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19/11/2020 Distúrbios Autísticos do Contato Afetivo

Distúrbios Autísticos do Contato Afetivo


Autor: Leo Kanner

Desde 1938 tem nos chamado a atenção um número de crianças cujas condições
diferem tão marcada e singularmente das observadas até então, que cada caso mereceu
- e, espero, irá eventualmente receber - a atenção pormenorizada às suas fascinantes
peculiaridades. Aqui, as limitações necessariamente impostas pelo espaço (para o
artigo, na revista) pedem uma apresentação condensada do material relativo aos casos.
Pela mesma razão também foram omitidas fotos. Já que todas as crianças desse grupo
ainda têm idade inferior a onze anos de idade, esse relato deve ser encarado como uma
preliminar, a ser ampliada à medida que os pacientes forem crescendo e forem
acontecendo mais observações sobre seu desenvolvimento.

CASO 1

Donald T. foi avaliado pela primeira vez em outubro de 1938, com a idade de cinco anos
e um mês. Antes da família chegar de sua cidade natal, seu pai mandou-nos umas
trinta e três páginas datilografadas sobre o caso que, apesar de preenchidas com
muitos pormenores obsessivos, forneceu um excelente histórico. Donald nasceu no final
da gravidez, em oito de setembro de 1933. Pesava aproximadamente três quilos e
duzentos gramas ao nascer. Foi amamentado, com alimentação suplementar até o fim
do oitavo mês; houve freqüentes mudanças de dieta. "Comer", dizia o relatório, "foi
sempre um problema para ele. Essa criança nunca demonstrou um apetite normal. Ver
as crianças comendo doces ou sorvete nunca constituiu uma tentação para ele". A
dentição ocorreu satisfatoriamente. Ele começou a andar com treze meses.
Com a idade de um ano "cantava ou murmurava de boca fechada algumas melodias
com perfeição". Antes dos dois anos de idade, tinha "uma memória invulgar para rostos
e nomes, sabia o nome de um grande número de casas" de sua cidade natal. "A família
o encorajava a aprender e recitar pequenos poemas e até decorou o salmo XXIII e vinte
e cinco perguntas e respostas do catecismo presbiteriano". Os pais observaram que "ele
não aprendia a perguntar ou responder perguntas a menos que contivessem rimas ou
coisa parecida, e então quase nunca perguntava nada a não ser com palavras isoladas".
Sua pronuncia era clara. Interessou-se por gravuras "e logo logo ficou conhecendo um
extraordinário número de gravuras de uma seção da enciclopédia Compton". Ele
conhecia os retratos dos presidentes "e também muitos de seus ancestrais e da
parentela do lado materno e paterno". Aprendeu com rapidez o alfabeto inteiro, "até de
trás para adiante" e a contar até cem.
Desde cedo observamos que ele se sentia mais satisfeito quando deixado sozinho,
praticamente nunca chorou pedindo a mãe, nunca pareceu dar-se conta da volta do pai
para casa e ficava indiferente ao visitar parentes. O pai fez especial menção ao fato que
Donald parou até de prestar a mínima atenção ao Papai Noel com todo seu aparato.
Ele parece ser auto-suficiente. Não mostra nenhuma afeição quando mimado. Ignora o
fato de alguém chegar ou sair e nunca manifesta alegria ao ver o pai, a mãe ou algum
amiguinho. Dá a impressão de voltar-se para a sua concha e viver dentro dela. Certa
vez trouxemos um garotinho muito simpático, da mesma idade, de um orfanato para
passar o verão com Donald. Entretanto, Donald nunca lhe fez nem respondeu nenhuma
pergunta e nem brincou com ele. Raramente se aproxima de alguém que o chame - tem
que ser carregado ou conduzido para onde quer que deva ir.
No seu segundo ano de vida, ele "pegou uma mania de girar blocos, pratos e outros
objetos redondos". Ao mesmo tempo,
lhe desagradavam veículos auto propulsores, como cavalinhos de montar, velocípedes e
balanços. Ele ainda tem medo de velocípedes e parece guardar uma espécie de horror
por eles quando é forçado a andar nos mesmos, hora em que tenta pedir socorro à
pessoa que o está assistindo. Neste verão [1937], compramos para ele um
escorregador, e na primeira tarde, quando outras crianças ali estavam escorregando, ele
não se interessava e quando o colocamos lá em cima para escorregar, ele pareceu
entrar em pânico. Na manhã seguinte, entretanto, quando não havia ninguém presente,
ele foi para fora, subiu a escadinha e escorregou, como tem feito, desde que não haja
criança alguma por perto escorregando com ele... Estava sempre constantemente feliz e
ocupado em entreter-se, mas ressentia-se se compelido a brincar com certas coisas.
Quando interferiam com ele, tinha acessos de birra com características destrutivas. Ele
tinha "um medo terrível de levar umas palmadas" mas "não associava sua má conduta
ao castigo".
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Em agosto de 1937, Donald foi internado em um centro preventivo de tuberculose a fim


de proporcionar "uma mudança de ambiente". Ali, ele tinha uma "propensão a não
brincar com crianças e fazer coisas que as crianças de sua idade geralmente gostam de
fazer". Ele ganhou peso mas adquiriu o hábito de sacudir a cabeça de um lado para o
outro. Continuava a girar objetos e pulava extasiado enquanto os via girar. Manifestava
uma abstração mental que o mantinha totalmente desligado de tudo o que lhe dizia
respeito. Parece estar sempre pensando e pensando, e chamar a sua atenção
praticamente requer que se quebre a barreira mental entre seu mundo interior e o
mundo exterior.
O pai, com quem Donald se parece fisicamente, é um advogado bem-sucedido,
meticuloso, ativo, que teve dois colapsos em virtude de excesso de trabalho. Ele sempre
levou suas doenças a sério, ficando de cama e seguindo à risca as prescrições médicas
mesmo se tratava de um simples resfriado. "Quando anda pela rua vai tão absorto em
pensamentos que não vê ninguém ou coisa alguma e não se lembra de nada ocorrido
durante a caminhada". A mãe tem nível universitário, é calma, eficiente, e seu marido
se sente muito superior a ela. Tiveram um segundo filho em vinte e dois de maio de
1938.
Quando Donald foi examinado em 1938, no Harriet Laine Home, o laudo médico atestou
estar em boas condições físicas. Durante a observação inicial e um estudo de duas
semanas efetuado pelos doutores Eugenia S. Cameron e George Frankl no Child Study
Home em Maryland, foi observado o seguinte quadro:
Havia uma limitação marcante da atividade espontânea. Abrangia o sorriso, o
movimento estereotipado dos dedos que se cruzavam no ar. Ele sacudia a cabeça de um
lado para o outro, murmurando ou cantando de boca fechada sempre as três mesmas
notas de uma canção. Ele girava com grande prazer qualquer coisa que pudesse
apanhar para fazer girar. Ficava atirando coisas no chão e parecia encantado com os
sons que fazia. Arrumava contas, varetas ou blocos em grupos de diferentes séries de
cores. Quando acabava de arrumá-los, guinchava e saltava. Além disto, não dava
mostras de iniciativa precisando de constantes instruções (da mãe) para qualquer tipo
de atividade que não fosse uma daquelas limitadas com as quais se absorvia.
A maioria de suas atividades não passava de uma repetição, executada exatamente da
mesma forma que o tinha sido originariamente. Se ele girava um bloco, começava
sempre pela mesma face principal. Quando enfileirava botões, os dispunha dentro de
uma certa seqüência sem modelo, mas que era a ordem usada pelo pai quando os havia
mostrado pela primeira vez a Donald.
Havia ainda inúmeros rituais verbais se sucedendo pelo dia todo. Quando ele queria
descer, depois da sesta, dizia "Boo (como chamava a mãe), diga, 'Don, você não quer
descer?' ".
Sua mãe aquiescia e Don voltava a falar: "Agora diga 'Tudo bem' ".
A mãe concordava e Don descia. Na hora da refeição, repetindo algo que obviamente
lhe tinha sido dito com freqüência, ele falava para a mãe "diga 'Coma, ou não lhe darei
tomates'; mas se você não comer eu lhe darei tomates", ou "diga 'Se você também
beber agora, eu vou dar risada e sorrisos' ".
E sua mãe tinha que se sujeitar a isso e outras coisas mais para ele não grunhir, gritar e
distender todos os músculos de seu pescoço tenso. Isso ocorria durante o dia inteiro em
razão de uma coisa ou outra. Ele parecia ter muito prazer em emitir (de forma
descontrolada e sem sentido) palavras ou frases como por exemplo "crisântemo",
"dália", "negócios", "vinhatrombeta", "o direito sim, o esquerdo não", "através da
escuridão as nuvens brilhando". Expressões irrelevantes como essas faziam parte de
sua forma habitual de falar. Parecia estar sempre como um papagaio repetindo o que
lhe tinha sido dito uma vez ou outra. Usava os pronomes pessoais com as pessoas que
estava citando, até imitando sua entonação. Quando queria tomar banho, perguntava:
"você quer tomar banho?".
As palavras, para ele, tinham um significado especificamente literal e inflexível. Parecia
incapaz de generalizar, de transferir uma expressão para um objeto ou situação similar.
Se o fez alguma vez, tratava-se de uma substituição que então "permaneceu"
definitivamente com esse significado. Consequentemente, ele batizou cada uma de suas
garrafas com água colorida com os nomes de cada uma das quíntuplas Dionne - Annete,
a azul, Cecile a vermelha, etc. Depois, passando para uma série de misturas de cores,
ele raciocinou da seguinte forma: "Annete e Cecile dão púrpura".
Um pedido coloquial para "deixar isto aí" (put that down), significou para ele colocar as
coisas sobre o chão. Ele tinha um copo só para tomar leite e outro só para água.
Quando colocou um pouco de leite no copo de água, o leite evidentemente passou a ser
água branca.
A palavra "sim" significou por muito tempo o desejo de que o pai o colocasse no ombro.
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Isto teve uma origem determinada. O pai, tentando ensiná-lo a dizer "sim" e "não",
perguntou-lhe certa vez
"Você quer que o papai o ponha no ombro?".
Don expressou sua concordância repetindo literalmente a pergunta, com ecolalia. E o
pai disse "se você quiser, diga 'sim'; se não quiser, diga 'não'".
Don disse "sim", mas daí em diante "sim" passou a significar o desejo de ser içado para
o ombro do pai.
Ele não prestava atenção nas pessoas que estavam ao seu redor.
Quando levado para um cômodo, ignorava completamente as pessoas que lá estavam e
logo se virava para os objetos, de preferência os que pudesse rodar. Ordens ou ações
que não podiam ser ignoradas eram recebidas como instruções nada bem-vindas. Mas
ele nunca ficava zangado com a pessoa que interferisse. Empurrava sim, irado, a mão
que viesse em seu caminho ou o pé que pisava em um dos seus blocos, referindo-se ao
mesmo tempo, ao pé sobre o bloco como "guarda-chuva". Certa vez, o obstáculo foi
removido e ele esqueceu-se completamente do caso. Não se deu conta da presença de
outras crianças; foi direto até seus passatempos favoritos, distanciando-se delas se elas
fossem corajosas o suficiente para juntar-se a ele. Se uma criança tirava um brinquedo
seu, ele passivamente o permitia. Ele rabiscava linhas nos livros de gravuras que as
outras crianças estavam colorindo, e se, furiosas, elas o ameaçavam, ele retrocedia ou
punha a mão nos ouvidos. Sua mãe era a única pessoa com quem ele tinha realmente
contato, mas mesmo assim ela ocupava todo o seu tempo arquitetando formas para
conseguir que ele brincasse com ela.
Depois que ele voltou para casa, a mãe mandava relatórios periódicos sobre seu
desenvolvimento. Ele aprendeu rápido a ler fluentemente e tocar melodias fáceis no
piano. Começou, quando se conseguia que ele prestasse atenção, a responder
perguntas que pediam como resposta 'sim' ou 'não'. Embora tenha começado
ocasionalmente a falar de si próprio como "eu" e de outra pessoa como "você",
continuou por um bom tempo com as inversões pronominais. Quando por exemplo em
fevereiro de 1939 escorregou e quase caiu, fez o seguinte comentário referindo-se a si
próprio: "Você não caiu no chão".
Ele denotava embaraço com relação às inconsistências de soletrar e podia passar horas
escrevendo no quadro negro. Sua maneira de brincar tornou-se mais criativa e variada
ainda que quase ritualística.
Ele voltou para um check up em maio de 1939. Sua atenção e concentração haviam
melhorado. Tinha melhor contato com o ambiente e se notavam algumas reações
diretas perante pessoas e situações. Mostrou seu desapontamento quando contrariado,
cobrou promessas sedutoras, deu mostras evidentes de prazer quando aplaudido. Era
possível, no Child Study Home, obter, com insistência constante, certa condescendência
com a rotina diária e algum grau de manuseio apropriado de objetos. Mas ele ainda
escrevia letras com os dedos no ar, emitindo palavras - "ponto-e-vírgula", "capital",
"doze, doze", "morto, morto", "eu podia por uma virgulazinha ou ponto-e-vírgula" -
mastigando sobre o papel, misturando comida com o cabelo, atirando livros dentro do
privada, colocando uma chave no esgoto, trepando na mesa e na escrivaninha,
explodindo em acessos temperamentais, dando risadinhas e murmurando
autisticamente. Ele pegou uma enciclopédia e aprendeu cerca de quinze palavras do
índice e as ficou repetindo indefinidamente. Sua mãe tinha ajuda nas tentativas de
desenvolver o seu interesse e participação nas situações comuns que a vida
apresentava. A seguir, extratos de cartas mandadas posteriormente pela mãe de
Donald:
Setembro de 1939. Ele continua a comer, lavar-se e vestir-se sozinho, somente com
minha insistência e auxílio. Está ficando desembaraçado, constrói coisas com blocos,
dramatiza estórias, tenta lavar o carro, rega as flores com o esguicho, brinca de loja
com as mercadorias da mercearia, tenta recortar gravuras com a tesoura. Ele ainda tem
grande atração pelos números. Se sua forma de brincar melhorou indiscutivelmente, por
outro lado nunca fez perguntas sobre ninguém e não mostra interesse algum pela nossa
conversa...
Outubro de 1939. (Um diretor da escola amigo da mãe concordou em fazer uma
experiência, colocando Donald no primeiro grau da escola) O primeiro dia foi muito
difícil para eles, mas, com o decorrer do tempo, melhorou muito. Don ficou muito mais
independente, quer fazer muitas coisas sozinho. Ele anda em fila corretamente,
responde quando chamado e está dócil e obediente. Ele nunca conta voluntariamente
qualquer uma de suas experiências na escola e nunca faz objeções para ir às aulas.
Novembro de 1939. Visitei sua sala de aula esta manhã e fiquei maravilhada ao ver a
maneira satisfatória com que cooperava e respondia. Ele estava muito quieto e calmo e
prestou atenção ao que a professora estava dizendo cerca de metade do tempo. Não
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guinchou ou correu para ir até seu lugar mas foi sentar-se normalmente, como as
outras crianças. A professora começou a escrever no quadro negro. O fato atraiu
imediatamente sua atenção. Ela escreveu:
Bete pode alimentar um peixe.
Don pode alimentar um peixe.
Jerry pode alimentar um peixe.
Na sua vez, ele foi até o quadro negro e fez um círculo em volta de seu nome. Em
seguida, deu de comer a um peixe dourado. Depois, todas as crianças pegaram o livro
de leitura e ele o folheou até a página certa, como a professora havia ordenado e leu
quando foi chamado. Ele também respondeu uma pergunta sobre uma das gravuras.
Diversas vezes, quando solicitado, saltou e sacudiu a cabeça enquanto respondia...
Março de 1940. O maior progresso que notei foi o da conscientização das coisas que lhe
dizem respeito. Ele está falando muito mais e perguntado muita coisa boa. Não é
sempre que me conta espontaneamente o que acontece na escola, mas se eu fizer
perguntas dirigidas, ele as responde com acerto.
Ele está tomando parte nos jogos das outras crianças para valer. Um dia, inscreveu a
família num jogo que acabava de aprender, explicando a cada um de nós o que
devíamos fazer. Está se alimentando melhor e mostra capacidade para fazer coisas
sozinho.
Março de 1941. Ele melhorou enormemente, mas as dificuldades básicas ainda são
evidentes. Donald foi trazido para outro check up em Abril de 1941. Não lhe foi feito
nenhum convite para que entrasse no consultório mas ele o fez com boa vontade. Lá
dentro, nem mesmo lançou um olhar para os clínicos presentes (dois dos quais conhecia
bem em virtude de suas consultas anteriores) - foi imediatamente até uma carteira e
mexeu em papéis e livros. De início, as perguntas eram correspondidas com um
estereotipado "Eu não sei". Depois, por sua conta, pegou lápis e papel e escreveu e
desenhou, enchendo páginas e páginas com as letras do alfabeto e alguns desenhos
simples. Ele dispôs as letras em duas ou três linhas, lendo-as numa seqüência
preferencialmente vertical e mostrou-se muito satisfeito com o resultado. De vez em
quando, saia-se, voluntariamente, com uma declaração ou pergunta: "Eu vou ficar dois
dias no Child Study Home". Mais além, disse "Onde está minha mãe?"
"O que você quer com ela?", perguntaram-lhe.
"Eu quero abraçá-la no pescoço".
Ele empregava os pronomes com acerto, e suas sentenças eram gramaticalmente
corretas.
A maior parte de sua "conversação" consistiu em perguntas de natureza obsessiva.
Suas variações eram inexauríveis: "quantos dias numa semana, anos no século, horas
num dia, horas num meio dia, semanas num século, séculos em meio milênio, etc., etc.
Quantas canecas num galão, quantos galões para encher quatro galões?". Às vezes,
perguntava "quantas horas num minuto, quantos dias em uma hora?" e etc. Ele parecia
pensativo e sempre queria uma resposta. De vez em quando comprometia-se
temporariamente a responder depressa algumas outras perguntas ou solicitações mas,
de repente, voltava ao mesmo tipo de comportamento. Muitas de suas respostas eram
metafóricas ou então peculiares. Quando lhe pediram que subtraísse 4 de 10,
respondeu: "vou desenhar um hexágono".
Ele era ainda extremamente autista. Seu relacionamento com as pessoas só se
desenvolveu na medida em que se dirigia a elas quando precisava ou queria saber algo.
Ele nunca olhava para a pessoa enquanto falava e não fazia gestos comunicativos. Mas
até esse tipo de contato cessava quando lhe falavam ou davam o que pedia.
Uma carta da mãe, datada de outubro de 1942:
Don ainda fica indiferente demais ao que o cerca. Seus interesse mudam
constantemente, mas sempre está absorvido com algo tolo, desconexo. Sua literal
disposição mental está ainda muito marcada, ele quer soletrar palavras como soam e
pronunciar letras de forma consistente. Recentemente, eu consegui que Don fizesse
pequenos trabalhos para ganhar um dinheirinho para ir ao cinema. Hoje em dia, ele
gosta muito de ir ao cinema, mas sem se dar conta da seqüência da estória. Ele lembra-
se das cenas na ordem em que as vê. Outros de seus recentes hobbies se acha em
edições antigas da revista Time. Ele encontrou um exemplar da primeira edição de 3 de
março de 1923 e procurou fazer uma lista com as datas de publicação de cada edição
desde aquele tempo. Até agora foi até abril de 1934. Imaginou quantos exemplares há
em um volume e outros disparates similares.

CASO 2

O médico de Frederick W., de seis anos de idade, avaliou em 27 de maio de 1942 que
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sua
"capacidade de adaptação em um ambiente social era caracterizada tanto pelo ataque
como pelo comportamento de recuo". Sua mãe declarou:
O menino sempre foi auto-suficiente. Posso deixá-lo sozinho que ele se entretém com
satisfação, andando pelas redondezas, cantando. Nunca o vi chorar para pedir atenção.
Ele jamais se interessou por esconde-esconde, mas brinca com a bola de todo jeito,
olha o pai se barbear, segura a caixa do aparelho, coloca o aparelho de novo na caixa,
põe a tampa na saboneteira. Ele nunca foi muito bom em brincadeiras que exigem
cooperação. Não se importa de brincar com as coisas comuns com as quais as outras
crianças brincam desde que elas girem. Ele tem medo de coisas mecânicas - foge delas.
Sempre teve medo de minha batedeira de ovos e fica inteiramente petrificado com o
aspirador de pó. Para ele, elevadores constituem-se em um experiência simplesmente
terrificante. Tem medo também dos peões que rodam.
Até o último ano, ele praticamente ignorou os outros. Quanto tínhamos convidados, ele
não lhes dava a mínima atenção. Olhava curiosamente para as crianças pequeninas e,
depois, queria sair sozinho. Ele se portava como se as pessoas absolutamente não
estivessem presentes e o mesmo acontecia diante dos avós. A cerca de um ano atrás
começou a mostrar interesse maior em observá-los e até mesmo a chegar perto deles.
Mas, em geral, no seu caso, as pessoas significam uma interferência. Ele as empurra
para longe. Se se chegam muito perto, empurra-as para longe dele. Não quer que eu o
toque ou abrace, mas vem a mim e me toca.
Por um certo espaço de tempo, ele fixa-se em uma determinada coisa. Em uma das
prateleiras de nossa estante de livros, tínhamos três peças dispostas de determinada
forma. Quando as mudávamos de lugar, ele tornava a dispô-las como se achavam
antes. Que se saiba, não tentava novos vôos. Depois de ficar olhado para o ar por um
bom tempo, punha-se a fazer o que tinha que ser feito de repente. Queria estar certo
de que o faria bem feito. Antes de completar dois anos, falou pelo menos duas palavras
("papai" e "Dora", o nome da mãe). Daí em diante, entre dois e três anos, pronunciou
palavras que pareciam chegar a surpreendê-lo. Uma das primeiras palavras que disse
foi "macacão". (Como os pais nunca esperavam que ele respondesse as suas perguntas,
ficavam surpresos quando respondia "sim") Com dois anos e meio, mais ou menos, ele
começou a cantar. Chegou a cantar umas vinte ou trinta canções, inclusive um pequeno
acalanto em francês. Em seu quarto ano, tentei fazê-lo pedir as coisas antes de dá-las a
ele. Mais teimoso do que eu, resistia mais tempo e se não conseguisse no momento,
também não desistia delas. Agora já pode contar até as centenas e lê os números, mas
não está interessado neles, nem mesmo em aplicá-los aos objetos. Tem uma enorme
dificuldade em aprender a devida colocação de pronomes pessoais. Quando recebe um
presente, fala consigo mesmo: "você diz obrigado".
Ele joga boliche e quando vê as garrafas caírem, pula de alegria.
Frederick nasceu em 23 de maio de 1936 em posição incomum. A mãe teve "alguns
problemas renais" e foi decidida uma cesárea duas semanas antes do prazo estipulado.
Ele passou bem depois do parto e não houve dissabores com a alimentação. A mãe se
lembrava de que nunca foi detectado antecipadamente sua posição quando ela estava
se preparando para dá-lo à luz. Ele sentou-se com sete meses e andou com 18, mais ou
menos. Teve resfriados ocasionais e nenhuma outra doença. Tentativas para mantê-lo
na creche da escola foram um fracasso: "ou ele fugia ou se escondia em algum canto ou
enfiava-se no meio de um grupo e tornava-se muito agressivo". O menino era filho
único. O pai, de 44 anos, nível universitário, diplomado em patologia das plantas, era
muito viajado em virtude do seu trabalho. Era um homem paciente, tranqüilo,
ligeiramente obsessivo; como uma criança, não "dava a última palavra" e era delicado,
fazendo crer que lhe tenha faltado vitaminas na dieta elaborada na África. A mãe, de 40
anos, com diploma de faculdade, sucessivamente secretária de médicos, agente de
vendas, diretora de estudos de secretariado em uma escola de moças, e ao mesmo
tempo professora de história, é descrita como saudável e calma.
O avô paterno organizou missões médicas para a África, estudou medicina tropical na
Inglaterra, tornou-se uma autoridade em mineração de manganês no Brasil, e, ao
mesmo tempo, decano de uma escola médica e diretor de um museu de arte de uma
cidade americana, sendo citado no Quem é Quem com dois nomes diferentes. Ele
desapareceu em 1911 e seu paradeiro ficou obscuro por 25 anos. Foi quando então se
soube que ele tinha ido para a Europa e se casado com uma romaneista, sem ter se
divorciado de sua primeira esposa. A família o considerava "um caráter marcante do
tipo gênio que queria fazer o melhor ao seu alcance."
A avó paterna é descrita como "uma missionária calejada, se é o que foi na realidade,
totalmente dominadora e de difícil convívio, no momento fazendo pioneirismo no sul,
num colégio para montanheses".
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O pai é o segundo dos cinco filhos. O mais velho é jornalista e autor de um best-seller
muito conhecido. A irmã casada, "sensível e totalmente precoce" é cantora. Depois, vem
o irmão que escreve contos de aventuras para uma revista. O mais novo, pintor, escritor
e comentarista de rádio, "não falou até cerca de seis anos de idade" e as primeiras
palavras que pronunciou foram: "se um leão pode falar, pode também assobiar".
A mãe falou de seus parentes: "os meus eram gente simples". Sua família estabelecera-
se numa cidade do Wisconsin, onde o pai é banqueiro; sua mãe interessa-se
relativamente pelas obras da igreja e suas três irmãs, todas mais jovens do que ela, são
matronas comuns da classe média.
Frederick foi admitido no Harriet Lane Home em 27 de maio de 1942. Parecia estar bem
nutrido. A circunferência de sua cabeça media 21 polegadas, a do tórax 22, e a do
abdômen 21. Seu occipício e região frontal eram fortemente proeminentes. Tinha um
mamilo super-numerário na axila esquerda. Os reflexos eram lentos mas presentes.
Todos os outros dados, inclusive exames de laboratório e raio-x do crânio acusaram
normalidade, exceto o que se referia às grandes e precárias amígdalas.
Ele foi conduzido ao consultório do psiquiatra por uma enfermeira, que deixou o local
imediatamente após. Sua expressão facial era tensa, um tanto apreensiva e deu a
impressão de inteligência. Vagamente surpreso por alguns momentos, mostrava-se
alheio à presença dos três adultos presentes. Acabou por sentar-se no sofá emitindo
sons ininteligíveis quando, abruptamente deitou-se, exibindo um escandalosamente um
sorriso sonhador. Respondeu a perguntas do jeito que quis, mas o fez repetindo-as de
maneira ecolálica. O traço mais impressionante de seu comportamento era a diferença
de reações diante dos objetos e de gente. Os objetos o absorviam facilmente e ele
mostrava atenção e perseverança ao brincar com eles. Parecia olhar as pessoas como
intrusos nada bem-vindos aos quais prestava tão pouca atenção quanto lhe era
permitido. Quando forçado a responder, fazia-o rapidamente e logo voltava sua atenção
para coisas. Quando uma mão se levantava à sua frente de maneira a ser impossível
ignorá-la, brincava com ela por curtos instantes como se fosse um objeto isolado. E
soprou um palito de fósforo com uma expressão satisfatória por ter apagado a chama,
mas não olhou para cima, para a pessoa que tinha acendido o fósforo. Quando uma
quarta pessoa entrou na sala, ele escondeu-se por um minuto ou dois atrás da estante
de livros, dizendo "eu não quero você" e , num aceno de mão, enxotou-a. Depois,
recomeçou a brincar e não prestou mais atenção nela nem em ninguém.
O resultado dos testes (Escola de Performance Grace Arthur) era difícil de avaliar por
causa da falta de cooperação. Ele foi melhor com o quadro Seguin (menor tempo 58
segundos). Na conclusão do teste de água e do potro ele pareceu guiado unicamente
pela forma, a ponto de não fazer diferença se as peças estavam do lado certo ou não.
Mostrou boa perseverança e concentração com todas as formas postas na mesa,
trabalhando com elas espontânea e interessadamente. Nos intervalos dos testes, andou
pela sala, examinando vários objetos, revolvendo o cesto de lixo sem olhar para as
pessoas presentes. Ele fez freqüentes ruídos de sucção e, de vez em quando, beijou a
superfície dorsal da mão. Ficou fascinado com o círculo que havia entre as formas na
mesa, o qual colocou para girar sobre a carteira. E conseguiu não só cumprir a proeza
como apará-lo para que não caísse no chão. Frederick foi matriculado na Devereux
Schools em 25 de setembro de 1942.

CASO 3

Richard M. foi admitido no Johns Hopkins Hospital em 5 de fevereiro de 1943, quando


tinha 3 anos e 3 meses de idade, sob alegação de surdez, já que não falava e não
respondia às perguntas. Em seguida à sua internação, o residente fez esta observação:
A criança parece ser normalmente inteligente. Brinca com os brinquedos na cama e é
convenientemente curiosa com respeito a instrumentos usados no exame. Ela parece
inteiramente auto-suficiente quando brinca. É difícil dizer definitivamente se ela ouve,
mas parece que sim. Ela obedece instruções. como "sente-se" ou "deite-se", mesmo
quando não vê quem está falando. Não presta atenção às conversas que ocorrem à sua
volta e embora não faça barulho, fala palavras desconhecidas.
Sua mãe trouxe consigo notas copiosas que indicam preocupação obsessiva com
pormenores e uma tendência para ler toso tipo de interpretações relativas às
performances da criança. Ela observou (e registrou) cada gesto e cada "olhar", tentando
achar-lhe o significado específico e, finalmente, decidindo-se sobre um pormenor às
vezes explicado muito superficialmente. E acumulava assim um acervo que, embora
muito elaborado e ricamente ilustrado, revelava, em sua totalidade, mais de sua própria
versão do que realmente havia acontecido em cada ocasião mencionada.
O pai de Richard é professor de tudo que diga respeito a florestas em uma universidade
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do sul. Ele vive totalmente imerso em seu trabalho e quase não lhe sobra tempo para
contatos sociais. A mãe estudou até a faculdade. O avô materno é físico e o resto da
família, de ambos os lados, é constituída de pessoas profissionalmente bem sucedidas.
O irmão de Richard, 31 meses mais novo, é descrito como uma criança normal e de
bom desenvolvimento.
Richard nasceu em 17 de novembro de 1937. A gestação e o nascimento transcorreram
normalmente. Ele sentou-se com 8 meses e andou com 1 ano. Sua mãe começou a
"educá-lo" com 3 semanas, colocando-lhe um supositório todas as manhãs, "para que
seu intestino se porta-se como um relógio". Comparando os dois filhos, a mãe recordou-
se que enquanto o mais novo mostrava uma reação ativa antecipada ao ser pego no
colo, Richard não dava nem sinal de prontidão fisionômica ou postural e deixava de se
aninhar ao ser segurado no colo por ela ou pela enfermeira. A nutrição e o crescimento
físico decorreram satisfatoriamente. Vacinado com doze meses contra varíola, teve
como reação um surto de diarréia e febre do qual se restabeleceu em menos de uma
semana.
Em setembro de 1940, a mãe, comentando a ausência de fala em Richard, observou em
suas notas: eu não tenho certeza de quando, exatamente, ele parou de imitar os sons
das palavras. Parece que ele teve uma gradativa regressão mental nos dois últimos
anos. Como ele não revelasse o passava em sua cabeça, pensamos que estivesse tudo
bem. Agora que ele está emitindo tantos sons, estamos desconcertados por que é
evidente que ele não pode falar. Antes eu pensei que ele poderia se quisesse. Ele
passou-me a impressão de silenciosa sabedoria... Uma coisa intrigante e
desencorajadora é a grande dificuldade que se tem para conseguir sua atenção.
Richard foi considerado saudável no exame físico, exceto com relação às grandes
amígdalas e adenóides que removeu em 8 de fevereiro de 1941. A circunferência de sua
cabeça era de 54,5 centímetro. Seu eletroencefalograma foi normal.
Ele dirigiu-se voluntariamente ao consultório do psiquiatra e logo pôs-se a brincar, ativo,
com os brinquedos, sem prestar atenção às pessoas que estavam na sala. De vez em
quando, olhava para as paredes, sorria e proferia em breve estacato vigorosos sons -
"Ih! Ih! Ih!". Acatou a ordem falada e gesticulada da mãe para tirar os sapatos. Quando
a ordem foi outra, desta vez sem gestos, ele se ateve à ordem anterior e tirou os
sapatos (que já havia calçado de novo). Seu desempenho foi bom com os quadros não-
giratórios mas não tanto com os giratórios.
Richard foi examinado outra vez com a idade de quatro anos e quatro meses. Crescera
consideravelmente e ganhara peso. Diante da sala de exames, gritou e fez um enorme
estardalhaço, mas acabou capitulando e entrando sozinho, voluntariamente. Lá dentro,
imediatamente pôs-se a acender e apagar as luzes. Não mostrou interesse pelo clínico
ou qualquer outra pessoa mas foi atraído por uma pequena caixa que acabou atirando
longe como se fosse uma bola.
Com quatro anos e onze meses, seu primeiro movimento ao entrar no consultório (ou
qualquer outra sala) era o de acender e apagar as luzes. Ele subiu numa cadeira e da
cadeira para uma escrivaninha a fim de alcançar o interruptor na parede. Ele não
comunicava seus desejos mas se dirigia, com raiva até, à mãe, que adivinhava e
procurava o que ele queria. Não tinha contato com pessoas, as quais considerava
definitivamente como uma interferência quando falavam com ele ou tentavam obter sua
atenção.
A mãe sentiu que já não era mais capaz de controlá-lo e ele foi colocado num lar
adotivo perto de Annápolis sob os cuidados de uma mulher que mostrou sempre um
notável talento para lidar com crianças difíceis. Recentemente, essa mulher ouviu-o
dizer claramente as primeiras palavras inteligíveis. Eram elas: "boa noite".

CASO 4

Paul G. compareceu em março de 1941, com idade de 5 anos, para fazer um teste
psicométrico mediante o qual se pensou estar diante de uma severa deficiência
intelectual. Ele foi para uma escola maternal privada, onde sua fala incoerente,
incapacidade de obedecer e reações temperamentais a qualquer interferência deram a
impressão de um caso de oligofrenia.
Paul, filho; único, chegou a este país procedente da Inglaterra, com aproximadamente
dois anos de idade, acompanhado da mãe. O pai, um engenheiro de minas, que se
supunha na Austrália, havia abandonado a esposa pouco antes, depois de vários anos
de um casamento infeliz. A mãe, provavelmente de nível universitário, mulher
impaciente, instável, excitável, deu uma versão vaga ruidosa e conflitante do panorama
familiar e do desenvolvimento do filho. Ela levou bastante tempo enfatizando e
ilustrando seus esforços para tornar Paul esperto, para ensiná-lo a memorizar poemas e
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canções e várias rimas infantis.


Ele nasceu normalmente. Vomitou bastante durante o primeiro ano de vida e alimentou-
se de dietas mudadas constantemente com pouco sucesso. Deixou de vomitar quando
começou a ingerir alimentos sólidos. Os dentes despontaram, ele firmou a cabeça,
sentou, andou e controlou o intestino e a bexiga na idade certa. Teve sarampo, catapora
e coqueluche, sem complicações. Suas amígdalas foram retiradas aos três anos de
idade. O exame físico acusou fimose como único senão de uma boa saúde.
As seguintes características surgiram da observação feita em suas visitas à clínica,
durante cindo semanas num pensionato e durante alguns dias de estada no hospital.
Paul era uma criança esbelta bem feita de corpo, atraente e seu rosto parecia
inteligente e animado. Tinha boa agilidade manual. Raramente respondia a qualquer
tipo de abordagem ou mesmo à chamada de seu nome. Certa vez, atendendo a um
pedido, pegou um bloco do chão. Outro dia em seguida a um modelo ter sido
desenhado à sua frente, ele desenhou um círculo. Às vezes, um enérgico "não faça
isso!" fazia-o interromper uma atividade. Mas, geralmente, se se falasse com ele,
continuava com o que estava fazendo com se nada houvesse sido dito. Também nunca
foi possível detectar se estava sendo espontaneamente desobediente ou não. Ele era
obviamente tão ausente que as observações não o alcançavam. Estava sempre
vivamente ocupado com algo e parecia então plenamente satisfeito, a menos que
alguém fizesse uma tentativa persistente para interferir nas ações que ele mesmo
escolhera. Aí, ele tentava primeiro escapar disso e, se não desse certo, gritava e caia
num respeitável acesso de raiva.
Havia um marcante contraste entre suas relações com gente e com objetos. Quando
entrava na sala, dirigia-se imediatamente para os objetos que usava corretamente. Não
era destruidor e tratava os objetos com cuidado ou mesmo afeição. Ele pegava um lápis
e fazia rabiscos num papel que havia achado sobre a mesa. Abria uma caixa, tirava dela
um telefone de brinquedo, sempre cantando: "ele quer telefonar", e girava pela sala
com o bocal e o receptor em posição certa. Apanhou uma tesoura e paciente e
habilidosamente cortou uma folha de papel em pedacinhos, cantando a frase: "cortando
papel", muitas vezes. Ele arranjou-se sozinho com a maquinaria de um brinquedo,
correu em volta da sala segurando-o no alto e cantando continuamente "a máquina está
voando". Enquanto tais expressões vocais, entoadas sempre com a mesma inflexão,
eram claramente ligadas às suas ações, ele emitia outras que podiam não estar
conectadas com situações imediatas. Há alguns exemplos: "as pessoas no hotel"; "você
machucou sua perna?"; "acabaram-se os bombons"; "o bombom está vazio"; "você
cairá da bicicleta e baterá a cabeça". Todavia algumas dessas exclamações poderiam ter
sido originadas em experiências prévias. Ele adquiriu o hábito de dizer quase todo o dia:
"não atire o cachorro para fora da sacada". Sua mãe lembrou-se de que tinha dito essas
palavras para ele, referindo-se a um cachorro de brinquedo quando eles ainda estavam
na Inglaterra. Ao avistar uma panela, exclamava invariavelmente "Pedro-comedor". A
mãe recordava-se que essa associação começara quando ele tinha dois anos de idade e
ela deixara cair uma panela enquanto recitava para ele a trovinha infantil "Pedro, Pedro,
comedor de abóbora". Reproduções de advertências e ferimentos corpóreos constituíam
a parte principal de suas elucubrações.
Nenhuma dessas observações teve a veleidade de apontar um valor de comunicação.
Não havia nisso laços afetivos com as pessoas. Ele se comportava como se as pessoas
não lhe dissessem respeito ou mesmo não existissem. Não fazia diferença se alguém lhe
falava de maneira amigável ou áspera. Ele nunca encarou o rosto das pessoas. Quando
tinha algo em comum com alguma delas, tratava-as, ou melhor, tratava parte delas
como se fossem objetos. Usava uma mão para dirigi-las. Ao brincar, dava cabeçadas na
mão, como há tempos atrás fazia com um travesseiro. Permitia que a mãe o vestisse
mas não prestava a menor atenção nela. Quando com outras crianças, ignorava-as, e ia
direto em direção de seus brinquedos.
Sua articulação era clara e ele tinha um bom vocabulário. A construção de suas
sentenças era satisfatória, com uma exceção significativa. Ele nunca usava o pronome
na primeira pessoa nem se referia a si mesmo como Paul. Todas as manifestações
relativas a si mesmo eram feitas na segunda pessoa, bem como as repetições literais de
coisas que lhe haviam sido ditas antes. Ele expressava sua vontade de comer bombons
dizendo "você quer bombons". Ele desviou a mão de um radiados quente e disse "você
se machuca". Às vezes era ouvido repetindo coisas que lhe haviam sido ditas, feito
papagaio.
Testes formais não puderam ser levados a cabo, mas certamente ele não podia ser
tachado de oligofrênico no sentido exato da palavra. Depois de ouvir a tia do pensionato
dizer "graças" três vezes, passou a repeti-lo de forma correta e desde então o guardou
na memória.
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Ele podia contar e nomear cores. Aprendeu depressa a identificar seus discos favoritos
na pilha e sabia subir até a vitrola para tocá-los.
A tia do pensionato relatou uma série de observações que indicavam um
comportamento compulsivo. Ele se masturbava muitas vezes em completo abandono.
Corria em círculos emitindo frases. Pegava um pequeno xale que ficava sacudindo
enquanto gritava deliciado "Ih! Ih!". Podia continuar fazendo tais coisas por muito
tempo e mostrar grande irritação quando interrompido. Tudo isso e muitas outras coisas
que não se tratavam somente de repetições mas que se sucediam dia após dia com uma
mesmice quase fotográfica.

CASO 5

Em fevereiro de 1942 foi recebida Barbara K., de oito anos e três meses de idade. Nas
anotações escritas pelo pai se lia:
Primeira filha, nascida normalmente em 30 de outubro de 1933. Mamou muito pouco
passando para a mamadeira depois de mais ou menos uma semana. Aos três meses
deixou de aceitar qualquer tipo de alimentação. Foi alimentada por tubo, cinco vezes ao
dia, até um ano de idade. Foi quando começou a comer, embora lhe fosse muito difícil,
até os dezoito meses. Desde então passou a comer bem, gosta de experimentar
comida, de saboreá-la e agora tem loucura por cozinhar.
Vocabulário comum até dois anos, mas a colocação das palavras na sentença é sempre
lenta. Tem habilidade fenomenal para ler e soletrar. Boa escritora mas com dificuldades
ainda nas expressões verbais. A linguagem escrita ajudou a verbal. Não se dava bem
com aritmética a não ser por proeza de memória. Repetitiva quando bebê, agora
também é obsessiva: retém coisas nas mãos, leva outras para a cama, repete frases,
apaixona-se por uma idéia, um jogo, etc. Aferra-se a eles e, depois, vai se ocupar de
outra coisa qualquer. Ela costuma falar usando "você" para si própria e "eu" para a mãe
ou para mim, como se estivesse dizendo coisas que lhe estivéssemos falando.
Muito tímida, tem medo de varias coisas mutantes, vento, animais grandes, etc. Passiva
a maior parte do tempo, às vezes é obstinadamente passiva. Desatenta a ponto de
alguém perguntar se ela ouve. (Ela ouve!) Espirito não competitivo, nenhum desejo de
agradar a professora. Se sabe alguma coisa a mais que um outro colega de classe, não
o demonstra, fica calada, talvez nem se dê conta do fato.
No verão passado, foi muito apreciada no acampamento. Aprendeu a nadar, era
graciosa na água (sua mobilidade sempre parecera desajeitada), superou o medo dos
pôneis, brincou melhor com as crianças de cinco anos de idade. No acampamento ela
adquiriu a vitaminose e desnutrição mas quase não fez queixas verbais.
O pai de Barbara era um conhecido psiquiatra. A mãe, bem educada, era uma boa
mulher. Em 1937 nasceu um irmão mais novo, saudável, vivo e bem desenvolvido.
Barbara "apertava mãos", a pedido, (oferecendo a esquerda na chegada e a direita na
saída) apenas levantando uma mão vacilante na direção aproximada da mão estendida
do clínico; no movimento, faltava, definitivamente, a noção de comprimento. Durante
todo o encontro não houve indicação de qualquer tipo de contato afetivo. Uma picada de
alfinete resultou na retirada do braço, uma olhadela medrosa para o alfinete (não para o
clínico) e a pronúncia da palavra "machucada!" não endereçada a ninguém em
particular.
Ela não mostrou interesse no desempenho de testes. O conceito de teste, de participar
de uma experiência ou situação, parecia estranho a ela. Espichava a língua e brincava
com a mão como alguém o faria com um brinquedo. Atraída por uma caneta que estava
sobre a carteira, ela disse: "caneta como as suas em casa". Depois, vendo um lápis,
perguntou: "posso levar isto para casa?".
Quando lhe foi dito que podia, ela não fez nenhum movimento para pegá-lo. O lápis lhe
foi entregue mas ela empurrou dizendo "não é o meu lápis".
Ela fez o mesmo, repetidamente, com relação a outros objeto. E disse várias vezes
"vamos ver mamãe" (que estava na sala de espera).
Ela leu extremamente bem com dez anos completos, em trinta e três segundos e sem
erros uma excitante história de Binet, mas foi incapaz de reproduzir de memória o que
tinha lido. Nas gravuras de Binet, (ou ao menos notou) nenhuma ação ou ligação entre
os itens isolados que enumerou sem dificuldades. Sua caligrafia era legível. Seus
desenhos (homem, casa, gato sentado com seis pernas, abóbora, máquinas) eram
destituídos de imaginação e estereotipados.
Ela usava a mão direita para escrever e a esquerda para o resto, era canhota de pés e
destra de olhos.
Ela conhecia os dias da semana. Quando começou a citá-los "sábado, domingo,
segunda-feira", parou por aí e disse "você vai para escola" (isto é, "na segunda-feira"),
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como se o assunto estivesse encerrado.


No transcorrer de todos esse procedimentos, os quais cumpria quase que
automaticamente, após freqüentes e várias repetições de pergunta ou instrução, ela
rabiscava palavras com espontaneidade: "laranjas", "limões", "bananas", "uvas",
"cerejas", "maçãs", "damascos", "tangerinas", "panelas", "suco de melancia"; as
palavras, às vezes, se precipitavam umas sobre as outras e obviamente não eram para
ser lidas pelos outros.
Muito amiúde ela interrompia qualquer "conversa" que se relacionava com "transportes
motores" e "a cavalo", o que - segundo o pai o deixou preocupado por algum tempo. Ela
disse, por exemplo, "Eu vi os transportes". "Eu vi a cavalo quando fui para a escola".
Sua mãe observava, "Complementações a fascinam, como também uma voluta de
fumaça ou um pêndulo". Seu pai declarou previamente: "Manifesta-se nela um recente
interesse por assuntos sexuais na hora em que tomamos banho e um interesse
obsessivo por banheiros".
Barbara foi colocada nas Escolas Devereux, onde está fazendo alguns progressos no
aprendizado de contar coisas suas às pessoas.

CASO 6

Virginia S., nascida em 13 de setembro de 1931, morou na escola de treinamento do


estado para oligofrênicos desde 1936, exceto um mês em 1938, quando foi enviada a
uma escola para surdos "como oportunidade educativa". A doutora Esther L. Richards
que a viu várias vezes, diagnosticou com clareza que ela não era nem surda nem
oligofrênica e escreveu em maio de 1941:
Virginia fica afastada das outras crianças, (na escola de treinamento) por que é
totalmente diferente de todas elas. É asseada e ordeira, não brinca com as outras
crianças e, segundo os principais testes, não aparece como surda. Mas não fala. A
menina se diverte horas a fio juntado peças de um quebra-cabeças, ajustando-as até
que fiquem armados. Eu a vi, com uma caixa cheia de pedaços de dois quebra-cabeças,
armar gradativamente as peças de cada um deles. Todas as conclusões apontam para a
existência de uma normalidade congênita que se manifesta mais como uma
personalidade anormal do que um defeito orgânico.
Virginia, a mais nova de três irmãos, era filha de um psiquiatra que confessou em
dezembro de 1941: "Eu nunca gostei de crianças, o que é provavelmente uma reação
pessoal à restrição de movimento (viagens) e, no mínimo, as interrupções e agitações".
Sobre a mãe de Virginia o marido disse: "Ela não é, de jeito algum, do tipo maternal.
Sua atitude (em relação à filha) é como se estivesse lidando com uma boneca, um
animalzinho de estimação ou algo semelhante."
Felipe, seu irmão, cinco anos mais velho, nos acusa de sua severa gagueira aos quinze
anos de idade e cai em prantos quando se diz a ele que tem tudo o que deseja em casa.
"O único momento", disse ele soluçando "que meu pai tem alguma coisa a ver comigo é
quando me xinga por ter feito algo errado".
Sua mãe nada fez para melhorar as coisas. Ele sente que toda a sua vida foi vivida
numa "atmosfera gelada" com dois estranhos inabordáveis.
Em agosto de 1938, o psicólogo da escola de treino observou quer Virginia podia
responder a sons, à chamada de seu nome e a instruções, "olhe!".
Ela não presta atenção no que lhe está sendo dito mas entende com rapidez o que se
espera dela. Seu desempenho reflete discriminação, cuidado e precisão.
Ela acusou, através dos itens de não-linguagem dos testes de Binet e Marill Palmer, um
Q.I. de 94. "Sem dúvida", comentou o psicólogo:
Sua inteligência é superior a isso... Ela é quieta, solene, composta. Não a vi sorrir uma
única vez. Ela se encolhe dentro de si mesma, segregando-se dos outros. Parece estar
num mundo só dela, esquecida de tudo, mas ser o centro de interesse da situação
orientada. Ela é muito auto-suficiente e independente. Quando outros invadem sua
integridade, tolera-os com indiferença. Não há manifestação de amizade ou interesse
nas pessoas. Por outro lado, ela encontra prazer em lidar com as coisas, através do que
mostra imaginação inventiva. É típico, não há manifestação de afeição... Nota do
psicólogo em outubro de 1939 - hoje, Virginia ficou muito mais à vontade no
consultório. Lembrou-se (depois de mais de uma ano) onde os brinquedos eram
guardados e pegou-os. Foi impossível persuadi-la a participar de procedimentos de
teste, pois ela não esperava pelas demonstrações quando exigidas. Movimentos rápidos
e habilidosos. Tentativa e erro seguidas de acerto. Poucos movimentos supérfluos. Um
novo teste imediato reduziu o tempo e o erro a menos da metade. Há momentos, a
maioria deles, em que ela fica completamente alheia a tudo, exceto a seu foco imediato
de atenção...
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Janeiro de 1940. A maior parte do tempo ela fica calada, como se sempre tivesse
trabalhado e brincado sozinha. Nunca desafiou autoridade ou causou qualquer
transtorno. Durante atividades em grupo, se torna inquieta, contorce-se, e quer sair
para satisfazer sua curiosidade sobre algo que está em outro lugar. Produz alguns sons
locais, chorando ao extremo se repreendida ou contrariada por outra criança. Ela canta
para si mesma, de boca fechada, e, em dezembro, ouvi-a cantar com perfeição, a
melodia de um hino natalino enquanto colava correntes de papel.
Junho de 1940. As meninas da escola disseram que Virginia falou algumas palavras
quando estavam no chalé. Lembraram-se de que ela gosta muito de doces e disse
"chocolate", "marshmellow", "mama" e "nenê".
Quem a reviu, em 11 de outubro de 1942, avistou uma menina alta, esbelta, bem
vestida, de onze anos de idade. Quando chamada, levantou-se e aproximou-se, sem
olhar uma única vez para a pessoa que a chamou. E ali ficou, alheia, olhado para o
espaço. De vez em quando, ao responder perguntas, sussurrava "mama", "nenê".
Quando se formou um grupo em volta do piano, uma criança a tocar e outras a cantar,
Virginia sentou-se, dando a impressão de não notar o que estava acontecendo, de estar
totalmente absorta. Não pareceu dar-se conta do momento em que as crianças pararam
de cantar. Quando o grupo se dispersou, ela não mudou de posição e pareceu não ter
consciência da mudança de cena. Tinha uma fisionomia inteligente embora apresentasse
uma expressão vazia nos olhos.

CASO 7

Herbert B. nos foi trazido em 5 de fevereiro de 1941, com três anos e dois meses de
idade. Pensava-se que tinha um sério retardo nas faculdades intelectuais. Seu
eletroencéfalograma foi normal.
Herbert nasceu em 16 de novembro de 1937, duas semanas antes do prazo, através da
decisão de uma cesariana. Pesava então 2 quilos e oitocentos gramas. Desde o
nascimento até o terceiro mês de idade, vomitou todo o alimento que ingeria. Depois, o
vômito cessou quase abruptamente e, exceto ocasionais regurgitações, prosseguiu
alimentando-se satisfatoriamente. Segundo sua mãe, ele "sempre foi lento e calado".
Durante um certo tempo, julgou-se que era surdo, por que "não mudava de expressão
quando lhe falávamos ou quando na presença de outras pessoas; além disso não
tentava falar ou formar palavras". Ele levantou a cabeça aos quatro meses e sentou aos
oito, mas não tentou andar. Aos dois anos, de repente, começou a andar sem antes
engatinhar ou apoiar-se em cadeira. Recusou-se terminantemente a tomar líquidos a
não ser em recipientes todos de vidro. Certa vez, quando em um hospital, ficou três
dias sem tomar líquido, por que este lhe era dado em canecas de estanho. Ele tinha um
medo terrível de água corrente, queimadores de gás e várias outras coisas. "Fica
aborrecido com a mudança de algo a que está acostumado: se se dá conta de alguma
modificação, dica nervoso e chora". Mas ele próprio gostava de levantar e baixar
cortinas, rasgar caixas de papelão em pedacinhos e brincar com eles por horas e fechar
e abrir as folhas das portas.
Os pais de Herbert separaram-se logo após seu nascimento. O pai, um psiquiatra, foi
descrito como "um homem de inteligência fora do comum, sensível, impaciente,
introspectivo, que se leva muito a sério, não interessado pelas pessoas (mas em si
próprio) e às vezes dado ao álcool". Sua mãe, uma física, fala de si mesma como "ativa
e saliente, amante das pessoas e crianças mas com pouca vivência de seus problemas -
de forma que acha mais fácil e melhor aceitar as pessoas como são do que procurar
entendê-las. Herbert é o caçula de três filhos. O segundo é um menino normal,
saudável. A mais velha, Dorothy, nascida em junho de 1934, depois de 36 horas de
duros trabalhos de parto, parecia ligada e responsiva como um menino e pronunciou
muitas palavras com dezoito meses; lá pelo fim do segundo ano de vida ela "não
mostrou grandes progressos em seus relacionamentos infantis ou nos contatos com
outras pessoas". Gostava que a deixassem em paz, dançava em círculos, fazia
estranhos ruídos com a boca e ignorava completamente as pessoas, exceto a mãe, a
quem se agarrava "em pânico e com uma agitação generalizada". (Seu pai a detestava
ostensivamente). "Sua fala era muito pobre e a expressão de idéias completamente
falha. Tinha dificuldades com os pronomes e repetia "você" e "eu" em vez de usá-los
adequadamente". Primeiro foi declarada imbecil, depois esquizofrênica e em seguida os
pais se separaram (o filhos ficaram com a mãe) e ela desabrochou. Agora freqüenta a
escola onde está fazendo bons progressos; ela fala bem, tem um Q.I. de cento e oito e,
embora sensível e moderadamente receosa - está interessada em gente e fica sozinha
razoavelmente bem.
Quando examinado pela primeira vez, Herbert mostrou uma fisionomia
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extraordinariamente inteligente e boa coordenação motora. Dentro de certos limites,


manifestou espantoso despropósito na busca de objetivos auto-selecionados. Dentro de
um grupo de blocos, ele logo descobriu aqueles que estavam colados num quadro e
aqueles que podiam ser retirados. Ele poderia construir uma torre de blocos alta, com
facilidade, como qualquer criança de sua idade ou mesmo mais velha. Não podia ser
interrompido nas ocupações que ele próprio escolhia. Ficava contrariado com qualquer
interferência, afastando os intrusos para longe (sem mesmo olhar para eles) ou
gritando se não o conseguisse.
Vimo-lo outra vez com quatro anos e sete meses e ainda com cinco anos e dois meses
de idade. Ainda não falava. Em ambas as vezes entrou no consultório sem prestar a
mínima atenção às pessoas presentes. Ele dirigiu-se em seguida ao quadro de Seguin e
imediatamente ocupou-se, colocando as figuras em seus devidos espaços e tirando-as
outra vez deles, hábil e rapidamente. Quando se interferia, ele choramingava
impaciente. Quando um figura era furtivamente removida, ele notava sua falta de
imediato, ficava perturbado, mas esquecia-se completamente do fato quando ela era
reposta no lugar. Às vezes, quando por fim se aquietava, depois de se aborrecer por
causa da remoção de figuras do quadro, ele punha-se a saltar para cima e para baixo
em cima do sofá, com uma expressão estática no rosto. Não respondia ao ser chamado
nem a qualquer outra palavra que lhe fosse endereçada. Ficava completamente absorto
no que estava fazendo, fosse o que fosse. Ele nunca sorria. Às vezes, emitia sons
inarticulados como se estivesse cantando monotonamente. Certa vez ele deu uma leve
batida na perna da mãe e depois tocou a com os lábios. Levava constantemente blocos
e outros objetos aos lábios. Houve uma semelhança quase fotográfica em seu
comportamento durante as duas visitas, com uma importante exceção a ser levada em
conta: aos quatro anos mostrou-se impressionado e afastou-se quando se acendeu um
fósforo em sua frente, enquanto aos cinco sua reação foi de saltar estaticamente.

CASO 8

A mãe de Alfred L. nos trouxe a criança em novembro de 1935, com três anos e meio
de idade e a seguinte queixa:
Ele tem demonstrado gradativamente uma tendência marcante para desenvolver um
interesse especial que domina completamente suas atividades diárias. Ele fala de outras
coisinhas quando o interesse subsiste mas fica descontente quando não é capaz de
entregar-se a ele (vendo-o entrando em contato com ele, fazendo desenhos sobre ele) e
é difícil obter sua atenção quando fica assim preocupado... Tem também sido um
problema seu grande apego ao mundo dos abjetos e o insucesso para desenvolver nele
uma dose comum de consciência social.
Alfred nasceu em maio do 1932, três semanas antes do prazo marcado. Nos primeiros
dois meses "a dieta alimentar causou considerável preocupação, mas, depois, ele se
refez rapidamente e tornou-se um bebê excepcional, grande e vigoroso". Sentou-se com
cinco meses e andou com quatorze.
A linguagem desenvolveu-se lentamente; ele parecia não ter interesse nela. Raramente
ele conta uma experiência, confunde pronomes, nunca faz perguntas em forma de
perguntas (com a devida inflexão). Quando fala, tem uma tendência a repetir
indefinidamente uma palavra ou declaração. Também nunca diz uma sentença sem
repeti-la. Ontem quando olhava um gravura disse uma porção de vezes: "algumas
vacas estão na água". Nós contamos, por cinco vezes repetiu a mesma frase e parou
para depois começar de novo. Nós temos tido uma boa dose de "preocupações".
Ele choraminga quando pomos o pão no forno para torrar. Fica com medo que ele
queime e também que machuque. Fica perturbado quando o sol se põe. Fica aborrecido
por que a lua nem sempre aparece no céu à noite. Prefere brincar sozinho; desce de um
brinquedo mecânico assim que outra criança se aproxima. Gosta de trabalhar em algum
projeto com caixas grandes (fazer um bonde, por exemplo) e não quer que ninguém
interfira ou toque nele.
Quando impedido de chupar infantilmente o polegar por causa de artificiosas invenções
mecânicas, substituía o ato colocando vários objetos na boca. Não foram raras as
ocasiões em que achamos seixos em suas fezes. Pouco antes de seu segundo
aniversário, ele engoliu algodão de um coelho de páscoa, aspirando-o de forma que foi
necessário fazer traqueostomia. Alguns meses mais tarde, engoliu um pouco de
querosene "de efeito não nocivo".
Alfred era filho único. O pai, com trinta anos na data de seu nascimento, "não se sentia
bem quando ficava a sós com pessoas, era desconfiado, magoava-se facilmente,
enfurecia-se facilmente, tinha que ser arrastado para visitar os amigos, ocupava o
tempo livre lendo, cuidando do jardim e pescando". Ele é químico e advogado. A mãe,
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da mesma idade, era "psicóloga clínica" bastante obsessiva e excitável. Os avós


paternos morreram cedo; o pai foi adotado por um ministro. O avô materno, um
psicólogo, era severamente obsessivo, tinha inúmeros tiques, "lavava as mãos
constantemente, demorava-se na análise de uma única linha, tinha medo de ficar
sozinho e de estimulantes do coração". A avó, "pessoa excitável e explosiva, que fez
várias palestras públicas e publicou vários livros, jogadora solitária, imensamente
preocupada com assuntos financeiros". Um tio por parte de mãe fugiu de casa e da
escola para juntar-se aos fuzileiros navais, tendo mais tarde, se encontrado ajustando-
se esplendidamente à vida comercial".
A mãe deixou o marido dois meses depois do nascimento de Alfred. A criança ficou com
a mãe e os avós maternos. "Na casa há uma creche e um jardim de infância (que a mãe
vai tocando), o que cria um pouco de confusão para a criança". Alfred não viu o pai até
os três anos e quatro meses de idade, quando a mãe decidiu que "ele devia conhecer o
pai" e "tomou providências para que este viesse à casa ver o menino".
Depois de entrar no consultório, Alfred não prestou atenção naquele que o examinava.
Descobriu imediatamente um trem na prateleira dos brinquedos, pegou-o e pôs-se a
ligar e desligar os vagões de maneira lenta e monótona. Repetia várias vezes "mais
trem - mais trem - mais trem". Contou sucessivamente as janelas de um vagão: "uma,
duas janelas - uma, duas janelas - uma, duas janelas - quatro janelas, oito janelas".
Sua atenção não se desviava do trem. Tentou-se um teste de Binet numa sala onde não
havia trens. Foi possível, com muita dificuldade, vez ou outra, penetrar além de sua
preocupação. Ele finalmente cedeu em muitas ocasiões de uma forma que indicava
claramente que queria acabar com aquela intrusão; isto se repetiu em cada item da
tarefa. No fim foi registrado um Q.I. de cento e quarenta.
A mãe não o trouxe de volta depois desta primeira consulta por causa de "sua contínua
aflição quando se defrontava com um membro da equipe médica". Em agosto de 1938,
ela mandou, em resposta a uma solicitação, um relato escrito de seu desenvolvimento.
Foi extraído o seguinte trecho deste relato:
Ele é chamado de lobo solitário. Prefere brincar sozinho e evita grupos de crianças para
brincar. Não presta muita atenção aos adultos, exceto quando quer ouvir estórias. Evita
competição. Ele lê estórias simples para si mesmo. Tem muito medo de ferir-se, fala
muito sobre o uso da cadeira elétrica. Entra em pânico quando alguém, acidentalmente,
cobre o rosto.
Alfred voltou à baila outra vez em junho de 1941. Seus pais decidiram viver juntos.
Antes disso, o garoto havia estado em onze escolas diferentes. Esteve muitas vezes de
cama em decorrência de resfriados, bronquite, catapora, infecção por estreptococus,
empetigo e uma condição vagamente descrita que a mãe - não obstante afirmações
contrárias de vários pediatras - insistia tratar-se de "febre reumática". Enquanto esteve
no hospital, disseram que se portou "como um paciente maníaco". A mãe tinha que
bancar o psiquiatra e fazer diagnósticos psiquiátricos do filho. Do relatório da mãe, que
combinava uma obsessiva enumeração de ocorrências pormenorizadas com
"explanações" que tentavam provar a normalidade de Alfred, foram coletadas as
seguintes informações:
Ele começou a brincar com crianças menores do que ele, "tratando-as como bonecos - é
tudo". A criança foi empanturrada de música, de dramas e recitais e teve uma
formidável ressaca de memória não podendo nem relatar:
Ele tem muitos medos, quase sempre ligados a barulhos mecânicos (moedor de carne,
aspirador de pó, carros na rua, trens, etc.). Geralmente ele voa, com um interesse
obsessivo para as coisas de que tem medo. Agora ele tem os latidos estridentes do
cachorro.
Alfred ficou extremamente tenso durante toda a entrevista e muito seriamente disposto,
e tanto, que se não fosse por sua voz juvenil, teria dado a impressão de um
homenzinho ansioso e preocupado. Ao mesmo tempo, estava muito impaciente e deu
mostras de forçar a fala que nada tinha de pessoal em si mas se constituiu de perguntas
obsessivas sobre janelas, sombras, salas escuras, e especialmente sobre a sala de raio
X. Ele nunca esboçou o mais leve sorriso. Nenhuma mudança de tópico, o desviaria de
seus tópicos de luz e sombra. Mas na verdade, ele foi respondendo as perguntas do
médico, que freqüentemente tinham que ser repetidas, várias vezes, como numa
espécie de barganha - "Você responde minha pergunta que eu respondo a sua". Ele era
esmeradamente específico em suas definições. Um balão "é feito de fibra de borracha e
tem gás. Às vezes eles sobem para cima e às vezes eles podem ser guiados, e quando
tem um furo neles, eles explodem; e se as pessoas os apertam eles explodem. Não é
assim mesmo?". "Um tigre é uma coisa animal. Listado como um gato, pode arranhar
como gente selvagem, vive na selva ou na floresta. Principalmente na selva. Não é
isso?". Essa pergunta "Não é isso?", devia ser definitivamente respondida; havia aí um
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desejo muito sério de confirmação de que as definições tinham sido suficientemente


completas.
Ele fazia constantemente confusão a respeito do significado das palavras. Perante uma
mostra de gravura e a pergunta, "Sobre o que é esta gravura?" ele retrucou, "Gente se
movendo sobre".
Certa vez ele parou e perguntou, todo perplexo, por que o "Hospital John Hopkins"
estava estampado no folheto que continha sua história : "Por que eles tem que contar
isto? ". Este assunto, para ele, era um problema verdadeiro, de grande importância,
sobre o qual se devia pensar e discutir, "Já que pegamos a história no hospital, por que
é necessário que o nome apareça em cada página? A pessoa que escreveu não sabia
onde estava escrevendo? O clínico que o examinava, de quem ele se lembra de sua
visita há seis anos atrás, era para ele nada mais e nada menos que uma pessoa
destinada a responder suas perguntas obsessivas sobre luz e sombra.

CASO 9

A mãe de Charles N. o trouxe a nós em 2 de fevereiro de 1943, com 4 anos de idade, e


sua principal queixa era de que "O que mais me transtorna é o fato de não conseguir
entender meu filho". Ela apresentou seu relatório dizendo: Estou tentando seriamente
não governar minhas observações pelo conhecimento profissional que no momento faz
parte de minha própria maneira de pensar.
Como criança o menino era inativo, "lento e apático". Deitado no divã, ali ficou, com os
olhos arregalados, só olhando. Agia como que hipnotizado. Parecia concentrar-se em
fazer uma coisa de cada vez. Suspeitou-se de hipotiroidismo, e lhe foi ministrado
extrato de tiróide sem ter havido mudança no quadro geral.
Seu prazer e gosto pela música, encorajou-me a tocar discos. Quando ele tinha um ano
e meio de idade, podia diferenciar dezoito sinfonias. Reconhecia o compositor, logo que
o primeiro movimento começava. Ele dizia "Beethoven". Com a mesma idade, começou
a girar brinquedos, tampas de garrafa e potes a toda hora. Tinha grande habilidade na
mão esquerda para fazer girar cilindros. Ao olhá-los girar, ficava severamente excitado e
pulava para cima e para baixo em êxtase. Agora anda interessado em refletir luz nos
espelhos e caçar os reflexos. Quando ele fica interessado em algo, ninguém pode
demovê-lo. Não presta atenção em mim e dá mostras de não me reconhecer quando
entro na sala...
O mais impressionante de tudo é seu desligamento e sua inacessibilidade. Ele anda
como se estivesse nas sombras, vive em um mundo próprio no qual não se pode
penetrar. Nenhum senso de relacionamento com as pessoas. Ele passou por um período
em que as notava - mas ele mesmo nunca dá nada de si. Toda sua conversa é uma
réplica de algo que já lhe foi dito. Ele fala de si próprio na segunda pessoa e agora, às
vezes, na terceira; ele diz "ele quer" - e não "eu quero".
É destruidor; a mobília de seu quarto está em pedaços. Ele pode quebrar um lápis
púrpura em duas partes e dizer "Você tinha um bonito lápis púrpura e agora tem dois
pedaços. Veja o que você fez".
Ele desenvolveu uma obsessão por fezes, que esconde em qualquer lugar ( por
exemplo, nas gavetas) e me arrelia se ando pelo quarto: "Você manchou suas calças,
agora não pode ter de volta seus lápis!".
Para culminar, ele ainda não está treinado para usar o banheiro. Ele nunca se limpa na
creche, fazendo isso quando chega em casa. O mesmo acontece quando se molha. Ele
se orgulha de ficar molhado, pula de cá e de lá, dizendo, "olha para a grande poça que
ele fez".
Quando está no meio de outras pessoas, nunca olha para elas. Julho passado, tínhamos
em casa um grupo de pessoas, quando Charles entrou, parecia um potro fora do
cercado. Ele não prestou atenção nelas, mas sentiu sua presença. Inventou uma voz e
cantou e algumas pessoas não notaram nenhuma anormalidade na criança. Na escola,
ele nunca se mistura a um grupo, desliga-se do resto das crianças exceto quando há
reunião; se houver música, ele vai para a primeira fila e canta.
Ele tem uma estupenda memória para palavras. O vocabulário é bom, salvo o uso de
pronomes.
Ele nunca inicia uma conversa e sua conversa é limitada - vai somente até onde os
objetos vão.
Charles nasceu normalmente, foi uma criança planejada e desejada. Ele sentou com
seis meses e andou com menos de quinze meses - "um dia ficou de pé e andou - sem
engatinhar preliminarmente". Não teve nenhuma das costumeiras doenças infantis.
Charles é o mais velho dos três filhos. O pai, que foi até o colegial, é um comerciante de
roupas. Descrito como "uma pessoa que se fez sozinha, gentil, calmo, uma pessoa
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tranqüila". "A mãe tem um escritório bem sucedido em Nova Iorque, onde trabalha com
discos e livros de teatro e é de uma notória serenidade". As outras duas crianças tinham
28 e 14 meses de idade na época da visita de Charles à clínica. A avó materna, "muito
dinâmica, enérgica, hiperativa, quase hipomaníaca", escreveu e compôs um pouco. A tia
materna, "psiconeurótica, muito brilhante, dada a histerias", escreveu poemas e
canções. Outra tia foi mencionada como "a amazona da família". Um tio materno, um
psiquiatra, tem considerável talento musical. Os parentes do pai foram descritos como
"gente simples e comum".
Charles era um menino bem desenvolvido, de aparência inteligente, com boa saúde
física. Usava óculos. Quando ele entrou no consultório, não prestou a mínima atenção
nas pessoas presentes ( 3 médicos, sua mãe e seu tio).
Sem olhar para ninguém, disse, "eu quero um lápis!", e pegou um pedaço de papel da
escrivaninha e escreveu algo semelhante ao número 2 ( um grande e saliente calendário
mostrava o número 2 - estávamos no dia 2 de fevereiro). Ele havia trazido consigo um
exemplar do Readers Digest e estava fascinado pela estampa de um bebê, e disse,
"olhem para este bebê - ele não é engraçado?", inúmeras vezes, acrescentando de vez
em quando, "não é engraçado? não é um doce?".
Quando lhe tiraram o livreto, ele resistiu à mão que o pegou, sem olhar para a pessoa
que havia feito isso. Quando picado por um alfinete, disse "o que é isso?" e,
respondendo a própria pergunta "é uma agulha".
Ele olhou timidamente para o alfinete, encolheu-se com outras picadas, mas em
nenhum momento pareceu associá-las à pessoa que segurava o alfinete, quando o
Readers Digest lhe foi tomado, jogado no chão e um pé foi posto em cima, ele tentou
remover aquele pé como se fosse um objeto a parte que estivesse interferindo, sempre
sem ligá-lo à pessoa a quem o pé pertencia. Ele então virou-se para a mãe e disse, "eu
dou ele pra você!".
Quando se confrontou com uma prancha de Seguin, interessou-se principalmente pelos
nomes das formas antes de colocá-las nos devidos buracos. Várias vezes ele fez as
formas girarem, saltando com excitação para cima e para baixo enquanto elas estavam
em movimento. Toda a performance foi muito repetitiva. Ele nunca usou a linguagem
como um meio de comunicação com as pessoas. Lembrava de nomes como "octógono",
"losango", "bloco oblongo", mas assim mesmo continuava perguntando "o que é isto?".
Ele não respondia ao ser chamado e não olhava para a mão quando ela lhe falava.
Quando os blocos foram retirados, ele guinchou, bateu os pés e gritou. "Eu darei eles
para você!" (significando "Você deve dá-los para mim"). Tinha movimentos muito ágeis.
Charles foi matriculado na escola Devereux.

CASO 10

John F. Foi examinado pela primeira vez em 13 de fevereiro de 1940, com dois anos e
quatro meses de idade.
O pais disse: "O que mais me preocupar é a dificuldade para alimentá-lo. Durante os
primeiros dias de vida, não mamava satisfatoriamente. Houve uma longa história na
tentativa de fazê-lo aceitar o alimento. Tentamos tudo o que foi possível. Ele sempre foi
imaturo. Com 20 meses começou a andar. Chupa o polegar, range os dentes
freqüentemente, e rola de um lado para o outro na cama antes de dormir. Se não
fizermos o que ele quer, berra e faz alarido".
John nasceu a 19 de setembro de 1937 com sete libras e meia de peso. Foi
hospitalizado por causa de problemas com alimentação por várias vezes. Nenhuma
desordem física foi constatada - Exceto a da fontanela anterior que não fechou até que
ele tivesse dois anos e meio de idade. Sofria constantemente de resfriados e otite média
o que pedia uma meringotomia bilateral. John foi filho único até fevereiro de 1943. O
pai, um psiquiatra, é "uma pessoa calma, plácida, emocionalmente estável, o elemento
moderador da família. A mão, que fez até o colegial, trabalhava como secretária no
laboratório de patologia antes de casar, é "um tipo de pessoa hipomaníaco; antes de
mais nada, encara a todos como espécimes patológica. Durante a gravidez mostrou-se
muito apreensiva, com medo de não sobreviver aos trabalhos de parto". A avó paterna
é "obsessiva em matéria de religião, e lava as mãos a toda hora. A avó materna era
contadora.
John veio ao consultório com os pais. Perambulou pela sala constante e incertamente.
Exceto pelos rabiscos expontâneos, jamais deu mostras de relacionar dois objetos entre
si. Não respondeu aos comandos mais simples, salvo quando os pais, com muita
dificuldade, gesticulavam um Tchau - tchau, bateram um bolo, esconde-esconde,
desajeitadamente. Sua atitude típica para com os objetos era atirá-los no chão.
Três meses mais tarde, seu vocabulário melhorou notavelmente, embora a articulação
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se mostrasse defeituosa. Leves tendências obsessivas foram observadas, como, por


exemplo, empurrar para o lado a primeira colherada de cada travessa. Sua excursão
pelo consultório foi superficial, porém determinada.
No final do seu quarto ano, ele estava apto para fazer um tipo muito limitado de contato
afetivo e mesmo assim, com um número bastante reduzido de pessoas. Uma vez
estabelecido tal relacionamento, tem que prosseguir através dos mesmos moldes. Ele
era capaz de formar sentenças elaboradas e gramaticalmente corretas, mas usava o
pronome da segunda pessoa quando se referia a si mesmo. Ele fazia uso da linguagem
não como meio de comunicação, mas sobretudo como uma repetição de coisas que
ouvira, sem alterar o pronome pessoal. Tinha uma obsessividade marcante. A rotina
diária devia ser seguida rigidamente; a mais leve mudança no preestabelecido
provocava explosão e pânico. a repetição de sentenças não tinha fim. Ele possuía um
excelente traquejo de memória e podia recitar muitas preces, rimas infantis e canções
"em línguas diversas"; a mão colaborou muito para encher este estofo e ficava
orgulhosa com estas "façanhas": "ele reconhece os discos pela cor da capa, e ao
identificar um lado lembra-se do que tem no outro". Aos quatro anos e meio, começou
aos poucos, a utilizar pronomes adequadamente. Muito embora seu interesse direto
recaísse somente sobre objetos, ele empenhou-se seriamente em atrair a atenção do
clínico (Dra. Hilde Bruch) e em receber seu aplauso. Porém nunca dirigiu-se a ela direta
e espontaneamente. Ele desejava assegurar-se da literal mesmice do ambiente,
conservando portas e janelas fechadas. Quando sua mão abriu a porta "para que sua
obsessão se manifestasse, ele tornou-se violento - queria fechá-la de novo - e,
finalmente, quando houve outra interferência, impotente, desatou a chorar, totalmente
frustrado. Ficava extremamente aborrecido quando via algo quebrado ou incompleto.
Descobriu dois bonecos aos quais nunca havia prestado atenção antes. Notou que um
deles não estava com o chapéu e ficou muito agitado vagando pela sala em busca do
chapéu. Quando este foi recuperado em outro contato, ele perdeu, imediatamente, todo
o interesse pelos bonecos.
Com cinco anos e meio, já dominava bem o uso dos pronomes. Começara a se
alimentar satisfatoriamente. Vendo certa vez, várias fotos no escritório, perguntou ao
pai, "quando eles vão sair daí e chegar até aqui?".
Ele levava este assunto muito a sério. Seu pai tinha dito algo sobre os quadros que
tinham em casa nas paredes. Isso perturbou John um bocado. Ele corrigiu o pai: "Eles
estão perto da parede", (mas, para ele, parecia significar "em cima" ou "no alto").
Quando viu um penny, disse "Penny. é onde vocês jogam boliche" . Nós lhe dávamos
pennies quando ele derrubava as garrafas ao jogar com o pai em casa.
Ele viu um dicionário e disse para o pai: "É aí que você deixou o dinheiro?".
Certa vez o pai tinha deixado dinheiro em um dicionário e pedido a John que informasse
a mãe sobre isso. Seu pai assobiou uma melodia, e John instantânea e corretamente a
identificou como o "concerto de violino de Mendelsohn. Embora pudesse definir coisas
como grande ou bonito, era totalmente incapaz de fazer comparações. (Qual a linha
maior? o rosto mais bonito? etc.).
Em dezembro de 1942 e janeiro de 1943 ele teve duas séries de convulsões que
comprometeram mais o lado direito, conjugadas com o desvio dos olhos para a direita e
paralisia transitória do braço direito. Um exame neurológico acusou anormalidades.
Suas áreas oculares estavam normais. Um eletroencefalograma indicou "distúrbios
focais na região occipital esquerda", mas "boa parte do registro não pôde ser lida por
causa das contínuas artificialidades devidas à falta de cooperação da criança".

CASO 11

Elaine C. foi trazida pelos pais em 12 de abril de 1939, com a idade de 7 anos e 2
meses, por causa de seu "desenvolvimento incomum": "Ela é desajeitada. Se dá a todos
os tipos de abstração. Não compreende os brinquedos das outras crianças, não se
interessa pelas estórias que lê para ela, nada a admira e anda sozinha, é
particularmente atraída por animais de toda espécie, às vezes os imita pondo-se de
quatro no chão e fazendo estranhos ruídos".
Elaine nasceu em 3 de fevereiro de 1932, dentro do prazo. Parecia saudável,
alimentava-se bem, ficou de pé com 7 meses e andou com menos de um ano. Já
pronunciava quatro palavras no fim do primeiro ano de vida mas não fez progressos no
desenvolvimento lingüístico nos quatro anos seguintes. Suspeitou-se de surdez, mas a
hipótese foi logo descartada. Por causa de uma doença febril aos 13 meses, suas
dificuldades crescentes foram interpretadas como desordem no comportamento
postencefálico. Outros condenam a mãe, acusando-a de tratar inadequadamente da
criança. Oligofrenia foi outro diagnóstico. Por 18 meses ela tomou remédio para a
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pituitária anterior e tiróide. "Alguns médicos", levados pela fisionomia inteligente de


Elaine, "pensaram que ela era uma criança normal e disseram que superaria isto".
Com dois anos ela foi para um creche, onde fazia as coisas à sua maneira e não como
os outros. Por exemplo, ela bebeu água e comeu uma planta quando estavam sendo
ensinados a cuidar de flores. Desenvolveu um prematuro interesse por gravuras de
animais. Embora geralmente agitada, podia ficar horas concentrada, olhando tais
gravuras, principalmente as gravadas em cobre".
Quando ela começou a falar, com aproximadamente 5 anos, valeu-se de início de
sentenças completas conquanto simples, que não passavam de "frases mecânicas", não
relacionadas com a situação presente, de cunho peculiar e metafórico. Ela tinha um
vocabulário excelente, sabia não só os nomes mas como "classificar" animais. Não
usava os pronomes corretamente, mas usava os plurais e tempos de verbo bem. "Não
conseguia empregar as negativas mas sabia o seu significado quando os outros as
usavam".
Havia muitas peculiaridades em seu relacionamento com situações:
Ela pode contar, mecanicamente. Pode por a mesa se se disser o nome ou enumerar os
comensais, mas não pode pô-la "para três". Se a mandarmos buscar um objeto
específico em um lugar determinado, não o trará se ele estiver em um lugar diferente,
ainda que visível.
Ela ficava amedrontada com barulhos e qualquer coisa que se movesse em sua direção.
Tinha tanto medo do aspirador que nem chegava perto do armário em que ele era
guardado e, quando o usávamos, corria para a garagem, cobrindo as orelhas com as
mãos.
Elaine era a mais velha dos dois irmãos. Seu pai, de 36 anos, formado em direito e
artes liberais e, três universidades (inclusive na Sourbonne), era detentor de direitos
autorais de publicidade, "uma dessas pessoas cronicamente magras cuja energia
nervosa consome-se rapidamente". Era ao mesmo tempo editor de uma revista. A mãe,
de 32 anos de idade, "uma pessoa com autocontrole, plácida e lógica", havia executado
trabalho editorial para uma revista antes de se casar. O avô materno era um editor de
jornal, a avó "emocionalmente instável".
Elaine foi examinada por um psicólogo de Boston com, aproximadamente, 7 anos de
idade. O diagnóstico estabeleceu que, entre outras coisas:
Sua atitude para com o profissional se configurou vaga e desligada. Ainda que
incomodada pela limitação, poderia bem ter empurrado para o lado uma mesa ou
lançado mão com um grito, mas não fez nenhum apelo pessoal de ajuda ou simpatia.
Nos momentos oportunos ela mostrou-se competente ao manejar seus lápis ou agrupar
peças para formar gravuras de animais. Pôde dar o nome de uma grande variedade de
figuras, incluindo elefantes, jacarés e dinossauros. Usou a linguagem em simples
sentenças estruturais, mas raramente respondeu a perguntas diretas. Enquanto
brincava, ia repetindo inúmeras vezes frases irrelevantes à situação imediata.
Fisicamente, a criança estava com boa saúde. Seu eletroencefalograma acusou
normalidade.
Quando examinada, em abril de 1939, ela, a pedido, trocou um aperto de mãos com o
médico, sem olhá-lo. Depois, correu para a janela e olhou para fora. Atendeu
automaticamente o convite para sentar-se. Sua reação perante as perguntas - depois de
repetidas várias vezes - foi a de ecolalia tipo reprodução de toda a pergunta ou, se era
longa demais, só a porção final. Ela não teve um contato real com as pessoas do
consultório. Sua expressão era suave, embora não desprovida de inteligência, e não
houve gesticulação comunicativa. A certa hora, sem mudar de fisionomia, ela disse
subitamente: "Os peixes não choram". Depois de algum tempo, levantou-se e saiu da
sala sem perguntas e sem mostrar medo.
Foi colocada no Child Study Home de Maryland, onde permaneceu por três semanas e
foi estudada pelos doutores Eugenia S. Cameron e Georg Frankl. Enquanto esteve lá,
aprendeu logo os nomes de todas as crianças, sabia a cor dos olhos delas, a cama em
que cada uma dormia e muitos outros pormenores afins sem nunca ter feito amizade
com elas. Quando levada aos playgrounds, ficava extremamente descontente e corria
de volta para seu quarto. Era muito agitada mas quando lhe permitiam olhar gravuras,
brincar sozinha com blocos, desenhar ou enfiar contas, podia entreter-se
satisfatoriamente por horas a fio. Qualquer barulho, qualquer interrupção, confundia-a.
Certa vez, quando sentada no vaso sanitário, ouviu pancadas nos encanamentos;
depois disso, por vários dias, mesmo que tivessem colocado um penico em seu quarto,
o intestino não funcionou, esperando ansiosamente por aquele barulho. Ela soltava
freqüentemente frases estereotipadas, como, por exemplo, "Dinossauros, não chorem",
"Camarão, tubarões, peixe e rochedos", "Camarões e garfos vivem nas barrigas das
crianças", "Borboletas vivem no estômago das crianças e em suas calcinhas também",
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"O peixe tem dentes afiados e morde as criancinhas", "Há guerra no céu", "Rochedos e
penhascos`, eu matarei" (arrebatando seu cobertor e chutando-o pela cama),
"Carrancas comem criancinhas e bebem óleo"; (rangendo os dent4es e girando em
círculos, muito excitada); "Carrancas tem sacos de leite"; "Cabeça de agulha. Cravo
pequerrucho. Tem uma perna amarela. Cortando o veado morto. Veneno de veado.
Pobre Elaine. Nada de girinos em casa. Homens quebraram a perna do veado",
(enquanto recortava a gravura de um veado de um livro), "Tigres e gatos". "Focas e
salamandras", "Ursos e raposas".
Seguem-se alguns trechos das observações:
Sua linguagem tem sempre a mesma qualidade. Sua fala nunca é acompanhada por
expressões faciais ou gestos. Ela não olha para o rosto de ninguém. Sua voz é peculiar,
não tem modulações e é um tanto rouca; ela solta as palavras de maneira abrupta.
Seus pronunciamentos são impessoais. Nunca emprega os pronomes pessoais da
primeira e segunda pessoas corretamente. Parece não ser capaz de conceber o
significado real dessas palavras.
Sua gramática é inflexível. Usa as sentenças exatamente como as ouviu, sem adaptá-
las gramaticalmente à situação atual. Quando diz "Quero que eu desenho uma aranha",
ela quer dizer "Quero que você desenhe uma aranha".
Sua fala é raramente comunicativa. Ela não se relaciona com crianças, nunca lhes
dirigiu a palavra, nunca foi amigável ou brincou com elas. Passa por elas como se
fossem seres estranhos, como alguém que passasse entre os móveis de uma sala.
Insiste sempre na repetição da mesma rotina. Interromper essa rotina é a causa mais
freqüente de explosões. Suas próprias atividades são simples e receptivas. Ela é capaz
de passar horas numa espécie de devaneio e parece ficar muito feliz com isso. Tem
tendências a movimentos rítmicos que são sempre masturbatórios. Ela se masturbava
mais em períodos de excitação do que durante os de calma felicidade... Seus
movimentos são ágeis e habilidosos.
Elaine foi colocada numa escola privada na Pennsylvania. Em carta recente, o pai
mencionou "algumas surpreendentes mudanças":
Ela é uma garota alta, robusta, com os mesmos olhos claros que a muito perderam
qualquer característica daquela selvajaria animal que periodicamente se mostrava na
época em que vocês a conheceram. Ela fala bem sobre quase todos os assuntos,
embora guarde ainda uma estranha entonação. Sua conversa ainda vagabundeia,
freqüentemente com um assunto divertido, e é apenas ocasional, deliberado e
anunciado. Ela lê muito bem, mas lê rápido, misturando palavras, sem pronunciá-las
claramente e sem lhes dar a devida ênfase. Seu leque de informações é bastante
extenso e a memória quase infalível. É obvio que Elaine não é "normal". Qualquer falha
em qualquer coisa a leva a um sentimento de derrota, de desespero e a um
momentâneo acesso de depressão.

DISCUSSÃO

As onze crianças (oito meninos e três meninas) cujas histórias foram apresentadas
resumidamente, oferecem, como era de se esperar, diferenças individuais segundo o
grau de seu distúrbio, a manifestação de traços específicos, a constelação da família e o
desenvolvimento passo-a-passo ocorrido ao longo dos anos. Mas, mesmo uma rápida
revisão do material contata a emergência de diversas características essenciais e
comuns e inevitáveis. Essas características formam uma única "síndrome", nunca antes
mencionado, que parece ser bastante rara e provavelmente mais freqüente do que o
indicado na exiguidade dos casos observados. É bem possível que algumas dessas
crianças tenham sido vistas como oligofrênicas ou esquizofrênicas. Na verdade, diversas
crianças de nosso grupo nos eram apresentadas como idiotas ou imbecis, sendo que
uma delas ainda reside numa escola estadual para oligofrênicos e duas outras foram
previamente consideradas esquizofrênicas.
A projeção, "patognomônica", a desordem fundamental está na incapacidade dessas
crianças de se relacionarem de maneira comum com pessoas e situações desde o
começo de vida. Os pais, ao referirem-se a elas, mencionam que sempre foram "auto-
suficientes"; "que vivem como que dentro da concha"; "que são mais felizes quando as
deixam sozinhas"; "totalmente absortas de tudo que lhes diz respeito"; "dando a
impressão de silenciosa sabedoria"; "falhando no desenvolvimento da cota normal de
consciência social"; "agindo quase como que sob hipnose". Esse não é, para crianças ou
adultos, um ponto de partida para iniciar uma conexão atual; não é uma "saída" para a
participação que se existia outrora. Há, desde o início, um extremo isolamento autista
que, sempre que possível, desconsidera, ignora, cala qualquer coisa que chega à criança
vinda de fora. Contato físico direto ou movimentos e barulhos, como ameaças, para
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quebrar o isolamento, são ainda tratados "como se não existissem", ou, se isto não
suficiente, ainda há o ressentimento penoso dessas crianças com a interferência que
lhes é aflitiva.
Segundo Gesell, uma criança de 4 meses de idade fez um antecipado ajuste motor
através da tensão facial e da atitude de encolher os ombros quando levantada de uma
mesa ou colocada sobre ela. Gesell comentou:
É possível que uma evidência menor definitiva de tal ajuste possa ser detectado antes,
no período neonatal. Embora um hábito possa ser condicionado pela experiência, a
oportunidade para a experiência é quase universal e a resposta é suficientemente
objetiva para merecer outras observações e registro.
Essa experiência universal é fornecida pela freqüência com que a criança é pega pela
mãe e outras pessoas. É entretanto altamente significativo o fato de que quase todas as
mães de nossos pacientes lembram-se de seu espanto com as suas crianças porque as
mesmas nunca manifestavam antecipadamente uma postura preparatória para serem
carregadas. Um pai lembrou-se que sua filha (Barbara) não mudou nem um pouco,
durante anos, sua fisionomia ou posição, quando os pais, ao chegar em casa depois de
algumas horas de ausência, aproximavam-se do berço falando com ela e tomando-a nos
braços.
A criança normal aprende em seus primeiros meses de vida a adequar o corpo à posição
em que fica quando carregada. Nossas crianças não eram capazes de fazer isso até os
dois ou três anos. Tivemos a oportunidade de observar Herbert, com 38 meses, em tal
situação. Sua mãe o informava, com termos apropriados, que ia levantá-lo, estendendo
os braços em sua direção. Não havia resposta. Ela o levantava assim mesmo e ele a
deixava fazê-lo, permanecendo, porém, completamente passivo como se fosse um saco
de farinha. Era a mãe que tinha que fazer toda a acomodação. Herbert era, naquele
tempo, capaz de sentar, ficar de pé e andar.
Oito das crianças alunas adquiriram a habilidade de falar ou na idade aprazada ou
depois de algum atraso. Três (Richard, Herbert e Virginia) permaneceram "mudos" em
tais circunstâncias. Nenhuma dessas oito crianças "falantes" serviu, num período de
anos, para transmitir um significado às outras. Elas eram, com exceção de John F.,
capazes de uma clara articulação e fonação. Nenhuma dificuldade com a nomeação dos
objetos apresentados; mesmo palavras longas e incomuns eram aprendidas com
notável facilidade. Quase todos os pais registraram, geralmente com muito orgulho, que
as crianças aprenderam cedo a repetir um excessivo número de rimas infantis, preces,
lista de animais, o rol de presidentes, o alfabeto de frente para trás e de trás para
frente e mesmo canções de ninar estrangeiras (francesas). Ao lado do recital de
sentenças contidas nos poemas feitos ou outras peças relembradas, houve um longo
hiato de tempo antes que elas começassem a juntar as palavras. Por outro lado, a
"linguagem" consistia principalmente em "nomear", em nomes que identificassem os
objetos, adjetivos que identificassem cores e números que indicavam nada de
específico.
Sua excelente memória para listas, acoplada à inabilidade para usar a linguagem de
outra forma, levou com freqüência os pais a abarrotá-las com mais e mais versos,
termos de zoologia e botânica, títulos de compositores que faziam sucesso em disco e
coisas semelhantes. Dessa maneira, desde o começo, a linguagem que as crianças não
usavam com propósito de comunicar-se era desviada consideravelmente para uma auto-
suficiência, uma semântica e conversa sem valor ou para um exercício de memória
totalmente distorcido. Para uma criança de 2 a 3 anos de idade, todas essas palavras,
números e poemas ("perguntas e respostas de catecismo presbiteriano", "concerto de
violino de Mendelssohn", o "Salmo Vinte e Três", a canção de ninar francesa, a página
de índice de uma enciclopédia), poderiam dificilmente ter mais significado do que uma
série de sílabas disparatadas para os adultos. É difícil saber com certeza se um
empanturramento desses flui essencialmente no processo da condição psicopatológica.
Mas também é difícil imaginar que ele não corte profundamente o desenvolvimento da
linguagem como ferramenta para receber e dar mensagens significativas.
No que concerne à função comunicativa da fala, não há diferença fundamental entre as
oito crianças falantes e as três mudas. Certa vez, a "Tia" de Richard entreouviu-o dizer
distintamente "Boa Noite". Um justificado ceticismo sobre essa observação foi mais
tarde agastado quando essa criança "muda" foi vista no consultório mexendo a boca
numa silenciosa repetição de palavras quando requisitado para dizer certas coisas. A
"muda" Virginia - sua companheira de chalé insistiu no assunto - foi ouvida quando dizia
repetidamente "chocolate", "marshmallow", "mama", "nenê".
Quando as sentenças são finalmente formadas, por um longo tempo as crianças
procedem como papagaios, repetindo as combinações de palavras ouvidas. Elas são, às
vezes, ecoadas imediatamente, mas quase sempre são "estocadas" pela criança e
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pronunciadas mais tarde. Pode-se, se se quiser, falar em ecolalia retardada. A afirmação


é indicada pela literal repetição de uma pergunta. "Sim" é um conceito que a criança
leva muitos anos para alcançar. Elas são incapazes de usá-lo como um símbolo geral de
assentimento. Donald aprendeu a dizer "Sim". Essa palavra então passou a "significar"
somente o desejo de ser colocado no ombro do pai. Foram precisos muitos meses para
que ele pudesse desligar a palavra "Sim" dessa situação específica e foi preciso mais
tempo ainda para que fosse capaz de usá-lo como um termo geral de afirmação.
O mesmo tipo de literalidade existe também no que toca a preposições. Quando
perguntado "Sobre o que é essa gravura?", Alfred replicou: "Pessoas movendo sobre".
John F. corrigiu uma declaração do pai sobre quadros na parede: os quadros estavam
"perto da parede". Donald T., quando pediram que deixasse algo cair, colocou-o
prontamente no chão. Aparentemente, o significado de uma palavra torna-se inflexível e
só pode ser usado com a conotação adquirida originalmente.
Não há dificuldade com os plurais e tempos de verbo. Mas a ausência de
espontaneidade na formação da sentença e a ecolalia tipo reprodução têm, em cada
uma das oito crianças falantes, dado ligar a um peculiar fenômeno gramatical.
Pronomes pessoais são repetidos exatamente como são ouvidos, sem as mudanças que
a situação alterada exige. A criança, quando a mãe falou "Agora vou dar o seu leite",
expressou o desejo pelo leite pronunciando exatamente as mesmas palavras.
Consequentemente, acaba falando de si própria como "você" e da pessoa a quem se
dirige como "eu". Não somente as palavras, mas também a entonação é conservada na
memória. Se a observação original da mãe foi feita em forma de pergunta, é
reproduzida com a forma gramatical e a inflexão de uma pergunta. A repetição de "Você
está pronta para a sobremesa?" significa que a criança já pode comer a sobremesa. Há
um jogo, uma frase que não deve ser mudada para cada ocasião específica. A fixação
pronominal permanece até o sexto ano de vida, quando a criança aprende
gradativamente a falar de si própria na primeira pessoa, e daquele a quem se dirige na
segunda. No período de transição ela, às vezes, volta à forma primitiva ou refere-se a si
próprio usando a terceira pessoa.
O fato de as crianças fazerem eco de coisas ouvidas não significa que "nos escutam"
quando lhe falamos. Freqüentemente são precisas numerosas reiterações de uma
pergunta ou ordem para que se obtenha uma simples resposta em eco. Nada menos do
que sete entre as crianças, por essa razão, foram consideradas surdas ou duras de
ouvido. Há uma toda-poderosa necessidade de não serem perturbadas. Tudo que vem
de fora até a criança, tudo que muda seu clima externo e mesmo interno representa
uma espantosa intrusão.
O alimento é a primeira intrusão vinda de fora sofrida pela criança. David Levy observou
que as crianças com fome de afeto, quando colocadas em lares adotivos onde são bem
tratadas, no início requerem quantidades excessivas de alimento. Hilde Bruch, em seus
estudos sobre crianças obesas, constatou que o fato de viver comento acontece quase
sempre quando as manifestações de carinho por parte dos pais são insuficientes ou
consideradas insatisfatórias. Nossos pacientes, ao contrário, ansiosos por manterem o
mundo exterior afastado, o confirmam, recusando comida. Donald, Paul, ("vomitaram
bastante durante o primeiro ano de vida"), Herbert, Alfred e John apresentaram severas
dificuldades alimentares desde o início de vida. Muitos deles, depois de uma luta mal
sucedida, constantemente interferindo em suas vidas, desistiram por fim de lutar e de
repente começaram a comer satisfatoriamente.
Outra intrusão vem dos grandes ruídos e objetos que se movem, que provocam, por si
sós, uma reação de horror. Triciclos, balanços, elevadores, aspiradores de pó, água
corrente, bicos de gás, brinquedos mecânicos, batedeiras de ovos e até o vento, podem,
conforme a ocasião, causar um enorme pânico. Uma das crianças tinha até mesmo
medo de aproximar-se do armário em que o aspirador de pó estava guardado. Injeções
e exames com estetoscópio ou otoscópio deram lugar a graves crises emocionais.
Porém, não e o barulho ou movimento em si que é temido. O transtorno eclode com o
barulho ou movimento que causa invasão ou ameaça à solitude da criança. A própria
criança pode alegremente fazer um barulhão como qualquer outro que ela rejeita e
movimentar objetos a seu bel prazer.
Mas os barulhos e movimentos da criança e todas as suas performances são tão
monotonamente repetidos como suas expressões verbais. Há uma limitação marcante
na variedade de suas atividades espontâneas. O comportamento da criança é governado
por um desejo ansiosamente obsessivo da manutenção da mesmice que ninguém, salvo
a própria criança pode romper em raras ocasiões. Mudanças na rotina, na disposição
dos móveis, na ordem em que todo dia as ações são executadas, pode conduzi-la ao
desespero. Quando os pais de John estavam se mudando para um nova casa, a criança
ficou desvairada quando viu os carregadores enrolarem o tapete de seu quarto. Ficou
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agudamente transtornado até o momento em que, na nova casa, viu seus móveis
arrumados do mesmo jeito que na outra. Parecia encantado, toda ansiedade
desaparecera de repente e ele andava de um lado para outro tocando afetuosamente
cada peça. Como blocos, contas e varetas tinham sido postos juntos de qualquer jeito,
logo foram reagrupados na forma antiga, embora não tivessem um traçado definitivo. A
memória da criança era fenomenal nesse particular. Depois de um lapso de vários dias,
uma multidão de blocos foi rearranjada na mesma forma desorganizada, com blocos da
mesma cor virados para cima, com cada gravura ou letra da superfície superior voltados
para a mesma direção, como antes. A ausência de um bloco ou a presença de um bloco
extra era comunicada imediatamente e havia um pedido imperativo de reposição da
peça faltante. Se alguém removesse um bloco, a criança se batia para tê-lo de volta,
entrando num acesso de pânico até reavê-lo e, depois, prontamente e com súbita
calma, após a tempestade, retornava ao desenho e recolocava o bloco.
Essa insistência na mesmice levou várias das crianças a tornar-se imensamente
perturbadas diante da visão de algo quebrado ou incompleto. Uma grande parte do dia
era passada na busca não só da mesmice das palavras de um pedido mas também na
mesmice da seqüência de eventos. Donald não saía da cama, depois de um cochilo, sem
antes dizer "Boo, diga: Don, você quer descer?" e a mãe fazia por concordar. Mas isso
não era tudo. O ato não era ainda considerado completo. Donald continuava: "Agora
diga: tudo bem". Sua mãe tinha que concordar mais uma vez por que senão haveria
berreiro até que a performance estivesse completa. Todo esse ritual era uma parte
indispensável do ato de levantar-se depois da sesta. Cada uma das outras atividades
tinham que ser completadas do princípio ao fim, da maneira segundo a qual haviam
começado originalmente. Era impossível voltar de um passeio sem cobrir a mesma
distância que antes tínhamos percorrido. A descoberta de uma ripa quebrada na porta
da garagem, em sua volta diária, transtornava tanto Charles que ele continuava
perguntando e falando sobre o fato semanas a fio, mesmo quando passava alguns dias
numa cidade distante. Uma das crianças notou uma fenda no teto do consultório e ficou
ansiosa , perguntando várias vezes sobre quem teria feito isso e nenhuma resposta a
tranqüilizava. Outra criança, ao ver um boneco com chapéu e outro sem, não teve
sossego até que o outro chapéu fosse encontrado e posto na cabeça desse boneco. Feito
isto, perdeu imediatamente o interesse pelos dois bonecos; a mesmice e a inteireza
tinham sido restauradas e tudo estava bem outra vez.
O temor da mudança e do incompleto parecem ser o principal fator na explicação da
monótona repetitividade e a resultante limitação da variedade da atividade espontânea.
Uma situação, uma performance, uma sentença, não são vistas como completas se não
forem executadas exatamente com os mesmos elementos que estavam presentes na
hora em que, antes, a criança se confrontou com eles. Se o menor ingrediente é
alterado ou removido, a situação não é mais a mesma e por essa razão não é mais
aceita ou é rechaçada com impaciência ou mesmo com uma reação de profunda
frustração. A incapacidade para experiências totais oriunda da completa falta de atenção
às partes constituintes de seja lá o que for, é algo remanescente de uma condição de
crianças com específica inadaptação para ler, que não respondem ao sistema moderno
de instruções configuradas de leitura e que precisam ser ensinadas a construir palavras
com seus elementos de alfabeto. Essa é talvez uma das razões porque essas crianças do
nosso grupo, que têm idade o bastante para ser imediatamente iniciadas na leitura,
tornam-se excessivamente preocupadas com "soletrar" palavras ou porque Donald, por
exemplo, ficou tão confuso com o fato de "light" e "bite", com a mesma qualidade
fonética, terem que ser soletradas de forma diferente.
Objetos que não mudam de aparência e posição, que conversam sua mesmice e nunca
ameaçam interferir na solidão da criança, são prontamente aceitos pela criança autista.
Ela tem uma boa relação com objetos; interessa-se por eles, pode brincar com os
mesmos por horas seguidas. Pode gostar muito deles ou ficar com raiva deles se, por
exemplo, não puder encaixá-los em um determinado espaço. Quando com eles, tem um
sentimento gratificante de poder e controle incontestáveis. Donald e Charles entraram
no segundo ano de vida exercendo esse poder, girando tudo que fosse possível girar e
pulando em êxtase quando viam o objeto rodopiar. Frederick "saltava com muita
alegria" quando jogava a bola de boliche e os pinos caíam. As crianças sentem e
exercitam o mesmo poder nos próprios corpos gingando ou fazendo outros movimentos
rítmicos. Essas ações acompanhadas de fervor extático indicam decididamente a
presença de uma gratificante masturbação orgástica.
O relacionamento das crianças com pessoas é completamente diferente. Todas as
crianças, depois de entrar no consultório, dirigiram-se imediatamente para os blocos,
brinquedos ou outros objetos, sem prestar a mínima atenção às pessoas presentes.
Seria errado dizer que não tinham consciência da presença delas. Mas as pessoas,
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enquanto deixaram a criança a sós, representaram a mesma figura que a carteira, a


estante de livros ou o arquivo. Quando se dirigiam à criança, esta não se importava. Ela
podia escolher entre não responder absolutamente nada e, se uma pergunta fosse
repetida com insistência, "dá-la por respondida" e continuar com o que estivesse
fazendo. Idas e vindas, mesmo que fosse da própria mãe, não pareciam ser percebidas.
A conversa que rolava pela sala não despertava o mínimo interesse. Se os adultos não
tentaram entrar nos domínios da criança, ela o fez, às vezes nos deles, porque
enquanto se movimentava para cá e para lá, tocava gentilmente uma mão ou um joelho
da mesma forma como, outras vezes, tocava de leve na mesa ou no sofá. Mas, sem
olhar para o rosto de ninguém. Se um adulto forçava uma intromissão e carregava um
bloco consigo ou pisava em um objeto que a criança precisava, ela reagia, tornava-se
irada contra a mão ou o pé do invasor, que era tratado de per si, e não como uma parte
de uma pessoa. Ela nunca dirigiu uma palavra ou um olhar ao dono da mão ou do pé.
Quando o objeto era recuperado, o ânimo da criança mudava abruptamente e tornava-
se plácido. Quando espetada, mostrava medo do alfinete mas não da pessoa que a tinha
picado. O relacionamento com os membros da família ou com as outras crianças não era
diferente do que aquele com as pessoas do consultório. Uma profunda solidão dominava
todo seu comportamento. O pai ou a mãe, ou ambos, podiam ausentar-se por uma hora
ou um mês; quando voltavam, nada indicava que a criança tivesse consciência de sua
ausência. Depois de muitos acessos de frustração, gradativa e relutantemente ela
aprendeu, quando não havia outra saída, a obedecer certas ordens, a cumprir deveres
da rotina. Quando havia visitas, ela se movimentava entre as pessoas "como uma
estranha" ou, como disse a mãe, como um potro fora do cercado. Quando com outras
crianças, não brincava com elas. Brincava sozinha quando elas estavam por perto e não
mantinham contato físico, fisionômico ou verbal com nenhuma. Não tomava parte em
jogos competitivos. Apenas ficava ali e, se às vezes acontecia de andar até a periferia
do grupo, logo se afastava e permanecia sozinha. Enquanto isso, o nome de todas as
crianças do grupo tornavam-se familiares para ela, que podia dizer a cor do cabelo de
cada uma delas e mais outros tantos detalhes individuais.
Há uma melhor afinidade com gravuras de gente do que com gente ao vivo. Gravuras,
afinal de contas, não podem interferir. Charles estava afetivamente interessado numa
gravura de criança estampada em uma revista de propaganda. Ele reparou repetidas
vezes na doçura e na beleza dela. Elaine era fascinada por gravuras de animais mas não
se aproximava de um animal vivo. John não fazia diferença entre uma foto e uma
pessoa de carne e osso. Quando ele olhava uma série de fotografias, perguntava muito
sério quando aquelas pessoas iam sair dali e vir para a sala.
Muito embora a maioria dessas criança fossem vez ou outra consideradas oligofrênicas,
eram todas, inquestionavelmente, dotadas de boas potencialidades cognitivas. Todas
tinham fisionomias impressionantemente inteligentes. Seus rostos davam a impressão,
ao mesmo tempo, de séria determinação e, na presença de outros, de ansiosa tensão,
provavelmente por causa de uma incômoda antecipação de possível interferência.
Quando sozinhas com os objetos, têm constantemente um plácido sorriso e uma
expressão de beatitude em seu rosto, às vezes acompanhados de um feliz embora
monótono cantarolar. O assombroso vocabulário das crianças falantes e excelente
memória para decorar poemas e nomes e a precisa recordação de modelos complexos e
seqüências, evidencia boa inteligência no sentido em que essa palavra é comumente
usada. O teste de Binet ou similares não puderam ser aplicados em razão do limitado
acesso. Todas as crianças, porém foram submetidas, com sucesso, às placas de Seguin.
Fisicamente, as crianças eram plenamente normais. Cinco delas tinham cabeças
relativamente grandes. Várias eram um tanto desajeitadas para andar e nas
performances de coordenação motora grossa, mas todas mostravam-se hábeis em
termos de coordenação muscular fina. Os eletroencefalogramas de todas acusaram
normalidade, salvo o de John, cujo fontículo anterior não se fechou até seus 2 anos e
meio e que com 5 anos e 1/4 teve duas séries de convulsões acentuadamente no lado
direito. Frederick teve um mamilo extra na axila esquerda; não houve outras
ocorrências no campo das anormalidades congênitas.
Há outro interessante denominador comum por trás da vida dessas crianças. Todas são
provavelmente de famílias muito inteligentes. Quatro pais são psiquiatras, um é um
brilhante advogado, outro é químico e técnico em leis, empregado do Departamento de
Patentes do governo. Um outro é um patologista de plantas, outro mais um professor de
florestas, um outro editor de publicidade que possui graduação em leis e estudou em
três universidades; outro ainda é um engenheiro de minas e um último um homem de
negócios bem sucedido. Nove dentre as onze mães tinham nível superior. Das duas que
tinham somente chegado à faculdade, uma era secretária em um laboratório de
patologia e a outra tocava um escritório de livros de teatro na cidade de Nova Iorque,
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antes de se casar. Entre as mães havia uma escritora freelance, uma física, uma
psicóloga, uma enfermeira graduada e a mãe de Frederick, que foi sucessivamente
agente de compras, diretora de estudos de secretariado numa escola de jovens e
professora de história. Entre os avós e parentes há muitos físicos, cientistas, escritores,
jornalistas e estudantes de arte. Todas essas famílias, salvo três, são mencionadas no
Quem é Quem na América ou no Homens Americanos de Ciências, ou em ambos.
Duas das crianças são judias, as outras são de descendência anglo-saxônica. Três são
filhos únicos, cinco são primeiros filhos numa família com duas crianças, uma outra é a
mais velha de três filhos, outra é a caçula de dois e finalmente uma outra é a
menorzinha de três.

COMENTÁRIOS

A combinação do autismo extremo, obsessividade, estereotipia e ecolalia oferece uma


ilustração completa que se conecta com alguns fenômenos básicos esquizofrênicos. O
diagnóstico de algumas desta crianças, vez ou outra, indicou esse tipo de distúrbios.
Mas a despeito das extraordinárias similaridades, a condição difere em muitos pontos de
todas as outras instâncias conhecidas da esquizofrenia infantil.
Antes de mais nada, mesmo nos casos registrados de início de esquizofrenia, incluindo
os de demência precocíssima de De Santis e de demência infantil de Heller, as primeiras
manifestações que se podiam observar eram fruto de uma média de dois anos de
estudo de desenvolvimento essencial; os históricos enfatizam especificamente uma
mudança gradual, maior ou menor, no comportamento do paciente. As crianças do
nosso grupo mostraram se exceção sua extrema solidão desde o começo de suas vidas,
não respondendo a nada que lhes viesse do mundo de fora. Isto fica caracteristicamente
expresso no relato recorrente sobre a deficiência da criança no assumir uma postura
antecipada ao ser levantada e a deficiência em se ajustar ao corpo da pessoa que a está
carregando.
Em segundo lugar, nossas crianças são capazes de travar e manter uma excelente e
"inteligente" relação com objetos que não ameaçam interferir em sua solidão, mas
ficam desde o início ansiosa e tensamente inacessíveis a pessoas com as quais, há
muito tempo, não têm qualquer tipo de contato direto afetivo. Se relacionar-se com
outra pessoa se tornar inevitável, então uma conexão é efetuada com a mão ou o pé
desta, como um objeto decididamente desligado e não com a pessoa em si.
Todas as atividades e formas de expressão das crianças são governadas rígida e
consistentemente pelo desejo poderoso de solidão e mesmice. Seu mundo deve ser,
para elas, feito de elementos que, uma vez experimentados em um certo lugar ou
seqüência, não podem ser tolerados em outro lugar ou seqüência; nem podem o lugar
ou seqüência ser tolerados sem todos os ingredientes originais e numa ordem idêntica
espacial ou cronológica. Por isso a reprodução de sentenças sem alterar os pronomes
segundo a ocasião. Por isso, talvez, também o desenvolvimento de uma memória
verdadeiramente fenomenal que permite à criança lembrar-se e reproduzir complexos
modelos "estapafúrdios", não importando o quanto de desorganização ali reine,
exatamente com a mesma forma com que foram montadas na origem.
Cinco de nossas crianças estão agora entre 9 e 11 anos. Salvo Vivian S., que foi jogada
numa escola para oligofrênicos, elas mostram um percurso muito interessantes. O
desejo básico de solidão e mesmice permaneceram essencialmente imutáveis, mas
houve um grau variante de emergir da solitude, uma aceitação de pelo menos algumas
pessoas dentro da esfera de consideração da criança e um suficiente aumento do
número de padrões experimentados para refutar uma prematura impressão da extrema
limitação do conteúdo do ideário da criança. Poder-se-ia, talvez, colocar isto desta
maneira: enquanto o esquizofrênico tenta resolver o seu problema caindo fora de um
mundo do qual fez parte e com o qual teve contato, nossas crianças vão se ajustando
gradualmente, vão estendendo suas antenas cautelosas para um mundo dentro do qual
têm sido completamente estranhas desde o começo. Entre 5 e 6 anos abandonam aos
poucos a ecolalia e aprendem espontaneamente a usar os pronomes pessoais com
referência adequada. A linguagem trona-se mais comunicativa, primeiro no que toca o
exercício de perguntas e respostas, e depois a maior espontaneidade na formação das
sentenças. O alimento é recebido sem dificuldade. Barulhos e movimentos são mais
tolerados do que anteriormente. Os acessos de pânico acalmam-se. A repetição assume
a forma de preocupações obsessivas. O contato com um limitado número de pessoas
fica estabelecido de duas maneiras: as pessoas são incluídas no mundo da criança à
medida que satisfazem suas necessidades, respondem suas perguntas obsessivas, as
ensinam a ler e a fazer coisas. Segundo, embora as pessoas sejam ainda encaradas
como um transtorno, suas perguntas são respondidas e suas ordens obedecidas
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relutantemente, com a conclusão de que será melhor agüentar tais interferências e logo
estar livre para voltar para a ainda muito desejada solidão. Entre as idades de 6 e 8
anos, as crianças começam a brincar em grupo, não ainda com os outros membros do
grupo de brinquedo, mas pelo menos com periferia deste. A habilidade de ler é
adquirida rapidamente, porém, as crianças lêem de maneira monótona e a estória ou a
gravura movimentada é experimentada mais em partes desconexas do que em sua
coerente totalidade. Tudo isto faz a família sentir que, apesar da patente "diferença" das
outras crianças, há progresso e melhora.
Não é fácil avaliar o fato de que todos os nossos pacientes têm vindo de pais
sumamente inteligentes. Uma coisa é certa: há uma grande dose de obsessividade por
trás dessas famílias. Os diários bastante pormenorizados, os relatos e as freqüentes
recordações, depois de vários anos, de que as crianças aprendiam a recitar vinte e cinco
perguntas e respostas do Catecismo Presbiteriano, a cantar trinta e sete canções de
ninar ou a reconhecer dezoito sinfonias, fornecem-nos um retrato fiel da obsessividade
dos parentes.
Um outro fato destaca-se visivelmente. Em todo o grupo, há muitos pais e mães
realmente amáveis. A maioria, pais, avós e parentes são pessoas altamente
preocupadas com abstrações de natureza científica, literária e artística e limitado
interesse genuíno por gente. Mesmo alguns dos casamentos mais felizes resumiram-se,
antes de mais nada, a frios e formais tratos. Três casamentos foram tristes equívocos. A
pergunta que fazemos é se, ou até que ponto, esse fato contribuiu para a condição das
crianças. A solidão das mesmas desde o seu começo de vida torna difícil atribuir o
quadro inteiro exclusivamente ao tipo das primeiras relações matrimoniais com nossos
pacientes.
Devemos, então, assumir que essas crianças vieram ao mundo com inata inabilidade
para travar contato afetivo normal, biologicamente fornecido, com pessoas, da mesma
forma que outras crianças vêm ao mundo com inatas deficiências físicas ou intelectuais.
Se essa conjectura for correta, um novo estudo de nossas crianças poderá ajudar-nos a
fornecer critérios concretos relativos a noções ainda difusas sobre os componentes
constitucionais da reatividade emocional. Por hora parece que temos exemplos de pura
cultura sobre distúrbios autistas inerentes ao contato afetivo.

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