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DADOS DE ODINRIGHT

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Converted by ePubtoPDF
Copyright © 1965 John Williams Posfácio © 2011 Peter Cameron
Título original
Stoner
Tradução
Marcos Maffei
Tradução do posfácio
Gianluca Giurlando
Capa e Projeto Gráfico
Rádio Londres
Revisão
Tamara Sender
Shirley Lima
Foto de capa
Stephen Carroll/ Moment Select/ Getty Images

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Williams, John, 1922-1994.
Stoner / John Williams [tradução Marcos Maffei],
Rio de Janeiro: Rádio Londres, 2015.
ISBN 978-85-67861-14-2
Título original: Stoner
1. Ficção norte-americana 1. Título.
15-10189 | CDD 813
1. Ficção: Literatura norte-americana 813

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora Rádio Londres Ltda.
Rua Senador Dantas, 20 – Salas 1010/11
20031-203 – Rio de Janeiro – RJ
www.radiolondres.com.br
eBook: Yuna | v1.0.0
Sumário

Página de título
Créditos
Epígrafe

Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Quatorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete

Posfácio
Este livro é dedicado aos meus amigos e ex-colegas do
departamento de Inglês da Universidade do Missouri.
Eles reconhecerão de imediato que é uma obra de
ficção, que nenhum personagem nele retratado se
baseia em qualquer pessoa real, viva ou morta, e
nenhum evento tem a sua contrapartida na realidade
que conhecemos da Universidade do Missouri. Eles
também perceberão que tomei certas liberdades, tanto
físicas quanto históricas, com a Universidade do
Missouri, de modo que efetivamente também ela é um
lugar ficcional.
Um

William Stoner entrou na Universidade do Missouri como


calouro no ano de 1910, com a idade de 19 anos. Oito anos
depois, no auge da Primeira Guerra Mundial, recebeu o
diploma de doutorado e assumiu um cargo na mesma
universidade, onde lecionou até a sua morte, em 1956.
Nunca subiu na carreira acima da posição de professor
assistente, e poucos estudantes se lembravam dele com
alguma nitidez após terem cursado suas disciplinas. Quando
morreu, seus colegas doaram à biblioteca da universidade
um manuscrito medieval em sua memória. Esse manuscrito
ainda pode ser encontrado no “Acervo de Livros Raros”, com
a seguinte inscrição: “Doado à Biblioteca da Universidade
do Missouri. Em memória de William Stoner, departamento
de Inglês, por seus colegas”.
Pode acontecer que um estudante, ao deparar com o
nome, se pergunte distraidamente quem ele era, mas a sua
curiosidade raramente irá além de uma pergunta ocasional.
Os colegas de Stoner, que não o tinham em grande estima
quando vivo, quase nunca falam dele agora; para os mais
velhos, o seu nome é um lembrete do fim que aguarda a
todos, e para os mais jovens é só um som que não evoca
nenhuma sensação do passado e nenhuma imagem
específica na qual eles consigam se reconhecer ou à qual
possam associar suas carreiras.
•••
Ele nasceu em 1891, numa pequena fazenda no centro do
Missouri, perto da vila de Booneville, a uns setenta
quilômetros de Columbia, a sede da universidade. Embora
na época seus pais ainda fossem jovens — seu pai estava
com 25, sua mãe, com 20 —, Stoner, desde criança,
pensava neles como velhos. Aos 30 anos, seu pai
aparentava 50; encurvado pelo trabalho, contemplava sem
esperança o árido pedaço de terra que sustentava a sua
família de um ano para o outro. Sua mãe encarava a vida
pacientemente, como se fosse uma longa espera que
tivesse de suportar. Seus olhos eram pálidos e opacos, e as
minúsculas rugas em torno deles eram realçadas pelos
cabelos finos e grisalhos, que usava puxados em volta da
cabeça e presos atrás num coque.
Desde que se entendia por gente, William Stoner teve
seus deveres. Aos 6 anos, ordenhava as vacas magras,
alimentava os porcos no chiqueiro a uns poucos metros da
casa e coletava os pequenos ovos das galinhas magrelas. E,
mesmo quando começou a frequentar a escola rural a 13
quilômetros da fazenda, seu dia, desde antes do amanhecer
até depois do anoitecer, era repleto de incumbências, de
um ou outro tipo. Aos 17 anos, seus ombros já estavam
começando a se encurvar sob o fardo de suas tarefas.
Era uma família solitária — ele era o único filho —
mantida unida pela necessidade de sua faina. À noite os
três sentavam-se na pequena cozinha iluminada por um
único lampião de querosene, com os olhos fixos na chama
amarela; muitas vezes, durante a pausa entre o jantar e ir
para a cama, os únicos sons que podiam ser ouvidos eram
de um corpo se mexendo com dificuldade numa cadeira e o
ranger mouco da madeira cedendo cada vez mais sob o
peso dos anos.
A casa era rudimentar, e as tábuas de madeira bruta
estavam começando a se curvar em torno da varanda e das
portas. Com o passar dos anos, ela assumira as cores da
terra árida, cinza e um marrom raiado de branco. De um
lado da casa, havia uma sala comprida, escassamente
mobiliada com cadeiras e algumas mesas rústicas, e uma
cozinha na qual os membros da família passavam a maior
parte de seu tempo juntos. Do outro lado, havia dois
quartos, cada um com uma cama de ferro esmaltada de
branco, uma única cadeira e uma mesa, com um lampião e
uma bacia em cima dela. O chão era de tábuas sem pintura,
encaixadas irregularmente e rangendo com a idade, entre
as quais a poeira constantemente se insinuava e era varrida
todos os dias pela mãe de Stoner.
Na escola ele fazia as lições como se fossem tarefas
domésticas, só um pouco menos exaustivas do que as da
fazenda. Quando completou o ensino médio, na primavera
de 1910, ele achou que assumiría mais do trabalho no
campo; parecia-lhe que seu pai tinha ficado mais lento e
mais extenuado com o passar dos meses.
Mas uma noite no fim da primavera, depois de um dia
inteiro passado juntos capinando o milho, seu pai falou com
ele na cozinha, após a mesa do jantar ter sido tirada.
“O agente rural passou aqui na semana passada.”
William ergueu os olhos da toalha xadrez vermelha e
branca bem alisada sobre a mesa redonda da cozinha. Não
disse nada.
“Ele falou que agora eles têm uma nova escola na
Universidade em Columbia. Chama-se faculdade de Ciências
Agrárias. Falou que achava que você deveria ir. Dura quatro
anos.”
“Quatro anos”, disse William. “Custa quanto?”
“Você poderia trabalhar por casa e comida”, disse seu
pai. “Sua mãe tem um primo de primeiro grau que tem uma
fazenda pertinho de Columbia. Vai precisar de livros e coisas
assim. Eu poderia lhe mandar uns dois ou três dólares por
mês.”
William abriu as mãos sobre a toalha de mesa, que
refletia sem brilho a luz do lampião. Nunca tinha ido além
de Booneville, a 24 quilômetros dali. Engoliu em seco para
firmar a voz.
“O senhor acha que consegue tocar o serviço sozinho?”,
perguntou.
“Sua mãe e eu daremos um jeito. Vou plantar trigo nas
vinte jardas livres; vai diminuir o trabalho pesado.”
William olhou para a sua mãe. “Mãe?”, perguntou.
“Você faça o que o seu pai está dizendo”, disse ela, de
forma inexpressiva.
“O senhor realmente quer que eu vá?”, perguntou ele,
como se em parte esperasse uma recusa. “É isso que o
senhor quer?”
Seu pai ajeitou o peso na cadeira. Olhou para os seus
dedos grossos, calejados, e nas linhas em que a terra
penetrara tão fundo que mesmo lavando não saía mais.
Entrelaçou os dedos e os ergueu sobre a mesa, quase numa
posição de oração.
“Eu nunca tive uma educação de verdade”, disse ele,
olhando para as mãos. “Comecei a trabalhar na fazenda
quando terminei o ensino fundamental. Quando era jovem,
nunca considerei a possibilidade de continuar os estudos.
Mas agora não sei mais. Parece que a terra fica mais seca e
mais difícil de trabalhar a cada ano, não é mais como
quando eu era menino. O agente rural diz que eles têm
novas ideias, jeitos de fazer as coisas que ensinam na
universidade. Talvez ele tenha razão. Às vezes quando estou
trabalhando no campo, eu fico pensando…” Ele fez uma
pausa. Seus dedos se apertaram, e suas mãos juntas se
deixaram cair na mesa. “Eu fico pensando…” Olhou para as
suas mãos com uma expressão séria e balançou a cabeça.
“Você vai para a universidade quando chegar o outono. Sua
mãe e eu nos viramos.”
Foi o discurso mais longo que ele já ouvira de seu pai.
Naquele outono ele foi para Columbia e se matriculou na
universidade como calouro na faculdade de Ciências
Agrárias.
•••
Veio para Columbia com um terno novo de casimira preto
encomendado pelo catálogo da Sears & Roebuck e pago
com as magras economias de sua mãe, um sobretudo puído
que pertencera a seu pai, um par de calças azuis de sarja
que uma vez por mês ele usava na igreja metodista de
Booneville, duas camisas brancas, duas mudas de roupas de
trabalho e 25 dólares em dinheiro, que o seu pai tomara
emprestados de um vizinho dando como garantia o trigo do
outono. Partiu caminhando de Booneville, onde de manhã
cedinho seu pai e sua mãe o tinham levado na carroça
puxada por uma mula da fazenda.
Era um dia quente de outono, e a estrada de Booneville
para Columbia estava poeirenta; ele caminhara por quase
uma hora quando uma carroça de mercadorias chegou ao
seu lado e o carroceiro lhe perguntou se queria uma carona.
Ele assentiu e subiu no banco da carroça. Suas calças de
sarja estavam avermelhadas de poeira até os joelhos, e seu
rosto já amorenado pelo sol e pelo vento estava incrustado
de sujeira em alguns pontos, porque a poeira da estrada se
misturara com seu suor. Durante a longa jornada ele ficou
espanando suas calças com as mãos e passando os dedos
pelos cabelos empoeirados e espetados, que não
assentavam em sua cabeça.
Chegaram a Columbia no fim da tarde. O carroceiro
deixou Stoner nas imediações da cidade e apontou para um
grupo de edifícios sombreados por altos olmos. “Essa é a
sua universidade”, disse ele. “É onde você vai estudar.”
Por vários minutos após o homem ter ido embora, Stoner
ficou ali imóvel, olhando para o complexo de prédios. Nunca
antes vira nada tão imponente. As edificações de tijolo
vermelho se erguiam para o céu de um amplo terreno
gramado que era interrompido por caminhos de pedra e
pequenos canteiros. Diante de tanta magnificência, ele teve
uma súbita sensação de segurança e serenidade que nunca
o acometera antes. Embora já fosse tarde, caminhou por um
bom tempo em volta do campus, só olhando, como se não
tivesse o direito de entrar.
Já estava quase escuro quando perguntou a um passante
como chegar a Ashland Gravel, a estrada que o levaria à
fazenda de propriedade de Jim Foote, o primo de primeiro
grau de sua mãe para quem iria trabalhar; e já tinha
escurecido quando encontrou a casa branca de madeira de
dois andares onde iria morar. Era a primeira vez que
encontrava os Foote, e se sentiu estranho por chegar à casa
deles tão tarde.
Eles o cumprimentaram com a cabeça, inspecionando-o
minuciosamente. Após um momento em que Stoner,
constrangido, ficou parado na soleira da porta, Jim Foote o
fez entrar numa salinha sem luz atulhada de mobília e
bricabraques que cintilavam na escuridão.
“Jantou?”, perguntou Foote.
“Não, senhor”, respondeu Stoner.
A senhora Foote fez um sinal para que ele a
acompanhasse e saiu em passos lentos. Stoner a seguiu por
vários aposentos até uma cozinha, onde ela fez um gesto
indicando que ele se sentasse à mesa. Depois, ela colocou
uma jarra de leite e várias fatias de pão de milho frio na
frente dele. Stoner tomou uns goles do leite, mas com a
boca seca pela emoção não conseguiu comer o pão.
Foote entrou na cozinha e parou de pé ao lado da mulher.
Era um homem baixo, com não mais do que um metro e
sessenta de altura, rosto comprido e nariz pontudo. A
mulher dele era dez centímetros mais alta, e corpulenta;
óculos sem aro escondiam seus olhos, e tinha lábios finos e
estreitos. Os dois o observaram com expressão faminta
enquanto ele bebericava seu leite.
“De manhã você dará água e ração aos animais e tomará
conta dos porcos”, disse Foote repentinamente.
Stoner o olhou sem entender. “Quê?”
“É o que você vai fazer de manhã”, disse Foote, “antes
de sair para a escola. A mesma coisa à noite, e, além disso,
catará os ovos e ordenhará as vacas. Quando tiver tempo,
rachará a lenha. E, nos fins de semana, você me ajudará no
que eu estiver fazendo”.
“Sim, senhor”, disse Stoner.
Foote o examinou por um instante. “Faculdade”, disse, e
balançou a cabeça em sinal de desaprovação.
Assim, por nove meses de casa e comida, Stoner deu
ração e água aos animais, e tomou conta dos porcos,
coletou ovos, ordenhou vacas e rachou lenha. Ele também
arou e semeou campos, cavou cepos — tendo de romper
dez centímetros de solo congelado no inverno — e bateu a
manteiga para a senhora Foote, que o observava anuindo,
enquanto a batedeira ia e voltava espalhando leite.
Foi alojado no andar de cima, que outrora fora um
depósito. Sua única mobília era um catre de ferro preto com
o estrado vergado que sustentava um ralo colchão de
penas, uma mesa quebrada em cima da qual apoiava um
lampião de querosene, uma cadeira que ficava bamba no
chão e um caixote enorme que ele usava como
escrivaninha. No inverno o único aquecimento que ele tinha
era o que se infiltrava pelo chão dos quartos lá embaixo.
Stoner se embrulhava o melhor que podia nas colchas e nos
cobertores puídos e soprava nas mãos para poder virar as
páginas de seus livros sem rasgá-las.
Ele fazia seu trabalho na universidade como fazia seu
trabalho na fazenda, meticulosamente,
conscienciosamente, sem prazer ou dor. No fim de seu
primeiro ano, a sua média ficou ligeiramente abaixo de um
“B”; ele ficou satisfeito por não ser mais baixa e não se
preocupou que não fosse mais alta. Tinha consciência de
que aprendera coisas que não sabia antes, mas isso para
ele só significava que poderia ir tão bem no segundo ano
como fora no primeiro.
No verão após o seu primeiro ano de faculdade, voltou
para a fazenda, a fim de ajudar na colheita. Certa vez, seu
pai lhe perguntou se estava gostando da escola, e ele
respondeu que sim. Seu pai assentiu e nunca mais tocou no
assunto.
Foi só depois de voltar para o seu segundo ano que
William Stoner entendeu por que viera para a faculdade.
•••
Em seu segundo ano, ele era uma figura familiar no
campus. Em todas as estações usava o mesmo terno de
casimira, uma camisa branca e uma gravata de fita; seus
pulsos ficavam para fora das mangas do paletó, e suas
calças caíam desajeitadas em suas pernas, como se
vestisse a roupa de alguma outra pessoa.
Suas horas de trabalho aumentaram com a crescente
indolência de seus empregadores, e Stoner passava longas
noites em seu quarto fazendo metodicamente suas lições.
Começara a trajetória que o levaria ao Bacharelado em
Ciências Agrárias e, durante o primeiro semestre de seu
segundo ano, tinha duas disciplinas obrigatórias, uma de
Química dos Solos, da faculdade de Ciências Agrárias, e
outra requerida pro forma a todos os alunos da
universidade: um curso semestral de Introdução à Literatura
Inglesa.
Após as primeiras semanas, começou a ter um pouco de
dificuldade com as disciplinas: havia muito trabalho a ser
feito, muitas coisas a serem decoradas. O curso de Química
dos Solos atraiu seu interesse de um modo geral; não lhe
ocorrera que os torrões amarronzados com que trabalhara a
maior parte de sua vida fossem algo mais do que
aparentavam ser, e começou a intuir que um melhor
conhecimento deles poderia ser útil quando voltasse à
fazenda de seu pai. Mas foi o curso de Introdução à
Literatura Inglesa que lhe causou mais problemas e o
inquietou mais do que qualquer coisa até então.
O professor era um homem de meia-idade, de cinquenta
e poucos anos: seu nome era Archer Sloane, e ele vinha
cumprir sua tarefa de ensinar com o que parecia ser
desdém e desprezo, como se percebesse um abismo tão
profundo entre o seu conhecimento e a possibilidade de
transmiti-lo que era inútil tentar preenchê-lo. A maioria dos
estudantes o temia e o detestava, e ele reagia com distante
ironia. Era um homem de estatura média, com um rosto
comprido, cheio de rugas e bem-barbeado; tinha o gesto
impaciente de passar os dedos pelo emaranhado de seus
cabelos grisalhos e encaracolados. Sua voz era monótona e
seca, e saía sem expressão ou entonação de seus lábios
quase imóveis, mas seus dedos longos e finos se moviam
com graça e persuasão, como se dessem às palavras uma
forma que sua voz não conseguia dar.
Quando estava longe da sala de aula, fazendo suas
tarefas pela fazenda ou piscando contra a luz tênue do
lampião em seu sótão sem janelas, Stoner com frequência
se dava conta de que a imagem desse homem aparecia
nítida em seus pensamentos. Ele teria dificuldade para
evocar o rosto de qualquer outro de seus professores ou
para lembrar alguma coisa muito específica sobre qualquer
outra de suas aulas, mas a figura de Archer Sloane sempre
o aguardava no limiar de sua consciência, com sua voz seca
e seus comentários de desprezo sobre algum trecho do
Beowulf, ou algum dístico de Chaucer.
Ele descobriu que não conseguia lidar com o curso de
Introdução à Literatura Inglesa como fazia com suas outras
disciplinas. Embora se lembrasse dos autores, de suas
obras, datas e influências, quase não passou na primeira
prova; e foi pouco melhor na segunda. Lia e relia suas
tarefas de Literatura com tanta frequência que seu trabalho
nas outras disciplinas começou a ficar prejudicado. Ainda
assim, as palavras que lia não passavam de meros
caracteres impressos nas páginas, e ele não conseguia ver
sentido nenhum no que fazia.
Ele ponderava as palavras que Archer Sloane falava na
aula, como se, sob seu significado aparentemente banal,
pudesse se esconder uma chave que o levaria para onde
deveria ir. Debruçava-se sobre uma carteira que era
pequena demais para acomodá-lo confortavelmente,
agarrando as bordas da mesa com tanta força que os nós
dos dedos ficavam brancos contra sua pele bronzeada
enquanto franzia o cenho com determinação e mordia o
lábio inferior. Mas, quanto mais aumentava a atenção de
Stoner e de seus colegas, mais implacável tornava-se o
desprezo de Archer Sloane. E, uma vez, esse desprezo
transformou-se em raiva dirigida exclusivamente a William
Stoner.
A classe tinha lido duas peças de Shakespeare e estava
terminando a semana com um estudo dos sonetos. Os
alunos estavam nervosos e perplexos, meio assustados com
a tensão crescente entre eles e a figura desengonçada que
os olhava de detrás do atril. Sloane acabara de declamar o
soneto 73 e agora seus olhos percorriam a sala e seus
lábios se repuxaram num sorriso sem humor.
“O que esse soneto significa?”, perguntou ele
bruscamente, e fez uma pausa, seus olhos esquadrinhando
a sala com um desespero sombrio e quase satisfeito. “Sr.
Wilbur?”
Não houve resposta. “Sr. Schmidt?”
Alguém tossiu. Sloane voltou seus olhos escuros e
brilhantes para Stoner. “Sr. Stoner, o que o soneto
significa?”
Stoner engoliu em seco e tentou abrir a boca.
“É um soneto, Sr. Stoner”, respondeu Sloane secamente.
“Uma composição poética de 14 versos, segundo certo
padrão que tenho certeza que você memorizou. Está escrito
em língua inglesa, a qual creio que você vem falando faz
alguns anos. Seu autor é William Shakespeare, um poeta
que está morto, mas que mesmo assim ocupa posição de
alguma importância na mente de uns poucos.”
Ele olhou para Stoner por mais um instante, então seus
olhos ficaram sem expressão, fixando-se além da classe
sem registrar o que viam. Sem olhar para seu livro, ele
recitou o poema de novo, e sua voz ficou mais profunda e
suave, como se as palavras, os sons e ritmos tivessem se
tornado por um momento ele mesmo:
Podes em mim ver o tempo sombrio
Das poucas folhas secas que pendentes
Tremem nos ramos trêmulos de frio,
Coro em ruína, os pássaros ausentes.
Em mim a luz que se desfaz do dia
E no ocaso se extingue e encontra pouso
E ao qual a noite aos poucos alicia,
Morte segunda, que em tudo é repouso.
Em mim tu vês a chama ainda a arder:
Na juventude em cinzas, quase expira
No último leito onde ela vai morrer
Consumida naquilo que a nutrira.
Tudo o que vês, mais forte amor preserve
No amor a quem tu vais deixar em breve.[1]

Num momento de silêncio, alguém pigarreou. Sloane


repetiu os versos, dessa vez num tom mais monótono, o seu
tom de sempre.
Tudo o que vês, mais forte amor preserve
No amor a quem tu vais deixar em breve.

Os olhos de Sloane voltaram para William Stoner, e ele


disse secamente: “O Sr. Shakespeare está lhe falando de
trezentos anos atrás, Sr. Stoner, você consegue ouvi-lo?”
William Stoner se deu conta de que estava prendendo a
respiração havia um bom tempo. Soltou-a suavemente,
sentindo com clareza suas roupas movendo-se junto ao seu
corpo com o ar saindo de seus pulmões. Desviou seu olhar
de Sloane e observou a sala. A luz entrava oblíqua pelas
janelas e caía no rosto de seus colegas, de um modo que
fazia parecer que eram iluminados de luz própria,
ressaltando na escuridão. Um estudante piscou, e uma leve
sombra apareceu sobre a sua bochecha, acima de onde
chegava a luz do sol. Stoner percebeu que seus dedos
estavam se relaxando e soltando as bordas da carteira.
Virou as palmas das mãos e olhou para elas maravilhado
com seu matiz bronzeado, com a maneira intrincada como
as unhas se encaixavam nas pontas grossas dos dedos;
achou que conseguia sentir o sangue fluindo, de forma
invisível, através das minúsculas veias e artérias, pulsando,
delicado e incerto, de seus dedos para o resto de seu corpo.
Sloane estava se dirigindo a ele de novo. “O que ele lhe
diz, Sr. Stoner? O que esse soneto significa?”
Os olhos de Stoner se ergueram com lentidão,
relutantemente. “Significa”, respondeu, e com um ligeiro
movimento ergueu as mãos para o ar; sentiu os olhos se
embaçarem ao procurar a figura de Archer Sloane.
“Significa”, disse de novo, e não conseguiu terminar o que
começara a dizer.
Sloane o olhou com curiosidade. Então assentiu
bruscamente e disse: “A classe está dispensada”. Sem olhar
para ninguém, virou-se e saiu da sala.
William Stoner mal tinha consciência dos estudantes à
sua volta, que se levantaram de suas cadeiras murmurando
e resmungando e, em seguida, saíram da sala. Por vários
minutos depois de todos terem saído, ficou ali sentado
imóvel, os olhos fixos à frente, no piso de tábuas estreitas
em que o verniz se gastara com os pés inquietos de
estudantes que jamais veria ou conhecería. Deslizou seus
próprios pés no chão, ouvindo a madeira raspando seco nas
solas e sentindo a aspereza através do couro. Então
levantou-se e saiu lentamente da sala.
O frio cortante daquele dia de fim de outono atravessava
suas roupas. Olhou em volta, para os galhos retorcidos das
árvores sem folhas que se ramificavam e se curvavam
contra o céu pálido. Alguns estudantes, apressando-se pelo
campus para suas aulas, roçaram nele; ouviu o murmúrio de
suas vozes e o barulho de seus passos nos caminhos de
pedra, e viu seus rostos, afogueados pelo frio, voltados para
baixo para se proteger do vento. Ele os observou com
curiosidade, como se nunca os tivesse visto antes, e se
sentiu ao mesmo tempo muito distante e muito próximo
deles. Guardou a sensação para si enquanto se apressava
para a aula seguinte, e continuou com ela durante a
palestra de seu professor de Química dos Solos, cuja voz
zumbia em seus ouvidos repetindo noções para serem
escritas em cadernos e decoradas, um processo laborioso e
enfadonho que ele já sentia como alheio.
No segundo semestre daquele ano, William Stoner parou
de cursar as disciplinas de Ciências e interrompeu seus
estudos de Ciências Agrárias; começou a frequentar as
disciplinas de Introdução à Filosofia e à História Antiga, além
das duas disciplinas de Literatura Inglesa. No verão ele
voltou de novo à fazenda de seus pais e ajudou seu pai na
lavoura, sem nunca mencionar seu trabalho na
universidade.
•••
Quando estivesse bem mais velho, acabaria olhando em
retrospecto seus últimos dois anos na faculdade como se
fosse um tempo irreal que pertencia a alguma outra pessoa,
um tempo que fluira não segundo o ritmo regular ao qual
estava acostumado, mas aos trancos. Cada momento se
justapunha a outro, embora fosse isolado, e ele tinha a
sensação de estar fora do tempo, olhando-o passar à sua
frente como um grande diorama distorcido.
Tomou consciência de si mesmo de um jeito que nunca
lhe ocorrera antes. Às vezes se olhava no espelho,
contemplava seu rosto comprido e sua juba de cabelos
crespos, e tocava seus malares pronunciados; olhava seus
pulsos finos, que ficavam vários centímetros para fora das
mangas do paletó, e se perguntava se parecería tão ridículo
para os outros quanto parecia para si mesmo.
Ele não tinha planos para o futuro, e não falou com
ninguém sobre sua incerteza. Continuou a trabalhar para os
Foote por casa e comida, mas não trabalhava mais as
longas jornadas de seus primeiros dois anos na
universidade. Por três horas todas as tardes e por meio dia
nos fins de semana, ele se deixava usar como melhor
aprouvesse a Jim e Serena Foote, mas o restante do tempo
reivindicava como seu.
Parte desse tempo ele passava em seu quartinho no
sótão da casa dos Foote, mas sempre que podia, depois de
as aulas terem terminado e seu trabalho para os Foote ter
sido feito, voltava para a universidade. Às vezes, à noite,
passeava no pátio aberto e comprido, em meio a casais que
caminhavam juntos e murmuravam baixinho. Embora não
conhecesse nenhum deles, e também não falasse com eles,
sentia afinidade com eles. Às vezes ficava parado no centro
do pátio, olhando para as cinco colunas enormes em frente
ao Jesse Hall, que se erguiam poderosas da relva fria contra
a noite. Ele ficara sabendo que essas colunas eram os
restos do prédio principal original da universidade, destruído
muitos anos antes num incêndio. De um prateado
acinzentado contra o luar, despojadas e puras, elas
pareciam representar o estilo de vida que escolhera,
exatamente como um templo representa um deus.
Na biblioteca da universidade passeava entre as
estantes, em meio a milhares de livros, inalando o odor
mofado do couro, do tecido e das páginas ressecadas como
se fosse um incenso exótico. Às vezes se detinha, tirava um
volume das prateleiras e o segurava em suas mãos
grandes, que vibravam com aquele contato, ainda insólito,
com a lombada, a capa e as páginas dóceis. Depois,
folheava o livro, lendo um parágrafo aqui e ali, seus dedos
rígidos virando as páginas, quase temerosos de destruir
com sua falta de jeito o precioso conteúdo.
Não tinha amigos e, pela primeira vez na vida, teve
consciência de sua solidão. Às vezes, de noite em seu sótão,
erguia os olhos de um livro que estava lendo e espiava os
cantos escuros de seu quarto, onde a luz do lampião
tremulava contra as sombras. Se olhasse fixa e
atentamente, a escuridão se reuniría numa luz, que assumia
a forma insubstancial do que estivera lendo. E ele sentia
que estava fora do tempo, como sentira naquele dia na aula
em que Archer Sloane falara com ele. O passado
avolumava-se da escuridão em que jazia, e os mortos se
erguiam para viver à sua frente, e juntos, fluíam para o
presente entre os vivos, e assim, por um intenso instante,
ele tinha a sensação de se unir a eles numa única e densa
realidade da qual não podia escapar, e da qual não tinha o
menor desejo de escapar. Tristão e Isolda, a bela,
caminhavam à sua frente; Paolo e Francesca rodopiavam na
escuridão fulgurante; Helena e o brilhante Páris, seus rostos
graves de amargura, erguiam-se da treva. E Stoner se
sentia mais próximo deles do que de seus colegas que iam
de aula em aula, hospedados numa grande universidade em
Columbia, no Missouri, e que caminhavam distraídos em
meio ao ar do Meio-Oeste.
Em um ano aprendeu grego e latim o bastante para ler
textos simples; com frequência seus olhos estavam
vermelhos e ardiam pelo esforço e pela falta de sono. Às
vezes pensava em como ele era só alguns anos antes e
ficava atônito com a lembrança daquela figura estranha,
amarronzada e passiva como a terra de onde emergira.
Depois pensava em seus pais, e se dava conta de que eles
eram quase tão estranhos quanto o filho que haviam criado
e sentia por eles um misto de piedade e amor distante.
Perto do meio de seu quarto ano na universidade, certo
dia Archer Sloane o interpelou após a aula e pediu a ele que
passasse em seu escritório para uma conversa.
Era inverno, e uma úmida neblina baixa e típica do Meio-
Oeste flutuava sobre o campus. Mesmo no meio da manhã,
os galhos finos dos arbustos de corniso rebrilhavam com a
geada, e as trepadeiras pretas que subiam nas grandes
colunas em frente ao Jesse Hall estavam orladas de cristais
iridescentes que cintilavam contra o cinza. O sobretudo de
Stoner estava tão gasto e puído que ele decidira não usá-lo
em seu encontro com Sloane, mesmo o clima estando
gélido. Ele tremia quando atravessou correndo a avenida e
subiu os largos degraus de pedra que levavam ao Jesse Hall.
Depois do frio, o calor dentro do prédio lhe pareceu
intenso. A neblina pingava nas janelas e nas portas de vidro
de ambos os lados do salão, de modo que o piso de azulejos
amarelos brilhava mais intensamente do que a luz cinza
sobre ele, e as grandes colunas de carvalho e as paredes
lustrosas cintilavam de sua escuridão. Passos confusos
arrastavam-se nos pisos, e um murmúrio de vozes se
abafava na grande extensão do salão. Figuras obscuras
moviam-se devagar, encontrando-se e separando-se
enquanto o ar opressivo retinha o cheiro das paredes
enceradas e o odor úmido das roupas de lã. Stoner subiu as
escadas lisas de mármore que levavam ao escritório de
Archer Sloane no segundo andar. Bateu à porta fechada,
ouviu uma voz e entrou.
O escritório era comprido e estreito, iluminado por uma
única janela no fundo. Estantes atulhadas de livros se
erguiam até o teto alto. Perto da janela havia uma
escrivaninha e, em frente a ela, meio virado e com a
silhueta escura contra a luz, estava sentado Archer Sloane.
“Sr. Stoner”, disse Sloane secamente, levantando-se um
pouco e apontando uma cadeira estofada de couro diante
dele. Stoner se sentou.
“Eu estive olhando seu histórico.” Sloane fez uma pausa
e ergueu uma pasta da mesa, observando-a com fria ironia.
“Espero que a minha curiosidade não o incomode.”
Stoner umedeceu os lábios e se remexeu na cadeira.
Tentou juntar suas mãos grandes na esperança de que
ficassem invisíveis.
“Não, senhor”, respondeu numa voz rouca.
Sloane assentiu.
“Ótimo. Eu vi que você começou seus estudos aqui como
aluno de Ciências Agrárias e que em algum momento do
seu segundo ano mudou o seu curso para o de Literatura.
Estou correto?”
“Sim, senhor”, disse Stoner.
Sloane recostou-se na cadeira e olhou para o quadrado
de luz que vinha da pequena janela alta. Juntou as pontas
dos dedos e se dirigiu de novo ao jovem que estava sentado
imóvel à sua frente.
“O propósito oficial desta entrevista é avisá-lo de que
você terá de fazer uma mudança formal de programa de
estudos, declarando a sua intenção de abandonar o curso
inicial e informar o curso final. É algo que demora uns cinco
minutos na secretaria. Você se encarregará disso, certo?”
“Sim, senhor”, disse Stoner.
“Mas, como talvez tenha imaginado, essa não é a razão
pela qual eu lhe pedi para passar aqui. Você se incomodaria
se lhe fizesse algumas perguntas sobre seus planos
futuros?”
“Não, senhor”, respondeu Stoner. Ele olhou para as
mãos, que estavam enlaçadas uma à outra.
Sloane tocou a pasta de papéis que pusera na mesa. “Eu
notei que você era um pouco mais velho do que a média
dos estudantes quando entrou na universidade. Quase 20
anos, se não me engano?”
“Sim, senhor”, disse Stoner.
“E na época seus planos eram seguir o currículo do curso
de Ciências Agrárias?”
“Sim, senhor.”
Sloane recostou-se em sua cadeira e olhou o teto alto e
pouco iluminado. Perguntou bruscamente: “E quais são os
seus planos agora?”
Stoner ficou em silêncio. Isso era algo em que ele não
tinha pensado, não tinha querido pensar. Por fim, com uma
ponta de ressentimento, ele disse: “Não sei. Não pensei
muito nisso.”
Sloane disse: “Você está ansioso pelo dia em que irá
emergir dessas paredes enclausuradas para o que alguns
chamam de mundo?”
Stoner sorriu em meio a seu constrangimento. “Não,
senhor.”
Sloane tamborilou na pasta em sua mesa. “Fui informado
por esses registros que você provém de uma comunidade
de agricultores. Suponho que seus pais sejam agricultores?”
Stoner assentiu.
“E você pretende voltar para a fazenda quando receber
seu diploma aqui?”
“Não, senhor”, disse Stoner, e a determinação em sua
voz o surpreendeu. Ponderou com algum assombro sobre a
decisão que repentinamente havia tomado.
Sloane assentiu. “Eu imaginaria que um estudante sério
de Literatura talvez ache que suas habilidades não sejam
exatamente as mais adequadas para trabalhar a terra.”
“Eu não vou voltar”, falou Stoner, como se Sloane nada
tivesse dito. “Não sei exatamente o que vou fazer.” Olhou
para as mãos e disse para elas: “Ainda não consigo me dar
conta de que logo mais vou terminar, que sairei da
universidade no fim do ano.”
Impassível, Sloane continuou: “Não é absolutamente
necessário que você saia, é claro. Suponho que você não
tenha meios independentes?”
Stoner fez sinal que não.
“O seu histórico é excelente. Exceto por seu…”, ele
ergueu as sobrancelhas e sorriu, “exceto por seu curso de
Introdução à Literatura Inglesa no segundo ano, você tirou
“A” em todas as disciplinas de Inglês, e nada menos do que
“B” nas outras matérias. Se você puder se manter por um
ano ou mais após a graduação, teria como completar com
sucesso, tenho certeza, o trabalho para o seu mestrado.
Depois disso, você muito provavelmente poderá lecionar
enquanto se prepara para o seu doutorado. Se é que esse
tipo de coisa tem algum interesse para você.”
Stoner recuou. “Como assim?”, perguntou, e ouviu algo
como medo em sua voz.
Sloane se inclinou até seu rosto ficar bem perto. Stoner
viu as rugas do rosto magro e comprido se suavizarem, e
ouviu a voz seca e zombeteira tornar-se gentil e
desguarnecida.
“Mas você não entendeu, Sr. Stoner?” perguntou Sloane.
“Você ainda não entendeu mesmo? Você vai ser professor.”
De repente Sloane pareceu muito distante, e era como se
as paredes do escritório tivessem recuado. Stoner teve a
sensação de estar em pleno ar, e ouviu sua voz perguntar:
“O senhor tem certeza?”
“Tenho”, respondeu Sloane suavemente.
“Como o senhor sabe? Como pode ter certeza?”
“É amor”, disse Sloane animado. “Você se apaixonou. É
só isso.”
Só isso. Percebeu que assentira para Sloane falando
algumas palavras sem sentido. Depois ele se viu saindo do
escritório. Seus lábios estavam formigando e as pontas dos
dedos estavam dormentes; ele andava feito um sonâmbulo,
embora estivesse intensamente consciente do que o
cercava. Roçou nas paredes de madeira polidas do corredor,
e achou que conseguia sentir o calor e a idade da madeira;
desceu lentamente as escadas e se maravilhou com o
mármore frio e estriado que parecia deslizar um pouco sob
seus pés. Nas salas do andar de baixo, as vozes dos
estudantes tornaram-se distintas e individuais, em vez de
um murmúrio abafado, e seus rostos, que agora estavam
próximos, pareciam desconhecidos e familiares ao mesmo
tempo. Saiu do Jesse Hall para a luz da manhã, e teve a
impressão de que o cinza não oprimia mais o campus;
orientava seus olhos para fora e para cima em direção ao
céu, quase indicando uma possibilidade para a qual não
tinha nome.
Na primeira semana de junho, no ano de 1914, William
Stoner, com sessenta outros rapazes e algumas poucas
moças, recebeu o diploma de Bacharelado em Letras da
Universidade do Missouri.
Para comparecer à cerimônia, seus pais — numa carroça
emprestada, puxada pela velha égua ruça — tinham se
posto a caminho no dia anterior, percorrendo durante a
noite os sessenta e poucos quilômetros até Columbia. Eles
chegaram à casa dos Foote de madrugada, enrijecidos pela
viagem e pela noite insone. Stoner desceu ao pátio para
encontrá-los. Eles estavam imóveis, lado a lado, na luz
límpida da manhã, esperando a sua chegada.
Stoner e seu pai apertaram as mãos num único
movimento vigoroso, sem olhar um para o outro.
“Como vai?”, perguntou seu pai.
Sua mãe o cumprimentou com a cabeça. “Seu pai e eu
viemos ver você se formar.”
Por um momento Stoner ficou quieto. Então disse:
“Melhor vocês entrarem para tomar o café da manhã.”
Estavam sozinhos na cozinha. Desde que Stoner chegara
à fazenda, os Foote tinham adquirido o hábito de dormir até
tarde. Mas nem antes nem depois que seus pais terminaram
o café da manhã ele encontrou coragem para contar sua
mudança de planos, sua decisão de não voltar à fazenda.
Uma ou duas vezes esteve a ponto de falar, mas depois
olhava para os rostos queimados de sol que se erguiam das
roupas novas e pensava na longa viagem que haviam feito
e nos anos em que tinham esperado a sua volta. Ficou
sentado com eles, embaraçado, até terminarem o último
gole de café, e até os Foote se levantarem e virem para a
cozinha. Então lhes disse que tinha de ir cedo para a
universidade e que os veria mais tarde, na cerimônia.
Vagueou pelo campus, carregando a beca preta e a borla
que alugara; eram pesadas e incômodas, mas não
conseguiu achar um lugar para deixá-las. Pensou no que
teria de dizer a seus pais, e pela primeira vez percebeu a
irreversibilidade de sua decisão, e quase desejou que
pudesse desistir. Considerava-se inadequado para a meta
que escolhera tão irresponsavelmente e sentia o chamado
do mundo que abandonara. Sofria com aquela perda e a de
seus pais, e, mesmo aflito, percebia que estava se
distanciando deles.
Carregou esse sentimento de perda consigo durante a
cerimônia de formatura. Quando seu nome foi chamado e
ele atravessou o palanque para receber um pergaminho de
um homem sem rosto com uma barba macia e grisalha, não
conseguia acreditar em sua própria presença ali, e aquele
rolo de pergaminho em sua mão parecia não ter sentido. Só
conseguia pensar em sua mãe e seu pai sentados,
empertigados e constrangidos em meio àquela grande
multidão.
Quando a cerimônia acabou, levou-os de volta para a
casa dos Foote, onde eles passariam a noite e de onde
partiríam para a viagem de volta na madrugada seguinte.
Ficaram até tarde na sala dos Foote. Jim e Serena Foote
permaneceram acordados com eles por um tempo. De vez
em quando, Jim e a mãe de Stoner trocavam o nome de
algum parente e depois recaíam em silêncio. Seu pai estava
sentado numa cadeira, as pernas abertas, um pouco para a
frente, as mãos largas segurando os joelhos. Por fim, os
Foote se entreolharam, bocejaram e anunciaram que estava
tarde. Foram para seu quarto, e os três foram deixados
sozinhos.
Houve outro silêncio. Seus pais, olhando diretamente à
frente para as sombras projetadas por seus próprios corpos,
de quando em quando davam um relance para o filho, como
se não quisessem perturbá-lo em sua nova situação.
Após muitos minutos, William Stoner se inclinou para a
frente e falou com uma voz mais alta e incisiva do que
pretendera: “Eu devia ter dito a vocês antes, eu devia ter
dito no verão passado, ou hoje de manhã”.
Os rostos de seus pais mantiveram-se apáticos e sem
expressão à luz do lampião.
“O que estou tentando dizer é que não vou voltar com
vocês para a fazenda.”
Ninguém se mexeu. Seu pai disse: “Você tem assuntos
para encerrar aqui, nós podemos ir amanhã de manhã e
você pode ir para casa daqui a uns dias”.
Stoner esfregou o rosto com a palma da mão. “Não foi
isso o que eu quis dizer. Estou tentando lhes dizer que não
vou voltar mais para a fazenda.”
As mãos de seu pai se apertaram nos joelhos e ele
recuou na cadeira: “Você se meteu em alguma encrenca?”
Stoner sorriu. “Não é nada disso. Eu vou continuar os
estudos por mais um ano, talvez dois ou três.”
Seu pai balançou a cabeça. “Você acabou com tudo isso
hoje. E o agente rural disse que a faculdade de Agricultura
durava quatro anos.”
Stoner tentou explicar ao pai suas intenções, fazê-lo
entender o significado e o objetivo de sua decisão. Ele ouviu
suas palavras saindo como que da boca de outra pessoa, e
observou o rosto de seu pai, que as recebia como uma
pedra recebe os repetidos golpes de um punho. Quando
terminou, ele ficou sentado com as mãos cruzadas entre os
joelhos e a cabeça baixa escutando o silêncio da sala.
Por fim, seu pai moveu-se na cadeira. Stoner levantou os
olhos e se encontrou frente a frente com os rostos de seus
pais e quase gritou com eles.
“Eu não sei”, disse seu pai. Sua voz estava rouca e
cansada. “Não imaginei que ia acabar assim. Achei que
estava fazendo o melhor que podia para você, mandando-o
para cá. Sua mãe e eu sempre fizemos o melhor que a
gente podia para você.”
“Eu sei”, disse Stoner. Não conseguia mais olhar para
eles. “Vocês vão ficar bem? Eu posso voltar por um tempo
esse verão e ajudar. Eu posso…”
“Se você acha que deve ficar aqui e estudar os seus
livros, então é o que você deve fazer. Sua mãe e eu, a gente
se vira.”
Sua mãe estava na sua frente, mas não o via. Seus olhos
estavam apertados com força. Ela respirava pesadamente,
seu rosto contorcido de dor, e seus punhos cerrados
apertados contra as bochechas. Com assombro, Stoner se
deu conta de que ela estava chorando, com força mas
silenciosamente, e com a vergonha e o constrangimento de
quem raramente chora. Ele a olhou por mais um momento,
depois se levantou devagar e saiu da sala. Subiu a escada
estreita que levava para seu quarto no sótão. Por um longo
tempo ficou deitado na cama olhando fixamente com olhos
abertos a escuridão acima dele.
Dois

Duas semanas depois de Stoner receber seu diploma de


Bacharelado em Letras, o arquiduque Francisco Ferdinando
foi assassinado em Sarajevo por um nacionalista sérvio, e
antes do outono a guerra rebentara em toda a Europa. Entre
os estudantes era o assunto mais comentado; todos se
perguntavam qual papel a América iria desempenhar, e qual
emocionante futuro os aguardava.
Mas para William Stoner o futuro era uma certeza nítida
e inalterável. Aos seus olhos, não era um fluxo de eventos e
mudanças e potencialidade, mas um território virgem só à
espera de ser explorado. Via-o como a vasta biblioteca da
universidade, para a qual novas alas poderiam ser
construídas, à qual livros novos poderiam ser adicionados
com alguns dos velhos sendo retirados, enquanto a sua
verdadeira natureza permanecia essencialmente inalterada.
Imaginava o seu futuro só na instituição com a qual tinha se
comprometido e a qual compreendia tão imperfeitamente.
Imaginava-se mudando nesse futuro, mas via o próprio
futuro como o instrumento, e não como o objeto da
mudança.
Perto do fim daquele verão, pouco antes do começo do
semestre de outono, foi visitar seus pais. Pretendia ajudar
com a colheita do verão, mas descobriu que seu pai
contratara um ajudante negro que trabalhava duramente
sem reclamar, realizando sozinho quase tanto quanto
William e seu pai antes conseguiam juntos. Seus pais
ficaram felizes de vê-lo, e pareciam não ter guardado rancor
pela decisão. Todavia, descobriu que não tinha nada para
dizer a eles. Percebeu que já estavam começando a ficar
alheios um ao outro. E essa perda aumentou o amor que
sentia por eles. Voltou para Columbia uma semana antes do
que planejara.
Começou a mal suportar as incumbências na fazenda dos
Foote. Tendo chegado tarde aos estudos, sentia a urgência
de recuperar o tempo perdido. Às vezes, imerso em seus
livros, vinha-lhe a consciência de tudo que ele não sabia, de
tudo que ele não lera. E a serenidade para a qual trabalhava
tanto ficava abalada quando se dava conta do pouco tempo
que tinha na vida para ler tanta coisa, para aprender o que
tinha de saber.
Terminou os cursos do mestrado na primavera de 1915 e
passou o verão completando a sua tese, um estudo da
prosódia de um dos Cantos da Cantuária, de Chaucer. Antes
do fim do verão, os Foote lhe disseram que não iriam mais
precisar dele na fazenda.
Esperava essa demissão, e sob certos aspectos lhe foi
bem-vinda, mas por um instante depois que aconteceu
sentiu uma pontada de pânico. Era como se a última amarra
entre ele e a antiga vida tivesse sido cortada. Passara as
últimas semanas do verão na fazenda de seu pai, dando os
retoques finais em sua tese. A essa altura, Archer Sloane
tinha providenciado para que ele lecionasse duas disciplinas
básicas de Inglês para calouros, enquanto começava a se
preparar para o doutorado. Para tanto, recebia quatrocentos
dólares por ano. Ele retirou seus pertences do minúsculo
quarto no sótão dos Foote, que ocupara por cinco anos, e
alugou um quarto ainda menor perto da universidade.
Embora lhe coubesse apenas ensinar os fundamentos da
Gramática e da Redação para um grupo misto de calouros,
ele se preparou para a tarefa com entusiasmo e forte senso
de responsabilidade. Planejou o curso durante a semana
anterior ao início do semestre de outono, e se deu conta do
potencial e das dificuldades associadas à preparação do
material e dos assuntos do compromisso assumido. Sentiu a
lógica da gramática, e achou que percebia como ela se
estendia para fora de si mesma, permeando a língua e
sustentando o pensamento humano. Nos simples exercícios
de Redação que preparou para seus alunos, descobriu as
potencialidades da prosa e sua beleza, e estava ansioso
para instilar em seus estudantes o sentido daquela
descoberta.
Quando chegou a hora de suas primeiras aulas, após a
rotina das listas de chamada e dos planos de estudo, e
quando começou a se dedicar à sua matéria e aos seus
alunos, descobriu que seu entusiasmo permanecia
guardado dentro de si. Às vezes, enquanto falava para os
estudantes, era como se estivesse do lado de fora de si
mesmo e observasse um desconhecido falando para um
grupo reunido contra a própria vontade. Ouvia sua própria
voz monótona recitando os materiais que tinha preparado, e
nada de seu próprio entusiasmo transparecia naquela
recitação.
Encontrava alívio e satisfação só nas aulas em que ele
mesmo era aluno. Nelas conseguia recapturar a sensação
de descoberta que sentira naquele primeiro dia, quando
Archer Sloane falara com ele na classe e, num instante, ele
se tornara outra pessoa. Enquanto a sua mente se envolvia
com o assunto e se engalfinhava com a força da literatura
que estudava e cuja autêntica natureza ele tentava
entender, sentia uma contínua transformação em seu íntimo
e, ao ter consciência disso, saía de si mesmo e entrava no
mundo que o continha, e assim entendia que o poema de
Milton ou o ensaio de Bacon ou o drama de Ben Jonson que
estava lendo haviam transformado o mundo que era o seu
assunto, e conseguiram transformá-lo em virtude de sua
dependência dele. Em classe, raramente falava, e seus
trabalhos quase nunca o satisfaziam. Como suas aulas para
os jovens estudantes, eles não revelavam o que ele mais
profundamente compreendera.
Começou a fazer amizade com alguns de seus colegas
que, como ele, tinham começado a lecionar no
departamento. Entre eles, havia dois dos quais ficou amigo,
David Masters e Gordon Finch.
Masters era um jovem franzino e de pele escura, com
uma língua afiada e olhos doces. Como Stoner, começara
recentemente o doutorado, embora fosse um ou dois anos
mais novo do que Stoner. Entre o corpo docente e os pós-
graduandos, ele tinha a fama de ser arrogante e
impertinente, e era opinião geral que teria alguma
dificuldade em terminar o seu doutorado. Stoner o
considerava o homem mais brilhante que já conhecera e o
respeitava sem inveja ou ressentimento.
Gordon Finch era corpulento e loiro, e apesar de ter
apenas 23 anos, já estava começando a ficar gordo. Ele
obtivera um diploma de uma faculdade de Contabilidade em
St. Louis e, na universidade, fizera várias tentativas na pós-
graduação, nos departamentos de Economia, História e
Engenharia. Por fim, começara sua pós-graduação em
Literatura, em grande medida porque, no último minuto,
conseguira obter um pequeno serviço para lecionar no
departamento de Inglês. Ele mostrou rapidamente ser o
estudante menos interessado do departamento. Mas era
popular com os calouros e se dava bem com os membros
mais velhos do corpo docente e com os funcionários da
administração.
Os três — Stoner, Masters e Finch — passaram a ter o
hábito de se encontrar nas tardes de sexta-feira num
barzinho no centro de Columbia, onde bebiam grandes
canecas de cerveja e conversavam até tarde da noite.
Embora aquelas noites fossem seu único divertimento,
Stoner perguntava-se com frequência sobre a natureza do
relacionamento deles. Apesar de eles se darem bem juntos,
não se haviam tornado amigos íntimos; não trocavam
confidências e raramente se viam fora de seu encontro
semanal.
Nunca nenhum deles levantou essa questão. Stoner
sabia que Gordon Finch nunca pensara nela, mas suspeitava
que David Masters, sim. Uma vez, tarde da noite, sentados
na penumbra, a uma mesa dos fundos do bar, Stoner e
Masters falavam de suas aulas e estudos com a ironia das
pessoas muito sérias. Masters, erguendo um ovo cozido do
bufê como se fosse uma bola de cristal, disse: “Cavalheiros,
alguma vez já consideraram a questão da verdadeira
natureza da universidade? Sr. Stoner? Sr. Finch?”
Sorrindo, eles balançaram a cabeça.
“Eu apostava que não. O Stoner aqui presente, eu
imagino, a vê como um grande repositório, como uma
biblioteca ou um armazém, aonde os homens vêm por livre
e espontânea vontade e selecionam o que irá completá-los,
onde todos trabalham juntos como abelhinhas numa
colmeia coletiva. O Verdadeiro, o Bom, o Belo. Eles estão
logo ali virando a esquina, no próximo corredor; estão no
próximo livro, aquele que você não leu, ou na estante
seguinte, aquela a que você ainda não chegou. Mas você
vai chegar lá algum dia. E quando chegar… quando
chegar…” Ele olhou para o ovo por mais um momento e,
então, deu uma grande mordida nele e se virou para Stoner,
sua boca mastigando e os olhos escuros brilhando.
Stoner sorriu um pouco constrangido, e Finch riu alto e
deu uma palmada na mesa. “Ele te pegou, Bill. Ele te pegou
direitinho.”
Masters mastigou por mais um momento, engoliu e
voltou seu olhar para Finch.
“E você, Finch? Qual é a sua ideia?” Ele ergueu a mão.
“Você vai dizer que nunca pensou nisso. Mas você pensou,
sim. Por trás desse blefe e dessa aparência calorosa se
esconde um espírito simples. Para você, a instituição é um
instrumento do bem, que traz benefícios para a sociedade
em geral, é claro, e só incidentalmente para você mesmo.
Você a vê como uma espécie de remédio caseiro, uma
mistura de enxofre e melaço com benéficos efeitos
espirituais que você ministra aos pestinhas todo outono
para conseguir que atravessem outro inverno. E você é o
velho médico gentil que bondosamente dá tapinhas na
cabeça deles e embolsa seus honorários.”
Finch riu e balançou a cabeça. “Juro, Dave, quando você
começa…”
Masters pôs o resto do ovo na boca, mastigou satisfeito
por um momento e tomou um grande gole de cerveja.
“Mas vocês dois estão errados”, disse ele. “A
universidade é um asilo, ou… como é que chamam agora?
Uma casa de repouso para os enfermos, os idosos, os
descontentes e os demais incompetentes. Olhem para nós
três… nós somos a universidade. Quem não nos conhece
não vai saber que temos tanto em comum, mas nós
sabemos, não sabemos? Nós sabemos.”
Finch estava rindo. “O que temos em comum, Dave?”
Cada vez mais envolvido na conversa, Masters se
inclinou sobre a mesa com uma expressão concentrada.
“Vamos começar com você, Finch. Sendo o mais gentil
que posso, eu diria que você é o incompetente. Como você
mesmo sabe, você realmente não é dos mais brilhantes…
embora isso não seja tudo que tenha a ver no caso.”
“E essa, agora”, disse Finch, ainda rindo.
“Mas você é brilhante o bastante… e só o bastante…
para se dar conta do que aconteceria com você no mundo
real. Você nasceu para o fracasso, e você sabe disso.
Embora você seja capaz de ser um filho da puta, não é
implacável o bastante para sê-lo até o fim. Embora você
não seja precisamente o homem mais honesto que já
conheci, tampouco é o pior desonesto. Por um lado, você é
capaz de trabalhar, mas é simplesmente preguiçoso o
bastante para não conseguir trabalhar tão duro quanto o
mundo gostaria. Por outro lado, você não é assim tão
preguiçoso que não consiga deixar a marca de sua
importância no mundo. E você não é sortudo, nem um
pouco. Nenhuma aura se ergue de você, e você sempre tem
uma expressão desorientada. No mundo externo, você
sempre estaria no limiar do sucesso, mas depois seria
destruído por seus fracassos. Então você foi escolhido,
eleito: a providência, cuja ironia sempre me divertiu, salvou
você das mandíbulas do mundo, colocando-o em segurança
aqui, entre os seus irmãos.”
Ainda sorrindo com malícia, ele se voltou para Stoner.
“E você também não escapa, meu amigo. Realmente
não. Quem é você? Um simples filho da terra, como finge
para si mesmo? Ah, não. Você, também, está entre os
enfermos… você é o sonhador, o maluco num mundo ainda
mais maluco, nosso próprio Dom Quixote do Meio-Oeste
sem seu Sancho Pança, cabriolando sob o céu azul. Você é
brilhante o bastante, com certeza mais brilhante do que
nosso amigo comum. Mas você tem a mácula, a velha
enfermidade. Você acha que há algo aqui, algo a descobrir.
Bom, no mundo real você logo descobriria a verdade. Você
também nasceu para o fracasso. Mas, em vez de combater
o mundo, você deixaria que ele te mastigasse e te cuspisse
fora, e ficaria jogado lá, perguntando-se o que deu errado.
Porque você sempre esperaria que o mundo fosse algo que
não é, algo que ele não tem a menor vontade de ser. O
gorgulho no algodão, o verme no pé de feijão, o caruncho
no milho. Você não conseguiría enfrentá-los, e não
conseguiría lutar contra eles; porque você é fraco demais, e
forte demais ao mesmo tempo. E você não tem nenhum
outro lugar para ir no mundo.”
“E você?”, perguntou Finch. “O que vai dizer sobre si
mesmo?”
“Ah”, disse Masters, recostando-se. “Eu sou um de vocês.
Pior, na verdade. Sou brilhante demais para o mundo, e não
iria ficar com a minha boca fechada quanto a isso; minha
doença é uma doença para a qual não há cura. Então é
preciso que eu seja trancafiado onde possa ser
irresponsável sem perigo, onde não possa fazer mal a
ninguém.”
Ele se debruçou de novo e sorriu para eles.
“Somos todos pobres Toms, abandonados no frio.”
“Rei Lear”, disse Stoner seriamente.
“Ato três, cena quatro”, disse Masters. “E assim a
providência, ou a sociedade, ou o destino, ou qualquer
nome que vocês queiram dar, criou esse abrigo para nós,
para podermos sair da tempestade. É para nós que a
universidade existe, para os despossuídos do mundo; não
para os estudantes, não para a busca desinteressada do
conhecimento, não por nenhuma das razões que se ouvem.
Aquilo é só um disfarce, como aqueles indivíduos normais,
prontos para o mundo, que de vez em quando acolhemos
entre nós, mas tudo se resume a uma camuflagem para nos
proteger. Como a igreja na Idade Média, que não estava
nem aí para os laicos ou mesmo para Deus, nós precisamos
de pretextos para sobreviver. E vamos sobreviver, porque é
assim que tem que ser.”
Finch balançou a cabeça com admiração.
“Quem quer que ouça você pensará que somos
indivíduos abjetos, Dave.”
“Talvez eu passe essa ideia”, disse Masters. “No entanto,
por mais abjetos que sejamos, somos melhores do que
aqueles do lado de fora, no esterco, os pobres coitados do
mundo. Não fazemos mal a ninguém, dizemos o que
queremos dizer e, ainda por cima, somos pagos para isso. É
um triunfo da virtude natural, ou algo muito perto disso.”
Masters se afastou da mesa com indiferença, como se
tivesse perdido o interesse na conversa.
Gordon Finch pigarreou. “Bom, agora…”, disse ele
seriamente. “Você pode ter alguma razão, Dave. Mas eu
acho que você exagera. Eu realmente acho.”
Stoner e Masters trocaram um sorriso e não falaram mais
do assunto naquela noite. Mas por muitos anos depois, de
vez em quando, Stoner lembraria o que Masters dissera.
Embora suas palavras tivessem pouco a ver com a imagem
da universidade com a qual ele se comprometera,
revelavam-lhe algo sobre seu relacionamento com os dois
homens, e lhe restituíam um vislumbre da amargura
corrosiva e pura da juventude.
•••
Em 7 de maio de 1915, um submarino alemão afundou o
transatlântico britânico Lusitania, com cento e quarenta
passageiros americanos a bordo. Por volta do fim de 1916,
os ataques dos submarinos alemães eram cada vez mais
frequentes. E as relações entre os Estados Unidos e a
Alemanha pioravam continuamente. Em fevereiro de 1917,
o presidente Wilson rompeu as relações diplomáticas. Em 6
de abril, o Congresso declarou guerra à Alemanha.
Com essa declaração, milhares de jovens em toda a
nação, como que aliviados com o rompimento da tensão
acumulada durante um longo período de incerteza,
assediaram os postos de alistamento que haviam sido
apressadamente criados algumas semanas antes. De fato,
centenas de jovens não haviam conseguido esperar a
intervenção da América e, já em 1915, tinham se alistado
para servir nas Forças Reais Canadenses ou se oferecido
como motoristas de ambulância para um dos exércitos
aliados europeus. Alguns dos estudantes mais velhos da
universidade fizeram a mesma coisa. Embora William Stoner
não tivesse conhecido nenhum deles, ouvia seus nomes
lendários com uma frequência cada vez maior com o passar
dos meses e das semanas, à medida que o momento
fatídico se aproximava.
A guerra foi declarada numa sexta-feira e, embora as
aulas continuassem normalmente na semana seguinte,
poucos estudantes ou professores fingiram que iriam
comparecer. A maioria deles rodava pelas salas e se reunia
em pequenos grupos, murmurando em voz baixa. De vez
em quando, a tensa quietude prorrompia em episódios de
violência; duas vezes houve grandes manifestações
antialemãs nas quais estudantes gritavam frases sem
sentido e agitavam bandeiras americanas. Uma vez até
ocorreu uma manifestação contra um dos professores, um
velho e barbado professor de línguas germânicas, que
nascera em Munique e, quando jovem, frequentara a
Universidade de Berlim. Mas, assim que o professor
encontrou o pequeno bando de estudantes furiosos e
exaltados e arregalou os olhos, espantado, levantando as
mãos magras e trêmulas, eles debandaram contrariados.
Nos primeiros dias após a declaração de guerra, Stoner
também se sentiu confuso, mas seu desassossego era
muito diferente do que afligia a maioria das outras pessoas
no campus. Embora tivesse conversado sobre a guerra na
Europa com os estudantes mais velhos e com seus colegas,
nunca realmente acreditara nela e, agora que se abatera
sobre eles todos, descobrira dentro de si uma vasta reserva
de indiferença. Ressentia-se pelos transtornos que a guerra
estava causando na universidade, mas não conseguia achar
em si mesmo nenhum sentimento patriótico, nem conseguia
odiar os alemães.
Contudo, era necessário odiar os alemães. Uma vez
Stoner viu Gordon Finch conversando com um grupo de
membros mais velhos do corpo docente. Seu rosto estava
contorcido e, cada vez que mencionava os “Hunos”, tinha a
expressão de quem quer cuspir no chão. Mais tarde, quando
ele o reviu no grande escritório que compartilhava com
meia dúzia dos professores mais jovens, notou que o humor
de Finch mudara: estava eufórico e deu um tapinha no seu
ombro.
“Não podemos deixar que eles levem essa, Bill”, disse
rapidamente. Uma película de suor brilhava como óleo em
seu rosto redondo, e seus cabelos loiros ralos e finos se
juntavam em mechas lisas na cabeça. “Não, senhor. Eu vou
me alistar; já falei com o velho Sloane sobre isso, e ele disse
para eu ir em frente. Estou indo para St. Louis amanhã para
me apresentar.” Por um instante ele conseguiu compor os
traços de seu rosto numa aparência de gravidade.
“Todos nós temos que fazer a nossa parte.” Então sorriu
e bateu no ombro de Stoner de novo. “Melhor você vir
comigo.”
“Eu?”, indagou Stoner, e repetiu, incrédulo: “Eu?”
Finch riu. “Claro. Todo mundo está se alistando. Acabei de
falar com Dave. Ele está indo comigo.”
Stoner balançou a cabeça, como que zonzo. “Dave
Masters?”
“Claro. O velho Dave fala meio estranho às vezes, mas,
quando as fichas estão na mesa, ele não é diferente de
ninguém e vai fazer a parte dele. Assim como você vai fazer
a sua, Bill.” Finch lhe deu um soquinho no braço. “Assim
como você vai fazer a sua.”
Stoner ficou em silêncio por um momento. “Eu não tinha
pensado nisso”, disse. “Tudo parece ter acontecido tão
rápido. Vou ter de falar com o Sloane. Eu te avisarei.”
“Claro”, respondeu Finch. “Você vai fazer a sua parte.”
Sua voz se encheu de emoção. “Estamos todos juntos nisso,
Bill. Estamos todos juntos nisso.”
Stoner se despediu de Finch, mas não foi falar com
Archer Sloane. Em vez disso, percorreu o campus e
perguntou pelo paradeiro de David Masters. Encontrou-o
sentado a uma mesa da biblioteca, sozinho, fumando um
cachimbo e olhando fixamente para uma prateleira de
livros.
Stoner se sentou à mesa na frente dele. Quando lhe
perguntou sobre a sua decisão de se alistar no exército,
Masters disse: “Claro. Por que não?”
E, quando Stoner perguntou o porquê, Masters disse:
“Você me conhece bastante bem, Bill. Eu não ligo a mínima
para os alemães. Para falar a verdade, acho que não ligo a
mínima nem para os americanos”.
Ele bateu as cinzas do cachimbo no chão e as varreu com
o pé. “Suponho que esteja fazendo isso porque tanto faz se
eu fizer ou não. E talvez seja divertido atravessar o mundo
mais uma vez antes de retornar à lenta e monástica
extinção que nos aguarda a todos.”
Embora não tenha compreendido, Stoner assentiu,
aceitando o que Masters lhe falara. Disse: “Gordon quer que
eu me aliste com vocês”.
Masters sorriu.
“Claro. Pela primeira vez na vida dele lhe é permitido
sentir a força da virtude e naturalmente ele quer que o resto
do mundo sinta o mesmo, para poder continuar
acreditando. Por que não? Aliste-se com a gente. Talvez lhe
faça bem conhecer o mundo.” Depois ele fez uma pausa e
olhou firmemente para Stoner. “Mas se você se alistar, por
favor, não faça isso por Deus, pela pátria ou pela boa e
velha Universidade do Missouri. Faça por si mesmo.”
Por um momento, Stoner ficou em silêncio. Então disse:
“Vou falar com o Sloane, e depois lhe digo.”
Ele não sabia que resposta esperava de Sloane, mas
mesmo assim ficou surpreso quando o enfrentou em seu
estreito escritório repleto de livros e lhe falou sobre o que
ainda não era uma decisão firme.
Sloane, que sempre mantivera em relação a ele uma
atitude distanciada e cortesmente irônica, perdeu a
paciência. Seu rosto magro e comprido ficou vermelho, e as
rugas em ambos os lados de sua boca se aprofundaram
com raiva; ele se levantou da poltrona com os punhos
cerrados, quase como se quisesse atacá-lo. Depois se
acalmou, recostou-se de novo e deliberadamente relaxou os
punhos, pousando as palmas das mãos sobre a mesa. Seus
dedos estavam tremendo, mas a voz soava firme e severa.
“Por favor, perdoe minha explosão repentina. Mas nos
últimos dias eu perdi quase um terço dos membros do
departamento, e não tenho esperança de substituí-los. Não
é com você que estou zangado, mas…” Ele desviou o olhar
de Stoner e o dirigiu para a janela alta no fundo de seu
escritório. “Nasci em 1860, pouco antes da Guerra Civil. Não
me lembro dela, é claro; eu era muito jovem. Tampouco me
lembro de meu pai, que morreu no primeiro ano da guerra,
na Batalha de Shiloh.”
Ele lançou um breve olhar a Stoner. “Mas eu pude ver o
que se seguiu. Uma guerra não mata só alguns milhares ou
algumas centenas de milhares de jovens. Ela mata algo
num povo que nunca pode ser recuperado. E, se um povo
atravessa várias guerras, logo só o que sobra é o bruto, a
criatura que nós… eu e você, e outros como nós, tiramos do
lodo.” Fez uma longa pausa, e então deu um leve sorriso.
“Ao acadêmico, não se deveria pedir que destrua o que
passou a vida construindo.”
Stoner pigarreou e disse hesitante: “Tudo pareceu ter
acontecido tão rápido. Eu nunca tinha pensado em tudo
isso, até falar com Finch e Masters. Ainda parece tudo um
pouco irreal”.
“E realmente é”, disse Sloane. Então mexeu-se inquieto,
desviando seu olhar de Stoner. “Eu não vou lhe dizer o que
fazer. Vou simplesmente dizer o seguinte: é uma escolha
que você tem de fazer. Haverá um recrutamento, mas você
poderá ser dispensado, se quiser. Você não está com medo
de ir, está?”
“Não, senhor”, respondeu Stoner. “Acho que não.”
“Então você vai ter de escolher, e terá de fazê-lo sozinho.
Desnecessário dizer que, se decidir se alistar, você será
reintegrado ao seu cargo atual quando retornar. Se decidir
não se alistar, poderá ficar aqui, mas é claro que não terá
nenhuma vantagem particular; é até possível que tenha
alguma desvantagem, ou agora ou no futuro.”
“Compreendo”, assentiu Stoner.
Houve um longo silêncio, e Stoner achou que Sloane
tinha encerrado com ele. Mas, quando se levantou para sair
do escritório, Sloane se dirigiu a ele de novo.
Disse lentamente: “Você precisa lembrar o que você é, o
que escolheu ser e o significado do que está fazendo. Há
guerras e derrotas e vitórias da raça humana que não são
militares e não são registradas nos anais da história.
Lembre-se disso quando estiver tentando decidir o que
fazer”.
Por dois dias, Stoner não deu suas aulas e não falou com
ninguém. Ficou em seu quartinho, lutando com a sua
própria consciência. Seus livros e a tranquilidade de seu
quarto o cercavam. Só raramente tinha consciência do
mundo exterior, do murmúrio remoto de estudantes
gritando, do estrépito rápido de uma carroça no empedrado
e do ruído monótono de um dos poucos automóveis na
cidade. Ele nunca tivera o hábito da introspecção, e
considerou a tarefa de examinar seus motivos difícil e
levemente desagradável. Sentiu que tinha pouco a oferecer
a si mesmo e que havia pouco dentro de si com que
pudesse contar.
Quando enfim chegou à sua decisão, pareceu-lhe que
sabia o tempo todo qual seria. Encontrou-se com Masters e
Finch na sexta-feira e informou a eles que não iria se juntar
aos dois para combater os alemães.
Gordon Finch, ainda sob o efeito de seu acesso de
virtude, empertigou-se e não conseguiu disfarçar uma
expressão de tristeza e de reprovação. “Você está nos
deixando na mão, Bill”, disse com voz séria. “Você está
deixando todos nós na mão.”
“Fique quieto”, disse Masters. Olhou intensamente para
Stoner. “Eu achei que você ia decidir que não. Você sempre
teve esse aspecto pálido, chupado. Obviamente não é um
problema, mas o que fez finalmente decidir?”
Stoner não respondeu de imediato. Ele pensou nos dois
últimos dias, no debate silencioso que parecia não ter fim
nem sentido; pensou em sua vida na universidade durante
os últimos sete anos; pensou nos anos anteriores, nos anos
distantes com seus pais na fazenda e no torpor mortal do
qual tinha sido milagrosamente revivido.
“Eu não sei”, disse por fim. “Tudo, eu acho. Não sei
dizer.” “Vai ser difícil”, Masters disse, “… ficar aqui”.
“Eu sei”, disse Stoner.
“Mas vale a pena, você acha?”
Stoner assentiu.
Masters sorriu e disse com a sua típica ironia: “Você tem
esse aspecto pálido e chupado. Você está condenado”.
O tom de reprovação de Finch se transformara quase em
desprezo. “Você irá se arrepender disso, Bill”, disse em voz
baixa, e seu tom oscilava entre a ameaça e a pena.
Ele lhes disse adeus e foi embora. Iriam partir para St.
Louis no dia seguinte para se alistar, e Stoner tinha aulas a
preparar para a semana seguinte.
Não se sentiu mal por sua decisão e, quando o
recrutamento se tornou geral, solicitou sua dispensa sem
nenhum sentimento de remorso. Mas ele estava consciente
dos olhares que recebia de seus colegas mais velhos, do
desprezo sutil que se escondia atrás do comportamento
aparentemente normal de seus estudantes. Até suspeitou
que Archer Sloane, que, em certo momento, expressara
uma calorosa aprovação quanto à sua decisão de continuar
na universidade, tornara-se mais frio e distante com o
passar da guerra.
Preencheu os requisitos para o doutorado na primavera
de 1918 e obteve o grau em julho daquele ano. Um mês
antes chegou uma carta de Gordon Finch, informando-o de
que ele passara nas provas da Escola de Treinamento de
Oficiais e que fora designado para um campo de
treinamento nas imediações da cidade de Nova York. A carta
comunicava que Finch tivera permissão de frequentar, em
seu tempo livre, a Universidade Columbia, onde também
conseguira cumprir os requisitos para o doutorado, que iria
receber na Escola de Pós-Graduação local.
A carta também noticiava que Dave Masters tinha sido
enviado para a França e que, quase exatamente um ano
após o seu alistamento, quando as primeiras tropas
americanas partiram para a linha de frente, ele morrera em
Château-Thierry.
Três

Uma semana antes do começo do ano letivo, em que Stoner


recebería o título de doutorado, Archer Sloane lhe ofereceu
um cargo em tempo integral na universidade. Sloane
explicou que não era política da universidade contratar
quem se formava nela, mas, por causa da carência de
professores universitários treinados e experientes, devido à
guerra, ele tinha conseguido persuadir a administração a
abrir uma exceção.
Mesmo com certa relutância, Stoner escrevera umas
poucas cartas para universidades e faculdades na região,
pedindo emprego, tentando promover abruptamente suas
qualificações. Quando nenhuma delas resultou em nada,
sentira-se estranhamente aliviado. Compreendeu em parte
esse alívio: na universidade em Columbia sentira o tipo de
segurança e calor que lhe haviam faltado durante a sua
infância e não tinha certeza quanto à possibilidade de
encontrá-los em algum outro lugar. Aceitou a oferta de
Sloane com gratidão.
E, ao fazê-lo, percebeu que Sloane envelhecera
consideravelmente durante os anos da guerra. Ele tinha
menos de 60 anos, mas aparentava dez anos a mais: seus
cabelos, que antes se encaracolavam grisalhos numa juba
imponente, tinham ficado brancos e assentavam-se lisos e
sem vida em seu crânio ossudo. Os olhos escuros tinham se
tornado foscos, como se cobertos por camadas de umidade.
O rosto comprido e marcado, que outrora fora firme como
couro, agora tinha a fragilidade do papel ressequido pelo
tempo, e sua voz irônica e monótona começara a
apresentar um tremor. Olhando para ele, Stoner pensou: ele
vai morrer, em um ano ou dois, ou dez, ele vai morrer.
Afastou-se, tomado por aquela sensação de perda
prematura.
Pensou muito sobre a morte naquele verão de 1918. A
morte de Masters o chocara mais do que gostaria de
admitir, e as primeiras listas dos soldados americanos
mortos na Europa estavam começando a ser divulgadas.
Antes, quando pensara na morte, fora ou como um evento
literário ou como o lento e natural desgaste do tempo sobre
a carne imperfeita. Nunca pensara nela como a explosão de
violência num campo de batalha, como o jorro de sangue da
garganta cortada. Perguntava-se sobre a diferença entre os
dois tipos de morte, e o que essa diferença significava.
Sentia crescer dentro de si um pouco daquela amargura que
uma vez entrevira no coração de seu amigo David Masters
quando vivo.
O tema de sua tese tinha sido “A Influência da Tradição
Clássica na Lírica Medieval”. Ele passara boa parte do verão
relendo os poetas latinos clássicos e medievais,
especialmente os poemas sobre a morte. Intrigou-se com a
facilidade e a elegância com que os poetas líricos romanos
aceitavam a ideia da morte, como se o nada que
enfrentavam fosse um tributo à riqueza dos anos que
haviam desfrutado quando vivos. E se assombrou com a
amargura, o terror, o maldisfarçado ódio que encontrou em
certos poetas cristãos que pertenciam à antiguidade tardia,
diante de uma ideia de morte, que prometia, ainda que
vagamente, um êxtase eterno, como se a morte e a
promessa fossem só uma zombaria que amargurava os dias
de suas vidas. Quando pensava em Masters, imaginava-o
como um Cátulo ou um Juvenal mais gentil e lírico, um
eLivros em seu próprio país. Pensava em sua morte como se
fosse outro exílio, mais estranho e duradouro do que
conhecera antes.
Quando o semestre começou no outono de 1918, estava
claro para todo mundo que a guerra na Europa não poderia
se prolongar muito mais. A última e desesperada contra-
ofensiva alemã tinha sido detida pouco antes de Paris, e o
marechal Foch ordenara um contra-ataque aliado geral que
rapidamente empurrou os alemães de volta à sua linha
original. Os britânicos avançaram para o norte e os
americanos atravessaram Argonne, pagando um preço que,
no clima de exaltação geral, foi amplamente ignorado. Os
jornais estavam prevendo o colapso dos alemães antes do
Natal.
O semestre começou numa atmosfera de euforia e
otimismo. Os alunos e professores se descobriam sorrindo
uns para os outros e assentindo vigorosamente nos
corredores. O corpo docente e a administração fecharam os
olhos para várias irrupções de exuberância e pequena
violência entre os estudantes. E um estudante não
identificado, que imediatamente se tornou uma espécie de
herói local, escalou uma das enormes colunas em frente ao
Jesse Hall e pendurou no topo um fantoche de palha do
Kaiser.
A única pessoa na universidade que parecia indiferente a
esse clima de entusiasmo generalizado era Archer Sloane.
Desde o dia da entrada da América na guerra, ele começara
a se retrair para si mesmo, e esse retraimento tornou-se
ainda mais pronunciado à medida que a guerra ia se
aproximando do fim. Ele não falava com seus colegas a
menos que fosse obrigado por alguma incumbência ligada
ao departamento, e havia rumores de que seu
comportamento em classe se tornara tão excêntrico que os
estudantes iam para suas aulas com apreensão. Lia suas
anotações de uma forma monótona e mecânica, evitando os
olhares de seus alunos. Frequentemente sua voz se
apagava enquanto olhava fixamente para seu caderno, e
seguia-se um silêncio de um, dois e às vezes até cinco
minutos, durante os quais ele não se movia nem respondia
às perguntas constrangidas da classe.
William Stoner viu o último vestígio do homem brilhante
e irônico que conhecera como estudante quando Archer
Sloane lhe deu suas atribuições acadêmicas para o ano
letivo. Sloane deu a Stoner dois cursos de Redação para o
primeiro ano e um curso introdutório de Literatura Inglesa
Medieval para os estudantes do último ano. Depois,
recuperando por um momento a antiga ironia, ele disse:
“Você, como muitos de seus colegas e não poucos de
nossos estudantes, ficará satisfeito em saber que estou
desistindo de algumas de minhas aulas. Entre elas, há uma
que sempre foi a minha predileta, a Introdução à Literatura
Inglesa do segundo ano. Talvez você se lembre dessa
disciplina?”
Stoner assentiu, sorrindo.
“Sim”, Sloane continuou. “Eu sabia que você lembraria.
Estou lhe pedindo que a assuma por mim. Não que seja uma
grande dádiva, mas achei que poderia diverti-lo iniciar a sua
carreira formal como professor onde começou como
estudante.”
Sloane o olhou por um momento, seus olhos brilhantes e
atentos como eram antes da guerra. Depois uma película de
indiferença voltou a recobri-los, e ele desviou seu olhar de
Stoner e mexeu em alguns papéis em sua mesa.
Assim, Stoner começou onde principiara, e o homem
alto, magro e encurvado que ele se tornara sentou-se na
mesma sala onde se sentara como um rapaz alto, magro e
encurvado ouvindo as palavras que o levaram até onde
chegara. Nunca entrava naquela sala sem dar um relance
ao lugar que uma vez ocupara, e sempre ficava um pouco
surpreso que ele não estivesse lá.
Em 11 de novembro daquele ano, dois meses após o
início do semestre, o Armistício foi assinado. A notícia veio
num dia de aula, e imediatamente as classes debandaram.
Os estudantes saíram correndo sem direção no campus e
improvisaram pequenos cortejos que se reuniam,
dispersavam e se reuniam de novo, percorrendo corredores,
salas de aula e escritórios. Meio contra a vontade, Stoner
ficou preso num deles que entrou no Jesse Hall,
atravessando corredores, subindo escadas e atravessando
corredores de novo. Sendo levado por uma pequena
multidão de estudantes e professores, ele passou em frente
à porta aberta do escritório de Archer Sloane, e teve uma
visão de Sloane sentado na cadeira diante de sua mesa, seu
rosto descoberto e contorcido, chorando amargamente, as
lágrimas escorrendo pelas fundas rugas de sua face.
Por mais um momento, como que em estado de choque,
Stoner se deixou ser levado pela multidão. Depois,
desvencilhou-se e foi para o seu quarto perto do campus.
Sentou-se na penumbra e ouviu lá fora os gritos de alegria e
alívio, e pensou em Archer Sloane, que chorava por uma
derrota que só ele via, ou achava que via, e soube que
Sloane era um homem destruído e nunca mais seria o que
fora antes.
•••
No fim de novembro, muitos daqueles que tinham partido
para a guerra começaram a voltar a Columbia, e o campus
da universidade ficou pontilhado pelo verde-oliva dos
uniformes do exército. Entre aqueles que voltaram em
licença prolongada, estava Gordon Finch. Ele engordara
durante o ano e meio longe da universidade, e o rosto
redondo e amplo, outrora afável e gentil, agora trazia uma
expressão de seriedade amigável e um pouco sinistra.
Usava insígnias de capitão e falava com frequência com um
afeto paternal de “meus homens”. Com Stoner, era cordial e
distante e se dirigia aos membros mais velhos do
departamento com uma deferência excessiva. Era muito
tarde no semestre de outono para lhe atribuir quaisquer
aulas, de modo que pelo resto do ano letivo foi contratado
como assistente administrativo do decano do Instituto de
Ciências Humanas. Finch era suficientemente perspicaz
para ter consciência da ambiguidade de seu novo cargo,
mas esperto o bastante para intuir suas possibilidades. As
relações com seus colegas eram prudentes e cortesmente
evasivas.
O decano do Instituto de Ciências Humanas, Josiah
Claremont, era um homenzinho barbudo de idade avançada,
muitos anos além da aposentadoria compulsória. Ele
estivera na universidade desde a transição, no início da
década de setenta do século anterior, de uma simples
instituição de ensino superior para uma universidade, e o
pai dele tinha sido um dos primeiros reitores. Estava tão
firmemente apegado à sua posição e era de tal modo parte
da história da universidade que ninguém tinha de fato a
coragem de insistir que ele se aposentasse, apesar da
crescente incompetência com que desempenhava sua
função. Ele tinha perdido quase completamente a memória.
Às vezes se perdia nos corredores do Jesse Hall, onde ficava
o seu escritório, e tinha de ser levado feito uma criança até
sua mesa.
Ele administrava os negócios da universidade de uma
forma tão confusa que, quando veio um anúncio de seu
escritório de que seria oferecida em sua casa uma recepção
em honra dos veteranos que tinham voltado para os seus
cargos acadêmicos ou administrativos, a maioria daqueles
que receberam os convites achou que fosse uma piada ou
um erro. Mas não era uma piada, nem um erro. Gordon
Finch confirmou os convites, e todo mundo entendeu que
fora ele quem solicitara a recepção e organizara tudo.
Josiah Claremont, viúvo havia muitos anos, morava
sozinho, com três criados negros quase tão velhos quanto
ele, em uma das grandes casas anteriores à Guerra Civil
que outrora eram comuns em Columbia mas que estavam
desaparecendo rapidamente com o advento dos pequenos
fazendeiros autônomos e dos empreendedores imobiliários.
A arquitetura da casa era agradável, mas indefinível.
Embora típica do Sul em sua forma e tamanho, nada tinha
da rigidez neoclássica da mansão característica da Virgínia.
Suas madeiras eram pintadas de branco, e remates verdes
emolduravam as janelas e as balaustradas dos pequenos
balcões que se projetavam aqui e ali do andar de cima. O
terreno se estendia até um bosque que cercava a casa, e
altos choupos, sem folhas naquela tarde de inverno,
flanqueavam o acesso e os caminhos. Era a casa mais
imponente que William Stoner já vira. Naquela tarde de
sexta-feira ele percorreu com alguma apreensão o caminho
de entrada e se juntou a um grupo do corpo docente que
não conhecia, que estava esperando na porta da frente para
entrar.
Gordon Finch, ainda usando o seu uniforme do exército,
abriu a porta e os convidou a entrar. O grupo passou para
um pequeno vestíbulo quadrado, no fim do qual uma escada
íngreme com corrimão de carvalho polido levava ao
primeiro andar. Uma pequena tapeçaria francesa, seus azuis
e dourados tão desbotados que a imagem quase não era
visível com a tênue luz amarela que vinha das pequenas
lâmpadas, estava pendurada na escada diretamente na
frente dos homens que entraram. Stoner ficou parado
olhando para ela enquanto os que haviam entrado seguiam
pelo vestíbulo.
“Dê-me o seu casaco, Bill.” Aquela voz, perto de seu
ouvido, o sobressaltou. Ele se voltou. Finch estava sorrindo
e estendendo a mão para receber o casaco que Stoner não
tirara.
“Você nunca veio aqui, não?” perguntou Finch quase num
sussurro. Stoner balançou a cabeça.
Finch se virou para os outros homens e, sem elevar a
voz, conseguiu dirigir-se a todos. “Vocês, cavalheiros,
entrem na sala principal.” Apontou uma porta à direita do
vestíbulo. “Estão todos lá.”
Ele voltou sua atenção para Stoner. “É uma bela casa
antiga”, disse, pendurando o casaco de Stoner num amplo
armário sob a escada. “É uma das verdadeiras atrações da
região.”
“Sim”, disse Stoner. “Ouvi falar dela.”
“O diretor Claremont é um bom velho, sabia? Ele me
pediu que eu lhe desse uma mão esta noite.”
Stoner assentiu.
Finch o pegou pelo braço e o guiou em direção à porta
que apontara antes. “Vamos nos reunir mais tarde para uma
conversa. Entre agora. Estarei lá num minuto. Lá estão
algumas pessoas que eu quero que você conheça.”
Stoner começou a dizer algo, mas Finch se voltou para
cumprimentar outro grupo que chegara à porta. Stoner
respirou fundo e abriu a porta para a sala de estar principal.
Quando entrou do vestíbulo frio, o calor veio contra ele,
como que para empurrá-lo de volta. O brando burburinho
das pessoas lá dentro, libertado ao se abrir a porta, avultou-
se por um momento antes de seus ouvidos se
acostumarem.
Circulavam pela sala talvez vinte pessoas, e, a princípio,
ele não reconheceu nenhuma delas. Viu o sóbrio preto,
cinza e marrom dos ternos dos homens, o enfadonho verde-
oliva dos uniformes do exército e, aqui e ali, o delicado rosa
ou azul do vestido de uma mulher. As pessoas se moviam
indolentes em meio ao calor, e ele se moveu com elas,
consciente de sua altura em meio às figuras sentadas,
cumprimentando com a cabeça os rostos que agora
reconhecia.
No fundo da sala, outra porta levava a uma sala menor,
adjacente ao comprido e estreito salão de jantar. As portas
duplas do salão estavam abertas, revelando uma vasta
mesa de nogueira coberta com damasco amarelo e repleta
de pratos brancos e tigelas de prata reluzente. Várias
pessoas estavam reunidas em volta da mesa, em cuja
cabeceira uma jovem mulher, alta, esguia e bela, com um
vestido de seda azul aguado, estava de pé servindo chá em
xícaras de bordas douradas. Stoner deteve-se na soleira,
capturado por aquela visão. A jovem tinha um rosto longo e
delicado e sorria para os outros em volta, e seus dedos
esguios, quase frágeis, manuseavam habilmente bule e
xícaras. Olhando para ela, Stoner foi assaltado pela
consciência de sua própria falta de jeito.
Por um longo momento ele ficou imóvel na soleira. Ouviu
a voz suave e fina da garota se destacar acima do
burburinho dos convidados ali reunidos que ela servia. Ela
ergueu a cabeça e, de repente, ele deu com os olhos dela:
eram claros e grandes e pareciam brilhar de luz própria. Um
pouco aturdido, recuou da soleira da porta e voltou para a
sala menor. Encontrou uma cadeira vazia num canto, junto à
parede, e sentou-se ali olhando o tapete sob seus pés. Não
olhava na direção da sala de jantar, mas, de vez em
quando, tinha a sensação de que o olhar da jovem pousava
bruscamente no seu rosto.
Os convidados se moviam à sua volta, trocavam de
lugares, alteravam suas entonações ao encontrar novos
interlocutores para conversar. Stoner os via através de uma
névoa, como se ele fosse parte de uma plateia. Depois de
um tempo, Gordon Finch entrou na sala, e Stoner se
levantou de sua cadeira e atravessou a sala até ele. Quase
rudemente, interrompeu a conversa de Finch com um
homem mais velho. Puxando-o de lado um pouco
bruscamente, pediu para ser apresentado à jovem que
servia chá.
Finch o olhou por um momento, o aborrecimento que
começara a franzir o seu cenho suavizando-se com o
arregalar de seus olhos. “Você o quê?”, perguntou ele.
Embora fosse mais baixo do que Stoner, parecia estar
olhando-o de cima.
“Eu quero que você me apresente”, disse Stoner. Sentiu
seu rosto esquentar. “Você a conhece?”
“Claro”, respondeu Finch. O esboço de um sorriso
começou a se formar em seus lábios. “Ela é uma prima
distante do diretor, vinda de St. Louis, para visitar uma tia.”
O sorriso se alargou. “Velho Bill. Isso não é importante. Claro
que vou apresentá-lo. Venha.”
Ela se chamava Edith Elaine Bostwick e morava com os
pais em St. Louis, onde, na primavera anterior, terminara
um curso de dois anos num colégio particular para moças.
Viera ficar com a irmã mais velha de sua mãe em Columbia
por algumas semanas e, na primavera, as duas fariam o
Grand Tour pela Europa: uma viagem de novo possível,
agora que a guerra acabara. Seu pai, presidente de um dos
menores bancos de St. Louis, era da Nova Inglaterra. Viera
para o Oeste na década de 1870 e se casara com a filha
mais velha de uma importante família abastada do Missouri.
Edith vivera sua vida toda em St. Louis. Alguns anos antes,
tinha ido para Boston com seus pais no verão. Fora à ópera
em Nova York e visitara museus. Tinha 20 anos, tocava
piano e mostrava inclinações artísticas que sua mãe
encorajava.
Anos depois, William Stoner não conseguiría lembrar
como ficara sabendo disso tudo, naquela primeira tarde e
começo de noite na casa de Josiah Claremont. Pois, no
momento em que a conheceu, tudo ficou embaçado e
formal, como a figura na tapeçaria na parede da escada que
saía do vestíbulo. Lembrou que falara com ela para que o
olhasse, continuasse perto dele e lhe desse o prazer de
ouvir sua voz suave e fina respondendo às suas perguntas e
fazendo, por educação, perguntas a ele.
Os convidados começaram a ir embora. Vozes se
despedindo, um bater de portas, e as salas ficaram vazias.
Stoner ficou para trás depois que a maioria dos outros
convidados já partira e, quando a carruagem de Edith veio,
ele a acompanhou até o vestíbulo e a ajudou com o casaco.
Um instante antes de sair, ele lhe perguntou se poderia
visitá-la na noite seguinte.
Como se não o tivesse ouvido, ela abriu a porta e ficou
parada por vários momentos sem se mover. O ar frio invadiu
a soleira e tocou o rosto afogueado de Stoner. Ela se voltou,
olhou para ele e piscou várias vezes. Seus olhos claros
estavam especulativos, quase ousados. Por fim ela assentiu
e disse: “Sim. Você pode me visitar”. Mas não sorriu.
•••
E assim ele a visitou, atravessando a pé a cidade numa
noite de inverno do Meio-Oeste intensamente fria. Não
havia nuvens no céu. A meia-lua brilhava sobre uma neve
que caíra antes à tarde. As ruas estavam desertas, e o
silêncio abafado era quebrado pela neve seca que crepitava
sob seus passos. Ele ficou por um longo tempo do lado de
fora da casa grande à qual viera, ouvindo o silêncio. O frio
entorpecia seus pés, mas ele não se moveu. Das janelas
com cortinas, uma luz tênue se projetava na neve branco-
azulada como uma nódoa amarela. Julgou ver movimento lá
dentro, mas não tinha certeza. Deliberadamente, como se
tivesse assumido um compromisso consigo mesmo, deu um
passo à frente, percorreu o caminho até a varanda e bateu à
porta.
A tia de Edith (seu nome, Stoner ficara sabendo antes,
era Emma Darley, e ficara viúva fazia alguns anos) o
recebeu na porta e o convidou a entrar. Era uma mulher
pequena e rechonchuda, com cabelos brancos e finos que
flutuavam sobre a sua face. Seus olhos escuros cintilavam
úmidos, e ela falava baixinho e de um jeito ofegante, como
se estivesse contando segredos. Stoner a seguiu até a sala
e se sentou, em frente a ela, num comprido sofá de
nogueira, cujo assento e encosto eram revestidos de um
espesso veludo azul. Havia neve em seus sapatos, e ele a
observou derretendo e fazendo manchas de umidade no
tapete floral espesso sob seus pés.
“Edith me disse que o senhor leciona na universidade, Sr.
Stoner”, disse a senhora Darley.
“Sim, senhora”, confirmou ele e pigarreou.
“É tão bom poder conversar de novo com um jovem
professor”, disse a senhora Darley animada. “O meu
falecido marido, o Sr. Darley, fez parte do conselho
administrativo da universidade por alguns anos… mas eu
imagino que saiba disso.”
“Não, senhora”, disse Stoner.
“Oh”, surpreendeu-se a senhora Darley. “Bem,
costumávamos convidar os professores mais jovens para o
chá da tarde. Mas isso foi há uns bons anos, antes da
guerra. Você esteve na guerra, professor Stoner?”
“Não, senhora”, respondeu Stoner. “Fiquei na
universidade.”
“Sim”, disse a senhora Darley e assentiu animadamente.
“E você leciona…”
“Inglês”, respondeu Stoner. “E não sou um professor. Sou
apenas um assistente.” Ele sabia que a sua voz soava
ríspida, mas não conseguia controlá-la. Tentou sorrir.
“Ah, sim”, concordou ela. “Shakespeare… Browning…”
Um silêncio se fez entre eles. Stoner torceu as mãos e
olhou para o chão.
A senhora Darley disse: “Vou ver se Edith está pronta. Se
você me der licença…”
Stoner assentiu e se levantou quando ela saiu. Ouviu
sussurros intensos numa sala nos fundos. Ficou de pé por
vários minutos.
Subitamente, Edith apareceu parada na larga soleira da
porta, pálida e sem sorrir. Eles olharam um para o outro sem
se reconhecerem. Edith deu um passo para trás e então
veio para a frente, seus lábios finos e tensos. Apertaram-se
as mãos gravemente e sentaram-se juntos no sofá sem
falar.
Ela era até mais alta do que ele lembrava, e mais frágil.
Seu rosto era comprido e esguio e seus lábios estavam
fechados sobre os dentes bonitos. Sua pele tinha o tipo de
transparência que se aquece e se ruboriza à menor
provocação. Seu cabelo era de um castanho-avermelhado
claro, e ela o usava enrolado em tranças grossas sobre a
cabeça. Mas foram seus olhos que o capturaram e
cativaram, do mesmo modo que no dia anterior. Eram muito
grandes e do azul mais claro que se podia imaginar. Quando
os olhava, ele parecia transportado para fora de si mesmo,
para um mistério que não conseguia compreender. Ele a
achou a mais bela mulher que já vira, e disse
impulsivamente: “Eu… eu queria saber mais sobre você”.
Ela se afastou um pouco. Stoner acrescentou
apressadamente: “Quer dizer… Ontem, na recepção, nós
realmente não tivemos oportunidade de conversar. Teria
gostado de conversar com você, mas havia tantas
pessoas… As pessoas às vezes ficavam no seu caminho”.
“Foi uma recepção muito agradável”, disse Edith
fragilmente. “Achei todo mundo muito simpático.”
“Ah, sim, claro”, concordou Stoner. “Eu quis dizer…”
Ele não prosseguiu. Edith ficou em silêncio.
Stoner continuou: “Soube que você e a sua tia irão para
a Europa logo”.
“Sim”, disse ela.
“Europa…”, ele balançou a cabeça. “Você deve estar
muito animada.”
Ela assentiu relutantemente.
“Para onde vão? Quero dizer… quais lugares?”
“Inglaterra”, respondeu ela. “França. Itália.”
“E vocês irão… na primavera.”
“Abril”, acrescentou ela.
“Cinco meses”, Stoner disse. “Não é muito tempo. Espero
que nesse tempo a gente possa…”
“Vou ficar aqui só mais três semanas”, disse ela
rapidamente. “Então voltarei a St. Louis. Para o Natal.”
“Isso é bem pouco tempo.” Ele sorriu e disse
embaraçadamente: “Então terei de vê-la o mais
frequentemente que puder, para que possamos nos
conhecer”.
Ela olhou para ele quase com horror. “Eu não quis dizer
isso”, disse ela. “Por favor…”
Stoner ficou em silêncio por um momento. “Desculpe,
eu… Mas eu realmente gostaria de visitá-la de novo,
quantas vezes você me permitir. Posso?”
“Oh”, exclamou ela. “Bem.” Os dedos finos dela estavam
entrelaçados no colo, e os nós estavam brancos onde a pele
se esticava. Tinha sardas muito claras no dorso das mãos.
Stoner disse: “Isso está indo mal, não? Você precisa me
perdoar. Eu nunca conheci alguém como você, e falo coisas
sem jeito. Você precisa me perdoar se eu a constrangí.”
“Oh, não”, disse ela. Voltou a dirigir seu olhar para ele e
repuxou os lábios de um jeito que parecia um sorriso. “De
forma alguma. Está sendo muito agradável. Juro.”
Stoner não sabia o que dizer. Mencionou o tempo lá fora
e pediu desculpas por ter trazido neve para o tapete. Ela
murmurou alguma coisa. Ele falou das aulas que tinha de
dar na universidade, e ela assentiu, confusa. Depois eles
ficaram sentados em silêncio. Por fim, Stoner se levantou,
movendo-se devagar e pesadamente, como se estivesse
cansado. Edith olhou para ele sem expressão.
“Bom”, disse Stoner pigarreando. “Está ficando tarde, e
eu… Escute. Peço desculpas. Eu poderia lhe fazer outra
visita daqui a alguns dias? Talvez…”
Foi como se ele não tivesse falado nada. Ele assentiu,
disse “boa noite” e se virou para sair.
Edith Bostwick, numa voz aguda, estridente e sem
inflexão, exclamou: “Quando eu era menina, por volta dos 6
anos, sabia tocar piano e gostava de pintar e era muito
tímida, de modo que minha mãe me mandou para a Escola
para Garotas de Miss Thorndyke em St. Louis. Eu era a mais
nova lá, mas correu tudo bem porque o papai era do
conselho e resolveu tudo. No começo não gostei, mas
depois simplesmente adorei. As outras meninas eram muito
simpáticas e, com algumas delas, criei uma boa amizade
e…”
Stoner se voltara de novo assim que ela começara a
falar, e agora a olhava com um espanto que não se
mostrava em seu rosto. Ela olhava fixamente à frente, seu
rosto era inexpressivo e seus lábios se moviam como se
estivesse lendo aquilo num livro invisível. Stoner atravessou
lentamente a sala e sentou ao seu lado. Edith não pareceu
percebê-lo: seus olhos ficaram fixos à frente enquanto
continuava a lhe contar sobre si mesma, como ele pedira.
Stoner queria dizer a ela para parar, consolá-la, tocá-la, mas
não se moveu nem falou.
Edith continuou a falar e, após um momento, ele
começou a ouvir o que estava dizendo. Anos depois lhe
ocorrería que durante aquele primeiro encontro com ela,
naquela hora e meia de uma fria noite de dezembro, Edith
lhe contara mais sobre si mesma do que jamais voltaria a
contar. E, quando eles se despediram, sentiu que eram
estranhos um ao outro de um jeito que para ele era
inconcebível, e soube que estava apaixonado.
Edith Elaine Bostwick provavelmente não estava
consciente do que dissera a William Stoner naquela noite e,
mesmo que estivesse, não conseguiria compreender o
significado daquilo. No entanto, Stoner compreendera, e
nunca esqueceu. O que ele escutara era uma espécie de
confissão, que interpretou como um pedido de ajuda.
Quando foi conhecendo-a melhor, ficou sabendo mais de
sua infância, e acabou percebendo que ela era parecida
com a maioria das meninas de sua época e circunstâncias.
Sua educação se fundava na premissa de que alguém iria
sempre protegê-la dos eventos torpes que a vida poderia
empurrar em sua direção, e, em troca, ela não tinha outro
dever que o de ser um gracioso e prendado acessório, pois
pertencia a uma classe social e econômica para a qual a
proteção era quase uma obrigação sagrada. Por isso, ela
frequentara escolas particulares para meninas, onde
aprendera a ler, escrever e a aritmética básica. Em seu
lazer fora encorajada a fazer bordado, tocar piano, pintar
aquarelas e discutir as obras mais amenas da literatura. Ela
também fora instruída em questões de estilo, conduta
social, dicção e moralidade.
Seu treinamento moral, tanto nas escolas quanto em
casa, fora proibitivo nos modos e coercivo nos intentos, e
quase inteiramente ausente a respeito do sexo. As
referências à sexualidade sempre foram indiretas e alusivas.
Por isso, ela dominava cada aspecto de sua educação, que
recebia boa parte de sua energia precisamente daquela
força moral tácita e regressiva. Edith só sabia que iria ter
deveres em relação a seu marido e família, e que deveria
cumpri-los.
Sua infância fora de uma extrema formalidade, mesmo
nos momentos mais normais da vida familiar. Seus pais se
comportavam entre si com uma cortesia distante. Edith
nunca vira passar entre eles o calor espontâneo, fosse de
raiva ou de amor. A raiva se transformava em dias de
silêncio cortês; e o amor, em cortês expressão de afeto. Era
filha única, e a solidão fora uma das condições que
experimentara desde criança. Por isso, desenvolvera um
talento delicado para as atividades típicas da alta
sociedade, e nenhum conhecimento dos problemas que a
vida impõe a cada dia. Seu bordado era delicado e inútil,
pintava paisagens nebulosas de aquarela aguada, e tocava
piano com mãos precisas mas sem vigor. No entanto, era
completamente ignorante de suas próprias funções
corporais, nunca estivera sozinha para cuidar de si mesma
um único dia de sua vida, nem poderia alguma vez lhe ter
ocorrido que ela talvez viesse a se tornar responsável pelo
bem-estar de outra pessoa. Sua vida era invariável, como
um murmúrio baixo, e vigiada pela sua mãe, que, quando
Edith era criança, ficava sentada horas a fio observando-a
dedicar-se a suas pinturas ou tocar seu piano, como se
nenhuma outra ocupação fosse possível para ambas.
Aos 13 anos Edith passou pela transformação sexual
usual, mas também por uma transformação física que era
mais insólita. No espaço de uns poucos meses, ela cresceu
quase trinta centímetros, de modo que sua altura ficou
próxima à de um adulto. E a associação entre a falta de jeito
de seu corpo e o embaraçoso novo estado sexual lhe
causou um trauma do qual ela jamais se recuperou
inteiramente. Essas mudanças intensificaram sua timidez
natural: desconfiando de suas colegas na escola e não
tendo ninguém em casa com quem pudesse falar, ela se
fechou para o mundo.
Agora William Stoner se intrometera naquela profunda
intimidade, e algo insuspeito dentro dela, algum instinto, fez
com que ela o chamasse de volta enquanto ele saía pela
porta e falasse naquele tom rápido e desesperado, como
nunca tinha feito antes, e como nunca faria de novo.
Nas duas semanas seguintes, eles se viram quase todas
as noites. Foram a um concerto promovido pelo novo
departamento de Música da universidade. Quando não
estava frio demais, faziam longas e solenes caminhadas
pelas ruas de Columbia, mas muitas vezes ficavam
sentados na sala da senhora Darley. Às vezes conversavam,
e Edith tocava piano para ele. Stoner ouvia e observava
suas mãos se moverem sem vida sobre o teclado. Depois
daquela primeira noite juntos, as conversas continuaram
curiosamente impessoais: ele não conseguia fazê-la sair de
sua reserva e, quando viu o tanto que seus esforços para
isso a embaraçavam, parou de tentar. No entanto, havia
uma espécie de descontração entre eles, e Stoner tinha a
sensação de que eles estavam se dando bem. Menos de
uma semana antes do retorno dela para St. Louis, ele
declarou o seu amor e a pediu em casamento.
Embora ele não soubesse exatamente como ela iria
encarar a declaração e o pedido, ficou surpreso com sua
equanimidade. Depois de tê-lo escutado, Edith lhe deu um
longo olhar que era inquisitivo e curiosamente ousado, e
Stoner se lembrou daquela primeira tarde, depois que
pedira permissão para visitá-la, quando ela o olhou da
soleira da porta, de onde soprava um vento frio. Depois
Edith baixou os olhos e a surpresa que veio em seu rosto lhe
pareceu irreal. Ela disse que nunca pensara nele desse jeito,
que nunca imaginara, que não sabia.
“Você deve ter percebido que eu a amava”, disse ele.
“Eu não vejo como poderia ter escondido isso.”
Ela respondeu com uma ponta de animação. “Eu não
sabia. Eu não sei de nada disso.”
“Então preciso te dizer de novo”, falou ele docemente. “E
você precisa se acostumar com isso. Eu te amo, e não
consigo imaginar a minha vida sem você.”
Ela balançou a cabeça, como que confusa. “A minha
viagem para a Europa…”, disse ela tenuemente. “Tia
Emma…”
Stoner sentiu uma risada subindo-lhe pela garganta, e
disse com uma confiança feliz: “Ah, a Europa. Eu vou levá-la
para a Europa. Nós a veremos juntos algum dia”.
Ela se afastou dele e pôs as pontas dos dedos na testa.
“Você precisa me dar um tempo para pensar. E eu terei de
falar com mamãe e papai antes mesmo de poder
considerar.”
E ela não se comprometería mais do que isso. Não o
veria de novo antes de partir para St. Louis dali a poucos
dias, e de lá lhe escrevería depois de ter falado com os pais
e ter resolvido as coisas em sua cabeça. Quando partiu
naquela noite, Stoner se inclinou para beijá-la, mas Edith
virou a cabeça, e os lábios dele roçaram sua face. Ela deu
um pequeno aperto em sua mão e o deixou na porta da
frente sem olhar de novo para ele.
Dez dias depois, Stoner recebeu sua carta. Era um
bilhete curiosamente formal, e não mencionava nada do
que se passara entre eles. Edith dizia que gostaria que ele
conhecesse os pais dela e que estavam todos ansiosos para
encontrá-lo quando ele fosse a St. Louis, no fim de semana
seguinte, se possível.
Os pais de Edith o receberam com a fria formalidade que
ele esperara e, de imediato, tentaram impedir de todas as
formas que ele se sentisse à vontade. A senhora Bostwick
lhe faria uma pergunta, e ante a sua resposta diria “sim” da
maneira mais duvidosa, olhando para ele curiosamente,
como se o seu rosto estivesse sujo ou seu nariz estivesse
sangrando. Ela era alta e magra como Edith e, a princípio,
Stoner ficou sobressaltado com aquela semelhança
inesperada. Mas o rosto da senhora Bostwick era pesado e
letárgico, sem força ou delicadeza, e trazia as marcas
profundas do que devia ser uma insatisfação habitual.
Horace Bostwick também era alto, mas era pesado de
uma forma estranha e irreal, quase corpulento, uma franja
de cabelo grisalho se encaracolava sobre um crânio que, de
resto, era careca, e dobras de pele dependuravam-se
flácidas em volta do queixo. Quando falava com Stoner,
olhava diretamente por cima da cabeça, como se visse algo
atrás dele, e quando Stoner respondia, ele tamborilava os
dedos grossos no centro debruado de seu colete.
Edith cumprimentou Stoner como se ele fosse um
estranho e depois se afastou desinteressada, ocupando-se
com tarefas irrelevantes. Seus olhos a seguiam, mas ele não
conseguia fazer com que ela o olhasse.
Era a maior e mais elegante casa em que Stoner já
entrara. As salas eram altas e escuras, e atulhadas de vasos
de todos os tamanhos e formas, prataria devidamente
reluzente sobre as mesas, cômodas e aparadores de tampos
de mármore, além de mobílias ricamente estofadas com as
linhas mais delicadas. Eles atravessaram vários aposentos
até uma grande sala, onde — a senhora Bostwick murmurou
— ela e seu marido tinham o hábito de se sentar e
conversar informalmente com os amigos. Stoner se sentou
numa cadeira tão frágil que ficou com medo de quebrá-la.
Sentiu que ela se curvava com o seu peso.
Enquanto isso, Edith desaparecera. Stoner olhou em
volta, procurando-a quase freneticamente. Mas ela não
voltou à sala por quase duas horas, até depois de Stoner e
seus pais terem tido a “conversa” deles.
A “conversa” foi indireta, alusiva e lenta, interrompida
por longos silêncios. Horace Bostwick falou sobre si mesmo
em pequenos discursos dirigidos a algum ponto muitos
centímetros acima da cabeça de Stoner. Ele ficou sabendo
que Bostwick era um bostoniano cujo pai, no fim da vida,
arruinara sua carreira de banqueiro e o futuro de seu filho
na Nova Inglaterra por uma série de investimentos
imprudentes e desastrosos que fizeram seu banco falir.
“Traído”, sentenciou Bostwick com o olhar virado para o
teto, “por falsos amigos”. Assim, pouco depois da Guerra
Civil, seu filho teve de vir para o Missouri, pretendendo
mudar-se para o Oeste, mas nunca chegou mais longe do
que Kansas City, aonde ia ocasionalmente em viagens de
negócios. Lembrado do fracasso, ou da traição, de seu pai,
ele permaneceu em seu primeiro emprego num pequeno
banco de St. Louis. Aos 40 anos, seguro em sua posição de
vice-presidente, ele se casara com uma garota local de boa
família. Do casamento, viera um só filho: quisera um filho
mas tivera uma filha, e esse era outro desapontamento que
ele não se preocupava muito em disfarçar. Como muitos
homens que consideram seu sucesso incompleto, era
extraordinariamente vaidoso e consumido pela noção de
sua própria importância. A cada dez ou quinze minutos,
tirava um grande relógio de ouro do bolso do colete, olhava-
o e assentia para si mesmo.
A senhora Bostwick falou com menos frequência e menos
diretamente de si mesma, mas Stoner logo a compreendeu.
Ela era uma dama sulista de certa estirpe. De uma família
antiga e discretamente empobrecida, crescera com a
presunção de que as circunstâncias de penúria nas quais a
família se encontrava eram inapropriadas ao seu nível. Fora
educada para ter o anseio de uma melhoria dessa condição,
mas a melhoria nunca fora especificada muito
precisamente. Entrara em seu casamento com Horace
Bostwick com aquela insatisfação tão habitual dentro dela
que se tornara parte de sua pessoa. E, com o passar dos
anos, a insatisfação e a amargura aumentaram, tão gerais e
difusas que nenhum remédio específico poderia mitigá-las.
Sua voz era fina e aguda, e tinha um tom de desespero que
dava um valor especial a cada palavra que pronunciava.
Estava quase anoitecendo quando o assunto que os
fizera estarem ali juntos foi mencionado pela primeira vez.
Eles lhe disseram quão querida Edith era para eles, quão
preocupados eram com sua futura felicidade, quantas
vantagens ela tivera. Stoner ficou numa agonia de
constrangimento e tentou dar respostas que esperava que
fossem apropriadas.
“Uma menina extraordinária”, disse a senhora Bostwick.
“Tão sensível!”
As rugas em sua face se aprofundaram, e ela disse com
uma amargura antiga: “Nenhum homem… ninguém pode
compreender por inteiro a delicadeza de… de…”
“Sim”, disse Horace Bostwick brevemente. E começou a
inquirir sobre o que chamou de “perspectivas” de Stoner.
Ele respondeu da melhor forma que podia. Nunca pensara
em suas “perspectivas” antes, e ficou surpreso com quão
inadequadas soavam.
Bostwick disse: “E você não tem outros recursos além de
sua profissão?”
“Não, senhor”, respondeu Stoner.
O Sr. Bostwick balançou a cabeça com tristeza. “Edith
teve vantagens… você sabe. Uma ótima casa, criados, as
melhores escolas. Eu me pergunto… me vejo receoso, com
o padrão reduzido que será inevitável com a sua… hum,
condição… que…” A voz dele silenciou-se.
Stoner sentiu uma náusea subindo dentro de si e uma
raiva. Ele esperou alguns momentos antes de responder, e
fez com que sua voz saísse a mais monótona e inexpressiva
que conseguiu.
“Devo dizer, Sr. Bostwick, que eu não tinha considerado
essas questões materiais antes. Obviamente a felicidade de
Edith é a minha… Se o senhor acredita que Edith será
infeliz, então devo…”, fez uma pausa, procurando as
palavras. Ele queria contar ao pai de Edith do seu amor pela
filha dele, de sua certeza da felicidade deles juntos, do tipo
de vida que poderiam ter. Mas não continuou. Percebeu na
face de Horace Bostwick tamanha expressão de
preocupação, perplexidade e algo como medo que sua
surpresa o silenciou.
“Não”, disse Horace Bostwick precipitadamente, e sua
expressão desanuviou-se. “Você me entendeu mal. Eu
estava meramente tentando lhe apontar certas dificuldades
que poderão aparecer no futuro. Tenho certeza de que
vocês, jovens, discutiram todas essas coisas, e tenho
certeza de que sabem o que querem. Eu respeito o
julgamento de vocês e…”
E assim tudo estava resolvido. Umas poucas palavras
mais foram ditas, e a senhora Bostwick se perguntou em
voz alta onde Edith teria se enfiado durante todo aquele
tempo. Ela a chamou com sua voz fina e aguda, e em
poucos instantes Edith veio para a sala onde todos
esperavam. Ela não olhou para Stoner.
Horace Bostwick disse a ela que ele e o “rapazinho” dela
haviam tido uma boa conversa e que eles tinham a sua
bênção. Edith assentiu.
“Bom”, disse sua mãe, “precisamos fazer planos. Um
casamento na primavera. Junho, talvez”.
“Não”, disse Edith.
“Como, minha querida?”, perguntou sua mãe.
“Se é para ser feito”, disse Edith, “eu quero que seja feito
rapidamente”.
“A impaciência da juventude”, disse o Sr. Bostwick e
pigarreou. “Mas talvez sua mãe tenha razão, minha querida.
Há planos a fazer. Precisamos de tempo.”
“Não”, Edith disse de novo, e havia uma firmeza em sua
voz que fez todos olharem para ela. “Tem de ser logo.”
Houve um silêncio. Então seu pai disse numa voz
surpreendentemente suave: “Muito bem, minha querida.
Como você quiser. Vocês, jovens, façam os seus planos”.
Edith assentiu, murmurou alguma coisa sobre uma tarefa
que tinha de fazer e escapuliu da sala. Stoner não a viu de
novo até o jantar naquela noite, que foi presidido em
silêncio régio por Horace Bostwick. Após o jantar, Edith
tocou piano para eles, mas tocou rigidamente e mal,
cometendo muitos erros. Depois falou que não estava se
sentindo bem e foi para seu quarto.
Naquela noite, William Stoner ficou no quarto de
hóspedes, mas não conseguiu dormir. Ficou olhando para
cima no escuro e se perguntou sobre a estranheza que
entrara em sua vida, e pela primeira vez questionou se era
sábio o que ele estava prestes a fazer. Ele pensou em Edith
e sentiu algum reconforto. Supôs que todos os homens
ficassem incertos como ele repentinamente ficara, e
tivessem as mesmas dúvidas.
Cedo na manhã seguinte, ele tinha de pegar um trem de
volta a Columbia, de modo que sobrou pouco tempo após o
café da manhã. Queria pegar um bonde para a estação,
mas o Sr. Bostwick insistiu que um dos criados o levaria no
Landau. Edith ficou de lhe escrever dali a alguns dias sobre
os planos para o casamento. Agradeceu aos Bostwick e se
despediu. Eles foram com ele e Edith até a porta da frente.
Já estava quase no portão de entrada quando ouviu passos
correndo atrás dele. Voltou-se. Era Edith. Parou imóvel na
sua frente, muito empertigada e alta, sua face estava
pálida, e olhou diretamente nos olhos dele.
“Eu vou tentar ser uma boa esposa para você, William”,
disse ela. “Vou tentar.”
Stoner se deu conta de que era a primeira vez que
alguém dizia o seu nome desde que tinha chegado lá.
Quatro

Por motivos que não explicaria, Edith não queria se casar


em St. Louis, de modo que o casamento foi realizado em
Columbia, na grande sala de estar de Emma Darley, onde
eles tinham passado suas primeiras horas juntos. Era a
primeira semana de fevereiro, logo depois de as classes
terem sido dispensadas para o recesso do semestre. Os
Bostwick pegaram o trem de St. Louis, e os pais de William,
que ainda não haviam sido apresentados a Edith, vieram de
carroça da fazenda, chegando na tarde de sábado, um dia
antes do casamento. Stoner queria hospedá-los num hotel,
mas eles preferiram ficar com os Foote, mesmo estes tendo
se tornado frios e distantes depois que William deixara de
trabalhar para eles.
“Eu não saberia como fazer num hotel”, disse seu pai
seriamente. “E os Foote podem nos aguentar por uma
noite.”
Naquela noite William alugou um cabriolé e levou seus
pais à casa de Emma Darley para poderem conhecer Edith.
Foram recebidos na porta pela senhora Darley, que
lançou aos pais de William um breve e embaraçado olhar e
os convidou a ir até a sala. Sua mãe e seu pai se sentaram
cautelosamente, como se estivessem com medo de se
mexer em suas roupas novas e engomadas.
“Não sei o que está fazendo Edith demorar”, murmurou a
senhora Darley depois de um tempo. “Com a sua licença.”
Ela saiu da sala para buscar sua sobrinha.
Depois de muito tempo Edith desceu. Ela entrou lenta e
relutante na sala, com uma mistura de receio e desafio.
Eles se levantaram, e por vários momentos os quatro
ficaram parados de pé, constrangidos, sem saber o que
dizer. Então Edith avançou rigidamente e estendeu a mão
primeiro para a mãe de William e depois para o pai.
“Prazer”, disse o pai dele formalmente e soltou a mão
dela, como que com medo de quebrá-la.
Edith o olhou de relance, tentou sorrir e recuou.
“Sentem-se”, disse. “Por favor, sentem-se.”
Eles se sentaram. William disse alguma coisa. Sua voz
lhe soou forçada.
Depois, em um momento de silêncio, num tom baixo e
refletido, como se estivesse pensando em voz alta, sua mãe
disse: “Nossa, ela é bem bonita, não?”
William riu um pouco e disse gentilmente: “Sim, senhora,
ela é”.
Por fim, conseguiram conversar com mais descontração,
embora olhassem de esguelha uns para os outros,
desviando os olhos para os cantos da sala. Edith murmurou
que era um prazer conhecê-los, que sentia muito não tê-los
conhecido antes.
“E quando estivermos instalados em nossa casa…” Ela
fez uma pausa, e William se perguntou se ela iria prosseguir.
“Quando estivermos em nossa casa, vocês terão de vir nos
visitar.”
“Muito obrigada”, disse a mãe de Stoner.
A conversa se seguiu, interrompida por frequentes e
longos silêncios. O nervosismo de Edith aumentou, tornou-
se mais aparente, e uma ou duas vezes ela não respondeu a
uma pergunta que alguém lhe dirigira. William se pôs de pé,
e sua mãe, com uma olhadela nervosa em volta, levantou-
se também. Mas seu pai não se mexeu. Ele olhou
diretamente para Edith e manteve os olhos fixos nela por
um longo tempo.
Por fim ele disse: “William sempre foi um bom menino.
Estou contente que ele tenha conseguido uma ótima
mulher. Um homem precisa de uma mulher para fazer as
coisas para ele e dar conforto a ele. Agora, você seja boa
com o William. Ele precisa ter alguém que possa ser boa
com ele”.
A cabeça de Edith recuou bruscamente, como se
reagisse a um choque. Seus olhos se arregalaram e, por um
momento, William achou que ela ficara brava. Mas não
ficara. Seu pai e Edith se encararam por um bom tempo,
sem seus olhos se desviarem.
“Eu vou tentar, Sr. Stoner”, disse Edith. “Vou tentar.”
Então o pai dele se levantou, fez uma reverência
desajeitada e disse: “Está ficando tarde. Melhor irmos”. E foi
embora, seguido pela sua esposa indistinta, escura e
pequena, deixando seu filho e Edith sozinhos.
Edith não falou nada. Mas, quando ela se virou para lhe
dar boa-noite, William viu que lágrimas brotavam em seus
olhos. Inclinou-se para beijá-la, e sentiu nos seus braços a
frágil força dos dedos esguios dela.
•••
A luz fria e límpida do sol da tarde de fevereiro entrava
oblíqua pelas janelas da frente da casa de Emma Darley e
era interrompida por figuras que se moviam no salão. Seus
pais estavam sozinhos, de pé num canto da sala. Os
Bostwick, que tinham chegado apenas uma hora antes no
trem da manhã, estavam de pé perto deles, sem trocar
olhares com eles. Gordon Finch caminhava ansiosamente de
um lado para outro, com seu andar pesado, como se ele se
sentisse responsável por alguma coisa. Havia algumas
pessoas, amigos de Edith ou dos pais dela, que Stoner não
conhecia. Ouviu-se falando com alguém perto dele, sentiu
seus lábios sorrindo e ouviu vozes chegando como se
abafadas por camadas de tecido grosso. Gordon Finch
estava ao seu lado, o rosto dele estava suado e brilhava
perto do terno escuro. Ele sorriu nervosamente. “Você está
pronto, Bill?”
Stoner sentiu sua cabeça assentir.
Finch disse: “O condenado tem algum último desejo?”
Stoner sorriu e balançou a cabeça.
Finch deu um tapinha em seu ombro: “Você
simplesmente trate de grudar em mim e de fazer o que eu
lhe disser. Tudo está sob controle. Edith irá descer em
poucos minutos”.
Ele se perguntou se iria se lembrar daquilo depois que
acabasse. Tudo parecia um borrão, como algo que estivesse
vendo em meio a uma névoa. Ouviu-se perguntando a
Finch: “O sacerdote! Eu não o vi. Ele está aqui?”
Finch riu, balançou a cabeça e disse alguma coisa. Então
um burburinho tomou a sala. Edith estava descendo a
escada.
Em seu vestido branco, ela era como uma luz fria
entrando na sala. Stoner, quase sem perceber, pôs-se ao
encontro dela e sentiu a mão de Finch em seu braço,
detendo-o. Edith estava pálida, mas deu a ele um sorrisinho.
Depois, de repente, ela apareceu do seu lado, e começaram
a caminhar juntos. Um desconhecido com um colarinho
redondo estava de pé na frente deles: era baixo e gordo e
tinha um rosto inexpressivo. Resmungava palavras olhando
um livro branco nas mãos. William escutou a si mesmo
respondendo durante as pausas e sentiu que Edith tremia
ao seu lado.
Houve então um longo silêncio, e outro burburinho, e o
barulho de risadas. Alguém disse: “Beije a noiva!” Sentiu-se
sendo virado: viu o sorriso malicioso de Finch. Sorriu para
Edith. Com a vista ofuscada pela emoção, entreviu o rosto
dela e a beijou. Seus lábios estavam tão secos quanto os
dele.
Sentiu sua mão sendo apertada. Alguém lhe deu
tapinhas nas costas rindo, enquanto a sala girava à sua
volta. Outras pessoas entraram. Uma grande tigela de
ponche de cristal esculpido apareceu numa mesa comprida
num dos lados da sala. Havia um bolo. Alguém segurou a
sua mão e a de Edith juntas. Apareceu uma faca e ele
compreendeu que era para ele guiar a mão dela enquanto
cortava o bolo.
Depois foi separado de Edith e não conseguiu mais vê-la
naquele amontoado de gente. Falava, ria, assentia e olhava
a sala em volta procurando-a. Viu sua mãe e seu pai
parados no mesmo canto da sala, de onde não tinham
saído. Sua mãe sorria, e seu pai mantinha, desajeitado, a
mão no ombro dela.
Começou a caminhar na direção deles, mas foi detido por
alguém que lhe dirigiu a palavra.
Foi então que viu Edith. Ela estava com o pai, a mãe e a
tia. O pai, com o cenho levemente franzido, estava
esquadrinhando a sala impaciente, e a mãe estava
chorando, seus olhos vermelhos e inchados sobre os
pronunciados malares e a boca num bico como o de uma
criança. A senhora Darley e Edith estavam com os braços
em volta dela. A senhora Darley falava rapidamente, como
se tentasse explicar alguma coisa. Mesmo do outro lado da
sala, William conseguiu ver que Edith estava em silêncio:
seu rosto parecia uma máscara inexpressiva e branca. Após
um momento elas levaram a senhora Bostwick para fora da
sala, e William não viu Edith de novo até a recepção
terminar, até Gordon Finch sussurrar alguma coisa em seu
ouvido, levá-lo a uma porta lateral que dava num
jardinzinho e empurrá-lo para fora. Edith o estava
esperando, agasalhada contra o frio, o colarinho virado para
cima sobre o rosto, impedindo que ele o visse. Gordon
Finch, rindo e dizendo palavras que William não conseguiu
entender, empurrou-os por um caminho até a rua, onde
uma carruagem coberta estava esperando para levá-los até
a estação. Só quando sentaram no trem que os levaria a St.
Louis, onde iriam passar uma semana em lua de mel,
William Stoner se deu conta de que tudo havia acabado e
de que ele tinha uma esposa.
•••
Eles se casaram inocentes, mas inocentes de maneiras
profundamente diferentes. Eram ambos virgens, e tinham
consciência de sua inexperiência. Mas enquanto William,
tendo sido criado numa fazenda, estava acostumado aos
processos naturais da vida, estes eram para Edith
profundamente misteriosos e imprevistos. Ela não sabia
nada a esse respeito, e havia algo dentro dela que não
desejava saber.
E assim, como muitas outras, a lua de mel foi um
fracasso. No entanto, eles não admitiram isso para si
mesmos, e não se deram conta do significado do fracasso
até muito mais tarde.
Eles chegaram tarde a St. Louis na noite de domingo. No
trem, cercados por desconhecidos que os olhavam curiosos
e com aprovação, Edith se animara e parecia quase alegre.
Eles riram e ficaram de mãos dadas falando dos dias que
viriam. Uma vez que chegaram à cidade, enquanto William
procurava uma carruagem para levá-los ao hotel, a alegria
de Edith tornou-se levemente histérica.
Rindo, Stoner fez o gesto de carregá-la no colo através
da entrada do Ambassador Hotel, uma vasta estrutura de
pedra marrom entalhada. O lobby estava quase deserto,
escuro e sombrio como uma caverna. Assim que entraram,
Edith abruptamente se aquietou e bambeou hesitante ao
lado dele enquanto atravessavam o imenso saguão até a
recepção. Quando chegaram ao quarto, ela estava quase
fisicamente doente: tremia como se tivesse febre, e seus
lábios estavam azuis contra a sua pele, que parecia gesso.
William quis procurar um médico, mas ela insistiu que só
estava cansada e que precisava repousar. Eles falaram num
tom grave sobre a tensão do dia, e Edith aludiu a algum
probleminha físico que de vez em quando a incomodava. Ela
murmurou, sem olhar para ele e sem entonação na voz, que
queria que as primeiras horas deles juntos fossem perfeitas.
E, William disse: “Estão… sendo, vão ser. Você precisa
descansar. Nosso casamento começará amanhã”.
E, como outros maridos recém-casados de quem ouvira
falar e à custa dos quais fizera ocasionalmente algumas
piadas, passou a primeira noite de seu casamento separado
de sua mulher, seu corpo comprido e enrodilhado
desconfortável e insone num sofazinho, os olhos abertos
para a noite que passava.
Levantou cedo. A suíte, providenciada e paga pelos pais
de Edith, como um presente de casamento, ficava no
décimo andar, e dela descortinava-se uma vista da cidade.
Chamou suavemente Edith e, em poucos minutos, ela saiu
do quarto, amarrando o cinto de seu penhoar, bocejando
sonolenta e sorrindo de leve. William sentiu o seu amor por
ela apertar sua garganta. Pegou-a pela mão, e ficaram
juntos na frente da janela da sala de estar, aproveitando a
vista. Automóveis, pedestres e carruagens percorriam as
ruas estreitas abaixo deles. Ambos se sentiam bem longe
das ânsias e dos afãs da humanidade. A distância, visível
além dos prédios quadrados de tijolo vermelho e pedra, o
rio Mississippi seguia seu curso marrom-azulado no sol da
manhã. Os barcos e os rebocadores que subiam e desciam
suas curvas estreitas pareciam brinquedos, embora suas
chaminés soltassem grandes quantidades de fumaça cinza
no ar. Uma sensação de calma o invadiu. Pôs o braço em
volta de sua mulher e a abraçou levemente, e ambos
contemplaram de cima um mundo que parecia cheio de
promessas e suaves aventuras.
Tomaram o café da manhã cedo. Edith parecia
revigorada, inteiramente refeita de sua indisposição da
noite anterior. Estava quase alegre de novo, e olhava para
William com uma intimidade e um calor que ele achou que
eram de gratidão e amor. Não falaram da noite anterior.
Volta e meia Edith olhava a sua aliança nova e a ajeitava no
dedo.
•••
Agasalharam-se contra o frio e caminharam pelas ruas de
St. Louis, que estavam começando a se encher de gente.
Olharam mercadorias nas vitrines, falaram do futuro e
pensaram seriamente em como iriam preenchê-lo. William
começou a recuperar a espontaneidade e a facilidade de
conversar que descobrira durante os primeiros dias da corte
dessa mulher que se tornara a sua esposa. Edith segurava
firme seu braço e parecia acompanhar o que ele dizia como
nunca fizera antes. Tomaram um café no meio da manhã,
num pequeno café aquecido, e observaram os passantes
apressando-se no frio. Conseguiram uma carruagem e
foram ao Museu de Arte. De braços dados, caminharam
pelas salas de teto alto, através do fulgor suntuoso da luz
refletida das pinturas. Na tranquilidade, no calor, no ar que
as antigas pinturas e estátuas tornavam intemporal, William
Stoner sentiu um arroubo de afeto pela garota alta e
delicada que andava ao seu lado, e sentiu uma paixão
discreta crescer dentro dele, cálida e formalmente sensual,
como as cores que vinham das paredes ao seu redor.
Quando saíram de lá no fim da tarde, o céu nublara e um
chuvisco fino começara a cair, mas William Stoner
carregava ainda dentro de si o calor que assimilara no
museu.
Eles voltaram ao hotel pouco depois do pôr do sol. Edith
foi descansar, e William ligou para a recepção para
providenciar que um jantar leve fosse servido no quarto e,
tomado por uma súbita inspiração, desceu para o bar e
pediu que uma garrafa de champanhe fosse gelada e
mandada para eles dali a uma hora. O barman assentiu
melancólico, avisando que não seria um bom champanhe.
Em primeiro de julho, a Lei Seca seria nacional. Já era ilegal
fermentar ou destilar bebidas alcoólicas, e não havia mais
do que cinquenta garrafas de champanhe na adega do
hotel. Além disso, ele teria de cobrar mais do que o
champanhe valia. Stoner sorriu e disse que, mesmo assim,
não havia problema.
Embora na casa de seus pais, em ocasiões especiais,
Edith tivesse tomado um pouco de vinho, nunca provara
champanhe. Enquanto jantavam uma refeição servida numa
pequena mesa quadrada na sala da suíte, ela olhava
nervosamente para a garrafa colocada no balde de gelo.
Duas velas brancas em castiçais de bronze fosco brilhavam
irregulares na escuridão. William apagara as outras luzes.
Eles conversavam à luz das velas que se refletia nas curvas
da garrafa lisa e escura e cintilava no gelo que a cercava.
Estavam ambos nervosos e moderadamente alegres.
Com um gesto desajeitado, ele abriu a garrafa de
champanhe. Edith deu um pulo com o estouro, e a espuma
jorrou do gargalo e ensopou sua mão. Riram da falta de jeito
dele. Beberam uma taça do vinho, e Edith fingiu que estava
um pouco bêbada. Beberam mais uma taça. William julgou
ver um langor tomando-a, uma tranquilidade surgir em sua
face, uma expressão pensativa escurecer seus olhos.
Levantou-se e foi para o lado oposto da mesa, parando
atrás de Edith. Pôs a mão nos ombros dela, maravilhado
com a grossura e o peso de seus dedos perto daquela pele e
daqueles ossos tão delicados. Ela ficou rígida com o toque,
e Stoner, com suas mãos, alisou delicadamente os lados do
pescoço fino até tocar no cabelo ruivo. O pescoço estava
rígido, os tendões vibrando pela tensão. Em seguida, Stoner
pôs as mãos nos braços dela e a ergueu gentilmente, de
modo que se levantasse da cadeira. Então a fez virar o
rosto. Seus olhos, grandes, claros e quase transparentes sob
a luz das velas, olharam-no inexpressivos. Sentiu uma
distante proximidade em relação a ela, e um senso de pena
diante de tamanha vulnerabilidade. O desejo crescia em sua
garganta e o impedia de falar. Puxou-a um pouco em
direção ao quarto, sentindo a imediata resistência no corpo
dela e, ao mesmo tempo, uma vontade de se deixar levar.
Deixou aberta a porta que dava no quarto escuro. A luz
das velas brilhava tênue na escuridão. Murmurou algo
tentando tranquilizá-la, mas suas palavras saíram abafadas
e ele não conseguiu ouvir o que estava dizendo. Pôs as
mãos sobre o corpo dela e mexeu em busca dos botões. Ela
o afastou mecanicamente, mantendo os olhos fechados e os
lábios repuxados na escuridão. Desviou-se e, com um rápido
movimento, soltou o vestido, que caiu amarfanhado a seus
pés. Agora seus braços e ombros estavam descobertos, e,
tremendo como se estivesse com frio, disse numa voz sem
expressão: “Vá para a sala. Estarei pronta num minuto”.
Stoner tocou os braços dela e pôs os lábios no seu ombro,
mas ela não se virou.
Na sala de estar Stoner ficou olhando fixamente as velas
que tremulavam sobre os restos do jantar, no meio das
quais estava a garrafa de champanhe, ainda meio cheia.
Despejou um pouco dele no copo e o provou: ficara morno e
adocicado.
Quando voltou, Edith estava na cama com as cobertas
puxadas até o queixo, o rosto voltado para cima, os olhos
fechados, uma linha sulcando sua testa. Silenciosamente,
como se ela estivesse dormindo, Stoner se despiu e entrou
na cama ao lado dela. Por vários momentos ficou parado
com o seu desejo, que se tornara uma coisa impessoal, que
só a ele pertencia. Depois ele se dirigiu a Edith, como se
procurasse um abrigo para o que sentia. Mas ela não
respondeu. Tocou-a com uma mão e sentiu, sob o pano fino
da camisola, a carne pela qual ansiava. Moveu a mão sobre
ela, mas ela não se mexeu, a expressão cada vez mais
incomodada. Falou de novo com ela, pronunciando seu
nome no silêncio, depois moveu seu corpo sobre ela, de
uma forma desajeitada mas com delicadeza. Quando
encostou na maciez das coxas dela, Edith virou a cabeça
bruscamente e ergueu um braço para cobrir os olhos. Não
emitiu som nenhum.
Depois permaneceu deitado ao lado dela, falando-lhe
serenamente, com palavras de amor. Os olhos de Edith
agora estavam abertos e o encaravam na sombra, mas não
havia expressão em seu rosto. De repente ela arrancou as
cobertas e correu para o banheiro. Ele viu a luz acendendo-
se e a ouviu vomitar com violência e angústia. Chamou-a e
atravessou o quarto, mas a porta do banheiro estava
trancada. Chamou-a de novo. Ela não respondeu. Voltou
para a cama e a esperou. Depois de vários minutos de
silêncio, a luz no banheiro se apagou e a porta se abriu.
Edith saiu e andou rigidamente até a cama.
“Foi o champanhe”, disse ela. “Não devia ter tomado a
segunda taça.”
Ela puxou as cobertas e se virou para o outro lado.
Instantes depois, sua respiração ficou regular e ela caiu num
sono profundo.
Cinco

Eles voltaram para Columbia dois dias antes do planejado.


Inquietos e tensos pelo isolamento, ambos se sentiam como
numa prisão. Edith disse que eles deveriam realmente
voltar a Columbia para que William pudesse se preparar
para suas aulas e ela pudesse começar a arrumar as coisas
no apartamento novo. Stoner concordou de imediato — e
disse a si mesmo que as coisas ficariam melhores assim que
estivessem num lugar que fosse só deles, em meio a
pessoas que conheciam e lugares que lhes eram familiares.
Fizeram as malas naquela tarde e já na mesma noite
estavam no trem para Columbia.
Nos dias apressados e confusos antes do casamento,
Stoner encontrara um apartamento para alugar no segundo
andar de um antigo armazém convertido em prédio
residencial, a cinco quarteirões da universidade. Era escuro
e vazio, com um pequeno quarto, uma cozinha minúscula e
uma ampla sala de estar com janelas altas. Anteriormente,
fora ocupado, durante algum tempo, por um artista,
professor na universidade, que não devia ter sido muito
organizado. As grandes tábuas escuras do piso estavam
cheias de manchas amarelas, azuis e vermelhas, e as
paredes estavam sujas com tinta e poeira. Stoner achara o
lugar romântico e cômodo, e julgou que seria um bom lugar
para começar uma nova vida.
Edith se mudou para o apartamento como se ele fosse
um inimigo a ser vencido. Embora não estivesse
acostumada ao trabalho físico, raspou quase toda a tinta do
piso e das paredes e esfregou a sujeira que imaginava
brotar em toda parte. Tinha bolhas nas mãos, o rosto
desfigurado pela fadiga e grandes olheiras escuras. Quando
Stoner tentava ajudá-la, ela se mostrava teimosa, cerrava
os lábios e meneava a cabeça: respondia-lhe que ele
deveria dedicar-se aos seus estudos, e que aquele era o
serviço dela. E, se ele insistia em ajudá-la, ela se entristecia,
como se achasse a sua oferta humilhante. Perplexo e sem
poder fazer nada, ele retirava seu auxílio e ficava
observando enquanto, com expressão severa, Edith
continuava desajeitadamente a esfregar os pisos e as
paredes já reluzentes, a costurar cortinas e pendurá-las
tortas nas altas janelas, a consertar e a pintar e repintar a
mobília usada que tinham comprado e que estava já
começando a se acumular. Embora inepta, trabalhava com
uma ferocidade silenciosa e intensa, de modo que, quando
William chegava em casa da universidade à tarde, ela
estava exausta. Arrastava-se até a cozinha para preparar o
jantar, comia um pouco e, então, com um murmúrio, como
que drogada, desaparecia em direção ao quarto para dormir
até a manhã seguinte, quando William saía para suas aulas.
Em um mês, ele entendeu que seu casamento era um
fracasso. Em um ano, deixou de ter esperança de que iria
melhorar. Aprendeu o silêncio e não insistiu em seu amor.
Se ele falava com ela ou a tocava com ternura, ela se
esquivava e se fechava em si mesma, ficando muda, e por
dias recomeçava a extenuar-se cada vez com mais afinco.
Ainda assim, eles se obstinavam em compartilhar a mesma
cama. Algumas noites, em seu sono, Edith encostava nele.
Outras vezes, a resolução e a consciência de Stoner
desmoronavam ante seu amor, e era ele a procurá-la. Se
chegasse a ficar suficientemente acordada, Edith se
enrijecia toda tensa, virando a cabeça para o lado como de
hábito e, enterrando-a no travesseiro, suportava a violência.
Às vezes Stoner desempenhava seu ato de amor o mais
rápido que podia, odiando a si mesmo por sua
impetuosidade e lamentando seu desejo. Menos
frequentemente ela permanecia meio entorpecida pelo
sono: nesses casos era passiva, e murmurava sonolenta, se
em protesto ou por surpresa, isso ele não sabia. Stoner
passou a ansiar por esses raros e imprevisíveis momentos,
pois naquela aquiescência narcotizada pelo sono podia se
iludir que encontrava nela uma espécie de correspondência.
Embora imaginasse que sua esposa estivesse infeliz,
Stoner não podia tocar no assunto. Quando tentava, ela
interpretava as palavras dele como uma crítica velada à sua
inadequação e à sua pessoa, e ficava ainda mais
distanciada, como quando ele tentava penetrá-la. Stoner se
culpava pela própria falta de jeito e assumia a
responsabilidade pelo que ela sentia.
Com uma discreta implacabilidade que vinha de seu
desespero, inventava pequenos estratagemas para agradá-
la. Trazia presentes, que ela aceitava com indiferença,
limitando-se a fazer comentários sobre o dinheiro gasto.
Levava-a para passeios e piqueniques nos bosques em volta
de Columbia, mas ela se cansava facilmente e às vezes
ficava doente. Falava para ela de seu trabalho, como fizera
durante a corte, mas o interesse dela tornara-se superficial
e condescendente.
Por fim, embora soubesse que ela era tímida, insistiu o
mais gentilmente possível para que começassem a receber
visitas. Passaram a oferecer um chá da tarde, convidando
alguns de seus colegas e professores assistentes mais
jovens do departamento, e a oferecer vários jantares
informais. Edith não demonstrava de forma alguma se
aquilo a agradava ou não, mas a organização dos eventos
era tão frenética e obsessiva que, quando os convidados
chegavam, ela estava meio histérica da tensão e do
cansaço, embora ninguém, a não ser William, realmente
percebesse.
Ela era uma boa anfitriã. Conversava com seus
convidados com uma animação e uma descontração que a
tornavam irreconhecível aos olhos de William, e falava com
ele na presença dos convidados com uma intimidade e um
afeto que sempre o surpreendiam. Ela o chamava de Willy,
o que o comovia, e às vezes colocava a mão suavemente
em seu ombro.
Mas, quando as pessoas iam embora, a fachada
desabava e revelava a devastação. Ela fazia comentários
amargos sobre os convidados, imaginando obscuras críticas
e pequenos desaforos contra ela. Depois, com calmo
desespero, repassava o que considerava terem sido falhas
imperdoáveis de sua parte. Ficava sentada imóvel e
rancorosa em meio aos detritos da festa, não permitindo
que William a animasse, dando-lhe respostas breves e
desconexas numa voz monótona e inexpressiva.
Só uma vez a fachada rachou em público.
Vários meses após o casamento de Stoner e Edith,
Gordon Finch ficara noivo de uma garota que conhecera por
acaso quando estava baseado em Nova York e cujos pais
moravam em Columbia. Finch recebera um posto
permanente como diretor assistente, e era tacitamente
aceito que, quando Josiah Claremont morresse, Finch estaria
entre os primeiros a serem considerados para seu lugar.
Meio tardiamente, comemorando tanto o novo cargo de
Finch quanto o anúncio de seu noivado, Stoner o convidou
com a noiva para jantar.
Eles chegaram pouco antes do crepúsculo, numa noite
quente no fim de maio, num carro preto reluzente e
novíssimo que soltou uma série de explosões quando Finch
o estacionou habilmente na rua de tijolos em frente à casa
de Stoner. Ele buzinou e acenou alegremente até William e
Edith descerem. Uma garota baixinha com um rosto
redondo e sorridente estava sentada ao seu lado.
Finch a apresentou como Caroline Wingate, e os quatro
conversaram por um momento enquanto Finch a ajudava a
descer do carro.
“Bom, o que achou dele?”, perguntou Finch, batendo no
para-lama da frente do carro com o punho fechado. “Uma
beleza, não é? Pertence ao pai de Caroline. Estou pensando
em comprar um igual, assim…” Sua voz se esvaiu e seus
olhos se franziram. Ele observou o automóvel com uma
expressão fria e calculista, como se estivesse diante do
futuro.
Depois ficou animado e jocoso de novo. Com um jeito
fingidamente conspirativo, ele pôs o indicador sobre os
lábios, olhou furtivamente em volta e tirou um grande saco
de papel pardo do banco dianteiro do carro. “Birita
contrabandeada”, sussurrou. “Desembarcada agora mesmo.
Dê-me cobertura, colega, e quem sabe chegamos até a
casa.”
O jantar transcorreu bem. Finch estava mais afável do
que Stoner o vira em anos. Stoner pensou nos tempos em
que eles se encontravam com David Masters, naquelas
distantes tardes de sexta-feira depois das aulas, passadas
tomando cerveja e conversando. A noiva, Caroline, pouco
falou. Sorria feliz quando Finch fazia piadas e piscava para
ela. Veio a Stoner quase como um choque invejoso a
consciência de que Finch gostava genuinamente daquela
garota morena e bonita, e que o silêncio dela vinha de um
extasiado afeto por ele.
Até Edith perdeu um pouco de sua rigidez e tensão e
sorria com frequência, e sua risada parecia espontânea.
Finch era brincalhão e coloquial com Edith de um jeito que,
Stoner se deu conta, ele próprio, seu marido, jamais
conseguiría ser. Fazia meses que ele não a via tão feliz.
Depois do jantar, Finch retirou o saco de papel pardo da
geladeira, onde o colocara antes para gelar, e tirou dele
algumas garrafas marrom-escuras. Era uma cerveja caseira
que ele produzia com grande sigilo e cerimônia no closet de
seu apartamento de solteiro.
“Nenhum espaço para minhas roupas”, disse ele. “Mas
um homem tem de manter o seu senso de prioridade.”
Cuidadosamente, com os olhos franzidos, com a luz
rebrilhando em sua pele clara e seus cabelos loiros ficando
ralos, como um químico medindo uma substância rara,
despejou a cerveja das garrafas nos copos.
“É preciso ser cuidadoso com essa coisa”, disse ele. “Fica
um monte de sedimento no fundo e, se você despeja rápido
demais, vai parar no copo.”
Cada um deles tomou um copo da cerveja, elogiando
Finch pelo sabor. De fato, era surpreendentemente boa,
seca e leve, além de ter uma cor bonita. Até Edith terminou
seu copo e aceitou outro.
Ficaram um pouco bêbados. Riram com facilidade e com
gosto, e começaram a se enxergar sob uma nova
perspectiva.
Segurando seu copo em direção à luz, Stoner disse: “Eu
me pergunto o que Dave teria achado dessa cerveja”.
“Dave?”, perguntou Finch.
“Dave Masters. Lembra o quanto ele adorava cerveja?”
“Dave Masters”, repetiu Finch. “O bom e velho Dave. É
uma verdadeira pena.”
“Masters”, disse Edith sorrindo tontamente. “Ele não era
o amigo de vocês que morreu na guerra?”
“Sim”, respondeu Stoner. “Esse mesmo.” A velha tristeza
lhe sobreveio, mas ele sorriu para Edith.
“O bom e velho Dave”, disse Finch. “Edie, seu marido, eu
e o Dave costumávamos realmente nos divertir muito…
Bem antes de conhecê-la, é claro. O bom e velho Dave…”
Eles sorriram com a lembrança de David Masters.
“Vocês eram muito amigos?”, perguntou Edith.
Stoner assentiu. “Muito.”
“Château-Thierry.” Finch secou seu copo. “A guerra é uma
coisa dos infernos.” Balançou a cabeça. “Mas, nesse exato
momento, o velho Dave está provavelmente em algum
lugar rindo de nós. Ele não iria ficar sentindo pena de si
mesmo. Eu me pergunto se ele realmente conseguiu ver um
pouco da França.”
“Não sei”, disse Stoner. “Ele morreu logo depois de ter
ido para lá.”
“Seria uma pena não ter visto. Sempre achei que era
uma das principais razões de ele ter se alistado. Ver um
pouco da Europa…”
“Europa”, repetiu Edith claramente.
“É”, disse Finch. “O velho Dave não queria fazer muitas
coisas, mas queria conhecer a Europa antes de morrer.”
“Eu estava quase indo para a Europa uma vez”, disse
Edith. Ela sorria e seus olhos brilharam desamparados.
“Você lembra, Willy? Eu estava indo com a minha tia Emma
pouco antes de nos casarmos. Você lembra?”
“Lembro”, respondeu Stoner.
Edith riu asperamente e balançou a cabeça como se
estivesse perplexa. “Parece muito tempo atrás, mas não foi.
Quanto tempo faz, Willy?”
“Edith…”, disse Stoner.
“Deixe-me ver, iríamos em abril. E então um ano. E agora
é maio. Teria sido…” De repente seus olhos se encheram de
lágrimas, embora ela ainda estivesse sorrindo com a mesma
animação. “Acho que agora eu nunca mais vou para lá. A tia
Emma vai morrer em breve, e eu nunca mais terei a chance
de…”
Com o sorriso ainda nos lábios e as lágrimas escorrendo
no rosto, começou a soluçar. Stoner e Finch se levantaram
de suas cadeiras.
“Edith”, disse Stoner, impotente.
“Ah, me deixe em paz!” Com uma estranha torção do
corpo, ela ficou de pé na frente deles, os olhos fechados
com força e os punhos cerrados em cada lado do corpo.
“Todos vocês! Me deixem em paz!” E correu para o quarto,
batendo a porta atrás de si.
Por um instante ninguém falou nada. Eles ficaram
ouvindo o som abafado dos soluços de Edith. Então Stoner
disse: “Vocês terão de desculpá-la. Ela tem estado cansada
e não muito bem. A tensão…”
“Claro, eu sei como é, Bill”, riu Finch. “Mulheres e tudo o
mais. Imagino que eu mesmo logo vou ter que me
acostumar.”
Ele olhou para Caroline, riu de novo e baixou a voz.
“Bom, não vamos incomodar a Edie agora. Você
simplesmente agradeça a ela por nós, diga que foi um
ótimo jantar, e vocês terão de vir nos visitar depois que
estivermos instalados.”
“Obrigado, Gordon”, disse Stoner. “Direi a ela.”
“E não se preocupe”, acrescentou Finch. Ele deu um
soquinho no braço de Stoner. “São coisas que acontecem.”
Quando ele e Caroline foram embora, e o novo carro se
afastou, crepitando e rugindo na noite, William Stoner ficou
imóvel no meio da sala de estar ouvindo o soluçar seco e
regular de Edith. Era um som curiosamente monótono e
sem emoção, e continuava como se nunca mais fosse parar.
Ele queria consolá-la, aliviar seu sofrimento. Mas não
sabia o que dizer. Assim, ficou ali parado limitando-se a
escutar e, depois de um tempo, se deu conta de que nunca
antes ouvira Edith chorar.
•••
Depois do desastroso jantar com Gordon Finch e Caroline
Wingate, Edith pareceu quase contente, mais calma do que
estivera em qualquer outro momento do casamento deles.
Mas não queria receber ninguém, e mostrava certa
relutância em sair do apartamento. Stoner fazia a maior
parte das compras com listas que Edith escrevia numa letra
curiosamente laboriosa e infantil em folhinhas pequenas de
papel azul. Parecia bem mais feliz quando estava sozinha.
Ficava horas sentada fazendo renda ou bordando toalhas e
guardanapos, com um sorriso leve e contido em seus lábios.
Sua tia Emma Darley começou a visitá-la com mais e mais
frequência. Quando William chegava à tarde da
universidade, frequentemente encontrava as duas juntas
tomando chá e conversando em tons tão baixos que
poderiam ser sussurros. Elas sempre o cumprimentavam
educadamente, mas William sabia que o viam com pesar. A
senhora Darley raramente ficava mais do que uns poucos
minutos depois da chegada dele. Stoner aprendeu a manter
um cuidado delicado e discreto com o mundo em que Edith
começara a viver.
No verão de 1920, passou uma semana com seus pais
enquanto Edith visitava os dela em St. Louis. Não vira sua
mãe e seu pai desde o dia do casamento.
Trabalhou no campo por um dia ou dois, ajudando seu
pai e o empregado negro, mas os torrões quentes e úmidos
cedendo sob seus pés e o cheiro da terra recém-revolvida
em suas narinas não evocaram nele nenhum sentimento de
retorno ou familiaridade. Voltou para Columbia e passou o
resto do verão preparando-se para uma nova disciplina que
ministraria no ano letivo seguinte. Passava a maior parte
dos seus dias na biblioteca, às vezes voltando para casa
tarde da noite, quando o forte perfume doce de madressilva
impregnava o ar quente e as folhas delicadas dos cornisos
farfalhavam e giravam fantasmagóricas na escuridão. Seus
olhos ardiam de sua concentração em textos miúdos, sua
cabeça estava sobrecarregada pelas leituras e seus dedos
formigavam de leve ao lembrar o contato com o couro, as
capas e o papel velho, mas durante aquelas breves
caminhadas estava aberto para o mundo e até encontrava
alguma alegria nisso.
Apareceram alguns rostos novos nas reuniões do
departamento. Alguns dos antigos colegas tinham morrido,
e continuava o lento declínio de Archer Sloane que Stoner
começara a notar durante a guerra. Suas mãos tremiam, e
ele não conseguia se concentrar no que dizia. O
departamento seguia em frente somente graças à sua
antiga tradição e ao mero fato de sua existência.
Stoner continuava a ensinar com uma intensidade e uma
ferocidade que assustavam alguns dos membros mais
novos no departamento e causavam uma ligeira
preocupação entre os colegas que o conheciam havia um
longo tempo. Seu rosto ficou abatido, ele perdeu peso e o
encurvamento de seus ombros aumentou. No segundo
semestre daquele ano, recebeu a proposta de aumentar sua
carga horária por um pagamento extra. Ele aceitou e,
também por um pagamento a mais, lecionou no novo curso
de verão. Cultivava a vaga ideia de economizar dinheiro o
bastante para ir para o exterior e, assim, poder mostrar a
Edith a Europa de que ela desistira por sua causa.
No verão de 1921, procurando uma referência para um
poema latino que não conseguia lembrar, deu uma olhada
em sua tese pela primeira vez desde que a submetera à
aprovação, três anos antes. Leu-a inteira e a julgou
consistente. Um pouco assustado pela sua presunção,
considerou transformá-la em livro. Embora estivesse
lecionando de novo todo o período do verão, releu a maioria
dos textos que tinha consultado e começou a estender a
sua pesquisa. No fim de janeiro decidiu que um livro seria
possível. No começo da primavera tinha avançado o
bastante para poder escrever as primeiras páginas do
rascunho.
Foi na primavera desse mesmo ano que, calmamente e
quase com indiferença, Edith lhe disse que queria ter um
filho.
•••
A decisão veio repentinamente e sem uma causa aparente,
tanto que, quando fez o anúncio — numa manhã durante o
café, só uns poucos minutos antes de William ter de sair
para sua primeira aula —, até ela parecia surpresa, como se
tivesse feito uma descoberta.
“O quê?”, perguntou William. “O que você disse?”
“Quero ter um bebê”, respondeu Edith. “Eu acho que
quero ter um bebê.”
Ela mordiscava um pedaço de torrada. Limpou os lábios
com a ponta de um guardanapo e sorriu fixamente.
“Você acha que deveriamos ter um?” perguntou. “Já
estamos casados faz quase três anos.”
“É claro”, respondeu William. Pôs a xícara em seu pires
com grande cuidado. Não olhou para ela. “Você tem
certeza? Nunca conversamos sobre isso. Não queria que…”
“Ah, sim”, disse ela. “Tenho sim. Acho que devemos ter
um filho.”
William olhou o relógio. “Estou atrasado. Gostaria que
tivéssemos mais tempo para conversar. Quero que você
tenha certeza.”
Edith franziu levemente a testa. “Eu já disse para você
que tenho. Você não quer um? Por que você fica me
perguntando? Não quero mais falar sobre isso.”
“Tudo bem”, disse William. Ficou sentado por um
momento olhando para ela. “Preciso ir.” Mas não se mexeu.
Depois, desajeitado, esticou o braço, pousou a mão sobre os
dedos compridos dela e a manteve ali até ela se afastar. Em
seguida, levantou-se da mesa e passou em volta dela,
quase timidamente, para catar os livros e os papéis. Como
sempre fazia, Edith foi para a sala esperar que ele saísse.
Ele a beijou no rosto, algo que não fazia havia muito tempo.
Na porta ele se voltou e disse: “Estou… estou contente
que você queira um filho, Edith. Sei que sob certos aspectos
nosso casamento tem sido um desapontamento para você.
Espero que isso faça uma diferença entre nós”.
“Sim”, disse Edith. “Você vai se atrasar para a sua aula.
Melhor se apressar.”
Depois que ele saiu, Edith permaneceu por alguns
minutos no centro da sala, olhando para a porta fechada,
como que tentando se lembrar de alguma coisa. Depois,
começou a andar de um lado para outro, vagando pela sala,
caminhando como se não pudesse suportar o farfalhar e o
contato de suas roupas na sua pele. Desabotoou o pesado
penhoar matutino de tafetá cinza e o deixou cair no chão.
Cruzou os braços sobre os seios e se apertou, massageando
a carne através da fina camisola de flanela. Depois, dirigiu-
se, determinada, até o minúsculo quarto e abriu uma porta
do armário, que tinha do outro lado um espelho de corpo
inteiro. Ajustou o espelho à luz e recuou dele, inspecionando
a comprida figura esguia na camisola reta e azul que ele
refletia. Sem tirar os olhos do espelho, desabotoou a parte
de cima da camisola e a puxou de seu corpo, passando-a
por cima da cabeça, e assim ficou nua na luz da manhã.
Embolou a camisola e a jogou no armário. Depois, virou-se
de um lado e de outro em frente ao espelho, inspecionando
o corpo como se pertencesse a alguma outra pessoa.
Passou as mãos sobre seus pequenos seios inclinados e
deixou as mãos descerem de leve sobre a sua cintura e sua
barriga reta.
Depois saiu da frente do espelho e foi para a cama, que
ainda estava desfeita. Puxou para fora as cobertas, dobrou-
as descuidadamente e as colocou no armário. Alisou o
lençol na cama e deitou de costas, as pernas retas e os
braços ao longo do corpo. Sem piscar e sem se mover,
olhou fixamente o teto e esperou toda a manhã e toda a
longa tarde.
Quando William Stoner chegou em casa naquela noite, já
estava quase escuro, mas nenhuma luz vinha das janelas do
segundo andar. Vagamente apreensivo, subiu as escadas e
acendeu a luz da sala. Estava vazia. Ele chamou: “Edith!”
Não houve resposta. Chamou de novo.
Olhou na cozinha, a louça do café da manhã ainda
estava na mesinha minúscula. Atravessou rapidamente a
sala e abriu a porta do quarto.
Edith estava deitada nua na cama descoberta. Quando a
porta se abriu e a luz proveniente da sala pousou sobre ela,
Edith virou a cabeça para Stoner, mas não se levantou.
Olhou para ele com olhos arregalados, enquanto pequenos
sons saíam de sua boca entreaberta.
“Edith!”, disse ele e correu até ela, ajoelhando-se ao seu
lado. “Você está bem? Qual é o problema?”
Ela não respondeu, mas os sons que emitia ficaram mais
altos e seu corpo se aproximou de Stoner. De repente, suas
mãos o apertaram como tenazes, tanto que ele quase
recuou num salto. Mas Edith segurou com força suas roupas
e, agarrando-as, puxou-o para a cama. Ela o procurou com a
boca aberta e quente, enquanto suas mãos o estavam
percorrendo, puxando suas roupas, buscando-o, e todo o
tempo seus olhos ficaram abertos, fixos e desinteressados,
como se pertencessem a alguma outra pessoa e nada
vissem.
Foi assim que ele conheceu um novo aspecto de Edith,
esse desejo que era como uma fome tão intensa que
parecia não ter nada a ver com ela. E, logo que estava
saciado, recomeçava imediatamente a crescer, e assim
ambos começaram a viver na tensa expectativa de sua
presença.
Embora os dois meses seguintes tenham sido o único
período de paixão que William e Edith Stoner viveram
juntos, o relacionamento deles realmente não mudou. Não
demorou para que Stoner percebesse que a força que atraía
seus corpos pouco tinha a ver com amor. Eles copulavam
com uma determinação feroz mas distanciada, separavam-
se e copulavam de novo, sem conseguir saciar seu desejo.
Às vezes durante o dia, enquanto William estava na
universidade, a necessidade vinha tão intensa para Edith
que ela não conseguia ficar parada. Saía do apartamento e
caminhava rápido para cima e para baixo pelas ruas, indo
sem rumo de um lugar a outro. Depois voltava, fechava as
cortinas das janelas, despia-se e esperava, agachada na
penumbra, William chegar em casa. E, quando ele abria a
porta, atirava-se sobre ele, as mãos selvagens e insaciáveis
como se tivessem vida própria, puxando-o para o quarto,
para a cama que ainda estava amarfanhada pelo amor da
noite anterior ou da manhã.
Edith engravidou em junho e logo ficou doente, sem
conseguir recuperar-se inteiramente durante todo o período
de sua gravidez. Mais ou menos no momento em que ela
ficou grávida, mesmo antes de o fato ser confirmado pela
sua regra e por seu médico, a fome por William que a
assolara por quase dois meses cessou. Ela deixou claro para
seu marido que não podia suportar sua mão tocando nela, e
para ele começou a parecer que até mesmo olhar para ela
era uma espécie de violação. A paixão selvagem tornou-se
apenas uma lembrança e, por fim, Stoner passou a
considerá-la como se tivesse sido um sonho que nada tinha
a ver com nenhum dos dois.
E assim a cama que fora a arena da paixão deles tornou-
se o arrimo de sua doença. Edith ficava na cama a maior
parte do dia, levantando-se apenas para aliviar sua náusea
matutina e para caminhar sem firmeza pela sala de estar
alguns minutos de tarde. Às tardes e noites, depois de vir
apressado de seu trabalho na universidade, William limpava
a casa, lavava a louça e preparava o jantar. Depois levava a
comida para ela numa bandeja. Embora não quisesse que
eles jantassem juntos, Edith, depois de ter comido, parecia
gostar de tomar uma xícara de chá leve com ele. Por alguns
momentos da noite, conversavam calmos e
despreocupados, como se fossem velhos amigos ou
inimigos exaustos. Depois, Edith pegava no sono logo, e
William voltava à cozinha, terminava o serviço de casa,
punha uma mesa na frente do sofá da sala, onde corrigia
trabalhos ou preparava aulas. Então, depois da meia-noite,
cobria-se com um cobertor que mantinha cuidadosamente
dobrado debaixo do sofá e, com as pernas encolhidas,
dormia intermitentemente até a manhã.
A criança, uma menina, nasceu após um período de três
dias de trabalho de parto no meio de março do ano de
1923. Eles a chamaram Grace, o nome de uma das tias de
Edith que morrera muitos anos antes.
Logo depois de nascer, Grace já era uma criança bonita,
com traços nítidos e uma leve franja de cabelos loiros. Em
poucos dias, a primeira vermelhidão de sua pele se tornou
um rosa radiante. Raramente chorava, e parecia quase ter
consciência do que havia em volta dela. William
instantaneamente se apaixonou por ela; o afeto que não
podia demonstrar para Edith ele pôde demonstrar para a
sua filha, e descobriu um prazer inesperado em cuidar dela.
Por quase um ano após o nascimento de Grace, Edith
permaneceu parcialmente de cama, embora o médico não
conseguisse encontrar nenhum problema específico. William
contratou uma mulher que cuidava dela durante a manhã, e
organizou suas aulas de modo que pudesse chegar em casa
nas primeiras horas da tarde.
Assim, por mais de um ano William cuidou da casa e de
duas pessoas desamparadas. Acordava antes de
amanhecer, corrigia trabalhos e preparava aulas. Antes de ir
para a universidade, alimentava Grace, preparava o café da
manhã para ele e Edith, e aprontava um almoço que levava
para a faculdade em sua pasta. Depois de suas aulas,
voltava ao apartamento, onde varria, espanava e limpava.
Para a sua filha, ele foi quase mais uma mãe do que um
pai. Trocava suas fraldas e as lavava, escolhia suas
roupinhas e as remendava quando rasgavam, alimentava-a,
dava banho nela e a acalentava no colo quando ela estava
agitada. De vez em quando, Edith pedia lamuriosamente o
seu bebê. William levava Grace até ela, e Edith, recostada
na cama, segurava-a por alguns momentos em silêncio e
constrangida, como se a criança pertencesse a alguma
outra pessoa que ela desconhecia. Depois cansava-se e,
suspirando, entregava o bebê de volta a William. Comovida
por alguma emoção obscura, chorava um pouco, enxugava
os olhos e se virava para o outro lado.
E assim, durante o primeiro ano de sua vida, Grace
Stoner conheceu apenas o carinho de seu pai, e sua voz, e
seu amor.
Seis

No começo do verão de 1924, numa tarde de sexta-feira,


Archer Sloane foi visto por vários estudantes entrando no
seu escritório. Ele foi encontrado na segunda seguinte,
pouco depois do amanhecer, por um zelador que fazia a
ronda dos escritórios no Jesse Hall para esvaziar os cestos
de lixo. Estava caído na poltrona de sua mesa, o corpo
rígido, a cabeça inclinada de forma inatural, os olhos
arregalados e fixos num olhar terrível. O zelador tentou falar
com ele e depois saiu correndo e gritando pelos corredores
vazios. O corpo foi removido do escritório com alguma
demora, e alguns estudantes madrugadores já vagavam nos
corredores quando a figura curiosamente amontoada e
coberta com um lençol foi carregada numa maca escada
abaixo para a ambulância à espera. Mais tarde determinou-
se que Sloane morrera em algum momento da madrugada
de sexta-feira ou cedo na manhã de sábado, de causas que
eram obviamente naturais mas nunca precisamente
especificadas, e permanecera o fim de semana inteiro em
sua mesa olhando para o sem-fim à sua frente. O médico-
legista indicou parada cardíaca como a causa da morte,
mas William Stoner sempre teve a certeza de que, num
momento de raiva e desespero, Sloane quisera que seu
coração parasse, como que num último e mudo gesto de
amor e desprezo por um mundo que o traíra tão
profundamente que ele não conseguia mais suportá-lo.
No funeral Stoner ajudou a carregar o caixão. Durante o
ofício não conseguiu prestar atenção nas palavras do
pastor, mas sabia que eram vazias. Lembrou-se da primeira
vez que viu Sloane na sala de aula. Lembrou as primeiras
conversas com ele, e pensou no lento declínio daquele
homem que tinha sido um amigo distante. Mais tarde,
terminado o ofício, quando levantou o cabo do caixão cinza
para ajudar a carregá-lo para o lado de fora em direção ao
carro funerário, o peso lhe pareceu tão leve que não
conseguia acreditar que naquela caixa comprida e estreita
houvesse uma pessoa.
Sloane não tinha família. Apenas seus colegas e umas
poucas pessoas da cidade se reuniram em volta da vala
estreita e escutaram com assombro, embaraço e respeito as
palavras do clérigo. E porque ele não tinha família ou entes
queridos para ficar de luto pelo seu falecimento, foi Stoner
quem chorou quando baixaram o caixão, como se chorar
pudesse aliviar a desolação daquela última descida. Se ele
chorou por si mesmo, se pela parte de sua história e
juventude que ia para baixo da terra, ou se pela pobre
figura magra que uma vez conteve o homem que amara,
não sabia dizer.
Gordon Finch o levou em seu carro de volta para a cidade
e durante o caminho eles ficaram em silêncio. Então,
enquanto entravam na cidade, Gordon perguntou sobre
Edith. William disse alguma coisa e inquiriu sobre Caroline.
Gordon respondeu, e houve um longo silêncio. Pouco antes
de chegarem ao apartamento de William, Gordon Finch
tornou a falar.
“Eu não sei. Durante toda a cerimônia fiquei pensando
em Dave Masters. Sobre Dave morrendo na França, e sobre
o velho Sloane sentado lá em sua mesa, morto durante dois
dias, como se fossem os mesmos tipos de morte. Nunca
conheci Sloane muito bem, mas imagino que era um
homem bom, ao menos ouvi dizer que era. E agora tenho de
trazer alguma outra pessoa e encontrar um novo chefe para
o departamento. É como se tudo começasse de novo e
ficasse seguindo sempre igual. Faz você pensar.”
“Sim”, disse William e não falou mais nada. Mas por um
momento sentiu um grande carinho por Gordon Finch, e
quando desceu do carro e ficou olhando Gordon indo
embora, teve a pungente compreensão de que outra parte
dele mesmo, de seu passado, estava lentamente se
afastando dele, quase imperceptivelmente, desaparecendo
na escuridão.
•••
Além de sua função como diretor assistente, Gordon Finch
tornou-se chefe interino do departamento de Inglês, e seu
primeiro encargo foi o de encontrar um substituto para
Archer Sloane.
Já era julho quando a questão foi resolvida. Finch reuniu
os membros do departamento que tinham ficado em
Columbia no verão e anunciou a substituição. O escolhido,
Finch informou ao pequeno grupo, era Hollis N. Lomax, um
especialista no século XIX, que recentemente recebera seu
doutorado de Harvard mas que antes já havia lecionado por
vários anos numa pequena faculdade de disciplinas
humanísticas perto de Nova York. Ele vinha com excelentes
recomendações, já começara a publicar e estava sendo
contratado no nível de professor assistente. Não havia,
Finch enfatizou, nenhum plano no momento quanto à chefia
do departamento. Finch continuaria como chefe interino por
ao menos mais um ano.
Durante o resto do verão, Lomax permaneceu uma figura
misteriosa e objeto de especulação para os membros
permanentes do corpo docente. Os ensaios que ele
publicara em periódicos foram desencavados, lidos e
passados de mão em mão, ganhando uma prudente
aprovação. Lomax não apareceu na Semana de Recepção
dos Calouros, nem estava presente na reunião geral do
corpo docente na sexta-feira antes da matrícula dos alunos
na segunda-feira. E, durante a matrícula, os membros do
departamento, sentados em fila atrás das mesas compridas,
enquanto ajudavam entediados os alunos a escolher suas
disciplinas e os auxiliavam na rotina tediosa de preencher
formulários, ficavam olhando furtivamente à sua volta atrás
de um rosto novo. Lomax não apareceu.
Ninguém o viu até a reunião do departamento que
ocorreu no fim da tarde de terça-feira, depois que as
matrículas foram encerradas. A essa altura, entorpecidos
pela monotonia dos dois últimos dias, embora tomados pela
excitação que acompanha cada ano letivo, o corpo docente
do departamento de Inglês tinha quase esquecido de
Lomax. Estavam espalhados pelas carteiras de uma grande
sala de conferências na ala leste do Jesse Hall e olhavam
para cima com certa arrogância mas também agitação, na
direção da plataforma de onde Gordon Finch os
contemplava com vasta benevolência. Um murmúrio baixo
de vozes enchia a sala, cadeiras eram arrastadas no chão e,
de vez em quando, ouvia-se o som de uma gargalhada
estridente e forçada. Gordon Finch ergueu a mão direita
com a palma voltada para a sua plateia. O murmúrio
aquietou-se um pouco.
Aquietou-se o bastante para os presentes ouvirem o
rangido da porta que se abria no fundo da sala e um distinto
e lento arrastar de passos no piso de madeira. Eles se
voltaram, e o murmúrio de suas conversas cessou por
completo. Alguém sussurrou “é o Lomax” e o som foi
penetrante e audível em toda a sala.
Ele entrara pela porta, fechara-a por dentro e avançara
alguns passos, até chegar aonde agora estava parado. Era
um homem com pouco mais de um metro e meio de altura,
e seu corpo era grotescamente deformado. Uma pequena
corcunda despontava do seu ombro esquerdo juntando-se
ao pescoço, e seu braço esquerdo pendia solto ao lado. Seu
torso era pesado e encurvado, de modo que parecia estar
sempre se esforçando para se equilibrar. Suas pernas eram
finas, e ele andava puxando a perna direita, que era rígida.
Por vários momentos ficou com a cabeça loira inclinada para
baixo, como se estivesse inspecionando seus sapatos pretos
bem engraxados e o vinco nítido de suas calças. Então
ergueu a cabeça e estendeu o braço direito, expondo um
punho branco e engomado com botões de ouro. Havia um
cigarro em seus dedos longos e finos. Deu uma tragada
profunda e expeliu um fio de fumaça. Foi então que eles
conseguiram ver o seu rosto.
Parecia o rosto de um ídolo do cinema. Longo, magro e
expressivo, mas com traços fortes. Sua testa era alta e
estreita, sulcada por grandes veias, e seus cabelos cheios e
ondulados, da cor de trigo maduro, lançavam-se dela para
trás, num penteado um pouco teatral. Ele deixou cair o
cigarro no chão, esmagou-o sob a sola e falou.
“Sou o Lomax.” Fez uma pausa. Sua voz, sonora e
profunda, articulou as palavras com precisão, com uma
ressonância dramática. “Espero não ter interrompido a sua
reunião.”
A reunião prosseguiu, mas agora ninguém prestava
muita atenção nas palavras de Gordon Finch. Lomax sentou
sozinho no fundo da sala, fumando e olhando para o teto
alto, aparentemente ignorando as cabeças que se viravam
de vez em quando para olhar para ele. Após o fim da
reunião, permaneceu em sua cadeira e deixou seus colegas
virem até ele para se apresentarem e dizer o que tinham a
dizer. Ele cumprimentou cada um brevemente, com uma
cortesia que era estranhamente zombeteira.
Durante as semanas seguintes, ficou evidente que
Lomax não pretendia se encaixar na rotina social, cultural e
acadêmica de Columbia. Embora tivesse um jeito afável e
engraçado com seus colegas, nunca aceitava seus convites
sociais nem os retribuía. Nem sequer compareceu à
recepção anual na casa do diretor Claremont, embora o
evento fosse tão tradicional que o comparecimento era
quase obrigatório. Não foi visto em nenhum dos concertos
ou palestras da universidade, e diziam que suas aulas eram
animadas e que seu comportamento em sala de aula era
excêntrico. Era um professor popular, os estudantes se
aglomeravam em volta de sua mesa nas horas livres e o
seguiam pelos corredores. Todos sabiam que
ocasionalmente convidava grupos de estudantes para seus
aposentos, onde os entretinha com conversas e gravações
de quartetos de cordas.
William Stoner teria gostado de conhecê-lo melhor, mas
não sabia como. Falava com ele só quando tinha algo a
dizer e, ocasionalmente, o convidava para jantar. Quando
Lomax lhe respondia como fazia com todo mundo — com
uma ironia educada e impessoal —, recusando seus
convites, Stoner não conseguia pensar em mais nada para
fazer.
Passou algum tempo antes que Stoner reconhecesse a
origem de seu interesse em Hollis Lomax. Na arrogância, na
fala fluente e no sarcasmo de Lomax, Stoner via, distorcida
mas reconhecível, uma imagem de seu amigo David
Masters. Teria gostado de conversar com ele como fazia
com Dave. Mas, mesmo depois de ter admitido essa
vontade para si mesmo, não conseguia. O acanhamento de
sua juventude não o tinha abandonado, mas a raiva e a
franqueza que poderiam ter tomado possível a amizade
tinham. Sabia que o que queria era impossível, e essa
consciência o deixava triste.
À noite, após ter limpado o apartamento, lavado a louça
do jantar e posto Grace para dormir num berço instalado
num canto da sala de estar, Stoner trabalhava na revisão de
seu livro. Perto do fim do ano, o livro estava pronto e,
embora não estivesse inteiramente satisfeito, enviou-o para
uma editora. Para a sua surpresa, o ensaio foi aceito e sua
publicação foi agendada para o outono de 1925. Por conta
da iminente publicação, foi promovido a professor
assistente e lhe foi oferecido um contrato permanente.
A confirmação de sua promoção veio algumas semanas
depois de o livro ser aceito, e, satisfeita com essa
confirmação, Edith anunciou que ela e o bebê iriam passar
uma semana em St. Louis visitando seus pais.
Ela voltou para Columbia menos de uma semana depois,
arrasada mas triunfante. Encurtara sua visita porque sua
mãe não podia aguentar o estresse de tomar conta da
criança, e a viagem a cansara a tal ponto que ela também
não estava em condições de cuidar de Grace. Mas ela
conseguira alguma coisa. Tirou da bolsa um maço de papéis
e entregou uma pequena tira a William.
Era um cheque de seis mil dólares, em nome do senhor e
da senhora Stoner e firmado com a assinatura vigorosa e
quase ilegível de Horace Bostwick. “O que é isso?”,
perguntou Stoner.
Edith lhe entregou os outros papéis. “É um empréstimo”,
disse ela. “Você só precisa assinar. Eu já assinei.”
“Mas seis mil dólares! Para quê?”
“Uma casa”, respondeu Edith. “Uma casa de verdade
para nós.”
William Stoner olhou de novo para os papéis, folheou-os
rapidamente e disse: “Edith, não podemos. Sinto muito,
mas… veja, eu vou receber só mil e seiscentos no ano que
vem. As prestações serão de mais de sessenta dólares por
mês: isso é quase a metade do meu salário. E haverá taxas
e seguros e… simplesmente não vejo como poderiamos
fazer isso. Gostaria que você tivesse falado comigo antes”.
Edith ficou triste e virou as costas para ele. “Eu queria
fazer uma surpresa para você. É tão pouco o que eu posso
fazer. E eu podia fazer isso.”
Stoner respondeu que estava grato, mas Edith não se
consolou.
“Estava pensando em você e no bebê”, disse ela. “Você
poderia ter um escritório, e Grace, um jardim onde brincar.”
“Eu sei”, disse William. “Talvez daqui a alguns anos.”
“Daqui a alguns anos”, repetiu Edith. Houve um silêncio.
Então ela disse com tristeza: “Não posso viver desse jeito.
Não mais. Num apartamento. Aonde quer que eu vá, ouço a
sua voz e a do bebê, e sinto… o cheiro. Eu não suporto o
cheiro! Dia após dia, o cheiro das fraldas, e… eu não o
aguento, e não posso escapar dele. Você está entendendo
ou não?”
No fim, eles aceitaram o dinheiro. Stoner decidiu que
podia dar aulas durante os verões, renunciando ao tempo
que contara dedicar aos estudos e à escrita, pelo menos por
alguns anos.
Edith se encarregou de procurar a casa. Durante o fim da
primavera e o começo do verão, foi incansável em sua
busca, que pareceu produzir uma cura imediata para sua
doença. Assim que William voltava para casa de suas aulas,
ela saía e com frequência não voltava até anoitecer. Às
vezes ia a pé e outras vezes de carro com Caroline Finch,
com a qual formara uma amizade superficial. No fim de
junho ela achou a casa do seu agrado; assinou uma
promessa de compra e concordou em entrar no imóvel no
meio de agosto.
Era uma velha casa de dois andares a poucos quarteirões
do campus. Os proprietários a tinham deixado se deteriorar,
a tinta verde-escura estava descascando das tábuas e o
gramado estava marrom e infestado de mato. Mas o jardim
era grande e a casa espaçosa possuía uma grandiosidade
encardida que Edith conseguia imaginar renovada.
Pediu emprestados outros quinhentos dólares a seu pai
para a mobília, e no período entre as aulas de verão e o
começo do semestre de outono William repintou a casa.
Edith a queria branca, e ele teve de dar três demãos para
que o verde-escuro não aparecesse por baixo. De repente,
na primeira semana de setembro, Edith decidiu que queria
uma festa, ou, como ela a chamou, uma inauguração. Fez o
anúncio com certa resolução, como se fosse um novo
começo.
Eles convidaram todos os membros do departamento
que tinham voltado de suas férias de verão, bem como
alguns conhecidos de Edith que moravam na cidade. Hollis
Lomax surpreendeu todo mundo ao aceitar o convite, o
primeiro que aceitava desde a sua chegada a Columbia um
ano antes. Stoner achou um contrabandista de bebidas
alcoólicas e comprou várias garrafas de gim. Gordon Finch
prometeu trazer cerveja. E a tia de Edith, Emma, contribuiu
com duas garrafas de xerez para aqueles que não
quisessem bebidas fortes. Edith não gostava da ideia de
servir bebidas, já que, teoricamente, era ilegal. Mas Caroline
Finch garantiu que ninguém na universidade iria achar
realmente impróprio, e foi assim que conseguiu convencê-
la.
O outono veio mais cedo aquele ano. Uma neve fina caiu
no dia 10 de setembro, véspera das matrículas, e, durante a
noite, houve uma forte geada. Perto do fim da semana,
quando estava marcada a festa, o tempo frio amainara, de
modo que havia apenas uma friagem no ar, mas as árvores
estavam sem folhas, a grama estava começando a ficar
marrom e a paisagem nua pressagiava um inverno difícil. O
tempo frio lá fora, os choupos e olmos despidos que se
erguiam em seu jardim e o calor e os apetrechos arrumados
da festa iminente dentro de casa faziam William Stoner se
lembrar de outro dia. Ficou absorto por um tempo, tentando
focalizar algo que não conseguia lembrar. Então se deu
conta de que fora num dia assim, quase sete anos antes,
que ele fora à casa de Josiah Claremont e vira Edith pela
primeira vez. Tudo lhe pareceu muito distante, longe no
tempo. Não conseguia avaliar as mudanças que esses
poucos anos haviam trazido.
Por quase toda a semana que precedeu a festa, Edith se
perdeu no frenesi da preparação. Contratou uma
empregada negra por uma semana para ajudar nos
preparativos e para servir, e as duas esfregaram os pisos e
as paredes, enceraram a madeira, tiraram pó e limparam a
mobília, arrumaram e rearrumaram, de modo que na noite
da festa Edith se encontrava num estado próximo da
exaustão. Tinha olheiras e falava com a calma inatural que
prelude a histeria. Às seis da tarde — era para os
convidados chegarem às sete — fez a recontagem dos
copos e descobriu que não tinha o número suficiente.
Prorrompeu em lágrimas, correu lá para cima, soluçando
que não se importava com o que acontecesse e que ela não
iria descer mais. Stoner tentou reconfortá-la, mas ela não
respondia. Disse para ela não se preocupar, que ele iria
conseguir os copos. Disse à empregada que voltava logo e
saiu às pressas de casa. Por quase uma hora procurou uma
loja ainda aberta em que pudesse comprar copos. Quando a
encontrou, escolheu os copos e voltou para casa. Já eram
sete horas, e os primeiros convidados tinham chegado.
Edith estava entre eles na sala de estar, sorrindo e
conversando, como se não tivesse preocupações ou
apreensões. Cumprimentou William informalmente e disse a
ele que levasse o pacote para a cozinha.
A festa foi igual a muitas outras. As conversas
começaram desconexas, ganharam uma energia rápida mas
tênue e se esvaíram à toa em outras conversas. As risadas
vinham fácil e nervosamente, e irrompiam por toda a sala
como minúsculas descargas de artilharia, contínuas mas
não relacionadas, enquanto os convidados fluíam
casualmente de um lugar para outro, como que
discretamente ocupando posições estratégicas. Alguns
deles, guiados por Edith ou por William, perambulavam pela
casa como espiões, e comentavam sobre a superioridade de
casas antigas como aquela em comparação com as novas
estruturas mais frágeis que se erguiam aqui e ali nas
imediações da cidade.
Por volta das dez da noite, a maioria dos convidados
tinha enchido seus pratos com fatias de presunto e peru
frio, damasco em conserva e um acompanhamento variado
de tomatinhos minúsculos, talos de aipo, azeitonas, picles,
rabanetes e pequenos buquês de couve-flor. Alguns
estavam bêbados e não quiseram comer. Por volta das
onze, a maioria dos convidados já tinha ido embora; entre
os que ficaram, estavam Gordon e Caroline Finch, alguns
membros do departamento que Stoner conhecia havia
muitos anos e Hollis Lomax. Lomax estava bastante bêbado,
embora não ostensivamente. Andava com cuidado, como se
carregasse um fardo em terreno irregular, e sua fina face
pálida brilhava com uma película de suor. A bebida soltara
sua língua e, embora falasse com precisão, sua voz perdera
a ironia habitual, e ele parecia estar mais vulnerável.
Falou da solidão de sua infância em Ohio, onde seu pai
fora um pequeno empresário razoavelmente bem-sucedido.
Contou, como se fosse sobre outra pessoa, do isolamento a
que sua deformidade o forçara, e da vergonha que sentia
quando criança, para a qual não encontrava uma explicação
razoável nem uma defesa possível. E, quando contou dos
longos dias e das noites que tinha passado sozinho em seu
quarto, lendo para escapar das limitações que seu corpo
disforme lhe impunha e da gradual descoberta de uma
sensação de liberdade, que se tornava mais intensa à
medida que ele compreendia cada vez mais a verdadeira
natureza dela — quando ele contou isso, William Stoner
sentiu uma afinidade com ele que não suspeitara. Ele soube
que Lomax tinha passado por uma espécie de conversão,
uma epifania de conhecimento que as palavras conseguem
transmitir, mas que não pode ser posta em palavras, como
ocorrera com o próprio Stoner, na aula de Archer Sloane.
Lomax chegara a ela mais cedo, e sozinho, de modo que
essa consciência era mais uma parte dele do que uma parte
de Stoner, mas, afinal, e esse era o aspecto mais relevante,
os dois homens eram parecidos, embora nenhum deles
talvez desejasse admitir isso para o outro, ou até para si
mesmo.
Continuaram a conversar até quase quatro da
madrugada e, embora tenham bebido mais, a conversa foi
ficando cada vez mais tranquila e rarefeita, até por fim
ninguém dizer mais nada. Ficaram sentados juntos em meio
aos detritos da festa, como que numa ilha, chegados um ao
outro em busca de calor e conforto. Depois de algum tempo,
Gordon e Caroline Finch se levantaram e ofereceram uma
carona para Lomax. Lomax apertou a mão de Stoner,
perguntou sobre seu livro e lhe desejou sucesso. Depois, foi
até Edith, que estava sentada ereta numa cadeira, e lhe
estendeu a mão, agradecendo-lhe pela festa. Então, como
que por um tranquilo impulso, inclinou-se um pouco e roçou
seus lábios nos dela. A mão de Edith foi levemente até o
cabelo dele, e eles ficaram assim por vários momentos,
enquanto os outros olhavam. Foi o beijo mais casto que
Stoner já vira, e pareceu perfeitamente natural.
Stoner acompanhou seus convidados até a porta e
permaneceu ali por alguns instantes, observando-os descer
os degraus e caminhar para fora da luz da varanda. O ar frio
baixou em sua volta e ali ficou. Ele respirou fundo, e o frio
cortante o revigorou. Fechou a porta relutantemente e se
voltou. A sala estava vazia e Edith já tinha subido. Apagou
as luzes e achou o caminho até a escada através da sala
atulhada. A casa já estava ficando familiar para ele. Segurou
o corrimão, que não conseguia enxergar por causa da
escuridão, e se deixou guiar para o andar de cima. Quando
chegou em cima, achou logo o caminho, pois o corredor
estava iluminado pela luz que vinha da porta entreaberta do
quarto. Atravessou o corredor e foi até Edith, com as tábuas
rangendo sob seus pés.
As roupas dela estavam jogadas de qualquer jeito ao
lado da cama, cujas cobertas tinham sido afastadas para
trás descuidadamente. Ela estava deitada nua e
resplandecente sob a luz no lençol branco e engomado. Seu
corpo, que parecia relaxado e sensual em seu abandono nu,
brilhava como ouro pálido. William chegou mais perto da
cama. Ela estava dormindo profundamente, mas, por um
truque da luz, sua boca ligeiramente aberta parecia formar
palavras que tinham o som silencioso da paixão e do amor.
Ele ficou parado olhando para ela por um longo tempo.
Sentiu uma piedade distante, uma amizade relutante e um
respeito familiar, e sentiu também uma tristeza cansada,
pois sabia que a visão dela não poderia mais lhe trazer a
agonia de desejo que antes conhecera, e sabia que ele
nunca mais se veria comovido pela presença dela, como
ficava antes. A tristeza diminuiu, e ele a cobriu gentilmente,
apagou a luz e se deitou na cama ao seu lado.
Na manhã seguinte Edith estava doente e cansada, e
passou o dia no quarto. William limpou a casa e cuidou da
filha. Na segunda-feira encontrou Lomax e o cumprimentou
com um carinho que vinha da noite da festa. Lomax reagiu
com uma ironia que parecia uma raiva fria, e não falou da
festa naquele dia ou em qualquer outro depois. Era como se
ele tivesse descoberto um motivo de hostilidade que o
afastava irremediavelmente de Stoner.
•••
Como William receara, a casa logo provou-se um fardo
terrível do ponto de vista econômico. Embora administrasse
seu salário com muito cuidado, o fim do mês o encontrava
sempre sem fundos, e as economias que acumulara
lecionando no verão diminuíam cada vez mais. Já durante o
primeiro ano deixou de pagar duas prestações ao pai de
Edith e recebeu em troca uma gélida carta de repreensão
cheia de conselhos sobre os princípios do planejamento
financeiro.
Mesmo assim, começou a sentir certo prazer por ser
proprietário de uma casa e acostumou-se ao conforto
inesperado. Seu escritório ficava no primeiro andar, ao lado
da sala de estar, com uma grande janela que dava para o
norte. Durante o dia, o aposento era iluminado suavemente,
e o revestimento de madeira brilhava com a opulência da
idade. Encontrou no porão algumas tábuas que, por baixo
dos estragos da sujeira e do mofo, combinavam com o
revestimento do escritório. Deu um novo acabamento a
essas tábuas e construiu estantes, para poder ficar cercado
por seus livros. Numa loja de móveis usados, encontrou
algumas cadeiras dilapidadas, um sofá e uma escrivaninha
antiga, pelos quais pagou uns poucos dólares e os quais
passou muitas semanas consertando.
Enquanto trabalhava no escritório, que lentamente
começava a tomar forma, deu-se conta de que por muitos
anos, sem perceber, ele guardara em algum lugar dentro de
si uma imagem, como um segredo inconfessável. Uma
imagem que na realidade era de si mesmo. Era, portanto, a
si mesmo que estava tentando definir ao trabalhar em seu
escritório, enquanto lixava as tábuas velhas para suas
estantes e via a aspereza da superfície desaparecer, a
pátina cinza dar lugar à madeira essencial e finalmente a
uma rica pureza de veio e textura. Enquanto consertava sua
mobília e a arrumava no escritório, era a si mesmo que ele
estava lentamente dando forma, era em si mesmo que
estava pondo alguma espécie de ordem, era a si mesmo
que estava dando uma chance.
Assim, apesar das contínuas e recorrentes pressões da
dívida e das necessidades, os anos seguintes foram felizes,
e ele viveu do jeito que sonhara viver quando era um jovem
estudante de mestrado que tinha acabado de se casar. Edith
não participava de sua vida como ele outrora esperara. De
fato, parecia que eles haviam declarado uma longa trégua
que virara um ponto morto. Passavam a maior parte de suas
vidas separados; Edith mantinha a casa, que raramente
recebia visitas, em condições imaculadas. Quando não
estava varrendo ou tirando o pó ou lavando ou polindo, ela
ficava em seu quarto e parecia contente com isso. Nunca
entrava no escritório de William; era como se ele não
existisse para ela.
Ainda era William que quase sempre cuidava da filha. À
tarde, quando chegava em casa da universidade, buscava
Grace no quarto do andar de cima que ele arrumara para
ela e a deixava brincar em seu escritório enquanto
trabalhava. Ela brincava tranquila e contente no chão, feliz
de estar sozinha. De quando em quando, William falava com
ela, e ela o observava com um olhar solene e encantado.
Às vezes convidava seus estudantes para discutir
assuntos acadêmicos ou simplesmente para bater papo. Ele
fazia chá numa pequena chapa elétrica que mantinha ao
lado de sua escrivaninha, e sentia um embaraçado afeto por
eles quando se sentavam acanhados nas cadeiras,
comentavam sobre sua biblioteca e o elogiavam pela beleza
de sua filha. Stoner se desculpava pela ausência de sua
esposa, explicando que ela estava doente. Por fim, deu-se
conta de que aquelas desculpas repetidas não conseguiam
justificar a ausência dela e sim a enfatizavam. Não disse
mais nada e esperou que seu silêncio fosse menos
comprometedor do que suas explicações.
Exceto pela ausência de Edith, sua vida era quase como
ele queria que fosse. Quando não estava preparando aulas,
corrigindo trabalhos ou lendo teses, estudava e escrevia.
Tinha a esperança de que, com o tempo, pudesse
estabelecer para si mesmo uma boa reputação como
estudioso e como professor. Suas expectativas quanto ao
seu primeiro livro haviam sido cautelosas e modestas, e
acabaram sendo apropriadas: um resenhista o chamou de
“banal” e outro de “estudo competente”. A princípio ficara
muito orgulhoso. Segurava-o nas mãos e acariciava sua
capa simples e folheava as páginas. Parecia-lhe delicado e
vivo, como uma criança. Uma vez impresso, relera-o por
inteiro, levemente surpreso por não ser nem melhor nem
pior do que achara que seria. Depois de um tempo cansou
de olhar para ele, mas, cada vez que pensava no livro, e no
fato de que ele era o autor, ficava surpreso e incrédulo com
sua temeridade e com a responsabilidade que assumira.
Sete

Uma noite, na primavera de 1927, William Stoner chegou


tarde em casa. O perfume das flores que tinham acabado de
desabrochar espalhava-se pelo ar quente e úmido, e os
grilos cantavam na escuridão. Ao longe, um automóvel
solitário levantou poeira, desafiando a calmaria com um
barulho alto e descarado. Stoner caminhava devagar,
tomado pela sonolência da nova estação, embriagado com
os minúsculos brotos verdes que se destacavam brilhantes
na sombra de arbustos e árvores.
Quando entrou em casa, encontrou Edith no fundo da
sala com o telefone no ouvido e olhando para ele.
“Você chegou tarde”, disse ela.
“Sim”, disse ele afavelmente. “Tivemos exames orais.”
Ela lhe entregou o fone. “É para você, interurbano.
Alguém ficou tentando falar com você a tarde toda. Eu disse
a eles que você estava na universidade, mas continuaram a
ligar de hora em hora.”
William pegou o telefone e falou no bocal. Ninguém
respondeu. “Alô”, disse de novo.
Uma voz fina e estranha de um homem lhe respondeu.
“Você é Bill Stoner?”
“Sim. Quem é?”
“Você não me conhece. Eu estava passando, e sua mãe
me pediu para ligar. Tentei a tarde toda.”
“Sim”, disse Stoner. A mão que segurava o telefone
estava tremendo. “Qual é o problema?”
“É o seu pai”, disse a voz. “Eu não sei bem como
começar.”
Aquela voz, seca, lacônica e assustada, continuou, como
se não tivesse outra existência além daquela no fone que
William Stoner segurava no ouvido. Era algo sobre seu pai.
Fazia quase uma semana, prosseguiu a voz, que ele não se
sentia bem, mas, como seu ajudante sozinho não estava
conseguindo dar conta da aragem e da semeadura, ele,
mesmo com febre alta, saíra uma manhã cedo para lhe dar
uma mão. O homem o encontrara no meio da manhã, caído
com o rosto para baixo no campo arado, desmaiado.
Carregara-o para casa, colocara-o na cama e fora buscar um
médico, mas ao meio-dia ele já estava morto.
“Obrigado por me ligar”, disse Stoner mecanicamente.
“Diga à minha mãe que estarei aí amanhã.”
Colocou o fone de volta no gancho e ficou olhando por
um longo tempo para o bocal em forma de sino conectado
ao estreito cilindro preto. Depois se voltou e olhou para a
sala. Edith estava encarando-o ansiosa.
“E aí? O que foi?”, perguntou ela.
“Meu pai”, respondeu Stoner. “Ele morreu.”
“Oh, Willy!”, disse Edith. Depois assentiu. “Então você
provavelmente vai ficar fora o resto da semana.”
“Sim”, disse Stoner.
“Sendo assim, vou providenciar para que a tia Emma
venha me ajudar com Grace.”
“Sim”, disse Stoner mecanicamente. “Sim.”
Encontrou alguém para dar suas aulas durante o resto da
semana e, cedo na manhã seguinte, pegou o ônibus para
Booneville. A estrada de Columbia a Kansas City, que
passava por Booneville, era a mesma em que viajara 17
anos antes, quando viera para a universidade. Agora estava
alargada e pavimentada, e cercas retas delimitavam
campos de trigo e milho que passavam rapidamente do lado
de fora da janela do ônibus.
Booneville mudara pouco durante os anos em que não a
vira. Algumas edificações novas tinham sido construídas,
algumas velhas derrubadas, mas a vila mantinha seu
aspecto pobre e precário, como se fosse uma instalação
provisória que poderia ser desmantelada a qualquer
instante. Embora a maior parte das ruas tivesse sido
pavimentada nos últimos anos, um véu de poeira pairava no
ar, e ainda circulavam algumas carroças puxadas por
cavalos com rodas revestidas de aço que soltavam fagulhas
quando raspavam no pavimento de concreto da rua.
A casa tampouco mudara significativamente. Talvez
estivesse mais seca e cinza do que fora. Nem uma mancha
sequer de pintura sobrava nas tábuas, e a madeira sem
pintura da varanda cedera para um pouco mais perto da
terra nua.
Havia algumas pessoas na casa, vizinhos, de quem
Stoner não se lembrava: um homem alto e magro com um
terno preto, camisa branca e gravata de fita estava curvado
sobre a sua mãe, sentada numa cadeira ao lado da estreita
caixa de madeira que continha o corpo de seu pai. Stoner
atravessou a sala. O homem alto o viu e veio encontrá-lo.
Os olhos dele eram cinza e lisos como pedaços de terracota
esmaltada. Uma profunda e melíflua voz de barítono,
espessa e quieta, emitiu algumas palavras. O homem
chamou Stoner de “irmão” e falou de “perda”, e “Deus, que
o levou embora”, e queria saber se Stoner gostaria de orar
com ele. Stoner afastou o homem e parou diante de sua
mãe. O rosto dela oscilou na sua frente. Com a visão
embaçada, ele a viu acenando e levantando da cadeira. Ela
pegou o seu braço e disse: “Você vai querer ver o seu pai”.
Com um toque que era tão frágil que ele mal conseguia
senti-lo, ela o levou para junto do caixão aberto. Stoner
olhou para dentro dele. Continuou olhando até seus olhos se
desanuviarem, então recuou chocado. O corpo que estava
diante dele parecia o de um estranho: era encolhido e
pequeno, e seu rosto era como uma fina máscara de papel
pardo, com sulcos pretos e fundos no lugar dos olhos. O
terno azul-escuro que envolvia o corpo era grotescamente
grande, as mãos que despontavam das mangas e jaziam no
peito pareciam as garras ressecadas de um animal. Stoner
se voltou para sua mãe e soube que o horror que ele sentia
era evidente em seus olhos.
“Seu pai perdeu muito peso nas últimas duas semanas”,
disse ela. “Eu pedi para ele não ir para o campo, mas ele
levantou antes de eu acordar. Tinha perdido a cabeça. Ele
estava tão doente que tinha perdido a cabeça e não sabia o
que estava fazendo. O médico disse que devia estar, ou não
teria feito algo desse tipo.”
Enquanto ela falava, Stoner a observou: era como se ela
também tivesse morrido, como se uma parte dela tivesse
ido irrecuperavelmente para aquela caixa com o seu
marido, e nunca mais reemergiria. Agora ele a via bem: seu
rosto estava magro e encolhido. Mesmo em repouso, estava
tão repuxado que dava para notar as pontas dos dentes
embaixo de seus lábios finos. Ela andava como se não
tivesse peso nem força. Stoner murmurou uma palavra e
saiu da sala. Depois, foi até o quarto onde crescera e ficou
imóvel naquela desolação. Seus olhos estavam quentes e
secos, e ele não conseguia chorar.
Tomou as providências necessárias para o funeral e
assinou os papéis que precisavam ser assinados. Como toda
gente do campo, seus pais tinham seguro para enterro, para
o qual durante a maior parte de suas vidas haviam poupado
alguns centavos toda semana, mesmo nas épocas de mais
desesperada necessidade. Havia algo de piedoso nas
apólices que sua mãe tirou de um velho baú em seu quarto:
o dourado das letras elaboradas estava começando a
descascar, e o papel barato estava quebradiço devido ao
tempo. Conversou com sua mãe sobre o futuro. Queria que
ela voltasse para Columbia com ele. Havia espaço de sobra,
ele disse, e — sentiu uma pontada com a mentira — Edith
iria ficar feliz em acolhê-la.
Mas sua mãe não tinha intenção de ir com ele. “Eu não
acharia certo”, disse ela. “Seu pai e eu… Eu vivi aqui quase
toda a minha vida. Eu simplesmente não acho que possa
morar em outro lugar e achar isso certo. Além disso, o
Tobe…” Stoner lembrou que Tobe era o ajudante negro que
seu pai contratara muitos anos antes. "… Tobe disse que vai
ficar por todo o tempo que eu precisar dele. Agora ele tem
um bom quarto no porão. Ficaremos bem.”
Stoner insistiu muito, mas ela não mudou de ideia. Por
fim, ele percebeu que ela queria apenas morrer, e queria
que fosse onde ela vivera, e sabia que ela merecia a
dignidade que podia encontrar realizando seu pequeno
desejo.
Eles enterraram seu pai num pequeno cemitério nas
imediações de Booneville, e William voltou para a fazenda
com a sua mãe. Naquela noite não conseguiu dormir. Vestiu-
se e foi até o campo em que seu pai trabalhara ano após
ano até ali encontrar seu fim. Tentou se lembrar de seu pai,
mas o rosto que conhecera em sua juventude não lhe vinha.
Ajoelhou-se no campo e pegou um torrão seco de terra na
mão. Esmagou-o e observou os grãos, escuros sob o luar,
desmilinguindo-se e escorrendo entre seus dedos. Limpou a
mão na perna da calça, levantou-se e voltou para a casa.
Não dormiu. Deitou na cama e ficou olhando pela única
janela até a aurora chegar, até não haver sombras sobre a
terra, até ela se estender cinza, estéril e infinita à sua
frente.
Após a morte de seu pai, Stoner voltava à fazenda nos
fins de semana o mais frequentemente que podia. E, a cada
vez que observava sua mãe, ele a via ficando mais magra,
mais pálida e mais lenta, até por fim parecer que só seus
olhos fundos e brilhantes estavam vivos. Durante seus
últimos dias ela nem sequer falou com ele. Seus olhos
tremulavam tenuemente quando ela olhava para ele de sua
cama e, ocasionalmente, um pequeno suspiro vinha de seus
lábios.
Enterrou-a ao lado do marido. Depois de a cerimônia
terminar e os poucos presentes terem ido embora, ficou
parado sozinho no vento frio de novembro e olhou para os
dois túmulos: um aberto para receber o seu fardo, e o outro
fechado e coberto por uma fina penugem de relva. Do
pequeno cemitério despojado e sem árvores, que abrigava
outros como sua mãe e seu pai, perscrutou o horizonte na
direção da fazenda onde nascera e onde seus pais tinham
passado suas vidas. Pensou nos sacrifícios que aquele solo,
ano após ano, exigira deles e no fato de que ele permanecia
como sempre tinha sido, um pouco mais árido, talvez, um
pouco mais infrutífero. Nada mudara. Suas vidas tinham
sido consumidas numa faina sem alegria; suas vontades,
quebradas; suas inteligências, entorpecidas. Agora eles
estavam na terra para a qual tinham dado as suas vidas, e
lentamente, ano após ano, a terra os tomaria. Lentamente,
a umidade e a podridão infestariam as caixas de pinho que
continham seus corpos, e lentamente tocariam sua carne, e
por fim consumiríam os últimos vestígios de suas
substâncias. Enfim, eles se tornariam uma parte
insignificante daquela terra teimosa à qual se haviam
entregado muito tempo atrás.
Ele deixou Tobe ficar na fazenda durante o inverno. Na
primavera de 1928, pôs a fazenda à venda. O acordo era
que Tobe ficaria na fazenda até ser vendida, e o que quer
que nela produzisse pertencería a ele. Tobe arrumou o lugar
o melhor que pôde, consertando a casa e repintando o
pequeno celeiro. Mesmo assim, foi só na primavera de 1929
que Stoner encontrou um comprador viável. Ele aceitou a
primeira oferta que recebeu, de pouco mais de dois mil
dólares. Deu a Tobe algumas centenas de dólares e, no fim
de agosto, enviou o restante para seu sogro, para reduzir a
quantia devida pela casa em Columbia.
•••
Em outubro daquele ano, o mercado de ações entrou em
colapso, e os jornais locais publicaram matérias sobre Wall
Street, sobre fortunas destruídas e vidas grandiosas
arruinadas. Poucas pessoas em Columbia foram afetadas:
era uma comunidade conservadora, e quase nenhum dos
habitantes tinha investido em ações ou títulos. Mas
começaram a chegar notícias de falências de bancos país
afora, e a incerteza começou a se espalhar pela cidade. Uns
poucos fazendeiros retiraram suas economias, e uns tantos
(cedendo à insistência dos banqueiros locais) aumentaram
seus depósitos. Mas ninguém ficou realmente apreensivo
até chegar o rumor da falência de um pequeno banco
particular, o Merchant’s Trust, em St. Louis.
Stoner estava almoçando no refeitório da universidade
quando a notícia chegou, e ele imediatamente foi para casa
contar para Edith. O Merchant’s Trust era o banco que
detinha a hipoteca sobre a casa deles, e o banco do qual o
pai de Edith era presidente. Edith ligou para St. Louis
naquela tarde e falou com sua mãe. Ela estava toda
animada e disse a Edith que o senhor Bostwick lhe garantira
que não havia nada com que se preocupar, que tudo estaria
bem em algumas semanas.
Três dias depois disso, Horace Bostwick estava morto, um
suicídio. Ele foi para o seu escritório no banco de manhã,
com um humor estranhamente jovial. Cumprimentou vários
dos funcionários que ainda trabalhavam atrás das portas
fechadas do banco, foi para a sua sala depois de dizer para
sua secretária que não atendería nenhuma ligação e
trancou a porta. Por volta das dez da manhã, ele atirou na
cabeça com um revólver que comprara no dia anterior e
trouxera em sua pasta. Não deixou nenhum bilhete, mas os
papéis meticulosamente arrumados em sua mesa diziam
tudo o que ele tinha para dizer. E a mensagem era: falência.
Como seu pai bostoniano, tinha investido imprudentemente,
não só o seu próprio dinheiro, mas também o do banco, e a
falência era tão completa que ele não conseguiu imaginar
alívio nenhum. Em seguida, descobriu-se que a situação não
era tão catastrófica como ele achava no momento de seu
suicídio. Depois que o inventário foi encerrado, a casa da
família restou intacta, e alguns imóveis de menor
importância nas imediações de St. Louis eram o suficiente
para fornecer à sua esposa uma pequena renda pelo resto
de sua vida.
Mas isso não se soube imediatamente. William Stoner
recebeu a ligação telefônica que o informou da falência e do
suicídio de Horace Bostwick, e ele deu a notícia a Edith da
forma mais delicada que sua relação fria com ela lhe
permitiría. Edith recebeu a notícia calmamente, quase como
se a estivesse esperando. Olhou para Stoner por um longo
instante sem falar. Depois, balançou a cabeça e disse de
forma ausente: “Coitada da minha mãe. O que ela vai fazer?
Sempre houve alguém para cuidar dela. Como ela vai
viver?”
Stoner disse: “Diga a ela…”, ele fez uma pausa
embaraçado, “… diga a ela que, se quiser, pode vir morar
com a gente. Será bem-vinda”.
Edith sorriu para ele com uma curiosa mistura de afeição
e desprezo. “Oh, Willy. Ela preferiria morrer a fazer isso.
Você não sabe disso?”
Stoner assentiu. “Suponho que sim”, disse.
Assim, na noite do dia em que Stoner recebeu a ligação,
Edith partiu de Columbia para St. Louis para o funeral e para
ficar o tempo que fosse necessário. Uma semana depois de
sua partida, Stoner recebeu um recado informando que ela
iria ficar com sua mãe por mais duas semanas, talvez mais.
Acabou ficando fora por quase dois meses, e William ficou
sozinho na grande casa com a sua filha.
Nos primeiros dias, o vazio da casa foi estranho e
inesperadamente inquietante. Mas depois ele se acostumou
e começou a gostar. Em uma semana, soube que estava tão
feliz quanto nunca fora durante anos, e quando pensava na
inevitável volta de Edith, sentia um calmo incômodo que
não precisava mais esconder de si mesmo.
Na primavera daquele ano, Grace completara 6 anos e,
naquele outono, começara o seu primeiro ano de escola.
Todas as manhãs Stoner a aprontava para a escola e estava
de volta da universidade à tarde, a tempo de recebê-la
quando ela chegava em casa.
Com 6 anos, Grace era uma criança alta e esbelta, com
cabelos que eram mais loiros do que ruivos. Sua pele era
perfeitamente clara, e seus olhos de um azul-escuro, quase
um violeta. Era tranquila e alegre e, quando ria, despertava
em Stoner um sentimento que era como uma reverência
nostálgica.
Às vezes Grace brincava com as crianças dos vizinhos,
porém mais frequentemente ficava com o pai em seu
grande escritório e o observava enquanto ele corrigia
trabalhos ou lia ou escrevia. De vez em quando, ela o
chamava e eles começavam a conversar com tamanha
tranquilidade e seriedade que William Stoner sentia uma
ternura inesperada. Grace fazia desenhos desajeitados e
encantadores em folhas de papel amarelo e os apresentava
solenemente ao pai, ou lia alto para ele de sua cartilha do
primeiro ano. De noite, quando a punha na cama e voltava
para seu escritório, Stoner sentia a ausência dela, mas
saber que ela estava dormindo em segurança acima dele o
confortava. Quase sem perceber, começou a educá-la,
observando-a com admiração e amor enquanto ela crescia
debaixo dos seus olhos, mostrando em seu rosto os sinais
da inteligência.
Edith não voltou para Columbia até o primeiro dia do ano
seguinte e, assim, William Stoner e sua filha passaram o
Natal sozinhos. Na manhã do Natal trocaram presentes.
Para seu pai, que não fumava, Grace deu um tosco cinzeiro
que tinha moldado na escola progressista vinculada à
universidade. William deu a ela um vestido que escolhera
pessoalmente numa loja do centro, vários livros e um estojo
de lápis de cor. Ficaram sentados a maior parte do dia em
frente à pequena árvore, conversaram e contemplaram as
luzes piscando nos enfeites e o ouropel cintilando em meio
ao pinheiro verde-escuro como fogo oculto.
Durante os feriados de Natal, aquela curiosa pausa de
suspensão no meio do frenesi do semestre, William Stoner
começou a perceber duas coisas: começou a saber quão
essencialmente importante Grace tornara-se para a sua
existência, e começou a compreender que talvez fosse
possível para ele se tornar um bom professor.
Estava pronto para admitir a si mesmo que não tinha
sido um bom professor. Sempre, desde o tempo em que se
atabalhoara com suas primeiras aulas de Inglês para o
primeiro ano, tivera consciência do abismo que havia entre
o que sentia pela sua matéria e o que conseguia comunicar
em sala de aula. Esperara que o tempo e a experiência
preenchessem tal abismo, mas isso não aconteceu. Os
assuntos que ele mais profundamente conhecia eram os
mais profundamente traídos quando falava deles para suas
classes. O que antes pulsava com vida fenecia logo nas
palavras, e o que mais o comovia ficava frio assim que o
pronunciava. E a percepção de sua inadequação o
preocupava tanto que esse sentimento fez-se constante,
tornando-se parte dele como o encurvamento de seus
ombros.
Mas, ao longo das semanas em que Edith estava em St.
Louis, de quando em quando, durante as aulas, descobria-se
tão imerso em seu assunto que não só se esquecia da sua
inadequação, mas também de si mesmo, e até dos alunos
na frente dele. Às vezes ficava tão tomado por seu
entusiasmo que gaguejava, gesticulava e ignorava as
anotações que usualmente guiavam suas aulas. A princípio,
ficou incomodado por seus rompantes, como se estivesse
comportando-se com excessiva familiaridade com a sua
matéria, e pedia desculpas a seus alunos, mas, quando eles
começaram a procurá-lo depois da aula, e seus trabalhos
escritos começaram a mostrar sinais de imaginação e de
crescente entusiasmo, sentiu-se encorajado a fazer o que
nunca lhe fora ensinado. O amor pela literatura, pela língua,
pelo mistério da mente e do coração mostrando-se nas
pequenas, estranhas e inesperadas combinações de letras e
palavras, nos caracteres negros e frios impressos sobre o
papel, e aquele amor que escondera como se fosse ilícito e
perigoso começou a expressar-se, hesitantemente a
princípio, depois ousadamente, e por fim orgulhosamente.
Ficou ao mesmo tempo entristecido e encorajado pela
sua descoberta do que era capaz de fazer. Sentia que,
mesmo sem querer, estava enganando tanto seus alunos
quanto a si mesmo. Os estudantes que tinham conseguido
sobreviver à monotonia de suas aulas sempre iguais
começaram a olhá-lo com perplexidade e ressentimento;
aqueles que não se haviam matriculado em suas disciplinas
começaram a vir a suas aulas e a cumprimentá-lo nos
corredores. Stoner falava com mais confiança e sentiu uma
severidade dura e calorosa crescer dentro dele. Teve a
impressão de que estava começando, com dez anos de
atraso, a descobrir quem era, e a pessoa que via era ao
mesmo tempo mais parecida e mais diferente do que
imaginara. Sentia que finalmente começava a ser um
professor de verdade, ou seja, simplesmente um homem
que comunica o próprio saber, e cuja profissão o infunde de
uma dignidade que não tem nada a ver com a insensatez,
as fraquezas e os limites de sua vida privada. Era um
conhecimento que não conseguia expressar, mas que o
transformou assim que o adquiriu, de uma tal forma que
ninguém poderia deixar de perceber.
Assim, quando Edith voltou de St. Louis, encontrou-o
mudado de um jeito que não conseguia compreender mas
do qual, no mesmo instante, tomou consciência. Ela voltou
sem avisar num trem à tarde e atravessou a sala de estar,
entrando no escritório onde seu marido e sua filha estavam
sentados, sossegados e serenos. Era a sua intenção chocá-
los tanto por sua súbita presença quanto por sua aparência
mudada, mas, quando William levantou os olhos, Edith,
vendo a surpresa no olhar dele, soube no mesmo momento
que a verdadeira mudança acontecera nele, e era tão
profunda que o efeito de sua aparição perdería qualquer
importância, e ela pensou consigo mesma, com um pouco
de indiferença, embora com alguma surpresa: “Eu o
conheço melhor do que jamais teria pensado”.
William ficou surpreso com sua presença e sua aparência
diferente, mas nem uma nem outra o perturbavam agora
como poderiam outrora tê-lo perturbado. Ele a olhou por
vários momentos e então se levantou de sua escrivaninha,
atravessou o escritório e a cumprimentou com uma
expressão séria.
Edith tinha feito permanente no cabelo e usava um
chapéu que era tão apertado em volta de sua cabeça que o
cabelo encaracolado ficava junto a seu rosto como uma
moldura irregular. Seus lábios estavam pintados com um
brilhante laranja-avermelhado, e duas manchinhas de rouge
acentuavam seus malares. Usava um desses vestidos curtos
que tinham entrado em moda entre as mulheres mais
jovens nos últimos anos. Ele descia reto de seus ombros e
acabava pouco acima de seus joelhos. Ela sorriu
constrangida para seu marido e atravessou o aposento até
sua filha, que, sentada no chão, observava-a silenciosa e
atenta. Ajoelhou-se desajeitadamente, seu vestido novo e
justo em volta de suas pernas.
“Grace, querida”, disse ela numa voz que soou para
William forçada e frágil, “você sentiu saudades da sua
mamãe? Você achou que ela nunca mais ia voltar?”.
Grace beijou sua mãe no rosto e a olhou solenemente.
“Você está diferente”, disse ela.
Edith riu e se levantou do chão. Depois rodopiou pelo
escritório, com as mãos acima da cabeça. “Estou com um
vestido novo e sapatos novos e um penteado novo. Você
gostou?”
Grace assentiu hesitante. “Você está diferente”, repetiu a
menina.
O sorriso de Edith se ampliou. Havia uma mancha pálida
de batom em um de seus dentes. Ela se voltou para William
e perguntou: “Eu estou diferente?”
“Sim”, respondeu William. “Muito charmosa. Muito
bonita.”
Ela riu dele e balançou a cabeça. “Pobre Willy”, disse.
Então voltou-se de novo para a sua filha.
“Estou diferente, eu acho”, disse. “Eu realmente acho
que estou.”
Mas William Stoner entendeu que aquelas palavras eram
dirigidas a ele. E naquele momento, de algum modo, soube
também que, sem intenção, sem nem mesmo estar
consciente disso, Edith tentava lhe anunciar uma nova
declaração de guerra.
Oito

A declaração era parte daquela mudança pela qual Edith


começara a passar durante as semanas que ficara em
“casa” em St. Louis após a morte de seu pai, e foi
amplificada, até se tornar extrema e brutal, por aquela de
Stoner, que se iniciara e lentamente crescera nele após ter
descoberto que poderia se tornar um bom professor.
No funeral de seu pai, Edith se mostrara estranhamente
impassível. Durante a elaborada cerimônia ficara sentada
com as costas retas e com uma expressão dura, que não se
alterou nem quando teve de se aproximar do corpo de seu
pai, resplandecente e roliço, no caixão ornamentado. Mas
no cemitério, quando baixaram o caixão na estreita cova
disfarçada por tapetes de grama artificial, ela escondera seu
rosto sem expressão com as mãos e não voltara a mostrá-lo
até alguém tocar em seu ombro.
Após o funeral, passou vários dias em seu antigo quarto,
o quarto onde crescera. Via sua mãe apenas no café da
manhã e no jantar. As visitas pensavam que ela se isolara
em luto. “Eles eram muito próximos”, disse a mãe de Edith
misteriosamente. “Muito mais próximos do que pareciam.”
Mas naquele quarto Edith andava como que pela
primeira vez, em plena liberdade, tocando as paredes e as
janelas, testando a sua solidez. Ela fez com que um baú
cheio de pertences de sua infância fosse trazido do sótão.
Vasculhou todas as suas gavetas, que tinham ficado
intocadas por mais de uma década. Perdida em suas
fantasias e completamente relaxada, como se ela tivesse
todo o tempo do mundo, examinou suas coisas, acariciando-
as, virando-as de um lado e de outro, inspecionando-as com
um cuidado quase ritual. Quando encontrou uma carta que
recebera quando criança, leu-a inteira do começo ao fim
como se fosse pela primeira vez. Quando deparou com uma
boneca esquecida, sorriu para ela e acariciou a porcelana de
sua bochecha como se fosse de novo uma criança que
tivesse ganhado um presente.
Por fim, arrumou meticulosamente todos os pertences de
sua infância em duas pilhas. A primeira consistia em
brinquedos e quinquilharias que comprara para si mesma,
de fotografias e cartas secretas de colegas de escola e de
presentes que outrora recebera de parentes distantes. Na
segunda pilha havia as coisas que seu pai dera a ela ou com
as quais ele estivera direta ou indiretamente conectado. Foi
nessa pilha que concentrou sua atenção. Metodicamente,
inexpressivamente, sem raiva ou alegria, pegou os objetos
nela, um a um, e os destruiu. As cartas e roupas, o
enchimento das bonecas, as almofadas de alfinetes e fotos,
ela queimou na lareira; as cabeças de cerâmica e porcelana,
as mãos, os braços e pés das bonecas, ela esmigalhou
atirando-os ao chão, e o que restou da queima e do
esmigalhamento ela varreu num pequeno monte, jogou no
vaso do banheiro adjacente a seu quarto e puxou a
descarga.
Quando o serviço estava feito, o quarto aerado da
fumaça, a lareira varrida, os poucos pertences restantes
devolvidos às gavetas, Edith Bostwick Stoner se sentou à
sua pequena penteadeira e se olhou no espelho, cujo
revestimento de prata estava ficando ralo e desbeiçando,
de modo que aqui e ali sua imagem era refletida
imperfeitamente, ou não refletida de modo nenhum, dando
a seu rosto uma aparência curiosamente incompleta. Ela
estava com 30 anos. O brilho juvenil começava a se perder
em seu cabelo, rugas minúsculas eram visíveis em volta de
seus olhos, e a pele de seu rosto começava a se esticar em
volta de seus inalares proeminentes. Ela assentiu para a
imagem no espelho, levantou-se bruscamente e desceu
para o andar de baixo, onde, pela primeira vez em dias,
conversou alegremente e num tom quase íntimo com sua
mãe.
Ela queria — disse — mudar um pouco. Estava cansada
de ser como era. Falou de sua infância, de seu casamento.
E, inspirando-se em modelos que podia descrever só de
uma forma vaga e incerta, fixou-se em uma imagem que
desejava criar; e, por quase todos os dois meses que ficou
em St. Louis com sua mãe, dedicou-se a essa criação.
Pediu emprestada uma quantia de dinheiro à sua mãe,
que, tomada pelo entusiasmo, deu-a de presente. Renovou
completamente o seu guarda-roupa, queimando todas as
roupas que trouxera consigo de Columbia. Cortou curto o
cabelo e o penteou de acordo com a moda. Comprou
cosméticos e perfumes, que experimentava cotidianamente
em seu quarto. Aprendeu a fumar e cultivou um novo jeito
de falar, que era ríspido, vagamente britânico e um pouco
estridente. Ela voltou para Columbia com essa metamorfose
exterior que agora já dominava perfeitamente, e com outra
metamorfose secreta e potencial, ainda escondida dentro
de si.
Durante os primeiros meses depois de sua volta para
Columbia, ela entrou num frenesi de atividades. Não lhe
parecia mais necessário fingir que estava doente ou fraca.
Entrou num pequeno grupo de teatro, dedicando-se de
corpo e alma ao trabalho que lhe deram: concebeu e pintou
cenários, levantou dinheiro para o grupo e até teve
pequenos papéis nas produções. Quando Stoner chegava
em casa à tarde, encontrava a sala de estar cheia de
amigos dela, desconhecidos que o olhavam como se fosse
um intruso e que ele cumprimentava polidamente antes de
se retirar para seu escritório, onde podia ouvir as vozes,
abafadas e declamatórias, através das paredes.
Edith comprou um piano de armário usado e o instalou
na sala, junto à parede que a separava do escritório de
William. Ela abandonara a prática da música pouco antes de
casar, e agora começava de novo quase do começo,
praticando escalas, enfrentando exercícios que eram difíceis
demais para ela, tocando às vezes duas ou três horas por
dia, com frequência à noite, depois que Grace ia dormir.
Enquanto isso, os grupos de estudantes que Stoner
convidava a seu escritório para conversar cresceram e as
reuniões se tornaram mais frequentes. Mas Edith não se
contentava mais em permanecer no andar de cima, à parte.
Insistia em lhes servir chá ou café e, ao fazê-lo, sentava-se
também na sala. Falava alto e num tom alegre, dando um
jeito de direcionar a conversa para o seu trabalho no
pequeno teatro, ou sua música, ou suas pinturas e
esculturas, as quais — ela anunciou — planejava retomar,
assim que tivesse tempo. Os estudantes, confusos e
constrangidos, gradualmente pararam de vir, e Stoner
começou a encontrá-los na cafeteria da universidade ou
num dos pequenos cafés espalhados em volta do campus.
Ele não conversou com Edith sobre o seu novo
comportamento. Suas atividades lhe causavam apenas
aborrecimentos menores, e ela parecia feliz, embora talvez
de um jeito um pouco desesperado. No fundo, ele se sentia
responsável pela nova direção que a vida dela tomara: não
tinha sido capaz de ajudá-la a descobrir um sentido em sua
vida juntos, em seu casamento. Por isso, achava certo que
ela o buscasse em áreas que não tinham nada a ver com ele
e seguisse caminhos que ele não poderia seguir.
Encorajado pelo seu novo sucesso como professor e por
sua crescente popularidade entre os melhores estudantes,
começou um novo livro no verão de 1930. Agora passava
quase todo o tempo livre em seu escritório. Ele e Edith
mantiveram entre si a aparência de dividir o mesmo quarto,
onde ele raramente entrava, e nunca à noite. Dormia no
sofá de seu escritório e até guardava suas roupas num
pequeno armário que construíra num canto do aposento.
No entanto, gostava de ficar com Grace. Como se tornara
seu hábito durante a primeira longa ausência da mãe, a
menina passava boa parte do tempo no escritório com o
pai. Stoner até arrumou uma mesinha e uma cadeirinha
para que ela tivesse um lugar para ler e fazer a lição de
casa. Na maioria das vezes, faziam as refeições sozinhos:
Edith ficava fora de casa a maior parte do tempo e, quando
não estava fora, com frequência entretinha seus amigos do
teatro com festinhas que não admitiam a presença de uma
criança.
Depois, de repente, Edith parou de sair. Os três
começaram a fazer as refeições juntos novamente, e Edith
de vez em quando até cuidava da casa. A casa ficou
silenciosa. Até o piano não era mais utilizado, e a poeira
começou a se acumular no teclado.
Tinham chegado a um ponto em que raramente falavam
de si mesmos ou um do outro, para evitar que o delicado
equilíbrio que tornava possível a convivência se rompesse.
Assim, foi só após uma longa hesitação e uma análise
minuciosa das possíveis consequências que enfim Stoner
resolveu lhe perguntar se havia algo de errado.
Eles estavam na mesa de jantar. Grace recebera licença
para se levantar e ir ao escritório de Stoner.
“O que você quer dizer?”, perguntou Edith.
“Seus amigos”, disse William. “Faz algum tempo que não
aparecem, e você não parece mais tão envolvida com o
trabalho no teatro. Estava apenas me perguntando se
haveria algo de errado.”
Com um gesto quase masculino, Edith puxou um cigarro
do maço ao lado do prato, colocou-o entre os lábios e o
acendeu com a brasa do outro que fumara pela metade.
Tragou profundamente sem tirar o cigarro dos lábios,
inclinou a cabeça para trás e olhou para William franzindo
os olhos, em uma atitude desafiadora.
“Não há nada de errado”, disse ela. “Foi só que enjoei
deles e do trabalho. Sempre precisa haver algo de errado?”
“Não”, respondeu William. “Eu só achei que talvez você
não estivesse se sentindo bem ou algo assim.”
Ele esqueceu a conversa e pouco depois saiu da mesa e
foi para o escritório, onde Grace estava sentada à sua
mesa, imersa em seu livro. A luz da mesa se refletia em seu
cabelo e dava a seu rostinho sério uma silhueta nítida.
William pensou quanto ela crescera no ano anterior; e uma
pequena e não desagradável tristeza embargou brevemente
sua garganta. Ele sorriu e foi em silêncio para a sua mesa.
Em poucos momentos, estava imerso em seu trabalho.
Na noite anterior, terminara todas as incumbências ligadas
às aulas, corrigira e dera notas a todas as provas, e
preparara as lições para a semana seguinte. Tinha a noite
toda, e várias noites a mais, nas quais estaria livre para
trabalhar em seu livro. O que desejava com esse novo livro,
ele ainda não sabia com precisão; de modo geral, queria
ampliar seu primeiro estudo, tanto no tempo quanto na
abrangência. Queria trabalhar no período da Renascença
Inglesa e estender seu estudo acerca das influências do
latim clássico e medieval para essa área. Estava na fase do
planejamento do trabalho, aquela que lhe dava mais prazer:
a escolha entre abordagens alternativas, a rejeição de
certas estratégias, os mistérios e incertezas que havia em
possibilidades inexploradas, as consequências da escolha…
As possibilidades à sua frente o entusiasmavam tanto que
não conseguia ficar parado. Levantou-se da mesa,
caminhou um pouco e, numa espécie de alegria controlada,
falou com sua filha, que ergueu os olhos de seu livro e lhe
respondeu.
Grace capturou o estado de espírito do pai, e algo que
ele dissera a fez rir. Depois os dois rebentaram em
gargalhadas, insensatamente, como duas crianças. De
repente, a porta do escritório se abriu, e a luz implacável da
sala invadiu os recessos sombreados do escritório. A
silhueta de Edith se delineou contra a luz.
“Grace”, disse ela nítida e lentamente, “seu pai está
tentando trabalhar. Você não deve perturbá-lo”.
Por alguns instantes, William e sua filha ficaram tão
atônitos com essa súbita intrusão que nenhum dos dois se
mexeu ou falou. Então William conseguiu dizer: “Está tudo
bem, Edith. Ela não me incomoda”.
Como se ele não tivesse dito nada, Edith insistiu: “Grace,
você me ouviu? Saia daí neste instante”.
Confusa, Grace levantou de sua cadeira e atravessou o
escritório. Deteve-se no centro da sala, olhando primeiro
para seu pai e então para sua mãe. Edith estava prestes a
falar de novo, mas William conseguiu cortá-la.
“Tudo bem, Grace”, disse ele o mais docemente que
pôde.
“Está tudo bem. Vá com a sua mãe.”
Quando Grace passou pela porta do escritório para a
sala, Edith disse a seu marido: “Esta criança ultimamente
tem tido liberdade demais. Não é natural que ela seja tão
quieta, tão retraída. Ela tem ficado muito sozinha. Devia ser
mais ativa, brincar com crianças da idade dela. Você não
percebe quanto ela tem sido infeliz?”
E fechou a porta antes que ele pudesse responder.
Ele não se mexeu por um bom tempo. Olhou para a sua
mesa, repleta de anotações e livros abertos. Atravessou
lentamente o escritório e rearrumou a esmo as folhas de
papel e os livros. Ficou parado ali, o cenho franzido, como se
estivesse tentando lembrar-se de alguma coisa. Então se
virou de novo e foi até a mesinha de Grace. Apagou a luz, e
o tampo da mesa ficou cinza e sem vida, e ele foi até o sofá,
onde ficou deitado com os olhos abertos, fixos no teto.
Compreendeu só gradualmente a enormidade do que
tinha acontecido, de modo que se passaram várias semanas
antes que ele conseguisse admitir para si mesmo o que
Edith estava fazendo. Quando por fim entendeu, foi quase
sem surpresa. Edith havia iniciado uma campanha
empreendida com tanta astúcia e habilidade que ele não
conseguia encontrar bases racionais para reclamar. Depois
de sua abrupta e quase brutal entrada no escritório naquela
noite, que em retrospecto lhe pareceu um verdadeiro
ataque de surpresa, a estratégia de Edith tomou-se mais
indireta, mais silenciosa e contida. Era uma estratégia que
se disfarçava de amor e preocupação, portanto algo contra
o qual ele era impotente.
Edith ficava em casa praticamente todo o tempo agora.
Durante a manhã e o começo da tarde, enquanto Grace
estava na escola, dedicava-se a redecorar o quarto dela.
Removeu a mesinha do escritório de Stoner, deu a ela um
novo acabamento, pintando-a de rosa pálido e prendendo
em volta do tampo uma fita larga de cetim franzido da
mesma cor, de modo a tomá-la irreconhecível aos olhos da
filha. Uma tarde, com Grace ao seu lado silenciosa, ela
examinou todas as roupas que William comprara para a
menina, descartou a maioria e prometeu a Grace que iriam,
naquele fim de semana, ao centro da cidade para substituir
os itens descartados por coisas mais adequadas, mais “de
menina”. E assim fizeram. No fim da tarde, cansada mas
triunfante, Edith voltou com um monte de pacotes e uma
filha exausta e terrivelmente desconfortável no vestido novo
e duro de tão engomado e com uma miríade de rendas, de
cuja bainha em balão suas pernas finas projetavam-se como
pauzinhos patéticos.
Edith comprou para a sua filha bonecas e brinquedos e a
rondava enquanto ela brincava, como se quisesse controlá-
la. Começou a dar aulas de piano para ela e sentava-se ao
seu lado no banco enquanto ela praticava. Com os pretextos
mais insignificantes, dava festinhas, às quais compareciam
as crianças da vizinhança, sombrias e emburradas em suas
rígidas roupas formais, e supervisionava estritamente as
leituras e as lições de casa de sua filha, não permitindo que
ela trabalhasse além do horário previsto.
Agora as visitas de Edith eram as mães da vizinhança.
Elas vinham nas manhãs e tomavam café e conversavam
enquanto os filhos estavam na escola. À tarde, traziam suas
crianças e ficavam observando-as brincarem na grande sala
de estar e conversavam a esmo em meio ao barulho dos
jogos e da correria.
Naquelas tardes Stoner costumava ficar em seu
escritório, de onde conseguia ouvir o que as mulheres
diziam, falando em voz alta na sala e ultrapassando as
vozes dos filhos.
Uma vez, durante uma pausa do barulho, ele ouviu Edith
dizer: “Pobre Grace. Ela gosta tanto do pai, mas ele tem tão
pouco tempo para dedicar a ela. O trabalho dele, sabe, e
agora ele está começando um livro novo…”
Com curiosidade, quase com distanciamento, notou que
suas mãos, com as quais segurava um livro, começaram a
tremer. Tremeram por um longo momento antes que ele
recuperasse o controle delas, enfiando-as no fundo dos
bolsos, cerrando-as e mantendo-as lá à força.
Agora raramente via sua filha. Os três faziam as
refeições juntos, mas nessas ocasiões dificilmente ousava
dirigir-lhe a palavra, pois, quando o fazia, e Grace lhe
respondia, Edith logo achava algo inadequado nos modos de
Grace à mesa, ou na maneira como estava sentada, e a
reprovava com tamanho rigor que sua filha ficava silenciosa
e cabisbaixa todo o resto da refeição.
O corpo já esguio de Grace estava ficando mais magro.
Edith ria com delicadeza do fato de ela “crescer para cima
mas não para os lados”. Seus olhos se tornaram atentos,
quase cautelosos. Sua expressão, que antes era calma e
serena, agora passava de um leve amuo para uma alegria e
uma animação que pareciam quase histéricas. Embora
costumasse rir bastante, agora ela mal sorria. E, quando
sorria, era como se um fantasma passasse por seu rosto.
Uma vez, quando Edith estava no andar de cima, William e
sua filha se cruzaram na sala de estar. Grace sorriu
timidamente para ele, e Stoner, quase sem perceber, se
ajoelhou no chão e a abraçou. Ele sentiu o corpo dela
enrijecer-se e viu em seu rosto uma expressão assustada e
confusa. Delicadamente se afastou dela e se levantou, disse
algo sem importância e bateu em retirada para seu
escritório.
Na manhã seguinte, ele ficou na mesa do café da manhã
até Grace ir para a escola, mesmo sabendo que se atrasaria
para sua aula das nove. Depois que se despediu de Grace
na porta da frente, Edith não voltou para a sala de jantar, e
ele percebeu que ela o estava evitando. Foi até a sala de
estar, onde sua esposa estava sentada na ponta do sofá
com uma xícara de café e um cigarro.
Sem preliminares, ele disse: “Edith, não gosto do que
está acontecendo com Grace”.
Imediatamente, como se estivesse respondendo a uma
deixa, ela disse: “O que você quer dizer?”
Stoner se deixou cair na outra ponta do sofá, longe de
Edith. Uma sensação de impotência lhe veio. “Você sabe o
que eu quero dizer”, disse cansado. “Deixe-a em paz. Não a
force tanto.”
Edith apagou seu cigarro no pires. “Grace nunca esteve
tão feliz. Ela tem amigos agora, coisas para ocupá-la. Sei
que você é muito ocupado para perceber essas coisas, mas
com certeza deve ter notado quanto ela tem sido mais
extrovertida recentemente. E ela ri. Ela nunca costumava
rir. Quase nunca.”
William olhou para ela com uma quieta surpresa. “Você
realmente acredita nisso, não acredita?”
“Claro que sim”, respondeu Edith. “Sou a mãe dela.”
E Stoner se deu conta de que ela realmente acreditava.
Ele balançou a cabeça.
“Eu nunca quis admitir isso para mim mesmo…”, disse
num tom tranquilo, “mas você realmente me odeia, não
odeia, Edith?”
“O quê?” A surpresa em sua voz era genuína. “Oh, Willy!”
Ela riu clara e abertamente. “Não seja tolo. É claro que não.
Você é o meu marido.”
“Não use a criança.” Não conseguiu evitar que sua voz
tremesse. “Você não precisa mais, você sabe disso.
Qualquer outra coisa. Mas, se você continuar usando Grace,
eu…”, ele não conseguiu terminar.
Após um instante, Edith disse: “Você o quê?” Ela falou
calmamente e sem desafio. “Tudo o que você pode fazer é
me deixar, e você nunca fará isso. Nós dois sabemos disso.”
Ele assentiu. “Suponho que você tenha razão.” Levantou-
se com dificuldade e foi para seu escritório. Pegou o casaco
no armário e sua pasta atrás da mesa. Ao atravessar a sala,
Edith se dirigiu a ele de novo.
“Willy, eu não faria mal a Grace. Você devia saber disso.
Eu a amo. Ela é a minha filha.”
E ele entendeu que era verdade. Ela realmente amava
Grace. A consciência dessa compreensão quase o fez gritar.
Ele balançou a cabeça e saiu.
Quando ele chegou em casa naquela noite, descobriu
que, durante o dia, Edith, com a ajuda de um faz-tudo local,
tinha tirado todas as suas coisas do escritório. Sua mesa e
seu sofá estavam atulhados num canto da sala, e, por perto,
amontoados desordenadamente, estavam suas roupas, seus
papéis e todos os seus livros.
•••
Como iria ficar mais em casa agora, Edith decidira que
voltaria a pintar e a esculpir, e o escritório dele, com sua luz
do norte, iria dar-lhe a única iluminação realmente decente
que a casa tinha. Ela sabia que ele não se incomodaria com
a mudança. Ele podia usar a varanda envidraçada nos
fundos da casa, que ficava mais longe da sala do que o
escritório, e teria maior tranquilidade para fazer o seu
trabalho.
Mas a varanda era tão pequena que Stoner não
conseguia manter seus livros minimamente organizados, e
não havia espaço nem para a mesa nem para o sofá que
tinha no escritório, de modo que guardou ambos no porão.
Era difícil aquecer a varanda no inverno, e ele sabia, de
antemão, que, no verão, o sol iria bater nas vidraças, de
modo a tomá-la praticamente inabitável. No entanto,
trabalhou ali por vários meses. Arranjou uma mesinha e a
usou como escrivaninha, e comprou um aquecedor portátil
para mitigar um pouco o frio que se infiltrava à noite pelas
esquadrias finas de madeira. De noite dormia embrulhado
num cobertor no sofá da sala de estar.
Após uns poucos meses de relativa, embora
desconfortável, paz, ele começou a encontrar, quando
chegava à tarde da universidade, uma variedade de objetos
da casa descartados — lustres quebrados, tapetes avulsos,
pequenas cômodas e caixas de quinquilharia —, largados
negligentemente no lugar que agora lhe servia de escritório.
“É tão úmido no porão”, dizia Edith. “Lá ia estragar tudo.
Você não se importa se eu os guardar aqui por um tempo,
não?”
Numa tarde de primavera, ele chegou em casa durante
um forte temporal e descobriu que, de alguma maneira, um
dos vidros se quebrara e a chuva danificara vários de seus
livros e tornara muitas de suas anotações ilegíveis.
Semanas depois, ele chegou e descobriu que Grace e
algumas de suas amigas tinham tido permissão de brincar
na varanda e que mais de suas anotações e as primeiras
páginas do manuscrito de seu novo livro haviam sido
rasgadas e mutiladas. “Eu só deixei que elas ficassem aí
alguns minutos”, disse Edith. “De qualquer modo, elas
precisam ter algum lugar para brincar. Mas eu não
imaginava. Você precisa falar com Grace. Eu disse a ela
quanto o seu trabalho é importante para você.”
Por fim, ele desistiu. Levou todos os livros que conseguiu
para seu escritório na universidade, que compartilhava com
três professores mais jovens, e, a partir de então, começou
a passar muito mais tempo na universidade, chegando em
casa cedo apenas quando a necessidade de olhar para sua
filha, ou de trocar algumas palavras com ela, tornava a
distância impossível.
Nove

A chefia interina do departamento de Inglês, que Gordon


Finch assumira após a morte de Archer Sloane, foi renovada
ano após ano, até todos os membros do departamento
acabarem se acostumando com o modo um pouco
anárquico em que, de uma forma ou de outra, as aulas
eram distribuídas e ensinadas, em que as várias questões
administrativas eram resolvidas e em que, de algum jeito,
cada ano se sucedia ao outro. Era evidente que um chefe
permanente seria designado assim que fosse possível tornar
Finch o diretor do Instituto de Ciências Humanas, um cargo
que ele exercia de fato, embora não oficialmente. Josiah
Claremont ameaçava não morrer nunca, embora raramente
ainda fosse visto vagando pelos corredores.
Os membros do departamento seguiam seus caminhos,
davam as aulas que tinham dado no ano anterior e
visitavam os escritórios uns dos outros nas horas livres
entre as aulas. Eles se reuniam oficialmente apenas no
começo de cada semestre, quando Gordon Finch convocava
a habitual reunião departamental, e nas ocasiões em que o
diretor da Escola de Pós-Graduação lhes enviava
memorandos pedindo que começassem a planejar os
exames orais e escritos para os alunos que estavam
chegando ao fim dos estudos.
Esses exames tomavam uma parte cada vez maior do
tempo de Stoner. Para sua surpresa, ele começara a gozar
de certa popularidade como professor: teve de recusar
alunos que queriam fazer seu seminário de pós-graduação
sobre Tradição Latina e Literatura da Renascença, e suas
disciplinas do último ano de graduação estavam sempre
cheias. Vários estudantes lhe pediam para ele orientar suas
teses, e muitos outros lhe pediam para ele participar das
bancas que iriam examiná-las.
No outono de 1931, o seminário já estava quase
completo mesmo antes da matrícula. Muitos estudantes
tinham feito arranjos com Stoner no fim do ano precedente
ou durante o verão. Uma semana após o semestre ter
começado, e depois de o primeiro encontro já ter
acontecido, um estudante foi até o escritório de Stoner e
pediu para ser admitido.
Stoner estava em sua escrivaninha com uma lista dos
alunos do seminário à sua frente; ele tentava distribuir as
tarefas, uma operação particularmente difícil porque muitos
deles eram novatos. Era uma tarde de setembro, e a janela
que ficava perto da escrivaninha estava aberta. A fachada
do grande edifício estava na sombra, de modo que o
gramado verde na sua frente mostrava a silhueta precisa do
prédio, com seu domo semicircular e a borda irregular do
telhado que obscureciam o verde, estendendo-se
imperceptivelmente até o limite do campus e além. Uma
brisa fria entrava pela janela, trazendo o fresco aroma do
outono.
Ouviu-se uma batida. Stoner se voltou para a porta
aberta e disse: “Entre”.
Uma figura emergiu da escuridão do corredor e entrou na
sala iluminada. Stoner apertou os olhos sonolentos contra a
escuridão, reconhecendo a silhueta de um estudante que
notara nos corredores mas que não conhecia pessoalmente.
O braço esquerdo do jovem pendia rígido ao longo do corpo,
e seu pé esquerdo se arrastava quando ele andava. Seu
rosto era pálido e redondo, e redondos eram também seus
óculos de aro de tartaruga. Seu cabelo preto ralo estava
repartido precisamente de lado e penteado rente à cabeça.
“Professor Stoner?”, chamou ele; a voz era esganiçada e
entrecortada, e ele pronunciava as palavras distintamente.
“Sim”, disse Stoner. “Não quer se sentar?”
O jovem se acomodou numa cadeira de madeira ao lado
da escrivaninha de Stoner. Sua perna estava esticada numa
linha reta, e sua mão esquerda, com o punho
permanentemente semicerrado, pousava sobre ela. Ele
sorriu, inclinou a cabeça e disse num curioso tom de falsa
modéstia: “O senhor talvez não me conheça. Meu nome é
Charles Walker. Estou no segundo ano do doutorado e sou
assistente do professor Lomax”.
“Sim, Sr. Walker”, disse Stoner. “Em que posso ajudá-lo?”
“Bem, estou aqui para pedir um favor ao senhor”, Walker
sorriu de novo. “Eu sei que o seu seminário está cheio, mas
eu queria muito participar dele.”
Fez uma pausa e acrescentou incisivo: “O professor
Lomax sugeriu que eu conversasse com o senhor”.
“Entendo”, disse Stoner. “Qual é a sua especialidade, Sr.
Walker?”
“Os poetas românticos”, respondeu Walker. “O professor
Lomax será o orientador da minha tese.”
Stoner assentiu. “Quão adiantado você já está?”
“Espero terminar em dois anos”, disse Walker.
“Bem, isso torna as coisas mais fáceis”, afirmou Stoner.
“Ofereço o seminário todos os anos. Está realmente tão
cheio que quase não é mais um seminário, e uma pessoa a
mais é só o que falta para deixar de ser. Por que você não
espera até o ano que vem se realmente está tão
interessado?”
Walker evitou o olhar dele. “Bem, francamente”, disse
ele, e deu outro sorriso. “Sou vítima de um mal-entendido.
Tudo culpa minha, é claro. Eu não me dei conta de que cada
doutorando precisa fazer ao menos quatro seminários de
pós-graduação para obter o diploma, e eu não fiz nenhum
no ano passado. E, como o senhor sabe, não é permitido
que se faça mais do que um por semestre. Assim, se quiser
me doutorar em dois anos, preciso fazer um neste
semestre.”
Stoner suspirou. “Entendo. Então, você na realidade não
tem um interesse especial pela influência da tradição
latina.”
“Ah, tenho sim, senhor. De fato, eu tenho. Vai ser muito
útil para a minha tese.”
“Sr. Walker, você deve saber que esse é um curso
bastante especializado, e não encorajo as pessoas a fazê-lo
a menos que tenham por ele um interesse especial.”
“Sim, senhor”, disse Walker. “Eu lhe asseguro que
realmente tenho um interesse específico.”
Stoner assentiu. “Como é o seu latim?”
Walker inclinou a cabeça. “Ah, é bom, senhor. Ainda não
fiz meu exame de latim, mas leio muito bem.”
“Você sabe francês ou alemão?”
“Ah, sim, senhor. De novo, ainda não fiz os exames.
Pensei em fazer todos ao mesmo tempo, no fim deste ano.
Mas leio ambas as línguas muito bem.” Walker fez uma
pausa e, então, acrescentou: “O professor Lomax disse que
achava que eu com certeza teria condições de fazer o
trabalho do seminário”.
Stoner suspirou. “Muito bem”, disse. “Muitas das leituras
serão em latim, algumas em francês e alemão, mas não são
obrigatórias. Vou lhe dar uma lista de livros e
conversaremos sobre o seu tópico do seminário na próxima
quarta-feira à tarde.”
Walker agradeceu efusivamente e se levantou da cadeira
com alguma dificuldade. “Vou começar imediatamente a
ler” disse. “Tenho certeza de que o senhor não irá se
arrepender de ter me aceitado em sua classe, professor.”
Stoner olhou para ele com uma leve surpresa. “Isso nem
sequer me ocorreu, Sr. Walker”, disse secamente. “Até
quarta-feira.”
•••
O seminário ocorria numa pequena sala no subsolo da ala
sul do Jesse Hall. Um odor úmido mas não desagradável
exsudava das paredes, e os pés deslizavam com um sibilar
abafado no chão de cimento queimado. Havia uma única
luminária pendurada no teto no centro da sala, que
iluminava para baixo, de modo que aqueles sentados nas
carteiras no centro da sala ficavam sob um banho de luz,
mas as paredes eram de um cinza-escuro e os cantos quase
negros, como se o cimento liso sem pintura absorvesse a
luz que caía do teto.
No segundo encontro do seminário, William Stoner
entrou na sala com alguns minutos de atraso.
Cumprimentou os estudantes e começou a arrumar seus
livros e papéis na mesinha de carvalho colocada na frente
do quadro-negro. Olhou de relance para o pequeno grupo
espalhado pela sala. Alguns, ele conhecia: dois eram
doutorandos que estava orientando, outros quatro eram
mestrandos do departamento que tinham estudado com ele
na graduação. Do restante dos alunos, três eram candidatos
a cursos de pós-graduação em Letras Modernas, um era um
estudante de filosofia que estava fazendo sua tese sobre os
Escolásticos, outro era uma mulher de meia-idade, uma
professora do ensino médio tentando fazer um mestrado
durante seu ano sabático, e a última era uma jovem de
cabelo escuro, uma professora nova no departamento,
contratada por dois anos enquanto completava a tese que
começara após ter terminado seus créditos numa
universidade do leste. Ela pedira para assistir como ouvinte
ao seminário, e ele aceitara. Charles Walker não estava no
grupo. Stoner aguardou mais alguns momentos, remexendo
em seus papéis. Então pigarreou e começou a aula.
“Durante o nosso primeiro encontro discutimos a
abrangência desse seminário, e decidimos que limitaríamos
nosso estudo da tradição latina medieval às três primeiras
das sete artes liberais, ou seja, gramática, retórica e
dialética.” Fez uma pausa e observou os rostos —
hesitantes, curiosos, parecidos com máscaras —
concentrados nele e no que dizia.
“Tal limitação talvez pareça rigorosa demais para alguns
de vocês. No entanto, não tenho dúvida de que
encontraremos o bastante para nos manter ocupados
mesmo se delinearmos apenas superficialmente o curso do
trivium até o século XVI. É importante nos darmos conta de
que essas artes da retórica, gramática e dialética tinham
um significado para um homem do fim da Idade Média e do
começo da Renascença que nós, hoje, podemos intuir
apenas vagamente sem um esforço de imaginação
histórica. Para os estudiosos, a arte da gramática, por
exemplo, não era meramente uma disposição mecânica das
partes do discurso. Desde o fim da época helenística e ao
longo da Idade Média, o estudo e a prática da gramática
incluíam não só o ‘talento literário’ mencionado por Platão e
Aristóteles, mas também, e isso se tornou muito importante,
um estudo das técnicas poéticas, uma exegese da poesia
tanto na forma quanto na substância, e da precisão
estilística, na medida em que esta pode ser distinguida da
retórica.”
Sentiu que estava se apaixonando pelo assunto, e notou
que vários dos alunos se haviam inclinado para a frente e
parado de tomar notas. Ele continuou: “Além disso, se a nós
do século XX perguntassem qual dessas três artes é a mais
importante, poderiamos escolher a dialética, ou a retórica,
mas seria muito improvável que escolhêssemos a
gramática. No entanto, o acadêmico, e poeta, romano e
medieval quase com certeza consideraria a gramática a
mais significativa. Precisamos lembrar…”
Um ruído alto o interrompeu. A porta se abriu e Charles
Walker entrou na sala. Ao fechar a porta, os livros que
carregava sob o braço inválido escorregaram e caíram no
chão. Ele se debruçou desajeitadamente, sua perna ruim
estendida atrás dele, e lentamente catou os livros e papéis.
Então se pôs de pé e atravessou a sala, seu pé raspando no
cimento queimado e produzindo um sibilo áspero e
estridente que ressoou sinistro na sala. Achou uma cadeira
vazia na primeira fila e se sentou.
Após Walker ter se instalado e posto seus papéis e livros
em ordem em sua carteira, Stoner continuou: “Precisamos
lembrar que a concepção medieval da gramática era ainda
mais geral que a do último período do helenismo ou dos
romanos. Não só incluía a ciência do discurso correto e a
arte da exegese, mas também as concepções modernas de
analogia, etimologia, métodos de apresentação, construção,
a condição da licença poética e as relativas exceções… e
mesmo a linguagem metafórica ou as figuras de sentido”.
Enquanto continuava elaborando cada uma das
categorias da gramática que nomeara, os olhos de Stoner
passearam rapidamente pela classe. Ele percebeu que
perdera a atenção dos estudantes durante a entrada de
Walker e soube que levaria algum tempo até conseguir mais
uma vez persuadi-los a sair de si mesmos. Volta e meia seu
olhar se detinha curiosamente em Walker, que, após ter
tomado notas furiosamente por alguns instantes, aos
poucos foi deixando seu lápis ficar em seu caderno,
enquanto fitava Stoner com uma expressão perplexa. Por
fim, a mão de Walker levantou-se. Stoner terminou a frase
que começara e assentiu para ele.
“Professor”, disse Walker, “desculpe, mas eu não estou
entendendo. O que pode a…”, fez uma pausa e deixou sua
boca se contorcer em torno da palavra, “gramática ter a ver
com poesia? Fundamentalmente, quero dizer. Poesia de
verdade”.
Stoner disse suavemente: “Como eu estava explicando
antes de você chegar, Sr. Walker, o termo ‘gramática’ para
os retóricos tanto romanos quanto medievais era muito
mais abrangente do que hoje. Para eles, significava…”, fez
uma pausa, percebendo que estava prestes a repetir a parte
inicial de sua aula, e notou os estudantes mexendo-se
inquietos. “Eu acho que essa relação ficará mais clara ao
seguirmos adiante, ao vermos quanto os poetas e
dramaturgos até mesmo da metade e do fim da Renascença
devem aos retóricos latinos”.
“Todos eles, senhor?” Walker sorriu e se recostou na
cadeira. “Não foi Samuel Johnson que disse do próprio
Shakespeare que ele sabia pouco latim e ainda menos
grego?”
Uma risadinha reprimida circulou pela sala, e Stoner
sentiu uma espécie de piedade por ele. “Você quer dizer
Ben Jonson, obviamente.”
Walker tirou os óculos e os limpou, piscando
desamparadamente. “Sim, claro”, disse. “Me confundi.”
Mesmo com Walker o interrompendo várias vezes, Stoner
conseguiu terminar a aula sem sérias dificuldades e passar
as tarefas para a classe. Encerrou o seminário quase meia
hora mais cedo e, quando viu Walker se arrastando em sua
direção com um sorriso fixo no rosto, se apressou a sair da
sala. Subiu rápido as escadas de madeira do subsolo e dois
degraus por vez as de mármore liso que levavam ao
primeiro andar. Teve a curiosa sensação de que Walker
estava obstinadamente se arrastando atrás dele, tentando
alcançá-lo em sua fuga. Uma precipitada onda de vergonha
e culpa lhe veio.
No segundo andar foi direto ao escritório de Lomax. Ele
estava atendendo um estudante. Stoner enfiou a cabeça
porta adentro e disse: “Holly, posso lhe falar um minuto
depois que vocês acabarem?”
Lomax acenou cordialmente. “Entre. Estamos
terminando.”
Stoner entrou e fingiu examinar as fileiras de livros em
suas estantes enquanto Lomax e o estudante trocavam suas
palavras finais. Quando o estudante saiu, Stoner sentou na
cadeira que ele vagara. Lomax o olhou inquisitivamente.
“É sobre um estudante”, disse Stoner. “Charles Walker.
Ele disse que você o enviou para mim.”
Lomax juntou as pontas dos dedos e os contemplou
enquanto assentia. “Sim. Creio que de fato sugeri que ele
poderia tirar proveito de seu seminário sobre — o quê
mesmo? — a tradição latina.”
“Você poderia me dizer alguma coisa sobre ele?”
Lomax ergueu os olhos das mãos e fitou o teto, seu lábio
inferior projetando-se judiciosamente. “Um bom aluno. Um
aluno superior, pode-se dizer. Está fazendo a tese sobre
Shelley e o Ideal Helenístico. Promete ser brilhante,
realmente brilhante. Talvez não seja o que alguns
chamariam de…”, ele hesitou delicadamente quanto à
palavra, “mas é muito imaginativo. Você tem alguma razão
em particular para perguntar?”
“Sim”, respondeu Stoner. “Ele se comportou de uma
forma um pouco ignorante no seminário hoje. Só gostaria de
saber se devo atribuir algum significado especial a isso.”
A cordialidade inicial de Lomax desaparecera, e a
habitual máscara irônica voltou a se revelar no rosto dele.
“Ah, sim”, disse com um sorriso gélido. “A falta de noção e a
insensatez dos jovens. Walker é, por motivos que talvez
você possa compreender, extremamente tímido e por isso
às vezes fica defensivo e assertivo demais. Como todos nós,
ele tem seus problemas, mas suas capacidades acadêmicas
e críticas não devem, espero, ser julgadas à luz de seus
distúrbios psíquicos bastante compreensíveis.” Ele olhou
diretamente para Stoner e disse com animada
malevolência: “Como você talvez tenha notado, ele é
aleijado”.
“Pode ser que você tenha razão”, disse Stoner
ponderadamente. Suspirou e levantou-se da cadeira.
“Imagino que realmente seja muito cedo para ficar
preocupado. Só queria conferir com você.”
Subitamente, a voz de Lomax ficou tensa e quase
trêmula de raiva reprimida. “Você vai descobrir que ele é
um estudante superior. Eu lhe asseguro, você vai descobrir
que ele é um estudante excelente."
Stoner olhou para ele por um momento, franzindo a testa
perplexo. Então assentiu e saiu do escritório.
•••
O seminário ocorria semanalmente. Nos primeiros
encontros, Walker interrompia a aula com perguntas e
comentários que eram tão descaradamente inoportunos que
Stoner ficava sem saber como reagir. Logo as perguntas e
afirmações de Walker começaram a ser recebidas com risos
ou deliberadamente ignoradas pelos próprios estudantes. E
depois de algumas semanas ele parou completamente de
interagir, ficando sentado num canto da sala com uma
expressão de indignação pétrea e integridade ultrajada
enquanto o seminário prosseguia à sua volta. Teria sido,
Stoner achou, quase divertido se não houvesse algo de tão
atrevido naquela expressão ressentida.
Mas, apesar de Walker, foi um seminário bem-sucedido,
um dos melhores cursos que Stoner já dera. Quase desde o
início, as implicações dos argumentos tratados captaram a
atenção dos estudantes, e se espalhou pela sala aquela
excitação típica de quando se percebe que o assunto
tratado fica no centro de uma questão ainda mais ampla e
que seu aprofundamento vai levar não se sabe para onde. O
seminário ganhou vida própria, e os alunos se envolveram
tanto que Stoner tornou-se simplesmente um deles,
dedicando-se a pesquisar tão diligentemente quanto eles.
Até mesmo a ouvinte — a jovem professora que estava de
passagem por Columbia para terminar a sua tese —
perguntou se podia fazer uma apresentação sobre um
tópico do seminário. Ela achava que tinha deparado com
algo que poderia ser útil para os outros. Chamava-se
Katherine Driscoll e estava perto dos 30 anos. Stoner nunca
realmente prestara atenção nela até que um dia, após a
aula, ela lhe contou sobre sua pesquisa e perguntou se ele
estaria disposto a lê-la quando a terminasse. Ele respondeu
que a apresentação seria bem-vinda e que a lería com
prazer.
As apresentações do seminário estavam marcadas para
a segunda metade do semestre, depois das férias de Natal.
A apresentação de Walker sobre “o Helenismo e a tradição
latina medieval” era uma das primeiras, mas ele ficava
adiando-a, explicando que tinha dificuldade para obter os
livros de que precisava, já que não estavam disponíveis na
biblioteca da universidade.
Ficara decidido que a senhorita Driscoll, sendo uma
ouvinte, faria a sua apresentação depois que os estudantes
efetivos fizessem as deles. Mas, no último dia disponível
para as apresentações do seminário, duas semanas antes
do fim do semestre, Walker implorou para que lhe fosse
concedida mais uma semana: estivera doente, seus olhos o
estavam incomodando, e um livro crucial não tinha chegado
pelo empréstimo interbibliotecas. Assim, a senhorita Driscoll
fez sua apresentação, aproveitando a vaga deixada pela
deserção de Walker.
O trabalho dela era intitulado “Donatus e a tragédia
renascentista”. Seu foco era o uso por Shakespeare da
tradição donatiana, uma tradição que persistira nas
gramáticas e nos manuais da Idade Média. Poucos minutos
depois de ela ter começado, Stoner sabia que o trabalho
seria bom, e escutou com um entusiasmo que não sentia
havia muito tempo. Depois que ela terminou, e a classe o
discutiu, ele a deteve por alguns momentos enquanto os
outros estudantes saíam.
“Srta. Driscoll, eu só gostaria de dizer…” Fez uma pausa,
e por um instante uma onda de constrangimento e inibição
o tomou. Ela olhava inquisitivamente com seus grandes
olhos escuros. Seu rosto ficava muito branco perto da
severa moldura negra de seus cabelos, puxados para trás
num pequeno coque. Ele continuou: “Eu só queria dizer que
o seu trabalho foi a melhor discussão que já vi do assunto, e
fico grato que a senhorita tenha se voluntariado a
apresentá-lo”.
Ela não respondeu. Sua expressão não mudou, mas
Stoner achou por um momento que ela estava brava. Algo
de impetuoso brilhava por trás de seus olhos. Então ela
corou intensamente e baixou a cabeça, se era por raiva ou
em agradecimento Stoner não soube, e se afastou
apressadamente dele. Stoner saiu lentamente da sala,
inquieto e confuso, receoso de que, com sua falta de jeito, a
tivesse de algum modo ofendido.
Ele avisara a Walker, do modo mais gentil possível, que
seria necessário que apresentasse seu trabalho na quarta-
feira seguinte se quisesse receber o crédito pelo curso, e,
como temera, Walker ficou frio e respeitosamente bravo
com o aviso, repetiu os vários problemas de saúde e as
dificuldades que o tinham atrasado, e assegurou a Stoner
que não havia necessidade de se preocupar, que seu
trabalho estava quase pronto.
Na última quarta-feira, Stoner foi atrasado vários minutos
por um estudante de graduação desesperado que queria ter
certeza de que iria receber um “C” no curso introdutório do
segundo ano, para que não fosse expulso de sua
fraternidade. Stoner apressou-se escadaria abaixo e entrou
na sala do seminário um pouco sem fôlego. Encontrou
Charles Walker sentado à sua mesa, olhando com uma
expressão sombria e arrogante para o pequeno grupo de
estudantes. Era evidente que ele estava entregue a alguma
fantasia particular. Ele se voltou para Stoner e o fitou
desdenhosamente, como se fosse um professor
recriminando um estudante indisciplinado. Depois a
expressão de Walker mudou e ele disse: “Estávamos prestes
a começar sem…”, fez uma pausa no último minuto, deixou
um sorriso aparecer nos lábios, inclinou a cabeça e
acrescentou, para que Stoner soubesse que uma piada
estava sendo feita: "… o professor”.
Stoner o olhou por um momento e então voltou-se para a
classe. “Desculpem o meu atraso. Como sabem, o Sr. Walker
vai nos apresentar o seu trabalho para o seminário sobre o
tópico ‘Helenismo e tradição latina medieval’.” E encontrou
um lugar na primeira fila, ao lado de Katherine Driscoll.
Charles Walker remexeu por um momento em seu maço
de papéis sobre a mesa e depois a sua expressão se tornou
remota de novo. Bateu com a ponta do indicador da mão
direita em seu manuscrito e olhou para o canto da sala
oposto ao lugar onde estavam Stoner e Katherine Driscoll,
como se estivesse esperando alguma coisa. Então, dando
de quando em quando um relance aos papéis sobre a mesa,
começou.
“Ao sermos confrontados pelo mistério da literatura, e
por seu inenarrável poder, nos vemos obrigados a descobrir
a fonte do poder e do mistério. Mas, afinal, o que isso pode
valer? O trabalho da literatura joga na nossa frente um véu
profundo que não podemos sondar. E não somos mais que
devotos perante ela, impotentes ante sua força. Quem teria
a temeridade de levantar esse véu, para descobrir o
indescobrível, para alcançar o inalcançável? Os mais fortes
de nós não passam dos mais pífios fracotes, não fazem mais
do que tilintar pratos e soar cornetas perante o mistério
eterno.”
Sua voz subia e descia, sua mão direita se estendia com
os dedos curvados em súplica para o alto, e seu corpo
balançava no ritmo de suas palavras. Seus olhos voltavam-
se ligeiramente para cima, como se ele estivesse fazendo
uma invocação. Havia algo de grotescamente familiar no
que ele dizia e fazia. E logo Stoner soube o que era. Era
Hollis Lomax, ou melhor, uma caricatura vulgar dele, que
surgia inadvertidamente de quem a fazia, e era um gesto
não de desprezo ou desgosto, mas de respeito e amor.
A voz de Walker baixou para um tom de conversa, e ele
se dirigiu à parede dos fundos da sala numa entonação que
soava calma e razoável. “Recentemente, ouvimos uma
apresentação que, do ponto de vista da academia, deve ser
avaliada como excelente. Os comentários que se seguem
não são pessoais. Quero apenas exemplificar uma questão.
Ouvimos, nessa apresentação, um relato que se propôs a
ser uma explicação do mistério e do lirismo altaneiro da arte
de Shakespeare. Bem, eu lhes digo…”, e apontou um
indicador para sua plateia como se fosse trespassá-la, “…
eu lhes digo, isso não é verdade”. Recostou-se na Cadeira e
consultou os papéis sobre a mesa. “Pediram-nos para
acreditar que um certo Donatus — um obscuro gramático
romano do século IV d.C —, pediram-nos para acreditar que
tal homem, um pedante, teve poder suficiente para
determinar a obra de um dos maiores gênios de toda a
história da literatura. Não seria talvez o caso de suspeitar, à
primeira vista, de tal teoria? Não deveríamos suspeitar
dela?”
Uma raiva simples e cega veio a Stoner, sobrepujando a
complexidade de sentimentos que tivera no começo da
apresentação. Seu impulso imediato era de se levantar e
cortar no ato a farsa que se desenrolava. Sabia que, se não
interrompesse Walker de imediato, teria de deixá-lo
prosseguir por todo o tempo que quisesse falar. Sua cabeça
se virou levemente para que pudesse ver a face de
Katherine Driscoll: ela parecia serena e sem nenhuma
expressão, salvo um interesse polido e remoto. Seus olhos
escuros encaravam Walker com uma indiferença que
beirava o tédio. Furtivamente, Stoner olhou para ela por um
longo momento e ficou se perguntando o que ela estava
sentindo e o que desejava que ele fizesse. Quando
finalmente parou de espiá-la, teve de reconhecer que sua
decisão estava tomada. Ele esperara tempo demais para
interromper, e Walker se precipitava impetuoso com o que
tinha para dizer.
“…o edifício monumental que é a literatura da
Renascença, esse edifício que é a pedra fundamental da
grande poesia do século XIX. A questão da prova, endêmica
ao tedioso trabalho da academia e que o distingue da
crítica, ficou também tristemente faltando. Que prova foi
oferecida de que Shakespeare até mesmo leu esse obscuro
gramático romano? Precisamos lembrar que foi Ben Jonson”,
ele hesitou por um breve instante, “foi o próprio Ben Jonson,
o amigo e contemporâneo de Shakespeare, quem disse que
ele sabia pouco latim e ainda menos grego. E certamente
Jonson, que endeusava Shakespeare no limiar da idolatria,
não imputou a seu grande amigo nenhuma falta. Ao
contrário, ele quis sugerir, como eu, que o lirismo sublime
de Shakespeare não pode ser atribuído ao queimar das
pestanas noite adentro, mas a um gênio natural e superior à
regra e à lei mundana. Diferentemente de poetas menores,
Shakespeare não nascera para corar anonimamente e
desperdiçar sua doçura no ar do deserto. Bebendo naquela
misteriosa fonte aonde todos os poetas vão para o seu
sustento, que necessidade tinha o bardo imortal de regras
tão imbecilizantes como aquelas que podem ser
encontradas num mero gramático? O que seria Donatus
para ele, ainda que o tivesse lido? O gênio, que é único e
constitui uma lei em si, não precisa do apoio de tal
‘tradição’ como foi descrita para nós, seja ela
genericamente latina, donatiana ou o que for. O gênio,
altaneiro e livre, precisa…”
Após se acostumar com a sua raiva, Stoner percebeu que
uma admiração relutante e perversa se insinuava nele. Por
mais floreados e imprecisos que fossem, os poderes de
retórica e invenção do sujeito eram impressionantes. E, por
mais grotesca que fosse, a sua presença era real. Havia algo
de frio, calculista e alerta em seus olhos, algo
desnecessariamente temerário, embora desesperadamente
cauteloso. Stoner tomou consciência de que estava na
presença de um blefe tão colossal e ousado que não
dispunha de meios imediatos para lidar com ele.
Pois era claro até para os estudantes mais desatentos da
classe que Walker estava entregue a uma performance que
era inteiramente improvisada. Stoner até duvidava que ele
tivesse algo para dizer antes de se sentar à mesa na frente
da classe e se dirigir aos colegas com seu olhar gélido e
arrogante. Ficou claro que o maço de papéis na frente dele,
sobre a mesa, era apenas um maço de papéis. À medida
que ficava mais empolgado, Walker nem fingia mais olhar
para eles, e perto do fim de seu discurso, em sua excitação
e frenesi, ele os empurrara para longe de si.
Falou por quase uma hora. Perto do fim, os outros
estudantes do seminário estavam trocando olhares
preocupados, como se eles se sentissem em perigo e
procurassem uma forma de fugir. Evitavam cuidadosamente
olhar tanto para Stoner quanto para a jovem sentada
impassível ao seu lado. Abruptamente, como se percebesse
aquela inquietude, Walker terminou a sua intervenção,
recostou-se na cadeira atrás da mesa e sorriu triunfante.
No instante em que Walker parou de falar, Stoner se pôs
de pé e dispensou a classe. Embora não tivesse percebido
na hora, fez isso por uma vaga consideração com Walker,
para que nenhum deles pudesse ter a chance de rebater o
que ele dissera. Então, Stoner foi até a mesa onde Walker
permanecia sentado e lhe perguntou se ele poderia ficar por
alguns momentos. Como se sua cabeça estivesse em outro
lugar, ele assentiu distantemente. Stoner se virou e seguiu
alguns estudantes ainda saindo da sala. Viu Katherine
Driscoll indo embora, caminhando sozinha no corredor.
Chamou-a pelo nome e, quando ela ouviu, Stoner foi até ela
e parou na sua frente. E, quando falou com ela, sentiu de
novo o constrangimento que o acometera na semana
anterior, ao elogiá-la por seu trabalho.
“Srta. Driscoll, sinto… sinto muito. Foi realmente muito
injusto. Sinto-me de certa forma responsável. Talvez eu
devesse ter interrompido.”
Ela não respondeu, e nenhuma expressão formou-se em
seu rosto. Ela o olhou como olhara para Walker.
“Em todo caso”, continuou ele, ainda mais constrangido,
“sinto muito que ele a tenha atacado”.
E então ela sorriu. Foi um sorriso lento que começou em
seus olhos e se propagou por seus lábios até seu rosto
inteiro resplandecer num deleite radiante, secreto e íntimo.
Stoner quase recuou diante daquele súbito e involuntário
calor.
“Ah, não era eu”, disse ela, um mínimo tremor de um riso
reprimido dando timbre à sua voz grave. “Não era eu,
mesmo. Era o senhor que ele estava atacando. Eu mal
estava envolvida nisso.”
Stoner sentiu-se aliviado de um fardo de remorso e
preocupação que não sabia que carregava. O alívio foi
quase físico, e ele sentiu uma leveza nos pés e quase uma
tontura. Riu.
“É claro”, disse. “Você tem razão.”
O sorriso sumiu de seu rosto, e ela o olhou seriamente
um momento mais. Então inclinou a cabeça, virou-se e saiu
caminhando rapidamente pelo corredor. Seu corpo era
esguio e ereto, e tinha um porte discreto. Stoner ficou
olhando o corredor por vários momentos após ela
desaparecer. Então suspirou e voltou para a sala onde
Walker esperava.
Walker não se mexera da mesa. Ele fitou Stoner e sorriu,
em seu rosto uma mistura esquisita de obséquio e
arrogância. Stoner sentou-se na cadeira de que levantara
alguns minutos antes e olhou curiosamente para Walker.
“Sim, professor?”, disse Walker.
“Você tem uma explicação?” perguntou Stoner
calmamente.
Uma expressão de surpresa magoada se formou no rosto
redondo de Walker. “O que o senhor quer dizer?”
“Sr. Walker, por favor”, disse Stoner com cansaço. “Foi
um dia longo, e estamos ambos cansados. Você tem alguma
explicação para a performance desta tarde?”
“Tenho certeza de que não quis ofender ninguém.” Ele
tirou os óculos e os limpou rapidamente. De novo, Stoner
impressionou-se com a expressão indefesa e quase
vulnerável de seu rosto. “Eu disse que meus comentários
não eram pessoais. Se soaram ofensivos, posso
imediatamente explicar à jovem que…”
“Sr. Walker”, disse Stoner. “Você sabe muito bem que
não é essa a questão.”
“A jovem se queixou com o senhor?”, perguntou Walker.
Seus dedos tremiam quando ele colocou de volta os óculos.
Com eles, seu rosto assumia uma expressão contrariada.
“Realmente, as queixas de uma estudante que se sentiu
ofendida não deviam…”
“Sr. Walker.” Stoner ouviu a sua voz sair um pouco do
controle. Ele respirou fundo. “Isso não tem nada a ver com a
jovem, ou comigo, ou com qualquer outra coisa a não ser a
sua performance. E ainda estou esperando a explicação que
tem para dar.”
“Então receio não estar compreendendo nada, professor.
A menos que…”
“A menos que o quê, Sr. Walker?”
“A menos que seja simplesmente uma questão de
diferença de opiniões”, disse Walker. “Tenho consciência de
que as minhas ideias não coincidem com as do senhor, mas
sempre julguei que isso fosse saudável. Supus que o senhor
fosse adulto o bastante para…”
“Eu não vou permitir que você se esquive do assunto”,
disse Stoner. Sua voz estava fria e equilibrada. “Agora, qual
foi o tópico do seminário designado para você?”
Walker ficou rigidamente formal e polido. “O meu tópico
era ‘Helenismo e tradição latina medieval’ professor.”
“E quando você terminou o seu trabalho, Sr. Walker?”
“Dois dias atrás. Como eu disse, estava quase pronto
duas semanas atrás, mas um livro que eu tive de pedir pelo
empréstimo interbibliotecas não chegou até…”
“Sr. Walker, se o seu trabalho estava quase pronto duas
semanas atrás, como você poderia tê-lo baseado, em sua
totalidade, na apresentação da Srta. Driscoll, que foi feita
apenas na semana passada?”
“Fiz algumas modificações, professor, na última hora.”
Sua voz ficou carregada de ironia. “Eu presumi que era
permitido. E eu realmente me afastei do texto de vez em
quando. Percebi que os outros alunos fizeram o mesmo, e
achei que o privilégio também me seria concedido.”
Stoner lutou contra um impulso quase histérico de rir.
“Sr. Walker, você poderia me explicar o que o seu ataque ao
trabalho da senhorita Driscoll tem a ver com a
sobrevivência do Helenismo na tradição latina medieval?”
“Eu abordei o meu assunto indiretamente, professor”,
respondeu Walker. “Julguei que nos era permitida certa
liberdade no desenvolvimento de nossos conceitos.”
Stoner ficou em silêncio por um momento. Então,
completamente farto, disse: “Sr. Walker, não me agrada ter
de reprovar um aluno de pós-graduação. Especialmente não
me agrada ter de reprovar um que simplesmente entrou em
algo acima de sua capacidade”.
“Professor!” exclamou Walker, indignado.
“Mas você está tornando muito difícil eu não reprová-lo.
Agora, me parece que há apenas algumas alternativas.
Posso considerar o curso ainda incompleto para você, com o
entendimento de que você fará um trabalho satisfatório
sobre o tópico designado dentro de três semanas.”
“Mas, professor”, disse Walker. “Eu já fiz o meu trabalho.
Se eu concordar em fazer outro, estarei admitindo…! Estarei
admitindo…”
“Muito bem”, disse Stoner. “Então se você me der o
manuscrito do qual… se desviou esta tarde, eu verei se algo
pode ser resgatado.”
“Professor!” exclamou Walker. “Eu hesitaria em me
separar dele por enquanto. O rascunho está muito cru.”
Mas Stoner continuou, implacável e sombrio: “Isso não é
problema. Eu serei capaz de encontrar o que preciso saber”.
Walker olhou para ele com uma expressão astuta. “Diga-
me, professor, o senhor pediu a alguém mais para lhe
entregar o seu manuscrito?”
“Não”, respondeu Stoner.
“Então”, disse Walker triunfante, quase feliz, “eu devo
me recusar a entregar o meu manuscrito por princípio. A
menos que o senhor solicite que todos os outros entreguem
os deles”.
Stoner o observou firmemente por um instante. “Muito
bem, Sr. Walker. Você tomou a sua decisão. Isso é tudo.”
Walker disse: “O que devo entender então, professor? O
que posso esperar deste curso?”
Stoner deu uma risada breve. “Sr. Walker, você me
espanta. Obviamente você será reprovado.”
Walker tentou assumir uma expressão contrariada. Com
a resignação de um mártir, ele disse: “Entendo. Muito bem,
professor. É preciso estar preparado para sofrer por suas
crenças.”
“E por sua preguiça, desonestidade e ignorância”,
acrescentou Stoner. “Sr. Walker, parece quase supérfluo
dizer isso, mas eu o aconselho seriamente a reconsiderar a
sua posição. Eu me pergunto seriamente se é uma boa ideia
você prosseguir no programa de pós-graduação.”
Pela primeira vez, a emoção de Walker pareceu genuína:
sua raiva quase lhe deu um ar digno. “Professor Stoner, o
senhor está indo longe demais! O senhor não pode estar
falando sério.”
“Com a mais absoluta certeza, estou”, disse Stoner.
Por um momento Walker ficou quieto, olhando pensativo
para Stoner. Depois disse: “Estava disposto a aceitar
qualquer nota que o senhor me desse. Mas o senhor precisa
entender que isso eu não posso aceitar. O senhor está
questionando a minha competência!”
“Sim, Sr. Walker”, disse Stoner cansado. Levantou-se da
cadeira. “Agora, com a sua licença…” e foi em direção à
porta. Mas o som de seu nome sendo chamado em voz alta
o deteve. Ele se virou. O rosto de Walker estava de um
vermelho profundo, sua pele tão inchada que os olhos atrás
dos óculos grossos eram como pontinhos minúsculos.
“Professor Stoner!”, gritou ele de novo. “O senhor não ache
que isso vai acabar assim. Creia-me, isso não vai acabar
assim!”
Stoner olhou para ele entediado e indiferente. Assentiu
aturdido, virou-se e saiu para o átrio. Seus pés estavam
pesados e se arrastavam no chão de cimento. Drenado de
qualquer emoção, ele se sentia muito velho e cansado.
Dez

E de fato não acabara.


Stoner divulgou as notas do seminário na segunda-feira
posterior à sexta que encerrou o semestre. Era dessa parte
do trabalho que menos gostava, e sempre se livrava dela o
mais rápido que podia. Como previsto, reprovou Walker, e
não pensou mais no assunto. Passou a maior parte das
semanas lendo os primeiros rascunhos de duas teses que
seriam defendidas na primavera. Não eram muito sólidas e
precisavam de muita atenção. O incidente com Walker ficou
sem espaço em sua cabeça. Mas, duas semanas após o
segundo semestre ter começado, foi novamente lembrado
dele. Uma manhã encontrou um recado de Gordon Finch em
sua caixa de correio pedindo que ele passasse no escritório
dele para uma conversa quando lhe fosse conveniente.
A amizade entre Gordon Finch e William Stoner tinha
chegado àquele ponto ao qual chegam todos os
relacionamentos daquele tipo, se mantidos por tempo o
bastante: era ocasional, profunda e tão discretamente
íntima que era quase impessoal. Eles quase não se viam
socialmente, embora de vez em quando Caroline Finch
fizesse uma visita por educação a Edith. Quando
conversavam, lembravam-se dos anos da juventude, e cada
um pensava em como o outro era naquela época.
No começo de sua meia-idade, Finch tinha a postura
ereta de alguém que tenta vigorosamente manter seu peso
sob controle. Seu rosto era cheio e ainda sem rugas,
embora suas bochechas estivessem ficando mais caídas e
sua pele se acumulasse em dobras na nuca. Seu cabelo era
muito ralo, e ele começara a penteá-lo de modo que a
calvície não ficasse imediatamente aparente.
Na tarde em que Stoner foi ao seu escritório, eles
conversaram alguns momentos sobre suas famílias. Finch
continuou a se referir ao casamento de Stoner como se
fosse normal, e Stoner fingiu maravilhar-se do fato de que
Gordon e Caroline pudessem ser pais de dois filhos, o mais
novo já na pré-escola.
Depois de terem cumprido todas as obrigações daquela
intimidade superficial, Finch olhou distraidamente por sua
janela e disse: “Agora, o que era mesmo que eu queria falar
com você? Ah, sim. O diretor da pós-graduação… ele achou,
já que somos amigos, que eu devia falar sobre isso com
você. Nada de muita importância”. Ele olhou uma anotação
em sua agenda. “É só um aluno de pós-graduação irado que
acha que foi injustiçado numa de suas matérias no semestre
passado.”
“Walker”, disse Stoner. “Charles Walker.”
Finch assentiu. “É esse mesmo. Qual é a história dele?”
Stoner deu de ombros: “Pelo que posso dizer, ele não fez
nenhuma das leituras requeridas. Ele frequentava meu
seminário sobre a tradição latina. Tentou fingir que tinha
feito a sua pesquisa para o seminário e, quando lhe dei a
chance de ou fazer outra ou apresentar uma cópia do
trabalho, recusou-se. Não tive alternativa a não ser reprová-
lo”.
Finch assentiu de novo. “Imaginei que fosse algo assim.
Deus sabe, gostaria que eles não desperdiçassem meu
tempo com coisas desse tipo, mas precisava ser verificado,
mais para a sua proteção do que qualquer outra coisa.”
Stoner perguntou: “Há alguma… dificuldade em especial
aqui?”
“Não, não”, disse Finch. “De modo nenhum. Só uma
queixa. Você sabe como são essas coisas. Para falar a
verdade, Walker recebeu um ‘C’ na primeira disciplina que
fez aqui como aluno da pós-graduação. Se quiséssemos,
poderiamos expulsá-lo do programa agora mesmo, mas eu
acho que a decisão será deixá-lo fazer os exames orais no
mês que vem, para ver como ele vai se sair. Desculpe ter
incomodado você com isso.”
Eles falaram por alguns momentos sobre outras coisas.
Então, quando Stoner estava prestes a ir embora, Finch o
deteve como que casualmente.
“Ah, tem mais uma coisa que eu queria lhe mencionar. O
reitor e o conselho finalmente decidiram que a questão de
Claremont precisa ser resolvida. Então, acho que, a partir do
ano que vem, eu serei oficialmente o diretor do Instituto de
Ciências Humanas.”
“Fico contente, Gordon”, disse Stoner. “Já era tempo.”
“Então isso quer dizer que vamos precisar de um novo
chefe do departamento. Você tem alguma ideia quanto a
isso?”
“Não”, respondeu Stoner. “Eu realmente nunca pensei
sobre isso.”
“Podemos tanto buscar fora do departamento e trazer
alguém novo quanto escolher o novo chefe entre os
membros atuais. O que estou tentando descobrir é, se nós
realmente escolhermos alguém do departamento… Bem,
você tem interesse no cargo?”
Stoner pensou por um instante. “Eu não tinha pensado
nisso, mas… não. Não acho que queira ser chefe.”
O alívio de Finch foi tão óbvio que Stoner sorriu. “Ótimo.
Eu imaginei que você não iria querer. Implica um monte de
bosta. Receber, socializar e…” Desviou os olhos de Stoner.
“Eu sei que você não gosta desse tipo de coisa. Mas, como o
velho Sloane morreu, e Huggins e, qual é o nome dele
mesmo, Cooper se aposentaram no ano passado, você é o
membro mais antigo do departamento. Mas você não
mostrou interesse, então…”
“Não”, disse Stoner definitivamente. “Eu provavelmente
seria um péssimo chefe. Eu nem espero nem quero a
nomeação.”
“Ótimo”, disse Finch. “Ótimo. Isso simplifica muito as
coisas.”
Eles se despediram, e Stoner não voltou a pensar na
conversa por algum tempo.
•••
Os exames orais de Charles Walker estavam agendados
para meados de março. Para sua surpresa, Stoner recebeu
um recado de Finch informando que ele seria um dos
membros do comitê de três pessoas que aplicaria o exame.
Ele lembrou a Finch que tinha reprovado Walker, que Walker
tinha tomado como uma afronta pessoal a reprovação, e
pediu para ser dispensado desse dever.
“O regulamento”, respondeu Finch com um suspiro.
“Sabe como é. A banca é constituída pelo orientador do
candidato, um professor que o teve num seminário de pós-
graduação e um fora de seu campo de especialização.
Lomax é o orientador, você é o único professor que o teve
num seminário da pós, e escolhi o recém-chegado, Jim
Holland, como o membro fora da especialidade dele. O
diretor da pós-graduação Rutherford e eu estaremos
presentes ex-officio. Tentarei fazer com que seja o mais
indolor possível.”
Mas era uma provação que não tinha como ser indolor.
Embora Stoner quisesse fazer o mínimo de perguntas
possível, as regras que governavam o teste preliminar oral
eram inflexíveis: cada professor tinha 45 minutos para fazer
ao candidato quantas perguntas quisesse, embora os outros
professores de hábito tivessem direito de intervir.
Na tarde definida para o exame, Stoner chegou
deliberadamente atrasado à sala de seminários no segundo
andar do Jesse Hall. Walker estava sentado na ponta da
mesa comprida e muito polida. Os quatro examinadores já
presentes — Finch, Lomax, o recém-chegado, Holland, e
Henry Rutherford — estavam dispostos ao longo da mesa a
partir dele. Stoner entrou discretamente pela porta e se
sentou na extremidade da mesa oposta a Walker. Finch e
Holland o cumprimentaram com um aceno de cabeça.
Lomax, afundado em sua cadeira, olhava direto para a
frente, tamborilando seus dedos compridos e brancos na
superfície espelhada da mesa. Walker se virou, com a
cabeça alta e empertigada, em sinal de frio desdém.
Rutherford pigarreou. “Ah, Sr.”, ele consultou uma folha
de papel à sua frente. “Sr. Stoner.” Rutherford era um
homem magro e grisalho com ombros redondos. Seus olhos
e sobrancelhas caíam nos cantos externos, de modo que
sua expressão era sempre gentil e desesperada. Embora
conhecesse Stoner havia muitos anos, nunca lembrava seu
nome. Ele pigarreou de novo: “Estávamos prestes a
começar”.
Stoner assentiu, apoiou os braços na mesa, cruzou os
dedos e os contemplou enquanto a voz de Rutherford
repetia as preliminares formais do exame oral.
O Sr. Walker estava sendo examinado — a voz de
Rutherford baixou e virou um murmúrio constante e
uniforme — para determinar a sua capacidade de prosseguir
no programa de doutorado do departamento de Inglês da
Universidade do Missouri. Era um exame ao qual todos os
candidatos a doutor eram submetidos, e era concebido não
só para julgar a adequação geral do candidato, mas
também para determinar qualidades e deficiências, para
que o curso de seus estudos futuros pudesse ser orientado
proveitosamente. Três resultados eram possíveis: aprovado,
aprovado condicionalmente e reprovado. Rutherford
descreveu os termos dessas eventualidades e, sem erguer
os olhos e conforme o ritual, apresentou os examinadores e
o candidato. Então, empurrou a folha de papel para longe e
olhou desesperado para os que estavam à sua volta.
“O costume é”, disse ele, baixinho, “que o orientador da
tese do candidato comece as perguntas. O Sr.”, ele deu um
relance ao papel, “o Sr. Lomax é o orientador. Portanto…”
A cabeça de Lomax sacudiu-se para trás como se tivesse
subitamente acordado de um cochilo. Ele olhou a mesa em
volta, piscando, um sorrisinho nos lábios, mas seus olhos
estavam sagazes e atentos.
“Sr. Walker, você tem a intenção de fazer uma tese sobre
Shelley e o ideal helenístico. É pouco provável que já tenha
pensado a fundo em seu assunto, mas você poderia
começar nos contando um pouco dos antecedentes, sua
razão para tê-lo escolhido, e assim por diante…”
Walker assentiu e começou a falar rapidamente.
“Pretendo traçar o percurso da primeira rejeição de Shelley
do necessitarianismo de Godwin por um ideal mais ou
menos platônico, no Hino à Beleza Intelectual, até o uso
maduro desse ideal, em Prometeu Libertado, como uma
síntese abrangente de seus anteriores ateísmo, radicalismo,
cristianismo e necessitarianismo científico, e, por fim, dar
conta do declínio desse ideal numa obra tão tardia quanto
Hellas. Na minha opinião, é um tópico importante por três
razões: primeiro, mostra a qualidade da mente de Shelley, e
assim nos leva a uma melhor compreensão de sua poesia.
Segundo, demonstra os principais conflitos filosóficos e
literários do começo do século XIX, e assim amplia nossa
compreensão e apreciação da poesia romântica. E terceiro,
é um assunto que pode ter uma relevância peculiar para
nossa própria época, uma época em que enfrentamos
muitos dos mesmos conflitos que enfrentavam Shelley e
seus contemporâneos.”
Stoner ouvia e, enquanto ouvia, ficava cada vez mais
atônito. Não conseguia acreditar que aquele era o mesmo
homem que fizera o seu seminário e que ele achava que
conhecia. A apresentação de Walker era lúcida, direta e
inteligente. Por vezes foi quase genial. Lomax estava certo:
se a tese cumprisse a sua promessa, seria brilhante. A
esperança, a paixão e o entusiasmo cresceram nele, e ele
se inclinou para a frente atento.
Walker falou sobre o assunto de sua tese por talvez dez
minutos e então parou bruscamente. Em seguida, Lomax
fez outra pergunta, e Walker respondeu logo. Gordon Finch
procurou os olhos de Stoner e observou-o com uma
expressão vagamente interrogativa. Stoner reagiu com um
sorrisinho e deu levemente de ombros.
Walker parou de novo e logo depois Jim Holland tomou a
palavra. Era um jovem magro, intenso e pálido, com olhos
azuis levemente protuberantes. Falava com uma deliberada
lentidão, com uma voz que sempre parecia tremer por ser
forçada a se conter. “Sr. Walker, você mencionou um pouco
antes o necessitarianismo de Godwin. Gostaria de saber se
você seria capaz de fazer uma conexão entre ele e o
fenomenalismo de John Locke.” Stoner lembrou que Holland
era um especialista do século XVIII.
Houve um momento de silêncio. Walker voltou-se para
Holland, tirou os óculos redondos e os limpou. Seus olhos
piscaram e fitaram em volta aleatoriamente. Ele os
recolocou e piscou de novo. “O senhor poderia repetir a
pergunta, por favor?”
Holland começou a falar, mas Lomax o interrompeu.
“Jim”, disse afavelmente, “você se incomodaria se eu
estendesse um pouco a pergunta?”.
Ele se voltou rapidamente para Walker antes que Holland
pudesse responder. “Sr. Walker, partindo das implicações da
pergunta do professor Holland, ou seja, de que Godwin
concordava com a teoria da natureza sensitiva do
conhecimento de Locke, a tabula rasa, e tudo o mais, e que
Godwin acreditava, como Locke, que o julgamento e o
conhecimento, falsificados pelos acidentes da paixão e a
inevitabilidade da ignorância, podiam ser retificados pela
educação… dadas essas implicações, você poderia
comentar o princípio do conhecimento de Shelley, mais
especificamente o princípio da beleza, enunciado nas
últimas estrofes de Adonais?”
Holland recostou-se em sua cadeira, o cenho franzido
com perplexidade. Walker assentiu e disse rapidamente:
“Embora as estrofes iniciais de Adonais, o tributo de Shelley
a seu amigo, John Keats, sejam convencionalmente
clássicas, com suas alusões à Mãe, às Horas, a Urânia e
assim por diante, com suas invocações repetitivas… o
momento realmente clássico não aparece até as últimas
estrofes, que são, efetivamente, um hino sublime ao eterno
Princípio da Beleza. Se, por um momento, concentrarmos
nossa atenção nestes famosos versos:
A vida, como um domo de multicolorido vidro,
Mancha a radiância branca da eternidade,
Até a morte pisoteá-la em fragmentos.

O simbolismo implícito nesses versos não é claro até os


considerarmos em seu contexto. ‘O Único permanece’,
Shelley escreve alguns versos antes, ‘o múltiplo muda e
passa’. E somos lembrados dos versos igualmente famosos
de Keats,
A beleza é verdade, e a verdade, beleza — é tudo
que você sabe na terra, e tudo que precisa saber.

O princípio, então, é a Beleza, mas a beleza é também


conhecimento. E é uma concepção que tem suas raízes…”
A voz de Walker continuou, fluente e segura de si
mesma, as palavras emergindo de sua boca, que se movia
rapidamente quase como se… Stoner sobressaltou-se, e a
esperança que começara nele morreu tão bruscamente
quanto nascera. Por um momento ele se sentiu como se
estivesse fisicamente doente. Olhou para a mesa e viu entre
seus braços a imagem de sua face refletida na superfície
brilhante da mesa de nogueira. A imagem era escura, e ele
não conseguiu distinguir seus traços, como se visse um
fantasma tremulando insubstancialmente ao sair de algo
duro, vindo encontrá-lo.
Lomax terminou as suas perguntas, e Holland começou.
Era, Stoner admitiu, uma performance magistral: Lomax
administrava tudo discretamente, com grande charme e
bom humor. Às vezes, quando Holland fazia uma pergunta,
Lomax fingia uma perplexidade bem-intencionada e pedia
um esclarecimento. Outras vezes, desculpando-se por seu
próprio entusiasmo, seguia uma das perguntas de Holland
com uma especulação própria, inserindo Walker na
discussão, de modo a parecer que ele realmente participava
dela. Entreteve Walker com o que pareciam ser elaboradas
argumentações teóricas, embora fosse ele quem falasse a
maior parte do tempo. E finalmente, ainda se desculpando,
intrometeu-se nas perguntas de Holland com observações
que levaram Walker aonde queria que ele fosse.
Durante todo esse tempo, Stoner não disse nada. Ouviu
a conversa que rodopiava em sua volta, fitou o rosto de
Finch, que se tornara uma máscara carregada, olhou para
Rutherford, que mantinha os olhos fechados, assentindo
com a cabeça, e olhou para o desconcerto de Holland, com
o desdém educado de Walker e com a animação febril de
Lomax. Estava esperando sua vez para fazer o que sabia
que tinha de fazer, e a esperava com uma apreensão, uma
raiva e uma tristeza que se tornavam mais intensas a cada
minuto que passava. Ficou feliz que nenhum dos outros
tenha cruzado o seu olhar enquanto os observava.
Por fim, o tempo para as perguntas de Holland acabou.
Como se de alguma forma compartilhasse a apreensão que
Stoner sentia, Finch deu um relance ao relógio e assentiu.
Ele não disse uma palavra. Stoner respirou fundo. Ainda
olhando para o fantasma de sua face no acabamento
espelhado do tampo da mesa, ele disse sem expressão: “Sr.
Walker, vou lhe fazer algumas perguntas sobre literatura
inglesa. Serão perguntas simples, que não vão requerer
respostas elaboradas. Vou começar do início e prosseguir
cronologicamente, até onde o tempo me permitir. Você
poderia começar descrevendo os princípios da versificação
anglo-saxônica?”
“Sim, senhor”, respondeu Walker. Seu rosto estava
imóvel. “Para começar, os poetas anglo-saxões, como
existiram na Idade das Trevas, não possuíam a mesma
sensibilidade dos poetas posteriores da tradição inglesa. De
fato, eu diria que a poesia deles se caracterizava pelo
primitivismo. Mesmo assim, dentro desse primitivismo já
havia, em potência, embora escondida aos olhos de alguém,
aquela sutileza de sentimentos que iria caracterizar…”
“Sr. Walker”, disse Stoner. “Eu pedi os princípios da
versificação. Você poderia me dizer quais são?”
“Bem, professor”, disse Walker, “é muito rústica e
irregular. A versificação, quero dizer”.
“Isso é tudo o que pode dizer sobre ela?”
“Sr. Walker”, disse Lomax de uma forma que Stoner
achou apressada e quase desesperada, “essa rusticidade da
qual falou… você poderia explicá-la, dar as…”
“Não”, disse Stoner firmemente, sem olhar para
ninguém. “Eu quero que a minha pergunta seja respondida.
Isso é tudo que você pode me dizer sobre a versificação
anglo-saxônica?”
“Bom, professor”, disse Walker sorrindo, e o sorriso se
tornou um risinho nervoso. “Honestamente, eu ainda não fiz
a disciplina requerida sobre a literatura anglo-saxônica, e
hesitaria em discutir tais assuntos sem a competência
necessária.”
“Muito bem, Sr. Walker”, disse Stoner. “Vamos pular a
literatura anglo-saxônica. Você poderia nomear um drama
medieval que teve alguma influência no desenvolvimento
do drama renascentista?”
Walker assentiu. “É claro, todos os dramas medievais, à
sua própria maneira, levaram às elevadas realizações da
Renascença. É difícil perceber que, do solo estéril da Idade
Média, a dramaturgia de Shakespeare iria, só uns poucos
anos depois, se alçar e…”
“Sr. Walker, eu estou fazendo perguntas simples. Vou
insistir que você me dê respostas simples. Tornarei a
pergunta ainda mais simples. Dê o nome de três dramas
medievais.”
“Da Alta ou Baixa Idade Média, professor?” Ele tirara os
óculos e continuava a limpá-los furiosamente.
“Quaisquer três dramas, Sr. Walker.”
“São tantos”, disse Walker. “É difícil… Há o Everyman…”
“Pode dar o nome de algum outro?”
“Não”, respondeu Walker. “Devo confessar uma fraqueza
em áreas em que o senhor…”
“Você pode me dar outros títulos, só os títulos, de
algumas das obras literárias da Idade Média?”
As mãos de Walker estavam tremendo. “Como eu disse,
devo confessar uma fraqueza na…”
“Então seguiremos para a Renascença. Em que gênero
você se sente mais confiante nesse período, Sr. Walker?”
“O…”, Walker hesitou e sem querer lançou um olhar de
súplica para Lomax, “a poesia, professor. Ou… o teatro. O
teatro, talvez”.
“O teatro, então. Qual é a primeira tragédia em versos
brancos em inglês, Sr. Walker?”
“A primeira?”, Walker passou a língua pelos lábios. “Há
controvérsias quanto a isso, professor. Eu hesitaria em…”
“Você pode dar o nome de algum drama significativo
antes de Shakespeare?”
“Certamente, professor”, respondeu Walker. “Há
Marlowe, o verso poderoso…”
“Dê o nome de algumas peças de Marlowe.”
Com um esforço, Walker se recompôs. “Há, é claro, a
justamente famosa Doutor Fausto. E… e… O Judeu de
Malta.”
“A Trágica História do Doutor Fausto e O Judeu de Malta.
Você poderia dar o nome de mais alguma?”
“Francamente, professor, essas são as duas únicas peças
que tive a oportunidade de reler no ano passado ou
ultimamente. De modo que preferiria não…"
“Muito bem. Conte-me algo sobre O Judeu de Malta”
“Sr. Walker”, exclamou Lomax. “Se eu puder ampliar a
pergunta um pouco. Se você…”
“Não!”, disse Stoner severamente, sem olhar para
Lomax. “Eu quero respostas para as minhas perguntas. Sr.
Walker?”
Walker disse desesperado: “O verso poderoso de
Marlowe…”
“Vamos deixar de lado o ‘verso poderoso’”, disse Stoner
aborrecido. “O que acontece na peça?”
“Bem”, respondeu Walker um pouco agitado,"… Marlowe
ataca o problema do antissemitismo como se manifestava
no começo do século XVI. A compaixão, eu poderia mesmo
dizer, a profunda compaixão…”
“Deixe para lá, Sr. Walker. Vamos seguir para…”
Lomax gritou: “Deixe o candidato responder à pergunta!
Ao menos dê a ele o tempo de responder”.
“Muito bem”, assentiu Stoner suavemente. “Você
gostaria de prosseguir com a sua resposta, Sr. Walker?”
Walker hesitou por um momento. “Não, professor”, disse.
Stoner, implacável, continuou com o interrogatório. O
que tinha sido uma raiva e um ultraje que incluíam tanto
Walker quanto Lomax tornou-se uma espécie de pena e
remorso nauseado. Depois de um tempo, pareceu a Stoner
que ele saíra de si mesmo, e era como se ouvisse uma voz
cruel e impessoal prosseguindo sem parar.
Por fim, ele ouviu a voz dizer: “Muito bem, Sr. Walker. O
período de sua especialização é o século XIX. Você parece
saber pouco sobre a literatura dos séculos anteriores; talvez
se sinta mais à vontade entre os poetas românticos”.
Tentou não olhar para o rosto de Walker, mas não
conseguiu evitar que seus olhos de quando em quando se
erguessem para ver a máscara redonda que o encarava
fixamente com uma fria, pálida malevolência. Walker
assentiu brevemente.
“Você tem familiaridade com os poemas mais
importantes de Lord Byron, não?”
“É claro”, respondeu Walker.
“Então você poderia fazer um comentário sobre Bardos
Ingleses e Críticos Escoceses?”
Walker olhou desconfiado para ele por um momento.
Então sorriu triunfante. “Ah, professor”, disse ele e assentiu
vigorosamente. “Estou entendendo. Agora estou
entendendo. O senhor está tentando trapacear comigo.
Claro. Bardos Ingleses e Críticos Escoceses não é de forma
alguma de Byron. É a famosa réplica de John Keats aos
jornalistas que tentaram manchar sua reputação como
poeta, depois da publicação de seus primeiros poemas.
Muito bom, professor. Muito…”
“Certo, Sr. Walker”, disse Stoner cansado. “Não tenho
mais perguntas.”
Por um longo momento, um silêncio pairou sobre o
grupo. Então Rutherford pigarreou, remexeu nos papéis que
tinha na frente dele na mesa e disse: “Obrigado, Sr. Walker.
Se você sair da sala e aguardar alguns instantes, o comitê
irá deliberar sobre o exame e o informará sobre sua
decisão”.
Nos poucos momentos que Rutherford levou para dizer o
que tinha a dizer, Walker se recompôs. Levantou-se e
apoiou a mão inválida sobre a mesa. Sorriu para o grupo
quase com condescendência. “Muito obrigado, cavalheiros”,
disse. “Foi uma experiência das mais gratificantes.” Saiu
mancando da sala e fechou a porta atrás de si.
Rutherford suspirou. “Bom, cavalheiros, há algo a
deliberar?” Outro silêncio desceu na sala.
Lomax disse: “Eu acho que ele se saiu muito bem na
minha parte do exame. E foi bastante bem na vez do
Holland. Devo admitir que fiquei um pouco desapontado
com a última parte do exame, mas suponho que a essa
altura já estivesse bastante cansado. É um bom estudante,
mas não mostra tudo o que pode sob pressão”. Deu para
Stoner um sorriso vazio, dolorido. “E você o pressionou um
pouco, Bill. Há de convir que isso aconteceu. Eu voto pela
aprovação.”
Rutherford disse: “Sr. Holland?”
Holland olhou para Lomax e depois para Stoner: ele
estava evidentemente confuso e piscava os olhos. “Mas…
bem, ele me pareceu muito fraco. Não sei exatamente como
avaliar.” Engoliu desconfortavelmente em seco. “Esse é o
primeiro exame oral do qual participo aqui. Realmente não
sei quais são os padrões, mas… bom, ele me pareceu
terrivelmente fraco. Deixem-me refletir um pouco.”
Rutherford assentiu. “Sr. Stoner?”
“Reprovado”, disse Stoner. “Evidentemente reprovado.”
“Ora, vamos, Bill”, exclamou Lomax. “Você está sendo
um pouco duro com o rapaz, não está?”
“Não”, disse Stoner equilibradamente, com seu olhar
direcionado para Lomax. “Você sabe que não, Holly.”
“O que você quer dizer com isso?”, perguntou Lomax:
era como se estivesse tentando injetar mais emoção em sua
voz ao elevá-la. “O que exatamente você quer dizer?”
“Pare com isso, Holly”, insistiu Stoner, cansado. “O
sujeito é incompetente. Não há como duvidar disso. As
perguntas que fiz a ele eram aquelas que se poderiam fazer
a um estudante do primeiro ano, e ele se mostrou incapaz
de responder satisfatoriamente a cada uma delas. Ele é
preguiçoso e, ainda por cima, é desonesto. Em meu
seminário no semestre passado…”
“O seu seminário!” Lomax riu secamente. “Bom, ouvimos
falar disso. Além disso, trata-se de outro assunto. A
pergunta é como ele foi hoje. E está claro…”, seus olhos se
franziram, “está claro que ele foi muito bem hoje até você
começar a apertá-lo”.
“Eu fiz a ele perguntas”, disse Stoner. “As perguntas mais
simples que me ocorreram. Eu estava preparado para lhe
dar todas as chances.” Fez uma pausa e disse
cuidadosamente: “Você é o orientador dele, e é natural que
vocês dois tenham discutido antes o assunto da tese. Assim,
quando você o questionou sobre a tese, ele se saiu muito
bem. Mas quando fomos além disso…”
“O que você quer dizer!”, gritou Lomax. “Você está
insinuando que eu… que houve alguma…”
“Não estou insinuando nada, exceto que na minha
opinião o candidato não respondeu adequadamente. Não
posso consentir com a sua aprovação.”
“Escute”, disse Lomax. Sua voz se acalmara, e ele tentou
sorrir. “Posso entender como eu teria uma opinião melhor
do trabalho dele do que você. Ele esteve em várias de
minhas aulas e… não importa. Estou disposto a aceitar um
acordo. Embora ache severo demais, estou disposto a
oferecer a ele uma aprovação condicional. Isso significaria
que ele poderia fazer uma revisão por um ou dois
semestres, e então ele…”
“Bom”, disse Holland, com algum alívio, “isso me
parecería melhor do que simplesmente aprová-lo. Não
conheço o sujeito, mas é óbvio que ele não está pronto
para…”
“Ótimo”, disse Lomax, sorrindo vigorosamente para
Holland. “Então está resolvido. Nós vamos…”
“Não”, interrompeu Stoner. “Eu devo votar pela
reprovação.”
“Que inferno”, gritou Lomax. “Você percebe o que está
fazendo, Stoner? Você percebe o que está fazendo com o
rapaz?”
“Sim”, disse Stoner calmamente, “e sinto muito por ele.
Estou impedindo que ele consiga o diploma, e estou
impedindo que ele lecione numa faculdade ou universidade.
O que é precisamente o que quero fazer. Ele se tornar um
professor seria um desastre”.
Lomax ficou imóvel. “Essa é a sua palavra final?”,
perguntou gelidamente.
“Sim”, respondeu Stoner.
Lomax assentiu. “Bem, deixe-me avisá-lo, professor
Stoner, que não pretendo permitir que o assunto acabe
aqui. Você fez… você insinuou certas acusações aqui hoje…
você mostrou um preconceito que… que…”
“Cavalheiros, por favor”, pediu Rutherford. Ele parecia
que ia chorar. “Vamos manter as coisas em perspectiva.
Como sabem, para o candidato ser aprovado, é preciso que
a decisão seja unânime. Não há nenhum meio de
resolvermos essa discordância?”
Ninguém se manifestou.
Rutherford suspirou. “Muito bem. Então não tenho
alternativa a não ser declarar que…”
“Espere um minuto.” Era Gordon Finch. Durante todo o
exame, ele ficara tão quieto que os outros quase tinham
esquecido a sua presença. Agora ele se levantara um pouco
da sua cadeira e se dirigia à mesa com uma voz cansada
mas determinada: “Como chefe em exercício do
departamento, vou fazer uma recomendação. Confio que
será aceita. Recomendo que adiemos a decisão até depois
de amanhã. Isso nos dará tempo para esfriar e voltar a
conversar”.
“Não há mais nada a conversar”, disse Lomax,
esquentado. “Se Stoner quer…”
“Fiz a minha recomendação”, disse Finch suavemente, “e
ela será seguida. Diretor Rutherford, sugiro que informemos
ao candidato o que resolvemos”.
Eles encontraram Walker sentado perfeitamente à
vontade no corredor do lado de fora da sala de
conferências. Mantinha um cigarro na mão direita com uma
expressão indiferente, olhando entediado para o teto.
“Sr. Walker”, chamou Lomax e mancou em direção a ele.
Walker se levantou: era muito mais alto do que Lomax,
portanto o olhava de cima para baixo.
“Sr. Walker, disseram-me para lhe informar que o comitê
não foi capaz de chegar a um consenso em relação ao seu
exame. Você será informado depois de amanhã. Mas eu lhe
asseguro”, sua voz se elevou, “eu lhe asseguro que não tem
nada com que se preocupar. Nada mesmo”.
Walker ficou parado, olhando friamente para cada um.
“Agradeço de novo aos senhores, cavalheiros, pela sua
consideração.” Ele cruzou os olhos com os de Stoner, e a
sombra de um sorriso passou por seus lábios.
Gordon Finch foi embora apressado, sem falar com
nenhum deles. Stoner, Rutherford e Holland seguiram juntos
pelo corredor. Lomax ficou atrás, falando intensamente com
Walker.
“Bem”, disse Rutherford, andando entre Stoner e
Holland. “é um caso desagradável. Não importa de que lado
se olhe, é um caso desagradável”.
“É, é sim”, concordou Stoner e virou, afastando-se deles.
Desceu os degraus de mármore, acelerando o passo ao se
aproximar do térreo, e saiu. Inspirou profundamente a
fragrância esfumaçada do ar da tarde, e inspirou de novo,
como se fosse um nadador emergindo da água. Então foi
andando devagar para a sua casa.
•••
No dia seguinte, no começo da tarde, quando ia começar a
almoçar, ele recebeu uma ligação da secretária de Gordon
Finch, pedindo que fosse ao escritório dele imediatamente.
Quando entrou no escritório, Finch esperava impaciente.
Levantou-se e fez um gesto para ele sentar numa cadeira
que puxara ao lado de sua mesa.
“É sobre o caso do Walker?”, perguntou Stoner.
“De certo modo”, respondeu Finch. “Lomax me pediu
uma reunião para tentar resolver isso. Provavelmente será
desagradável. Queria falar com você alguns minutos
sozinho, antes que Lomax chegue aqui.”
Sentou-se de novo e por vários minutos balançou para
frente e para trás em sua poltrona giratória, olhando
contemplativamente Stoner. Disse bruscamente: “Lomax é
um bom homem”.
“Eu sei que ele é” disse Stoner. “Sob certos aspectos, ele
é provavelmente o melhor do departamento.”
Como se Stoner nada tivesse dito, Finch prosseguiu: “Ele
tem seus problemas, mas eles não afloram com muita
frequência; e, quando isso acontece, em geral consegue
lidar com eles. É um azar que esse caso tivesse de
acontecer justamente agora, no pior momento. Um racha no
departamento bem agora…” Finch balançou a cabeça.
“Gordon”, disse Stoner desconfortavelmente. “Eu espero
que você não esteja…”
Finch ergueu a mão. “Espere”, disse. “Gostaria de lhe ter
dito isso antes. Mas não era para ser espalhado, e não era
realmente oficial. Teoricamente, seria ainda confidencial,
mas… Lembra-se de nossa conversa algumas semanas
atrás sobre a chefia?”
Stoner assentiu.
“Pois é, é o Lomax. Ele é o novo chefe. Está definido,
decidido. A sugestão veio do andar de cima, mas eu devo
lhe dizer que concordei com ela.” Ele deu um riso breve.
“Não que eu tenha condições de fazer qualquer outra coisa.
Mas, mesmo que tivesse, teria concordado… então. Agora
não estou mais tão certo.”
“Entendo”, disse Stoner, pensativo. Após alguns
momentos, ele prosseguiu: “Fico contente que você não
tenha me contado antes. Não acho que teria feito alguma
diferença, mas ao menos não tornou a questão mais
complicada”.
“Deus me livre, Bill”, disse Finch. “Você precisa entender.
Eu não me importo nem um pouco com Walker, ou Lomax
ou… Mas você é um velho amigo. Veja. Acho que você está
certo nisso. Droga, eu sei que você está certo. Mas sejamos
práticos. Lomax está levando isso muito a sério, e não vai
deixar ficar assim. E, se houver uma disputa, será infernal
de tão constrangedora. Lomax pode ser vingativo e você
sabe disso tão bem quanto eu. Ele não pode demiti-lo, mas
pode fazer praticamente tudo o mais. E eu poderia me opor
só até certo ponto.” Riu brevemente de novo, com
amargura. “Aliás, não poderia me opor de forma nenhuma.
Se um diretor começa a reverter as decisões de um chefe
de departamento, tem de tirá-lo da chefia. Agora, se Lomax
for longe demais, eu poderia tirá-lo da chefia, ou ao menos
poderia tentar. Eu talvez até conseguisse, ou talvez não.
Mas, mesmo que conseguisse, haveria uma briga que iria
rachar o departamento, quem sabe até a faculdade,
seriamente. E Deus nos livre…” Finch ficou de repente
embaraçado e murmurou: “Eu preciso pensar na faculdade”.
Olhou diretamente para Stoner. “Você entende o que estou
tentando dizer?”
Por um momento, Stoner foi tomado por uma sensação
de carinho, amor e respeito por seu velho amigo. Ele disse:
“Claro que sim, Gordon. Você achou que eu não ia
entender?
“Certo”, disse Finch. “E tem mais uma coisa. De algum
modo, Lomax exerce uma influência enorme sobre o reitor,
que se tornou uma marionete em suas mãos. Isso significa
que pode ser ainda pior do que você imagina. Veja, tudo o
que você precisa fazer é dizer que repensou. Você pode até
pôr a culpa em mim… dizer que eu fiz você repensar.”
“Não se trata de manter a minha honra, Gordon.”
“Eu sei disso”, disse Finch. “Falei errado. Veja do seguinte
modo. O que importa tanto quanto ao Walker? Claro, eu sei,
é o princípio que conta, no caso, mas há outro princípio em
que você tem de pensar.”
“Não é o princípio”, insistiu Stoner. “É o Walker. Seria um
desastre deixá-lo à solta numa sala de aula.”
“Que inferno”, exclamou Finch, cansado. “Se ele não
conseguir aqui, ele pode ir para algum outro lugar e ter seu
doutorado, e, apesar de tudo, pode até mesmo obtê-lo aqui.
Você pode perder nessa, você sabe, por mais que você faça.
Nós não temos como manter pessoas como Walker do lado
de fora.”
“Talvez não”, disse Stoner. “Mas podemos tentar.”
Finch ficou em silêncio por vários momentos. Suspirou.
“Certo. Não adianta manter Lomax esperando. Podemos
muito bem encerrar esse assunto.”
Ele se levantou da mesa em direção à porta que levava à
pequena sala de espera. Mas, quando passou por Stoner,
Stoner pôs a mão em seu braço, detendo-o por um
momento.
“Gordon, você se lembra de uma coisa que Dave Masters
uma vez disse?”
Finch ergueu as sobrancelhas perplexo. “Por que você de
repente veio com o Dave Masters?”
Stoner olhou através da sala, para fora da janela,
tentando lembrar. “Nós três estávamos juntos, e ele disse
alguma coisa sobre a universidade ser um asilo, um refúgio
do mundo, para os despossuídos, os aleijados. Mas ele não
quis dizer alguém como Walker. Dave teria pensado em
Walker como… como o mundo externo. E nós não podemos
deixá-lo entrar. Porque, se deixarmos, nós nos tornaremos
iguais ao mundo, tão irreais quanto, tão… A única
esperança que temos é mantê-lo do lado de fora.”
Finch olhou para ele por vários momentos. Então sorriu.
“Seu filho da puta”, disse alegremente. “Melhor falarmos
com o Lomax agora.” Abriu a porta, fez um gesto com a
cabeça e Lomax entrou no escritório.
Ele entrou na sala tão empertigado e formal que o leve
puxar de sua perna direita mal se notava. Seu rosto, bonito
e comprido, estava fechado e frio, e mantinha a cabeça
erguida, de modo que seus cabelos ondulados e um tanto
longos quase tocavam a corcunda que desfigurava as
costas atrás do ombro esquerdo. Não olhou para nenhum
dos dois homens na sala: sentou-se numa cadeira em frente
à mesa de Finch da maneira mais ereta que conseguia,
fitando o espaço entre Finch e Stoner. Virou a cabeça
levemente na direção de Finch.
“Pedi uma reunião entre nós três por uma simples razão.
Gostaria de saber se o professor Stoner reconsiderou o seu
voto equivocado de ontem.”
“O professor Stoner e eu estávamos discutindo esse
assunto”, disse Finch. “Receio que não conseguimos
resolvê-lo.”
Lomax voltou-se para Stoner e o encarou por um
momento. Seus olhos azul-claros estavam foscos, como se
uma película translúcida tivesse descido sobre eles.
“Então receio que terei de fazer abertamente algumas
acusações bastante sérias.”
“Acusações?” A voz de Finch soou surpresa, um pouco
irritada. “Você não mencionou nada sobre…”
“Sinto muito”, disse Lomax. “Mas isso é necessário.”
Ele disse a Stoner: “A primeira vez que falou com Charles
Walker foi quando ele pediu para ser admitido em seu
seminário de pós-graduação. Isso é correto?”
“É correto”, respondeu Stoner.
“Você estava relutante em admiti-lo, não?”
“Sim”, disse Stoner. “A classe já estava com 12 alunos.”
Lomax deu um relance nas anotações que segurava na
mão direita.
“E quando o estudante lhe disse que precisava entrar,
você relutantemente o admitiu, ao mesmo tempo dizendo
que a sua admissão iria praticamente arruinar o seminário.
Isso está correto?”
“Não exatamente”, disse Stoner. “Pelo que lembro, eu
disse que mais um aluno na classe iria…”
Lomax fez um gesto com a mão. “Não importa. Só estou
tentando estabelecer um contexto. Agora, durante essa
primeira conversa, você não questionou a competência dele
para fazer o trabalho do seminário?”
Cansado, Gordon Finch disse: “Holly, aonde você está
querendo chegar? Que utilidade pode…”
“Por favor”, pediu Lomax. “Eu disse que tinha acusações
a fazer. Você precisa me permitir que eu as desenvolva.
Agora. Você não questionou a competência dele?”
Stoner disse calmamente: “Fiz algumas perguntas, sim,
para ver se ele seria capaz de fazer o trabalho”.
“E acreditou que ele seria?”
“Fiquei incerto, acho”, disse Stoner. “É difícil lembrar.”
Lomax se voltou para Finch. “Estabelecemos o seguinte:
primeiro que o professor Stoner estava relutante em admitir
Walker em seu seminário. Segundo, sua relutância era tão
intensa que ameaçou Walker com o fato de que sua
admissão iria arruinar o seminário. Terceiro, que ele, pelo
menos, tinha dúvidas quanto a Walker ser competente para
fazer o trabalho; e quarto, que, apesar de sua dúvida e de
seu forte ressentimento, ele permitiu que fizesse o
seminário mesmo assim.”
Finch balançou a cabeça sem esperança. “Holly, isso
tudo é inútil.”
“Espere”, disse Lomax. Olhou apressadamente suas
anotações e então lançou um olhar astucioso para Finch.
“Tenho mais algumas afirmações a fazer. Eu poderia
desenvolvê-las através da ‘acareação de testemunhas’” —
deu às palavras uma inflexão irônica —, “mas não sou um
advogado. Mas lhes asseguro que estou preparado para
especificar essas acusações, se necessário.”
Ele fez uma pausa, como que reunindo forças.
“Estou preparado para demonstrar que, primeiro, o
professor Stoner admitiu o Sr. Walker em seu seminário já
tendo incipientes sentimentos de preconceito contra ele;
estou preparado para demonstrar que esse preconceito foi
intensificado pelo fato de que certos conflitos de
temperamento e sentimento se manifestaram ao longo do
seminário, que o conflito foi auxiliado e intensificado pelo
próprio professor Stoner, que permitiu, e de fato algumas
vezes encorajou, que outros membros da classe
ridicularizassem e rissem do Sr. Walker. Estou preparado
para demonstrar que, em mais de uma ocasião, esse
preconceito se manifestou em afirmações que o professor
Stoner dirigiu aos alunos ou a outros; que ele acusou o Sr.
Walker de ‘atacar’ um membro da classe, quando o Sr.
Walker estava meramente expressando uma opinião
contrária, que admitiu ter raiva por esse suposto ‘ataque’ e
que, ainda por cima, chegou a falar que o Sr. Walker estava
‘comportando-se tolamente’. Estou preparado para
demonstrar também que, sem razão alguma, o professor
Stoner, por seu preconceito, acusou o Sr. Walker de
preguiça, ignorância e desonestidade. E, finalmente, que, de
todos os 13 membros da classe, o Sr. Walker foi o único… o
único de quem o professor Stoner duvidou, pedindo apenas
a ele que lhe entregasse o texto do trabalho para o
seminário. Agora eu peço que o professor Stoner negue
essas acusações, seja em parte ou categoricamente.”
Stoner balançou a cabeça, quase com admiração. “Meu
Deus”, exclamou. “Como você faz soar! Claro, tudo o que
você diz é fato, mas nada disso é verdade. Não da maneira
como você diz.”
Lomax assentiu, como se esperasse a resposta. “Estou
preparado para demonstrar a verdade de tudo o que
declarei. Bastaria, se necessário, convocar os membros do
seminário e interrogá-los um por um.”
“Não!”, disse Stoner incisivamente. “Isso é sob certos
aspectos a coisa mais ultrajante que você disse nesta tarde.
Não vou admitir que os estudantes sejam arrastados para
esta confusão.”
“Talvez você não tenha outra opção, Stoner”, disse
Lomax, baixinho. “Talvez não tenha nenhuma outra opção”.
Gordon Finch olhou para Lomax e disse suavemente:
“Aonde você quer chegar?”
Lomax o ignorou. E, dirigindo-se para Stoner, disse: “O
Sr. Walker me falou que, embora ele seja contra fazer isso a
princípio, está disposto a lhe entregar o trabalho do
seminário sobre o qual você lançou tantas dúvidas atrozes.
Está disposto a se submeter a qualquer decisão que você e
dois outros membros qualificados do departamento
tomarem. Se for aprovado pela maioria dos três, ele será
aprovado também no seminário, e terá a permissão de
permanecer na pós-graduação”.
Stoner balançou a cabeça: tinha vergonha de olhar
Lomax nos olhos. “Você sabe que não posso fazer isso.”
“Muito bem. Não me agrada fazer isso, mas… Se você
não mudar o seu voto de ontem, serei compelido a
apresentar acusações formais contra você.”
A voz de Gordon Finch se elevou: “Você será compelido a
quê?”
Lomax disse friamente: “O regimento da Universidade do
Missouri permite que qualquer membro da faculdade
apresente acusações contra qualquer outro membro, se
houver razões suficientes que o induzam a considerá-lo
incompetente, imoral ou inadimplente com seus deveres, de
acordo com os padrões éticos definidos pelo artigo 6, seção
3, do regimento. Essas acusações, e as provas para
sustentá-las, serão ouvidas por todo o corpo docente e, no
fim do julgamento, o corpo docente irá ou manter as
acusações por maioria de dois terços ou rejeitá-las por
maioria simples”.
Gordon Finch recostou-se em sua cadeira, boquiaberto,
balançando a cabeça com incredulidade. Então, disse:
“Agora, escute. Isso está ficando fora de controle. Você não
pode estar falando sério, Holly”.
“Eu lhe asseguro que estou”, disse Lomax. “Esse é um
assunto sério. É uma questão de princípio, e… e a minha
integridade foi questionada. É o meu direito apresentar
acusações se me parecer correto.”
Finch disse: “Você nunca vai conseguir que sejam
aceitas”.
“Ainda assim, é o meu direito apresentá-las.”
Por um momento, Finch fitou Lomax. Então disse
calmamente, quase num tom afável: “Não haverá
acusações. Não sei como essa coisa irá se resolver e, na
verdade, nem me importo. Mas não haverá acusações.
Vamos sair daqui em alguns minutos, e vamos tentar
esquecer a maior parte do que foi dito nesta tarde. Ou ao
menos vamos fingir. Eu não vou deixar que o departamento
ou a faculdade sejam arrastados para uma confusão dessas.
Não haverá acusações. Porque”, acrescentou ele num tom
calmo, “se houver, eu prometo que farei tudo o que puder
para vê-lo arruinado. Nada me deterá. Usarei cada dedo de
influência que tenho; mentirei, se necessário; vou lhe armar
uma cilada, se necessário. Agora estou indo informar ao
diretor Rutherford que a votação referente ao Sr. Walker
será mantida. Se você ainda quiser prosseguir nisso, pode ir
atrás dele, do reitor ou de Deus. Mas este escritório
encerrou o assunto. Não ouvirei mais nada sobre isso”.
Durante o discurso de Finch, a expressão de Lomax ficara
pensativa e fria. Quando Finch terminou, Lomax assentiu
quase distraidamente e se levantou. Lançou um olhar para
Stoner e depois atravessou mancando a sala e saiu. Por
vários momentos, Finch e Stoner ficaram sentados em
silêncio. Então Finch disse: “Eu me pergunto o que há entre
ele e Walker”.
Stoner balançou a cabeça.
“Não é o que você está pensando”, disse. “Não sei o que
é. Nem quero saber.”
•••
Dez dias depois, a nomeação de Hollis Lomax como chefe
do departamento de Inglês foi anunciada e, duas semanas
depois, o calendário das aulas para o ano seguinte foi
distribuído entre os membros do departamento. Sem
surpresa, Stoner descobriu que, para cada um dos dois
semestres que compunham o ano letivo, a ele tinham sido
atribuídos três turmas de redação do primeiro ano e um
curso introdutório do segundo ano. O seu curso de leituras
complementares em literatura medieval para o último ano e
seu seminário de pós-graduação haviam sido eliminados do
programa. Stoner percebeu que era o tipo de calendário que
um professor iniciante recebería. Era ainda pior em alguns
aspectos, pois o horário fora arranjado de forma que ele
lecionasse em horas amplamente separadas umas das
outras e distribuídas em seis dias por semana. Ele não
reclamou do horário e estava determinado a começar o ano
letivo como se nada tivesse acontecido.
Mas, pela primeira vez desde que começara a ensinar,
começou a lhe parecer que seria possível deixar a
universidade, dar aulas em outro lugar. Falou com Edith
sobre essa possibilidade, e ela olhou para ele como se
tivesse levado uma bofetada.
“Eu não poderia”, disse ela. “Ah, eu não poderia.”
Então, percebendo que se traíra ao mostrar seu medo,
ficou brava: “O que você está pensando?”, perguntou.
“Nosso lar, nosso belo lar. E nossos amigos. E a escola de
Grace. Não é bom para uma criança ficar sendo transferida
de escola em escola.
“Talvez seja necessário”, disse ele. Ele não falara nada
sobre o incidente com Charles Walker e sobre o
envolvimento de Lomax, mas logo ficou evidente que ela já
sabia tudo sobre o caso.
“Imprudente”, disse ela. “Totalmente imprudente.” Mas a
sua raiva não parecia convincente e sim forçada. Seus olhos
azuis e pálidos evitavam o olhar dele, pousando
casualmente nos vários objetos da sala, como se estivesse
se reassegurando de que ainda se encontravam lá,
enquanto seus dedos finos e sardentos moviam-se
inquietos. “Ah, eu sei tudo sobre o seu problema. Eu nunca
interferi em seu trabalho, mas… realmente, você é muito
teimoso. Quero dizer, Grace e eu estamos envolvidas nisso.
E certamente não se pode esperar que façamos as malas e
nos mudemos só porque você se colocou numa posição
delicada.”
“Mas eu estou pensando em você e Grace, ao menos em
parte. É improvável que eu faça… uma carreira brilhante no
departamento se continuar aqui.”
“Ah”, disse Edith distante, com uma ponta de amargura
em sua voz. “Isso não é importante. Fomos pobres até
agora, não há razão para que não continuemos assim. Você
devia ter pensado nisso antes, nas consequências. Um
aleijado.” Subitamente, sua voz mudou, e ela riu
complacente, quase afável. “Honestamente, as coisas são
tão importantes para você. Que diferença iria fazer?”
Ela nunca iria considerar a possibilidade de sair de
Columbia. Se fosse o caso, disse, ela e Grace sempre
poderiam mudar-se para a casa da tia Emma. Ela estava
ficando muito frágil e acolhería a companhia de ambas.
Assim, Stoner descartou a possibilidade pouco depois de
tê-la levantado. Naquele verão iria dar aulas, e dois dos
seus cursos, particularmente, interessavam a ele; eles
tinham sido programados antes de Lomax tornar-se chefe.
Resolveu dar a ambos toda a sua atenção, pois sabia que
poderia levar algum tempo até ter a oportunidade de voltar
a lecioná-los.
Onze

Algumas semanas após o semestre do outono de 1932 ter


começado, ficou claro para William Stoner que ele não
ganhara a sua batalha para manter Charles Walker fora do
programa de pós-graduação. Após as férias de verão,
Walker voltou ao campus como um gladiador que entra
triunfante numa arena. Quando via Stoner nos corredores
do Jesse Hall, inclinava a cabeça num cumprimento irônico e
sorria maliciosamente. Stoner soube por Jim Holland que o
diretor Rutherford se atrasara em tornar oficial a votação do
ano anterior e que enfim fora decidido que Walker poderia
fazer os exames orais de novo, com os examinadores sendo
selecionados pelo chefe do departamento.
A batalha acabara então, e Stoner estava disposto a
aceitar a derrota. Mas a guerra não terminara. Quando
Stoner encontrava Lomax nos corredores ou em reuniões do
departamento, ou em algum evento da faculdade, falava
com ele como antes, como se nada tivesse acontecido. Mas
Lomax não retribuía o cumprimento: encarava-o friamente e
desviava os olhos, como que para comunicar que não ficaria
apaziguado.
Um dia no fim do outono, Stoner encontrou uma
desculpa para entrar no escritório de Lomax e ficou parado
junto à mesa dele por vários minutos até, relutantemente,
Lomax olhar para ele, os lábios cerrados e os olhos duros.
Quando percebeu que Lomax não iria falar, Stoner disse
embaraçado: “Escute, Holly, acabou e está encerrado. Não
podemos deixar para lá?”
Lomax manteve os olhos fixos nele.
Stoner continuou: “Tivemos um desentendimento, são
coisas que acontecem. Fomos amigos antes, e não vejo
razão…”
“Nunca fomos amigos”, disse Lomax nitidamente.
“Certo”, assentiu Stoner. “Mas ao menos nos dávamos
bem. Podemos continuar a ter nossas divergências, mas,
pelo amor de Deus, não há necessidade de exibi-las. Até os
estudantes estão começando a notar.”
“E é bom que notem”, disse Lomax amargamente, “já
que você esteve a ponto de arruinar a carreira de um deles.
Um estudante brilhante, cujos únicos crimes foram sua
imaginação, entusiasmo e integridade, que o forçaram ao
conflito com você… e, sim, talvez seja o caso mesmo de
dizê-lo, um infeliz problema físico que teria evocado
compaixão em qualquer ser humano normal”.
Com a sua mão direita, a mão boa, Lomax segurava um
lápis, que agora tremia na frente dele. Quase com horror,
Stoner se deu conta de que Lomax estava sendo terrível e
inequivocamente sincero.
“Não”, continuou Lomax, “isso, eu não posso perdoar”.
Stoner tentou evitar que sua voz ficasse tensa. “Não é
uma questão de perdão. É simplesmente uma questão de
nos comportarmos um com o outro de modo a não causar
muito desconforto para os estudantes e os outros membros
do departamento.”
“Eu vou ser muito franco com você, Stoner”, disse
Lomax. Sua raiva se acalmara, e sua voz estava tranquila,
prosaica. “Não acho que você tenha condições de ser um
professor; nenhum homem cujos preconceitos passam por
cima de seus talentos e conhecimento tem. Se pudesse, eu
o demitiria, mas não tenho esse poder, como ambos
sabemos. Somos… você é protegido pelo sistema. Eu tenho
de aceitar isso. Mas não tenho de agir como um hipócrita.
Não quero ter nada a ver com você. Nada. E não vou fingir
que a situação entre nós é normal.”
Stoner olhou nos olhos dele por um longo instante. Então
balançou a cabeça. “Certo, Holly”, disse cansado, e
começou a caminhar em direção à porta.
“Só mais um minuto”, chamou Lomax.
Stoner se virou. Lomax estava olhando atentamente
alguns papéis em sua mesa. Seu rosto estava vermelho, e
ele parecia estar lutando consigo mesmo. Stoner se deu
conta de que o que estava vendo não era raiva, mas
vergonha.
Lomax disse: “De agora em diante, se quiser falar
comigo, sobre assuntos do departamento, trate de marcar
uma hora com a secretária”. E, embora Stoner tivesse
ficado parado olhando para ele por um longo momento,
Lomax não ergueu mais a cabeça. Um breve frêmito
perpassou seu rosto, mas depois se aplacou. Stoner saiu da
sala.
E por mais de vinte anos nenhum dos dois homens
voltaria a falar diretamente um com o outro.
•••
Mais tarde, Stoner se deu conta de que era inevitável que os
estudantes fossem afetados; mesmo que tivesse
conseguido persuadir Lomax a manter as aparências, não
poderia impedir que no longo prazo eles tomassem ciência
do conflito. Os seus ex-alunos, até estudantes que conhecia
bem, começaram a cumprimentá-lo e falar com ele com
circunspecção, e até mesmo furtivamente. Alguns lhe
demonstravam simpatia, saindo de seu próprio caminho
para falar com ele ou querendo ser vistos enquanto
andavam juntos nos corredores. Mas não tinha mais com
eles a relação que antes tivera. Era uma figura especial, e
se alguém queria ser visto com ele ou tentava evitá-lo, era
sempre por uma razão específica. Começou a perceber que
sua presença era um constrangimento tanto para seus
amigos quanto para seus inimigos, e por isso começou a
pôr-se mais e mais à parte.
Uma espécie de letargia se abateu sobre ele. Trabalhava
o melhor que podia, mas a contínua rotina de aulas para o
primeiro e o segundo ano exauria seu entusiasmo e o
deixava, no fim do dia, exausto e entorpecido. Fazia o seu
melhor para preencher as horas entre as aulas, recebendo
os alunos e discutindo meticulosamente o trabalho deles,
detendo-os até ficarem inquietos e impacientes.
As horas se arrastavam lentamente à sua volta. Tentou
passar mais tempo em casa com sua mulher e filha, mas,
em função de seu horário estranho, estava livre apenas em
horas insólitas que não se encaixavam na rígida
organização cotidiana de Edith. Descobriu (e não achou
surpreendente) que sua presença regular era tão
perturbadora para sua mulher que ela ficava nervosa e
silenciosa e às vezes até fisicamente doente. E só conseguia
ver Grace uma vez ou outra durante todo o tempo que
passava em casa. Edith agendara os dias da filha
cuidadosamente, seu único tempo “livre” era à noite, e
Stoner tinha de dar aulas quatro noites por semana. Quando
a aula terminava, Grace quase sempre já estava dormindo.
Assim, conseguia vê-la apenas durante o café da manhã
e ficava sozinho com ela só nos poucos minutos em que
Edith tirava a louça da mesa e a colocava de molho na pia
da cozinha. Observava o corpo dela encompridar-se, uma
graça desajeitada surgir em seus membros e uma
inteligência se manifestar em seus olhos tranquilos e em
sua face atenta. E às vezes sentia que alguma proximidade
restava entre eles, uma proximidade que nenhum dos dois
podia se dar ao luxo de admitir.
Por fim, ele voltou ao seu velho hábito de passar a maior
parte do tempo em seu escritório no Jesse Hall. Disse a si
mesmo que, no fundo, ele tinha sorte porque estava livre do
estresse de ter de preparar aulas sobre assuntos muito
específicos ou de ter de direcionar seus estudos para
caminhos predeterminados. Lia ao acaso, para seu próprio
prazer e deleite, escolhendo entre os livros que estivera
esperando anos para ler. Mas a sua mente não se deixava
levar aonde ele queria que fosse: sua atenção se desviava
das páginas à sua frente, e descobria-se olhando fixamente
para o nada. Era como se, momento a momento, sua mente
se tivesse esvaziado de tudo o que sabia e sua vontade se
exaurido de sua força. Ele sentia às vezes que era uma
espécie de vegetal, e ansiava por algo — até mesmo a dor
— que o cutucasse, para fazê-lo se sentir vivo.
Ele chegara àquela idade em que, com crescente
intensidade, ocorria-lhe sempre a mesma pergunta, de tão
essencial simplicidade que não dispunha de meios para
enfrentá-la. Via-se perguntando a si mesmo se sua vida
valia a pena ser vivida. Se alguma vez valera. Era uma
pergunta, suspeitava, que mais cedo ou mais tarde ocorria a
todos os homens. Mas se perguntava se ocorrería aos outros
com tamanha força impessoal como viera a ele. A pergunta
trazia consigo certa tristeza, mas era uma tristeza difusa
que — ele achava — pouco tinha a ver com ele ou com seu
destino em particular. Nem mesmo tinha certeza se a
pergunta fora provocada pelas mais imediatas e óbvias
causas, ou seja, pelo que a sua própria vida se tornara.
Vinha, segundo ele, do acúmulo dos anos, da densidade dos
infortúnios e das circunstâncias e do que tinha
compreendido deles. Sentia um prazer triste e irônico ao
pensar que o pouco conhecimento que conseguira adquirir o
levava a essa conclusão, e que, no fim das contas, todas as
coisas, até mesmo tudo que tinha aprendido e que permitia
que ele compreendesse isso, eram fúteis e vazias, por fim
reduzidas a um nada que não conseguiam alterar.
Uma vez, após sua aula da noite, voltou tarde para seu
escritório e sentou à sua mesa para tentar ler. Era inverno, e
a neve caíra durante o dia, de modo que tudo lá fora estava
coberto por uma suavidade branca. O escritório estava
superaquecido. Abriu uma janela ao lado da mesa para o ar
frio entrar na sala fechada. Respirou fundo e deixou seus
olhos vagarem pelo chão branco do campus. Num impulso,
apagou a luz em sua mesa e ficou na quente escuridão de
seu escritório. O ar frio encheu seus pulmões, e ele se
inclinou em direção à janela aberta. Ouviu o silêncio
daquela noite de inverno, e lhe pareceu que, de algum
modo, conseguia sentir os sons que eram absorvidos pela
delicada estrutura cristalina dos flocos. Nada se movia
sobre a brancura. Era uma cena morta, que parecia puxá-lo,
sugar a sua consciência da mesma forma que puxava o som
do ar e o enterrava em uma maciez fria e branca. Sentiu-se
puxado para fora em direção à brancura que se estendia o
mais longe que conseguia ver, e que fazia parte da
escuridão de onde ela fulgurava, do límpido céu sem nuvens
e sem altura ou profundidade. Por um instante, sentiu-se
saindo do corpo que estava sentado imóvel em frente à
janela. Ao se sentir escapando, tudo — a brancura plana, as
árvores, as altas colunas, a noite, as estrelas longínquas —
parecia inacreditavelmente minúsculo e muito remoto,
como se estivesse encolhendo num nada. Depois, atrás
dele, um aquecedor rangeu. Ele se moveu, e a cena voltou a
ser a de antes. Com alívio e uma estranha relutância,
acendeu de novo a luz da escrivaninha. Catou um livro e
alguns papéis, saiu do escritório, atravessou os corredores
escuros, abriu as largas portas duplas nos fundos do Jesse
Hall e saiu. Caminhou lentamente para casa, ouvindo a cada
passo o barulho abafado da neve seca que se esmagava
sob seus pés.
Doze

Durante aquele ano, sobretudo nos meses de inverno,


Stoner se viu retornando cada vez com mais frequência a tal
estado de irrealidade. Parecia capaz, à sua vontade, de
remover sua consciência do corpo que a continha e de
observar a si mesmo do lado de fora, como um estranho
que repetia os gestos habituais de uma forma
estranhamente familiar. Era uma dissociação que nunca
sentira antes. Sabia que devia ficar preocupado com ela,
mas estava entorpecido, e não conseguia se convencer de
que isso importava. Estava com 42 anos, e nada via pela
frente que quisesse desfrutar e pouco para trás que valesse
lembrar.
Em seu quadragésimo terceiro ano, o corpo de William
Stoner era quase tão esguio como quando ele era jovem,
como no momento em que, pela primeira vez e com o
coração cheio de medo e surpresa, caminhara pelo campus,
que ainda não deixara inteiramente de exercer seu fascínio
sobre ele. Ano a ano, o encurvado de seus ombros
aumentara, e ele aprendera a se mover mais devagar, para
que seu acanhamento de camponês parecesse uma escolha
em vez de uma condição inata. Seu rosto comprido ficara
mais suave com o tempo e, embora sua pele ainda fosse da
cor do couro, não se esticava mais sobre seus malares
pronunciados e se relaxara, deixando rugas finas se
formarem em volta dos olhos e da boca. Ainda vivos e
límpidos, seus olhos cinza se tornaram mais encovados em
seu rosto, quase ocultando o olhar vigilante e atento. Seu
cabelo, antes castanho-claro, escurecera, embora nas
têmporas começasse a ficar um pouco grisalho. Ele não
pensava com frequência nos anos, ou lamentava que
passassem, mas, quando via seu rosto no espelho ou
quando se aproximava de seu reflexo numa das portas de
vidro do Jesse Hall, reconhecia com um leve choque as
mudanças que tinham ocorrido nele.
No fim de uma tarde no começo da primavera, estava
sozinho em seu escritório. Uma pilha de redações do
primeiro ano estava em cima da mesa. Segurava um dos
trabalhos na mão, mas não estava lendo. Como andava
fazendo com frequência ultimamente, fitava pela janela
aquela parte do campus que conseguia ver de seu
escritório. O dia estava ensolarado, e, enquanto olhava, a
sombra que o Jesse Hall projetava tinha avançado quase até
a base das cinco colunas que se erguiam com poderosa e
isolada graça no centro do pátio retangular. Uma parte do
pátio, de um profundo cinza-amarronzado, estava na
sombra. Além da borda da sombra, a grama estava
levemente avermelhada e sobreposta por uma película
reluzente de verde mais claro. Contra a teia preta das
trepadeiras que se enrodilhavam em torno delas, as colunas
de mármore brilhavam brancas. Logo a sombra chegaria até
elas, Stoner pensou, e as bases escureceríam, e a escuridão
iria subir, lentamente e então mais rápido, até… Ele se deu
conta de que alguém estava de pé atrás dele.
Virou a cabeça e ergueu os olhos. Era Katherine Driscoll,
a jovem professora que frequentara seu seminário no ano
anterior. Desde então, embora de vez em quando eles se
encontrassem e se cumprimentassem nos corredores,
nunca tinham realmente conversado. Stoner sentiu uma
leve irritação com aquela aparição repentina. Ele não
gostava de se lembrar do seminário e do que se seguira a
ele. Empurrou a cadeira para trás e se levantou
embaraçadamente.
“Srta. Driscoll”, disse num tom sóbrio e apontou a
cadeira ao lado de sua mesa. Ela o olhou por um momento.
Seus olhos eram grandes e escuros, e Stoner achou que o
rosto dela era extraordinariamente pálido. Com um leve
baixar da cabeça, ela se afastou dele e se sentou na cadeira
que ele vagamente apontara.
Stoner se sentou de novo e olhou para ela por um
momento sem realmente a estar enxergando. Então,
consciente de que esse olhar poderia ser tomado como falta
de educação, tentou sorrir e murmurou uma pergunta vazia,
automática, sobre as aulas dela.
De repente, ela exclamou: “O senhor… o senhor uma vez
mencionou que estaria disposto a dar uma olhada em minha
tese quando eu tivesse um bom começo dela”.
“Sim”, disse Stoner e assentiu. “Eu lembro.”
Então, pela primeira vez, notou que ela segurava uma
pasta de papéis no colo.
“Claro, se estiver muito ocupado…”, disse ela hesitante.
“De forma alguma”, retrucou Stoner, tentando pôr algum
entusiasmo em sua voz. “Sinto muito. Não quis soar
incomodado.”
Com alguma hesitação, ela lhe entregou a pasta. Stoner
a pegou, sentiu o peso e sorriu. “Achei que já teria avançado
mais do que isso”, disse.
“Eu tinha”, admitiu ela. “Mas comecei de novo. Estou
adotando uma nova abordagem, e… e ficaria grata se o
senhor me dissesse o que acha.”
Ele sorriu de novo e assentiu. Não sabia o que dizer.
Ficaram num silêncio constrangido por alguns instantes.
Enfim, ele disse: “Quando você precisa dela de volta?”
Ela balançou a cabeça. “Qualquer hora. Quando o senhor
conseguir devolver.”
“Eu não quero atrasá-la” disse ele. “Que tal na sexta que
vem? Isso me dará tempo o bastante. Por volta das três?”
Ela se levantou tão repentinamente quanto sentara.
“Obrigada”, disse. “Não quero ser um incômodo. Obrigada.”
Depois se virou e saiu do escritório, esbelta e ereta.
Stoner ficou com a pasta nas mãos por alguns
momentos, fitando-a. Então, colocou-a em sua mesa e
voltou para as redações.
Isso foi na terça-feira e, nos dois dias seguintes, o
manuscrito permaneceu intocado em sua mesa. Por motivos
que não compreendia inteiramente, não conseguia abrir a
pasta para começar a ler o que alguns meses antes teria
sido mais um prazer do que um dever. Olhava-a cansado,
como se fosse um inimigo que estava tentando atraí-lo de
volta para uma guerra à qual renunciara.
Chegou sexta-feira e ainda não o tinha lido. De manhã,
quando pegou seus livros e papéis para sua aula das oito, o
manuscrito ainda estava em cima da mesa e olhava para
Stoner de modo acusador. Quando voltou, logo depois das
nove, quase decidiu deixar um recado na caixa de correio
da senhorita Driscoll na secretaria, pedindo-lhe mais uma
semana, mas resolveu dar uma olhada rápida antes de sua
aula das 11 e dizer algumas palavras educadas quando ela
viesse à tarde. Mas não conseguiu se pôr a ler e, quando
tinha de sair para sua aula, a última do dia, recolheu a pasta
da mesa, enfiou-a em meio a seus outros papéis e se
apressou pelo campus até a sala de aula.
Após a aula acabar, ao meio-dia, foi atrasado por vários
alunos que precisavam falar com ele, de modo que já era
mais de uma hora quando conseguiu sair dali. Dirigiu-se,
com uma espécie de determinação feroz, à biblioteca.
Pretendia achar um lugar vazio e dedicar ao manuscrito ao
menos uma hora de leitura antes da reunião às três horas
com a senhorita Driscoll.
Mas, mesmo naquela tranquilidade e naquela penumbra
tão familiar, sentado a uma mesa que ele encontrara nos
recantos mais profundos da biblioteca, teve de fazer um
esforço enorme para conseguir olhar as páginas que
trouxera consigo. Abriu outros livros e leu parágrafos ao
acaso e ficou sentado quieto, inalando o odor bolorento que
vinha dos livros velhos. Enfim, suspirou. Não conseguindo
adiar mais, abriu a pasta e olhou apressadamente as
primeiras páginas.
A princípio, sua mente alcançava o que lia só em parte e
nervosamente, mas aos poucos as palavras se forçaram
sobre ele. Franziu o cenho e leu com mais cuidado. E então
foi capturado: voltou para onde começara, e sua atenção
fluiu para a página seguinte. Sim, disse a si mesmo, é claro.
Muito do material que ela apresentara em seu trabalho para
o seminário estava contido ali, embora rearranjado,
reorganizado, apontando para direções que ele mesmo só
tinha intuído. Meu Deus, pensou com uma espécie de
assombro. E seus dedos tremeram de entusiasmo ao
virarem as páginas.
Quando chegou à última página datilografada, recostou-
se na cadeira exausto e olhou fixamente a parede de
cimento cinza na sua frente. Olhou de relance para o
relógio. Embora parecesse que apenas alguns minutos
haviam transcorrido desde que começara a ler, já eram
quase quatro e meia. Levantou-se apressadamente,
recolheu as folhas do manuscrito o mais rápido possível e se
precipitou para fora da biblioteca. Embora soubesse que era
tarde demais para fazer alguma diferença, atravessou
quase correndo o campus até o Jesse Hall.
Ao passar pela porta da sala principal, a caminho do seu
escritório, ouviu seu nome sendo chamado. Deteve-se e
colocou a cabeça para dentro. A secretária, uma garota
nova que Lomax contratara recentemente, disse a ele num
tom de acusação, quase insolente: “A Srta. Driscoll esteve
aqui para vê-lo às três horas. Ela esperou quase uma hora”.
Stoner assentiu, agradeceu e prosseguiu mais devagar
para o seu escritório. Disse a si mesmo que não importava,
que podia devolver o manuscrito na segunda-feira e pedir
desculpas. Mas o entusiasmo que sentira ao terminar de ler
o texto não passava, e ficou andando irrequieto de um lado
para outro da sala. Volta e meia parava e assentia para si
mesmo. Finalmente foi até a estante, procurou por um
momento e encontrou um folheto fino com letras pretas
borradas na capa: Lista do corpo docente e dos
funcionários, Universidade do Missouri. Encontrou o nome
de Katherine Driscoll. Ela não tinha telefone. Anotou o
endereço, pegou o manuscrito de sua mesa e saiu.
A uns três quarteirões do campus, em direção à cidade,
havia um conjunto de casas velhas e grandes, que alguns
anos antes tinha sido transformado em apartamentos. Eram
ocupados pelos estudantes mais velhos, os professores mais
jovens, funcionários da universidade e um punhado de
gente local. A casa em que Katherine Driscoll morava ficava
no meio delas. Era uma enorme construção de pedra cinza
de três andares, com uma incrível variedade de entradas e
saídas, com torreões e janelas salientes e sacadas
despontando de todos os lados. Stoner finalmente
encontrou o nome de Katherine Driscoll numa caixa de
correio no lado da construção, onde um curto lance de
degraus de cimento levava a uma porta no porão. Hesitou
por um momento e então bateu.
Quando Katherine Driscoll abriu a porta, William Stoner
quase não a reconheceu: ela puxara o cabelo para cima e o
prendera de uma forma um pouco descuidada, de modo que
suas pequenas orelhas rosadas estavam à vista. Usava
óculos de aros escuros, atrás dos quais seus olhos estavam
arregalados e surpresos. Ela vestia uma camisa de homem,
aberta no pescoço, e calças escuras que faziam com que
parecesse mais esbelta e mais graciosa que de hábito.
“Des… desculpe por ter faltado ao nosso compromisso”,
disse Stoner, embaraçado. Moveu a pasta na direção dela.
“Achei que talvez fosse precisar disso durante o fim de
semana.”
Por um longo momento, ela não falou. Olhou para ele
sem expressão e mordeu o lábio inferior. Recuou da porta:
“Quer entrar?”
Ele a seguiu por um corredor muito curto e estreito até
um quarto minúsculo, de teto baixo e escuro, com uma
cama de solteiro baixa que servia como sofá, uma mesa
baixa e comprida na frente, uma única poltrona estofada,
uma mesinha e uma cadeira, além de uma estante repleta
de livros numa parede. Vários livros estavam abertos no
chão e no sofá, e papéis estavam espalhados sobre a mesa.
“É muito pequeno”, disse Katherine Driscoll, inclinando-
se para pegar um dos livros no chão. “Mas eu não preciso
de muito espaço.”
Stoner se sentou na poltrona em frente ao sofá.
Katherine perguntou se ele queria um café, e ele disse que
sim. Então ela foi para a pequena cozinha junto à sala, e ele
relaxou e olhou em volta, ouvindo os ruídos calmos daquela
mulher se movendo na cozinha.
Katherine serviu o café em delicadas xícaras brancas de
porcelana, numa bandeja laqueada de preto, que pôs na
mesa em frente ao sofá. Tomaram o café e conversaram
tensamente por alguns momentos. Então Stoner falou da
parte do manuscrito que tinha lido, e o entusiasmo que
sentira antes, na biblioteca, veio-lhe de novo. Debruçou-se,
falando com intensidade.
Por muitos minutos, os dois foram capazes de conversar
desinibidamente, ocultando-se por trás do assunto do texto.
Katherine Driscoll ficou na borda do sofá, seus olhos
relampejando, seus dedos esguios juntando-se e se
soltando acima da mesa de centro. William Stoner
aproximou a cadeira para a frente e se inclinou atentamente
na direção dela. Estavam tão próximos que ele poderia ter
estendido a mão e a tocado. Falaram dos problemas
levantados pelos capítulos iniciais do trabalho dela, da
direção que a investigação poderia tomar, da importância
do assunto.
“A senhorita não deve desistir”, disse ele, e sua voz
assumiu uma urgência que não conseguia compreender.
“Não importa quão difícil parecerá às vezes, a senhorita não
deve desistir. É bom demais para que você desista. É ótimo,
não há dúvida quanto a isso.”
Ela ficou em silêncio e, por um momento, a animação
abandonou seu rosto. Recostou-se, desviou o olhar e disse,
como que ausente: “O seminário… algumas coisas que
disse… ajudaram muito”.
Ele sorriu e balançou a cabeça. “A senhorita não
precisava do seminário. Mas fico contente que tenha
assistido como ouvinte. Foi um bom seminário, acho.”
“Ah, é uma vergonha!”, explodiu ela. “Uma vergonha. O
seminário… o senhor foi… Eu tive de começar de novo,
depois do seminário. É uma vergonha que eles tenham…”
Ela parou, amarga e confusa, levantou-Se do sofá e
caminhou impaciente até a mesa.
Stoner ficou quieto por um momento, surpreso com a
explosão dela. Então disse: “A senhorita não deveria se
preocupar. Essas coisas acontecem. Tudo vai se resolver
com o tempo. Realmente não é importante”.
E de repente, ao pronunciar aquelas palavras, ele
percebeu que realmente não era importante. Naquele
instante, ele entendeu que estava sendo sincero e, pela
primeira vez em meses, sentiu-se livre do peso de um
desespero cujo fardo não compreendera inteiramente.
Zonzo, quase rindo, ele disse de novo: “Realmente não é
importante”.
Mas um embaraço havia surgido entre eles, e não
conseguiram mais conversar livremente como alguns
momentos antes. Logo Stoner se levantou, agradeceu o
café e se despediu. Ela o acompanhou até a porta e pareceu
quase brusca quando lhe disse boa noite.
Estava escuro lá fora, e uma brisa primaveril soprava no
ar da noite. Stoner respirou fundo e sentiu seu corpo se
revigorar com o frio. Atrás da silhueta irregular das casas, as
luzes da cidade fulguravam na névoa fina que pairava no ar.
Na esquina, uma luz de rua enfrentava debilmente a
escuridão, que se fechava em volta dela. Emergindo da
escuridão, o som de uma risada interrompeu bruscamente o
silêncio, prolongou-se por um instante e se apagou. O cheiro
da fumaça das folhas queimando nos jardins das casas se
detinha no ar por causa da névoa e, enquanto ele
caminhava lentamente pela escuridão, respirando a
fragrância e sentindo em sua língua o ar cortante da noite,
pareceu-lhe que aquele momento era o suficiente e que
talvez não precisasse de muito mais.
•••
E assim ele teve o seu caso de amor.
A consciência desse seu sentimento por Katherine
Driscoll lhe veio lentamente. Surpreendia-se procurando
desculpas para ir até o apartamento dela durante as tardes:
o título de um livro ou de um artigo lhe ocorreria, ele os
anotaria e deliberadamente evitaria encontrá-la nos
corredores do Jesse Hall para poder visitá-la na sua casa à
tarde e entregá-los pessoalmente, tomar um café e
conversar. Uma vez passou meio dia na biblioteca em busca
de uma referência que talvez reforçasse um argumento que
achara dúbio no segundo capítulo; noutra, transcreveu
laboriosamente a parte de um manuscrito latino pouco
conhecido do qual a biblioteca possuía uma cópia
fotostática e, assim, pôde passar várias tardes ajudando-a
com a tradução.
Durante as tardes que passavam juntos, Katherine
Driscoll era cortês, amigável e reservada. Mostrava-se
discretamente agradecida pelo tempo e interesse que ele
investia em seu trabalho, e esperava que não lhe estivesse
tomando o tempo de coisas mais importantes. Nunca
ocorreu a Stoner que ela poderia considerá-lo algo mais que
um simples professor, por quem ela nutria grande
admiração e cuja ajuda, embora amigável, ficava um pouco
além do que seria seu dever. Ele pensava em si mesmo
como uma figura levemente ridícula, uma pessoa na qual
ninguém teria outro interesse que não fosse impessoal. Por
isso, após ter admitido para si mesmo o que sentia por
Katherine Driscoll, preocupou-se imediatamente em não
manifestar de forma alguma seus sentimentos.
Por mais de um mês passou no apartamento dela duas
ou três vezes por semana, permanecendo não mais do que
duas horas a cada vez. Receava que ela fosse ficar
aborrecida com suas contínuas reaparições, de modo que
tomava o cuidado de visitá-la só quando tinha certeza de
que seria genuinamente útil para o trabalho dela. Com certo
sarcasmo, percebeu que estava se preparando para as
visitas com a mesma diligência com que preparava as suas
aulas, e disse a si mesmo que isso seria o bastante, que ele
se contentaria em apenas vê-la e conversar com ela até
quando ela suportasse sua presença.
Mas, apesar de seu cuidado e esforço, as tardes que
passavam juntos foram se tornando cada vez mais tensas.
Por longos momentos, eles se descobriam sem nada para
dizer. Tomavam seus cafés e desviavam o olhar um do
outro, diziam “bom…” em vozes hesitantes e reservadas, e
encontravam razões para se mover incessantemente pela
sala, para longe um do outro. Com uma tristeza cuja
intensidade não esperara, Stoner disse a si mesmo que suas
visitas estavam se tornando um fardo para ela e que sua
cortesia a impedia de fazê-lo saber disso. Como previra que
teria de fazer, tomou sua decisão: iria afastar-se dela,
gradualmente, para que ela não percebesse que ele notara
seu constrangimento, como se já tivesse dado toda a ajuda
que podia.
Na semana seguinte, passou no apartamento de
Katherine só uma vez, e na outra não a visitou. Ele não
imaginara a luta que teria consigo mesmo. Às tardes,
sentado em seu escritório, tinha de se obrigar quase
fisicamente a não se levantar de sua cadeira, precipitar-se
lá fora e correr para o apartamento dela. Uma ou duas
vezes ele a viu de longe, nos corredores, apressando-se
para uma aula ou indo embora. Ele se virou e foi em outra
direção, para que não tivessem de se encontrar.
Após um tempo, uma espécie de entorpecimento lhe
veio, e ele disse a si mesmo que tudo ficaria bem, que em
poucos dias seria capaz de vê-la nos corredores,
cumprimentá-la e sorrir, talvez até mesmo detê-la por um
momento e perguntar como estava indo seu trabalho.
Depois, uma tarde, no escritório principal, enquanto
pegava a correspondência em sua caixa de correio, entre-
ouviu uma jovem professora mencionando para outra que
Katherine Driscoll estava doente e que, nos últimos dois
dias, não comparecera às aulas. Então o entorpecimento o
deixou. Sentiu uma pontada no peito, e toda a sua
resolução e a sua força de vontade se esvaíram. Ele foi
agitado até o seu escritório e procurou desesperadamente
entre os livros, selecionou um deles e foi embora. Quando
chegou ao apartamento de Katherine Driscoll, estava sem
fôlego, e teve de esperar por um longo momento na frente
da porta. Depois, esforçou-se por sorrir o mais
espontaneamente possível, fixou a expressão em seu rosto
e bateu à porta.
Ela estava ainda mais pálida do que o habitual, e com
olheiras. Vestia um simples penhoar azul, e o cabelo estava
puxado para trás severamente.
Stoner se deu conta de que estava nervoso e falando
coisas sem sentido, mas foi incapaz de deter o fluxo de
palavras. “Olá”, disse animadamente, “fiquei sabendo que
você estava doente, pensei em dar uma passada para ver
como estava. Tenho um livro que talvez lhe seja útil, você
está bem? Eu não quero…” E, enquanto ouvia aqueles sons
despencando de seu sorriso rígido, ele não conseguiu parar
de sondar o rosto dela.
Quando finalmente parou de falar, ela recuou da porta e
disse baixinho: “Entre”.
Uma vez dentro da pequena sala-quarto, seu nervosismo
tolo se esvaiu. Ele se sentou na poltrona em frente à cama e
começou a ficar à vontade assim que Katherine Driscoll
sentou-se na frente dele. Por vários momentos, nenhum dos
dois disse nada.
Por fim, ela perguntou: “Quer um café?”
“Não precisa se incomodar”, disse Stoner.
“Não é nenhum incômodo.” A voz dela soou brusca e
tinha um tom subjacente de raiva que ele já ouvira antes.
“Só vou esquentá-lo.”
Ela foi para a cozinha. Sozinho no pequeno cômodo,
Stoner fitou tristemente a mesa de centro e disse a si
mesmo que não devia ter vindo. Ficou pensando na
insensatez que alimenta certos comportamentos dos
homens.
Katherine Driscoll voltou com um bule e duas xícaras,
serviu o café, e os dois ficaram observando o vapor subindo
do líquido preto. Ela tirou um cigarro de um maço
amassado, acendeu-o e fumou nervosamente por um
momento. Stoner se lembrou do livro que trouxera consigo e
que ainda estava em suas mãos. Colocou-o sobre a mesa
entre eles.
“Talvez você não esteja com disposição para ler”, disse
ele, “mas achei que talvez possa lhe ser útil, e pensei…”
“Faz quase duas semanas que eu não o vejo”, disse ela e
apagou o cigarro, torcendo-o ferozmente no cinzeiro.
Ele ficou confuso e disse aflito: “Estive ocupado…”
“Não importa”, disse ela. “Realmente, não importa. Eu
não devia…” e esfregou a testa com a palma da mão.
Ele a olhou preocupado; achou que ela devia estar com
febre. “Sinto muito que esteja doente. Se houver alguma
coisa que eu…”
“Não estou doente”, disse ela. E acrescentou numa voz
que soava calma, refletida e quase indiferente: “Estou
desesperadamente, desesperadamente infeliz”.
E ainda assim ele não entendeu. As palavras simples e
incisivas atravessaram-no como uma lâmina. Afastou-se um
pouco dela e disse confusamente: “Sinto muito. Você
poderia me contar o que é? Se houver algo que eu…”
Katherine ergueu a cabeça. Sua expressão estava rígida,
mas seus olhos brilhavam com as lágrimas. “Eu não
pretendia constrangê-lo. Desculpe. Você deve achar que eu
sou muito tola.”
“Não”, disse ele. Olhou para ela por mais um momento,
para a face pálida que parecia continuar inexpressiva por
um esforço de vontade. Então, fitou suas próprias mãos
grandes e ossudas, que estavam cruzadas num joelho: os
dedos eram toscos e pesados, e os nós eram como
calombos brancos na pele escura.
Por fim, com voz grave e lenta, disse: “De muitas
maneiras eu sou um homem ignorante. Sou eu o tolo, não
você. Eu não vim vê-la porque achei… senti que estava me
tornando uma pessoa inconveniente. Talvez isso não fosse
verdade”.
“Não”, disse ela. “Não, não era verdade.”
Ainda sem olhar para ela, Stoner continuou: “E eu não
queria lhe causar o desconforto de ter de lidar com… com
meus sentimentos por você, que, mais cedo ou mais tarde,
se manifestariam se eu continuasse a vê-la”.
Ela não se mexeu. Duas lágrimas pingaram de seus cílios
e escorreram pelo rosto; ela não as enxugou.
“Talvez tenha sido egoísmo meu. Eu achei que nada
poderia acontecer a não ser constrangimento para você e
infelicidade para mim. Você sabe… das minhas
circunstâncias. Pareceu-me impossível que você pudesse…
que pudesse sentir por mim algo mais que…”
“Cale a boca”, disse ela com força e suavidade. “Ah, meu
amor, cale a boca e venha para cá.”
Stoner se deu conta de que estava tremendo:
embaraçado como um menino, deu a volta na mesa de
centro e foi sentar-se ao lado dela. Hesitantes e
desajeitadas, as mãos deles se procuraram e se
entrelaçaram nervosas. Por um longo momento, eles
ficaram sentados imóveis, como se o mínimo movimento
pudesse deixar escapar a coisa estranha e terrível que
seguravam juntos naquele toque.
•••
Os olhos dela, que ele imaginava de um tom castanho-
escuro ou preto, eram de um violeta profundo. Às vezes
refletiam a luz tênue de uma lâmpada da sala e cintilavam
úmidos. Stoner podia virar a cabeça numa ou noutra direção
e os olhos que fitava mudariam de cor quando ele se movia,
e assim parecia que, mesmo em repouso, eles nunca
estavam parados. Sua carne, que a distância parecera tão
fria e pálida, tinha um cálido tom rosado subjacente, como a
luz fluindo sob uma translucidez leitosa. E, como a carne
translúcida, também sua calma, sua compostura e sua
reserva, que ele achara que eram os traços típicos dela,
disfarçavam um calor, uma ironia e uma alegria que a
aparência contrária tornava ainda mais intensas.
Em seu quadragésimo terceiro ano, William Stoner
aprendeu o que outros, muito mais jovens que ele, haviam
aprendido antes dele: que a pessoa a quem se ama no
começo não é a pessoa que enfim se ama, e que o amor
não é um fim, mas um processo através do qual uma
pessoa experimenta conhecer outra.
Eram ambos muito tímidos, e começaram a explorar um
ao outro lentamente e com cautela. Aproximavam-se e
afastavam-se, tocavam-se e imediatamente recuavam, pelo
medo de impor ao outro mais do que poderia ser desejado.
Dia após dia, as camadas de reserva que os protegiam
foram caindo, e assim, como acontece com as pessoas
extremamente tímidas, abriram-se um ao outro,
desprotegidos, desinibidos e perfeitamente à vontade.
Quase todas as tardes, quando terminava suas aulas, ele
vinha para o apartamento dela. Faziam amor, e
conversavam, e faziam amor de novo, como crianças nunca
cansadas da mesma brincadeira. Os dias da primavera
ficavam mais longos, e eles esperavam ansiosos pelo verão.
Treze

Quando era muito jovem, Stoner pensara no amor como um


estado absoluto da existência que um homem, se tivesse
sorte, poderia ter o privilégio de vivenciar. No entanto, em
sua maturidade, ele o rejeitara como o paraíso de uma
religião falsa, que se devia contemplar com irônico
ceticismo, desprezo suave e maduro, além de uma nostalgia
embaraçada. Agora, em sua meia-idade, ele começava a
entender que não era nem um estado de graça nem uma
ilusão. Via-o como uma parte do devir humano, uma
condição inventada e modificada momento a momento e
dia após dia, pela vontade, pela inteligência e pelo coração.
As horas que antes passava em seu escritório
contemplando pela janela uma paisagem que bruxuleava e
se esvaía frente ao seu olhar ausente, ele agora passava
com Katherine. Todas as manhãs, ia cedo para seu escritório
e se sentava irrequieto à sua escrivaninha por dez ou quinze
minutos. Depois, incapaz de alcançar a calma, saía do Jesse
Hall e atravessava o campus até a biblioteca, onde ficava
folheando alguns livros por dez ou quinze minutos mais.
Enfim, como se fosse um jogo consigo mesmo, interrompia
esse estado de suspensão que impusera a si próprio, saía
por uma porta lateral e seguia o caminho até a casa de
Katherine.
Muitas vezes ela trabalhava até tarde da noite, e
algumas manhãs, quando ele chegava ao apartamento,
encontrava-a acabando de acordar, quente e sensual de
sono, nua por baixo de um penhoar azul-escuro que pusera
rapidamente para vir até a porta. Em manhãs assim, faziam
amor antes mesmo de abrirem a boca, indo para a cama
estreita, ainda amarfanhada e quente do sono de Katherine.
O corpo dela era longo e delicado, macio e poderoso ao
mesmo tempo, e quando ele o tocava, sua mão desajeitada
parecia ficar viva sobre a sua carne. Às vezes olhava para
aquele corpo como se fosse um tesouro posto sob sua
guarda. Deixava seus dedos rudes brincarem sobre a pele
úmida e levemente rosada da coxa e da barriga e
contemplava maravilhado a intrincada e simples delicadeza
de seus pequenos seios firmes. Ele se deu conta de que
nunca antes conhecera o corpo de outra pessoa e lhe
ocorreu ainda que essa era a razão pela qual, de alguma
forma, sempre separava o eu das pessoas do corpo que o
continha. Por fim, ocorreu-lhe com plena consciência que
ele nunca conhecera nenhum outro ser humano com
tamanha intimidade ou confiança e com o calor humano de
quem se entrega completamente ao outro.
Como todos os amantes, falavam muito de si mesmos,
como se dessa forma pudessem entender também o mundo
que os criara.
“Meu Deus, como eu costumava desejá-lo”, disse
Katherine uma vez. “Costumava vê-lo ali na frente da
classe, tão grande, desajeitado e adorável, e desejá-lo
realmente com ardor. Você nunca percebeu, não é?”
“Não”, respondeu William. “Achei que você era uma
jovem muito comportada.”
Ela riu, encantada. “Comportada, de fato!”
Depois ficou um pouco mais séria e sorriu ao se lembrar.
“Suponho que eu me achava também. Ah, como parecemos
corretos para nós mesmos quando não temos razão para
deixar de agir corretamente! É necessário estar apaixonado
para saber alguma coisa sobre si mesmo. Às vezes, com
você, eu me sinto como a maior vadia do mundo, uma vadia
ávida e fiel. Isso lhe parece comportado?”
“Não”, disse William, sorrindo, e estendeu os braços para
ela. “Venha cá.”
Contou para ele que tivera um só namorado. Eles tinham
se encontrado no último ano da faculdade, e terminara mal,
com lágrimas, recriminações e traições.
“A maioria dos casos termina mal”, disse ela, e por um
momento ambos ficaram melancólicos.
Saber que ela tivera outro homem antes dele o
surpreendeu. Percebeu que começara a pensar em si
mesmo e em Katherine como se nunca tivessem realmente
existido antes de ficarem juntos.
“Era um garoto tão tímido”, disse ela. “Imagino que em
certos aspectos se parecia um pouco com você. Só que ele
era amargo e medroso, e nunca consegui descobrir do que
tinha medo. Costumava me esperar no fim do caminho do
alojamento, debaixo de uma grande árvore, porque era
tímido demais para chegar aonde havia muita gente.
Costumávamos caminhar quilômetros pelo campo, onde não
havia chance de encontrarmos alguém. Mas nunca
estivemos realmente juntos. Nem mesmo quando fazíamos
amor.”
Stoner quase conseguia ver essa figura espectral que
não tinha rosto nem nome. Seu choque se transformou em
tristeza, e sentiu uma generosa pena por um garoto
desconhecido que, por causa de uma obscura e
incontrolável amargura, afastara de si o que Stoner agora
possuía. Às vezes, na sonolenta preguiça que se seguia
depois de fazerem amor, ele mergulhava no lento e suave
fluxo de sensações e pensamentos, e nesse fluxo mal sabia
se estava falando em voz alta ou se simplesmente estava
reconhecendo as palavras em que a sensação e o
pensamento se haviam transformado.
Sonhava com a perfeição, com mundos em que eles
poderiam ficar sempre juntos, e quase acreditava no que
sonhava. “Como seria”, dizia ele, “se…” e tentava
inutilmente imaginar uma situação mais atraente do que
aquela em que já se encontravam. No fundo, ambos
estavam cientes de que as alternativas que eles
fantasiavam e construíam eram apenas formas de amar e
de celebrar a vida que tinham juntos.
A vida que tinham juntos era algo que nenhum dos dois
havia realmente imaginado. Passavam da paixão ao desejo,
até chegarem a uma profunda sensualidade que se
renovava de momento a momento.
“Luxúria e conhecimento”, disse Katherine uma vez.
“Não tem combinação melhor na vida, tem?”
E pareceu a Stoner que era exatamente assim, e que era
uma das coisas que ele aprendera.
Pois naquele verão a vida deles juntos não era só fazer
amor e conversar. Eles aprenderam a ficar juntos em
silêncio e adquiriram o hábito do repouso. Muitas vezes
Stoner deixava alguns livros no apartamento de Katherine e,
por fim, eles tiveram de instalar uma estante toda para ele.
Nos dias que passavam juntos, Stoner se viu voltando aos
estudos que tinha praticamente abandonado. E Katherine
continuava a trabalhar no livro que seria a sua tese. Por
horas, ficava sentada à sua minúscula mesa encostada na
parede, a cabeça inclinada com intensa concentração sobre
livros e papéis, seu pescoço esguio e pálido destacando-se
contra o azul-escuro do penhoar. Enquanto isso, Stoner se
esparramava na poltrona ou ficava deitado na cama,
igualmente concentrado.
Às vezes, eles erguiam os olhos de seus livros, sorriam
um para o outro e voltavam às suas leituras. Outras vezes,
era só Stoner que levantava o olhar e se delongava em
admirar a graciosa curva das costas de Katherine e seu
pescoço esguio, onde sempre caía uma mecha de cabelo.
Depois, um desejo relaxado e calmo lhe vinha, e ele se
levantava e ficava de pé atrás dela com os braços apoiados
de leve nos seus ombros. Katherine se endireitava e deixava
sua cabeça encostar no peito dele, e as mãos dele iam
adiante no penhoar folgado e tocavam suavemente seus
seios. Depois faziam amor, ficavam deitados por um tempo
e voltavam a estudar, como se o amor e os estudos fossem
um só processo.
Essa era uma das exceções à chamada “opinião geral”
que haviam aprendido naquele verão. Eles tinham sido
criados no respeito de uma tradição segundo a qual, de uma
maneira ou de outra, a vida da mente e a vida dos sentidos
eram separadas e, de fato, inimigas. Haviam acreditado,
sem jamais terem realmente percebido, que uma tinha de
ser escolhida em detrimento da outra. O fato de que uma
podia complementar a outra nunca lhes ocorrera e, como a
experiência da vida veio antes da teoria, pareceu uma
descoberta que pertencia apenas a eles. Começaram a
fazer uma lista dessas exceções à “opinião geral” e a
guardá-las como um tesouro: ela ajudava a isolá-los do
mundo que impunha tais opiniões, e a aproximá-los ainda
mais um do outro, de uma maneira que os comovia.
Mas havia uma exceção da qual Stoner tomou
consciência e sobre a qual não falou com Katherine. Uma
exceção que tinha a ver com o relacionamento com sua
mulher e com sua filha.
Era um relacionamento que, de acordo com a “opinião
geral”, deveria ter piorado constantemente com o
prosseguimento do que a “opinião geral” descrevería como
a sua “relação extra-conjugal”. Mas não foi o que aconteceu.
Ao contrário, pareceu melhorar continuamente. Suas
ausências cada vez maiores do que ele ainda tinha de
chamar seu “lar” pareciam deixá-lo mais próximo tanto de
Edith quanto de Grace do que estivera em anos. Começou a
nutrir por Edith um carinho amigável que era próximo da
afeição e, de vez em quando, eles até conseguiam bater
papo. Durante aquele verão, ela até limpou a varanda
envidraçada, consertou os danos causados pelo tempo e
colocou um sofá-cama no quarto, para que Stoner não
tivesse mais de dormir na sala.
E às vezes, nos fins de semana, ela fazia visitas a
vizinhos e deixava Grace sozinha com o pai.
Ocasionalmente, Edith ficava fora tempo o bastante para
ele fazer caminhadas no campo com sua filha. Longe da
casa, a reserva firme e alerta de Grace se esvaía, e às vezes
ela sorria com uma tranquilidade e um charme que Stoner
quase tinha esquecido. Ela crescera rapidamente no último
ano e estava muito magra.
Só com esforço de vontade, ele conseguia lembrar a si
mesmo que estava enganando Edith. Como acontece
frequentemente, as duas partes de sua vida eram
completamente separadas e, embora soubesse que sua
capacidade de introspecção fosse limitada e que tendia a
iludir a si mesmo, ele não conseguia chegar a crer que
estivesse fazendo mal a qualquer uma das pessoas pelas
quais se sentia responsável.
Ele não era bom em fingir e nem sequer lhe ocorreu
esconder seu caso com Katherine Driscoll, mas também não
pensou em exibi-lo para quem quer que fosse. Não lhe
parecia possível que alguém de fora pudesse ter
consciência do caso deles, ou ter algum interesse nele.
Portanto, foi um choque profundo, embora impessoal,
quando descobriu, no fim do verão, que Edith sabia do caso
e que soubera dele desde o começo.
Mencionou-o por acaso uma manhã, enquanto Stoner se
delongava a tomar seu café, conversando com Grace. Edith
falou com sua filha num tom brusco, dizendo que era para
ela apressar-se e terminar seu café da manhã, e que, em
vez de desperdiçar tempo, precisava estudar uma hora de
piano. William observou a figura magra e ereta de sua filha
sair da sala de jantar e esperou distraidamente até ouvir as
primeiras notas ressoantes vindo do velho piano.
“Ora”, disse Edith, num tom um pouco malicioso, “você
está um pouco atrasado esta manhã, não?”
William voltou-se para ela com uma expressão
interrogativa, mantendo ao mesmo tempo seu olhar
ausente.
Edith disse: “A sua pequena pós-graduanda não vai ficar
brava se você a deixar esperando?”
Ele sentiu um entorpecimento nos lábios. “O quê?”,
perguntou. “O que isso quer dizer?”
“Ah, Willy”, disse Edith, e riu condescendente. “Você
achou que eu não sabia do seu… pequeno flerte? Ora, eu
sempre soube. Como é o nome dela? Eu fiquei sabendo,
mas esqueci qual é.”
Em seu choque e confusão, a mente de Stoner só captou
uma palavra, e quando ele falou sua voz lhe soou petulante
e aborrecida. “Você não entende”, disse. “Não é um… flerte,
como você chamou. É…”
“Ah, Willy”, disse ela e riu de novo. “Você parece tão
aturdido. Ah, eu sei tudo sobre essas coisas. Um homem da
sua idade e tudo. É natural, suponho. Ao menos dizem que
é.”
Por um momento, ele ficou em silêncio. Então,
relutantemente, disse: “Edith, se você quiser conversar
sobre…”
“Não!” disse ela. Havia uma ponta de medo em sua voz.
“Não há nada para conversar. Nada mesmo.”
E eles não conversaram nem naquela hora nem depois. A
maior parte do tempo, Edith continuou a manter a
convenção de que era pelo trabalho que ele não vinha para
casa. Mas ocasionalmente, e quase distraidamente, ela
falava através da consciência que guardava dentro de si. Às
vezes, falava brincando, com uma espécie de afeto
zombeteiro. Outras vezes, num tom indiferente, como se
fosse o mais casual dos tópicos de conversação. Outras
vezes, ela parecia um pouco irritada, como se alguma
ninharia a tivesse aborrecido.
Ela disse: “Ah, eu sei. Quando um homem chega aos 40…
Mas realmente, Willy, você tem idade para ser o pai dela,
não tem?”
Não lhe tinha passado pela cabeça como seria visto por
alguém de fora, pelo mundo. Por um momento, imaginou
como ele devia aparecer aos olhos dos outros, e o que ele
viu em parte correspondia às palavras de Edith. Ele teve o
vislumbre de uma figura que esvoaçava através das fofocas
de salão e das páginas de ficção barata, um sujeito patético
perto da meia-idade, incompreendido por sua mulher e que,
na esperança de renovar sua antiga energia, namorava uma
garota muitos anos mais nova do que ele, buscando, de um
modo desajeitado e ridículo, uma juventude que não podia
voltar. Um palhaço fátuo e espalhafatoso, de quem o mundo
ria com embaraço, pena e desdém. Ele olhou para essa
figura o mais perto que pôde, mas, quanto mais olhava,
menos familiar lhe parecia. Não era a si mesmo que via, e,
de repente, entendeu que não era ninguém.
Mas ele sabia que, aos poucos, o mundo o estava
cercando, cercando Katherine e o pequeno nicho que eles
acharam que era deles. E ele observava a aproximação
daquele mundo com uma tristeza da qual não conseguia
falar, nem mesmo com Katherine.
•••
O semestre de outono começou com alguns dias de calor
incomum e com as cores tipicamente intensas daquela
estação, que chegou após uma geada prematura. Stoner
voltou para suas aulas com uma energia que não sentia
havia muito tempo: mesmo a perspectiva de enfrentar uma
centena de rostos de calouros não atenuava seu entusiasmo
renovado.
Sua vida com Katherine continuou como era antes,
exceto que, com a volta dos estudantes e muitos membros
do corpo docente, ele começou a achar necessário agir com
mais discrição. Durante o verão, a velha casa em que
Katherine morava estivera quase deserta. Eles puderam,
assim, ficar juntos em um isolamento quase completo, sem
medo de que pudessem ser notados. Agora William tinha de
agir com cautela quando ia para a casa dela à tarde. Ele se
descobria olhando de um lado para outro na rua antes de se
aproximar da casa e descendo furtivamente as escadas que
levavam ao apartamento dela.
Quando estavam juntos, sonhavam em se rebelar e
conjeturavam gestos estrepitosos. Tinham a tentação de
fazer um escândalo, de ostentar a relação deles para o
mundo inteiro. Mas depois não faziam nada e não tinham
realmente vontade de fazer. Apenas queriam que os
deixassem em paz, para que pudessem ser livres para ser
eles mesmos. E ao desejarem isso, sabiam que não seriam
deixados em paz e temiam que não conseguiríam ter essa
liberdade. Achavam que estavam sendo discretos, e mal
lhes ocorrera que alguém podia suspeitar do caso deles.
Decidiram que nunca iriam se encontrar na universidade e,
quando não podiam evitar ser vistos em público,
cumprimentavam-se com muita formalidade, achando que
eram os únicos cientes da ironia daquela encenação.
Mas se soube do caso, e bem rápido, após o início do
semestre de outono. Talvez essa descoberta tenha vindo da
clarividência peculiar que as pessoas têm sobre esses
assuntos, pois nenhum dos dois dera algum sinal aparente
de suas vidas privadas. Ou talvez alguém tenha feito uma
insinuação que soara plausível e que induzira algum outro a
observá-los com mais atenção, o que por sua vez… As
especulações eram, sabia-se, inúteis. No entanto,
continuavam a ser feitas.
Houve sinais que os induziram a pensar que tinham sido
descobertos. Certa vez, caminhando atrás de dois alunos,
Stoner ouviu um deles dizer, em parte com admiração e em
parte com desprezo: “O velho Stoner. Meu Deus, quem teria
acreditado nisso?”, e viu ambos balançarem a cabeça em
escárnio e perplexidade com a condição humana.
Conhecidas de Katherine fizeram indiretas sobre Stoner e
ofereceram-lhe confidências sobre suas próprias vidas
amorosas que ela não solicitara.
O que surpreendeu a ambos foi que tudo isso não parecia
ter importância. Ninguém se recusava a falar com eles.
Ninguém lançava a eles olhares hostis: não eram destinados
a sofrer por causa daquele mundo que eles tanto haviam
temido. Começaram a acreditar que seria possível viverem
no lugar que acharam que seria contra o amor deles, e até
viver com alguma dignidade e conforto.
Nos feriados de Natal, Edith decidira levar Grace para
visitar sua mãe em St. Louis e, pela única vez em sua vida
juntos, William e Katherine puderam ficar na companhia um
do outro por um período maior.
Separadamente, e de modo casual, ambos fizeram com
que se soubesse que ficariam fora da universidade durante
aqueles dias. Katherine iria visitar parentes no leste,
enquanto William iria trabalhar no centro bibliográfico e no
museu de Kansas City. Pegaram ônibus separados, que
partiam em horários diferentes, e se encontraram em Lake
Ozark, uma cidadezinha turística, situada na região serrana
de mesmo nome.
Eram os únicos hóspedes na única pousada da vila que
ficava aberta o ano todo. Tinham dez dias inteiros para eles.
Ocorrera uma forte nevasca três dias antes da chegada
deles, e durante sua estada nevou de novo, razão pela qual
os perfis suaves das montanhas permaneceram brancos
durante todo o tempo que ficaram lá.
Eles tinham um chalé com um quarto, uma sala e uma
pequena cozinha. Era um pouco afastado dos outros chalés
e dava para um lago que permanecia congelado durante os
meses de inverno. De manhã, acordavam abraçados, seus
corpos quentes e luxuriantes debaixo de cobertores
pesados. Punham a cabeça para fora dos cobertores e
observavam seu sopro se condensar em grandes nuvens no
ar frio. Riam como crianças e puxavam de volta os
cobertores sobre as cabeças e se apertavam ainda mais. Às
vezes, faziam amor e ficavam na cama a manhã toda e
conversavam, até o sol entrar por uma janela que dava para
o leste. Outras vezes, Stoner pulava da cama assim que
eles acordavam, puxava os cobertores do corpo nu de
Katherine e ria dos gritinhos dela enquanto acendia o fogo
na grande lareira. Depois se aninhavam na frente do fogo,
com só um cobertor em volta deles, e esperavam ser
aquecidos pelas chamas e pelo calor natural de seus corpos.
Apesar do frio, caminhavam quase todo dia pelos
bosques. Os grandes pinheiros verde-escuros contra a neve
erguiam-se imensos em direção ao azul-claro do céu sem
nuvens. O deslizamento ocasional de uma massa de neve
se despregando de um dos galhos e caindo intensificava o
silêncio em volta deles, como o ocasional chilreio de um
pássaro solitário aumentava a sensação de isolamento em
que caminhavam. Uma vez viram um cervo que descera das
montanhas mais altas atrás de comida. Era uma corça, seu
amarelo-avermelhado brilhando contra a austeridade dos
pinheiros escuros e da neve branca. A cinquenta metros
deles, ela os olhou, uma pata dianteira delicadamente
erguida sobre a neve, as orelhinhas apontadas para a
frente, os olhos castanhos perfeitamente redondos e
incrivelmente suaves. Ninguém se moveu. A face delicada
da corça se inclinou, como se os interrogasse polidamente.
Depois, sem pressa, ela se virou e se afastou, erguendo
elegantemente as patas da neve e recolocando-as
precisamente uma na frente da outra, com uma leve
crepitação.
À tarde, iam para a área da recepção, que também
funcionava como mercadinho e restaurante da vila.
Tomavam café e conversavam com quem quer que
aparecesse e, se necessário, compravam algumas coisas
para o jantar, que sempre faziam no chalé.
Às vezes, de noite, acendiam o lampião e liam, porém
mais frequentemente se sentavam sobre cobertores
dobrados em frente à lareira e conversavam e ficavam em
silêncio observando as chamas que brincavam
intrincadamente na lenha e os reflexos do fogo se
projetando sobre seus rostos.
Uma noite, perto do fim da estada deles, Katherine disse
calmamente, quase distraidamente: “Bill, se não tivermos
mais nada, teremos tido esta semana. É um pensamento
infantil?”
“Não importa se é infantil”, disse Stoner. “É a verdade.”
“Então vou dizer”, declarou Katherine. “Teremos tido esta
semana.”
Na última manhã, Katherine arrumou os móveis e limpou
o chalé lentamente e com muito cuidado. Ela tirou a aliança
que usara e a enfiou numa fenda entre a parede e a lareira.
Depois, sorriu timidamente: “Eu queria”, disse, “deixar algo
nosso aqui. Algo que eu saiba que irá ficar aqui, enquanto
este lugar existir. Talvez seja bobagem”.
Stoner não conseguiu responder. Pegou-a pelo braço e os
dois saíram do chalé e atravessaram a neve até a recepção
da pousada, onde o ônibus os pegaria e levaria de volta a
Columbia.
•••
Uma tarde no fim de fevereiro, alguns dias depois de o
segundo semestre ter começado, Stoner recebeu uma
ligação da secretária de Gordon Finch. Ela lhe disse que o
diretor queria falar com ele e perguntou se podia passar lá
naquela tarde ou na manhã seguinte. Stoner disse que iria
e, após ter desligado, ficou sentado por vários minutos com
a mão no telefone. Então suspirou, assentiu para si mesmo
e desceu para o escritório de Finch.
Gordon Finch estava com camisa de mangas, a gravata
afrouxada, recostado em sua cadeira giratória e com as
mãos cruzadas atrás da nuca. Quando Stoner entrou na
sala, ele assentiu afavelmente e apontou a poltrona
revestida de couro ao lado de sua mesa.
“Sente-se, Bill. Como tem passado?”
Stoner assentiu. “Bem.”
“As aulas o têm mantido ocupado?”
Stoner disse num tom seco: “Razoavelmente. Tenho um
horário cheio”.
“Eu sei”, disse Finch e balançou a cabeça. “Não posso
interferir nisso, você sabe. Mas é uma maldita vergonha.”
“Tudo bem”, disse Stoner, um pouco impaciente.
“Bom.” Finch endireitou-se em sua poltrona e cruzou as
mãos sobre a escrivaninha. “Não há nada de oficial nessa
visita, Bill. Só queria conversar um pouco com você.”
Houve um longo silêncio. Stoner disse delicadamente: “O
que foi, Gordon?”
Finch suspirou e, então, disse bruscamente: “Bom. Estou
falando com você agora como amigo. As pessoas andam
falando. Não é nada a que eu, como diretor, tenha de dar
qualquer atenção ainda, mas… Bom, alguma hora eu talvez
tenha de dar atenção, e achei que devia falar com você…
como amigo, veja bem, antes que algo sério se
desenvolva”.
Stoner assentiu. “O que andam falando?”
“Ah, que diabos, Bill! Você e a garota Driscoll. Você
sabe.”
“Sim”, disse Stoner. “Eu sei. Eu só queria saber quão
longe tinha ido.”
“Não muito, ainda. Insinuações, comentários, coisas
assim.”
“Entendo”, disse Stoner. “Não sei o que posso fazer
quanto a isso.”
Finch começou a dobrar cuidadosamente uma folha de
papel. “É sério?”
Stoner assentiu e olhou pela janela. “É sério, receio.”
“O que você vai fazer?”
“Não sei.”
Com uma violência súbita, Finch amassou o papel que
dobrara tão cuidadosamente e arremessou-o na lata de lixo.
Ele disse: “Em tese, a vida é sua para levar do jeito que
quiser. Em tese, você deveria poder transar com quem
quisesse, fazer o que bem quisesse, e não importaria desde
que não interferisse em seu ensino. Mas droga! A vida não é
sua. É… ah, que inferno! Você sabe o que quero dizer”.
Stoner sorriu. “Receio que sim.”
“É um assunto chato. E como está sendo com Edith?”
“Aparentemente”, disse Stoner, “ela leva a coisa toda
bem menos a sério que todo mundo. E é uma coisa
engraçada, Gordon. Acho que nunca nos demos tão bem
como nesse ano que passou”.
Finch deu um riso breve. “Vai entender… Mas o que eu
quis dizer foi: vai haver um divórcio? Algo assim?”
“Não sei. Possivelmente. Mas Edith iria se opor. Seria
uma confusão.”
“E quanto a Grace?”
Stoner sentiu uma dor súbita na garganta, e ele sabia
que sua expressão mostrava o que sentia. “Pois é… esse é
outro assunto. Eu não sei, Gordon.”
Finch disse impessoalmente, como se estivessem
discutindo sobre alguma outra pessoa: “Você poderia
sobreviver a um divórcio… se não for encrencado demais.
Seria duro, mas você provavelmente sobrevivería. E, se
essa coisa com a Driscoll não fosse séria, se você só
estivesse transando por aí, bom, com isso também se pode
lidar. Mas você está colocando o pescoço para fora, Bill,
você está pedindo”.
“Suponho que sim”, disse Stoner.
Houve uma pausa. “É um inferno esse meu trabalho”,
reclamou Finch pesadamente. “Às vezes acho que não sou a
pessoa certa para ele.”
Stoner sorriu. “Dave Masters uma vez disse que você não
era um filho da puta grande o bastante para ser realmente
bem-sucedido.”
“Talvez ele tivesse razão”, disse Finch. “Mas eu me sinto
um com bastante frequência.”
“Não se preocupe com isso, Gordon”, disse Stoner.
“Compreendo a sua situação. E se pudesse fazer com que
fosse mais fácil para você, eu…” Ele fez uma pausa e
balançou a cabeça decididamente. “Mas agora não posso
fazer absolutamente nada. Vai ter de esperar. De algum
jeito…”
Finch assentiu e não olhou para Stoner. Ele fitava
fixamente a escrivaninha, como se fosse um triste destino
que se aproximava dele, lento e inexorável. Stoner esperou
alguns momentos e, já que Finch não disse mais nada,
levantou-se silenciosamente e saiu do escritório.
Naquela tarde, por causa da conversa com Gordon Finch,
Stoner chegou atrasado ao apartamento de Katherine. Sem
se preocupar em olhar à sua volta, ele desceu a escada e
entrou. Katherine o estava esperando. Ela não tinha trocado
de roupa e o esperava quase formalmente, sentada ereta e
alerta no sofá.
“Você está atrasado”, disse ela, sem denotar qualquer
emoção em sua voz.
“Desculpe”, disse ele. “Fui retido.”
Katherine acendeu um cigarro, sua mão tremendo
levemente. Examinou o fósforo por um momento e, então, o
apagou com uma baforada de fumaça. Ela disse: “Uma das
minhas colegas professora fez muita questão de me
informar que o diretor Finch te chamou hoje à tarde”.
“Sim”, respondeu Stoner. “Foi o que me reteve.”
“Era sobre nós?”
Stoner assentiu. “Ele ouviu algumas coisas.”
“Imaginei que fosse isso”, disse Katherine. “Parece que
minha amiga soube de algo que não queria me contar. Ah,
meu Deus, Bill.”
“Não é nada disso”, disse Stoner. “Gordon é um velho
amigo. Eu realmente acredito que ele quer proteger a
gente. Acredito que fará isso se puder.”
Por um longo momento, Katherine não disse nada.
Depois chutou fora os sapatos e recostou-se no sofá,
olhando para o teto. Disse calmamente: “Agora vai começar.
Acho que era demais esperar que eles fossem nos deixar
em paz. Acho que nunca acreditamos seriamente que
deixariam”.
“Se ficar muito ruim”, disse Stoner, “podemos ir embora.
Podemos pensar numa solução”.
“Oh, Bill!”, Katherine estava rindo um pouco, roucamente
e baixinho. “Você é o mais querido dos amores, o mais
querido que alguém possa imaginar. E eu não vou deixar
que eles nos incomodem. Não vou deixar.”
E por várias semanas eles continuaram a viver como
sempre. Com uma estratégia que não teriam sido capazes
de administrar um ano antes, com uma força que não
sabiam possuir, praticaram evasões e retiradas,
empregando suas energias como generais habilidosos que
precisam sobreviver com tropas reduzidas. Eles se tornaram
cada vez mais circunspectos e cautelosos, e sentiram um
prazer sombrio com suas manobras. Stoner vinha ao
apartamento dela só após escurecer, quando ninguém
poderia vê-lo entrar. Durante o dia, entre as aulas, Katherine
se permitia ser vista em cafés com jovens professores, e a
forte determinação deles deixava as horas que passavam
juntos muito mais intensas. Disseram a si mesmos e
repetiam um ao outro que estavam mais próximos do que
jamais tinham estado e, para a surpresa de ambos, deram-
se conta de que isso era verdade, que as palavras que
diziam para se reconfortar eram mais do que consoladoras:
elas tomaram a proximidade possível e a dedicação,
inevitável.
Era um mundo à meia-luz em que viviam e no qual
investiam as melhores partes de si mesmos, tanto que,
depois de um tempo, o mundo exterior, onde as pessoas
andavam e falavam e onde havia mudanças e movimentos
contínuos, pareceu-lhes falso e irreal. Suas vidas eram
nitidamente divididas entre esses dois mundos, e eles
achavam natural que tivessem de viver assim, divididos.
Durante os meses do fim do inverno e começo da
primavera, encontraram juntos uma quietude que não
estivera lá antes. Enquanto o mundo exterior os cercava,
eles se tornaram menos conscientes de sua presença, e a
felicidade deles era tanta que não tinham necessidade de
falar dela, nem mesmo de pensar nela. No pequeno e
escuro apartamento de Katherine, escondido como uma
caverna sob a enorme casa velha, eles tinham a impressão
de que estavam fora do tempo, em um universo atemporal
que era uma descoberta exclusivamente deles.
Mas, em um dia no fim de abril, Gordon Finch chamou de
novo Stoner a seu escritório. E ele desceu com um
entorpecimento estranho que vinha de um presságio que
ainda não admitira para si mesmo.
O que acontecera era classicamente simples, algo que
Stoner devia ter previsto.
“É o Lomax”, disse Finch. “De algum jeito, ele ficou
sabendo e não vai deixar passar.”
Stoner assentiu. “Devia ter pensado nisso. Devia ter
esperado algo assim. Você acha que adianta alguma coisa
se eu falar com ele?”
Finch balançou a cabeça, atravessou o escritório e parou
na frente da janela. O sol do começo da tarde banhou seu
rosto, que brilhava de suor. Ele disse cansado: “Você não
entendeu, Bill. Lomax não está jogando desse jeito. O seu
nome nem mesmo veio à tona. Ele está agindo através da
Driscoll”.
“Ele o quê?”, perguntou Stoner confuso.
“Você quase tem de admirar o sujeito”, disse Finch. “De
algum modo, ele sabia muito bem que eu sabia de tudo.
Assim, ele veio aqui ontem, de repente, você sabe, e me
informou que teria de demitir a garota Driscoll e me avisou
que a coisa podia causar um escândalo.”
“Não”, disse Stoner. Ele agarrou os braços de couro da
poltrona com tanta força que suas mãos doeram.
Finch continuou: “Segundo Lomax, houve reclamações,
sobretudo de estudantes e de algumas pessoas da cidade.
Parece que homens têm sido vistos entrando e saindo do
apartamento dela em tudo quanto é hora, uma conduta
evidentemente indecente, esse tipo de coisa. Ah, ele fez a
coisa lindamente: não tem objeções pessoais… aliás, ele
admira a garota, para falar a verdade, mas precisa pensar
na reputação do departamento e da universidade. Juntos,
criticamos a necessidade de nos curvarmos aos ditames da
moral da classe média, concordamos que a comunidade de
acadêmicos deveria representar um baluarte contra a ética
protestante e concluímos que na prática estávamos
impotentes. Ele disse que esperava poder levar até o fim do
semestre, mas que duvidava de que conseguiria. E o tempo
todo o filho da puta sabia que nós compreendíamos um ao
outro perfeitamente”.
Um embargo em sua garganta tornava impossível Stoner
reagir. Ele engoliu em seco duas vezes e testou sua voz:
estava firme e sem inflexão. “O que ele quer está
perfeitamente claro, é evidente.”
“Receio que sim”, disse Finch.
“Eu sabia que ele me odiava”, disse Stoner distanciada-
mente. “Mas nunca me dei conta… nunca imaginei que
ele…”
“Nem eu”, declarou Finch. Ele voltou à sua escrivaninha
e sentou-se pesadamente. “E não há nada que eu possa
fazer, Bill. Estou impotente. Se Lomax quiser achar
testemunhas, pode ter certeza de que elas vão aparecer. Ele
tem uma quantidade considerável de adeptos, você sabe. E
se a coisa chegar ao reitor…”
Ele balançou a cabeça.
“O que você imagina que irá acontecer se eu me recusar
a pedir demissão? Se simplesmente nos recusarmos a ficar
com medo?”
“Ele vai crucificar a garota”, disse Finch
categoricamente. “E, como que por acidente, você será
arrastado junto. É muito claro.”
“Então”, disse Stoner, “parece que não há nada a fazer”.
“Bill”, disse Finch, e então ficou quieto. Ele apoiou a
cabeça no punho cerrado. Disse lentamente: “Há uma
chance. Só uma. Eu acho que consigo segurá-lo se você…
se a garota Driscoll simplesmente…”
“Não”, interrompeu Stoner. “Acho que não consigo fazer
isso. Realmente, acho que não consigo.”
“Que inferno!” A voz de Finch estava angustiada. “Ele
está contando com isso. Pense um minuto. O que vocês
farão? Estamos em abril, quase maio, que tipo de emprego
você consegue nesta época… se é que vai conseguir
algum?”
“Não sei”, respondeu Stoner. “Alguma coisa…”
“E quanto a Edith? Você acha que ela vai ceder, dar-lhe o
divórcio sem lutar? E Grace? O que seria dela, nesta cidade,
se você simplesmente fosse embora? E Katherine? Que tipo
de vida vocês teriam? O que isso acarretaria para vocês
dois?”
Stoner nada disse. Um vazio estava começando a
avançar dentro dele. Ele sentiu um murchar, um despencar.
Por fim, disse: “Você pode me dar uma semana? Preciso
pensar. Uma semana”.
Finch assentiu. “Esse tanto eu posso segurá-lo. Mas não
muito mais, Bill. Você sabe disso.”
“Sim.” Ele se levantou e ficou parado por um momento,
testando o entorpecimento e a inércia de suas pernas. “Eu
falo com você. Falo com você quando souber.”
Ele saiu do escritório e atravessou o longo corredor
escuro até chegar com dificuldade à luz do mundo exterior,
que, para onde quer que se voltasse, parecia uma prisão.
•••
Anos depois, de vez em quando ele olharia em retrospecto
aqueles dias que se seguiram à sua conversa com Gordon
Finch e não conseguiría relembrá-los com clareza. Sentia-se
como um morto, animado por nada mais do que um hábito
de vontade teimosa. No entanto, estava estranhamente
consciente de si mesmo e dos lugares, das pessoas e dos
eventos que naqueles poucos dias fluíam na sua frente, e
ele sabia que, aos olhos dos outros, sustentava uma
aparência que desmentia sua condição. Deu suas aulas,
cumprimentou seus colegas, compareceu às reuniões a que
tinha de comparecer, e nenhuma das pessoas que
encontrava dia após dia sabia que alguma coisa estava
errada.
Mas, desde o momento em que saiu do escritório de
Gordon Finch, ele soube, tomado por um entorpecimento
que o invadia a partir de um ponto situado no centro de seu
ser, que uma parte de sua vida tinha acabado, que uma
parte dele estava tão próxima da morte que podia quase
observar sua lenta aproximação. Ele mal tinha consciência
de que atravessava o campus a pé no calor brilhante e
fresco de uma tarde do começo da primavera. Os cornisos
ao longo das calçadas e nos jardins estavam
completamente floridos e tremulavam como nuvens macias,
translúcidas e tênues, diante de seu olhar. O aroma doce
das florações de lilás murchando enchia o ar.
Chegou ao apartamento de Katherine tomado por uma
alegria exaltada e cruel. Ignorou as perguntas dela sobre
seu último encontro com o diretor. Forçou-a a rir e assistiu,
com uma tristeza incomensurável, ao último esforço de
alegria deles, que era como uma espécie de dança da vida
sobre um corpo morto.
Stoner sabia que, mais cedo ou mais tarde, eles teriam
de conversar. Mas as palavras que disseram pareciam a
encenação de um espetáculo que tinham ensaiado
repetidamente na privacidade de suas consciências.
Revelaram essa consciência através da gramática,
progredindo do presente — “somos felizes, não?” — para o
passado — “Nós fomos felizes… mais felizes do que
qualquer um, acho” — até o inevitável futuro.
Vários dias após a conversa com Finch, num momento de
calma que interrompeu a alegria meio histérica que ambos
tinham escolhido como a convenção mais apropriada para
acompanhá-los durante seus últimos dias juntos, Katherine
disse: “Não temos muito tempo, temos?”
“Não”, respondeu Stoner baixinho.
“Quanto tempo mais?” perguntou Katherine.
“Alguns dias, dois ou três.”
Katherine assentiu. “Eu costumava achar que não seria
capaz de suportar isso. Mas estou simplesmente
entorpecida. Não sinto nada.”
“Eu sei”, disse Stoner. Ficaram em silêncio por um
momento. “Você sabe que, se houvesse qualquer coisa…
qualquer coisa que eu pudesse fazer, eu…”
“Pare”, disse ela. “É claro que eu sei.”
Ele se recostou no sofá e olhou para o teto baixo e
escuro que fora o céu do mundo deles. Depois disse
calmamente: “Se eu jogasse tudo fora… se eu desistisse,
simplesmente fosse embora… você viria comigo, não viria?”
“Sim”, respondeu ela.
“Mas você sabe que eu não vou fazer isso, não sabe?”
“Sim, eu sei.”
“Porque nesse caso”, Stoner explicou para si mesmo,
“nada disso iria significar coisa alguma… nada do que
fizemos, nada do que fomos. Eu quase com certeza não
poderia lecionar, e você… você se tornaria alguma outra
coisa. Nós dois nos tornaríamos outra coisa, outra coisa que
não nós mesmos. Nós seríamos… nada”.
“Nada”, repetiu ela.
“E, pelo menos até agora, permanecemos fiéis a nós
mesmos. Sabemos que nós somos… o que nós somos.”
“Sim”, disse Katherine.
“Porque no fim das contas”, Stoner disse, “não é Edith ou
mesmo Grace, ou a certeza de perder Grace, que me
mantém aqui. Não é o escândalo ou o fato de eu ou você
nos machucarmos. Não são as dificuldades pelas quais
passaríamos, ou mesmo a perda eventual das relações
afetivas que talvez tivéssemos de enfrentar. É
simplesmente o medo de destruir a nós mesmos, e tudo que
fazemos”.
“Eu sei”, disse Katherine.
“Pois, afinal, somos parte do mundo. Devíamos ter
sabido disso. Acho que sabíamos disso, mas tivemos de nos
afastar um pouco, fingir um pouco, para podermos…”
“Eu sei”, disse Katherine. “Eu sabia o tempo todo,
imagino. Mesmo com o fingimento, eu sabia que alguma
hora, alguma hora, teríamos… Eu sabia.”
Ela se deteve e olhou diretamente para ele. De repente,
seus olhos se encheram de lágrimas.
“Mas que inferno, Bill! Que inferno!”
Eles não disseram mais nada. Abraçaram-se de modo a
não ver o rosto um do outro, e fizeram amor para não ter de
falar. Uniram-se com a velha e terna sensualidade ligada ao
conhecimento recíproco, e com uma nova e intensa paixão
engatilhada pela consciência da perda iminente. Depois, na
noite escura da salinha, ficaram deitados, quietos e sem
falar, seus corpos se tocando levemente. Depois de um
longo tempo, a respiração de Katherine ficou regular, como
se estivesse dormindo. Stoner levantou-se silenciosamente,
vestiu-se no escuro e saiu da sala sem acordá-la. Caminhou
pelas ruas silenciosas e vazias de Columbia até a primeira
luz cinza aparecer no leste. Depois foi para o campus da
universidade. Sentou-se nos degraus de pedra em frente ao
Jesse Hall e observou a luz do leste insinuando-se nas
grandes colunas de pedra no centro do pátio. Pensou no
incêndio que, antes de seu nascimento, engolira e destruíra
o velho prédio e sentiu uma distante tristeza contemplando
o que restava dele. Quando amanheceu, entrou no átrio e
foi para seu escritório, onde esperou até a sua primeira aula
começar.
Nunca mais viu Katherine Driscoll. Depois que ele a
deixou, durante a noite, ela se levantou, embalou todos os
seus pertences, pôs seus livros em caixas de papelão e
deixou uma mensagem para o porteiro do condomínio
informando para onde enviá-los. Mandou uma carta para o
departamento de Inglês com suas notas, suas instruções
para dispensar as classes naquela semana e para a metade
que restava do semestre, e sua demissão. Por volta das
duas da tarde, ela já estava no trem que a levaria para
longe de Columbia.
Stoner se deu conta de que ela devia estar planejando
sua partida havia algum tempo, e ficou grato por ter sido
mantido às escuras quanto a isso, e por ela não lhe ter
deixado nenhum bilhete de despedida para tentar dizer o
que não podia ser dito.
Quatorze

Naquele verão não deu aula e, pela primeira vez em sua


vida, ficou doente. Foi uma febre forte e de origem obscura,
que durou apenas uma semana, mas que o deixou sem
forças. Emagreceu muito e, na sequência, sofreu perda
parcial da audição. Durante o verão inteiro, continuou tão
fraco e apático que poucos degraus eram suficientes para
deixá-lo exausto. Passava a maior parte do tempo na
pequena varanda fechada nos fundos da casa, deitado na
cama ou sentado na velha poltrona que trouxera do porão.
Olhava fixamente pelas janelas ou para o teto, e se mexia
de vez em quando para ir à cozinha comer alguma coisa.
Mal tinha energia para conversar com Edith ou mesmo
com Grace, embora às vezes Edith viesse até a varanda,
falasse com ele distraidamente por alguns minutos e depois
o deixasse sozinho tão abruptamente quanto impusera sua
presença.
Uma vez, no meio do verão, ela falou de Katherine.
“Fiquei sabendo, um dia desses”, disse ela. “A sua
pequena pós-graduanda foi embora, não foi?”
Com certo esforço, Stoner desviou sua atenção da janela
e se voltou para Edith: “Sim”, disse ele brandamente.
“Como era o nome dela?”, perguntou Edith. “Nunca
consigo me lembrar do nome dela.”
“Katherine”, respondeu ele. “Katherine Driscoll.”
“Ah, é”, disse Edith. “Katherine Driscoll. Bom, viu? Eu lhe
disse, não disse? Eu disse que essas coisas não são
importantes.”
Ele assentiu distraidamente. Do lado de fora, no velho
olmo que se erguia frondoso junto à cerca dos fundos, um
grande passarinho preto e branco, um pega, tinha
começado a cantar. Stoner escutou o som de seu pio,
contemplando com remota fascinação o bico aberto, de
onde saía aquele grito solitário.
Naquele verão ele envelheceu rapidamente e, quando
voltou às suas aulas, todo mundo ficou espantado com seu
aspecto. Seu rosto, que ficara emaciado e ossudo, estava
profundamente enrugado. Havia grandes mechas grisalhas
em todo seu cabelo, e estava ficando cada vez mais
encurvado, como se carregasse um fardo invisível. Sua voz
ficara um pouco áspera e abrupta, e ele desenvolvera uma
tendência a olhar para os outros com a cabeça abaixada, de
modo que seus olhos cinza-claros se destacavam incisivos e
lamuriosos sob suas sobrancelhas. Raramente falava com
alguém a não ser seus estudantes, e respondia às
perguntas e aos cumprimentos sempre impacientemente e
às vezes de forma brusca.
Fazia seu trabalho com uma obstinação e uma
determinação que divertiam seus colegas mais velhos e
enraiveciam os professores mais novos, que, como ele,
ensinavam apenas redação para calouros. Passava horas
anotando e corrigindo trabalhos do primeiro ano, tinha
reuniões com os alunos todos os dias e comparecia
fielmente a todas as reuniões do departamento. Não falava
com frequência nessas reuniões, mas, quando o fazia, era
sem tato ou diplomacia, de modo que entre os colegas
ganhou a reputação de ser rabugento e mal-humorado. Mas,
com seus jovens alunos, ele era gentil e paciente, embora
exigisse deles mais trabalho do que estavam dispostos a
fazer, com uma firmeza que era difícil para muitos deles
compreenderem.
Era um lugar-comum entre seus colegas, especialmente
os mais jovens, que ele era um professor “dedicado”, um
termo que usavam um pouco por inveja e um pouco por
desprezo. Um professor cuja dedicação o deixava cego para
qualquer coisa que ocorresse fora da sala de aula ou, no
máximo, fora dos corredores da universidade. Circulavam
várias piadinhas: após uma reunião do departamento em
que Stoner falara num tom muito intenso sobre certas
experiências recentes no ensino da gramática, um jovem
professor observou que, “para Stoner, o termo cópula só se
aplica a verbos”, mas ficou surpreso com as risadas e os
olhares significativos trocados por alguns dos mais velhos.
Outra vez algum outro disse: “O velho Stoner acha que VIP
quer dizer Verbos Inflexivos Pronominais”, e ficou gratificado
ao saber que sua tirada espirituosa fizera sucesso.
Mas William Stoner conhecia a vida de uma maneira que
poucos de seus colegas mais jovens podiam compreender.
No seu íntimo, no fundo de sua memória, havia o
conhecimento das privações, da fome, da resistência e da
dor. Embora ele raramente pensasse nos primeiros anos de
sua vida na fazenda em Booneville, sempre mantinha a
consciência do próprio sangue e da herança de seus
ancestrais, cujas vidas foram humildes, duras e estoicas, e
cuja ética lhes impunha oferecer ao mundo cruel rostos
inexpressivos, duros e impenetráveis.
E, embora a contemplasse com aparente impassibilidade,
Stoner tinha consciência da época em que vivia. Durante
aquela década em que as faces de muitos homens
assumiram uma expressão de pesar permanente, como se
olhassem para um abismo, William Stoner, para quem essa
expressão era tão familiar quanto o ar que respirava, via os
sinais de um desespero geral que conhecia desde menino.
Viu homens de bem afundarem num lento declínio,
perdendo a esperança, derrotados junto aos seus sonhos de
uma vida decente. Via-os vagando sem destino nas ruas
com olhos vazios como cacos de vidro quebrado. Via-os
caminhando para portas dos fundos, com o orgulho amargo
de homens que serão executados, e esmolando pelo pão
que lhes permitiría continuar a esmolar. E viu homens que
antes andavam com orgulho com suas próprias identidades
olharem para ele com ódio e inveja da pouca segurança que
ele desfrutava como empregado estável de uma instituição
que de fato não podia falir. Ele não deu voz a esse
conhecimento, mas a consciência daquela infelicidade
comum o tocou e o transformou de maneiras que ficaram
profundamente escondidas da visão pública, e uma muda
tristeza pelo infortúnio comum o acompanhava em cada
momento de sua vida.
Além disso, ele tinha consciência das agitações na
Europa como um pesadelo distante e, em julho de 1936,
quando Franco se rebelou contra o governo espanhol e
Hitler atiçou essa rebelião, tornando-a uma guerra de
verdade, Stoner, como muitos outros, ficou nauseado pela
visão daquele pesadelo que irrompia no mundo real.
Naquele ano, quando o semestre de outono começou, os
jovens professores não conseguiam falar de outro assunto.
Vários deles anunciaram que iriam se alistar numa brigada
de voluntários e lutar pelos republicanos ou dirigir
ambulâncias. Perto do fim do primeiro semestre, alguns
deles tinham realmente dado esse passo e apresentado
demissões precipitadas. Stoner pensou em Dave Masters, e
aquela antiga perda lhe veio à mente com uma intensidade
renovada. Pensou também em Archer Sloane e se lembrou,
depois de vinte anos, da lenta angústia que crescera
naquele rosto irônico e do desespero erosivo que dissipara
aquela personalidade forte, e achou que agora, ele também,
de alguma forma, compreendia aquela sensação de
desperdício. Antecipou os anos que viriam, e sabia que o
pior ainda estava por vir.
Como Archer Sloane, sentia a inutilidade e o desperdício
daquelas vidas completamente votadas às forças irracionais
e sombrias que empurravam o mundo em direção a um fim
obscuro; ao contrário de Sloane, Stoner reservara um
pequeno espaço para a piedade e o amor, para que não
fosse arrastado pela correnteza daquele rio. E, como em
outros momentos de crise e desespero, contemplou de novo
a fé cautelosa que estava encarnada na instituição da
universidade. Disse a si mesmo que não era muito, mas
sabia que era tudo o que tinha.
No verão de 1937, sentiu a velha paixão pelo estudo e
aprendizado se reacender, e, com vigor intelectual e
entusiasmo, voltou para a única vida que não o havia traído.
Descobriu que não tinha se afastado muito daquela vida,
mesmo quando esteve desesperado.
Naquele outono seu calendário era particularmente ruim.
Suas quatro aulas de redação para o primeiro ano estavam
distribuídas em horas muito distantes umas das outras, e
divididas em seis dias da semana. Desde quando tinha
virado chefe, Lomax nunca deixara de impor a Stoner
calendários que mesmo o professor mais novo teria
aceitado de má vontade.
No primeiro dia de aula daquele ano letivo, de manhã
cedo, Stoner sentou-se em seu escritório e olhou de novo
para seu calendário bem datilografado. Na noite anterior,
ficara acordado até tarde lendo um novo estudo sobre a
sobrevivência da tradição medieval na Renascença, e o
entusiasmo que sentira prosseguira durante a manhã. Olhou
para seu calendário, e uma raiva surda explodiu dentro
dele. Olhou para a parede à sua frente por vários
momentos, deu um relance para seu calendário de novo e
assentiu para si mesmo. Depois o jogou no cesto de lixo
com a ementa anexa e foi até seu arquivo no canto da sala.
Puxou a gaveta de cima, examinou distraidamente as
pastas marrons e retirou uma. Folheou rapidamente os
papéis na pasta, assobiando baixinho enquanto fazia isso.
Então fechou a gaveta e, com a pasta debaixo do braço,
saiu do escritório e atravessou o campus para a sua
primeira aula.
Era um edifício velho, com piso de madeira, e costumava
ser usado para as aulas só em casos de emergência. A sala
que lhe tinham destinado era muito pequena para o número
de alunos matriculados, de modo que vários dos garotos
tinham de se sentar em parapeitos de janelas ou ficar de
pé. Quando Stoner entrou, eles o olharam preocupados e
hesitantes: ele poderia ser amigo ou inimigo, e eles não
sabiam qual das duas condições era pior.
Pediu desculpas aos estudantes pela qualidade da sala,
fez uma piadinha sobre a administração e assegurou
àqueles que ficaram de pé que haveria cadeiras para eles
no dia seguinte. Então pôs sua pasta no velho atril que
ficava torto sobre a mesa e examinou as faces à sua frente.
Ele hesitou por um momento. Então disse: “Aqueles entre
vocês que já compraram os livros para este curso poderão
devolvê-los na livraria e ser reembolsados. Não vamos usar
o texto mencionado na ementa, que, suponho, todos vocês
receberam no momento da matrícula. Tampouco usaremos
a ementa. Neste curso pretendo abordar o assunto de uma
forma diferente, uma abordagem que necessitará que vocês
comprem dois novos livros”.
Deu as costas aos alunos e pegou um pedaço de giz da
canaleta sob o quadro-negro arranhado, manteve o giz
imóvel por um momento e ouviu os suspiros e o farfalhar
abafado dos estudantes que se ajeitavam em suas
carteiras, preparando-se para uma rotina que já se tornara
familiar.
Stoner disse: “Nossos livros serão”, e enunciou as
palavras lentamente enquanto as escrevia, “A Poesia e a
Prosa Inglesa Medieval, editado por Loomis e Willard; e
Crítica da Literatura Inglesa: O Período Medieval, de J. A. H.
Atkins”.
Voltou-se para a classe. “Vocês verão que a livraria ainda
não recebeu esses livros e pode demorar até duas semanas.
Enquanto isso, darei a vocês algumas informações básicas
sobre o assunto e o propósito deste curso, além de algumas
pesquisas bibliográficas para mantê-los ocupados.”
Fez uma pausa. Muitos dos alunos estavam curvados
sobre suas mesas, anotando meticulosamente o que ele
dizia. Alguns estavam olhando para ele com atenção,
tentando ostentar sorrisinhos inteligentes, enquanto outros
o encaravam com uma expressão de espanto indisfarçado.
“O material básico deste curso”, disse Stoner, “será
encontrado na antologia de Loomis e Willard. Estudaremos
exemplos de verso e prosa medieval com três propósitos:
primeiro, como obras literárias significativas por si sós;
segundo, como uma demonstração dos inícios do estilo e do
método literário na tradição inglesa; e terceiro, como
soluções retóricas e gramaticais para problemas do discurso
que mesmo hoje podem ter algum valor e aplicação
práticos”.
A essa altura, quase todos os estudantes tinham parado
de tomar notas e erguido a cabeça. Mesmo os sorrisos
inteligentes tinham ficado um pouco forçados, e algumas
mãos estavam levantadas no ar. Stoner apontou para um
estudante jovem e alto, com cabelos escuros e óculos, que
mantinha a mão levantada e bem visível.
“Professor, aqui é a aula de Inglês Geral Um, classe
quatro?” Stoner sorriu para o jovem. “Qual é o seu nome,
por favor?” O garoto engoliu em seco. “Jessup, professor.
Frank Jessup.”
Stoner assentiu. “Sr. Jessup. Sim, Sr. Jessup, aqui é Inglês
Geral Um, classe quatro. Meu nome é Stoner, fato que, sem
dúvida, eu devia ter mencionado no começo da aula.
Alguma outra pergunta?”
O garoto engoliu de novo. “Não, senhor.”
Stoner assentiu e olhou benevolente para a classe toda.
“Alguém mais tem alguma pergunta?”
As faces olharam de volta para ele. Não havia sorrisos, e
algumas bocas mantinham-se abertas.
“Muito bem”, disse Stoner. “Vou prosseguir. Como disse
no começo da aula, o propósito deste curso é estudar certas
obras que pertencem ao período entre 1200 e 1500. Certos
acidentes da história vão dificultar nosso caminho. Haverá
dificuldades linguísticas e filosóficas, sociais e religiosas,
teóricas e práticas. De fato, toda a nossa educação anterior
irá, em certos aspectos, ser um obstáculo. Pois nossos
hábitos de pensamento sobre a natureza da experiência
determinaram nossas expectativas tão radicalmente quanto
os hábitos do homem medieval determinaram as dele.
Como preâmbulo, vamos examinar alguns desses hábitos
mentais com os quais o homem medieval vivia, pensava e
escrevia…”
Naquele primeiro encontro, ele não reteve os alunos pelo
período inteiro. Por volta da metade da aula, encerrou a sua
discussão preliminar e deu a eles uma tarefa para o fim de
semana.
“Gostaria que cada um de vocês escrevesse um breve
ensaio, não mais do que três páginas, sobre a concepção
aristotélica dos topoi, ou, em sua tradução um tanto
grosseira, tópicos. Vocês encontrarão uma discussão
abrangente sobre o assunto no segundo livro da Retórica,
de Aristóteles, e na edição de Lane Cooper há um ensaio
introdutório que será de grande ajuda. O ensaio deverá ser
entregue na segunda-feira. Acho que por hoje é só.”
Após ter dispensado a classe, olhou por um momento,
com alguma preocupação, os estudantes, que não se
moveram. Depois os cumprimentou com a cabeça e saiu da
sala de aula, a pasta marrom debaixo do braço.
Na segunda-feira, menos da metade dos estudantes
tinha terminado o trabalho. Stoner dispensou aqueles que já
haviam entregado seus ensaios e passou o resto da aula
com os outros, repassando o assunto várias vezes, até ter
certeza de que o tinham compreendido e estariam em
condições de completar o ensaio para quarta-feira.
No dia seguinte, nos corredores do Jesse Hall, notou um
grupo de estudantes em frente ao escritório de Lomax e
reconheceu-os como os alunos de sua primeira aula.
Quando ele passou, os estudantes desviaram o olhar fitando
o chão, o teto ou a porta do escritório de Lomax. Ele sorriu
consigo e foi para seu escritório esperar o telefonema que
sabia que viria.
O telefonema chegou às duas da tarde. Stoner atendeu e
ouviu a voz da secretária de Lomax, gélida e educada.
“Professor Stoner? O professor Lomax gostaria que o senhor
se encontrasse com o professor Ehrhardt esta tarde, o
quanto antes. O professor Ehrhardt estará à sua espera.”
“Lomax estará lá?”, perguntou Stoner.
A secretária ficou calada sem saber o que dizer, depois
disse num tom de incerteza. “Creio que não… um
compromisso anterior. Mas o professor Ehrhardt tem
autoridade para…”
“Diga a Lomax que ele tem de estar lá. Diga a ele que
estarei no escritório de Ehrhardt em dez minutos.”
Joel Ehrhardt era um jovem de trinta e poucos anos que
estava ficando careca. Tinha sido trazido para o
departamento três anos antes por Lomax e, quando se
descobriu que era um jovem agradável e sério sem nenhum
talento em especial e nenhum dom para ensinar, foi
encarregado de cuidar do programa de Inglês do primeiro
ano. Seu escritório ficava num pequeno cubículo no fundo
de uma grande sala comum onde uns vinte jovens
professores iniciantes tinham suas mesas, e Stoner teve de
atravessar toda a sala para chegar lá. Enquanto passava na
frente das mesas, alguns professores olharam para ele,
sorriram abertamente e observaram seu desfile pela sala.
Stoner abriu a porta sem bater, entrou no escritório e
sentou na cadeira em frente à mesa de Ehrhardt. Lomax
não estava lá.
“Você queria falar comigo?”, perguntou Stoner.
Ehrhardt, que tinha a pele muito clara, enrubesceu de
leve. Ele fixou um sorriso no rosto e disse
entusiasticamente: “Que bom que você veio, Bill”, e se
atrapalhou por um momento com um fósforo, tentando
acender seu cachimbo. Não estava funcionando bem. “Essa
maldita umidade”, disse ele, irritado. “Mantém o tabaco
úmido demais.”
“Lomax não virá, imagino”, disse Stoner.
“Não”, disse Ehrhardt, pondo o cachimbo na mesa. “Na
realidade, foi o próprio professor Lomax que me pediu para
falar com você. Assim, de certo modo”, riu nervosamente,
“eu realmente sou uma espécie de mensageiro”.
“Que recado pediram para você me dar?”, perguntou
Stoner secamente.
“Bom, pelo que entendi, houve algumas reclamações.
Estudantes… sabe como é”, ele balançou a cabeça
compreensivo. “Alguns deles parecem achar… bom, eles
realmente parecem não estar entendendo o que está
acontecendo na sua aula das oito horas. O professor Lomax
achou… bom, na realidade ele está questionando a
conveniência de abordar os problemas de redação no
primeiro ano através do… do estudo da…”
“Literatura e Língua Medieval”, completou Stoner.
“Isso”, disse Ehrhardt. “Na verdade, acho que entendo o
que você está tentando fazer… chocá-los um pouco,
sacudidos, tentar uma abordagem nova, pô-los para pensar.
Certo?”
Stoner assentiu gravemente. “Tem havido muita
discussão em nossas aulas de redação do primeiro ano
sobre novos métodos, experimentação.”
“Exatamente”, disse Ehrhardt. “Ninguém aprecia a
experimentação mais do que eu, porque… mas talvez às
vezes, com as melhores das intenções, exageramos.” Ele riu
e balançou a cabeça. “Estou ciente de que com certeza eu
faço isso, seria o primeiro a admitir. Mas eu… ou o professor
Lomax… bom, talvez uma espécie de meio-termo, algum
retorno parcial ao programa do curso, um uso dos textos
recomendados… você entende.”
Stoner repuxou os lábios e olhou para o teto. Apoiando
os cotovelos nos braços da cadeira, juntou as pontas dos
dedos e apoiou o queixo nas pontas dos polegares.
Finalmente, com determinação, sentenciou: “Não, não
dediquei ao experimento o tempo que merecia. Diga ao
Lomax que pretendo prosseguir com isso até o fim do
semestre. Você faria isso para mim?”
O rosto de Ehrhardt ficou vermelho. Ele disse tenso:
“Farei. Mas eu imagino… aliás, eu tenho certeza de que o
professor Lomax ficará muito desapontado. Extremamente
desapontado na verdade”.
Stoner disse: “Ah, a princípio, ele poderá ficar. Mas vai
superar. Tenho certeza de que o professor Lomax não vai
querer interferir no modo que um professor veterano
considera adequado para lecionar uma de suas disciplinas.
Talvez ele possa discordar do julgamento daquele professor,
mas seria extremamente antiético da parte dele tentar
impor o seu próprio… e, incidentalmente, um pouco
perigoso. Você não concorda?”
Ehrhardt pegou seu cachimbo, agarrou firmemente o
bojo e contemplou-o com uma expressão carrancuda.
“Informarei a sua decisão ao professor Lomax.”
“Ficaria agradecido se você fizesse isso”, disse Stoner.
Levantou-se da cadeira, foi até a porta e se deteve como se
tivesse lembrado alguma coisa. Depois, como se nada
tivesse acontecido, virou-se para Ehrhardt e disse: “Ah,
outra coisa. Estive pensando um pouco sobre o semestre
que vem. Se a minha experiência der certo, poderei tentar
algo novo. Estive considerando a possibilidade de abordar
alguns dos problemas da redação através do exame da
sobrevivência da tradição latina clássica e medieval em
algumas das peças de Shakespeare. Talvez soe um pouco
especializado, mas eu acho que posso chegar a um nível
passível de ser trabalhado. Você poderia passar a Lomax a
minha pequena ideia… pedir a ele para considerá-la um
pouco. Talvez daqui a algumas semanas você e eu
poderíamos…”
Ehrhardt afundou em sua cadeira. Deixou cair o
cachimbo na mesa e disse em tom grave: “Certo, Bill. Vou
dizer a ele. Obrigado por ter vindo”.
Stoner assentiu. Abriu a porta, saiu, fechou-a
cuidadosamente atrás de si e atravessou novamente a sala
comprida. Um dos jovens professores levantou seu olhar
para ele interrogativamente e ele lhe piscou o olho, anuiu e,
por fim, deixou escapar um sorriso.
Foi para seu escritório, sentou à sua escrivaninha e
esperou, olhando pela porta aberta. Após alguns minutos,
ouviu uma porta batendo no corredor e o som frenético de
passos, e viu Lomax passar na frente de seu escritório
mancando o mais rápido que conseguia.
Stoner não saiu de seu posto. Depois de meia hora, ouviu
a subida lenta e arrastada de Lomax na escada e o viu mais
uma vez passar na frente de seu escritório. Esperou até
ouvir a porta se fechar no fundo do corredor, assentiu para
si mesmo, levantou-se e foi para casa.
Foi só algumas semanas depois que Stoner ficou sabendo
pelo próprio Finch o que acontecera naquela tarde quando
Lomax entrara impetuosamente no escritório dele. Lomax
se queixara amargamente do comportamento de Stoner,
explicando que ele estava utilizando o material do curso
avançado de Inglês Medieval nas aulas dos estudantes do
primeiro ano, e exigira que Finch tomasse medidas
disciplinares. Houvera um momento de silêncio. Depois
Finch começara a dizer alguma coisa, mas explodira numa
gargalhada. Rira por um bom tempo, volta e meia tentando
dizer alguma coisa que era novamente interrompida pelo
riso. Por fim, pedira desculpas a Lomax pelo seu ataque e
dissera: “Ele te pegou, não está vendo, Holly? Ele não vai
desistir, e não há nada que você possa fazer. Você quer que
eu faça o serviço para você? Como você acha que isso iria
parecer… um diretor se metendo em como um membro
veterano do departamento dá as suas aulas, e se metendo
por instigação do próprio chefe do departamento? Não,
senhor. Você mesmo cuide disso, da melhor maneira que
puder. Mas você não tem muita escolha, tem?”
Duas semanas depois dessa conversa, Stoner recebeu
um memorando do escritório de Lomax que o informava que
o seu calendário para o semestre seguinte tinha sido
mudado, que ele iria dar o seu velho seminário de pós-
graduação sobre a tradição latina e a literatura da
Renascença, um curso de língua e literatura medieval
inglesa para os estudantes do último ano de graduação e do
mestrado, uma introdução de literatura para estudantes do
segundo ano e um módulo de redação para calouros.
De certo modo, foi um triunfo. Todavia, ele continuou a
pensar nisso com uma atitude irônica e desdenhosa, como
se tivesse sido uma vitória ganha por tédio e indiferença.
Quinze

E aquela foi uma das lendas que começaram a correr a seu


respeito, lendas que se tornaram cada vez mais detalhadas
e elaboradas, progredindo do fato pessoal para a verdade
ritual, como acontece com os mitos.
Embora ainda não tivesse chegado aos 50 anos, ele
parecia muito mais velho. Seu cabelo, espesso e
desgrenhado como fora em sua juventude, estava quase
inteiramente branco. Rugas profundas sulcavam-lhe o rosto
e seus olhos estavam afundados em suas órbitas. A surdez
que começara no verão após o fim de seu caso com
Katherine Driscoll piorara levemente ano após ano, de modo
que, quando escutava alguém, sua cabeça inclinada para
um lado e os olhos atentos, parecia estar contemplando
alguma espécie animal intrigante que não conseguia
identificar.
Sua surdez era de uma natureza curiosa. Embora às
vezes tivesse dificuldade para entender alguém que falava
diretamente com ele, muitas vezes conseguia ouvir com
perfeita clareza uma conversa murmurada do outro lado de
uma sala barulhenta. E, fingindo-se de surdo, gradualmente
descobriu que era considerado, com uma expressão
corrente desde a sua própria juventude, uma “figura do
campus”.
Assim, vezes e mais vezes ele entreouviu a história
embelezada de suas aulas de literatura avançada para um
grupo de calouros e sobre a capitulação de Hollis Lomax. “E
quando os calouros de 1937 fizeram seu primeiro exame de
Inglês, sabe qual turma teve as notas mais altas?”,
reconheceu uma vez de má vontade um jovem professor de
Inglês para o primeiro ano. “A turma do velho Stoner. E nós
ainda usamos livros de exercícios e manuais!”
Stoner teve de admitir que se tornara, aos olhos dos
jovens professores e dos estudantes mais velhos, que
pareciam vir e ir embora antes que ele pudesse associar
firmemente um nome a seus rostos, uma figura quase
mítica, por mais cambiante e variada que a função dessa
figura fosse.
Às vezes ele era o vilão. Numa versão que tentava
explicar a rixa entre ele e Lomax, ele tinha seduzido e
depois dispensado uma jovem estudante da graduação pela
qual Lomax nutria uma pura e honrada paixão. Às vezes ele
era o louco: noutra versão da mesma rixa, ele se recusava a
falar com Lomax porque, certa vez, Lomax não se mostrara
disposto a escrever uma carta de recomendação para um
de seus alunos de graduação. E às vezes ele era o herói:
segundo uma versão da história bastante difundida mas
duvidosa, ele era odiado por Lomax e teve sua carreira
congelada porque uma vez pegara o chefe do departamento
entregando a um pupilo dele uma cópia do exame final de
uma das suas disciplinas.
A lenda, todavia, era também o resultado de sua atitude
em sala de aula. Com o passar dos anos, ele se tornara mais
e mais ausente, embora cada vez mais intenso. Começava
suas aulas e discussões de uma forma hesitante e
desajeitada, mas mergulhava muito rapidamente em seu
assunto e o fazia com tanta veemência que parecia alheio a
qualquer coisa ou pessoa em volta dele. Uma vez, uma
reunião de vários membros do conselho de administração e
do reitor da universidade foi agendada para a sala de
conferências onde Stoner dava seu seminário sobre a
tradição latina. Ele tinha sido informado da reunião, mas se
esquecera dela e deu seu seminário no horário e local
habituais. No meio da aula, alguém bateu à porta. Stoner,
absorto em traduzir de improviso uma citação em latim, não
percebeu. Após alguns momentos a porta se abriu e um
homem de meia-idade baixinho e rechonchudo com óculos
sem aro entrou na ponta dos pés e bateu de leve no ombro
de Stoner. Sem olhar, Stoner o dispensou com um gesto. O
homem recuou e dava para ouvir que estava confabulando
em voz baixa do lado de fora da porta aberta. Stoner
continuou a tradução. Então, quatro homens, liderados pelo
reitor da universidade, um homem alto e corpulento com
um peito imponente e uma face rosada, entraram a passos
largos e se detiveram como um pelotão ao lado da mesa de
Stoner. O reitor franziu o cenho e pigarreou sonoramente.
Depois, sem interromper a tradução nem por um momento,
Stoner ergueu os olhos e brandamente recitou o verso
seguinte do poema para o reitor e seu séquito: “Saiam,
saiam, malditos gauleses filhos de rameira!” E, ainda sem
interrupção, voltou os olhos para seu livro e continuou a
falar, enquanto o grupo boquiaberto recuou tropeçando,
virando-se e batendo em retirada para fora da sala.
Alimentada por eventos como esse, a lenda cresceu até
haver anedotas para dar substância a quase todas as
atividades mais típicas de Stoner, e cresceu até alcançar a
sua vida fora da universidade. Finalmente, incluiu até
mesmo Edith, que era tão raramente vista com ele nos
eventos organizados pela universidade que se tornou uma
figura um pouco misteriosa que vagava pela imaginação
coletiva como um fantasma: dizia-se que ela bebia às
escondidas, por causa de alguma tristeza obscura e remota;
que estava morrendo lentamente de uma doença rara e
sempre fatal; ou que era uma artista de talento brilhante
que desistira de sua carreira para se devotar a Stoner. Em
eventos públicos, o sorriso aparecia no seu rosto estreito de
uma forma tão rápida e nervosa, seus olhos tremeluziam
tão brilhantes e ela falava com uma voz tão estridente e
desconexa que todo mundo tinha certeza de que a
aparência dela ocultava outra realidade e de que, atrás da
fachada na qual ninguém conseguia acreditar, escondia-se
outra pessoa.
Depois de sua doença, e por uma indiferença que se
tornara um estilo de vida, William Stoner começou a passar
mais e mais de seu tempo na casa que ele e Edith tinham
comprado muitos anos antes. A princípio, Edith ficara tão
desconcertada com a presença dele que ficou quieta, como
que intrigada. Depois, quando se convenceu de que a
presença dele, tarde após tarde, noite após noite, fim de
semana após fim de semana, seria uma condição
permanente, ela travou a velha batalha com uma nova
intensidade. Pela mais trivial provocação, prorrompia em
lágrimas e começava a perambular pela casa enquanto
Stoner a olhava impassível e murmurava algumas vagas
palavras de consolo. Às vezes se trancava em seu quarto e
de lá não saía por horas a fio. Nesses casos, Stoner
preparava as refeições que ela normalmente teria
preparado e não parecia notar a ausência dela até o
momento em que finalmente saía de seu quarto, pálida e
com as bochechas e os olhos fundos. Ela procurava
quaisquer pretextos para ridicularizá-lo, mas Stoner mal
parecia ouvi-la. Berrava imprecações contra ele, e ele ouvia
com um interesse cortês. Quando estava imerso num livro,
ela escolhia aquele momento para entrar e martelar com
frenesi o piano que de resto raramente tocava. E, quando
ele falava tranquilamente com sua filha, Edith explodia de
raiva com um dos dois, ou com ambos. E Stoner olhava para
aquilo tudo — a raiva, o pesar, os gritos e os silêncios
rancorosos — como se estivesse acontecendo com outro
casal, ao qual, só com um esforço de vontade, ele
conseguia dedicar apenas um interesse circunstancial.
E por fim, exausta, quase grata, Edith aceitou sua
derrota. As raivas diminuíram de intensidade até se
tornarem tão superficiais quanto o interesse de Stoner por
elas, e os longos silêncios, que antes eram agressões a um
inimigo indiferente, tornaram-se retiradas para um espaço
privado sobre o qual Stoner nem se perguntava mais.
Aos 40 anos, Edith Stoner era tão magra quanto tinha
sido quando menina, mas com uma dureza e uma frieza que
vinham de uma postura que não se curvava, que fazia cada
movimento parecer relutante e contrariado. Os ossos de seu
rosto tinham se aguçado e a pele pálida e fina se esticava
sobre eles como que sobre um chassis de tela, tornando as
rugas mais tensas e evidentes. Era muito pálida, e usava
uma grande quantidade de pó de arroz e maquiagem, de tal
modo que parecia que todos os dias ela compunha seus
próprios traços numa máscara em branco. Por baixo da pele
seca e dura, suas mãos pareciam puro osso e se moviam
incessantemente, contorcendo-se, apertando-se e se
cerrando mesmo em seus momentos mais tranquilos.
Sempre retraída, nesses anos da meia-idade, ela se
tornava cada vez mais remota e ausente. Após o breve
período de sua última investida contra Stoner, que flamejou
com uma intensidade final, ela vagou, desesperada, como
um fantasma pelos recessos da própria alma, um lugar de
onde nunca mais reemergiu por inteiro. Começou a falar
sozinha, com o tom pacato que de hábito se usa com uma
criança. Fazia isso abertamente e sem constrangimento,
como se fosse a coisa mais natural do mundo. Entre as
várias atividades artísticas com as quais ela se ocupara
intermitentemente durante seu casamento, acabou optando
pela escultura como a mais “gratificante”. Modelava
sobretudo argila, embora ocasionalmente trabalhasse com
as pedras mais macias. Bustos e figuras e composições de
todos os tipos estavam espalhados pela casa. Seu estilo era
muito moderno: os bustos eram esferas com traços
mínimos, as figuras eram glóbulos de argila com apêndices
alongados e as composições eram junções geométricas
aleatórias de cubos, esferas e varas. Às vezes, passando
pelo ateliê dela — o aposento que antes tinha sido o
escritório dele —, Stoner parava e a ouvia trabalhando. Ela
dava a si mesma instruções, como se estivesse se dirigindo
a uma criança: “Agora, você precisa pôr isso aqui… não
demais… aqui, bem do lado da estriazinha. Olhe só… está
caindo. Não estava úmida o suficiente, estava? Bom,
podemos consertar isso, não podemos? Só mais um pouco
de água e… Pronto. Viu?”
Pegou o hábito de se dirigir ao marido e à filha na
terceira pessoa, como se fossem outras pessoas em vez
daquelas com quem falava. Ela diria a Stoner: “É melhor
Willy terminar o café dele, são quase nove horas, e ele não
vai querer chegar atrasado à aula”. Ou diria para sua filha:
“Grace realmente não está estudando piano o bastante.
Uma hora por dia no mínimo, e deveriam ser duas. O que
vai acontecer com todo esse talento? Uma vergonha, uma
vergonha”.
O que esse retraimento significava para Grace, Stoner
não sabia, pois ela, por sua vez, tornara-se tão remota e
retraída quanto a mãe. Pegara o hábito do silêncio e,
embora ainda reservasse um sorriso tímido e suave para
seu pai, não falava mais com ele. Durante o verão em que
ele adoecera, quando podia fazer isso sem ser vista, Grace
entrava no quartinho dele e ficava sentada ao seu lado.
Então, juntos olhavam pela janela, como se lhe fosse
suficiente estar perto dele. Mas, mesmo então, ela se
mantinha em silêncio e ficava aflita quando ele tentava
fazê-la sair de si mesma.
Naquela época ela estava com 12 anos, e era uma
menina alta, magra, com uma face delicada e cabelos que
eram mais loiros do que ruivos. No outono, durante a última
investida violenta de Edith contra seu marido, contra o seu
casamento, contra si mesma e o que achava que ela se
tornara, Grace ficara quase imóvel, como se sentisse que
qualquer movimento pudesse jogá-la num abismo do qual
não conseguiria sair. Depois da agressão, com a indiferença
de que ela era capaz, Edith decidiu que Grace era quieta
porque era infeliz e que era infeliz porque não era popular
entre suas colegas. Então, transferiu o que restava da
violência contra Stoner para a “vida social” (assim a tinha
batizado) de Grace. Aquele virou o seu novo “interesse”.
Começou a vestir sua filha vistosamente e na moda, com
roupas cujos babados intensificavam sua magreza. Deu
festas e tocou piano e insistiu animada para que todos
dançassem, atormentou Grace para que sorrisse,
conversasse, fizesse piadas e risse para todo mundo.
A investida durou menos de um mês. Depois Edith
abandonou sua campanha e começou a longa e lenta
viagem para seu destino obscuro. Mas para Grace as
consequências desse ataque foram desproporcionalmente
nocivas em relação à sua duração.
Após a investida, ela começou a passar quase todo o seu
tempo livre sozinha em seu quarto, ouvindo o radinho que
seu pai lhe dera de presente no aniversário de 12 anos.
Ficava deitada inerte em sua cama por fazer, ou sentava-se
imóvel à sua mesa e ouvia os sons pequenos e
desagradáveis que clamavam dos arabescos do aparelho
atarracado e feio em seu criado-mudo, como se as vozes, a
música e as risadas que ouvia fossem tudo o que restava de
sua identidade, que se esvaía aos poucos no silêncio, sem
Grace conseguir segurá-la.
E ela ficou gorda. Entre aquele inverno e seu aniversário
de 13 anos, ganhou mais de vinte quilos, seu rosto ficou
inchado e esticado como massa que fermenta, e seus
membros tornaram-se moles, lentos e desajeitados. Ela
comia pouco mais do que antes, mas passara a gostar
muito de doces e mantinha uma caixa de bombons no
quarto. Era como se algo dentro dela tivesse ficado solto,
mole e desesperado, como se, por fim, uma informidade
dentro dela tivesse lutado para sair e tivesse finalmente
conseguido se libertar, persuadindo sua carne a revelar
aquela existência sombria e secreta.
Stoner assistiu àquela transformação com uma tristeza
que comprometia a máscara de indiferença que ele
apresentava ao mundo. Ele não permitiu a si mesmo o luxo
fácil da culpa. Dadas a sua própria natureza e as
circunstâncias de sua vida com Edith, não havia nada que
ele pudesse ter feito. E essa consciência intensificava sua
tristeza como nenhuma culpa conseguiría, e tornava o amor
por sua filha ainda mais intenso e profundo.
Grace era, ele sabia — e talvez sempre soubera —, uma
dessas raras e adoráveis criaturas cuja natureza moral era
tão delicada que precisava ser cuidada e alimentada para
poder se realizar. Alheia ao mundo, era obrigada a viver
onde não se sentia em casa; necessitada de ternura e
calma, tinha de se alimentar de indiferença, insensibilidade
e ruído. Uma índole que, mesmo no lugar estranho e inimigo
em que era obrigada a viver, não tinha a energia necessária
para combater as forças brutais que se opunham a ela e
apenas podia se retirar delicadamente para uma quietude
na qual ficava desamparada, mínima e imóvel.
Quando completou 17 anos, durante a primeira parte de
seu último ano no ensino médio, ela passou por outra
transformação. Era como se sua natureza tivesse
encontrado seu esconderijo e ela pudesse, enfim,
apresentar outra aparência para o mundo. Com a mesma
rapidez que engordara, ela perdeu o peso que ganhara
durante aqueles três anos. Aos olhos de quem a conhecia,
aquela transformação tinha algo de mágico, como se ela
tivesse emergido de uma crisálida, pairando no ar para o
qual fora criada. Ficou quase bonita: seu corpo, que tinha
sido muito magro e depois de repente muito gordo, estava
macio e com formas delicadas, e se movia com uma leveza
graciosa. Era uma beleza passiva, quase plácida. Seu rosto
era quase sem expressão, como uma máscara. Seus olhos
azul-claros olhavam diretamente para as pessoas, sem
curiosidade e sem qualquer apreensão de que alguém
pudesse ver por trás deles. Sua voz era muito suave, um
pouco monótona, e ela raramente falava.
De repente, ela se tornou, nas palavras de Edith,
“popular”. O telefone tocava frequentemente para ela, e ela
se sentava na sala, assentindo de quando em quando,
respondendo suave e brevemente à voz. Carros vinham nos
fins da tarde e a levavam, entre gritos e risadas anônimas.
Às vezes, Stoner ficava na janela da frente e observava os
automóveis partindo em nuvens de poeira, e sentia uma
leve preocupação e certo assombro. Ele nunca tivera um
carro e jamais aprendera a dirigir.
E Edith estava satisfeita. “Viu?”, disse num triunfo
ausente, como se mais de três anos não se tivessem
passado desde o seu ataque frenético ao problema da
“popularidade” de Grace. “Viu? Eu tinha razão. Tudo o que
ela precisava era de um pequeno empurrão. E Willy não
aprovou. Ah, eu podia ver. O Willy nunca aprova.”
Durante muitos anos, Stoner todo mês tinha guardado
algum dinheiro para que Grace pudesse, quando chegasse a
hora, partir de Columbia para uma faculdade, talvez uma no
leste, bem distante. Edith sabia desses planos e parecia
aprová-los, mas, quando a hora chegou, ela não quis nem
ouvir falar disso.
“Ah, não!”, disse ela. “Eu não conseguiría suportar! O
meu bebê! E ela se saiu tão bem aqui nesse último ano. Tão
popular e tão feliz. Ela teria de se ajustar, e… querida,
Gracie querida…”
Ela se voltou para sua filha. “Gracie não quer realmente
ficar longe da sua mamãe. Quer? Deixá-la completamente
sozinha?”
Grace olhou para sua mãe silenciosamente por um
momento. Depois se voltou muito brevemente para seu pai
e balançou a cabeça. Disse para a mãe: “Se você quer que
eu fique aqui, é claro que eu ficarei”.
“Grace”, disse Stoner. “Escute-me. Se você quiser ir, por
favor, se você realmente quiser ir…”
Ela não olhou de novo para ele. “Não importa”, disse.
Antes que Stoner pudesse dizer qualquer outra coisa,
Edith começou a falar com Grace sobre as formas como elas
podiam gastar o dinheiro que o pai dela economizara, talvez
renovando o guarda-roupa, comprando coisas realmente
lindas, ou talvez até um pequeno carro para que ela e suas
amigas pudessem… E Grace esboçou um sorriso como
sempre e assentiu, e de quando em quando dizia alguma
coisa, como se soubesse que isso era o que se esperava
dela.
E a questão foi encerrada. Stoner nunca soube o que
Grace achava, se tinha ficado porque queria, ou porque sua
mãe queria que ficasse, ou por uma vasta indiferença
quanto a seu próprio destino. Ela entraria na Universidade
do Missouri como caloura naquele outono e a frequentaria
por pelo menos dois anos, e depois, se quisesse, teria
permissão de partir para outro estado, para terminar a
faculdade. Stoner disse a si mesmo que era melhor assim,
melhor para Grace suportar por mais dois anos a prisão em
que mal sabia que estava, do que desafiar novamente a
raiva de Edith.
Assim, nada mudou. Grace renovou seu guarda-roupa,
recusou o pequeno carro que a mãe lhe ofereceu e entrou
na Universidade do Missouri como caloura. O telefone
continuou a tocar, as mesmas faces (ou outras muito
parecidas) continuaram a aparecer rindo e gritando na porta
da frente e os mesmos automóveis partiam ruidosos no fim
da tarde. Grace ficava fora de casa ainda mais
frequentemente do que quando estava no ensino médio, e
Edith ficou satisfeita com o que achou ser a crescente
popularidade de sua filha. “Ela é igual à mãe dela”, disse.
“Antes de se casar, ela era muito popular. Todos os
garotos… Papai costumava ficar tão bravo com eles, mas
secretamente ficava muito orgulhoso, eu sabia.”
“Sim, Edith”, dizia Stoner delicadamente, sentindo um
aperto no coração.
Foi um semestre difícil para Stoner. Tinha chegado a sua
vez de organizar o exame de Inglês para todos os calouros
e, ao mesmo tempo, estava ocupado orientando duas teses
de doutorado particularmente difíceis, ambas exigindo uma
grande quantidade de leituras adicionais da parte dele.
Assim, ficava fora de casa com mais frequência do que
havia sido seu hábito nos últimos anos.
Uma noite, perto do fim de novembro, ele chegou em
casa ainda mais tarde do que o habitual. As luzes estavam
apagadas na sala de estar, e a casa estava silenciosa. Ele
supôs que Grace e Edith estivessem na cama. Levou alguns
trabalhos que trouxera para o seu quartinho nos fundos,
pretendendo ler alguns deles antes de dormir. Foi para a
cozinha pegar um sanduíche e um copo de leite, cortara
uma fatia de pão e abrira a porta da geladeira quando, de
repente, ouviu, afiado e nítido como uma faca, um grito
prolongado de algum lugar no andar de baixo. Ele correu
para a sala de estar. O grito veio de novo, agora breve e um
tanto furioso em sua intensidade, do ateliê de Edith.
Atravessou rapidamente a sala e abriu a porta.
Edith estava sentada esparramada no chão, como se
tivesse caído ali; seus olhos estavam ensandecidos e sua
boca estava aberta, pronta para emitir outro grito. Grace
estava sentada do outro lado da sala numa poltrona
estofada, os joelhos cruzados, e olhava para sua mãe com
uma expressão que parecia quase serena. Uma única
luminária, na mesa de trabalho de Edith, estava acesa e,
assim, o ateliê estava tomado por um brilho intenso e por
sombras profundas.
“O que foi?”, perguntou Stoner. “O que aconteceu?”
A cabeça de Edith virou repentinamente para encará-lo
como se girasse em torno de um pino solto. Seus olhos
estavam apáticos. Ela disse com uma petulância curiosa:
“Oh, Willy. Oh, Willy”, e ficou olhando para ele, a cabeça
tremendo fracamente.
Ele se voltou para Grace, que mantinha uma expressão
impassível. “Estou grávida, pai”, disse ela num tom
despreocupado. E o grito veio de novo, cortante e
indizivelmente furioso. Ambos se voltaram para Edith, que
olhava ora para um ora para o outro, os olhos ausentes e
frios sobre a boca que berrava. Stoner atravessou a sala,
inclinou-se atrás dela e a pôs de pé. Ela estava solta em
seus braços, e ele teve de suportar seu peso.
“Edith!” disse ele, incisivo. “Fique quieta.”
Ela se empertigou e se afastou dele. Com as pernas
tremendo, atravessou a sala e parou na frente de Grace,
que não se movera.
“Você!”, falou cuspindo. “Ah, meu Deus. Ah, Grace. Como
você pôde… ah, meu Deus. Como seu pai. Mesmo sangue.
Ah, sim. Nojentos. Nojentos…”
“Edith!”, falou Stoner ainda mais incisivamente e foi até
ela. Ele pôs as mãos firmemente nos braços dela e a virou
para longe de Grace. “Vá até o banheiro e jogue um pouco
de água fria no seu rosto. Depois suba para o quarto e
deite.”
“Oh, Willy”, disse Edith chorosa. “O meu próprio bebe-
zinho. O meu próprio. Como isso foi acontecer? Como ela
pôde…”
“Vá”, ordenou Stoner. “Daqui a pouco irei vê-la.”
Ela saiu cambaleando. Stoner ficou olhando-a sem se
mover até ouvir a torneira sendo aberta no banheiro. Então
se voltou para Grace, que permanecia olhando-o da
poltrona. Sorriu para ela brevemente, foi até a mesa de
trabalho de Edith, pegou uma cadeira e a colocou em frente
à de Grace, para poder falar com ela sem olhar de cima
para seu rosto erguido.
“Então”, disse Stoner. “Por que você não me conta o que
aconteceu?”
Ela deu a ele o seu sorriso pequeno, doce. “Não há muito
o que contar”, disse. “Estou grávida.”
“Você tem certeza?”
Ela assentiu. “Fui ao médico. Recebi o resultado esta
tarde.”
“Bom”, disse ele e tocou desajeitadamente a mão dela.
“Você não precisa se preocupar. Tudo vai ficar bem.”
“Sim”, disse ela.
Ele perguntou delicadamente: “Você quer me contar
quem é o pai?”
“Um estudante”, respondeu ela. “Da universidade.”
“Você prefere não me contar quem é?”
“Ah, não”, disse ela. “Não faz nenhuma diferença. O
nome dele é Frye. Ed Frye. Acho que ele frequentou o seu
curso de redação para calouros no ano passado.”
“Não me lembro dele”, disse Stoner. “Realmente não
lembro.”
“Sinto muito, pai”, disse Grace. “Foi burrice. Ele estava
um pouco bêbado, e nós não tomamos… precauções.”
Stoner desviou o olhar dela e olhou para o chão.
“Sinto muito, pai. Eu o deixei chocado, não?”
“Não”, respondeu Stoner. “Surpreso, talvez. Nós
realmente não estivemos muito próximos nesses últimos
anos, não?”
Ela desviou os olhos e disse incomodada: “Bom… acho
que não”.
“Você… ama esse garoto, Grace?”
“Ah, não”, respondeu ela. “Eu quase não o conheço.”
Ele assentiu. “O que você quer fazer?”
“Não sei”, disse ela. “Realmente não importa. Não quero
ser um incômodo.”
Eles ficaram sentados sem falar por um longo tempo. Por
fim, Stoner disse: “Bom, você não precisa se preocupar. Vai
dar tudo certo. O que quer que você decida… o que quer
que queira fazer, vai dar tudo certo”.
“Sim”, disse Grace e levantou da cadeira. “Você e eu,
nós podemos conversar agora.”
“Sim”, disse Stoner. “Podemos conversar.”
Grace saiu do ateliê, e Stoner esperou até ouvir a porta
do quarto dela se fechar no andar de cima. Então, antes de
ir para o seu quarto, subiu as escadas com passos leves e
abriu a porta do quarto de Edith. Ela dormia profundamente,
deitada na cama com todas as roupas, a luz do abajur
apontada para o seu rosto. Stoner apagou a luz e voltou
para o andar de baixo.
Na manhã seguinte durante o café, Edith estava quase
alegre. Não lhe restava quase nada dos sinais da histeria da
noite anterior, e falava do futuro como se fosse um
problema hipotético a ser resolvido. Após saber o nome do
garoto, ela disse animadamente: “Muito bem, então. Vocês
acham que devemos entrar em contato com os pais ou
primeiro falar com o rapaz? Deixe-me ver… estamos na
última semana de novembro. Digamos duas semanas.
Poderemos concluir todos os preparativos até lá, quem sabe
até um casamento simples na igreja. Grace, o que o seu
amigo, como é o nome dele…?”
“Edith”, disse Stoner. “Espere. Você está dando muita
coisa como certa. Talvez Grace e esse jovem não queiram
se casar. Precisamos esclarecer isso com Grace.”
“O que há para esclarecer? Claro que eles querem se
casar. Afinal, eles… eles… Grace, diga ao seu pai. Explique a
ele.”
Grace disse para ele: “Não importa, pai. Não importa
nem um pouco”.
E Stoner percebeu que realmente não importava. Os
olhos de Grace estavam fixos para além dele, numa
distância que não podia enxergar, a qual contemplava sem
curiosidade. Ele permaneceu quieto e deixou sua mulher e
filha fazerem seus planos.
Foi decidido que o “rapazinho” de Grace, como Edith o
chamava, como se fosse proibido pronunciar o nome dele,
seria convidado para vir em casa e que ele e Edith iriam
“conversar”. Ela planejou a tarde como se fosse uma cena
de uma peça teatral, com saídas e entradas e até uma ou
duas falas. Stoner deveria pedir licença, Grace deveria ficar
alguns momentos mais e então pedir licença, deixando
Edith e o rapazinho a sós para conversarem. Em meia hora,
Stoner deveria voltar, e, uma vez que todos os preparativos
estivessem completados, Grace também deveria aparecer.
E tudo funcionou exatamente como Edith planejara. Mais
tarde, Stoner se perguntou, achando certa graça, o que o
jovem Edward Frye teria pensado quando bateu
timidamente à porta e foi recebido numa sala que parecia
repleta de inimigos mortais. Era um jovem taciturno, alto,
um tanto pesado, com traços indistintos. Estava tão
entorpecido pelo constrangimento e pelo medo que não
conseguia olhar para ninguém. Quando Stoner saiu da sala,
viu o jovem afundado numa cadeira, seus antebraços nos
joelhos, os olhos fixos no chão. Quando voltou para a sala,
meia hora depois, o rapaz estava na mesma posição,
paralisado diante do fogo de barragem dos chilreios alegres
de Edith.
Mas tudo estava resolvido. Numa voz aguda, artificial,
mas genuinamente animada, Edith o informou de que o
“rapazinho da Grace” era de uma família muito boa de St.
Louis, seu pai era um corretor e provavelmente fizera
negócios com o pai dela, ou ao menos com o banco dele,
que os “jovens” tinham decidido por um casamento “o mais
rápido possível, com uma cerimônia bem informal”, que
ambos iriam sair da faculdade, ao menos por um ano ou
dois, que iriam morar em St. Louis, “uma mudança de
cenário, um novo começo”, que, embora eles não fossem
poder terminar o semestre, iriam à faculdade até o recesso
do meio do semestre, e se casariam na tarde desse dia, que
era uma sexta-feira. E não era tudo tão romântico e bonito
apesar de tudo?
•••
O casamento ocorreu no caótico escritório de um juiz de
paz. Só William e Edith testemunharam a cerimônia. A
esposa do juiz, uma mulher grisalha e amarrotada com o
cenho permanentemente franzido, ficou ocupada na cozinha
enquanto a cerimônia era realizada e veio apenas quando
tudo tinha acabado para assinar os papéis como
testemunha. Era uma tarde fria e sombria. A data era 12 de
dezembro de 1941.
Cinco dias antes do casamento, os japoneses tinham
bombardeado Pearl Harbor, e William Stoner assistiu à
cerimônia com uma confusão de sentimentos que nunca
sentira antes. Como muitos outros que vivenciaram aquela
época, ele estava tomado por uma espécie de torpor, mas
sabia que essa sensação era o resultado de emoções tão
profundas e intensas que não seria possível admiti-las
porque não seria possível conviver com elas. Era a força de
uma tragédia coletiva, de um horror e de um pesar tão
difusos que as tragédias privadas e os problemas pessoais
eram deslocados para outra existência, embora
intensificados pela vastidão na qual ocorriam, como se a
tristeza de um túmulo solitário pudesse ser amplificada pelo
deserto que o cerca. Com uma pena que era quase
impessoal, ele assistiu àquele triste pequeno ritual de
casamento e ficou estranhamente comovido com a beleza
passiva e indiferente do rosto de sua filha e pelo soturno
desespero na face do garoto.
Depois da cerimônia, os dois jovens entraram sem
alegria no carrinho de Frye e partiram para St. Louis, onde
morariam e onde ainda teriam de enfrentar outro casal de
pais. Stoner os observou enquanto iam embora da casa, e
só conseguiu pensar em sua filha como uma menininha
muito pequena que outrora se sentava ao lado dele num
escritório remoto e olhava para ele com solene deleite,
como uma criança adorável que morrera havia muito
tempo.
Dois meses após o casamento, Edward Frye se alistou no
exército. A decisão de Grace foi ficar em St. Louis até o
nascimento de seu filho. Seis meses depois, Frye morreu
numa praia de uma pequena ilha do Pacífico, como muitos
outros recrutas inexperientes que tinham sido enviados num
esforço desesperado para deter o avanço japonês. Em junho
de 1942, o filho de Grace nasceu, um menino, e ela lhe deu
o nome do pai, que nunca vira e que não poderia amar.
Embora Edith, que fora para St. Louis naquele mês de
junho para “ajudar”, tivesse tentado persuadir sua filha a
voltar para Columbia, Grace não quis saber disso. Tinha um
pequeno apartamento, uma pequena renda do seguro de
Frye e seus novos sogros, e parecia feliz.
“Mudada de algum jeito”, disse Edith aturdidamente para
Stoner. “Não é mais a nossa pequena Gracie, de maneira
alguma. Ela passou por muita coisa, e imagino que não
queira ter de recordar… Ela lhe mandou lembranças.”
Dezesseis

Os anos da guerra toldaram-se num borrão, e Stoner os


atravessou como se estivesse atravessando uma
tempestade borrascosa e infinita, com a cabeça baixa, os
dentes cerrados e a mente fixa no próximo passo, e no
próximo, e no próximo. No entanto, apesar de toda a sua
resistência estoica e de sua marcha obstinada através dos
dias e semanas, era um homem profundamente dividido.
Uma parte dele ficava instintivamente horrorizada com o
desperdício diário e a onda de destruição e de morte que
atacava inexoravelmente a mente e o coração. Mais uma
vez, viu o corpo docente depauperado, viu as salas de aula
esvaziadas de seus jovens, viu os olhares perdidos daqueles
que ficavam para trás e viu nesses olhares a lenta morte do
coração, o amargo desgaste dos sentimentos e dos afetos.
Mas, ao mesmo tempo, outra parte dele sentia-se
intensamente atraída pelo mesmo holocausto do qual
recuava. Descobriu dentro de si uma capacidade para a
violência que não sabia que tinha. Ansiava pelo
envolvimento, desejava o gosto da morte, a amarga alegria
da destruição, a sensação do sangue. Sentia ao mesmo
tempo vergonha e orgulho, e sobretudo um
desapontamento amargo, consigo mesmo e com a época e
as circunstâncias que o tornavam possível.
Semana a semana, mês a mês, os nomes dos mortos iam
desfilando à sua frente. Às vezes eram apenas ecos de um
passado distante; outras vezes, ele conseguia conectar um
rosto ao nome, ocasionalmente podia recordar uma voz, ou
uma palavra.
Durante todo o tempo, ele continuou a ensinar e a
estudar, embora às vezes sentisse que curvava em vão as
costas contra o ímpeto da tempestade, fechando
inutilmente as mãos em concha, em torno do tênue
tremular de seu último pobre fósforo.
De vez em quando, Grace voltava a Columbia para visitar
seus pais. Na primeira vez, ela trouxe o filho, que mal tinha
completado um ano. Mas a presença dele pareceu
incomodar Edith, de modo que, a partir da visita seguinte,
deixava-o em St. Louis com os avôs paternos. Stoner teria
gostado de ver o seu neto mais frequentemente, mas nunca
mencionou esse desejo. Ele acabara dando-se conta de que
a mudança de Grace de Columbia — talvez até sua gravidez
— era na realidade a fuga de uma prisão a que agora ela
voltava graças à sua irredutível gentileza e boa vontade.
Embora Edith não suspeitasse ou não quisesse admitir,
Stoner sabia que Grace começara a abusar da bebida. Ele
se deu conta disso pela primeira vez durante o verão que se
seguiu ao fim da guerra. Grace viera visitá-los por alguns
dias, parecia particularmente exausta e estava com
olheiras, e com a face tensa e pálida. Uma noite depois do
jantar, Edith foi cedo para a cama, e Grace e Stoner ficaram
sentados na cozinha, tomando café. Stoner tentou
conversar, mas ela estava inquieta e agitada. Ficaram em
silêncio por muitos minutos. Por fim, Grace o olhou
atentamente, deu de ombros e suspirou.
“Escute”, disse, “será que vocês têm alguma bebida em
casa?”. “Não”, respondeu Stoner. “Receio que não. Talvez
tenha uma garrafa de xerez no armário, mas…”
“Eu preciso desesperadamente beber alguma coisa. Você
se importaria se eu ligasse para a loja de conveniência e
pedisse para eles mandarem uma garrafa?”
“Claro que não”, respondeu Stoner. “É só que sua mãe e
eu em geral não…”
Mas Grace já se levantara e fora para a sala. Ela virou
rapidamente as páginas da lista telefônica e discou
furiosamente.
Quando voltou para a cozinha, passou pela mesa, foi até
o armário e pegou a garrafa de xerez meio cheia. Depois ela
pegou um copo no secador de pratos e o encheu quase até
a borda com o vinho marrom-claro. Ainda de pé, bebeu de
uma só vez e enxugou os lábios, estremecendo de leve.
“Azedou”, disse ela. “Detesto xerez.”
Ela trouxe a garrafa e o copo para a mesa, sentou-se e os
posicionou precisamente na sua frente. Encheu o copo pela
metade e olhou para o pai com um estranho sorrisinho.
“Eu bebo um pouco mais do que deveria”, disse ela.
“Pobre pai. Você não sabia disso, sabia?”
“Não”, respondeu ele.
“Toda semana digo a mim mesma: na semana que vem,
não vou beber tanto assim, mas sempre bebo um pouco
mais. Não sei por quê.”
“Você está infeliz?”, perguntou Stoner.
“Não”, respondeu Grace. “Acho que estou feliz. Ou em
todo caso quase feliz. Não é isso. É que…” Ela não terminou.
Quando tinha bebido o que sobrava do xerez, o
entregador da loja de conveniência chegou com o uísque.
Ela trouxe a garrafa para a cozinha, abriu-a com um gesto
de quem tinha prática e despejou uma dose considerável no
copo de xerez.
Ficaram ali sentados até tarde, até o primeiro cinza se
insinuar pelas janelas. Grace continuou bebendo sem parar,
em pequenos goles, e com a noite avançando, as rugas em
sua face relaxaram, ela pareceu mais tranquila e mais
jovem, e os dois conversaram como não tinham sido
capazes de conversar por anos.
“Acho”, disse ela, “acho que fiquei grávida de propósito,
embora não soubesse disso na época. Suponho que nem
mesmo eu sabia quão desesperadamente eu queria, quão
desesperadamente tinha de ir embora daqui. Eu sabia o que
fazer para não ficar grávida, a menos que eu quisesse, Deus
sabe. Todos aqueles garotos na escola, e…”, sorriu com
malícia para o pai, "… você e a mamãe, vocês não sabiam,
sabiam?”.
“Acho que não”, respondeu ele.
“A mamãe queria que eu fosse ‘popular’, e… bom, eu fui
popular, realmente. Não tinha importância para mim,
nenhuma mesmo.”
“Eu sabia que você não estava feliz”, disse Stoner com
dificuldade. “Mas nunca me dei conta… nunca soube…”
“Acho que eu também não”, disse ela. “Não tinha como.
Coitado do Ed. Foi ele quem entrou numa fria. Eu o usei,
sabe; era um bom garoto, e sempre tão envergonhado pela
situação… ele não conseguia suportá-la. Alistou-se seis
meses antes do que precisaria, só para escapar dela. Eu o
matei, suponho. Era um garoto tão legal, e nem tivemos a
chance de gostar um do outro.”
Eles conversaram até tarde da noite, como se fossem
velhos amigos. E Stoner acabou achando que ela estava,
como dissera, quase feliz em meio ao seu desespero. Podia
viver seus dias tranquilamente, bebendo um pouco mais,
ano após ano, entorpecendo-se contra o nada que sua vida
se tornara. Ficou contente por ela ter ao menos aquilo, ficou
grato que ela pudesse beber.
Os anos imediatamente seguintes ao fim da Segunda
Guerra Mundial foram os melhores anos de sua carreira e,
em alguns aspectos, de sua vida também. Os veteranos
baixaram no campus e o transformaram, trazendo ao lugar
uma qualidade de vida que não tivera antes, uma
intensidade e uma turbulência que comportaram uma
transformação. Stoner trabalhava mais do que nunca e os
estudantes, estranhamente maduros, tinham se tornado
muito mais sérios e desprezavam qualquer forma de
trivialidade. Inocentes quanto aos modos e costumes,
aplicavam-se ao estudo como sempre sonhara que um
estudante deveria fazer, como se o estudo tivesse um valor
em si, e não fosse simplesmente um meio para alcançar
algum fim específico. Stoner sabia que, dali a poucos anos,
o ensino não seria a mesma coisa, e se entregou a ele até
ficar exausto, esperando que aquela condição jamais
acabasse. Pensava raramente no passado ou no futuro, nos
desapontamentos ou nas satisfações de ambos.
Concentrava todas as energias de que era capaz no seu
trabalho, na esperança de que, no final das contas, ele seria
julgado exclusivamente pelos próprios atos.
Durante todos esses anos, praticamente nada conseguiu
desviá-lo de sua dedicação ao trabalho. Às vezes, quando
sua filha voltava a Columbia para uma visita, e começava a
vagar sem rumo de um quarto a outro, ele era tomado por
uma sensação de perda que lhe era quase insuportável. Aos
25 anos, ela parecia dez anos mais velha, bebia com o firme
desencanto de quem perdeu todas as esperanças e ficara
claro que ela mais e mais cedia o controle de seu filho aos
avós de St. Louis.
Só uma vez teve notícias de Katherine Driscoll. No
começo da primavera de 1949, ele recebeu uma circular da
editora de uma grande universidade do leste que anunciava
a publicação do livro de Katherine e trazia algumas palavras
sobre a autora. Ela estava lecionando numa boa faculdade
de Letras em Massachusetts e jamais casara. Assim que foi
possível, ele arranjou um exemplar do livro. Quando o
segurou nas mãos, teve a sensação de que seus dedos se
animavam. Eles tremiam tanto que mal conseguiu abri-lo.
Folheou as primeiras páginas e leu a dedicatória: “Para W.
S.”.
Seus olhos se embaçaram, e por muito tempo ficou
sentado sem se mexer. Então balançou a cabeça, voltou ao
livro e não o largou até tê-lo lido por inteiro.
Era um bom trabalho: a prosa era elegante, e a paixão,
disfarçada pela frieza e pela lucidez de sua inteligência.
Stoner se deu conta de que era exatamente ela que ele via
no que lia, e se maravilhou de quanto ainda a sentia
próxima. De repente, era como se Katherine estivesse na
sala ao lado dele, e ele a tivesse deixado só momentos
antes. Sentiu uma espécie de formigamento nos dedos,
como se a estivesse tocando. E a consciência daquela
perda, que por tanto tempo represara dentro de si,
transbordou, engoliu-o, e ele se deixou ser levado para
longe, além do controle de sua vontade; ele não queria mais
se salvar. Então sorriu ternamente, como que lembrando
algo. Ocorreu-lhe que estava com quase 60 anos e que
devia ter deixado para trás a força de tamanha paixão, de
tamanho amor.
Mas sabia que não era assim, e nunca seria. Sob o
entorpecimento, a indiferença, o distanciamento, aquele
amor estava ali, intenso e firme. Nunca fora embora. Em
sua juventude, ele o dera livremente, sem pensar; dera-o
para o conhecimento que lhe fora revelado — quantos anos
atrás? — por Archer Sloane. Ele o dera a Edith, naqueles
primeiros dias insensatos e cegos de sua corte e
casamento. E ele o dera a Katherine, como se nunca o
tivesse dado antes. Estranhamente, ele o dera a cada
momento de sua vida, e talvez o tivesse dado mais
completamente quando não tinha consciência de que o
estava dando. Não era uma paixão da mente nem da carne:
era mais uma força que abrangia ambas, como se não
fossem mais que a matéria e a substância específica do
próprio amor. Para uma mulher ou um poema, seu amor
dizia simplesmente: Olhe! Estou vivo.
Não conseguia pensar em si mesmo como velho. Às
vezes, ao se barbear de manhã, olhava sua imagem no
espelho e não se reconhecia naquele rosto que retribuía
surpreso seu olhar, naqueles olhos claros que despontavam
de uma máscara grotesca. Era como se ele usasse, por
alguma razão obscura, um absurdo disfarce, e tinha a
impressão de que, se quisesse, poderia tirar aquelas
sobrancelhas espessas e brancas, aquela juba de cabelos
encanecidos, aquela carne que cedia em volta dos ossos
proeminentes e as rugas profundas que o faziam parecer
mais velho.
No entanto, sabia que sua idade não era fingimento. Ele
vira a doença do mundo e de seu próprio país durante os
anos após a Grande Guerra. Vira o ódio e a suspeita se
tornarem uma espécie de loucura que se espalhou pela
terra como uma praga veloz. Vira jovens indo de novo para
a guerra, marchando ansiosos para uma perdição sem
sentido, como se fosse o eco de um pesadelo. E a piedade e
a tristeza que sentia eram tão velhas, de tal modo parte de
sua idade, que ele parecia a si mesmo quase puro.
Os anos transcorriam rapidamente, mas ele mal percebia
o passar deles. Na primavera de 1954 estava com 63 anos e
de repente se deu conta de que tinha no máximo mais
quatro anos de ensino pela frente. Tentou ver além desse
tempo, mas não conseguiu enxergar nada e nem tinha o
desejo de ver.
Naquele outono, recebeu um bilhete da secretária de
Gordon Finch, pedindo que ele fosse ver o diretor quando
pudesse. Estava muito ocupado, e passaram-se vários dias
até ter uma tarde livre.
Toda vez que via Gordon Finch, Stoner ficava surpreso
com quão pouco ele envelhecera. Um ano mais novo que
Stoner, ele parecia não ter mais de 50. Estava inteiramente
careca, seu rosto era encorpado e sem rugas, e reluzia com
uma saúde quase querubínica. Seus passos eram ágeis e,
nos últimos anos, começara a se vestir de um jeito mais
casual, com camisas coloridas e paletós estranhos.
Naquela tarde, quando Stoner foi visitá-lo, ele parecia
embaraçado. Conversaram informalmente por alguns
minutos. Finch perguntou sobre a saúde de Edith e
mencionou que sua mulher, Caroline, comentara outro dia
que eles deveriam se encontrar de novo. Então disse: “O
tempo. Meu Deus, como ele voa!”
Stoner assentiu.
Finch suspirou bruscamente. “Bom”, disse, “suponho que
temos de falar sobre isso. Você vai fazer 65 no ano que
vem. Precisamos fazer alguns planos”.
Stoner balançou a cabeça. “Ainda não. Obviamente,
pretendo me valer da opção dos dois anos.”
“Imaginei que você iria”, disse Finch e se recostou na
cadeira. “Eu não. Eu tenho mais três anos e daí estarei fora.
Eu penso às vezes no que perdi, os lugares que nunca
visitei, e… Que diabo, Bill, a vida é muito curta. Por que
você não sai também? Pense em todo o tempo…”
“Eu não saberia o que fazer”, disse Stoner. “Nunca
aprendi.”
“Bom, que diabo”, disse Finch. “Hoje em dia, 65 é ainda
bem jovem. Há tempo para aprender coisas e…”
“É o Lomax, não é? Ele está pressionando você.”
Finch sorriu. “Claro. O que você esperava?”
Stoner ficou em silêncio por um momento. Então disse:
“Diga ao Lomax que eu não quis falar disso com você. Diga
a ele que, com a velhice, fiquei tão rabugento e intratável
que você não conseguiu nada comigo. Que ele vai ter que
lidar com isso pessoalmente”.
Finch riu e balançou a cabeça. “Por Deus, eu vou mesmo.
Após todos esses anos, quem sabe vocês, velhos canalhas,
relaxem um pouco.”
Mas o confronto não ocorreu de imediato e, quando
aconteceu — no meio do segundo semestre, em março —,
não tomou a forma que Stoner esperava. Mais uma vez,
pediram que comparecesse ao escritório do diretor. Um
horário foi especificado, e uma urgência, insinuada.
Stoner chegou alguns minutos atrasado. Lomax já estava
lá, sentado e empertigado em frente à mesa de Finch. Havia
uma cadeira vazia ao seu lado. Stoner atravessou
lentamente a sala e se sentou. Virou a cabeça e olhou para
Lomax. Ele tinha os olhos imperturbavelmente fixos à
frente, com uma sobrancelha erguida num desdém
genérico.
Finch fitou ambos por vários momentos, com um
sorrisinho divertido no rosto.
“Bom”, disse ele, “todos sabemos o assunto que temos
de tratar. É a aposentadoria do professor Stoner”. Ele
sumarizou os regulamentos: a aposentadoria voluntária era
possível aos 65 anos. Nessa opção, Stoner poderia, se
quisesse, se aposentar tanto no fim do ano letivo corrente
quanto no fim de qualquer um dos dois semestres do ano
seguinte. Ou poderia, se quanto a isso concordassem o
chefe do departamento, o diretor da faculdade e o professor
em questão, estender sua idade de aposentadoria para 67,
e a partir daquele momento, a aposentadoria seria
compulsória. A menos, é claro, que à pessoa em questão
fossem concedidas uma posição de professor emérito e uma
cadeira, e nesse caso…
“Uma possibilidade muito remota, acredito que podemos
concordar quanto a isso”, disse Lomax secamente.
Stoner assentiu para Finch. “Muito remota.”
“Eu acredito francamente”, disse Lomax para Finch, “que
seria melhor para os interesses do departamento e da
faculdade que o professor Stoner se valesse dessa
oportunidade e se aposentasse. Há certas mudanças
curriculares e de pessoal que venho contemplando há
algum tempo, e essa aposentadoria tornaria possível fazê-
las”.
Stoner disse para Finch: “Não tenho interesse em me
aposentar antes de ter de fazê-lo, meramente para atender
a um capricho do professor Lomax”.
Finch voltou-se para Lomax, que rebateu: “Tenho certeza
de que há muita coisa que o professor Stoner não
considerou. Ele teria tempo para dedicar-se à escrita, o que
a sua”, fez uma pausa delicada, “sua dedicação ao ensino
tem impedido. Com certeza seria edificante para a
comunidade acadêmica se o fruto de sua longa experiência
fosse…”.
Stoner interrompeu: “Não tenho o menor desejo de
começar uma carreira literária a esta altura da minha vida”.
Lomax, sem se mover de sua cadeira, pareceu fazer uma
reverência a Finch. “Tenho certeza de que nosso colega está
sendo muito modesto. Daqui a dois anos, eu mesmo serei
forçado pelo regulamento a deixar a chefia do
departamento. Com certeza, pretendo aproveitar os anos da
minha velhice; na verdade, não vejo a hora de gozar dos
benefícios da minha aposentadoria.”
Stoner disse: “Eu espero continuar sendo membro do
departamento, ao menos até essa ocasião auspiciosa”.
Lomax ficou em silêncio por um momento. Então disse
contemplativamente para Finch: “Ocorreu-me várias vezes
durante os últimos anos que os esforços do professor Stoner
em benefício da universidade talvez não tenham sido
inteiramente apreciados. Ocorreu-me que uma promoção a
professor titular poderia ser um reconhecimento apropriado
para o último ano da sua carreira. Um jantar para
comemorar a ocasião… uma cerimônia apropriada. Seria
muito gratificante. Embora já estejamos no fim do ano, e a
maioria das promoções já tenha sido anunciada, tenho
certeza de que, se eu insistisse, uma promoção poderia ser
obtida para o próximo ano, para celebrar uma
aposentadoria auspiciosa”.
De repente, o jogo que ele vinha jogando com Lomax e
que, de maneira curiosa, divertia-o pareceu-lhe cruel e
mesquinho. Um cansaço lhe veio. Olhou diretamente para
Lomax e disse enfastiado: “Holly, depois de todos esses
anos, achei que você me conhecia melhor. Eu nunca dei a
mínima para o que você pensava que podia me ‘oferecer’,
ou que você pensava que podia ‘fazer por mim’”. Ele fez
uma pausa. Estava mais cansado do que pensara. Teve que
fazer um esforço para continuar. “Essa não é a questão,
nunca foi a questão. Você é um bom homem, suponho. Com
certeza, é um bom professor. Mas, em certos aspectos, você
é um filho da puta ignorante.” Fez uma pausa de novo. “Eu
não sei o que você esperava. Mas não vou me aposentar. No
final deste ano, nem no final do próximo.” Ele se levantou
devagar e ficou parado um momento, reunindo suas forças.
“Se os cavalheiros me derem licença, estou um pouco
cansado. Vou deixá-los discutindo o que quer que tenham
para discutir.”
Ele sabia que não iria acabar assim, mas não se
importava. Quando, na última reunião geral do
departamento do ano, Lomax, em seu relatório para o corpo
docente, anunciou que a aposentadoria do professor William
Stoner aconteceria no fim do ano seguinte, Stoner se pôs de
pé e informou ao corpo docente que o professor Lomax
estava errado, que a aposentadoria só ocorrería dois anos
após a data que Lomax anunciara. No começo do semestre
de outono, o novo reitor da universidade convidou Stoner
para um chá da tarde em sua casa e falou carinhosamente
de seus anos de serviço, do descanso merecido, da gratidão
que todos sentiam. Stoner fez o seu melhor para assumir
um jeito de velho caduco, chamou o reitor de “meu jovem”
e fingiu que não escutava, de modo que, por fim, o “jovem”
teve de gritar no tom mais controlado que conseguiu.
Mas seus esforços, por mínimos que fossem, cansaram-
no mais do que esperava, e na época dos feriados de Natal
ele estava quase exausto. Disse a si mesmo que estava
ficando velho de verdade, e que precisava ser mais
moderado se quisesse fazer um bom trabalho o resto do
ano. Durante os dez dias dos feriados de Natal, ele
descansou, como se assim pudesse acumular forças, e
quando voltou para as últimas semanas do semestre
trabalhou com um vigor e uma energia que o
surpreenderam. A questão de sua aposentadoria parecia
resolvida, e não voltou a pensar no assunto.
No fim de fevereiro, o cansaço lhe veio de novo, e era
como se não conseguisse se livrar dele. Passou boa parte do
tempo em casa e fez muito de seu trabalho acomodado no
sofá-cama no quartinho dos fundos. Em março, tomou
consciência de uma dor imprecisa e geral em suas pernas e
braços. Disse a si mesmo que estava cansado, que
melhoraria quando os dias quentes da primavera
chegassem, e que precisava de descanso. Em abril, a dor se
tornara localizada na parte inferior de seu corpo, de vez em
quando faltava às aulas, e descobriu que quase toda a sua
energia se esgotava apenas em andar de uma aula para
outra. No começo de maio, a dor ficou intensa, e ele não
podia mais achar que era um inconveniente menor e
marcou uma consulta com um médico da enfermaria da
universidade.
Houve testes e exames e perguntas cujos significados
Stoner compreendeu só vagamente. Deram-lhe uma dieta
especial, alguns comprimidos para a dor, e disseram que
era para voltar no começo da semana seguinte para a
consulta, quando os resultados dos exames estariam
prontos e seriam analisados. Ele se sentiu melhor, embora o
cansaço continuasse.
Seu médico era um jovem chamado Jamison, que
explicara a Stoner que tinha a intenção de trabalhar para a
universidade por alguns anos antes de montar sua clínica
particular. Ele tinha um rosto rosado e redondo, usava
óculos sem aro e era um pouco desajeitado e nervoso, de
uma forma que passava uma estranha confiança a Stoner.
Chegou à consulta adiantado alguns minutos, mas a
recepcionista o mandou entrar imediatamente. Seguiu pelo
corredor comprido e estreito da enfermaria até o pequeno
cubículo que era o consultório de Jamison.
Jamison estava esperando por ele, e ficou claro para
Stoner que estivera esperando por algum tempo. Pastas,
radiografias e anotações estavam dispostas
meticulosamente em sua mesa. Jamison se levantou, sorriu
de uma forma abrupta e nervosa, e estendeu a mão para
uma cadeira em frente à mesa.
“Professor Stoner”, disse. “Sente-se, sente-se.”
Stoner se sentou.
Jamison olhou com o cenho franzido os documentos em
sua mesa, alisou uma folha e se recostou na cadeira.
“Bom”, disse ele, “há alguma espécie de obstrução no trato
intestinal inferior, isso é claro. Pelas radiografias, não dá
para ver muito bem, mas isso não é incomum. Ah, uma
certa opacidade; mas isso não quer necessáriamente dizer
alguma coisa”.
Ele virou na cadeira, colocou uma radiografia na
moldura, acendeu uma luz e apontou vagamente. Stoner
olhou, mas não conseguiu ver nada. Jamison desligou a luz
e se virou de volta para a mesa. Então assumiu um ar
profissional.
“A contagem do seu sangue está bem baixa, mas não
parece haver nenhuma infecção. Sua sedimentação está
abaixo do normal e sua pressão arterial está baixa. Há um
inchaço interno que não parece certo, você perdeu bastante
peso e… bem, com os sintomas que apresenta e pelo que
posso dizer a partir disso”, ele fez um gesto sobre a mesa,
“diria que só há uma coisa a fazer”. Ele sorriu fixamente e
disse com jocosidade forçada: “Temos simplesmente de
olhar aí dentro e ver o que descobrimos”.
Stoner assentiu. “É câncer, então.”
“Bem”, disse Jamison, “essa é uma palavra e tanto. Pode
querer dizer um monte de coisas. Tenho bastante certeza de
que há um tumor aí, mas… bem, não podemos ter absoluta
certeza de nada até termos olhado dentro”.
“Quanto tempo eu tenho?”
“Ah, não há como dizer isso. Mas parece que… bem, é
bastante grande. Está aí já faz algum tempo.”
Stoner ficou em silêncio por um momento. Então disse:
“Quanto tempo estima que eu tenho?”
Jamison disse distraidamente: “Oh, agora, olhe, professor
Stoner”. Ele tentou dar uma risada. “Não devemos nos
precipitar em chegar a conclusões. Ora, sempre há a
chance… há a chance de ser apenas um tumor benigno,
sabe? Ou… ou pode ser um monte de coisas. Simplesmente
não podemos saber ao certo enquanto…”
“Sim”, disse Stoner. “Quando gostaria de fazer a
operação?”
“O mais rápido possível”, respondeu Jamison, aliviado.
“Em dois ou três dias.”
“Cedo assim”, disse Stoner, quase distraído. Então olhou
firmemente para Jamison. “Deixe-me fazer algumas
perguntas, doutor. Devo dizer que quero que o senhor
responda francamente.”
Jamison assentiu.
“Se for só um tumor benigno, como disse… umas duas
semanas iriam fazer alguma grande diferença?”
“Bem”, respondeu Jamison relutantemente, “vai haver a
dor; e… não, não uma grande diferença, suponho”.
“Muito bem”, disse Stoner. “E, se for tão ruim quanto
você acha que é, algumas semanas iriam fazer alguma
diferença nisso?”
Depois de um bom tempo, Jamison disse, quase
amargamente: “Não, suponho que não”.
“Então”, disse Stoner razoavelmente, “vou esperar uma
ou duas semanas. Há algumas coisas que eu preciso
resolver… uns trabalhos que preciso fazer”.
“Eu não recomendo isso, o senhor compreende”, disse
Jamison. “Definitivamente não recomendo.”
“É claro”, assentiu Stoner. “E, doutor, você não vai
mencionar isso para ninguém, certo?”
“Não”, disse Jamison e acrescentou, com um pouco de
ternura, “claro que não”.
Ele sugeriu algumas revisões na dieta que recomendara
antes para ele, prescreveu mais remédios e marcou uma
data para a sua entrada no hospital.
Stoner não sentiu absolutamente nada. Era como se o
que o médico lhe dissera fosse um aborrecimento menor,
um obstáculo que, de algum jeito, teria de contornar para
poder fazer o que tinha de fazer. Ocorreu-lhe que já era bem
tarde no ano para isso acontecer. Lomax teria alguma
dificuldade para encontrar um substituto.
O comprimido que ele tomara no consultório do médico o
deixara com a cabeça um pouco aérea, e achou a sensação
estranhamente prazerosa. Sua noção de tempo ficou
deslocada. Ele se viu parado no comprido corredor de tacos
do térreo do Jesse Hall. Um ruído baixinho, como o distante
farfalhar de asas de passarinhos, estava em seus ouvidos.
Teve a impressão de que uma luz, cuja origem ele não
conseguia identificar, estivesse lampejando no corredor
sombreado e pulsando no ritmo de seu coração. Seu corpo,
intimamente consciente de cada batida, vibrava a cada
passo enquanto ele avançava com imenso cuidado naquela
mescla de luz e sombra.
Parou na escada que levava ao primeiro andar. Os
degraus eram de mármore e, precisamente no centro deles,
havia suaves depressões lisas, pois décadas de passos
subindo e descendo os tinham gastado. Eram praticamente
novos quando Stoner — quantos anos atrás? — parara pela
primeira vez ali e olhara para cima, como olhava agora, e se
perguntara para onde o levariam. Ele pensou no tempo e
em seu fluir leve. Pôs um pé cuidadosamente na primeira
depressão lisa e subiu.
Chegou à antessala do escritório de Gordon Finch. A
garota disse: “O diretor Finch está de saída”.
Ele assentiu distraído, sorriu para ela e entrou no
escritório de Finch.
“Gordon”, disse cordialmente, o sorriso ainda no rosto.
“Não vou demorar muito.”
Finch devolveu o sorriso num reflexo. Seus olhos estavam
cansados.
“Claro, Bill, sente-se.”
“Não vou demorar muito”, repetiu ele. Sentiu um poder
curioso vir em sua voz. “O fato é que mudei de ideia…
quanto a me aposentar, quero dizer. Eu sei que é
inconveniente; desculpe ter demorado tanto a lhe informar,
mas… bom, eu acho que é o melhor a fazer. Vou parar no
fim deste semestre.”
O rosto de Finch pairou à sua frente, redondo em seu
espanto. “Que diabos…”, disse ele. “Fizeram uma lavagem
cerebral em você?”
“Nada disso”, respondeu Stoner. “É decisão minha
mesmo. É só que… descobri que há coisas que eu gostaria
de fazer.” Acrescentou razoavelmente: “E preciso de um
pouco de descanso”.
Finch ficou aborrecido, e Stoner sabia que ele tinha razão
para ficar. Ele achou ter ouvido a si próprio murmurando
outra desculpa. Sentiu o sorriso mantendo-se tolamente em
seu rosto.
“Bom”, disse Finch, “acho que não é tarde demais. Posso
começar com a papelada amanhã. Suponho que você saiba
tudo o que precisa saber sobre a sua renda anual, seguro e
coisas do tipo?”.
“Ah, sim”, respondeu Stoner. “Já pensei nisso tudo. Está
tudo certo.”
Finch olhou para o relógio. “Estou meio atrasado, Bill.
Volte daqui a um dia ou dois e acertamos os detalhes.
Enquanto isso… bom, acho que Lomax precisa saber. Ligarei
para ele esta noite.” Sorriu. “Receio que você tenha
conseguido agradá-lo.”
“Sim”, respondeu Stoner. “Receio que sim.”
Havia muito o que fazer nas duas semanas que restavam
antes de ser internado, mas ele decidiu que seria capaz de
fazer tudo. Cancelou suas aulas nos dois dias seguintes e
convocou todos os estudantes cujas pesquisas, teses e
dissertações ele acompanhava. Escreveu instruções
detalhadas que os guiariam para completar o trabalho que
tinham começado e deixou cópias de papel-carbono na
caixa de correio de Lomax. Consolou aqueles que entraram
em pânico se sentindo abandonados por ele e tranquilizou
aqueles que tinham receio de procurar um novo orientador.
Descobriu que os remédios que estava tomando, além de
aliviar a dor, ofuscavam sua inteligência. Assim, durante o
dia, enquanto falava com os estudantes, e de noite, quando
lia aquela montanha de ensaios, teses e dissertações ainda
incompletas, ele os tomava apenas quando a dor ficava tão
intensa que desviava sua atenção do trabalho.
Dois dias após a declaração de sua aposentadoria, no
meio de uma tarde de trabalho, recebeu um telefonema de
Gordon Finch.
“Bill? Gordon. Escute. Há um pequeno problema sobre o
qual acho que preciso falar com você.”
“Sim?”, disse ele com impaciência.
“É o Lomax. Ele não consegue tirar da cabeça que você
está fazendo isso por causa dele.”
“Não importa”, disse Stoner. “Deixe que ele pense o que
quiser.”
“Espere… Isso não é tudo. Ele está fazendo planos para
seguir adiante com o jantar e a coisa toda. Ele diz que deu a
palavra dele.”
“Escute, Gordon. Estou muito ocupado agora. Você não
consegue deter isso de algum jeito?”
“Eu tentei, mas ele está fazendo através do
departamento. Se você quiser, eu o chamo, mas você vai
precisar estar aqui. Quando ele fica assim, não consigo falar
com ele.”
“Certo. Quando está previsto para essa maluquice
acontecer?”
Houve uma pausa. “Sexta-feira da semana que vem. No
último dia de aula. Antes da semana de exames.”
“Certo”, disse Stoner, cansado. “Estarei com tudo
resolvido então, e será mais fácil do que ficar discutindo
agora. Deixe as coisas acontecerem.”
“Você precisa saber disso também: ele quer que eu
anuncie a sua aposentadoria como professor emérito,
embora não possa ser oficial até o ano que vem.”
Stoner sentiu uma risada vindo em sua garganta. “Que
diabos”, disse. “Tudo bem quanto a isso também.”
Durante toda a semana, ele trabalhou sem consciência
do tempo. Trabalhou direto na sexta-feira, das oito da
manhã até as dez da noite. Leu uma última página, fez uma
última anotação, recostou-se na cadeira. A luz em sua
escrivaninha encheu seus olhos e, por um momento, não
soube onde estava. Olhou em volta e viu que estava em seu
escritório. As estantes estavam abarrotadas com livros mal
guardados. Havia pilhas de papéis nos cantos e seus
arquivos estavam abertos e bagunçados. Eu preciso
arrumar as coisas, pensou, preciso pôr minhas coisas em
ordem.
“Semana que vem”, disse a si mesmo. “Semana que
vem.”
Ele se perguntou se conseguiría chegar em casa. Até
respirar exigia esforço. Concentrou a mente em seus braços
e pernas, obrigando-os a reagir. Pôs-se de pé e não se
deixou oscilar. Apagou a luz da escrivaninha e ficou parado
até conseguir enxergar graças ao luar que entrava pelas
janelas. Então, pôs um pé na frente do outro e andou pelos
corredores escuros até o ar livre e pelas ruas quietas até
sua casa.
As luzes estavam acesas, Edith ainda estava acordada.
Ele reuniu o resto de sua força e conseguiu subir os degraus
da frente e entrar na sala. Então soube que não chegaria
mais longe. Mal conseguiu alcançar o sofá e sentar. Após
um momento, encontrou força para procurar no bolso do
colete seu frasco de comprimidos. Pôs um na boca e engoliu
sem água, então tomou outro. Eram amargos, mas o
amargor foi quase agradável.
Tomou consciência de que Edith estivera andando pela
sala, indo de um lugar para outro. Esperou que ela não
falasse com ele. Quando a dor diminuiu e um pouco de sua
força voltou, percebeu que ela não falara e o rosto dela
estava fechado, suas narinas e boca repuxadas, e andava
rigidamente, com raiva. Começou a falar com ela, mas
decidiu que não poderia confiar em sua voz. Ficou
perguntando-se por que ela estava com raiva. Fazia muito
tempo que ela não ficava com raiva.
Por fim, ela parou de andar pela sala e o encarou. Seus
punhos estavam cerrados e seus braços esticados ao lado
do corpo. “E então? Você não vai me dizer nada?”
Ele pigarreou e fez seus olhos entrarem em foco.
“Desculpe, Edith.” Ouviu sua voz baixa mas firme. “Estou
um pouco cansado, acho.”
“Você não ia me dizer absolutamente nada, ia? Seu
irresponsável. Você não acha que eu tinha o direito de
saber?”
Por um momento, ele ficou perplexo. Então assentiu. Se
tivesse mais força, teria ficado com raiva. “Como você
descobriu?”
“Não se importe com isso. Suponho que todo mundo
sabe, exceto eu. Ah, Willy, francamente.”
“Sinto muito, Edith, realmente sinto. Eu não queria que
você ficasse preocupada. Eu ia lhe contar na semana que
vem, pouco antes de ir. Não é nada. Você não precisa se
preocupar.”
“Nada!”, ela riu amargamente. “Eles dizem que pode ser
câncer. Você sabe o que isso quer dizer?”
Sentiu-se de repente sem peso, e teve de se forçar a não
agarrar alguma coisa. “Edith”, disse numa voz distante,
“vamos falar sobre isso amanhã. Por favor. Estou cansado
agora”.
Ela olhou para ele por um momento. “Você quer que eu o
ajude a ir para o seu quarto?”, perguntou ela, mal-
humorada. “Você não está com cara de que vai conseguir
sozinho.”
“Estou bem”, disse ele.
Mas, antes de chegar ao quarto, ele desejou que tivesse
deixado que ela o ajudasse — e não só porque se descobriu
mais fraco do que esperava.
Descansou no sábado e no domingo, e na segunda-feira
estava em condições de dar suas aulas. Foi para casa cedo,
e estava deitado no sofá da sala de estar olhando com
interesse o teto quando a campainha tocou. Sentou-se e
começou a se levantar, mas a porta se abriu. Era Gordon
Finch. Seu rosto estava pálido, e suas mãos, trêmulas.
“Entre, Gordon”, disse Stoner.
“Meu Deus, Bill”, disse Finch. “Por que você não me
falou?”
Stoner riu brevemente. “Eu bem que poderia ter
anunciado nos jornais”, disse. “Achei que podia fazer isso
discretamente, sem perturbar ninguém.”
“Sei, mas… Deus, se eu soubesse.”
“Não há nada com que se preocupar. Não há nada
definido ainda. É só uma operação. Exploratória, é como
acho que se chama. Em todo caso, como você ficou
sabendo?”
“Jamison”, disse Finch. “Ele é o meu médico também.
Disse que sabia que não era ético, mas que eu precisava
saber. Ele tinha razão, Bill.”
“Eu sei”, disse Stoner. ‘Não importa. A notícia já se
espalhou?”
Finch balançou a cabeça. “Ainda não.”
“Então fique com a boca fechada. Por favor.”
“Claro, Bill”, concordou Finch. “Agora, quanto a esse
jantar na sexta… Você não precisa passar por isso, você
sabe.”
“Mas eu vou”, disse Stoner. Sorriu. “Imagino que devo
algo ao Lomax.”
A sombra de um sorriso apareceu no rosto de Finch.
“Você realmente virou um velho filho da puta intratável,
não?”
“Acho que sim”, respondeu Stoner.
O jantar foi organizado num pequeno salão usado para
banquetes na Associação Estudantil. No último minuto,
Edith decidiu que não conseguiría acompanhá-lo, e ele foi
sozinho. Chegou cedo e atravessou o campus, caminhando
lentamente e à toa na tarde de primavera. Como previra,
não havia ninguém no salão. Pediu a um garçom que
removesse o cartão com o nome de sua esposa e
rearrumasse a mesa principal, para que não ficasse um
lugar vazio. Então se sentou e esperou os convidados
chegarem. Estava sentado entre Gordon Finch e o reitor da
universidade. Lomax, que iria atuar como o mestre de
cerimônias, estava sentado a três cadeiras dele sorrindo e
conversando com as pessoas em volta. Não olhou para
Stoner.
O salão se encheu rapidamente. Membros do
departamento que por anos quase não lhe tinham dirigido a
palavra acenavam para ele do outro lado do salão. Stoner
assentia. Finch pouco disse, embora o observasse
atenciosamente. O novo reitor, um homem ainda novo, cujo
nome ele nunca conseguia lembrar, falava com ele com
uma deferência informal.
A comida foi servida por jovens estudantes de paletó
branco. Stoner reconheceu vários, acenou e conversou com
eles. Os convidados contemplaram tristemente seus pratos
e começaram a comer. Um burburinho descontraído de
conversa, pontuado pelo animado barulho dos talheres de
prata e da porcelana, pulsava no salão. Stoner sabia que a
sua própria presença tinha sido quase esquecida e, assim,
pôde remexer sua comida, dar algumas garfadas rituais e
olhar em volta. Se ele franzisse os olhos, não conseguia ver
os rostos. Via cores e formas vagas movendo-se na frente
dele, como numa moldura, desenhando a cada momento
novas figuras abstratas. Era uma visão agradável e, se ele
se concentrasse nela intensamente, não tinha consciência
da dor.
Depois, de repente, fez-se silêncio. Ele balançou a
cabeça, como se estivesse saindo de um sonho. Perto do
fim da mesa estreita Lomax se pusera de pé, batendo num
copo de água com sua faca. Que rosto bonito, Stoner
pensou vagamente, ainda bonito. Os anos tinham tornado o
magro rosto comprido ainda mais magro, e as rugas
pareciam marcas de uma sensibilidade aumentada mais do
que da idade. Ele ainda tinha seu sorriso sardônico e sua
voz era tão ressonante e firme como sempre fora.
Lomax estava falando. As palavras chegavam a Stoner
aos trancos, como se a voz que as pronunciava retumbasse
do silêncio e então diminuísse de volta à sua origem. “… os
longos anos de dedicado serviço… bem-merecido descanso
das pressões… estimado por seus colegas…” Stoner captou
a ironia e soube que, de seu próprio modo, após todos esses
anos, Lomax estava se dirigindo a ele.
Uma rápida e determinada explosão de aplausos o
despertou de seu devaneio. Ao lado dele, Gordon Finch tinha
ficado de pé e estava falando. Stoner levantou o olhar e
aguçou os ouvidos, mas não conseguiu ouvir o que ele dizia.
Gordon moveu os lábios, depois olhou fixamente para a
frente, houve aplausos e ele se sentou. Do outro lado de
Stoner, o reitor se pôs de pé e falou numa voz que passava
da bajulação à ameaça, do humor à tristeza, do lamento à
alegria. Ele disse que esperava que a aposentadoria de
Stoner fosse um começo, não um fim, sabia que a
universidade ficaria mais pobre com a sua ausência, havia a
importância da tradição, a necessidade de mudança e a
gratidão, por anos a fio, no coração de todos os seus
estudantes. Stoner não conseguia encontrar um sentido
naquelas palavras, mas, quando o reitor terminou, o salão
explodiu em um forte aplauso e os rostos sorriam. Enquanto
o aplauso diminuía, alguém na plateia gritou numa voz fina:
“Discurso!” Outra pessoa repetiu o pedido, e a palavra foi
murmurada aqui e ali.
Finch sussurrou em seu ouvido: “Você quer que eu o livre
dessa?”
“Não”, respondeu Stoner. “Está tudo bem.”
Ficou em pé e se deu conta de que não tinha nada para
dizer. Permaneceu em silêncio por um longo tempo
enquanto passava o seu olhar em cada rosto. Ouviu sua voz
sair monótona. “Eu ensinei…”, disse. Começou de novo. “Eu
ensinei nesta universidade por quase quarenta anos. Não
sei o que teria feito se não tivesse sido um professor. Se eu
não tivesse ensinado, eu poderia…” Fez uma pausa, como
que distraído. Então, num tom definitivo, disse: “Eu gostaria
de agradecer a todos por terem me deixado ensinar”.
Sentou-se. Houve aplausos, risadas amigáveis. Depois
todo mundo se levantou e os convidados começaram a se
deslocar pelo salão. Stoner sentiu sua mão sendo apertada.
Teve consciência de que sorria e assentia ao que quer que
lhe dissessem. O reitor pousou a mão nas suas costas,
sorriu-lhe calorosamente, convidou-o para passar no
escritório dele quando quisesse, olhou seu relógio de pulso
e saiu às pressas. O salão começou a esvaziar, e Stoner
ficou sozinho no mesmo ponto onde se levantara e reuniu
suas forças para sair. Esperou até sentir algo ficar
suficientemente rígido dentro dele, e então deu a volta na
mesa e se dirigiu à saída, passando por grupinhos de
pessoas que lhe davam relances curiosos, como se já fosse
um desconhecido. Lomax estava num dos grupos, mas não
se voltou quando Stoner passou, e Stoner ficou grato por
não terem precisado dirigir a palavra um ao outro, depois de
todo aquele tempo.
•••
No dia seguinte, entrou no hospital e repousou até a manhã
de segunda-feira, quando a operação seria realizada.
Dormiu a maior parte desse tempo sem sentir grande
interesse pelo que estava para lhe acontecer. Na manhã de
segunda, alguém enfiou uma agulha em seu braço. Só em
parte teve consciência de estar sendo empurrado por
corredores até uma sala estranha que parecia ser toda teto
e luzes. Viu algo descer em direção ao seu rosto e fechou os
olhos.
Acordou nauseado. Sua cabeça doía e havia uma nova
dor aguda, não desagradável, na parte inferior de seu
corpo. Vomitou e se sentiu melhor. Deixou a mão passar
sobre os pesados curativos que cobriam a parte central de
seu corpo. Dormiu, acordou durante a noite e bebeu um
copo de água, e dormiu de novo até de manhã.
Quando acordou, Jamison estava de pé junto à sua cama,
os dedos em seu pulso esquerdo.
“Então”, disse Jamison. “Como estamos nos sentindo
esta manhã?”
“Bem, acho.” Sua garganta estava seca. Estendeu a mão,
e Jamison lhe passou um copo de água. Ele bebeu e olhou
para Jamison, esperando.
“Bem”, disse Jamison por fim, embaraçado. “Pegamos o
tumor. Sujeitinho grande. Em um ou dois dias, você estará
se sentindo muito melhor.”
“Vou poder sair daqui?”, perguntou Stoner.
“Você vai estar de pé e andando por aí em dois ou três
dias”, disse Jamison. “A única coisa é que… talvez seja mais
conveniente ficar aqui mais um pouco. Não pudemos… tirá-
lo todo. Vamos usar tratamento com raios X e coisas assim.
Claro, você pode ir e voltar, mas…”
“Não”, disse Stoner e deixou sua cabeça cair de volta no
travesseiro. Estava cansado de novo. “Assim que possível”,
disse, “eu acho que quero ir para casa”.
Dezessete

“Ah, Willy”, disse ela. “Você está todo comido por dentro.”
Ele estava deitado em sua cama no quartinho dos fundos e
olhava pela janela aberta. Era o fim da tarde, e o sol,
mergulhando atrás do horizonte, enviava um fulgor
vermelho para a parte de baixo de uma longa nuvem
encrespada que pairava no oeste acima das copas das
árvores e das casas. Uma mosca zumbia contra a tela da
janela, e o odor pungente das folhas queimando nos jardins
dos vizinhos estava preso no ar parado.
“O quê?”, indagou Stoner vagamente e se voltou para
sua mulher.
“Dentro”, disse Edith. “O médico falou que se espalhou
por toda parte. Oh, Willy, pobre Willy.”
“Sim”, disse Stoner. Ele não conseguia ficar muito
interessado no assunto. “Bom, não é para você se
preocupar. É melhor não pensar nisso.”
Ela não respondeu, e Stoner se voltou de novo para a
janela aberta e olhou o céu escurecer, até haver apenas
uma faixa fosca e púrpura na nuvem ao longe.
Ele estava em casa fazia pouco mais de uma semana e,
naquela tarde, acabara de voltar de uma visita ao hospital,
onde se submetera ao que Jamison, com seu sorriso
forçado, chamara de “tratamento”. Jamison admirara a
rapidez com que sua incisão cicatrizara, dissera algo sobre
ele ter a constituição de um homem de 40 anos e, então,
ficara abruptamente silencioso. Stoner permitira que o
cutucassem e o apalpassem, deixara que o prendessem a
uma mesa e ficara imóvel enquanto uma enorme máquina
pairara silenciosa sobre ele. Era tolice, ele sabia, mas não
protestou: não teria sido gentil. Era bem pouco a que se
submeter, se isso fosse distrair todos eles da consciência do
inevitável.
Sabia que aquele quartinho onde estava agora deitado
olhando pela janela iria se tornar gradualmente o seu
mundo. Já conseguia sentir os primeiros sinais da dor, que
voltava como o chamado distante de um velho amigo.
Duvidava que teria de voltar ao hospital. Naquela tarde,
ouvira na voz de Jamison um tom definitivo, e Jamison lhe
dera comprimidos para tomar caso houvesse “desconforto”.
“Você poderia escrever para a Grace”, ouviu-se dizendo
para Edith. “Faz um bom tempo que ela não vem nos
visitar.”
Depois ele se voltou e viu Edith assentindo vagamente.
Os olhos de sua esposa, junto com os dele, tinham estado
fitando tranquilamente a crescente escuridão fora da janela.
Durante as duas semanas seguintes, sentiu-se
enfraquecer, a princípio gradualmente e depois de uma
forma cada vez mais rápida. A dor voltou, com uma
intensidade que ele não previra. Tomou os comprimidos, e a
sentiu recuar na escuridão como um animal cauteloso.
Grace veio e ele descobriu que, no fundo, pouco tinha a
dizer a ela. Ela estivera fora de St. Louis e, quando voltara,
só no dia anterior, encontrara a carta de Edith. Estava
exausta, tensa e com olheiras escuras. Stoner desejou
poder fazer alguma coisa para diminuir o sofrimento dela,
mas sabia que não podia fazer nada.
“Você está bem, papai”, disse ela. “Realmente bem. Você
vai ficar bom.”
“Claro”, disse ele e sorriu para ela. “Como está o jovem
Ed? E como você tem andado?”
Grace disse que tanto ela quanto o jovem Ed estavam
bem e que o garoto iria começar a quinta série no outono.
Stoner olhou para ela com algum espanto. “Quinta série?”,
perguntou. Então se deu conta de que devia ser verdade.
“Claro. Esqueci quanto ele já deve estar grande agora.”
“Ele fica com seus… com o senhor e a senhora Frye a
maior parte do tempo”, disse ela. “É melhor para ele
assim.”
Ela disse algo mais, mas sua atenção se dispersou. Mais
e mais frequentemente, ele achava difícil manter sua mente
focalizada numa só coisa. Ela vagava para onde não podia
prever e, às vezes, se via falando palavras cuja origem não
compreendia.
“Pobre papai”, ouviu Grace dizer, e trouxe sua atenção
de volta para onde ele estava. “Pobre papai, as coisas não
foram fáceis para você, não?”
Ele pensou por um momento e então disse: “Não. Mas
suponho que eu não quis que fossem”.
“Mamãe e eu… ambas fomos desapontamentos para
você, não fomos?”
Moveu a mão para cima, como que para tocá-la. “Ah,
não”, disse com uma tênue paixão. “Você não deve…”
Ele queria dizer mais, explicar, mas não conseguiu
continuar. Fechou os olhos e sentiu sua mente se esvair.
Imagens se acumularam nela, e mudaram, como que numa
tela. Viu Edith como ela era naquela primeira noite em que
se conheceram na casa do velho Claremont, o vestido azul e
os dedos esguios e a face delicada e clara que sorria
suavemente, os olhos pálidos que olhavam ávidos para
cada momento como se fosse uma doce surpresa. “Sua
mãe…” disse ele. “Ela não foi sempre…” Ela não foi sempre
assim; e ele sentiu que agora conseguia enxergar, sob a
mulher que se tornara, a menina que tinha sido. Na
verdade, achou que sempre percebera isso.
“Você era uma criança bonita”, ele se ouviu dizendo, e
por um momento não soube para quem tinha falado. Uma
luz passou em frente a seus olhos, encontrou forma e se
tornou a face de sua filha, marcada, sombria e esgotada
pelas preocupações. Ele fechou os olhos de novo. “No
escritório. Lembra? Você costumava sentar comigo
enquanto eu trabalhava. Você ficava tão quieta, e a luz… a
luz…” A luz da luminária da escrivaninha (conseguia vê-la
agora) tinha sido absorvida pelo seu rostinho estudioso e
sério curvado sobre um livro ou um desenho, de modo que a
pele lisa brilhava em contraste com as sombras da sala. Ele
ouviu o risinho ecoando ao longe. “É claro”, disse e olhou
para o rosto atual daquela criança. “É claro”, disse de novo,
“você estava sempre lá”.
“Sshh” disse ela suavemente. “Você precisa descansar.”
E essa foi a despedida deles. No dia seguinte, ela veio
até ele e lhe disse que precisava voltar para St. Louis por
alguns dias. Numa voz controlada e sem entonação, ela
acrescentou algo que ele não conseguiu ouvir. Seu rosto
estava exaurido, e os olhos, vermelhos e úmidos. Os olhares
deles se cruzaram. Grace olhou para ele por um longo
momento, quase com incredulidade, depois desviou o olhar.
Ele soube que não a veria de novo.
Não tinha desejo de morrer, mas houve momentos,
depois que Grace foi embora, em que ansiou impaciente
pelo que tinha à frente, como alguém que anseia pelo
momento de uma viagem que não deseja particularmente
fazer. E, como qualquer viajante, ele sentia que havia
muitas coisas que precisava fazer antes de partir, mas não
conseguia lembrar quais eram.
Ele ficara tão fraco que não conseguia andar. Passava os
dias e as noites no minúsculo quarto dos fundos. Edith
trazia os livros que ele pedia e os arrumava numa mesa ao
lado de sua cama estreita, para que ele não tivesse de se
esforçar para alcançá-los.
Mas lia pouco, embora a presença dos livros o
reconfortasse. Fazia Edith abrir as cortinas de todas as
janelas e não a deixava fechá-las, mesmo quando o sol da
tarde, intensamente quente, batia no quarto.
Às vezes Edith vinha ao quarto e sentava na cama ao
lado dele e os dois conversavam. Conversavam sobre coisas
triviais. Sobre pessoas que conheciam de vista, sobre um
novo prédio sendo construído no campus, um velho sendo
derrubado. Mas o que eles diziam não parecia importar.
Uma nova intimidade surgira entre eles. Era uma intimidade
parecida com o começo de um novo amor e, quase sem
pensar, Stoner entendeu por que surgira. Eles haviam
perdoado o mal que tinham feito um ao outro, e estavam
enlevados pela ideia do que a vida deles juntos poderia ter
sido.
Stoner a olhava agora quase sem remorso. Na luz suave
do fim da tarde, seu rosto parecia jovem e sem rugas. Se eu
tivesse sido mais forte, ele pensou. Se eu tivesse sabido
mais. Se eu tivesse conseguido compreender melhor. E por
fim, implacável, pensou: se eu a tivesse amado mais. Como
se fosse uma longa distância que precisava atravessar, sua
mão se moveu pelo lençol que o cobria e tocou a mão dela.
Ela não se moveu e, depois de um tempo, ele caiu num
sono profundo.
Apesar dos sedativos, tinha a sensação de que a sua
mente permanecia lúcida, e sentia-se grato por isso. Mas,
ao mesmo tempo, era como se seus pensamentos
estivessem à mercê de uma vontade alheia que os levava
em direções que ele não conseguia compreender. O tempo
passava, e ele não estava consciente de seu transcorrer.
Gordon Finch o visitava quase todos os dias, mas ele não
conseguia manter a sequência dessas visitas clara em sua
memória. Às vezes se dirigia a Gordon quando ele não
estava lá, e ficava surpreso com a sua voz no quarto vazio.
Outras vezes, no meio de uma conversa, ele se detinha e
piscava, como se subitamente percebesse a presença de
Gordon. Uma vez, enquanto Gordon entrava no quarto na
ponta dos pés, Stoner se voltou para ele com uma espécie
de surpresa e perguntou: “Onde está o Dave?” E, quando
notou o choque no rosto dele, balançou a cabeça
debilmente e disse: “Desculpe, Gordon. Estava quase
dormindo. Estive pensando sobre Dave Masters e… às vezes
digo coisas que estou pensando sem saber. São esses
comprimidos que tenho de tomar”.
Gordon sorriu, assentiu e fez uma piada, mas naquele
instante Stoner soube que Gordon Finch se afastara dele a
tal ponto que nunca mais conseguiria voltar. Ele sentiu um
pungente arrependimento de ter falado assim de Dave
Masters, o garoto desafiador que ambos tinham amado,
cujo fantasma os mantivera, todos esses anos, numa
amizade cuja profundidade eles nunca tinham realmente
percebido.
Gordon lhe trouxe os cumprimentos que seus colegas lhe
mandavam e tocou em alguns assuntos da universidade
que talvez interessassem a ele. Mas seus olhos estavam
inquietos, e o sorriso nervoso tremulava em seu rosto.
Edith entrou no quarto, e Gordon Finch se pôs de pé,
efusivo e cordial em seu alívio de ser interrompido.
“Edith”, disse ele, “sente-se aqui”.
Edith balançou a cabeça e piscou para Stoner.
“O velho Bill está com uma aparência melhor”, disse
Finch. “Por Deus, acho que ele está muito melhor do que na
semana passada.”
Edith se voltou para ele, como se, só então, tivesse
notado sua presença ali.
“Ah, Gordon”, disse ela. “Ele está horrível. Pobre Willy. Ele
não vai mais ficar conosco por muito tempo.”
Gordon empalideceu e deu um passo para trás, como se
tivesse levado um golpe. “Meu Deus, Edith!”
“Não muito mais tempo”, disse Edith de novo, olhando
meditativa e ansiosa para o seu marido, que estava sorrindo
um pouco. “O que eu vou fazer, Gordon? O que eu vou fazer
sem ele?”
Stoner fechou os olhos e ambos desapareceram. Sentiu
que Gordon sussurrava alguma coisa e depois ouviu os
passos de ambos afastando-se.
A coisa mais incrível era a facilidade com que tudo
estava acontecendo. Queria ter contado a Gordon quanto
era fácil, queria ter dito a ele que não o incomodava falar
sobre isso ou pensar nisso, mas não conseguiu. Agora não
parecia realmente importar. Ouviu as vozes deles na
cozinha, a de Gordon baixa e preocupada, a de Edith
relutante e entrecortada. Sobre o que eles estariam
falando?
A dor o agrediu tão de repente e com tamanha violência
que o pegou desprevenido, e ele quase gritou. Relaxou suas
mãos até se soltarem das roupas de cama e as forçou a se
moverem para a mesa lateral. Pegou vários comprimidos e
os pôs na boca e engoliu um pouco de água. Um suor frio
irrompeu em sua testa e ele ficou imóvel até a dor diminuir.
Ouviu as vozes de novo, mas não abriu os olhos. Era o
Gordon? Teve a sensação de que sua audição havia saído de
seu corpo e pairava como uma nuvem sobre ele,
transmitindo-lhe cada delicadeza de som. Mas sua mente
não conseguia distinguir exatamente as palavras.
A voz — era a de Gordon? — estava dizendo algo sobre a
sua vida. E, embora ele não conseguisse entender as
palavras, não pudesse nem mesmo ter certeza de que
estavam sendo ditas, sua própria mente, com a ferocidade
de um animal ferido, investiu com garras contra aquela
pergunta. Implacavelmente, ele viu sua vida como devia
parecer a outro.
Com calma e racionalidade, percebeu que devia parecer
um verdadeiro fracasso. Quisera a amizade e a intimidade
da amizade que pudessem confortá-lo na aventura da
existência. Tivera dois amigos, um deles morrera
insensatamente antes de poder conhecê-lo melhor, o outro
agora recuara tão remotamente entre as fileiras dos vivos
que…
Quisera a unicidade e a serena indissolubilidade do
casamento. Tivera essa também, e não soubera o que fazer
com ela, e a deixara morrer. Quisera amor. E tivera amor, e
renunciara a ele, deixara-o ir para o caos da potencialidade.
Katherine, ele pensou. “Katherine.”
E quisera ser professor, e se tornara um. Mas sabia,
sempre soubera, que na maior parte de sua vida tinha sido
um professor medíocre. Sonhara com uma espécie de
integridade, uma espécie de pureza imaculada, mas
encontrara a banalidade e a força destrutiva da
superficialidade. Aspirara à sabedoria e, no fim de longos
anos, encontrara a ignorância. E o que mais?, ele pensou. O
que mais?
O que você esperava?, perguntou a si mesmo.
Abriu os olhos. Estava escuro. Então, viu o céu lá fora, o
profundo azul-negro do espaço, e o tênue brilho da lua
através de uma nuvem. Deve ser bem tarde, pensou.
Parecia-lhe que fora só um instante atrás que Gordon e
Edith estiveram de pé a seu lado, na tarde luminosa. Ou
fazia muito tempo? Ele não sabia dizer.
Sabia que a sua mente iria enfraquecer à medida que
seu corpo ia definhando, mas não estava preparado para
quão súbito seria. A carne é forte, pensou, mais forte do que
imaginamos. Quer sempre continuar.
Ouviu vozes e viu luzes e sentiu a dor vir e ir. O rosto de
Edith pairou sobre ele. Sentiu seu rosto sorrir. Às vezes
ouvia sua própria voz falando, e achava que ela falava
racionalmente, embora não tivesse certeza. Sentiu as mãos
de Edith nele, movendo-o, dando banho nele. Ela tem seu
filho de novo, pensou. Por fim, ela tem seu filho do qual
pode cuidar. Teria querido poder falar com ela, sabia que
tinha algo a dizer.
O que você esperava?, pensou ele.
Alguma coisa pesada pressionava suas pálpebras. Ele as
sentiu tremer e então conseguiu abri-las. O que sentia era a
luz, a luz brilhante do sol da tarde. Piscou e considerou
impassivelmente o céu azul e o brilhante contorno do sol
que podia ver pela sua janela. Decidiu que eram reais.
Moveu a mão, e com esse movimento sentiu uma força
curiosa fluir para dentro de si, como se viesse do ar.
Respirou profundamente. Não havia dor.
A cada respiração, sentia que sua força aumentava. Sua
carne vibrava, e podia sentir o delicado peso da luz e da
sombra sobre sua face. Levantou-se na cama, de modo a
ficar meio sentado, suas costas apoiadas na parede junto à
qual a cama ficava. Agora ele podia ver lá fora.
Sentiu que acordara de um longo sono e estava
revigorado. Era o fim da primavera ou começo do verão,
mais provavelmente começo do verão, pela aparência das
coisas. Havia riqueza e brilho sobre as folhas do enorme
olmo nos fundos de seu jardim, e a sombra que projetava
tinha um frescor profundo que ele conhecera antes. O ar
estava espesso e pesado, um peso que juntava os odores
suaves da grama, das folhas e das flores, misturando-os e
mantendo-os suspensos. Ele respirou de novo,
profundamente; ouviu o ruído de sua respiração e sentiu a
doçura do verão congregar-se em seus pulmões.
E sentiu também, com aquela respiração, algo que se
deslocava dentro dele, no fundo, e ao se deslocar, fazia
parar alguma outra coisa, fixando sua cabeça de um jeito
que ela não conseguia mais se mexer. Depois a sensação
passou, e ele pensou: então é assim que é.
Ocorreu-lhe que deveria chamar Edith. Depois soube que
não iria chamá-la. Os moribundos são egoístas, pensou: eles
querem o momento todo para si, como as crianças.
Recomeçou a respirar, mas havia algo diferente dentro dele
que não conseguia definir. Sentiu que estava esperando
alguma coisa, uma espécie de conhecimento, mas lhe
parecia que tinha todo o tempo do mundo.
Ouviu um som distante de risadas, e virou a cabeça para
a direção de onde vinha. Um grupo de estudantes tinha
cortado caminho pelo seu gramado nos fundos. Estavam
indo apressados para algum lugar. Viu-os nitidamente: eram
três casais. As meninas tinham pernas compridas e estavam
graciosas em seus vestidos leves de verão, e os garotos
olhavam para elas com um assombro alegre e divertido.
Andavam de leve sobre a grama, quase sem tocá-la, sem
deixar vestígio algum por onde tinham passado. Ele os
observou enquanto saíam de sua vista, até onde não pôde
mais vê-los, e por um bom tempo depois de desaparecerem
o som de suas risadas veio até ele, longe e inocente, na
calma da tarde de verão.
O que você esperava?, ele pensou de novo.
Uma espécie de alegria lhe veio, como que trazida pela
brisa de verão. Agora mal lembrava que estivera pensando
em fracasso, como se isso tivesse alguma importância.
Parecia-lhe que pensamentos assim eram mesquinhos,
indignos do que a sua vida tinha sido. Presenças tênues se
reuniram no limiar de sua consciência, ele não podia vê-las,
mas sabia que estavam ali, reunindo suas forças para uma
espécie de palpabilidade que não podia ver ou ouvir. Estava
se aproximando delas, ele sabia. Mas não havia necessidade
de se apressar. Podia ignorá-las se quisesse. Tinha todo o
tempo do mundo.
Uma suavidade o envolveu, e uma languidez se insinuou
em seus membros. Uma sensação de sua própria identidade
lhe veio com uma força súbita, e ele sentiu o poder dela. Ele
era ele mesmo, e ele sabia quem tinha sido.
Sua cabeça se virou. O criado-mudo estava cheio de
livros que ele não tocava fazia muito tempo. Deixou sua
mão brincar sobre eles por um momento e se assombrou
com a finura dos dedos e com a intrincada articulação das
juntas quando os flexionava. Sentiu a energia dentro deles,
e os deixou pegar um livro da pilha em cima da mesa. Era o
seu próprio livro que buscava e, quando a mão o segurou,
ele sorriu para a familiar capa vermelha, que estava já
descorada e gasta pelo tempo.
Pouco lhe importava que o livro estivesse esquecido e
não servisse para muito. Até o fato de que ele tivesse ou
não algum valor lhe parecia trivial. Não tinha a ilusão de
que iria encontrar a si mesmo ali, naqueles caracteres
desbotados. No entanto, sabia que uma pequena parte de si
mesmo que ele não poderia negar estava ali, e ali
permaneceria.
Abriu o livro e, ao fazê-lo, o livro passou a não ser mais
dele. Deixou seus dedos folhearem as páginas e sentiu um
frêmito como se aquelas páginas estivessem vivas. O
frêmito atravessou seus dedos e correu através de sua
carne e de seus ossos. Estava profundamente consciente
dele, e esperou até que o envolvesse por inteiro, até que a
antiga excitação parecida com terror o imobilizasse onde
estava deitado. A luz do sol, entrando pela janela, brilhou
sobre a página, e ele não conseguiu ver o que estava
escrito nela.
Os dedos relaxaram, e o livro que seguravam se moveu
lentamente e depois rapidamente ao longo do corpo imóvel,
caindo, por fim, no silêncio do quarto.
Posfácio de Peter Cameron

A maioria dos escritores, depois de ter esboçado o primeiro


parágrafo de Stoner, desistiría. Para que continuar?
Naquelas poucas primeiras linhas é revelada a vida inteira
de William Stoner, uma vida que parece bastante triste e
monótona. Ele nunca se afasta mais de cento e cinquenta
quilômetros de Booneville, o pequeno povoado rural no
Missouri onde nasceu; mantém o mesmo emprego durante
toda a vida; por quase quarenta anos, fica preso em um
casamento infeliz; tem contatos esporádicos com a filha
amada e, para seus pais, é um estranho; e admite ter tido
apenas dois amigos, um dos quais morreu quando jovem.
Nada disso parece material muito promissor para um
romance. No entanto, de alguma forma, quase
milagrosamente, John Williams transforma a existência de
William Stoner em uma história apaixonante, profunda e
pungente.
Como o autor consegue esse milagre literário? Até hoje,
tendo lido Stoner três vezes, não estou absolutamente certo
de haver compreendido o livro de verdade, mas alguns
aspectos da história se tornaram claros para mim. E a
verdade é que é possível escrever romances péssimos sobre
pessoas fascinantes que tiveram uma vida plena de dramas,
e que a mais silenciosa das existências, se examinada com
carinho, compaixão e grande cuidado, pode gerar uma farta
colheita literária. Esse é o caso de Stoner.
Na primeira vez em que li Stoner, fiquei maravilhado com
a qualidade da escrita, com sua pacata elegância, sua
sensibilidade, sua clareza cristalina, combinadas com um
toque extraordinariamente delicado. Deus está nos
detalhes, e neste livro todos os detalhes estão em seu
devido lugar: a narrativa percorre a vida de Stoner e se
detém com frequência em instantes de uma realidade
complexa, capturando-os com absoluta clareza. Esses
momentos, analisados com destreza magistral, são
espantosos e inesquecíveis: a terrível sensação de angústia
que caracteriza o casamento e a lua de mel de Stoner e
Edith; a extraordinária sequência que conclui o Capítulo
Onze, em que a alma de Stoner sai brevemente de seu
corpo; a surpreendente e impetuosa paixão entre Stoner e
Katherine; e as páginas finais do livro, que narram uma
experiência essencialmente inenarrável — a morte — com
uma transcendência mais frequentemente encontrada nas
formas artísticas que são desvinculadas das restrições da
linguagem verbal.
Na segunda vez em que o li, fiquei contente em
encontrar a força do livro inalterada: ler novamente um
romance amado é como voltar a um lugar sacro e descobrir
que nada mudou, algo obviamente impossível, porque o
mundo sempre se transforma. Se um livro muda, é apenas
porque fomos nós que mudamos e o abordamos de um
modo diferente, mas sempre é uma satisfação maravilhosa
revisitar o universo de um romance como Stoner e receber a
confirmação de que existem coisas lindas que são imunes
ao efeito brutal e inevitável do tempo. Isto é exatamente o
que devemos à arte: a sensação de que nem tudo está
perdido, de que algumas coisas permanecem em perfeito
estado, invioláveis.
Acabei de ler o romance pela terceira vez e achei essa
última leitura a mais marcante e reveladora. Encontra-se de
novo William Stoner e sente-se enorme carinho por ele, e
fica um pouco difícil e frustrante observá-lo navegar pela
vida de uma forma tão inepta e passiva. É quase penoso
testemunhar seu casamento com Edith — que ele próprio,
logo depois do evento, já considera um erro terrível,
condenado ao fracasso. Somos tomados por um desejo
desesperado de que esse homem domine as forças
destruidoras de sua vida, e, cada vez que ele sucumbe a
elas, sentimos uma pontada no coração.
Quando Stoner começa a montar seu escritório na nova
casa (comprada, obviamente, com o dinheiro dos pais de
Edith), o leitor fica sabendo que “Enquanto consertava sua
mobília e a arrumava no escritório, era a si mesmo que ele
estava lentamente dando forma, era em si mesmo que
estava pondo alguma espécie de ordem, era a si mesmo
que estava dando uma chance”. E o que acontece a essa
pessoa que ele cria com tanto escrúpulo? Edith a bane,
exila-a na prisão da varanda, destrói e usurpa o aposento
onde outrora ele adorava ficar consigo mesmo, desfrutando
da companhia da filha. Edith é um monstro; sua
destrutividade e a antipatia que ela nutre por Stoner são
quase dignas de uma novela, e é justamente esse elemento
que torna tão tocante o último capítulo do livro, em que
esse casal tão incompatível encontra, finalmente, alguma
sintonia.
E depois há Hollis Lomax, a segunda nêmesis de Stoner,
que parece determinado a concluir o trabalho iniciado por
Edith, e torna a carreira de Stoner tão triste e humilhante
quanto a sua vida doméstica. Fica difícil entender o que
exatamente motiva esses dois vilões (acho que alguém
poderia escrever um romance fascinante sobre Edith,
porque, em sua trajetória de vida, sem dúvida há um
elemento trágico que em Stoner é apenas esboçado). As
tentativas sistemáticas de Lomax de destruir a carreira
acadêmica do colega são engatilhadas pela recusa deste
último a apoiar seu protegido, Charles Walker, um estudante
de doutorado evidentemente incompetente, embora
brilhante. O que o leitor deve pensar sobre o fato de que
ambos — Lomax e Walker — são deformes? Seria a
obstinada proteção de Lomax simplesmente uma reação
empática motivada por sua própria condição? Essas são
perguntas que, como aquelas formuladas a respeito de
Edith, fazem parte do mistério impenetrável que se esconde
debaixo da superfície do romance, e que conferem ao livro
sua extraordinária profundidade.
Por fim, Stoner chega a um difícil acordo com Edith e
Lomax, mas o preço a pagar é alto: uma doença fatal e a
morte. No entanto, é a relação com Grace — sua amada e
única filha — que se revela realmente trágica. Grace é um
personagem espectral que esmorece na sombra projetada
pelos pais, que foge do envenenado ménage familiar assim
que pode, da única forma em que é capaz: através de outro
casamento ainda mais insensato e destinado ao fracasso.
Todavia, até essa fuga é inútil: ela perde o marido, desiste
do filho e, quando volta a encontrar Stoner, no final do livro,
é uma mulher perdida, uma alcoólatra, e a Stoner só resta
ficar “contente por ela ter ao menos aquilo, ficou grato que
ela pudesse beber…” E se é possível perdoá-lo por tolerar o
comportamento humilhante da esposa e do colega, é
impossível, na minha opinião, perdoá-lo por ter
negligenciado a filha.
E há também Katherine Driscoll, que entra no romance
silenciosamente, de fininho, e acaba ocupando o centro do
palco, transformando Stoner e, consequentemente, o livro.
Katherine é um personagem fascinante, mas a atração de
Stoner por ela é um episódio inesperado porque, até então,
ele parecia ter desistido tanto do sexo quanto do amor e ter
aceitado sua condição de eLivros na cama improvisada no
sofá da sala. Até esse ponto, Stoner parece levar uma vida
quase monástica (ele ainda é virgem ao casar com Edith
quando já está perto dos 30 anos e, logo depois de Grace
nascer, é banido do leito conjugal), mas não há dúvida
alguma de que sua relação sexual com Katherine (como
também emocional e intelectualmente) é apaixonada e
satisfatória: a frase “eles fizeram amor” se torna uma litania
repetida com frequência nos capítulos dedicados ao
relacionamento.
Exceto o breve período inicial em Booneville, durante o
qual ele é chamado de William, Stoner, no restante do livro,
é apenas Stoner (embora, às vezes, Edith se dirija a ele
usando o apelido infantil de Willy). É como se, depois de se
matricular na faculdade, ele se livrasse de alguma parte
essencial de si mesmo que estava contida no nome e
assumisse uma personalidade definitivamente fria e
implacável: Stoner. Quanto a Katherine Driscoll, ela é
apresentada com seu nome e sobrenome e continuará a ser
Katherine Driscoll até o momento em que os dois confessam
seu amor um ao outro. A partir de então, ela se torna
Katherine e ele, Bill, dando a sensação de que ambos
encontraram, um no outro, a parte mais essencial de si
mesmos.
É interessante constatar que é Lomax, e não Edith, quem
destrói a felicidade deles. Com efeito, somos informados de
que Edith e Stoner, enquanto ele desfruta da relação
extraconjugal com Katherine, convivem sem problemas e
em um clima absolutamente cordial. É a essa altura que os
dois mundos separados de Stoner — o da vida doméstica e
o da vida acadêmica — colidem um com o outro, trazendo
consequências devastadoras. Stoner, “pela primeira vez em
sua vida, ficou doente. Foi uma febre forte e de origem
obscura”.
A doença o transforma: “Seu rosto, que ficara emaciado e
ossudo, estava profundamente enrugado. Havia grandes
mechas grisalhas em todo seu cabelo, e estava ficando
cada vez mais encurvado, como se carregasse um fardo
invisível”. Assim que se dá conta de que a felicidade com
Katherine acabou, ele sente que “uma parte de sua vida
tinha acabado, que uma parte dele estava tão próxima da
morte que podia quase observar sua lenta aproximação”.
Stoner está com apenas 43 anos.
Publicado pela primeira vez em 1965, Stoner foi editado
novamente pela New York Review of Books em 2003. Nos
Estados Unidos, esse segundo lançamento se tornou uma
espécie de fenômeno literário: o livro vendeu mais de 50 mil
cópias, impulsionado por um incessante boca a boca entre
leitores entusiásticos. O que há em Stoner para justificar
esse grande apelo e esse enorme sucesso? É um livro
pequeno, de escopo e ambição modestos, mas enfrenta e
explora as questões mais essenciais e desconcertantes em
que conseguimos pensar: por que estamos vivos? O que
confere significado e valor a uma vida? O que significa
amar? Pela terceira vez, chorei enquanto lia as páginas
finais deste livro maravilhoso. Em seu leito de morte,
William Stoner olha para fora, para o jardim iluminado pelo
sol, e vê um grupo de estudantes caminhando no gramado:
“Andavam de leve sobre a grama, quase sem tocá-la, sem
deixar vestígio algum por onde tinham passado”. Como
esses garotos “alegres e divertidos”, Stoner atravessa com
leveza e delicadeza o coração do leitor, mas o vestígio que
ele deixa é indelével e profundo.
1. William Shakespeare, Sonetos, tradução de Jorge Wanderley, Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1991.

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