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Copyright © 1965 John Williams Posfácio © 2011 Peter Cameron
Título original
Stoner
Tradução
Marcos Maffei
Tradução do posfácio
Gianluca Giurlando
Capa e Projeto Gráfico
Rádio Londres
Revisão
Tamara Sender
Shirley Lima
Foto de capa
Stephen Carroll/ Moment Select/ Getty Images
Página de título
Créditos
Epígrafe
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Quatorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Posfácio
Este livro é dedicado aos meus amigos e ex-colegas do
departamento de Inglês da Universidade do Missouri.
Eles reconhecerão de imediato que é uma obra de
ficção, que nenhum personagem nele retratado se
baseia em qualquer pessoa real, viva ou morta, e
nenhum evento tem a sua contrapartida na realidade
que conhecemos da Universidade do Missouri. Eles
também perceberão que tomei certas liberdades, tanto
físicas quanto históricas, com a Universidade do
Missouri, de modo que efetivamente também ela é um
lugar ficcional.
Um
“Ah, Willy”, disse ela. “Você está todo comido por dentro.”
Ele estava deitado em sua cama no quartinho dos fundos e
olhava pela janela aberta. Era o fim da tarde, e o sol,
mergulhando atrás do horizonte, enviava um fulgor
vermelho para a parte de baixo de uma longa nuvem
encrespada que pairava no oeste acima das copas das
árvores e das casas. Uma mosca zumbia contra a tela da
janela, e o odor pungente das folhas queimando nos jardins
dos vizinhos estava preso no ar parado.
“O quê?”, indagou Stoner vagamente e se voltou para
sua mulher.
“Dentro”, disse Edith. “O médico falou que se espalhou
por toda parte. Oh, Willy, pobre Willy.”
“Sim”, disse Stoner. Ele não conseguia ficar muito
interessado no assunto. “Bom, não é para você se
preocupar. É melhor não pensar nisso.”
Ela não respondeu, e Stoner se voltou de novo para a
janela aberta e olhou o céu escurecer, até haver apenas
uma faixa fosca e púrpura na nuvem ao longe.
Ele estava em casa fazia pouco mais de uma semana e,
naquela tarde, acabara de voltar de uma visita ao hospital,
onde se submetera ao que Jamison, com seu sorriso
forçado, chamara de “tratamento”. Jamison admirara a
rapidez com que sua incisão cicatrizara, dissera algo sobre
ele ter a constituição de um homem de 40 anos e, então,
ficara abruptamente silencioso. Stoner permitira que o
cutucassem e o apalpassem, deixara que o prendessem a
uma mesa e ficara imóvel enquanto uma enorme máquina
pairara silenciosa sobre ele. Era tolice, ele sabia, mas não
protestou: não teria sido gentil. Era bem pouco a que se
submeter, se isso fosse distrair todos eles da consciência do
inevitável.
Sabia que aquele quartinho onde estava agora deitado
olhando pela janela iria se tornar gradualmente o seu
mundo. Já conseguia sentir os primeiros sinais da dor, que
voltava como o chamado distante de um velho amigo.
Duvidava que teria de voltar ao hospital. Naquela tarde,
ouvira na voz de Jamison um tom definitivo, e Jamison lhe
dera comprimidos para tomar caso houvesse “desconforto”.
“Você poderia escrever para a Grace”, ouviu-se dizendo
para Edith. “Faz um bom tempo que ela não vem nos
visitar.”
Depois ele se voltou e viu Edith assentindo vagamente.
Os olhos de sua esposa, junto com os dele, tinham estado
fitando tranquilamente a crescente escuridão fora da janela.
Durante as duas semanas seguintes, sentiu-se
enfraquecer, a princípio gradualmente e depois de uma
forma cada vez mais rápida. A dor voltou, com uma
intensidade que ele não previra. Tomou os comprimidos, e a
sentiu recuar na escuridão como um animal cauteloso.
Grace veio e ele descobriu que, no fundo, pouco tinha a
dizer a ela. Ela estivera fora de St. Louis e, quando voltara,
só no dia anterior, encontrara a carta de Edith. Estava
exausta, tensa e com olheiras escuras. Stoner desejou
poder fazer alguma coisa para diminuir o sofrimento dela,
mas sabia que não podia fazer nada.
“Você está bem, papai”, disse ela. “Realmente bem. Você
vai ficar bom.”
“Claro”, disse ele e sorriu para ela. “Como está o jovem
Ed? E como você tem andado?”
Grace disse que tanto ela quanto o jovem Ed estavam
bem e que o garoto iria começar a quinta série no outono.
Stoner olhou para ela com algum espanto. “Quinta série?”,
perguntou. Então se deu conta de que devia ser verdade.
“Claro. Esqueci quanto ele já deve estar grande agora.”
“Ele fica com seus… com o senhor e a senhora Frye a
maior parte do tempo”, disse ela. “É melhor para ele
assim.”
Ela disse algo mais, mas sua atenção se dispersou. Mais
e mais frequentemente, ele achava difícil manter sua mente
focalizada numa só coisa. Ela vagava para onde não podia
prever e, às vezes, se via falando palavras cuja origem não
compreendia.
“Pobre papai”, ouviu Grace dizer, e trouxe sua atenção
de volta para onde ele estava. “Pobre papai, as coisas não
foram fáceis para você, não?”
Ele pensou por um momento e então disse: “Não. Mas
suponho que eu não quis que fossem”.
“Mamãe e eu… ambas fomos desapontamentos para
você, não fomos?”
Moveu a mão para cima, como que para tocá-la. “Ah,
não”, disse com uma tênue paixão. “Você não deve…”
Ele queria dizer mais, explicar, mas não conseguiu
continuar. Fechou os olhos e sentiu sua mente se esvair.
Imagens se acumularam nela, e mudaram, como que numa
tela. Viu Edith como ela era naquela primeira noite em que
se conheceram na casa do velho Claremont, o vestido azul e
os dedos esguios e a face delicada e clara que sorria
suavemente, os olhos pálidos que olhavam ávidos para
cada momento como se fosse uma doce surpresa. “Sua
mãe…” disse ele. “Ela não foi sempre…” Ela não foi sempre
assim; e ele sentiu que agora conseguia enxergar, sob a
mulher que se tornara, a menina que tinha sido. Na
verdade, achou que sempre percebera isso.
“Você era uma criança bonita”, ele se ouviu dizendo, e
por um momento não soube para quem tinha falado. Uma
luz passou em frente a seus olhos, encontrou forma e se
tornou a face de sua filha, marcada, sombria e esgotada
pelas preocupações. Ele fechou os olhos de novo. “No
escritório. Lembra? Você costumava sentar comigo
enquanto eu trabalhava. Você ficava tão quieta, e a luz… a
luz…” A luz da luminária da escrivaninha (conseguia vê-la
agora) tinha sido absorvida pelo seu rostinho estudioso e
sério curvado sobre um livro ou um desenho, de modo que a
pele lisa brilhava em contraste com as sombras da sala. Ele
ouviu o risinho ecoando ao longe. “É claro”, disse e olhou
para o rosto atual daquela criança. “É claro”, disse de novo,
“você estava sempre lá”.
“Sshh” disse ela suavemente. “Você precisa descansar.”
E essa foi a despedida deles. No dia seguinte, ela veio
até ele e lhe disse que precisava voltar para St. Louis por
alguns dias. Numa voz controlada e sem entonação, ela
acrescentou algo que ele não conseguiu ouvir. Seu rosto
estava exaurido, e os olhos, vermelhos e úmidos. Os olhares
deles se cruzaram. Grace olhou para ele por um longo
momento, quase com incredulidade, depois desviou o olhar.
Ele soube que não a veria de novo.
Não tinha desejo de morrer, mas houve momentos,
depois que Grace foi embora, em que ansiou impaciente
pelo que tinha à frente, como alguém que anseia pelo
momento de uma viagem que não deseja particularmente
fazer. E, como qualquer viajante, ele sentia que havia
muitas coisas que precisava fazer antes de partir, mas não
conseguia lembrar quais eram.
Ele ficara tão fraco que não conseguia andar. Passava os
dias e as noites no minúsculo quarto dos fundos. Edith
trazia os livros que ele pedia e os arrumava numa mesa ao
lado de sua cama estreita, para que ele não tivesse de se
esforçar para alcançá-los.
Mas lia pouco, embora a presença dos livros o
reconfortasse. Fazia Edith abrir as cortinas de todas as
janelas e não a deixava fechá-las, mesmo quando o sol da
tarde, intensamente quente, batia no quarto.
Às vezes Edith vinha ao quarto e sentava na cama ao
lado dele e os dois conversavam. Conversavam sobre coisas
triviais. Sobre pessoas que conheciam de vista, sobre um
novo prédio sendo construído no campus, um velho sendo
derrubado. Mas o que eles diziam não parecia importar.
Uma nova intimidade surgira entre eles. Era uma intimidade
parecida com o começo de um novo amor e, quase sem
pensar, Stoner entendeu por que surgira. Eles haviam
perdoado o mal que tinham feito um ao outro, e estavam
enlevados pela ideia do que a vida deles juntos poderia ter
sido.
Stoner a olhava agora quase sem remorso. Na luz suave
do fim da tarde, seu rosto parecia jovem e sem rugas. Se eu
tivesse sido mais forte, ele pensou. Se eu tivesse sabido
mais. Se eu tivesse conseguido compreender melhor. E por
fim, implacável, pensou: se eu a tivesse amado mais. Como
se fosse uma longa distância que precisava atravessar, sua
mão se moveu pelo lençol que o cobria e tocou a mão dela.
Ela não se moveu e, depois de um tempo, ele caiu num
sono profundo.
Apesar dos sedativos, tinha a sensação de que a sua
mente permanecia lúcida, e sentia-se grato por isso. Mas,
ao mesmo tempo, era como se seus pensamentos
estivessem à mercê de uma vontade alheia que os levava
em direções que ele não conseguia compreender. O tempo
passava, e ele não estava consciente de seu transcorrer.
Gordon Finch o visitava quase todos os dias, mas ele não
conseguia manter a sequência dessas visitas clara em sua
memória. Às vezes se dirigia a Gordon quando ele não
estava lá, e ficava surpreso com a sua voz no quarto vazio.
Outras vezes, no meio de uma conversa, ele se detinha e
piscava, como se subitamente percebesse a presença de
Gordon. Uma vez, enquanto Gordon entrava no quarto na
ponta dos pés, Stoner se voltou para ele com uma espécie
de surpresa e perguntou: “Onde está o Dave?” E, quando
notou o choque no rosto dele, balançou a cabeça
debilmente e disse: “Desculpe, Gordon. Estava quase
dormindo. Estive pensando sobre Dave Masters e… às vezes
digo coisas que estou pensando sem saber. São esses
comprimidos que tenho de tomar”.
Gordon sorriu, assentiu e fez uma piada, mas naquele
instante Stoner soube que Gordon Finch se afastara dele a
tal ponto que nunca mais conseguiria voltar. Ele sentiu um
pungente arrependimento de ter falado assim de Dave
Masters, o garoto desafiador que ambos tinham amado,
cujo fantasma os mantivera, todos esses anos, numa
amizade cuja profundidade eles nunca tinham realmente
percebido.
Gordon lhe trouxe os cumprimentos que seus colegas lhe
mandavam e tocou em alguns assuntos da universidade
que talvez interessassem a ele. Mas seus olhos estavam
inquietos, e o sorriso nervoso tremulava em seu rosto.
Edith entrou no quarto, e Gordon Finch se pôs de pé,
efusivo e cordial em seu alívio de ser interrompido.
“Edith”, disse ele, “sente-se aqui”.
Edith balançou a cabeça e piscou para Stoner.
“O velho Bill está com uma aparência melhor”, disse
Finch. “Por Deus, acho que ele está muito melhor do que na
semana passada.”
Edith se voltou para ele, como se, só então, tivesse
notado sua presença ali.
“Ah, Gordon”, disse ela. “Ele está horrível. Pobre Willy. Ele
não vai mais ficar conosco por muito tempo.”
Gordon empalideceu e deu um passo para trás, como se
tivesse levado um golpe. “Meu Deus, Edith!”
“Não muito mais tempo”, disse Edith de novo, olhando
meditativa e ansiosa para o seu marido, que estava sorrindo
um pouco. “O que eu vou fazer, Gordon? O que eu vou fazer
sem ele?”
Stoner fechou os olhos e ambos desapareceram. Sentiu
que Gordon sussurrava alguma coisa e depois ouviu os
passos de ambos afastando-se.
A coisa mais incrível era a facilidade com que tudo
estava acontecendo. Queria ter contado a Gordon quanto
era fácil, queria ter dito a ele que não o incomodava falar
sobre isso ou pensar nisso, mas não conseguiu. Agora não
parecia realmente importar. Ouviu as vozes deles na
cozinha, a de Gordon baixa e preocupada, a de Edith
relutante e entrecortada. Sobre o que eles estariam
falando?
A dor o agrediu tão de repente e com tamanha violência
que o pegou desprevenido, e ele quase gritou. Relaxou suas
mãos até se soltarem das roupas de cama e as forçou a se
moverem para a mesa lateral. Pegou vários comprimidos e
os pôs na boca e engoliu um pouco de água. Um suor frio
irrompeu em sua testa e ele ficou imóvel até a dor diminuir.
Ouviu as vozes de novo, mas não abriu os olhos. Era o
Gordon? Teve a sensação de que sua audição havia saído de
seu corpo e pairava como uma nuvem sobre ele,
transmitindo-lhe cada delicadeza de som. Mas sua mente
não conseguia distinguir exatamente as palavras.
A voz — era a de Gordon? — estava dizendo algo sobre a
sua vida. E, embora ele não conseguisse entender as
palavras, não pudesse nem mesmo ter certeza de que
estavam sendo ditas, sua própria mente, com a ferocidade
de um animal ferido, investiu com garras contra aquela
pergunta. Implacavelmente, ele viu sua vida como devia
parecer a outro.
Com calma e racionalidade, percebeu que devia parecer
um verdadeiro fracasso. Quisera a amizade e a intimidade
da amizade que pudessem confortá-lo na aventura da
existência. Tivera dois amigos, um deles morrera
insensatamente antes de poder conhecê-lo melhor, o outro
agora recuara tão remotamente entre as fileiras dos vivos
que…
Quisera a unicidade e a serena indissolubilidade do
casamento. Tivera essa também, e não soubera o que fazer
com ela, e a deixara morrer. Quisera amor. E tivera amor, e
renunciara a ele, deixara-o ir para o caos da potencialidade.
Katherine, ele pensou. “Katherine.”
E quisera ser professor, e se tornara um. Mas sabia,
sempre soubera, que na maior parte de sua vida tinha sido
um professor medíocre. Sonhara com uma espécie de
integridade, uma espécie de pureza imaculada, mas
encontrara a banalidade e a força destrutiva da
superficialidade. Aspirara à sabedoria e, no fim de longos
anos, encontrara a ignorância. E o que mais?, ele pensou. O
que mais?
O que você esperava?, perguntou a si mesmo.
Abriu os olhos. Estava escuro. Então, viu o céu lá fora, o
profundo azul-negro do espaço, e o tênue brilho da lua
através de uma nuvem. Deve ser bem tarde, pensou.
Parecia-lhe que fora só um instante atrás que Gordon e
Edith estiveram de pé a seu lado, na tarde luminosa. Ou
fazia muito tempo? Ele não sabia dizer.
Sabia que a sua mente iria enfraquecer à medida que
seu corpo ia definhando, mas não estava preparado para
quão súbito seria. A carne é forte, pensou, mais forte do que
imaginamos. Quer sempre continuar.
Ouviu vozes e viu luzes e sentiu a dor vir e ir. O rosto de
Edith pairou sobre ele. Sentiu seu rosto sorrir. Às vezes
ouvia sua própria voz falando, e achava que ela falava
racionalmente, embora não tivesse certeza. Sentiu as mãos
de Edith nele, movendo-o, dando banho nele. Ela tem seu
filho de novo, pensou. Por fim, ela tem seu filho do qual
pode cuidar. Teria querido poder falar com ela, sabia que
tinha algo a dizer.
O que você esperava?, pensou ele.
Alguma coisa pesada pressionava suas pálpebras. Ele as
sentiu tremer e então conseguiu abri-las. O que sentia era a
luz, a luz brilhante do sol da tarde. Piscou e considerou
impassivelmente o céu azul e o brilhante contorno do sol
que podia ver pela sua janela. Decidiu que eram reais.
Moveu a mão, e com esse movimento sentiu uma força
curiosa fluir para dentro de si, como se viesse do ar.
Respirou profundamente. Não havia dor.
A cada respiração, sentia que sua força aumentava. Sua
carne vibrava, e podia sentir o delicado peso da luz e da
sombra sobre sua face. Levantou-se na cama, de modo a
ficar meio sentado, suas costas apoiadas na parede junto à
qual a cama ficava. Agora ele podia ver lá fora.
Sentiu que acordara de um longo sono e estava
revigorado. Era o fim da primavera ou começo do verão,
mais provavelmente começo do verão, pela aparência das
coisas. Havia riqueza e brilho sobre as folhas do enorme
olmo nos fundos de seu jardim, e a sombra que projetava
tinha um frescor profundo que ele conhecera antes. O ar
estava espesso e pesado, um peso que juntava os odores
suaves da grama, das folhas e das flores, misturando-os e
mantendo-os suspensos. Ele respirou de novo,
profundamente; ouviu o ruído de sua respiração e sentiu a
doçura do verão congregar-se em seus pulmões.
E sentiu também, com aquela respiração, algo que se
deslocava dentro dele, no fundo, e ao se deslocar, fazia
parar alguma outra coisa, fixando sua cabeça de um jeito
que ela não conseguia mais se mexer. Depois a sensação
passou, e ele pensou: então é assim que é.
Ocorreu-lhe que deveria chamar Edith. Depois soube que
não iria chamá-la. Os moribundos são egoístas, pensou: eles
querem o momento todo para si, como as crianças.
Recomeçou a respirar, mas havia algo diferente dentro dele
que não conseguia definir. Sentiu que estava esperando
alguma coisa, uma espécie de conhecimento, mas lhe
parecia que tinha todo o tempo do mundo.
Ouviu um som distante de risadas, e virou a cabeça para
a direção de onde vinha. Um grupo de estudantes tinha
cortado caminho pelo seu gramado nos fundos. Estavam
indo apressados para algum lugar. Viu-os nitidamente: eram
três casais. As meninas tinham pernas compridas e estavam
graciosas em seus vestidos leves de verão, e os garotos
olhavam para elas com um assombro alegre e divertido.
Andavam de leve sobre a grama, quase sem tocá-la, sem
deixar vestígio algum por onde tinham passado. Ele os
observou enquanto saíam de sua vista, até onde não pôde
mais vê-los, e por um bom tempo depois de desaparecerem
o som de suas risadas veio até ele, longe e inocente, na
calma da tarde de verão.
O que você esperava?, ele pensou de novo.
Uma espécie de alegria lhe veio, como que trazida pela
brisa de verão. Agora mal lembrava que estivera pensando
em fracasso, como se isso tivesse alguma importância.
Parecia-lhe que pensamentos assim eram mesquinhos,
indignos do que a sua vida tinha sido. Presenças tênues se
reuniram no limiar de sua consciência, ele não podia vê-las,
mas sabia que estavam ali, reunindo suas forças para uma
espécie de palpabilidade que não podia ver ou ouvir. Estava
se aproximando delas, ele sabia. Mas não havia necessidade
de se apressar. Podia ignorá-las se quisesse. Tinha todo o
tempo do mundo.
Uma suavidade o envolveu, e uma languidez se insinuou
em seus membros. Uma sensação de sua própria identidade
lhe veio com uma força súbita, e ele sentiu o poder dela. Ele
era ele mesmo, e ele sabia quem tinha sido.
Sua cabeça se virou. O criado-mudo estava cheio de
livros que ele não tocava fazia muito tempo. Deixou sua
mão brincar sobre eles por um momento e se assombrou
com a finura dos dedos e com a intrincada articulação das
juntas quando os flexionava. Sentiu a energia dentro deles,
e os deixou pegar um livro da pilha em cima da mesa. Era o
seu próprio livro que buscava e, quando a mão o segurou,
ele sorriu para a familiar capa vermelha, que estava já
descorada e gasta pelo tempo.
Pouco lhe importava que o livro estivesse esquecido e
não servisse para muito. Até o fato de que ele tivesse ou
não algum valor lhe parecia trivial. Não tinha a ilusão de
que iria encontrar a si mesmo ali, naqueles caracteres
desbotados. No entanto, sabia que uma pequena parte de si
mesmo que ele não poderia negar estava ali, e ali
permaneceria.
Abriu o livro e, ao fazê-lo, o livro passou a não ser mais
dele. Deixou seus dedos folhearem as páginas e sentiu um
frêmito como se aquelas páginas estivessem vivas. O
frêmito atravessou seus dedos e correu através de sua
carne e de seus ossos. Estava profundamente consciente
dele, e esperou até que o envolvesse por inteiro, até que a
antiga excitação parecida com terror o imobilizasse onde
estava deitado. A luz do sol, entrando pela janela, brilhou
sobre a página, e ele não conseguiu ver o que estava
escrito nela.
Os dedos relaxaram, e o livro que seguravam se moveu
lentamente e depois rapidamente ao longo do corpo imóvel,
caindo, por fim, no silêncio do quarto.
Posfácio de Peter Cameron