreto, dava meia-volta.
Hoje, porém, ele seguiu direto colina abaixo. A luz da rua entrava pelos
pequenos buracos e pelas aberturas maiores acima dele. Pata ante pata, ele
começou a subir os degraus da escada de ferro por onde quase sempre subia. No
meio da escada, virou de repente e desceu, de cabeça para baixo, depois virou de
novo e subiu até o último degrau, espiando lá para fora por uma abertura. Por
entre para-choques de carros, avistou a agência dos Correios. Nunca saía por
aquela abertura. Toda noite, ele se lembrava de já ter estado ali inúmeras vezes,
mas a lembrança era mais fraca que o hábito, e então ele invariavelmente mais
uma vez subia e descia a escada de ferro. Esses e todos os outros movimentos
que ele repetia todas as noites eram como uma mágoa.
Os ratos eram como uma mágoa. Eles eram tantos e ele só um. Nos ratos, o
mundo cinzento e hostil se ramificava, cerrava fileiras e rodava em volta dele.
Tamanho e inteligência superiores não contavam para nada quando ele se
defrontava com ratos; ele ficava desajeitado e vulnerável. Embora eles lhe
dessem amplo espaço de manobra nos túneis, o fato de serem tão numerosos os
tornava destemidos. Se eles o surpreendiam, ele levantava os ombros enfurecido,
feito um gato, bufando impotentemente enquanto os pequenos demônios corriam,
bruxuleando, escuridão adentro. Eles nadavam assustadoramente bem.
O guaxinim também era maior que esquilos, coelhos e gambás, além de mais
esperto e bem-proporcionado, mas, de novo, eles eram muitos e ele só um. O
mundo de um esquilo podia não passar de árvores e nozes, um vaivém neurótico,
mas havia uma sensação de estar em casa — uma confiança e uma
despreocupação — que advinha do fato de se pertencer a uma grande população
que fazia exatamente as mesmas coisas inconsequentes. Solitário e onívoro, o
guaxinim não tinha nenhuma razão melhor para trepar numa árvore do que o
prazer que lhe dava seguir um instinto. Os galhos altos em que ele gostava de
subir vergavam loucamente com o peso dele. Quando caía de uma árvore, um
esquilo girava no ar na velocidade da luz, batia de raspão em um ou outro galho e
já caía no chão correndo; mas um guaxinim, quando caía, despencava lá de
cima com estardalhaço, tentando inutilmente se agarrar a alguma coisa, fazendo
ruídos de angústia e se estatelando no chão sem dignidade nenhuma. Em casa em
muitos ambientes, ele não estava realmente em casa em nenhum.
Chegando ao fim do túnel, ele subiu à superfície por um bueiro sem grade no
terreno próximo ao trilho do trem suburbano. Carros sobre pontes atravessavam o
silêncio que se empoçava naquela parte baixa e cheia de entulho de Somerville.
Dezenas de cheiros de comida se misturavam na brisa que vinha do mar, mas
poucos tinham a pungência de uma possível refeição imediata. Os sinais da
ferrovia estavam verdes e vermelhos em ambas as direções.
Debaixo de uma ponte que recebia um intenso tráfego de pedestres durante o
dia, ele comeu um pedaço de donut dormido com geleia e os farelos de outros
donuts que estavam numa caixa rosa e laranja. Comeu um miolo de maçã e
alguns marshmallows, uma novidade para ele. Comeu também uma mariposa.
Subindo Prospect Hill, havia boas iguarias, boas macieiras e muito lixo
orgânico, mas havia também cachorros. Às vezes, no momento mais inoportuno,
uma porta dos fundos se abria de repente e lá vinha uma bola de canhão peluda e
cheia de dentes, e o guaxinim, que provavelmente estava comendo os restos
secos do jantar Purina do cachorro, tinha de escalar às pressas a superfície
vertical mais próxima. Ele já tinha passado noites inteiras andando de um lado
para o outro, nervoso, na trave de um balanço ou no teto de um trailer, enquanto,
lá embaixo, um cachorro atrapalhava o sono da vizinhança. Vários bichos de
estimação já haviam mordido seu rabo e suas patas traseiras. Um gato tinha
aberto um rasgo numa de suas bochechas (mas tinha pagado por isso com um
olho). Uma noite, trepado num solitário pinheiro de três metros de altura, ele se
viu cercado por um par de schnauzers; refletores de jardim se acenderam e um
homem gordo emergiu de dentro da casa com crianças atrás, os schnauzers em
frenesi o tempo inteiro; em seguida, a luz vermelha de uma filmadora se
acendeu e, enquanto o homem gordo trabalhava no zoom, uma das crianças
levantou um schnauzer o mais alto que seus braços esticados permitiam, de modo
que os germânicos olhos pretos tomados de furor justiceiro, a língua cor de rosa e
os dentes pontiagudos do cachorro ficaram a meio metro de distância do
aterrorizado e humilhado guaxinim, sendo esse confronto, ainda por cima,
inteiramente registrado em videoteipe.
Por acaso uma coisa dessas aconteceria com um esquilo? Com um rato? Com
um gambá, um cangambá ou um coelho?
O guaxinim tinha tido duas irmãs. Uma havia sido morta por gatos durante um
arranca-rabo em que sua mãe também fora desfigurada. Mais tarde, a outra
irmã parou de comer e morreu. Ele e sua mãe se viam cada vez menos. Uma
vez, ele passou por ela num túnel e alguma coisa o fez pular em cima dela, mas
ela o repeliu. Ratos corriam pela lâmina de água no meio deles enquanto os dois
se encaravam, ofegantes e em posição de bote, em lados opostos do túnel.
Depois, ela saiu correndo colina acima e virou para trás, com cara de zangada.
Ele só foi vê-la de novo no inverno. As ruas estavam brancas de sal e de luar
quando ele a encontrou rígida, encostada ao meio-fio, os olhos enevoados de
cristais de gelo. Estava tão frio que ele teve de enterrar o nariz no pelo dela para
conseguir sentir algum cheiro.
Da Union Square, na direção dos edifícios altos, o terreno que ladeava a
ferrovia ia ficando cada vez mais estreito e pedregoso e menos rico em coisas
comestíveis, até que por fim chegava-se a vastos túneis em que o vento tinha
cheiro de óleo diesel e o chão tremia.
A oeste havia mais vida selvagem. Em seu segundo verão, o guaxinim tinha
viajado naquela direção por vários quilômetros, atraído pelo cheiro de fêmeas.
Topou com alguns machos e eles cheiraram uns aos outros e escalaram um
telhado juntos, mas basicamente cada um seguia imerso em seu estranho
comportamento solitário, o dele próprio tão estranho quanto qualquer outro.
Sofreu repetidos traumas envolvendo automóveis, que na região oeste de
Cambridge teimavam em nunca parar de passar. Enquanto isso, o cheiro de
fêmeas ia ficando cada vez mais fraco. Antes de o verão chegar ao fim, ele já
estava de volta à Union Square.
As estações mudavam e voltavam outra vez; ele nunca fez a coisa que os
animais mais gostam de fazer. Seu pelo escureceu. Algo em seu estômago lhe
causava uma dor constante. Moscas o atormentavam em ciclos. Só mais uma ou
duas vezes ele viu outro animal como ele; e, sem nunca brigar, nem cruzar, nem
interagir com sua própria espécie de forma nenhuma, ele quase deixou de ter
uma natureza. Tornou-se um indivíduo vivendo num mundo que consistia
unicamente em suas compulsões e aflições, que eram como mágoas, e no
prazeroso exercício de suas habilidades. O único rosto de verdade que ele via era
o seu próprio, quando olhava para água escura — não quando lavava algum
alimento, porque nessas horas, embora ficasse olhando para o alimento em suas
patas agitadas e para os arbustos e as peças de carro a sua volta, sua compulsão o
deixava cego —, mas quando a chuva tinha enchido uma vala ao longo da
ferrovia e, ao parar para atravessá-la, ele via uma cabeça peluda e mascarada
descer do céu urbano com uma lentidão atenta e cautelosa para encostar o nariz
no dele, como um sonho da namorada que ele nunca teve, e então o tempo se
dobrava em si mesmo, os padrões repetitivos de sua existência se alinhando
como múltiplos reflexos de um mesmo objeto acabam se juntando, de modo que
em vez de uma sucessão de dias havia apenas um dia que era toda a sua vida, na
verdade, um único momento: aquele.
Os sinais estavam vermelhos e verdes em ambas as direções. O ar tinha
começado a latejar. Raios brancos de luz vindos da direita e da esquerda fizeram
seus olhos reluzir, amarelos. Ele atravessou correndo dois pares de trilhos,
segurando na boca um pedaço de pão de hambúrguer inchado de ketchup como
um absorvente interno e subiu às pressas até a metade de um banco de terra
manchado de óleo. Uma locomotiva apitou, oscilando um pouco à medida que
avançava. O guaxinim atravessou os trilhos de novo, transformado numa bolinha
rígida com um rabo silvante, subiu no banco de terra e, de repente, tomado de
terror enquanto as duas imensas e ribombantes locomotivas duplicavam sua
aparente velocidade ao passarem uma pela outra, ele se cobriu da melhor forma
que pôde com folhas de ambrósia e se fechou deixando o mundo lá fora.

Renée via os trens passarem da ponte da Dane Street, os carros de passageiros


correndo abaixo dela como esteiras de aeroporto deslizando em direções opostas.
No telhado de um prédio sem janelas, letras de plástico rosa de um metro de
altura diziam refo ma de motores de pr cisão. Era meia-noite. Ela atravessou
rapidamente a Somerville Avenue e passou pelo antigo conjunto de casas
idênticas do norte de Little Lisbon. Num envelope de papel manilha, ela levava as
fotos da família Caddulo e uma cópia de seu trabalho, que ela havia imprimido
no caminho de volta de Chelsea. Passou por um vaso sanitário azul-claro, com
reservatório e tudo, mas meio sujo, abandonado na calçada.
Quando ela entrou em casa, um dobermann a recebeu soltando ganidos
suplicantes atrás da porta do apartamento do térreo. No andar de cima, o bebê
estava chorando e seus pais berravam um com o outro, como faziam com tanta
frequência antes de o bebê nascer. Eles eram Ph.Ds e discutiam, por exemplo,
sobre o valor-trabalho comparativo de manter a geladeira abastecida e de
manter o carro funcionando. Renée tinha ouvido o marido gritar: “Você quer
trocar? Você quer trocar? Você quer cuidar do carro que eu cuido das
compras?”. Eles tinham trinta e poucos anos.
Em cima da mesa da cozinha de Renée, havia um pacote de pão integral
aberto. Na pia, uma frigideira suja de ovo e pilhas de pratos e copos. Garrafas de
vinho e cascas de frutas na bancada. Roupas no chão do corredor, roupas
espalhadas pelos dois cômodos principais, um círculo marrom e respingos de
vômito dentro da privada, toalhas no chão perto da pia. Sapatos, jornais e poeira
por toda parte. Fios de espaguete murchos em volta das bocas do fogão.
Ela pegou a fita cassete identificada como para dançar com as duas mãos e
dobrou-a com força, até que o plástico se partiu ao meio com um choque cujo
pulso de vibrações de alta frequência fez a pele de seus dedos arder. Depois, fez
a mesma coisa com a outra fita, a que só tinha uma música gravada. De repente,
havia um novo silêncio no apartamento, como se até aquele momento houvesse
música tocando fazia tanto tempo que ela já nem percebia mais e só tivesse
escutado a música de verdade depois que ela parou.
Tirou a roupa e se deitou de bruços no chão da cozinha, que estava pegajoso e
quente. Pedaços do plástico das fitas pinicavam seus cotovelos e suas costelas.
Ficou ali um bom tempo, chorando.
Novamente de jeans, ela varreu o apartamento inteiro, lavou, secou e guardou
toda a louça. Tudo o que tinha comprado na semana anterior, inclusive a jaqueta
de couro, ela enfiou em sacos de lixo, que depois carregou lá para baixo e deixou
na calçada. Embora volta e meia parasse para chorar, depois de algum tempo
ela conseguiu deixar o apartamento tão limpo e nu quanto ele estava na noite em
que ela dormiu pela primeira vez com Louis Holland.
Abriu o envelope de papel manilha e correu os olhos pelo seu trabalho,
perguntando-se por que o havia escrito. Só para ganhar dinheiro? Sentou em sua
cama obsessivamente bem-feita e leu o “acordo, firmado em 12 de junho” entre
Melanie Rose Holland, de Evanston, Illinois, e Renée Seitchek, de Somerville,
Massachusetts. O acordo tinha sido impresso em papel Bond especial para
impressora a laser. Ela o rasgou em tiras finas. Rasgou as tiras em quadrados,
que ficou segurando nas mãos em concha durante um minuto inteiro, como se
tivesse vomitado nas mãos e não estivesse conseguindo pensar num receptáculo
adequado. A privada foi onde, por fim, acabou jogando tudo.
Examinou seu trabalho de novo, tentando avaliar o que ele representava para
ela agora. Seus olhos acompanhavam as palavras, mas só o que a leitora em sua
cabeça dizia era Você está viajando nessa sua história romântica. Você está
viajando nessa sua história romântica. Depois de algum tempo, deu-se conta de
que tinha posto o trabalho de volta no envelope e estava segurando-o junto ao
peito. Ela o abraçou, se balançando, lamentando. Teve um calafrio; não sabia o
que fazer. Levantou-se e foi até a escrivaninha, ainda com o envelope fino nos
braços. Enfiou nele todas as fotocópias de textos relacionados ao assunto e
começou a envolver o pacote, agora volumoso, com uma fita adesiva plástica,
larga e marrom. Deu voltas e voltas com a fita adesiva, até o pacote ficar
inteiramente coberto, sem nenhum pedaço de envelope à vista. Então, enterrou o
pacote na última gaveta da escrivaninha. Olhou para a gaveta fechada e abraçou
o próprio corpo, lamentando.
Mais tarde, já no meio da manhã, tomou um banho e foi de carro para a
Kendall Square. Seu médico de Harvard tinha lhe indicado uma clínica chamada
New Cambridge Health Associates, que ocupava parte do prédio de uma antiga
fábrica convertido recentemente em edifício de escritórios, muitos deles de
empresas high-tech nascidas do mit. Ela já havia passado inúmeras vezes em
frente àquela clínica, a caminho de palestras no mit, mas nunca tinha reparado
que tipo de clínica era.
Um restaurante de massas japonesas, muito procurado na hora do almoço,
cobria a rua com seu hálito de caldo de carne e cebolinha. No estacionamento
imediatamente em frente à clínica, atrás da faixa amarela que a polícia
estendera entre duas placas de trânsito, cinco mulheres da Igreja da Ação em
Cristo seguravam cartazes com as fotografias de sempre, sob o sol forte do meio-
dia. Bebe Wittleder olhou para Renée. Renée olhou para ela. Bebe ficou
observando, de olhos arregalados e muda, Renée abrir a porta de metal da
clínica.
Uma terapeuta bonita, de cinquenta e poucos anos, com cabelo louro grisalho
preso numa trança, pegou o envelope que o médico de Renée havia lhe dado.
“Renée Seitchek”, disse ela. “Eu sei quem você é.”
“É. As pessoas lá fora também.”
“Puxa, que coincidência desagradável para você.”
“Não, acho que não é não.”
A terapeuta se recostou contra um diagrama da reprodução humana, trompas
de Falópio e ovários emoldurando seu rosto compassivo ao extremo. “Você quer
que eu pergunte o que você quer dizer com isso?”
“Bom, eu fico pensando...” Renée franziu a testa. Sua pele estava rija por
causa da falta de sono. “Eu fico pensando se esses últimos meses pareceram
estranhos para vocês.”
“Quais meses?”
“Os últimos dois ou três. Com os terremotos e as coisas que o Stites tem feito.
Para mim, eles foram muito estranhos e muito parecidos entre si. Mas me
ocorreu que nem todo mundo sente a mesma coisa que eu.”
A terapeuta claramente não sentia a mesma coisa que Renée. “Foram meses...
muito curiosos”, ela disse com um sorriso neutro.
“Bom, enfim. Eu fiquei com raiva. E com raiva, a gente acaba ficando
displicente. Porque, sabe, os homens podem ser displicentes que nada acontece
com eles. E aí eu acho que dei azar. Quer dizer, dentro do contexto da minha
displicência. Dentro do contexto de que eu acho que não é uma questão de sorte
ou azar coisa nenhuma.”
“Você está falando de contracepção.”
“Estou. Do meu diafragma.”
Ela ficou observando a terapeuta preencher um espaço no formulário dela
com a palavra “diafragma”. De alguma forma, conseguiu se manter educada e
humilde enquanto a terapeuta explicava o uso correto do diafragma e o que ela
tinha feito de errado. Ela sabia muito bem o que tinha feito de errado.
“Antes de qualquer outra coisa”, disse a terapeuta, “eu quero que você saiba
que nós podemos facilmente encaminhá-la a uma instituição onde não haja
manifestantes. Nós entendemos perfeitamente a ameaça à sua privacidade que
ficar conosco pode representar para você.”
“Se a minha presença aqui vai piorar a situação de vocês, eu vou para onde
vocês quiserem.”
“Não, de forma alguma. Não por nossa causa. Mas não seria melhor para
você?”
“Não tem importância.”
“Então eu vou precisar que você preencha isso aqui.” A terapeuta entregou a
ela um termo de consentimento informado. “E nós pedimos que o pagamento
seja feito antes do procedimento. Imagino que você saiba que nós não aceitamos
cheque.”
Renée tirou três notas de cem do bolso. Uma auxiliar de enfermagem tirou
sangue de seu braço. A terapeuta a conduziu a um corredor no subsolo para que
ela pudesse sair da clínica por outra porta.

Na quarta-feira, ela passou o dia inteiro pensando e escrevendo sobre a


sismicidade profunda de Tonga. Quando voltou para casa à noitinha, encontrou
uma carta de Louis Holland em sua caixa de correio. O carimbo postal no
envelope era de Boston, mas não havia nenhum endereço abaixo do nome do
remetente. Ela não abriu a carta, mas também não a jogou fora.
O jogo de beisebol que ela ficou ouvindo pelo rádio depois do jantar teve
innings extras e terminou mais de meia-noite. Os Red Sox perderam.

“Howard”, ela disse. “Eu posso falar com você um instante?”


Estava uma sauna lá fora. Mesmo na sombra dos grandes carvalhos do
gramado do Peabody Museum, o calor estava mantendo no chão a maioria dos
insetos alados. Os esquilos estavam muito desanimados. Howard enfiou as mãos
nos bolsos de sua calça larga e subiu na ponta dos pés algumas vezes. “Que é?”
“Eu vou fazer um aborto hoje. Queria que você me pegasse depois.”
“Tá bom.”
Ela lhe disse onde ele deveria apanhá-la. Ele fez que sim, mal parecendo
ouvir. Ela lhe disse de novo onde ele deveria estar. Disse que era muito
importante que ele estivesse lá.
“Tá.”
“Então eu me encontro com você lá em algum momento entre quatro e meia
e cinco e meia.”
“Tá.”
“Você não se incomoda de fazer isso?”
Ele franziu os lábios e fez que não com a cabeça.
“E você vai estar lá com certeza?”
“Arrã.”
“Às quatro e meia.”
“Arrã.”
“Combinado, então.” As ondas de choque provocadas por um helicóptero que
sobrevoava a área fizeram os pulmões de Renée vibrar. “Obrigada.”
Em sua sala, ela ligou o rádio e ficou ouvindo. Sintonizando brevemente a
wsne, ouviu um anúncio das lojas de conveniência Sunny vale Farms, seguido de
passagens do Evangelho Segundo São João. Tirou a carta de Louis Holland de
dentro de sua bolsa, examinou-a contra a luz e a botou de volta na bolsa. Em
frente a sua janela, turistas decepcionados balançavam a cabeça estoicamente.
Ela só se permitiu sair do laboratório Hoffman à uma e meia.
Quando estava saindo da estação do metrô da Kendall Square, ela ouviu as
inconfundíveis vozes abafadas e nasaladas de policiais falando em seus rádios.
Luzes de alerta azuis lutavam contra a brancura da tarde.
Tinham lhe dado uma chave da porta dos fundos da clínica, mas ela nunca
havia tido a menor intenção de usá-la e continuava a não ter agora. Passou por
um grupo de quatro policiais de Cambridge na calçada e viu o que eles estavam
esperando. Cinquenta membros da igreja de Stites estavam plantados em frente à
clínica, espremidos no espaço de estacionamento que lhes fora designado como
vacas num vagão de gado. Os policiais estavam esperando que eles tentassem
ultrapassar a faixa amarela.
Do outro lado da rua, na sombra de outros vintes membros da igreja brandindo
seus cartazes, dois fotógrafos de jornal tiravam fotos, e uma repórter com pinta
de atrevida ajustava seu gravador.
parem com a chacina. aborto é assassinato. obrigada mãe eu ♥ a vida.
O próprio Stites estava encostado à faixa amarela, com um megafone na mão.
Devia ter visto Renée antes que ela o visse, pois, assim que ela deixou os policiais
para trás, ele levantou a faixa. Doze mulheres se abaixaram e passaram por
baixo da faixa. Em duas fileiras de seis, elas se sentaram de braços dados na
frente da porta da clínica.
“Nós estamos aqui para salvar os não nascidos”, disse o megafone. “Estamos
aqui para salvar vidas inocentes.”
O trânsito estava ficando congestionado na rua. Stites olhava diretamente para
Renée. “Todo mundo aqui um dia já foi um mero óvulo fertilizado”, ele disse no
megafone. “Todos nós estamos aqui pela graça do nosso Senhor e graças ao amor
dos nossos pais à vida.”
Pares de policiais tinham começado a pegar vovozinhas e aeromoças de corpo
mole pelas axilas e a arrastá-las em direção às vans da polícia paradas ali perto.
A professora de ginástica enterrava os calcanhares nas reentrâncias da calçada
com perícia.
“Renée”, Stites chamou, com o megafone abaixado.
Ela olhou para o céu. Nunca tinha visto um céu tão branco e vazio.
“Pare e pense um segundo”, ele disse. “Você já foi só um minúsculo
grãozinho de células um dia. Tudo que você é, tudo que você já sentiu na vida,
veio desse grãozinho. E você não é ninguém a não ser você mesma, você não é
um acidente, não é uma coisa aleatória. Você é você. E esse grãozinho dentro de
você não é ninguém a não ser ele mesmo, ou ela mesma, e ela está só esperando
para vir ao mundo e ter a vida que Deus quer que ela tenha.”
Renée olhou para o chão. Nunca teria imaginado que sua cabeça pudesse um
dia se fechar tanto.
“Nós amamos você”, disse Stites. “Nós amamos a pessoa que você é e a
pessoa que você pode vir a ser. Só o que eu peço é que você pense no que está
fazendo.”
Ele se debruçou sobre a faixa amarela num gesto de súplica, mas o plano que
ele habitava não fazia interseção com o dela. Ele pertencia a uma espécie que
não era a dela, e aquela palavra que ele usava, “amar”, simplesmente designava
uma função peculiar à espécie dele. “Nós amamos você” fazia tão pouco sentido
para ela agora quanto uma baleia dizendo “Você filtra plâncton com as suas
barbatanas, que nem eu”, ou uma tartaruga dizendo “Você e eu compartilhamos
a experiência de depositar ovos em buracos na areia”. Era revoltante.
O caminho agora estava livre para ela entrar na clínica. O Grupo de Doze, em
duas vans da polícia, estava cantando “Amazing Grace” em tons e ritmos
diferentes.
“Renée”, disse Stites. “Por favor me ouça.”
“Isso é imperdoável”, ela falou, apenas dizendo o óbvio.
Ela entrou.
“Puxa”, disse a terapeuta loura. “Você perdeu a chave?”
Renée entregou a chave para ela. “Desde quando eles estão aqui?”
“Desde hoje de manhã.”
“Eu acho que agora eles vão embora.”
A clínica estava gélida, com seu ar-refrigerado e sua iluminação azulada.
Num cubículo branco e limpo, Renée tirou suas roupas e pendurou-as num
gancho. A calça jeans, pendurada por cima das outras peças, com um lado do
quadril mais saliente do que o outro e os joelhos levemente dobrados, era uma
efígie vívida de Renée.
“Eu não quero tomar calmante”, ela disse à enfermeira.
Na sala adjacente, a mesa tinha sido preparada para ela, com uma mesa
lateral menor para a dra. Wang, os instrumentos de aço inoxidável essenciais
reluzindo em cima de um jogo americano de papel. Não havia faca de peixe
nem colher de sopa — era uma refeição de um prato só.
A paciente se deitou com seu avental azul-claro. Seu rosto, na parte mais baixa
de uma superfície inclinada acolchoada, estava vermelho-escuro, quase
purpúreo. Foi introduzido um espéculo, que disse: “Isso pode beliscar um pouco”.
O tenáculo foi aplicado, uma injeção de cloroprocaína administrada. Com seus
dedos finos e ágeis, a dra. Wang rasgou a embalagem de papel de uma cânula de
seis milímetros.
Um pouco de gel K-Y foi aplicado. O aspirador foi ligado e a mangueira
encaixada. Para dentro e para fora se movia a cânula. Para dentro e para fora,
para cima e para baixo. O ruído áspero que ela produzia foi uma revelação. Não
era um som que se esperaria que um corpo fizesse; era um som de um objeto
inanimado, uma colher de pedreiro se arrastando na lateral de um balde de
plástico, as últimas gotas de milk-shake sendo sugadas do fundo de um copo de
papel encerado. Para dentro e para fora se movia a cânula. Rufe, rufe, dizia o
útero.
“Ai”, disse a paciente, novamente dizendo o óbvio, quando as contrações
começaram. Ela estava tentando resistir a uma maré alta. Os músculos de seus
pés se contraíram nos estribos do pelourinho, que agora tinha rodas e fora
empurrado até a calçada, para que todo cientista, secretária, adolescente e
membro de igreja que passasse pudesse ver, bastando para isso dirigir o olhar
naquela direção, o que havia entre as pernas nuas e afastadas da paciente, para lá
do espéculo e dentro do centro vermelho de seu ser. A enfermeira fez carinho na
testa dela. O aspirador foi desligado.
“Tudo parece estar muito normal”, disse a dra. Wang.
Na sala de recuperação, deram a Renée um suco de laranja, um comprimido
de Ergotrate e um donut polvilhado de açúcar, que era o primeiro alimento que
ela ingeria desde as sete da manhã. As cólicas não estavam fortes, mas mesmo
assim lhe deram envelopes com Darvon e mais Ergotrate. Deram-lhe também
várias instruções diretas e avisos. Perguntaram-lhe se ela tinha alguém que
pudesse levá-la para casa.
Às cinco em ponto eles deixaram que ela se vestisse.
“Não é melhor você sair pelos fundos? Eu acompanho você até lá”, disse a
terapeuta.
Renée fez que não.
“Você tem que tentar ficar de repouso até amanhã.”
“Pode deixar.”
Ela ficou surpresa ao encontrar um céu escuro lá fora. Um vento de
tempestade levantava os cabelos dos manifestantes que haviam sobrado e que
continuavam plantados em seu espaço no estacionamento exatamente como
estavam quando ela os viu pela última vez, como se aquele espaço fosse todo o
planeta deles e seus cabelos estivessem levantados por causa das voltas que o
planeta dava no ar. Eles olharam sérios para Renée, sem ódio. Do outro lado da
rua, Stites estava batendo papo com a repórter atrevida, fazendo-a rir. Sorrindo,
ele se virou e olhou bem nos olhos de Renée. Ouviu-se um discreto estrondo de
trovão. Ela esperou um Hy undai azul e um Infiniti preto passarem e atravessou a
rua.
“Olá, Renée. Essa é a Lindsay , do Herald.”
“Oi, tudo bem?”, disse Lindsay .
Os membros da igreja plantados no espaço de estacionamento tinham dado
uma volta de cento e oitenta graus e estavam olhando para seu pastor. Antes que
ele tivesse tempo de perceber o que ela estava fazendo, Renée pegou o
megafone da mão de Stites e foi para trás de um poste de luz. Encarou a
congregação, os curiosos que rondavam por ali, os policiais de prontidão, os
fotógrafos, a repórter e o pastor.
“Olá”, ela disse, apertando com mais força o botão de plástico do megafone.
“olá. meu nome é renée seitchek. eu vou entrevistar a mim mesma.”
Stites foi para a frente dela, tentando agarrar o megafone. “Isso não é seu,
Renée.”
Ela se esquivou dele. Deu alguns passos para trás na calçada, sem perder Stites
de vista. “o que eu tenho a declarar, já que vocês estão todos tão interessados”,
ela disse. “o que tenho a declarar é que acabei de fazer um aborto.”
Ela desceu da calçada. “primeira pergunta: o que mais...” Um carro buzinou.
“o que mais eu posso lhes dizer?”
“resposta: o meu endereço é pleasant avenue número 7, somerville. o número
do meu telefone é 360-9671. o meu tipo sanguíneo é o. o meu segundo nome é
ann. a minha renda no ano passado foi de doze mil dólares. eu roubo suprimentos
de escritório do meu empregador. eu gosto de me masturbar. o meu número de
seguro social é 351-40-1137. eu costumava usar drogas quando estava na
faculdade. também usei um pouco na semana passada.”
Uma leva de trabalhadores que acabara de sair de seus respectivos escritórios
engrossou a multidão. Carros paravam ao lado da calçada. Lindsay do Herald
estava segurando seu gravador no ar, enquanto Stites sacudia a cabeça. Renée
apontou o megafone para ele.
“pergunta: que idade tinha o feto que eu acabei de abortar?
“resposta: aproximadamente cinco semanas. Eu não sei ao certo porque o meu
CICLO MENSTRUAL sempre foi irregular.
“pergunta: quem era o pai?
“resposta.” Ela respirou fundo. Ia ter que contar uma mentira. “resposta: eu
não sei ao certo. tive RELAÇÕES com mais de um homem nos últimos dois
meses.
“pergunta: por quê?
“resposta: porque eu estava me sentindo sozinha e infeliz e queria me sentir
bem. também estava apaixonada por um dos homens. queria me casar com ele e
ter filhos com ele.
“pergunta: Quem são esses homens?
“resposta: ISSO é confidencial. eles são HOMENS. ELES têm a opção de
manter a privacidade deles.”
Nesse momento ela ouviu duas ou três vozes femininas jovens gritarem em
apoio a ela. Como não conseguiu discernir de que direção os apoios tinham vindo,
continuou a apontar o megafone para Stites, que tinha tirado os óculos e estava
massageando os cantos internos dos olhos.
“pergunta: que tipo de método anticoncepcional eu uso?
“resposta: eu uso diafragma. era inteiramente responsabilidade minha, e
quando ele falhou fui EU que fiquei na mão.
“pergunta: como eu estou me sentindo agora?
“resposta: eu estou me sentindo muito, muito triste, estou triste por mim
mesma e triste por todas as mulheres, porque um homem jamais vai precisar de
um lugar como esse, nunca em um milhão de anos. mas essa tristeza é MINHA,
nenhum homem pode se apossar dela, e eu estou FELIZ por ser mulher.”
Ouviu-se outro estrondo de trovão. Uma onda de lixo de papel varou a rua.
Renée, corando e se curvando por causa de uma cólica, pousou o megafone no
meio-fio e saiu andando o mais rápido que pôde de cara contra o vento. Não
fazia ideia de quantas pessoas além de Stites e Lindsay tinham ouvido o que ela
dissera e nem estava interessada em saber.
O enorme carro branco de Howard estava esperando na esquina da
Hampshire com a Broadway, virado na direção de Harvard. Numa vizinhança
inteiramente pavimentada como aquela, sem nenhuma folhagem verde à vista, o
céu escuro parecia um céu de inverno. Renée esperou um Cressida azul, um
Accord cinza, um Infiniti preto e um Camry prateado passarem. Assim que ela
atravessou a rua e entrou no carro, Howard meteu o pé no acelerador. Ela se
afundou tanto no banco que seus olhos ficaram no mesmo nível que a base da
janela. Chutou para o lado latas de coca-cola e um disco de frisbee tamanho
oficial, massageando o abdome com o punho.
“Você está bem?”, Howard perguntou.
“Podia ser pior.”
“Tudo bem se eu der uma passada no laboratório?”
“Por que você não me leva pra casa primeiro?”
“Vai ser só um segundo, tá bom? Eu tenho que pegar uma corda pra levar pro
Somerville Lumber.”
“O que é que você vai pegar no Somerville Lumber?”
“Uma estante.”
Ela riu sem vontade. “Você vai querer que eu te ajude a carregar?”
O ronco do motor do carro era como o ruído de um circulador de ar durante
uma onda de calor, mantendo o desconforto dela dentro de limites toleráveis.
Quando Howard desligou o motor, no estacionamento privativo em frente à porta
da sala de computação, ela se sentiu fraca e enjoada e se afundou mais ainda no
banco.
Uma lufada de vento quente entrou pelas janelas abertas dos bancos da frente.
Pneus cantaram. Um Cressida cinza entrou a toda no estacionamento e parou
atrás do carro de Howard, bloqueando a saída dele. Uma jovem oriental de
tailleur e tênis saltou de dentro do Cressida e bateu na porta da sala de
computação. Era a suposta noiva de Howard, Sally Go. Alguém a deixou entrar.
Atrás da cerca verde e do amontoado de folhas secas, havia movimento na
Oxford Street, ação em três planos independentes, a passagem rápida e borrada
de tetos de carros, o movimento flutuante de ciclistas, com suas cabeças e
ombros bem acima do chão e suas bicicletas obscurecidas pela cerca, e a
marcha saltitante de pedestres, estudantes e trabalhadores que voltavam para
casa com perceptível pressa, porque agora as árvores estavam mostrando o
verso branco de suas folhas e os galhos das mais altas estavam começando a se
sacudir com certa violência. O vento trazia fragmentos de sons distantes. As
trovoadas estavam aumentando, retumbando como a terra num terremoto da
Nova Inglaterra. Quase deitada, com a mão na barriga, Renée tentava dissipar
parte da dor da cólica com a ponta dos dedos. Já não saberia dizer quanto tempo
fazia que estava esperando no carro.
Atrás dela, numa parte do céu para a qual sua fraqueza não lhe permitia olhar,
uma escuridão semelhante a um eclipse tomava corpo. As árvores estavam em
constante movimento, todos os sons da Oxford Street pousando em pedaços bem
ao norte dali, mas o chão ainda continuava seco, assim como as roupas das
pessoas que andavam na calçada, e o ar estava quente e repleto de pétalas e
folhas verdes. Renée pensou que nunca havia respirado um ar tão bonito. Sentia o
desgosto escoar de dentro dela. O clima, que era da natureza, tinha tomado os
espaços verdes e os espaços pavimentados entre os prédios. O ar tinha cheiro de
verão, de fim de tarde, de trovão, de amor, e sua temperatura era tão
exatamente igual à temperatura da pele dela que estar nele era como estar em
nada, ou como não encontrar barreira alguma entre ela e o mundo. Ela
entreouvia a estática da tempestade nos rádios dos carros que passavam. Sentia a
pungência dos carros, do asfalto quente, dos prédios de tijolos, das transmissões
de rádio, de todas as coisas que os seres humanos tinham feito, enquanto o vento
os varria. Como aquilo tudo estava profundamente imerso no mundo! Como ela
estava profundamente imersa no mundo! A vida não na pele do mundo, mas
bem lá no fundo dele, no mar de atmosfera e árvores chacoalhantes, com um
teto espesso e abobadado de nuvens negras acima dele, elétrons subindo e
descendo em escadas brancas. Ela queria abraçar aquilo tudo respirando aquele
ar, mas tinha a sensação de que nunca conseguiria respirar fundo o bastante,
assim como às vezes achava que nunca conseguiria estar fisicamente próxima o
bastante de uma pessoa que ela amava.
Ficou se perguntando: o que exatamente ela amava ali? Trovões ecoavam e
folhas seguiam trilhas em espiral rumo ao céu verde-escuro. Observando seu
próprio raciocínio de uma segura distância irônica, ela formulou o seguinte
pensamento: Obrigada por me fazer estar viva para estar aqui. Soava falso, mas
não completamente falso. Ela tentou de novo: Obrigada por este mundo.
Meio a sério, meio de brincadeira, ela tentou várias outras vezes. Ainda estava
tentando quando a porta da sala de computação se abriu com violência e Sally
Go saiu em disparada porta afora. Sally enfiou seu rosto riscado de lágrimas pela
janela aberta de Renée.
“Eu vi você!”, disse ela. “Eu trabalho bem aqui e vi você! Eu e as minhas
amigas, nós vimos você!” Ela tinha uma daquelas vozes urbanas antiaderentes.
“Eu odeio esse tipo de joguinho de merda que você está fazendo. Era pra ele ter
se casado comigo! Você é maluca. Eu te odeio! Quero mais é que você morra!
Eu te odeio tanto!”
Renée abriu a boca para falar, mas a garota já tinha ido para o carro dela.
Cantando pneu, Sally deu uma ré e foi embora.
Howard voltou com um rolo de corda de náilon no braço.
“Aquela era a sua namorada?”
Ele deu de ombros, dando partida no carro. Àquela altura o vento já tinha
soprado a maioria dos carros e das pessoas para fora das ruas. Uma cortina
negra pendia no final da Kirkland Street, um anoitecer de novembro.
“A sua estante vai ficar toda molhada”, disse Renée.
“Eu trouxe um plástico”, Howard disse.
Ela se lembrou da carta de Louis e, sem pensar, enfiou a mão por baixo da aba
de sua bolsa de couro e tentou abri-la sub-repticiamente, mas Howard olhou para
ela. Devagar, ela tirou a mão de dentro da bolsa. Debaixo da ponte da Dane
Street, o vento achatava moitas de ambrósia e de tifa. As primeiras gotas de
chuva acertaram o para-brisa. Ela estava voltando para sua casa em Somerville,
de jeans, tênis e útero vazio. As fachadas de ripas marrons, amarelas, brancas e
azuis nunca tinham lhe parecido tão bonitas como sob a luz esverdeada da
tempestade que começava. Ela já estava até sentindo o ar abafado de seu
apartamento, inalando o cheiro da chuva nas telhas de ardósia quentes em frente
à janela da cozinha, ouvindo o barulho da água no telhado. Estava tão ansiosa
para estar em casa que, quando Howard parou o carro na Pleasant Avenue, ela
nem lhe agradeceu direito. Pulou para fora do carro e bateu a porta.
Enormes gotas de chuva caíam na madressilva. Howard arrancou com o
carro, mas ainda não tinha avançado nem um metro quando, bem em frente à
casa de Renée, do outro lado da rua, a janela do motorista de um Infiniti preto
baixou, um braço se esticou para fora, acertou uma bala nas costas dela com um
pequeno revólver e disparou mais quatro tiros enquanto ela caía na escada
desmantelada. Howard meteu o pé no freio. Pelo retrovisor, viu o Infiniti
arrancar em disparada rumo à Walnut Street e desaparecer.
iii. argilla road
12.

Ninguém nunca tinha dificuldade de encontrar a casa dos Holland na Wesley


Avenue. Ela era aquela com catorze pés adolescentes de pinheiro-branco-do-
canadá amontoados no estreito quintal da frente. Bob havia plantado os pinheiros
na primavera de 1970 e depois, com o passar dos anos, observado com ar de
aprovação eles matarem a cobertura vegetal com suas gotas de seiva ácida e
envolverem o quintal de sombria melancolia. Todo dia de semana de manhã,
antes de ir de bicicleta para o campus, ele vistoriava o chão da floresta à cata de
embalagens de chiclete e caixas de hambúrgueres. Nos fins de semana, tirava
lixo trazido pelo vento de cima dos galhos com um ancinho de cabo comprido, os
pinheiros se balançando feito cachorros peludos que se submetem mudamente a
uma escovação. Eles se retorciam quando Bob apontava uma mangueira para
eles, para remover com o jato d’água os poluentes atmosféricos sulfúricos.
No quintal dos fundos, atrás de uma cerca alta que protegia os animados
gramados de um engenheiro e de um vice-diretor de departamento atlético, Bob
havia deixado que a terra regredisse à pradaria que cobria o Illinois (ele nunca se
cansava de explicar) antes da chegada dos europeus e suas práticas agrícolas
dilapidadoras e destrutivas. Residindo no meio da vegetação, que batia na altura
do peito, encontravam-se toupeiras, cobras, ratos, gaios-azuis e uma verdadeira
multidão de vespas. Havia também armadilhas para cortadores de grama, na
forma de estacas de aço escondidas no meio do capim e se projetando dez
centímetros acima do solo. Bob as plantara em 1983, depois que Melanie,
descobrindo ratos nos quartos, pagou um garoto da vizinhança para que ele
destruísse a pradaria com um cortador e uma enxada. Agora, a pradaria estava
isolada da casa por uma cerca baixa de tela de arame, e qualquer pequeno
animal que cruzasse a fronteira era comido pelos gatos dos Holland, Drake e
Cromwell, designados especialmente para esse serviço. Periodicamente, Bob
calçava luvas e se aventurava quintal adentro, no meio das vespas, para arrancar
brotos de bordo e outros intrusos de folhas largas.
A casa em si, da qual apenas o telhado e a lucarna do terceiro andar ainda não
haviam sido encobertos pelos pinheiros, tinha uma insólita sala de estar em forma
de semicírculo e, imediatamente acima dela, um quarto principal de mesmo
formato. Esses cômodos, assim como a sala de jantar e a varanda da frente,
pertenciam a Melanie. Ela os mantinha razoavelmente em ordem, e as visitas
que entravam na casa jamais viam a cozinha da Idade do Bronze e o porão da
Idade da Pedra, onde havia montanhas de roupas sujas cujos estratos inferiores
datavam de meados da década de setenta. Bob ficava a maior parte do tempo
em seu escritório, que era o único cômodo do terceiro andar. Atualmente, os
quartos dos filhos passavam meses a fio sem receber visita alguma, a não ser a
da poeira que vinha no ar. As portas, porém, estavam sempre abertas, com os
móveis à mostra feito corpos insepultos, sem lhes conceder descanso.
Ao subir a Davis Street vindo do ponto da ferrovia elevada, Louis sentia um
vento seco do oeste soprar em seu rosto. Os gramados planos e sem rega
estavam tão amarronzados agora em junho quanto costumavam ficar em agosto.
Todas as casas pareciam desertas e mergulhadas num profundo silêncio pós-
formatura, uma desolação que a fumaça de carvão que exalava do quintal dos
fundos de uma solitária casa de família só fazia tornar mais completa ainda.
Estava mais fresco no meio dos pinheiros de seu pai. Raios amarelos
atravessavam, oblíquos, o ar repleto de partículas suspensas de pólen amarelo, o
sol pendurado nos galhos como se não saísse do lugar fazia vinte anos. O cheiro
de resina era penetrante e inibia o movimento dos insetos. (Melanie costumava
dizer que tinha a sensação de morar num cemitério.) Preso com fita adesiva na
porta da frente, um bilhete escrito com a letra de Bob dizia: Louis, fui ao Jewel.
Louis subiu direto para o seu quarto, largou sua bolsa no chão e se jogou na
cama, vencido pelo calor, pela letargia da vizinhança e pelo fato de estar em
casa. Não sabia por que tinha aceitado vir para casa. Fechou os olhos, se
perguntando: Por quê? por quê? por quê?, como se a pergunta pudesse transportá-
lo pelos cinco dias seguintes até a hora em que seu voo de volta partiria. Mas
pensar no voo de volta o fez pensar em Boston. Ele se virou de bruços, apertando
o rosto com as mãos. Tentou pensar em alguma coisa, qualquer coisa, que o
tivesse deixado feliz nos últimos tempos, mas nenhum vestígio de prazer restava
dos dias que ele havia passado com Lauren, e embora houvesse alguma coisa a
respeito de Renée que tivera certa felicidade atrelada a ela, não era nada de que
conseguisse se lembrar agora.
Telefones tocaram. Mecanicamente, ele se levantou e atendeu no quarto dos
pais.
“Louis?”, disse Lauren. Ela parecia estar na casa ao lado. “Eu estou com
saudade.”
“Onde é que você está?”
“Em Atlanta, no aeroporto. Você fez boa viagem?”
“Não.”
“Louis, eu estava pensando. Foi uma ideia que me ocorreu agora há pouco.
Lembra que você disse que não aguentava viver nesse país? Bom, eu estava
pensando que a gente podia ir pra uma ilha, sabe? Nós podíamos trabalhar, nós
dois, juntar dinheiro e aí ir pra lá e abrir um restaurante ou alguma coisa assim.
Só nós dois. E nós podíamos ter filhos e ir pra praia e trabalhar no restaurante.”
Ela se calou, esperando uma resposta. “Parece tão idiota falando assim, mas não
é idiota. A gente realmente podia. Eu vou ser tudo pra você, e qualquer lugar está
bom pra mim.”
Louis ouvia o ar saindo de seu nariz a intervalos regulares.
“Você acha idiota”, disse Lauren.
“Não. Não, eu acho que seria ótimo.”
“Você não queria que eu ligasse.”
“Não, tudo bem.”
“Não, eu vou desligar agora mesmo e não vou ligar mais. Desculpa. Finge que
eu não liguei, tá bom? Você me promete que vai fingir que eu não liguei?”
“Não, sério, não tem problema.”
“A outra coisa que eu queria dizer” — ela diminuiu a voz — “é que eu quero
fazer amor com você. Quero muito, muito, muito. E também queria dizer que
lamento muito a gente não ter feito quando teve a chance. Assim que eu sentei no
avião, eu comecei a chorar por causa disso, porque a gente não fez. E agora” —
a voz dela estava ficando esganiçada — “agora eu não sei se a gente vai fazer
algum dia. Louis, eu vivo estragando tudo, não é? Quando estou com você, eu me
sinto tão feliz que fico querendo que tudo seja perfeito. Mas quando estou
sozinha... quando estou sozinha, eu só quero as coisas do seu jeito.”
Houve uma longa pausa, com sons de respiração dos dois lados da linha.
“Aguenta firme”, disse Louis.
“Tá bom. Tchau.”
Ele queria sair do telefone, mas odiou o som desse “tchau”. A palavra o
acusava de não amá-la. Se a amasse, ele não pediria a ela que não desligasse
ainda?
“Tchau”, ele disse.
“Tá, tchau”, disse Lauren, desligando. Mais uma despesa havia sido registrada
no cartão de crédito dela.
Tendo ouvido os estalidos discretos mas penetrantes da roda livre de uma
bicicleta de dez marchas na pista de entrada, Louis desceu para a cozinha e
encontrou o pai tirando uma mochila das costas.
“Oi, pai.”
“Salve, Louis. Bem-vindo ao lar.”
Não havia nenhum sinal dos tais vinte e dois milhões na cozinha. O linóleo
ainda continuava rasgado em frente à pia e à porta dos fundos; a fruteira ainda
continha, como sempre, uma banana moribunda e uma maçã obesa e
obviamente farinhenta; ainda continuavam lá a arcaica lavadora de louça com as
palavras dos botões apagadas e pingos de detergente seco embaixo da porta mal
vedada, as janelas sujas com os painéis isolantes de inverno ainda instalados, as
teias de aranha e agulhas de pinheiro nos cantos, o velho escorredor de louça
com suas ulcerações de ferrugem, o frasco tamanho econômico de detergente
genérico com uma crosta rosa em volta do bico e, por fim, ainda continuava lá o
velho pai, matraqueando daquele seu jeito levemente divertido sobre a seca local
e suas possíveis causas globais. Bob estava vestido como um funcionário de uma
firma de manutenção de jardins — calça de microfibra azul com elástico na
boca, sapatos de sola grossa e uma camiseta do Greenpeace escura de suor.
Louis ficou observando com uma irritação que beirava o desprezo enquanto o pai
se agachava de um jeito feminino em frente à geladeira e transferia verduras e
legumes da mochila para a gaveta de legumes. As cervejas na prateleira de
cima ainda eram Old Sty le. Louis pegou uma, esticando o braço por cima do
cabelo que agora seria para sempre mais cheio que o seu, sentindo o cheiro das
axilas que não sabiam o que era desodorante fazia muito tempo.
“Você esqueceu de tirar a presilha do tornozelo”, disse Louis.
Bob tateou a perna de sua calça, sentiu a presilha ali, mas não a tirou. Retirou o
ar de dentro da mochila e a dobrou ao meio.
Louis olhou para a cozinha em volta, como se ela fosse uma testemunha do
que ele tinha de aturar.
“Bom, então, aqui estou eu”, disse. “Você não vai me dizer por que mandou as
passagens?”
“Pra você não poder bater o telefone na minha cara”, disse Bob.
“Jeito meio caro de fazer isso, não? Ou dinheiro agora não é mais problema?”
“Se está preocupado com isso, você pode pintar a garagem pra mim. E lixe
tudo muito bem antes. Mas não, se você quer ser estritamente lógico, não há
nenhuma razão pra você estar aqui. Não há nenhuma razão pra eu me importar
se vejo você infeliz, nenhuma razão pra você e a sua mãe não continuarem a
atormentar um ao outro e a envenenar a família inteira.”
Louis revirou os olhos, de novo convocando a cozinha como sua testemunha.
“Imagino que ela já esteja em Boston.”
“Ela saiu daqui na quinta.”
“É muito simpático como ela sempre me avisa quando vai pra lá.”
“Sim, eu sei que ela não telefona pra você. Mas a verdade é que você não iria
querer ver a sua mãe agora, de qualquer forma.”
“Arrã.” Louis balançou a cabeça. “É muita consideração da parte dela. Como
sabe que eu não vou querer vê-la, ela está me poupando do constrangimento de
recusar um convite. Realmente, ela é de um tato impressionante.”
“Foi por isso que eu quis que você viesse aqui, Lou.”
“‘Isso’? ‘Isso’? Isso o quê? Esse meu problema de comportamento? Essa minha
falta de gentileza para com a minha mãe?” Ele tomou um gole de cerveja e fez
uma careta. “Como é que você consegue tomar esse troço? Parece bile
gaseificada.”
“Eu pensei que você pudesse querer vir aqui”, disse Bob, determinado a não se
deixar provocar. “Você obviamente está com muita raiva, e eu achei que se
você conseguisse entender melhor por que a sua mãe, por exemplo, está se
comportando da forma como está...”
“Aí eu compreenderia, aceitaria e perdoaria o comportamento dela. Não é
isso?” Louis desafiou o pai a desmenti-lo. “Você me explicaria que vida dura a
mamãe tem e que vida dura a Eileen tem e que vida comparativamente fácil eu
tenho e aí, percebendo como as coisas são fáceis pra mim, eu chegaria pra ela e
diria: Puxa, mãe, me desculpe, faça o que você quiser, eu entendo
perfeitamente.”
“Não, Louis.”
“Mas o que eu não entendo é de onde todo mundo tirou essa ideia de que as
coisas são tão fáceis pra mim. Você mora nessa casa com ela, você a vê todo
dia, mas você não pode chegar pra ela e dizer: Puxa, Melanie, você não acha que
está sendo meio injusta com o Louis, não? Não, em vez disso você tem que
comprar uma passagem de avião pra eu vir pra cá pra eu ser a pessoa que vai
entender.”
“Lou, ela entende, mas ela não consegue agir de outra forma.”
“Ah, tá. Bom, eu também não consigo. E é por isso que eu não quero ter mais
nada a ver com ela. Ela não consegue agir de outra forma, eu não consigo agir
de outra forma e esse é o fim da história.”
“Mas você consegue agir de outra forma, Lou.”
“O quê? Ah, sim, porque... Por quê?”, ele perguntou à cozinha de modo geral.
“Porque eu fui eleito aos dez anos de idade pra ser o senhor Compreensivo?
Porque pros homens as coisas são fáceis?”
“Em parte, sim.”
“Ah, é pra mim que as coisas são fáceis? Não pra mamãe, que pode fazer o
que bem entender e depois dizer que não consegue agir de outra forma? Não pra
Eileen, que, sabe, se debulha em lágrimas toda vez que não consegue o que quer?
Você está falando sério? Isso é uma arrogância tão absurda. Pois fique sabendo
que eu não sou melhor do que elas. O que há de errado nisso?”
“Qual exatamente é o seu problema com ela?”
“O meu problema com ela... Eu não vou nem te dizer qual é o meu problema
com ela.”
“Por que não?”
“Porque eu não estou a fim.”
“Porque você está com vergonha. Porque você sabe que não é digno de você.”
“Ah, sei. Me fala mais sobre esse meu problema.”
Bob sempre saboreava qualquer convite que recebia para falar. Pegou a
banana preta e, segurando-a diante dos olhos, descascou-a lentamente. “Talvez
seja a velha ideia romântica da esquerda”, disse com sua voz divagante de sala
de aula. “Eu tendo a pensar em você e na Eileen mais ou menos como os dois
lados da equação nacional. Sendo a Eileen o tipo de pessoa que acha que precisa
da riqueza e do luxo, e você o tipo de pessoa que...”
“Que diz: não, que é isso, feijão com arroz está ótimo pra mim.”
“É isso mesmo. Você pode rir de mim agora, mas era isso que parecia.” Bob
começou a comer a banana; nenhuma outra pessoa da família teria tocado numa
banana tão preta. “Eu achava que você pensasse mais ou menos como eu penso.
E eu costumava acreditar que havia um número considerável de pessoas neste
país que não queria nada além de um emprego decente, uma moradia decente,
um serviço de saúde decente e satisfações não materiais de primeira qualidade.
Porque me parecia que as pessoas deveriam ser assim. E aí, nos anos oitenta, eu
descobri que isso era tão utópico quanto as outras coisas que eu pensava. Acaba
que os trabalhadores decentes deste país têm a mesma ganância consumista que
a burguesia, e todo mundo, absolutamente todo mundo, sonha em ter os mesmos
luxos que o Donald Trump tem e seria capaz de envenenar o mundo e matar seus
semelhantes para ter esses luxos, se isso fosse ajudar em alguma coisa.”
“Ah, então eu sou ganancioso”, disse Louis. “Eu sou um Donald Trump como
todo mundo. É esse que é o meu problema com a mamãe: eu quero um
apartamentaço num prédio deslumbrante como a Eileen, quero ter o meu
videocassete e o meu bmw, e estou puto com a mamãe porque ela não me dá
essas coisas. Foi essa a conclusão a que você chegou na sua análise?”
“Você está com raiva porque ela emprestou dinheiro pra Eileen.”
“Mesmo que fosse esse o problema, que não acho realmente que seja, a
questão é que existe aí um problema de justiça, um problema de franqueza. Quer
dizer, a sua classe trabalhadora não ligaria pra bmws se não tivesse que ficar
vendo um bando de ricaços babacas e imprestáveis desfilando de bmw por aí,
enquanto falam no telefone do carro. E antes que você diga alguma coisa — eu
não estou dizendo que a Eileen seja uma ricaça babaca e imprestável. Não estou
dizendo nem que eu tenha necessariamente algum problema com ela.”
“Não”, disse Bob, terminando tranquilamente a banana. “Você só viu uma
oportunidade de atormentar a sua mãe e ainda continuar com a justiça ao seu
lado.”
“Eu? Você está brincando? Eu estou tentando manter distância dela! Eu estou
tentando esquecer que ela existe! Que foi literalmente o que ela me pediu pra
fazer. Ela disse: vamos fingir que isso não aconteceu. E o que você acha que eu
tenho tentado fazer? Sabe, do meu jeitinho crédulo e otário. Eu não sei de onde
você tirou essa ideia de que eu estou atormentando a mamãe. Eu fui lá falar com
ela uma vez, quando descobri que eu era o único que estava sendo solicitado a
fingir que isso não tinha acontecido, quer dizer, que não tinham pedido isso da
Eileen. Eu tive um lapso de cinco minutos e foi só. E agora você vem me dizer
que ‘esperava’ que eu não fosse tão ‘materialista’ quanto a Eileen. Bom... talvez
eu não fosse. Talvez eu fosse esse cara perfeito e sem ganância que você sempre
quis que eu fosse. Só que nunca ninguém me agradece por isso, e aí você vem
com esse papo de que está ‘decepcionado’ comigo e de como você é ingênuo e
de como eu sou como a classe trabalhadora, que nunca parece fazer o que os
marxistas querem que ela faça. Sabe, não é de espantar que nós, trabalhadores,
acabemos todos querendo ser o Donald Trump. Nós sentimos muito que você
esteja decepcionado. Você acha que eu quero te decepcionar? Quando a única
justificativa possível que eu tenho pra viver dessa porra desse jeito imbecil que
eu vivo é que talvez pelo menos o meu pai não ache que é tão imbecil assim?
Mas você obviamente não consegue enxergar isso, porque você obviamente não
tem a menor ideia de como eu sou de verdade, porque faz vinte e três anos que
você está doidão demais pra notar. Você fala de ser ingênuo, você fala de ser
burro, olha pra mim aqui.”
Os olhos de Bob tinham se arregalado de repente, como se ele tivesse sentido
uma faca furar suas costas. Louis, respirando fundo, voltou os olhos para o chão.
“E você está magoado, eu sei. Desculpe. Foi um exagero.”
“Não, você tem razão”, disse Bob, virando-se na direção da porta. “Você
acertou na mosca.”
“É, me deixa aqui falando sozinho agora, vai, isso mesmo. Você agora vai se
retirar pra fazer com que eu me sinta o invulnerável, não é isso? Como a única
pessoa da família que não fica soterrada de dor e de culpa.”
“Eu não tenho mais nada pra dizer.”
“Você se retira. A mamãe se retira. A Eileen se retira. O que mais eu posso
pensar a não ser que quem tem um problema sou eu? E o meu problema é que
eu sempre tenho a porra da razão, não é isso? É que eu estou sempre certo?” Ele
estava falando para o vão vazio da porta. “Eu não sei o que estou fazendo de
errado. O que eu estou fazendo de errado?”
Ele estava ouvindo os degraus da escada de madeira rangerem. “você não está
feliz que eu tenha vindo pra casa?”

Bob Holland era natural de uma pequena cidade ao norte de Eugene, no


Oregon. Na Costa Leste, em Harvard, ele havia escrito sua tese de doutorado
sobre as origens da especulação imobiliária no Massachusetts do século xvii e
conhecera Melanie, a quem começou a perseguir implacavelmente, mas só
conseguiu capturar ao voltar para Boston depois de uma temporada de dois anos
na Inglaterra, onde fez pós-doutorado na Universidade de Sheffield. Os jovens
Holland se mudaram para Evanston no início da década de sessenta e
conceberam Eileen no mesmo mês em que Bob obteve estabilidade em seu
emprego na Northwestern. Durante alguns anos, ele foi a estrela do
departamento de história, dando cursos extraordinariamente populares sobre a
América colonial e a industrialização oitocentista e aplicando provas com
questões como Descreva o que poderia ter acontecido ou Isso foi um progresso?,
e distribuindo As e Bs a torto e a direito. Começou a cultivar maconha em
jardineiras instaladas no telhado, transformou seu quintal numa floresta, ia para
Washington de ônibus. Ativistas do movimento estudantil faziam reuniões no
porão de sua casa. Uma vez, ele foi atingido por gás lacrimogêneo e passou uma
noite na cadeia.
No entanto, como todo mundo sabe, o espírito daquela época logo se perdeu
em violência, licenciosidade, autoindulgência, cooptação comercial e desespero.
Cada nova safra de alunos que chegava à universidade no início do ano letivo
continha mais ervas escovadinhas e sisudas do que a safra anterior. Bob
conseguiu cultivar a militância em alguns deles, mas a história e os números
estavam contra ele, e sua cabeça estava um pouco transtornada demais por
decepções e alucinógenos para que ele pudesse vicejar num ambiente cada vez
mais hostil. Já em 1980, ele se viu classificado tanto por alunos como por
docentes como só mais um Velho Parasita Marxista.
Os Parasitas eram uma classe exclusivamente masculina. Sentavam-se em
seu próprio cantinho nas reuniões de docentes, bem longe dos recém-fortalecidos
conservadores, com suas gravatas-borboleta, dos recém-contratados membros
de minorias, com seus trajes assertivamente étnicos, e de toda a gurizada,
esquerdista ou não, com suas saias justas e seus blazers espinha de peixe. Os
Parasitas tinham caras vermelhas e cabelos desgrenhados. Usavam camisas de
flanela e coletes forrados de penas. Entre si, trocavam os sorrisos para lá de
óbvios dos que aparecem em público drogados e acham isso engraçado. Viam
fascismo em toda parte — na administração, nas cafeterias, na livraria — e
denunciavam isso nas atas. Sugeriam pessoas como Jerry Garcia e Oliver North
para fazer o discurso de formatura. Levantavam as mãos durante discussões
sérias acerca de políticas universitárias para pedir que comentários engraçados
sobre drogas psicodélicas fossem incluídos nas atas. Todos sentiam uma nostalgia
tremenda das drogas psicodélicas.
Carecendo de apoio público para perpetrar um ataque à sociedade como um
todo, os Parasitas subvertiam a única autoridade que conheciam: a universidade.
Jamais perdiam uma festa ou recepção aberta. Amontoavam-se em volta de
fosse qual fosse a comida e a bebida alcoólica pelas quais a universidade tivesse
pagado e, carrancudos, mas dando volta e meia uma piscadela uns para os outros
como os conspiradores que acreditavam ser, consumiam muitos dólares em
comes e bebes. Sentiam-se exultantes abusando de privilégios, pegando pilhas de
livros emprestados da biblioteca para nunca mais devolver, usando as máquinas
de fotocópia dos departamentos até elas pifarem e insistindo em receber sua cota
dos fundos para trazer palestrantes convidados — ex-hippies politicamente
militantes ou funcionários públicos menores da Romênia ou de Angola — a cujas
palestras só os próprios Parasitas compareciam, com seu imenso apetite para
comes e bebes. Questionados por seus pares, eles recorriam a um argumento
antediluviano: a sociedade é corrupta, essa universidade é um produto da
sociedade, logo essa universidade é corrupta.
Havia Parasitas no departamento de Bob que não publicavam um único artigo
desde Kent State. Quando o assunto das publicações vinha à tona, esses homens
encaravam suas carreiras abreviadas com a expressão orgulhosa e resignada dos
mutilados. Parasitas davam cursos rasos para turmas de atletas, cursos sobre
cultura popular e cursos de história russa cujas ementas não sofriam alterações
havia três décadas.
Bob, atipicamente, era um bom acadêmico. Mesmo durante os anos mais
negros da era Reagan, quando estava fumando maconha cinco dias por semana,
ele mergulhou fundo em fontes primárias e secundárias e emergiu delas com
uma profusão de fatos históricos maravilhosos, maravilhosos, bem como com
uma profusão de insights que, mesmo podados de sua aura canabinólica pelo
brilho sóbrio do computador, ainda conservaram vigor suficiente para formar as
bases para um livro chamado Enchendo a Terra: Deus, mata virgem e a
Massachusetts Bay Company e ainda para dois artigos sobre wampum, peles de
castor e espirais inflacionárias, todos escritos em prosa fluente e publicados de
forma muito respeitável.
O que mantinha Bob na linha era principalmente Melanie. Por mais que
gostasse de brincar e implicar com ela, ele vivia com medo de perder o respeito
da mulher. Ela provavelmente não havia posto os pés no campus mais que uma
dúzia de vezes em vinte e cinco anos, então Bob estava livre para fazer papel de
ridículo à vontade lá, mas em outros lugares ele tomava cuidado para preservar
sua dignidade. Por Melanie, ele penteava o cabelo para trás, vestia um de seus
ternos arcaicos e ia de carro com ela para o centro, para ir a uma sinfonia ou
uma ópera e cochilar na cadeira até a hora de voltar para casa. Aturava um
sem-número de jantares com suas colegas de faculdade, cujos maridos
pareciam todos ser membros ou ex-membros da Bolsa de Valores e, mesmo
assim, não conseguiam arrancar nada de Bob além de uma gargalhada quando a
conversa enveredava para a política. Durante meses a fio, quando Melanie
estava ensaiando ou se apresentando na Theatrical Society, Bob fazia o jantar de
Louis e Eileen. Melanie gritava com ele e gritava com as crianças; ele tapava os
ouvidos com as mãos e sorria como se ela estivesse no palco e se saindo muito
bem; ela gritava mais alto ainda, ele subia para o quarto e ela ia atrás, gritando;
mas, quando via as crianças de novo, ela ficava constrangida e, às vezes,
vermelha. As crianças nunca chegaram a reconhecer conscientemente o óbvio
fato de que o homem da casa era loucamente apaixonado pela mulher e a
mulher quase que completamente imune ao homem, mas sem dúvida elas
captaram a ideia básica. Eileen sentia pena do pai e tinha afeto por ele. Louis
sentia uma vergonha horrenda.
Já estava anoitecendo, na segunda-feira, quando Louis voltou para a Wesley
Avenue, depois de fazer uma caminhada até Lake Forest que durou o dia inteiro.
Ele havia localizado a casa ampla e aprazível em que Renée crescera. Tinha
comido duas porções grandes de batata frita ao longo do caminho. Agora o vento
e a luz haviam se dissipado, e a Wesley Avenue estava tão deserta — a
vizinhança inteira tão obviamente vazia de seres humanos vigilantes — que
parecia que teria sido melhor se aquele dia nunca tivesse acontecido, ou pelo
menos tivesse ido para os livros de registro com um asterisco ao lado. No céu
acima da Dewey School, alma mater dos pequenos Holland, o rastro laranja de
um foguete de garrafa pet se extinguiu e em seguida viu-se um breve clarão
branco. A umidade amplificou o estrondo.
Louis entrou na casa abafada e tomou dois copos de chá gelado. Tirou a
camiseta, torceu-a e vestiu uma limpa. A cada degrau que ele subia na escada
até o terceiro piso, a temperatura aumentava um grau e o cheiro de madeira
velha e reboco quente ficava mais forte. A porta do escritório de Bob,
entreaberta, deixava passar uma réstia de luz suficiente apenas para iluminar o
papel amarelado preso na porta, onde se lia a citação:

Pois eu pergunto: Que valor um homem daria a dez mil ou cem mil acres de
excelente Terra, já cultivada e bem fornida também de Gado, no meio do
interior da América, onde ele não tinha esperança alguma de fazer Comércio
com outras partes do Mundo, para obter Dinheiro para si através da Venda
da Produção? De nada lhe valeria o cercamento, e nós veríamos o homem
devolver ao selvagem Território Comum da Natureza tudo o que fosse além
do necessário para suprir os Confortos Materiais da Vida lá obtidos por ele e
sua Família.
John Locke

Não notando nenhuma fumaça fresca, Louis bateu de leve na porta e a abriu.
O pai estava sentado em frente à janela, fazendo carinho na cabeça de Drake e
olhando para as hélices do ventilador que soprava ar em cima dele. Metade do
chão nu estava ocupada por instáveis pilhas de fotocópias repletas de folhinhas
autoadesivas de anotação. Uma fotografia em preto e branco de Eileen estava
pendurada na parede acima do Macintosh. Eileen devia ter por volta de quatro
anos, tinha cabelo curto, jeito delicado e olhos enormes e estava usando uma
coroa de margaridas no cabelo.
“Olha”, disse Louis. “Você não precisa falar nada. Eu só quero dizer que estou
fazendo o melhor que posso e não estou a fim de que fiquem me dizendo como
eu sou mau. Isso realmente não está me ajudando muito no momento, sabe,
porque eu já estou me sentindo o maior babaca do mundo.”
Drake lhe lançou um olhar satisfeito, tingido de ciúme. Bob falou para o
ventilador. “Eu nunca disse que você era mau. Eu sou a última pessoa no mundo
que teria o direito de dizer isso. Você não sabe a grande admiração que eu tenho
por você.”
Louis estremeceu. “Você também não precisa dizer isso. Quer dizer, vamos
ficar por aqui que assim está bom.”
“E eu suponho que a minha grande admiração acabe gerando expectativas
insensatas. Eu tinha esperança de que, mesmo estando chateado com a sua mãe,
você pudesse entender o que está se passando com ela, se eu conversasse com
você. Você não pode me culpar por tentar. Eu não posso ficar parado de braços
cruzados enquanto essa loucura do seu avô destrói a família. Eu preciso fazer
alguma coisa.”
“Arrã. Como o quê, por exemplo?”
“Como, por exemplo, te dizer que nós te amamos.”
Parecia que Louis não tinha ouvido o que o pai dissera. Ele se virou para uma
prateleira e passou a mão pelas lombadas dos livros da biblioteca que estavam
ali. Depois, cerrou o punho e deu um murro nas lombadas. Com os dedos
dobrados, deu safanões nos braços e no peito como se eles estivessem cobertos
de sujeira. “Não diga isso!” Sua voz parecia um ganido estrangulado, muito
diferente de qualquer som que ele já tivesse produzido. “Não diga isso!”
O pai virou sua cadeira giratória na direção de Louis, o que fez Drake pular de
seu colo e sair do quarto em disparada. “Lou...”
“Foda-se o amor. Foda-se o amor.” Louis bateu a cabeça com força na
moldura da porta. Cambaleou porta afora e desabou no chão do hall, segurando a
cabeça e dividido entre o que estava sentindo e o que sabia ser uma capacidade
ainda opcional de se controlar. Abriu os olhos e experimentou um momento de
absoluto vazio, todas as ondas em seu cérebro simultaneamente zeradas. Então, o
pai se ajoelhou e pôs os braços em volta dele, e seus olhos queimavam e terríveis
coágulos de uma dor cortante lhe subiam do peito. Ele estava chorando, e não
havia mais caminho de volta para o amor-próprio e o orgulho que ele tinha
sentido antes de começar a chorar. Estava chorando porque a ideia de parar de
chorar e ver que aquele eu do qual ele costumava gostar tanto estava chorando
nos braços do pai era insuportável. Parecia que existia um órgão específico em
seu cérebro que, sob estímulos extremos, produzia uma sensação de amor, mais
intensa que qualquer orgasmo, mas mais perigosa também, porque era ainda
menos discriminada. Uma pessoa podia se pegar amando inimigos, mendigos
sem-teto e pais ridículos, pessoas das quais tinha sido tão fácil viver à distância e
em relação às quais, se num momento de fraqueza se permitisse amá-las, ela
então adquiria uma responsabilidade eterna.
Sem nenhum motivo aparente, Bob tirou os braços de cima de Louis. Havia
uma expressão de desespero em seus olhos. Ele desceu para a cozinha,
arrebentou o selo de metal de uma garrafa de Johnnie Walker e a emborcou.
Teve de chupar a garrafa, enfiando o gargalo bem dentro da boca, para evitar
que o bico de plástico fizesse o uísque escorrer pelo seu queixo. Os gatos
tentavam subir pelas suas pernas, cobiçando a garrafa. Ele encheu a tigela deles
de água. Ouvia o filho soluçar dois andares acima.
Subindo a escada, encontrou Louis com a cabeça encostada na coluna do
corrimão, torto, sem os óculos, seus olhos pequenos e vermelhos, a gola de sua
camiseta distendida. Apertou os olhos com uma expressão estúpida na direção do
pai, que estava parado contra a luz.
“Você está se sentindo um pouco melhor?” Bob chutou Louis de brincadeira,
com um pé e depois com o outro.
“Por que você está me chutando? Para de me chutar.”
“Desculpe.”
Louis soltou um suspiro. Sentia-se prostrado, como se tivesse se livrado de uma
tensão ou de um veneno que vinha se acumulando em seu organismo fazia muito
tempo. O caos em que seus pensamentos estavam não chegava realmente a
incomodá-lo. “Tem uma coisa que eu queria dizer.”
“Tudo o que você quiser.”
“Certo. Obrigado.” Louis fungou um enorme volume de muco. “É sobre a
empresa da mamãe, a Sweeting-Aldren. Eu só queria avisar que são eles que
estão causando os terremotos.”
“O que você quer dizer?”
“Eu quero dizer que eles estão literalmente causando os terremotos em Boston.
Essa mulher com quem eu estou morando... A mulher com quem eu estava
morando... A mulher pra quem eu fiz uma coisa horrível...” Louis ficou olhando
fixamente para a frente, seus olhos novamente se enchendo de lágrimas. “Ela é
sismóloga. E é uma pessoa realmente maravilhosa, pra quem eu fiz uma coisa
muito, muito escrota. Eu basicamente perdi essa mulher. E eu nem sei por que
isso aconteceu. Quer dizer, eu sei por que, é porque ela é bem mais velha que
eu... porque eu a amava muito. Pai. Porque eu a amava muito. E essa outra
pessoa que é da minha idade e que é alguém por quem eu... Essa pessoa viajou
de Houston pra me ver.”
Ele olhou desconsolado para o pai. Depois, apertou os olhos, seu rosto se
franzindo inteiro.
Bob se agachou na frente dele. “Liga pra ela.”
Ele sacudiu a cabeça. “É complicado. Ela não está atendendo o telefone, e eu
nem sei se quero falar com ela. Acho que não iria conseguir.” Ele chegou um
pouco para o lado, temendo que Bob o abraçasse de novo. “Eu não quero falar
sobre isso. Eu só tinha uma coisa pra dizer, que era que a empresa está causando
os terremotos e que eu vou ferrar com eles de alguma forma, e eu sei que a
mamãe tem muitas ações. Eu não ia nem contar pra você, mas agora eu contei,
e você pode contar pra ela se quiser. Era só isso.”
“Causando. Você disse causando?”
“Disse.”
“Ela tem certeza?”
“Tem.”
Agora Bob tinha de saber de tudo. Como um frenético treinador de boxeador,
ele trouxe para Louis um punhado de papel higiênico para que ele assoasse o
nariz, levou-o para a cozinha, fez com que ele se sentasse, serviu-o de água
gelada e Johnnie Walker e o metralhou com perguntas. Tentando explicar a coisa
sem a ajuda de Renée, Louis achou que a teoria toda soava vaga e improvável,
mas Bob estava rindo enquanto picava legumes e carne e os fritava à moda
oriental, pontuando cada etapa lógica com um “Ótimo!” ou um “Excelente!”.
Não havia como não admirar a maneira metódica como ele se empenhava em
adquirir o pleno domínio da argumentação. Sentado à mesa, a cada bocado de
comida que punha na boca com seus pauzinhos (Louis usou um garfo), ele
encaixava mais um fato no quebra-cabeça.
“Ninguém desconfia da empresa”, disse ele, botando um pedaço de cenoura
na boca, “porque os terremotos são fundos demais.”
“Isso.”
“E os terremotos de Ipswich não têm relação nenhuma.” Uma tirinha de carne
agora. “Eles são o disfarce.”
“Isso.”
“Exatamente como em Nova Jersey, quando o vento sopra na direção do mar,
todas as empresas duplicam as emissões de gás, porque aí ninguém consegue
pegá-las em flagrante. Os terremotos de Ipswich são o vento soprando para o
mar.”
“Isso.”
“Maravilhoso! Sensacional!” Uma fava de ervilha. “E como ela vai provar
que o tal buraco profundo existe?”
Louis gostaria que o pai não insistisse em considerar isso a teoria “dela”. “Ela...
a gente está procurando fotos ou alguma coisa assim. Mas, até agora, só o que a
gente tem mesmo são os dois artigos.”
De seu prato manchado de molho de soja, Bob pegou um pedaço de brócolis e
o levantou na altura dos olhos, revolvendo-o como um pensamento e franzindo o
cenho. “Isso é um problema”, disse ele. “Se ela não tiver como provar com
certeza que o buraco foi perfurado.”
“A gente está trabalhando nisso.”
“Não, não. Isso realmente é um problema.” Bob se virou e olhou de cenho
franzido para a porta que levava ao porão. Depois de alguns instantes, ele se
levantou e desceu. Voltou trazendo uma Atlantic Monthly.
“Come, come”, disse Bob, sentando-se. Sacudiu a poeira da revista e mostrou
a capa para Louis: a origem do petróleo. Fevereiro de 1986. “A sua mãe assina”,
disse ele. “E eu leio.”
Louis olhava apreensivo para a revista. A matéria da capa era sobre o cientista
que Renée havia mencionado, aquele de sobrenome Gold, que acreditava que o
petróleo se originava nas profundezas do planeta. O fato de Louis estar com
medo de abrir a revista — com medo de encontrar algo que contradissesse a
teoria de Renée — revelava algo não muito lisonjeiro acerca de seu amor pela
verdade. Se Renée estava errada, ele preferia não saber.
Bob pegou a revista e passou os olhos pela matéria da capa, correndo o dedo
pelas colunas. Quando chegou ao fim da matéria, ele sacudiu a cabeça.
“Não tem nada aqui sobre a Sweeting-Aldren. Se tivesse, pode acreditar, eu
teria reparado quando li. Mas... olha, eu não quero que você pense que eu
pessoalmente não estou convencido, porque eu estou, eu conheço aquelas pessoas
e o que você falou faz muito sentido. Mas a impressão que dá lendo esse artigo é
que você simplesmente não escava um buraco em qualquer lugar. É preciso que
haja uma geologia muito especial pra que o petróleo que sobe fique acumulado
num determinado lugar. Eu estou mais que disposto a acreditar que a empresa
tenha perfurado um poço para injetar resíduos, mas eu não creio que eles fossem
escavar um buraco de seis mil metros de profundidade quando um buraco de
dois mil já bastaria. E, infelizmente, parece que a teoria da sua amiga só
funciona se o buraco for muito fundo. Se a geologia do oeste de Massachusetts
era a geologia correta, faz sentido que eles tenham escavado um buraco
profundo lá. Mas se eles acabaram escavando o buraco em Peabody, o buraco
só pode ser raso.”
Louis tinha certeza de que Renée teria uma resposta para dar a isso. “Imagino
que eles tenham achado que encontrariam petróleo de qualquer forma.”
“Ah, pelo amor de Deus, Lou.” Bob se inclinou para a frente, numa postura
desafiadora. “A coisa tem que fazer sentido nos detalhes também. Se você me
manda esse negócio como um artigo para ser avaliado, eu vou cair de pau em
cima de você. O petróleo era barato em 1969. Escavar um buraco profundo é
caríssimo. Um buraco raso já resolveria o problema se o objetivo era descartar
resíduos. A teoria da sua amiga requer que o buraco seja fundo. A Atlantic —
que, eu admito, não é nenhuma Bíblia, mas de qualquer maneira —, a Atlantic
me diz que a teoria do petróleo profundo só foi desenvolvida em fins da década
de setenta, baseada em dados obtidos por sondas espaciais do início da década.
Mesmo que alguém tivesse uma teoria nesse sentido em 1969 — quando
ninguém estava muito preocupado com petróleo e a Sweeting-Aldren, diga-se de
passagem, estava tendo lucros de mais de quatro dólares por ação anualmente —
só poderia ser uma teoria mal fundamentada.”
“Bom, foi exatamente isso que a Renée disse. Ela disse que era um trabalho
ruim, mas que, mesmo assim, ele meio que antecipou a teoria que surgiu
depois.”
“Mas um trabalho ruim é um trabalho ruim. Como é que a empresa ia saber
que a teoria tinha futuro?”
Louis se contorceu feito um aluno que não sabe a matéria. “Sei lá. Mas o resto
todo faz sentido.”
“Você lembra o nome do autor? Não era Gold, era?”
“Ah, por favor”, disse Louis, empurrando seu prato. “Eu sei quem é esse Gold.
O autor do trabalho era um tal de Krasner. Ele publicou esse trabalho e depois
nunca mais publicou nada, e a gente não faz a menor ideia de onde ele se
enfiou.” Ele olhou para o pai. “O que foi?”
Bob tinha se levantado da cadeira. Estava olhando fixamente para o armário
de bebidas, gravitando na direção dele. Tinha ficado muito pálido de repente.
“O que é que foi?”
Bob se virou como se estivesse respondendo apenas ao som da voz de Louis,
não ao teor da frase. Olhou para ele com uma expressão vazia. “Krasner.”
“Você está brincando. Vai me dizer que você conhece esse cara?”
“Não é um cara, é uma mulher.”
“Uma mulher?” Uma semente de medo brotou no estômago de Louis.
“Anna Krasner. Ela foi namorada do seu avô.”
“Como é que você sabe disso?”
Bob respondeu devagar, falando consigo mesmo. “Porque o velho Jack fez
questão de que eu soubesse. Não tinha uma única coisa que ele possuísse que ele
não fizesse questão de que eu soubesse que era dele.”
“Quando foi isso?”
“Em 69.”
“Ele já estava casado com a Rita?”
Bob sacudiu a cabeça. “Ainda não. Ele só se casou uns três anos depois.” Bob
estava lendo mensagens na parede que Louis não conseguia ver — mensagens
preocupantes, mensagens amargas. Depois, de repente, ele voltou a si e se
sentou. “Você está se sentindo bem?”
“Estou. Só estou meio bêbado.”
“Eu acho que posso encontrá-la pra você, se você quiser.”
“Seria ótimo.”
“Você não lembra muito bem do Jack, lembra?”
“Não lembro absolutamente nada.”
“Ele não era um... um ser humano comum. Por exemplo, a Anna era uma
mulher muito bonita, acho que uns quarenta e cinco anos mais nova que ele.
Quando a gente soube que ele tinha se casado de novo, eu estava certo de que
tinha sido com ela. Mas aí, quando acaba, ele tinha se casado com a Rita, que
todo mundo concordava que não era uma mulher particularmente atraente. Pra
não dizer que ela era um verdadeiro tribufu, embora isso fosse só a minha
opinião. Nós a conhecemos quando ela ainda era só a namorada, quando ela
ainda era secretária dele, mas isso foi anos antes. Eu tinha deduzido que ela já
tivesse saído de cena fazia tempo. E tem muitos homens que não causariam
espanto algum se casassem com uma mulher como a Rita, mas não era o caso
do Jack. Ele dava muita importância à aparência de uma mulher, à aparência e à
idade dela. Dava mais importância pra isso do que pra qualquer outra coisa.”
“Arrã.”
Uma mariposa se chocou contra a tela da porta dos fundos, impossibilitada de
seguir o cheiro de pradaria que vinha lá de fora. Algum pequeno animal fez o
capim alto farfalhar. Os gatos atravessaram a cozinha, em fila única, e
encostaram os bigodes na tela. Bob perguntou o que Louis e Renée planejavam
fazer com as informações que haviam levantado.
“Imagino que garantir que a empresa pague pelo que fez”, disse Louis. “Mas
nós discordamos em relação a quando botar a boca no trombone.”
“Você precisa avisar a sua mãe com antecedência.”
“Está bom.”
“Você tinha pensado nisso?”
“Eu estava tentando não pensar.”
Bob balançou a cabeça. “Isso foi outra coisa que o Jack fez que foi muito
esquisita. Por que ele investiu o dinheiro todo dele em ações da Sweeting-Aldren?
Porque não foi como se ele tivesse recebido tudo em ações e depois feito a
besteira de não diversificar. Os registros mostram que ele tinha um portfólio bem
equilibrado até o início da década de setenta, que foi quando ele fez um novo
testamento — suponho que depois que ele se casou com a Rita. Aí, ele se
aposentou e começou a comprar ações da empresa sistematicamente, até
transformar o portfólio dele inteiro em ações da Sweeting-Aldren. Uma
maluquice que já custou muito dinheiro à sua mãe.”
“Coitadinha.”
“O que a gente não consegue entender é por que o Jack fez isso. Tudo bem, ele
era um cara que vestia a camisa da empresa, foi lá que ele fez a fortuna dele, e
eu nem sei quantas vezes ele me falou que a Sweeting-Aldren era a empresa
mais bem administrada do país. Provavelmente, o mesmo número de vezes que
eu o vi na vida. Uma dúzia de vezes, mais ou menos. Só que ele era tão vidrado
em dinheiro quanto era em mulheres, e ele era tudo menos burro. Eu
simplesmente não consigo imaginar o Jack tomando decisões de forma
emocional. Tem que haver algum motivo ganancioso por trás do que ele fez, em
algum lugar que eu não estou conseguindo enxergar. Teve um canadense um
tempo atrás, um sujeito chamado Campeau, aquele que era dono de lojas de
departamentos, sabe? Ele investiu todo o dinheiro dele na própria empresa e todo
o dinheiro dos filhos também, coisa de uns quinhentos milhões. Aí, quando ele foi
ver, as ações não estavam mais valendo praticamente nada. Se você é
ganancioso e tem confiança em si mesmo, imagino que você pense: Por que é
que eu vou investir um tostão que seja em coisas que não vão me dar o máximo
retorno?”
“É, por que não?”, disse Louis.
“Eu vou te dizer por que não. Porque o Jack comprava ações estivessem elas
no preço e na cotação que estivessem. Toda vez que o prazo de alguma aplicação
dele vencia, ele convertia o montante em ações ordinárias da Sweeting-Aldren,
não importava a que preço elas estivessem sendo vendidas, e isso depois que ele
já tinha se aposentado. Você não diria que isso é meio irracional?”
“Imagino que sim, se eu entendesse de ações.”
Bob se inclinou para a frente de repente, apoiando os cotovelos nos joelhos, e
focalizou seus olhos vermelhos e entusiásticos em Louis.
“A namorada do Jack trabalha na empresa como química”, disse ele. “A
empresa escava um poço de injeção de resíduos três ou quatro vezes mais
profundo do que seria necessário. A química desaparece. O Jack se casa com um
tribufu. Depois, ele converte todo o ativo dele em ações da empresa, não importa
a que custo. Quando morre, ele deixa as ações num fundo fiduciário para o
tribufu. Você não está vendo nada aí não?”
Se essa pergunta tivesse sido feita a Louis por qualquer outra pessoa, ou em
qualquer outro momento dos últimos dez anos, ele só teria ficado irritado,
pensando que, se a pessoa tinha algo a dizer, ela devia dizer de uma vez, em vez
de ficar torrando a sua paciência. O que ele sentia agora, porém, era vergonha
por não estar vendo o que o pai via. Ficou envergonhado por ter de sacudir a
cabeça.
“Não”, disse ele. “Você vai ter que me dizer.”
13.

O País, de acordo com os primeiros Ingleses a nele deitarem os olhos,


assemelhava-se mais a um Parque sem fim do que a uma Selva. Desde a costa
rochosa até onde um homem era capaz de avançar pelo interior em uma
semana, estendia-se uma Floresta repleta de Cervos, Alces, Ursos e Raposas;
com Codornas, Perdizes e Perus silvestres tão inocentes e Abundantes que um
homem poderia deitar fora seu Mosquete e caçá-los com as mãos nuas. Havia
majestosos Pinheiros, Nogueiras, Castanheiros e Carvalhos, que se elevavam a
alturas nunca vistas por nenhum Europeu e tão generosamente espaçados (como
observaram vários Viajantes) que um Exército poderia marchar com facilidade
por entre eles. Abaixo das árvores e nos Intervalos entre elas, não se
encontravam nem Sarças nem Moitas, mas um Tapete baixo e macio de doces
Capins e Ervas que os Cervos e os Alces muito apreciavam.
Na aurora do décimo sétimo Século de nosso Senhor, a terra junto à Baía de
Masathulets tinha sido despojada de suas árvores, por Índios necessitados de
lenha. Viçosas Campinas e Colinas cobertas de arbustos estendiam-se em direção
a oeste desde a boca do Rio Charles até onde a vista alcançava. A Noite podia
cair ao meio-dia quando um milhão de Pombos selvagens enchiam o céu, e na
Estação da desova as águas de ribeirões tornavam-se Prateadas, com Eperlanos,
Esturjões, Percas e Savelhas nadando contra a corrente em tamanhas Multidões
que parecia que um homem poderia atravessar até o outro lado por cima deles,
como se atravessasse uma ponte. As ostras da Baía tinham conchas de mais de
um palmo de comprimento e não cabiam inteiras dentro da boca. O solo em
muitos lugares era negro e rico como Caviar.
Embora os primeiros Ingleses a se estabelecerem nesse Parque quase tenham
morrido de fome, os Índios pareciam viver tal qual Reis — trabalhando pouco e
carecendo de pouco, caçando e pescando ao seu próprio arbítrio. Eram os índios
que, uma ou duas vezes ao ano, ateavam o Fogo que se espalhava rápida e
inofensivamente por vastas extensões de Floresta, consumindo assim Urzais e
muito Mato inútil, matando Pulgas e Camundongos e permitindo o crescimento
do doce Pasto. Quando Deus criou o Sol, a Lua e os Planetas, esses Índios já
vinham chamando essa Terra de sua havia três mil anos; e depois de outros seis
mil anos ela era ainda mais parecida com um Jardim do que no dia em que o
primeiro Ser Humano andou sobre ela.
Na primavera e no verão, as Mulheres indígenas labutavam para plantar Milho
em montes e o cultivavam junto com Abóboras, Abóboras-morangas, Melões,
Tabaco e Feijões, que trepavam nas hastes do milho. Seus campos desordenados
eram Criadouros também para seus filhos. Os homens lançavam-se ao mar em
troncos de árvore ocos e remavam à procura de Focas e Morsas, pescando
bacalhau e arpoando Toninhas e Baleias. Se seus troncos de árvore afundavam,
como era costumeiro acontecer, eles nadavam durante duas horas para chegar à
costa. Onde quer que calhassem de pousar os olhos na Terra, eles encontravam
Mirtilos, Morangos, Groselhas, Framboesas, Oxicocos e Corintos. Mulheres e
crianças colhiam essas frutas e capturavam os pássaros que vinham comê-las.
Com armadilhas, capturavam também lebres, porcos-espinhos e outros animais
pequenos. A maior parte do Milho e do Feijão que elas colhiam era guardada
para o inverno, ao passo que o resto era comido, junto com Castanhas, Bolotas,
Tubérculos, Vieiras, Mariscos, Caranguejos, Mexilhões e Abóboras, em Festas
que duravam muitas semanas. Depois, quando os Cervos e Ursos estavam mais
gordos, os homens partiam em expedições de caça pela Floresta. Mulheres
arrastavam carcaças até as Tendas e faziam Roupas com as peles dos animais e
preparavam a Carne. Quando os homens tinham sorte, eles comiam dez
Refeições por dia, dormindo nos intervalos. Quando estavam sem sorte, eles
passavam fome durante algum tempo, pois o verão seguinte sempre trazia
Abundância.
As Guerras e a Abstinência de Relações carnais mantinham um equilíbrio
entre a População e os frutos que a terra era capaz de produzir. Quando um
campo se esgotava, os Índios plantavam em outro lugar. Quando as Pulgas se
tornavam intoleráveis, os Índios transferiam suas Aldeias. Não viam utilidade em
Propriedades que não pudessem ser facilmente transportadas ou facilmente
abandonadas e refeitas. E, como viviam num Mundo onde havia ou muita
comida ou pouca comida e onde, por outro lado, havia bastantes Roupas, Lenha,
Tabaco e Mulheres para satisfazer suas necessidades, eles nunca tinham pressa.
Tudo que pudesse ser adiado para amanhã era adiado. Não havia Ratazanas no
Mundo deles, nem Baratas, nem Urtigas, nem Porcos, nem Vacas, nem Armas
de Fogo, nem Sarampo, nem Catapora, nem Varíola, nem Gripe, nem Peste,
nem Mal-gálico, nem Tifo, nem Malária, nem Febre Amarela, nem Tísica.
Pelo lado negativo — como o próprio Bob sempre se apressava em admitir —,
os Índios não tinham aquelas maravilhosas azeitonas pretas gregas. Não tinham
queijo azul, nem cardamomo, nem os vinhos de Bordeaux, nem violinos. Não
tinham nenhuma concepção de manteiga. Sua imaginação não era enriquecida
pela porcelana chinesa, por manuscritos persas ornados com iluminuras ou pela
ideia de um passeio de trenó à meia-noite no inverno russo. Será que saber que
Júpiter tinha luas valia o preço da peste negra? Será que uma pessoa trocaria a
Ilíada e a Odisseia por contentamento e uma vida sem gripe? Será que ela
conseguiria se virar se lhe tirassem as panelas e os talheres de metal e, com eles,
a história mundial?
Seria como perguntar a uma pessoa se ela optaria, se pudesse, por nunca ter
nascido; ou como perguntar à irmã mais velha da América do Norte, a Europa,
se ela preferia ter permanecido na escuridão fetal da Idade da Pedra.
Então o mundo dos índios estava dormindo, vivo, mas ainda não nascido, até
que os europeus chegaram, e os poucos missionários e colonos compassivos o
bastante para se perguntarem por que um mundo como aquele tinha de padecer
a dor de despertar para a consciência — e por que eles próprios tinham de ser os
instrumentos desse despertar — devem ter respondido com convicção: porque
Deus quer assim. Para esses europeus de consciência, essa convicção deve ter
sido um conforto.
Para o resto, era um expediente. “Enchei a terra e submetei-a”, Deus ordenou
no Gênesis. Os ingleses do Senhor chegaram a Massachusetts e, vendo que os
nativos haviam desobedecido o mandamento — o lugar era todo árvores e
nenhuma cerca! nenhuma igreja! nenhum celeiro! —, sentiram-se no direito de
enganá-los, chantageá-los e massacrá-los. Porcos ingleses comeram suas
colônias de mariscos e as safras de seus campos sem cerca; armas inglesas
chacinaram aves e cervos. A catapora inglesa, a varíola inglesa e o tifo inglês
dizimaram aldeias indígenas inteiras, deixando corpos estirados no chão diante
das moradias. Eles eram galhos caindo na floresta, esses homens de setenta anos
e mulheres de trinta anos e meninas de três anos, sem que ninguém os ouvisse.
No espaço de uma geração, mais de oitenta por cento dos índios da Nova
Inglaterra morreram de doenças europeias. Vermont ficou praticamente
despovoada.
“Deus”, disse John Winthrop, “desembaraçou, assim, o nosso direito a este
lugar.”
Sendo chapéus de feltro e roupas de pele a moda no Velho Mundo, os índios
que sobreviveram às epidemias puderam trocar peles de castor por coisas como
chaleiras de cobre e anzóis de ferro, que tornavam suas vidas mais fáceis.
Passado algum tempo, porém, eles já tinham uma fartura de chaleiras e de
anzóis e, então, começaram a malhar as chaleiras e transformá-las em joias.
Quando as joias de cobre se tornaram tão comuns que perderam o seu prestígio,
os ingleses conquistaram os índios Pequot de Connecticut, exigiram que eles
pagassem um tributo em wampum — contas polidas feitas com conchas de búzio
e de amêijoa — e inundaram o mercado de peles com essa moeda. Como o
wampum era escasso, portátil e ornamental, como o ouro, não havia, a princípio,
limite para o prestígio que um índio podia conquistar com o seu acúmulo. Mas
com cada vez menos índios em circulação e cada vez mais wampum, instalou-se
inevitavelmente a inflação. Em pouco tempo, todos os castores de Massachusetts,
Connecticut e Rhode Island foram exterminados, mesmo os índios menos
importantes usavam colares de wampum antes reservados aos chefes tribais, e os
comerciantes ingleses eram pagos em libras esterlinas pelas peles que enviavam
para além-mar. Todo mercado tem seus vencedores e seus perdedores;
infelizmente para os índios, a libra esterlina acabou se revelando um investimento
melhor do que o wampum. E no processo de atribuir preços abstratos em libras
esterlinas a imóveis igualmente abstratos, os ingleses mais espertos aprenderam a
viver da terra trabalhando menos ainda do que trabalhavam os índios quando
levavam vidas de reis: comprando barato e vendendo caro.
“Uma grande questão a respeito do século xvii”, disse Bob, “é se a economia
estava voltada para a subsistência ou se já havia uma mentalidade capitalista. E,
se havia capitalismo, qual era o grau de sofisticação dele. A especulação
imobiliária é um bom indicador de sofisticação, e havia um material bem
intrigante lá em Ipswich. A sua mãe não gostou nem um pouco da ideia de eu
ficar hospedado na casa do Jack, mas eu achei que era só paranoia dela. Eu ainda
era um jovem cretino. E mesmo agora eu não tenho objeção nenhuma à ideia de
beber uísque escocês às custas de um alto executivo. Eles não são mágicos, sabe
— aquele uísque não brota da pedra. Politicamente, claro, o Jack e eu não
podíamos ser mais opostos...”
“Isso foi em...?”
“Novembro de 69. Eu tinha tirado licença da universidade pra fazer a minha
pesquisa. A Sweeting-Aldren estava enviando vinte milhões de dólares por mês
em desfolhantes direto para o Vietnã, além de carregamentos esporádicos de
napalm. E, como consequência direta disso, o chefe do departamento jurídico e
vice-presidente sênior da empresa tinha conseguido comprar um pedaço da
história da era revolucionária no valor de um milhão de dólares na Argilla Road.
Todo dia de manhã, durante uma semana, eu subia aquela estrada a pé até
Ipswich, uma cidade que recebeu a sua carta em 1630 de uma Coroa inglesa
imperialista e expansionista, uma cidade cujo bem mais valioso é, de longe, a sua
própria história, uma cidade que se orgulha de ter sido um dos primeiros centros
fomentadores da liberdade de consciência e da Revolta dos Impostos da década
de oitenta, quer dizer, da década de 1680. Enquanto aqui os meus alunos
expressavam livremente suas consciências em protestos contra uma guerra
imperialista no sudeste da Ásia, uma ousadia pela qual eu não creio que eles
desfrutassem do apoio popular universal em Ipswich, certamente não na Argilla
Road. E nem tampouco na sede do Tribunal de Justiça de Salem. Todo dia,
durante outros cinco dias, eu ia pra lá e lia os registros de centenas de escrituras.
Escrituras: que palavra! Como é curioso que as escrituras dos nossos
antepassados sejam os registros da compra deste ou daquele pedaço triangular de
pasto por três bois de um ano de idade, e da venda do mesmo pedaço de pasto
nove meses depois por doze libras e seis shillings. Foram esses os grandes feitos
heroicos dos nossos antepassados.”
“Mas a Krasner, ela estava morando com ele?”
“Não, não. Se ela tivesse se mudado para a casa dele, teria sido o fim dela. Ela
teria virado parte da família.”
“Como ela era?”
Bob verteu mais um pouco de uísque no próprio copo. Inclinou a garrafa de
novo e verteu mais um pouquinho, depois mais uma quantidade bem pequena,
como se estivesse honrando algum limite muito preciso. Respirou fundo, virou a
cabeça e olhou para a porta de tela, como um querelante tentando se lembrar de
seu agressor.
“Escandalosa, vulgar, linda”, respondeu Bob. “Ela tinha uma daquelas bocas
eslavas enormes, olhos oblíquos eslavos, cabelo castanho-arruivado comprido,
talvez um leve sotaque eslavo — pelo menos, ela gostava de engolir os artigos
definidos. Ela era perfeita para os objetivos do Jack. Tinha a medida exata de
mau gosto e de maus modos que permitia que ela se deitasse com a cabeça no
colo dele e se pendurasse no pescoço dele, de modo que não deixasse dúvidas
quanto ao tipo de relação que eles tinham. Aí, de repente, ela estalava os dedos
na cara dele, pra que eu visse que ela tinha brio. Como um cavalo semiamansado
ou algum outro clichê do tipo, que deixa os homens de certa inclinação
enlouquecidos. Ela tinha uma daquelas vozes de violoncelo que fazem com que
você tenha a certeza de que o corpo dela inteiro é capaz de tremendas
ressonâncias, sob as condições certas. E um corpo de violoncelo também,
carnudo — um corpo de enlouquecer. Ela era o tipo de mulher que podia fumar
um charuto com um sorriso no rosto. Um objeto cujo prazer maior era ser um
objeto. Mas, mesmo assim, havia alguma coisa estranha acontecendo entre eles,
alguma coisa nada afetuosa, que eu vi com os meus próprios olhos. Ela se
sentava à mesa, ficava olhando fixamente pra ele e perguntava: Então, quando é
que você vai me nomear vice-presidente? E ele respondia: Quando você quiser.
E aí ela dizia: Amanhã, então. Ele dava de ombros e dizia: Claro, amanhã. Mas
ela continuava olhando fixamente pra ele, fumando charuto e dando aquele
sorriso dela que deixava uns cinquenta dentes à mostra, e dizia: Amanhã? Ótimo!
Amanhã você vai me nomear vice-presidente. Assim que chegar lá de manhã, a
primeira coisa que você vai fazer vai ser isso. Você disse que ia fazer, não disse?
Ou você é mentiroso? Eu espero que você não seja mentiroso. Bob, você ouviu o
que ele disse, não ouviu? Ele disse que ia me nomear vice-presidente amanhã.”
“Mas ela era química, afinal?”
Bob levantou seu copo de uísque contra a luz. Parecia esquecido da presença
de Louis. “A cada dois anos mais ou menos eu tenho uma aluna como ela. Você
tem quase certeza de que elas não entendem xongas da matéria, mas elas são tão
cheias de confiança e de energia animal, e tão convencidas da ideia de que a
história é uma selva e de que elas são espertas o bastante e sedutoras o bastante e
importantes o bastante para sobreviver nela, que elas acabam de fato
sobrevivendo. Um artigo duvidoso sobre petróleo é exatamente o tipo de trabalho
que a Anna teria de alguma forma conseguido publicar. O trabalho pode ser
ruim, mas há uma vitalidade no autor que faz com que seja difícil você recusá-
lo.”
Da escuridão do outro lado da porta de tela, vieram ruídos de rasgos,
acompanhados do leve rosnado de um gato concentrado em seu trabalho. Um
pequeno animal estava sendo desmembrado.
Em fins do século xviii, uma pessoa que percorresse os quase quatrocentos
quilômetros que separam Boston de Nova York passava, no máximo, por trinta e
cinco quilômetros de floresta. Visitantes europeus comentavam como eram
escassas e mirradas as árvores da América. Achavam que o solo devia ser
estéril. Ficavam espantados com o modo como os americanos desperdiçavam
madeira pelo bem do lucro de curto prazo ou da conveniência. Em serrarias, só
as árvores mais altas e bem formadas eram transformadas em madeira de
construção; todas as árvores menos perfeitas viravam lenha ou eram
abandonadas no chão para apodrecer. Famílias construíam casas enormes e mal
vedadas, de madeira ou de tijolos cozidos em fornos a lenha (o tipo de casa, disse
Bob, que até hoje atraía visitantes a Ipswich), e de outubro a abril mantinham
lareiras crepitando em todos os cômodos.
Assim que um americano branco adquiria um terreno dos índios, ele tentava
lucrar com aquele terreno o mais rápido possível, cortando árvores para fazer
tábuas ou queimando-as para fazer cinzas, se a demanda local por cinzas era
grande o bastante. Caso contrário, ele poupava trabalho simplesmente matando
as árvores e deixando que caíssem de podres. Culturas plantadas em terras que
antes eram de floresta cresciam bem durante alguns anos, mas, sem árvores
para captar nutrientes e com os esforços do agricultor confinados aos limites
imutáveis de uma propriedade, o solo logo se tornava imprestável. A ideia de que
os índios costumavam fertilizar as terras exauridas com peixes, disse Bob, é um
mito. A única maneira de fazer um jardim durar dez mil anos é alternar os
campos de cultivo. Eram os americanos brancos que plantavam arenques junto
com as sementes, e os campos deles fediam tanto que os viajantes vomitavam na
beira da estrada.
Impedido de perambular livremente, o gado pastava a terra de forma mais
rigorosa do que os animais selvagens costumavam fazer. Pisoteavam o solo,
empurrando o ar para fora e diminuindo a retenção de água. Cape Cod não tinha
dunas quando os europeus lá chegaram. As dunas se formaram depois que o
gado acabou com o capim nativo e a camada superficial de terra foi carregada
pelo vento.
Terras baixas, que fazia milênios vinham sendo mantidas secas por árvores
que evaporavam a água da chuva pelas folhas, viraram charcos tão logo foram
desmatadas; em seguida, vieram os mosquitos, a malária e os espinheiros. Em
terras mais altas, sem a sombra das árvores, um manto de neve derretia
rapidamente e o solo congelava até mais fundo, retendo menos água quando
vinham as chuvas da primavera. Cheias se tornaram comuns. Sem as raízes das
árvores e as folhas que cobriam o chão para refreá-la, a chuva levava embora os
nutrientes da terra. Ribeirões em fúria carregavam a camada superficial da terra
e a despejavam em baías e enseadas. Peixes em fase de desova esbarravam
com represas e águas cheias de lama. Mas no verão e no outono, sem florestas
para regular o fluxo de água, todos os ribeirões viravam valas secas, e a terra nua
torrava ao sol.
E foi assim que a terra cuja abundância havia sustentado os índios por tanto
tempo e deslumbrado os europeus se transformou em menos de cento e
cinquenta anos numa terra de pântanos malcheirosos, de ventos uivantes, de
fazendas decadentes e vistas sem árvores, de verões quentes e invernos frios de
doer, de planícies erodidas e enseadas asfixiadas. Um filme em tempo acelerado
do que aconteceu na Nova Inglaterra nesse período teria mostrado a riqueza da
terra se esvaindo, as florestas encolhendo, o solo nu se espalhando, todo o tecido
da vida apodrecendo e se desmanchando, e você poderia concluir que toda
aquela riqueza havia simplesmente desaparecido — virado fumaça ou escoado
pelo esgoto ou sido levada em navios para além-mar.
Se olhasse bem de perto, porém, você veria que a riqueza havia apenas sido
transformada e concentrada. Todos os castores que já haviam um dia respirado o
ar do condado de Franklin, Massachusetts, tinham se transmutado num aparelho
de chá de prata maciça que se encontrava numa sala de visitas da My rtle Street,
em Boston. Os enormes pinheiros brancos que se espalhavam por cerca de vinte
e cinco mil quilômetros quadrados do estado de Massachusetts haviam
construído, juntos, um quarteirão de elegantes casas de tijolos em Beacon Hill,
com janelas altas e uma frota de carruagens, candelabros parisienses e canapés
estofados com seda chinesa, tudo isso ocupando menos de um acre. Um pedaço
de terra que um dia havia provido o sustento de cinco índios com conforto tinha
se condensado num anel de ouro que estava no dedo de Isaiah Dennis, o tio-avô
do avô de Melanie Holland.
E depois que a Nova Inglaterra já havia sido inteiramente exaurida — depois
que sua abundância original havia se reduzido a um punhado de bairros tão
compactos que um deus poderia tê-los ocultado de sua visão só com as pontas dos
dedos —, então os agricultores ingleses pobres que haviam se transformado em
agricultores americanos pobres migraram em massa para as cidades e se
transformaram nos trabalhadores pobres das fundições e das fábricas de tecidos
de algodão que os detentores da riqueza concentrada estavam construindo para
aumentar sua renda. Agora, um filme em tempo acelerado mostraria uma
esfoliação de tijolo vermelho, o represamento de novos rios, a evisceração da
terra nua para extrair o barro e o minério de ferro de dentro dela, o
enegrecimento do ar, a confluência de navios cargueiros vindos de Charleston
carregados de algodão, a propagação de habitações de trabalhadores, a
propagação do ferro, os rios de fezes e urina, a chacina das últimas aves
selvagens que alguém cogitaria em comer, a fumaça dos trens que traziam carne
de Chicago para alimentar os trabalhadores, as ervas daninhas se apropriando dos
campos, a derradeira morte de celeiros e casas de fazenda pelas mãos do
recém-aberto Meio-Oeste, mas, acima de tudo, um aumento geral de riqueza.
Samuel Dennis, o bisavô de Melanie, e seus comparsas industriais e banqueiros
haviam aprendido a queimar não só as árvores de sua própria era, mas também
as árvores do Carbonífero, agora disponíveis em forma de carvão. Tinham
aprendido a explorar a riqueza não só da terra que lhes servia de lar, mas
também dos campos de algodão do Mississippi e dos campos de milho do Illinois.
“Porque afinal”, disse Bob, “qualquer riqueza que uma pessoa adquira além
daquela que ela pode produzir com seu próprio trabalho tem que vir às custas da
natureza ou às custas de outras pessoas. Olhe em volta. Olhe para a nossa casa, o
nosso carro, as nossas contas bancárias, as nossas roupas, os nossos hábitos
alimentares, os nossos eletrodomésticos. Você acha que o trabalho físico de uma
família e de seus ancestrais imediatos e o um bilionésimo dos recursos
renováveis do país a que ela tem direito poderiam ter produzido isso tudo? Leva
um tempo enorme para construir uma casa do nada; são necessárias muitas
calorias para você se transportar da Filadélfia para Pittsburgh. Mesmo que não
seja rico, você está vivendo no vermelho. Você está em dívida com operários
malaios da indústria têxtil, com montadores coreanos de circuitos, com
cortadores de cana-de-açúcar haitianos que moram seis num único cômodo. Está
em dívida com um banco, em dívida com a terra da qual você extraiu o petróleo,
o carvão e o gás natural que ninguém jamais vai poder repor. Em dívida com as
centenas de metros quadrados de aterro que vão suportar o fardo do seu lixo
pessoal por dez mil anos. Em dívida com o ar e a água. Em dívida, por tabela,
com japoneses e alemães que investem em títulos do Tesouro americano. Em
dívida com os bisnetos que vão pagar pelo seu conforto quando você já estiver
morto, que vão morar seis num único cômodo, contemplando seus cânceres de
pele e sabendo, como você não sabe, quanto tempo uma pessoa leva para ir da
Filadélfia para Pittsburgh quando está vivendo no azul.”

O avô de Melanie, Samuel Dennis iii, tinha uma casa elegante na Marlborough
Street, uma casa de veraneio no leste de Ipswich, um Dusenberg Roadster e
algumas dívidas corriqueiras, e estava comandando uma família de seis filhas, só
uma delas já casada, quando um demônio do período o fez instalar um
registrador automático de cotações da Bolsa em seu escritório na Liberty Square.
Havia décadas, o escritório vinha sendo pouco mais que um lugar para fumar
charutos e preencher cheques para sobrinhos e sobrinhas cujos fundos Dennis
administrava. Era também o desaguadouro de várias correntes de renda que
nasciam nas cidades fabris ao norte de Boston — correntes que, em 1920,
estavam mostrando uma tendência a assorear e secar — e o depósito de dólares
muito, muito antigos: dólares sujos do sangue de castores (e do sangue de visons e
do sangue de bacalhaus), dólares que tinham cheiro de pimenta-do-reino e de
rum jamaicano, que tinham o cheiro dos pinheiros das terras desmatadas dos
Dennis, enferrujados dólares de guerra, dólares acres e úmidos do suor das
mulheres que operavam teares, velhos dólares de proveniência obscura que em
algum ponto do caminho tinham resolvido pegar carona na enxurrada, todos os
dólares incrustados com juros sobre juros sobre juros, e nenhum dólar, por mais
embolorado que fosse, de forma alguma menos valioso do que qualquer outro.
Por certo o mercado de ações de uma nação democrática não fazia distinção
entre riqueza velha e riqueza nova.
Rezava a história oral da família, disse Bob, que Dennis havia demorado muito
a perceber que suas especulações o estavam levando à ruína. Num inverno de
fins da década de vinte, ele começou a voltar para sua casa na Marlborough
Street exibindo no rosto uma expressão de perplexidade que ia ficando mais
carregada a cada semana que passava. E então, uma noite, ele morreu.
Seu corpo ainda mal havia atingido a temperatura ambiente quando sua
família descobriu que estava falida. Dennis havia penhorado, ou assim afirmou a
família mais tarde, até as louças de porcelana e as toalhas de linho. Tanto as
filhas como a viúva se viram diante da perspectiva de ter de viver sob a tutela de
tias e tios moralistas, e no entanto (ou assim afirmou a família mais tarde) não
era por si próprias que elas lastimavam, mas pela casa da Marlborough Street e
pela casa de Ipswich. Quem mais cuidaria daquelas casas com o capricho e o
empenho com que os Dennis haviam cuidado?
As mulheres da família Dennis estavam à beira do desespero quando o
advogado da família lhes informou que Sam Dennis, um mês antes de morrer,
havia discretamente transferido a escritura da casa da Marlborough Street para
sua filha casada, Edith — ou, mais precisamente, para o marido de Edith, John
Kernaghan. Embora privada de sua mobília e aprestos, a amada casa fora salva.
Anos mais tarde, ninguém sabia dizer exatamente como Kernaghan havia
adquirido a casa. Era possível que ele próprio tivesse advertido o patriarca do
desastre iminente e o ajudado. Mas por mais que “gostassem” de Kernaghan, as
mulheres da família Dennis relutavam em lhe conceder tamanho
reconhecimento. Desde que Edith se casara com ele, rezava a história oral da
família, as meninas da família Dennis só faziam dar risadinhas espremidas e
sacudir a cabeça com ar complacente diante da figura daquele jovem advogado
moreno, taciturno e meio baixote que provinha da obscuridade dos bosques do
Maine e ficava tão intimidado com os ilustres Dennis que só acompanhava Edith
em visitas à casa dos pais em dias festivos e, mesmo assim, mal abria a boca.
Mas, de alguma forma, esse mesmo Jack Kernaghan — claro que graças à
carinhosa orientação e ao apoio do patriarca caído — havia conseguido resgatar
a fachada de tijolo da grandeza dos Dennis e, depois, ainda sustentou a sogra e as
cinco cunhadas durante as agruras da Grande Depressão. Ele era um sujeito
esquisito, dizia a história oral da família. Era tão obcecado por trabalho que nunca
tirava uma única semana de férias, coisa que só foi fazer depois de terminar de
financiar os estudos da última de suas cunhadas numa escola particular. Sabendo
da importância que uma casa de veraneio tinha para a saúde mental das Dennis,
todo verão ele alugava para elas uma casa em Newport durante seis semanas,
mas, como não ligava muito para água, ele próprio ficava em Boston,
trabalhando. Podia bancar o salário de uma empregada para a sogra, mas era tão
fanático por ar fresco (sem dúvida porque vinha dos bosques do Maine) que
andava quase dois quilômetros todo dia para ir para o trabalho. Todo mundo sabia
que ele tinha sempre exatamente três ternos, um molambento, um para o uso
diário e um bom. Ele era realmente um homem muito, muito esquisito, dizia a
história oral da família, mas tinha feito uma coisa maravilhosa pelas mulheres
Dennis, e elas eram gratas a ele, sim: gratas.
“E ele tinha um ressentimento horrendo delas”, disse Louis.
“Não. Pelo menos, na época em que eu o conheci, com certeza não. Eu acho
que ele desprezava demais as Dennis para se ressentir delas como iguais. Ele só
era absurdamente frio. Com a sua mãe, com a sua tia Heidi, com a sua avó, na
verdade, com todo mundo da família, menos comigo. Eu o conheci pouco antes
de a Edith finalmente se divorciar dele. Ele me perguntou o que eu fazia. Eu disse
que era estudante. Ele me perguntou o que eu planejava fazer depois que tirasse
o meu diploma e, quando eu disse que pretendia ser professor, ele jogou a
cabeça pra trás e começou a rir e saiu da sala rindo. Eu achei que tinha sido o
fim da nossa relação. Mas aí, alguns anos depois, ele apareceu no nosso
casamento, sem ter sido convidado, de braço dado com a Rita, e ele estava rindo
como se não tivesse parado de rir desde aquele dia em que saiu da sala rindo.
Depois a sua mãe me disse que aquela tinha sido a primeira vez em quase vinte
anos que ele lhe dava um beijo. Foi bem constrangedor pra mim, porque metade
das pessoas que estavam na recepção olhavam pra ele como se quisessem fuzilá-
lo, e ele fez questão de deixar claro que só estava ali porque gostava de mim: de
mim especificamente. E ele ficou me bajulando, sabe, fazia perguntas sobre o
meu trabalho como professor e depois ria das minhas respostas. Mas havia
alguma coisa genuína no interesse dele por mim, eu sentia que havia. Era como
se ele estivesse bêbado, quase como se estivesse encantado comigo e soubesse
que não devia, mas não conseguisse evitar.
“Depois nós começamos a receber cartões de Natal dele. E uma caixa de
Dom Pérignon todo ano, no dia 22 de dezembro. Uma vez ele veio pra Chicago a
negócios e me levou pra almoçar, depois pra outro lugar pra tomar mais drinques
e depois pra dar uma volta pelo Lincoln Park. Ele me perguntou: ‘Você está
cuidando bem da minha garotinha?’. (Ela não era nenhuma garotinha e também
não era dele, e foi por isso que ele riu. Ela tinha pavor dele, vivia me dizendo pra
tomar cuidado com ele e se recusava a falar comigo porque eu era boa-praça
demais e cretino demais pra devolver a champanhe dele e recusar os convites
dele.) ‘Você já conseguiu estabilidade na universidade? Conseguiu? Ah, isso é
ótimo, assim você pode pregar a revolução oito dias por semana e não sentir nem
o cheiro de insegurança financeira até a revolução de fato acontecer, e mesmo
aí você vai ter posição garantida como Comissário da História Marxista.’ E ele
estava falando sério: ele realmente achava ótimo. É muito estranho, Lou, estar
com um homem que obviamente se importa muito com você, mas por algum
motivo completamente obscuro. Um homem que, por algum razão, você deixa
quase zonzo de emoções contraditórias. Ele me fez prometer que cuidaria bem
da garotinha dele e que nós iríamos lá visitá-los algum dia. E nós fomos, porque a
sua mãe não conseguiu me impedir. Você não se lembra, mas você passou uns
dias lá em Ipswich no verão de 69, você, a Eileen e até a sua mãe, por um
tempinho. Ela passou a maior parte do tempo visitando amigas em Boston...”
“Tinha cavalos lá?”
“Cavalos? Talvez, na casa em frente. Mas, enfim, quando eu voltei pra lá em
novembro, o tapete vermelho estava estendido pra mim. Quando eu desci do
avião, tinha um funcionário da Sweeting-Aldren esperando por mim num carro
da empresa, e almoço pro Jack e pra mim na casa da Argilla Road — ostra,
lagosta, champanhe. Eu queria começar a trabalhar à tarde, mas o Jack disse:
‘Você tem estabilidade, pra que que você precisa trabalhar?’. Não exatamente
debochando de mim, mas mais me sugerindo uma maneira de pensar que ele
não sabia se eu era esperto o bastante pra descobrir por conta própria. Aí ele me
mostrou a adega nova dele, o carro novo dele, a televisão em cores nova dele
num móvel de madeira de lei. Ele me levou de carro até a praia, que mais
parecia a praia particular dele, porque estava completamente vazia, depois se
sentou no capô do Jaguar dele, acendeu um cigarro e ficou soprando a fumaça
para o mar, enquanto as ondas quebravam aos pés dele servilmente. Depois me
levou até a marina e me mostrou o barco novo dele, que ele tinha batizado de
Manipulável. Estava pintado na proa! Manipulável! A gente voltou pro carro e ele
me levou até uma casa numa colina, uma mansão vitoriana imensa mais perto
do cabo Ann. Ele parou o carro atravessado na frente da pista de entrada, desceu
e ficou parado, de costas para mim, e aí eu me dei conta de que ele estava
mijando no cascalho branco. Ele mija metade de uma garrafa de Dom
Pérignon, um riacho espesso e cinzento descendo pelo meio das pernas dele. Aí
ele dá um pulinho pra botar o negócio dele de volta pra dentro da cueca e diz que
aquela era a casa que ele realmente queria, mas que os donos tinham se
recusado a vender. Ele fica parado na frente da pista de entrada, olhando pra
colina lá em cima, e diz que imagina que a Melanie tenha me falado que o avô
dela faliu no crash de 29. Eu respondo que sim, que foi o que ela me falou. E aí
ele diz: ‘É, só que não foi em 29 coisa nenhuma, foi na primavera de 28’. Todos
os mercados inflados, todo mundo ficando mais rico, ninguém ficando mais
pobre. Ele diz: ‘Era preciso ser um tipo muito raro de homem pra conseguir ir à
bancarrota na primavera de 28’. Diz que um amigo passou no escritório dele no
inverno de 27 pra 28 e comentou que o Sam Dennis tinha posto as casas dele
como garantia em empréstimos que ele tinha feito pra pagar os prejuízos dele na
Bolsa. ‘E Bob’, ele diz, ‘nem assim o homem conseguiu enxergar o que estava pra
acontecer. Eu tive que ficar lá esbravejando das três da tarde até as dez da noite
pra conseguir convencer aquele imbecil a me deixar tentar salvar a casa da
Marlborough Street. A dívida já tinha chegado a um valor tal que saldar a
hipoteca daquela casa custou a minha própria casa e mais todos os dólares que eu
consegui tomar de empréstimo empenhando a minha palavra. Três semanas
depois, o homem morre. E a família ainda achava que o dinheiro crescia feito
limo em cofres de banco. Elas teriam ficado na rua, olhando embasbacadas pra
porra do trânsito, feito um bando de animais de zoológico, se não fosse por mim.
Elas eram tão obtusas que você não ia conseguir acreditar, Bob, e elas nunca
nem souberam o quanto eram obtusas, por minha causa. Pode acreditar: eu fui o
cavaleiro montado em cavalo branco daquela família.’
“Eu pergunto a ele: ‘Por quê?’
“Ele volta pra dentro do carro e diz: ‘Porque eu tinha medo de Deus’.
“E eu: ‘Arrã, claro’.
“E ele: ‘Acredite, Bob, eu tinha medo de Deus. Eu tinha medo do velho de
vestes esvoaçantes’.
“No caminho de volta, nós vemos uma garota na beira da estrada, tentando
pegar carona. Cabelo comprido, jaqueta de couro franjada, um violão ao lado. O
Jack reduz a velocidade e encosta o carro perto dela. Ela já estava pegando o
violão quando ele mete o pé no acelerador e vai embora. Eu deduzi que fosse
uma brincadeira de mau gosto, que ele fosse um daqueles caras que gostam de
gozar da cara de caroneiros, mas aí eu vi que ele estava sacudindo a cabeça.
‘Tábua’, ele diz. E eu: ‘O quê?’. E ele: ‘Ela é lisa. Não tem peito’. A gente segue
em frente e aí, depois de um tempo, ele diz: ‘Não tem uma só delas que não entre
no carro’. A gente volta pra Argilla Road e aí o cardápio agora é caviar de
beluga, faisão, trufas, tudo o que havia de mais caro. A Anna vai de Peabody pra
lá, depois do trabalho. Ele já tinha me falado antes que tinha uma pessoa que ele
queria que eu conhecesse...”
“Olha, eu sinto muito”, disse Louis. “Mas não sei como você pode ter passado
cinco minutos com esse cara.”
“Como eu podia não ter ódio dele? Claro que eu tinha ódio dele. À noite eu
ficava pensando se não ia acabar matando o desgraçado, em nome do povo. Mas
quando você estava com ele, a história era outra. Havia um magnetismo. Ele se
vestia como um aristocrata inglês; eu lembro especificamente de um terno de
fumar que ele tinha, de veludo castanho. Ele tinha sessenta e nove anos, mas a
pele dele era toda lisinha ainda e sem mancha nenhuma. Ele era rijo, lustroso e
elegante, como a morte, e eu acho que não há ninguém que não encontre algo
que o atraia num cara daqueles — no assassino sedutor, no modo como ele
conseguia se manter distanciado dos corpos que estavam se empilhando no
sudeste da Ásia. Aquela carnificina toda pode ser tão sexy à distância quanto é
repulsiva de perto. E quando estava com Jack Kernaghan, você sentia que essa
distância era mantida com absoluto rigor. Era como estar numa interminável
máscara da morte rubra, naquele castelo no alto da colina. Ele era a minha prova
de que realmente havia algo lá — lá nas salas de reunião de diretoria, lá no
complexo industrial-militar — que inquestionavelmente merecia o nosso ódio.
Você sabe como é fácil a gente se deixar iludir pelo nosso idealismo: como é
fácil pensar que a honestidade intelectual exige que você perdoe esses caras e os
veja como seres humanos como você, como marionetes nas mãos da história. O
Jack era uma magnífica prova do contrário. Ele era contumaz. Tinha um prazer
enorme de ser um canalha. E eu o provocava de propósito, sabe, porque que eu
era um jovem cretino exatamente como você, e ele não tinha como me atingir.
Ou assim eu pensava.”
Jack contou que seu pai era professor de escola, “um bunda-mole ridículo”, o
que você deduzia que quisesse dizer que ele fosse um homem correto e altruísta,
que procurava ensinar aos filhos o que era certo e o que era errado. Suponha que
o jovem Jack acreditasse nos ensinamentos que recebeu. Suponha que ele tivesse
uma enorme admiração pela integridade do pai. Suponha que ao sair de casa aos
dezesseis anos para ir para a universidade Jack acreditasse que vivendo
honestamente ele ganharia uma passagem para o paraíso, e que vivendo de
maneira desonesta ele iria direto para os tanques de enxofre. Suponha que ele
comungasse aos domingos e acreditasse que a hóstia era o corpo do Salvador.
Suponha que ele amasse o Salvador como seu pai amava.
Ele trabalhava durante os verões numa firma de advocacia de Orono.
Candidatou-se para estudar na faculdade de direito de Harvard, foi aceito, teve
um excelente desempenho acadêmico no curso e, em seguida, associou-se a
uma firma de advocacia de Boston, sempre mantendo o hábito de comungar aos
domingos. Com tamanho crédito tanto na sua folha de balanço celestial quanto na
terrena, ele deve ter ficado atônito com a veemência com que a família da moça
que ele queria para esposa o rejeitou. O senhor Dennis, tendo mais cinco filhas
para casar além de Edith, não chegou a ser muito vigoroso em sua oposição, mas
a senhora Dennis compensou essa tibieza considerando inadequados todos os
aspectos concebíveis da pessoa de Kernaghan, não só o fato de ele ser católico,
não só o fato de ele advir de uma família pobre “dos bosques do Maine”, não só o
fato de ele ter ludibriado a todos eles cortejando Edith fora da casa da família
dela, mas também o fato de ele ser moreno e baixinho. Ela confidenciou a Edith
que tinha tido de engolir o riso na primeira vez em que a viu ao lado de
Kernaghan. Era como um show de aberrações! Era inconcebível! Uma giganta e
um anão! Uma duquesa e seu costureiro! (Na verdade, a diferença de altura
entre os dois não chegava a quatro centímetros.) Ela expressou sua firme
intenção de boicotar a cerimônia de casamento e imediatamente cortou relações
com a família em cuja casa os pombinhos haviam se conhecido.
O fato de eles terem se casado mesmo assim, sabendo que isso frustraria
qualquer ambição social que um ou outro pudesse ter acalentado, parece indicar
que realmente havia amor entre os dois. Será que Kernaghan poderia ter vindo a
odiar Edith de forma tão passional se não tivesse a consciência de que um dia já
a havia amado? Um homem odeia em sua esposa aqueles traços que odeia na
família dela; odeia a prova de quão profundamente os traços estão enraizados, de
como a hereditariedade é inelutável. Vivendo durante quatro anos quase sem
contato algum com os Dennis e tendo tão raramente a mãe ou as irmãs à mão
para comparar com Edith, Kernaghan só tinha como vê-la em sua singularidade,
sua beleza, sua paixão por ele. E, mais ainda, deve ter formado uma imagem
igualmente esperançosa da família dela.
De que outra forma explicar a gigantesca boa ação que ele fez para a família
Dennis? De que outra forma explicar por que ele quase se arruinou
financeiramente para comprar a casa da família e em seguida tomou para si a
tarefa de sustentar aquelas mesmas mulheres que o tinham considerado tão
desprezível a ponto de se recusarem a ir a seu casamento? Se ele acalentasse
desejos de vingança em 1928, cruzar os braços e rir da ruína delas teria sido a
coisa mais fácil do mundo. Qualquer pessoa com um nível normal de força
moral consideraria que ele tinha todo o direito do mundo de fazer isso.
Ele ainda devia estar tentando conquistar o amor delas. Ele as tinha visto tão
poucas vezes nos quatro anos anteriores que devia de fato acreditar que, se as
salvasse, elas passariam a amá-lo ou, pelo menos, a respeitá-lo. (Porque, de
novo, ele jamais poderia ter passado a odiá-las tão intensamente mais tarde se
elas não tivessem sido importantes para ele um dia.)
Em sua nova vida, as mulheres da família Dennis eram, por necessidade,
civilizadas com seu benfeitor. Quatro anos antes, Kernaghan teria se contentado
de bom grado em ser tratado com civilidade. Mas agora — considerando os
riscos que ele havia corrido para salvá-las, considerando o dispêndio gigantesco
de altruísmo que ele fizera — ele precisava de mais que isso. Agora havia
chegado a hora em que elas tinham de amá-lo. Uma pessoa melhor que ele não
teria esperado menos.
Mas claro que as mulheres da família Dennis não podiam amá-lo. Mesmo que
ele não as tivesse visto no momento mais degradante da vida delas, mesmo que
ele não tivesse cometido a temeridade de salvá-las, elas eram apaixonadas
demais por seus egos brâmanes e sentiam-se seguras demais em sua absoluta
maioria feminina para precisar de qualquer outra coisa dele além de dinheiro.
Pedidos de pagamento de mensalidades escolares, de roupas, de viagens de
férias de verão, de enxovais de noiva eram comunicados a Kernaghan através de
Edith, que tentou durante algum tempo mediar entre sua família e o comandante
da casa ocupada por ela, mas que, inevitavelmente, agora que elas moravam
todas juntas, acabou desertando para o lado das Dennis. Elas eram tantas e ele só
um. As mulheres tinham o dia inteiro para contaminar Edith com suas
pretensões, preconceitos e desejos artificiais. Os filhos de Kernaghan tinham sete
mães e um pai; o pai era o homenzinho que trabalhava sessenta horas por
semana para fazer a casa funcionar.
Mesmo assim, ele levava uma vida íntegra. Melanie se lembrava de um tempo
em que o pai ia direto do trabalho para casa todas as noites e lia para ela e para
seu irmão Frank (sendo Frank o único homem além do pai numa casa de nove
mulheres), tomava um conhaque e fumava cigarros em seu escritório,
engraxava seus próprios sapatos e escovava seu próprio paletó antes de ir para a
cama. Ela se lembrava de vê-lo chegar de sua igreja diferente aos domingos,
mais tarde que o resto da família, de forma que até o domingo era como um
barco de passeio que ele sempre chegava tarde demais para pegar. Ele
acompanhava o barco andando pela praia, cuidando de sua própria vida a menos
que um filho resolvesse descer do barco e atrapalhar sua leitura dos jornais que
vinham se acumulando desde o domingo anterior. Ela dizia se lembrar de um
afeto, da época em que ela era pequena. Talvez ele já odiasse a esposa, a sogra e
as cunhadas, mas alguma coisa o mantinha a serviço delas, e talvez só pudesse
ser mesmo o tal medo do inferno. Ele praticamente admitia isso para você: ele
estivera tentando, em 1928 e pelos dez anos seguintes, conquistar as boas graças
não só das Dennis, mas também de Deus, e embora claramente estivesse
fracassando com as Dennis, ele ainda tinha esperança de ter sucesso com Deus.
Então Deus matou Frank.
Aconteceu num daqueles meses de agosto em que a família estava em
Newport, tomando banho de mar de manhã e indo a chás à tarde, Kernaghan
estava redigindo testamentos e contratos em Boston e a meningite bacteriana
podia matar um menino de pouca sorte em noventa e seis horas. Melanie ainda
se lembrava do estado em que Jack chegou a Newport. Nenhuma tristeza visível,
só uma raiva descomunal. Raiva da esposa, da sogra, da filha e da cunhada mais
nova por não levarem a sério a febre de Frank, por não terem telefonado para ele
(Jack) antes, por obedecerem às ordens do médico, por deixarem Frank aos
cuidados do hospital atrasado de Newport, por deixarem Frank morrer, por
matarem Frank com a burrice delas, por serem Dennis, por transformarem a
vida dele num inferno. Melanie, que tinha seis anos na época, foi retirada às
pressas da casa, como se a raiva do pai representasse um perigo físico para ela.
Foi um choque do qual ninguém se recuperou, um choque que fez Jack trepidar
feito um sino, feito um planeta atingido por um meteoro e que ainda continuava
vibrando trinta anos depois, de modo que ele lhe dizia, por cima do foie gras em
sua casa em Ipswich:
“Aquela família me mostrou como este país seria se fosse gerido por
mulheres. É simples: você gasta o dinheiro alheio. Vamos gastar cem bilhões
com os pobres, vamos gastar cem bilhões com os negros. Os sentimentos são
todos muito bonitos, mas de onde é que vai vir esse dinheiro? É a indústria que
bota o pão na mesa das pessoas, mas já vai ser sorte sua se elas encararem você
como um mal necessário. Elas olham pra você, elas olham pra indústria como se
você fosse lixo, como se você fosse torpe, imundo, desprezível, elas riem de você
pelas suas costas. O futuro inteiro delas podia estar morrendo que elas não iam
nem saber, a não ser quando os cortes as atingissem.”
Ele nunca mencionou o nome de Frank na presença de Bob, mas adorava falar
sobre o que tinha feito com as mulheres da família Dennis no ano em que “caiu
em si”. Sobre como a cozinha começou a feder que nem um aterro sanitário
depois que ele dispensou a empregada e as mulheres ficaram esperando,
enquanto os dias iam virando semanas, que alguém, qualquer pessoa que não
fosse elas, lavasse as panelas e levasse o lixo para a rua. Sobre como elas
encontraram uma menina negra disposta a trabalhar em troca de três refeições
por dia e alguns mantimentos extras, e como ele então cortou pela metade o
dinheiro que dava a elas para as compras do mercado (enquanto ele próprio
almoçava magnificamente bem em restaurantes e trazia regalos elaborados e
nutritivos para sua garotinha, Melanie) e corrompeu a menina negra com doces,
uísque e cigarros e trepou com ela na despensa. Sobre como deixou que duas
cunhadas iniciassem um novo ano letivo no Smith College e depois mandou uma
carta informando à faculdade que não tinha nenhuma intenção de pagar as
mensalidades delas. Sobre como fez a mesma coisa com a sogra, cortando
discretamente o crédito dela na Jordan Marsh e na Stearns e provocando cenas
em que ela era humilhada por funcionários. Sobre como cancelou a cerimônia
de casamento de outra cunhada em cima da hora, com a justificativa de que o
noivo dela era um banana. E sobre como, para si próprio, no espaço de um ano,
comprou vinte ternos, cem camisas, abotoaduras de diamante, sapatos italianos.
Sobre como levava mulheres vulgares, uma mulher diferente a cada semana,
para jantar no Ritz-Carlton, no Statler ou em outros lugares chiques onde era
certo encontrar uma plateia de amigas das Dennis. Sobre como fez as Dennis
pagarem.
No mesmo ano em que Frank morreu, um empresário bigodudo chamado
Alfred Sweeting estava comprando terras em Peabody para construir a primeira
fábrica de nitrato de amônio em escala comercial da Nova Inglaterra. Num
processo desenvolvido pelos alemães, o nitrogênio, o oxigênio e o hidrogênio do
ar limpo e da água limpa eram transformados em nitrato de amônio para a
fabricação de altos explosivos. A produção começou em 1938 e, em 1942,
Sweeting se uniu à empresa J. R. Aldren Pigmentos, sua vizinha imediata em
Peabody, uma fabricante de tintas e pigmentos que desejava aumentar seus
contatos com os militares. Durante três anos e meio, navios de guerra pintados
com as tintas cinza de Aldren e aviões B-17 camuflados com os marrons e
verdes-oliva de Aldren bombardearam fascistas com incessantes cargas dos
nitratos de Sweeting.
A fusão Sweeting/Aldren havia sido agenciada pela Troob, Smith, Kernaghan
& Lee; e Kernaghan, um especialista em legislação empresarial, tornou-se não
só o advogado como o grande conselheiro da empresa. Ele supervisionou a
aquisição das patentes e das pequenas empresas que permitiram que a Sweeting-
Aldren, quando a guerra terminou, se remodelasse e se diversificasse. No funeral
de Kernaghan, em 1982, panegiristas atribuíram a ele o mérito de ter
influenciado a empresa a se expandir precoce e vigorosamente na direção dos
pesticidas — uma decisão que, dada a obsessão dos anos cinquenta por maçãs e
tomates de boa aparência e por exterminar todas as infestações de pragas dentro
de casa e de ervas daninhas fora de casa, por mais vagamente que fizessem
lembrar comunistas, acabou por se tornar a mais lucrativa de toda a história da
empresa. Em 1949, Kernaghan e uma equipe de quatro funcionários da Troob,
Smith, Kernaghan & Lee estavam trabalhando exclusivamente com patentes,
responsabilidade civil e legislação contratual para a Sweeting-Aldren, e ele
estava comprando ações ordinárias com desconto num ritmo tal que resultou em
sua entrada para o conselho de acionistas em 1953. Mais tarde, ele contaria a Bob
que em 1956, o último ano de seu casamento e o último ano em que atuou como
advogado privado, ele trepou com trinta e uma mulheres diferentes em mais de
duzentas e vinte ocasiões e ganhou, sozinho, cento e oitenta e quatro mil dólares
em honorários da Sweeting-Aldren, já descontados os impostos. Um anúncio
publicado na Fortune em 1957 bravateava que, de acordo com confiáveis
estimativas científicas, as linhas de produtos Green Garden™ e Saf-tee-tox™ da
Sweeting-Aldren haviam matado, no ano anterior, 21 bilhões de lagartas, 26,5
bilhões de baratas, 37 bilhões de mosquitos, 46,5 bilhões de pulgões e 60 bilhões
de diversas outras pragas domésticas e econômicas apenas nos Estados Unidos.
Enfileiradas umas atrás das outras, as pragas exterminadas pelas linhas de
produtos Green Garden™ e Saf-tee-tox™ dariam vinte e quatro voltas em torno
da Terra na linha do Equador.
Kernaghan tinha cinquenta e seis anos quando se tornou vice-presidente sênior
da Sweeting-Aldren. Aqueles foram tempos dourados para o patriarcado, quando
todos os executivos da América usavam calças com um zíper na frente e cada
um deles tinha uma secretária que usava uma saia com um zíper do lado e que,
embora fosse com frequência mais inteligente, era sempre fisicamente mais
fraca que seu chefe (seus pulsos delicados arqueados sobre as teclas de uma
máquina ibm), e que se sentava numa cadeirinha projetada para revelar o
máximo possível de seu corpo pelo maior número possível de ângulos, e que
usava uma maquiagem de esposa, tinha sempre um alegre sorriso no rosto,
obedecia às ordens de seu homem e falava baixinho. Explorada pela indústria, a
energia de todos esses milhões de pares heterossexuais transformou os Estados
Unidos, no espaço de alguns anos, na maior força econômica da história do
mundo. A secretária de Kernaghan na Sweeting-Aldren era uma veterana
chamada Rita Damiano, que já se divorciara duas vezes e era vinte e poucos
anos mais nova que ele. Não sendo alta, nem jovem, nem bonita, Rita estava
longe de corresponder à mulher ideal da imaginação barata e monomaníaca de
Kernaghan. Mesmo assim, foi sua acompanhante regular durante mais de três
anos e, mais tarde, ele até se casou com ela, de modo que ela deve ter realmente
decifrado o homem. Deve ter intuído que um católico frustrado como ele
precisava que o sexo fosse sujo. Deve ter sabido como graduar a intensidade do
caso deles, como manter Kernaghan desarmado, como fazê-lo se comprometer,
como dosar as liberdades que lhe dava, mostrando-se friamente enojada diante
da ideia de fazer sexo anal na Páscoa, implorando mais sexo anal no Dia da
Árvore e, na manhã seguinte, transpirando autocontrole e eficiência ao servir
café para Aldren pai e Sweeting, que traçavam linhas dúbias entre ela e
Kernaghan com o olhar, como quem pergunta “Algum interesse ali?”, ao que
Kernaghan respondia sacudindo a cabeça com ar blasé: não. Ela representava
um papel estranho e transparente, deixando claro para ele que o achava um
velho depravado e só tolerava suas intimidades porque queria dinheiro. Porque
com um homem como ele, era mais inteligente não fingir. Era mais inteligente
ser uma puta, deixar-se escravizar unicamente pela promessa do dinheiro dele.
Ela foi ao casamento de Bob e Melanie e esnobou as ex-cunhadas de Kernaghan
antes que elas tivessem a chance de esnobá-la. Bebia com ele. Debochava da
instituição do casamento, debochava do prazer e, com o tempo, Kernaghan foi se
afeiçoando a ela e começou a traí-la com as mesmas gostosonas tapadas cuja
hipocrisia eles costumavam ridicularizar quando estavam juntos e, então, fez
com que ela fosse transferida para outro executivo. E esse foi o fim de Rita, pelo
menos por algum tempo.
Enquanto isso, graças novamente às intuições estratégicas de Kernaghan, os
investimentos que a empresa fizera na tecnologia de novos processos
começavam a render frutos. A princípio alvo do desdém de analistas, que a
consideraram uma aposta de alto risco, a Linha M da Sweeting-Aldren, um
processo contínuo em sistema fechado capaz de produzir cem toneladas de
qualquer um dentre vários hidrocarbonetos clorados por dia, estava operando a
toda capacidade desde que as Forças Armadas dos Estados Unidos tinham
descoberto centenas de milhares de quilômetros quadrados de selva no sudeste
asiático que necessitavam urgentemente ser desfolhados. O resto da indústria
levou quatro anos para conseguir atender à demanda e, nesse ínterim, a
Sweeting-Aldren nunca soube o que era ter um crescimento anual de
faturamento menor que trinta e cinco por cento. Sua nova Linha G, que produzia
elastano para uma nação cujo apetite por roupas de banho reveladoras, sutiãs
leves e outros artigos colantes havia se tornado insaciável, também estava indo de
vento em popa. Foi Kernaghan quem convenceu Aldren pai a duplicar a
capacidade da Linha G em 1956, quando ela ainda estava na prancha de
desenho, Kernaghan cujos dedos elegantes testaram as virtudes do elastano em
incontáveis peças de roupa feminina entre 1958 e 1969, década durante a qual a
capacidade extra da Linha G rendeu à empresa coisa de trinta milhões de
dólares, no mínimo, já descontados os impostos, e tudo por causa dele. Adicione
a isso as vigorosas vendas de tinta e altos explosivos em períodos de guerra, o
florescente mercado do novo pigmento alerta laranja de Aldren e os estáveis
lucros de todos os produtos mais mundanos da empresa e começa a parecer um
espanto que Kernaghan tenha saído dos anos sessenta com um patrimônio de
apenas seis ou sete milhões.
Mas a empresa era administrada de modo conservador — olhando para o
futuro, evitando contrair dívidas, investindo vultosas somas em pesquisa e
desenvolvimento. A jovem Anna Krasner, mestre em físico-química pelo Rose
Poly technic Institute, foi uma das beneficiárias do método de contratação amplo
e aleatório da empresa. Kernaghan mais tarde diria que já havia ficado de olho
em Anna desde o primeiro dia de trabalho dela na empresa, quando a vira no
meio da multidão que atravessava o estacionamento. Mas nenhum dos dois
gostava de falar sobre aqueles primeiros dias; quando o assunto surgia, eles se
calavam e faziam uma certa cara de asco; e Bob achava isso curioso, pelo
menos no caso de Kernaghan, já que é tão comum um macho vitorioso gostar de
lembrar à sua amante como ela não suportava sequer olhar para as fuças dele no
início. Talvez a ferroada da rejeição ainda estivesse fresca demais na memória
dele, ou talvez ele não estivesse muito seguro de ter saído vitorioso, ou talvez se
sentisse desconfortável ao pensar no preço que tivera de pagar para fazê-la
mudar de ideia.
Fosse como fosse, Rita com certeza estaria à espreita. Teria sabido, em
primeira mão ou através de bochichos, que Kernaghan estava caído pela química
bonita recém-contratada pelo departamento de pesquisa e que a química vinha
esmagando fragorosamente as investidas dele, enfiando as rosas de talo
comprido em balões de Erlenmey er com ácido sulfúrico, dando as trufas de
chocolate suíço para ratos albinos comerem. Numa hora em que tem de sair de
sua sala para cumprir uma tarefa para seu novo chefe, Rita passa pela sala de
Kernaghan e diz: “Você não sabia? Chega uma idade em que você só parece
medonho pra uma garota que nem ela. Em que a única coisa que ela pensa
quando olha pra você é em problemas de próstata”.
Solta em seu próprio laboratório com um gordo orçamento, Anna toma ao pé
da letra a declaração da empresa de que nenhuma ideia é estapafúrdia demais
para ser perseguida. Lê alguns relatos criativos sobre a origem do sistema solar,
cozinha água, amônia e carbono em estado livre num forno de alta pressão e
obtém petróleo. Por acaso, ela é o tipo de pessoa que prefere enfrentar leões
famintos num coliseu a admitir que está errada. Ela acredita que haja um zilhão
de galões de petróleo e zilhões e zilhões de metros cúbicos de gás natural no
interior da Terra, a partir de uma profundidade de cerca de seis mil metros, e
nenhum químico sênior com cabeça de bigorna, cabelo tosado e mau hálito irá
conseguir convencê-la de que está enganada. Ela vai direto ao vice-presidente
mais próximo, o jovem sr. Tabscott, e diz: “Vamos perfurar um poço de petróleo
nas montanhas Berkshire!”.
O sr. Tabscott, mais suscetível à beleza feminina do que o pesquisador sênior
de cabeça de bigorna, diz: “Nós vamos pensar com muito cuidado na sua
proposta, Anna, mas talvez enquanto isso você devesse reinvestir as suas energias
numa direção totalmente nova e se dar um merecido descanso depois dessa
pesquisa tão interessante e especulativa que você fez”.
Ele ainda está rindo sozinho e sacudindo a cabeça quando a obstinada Anna
começa a escrever o trabalho que acaba sendo publicado no Bulletin of the
Geological Society of America e Jack Kernaghan fica sabendo das dificuldades
dela. Ele entra sorrateiramente no laboratório de Anna, olha por cima do ombro
dela para as atrocidades ortográficas que ela está cometendo em seu caderno e
diz: “Você é muito idiota se acha que nós vamos perfurar um buraco de seis
quilômetros no granito pra você”.
Ela nem levanta a cabeça. “Eles vão perfurar.”
“Não tem a menor chance, menina.”
“Não?” Ela levanta os olhos na direção da tabela periódica pendurada na
parede a sua frente. Infla as narinas. “Então, se eles não perfurarem, vai ser
porque você não deixou. E se eles perfurarem é porque eles gostam mais de
mim do que de você.”
Ele olha para os balões com suas rosas enegrecidas e os talos estropiados. “O
Tabscott só estava sendo gentil com você”, diz Kernaghan. “Ele vai deixar o
assunto morrer. Quando ele deixar, você vai lá e pergunta pra ele se eu tive
alguma coisa a ver com isso. E aí, antes de tomar qualquer atitude precipitada,
você me procura.”
Anna joga seu lindo cabelo de um ombro para o outro e continua a escrever.
Mas acontece exatamente o que Kernaghan tinha dito que ia acontecer. Vários
cientistas sensatos são consultados e todos são da opinião de que a teoria dela tem
99,9 por cento de probabilidade de ser furada. Tabscott diz a Anna que a empresa
não vai gastar cinco milhões de dólares numa coisa que tem uma chance em mil
de estar correta, e Anna diz: “Então, eu me demito! Isso é boa teoria”.
“Nós gostaríamos que você ficasse, Anna. Mas se... eh... você insiste...”
Kernaghan a encontra no laboratório dela, esvaziando sua mesa, furiosa.
“Publicações acadêmicas aceitam meu trabalho”, diz ela. “E vocês se recusam a
perfurar o poço!”
“Cheques de cinco milhões não nascem em árvores.”
“Lá, lá, lá, quem se importa? Vocês não são dignos das minhas pérolas.”
“Raciocine um pouco”, ele diz. “As suas credenciais acadêmicas são ínfimas.
Você jamais vai conseguir trabalhar pra uma empresa tão endinheirada quanto a
nossa. Em qualquer outro lugar que você trabalhe, eles vão fazer você pesquisar
borracha vulcanizada. Fique com a gente, use os seus trunfos de maneira
inteligente e talvez um dia você consiga perfurar o seu buraco.”
Ela solta um bufo de desdém. “Você é um porco mesmo.”
Ele ri, afável, sai do laboratório e vai conversar com Aldren pai e Tabscott.
“Ah, claro, Jack”, dizem eles. “Nós vamos gastar cinco milhões pra te ajudar a
dar uma bimbada na Krasner.”
“Senhores”, diz ele, com um risinho torto, “tal acusação me ofende. O fato é
que é uma teoria interessante. E também é fato que, se a Krasner estiver certa
em relação à existência de gás e petróleo nas Berkshires, provavelmente também
há gás e petróleo bem aqui, debaixo dos nossos pés, em Peabody. O mais
importante, porém, é que eu estou sentindo uma mudança de ventos, e eu
pergunto a vocês: eu já não acertei outras vezes quando previ mudanças de
ventos? Talvez até, quem sabe, tenha acertado tanto a ponto de fazer com que
cinco milhões pareçam uma quantia insignificante? Eu sinto que o nosso fluxo de
resíduos vai se tornar um problema para nós, digamos, nos próximos três ou
quatro anos. Um novo problema, um problema regulatório. Estou pensando
especificamente na Linha M, nas dioxinas. Não vai ser surpresa pra mim se os
custos do descarte dos resíduos da Linha M triplicarem nos próximos cinco anos.”
“É uma questão de opinião, Jack.”
“Suponhamos que nós perfuremos esse buraco. Eu não descarto a possibilidade
de nós encontrarmos quantidades comercialmente interessantes de gás e de
petróleo, talvez até a profundidades menores. Mas se nós não encontrarmos, e se
nós perfurarmos o buraco aqui, vocês sabem o que nós ganhamos como prêmio
de consolação? Um poço de injeção. Um poço tão mais profundo que o lençol
aquífero que nós podemos injetar nele os nossos resíduos desde agora até o Juízo
Final e ainda continuarmos sendo bons vizinhos.”
“E a legalidade disso?”
“Eu não sei de nenhum estatuto que possa interferir”, ele responde com
absoluta tranquilidade.
Então, um estudo de viabilidade é realizado. Quanto mais a diretoria pensa no
plano de Kernaghan, mais ela gosta dele. Alguns funcionários que trabalham na
Linha M estão sendo acometidos por cloracne, um apodrecimento desfigurador e
irreversível da pele causado por exposição a dioxinas. Do Vietnã, começam a
chegar relatos alarmantes acerca de soldados que usaram os herbicidas da
Sweeting-Aldren e ficaram com dores no fígado, sarcomas intestinais e outros
horrores mais inomináveis. Metade das cobaias que estavam num caminhão de
entregas que ficou insensatamente estacionado durante uma hora ao lado do
tanque de evaporação da Linha M entrou em convulsão; a outra metade morreu.
Como a única forma de reduzir a quantidade de dioxinas no fluxo de resíduos é
duplicar a temperatura da reação, o custo da eletricidade necessária para
bombear os resíduos para o fundo da terra começa a parecer razoável. E quando
a diretoria olha para todos os efluentes gerados por todas as suas outras linhas de
produção e sente os ventos da regulação e da opinião pública mudarem, a
decisão é tomada.
Kernaghan faz outra visita a Anna, que andava cozinhando petróleos sintéticos
cada vez mais fedorentos em seu forno; ela parece uma camareira suíça com
seu avental branco de química. Ele mostra a ela o contrato de aluguel do
equipamento necessário para perfurar um buraco de oito quilômetros de
profundidade — as ordens de serviço, as autorizações para o uso de energia.
Anna dá de ombros. “Por que você demorou tanto?”
“Você será a responsável pela perfuração. Nós estamos acrescentando dez mil
ao seu salário.”
“Lá, lá, lá.”
“Você tem direitos exclusivos de publicação. Direitos exclusivos às amostras
do núcleo do buraco mais fundo do leste da América do Norte.”
“Claro. Obrigada, senhor Jack Kernaghan. De verdade. Mais alguma coisa?”
Ele sorri, sem demonstrar surpresa. “Eu não sei se você sabe, mas eu precisei
de todo o prestígio que conquistei em vinte e cinco anos de empresa pra
conseguir esse papel pra você. Vinte e cinco anos de serviços prestados.”
“Ai, ai, isso está tão chato.”
“Chato?” Ele ergue o contrato de aluguel e começa a rasgá-lo ao meio. Ela
não consegue se conter e segura a mão dele. Depois diz: “Você acha que pode
me comprar”.
“Digamos que eu estou dando uma prova do meu amor.”
“Você rasga contrato de aluguel para dar uma prova do seu amor?”
“Se não há esperança para o meu amor, o que mais eu posso fazer?”
Ela pega o contrato e o lê cuidadosamente. “Minhas Berkshires. O que
aconteceu com minhas Berkshires?”
“Eu fiz o melhor que pude.”
Em cima da mesa dela, há um béquer com petróleo sintético. Anna mergulha
um mexedor de vidro refratário no béquer e em seguida o levanta, deixando um
filete do líquido preto e viscoso escorrer da ponta. Depois, deixa-se desabar para
trás e sua cadeira a segura, rolando de encontro a uma parede com o impacto.
“Você quer perfurar meu buraco? Ótimo! Você quer tocar em mim? Tudo bem!
Você pode tocar em mim. Mas você nunca vai me tocar.”
“Veremos.”
Anna se levanta e anda em círculos em volta dele, abrindo a boca ao máximo
e dizendo “Lá, lá, lá, lá, lá”. Ela ri. Ele a agarra, enfia um joelho entre as pernas
dela, dá vazão à urgência que tão bem lhe serviu no passado.
“Então, tá”, diz ela, se desvencilhando dele, “o lixo ambulante tem joelhos
safados.”
Ele fica lá parado, ofegante, enfurecido. “Não pense que eu não seria capaz de
matar você.”
“Lá, lá, lá”, abanando a língua. “Você nunca vai me tocar!”
E esse era o pé em que as coisas estavam no outono de 69. Bob Holland,
obviamente, não podia entender por que Anna só tinha dois modos de tratar
Kernaghan — o desdenhoso e o vampe — e por que Kernaghan se sujeitava a
ser acintosamente ignorado por ela por um minuto que fosse, enquanto, com voz
gutural, ela cobria Bob de perguntas sobre o trabalho dele. Os “amantes”
trocavam frases breves e cortantes e depois se enfrentavam em longas disputas
pela atenção de Bob, as quais Anna invariavelmente ganhava e das quais
Kernaghan se retirava recostando-se em sua cadeira para encarar Anna
fixamente, seus olhos dois feixes de ódio, minuto após minuto, enquanto Bob
falava sobre a história do país e Anna falava sobre sua história pessoal, a
primeira infância em Paris e depois o resto da infância e a adolescência no norte
do estado de Nova York. Ela segurava seu cigarro verticalmente, na altura da
boca, e virava o rosto para o outro lado, apertando os olhos e entortando os lábios
enquanto soprava a fumaça para cima. Disse a Bob que ela era como ele no
amor ao conhecimento pelo conhecimento, que a mentalidade empresarial era
grotesca e desalmada, que abandonaria seu emprego sem pestanejar se não a
deixassem perseguir o conhecimento com total liberdade. Disse que os jovens
tinham vida, energia e ideais, enquanto os velhos eram carentes de seiva e
tinham mais amor ao dinheiro do que à beleza ou qualquer outra coisa. E
Kernaghan era um fingidor tão astuto que, quando ele saiu de repente da mesa de
jantar, como se estivesse com ódio de Anna por flertar — como se não tivesse
nenhum poder para fazê-la parar —, Bob achou que estava sendo um mau
hóspede e foi correndo atrás do sogro, não querendo servir de instrumento para a
tortura que ela lhe impingia. Quando Bob se virou, Anna já tinha vestido seu
casaco de pele de raposa e estava com as chaves do carro na mão.
Uma hora depois, quando estava em seu quarto datilografando anotações, ele
ouviu os gritos de Anna, altos o bastante para tê-lo acordado se ele estivesse
dormindo. Não tinha ouvido o carro dela voltar.
No dia seguinte, encontrou os dois fumando cigarrinhos matinais à mesa do
café da manhã, de mãos dadas, numa intimidade de dar gosto. Eles olharam para
Bob como se ele fosse o diabo de quem eles estavam falando.
Como era domingo e todos os arquivos estavam fechados, eles o levaram para
dar uma volta. Guardas armados fizeram sinal para que o carro atravessasse os
portões da principal instalação da Sweeting-Aldren, e Kernaghan avançou pelas
avenidas que serpenteavam por entre as diversas linhas de produção a tal
velocidade que o carro chegava a derrapar nas curvas.
“Você está me fazendo ficar com dor de cabeça”, disse Anna.
“Eu estou mostrando pro Bob a dimensão da coisa.”
Os três puseram capacetes na cabeça e fizeram um tour pela estrutura que
abrigava a novíssima Linha ab, em cujos intestinos entravam cloro e etileno e de
cujo ânus saíam grânulos brancos de policloreto de vinila. A estrutura era uma
orgia de formas metálicas, vinte módulos do tamanho de casebres trepando uns
nos outros, se encostando uns nos outros e abraçando uns aos outros com força,
cada qual com sua própria voz de êxtase termodinâmico e todos com seus
grossos apêndices enfiados bem no fundo de orifícios bordejados de aço; mas era
uma orgia rígida, cheia de força e propósito, incessante. Naquelas estruturas,
químicos transformavam os verbos de sua imaginação nos substantivos de suas
realizações acrescentando -dor, -.dora ou -or. Havia misturadores de dois braços
e cinco mil galões de capacidade, trituradores com lâminas de aço-carbono, um
reator de parede tripla e tipo físico igual ao de Charles Atlas, um resfriador de
duas fases e capacidade de oitenta toneladas, um turbomisturador contínuo com
revestimento isolante, um trepidante alimentador de rosca, bicos concentradores,
evaporadores de triplo efeito, barras intensificadoras, um secador cônico de dez
metros cúbicos, um granulador de concreto cilíndrico, um transferidor térmico
com tubos inoxidáveis e estrutura de aço-carbono, um condensador vertical de
quinhentos e oitenta metros quadrados, um classificador de cone duplo e mais
uma dúzia de compressores rotativos. O mais assustador era sentir tantos cheiros
que não faziam lembrar absolutamente nada que existisse no mundo. Eles eram
como ideias alienígenas se impingindo diretamente na sua consciência, sem a
mediação de nenhum gosto. Era essa a sensação que você teria quando invasores
do espaço chegassem e assumissem o controle do seu cérebro, uma coisa
insidiosa que não era nem espírito nem carne invadindo os sínus da sua face e
enevoando seus olhos...
Bob percebeu que estava sozinho. Um manto de chuva caía sobre Peabody,
tapando as vistas entre as estruturas das linhas de produção ao seu redor, pondo o
lugar em quarentena. Kernaghan e Anna estavam encostados num dos para-
lamas dianteiros do carro. Eles trocaram olhares. Por fim, Anna disse: “Eu e o
Jack estávamos pensando se você teria um pouco de fumo”.
“Fumo?”
“Maconha.”
Bob riu. Por acaso ele tinha, lá na casa da Argilla Road. Naquela época, um
pacotinho de trinta gramas durava meses na mão dele.
Dentro do carro, rumando para o norte ao longo da costa, com a mão de Anna
pousada no ombro dele, o impacto de todos aqueles ésteres e cetonas ainda
fresco em seu cérebro, Bob viu as cercas de pedra que coleavam pela mata
emaranhada e raquítica e teve de se forçar a não imaginar os primeiros colonos
numa paisagem como aquela. Sabia que fora só no século xviii que a erosão e
aradura constante haviam começado a encher os campos de pedregulhos
glaciais, e que os agricultores, carecendo de madeira, haviam recorrido às
pedras para construir suas cercas. E só depois que o canal de Erie e as ferrovias
abriram caminho para a região central foi que a agricultura na Nova Inglaterra
foi finalmente abandonada, seus campos retomados por troncos e espinhos. As
águas estéreis e os monótonos bosques de árvores esqueléticas e sem copa
estavam tão longe de ser um retrato do século xix quanto do século xviii; eram
tão alienígenas quanto os ésteres em seu nariz, quanto a mão de Anna em seu
ombro, as unhas em seu pescoço, as pontas dos dedos no lóbulo de sua orelha.
Ele também era um menino dos bosques, da floresta ainda virgem do oeste de
Oregon. Tinha sido apenas no ano anterior, pouco antes da visita mais recente
que ele fizera à mãe, que a Wey erhaeuser havia desmatado a colina atrás da
casa dela, arrancando de uma vez só um lucro que jamais iria se repetir e depois
deixando a terra nua para desabar dentro do rio feito um lobo tosado e morto. Na
próxima vez em que fosse à casa da mãe, ele veria a colina depois do
“reflorestamento”: a sortida e enevoada floresta de pinheiros-de-sitka, cicutas,
cedros e sequoias suplantada pelo mato, por galhos secos e pelos abetos-de-
douglas idênticos que brotavam a intervalos geométricos da terra solta e
revolvida por escavadeiras. A mesma onda de extração de lucro que varrera o
cabo Ann em 1630 ainda continuava a se espraiar pela costa do Pacífico,
carregando consigo as últimas matas virgens do continente.
Anna segurava um baseado como se fosse um cigarro, batendo a cinza com
uma longa unha vermelha, expelindo a fumaça pelo nariz, encarapitando-se na
beira do sofá com as pernas cruzadas. Kernaghan não conseguia parar de sorrir.
Parecia mais interessado em simplesmente segurar um baseado, curtindo sua
ilegalidade e simbolismo, do que em tragá-lo. Quando ficou cheia de fumaça, a
sala de estar se transformou, como quando um rolo de filme está chegando ao
fim, numa sala de cinema vagabunda, quadros e cenas inteiras sendo engolidos,
vozes e rostos saindo de sincronia, pontos brilhantes e rabiscos pretos surgindo de
repente, o cômodo inteiro pulando e depois assumindo o tom alaranjado da nova
lâmpada do projetor; Bob percebeu que, até então, o mundo na tela esférica ao
seu redor vinha sendo projetado por uma luz azulada demais. A luz cinza nas
janelas parecia a luz do sol. As três pessoas de barato se amontoaram em volta
da geladeira e levantaram pedaços de papel laminado, vendo o que a cozinheira
havia deixado. No corredor, Anna encostou a barriga na barriga de Bob e o
beijou, desabotoou sua camisa e depois foi andando para trás pelo corredor,
inclinando o corpo e fazendo gestos com as mãos para chamá-lo, como se ele
fosse um cachorrinho que ela queria que pulasse nos braços dela.
Em Beverly, numa rua insignificante, ele entrou atrás de Anna na casinha
comum onde ela morava. A poeira acumulada nos móveis estofados, os retratos
de família com suas molduras douradas baratas, a aparência chinfrim de tudo, o
mau gosto, deixaram Bob louco por ela e tão certo de sua conquista quanto estava
da maciez de colchão do corpo dela quando se afundasse em seus braços. Ela
estava selecionando lps de um suporte de metal que fazia lembrar um escorredor
de louça. Kernaghan, que tinha sido deixado no carro, estava rindo baixinho no
meio dos arbustos, espiando pela janela, enquanto a chuva escorria pela sua
careca lisa.
Eles não o tinham visto de novo, mas ele devia estar no banco de trás do carro
quando voltaram para a Argilla Road, devia tê-los seguido quando entraram na
casa, rindo baixinho feito um duende, e podia até ter ficado observando os dois o
tempo inteiro na sala de estar, talvez no canto onde vinte anos mais tarde Rita
racharia a cabeça. Observando Anna carregar a haste do toca-discos com lps do
Frank Sinatra, observando-a tirar a blusa estampada e o sutiã de Silcra,
observando a pele branca da barriga dela se preguear quando ela se inclinou para
a frente para tirar as botas de cano alto e puxar a minissaia amarela e a calcinha
branca de elastano pelas pernas abaixo. Observando os músculos dos ombros de
Bob ondularem e se arredondarem, observando seu bumbum jovem se contrair,
observando o movimento de seus quadris. Ouvindo o estalo dos seios pesados de
Anna contra o peito liso de Bob, observando a respiração acelerada secar a saliva
nos cantos da boca de Anna, ouvindo Bob gemer, ouvindo Anna dizer a Bob: “Ele
só consegue trepar... com garrafas de Dom Pérignon!”. Observando Bob
levantar os quadris de Anna do tapete e arar de novo a terra morna, úmida e
trêmula. Observando as idas e vindas, vendo o peito dos dois latejar e suas bocas
se enviesarem para cobrir uma a outra, como se eles fossem nadadores
semiafogados fazendo ressuscitação mútua. Observando a carne dela balançar e
a dele estremecer, observando Bob se estender no meio das pernas abertas de
Anna, observando Bob arfar de cara vermelha e esquecido do mundo, até que
finalmente tivesse observado o bastante e pudesse vacilar através da sala e tocar
no ombro de Bob.
“Bob, Bob, Bob!”, disse ele, rindo, de olhos semicerrados. Bob viu o pênis dele,
intumescido e perpendicular, um instrumento escuro e rosado.
“Ai meu Deus!”, Anna gritou, gargalhando. “Ai meu Deus!”
Enquanto vestia seu sobretudo e calçava suas botas, Bob ouvia Anna rir,
guinchar, berrar. Saiu no meio da chuva, atravessou o gramado e se embrenhou
na mata estéril e alterada. Sentia cheiro de fumaça de madeira queimada e de
folha molhada, ouvia o vento sendo penteado por centenas de estreitos troncos de
árvore, a água que caía dos galhos batendo nas folhas molhadas que cobriam o
chão. Faltava pouco para o dia de Ação de Graças. A penumbra e os cheiros e
sons molhados eram como os que um dia o tinham feito tremer quando ele saiu
de sua casa para pegar lenha e o fizeram voltar correndo para dentro, onde era
quente e ele podia esquecer o vento que gemia, pranteando o passado morto da
terra, se arrastando nos telhados duros, com ciúme da vida lá dentro.
Embrenhado de tal forma na mata atrofiada que o vulto escuro da casa de
Kernaghan poderia ser apenas a noite apontando no horizonte, Bob se ajoelhou
sobre as folhas e ali ficou até a chuva parar, até sua cabeça se desanuviar, até o
céu se congelar em cristais cintilantes na forma de Órion e Perseu, até ele ouvir
o carro de Anna arrancar.

Você comprou um apartamento pra ela?


Eu a ajudei com um empréstimo.
Ah, Melanie.
Era um momento excelente pra ela comprar, Bob.
Ela se espelha em você. Ela se guia pelo seu exemplo. Você não tem que dar
tudo que ela quer, sabe. Você poderia lhe dar uma orientação em vez disso.
O dinheiro é meu e eu faço com ele o que eu quiser.
Eu só estou dizendo que se você está se perguntando por que o Lou está com
tanta raiva de você, não é muito difícil de entender. Tente se colocar um pouco no
lugar dele, você pode fazer isso pra mim? Tente só um pouquinho.
Ah, por favor, não é possível que você me ache imbecil a esse ponto. Eu tenho
toda a intenção do mundo de ser justa com ele a longo prazo. Mas se você visse o
cavalo de batalha que ele faz desse dinheiro... É impossível ter uma discussão
racional com ele. Ele é igual a você. Não, ele é pior. Eu contei pra você, ele
arruinou um sofá. Ele chutou um vaso de cristal Waterfront dentro da lareira.
Que bom pra ele.
Ele não tem a menor ideia do que eu estou passando.
Ele entende que a Eileen está sempre levando coisas e mais coisas de você e
ele não leva nada.
Você não pode comparar os dois, Bob.
Obviamente, ele acha que você pode.
Você não entende. Desde que essa coisa toda começou, ele tem sido terrível.
Eu sinceramente não esperava isso dele. Ele estava só acumulando ressentimento
esses anos todos.
Você devia ligar pra ele e pedir desculpas.
Ah, pelo amor de Deus. Pedir desculpas pelo quê? Do que é que eu devo pedir
desculpas? Sou eu que estou com o problema! Sou eu que estou no meio do fogo
cruzado!
Você devia ligar pra ele e pedir desculpas. É o que você devia fazer e se não
consegue fazer isso, então você também não pode reclamar. E também não pode
reclamar se eu me encarregar do problema.
Ah, claro, vá em frente. Você sempre sabe qual é a coisa certa a fazer. Você
nunca, jamais, se deparou com uma situação em que não sabia o que fazer. Tudo
está sempre muito claro pra você. Tudo é muito simples e tudo sempre dá certo.
Você me queria, você se casou comigo. Você vive a sua vida politicamente
correta e deixa o resto todo por minha conta, e foi exatamente pra isso que você
se casou comigo.
Eu me casei com você porque eu te amava.
Eu sei disso, Bob. Eu sei disso. Não fale...
E eu ainda te amo.
NÃO FALE ISSO.
Um longo silêncio.
Doe tudo, Bob disse por fim.
Tudo o quê?
O dinheiro.
Eu vou doar. Eu vou doar... metade! Mas eu preciso receber o dinheiro
primeiro.
Doe tudo e você vai se sentir bem mais feliz. Reserve um pouco para as
crianças e um pouco para você. Reserve um milhão e doe o resto. Você vai se
sentir feliz.
Eu não posso, Bob. Eu não posso.

Enquanto isso, um buraco está sendo perfurado em Peabody ao custo, talvez,


de uns cinco mil dólares por dia, contando mão de obra, equipamentos e energia.
Anna etiqueta as amostras do núcleo à medida que elas são colhidas e as guarda
num depósito refrigerado, para retardar a oxidação. Ela tranca o depósito com
seu próprio cadeado. Não saberia distinguir xisto de feldspato nem se sua vida
dependesse disso, mas as amostras serão exclusivamente dela, para que as estude
e explore como bem entender, e o único pensamento em sua cabeça é mais
fundo, mais fundo, mais fundo. Ainda acredita que haja petróleo ou, pelo menos,
metano lá embaixo. Mas atrasos e avarias dispendiosas tornam-se cada vez mais
frequentes depois que a perfuratriz ultrapassa a marca de mil e quinhentos
metros. Concorrentes com instalações e equipamentos novos estão corroendo os
lucros que a Sweeting-Aldren vem obtendo com a guerra. Com o buraco agora
já bem abaixo do lençol aquífero, com profundidade mais que suficiente para o
descarte de resíduos, a diretoria decide que é hora de cortar o financiamento.
Kernaghan, porém, sabe que Anna vai sair da empresa se a perfuração for
interrompida cedo demais. Por meio de ameaças, mentiras e bajulação, ele
consegue convencer Aldren pai a continuar financiando a perfuração pelo menos
até o fim de 1970.
Rita não consegue entender. Uma garota sexy e orgulhosa como Anna? Com
um velho depravado e impotente? Obviamente Kernaghan encontrou alguma
forma de comprar a garota. Mas os meses passam e Anna não só não é
promovida, como continua morando naquele casebre tosco de Beverly e
dirigindo o mesmo velho Ford. Algumas joias de grande porte inspiram suspeitas,
mas Rita tem certeza de que a garota é esperta demais para ter se vendido por
alguns pares de brinco e um pendente de diamante.
“Ela odeia o velho”, colegas de Anna no departamento de pesquisa
confidenciam quando Rita pergunta.
“Mas ela dorme com ele.”
“Ele tem Poder sobre ela”, eles dizem de forma misteriosa, querendo dizer
que não fazem a menor ideia.
Rita faz uma visita à própria Anna.
“Eu o amo de paixão”, diz Anna, rindo na cara de Rita; Kernaghan já havia lhe
contado tudo sobre Rita. “E ele é louco por mim.”
“Então por que você não se casa com ele?”
“Quem disse que eu quero me casar? Ele quer uma mulher que despreze o
dinheiro.”
A conversa com Anna atiça as brasas do ciúme de Rita, transforma a cálida
incandescência numa labareda branca e direcionada. Ela começa a ficar
intrigada com a enorme torre chamada Linha F2, em volta da qual a diretoria
mandou instalar uma cerca alta e opaca e que Anna visita diariamente. Rita
começa a bisbilhotar, a ouvir conversas telefônicas pela extensão, a abrir gavetas
proibidas, a ficar de olho em chaves de armários que volta e meia ficam
abandonados. Quanto mais ela descobre, mais fácil se torna ler nas entrelinhas de
memorandos, decifrar as piscadelas de olho que os chefes trocam, decodificar os
comentários que eles fazem nos corredores. Ela monta o quebra-cabeça do
“projeto de pesquisa” de Anna.
No meio do inverno, quando o buraco já chegou aos cinco mil e quinhentos
metros, Rita vai até a sala de Anna levando duas cópias de um memorando
confidencial. Ela mostra uma das cópias à garota. “Você reconhece isso?”
Anna, entediada: “E se eu reconhecer?”.
Rita lhe mostra a outra cópia, que é idêntica à primeira (cópias a serem
enviadas a diversos executivos e a Anna Krasner, pesquisadora, e destruídas
depois de lidas), salvo pelo fato de que as palavras “poço exploratório”, que
constavam na cópia que Anna recebeu, foram substituídas pelas palavras “poço
de injeção de resíduos” na outra cópia.
Anna dá de ombros. “E daí?”
“Bom, minha querida, está parecendo que o seu namorado não perfurou o seu
buraco porque ama você, afinal. Ele perfurou pra injetar resíduos dentro. O que
me leva a concluir que ele comprou você bem baratinho, você não acha não? E
mais até, ele comprou você com dinheiro alheio. Pra ele, o seu sonho não passa
de um gigantesco esgoto.”
Anna dá de ombros de novo. Mas, uma semana depois, ela falta ao trabalho e
não dá nenhuma satisfação, e um faxineiro descobre que a mesa dela está vazia.
Anna simplesmente desaparece no grande mundo que Boston às vezes esquece
que existe em volta dela. E só o que Kernaghan tem são suspeitas sobre o que a
levou a abandoná-lo. Talvez ele desconfie de Rita, mas, quando a procura, ela,
que ainda está muito longe de se sentir vingada, tem o cuidado de não tripudiar.
A empresa não perde tempo: desmonta imediatamente a torre de perfuração e
instala uma estação de bombeamento no lugar. Na esteira do Dia da Terra,
Nixon e o Congresso estão avançando rumo a um acordo para criar uma
Agência de Proteção Ambiental e aprovar o Clean Air e o Clean Water Acts.
Kernaghan sugere que o programa de bombeamento seja mantido em segredo,
já que (a) eles perfuraram o poço sem licença e (b) dada a atual histeria
ecológica, a população poderia ficar alarmada se soubesse que produtos
químicos altamente tóxicos estão sendo bombeados para o fundo da terra, não
importa o quanto o processo seja seguro na realidade. A cadeia de comando que
culmina no bombeamento é cuidadosamente partida, de modo que apenas os
principais executivos sabem da verdadeira história, e brechas para escapar de
qualquer responsabilidade são deixadas abertas para todos, menos um deles. Os
diversos gerentes de unidade e funcionários envolvidos com o fluxo de resíduos
são informados de que os fluidos bombeados na F2 estão sendo temporariamente
armazenados num tanque subterrâneo ou de que esses fluidos são inofensivos.
Na véspera do aniversário de setenta e dois anos de Kernaghan, o dia de sua
aposentadoria, quando o programa de descarte de resíduos da empresa já está
totalmente implementado, Rita aparece na porta da sala dele. Ela vinha
acompanhando o desenrolar da conspiração, documentando cada estágio. É
secretária de um dos executivos envolvidos — talvez até do próprio Aldren pai. E
procura Kernaghan para chantageá-lo.
“Ah, nem vem”, disse Louis. “Não dá pra chantagear uma pessoa pra que ela
se case com você. Seria muita burrice casar com uma pessoa que te odeia.”
“Quem falou em casamento? Ela está tentando chantagear o Jack, ponto. Ela
quer todo o dinheiro que ele nunca lhe pagou pelas liberdades que tomou com
ela. Ela mostra a ele uma lista dos documentos que ela tem e diz: Ou você me dá
tanto, ou vocês todos vão pra cadeia. Lembre-se que nós estamos falando de uma
mulher que mais tarde fraudou um banco. Quando percebe que ela realmente
está falando sério, ele começa a chorar, de verdade, porque está cansado, porque
perdeu a Anna, porque está com medo. Ele diz: ‘Rita, por favor, eu já estou
velho. Os melhores anos da minha vida eu passei com você. Vamos ser
amigos’.”
“Mas ela fica desconfiada.”
“Claro que ela fica desconfiada. Mas é difícil raciocinar direito quando você
está com todo o poder nas mãos. Ele se ajoelha e a pede em casamento. Ele ri,
ele chora, ele está fora de si. Está totalmente nas mãos dela. E ela é mulher. Ela
não consegue reunir coragem pra de fato enfiar a faca.”
“Mas, não, espera um instante. Você não pode me dizer que a coisa mais
importante pra ele numa mulher era a beleza e a idade dela e depois dizer: Ah,
não, mas ele abriu uma exceção pra bruxa velha da Rita. Se o que ela queria era
dinheiro e não se casar, então por que ele não comprou o silêncio dela?”
“Porque ele tem tanto amor ao dinheiro quanto ela! Ele pondera a situação e
decide se casar com ela. Se ele se casa com a Rita, ele garante o silêncio dela e
não perde nem um centavo. Ele fica com o dinheiro e ainda pode continuar
caçando todas as mulheres que quiser. Além disso, se casando com a Rita ele
garante o silêncio dela a longo prazo. Então é a decisão certa a tomar. Eles se
casam e o Jack imediatamente começa a converter o portfólio inteiro dele em
ações da Sweeting-Aldren, pra garantir que a Rita fique empatada com elas.
Quando ele morre, o testamento dele determina que a mesada que a Rita vai
receber do fundo fique atrelada aos dividendos da empresa: se ela fizer alguma
coisa contra a empresa, isso vai se refletir diretamente na mesada dela. É
provável que ele tenha posto pelo menos o Aldren a par da situação toda. E então
ela realmente fica de mãos atadas. De certa forma, ela herdou a fortuna inteira
dele — claro que ela deve ter exigido um acordo pré-nupcial nesse sentido —,
mas ele não permite que ela assuma o controle da herança. É por isso que o
testamento tem aquela estipulação completamente absurda, pra quem não sabe
da história, de que os administradores do fundo têm que manter o ativo investido
na Sweeting-Aldren. Não era porque ele fosse um cara que realmente vestia a
camisa da empresa. Ele era inteligente demais pra isso. Foi porque ele estava se
vingando da Rita.”
“E a mamãe é que paga o pato.”
“Geralmente são as mulheres que pagam o pato, de uma forma ou de outra.”

Em 1982, Kernaghan teve um ataque cardíaco enquanto dormia. Tinha vivido


oitenta anos gozando de boa saúde, fumado durante sessenta e morreu sem dor e
sem terror. Depois que ele morreu e Rita descobriu a peça cruel que ele lhe
pregara com o testamento, ela tratou de escravizar seu espírito. Ele tinha de bater
em mesas para ela, soletrar mensagens otimistas sobre o além arrastando um
copo virado de boca para baixo e, o mais degradante de tudo, habitar corpos de
animais. Uma semana, ela olhava nos olhos do labrador de um vizinho e
começava a paparicar seu tolo marido; na semana seguinte, Jack era um gaio-
azul que cismara de passarinhar em frente às janelas da cozinha. “Ainda
aprontando as mesmas velhas estrepolias”, Rita dizia, condescendente. Sua
empregada haitiana, aliás, acreditava que Rita fora empurrada de cima daquela
banqueta do bar porque o espírito de Jack não aguentava mais tanta humilhação.
Uma mulher com uma imaginação menos fértil que a de Rita, uma mulher
que não achasse necessário ter uma gigantesca pirâmide em cima do telhado
nem uma múmia egípcia autêntica no porão, poderia ter vivido com muito
conforto com os dividendos de suas ações da Sweeting-Aldren. A indústria
química havia sofrido alguns baques na década de setenta e no início da de
oitenta, mas a Sweeting-Aldren sofrera menos que o resto. Não só a empresa não
precisava gastar dezenas de milhões de dólares com controle de poluição e
recuperação de resíduos, como conseguia repassar parte dessa economia a seus
clientes, vendendo seus produtos constantemente a preços mais baixos que os de
seus concorrentes da Costa Leste. A estação de bombeamento da Linha F2
trabalhava de forma tão tranquila e discreta que a velha geração de executivos
até se esqueceu dela e a nova geração nunca soube que ela existia. Era como a
economia nacional, que começou a aquecer de novo em meados dos anos
oitenta. O país fez um empréstimo de três trilhões de dólares para comprar
algumas armas e financiar uma melhoria colossal de estilo de vida para os ricos.
Quando a economia crescesse, ou assim se argumentava, a arrecadação de
impostos aumentaria e a dívida seria liquidada. Mas ano após ano a dívida
nacional continuava a crescer.
A natureza emitiu seu primeiro alerta em 1987. Abaixo de Peabody, no
próprio quintal da Sweeting-Aldren, a terra começa a tremer. Não é mero
acidente. Sempre havia sido apenas uma questão de tempo. O sr. X, o único
executivo oficialmente responsável pelo descarte de resíduos, o único executivo
ao qual não fora concedida uma brecha para escapar da responsabilidade quando
a coisa foi acertada em 72, recorda-se vagamente do conceito de sismicidade
induzida. Os tremores continuam. Um preocupado sr. X vai até seu chefe, Aldren
Júnior, e diz que o bombeamento precisa parar.
Aldren Jr., frio feito aço, diz: “Que bombeamento?”.
“Sandy , o bombeamento na F2. O nosso principal fluxo de resíduos?”
“Eu não faço ideia do que você está falando”, diz Aldren Jr. “É de
conhecimento geral que a nossa empresa incinera e recicla todos os seus
resíduos.”
“Brincadeiras à parte, Sandy, nós estamos provocando a porra de um enxame
de tremores a três quilômetros daqui.”
Com timing perfeito, o escritório deles treme e eles ouvem um estrondo
distante, como o de um disparo de canhão.
“Eu confiei em você, X”, diz Aldren Jr. “Você tem sido cem por cento, nota
dez em todos os quesitos. E agora você está me comunicando que os nossos
custos com descarte de resíduos vão triplicar? Eu não acho que eu vá continuar
presidente se isso acontecer. E eu tenho um interesse pessoal em continuar
presidente. É um cargo muito significativo para mim, em termos de autoestima.”
“Eu estou comunicando que nós podemos ter pela frente uma pequena
retenção no fluxo de resíduos. Algo como uma interrupçãozinha temporária,
digamos assim. Então, seria bastante aconselhável que nós investíssemos a curto
prazo na melhoria dos nossos processos de incineração e reciclagem. Ou isso ou
cogitar a construção de algum tipo de tanque de contenção de grandes
proporções.”
Aldren Jr. balança a cabeça bem devagar. “Eu estou ouvindo, nisso que você
está me dizendo, gastos na ordem de dezenas de milhões”, diz ele. “Estou ouvindo
debilitantes investimentos de longo prazo em bens de produção neste momento.
Neste momento em que eu já estou sentindo a respiração dos espanhóis no meu
cangote. Já estou sentindo a porra do bafo de alho, X! Você sabe o que eles estão
fazendo com os resíduos deles? Eles estão jogando a merda toda direto no
oceano, lá em Cádis. Eles enchem o bucho dos navios-tanque deles até a borda
de merda, vão pro meio do Atlântico e defecam tudo lá. As merdas piores eles
botam em barris de plástico e mandam pro Gabão e pra porra dos Camarões. É
com isso que eu estou competindo, X. Competindo não, tentando competir. Mais
lutando com unhas e dentes pra tentar competir. Você está ouvindo o que eu
estou dizendo? Eu estou dizendo que vai ser o velho pé na bunda pra mim, seguro-
desemprego, multas exorbitantes e uma possível temporada atrás das grades em
Allenwood pra você.”
O sr. X ouve o que ele diz. Depois, suspende o bombeamento. Com a
minúscula verba para processamento de resíduos de que dispõe, constrói uma
chusma de imensos e frágeis tanques de contenção num terreno que a empresa
tem perto de Ly nnfield e estoca seus efluentes mais perigosos ali. O resto dos
resíduos ele deixa vazar para o mar e para o ar, contando com o bom
relacionamento que a empresa mantém com a epa para não ser flagrado.
Durante alguns anos, como uma nação que meio que tenta ser mais ou menos
responsável, ele segura as pontas e não retoma o bombeamento; e durante alguns
anos, como a dívida nacional, o estoque de efluentes vai crescendo e crescendo.
Mas, por fim, há uma eclosão natural de atividade sísmica na cidade vizinha de
Ipswich, e a prudência do sr. X é vencida pelo seu medo: ele dá a ordem para
reiniciar o bombeamento. Ele só precisa de mais meia década sem nenhum
desastre sísmico para poder se aposentar com salário integral, passar os verões
em Nantucket, os invernos em Boca Raton, jogar golfe de manhã e tomar seu
primeiro Manhattan às cinco em ponto. Só mais cinco aninhos! Não dá mais para
voltar atrás agora. Ele vai cruzar os dedos, fechar os olhos e rezar: Senhor,
permita que a bomba estoure no colo de outra pessoa.

Sob a luz branca da manhã, ou melhor, do início da tarde, Bob botou a garrafa
de uísque vazia na caixa de reciclagem para Vidro Claro, entre Plástico Mole e
Alumínio, e despejou um pouco de suco de laranja numa tigela cheia de cereal.
Abelhas polinizavam flores roxas de cardo do lado de fora da janela. Os gatos
estavam se refrescando no porão. No andar de cima, uma porta se abriu e pouco
depois Louis apareceu, franzindo o cenho por causa da luz. Seu rosto tinha
marcas vermelhas de travesseiro — os intrigantes hieróglifos do sono, que toda
manhã significavam nada de uma forma diferente. “Você ligou pra ela?”
Bob não respondeu. Continuou de cabeça baixa, botando colheradas de cereal
na boca, enquanto Louis vasculhava a geladeira, tomava alguns goles de um
refrigerante sabor de cereja que já perdera o gás e, depois, postava-se de braços
cruzados diante da mesa, como um pai cuja paciência já se esgotou. “Você quer
que eu ligue pra ela?”
“Eu posso terminar de tomar o meu café da manhã primeiro?”
Louis ficou parado mais algum tempo, ainda de braços cruzados. Saiu da
cozinha em implacável silêncio.
Bob afastou sua tigela de cereal para o lado. Começou a telefonar para todos
os Krasner de Albany, contando com a gentileza do serviço de auxílio à lista
telefônica. Em sua quarta tentativa, ouviu uma voz grossa de mulher com sotaque
russo que ele já sabia que era da mãe de Anna antes mesmo de perguntar.
“Não. Não”, disse ela. “Ela não está aqui. Ela está no estrangeiro.”
“A senhora tem o número do telefone dela?”
“O que você quer. Me diga.”
Bob deu a ela uma versão reduzida da verdade.
“Ela não sabe nada sobre Sweeting-Aldren”, disse madame Krasner. “Nada.
Eu não vou dar número dela para você.”
“A senhora poderia dar o meu número para ela?”
“Quem é você? Me diga. Quem é você? O que você quer, de fato.”
“Eu era um bom amigo dela.”
“Uh. Ela tem tantos bons amigos. Ela mora em Londres. Tem marido
maravilhoso. Três filhos. O que você quer, que ela não tem. Não. Não. Eu não
vou dar número dela para você. Você tenta outra pessoa.”
“A senhora daria o meu número para ela?”
“Ela mora em Londres. Número dela não está listado. Eu sinto muito.”
Bob quase arrancou os cabelos. Então, a madame Krasner lhe deu o número
de Anna. “Muito caro ligar para lá”, disse ela. “Não é como ligar para cá. Muito
caro. Sabe, ela tem dinheiro. Uh, se tem. O que você pode dar que ela não tem?”
Era hora do jantar em Londres. Pelas janelas da sala de jantar, Bob viu Louis
parado no meio dos pinheiros, o sol forte transformando em sombras os olhos
atrás de seus óculos. Os buraquinhos do bocal do telefone estavam sujos do
batom vermelho de Melanie. Ele discou o número de Anna e, depois de três
toques, a própria Anna atendeu. Ele disse o nome dele. Ela disse:
“Quem?”
“Bob Holland.”
“... Ah, sim, Bob, como vai você?”
“Anna, escuta, eu estou tentando descobrir se a Sweeting-Aldren perfurou um
poço muito profundo em Peabody em 1970. Você por acaso se lembra?”
O silêncio sibilante do outro lado da linha se estendeu por tanto tempo que Bob
começou a achar que já não havia mais ninguém lá. Por trás do sibilo, ele ouviu
sons fantasmáticos de uma sequência de números sendo discada. Em algum
continente, um telefone tocou uma, duas vezes. Então, ele ouviu uma explosão de
risadas masculinas e femininas, uma animada confusão em algum lugar bem
perto de onde Anna estava. “Desculpe, Bob”, ela disse. “O que é que você queria
saber?”
Ele repetiu a pergunta. Novamente veio o silêncio e depois novamente uma
explosão de risadas. “Eu... não sei, Bob. Eu... não posso responder essa pergunta”,
Anna disse.
“Como assim você não pode responder? Você acha que é possível que exista
um poço?”
“Bob, nós estamos recebendo alguns amigos. Eu sinto muito.”
“Eu vi o seu artigo”, disse Bob. “Você sabe que o poço existe. Eles vêm
injetando resíduos nesse poço há anos e isso está provocando terremotos. Você
precisa me dizer o que você sabe. Eu não vou usar o seu nome, mas você tem
que me dizer.”
“Bob, eu realmente preciso desligar agora.”
“Só diz sim ou não. Eles escavaram um poço?”
“Eu sinto muito.”
“Por que você não me responde? Você prefere falar com a imprensa? Ou
com a polícia?”
Não havia mais sibilo na linha; Bob estava falando com um telefone mudo. Ele
discou de novo.
“Anna...”
“Bob, eu estou ocupada e não quero falar com você.” Ela falou com uma voz
firme, controlada, zangada. “É melhor você não me ligar mais.”
“Só diz sim ou não. Por favor.”
“Sinto muito, Bob. Eu tenho que ir.”
“Anna...”
“Tchau, Bob.”
iv. no azul
14.

Como prêmio por ter concluído seu mba e como consolo por ter de começar a
trabalhar no Banco de Boston, Eileen estava tirando umas férias na Côte d’Azur
com Peter. Eles haviam alugado um Peugeot no aeroporto de Nice e se
encantado com Mônaco, sido esnobados em Cannes, se embebedado em St.-
Tropez e se submetido a uma extração indolor de seu dinheiro nas cidades
menores ao longo do caminho. Pelo menos uma vez por dia, esbarravam com
ex-colegas de turma de Eileen. Subiam uma ladeira de pedra ladeada de lojinhas
onde molhos de alfazema seca e echarpes provençais balançavam e tremulavam
ao mistral, topavam com uma ruína romana cercada de cafés e, do meio das
ofuscantes cadeiras de alumínio, vinha um coro de vozes femininas que entoava:
“Eileen! Eileen!”. Peter trincava os dentes, resmungava um “Meu Deus” e
revirava os olhos invisivelmente atrás de seus Ray -Bans, porque ele achava que
americanos na França deviam se comportar como camaleões mudos, mas
Eileen se dirigia na mesma hora para a sombra do guarda-sol de plástico com
logotipo da Cinzano ou da Pernod, onde os rapazes estavam sentados de lábios
franzidos, praticando seus olhares Ray -Ban em ciprestes distantes ou numa baía
azul-celeste — exatamente como Peter — e as moças estavam ansiosas para
trocar informações sobre todas as colegas de turma que já haviam encontrado
até então (até o fim da viagem, Eileen viu ou ouviu falar de um total de trinta e
cinco delas, de modo que a Côte d’Azur foi um prêmio muito popular entre os
formandos do mba de Harvard naquele ano), enquanto Peter, tendo se dirigido a
um canto distante da praça, se banhava ao sol encostado num bloco de mármore
talhado por escravos romanos.
Peter parecia, de fato, muito europeu, e Eileen sabia que ele falava francês
muito bem. Mas quando eles se sentavam num café e um garçom aparecia,
Peter erguia os olhos e mexia ligeiramente os lábios, mas nenhum som saía, e o
garçom, não sendo paranormal, virava-se para Eileen, que dizia “Uncaffay poor
moi, ay oon Pernod poor lum” e, em seguida, para Peter, com uma voz
sussurrante e ao mesmo tempo estridente de irritação, depois que o garçom ia
embora: “Você tem que dizer pra ele o que você quer!”. Em resposta o rosto de
Peter se congelava num sorriso tão furioso, zombeteiro e amedrontado que, no
fim, ela acabava ficando com pena dele. Dava um beijo em sua orelha,
bagunçava seu cabelo, passava a mão em sua coxa e dizia que o amava. Seguia-
se então um silêncio, no decorrer do qual o rosto dela se anuviava. “Você me
ama?”
Ele sorria mais furiosamente ainda, se debruçava na mesa e lhe dava um beijo
francês que não chegava a obter uma recepção exatamente calorosa, ainda sem
ter dito uma palavra desde a chegada ao café.
À tarde, eles iam à praia. A questão na praia era sempre: ela faria ou não
faria? Eileen era uma ilha de recato suburbano de Chicago num mar de carne
europeia — mamas normandas, genitálias belgas sombreadas por pneus de
banha belga, seios holandeses que eram minúsculos mas balançavam, pênis
parisienses incircuncisos, que ela estudava com um fascínio dissimulado e
irreprimível. Peter se deitava apoiado sobre os cotovelos, olhando para as ondas
cor de esmeralda por cima de seu calção de surfista e dedos dos pés bronzeados,
enquanto Eileen tentava se decidir. “Eu vou fazer”, disse ela por fim.
Peter bocejou. “Foi o que você disse ontem.”
“É, mas hoje eu vou.”
Ele ficou olhando para as ondas.
Levando as duas mãos às costas, ela segurou o gancho da parte de cima de seu
biquíni. Ficou nessa posição uns cinco segundos. “Será que eu devo?”
“Pense bem”, ele disse. “É uma decisão importante.”
Ela fez biquinho. “Eu vou fazer.”
Ele ficou olhando para as ondas. Ela jogou areia nele. Peter se limpou dando
leves espanadinhas com os dedos, como se sua pele fosse um disco que ele não
queria arranhar. Quando ele olhou para Eileen de novo, ela estava sentada ereta
em sua toalha, com o queixo virado para o sol e a parte de cima do biquíni na
areia ao lado dela. Eles mal se falaram até voltar para o hotel, mas lá ele apalpou
e apertou o corpo dela ardentemente, lambendo seus seios e montando nela,
estremecendo de tesão feito um cachorro, enquanto ela sorria para o teto, sem
conseguir imaginar uma felicidade mais perfeita.
Na tarde seguinte ela anunciou: “Eu não vou fazer”. Clarões brancos dos
cromados dos carros, das colheres de cafés e dos Ray -Bans de certa pessoa
vinham perfurando sua cabeça desde o café da manhã. A cama do hotel era
quente e exalava bafejos de bebidas alcoólicas vencidas; e Eileen tinha quase
certeza de que havia pegado uma infecção urinária.
“Você que sabe”, disse Peter, olhando para as ondas.
Ela roeu uma unha e piscou os olhos, mal-humorada. Como a mãe, por mais
cansada que estivesse, Eileen sempre tinha uma energia ilimitada para a
hesitação. “Você acha que eu devo?”
Nos Estados Unidos, Peter era um comprador ávido e tarimbado, mais seguro
que Eileen em relação a como uma mescla de setenta por cento poliéster e trinta
por cento algodão se comportava e com mais paciência que ela para peregrinar
de loja em loja até a camisa perfeita ou o sapato ideal aparecerem. Na Europa,
contudo, ele considerava fazer compras apenas a pior das muitas formas de dar
pinta de turista. Quando Eileen entrava numa loja, ele esperava um minuto
inteiro antes de entrar atrás dela e, depois, se ajoelhava perto da porta para
amarrar e reamarrar os sapatos, como se só tivesse entrado porque seus
cadarços estavam soltos. Folheava edições em francês de guias de viagem.
(Achava que isso o fazia parecer francês.) Perguntas diretas de Eileen
provocavam vazios olhares Ray -Ban de não reconhecimento. Ele olhava para a
rua pela porta aberta da loja como se acreditasse que os pensamentos de
qualquer francês que tivesse entrado por aquela porta fossem imediatamente se
voltar para a ideia de ir embora. (Mas as lojas estavam com frequência cheias
de franceses seriamente empenhados em relacionar suvenires mal-ajambrados
a batalhas históricas ou à antropologia da Provença e gastando profusamente.)
“Está ótimo”, ele resmungava, com os olhos na porta, referindo-se a um
potencial presente selecionado por Eileen.
“Você nem olhou!”
“Eu confio no seu gosto”, os lábios mal chegando a se mexer, os olhos na
porta.
O único presente que deu realmente trabalho para Eileen foi o de Louis. No
início do mês, quando recebeu Louis e a namorada para comer uma mussacá na
casa dela, Eileen não havia mencionado que ela e Peter estavam prestes a viajar
para a França. A verdade era que ela habitualmente evitava informar a Louis os
planos e aquisições de propriedade que andava fazendo; sempre tinha esperança
de que ele nunca viesse a descobri-los; mas claro que sabia que ele sempre
acabava descobrindo. Louis descobriria que, enquanto ele estava procurando
emprego e suando em Somerville com uma namorada que Eileen pessoalmente
achava velha demais para ele, a irmã estivera degustando fantásticos jantares de
cinco pratos no Sul da França. Assim, ela se sentia obrigada a levar alguma coisa
bacana para ele. Ao mesmo tempo, já estava imaginando Louis fazendo-a se
sentir uma idiota fosse o que fosse que ela decidisse comprar, porque, afinal, ele
tinha morado na França.
“Conhaque”, Peter sugeriu.
“Tem que ser alguma coisa da Provença.”
“Vinho”, disse Peter.
“Não sei, eu tenho que pensar. Eu tenho que pensar.”
Mas os dias estavam passando cada vez mais rápido, meio-dia virando meia-
noite, meia-noite virando meio-dia, e parecia que ela nunca conseguia pensar.
Por fim, no caminho para o aeroporto de Nice, ela entrou correndo numa loja de
departamentos e comprou uma grande faca de cozinha para ele.
Em Back Bay, havia uma mensagem de Louis na secretária eletrônica,
pedindo que ela ligasse para o número antigo dele. Uma pessoa antipática no
antigo apartamento dele deu a ela um novo número, que ela descobriu, ao ligar
para lá, ser da casa de uma amiga de Louis, Bery l Slidowsky, em cujo sofá,
segundo o próprio Louis, ele vinha dormindo fazia algumas noites.
“O que aconteceu com a Renée?”, Eileen perguntou, mais inocente que
maldosa, embora não tenha chegado a ficar triste com a notícia de que ele não
estava mais morando com ela.
“É um problema em que eu estou trabalhando”, disse Louis.
“Ah. Vocês estão tentando reatar.”
“Eu estou tentando reatar.”
“Ah. Bom, então boa sorte.”
Louis disse que sua presença estava sendo um transtorno na casa de Bery l e
perguntou a Eileen se ela se importaria se ele passasse algumas noites na casa
dela. De uma forma ou de outra, disse ele, não seria por muito tempo.
“Hum”, disse Eileen. “Acho que tudo bem. Mas se você e o Peter ficarem se
bicando, não vai ser muito agradável.”
“Confie em mim”, disse Louis.
Ele foi para lá na noite do primeiro dia de trabalho de Eileen no banco. Ela
tinha tomado meia garrafa de Pouilly -Fumé enquanto esperava por Peter, que
ainda não chegara do trabalho. Quando abriu a porta para Louis entrar, Eileen
imediatamente recuou, tombando para trás como se o chão tivesse ficado
íngreme de repente. Não conseguia acreditar no quanto seu irmão havia mudado
em três semanas. Ele estava usando seu jeans preto e camisa branca de sempre,
mas parecia mais alto, mais velho e mais largo nos ombros. Tinha cortado o
cabelo tão curto que o que sobrara era escuro e aveludado e, por alguma razão,
ele estava sem os óculos. Seu rosto estava encovado e escurecido por uma barba
de uma semana, seus olhos vazios e brilhantes por causa da ausência das lentes,
com olheiras cinzentas e acetinadas de cansaço embaixo.
“Eu...eu peguei esse bronzeado na França”, disse Eileen, com uma voz alta
demais. Foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
“É, eu soube que você foi pra lá”, Louis disse, sem nenhum sinal de interesse.
“O que houve com os seus óculos?”
“Uma pessoa pisou em cima.”
“Você já jantou?”
“Se você não se importar, eu acho que vou um pouco pro quarto”, disse ele.
“Mais tarde eu saio, se você quiser.”
Eram onze horas e ele ainda não tinha saído do quarto. Eileen deixou Peter
vendo o noticiário na cama do quarto deles e bateu na porta do segundo quarto.
Louis, sem camisa, estava debruçado sobre a escrivaninha que eles tinham lá,
escrevendo num caderno. No alto da folha do caderno, ela leu as palavras
Querida Renée. Ele não tentou escondê-las.
“Eu trouxe uma coisa pra você da França”, disse Eileen. O jet lag, o vinho e os
terrores de um primeiro dia num novo emprego haviam conspirado para fazer
seus olhos incharem e sua pele adquirir um lustre vermelho. Ela entregou a Louis
a caixa com a faca dentro.
Ele franziu o cenho. “Muito legal. Você comprou isso pra mim?”
“É pra sua cozinha. Você tem que me pagar um centavo por ela. É uma
superstição. Se você não me pagar, ela vai te dar azar.”
Obedientemente, sem pressa, ele tirou um centavo do bolso e o estendeu para
ela. Mas ela tinha se virado de frente para o futon. Estava olhando para a
pequena bolsa de náilon de Louis, que agora aparentemente estava do tamanho
de todos os pertences que importavam para ele. “Você realmente está arrasado
por causa dela, não está?”
“Estou”, disse Louis.
“Você quer me contar o que aconteceu?”
“Acho que não.”
“Você quer que eu faça alguma coisa? Eu posso tentar falar com ela, se você
quiser.”
“Não precisa não.”
Ela fez que sim, mas era mais como se sua cabeça pesada estivesse apenas
caindo para a frente. Olhando para o chão, ela disse com voz baixa e trêmula:
“Sabe, você é muito, muito bonito, Louis. Tem um monte de garotas que
achariam você um gato. E você é inteligente, independente, forte, você é um
cara superinteressante e você vai fazer o que quiser da sua vida. Vai ter uma fila
de meninas querendo sair com você. Você vai pra Europa de novo e vai se sentir
superconfiante. Você vai ter uma vida muito boa, Louis. Você sabia disso?”. Ela
lhe lançou um olhar acusador. “Eu costumava sentir pena de você. Mas não sinto
mais. Eu sei que você está completamente arrasado agora por causa dela, mas
eu não estou com pena nenhuma. Então se anime, está bom? Quer dizer, eu
espero que você consiga reatar com ela e tudo, mas não vai ser o fim do mundo
se você não conseguir.”
Louis olhou para ela com a tristeza submissa de um cachorro que sabe que
causou estrago, mas nunca teve a intenção de fazer isso. Eileen pôs a mão na
maçaneta da porta, mas, em vez de girá-la, ficou segurando-a como se fosse a
mão de uma mãe. “Eu não sei por que você sempre faz com que eu me sinta tão
mesquinha.”
“Eu não estou tentando fazer nada”, disse Louis.
“Você faz com que eu me sinta tão mesquinha”, ela insistiu. “Você faz com
que eu me sinta tão culpada. Você sempre fez isso, a minha vida inteira, inteira”,
ela tinha começado a chorar. “E eu não quero mais me sentir assim. Eu não
quero que você fique aqui. Eu quero que você procure outro lugar pra ficar. Eu
vou ter que trabalhar todo dia agora. Vou ter que ir todo santo dia pra aquela
droga daquele banco horrível, sem poder tirar férias pelos próximos dez meses e,
se quiser ter alguma chance de ser promovida, ainda vou ter que trabalhar à noite
e aos sábados. E eu simplesmente não quero que você faça com que eu me sinta
tão mal. Você pode ficar aqui por quanto tempo quiser, mas eu queria que você
soubesse disso.”
“Eu vou embora agora”, ele disse com voz calma.
“Não. Você tem que ficar. Eu vou me sentir culpada se você for. Mas eu não
quero você aqui. Eu não sei o que eu quero.” Ela bateu o pé no chão. “Por que eu
estou me sentindo tão infeliz de repente? Por que você faz isso comigo?”
“Eu vou embora.”
Ela deu meia-volta e, com o rosto roxo, se inclinou sobre ele e disse: “Você vai
ficar aqui, você vai ficar aqui, você não vai a lugar nenhum! Você não pode ir.
Você não tem nenhum outro lugar pra ir. Você vai ficar aqui porque você é meu
irmão e eu não quero que você vá embora. Se você for, eu não vou te perdoar
nunca, nunca”.
A porta bateu com força e Louis ficou sozinho no quarto, apertando a moeda
que não tinha dado a ela.
Durante três dias, eles ficaram fora do caminho um do outro. Ela saía de
manhã antes de Louis acordar, e ele só voltava para o apartamento — ela
supunha que depois de passar o dia procurando emprego — por volta de oito ou
nove horas da noite e ia direto para o quarto. Na quinta à tarde, ela estava se
sentindo atraente e cheia de remorso de novo. Voltou para casa com sua nova
sacola francesa cheia de compras de supermercado e ficou surpresa ao
encontrar Louis na sala de estar. Seria possível que ele não estivesse passando os
dias procurando emprego, mas sim vendo televisão? Tinha recuperado seus
óculos e estava sentado de cabeça baixa e mãos entrelaçadas no sofá em frente
ao equipamento de vídeo, que estava desligado.
“Espero que você ainda não tenha jantado”, disse ela.
Ele não deu nenhum sinal de que a tivesse ouvido. Ficou olhando para a tela
cinza da televisão e esfregou os polegares um no outro.
“Algum problema?”, ela perguntou, reprimindo uma onda de irritação.
Ele abriu a boca, mas só se ouviu o silêncio.
“Bom, eu vou fazer um jantar caprichado hoje”, ela disse. “Então espero que
você esteja com apetite.”
Assim que foi para a cozinha, Eileen ouviu a porta da frente se abrir e em
seguida se fechar. Ligou a televisão da cozinha e botou um frango no forno (tinha
aprendido na França que você podia comer carne quente nas saladas — poulet,
canard ou outra carne do tipo). E, então, por alguns minutos, esqueceu por
completo onde estava e o que estava fazendo, por causa da notícia que viu no
Channel 4.
... foi tragicamente baleada no que a polícia classificou como o mais violento
ataque já praticado pelo movimento pró-vida. A repórter Penny Spanghorn fala,
ao vivo, da cena desse trágico incidente. Penny?
Jerry, esta tarde Renée Seitchek foi à clínica New Cambridge Health Associates
em Cambridge, onde membros da chamada Igreja da Ação em Cristo estavam
realizando mais uma de sua série de ações ilegais para obstruir o acesso a
clínicas. A polícia prendeu doze manifestantes por tentarem impedir a entrada de
Seitchek. Por volta de cinco horas, Seitchek saiu da clínica e falou com repórteres
no que foi descrito como uma confrontação extremamente emocional. Ela
declarou que havia feito um... que havia interrompido uma gravidez. Ao que
parece agora, tragicamente, ela pode ter pagado com a própria vida por essa
declaração. Por volta de cinco e meia, ela voltou para sua casa aqui na Pleasant
Avenue, em Somerville, onde foi recebida a tiros por um agressor ainda não
identificado que se encontrava dentro de um carro estacionado do outro lado da
rua. Pouco antes das seis horas, a redação do Channel 4 News recebeu um
telefonema anônimo de um grupo extremista, assumindo a autoria do trágico
atentado e dando a seguinte declaração: “Olho por olho, dente por dente”. A
polícia de Somerville diz ter recebido um telefonema semelhante por volta da
mesma hora...
Eileen ficou olhando, chocada, para Penny Spanghorn. Estava chorando sobre
as folhas de rúcula e de chicória que pusera no escorredor de salada — chorando
não só por Renée e Louis, mas por si mesma também — quando Peter chegou do
trabalho. Contou a ele que Renée tinha sofrido graves ferimentos no peito e no
abdome e estava internada no hospital em estado crítico.
“Puta merda”, disse ele, empalidecendo. “Que coisa horrível, não?”
“Um horror, um horror. Um horror de verdade.”
“É realmente uma coisa horrível.”
A Igreja da Ação em Cristo, declarou Philip Stites, condena o atentado cruel e
covarde praticado esta tarde contra a vida de Renée Seitchek. Nós, membros da
igreja, deploramos todas as formas de violência humana, seja contra um bebê não
nascido, seja contra qualquer cidadão. Renée Seitchek é uma mulher de
consciência e uma criatura de Deus. Nós lamentamos os ferimentos que ela sofreu
e queremos estender os nossos mais profundos sentimentos à família e aos amigos
de Renée e nos juntarmos a eles rezando por ela com todo o nosso amor.
Já passava de meia-noite quando Eileen e Peter, que estavam vendo mas não
ouvindo o programa do Arsenio Hall em seu quarto refrigerado, ouviram Louis
entrar. Eileen saiu do quarto para ir falar com ele. Usava sua camisola de verão
preferida, uma camiseta leve de algodão do Bennington College tamanho gg.
Louis estava sentado no chão de seu quarto, passando um lenço de papel
dobrado nas várias bolhas estouradas e sanguinolentas que cobriam seus dois pés.
Sua camisa ensopada de suor tinha gotas de sangue e estava colada em seu peito.
Seus sapatos pretos, sujos e surrados, estavam pousados ao lado dele. Ao que
parecia, ele não andava usando meias.
“Você se machucou?”, Eileen perguntou.
“Tentaram matar a Renée”, ele respondeu com voz rouca.
“Eu sei, eu sei. Eu não consigo parar de chorar.”
“Tentaram matar a Renée.”
“Mas ela está bem, Louis. Eu ouvi no noticiário que ela está bem”, embora não
fosse exatamente isso que ela ouvira. O Channel 4 dissera apenas que Renée
ainda não havia morrido.
Louis não parava de futucar a carne viva de seus pés, puxando a pele solta
com a ponta dos dedos. Vendo aquilo, Eileen se sentiu como se tivesse caído e
ninguém tivesse vindo ajudá-la. Muito embora eles estivessem sofrendo muito
mais que ela, a sensação que tinha era que Louis e Renée haviam se unido para
lhe tomar uma herança. Sentiu uma centelha de ciúme e de raiva e, sob a luz
dessa centelha, viu que havia um padrão absoluto de bondade no mundo, um
ideal que ela estava infinitamente longe de alcançar. Louis continuava a enfiar as
unhas dos polegares em seus machucados cor-de-rosa, sem nenhum outro
objetivo a não ser a dor que isso lhe causava. Ela sabia que tinha de ficar com ele
e tentar confortá-lo, mas não conseguia suportar ver o que ele estava fazendo
com os próprios pés. Então, fugiu de lá, foi se deitar ao lado de Peter e deixou
que a culpa e a escuridão a engolissem.

Ele havia descido a escada às pressas e depois saído correndo pela


Marlborough Street. As duas fileiras gêmeas de prédios antigos de tijolo que se
estendiam em direção a oeste emolduravam um sol amarelo cujo plasma tinha
se condensado em gotas em arbustos verdes encharcados pela tempestade, em
pingos de chuva que evaporavam nos capôs dos carros, em poças reluzentes que
evaporavam no asfalto. Um aparelho de som portátil que estava numa janela de
subsolo vibrava com o estrépito e a assonância do Sonic Youth. Correndo, ele via
os tênis vermelhos de cano alto e os skates pretos de estudantes urbanos, os pés de
coelho branco de mulheres que calçavam tênis para fazer a viagem de volta para
casa, os saltos agulha e mocassins de corretores imobiliários, as patas de
cachorros, as botas sem cadarço e quase sem sola de homens sem endereço.
Chaves chacoalhavam e portas de carros se fechavam. Um homem (tinha de ser
um homem, pois mulheres raramente faziam isso) assobiava.
Ele correu pela Massachusetts Avenue e atravessou o rio, ao longo do qual
uma enxurrada parecia ter acabado de passar, empurrando todos os barcos de
aluguel e embalagens alagadas do McDonald’s para o esgoto da enseada de
Boston e deixando em sua esteira um cheiro pungente de terra e água doce.
Abriu caminho por entre as lerdas multidões despejadas pelo metrô na Central
Square, passou em disparada pelo batalhão de Volvos e Subarus que logo
estariam carregando galinhas caipiras e miniabobrinhas do supermercado da
Prospect Street e atravessou as aglomerações populacionais que cercavam a
Inman Square, onde imigrantes portugueses e nativos obesos do leste de
Cambridge se misturavam a pós-graduandos de literatura comparada de Harvard
com tanta dificuldade quanto azeite extravirgem se mistura com água mineral,
onde cachecóis se desenrolavam ou se arrastavam na calçada, onde havia
suspeitos sedimentos escuros em todas as poças, onde um jovem louro e barbudo
com um lenço lilás em volta do pescoço andava pelo meio da calçada cantando
“Sugar Magnolia” em voz alta.
Quando ele atravessou a Union Square, o sol já se escondera atrás das nuvens,
deixando em seu lugar um anoitecer úmido, que cheirava a fumaça de
combustível e fruta podre. Manquejando, ele subiu a Walnut Street, o pescoço
esticado, os pés por pouco não tropeçando nas saliências da calçada, o coração
batendo pouco e futilmente, como se seu sangue, em sua ebulição, tivesse ficado
fino demais para ser bombeado. Perto do alto da colina, ele começou a passar
por carros que haviam reduzido a velocidade para se espremerem por entre as
vans do Channel 4 e do Channel 7 paradas quase na esquina da Pleasant Avenue
— ou para olharem embasbacados para elas. Um carro de polícia bloqueava o
acesso à rua. Um segundo carro de polícia e o sedã do chefe de polícia de
Somerville, identificado de forma mais discreta, estavam estacionados logo além
da cerca de arame da casa de número 7, de sua madressilva carregada e da
faixa amarela que circundava a cena do crime. Do outro lado da rua, um policial
tirava fotos do meio-fio, onde, como um curioso explicava a outro, algumas
cápsulas de bala haviam sido encontradas. Um investigador estava registrando
num formulário preso a uma prancheta os ansiosos depoimentos de dois garotos,
um tamanho pequeno e outro tamanho grande, que Louis reconheceu como o
contingente masculino do grupo de assíduos frequentadores da varanda da casa
em frente ao número 7.
“Um-sete-seis-D-V-N, números verdes no fundo branco”, o menino maior
estava dizendo. “Eu anotei aqui, está vendo? Um-sete-seis-D-V-N. Viu? Bem
aqui. Um-sete-seis-D-V-N.”
A população inteira da Pleasant Avenue havia se reunido atrás da fita amarela
da cena do crime. Estavam lá as adolescentes endo- e ectomórficas, fazendo
bolas de chiclete do tamanho e da cor de cabeças de bebê; os silenciosos
operários com bronzeados cor de uísque e lábios franzidos em resignação. Havia
mães com educação de nível superior segurando Alexes e Jessicas pela mão,
chefes de família tamanho gg cuja visão pessimista do mundo o trágico atentado
havia confirmado, um par de gêmeos mórmons albinos com suas pastas de
executivo e um quarteto de africanos magros e rijos, com shorts reluzentes e
meias esticadas até os joelhos, o menor deles carregando uma bola de futebol.
Assim que conseguiu recuperar um pouco o fôlego e fazer seus joelhos pararem
de tremer, Louis foi se enfiando por entre a multidão até chegar à fita amarela.
Pelo portão aberto da cerca da casa de número 7, ele viu o sangue na calçada de
concreto, um sangue diluído e borrado pela chuva, como tinta guache vermelha.
Viu o sangue escurecendo as beiradas das poças triangulares nos cantos
afundados das placas do calçamento. Viu uma faixa clara e mosqueada de
sangue na parte horizontal do degrau mais baixo da escada. Soltou um breve e
agudo grito de dor e incredulidade. Falando para uma grave Penny Spanghorn e
seu colega com cabeça de câmera, um policial fazia gestos dramáticos com os
braços, mirando seu dedo como se fosse uma arma.
“Pra onde ela foi levada?”, Louis perguntou.
“Pro Somerville Hospital”, responderam várias pessoas ao mesmo tempo.
Faróis avançavam do meio dos carros que seguiam para leste pela Highland
Avenue, pares de pontos branquíssimos que pareciam brotar diretamente do
sangue que cobria o céu acima da distante Davis Square. Erguendo-se acima de
sombrias transversais, cujos postes de luz ainda se encontravam nos primeiros e
rosados estágios de ignição, e de árvores escuras que balançavam seus galhos
soturnamente, o hospital se projetava da encosta da colina central de Somerville
como um navio-tanque ao anoitecer, as janelas iluminadas e as dezenas de
antenas eriçadas de sua torre em forma de passadiço sinalizando vida e vigilância
no oceano escuro e fundo. No estacionamento em frente à ala de emergência, o
mecanismo hidráulico de uma van do Channel 5 ronronava, recolhendo sua
antena parabólica.
O pequeno saguão do hospital era mobiliado com pufes oblongos acolchoados,
forrados com um tecido azul-ferrete. Howard Chun estava escarrapachado num
deles. Havia sangue nos joelhos de sua calça larga e vívidos borrões em suas
coxas, onde ele devia ter limpado as mãos, feito um açougueiro.
“Onde ela está?”, Louis perguntou.
Howard inclinou a cabeça na direção do interior do hospital. “Cirurgia”, disse
ele. Em seguida, se levantou e começou a zanzar pela sala de espera, arrancando
uma folha de um vaso de planta, fazendo flexões verticais apoiado na janela,
parando para enterrar seus joelhos ensanguentados no acolchoado de diversos
oblongos e contando a Louis o que tinha visto. Ele não falava como alguém que
amasse ou gostasse de Renée ou sequer a conhecesse ou estivesse pensando
especificamente nela. Ele parecia um adolescente que, até aquele momento, só
tivesse visto violência em filmes de Holly wood e, portanto, se sentisse impelido a
relatar a coisa horrível que vira o mundo fazer, a transmitir todo o impacto do
que vira a Louis, a tentar impressionar ou chocar ou machucar a pessoa que não
havia estado lá e que obviamente amava Renée e poderia perfeitamente
imaginar qualquer detalhe que ele deixasse de fora.
Ela estava caída de lado nos primeiros degraus da escada da casa de número
7. Suas pernas estavam encolhidas e seus pulsos cruzados sobre o peito. Havia
uma mancha de sangue em sua calça jeans logo acima de um dos joelhos e
sangue cobrindo o braço que ela tinha apertado contra a barriga. Os garotos da
casa em frente já tinham ligado para o número de emergência e estavam
parados logo atrás de Howard, disparando uma saraivada de conselhos
conflitantes e inúteis. Renée estava soltando os gemidos solitários, agudos e
genuínos de uma criança que está muito, muito doente. Seu rosto tinha a cor da
gordura de uma fatia de bacon gelada que está suando numa cozinha úmida. Ela
disse Howard e Chama alguém e Está doendo muito, muito. Então, ela parou de
falar e sua respiração ficou áspera. Os paramédicos chegaram e afastaram
Howard, suas costas masculinas largas sob camisas brancas tornando minúsculo
o pequeno embrulho de evanescente vida feminina enquanto eles tentavam
determinar qual era o estado dela. Eles lhe deram oxigênio pelo nariz e a ligaram
a um monitor portátil. Trocavam informações oralmente, pressão arterial 80/50,
pulso 120, respiração 36. Uma língua de sangue estava se espalhando pelo
concreto, parecendo ferver quando os pingos de chuva a atingiam. Perguntas: Ela
estava conseguindo respirar? Estava sentindo as pernas? Onde doía? Ela piscava
os olhos e virava o rosto quando a chuva caía em seus olhos. Com uma voz
tímida, como se só estivesse se atrevendo a incomodá-los porque parecia
importante, ela perguntou a eles se ia morrer. Uma camisa branca disse: “Você
vai ficar bem”. E depois: “Você pegou o soro?”. Enquanto a polícia colhia nomes
e endereços com Howard, Renée foi instalada na ambulância com um cateter
intravenoso em cada braço. Sua camiseta, seu sutiã e uma perna de sua calça
tinham sido cortados, e um grosso quadrado de gaze debaixo de seu seio direito
chupava seu sangue. Howard estava sentado com os joelhos quase encostados no
rosto e a mão na testa fria e molhada de Renée quando a sirene foi ligada,
subindo de tom e de volume, esperançosa. Os tubos de plástico transparente
chacoalhavam com as ondulações e irregularidades da Highland Avenue. Uma
camisa branca disse: “Renée, você está indo muito bem”. Mas os dentes dela
estavam batendo e ela não respondeu.
“Você sabe o que eles fizeram?”, disse Howard. Saltando de um pufe oblongo,
ele se virou para Louis para conferir sua reação. “Eles pegaram um tubo com
ponta afiada. Eles cravaram o tubo com toda a força nas costelas dela. Ela estava
acordada. Eles cravaram o tubo com toda a força nela. Depois eles começaram
a fazer sucção. Eu ouvi ela gemer quando eles fizeram isso. A polícia estava lá, a
gente ouviu.”
Howard conferiu de novo a reação de Louis. Embora seu rosto já não estivesse
mais vermelho por causa da corrida, Louis estava mais suado do que nunca.
Ofegando, ele acompanhava Howard com olhos amedrontados, como se
Howard o estivesse torturando fisicamente. “Você odeia a Renée?”
“Eles levaram ela pra cirurgia”, disse Howard.
“Eu perguntei se você odeia a Renée.”
Howard franziu o rosto. “O que você acha?”
Louis não estava aguentando mais olhar para ele, não ia suportar ouvir mais
nem uma de suas frases curtas e guturais. “Eu queria que você não existisse”,
disse.
“Eles começaram às seis e meia”, disse Howard.
Louis enfiou os dedos por baixo dos óculos e esfregou os olhos. Um campo
repulsivo o empurrou na direção das portas automáticas, mas, quando passou por
Howard, Louis girou o corpo e cravou ambos os punhos nas costelas dele, dando-
lhe um empurrão cujo intuito era derrubá-lo no chão. Mas havia um bocado de
inércia em Howard. Ele cambaleou e conseguiu se reequilibrar bem na hora em
que Louis partia para cima dele de novo e levava, de forma totalmente
inesperada, um senhor tabefe na bochecha esquerda, seguido de outro na
bochecha direita. “Uh!”, disse ele, sacudindo a cabeça cegamente enquanto seus
óculos voavam para longe. Howard levava vantagem na altura. Conseguia
manter Louis afastado lhe dando repelões na cabeça, no peito e nos ombros,
derrubando-o cada vez que ele investia, recuando em círculo em volta de uma
chusma de pufes. “Para de me atacar”, ele bradou num tom irritado e indignado.
“Para de me atacar.” Louis agarrou a camisa de Howard e conseguiu acertar
alguns socos de jeito na barriga dele. Howard deu vários tapas de mão aberta na
cara dele, mas então a tolerância superior de Louis à dor se fez valer quando,
aguentando as bofetadas cada vez mais fortes, ele conseguiu derrubar Howard
em cima de um pufe e depois no chão e, grunhindo com o esforço, prendeu os
braços de Howard com os joelhos e começou a esmurrar suas bochechas, seu
nariz, suas orelhas e seus olhos, mas não prestou atenção suficiente aos braços
presos, um dos quais conseguiu se soltar e desferiu um golpe atordoante na lateral
de sua cabeça, que foi seguido por uma assustadora e irresistível falta de ar
quando uma terceira pessoa, gritando “Que diabo você está fazendo?”, lhe deu
uma gravata e o arrastou para longe de Howard, erguendo-o na ponta dos pés e
ameaçando erguê-lo mais alto ainda, até que Louis finalmente parou de se
debater.
“Que diabo você está fazendo? Tem pessoas doentes aqui, tem pessoas feridas
aqui. Olha o que você fez com esse homem. Você devia morrer de vergonha de
estar fazendo uma coisa dessas aqui.”
O nariz de Howard parecia uma jarra de decantação, bem comportado
enquanto ele estava deitado, mas deixando uma torrente de sangue cair no tapete
assim que ele se sentou.
“Você ainda está com aquele diabo dentro de você? Ou eu posso te soltar?”
“Pode soltar”, disse Louis, sem fôlego e rendido.
“Caramba”, disse seu captor, soltando-o. Em seguida, se ajoelhou ao lado de
Howard, tirou um lenço do bolso, sacudiu-o e o levou ao nariz sangrento. “Aperta
bem, aperta.”
Louis endireitou a armação de seus óculos, que eram novos em folha e tinham
lhe custado a maior parte do dinheiro que seu pai lhe dera quando ele foi embora
de Evanston. Já com os óculos, ele confirmou que o homem que o estivera
esganando era Philip Stites. Gotas do sangue de Howard tinham caído na calça
cáqui do pastor. Stites levantou a cabeça para lançar um olhar de reprovação
para Louis e, logo em seguida, tornou a olhar para ele, sua expressão se
suavizando enquanto ele apertava os olhos atrás dos óculos, tentando se lembrar
de onde conhecia Louis.
“Notícias com algo a mais?”, disse Louis.
“Ah. O Anticristo. Você já arranjou outro emprego?”
“Não.”
“Lamento saber”, disse Stites, da boca para fora, perdendo o interesse. Ele se
levantou e pôs seu cabelo de neném para trás. “Por acaso algum de vocês veio
aqui pra saber notícias da Renée Seitchek?”
Nem Louis nem Howard responderam. Howard estava recostado num pufe,
apertando o nariz como se alguma coisa estivesse cheirando mal ali. Levantou
seus olhos inchados e vermelhos e olhou para Louis com a intimidade
compartilhada por amantes ou outras pessoas que se atracam no chão.
“O que é que você tem com isso?”, Louis perguntou a Stites.
“Imagino que isso seja um sim?”
“Imagine o que quiser”, disse Louis. “O que é que você tem com isso?”
“Bom, suponho que seja uma pergunta justa. Eu posso lhe dizer que estive com
Renée duas noites atrás e estive com ela de novo hoje e considero o que
aconteceu uma coisa terrível. E eu quero rezar por ela. E quero saber como ela
está.”
“Pergunta na recepção.”
“Espera aí.” Como um valentão que acaba de farejar um fracote, Stites se deu
conta plenamente do significado da presença de Louis ali. Aproximou-se dele
com o mesmo jeito perscrutador, atento e possivelmente míope de inclinar a
cabeça que o próprio Louis assumia quando achava que tinha uma vantagem
moral sobre alguém. “Você deve ser o namorado.”
“Você pode falar, mas eu não sou obrigado a ouvir”, disse Louis.
“Você deve ser o namorado de quem ela me falou na segunda-feira e de
quem ela falou para o mundo inteiro hoje.”
Louis empalideceu um pouco, mas aguentou firme. “Hoje”, disse. “Você quer
dizer quando vocês estavam chamando a Renée de assassina?”
“Na segunda-feira”, disse Stites, elevando a voz, “quando ela me contou que
havia um homem que a tinha magoado tanto que ela não tinha mais vontade de
viver. E hoje, quando ela contou para todo mundo que havia um homem por
quem ela estava apaixonada e com quem ela queria se casar e ter filhos, e eu
não vi nenhum homem com ela. Eu deduzo que o tal homem seja você. Não é?”
Louis olhou para os óculos banhados de luz e acusadores do pastor. “Você não
tem como me fazer sentir mais culpado do que eu já estou me sentindo.”
“A sua culpa é problema seu, senhor Anticristo. Eu só estou lhe dizendo por
que eu estou aqui.”
O tal homem por quem Renée estivera apaixonada e com quem ela quisera ter
filhos desviou o rosto de Stites. Consciente de um impulso de se redimir aos olhos
do pastor, ele se agachou perto de Howard. “Desculpe”, ele disse.
Howard lhe dirigiu outro olhar íntimo e vermelho e não disse nada.
Stites tinha sumido no corredor. Louis o encontrou sentado num sofá numa
minúscula sala de espera da uti, onde uma televisão pendia do teto. “O que ela
falou sobre mim?”, ele perguntou do vão da porta.
Stites não tirou os olhos da televisão. “Eu já disse o que ela falou.”
“Onde foi que você encontrou com ela?”
“Em Chelsea.”
“Ela queria que você pedisse ao seu pessoal que a deixasse em paz.”
“Sim, foi pra isso que ela foi lá, claro. Mas não foi por isso que ela ficou.”
“Ela ficou?”
Stites sorriu para a televisão. “O que é que você tem com isso?”
Louis olhou para o chão. Não era a primeira vez que ele sentia que amar
Renée era algo complicado demais para ele.
“Jody teve uma média de 0,355 rebatidas nos últimos oito jogos”, disse a
televisão. “Teve 0,400 nos últimos nove.”
“Ela ficou, nós conversamos”, disse Stites. “Depois ela foi embora. Onde é que
você estava?”
“Eu a abandonei. Eu a magoei.”
“E agora que ela está correndo perigo de vida você decidiu que se sente
culpado por isso.”
“Isso não é verdade.”
“Qual é o seu nome?”
“Louis.”
“Louis”, Stites esticou os braços no encosto do sofá e pôs os pés em cima da
mesa de centro, “eu não sou seu rival. Eu vou ser franco com você, eu pensei
muito nela. Mas ela não estava interessada em mim como homem. Ela foi
totalmente fiel a você. Eu não sei como seria se você não existisse. Mas você
existe, então...”
“Se eu não existisse, você ainda teria que explicar a ela por que um membro
da sua igreja atirou nela pelas costas porque ela fez um aborto.”
“Não foi uma pessoa do movimento pró-vida que fez isso”, Stites disse com
convicção para a tela de tv, onde o batedor do Red Sox estava tentando rebater
sem girar.
“‘Olho por olho’?”
“Eu não acredito”, disse Stites. “Não acredito mesmo. Não é assim que nós
agimos, nem mesmo os piores de nós. Sinceramente, eu acharia mais fácil
acreditar que foi você.”
“Muito obrigado.”
“A única dúvida é: quem mais iria fazer uma coisa dessas? Você tem algum
palpite?”
Louis não respondeu. Na tela da tv, um sedã Volvo estava se chocando contra
uma parede de blocos de concreto e um casal de plástico e seus filhos de plástico
e carecas, que não só não haviam morrido como não tinham sofrido nem um
arranhão, estavam se reacomodando confortavelmente em seus bancos.
“Como ela é?”, Stites perguntou. “No dia a dia?”
“Sei lá. Neurótica, ensimesmada, insegura. Meio má às vezes. O senso de
humor dela não é lá essas coisas.” Ele franziu o cenho. “É ótima cientista. Ótima
cozinheira. Não faz nada sem pensar dez vezes antes. E é muito sexy também, de
alguma forma.”
“Ótima cozinheira, é? Que tipo de comida ela faz?”
“Legumes. Massa. Peixe. Ela não come os vertebrados superiores.”
No deserto do Saara, dois rapazes morrendo de sede eram salvos por um
caminhão da Budweiser carregado de lindas garotas de biquíni, shorts justos e
camiseta de alcinha. Todos estavam ingerindo o produto. Os seios das garotas
eram firmes e redondos, suas barrigas lisas e durinhas e suas cinturas finas sob
seus maiôs de Silcra. Seus braços suavam como latas de cerveja geladas e
intoxicantes. Os homens alagavam os colos das meninas com uma mangueira de
incêndio, batiam em seus traseiros com o jato branco da mangueira. As gatas,
tomando o produto, perdiam as inibições. A pouco mais de dez metros dali, na
mesa da sala de cirurgia número 1, um urologista chamado dr. Ishimura estava
costurando o lugar no corpo de Renée onde seu rim direito costumava ficar,
enquanto um cirurgião chamado dr. Das aspirava seu sangue.
15.

Ele foi acordado de manhã pela secretária eletrônica ao lado de sua cama. Sua
mãe amplificada estava vociferando com Eileen a respeito de alguma regra da
empresa financeira: E EU PRECISO DO NÚMERO DO SEU TRABALHO,
ENTÃO...
“Oi, mãe”, ele disse por cima dos grunhidos que a secretária eletrônica deu
quando ele a desativou.
“Louis? Onde você está?”
Ele tossiu. “Onde você acha que eu estou?”
“Ah, sim, claro, pergunta idiota a minha. Como... como você está?”
“Bem. Tirando o fato de que a minha namorada levou vários tiros pelas costas
ontem e quase morreu...”
Houve um silêncio. Ele ouviu passarinhos chilreando na Argilla Road do outro
lado da linha.
“Sua namorada”, disse Melanie.
“Você deve ter visto ontem nas notícias. O nome dela é Renée. Seitchek.
Lembra dela?”
“Sua namorada. Sei.”
“Ela fez um aborto, e alguém tratou de atirar nela. E você sabe quem era o pai
da criança?”
“Louis, eu...”
“Era eu.”
“Bom, Louis, isso é... isso é muito interessante. É interessante você me dizer
isso. Mas, segundo o que eu li no jornal, ela não tinha muita certeza...”
“Ela só disse aquilo pra assumir toda a responsabilidade.”
“Imagino que isso possa ser verdade, Louis, mas você não devia...”
“Ela só disse aquilo porque é uma pessoa conscienciosa que assume a
responsabilidade por tudo o que faz.”
“É, eu sei bem como a Renée é conscienciosa.”
Ele se sentou. Girou o corpo e apoiou os pés cheios de curativos no chão.
“Como assim? Você andou falando com ela?”
“Pra falar a verdade”, disse Melanie, “eu estive com ela na semana retrasada
e depois novamente na semana passada. Mas isso agora não é importante.”
“Você esteve com ela?”
“O importante é que ela se recupere. É nisso que você tem que pensar.”
“Você esteve com ela?”
“Estive, mas isso agora não importa.”
“A minha namorada está no hospital e quase morreu, e você se recusa a me
dizer o que está acontecendo?”
“Louis, ela me deu alguns conselhos.”
“Conselhos. Conselhos. Ela disse pra você vender as suas ações, foi isso?”
Não houve resposta alguma, a não ser o canto dos passarinhos. Os passarinhos
podiam estar pousados no ombro de sua mãe, tão próximos pareciam estar.
“Ela disse pra você vender as suas ações”, Louis insistiu. “Não foi?”
“Bem, sim, disse. Estou vendo que o seu pai pintou um quadro completo pra
você do dilema extremamente pessoal que eu estava enfrentando. E, sim, foi
exatamente como você disse: ela me aconselhou a vender as minhas ações.”
Louis foi mancando até a escrivaninha e se sentou. “Ela te deu esse conselho,
ou ela vendeu?”
“Pergunte isso a ela própria, Louis. Eu não vou responder.”
“Ela ficou quatro horas numa sala de cirurgia ontem à noite. O estado dela é,
sabe, gravíssimo. E você quer que eu pergunte a ela?”
“Eu não consigo conceber que diferença isso pode fazer pra você. A única
coisa que eu vou dizer é que eu não me lembro como foi exatamente o acordo
que nós fizemos.”
“Ou seja, ela vendeu o conselho.”
Nenhuma resposta.
“Ela falou pra você que me conhecia?”
“Ela me disse que você e ela não estavam envolvidos.”
“Bom, não estamos, a rigor.”
“Ela também disse que você e ela nunca estiveram envolvidos.”
“Bom, ela mentiu.”
“É, eu já imaginava. Na verdade, eu acho que já sabia disso desde o início.”
Louis desligou o telefone e apertou os dedos contra a testa, que tinha começado
a doer. O banheiro ainda conservava o vapor e a fragrância de ervas dos banhos
de Eileen e Peter. Além dos produtos para a pele franceses de Peter (“poor
lum”) e da enorme variedade de lápis, pincéis e estojos de maquiagem que Louis
havia ficado um pouco surpreso de descobrir que Eileen usava, ele viu a toalha
manchada de sangue, a caixa de gaze esterilizada vazia, o cesto de lixo cheio de
lenços de papel sujos de sangue e de iodo, os indícios do quarto de hora que ele
havia passado ali antes de ir para a cama. Viu o sol na janela. Imaginou o
Somerville Hospital à luz do dia, a luz de um dia de feriado — o dia de Ação de
Graças, o Quatro de Julho — que tivesse caído num dia de semana, quando se
desliga a tomada das atividades normais, e as horas vazias da manhã se estendem
rumo ao obrigatório peru do final da tarde, aos fogos de artifício da noite ou, no
presente caso, à visita vespertina ao hospital. Tinham lhe dito que era possível que
os médicos permitissem que ele visse Renée brevemente. Ele levantou a tampa
do vaso, que, como toda e qualquer superfície horizontal do banheiro, estava
polvilhada com o talco de neném que Eileen vinha usando nas manhãs de verão
fazia pelo menos uns doze anos. Estava prestes a começar a mijar quando o
telefone tocou de novo. Ele voltou para o quarto.
Alô, aqui é Lauren Bowles...
Ele esticou a mão na direção do telefone, mas seus dedos se dobraram num
punho cerrado. Ele se sentiu como um objeto, uma cadeira, deve se sentir, as
fibras de seus membros de madeira tensionadas, seus braços e pernas paralisados
pela geometria de forças iguais e opostas. Ver seus dedos mesmo assim se
esticarem e pegarem o fone foi como ver uma cadeira se mexer num terremoto.
“Alô?”, disse Lauren. “Alô?... Alô? Tem alguém aí?”
“Sou eu, Lauren.”
“Ah, Louis, a sua voz está tão longe. Você está sozinho? Eu posso falar com
você?”
Agora seus lábios eram o objeto estacionário.
“Você está aí?”, disse Lauren. “Eu ia ficar um tempo sem ligar, como você
me falou pra fazer, mas eu estava assistindo Good Morning America e eu vi ela.
Foi tão ruim, Louis, foi muito, muito ruim, porque eu estava justamente pensando
em como eu queria que ela não existisse. Mas eles disseram que ela está viva.
Ela está, não está?”
“Está.”
“Você sabe do que é que eles estão chamando ela? De heroína. Sabe, a
namorada do Louis é uma pessoa tão boa e tão incrível que eles exibem uma foto
dela na televisão e dizem que ela é uma heroína. Como se ela fosse uma das
pessoas mais admiráveis do país ou coisa assim. E eu sou tão boa pessoa que
estou lá sentada, torcendo pra que ela morra, até que eu vejo a cara dela na
minha frente.”
“É, Lauren”, ele disse, ríspido. “Você não deve dar ouvidos ao que eles dizem.
Ela só fez aquele aborto pra se vingar. Ela usa os homens pra fazer sexo. Ela é
muito mais mesquinha que você.”
Lauren ficou magoada. “Eu não acredito em você”, disse ela. Era a primeira
vez, desde que a conhecera, que ele tentava magoá-la. Ele queria que ela ficasse
com ódio dele e o esquecesse. Mas não era agradável ser odiado, pelo menos não
por Lauren, cujo cuidado para com ele sempre fora um mistério que fazia o
mundo parecer um lugar para o qual ainda havia esperança. Ele ficaria muito
triste de viver sem esse cuidado. Perguntou a Lauren onde ela estava.
“Eu estou em casa. Quer dizer, com o Emmett. Mas eu não deixei ele me
beijar.”
“Ele deve estar felicíssimo com a sua volta.”
“É, nós temos tido umas conversas superdivertidas.”
Louis estava em pé, apoiado em seus pés doloridos e latejantes. À medida que
se prolongava, o silêncio na linha ia adquirindo o gosto especialmente salgado das
tarifas de ligações interurbanas diurnas.
“A gente não vai mais se ver, não é, Louis?”
“Não”, disse ele.
“Você tinha reatado com ela?”
“Não.”
“Mas você queria reatar?”
“Queria.”
“Que merda”, disse Lauren com tristeza. “Eu estou com tanto ciúme dela que
não dá pra acreditar. Você ia me achar uma monstra se soubesse o ciúme que eu
estou sentindo. Mas eu juro que estou torcendo pra que ela fique boa, Louis, juro
por Deus. Você acredita em mim?”
“Acredito.”
Ela refletiu sobre isso alguns instantes. “Está bom”, disse ela. “A gente se vê,
então. Quer dizer... a gente não se vê. Acho que... acho que eu vou deixar o
Emmett me beijar agora.”
“Que bom.”
“Você está com ciúme dele?”
“Não.”
“Nem um pouquinho de ciúme?”
“Não.”
“Louis.” Havia uma urgência no modo como ela disse a palavra. “Diz que sim.
Diz que sim que eu desligo e nunca mais te procuro. Por favor, diz que sim.”
“Eu não estou com ciúme dele, Lauren.”
“Por que não? Me diz, por que não?” Ela parecia uma criança contrariada. “Eu
não sou bonita? Eu não faria qualquer coisa no mundo por você? Eu não amo
você?” Entre o momento em que um copo é irremediavelmente derrubado de
uma prateleira e o momento em que ele cai no chão, há um silêncio carregado e
de limites muito precisos. “Eu quero que ela morra!”, disse Lauren. “Eu quero
que ela morra neste exato instante!”
Louis sabia que, se estivesse no mesmo cômodo que Lauren, ele teria fugido
com ela e ido viver com ela; sabia disso do mesmo modo como sabia seu próprio
nome. Mas ele estava falando com ela pelo telefone, que tinha aquela pequena
guilhotina de plástico para decepar conversas. Alguma força providencial o havia
arrastado de Chicago de volta para Boston, o havia arrastado antes para Chicago,
onde seu pai tinha lhe dito: Deixe-me lhe contar uma dura verdade sobre as
mulheres: elas não ficam mais bonitas quando envelhecem; elas não ficam menos
malucas quando envelhecem; e elas envelhecem muito rápido.
“Olha o que você me fez dizer”, disse Lauren.
“Desliga.”
“Está bem. Eu vou desligar.”
“Eu estou desligando.”
Quando tirou o fone do ouvido, Louis ouviu Lauren dizer: “Eu queria você!”.
Ele se sentou na cama e ficou olhando para as cadeiras e as paredes imóveis
até que percebeu que a luz na janela não era mais a luz da manhã e decidiu que
já estava tarde o bastante para tentar visitar Renée. Ele teria preferido ver
Lauren. Ele se vestiu e afrouxou os cadarços dos sapatos até conseguir enfiar os
pés dentro deles. Bateu um pé no chão e depois o outro, para acomodá-los em
sua dor. Forçou-se a mastigar e engolir duas bananas.
No Somerville Hospital, havia uma atendente nova na recepção. Ela tinha um
pescoço comprido e uma cabeça minúscula. “Não há nenhuma Seitchek na nossa
lista.”
“Como assim não há nenhuma Seitchek na lista?”
“É aquela pobre moça de Harvard? Deixe-me ver o que eu consigo achar
aqui.” Ela examinou de novo seu imenso fichário giratório. “Não, ela realmente
não está aqui.”
“Você está me dizendo que ela morreu?”
“Bom...” A mulher pediu informações pelo telefone e, em seguida, transmitiu-
as a Louis: “Ela está no Brigham & Women’s Hospital. Acabaram de transferi-la
para lá”.
O Brigham ficava bem na área de Eileen, atrás do Fenway Park, numa
verdadeira cidade dos adoentados e convalescentes, onde edifícios hospitalares
de tijolo e concreto haviam crescido como fungo, botando alas e mais alas em
ângulos fortuitos, alimentados pelo que obviamente era um estoque infinitamente
crescente de pessoas com problemas de saúde. Não havia estacionamento grátis.
Louis subiu por um elevador, atravessou um interminável corredor principal,
passou por um saguão e desceu por outro elevador. Então, disse a uma
enfermeira que estava atrás do balcão octogonal da uti que queria visitar Renée
Seitchek. A enfermeira lhe informou que Renée estava sendo operada. “Você é
parente dela, Louis?”
“Eu sou namorado dela.”
A enfermeira dirigiu os olhos para uma pilha de pastas com linguetas
vermelhas e as virou e revirou de um jeito nervoso. “Infelizmente, só a família
imediata está autorizada a visitá-la.”
“E se eu dissesse que sou marido dela?”
“Mas você não é marido dela, Louis. A sra. Seitchek está na sala dos
funcionários, à esquerda, no final do corredor, se você quiser falar com ela.”
Não havia ninguém na sala dos funcionários salvo uma mulher pequena, de
calça azul-marinho e blusa rosa, que estava botando café num copo de isopor.
Seu cabelo era curto, frisado e tingido com luzes. Ela usava joias de ouro pesadas
de design simples em suas mãos e pulsos bronzeados. Na televisão perto dela
estava passando uma novela.
“Senhora Seitchek?”
Quando a mulher se virou, ele viu a exata expressão de leve surpresa de
Renée. Ele estava olhando para uma Renée que havia envelhecido vinte e cinco
anos; que tinha deixado o sol lhe torrar a pele até ela ficar da cor da côdea de pão
branco; que tinha tirado as sobrancelhas e passado um batom rosa cintilante; que
tinha passado a noite anterior em claro; e que tinha nascido muito bonita. Seu
primeiro impulso foi se apaixonar por ela.
“Eu sou Louis Holland”, ele disse.
A sra. Seitchek olhou para ele com ar de dúvida. “Sim?”
“O namorado da Renée.”
“Ah”, disse ela. Ele a viu correr os olhos pelo seu cabelo ralo, sua camisa
branca, sua calça preta. Um vestígio de um daqueles sorrisos implacáveis de
Renée curvou os lábios dela. “Sei.” Ela se virou novamente para o carrinho de
café e adoçou seu café com um pacotinho rosa. “Você é de Harvard, Louis?”
“Não. De Chicago, originalmente. Mas eu queria saber como ela está e quando
eu posso vê-la.”
“Ela está sendo operada de novo, na perna agora. A bala atingiu o osso.” Os
ombros da sra. Seitchek caíram e ela apoiou as mãos no carrinho de café. “Ela
vai ficar num respirador por um tempo e fortemente sedada. Você pode entrar
em contato comigo daqui a uma semana ou dez dias, quando ela já tiver saído da
uti e nós tivermos alguma ideia de quem ela gostaria que nós deixássemos visitá-
la. Talvez ela queira ver você então.”
“Eu não posso vê-la antes disso?”
“Por enquanto, ela só pode receber visitas de parentes imediatos, Louis. Eu
sinto muito.”
“Eu sou namorado dela.”
“Sim.”
“Bom, eu gostaria de vê-la assim que fosse possível.”
A sra. Seitchek sacudiu a cabeça, ainda de costas para ele. “Louis, eu não sei
se você tem alguma ideia de como é o nosso relacionamento com a Renée. Eu
certamente nunca tive nenhuma informação sobre você, não sabia nem o seu
nome. Então, eu gostaria de esclarecer a você que a Renée não me conta nada a
respeito da vida dela. Nós a amamos muito, mas, por alguma razão, ela optou por
se manter distante. Eu não sei por quê. Talvez você saiba me dizer?” Ela se virou
para Louis. “Quantos namorados a Renée tem?”
“Ela tem um namorado: eu”, disse Louis. “Só que...”
“Só que o quê?”
“Bom, nós brigamos.”
De novo ele viu um vestígio do sorriso amargo de Renée. “E aquele rapaz
chinês. Howard. Ele não é namorado dela?”
“Não exatamente.”
“Não exatamente. Sei. E o rapaz que esteve aqui pouco antes de você? Terry .”
“Definitivamente não.”
“Definitivamente não. Está bem. Essa não foi bem a impressão que ele me
passou, mas se você diz...”
Louis tentou pensar em alguém que soubesse com certeza que ele e Renée
haviam morado juntos, em alguma prova concreta de que eles haviam tido um
relacionamento. Pensou em dizer: O seu filho Michael é corretor de imóveis e o
seu filho Danny está fazendo residência em radiologia. Mas ele já estava ouvindo
a resposta óbvia: Se você é namorado dela, onde estava ontem à tarde?
A sra. Seitchek jogou um mexedor de plástico num cesto de lixo. “Você está
vendo o problema, não está? A minha filha foi vítima de um crime, e eu não faço
a mínima ideia de quem é o responsável. Nós não sabíamos absolutamente nada
sobre a vida pessoal dela, até virmos para cá. E devo dizer que as coisas não
estão muito mais claras agora. Então, considerando as circunstâncias, eu acho
que é melhor nós simplesmente esperarmos.”
“Mas da próxima vez que a senhora falar com ela... talvez a senhora possa
pelo menos dizer a ela que o Louis está... sabe... por perto?”
“Vamos ver.”
“Por que isso seria um problema?”
“Eu disse vamos ver. Eu não quero correr o risco de deixá-la nervosa se...”
“Eu sou o namorado dela, sra. Seitchek. Eu vou morrer de tristeza se ela
morrer. Eu...”
“Eu também, Louis. E o pai dela e os irmãos dela também. Nós todos a
amamos e queremos que ela viva.”
“Bom, então diga a ela.”
“Eu vou pensar.”
“Desculpe a minha estupidez, mas...”
“Por favor, vá embora.” Os olhos da sra. Seitchek tinham ficado cheios d’água.
“Por favor, vá embora.”
Louis queria abraçá-la. Queria beijá-la e tirar suas roupas, queria fazer com
que ela fosse Renée e enterrar seu rosto no colo dela. Subitamente à beira das
lágrimas também, ele saiu da sala correndo.
Do lado de fora, quando estava passando pelo balcão octogonal, ele viu um
homem que achou reconhecer de uma foto de família que Renée lhe mostrara.
O homem tinha a pele muito vermelha e cabelo branco e ralo, todo penteado
para trás, e usava um par de óculos muito assustador — grossos trifocais, com
lentes extragrandes e uma armação de plástico resistente. Ele estava lendo as
letrinhas miúdas de um frasco de remédio líquido.
“Desculpe, o senhor é o doutor Seitchek?”
Os olhos do homem se moveram em direção à faixa do meio dos trifocais e
cravaram-se em Louis. “Sou.”
“Eu sou amigo da sua filha. E, bom, eu estava pensando se o senhor poderia
dar um recado a ela em algum momento nos próximos... dias. Estava pensando
se o senhor poderia dizer a ela que o Louis a ama.”
O dr. Seitchek dirigiu novamente os olhos para o frasco de remédio. Ele tinha
sido reitor da faculdade de medicina da Northwestern e, embora Renée fosse tão
reticente em relação a ele quanto era em relação a todos os outros membros de
sua família, Louis ficara com a impressão de que ele era algo como um figurão
da cardiologia nacional. A voz dele era baixa, contida, profissional. “Você falou
com a minha mulher?”
“Falei.”
“Ela explicou a você o nosso receio?”
“Mais ou menos.”
Os olhos agigantados pelas lentes fincaram mais um olhar em Louis. “A Renée
interrompeu uma gravidez ontem. Você tinha conhecimento disso?”
“Sim. Na verdade, eu era o... eh... parceiro.”
“O seu nome é Louis.”
“É. Louis Holland.”
“Eu dou o recado a ela.”
“Muito, muito obrigado.” Ele tocou no ombro do dr. Seitchek, mas sua mão
poderia ser uma mosca que tivesse por acaso pousado ali, a julgar pela reação
que ela obteve. “Eu poderia perguntar só mais uma coisa?. . . Quem ela acha que
pode ter feito isso? Alguém perguntou a ela?”
O dr. Seitchek mais uma vez ergueu os olhos do frasco de remédio. “Acho que
ela não faz a menor ideia.”
“Foi isso que ela disse? Que não faz a menor ideia?”
“Ela não disse nada.”
“Ela está podendo falar?”
“Ela estava consciente e alerta hoje de manhã. Mas ela não parece ter
nenhuma memória de ontem à tarde. De qualquer forma, eu não creio que ela
tenha visto nada.”
“Mas o que exatamente ela disse?”
O dr. Seitchek estudou Louis como se houvesse letrinhas miúdas no rosto dele.
“Tem alguma coisa específica que você esperava que ela tivesse dito?”
“Não, sei lá.”
“Alguma coisa que você queira me dizer?”
“Não.”
“Eu vou lhe dar o cartão do investigador que está cuidado do caso. Você sabe
que estamos oferecendo uma recompensa, não?”

A Pleasant Avenue estava deserta ao sol do meio da manhã de sexta-feira.


Louis tentou não olhar para o sangue na escada, mas não conseguiu evitar vê-lo,
perifericamente, ao subir os degraus. Pegou a chave reserva de Renée de trás de
um pedaço solto de papel de parede no poço da escada.
O apartamento estava muito limpo e muito quente. Louis abriu a janela da
cozinha, deixando uma brisa fresca do norte e os ruídos indistintos do comércio
da Highland Avenue varrer a quietude sufocante e com cheiro de café. Quando
entrou no quarto de Renée, a primeira coisa que notou foi a nudez da
escrivaninha, onde tinha visto pela última vez a pilha de artigos sobre sismicidade
induzida e sobre os terremotos de Peabody. Havia de novo aquela atmosfera de
propósito, de controle, de partida planejada, que ele tinha notado na primeira vez
em que entrara ali. Foi preciso que fizesse um esforço consciente para conseguir
atravessar os campos de força que ela havia ativado e vasculhar sua escrivaninha
e suas prateleiras de livros. Ele olhou dentro de todas as pastas, de todos os
envelopes. Vasculhou seus armários e sua cômoda, enfiando a mão por entre
meias e suéteres. Não achou em lugar nenhum qualquer coisa sequer
remotamente relacionada à Sweeting-Aldren, aos terremotos da Nova Inglaterra
ou a poços de injeção.
Sentou na cama dela e ficou se perguntando se ela teria jogado tudo fora. Ela
tinha jogado fora suas fitas cassete e seus discos; tinha largado no corredor as
fitas, a televisão e as roupas dele; tinha se descartado de um bebê em potencial;
talvez também tivesse jogado fora a teoria deles.
Ele abriu a gaveta da mesinha de cabeceira decrépita. O último quadrado do
calendário de Renée que estava preenchido era o de quinta-feira, onde ela havia
escrito NCHA 15h e mais de leve, a lápis, num canto, o número 48. Havia um 41
também a lápis no quadrado da quinta anterior, um 39 a lápis e as palavras
Federal 35, Salem, 18h a caneta na terça da mesma semana, um 35 a lápis e um
endereço na Washington Street na sexta antes disso, e um H a lápis no dia
anterior. Daí para trás até maio, havia 27 dias cuja brancura era interrompida
apenas por Ls feitos a lápis. Depois vinham seis quadrados seguidos com Xs a
lápis e mais um L. Depois seis dias completamente em branco levando até o
último sábado de abril, onde ela escrevera Festa 8h30 a caneta e um solitário L a
lápis.
No total, havia dezoito Ls. Louis nunca tinha visto Renée fazer aquelas
anotações. Não teria sido capaz de estimar quantas vezes eles haviam feito amor;
agora, ele não precisava mais.
O endereço de Salem ele reconheceu como o do escritório de Henry Rudman,
mas o da Washington Street não lhe dizia nada. Tomou nota desse endereço
numa folha do bloco do Sheraton Baltimore que ela mantinha ao lado do abajur.
Depois, guardou o calendário de volta na gaveta e alisou a roupa de cama no
lugar onde tinha sentado.
Eram quase quatro horas quando Howard Chun, exibindo dois olhos roxos e
carregando uma raquete de squash, chegou para trabalhar no laboratório
Hoffman. Louis estava esperando no corredor, ao lado da sala dele. Perguntou a
Howard se Renée comentara com ele que os terremotos de Peabody poderiam
ter sido causados pela Sweeting-Aldren.
Howard destrancou a porta de sua sala e entrou. “Fundo demais”, disse ele.
“Poços de injeção são rasos.”
“Ela encontrou uns artigos que davam a entender que eles tinham perfurado
um poço muito, muito fundo em 1970.”
“Ia ser caro demais bombear. Precisa muita pressão.”
“Bom, era uma teoria que ela tinha. Ela estava investigando isso no mês
passado, e eu queria saber se ela continuou investigando na semana passada.
Porque eu acho que pode ter sido a empresa que mandou aquele cara atirar
nela.”
“Você falou com a polícia?”
“Eu não quero falar sem ter certeza de que ela estava investigando.”
Howard destrancou a mesa e os arquivos de Renée, e Louis, como já previa,
não encontrou nada. Atravessou o corredor rumo às salas de computação, onde
Howard já havia se conectado ao sistema por vários terminais. “Eu posso dar
uma olhada nas contas de computador dela?”
“Ela nunca falou nada”, disse Howard.
“Eu sei, mas ela estava investigando isso.”
Howard se conectou por mais um terminal, usando o nome e a senha de
Renée. “Você já viu ela?”
“Não.”
“Ela te ama.”
“Ama?”
Howard fez que sim. “Amor amor amor amor”, disse ele, casualmente,
enquanto usava uma ferramenta chamada xfiles. “Esses são arquivos de texto
que ela modificou ou criou desde o último backup, em 4 de junho. Você queria
ver o que ela fez antes disso ou a partir daí está bom?”
Havia apenas seis arquivos: três breves cartas que ela tinha escrito para outros
cientistas e três de seus artigos sobre Tonga. Louis percorreu todos eles. “Tem
certeza que não tem mais nada?”
“Se tem, não está no sistema.”
“É possível que alguma outra pessoa tenha conseguido acessar as contas dela?”
“Ih, fácil, fácil. Ela botou uma senha de operador muito idiota. Só ‘op’. Muito
idiota.”
“Desculpe por ter batido em você. Eu estava com ciúme.”
“Amor amor amor”, disse Howard.
Um ar gelado de fim de tarde estava se infiltrando no saguão do prédio ao qual
o endereço da Washington Street havia levado Louis. No quadro onde estavam
listados os nomes e os números das salas dos ocupantes do prédio, constava o
nome da Agência de Proteção Ambiental, mas o vigia noturno disse para ele
voltar na segunda-feira, porque todo mundo já tinha ido embora.

“Eu preciso falar com ela”, disse Louis, pelo telefone.


“Talvez na segunda-feira”, disse a sra. Seitchek, do quarto de hotel onde estava
hospedada.
“Eu preciso falar com ela. Quando a senhora for lá de manhã, pergunte se ela
acha que pode ter sido alguém da Sweeting-Aldren que... fez aquilo.”
“Sweet e o quê?”
“Sweeting-Aldren. A empresa de produtos químicos.”
“Louis, eu acho que você deveria estar falando com a polícia, não comigo.”
“Diga a ela que eu acho que pode ter sido a Sweeting-Aldren. A senhora pode
por favor dizer isso a ela? É ela que tem que decidir se quer que a polícia saiba,
não eu.”
“Tem alguma coisa acontecendo, e eu acho que tenho o direito de saber o que
é.”
“Eu vou lhe dar o meu número, e eu quero que a senhora fale para ela o que
eu disse.”

Ele levou o sábado inteiro, na biblioteca de geociências da universidade, em


cima do Peabody Museum, para conseguir localizar e fotocopiar o punhado de
textos com que Renée havia iniciado suas investigações seis semanas antes. Os
textos estavam todos lá, porém; eram todos reais. Louis releu o trabalho de A. F.
Krasner, tentando farejar a fêmea mamífera que o havia escrito, mas a prosa e
o próprio tipo da letra já tinham ficado velhos e sem viço.
A secretária eletrônica da Marlborough Street disse: Louis, aqui é Liz Seitchek.
Você pode se encontrar comigo na UTI cirúrgica amanhã de manhã, às dez.
Penny Spanghorn, do Channel 4, disse que Renée Seitchek encontrava-se em
estado grave, mas estável no Brigham & Women’s Hospital. Seguiram-se
declarações de solidariedade e de indignação da National Organization for
Women, da Planned Parenthood Federation, do prefeito de Boston e do reitor de
Harvard. Forças policiais de toda a área metropolitana estavam envolvidas na
caçada ao agressor. O carro usado pelo agressor fora roubado, na manhã de
quinta-feira, de um estacionamento da empresa de aluguel de carros Hertz no
aeroporto internacional de Boston. Não havia nenhum outro indício forte que
levasse ao agressor.
Enquanto isso, os Red Sox, na liderança, estavam iniciando uma série de sete
jogos em casa no Fenway Park.
Eileen emergiu de seu quarto e olhou para Louis com uma expressão pesarosa.
A enorme cama de casal atrás dela estava coberta de livros de consulta e de um
Peter deitado de barriga para cima. Louis pousou o suco de laranja que estava
tomando e a abraçou. Ela o apertou com tanta força que chegou a doer. Depois,
entregou a ele um cartão de plástico e lhe disse para ir à locadora e alugar dois
filmes.

“Respire fundo.”, disse a enfermeira.


Renée respirou. Seu rosto estava abatido, coberto de espinhas e vincado pela
dor que a existência em geral e o esforço de respirar em particular lhe
causavam. Seu cabelo estava embaraçado e cheio de caspa. Ela estava presa a
tubos intravenosos, mas respirava sem a ajuda de aparelhos. Suas orelhas
estavam sem brinco.
“Um pouco mais fundo?”
O esforço foi feito.
“Dá uma tossidinha para eu ouvir.”
Ela tossiu.
“Agora pode deitar.” A enfermeira verificou a bolsa de urina pendurada na
cama e deixou Renée sozinha com Louis. Na mesma hora, Louis se ajoelhou e
apertou a mão livre de Renée, a mão que estava sem tubo, contra seus próprios
olhos. Mas Renée foi direto ao ponto, com uma voz fraca, mas clara. “A minha
mãe disse que você acha que foram eles que fizeram isso comigo.”
Ele soltou a mão dela e puxou uma cadeira para perto da cama. “Como você
está?”
“Tudo dói.” Ela franziu o cenho, como que contrariada com o fato de ele ter se
desviado do assunto. “Por que você acha que foram eles?”
“Porque eu não consegui encontrar nenhum dos nossos textos nem no seu
apartamento, nem no seu trabalho.”
“Você entrou no meu apartamento?”
“Eh... entrei.”
Ela continuou a franzir o cenho, contrariada. “Está num envelope grande”,
disse ela. “Um envelope de papel manilha. Na gaveta grande da minha
escrivaninha.”
“Não está. Não está lá.”
Ela dedicou alguma atenção a simplesmente respirar. Grossos molhos de
envelopes ainda fechados estavam empilhados na mesa ao lado de seus
travesseiros. “Estava lá”, ela disse. “Eu sei que estava lá.”
“Eles descobriram que você estava investigando?”
“Foi muita burrice minha... Eu não estava mais me importando com nada.”
“Você contou pra mais alguém?”
“Não. Mas o computador do meu trabalho. Tem uma carta e um trabalho lá.”
“Acho que não. Eu e o Howard procuramos.”
Agora ela sorriu de dor, mostrando todos os dentes. “Putz.”
“Você tem que contar pra polícia.”
“Óbvio, imagina se eu não vou contar.”
“Você fez alguma cópia desse trabalho?”
Ela fez que sim. “Numa fita pequena. Uma fita de cinco polegadas, numa
gaveta da sala refrigerada. A mesa cinza que tem lá.”
“A fita está etiquetada?”
“É uma fita que eu uso. Está escrito ‘Não apague’. Peça pro Howard imprimir
pra você. Você pode mandar pra imprensa. E pro Larry Axelrod.”
Houve um silêncio. A respiração curta de Renée mal movia o lençol que a
cobria. “Eu estou sentindo muita falta de você”, disse Louis. “Eu te amo, de
verdade.”
Ela estava com os olhos fixos no teto; ainda não tinha olhado para Louis. Ele
passou a mão em seu cabelo e, ao tocar nele e sentir o calor da cabeça dela, uma
força irresistível fez com que ele se abaixasse e lhe desse um beijo na boca. Os
lábios dela estavam inchados e imóveis. Exalavam um cheiro forte de remédio,
um cheiro que nada tinha de Renée, penetrante e enjoativo, parecido com
formol: o cheiro da possibilidade, subitamente real, de que ela pudesse
simplesmente não perdoá-lo nunca.

O Matador branco entrou com estardalhaço no estacionamento do laboratório


Hoffman à uma hora e ejetou Howard pela porta do motorista. Seu cabelo estava
molhado e ele, obviamente irritado. Estava dormindo quando Louis ligou para
ele, pouco depois do meio-dia.
“O trabalho dela está gravado numa fita”, disse Louis. “Você tem que me
ajudar a imprimir esse trabalho.”
Bufando de raiva, Howard abriu a porta para que ele entrasse no prédio. “Que
fita?”
“Uma que diz ‘Não apague’.”
Howard entrou na sala de computação e pegou uma fita de cima da mesa
onde ficavam os consoles. “Essa fita?”
A etiqueta dizia Não apague na caligrafia de Renée. Howard bufou de novo,
inseriu a fita num drive na gélida sala interna e deu instruções ao sistema a partir
de um console. Bufou mais algumas vezes. “Não é essa”, disse ele. “Isso é do
Terry .”
Eles vasculharam as duas salas em busca de outra fita de cinco polegadas em
que estivesse escrito Não apague. Terry Snall entrou e perguntou o que eles
estavam procurando. “‘Não apague’?” O alarme perturbou por um segundo o seu
rosto, antes que ele o reprimisse. “Ah, sim, eu acabei de usar.”
“A Renée tinha um arquivo gravado nela”, disse Louis.
“Bom, não tem mais”, respondeu Terry , dando uma risadinha.
“Você apagou?”
“E eu não vou me sentir culpado.”
“Você apagou a fita?”
“Eu não vou me sentir culpado”, Terry repetiu. “A fita não estava com anel de
proteção, não estava com nome, e eu sei que todo mundo está morrendo de pena
da Renée agora, e que o que aconteceu foi uma coisa horrível, mas a verdade é
que, se ela quer sair apagando os arquivos de outras pessoas sem avisar pra elas,
ela não pode reclamar por eu ter usado uma fita que nem nome tinha.”
“Você apagou a fita? E aí você vai ao hospital e age como se fosse namorado
dela?”
“Não fique esperando que eu me sinta culpado”, disse Terry. “Porque eu não
vou.”

Àquela altura do fim de semana, a enorme cama de Eileen e Peter tinha


adquirido o aspecto de uma casa flutuante. Além dos textos sobre negócios
bancários e dos cadernos de Eileen, ela estava guarnecida de pilhas de Esquires e
GQs de Peter, o controle remoto da televisão, um walkman e fitas diversas, peças
de roupa emboladas, biscoitos Pepperidge Farm, uma garrafa grande de Coca
Diet e um copo extragrande de iogurte com palitinhos de cenoura boiando dentro.
Louis recusou o convite de Eileen para subir a bordo, preferindo se sentar perto
da porta, ao lado da gaiola de Milton Friedman, enquanto contava sua história.
A princípio, embora Eileen estivesse ouvindo a história com embevecido
interesse, Peter continuou a dedicar boa parte de sua atenção aos melhores
momentos do campeonato de Wimbledon exibidos na tela à sua frente. Logo,
porém, Eileen começou a ficar com os olhos toldados de incompreensão e
excesso de informação, e foi Peter quem passou a ficar mais interessado. Ele
abaixou o volume da televisão e fez perguntas a Louis, com uma voz seca e
impaciente. Depois, desligou a televisão de vez e ficou olhando fixamente para a
janela. Seu rosto tinha perdido a cor.
“O que foi?”, Eileen perguntou.
Peter se virou para Louis. “A coisa do milhão de galões. Quando vocês vieram
aqui naquela noite e ela ficou me fazendo perguntas sobre isso. Vocês já sabiam
do poço naquela época?”
“Já.”
“Por que vocês não me falaram?”
“Hum, isso foi meio que ideia minha. A gente não queria correr o risco do seu
pai ficar sabendo.”
“O meu pai?” Peter enterrou as duas mãos nos cabelos. “Ah, isso é ótimo. Puta
merda. Isso é realmente fantástico.”
“Parecia fazer sentido na época”, disse Louis.
“Eu não estou acreditando. Só o que vocês precisavam fazer era me contar, e
nada disso teria acontecido. Lembra que a Rita me ligou em janeiro e eu fui até
lá?”, ele perguntou a Eileen. “Eu não via a Rita fazia mais de um ano”, ele disse
para Louis.
“Ela tinha aquele problema com bebida”, disse Eileen.
“Enfim, ela queria me ver, disse que estava apavorada e então eu fui até lá. A
primeira coisa que eu vejo quando chego lá é que duas das janelas da frente da
casa dela estão quebradas. Aí eu entro e ela me mostra um buraco de tiro no teto
dela.”
Eileen olhou para ele de olhos arregalados. “O quê?”
Peter fez que sim, evitando os olhos dela agora. “Nem preciso dizer que ela
tinha enchido a cara. Ela estava tendo que se segurar nos móveis pra não cair.
Mas o que ela queria era me pedir que, se alguma coisa ‘acontecesse’ com ela,
eu fosse à polícia e dissesse que tinha sido a empresa. Ela começou com uma
longa lenga-lenga de que não estava satisfeita com o plano de pensão dela, que
não tinha dinheiro pra nada e que estava tentando convencer a empresa a fazer
um acordo mais justo com ela. Ou seja, ela estava tentando chantagear a
empresa. Porque, por acaso, ela sabia o que aqueles caras estavam fazendo com
todos aqueles resíduos tóxicos medonhos deles. Ela disse: ‘Eles não estão
incinerando, Peter. Eles dizem que estão, mas não estão. São um milhão de
galões por ano, e eles não estão incinerando coisa nenhuma’. Aí eu pergunto pra
ela o que afinal eles estão fazendo com os resíduos, mas ela se recusa a me dizer.
Ela diz: ‘Se eu te contar e ele descobrir, ele vai me matar’. Foram exatamente
essas as palavras dela. Exatamente. E aí eu pergunto: ‘Ele quem?’. E ela responde
que é o meu pai.”
Os lábios de Eileen formaram um silencioso O quê?
“O meu próprio pai. Ela me diz que a porra do meu pai foi lá e atirou nas
janelas da sala de estar dela. E eu nem sei se devo ou não acreditar nela. Quer
dizer, eu estou disposto a acreditar em praticamente qualquer coisa a respeito do
meu pai. Mas, até onde eu sabia, eu e ela tínhamos virado inimigos mortais
depois que eu não quis mais trabalhar pra ela. Então eu disse, olha, o meu pai
pode ser um canalha facistoide, mas ele não é burro. Você não quer que eu
acredite que ele veio aqui pessoalmente e atirou nas suas janelas. Mas ela diz: ‘A
Thérèse viu o carro. Era o carro dele’. E eu, bom, eu não consigo realmente
acreditar, então eu digo que é melhor ela ligar pra polícia. E ela diz: ‘Ele vai me
matar se eu contar pra polícia’. Foram as exatas palavras dela. E ela diz que não
quer morrer, porque o velho Jack contou a ela como ela ia voltar na próxima
encarnação dela. Ele disse pra ela que ela ia voltar como um cacto. E ela não
queria ser um cacto e, então, não queria morrer. E aí ela começa a chorar e mal
consegue ficar em pé, e o que é que eu posso fazer? Eu dou o fora de lá. Sabe,
arquivo e esqueço.”
Um silêncio se instalou na cama agora em calmaria. Peter sacudia a cabeça,
de queixo caído. O rosto de Eileen estava muito sombrio. “Você nunca me
contou nada disso”, ela disse com um nefasto fio de voz. “Você disse que ela
queria que você a ajudasse com o novo livro dela.”
“É, eu sei. Mas o que é que eu podia fazer? Em primeiro lugar, eu não
acreditei nela. E segundo, ela disse que ele ia acabar com a raça dela se ela
contasse pra alguém. Sabe? Eu fiquei com medo.”
“Você contou pra Renée”, Eileen insistiu com seu fiozinho de voz, os olhos
fixos na colcha.
“Porque a Rita já estava morta. A coisa toda tinha ficado irrelevante, sabe. E
eu ainda continuava sem saber se devia ou não acreditar nela. Ela tinha vários
inimigos em Ipswich, por causa da pirâmide. Pelo que eu sabia, a história sobre o
meu pai podia ser pura invenção dela.”
“Mas não era invenção dela”, disse Louis.
“Pois é. E em vez da Rita, quem é baleada é a Renée. E eu vou te dizer, não foi
um bostinha qualquer que puxou o gatilho. Foi a porra do meu pai!”
“Por favor, para de falar palavrão”, disse Eileen.
Peter tinha posto as pernas por sobre a amurada da cama e estava calçando
seus Nikes. “Eu não sei de vocês, mas eu estou indo pra lá”, disse ele. “Estou indo
pra lá agora, neste instante.”
“Talvez fosse melhor a gente deixar a polícia...”
“Nem morto que eu vou perder essa chance”, disse Peter. “Eu passei metade
da minha vida esperando por isso.”
Eileen deu um sorriso nervoso para Louis. “Acho que a gente está indo pra lá.”
“Acho que sim.”
Enquanto Peter se arrumava no banheiro, ela encheu a garrafa de água de
Milton Friedman. O gerbo estava trepando nas barras da gaiola, lombo e ombros
tremendo enquanto ele enfiava sua cabeça em forma de pênis na liberdade à sua
volta. “Eu fico tão aflita”, Eileen disse para Louis. “Ele e o pai realmente não se
dão.”
“O que é um grande ponto a favor do Peter, ao que parece.”
“Você pode dar uma força pra ele?”
“Claro. Ele é seu namorado.”
Ela insistiu que eles fossem no carro de Louis, não querendo que o colérico
Peter dirigisse. Louis não conseguia se lembrar de nenhuma ocasião em que
tivesse levado Eileen de carro a algum lugar. Era possível que nunca tivesse.
Peter resmungava e xingava no banco de trás enquanto eles avançavam em alta
velocidade por entre o trânsito leve de um fim de tarde de domingo na Northeast
Expressway, mas os Holland se mantinham em silêncio. Eileen parecia mais
velha depois de uma semana de trabalho no mundo real, parecia mais dura, mais
grave e fisicamente maior, embora na verdade parecesse ter emagrecido. As
mãos pousadas em seu colo tinham perdido boa parte da antiga suavidade. Eram
mãos para apertar um colchão durante o sexo, mãos para levar colheradas de
comida à boca de um bebê, mãos para assinar contratos e conduzir meticulosas
análises de crédito.
Saindo da Route 128 em Ly nnfield, eles deixaram o resto de luz do dia para
trás e entraram numa penumbra suburbana feita de árvores frondosas, de
gramados plácidos e de brilho azulado, de campos e ar imperturbados por
qualquer som mais violento do que o silvo de pneus passando. A aparência da
natureza era indescritivelmente benigna ali nos subúrbios. Ela se recostava e
sussurrava como a espuma morna que se espraia na faixa de areia entre o mar
de fundo negro e a terra crestada: entre as florestas feridas e plangentes e a
cidade em que uma nova natureza tomara o lugar da natureza. Gramados
distribuíam de graça seu cheiro de capim e terra, estendiam-se confortavelmente
nus sob um céu no qual se podia confiar. Cada casa era como uma mãe,
silenciosa, distanciada da rua e com janelas iluminadas, sempre acolhedora e
protetora enquanto objeto, mas, enquanto sujeito, sempre traindo a consciência
do fato de que as crianças deixam de ser crianças, de que elas vão embora e de
que a morada que acolhe e protege vai sofrer com a ausência delas, já vinha
sofrendo o tempo todo por ser um objeto.
Eileen indicou a Louis uma rua que só tinha seis casas, a maior delas sendo a
dos Stoorhuy s. Peter abriu a porta da frente para eles. A sala de estar dos
Stoorhuy s era um cômodo comprido, de teto baixo e atmosfera formal, cuja
face nativa estava mascarada por pesadas cortinas de estampas florais e quinze
ou vinte pinturas a óleo ruins, com elaboradas molduras douradas. As pinturas
eram todas de cidades europeias — ruas de pedra molhadas de chuva, hotéis de
janelas fechadas e palácios escabrosos nas cores sombrias de roupas antigas,
todos os vermelhos acastanhados, todos os amarelos amarronzados, todos os
brancos riscados e formando crostas feito fezes de pássaros; não havia gente
nessa Europa.
Padrões florais reinavam na cozinha dos Stoorhuy s. Ramalhetes cresciam
como bolor nas almofadas das cadeiras, no papel de parede, nas capas
acolchoadas da batedeira e do multiprocessador, nas travessas e tigelas de
cerâmica, nas tampas esmaltadas dos bocais do fogão, nos potes de farinha,
açúcar e café. Uma das irmãs de Peter, uma loura magra, tímida e insossa,
vestida na moda de verão universitária, estava fazendo pipoca no micro-ondas.
Na sala de tv adjacente, os pais relaxavam sob o brilho e os ruídos de um
episódio de Assassinato por escrito.
Eileen apresentou Louis à tímida Sarah e depois à mãe de Peter, que tinha
saído da sala de tv para saudar as visitas. Ela era uma mulher alta e gentil, com
um rosto assumidamente arruinado e cabelo comprido demais. Louis apertou a
mão dela rapidamente antes de ir atrás de Peter, que havia entrado na sala de tv.
Quando Peter desligou a televisão e se virou para encarar o pai, Louis tomou a
iniciativa de acender a luz e se postou ao lado de Peter, como um apoiador.
O sr. Stoorhuy s estava esparramado num sofá de couro. Usava uma camisa
branca estilo Ferdinando Marcos, com uma gola imensa. “Quer fazer o favor de
ligar a televisão de novo, Pete?”
“Peter, nós estávamos vendo”, disse a sra. Stoorhuy s da porta.
“Eu acho que o papai tem uma coisa pra nos contar”, disse Peter. “Não tem,
pai?”
Stoorhuy s ergueu os olhos cautelosamente, tentando entender que conexão
poderia haver entre seu filho e Louis. “Não que eu saiba”, disse ele.
“Nada sobre a Renée Seitchek?”
“Ah, aquela pobre menina”, disse a sra. Stoorhuy s.
“Ela é namorada do Louis”, disse Eileen. Ela tinha se sentado numa cadeira de
balanço e estava folheando sem ver um livro ilustrado de mesa de centro
intitulado A colorida ilha de São Cristóvão.
“Ela é sua namorada?” A sra. Stoorhuy s estava chocada. “Que coisa terrível!”
“É, é terrível realmente”, disse Peter, enquanto Louis tentava, sem sucesso,
encarar Stoorhuy s olho no olho. “Não é, pai? Alguém atira nela pelas costas e
depois põe a culpa em outras pessoas. Foi uma grande lástima ela não ter
morrido, não foi? Por que aí ninguém ficaria sabendo que todos os textos dela
tinham sumido.”
A pipoca estalando na cozinha lembrava o som de tiros abafados. Stoorhuy s
tinha aberto uma Architectural Digest e estava passando a mão em sua franja
volumosa, tentando abaixá-la. “Eu não faço ideia do que você está falando,
Pete.”
“Os textos dela”, disse Peter. “Os textos que mostram quem são os
responsáveis pelos terremotos. Ela já contou pra polícia, pai. A qualquer
momento eles vão dar as caras lá em Peabody .”
“Peter, do que é que você está falando?”, perguntou a mãe.
“Foi um acidente, não foi, pai? Você só queria dar um susto nela. Queria só dar
uns tirinhos por cima da cabeça dela. Mas aí, que diabo. Ela estava bem ali. Por
que não calar a boca dela de vez, não é? Por que não matar logo aquela garota
inconveniente?”
Peter estava tremendo tanto que seu cotovelo volta e meia esbarrava no de
Louis. Stoorhuy s virou uma página de sua revista, seu maxilar rígido enquanto ele
fingia ler. “Eu não sei do que você está falando.”
“Ah, é? Fica de olho nele, mãe. Logo, logo ele vai ter que dar um telefonema.
Fica de olho. Eu garanto que ele vai correr pro telefone. Ou então vai dizer que
tem que dar uma saidinha. Vai esperar uma hora em que você não esteja
olhando, ou vai sair no meio da noite. Ou ele vai até Peabody ou vai fugir pra
salvar o próprio pescoço.”
Stoorhuy s sacudiu a cabeça, como que tomado de profunda tristeza, e não
disse nada. Mas seu rosto estava coberto de suor e suas mãos tremiam.
“David”, disse a sra. Stoorhuy s, “do que ele está falando?”
“Eu não sei”, disse Stoorhuy s. “É só mais da mesma história de sempre. Ele é
bom, eu sou mau. Ele é inteligente, eu sou burro.”
“É isso mesmo, é isso mesmo”, disse Peter. “Ou sou eu que estou injetando
resíduos tóxicos no fundo da terra? E causando terremotos?”
“Isso é mentira.”
“Mentira? A namorada dele está no hospital...”, Peter apontou com o queixo
para Louis, que continuava a encarar Stoorhuy s implacavelmente, “...e ela não
achava que era mentira. E todo o material que ela tinha que provava que isso é
verdade foi roubado no mesmo dia em que ela foi baleada. E você está dizendo
que é mentira?”
Stoorhuy s folheava sua revista de trás para a frente, estudando as fotografias.
“Eu não estou sabendo de nada sobre isso.”
“Fica de olho nele, mãe. Você vai ver que ele vai ligar. Alguma hora ele vai
ter que dar esse telefonema.”
A sra. Stoorhuy s não estava ouvindo. Estava massageando a própria clavícula
e olhando para o vaso de fícus perto de seus pés como se a planta estivesse
prestes a fazê-la chorar.
“Se alguém está nos caluniando”, disse Stoorhuy s, “eu vou ter que comunicar
à empresa, mas isso não...”
“Claro, a empresa, a empresa. É isso que conta, não é, pai? Quem se importa
com a mamãe? Ela é só uma pessoa. É a empresa que...”
“Foi a empresa que pagou os seus estudos!” Stoorhuy s saltou do sofá e
avançou para o filho. “Foi a empresa que desentortou os seus dentes! Que botou
comida no seu prato e roupas no seu lombo durante vinte anos!”
“Desentortou os meus dentes? Santo Deus, você acha que nós estamos
morando onde, em Charlestown? Você acha que está ganhando trinta mil por
ano?”
Tão rápido quanto tinha se exasperado, Stoorhuy s se acalmou de novo. Soltou
um suspiro e optou, por alguma razão, por se dirigir a Louis. “Você está vendo o
que eu tenho que aguentar em casa?”, disse ele. “Você está vendo o
agradecimento que eu recebo?”
Louis manteve uma expressão de extrema seriedade e não respondeu. Ficou
observando Stoorhuy s pegar um paletó listrado do encosto do sofá, tatear a chave
num dos bolsos e enfiar seus braços ossudos nas mangas do paletó. “Janet, eu
tenho que ir ao escritório um instante. Eu tenho certeza de que existe uma
explicação simples para isso tudo.”
Embora a sra. Stoorhuy s tenha feito que sim, levou um bom tempo para que
ela erguesse os olhos do vaso de fícus; e, então, ela olhou para o marido como se
não tivesse ouvido o que ele disse. “David”, disse ela, “eu nunca criei nenhum
problema para você em relação ao seu trabalho. Eu nunca... pressionei você. Eu
nunca lhe fiz perguntas que eu... poderia ter feito. Mas agora você tem que me
dizer. Você realmente não teve nada a ver com o... com o que aconteceu com
aquela moça? É só isso que eu quero saber. Você tem que me responder.”
A fragilidade da postura dela e o tremor em sua voz fizeram até Louis gelar
por dentro. Já Stoorhuy s cerrou os punhos e olhou em volta, à procura de algum
objeto inanimado em que pudesse descarregar seus sentimentos. Seu olhar
pousou em Peter. Stoorhuy s deu um sorriso amargo. “Você viu o que você fez,
Pete? Está satisfeito agora? Agora que ela está do seu lado?”
“Eu estou lhe fazendo uma pergunta”, disse a sra. Stoorhuy s. “Eu quero que
você me responda. Eu nunca lhe fiz perguntas, mas eu acho que tenho o direito
de perguntar se...”
“Ah, você tem o direito, não é?”, disse Stoorhuy s, faiscando fúria. “Bom,
talvez você esteja um pouco atrasada. Talvez você esteja só uns vinte anos
atrasada.” De novo ele se virou para Louis. “Vinte anos atrás eu recebi um
aumento que quase duplicou a nossa renda do dia pra noite. E quando eu contei
isso a ela, você sabe o que ela me perguntou?”
“Eu tenho o direito de perguntar agora”, disse ela.
“Você sabe o que ela me perguntou?” Ele chegou mais perto de Louis,
sorrindo um pouco, preparando o terreno para o desfecho impactante. “Ela me
perguntou se a gente podia comprar uma casa em que todas as crianças tivessem
seu próprio quarto. E só. Essa era a extensão da curiosidade dela.”
“Por que cabia a mim perguntar? Você podia ter me contado!”
Stoorhuy s a ignorou, continuando a se dirigir apenas a Louis. “Eu teria pedido
demissão se ela tivesse me feito uma única pergunta a respeito na época. Eu
estava pronto pra pedir demissão. Uma única pergunta teria bastado. Mas, sabe,
eu não tinha a menor importância. Mesmo naquela época, eu já não tinha a
menor importância. Desde que as crianças tivessem todas o seu próprio...”
“Peter. Eu fui uma boa mãe? Eu fui uma boa mãe pra você?”
“Vinte anos”, disse Stoorhuy s. “Vinte anos, e ela resolve me perguntar agora.
Ela podia ter me perguntado uma semana atrás, um mês atrás, um ano atrás.
Mas foram vinte anos, dia após dia...! Ela não tem o menor direito de me fazer
perguntas agora. E o Peter não tem o menor direito de jogar a culpa toda em
mim. Ele não é neutro. Você tem que entender como é viver com ela. Eu ouço
como ela fala no telefone com ele, eu ouço ela perguntar sobre o trabalho dele,
dar conselhos, dizer o que ele deve fazer. Mas nunca nem uma palavra, nunca
nem uma palavra sobre o meu trabalho. Quando foi o meu trabalho que deu a ela
tudo que ela tem.”
“Era melhor não...”
Ele girou e gritou na cara dela: “Nunca nem uma palavra!”. Ela ergueu as
mãos no ar e deixou-as pairar a dois centímetros de suas orelhas. “Nunca nem
uma palavra! Você fez a sua escolha, você escolheu as crianças, e agora você
acha que tem o direito de me fazer perguntas? E de me culpar? Quem você acha
que gozou os benefícios desses vinte anos? Você acha que fui eu? Você acha que
eu não fiz alguns sacrifícios também? Janet — e Peter, você me escute também
— Janet, eu fui um marido muito melhor do que você imagina. Muito melhor do
que você seria capaz de conceber.”
Louis conseguia imaginar agora, conseguia conceber como aquele homem, se
tivesse uma arma na mão e uma mulher diante dele, poderia ter sido capaz de
matá-la. Todo mundo conseguia imaginar agora. A sra. Stoorhuy s enterrou o
rosto nas mãos. Quando Peter fez menção de se aproximar para confortá-la, ela
lhe deu as costas e saiu correndo da sala.
Peter correu atrás dela. “Mãe...”
Eles a ouviram tropeçar na escada e Peter gritar: “Mãe!”.
Louis e Eileen viram Stoorhuy s tirar as chaves do carro do bolso.
“Então você atirou nela?”, Louis perguntou num tom casual.
Stoorhuy s olhou para ele, surpreso. Era como se ele não tivesse realmente
registrado o rosto de Louis até aquele momento. “Eu nem sequer te conheço”,
disse ele, saindo da sala.
Um silêncio se instalou. Eileen se balançou na cadeira e virou uma página de A
colorida ilha de São Cristóvão.
“Cacete”, disse Louis.
“Não é horrível?”
“Todo mundo que já teve alguma coisa a ver com aquela empresa está
basicamente ferrado, incluindo eu.”
“Eu cuido de você. Você vai ser o meu neném.”
“Ah, tá. Quero ver.”
Peter voltou para a cozinha fumando um cigarro. Pôs dois dedos de uísque
num copo e levantou a garrafa de um litro e meio para que Eileen e Louis
pudessem vê-la da sala de tv.
“Sim”, eles disseram.
Eles foram para o deque em volta da piscina, onde a fumaça do Porsche do
pai de Peter ainda pairava no ar, sentaram, beberam e suaram. O compressor do
aparelho de ar-condicionado central dos Stoorhuy s fez uma pausa. Eileen tirou os
sapatos e pôs as pernas dentro da piscina. “O que é que vai acontecer agora?”,
ela perguntou.
Louis ouvia os grilos e os guinchos de um morcego. “Vai haver uma
investigação”, ele respondeu. “Um grande bafafá na imprensa. Talvez alguns
processos judiciais. Se tiver sorte, um dia talvez a gente consiga esquecer isso.”
Peter falou da ponta do trampolim, onde estava sentado. “Ele praticamente
admitiu que puxou o gatilho. E o que é que você faz diante disso? Eu devia ter
ligado pra polícia? Amarrado o meu pai pra ele não fugir?”
Uma a uma, as luzes dos quartos lá em cima se apagaram. O ar-condicionado
tornou a fazer barulho. Parou, recomeçou, e Louis começou a se perguntar se
não poderia simplesmente morrer da próxima vez que o ronco do aparelho
cessasse. Eileen estava nadando de costas com lentas braçadas, de sutiã e
calcinha. Peter parecia um cadáver estendido no trampolim. Louis concentrou
sua atenção no barulho do ar-condicionado, tentando prever o instante em que ele
iria parar, tentando saudar essa pequena morte de olhos abertos. Em vez disso, o
que ele acabou ouvindo, por fim, foi uma falsa manhã. Não só um ou dois
pássaros despertando, mas centenas deles, e os ganidos do cachorro de algum
vizinho.
Louis se levantou de sua cadeira oscilando, sem saber o que fazer. “Aí vem
vindo um”, ele disse.
Eileen deixou suas pernas encostarem no chão da piscina, na parte rasa.
Sacudiu a cabeça para tirar água do ouvido. “O quê?”
Começou tão gradualmente, como se ele estivesse sendo suavemente
embalado por braços imensos e invisíveis, que ele não saberia dizer onde ficava a
linha divisória, onde o não movimento havia cedido lugar à sensação
transbordante, cada vez mais vasta e profunda que os envolveu. Por um
momento, realmente foi como gozar; parecia a melhor coisa que ele poderia um
dia sentir na vida.
Então, uma coisa extremamente séria aconteceu, comparável apenas, em sua
experiência, à colisão de carros em alta velocidade que ele havia testemunhado
na Lake Forest Road, na época da escola secundária, em uma de suas expedições
para comprar peças de rádio, quando o monótono vaivém do tráfego suburbano
vespertino saiu dos trilhos da normalidade, e mesmo estando a meio quilômetro
de distância ele sentiu o impacto em seus ossos, o barulho da morte instantânea
enchendo o céu como o clarão de um relâmpago, os guinchos, as derrapagens, os
estrondos secundários, cada um deles muito mais grave que um simples choque
de para-lamas, e todas as pessoas em volta começaram a correr, apavoradas,
em todas as direções: era com o mesmo tipo de impacto, a mesma terrível
sensação de descarrilhamento do mundo, o mesmo protesto estridente e
ribombante de materiais rígidos se deformando que a terra agora estremecia e
estourava, janelas explodiam e vasos de planta voavam.
Peter foi arremessado na água com os membros esticados de um jeito bizarro,
como um gato atirado do alto. Um vento que Louis não conseguia sentir sacudia
as árvores. Ele caiu no chão e dois móveis de piscina lhe deram uma surra,
pisando em seus dedos com pés de metal, acertando suas costelas com cotovelos
de metal. Ele ouviu a si mesmo gritar Ah, pelo amor de Deus, isso é RIDÍCULO,
e ouviu Eileen berrando como uma náufraga muito abaixo dele, no meio de
ondas que estouravam na base de penhascos. O quintal dos fundos parecia estar
afundando na camada adiposa da terra, feita de húmus e argila glacial, as copas
das árvores em volta tombando e se juntando para confabular, enquanto a pele
da terra se encrespava. Pássaros enchiam o ar, voando em círculos frenéticos,
espalhando o caos. As luzes se apagaram e as estrelas viraram borrões. O chão
batia em Louis como a carroceria dura de um caminhão sem freio numa ladeira
esburacada. Ele estava apavorado, mas acima de tudo estava furioso com o
chão, com a maldade que ele estava fazendo. Queria que o chão parasse e
quando ele finalmente parou, Louis se levantou e o chutou com raiva.
Eileen e Peter estavam de pé na parte rasa da piscina, de boca aberta para
facilitar a rápida sucção do ar. Olhavam para Louis como se mal o
reconhecessem. Louis chutou o chão de novo, olhou para a casa escura e para o
quintal transformado e murmurou: “Que estrago”.
16.

A sra. Stoorhuy s distribuía máscaras de gás na cozinha. Estava usando botas


impermeáveis, com sola grossa de borracha, e capa de chuva.
A cozinha parecia ter sido vasculhada por um ladrão em busca da prataria
escondida. Sarah apontava um trêmulo feixe de lanterna para a caixa de papelão
onde se encontrava o equipamento de emergência, enquanto a outra filha,
ligeiramente mais nova, passava o feixe de sua lanterna pelas pilhas de louças
florais quebradas, os armários escancarados e o lustroso vômito que a geladeira
expelira — imundas ondas de ketchup, cereja em calda e compota de maçã
quebrando contra recifes de vidro pontudo. Poucas cores resistiam à brancura do
feixe da lanterna.
“Peter, ajude as suas irmãs a botarem as máscaras.”
“Ele foi lá fora desligar o gás”, Sarah lembrou à mãe.
“A gente não precisa de ajuda”, a outra irmã acrescentou.
“Hã, é realmente necessário usar máscara?”, perguntou Louis.
A sra. Stoorhuy s entregou uma máscara a ele. “Aqui diz: ‘as máscaras devem
ser usadas caso o terremoto tenha sido forte o bastante para derrubar no chão a
maior parte dos objetos guardados nos armários da cozinha’.” Ela estava lendo
uma lista datilografada de instruções que estava colada na caixa. “‘Em caso de
dúvida, use as máscaras’. Toma uma lanterna pra você também. Tem oito itens
de cada coisa.”
A máscara era um negócio de plástico preto reluzente cujo nariz pesado a
fazia balançar como se tivesse vida. As irmãs de Peter já tinham posto as suas e
pareciam goleiras de hóquei do mal ou capangas de Satã. Goy a havia desenhado
cabeças assim, pouco antes de morrer.
“Bom, agora, pra que lado o vento está soprando?”, perguntou a sra. Stoorhuy s.
“Não está soprando vento nenhum”, disse Louis.
“Ah, hum...” Ela consultou uma tabela em suas instruções. “Noite... verão... ar
calmo... Sim, aqui. Siga para o norte rumo a Haverhill ou além.”
Peter voltou lá de fora com uma enorme chave inglesa na mão, mancando
enquanto tentava passar por entre eletrodomésticos e móveis caídos. Tinha
torcido o quadril. Ninguém mais estava se queixando de nada mais sério que
arranhões e hematomas. “Peter, aqui a sua máscara de gás”, disse a mãe.
“Máscara de gás?”
“Máscara de gás”, Louis confirmou.
“O seu pai deixou instruções na caixa de emergência para terremotos.”
Peter olhou para Louis e eles balançaram a cabeça significativamente.
“Agora, supostamente deve ter uma arma em algum lugar...”
“Mãe, você sabia que tinha máscaras de gás dentro dessa caixa?”
“Sabia.”
“E isso não fez você meio que se perguntar o que poderia estar acontecendo lá
em Peabody, não? Sabe, pra que é que a gente precisava dessas coisas em casa?
Você não ficou preocupada, não?”
“Ele disse que era só para o caso de acontecer o pior, o que provavelmente
não ia acontecer. Você sabe como ele gosta de ser ultraprecavido.”
“Nem morto que eu vou usar essa coisa”, disse Peter.
“Faz de conta que é moda”, disse Louis.
“Eu não estou conseguindo encontrar a tal da arma”, disse a sra. Stoorhuy s,
remexendo na caixa.
Novamente Peter e Louis olharam um para o outro e balançaram a cabeça.
“Onde você acha que pode estar?”
“Melhor não perguntar, mãe.”
“Eu chutaria no fundo de um rio”, disse Louis.
Eileen entrou aos tropeços pela porta dos fundos emperrada, usando a calça
jeans e as botas de neve que Peter tinha encontrado para ela. Respirava de forma
ruidosa. “Deve estar tendo algum incêndio”, disse ela. “Eu estou sentindo cheiro
de fumaça.”
“Experimenta uma dessas”, disse Louis. “Você não vai sentir cheiro de nada.
Ou só um agradável cheiro de plástico.”
Ela arregalou os olhos. “Cruzes! Pra quê?”
“Ordens da empresa. Põe a máscara.”
Ela pegou a máscara com dois dedos e a ergueu no ar como um peixe
contaminado ou um acessório horrendo.
“Tem uma fivela atrás”, disse Louis.
“Eu estou preocupada com a mamãe”, disse Eileen. “Acho que a gente devia
ir até lá.”
“Não, nós vamos para Haverhill”, disse a sra. Stoorhuy s, enterrando o rosto
em plástico preto.
“Vamos pra Haverhill por Ipswich”, disse Peter.
“Sem querer estragar os planos de vocês”, disse Louis, “mas não tem uma
usina nuclear naquela direção?”
“Ah, Seabrook”, disse Eileen, seu rosto assumindo um ar de desalento.
“A gente vai pra Ipswich e, no caminho, a gente vê o que o rádio diz”, disse
Peter.
A sra. Stoorhuy s estava distribuindo mais suprimentos para sua tropa —
capacetes, cantis de água, pacotes de bolacha, latas de fiambre, um rádio
transistor, um kit de primeiros socorros. No fundo da caixa havia um par de tiras
autocolantes com os dizeres saqueadores: cuidado! e um desenho de uma caveira
e dois ossos cruzados. Louis foi encarregado de colar uma delas na porta da
frente.
Apesar dos cacos de vidro, dos quadros caídos e da bagunça geral, a parte da
frente da casa mantinha um ar de conforto. Talvez por causa do carpete felpudo.
A Europa, no entanto, estava em ruínas: palácios inclinados em ângulos bizarros,
ruas vazias atiradas rudemente em almofadas de sofá.
Um enorme caminhão passou roncando em frente à casa. Destroços
acertaram Louis e ele ouviu gritos e guinchos tão claros e automáticos que
pareciam pré-gravados. Cambaleou sob o impacto de um bom pedaço de reboco
que havia caído em cheio em cima de seu capacete, mas o chão já estava
recuperando a estabilidade, e Louis pensou, bem, que bom que David Stoorhuy s
havia lhe fornecido um capacete.
Em sua pressa, uma hora antes, Stoorhuy s também tinha deixado a porta da
garagem aberta. Ela havia caído em cima da caminhonete que restava na
garagem, amassando o teto, mas quebrando apenas o vidro de trás. Peter
conseguiu tirar a caminhonete de ré da garagem, enquanto os outros se
distribuíram ao lado da porta pesada para mantê-la suspensa. A comunicação
entre eles estava prejudicada pelo plástico de suas máscaras.
À primeira vista, a rua dos Stoorhuy s tinha a aparência de qualquer rua de
subúrbio no meio de uma noite quente e sem lua, as árvores, arbustos, gramados
e calçadas todos intactos, e as casas ainda de pé. Só depois de um tempo se
notavam as alterações mais sutis, uma casa levemente inclinada para a frente,
como que congelada no instante em que sentiu uma súbita onda de náusea; o
perfil semi-implodido de uma porta de tela que quis desabar, mas não pôde; as
placas empenadas de revestimentos de alumínio; o brilho de cacos de vidro no
meio dos evônimos embaixo das janelas. A porta de garagem que vertia
silenciosamente uma lâmina de água pela pista de entrada até a rua. Os
bruxuleios de fogo-fátuo em cômodos em que famílias invisíveis estavam usando
lanternas. Era como se a terra ainda estivesse saudável, mas as casas tivessem,
todas, morrido de repente de alguma doença interna.
Enquanto isso o cheiro de fumaça de carro, que era o cheiro da vida na
América, era a garantia de que nada de muito grave havia acontecido. Quatro
Stoorhuy s esperavam, pacientes, em sua caminhonete e com seus capacetes e
máscaras sem expressão, enquanto Eileen abraçava Louis e dizia para ele tomar
cuidado. Ele não havia precisado lhe dizer que ia voltar para o hospital em
Boston; ela já tinha intuído.
Em seu carro, depois que os Stoorhuy s e Eileen se foram, Louis ligou o rádio.
Havia apenas um silêncio na frequência que a wrko costumava ocupar, e ele
girou o dial até encontrar um sinal, um tênue sinal.
“...suas três primeiras vezes ao bastão e tinha a chance de igualar ou quebrar o
recorde da Major League de quatro home runs num jogo, mas em vez disso
acabou na lista de contundidos por causa de uma torção que sofreu no joelho
direito ao mergulhar para pegar uma bola no quinto inning. Se ele ficou
decepcionado? ‘Claro, sabe, eu gostaria de ter tido mais duas chances de tentar
entrar para o livro dos recordes, quem não gostaria? Mas o importante é o time,
nós não temos jogado muito bem nesses últimos dois meses, e só o que eu quero é
estar lá e contribuir todos os dias.’ Já pela Liga Nacional hoje, os Cubs
conseguiram de novo, 7 a 5 sobre os Reds em dez innings; os Atlanta Braves
passaram de raspão pelos Pittsburgh Pirates com 3-2; os Houston Astros
simplesmente não deram chance aos Cards, 8 a zero; Dodgers 4 a 2 sobre os
Phillies; Mets 6 Giants 1; e lá em San Diego os Pods e os Expos estão tendo um
confronto selvagem, estão agora no fim do décimo oitavo! inning, tudo igual em
13. Essa é a Hora da Notícia na WGN, são onze e vinte e cinco. Homens, vocês
estão naquela idade em que têm medo de passar um pente no cabelo, porque mais
cabelo fica no pente do que na sua cabeça?”
A wgn era de Chicago. Chicago, lugar de chão estável. Louis deu partida no
carro e foi descendo com cuidado a rua vazia, virando constantemente a cabeça
para compensar sua limitada visão periférica.
“Nós vamos iniciar a cobertura constante e ao vivo do terremoto assim que
tivermos estabelecido conexões com uma de nossas afiliadas. O terremoto foi
sentido em toda a região nordeste, mas até agora nenhum pronunciamento oficial
foi feito acerca de danos ou vítimas. O epicentro parece ter sido perto de Boston, e
boa parte do leste de Massachusetts está sem luz e sem serviço telefônico no
momento, mas nós estamos em contato com a nossa emissora afiliada em Boston e
dentro de apenas alguns instantes estaremos recebendo notícias deles. Antes, uma
mensagem da revendedora Honda Schaumburg.”
O dial estava repleto de emissoras distantes, Buffalo, St. Louis, Miami, Lincoln.
Elas emergiam como as estrelas quando as luzes da cidade se apagam e o
universo pode de repente impor sua autoridade. No Quebec, o assunto do
momento era le tremblement de terre, que todo mundo lá evidentemente tinha
sentido. Uma parede havia rachado em Hartford, emissoras de Manhattan não
paravam de receber telefonemas, havia um relato não confirmado de feridos em
Worcester. A weei de Boston, transmitindo com potência reduzida, declarou que
os danos tinham sido comparativamente leves no centro da cidade. Um incêndio
estava em curso no sul de Boston e um repórter que se encontrava no local disse
que pelo menos doze pessoas haviam sofrido ferimentos, mas Dorchester,
Roxbury e outras áreas mais ao sul ainda tinham eletricidade e serviço
telefônico. Nos subúrbios do extremo norte de Boston, reinava um funesto
silêncio. Uma operadora de rádio amador adolescente de Salem relatou que
alguns prédios de tijolo de seu bairro haviam desmoronado e que a pressão da
água estava muito baixa. Disse também estar vendo o clarão do que parecia ser
um grande incêndio a noroeste, em Peabody ou Danvers. Por outro lado, todas as
casas de sua própria rua estavam de pé e ninguém parecia ter sofrido ferimentos
graves. O Centro Nacional de Informações sobre Terremotos havia divulgado
que uma estimativa preliminar indicava que o terremoto tivera magnitude de 6,0
e epicentro no leste do condado de Essex. O piloto de um jato particular havia
avistado um grande incêndio na margem oeste do rio Danvers e incêndios
menores no centro de Beverly. Havia um relato não confirmado oriundo de
Portsmouth, New Hampshire, de que a paralisação emergencial da usina nuclear
de Seabrook estava prosseguindo normalmente, relato esse que um comentarista
da weei disse que não podia estar correto, já que a usina de Seabrook estava
fechada desde meados de maio para que fossem feitas melhorias no sistema de
segurança...
Louis desligou o rádio. Os gramados e bosques de ambos os lados da rua
estavam muito, muito escuros. Uma ambulância com a luz giratória ligada surgiu
nos espelhos do carro de Louis e foi crescendo rapidamente, suas rodas atirando
um jato de água misturada com areia ao passar por ele. Ele teve de fechar sua
janela e, por um momento, no súbito silêncio, se esqueceu qual era a estação do
ano e que horas eram; seriam talvez as primeiras horas de uma noite de outono?
Uma ambulância passando por ele numa estrada fria e encharcada de chuva?
Parecia outono e havia pouco em sua memória que pudesse convencê-lo de que
não era. Se pelo menos a estrada estivesse menos escura, ou fosse menos reta, ou
se ele estivesse conseguindo enxergar um pouco melhor...
A Sweeting-Aldren havia fabricado o pigmento alerta laranja usado nos cones
rodoviários que bloqueavam as rampas de acesso à Route 128 e nos coletes dos
guardas que patrulhavam uma das rampas, onde aparentemente um trecho de
pista entre dois pilares tinha se tornado instável. As luzes cor de caramelo de um
caminhão do Departamento de Estradas de Rodagem pulsavam no ar úmido.
“Que estrago”, disse Louis, enquanto fazia a curva para pegar uma rua escura
que seguia paralela à rodovia. Sua máscara estava começando a fazer seu rosto
coçar.
Ele havia avançado talvez uns oitocentos metros pela rua escura, passando por
cáries pretas que ele supôs serem gramados de casas, quando seus faróis
vislumbraram algo de errado no bosque à sua esquerda — a carne branca
exposta de árvores com galhos recém-partidos e um vulto parecido com o de um
carro numa posição que não parecia a de um carro. Louis reduziu a velocidade e
virou o carro, posicionando seus faróis altos de modo a iluminar a cena.
O vulto era de fato um carro. Suas rodas apontavam para o céu e o
compartimento do passageiro estava achatado e enterrado em lama, arbustos e
galhos de árvore abaixo do trecho elevado da Route 128. Arbustos quebrados e
terra revirada marcavam a trajetória que o carro havia traçado em seu
mergulho do alto da via expressa. Louis deixou o motor de seu carro ligado e
abriu caminho por entre o mato e os galhos até o carro acidentado. Só as partes
do carro iluminadas pelos faróis, o metal amassado e o chassi retorcido, faziam
algum sentido; havia uma confusão escura e perturbadora aos pés de Louis e, no
meio dela, vagamente, ele viu a figura de um homem. O corpo estava intacto,
mas tinha sido parcialmente ejetado pela janela aberta do motorista, a começar
pelas mãos, que se curvaram para dentro quando depois vieram os braços, que se
curvaram para dentro quando depois vieram a cabeça e o tronco. Os ângulos do
corpo eram como os do corpo de um dançarino quando ele encosta as mãos
lassas e arqueadas no rosto, junta os cotovelos ao peito e abaixa a cabeça para
evocar ternura, tristeza ou submissão. O homem tinha pescoço grosso, usava uma
camisa formal rosa de aparência barata e possivelmente em toda a sua vida
nunca havia sido tão expressivo com seu corpo, sua postura nunca tendo evocado
coisa alguma de forma tão eloquente quanto agora evocava a morte; porque era
absolutamente evidente que ele estava morto.
Não havia tráfego na rodovia lá em cima. Louis cambaleou até o outro lado do
carro, gemendo um pouco de autopiedade, e se certificou de que não havia
nenhum passageiro lá dentro. Agora que não estava mais vendo o homem, ele já
não tinha mais tanta certeza de que ele estivesse realmente morto. Voltou para
perto do homem, se ajoelhou e tocou no pescoço dele. A pele estava fria. Ele o
sacudiu de leve e a cabeça girou e tombou para a frente. Louis afastou a mão.
Ouviu vozes, de homens e mulheres, vindas do gramado do outro lado da rua, e
correu para dizer o que tinha de dizer, ou seja, que um homem estava morto.

As irmãs de Peter estavam se queixando das máscaras. Diziam que se sentiam


ridículas usando aquilo. Repetiam que mais ninguém, nem os guardas nem as
pessoas comuns pelas quais haviam passado no centro de Ly nnfield e em
Middletown, estava usando máscara.
“Fiquem com as máscaras”, disse Peter, dirigindo. “Os fígados de vocês
agradecerão.”
Eileen tinha encostado sua cabeça cansada e pesada na janela a seu lado no
banco de trás e estava deixando que seus olhos fechassem e abrissem sobre o
borrão escuro que era o subúrbio próspero pelo qual eles estavam passando
agora. Ela poderia ter dormido se Peter não ficasse freando toda hora diante de
perigos reais ou hipotéticos — cabos de eletricidade partidos, trechos baixos e
alagados de estrada e curvas que a princípio pareciam escarpas de falha. Ela
deixava seu corpo balançar como bem entendesse, deixava seu rosto mascarado
bater no vidro quando o carro sacolejava ou fazia uma curva. Sempre achara
reconfortante andar de carro, andar e andar sem nunca parar, e era
particularmente reconfortante agora ser embalada tão demorada e suavemente,
ser balançada pelo carro e não pelo chão. Via trechos de floresta se alternarem
com lugarejos e campos. Havia uma língua de vapor no horizonte ao sul,
elevando-se de algum ponto a muitos quilômetros de distância. Eileen a viu antes
de ela se ocultar por um bom tempo, e então outra vista se abriu ao sul e ela viu
de novo: um punho cerrado de gás cinzento socando a barriga preta do céu, os
encapelados nós de seus dedos emitindo um brilho laranja. A língua evoluía
como uma nuvem normal num céu normal, aparentando estar imóvel quando
Eileen ficava olhando para ela, mas mudando de forma quando ela parava de
olhar. A princípio, parecia um ponto de exclamação gordo caindo para a
esquerda; então mais um aglomerado de árvores bloqueou a visão de Eileen e,
quando ela a avistou de novo, a língua tinha se arqueado e virado um ponto de
interrogação. Os olhos de Eileen continuaram se fechando conforme o
movimento do carro a embalava. Ela reconhecia os sons dentro do carro como
palavras ditas por Peter, pela família dele ou pelo locutor do rádio, mas mesmo o
esforço mínimo necessário para entendê-las estava além de suas forças. A língua
ficou do mesmo tamanho, crescendo à medida que a estrada a levava para longe
dela. Eileen não disse nada. Estava quase dormindo agora e tinha receio de que,
se as outras pessoas vissem a língua, ela fosse deixar de ser só uma coisa na
cabeça dela e se tornar real.

***

Uma família estava reunida em volta de uma picape, ouvindo o rádio à luz de
um lampião apoiado na capota. Eram dois casais jovens, um casal mais velho e
um bebê. A mulher mais velha viu Louis andando em direção a eles com a
máscara de gás e fez cara de espanto. Ele disse que havia uma pessoa morta do
outro lado da rua.
Agora todo mundo estava fazendo cara de espanto para ele. “Tem alguma
coisa... errada?”
“Bom, sim”, ele respondeu. “Acho que existe uma preocupação em relação a
uma fábrica de produtos químicos em Peabody .”
Ele já sabia que teria de contar a eles, mas estava na dúvida se fora um erro.
A família começou a metralhá-lo com perguntas, duas ou três de cada vez. Ele
tentou trazer a discussão de volta para o homem morto do outro lado da rua, mas,
quando deu por si, já tinha sido deixado sozinho na pista de entrada da casa,
enquanto as pessoas disparavam em todas as direções, algumas sumindo dentro
da casa, outras correndo para avisar os vizinhos.
O rádio disse: Há relatos agora de que pelo menos dezoito pessoas morreram, a
maioria delas no condado de Essex. Esse número certamente irá crescer e é
provável que existam dezenas se não centenas de feridos no que claramente foi a
pior tragédia natural que já atingiu a grande Boston.
“Você quer uma carona?”, a mulher mais velha perguntou a Louis. Ela e o
marido estavam botando sacolas do Star Market com comida e garrafas de água
na carroceria da picape.
“Não...” Louis fez um gesto vago. “Obrigado, de qualquer forma.”
“Acho que é melhor a gente ir indo, você não acha?”
“É, mas...” Ele apontou com cabeça na direção da rua.
“Esquece o homem.”
Louis caminhou sem ânimo pela pista de entrada, embrenhou-se por entre os
arbustos e urtigas e ficou parado, em silêncio, diante do carro capotado, olhando
para aquela vítima sem rosto que tinha se tornado dele. A notícia sobre um
possível vazamento químico estava vazando por toda a rua. Os ruídos de carros
dando partida se multiplicavam, e novamente a terra estava tremendo.

Eileen acordou quando o carro parou na pista de cascalho em frente à casa de


sua mãe. Tirou a máscara e seguiu atrás de Peter, que mancava em direção à
porta da frente. Uma luz de emergência na sala de estar, instalada para inibir
ladrões, iluminava os destroços de uma violenta destruição — os móveis em
desordem, crateras na parede. O escuro do céu havia empalidecido um pouco,
como se a noite tivesse cansado de ser noite e estivesse reconsiderando sua
posição. Peter bateu na porta. Eileen ouviu uma voz de locutor de rádio vindo de
algum lugar do quintal e deu a volta até a lateral da casa.
Sua mãe estava sentada numa cadeira Adirondack no meio do amplo gramado
que descia da ala leste. Na grama ao lado dela havia um balde de gelo de prata e
um aparelho de som portátil, sintonizado num noticiário. Ela estava tomando
champanhe em uma taça alta.
“Você está bem?”, Eileen perguntou.
“Eileen.” Melanie virou a cabeça molemente. “Você está bem. Eu sabia que
você ficaria bem. Está tudo, tudo bem.”
...fora de controle neste momento na fábrica da empresa em Peabody. Até
agora ainda não houve nenhum pronunciamento oficial, mas os moradores que
ainda não deixaram as comunidades nas cercanias da fábrica devem considerar a
possibilidade de permanecerem em suas casas com as janelas bem fechadas e os
aparelhos de ar-condicionado desligados.
“Você está bem?”, Eileen repetiu.
Melanie tomou o resto de champanhe e depois levantou a taça no ar. “Eu estou
exultante!”
...danos estruturais, e as principais vias de escoamento rodoviário estão
congestionadas. Pelo que eu vejo daqui, parece que os bombeiros não estão
fazendo nenhuma tentativa de entrar nas instalações. Há uma fumaça...
sufocante... acre... no ar, e certamente o chefe dos bombeiros está preocupado
com a segurança de seus homens.
“Como ela está?”, perguntou Peter, também sem máscara.
Eileen revirou os olhos e desviou o rosto. “Exultante.”
“Oi, senhora Holland.”
“Olá, Peter.” Melanie despejou as últimas gotas de champanhe em sua taça e
pôs a garrafa de volta no balde com o gargalo para baixo. “Como está a sua
família? Eles estão todos bem?”
Eileen ouviu um soluço alto quando começava a subir de volta a ladeira do
gramado. Não se lembrava de já ter sentido falta de Louis alguma vez, mas
estava sentindo agora.
“Eileen, minha querida, tem mais champanhe na geladeira. Você pode
oferecer pra família do Peter. Peter, traga algumas cadeiras aqui pra baixo. Tem
uns tira-gostos lá também, Eileen. Você vai encontrar.”
A sra. Stoorhuy s ainda estava de máscara. Ela foi ao encontro de Eileen e
parou perto dela no gramado molhado de orvalho. “Como ela está?”
“Ah, ela está ótima”, disse Eileen.
“Ela é uma mulher tão bonita. E a casa também é tão bonita.” Janet desceu a
ladeira escorregadia na ponta dos pés e tocou no ombro de Melanie. “Melanie?”
Melanie olhou para ela e deu um berro. O rádio continuava bradando sobre o
incêndio em Peabody . Eileen se deitou no gramado e dormiu.

Quanto tempo uma pessoa levava para ir da Filadélfia até Pittsburgh quando
estava vivendo no azul? Quanto tempo uma pessoa levava para ir simplesmente
de Ly nnfield até Boston quando as vias expressas estavam fechadas e não havia
eletricidade? Louis calculava que ele e seu Civic estavam avançando mais ou
menos na velocidade média de um cavalo a galope enquanto rumavam para o
sul por Wakefield, Stoneham, Melrose. Ele parava para consultar seu mapa,
parava diante de pontes danificadas e era obrigado a fazer um contorno. Parou
para ajudar um cambojano a tirar seu carro carcomido de ferrugem de dentro
de uma vala e botá-lo na estrada que levava a Peabody, onde sua mulher e seus
filhos estavam. Louis deu sua máscara de gás para o cambojano quando eles se
despediram.
As ruas, com seus meios-fios, calçadas e bueiros, não estavam ancoradas no
chão. Dez bombeiros de Melrose se afastavam do local de um incêndio já
apagado com o andar relaxado de pessoas que saem de uma igreja, suas costas
voltadas para as vigas pretas que haviam se erguido, vitoriosas, da terra. O prédio
de uma biblioteca tivera uma diarreia de tijolos, e a proximidade do movimento
forte, a aleatoriedade irradiante e persistente daquilo tudo, fazia com que a
imobilidade dos destroços deixasse de ser uma qualidade elementar e passasse a
ser uma espécie de dor, uma imanência.
O século xviii assombrava as inescrutáveis ruas transversais, tão latente na
escuridão que Louis quase esperava ouvir os golpes de cascos de cavalo no barro.
Imaginou como deviam ser negras as noites no centro de uma cidade duzentos
anos atrás, antes de existir iluminação a gás e muito antes de a insônia da época
atual ter espalhado alucinações insones em pistas ao longo dos limites das cidades
e trazido o mundo externo para o interior das casas: como as próprias casas
deviam descansar, tão invisíveis e aparentemente mortas quanto as pessoas que
dormiam dentro delas. Como deviam ser assustadoras e bonitas aquelas noites.
Como deviam tornar algum tipo de repouso verdadeiro e de solidão verdadeira
uma possibilidade.
Mas aquela época era só um eco agora, um eco que morria se você chegasse
perto demais, e, sempre que passava por pessoas — elas não estavam nos bairros
empresariais nem nos centros comerciais, mas sim nas ruas residenciais —, elas
estavam coladas a automóveis com faróis, rádios e motores ligados, e ele não
podia negar que esses pequenos quadros vivos, repetidos inúmeras vezes
enquanto ele seguia para o sul, eram as únicas coisas naquela noite que pareciam
genuínas. Os faróis estacionários lançavam feixes de realidade sobre o suposto
fato do terremoto e iluminavam pedaços da vegetação real e das casas reais que
sobreviviam, indiferentes, à escuridão. E o rádio, embora Louis tivesse mantido o
seu desligado a maior parte do tempo, era a voz da época dele, a única voz na
noite que ele compreendia. As janelas quebradas, os fios partidos, as
ambulâncias e os rostos feridos que assomavam no meio da noite eram coisas
sem sentido. Sem sentido porque ele podia olhar para elas e, de alguma forma,
não sentir nenhum desejo de vingança, nenhum mesmo. Nem mesmo naquela
estrada de Ly nnfield, quando estava diante da primeira pessoa morta com que se
deparara, tinha havido algum espaço no coração dele para a raiva. Não
conseguia relacionar a coisa morta pelo terremoto a seus pés a quaisquer ações
dentro de um esquema de certo ou errado, não conseguia pensar: a empresa é
responsável por isso e eles têm de pagar. Como você podia acreditar em
responsabilidade se a responsabilidade tem limites? E, no entanto, como podia um
terremoto causado pela cupidez e pela desonestidade de homens reais e
específicos mesmo assim virar simplesmente um ato de Deus, com a vacuidade
inumana e impalpável de um ato de Deus? Lembrando-se dos braços enroscados
e da cabeça aninhada do homem morto, Louis não conseguia sequer sentir
horror. O corpo agora parecia algo como os furtos que ele testemunhara em
Chicago, ou como o homem maltrapilho que ele vira uma vez se masturbando,
de calça arriada, entre os arbustos do Hermann Park, em Houston, uma imagem
tão irreal quanto tudo mais a respeito daquele terremoto, tão irreal quanto
reportagens sobre guerras ou tomadas de assassinatos na televisão, exceto que
irrealidade não era exatamente a palavra para o que ele tinha sentido lá, pisando
em urtigas na última década do século xx, cercado pelas consequências da
catástrofe e pensando por que ele vivia e do que era realmente feito um mundo
que abarcava a morte. A palavra era mistério.
Ele estava percorrendo uma avenida de Everett ou Medford (não sabia ao
certo qual das duas) quando as luzes se acenderam e ficou claro que a cidade de
Boston e seus arredores imediatos estavam longe de estar completamente
arruinados. Algumas casas tinham ficado de joelhos ou perdido paredes, mas
mesmo as piores ruas tinham uma aparência melhor do que um típico quarteirão
de gueto. Um grupo de jovens irlandeses zanzava no telhado de um abrigo de um
campo de beisebol, tomando cerveja. Crianças brincavam na luz restaurada
como crianças do deserto brincam na chuva. Louis se permitiu relaxar um pouco
e imediatamente sentiu um enjoo de cansaço e o odioso arrependimento que
passar uma noite em claro sempre lhe causava.
O céu estava rosa e amarelo quando ele chegou a Back Bay. A irrealidade
ainda resistia nos vários pontos de onde a destruição tinha emanado — na calçada
desmantelada, na rachadura molhada que atravessava obliquamente a
Marlborough Street, nos tijolos soltos, remates de concreto e pedaços de
alvenaria que jaziam na grama ou na calçada com incisiva e dissimulada
imobilidade, como se quisessem passar por fragmentos de um templo romano ou
penedos no fundo de um penhasco, coisas que não tinham se movido por séculos.
O prédio de Eileen e Peter, porém, continuava de pé, exatamente como Louis o
havia deixado.
No Brigham & Women’s algumas pessoas avulsas, a maioria delas idosas,
permaneciam imóveis do lado de fora da sala de emergência, tentando ser
apenas objetos, até que um médico pudesse transformá-las de novo em pessoas
com testemunhos, histórias. Garrafas quebradas e ladrilhos caídos tinham sido
juntados em pilhas caprichadas, e as enfermeiras eram enérgicas e estavam
imunes ao pânico. Uma delas, que já conhecia Louis, guiou-o até a cama onde
Renée, ele viu, estava dormindo.
17.

Durante toda a segunda e toda a terça-feira, o terremoto manteve o país


refém. Manchetes gigantescas marchando em fileiras cerradas feito tropas
fascistas chutavam tudo mais para fora da face das primeiras páginas e, à tarde,
pessoas que estavam tentando assistir às novelas eram submetidas a edições
extraordinárias de telejornais. A Major League cancelou todos os jogos durante
dois dias, caso fãs tivessem a ideia de se refugiar das notícias com bolas e
tacadas. Até o vice-presidente foi forçado a abreviar seu tour pelas capitais da
América Central e voar para Boston.
Não é agradável ser mantido refém; não é só uma figura de linguagem. Numa
sociedade decadente, as pessoas podem lentamente derivar ou lentamente ser
arrastadas pela cultura do comércio para o anseio por violência. Talvez as
pessoas tenham uma consciência profunda e inata de que nenhuma civilização
dura para sempre, de que até a mais pacífica prosperidade terá um dia de
terminar, ou talvez seja apenas a natureza humana. Mas a guerra pode começar
a parecer um merecido espetáculo de fogos de artifício, e um assassino em série
(desde que ele esteja numa cidade distante), alguém por quem torcer. Uma
sociedade decadente ensina as pessoas a gostarem de propagandas de violência
contra mulheres, a gostarem de qualquer coisa que sugira uma mulher tendo seu
sutiã arrancado e seus seios agarrados, uma mulher sendo estuprada, uma
mulher tendo seus braços e pernas amarrados com cordas, uma mulher tendo
sua barriga perfurada, uma mulher berrando. Mas aí uma mulher real que elas
conhecem é sequestrada e estuprada e não só não gosta, como fica revoltada ou
traumatizada pelo resto da vida, e de repente elas se tornam reféns da
experiência dela. Elas sentem um aperto insuportável no peito, porque todas
aquelas sugestões e imagens sexy tinham se tornado, fazia tempo, pontes para
atravessar o vazio de seus dias.
E agora a catástrofe que vinha prometendo fazer com que você tivesse a
sensação de viver num tempo especial, num tempo de verdade, num tempo do
tipo daqueles sobre os quais você lê em livros de história, um tempo de
sofrimento, morte e heroísmo, um tempo do qual você se lembraria com tanta
facilidade quanto esqueceria aqueles outros anos em que fez pouca coisa além de
buscar inutilmente sexo e romance através de suas compras: agora uma
catástrofe de tais proporções históricas havia acontecido, e agora você sabia que
também não era isso o que você queria. Não aquela interminável repetição
televisionada de clichês e de repórteres franzindo cenhos gravemente, não
aquelas caras de pesadelo de âncoras empoados olhando para você horas e mais
horas. Não aquela mesma tomada dos mesmos corpos ensanguentados
estendidos em macas. Não aquela nauseante proliferação de matérias de jornal
idênticas, contendo entrevistas idênticas com sobreviventes que diziam que tinha
sido assustador e declarações idênticas de cientistas que diziam que o fenômeno
ainda não estava bem compreendido. Não aquelas fotos de prédios que estavam
danificados, mas não destruídos. Não aquela mesma imagem, várias e várias
vezes, da ruína fumegante de Peabody, onde brilhava um sol da manhã comum,
porque o sol ainda raiava, porque o mundo não tinha mudado, porque a sua vida
não tinha mudado. Você teria preferido a falta de sentido mais honesta de uma
World Series, a diversão oferecida por um evento que podia ser a culminância de
meses de expectativa e semanas de publicidade histérica, construindo uma ponte
sobre o vazio de um verão e de um outono e produzindo, em conclusão, um
conjunto inteiramente portátil de números que a mídia não podia esfregar na sua
cara por mais do que cerca de uma hora. Porque você percebia agora que o
terremoto não era nem história nem entretenimento. Era simplesmente um caos
particularmente feio. E embora o terremoto também pudesse ser reduzido a um
placar — mil e trezentos feridos, setenta e um mortos, magnitude 6,1 —, era o
tipo de placar que os seus virtuosos sequestradores se sentiam no direito de repetir
até você enlouquecer e começar a dar berros que eles, no entanto, atrás de seus
microfones e monitores de computador, não ouviam.
A foto que ganhou as primeiras páginas dos jornais vespertinos de segunda-
feira no mundo inteiro mostrava as ruínas das instalações da Sweeting-Aldren em
Peabody. Vinte e três das mortes e cento e dez dos ferimentos haviam sido
sofridos por funcionários da empresa atingidos pela explosão inicial de duas
linhas de produção e pela subsequente conflagração geral. O terremoto havia
danificado vários sistemas anti-incêndio, e bolas de etileno em combustão e
lençóis de benzeno em chamas haviam inflamado tanques de armazenamento.
Uma explosão aparentemente causada por nitrato de amônio arrasou linhas de
produção que, de outra forma, poderiam não ter se incendiado. Nuvens brancas
despejavam ácido nítrico, ácido clorídrico e reagentes orgânicos, os
hidrocarbonetos e halógenos se combinando num ambiente de temperatura tão
alta e pH tão baixo quanto o da superfície de Vênus, mas consideravelmente
mais tóxico. Resfriando-se e deslocando-se, a língua de vapor desceu sobre ruas
residenciais, deixando um resíduo esbranquiçado e oleoso em tudo que tocava.
Na tarde de segunda-feira, funcionários da epa vestidos com roupas de My lar
mediram os níveis de dioxina em ruas imediatamente ao norte da fábrica e
encontraram resultados na ordem de partes por cem mil. Pássaros cobriam o
chão sob as árvores como frutas caídas e emboloradas. Gatos, esquilos e coelhos
jaziam mortos em gramados ou sofriam violentos espasmos e ânsias de vômito
ao pé de sebes. O tempo estava ótimo, temperatura em torno de vinte e cinco
graus, umidade baixa. Unidades da Guarda Nacional equipadas com gás
lacrimogêneo trabalhavam metodicamente avançando em sentido norte,
evacuando moradores recalcitrantes à força quando era necessário, fechando
ruas com barris alerta laranja e cercando a área mais contaminada, denominada
Zona i, com frágeis anteparos de plástico laranja que aparentemente vinham
sendo estocados justamente com esse propósito.
No fim da tarde de terça-feira, a Zona i já estava completamente isolada. Ela
consistia em cerca de quinze quilômetros quadrados de valas cobertas de
cascalho, ruas residenciais pobres, pântanos abarrotados de lixo e algumas velhas
fábricas de propriedade de empresas que vinham reduzindo suas atividades fazia
muito. Vários moradores de Peabody que estavam em casa quando a língua de
vapor desceu já tinham se dirigido a hospitais, com queixas de tontura ou fadiga
extrema. As casas que eles haviam deixado para trás, e que agora só podiam ser
visitadas por patrulhas da Guarda Nacional ou equipes de reportagem, tinham o
aspecto de sofás estropiados — as pernas bambas, as juntas enfraquecidas, o
forro rasgado aqui e ali, expondo um caos interno de molas e estofo farelento. Os
danos causados pelo terremoto eram semelhantes na Zona ii, ao norte, que era
muito mais extensa, mas lá a contaminação era irregular e mal definida o
suficiente para que a Guarda Nacional entendesse que podia permitir que
moradores adultos voltassem ao local durante o dia para trancar suas casas e
recolher pertences pessoais.
A cobertura jornalística de Peabody estava sendo feita vinte e quatro horas por
dia. Desavenças entre equipes de filmagem e membros da Guarda eram
frequentes, e repórteres se dirigiam ao público usando máscaras de gás. Alguns
ficavam tão abalados com o que estavam vendo, tão inesperadamente
sensibilizados com as notícias, que abandonavam suas hipócritas poses graves e
falavam como os seres humanos inteligentes que você sempre desconfiara que
eles tinham de ser. Perguntavam a membros da Guarda se algum saqueador
havia sido baleado. Perguntavam a representantes de entidades de proteção
ambiental se as pessoas que moravam nas cercanias imediatas das duas zonas
corriam riscos. Perguntavam a todos os entrevistados quais eram suas impressões
a respeito de tudo o que estava acontecendo. Mas a grande pergunta, não só para
a imprensa, mas para a epa, para os trinta mil moradores traumatizados e
indignados das Zonas i e ii, para os cidadãos de Boston e também para todos os
americanos era: O que a diretoria da Sweeting-Aldren tinha a dizer? E foi na
tarde de segunda-feira, quando a pergunta havia se tornado inescapável, que a
imprensa descobriu que não havia literalmente ninguém por perto para respondê-
la. O quartel-general da Sweeting-Aldren, situado, aliás, logo a oeste da Zona ii,
tivera seu interior destruído por um incêndio que os esquadrões de bombeiros
locais, quando estavam tentando combatê-lo nas horas seguintes ao terremoto,
disseram que parecia ser um caso de incêndio criminoso. O sistema de sprinkler
do prédio havia sido desativado manualmente, e os bombeiros encontraram
vestígios de um “fluido incendiário” perto do que sobrara da sala onde ficavam
arquivados os documentos da empresa, no térreo. As esposas do presidente e dos
quatro vice-presidentes seniores ou também não puderam ser localizadas ou
disseram aos repórteres que não viam seus maridos desde domingo à noite,
pouco antes do início do terremoto.
Às cinco da tarde de segunda-feira, bem a tempo de realizar uma entrevista ao
vivo para o noticiário local, o Channel 4 conseguiu localizar o porta-voz da
empresa, Ridgely Holbine, numa marina de Marblehead. Ele estava usando
calção de banho e uma camiseta desbotada de Harvard e estava fazendo uma
inspeção em seu veleiro para verificar se ele sofrera algum dano durante o
terremoto.

penny spanghorn: Que declaração a empresa tem a dar a respeito dessa


terrível tragédia?
holbine: Penny, eu não tenho como lhe dar nenhuma declaração oficial
neste momento.
spanghorn: Você pode nos dizer o que causou essa terrível tragédia?
holbine: Eu não recebi nenhuma informação a esse respeito. Posso apenas
especular, por minha própria conta, que o terremoto tenha sido um fator.
spanghorn: Você está em contato com a diretoria da empresa?
holbine: Não, Penny , não estou.
spanghorn: A empresa está preparada para assumir a responsabilidade pela
terrível contaminação que atingiu Peabody ? Vocês estão preparados para
assumir um papel de liderança nos esforços de descontaminação?
holbine: Eu não tenho como lhe dar nenhuma declaração oficial.
spanghorn: Qual é a sua opinião pessoal a respeito dessa terrível tragédia?
holbine: Eu lastimo muito pelos trabalhadores que foram mortos e feridos.
Lastimo muito por suas famílias.
spanghorn: Você se sente pessoalmente responsável de alguma forma? Por
essa terrível tragédia?
holbine: Foi um ato de Deus. Não há como controlar isso. Mas nós todos
lamentamos as vidas que foram perdidas.
spanghorn: E quanto às cerca de trinta mil pessoas que hoje estão
desabrigadas em consequência dessa tragédia?
holbine: Como eu disse, eu não estou autorizado a falar pela empresa. Mas é
inegavelmente lamentável.
spanghorn: O que você tem a dizer a essas pessoas?
holbine: Bom, elas não devem comer nenhum alimento que esteja em suas
casas. Devem se lavar cuidadosamente e tentar encontrar outros lugares
para ficar. Beber água engarrafada. Descansar bastante. É o que eu estou
fazendo.
Na terça-feira de manhã, veio à tona a notícia de que o presidente da
Sweeting-Aldren, Sandy Aldren, havia passado todo o dia de segunda-feira na
cidade de Nova York, liquidando os títulos negociáveis da empresa e transferindo
cada dólar de que a empresa dispunha em espécie para contas bancárias num
país estrangeiro. Depois, na própria segunda à noite, ele desapareceu. A
princípio, pensou-se que as contas estrangeiras em questão fossem suíças, mas
registros mostraram que todo o dinheiro — cerca de trinta milhões de dólares —
havia, na verdade, ido parar no First Bank of Basseterre, na ilha de São Cristóvão.
Na tarde de terça, o advogado particular de Aldren em Boston, Alan Porges,
veio a público e admitiu que uma “reserva em dinheiro” fora levantada para
cobrir os “pagamentos por desligamento garantidos por contrato” dos cinco
“principais executivos” da empresa. Esses pagamentos somavam pouco mais de
trinta milhões, e Porges disse que, ao que lhe constava, todos os cinco executivos
haviam se demitido oficialmente na manhã de segunda-feira e tinham, portanto,
o direito de receber seus pagamentos em dinheiro imediatamente. Ele se recusou
a especular sobre o paradeiro dos cinco executivos.
As redes de televisão haviam retransmitido trechos da entrevista com Porges
não mais do que cinco ou seis vezes quando uma nova bomba estourou. O
sismólogo Larry Axelrod chamou repórteres ao mit e declarou que vira indícios
que sugeriam que a Sweeting-Aldren era responsável por praticamente toda a
atividade sísmica dos últimos três meses, incluindo o principal abalo, ocorrido na
noite de domingo. Disse também que os indícios tinham lhe sido fornecidos pela
sismóloga Renée Seitchek, de Harvard, “uma excelente cientista”, que ainda se
encontrava hospitalizada, recuperando-se de ferimentos a bala. Uma mulher do
Globe perguntou se era possível que Seitchek tivesse sido alvejada não por
extremistas do movimento pró-vida, mas por alguém a mando da Sweeting-
Aldren, e Axelrod respondeu: Sim.
As polícias de Somerville e de Boston confirmaram que haviam de fato
ampliado o escopo das investigações do atentado contra Seitchek à luz desse
motivo recém-descoberto, mas acrescentaram que o terremoto havia posto em
desordem todas as investigações desse tipo. Disseram ainda que o total desmonte
da estrutura administrativa da Sweeting-Aldren e a perda dos documentos da
empresa em diversos incêndios “poderiam representar um problema”.
Representantes de entidades federais e estaduais de proteção ambiental
estavam encontrando problemas ainda maiores ao tentar confirmar a existência
de um poço de injeção nas instalações da empresa em Peabody. Na manhã de
quarta-feira, o último incêndio que ainda restava no local se extinguiu depois de
ter consumido quase tudo, e o que sobrou foram oitocentos acres de ruínas
crestadas e envenenadas — um South Bronx ainda não mapeado repleto de lagos
escuros e espumantes, instáveis armazéns de produção e dutos e tanques
pressurizados que, desconfiava-se, continham não só explosivos e gases
inflamáveis, como também algumas das substâncias mais tóxicas e/ou
carcinogênicas e/ou teratogênicas conhecidas pelo homem. A prioridade da epa,
conforme declarou a administradora Susan Carver ao abc News, era evitar que a
contaminação se espalhasse para o lençol freático e para os estuários próximos.
“Ficou claro agora”, disse Carver, “que a imensa lucratividade dessa empresa
foi conquistada por meio da adoção de margens de segurança muito abaixo do
mínimo necessário e da engambelação sistemática das agências responsáveis
pela fiscalização. Eu temo que haja um risco muito real de que essa tragédia
pessoal e econômica venha a se tornar uma verdadeira catástrofe ambiental e,
no momento, estou mais preocupada em proteger a segurança da população do
que em atribuir responsabilidade no abstrato. Para nós, localizar uma única boca
de poço no local, pressupondo que o poço de fato exista, vai ser como encontrar
uma agulha num palheiro que nós sabemos que está cheio de cascavéis.”
De modo geral, a imprensa e o público compraram totalmente a teoria
Axelrod/Seitchek. Sismólogos, contudo, reagiram com sua costumeira cautela.
Queriam examinar os dados. Precisavam de tempo para construir modelos e
interpretar informações. Disseram ser plausível que a profusa atividade sísmica
de abril e maio, caracterizada por enxames de sismos, tivesse sido induzida pela
Sweeting-Aldren, mas que o abalo principal da noite de domingo era outra
questão.
Tal abalo, demonstrou-se, havia resultado da ruptura de rochas ao longo de
uma falha profunda que se estendia do noroeste de Peabody até um ponto nas
cercanias dos epicentros dos tremores ocorridos em Ipswich em abril. Howard
Chun, de Harvard, realizara a deconvolução de alguns sismogramas digitais de
curto período e demonstrara, de forma razoavelmente conclusiva, que a ruptura
se propagara da ponta noroeste da falha para a ponta sul — em outras palavras,
que o evento tinha “começado” perto de Ipswich. Um poço de injeção da
Sweeting-Aldren não poderia, portanto, ter “causado” o terremoto; poderia, no
máximo, ter desestabilizado a falha, ou produzido uma instabilidade geral criando
uma trilha de menor resistência. Mas toda a questão da propagação de rupturas
ainda não estava de forma alguma bem compreendida.
A única coisa que se sabia com certeza era que o leste dos Estados Unidos
havia sofrido o seu maior terremoto desde que Charleston, na Carolina do Sul,
fora arrasada em 1886. A contaminação de Peabody e o escândalo de
culpabilidade empresarial foram, naturalmente, os assuntos que receberam de
início a maior atenção da imprensa — todo grande desastre americano parece
produzir um espetáculo particularmente tenebroso — mas, à medida que a
situação lá foi se estabilizando, as atenções se voltaram para as graves feridas
que o resto dos subúrbios do norte de Boston e a própria cidade haviam sofrido.
Uma equipe de resgate que estava escavando os escombros de um orfanato de
Salem havia exumado oito pequenos corpos. Ataques cardíacos haviam matado
pelo menos dez moradores da cidade de Boston; o Channel 7 entrevistou vizinhos
de um morador do oeste de Somerville chamado John Mullins, que havia saído de
sua casa cambaleando e caído morto na rua, de braços abertos, “como se tivesse
levado um tiro”. Seis pessoas haviam sido hospitalizadas por causa de torrentes de
percloroetileno que vazaram de estabelecimentos de lavagem a seco.
Bibliotecários de todas as cidades de Gloucester a Cambridge estavam atolados
até os quadris na enxurrada de livros que caíra das estantes. O mainframe do
Shawmut Bank havia pifado e um incêndio elétrico apagara centenas de fitas
magnéticas contendo informações sobre contas correntes; o banco fechou suas
portas por uma semana e seus clientes, descobrindo que seus cartões também
não funcionavam nos caixas eletrônicos de outros bancos, tiveram de pedir
empréstimos, fazer escambos ou implorar esmolas só para conseguir comprar
comida e água engarrafada. Muita gente se queixava de um enjoo persistente.
Depois da noite de domingo, apenas três tremores de pouca intensidade tinham
sido sentidos, mas cada um deles fez centenas de pessoas pararem o que estavam
fazendo e caírem num choro incontrolável. Tudo estava caótico — casas,
fábricas, estradas, tribunais. Na sexta-feira de manhã, coordenadores das equipes
federais de emergência estimavam que o custo total do terremoto, incluindo
danos a propriedades e a interrupção das atividades econômicas, mas não
incluindo a contaminação nas Zonas i e ii, ficaria na faixa de quatro a cinco
bilhões de dólares. Editorialistas chamaram esse valor de “chocante”; era
aproximadamente o que fora gasto pelos americanos para pagar os juros da
dívida nacional ao longo do fim de semana do Memorial Day .
A vítima mais notória do terremoto foi, provavelmente, a Igreja da Ação em
Cristo de Philip Stites. Assim como faziam ao redigir obituários para os vivos, as
organizações jornalísticas locais haviam se preparado para a destruição da igreja
escrevendo de antemão editoriais triunfantes e alocando de antemão equipes de
reportagem para a cobertura. Assim que as ondas sísmicas rolaram sobre
Chelsea, quatro vans equipadas com minicâmeras e pertencentes a diferentes
organizações saíram em disparada pelas ruas escuras e rachadas e chegaram à
igreja com uma diferença de um minuto em relação umas às outras. A
devastação parecia satisfatória, embora não chegasse a ser extrema. O tremor
havia partido o prédio ao meio, achatando inteiramente o andar térreo sobre um
lado do clerestório, reduzindo o próprio clerestório a um emaranhado de tirantes
que engaiolava nacos de concreto e transformando portas e janelas em
horrendos romboides. Uma nuvem de fumaça se elevava com fúria e
impaciência dos fundos do prédio, e Philip Stites dava a impressão de ter sido
atingido na cabeça por um ovo com gema de sangue. Ele saiu correndo pela rua
gritando: “Ajudem. Larguem as câmeras. Ajudem”, porque as equipes de
reportagem eram, de fato, as únicas pessoas que estavam lá para ajudar, e só
vinte minutos depois outras pessoas chegariam.
Mais tarde naquela mesma semana, Stites declarou que um verdadeiro
milagre havia acontecido naquela noite escura e úmida: todos os membros das
equipes de reportagem, absolutamente todos eles, tinham posto de lado suas
câmeras e gravadores e entrado atrás dele no prédio semidestruído. Tinham
arrombado portas emperradas, libertando hordas de mulheres aos berros e sujas
de sangue. Tinham enfrentado bravamente chuvas de reboco e nuvens de
fumaça negra para arrastar membros da igreja com pernas quebradas para
longe do caminho do fogo. Tinham amparado homens e mulheres que pularam
de janelas e retirado os equipamentos de dentro de suas vans para levá-los às
pressas para o hospital. Tinham salvado, disse Stites, pelo menos vinte vidas. Mas
o fato de Stites ter optado por chamar o heroísmo das equipes de reportagem de
milagre refletia, na verdade, uma nova e atípica amargura por parte do pastor.
Ele não viu milagre, por exemplo, no fato de nenhum membro de sua igreja ter
morrido. Não disse que Deus havia protegido Seus fiéis de Seu terremoto. Não
sentiu nenhum prazer com a misericórdia de Deus, porque, quando a fumaça se
dissipou e o sol raiou, ele descobriu que não tinha mais uma igreja.
Stites montou uma barraca de camping no pátio do prédio e prometeu arranjar
outras barracas para os trezentos membros de sua congregação, mas todos
recusaram sua oferta, salvo um punhado deles. A maioria simplesmente foi
embora de Boston e voltou para casa no Missouri, no Kansas, na Geórgia. O resto
se bandeou discretamente para um grupo antiaborto rival chamado Nós Amamos
a Vida, cuja “ação” característica era azucrinar clínicas com gravações de
recém-nascidos chorando a cem decibéis. Uma dessas desertoras encarou a
câmera do Channel 4 olho no olho e disse: “Eu não acredito mais que o senhor
Stites seja guiado pela divina Providência, não depois daquela noite de terror. Eu
agradeço a Deus por ter escapado com vida e inteira. Nem todo mundo escapou
inteiro, sabe. Uma amiga minha está paralisada no hospital, com a coluna
quebrada. Eu acho que o senhor Stites é um grande professor e um grande líder
moral que acabou se desviando do bom caminho por causa do orgulho. Eu acho
que a gente nunca devia ter ido para aquele prédio”.
Outra desertora, a sra. Jack Wittleder, foi mais sucinta: “O reverendo Stites se
deixou tentar por uma mulher pecadora. E agora nós todos pagamos o preço”. A
repórter do Channel 4 disse: Mulher? Que mulher?? Mas a sra. Wittleder se
recusou a se estender sobre o assunto.
O próprio Stites também deu uma declaração ao Channel 4. “O que eu
realmente acredito, no fundo do coração? Eu acredito que Deus derrubou o nosso
prédio porque tinha um propósito. Acredito que a destruição foi um teste de fé e
que nós fracassamos totalmente nesse teste. Eu pensava... eu tinha a fervorosa
esperança de que nós tivéssemos uma igreja que fosse mais forte do que
qualquer prédio, e uma fé que nenhum terremoto fosse jamais abalar. E eu ainda
tenho essa fé no meu coração, mas não tenho mais uma igreja, e estou
profundamente humilhado e decepcionado.”
Pouco depois, Stites também teve o privilégio de ser o primeiro réu citado
numa ação judicial decorrente do terremoto. A família da ex-integrante da
igreja que quebrara a coluna o acusava de fraude e negligência intencional ao
convencer a moça a ficar num prédio inseguro; a família estava pedindo dez
milhões de dólares de indenização por danos reais e como indenização punitiva.
O advogado de Stites declarou à imprensa que todos os bens seculares de que seu
cliente dispunha consistiam em uma barraca comprada numa loja de saldos do
Exército, um saco de dormir, uma Bíblia, uma mala com roupas, um carro e
uma emissora de rádio que enfrentava dificuldades financeiras. Isso, porém, não
impediu que outros quatro membros da igreja que haviam sofrido ferimentos
também entrassem com processos contra Stites em 11 de julho.
Aquele virou o verão dos processos. Processos salvavam os nervos em
frangalhos dos milhares de sobreviventes e mantinham acesa a esperança dos
desabrigados e desconsolados. Facilitaram a transição de volta à normalidade
quando as redes de televisão e os jornais liberaram seus reféns. Forneciam
material para sequências de reportagens. Recalcavam o terrível pavor e o
terrível vazio, empurrando-os de volta para o inconsciente das pessoas, onde era
o lugar deles. Até o fim de julho, o estado de Massachusetts já havia sido citado
em onze processos diferentes, que o acusavam de delitos tão criativos quanto o de
não estabelecer planos adequados de evacuação em caso de propagação de
substâncias químicas tóxicas, de lentidão ao providenciar abrigos para as famílias
das Zonas i e ii e de calculada impostura em suas avaliações do risco sísmico
local. O estado, por sua vez, estava processando o governo federal e as
construtoras de várias rodovias e prédios públicos que não haviam resistido ao
terremoto. Estava também, como quase todo mundo de Boston, processando a
Sweeting-Aldren. Em 1o de agosto, o valor total das indenizações que estavam
sendo exigidas da empresa já ultrapassava dez bilhões de dólares e continuava a
crescer diariamente. Para pagar essas indenizações, a empresa dispunha de
poucos ativos correntes não contaminados, uma dívida de longo prazo no valor de
cinco milhões de dólares e pouca perspectiva de algum dia conseguir voltar a
vender alguma coisa. Dava-se como certo que o governo federal acabaria
arcando com a conta da descontaminação.
Renée Seitchek foi liberada do Brigham & Women’s Hospital em 27 de julho.
Uma tomada de dez segundos exibida no noticiário da noite mostrava Renée
saindo do hospital numa cadeira de rodas e sendo empurrada na direção de um
Honda Civic meio amassado, mas a essa altura a impressa já perdera o interesse
pela história dela, porque ela se recusava a dar entrevistas. A investigação do
atentado contra ela tinha estagnado (“provavelmente uma causa perdida”,
detetives admitiam reservadamente), mas autoridades ainda tinham esperança
de conseguir trazer os diretores da Sweeting-Aldren de volta ao país para
responder por uma série de outras acusações criminais. O fbi havia localizado os
cinco homens — Aldren, Tabscott, Stoorhuy s, o advogado da empresa e o chefe
do departamento financeiro — numa minúscula ilha ao sul de São Cristóvão,
onde a empresa mantinha fazia tempo três casas de praia para receber parceiros
de negócios e para executivos passarem férias. A esposa de vinte e três anos de
Aldren, Kim, e a namorada de vinte e seis anos de Tabscott, Sondra, haviam se
juntado ao grupo alguns dias depois do terremoto, a família do advogado da
empresa fizera uma visita no Quatro de Julho e paparazzi do mar tinham
conseguido fotografar um piquenique na praia que lembrava um comercial de
cerveja em todos os detalhes. (O Globe publicou uma dessas fotos em sua
primeira página, ao lado de outra que mostrava homens vestidos com roupas de
My lar pegando pássaros e mamíferos com pás e jogando-os num incinerador.)
Infelizmente, o governo de São Cristóvão e Nevis não demonstrou nenhuma
intenção de entregar os executivos à justiça, e o governo em Washington, talvez
pensando no apoio financeiro que Aldren e Tabscott haviam dado durante tantos
anos ao Partido Republicano, disse que não havia muito que os Estados Unidos
pudessem fazer.
Outras grandes empresas químicas, como Dow, Monsanto e Du Pont, por outro
lado, pareciam estar quase saboreando a oportunidade de vilipendiar os malfeitos
de uma empresa-irmã. Todas elas imediatamente ampliaram suas produções de
artigos têxteis, pigmentos e pesticidas, que eram o principal esteio da Sweeting-
Aldren — produtos cuja demanda só fazia crescer na América —, e assumiram
a liderança no que dizia respeito a demonizar a diretoria da companhia. A Du
Pont chamou a tragédia de Peabody de obra de “um bando de demônios”. (A
diretoria da própria Du Pont era composta de homens de família, não de
demônios; eles acolhiam de bom grado a regulação inteligente da epa.) A
Monsanto jurou solenemente que nunca havia empregado poços de injeção e
jamais empregaria. A Dow disse se orgulhar de ter tido a precaução de situar
suas instalações num dos lugares geologicamente mais estáveis do mundo. Em
agosto, as vendas e os preços das ações das três companhias estavam em alta.
Na imaginação popular, a “Sweeting-Aldren” se juntara à categoria de
“Saddam Hussein”, “Manuel Noriega” e o “cartel de Medellín”. Esses eram os
vilões de coração tão preto quanto as manchetes dos tabloides que vociferavam
sobre suas vilanias, os homens que tornavam mau o nosso bom mundo. Os
Estados Unidos tinham a responsabilidade de punir esses homens e, se não
houvesse como puni-los, os Estados Unidos tinham a responsabilidade de limpar a
sujeira que eles haviam feito; e se a limpeza acabasse sendo dolorosamente cara,
podia-se argumentar que os Estados Unidos eram os responsáveis por terem
permitido que eles se tornassem vilões para começar. Mas em nenhuma hipótese
o povo americano se sentia ele próprio responsável.
À medida que as semanas passavam, visitantes de outras cidades de vez em
quando se aventuravam a ir ao norte de Boston para ver as cercas ao redor da
Zona i. Tinham visto aquelas cercas inúmeras vezes pela televisão, mas, mesmo
assim, ainda ficavam espantados com o fato de que se podia chegar a Peabody
de carro em meia hora — de que aquela terra pertencia à Terra com tanta
certeza quanto a terra de suas próprias cidades natais, de que o clima e a luz não
se alteravam quando eles se aproximavam das cercas. Tiravam fotografias que,
quando eles as revelavam depois de voltar para Los Angeles ou para a cidade do
Kansas, mostravam uma cena que eles de novo não conseguiam acreditar que
fosse real.
Os bostonianos, enquanto isso, tinham coisas mais importantes em que pensar.
Empréstimos a juros baixos concedidos pelo governo federal haviam reaquecido
a economia local. As molduras das janelas dos prédios do centro tinham sido
novamente preenchidas com vidraças verdes. O Fenway Park tinha sido
aprovado nas inspeções de segurança. E os Red Sox ainda estavam em primeiro
lugar.

Na Harvard Square, o outono chegou quando o sol perdeu o ângulo de que


precisava para alcançar as ruas mais estreitas antes do meio-dia, e o ar frio da
noite e seu cheiro de inverno iminente se demoravam nas vielas mijadas e nas
mesas de xadrez de concreto perto do Au Bon Pain. Ao longo do rio e no Harvard
Yard, a Grande Porcalhona estava em ação de novo, descartando folhas fanadas
nas trilhas de pedestre. Prédios danificados estavam reabrindo, os andaimes
sendo desmontados. Estudantes impecavelmente produzidos exalavam
fragrâncias de xampu e desodorante no ar canadense. Eles eram seres sexuados
jovens e ricos recebendo uma educação superior. Eram como os carros
imaculados que se amontoavam em seu egresso da Square, janelas fechadas
agora que o verão acabara, sistemas de controle de emissão de gases em perfeito
funcionamento, expelindo uma fumaça que cheirava bem. Era literalmente
incompreensível que na Zona i, a meros vinte e cinco quilômetros dali,
esquadrões de tratores de demolição estivessem naquele momento destruindo
casebres onde luminárias e cadeiras ainda se encontravam exatamente no
mesmo lugar em que o movimento forte as havia arremessado em 24 de junho.
Louis tinha ido à Square para fazer pequenas tarefas. Embora estivesse longe
de ser um fã da Square, ele agora ia lá com frequência, fazia com eficiência o
que tinha de fazer e voltava para casa se sentindo anônimo e nem um pouco
comprometido. Naquela manhã específica, no entanto, ele estava atravessando a
rua em frente à Wordsworth quando um sedã Mercedes prateado freou
bruscamente ao lado de um canteiro central e uma pessoa de aparência familiar
se debruçou na janela do passageiro e fez sinal para ele. Era Alec Bressler.
“Alec. Como é que você está?”
Alec abaixou a cabeça daquele seu jeito afirmativo. “Não tenho queixas.”
Da pessoa que estava no banco do motorista, Louis só conseguia ver duas
pernas femininas de meia-calça e escarpim. Alec estava chupando uma pastilha
de nicotina com o que parecia ser uma especial satisfação. Usava óculos novos e
um blazer muito elegante. “E você?”, ele perguntou. “Arranjou um bom
emprego?”
“Não. Não... Não.”
Alec franziu o cenho. “Nenhum emprego?”
“Bom, nesses últimos dois meses, eu tenho cuidado da minha namorada. É
provável que você tenha ouvido falar nela. O nome dela é Renée Seitchek.”
A mulher que estava no banco do motorista se inclinou por cima do colo de
Alec e mostrou o rosto a Louis. Era uma mulher bonita, de cinquenta e poucos
anos, com um nariz marcante, cabelo hirsuto grisalho e sobrancelhas pretas.
“Você conhece a Renée Seitchek?”
Louis tinha ouvido aquelas exatas palavras com muita frequência nas últimas
semanas. “É, conheço.”
A mulher apertou a mão dele. “O meu nome é Joy ce Edelstein. Eu me
interesso muito pela Renée, de longe. Você pode me dizer como ela está?”
“Ela está... bem.”
“Escuta, por que você não vem até o meu escritório e toma um café com a
gente? Se você tiver alguns minutos. Eu estou parada bem no meio da rua. Você
pode vir?”
Louis olhou indeciso para Alec, que apenas levantou as sobrancelhas e chupou
sua divertida pastilha.
“Vem com a gente”, disse Joy ce, abrindo a trava da porta de trás.
Louis obedeceu. Sua vagueza não era mais algo a que ele recorria para
desconcertar as pessoas; era como ele era de fato. Quando andava, hoje em dia,
mantinha os olhos voltados para o chão à sua frente. Vivia sempre cansado e
perdia o fôlego com frequência. Estava usando roupas que tinham sido de Peter
Stoorhuy s, um suéter de moletom vermelho e uma calça jeans cinza que ele
vestia todas as manhãs e, objetivamente falando, não lhe caía bem. Quando
olhava para suas antigas roupas brancas e pretas ou até mesmo quando pensava
nelas, fechava os olhos e os apertava o mais forte que podia.
O escritório para o qual foi levado ocupava o terceiro andar de um prédio
revestido de ripas de madeira na Brattle Street que uns trezentos anos antes talvez
tivesse sido uma residência particular. A placa de bronze na porta dizia Fundação
Joy ce Edelstein. Uma recepcionista e um assistente disseram “Bom dia, sra.
Edelstein”. Joy ce deixou os visitantes numa sala privada, decorada em harmonia
com a enorme paisagem lacustre de Monet pendurada numa das paredes. Alec
se instalou confortavelmente num sofá de couro branco. Sua pele não tinha mais
o tom cinzento de que Louis se lembrava; até seu cabelo parecia mais cheio. Ele
obviamente havia parado de fumar. “A Joy ce é uma fi-lan-tro-pa”, disse ele, de
um jeito que a fazia parecer um espanto da natureza.
“Arrã.”
“A Renée é uma espécie de heroína para mim”, disse Joy ce, casualmente,
quando voltou com uma bandeja com café, creme e açúcar. “Eu estou envolvida
com o patrocínio de diversas organizações e, se existe algum tipo de tema
unificador nos meus interesses, provavelmente são os direitos reprodutivos e o
meio ambiente. Para mim, essas duas coisas se juntaram nesse último verão
com o terremoto e com o que aconteceu com a Renée. Eu cheguei até a
escrever uma carta para ela, não sei se ela recebeu. Eu... não tinha grandes
esperanças de receber uma resposta.”
Louis não disse: Muita gente escreveu cartas para ela.
“Como ela está?”, Joy ce perguntou.
“Ela está bem. Ela pegou uma infecção no osso da perna. Começou depois que
saiu do hospital. Então, ela ainda está se sentindo um pouco mal.”
“Faz quanto tempo?”
“Três meses.”
“Puxa, que chato. E você... Você é...?”
“Eu moro com ela.”
“Em...”
“Em Somerville.”
“Desculpe, você não está se sentindo bem? É difícil pra você falar sobre...”
“Não. É só que eu acabei de doar sangue, só isso.”
“Doar sangue? Minha nossa, por que você não me disse antes? Olha, vem cá,
senta aqui, por favor.”
Louis se sentou na cadeira que ela indicou e abaixou a cabeça sobre sua xícara
de café. Joy ce olhou para ele com pena e preocupação. Olhou também para seu
relógio de pulso. Alec estava tomando seu café ruidosamente e assistindo à cena
de seu sofá distante.
“Você está cuidando da Renée... sozinho?”, Joy ce perguntou.
“Hã, estou.”
“Louis, isso pode ser tão extenuante. Pode esgotar você de formas que você
nem se dá conta. Desculpe perguntar, mas a Renée tem... cobertura completa do
seguro dela? Eu só estou pensando que, se o que ela precisa de fato é de uma
enfermeira, talvez isso desse a você...”
“Não é nada de tão complicado”, disse Louis. “É só fazer compras, cozinhar,
dirigir.”
“É, mas psicologicamente...”
Ele se levantou e atravessou a sala. “Não tem problema. Eu dou conta. Quer
dizer... eu dou conta. Eu agradeço a sua preocupação. Mas não é nada de tão
complicado.”
“Eu tenho certeza de que você dá conta”, Joy ce disse num tom gentil. “Eu só
quero...”
“A Joy ce precisa ajudar as pessoas”, Alec comentou. “É a natureza dela.”
Com um leve estremecimento, Joy ce deixou passar essa descrição dela. “Eu
só quero que você saiba que, se você vier a precisar de ajuda, existem pessoas no
mundo aqui fora que podem ajudar. Se eu tenho um objetivo na vida, é fazer
com que as pessoas saibam que elas não têm que sofrer sozinhas. Para cada
pessoa que tem uma necessidade, tem outra pessoa, em algum lugar, que quer
atender essa necessidade.”
Louis fechou os olhos e pensou: Por favor, pare de falar.
Joy ce olhou para Alec com ar de desamparo. Qualquer um podia ver que ela
era uma pessoa perceptiva. Era óbvio que de fato lhe causava dor ver Louis
sofrendo e saber que as ruas de Cambridge e de Boston estavam cheias de
pessoas como ele — que bastava lançar uma rede ao acaso que você recolhia
sofrimento. E saber que ela própria não estava sofrendo.
“Olha”, disse ela, “eu espero que você diga à Renée que existem muitas,
muitas pessoas nessa cidade que se importam com ela, que torcem por ela e que
querem ajudá-la. No mínimo, eu estou aqui, e se ela precisar de alguma coisa...”
Louis fechou os olhos e pensou: É necessário sofrer.
“E Louis, eu sei que não tenho direito nenhum de dizer isso, mas se você parar
um pouco pra pensar, eu acho que você vai perceber que talvez seja melhor
ficar um tempo sem doar sangue, principalmente se é uma coisa que você está
fazendo com frequência. Você precisa estar forte e precisa concentrar as suas
forças numa coisa de cada vez.”
É necessário sofrer. É necessário sofrer.
“Obrigado pelo café”, disse Louis.
Joy ce deu um suspiro e sacudiu a cabeça. “Você sempre será bem-vindo
aqui.”
Alec saiu da sala atrás dele, segurando-o no alto da escada. “Uma coisa. Para
um instante, uma coisa só. Eu falei com a Libby semana passada. Libby Quinn.
Ela quer o seu telefone.”
“Pra que é que ela quer o meu telefone?”
“Se você está precisando de emprego, você liga pra ela.”
“Qual é o motivo dessa mudança de ideia?”
“O Stites está saindo. Vai pra algum estado do Meio-Oeste, sei lá qual. Você
sabia disso?”
“E você falou pra ela me ligar.”
“Tá, tá bom, eu falei. Mas ela não tem o seu telefone. Ela precisa de um
engenheiro. Eu disse pra ela, salário mínimo, e ele é apaixonado por rádio.”
“Salário mínimo. Obrigado.”
“Você pode negociar. Pensa no assunto, tá?”
“Eu não posso, agora.”
“Mas você é apaixonado por rádio. Isso eu sei que você é.”
“Eu era.”
“Então você me liga quando quiser trabalhar. Mas liga mesmo, tá? E me dá o
seu número.”
Louis aceitou a caneta que Alec lhe estendeu. “Desculpe eu não ter sido mais
gentil com a sua amiga.”
“Ela já está acostumada. Agora você vai pra casa.”
“Pede desculpa pra ela por mim.”
“Tá, talvez. Não tem importância.”
Alec cortou com um traço transversal à europeia a perna do sete que Louis
havia escrito. Depois, voltou para a sala de Joy ce sem dizer mais uma palavra.
O único momento em que Louis se sentia a salvo da angústia agora, o único
momento em que conseguia gostar da pessoa que ele era, era quando estava
sozinho com Renée na Pleasant Avenue. Quando estava no apartamento dela, ele
sabia o que estava fazendo porque tudo se encadeava de maneira lógica a partir
da pressuposição de que ele a amava. Ele era o cozinheiro dela, era seu
comediante, seu consolador, seu empregado doméstico. Três meses antes, ele
jamais teria imaginado que seria capaz de consolar uma pessoa doente que
chorasse inconformada com a lentidão de sua recuperação: jamais teria
imaginado que as palavras necessárias fossem lhe ocorrer de forma tão
automática quanto os movimentos do sexo. Ele provavelmente teria sorrido com
sarcasmo para uma pessoa que dissesse que o amor lhe ensinaria as muitas
habilidades específicas que constituem a paciência e a generosidade, e
certamente para uma pessoa que dissesse que o amor era uma argola dourada
que, se agarrada, carregava você para o alto com uma força de intensidade
comparável à das forças da natureza. Mas era exatamente isso que ele sentia
agora, e a única dúvida era por que, quando ele estava sozinho ou fora do
apartamento, sua vida com Renée ainda parecia uma mágoa tão grande.
Nos dias e semanas que se seguiram ao terremoto, ele tinha ido ao hospital
todas as tardes, aderindo a um acordo tácito segundo o qual ele só aparecia por lá
depois das três horas e a sra. Seitchek ia embora de lá por volta dessa mesma
hora. Não era que houvesse nenhuma grande hostilidade entre mãe e namorado
— Louis continuava a se dirigir à sra. Seitchek de forma obstinadamente educada
e ela, por sua vez, agora o reconhecia como a primeira opção oficial de Renée e
chegava mesmo a partilhar com ele suas opiniões acerca do “inacreditavelmente
imaturo” Howard Chun e das coisas “inacreditavelmente perigosas” que a filha
andara fazendo. O problema era simplesmente que, na única ocasião em que os
dois visitaram Renée ao mesmo tempo, ela tinha ficado com uma cara de
infelicidade absoluta e se recusara a falar tanto com um quanto com o outro —
pelo menos até o pai dela entrar no quarto. Daí em diante ela respondeu às
perguntas e às gentilezas de todos com uma humildade que Louis nunca tinha
visto nela antes. Ele ficou se perguntando se existiria alguém no mundo que
conseguisse não sentir medo do dr. Seitchek e de seus trifocais.
Durante o dia inteiro, não importava quantas pessoas a visitassem, Renée
parecia nunca conseguir esquecer que à noite ela ficaria sozinha. Ela disse a
Louis que sempre que acordava, fosse que hora fosse do dia ou da noite, ela
ainda tinha a sensação de estar acordando no quarto sem janela da uti, onde
sempre era noite. Podia acordar e ver o rosto de Louis e ainda acreditar que,
apenas um segundo antes, ela estava naquele outro lugar.
Renée deixava que Louis lesse a correspondência dela enquanto ela cochilava.
Havia uns dois mil e seiscentos envelopes separados em molhos na mesa que
ficava ao lado da cabeceira da cama. Dentro deles havia presentes em dinheiro e
em cheque, que totalizavam cerca de dezenove mil dólares, e cartas breves e
longas.

Cara Renée,
Meu marido e eu estamos rezando pela sua rápida recuperação. Nossos
corações estão com você. Por favor, use o cheque incluso da forma que
você quiser.
Atenciosamente,
Sandy e Roy Hurwitz

Querida Renée,
Lembra de mim? Eu soube que você estava no hospital e lembrei da boa
conversa que nós tivemos. Espero que você já esteja se sentindo melhor
agora. Eu perdi dois amigos e tudo que eu tinha no terremoto. Estou
morando com a minha filha agora e não posso voltar pra casa. Parece que
você tinha razão a respeito daquela empresa. Espero que você venha me
visitar quando ficar boa.
“Atenciosamente,”
Jurene Caddulo

Renée,
Você não me conhece, mas você deixou uma marca indelével em mim.
Eu acho que as pessoas da televisão não entenderam o que você falou e os
meus pais também não, mas acho que eu entendi. Ninguém me entende
porque eu odeio ser menina, mas também não quero ser menino. Eu tenho
dezessete anos e nunca conheci nenhum garoto que tivesse uma cabeça que
eu conseguisse respeitar. Eu tive uma briga com os meus pais por sua causa.
Acho que eles admiravam você, mas aí eu disse pra eles que admirava você
e eles mudaram de ideia. Eu vou embora dessa casa daqui a dois meses pra
ir pra faculdade. A minha cabeça está sempre confusa e eu não conheço
ninguém que seja como eu. Mas eu acho que poderia ser como você, se
conseguisse ser corajosa. Eu nunca escrevi uma carta como essa antes.
Você provavelmente vai achar muito ridículo, mas às vezes eu fico
acordada na cama imaginando que levei um tiro por causa do que eu sou. A
gente provavelmente nunca vai se conhecer, mas eu queria que você
soubesse que eu te adoro e te desejo tudo de bom. fique boa!
Com carinho,
Alexandra Adams

Louis sentia ciúme de todas as pessoas que haviam escrito para ela, pessoas
que não lhe deviam nada e cujo interesse por ela estava, portanto, acima de
qualquer suspeita. Sentia ciúme dos homens que iam visitá-la e ele era obrigado a
deixar sozinhos no quarto com ela — Howard Chun, diversos professores e
colegas, até Terry Snall (embora Terry só tenha ido uma vez e deixado Renée
lívida e fervendo de raiva quando tentou fazer uma “brincadeira” a respeito de
toda a atenção pública que ela estava recebendo). Sentia ciúme especialmente de
Peter Stoorhuy s. Depois que a enxurrada de visitas e o extravasamento de
solidariedade das primeiras semanas passaram, Peter foi a única pessoa, além de
Louis e da sra. Seitchek, que continuou a ir ao hospital quase todos os dias. O pior
em relação às visitas de Peter era que Louis sentia que não havia nenhum motivo
escuso por trás delas — que Peter simplesmente gostava de Renée, sentia
admiração por ela, lamentava que ela estivesse sofrendo e que o pai dele fosse o
responsável por isso. Não fazia a mínima ideia de que Louis sentia ciúme dele,
simplesmente não podia conceber tal coisa. Trazia jornais e recortes de revista
para Renée, trazia fitas para ela ouvir no walkman, trouxe a mãe para conhecê-
la. Às vezes trazia Eileen, embora ela ainda continuasse absurdamente tímida na
presença de Renée. Louis zanzava pelos corredores, descia e subia em
elevadores, folheava revistas como Glamour e Good Housekeeping com os
dentes trincados, voltava para o quarto 833 e encontrava Renée e Peter ainda
conversando baixinho. Ela raramente parecia tão relaxada ou autoconfiante
como ficava depois de receber uma visita de Peter.
Aos olhos de Peter, Louis havia deixado de ser o irmão mais novo de Eileen e
passara a ser o namorado de Renée Seitchek — o parceiro dela no ataque à
Sweeting-Aldren e o homem que havia ajudado a expor David Stoorhuy s como a
fraude que Peter já sabia fazia muito tempo que ele era. Peter dava roupas para
Louis, inclusive algumas peças de que ele ainda gostava, e chegou sozinho à
extraordinária descoberta de que Louis jamais seria um vendedor de espaço
publicitário nem de coisa nenhuma. Eileen preparava o jantar para os três
quando Louis voltava do hospital para casa. Sempre que ele parecia triste, ela lhe
perguntava o que havia de errado e tentava bravamente animá-lo.
O que havia de errado era que ele se sentia completamente sem rumo. Agora
que Eileen estava sendo um doce e que Peter tinha parado de tratá-lo de forma
condescendente, Louis não tinha outra escolha senão ser sincero com eles. Mas
sinceridade implicava algum tipo de fé em alguma coisa — o tipo de fé que
Eileen e Peter tinham em relação a viver na América e em construir uma vida
boa para si próprios, ou que Renée tinha no poder das mulheres. Louis ainda
continuava achando aquele país uma porcaria e ainda tinha suas dúvidas sobre se
era bom ou não ser homem. Se algum dia ele já soubera como acreditar em
alguma coisa, já havia esquecido fazia tempo.
Tinha ciúme das pessoas com motivos puros que traziam prazeres para Renée
— prazeres que ela partilhava com ele porque ele estava sempre com ela,
prazeres que eram pequenos, discretos e pelos quais era mais fácil sentir gratidão
do que qualquer outro que pudesse ser proporcionado pelo homem que fazia
coisas como observá-la dormir, ou ajudá-la a andar para cima e para baixo pelo
corredor, ou lhe pedir desculpa. Também tinha ciúme das pessoas com motivos
impuros que ela recebia, sorridente, porque se divertir com aquilo doía menos do
que ficar com raiva. Essa última classe de pessoas não incluía jornalistas (esses
ela simplesmente se recusava a receber), mas incluía os caça-talentos de
Holly wood que queriam comprar a história dela para fazer uma adaptação para
o horário nobre; os ativistas pró-escolha que estavam pensando se ela poderia
dizer algumas palavras ao público pelo telefone durante uma manifestação; e,
pouco antes de ela ser liberada do Brigham & Women’s, a própria mãe dela, que
uma tarde, às três horas, se encontrou com Louis em frente à porta do quarto 833
e lhe pediu que a ajudasse a convencer Renée a ir para Newport Beach com ela
para terminar de se recuperar. O pai de Renée já tinha voltado para lá, e a mãe
argumentou que, quando saísse do hospital, Renée ainda iria precisar de cuidados
especiais em casa. O problema, a sra. Seitchek disse a Louis, era que a filha só
sorria e sacudia a cabeça diante da ideia de voltar para a Califórnia. Ela tinha
dezenove mil dólares e insistia que ia contratar uma enfermeira, ideia que, para a
sra. Seitchek, parecia uma coisa tão fria, tão errada, tão...
Louis disse: “Eu não posso ajudá-la nisso, senhora Seitchek”.
Depois, deixou-a no corredor e entrou no quarto 833. Renée disse: “Você sabe
por que ela me quer lá com ela?”.
“Ela quer cuidar de você.”
“Sim, tá, ela quer cuidar de mim”, Renée admitiu. “Mas a esperança dela é
que, ficando lá, eu acabe tomando gosto por golfe. E por saiotes verde-
esmeralda. E conheça um dos jovens médicos de quem ela não consegue parar
de falar e me case com ele.”
“Eu não acredito nisso.”
“Você não conhece a minha mãe.”
Ele esperou um tempo. “Você não vai realmente contratar uma enfermeira,
vai?”
“Me aguarde.”
“Mas eu posso cuidar de você.”
“Eu não quero que você cuide de mim.”
“Por favor, me deixe cuidar de você.”
“Eu não quero.”
“Você tem que me deixar.”
Ela fechou os olhos. “Eu sei que tenho.”
Mais que tudo, ele tinha ciúme dos ferimentos dela. Era como se eles fossem
um bebê que fosse em parte dele, mas só habitasse o corpo dela. Ouvi-los e
aprender seus segredos absorvia a maior parte da atenção dela todos os dias.
Sempre que ele achava que estava começando a entendê-los — quando achava
que ela não sentia mais dor quando ria, ou que ela ainda precisava que ele
pegasse alguma coisa de cima da mesa para ela — Renée se virava para ele e o
corrigia. Ele tinha suposições; ela tinha certezas. Ele supunha que fosse possível
que ela ainda o amasse, mas, mesmo se o amasse, ela não tinha tempo para ele.
O jeito distante dela e a fragilidade de seus sentimentos por ele faziam com que
Louis se lembrasse dos sonhos que tivera em que ela era fria com ele, em que o
amor não estava mais lá, em que existia outro homem que ela estava escondendo
dele.
Mas o bebê também era dele. A dor no corpo dela — a dor nos músculos de
suas costas que uma das balas rasgara, a dor no diafragma perfurado e na costela
e no fêmur lascados, a dor das incisões cirúrgicas — tinha um jeito de passar
para o corpo dele e fazer com que ele sentisse dificuldade de respirar. Ele se
lembrava do tempo em que Renée era móvel e inquebrável; em que ele podia se
deitar em cima dela no chão duro e ela podia rir; em que eles podiam tomar
cerveja Rolling Rock e ouvir os Stones; em que podiam ser cruéis um com o
outro e isso não tinha importância; em que ele podia odiar o mundo e isso não
tinha importância. O que doía nele era o sentimento de responsabilidade. Queria
ainda estar trabalhando na wsne, ainda estar dirigindo seu carro na Route 2 sob a
luz azulada do crepúsculo de uma manhã de primavera, ainda estar em seu carro
com Renée antes de beijá-la. Queria ter deixado que ela entregasse suas pastas
sobre a Sweeting-Aldren para Larry Axelrod e para a epa. Queria ter conseguido
prestar atenção em todos os nove innings do jogo dos Red Sox que eles tinham
visto das cadeiras de Henry Rudman, queria conseguir se lembrar quem tinha
ganhado e como, ter conseguido reter uma informação tão clara, permanente e
inconsequente quanto a de um placar. Não entendia como podia ter deixado uma
pequena parte de sua vida — sua ganância? sua mágoa? sua indignação? —
torná-lo responsável pela dor e pela devastação que tinham se abatido sobre ele,
sobre ela e sobre boa parte de Boston. Mas ele era responsável, e sabia disso.
Um Lincoln Town Car com uma placa personalizada que dizia provida 7
estava estacionado em frente à casa de Renée quando ele voltou para a Pleasant
Avenue. Louis entrou e subiu a escada devagar, ainda um pouco zonzo com o
enjoo que a visita à Cruz Vermelha lhe causava.
Philip Stites estava em pé no meio do quarto de Renée, ao lado da cadeira que
ele havia puxado da escrivaninha e na qual obviamente estivera sentado. Renée
estava sentada em sua poltrona, com um suéter grosso, uma calça de moletom e
os óculos que ela agora precisava usar o tempo todo. Ela tinha subido na balança
naquela manhã e pesado quarenta e quatro quilos, meio quilo a mais do que na
sexta anterior, mas ainda sete quilos abaixo do peso que tinha em junho. A rigidez
febril de seu rosto empanava suas expressões. O único sinal que seu rosto emitiu
quando ela olhou para Louis foi o reflexo do sol em suas lentes. Ele entrou
correndo no outro quarto, o quarto onde ele dormia, e pousou os livros que
comprara no chão.
“Louis”, Renée chamou.
Ele voltou para o corredor. “Oi.”
“O Philip já estava de saída.”
“Ah. Tchau.”
Com um sorriso inescrutável no rosto, Stites acenou para ele. Renée estava
olhando para Louis atentamente. “Eu não sabia que vocês dois tinham se
conhecido”, ela disse.
“Eu devo ter esquecido de comentar.”
“Nós nos conhecemos num momento infeliz”, disse Stites. “Nós estamos num
momento bem mais feliz agora.”
Renée manteve seu olhar de desaprovação fixo em Louis mesmo quando Stites
pegou sua mão e lhe desejou felicidades. Louis abriu a porta para o pastor.
“Bom, Philip”, disse ele. “Obrigado pela visita. Eu tenho certeza de que significou
muito pra ela.”
Stites começou a descer a escada, fez um gesto casual para que Louis o
seguisse, como se não tivesse dúvida de que Louis iria obedecê-lo, e parou no
patamar fedendo a cachorro do segundo andar. Louis lançou um rápido olhar na
direção de Renée, cuja expressão não havia se alterado, e desceu a escada.
“Por que eu estou sentindo uma certa hostilidade?”, Stites perguntou a um raio
de luz do sol cheio de partículas de poeira.
“Eu soube que você está indo embora da cidade”, disse Louis.
“Amanhã de manhã. Você já foi a Omaha, no Nebraska? Acho que a única
coisa que Omaha tem em comum com Boston é o céu amplo.”
“Você concluiu que já fez estragos suficientes por aqui.”
Stites não esboçou nenhuma reação a esse estímulo. Desembrulhou uma tira
de chiclete sem açúcar e a enfiou delicadamente na boca. “Hostilidade,
hostilidade”, disse ele. “Eu vim para pedir desculpas a Renée por qualquer
sofrimento que eu tenha causado a ela. E vou lhe dizer, Louis, eu fiquei muito
feliz em saber o que você tem feito por ela.”
“Fico feliz em saber que fiz você ficar feliz, Philip.”
“Está bem, diga o que você tiver que dizer. Você nunca mais vai me ver. Mas
você sabe muito bem que o que você está fazendo é uma coisa muito boa.”
“Certo”, disse Louis. “Eu sou um sujeito fantástico. Está vendo o meu band-
aid? Eu doei sangue. É a minha penitência, não é isso? Porque eu pequei, não é?”
Ele encarou Stites, estremecendo. “Eu debochei de Jesus e não fui fiel à minha
namorada e deixei que ela matasse o nosso bebê, mas agora eu botei a cabeça no
lugar. Estou cuidando da minha namorada e tentando viver uma vida cristã. Nós
vamos nos casar e ter filhos e todos nós vamos cantar hinos na televisão. Só que
eu sou tão bom cristão que se alguém tentar dizer que eu estou fazendo o que é
certo, eu nego, porque se eu não negasse, isso seria orgulho, e sentir orgulho é
pecado, certo? E a fé é uma coisa dentro de você. Então, não só eu sou um
sujeito fantástico, como sou profundo e verdadeiro, certo?”
Stites mascava seu chiclete com mordidas suaves e lentas. “Nada que você
disser vai me fazer deixar de amar a Deus.”
“Vá em frente. Vá em frente.”
“Eu espero que você encontre alguma felicidade.”
“É, você também. Divirta-se em Omaha.”
Stites olhou para Louis com a cumplicidade e o prazer de uma pessoa que
acabou de ouvir alguém lhe contar uma piada. Riu, expondo seu pequeno bolo de
chiclete. Não foi um riso forçado nem cruel, mas o riso de alguém que esperava
ser entretido e foi. Lançou um último e sagaz olhar para Louis e desceu a escada
trotando. Pela janela imunda do hall do segundo andar, Louis viu Stites se desviar
dos ramos ávidos da madressilva e entrar no carro. Sentiu um vazio enorme, mas
estranhamente indolor, dentro do peito, como quando caía no blefe de um
adversário no pôquer.
Quando voltou, assumiu um ar casual. “Eu posso preparar o seu almoço?”
Sentada em sua poltrona, Renée olhou para ele. A poltrona ocupava uma
sombra no meio de dois trechos de reflexo solar no piso de tábua corrida. Seu
silêncio era funesto ao extremo.
“Eu posso preparar o seu almoço?”, ele repetiu.
“Você me conseguiu de volta fácil, fácil, não foi?”
Ele ponderou as consequências de ignorar que ela dissera aquilo. Encostou-se
na moldura da porta. “O que você quer dizer com isso?”
“Eu quero dizer que um dia eu estou morando sozinha, morrendo de ódio de
você pelo que você fez comigo, e aí no instante seguinte eu acordo e você está
morando comigo de novo e a gente está agindo como se nada tivesse
acontecido.”
“Você já acordou faz tempo.”
“Não, eu não acordei faz tempo. Presta atenção no que estou dizendo. Eu estou
dizendo que acabei de acordar.”
“Está bom. Você acabou de acordar.”
“Então, o que você vai fazer a respeito disso?”
“Disso o que exatamente?”
“Do fato de que você está morando comigo e nós estamos agindo como se
nada tivesse acontecido.”
“Bom, eu estava pensando em fazer o seu almoço.”
“Eu estou dizendo que você me conseguiu de volta fácil demais.”
“O que você queria que eu fizesse? Que eu ficasse longe de você? Enquanto
você estava no hospital? Quer dizer, quantas vezes eu já pedi desculpa? E você
disse que era pra eu parar de...”
“Bom, eu estava me sentindo péssima.”
“Então só o que eu posso fazer é te mostrar o quanto eu estou arrependido e o
quanto eu te amo.”
Ela se retraiu como se a frase “eu te amo” fosse um dardo. “Eu estou dizendo
que nunca tive a chance de pensar no que eu de fato queria. As coisas
simplesmente foram acontecendo. E eu realmente não sei se quero isso.”
“Você não sabe se quer que eu more aqui.”
“Sim, isso é uma das coisas.”
“Você não sabe nem mesmo se quer me ver.”
“Isso também. Quer dizer, eu quero te ver, mas as coisas estão todas
emboladas umas nas outras e eu não tenho espaço pra pensar. Eu quero
conseguir te conhecer, de alguma forma. Eu não quero que a gente fique junto só
por ficar. Eu quero começar de novo.”
“E o primeiro passo é eu me mudar daqui.”
“Eu não sei, eu não sei.”
“Você quer que eu vá embora. E está tentando dizer isso de um jeito gentil.”
Ela fechou os olhos e mordeu o lábio. Louis não conhecia aquela pessoa,
aquela mulher esquelética de rosto febril, cabelo sem corte e óculos de aro de
metal. Uma hábil troca tinha sido feita, sem que houvesse nisso nenhum embuste
— a mulher era claramente quem parecia ser. Só não era mais o fantasma feito
de memórias e expectativas que ele tinha visto no café da manhã. Ela abriu os
olhos e olhou para um ponto fixo à sua frente. “Sim, eu quero que você vá
embora.”
Ele pegou um envelope ainda fechado de cima da mesa do hall e o levou para
o quarto dela. “É esse o problema?”
Ela nem sequer olhou para o envelope. “Não me subestime tanto.”
“Responde a pergunta.”
“Tá, tá bem. Isso é parte do problema. Me chateia saber que você recebeu
uma carta dela aqui. Me chateia pensar que eu só soube da existência dessa carta
porque você não estava aqui e foi outra pessoa que trouxe a correspondência pra
mim. Porque, até onde eu sei, você pode estar recebendo cartas como essa todos
os dias...”
“Eu não estou.”
“E só eu é que não sei. Isso é parte do problema. Mas não é...”
“Você acha que ela me manda cartas e eu escondo de você. Você acha que
eu estou mantendo toda uma outra relação...”
“Cala a boca. Não é isso que eu estou dizendo. O que eu estou dizendo é que é
um total absurdo ela mandar cartas pra você aqui, e cabe a você deixar isso claro
pra ela, porque ela obviamente não vê nada de errado nisso.”
O pronome pessoal — ela — foi pronunciado com um ódio que Louis nunca
tinha ouvido na voz dela antes. Lauren não odiava Renée tanto assim.
“Eu vou comunicar isso a ela.”
Renée sacudiu a cabeça. “Eu não posso viver com você.”
“Eu te falei que nem sequer penso mais nela. Eu te disse que só o que eu quero
é uma chance de consertar o que eu fiz. Eu sei que fui muito, muito escroto com
você. Mas eu nem transei com ela e eu nem penso mais nela agora.”
“E foi muita burrice sua, porque pra mim não faz a menor diferença se você
transou ou não transou com ela. Não faz absolutamente diferença nenhuma.”
“Bom, eu teria transado, mas ela não quis.”
Renée olhou para o teto com uma expressão de nojo e incredulidade. “Isso é
doente. Isso é inacreditavelmente doente. Ela vai de mala e cuia pro seu
apartamento e depois se recusa a transar com você, porque... deixe-me
adivinhar. Porque ela é muito melhor do que eu, porque ela te ama de verdade e
só quer trepar com você depois de casar. Isso realmente me faz sentir muito
bem, ouvir isso.”
“Eu fiquei com pena dela”, disse Louis, bem baixinho, botando a carta de
Lauren em cima da escrivaninha.
“Bom, aqui tem outra pessoa de quem você pode ficar com pena. Eu faço o
melhor que posso com autopiedade, mas não dá pra eu fazer tudo sozinha. Aqui
tem uma pessoa que tem febre todo dia, que ainda sente muita dor nas costas,
que está com o peito todo cheio de cicatrizes, que não consegue mais enxergar
direito, que tem que viver e ser feia e saber que é feia a cada minuto do dia, se
você precisa de alguém de quem sentir pena.”
Ele franziu o cenho. “Eu nunca senti pena de você. Eu sofro junto com você,
mas eu te admiro e te amo. E você é linda.”
Ela nem tentou conter as lágrimas. “Eu não posso viver com você. Eu não
posso viver com você e eu não consigo me livrar de você.”
“É muito fácil se livrar de mim.”
“Bom, então, vai de uma vez. Vai embora. Porque isso que você está vendo é
o que eu sou de verdade. É assim que eu sou por dentro. Eu sou uma megera
ciumenta, insegura e feia. E é isso que eu vou ser sempre, e você pode continuar
vivendo comigo porque se sente culpado e pode me ver transformar a sua vida
num inferno, ou você pode ir embora daqui e ir morar com ela neste exato
instante, porque eu certamente não quero viver com você se é pra gente brigar
desse jeito, ou então você pode ser bondoso comigo...”
“Bondoso com você?”
“Mais bondoso do que você já tem sido. Bondoso comigo neste instante. Você
pode me dizer que não pensa nela o tempo todo. Pode dizer que eu posso não ser
tão jovem quanto ela e posso estar toda ferrada e cheia de cicatrizes, mas que
mesmo assim eu não estou tão feia assim. E você tem que me dizer isso toda
hora. Você tem que me dizer que não escreve cartas pra ela, que não telefona
pra ela e que gosta de mim como eu sou. Você tem que pegar todas as coisas que
você já disse e dizer tudo de novo com uma frequência cem vezes maior. Porque
eu estou tentando ter energia, estou tentando voltar a ser uma pessoa de novo,
mas não estou conseguindo fazer isso com a rapidez que eu gostaria.”
Por um momento, Louis ficou vendo Renée tremer e chorar em sua poltrona.
Depois se abaixou, pôs as mãos embaixo de suas axilas e a levantou. Ela estava
muito leve. As lentes de seus óculos tinham, cada uma, um único fio de lágrima
no meio. Ele beijou seus lábios inertes sem nem um traço da cautela e do carinho
consciente dos beijos que eles trocavam antes de dormir, quando acordavam ou
se despediam. Beijou-a porque estava faminto daquela mulher.
“Não faça isso.”
“Por que não?”
“Você só está fazendo isso porque... ai. Ai!”
Ele a estava apertando com força, uma das mãos apoiada bem em cima da
cicatriz do ferimento que a bala fizera ao penetrar em suas costas, a outra mão
em seu bumbum, por baixo da calça de moletom e da calcinha, a coxa dele
enfiada com firmeza entre suas pernas. Ela encostou a boca na orelha dele e
disse: “Não aperte”.
Ela estava tremendo quando ele a despiu na cama. Quando ele se levantou
para tirar suas próprias roupas, ela se cobriu com um lençol.
“Nunca mais use esse suéter”, ela disse.
Ele se ajoelhou perto dela e puxou o lençol para baixo. Encostou o rosto em
sua barriga branca e a base da palma da mão no oco de sua pelve. Queria encher
aquele oco de sêmen. O fluido morno, que esfriava tão rápido, a faria sentir
cócegas, faria sua barriga pinotear como uma colina nas vascas de uma
catástrofe. Ele sabia disso porque já tinha visto acontecer, no longínquo mês de
maio.
Ela se sentou e tentou puxá-lo para cima dela.
“Eu preciso olhar pra você”, ele disse.
“Tá, mas anda rápido, tá bom?”
A boceta dela lhe parecia uma coisa de insuportável beleza. Sua prontidão, sua
sutileza, seu canteiro de pelos escuros. Não mais cobertos por tecido adiposo,
cada um dos músculos de suas pernas e braços estava visível em sua pequena e
esguia glória. A cicatriz retroperitonial era um grande círculo de ferida curada
que se estendia de um ponto abaixo do esterno, contornava suas costelas e ia até o
meio de suas costas. Fosse isso bom ou ruim, o pau dele estremeceu e endureceu
por completo quando ele virou o corpo dela e acompanhou o avanço irregular da
cicatriz, suas runas roxas e vermelhas, passando pelos lugares em que ela
engelhava a pele e pelos lugares de aparência mais tenra em que ela parecia
esticá-la. Louis não conseguiu deixar de pensar na fotografia aérea da falha de
Santo André que vira num dos livros de Renée, a longa costura saliente
atravessando a pele lisa do deserto da Califórnia, o sulco estreito no meio cortado
por hachuras que lembravam suturas. Sentiu-se feliz por estar vivo e naquela
cama. Não havia mais nenhuma dúvida em sua cabeça de que a coisa para a
qual estava olhando era Renée Seitchek. O foco do amor de Louis havia migrado
de sua imaginação para o corpo dela e levara sua imaginação junto, a
inescapável junção das pernas dela agora encarnando alguma convergência
necessária de emoções dentro dele, a tepidez da pele dela idêntica ao calor que
os olhos dele sentiam quando as pálpebras se fechavam para cobri-los. Ele
lambeu a cicatriz fria da toracotomia. Beijou a estrela irregular do ferimento que
a bala fizera ao sair, abaixo do seio direito. Uma bala havia saído por ali, levando
pedaços da costela e do tecido pulmonar de Renée, mas ela estava respirando
sem dor agora. Ela brincou com o pau dele, abrindo e fechando o dedo indicador
e o polegar, puxando fios do puxa-puxa transparente que o pênis secretava.
Depois, se inclinou para o lado e chupou-o, brevemente.
Ele espremeu um pouco de gel espermicida no centro do diafragma dela,
lubrificou a borda, dobrou-o ao meio e o empurrou para dentro da vagina dela
até ele se desdobrar lá dentro. O procedimento lembrava, de uma forma
estranha e interessante, o preparo de uma ave para assar.
Ela parecia ter medo quando ele se deitou em cima dela. Ele resistiu à ideia de
que era “importante” eles estarem fazendo amor naquele momento, mas
infelizmente meio que parecia de fato importante. Ela estava de olhos
arregalados e piscava rapidamente, como se fosse a Morte e não Louis que
estivesse pesando em cima de seu peito e introduzindo um pedaço duro da carne
dele numa abertura estreita do corpo dela e invadindo de forma mais
generalizada a cidadela onde ela havia guardado seu eu, sua alma, durante os
meses em que estivera mais só do que estava agora. Ele botou a perna esquerda
para cima, por cima do quadril dela, para evitar fazer peso no fêmur
osteomielítico de Renée. A posição era incômoda, e Renée estava tão inerte —
não por escolha sua — que Louis teve a sensação de estar se agarrando a uma
pedra escorregadia, com poucos pontos de apoio.
“Me avise se eu estiver te machucando.”
“Bom, está doendo um pouco em vários lugares.”
“Eu quis dizer se estiver doendo muito.”
De olhos fechados, ela o puxou para dentro dela o mais fundo que ele podia ir.
Começou a respirar daquela maneira ruidosa e arrebatada que fazia um homem
se sentir como um rei e que tornava a ejaculação dele um acontecimento de
imensa doçura. Ele se deitou ao lado dela e massageou a extremidade anterior de
seus lábios vaginais com a palma da mão até ela gozar. Segurou o pau e
depositou sêmen no oco pélvico que era seu fetiche. Ela se debateu um pouco e
esfregou o oco por um bom tempo até parar de sentir cócegas. Eles fizeram
declarações ridículas e sentimentais sobre respiração, atuais condições genitais e
amor. Repetiram o ato principal, arfando e suando, até que ela ficou agitada e
disse a ele que estava se sentindo muito enjoada. Ele se levantou imediatamente
e a cobriu com o lençol. “Eu vou preparar um almoço pra você.”
Ela sacudiu a cabeça. Parecia exausta e arrasada.
“Um chá com torradas.”
“Não há a menor possibilidade de eu sair hoje à noite. Você vai ter que ligar
pra ela.”
“Você pode dormir a tarde inteira. A gente vê como você vai estar se sentindo
mais tarde.”
“Eu estou tão cansada de me sentir cansada.”
“Come alguma coisa. Tira um cochilo.”
Quando a porta do quarto dela estava fechada e ele sabia que ela estava
dormindo, ele se sentou diante da mesa da cozinha e abriu o envelope de Lauren.
Dentro, havia uma carta escrita com sua letra bonita e atrapalhada.

20 de setembro
Querido Louis,
Eu tenho que escrever pra você hoje porque tenho. Fico pensando que se
eu tivesse escrito pra você no outono passado tudo teria sido muito diferente.
Eu tenho que escrever pra você por mim, não por você, então espero que
você não se importe muito. Você não precisa responder.
Bom, a grande notícia é: eu estou grávida! E ainda bem, porque eu já
estou com uma boa barriguinha. As pessoas me perguntam pra quando é o
bebê e quando eu digo que é pra abril elas não acreditam. Elas pensam que
eu vou dizer dezembro. Eu passo boa parte do dia nas nuvens. Nem sei se
você ia me reconhecer, de tão diferente que eu estou. Eu tenho a sensação
de que encontrei o meu verdadeiro eu. Já amo o meu bebê loucamente e
converso com ele o tempo todo. Bom, essa é a grande notícia.
Louis, às vezes eu sinto tanta falta de você que começo a chorar. Sinto
falta das coisas engraçadas que você dizia e da consideração que você tinha
por mim. Mas agora eu sei que Deus não queria que nós ficássemos juntos.
Deus queria que eu e o Emmett ficássemos juntos. Eu me sinto muito, muito
grata por ter uma vida e um bom marido e (em breve) um neném pra eu
amar. Eu ainda te amo (pronto, eu disse!), mas de um jeito diferente. Mas
você sabe do que é que eu tenho vontade às vezes? Eu tenho vontade de me
encontrar com a Renée, só eu e ela. Queria dar um beijo na bochecha dela
porque ela tem você, e você é um doce de menino. Ela já ficou boa? Espero
que sim. Espero de verdade, Louis, de todo o coração.
Bom, essas são as notícias do Texas. Eu ainda não contei pra Mary Ann
que estou grávida. Só quero contar depois que souber que está tudo bem. Eu
agora sou amiga da mãe do Emmett. Ela me levou pro grupo dela da igreja.
Eu achava as pessoas de lá muito estranhas, mas agora eu sou amiga delas
também. Enfim.
Louis, você sempre vai ser meu amigo, mesmo que a gente nunca mais
se veja. “O rei morreu, vida longa ao rei.” É o que as pessoas dizem na
Inglaterra quando o rei morre. Entendeu?
Da sua amiga,
Lauren

Ele deixou a carta em cima da mesa para que Renée pudesse ler, se quisesse.
Estava se sentindo vagamente maculado ou comprometido, e se perguntava se
tinha feito uma ideia errada de Lauren desde o início. No momento, pelo menos,
ela parecia não chegar aos pés da mulher com quem ele tinha acabado de
transar.
Tendo almoçado, ele se defrontou com o problema da tarde. De manhã ele
fazia compras, dava um trato no carro, limpava a casa e, até uns dias atrás,
levava Renée à clínica para tomar a injeção diária de antibiótico; à noite, eles
comiam e iam ao cinema ou viam televisão. Mas à tarde ele dava de frente com
a mesma desesperança que o afligia desde que perdera o emprego na wsne. Só o
que conseguia encontrar para fazer enquanto Renée descansava era ler livros.
Tinha devorado os romances de Thomas Hardy um atrás do outro, não
exatamente gostando da leitura, mas continuando assim mesmo até traçar
inclusive Judas, o obscuro. Desde então, tinha passado para Henry James, para o
qual o seu atual espírito de paciência e suspensão de julgamento o tornava o leitor
ideal. Gostou particularmente de Os bostonianos, pois descobriu que a Boston de
1870 de James também era habitada pelas mesmas eternas feministas com
quem Louis havia marchado na grande passeata pró-escolha em julho, pelas
mesmas pessoas malucas e sonhadoras que tinham patrocinado Rita Kernaghan e
ido ao tributo em sua memória, os mesmos jornalistas ardilosos que ainda
continuavam tentando se infiltrar no apartamento de Renée pelo telefone. Louis
começou a perdoar a gelidez daquela cidade do norte. Pensou no sangue
brâmane que corria em suas próprias veias. Observava-se sendo consolado pela
literatura e pela história e, percebendo o quanto tinha mudado em um ano,
perguntava-se em que tipo de pessoa acabaria se transformando. Mas ainda
havia aquela desesperança ou tristeza logo abaixo da pele de suas tardes.
Acordou Renée às cinco e meia. A temperatura dela estava baixa o bastante
para que ela considerasse a ideia de sair e, às seis, eles já estavam a caminho de
Ipswich. Os dourados da estação e da hora estavam visíveis nas árvores refletidas
nos vidros abaulados dos carros que avançavam pela i-93. Pelas poucas janelas
que não eram de vidro fumê para proteger a privacidade dos ocupantes, podiam-
se ver motoristas solitários debruçando-se agressivamente sobre volantes ou
falando sobre suas vidas em telefones.
“Ela quer me dar um beijo na bochecha”, disse Renée.
“Ah, você leu.”
“Essa é uma espécie do sul que eu não entendo.”
“Ela é boa pessoa. Só tem uma cabecinha muito confusa.”
“Alongue-se sobre esse assunto por sua própria conta e risco. Você deve saber
que eu ficaria mais feliz se você me dissesse que ela é uma completa cretina. Ela
e a barriguinha dela.”
“O que é que eu posso dizer? Eu estou constrangido.”
Era noite quando eles chegaram a Ipswich. A armação da pirâmide ainda
continuava empoleirada em cima da casa da Argilla Road, sua silhueta
desenhada sobre um fundo de céu esbranquiçado pelo luar, mas a maior parte
das placas de alumínio já tinha sido removida. Elas estavam amontoadas,
retorcidas, ao lado da pista de entrada circular. Escadas de obra prendiam dois
pedaços de lona que cobriam ferramentas e pilhas de tábuas de construção perto
da porta da frente.
A mulher esguia e sofisticada de ascendência brâmane que era a mãe de
Louis conduziu o filho e Renée até a sala de estar e serviu bebidas para os dois no
bar. Mais uma vez, baldes de dinheiro tinham sido gastos para consertar a casa,
demonstrando que a riqueza era mais forte que qualquer terremoto. O vestido
azul-marinho de Melanie tinha botões azul-marinho e ombreiras e ajustava-se ao
contorno dos quadris, das coxas e dos joelhos. Ela havia feito uma única visita a
Renée no hospital e não a vira mais desde então. Não a cobriu de atenções dessa
vez. Coube a Louis tomar a iniciativa de acomodar Renée no sofá.
“Antes que as nossas cabeças fiquem zonzas demais, nós temos alguns assuntos
de negócio a discutir”, disse Melanie, pegando um envelope de cima do consolo
da lareira. “Isso é para você, Renée. Acho que você vai concordar que está tudo
certo, não?”
Em silêncio, Renée mostrou a Louis o conteúdo do envelope. Era um cheque
pessoal, nominal a ela, no valor de seiscentos mil dólares, e um recibo de mesmo
valor preenchido com o nome de Melanie Holland.
“Você vai reparar que eu botei a data do dia 30”, disse Melanie. “Como você
deve se lembrar, esse foi o prazo que nós combinamos. Louis, você testemunhou
que ela está de posse do cheque?”
“Testemunhei, mãe.”
“Você pode então assinar o recibo, Renée?” Melanie lhe estendeu uma caneta,
para a qual Renée olhou com um rosto sem expressão. “Ou tem alguma coisa
que você ache que não está correta?”
Ainda em silêncio, Renée pegou a caneta e assinou o recibo. Melanie dobrou o
recibo ao meio, enfiou-o no bolso do peito de seu vestido e soltou um enorme
suspiro. “Muito bem, isso já está resolvido. Agora nós podemos relaxar um
pouco. Como você está, Renée?”
Renée levantou o queixo. Estava segurando o cheque no colo como se ele fosse
um lenço que ela vinha usando. “Eu estou melhorando”, respondeu.
“Ah, isso é fantástico. Você está realmente com uma aparência bem melhor
do que da última vez que eu a vi. O Louis está cuidando bem de você, espero?”
Renée virou a cabeça e olhou para Louis como se tivesse se esquecido dele até
essa menção ao seu nome. Abriu a boca, mas acabou não dizendo nada.
“Louis, isso me fez lembrar o outro assunto de negócios que eu queria discutir.
Vai ser o último da noite, prometo.” Melanie deu uma risadinha falsa. “Imagino
que você saiba que eu ainda não consegui vender esta casa. Tenho consciência
de que não é por uma infelicidade exclusivamente minha que não se possa
encontrar uma única pessoa daqui até Nova Jersey que esteja disposta a comprar
uma casa pelo preço do ano passado. Estou disposta a aceitar a depressão do
mercado na região nordeste e qualquer prejuízo que isso acarrete a mim.
Infelizmente, nós tivemos outro pequeno tremor aqui na terça passada. Creio que
ninguém pode me culpar por ficar surpresa. Eu sei que eu não era a única que
pensava que nós já tínhamos deixado isso tudo para trás. Mas não, houve outro
tremor. Tudo bem. Talvez ainda venham outros. Tudo bem. Mas enquanto isso...”
“Fico feliz em saber que você já está tranquila em relação a isso, mãe.”
“Enquanto isso, Louis, eu estava pensando se você — e a Renée também,
claro, se ela quiser — teria algum interesse em ficar nesta casa. Você teria um
lugar muito confortável para ficar e não teria que pagar aluguel. Se você vier
também, Renée, e ainda quiser continuar a trabalhar em Harvard, eu tenho
consciência de que isso implicaria uma viagem um pouco longa do seu trabalho
para casa e vice-versa. Mas as vantagens, acho eu, são óbvias. Eu também posso
pagar um salário de caseiro, principalmente se você estiver disposto a mostrar a
casa para potenciais compradores. Sabe, eu não consigo deixar de pensar que
sair de Somerville poderia levantar o ânimo de vocês. E claro que a renda extra e
a economia com o aluguel, Louis, já que você está sem trabalho e não tem muita
certeza do que quer fazer...”
Louis olhou para a sala em volta. Mesmo sem querer, ele tinha alimentado a
expectativa de sentir a presença de fantasmas ali — um espírito chamado Rita,
um espírito chamado Jack; os espíritos de Anna Krasner e de seu próprio pai.
Todos eles haviam assombrado aquela sala de estar quando ele estava longe dela,
principalmente quando ele estava em Evanston. Mas agora, quando olhava para
as monótonas paredes reparadas e para os móveis impassíveis, ele sabia que
podia esperar o quanto quisesse que só veria mesmo o vazio do tempo presente.
“Você não precisa decidir agora”, disse Melanie.
“O quê?” Ele olhou para a mãe como se ela fosse um fantasma. “Hum, acho
que não. Mas obrigado.”
“Bom, pense no assunto.” Ela pediu licença e foi para a cozinha.
Um silêncio se instalou na sala desassombrada.
“Eu estou surpreso”, disse Louis. “Pensei que ela fosse estar diferente.”
Renée puxou as duas extremidades do cheque, fazendo o papel estalar. “Eu
não.” Havia uma caixa de fósforos do hotel Four Seasons dentro do cinzeiro
pousado numa ponta da mesa. Renée acendeu um fósforo e ficou segurando-o
diante dos olhos até a chama lamber seus dedos. Apagou o fósforo e acendeu
outro. Segurou-o em cima do cinzeiro e encostou uma ponta do cheque na
chama, no mesmo momento em que Melanie voltava da cozinha. Quando viu o
que Renée estava fazendo, Melanie instintivamente fez menção de correr para
detê-la. Mas, num piscar de olhos, mudou de ideia. Cruzou os braços e ficou
observando, com o ar impessoal de quem testemunha uma cena divertida, o
cheque pegar fogo e se reduzir a uma cinza preta empenada.
“Bem”, disse ela, com as sobrancelhas levantadas. “Imagino que isso seja um
gesto e tanto.”
“Vamos esquecer isso.”
“É, o que é que tem pro jantar?”, disse Louis.

No último dia da temporada regular, os Red Sox conquistaram o título da


divisão e o ortopedista de Renée declarou que ela já estava bem o bastante para
fazer o que quisesse. Ela havia ganhado uma bolsa de pesquisa da Universidade
Columbia, em Nova York, e deveria começar a trabalhar no dia 1 o de outubro.
Louis havia insistido para que ela aceitasse a bolsa, desde que considerasse a
ideia de levá-lo junto com ela, mas ela ainda estava se sentindo tão debilitada em
meados de agosto, quando a decisão final tinha de ser tomada, que acabou
fazendo um pedido a Harvard para continuar trabalhando lá por mais um ano.
Harvard, que acalentava desde o início a esperança de conseguir mantê-la,
ofereceu-lhe uma posição com prazo flexível como pós-doutoranda. Não que os
sentimentos de Renée em relação a Boston tivessem mudado. Mas, de alguma
forma, ter sido baleada naquela cidade, ter enfrentado seus terremotos e passado
um mês num de seus hospitais havia lhe dado uma espécie de senso de obrigação
em relação a ela, um senso de pertencimento que Renée nunca sentira nos seis
anos de vida normal que levara ali. Não queria ir embora de Boston de muletas.
Também reconhecia que era perfeitamente capaz de odiar qualquer outro lugar
tanto quanto odiava aquele.
Assim, os dois ainda estavam em Somerville quando os Red Sox foram
destruídos nos playoffs da Liga Americana. Depois do primeiro jogo, Renée não
aguentou mais continuar assistindo à carnificina, mas Louis não perdeu a
esperança até o inning final.
Para todos em Boston, a vida real começou no dia seguinte. Renée começou
de novo a passar longas horas no laboratório, e Louis, entediado e duro, arranjou
um emprego numa loja de cópias na Harvard Square. Toda noite, ele saía do
trabalho com os olhos ressecados pelo calor das máquinas de xerox. Sonhava em
mudar de vida. Sentia-se grato a Renée por ela não tocar no assunto do que ele
estava fazendo com a vida dele. Estava feliz em viver com ela, feliz em observá-
la recuperar suas forças e em vê-la curtir as músicas argelinas, quenianas e
americanas que ele colocava para ela ouvir, feliz por estar aprendendo mais
coisas sobre o trabalho dela e em sair com ela, Peter, Eileen, Bery l Slidowsky e
as várias almas perdidas com quem trabalhava na loja de cópias. Estava tão feliz,
na verdade, que, quanto menos gostava de seu trabalho, mais necessário lhe
parecia mantê-lo. Era o seu modo de se agarrar ao caroço de mágoa que tinha
dentro de si, agora que perdera a convicção de que estava certo. Por ora, essa
mágoa era a única coisa que ele tinha que indicava que poderia haver algo mais
no mundo além da canalhice, da estupidez e da injustiça que diariamente
ampliavam sua hegemonia. Por mais que amasse Renée, ele sabia que ela era
mortal; sabia que não podia construir uma vida fundada apenas nela, que não
podia sequer ter certeza de que conseguiria continuar a ser bom para ela se não
tivesse alguma outra âncora. Não sabia que forma essa âncora iria tomar quando
ele tivesse mais do que os vinte e quatro anos que acabara de completar; não
sabia se outras pessoas precisavam de âncoras; desconfiava que Renée, ao
aceitar sua condição de mulher, já havia encontrado a dela. Sabia apenas que,
para ele, era necessário ir para o trabalho e atender de forma eficiente e serena
até mesmo professores universitários arrogantes, artistas obsessivo-compulsivos e
panfletistas psicóticos, olhar nos olhos deles e dizer muito obrigado pela
preferência, escrever a data e o nome do cliente em recibos no valor de quarenta
e cinco centavos, e amar o mundo em sua materialidade em todas as mil vezes
por dia em que apertava o botão da máquina Xerox 1075. Percebia que, sendo
ele próprio uma coisa material, ele era aparentado com as pedras. As ondas do
oceano, a chuva que erodia montanhas e a areia que formaria as pedras da
próxima era geológica iriam, todas elas, sobreviver a ele, e ao amar essa
natureza ele não estava fazendo nada mais que amar sua própria espécie
fundamental e expressar uma preferência patriótica pela existência em
detrimento da não existência. Imaginava que, se nada mais surgisse, ele sempre
poderia se ancorar nas pedras do mundo. Mas era um fraco consolo. Tinha
esperança de que sua mágoa pudesse levá-lo a alguma coisa maior. E, então,
quando se dava conta de que, em vez de afastar seus colegas de trabalho, ele
havia se tornado amigo e confidente de quase todos eles, e que Renée estava se
transformando numa pessoa que às vezes chorava de felicidade, ele rapidamente
olhava para dentro de si, encontrava seu núcleo de mágoa e se agarrava a ele
com força.
Eileen e Peter tinham se casado quatro dias depois do Natal. Pouco antes,
Louis soubera que seus pais já não moravam mais juntos. O fato tinha vindo à luz
quando Eileen ligou para Melanie uma noite, por volta das onze e meia, e quem
atendeu foi um estranho, um homem. Melanie havia alugado a casa da Argilla
Road para outra pessoa e se mudado para um apartamento em Back Bay —
apartamento, aliás, que não devia ser nada barato, já que dava vista para os
Public Gardens. Ela explicou laconicamente a Eileen que o homem era um
amigo seu da época da escola secundária e não disse mais nada. Em sondagens
subsequentes, Eileen descobriu o nome do homem (Albert Anderson), sua área
de atuação profissional (rádio-oncologia) e seu estado civil (viúvo).
Melanie não tinha levantado nenhuma objeção quando Eileen e Peter
decidiram celebrar o Natal no apartamento deles, na Marlborough Street. Bob
veio de Evanston e ficou hospedado no quarto extra deles, e Melanie, Louis e
Renée foram para lá na manhã de Natal — Melanie levando milhares de dólares
em roupas para dar de presente a todos. Ela e Bob obviamente tinham chegado a
algum tipo de entendimento que lhes permitia serem educados um com o outro
em público.
Fosse qual fosse esse entendimento, ele ruiu na cerimônia de casamento, três
dias depois. Louis estava com Eileen na sacristia da igreja quando ela avistou
Melanie. “Ela me prometeu”, disse Eileen, empalidecendo. “Ela me prometeu
que não ia usar aquilo.”
O traje ofensivo consistia num vestido de festa de veludo verde sem costas,
daquele tipo que faz o queixo dos homens cair, um par de escarpins verdes de
pele de lagarto e um colar de platina e esmeralda criado para ser usado
exclusivamente em cofres de banco. Melanie deu um sorriso gracioso para
Eileen e encolheu de leve os ombros. Eileen caiu em prantos, enquanto duas de
suas damas de honra seguravam lenços de papel debaixo de seus olhos para
salvar sua maquiagem. Todos os convidados do casamento ouviram a briga que
seus pais tiveram no vestíbulo ou, pelo menos, ouviram o lado feminino da briga:
“Eu não vou! Mas não vou mesmo!”
“E quem você acha que está pagando por esse casamento?”
“Pra falar a verdade, Bob, eu estou me lixando pro que você acha.”
O batido conselho de Louis para Eileen foi: “Foda-se ela. É o seu casamento”.
Eileen pareceu entender isso; de todo modo, parou de chorar por tempo
suficiente para trocar alianças com Peter. Sua melhor amiga da faculdade e as
quatro irmãs de Peter usaram vestidos de dama de honra de tafetá verde-limão,
enquanto Louis, envergando um smoking e levemente aturdido, desempenhou de
forma eficiente e serena a função de padrinho de Peter. Renée se sentou junto
com o restante dos convidados e continuou a fazer um sucesso tremendo com
Bob Holland. Ela e Louis haviam tomado aulas de dança para se preparar para a
recepção, que foi realizada num salão de festas do Copley Plaza. Melanie seduziu
a todos, ofuscou todas as mulheres mais novas e dançou mais que todo mundo, e
não foram muitos os que notaram o pai da noiva sentado no fundo do salão,
vestindo um de seus ternos dos anos cinquenta, enchendo a cara de uísque e
filosofando com Louis e Renée. Ele lhes contou que tinha telefonado de novo
para Anna Krasner e lhe dito que ela agora era a única pessoa no mundo que
podia confirmar que a Sweeting-Aldren havia perfurado um poço de injeção
profundo. Dissera-lhe também que todos os documentos da empresa e todas as
provas materiais que Renée reunira haviam sido destruídos. Dissera-lhe ainda
que setenta e uma pessoas haviam morrido no terremoto de junho. Ela disse: “Eu
falei pra você não me ligar mais”.
Ele tomou mais uísque e disse que ainda acreditava que sua mulher fosse
voltar para ele, um dia.
Quem não esteve presente ao casamento, obviamente, foi o pai de Peter. O
governo de São Cristóvão e Nevis continuava a resistir à pressão americana para
extraditar os cinco executivos da Sweeting-Aldren, e agora parecia que os cinco
homens jamais seriam levados a julgamento, a menos que cometessem a
burrice de retornar ao país por conta própria. Stoorhuy s tinha tomado
conhecimento do iminente casamento do filho — talvez pelo New York Times, que
publicou o anúncio, mas mais provavelmente pela esposa. Na véspera do Natal, o
carteiro entregou a Peter e Eileen um envelope com carimbo postal caribenho e
uma mensagem escrita a mão na aba: Para ser aberta na cerimônia do seu
casamento e lida em voz alta. Peter jogou a carta no lixo.
Na primavera, deram-se mais dois casamentos. O primeiro — de Howard
Chun e Sally Go — foi celebrado em Nova York, e o contingente da Pleasant
Avenue não foi convidado. Renée só soube do casamento depois, na sala de
computação, por um dos padrinhos de Howard, Terry Snall. Terry contou que a
celebração incluíra um banquete tradicional chinês para mais de duzentas
pessoas. Disse que tinha sido uma experiência cultural muito interessante para
ele.
O segundo casamento, no fim de abril, foi na verdade apenas uma recepção à
tarde, no Hotel Charles, para celebrar o enlace ocorrido uma semana antes entre
Alec Bressler e Joy ce Edelstein na sede do condado de Middlesex. Uma parte
considerável da elite liberal de Boston esteve presente, além de alguns ex-djs de
Alec (que consumiram boa parte das bebidas da festa) e de Louis e Renée. Joy ce
Edelstein por duas vezes pediu licença a grupinhos de convidados de sua própria
classe para ir botar o braço em volta de Renée e lhe dizer que estava morta de
vontade de conhecê-la fazia tempo e queria ter uma longa conversa com ela;
mas, por alguma razão, a conversa nunca aconteceu.
Alec, no entanto, tinha novidades para Louis.
“Uma nova estação”, disse ele, afastando-o de Renée. “É presente de
casamento da noiva. 92,2 fm. Ela concorda que eu não fale de política, eu
concordo que vou mostrar algum lucro depois do quarto trimestre. É um acordo
oral que nós temos. Lucro significa que eu toco música durante o dia. Eu não
entendo de música, tudo soa igual no meu ouvido. Mas aí eu tenho o turno da
noite pra fazer uma boa programação. Então, você está pronto pra trabalhar?”
“Eu?”
“Programação musical pra começar, também elaboração de notícias e dos
anúncios feitos pela própria estação. Você escolhe. E só durante o dia. Nada mal,
hã?”
“E salário mínimo e neca de benefícios.”
“É, sim, mas só até o quarto trimestre. Depois a gente vê.”
“É muita gentileza sua, Alec...”
“Não é gentileza. É interesse próprio!”
“Mas eu vou ter que pensar.”
Alec inclinou a cabeça. “Pensa rápido. Eu entro no ar em 1o de junho.”
A banda de música estava começando seu terceiro set quando Louis e Renée
saíram do hotel. Estava um dia tão agradável que eles foram andando até a
Square com suas roupas de festa. O sol já estava se pondo, mas seu calor ainda
resistia nas árvores de Cambridge, junto com restos de pipa e de balões
aluminizados, sacolas de supermercado irremediavelmente emaranhadas, pares
de tênis amarrados pelos cadarços, suéteres de moletom surrados, serpentinas de
fita magnética e as folhas verdes das próprias árvores. Nas áreas rurais ao norte
e ao sul de Boston, as florestas ainda continuavam cinzentas, mas um certo tom
de amarelo começava a surgir nos subúrbios mais distantes, transformando-se
num verde pálido à medida que a Natureza aprendia, para o bem ou para o mal,
a confiar no calor da civilização, até que finalmente, nos subúrbios mais
próximos e nas áreas centrais da cidade, toda a folhagem germinava com força,
e já parecia quase verão.
“Me explique por que é que você tem que pensar”, disse Renée.
“Porque tenho.”
“Você não acha que já passou tempo bastante fazendo cópias? Você acha que
o Alec está sendo bonzinho demais com você?”
“Vai significar pelo menos mais um ano pra você com o Snall e o Chun.”
“Desde que não seja pra sempre, tudo bem.”
“Mas eu ainda tenho que pensar mesmo assim.”
“Por que você se recusa a ser feliz? Por que você não se permite?”
“O que te faz pensar que eu não estou feliz?”
“Como é que a gente vai conseguir viver, se você não está feliz? Como é que a
gente vai poder pensar em, sei lá, ter um filho ou...”
“Filho?”
“Bom, foi só um exemplo.”
Ele parou de andar e ficou olhando para Renée. Eles estavam na calçada da
ponte da Dane Street. “Você cogitaria na hipótese de ter um filho comigo?”
“Eu poderia”, ela disse.
“Você e eu. Nós transamos, você fica grávida e nós temos um filho.”
“Você nunca pensa nisso? Eu poderia me ver fazendo isso se nós dois
estivéssemos felizes.”
“Bom... Hum!”
“Você nunca sente vontade de ter um filho comigo? Você nunca pensa que nós
já podíamos ter um filho agora? Ou uma filha? Que idade ela teria agora? E com
quem ela pareceria? Você nunca fica com pena, nem um pouquinho?”
Ele se distanciou dela, passou pela parte mais alta da ponte e depois desceu do
outro lado. Estava tentando alcançar aquele lugar familiar dentro dele, mas o que
encontrou lá não parecia mais uma mágoa. Ficou se perguntando se já tinha
mesmo sido uma mágoa algum dia.
“Ah, o que é que foi? O que é que foi?”
“Não foi nada. Eu juro pra você. É só que eu estou precisando andar agora.
Anda comigo, vem. A gente tem que continuar andando.”
Meu grato reconhecimento ao apoio da Mrs. Giles Whiting Foundation, da
Corporation of Yaddo, de Sven-Erik e Marianne Ekström e de Dieter e Inge
Rahtz. Agradeço também a Lorrie Fürrer e Robert Franzen e, em especial, a
Göran Ekström por sua orientação e seus sismogramas. Partes do capítulo 13 são
fortemente inspiradas em Changes in the Land, de William Cronon (Hill & Wang,
1983).
Copy right Strong Motion © 2001 by Jonathan Franzen

Crédito das canções mencionadas: “Marie Provost” (N. Lowe) copy right © 1977
Rock Music Company Limited; “I love the sound of breaking glass” (N. Lowe, A.
Bodner, S. Golding) copy right © 1978 Rock Music Company Limited; “See no
evil” (T. Verlaine) copy right © 1978 Double exposure Music, Inc.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
Strong Motion

Capa
Elisa v. Randow

Imagem de capa
Scientifica/ Getty Images

Preparação
Ana Cecília Agua de Melo

Revisão
Jane Pessoa
Adriana Cristina Bairrada

ISBN 978-85-8086-497-7

Todos os direitos desta edição reservados à


editora schwarcz s.a.
Rua Bandeira Paulista,702, cj. 32
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